Você está na página 1de 464

Sinopse

O que você faria para ganhar a sua liberdade?


Esta é a pergunta que envia a serva, Martise de Asher, em uma
jornada perigosa. Em troca de sua liberdade, ela negocia com
seus mestres, os magos sacerdotes do Conclave, para espionar o
feiticeiro renegado, Silhara de Neith. Os sacerdotes querem que
Martise exponha a traição do feiticeiro e o entregue para a justiça
do Conclave. Um negócio arriscado, mas um que ela aceita sem
hesitação – até que ela se apaixona por seu alvo.

Silhara de Neith, Mestre dos Corvos, é um homem desesperado. O


deus chamado Corruption invade sua mente, o seduzindo com
promessas de poder ilimitado se ele o ajudar a ganhar o domínio
sobre o mundo. Silhara luta contra a influência de Corruption e
procura por formas de destruir o deus. Quando o Conclave envia
Martise como sua aprendiz para ajudá-lo, sabe que ela é uma
espiã. Agora ele luta uma guerra em duas frentes – contra o deus
que quer possuí-lo e a aprendiz que iria traí-lo.

Mago e espiã procuram em conjunto por um ritual que possa


aniquilar Corruption, mas ao fazerem, descobrem segredos sobre
eles que podem condená-los. Silhara deve decidir se o seu destino
e o destino das nações, vale a alma da mulher que veio a amar. E
Martise deve escolher entre a escravidão ou a liberdade, às custas
da vida de um homem. E amor.
MASTER OF CROWS
− Eu não consigo elogiar este livro o suficiente! ... Master Of Crows
é um conto exuberante, completamente apaixonante. Eu lerei de novo
e de novo!... − O profundo e obscuramente sexy Silhara é um dos
meus heróis favoritos de todos os tempos! Toda vez que eu como
uma laranja, penso nele com um suspiro... Martise é tudo o que você
poderia querer em uma heroína.
− Robin L. Rotham
Autor de Alien Overnight
Martise respirou profundamente, encantada com sua
primeira visão do Mestre dos Corvos.
Uma chama acessa no quarto sujo, queimava com um
fogo constante. A túnica longa escarlate girava em torno
de seus tornozelos como uma fumaça cor de sangue.
Magro e mais alto do que a maioria dos homens, usava
seu cabelo preto em uma trança apertada que caia sobre
seu ombro. O estilo severo acentuava um rosto bronzeado,
nem bonito, nem amável, mas esculpido da mesma rocha
espalhada pelo pátio. Seu nariz e seus olhos negros
pareciam com os de uma águia, lembrava aqueles
nômades Kurman, que às vezes via nos mercados,
vendendo seus tapetes e armamento. Sua barriga apertou
com medo quando ele olhou para ela e Cumbria com má
vontade.
— Vejo que você não se perdeu. Uma pena...
Master Of Crows
De
Grace draven

Todos os nomes, personagens, locais e incidentes são produtos da


imaginação do autor, ou que tenham sido utilizados ficticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas reais vivas ou mortas, locais ou
eventos é mera coincidência.

Dedicações
Este livro é dedicado aos meus editores, Lora Gasway e Mel
Sanders. Senhoras, sem a sua ajuda, eu nunca teria sido capaz de
escrever “The End”. Obrigada pelo seu tempo, sua paciência, suas
sugestões e acima de tudo pela sua maravilhosa amizade.
Para minha irmã, Kim Sayre, que leu quase tudo o que escrevi e foi
uma das minhas fãs mais “entusiasmada”. Obrigada, garota.
Por último, mas não menos importante, um imenso obrigada a
Louisa Gallie que encontrou o coração deste livro e trouxe-o para
a vida vívida em sua pintura impressionante Beyond Neith.
Capítulo
Um
— Renda-se a mim, Mestre dos Corvos, e farei de você o senhor dos
reinos s.
Silhara de Neith gemeu e se dobrou, apertando sua barriga. O
sangue escorria de seu nariz e pingava nas pedras desgastadas da
varanda. A voz do deus, familiar e traiçoeira, envolveu sua mente.
Paralisado sob os raios de uma estrela amarelada, se apoiou contra
o parapeito em ruínas, lutando contra um mal que os sacerdotes
acreditavam não mais existir.
O deus o seduziu, encheu sua cabeça com imagens fantásticas e
terríveis – sangue de sacrifícios acumulado em uma pedra, os
exércitos marchando por um deserto queimado pelo sol, um mar de
pessoas passando fome ajoelhadas como uma forma de adoração.
Magia surgiu através dele, um poder colossal criado do ódio.
Imparável. Aterrorizante. Estava embriagado com o conhecimento
de que os exércitos se moviam às suas ordens, que as pessoas o
adoravam a seus pés. As vítimas sacrificadas foram oferecidas ao
deus, Silhara reinava sobre tudo diante dele.
A voz cantou sua canção malévola. — Você será um imperador
incontestável, um feiticeiro inigualável.
Silhara rangeu os dentes contra a agonia que dividia seu crânio. — E
ser o servo de um deus mendigo? — Seus lábios sangraram com a
pergunta. — Eu não vou me render.
A suave risada ecoou dentro dele. — Você vai, Avatar1. Você sempre
irá.
O deus o soltou de repente, um puxão doloroso que quase sugou a
medula de seus ossos. Gritou, caindo de joelhos. As visões e a voz
desapareceram, deixando uma impureza invisível em seu rastro. O
gosto salgado do sangue queimou sua garganta, suor e urina
encharcavam suas vestes. Uma luz venenosa pulsava da estrela
amarela acima dele.
Silhara caiu no chão da varanda. — Me ajude, — suplicou sozinho.
Seu servo o encontrou horas mais tarde, quando o sol nascente
iluminava o horizonte. Silhara se pôs de pé sob as mãos firmes de
Gurn. O gigante o olhou com simpatia, apontando para o rosto do
mago. Silhara tocou seu nariz, traçando uma linha áspera, com uma
crosta do nariz a mandíbula.
— Sangue?

1 Avatar significa manifestação corporal de um ser superpoderoso, na religião hindu.


O servo assentiu, o empurrando em direção ao quarto. Silhara o
ignorou e olhou para a estrela parecida com uma pedra da lua, com
o formato de um olho de gato, suspensa por um fio invisível.
Nenhuma iluminação verdadeira fluía do centro da estrela, somente
um nevoeiro turvo que sufocava o céu.
— Gurn, você consegue ver a estrela?
Gurn sacudiu a cabeça, com suas feições bruscas atentas. Suas mãos
traçaram padrões complexos, Silhara suspirou, suas suspeitas
confirmadas. Enquanto qualquer um possuindo um pouco de
intuição possa sentir a presença do Deus, somente os que possuíam
um Dom viam a manifestação física. Os sacerdotes do Conclave
estavam com certeza correndo em círculos em sua fortaleza à beira-
mar, em pânico sobre o conhecimento de que os seus ilustres
antepassados tinham falhado em derrotar o deus chamado
Corruption.
Desconfiados das atividades de Silhara e ressentidos da sua recusa
a jurar lealdade a eles, os sacerdotes – clérigos pretensiosos, que não
conseguiam coçar seus traseiros sem pronunciar um encantamento
– jogariam um olhar maligno sobre ele agora. Ainda assim, a força
maligna pairando em suas costas e escorregando para sua
consciência, com promessas de poder incalculável e subjugação fez
do Conclave nada mais do que um leve incômodo, em comparação.
Silhara pegou em suas vestes sujas, aborrecido. A presença de
Corruption permanecia no cheiro do seu suor, na sua roupa, até
mesmo em seu cabelo. Ele cuspiu duas vezes, livrando de seu gosto.
— Esse parasita me reduziu a um bebê, — disse. — Eu urinei em
mim.
Ele tirou as roupas arruinadas, soltando em uma pilha úmida aos
seus pés. Despido e tremendo pelo ar frio antes do amanhecer, fez
sinal para Gurn se afastar e recitou um feitiço. Suas roupas
explodiram em chamas, deixando um círculo de cinzas enegrecidas
sobre o piso de pedra.
A boca de Gurn curvou para baixo em sinal de desaprovação. Silhara
sorriu. Conhecia aquele olhar. Servos não destruíam uma boa roupa,
não importava o motivo. — Elas tinham o cheiro de Corruption
sobre elas, Gurn. — Assim como ele fez agora. — Poderes como os
dele contaminam tudo o que tocam.
Andou a passos largos para o seu quarto, grato pelo calor do fogo
fornecido pela lareira no canto do quarto. Gurn trouxera água para
a banheira e colocara uma camisa fina e limpa e os calções do outro
lado da cama. Silhara foi diretamente para a banheira, desesperado
para tirar a sujeira de Corruption de sua pele. Estendeu a mão para
a esponja, as mãos ainda trêmulas do choque residual da agressão
do deus.
A voz sutil voltou, sussurrando em sua mente. — Aceite-me, servo
renascido.
Silhara rosnou baixo em sua garganta. Ele não podia negar tal
sedução, era mais hábil do que a mão experiente de qualquer
prostituta. As visões dos impérios sob seus pés e do poder ilimitado
na ponta dos seus dedos eram as ofertas do deus. Homens melhores
do que ele, caíram ante tal tentação e haviam muitos homens
melhores do que ele.
O leve toque de Gurn em seu ombro o trouxe de volta à Terra,
banindo os pensamentos tentadores. O sangue do seu nariz escorria
em sua mão e correu através de seus dedos.
— Calma, Gurn, — ele disse. — Ainda não estou quebrado, — os olhos
do servo se estreitaram com suas palavras, mas se afastou e deixou
que seu mestre tomasse banho.
A água escorria sobre os braços e torso de Silhara enquanto passava
instruções. — Prepare um dos quartos no terceiro andar, qualquer
um que não tenha um buraco no telhado, – as sobrancelhas de Gurn
se levantaram. — Vou chamar um convidado para vir a Neith.
As sobrancelhas do servo gigante se levantaram ainda mais.
A reação de Gurn o divertia. Ninguém visitava Neith. A reputação da
mansão como a casa de um mago das trevas – de um corvo feiticeiro
– manteve todos os visitantes afastados e Silhara encorajava essa
reputação, desinteressado em entreter aristocratas maçantes ou
acabar com o objetivo dos jovens magos em fazer seus nomes
conhecidos por desafiar o notório Mestre dos Corvos.
As circunstâncias mudaram. Tanto quanto Silhara desprezasse a
ideia, ia precisar da ajuda do Conclave. Nada era imune à destruição,
nem mesmo um deus. Os sacerdotes devolveram seu desprezo na
mesma proporção, mas precisavam usar um ao outro com o objetivo
de derrotar Corruption. O Conclave era conhecido por fazer vista
grossa para os “Magos Corvos” e suas artes proibidas, se tais práticas
os ajudassem. Silhara queria um dos aprendizes do Conclave, um
escriba clérigo versado em livros antigos, com conhecimento de
línguas mortas e secretas. Matar um deus precisaria de uma magia
muito mais velha e muito mais obscura do que um ritual do Conclave
e conhecimentos desse tipo muitas vezes estavam em línguas mortas
ou pergaminhos antigos. O Conclave tinha suas restrições, mas seus
escribas eram incomparáveis em suas habilidades para traduções.
Ele tinha poucas dúvidas de que uma exceção ao seu banimento por
ler o livro negro seria concedida se necessário.
A manhã trouxe a luz do sol crescente que entrava pela janela aberta
enquanto terminava seu banho. Um dissonante som de corvos
cumprimentou o dia, seguido de uma sinfonia de sons parecidos.
Um manto negro, das asas dos corvos, estourara do laranjal,
cobrindo o céu antes de virar para o norte para circundar a mansão.
O mago sorriu. Enviaria sua carta pelo corvo mensageiro. Os
sacerdotes iriam reclamar, supor e imaginar por que o Mestre dos
Corvos, que sempre rejeitou as suas propostas e insistências de
formar alianças, de repente pedia ajuda. Responderiam, ansiosos
pela chance de colocar um espião do Conclave em sua casa.
Se afastou da janela, se afastou da estrela de Corruption que ainda
continuava a pairar no horizonte, sentando em sua mesa de escrita.
A superfície estava enterrada debaixo de pergaminhos, tinteiros e
penas quebradas. Encontrando uma pena ainda inteira, puxou um
pedaço de pergaminho em branco debaixo de uma pilha de
manuscritos e mergulhou a pena em um tinteiro próximo. Por um
momento, a ponta pairou sobre o papel. Silhara sorriu e escreveu.
Os velhos deuses não estão mortos. Seu demônio despertou...
Capítulo
Dois
Martise estudou o longo caminho que conduzia a mansão Neith e
considerou se era uma aprendiz ou um sacrifício. O cheiro de magia
amaldiçoada se espalhava pela estrada coberta de névoa, fazendo
seu nariz se contorcer.
— Eu ainda lhe permito escolher Martise, mas não há como voltar
atrás uma vez que seguirmos por esta estrada.
Ela olhou para seu mestre, viu a corrente de prata segurando sua
pedra-espírito enrolada entre seus dedos. Cortada com faces
perfeitas que recebiam a luz do sol e refletiam um arco-íris em seus
olhos, a joia azul era a jaula que aprisionava uma parte da sua alma.
Memórias inundaram sua mente. Aos sete anos de idade, morria de
medo do padre sisudo, narigudo, que a avaliava com um olhar frio e
que a comprou de uma mãe faminta por um punhado de moedas.
Ele a escravizou com uma magia que a fez gritar em agonia, uma
magia que assegurou que serviria a Casa de Asher até sua morte, ou,
até Cumbria vende-la e passar adiante o segredo da pedra para um
novo mestre. Ou até que ganhasse sua liberdade.
Sua determinação se fortaleceu. Pessoas desesperadas não têm o
luxo de ter medo. Haviam coisas pelas quais valia a pena morrer,
mesmo que a missão falhasse.
— Eu não mudei de ideia, Vossa Excelência.
Não baixou o olhar enquanto Cumbria, o Alto Bispo do Conclave,
olhava para ela, sua expressão dura iluminada pela luz do fim da
tarde. O que quer que tenha visto na expressão dela o satisfez. Fez
um gesto para seus três cavalariços que esperavam nas
proximidades com os cavalos. Um se aproximou, trazendo um
grande corvo em seu antebraço. O pássaro pulou para o braço
estendido de Cumbria, agitando as asas escuras até ele correr um
dedo suave pelas costas do corvo.
— Micah. Meu melhor observador. Ele vai agir como o mensageiro
entre nós. Os pomares de Silhara são infestados com corvos. Um a
mais não será notado. Quando você tiver informações, chame Micah
usando a canção de ninar Nanteri. Ele entregará sua mensagem.
O corvo gritou uma vez em protesto quando o bispo levantou o braço
e o mandou para o céu. Ele voou para o sul, ao longo dos carvalhos
Solaris retorcidos, que guardavam a estrada de Neith, em direção a
estrela de Corruption.
Cumbria repetiu suas instruções para o cavalariço. — Fique aqui e
cuide dos cavalos. Eles não vão percorrer o caminho de bom grado.
Eu devo retornar em não mais que duas horas. — Franziu a testa,
uma faísca de raiva voando através de seus olhos cinzentos. —
Duvido que Silhara fará algo estupido, mas se eu não voltar no
tempo determinado, chame meus irmãos. Eles saberão o que fazer.
O servo fez uma reverência. Martise poderia ter tido pena do seu
grupo e dos seus companheiros. Vestidos com os uniformes pesados
da Casa de Asher, iriam assar no calor implacável do verão enquanto
esperavam pelo retorno do seu mestre, mas a pena recíproca dos
olhos do rapaz reprimiu a sua. Ele e os outros poderiam suar como
mulas, mas eles ficariam para trás em um lugar muito mais seguro.
Cumbria bateu levemente em seu ombro. — Venha, Martise.
Escurecerá em breve e eu não tenho nenhum desejo de permanecer
aqui.
Um frio penetrante entrou por sua roupa em camadas no momento
em que pisaram na estrada, o cheiro de magia negra cobria o ar. Ela
espiou por cima do ombro, meio que esperando que a planície
repleta de sol atrás dela tivesse desaparecido, cortada pela névoa
sinuosa que acariciava seus tornozelos.
Banhado pela luz natural, o mar de grama permaneceu, chamando-
a para longe da melancólica e perigosa missão. Virou as costas antes
que a tentação a convencesse.
Cumbria zombou. — Típico dele. Silhara encontraria um meio para
assustar os visitantes ou viajantes perdidos que chegam perto
demais de Neith.
Eles continuaram, seus passos estranhamente abafados pelo
cascalho quando passaram sob a cobertura espessa de carvalhos
Solaris. Martise sempre admirou esses gigantes imponentes com
seus galhos espalhados e folhagens espessas. A maioria das mansões
ricas tinham eles plantados ao longo das suas grandes entradas e
avenidas preparando as visitas para as casas ainda maiores.
O caminho para Neith, no entanto, deixava uma impressão
diferente. Os grandes carvalhos ofereciam refúgio do calor, mas
lançavam o ambiente ao redor em uma semiescuridão. Membros
pretos e aleijados se arqueavam sobre as cabeças, entrelaçados
juntos em uma dança atracada, como se cada árvore procurasse
arrancar seu adversário pelas raízes.
Não só as árvores sufocavam a luz, mas aquelas coisas pequenas que
cresciam debaixo delas também o faziam. Uma luz solar fraca
perfurava a escuridão em alguns lugares e desaparecia no meio do
caminho para o chão, apagada por arbustos atrofiados vestido com
folhas cinzentas e espinhos ameaçadores.
Ela se abraçou, para se confortar e aquecer. — Este é um lugar
sombrio, — sussurrou.
Como se pontuando suas palavras, uma forma magra e
fantasmagórica surgiu através de um grupo de arbustos, correndo
baixo e rápido, antes de desaparecer nas profundezas da floresta.
Martise engasgou e diminuiu o espaço entre ela e o bispo.
— O que foi isso? — Olhou para a escuridão da floresta, meio com
medo do que poderia ver.
A voz de Cumbria, normalmente forte e grossa, foi abafada. Ele
encolheu os ombros. — Quem pode dizer? Um leopardo. Uma
raposa. — Fez uma careta. —Alguma coisa mais anormal. Silhara é
um mago das trevas e seu mentor, o primeiro Mestre dos Corvos, fez
experimentos com ... coisas. Vários horrores podem vagar por essas
florestas.
Ele a observou estremecer. — A mansão será a sua maior proteção,
Martise. Nunca busque refúgio nesta floresta.
A pele dela dançou em volta do próprio corpo com as palavras dele.
Eles completaram sua jornada sem mais incidentes, embora sentisse
que algo os observava – seja uma sombra da madeira ou as próprias
árvores deformadas.
A floresta deu lugar a um pátio sem árvores, inundado pela luz do
sol e emoldurado por portões de metal em ruínas. Uma brisa quente
correu pela planície, dissipando o frio anormal que permeava a
floresta.
Os portões oscilaram e rangeram como se fossem ossos pendurados
em uma forca balançando ao vento. A corrente e o cadeado,
enferrujados, que seguravam os portões atingiram o metal fazendo
um barulho dissonante.
Além dos portões, os restos de uma grande mansão se espalhavam
através de um trecho de terreno rochoso e grama seca. A metade
ocidental da estrutura foi reduzida a escombros, como se tivesse
sido esmagada por uma mão gigante. Pedras quebradas e argamassa
sujavam o pátio e o esqueleto de uma escada em espiral subia em
direção ao nada. Tecido apodrecido se agarrava aos tirantes
estilhaçados, tremulando ao vento. Estava encurralada pelo deserto
e os mortos.
Martise se afastou das ruínas e examinou a parte da mansão que
ainda estava intacta. Arcos e espirais graciosos desenhavam
silhuetas contra o pôr-do-sol, refletindo uma época antes dos
homens reinarem supremos, quando aqueles que construíram Neith
e criaram o caminho para ele ainda não tinham desaparecido na
história.
Seus olhos se arregalaram quando uma figura surgiu de repente a
partir dos restos da ala oeste, como se emergisse do chão ressecado.
Não havia ninguém olhando naquele local momentos atrás e o
gigante se aproximando deles não poderia ter ficado escondido do
campo de visão. Vestido com uma túnica ostentando o brasão de
armas de Neithian, atravessou o pátio com passos graciosos, apesar
de sua forma e tamanho desengonçado. A careca brilhando na luz da
tarde.
Sorriu uma saudação e gesticulou com as mãos enormes para que
saíssem da frente assim poderia abrir os portões. Martise ponderou
sobre sua estranha linguagem de sinais e comandos sem palavras.
Era mudo. De alguma forma, aquilo não a surpreendeu aqui neste
lugar lúgubre esquecido pelo mundo dos vivos.
A corrente e o cadeado caíram quando os portões foram abertos em
um grito fino. Martise permaneceu perto de Cumbria enquanto
entrava no pátio. O bispo ignorou o servo, mas ela sorriu
timidamente e acenou com a cabeça quando passou. Ele sorriu em
troca.
Ultrapassou o bispo, os direcionando para a parte da mansão ainda
intacta. Pararam em frente a uma porta esculpida com ornamentos
que resistia aos elementos. Uma gota de suor deslizou entre seus
seios.
Endureceu em autocensura. Imagens de sua pedra espírito na mão
de Cumbria brilharam em sua mente e se repreendeu. Até agora
tinham visto sombras na floresta, uma propriedade em ruínas e um
serviçal mudo. Nada verdadeiramente assustador. Mas ela não
podia se livrar da pequena voz que dizia “Eles são todos governados
por um corvo feiticeiro e logo ele vai governar você também”.
Para seu alívio, nada os atacou quando entraram na casa. Pelas asas
de Bursin, quando foi que você se tornou tão covarde? Corou,
envergonhada por seu medo. Almas mais valentes eram mais
adequadas para este trabalho. Mais uma vez aquela voz interior
zombou dela. Mas poucos são tão motivados.
Eles se mudaram de um vestíbulo vazio para uma sala mais espaçosa
impregnada com uma luz solar silenciosa. Martise piscou até que
seus olhos se ajustassem e então engasgou com a visão diante dela.
Perdido embaixo de um manto de poeira, o esplendor desgastado do
salão principal a deixou sem fôlego. Vigas enegrecidas subiam acima
de sua cabeça, seus feixes se cruzando em uma enorme teia de
aranha que dava suporte para o teto elevado. Uma enorme lareira
esticada em uma parede, sua parte superior e moldura esculpidas
com o formato de bestas míticas entrelaçadas num combate eterno.
Esse lugar um dia já fora grandioso, muito maior do que
propriedade de Cumbria – um lugar construído para reis e seus
lutadores campeões.
O quão baixo o grande tinha afundado. Juncos frágeis estalaram sob
seus pés. As poucas peças de mobília estavam cinza com a sujeira e
as tapeçarias tinham buracos de traças. A luz filtrada através das
janelas cobertas de camadas de sujeira, criavam um falso
crepúsculo. Embora as paredes ainda estivessem de pé, o salão
estava abandonado assim como as ruínas agredidas da ala oeste.
O servo se curvou, batendo um tamborete almofadado em um gesto
persuasivo. Uma nuvem de poeira girou no ar. O lábio de Cumbria
se contraiu em desgosto.
— Não, eu não quero sentar. — Ele reuniu suas vestes em torno dele
e as juntou em sua volta. — Não é melhor do que uma barraca. Por
que eu deveria ter esperado mais?
Martise olhou para o bispo, chocada com sua grosseria. Olhou para
o servo e viu seu sorriso dar lugar para um olhar vazio. Ela conhecia
aquele olhar – o usara muitas vezes com seu mestre.
Cumbria franziu a testa e chutou o banco para longe de seu caminho.
— Então, — ele retrucou. — Vamos logo com isso, homem. Não vou
ficar à mercê do seu mestre. Traga-o!
O servo deu de ombros antes de desaparecer em um corredor pouco
iluminado por velas de sebo em castiçais dobrados. Suas chamas
piscaram quando ele passou.
A voz de Cumbria ressoou com aversão. — Um servo insolente para
um repugnante mago insolente. Viu o que acontece quando você
recolhe a sujeira da rua?
Ele tocou em seu braço. — Guarde suas palavras e permaneça em
silêncio a menos que ele se dirija a você, Martise. Silhara gosta de
encurralar. Possui uma língua afiada e já eviscerou mais de um
infeliz oponente em uma conversa. Você não seria párea.
Martise abaixou a cabeça e escondeu seu sorriso. Cumbria tinha
escolhido ela para esta missão por causa de suas habilidades, entre
elas o talento de permanecer silenciosa e despercebida. Sua
advertência a divertia e revelou uma pitada de sua inquietação sobre
o encontro que se aproximava. O quão interessante era que um
homem nem sempre admirasse suas próprias características
quando elas estavam em outro.
O servo mudo reapareceu, seguido por uma sombra que revelava
uma silhueta esguia contra a luz fraca do corredor. Cumbria
permaneceu rígido ao lado dela enquanto seu anfitrião emergia das
sombras. Martise respirou profundamente, encantada com sua
primeira visão do Mestre dos corvos.
Uma chama acessa no quarto sujo, queimava com um fogo
constante. A túnica longa escarlate girava em torno de seus
tornozelos como uma fumaça cor de sangue. Magro e mais alto do
que a maioria dos homens, usava seu cabelo preto em uma trança
apertada que caia sobre seu ombro. O estilo severo acentuava um
rosto bronzeado, nem bonito, nem amável, mas esculpido da mesma
rocha espalhada pelo pátio. Seu nariz e seus olhos negros pareciam
com os de uma águia, lembrava aqueles nômades Kurman, que às
vezes via nos mercados, vendendo seus tapetes e armamentos. Sua
barriga apertou com medo quando ele olhou para ela e Cumbria com
má vontade.
— Vejo que você não se perdeu. Uma pena. A que devo a honra de
sua ilustre presença, Vossa Excelência? Eu esperava um assecla do
Conclave. Em vez disso eu recebo o próprio Alto Bispo.
A voz profunda dele arranhou contra seus ouvidos, quebrada e dura,
como se forçasse as palavras de uma garganta em ruínas. Desprezo
acompanhava sua saudação, junto com um meio sorriso desdenhoso
que curvava seus lábios.
O rosto de Cumbria congelou. A antipatia entre os dois homens
inundou o quarto, infiltrando as paredes e pisos.
— Ainda governante de seu pequeno reino sórdido, Silhara? — O
olhar zombeteiro de Cumbria procurou pelo servo. — Você e seu
exército de um.
O riso áspero do Silhara flutuou pela sala. — Rei da imoralidade,
Mestre dos Corvos. Qual será o meu título amanhã, Vossa
Excelência? Como de costume, o Conclave nunca chega a uma
decisão final.
Os olhos do bispo queimaram. — É uma pena que eles não
enforcaram você muitos anos atrás.
Em seus anos a serviço de Cumbria e à casa de Asher, Martise nunca
tinha visto o patriarca à beira de perder o controle. Seu conselho
para ficar em silêncio fazia mais sentido agora. Até ele estava tendo
dificuldade em manter a cabeça fria em torno do feiticeiro.
Os olhos escuros de Silhara se estreitaram, suas feições bronzeadas
empalideceram. A declaração indiscreta de Cumbria tinha tirado
sangue.
— Esse é um testemunho da vontade e longevidade da maldade,
Vossa Excelência. Ela não é derrubada com facilidade.
O rosto duro de Silhara de repente relaxou e os instintos de Martise
soaram em aviso. Vivo e astuto, ele seria um adversário mortal. De
repente, o preço pela sua liberdade parecia muito alto, desejou que
pudesse voltar para o calor familiar e conforto da cozinha em casa.
Suspeita brilhou no olhar escuro enquanto examinava ela. Ele se
dirigiu a Cumbria sem deixar de olha-la, quando seu medo crescente
se transformou em antipatia imediata.
— Nunca deixe que digam que este imperador não pode ser gracioso.
Vocês fizeram uma longa viagem. Gurn trará o chá. Você pode me
contar sobre sua viagem e o animal de estimação que você trouxe
para o meu entretenimento.
Capítulo
Três
Silhara admirava um mentiroso talentoso. Ele era um deles. Essa
habilidade estava entre as poucas coisas que poderia tolerar em
Cumbria de Asher. Então, por que o Alto Bispo do Conclave, um
mestre da manipulação, narrou uma história tão mal construída?
No conforto do seu olhar examinador seus convidados bebiam seus
chás. A mulher, uma criatura pequena e tediosa, empoleirada na
borda de seu assento. Para um aprendiz, não era tão jovem. Também
não parecia interessada em seu futuro professor. O olhar dela viajou
pela sala, descansando brevemente na mesa que continha suas
poções e em seguida, para os pergaminhos empilhados ao acaso em
um canto da sala. Seria ela escudeira de Cumbria? Não, muito
provável. Esta não era uma pobre relação dependente da
generosidade de Asher. Ainda assim, Cumbria a selecionou como
aprendiz de Silhara por uma razão e Silhara nunca subestimava o
clérigo astuto.
O silêncio na sala aumentou até que Cumbria franziu a testa e
abandonou qualquer demonstração de que estava apreciando seu –
chá.
—Então? Ela serve? Você solicitou um aprendiz. Eu lhe trouxe um.
Martise é uma boa menina, obediente e inteligente. Ela irá servi-lo
bem.
Silhara tamborilou seus dedos sobre a mesa. — Eu pedi um clérigo
com bastante experiência e conhecimento das línguas arcanas. Você
me trouxe sua... escudeira. Ela não tem nenhum treinamento
extensivo, nenhuma manifestação notável do Dom, nenhum indício
de qualquer talento. — Ele arremessou uma pena afiada com o
polegar e o indicador e a assistiu rolar através de uma pilha de
pergaminhos. — Meu cão é obediente e meu servo inteligente. De
que está menina serviria para mim? — Esperava um espião do
Conclave, mas não um sem talento e sem magia.
O bispo ficou tenso em sua cadeira, — Se você queria alguém com
mãos de fazendeiro, você não deveria ter solicitado ao Conclave, —
ele retrucou. Respirou fundo. — Martise é uma escriba talentosa,
tradutora e tem o Dom. Foi ensinada no Conclave. Os localizadores
de magos sentem sua magia. Nós a colocamos em uma sala lotada
de sacerdotes do Conclave e os cães a procuram primeiro. — Fez uma
pausa, sua expressão se acidificando. — Apesar de sua reputação
como um praticante imoral, você também é um feiticeiro de renome.
A Luminary acredita que se alguém pode fazer o Dom de Martise se
manifestar, esse alguém é você.
Silhara estudou seu novo aprendiz. Ela devolveu o olhar, com seus
traços simples e calmos. Não muito provável. Ele poderia lidar com
um agente do Conclave, mas não um escolhido a dedo e entregue por
seu mais odiado adversário.
— Um enigma intrigante com certeza, mas eu não tenho tempo para
desperdiçar. Eu exijo um aprendiz capaz de traduções complexas e
encantamentos simples que ocupam meu tempo mais do que eu
posso agora. Assim como o Conclave, a minha primeira prioridade é
derrotar Corruption.
— É mesmo? — Ceticismo salpicava a pergunta de Cumbria.
Silhara sorriu. Ele tinha apostado com Gurn se o bispo iria ou não
revelar suas suspeitas. — Preocupado, Vossa Excelência? Mesmo um
mago repugnante como eu pode ajudar de alguma maneira. Ou você
representa todos os cônegos com suas dúvidas?
A voz de Cumbria se tornou maliciosa. — Certamente, o deus fala
com você, o tenta com todos os tipos de promessas, somente se você
der a lealdade que se recusa dar ao Conclave?
A diversão de Silhara se evaporou. Se Cumbria soubesse que sonhos
atormentavam seu sono à noite, os sussurros malignos que o
seduziam, mesmo à luz do dia, a insegurança do Conclave se
tornaria uma completa caça às bruxas.
Martise tinha permanecido em silêncio desde que entrou em seu
domínio, não oferecendo nenhuma dica de sua personalidade. Se ele
a recusasse, isso inquietaria os sacerdotes ainda mais.
— Martise de Asher. — Ele sorriu quando ela enrijeceu. — Vossa
Excelência tem falado por você durante toda esta reunião. Você não
fala? Ou você sofreu como o meu servo, teve sua língua cortada?
Ele seguiu o olhar dela para Gurn. O servo a deu um aceno
encorajador. Silhara poderia ter a considerado facilmente
intimidável, salvo por seu comportamento calmo.
— Não, senhor, eu não sou muda. É rude falar fora de hora, não é
mesmo?
Ele se silenciou com sua pergunta. Pelas asas de Bursin, que Deus
generoso abençoou essa mulher com tal voz? Refinada e sensual,
possuía uma natureza sedosa, como se fisicamente o acariciasse.
O contraste entre seus doces tons e a aparência suave o chocou.
Antes dela falar, Martise havia desaparecido em seus arredores,
esquecida. Agora ela brilhava, fixando a atenção de qualquer um
dentro do alcance de sua voz. Ele olhou para Cumbria que lhe deu
um sorriso de satisfação.
Não gostava de ser apanhado desprevenido e atacou. — Longe de
mim comprometer o comportamento de uma senhorita. Eu jamais
tentaria um cão bem treinado a esquecer os comandos de ‘Buscar’ e
‘Sentar’.
A mandíbula dela se apertou. Baixou o olhar, mas não antes dele ver
as faíscas de raiva em seus olhos. Não tão dócil como poderia se
imaginar, ainda sim sua nova aprendiz exercia um controle
admirável sobre suas emoções. Comportamento de um servo antigo.
Cumbria realmente tinha lhe trazido um espião.
Ele apoiou os cotovelos sobre a mesa. As negociações iriam começar.
— Vou aceitar seu serviçal, — ele fez uma pausa para o efeito, — por
três meses, não mais. Se eu não descobrir qual Dom há dentro dela,
vou mandá-la de volta para você. Não tenho nenhum interesse em
alimentar uma boca adicional por mais tempo do que o necessário.
Cumbria franziu a testa. — Seis meses e eu vou pagar as despesas
dela.
As moedas tilintaram quando ele colocou um pequeno saco de
veludo sobre uma pilha de pergaminho. A menina visivelmente
encolhida e corada até a raiz dos cabelos.
— Quatro, — Silhara disse — E eu fico com o dinheiro equivalente
aos seis meses. — Ele ergueu o saco na palma da mão, ignorando o
sorriso de escárnio do bispo.
Cumbria se levantou, tirando a poeira imaginária de suas vestes. —
Negócio fechado então. Quatro meses. — Não perdeu tempo para ir
embora, sua preocupação com seu serviçal era, agora, uma coisa do
passado.
Martise se levantou rigidamente de sua cadeira e encarou Cumbria.
Silhara também se levantou e encostou na beirada da mesa. O bispo
franziu a testa para a informalidade dele. Silhara levantou uma
sobrancelha. — Você é o Alto Bispo do Conclave. Eu não jurei
lealdade ao Conclave, Vossa Excelência. Você não é nada mais do
que um mago como eu.
Martise recuou em alarme ao ver a expressão assassina de Cumbria.
Linhas finas de luz vermelha se enrolavam em torno de seus dedos
trêmulos.
— Nunca se compare a mim, corvo feiticeiro! — O rosto dele estava
esquelético na luz fraca, o ódio escurecendo seus olhos cinzentos.
Silhara esperou, com as mãos e os braços formigando com magia
defensiva. Faça, velhote, ele pensou. Dê-me uma razão, para que
eu possa explodir você no esquecimento.
Cumbria respirou fundo e levantou o queixo em uma despedida
arrogante antes de virar as costas e caminhar para a porta.
Silhara não pode resistir em provocá-lo uma última vez. — Você não
tem nenhuma despedida para sua amada serviçal, Vossa
Excelência?
A pergunta fez o Alto Bispo parar. Ele voltou até Martise, agarrou
sua mão em um gesto cortês e se curvou rigidamente.
— Que a boa sorte te abençoe, Martise.
O fervor da declaração surpreendeu Silhara, mas foi a reação de
Martise que mais o fascinou.
Sua mão estremeceu no aperto do bispo e seu fino sorriso vacilou. —
Que uma boa lua esteja sobre você, Mes... Senhor.
Os olhos dela se arregalaram pelo seu erro e Cumbria estremeceu.
Silhara sorriu.
Cumbria olhou para ele. — Eu me despeço de vocês. Você vai manter
o Conclave a par de quaisquer mudanças nas ações de Corruption?
A Luminary sente que pode confiar em você, embora eu não consiga
entender o porquê.
Silhara deu de ombros. — Meu rosto honesto, talvez?
O bispo o olhou sarcasticamente e saiu da sala, batendo a porta atrás
de si. Gurn tentou segui-lo, mas Silhara o deteve.
— Não se incomode. Ele vai encontrar o caminho e não irá apreciar
a sua orientação. Ele é, afinal, o Alto Bispo do Conclave. Ele pode
cuidar de si mesmo.
Gurn deu de ombros e apontou para Martise, que olhava
ansiosamente para a porta. Silhara deu a volta em torno da mesa,
contornando as cadeiras e uma pilha de pergaminhos, até que ficou
de frente para a menina. Ela encarou seus olhos, suas feições
serenas.
Claramente, Cumbria não a tinha escolhido como um meio de
seduzi-lo a revelar alguma heresia. Não seria uma beldade nem pelo
padrão mais gentil, ela o lembrava um pavão, sem brilho e marrom.
Sua roupa era de boa qualidade, mas mal ajustadas, como se fossem
emprestadas, penduradas em seu pequeno corpo como sacos de
grãos vazios. Tufos enfadonhos de cabelo castanho-avermelhado
emolduravam um rosto pálido. Seus olhos eram interessantes – cor
de cobre novo e emoldurados por cílios escuros, mas não salvavam
sua aparência. No geral, ela era uma criatura monótona, alguém que
passava despercebida em uma multidão.
Sua voz era outro caso. Capaz de embalar uma serpe até dormir e
chamar homens para adora-la, sua voz o enfeitiçou. A disparidade
gritante entre sua voz e suas características simples era intrigante.
Será que o Dom dela estava em algum lugar na cadência sensual de
suas palavras? Assim que ele se questionou, ele abandonou a ideia.
Tal talento era muito óbvio. Martise de Asher – escudeira, serva,
informante – possuía um Dom. O que faria sua mágica se
manifestar, ninguém sabia – ainda.
— Por que você está aqui?
— Você pediu por mim, Mestre.
Um calor serpenteou em volta do seu corpo, lutou contra fechar os
olhos no puro prazer de ouvir esses tons melódicos.
— Mestre. Esse título vem a você com facilidade, como se você o
tivesse usado por toda a sua vida.
Sua afirmação bateu no lugar certo. Uma insinuação de inquietação
percorreu o rosto dela antes de cair por trás daquela máscara
passiva.
— Você prefere outro título?
— Não. — Ele sinalizou para Gurn. — Não há necessidade de invocar
o decoro aqui. — Abriu a porta. — Gurn vai leva-la a seus aposentos.
Você terá o seu jantar lá.
Que desperdício seria se ele fosse forçado a matá-la para se proteger.
O mundo seria um lugar pior privado de uma voz tão
impressionante. Um olhar de ansiedade e sofrimento caiu sobre o
rosto dela, como se ela o tolerasse por pura força de vontade. Ele
franziu a testa.
— Vá dormir cedo está noite. Nós acordamos com o sol. Você vai
começar a ganhar seu sustento, vou apresentá-la a Cael. Estou
curioso sobre o que você vai pensar de nosso outro habitante daqui.
— Ignorou a careta de desaprovação de Gurn. — Boa noite.
Ele fechou a porta e fez o seu caminho através das passagens escuras
que o levaram mais fundo na mansão. Uma escada, idêntica à
exposta e quebrada da ala oeste, ia para cima na escuridão. Silhara
subiu firmemente, fazendo um gesto uma vez. Fogo mágico acendeu
as tochas e enviou as sombras rapidamente através das paredes para
seus aposentos.
Sua porta se abriu com as dobradiças rangendo. Gurn deixara a
janela para a varanda aberta. O vento frio da noite rodou dentro do
quarto e aliviou o calor opressivo do dia. A cama estava feita, o jarro
no criado-mudo cheio novamente, o narguilé preparado para seu
fumo da noite. Silhara vivia com moderação, mas era grato pelo
servo mudo. O homem valia mais do que todos de Neith.
Tirou as vestes vermelhas sufocantes, deixando somente a camisa
branca simples e calças escuras que adorava.
Um par de pinças estava sobre sua mesa de trabalho, as usou para
agitar o carvão no braseiro perto da lareira fria. Pequenas faíscas
voaram para cima, enquanto selecionava um pedaço de carvão para
a tigela do narguilé.
Logo, o cheiro inebriante do tabaco e citrus encheram suas narinas.
A tigela de água borbulhava ritmicamente e o sussurro do vento
através das árvores do lado de fora eram as únicas perturbações no
silêncio da sala. Fumaça rodava em padrões espectrais em torno de
sua cabeça, enquanto olhava para fora da janela e aspirava no
cachimbo.
A vista do seu quarto era muito diferente daquela que saudava os
raros visitantes de Neith. Fileiras de laranjeiras, pesadas com frutos
maduros, cortavam a terra em faixas retas, que se estendiam até os
confins de um muro de pedra. Encantamentos letais protegiam o
bosque de intrusos. Mais de uma vez ele e Gurn tinham recuperado
e enterrado um ladrão infeliz que tinha escalado as paredes e
encontrou a morte.
Além do bosque, a planície fluía em direção a um crepúsculo sem
fim, a estrela de Corruption se iluminava à medida que o céu
escurecia.
Uma fumaça azulada saia da boca de Silhara enquanto se satisfazia
com o tabaco e estudava o horizonte. Embora o deus não estivesse
perto das fronteiras do Sul, sentia sua proximidade, um olhar
invisível avarento e feral.
Pegou um lampejo de movimento no bosque. Uma forma
fantasmagórica deslizava no escuro, desaparecendo e reaparecendo
enquanto acelerava em direção à casa. Um som monótono
acompanhava o espectro, como um enxame de gafanhotos. Silhara
abaixou a mangueira do narguilé e foi para a varanda para ver
melhor. Os cabelos em sua nuca se arrepiaram.
Um cão branco, ou o que uma vez foi um cão, levantou sua enorme
cabeça e o congelou no lugar com um brilhante olhar amarelado. A
criatura superava o maior macho localizador de magos e exibia um
crânio deformado e uma boca cheia de dentes como lâminas de
espada. Uma colcha de retalhos de cabelos e pele escabrosa se
esticavam em sua forma esquelética.
Silhara estava imerso nos olhos brilhantes. Uma vez mais, as
imagens dos reinos caídos e multidões o adorando inundaram sua
mente. Satisfação correu dentro dele com a visão do Conclave
reduzido a escombros e afogado no mar, os sacerdotes caçados até a
extinção. Ele lambeu os lábios e sentiu o gosto de ferro em sua
língua. Corruption derramava poder dentro dele, oferecendo
presentes ao mesmo tempo em que solicitava a sua escravidão.
O deus não sussurrava em sua mente como antes, mas falou através
do pesadelo branco que prendia o olhar de Silhara. — Venha,
Avatar. Você não me conhece, Filho das Mentiras?
A voz, oca como um túmulo vazio, se destacava sobre o zumbido dos
insetos e tirou Silhara de seu estupor.
Correu para longe do parapeito. Indo para seu quarto, esbarrou na
mesa de cabeceira, enviando o jarro para o chão em um banho de
água e cerâmica quebrada. Derrapou em uma poça enquanto
agarrava a besta e suas flechas escondidas contra um canto do
quarto.
Raiva queimava limpando seu espírito do encantamento de
Corruption. — Neith está cheia de convidados indesejados esta
noite. — Encaixou uma flecha na besta e se dirigiu para a porta. —
Mas eu sou sempre um anfitrião civilizado.
Ele quase derrubou Gurn dos degraus que levam ao grande salão. O
gigante oscilava à beira da escada, segurando sua lâmpada de óleo
até Silhara o empurrar contra a parede e passar espremido, dando
ordens enquanto pulava os degraus dois de cada vez. — Tranque a
porta da menina e fique em casa com Cael.
Os corredores do primeiro andar eram de sepulcro-negro, mas não
diminuiu o passo, alimentado pela raiva e uma compulsão febril de
enfrentar o deus em seus termos.
Chutou a porta dos fundos, encontrou o cão cadavérico esperando
por ele. O cão foi de maneira furtiva em sua direção, monstruoso e
cheirando pior que cadáveres deixados ao sol. Silhara engoliu bile e
nivelou a mira da besta sobre a criatura. — O que você quer?
O zumbido insuportável cessou abruptamente e Corruption falou
através do cão. — O que você quer, Avatar. Homenagem, respeito,
poder.
— Então você não precisa de mim. Você é o deus aqui, não eu.
O cão inclinou a cabeça para o lado. Um fluxo de vermes caiu de um
ouvido apodrecido. Eles se contorciam em uma pilha perto dos pés
de Silhara. Não achava que a coisa era capaz de sorrir. Estava errado.
As bochechas pesadas esticadas em uma careta de morte, expondo
os caninos curvos brilhando como prata na luz do fim do dia.
— Oh, eu preciso de você, Mestre dos Corvos. Você não se pergunta
o porquê de eu lhe chamar de Avatar?
A voz espectral mudou, se tornou escorregadia e bajuladora. — Eu
conheço sua mente, feiticeiro e seu espírito. Seu ódio queima quente
pelos sacerdotes, estes homens que cospem no dinheiro de uma
prostituta. Renda-se a mim e vou tê-los destruídos em seu nome.
Silhara puxou o gatilho. A flecha atingiu o vira-lata no olho com um
barulho duro, o animal colapsou em um monte. Pele cinzenta e pelos
derreteram, expondo um amontoado de ossos e mais dos vermes
podres. Até eles logo se dissolveram, juntamente com a flecha
disparada, deixando apenas um espiral de fumaça oleosa em um
pedaço da grama arruinada. Afastou a fumaça impacientemente e
falou com as sombras profundas do bosque.
— Eu odeio muitas coisas e muitas pessoas, nenhuma delas vale a
pena subjugar a minha vontade. Você vai ter que me convencer com
algo melhor do que alguns sacerdotes mortos. — Ele cuspiu, uma
mistura de sangue e saliva atingiu o solo. — Até lá, fique fora da
minha mente e do meu bosque.
A estrela respondeu, pulsando mal-humorada atrás de uma
dispersão de nuvens cinzas. Virou para a casa e pegou Gurn
pairando na porta, olhando para a escuridão do bosque. — Eu não
disse para ficar dentro da casa?
O servo apontou para os pés, demonstrando que não tinha
atravessado a porta. Silhara riu, apesar dos eventos da noite e da dor
de cabeça crescente batendo em picos entre os olhos.
— Você é um péssimo servo, Gurn. Será que algum dia você vai
aprender qual é o seu lugar?
Gurn deu de ombros, indiferente, abrindo mais a porta para seu
mestre. Silhara olhou por cima do ombro para o bosque. — Duvido
que isso vá ajudar, mas eu vou reforçar as defesas nas paredes esta
noite. — Ele apontou para o teto. — Ela tentou sair do quarto?
Gurn sacudiu a cabeça e imitou a posição de dormir, descansando
sua bochecha contra sua mão. Silhara revirou os olhos. —
Destranque a porta dela, caso contrário, ela vai pensar que a fizemos
prisioneira.
Ele mandou Gurn ir dormir depois de várias garantias de que estava
bem e ileso do seu encontro com Corruption. Deu uma última
olhada no bosque antes de fechar a porta atrás dele e voltar para
seus aposentos.
Gurn tinha molhado o carvão do braseiro e guardado o narguilé. A
bagunça que Silhara havia deixado quando saiu correndo do quarto
havia sumido. Uma garrafa de vinho doce estava na mesa que havia
sido levantada.
Colocou a besta e as flechas de volta em seu lugar e serviu uma
porção generosa de vinho em um cálice, o bebeu em dois goles. Isso
não ajudou em nada a matar a dor em sua cabeça, acabou se
servindo de outra dose e caminhou até a janela. Sua terra era
enganosamente pacífica do lado de fora. Apenas o farfalhar dos
corvos dormindo sussurravam de volta para ele. Ele lembrou das
palavras de Corruption.
— Você não se pergunta o porquê eu lhe chamo de Avatar?
É claro que ele se perguntava e suas suspeitas deixavam um horror
permanente em sua alma. Seu pescoço doía tanto quanto sua cabeça,
revirou os ombros. Espiões do Conclave, cães demônio e deuses
parasitas – exatamente o que ele precisava durante a época de
colheita. — Eu estou me cansando deste ciclo, — murmurou.
A estrela brilhou. Silhara ergueu a taça para o rosto celestial do deus
em um brinde zombeteiro. — A Silhara, mestre do nada.
Capítulo
Quatro
Grandes montes fedorentos de lixo rodeavam Martise. O odor
rançoso inundava suas narinas em baforadas de ar e golpeavam seu
rosto até engasgar. O cheiro e o calor batiam contra sua cabeça e
ombros, seguidos por uma umidade fria que cutucava seu pescoço.
O toque a assustou para fora de um sono agitado. Rolou, abrindo os
olhos para encontrar um rosto coberto de pelo cinza arrepiado e
cicatrizes enchendo sua visão. Cael, o cão rastreador de magos de
Silhara, tocou seu focinho preto molhado no nariz dela e cheirou.
— Pelas asas de Bursin. — Saltou para trás, puxando as cobertas
sobre a cabeça. — Cael, você cheira como os mortos. Você estava
rolando no chiqueiro de novo?
O cão ganiu e empurrou o focinho dentro dos cobertores. Martise
saiu da cama, ansiosa para colocar alguma distância entre ela e o
cheiro repulsivo dele. Ele andou atrás dela quando correu até a
janela e abriu as persianas.
A pálida luz da manhã enfeitou a borda da janela e lançou as últimas
sombras antes do amanhecer em um relevo acentuado. Os corvos
que dormiam no laranjal bateram as asas, balançando os galhos
caídos enquanto pulavam para as partes mais elevadas das árvores,
lutando por espaço nas cobiçadas copas.
Cael se juntou a ela. Se levantou sobre as patas traseiras, apoiando
as patas maciças no parapeito da janela. Martise olhou para ele com
receio enquanto se elevava acima ela. O rastreador de magos era um
animal enorme, maior do que qualquer um dos machos que vira na
matilha do Conclave. Cinzento e um pouco velho, mas ainda era
formidável. O observara caçar nas terras de Neith, facilmente
executando a presa mais rápida na terra com um longo e constante
galope. Suas mortes foram rápidas, eficientes e deixaram Martise
esfregando os calafrios para fora de seus braços horas mais tarde.
Uma vez, há muito tempo, rastreadores de magos tinham caçado e
matado os possuidores do Dom da mesma forma.
Seu primeiro encontro com o cão mago duas semanas atrás a fez
perder dez anos da sua expectativa de vida com o susto. De pé na
cozinha confortável de Gurn, sua primeira manhã em Neith, ficou
paralisada enquanto Cael lentamente a circulou. Tão grande quanto
um pônei, mas com a graça felina de um gato, ele entrou
furtivamente na cozinha e foi diretamente para ela, as garras negras
batendo no chão de pedra. Seus olhos escuros, transformados em
carmesim no segundo em que a viu, observavam cada movimento.
O pelo cinzento ao longo das suas costas curvadas se eriçou em um
arco espinhoso, sua cauda como um chicote estalou uma advertência
contra a mesa de trabalho de Gurn.
Martise implorou silenciosamente para Gurn puxar o rastreador de
magos para trás. Gesticulou um pedido de desculpas e bateu as mãos
em um comando. Relutantemente Cael seguiu o servo até a porta
que dava para o pátio interno, mas não sem olhar para ela várias
vezes com aqueles olhos vermelhos brilhantes.
Quando Gurn voltou, Martise estava encostada na mesa para ter
apoio. — Vocês têm um rastreador de magos, —disse com uma voz
fraca. Ele assentiu. Ela respirou fundo e se endireitou, sentindo os
primeiros sinais de raiva. — Ele é o 'habitante' que seu mestre falou.
— Gurn inclinou a cabeça mais uma vez.
Bastardo sem coração. Ela repetiu o nome “Cael”, rosnando
baixinho. Não esperava que Silhara acreditasse nas garantias de
Cumbria. A animosidade entre os dois homens era muito grande.
Mas, havia muitas maneiras, menos extremas para verificar se ela
possuía o Dom. Maneiras que não envolviam um rastreador de
magos mortal cheirando suas saias.
Transformou sua expressão em uma máscara plácida. — Será que
ele está satisfeito agora?
Gurn encolheu os ombros, seus olhos gelados. Martise sentiu que a
desaprovação dele não foi dirigida a ela. Ele fez sinal para que ela se
sentasse e serviu o café da manhã.
Rapidamente se estabeleceu em uma nova rotina desde então. Cael,
apesar de sua desconfiança inicial, a aceitou. Ainda estava curioso e
a seguia pela mansão enquanto realizava as inúmeras tarefas que
Gurn havia atribuído durante o dia, acabou se acostumando com o
silêncio dele, até mesmo com a sua companhia fedorenta.
Nesse meio tempo ela não tinha visto Silhara, ainda que sentisse sua
presença em cada curva e fenda de Neith. O vira somente uma vez
até agora, mas sua imagem estava gravada em sua mente. Ele a
lembrava um redemoinho preso, girando violentamente no lugar,
esperando apenas o momento para estourar livre de seus limites e
explodir o terreno circundante. Cumbria não atribuíra a ela uma
tarefa fácil. Sua liberdade seria conquistada com muito esforço.
Uma brisa alegre passou por sua janela aberta, dissipando um pouco
do forte odor de Cael. Grãos de poeira dançavam em espiral antes
de ir descansar em seu pelo em uma rede cintilante. Na luz da
madrugada a estrela de Corruption brilhava apagada entre nuvens
coloridas. A estrela nunca permanecia parada. Ontem lavará o
horizonte sul numa luz amarela escura. Esta manhã pairava no céu
oriental, quase ofuscada pela subida do sol.
Cael rosnou suavemente. Seus olhos estavam vermelhos mais uma
vez enquanto também observava a estrela com seus pelos eriçados.
Ninguém sabia o que atraia os cães de caça à magia, mas eles a
procuravam da mesma forma que um cachorro comum rastreava
sua presa. Cael tinha reagido a ela primeiro com hostilidade contida,
típica de um rastreador de magos treinado quando introduzido a
alguém com o Dom. A reação dele à manifestação de Corruption era
diferente. O animal exalava o ódio, uma hostilidade bestial em sua
forma mais feroz. Os lábios dele se curvaram para trás, expondo
presas tão longas quanto os dedos dela. Se o deus tomasse uma
forma mais terrena, ela não tinha dúvida de que Cael pularia pela
janela em um esforço para caçá-lo e rasga-lo no meio.
Se ele fosse um cachorro comum, ao invés de um rastreador de
magos, Martise talvez tivesse afagado suas costas em concordância.
Mas estava relutante em tocá-lo, com medo de ter sua mão
arrancada fora por sua presunção. E ele cheirava pior do que uma
latrina.
— Vamos, rapaz, — disse e saiu da janela. — Gurn vai ficar se
perguntando onde eu estou. — Seu estômago roncou, ela jurou que
as espessas sobrancelhas de Cael se contorceram em diversão. — E
eu também não quero perder o café.
Se lavou rapidamente e vestiu um de seus vestidos emprestados,
restos do guarda-roupa sempre em mudança da esposa de Cumbria.
Prendeu o cabelo em um coque apertado e o fixou com dois pinos de
cabelo de madeira. — Tedioso e simples como uma batata, —
murmurou, alisando a frente de seu vestido. Não estava aqui para
seduzir, apenas para trair. Sua beleza, ou a falta dela, não
participava neste jogo. E o jogo talvez nunca começasse se ela não
visse Silhara com mais frequência.
Gurn tinha deixado metade de uma lâmpada de óleo para ela, um
auxílio de navegação necessária nos corredores escuros de Neith.
Martise acendeu a lâmpada e fez um sinal para Cael sair. O corredor
sinuoso através do segundo andar da mansão era escuro até na parte
da manhã. Sua lâmpada fornecia a única luz, uma luminosidade
fraca que enviava sombras perseguindo uma a outra através das
paredes rachadas e piso curvo.
O comentário de Cumbria sobre Neith ser um casebre era rude, mas
não muito longe da realidade. Essa era realmente a casa de um
homem pobre, apesar de seu tamanho e grandeza decrépita. Pulou
sobre um buraco no chão e aterrissou na ponta dos pés enquanto a
madeira gemeu em protesto sob seus pés. Poeira cobria todas as
superfícies. Restos de teias de aranha flutuavam como uma renda
esfarrapada das vigas do teto, acariciando sua cabeça enquanto
passava por baixo delas. Sua pele se arrepiou, tentou não pensar
sobre a possibilidade de uma aranha se prender em seu cabelo.
Será que Silhara era um aristocrata que tinha apenas linhagens para
lhe dar valor? Depois das secas e da fome que varreram as terras
distantes quando ela era uma criança, muitas das famílias
aristocratas foram reduzidas à mendicância e venderam as suas
propriedades apenas para se alimentar. Será que tais infortúnios
trouxeram a família dele à ruína?
Foi a única coisa que pode pensar para explicar a sua arrogância. Ele
parecia um homem que nasceu para governar – se não um país,
então certamente, um feudo, um vale. Seu comportamento em
relação a Cumbria foi insolente, como se ele se considerasse não só
igual ao Bispo, mas seu superior. Em sua experiência, apenas
aqueles nascidos nobres e de grande riqueza exibiam essa conduta.
Martise desprezava esse tipo de pessoas.
Teria que moderar o seu desagrado para com o mago corvo. Ele não
era diferente de qualquer outro dono, ou clérigo de alto escalão, até
agora infligira sobre ela nada mais do que alguns comentários
sarcásticos. Ainda assim, havia algo inerentemente perigoso sobre
ele. O Conclave nem sempre governava pela paranoia, seu instinto a
avisou para pisar com cuidado em torno dele, embora coçasse para
socar os ouvidos dele por sua arrogância.
Ele a confundia mais do que qualquer coisa. Estava acostumada com
o comportamento arrogante das pessoas da classe dele e deveria ter
sentido nada mais do que o desprezo usual de um servo para aqueles
que ela servia. Mas fogo tinha lambido seu interior em sua primeira
visão dele. Seu rosto aqueceu com o que era sem dúvida o vermelho
mais quente já havia enfeitando o rosto de uma mulher que não era
mais virgem. Tais sentimentos não tinham lugar aqui. Ela estava
presa e ele era um pária. Residia em Neith para espioná-lo e se a
promessa em sua expressão era qualquer indício, ele faria com que
ela desejasse nunca ter atravessado sua porta.
Suas vestes vermelhas, brilhantes e opressivas em uma casa pintada
em tons de cinza e marrom desbotado provocavam sua memória.
Havia uma beleza gritante sobre ele, uma força atraente em seu
rosto magro, com suas maçãs do rosto proeminentes e nariz curvo.
Como Cumbria, ele irradiava poder no conjunto de seus ombros, o
desafio em seus olhos escuros. Mesmo Martise, que tinha um Dom
que não funcionava, sentiu isso. Os rastreadores de magos devem
ter ido à loucura quando eles o cheiraram pela primeira vez. Ele era
um renegado e possivelmente, um herege. Se ele fosse tão
formidável quanto o canonicato acreditava e tão suscetível à sedução
de Corruption como eles suspeitavam, então os clérigos tinham
direito às suas dúvidas.
A visão da escada de madeira deteriorada que descia para o primeiro
andar a fez esquecer seu aborrecimento com o mestre de Neith.
Martise fez uma pausa, com inveja da segurança de Cael quando
facilmente passou por ela e desceu a escada dois degraus de cada
vez. Flácida em alguns pontos e quebrada em outros, era uma
armadilha mortal. Mas não era seu lugar para reclamar. Em vez
disso, pela segunda vez no dia, respirou fundo, fez uma oração
sincera e trilhou o caminho traiçoeiro.
Mais rangidos e estalos soaram sob seus pés. Tomou conforto em
saber que o muito maior Gurn havia subido essas mesmas escadas
inúmeras vezes e não chegou a um final ruim. A sorte dela poderia
não ser tão boa. O corrimão quase estilhaçou sob seu aperto. Se
imaginou tropeçando e sendo lançada de cabeça sobre o parapeito
quebrado. Seria de pouca utilidade para Cumbria como sua espiã se
Silhara descobrisse seus restos mortais espalhados no chão de seu
grande salão. Tinha certeza de que ele também não ficaria satisfeito.
O salão ostentava uma mobília deteriorada, paredes enegrecidas
pela fuligem e uma lareira fria. Abandonada e sinistra, sim, mas não
cheia de cadáveres como parte da decoração. Até onde ela sabia. Não
queria refletir sobre que tipo de esquisitices espreitava neste lugar.
Suspirou aliviada na parte inferior da escada. Cael esperou por ela,
rosnando sua desaprovação em sua lentidão. Ela encolheu os
ombros. — Eu não sou tão ágil quanto você, Cael. — Ela torceu o
nariz para o cheiro flutuando fora de seu pelo. — Nem tão
malcheirosa. — Ele rosnou novamente e a levou para a cozinha.
Gurn pode não ter muito interesse em arrumar o resto da mansão,
mas tinha orgulho de sua cozinha. Intocada e organizada, o lugar
praticamente brilhava. Não havia vasos ou pratos sujos empilhados
na pia seca, nenhum animal vagava, nem havia cães de caça
espalhados no chão da cozinha.
Armários gastos colocados contra uma parede distante guardavam
uma variedade de pratos lascados e pilhas de panelas e tigelas.
Leques de sálvia seca e alecrim estavam pendurados ao lado de
correntes de alho a partir de um feixe baixo perto da pia seca. Uma
tigela rasa de laranjas empilhadas em uma torre arrumada
compartilhava espaço com fatias de pão em uma mesa perto de uma
janela. A mesa de preparação, amassada e arranhada pelo uso, tinha
um brilho suave que só vinha de uma lavagem diária.
A admiração de Martise pelo criado mudo crescia aos pulos em suas
semanas em Neith. Mesmo Bendewin, cozinheiro de Asher, tinha
que ser lembrado de polir sua mesa de preparação em uma base
constante. Ninguém gostava lascas em sua comida. Ao contrário da
maioria da mansão, não havia uma partícula de pó acinzentado
sobre as superfícies, toda a sala foi impregnada com o cheiro forte
de mingau fervendo em um caldeirão de ferro suspenso sobre um
fogo baixo na lareira. Sua boca encheu de água.
— Uma boa manhã, Gurn, — ela disse em saudação. — O café da
manhã está com um cheiro maravilhoso.
Ele lhe deu um sorriso satisfeito de onde estava e se inclinou sobre
a panela, mexendo seu mingau. O sorriso se transformou em uma
careta de desgosto quando Cael passou por ele e se deixou cair no
seu lugar habitual debaixo da mesa.
Ela não esperou pela direção de Gurn, fez seu caminho para o porão
frio em um canto. Encaixado no chão da cozinha e acessível por uma
escotilha, o espaço profundo estava cheio de frascos de conservas,
pedaços de bacon salgado e presunto, uma tigela de ovos e potes de
manteiga, creme e leite. Pegou manteiga e leite e subiu os degraus
do porão, grata que, pelo menos, eram resistentes.
Gurn tinha colocado duas tigelas de mingau fumegante sobre a mesa
no momento em que ela colocou os potes na mesa. Martise ficou
aliviada por não ver uma terceira tigela. Era inevitável que teria que
lidar com Silhara e muitas vezes. No entanto, preferiu adiar o maior
tempo possível, não gostava da ideia dos penetrantes olhos negros
olhando para ela enquanto comia seu café da manhã.
Esta manhã, sua sorte acabou. Mal Gurn posicionou a bacia de
laranjas e um pote de chá para sua refeição, a porta se abriu,
acolhendo o Mestre dos Corvos. Surpresa pela súbita aparição,
Martise ficou boquiaberta com a colher a meio caminho de sua boca.
Amarrotado e carrancudo, ele não lhe deu um olhar, mas vacilou até
a mesa onde caiu no banco em frente a ela. Cruzou os braços e
apoiou a testa em suas mãos com um grunhido.
O orgulhoso e imponente mago que tinha conhecido dias antes, foi
transformado em um homem que poderia ter passado a noite
perambulando pela praia. Ele não cheirava a espíritos. Na verdade,
o cheiro dele brincava com o nariz dela – citros e fumaça de tabaco.
O cabelo preto longo, que estava arrumado e liso quando
cumprimentou ela e Cumbria, estava espalhado sobre seus ombros
em uma coberta emaranhada, do outro lado da mesa. Parecia que
dormira em sua roupa. As calças simples e camisa branca eram uma
ruga enorme e seus pés estavam descalços.
Ela olhou para Gurn. Sem se incomodar com a aparência inesperada
e desgrenhada de Silhara, ele colocou outro copo e um pote de chá
adicional em frente Silhara e sentou ao lado dele. Era este o ritual
regular da manhã? Um brevemente interrompido quando ela
chegou?
Ela voltou a comer e tentou não rir, imaginando o Alto Bispo aqui
em vez dela e o quão ofendido ele estaria. Suspeitava que o mago
exilado não faria concessões especiais para o clérigo. Ele seria
servido do mesmo mingau que todos os outros da cozinha com o
mestre da mansão e seu servo.
— Por que você está sorrindo?
A pergunta de Silhara a assustou e quase engasgou com um gole de
chá. Pegou o guardanapo que Gurn entregou para cobrir a boca e
sufocar sua tosse. Os olhos escuros do mago estavam levemente
abertos contra a luz brilhante da manhã na cozinha. Indícios de uma
barba sombreavam suas bochechas, enfatizando uma mandíbula
forte.
Ela limpou a garganta. — Eu estava pensando no Alto Bispo, Mestre.
Nada de importante. Me desculpe.
Uma sobrancelha negra se levantou, seu olhar caiu para a boca dele,
enfeitiçada enquanto seus lábios se curvavam em um leve sorriso.
Um rosto tão duro. Uma boca tão bonita. Um calor revelador fez
suas orelhas queimarem, baixando o olhar.
— Eu imagino que Cumbria faria uma objeção a essa observação. Ele
sempre acreditou ser de grande importância.
Ela não podia resistir à tentação de olhar para ele novamente. A
camisa aberta revelava uma pele marrom suave e algo que ela tinha
perdido em seu primeiro encontro, algo escondido atrás das vestes
formais. Um cordão de pele branca trabalhada rodeava o pescoço
dele, cortando o oco de sua garganta e desaparecendo por trás de
sua nuca. Uma cicatriz de garrote. Olhou, chocada. Em algum
momento de sua vida Silhara de Neith tinha sobrevivido a uma
tentativa de estrangulamento.
Ele apoiou o queixo na mão. Os indícios de humor que amoleciam
brevemente seus traços austeros tinham ido embora.
— Você é excessivamente pesarosa sobre o mundano, especialmente
para uma jovem sob a proteção de uma família rica.
A suspeita casual, com as suas principais perguntas e observações,
ameaçou sua compostura, não acostumada com tal escrutínio. Ou
Cumbria tinha colocado muita fé em sua habilidade de superar uma
vida de comportamento servil, ou ele havia subestimado a acuidade
de Silhara.
A inteligência astuta brilhava em seus olhos escuros. Será que ele
tinha adivinhado o seu jogo antes que ela e o bispo se sentassem com
ele e discutissem seu aprendizado? Será que o mago estava
esperando só para ver o que ela poderia revelar antes de usar isso
contra ela? Agarrou sua colher e respirou lentamente. Era
desconcertante jantar com leopardos.
— Minha família era socialmente próspera, mas pobre, — ela
mentiu. — Quando fui morar em Asher, logo aprendi sobre respeito.
Eu tenho uma relação dependente e não desejo ser mais um fardo,
especialmente ao Bispo e sua esposa.
Ele se moveu para pegar uma laranja, tomando seu tempo em sua
escolha. — Ah, a senhora de Asher. A penitência de Cumbria por
pecados não confessos. Gostaria de saber se ele ainda estava casado
com aquela megera Dela-fé. — Seu sorriso combinava com seu tom
indiferente. — Se ele fosse mais inteligente e menos avarento,
encontraria uma maneira de matá-la. Suas riquezas são atraentes.
Sua loucura não é.
A declaração, tão sangue-frio nas suas observações, a deixou sem
palavras. Olhou para ele enquanto tirava a casca da laranja com
dedos longos e ágeis. Era verdade que a mulher de Cumbria era mais
louca do que um pássaro preso com um felino, mas Martise ficou
surpresa ao ouvir alguém reconhecer o fato em voz alta. Ela queria
matar a mulher com as próprias mãos, principalmente depois que
Dela-fé lhe dava surras sem motivos.
Olhou para Gurn que piscou e continuou placidamente comendo seu
café da manhã.
— Você quer uma laranja?
Ela olhou para a fruta que Silhara estendeu para ela, querendo saber
que engano mortal uma laranja aparentemente inocente poderia
conter. Olhou para ela com um olhar implacável.
Pelas asas de Bursin, estava se tornando tão desconfiada quanto o
Conclave. Controlou sua paranoia e arrancou a laranja da mão dele
com um murmuro — Meus agradecimentos.
— Você não gosta de laranjas? — Ele parecia mais curioso e divertido
do que ofendido. — Meu bosque produz algumas das mais doces.
— Você não parece um agricultor, — ela disse, não conseguindo
manter a dúvida fora de sua voz. Ainda achava a ideia estranha –
este mago, notório por esnobar o Conclave e se aprofundar nos
arcanos negros, rodeado por uma vida tão mundana e trabalhosa.
Os olhos dele se arregalaram. Até mesmo Gurn parou de beber o chá.
— É como eu nos mantenho alimentados e este brutamontes de ruir
em torno de nós. — Sarcasmo aguçou sua língua. — O quê? Você
achou que eu descansava no meu sofá durante todo o dia, lendo
livros e murmurando encantamentos enquanto Gurn me alimenta
com uvas?
Ela sabia melhor. Vinte e dois anos de servidão deveriam ter
mantido sua boca fechada e a feito pedir desculpas por sua
impertinência, mas alguns demônios pequenos incitaram-na a
responder de forma semelhante, apesar de sua educação e cada
instinto a avisando do contrário.
— Isso explicaria a poeira.
Gurn engasgou em seu copo antes de colocá-lo em cima da mesa
com um baque. Sua face e careca viraram um tom impressionante
de rosa e seus olhos se encheram de lágrimas. Martise não sabia se
eram lágrimas de riso ou asfixia e estava muito mortificada para se
preocupar com isso. Humilhação queimou um caminho de seu peito
até parte de trás do pescoço. Inclinou a cabeça, olhando para o
mingau dela agora congelado como se ele tivesse todos os segredos
dos anciões.
Lá fora, os gritos estridentes dos corvos pontuavam o silêncio da
cozinha. Sentou rigidamente, à espera do ardor de um tapa ou a dor
do escurecimento da visão vindo de um soco em sua cabeça pela
insolência. O que havia de errado com ela?
Seu coração trovejava em seus ouvidos. Silhara era um perigo
desconhecido. Ele poderia nem a tocar, mas transformá-la em uma
minhoca gorda e suculenta para os corvos aninhados em suas
árvores. Ele não fez nenhum dos dois. Quando foi corajosa o
suficiente para olhar, ela o encontrou a olhando de uma forma
especulativa.
— Você fez uma coisa imprudente, Martise de Asher, — ele disse
suavemente. — Você despertou meu interesse.
Capítulo
Cinco
Ela não era mais cativante na manhã do que no final do dia. A nova
aprendiz de Silhara parecia igual à quando ele a conheceu pela
primeira vez, vestindo uma túnica e saias muito grandes para ela, os
cabelos presos em um coque apertado e coberta com teias de aranha
rasgada. Quando tropeçou na cozinha, meio cego pela luz da manhã,
ficou surpreso ao vê-la. Então lembrou. A resposta do Conclave ao
seu pedido de ajuda. Não sabia se ria ou amaldiçoava. O que, em
nome de Bursin, deveria fazer com uma ajudante que não poderia
realizar o feitiço mais simples ou levantar um cesto de laranjas?
Tomou um gole de chá e a observou por cima da borda da taça.
Malditos padres. Não poderiam tê-lo amarrado com alguém mais
bonita? Uma mulher com curvas generosas e seios para se sufocar?
Alguém com a qual ele pudesse foder como um animal no corredor
enquanto ela procurava por segredos e planejava maneiras de traí-
lo? Em vez disso, eles enviaram essa menina comum, tímida e sem
talento. Na melhor das hipóteses, sua presença era um incômodo,
na pior das hipóteses, um impedimento perigoso.
Ainda assim, ela não era tão sem graça quanto pareceu pela primeira
vez. O pegou de surpresa com sua réplica sobre a poeira, revelando
um flash de sagacidade seguido por um rubor impressionante. Ela o
fez pensar – e sorrir. Isso por si só lhe interrompeu.
Silhara não conseguia se lembrar da última vez que tinha
encontrado algo que valia um sorriso no rosto que não envolvesse
zombaria, mas nos últimos dez minutos a pequena espiã de Cumbria
quase persuadiu um riso para fora dele com seu comentário e a
forma como o olhou quando ele lhe ofereceu a laranja. Não achava
que a expressão dela poderia ser mais desconfiada ou com medo
mesmo se tivesse estendido uma víbora viva.
— Você vai come-la? — Ele apontou para a laranja, intocada ao lado
de sua tigela.
Ela endureceu, como se estivesse se preparando para algo
desagradável. Observou suas mãos quando chegou com relutância
para a fruta. Os nós dos dedos estavam vermelhos, irritados – como
os dele. Como os de Gurn. Esta era uma mulher que trabalhava na
casa de Cumbria. Não era uma escudeira mimada que estava aqui,
mas alguém que fazia o trabalho braçal.
Houve uma graça meticulosa na forma como despedaçou a laranja e
algo fascinante na maneira como a comeu. Mordeu o segmento
lentamente, seja por cautela ou por prazer, suas ações fixaram sua
atenção. Ele balançou a cabeça. Deuses, tem sido muito tempo desde
que eu tive uma mulher. Sorriu quando os olhos dela se arregalaram
após a primeira mordida.
— É tão doce!
— Eu não estava me vangloriando sem motivo quando disse que nós
colhemos a melhor fruta aqui. As laranjas de Neith sempre esgotam
no mercado.
Ele não compartilhava da sua apreciação. As laranjas eram a parte
mais importante de sua dieta e ele as abominava. Conquistava o
desejo de se engasgar a cada vez que ele comia uma. Mas mesmo
assim as comia, sempre com o pensamento de que algum dia poderia
vir a gostar delas e se livrar da memória ligada a elas.
Martise terminou a laranja com mais entusiasmo, mas recusou
quando ele ofereceu outra. Ela elogiou Gurn pelo mingau, os dois
compartilharam um sorriso caloroso. A camaradagem imediata
deles intrigava Silhara. Essa não era dança de acasalamento de um
homem e uma dama, estava mais para um reconhecimento de
amigos separados por muitos anos que finalmente se
reencontraram. Notara a fixação imediata de Gurn para com a
menina. Martise parecia corresponder às afeições do servo. Os olhos
dele se estreitaram. Eles não sabiam nada sobre ela além do que
Cumbria os havia dito. Havia mais sobre Martise de Asher do que
rubores nervosos e uma voz melodiosa. Tinha um interesse
escondido ou não estaria aqui. Ele ia moê-la na terra antes de deixá-
la usar Gurn para chegar até ele.
Ele ficou tentado em dizer a ela as origens de Gurn – como Silhara
o encontrou apodrecendo em uma prisão primitiva por literalmente
quebrar um homem ao meio em seu joelho, mas pensou melhor. Ele
não gostava da ideia de um Gurn irritado arrancando sua cabeça de
seus ombros e a jogando através do pátio por revelar coisas privadas
para um estranho.
Um comentário sarcástico sobre o apego deles pairou nos seus
lábios, impedido apenas por um perfume sujo que vinha por debaixo
da mesa.
— Pelas asas de Bursin! Que cheiro é esse? — Ele levantou uma
sobrancelha para Martise. Os olhos dela se arregalaram.
— Não sou eu. Tomei banho esta manhã.
Gurn cutucou ele e apontou na direção de seus pés. Ele se inclinou
para olhar debaixo da mesa e quase engasgou. Cael jazia estendido
no chão, cheirando pior do que o cão desajeitado, meio podre que
invadiu Neith ao comando de Corruption. Empurrou Cael com um
pé e o cão rosnou um aviso.
— Fora daqui Cael. Agora. — Ele empurrou mais forte desta vez. Cael
bateu sem vontade em seus dedos antes de abandonar o seu lugar e
se esgueirar pela porta aberta que conduzia ao pátio.
Silhara o observou ir antes de voltar sua atenção para Martise. —
Gurn me disse que meu rastreador de magos verificou a história de
Cumbria. Você possui o Dom.
Ela empalideceu e baixou os olhos para mascarar a sua expressão.
— Sim. Gurn nos apresentou.
Sua voz extraordinária tinha se tornado plana, escondendo uma
riqueza de emoções da mesma forma que seus olhos baixos fizeram.
Ele não se deixou enganar. Ela estava com raiva por ele ter usado
Cael no apuramento da verdade.
— Cael é um membro valorizado da minha casa, Martise. Eu confio
em seu julgamento mais do que confio na maioria das pessoas.
Independentemente dos desejos do Conclave e da generosidade de
Cumbria em me enviar sua escudeira como aprendiz, se Cael não
aprovasse você, você não ficaria aqui.
Ela encontrou seu olhar, os olhos de moedas de cobre dela estavam
inflexíveis e resolutos. — O Bispo o pagou por quatro meses das
minhas despesas.
A raiva passou por ele, incinerando os últimos vestígios de
sonolência. Ela ousou desafiá-lo! Ele mostrou os dentes para ela,
não ficou calmo quando ela se encolheu. Ainda assim, ela se recusou
a baixar os olhos.
— Sim, ele fez, — disse ele. — E quando eu enviar a sua escudeira
insolente de volta, vou incluir uma nota informando o custo
exorbitante de mingau e uma laranja de Neith que tornou necessário
que eu mantivesse todo o seu dinheiro para poder recuperar minhas
despesas.
A tensão na cozinha era espessa o suficiente que dava até para
cortar. O temperamento de Silhara subiu com ela até que Martise
exalou um suspiro derrotado. A voz dela era regular, seu olhar
cuidadosamente branco e tranquilo enquanto se concentrava em um
ponto sobre o ombro esquerdo.
— Eu estou sendo impertinente. Me desculpe, mestre.
— De alguma forma eu duvido disso. — Ela lhe lançou um olhar
surpreso. — Mas acho que começamos a compreender um ao outro.
Ele observou enquanto ela brincava com a colher e traçava padrões
em seu mingau congelado. — Você tem teias de aranha em seu
cabelo.
Ela afagou os cabelos, fazendo uma careta quando seus dedos
tocaram os restos de teia de aranha pendurados nos grampos de
cabelo.
— Não importa Martise. Não é necessário se embelezar. Sua
aparência não é de interesse aqui.
Um indício de dor ou constrangimento dançou em suas feições antes
que ela baixasse o olhar. Ele a cortou, não intencional, no entanto.
Ninguém em Neith ficava de cerimônia. Ele e Gurn se vestiam não
melhor do que o servo mais baixo de uma família rica. Não tinha
sequer se incomodado em raspar a barba ou colocar os sapatos antes
de tropeçar para o café esta manhã. Sua observação sobre as teias no
cabelo dela tinha sido conversa fiada. Ela interpretara a sua
declaração como um insulto. Ele optou por não se explicar.
— Gurn, — disse ele. — Você vai ter que se virar sem ela por um
tempo. Eu já atrasei demais em ensinar a minha nova aprendiz. E
eu estou curioso para saber o que o Conclave lhe ensinou.
O gigante olhou com raiva para ele e se levantou abruptamente do
banco. Silhara não era rápido o suficiente para o impedir de
arrebatar o bule de chá da mesa e o copo de sua mão. O servo foi até
a pia seca e deixou cair os pratos com um barulho.
Silhara poderia ter o repreendido se Martise não se sentasse em
frente a ele. Ela se endireitou para uma atenção rígida, suas feições
pálidas ainda mais sem sangue enquanto esperava suas instruções.
— Peça para Gurn levá-la para o grande salão. Eu te encontrarei lá.
Você é treinada pelo Conclave, ainda assim impotente. Vamos ver o
que pode despertar a sua magia.
Culpa abriu um caminho dentro ele. Ele não mentiu. Se ela não
corresse gritando de volta para Asher como ele esperava, tinha toda
a intenção de encontrar o Dom dela e força-lo a se manifestar. Ela
só poderia não gostar de seus métodos.
Ele a deixou com Gurn na cozinha iluminada pelo sol e voltou para
seu quarto para se vestir. Uma parte dele queria ficar, para
aproveitar o calor da manhã e saborear o cheiro do aumento da
massa de pão enquanto Gurn preparava sua fornada diária. A
cozinha era um santuário, bem parecida com o que seu quarto um
dia foi. Com a ascensão de Corruption, seu quarto era menos um
retiro e mais um campo de batalha entre ele e o deus caído. Ele
precisava dormir, realmente dormir, não os breves cochilos em que
adormecia pela metade, se preparando para a invasão inevitável do
deus em seus sonhos.
O toque de Corruption era fascinante e exuberante, atraindo com
promessas de poder imensurável, de respeito, de vingança, ao
mesmo tempo em que o fazia sangrar e convulsionar. Ele não era
mais o bastardo de uma prostituta de cais, mas um governante de
impérios, um mago imortal. Com essas promessas vieram
demandas. Subjugação completa para outra vontade, obediência
absoluta ao manipulador mais vil. Poderia ele insultar o segundo o
suficiente para resistir à tentação do primeiro?
Silhara fechou a porta e caminhou até a janela aberta. A estrela
pulsante à distância. — Ainda aqui? — Ele perguntou em voz baixa.
— Você não tem algo melhor para fazer? Pragas para lançar? Cidades
para destruir?
Uma explosão aguda de dor atrás dos olhos o fez estremecer. A
diversão de Corruption agitou seus ossos. “Eu só espero por você,
Avatar”.
Ele fechou as persianas com uma batida, mergulhando a sala na
escuridão. Madeira frágil nunca deteve pesadelos, mas a ilusão
escondeu a realidade do deus à espreita no horizonte.
— Ainda não, — resmungou e lançou um feitiço que inundou a
câmara com luz mágica. Seus dedos se agitaram ao longo da cicatriz
circundando o pescoço. Ah, voltar aos tempos mais simples. Pelo
menos, seu carrasco tinha sido um conselheiro do estaleiro sem
piedade para um ladrão morrendo de fome. Agora ele tinha o
Conclave em sua cozinha e Corruption em sua porta, cada um
querendo destruí-lo em sua própria maneira, única e horrível.
Ele não tinha tempo para nenhum dos dois. Havia laranjas para
serem colhidas e levadas para o mercado, negócios para serem
acertados com os Kurmans e edifícios para reparar. O trabalho de
um homem honesto nunca acabava – não que fosse particularmente
um homem honesto.
Martise estava esperando por ele perto da lareira fria do hall,
rodeada pelo brilho cintilante de partículas de poeira. Ela parecia
quase etérea, em pé de modo suntuoso e equilibrado – a rainha
pálida adornada de teias de aranha e lã marrom.
Ela se curvou. — Mestre.
Silhara meio que esperava uma reclamação sobre seu atraso, mas
nenhuma parecia estar vindo, seu rosto permanecia sereno
enquanto a circulava, respirando o perfume dela – sono e hortelã da
primavera. — Qual é o encantamento para levitação?
— Qual deles? Mysanthanese ou Hourlis?
Ele parou em frente a ela, intrigado. — Ambos.
As invocações dela foram impecáveis, seus acentos em perfeita
colocação, sua entonação de voz correta. A levitação Mysanthanese
deveria tê-la levantado acima de sua cabeça, o Hourlis para as vigas,
mas os pés dela permaneceram firmemente plantados no chão. Se
não fosse pela reação de Cael, Silhara não iria acreditar que ela tinha
o Dom, apenas que ela havia sido ensinada.
Ela deve ter visto a sua dúvida. — Talvez seu rastreador de magos
estivesse errado.
— Os cães nunca estão errados, especialmente não o meu cachorro,
— ele retrucou.
Ele continuou circulando ela. Era uma mulher pequena, leve.
Articulada e letrada, tinha as mãos de uma copeira e o conhecimento
do Conclave. Que presente estava escondido nesta criatura
contraditória?
A versão dele do feitiço Hourlis e um gesto silencioso, tomou-a sem
aviso. Os pés dela foram para cima, uma lufada de ar a girando para
suas costas enquanto Silhara levantou o braço e mandou-a voando
para o teto.
Seu grito assustado ecoou pelo corredor. Martise se debateu,
suspensa acima do chão. Teve um vislumbre das pernas brancas
finas e um emaranhado de roupa enquanto chutava seus pés e se
lançava para uma das vigas do telhado. Seu cabelo caiu livre de seus
pinos a longa trança balançando no ar vazio.
— Qual é o feitiço para descer, Martise?
Ela parou de lutar, embora sua respiração fosse alta e difícil. — O
quê? — Ela ofegou, a voz diluída para um guincho enquanto pairava
acima dele.
— Qual é o feitiço para descer?
— Eu não me lembro! Por favor, me ponha para baixo.
Seu terror tomou conta dele, mas ele segurou firme a sua intenção.
— Eu acho que não. Você me desapontou. Uma maga experiente
sabe seus feitiços em todas as situações, mesmo durante tempos de
perigo.
— Eu não sou uma maga!
Silhara bateu um dedo contra seu lábio inferior. — Mas você é
treinada pelo Conclave. Se sabe levitação em duas línguas,
certamente sabe como descer nas mesmas duas? Não ensinaram a
você como manter a compostura?
Ele traçou um semicírculo no ar. Martise engasgou enquanto girava
lentamente para poder olhar para ele. Seu rosto estava vermelho
brilhante, os olhos enormes. Ela estendeu a mão para ele, mesmo
quando estava muito abaixo dela para tocar.
— Mestre, — ela implorou. — Eu te imploro. Me ponha para baixo e
recitarei todas as magias já escritas na Arcana Hourlis.
Ela apertou os olhos fechados, um leve suspiro trêmulo escapou de
seus lábios. Culpa apertou o estômago dele. Ele a suprimiu com
determinação implacável. Se ela descobrisse a verdade sobre a posse
de Corruption sobre ele, o Conclave iria prendê-lo à estaca mais
próxima e alegremente colocá-lo em chamas – mas somente após
horas ou dias de tortura.
— Pense, Martise. Qual é a descida?
Ele terminou o feitiço de levitação e ela caiu para o chão. A vibração
assobiando de suas saias acompanhava a tentativa gritante dela de
invocar um contrafeitiço para salvar sua vida. Ele invocou levitação
um instante antes que ela se esmagasse contra as pedras.
Somente sua respiração entrecortada quebrou o silêncio no grande
salão. Silhara inclinou perto para olhar em seus olhos. Eles estavam
pretos de terror, engolindo a cor de cobre.
— Isso deveria ter funcionado. Você tem um Dom teimoso.
Sua palma da mão pairou sobre a barriga dela. Ele gentilmente
baixou-a no chão até que estava em um mar de saias e trança
embaraçada.
Martise rolou de lado, para longe dele, escondendo o rosto atrás de
uma mão. Estremecimentos fortes a assolaram. Ela puxou os joelhos
contra o peito e sugou grandes goles de ar. Enojado com o que tinha
feito, Silhara desviou o olhar. Que Bursin tenha misericórdia de
ambos; deixe que isso seja o suficiente para assustá-la.
Esperou que se acalmasse, dando um passo cauteloso para trás,
quando ela cambaleou sobre seus pés e ficou diante dele. Sua cabeça
estava inclinada, como se em oração. Será que estava orando? Ele
pensou que ela poderia – pela morte prematura e dolorosa dele, sem
dúvida. Piscou quando ela levantou a cabeça.
Naquele momento, ela o lembrou das estátuas Astris que tinha visto
uma dúzia de anos antes. Seu mentor o levara a leste da província
de Quay, uma terra governada por mulheres. Eles haviam navegado
através dos estreitos para a porta principal, passando as Cinco
rainhas que guardavam os portões de água. Silhara tinha encarado,
fascinado, pelas antigas governantes, seus orgulhosos rostos
resolutos, não gastos pelo clima nem pelo tempo. Tinham uma força
silenciosa, produzida de almas poderosas que não se quebravam.
Martise, com aquele olhar gelado, imperioso, o lembrou das
Rainhas.
— Lembrei-me do feitiço.
Desgosto por ele cruzou as feições dela. Bom o suficiente por agora.
Não conseguira assustá-la o suficiente para ir embora, mas podia
persuadi-la a isso através do ódio – se não enterrasse uma faca em
suas costas primeiro. Ela era mais forte do que havia previsto e
muito mais teimosa do que ele teria imaginado pela primeira vez.
Cumbria deve ter oferecido a ela uma pequena fortuna para sofrer
meses em Neith. Silhara pretendia que merecesse cada moeda.
— Sim, você fez, aprendiz. E foi tudo em vão, não é? Nós tentaremos
novamente amanhã. — Sorriu para o arrepio involuntário dela. — Eu
entendo que você está ajudando Gurn. É um consolo saber que,
enquanto você não pode fazer um simples feitiço, você pode, pelo
menos, ordenhar uma cabra.
As mãos dela tremeram antes de relaxar em seus lados. Ele estava
curioso para ver se ela iria conquistar a vontade de bater com o
punho na mandíbula dele. Parecia que sim, enquanto entrelaçava os
dedos juntos até ficarem brancos.
— Sim mestre. Eu tenho trabalhado entre os animais por toda a
minha vida, incluindo vacas, porcos, cabras... e jumentos.
Capítulo
Seis
Outra manhã, outra lição – está pior do que todas as outras
combinadas. O Mestre dos Corvos era um odioso, porco desprezível.
Se ele tentou aterrorizá-la com sua feitiçaria maligna, a tática
funcionou. Seu coração ainda trovejava em seu peito do susto que
lhe dera. Das muitas lições que ele a tinha submetido até agora, este
foi o auge dos pesadelos. Se ele queria assustá-la, seu esforço falhou.
Qualquer culpa que assolava Martise em relação à sua missão
evaporou. Jurou que iria encontrar alguma evidência para marcar
Silhara como herege. Quando os sacerdotes construíssem sua pira
de execução, se voluntariaria para colocar a primeira tocha. Se
escolhessem decapitá-lo, se ofereceria para afiar o machado.
A bile atacou em conjunto com o persistente terror que queimava o
fundo da sua garganta. Entrou cambaleando na cozinha, tropeçando
por cima do mage-finder2 deitado desleixadamente perto da porta.
O cão grunhiu uma advertência e bateu em retirada. Martise mal

2 Uma espécie de sentinela/vigia mágico. No caso, um cão de guarda.


notou. Desgraçado! Arrogante, piolho impiedoso com seu sorriso
zombeteiro! Pelas asas de Bursin, o que não daria para ter seu dom
manifestado e ver como ele gostaria disto se ela jogasse um
barulhento e louco, demônio de sangue sobre ele. Tal coisa nunca
aconteceria, mas ela se confortava em imaginar o cenário.
Gurn se inclinou sobre a mesa, limpando os restos do café da manhã.
Parou quando a viu, pôs sua toalha molhada sobre seu ombro e a
guiou até um dos bancos. Ela acenou para ele. Era ruim o suficiente
Silhara ter testemunhado seus gritos de terror. Não queria Gurn
pensando que era uma fraca incapaz. Pelo menos as saias escondiam
seus joelhos oscilantes.
Ele pairou sobre ela, enquanto ela sentava, lhe oferecendo um fraco
sorriso. — Uma desgraça de mulher demônio desta vez. Ele a baniu
um pouco antes dela pular em mim.
Os olhos azuis de Gurn estavam escuros de simpatia. Ele lhe deu um
tapinha no ombro antes de caminhar para um dos armários e
vasculhar seu conteúdo. Voltou, segurando um copo pequeno cheio
com um líquido verde pálido. Ele fez sinal para ela beber.
Martise olhou para a bebida e lhe deu uma cheirada cautelosa.
Tossiu quando os vapores poderosos e familiares de Peleta's Fire
chamuscaram seu nariz. Conhecido por apodrecer as entranhas do
bebedor e confundir sua mente pelo segundo copo, seus
admiradores carinhosamente se referiam a ele por seu nome mais
vulgar, Dragon Piss3. Pensou que o termo era adequado. A primeira
e única vez que o provou quase vomitara e desde então passou a
evita-lo. Agora, com a compostura abalada, saudou a bebida.
Respirou fundo, fechou os olhos e bebeu o conteúdo do copo de um
só gole. A expressão chocada de Gurn turvou diante de seus olhos
enquanto o fogo queimou um caminho quente por sua garganta e
seu ventre. Ela chiou e se inclinou para frente até que sua testa tocou
seus joelhos, o último susto esquecido. Se concentrou
exclusivamente em inspirar e expirar.
Justo quando pensava que seu ventre estouraria em chamas, o calor
morreu para um radiante ardor. Uma agradável euforia a inundou e
o chão inclinou em sua visão. Martise se endireitou lentamente e se
encontrou cara a cara com Cael. Ele estava próximo, a cabeça
grande, com seu desafiante focinho e sobrancelhas espessas, ele
parecia enorme. A olhou intensamente, da maneira predatória que
os Mage-finders exibem ao redor dos Gifted4. Martise, pega em um
torpor induzido pelo fogo, esqueceu a cautela e respirou suavemente
em suas narinas. Cael recuou, bufando e balançando a cabeça em
sinal de protesto. Ela riu. Não o culpava. Os vapores adstringentes,
sejam no copo ou na respiração de uma pessoa, eram suficientes
para coalhar leite.

3 Mijo de Dragão.
4 Dotados.
Cael choramingou, recuando ainda mais quando Martise estendeu a
mão. — Vamos lá, meu grande rapaz, — ela cantarolou. — Eu não
vou te machucar. — Ela sorriu para a risada de Gurn.
Levantou devagar e soluçou. O quarto girou sobre um eixo inclinado.
Ela agarrou a borda da mesa para se sustentar. — O mestre me
mandou de volta para você, Gurn. Você deveria me dar tesouras e
uma bolsa.
Sua voz arrastava as palavras. Saíam de uma língua inchada e
grossa. O Fogo serpenteava através dela, aquecendo seu sangue.
Gurn a fez sentar e trouxe um pedaço de pão para comer. Ela piscou,
certa por um momento que havia dois pães na sua frente. Sua mão
pairou sobre eles antes de Gurn empurrar o pão mais perto, quando
ele se tornou uma peça novamente. Ela comeu devagar, ainda cheia
do café da manhã e mais bêbada do que um comerciante de vinho
no final do dia de mercado.
A porta do corredor para a cozinha se abriu para um Silhara de
cenho franzido. Parou ao vê-la. Tentou se levantar, mas a grande
mão de Gurn sobre seu ombro a segurou no lugar.
O mago tinha trançado seus cabelos e amarrado um lenço em volta
da cabeça. Ele usava roupas de trabalho mais sujas do que qualquer
coisa que ela possuía, e ela era uma escrava. Martise sorriu para ele
com admiração bêbada, apesar de seus pensamentos assassinos
sobre ele momentos antes. Mesmo vestido com sua roupa
desgastada, ele era uma figura atraente de pé ali, na cozinha de
Gurn, iluminado pelo sol. Demasiado místico para ser bonito, havia
algo impressionante em seu rosto e a maneira confiante como ele se
mantinha, como se ele governasse um reino em vez desta miserável
desculpa de mansão.
Seu sorriso desapareceu. Ele tinha acabado de colocar um demônio
sobre ela e ficou parado, com divertimento curvando seus lábios,
enquanto ela recitava feitiços vazios em um esforço inútil para parar
a gritante abominação de pular em cima dela. Oh sim, não só ela
colocaria a primeira tocha, ela também traria um carrinho cheio de
extras para compartilhar com os espectadores.
O aborrecimento puxou suas feições em linhas apertadas. — O que
você está fazendo? Você não tem trabalho para atender? Nós não
vivemos para atendê-la, Martise, não importa quão generosa é a
contribuição do bispo para os seus cuidados.
Oh, como ela queria lhe dar uma bronca, algo que iria zumbir em
suas orelhas e silenciar o desprezo que ele generosamente distribuía
a qualquer um que escutasse, mas estava muito embriagada para ter
um pensamento coerente e muito menos disputar verbalmente com
Silhara. Gurn veio em seu socorro, suas mãos se movendo em
agitados gestos rápidos demais para ela seguir.
Os olhos de Silhara se arregalaram diante da conversa silenciosa de
Gurn. — Ela virou a coisa toda? — Exasperação se juntou ao
desprezo em sua voz. — O que você estava pensando, sua idiota? —
Ele advertiu. —Provavelmente tinha o suficiente naquela xícara para
derrubar um cavalo de arado, — ele foi igualmente cortante com o
seu servo. — O que você estava pensando em dar tanto a ela?
Martise deu de ombros. Peleta’s Fire fazia mentirosos serem
honestos. — Eu estava com muito medo de pensar, — ela murmurou.
— Gurn estava apenas tentando ajudar a me acalmar.
Uma expressão assombrada passou pelos olhos de Silhara tão
rápido, que pensou ser apenas uma alucinação provocada pelo efeito
do Fogo em seus sentidos confusos. Ele franziu a testa para Gurn,
que franziu a testa em troca e fez outro gesto largo com as mãos.
— Saia, Gurn, — ele retrucou. — Eu não estou no clima.
Martise olhou para os dois homens em confusão. A conversa não
verbal entre eles estava carregada de tensão. Ela se admirou da
segurança do servo, que quase o repreendeu pela sua conduta e a
paciência do seu mestre volátil para tal comportamento. Cumbria a
teria despido e a espancado no pátio por esse tipo de insolência.
Silhara caminhou de volta por onde veio, dando ordens sobre seu
ombro quando saiu. — Faça com que ela termine o pão. Ele vai
impedir que vomite até suas entranhas. Volto logo. — Ele fez uma
pausa longa o suficiente para nivelar um olhar enojado para ela. —
Você é mais problemas do que você vale a pena. — Ele pontuou a
declaração batendo a porta com força suficiente para sacudir os
pratos e copos na pia seca do Gurn.
Focada em manter seu estômago calmo, Martise sentou calmamente
no banco e mordeu o pão. A figura alta de Gurn vacilou em sua visão
enquanto trabalhava na cozinha. Até agora, ela falhou
miseravelmente como uma espiã. Sua tentativa de se introduzir na
casa de Silhara tão perfeitamente quanto possível foi uma catástrofe.
Um pouco mais de uma quinzena e fizera nada mais do que agir
como assistente de Gurn e se submeter aos testes diários de Silhara.
Não estava mais perto de revelar alguma informação condenatória
sobre ele do que no primeiro dia em que chegou. O corvo mensageiro
de Cumbria definharia nas árvores, à espera de sua convocação, até
que suas penas ficassem brancas.
Martise deu outra mordida do pão e empalideceu com a irritação
ameaçadora em sua barriga. Cumbria podia se irritar, mas ele não
era o único lutando contra demônios, sendo incendiada ou atiradas
para o telhado da mansão sem meios para se salvar, exceto um
assistente de misericórdia questionável.
A porta que dava para o grande salão se abriu mais uma vez. Silhara
tinha retornado. Empurrou um cálice debaixo de seu nariz. — Beba
isso, — ordenou.
A taça, finamente feita de prata gravado com um complicado
trabalho de Kurman, sentia-se fria na palma da mão. Inclinou a taça
à boca e hesitou. Ao longo da borda da xícara, encontrou o olhar de
Silhara, perguntando se o que ele deu a ela foi realmente um
restaurador. Seus olhos negros brilharam com aborrecimento e um
toque de desafio.
Desgraçado infeliz. Martise meio que lamentou seu crescente
conhecimento de seu caráter. Após as sessões de tortura no grande
salão, sabia que ele não iria se preocupar a envenenando. Não havia
nenhum valor de entretenimento nisso. Estreitou os olhos para ele,
efeitos intoxicantes do incêndio dando a ela uma coragem
temporária, tomou de um gole do conteúdo do cálice.
Frio na garganta e amargo na língua, a dose apagou as brasas
quentes em sua barriga e ainda conseguiu conter a náusea e limpar
a cabeça de um só gole. Olhou para a taça e depois a Silhara,
espantada com a rapidez com que sua poção funcionou. — O que há
nesta bebida?
Seu olhar zombou dela. — Todos os tipos de pequenos males,
aprendiz. Você realmente quer saber?
— Não.
Ele pegou o copo dela. — Você se recuperou o suficiente para
trabalhar. — Ele se dirigiu a Gurn. — Quando ela terminar suas
tarefas, a leve para o bosque. — Ele saiu sem olhar para trás.
O pátio não parecia melhor do que o resto da mansão. A parede que
o cercava desintegrou em um canto, outras secções foram reparadas
com uma mistura de tijolo quebrado e pedaços de madeira. Como o
resto da região, Neith sofreu com a seca do verão e os trechos nus de
terra, espalhados pelo pátio em padrões rachados, ondulando com
lama seca. Um varal se agitava na brisa, ocultando parcialmente o
esboço de um grande cavalo que se alimentava em uma cremalheira
de feno, próximo de uma cabra preta que mascava com entusiasmo
ao lado de uma camisa secando. Uma porca e três leitões, expulsos
de seu chiqueiro por um Cael ainda mais sujo, enraizou ao longo do
perímetro do pátio, acompanhado por uma comitiva de gritos de
galinhas.
Por toda a sua aparência desorganizado, o pátio fez Martise sorrir.
Como Gurn, era um ponto de normalidade nesse estranho lugar
esquecido.
Passou o resto da manhã completando suas tarefas atribuídas.
Ordenhou a cabra, alimentou as galinhas recolhendo os ovos,
carregou baldes de água do poço para lavar e ajudou Gurn a dobrar
os lençóis limpos do varal. Somente quando Gurn sinalizou uma
pausa e indicou que ela devia segui-lo para o bosque, é que recordou
a natureza da sua missão e sua boca ficou seca.
Eles voltaram para a casa, navegando pelo labirinto de corredores
escuros até chegar à parte de trás da mansão a uma porta
envelhecida ricamente esculpida com patina preta. Martise apertou
os olhos contra a luz do sol quando Gurn abriu a porta e gentilmente
a levou para fora. Desse ponto de vista, poderia virar e ver a fachada
posterior da mansão. As janelas que davam para o sul estavam
fechadas, localizou seu quarto na outra extremidade do edifício.
Apenas uma janela continuava aberta, na câmara abaixo dela.
Cortinas, bandeiras de lápis desbotadas e enferrujadas, se agitavam
para fora, estalando no vento como saias de um dançarino de
Kurman.
Enfrentou o bosque novamente. Laranjeiras cobriam o campo em
um padrão ordenado, seus ramos frondosos se inclinavam com
frutas maduras. Folhas verdes escuras camuflavam os pássaros que
se assentavam nos ramos, revelando o brilho ocasional da luz solar
em um bico preto. Em algum lugar, dentro desse murmúrio de asas,
o corvo mensageiro de Cumbria esperava por um sinal dela.
Esta foi a primeira vez que entrara no bosque. Até agora, suas
incursões haviam sido limitadas ao interior do pátio da mansão. Só
vira o bosque de sua janela todas as manhãs e noites, admirando as
fileiras ordenadas de árvores e respirando o cheiro de flor de
laranjeira persistente no ar ameno.
Gurn a levou para o bosque, com os passos seguros enquanto
navegava pelo labirinto do pomar. Martise ficou perto dele. Cada
caminho sombreado parecia igual ao outro. Até que a mansão não
podia mais ser vista como um marco.
Dobraram uma esquina e pararam diante de uma linha de caixotes
cheios de laranjas e uma escada alta encostada nos ramos de uma
árvore. O topo da escada desapareceu nas folhas, mas Martise viu
um par de sapatos equilibrados em um dos degraus. Gurn assobiou
baixo e os sapatos se moveram. Silhara desceu a escada
parcialmente e os enfrentou. Engoliu um suspiro, silenciosamente
se repreendendo por sua reação visceral à sua aparência.
Trabalhar no calor da manhã tinha deixado um brilho de suor sobre
ele, sua pele morena brilhava na luz.
Sua camisa estava grudada em suas costas e peito, lhe dava uma
visão clara de seus músculos magros, com ombros que ondulavam
com a força construída pelo trabalho duro. Um rubor rosa enfeitava
suas proeminentes maçãs do rosto, uma gota de suor escorria pelo
seu pescoço, deslizando em um caminho sinuoso através da cicatriz
branca antes de desaparecer sob o decote aberto da camisa.
Ele passou a manga pela testa e ajustou o saco, meio cheio de
laranjas, em seu ombro. A escada rangeu sob o peso dele enquanto
subia até o último degrau. Martise olhou para baixo, esperando que
seu rosto não revelasse seu fascínio. Qual era o problema com ela,
desejando o homem que tinha quase a matado de susto apenas
algumas horas antes?
— Ela é uma ajuda ou um obstáculo?
Sua cabeça se levantou. Obstáculo? Suas unhas cravaram em suas
palmas. Havia muitas coisas pelas quais ela poderia ser
legitimamente acusada – simplicidade, timidez, às vezes covardia –
mas nunca de preguiçosa ou incompetente. Apertou as mãos em
punhos, se impedindo de ataca-lo. Era uma escrava e dominara a
arte do comportamento submisso em uma idade precoce, contudo
havia algo sobre o Mestre dos Corvos que a fazia esquecer todo seu
treinamento, seu baixo status no mundo. Ele não era mais imperioso
ou arrogante do que qualquer outro nobre abastado, mas gerava um
sentimento de raiva nela a cada vez que falava.
Gurn gesticulou com as mãos, a cabeça calva balançando ao mesmo
tempo que seus gestos entusiásticos. Martise se sentiu vingada. Pelo
menos uma pessoa aqui estava satisfeita com seu desempenho até
agora.
O mago grunhiu e se afastou para vasculhar uma caixa vazia. Se
aceitou a avaliação silenciosa de Gurn do seu trabalho da manhã ou
não, nenhum elogio estava vindo. Ficou rígida quando ele voltou.
— Você tem medo de altura?
— Não, — disse suavemente, transformando seus traços em uma
expressão plácida. — Eu não tenho.
— Bom. Você pode me ajudar no bosque enquanto Gurn prepara a
refeição do meio-dia. Coloque sua mochila. — Ele esperou enquanto
ela ajustou a bolsa em seu ombro. — Se bem me lembro, o bispo
planta azeitonas em suas terras.
Quando Silhara teve alguma vez oportunidade de visitar Cumbria
em Asher? Nunca tinha o visto lá e ela servia na mansão de seu
mestre desde que tinha sete anos. Mas ele estava correto. Os olivais
em Asher eram muitas vezes maiores que os pequenos pomares de
Silhara.
— Ele ainda leva os aprendizes do Conclave a colher como mão-de-
obra não remunerada? — Sua boca se transformou em um sorriso
fraco, que mudou para um sorriso relutante. — Ele é pão - duro, mas
astuto. Se eu empregasse a mesma técnica, Gurn seria capaz de me
alimentar com uvas o dia inteiro.
Martise cerrou os dentes mais forte, desta vez para suprimir o riso.
Quaisquer que fossem suas falhas, o Mestre dos Corvos sabia muito
sobre os modos miseráveis do bispo. Durante toda temporada de
colheita Cumbria trazia aprendizes aos seus pomares para ajudar na
colheita das culturas. Usou a desculpa de que poderiam praticar
seus feitiços de movimento para sacudir as árvores até cair os frutos
e recolhê-los nos panos que esperavam.
— Esse costume permanece.
Ele bufou. — Eu imaginei. — Sua expressão escureceu. — Eu não
concordo com a prática. A Magia tem o seu lugar no mundo, mas
não como um meio para uma vida fácil. E se Cumbria reconhece ou
não, esses feitiços danificam suas árvores. Não vou ter nada disso
aqui. Nós o fazemos da maneira mais difícil – como os não dotados
– com escadas, sacos e dor nas costas, — ele a olhou de relance. — É
muito para você, aprendiz. Eu duvido que você vai ser de alguma
ajuda.
Ela endureceu, indignada com sua suposição. — Eu sou mais forte
do que pareço, Mestre e eu vou administrar bem isso.
Ele não parecia convencido. — Vamos ver, — ele bateu Gurn no
ombro e se afastou para recuperar outra escada deitada no chão
perto das grades. — Vou começar com ela agora, Gurn. Chame
quando o almoço estiver pronto.
Gurn afagou Martise no braço e caminhou de volta para a casa. Ela
congelou com o olhar ameaçador de Silhara.
— Você ganhou a confiança do meu servo. Não abuse dela.
A apreensão arrefeceu em suas veias. A advertência era uma ameaça
velada, ameaçadora em sua promessa de retribuição mortal, se ela
se aproveitasse de Gurn. Quer Silhara sentia alguma afeição por seu
servo ou exigia sua lealdade a todo custo, sabia que sua interação
com Gurn seria crucial para sua sobrevivência aqui em Neith.
— Eu não sou uma mulher cruel. Eu gosto de Gurn também.
Seu olhar frio não aqueceu. — Mantenha isso em mente e qualquer
sentido de autopreservação que você puder abrigar.
Ela engoliu em seco e correu atrás dele enquanto tomava a segunda
escada e a carregava para outra árvore mais abaixo na fila. Ele
encostou a escada contra um galho baixo, e um afobado corvo fugiu
para cima, gritando em protesto por ser afugentado de seu abrigo.
— Você vai encontrar um par de luvas em sua mochila, — ele ergueu
as mãos, exibindo luvas bem gastas com manchas nas palmas das
mãos. — Árvores de laranja tem espinhos tão longos como seus
dedos e eles são perversamente afiados.
Ela enfiou a mão na bolsa e encontrou um par igualmente
desgastado. Eles eram muito grandes, mas não tão grandes que a
tornavam desajeitada. Silhara parou na frente dela e Martise quase
esqueceu de respirar. Estava tão perto dele que foi bombardeada por
uma infinidade de sensações – o cheiro de citrus e flor de laranjeira
misturada com o calor almiscarado de suor, o ritmo tranquilo de sua
respiração enquanto a ajudava a ajustar as luvas, acima de tudo, o
formidável fluxo de seu dom, derramando fora dele como as rápidas
águas de uma correnteza.
Silhara apertou as tiras de couro que seguravam as luvas em seus
pulsos. Seus movimentos abrandaram quando Martise correu a
ponta da língua sobre os lábios secos. Ela corou diante de sua
expressão fechada, uma que se tornou calculadora.
— Eu deixo você nervosa, — a voz áspera era calma, quase
acariciadora.
Ela não tinha razão para mentir, exceto o orgulho e essa era uma má
razão. — Sim, Mestre, — ela baixou os olhos para olhar a cicatriz. —
Dizem que você é um mago perigoso e poderoso.
Um murmúrio de riso sussurrou sobre ela. — Também é dito que eu
levanto os mortos, falo com os mortos e como os mortos, — inclinou
seu queixo com a ponta do dedo para obriga-la a olhar para ele. Ele
estava tão perto que ela viu as linhas finas se expandindo de seus
olhos negros e as cavidades debaixo de suas bochechas. Sua boca
sensual se curvou em um sorriso zombeteiro. — No que você
acredita?
— Eu acredito em aprender por mim mesma, ao invés de confiar em
boatos.
Um lampejo de aprovação disparou através de seus olhos antes que
baixasse a mão e se afastasse dela. Martise suspirou, aliviada. O
Mestre dos Corvos era uma presença esmagadora, assustadora,
irritante e fascinante. Estar tão perto dele, com seus sentidos
inundados pela força de seu dom e sua própria masculinidade, era
difícil pensar.
Ela se enrijeceu ao toque em seu cotovelo, então o seguiu até a
escada e sua árvore designada. A centelha de calor de momentos
antes tinha desaparecido. Sua voz era desinteressada, instrutiva – a
do professor que dava a lição ao aluno.
Silhara segurou uma das laranjas penduradas em um grupo de um
ramo baixo e chegou a um bolso exterior em sua mochila. Ele retirou
um par de pequenas tesouras. — Corte o fruto suavemente. Se você
preferir usar suas mãos em vez da tesoura, escolha algo como isto, –
ele demonstrou com cuidado torcendo e puxando a laranja do galho,
deixando um pedaço de caule e o botão da fruta. — Você ainda
precisa usar a tesoura para cortar as hastes ou elas vão perfurar a
fruta que você deixou fazendo ela estragar, — ele cortou a haste
restante com a tesoura. — Agora você.
As laranjas eram frescas ao toque, fez como instruído, torcendo e
puxando uma laranja com um puxão cuidadoso.
Ele lhe deu a tesoura. — Você pode usá-la. Eu tenho um par extra.
Quando ela mostrou ser satisfatoriamente competente, ele seguiu
para a próxima aula, levantando sua mochila para que pudesse ver
os laços de cordão na parte inferior. — Quando o seu saco ficar muito
pesado, liberte este cordão. O fundo será aberto, e sua fruta vai rolar
para fora. Eu prefiro que você os leve para as caixas antes de soltá-
lo, mas você vai perder muito tempo andando nas fileiras, então
basta descer a escada e fazer uma pilha próximo a árvore, — seus
olhos se estreitaram. — Não abra o saco quando estiver na escada.
Você vai machucar a fruta se você deixá-la cair de tão alto.
— Onde eu deveria começar na árvore?
Mais uma vez aquele sorriso zombeteiro enfeitou sua boca. — Tão
próximo ao topo, como você pode alcançar. Tem certeza de que não
tem medo de altura?
Ele estava a provocando novamente. Suas aulas matutinas haviam
lhe dado cabelos brancos, mas mesmo que tivessem incutido um
súbito medo de alturas nela, Martise não lhe daria a satisfação de
deixá-lo ver. Havia algumas coisas que seu orgulho ordenava que
fizesse, escrava ou não.
Ela agarrou o cortador com os dedos tensos. — Muito certo.
— Bom. Então não há nenhuma razão para se atrasar. Suba as
escadas, isto se você conseguir escalar nessas saias.
Ela silenciosamente lhe entregou a tesoura e deixou cair a laranja
em sua bolsa. Rapidamente teve suas saias torcido em torno de suas
pernas, como calças improvisadas, com as extremidades dobradas
firmemente envolta das pernas.
Desta vez, seu pequeno sorriso era genuíno. — Eu admiro uma
mulher prática, — ele voltou a tesoura para ela e se afastou. —
Lembre-se das minhas instruções, — disse ele sobre um dos ombros.
— Torcer e puxar com cuidado, cortar os caules, não deixar cair o
fruto.
Ou o quê? Ela foi tentada a perguntar, em um raro momento de
rebelião.
Silhara continuou andando. — Ou eu vou adicionar um toque
especial a lição de encantamento de amanhã, aprendiz.
Suas tesouras caíram quase prendendo seu pé na terra.
Capítulo
Sete
Um corvo pousou no parapeito da janela e olhou para Silhara se
vestindo para a manhã. A luz fluindo para dentro da sala mostrava
a silhueta do pássaro, criando uma mancha de escuridão contra o
pano de fundo de laranjeiras e o céu de verão.
Ignorando seu visitante, mandou para longe o sangue e os últimos
vestígios de sono. A luz feriu seus olhos, mas o impediu de cair de
volta na cama com a esperança de conseguir algumas horas de sono
sem pesadelos. A Corruption o tinha torturado durante a noite com
sonhos sinistros de um mundo sobrecarregado pelo domínio do
deus. Nessas visões, ele viveu uma vida de privilégios decadentes.
Riqueza incalculável, exércitos a fazer sua vontade, as mulheres de
cumprir qualquer capricho carnal, todo o luxo e desejo satisfeito
com um estalar de dedos. Todas as possibilidades pelo o preço de
sua humanidade. O mais tentador de tudo era a magia ilimitada. A
habilidade de mover montanhas, desviar rios, atingir uma vida
quase imortal — Este era o maior presente que o deus oferecia e isto
verteu um atormentado fluxo de desejo sobre tal poder no mago
adormecido.
“Um gosto, Avatar, do que eu posso lhe dar se você der para mim”.
A voz diminuiu, substituída por um novo sonho – um pesadelo que
ainda fazia Silhara estremecer. Ele estava de pé em uma praia
interminável feita de cinzas em vez de areia. Acima dele, um céu sem
estrelas e a lua sangrando sobre um oceano igualmente negros.
Somente a luz opaca da estrela da Corruption fornecia qualquer
iluminação, seu reflexo dançava sobre a água rolando em caminhos
incandescentes. Um vento constante, cheirando não a pólvora ou a
peixe, mas sim a ossos queimados, balançou seus cabelos e enviou
as cinzas girando suavemente sobre seus pés, uma carícia de dedos
frios e mortos nos dedos dos pés.
Diante dele, o oceano se estendia para um horizonte ilimitado.
Nenhuma gaivota sobrevoava. Nenhum peixe saltou da água.
Nenhum navio navegava nas ondas. Sabia, com a certeza de todos
os sonhos, que, se saísse da praia e mergulhasse na água, não
haveria fundo para tocar, apenas um vasto poço de negrume líquido
no qual se afogaria.
As ondas avançavam e recuavam, incessantes em sua oca canção de
ninar. Sua música foi quebrada abruptamente por um dobrar de
escuridão subindo fora do abismo. A forma afundou sob a água
apenas para subir novamente. As baleias não nadavam nesses mares
sem vida. Sabia o que montava as ondas e perseguia aquela praia
morta. Um leviatã, imortal e sem piedade, com uma goela
escancarada que engolia almas. A pausa constante das ondas seguia
o ritmo do vento enquanto a criatura nadava para mais perto.
O terror o enraizou no local, ele esperou. Esperou em uma praia
cujas cinzas eram os restos cremados de criaturas que caminharam
em um mundo outrora vivo. Esperou que o monstro chegasse a
superfície, esticasse amplamente a boca preta e o sugasse para
dentro de um eterno nada.
Corruption sussurrou em seus sonhos mais uma vez.
“Um gosto se você não o fizer”.
Despertara em um travesseiro ensanguentado e mãos que
formigavam por causa do toque do deus. Ficou tentado a tropeçar
até a cozinha e roubar um pouco de Dragon Piss de Gurn. Só o
pensamento da expressão de seu servo e do olhar vigilante de seu
aprendiz o impediu. Não queria explicar o sangue em seu rosto, ou
porque suas mãos tremiam tanto que seria desafiador segurar uma
taça de forma constante.
Terminou seu banho e olhou para o corvo que ainda o observava.
Um grande pássaro. Maior do que aqueles que normalmente se
aninhavam na copa sombria do bosque.
— Venha, — ele disse, gesticulando. Um raio saiu de seu braço. Os
olhos do corvo se arquearam e ele gritou um último grito antes de
explodir em uma pilha de penas fumegantes e ossos carbonizados.
Embalando a mão queimada em seu peito, Silhara olhou para o
monte fumegante no canto. A Corruption tinha deixado sua marca
nele na noite anterior. O feitiço, um apelo suave que deveria ter
persuadido em vez de coagido, tinha dado horrivelmente errado. Ele
levantou a mão. Manchados por nada mais do que duros calos e
manchas de tinta, seus dedos e palma agora sustentavam um poder
deformado, que tornava sua magia imprevisível. Rosnou. Isso não
era bom. Poder descontrolado e desconhecido era inútil. Por
enquanto, a menos que ele escolhesse lançar qualquer feitiço,
independentemente da consequência, o deus tornara sua magia
impotente.
Ainda assim, não negou a onda de euforia correndo em seu sangue.
Seus dedos se contraíram e pontos de luz dispararam de suas
pontas. Esse poder era mais sedutor do que uma mulher bonita e
disposta. Silhara conhecia suas fraquezas. E assim fazia o deus.
Ele baixou a mão e se aproximou da janela. A brisa morna da manhã
enviou penas pretas chamuscadas girando ao longo do bosque. —
Minhas desculpas, amigo. Matá-lo não era o que eu...
O cheiro de magia, diferente daquela da Corruption, provocavam
suas narinas. Conhecia aquele perfume, familiar e detestado. O
pássaro cheirava a Conclave. Passou a mão contra os restos em um
gesto afiado, limpando a borda da janela. Os restos caíram em uma
chuva preta fina no chão abaixo.
Outro espião para os sacerdotes. Seu aprendiz poderia muito bem
ter trazido o pássaro com ela, ou poderia ter vivido entre seus corvos
por meses, voando para casa ocasionalmente para mexericar aos
seus senhores. Seu pesar por destruir a ave desapareceu.
Terminou de se vestir e saiu para a cozinha. Como de costume, chá
e laranjas o aguardavam na mesa. Gurn e Martise sentavam em
frente um do outro, tendo uma conversa composta de sinais
manuais e da voz lírica de Martise. Silhara parou na entrada,
satisfeito em observar desapercebido.
Apesar de não gostar de tê-la enfiada em sua casa, lentamente
começou a admirar a espiã de Cumbria. Tenaz e resoluta, sofreu
através de suas aulas matinais sem vacilar. Seu dom ainda tinha que
se manifestar, mas ela não tinha fugido em terror. Silhara desprezou
admitir o fracasso, mas considerou abandonar os exercícios
matutinos. Eles não haviam conseguido nada além de lhe dar um
sentimento doentio em seu estômago.
O mais surpreendente de tudo, Martise foi uma boa colhedora. O
que lhe faltava em força, compensava com rapidez e rigor. Ele só
teve que a instruís uma vez sobre a técnica adequada de colheita dos
frutos. O calor, as picadas de formigas e as picadas ocasionais de
uma vespa bêbada em laranjas fermentadas não a dissuadiram.
Depois de uma semana, era quase tão rápida quanto Gurn e
arruinou poucas laranjas.
Ele admirava o brilho da luz do sol em seus cabelos ruivos e o timbre
de sua incrível voz. Ela raramente sorria e nunca para ele, mas
muitas vezes ele se divertia com os breves flashes de inteligência que
ela revelava. O servo aborrecido que se desvanecia nas sombras de
seu escritório estava desaparecendo lentamente. A mulher que
emergia em seu lugar o fascinava um pouco mais a cada dia.
Cumbria era mais sutil e astuto do que primeiramente creditou.
Havia mais nessa mulher do que sua simples fachada comum. Na
superfície, ela era sombria em seu papel de espiã, mas nunca
confiara em aparências superficiais. Martise possuía algo único, algo
que Cumbria poderia usar para trazer seu adversário mais odiado
para baixo. O truque era descobrir isso antes que ela conseguisse
encurrala-lo com alguma traição condenatória que atrairia a justiça
do Conclave.
Cael, estendido debaixo da mesa, o viu primeiro. Lançou uma
saudação, mas não se levantou, satisfeito em ficar deitado sob o pé
de Martise enquanto esfregava metodicamente o comprimento de
sua barriga com o calcanhar.
— Vira-lata preguiçoso, — murmurou enquanto tomava seu lugar ao
lado de Gurn na mesa. Olhou para Martise, que o cumprimentou
com um olhar suave e fala mansa — Mestre.
— Você arruinou meu cão.
O protesto de Cael revelou que Martise havia interrompido sua
massagem. Ela deu um olhar cauteloso para Silhara. — Me perdoe,
eu não entendo.
As laranjas na bacia pareciam brilhantes, exuberantes e pouco
atraente, esta manhã. Pegou uma e descontraidamente descascou a
casca em uma espiral contínua. — Se eu ouvir outra desculpa de
você, acho que eu vou te afogar no poço, — ele engoliu uma risada
quando ela empalideceu. — Martise, você deve suportar um fardo
terrível de culpa sobre pecados passados. Acho que nunca ouvi uma
pessoa dizer — me desculpe — com tanta frequência quanto você faz,
com tão pouca provocação. — Ele colocou um gomo alaranjado em
sua boca e lutou com a vontade de vomitar, devido à explosão de
suco em sua língua.
Martise ficou vermelha, mas não disse nada. Silhara engoliu a
porção de laranja e bebeu um gole de chá para limpar sua boca.
Olhou debaixo da mesa e franziu a testa para Cael. O cão o ignorou
e rolou para debaixo do pé de Martise em uma solicitação óbvio para
retomar com sua carícia.
— Você o estraga. Agora tenho um mage-finder que passa seus dias
descansando com os porcos e mendigando carícias de uma mulher,
— Gurn bufou em sua xícara de chá e Silhara levantou uma
sobrancelha. — Não que eu o culpe pelo último.
— Eu estou confusa, Mestre. Você fala das falhas dos homens ou dos
cães?
Ele quase se engasgou com o segundo pedaço de laranja e o cuspiu
no chão. O rosto de Martise ficou turvo quando seus olhos
lacrimejaram. Gurn riu. Seu aprendiz o observou, com seus firmes
olhos cor de cobre. Por um momento, Silhara captou um brilho de
humor provocante em seus olhos antes de desaparecer.
— Isso importa? Nós somos muitas vezes uma e a mesma coisa, —
ele a deixou terminar seu mingau, enquanto ele e Gurn faziam
planos para o dia de mercado ao leste de Prime.
— Vamos pegar o que temos agora e entregar para Fors um dia antes
do mercado abrir. Ele vai tentar cobrar uma taxa de
armazenamento. — Silhara serviu outra xícara de chá. — Você
pensaria que ele aprenderia depois de todos esses anos de comércio
que eu não sou um alvo fácil.
As mãos de Gurn esboçou padrões no ar, enquanto Silhara assistiu
e respondeu.
— Martise estará viajando conosco. Os dois podem comprar
suprimentos enquanto negócio com nosso pequeno comerciante
ganancioso. Quanto mais cedo terminarmos, melhor. Há mais para
colher e não quero que meu fruto apodreça nas árvores antes que
possamos pegá-lo.
Ele esperou Martise comer sua última colherada de café da manhã.
— Alguma vez você já esteve em Eastern Prime?
— Não desde que eu era criança. É muito longe de Asher para se
incomodar. O Alto Bispo envia seu fator a Calderes, embora seja
uma cidade e mercado menor.
— Mas bem conhecida por seus produtos de luxo e patronos ricos.
— Ele traçou um símbolo do comércio Calderan sobre a mesa cheia
de cicatrizes. — Você vai nos acompanhar quando viajamos para
Eastern Prime em dez dias. Esteja preparada. Você pode não
lembrar, mas Prime é uma cidade portuária. Maior e muito menos
gentil do que Calderes. Eles dirigem os mercados de escravos de lá e
os cafetões estão sempre à espreita de mulheres jovens. Quando
estivermos lá, fique perto de Gurn.
Silhara franziu a testa, intrigado com seu súbito humor sombrio. —
Não é um desejo, Martise. É uma ordem.
Ela levantou para limpar seu lugar, vacilante enquanto sua mão livre
segurava a borda da mesa em um aperto que deixou seus dedos
brancos. Se arrastou para a pia, se movendo mais como uma idosa,
meio morta, do que uma jovem saudável. Uma palidez cinza
dominou sua pele, não conseguiu esconder um estremecimento
quando o encarou.
— Devo esperar por você no corredor para a nossa lição?
A imagem do corvo destruído surgiu através de sua memória.
Silhara tinha incendiado Martise durante as aulas. Brutal tanto no
propósito quanto na execução, o feitiço tinha sido um que ele
controlava por inteiro. Seu aprendiz tinha saído da experiência
cambaleando de choque, mas sem nenhum ferimento, salvo uma
bainha queimada. Embora pudesse sentir que se desvanecia, o toque
do deus ainda permanecia em suas mãos, fazendo seus dedos
espasmarem em curtos intervalos. Apesar de sua desconfiança,
Silhara não tinha nenhum desejo de infligir o mesmo fim, ou algo
pior, a sua aprendiz. Se ele tivesse que matá-la, iria fazê-lo em seus
termos com sua magia firmemente sob controle.
Ela ficou pacientemente diante dele, esperando sua resposta.
Martise sempre se mantinha ereta, com uma dignidade tranquila
que ele admirava cada vez mais. Esta manhã ela estava curvada, o
ombro direito inclinado um pouco mais baixo que o esquerdo.
—Eu acho que nós vamos renunciar as aulas hoje, — surpresa
arregalou seus olhos. Mesmo Gurn olhou para ele, intrigado. — Você
anda como uma velha. Por que você não disse à Gurn que você está
dolorida da colheita?
O rubor subiu do pescoço até as bochechas, afugentado o cinza. Ela
olhou para Gurn, que franziu o cenho, desaprovando seu segredo. —
Eu não acho que é importante. Meu trabalho não sofreu por isso.
Silhara levantou para ficar diante dela. Ela ficou rígida e estremeceu.
Gostava de seu perfume, do sol e do sabonete de rosas de Gurn. —
Não, ainda não. Mas vai. Você não é muito boa em uma escada
quando mal consegue andar ou se manter em pé.
— Eu posso trabalhar bem o suficiente... — ela discutiu, antes de
manter a boca fechada em um silêncio contrariado. — O que quer
que eu faça, Mestre? — Perguntou.
— Você pode olhar para mim em vez dos meus pés.
Ela encontrou seus olhos, sua expressão em branco. Silhara sacudiu
a cabeça. — Isso pode enganar os outros, mas não a mim, — ele se
dirigiu a Gurn por cima do ombro. — Eu preciso dela na biblioteca
hoje de qualquer maneira. Vamos voltar a colher amanhã. Há velas
no alambique?
O servo acenou com a cabeça e começou a limpar os restos de café
da mesa. Ele acenou com a mão para Martise, franzindo ainda mais
o cenho. Silhara suspirou e olhou para ela. — Gurn acredita que você
é uma coisa frágil, merecedora da minha delicadeza, — ele sorriu
levemente quando ela levantou as palmas das mãos, revelando uma
riqueza de calos, bolhas e uma ou duas cicatrizes.
— Estas não são as mãos de uma mulher delicada. Eu não preciso de
tratamento especial, — ela olhou em torno dele para piscar para
Gurn. — Embora eu aprecie a preocupação de Gurn.
Silhara encarou Gurn. Seu servo deu de ombros, sem nenhum
remorso sobre sua amizade óbvia com o fantoche do Conclave. A
expressão de Martise refletia a de Gurn, um lampejo de rebelião
dançando em seus olhos por um momento, como se ela o desafiasse
a proibir tal relacionamento.
Ele deu um passo em torno dela e caminhou até a porta que se abria
para o pátio. — Ninguém em Neith recebe tratamento especial, mas
eu preciso que você trabalhe em sua melhor forma. Você não está
nela hoje, — ele acenou para ela. — Venha. Tenho algo para aliviar
suas dores.
O medo e a curiosidade brilharam em seu rosto, mas ela o seguiu,
mantendo a distância, seguiu atrás dele enquanto atravessavam o
pátio e passavam pelas roseiras de Gurn, antes de chegarem a um
pequeno anexo ao lado sul da mansão.
Demorou alguns momentos para que seus olhos se ajustassem à
escuridão da sala. Encontrou velas em uma caixa perto da porta e
acendeu quatro. Martise colocou duas nos suportes que ele apontou,
na longa mesa no centro da sala. Ele colocou suas próprias velas no
lugar e esperou enquanto ela examinava seus arredores.
A sala, cheia de cheiros de flor de laranjeira e azeite de oliva, era sua
verdadeira criadora de dinheiro. Ele e Gurn quebraram suas costas
a cada temporada de colheita carregando carroças de laranjas para
a vender no movimentado mercado em Eastern Prime. Isto fez o
suficiente para mantê-los ambos alimentados. Mas foi o óleo de
neroli e o petitgrain destilado que trouxe os maiores lucros. Artigos
de luxo feitos em pequenos lotes e procurados pelos aristocratas
ricos, que rendiam um alto preço no mercado.
Sua aprendiz, fascinada pelas fileiras de garrafas e decantadores
preenchendo cada espaço nas mesas e prateleiras construídas
contra as paredes, passeou ao redor da sala, ocasionalmente tocando
em uma cuba de destilação vazia ou um frasco de perfume decorado
para capturar os olhos de uma mulher. A mesa mantinha uma
variedade de castiçais, tigelas, filtros, morteiros e pilões. Ervas secas
pendiam em gastas cordas de pequenos feixes e as fores alaranjas
trituravam secas debaixo dos pés.
— Você faz perfumes, — um desejo fraco coloriu sua declaração.
— Entre outras coisas. Nós colhemos flores de um determinado
número de árvores no final da primavera, juntamente com folhas e
galhos jovens. Os óleos e petitgrains saem por um preço mais
elevado do que os xaropes e elixires, mas os dois últimos lucram bem
o suficiente. Vamos colher novamente no outono. O rendimento não
é tão bom ou de tão alta qualidade, mas as pessoas continuam a
comprar.
— A Senhora Dela-fé sempre usava perfume de flor de laranjeira. Eu
não gostava da mulher, mas adorava a maneira como ela cheirava.
Silhara ergueu a mão quando ela ficou tensa e separou seus lábios
para o pedido de desculpas inevitável. — Você iluminou minha
manhã com esse pouco de conhecimento, Martise, mas as desculpas
são cansativas, — ele não expôs sobre o prazer que teve em saber que
a esposa perturbada de Cumbria comprava seus produtos.
Um grande armário, resistia de pé em um canto. As portas foram
removidas, revelando prateleiras forradas com pequenos jarros e
potes. Pegou um e o colocou sobre a mesa perto de onde estava
Martise.
— Tire a roupa, — disse ele.
Ele franziu o cenho ante o horror crescente em seu olhar. Ele ganhou
sua notoriedade, fez muitas coisas em sua vida que o fizeram pária
entre seus vizinhos, conhecidos e o poderoso sacerdócio que
procurava controlá-lo. Mas ele nunca tinha violado uma mulher e
não tinha intenção de começar agora.
Sua maravilhosa voz se transformou em um guincho de rato
enquanto ela implorava a ele, apoiada contra a mesa. — Por favor,
— ela sussurrou, levantando uma mão para afastá-lo. — Eu te
imploro…
— Martise, — ele manteve sua própria voz desprovida de inflexão e
apontou para o frasco que tirara da prateleira. — Eu tenho um óleo
para aliviar a dor nas costas, — ele esperou, imóvel enquanto suas
palavras se infiltravam em sua mente em pânico. — Você não acha
que se eu quisesse forçá-la, eu já teria feito isso? Mesmo Gurn,
apesar de sua amizade com ele, não me deteria. E nem ele
conseguiria.
Ela olhou para ele, os olhos ainda enormes de medo, mas sua
respiração tinha abrandado com suas palavras. Silhara observou
que, enquanto ela se encolhia diante dele, a mão que não o segurava
simbolicamente longe estava procurando na mesa atrás de si uma
arma. Inclinou a cabeça em aprovação. Ela poderia estar
aterrorizada, mas não abatida. Lutaria com ele, apesar das
esmagadoras probabilidades.
— Se você aceita a minha ajuda ou não, significa pouco para mim.
Você pode continuar colhendo laranjas com todo o seu nobre
sofrimento, desde que você continue colhendo. Decida-se. O dia está
passando.
Vários momentos tensos passaram em silêncio enquanto ele
esperava. Martise respirou fundo e relaxou um músculo dolorido de
cada vez. — Minhas costas e ombro doem.
— Eu imagino que sim, — ele fez um gesto para que ela apresentasse
suas costas e puxou a rolha do frasco. — Gurn faz este unguento, não
eu. Se eu não soubesse melhor, eu pensaria que usa magia na
fabricação. É tão eficaz, — manteve um fluxo constante de conversa
enquanto ela virou de costas para ele e começou a desatar sua túnica
e vestido. — Ele é um bastardo cauteloso com a receita. Se recusa a
revelar seus segredos. Acho que terei de torturá-lo um dia desses.
Martise abaixou suas roupas deixando descansar contra os seus
cotovelos. A voz dela estava afetada. — Isso deve ser suficiente.
Ele poderia ter rido se não estivesse tão distraído com a visão diante
dele. A nuca, uma escurecida cor de mel de trabalhava no exterior,
contrastava nitidamente com a pele cor marfim de seus ombros.
Envolto em seus casacos de lã, ela apresentava uma forma que tinha
todo o fascínio de uma batata. Não era assim quando as roupas
saíam. A linha graciosa de suas costas fluía em uma cintura delgada
até a curva suave de seus quadris. Duas covinhas rasas marcavam
sua parte traseira mais baixa, o tentando a pressionar um dedo em
seus recortes. Silhara não era nenhum escultor, mas de repente
compreendeu por que homens com tal talento eram inspirados a
esculpir a beleza em pedra.
Aquelas costas impecáveis estavam marcadas atualmente por uma
ondinha distorcida de músculos que se curvavam abaixo do seu
ombro direito. Outro nódulo inchado estava onde seu pescoço se
encontrava com o seu ombro.
Martise, ainda parecendo um pilar de mármore, endureceu ainda
mais sob sua leitura silenciosa. Vaiou de dor por suas aflições e
chegou automaticamente para massagear a parte superior de seu
ombro com a mão oposta. Silhara pegou um breve vislumbre da
curva de um peito antes de ela se lembrar de sua posição e puxar a
mão de volta no lugar. Ele riu com o rubor que avermelhava sua
nuca.
— Sua modéstia é desperdiçada comigo, — ele aplicou um montão
de unguento fresco em suas costas, ignorando-a ofegar. — Eu vi mais
seios nus na minha vida do que uma guilda inteira de amas de leite,
— seus dedos trabalharam alguns círculos firmes em suas costas e
ombros, massageando com a pomada de cicatrização. O músculo
congelado abaixo de seu ombro era inflexível em princípio, se
perguntou como tinha conseguido dias de colheita sem pronunciar
uma única queixa.
— Antes da minha mãe contrair varíola, ela trabalhou em um bordel
para aristocratas como prostituta. Eu ganhei uma moeda ou duas
passando recados ou correndo entregar mensagens para uma e
outra hourin5. Era uma prática comum para uma hourin se exibir, –
e uma maneira fácil e eficaz para exibir seus produtos para um
cliente em potencial.
Ela virou a cabeça uma fração. Seu olhar de soslaio estava curioso.
— Quantos anos você tinha?
— Seis ou sete. Foi a mesma coisa quando eu era mais velho e minha
mãe trabalhava nas docas, – ele continuou massageando suas
costas, se movendo para o cume apertado na parte superior do
ombro. Sorriu enquanto ela lentamente relaxava sob suas mãos. —
E eu tive o meu quinhão de aprendizes no reduto do Conclave, — ele
apertou a palma da mão em uma faixa apertada de músculo e
Martise gritou. — Agora, se você tiver três seios, eu poderia ser
curioso o suficiente para te dar uma olhada.
Sua risada encheu a pequena sala antes dela camuflar com uma
tosse. Isso, mais do que o deslizamento de seda de sua pele sob as
palmas das mãos, o enfeitiçou. Ele nunca tinha ouvido sua risada
antes. Por mais lírica que fosse sua voz, seu riso transformou o som

5 Prostitutas.
em poesia. Em pé atrás dela, ele tinha apenas uma visão de seu
cabelo firmemente amarrado em suas costas flexíveis. Podia olhar
por cima do ombro e ver a impressão de seu decote contra os braços
cruzados, mas não podia ver seu rosto. O desejo de virá-la de modo
que pudesse vê-la rir novamente foi quase esmagador.
Suas mãos escorregadias deslizaram até a cintura, os dedos
pressionados contra seus lados, com os polegares descansando nas
covinhas que o tinham tentando quando ela revelou incialmente as
costas. Uma onda de calor inundou seus membros. Martise, de pele
lisa, com cheiro de flores e mulher quente, estava perto o suficiente
para que seus batimentos cardíacos enviassem vibrações por todo o
seu peito quando ele se inclinou para ela. Ela não se moveu, mas seu
silêncio era a de uma presa encurralada. Ela respirou em rasos
ofegos e um rubor se espalhou pelo seus pescoço e ombros.
Ele limpou as mãos na barra da camisa e tampou o jarro de
unguento. — Nós terminamos aqui. Se vista, — disse,
congratulando-se pela frieza em sua voz.
Ela vestiu a túnica e o vestido com um puxão, atando os laços sem
olhar para ele. Ele deslizou o frasco em sua direção. — Aqui. Eu
suspeito que suas pernas se sentem como as suas costas, mas você
pode fazer você mesmo, não esqueçamos quem é o mestre e quem
não é.
Ele derramou uma riqueza de escárnio em suas palavras, irritado
com seu breve lapso de controle. Martise o encarou, seu rosto sem
expressão, os olhos brilhando nas sombras do alambique. Ela
agarrou o frasco. — Obrigada mestre.
Ele caminhou até a porta. — Leve-o para o seu quarto, em seguida,
me encontre na biblioteca. Gurn irá lhe mostrar onde é, se você
ainda não sabe. É hora que eu use você para o propósito que a trouxe
a minha casa.
Ele saiu da sala em silêncio e se dirigiu para a casa, resmungando o
caminho todo sobre cães preguiçosos, servos insolentes, deuses
intrometidos e os males do sexo feminino.
Capítulo
Oito
Martise alcançou entre os galhos eriçados de espinhos e cortou um
cacho de laranjas. Eles caíram na palma da mão com força suficiente
para pressionar a sua mão para baixo em um espinho, que perfurou
sua luva e espetou-lhe o dedo médio.
— Ai! — Ela se afastou do espinho mal-encarado que se sobressaia
do ramo. O espinho quebrou, deixando uma dor aguda irradiar para
os dedos. Deixou cair as laranjas em sua mochila e tirou a luva para
verificar sua lesão. Nada mais do que uma alfinetada vermelha,
sentiu como se Cael tivesse lhe dado uma mordida com seus caninos.
Olhou para a árvore. Colher laranjas era um trabalho sujo e penoso
– Muito diferente de colher azeitonas. Até agora ela tinha sido
cutucada, picada e mordida pelos vários insetos rastejantes ou que
voavam sobre as arvores e até pela própria árvore. Os corvos eram
outra peste. Raramente havia um dia que ela não limpava fezes do
seu chapéu.
Agradecia ao misericordioso Bursin pela biblioteca de Silhara.
Esperava ansiosamente pelo almoço e as horas seguintes. Passar a
última parte do dia e da noite entre os tomos cheirando a mofo e
traduzir línguas mortas era preferível a isso, mesmo que lutasse
contra uma aranha ao longo de um manuscrito.
Um jorro molhado golpeou a borda do seu chapéu. Acima dela, um
corvo pousou em um ramo e a olhou com um olhar preto e lustroso.
Ela o espantou com sua luva. O pássaro agitou as asas e saltou fora
de alcance, mas recusou-se a desistir do seu lugar.
— Mestre dos Corvos, — ela murmurou. — Está mais para Mestre
das Formigas, ou Mestre das Vespas, ou Mestre dos Excrementos de
Pássaros, — ela puxou a luva sobre a mão ferida e olhou para o corvo.
Silhara talvez desaprovasse o uso de mágica por Cumbria para
colher sua colheita de azeitona, mas de onde ela estava, equilibrada
em uma escada bamba e encravada entre galhos eriçados de
espinhos, a ideia tinha mérito real.
Olhou para o corvo. O tempo tinha voado em Neith. Mais de um mês
se passara, e não estava mais perto de encontrar evidências dos
crimes suspeitos de Silhara do que quando chegou. Cumbria ficaria
impaciente por notícias. Martise não tinha nada para lhe dar além
de que a estrela da Corruption parecia pairar sobre a mansão por
estes dias e que o mago ignorava sua presença. O bispo poderia estar
interessado em saber que ela agora tinha acesso à biblioteca, mas
havia pouco a dizer a não ser que a ela tinha sido dada a tarefa de
encontrar um ritual de morte que poderia destruir o deus. Era
melhor do que nada.
Com centenas, se não milhares, de corvos que residiam no bosque,
não havia como dizer se corvo mensageiro de Cumbria estava nas
proximidades, esperando por ela para chamá-lo. Se ao menos ele
tivesse escolhido outra maneira de chamar Micah para ela. Embora
tivesse sido agraciada com uma bela voz que hipnotizava multidões,
ela não podia cantar uma única nota. Os servos de Asher
imploraram para não cantar com eles enquanto produziam a lã,
pressionavam azeitonas ou executavam as tarefas intermináveis que
mantiveram Asher funcionando perfeitamente. E os cães de caça
nunca deixavam de criar um coro de uivos se a ouviam.
Ela encolheu os ombros. Foi ideia de Cumbria que cantasse para o
pássaro para chamá-lo e ela era uma escrava obediente. Ela desceu
dois degraus da escada e olhou sob os ramos. O bosque ao redor dela
estava silencioso e vazio. Silhara colhia as árvores no outro canto do
pomar e Gurn estava em casa preparando o almoço. Ela estava
sozinha aqui, exceto pelo o corvo que tinha graciosamente decorado
seu chapéu. Martise esperava que ele ficasse tempo o suficiente para
ouvir os primeiros acordes de sua canção de ninar. Era uma
vingança adequada.
Ela subiu na árvore novamente, grata por sua capa desta vez.
Apoiando na escada, clareou sua garganta e cantou a primeira
estrofe da canção de ninar de Nanteri. Como previu, o corvo
rapidamente abandonou seu poleiro e voou para longe. Nenhum
pássaro voltou para substituí-lo. Martise terminou a canção de
ninar, estremecendo com as notas finais gotejando de seus lábios e
esperou. Micah não veio. Tentou novamente, um pouco mais alto.
Ainda sem corvo mensageiro. Tentou uma terceira vez, quase
gritando as palavras para que o pássaro ouvisse. À distância, Cael
uivou em resposta.
Longe na segunda estrofe e quase rouca com seus esforços, não
ouviu seu visitante até que os ramos ao redor dela tremeram. Gritou
de surpresa quando sua escada bateu contra seu ramo de apoio.
Folhas farfalharam e se separaram, revelando os traços fortes e
empoeirados de Silhara. Seus olhos estavam arregalados de
assombrado espanto. Ele subiu na árvore e se equilibrou sobre um
galho grosso logo abaixo dela. Sua altura o colocou ao nível dos olhos
dela, ela corou com o olhar horrorizado em seu rosto.
— O que no santo nome de Bursin é isso? — Ele rosnou.
Se fosse possível morrer de vergonha, Martise tinha certeza que não
sobreviveria aos próximos minutos. — Eu estava cantando.
Ele levantou as sobrancelhas quase até a linha do cabelo. —
Cantando. É disto que você chama? Parecia que alguém estava
torturando um gato.
— Eu pensei que poderia trabalhar mais rápido se cantasse. — Ela
limpou o suor da testa com uma mão enluvada e lamentou a ação. O
golpe de óleo de citrino que ela derramou na mão esquerda
queimava sua pele. Cael continuou a uivar e uma porta se fechou
com um estrondo.
— Isso deve ser Gurn vindo nos resgatar de qualquer demônio que
ele pensa estar nos atacando, — o ramo que apoiava Silhara rangeu
quando ele ajustou sua postura e se inclinou para mais perto dela.
— Diga-me uma coisa, Martise, — uma folha lhe bateu nos olhos e
ele arrancou seu galho em um piscar de olhos irritados. — Como é
que uma mulher, abençoada com uma voz que poderia fazer um
homem gozar, canta mal o suficiente para assustar os mortos?
Foi salva de ter que responder à estranha pergunta pelo baque
rápido de passos correndo. Silhara desapareceu brevemente da vista
quando se inclinou para cumprimentar o visitante. Infelizmente,
suas respostas às perguntas não ditas de Gurn eram altas e claras.
— Isso foi Martise que você ouviu. Ela estava... cantando.
— Confie em mim, eu não estou brincando. Você pode descarregar o
seu arco.
Sua próxima resposta indignada a fez sorrir. — Não, eu não estava
batendo nela! Ela é a que me atormenta com esse lamento horrível!
Martise escondeu o sorriso quando ele reapareceu diante dela. Sua
carranca era feroz. — Não cante, — ele apontou um dedo para ela
para dar ênfase. — Você assustou meu cão, meus pássaros e o meu
servo com os seus berros, — ele fez uma pausa. — Você ainda
conseguiu me assustar.
— Sinto muito, mestre... — Ela parou quando seu cenho se
aprofundou.
— Não cante, — repetiu ele.
Ela assentiu com a cabeça. Ele a olhou uma última vez em
advertência antes de sair do ramo e descer agilmente da árvore.
Bem, pensou Martise. Isso terminou em completo fracasso e
humilhação. Ela não sabia como Cumbria esperava que lhe enviasse
mensagens quando seu mensageiro não respondia aos seus
chamados. Então, novamente, se Micah tivesse algum juízo, teria
voado para longe como o resto dos corvos em sua primeira nota
estridente.
Seus pensamentos perceberam o comentário grosseiro de Silhara a
respeito de sua voz. Era o elogio mais torto que já recebera, ainda
que conseguisse enviar um calor agradável através dela. Na maioria
das vezes, ela temia essas observações das pessoas, mesmo as mais
refinadas. Eles eram geralmente acompanhados pela observação
insensível de que era uma pena que seu rosto não combinasse com
sua voz.
Ela nunca tinha tido quaisquer ilusões sobre sua aparência. Fora
enganada uma vez por pensar que a aparência não importava para a
outra pessoa e saíra com um coração ferido por seu erro. Os
pequenos golpes sobre a sua simplicidade, intencional ou não,
feriam menos depois de tantos anos, mas a dor nunca ia embora
realmente. Estava grata que Silhara, tão brusco e malicioso como ele
poderia ser às vezes, tinha comentado apenas uma vez sobre sua
aparência. Mesmo assim, não tinha certeza se tinha entendido mal
a sua observação improvisada sobre não se preocupar em enfeitar-
se para ele. Se ele a considerava tão monótona quanto os outros,
manteve suas opiniões para si mesmo.
Fez uma pausa para alcançar outro cacho de laranjas e sacudiu a
cabeça para se livrar da memória de seu tempo com ele no
alambique. A violação não exigia beleza. O comando brusco de
Silhara para que ela se despisse quase a levou a um pânico cego.
Apenas o óbvio desinteresse em seus olhos e a nota meio aborrecida
e meio irritada em sua voz áspera a acalmou. Ele tinha massageado
o unguento em suas costas com dedos fortes, apertando músculos
duros e doloridos até que quase caiu em um monte desossado no
chão.
Ele tinha boas mãos. Elegantes e peritas. Eram as mãos de um
estudioso exceto pelos calos ásperos que cobriam as pontas dos
dedos e as palmas das mãos endurecidas. Aliviou a dor dos músculos
que tinham sido machucados pela colheita rigorosa, ao mesmo
tempo que a entretinha com histórias de seu passado. Ele tivera uma
infância dura, mas falou disto e da sua mãe em um tom de voz
neutro, como se ter seis anos de idade e viver em um bordel agindo
como mensageiro para as hourin e clientes não fosse nada. Ele até
arrancou dela uma risada. Seu humor era irreverente, limpo e
muitas vezes sarcástico.
Martise franziu a testa e cortou os cachos de laranjas do seu ramo
com mais força do que o necessário. Ele a fascinava, a atraia de
maneiras que nenhum homem jamais tinha conseguido. Nem
mesmo seu antigo amante Balian, a quem ela pensava que amava. A
sensação de Silhara logo atrás dela, alisando a pele com as mãos
ásperas, tinha a hipnotizado. Seu medo tinha evaporado, a fazendo
ciente de que estava sozinha com ele no escuro, no alambique
perfumado.
Essa consciência tinha mudado para um zumbido de tensão que
dançou ao longo de sua espinha quando suas mãos abaixaram até a
sua cintura, os dedos flexionando levemente contra sua pele. Ele
tinha curvado seu corpo alto no dela, ela se afogou em uma miríade
de sensações – a doçura enfumaçada de tabaco e flor de laranjeira,
um sussurro de pano, o sopro do ar fazendo cócegas em seus ouvidos
enquanto ele se aproximava. Agradecia a Bursin ele ter se afastado
naquele momento, ou ela poderia ter sido tentada a se inclinar para
trás em seu calor, esquecendo seu propósito em Neith e as muitas
razões pelas quais ela deveria desprezá-lo.
Ele era um enigma a todo mundo, exceto talvez a Gurn. Filho de uma
prostituta, pobre fazendeiro, treinador do Conclave, um mago de
notoriedade em vez de fama, ele era uma estranha combinação de
papéis opostos. Eloquente e depois vulgar, era rápido com uma
piada ou insulto. Seus métodos para tornar o seu desagrado
conhecido foram terríveis e extremos. Martise tinha ficado aliviada
quando ele os pronunciou inúteis e os interrompeu. Ele era um
tirano rigoroso a repreendendo quando fazia algo errado, mas tão
disposto a lhe mostrar a maneira correta de completar a tarefa.
Trabalhou com ela e com Gurn do amanhecer e até mesmo despois
do anoitecer, quando trabalhava distraída em suas traduções e
pesquisas na biblioteca à luz de velas. Ninguém questionava quem
era o governante aqui, mas Silhara trabalhava tão duro, se não mais,
do que eles e nunca se colocava acima de qualquer tarefa.
Mesmo agora, se escondia em uma laranjeira nas proximidades,
provavelmente golpeando vespas e se esquivando dos excrementos
de pássaros, conforme colhia frutas e amaldiçoava seu nome por
contundir seus ouvidos com sua canção de ninar. A imagem a fez
sorrir e afugentou o bolo de calor sedutor em sua barriga.
Ela foi salva de uma maior introspecção por um estrondo alto. Gurn
os chamava para o almoço. Seu estômago roncou em resposta, ela
fez um rápido trabalho de deixar o pomar, tirando o chapéu e
limpando o rosto e as mãos na bomba do poço.
Os olhos azuis do servo cintilaram quando ela apareceu na porta da
cozinha. Martise, agora acostumada com a sua linguagem
particular, corou e ergueu o queixo. — Está exagerando. Meu canto
não foi tão ruim, — ele bufou em desacordo e a empurrou para a
mesa.
Ela estava sentada e servindo o chá para todos quando Silhara
entrou pela porta. Seu rosto, ainda úmido por uma rápida lavagem,
era sombrio. Sentou em seu lugar costumeiro em frente dela.
Martise esperava um comentário ácido adicional sobre seu canto,
mas ele só se dirigiu a Gurn.
— Precisamos de chuva. Essa seca já durou muito tempo. Algumas
das árvores mais jovens estão deixando folhas cair. Se continuar
assim, teremos pouca floração no outono.
As características normalmente amáveis de Gurn ficaram tão
escuras quanto as de Silhara. Ele terminou de preparar o resto do
almoço e sentou-se. A cozinha estava em silêncio até que Martise,
comendo e com curiosidade, falou.
— O que isso significa para o seu pomar?
Silhara encheu seu prato com queijo, pão, fatias de carne de porco
assado e tomates pequenos do jardim de Gurn. — Uma má colheita
para o próximo ano, — ele deslizou a sempre presente bacia de
laranjas em direção a Gurn. — Muita queda de folhas significa
menos flores. Menos flores significa menos frutas. Menos frutas
para vender, significa menos dinheiro feito. Nós passaremos fome,
— ele usava aquele meio-sorriso familiar e irônico. — Ainda bem que
eu sou o mago dos corvos. Nós vendemos a nossa magia como
hourins vendem seus corpos.
Todos sabiam da aversão do Conclave pelos magos que usavam os
seus dons como um trabalho para ganhar dinheiro. O título dado a
Silhara de Mestre dos Corvos não era um elogio.
Ela estava contente de beber chá e ouvi-lo conversar com Gurn e
planejar sua viagem para Eastern Prime. Ela não mais observava
espantada enquanto comia. A primeira vez que ele se sentou para
almoçar com ela e Gurn, ficou boquiaberta enquanto ele consumia
um pedaço de pão, uma meia roda de queijo, um frango inteiro,
cinco ovos cozidos e uma tigela de azeitonas.
Ela esperava que ele comesse mais no almoço do que no café da
manhã, mas ele a surpreendeu. Depois de horas de trabalho no
bosque, ela estava morrendo de fome na hora do almoço e isso com
o mingau de Gurn aderido as suas costelas. Não sabia como Silhara
conseguia trabalhar com tão pouco café da manhã. Sua refeição
escassa de chá e duas laranjas pela manhã não seguraria uma
criança até o meio-dia. Ele compensava isso no almoço. Não era de
se estranhar que o servo cozinhasse pão suficiente para um exército
e mantivesse um viveiro cheio de galinhas aninhadas.
— Você encontrou alguma coisa sobre rituais de Deuses? — Ele
disparou um tomate em sua boca e mastigou.
Ela fez uma pausa em passar manteiga em uma fatia de pão. —
Apenas algumas coisas e nenhuma que fala de derrotar um deus
através de magia. As crônicas Dalatianas mencionam um deus
destruído pela descrença. Mas isso levou gerações para realizar e a
introdução de um novo deus.
Silhara apunhalou uma fatia de carne de porco com sua faca. —
Gerações? Isso é um luxo de tempo que não temos. Duvido que
Corruption se contente em esperar mais algumas centenas de anos
antes de tomar o controle.
Ela assentiu com a cabeça. — Antes de vir para Neith, houve rumores
de pragas estranhas nas províncias do sul. Culturas morrendo sem
causa aparente e fome nas áreas periféricas.
Ele fez uma careta. — Um deus impaciente é perigoso, — ele juntou
as mãos e olhou para ela por cima dos seus dedos. — Tente mais
duro. Minha biblioteca é extensa. Deve haver alguma coisa.
Um grunhido de frustração subiu em sua garganta e ela o engoliu.
Ele não tinha lhe dado uma tarefa fácil. Sua biblioteca era
extraordinária. Uma sala de prateleiras que se estendia do chão ao
teto, cheia de tábuas, edições e rolos de manuscritos de folhas soltas.
Alguns pareciam quase novos, enquanto outros se despedaçavam
sob seus dedos, tão antigos que sua tinta havia se tornado mera
sombra no pergaminho amarelado. Não tinha dúvidas de que
alguma joia de informação estava escondida naquela montanha de
conhecimento, mas a busca provou ser monumental e esmagadora.
Ela possuía um talento único para lembrar cada detalhe que tinha
lido, cada conversa que ouvia. Mas ela era uma mulher entre
milhares de documentos.
Silhara a ajudava à noite, quando seu trabalho do dia no bosque
estivesse terminado. Às vezes almoçavam na biblioteca, com Gurn
pegando livros das prateleiras altas, enquanto ela e Silhara
examinavam páginas de palavras arcaicas, procurando aquela
cerimônia que pudesse ajudá-los. Embora seu dom fosse poderoso,
ele não possuía suas habilidades com tradução nem sua memória.
Ele decifrou os textos muito mais devagar do que ela. Houve
momentos em que ele a mirou com um olhar especulativo quando
ela o orientou para uma página específica, de um grimório
específico, para obter mais informações. Até agora, seus melhores
esforços tinham sido infrutíferos, Martise estava tão frustrada
quanto ele pela falta de progresso. Tente mais. Ela olhou para o
prato.
— Martise, abaixe a faca. Há mais do que algumas pessoas ansiosas
para esculpir meu coração. Você terá que tomar o seu lugar na fila.
Ela olhou para cima, assustada. Diversão iluminava seus olhos
escuros. Ela olhou para a mão, fechada em torno da faca de comer
em um aperto de morte. A faca bateu na mesa com um estrondo.
Limpou a garganta e parou um pouco antes de pedir desculpas
quando seus olhos se estreitaram. — Eu não estava...
— Não estava o que? Sonhando com maneiras de esfolar o meu
couro e pregá-lo à porta do meu quarto? — Ele riu em um som
áspero. — Você é melhor do que a maioria em esconder seus
pensamentos. — Ele fez uma pausa, seu olhar baixou. O timbre de
sua voz mudou, suavizando e aprofundando. — Mas você tem uma
boca expressiva. O que você esconde em seus olhos é revelado lá.
Seu estômago deu um salto mortal contra as costelas. Ela lambeu o
lábio inferior. Seus olhos ficaram mais negros do que o feitiço mais
proibido. Ela respirou fundo, tão nervosa por sua reação a suas
palavras como com as próprias palavras. — Eu vou tentar mais.
— Eu estou certo que você vai. — Ele arrastou o olhar para Gurn. —
Retire a arca grande que fica no canto perto da janela sul e a
desbloqueie. Ela pode procurar nesses grimórios.
Ele olhou para trás. Sua voz estava rouca novamente. — Vamos
tentar algo novo hoje à noite. Eu tenho livros retirados de Iwehvenn
Keep. Tomos velhos com escritos sobre Wastelands e sua magia
antiga. Pode não haver nada de útil para nós, mas vale a pena dar
uma olhada.
O gole de chá que ela tinha tomado azedou em sua boca. Ela engoliu
em seco. — Iwehvenn Keep? O reduto de Lich?
Ele assentiu. — O próprio. O comedor de almas está muito mais
interessado em banquetear-se com os espíritos dos viajantes
azarados do que em literatura. Ele não vai sentir falta do que eu
levei.
Martise lutou para manter sua boca fechada. Ela cresceu ouvindo as
histórias de horror do comedor de espíritos de Iwehvenn e as
infelizes vítimas do seu apetite voraz. Que Silhara tivesse
voluntariamente invadido a fortaleza de Lich e saído ileso era
extraordinário e um testamento da sua astúcia e da força de seu
dom.
Não era de admirar que o sacerdócio o temesse. Um mago jovem,
que comandava tal poder, era formidável e não facilmente igualado
e nem derrotado.
Silhara esvaziou o copo e se levantou. — Já perdemos muito tempo.
— Ele olhou Martise. — Gurn irá lhe mostrar onde eu mantenho os
tomos. Seus dedos podem doer. A mancha de Lich ainda persiste nas
páginas.
Ele a deixou com um lembrete de advertência. — Não cante na
biblioteca. Não cante em qualquer lugar. Se eu te ouvir, vou cuidar
para que fique tão muda como Gurn pelo resto da sua estadia em
Neith.
Ela levantou as mãos em sinal de rendição. — Não vou cantar. Eu
juro.
O resto do almoço foi rápido e sem complicações. Martise ajudou
Gurn a limpar a comida e lavar os pratos.
— Gurn, — disse ela. Ele fez uma pausa em arrumar a despensa. —
O bosque é mais do que uma fonte de renda, não é? Silhara ama
aquelas árvores.
Mudo, mas hábil em expressar seus pensamentos e opiniões, ele
colocou os longos braços sobre a porta da despensa e a olhou com
sombria aprovação. Mesmo que não tenha confirmado sua
suposição, sabia que estava certa. Silhara prezava seu pequeno
laranjal da mesma forma que um outro homem apreciaria uma
amada esposa ou filhos. Martise franziu a testa, estranhamente
perturbada por sua observação. Ela ainda tinha que descobrir sua
heresia, mas ela tinha encontrado sua vulnerabilidade.
O pensamento inquietante ficou com ela enquanto fez seu caminho
para a biblioteca e para os tomos que aguardavam sua leitura. Seu
suspiro de sofrimento ecoou na sala cavernosa, muito diferente de
sua reação ao ver a biblioteca pela primeira vez. A biblioteca de
Cumbria em Asher era extensa, mas nada comparado com a de
Neith. Somente a do Conclave a igualava em extensão e variedade, e
essa biblioteca servia a centenas de sacerdotes e aprendizes.
Janelas estreitas, flanqueadas por estantes, filtravam luz do Sul e do
Leste. À noite, ela era muitas vezes distraída de sua leitura pelo
brilho das estrelas e da lua, penduradas como joias na janela que
emoldurava o céu noturno – e ficava aliviada por não conseguir ver
a estrela da Corruption a partir deste ponto de vista.
A câmara não estava tão empoeirada como na maioria das mansões,
mas estava longe de estar limpa. Grimórios e pergaminhos estavam
espalhados pelo chão e empilhados de forma aleatória nas
prateleiras. As duas mesas colocadas no centro quase sediam por ter
peso demais. Caixas abertas derramavam páginas soltas no chão.
Levou dois dias para descobrir uma maneira ordenada de conduzir
sua pesquisa e não se afogar em um mar de pergaminhos.
Gurn chegou e apontou para um pequeno baú escondido em um
canto perto das janelas sul. Ele o abriu com uma chave enferrujada
e uma nuvem de poeira subiu do interior do baú. Martise engasgou,
Gurn cobriu a boca com a bainha da túnica enquanto puxava a pilha
de grimórios e os empilhava no chão.
Ela olhou para a capa do primeiro tomo, cativada pelos símbolos
curvos gravado no couro rachado. Reconheceu a escrita, um
manuscrito extinto dos países do extremo norte que beiravam a
Waste Outland. Um de seus mentores do Conclave, uma antiga
sacerdotisa e escriba dessas terras distantes, lhe ensinara a ler o
Helenês primitivo.
— Lembre-se sempre, Martise, — ela tinha comandado em uma voz
débil. — São poucas pessoas vivas que sabem ler a antiga língua do
Norte. Muitos conhecimentos já estão perdidos.
Gurn pairava ao seu lado, olhando os livros com mais repulsa do que
fascínio. Ela acenou para ele. — Vá em frente, Gurn. Silhara
provavelmente está se perguntando o que está tomando tanto
tempo, — ela caiu de joelhos diante dos livros. — Eu vou ficar bem
aqui.
Suas mãos formigavam desagradavelmente cada vez que ela tocava
as páginas. A náusea leve fez seu estômago se agitar, mas não foi
suficiente para fazê-la abandonar o tesouro de informações diante
dela. Sentou-se mais confortável no chão e começou a ler.
O pôr do sol lançou longas sombras em seu colo. Martise levantou a
cabeça pela primeira vez em horas, consciente de uma dor no
pescoço e o início de uma dor de cabeça. A biblioteca tinha sido
preenchida por um matiz surreal, prateado por causa da ascensão
da lua e o último brilho de partículas de poeira.
— Uma mulher revestida com a luz da lua é uma bela visão, de fato.
Silhara ficou de pé sobre ela, sua aproximação silenciosa, como
sempre. Sombras invadiam os espaços sob suas maçãs do rosto e
destacavam o arco do seu nariz. Ele olhou para ela com os olhos
brilhando. — Você se esforçou mais, Martise? — Sua voz deteriorada
demais para ser um afago, acariciou sua pele.
Ela levantou o livro que segurava. — Eu o fiz, Mestre. E acho que
encontrei o seu deus assassino.
Capítulo
Nove
— O que quer dizer com a metade do ritual está faltando?
Silhara franziu o cenho diante da dispersão de papéis soltos que
Martise espalhou diante dele. As luzes de uma vela dançavam junto
com o brilho da lua que se movia pelas janelas da biblioteca. Martise,
sentada ao lado dele, beliscou a ponta do seu nariz. A ação lhe deu
uma pausa. Sua aprendiz, normalmente tão diligente em esconder
suas emoções, revelou sua frustação duas vezes diante dele.
Primeiro a faca que segurou em sua mão no almoço e agora está. Ele
não sabia se ria ou a repreendia. Mas não pôde resistir a
possibilidade de provoca-la.
— Você perdeu as outras páginas? Eu não gosto de descuido,
Martise.
Ele ouviu seus dentes rangerem. — Não, mestre. Não havia mais
páginas a perder, — ela esfregou as têmporas. Passava da meia-
noite, os dois haviam estudado este tomo em particular desde que
ele retornara à biblioteca e a encontrara sentada no chão, com os
livros de Lich espalhados ao seu redor. — Como você pode ver, as
páginas do livro estão faltando, — seu olhar de soslaio estava
hesitante. — É possível que algumas páginas tenham caído e ficaram
para trás quando você roubou... quer dizer, pegou os livros?
Ele se recostou contra sua cadeira e amaldiçoou. — É mais que
possível. É provável. Eu não tinha o desejo de relaxar e provar da
hospitalidade do comedor de almas. Essas páginas e outras mais,
provavelmente devem estar juntando pó na biblioteca de Iwehvenn,
— ele sorriu para ela. — E eu normalmente sou um ladrão
meticuloso.
Martise corou e baixou os olhos. — Eu não quis ofender.
— Ah, uma outra maneira de se desculpar. Você tem um
impressionante arsenal de declarações conciliatórias. Conheço
escravos menos contrito do que você, — sua boca expressiva se
apertou em uma linha fina. Ela tinha uma mandíbula elegantemente
curvada e um longo pescoço revelado por seus cabelos presos.
Silhara não tinha notado antes. Um truque do luar, ele pensou.
Enfeitada por um pedaço de brilho prateado que perfurava a janela,
ela o lembrou de uma borboleta noturna – sem cor à luz do dia, mas
etérea à noite.
Ele lançou um olhar feroz aos papéis com as suas linhas de escritos
arcaicos. Ele tinha ido razoavelmente bem com transcrição e
tradução durante seus anos no Conclave, mas suas habilidades
estavam longe da perícia de Martise. Estava muito ocupado
brigando com colegas aprendizes nos corredores sombreados,
aterrorizando seus professores com a força imprevisível de seu dom
e causando caos geral no reduto do Conclave.
— Leia de novo. Deve haver o suficiente para trabalhar encima.
Seu débil suspiro carregava uma riqueza de aquiescência relutante.
Silhara prometeu a si mesmo que iria escutar atentamente e não iria
ficar fascinado por sua voz enquanto ela lia a passagem pela terceira
vez.
— Na primavera da lua, antes que Waste tomasse as terras entre as
montanhas Kor e o mar gelado, treze reis se reuniram na colina de
Gladia para destruir o falso deus Amunsa. Desses treze, apenas uma
era das terras do sol. Birdixan. Ligados pelo sangue e pela luz, eles
juraram...
Silhara gemeu e levantou uma mão para detê-la. — Que os deuses
nos salvem dos pardos que divagam descontroladamente. Nós
ficaremos aqui até de manhã antes que este escriba morto chegue ao
ponto, — o leve sorriso de Martise diminuiu o cansaço em seu rosto.
— Você tem uma boa voz, Martise, mas eu quero ir logo para cama.
Vamos resumir.
Ele começou a marcar pontos relevantes com os dedos. — Há alguns
milhares de anos atrás, uma dúzia de reis magos se reuniram para
matar um falso deus que soa como um irmão de Corruption. Eles
invocaram a ligação de sangue, o mais forte e mortal ritual de magia.
Um dos reis, Birdixan, escolheu agir como mártir e se sacrificar no
ritual. Mas como?
Ela encolheu os ombros. — Precisamos das páginas que faltam.
— Diga-me algo que eu não sei, — ele tamborilou com os dedos no
braço da cadeira e amaldiçoou em voz baixa. Ele teria que voltar
para Iwehvenn e encontrar essas páginas. Se tivesse sorte, elas ainda
estariam onde ele as deixou cair, na biblioteca em ruínas do Lich. Se
sua sorte se mantivesse, teria que conseguir sair da fortaleza pela
segunda vez, vivo.
Junto com sua aprendiz.
Ela massageou as costas. — Seja qual for o ritual que os reis usaram,
eles foram bem-sucedidos. Não há Amunsa citado em histórias
depois dessa, ou templos em ruínas construído para ele, nem mesmo
no Norte.
Silhara sufocou um bocejo atrás da sua mão. Círculos escuros
rodeavam seus olhos e suas pálpebras caíam para meio mastro
apesar de seus melhores esforços para ficar alerta. Havia trabalhado
duro nas duas últimas semanas, acrescentando mais e mais
responsabilidades, esperando mais dela. Ela ainda estava aqui e
fazendo uma contribuição significativa para o funcionamento de sua
casa. Ficou satisfeito e aborrecido.
— Nós vamos viajar para Iwehvenn, — um olhar incrédulo se seguiu
a sua declaração.
— Nós? — Ela chiou.
— Sim, nós, — ele arqueou uma sobrancelha. — Eu não leio Helenese
antigo e há várias páginas faltando nesse livro. Há, provavelmente,
mais páginas perdidas de outros livros que eu tomei de Iwehvenn.
Preciso que você tenha certeza que estamos reunindo as páginas
certas. Eu não gosto de ter que fazer uma segunda viagem para o
covil do comedor de almas. E ao inferno que eu vou fazer isso uma
terceira vez.
Um engolir convulsivo trabalhou os músculos de sua garganta. —
Como é que vamos passar desapercebidos pelo comedor de almas?
Ele se levantou da cadeira. Martise rapidamente seguiu seu
exemplo. — Eu posso nos encobrir com um feitiço de ocultação e
essa magia vai enganar o Lich.
— Eu ouvi dizer que ele tem um grande poder e pode sentir um
homem vivo como um lobo cheira o sangue da sua presa.
— Você ouviu corretamente. Se alguma vez um predador mais
mortal existiu, eu ainda não o conheço, — ele ficou tentado a toca-
la, para passar os seus dedos na pele arrepiada de seus braços.
— E se ele nos atacar?
— Então nós vamos lutar para abrir caminho, é claro.
Ela estendeu as mãos. — Eu não sou uma guerreira nem uma maga.
Eu seria inútil em uma batalha.
Sua risada grosseira era áspera por causa do cansaço. — Eu não
preciso de uma lutadora forte e minha magia é mais forte do que a
de um bando de sacerdotes combinados. Se você puder ler Helenese
e lê-lo rápido, você será de grande utilidade para mim.
— E se a sua magia não for o suficiente? — Horror tingiu sua voz,
escurecendo seus olhos.
Sua reação era justificada. Todos os aprendizes do Conclave eram
ensinados sobre aqueles raros, mas devastadoramente poderosos e
malévolos seres, chamados de Lich ou comedores de almas. Ele
sabia o que aconteceria se o Lich de Iwehvenn os pegasse. Silhara
estava grato por ter tido tal conhecimento. Ele não teria que explicar
o perigo ou abala-la sobre os riscos envolvidos.
Ele sustentou seu olhar. — Vou te matar antes que ele te toque, — a
declaração contundente o fez estremecer. Por alguma razão
inexplicável, ele queria suavizar suas palavras. — Há coisas piores
do que uma morte limpa.
— Suponho que eu não possa respeitosamente recusar? — Ela deu a
ele um sorriso fraco.
— Você pode, mas você teria que deixar Neith, — isso, mais do que
qualquer lição brutal que ele poderia dar a ela, iria medir a sua
determinação. — Se eu não tenho nada para você traduzir, não tenho
utilidade para você então vou te mandar de volta para o bispo.
Muitas emoções passaram em seus olhos. Medo, aceitação, um
toque de raiva e acima de tudo, determinação. — Quando nós
saímos?
Seu respeito por ela cresceu. Estava aterrorizada, mas disposta a
acompanhá-lo. Uma mulher corajosa e uma sábia o suficiente para
aceitar seu medo. Isso a manteria viva. — Amanhã.
— Tão cedo?
— Eu quero colocar minhas mãos nessas páginas o mais rápido
possível. E eu tenho uma colheita para vender no mercado na
próxima semana. Jogar de gato e rato com um comedor de almas
não estava nos meus planos.
Ele apagou três das quatro velas que estavam acesas sobre a mesa.
A última lançou um raio de luz fraca ao redor dele e de Martise. —
Guarde os livros e os papéis. Vamos lidar com eles quando
voltarmos.
Uma vez no corredor, ele lhe entregou a vela. Como único ponto de
brilho no corredor escuro, a chama cintilou e dançou, emprestando
ao rosto de Martise um aspecto fantasmagórico dominado por seus
amplos olhos cor de cobre.
— Descanse o quanto puder, — disse ele. — E traga uma bolsa leve.
Uma troca de roupa e nada mais. Vejo você no pátio uma hora antes
do amanhecer.
Ela segurou a vela para ele. — Você não precisa disso?
A escuridão escondeu sua diversão. — Eu estou acostumado a viajar
por caminhos escuros, Martise. Você precisa da vela mais do que eu.
Ela balançou a cabeça em agradecimento e subiu as escadas. Ouviu
as tábuas do chão rangendo acima dele enquanto ela se dirigia para
o quarto. A vela era realmente mais útil para ela do que para ele. Ele
podia abrir caminho com fogo mágico, mas mesmo isso não era
necessário. Vivera em Neith por quase vinte anos e podia percorrer
seus corredores sinuosos, com suas curvas e pisos quebrados, de
olhos vendados.
A sonolência que o atormentava na biblioteca tinha desaparecido
quando chegou ao quarto. A lua brilhante, suspensa no alto do céu,
banhava a varanda e a câmara em prata. A estrela da Corruption
pairava abaixo dela, lançando sua própria luz febril sobre o bosque
e além das planícies planas. Silhara sentiu a proximidade do deus, o
seu olhar predatório. Melhor não dormir. Só podia imaginar os
horrores que o aguardavam no que devia ser um sono tranquilo.
— Você não tem nada melhor para fazer além de me irritar em meu
sono e sujar minha magia? — Ele lembrou as palavras de Martise. —
Você sabe, pestilências para criar? Aldeias para destruir? Cães
mortos para ressuscitar?
Ele preparou seu narguilé para fumar seu último trago da noite e
tentou ignorar o riso vazio que enchia sua mente.
“Manchar? Achei que você gostaria de receber essa pequena
amostra de poder. A minha oferta é ilimitada se você me aceitar”.
Silhara soprou na ponta da mangueira, observando como a fumaça
flutuava pela janela em redemoinhos fantasmagóricos. — Seu
pequeno “gosto” tornou meu dom sem valor por um dia. Não estou
interessado no que não consigo controlar.
Novamente, a diversão do deus raspou o interior de seu crânio.
“Somos muito parecidos, feiticeiro. Renda-se e você terá
supremacia sobre toda a magia. Seu Dom parecerá um brinquedo
de criança comparado a uma espada e você empunhará essa
espada com o poder de um deus”.
O tabaco especial, doce quando enchia pela primeira vez a boca,
ardia acre agora. Muito tentador. Ele não podia negar a persuasão
das palavras de Corruption. O seu Dom, a única coisa que o fazia
inteiro, que o fez igual àqueles que, de outra forma, poderiam cuspir
nele nas ruas, era uma bênção. Manifestando enquanto ele ofegava
por ar e se retorcia contra o aperto de seu carrasco, o poder do Dom
mudou sua vida, lhe dando um lugar acima da imundície e da
violência das docas de Eastern Prime.
O Conclave, já desconfiado da potência de seu Dom e da habilidade
com que o empunhava, entraria em pânico se aceitasse a oferta de
Corruption. Ambos sacerdócio e feiticeiro sabia que o Conclave seria
a primeira vítima da recém-adquirida divindade de Silhara. Seus
olhos se fecharam. As imagens agradáveis do famoso reduto
transformado em nada mais do que escombros e os sacerdotes,
especialmente o Bispo de Asher, presos ou executados, passava por
sua cabeça.
“Você não vê? Isso seria fácil para você com a minha ajuda. Sem
mais esforço do que esmagar um mosquito enfadonho”.
A voz de Corruption acariciava e acariciava, Silhara oscilava em seu
abraço. A memória de um sonho substituiu a fantasia da destruição
do Conclave. Um céu sem lua sobre um oceano negro e o leviatã
atravessando suas águas mortas. Ele abriu os olhos, de repente
desesperado para se assegurar que a lua e suas estrelas ainda
reinavam durante a noite. Abaixo dele, o bosque dormia sem ser
perturbado. Vivas e crescendo, as árvores eram testemunhas de sua
vontade de sobreviver e conquistar.
Seus lábios se curvaram em desdém quando a estrela do deus
piscou. — Deuses poetas, — ele exalou elos de fumaça na direção da
estrela. — Como se não estivéssemos já invadidos por homens tão
inúteis. Você fala em manejar espadas, de reis, riquezas e poder
imensurável. Mas o seu preço... — ele balançou a cabeça. — Eles me
chamam de um mago imundo agora. Ceder a você me fará nada mais
do que um sanguessuga inchado, sugando o sangue do mundo.
“Quem saberia que você é tão nobre? ”
Silhara riu, seu humor tão falso como o do deus. — Que nobreza há
em ser um falso boneco de deus? — Sua risada morreu
abruptamente. — Eu irei destruí-lo.
Corruption zombou dele. “Você poderia? Com que sacrifício? Você
está disposto a agir como assassino para fazer isso? Ou mártir? O
que você fará, Silhara de Neith, para permanecer pobre,
difamado... e livre? ”
Silhara colocou de lado o narguilé e fechou as persianas. Sua
câmara, lançada em uma escuridão súbita, tornou-se uma cripta. —
Você fez a pergunta errada, — ele disse para a escuridão
ininterrupta. — Melhor perguntar, o que eu não faria?
Capítulo
Dez
Se ela conseguisse sobreviver a esta jornada, Martise tinha a
intenção de matar seu antigo mestre no momento em que estivesse
livre. Ela passeava em frente a Gurn, que esperava com ela no pátio.
Até recentemente, sua aversão tinha sido reservada para Silhara e
seus métodos de ensino heterodoxo, mas o Mestre dos Corvos ainda
não a tinha enganado. Ela sabia desde o início que ele seria um
professor impiedoso e esperava o pior.
Ao contrário de Silhara, Cumbria a tinha enganado. Ele a advertiu
da natureza mutável de Silhara e de sua língua afiada, de seu poder
e de sua reputação. Mas ele minimizou seu papel como espiã. Se
aventurar nunca tinha sido parte do plano.
— Você só precisa fazer o que você é inigualável. Observe suas ações,
ouça suas palavras e lembre-se de cada detalhe. Ele vai se trair.
Nenhum homem, nem mesmo Silhara, pode esconder todos os seus
segredos para sempre.
— Ha! — Ela retrucou, ignorando o olhar perplexo de Gurn. Até
agora, o Mestre dos Corvos tinha feito um excelente trabalho de
esconder qualquer coisa que pudesse trazer a Justiça do Conclave
encima de sua cabeça. Ela não tinha visto nenhuma evidência da
influência da Corruption sobre ele nem qualquer interesse na
presença celestial do deus. Se o Conclave proibisse a colheita de
laranjas e o roubo de livros, Silhara era um homem morto. Caso
contrário, ela não tinha nada.
Os riscos que assumiu ao vir aqui valiam a pena para recuperar sua
pedra espiritual. Mas um Lich? Cumbria não mencionou o sentido
destemido de propósito de Silhara ou que tinha um comedor de
alma como um vizinho.
Seu cavalo de viagem estava ao lado dela e sacudiu seu xale com uma
suave exalação. Martise acariciou seu pescoço e arranhou um ponto
atrás da correia de freio. O cavalo, um animal castanho castrado e
gentil, estava muito longe das tensas montarias de Cumbria. Selado
e carregado com suprimentos, incluindo a besta de Silhara e um par
de facas longas, também aguardava a chegada de Silhara.
Martise olhou para Gurn. — Você acha que ele ainda está dormindo?
— Eu nunca durmo, aprendiz. Você deve aprender a ter um pouco
de paciência.
De costas para a porta da cozinha, perdera sua chegada. Como
sempre, ele se moveu em pés silenciosos. Ela se inclinou para
esconder seu espanto. — Bom dia, mestre.
Seu olhar deslizou sobre o xale, a túnica longa e as calças
improvisadas. Ele não era o único que não tinha dormido. Martise
passou as horas restantes antes do amanhecer cortando uma saia e
a costurando em algo parecido com os trajes adequados para
equitação.
Silhara usava seu traje habitual de camisa desgastada, calças pretas
desbotadas e botas. Seu cabelo, livre de sua habitual trança, caia reto
e sedoso sobre seus ombros largos, enquadrando um rosto aguçado
pela fadiga. Apesar de sua aparência rançosa e do cansaço em seus
olhos, mantinha o ar de um aristocrata poderoso, arrogante, seguro
de seu lugar no mundo. Às vezes, Martise achava difícil acreditar que
era filho de uma humilde houri.
Desviou o olhar, perturbada pelo agradável formigar que dançava
acima de suas pernas e através de sua parte inferior das costas. Ela
o achara atraente na primeira reunião e mesmo depois, quando ele
fez o melhor para assustá-la e abandonar seu propósito aqui. Agora,
mais acostumada aos seus caminhos e depois de testemunhar sua
lealdade com seus dependentes, estava ainda mais atraída por ele.
Cruzou os braços e em silêncio se censurou por tais sentimentos.
Tinha um papel a desempenhar, um objetivo a alcançar. O preço de
sua liberdade crescia a cada dia.
— Que pensamentos sombrios te atormentam tão cedo de manhã,
Martise? — Sua voz rouca a tirou de seus pensamentos e ela se
endireitou. — Você caiu dormindo de pé ali? Já lhe perguntei duas
vezes se você está pronta para partir.
Seu pedido de desculpas pairava na ponta da língua. — Eu estou
pronta, Mestre. Eu só me perguntava quanto tempo a nossa viagem
poderia durar.
— A maior parte do dia. Vamos acampar cerca de três milhas fora de
Iwehvenn e alcançar a fortaleza em uma ou duas horas antes de
anoitecer. Nós vamos voltar para Neith na parte da manhã.
Sozinha com ele por um dia e uma noite. Mais se contasse a viagem
de volta. O nervosismo guerreava com uma ansiedade inquietante.
— Então não devemos nos atrasar.
Seus lábios se curvaram, mas ele não respondeu. O cavalheiro se
manteve imóvel quando tomou as rédeas, balançou agilmente sobre
as costas amplas do cavalo e acariciou seu pescoço sob os arreios. —
Você ficou gordo pela grama da planície, Gnat. Essa jornada te fará
bem.
Os olhos de Martise se arregalaram. — Gnat6? Seu nome é Gnat? —
Olhou para a montanha de carne de cavalo, fortemente musculosa e
de ossos grande, com uma circunferência que faria montar a cavalo
um desafio, com pelo menos três metros de altura.
Gnat balançou a grande cabeça em sua direção, como se
questionasse sua incredulidade. Silhara olhou por cima do nariz, a
expressão se tornou ainda mais imperiosa por seu assento alto nas
costas do cavalo. — Eu não achei que “Butterfly” seria adequado.

6 Gnat: do inglês, que significa mosquito.


Uma traidora agitação surgiu em sua garganta. — Não, — ela disse,
os olhos lacrimejando com o esforço para segurar a risada. —
Suponho que não.
Um lampejo passou através dos olhos de Silhara – tão rápido, que
Martise quase não o viu. Ela sorriu e passou uma mão gentil sobre o
suave nariz de Gnat. — Ninguém jamais adivinharia, seu nome,
grande rapaz...
Ao lado dela, Gurn deu uma breve risada e sinalizou que ele a
colocaria nas costas de Gnat. Suas mãos estavam enroladas ao redor
de sua cintura quando Silhara o deteve.
— Coloque-a para baixo, Gurn. Você não vai com a gente. Ela precisa
fazer isso sem a sua ajuda. — Se inclinou e estendeu a mão. — Tome
meu antebraço, Martise. O use como uma alavanca para montar.
Ela olhou para a graciosa mão por um momento. Seus dedos
formigavam em antecipação à sugestão da energia que seu toque
transferiria – a presença de seu Dom, tão forte que fluía através de
seus dedos. Agarrou seu braço, ofegando suavemente para aquele
contato relâmpago e se inclinou atrás dele. Pousou solidamente nas
costas de Gnat, apenas para escorregar para o outro lado. Suas mãos
agarraram a camisa e o braço de Silhara para não cair.
— Mulher tola, — ele retrucou. — Encontre o seu lugar antes de
derrubar a nós dois.
— Estou tentando. — Ela conseguiu se erguer. Ele grunhiu quando
ela envolveu seus braços ao redor de sua cintura e o apertou. As
pernas se esticaram sobre as largas costas do cavalo, ela nem sequer
pensou no que fazia, muito empenhada em permanecer no lugar e
não bater no chão que parecia tão longe abaixo dela.
— Para alguém tão pequeno, você tem um aperto que supera o de
Gurn. Você está esmagando minhas costelas. — Ele encolheu o
ombro contrário ao que ela segurava.
Ela o soltou, quase caindo de Gnat uma segunda vez.
O grunhido baixo de frustração de Silhara ecoou no pátio — Segure
em mim. Apenas não como uma serpente estranguladora.
— Desculpe.
— Claro que você está arrependida. — Ele franziu a testa para ela por
cima do ombro dele. — Agora você está pronta?
— Sim. — Ela limpou os fios úmidos de cabelo preso em sua testa.
Mesmo no ar frio da manhã, conseguiu romper em suor com seus
esforços. Desta vez as mãos descansaram levemente contra a cintura
dele, sentindo a flexão dos músculos enquanto ele guiava Gnat
através do pátio. Gurn manteve o ritmo ao lado deles, balançando a
cabeça enquanto Silhara lhe deu instruções.
— Verifique o canto sudoeste do bosque. Eu acho que uma das
árvores está doente. Se ela não puder ser salva, corte-a e a queime.
— Eles esperaram até Gurn destrancar o portão do pátio. — Nós
vamos voltar amanhã. Se não o fizermos, envie Cael para nos
rastrear.
Gurn franziu o cenho a essa última parte. Martise também. Se a
sorte deles se mantivesse, eles retornariam à segurança de Neith e
encontrariam Cael em seu lugar habitual sob a mesa da cozinha. Ela
sorriu, apesar de sua trepidação. Quando ela começou a pensar em
Neith como segura?
Ela se despediu de Gurn, apertando sua mão estendida quando
passaram pelo portão. Diante deles, as terras de Neith estavam
envoltas em um manto fantasmagórico de neblina. Somente as
pontas altas da grama das planícies se erguiam acima da fumaça, se
agitando como vaga-lumes, quando apanhavam a borda brilhante
do sol nascente. Silhara guiou Gnat por um caminho
progressivamente inclinado que se curvava em torno da mansão em
um semicírculo e os levou para um pátio fechado com seu cemitério
de pedras quebradas. Nas portas, ele falou algumas palavras breves.
A fechadura se abriu e deslizando da corrente até bater contra o
metal. As dobradiças cantavam sua angústia quando os portões se
abriram. Outro feitiço recitado, Martise observou os portões se
fecharem. A corrente ganhou vida, serpenteando, torcendo e se
enrolando em torno das barras antes que a fechadura fechasse com
um alto clique.
Uma névoa mais ondulante obscurecia a avenida principal, rolando
através do caminho em marés frouxas que quebravam contra a
madeira de solares que se alinhava no canto. Gotas de orvalho
pendiam dos ramos retorcidos das árvores como joias, caindo
ocasionalmente para salpicar os ombros de Gnat ou o casaco de
Silhara. Ao contrário das montarias mais ariscas do bispo, o cavalo
de viagem avançava pela estrada, seus cascos batendo em um ritmo
constante.
— Mestre, — ela sussurrou. — Posso te perguntar uma coisa?
— Por que você está sussurrando? — A voz de Silhara, nunca
estridente, parecia trovejar na escuridão abafada.
A questão provocou sua curiosidade. Por que ela estava
sussurrando? Eles não estavam saindo de Neith como ladrões. Não
que houvesse algo naquelas ruínas que valesse a pena roubar. Ainda
assim, o silêncio peculiar que pairava sobre o bosque quase exigia
um tom mais suave. E ela não podia afastar a sensação de ser
vigiada.
Ela tentou um volume mais normal. — Por que Gnat não tem medo
de tomar este caminho? O bispo e eu tínhamos que caminhar até a
mansão, porque suas montarias empacavam na entrada.
— Eu poderia comentar o excesso de criação de animais e seus
proprietários, mas isso é um velho choramingar e não responde à
sua pergunta. — Ele se inclinou para a frente e acariciou Gnat no
pescoço. — Ele está acostumado. A primeira vez que eu o trouxe aqui
com um ano, eu tive que usar um feitiço calmante nele para entrar
no território de Neith. Maldições mágica são uma forte dificuldade.
Ele não exagerou. Mesmo agora, acompanhada pelo mago que
trabalhava tal magia nesses bosques, Martise não conseguia afastar
sua inquietação. O cheiro de feitiços escuros, o tipo que os demônios
produziam e invocava laços de poder, pairava no ar.
Silhara riu do seu suspiro aliviado quando eles deixaram a avenida
sombreada para a planície aberta. Banhado na luz pálida da manhã,
o oceano de grama emergia da névoa que dissolvia. A planície se
espalhou diante deles, dando lugar a colinas inclinadas e planaltos
pontilhados com oliveiras e laranjeiras. Silhara parou Gnat e
respirou fundo. Sua cintura deslocou-se sob suas mãos, quente ao
toque.
— Quando o Conclave me baniu para Neith, eu pensei que sentiria
falta do mar. Mas o mar é aqui também, só que as ondas são feitas
de grama.
— O mar foi a única coisa que eu perdi quando saí do reduto do
Conclave, — disse ela. O ritmo da maré lhe proporcionara conforto
nos intermináveis anos de treinamento.
Ele a olhou por cima do ombro. — Sua proximidade com o mar fazia
do reduto uma graça salvadora.
Ele chutou Gnat em movimento, o guiando para o leste, em direção
ao sol nascente e ao santuário do comedor de almas. Eles não
falaram depois disso. Martise, sofrendo com o sono perdido,
balançou em seu assento. Embalada pelo movimento de Gnat, logo
se desligou, a bochecha descansando contra as costas de Silhara. O
sol aquecia seus ombros enquanto outro calor aquecia seu peito. Ela
se aconchegou mais perto, respirando o aroma picante de tabaco e
se deleitando com sensação quase esquecida do corpo de um homem
contra o dela.
Ela pensou que só tinha fechado os olhos por um momento quando
um encolher de ombros e um articulado — Martise! — A assustou
despertando-a. Com olhos turvos, olhou para a extensão da camisa
branca e soprou um longo fio de cabelo preto de Silhara preso ao
lábio inferior. Acima dela, o sol brilhava quente e brilhante.
Nenhuma sugestão da frieza da manhã permaneceu. Ela esfregou a
bochecha quente, úmida de onde ela tinha pressionado seu rosto
contra suas costas.
— Quanto tempo eu estive dormindo? — Sua voz era quase tão rouca
quanto a dele.
— Três horas. Talvez um pouco mais. — Ele abriu um dos pacotes
amarrados nas costas de Gnat e lhe entregou um odre de água. —
Aqui. Beba até se fartar. Há um riacho não muito longe daqui.
Vamos parar, dar água a Gnat e recarregar os odres.
A água estava morna e plana, mas provou melhor do que o vinho em
sua língua seca. Silhara empurrou o odre longe quando ela ofereceu
a ele. — Obrigada por me deixar dormir. Eu estava mais cansada do
que pensava.
— Alterar um guarda-roupa no último minuto faz isso a uma pessoa.
Ela riu e olhou para suas calças improvisadas. Seu humor nunca
deixava de surpreendê-la. Ainda bem que sacrificou uma noite de
sono. Tentar montar Gnat de saias teria sido impossível.
— Seu canto pode ser usado como um método de tortura, mas você
tem uma boa risada. — Sua voz se suavizou em um ruído sedoso. —
Você deveria rir mais vezes.
Martise corou com o elogio inesperado. — Obrigada. Às vezes você
me faz rir. — Ela rapidamente se corrigiu no caso de ele interpretar
mal o seu comentário. — Não de você, é claro.
— Não, claro que não. — Diversão se enroscou em sua voz.
Ela ficou em silêncio, satisfeita em balançar com a marcha fácil de
Gnat e examinar seus arredores. As costas de Silhara bloquearam a
maior parte de sua visão frontal, mas ela ainda se maravilhou com
as planícies que as cercavam, ouviu o sussurro da grama enquanto o
cavalo atravessava um mar de troncos melancólicos e caídos. Logo a
planície cedeu lugar a uma paisagem mais ondulante, onde a grama
se desfazia e as oliveiras ficavam em pé como linhas de sentinelas
das colinas baixas. Ovelhas e cabras salpicavam as encostas, o seu
balido distante sendo carregado pela brisa quente que flutuava pela
terra.
Silhara apontou para um lugar sombreado por um bosque de
árvores. — Um riacho corre lá. Se o tempo não o secou, vamos parar.
Eles estavam com sorte. O córrego, um fluxo borbulhante de água
gelada que derramava das neves derretidas das Montanhas
Dramorin, seguia um caminho sinuoso, passando por uma
plantação de árvores de ameixa antes de virar para o sul. Gnat
retomou o ritmo sem o impulso de Silhara, ansioso por beber e
pastar na relva exuberante que crescia à beira da água.
Silhara soltou um forte comando. O cavalo parou, batendo os cascos
com impaciência, enquanto esperava que eles desmontassem e lhe
dessem as provisões. Silhara passou as rédeas pelo pescoço do
animal e lhe deu uma bofetada no traseiro. — Vá, rapaz — disse ele.
— Aproveite isso enquanto você pode. Não ficaremos muito tempo.
Martise encontrou um lugar confortável sob a ampla sombra de uma
jovem ameixeira e começou a esvaziar as embalagens. Concentrada
em desembrulhar e ajustar a comida que Gurn tinha embalado para
a viagem, não observou as ações de Silhara até o que som de espirros
seguido por uma série de palavrões atingiu seus ouvidos. A visão que
a cumprimentou tirou sua respiração.
Ele seguira Gnat até o rio. Agachado nas margens, tinha tirado a
camisa e jogado água em seus ombros e braços. Filetes de agua
traçavam caminhos cintilantes sobre a pele escurecida de um
castanho liso dos dias passados trabalhando sob o sol do sul. Seu
cabelo estava encostado em suas costas e curvado ao longo de suas
costelas. Alguns fios molhados caíram para a frente para enroscar
ao redor de seus braços. Ele era um homem magro, de cintura fina e
músculos longos e viscosos, mas havia força abundante naquela
estrutura alta e rígida. Ela o observou levantar pesadas caixas de
laranjas na carroça de Gurn com facilidade. Ele lançou feitiços que
levariam um mago menor a seus joelhos e poderia superar tanto ela
quanto seu servo durante um dia de trabalho.
Engoliu em seco, a boca seca como poeira, enquanto ele colocava
água em suas mãos e derramava sobre sua cabeça. Arrepios
abalaram seu corpo, mas ele o fez duas vezes mais antes de limpar o
rosto com a camisa descartada. Ele era bonito – um estudo de graça
e de poder mal contido.
Quando se levantou, ela fingiu vasculhar as embalagens vazias.
— O que Gurn embalou? E o mais importante, há vinho?
Tinha composto suas feições em uma expressão suave quando ela o
encarou, esperando que não percebesse o efeito de vê-lo polido com
água e sol tinha em seus sentidos. Seus esforços foram quase
desperdiçados. Ele ficou sem camisa e sentou perto o suficiente para
que notasse cada flexão dos músculos duros em seus ombros e peito.
Manchas sombreadas, dançavam em seu rosto e braços, marcando
os planos de seus fortes características. Seu cabelo pendia pelas
costas, molhado e liso como a pele de uma foca.
— Martise? Você está olhando.
Ele olhou primeiro para ela e depois para o odre de vinho esmagado
em sua mão. Mortificada por ele ter notado seu encantamento,
empurrou o vinho para ele e procurou freneticamente por algo a
dizer.
Sua cicatriz. Estava muito ocupada o olhando para dar ao risco
branco de pele enrugada que circulava sua garganta mais do que um
olhar superficial. Mas agora, com seu olhar inquisitivo a prendendo
no lugar, encontrou uma desculpa pronta, embora parecesse rude.
Ela tocou sua própria garganta. — O que te deixou essa cicatriz?
Ele tomou um gole de vinho, então colocou os braços sobre os
joelhos esticados. O odre de vinho pendia de seus dedos. — Estou
impressionado. Você demorou semanas antes de sua curiosidade ter
o melhor de você.
Isso não era verdade. Ela estava curiosa, mas era muito melhor que
acreditasse que estava sendo intrometida do que admitir que tinha
sido incapaz de arrancar o olhar longe da visão dele se banhando no
córrego. E não estava ficando mais fácil com ele sentado ali de peito
nu. Se afastou dele para classificar os pacotes envoltos em toalha que
Gurn tinha preparado. Sua refeição foi simples. Pão, ovos cozidos,
azeitonas e as laranjas sempre presente. Seu lábio superior se
curvou quando um laranja rolou em sua direção.
— Eu tinha onze anos quando consegui isso. — Ele passou o dedo
sobre a cicatriz franzida. — A punição para o crime de roubo.
Martise engasgou. — Você era apenas uma criança!
— Eu também era um ladrão e um bom. Na maioria dos dias. Mas a
fome te enfraquece, te retarda. Eu não fui rápido o suficiente
naquele dia e eles me pegaram.
Ele lhe entregou o vinho e pegou um ovo. Martise observava, seu
coração doendo em seu peito enquanto as linhas se aprofundavam
ao redor de sua boca em uma careta.
— O que você roubou? — Certamente algo valioso. A bolsa de um
rico, o espelho de joias de uma vaidosa mulher, um comprimento de
seda inestimável da barraca de um comerciante gordo.
— Uma laranja.
O odre de vinho caiu de seus dedos nervosos. Uma faixa de vinho
derramou, pingando como sangue sobre a relva. Silhara arrebatou a
odre e o enrolou antes de mais derramamento. — Veja o que está
fazendo, garota. Isso não veio fácil ou barato.
Seu castigo não possuía sua acostumada rigidez. Horrorizada com
suas palavras, ficou espantada. — Alguém quase o estrangulou
somente por uma laranja? — Ela se sentiu doente. Tal retribuição
implacável, para uma criança faminta que desejava apenas o que
comer. Suas próprias circunstâncias de infância empalideciam em
comparação. Fora vendida, mas para um mestre que a tinha tratado
de forma justa o suficiente. Como escrava, sentira a navalha cortante
do desprezo, mas nunca fome. Seu estômago se revirou.
Silhara rasgou um pedaço de pão, do que ela abriu e deu uma
mordida. Seu olhar nunca deixou seu rosto enquanto ele mastigava.
Lavou a comida da boca com outro gole de vinho antes de falar. —
Guarde sua piedade para uma vítima mais merecedora. Eu sobrevivi
porque meu dom é muito mais amável do que o seu. Se manifestou
enquanto meu verdugo me estrangulava, eu me irritei diante de uma
multidão de marujos apostadores, prostitutas e um ou dois
sacerdotes do Conclave. — Ele disse o último com um desdém
fúnebre.
— O que aconteceu?
Ele deu de ombros. — Eu não me lembro muito, exceto de estar
lutando para respirar. De repente, senti como se alguém tivesse
colocado uma tocha em meu sangue. Só que eu era a tocha. Eu não
lembro de nada depois, só que eu acordei na casa de um sacerdote
do Conclave. Parece que meu Dom criou uma coluna de fogo santo.
Eu saí vivo e ileso a não ser por este lindo colar que eu uso e uma voz
que ainda pode cantar melhor do que a sua. Mas o meu carrasco foi
morto e parte do cais queimado.
A mandíbula de Martise cedeu. — Pelas asas de Bursin, não é de
admirar que o Conclave teme você. Apenas um dom alimentado por
anos de ensino e prática é tão poderoso.
— É por isso que você está aqui?
Ela piscou. — O quê?
Os lábios de Silhara se curvaram de novo, só que desta vez o
desprezo não estava direcionado para as ofensivas laranjas. — É por
isso que você está aqui? — Ele repetiu. —Em Neith? Porque o
Conclave me teme? — A brisa pegou mechas secas de seu cabelo,
soprando ao redor de seu rosto. Alguns fios voaram em sua direção,
acariciando sua bochecha.
Ela enrijeceu e se ocupou com a casca rachada de um dos ovos.
Encontrou seu olhar, recusando a vacilar diante do olhar penetrante
que exigia que revelasse todos os seus segredos. — Estou aqui
porque você pediu um aprendiz, mestre.
Ele bufou. — Ah sim. E o Conclave, sempre prestativo, me enviou
um aprendiz falho.
Ela se irritou com sua zombaria. Se não fosse por ela, ele ainda
estaria fechado em sua biblioteca, procurando uma solução através
de pilhas de tomos incompreensíveis, em uma tentativa inútil para
encontrar seu precioso ritual. Mordeu o ovo com tanta força que
seus dentes clicaram.
Diversão irônica suavizou seu olhar zombeteiro. Seus lábios se
contraíram. — Diga, Martise. Não tenho vontade de cuidar das
minhas costas pelo resto desta viagem, porque você está com raiva
o suficiente para plantar uma faca entre os meus ombros.
Já não se importando se ele a achava insolente, Martise arrancou o
odre de vinho de sua mão, o abriu e bebeu. Doce e potente, o vinho
lhe deu coragem adicional para liberar sua frustração. — Você pediu
um aprendiz, alguém que pudesse realizar encantamentos menores
e traduzir línguas antigas. — Ela apontou para ele o ovo meio
comido. — Os encantamentos estão além das minhas habilidades,
mas não das suas. Você realmente não precisa de mim para isso. Mas
ler textos antigo? Eu sou melhor do que a maioria dos sumos
sacerdotes em traduzir. E isso não é me vangloriar. — Ela franziu o
cenho, o desafiando a zombar dela mais uma vez.
— Você não se vangloria — repetiu. Um brilho de medição entrou
em seus olhos negros. — Então prove isso. Me ajude a encontrar
aquelas páginas. As traduza e me dê os meios para destruir a
Corruption.
— Por que você acha que eu estou aqui, Mestre? — Ela contemplou
como ele reagiria se jogasse seu ovo nele.
Ele arqueou uma sobrancelha. — Não me insulte. Seja qual for a
motivação que fez você entrar de bom grado no covil de um comedor
de almas, tem pouco a ver com a necessidade de provar o seu talento
– especialmente para mim.
Ele fez um gesto para que ela passasse a odre de vinho. — Termine
o seu almoço. Já descansamos o suficiente.
Ela não protestou, dividida entre o alívio de que ele não tinha
aprofundado suas razões para estar em Neith e decepcionada com a
perda da breve camaradagem que floresceu entre eles. Permaneceu
indecisa se era alívio ou desapontamento que sentia quando ele
encolheu os ombros em sua camisa.
Tiveram pouco trabalho em limpar a refeição e reembolsar seus
suprimentos. Martise enxaguou as mãos no riacho e lavou seu rosto.
O choque da água gelada baniu a letargia que a tentava a se esticar
na grama fresca e cochilar o dia inteiro. Quando voltou para o seu
lugar de almoço, Silhara já tinha amarrado os pacotes e os prendido
na sela.
Ele saltou para as costas de Gnat e novamente ofereceu seu braço.
— Sem muito entusiasmo dessa vez, Martise. Eu não quero
aterrissar com a minha bunda no chão.
Sua segunda tentativa de montar Gnat foi muito mais bem-sucedida
do que a primeira, partiram para Iwehvenn em um trote constante.
Enquanto viajavam, Silhara a mantinha ocupada apontando para
várias fazendas e dizendo a quem pertenciam. Ele conhecia bem a
área envolta – sua agricultura e padrões climáticos, os melhores
campos de caça e os rios mais traiçoeiros, que cultivavam as laranjas
mais deliciosas – nenhuma tão doce quanto a dele – e as azeitonas
mais ricas. Ele era especialmente bem versado nas atividades e
tendências dos proprietários de terras. Para um homem que evitava
ativamente os visitantes e praticamente vivia a vida de um eremita,
ele sabia muito sobre seus vizinhos.
Ela ouviu, aproveitando a conversa e o áspero timbre de sua voz.
Quase esquecendo de seu destino até que chegaram a uma pequena
subida e examinaram o vale abaixo deles.
Silhara apontou para uma estrutura graciosa no meio do vale. —
Iwehvenn Keep.
Apanhada nos raios vermelhos do sol da tarde, Iwehvenn brilhava
como uma joia sobre um travesseiro de veludo verde. A torre, uma
estrutura modesta, com torres altas e delicadas e arcos curvos
esculpidos em rochas peroladas, brilhavam em um arco-íris de
cores. As árvores, pesadas com todo o tipo de frutas, estavam
alinhadas em um caminho do jardim. As flores floresciam em um
aglomerado luxuriante de matizes vibrantes regadas por fontes de
cascata. A grama no vale crescia verde e cheia, intocada pela seca
que assolava a terra atrás dela.
Ela ficou boquiaberta diante da cena, seus dedos cavando os lados
de Silhara. — Tão bonito! Não pode ser real.
— Não é, mas aqueles que não são dotados veem isso desta maneira.
Tal é o poder da armadilha. Olhe mais de perto.
Enquanto ele guiava Gnat pela encosta, ela fechou os olhos e depois
abriu. A joia e os jardins mantiveram sua visão como uma miragem
no calor do meio-dia. Pitoresca e sedutora à primeira vista, a ilusão
se desintegrou, revelando uma paisagem preta e retorcida. Como
Neith, Iwehvenn era uma ruína. Ao contrário da casa de Silhara, ela
cheirava a morte. As árvores frutíferas e as flores, exuberantes sob o
poder da ilusão, não eram nada mais do que montes de membros
deformados e podres e algumas ervas daninhas. Marcas de
queimaduras irregulares marcavam a face norte da fortaleza, como
se tivesse sido atingida repetidamente por relâmpagos e tivesse
queimado. O telhado desabou em uma seção. O que permanecia
estava agarrado como pele antiga ao esqueleto de vigas tortas.
Pedaços de grama desapareciam na terra rachada e em rochas
partidas.
Mais do que sua aparência, o silêncio opressivo do vale fazia sua pele
arrepiar. Mesmo atingida pela seca e branqueada pelo sol, Neith
cantava em um coro de vida. O zumbido dos insetos, os grasnidos
incessantes dos onipresentes corvos, os balidos e os roncos dos
cavalos da fazenda – todas essas coisas tornavam Neith vibrante.
Até a madeira, coberta pela magia da maldição, tinha sua própria
maneira de viver. Isso era diferente. Iwehvenn, estava desprovida de
vida, sentava-se como uma pústula doente que drenava a terra ao
redor, até que só restava céu plano e um mal que nunca dormia.
— Calma, aprendiz. Estive aqui antes e sai intacto. Vamos fazer o
mesmo desta vez.
Ele manteve uma mão apertada sobre as rédeas de Gnat que repente
estava nervoso. Martise tirou os dedos das costelas de Silhara e
respirou fundo. Não queria sofrer alguma morte horrível nas mãos
de um comedor de almas. Era melhor que essas páginas que ele
arriscava as próprias almas para conseguir valessem a pena o perigo.
Eles cavalgaram Gnat mais devagar pela encosta até suas orelhas
pousarem contra a cabeça e ele se recusar a dar mais um passo.
— Nós caminharemos daqui. — Silhara ficou imóvel enquanto
Martise escorregava das costas de Gnat então a seguiu. — Eu não
vou forçar um animal em Iwehvenn. Gnat ficará por perto.
Ele desamarrou e carregou sua besta, amarrou a aljava de flechas
em suas costas e deslizou duas facas longas embainhadas em seu
cinto. Martise esfregou suas palmas úmidas em suas calças.
Nenhuma caça ao tesouro havia sido tão mortal. Olhou para Silhara
de pé diante dela, cheio de armas. Apesar de suas palavras
confiantes, ele não estava se arriscando. A magia forte era a sua
maior proteção, mas uma faca afiada ou duas nunca era demais.
Ele ergueu a besta. — Estes são inúteis contra um Lich, mas os
bandidos que ele atrai para a sua teia estão vivos o suficiente.
Podemos muito bem ter mais de um adversário em Iwehvenn.
— Como se um não bastasse. — Sua voz soou estridente para seus
ouvidos.
Seu sorriso destemido lhe deu coragem. — Considere isto um
desafio. — Ele tocou uma das facas. — Você sabe como usar uma
dessas?
Ela balançou a cabeça, desesperadamente desejando que ela o
fizesse. — Somente para abater gado. Não para lutar.
Ele encolheu os ombros. — Eles são muitas vezes a mesma coisa.
Ainda assim, você seria mais um perigo para mim e para você
mesma se eu lhe desse uma dessas. — Ela o observou enquanto ele
se inclinava e tirava uma pequena adaga escondida em sua bota. —
Aqui. Encontre um lugar para guardá-la. Você está melhor armada
com alguma coisa. — Ele inclinou a cabeça, e seu sorriso se alargou.
— Se tudo mais falhar, você sempre pode cantar.
Em qualquer outro momento, Martise poderia rir de sua piada, mas
ela apenas lhe ofereceu um sorriso fraco. Pegou a faca e o saco de
colheita vazio que ele lhe deu. — Eu pensei que nós só viemos pelos
papéis?
Ele enrolou as rédeas sobre o pescoço de Gnat e mandou o cavalo de
volta ao morro para esperar. — E nós viemos. Reze para que os
deuses escutem, que esses papéis ainda estejam na biblioteca do
Lich e não usados por algum ladrão agora morto para limpar seu
traseiro. — Ele fez um gesto para que ela o segue até o vale. — Pode
haver outros livros, tomos que você possa rapidamente traduzir que
sejam úteis. Será mais fácil para você levá-los na sacola.
Quando chegaram às ruínas dos jardins, Silhara a deteve. — Me dê
sua mão. — Ele suspirou de impaciência diante de sua hesitação. —
Eu preciso te tocar para que esse feitiço de ocultação funcione.
Ela colocou a mão na sua e engasgou. As vibrações de poder em seus
dedos subiram pelo seu braço e centraram-se em seu peito. Martise
quase puxou a mão livre. Um aperto em suas costelas a fez agarrar
seu lado. Algo despertou, uma consciência dentro dela, mas
totalmente independente de seu controle. A sensação surgiu através
de seu corpo, procurando e agarrando o feitiço que a ligava a Silhara.
Antes que pudesse questionar sua presença, o sentimento tremulou,
como se alguém tivesse batido e trancado uma porta.
Um brilho especulativo iluminou os olhos escuros do mago. — Bem,
bem. Que segredo você quase revelou agora? — Seus dedos
seguraram os dela, quentes e aprisionadores.
— Eu não sei. — Ela esfregou o lugar acima de seu peito com sua mão
livre. — Eu nunca senti algo assim. — Uma esperança quase morta
subiu dentro dela. — Poderia ser o meu Dom? — Ela apertou os
dedos, sua ansiedade ao entrar na fortaleza do Lich substituída por
uma excitação crescente.
Ele encolheu os ombros. — Possivelmente. E não poderia ter
escolhido um momento pior para se mostrar. — Soltou sua mão,
deixando para trás uma sensação de formigamento no braço e um
halo de luz dourada na ponta dos dedos. — Mantenha seu foco
nesses papéis. Há tempo suficiente para descobrir o que
cumprimentou meu feitiço quando chegarmos a Neith.
Eles seguiram um caminho sinuoso através dos jardins, evitando
espinhosas videiras negras que sujavam as passarelas. As narinas de
Martise se contraíram. O cheiro de uma antiga morte permanecia no
ar. Não o cheiro de um cadáver decadente, mas o cheiro seco e
sufocante de um sepulcro violado e apenas a poeira dos mortos para
cumprimentar o intruso. Estremeceu quando passaram por um
homem reclinado contra uma fonte quebrada. Consumido em nada
mais do que um espantalho de ossos quebradiços vestidos com
farrapos de lã, o esqueleto olhava para eles com suas órbitas vazias.
A mandíbula pendia aberta, as mãos agarradas a um crânio, como
se ainda estivesse prestes a gritar.
Silhara agarrou seu braço. Seu sussurro fluiu quente contra seu
ouvido. — Prepare-se, Martise. Há mais como ele espalhados por
Iwehvenn.
Ela o acompanhou depois disso, pisando em seus calcanhares
algumas vezes, até que a advertiu com uma carranca ameaçadora.
Sua mandíbula doía por apertar os dentes para não conversarem.
Envolvida por um feitiço protetor e acompanhada por um poderoso
e fortemente armado mago, Martise ainda tinha de esmagar o desejo
urgente de fugir. Gnat, que estava em segurança pastando na
encosta, tinha mais sentido do que eles.
Escuridão derramava como sangue, lá fora, na entrada da fortaleza.
As grandes portas, ainda carregavam restos de uma beleza esculpida
sob sua superfície destruída, pendiam tortas das dobradiças. Silhara
soprou seus dedos. Três pontos de fogo mágico verde surgiram de
suas mãos e flutuaram no ar diante deles. Eles expandiram e se
fundiram, criando uma tocha vaporosa.
Ele parou na porta. — Suspeito que não precise te dizer para ficar
por perto. — Não olhou para ela enquanto falava, mas a diversão em
sua voz a lembrou que ela estava praticamente o abraçando. O rosto
de Martise aqueceu e ela recuou. — Se nos separarmos, talvez eu
nunca a encontre e talvez você nunca encontre o caminho de volta...
os salões e câmaras deste lugar levam a mais do que apenas outras
salas.
Apesar do calor de verão, arrepios subiram pelo seu braço. Eles
entraram no interior da torre, guiados pela tocha flutuante de
Silhara e pela lembrança de sua primeira incursão em Iwehvenn.
Martise desejava silenciar o toque e o cheiro rançoso da magia mais
negra que escorria sobre sua pele. A luz mágica não bania a
escuridão tão longe, só a mantinha a baía. Esta parte da torre ainda
tinha o seu teto intacto e viu pouco além da luminescência verde
pairando diante deles. À medida que avançavam, avistara um piso
rico em azulejos coberto de poeira e cheio de uma enigmática
variedade de itens – odres de água, cobertores enrolados, tochas
gastas, armas de todo tipo. Suprimentos abandonado por viajantes
há muito desaparecidos.
Passaram por um trio daqueles viajantes perto da escada. Como o
desafortunado lá fora, os três se espalhavam pelo chão em um
emaranhado de ossos e roupas deterioradas. Pareciam brinquedos
quebrados descartados por uma criança perversa. Protegidos dos
elementos, seus corpos ainda traziam sugestões de carne
mumificada que se estendiam sobre os crânios rodeados por cabelos
emaranhados. A sombra de um grito agonizante estava carimbada
em cada face murcha.
Do lado de fora, o castelo tinha um tamanho modesto, mas como os
jardins e o pequeno vale, tudo era uma ilusão. Dentro, se expandia
em um labirinto infinito. Perdeu a conta do número de corredores
que eles andaram ou as escadas que subiram. Passaram por espaços
que se afogavam na sombra ou eram banhados pela luz vermelha de
um sol poente. Silhara nunca parou para verificar o caminho.
Parecia tão familiarizado com o labirinto de Iwehvenn quanto com
o de Neith. Martise estava prestes a lhe perguntar quanto ainda
tinham que andar quando ele parou em uma porta parcialmente
aberta.
Quase bateu em suas costas. Em algum ponto em suas andanças,
agarrara a parte de traz da sua camisa para não o perder. Ele puxou
até que soltou o aperto de morte que tinha em sua roupa.
— A biblioteca, — ele sussurrou. — Se a nossa sorte se manter, os
papéis estarão lá e poderemos sair antes do anoitecer.
Quase o empurrou de lado. Passar por essa cripta amaldiçoada
durante a luz do dia já era bastante ruim. Não tinha a intenção de
estar em qualquer lugar perto do castelo uma vez que o sol se
pusesse.
Silhara arqueou uma sobrancelha. — Minhas desculpas, aprendiz.
Eu estou no seu caminho. — Se curvou em falsas desculpas e
gesticulou para ela precedê-lo na biblioteca.
Ansiosa por encontrar os papéis e escapar de Iwehvenn, Martise
pisou cautelosamente sobre a entrada. A tocha de fogo mágico
pairando ao lado dela lançou uma névoa esmeralda em uma câmara
de opulência coberta de poeira. Respirou fundo, maravilhada com a
visão das estantes cheias de livros que certamente guardavam
milhares de anos de conhecimento.
— Não fique aí parada de boca aberta, mulher. A menos que você
tenha a intenção de passar a noite aqui?
A suave admoestação de Silhara acabou com o feitiço, começou a
procurar no quarto. A biblioteca era um caos, com móveis virados e
pergaminhos derramados pelo chão. Os pergaminhos estavam
espalhados em padrões aleatórios, dobrados nos cantos, presos
entre cadeiras e mesas. Certamente alguém além de Silhara esteve
aqui. Não achava que ele seria tão descuidado com tais trabalhos.
Martise olhou para ele, intrigada. Ele encolheu os ombros.
— Eu sou diferente de muitos dos ladrões que saquearam este lugar.
Primeiro, eu vivi a experiência, e segundo, eu sei que a riqueza nem
sempre é medida por moedas. Aqueles que costumam admirar
Iwehvenn só estão interessados nos livros como fonte de
combustível para suas fogueiras. Não era isso que eu queria.
Ele colocou a besta contra uma mesa de fácil acesso, se agachou ao
lado dela para percorrer os papéis. — Apenas reúna todos eles.
Tenho certeza de que os deixei aqui, e pelo jeito que esse quarto
parece, quem quer que seja que veio depois de mim, não estava
interessado em um bom livro.
Martise empilhou os pergaminhos juntos, suas mãos nuas
queimando com a mancha da magia do Lich. Assim que voltassem
ao córrego das ameixeiras, ia tomar um banho e queimar as vestes
que vestia. As instruções de Silhara de que ela trouxesse roupas
extras faziam sentido agora.
Sua mochila estava quase cheia e pesava em seu ombro. Silhara
levantou e a ajudou a se levantar. — A luz já enfraquece lá fora.
Precisamos ir embora.
Estava a ponto de dizer que ele não teria nenhuma reclamação da
parte dela quando um medo gelado de repente fluiu sobre sua pele,
imobilizando-a. A biblioteca nadou diante de seus olhos, suas
paredes deformadas e divididas com fissuras. Algo esperava lá fora.
Algo malévolo. Voraz. Martise agarrou o braço de Silhara. Suas
feições austeras, banhadas pela luz verde, estavam tensas. — Algo
está vindo, — ela sussurrou.
Suas narinas alargaram e sua boca sensual se achatou contra os
dentes descobertos. — Estamos sendo caçados. — Ele ergueu a besta,
agarrou seu pulso e correu para a porta.
O terror lhe deu asas nos pés, facilmente acompanhando seus longos
passos. Cambalearam até parar no patamar. Na extremidade mais
distante do enclaustro negro surgiu uma névoa fantasma que correu
em direção a eles, agitando em um branco com manchas de sangue
enquanto subia as escadas.
Silhara amaldiçoou e inverteu a direção, puxando o braço de Martise
enquanto corria pelo patamar até a outra escada. Deslizou para uma
parada quando um degrau de repente se desintegrou, enviando uma
cascata de placas apodrecidas que caíram para o primeiro andar.
Martise, carregando a bolsa logo atrás dele, girou lateralmente no
último momento em uma tentativa falha para impedir de bater nele.
Ela perdeu o equilíbrio. Uma rajada de dor irradiou ao longo de seu
quadril quando ela atingiu o chão.
— Não! — Silhara berrou, batendo no chão com ela. Seu impulso a
catapultou pela borda irregular da varanda, seu grito ecoou no
cavernoso escuro logo abaixo. Sua faca e a besta de Silhara caíram,
o arco se insinuando para fora de seu ombro antes de bater no chão
com um ruído.
A dor em seu quadril era uma pontada em comparação com a agonia
estourando em seus ombros e costas. Ela balançou no ar, presa
apenas pelo punho de ferro de Silhara em seu braço. Ele sentou no
chão, um pé apoiado contra uma pilastra quebrada para puxá-la
para fora do buraco.
— Você não parecia pesar tanto, — ele grunhiu com os dentes
cerrados.
Martise mal o ouviu. A escuridão abaixo bocejava como uma boca
aberta, pronta para engoli-la. A nuvem fantasmagórica parou no
patamar, agitando e virando sobre si mesma. Acelerou como se
sentisse o desamparo de sua presa. Podia sentir sua fome, um desejo
pela própria essência da vida. Sua vida e de Silhara.
Seu pulso e antebraço queimavam, desgastados pela palma áspera
de Silhara enquanto deslizava lentamente de seu aperto. — Me solte
— sussurrou ela. — Você me prometeu uma morte limpa. —
Quebrar-se nas pedras logo abaixo era melhor do que o comedor de
almas planejava.
Ele apertou ainda mais, forte o suficiente para entorpecer seus
dedos. — Não seja cansativa, — ele rosnou. — Você está segurando
os papéis e o conhecimento para traduzi-los.
Se ela não estivesse pendurada no ar e enfrentando a morte
iminente por uma longa queda ou o apetite voraz de um Lich,
poderia ter rido. Seu salvador era rápido para lhe contar suas
próprias motivações para salvá-la e tinham pouco a ver com a
nobreza.
O Lich se aproximou, levando consigo o cheiro fétido do mal. Por
trás de sua forma vaporosa, as paredes e o patamar se deformaram
e derreteram. Silhara amaldiçoou e recitou um feitiço familiar, um
que Martise esperava que nunca usaria sobre ela novamente. O
encantamento a lançou para cima, com força suficiente para que seu
estômago caísse em seus pés. Ela balançou no ar. Ele imediatamente
invocou um feitiço de descida, ela caiu em direção a ele em um
tumulto de túnica, mochila e cabelo. Ele a pegou cuidadosamente e
rapidamente a soltou.
As mãos dele deslizaram por seus lados — A bolsa. Você tem a bolsa.
— Alívio enrouqueceu sua voz já rouca.
Quem se importa com este saco de papéis? Ela queria gritar com ele.
Eles não iriam fazer isso se não fugissem de Iwehvenn. O comedor
de alma estava quase sobre eles, os envolvendo em uma névoa de ar
frio e pútrido. Gritou quando Silhara a puxou para perto, seu braço
uma faixa apertada em torno de sua cintura.
— Segure-se e não lute contra mim.
Ele não lhe deu tempo para perguntar. A agonia rasgou seu corpo e
sua visão enegreceu. Arqueou contra ele, seus dedos agarrando seus
braços enquanto ele quase quebrou suas costelas em um aperto
esmagador. Seus arredores desapareceram, ficando cinzentos e
nebulosos. Um grito enraivecido golpeou suas orelhas. Quando
recuperou seus sentidos, foi para se encontrar ainda apertada no
abraço sufocante de Silhara, mas em outra câmara.
— O que... — ela começou antes que ele a cortasse.
— Ainda não é seguro. O Lich está bem atrás de nós.
Alarmada por um tom peculiar em sua voz, Martise ergueu os olhos.
Ele estava pálido sob a pele de bronze, lábios quase brancos. Sangue
escorria em uma linha fina de sua narina esquerda até alcançar seu
lábio superior.
— Mais uma vez, — disse ele.
Desta vez ela estava mais preparada, embora a dor e o peso
esmagador do feitiço fossem tão torturantes. Surgiram em uma
antecâmara, cercada pela pele dos mortos. Mais sangue saiu do nariz
de Silhara, escorrendo pelo queixo. Ele tropeçou, segurando Martise
tanto por equilíbrio como para trazê-la com ele através da ligação do
feitiço.
— Pare com isso. — Ela passou a manga sob seu nariz em uma
tentativa de acalmar o fluxo carmesim. Seus esforços deixaram um
borrão em sua bochecha e uma mancha vermelha em sua camisa. —
Você está se matando. — Ela tinha lido sobre o feitiço que ele usou.
Chamavam-no de Half-Death, fazia parte da magia negra e era
proibido pelo Conclave. Complexo e muito útil em lugares apertados
como este, o feitiço era conhecido por matar os magos que o
utilizavam.
Seus olhos estavam fundos em seu pálido rosto. — Melhor morto do
que escravizado.
O comentário a atingiu com mais força do que se ele tivesse fechado
o punho e lhe dado um soco. Martise sabia que ele se referia ao Lich,
mas sua breve declaração a fez lembrar de todas as motivações,
todas as razões e todas as justificativas de porque estava aqui com
ele em primeiro lugar.
Ele tomou um longo suspiro que borbulhava com sangue. — Mais
uma vez. Posso fazer isso mais uma vez.
Martise duvidava, mas mesmo enfraquecido pelos seus
encantamentos, ele era muito mais forte do que ela. O máximo que
podia fazer era aguentar e segurá-lo quando caísse, depois da
terceira vez. Poucos magos haviam resistido a Half-Death várias
vezes e nenhum deles o tinha feito ainda em pé.
A terceira vez a fez gritar. Poderia muito bem ter caído do segundo
andar da torre, de tão aguda que era a dor. Eles surgiram no pátio
exterior, sob um céu crepuscular. Silhara desabou contra ela.
Recuperando-se do choque do feitiço, Martise cambaleou sob seu
peso, mas conseguiu desce-los a seus joelhos. O mago deslizou sem
vida em seus braços, inundado de sangue e mais gelado que um
cadáver de um dia.
Sua própria dor esquecida, ela o deitou suavemente no chão
empoeirado. Seus dedos traçaram um padrão fixo sobre sua boca
manchada e se afastaram molhados, então os pressionou contra seu
peito e a ruína escarlate de sua camisa. — Não se atreva a morrer
ainda, seu bastardo. — A voz dela tremia tanto quanto sua mão.
Somente o silêncio apavorante lhe respondeu.
As sombras balançavam e deslizavam pelo pátio enquanto o sol caía
abaixo das colinas que rodeavam o vale. O instinto guerreava com a
compaixão. Uma voz interior gritou para correr. Corra duro, corra
rápido. Gnat esperava na encosta e o sacrifício de Silhara conseguira
um pouco de tempo para escapar. Mais uma vez, Martise tocou seu
rosto, macilento e sem vida sobre o luar sobrenatural. Ele poderia
estar morto, mas não podia deixá-lo. Não aqui neste poço sombrio
onde o tempo e o vento reduziriam seu corpo a uma casca dessecada,
rejeitada pela própria terra em que estava.
Os seus músculos já doloridos pelo feitiço de Half-Death
queimavam em protesto quando ela se levantou e deslizou suas
mãos sob seus braços para levantá-lo. Ela o arrastou para além dos
jardins secos, mantendo um olhar cauteloso sobre a cova de Lich.
Silhara dissera que a criatura estava bem atrás deles, depois da
primeira vez que escaparam por causa do feitiço espectral. A
memória de sua fúria gritante quando escaparam a fez estremecer.
Rezava para que ainda estivesse escondido dentro da fortaleza,
procurando por sua presa esquiva.
Suas orações não foram respondidas. Com a intenção de obter
Silhara fora do pátio e para a relativa segurança da encosta, ela não
viu a neblina fantasmagórica do comedor de almas até ser tarde
demais. A criatura a acertou, atirando Martise através do caminho,
com mãos invisíveis. Ela bateu em uma das árvores mortas, forte o
suficiente para que manchas pretas dançassem diante de seus olhos.
A casca áspera rasgou sua túnica e raspou suas costas com uma
carícia serrilhada.
Ela balançou a cabeça e tentou ficar de pé, cambaleando enquanto o
pátio se inclinava e girava ao redor dela. A névoa a envolvendo se
transformou, modelando em uma forma humana grotesca e
aracnídea. Elos de fumaça gelada teceram para fora da sombra por
um inchado abdômen e se envolveram em torno dos tornozelos e
dos pulsos de Martise. Ela puxou suas amarras, agarrando as teias
que enrolavam em torno de seus braços e se seguravam firmemente.
As imagens das últimas vítimas caíram antes a fome de Lich
surgiram em sua mente. Martise entendeu por que seus rostos
deteriorados usavam tais expressões torturadas. Queria gritar
também, repetidamente até que o esforço aquecesse seu sangue
congelando e a lembrasse que ainda vivia e respirava e pudesse
segurar a sua essência da vida. Feixes de névoa arrastavam ao longo
de seus braços – finas como pernas de uma aranha enquanto
deslizavam para mais perto de sua presa. Seus gritos ficaram presos
em sua boca fechada, torceu a cabeça longe da linha que serpenteava
em direção a suas narinas. Seus esforços eram inúteis. O Lich a
invadiu, derramando em seu corpo e espírito com seu propósito
malévolo.
Ela gritou, um gemido fino perdido no miasma que permeando cada
poro. Uma sensação de drenagem enfraqueceu seus membros. Se
não estivesse presa na rede do Lich, teria caído. A frieza fluía através
de suas veias, substituindo o sangue quente enquanto o Lich se
alimentava dela. A batida de seu coração se acalmou, afogada por
um ar agudo que parecia vir de centenas de vozes. As sombras
cinzentas e vacilantes agitaram diante de sua visão, batendo os
punhos contra paredes invisíveis – lembranças e restos de homens
que tiveram suas almas sugadas, permanecendo para sempre em um
eterno desespero.
— Não assim, — ela pensou. Tudo o que arriscara ao vir aqui – uma
chance de liberdade, uma vida vivida sem obrigações, até mesmo
uma possível morte, mas uma morte limpa – se dispersou diante
dela, tudo perdido por causa de um parasita imortal.
A névoa ao seu redor se espessou, alimentada pela força de seu
espírito e pela ascensão de sua desolação. Martise pensou em
Cumbria, seus traços presunçosos enquanto segurava sua pedra
espiritual diante de seus olhos, a isca final para atraí-la a fazer sua
vontade. O Lich não teria tudo dela. O Alto Bispo do Conclave
possuía uma parte de seu espírito. Uma cadeia invisível e vinculante,
quebrada apenas pela sua morte ou pelo sacrifício do Mestre dos
Corvos.
Através da mortalha opaca que a envolveu, viu Silhara caído no chão
ressequido e ensanguentado por seu próprio feitiço. O Lich não o
tinha tocado e uma dor inexplicável se fundiu com a desesperança.
Ele estava morto, derrubado por suas tentativas de resgatá-los dessa
alimentação monstruosa a que ela estava sujeita. A raiva e a vontade
de permanecer livre o salvaram.
— Melhor morto do que escravizado.
Essas palavras ecoaram em seus pensamentos congelados, agindo
como um catalisador para livrá-la do estrangulamento do Lich. Não
queria morrer, mas esse horror era muito pior. Um fogo branco
queimou o frio entorpecente que a puxava para o poço sem fundo do
Lich. Ela não morreria. Assim não.
— ASSIM NÃO!
O protesto, gritado de uma garganta entupida com fumaça suja, não
era dela. Mais profundo, mais amplo, surgia de algum ponto
escondido de força, levando consigo a estranha força sensível que
havia despertado ao toque do feitiço de esconderijo de Silhara. Ela
gritou novamente, desta vez em triunfo quando o seu dom estourou
de cada poro. Fluiu em ondas de luz âmbar, cercando a névoa pálida.
Sentiu o choque do Lich, sua surpresa ao ser confrontado por essa
força desconhecida. Deixou de drená-la, deslizando para fora de seu
nariz e boca em sopros gelados de respiração.
Martise se encolheu diante do poder feroz que surgia dela. Sua fúria
alimentou seu frenesi, cavalgou a maré, instintivamente sentindo
que aquilo que chamara em um último grito de desespero, tinha sua
própria vontade. Ele atacou o comedor de almas, pegando a névoa
sinuosa em um aperto inflexível. As almas aprisionadas voavam
como traças dentro de uma gaiola, desmoronando quando seu dom
golpeou e bateu outra vez no Lich, o rasgando com toda a crueldade
de uma matilha de lobos atacando uma ovelha. A gaiola finalmente
quebrou, destruída sob a vingança incontrolável de sua magia. Os
espectros, presos durante séculos incontáveis, passaram voando por
ela e através dela. Ela ofegou enquanto o toque de cada um deixava
impressões e lembranças. Ladrões e viajantes perdidos, nômades
errantes, até prisioneiros trazidos a Iwehvenn para sofrer uma pena
implacável por seus crimes – todos deram breves lampejos de suas
identidades, vislumbres de vidas que terminaram horrivelmente
jovens.
Um último grito fino sinalizou a destruição final de Lich antes que a
névoa brilhasse sobre si mesma e explodisse numa chuva de poeira
que cascateou sobre seus cabelos e ombros. Já não mais meio cega
por sua posse, Martise tinha uma visão clara do pátio. Ela sacudiu a
poeira, tremendo de repulsa. Dentro dela, seu dom recém-desperto
pulsava. Aturdida pelo poder agressivo que tinha exercido, caiu de
joelhos e levantou a mão cautelosamente, olhando para ela como se
fosse um novo apêndice. A luz âmbar que a envolvia desvaneceu.
Estava com medo de que seu dom desaparecesse de novo e com
medo de que pudesse virar contra ela. Muitos magos não treinados
haviam morrido devido à potência descontrolada de seu talento.
Os sons fracos alcançaram seus ouvidos, gemidos mais do que
palavras. Martise lutou para ficar de pé e coxeou para o corpo inerte
de Silhara. Ajoelhou ao seu lado, gemendo por causa da dor em seus
ossos. A respiração mais fraca acariciou seu rosto quando se
inclinou. Alegria correu através dela, seguido por terror quando ele
não respirou novamente.
Trilhas de sangue escorregavam de seu nariz para seus ouvidos.
Martise afastou uma mecha de cabelo encharcado de seu rosto. —
Mestre, — disse suavemente. — Fique comigo. — Se inclinou mais
perto, seu nariz bateu no dele. Sua consciência se encolheu e afiou,
centrada em sua boca entreaberta, a frágil elevação e queda de seu
peito contra seus seios. Seu dom se agitou, pulsando com seu
batimento cardíaco. Seus lábios eram suaves, saboreando sal e ferro.
— Fique, — ela sussurrou em sua boca e fechou os olhos.
Ao contrário do rio turbulento que se precipitou e engoliu o Lich em
sua ira, seu dom fluía agora em um córrego preguiçoso, a
conectando com Silhara no escovar de um beijo e a impressão de
suas mãos em sua pele fresca. Um fraco batimento cardíaco soou em
seus ouvidos, cada vez mais forte e forte enquanto ela o segurava.
Seus sentidos estavam inundados – sangue e calor, ódio e solidão e,
acima de tudo, um Dom mais poderoso que o dela, preso por uma
vontade implacável. Entrou dentro dele, respirando com ele,
agarrando seu forte espírito que estava parado à beira de um abismo
e o abraçou.
— Fique comigo, — ela repetiu, seu apelo ecoando nos lugares
sagrados da sua alma.
Um apressado caleidoscópio de luz cinza girou em torno dela, a
trazendo de volta para a realidade da sujeira, músculos torturados e
o cheiro de sangue. Abriu os olhos e imediatamente procurou
Silhara. Suas feições já não estavam tão pálidas ou contraídas, seu
peito se elevava em respirações lentas. Sentindo como se um
rebanho de cavalos galopantes trovejasse através de seu crânio,
Martise estremeceu. Uma cócega abaixo do nariz fez com que ela
olhasse para baixo. O sangue escorria, espirrando sobre Silhara. Seu
sangue dessa vez. Enxugou o nariz na manga empoeirada e limpou
o melhor que pôde.
Ele abriu os olhos, duas piscinas de obsidiana que apanhavam a luz
das estrelas e a afogavam em suas profundezas. — O que você é?
Indiferente ao fato que eles estavam suspensos em um vale
amaldiçoado ou que ele provavelmente a esfolaria viva por suas
ações, Martise o abraçou e riu em alegre alívio.
Capítulo
Onze
Seu cheiro estava diferente. De pé ao lado dela, carregando caixotes
de laranja sobre a carroça frágil, Silhara sentiu o cheiro de Martise
na brisa seca que circundava o bosque. O aroma de óleo cítrico
misturado com sabão e o fraco almíscar de uma fêmea quente
provocava suas narinas. Um calor lentamente foi se centrando em
sua virilha. Passou meses desde que ele trouxe uma mulher para
baixo dele e tomou seu prazer. Nenhuma pessoa com quem já
dormira cheirava tão tentadora como a pequena mulher que
trabalhava ao seu lado. O cheiro de feitiçaria, afiado e limpo, como
o ar antes de uma tempestade que se agarrou a seus cabelos e pele.
Todos os dotados tinham um cheiro, quando sua primogenitura se
manifestou pela primeira vez. Ele se inclinou para ela e fungou
audivelmente. Ela parou, as mãos pairando sobre as laranjas na
caixa mais próxima a ela, olhou para ele com desconfiança. Um fio
de suor escorreu pela mandíbula do cabelo emplastado até a
têmpora. O sabor imaginário do sal fazia cócegas em sua língua.
— Você cheira como um recém dotado agora.
Ela se endireitou abruptamente. Se afastou um pouco antes que o
topo de sua cabeça lhe acertasse o queixo. Seus olhos tom de cobre
brilhavam ao sol, uma esperança desconfiada tremulando em suas
profundezas. Ela levou as palmas das mãos ao nariz e respirou. —
Você tem certeza? Eu só sinto cheiro de laranjas. — Os cantos de sua
boca se voltaram para baixo. — E Cael.
— Tenho certeza. O cheiro é inconfundível. Eu senti isso por meses
depois que meu Dom se manifestou.
Nem desagradável nem opressivo, era uma marca de assinatura que
uma vez tinha alertado cada sacerdote de seu paradeiro no reduto e
fez os rastreadores de magos do Conclave ficarem furiosos em suas
patas, toda vez que ele passava. O perfume de Martise não era tão
forte, mas Cael se aferrava a ela com mais tenacidade do que o líquen
desde seu retorno de Iwehvenn, seus olhos brilhando carmesim no
momento em que ela entrou na mesma sala que ele. Mesmo agora,
ele estava deitado junto à carroça, com a língua caída enquanto
ofegava no calor da tarde.
— Eu sinto um bom perfume agora. Já não sinto mais o Dom como
senti no líquen.
Silhara não era tão pessimista. Seu poder podia optar por se
esconder atrás da sombra de sua alma ou dormir para recuperar sua
força, mas não a abandonara. Os efeitos do toque de seu Dom
permaneceram com ele, juntamente com a essência da mulher. Um
calor como a seda e a água o banhavam por dentro, lhe davam força
e reabastecia seu Dom. Quase morrera em Iwehvenn, salvo apenas
pela misericórdia de seu aprendiz e por seu talento não testado.
Ele se inclinou para levantar outra caixa cheia na carroça, apenas
para ter Gurn quase a arrancando de suas mãos. Silhara grunhiu
para seu criado, mantendo um forte aperto nas mãos quando Gurn
puxou. — Você se importa? — Ele arrancou o caixote e o colocou na
cama da carroça. Laranjas caíram de caixas e rolaram através das
tábuas batidas. Martise estendeu uma mão solícita em direção a ele,
mas a agarrou de volta ao seu olhar de advertência. — Pare. Eu não
sou um maldito inválido!
Invocar a quase morte tinha sido um ato de desespero, o caminho
mais rápido e seguro para escapar das garras do Lich. Tal magia
poderosa cobrou seu pedágio.
Eles conseguiram encontrar o seu caminho de volta para Neith onde
ele entrou em colapso em sua porta, febril e delirante. Dois dias
marcados por espasmos musculares dolorosos e vômitos com
sangue em uma bacia o manteve acamado. Só agora, depois de uma
semana cheia, se sentiu forte o suficiente para retomar seu trabalho
no bosque e se preparar para a viagem adiada para o mercado.
Infelizmente, seu servo ainda não tinha abandonado seu papel como
babá.
Ignorou os movimentos curtos e precisos das mãos de Gurn. — O
bunda de cavalo – não precisava de muita tradução. A risada
sufocada de Martise desapareceu quando Silhara sorriu finamente.
— Venha comigo. Temos uma lição a ser conduzida.
Ele não esperou para ver se ela o seguiu, mas deu instruções para
Gurn enquanto voltava para a mansão. — Como ainda sou muito
frágil para trabalhar, você pode terminar de carregar a carroça.
Minha aprendiz e eu temos alguns assuntos inacabados. — Cael
levantou para os seguir e parou quando Silhara apontou um dedo
para ele. — Mantenha ele aqui. Ele cheira mal. — O rastreador de
magos mostrou os dentes e se enfiou debaixo da carroça para ficar
com seu mau humor.
Ele a levou para a biblioteca. Os papéis preciosos, trazidos de
Iwehvenn com o trabalho mortal de mágica e pura sorte, foram
empilhados ordenadamente em uma mesa. Ainda tinha que olhar
para eles, mas Martise já tinha começado suas traduções. Uma folha
de notas, escrita em sua mão precisa, estava ao lado dos antigos
papéis.
— Não vamos ter a lição no grande salão?
Sua voz gemeu. Silhara inclinou a cabeça, intrigado. A mesma
mulher que tinha lutado com um comedor de alma e o apagou como
uma chama de vela ainda temia suas lições. Arrependimento à tona,
irritante e indesejável. Ele tinha tido suas razões para sujeitá-la ao
tratamento áspero quando chegou pela primeira vez. Ela resistiu a
tudo o que ele tinha atirado nela.
Corajosa e surpreendente. Aquela abjeta passividade era um ato.
Martise poderia ter medo de suas aulas, mas já se sentira
suficientemente confortável em Neith para revelar vislumbres de
uma personalidade mais vigorosa.
Ela se enrijeceu quando ele se aproximou dela. Silhara ficou perto o
suficiente para que a aba de seu chapéu dobrado contra seu peito.
Ele tirou o chapéu e atirou-o ao chão, deixando pedaços de cabelo
que saíam de sua cabeça em um halo castanho-avermelhado.
Arrumado e queimado pelo sol trabalhando ao lado dele no bosque,
estava quase bonita.
— A luz não é boa o suficientemente no corredor. Quero ver o que
acontece quando fazemos isso e prefiro está sala.
— Por favor, Mestre. — Ele franziu o cenho ante o tom lamentável
em sua voz. — Não chame outro demônio.
Seus olhos estavam abatidos, escondidos pela curva de seus cílios
escuros. Silhara inclinou seu rosto para cima, com um dedo
indicador. Seu olhar implorava, a primeira vez que pedia sua
misericórdia de qualquer maneira. Seu estômago se torceu.
— Martise, — disse ele, acariciando a parte de baixo de seu queixo
com a ponta de um dedo. Mais fino do que o caro veludo e tão
quente, sua pele aquecida ao seu toque. — O que eu quero convocar
reside dentro de você. Destrói demônios. — E salva magos. — Você
não quer sentir o seu dom mais uma vez?
Excitação substituiu o medo em seus olhos. — Você pode fazer isso?
— Ela mordia o lábio inferior com os dentes. — As outras lições não
funcionaram. — Sua mandíbula se apertou contra o seu dedo.
— Eu usei a isca errada para persuadir seu dom a se manifestar. —
Seu dedo deslizou para baixo, pairando sobre a cavidade na base de
sua garganta antes de vir para descansar contra a linha frágil de sua
clavícula espreitando para fora do topo de sua túnica. — Uma coisa
boa, eu acho. Eu posso não ter testemunhado o que seu poder fez
com o Lich, mas qualquer coisa que pode destruir um comedor de
alma é formidável. Não quero sofrer o mesmo destino.
Ele dançara com a morte enquanto o comedor de almas se
alimentava dela. Seu dom, hostil, sensível e determinado a destruir
o que ameaçava seu anfitrião, tinha feito um trabalho rápido com o
Lich. Em contraste, esse mesmo poder violento o salvara, suave
como se derramasse em seu corpo e alma, água fria sobre terra seca,
brilhando com vida e fertilidade, coisas verdes e sol no bosque.
Todos atados com a essência mais pura e fascinante da mulher que
exercia tal poder. Ela o atraiu de volta quando ele balançou na beira
da escuridão, restaurou seu espírito, lhe dando força para ajudá-la a
trazê-los para casa.
Mais do que a curiosidade de um feiticeiro o levou a procurar seu
Dom uma segunda vez. Ele desejava seu toque, seu brilho limpo. Tão
diferente da sombra manchada deixada pela violação da Corruption
de seus sonhos.
— O que você vai fazer?
Ele a olhou. Seu batimento cardíaco batia sob seus dedos, rápido e
errático.
— Eu quero persuadir seu dom, mas vou precisar da sua cooperação.
Alguma vez você já fez uma ligação com um vidente?
Ela tentou se afastar. — Não! Seria menos vulnerável se estivesse
diante de você, nua.
As sobrancelhas de Silhara se levantaram. Ele a parou, a mão
apoiada em sua cintura como um sinal de advertência. Visões de
suas costas descobertas e suas mãos escuras contra sua pele mais
pálida brincavam em sua mente. — Se você está sugerindo ambos,
eu sou mais do que disposto.
Ela corou. Um sorriso fraco ergueu os cantos de sua boca apesar de
seus protestos. Ele entendeu sua reticência. A ligação com o vidente
era invasiva, uma forma menor do que o Lich tinha feito com ela e o
que seu Dom lhe tinha feito. Mas ele estava certo de que nada mais
faria seu talento emergir mais uma vez. Pelo menos nada, não
tentaria atacar.
Ele deixou cair a mão e deu um passo para trás. — Sua escolha,
aprendiz. Não ganho nada com o esforço. Minha magia não vai
sofrer de qualquer maneira. — Ele se dirigiu para a porta. — Temos
uma colheita para levar ao mercado. Você está perdendo meu
tempo.
Ele estava quase no corredor quando ela o chamou.
— Espere. Por favor. — Uma aceitação cautelosa piscou em seus
olhos. — Eu quero tentar.
Como ele suspeitava, poderia não confiar nele o suficiente para
concordar de primeira com sua proposta, mas não podia resistir ao
fascínio de seu Dom. Ela arriscaria um feitiço severo para trazer sua
magia mais uma vez.
Ele se aproximou e respirou seu perfume. — Certa vez, eu me vi
ligado ao bispo. — Uma velha raiva fez seu sangue arder. — Eu tinha
estado a um ano no Conclave. Dois sacerdotes me amarraram a uma
cadeira e me amordaçaram.
As feições de Martise desfocaram diante das lembranças feias.
Lembrou do agonizante incêndio em seu crânio enquanto Cumbria
se esforçava para derrubar suas emoções e pensamentos. Ainda
sentia o golpe do punho do bispo contra o lado de sua cabeça quando
a ligação terminou, a escuridão que se seguiu e o gosto de sujeira em
sua boca quando despertou no chão frio, com um rato arranhando
através dos emaranhados em seu cabelo.
— Eles o forçaram. — Compaixão, atada com repulsa, aprofundou
sua voz sedutora.
Traçou uma linha invisível sobre a clavícula. — Você é tão inocente
para acreditar que os sacerdotes estão acima de tais coisas? Você era
uma noviça. Certamente, você os viu ou passou por suas provas?
— Não assim. Zombaria, amarras, jejum, sim. Mas nunca uma
ligação forçada. — Ela inclinou a cabeça, perguntas em seu olhar. —
Por quê? Os sumos sacerdotes geralmente não se incomodam em
reconhecer as ordens inferiores.
Tinha ossos pequenos e a pele exposta do pescoço brilhava com uma
fina camada de suor. Silhara passou a língua pelo lábio inferior. —
Cumbria e eu temos um relacionamento único e de longa data. Nós
nos odiamos antes mesmo de nos conhecermos.
— O que é único sobre o ódio?
Seus dedos pressionaram em sua carne, a primeira camada do
feitiço invocou silenciosamente. Pequenas vibrações de poder
giraram em seu braço. — Assim diz o seu servo.
Ela empalideceu. — Seu aprendiz. E eu não quis dizer nenhum
desrespeito, Mestre. — Ela olhou para seus dedos. — Você começou
a ligação. — Ela fechou os olhos brevemente. — Não parece o toque
do Lich.
— Como você sentiu o toque do Lich?
— Frio, vazio. Como cair num poço seco.
Silhara sentiu uma agitação, uma onda de consciência chamando
seu próprio Dom em reconhecimento. — A ligação Vidente é
diferente. Um controle áspero, é agonizante. Não há necessidade de
tais medidas aqui. — Ele gostou do sorriso dela.
— Você é gentil no seu caminho. — Sua voz falou enquanto os efeitos
do feitiço se agarravam, potentes como o Fogo de Peleta.
Ele colocou a outra mão em sua cintura para mantê-la erguida. —
Não. Sou apenas cauteloso. Seu Dom responde a uma carícia, não a
uma surra. Não quero terminar como o Lich.
Quase bêbada na ligação, ela balançou em seus braços, a segurou
com mão em sua cintura e um roçar em seu pescoço. Suas pálpebras
caíram e seus lábios se abriram. Silhara puxou-a para mais perto,
envolvendo um braço em torno de suas costas. Queria balançar-se
com ela, se afundar na poça de calor que o envolvia enquanto
afundava em sua essência. Ele empurrou contra suas saias, excitado
pelo acasalamento do espírito e vontade quando ela se abriu para
ele. Sua visão turva, seu ambiente se transformando em um mar de
âmbar e rubi. Seu coração combinou com a batida do dela até que
um único pulso ecoou em sua cabeça.
Poder inundou sua alma.
Sua magia surgiu em uma onda, alimentada pelo poço do Dom de
Martise. Ele gemeu, se afogando na intensa sensação de vida pura,
atada com a graça de uma mulher, que derramava nele.
Se Corruption usasse tal sedução desde o princípio, já teria
hospedado o deus e feito o seu lance com um sorriso. Em vez disso,
a atração que ele usou o fez fugir apesar das promessas de vingança
e domínio ilimitado. O Dom de Martise, entretanto, não ofereceu tal
promessa, apenas reforçou seu Dom e não pediu nada em troca.
— Abra para mim, Martise. Me leve mais profundamente. — Ele não
tinha certeza se ele falava as palavras ou só pensava nelas. Sua fome
por mais ultrapassava sua coerência. Ela obedeceu, abrindo
amplamente a porta etérea que abrigava seu Dom e permitia a seu
espírito acesso total.
Ele a pegou, alimentou, sugou a força de seu poder até que sua
cabeça nadou. O gemido mais fraco atingiu seus ouvidos, quase
sufocados sob seu desejo por mais de sua força vital. Ele lutou seu
caminho para a consciência, respirando com dificuldade. O que
encontrou seu olhar fez seu coração gaguejar.
Martise caiu em seus braços como uma boneca quebrada. A cabeça
dela gotejava, sangue escorria de suas narinas, dividindo em duas
suas bochechas pálidas. Os brancos de seus olhos espiaram sob seus
cílios. Uma luz brilhante envolvia os dois, enxugando sua pele.
O horror passou por ele, banindo a sensação de bem-estar. A forte
explosão de dor por trás de seus olhos o fez estremecer quando
rompeu o vínculo entre eles. Martise convulsionou em seu aperto. A
luz desvaneceu, deixando vestígios de um brilho carmesim em suas
roupas.
— Martise! — Ele a sacudiu com força, sem se importar que sua
cabeça balançava para a frente e para trás. A dor por trás de seus
olhos cresceu quando ele recitou um feitiço de despertar simples
para reanimá-la. Ela gemeu e levantou uma mão fraca para limpar
o sangue em seu rosto. Silhara deu graças silenciosos a deuses que
nunca o ouviram invocar seus nomes em oração.
— O que aconteceu? — Sua voz esganiçada acariciou sua orelha.
Ele a levantou em seus braços. — Você é mais generosa com o seu
Dom do que um houri mostrado uma bolsa cheia, — ele estalou. Ela
o tinha sacudido. Sangrando e quase inconsciente de sua ligação,
despertou mais da culpa indesejada dentro dele. Ele tinha feito
muito em sua vida, outros poderiam considerar abominável e nunca
sofreu uma pontada de consciência. Mas isso não era maneira de
retribuir a mulher que tinha salvado sua vida.
Deixou a biblioteca e subiu as escadas para o terceiro andar. Uma
luz fraca que se filtrava do buraco no chão iluminava o corredor que
levava ao seu quarto. Silhara chutou a porta e parou. Econômico e
meticulosamente limpo, o quarto era uma aberração naquele buraco
de coelhos empoeirado da mansão. Até a cozinha de Gurn não se
comparava.
A pequena cama empurrada contra uma parede era bem-feita, não
havia uma ruga, nenhum risco na superfície lisa dos cobertores.
Nenhuma poeira dançava na luz solar que enchia o espaço. Seus
objetos pessoais estavam escondidos. Nenhum pente, joias ou
outras bagatelas femininas estavam sobre a mesa perto ou aos pés
da cama.
Martise abriu os olhos quando Silhara a deitou na cama. Apesar de
sua provação, seu olhar estava encantado. — Eu ainda posso sentir
o Dom, mas estou muito cansada.
Ele olhou para o jarro perto de seu lavatório. Vazio. — Você deveria
estar. Seu Dom pode atacar se forçado a manifestar, mas é muito
flexível quando persuadido. Pelo menos comigo. — O poder residual
da ligação ainda fluía através dele. Seu Dom fortaleceu o dele. Seus
dedos formigavam e acendiam fragmentos de luz branca contra tudo
o que ele tocava. Qualquer feitiço que pudesse conjurar seria dez
vezes mais potente do que o normal. Ao contrário da oferta da
Corruption, o Dom de Martise ainda lhe permitia controlar sua
magia aumentada.
Silhara franziu o cenho quando ela limpou suas bochechas uma
segunda vez. — Você está deixando isso pior. Vou enviar Gurn com
água e um elixir para restaurar sua força e ajudá-la a dormir.
Ela lutou para se levantar, mas desistiu quando ele colocou uma mão
sobre seu ombro. Sua essência inundou seus sentidos, carregados
pelo fluxo de seu Dom em seu próprio ser. Ele a cheirou em suas
roupas, a provou em seu paladar. Seu desejo por seu poder
aumentou para incluir a mulher também. Ele se endureceu ao
pensar em tirá-la e levá-la para a cama imaculada com seu calor e
seu dom correndo rápido em seu sangue e sobre seu corpo.
Seus olhos se estreitaram. Martise se encolheu contra a roupa de
cama em sua expressão.
— E a colheita?
Ainda lutando contra a excitação que ela gerou, colocou distância
entre eles em sua cama. — Fraca como você está agora, você só estará
no caminho. Além disso, nós conseguimos muito bem sem você nos
últimos anos. Você estará boa como nova na primeira luz. Eu espero
que você esteja vestida e pronta para sair conosco para Eastern
Prime na parte da manhã.
Martise rolou para o lado dela, insinuando as graciosas curvas que
revelou quando a acalmara. Silhara estendeu a mão e rapidamente
a deixou cair. Se não saísse agora, não iria embora. A luxúria e a
magia rugiam através dele, aumentando a cada momento que
permanecia nesta sala. Caminhou até a porta, abrindo-a. A meio
caminho do corredor sombreado, ouviu ela chamado por ele.
— Você vai me ensinar a usar, o meu dom?
Ele fez uma pausa, apertando a ponte do nariz entre o polegar e o
indicador. — Sim. — Ela tinha encontrado uma maneira de se vingar
por suas lições. — Você não foi um bom aprendiz até agora. Pelo
menos temos algo com que trabalhar.
Seus suaves agradecimentos o seguiram pelo corredor. Ela poderia
lamentar essa gratidão. Sua vontade de ensiná-la era tão motivada
pela curiosidade egoísta como a generosidade. Feroz, mas gentil,
quase independente de Martise em como reagiu, seu Dom o
fascinou. Ele arriscaria uma suposição que nenhum sacerdote ou
noviciado de Conclave jamais tinha possuído ou encontrado,
qualquer conhecimento que pudesse obter em vantagem sobre o
sacerdócio lhe agradou.
— Você realmente sabe o que você me enviou, Cumbria? — Apenas
o rangido de assoalhos sob seus pés o respondeu.
Capítulo
Doze
Martise acordou antes do amanhecer, alertada por uma voz interior
que gritava: —Acorde! — Ela se amontoou na cama por um
momento, olhos arregalados enquanto varria a escuridão do quarto,
procurando qualquer movimento. Tudo estava ainda calmo, a faixa
de luar esboçando sua janela aberta. Levantou, cuidando para não
fazer nenhum barulho alto. O ar da noite pendia frio e úmido com
uma pitada de orvalho. Envolveu seu xale em torno de seus ombros
e se encaixou na janela, atraída por uma voz insistente que exigiu
que ela olhasse para fora.
Neith ainda dormia nas horas mais escuras. As laranjeiras, nada
mais do que silhuetas prateadas, ainda estavam debaixo de um céu
noturno em estrelas brilhantes. Apenas a estrela doentia de
Corruption que pairava no horizonte do Sul enfraqueceu a vista. A
estrela pulsou brilhante uma vez, duas vezes e finalmente uma
terceira vez. Desviou o olhar e riscou o formigamento rastejante em
seus braços. Um vislumbre de movimento sob a copa dos laranjais a
fez congelar.
Uma fumaça preta ondulava sobre o chão, rodando rápido e seguro
enquanto percorria a linha de árvores em direção à casa.
Lich!
Horror gritou através de suas veias. Seu dom estourou para cima,
fazendo-a cambalear enquanto consumia seus sentidos. A luz
disparou da ponta dos dedos e saltou para as paredes, afugentando
as sombras que espreitavam nos cantos. Assim como rapidamente,
a luz morreu, mas o Dom não, lutou para trazer seu poder sob
controle quando ele tentou destruir um inimigo conhecido.
Dobradiças gritaram em protesto quando bateu as persianas
fechadas, mergulhando o quarto na conhecida escuridão. Ela
ofegou. O formigamento afiou com a certeza de que ela não estava
mais sozinha no quarto.
— Quem é você?
Um riso sibilante deslizou sobre ela. Seu Dom se enfurecia, lutando
para se libertar.
Uma voz, desprovida de qualquer humanidade, respondeu. —A
pergunta mais interessante é quem é você?
Martise pulou para a janela, tentando abrir as persianas mais uma
vez. A luz da lua pintou seu visitante em uma coroa fantasmagórica.
Ela gritou, um som fino e alto que levou a todos os cantos da mansão
e enviou corvos espantados estourando das árvores de medo.
Um homem – não, uma atrocidade em forma de homem – estava
diante dela. Alto e extremamente magro, tinha a pele lisa, como uma
larva, branca e manchada. Os braços longos balançavam baixos suas
mãos quase roçavam seus joelhos. Dedos deformados como pregos
pretos, deformados, curvados em garras letais. Os dedos esticados
ostentavam as mesmas garras. Eles clicaram no chão enquanto a
coisa se aproximava.
O olhar de Martise bloqueava o aspecto mais hediondo do monstro.
Sem rosto. Apenas uma tela em branco de pele descolorida dividida
por uma boca impossivelmente larga. Os lábios eram finos e
cinzentos, que sangravam cada vez que a coisa sorria para ela,
expondo duplas fileiras de dentes irregulares.
Corruption – o deus assumira uma forma física. O material de
pesadelos, sua presença sujando seu quarto. Ela levantou uma mão
trêmula e esboçou uma ala protetora no ar. Nada aconteceu, embora
seu dom se contorcesse em resposta.
Corruption riu, um estranho barulho de vibração. —Criatura tola.
Porque se importar? Você não pode lutar contra um deus. — Ele a
perseguiu através do quarto. —Você não estava aqui antes, e agora
você está. Sua essência se mistura com a dele. Diferente, mas
combina. — A cabeça sem rosto se inclinou em um gesto perplexo.
—O que há em você que encanta o Mestre dos Corvos? —
Ela se afastou, respirando com dificuldade. Choramingou ao sentir
a parede de pedra contra suas costas. Presa. Com uma abominação
de milhares de anos. Quase congelada de terror, entregou o controle
ao seu Dom. Saiu correndo dela, um rio turbulento de magia caótica.
O ar ao redor dela se entortou. Suas orelhas estalaram, as persianas
se fecharam antes de se encaixar contra as paredes com uma fenda
retumbante. A porta do quarto se abriu, ela captou um vislumbre de
Silhara, sem camisa e olhos selvagens, antes de voltar sua atenção
para o deus.
Assustado pelo poder saturando a sala, Corruption parou um
segundo antes de ser atirado na parede oposta com força suficiente
para enviar uma chuva de pedra quebrada voando pelo ar. A forma
quase-humana se dissolveu de volta no sinuoso vapor negro que se
precipitara para ela pelas árvores.
Silhara ficou entre Martise e o deus. Ela saiu da parede e se
aproximou. A voz do mago era destemida, cáustica ao abordar
Corruption. — Sempre pensei que os deuses se voltassem, indignos
até um frango ser sacrificado. — Ele levantou a palma da mão em
questão. — Por que você está aqui?
Corruption flutuou em sua direção. Martise queria vomitar ao ver as
mãos fantasmagóricas deslizarem pelas suas pernas, passando como
uma carícia envenenada. —Eu não sou tão facilmente influenciável,
feiticeiro. — A voz do deus ecoou agora, vindo de cada canto da sala.
—Mas estou curioso. Sua força está maior agora, se já não é pura.
Esta criatura é uma fonte da qual você se alimentou. Eu aprovo. —
Sarcasmo pintou cada uma das palavras de Silhara. — Como isso
alegra meu coração.
—Eu espero por você feiticeiro e eu sou paciente. —
A névoa se desprendeu de suas pernas, deslizando para a janela até
que deslizou sobre a borda. Martise e Silhara observavam pela janela
quando a névoa se reduziu a uma fita cinza que se ergueu e
desapareceu.
— Parabéns. Você foi notada por um deus.
Ainda tremendo pelos efeitos da visita do deus, ela respirou fundo e
sucumbiu a um longo tremor. — Não me interessa essa notoriedade.
Isso foi Corruption?
— Uma parte disso, sim. Eu estou supondo que ele foi atraído para
o seu dom. Você estava experimentando seus novos poderes?
Martise se voltou para ele. O brilho da lua esboçou seu perfil,
destacando o nariz proeminente e uma maçã do rosto afiada. Seu
cabelo brilhava quase azul, fluindo sobre seus ombros nus em uma
cachoeira preta. As calças que ele usava pendiam baixas em seus
estreitos quadris, revelando um torso macio e musculoso. Mesmo
lutando contra seu medo, ela não podia deixar de admirá-lo. Ele era
lindo. Proibido.
Ela desviou o olhar, se concentrando nos corvos assassinos
retornando a seus poleiros. — Não. Eu estava dormindo e acordei
com uma sensação de... diferente.
— Agora você sabe. O deus exilado que uma vez esmagou o mundo
e foi aprisionado pelo Conclave é mais do que uma luz no céu e
decidiu se instalar aqui.
— Por quê? O que Neith possui que ele permanece aqui? E por que
ele o espera? — Ela tinha suspeitas.
Seu olhar malicioso desafiou a olhar mais fundo. — Mesmo os
deuses são limitados, especialmente os menores. Eles podem
desprezar os fracos mortais que os adoram, mas eles precisam de
um ou dois aduladores.
Martise não podia imaginar Silhara de Neith agindo como
subordinado de ninguém. Nem mesmo de um deus.
Ele a encarou, patinando os dedos pelo ar. Faíscas seguiram em seu
rastro. — Ah, como eu pensei. Seu Dom ainda está alerta e pronto
para a batalha.
Martise não negou sua observação. Uma vez desencadeado, seu dom
lutou contra seu controle. Ela tinha memorizado todos os feitiços
que o Conclave ensinara, mas ainda não havia aproveitado
adequadamente seu poder. A pura sorte a abençoara as poucas vezes
que conseguira fazê-lo. — Às vezes parece que está separado. Uma
coisa própria.
— Suspeito que seja. Você usou o feitiço que atirou Corruption pelo
quarto?
— Não intencionalmente. Eu só não queria aquela coisa horrorosa
me tocando e meu dom reagiu.
— Isso é o mínimo. — Ele inclinou a cabeça, seu olhar perplexo. — O
seu é um talento peculiar.
Gesticulou uma vez, uma invocação silenciosa. A luminescência
fluía de sua palma em um rio etéreo. Ela abraçou o agora calor
familiar que se elevava dentro quando seu Dom respondeu a sua
abertura. A luz ambarina combinava com a prata, entrelaçada num
abraço de amante. Sua luz passou por sua mão, percorreu seu braço
até que seus ombros e seu rosto estavam cobertos de um suave
brilho.
Martise sugou uma respiração, balançada pelas imagens que
passavam pelos olhos de sua mente. Cenas vivas de lisos membros
castanhos enrolados em torno dela, o cheiro de macho excitado em
suas narinas, um corpo esguio pressionado contra o dela.
Empurrando. Possuindo. Sobrepondo aquelas visões provocantes,
uma consciência mais profunda do homem. Uma alma forte,
danificada, cheia de medidas iguais de ódio, paixão e uma esperança
quase morta. A estes, seu Dom esforçou-se para fundir, ansiando
alcançar e tocar. Ela compartilhava esse desejo.
Seus olhos fechados, seu rosto tenso com êxtase. Como na
biblioteca, ela sofreu uma fuga lenta de poder, uma exaustão nascida
de sua conexão com o mago. Ela queria cair no chão, enrolar em uma
bola e dormir por dias.
A súbita insinuação de Silhara para ela e seu aperto em seus braços
a tiraram do torpor induzido pela bruxaria. Seus olhos negros
brilharam de raiva e um toque de desespero.
— Controle-o, Martise, ou eu farei por você e não deixarei nada para
trás.
A ameaça agiu como um balde de água gelada lançada sobre sua
cabeça. Ela se concentrou, lutando com seu Dom teimoso até que
finalmente cedeu a sua vontade e quebrou a conexão entre ela e
Silhara. O esforço fez sua cabeça nadar, segurou nele para se
equilibrar.
Se acalmou quando ele se inclinou sobre ela. Sua cabeça inclinada
para trás, os lábios se separando quando ele se aproximou, fazendo
cócegas em suas bochechas com um sussurro de respiração. Se ele a
beijasse, ela se renderia. Seu desejo por ele, amplificado pelo apego
aberto de seu Dom, dominaria seu senso comum. Martise sabia que
ela iria ajudá-lo a levanar suas saias, deixá-lo levá-la como quisesse.
De pé na janela, deitado na cama. O que quer que ele desejasse,
desde que lhe desse uma medida completa da paixão, escondeu-se
sob camadas de escárnio e desdém.
Seu lábio inferior tocou o dela, macio, tentador. — Por que você está
aqui? — Ele falou as palavras em sua boca, sua língua balançando
brevemente através de seu lábio superior.
Ela sufocou um gemido. — Porque você me queria.
Estreitos quadris pressionados no dela, a protuberância de sua
ereção aninhada contra sua fina camisola, a persuadia a ajeitar sua
postura. Ela obedeceu, suspirando seu prazer pela sensação dele
entre suas pernas.
— Não há palavras mais verdadeiras. — A voz áspera era um
sussurro quebrado. Sua língua deslizou em seu lábio. Ela a
encontrou com a ponta da dela, o experimentando pela primeira vez.
Como seu cheiro, ele tinha o sabor de laranjas e do tempero de
tabaco.
— Por favor, — ela implorou.
Sua súplica atuou como um catalisador. Silhara a esmagou contra
ele. Sua língua empurrou entre seus lábios, tomou sua boca em um
beijo duro. Martise encontrou seu ardor com fogo igual, levando-o
mais fundo para chupar sua língua e deslizar a dela em seus dentes
e no céu de sua boca.
Seu Dom se contorcia dentro dela, desesperado para se libertar.
Igualmente desesperado para sentir e provar mais do Mestre dos
Corvos, Martise o ignorou. Suas costas nuas aqueciam suas palmas,
tentando-a com a pele suave, inclinações musculares e vales.
Ele fez amor com sua boca, acariciando e sugando, empurrando com
sua língua e imitando a ação com seus quadris. Ela deslizou sua coxa
sobre a dele, choramingando em sua boca quando uma áspera
palma a subiu e deslizou através de sua perna até seu quadril.
Ela queimou por ele. O perigo da espionagem, a ética duvidosa de
trair uma vida para libertar outra e as motivações de um mago com
fome de poder – todas essas coisas serão condenadas. Por um único
momento, abrasador, Martise só queria isso – a sensação e o gosto
de Silhara de Neith sobre ela e dentro dela.
Seu braço deslizou sob suas nádegas para erguê-la contra ele. Ela
passou as mãos por seu cabelo e apertou sua perna sobre a dele,
gemendo em protesto quando de repente se enrijeceu e terminou o
beijo.
Seus lábios estavam inchados, o rosto magro com um desejo
inexpressivo, mas seus olhos eram frios e duros como gelo preto.
Martise piscou, derrubado por sua abrupta retirada.
— Subestimei o bispo. Ele me conhecia melhor do que jamais
imaginei quando te trouxe para Neith.
Ele a deixou cair e deu um passo para trás. Surpreendida, Martise
tropeçou. Ela ficou boquiaberta, aturdida pela súbita reversão dos
acontecimentos. — Mestre, eu...
Ele a ignorou e caminhou até a porta, tão frio como se tivessem
discutido o tempo. Ela olhou para ele, espantada.
Ele parou no limiar. — Você precisa de treinamento. E esse talento
seu precisa de uma mão firme. Vamos começar quando voltarmos
do Eastern Prime. — Sua voz, plana e distante, não revelou nada.
Quase doente de vergonha, Martise alisou e envolveu o xale com
mais segurança ao redor dela. Se ele optasse por ignorar o que eles
apenas compartilhavam, ela faria o mesmo. — Obrigado por ter
vindo em meu socorro.
Um olhar fugaz franziu a testa antes de desaparecer. — Você tem um
grito que ressuscitaria os mortos. Estou surpreso que Gurn e Cael
ainda não tenham chegado.
Como se fosse um sinal, um criado e um cão irromperam pela porta
aberta. Silhara pulou fora de seu caminho para evitar ser achatado.
— Levei tempo suficiente, — ele disse.
Gurn examinou o quarto, agitando um pequeno machado na mão. A
arma parecia um brinquedo de criança em sua enorme palma. Cael
patrulhava o perímetro da câmara, seus olhos brilhavam como um
carmesim enquanto resfolegava e grunhia sua desaprovação.
— Corruption, — Silhara informou ao servo. — Acho que ele pegou o
quarto errado desta vez. — Ele olhou para Martise. — Você não
precisa dormir aqui esta noite. Há outras câmaras.
Ela balançou a cabeça, sentindo o mesmo quando chegou em Neith,
estranha na sua presença. — Eu estou bem. — Ela sorriu para Gurn.
— Gurn, você é sempre o herói. Se eu fosse Corruption, eu poderia
ter saltado pela janela ao ver você derrubando a porta.
Ele sorriu e fez sinal para ela.
— Isso não será necessário — disse ela. — Eu me sentiria culpada
sabendo que estou dormindo na minha confortável cama, enquanto
você estava esticado no chão fora da minha porta. — Ela observou
enquanto Cael cheirava o chão e os cantos. Não queria ficar sozinha.
Por alguns minutos, no abraço de Silhara, se esqueceu da
experiência de enfrentar a Corruption cara a cara. Agora, a memória
trouxe de volta uma onda de medo. — Eu gostaria que Cael ficasse
comigo se você não se importasse.
As sobrancelhas de Silhara levantaram e seu nariz enrugou em
desgosto. — Você pode suportar o fedor?
Martise sorriu, apesar de sua mortificação por sua rejeição. — Muito
mais do que ficar sozinha com Corruption à espreita lá fora.
Ele voltou para o centro do quarto. Ela e Gurn observaram quando
ele criou uma esfera verde de luz mágica e enviou-a rolando para um
canto do quarto onde iluminou o interior em um brilho esmeralda
misterioso. Então fechou as persianas da janela e os protegeu.
— Se Corruption fazer outra visita, eu vou saber. Estas salvaguardas
devem protegê-la até de manhã.
Ela se curvou. — Obrigado mestre.
Ele bufou. — Volte para a cama. Dawn estará aqui em breve. — Seu
olhar era enigmático antes de sair da sala.
Gurn sorriu e acariciou-a no ombro, depois seguiu Silhara, fechando
a porta atrás dele.
Martise colocou seu xale no peito e sentou-se na borda da cama com
um suspiro abatido. Cael, com os olhos ainda brilhando de
vermelho, se aproximou dela e sentou no chão. Ela se inclinou para
raspar atrás de suas orelhas.
— Pelas asas de Bursin, você cheira mal, mas estou feliz por você
estar aqui.
Deitou-se e contou as rachaduras no teto. Seus olhos ardiam com
lágrimas não derramadas. Idiota. Não podia culpar sua insensatez
por salvá-la. Agitada por seu traiçoeiro Dom, acreditava que Silhara
a desejava como ela o fazia. Pelo menos ele era honesto em sua
rejeição, ao contrário de seu último amante. Esse pensamento não
diminuiu a dor ou a humilhação.
Ela tocou seu rosto, passando os dedos sobre o nariz, a boca, a curva
do queixo. Ela pensou em Cumbria. — Você escolheu bem. Ele nunca
suspeitaria da sedução de uma mulher como eu. — Ela riu, o som
amargo na meia-escuridão verde.
Acordou novamente ao amanhecer, com os olhos turvos e lenta,
rolou para fora da cama. Cael a deixou para completar suas rotinas
matinais. Quando Gurn a encontrou na cozinha e assinalou que eles
tomariam café da manhã no caminho para Eastern Prime, ela mal
conseguiu murmurar um — Bom dia.
Encontraram Silhara no bosque, enganchando Gnat aos seus
arreios. A parte de trás da carroça estava empilhada com caixas de
laranjas, deixando apenas um pequeno espaço para uma pessoa
sentar-se atrás do assento.
Ele a olhou. O rubor quente que se elevou pelo pescoço e rosto a
fizeram se encolher. Levantou uma sobrancelha, mas ele não
zombou dela. — Quando chegarmos, você ficará com Gurn enquanto
negócio com os comerciantes. — Ele deu uma palmadinha em Gnat
e caminhou ao redor da carroça até onde estava. — Não vagueie
sozinha. Nós estaremos longe das docas, mas os cafetões não
limitam sua caça aos cais. Não assuma que você passará
despercebida. Eu notaria você, Martise. Outros também.
Uma pequena chama de esperança cintilou para a vida, em seguida,
morreu como seu olhar examinou-a. — Essas roupas não são nada
além de trapos agora. Quando estivermos lá, eu lhe darei algumas
moedas. Você pode comprar o pano para fazer algo que não pareça
como se os corvos tivessem pegado para eles.
Ela enrolou as mãos em punhos com seu tom mordaz. O desgraçado
bastardo que a cumprimentara e Cumbria quando chegaram a Neith
tinha retornado em toda sua glória, cheio e arrogante. Até mesmo
Gurn fez uma pausa em carregar sua refeição no assento do vagão
para franzir o cenho para Silhara.
Ela apertou os dentes e esqueceu toda a cautela. — Não é melhor
misturar-se com o que o rodeia? — Ela estendeu a mão para a
mansão.
Gurn bufou, os olhos de Silhara se estreitaram. Por um momento
um brilho de admiração apareceu em seu olhar. Ele desapareceu tão
rapidamente quanto parecia, substituída pelo familiar sorriso
zombeteiro.
— Eu vou gostar de voltar para Cumbria. Acho que o Alto Bispo
será... surpreendido por sua amada aprendiz.
Ele não disse nada mais para ela, apenas ordenou que Cael voltasse
para a casa. Gurn ajudou-a a sentar no vagão e tomou seu lugar ao
lado dela como motorista. O vagão balançou quando Silhara saltou
nas costas e encontrou um assento no espaço livre cercado por
caixas de laranjas.
Ele colocou os braços sobre os joelhos dobrados e apoiou a cabeça
contra as tábuas laterais. Uma ondulação de ar o cercou antes de
desaparecer. Ele fechou os olhos, amortecido por um feitiço que o
protegia do áspero passeio do vagão. Martise o observou pelo canto
do olho. Ela se virou quando ele abriu um olho e lançou um olhar
feroz sobre Gurn. — Não pense que eu não sei que você está
planejando bater todos os buracos na estrada só para me irritar.
Gurn olhou para o céu, assobiando. Martise, apesar de sua
melancolia, escondeu uma risada atrás de sua mão.
Eles seguiam caminhos bem-percorridos, seguindo as estradas que
levavam até a costa e a extensa cidade de Prime Oriental. Gurn
apontou locais interessantes. Um afloramento de rocha negra que
surgiu a partir da planície em pontas irregulares, um círculo de
pedras eretas com os restos de uma fogueira fresco em seu centro, a
inclinação íngreme, coberta de grama de Terra santa de Ferrin, onde
um Conclave antigo recolheu e derrotou Corruption mais de mil
anos antes. A colina, terra de pastagem agora pacífica para os
ovinos, dormia no calor subindo. Martise suspeitava que ninguém
de fora do sacerdócio lembrava do grande evento que uma vez que
ali teve lugar.
Gurn apontou para o norte e bateu no peito. A saudade escureceu
seus olhos azuis.
— Você cresceu no Norte?
Ele assentiu.
Interessante. Gurn fora simpático com ela desde o momento em que
atravessara os portões do pátio, mas não sabia nada do seu passado.
Se ele tinha uma família em algum lugar, como tinha acabado em
Neith, mesmo em sua idade.
— Você está longe de casa, Gurn. Há quanto tempo você trabalha no
Neith?
Ele enrolou as rédeas em uma mão e segurou a outra, mostrando
cinco dedos primeiro e depois três. Oito anos. Em termos de
servidão, oito anos não era um período longo. Como dois indivíduos
tão diferentes se encontraram e conseguiram viver juntos em
relativa harmonia a deixaram perplexa. Silhara, muitas vezes
taciturno e hostil, não era o tipo de procurar companhia. Gurn,
embora útil e solícito a Silhara, nunca exibiu comportamento
subordinado. Os dois homens agiam como amigos e eram mais do
que mestres e servos. Se Silhara não roncasse ligeiramente atrás
deles, ela poderia ser tentada a perguntar como Gurn veio servir em
Neith.
Gurn olhou por cima do ombro para o mago adormecido. Martise
fez o mesmo. O ronco de Silhara parou, e desta vez abriu os dois
olhos.
— Gurn e eu compartilhamos uma cela uma vez. — Seus lábios se
contraíram. — Sobre os crimes melhor deixá-los, não revelados.
Fiquei livre com a ajuda de algumas ameaças e subornos bem
colocados ao magistrado local. Gurn aguardava a execução. Eu
precisava de um servo. Ele precisava viver. Eu o comprei de seu
mestre e o libertei. Ele está comigo desde então.
Aturdido por sua revelação, Martise olhou para ele e depois para
Gurn. O gigante piscou e sacudiu as rédeas para convencer Gnat a
um passo mais rápido.
Silhara salvou Gurn, o libertou por nenhuma outra razão apenas
porque podia. Seus pensamentos cambalearam. Todo sentimento de
moralidade, de redenção e de justiça, ressoava dentro dela. Como
poderia sacrificar esse homem para ganhar sua própria liberdade?
Como não poderia?
Ficou sentada em silêncio, perdida em pensamentos, até que Gurn
lhe entregou um dos bolos de mel que preparou para o café da
manhã. Embora ele não tivesse mais uma língua, ele ainda podia
zumbir. Ela reconheceu a melodia desde sua infância, um canto
tribal que a cozinheira de Kurher de Asher cantou enquanto
amassava a massa. A lembrança a fez sorrir.
A cozinha iluminada pelo sol de Bendewin era muito parecida com
a de Gurn, mas cheia de cozinheiros. Perfumes de pão assado e
guisados borbulhantes, criados discutindo ou rindo e acima do
barulho, cantando canções de Bendewin enquanto trabalhava.
Suas pálpebras ficaram pesadas. Abandonada pela melodia
repetitiva e a marcha firme de Gnat, ela se inclinou contra o braço
de Gurn e cochilou.
Uma sacudida dura a acordou, ela se endireitou. Gurn sorriu e
acariciou-a no ombro antes de pular do assento.
— O que está errado? Por que estamos parando?
— Porque Gurn tem suas bolas apertadas por horas e agora precisa
mijar. — Silhara saltou para o assento desocupado.
Menos assustada com seu comentário embotado do que por sua
súbita aparição ao lado dela, ela corou. — Oh.
— Você pode querer fazer o mesmo. Vamos esperar por você.
Ela seguiu seu conselho e saiu do assento da carroça. Quando voltou,
Silhara ainda estava no lugar de Gurn. O criado sorriu e passou por
ela para se arrastar para o fundo da carroça.
— Você está pensando em plantar raízes aí, ou vai subir? — Silhara
gesticulou impacientemente, quando ela subiu o assento. Ele estalou
as rédeas e gritou para Gnat.
O silêncio entre eles se tornou estranho, ao contrário do silêncio
entre ela e Gurn. Martise sentou na extremidade do assento,
mantendo um aperto de morte para não cair. O olhar de Silhara
zombou dela.
— Está muito longe? — Ela queria perguntar a Gurn se ela poderia
se juntar a ele na parte de trás da carroça.
— Mais uma hora ou mais. — Ele estava muito mais calmo ao seu
redor, do que ela ao redor dele, especialmente depois da desastrosa
escapada de ontem à noite. — Mais visitas de nosso amigo celestial
ontem à noite?
Isso era algo que ela poderia discutir sem superaquecimento de
outro rubor. — Graças a Bursin, não. E espero nunca ter essa visita
em minha vida novamente. O Lich foi mais que suficiente.
— O Corruption é, de certa forma, como o Lich.
Uma mecha de cabelo se soltou de sua trança e soprou em seu rosto.
Ela o colocou atrás da orelha. — Estudamos Corruption durante meu
segundo ano no Conclave. O Grande Enganador. Um deus menor
ligado ao mundo pela sua dependência da humanidade para poder
supremo. Está escrito que ele aguardava o renascimento do Avatar,
mesmo durante sua prisão.
Ele não mostrou, mas sentiu a tensão súbita em sua postura. — O
Avatar nasceu várias vezes. E morreu nunca sabendo o seu papel no
plano da Corruption.
O Conclave sempre caçara o Avatar. Das muitas gerações que
passaram desde o banimento da Corruption, os sacerdotes
localizaram o Avatar quatro vezes e despacharam cada um com
impiedosa eficiência. Qualquer outro nascido como um navio para o
deus tinha escapado da sentença de morte do sacerdócio. Ninguém
tinha ascendido a um assento de poder legendário com a ajuda do
deus.
As circunstâncias mudaram. E Corruption, livre dos laços de
sortilégios colocados nele há tanto tempo, procurou o Avatar com o
mesmo zelo que o Conclave. O Alto Bispo suspeitava que Silhara se
encaixasse no papel. Martise tinha suas próprias suspeitas e
entendia por que Cumbria se sentia como ele. Poderoso, proscrito e
intratável, Silhara tinha um ódio pessoal profundamente arraigado
por Cumbria e um mais geral para o Conclave. Ele não tinha feito
nenhum segredo disto. Se ele era o Avatar, então Corruption não
tinha muito para procurar e o Conclave tinha um desastre em suas
mãos.
— Você acha que o Avatar renasceu? — Ela lamentou a pergunta
quando ele virou um olhar malévolo para ela.
Sua voz áspera suavizou, ameaça silenciosa em cada palavra. — Não.
Encontrou alguma coisa nos jornais que levamos para indicar o
contrário?
Ela agradeceu aos deuses por não ter de mentir, especialmente
quando o mago lhe deu furos na cabeça com aquele olhar negro. —
Nada além de mais descrição do ritual. — Sua voz permaneceu
uniforme. — O rei do Sul, Birdixan, se sacrificou para destruir
Amunsa. Ele era o mais forte dos reis magos reunidos lá. Ele tinha
um papel fundamental.
— Eu vou olhar suas anotações quando voltarmos para Neith. — Ele
franziu o cenho e voltou sua atenção para a estrada. Ela engoliu em
seco, aliviada. — Se você traduziu corretamente, esses escritos são
preocupantes. As províncias do Sul eram mal civilizadas durante
aquela idade e nenhuma era governada por reis. A menos que você
tenha sido ensinada a partir de livros que eu nunca vi, o Conclave
não tem registro de um Birdixan governando qualquer das terras
distantes. Mesmo que não soubessem nada do antigo Amunsa e sua
destruição, haveria um registro de um rei do Sul que encontrou sua
morte no Norte.
Eles chegaram ao Prime Oriental, ainda tentando decifrar o
significado por trás da tradução dos primeiros escritos Helenese.
Martise se esticou, esfregando a dor persistente em sua parte
inferior das costas. O ar cheirava a mar, e ela ouvia a batida das
ondas contra a praia ao longe.
Esparramado sobre os cumes dos penhascos varridos pelo vento e
espalhados até o porto, o Primeiro Oriente se desdobrava e recebia
o sol da manhã. Navios de todos os tamanhos enfeitavam a água,
alguns ancorados nos cais, outros cavalgando as ondas com as velas
parcialmente desdobradas como se navegassem serenamente na
baía. Abrigavam cabanas em ruínas que se agarravam ao penhasco
e alinhavam as vielas pequenas que serpenteavam para longe das
docas. Templos e mansões de mármore rosa brilharam como joias
polidas de seus poleiros no topo das falésias mais altas, cercado por
jardins esculpidos e gramados imaculados.
Silhara guiou Gnat através das ruas estreitas com a facilidade de um
especialista. As pessoas saltaram fora de seu caminho, intimidados
por sua expressão sombria e a altura imponente Gurn, como ele
estava na parte de trás do vagão. A estrada principal descia
gradualmente em direção à costa e acabava num campo aberto
coberto de ponta a ponta por tendas, barracas e multidões de
moagem.
Silhara teve que gritar para que Gurn pudesse ouvi-los sobre o
estrondo no mercado. —Desça. Pegue Martise e pegue um quarto em
uma pousada onde eu não vou ter que lutar com os ratos para dormir
um pouco. Eu dirigirei o vagão até o estábulo de Fors. Ele estará
esperando por esta colheita. Encontro você na área comum.
Ele cavou na bolsa em sua cintura e passou a Gurn um punhado de
moedas. Martise desceu da carroça e esperou ao lado de Gurn.
Esperava que a pousada que ele escolhesse tivesse um estábulo. Ela
poderia dormir em um canto protegido onde ninguém a notasse ou
a abordasse.
Como se ele tivesse lido seus pensamentos, Silhara se inclinou sobre
o assento. — Você vai compartilhar o quarto comigo e Gurn, Martise.
Qualquer embaraço persistente foi esquecido, nascido por gratidão.
Martise sorriu para ele, sem se importar com o fato de se afastar dela
como se sua felicidade pudesse ser contagiosa. — Obrigada mestre.
Ele franziu a testa. — Não deixe o lado de Gurn. Eu não vou lutar
contra um grupo de prostitutas para salvar uma mulher descuidada
se você sair sozinha. — Ele bateu as rédeas contra as ancas de Gnat.
— E compre um tecido decente. — A carroça passou por eles, rodas
rangendo enquanto rolavam nos caminhos esburacado para o
mercado.
Em um tempo curto, ela e Gurn garantiram um quarto, uma refeição
e três odres de vinho para a noite. Assim como rapidamente,
voltaram ao mercado. Quando chegaram à periferia, Martise estava
cansada, suada e com sede por correr atrás de Gurn. Ela
rapidamente esqueceu tais pequenos aborrecimentos em meio ao
caos controlado e cor do próspero mercado de Prime.
Tudo, desde grãos e armamento até aves e frutas, eram vendidos nas
várias bancas. Um comerciante quase a ensurdeceu com seu
entusiasmo sobre a aquisição de suas sedas e algodões importados
das terras Glimmer. Os papagaios coloridos gritavam em gaiolas
penduradas em postes, enquanto os comerciantes de alimentos
assavam carne de carneiro sobre os poços abertos atrás de suas
barracas e os vendiam pela fatia com uma pilha de pão quente. O
cheiro apetitoso de carne carbonizada misturado com o odor menos
agradável de corpos sujos e peixe. Ladrões passavam como sombra
através das multidões junto com magros picaretas, dedos ágeis. Os
mendigos compartilhavam caminhos lamacentos com prostitutas,
cada um esperando ganhar uma moeda através da piedade ou
luxúria.
Gurn manteve um aperto firme em seu braço. Martise esperava que
soubesse o seu destino final, porque ela logo se perdeu, incapaz de
ver ou navegar um caminho para os limites do mercado. Felizmente,
seu tamanho abriu caminho por onde quer que passassem, logo
emergiram em uma parte mais silenciosa do mercado.
O gigante sorriu para ela e assinalou — Graças aos deuses! — Ele
imitou o ato de beber de um frasco.
Ressecada da longa viagem e apenas feliz em ficar em um lugar onde
a multidão não pudesse esmagá-la, Martise aceitou sua oferta com
entusiasmo. — Aí sim. Qualquer coisa, Gurn. Tenho uma boca cheia
de areia.
Ele levou-a para um balcão com toldo vendendo melões e bebidas
de frutas. O vendedor reconheceu Gurn e o recebeu com um sorriso.
— Gurn, fiquei imaginando o que aconteceu com você. Eu esperava
vê-lo na semana passada. — Ele piscou para Martise e curvou-se.
Ela assumiu a liderança de Gurn. — Podemos comprar duas de suas
bebidas?
O comerciante saltou para cumprir sua ordem, esmagando o melão
em uma tigela até que se assemelhasse nada mais do que uma pasta
cor-de-rosa. Ele acrescentou mel e vinho à mistura e derramou-o em
taças de madeira. Doce e refrescante, a bebida esfriou sua garganta
ressecada.
Enquanto Gurn a conduzia de volta para o caos do centro do
mercado, ela captou um breve vislumbre de vestes escarlates. A
multidão se separou o suficiente para ela ver Silhara de pé na borda
de uma tenda que vendia sedas de cores vivas, pilhas de tapetes
tecidos e bestas. Absorto na conversa com dois homens, ele não a
notou. Membros da tribo Kurman, por sua roupa e postura. De
cabelos negros e mais curtos do que os povos costeiros, usavam
calças completas, coletes e sapatos pontiagudos típicos dos nômades
das montanhas. Muito longe para ouvir sua conversa, ela os
observou conversar com Silhara em uma mistura de movimentos
dramáticos de mão e exclamações afiadas.
Ela perdeu de vista quando Gurn puxou-a através da multidão em
direção a outra barraca exibindo barrotes e jarros de vários
tamanhos. Ele a soltou quando estavam dentro do estande e fez sinal
para o mercador. Martise ficou parada e observou, fascinada,
enquanto Gurn negociava com uma combinação de sinais de mão,
grunhidos e instruções verbais do vendedor.
Uma batida em seu ombro a fez saltar. Ela girou, quase colidindo
com a pessoa que estava tão perto dela.
— Martise! Encontramo-nos de novo.
Se o chão abrisse de repente a seus pés, ela teria pisado
voluntariamente no abismo. O homem sorrindo para ela era
deslumbrante, bonito o suficiente para parar mulheres e homens em
suas trilhas para um segundo olhar. Um espesso cabelo loiro roçava
seus ombros musculosos. Os olhos que olhavam para ela estavam
pesadamente fechados – mais azuis do que um lago montanhoso e
mais raso do que uma poça de chuva. Ele tinha um rosto esculpido
de perfeição sem riscos, como se as divindades, se o Criador
escolhesse um momento para abençoar um ser humano com beleza
divina.
Oito anos antes, ele tinha sido um sonho vindo à vida, um presente
surpreendente para uma jovem mulher cuja posição e aparência a
impediu da chance de coisas como o amor e a presença de um
companheiro. Mas os sonhos desapareceram diante da realidade.
Ela tinha envelhecido desde então, se tornou mais sábia e descobriu
o homem vazio, oco por trás do rosto deslumbrante.
— Olá, Balian.
Sua saudação se transformou em um grito quando ele a ergueu e a
esmagou em um abraço entusiasmado. Ainda tremendo pelo aperto
inesperado, ela gemeu de novo quando Gurn quase quebrou os dois
braços de Balian a arrancando dele.
Atordoado pelo súbito ataque, Balian lançou um insulto sujo, depois
empalideceu quando deu uma boa olhada no socorrista de Martise.
— Ah, me perdoe. Eu não sabia que você estava aqui com seu
homem.
Ela foi tentada a deixá-lo acreditar nisso. Diante da óbvia postura
protetora de Gurn e do brilho de advertência, Balian faria um breve
trabalho de se recolher e desaparecer na multidão. Bonito, sim.
Bravo, não.
Ainda assim, a curiosidade superou a praticidade. O homem que a
apresentara aos prazeres carnais e lançado mentiras de fé e
adoração em seu ouvido não tinha ressuscitado muito de sua posição
original. Uma vez que era uma mão estável em Asher, Balian tinha
grandes sonhos de sair e fazer sua fortuna. Suas roupas, tão usadas
como as dela, revelaram que ele não tinha conseguido essa busca.
— Gurn é um amigo. — Ela tocou o braço do gigante. — Está tudo
bem, Gurn. Eu o conheço.
Gurn hesitou, então lentamente recuou, apenas o suficiente para dar
privacidade, mas ainda perto o suficiente para defendê-la, se
necessário.
Balian olhou para Gurn, cauteloso e se preparando para sumir na
multidão, caso o gigante de repente se voltasse para ele. Quando
Gurn o ignorou, deu a Martise um sorriso largo e coquete. — Você
não mudou, Martise. Ainda está servindo a Asher?
— Sim, embora sirva outra casa para o verão.
Ele olhou por cima do ombro e ao redor dela em uma falsa
demonstração de indagação. — Nenhum marido ou filhos
pendurados nas suas saias? Ah, espera. Você não tem permissão
para se casar.
Martise olhou para ele, impassível. Balian sempre teve um talento
para as farpas conversacionais.
— E você, Balian? Você deixou Asher para fazer sua fortuna no
mundo. — Ele corou sob seu olhar zombador, um que ela sabia que
Silhara apreciaria. O que ela já vira nesse pavão escuro e arrogante?
— O mundo foi cruel?
Suas feições se tornaram feias. — Mais do que foi para você. Eu ainda
sou um homem livre. — Ele pausou, tratando-a com o mesmo olhar
desdenhoso que ela tinha concedido a ele. — Às vezes eu não
entendo por que eu já te quis.
Tais palavras dele poderiam tê-la cortado ao mesmo tempo. Agora,
ela não sentia nada mais do que um leve aborrecimento por sua
fúria. — Você me acariciou porque “eu tinha um corpo mais bonito
do que a prostituta mais cara e uma voz que fez você gozar”. Pelo
menos eu acho que essas foram suas palavras. Você se gabou com
seus amigos enquanto estava no fundo de seus copos. Você não era
muito coerente na época.
Sua resposta contundente e falta de reação o deixou sem palavras.
Ele logo se recuperou e com uma oferta que fez uma mentira de seu
insulto. — Você sempre escondeu seus melhores recursos. — Ele
olhou de soslaio, olhando para suas saias longas e túnica em
camadas como se ele visse o corpo debaixo deles. — E você nunca
me deixou em falta. Venha comigo. Eu tenho um quarto próximo e
vinho contrabandeado de Karanset. Podemos renovar velhas
amizades.
Imaginava tal cena. Um mergulho perto do cais onde os quartos
foram separados por paredes finas como pergaminho e cheias ratos.
Ele a pegaria rápido no início, como sempre preferia. Contra a
parede ou sobre uma paleta infestada de piolhos manchada com a
evidência de seus acoplamentos anteriores. Os lábios de Martise
enrolados em repugnância, ela desejou um tiro rígido do Fogo de
Peleta para limpar o gosto repentino azedo fora de seu paladar.
— Não obrigado, — ela disse e se afastou. O grunhido ultrajado atrás
dela fez seu sorriso.
— Uma mulher como você não deve ser tão difícil, Martise.
Ela se virou para ele. — Um homem como você não deve apontar tão
alto, Balian.
— Cadela, — ele retrucou, alto o suficiente para Gurn ouvir. Gurn
avançou, quase em batendo Martise no caminho em seu zelo para
chegar a Balian. Seu antigo amante gritou de medo e fugiu para o
mar cheio de pessoas. Ela agarrou a parte de trás da túnica de Gurn
antes de seguir sua presa.
— Deixe-o ir, Gurn. — Ele olhou para ela, sua raiva um silêncio
palpável. Ela tomou sua mão e apertou. — Tais palavras só vão
magoar quando a pessoa dizendo significa algo para você.
Ele fez sinais para ela. Ela pegou o básico de sua pergunta e sacudiu
a cabeça.
— Ele foi importante para mim uma vez. Não mais. — Ela apertou
sua mão novamente. — Venha. Você não tem suprimentos para
comprar? Eu não quero ser mantida sobre as brasas por seu mestre
por distraí-lo de suas tarefas.
Balian sumiu de seus pensamentos enquanto seguia Gurn pelo
mercado e observava-o negociar com os vendedores sobre os preços
e quantidades de mercadorias com nada mais do que um tremor ou
um aceno de cabeça e uma sobrancelha levantada. No momento em
que eles fizeram o seu caminho para a área comum para encontrar
Silhara e parar para uma refeição, ele tinha comprado sacos de
farinha moída, frascos de azeitonas e mel, um barril de peixe
salgado, dois pequenos barris de vinho, um Par de cabras e novas
tosquiadoras – tudo para ser carregado na carroça no final do dia.
Tinha negociado até mesmo o preço do pano de lã e novelos de linha
que ela selecionou.
A área comum era um pub ao ar livre. Mesas e bancos cobriram a
área gramada, desprotegida do sol. Barracas que vendiam todos
tipos de alimentos, cerveja e vinho cercaram o perímetro e muitos
dos comerciantes e peixeiros, perseguiam as tabelas apregoando
suas mercadorias diretamente para os clientes.
Os aromas torturantes de carne de carneiro assado e carne de porco
misturados com o cheiro de pão assado provocavam suas narinas.
Seu estômago grunhiu e ecoou o de Gurn.
— Estou morrendo de fome. — Examinou as longas filas de mesas,
procurando um homem alto e ameaçador com um manto escarlate.
— Espero que o mestre não nos faça esperar até a noite para comer.
Depois de olhar para a multidão, Gurn apontou para uma mesa
perto do perímetro da área comum. Seu sinal inconfundível e
irreverente de – bunda de cavalo – lhe permitiu saber que tinha visto
Silhara. Ela riu e empurrou-o para as barracas de comida. — Por
favor, nos traga um pouco de comida. Estou pronta para roer uma
dessas mesas. — Ele hesitou, e ela o tranquilizou. — Eu vou ficar
bem. A área comum é mais segura do que o próprio mercado. Há
mesmo famílias com crianças pequenas aqui.
Gurn examinou a multidão, desta vez com um olhar de águia e
finalmente acenou com a cabeça. Martise o observou se dirigir para
uma barraca que vendia frango e prateleiras com espeto de carneiro.
Ela apontou para o manto escarlate várias mesas de distância e teceu
através de grupos de pessoas comendo e bebendo. A visão que ela
teve fez congelar o ar em seus pulmões. Se atirando atrás de um
grande homem que fazia o possível para encantar uma jovem
garçonete de corpete, Martise se escondeu na sua sombra e rezou
para que aqueles na mesa de Silhara não a tivessem visto.
O feiticeiro sentou sozinho em um lado, descascando uma maçã com
sua adaga de carregador. Do outro lado, Balian sentava com um
amigo, bebendo de uma xícara e rindo com raiva de algo que seu
companheiro disse. Martise murmurou em voz baixa. De toda a
sorte podre. Ela não se importou de Balian atirar insultos
diretamente para ela. Ela se importava se ele o fizesse na frente de
Silhara. Além da humilhação de ter um velho amante regalar o mago
com suas muitas deficiências físicas, ele poderia expor a mentira
dela ser aprendiz de Cumbria. Ela sabia que Silhara não acreditava
em uma palavra que Cumbria disse a ele. Ninguém acusou o
feiticeiro de ser muito confiante, mas a menos que ele a confrontasse
diretamente ou ouvisse a verdade de outra pessoa, Martise
pretendia se agarrar obstinadamente à história que o bispo
inventou.
Ela rodeou o casal de namorados e passou por um nó de mulheres
até encontrar um banco de canto fora de vista, mas perto o suficiente
para ouvir o que eles falavam.
As mães muitas vezes advertiam seus filhos para não escutarem as
portas ou janelas porque eles poderiam ouvir algo que eles não
gostavam. Aquela sabedoria se assentou nos ombros de Martise
quando ela captou o meio da conversa de Balian.
Ele bebeu o vinho, enxugando o canto da boca. — Plana como um
pau e tímida em torno de pessoas. Até que você a tenha no estábulo
ou em uma palete. Ela poderia chupar um homem seco com uma
língua que faz você ver o céu. E fode a noite toda. Belo corpo
também. Se eu não tivesse visto o sangue virgem no meu pau pela
primeira vez, eu poderia ter pensado que ela era uma prostituta.
Martise fechou os olhos por um momento e esperou que ela não
vomitasse. Há muito tempo, ela abandonara a ilusão de que Balian
cuidaria dela. Mas ouvi-lo derrubá-la diante de seu amigo e na frente
de Silhara – diminuí-la até que não fosse mais que uma cadela no
cio – a adoeceu.
Silhara se sentou no banco, em silêncio, seu perfil para seus
companheiros de mesa. Como intenção, como um suplicante em
oração, ele parou a maçã até que a longa espiral de casca caiu no
chão. Suas feições severas não davam nenhum indício de seus
pensamentos.
O companheiro de Balian encheu suas jarras de um jarro próximo.
— Muitas mulheres podem foder como doninhas, companheiro.
Mulheres mais bonitas. E você tem um rosto para atraí-las.
Balian se encheu com o elogio, lembrando Martise de uma rã-touro
na época de acasalamento. — Verdade, mas elas não tinham a sua
voz. Meu pau ficou duro só de ouvi-la falar. E quando ela gemeu... —
Seus olhos voltaram em êxtase. — Bons Deuses, eu quase atirei
minha semente toda vez.
Bile levantou em sua garganta. O amigo respondeu, mas muito
baixinho para que ela ouvisse. Balian, por outro lado, gritou sua
opinião. — Apenas a foda na escuridão, companheiro. Você pode
colocar qualquer cara que você quiser nelas quando você fizer isso.
Martise rezou a falta de reação de Silhara, significava que não
reconhecia quem Balian a insultou. Ela duvidava. Balian insistira na
forma poética de sua voz, e por tudo o que sabia, tinha mencionado
seu nome em uma conversa anterior. Silhara não era tolo.
Ele segurou a maçã em sua mão. Cortando-a em fatias, colocou-a
sobre a mesa. Limpou a faca em suas calças, virou-se e, rápido como
uma serpente impressionante, enterrou a ponta letal na parte de trás
da mão de seu ex-amante, onde descansou sobre a mesa.
O grito de dor de Balian rasgou a área comum, interrompendo toda
conversa. Ele se ajeitou e gritou novamente quando o movimento
puxou seu braço. Ele olhou para sua mão ensanguentada e depois
para Silhara, com olhos selvagens.
— Pelas bolas de Bursin! Seu estúpido bastardo!
Silhara também se levantou, agarrou o pulso de Balian e puxou a
faca com impiedosa eficiência. Outro grito agonizante inundou o ar.
Silhara limpou a lâmina ensanguentada no manto da camisa de um
espectador atordoado.
— Me perdoe, — disse ele com aquela voz calma e rouca. — Eu não
vi sua mão ali.
Sua expressão gelada desmentia sua sinceridade. Martise, chocada
com o que acabara de testemunhar, empurrou seu caminho através
da multidão crescente em torno da mesa. Balian tinha tirado sua
camisa. Apesar do sangue escorrendo de seus dedos, ele apresentou
uma visão que tinha muitas mulheres na multidão suspirando. Seu
amigo rasgou uma tira de tecido da camisa e enfaixou a mão ferida
de Balian.
Balian puxou uma faca da bainha na cintura, brandindo-a na frente
de Silhara com a mão boa. — Foda-se suas desculpas. Eu vou castrar
você.
Silhara sorriu e a multidão sugou um suspiro coletivo. — Você vai,
agora?
Uma voz atrás de Martise gritou para Balian. — Deixe, garoto. Esse
é o Mestre dos Corvos que você acabou de desafiar.
Balian empalideceu, mas não recuou. — Eu não me importo se você
é senhor de uma pilha de esterco. — Ele cuspiu nos pés de Silhara.
— E você é um covarde se você tem que usar a magia para ganhar
uma luta.
Silhara riu em diversão genuína. Ele tirou a túnica e a deixou cair
sobre a mesa. Balian o seguiu do outro lado enquanto caminhava
para um espaço livre, mesmo fora da periferia da área comum. A
multidão seguiu, fechando os dois combatentes até formarem uma
arena improvisada. Esmagada entre uma mulher de peixes suando
e um homem quase tão grande quanto Gurn, Martise empurrou para
uma visão clara da luta iminente.
A luz do sol brilhou no metal enquanto Silhara jogava sua adaga
habilmente em sua mão. — Você deveria ouvir o que o homem sábio
falou, rapaz. Aceite a minha desculpa pelo que vale a pena e vá. Eu
não preciso de magia para te estragar do esôfago as bolas.
Ele virou as costas para Balian em clara demissão. Martise se juntou
ao coro de gritos de advertência quando Balian gritou e se lançou,
com a adaga levantada. Silhara virou no último minuto, colocou a
carga do seu oponente com cuidado e esmagou a mão entre as
omoplatas. Balian caiu na multidão, evitando miraculosamente
apunhalar alguém. Os espectadores aplaudiram. Excitados por uma
crescente sede de sangue, eles empurraram-no de volta para a arena
temporária.
Silhara balançou a cabeça em desgosto. — Estupidez colossal
escondida por um rosto justo. Pelo menos os deuses às vezes são
justos.
Mais uma vez, o mago cortejou a morte virando as costas. Mais uma
vez Balian se lançou. Em vez de pisar de lado, Silhara virou e o
encontrou completamente, jogando um soco que estalou a cabeça de
Balian para trás e levantou-o em seus pés. Ele atingiu o chão em
nuvem de poeira.
Silhara ficou de pé sobre ele. — Você está começando a me irritar.
Balian ficou de pé e cuspiu um pouco de sangue. Um lábio partido e
uma mandíbula inchada não o impediram, lutou para se levantar.
Três corridas mais, com Silhara esquivando e derrotando cada
ataque com chutes, tapas e socos – mas nunca sua faca – e Balian
cambaleou. Sangrando e machucado, ele olhou para Silhara de um
olho ainda não enegrecido.
— Eu vou cortá-lo, feiticeiro. — Suas palavras eram mais arrastadas
do que um bêbado.
Silhara olhou para o céu, como se implorando aos deuses. — Então
você continua falando, menino bonito.
Balian o atacou novamente, e Martise gritou outro aviso. Silhara, de
rosto sombrio e obviamente cansado de brincar com seu oponente,
chutou seus pés para fora debaixo dele. Balian derrapou de costas
na terra. Antes de soltar um suspiro, Silhara sacudiu a faca de sua
mão e o prendeu no chão com os joelhos pressionados contra os
ombros de Balian. O ex-amante de Martise choramingou quando o
mago o montou. Armado com as duas facas, Silhara pressionou sua
espada na jugular de Balian e segurou a lâmina confiscada contra
sua bochecha.
— A multidão quase tem razão, rapaz. Você desafiou o Mestre dos
Corvos, mas lutou contra um bastardo de uma prostituta. Eu estava
lutando na lama enquanto você ainda estava amarrado às cordas de
sua mãe.
Martise prendeu a respiração enquanto pressionava a faca com mais
força contra o pescoço de Balian. Uma linha de sangue inchou acima
da lâmina. Por tudo o que ela detestava Balian, não queria vê-lo
morrer. Não por isso e não pela mão do homem que representava a
maior ameaça ao seu coração.
— Por favor, Mestre. Não faça isso.
Sua voz, suave e implorante, carregou sobre o barulho da multidão.
Silhara encontrou seu olhar, seus olhos negros planos. A faca cortou
mais fundo. Balian gemeu aterrorizado. O odor pungente da urina
encheu de repente o ar. Silhara continuou a fitá-la.

— Por favor, — repetiu ela. — Ele não vale a pena.


Uma sombra de humanidade retornou ao seu olhar. Ele piscou e
concentrou sua atenção em seu rival caído. — Você se mijou, não é?
Agora você conhece o gosto do verdadeiro medo. — Ele jogou a
adaga de Balian em sua palma de modo que a ponta apontada para
baixo, criando uma depressão na bochecha do homem caído. —
Essas marcas e cortes vão curar em algum momento e você será mais
uma vez a fantasia de uma rapariga de vida fácil. — Seu sorriso
diminuiu.
O que Balian viu nos olhos de Silhara o fez torcer e se contorcer,
apesar da ameaça de morte. Ele gemeu quando Silhara aprofundou
o corte sangrento em seu pescoço.
— Um momento, eu acho. Assim, a feiura interior não é mascarada
pela beleza.
Martise gritou ao mesmo tempo que Balian o fazia. — Não!
Ele a ignorou e se dirigiu a Balian. — Um movimento e vou cortar
sua garganta. Morrer bonito ou viver honesto. O que será?
Como um a multidão sibilou e gemeu quando Silhara esboçou
lentamente um projeto de meia-lua na bochecha direita de Balian.
O homem, batido, humilhado e cicatrizado, desmaiou.
Quando terminou, o Mestre dos Corvos levantou e atirou a faca de
Balian para que ela ficasse no chão perto de sua cabeça. Nenhuma
misericórdia suavizou sua voz. Nenhum remorso corou seu tom. —
Não se preocupe, rapaz — disse ele. — Ninguém vai notar isso se
você foder no escuro.
Capítulo
Treze
Neith precisava de chuva. O bosque cozinhava no calor seco do sol
poente, com as árvores perdendo folhas, derramando as vestes que
exigiam mais água. Se o tempo não cooperasse em breve e
fornecesse algum alívio, sua colheita no próximo ano sofreria,
possivelmente falharia.
Silhara ficou à entrada de sua varanda e soprou a mangueira unida
ao narguilé a seus pés. O hábito o acalmou, impedindo de chutar
móveis ou jogar objetos contra a parede em frustração. Deveria estar
agradecido de que o poço não tivesse secado. Em vez disso, ele
passou horas à noite perguntando se havia uma maneira de
manipular os rios invisíveis abaixo do solo para inchar e subir e
regar as raízes de suas árvores sedentas.
Se apenas chovesse.
Se Corruption só embalasse sua estrela e partisse.
Se o Conclave só viesse e recuperasse seu espião antes que ela
destruísse completamente seu equilíbrio e o fizesse cometer o único
erro que o condenaria à morte.
Ela estava na biblioteca agora, rabiscando suas anotações,
esperando que ele a encontrasse, para que pudessem refletir sobre o
que um bando de reis mortos há muito tempo fez para destruir um
deus há muito morto e como isso poderia ajudá-lo ou o sacerdócio a
destruir Corruption.
Ele soprou uma corrente de fumaça no ar, manipulando com a ponta
de um dedo até que se assemelhasse à insígnia espiral do Conclave.
O vórtice da vida para o centro da eternidade, um símbolo de
benevolência para um impiedoso, avarento cânone que tinha
esquecido a verdadeira magia do Dom concedido a eles. O símbolo
se desintegrou, retalhado pelos ventos incessantes do verão.
Silhara tinha pouca fé que o Conclave teria sucesso em seu esforço
para destruir Corruption. Birdixan e seus companheiros reis foram
descritos no pergaminho frágil como homens de grande posição e
nobreza. Salvo por Luminary, líder do Conclave, ele não poderia
pensar em nenhum padre que chegou perto de cumprir o papel de
Birdixan e seus irmãos: nenhum com o poder e habilidade para lutar
contra o deus e ganhar.
Birdixan. O nome o irritava. Tinha visto ou ouvido antes, mas não
se lembrava de onde. Martise, por toda a sua aprendizagem e talento
para recordar, não estava familiarizado com ele. Ele não podia
confiar nela completamente, mas tinha muita fé em suas
habilidades. Se ela não reconhecesse o nome, poucos o fariam.
O espião de Conclave estava se mostrando mais útil do que ele
esperava e mais atraente do que ele gostava.
Ele a tinha visto rapidamente no mercado de Eastern Prime
enquanto seguia Gurn de um posto a outro. Ela podia passar
despercebida na maioria das multidões, mas ele a virá facilmente
várias vezes. Ele nunca a virá tão alegre ou tão à vontade como
quando ela fez compras com seu criado e examinou o pandemônio
ao redor dela – pelo menos até que ela entrou na área comum e
ouviu seu amante difama-la nos termos mais grosseiros.
Ele observou do canto de um olho enquanto ela rastejava em direção
a sua mesa, seus olhos escuros com algum medo sem nome. Ele
estava descascando uma maçã, esperando pacientemente por ela e
Gurn para encontrá-lo. Ele não tinha prestado nenhuma atenção aos
dois homens sentados em frente a ele, não tendo interesse em
divagações de fanfarrões bêbados. Era o olhar fixo de Martise que o
fizera notar.
As observações de Balian e a visão do rosto de Martise, branco de
vergonha, fez seu temperamento subir. Por um momento, sentiu
como se o idiota estivesse insultando-o em vez de sua aprendiz. A
raiva, misturada com uma pouca quantidade de ciúme e
possessividade, rugiu através dele. Esfaquear aquele ponto na mão
do bastardo vulgar foi um longo caminho para acalma-lo. Corta-lo e
bater nele até sangrar tinha posto Silhara quase alegre.
Martise, visivelmente abalada pelo que testemunhou, permaneceu
em grande parte silenciosa o resto do dia, ocasionalmente lançando
olhares estranhos. Gurn não estava tão quieto. Ele tinha visto a luta
também e assinalado rapidamente, querendo saber o que aconteceu.
Silhara cortou — Ele insultou minha casa, — isso o satisfez.
Naquela noite, na estalagem, enquanto Gurn dormia perto da porta
de seu quarto e Martise dormia próxima em seu palete, Silhara
preparou um de seus tubos de mão e tomou uma fumaça calmante
pela janela. Abaixo dele, Prime Oriental lentamente escurecia,
lâmpadas piscando para fora dos pubs fechado e as famílias que iam
para a cama. Além da cidade, a baía cantou sua canção de ninar de
maré, ninando navios para dormir.
Ele se congratulou com o acordo que tinha feito com Fors. Apesar
de toda sua arrogância o homem sabia a qualidade do produto de
Silhara e a demanda para ele. Mesmo com o pagamento generoso
que tinha dado ao mago, ainda faria um grande lucro de vendas com
a população na cidade.
A bolsa pesada de moedas amarrada à sua cintura o tranquilizou.
Tinha feito bem, e embora a bolsa ficaria significativamente mais
leve, uma vez que pagasse os vendedores que Gurn tinha negociado,
eles estavam preparados para outra temporada. Sua reputação tinha
seus usos, seu Dom sua recompensa, mas não fazia comida aparecer
na mesa. Somente o trabalho duro, o roubo ou a bênção do direito
de nascimento da aristocracia fazia isso. Silhara estava intimamente
familiarizado com os dois primeiros e desdenhoso com o terceiro.
Um farfalhar de cobertores o fez olhar para onde Martise dormia.
Ela se sentou, o viu na janela e se levantou. Um raio de luz lunar
revelou a sombra das coxas esbeltas e a curva de um peito sob sua
pele antes de ela envolver o xale comprido em volta dela e se
aproximar dele. Seus pés descalços brilharam marfim na escuridão.
Achava-os bonitos. Ela cheirava muito bem – de sono e calor
feminino.
Ele apontou para a estrela da Corruption, agora pairando sobre a
baía. Sua voz era suave. — Os Kurman já não guiam seus rebanhos
para as Cataratas de Brecken. Corruption deixou sua marca. Os rios
são salgados e as cachoeiras sujas. As colheitas estão morrendo. As
árvores estão morrendo e os animais também. As cidades estão
esvaziando pessoas que procuram comida e refúgio nas grandes
cidades.
Ela balançou a cabeça. — Eu não entendo. Corruption espera
governar o mundo novamente. O que há para governar se todos
estão mortos e as terras devastadas?
— Chama-se cerco, aprendiz. Mate de fome seus inimigos, traga os
tão baixo que a promessa da necessidade mais básica parecerá um
presente dos deuses. Com paciência suficiente você pode quebrar
um homem até o ponto em que ele fará qualquer coisa que você
ordene. — Ele soprou em seu cachimbo. — Eficaz, se não original.
— Você acha que o Conclave vai encontrar uma maneira de parar o
deus?
— Eu duvido. A maior fraqueza do sacerdócio é a sua vaidade. Eles
vasculharão suas bibliotecas procurando um feitiço que matará o
deus, mas eles não podem usar o que seus antepassados usaram.
Corruption teve mais de mil anos para considerar como ele
derrotará seus adversários se tentarem novamente. Os sacerdotes
não olharão além de suas próprias paredes para uma solução. Eles
são o Conclave, detentores de todo o conhecimento e arcano que vale
a pena ter. — Seu sorriso era zombador. — Pelo menos aquelas coisas
que consideram importantes.
Ela esfregou a ponta da trança com os dedos. Silhara imaginou o que
todo aquele cabelo de cor vermelha pareceria fluindo livre sobre
seus ombros e descendo por suas costas. — Pode dizer-lhes o que
encontrou em Iwehvenn?
— Sim, mas eles vão ouvir? Eu não sou admirador dos sacerdotes,
nem eles de mim. Para ouvir, você tem que confiar, ou pelo menos
respeitar.
Ele soprou o cachimbo, esperando a verdadeira razão pela qual ela
se juntou a ele na janela.
Seus olhos, cor de cobre escureceu a obsidiana na luz fria da lua,
refletiu gratidão e os restos de vergonha. — Hoje, no mercado...
Silhara ergueu a mão e ela ficou em silêncio. — Quando eu tinha
nove anos, minha mãe atendia um comerciante rico todas as
semanas. — Seu lábio se curvou em um desprezo. — Ele se dignava
a descer para a sujeira do cais e pagar por uma hora do seu tempo,
às vezes uma noite cheia. Ela sempre me mandou embora quando
ele vinha para o nosso quarto. — Ele apontou a haste do cachimbo
para Martise. — Entenda, eu nasci de uma hourin, vivi em torno de
outro hourin e quase eu mesmo me tornei um. — A expressão de
Martise não mostrou nenhum desprezo em sua revelação.
— Eu não era um inocente sobre a natureza de sua profissão. Ela não
estava protegendo minha infância. — Uma velha repulsa, misturada
com raiva, o queimou por dentro. — O comerciante era um tipo
estranho e procurou minha mãe repetidamente. A última vez que ela
me empurrou para fora da porta, eu esperei em uma alcova, em
seguida, entrei furtivamente de volta para a sala. — A haste de tubo
ameaçou a encaixar em seus dedos. — Ele a arrastou de joelhos nas
mãos nuas, o seguindo ao redor e beijando o chão onde ele pisava.
— Martise ofegou e cobriu sua boca, seus olhos brilhando com
piedade e horror. — Ele não a pegou, não a tocou, não deixou que
ela o tocasse. Ele ganhou seu prazer ao ouvir o chamar de nomes, e
lhe dizer que escória imerecida ela era, como ela teve sorte de
respirar o mesmo ar que ele.
Silhara fez uma pausa, preso entre a necessidade de limpar a
imagem vil de seu sistema e tentar não vomitar ao reviver a
memória. Um toque de borboleta em seu braço acalmou suas
emoções ferventes. Os dedos de Martise descansaram contra sua
manga, um sussurro de conforto. Seu estômago se acalmou.
— Ele gozou no chão e a fez lamber, então a chamou de puta antes
de sair.
A mão de Martise cerrou o braço. — Nenhuma criança deveria
ter que testemunhar isso, — ela sibilou no escuro. — E nenhuma
mulher deve sofrer. Era um monstro, não um homem.
O passado não podia ser mudado, mas Silhara sentiu como se um
peso sufocante deslizasse para fora de seu peito. Havia exigido sua
vingança décadas antes, negociado justiça de rua que não deu certo.
Mas só agora ele sentia como se a sombra hedionda daquela
memória tivesse diminuído. Não questionou por que, depois de
tanto tempo, escolheu desabafar a uma mulher cujo propósito era
governado pelo Conclave. Ele tinha usado para fazer um ponto.
Tinha se transformado em outra coisa. Ele confiava que ela ouvisse
e não julgasse. Ela o devolveu com um fecho tranquilizador. Foi o
suficiente.
— Os monstros são tão vulneráveis quanto os homens. Eu segui o
mercador quando ele saiu. — Ele encheu a boca com fumaça de
cachimbo e a soprou pela janela, a observando flutuar, serpentina,
no ar antes de se dissipar. — Tirar uma vida deixa sua marca na
alma. Eu não tenho cicatriz de tomar a dele.
Martise tirou a mão de seu braço, Silhara imediatamente sentiu falta
de seu toque. — Ele mereceu, o que quer que você tenha feito com
ele. E mais.
Ele ficou em silêncio, observando os navios balançando na baía.
— Você sabia que Balian falava de mim.
— Imaginei. Os homens não são propensos a cera poética sobre a voz
de uma mulher quando eles podem falar sobre seus seios em vez
disso. Ela teria que ser excepcional para que isso fosse observado.
Sua voz é excepcional.
— Você não precisava fazer isso.
— O que? Faze-lo sangrar? — Silhara encolheu os ombros. — Eu
gosto de uma boa briga, embora ele não era um grande desafio. Seu
amante poderia aprender uma coisa ou duas sobre lutar com facas.
Seus olhos sombreados brilharam. — Ele não é meu amante.
Por razões que ele se recusou a considerar, ficou contente de que o
detestável Balian fora relegado para o seu passado. — Ganhou um
pouco de sabedoria, não é?
— Idade e experiência fazem isso para uma pessoa.
— Verdade. Deve haver alguma recompensa para ossos rangendo e
cabelos grisalhos.
Ele riu e ela riu suavemente. Eles ficaram perto da janela por quase
uma hora depois disso, quieto, até que Martise escondeu um bocejo
atrás da mão dela e lhe desse boa noite.
Agora, a vista de Neith era de planícies e árvores em vez de mar,
consentiu em sua fumaça sozinho. Uma vez, ele acolheu tal solidão,
mas as coisas mudaram. Ele sentia falta de momentos de
camaradagem, o sentimento de companheirismo que nem mesmo
Gurn, apesar de sua natureza afável, poderia proporcionar.
Os acontecimentos no mercado continuaram a tocar em sua
memória. Silhara tinha empurrado sua adaga na mão de Balian com
gosto, esperando que ele quebrasse o osso e cortasse os tendões.
Embora desprezasse o homem por seus insultos, não poderia banir
as imagens que surgiam em sua mente – ele no lugar de Balian, com
Martise vestida apenas com o sol e a queda de seu cabelo solto, de
joelhos diante dele, sua boca o levando em uma profunda carícia.
Ele pressionou uma palma contra sua crescente ereção.
Ela continuamente o surpreendia. Desprezível na superfície, ela era
um estudo em contrastes. Ela pulou para sua própria sombra, mas
enfrentou um Lich para salvá-lo. Ele tinha corrido em seu socorro
quando ela gritou alto o suficiente para fazer o telhado cair, apenas
para ver seu Dom lançar Corruption através do quarto. Ele não mais
acreditava que ela fosse naturalmente submissa. Calma, sim, e boa
em esconder suas emoções quando ela desejava. Mas aquele olhar
baixo tinha muito menos a ver com reconhecê-lo como superior e
mais a ver com esconder o fato de que ela às vezes queria bater os
dentes em sua garganta.
E ela serviu em Neith. Mesmo sabendo sua reputação e o fato de que
ela ficaria sozinha com dois homens em um reduto isolado com
nenhuma esperança de resgate se eles decidirem prejudicá-la, ela
viria a ele como seu falso aprendiz. Cumbria deve ter prometido que
suas grandes recompensas valeriam tanto. Ele primeiro assumiu o
dinheiro, mas semanas passadas em sua companhia provaram que
ele estava errado. Martise foi motivada a agir como olhos e ouvidos
do bispo, mas a promessa de moeda não era a atração.
Isso o agradou. Tal mulher sem ser incomodada por sua penúria e o
trabalho por sua sobrevivência, faria bem aqui em Neith. O
pensamento correu como neve derretida por ele. Ele atirou a
mangueira do narguilé para o lado com desgosto.
Um beijo, poderoso o suficiente para incinerar cada último pedaço
de sua razão e atear fogo ao seu sangue, o fez sonhar sobre um futuro
nem possível, nem desejado. Neith já estava bastante cheia com ele,
Gurn e Cael em sua residência. Uma ocasional houri, comprada por
uma noite, era companhia feminina suficiente.
Seus olhos se fecharam. Disse a si mesmo que os efeitos residuais de
seu dom deslizavam sobre ele – através dele – traziam aquele
abraço. Mas ele não acreditava em suas próprias mentiras. Ele a
beijou porque a queria, porque a admirava. Porque queria mais do
que apenas a essência etérea de seu sabor persistente em sua língua,
uma vez que seu Dom se retirou. Ele a beijara por impulso, atraída
pela tentadora curva de seus lábios e a leve sensação dela em seus
braços. Ele esperava que ela se retirasse de sua investida.
Cavalheirismo não estava em sua natureza e estava desesperado
para prová-la. Mas ela não tinha recuado de seu abraço áspero, ao
invés, respondeu com uma paixão igual a sua. Apenas uma pequena
voz interior o impediu de levá-la para a cama, abaixar suas calças e
subir em cima dela.
“Espiã. Cumbria montou uma armadilha”.
Silhara colocou as brasas no narguilé. Sempre ouvia essa voz. Isso o
salvara inúmeras vezes. Uma mulher tranquila que não perdeu nada
e se lembrou de tudo poderia muito bem pegá-lo em uma heresia
garantida, poderia levá-lo ante um tribunal do Conclave,
especialmente se ela assumiu o papel de amante, bem como
aprendiz. Até agora, teve sorte que seus confrontos com Corruption
estivessem confinados em seu quarto de dormir – um quarto que
Martise ainda não tinha entrado. Ele tinha visto a suspeita
espreitando em seus olhos quando perguntou se ele pensava que o
Avatar renasceu. Se alguma vez testemunhasse as breves posses de
Corruption sobre ele, estaria condenado. Teria que matá-la para se
proteger, agora recuou diante da possibilidade.
Do lado de fora, o sol ainda banhava o Oeste em traços de vermelho
e laranja, mas os corredores de Neith já estavam engolidos na
escuridão. Silhara passou por suas sombras enquanto caminhava
para a biblioteca.
Silhueta à luz de velas, Martise se inclinou sobre uma página de
notas, arranhando furiosamente com sua pena. Olhou para cima
quando ele entrou e lhe ofereceu um sorriso hesitante.
Ela levantou um maço de pergaminho. — Eu descobri mais sobre o
ritual, o que alimentou seu poder. A colina onde eles prenderam
Amunsa era solo sagrado, uma bolsa de Old Magic ainda existentes
fora do Lixo.
Ele arrastou um banquinho ao lado do dela e sentou. Suas narinas
se contraíram. Flor alaranjada e hortelã. Gurn tinha arrumado suas
lojas de perfume novamente e deu uma fragrância para Martise.
Seus lábios curvados. Seu servo poderia ser encantador.
Ele pegou o papel e digitalizou a escrita. — O Tor de Ferrin é um
lugar assim. Os pastores que pastoreiam suas ovelhas, juram que as
ovelhas que comem a erva que cresce no morro, carregam os
cordeiros mais saudáveis com a melhor lã. Mais alguma coisa sobre
Birdixan?
— Um pouco, embora eu não consiga decifrar o significado. — Ela
lhe entregou mais dois folhas de sua pilha. — Cada vez que Birdixan
é descrito como invocando poder contra Amunsa, este símbolo está
incluído ao lado de seu nome. Nenhum dos outros reis magos tem
esse símbolo – ou qualquer símbolo como esse – em seus nomes.
Perto do fim, quando Birdixan morre, o símbolo não aparece mais.
Silhara leu o texto traduzido e franziu o cenho. Como o nome de
Birdixan, o símbolo, um par entrelaçado de cubos com lados e linhas
iguais, era familiar.
— Eu vi isso em algum lugar. Em uma parede do templo ou tatuado
em um padre. Você não o reconhece?
Ela balançou a cabeça. — Não. Eu só posso supor que não é
Helenese. Eles preferem desenhos mais curvos. Isto é quadrado e
muito angular. O roteiro dos povos Glimmer é uma série de
quadrados e linhas. Posso ler e falar quatro dialetos de Glimming e
nunca me deparei com nada assim, então hesito em fazer uma
comparação.
Silhara olhou para o símbolo. — Birdixan aqui é descrito como um
rei do sul. Acho que é mais do que uma coincidência que o símbolo
e esse rei desconhecido são uma reminiscência das terras distantes.
— Ele leu mais. Uma passagem chamou sua atenção, uma frase
quase desapercebida nas descrições floridas do ritual. Birdixan –
engoliu – o deus antes mesmo do ritual começar. A inquietação
rastejou através de sua alma como pernas de aranha.
Ele se levantou do assento. — Eu tenho alguns pergaminhos
Glimming. Na maior parte é poesia obscura. — Ele estremeceu. —
Coisas horríveis, mas meu mentor gostava e reuniu cada pedaço que
poderia colocar suas mãos. Talvez isso ajude.
Trabalharam em silêncio durante as próximas três horas. A lâmpada
de Martise acendeu e Silhara, enjoada de ler várias páginas de odes
melosos para mulheres chorosas e excessivamente mimadas, deixou
de lado os livros e esfregou os olhos. Martise ainda estava curvada
sobre a mesa, rabiscando. Ela fez uma pausa, abaixou a pena e
sacudiu a rigidez de sua mão.
— Mais alguma coisa? — Perguntou.
— Nada vale a pena a menos que você esteja interessado em linhas
de família. Transformei pelo menos vinte gerações de antepassados
para três dos reis. — Ela deu a ele um sorriso cansado. — Eles eram
um grupo prolífico.
Silhara se esticou na cadeira e ficou de pé. — Quando você tem uma
dúzia de esposas e algumas centenas de concubinas, você pode
esperar gerar rebanhos de crianças. — Ele veio para ficar diante dela.
— Trabalharemos novamente amanhã. Você está pronta para a
lição?
Sua expressão era muito menos entusiasmada do que quando
começaram a trabalhar com seu dom. Ela suspirou. — Sim, embora
eu tenha medo que seja um desperdício do seu tempo. De que vale
um dom se você não pode usá-lo para feitiços?
Ele entendeu sua frustração. Eles tinham trabalhado no controle de
seu Dom desde o seu retorno do Oriente Prime. Tinha sido bem-
sucedida em invocá-lo e dirigir seu surgimento. No entanto, ele ficou
perplexo que nenhum dos feitiços que ela tentou funcionou. Seu
recitar era impecável, sua execução tão boa quanto a dele, mas nada
aconteceu. Eles tinham tentado cada tipo de feitiço. Movimento. Ela
ainda não podia levitar. Invocações de incêndio e água. O fogo que
queimava alegremente na lareira da biblioteca nem sequer
chamejava quando tentava convocar as chamas. E a água
permaneceu na taça. Silhara até a encorajou a cantar, se preparando
para o abuso inevitável em seus ouvidos, apenas no caso de sua voz
ter melhorado e seu Dom fosse cantar. Depois de algumas notas, ele
a deteve, certo de que qualquer coisa mágica que o Dom controlasse,
cantar um feitiço, não era.
Ela se levantou para encará-lo, seus ombros caídos de cansaço.
— Não se enfureça — disse ele. — Nem se sinta adulada.
Sua observação cáustica funcionou para tirá-la de sua melancolia.
Seu olhar caiu para o chão, mas seus ombros estavam rígidos, como
se ela segurasse o desejo de bater nele.
Silhara sorriu. — Vamos tentar algo diferente hoje à noite.
Ela ficou boquiaberta quando ele tirou a adaga da bota e passou a
ponta afiada da lâmina sobre a palma da mão. Sangue correu por
trilhos sobre sua mão, deslizando entre seus dedos para escorrer
pelo chão. Ele estendeu a mão manchada para ela.
— Cure isso.
Impotente pelo sangue, ela tomou a mão dele, segurando-a entre a
dela. Suas palmas calosas estavam quentes em sua pele, acariciando.
Ele ouviu enquanto recitava um feitiço de cura após o outro. Seus
olhos se fecharam em concentração. Tão concentrado em tentar
invocar algo que pudesse curar sua ferida, ela perdeu o controle de
seu Dom. O calor instantâneo sufocou o corpo de Silhara. A magia
não diluída penetrou em seus poros, seu espírito, mesmo quando
sua mão doía e sangue escorria de seus dedos. Seu Dom inchou
dentro dele, se alimentando de seu poder.
Martise, seduzida por seu Dom tanto quanto Silhara, levantou a mão
e colocou-a em seu peito acima de seu seio. O batimento cardíaco
contra a palma ensanguentada ecoou o que batia em sua cabeça.
Embora se distanciasse do fascínio de seu Dom, ele ficava
enfeitiçado por como ele a transformou. Sua aparência não mudou.
O mesmo queixo pontudo e nariz pequeno, cabelos ruivos e boca
pálida. Mas todos foram realçados, embelezado e feitos bonitos por
sua magia.
Ele quase sucumbiu à tentação, para deslizar a mão sobre a túnica
até que ele agarrasse seu seio pequeno. Felizmente, a picada em sua
palma o manteve lúcido suficiente para combater seu desejo e puxar
a mão dele, deixando uma mancha vermelha em sua pele e um laço
quebrado entre eles. Seu gemido, tenso e gaguejado, fez sua própria
magia nele. Ela poderia muito bem ter estendido a mão e acariciado
seu pênis.
Ela abriu os olhos, viu sua mão ainda sangrando. Seus ombros
caíram. — Não funcionou.
— Não. Por tudo o que o seu Dom pode golpear deuses e Lichs, como
ratos na pata de um gato, ele não funciona com feitiços.
Ele olhou para o sangue em sua palma e a mancha em sua pele. Uma
marca de território, uma reivindicação, não importa que ela tenha
colocado a mão lá em primeiro lugar. Enquanto se concentrava em
curá-lo. Uma poderosa necessidade também se sustentava, para
proclamar que aquela mulher pálida, com seus traços prosaicos e
seu espírito extraordinário, lhe agarrou de repente.
Aterrorizado por seus sentimentos, Silhara se afastou e caminhou
até a porta. — Já terminamos aqui — disse ele por cima do ombro.
Seu tom era lamentável. — Mas a sua mão...
Ele fez uma pausa, mas manteve suas costas para ela. — Ainda está
sangrando. Você não pode curá-la. Vá para a cama, Martise.
Ele saiu, batendo a porta atrás dele. O ocasional plop de gotas de
sangue golpeando o chão o acompanhou quando ele bateu para
baixo. A porta que ligava o grande salão à cozinha caiu contra a
parede oposta. O domínio de Gurn era mais negro do que uma
cripta, mas Silhara encontrou seu caminho infalivelmente para o
armário que abriga a garrafa do servo, de Fogo de Peleta. Ele varreu
os copos das prateleiras até que encontrou uma grande taça e
derramou uma generosa porção de espíritos. Sua maldição era alta
e viciosa quando bateu o joelho no banco contra a mesa de trabalho
e sentou.
O Fogo viveu até o seu nome, chamuscando um caminho de sua boca
para suas entranhas. Os olhos de Silhara lacrimejaram. — Pelas
bolas de Bursin — ele suspirou e inclinou a taça de volta para outra
dose derretida. Drenou e encheu a taça até a borda, despreocupado
que amanhã seria tentando a arrancar os olhos para fora, pela dor.
Um barulho de movimento na porta o advertiu de que tinha um
visitante. Levantou sua bebida em sua mão ferida, a haste de cálice
escorregadia contra seus dedos. — Olá, Gurn. — Ele lutou para
moldar as palavras em torno de uma língua inchada. — Quer tomar
uma bebida?
O tilintar de xícaras rolando um contra o outro no chão e o silvo de
gordura aceso na lareira quebrou o silêncio de resposta. Uma luz
vacilante lançou uma coroa sobre a mesa onde Silhara se sentou. Ele
protegeu os olhos da luz da vela e amaldiçoou. — Você não podia
simplesmente sentar no escuro comigo, não é?
Uma vez que seus olhos se ajustaram, baixou a mão para olhar para
Gurn sentado diante dele. O criado gesticulou para a mão ferida e o
sangue na mesa e na taça.
Silhara passou a mão na superfície da mesa com a manga. — Um
teste para a minha aprendiz. Ela falhou. — Ele levantou a taça e
brindou a mulher lá em cima. Gurn começou a subir, mas foi
interrompido pelo comando afiado de Silhara.
— Não se preocupe. Vou cuidar disso no meu quarto. Quero que faça
outra coisa por mim.
Ele terminou a bebida e pegou a garrafa de novo, só para ter Gurn a
agarrando fora de seu alcance e a colocando de volta no armário.
— Eu não tinha terminado, — ele estalou. A expressão de Gurn era
eloquente. Sim ele tinha.
Silhara lhe jogou a taça. — Bem. Eu me curvo aos direitos
territoriais. — Ele se levantou lentamente, aliviou quando o quarto
girou apenas uma vez antes de parar. Gurn o observou, uma mistura
de preocupação e leve diversão arranhando seus contundentes
traços.
— Eu quero que você vá para Eastern Prime. Traga de volta uma
menina do Templo da Lua. Eu não me importo com como ela pareça,
apenas se certifique que ela tenha ossos pequenos, de certa altura.
— Ele mediu com a mão. A altura era semelhante à de Martise.

Qualquer vestígio de humor fugiu da expressão de Gurn. Seus olhos


se estreitaram, seu azul brilhante achatando-se a cinza. Ele balançou
a cabeça, as mãos cortando padrões irritados no ar enquanto
assinava sua recusa em termos não incertos.
Sua própria raiva aumentando acima de sua bebedeira, Silhara
cruzou seus braços. — Não estou perguntando a você, Gurn. Estou
dizendo a você.
Os dois homens olharam para cada um por um longo momento.
Finalmente, Gurn rosnou baixo em sua garganta, chutou copos para
fora de seu caminho e beliscou a chama de vela para uma boa
medida. O golpe da porta era estrondoso na escuridão implacável
enquanto ele saiu da cozinha.
— E uma boa noite para você também, seu bastardo hipócrita, —
Silhara gritou.
Não era culpa dele que a pequena espiã de Cumbria o tivesse
amarrado em nós. Melhor que ele use o dinheiro do bispo para
comprar o tempo de uma houri para uma noite. Sem promessas do
coração, sem emoções emaranhadas ou vulnerabilidade. Somente
uma transação comercial em que os favores comprados de uma
prostituta aliviariam o desejo consumindo para a mulher enviada
para o trair.
O Fogo teve pleno efeito no momento em que ele cambaleou para a
porta. Desorientado pela bebida e pela escuridão, caminhou uma
vez para um armário e depois para a parede antes de conseguir
tropeçar no grande salão. — Gurn, você idiota, — ele murmurou, se
agarrando ao corrimão fraco da escada. — Eu vou te matar, quando
te ver, em seguida. Com aquela vela que você apagou.
Bêbado e ainda sangrando, conseguiu murmurar o feitiço para
bruxaria, subiu as escadas até seu quarto sem quebrar seu pescoço e
cair em sua cama. Ele arrancou as roupas, enrolando a mão na
manga até que rasgou a camisa para se libertar. O teto ondulou e ele
fechou os olhos para não ficar doente. O sono o alcançou
rapidamente, seguido por poderosos sonhos manchados pela
presença da Corruption.
Martise, nua e vulnerável diante dele. Imagens dele a tomando de
uma miríade de maneiras, seu pênis deslizando em sua boca, seu
clitóris, entre suas nádegas. Ele gemeu em seu sono, sua mão intacta
se movendo sob as coberturas para segurar a base de seu pênis ereto
e balançando.
A voz do deus cintilou sobre ele como a língua de uma serpente. —
Ela será sua. Use-a da maneira que lhe agrada. Jogue fora quando
você se cansar dela. Inúmeras mais serão suas para comandar e
usar. Posso fazer isso por você.
As imagens se intensificaram, friamente sedutoras. Ela era servil e
silenciosa, nunca encontrando seu olhar enquanto ele a tomava,
nunca retornando uma carícia ou implorando um beijo. A memória
interferia na manipulação dos desejos por parte do deus. Sua mãe,
abjeto diante de um homem em forma de sapo. O vazio em seus
olhos. O cheiro da urina.
O último quebrou o domínio da Corruption em seus sonhos. Ele
congelou, a mão ainda curvado em torno de seu pênis.
Seu estômago agitou ao toque invasivo do Deus e muito fogo, o deus
da pele. Sangue obstruiu suas narinas. Ele riu, o som arrastado e
grosso.
— Um devasso comum agora, Corruption? Na verdade, você é a
personificação da maravilha divina.
Uma dor agonizante o atingiu entre os olhos, como se alguém
dirigisse a ponta de uma lança em seu crânio. Enrolou em torno de
si mesmo, ofegante e segurando a cabeça. O suor escorria de seu
corpo como a dor viajou para baixo, passando os membros.
—Um pouco de sua zombaria, mago. E suas repreensões. Se você
não vai ceder, não importa. Há outras maneiras.
Sua dor desapareceu abruptamente. Silhara jazia tremendo e
perguntando se estava morto. E por um momento a imagem das
características do Iwehvenn Martisor, finas com o choque e
compaixão, passou por trás de seus olhos fechados. Fique comigo.
Adormeceu de novo e assim despertou passado amanhecer com a
boca cheia de lã, uma cabeça cheia de estilhaços e um lado dolorido.
O sangue manchou as roupas de cama. Apertando os olhos contra a
luz da manhã impiedosa, rolou para fora da cama e tropeçou para o
urinol para esvaziar sua bexiga. Depois, de lavado e vestido com a
água fria em sua bacia, atormentado por lembranças enevoadas de
discutir com Gurn e ter um interlúdio sexual com Martise em seus
sonhos.
Apesar da batida entre seus ouvidos, lançou um feitiço de cura em
sua mão ferida. Esperando apenas para diminuir a dor e prevenir a
infecção, ficou surpreso ao ver a ferida perto de desaparecer.
Remanescentes do Dom de Martise ainda residia dentro dele. Nunca
antes possuiu a habilidade especial para cicatrizar completamente
com a magia. Uma suspeita criou raízes e cresceu.
Quando caminhou lá embaixo descobriu Martise e Cael na cozinha.
Deixando cair sobre o banco, gemeu e apertou os dentes com o
cheiro de mingau e manteiga. Martise levantou de seu lugar na mesa
e aqueceu a chaleira de chá. A taça cheia de laranjas apareceu diante
dele ao lado da chaleira. Seu estômago soltou e ele empurrou a tigela
de lado.
— Deixe aquelas longe de mim antes que eu vomite.
Ele abençoou-a em silêncio quando ela os substituiu com um copo.
— Você quer alguma coisa? — Sua voz era simpática.
O chá balançava enquanto servia da chaleira ao longo da borda do
copo com a mão trêmula. — Só se você puder me oferecer uma nova
cabeça, juntamente com o chá. A minha está prestes a explodir.
Ela sorriu, então estremeceu quando Cael começou a latir para o
cantar do galo na parte da manhã no pátio. Silhara quase deixou cair
a taça para cobrir seus ouvidos.
— Fora! — Ele rosnou para Cael, o silenciando instantaneamente. O
cão escorregou em direção à porta e deitou, olhando para seu mestre
com uma expressão magoada.
Martise tocou em seu braço. — Eu encontrei os copos no chão esta
manhã e o fogo em uma estante diferente. Você ainda tem um pouco
desse projeto que você me deu?
Silhara concordou e desejou que ele não tivesse. — Assim que o chá
terminar e puder caminhar em linha reta, eu estou indo para o
alambique.
Ele respondeu à sua pergunta silenciosa. — Mandei Gurn ao Eastern
Prime. Ele estará de volta esta tarde. Enquanto isso, você terá que
assumir seus deveres. Vou trabalhar no bosque sozinho. E preciso
que prepare um quarto no segundo andar. Nós teremos um
convidado esta noite. — Seu estômago se revirou ainda mais com o
pensamento dela descobrindo o propósito de seu visitante.
Suas sobrancelhas se ergueram, mas ela não se intrometeu. — Eu
vou tê-lo pronto quando eles chegarem.
A expressão condenatória de Gurn brilhou diante dele, seguida por
uma onda de remorso. Silhara grunhiu em seu copo. Ela era apenas
uma serva aqui e um servo do Conclave. Não lhe devia fé nem
explicação.
Uma visita à câmara para uma dose de um elixir revitalizante
restaurou sua humanidade. Trabalhar no bosque ofereceu uma
pausa pacífica. Colher e manter as árvores era um trabalho difícil e
interminável, mas ele o abraçou. O bosque o validou, refletiu o quão
longe ele havia se levantado e o que havia superado.
Ele pegou as árvores mais perto da casa. Todas as janelas estavam
abertas, permitindo que uma brisa fluísse pelas salas, às vezes ouvia
Martise admoestar Cael por alguma indiscrição menor enquanto a
seguia e ela terminava suas muitas tarefas. Fez uma pausa. Havia
uma sensação de retidão em ouvir sua voz, sabendo que ela se moveu
através de sua mansão como sua guardiã. Ele imaginava como seria
se ela morasse aqui permanentemente, se tornasse sua amante.
Ele interrompendo seu trabalho e o dele, pegando a mão dela e a
levando para a câmara que eles dividiriam e faria amor com ela
durante a tarde. Ela olhava para ele com um sorriso, o tocava com
mãos amorosas e o acariciava com aquela voz sedutora.
Silhara amaldiçoou e cortou um cacho de laranjas, quase cortando
os dedos no processo. Tal contentamento doméstico não lhe
convinha. Ele fez bem o suficiente em Neith com apenas Gurn e Cael
para a companhia. No entanto, quando Martise o chamou para a sua
refeição do meio-dia, se juntou a ela ansiosamente.
A tigela de sopa que ela colocou na frente dele era perfumada com
legumes e ervas. Ocupada colocando pão, manteiga e a chaleira
sobre a mesa, sentia falta de seu suspiro apreciativo.
Ela lhe entregou uma colher. — Eu pensei que você poderia preferir
isso hoje. Também há vinho, se quiser arriscar.
Seu estômago se revirava ao pensar no vinho, mas conseguiu
consumir metade do pote de sopa e um pedaço de pão. Martise não
olhava para ele em espanto. Estava acostumada com seu apetite e
bebeu sua tigela de sopa enquanto devorava a dele.
Ela encheu sua xícara de chá. — Preparei o quarto a duas portas do
seu. É o único com uma cama ainda utilizável. Há água no jarro e
panos se o hóspede desejar se limpar quando chegar. Eu também
limpei o espelho, embora não haja nada a ser feito sobre as
rachaduras.
Ele franziu o cenho em sua xícara de chá com a persistente sensação
de culpa. Ela não era sua esposa, nem sua amante. Apenas outro
servo em sua casa. Como Gurn. Seria tão complacente se soubesse
que seu convidado era uma houri trazida para entretê-lo por uma
noite?
Ela estava no meio de limpar a mesa, enquanto ele terminava o pote
de chá, quando Cael de repente soltou outra rodada de latidos.
— Vou matar aquele maldito cão.
O rangido das rodas de vagão anunciou o retorno de Gurn. Silhara
se preparou para mais desaprovação de Gurn e não ficou
desapontado. O gigante entrou na cozinha, uma nuvem de
condenação em seu rosto normalmente afável.
— Gurn, bem-vindo de volta! — A saudação alegre de Martise só
serviu para escurecer seu rosto ainda mais. — Por que você não veio
pela porta da frente?
Silhara ouviu a perplexidade em sua voz. Seus olhos se arregalaram
quando o criado conduziu seu companheiro para a cozinha. Um
ofego suave de Martise pontuou sua própria surpresa.
Gurn não trouxe para casa qualquer houri. Silhara ficou boquiaberta
com a mulher mais linda que já tinha visto. Longos cabelos pretos,
arranjados e presos com clipes de joias, foram varridos de volta para
cair em grossos cachos pelas costas. Lisa, pele de mel implorou para
ser acariciada. Seu rosto era requintado, com nariz esguio e lábios
vermelhos pintados, que se curvavam em um sorriso vívido que
destacavam as delicadas maçãs do rosto. Seus olhos verdes eram
habilmente esboçados em kohl, aumentando sua forma exótica. Ela
tinha um corpo para fazer a água da boca de um homem, de ossos
pequenos e com generosas curvas. Uma infinidade de tecido
escarpados e coloridos envolviam sua forma. Com exceção de sua
altura e de sua delicadeza, ela era a completa antítese de Martise. E
ela deve ter lhe custado uma fortuna.
A houri se curvou, suas mãos pequenas apertadas como se em
oração. — É uma honra ser convocada para servi-lo, Mestre de
Neith. — Tinha uma voz bonita, alta e doce.
Um som estrangulado atingiu seus ouvidos. Quando olhou, Martise
estava ocupada limpando os pratos da mesa, com a cabeça baixa e o
rosto virado. A graça que costumava exibir a tinha abandonado, ela
empilhou as tigelas com um movimento desajeitado. Ele olhou para
Gurn, cujo olhar fulminante ameaçava mata-lo no local.
Silhara assentiu para a houri em saudação e fez sinal para que Gurn
se juntasse a ele em um canto distante da sala.
— Você perdeu a cabeça? — Ele estalou em voz baixa. — Eu mandei
você para o Templo da Lua para uma houri que não teria a varíola.
O que você fez, pedir a prostituta mais cara no bordel?
O sorriso sarcástico de Gurn confirmou sua suspeita.
Silhara viu vermelho. — Seu insolente bastardo. Estou tentado a
carregá-la na carroça e fazer você levá-la de volta. Mas é isso que
você quer, não é? Bem, esta noite você pode sentar nesta cozinha e
mastigar a ideia de que eu estou lá em cima fodendo dois meses de
comida para nós.
Ele não achou possível o bastardo assinalar uma desculpa como um
rato bastardo nascido em um esconderijo, mas de alguma forma
Gurn conseguiu. Silhara foi interrompido por uma reverencia
grunhida por Martise se dirigindo a houri.
— Eu sou Martise, senhora, criada e aprendiz aqui. Se me
acompanhar, vou lhe mostrar-lhe o quarto que preparei para a sua
estadia.
O intestino de Silhara queimava, tanto em seu cumprimento
educado para a houri como no fato de ela ter limpado aquele quarto
sem saber o uso pretendido. O grunhido baixo de Gurn destacou seu
desgosto. Passou atrás das mulheres e saiu da cozinha. A houri
sorriu e inclinou a cabeça para Silhara enquanto Martise a conduzia
até a escada. Martise nunca olhou para ele.
Deixado sozinho na cozinha e se sentindo mais baixo do que uma
larva, fugiu para o bosque e desabafou sua frustração nos ninhos de
vespas abrigados nas árvores, congelando ou queimando-os com
feitiços que faziam sua cabeça doer quando ele terminou.
Quando o jantar foi chamado, se sentou à mesa e olhou para o horror
culinário em seu prato. Só sua refeição era um desastre, uma
mistura quase intragável de carne de porco queimada em um pedaço
de carvão negro e mingau de grãos aquosos com todo o gosto de um
pedaço de mobília. Gurn sentou tão longe dele no banco quanto
podia, sem cair da borda e olhou para ele como se ele fosse um inseto
que gostaria de esmagar sob seu sapato e esfregaço no chão para
uma boa medida. Martise se recusou a olhar para cima de seu prato.
Ela comeu metódica, perguntou a sua convidada sobre sua viagem a
Neith, em seguida, ficou em silêncio.
Somente a houri, que se apresentara como Anya, não tratava Silhara
como um pária. Ela sorriu, o elogiou pela beleza antiga de Neith, os
confortos de seu quarto e a solicitude de seus servos.
Silhara empurrou a bagunça no prato com a faca antes de desistir.
Ele se levantou e encontrou o olhar de Anya. — Quando você
terminar, vá para o seu quarto. Encontro você lá.
De volta à sua câmara, ele preparou o narguilé e fumou a tigela até
as escórias. Martise. A mulher sorridente que saiu de um casulo de
passividade cautelosa para rir e brincar com ele, tocar seu braço e
oferecer o fogo de seu beijo se foi. Em seu lugar, um fragmento de
gelo se sentou diante dele e comeu seu jantar como se o mundo além
de seu prato tivesse deixado de existir. Ela não tinha levantado os
olhos o suficiente para ver a piedade no olhar de Gurn, mas ele tinha
e seu peito apertou.
— Você é o Conclave, — ele murmurou ao redor de uma faixa de
fumaça. — Você serve a vontade dos sacerdotes. Eu sou seu mentor.
Você é minha aprendiz. Nada mais. — Se ele dissesse o suficiente,
poderia começar a acreditar nisso.
Ele retirou suas roupas, se banhando e mudou em uma túnica solta.
Descalço, se dirigiu para a câmara de hóspedes preparada por
Martise. A houri sorriu quando o viu. Envolvida em suas sedas
transparentes, reclinou na cama em uma pose inventada para
mostrar seus encantos consideráveis para sua melhor vantagem. Ela
se levantou, seus quadris balançando sedutoramente quando se
aproximou dele e colocou seus braços esguios sobre seus ombros.
— O que você quer de mim? Eu sou tua esta noite.
Ela era macia e flexível em seus braços. Apesar de sua inquietação e
da desaprovação retumbante de suas ações do resto de sua pequena
casa, o desejo subiu dentro dele. Ele a abraçou, passando as mãos
pelas costas para cobrir as nádegas arredondadas.
O inesperado cheiro de kohl e vermelhão atingiu suas narinas. Ele
esperava flor de laranjeira e sabão. Fez uma pausa. O cabelo
comprido de Anya escovava suas mãos, ele o imaginava vermelho
em vez de negro. Ela se moveu em seu abraço, batendo sua virilha
suavemente, alargando sua postura de modo que seu pênis encostou
contra a seda cobrindo sua boceta. Um gemido baixo pendurou
preso em sua garganta quando sua mão pequena deslizou entre eles
para seu pênis. Dedos ágeis jogavam sobre a sua ereção, suas bolas,
o acariciando através da túnica longa.
Ele acariciou seu pescoço, arrastando beijos pelo lado de sua
mandíbula. Seu traseiro encheu suas mãos, arredondado e firme.
Ela era exuberante, com curvas, seios macios e mãos hábeis. Ainda
assim, um fio frio o percorreu – um desapego, como se sua mente
agisse independente de seu corpo e observasse sua brincadeira com
um tédio divertido. Seu pênis a queria. Sua mente não.
Frustrado, procurando o fogo que lambeu seus membros quando
segurou outra em seus braços, Silhara se afastou. Uma ideia veio a
ele, uma que poderia ter a houri olhando estranhamente para ele.
Não importa. Ela foi paga para agradá-lo, qualquer que fosse seu
prazer.
O espelho rachado encostado na parede oposta era enorme, um luxo
comprado por um mestre anterior de Neith gerações anteriores.
Apesar do dano, ainda era uma peça impressionante e refletia a luz
da vela em seu rosto claro. Ele ignorou a expressão perplexa de Anya
e a virou para encarar o espelho.
Eles formavam um par impressionante, ambos de cabelos escuros e
corados pelo calor de seu abraço. Ele apareceu atrás dela, alto e
austero. Em contraste, ela era pequena e sensualmente bonita. Ela
lhe lembrou as flores perfumadas florescendo na costa em tons
brilhantes de magenta rosa e laranja. Esse olhar intrigado mudou
para um de hesitação quando Silhara gesticulou e o ar ondulou ao
redor dela.
Ele colocou as mãos nos ombros dela. —Eu quero dizer que isso não
te fará mal. Isso é apenas temporário. Assista.
Sua mão passou por seu rosto, deixando uma aura de prata em seu
rastro. A aura cintilava ao redor dela, transformando, iluminando o
cabelo de Anya até avermelhar, alterando suas feições até que sua
beleza desaparecesse, ela parecia estranhamente fora de lugar em
suas sedas coloridas. A houri tocou seu rosto. Seus olhos, agora
cobre em vez de esmeralda, se alargaram em pânico. Ela
choramingou.
Silhara lhe acariciou o cabelo. — Calma, mulher. Isto não é nada
mais do que uma máscara. Uma ilusão. Vai desaparecer em algumas
horas ou mais cedo se eu quebrar o feitiço.
Seus ombros caíram em alívio e seus olhos mudaram fechados por
um momento. Quando os abriu e sorriu, toda a sua fome reprimida
se libertou. Ela era Martise. Silhara deslizou seus braços ao redor de
sua cintura fina e a trouxe de volta contra ele. Suas mãos espremidas
sobre seu corpete de joias, que ele coçou para arrancar o objeto dela.
Os olhos de Anya se encontraram com os dele no espelho. — Ela não
sabe, não é? Que você a deseja? Que a quer acima de todas as outras.
Ela o encarou e ele colocou um dedo em seus lábios. — Shhh. Não
fale. Há coisas na beleza que nem minha magia pode recriar.
Ela se arqueou em seus braços, sinuosa e graciosa, enquanto ele
tirava suas sedas e lhe permitia retirar a túnica. Suas mãos estavam
acostumadas a tocar apenas os lugares certos, da maneira certa para
trazer o maior prazer. Ele acariciou seus peitos, sua nádega, e
deslizou seus dedos sobre a curva lisa de sua buceta raspada. Ele não
beijou sua boca, nem ela. Ele sabia o caminho a tomar. Eles podiam
usar a boca de maneiras que desafiavam ou horrorizavam a
imaginação, mas nunca beijavam os homens – ou mulheres – que
atendiam na boca.
Ele a guiou até a cama e se deitou. Ela se levantou acima dele, se
dobrando, passou a língua e as mãos por seu corpo, acariciando e
lambendo. Durante alguns minutos ele sentiu seu toque e viu seu
longo cabelo castanho fluir sobre sua barriga e coxas enquanto ela
beijava um caminho para seu pênis. Aquela primeira queimadura de
desejo, quando ele tinha transformado suas feições, tinha
fraquejado. Ele era um ilusionista justo, mas não era suficiente. A
houri poderia usar o rosto de Martise por um breve tempo, mas ela
não era Martise. Era diferente, se sentia diferente, agia de forma,
diferente. Mesmo ficar em silêncio não ajudou e a fantasia que ele
tentou jogar neste quarto desmoronou.
Silhara ergueu os joelhos e empurrou suavemente a cabeça de Anya
para longe de sua ereção amolecida. — Chega, — ele disse e a puxou
para que se deitasse contra seu lado. — Estou desfeito.
Frustração, luxúria, necessidade. Todos corriam alto em seu sangue,
mas não para a mulher que compartilha a cama com ele. Olhou para
o teto, se perguntando se Gurn tinha trancado sua já dizimada
garrafa de Fogo de Peleta. Se ele não conseguisse encontrar a
libertação no corpo disposto de uma prostituta, o encontraria no
esquecimento de outro ataque de embriaguez.
Ele olhou para Anya quando ela se levantou sobre um cotovelo e
pairou sobre ele. Quanto mais ele olhava, menos ela se parecia com
Martise e o feitiço ainda estava firmemente no lugar. Seus olhos
eram simpáticos, mas a alma atrás deles não era de Martise.
— Posso falar?
Ele assentiu.
Ela pegou sua mão, pressionou sua palma contra sua bochecha. —
Ela é mais do que este rosto. Você deseja o que nenhuma bruxaria,
nem truque de hora em hora pode criar. Suas ilusões e minhas
habilidades servem para nada. Não sou a mulher que você quer.
Suas palavras trouxeram para casa a profundidade de seu desejo.
Ele fechou os olhos, lutando contra o terror. Ela beijou sua mão. Ele
abriu os olhos e colocou um dedo em seus lábios perfeitos.
— Se você disser alguma coisa, eu cortarei sua língua. — Suas
palavras faltaram qualquer mordida, embora significasse cada
palavra de sua ameaça. Martise o havia destronado diante de uma
houri e ela nem estava ali. Ele estaria condenado e Anya morta antes
que deixasse tal humilhação se tornar combustível para fofocas e
risadinhas nos mercados.
Anya arqueou as sobrancelhas, divertida. — Eu não seria a Houri
Prime no Templo se eu contasse histórias do quarto.
Se o fiasco de seu desejo frustrado não tivesse matado sua ereção,
sua declaração sobre seu status teria feito isso. Silhara gemeu em
agonia.
— Ah deuses, quanto você me custou?
Ela disse a ele, que gemeu mais alto. Levantou, se vestiu, desfez a
ilusão e a instruiu a se vestir também. Ela esperou por ele na porta
enquanto ele apagava as velas e apagava uma das lanternas. Ele
pegou o restante iluminado e a guiou para o corredor, para descer as
escadas até o primeiro andar. Parado diante da porta fechada da
câmara do lado da cozinha, ele bateu forte e esperou. A porta se
abriu. Gurn, com os olhos arregalados, nu e segurando um porrete
em uma mão, os cumprimentou.
Silhara sorriu maliciosamente. — Bem, se você não é uma visão? E
aqui eu pensando que era eu e minha reputação que deixava os
visitantes longe de Neith. — Ele não deu a Gurn tempo para digerir
sua aparição súbita em sua porta. Em vez disso, puxou Anya na
frente dele e cutucou-a pelo limiar.
Os olhos de Gurn giraram e se arregalaram como pratos. Anya
assobiou, seu olhar admirado notando todos os seus dotes.
Silhara escondeu sua diversão atrás de uma carranca. — É melhor
você gostar dela. Ela é o seu jantar para os próximos dois meses. —
Seus olhos se estreitaram. — E se alguma outra vez me servir como
fez esta noite, vou pendurar o teu cadáver na maior laranjeira e
deixar que os corvos te despojem dos ossos.
Ele caminhou de volta para a cozinha, sorrindo fracamente. Pelo
menos um deles desfrutaria de um presente tão caro. O sorriso
morreu. Ele pretendia passar uma noite solitária em seu quarto,
queimando uma tigela de tabaco e amaldiçoando a aprendiz que o
trouxera para baixo diante de uma prostituta.
Ele olhou para cima, para a escuridão da escada do terceiro andar e
perguntou se ela dormia. Sombras coaguladas atrás dele, arrastando
os pés enquanto ele continuava subindo as escadas e descendo o
corredor até seu quarto.
Capítulo
Quatorze
Martise colocou uma mecha de cabelo em sua trança e preparou-se
para o café da manhã no andar de baixo. Ela esperava que seus olhos
inchados não atraíssem a atenção. Então, novamente, ela esperava
encontrar apenas Gurn e Cael se juntando a ela na cozinha esta
manhã. O mestre da casa estava ocupado.
Lá fora, o céu estava cinzento e o ar pesado com o cheiro da chuva.
Em outro dia, ela se alegraria com a tempestade que se aproximava.
Neith e as fazendas e pomares vizinhos estavam secos, desesperados
por um dilúvio. Mas hoje o tempo refletia seu humor, ela fechou as
persianas contra o céu sombrio.
Seu estômago deu um nó e seu peito doeu. — Ele não é nada mais do
que um caminho para a liberdade, — ela murmurou. Uma repetição
das palavras que tinha cantado para si mesma na noite anterior,
enquanto estava deitada em sua cama e chorava lágrimas tranquilas.
Ela tinha sido iludida em acreditar que o Mestre dos Corvos não
merecia bem sua reputação. Ela estava errada. Sua crueldade sutil
era de tirar o fôlego, lembrando-a do aviso de Cumbria quando
chegaram a Neith.
— Ele possui uma língua afiada e eviscerou mais de um oponente
infeliz em uma conversa. Você não seria páreo.
O bispo estava certo, depois de tudo. Silhara empunhara a faca que
a tinha destruído, mas nunca disse uma palavra. Até mesmo os
insultos grosseiros de Balian empalidece em comparação com o
desprezo silencioso do mago.
Ele a beijara como se estivesse faminto por ela. Não um beijo suave
que persuadiu e questionou, mas que possuía e exigia paixão
recíproca. Ela tinha dado a ele com prazer, arqueado em seu corpo
magro, espalhando suas coxas para sentir o peso dele contra ela. Ela
se encaixaria em cada espaço angular, como se os deuses a tivessem
feito especificamente para ele. Ele provava como vinho doce e
cheirava a laranjas de verão. Todos os seus sentidos se afogaram no
calor de sua proximidade e a sensação de suas mãos calosas sobre
ela.
A princípio, Martise culpou o poder de seu Dom e pela conexão
estranha e intensa que Silhara tinha com ela. Ele acreditava como
ela, instruindo a controlar seu talento excessivamente
entusiasmado. Ela tinha mudado de ideia quando eles tentaram
curar sua mão. A conexão de seu Dom era falha, seu poder ligado
por seu crescente controle, mesmo quando os olhos negros de
Silhara queimaram enquanto descansava sua palma sangrenta
contra seu peito. Seus dedos se contraíram, derrapando por uma
fração, como se quisesse cobrir seu peito.
Martise, que mal se atrevia a acreditar que o Mestre dos Corvos a
achasse desejável sem a bênção de seu Dom, prendeu a respiração e
esperou. Ele fugiu.
Ela estava dividida entre a advertência de não aproveitar o momento
e pateticamente grata que não tinha. Silhara de Neith poderia ter
sido movido a sentir algum desejo fugaz por ela. Mas ele a rejeitou
no final – e levou para casa seu ponto da maneira mais devastadora.
Ele prefere pagar pelos prazeres de uma mulher dotada de uma
beleza impressionante do que tomar o que Martise livremente
oferecia.
Ou talvez não tivesse pensado nela.
Isso a fez se levantar. Silhara era mais do que capaz de distribuir
insultos enigmáticos e insinuações maliciosas, silenciosas ou não.
Mas em sua experiência, ele geralmente preferia uma abordagem
mais direta. Se ele não a quisesse porque a achou carente, não teria
simplesmente dito a ela? E em termos que não deixavam espaço
para dúvidas ou perguntas? Teria mandado buscar a houri porque
queria uma mulher e via Martise como nada mais do que um par de
mãos adicionais para trabalhar em seu bosque?
A raiva incinerou sua melancolia. Ela não sabia o que a enfurecia
mais – a ideia de que ele a rejeitava porque não conhecia seus
padrões, ou a noção de que ela não era mais notável do que um
banco ou uma cadeira e, portanto, nunca considerou em sua decisão.
Ela rosnou, endireitou as saias com um estalo e ergueu o queixo. Ele
não valia suas lágrimas e certamente não suas afeições. Suas ações
lhe lembraram o porquê de estar em Neith em primeiro lugar e não
era para se tornar sua amante.
Entrou na cozinha, indiferente ao aroma de frito de presunto e ovos
com manteiga e parou.
Gurn, com o olhar inconfundível de um homem muito contente com
o mundo, sentou à mesa com a houri próxima a ele. Sua grande mão
acariciava espirais invisíveis sobre as costas de Anya, às vezes
pausando para brincar com seus cabelos grossos enquanto caía em
cascata sobre seus dedos. Ela era tão requintada na luz da manhã
mais dura como ela estava no brilho da vela da noite. Ela sorriu e
passou a mão pelas costelas e abdômen de Gurn, deslizando para
baixo. Presos uns aos outros, nem notaram outra presença.
Martise, atordoada pelo que viu, limpou a garganta. Os dois se
afastaram como adolescentes presos num corredor. Gurn ficou
avermelhado quando viu Martise, mas Anya apenas sorriu e acenou
para a mesa.
— Martise! Bom Dia. Venha sentar comigo. Gurn é bom com suas
mãos, mas eu ainda não consigo entendê-lo. — Ela piscou e riu
quando ele corou ainda mais com sua insinuação e levantou para
levantar uma panela de bacon picante do fogo.
Apesar de seu mau humor, Martise sorriu. A houri era um espírito
amigável e alegre, seu único artifício era a tinta carmesim nos lábios
e o kohl sob os olhos. Enquanto a imagem de Silhara nu nos braços
desta mulher fazia seu estômago revirar de ciúme, Martise não
podia não gostar dela. Ela foi paga para prestar um serviço. A
emoção não entrou na transação. Mas além disso, Anya parecia uma
mulher amável, que sorria gentilmente e se inclinava com respeito,
como se Martise fosse a amante da casa em vez de outra criada.
Então por que a houri, paga para passar a noite com Silhara, estaria
na cozinha tocando Gurn?
Anya deu um tapinha no local que Gurn desocupou como convite.
Martise assentiu. — Me deixe ajudar Gurn primeiro.
Gurn lhe entregou um copo e acenou. Ela sentou enquanto Anya
serviu o chá e encheu seu próprio copo. Ela olhou para onde o criado
se agachava perto da lareira, enchendo os pratos com sua comida
perfumada.
— Eu acho que eu poderia visitar Neith novamente, por minha
própria vontade. Se o cheiro dessas panelas é qualquer coisa para se
julgar, Gurn é tão bom cozinheiro como ele é um amante. Eu acho
que talvez eu deveria pagá-lo por uma noite tão boa.
Confusa pela confirmação de que Anya passara a noite com Gurn em
vez de Silhara, Martise olhou para os olhos de coruja. — Mas eu
pensei que Sil... o mestre trouxe você para o prazer dele.
Os olhos de Anya estavam medindo enquanto olhava para Martise
sobre a borda de sua xícara. — Assim parece. Mas, às vezes, isso não
é suficiente, quando não é o verdadeiramente desejado, — ela
acenou com a mão pelo rosto e pelo corpete.
Considerando a aparência de tirar o fôlego da houri, Martise achou
isso improvável, mas um barulho de passos na porta que dava para
o pátio a impediu de questionar Anya. Gurn colocou seus pratos
sobre a mesa. Abriu a porta e Cael entrou. O rastreador de magos
ignorou Anya e se arrastou debaixo da mesa para encontrar seu
lugar habitual sob os pés de Martise. Gurn olhou para fora,
balançando a cabeça. Ele assinalou para Martise.
— Ah não.
Anya olhou para Gurn, depois para ela. — O que está errado? O que
ele disse?
— As nuvens estão começando a clarear e sair. Se chover, não cairá
aqui.
Um grito — Não! — Fez as três pessoas e o rastreador de magos
saltar.
Martise e Anya abandonaram seus assentos para perseguir Gurn
enquanto corria para o grande salão. Um som rápido soou no teto
acima deles. Silhara, vestido apenas de calças e olhando com olhos
selvagens e enfurecido, desceu as escadas. Ele fez os últimos passos,
balançando sobre a grade e caiu agilmente em seus pés. Correu pelo
corredor que conduzia ao bosque. A pequena comitiva o seguiu com
Cael liderando o caminho.
Lá fora, Silhara parou. Acima dele, as nuvens de tempestade
estavam lentamente retrocedendo, diminuindo em pontos para
revelar um céu azul largo e implacável. Martise estava com Gurn e
Anya por perto. Ela olhou para Cael. Os olhos do rastreador de
magos brilharam vermelhos.
Silhara levantou o punho para o céu. — Você é meu!
Ele procurou o chão, chutando galhos fora do caminho até que ele
encontrou uma vara longa e resistente.
— O que ele está fazendo? — A voz trêmula de Anya ecoou a
inquietação em seus olhos arregalados quando ela procurou o olhar
de Martise.
Martise não respondeu, apenas observou Silhara enquanto
desenhava um amplo círculo ao redor dele com a vara. Uma
barreira. O mago pretendia chamar magia perigosa, do tipo que
poderia derrubar seu invocador. O homem jogava com sua própria
vida tão descuidadamente como crianças brincavam com
brinquedos.
— Gurn, precisamos voltar para a casa.
Alertado por seu tom, o criado fez com que as duas mulheres
parassem no abrigo da entrada da porta.
Um vento sutil girou das nuvens, levantando o cabelo de Silhara até
que enrolou seu corpo e obscureceu seu rosto em serpentes pretas.
De pé no centro do círculo, ele ergueu os braços, as palmas das mãos
curvadas para cima na posição de um invocador. O círculo da
barreira iluminou em torno dele em um anel do fogo branco. Martise
sugou em um duro suspiro, seu Dom despertando dentro dela.
Nuvens de obsidiana, inchadas com chuva e fraturadas por
relâmpagos, fervidas no Leste. O vento se fortaleceu e se abateu
sobre o bosque em uma tempestade estridente. Laranjeiras curvadas
em seu rastro, suplicantes diante de um deus mal-humorado.
— O que ele está fazendo? — As palavras de Anya foram arrebatadas
no turbilhão que se levantava. Ela se encolheu atrás de Gurn, os
olhos alinhados em kohl e assustados. Cael uivou, agarrando a
trança de Martise enquanto ela batia sobre seu ombro.
Martise agarrou o braço de Anya, tanto para ficar ereta como para
tranquilizar. — Ele está invocando a tempestade! — Sua resposta
gritada não era mais do que um sussurro no lamento do vento. —
Vai matá-lo, Gurn!
Ele agarrou seu cotovelo em um aperto inflexível. Martise não lutou
contra ele. Apesar de suas palavras, ela sabia que era um esforço
inútil tentar parar Silhara. Interrompê-lo em meados da invocação
era tão perigoso quanto suas tentativas de forçar a tempestade em
sua direção.
Seu estômago se agitou. Ele era poderoso. Ela tinha testemunhado
a força de seu dom e o quão duro ele teve que controlá-lo, mas só o
poder de Deus poderia aproveitar a força e imprevisibilidade do
tempo. Os poucos grandes magos que tinham conseguido curvar a
Natureza por um breve tempo, foram lendários, e todos, exceto um,
sofreram horríveis mortes no evento.
— Por favor, — ela sussurrou, orando para que qualquer deus
pudesse ouvir que ela e Gurn não teria que enterrar os restos
obliterados de Silhara no bosque que arriscou sua vida para salvar.
A poeira soprava para cima em uma névoa corajosa, encobrindo o
bosque e todo o Neith. Martise quase perdeu de vista Silhara em
meio à nuvem sufocante. Seus lábios se moveram, recitando
palavras antigas inaudíveis, mas sentiram na terra ancorando-o no
lugar. O chão ressoava, ecoando o trovão, o vento cheirava
intensamente, com o cheiro do dilúvio que se aproximava.
Ele bateu palmas. A luz índigo disparou dos espaços entre seus
dedos e arqueou para o céu. Martise ofegou e cobriu as orelhas
enquanto o ar ao seu redor se comprimia com um súbito silêncio
punitivo. Como ela, Gurn e Anya seguravam suas mãos sobre suas
orelhas, e a houri gritou. A luz se precipitou em direção à linha da
tempestade, apertou a cabeça do trovão em um abraço estilhaçado e
a arrastou para o bosque. Nuvens entraram em colapso sobre si
mesmas, lutando contra a implacável atração do feitiço de
convocação de Silhara.
Deslocando-se cada vez mais perto do bosque, um raio atingiu o
chão em lanças brancas e carmesim. A grama, ressequida pela longa
seca, explodiu em chamas em seu caminho. Uma laranja dividida
sob um relâmpago, explodiu em uma coluna de fogo.
O trovão rachou acima deles enquanto as nuvens começavam a
girar, girando cada vez mais perto de Neith até que penduraram
sobre a casa e arvoraram como o véu de uma viúva, com o vento que
agita um protesto sobre o domínio de Silhara. Uma rajada de
relâmpagos disparou através do ventre da tempestade e o céu se
abriu.
O bosque, curvado para o vento, foi imediatamente molhado em
folhas de chuva cinza. Seca e rachados de meses de assar no sol
impiedoso, o chão sedento correu rios de água. A luz índigo
desvaneceu-se lentamente nas nuvens escuras, um último
remanescente do feitiço de invocação. Martise observou, seu
coração em sua garganta, enquanto Silhara abaixava seus braços. A
chuva escorria de seu peito nu e seus ombros enquanto ele caiu de
joelhos na lama, com a cabeça baixa.
— Ele fez isso — A voz de Anya estava fraca.
Martise correu na chuva com Gurn e Cael em seus calcanhares. Gurn
a ultrapassou e alcançou Silhara primeiro. O criado colocou uma
mão hesitante no ombro do mago e apertou. Silhara levantou a
cabeça e Martise deu um suspiro trêmulo. Ela rezou para a chuva
caindo escondeu suas lágrimas enquanto estava na frente dele e
encontrou seu olhar preto. Seu rosto estava esticado, brilhando com
a chuva. Ele cheirava a enxofre, e seus cabelos presos em suas
bochechas e pescoço em fios molhados, mas sua expressão era quase
feliz.
Martise queria gritar com ele, gritar que era um idiota, que um
monte de árvores não valia a pena sua vida, que ela o amava e não
queria chorar por um homem que tinha roubado sua posse mais
guardada por ela, seu coração.
Em vez disso, estendeu a mão. — Você sairá da chuva, mestre? —
Sua voz era suave, quase perdida no bater da chuva. — Há chá esta
manhã, um fogo aceso na lareira da cozinha e aqueles que
comemoram e agradecem a Bursin que você vive. — A mão de Gurn
flexionou no ombro de seu mestre em suas palavras, e Cael ganiu.
Silhara olhou para a mão dela por um momento antes de envolver
os dedos frios em torno dela. Ele tremeu em seus pés. Gurn se
aproximou até que o mago o acenou de volta. — E você, aprendiz?
Por que você agradece ao deus alado?
Por um momento seus olhos carregaram o relâmpago da
tempestade. Ele olhou para Anya que ainda pairava debaixo do
dossel da porta, depois de volta para Martise.
Ela hesitou, insegura de sua pergunta. Será que ele não achava que
ela estava tão aliviada quanto Gurn, que ele não era uma casca de
fumo incendiada pelo relâmpago? Ou ele havia percebido sua
crescente esperança de que era Gurn, em vez dele, a quem Anya dava
prazer na noite anterior?
Ela esquivou de sua pergunta não dita. — Você está bem e inteiro, e
seu bosque tem água.
Sua boca curvou em um sorriso sem humor em sua resposta. Eles
caminharam lado a lado de volta para a casa, liderados por Gurn e
Cael. Silhara parou uma vez para olhar para trás a ruína agora
carbonizada da árvore queimada.
Anya se afastou do limiar para lhes dar espaço. Ela olhou para
Silhara, maravilhada. — Já ouvi os contos. Você é conhecido como
um dos maiores magos nascidos. Mas isso? — Ela balançou a cabeça.
— Um invocador de relâmpagos? — Ela inclinou-se, como saudando
a um rei.
Silhara enxugou seu cabelo molhado de seu rosto e fez ela se
endireitar. — Você faz muito disso, senhora. É como convencer uma
mulher, nada mais.
Martise discordou, tentando não olhar para ele com a mesma
expressão impressionada como a houri. Por duas vezes ele invocou
poderosos feitiços conhecidos por matar seus usuários e sobreviver
às duas vezes. Apesar de sua roupa encharcada e joelhos lamacentos,
estava majestoso diante deles. O poder residual de seu Dom,
misturado com a fúria da tempestade, brilhava ao seu redor, o
deixando em pálido resplendor. Até mesmo Gurn o observava com
uma expressão quase reverente.
Silhara se irritou com o silêncio. — Bem? Saia do caminho. Quero
sair dessas calças molhadas. E minha aprendiz me prometeu chá.
Uma briga desajeitada no corredor estreito, com Anya tentando
evitar ser esmagada entre pessoas molhadas e o cachorro molhado,
quando eles se dispersaram. Gurn fez o seu caminho para a cozinha
com Anya e Cael perto, atrás dele. Silhara seguiu Martise até a
escada. Ela fez uma pausa, esperando que ele a alcançasse para
poder segui-lo. Ele a acenou com uma mão impaciente, pingando
poças de água e parecendo mais irritado a cada momento.
Martise subiu as escadas, seus sapatos fazendo barulho a cada passo.
Suas costas tremiam. Silhara subiu perto dela, perto o suficiente
para ela sentir o cheiro da magia sobre ele, junto com o cheiro
persistente de enxofre misturado com tabaco.
No segundo andar, ela aumentou o espaço entre eles, subindo as
escadas para o terceiro andar. Sua voz a interrompeu no meio do
caminho.
— Martise. — Seus olhos brilharam na escuridão. Ela tomou fôlego
pelo tom em sua voz. — Seque seus cabelos junto ao fogo da cozinha.
Eles olharam um para o outro, Martise afundou em um olhar de
meia-noite sem estrelas, puxado pelo poder sedutor de sua
presença. Ela assentiu com a cabeça. — Como quiser. — Sua própria
voz estava rouca. Continuou subindo as escadas, seu olhar pesado
em suas costas quando ela subiu.
Seus dedos tremeram enquanto tirava suas roupas encharcadas e as
deixava cair em um montão encharcado ao pé de sua cama. Ele a
devorara com aquele olhar na escada, seus olhos negros ardendo.
Gurn teria sido o único a se beneficiar das habilidades de Anya? Ao
contrário de seu servo, Silhara quase tremia com uma tensão
frustrada e usava a expressão de um homem que não dormia havia
dias.
— Seque seus cabelos junto ao fogo da cozinha.
Ela trabalhou rápido para afrouxar as mechas molhadas do cabelo
de sua trança apertada. Não tinha sido um pedido. Se ele tivesse
pedido a ela para arrancar suas roupas na escada, ela não teria
hesitado.
A cozinha estava quase cheia quando ela voltou, vestida e com os
cabelos soltos e úmidos nos ombros. Encurralado no banco, com os
cotovelos sobre a mesa, Silhara bebeu chá e embalou o tabaco na
tigela de seu tubo com cuidado meticuloso. Olhou para ela, notou
seus cabelos e voltou à sua tarefa. Vestira-se como de costume, com
uma camisa branca desgastada e calções cinzentos que antes eram
negros. Gurn, seco e já com outra roupa, andava pela cozinha,
aumentando o fogo na lareira e limpando o café da manhã frio. Anya
se encostou na porta e observou a chuva encharcar o pátio em uma
folha cinza.
Martise estava junto ao fogo e sacudiu a cabeça quando Gurn fez
sinal para que ele aquecesse a refeição. Seu estômago fazia
cambalhotas sob suas costelas. Comida era a última coisa que
queria.
Silhara voltou sua atenção para a houri. — Anya, não é?
— Sim.
Levantou e aproximou de Martise. Ele se inclinou para o fogo,
colocou um pedaço de palha na chama e a usou para acender seu
cachimbo. O crepitar de tabaco queimando se juntou com os sons na
lareira quando desenhava na tubulação. O aroma picante de tabaco
encheu a cozinha.
— Está chuva pode durar o dia todo. Não posso pagar outra noite.
Então Gurn levará você em meu cavalo de volta ao Oriente Prime na
tempestade, ou você fica e considera esta noite nada mais do que
uma – visita amigável.
Suas sobrancelhas baixas, as características severas. Imperturbável
por seu franzir de cenho, Anya lhe deu um sorriso amigável e a Gurn
um mais sedutor.
— Vou ficar. Minha casa consideraria um favor se você me
protegesse nesse tempo. — Ela sorriu para Gurn, que corou. —
Gostaria que seu servo me ensinasse mais a linguagem de sinais.
Martise reprimiu um sorriso e encontrou o olhar divertido de
Silhara.
— Ele é um homem de muitos talentos e fala eloquentemente
quando quer.
Pratos batiam na pia enquanto Gurn se virava para esconder seu
embaraço.
O humor suavizou o olhar duro nos olhos de Silhara e aprofundou
os vincos que lhe cortaram o nariz nos cantos da boca.
— Deixe a louça, Gurn — disse ele. — Você pode lidar com ela mais
tarde.
Gurn parou largando os pratos, seus olhos azuis esperançosos.
Silhara olhou significativamente para Anya. — Sugiro que aproveite
bem o tempo e a companhia de Anya.
A cozinha ficou em silêncio quando eles saíram, os únicos sons do
ronco de Cael sob a mesa, o fogo estalando na lareira e o tamborilar
constante de chuva lá fora. Martise arriscou um olhar para Silhara
sob seus cílios. Ele a observou, sua expressão enigmática atrás da
névoa de fumaça de cachimbo.
Ela limpou a garganta. — Você é bom para Gurn. Anya é muito
bonita.
Inclinou a cabeça. — E cara. Gurn pode morrer de fome por ela,
como eu, mas devo algo a meu servo.
Lembrou-se da observação de Anya sobre a generosidade de Silhara.
A esperança guerreou com reprovação. Ele foi proibido para ela,
uma distração mortal de seu propósito em Neith e seu objetivo final.
O coração nem sempre obedeceu, não podia deixar de esperar que
ele não tivesse encontrado socorro entre as coxas de Anya na noite
anterior.
A fumaça de um cachimbo brincava com suas narinas enquanto
olhava para o pente em sua mão e o revirava nervosamente em sua
palma. — Eu pensei que ele a trouxe para você.
— Ele fez. — Seus olhos guardaram mil segredos escuros. — Seu
cabelo ainda está molhado.
Entendendo que não diria mais nada sobre Anya, ela ergueu o pente
para mostrar que tinha cumprido com seu comando e sentou-se de
pernas cruzadas junto ao fogo para pentear seu cabelo. Lá fora, a
chuva caia e o ar da cozinha esfriou.
A luz que o envolveu quando ele entrou pela primeira vez na casa
havia desaparecido. O homem vestido com roupas surradas e
fumando um cachimbo poderia ser qualquer pobre fazendeiro
tomando um dia raro para descansar e esperar o humor do clima,
exceto que este fazendeiro possuía um poder incomum e assustou os
sacerdotes suspeitos que tentaram trazê-lo sob seu controle ou o
matar se necessário.
— Você será lendário depois disto. Anya voltará ao Eastern Prime e
dirá a todos que ouvirão o que ela viu aqui. A palavra se espalhará e
crescerá.
O suspiro de desgosto de Silhara se juntou aos confortáveis sons da
cozinha. — Ah sim. De lutar contra uma tempestade para a terra, eu
vou ser retratado como lutando contra um exército celestial sozinho,
para salvar algum tesouro coberto de ferrugem, que eu não poderia
vender no mercado, se eu quisesse. — Seu sorriso zombador não foi
dirigido a ela por uma vez. — Salvar tesouros perdidos de deuses
gananciosos é muito mais interessante do que salvar as laranjeiras
de uma seca.
Ele se inclinou para esvaziar as cinzas da tigela no tubo da lareira.
Seu cabelo úmido derramado em fios negros em seus joelhos. Seus
dedos coçavam para tocar os cordões misturados com os dela.
— Poderia ser pior, — disse ele. — Eu poderia tê-la trazido para Neith
no outono durante o abate de porcos. Se você ainda estivesse aqui,
eu pediria sua ajuda. Nós enviaríamos a linda de Gurn para casa,
com histórias de que eu me deleitava em algum ritual de sangue que
envolveu sacrificar uma porca e trepar com meu aprendiz como uma
concubina.
Martise riu, a euforia cantando através dela. Ele chamou a houri
Anya de Gurn. Animada por aquela revelação, não pode resistir a
provocá-lo. — Provavelmente, eles teriam você sacrificando a
concubina e trepando com a porca.
Seu riso ecoou o dela, um som gutural e sedutor. Ele voltou para a
mesa e levantou seu copo de chá para ela em apreço de sua
sagacidade. — Você os conhece bem. — Ele se sentou, sobre o banco
de modo que a encarava parcialmente.
Ela terminou de pentear o cabelo, dividindo as mechas em três
grossas madeixas para que pudesse prendê-las em sua habitual
trança. Ela fez uma pausa em seu comando.
— Não. — Sua voz arruinada era mais rouca do que de costume, ele
a encarou com o mesmo olhar de fome que tinha na escada. — Deixe-
o solto.
Ela deixou cair as mãos. Seus cabelos se juntaram em seu colo em
ondas. Ela ofereceu o pente. — Você gostaria de usar isso?
Olhou para o pente, depois para ela. — Você faz isso por mim. — Seu
desafio tácito pairou entre eles. “Se você ousar”.
Se ele soubesse que lhe oferecia um de seus maiores desejos – tocá-
lo, sentir aquele sedoso pedaço de cabelo sob suas palmas. Deixou
seu lugar junto ao fogo para sentar no banco atrás dele. Separando
os emaranhados suavemente, penteou através do pior dos nós, com
cuidado para não puxar muito duro. Sentou-se em silêncio sob seus
cuidados, lembrando-a de um leão adormecido ao sol.
Uma vez que seu cabelo ficou liso e livre de nós, Martise correu o
pente através dele por puro prazer. Ele tinha um cabelo bonito, reto
e preto e caindo até a cintura. Ele se espalhou por uma forte volta
nos ombros largos, molhando sua camisa, em uma transparência
fina. Ela deslizou sua mão sob seu peso e acariciou sua nuca com
traços leves do pente.
Seus ombros caíram, abaixou a cabeça em convite mudo para ela
continuar. Ele respirou fundo, relaxando sob seu toque. Martise
estava tudo menos relaxada. Ela estava em chamas, lembrando
aqueles momentos na biblioteca quando ele lhe deu um gosto da
paixão ardendo dentro dele. Ele era seus sonhos manifestados, uma
estrela brilhante e volátil em um céu de inverno.
O silêncio na cozinha era a calma antes de outra tempestade. Mesmo
Cael já não roncava debaixo da mesa. Ela pôs o pente sobre a mesa
e levantou do banco. Silhara não se moveu, pensou que ele poderia
ter adormecido sentado. Ela estendeu a mão para o bule de chá e
pegou o pesado olhar que lhe deu.
— Vou pegar mais chá para você — disse ela.
Quase deixou cair o bule quando a mão dele saiu e prendeu seu
pulso. — Diga meu nome.
Ela olhou para os dedos delgados que acorrentavam seu pulso. —
Mestre?
— Não. Não o tratamento de um servo para seu mestre. Meu nome.
— O calor escuro encheu sua voz arruinada.
O desejo a percorreu. Pelas asas de Bursin, ela queria este homem.
Eles estavam conectados apenas pelo aperto de sua mão, mas
parecia que todas as suas emoções – sua paixão – se centralizavam
em seu pulso, girando em círculos cada vez maiores até que
englobavam todo o seu corpo. Ele era a tempestade. Tão letal e
imprevisível quanto o relâmpago. Ela estava diante dele
completamente encantada.
Nem uma vez ela havia dito seu nome, nem para ele nem para Gurn.
Nem mesmo para si mesma. Se dirigindo a ele como Mestre era a
última barreira que se erguia entre eles – a única ainda em pé, e
ordenou que abaixasse. Ela não hesitou e infundiu sua voz com toda
a força de seu desejo.
— Silhara.
Ele apertou mais forte em seu pulso. Seus olhos se fecharam e pela
primeira vez ela notou quão grossos seus cílios estavam contra suas
bochechas.
— Eu lhe dei o seu rosto. — Ele falou as palavras através dos lábios
apertados, como se a admissão lhe causasse dor.
O bule vazio bateu na mesa. Ela ficou boquiaberta. — O que?
Seu aperto aumentou, soltando tão subitamente em seu gemido
ofegante. — Gurn me trouxe uma mulher que eu não queria. Por um
momento eu a mudei, dei-lhe o rosto do meu desejo. — Seus olhos
se abriram, revelando sua necessidade. — Não foi suficiente.
Seus joelhos se dobraram. Ela desabou no banco ao lado dele,
atordoada. — Mestre... — Ela balançou a cabeça. — Silhara...
— Deite comigo.
O silêncio se esticou, aliviado apenas pela harmonia rufando da
chuva lá fora. Silhara agarrou a xícara de chá com a outra mão com
tanta força, os nós dos dedos ficaram brancos. O leão peregrino
havia acordado e a observava como se fosse uma presa na grama
alta.
Havia penhascos com abismos tão profundos e largos, uma pessoa
poderia cair para a eternidade. Martise levantou alegremente o mais
alto. — Sim — disse ela.
Ele respirou, audivelmente, um som de triunfo. Seus dedos
castanhos escorregaram de seu pulso, varrendo o dorso de sua mão
para se entrelaçar com seus mais pálidos. Ele a puxou para cima com
ele para que ela ficasse dentro do círculo de seus braços.
Cael balançou suavemente para eles quando saíram da cozinha.
Silhara acariciou sua palma com seu polegar enquanto ele a levava
pelas escadas para o segundo andar. Suave e tranquilizadora, nada
fez para acalmar as vibrações dançando loucamente em sua barriga,
como pássaros em pânico presos em gaiolas muito pequenas.
As vibrações se transformaram em náuseas enquanto o seguia pelo
corredor do segundo andar. — Por favor, — ela rezou em silêncio. —
Não no quarto de Anya. — Ele poderia levá-la na cozinha, na
biblioteca, até mesmo no bosque enlameado sob o céu sombrio, que
ela o receberia ansiosamente. Mas não lá.
Ela quase entrou em suas costas quando ele parou fora de suas
câmaras. Ela engoliu em seco. Seu quarto. Uma fortaleza de
privacidade que não deu as boas-vindas a ninguém, exceto Gurn, e
só para limpar e trazer água, ou o jantar. A empregada tinha
liberdade na mansão, com exceção do quarto particular do mestre.
Isso era proibido e Gurn a puniria se ela quebrasse essa regra. Seus
olhos azuis tinham estado gelados quando ele deu o aviso. Era a
única vez que Martise temeu o servo, ela ainda tinha que testar essa
fronteira, apesar de sua missão.
Como sua inflexível formalidade ao se dirigir a ele, essa era a
barreira de Silhara contra ela.
Ela caiu quando ele abriu a porta.
Frio e úmido o ar que se infiltrava através das aberturas na moldura
da janela, a câmara cheirava a chuva e especiarias, de seda velha e
ao cheiro excitante exclusivo do mestre de Neith. Parada no limiar,
não via nada na escuridão da câmara além dos contornos vagos de
uma cama e de uma mesa.
— Entre, Martise. — A voz de Silhara estava quase sibilante na
escuridão enquanto ele puxava sua mão. — Não há comedores de
almas aqui.
Não, ela pensou. Somente ladrões de coração.
Ela deixou que ele a guiasse para o quarto. O chão estava
almofadado sob seus pés e seu sapato raspou sobre a pilha de um
tapete. Silhara soltou a mão e murmurou um feitiço. O carvão em
um braseiro situado em um canto distante acendeu com um sibilo.
O fogo deles brilhou, iluminando a sala com um brilho quente e
âmbar. A luz suave revelou um santuário de esplendor desgastado e
desordem acadêmica. Tapetes desgastados nas pontas e gastos com
as fibras remendadas, cobriam o chão e envolviam as paredes de
pedra, suas cores, uma vez brilhantes, estavam desbotados pelo sol
e pelo tempo, seus fios mastigados pelas traças. Fornecia ao acaso,
o quarto ostentava uma mesa e cadeira empilhados alto com
pergaminhos e grimórios. Um grande baú e o braseiro ficavam de
um lado da sala, junto com uma magnífica e ornamentada tubulação
de água. Perto da entrada da varanda, uma grande cama amassada
e um lavatório com bacia e cântaro ocuparam a maior parte do
espaço.
A porta se fechou atrás dela com um clique decisivo. Os olhos de
Silhara refletiam os pontos da luz do fogo quando a encarou. Suas
palmas calosas acariciaram seus braços. — A porta não está trancada
nem protegida.
Fora franco em sua necessidade por ela. Sem palavras floridas ou
delicada persuasão. A seduzira com sua franqueza e agora, com sua
garantia de que ele não a deteria se ela decidisse ir embora. Era
totalmente simbólico. Ele poderia forçá-la a ficar com pouco esforço,
mesmo com a porta aberta.
Martise passou um dedo por seus lábios, sua tentadora suavidade, a
tentação de capturá-los em um beijo. Haveria tempo suficiente para
isso e muito mais. Queria saborear esses momentos, essa intimidade
com o homem insultado pelo Conclave e amado por sua espiã.
Sua língua disparou, provou a ponta dos dedos. Ele permaneceu
imóvel sob seu toque explorador, sua única reação, era suas mãos
errantes em um aperto firme em seus braços. Ela acariciou sua
mandíbula e pescoço, explorando o mergulho raso entre seu ombro
e a clavícula antes de se mover sobre os amplos planos de seu peito.
Seus pequenos mamilos fizeram pontos sob sua camisa quando ela
esfregou seus polegares sobre suas pontas sensíveis.
Ele era sublime sob suas mãos, um estudo em força e pele lisa, calor
esfumaçado e virilidade. Examinou seu rosto duro, que estava mais
austero pelas sombras ao longo de sua mandíbula e nariz aquilino.
— Eu não me importo se você deixar o quarto mais escuro. — Ela
achou difícil encontrar seu olhar. Ele não era Balian. Silhara de
Neith tinha mais caráter em seu pequeno dedo do que Balian tinha
em todo o seu corpo, mas ela sugeriu do mesmo jeito. Ele a escolhera
ao invés de uma houri abençoada com uma beleza incomum, mas
ela queria ter certeza de que ele entendia que, mesmo na luz mais
suave e mais lisonjeira emitida pelas brasas do braseiro, ela ainda
era uma simples e despretensiosa Martise.
Ele olhou para o nariz dela de uma maneira que a fez corar. — Você
tem uma maneira inteligente de me insultar, Martise.
Ela respirou fundo. — Não, essa não é a minha intenção. Eu apenas…
Ele colocou um dedo sobre seus lábios. Ela prendeu a respiração
quando ele apertou uma de suas mãos, a deslizou para baixo de seu
peito e sobre seu estômago tenso antes de curvar seus dedos sobre a
protuberância de seu pênis. Ambos gemeram quando ela esfregou a
palma suavemente sobre o seu eixo duro e acariciou suas bolas com
os dedos. Ele estava quente em suas mãos, uma combinação
tentadora de duro e macio.
— Eu sei o que eu vejo, — ele respirou em seu ouvido e empurrou
contra sua palma. — Sinta o que eu tenho. Isso é o que você faz
comigo.
Teria caído se ele não a tivesse levantado com um braço enrolado em
volta dela. Procurou sua boca, tocou seus lábios aos dele. Ele abriu,
sua língua procurando, permitindo que ela mergulhasse dentro e
acariciasse sua boca. Sua língua se entrelaçou com a dela,
devolvendo tanto quanto tomou. Ele saboreava melhor do que o
vinho de verão, melhor do que os frutos da primeira colheita da
primavera.
O beijo se aprofundou, um acasalamento de línguas que imitava o
lento impulso de seus quadris. Suas mãos percorreram seu corpo,
deslizando por suas costas, segurando suas nádegas. Elas deixaram
trilhas de fogo em seu rastro e Martise gemeu em sua boca.
Seus dedos trabalharam os laços de sua túnica, puxando até que ele
ficou frustrado e se afastou dela. Na penumbra, suas maçãs do rosto
afiadas estavam ruborizadas, sua boca inchou de seu beijo. — Tenho
vontade de ver toda você, Martise, e não tenho muita paciência para
esperar. Quão mal você quer salvar esse traje?
Se ela não estivesse de acordo com isso e com sua saia e túnica
recém-costurada, iria ajudá-lo a arrancá-la. Em vez disso, ela sorriu,
corou e desamarrou laços com velocidade impressionante. A saia
caiu no chão. Seus sapatos derraparam até um canto e Silhara a
ajudou a puxar a túnica sobre sua cabeça. Ela foi deixada em pé
coberta apenas por seus cabelos soltos e o brilho do fogo quente.
Ela não achou isso possível, mas seus olhos escureceram ainda mais.
Ele ergueu uma mecha de seu cabelo e roçou sobre seu ombro,
revelando seu peito e a curva suave de sua cintura. Ele não disse
nada, mas seu olhar, preto e ardente enquanto viajava do alto da
cabeça até os dedos dos pés, falava muito. Ela olhou para a frente de
suas calças, viu a curva de sua ereção apertado contra o tecido.
Em um show de coragem, ela varreu o resto de seu cabelo para trás,
dando-lhe plena visão dela. Ela ergueu as mãos, as palmas para
cima. — Desculpe, — ela brincou. — Nenhum terceiro peito.
Ele piscou, então riu de sua lembrança de seu encontro na sala de
essências. Ela sorriu, satisfeita por tê-lo feito rir de novo, mesmo
agora neste momento de intensa intimidade. Sua risada mudou para
um sorriso sedutor. Martise prendeu a respiração quando fechou a
pequena distância entre eles. Seus dedos traçaram um caminho por
cima de suas clavículas, demorando-se na cavidade de sua garganta
antes de esboçar uma linha entre seus seios. Seus mamilos se
apertaram antecipando o seu toque.
— Estou mais impressionado com a qualidade do que com a
quantidade. — Pelo que, seu sorriso desapareceu. Ele contornou o
entorno de cada peito com os dedos, finalmente os colocando em
suas mãos. Ela se arqueou em suas palmas quentes. — Você é linda
além da medida, — ele sussurrou contra sua boca.
Este beijo era diferente do que eles apenas compartilhavam. Feroz,
mais duro, exigia que cedesse a seu desejo, aliviando a necessidade
que os percorria. Ele acariciou seus seios, deslizando as rugosas
almofadas de seus polegares através de seus mamilos uma e outra
vez, até que ela se contorceu em seus braços e gemeu em sua boca.
Ele mergulhou em sua boca, sugando sua língua. Suas mãos
deixaram seus seios, seguiram a curva de sua cintura e deslizaram
sobre seus quadris para puxá-la contra ele. Ela choramingou quando
seu pênis se balançou contra sua boceta. Uma onda de calor surgiu
do centro de seu corpo. Ela o queria dentro dela, precisava dele nu
contra ela.
Suas mãos agarraram a camisa dele enquanto ela o beijava. Eles se
separaram, ofegando. — Quão mal você quer salvar esta camisa? —
Ela perguntou.
Silhara sorriu e arrancou a camisa sobre sua cabeça, novamente lhe
dando uma visão de seu peito e estômago. As calças seguiram, ele
ficou diante dela, polido como ouro e âmbar. Era elegante e duro,
escurecido pelo sol e musculoso pelas exigências do bosque. A prova
de seu desejo por ela subiu do ninho de cachos escuros entre suas
pernas.
— Gosta do que está vendo?
— Oh sim, — ela suspirou e caiu em um mar febril quando ele a
esmagou contra ele, pele contra pele.
Ele jogou com seus sentidos e seu corpo. Mãos e língua, o cabelo
sedoso contra seus mamilos, um dedo comprido deslizando
profundamente em sua úmida boceta, os gemidos baixos e ásperos
emanando de sua garganta. Seu pênis pressionou o interior de sua
coxa, ela abriu as pernas, ansiosa para trazê-lo perto.
— A cama, — ela sussurrou entre beijos duros.
— Está muito longe. — Ele se inclinou, sugou um mamilo em sua
boca e a levou à loucura com o jogo de sua língua através de sua
ponta.
Seus joelhos cederam uma segunda vez, desta vez ele a seguiu até o
tapete, acariciando e aprendendo seus contornos com a língua até
que ela se esticou debaixo dele. Apesar do ar frio e cheio de chuva no
quarto, ela estava sufocando. O suor escorria entre seus seios, e ele
o lambeu antes de passar a boca para cada peito.
Ela gemeu, tão excitada por seu toque sedutor, que se contorcia pelo
tapete. Silhara a segurou para baixo, percorrendo um caminho em
sua barriga, parando para mergulhar sua língua na piscina rasa de
seu umbigo. Quando ele alcançou suas coxas, ele parou.
— Abra para mim, Martise. — Sua língua varreu o lábio inferior em
um movimento lascivo. — Eu desejo o seu gosto.
Em algum lugar, na parte de sua mente ainda capaz de pensar, ela
se perguntou se metade do campo poderia ouvir seus gritos e
gemidos. Silhara a torturou com a língua, com os dedos, procurando
o coração de sua paixão, sugando suavemente no ponto que a fez
choramingar e arquear contra ele.
Ele só acelerou o passo quando suas costas se arquearam do chão. O
calor se concentrou entre suas coxas, sob a boca acariciadora de
Silhara, se espalhando por todo seu corpo. O sangue percorria suas
veias, quente e borbulhando. Seus dedos escavaram em seus ombros
suados e suas pernas se convulsionaram. Ela gritou quando a
sensação explodiu dentro dela, cantando seu nome.
Despedaçada por seu clímax, só podia piscar quando de repente ele
se ergueu sobre ela, braços apoiados em ambos os lados de sua
cabeça. Os cabelos negros envolviam-na numa cortina de seda. A
boca de Silhara brilhou, seus olhos brilharam. Sua voz era gutural,
rouca. — A porta ainda está destrancada.
Ela olhou para ele, aturdida. Mesmo agora, com seus lábios
brilhando de seu orgasmo e seu pênis empurrando suavemente
contra sua boceta, ele ofereceu a oportunidade de parar e apagar o
fogo entre eles.
Passou as mãos pelos braços trêmulos, os bíceps esculpidos e os
antebraços musculosos. Uma mão se espalhou sobre seu quadril
enquanto o outro enrolado ao redor de seu pênis. Ele pulsou em seu
aperto. Um fio de sua semente molhou seus dedos, ela circundou a
ponta, cobrindo a cabeça lisa. Ele inalou bruscamente.
— E a cama ainda está muito longe, — ela disse, o puxando para
baixo, para ela. Suas pernas levantaram, deslizaram sobre seus
quadris até que seus tornozelos trancaram em suas costas o
ancorando a ela.
Era tudo o que ele precisava. Ele a penetrou, afundando
profundamente em um gemido baixo até que suas bochechas
descansassem contra a curva de seu pescoço. Martise ecoou seus
sons, saboreando a grossura dele dentro dela, o deslizar e
alongamento, o flexionar nos músculos internos quando ela agarrou
seu pênis e apertou. Ele a encheu como se tivesse sido feita para ela,
tocando em todos os pontos sensíveis até que ela pensou que iria
queimar sob ele.
Ele deu estocadas rápidas, a tomando com força suficiente para levá-
la através do tapete com seus impulsos. Martise segurou, levantando
os quadris para trazê-lo mais profundo. Seus dentes bateram contra
os dele em um beijo selvagem, ela provou sangue.
Ele quebrou o beijo. — Diga meu nome, Martise.
Ele rosnou o comando, mas ela não estava com medo. Seus quadris
batiam contra os dela, estava empalada em seu pênis, se deleitando
com sua possessão feroz. Por algumas breves horas, ele era tanto
dela como ela era dele, poderia dizer o quanto ele significava para
ela em um nome suavemente falado.
Cada desejo, cada desejo proibido – ela infundiu em sua voz. —
Silhara.
Ele ofegou, um som torturado e seus olhos rolaram para trás.
Martise o agarrou quando ele estremeceu, sentiu o súbito pulsar de
seu eixo, sua liberação, seguida por um calor úmido quando gozou
dentro dela.
Ele se curvou sobre ela, o peito arfando enquanto se esforçava
para respirar. Ela apertou os quadris com as pernas para manter
a conexão, relutante em desistir dele. Ele lentamente baixou seu
peso sobre ela, com cuidado para não a esmagar.
Seu cabelo caiu na frente de seus olhos, ela o empurrou com dedos
suaves. Seus olhos estavam fechados, sua respiração abrandou para
um ritmo constante.
— A porta ainda está destrancada? — Ela provocou.
Ele não abriu os olhos, mas rolou para seu lado, trazendo-a com ele.
Sua mão varreu seu quadril e apertou suas nádegas para puxá-la
para mais perto. —Sim. E a cama está definitivamente muito longe.
Martise acariciou seu braço, deleitando-se na sensação dele
pressionado contra ela do ombro ao tornozelo. Ambos estavam
escorregadios de suor. Ela riu, depois estremeceu com a dor que
brotava na parte inferior das costas. Ela estendeu a mão e tocou o
local. —Ai!
Ele a olhou, surpreso por sua exclamação. — O que está errado?
Ela sibilou quando o ardor ficou mais intenso. — Os tapetes de
Kurman não são nem um pouco tão suaves como são oferecidos.
Ele se mexeu de modo que ela descansou em cima dele e se
alavancou para olhar por cima de seu ombro. Quando ele deitou de
volta, ele usava um sorriso tímido. — Você tem um tapete
impressionante queimado lá atrás.
Seus olhos se arregalaram. — Sério? Não senti isso acontecer.
Seu sorriso se tornou petulante. — Não é? — Ele a golpeou
suavemente na bunda, com cuidado para evitar sua queimadura. —
Deite-se na cama inacessível. Tenho um unguento que vai aliviar a
dor e ajudá-lo a curar.
Ele deslizou lentamente fora dela enquanto ela se levantou,
deixando para trás um fio perolado em sua coxa. Ela bateu os joelhos
juntos. — Os lençóis. Se eu descansar lá agora...
Ele se levantou e olhou para ela com uma mistura de aborrecimento
e diversão. — Martise, aquela cama e todos os seus lençóis estarão
completamente destruídos pela manhã.
Um calor prazeroso a impregnava. Ele não tinha terminado com ela.
Ela sorriu. Bom. Ela também não tinha acabado com ele. Mesmo
agora, com suas coxas molhadas com sua semente e suas entranhas
ainda latejando, ela doía por ele. Queria ele dentro dela, em sua
boca, tomando e dando.
Ele pegou o frasco e esperou junto à cama e abriu a tampa. O lento
queimar do desejo lavou sua pele enquanto ela o observava. As
pernas longas e as nádegas pequenas e esticadas eram
complementadas por uma cintura fina e ombros largos. O olhar que
ele atirou sobre seu ombro deixou saber que a tinha pego admirando
seu corpo nu. — Você vai ficar aí o dia todo?
Ela se arrastou para a cama e se estendeu sobre seu estômago. O
quadro rangeu sob seu peso quando ele se sentou na borda e colocou
um pequeno frasco na mesa segurando a bacia. Martise descansou a
cabeça nos braços dobrados.
— Sinto muito — disse ela.
Mergulhou os dedos no unguento. — Mais desculpas. Por que agora?
Ela riu de sua exasperação e respirou fundo quando o bálsamo frio
tocou suas costas doloridas. O desconforto durou apenas um
momento, substituído por um calor que aliviou a dor enquanto
Silhara espalhava o bálsamo sobre sua queimadura. Suas mãos eram
mágicas em mais de um sentido.
— Pelo que você sente muito? — Perguntou.
Ela escondeu um bocejo atrás da mão, apreciando os círculos
acariciantes que ele desenhou em suas costas. — Está ferida. Não
posso deitar de costas agora.
O acariciamento circular parou. Silhara bufou. — Primeiro, essa
queimadura é minha culpa, não sua. Em segundo lugar, seu Balian,
apesar tanto de se vangloriar, obviamente não tinha imaginação,
nem inteligência quando lhe ensinou os prazeres da carne. — Ela
levantou suas nádegas automaticamente quando sua mão
escorregou entre suas coxas e segurou sua buceta. Ele beijou seu
ombro enquanto seus dedos brincavam com ela. — Eu não preciso
de você em suas costas para nada, Martise, a menos que você queira
olhar para as estrelas comigo.
Capítulo
Quinze
Silhara colocou a escada contra a estante e amaldiçoou enquanto
uma chuva de poeira caía em cascata sobre sua cabeça. Ele apertou
os olhos e afastou a nuvem de seu rosto. — Martise tem razão —
murmurou. — Estamos nos afogando em poeira.
Ele subiu a escada até a prateleira mais alta e golpeou as teias de
aranha intrincada que cobriam a linha de grimórios. A biblioteca de
Neith continha livros e pergaminhos que o Conclave recusou
arquivar. Ele e seu antecessor não tiveram tais reservas.
Manuscritos que contaram sobre a magia do Desperdício foram
arquivados ao lado de livros sobre o protocolo apropriado para
sacrificar uma vítima e chamar um demônio.
Hoje ele procurou nos tomos sobre os arcanos negros, feitiços
proibidos e invocações, maldições e posses. Apesar dos pressupostos
do Conclave e de sua reputação, ele simplesmente mexeu nos
feitiços mais escuros. A maldição mágica que se prolongava sobre os
carvalhos na entrada de Neith e os encantos mortais que rodeavam
o recinto de pedra do bosque eram as únicas coisas que ele tirara
desses livros empoeirados e empregados para seu uso. E eles
chupavam a força dele. Feitiços escuros, poderosos e eficazes,
exigiam um preço alto e constante.
Seus dedos traçaram os espinhos dos livros, a pele formigando
enquanto tocava as páginas de couro. As capas eram lisas e
desbotadas, usadas pelo tempo e feitas de peles cujas origens ele não
queria adivinhar. Encontrando o que ele queria, desceu a escada e
encontrou um lugar perto da janela para ler. Em algum lugar, nessas
passagens enigmáticas, tinha a resposta para o quebra-cabeça do
Dom de Martise.
Não havia nada escuro sobre seus talentos. Nunca se sentira mais
vivo ou mais limpo do que quando compartilhava seu Dom com ele.
Nem tão poderoso. O último, lhe dera a sua primeira ideia de onde
poderia encontrar informações sobre a natureza do seu dom. Algo
que era fortemente cobiçado, e nem sempre por forças benevolentes.
A luz do sol atravessava as janelas, as nuvens flutuavam num céu
azul. Nenhum indício da tempestade que ele chamou dois dias antes
permaneceu. Até mesmo a lama no pátio sombreado estava secando.
Silhara encarava fixamente, sem olhar, para os livros que se
encontravam diante dele, perdido nas lembranças sedutoras das
horas passadas em seu quarto com Martise enquanto a chuva caía.
A cama só aumentara sua fome por ela, e mesmo agora, ele
endureceu com as lembranças de seu corpo banhado pela luz de
velas e a sensação de seu aperto. O arranhão em suas costas não o
impediu de tomar seu tempo e novamente durante o dia e para a
noite. Ela era adepta de fazê-lo suspirar em êxtase inimaginável
quando o montou e cavalgou duro.
Quando descansaram juntos, ofegantes e suando de um ataque de
amor, ele a posicionou a seu lado e satisfez sua curiosidade sobre sua
vida em Asher.
Ele levantou a mão e passou um dedo sobre a pele endurecida de sua
palma. — Esta não é a mão de uma mulher mimada. E você não
ganhou esses calos em Neith. Cumbria não pensa muito em suas
relações menos afortunadas, não é?
Ela seguiu o caminho de seus dedos com os olhos e deu de ombros.
— Ele não prestou muita atenção, frequentemente estava mais no
Conclave do que Asher. Ele às vezes me chamava de volta ao
Conclave se quisesse que eu traduzisse algo privado, mas isso não
era frequente. Sua esposa cuidou de mim quando eu estava em
Asher.
Ele imaginava que tipo de – cuidado – a louca Dela-fé distribuía
para aqueles sujeitos a sua vontade. Também imaginou prender a
mulher em sua cerca do pátio com algumas adagas bem plantadas.
— Tenho certeza que sim. Estou surpreso que você não tenha marcas
de chicote nas suas costas. Até o servo mais obediente não poderia
escapar da malícia daquela mulher.
— Ela era hábil com o chicote e poderia tirar sangue sem cicatrizes.
— Um talento que tenho certeza que ela se gabou a todos os seus
amigos aristocratas.
Sua bunda era suave sob sua mão, ele estendeu a mão sobre a curva
arredondada. — O que você fez em Asher?
Apenas o mais ligeiro endurecimento insinuava seu desconforto em
sua pergunta. Sua voz estava desimpedida, ela até sorriu um pouco.
— O mesmo que faço aqui em Neith. Eu limpava, lavava, fazia sabão,
cuidava do gado, colhia azeitonas, trabalhava nas prensas e servia
em jantares formais. Eu também atuei como escriba do bispo.
Ela não estava dizendo nada a ele. Cumbria talvez não tivesse se
importado com o que Martise conseguira em Asher, mas ela não era
de valor para ele – além do trabalho mundano de um servo.
— Quantos anos você tinha quando se tornou uma noviça do
Conclave?
Ela o acariciou como ele a fez, passando a mão pela perna e quadril.
Ele saboreou seu toque. Ela se sentia bem – em seus braços. — Eu
tinha doze anos, — disse ela. — Um sumo sacerdote visitou Asher e
trouxe um rastreador de magos com ele. O cão estalou a coleira
tentando chegar até mim.
Seus dedos faziam cócegas onde ela passava a mão pela mandíbula
antes de pousá-la contra sua bochecha. — Nunca falaram de você no
Conclave. Nem os padres nem os alunos. Pelo menos não pelo nome.
Havia rumores de um estudante banido em ameaça de morte dos
cânones. — Os olhos de cobre refletiam o brilho da luz que escurecia
o braseiro.
— O que? Eles não estão cantando meus louvores nas orações da
aurora? — Seus lábios se curvaram. — Eles me consideraram muito
perigoso para soltar, então me mandaram para Neith, para o Mestre
dos Corvos.
— Você mencionou um primeiro Mestre dos Corvos uma vez. Você
herdou o título?
— O título, a reputação e a própria Neith. — Ele pressionou sua
bochecha contra a mão dela. — Não cometa erros. Eu vivi até o
insulto e sua notoriedade. O Conclave pensou que me enviaram para
um mago carniceiro que me usaria como isca de demônio. Meu
mentor tinha outros planos.
Seus olhos se fecharam por um momento. Quando ela voltou a olhar
para ele, uma raiva profunda, temperada com simpatia, brilhou em
seus olhos. — Vejo por que os odeia... os sacerdotes.
Se ela soubesse o quão profundo esse ódio corria. Ele baniu os
pensamentos negros e se contentou em acariciar seu corpo quente.
Por direito, ele devia desprezá-la também. Ela era um instrumento
do Conclave, enviada a Neith para espiá-lo, ela poderia muito bem
ter sucesso em seu esforço, mas ele não a desprezava. Longe disto, a
emoção que brotava dentro dele o fazia se afastar desses
pensamentos mais rapidamente do que suas reflexões sobre o deus.
Seus lábios se separaram sob os dele, flexíveis e cedentes. Ela não
era a beleza que a houri Anya era, mas era corajosa e espirituosa,
instruída e excepcionalmente observadora. Ela se encaixava em seus
braços como nenhuma outra. Muito tempo depois que ela partisse
de Neith, ele se lembraria dela – e ansiaria por ela.
Ele rosnou em sua boca e rolou para que ela se sentasse a seu lado.
Seu cabelo o cortou em ondas perfumadas. Um rápido levantamento
de seus quadris e ele estava dentro dela, afundando lentamente em
um calor apertado, acolhedor.
Os olhos de Martise brilharam, e sua voz estava ofegante. — Você
pode olhar as estrelas agora, Silhara de Neith?
Ele agarrou seus quadris em suas mãos quando ela o montou,
deixando que definisse o ritmo até que estava enlouquecido com
necessidade. A trouxe até ele, a beijou até que ambos estavam sem
fôlego e tremendo. Mergulhou nela uma e outra vez, desesperado
para se aproximar, desesperado por possuir. Tão intenso era o seu
desejo de que o seu Dom se erguesse por vontade própria, não
chamado pela magia, mas pela ferocidade de sua paixão. E o dela
respondeu.
Seu Dom, desimpedido por seu controle em desenvolvimento,
surgiu. A luz âmbar reveladora os cercou e ele respirou. Seu próprio
espírito o encheu. Ela era a força através da resistência,
determinação e compaixão, tudo coberto por uma leve melancolia –
e amor por ele. Seu clímax o atingiu como uma maré de tempestade,
o percorrendo como um rio quente até que arqueou e gemeu, quase
afastando Martise dele. Ela se agarrou a ele e seguiu logo atrás, seus
gritos mais suaves desaparecendo com os dele quando desabou em
seu peito.
Seus membros tremeram sob ela, estremecendo convulsivamente
acompanhados de manchas pretas que dançavam em sua visão.
Levantou a mão, viu a coroa de luz brilhar em torno de seus dedos e
os pressionou em suas costas. Seu feitiço suavemente murmurado
estava perdido em seu cabelo. Ela se contorceu e levantou a cabeça
para olhá-lo.
— O que você fez?
Ele esfregou o polegar sobre a pele lisa onde sua queimadura tinha
estado. — Eu curei suas costas.
Ela alcançou atrás dela, tocou o lugar que ele acariciou. Seus olhos
se arregalaram e ela lhe deu-lhe um sorriso sonhador. — Você é
incrível. Obrigada. — Os olhos dela escureceram por um momento.
— Eu invejo você, sabe. Não tanto pelo poder que possui, mas como
pode comandá-lo à sua vontade. Eu gostaria que meu Dom fizesse
isso.
Silhara não disse nada, apenas acariciou seus cabelos quando ela
colocou a cabeça em seu ombro e adormeceu com ele ainda dentro
dela. A segurou firmemente.
Estava exausto. Mesmo a força de seu Dom não podia reabastecer
completamente a força que a tempestade e as horas de amor tinham
tirado dele. Ele precisava dormir. Precisava possuí-la de novo, e
quando ela drenasse o suficiente para raspar uma década fora de sua
vida, ele iria até a biblioteca para verificar uma verdade terrível. Sua
suspeita em relação à natureza de seu Dom tinha se tornado uma
garantia. Ele sabia o que era. O Dom de Martise não era uma bênção.
Era uma maldição.
Uma forte batida contra uma das janelas da biblioteca arrancou
Silhara de suas reflexões. Ele olhou a tempo para ver uma espiral de
asas quando um corvo caiu à terra. Ele balançou sua cabeça. — Cael
vai gostar disso.
O livro que tinha tirado da prateleira alta, estava parado sem abrir
na mesa. Runas decoravam o couro, símbolos misteriosos que
picaram os dedos de Silhara quando traçou seus contornos. Páginas
amareladas estalaram quando abriu o livro e começou a ler. Não
demorou muito para encontrar as passagens que buscava, as leu em
amargo triunfo.
— Ah, Cumbria, você não tem ideia do que você me entregou, não é?
Essas informações devastariam Martise. Passou a mão pelos cabelos
e suspirou.
Ele a encontrou trabalhando em um canto do pátio com Gurn,
pendurando roupas de linho recém-lavadas sobre cordas para secar.
Parcialmente escondida pela aba de cobertores úmidos, ela não
estava ciente de sua presença até que ele falou.
— Aprendiz, preciso de você no corredor.
Ela se endireitou em um suspiro. — Você me assustou. — Seu sorriso
hesitante desapareceu em sua expressão sombria. Ela assentiu com
a cabeça e secou suas mãos úmidas em suas saias.
Pintada em luz pálida e poeira, ela enfrentou ele no grande salão,
suas feições ajustadas quando ela esperava por seus comandos. Ele
leu a severa resolução em seus olhos. Ela esperava alguma lição
desagradável dele. O arrependimento torceu seu estômago em mais
nós. Ele tinha praticado uma crueldade calculada sobre ela neste
hall quando chegou pela primeira vez. Suas tentativas de assustá-la
tinham fracassado, mas o medo que ele instigara nela permanecia,
mesmo para além da intimidade que agora compartilhavam.
Ele não sabia como a tranquilizar, especialmente quando seu
propósito em a trazer aqui era de oferecer uma verdade sombria.
— Convoque o seu Dom, Martise.
Suas sobrancelhas se ergueram, mas ela fez como ele pediu. Podia
vê-la chamar seu dom mil vezes e ainda não cansar do espetáculo.
Nunca vira um dom se manifestar de tal maneira – um brilho
cintilante que a cercava e atraía para ela.
— E agora? — Até mesmo sua voz mudou, ressoando com a
sensualidade que enviava o calor lambendo abaixo por sua espinha.
— Agora, eu quero que você quebre o vidro nessas janelas. — Ele
gesticulou para os vidros altos, fosco com anos de sujeira. — Você
conhece esse feitiço. O Conclave sempre ensina aos principiantes.
Ela franziu o cenho. — Você tem certeza?
Sua pergunta falou de sua confusão.
— Tenho certeza.
O feitiço era simples, um exercício inofensivo usado para introduzir
noviços muito jovens à arte do controle e manipulação, para os
familiarizar com seu próprio poder. Mas mesmo isso provou além
de sua capacidade de executar. Ela recitou o feitiço duas vezes
quando a rachadura do tamanho de uma aranha apareceu em um
painel de janela. Seus ombros curvados em derrota.
— Isso é inútil. É como antes. Os feitiços não funcionam com meu
Dom.
Silhara a rodeou, o clique de seus calcanhares ecoando na sala. —
Eles funcionam, não da maneira que pensávamos. — Ele recitou o
mesmo feitiço e o vidro rachou em três janelas. — Um feitiço de
quebra simples. Bom para criar o mal e não muito mais.
Ele pegou a mão dela. Seu Dom correu através dele, derrubando sua
essência para que ela cantasse em suas veias. Ele estava imerso em
poder, pela força que fez seu próprio Dom zumbir em resposta.
Deixou cair sua mão antes que caísse em seu fascínio e começou a se
alimentar de seu Dom e sua alma.
— Assista.
Silhara recitou o feitiço mais uma vez. Martise cobriu os ouvidos
quando uma onda de contusão torceu o ar ao redor deles. Uma
explosão de som se seguiu quando todas as janelas no salão
quebraram, explodindo para fora em direção ao pátio em uma chuva
de fragmentos estilhaçados. Arco-íris quebrados se apoderavam dos
pedaços de vidro dentados ainda presos aos caixilhos das janelas,
com a luz do sol inundando o salão. Lá fora, Cael uivou, Silhara
ouviu a porta da cozinha abrir. Martise olhou para ele como se
tivesse enlouquecido.
Ele bateu palmas duas vezes e pronunciou uma palavra aguda. Gurn
correu para o corredor justo a tempo de ver o vidro voar para cima,
encaixar e segurar os caixilhos das janelas. As janelas pareciam
intocadas, exceto pela sujeira endurecida em sua superfície. A sala
retornou ao seu estado sombrio.
— Gurn.
O criado estava ao lado dele, olhando para as janelas reparadas. Ele
olhou para Silhara.
— Volte para o pátio. Tenho algo a dizer à Martise. Sozinho.
Gurn hesitou por um momento, olhou para a expressão chocada de
Martise, depois se curvou e saiu. Os dedos de Martise estavam
apertados, os nós dos dedos brancos contra as saias escuras. Um
olhar vazio, em desacordo com aquelas mãos tensas, colocado sobre
suas feições.
— Isto, — ele acenou uma mão para abranger as janelas, — não
deveria ter acontecido. Pelo menos não como você viu.
Sua testa franzida. — Eu não entendo. Você é muito poderoso. Isso
não pareceu além de seu alcance.
— Não é, mas esse feitiço especial não deveria ter feito nada além de
quebrar o vidro. Sua própria natureza limita os efeitos, não importa
o poder do mago. O segundo feitiço foi mais difícil. Reparar é sempre
mais difícil do que destruir. O feitiço deveria ter me feito sangrar.
Eu não sangrei. — Ele levantou as mãos para que ela pudesse ver o
brilho de seu Dom ainda sobre eles. — O poder de seu Dom,
canalizado através de mim, transformou esses feitiços.
Ela piscou para ele, levantou as mãos que não brilhavam mais como
as dele. — Meu Dom lhe emprestou poder?
Silhara se voltou para a esperança reavivada em seus olhos. — Seu
Dom é raro, Martise. O último gravado Dotado de seu talento nasceu
há mais de catorze anos atrás era uma mulher costeira. Os Kurmans
chamam tal de dotados jide de bide. Doadores de vida. O dono da
vida sofreu um mau fim nas mãos de seu amante, um Mago dos
Corvos que viveu uma vez não muito longe daqui.
Martise franziu o cenho. Silhara quase podia ouvi-la procurar
mentalmente os muitos arquivos que ela tinha lido e traduzido, as
histórias do Conclave e os talentos variados nascidos para os
Dotados.
— Eu nunca ouvi ou li de um... como você chamou isso? — Uma bide
ou jide. Os sacerdotes nunca nos ensinaram deles.
— Eles são lendários, tão raros que muitos acreditam que a sua
existência é só um mito. O Conclave nunca fez um dono de vida se
juntar às fileiras sacerdotais. — Ele sorriu. — E o que o Conclave não
sabe ou não reconhece, é uma fraude ou simplesmente sem
importância.
Ele manteve sua voz uniforme, não revelando nada do crescente
tumulto dentro dele. — Seu Dom não é uma bênção, Martise. Não
para você. Os feitiços que você aprendeu e memorizou nunca
funcionarão para você. — Seu suspiro chocado pontuou sua
declaração, mas ele continuou, implacável com a verdade e
determinado a protegê-la, não importa o quanto ela poderia sofrer
com sua honestidade.
— Você é um navio, nada mais. Uma fonte para ser usada por magos
como eu. Seu poder fortalece a magia dos outros.
A boca de Martise se estreitou e seus olhos se escureceram. — Como
você descobriu isso? — Ela sussurrou.
Ela envelheceu diante de seus olhos, desanimada por suas palavras.
— Procurei na biblioteca. Tenho vários tomos dos arcanos negros.
Dois dizem de feiticeiros de corvos que escravizavam jide e bide e se
alimentavam de seu poder como sanguessugas no sangue. Um era o
comedor da alma de Iwehvenn.
Seu rosto ficou branco e ela balançou. Silhara estendeu a mão para
mantê-la firme, mas ela se afastou de seu toque.
Mais rígida do que uma alavanca, ela enterrou as mãos na saia e
respirou lentamente. Olhou para o chão e depois para ele. — Vou
ficar doente, — disse ela sem rodeios e correu para a cozinha.
Parado sozinho no grande salão, ele se perguntou por que não sentia
vontade de celebrar seu triunfo sobre o Conclave e Cumbria em
particular. Sua espiã ainda não tinha testemunhado nada que
pudesse condená-lo como traidor ou como herege. E agora
importava pouco se ela o fizesse. Corruption poderia beber chá com
ele na cozinha e discutir como eles pretendiam refazer o mundo em
sua preferência – começando com a lenta tortura e morte de cada
sacerdote do Conclave. Ele agora segurava a chave do silêncio dela.
Qualquer que fosse o prêmio de Cumbria pendurado diante dela por
espionar Silhara para eles, duvidava que valesse a pena o sacrifício
de sua alma.
No pátio, Gurn estava de pé junto à banheira e olhou para um ponto
atrás de um canto da casa. O som inconfundível de violentos vômitos
ultrapassou os gritos, balidos e roncos do gado que triturava o
recinto. Silhara veio para ficar ao lado de Gurn e respondeu à sua
pergunta freneticamente assinalada.
— Deixe-a em paz, Gurn. Ela acabou de descobrir uma verdade
cruel.
Ambos esperaram até que Martise reaparecesse ao virar da esquina.
Sua palidez lhe dava aos olhos uma aparência afundada. Ela
encontrou o olhar de Silhara desoladamente. — O que você vai dizer
ao bispo?
Silhara segurou seu olhar. — Gurn, onde está o vinho que
compramos no mercado?
Gurn assinalou e Silhara pegou a mão de Martise. Seus dedos
estavam frios no calor do verão. Na cozinha, Silhara abriu o frio
garrafão e voltou com um pequeno frasco.
— O fogo não seria melhor? — Ela estava calma, mas sua voz sensual
carregava uma nota estridente.
— Poderia. — Ele levantou a garrafa de Fogo de Peleta da prateleira
do armário e a entregou a ela. — Use para enxaguar sua boca, mas
não beba. Eu preciso de você coerente e pensando. O vinho cairá
bem.
Ele esperou enquanto ela enxaguava com uma combinação de água
e Fogo e cuspiu no balde de lixo perto da porta. Apenas um gosto da
bebida forte trouxe uma pitada de cor de volta para suas bochechas,
ela ficou mais reta. Subiram para seu quarto. Ele fez um gesto para
que ela se sentasse na cama enquanto derramava o vinho em taças e
lhe dava uma. Ela o drenou em dois goles e estendeu a taça por mais.
Com as sobrancelhas levantadas, ele encheu o copo. Ele arrastou a
única cadeira do outro lado do quarto e se sentou em frente a ela,
segurando sua própria taça. Martise olhou-o cautelosamente, como
fez quando o conheceu. Eles eram adversários novamente.
— Há muitas coisas que eu planejo contar a Cumbria de Asher.
Nenhum deve ser proferido em companhia educada. — Ela sorriu
fracamente. — Escravizar e usar outro mago com o propósito de
ganhar poder é um dos mais escuros arcanos. Pela lei do Conclave,
qualquer mago capturado fazendo tal prática está sujeito à morte. —
Ele se inclinou para frente, descansando os cotovelos nas coxas. A
pequena cor que retornara a suas bochechas desvaneceu-se mais
uma vez.
— Uma escravidão como nenhuma outra.
— Isto é. E uma compulsão para o mago que controla a jide. O sabor
dele é mais do que tentador. — Seus olhos se estreitaram quando ela
engoliu e desviou o olhar. — Para um mago poderoso, como eu ou
Cumbria, seu talento vale mais do que um navio carregado na linha
d'água com ouro.
Ele riu secamente. — Todo esse tempo servindo a sua casa,
treinando com o Conclave e ele nunca soube.
— Mas você vai dizer a ele, ou me manter para si mesmo. —
Amargura afiou suas palavras.
Havia muitas razões pelas quais ele gostaria de manter Martise para
si mesmo. Seu Dom não era um deles. Com a estrela de Corruption
pendurada no céu fora de sua janela e a voz do deus lhe prometendo
um poder que poderia trazer reinos a seus joelhos, seu Dom era
somente uma tentação pequena.
— Embora seja atraente, eu não tenho necessidade de tal Dom, mas
Cumbria teria. Com você capacitando ele, ele poderia controlar o
Conclave. Ele não teria que esperar que o Luminary morresse, ou até
Santa Sé se encontrar e eleger o próximo Luminary. Simplesmente
usurparia e governaria. Duvido que as leis do Conclave ou de
qualquer moralidade imaginária o impediria de te ferir. — Seu lábio
se curvou em desdém. — O homem que insulta os Magos dos Corvos
se tornaria o epítome de todos os homens falidos.
Martise se levantou e caminhou até a janela. Emoldurada no arco
curvado e iluminada pela luz do sol, suas feições estavam moldadas
na sombra. — E agora?
Ele franziu o cenho ante a nota maçante em sua voz, como se algo
mais do que a esperança de seu Dom tivesse morrido dentro dela.
— Tenho o Conclave no meu nariz o suficiente como é, isso com um
Luminary que é razoável e não me suporta de má vontade. Não
quero ajudar o bispo a se destacar. — Ele bebeu todo o vinho e se
levantou. Ela não se afastou quando se aproximou dela. — Eu posso
te ensinar a esconder seu Dom. Não apenas controlá-lo, mas
submergir. O suficiente para que os sacerdotes nunca percebam sua
presença. E eu sou um bom mentiroso. Não vai demorar muito para
convencer o Conclave que eu falhei em encontrar o seu talento.
O olhar vazio de Martise o rasgou. — Você pode me usar, e eu não
posso detê-lo.
Seu cabelo era macio enquanto acariciava sua trança. — Como isso
é diferente de qualquer outro dia?
Ela fechou os olhos. — Eu estou assustada.
Ele acariciou sua bochecha. Ele odiava seu medo, mas a manteria
viva. — Você deveria estar. A escrava jide tinha seus Dons tirados
dela pela força. Sexo, tortura, o que seus mestres acharam
necessário para manifestar esse poder e usá-lo em seu proveito.
O riso oco, afiado pela histeria, escapou-lhe. Lágrimas derramaram
por suas bochechas e ela cobriu a boca. O riso se transformou em
gemidos agonizantes. Silhara envolveu seus braços ao redor dela,
impulsionado por um desejo desconhecido de segurar e confortar.
Ele esfregou suas costas e deixou suas lágrimas sangrar em seu
peito. Ela se sentia bem em seus braços, mesmo em sua dor.
Não conseguia se lembrar da última vez em que chorara por nada,
mas compreendia suas lágrimas. Elas eram feitas de raiva e sonhos
quebrados, frustração e impotência. Ele a segurou em silêncio até
que ela soluçou e se endireitou longe dele.
Ela enxugou as lágrimas restantes com as mãos trêmulas —
Certamente, os deuses riem.
Os deuses não eram nada mais para ele do que um meio conveniente
pelo qual ele amaldiçoou os aborrecimentos diários da vida.
Somente Corruption havia subido acima dessa filosofia e Silhara
detestava seu sedutor. — Eles não fazem muito mais, aprendiz.
Nenhum vale a pena um único pensamento de qualquer um de nós.
— Seu lábio inferior tremeu sob seu polegar. — Deixe-me dar-lhe os
meios para se proteger, Martise.
Um beijo gentil no seu polegar e ela suspirou. — Muitos diriam que
eu seria uma tola por confiar em você.
— E muitos estariam certos. Eu não sou bom, e eu sou bom
frequentemente.
O divertimento iluminou seu rosto sombrio. — Você nunca mentiu
para mim.
— Não foi?
— Não nas coisas que contam.
O desejo surgiu nele. Não feroz como antes, mas tão forte, tão
profundo. Exceto para Gurn e Cael, sua mãe há tanto tempo, ele não
tinha sido movido a cuidar de ninguém — até agora.
Ele a levou para a cama e fez amor lento com ela, lhe dizendo com
as mãos o que estava muito assustado para reconhecer na parte mais
profunda de seu coração. Depois, a colou de encontro a ele e aninhou
seu rosto em seu cabelo perfumado. Do lado de fora, os corvos
gritavam e batiam nas árvores, Gurn zumbiu um canto fora das
paredes enquanto varria a parte de trás. Silhara tinha desperdiçado
o dia aqui com Martise e não lamentou nada disto.
Suas lições seriam sérias agora. Seria condenado se a visse quebrada
na roda da escravidão, ainda mais condenado se ele desse a Cumbria
a chance de subir a um poder maior. Entregaria sua alma a
Corruption com um sorriso, se necessário, para deter o bispo.
As canções discordantes dos corvos se apagaram, ele se afastou na
beira do sono, satisfeito em saborear o calor de Martise. Ela se
moveu, deslizou o pé ao longo de sua panturrilha. Sua voz, fria e
ligeiramente desafiadora, o trouxe completamente acordado.
— O que me protegerá de você?
Ele a puxou forte contra ele e mordiscou seu ombro. — Nada.
Capítulo
Dezesseis
Seu tempo aqui havia sido um fracasso espetacular. Martise se sentou
em um banquinho de ordenha no pátio, para ordenhar uma das novas
cabras, se perguntando o que faria agora. Gurn se sentou perto,
restaurando uma parte das rédeas de Gnat. Silhara prendeu a si
mesmo na despensa para engarrafar um dos muitos perfumes das
flores de cor laranja.
Tinha três semanas mais em Neith sem seu verdadeiro propósito
que não fosse continuar as traduções para Silhara, o que sempre foi
uma justificativa fraca. O corvo de Cumbria nunca respondeu a sua
chamada e ela cantou em segredo mais três vezes. Não que uma
mensagem significasse muito. Tudo o que tinha para informar era
sua viagem a Iwehvenn, que não era nenhum segredo ou crime. Se
Silhara estivesse trabalhando para trair o Conclave de qualquer
forma, ele mantinha suas maquinações bem escondidas.
Ela fez uma pausa na ordenha. O Mestre dos Corvos assegurou seu
silencio com o conhecimento de seu dom. Ela estremeceu ante a
ideia de seu Dom revelado aos outros. Seu cativeiro atual não era
nada comparado ao que poderia se tornar.
Silhara lhe ofereceu os meios para esconder de forma eficaz o que
ela agora pensava como sua maldição. Todas as manhãs, ao invés de
persuadir seu Dom para fazer os feitiços funcionarem, se
esforçavam para suprimi-lo, empurrá-lo de volta às profundezas que
ocupava antes do ataque do Lich a Iwehvenn. O altruísmo de Silhara
camuflava uma motivação mais pessoal. O Conclave, sob o governo
de Cumbria, se voltaria contra ele sem hesitação. O Luminary atual
era um homem justo, um aderente as regras e as leis, que insistia na
justiça com provas e julgamentos. Poderia suspeitar de Silhara com
atividades nefastas, mas não o condenaria sem provas. Cumbria não
estaria obrigado por tais restrições.
Martise lamentou ir a Neith. Escravizada durante a maior parte de
sua vida, acostumou-se ao papel, mas nunca perdeu o anseio de ser
uma mulher livre, para controlar sua própria vida e recuperar esta
pequena parte de seu espirito preso em uma joia brilhante.
No momento em que fez o acordo com Cumbria, seu propósito era
claro ou assim imaginava. Um pequeno soluço alojou-se na parte
posterior de sua garganta. Trair Silhara poderia ter sido fácil no
início. Agora não. Inclusive sem o conhecimento de seu Dom, ela
não podia voltar atrás. Poderia ser para ele apenas uma
companheira de cama conveniente enquanto estava em Neith, mas
para ela era muito mais. O mago rebelde, que se negava a carregar o
jugo do Conclave e vivia como um pobre marginalizado por isso, seu
mentor, a defendeu e a viu como algo mais que um par de mãos
obediente e úteis. Quando ele a levou a sua cama, bem poderia ter
colocado as algemas de Cumbria em seus pulsos. Nunca imaginou
que se apaixonaria por ele e que iria embora de Neith sem dizê-lo
em voz alta. Sua liberdade não valia a morte dele.
Um puxão em sua trança a fez levantar o olhar perdido do chão. A
cabra mastigava com satisfação a ponta. Martise puxou a trança
para longe e deu a volta sobre o ombro. — Não, isso não se faz, minha
menina. Já mastigou duas vezes a manta de Gurn. Não vai me
mastigar hoje.
O ar de repente engrossou ao seu redor, seguido por uma onda de
vento frio da despensa de Solaris. Cael soltou uma advertência e a
cabra também correu para longe, para se refugiar sob um dos
telhados do pátio.
Martise levantou do banquinho. — O que foi isso?
Gurn encolheu os ombros, olhando surpreso, mas indiferente.
A porta se abriu de um golpe e Silhara saiu, limpando as mãos com
um pano. Seu cabelo escuro estava preso em um rabo de cavalo
apertado, dando a seus olhos uma forma mais estreita.
Olhou além da parede do pátio. — Temos visitas. — Gurn pegou o
pano que lançou a ele. — Gurn, devem estar a cavalo. Vá guia-los.
Martise queria perguntar quem eram – eles, – mas mordeu a língua.
Silhara emitiu mais instruções enquanto se dirigia a cozinha. —
Pegue as manta e almofadas que puder encontrar e leve ao pátio.
Comeremos ali ao meio-dia. — Dobrou o dedo para Martise. —
Venha comigo.
Uma vez na cozinha, a imobilizou com um olhar curioso. — Pode
preparar uma xicara de chá forte?
— Sim, porque?
— Bom. Prepare várias e leve para fora, onde Gurn poderá colocar
junto ao almoço. — Seus olhos se estreitaram. — Conhece os
costumes de Kurmanji?
Ah, a identidade dos visitantes.
— Um pouco. A cozinheira de Asher era uma mulher Kurman. — Ela
enumerou as regras em seus dedos. — Não comer com a mão
esquerda. Se assegurar de tocar o coração quando agradecer a
alguém e se for uma mulher não deve encontrar o olhar de um
homem diretamente a menos que queira que saiba que está
interessada.
Ele arqueou uma sobrancelha. — Bom. Está familiarizada com as
coisas importantes. Sobre tudo a última. Estes homens que veem
visitar sabem que os costumes das planícies e da costa são diferentes
dos deles, mas prefiro ser cauteloso. Não apreciaria outra luta
apenas para provar que você é minha. E ao contrário de seu Balian,
Kurmans são muito bons com punhais.
Ele a deixou na cozinha e ela o viu se afastar, aturdida e aquecida
por seu comentário.
É minha.
A única coisa que isso poderia significar era que era uma empregada
da casa e ele não a entregaria a um membro da tribo selvagem.
Também não acreditava que alguém lançaria um desafio. Ela não
era Anya. No entanto, se aferrou com esperança a sua declaração
possessiva, que era mais primitiva que prática. Martise castigou a si
mesma por ter tais pensamentos. O que queria dizer, pouco
importava.
Enquanto Gurn se foi, conseguiu preparar três grandes chaleiras de
chá preto, cortou vários pedaços de pão, arrumou carne de cordeiro
com sal, queijo, azeitonas e laranjas. Usou o tempo restante para
correr ao seu quarto, lavar o rosto, as mãos e pentear seus cabelos.
Gurn se encontrou com ela na cozinha, a sua volta e entre os dois
recolheu a comida e a bebida, junto com duas grandes mantas e
várias almofadas empoeiradas. No pátio, viu Silhara conversando
com dois homens vestidos como Kurmans, calças de cor parda,
camisas de tecidos e contas coloridas, e sapatos com pontas. Eles
eram mais baixos que Silhara e atarracados, com rostos morenos,
com barbas bem aparadas. Os cabelos e os olhos eram ambos negros
e tinham o mesmo nariz e as maças do rosto proeminentes. Se
Silhara não tivesse algo de Kurman nele, comeria os seus sapatos.
A sombra projetada pelas paredes rachadas oferecia uma ampla
extensão de sombra fresca. Gurn colocou as mantas e as almofadas
perto uma das outras, enquanto Martise colocava a comida no
centro, junto com os pedaços de pão. Observava Silhara com os
Kurmans pelo canto do olho. Reconheceu o mais velho dos homens,
como um que viu conversando com Silhara no mercado do Leste
Prime.
Ele tirou um embrulho de seu ombro e o colocou no chão.
Cuidadosamente afastando o pano que o envolvia, ergueu um arco e
o entregou a Silhara. De onde estava, Martise viu que era uma arma
bem-feita. Silhara deve ter encomendado do mercado para
substituir a que ele perdeu em Iwehvenn. Provavelmente pagou com
o dinheiro do Bispo. Ela sorriu ante a ideia.
Fragmentos da conversa flutuava ao seu lado na brisa enquanto
esperava com Gurn nas mantas. Bendewin, a cozinheira de Asher,
lhe ensinou alguns costumes Kurmanji. Mais gutural que o sotaque
da planície, Kurmanji era um idioma difícil de aprender e quem diria
escrever. Os dois Kurmans conversavam com uma mistura de
palavras rápidas e gestos extravagantes. Obviamente fluente,
Silhara respondia com facilidade.
Ele se separou de seu pequeno grupo, levando o arco com ele. Gurn
o olhou com admiração.
Silhara entregou o arco ao servo. — Lindo trabalho, não é? Quando
terminar de servir, pode leva-lo aos meus aposentos. Irei testá-lo mais
tarde. E traga o narguilé. — Suas feições ficaram sérias. — Martise,
Gurn servirá aos homens. Você serve apenas a mim. E olhe em meus
olhos. Perceberão que é minha amante, assim como serva.
— Como quiser, mas não acho que eles irão notar... — Ela parou,
surpreendendo a si mesma. Ela nunca discutiu com ele ou
questionou uma instrução antes. Um rápido olhar confirmou que ele
estava tão surpreso quanto ela.
— Bem, bem. — Disse ele, mas não repreendeu. — Sua posição em
uma tribo Kurman baseia-se no número de ovelhas que possui, as
esposas que você tem e os filhos que engendrou. Os homens mais
novos têm que trabalhar duro para conseguir uma esposa Kurman.
Alguns preferem conseguir uma fora da tribo.
Deu um passo mais perto, mas não a tocou. Seus visitantes
observavam a interação com interesse. — Não subestime suas
presenças, Martise. — Disse em voz baixa. — É possível que tenha
sido uma desconhecida em Asher. Mas está agora em Neith. Se
possível, tente não falar.
Voltou-se para os homens e os conduziu novamente ao lugar
sombreado que ela e Gurn preparam para a refeição. Sentaram em
um semicírculo sobre as almofadas e repartiram o pão entre eles.
Martise seguiu o protocolo Kurman e não olhou nos olhos de
ninguém, apenas para Silhara. Ela flutuava ao seu redor, servindo o
chá e enchendo seu prato. Estava em seu elemento e fez isto para
Cumbria uma dezena de vezes. Apenas que agora, ela não era
ignorada. Os Kurmans a observavam enquanto servia o anfitrião e o
mais novo deles tentou olhá-la nos olhos.
Martise fingiu não entender quando comentou sobre ela com
Silhara.
— Sua mulher lhe serve bem. Ela não estava aqui da última vez que
viemos a Neith.
Silhara colocou uma azeitona na boca e mastigou antes de
responder. — Martise chegou a Neith no começo do verão. Enviada
pelo Conclave.
Um silencio surpreso ficou no ar com sua declaração antes do mais
velhos dos Kurman falar. — Está em paz com os sacerdotes, então?
Silhara deu uma risada curta. — Nunca estarei em paz com os
sacerdotes. No entanto, concordamos em trabalhar juntos para
libertar a terra de deus. Martise ajuda com isso. E outras coisas. —
Passou os dedos levemente por sua panturrilha e lhe entregou uma
xícara para servir novamente. Os dois homens concordaram com a
cabeça em reconhecimento de sua reivindicação silenciosa. O mais
velho voltou a falar.
— As cachoeiras de Brecken ainda caem com sangue. Ainda fedem
com o cheiro de peixe podre. As pessoas estão com medo.
Martise apenas podia imaginar a cena horrível que ele descrevia.
Mesmo que os não-dotados não pudessem ver sua estrela,
Corruption estava se fazendo conhecer ao longo das terras distantes.
Os dedos de Silhara acariciaram os dela enquanto entregava sua
xicara de chá cheia. — Apenas irá piorar. Há pragas também e
campos férteis de repente ficaram estéreis.
Silêncio reinou enquanto os três homens comiam e tomavam o chá.
Novamente o Kurman mais velho falou. — Sarsin estendeu o convite
para que possa visita-lo. Ele tem algo para você que pode ajudá-lo
na busca para vencer o deus.
As sobrancelhas de Silhara se ergueram com interesse. — Sinto-me
honrado pelo convite. Passou-se muito tempo desde que Karduk e
eu compartilhamos um fumo.
Martise tentou não ficar olhando para ele. Silhara, o ermitão, nunca
antes mostrou nenhum prazer em visitar qualquer pessoa, em Neith
ou em qualquer outro lugar. No entanto, sua voz estava quente com
verdadeiro prazer, mesmo avidez, ante a ideia de visitar este Karduk.
— Pode nos acompanhar até em casa hoje. — O Kurman lançou um
olhar para Martise. — Traga sua mulher se quiser, ou Karduk terá o
prazer de lhe oferecer uma de suas amantes por uma noite ou duas.
Rezou para que seu rosto não traísse seus pensamentos. Silhara não
era dela, apesar deste pequeno jogo para os Kurmans, ele não
pertencia a ela. No entanto, esperava que não a deixasse para trás e
encontrasse alivio nos braços de uma das mulheres de seu anfitrião.
Ele não respondeu de qualquer forma a sugestão. — Hoje está bom.
Pedirei a meu servo que arrume mantimentos e meu cavalo.
Tomaram o último chá e compartilharam um fumo no narguilé de
Silhara. Sentada atrás de Silhara, Martise agradeceu o silencio
quando terminaram o fumo e ele se ofereceu para mostrar o bosque
e algumas amostras de seus perfumes. Seu estômago rugiu. Ela
estava morrendo de fome. O sorriso de Gurn mostrou que ouviu o
protesto de seu estômago.
Justo antes dos três homens saírem para a destilaria, Silhara se
virou para ela. — Quanto disso entendeu? — Perguntou suavemente.
— A maior parte. Ajudarei Gurn a arrumar suas coisas. — Não iria
perguntar se ele a levaria. Tinha um pouco de orgulho.
— Deixe Gurn fazê-lo. Direi o que será necessário. Arrume suas
coisas e traga algo quente. Faz frio em Dramorins, mesmo em pleno
verão.
Martise se esforçou para reprimir um sorriso de satisfação que
ameaçava a curva de seus lábios. — Não levarei muito tempo. Ainda
posso ajudar Gurn.
Seu olhar caiu em seu cabelo, olhos e boca. — Você é muito boa em
assumir um papel com muito pouca instrução. Acho que foi mais
Kurman que algumas mulheres Kurman em nossa refeição. — Um
brilho astuto entrou em seus olhos. — Mezdar e Peyan aprovaram
suas atenções a mim, suspeito que Peyan possa oferecer um dote por
você.
Um arrepio de temor rodeou a coluna vertebral de Martise. Não
sabia qual dos homens era Mezdar ou Peyan e não se importava.
Ficou olhando Silhara, tentando discernir sua expressão. Podia ser
implacável quando queria e não duvidava em exercer este poder.
Mas tentar vende-la? Não podia fazê-lo se quisesse, mas para
impedi-lo ela teria que revelar sua servidão a Cumbria.
Diversão suavizou os traços duros. Passou um dedo pelo pescoço.
Ela inclinou a cabeça em um convite inconsciente para ele
continuasse. Ele sorriu. — É óbvio que pensa mais mal de mim do
que Gurn. — Seu toque deixou rastros quentes sobre sua pele. —
Você não é minha para vender, Martise. E mesmo se fosse... bom,
vamos apenas dizer que não preciso de ovelhas ou tapetes.
Deu um passo atrás bruscamente e Martise esteve a ponto de puxá-
lo de volta. — Vá. Tem muito o que fazer antes de sair.
Nervosa por suas caricias e as palavras a ponto de dizer, Martise se
inclinou formalmente e voltou para ajudar Gurn a limpar os restos
da refeição. Levou uns minutos na cozinha para comer antes de
correr escada acima.
Tinha curiosidade sobre os Kurmans. Os seminômades viviam a
maior parte do ano no alto das Montanhas Dramorin, descendo para
as planícies para o comércio durante a época de colheita e quando o
tempo ficava mais duro nas passagens das montanhas. A cozinheira
de Asher era uma mulher Kurman exilada, ainda que seu estado
marginalizado não a incomodasse. Manteve os costumes que a
beneficiavam e descartou os demais. Martise a agradecia por ensinar
a ela a língua.
Dobrou e empacotou sua túnica e as saias mais pesadas, junto com
seu xale e meias de lã que não usara desde seu primeiro dia em
Neith. Desejava uma bolsa maior e esperava que Gurn empacotasse
muitas mantas de lã.
Um silêncio estranho rompeu sua concentração. O canto sem fim e
os gritos dos corvos nas laranjeiras se converteu em algo comum da
vida em Neith e já quase não se notava o ruído. Agora percebia a
ausência. O sol da tarde entrava pela janela aberta e protegeu os
olhos do resplendor com a mão. À primeira vista, o bosque parecia
como em qualquer outro dia, verde e cheio, banhado pelo sol. Um
segundo olhar mais de perto e o coração de Martise saltou na
garganta.
No chão corria um vermelho sangue. Rios escarlates corriam pelos
troncos das laranjeiras e se agrupavam em suas bases. Sinuosos rios
escorriam em padrões curvos sobre a terra, desenhando algo
macabro que aumentava e se estendia pela casa. Parecia como se
uma matança houvesse acontecido no bosque.
— Pelas asas de Bursin. — Ela correu para fora do quarto e quase
derrubou Gurn enquanto passava pela cozinha. — Gurn, Silhara está
na varanda com os Kurman?
Ela passou pela porta e do outro lado do pátio antes que pudesse
assentir. A destilaria estava fresca e tênue, com o cheiro de flor de
laranjeira e o tabaco persistente nas roupas dos homens.
Silhara a observou com surpresa. Ela fez um arco torpe.
— Martise? — Seu tom estava mais preocupado que irritado.
— Mestre. — Estava quase ofegante. — O bosque. É melhor que
venha agora.
Ela se apertou contra a porta quando Silhara passou junto a ela, o
rosto sombrio. Os Kurman olharam um para o outro e logo para as
costas de Silhara com surpresa. Martise se dirigiu a eles em
Kurmanji lento, tomando cuidado para não olhar nenhum deles
diretamente.
— Sigam-me e os levarei junto ao Mestre.
Seguiram sem duvidar. Fora, Silhara e Gurn estavam juntos,
observando o sangue úmido no bosque. Atrás de Martise, os
Kurman abriram e aboca e começaram a falar em Kurmanji. Silhara
se voltou, com os braços nos quadris. Um frio fogo ardia em seus
olhos estreitos. Dirigiu-se aos Kurman com os dentes apertados.
— Estou ansioso para ver o que Karduk tem para que eu possa
destruir este verme.
Quando foram novamente para o pátio, Gurn fez um gesto para
Silhara. Silhara fechou a porta atrás de si.
— Não há nada o que fazer a respeito. As árvores não estão
danificadas. O deus simplesmente fez notar sua presença. Ele tem
medo dos pássaros, o que não é de todo ruim. Infelizmente, o cheiro
irá atrair todos os predadores por milhas. Irei colocar um feitiço
sobre o bosque para amortizar o cheiro, mas prenderei a Cael esta
noite. Não o quero lutando com cada carniceiro que consiga escalar
as paredes à procura de carcaça. Coloque o gado no grande salão.
Lidaremos com esta bagunça depois.
Passou pelos Kurman da cozinha para a destilaria, voltando a usar a
linguagem gutural das montanhas para discutir o comércio de
perfumes. Inclusive com o deus fazendo estragos no bosque, ainda
fazia negócios.
Martise voltou ao quarto para terminar de empacotar as coisas.
Irritada com a vista e o cheiro flutuando fora do bosque, acedeu uma
lamparina e fechou as persianas que davam para o bosque
ensanguentado. Ela voltou para a cozinha e ajudou Gurn a carregar
os mantimentos, incluindo o novo arco de Silhara. Entre os dois,
ficaram prontos no momento que Silhara queria partir.
A penumbra da grande estrada os cercava, enquanto andavam pela
estrada de Neith. Martise simpatizava com os Kurman. Como ela,
eles estavam inquietos sob o dossel retorcido de carvalho Solaris e
constantemente olhavam para a floresta para uma melhor vista das
formas sinuosas à espreita ali. Quase ouviu a leve risada de Silhara
quando ela e os membros da tribo deram um suspiro de alivio no
final da estrada.
Dois potros robustos e peludos pastavam livremente nas
proximidades. Mezdar ou Peyan – ela ainda não sabia quem era
quem – assobiou e os potros trotaram para onde eles estavam. Perto
de Gnat eles pareciam de brinquedo e se maravilhou com a
facilidade que se aproximaram dos homens adultos nas planícies da
montanha.
Se colocaram em marcha para Dramorins com Martise montando
em silencio atrás de Silhara em Gnat. Ela se limitou a ficar em
silencio e ouvir os homens conversarem. Passou grande parte de sua
vida assim e aprendeu muito. Silhara, triste e distraído pela
mensagem do deus no bosque, ficava mais afável quando conversava
com os Kurman. Ele estava familiarizado com aqueles de quem
falavam – quem era primo de quem, quem era o pai da criança ou o
pai de quem morreu de alguma doença, quem se casou com uma
mulher de outra tribo.
Ao anoitecer, eles fizeram um acampamento perto da base das
montanhas. O Kurman mais jovem desapareceu na mata com seu
arco e flecha. Martise ajudou Silhara e o Kurman que ficou a
preparar o acampamento. Ela recolheu madeira na zona
circundante e em um momento se encontrou com Silhara levando
Gnat para um campo de grama macia.
— Onde o mais jovem foi?
Silhara olhou para a mata. — Peyan? Caçar. Se ele não voltar com
alguma coisa, tentarei caçar, mas suspeito que iremos comer bem
esta noite.
Ela pegou mais gravetos para a pilha que segurava e engasgou
quando Silhara recolheu metade da lenha de seus braços.
Ela tentou pegar de volta. — Espere! Os Kurman não acham que
juntar madeira é trabalho de mulher?
Ela pegou mais dois pedaços de madeira de sua carga para uma boa
medida. — Martise, ter filhos é trabalho da mulher. Gurn e eu
estaríamos sentados no escuro cada noite se esperássemos alguma
mulher errante pegar madeira para nós.
— Mas...
—Você realmente acha que estes dois homens irão me desafiar sobre
como eu lido com minha mulher?
Sua mulher. Ela gostava do som daquilo mais do que deveria. —
Pensei que nós devíamos seguir os costumes deles.
— Sim e iremos. Mas eu ficaria feliz em apontar a idiotice deles se
preferirem esperar e congelar suas bolas, enquanto você junta lenha
o suficiente para uma fogueira decente.
Ele tinha um ponto e estava mais familiarizado com estas pessoas
do que ela. — Obrigada Mestre.
— Estamos sozinhos aqui Martise.
— Obrigada, Silhara.
Ele acenou com aprovação e fez um sinal para segui-lo. Eles
voltaram para o acampamento para encontrar Peyan com um colar
de coelhos para cozinhar. Eles logo fizeram uma fogueira, com os
coelhos em gravetos e assando sobre a chama. Mezdar construiu
uma pequena fogueira ao lado, deixando-a queimar baixo até as
brasas brilharem. Ele colocou uma pequena folha de metal sobre as
brasas e fez bolos planos a partir de uma massa macia e granulada
que ele misturou em uma tigela nas proximidades.
Sentada ao lado de Silhara, a boca de Martise se encheu de água. Pão
Enjita. Ela viu Bendewin fazer Enjita muitas vezes nas cozinhas de
Asher. Os servos alinhados ansiosamente, com pratos nas mãos
quando a mulher Kurman fazia o pão.
Silhara se inclinou mais perto. — Quando tomar seu chá, coloque a
mão sobre o copo de modo que os outros não vejam o que bebe.
— Não vi você fazer isso mais cedo em Neith.
— Apenas as mulheres cobrem seus copos.
Comer por último, beber as escondidas, não falar frequentemente.
Martise estava familiarizada com algumas dessas regras em seu
papel como escrava. Ser uma mulher Kurman não parecia muito
diferente pelo que ela podia dizer.
De muitas formas, o seu jantar a lembrou dos jantares em Asher.
Esta não era nada como as refeições pródigas que Cumbria oferecia
a seus colegas padres ou dignitários visitantes, mas ocupava um
lugar similar. Ela permaneceu em silencio, ouviu e aprendeu.
Poderia até mesmo ter passado despercebida assim como em Asher,
a não ser pelo afago constante dos dedos de Silhara na ponta de suas
tranças enquanto ele conversava, comia e bebia chá com seus
companheiros. Estava grata por eles não demorarem na refeição. O
cheiro de carne assada e pão quente fez seu estomago doer e ela se
forçou a ir devagar, uma vez que pode comer.
Mezdar avivou o fogo e os três homens prepararam tabaco para a
noite. Ela escondeu um bocejo atrás de sua mão e se aconchegou em
seu xale. Apesar do calor do fogo, o ar estava frio. Silhara, a vontade
na companhia dos Kurman, não levantou os olhos de seu cachimbo.
— Vá para dormir Martise. Ficarei por mais um tempo. Este é um
país de bandidos e cada um ficará vigiando. E mantenha seus
sapatos. Irei me reunir contigo logo.
Se acostumou a dormir aconchegada contra ele. Inclusive os roncos
suaves em seus ouvidos a consolava e sempre havia a possibilidade
de que quando acordasse, ele a teria sob ele. Ou em cima dele.
Martise ruborizou ante as imagens sensuais que brincavam em sua
mente.
Preparou sua cama como ele instruiu e entrou sob as mantas com
seus sapatos e dormiu. Acordou quando Silhara deslizou sob as
mantas e a puxou contra ele. Ele colocou um braço sobre sua cintura
e encaixou a perna entre as dela através de suas saias pesadas. Seu
suspiro fez cocegas em sua orelha.
— Seria muito melhor se estivesse nua, mas isto vai servir.
Levantaram antes do amanhecer. Peyan que tomou a última guarda,
já havia preparado o chá e estava esquentando a enjita que sobrou
para o café. O sol estava alto no horizonte quando se colocaram em
marcha para o povoado de Kurman.
O ar ficou mais frio e mais fino enquanto cavalgavam através das
montanhas. O sol estava alto e brilhante, mas Martise envolveu o
xale firme ao redor dela e se pressionou contra as costas de Silhara.
Gnat manteve o ritmo constante, mais difícil de respirar no ar.
Diferente dele, os potros das montanhas não sofriam os efeitos do
ar e iam em um ritmo mais rápido. Manchas de neve se derramavam
nos caminhos cheios de buracos. Um forte vento gemia um canto
suave, já que chicoteava através das árvores de folhas perenes
imponentes do ocultamento da ladeira da montanha.
Silhara parou de repete. Martise olhou ao redor, esperando ver
algum obstáculo em seu caminho. O caminho estava livre e apenas
os Kurman os olhavam com curiosidade.
— O que foi?
— Está tremendo com tanta força que seus dentes estão batendo
como uma cascavel. — Ele moveu sua perna para trás e pegou um
dos pacotes na sela. — Desça.
Desceu de Gnat. Silhara continuou e puxou uma de suas mantas do
pacote. — Aqui. Coloque ao seu redor.
Apenas jogou a manta em seus ombros quando ele a levantou e
lançou sobre Gnat, uma vez mais, desta vez na parte da frente da
sela. Agarrou a crina do cavalo com uma mão e se aferrou a manta
com a outra. Silhara saltou atrás dela, ela deslizou para trás contra
ele e tomou as rédeas.
— Melhor. — Disse e assobiou aos Kurman que esperavam, dizendo
que estava pronto.
Martise não podia concordar mais. O calor da manta e o calor do
corpo de Silhara se filtrava por suas roupas e ossos. Apoiou-se em
seu peito. — Isso é bom.
Um som divertido retumbou perto de seus ouvidos. — Alegro-me
que aprove. — Sua mão deslizou sob a manta, aproximou-se de seu
ventre e segurou seu seio. Martise conteve o folego quando os dedos
brincaram com o mamilo através do xale e a túnica. O calor que a
rodeava ficou abrasador. — Concordo. — Murmurou em seu ouvido.
— Isto é bom.
Parou as brincadeiras quando ela se contorceu forte o suficiente na
sela quase derrubando os dois, mas deixou a mão em seu seio,
apenas abraçando-a. Martise estava disposta a jogar a manta e o
xale. O toque de Silhara a deixou com uma dor palpitante entre as
coxas. Ela sorriu um pouco ao senti-lo duro contra suas costas. Não
era a única afetada por sua brincadeira.
Esfregou a parte superior da cabeça com o queixo. — Haverá uma
festa esta noite. Os Kurman procuram qualquer razão para celebrar.
Visitantes são boas razões como qualquer outra. Os homens comem
separados das mulheres, assim não pode se sentar comigo.
Uma vez mais, uma separação não apenas de papeis, mas de
proximidade. — São as mulheres Kurman párias entre seu próprio
povo?
— Não seja tão rápida em julgar. Pode parecer assim a um estranho,
mas as mulheres Kurman são muito respeitadas. São donas de
propriedades, independentes de seus maridos. O dote do homem
para uma nova noiva é comprado de sua mãe e entregue a mãe da
noiva. Possuem rebanhos, tapetes e mesmo casas. As mulheres
também elegem o Sarsin.
Martise ficou surpresa com suas revelações e se virou para olhar
para ele. — Nunca ouvi falar de tal coisa. São donas de propriedades?
— Ela não se incomodou em esconder a inveja. Pensou por segundos
em como era ter algo próprio, como seria não estar vinculada a um
pai e um marido?
O tom de Silhara era irônico. — Os homens da planície poderiam
aprender algo com estes selvagens das montanhas, não parece?
Ela olhou para frente e ficou olhando os Kurman adiante deles. Até
a mulher mais elevada de Aristo não possuía terras ou rebanhos. A
propriedade sempre passava para o parente masculino que vivia
mais perto. Talvez, pensou, seria uma coisa boa ser uma Kurman.
— Quem o servirá se estivermos separados?
— Se eu fosse um membro da tribo, uma de minhas esposas me
serviria. Como sou um convidado, uma das matriarcas o fará. É uma
convidada também. Enquanto uma matriarca não a servirá, não será
obrigada a servir na festa.
— Sinto-me mais cômoda servindo, não ser servida.
Diversão encheu sua voz. — Parece que nasceu como uma serva. —
Sua voz estava mais séria quando voltou a falar. — São parentes de
meu pai.
Martise olhou para suas mãos. Seguravam as rédeas com força. —
Imaginei algo assim. Quando o vi pela primeira vez, me perguntei se
tinha sangue Kurman. Estará lá?
— Não. Morreu enquanto minha mãe estava grávida de mim. Seu
povo nem sequer sabia de mim até que cheguei aos vinte anos.
Foram a Neith fazer negócios com meu mentor. Aos poucos viram
semelhanças entre nós e fizeram as perguntas corretas. Difícil
passar por alto o nariz e os pômulos Kurman.
Passou o polegar sobre os nós dos dedos. — Sinto muito.
Encolheu os ombros contra suas costas. — Foi há muito tempo. Não
se perde o que nunca se conhece.
Ficaram em um silencio cômodo e ela adormecia em intervalos
curtos, envolta na manta quente e no calor de Silhara. Estava
acordada quando finalmente entraram no povoado de Kurman. No
alto das montanhas e rodeado por super protetores pinheiros, o
povoado se estendia através do claro plano. Tendas negras com
bandeiras brilhantes em tons de amarelo e vermelho dividiam
espaço com casas construídas de pedra bruta e cobertas com galhos
misturados com lama seca ao sol. Os telhados eram únicos,
construídos em forma de cúpula com um buraco no centro a partir
do qual a fumaça escapava em espirais preguiçosas.
Poucas ovelhas estavam no centro do povoado e as crianças
brincavam com os cães para ver quem podia perseguir galinhas mais
rápido. Eram acompanhados pelas reprimendas maternais das
mulheres com roupas coloridas ao redor de fogueiras ou que
estavam sentadas fazendo suas tarefas fora das portas.
Peyan fez seu potro trotar e alertou a aldeia de sua chegada com um
sonoro. — Aiyee!
Como uma entidade única, toda a aldeia se lançava para frente para
recebê-los. Gnat esperava paciente enquanto tantas mãos batiam
em seu pescoço. Silhara desmontou e ajudou Martise a descer. Ele
foi tocado também e em meio a uma conversa animada ouviu a
palavra — kurr — várias vezes, um carinho que ela reconheceu como
— filho —.
Como Peyan e Mezdar, os Kurman eram morenos, mais escuros
que Silhara, com o mesmo cabelo e olhos negros. Seus rostos
eram amplos e mais amendoados. Muitos tinham o mesmo nariz
aquilino como os dele e as mesmas maçãs do rosto proeminentes,
mas não tinham a mesma altura. Silhara era mais alto que a
maioria no meio da multidão.
As mulheres usavam coletes semelhantes ao dos homens, mas suas
camisas eram mais brilhantes e suas saias envoltas em um matiz de
azul, açafrão e escarlate. Os cabelos escuros estavam dispostos em
tranças intrincadas e decoradas com pontas pintadas. Todos os
olhos de repente foram para ela.
Não acostumada a tanta atenção, ela corou e fez um arco
desajeitado. Mas pelo menos ela não gaguejou em sua saudação
Kurmanji. — Que uma lua justa esteja acima de vocês. Estou
honrada em poder compartilhar o pão.
Mais conversa se seguiu a saudação, junto com alguns admirados —
ooohs —. Uma menina na multidão exclamou. — Que voz linda!
Canta?
Silhara empalideceu. Martise tentou não rir de sua expressão de
horror. — Não, sinto muito. Não canto bem.
Uma ronda de protestos decepcionados fez eco na multidão e Silhara
soltou um audível suspiro de alivio. Sorriu ante o cenho franzido
indignado que ela lhe lançou.
Foram escoltados ao coração da aldeia por toda a multidão. Falavam
muito animados sobre uma celebração de boas-vindas naquela noite
e pediam a Silhara notícias da planície. Um súbito silencio desceu
sobre os moradores e a multidão se dividiu.
Uma figura imponente se aproximou deles. Vestido muito parecido
com os outros homens Kurman em colete bordado e calça parda,
destacava-se entre a multidão. Seu chapéu alto acrescentava altura
a sua aparência e usava um rubi do tamanho de um ovo de Robin. A
vida e o sol esculpiram rugas em seu rosto escuro, obscurecido por
uma barba branca grande. Martise foi atingida por sua presença, o
calmo poder e a autoridade.
Silhara o encontrou na metade do caminho e fez uma reverencia
com as mãos juntas como se em oração. — Sinto-me honrado,
Sarsin.
O Sarsin pigarreou. Seus olhos escuros se enrugaram nos cantos e
sua boca, quase escondida pela barba, transformou-se em um
sorriso. — É bom tê-lo aqui, kurr. — Ele olhou para Martise. — Você
trouxe sua mulher?
— Sim. Ela me serve bem e é um bom conforto em uma noite fria.
Martise endureceu. Ela fazia mais para Silhara que servir chá e
esquentar sua cama. Tão rapidamente quando se endureceu,
relaxou. Bendewin ás vezes mencionou o alto valor colocado em uma
esposa Kurman que atendia seu companheiro e agradava-lhe entre
os lençóis. Enquanto Martise julgava o seu valor por seu
aprendizado, aos olhos Kurman e Silhara acabou de que fazer um
grande elogio.
Os dois homens apertaram as mãos e o Sarsin levou-o para longe da
multidão. Silhara falou para Martise por cima do ombro. — Vá com
as mulheres. Elas lhe mostrarão a aldeia e a levará para a casa que
compartilharemos. Eu a vejo mais tarde esta noite.
Martise o observou ir, nervosa, mas determinada a causar uma boa
impressão em seus parentes. Ela estava dentro de um círculo de
mulheres e crianças que faziam inúmeras perguntas. O Kurmanji
voava tão rápido que ela precisou pedir para repetirem. Em uma
pausa na conversa, uma mulher Kurman de cabelos brancos com
mechas abriu caminho à frente da multidão.
— Isto é o suficiente por agora. Eles vieram de longe e querem
descansar e tomar um banho. — Ela olhou para Martise que assentiu
com entusiasmo.
O quarto para o qual a mulher a levou era uma das grandes casas de
pedra na aldeia. Martise a seguiu para dentro e foi instantaneamente
inundada pelo calor. A casa era um único quarto grande, iluminada
pelo fogo dançando alegremente em um poço no centro do chão.
Tapetes cobriam o chão, proporcionando passos suaves. Fileiras de
frascos e caixas foram empurradas contra as paredes e várias peles
de ovelhas compunham a cama. A fumaça do fogo subia para o teto
e desaparecia pelo buraco que permitia uma coluna de luz solar
entrar na casa. Ela passou por cima de várias almofadas e pelas
cordas pesadas de alho e pimenta secas que pendiam das vigas.
Sua acompanhante apontou o fogo. Ela falou na língua das planícies
em vez de Kurmanji. — Alguém trará chá e água para o banho. Já
comeu?
— Ainda não.
A mulher se moveu ao redor da sala, ajeitando os cobertores na cama
e verificou o conteúdo de alguns frascos. Ela voltou-se para Martise
e avaliou-a com aquele mesmo olhar de meditação. — Sou Dercima,
quarta consorte de Karduk. Meu irmão era o pai de Silhara.
Martise escondeu sua surpresa com outro arco. — Sou Martise de
Asher. — Ela fez uma pausa. Como poderia se apresentar? Silhara já
a tinha chamado de sua mulher, mas foi mais uma afirmação que
um título oficial. Ela se acomodou em algo aplicável no momento. —
Sirvo em Neith.
O olhar de Dercima era astuto e embora ela não fosse mais alta que
Martise, ainda conseguia olhá-la de baixo. Martise reconheceu
imediatamente a expressão. — Você não é o que eu esperava para
meu sobrinho.
Quantas vezes ouviu palavras similares em sua vida? — Surpreendo
as pessoas, às vezes.
As feições sombrias de Dercima relaxaram com um pouco de
diversão. — Suspeito que você o surpreendeu. — Ela endireitou um
travesseiro antes de caminhar para a porta. — Descanse agora.
Silhara voltará mais tarde. Meu marido vai querer conversar com ele
e Karduk tende a ser prolixo.
— Silhara se parece com seu pai?
Sua pergunta fez Dercima parar um momento. Ela virou-se para
trás. A luz do fogo refletida em seu olhar fixo. — Sim, mas os olhos
de Silhara são muito mais velhos que os de Terlan jamais foram. Ele
é um homem difícil, sombrio. Você abraça a escuridão. — Ela se
abaixou e saiu pela pequena porta antes que Martise pudesse lhe
perguntar mais.
Ela não foi deixada sozinha por muito tempo. Três mulheres novas
bateram na porta e entraram na casa carregando suprimentos para
um banho, um prato cheio de comida, um caldeirão resistente de
água e uma chaleira. Martise murmurou seus agradecimentos
enquanto elas deixavam as coisas. Sozinha na casa, colocou o chá e
o caldeirão para esquentar e serviu-se da comida. Não havia Kurman
ali para repreendê-la por comer antes que Silhara chegasse.
A comida era um molho de carneiro, lentilhas e pimentas. Ela cortou
o pão enjita e tomou metade do chá para esfriar o fogo picante das
pimentas em suas línguas. Depois, ela testou a água do caldeirão,
desfez a trança e se despiu para um banho rápido. Lá fora, o ar vivo
cheirava a neve, mas dentro da casa era quente e Martise tomou sem
tempo em ensaboar e enxaguar a poeira da estrada para fora de seu
corpo.
— Parece que sempre sou recebido com um espetáculo cada vez que
entro em uma casa.
Olhou para Silhara na entrada, um brilho de admiração em seus
olhos escuros. Martise abaixou os braços a seu lado e lhe deu uma
vista sem obstáculos de seu corpo.
— Criado em um bordel, pensaria que tal visão fosse comum para
você.
Aproximou-se dela lentamente, seu olhar acariciando-a quando se
aproximou. — É verdade. — Ele desenhou um padrão delicado sobre
seus seios nus e o peito. — Mas você não é comum, mesmo que tenha
apenas dois seios.
Ele a fez rir, mesmo enquanto seu sangue esquentava com sua
proximidade e seu tato. — Você conversou com Sarsin? — Ela abriu
a boca e se arqueou contra ele, que se inclinou e tomou o mamilo na
boca e chupou. Martise enterrou as mãos úmidas em seu cabelo e
gemeu sem se preocupar em molhar a parte da frente da túnica dele.
Silhara colocou um último beijo na ponta de seu mamilo antes de se
afastar. A luz do fogo brilhava nas maçãs de seu rosto e os olhos. —
Sim. Foi mais uma saudação formal que outra coisa. Ele quer
conversar novamente está noite. Karduk tem muito folego.
Ela riu. — Foi o que disse sua tia.
— Conversou com Decima? Está é uma mulher que pode desafiar
um deus. É a quarta das seis consortes e a mais poderosa na
família de Karduk. Ela os governa.
Falava dela com carinho e um grande respeito. Martise gostava de
ver este lado dele, um homem livre do desprezo habitual. Ela deixou
cair o pano molhado na borda da caldeira e pegou outro para se
secar. Silhara pegou o pano dela.
— Não. Termine seu banho.
— Mas há comida...
Uma sobrancelha negra se arqueou. — E eu comerei enquanto toma
banho.
O olhar que lhe dirigiu era sedutor e ela respondeu a seu desafio
tácito. Na intimidade da casa Kurman, ela não era uma serva, nem
ele um mestre. Gostava simplesmente de observá-la. E ela gostava
que o fizesse.
O resto do banho foi lento e languido. Silhara se sentou com as
pernas cruzadas em uma das almofadas e comeu o que estava em
um prato. Ela escondeu seu sorriso, quando muito distraído
seguindo o caminho do pano sobre seu quadril, quase colocou a mão
no fogo em lugar de na chaleira. Era evidente para Martise, mas
neste momento se sentia mais bonita e sensual que todas as Anyas
no mundo. Isto se refletia na vontade de testá-lo. Ele era o Sarsin ali
e ela sua consorte para lhe proporcionar prazer.
Seus traços ficaram tensos enquanto passava o pano seco no interior
da coxa, quase até seu sexo. Ele jogou a xicara de chá vazia de lado e
a alcançou, envolvendo uma mão ao redor de sua panturrilha.
Martise deixou cair o pano e esperou. Ficou de pé com rapidez,
apoiando as mãos nos quadris.
Ela brincou com os cordões de sua túnica. — As mulheres Kurman
banham seus homens?
As mãos calosas acariciaram seus quadris até a cintura, a curva
exterior de seus seios. — Às vezes. A consorte de um homem pode
optar por fazê-lo. O privilégio do casamento. — O sorriso de Silhara
era de desconcerto.
Um dos cordões soltou-se entre seus dedos. — Quero lhe dar um
banho.
Ele perdeu o sorriso. — Por quê?
Seu tom era inseguro, apesar da brusquidão. Doía seu coração
dentro do peito, enquanto seu corpo ardia de desejo. Ela sentiria dor
quando fosse embora de Neith. Uma ponta do dedo seguiu a ponte
de seu nariz. — Porque será um prazer ao tato, para a visão. Um
homem pode sentir isso... — Ela colocou a mão sobre seu seio, o
deixou sentir a ponta sensível de seu mamilo. — E isto... — Ela guiou
sua mão entre as pernas e abriu as coxas de forma que os dedos
encontrassem a umidade ali.
Os olhos de Silhara se fecharam e ele gemeu. Estes dedos
maravilhosos trabalhavam sua própria magia nela, deslizando e
deixando-a louca a cada movimento. Sua língua imitava o que seus
dedos faziam quando ele inclinou cabeça e a beijou.
Durante vários minutos, Martise se perdeu no contato antes que
recuperasse seus pensamentos e afastasse sua mão. Silhara grunhiu
em sinal de protesto, mas não a impediu. Os dois estavam sem
folego. — Não peço muito... — Ofegou.
Seu olhar a despojou de sua alma. — Você pede tudo. — Ele
continuou olhando-a, sombras movendo-se dentro das profundezas
de seus olhos. Seus ombros se levantaram em uma respiração
profunda. — Como quiser.
Euforia misturou-se com o desejo. Martise o tirou de suas roupas,
jogando-as de lado com entusiasmo, rindo. Parou quando ele ficou
nu diante dela, apenas sob a luz piscando da lareira. A pele morena
ficava mais clara descendo pela cintura, os ombros eram largos e
pernas fortes. Era lindo e um formigamento percorreu seus dedos,
querendo render homenagem a beleza masculina.
A água ainda estava quente e ela umedeceu o pano novamente.
Silhara ficou imóvel a seus cuidados lentos, segurando o folego
quando o tecido deslizou entre suas coxas e passou sobre seus
testículos em uma suave caricia. Tomou seu tempo, desfrutando da
vista de sua pele brilhante com gotas de água. Balançou-se sobre
seus pés quando ela o ensaboou e passou as mãos escorregadias
pelas costelas, a coluna vertebral e o traseiro duro. Um suspiro
satisfeito lhe escapou quando ela curvou os dedos escorregadios ao
redor de seu pênis e o acariciou.
As mãos de Silhara se fecharam em punhos dos lados. Seu rosto,
ruborizado pelo calor do fogo e desejo que Martise provocava nele.
Sua voz era um sussurro rouco. — Acabe logo ou terá sabonete na
cama.
Ela riu suavemente e jogou água sobre ele para limpar e tirar o
sabonete. Estava molhado, reluzente e excitado. Martise deixou cair
o pano no caldeirão. Seus lábios tocaram seu queixo. — A cama está
muito longe.
Sua respiração acelerou ainda mais enquanto descobria seu corpo
com a boca, lábios e a língua brincando com seus mamilos, passando
pelo estômago, o ângulo proeminente do osso dos quadris, até as
coxas musculosas. Silhara enterrou as mãos em seu cabelo e
massageou o couro cabeludo com dedos trêmulos. De joelhos diante
dele, Martise encontrou seu olhar escuro e fechou a boca sobre a
ponta de seu pênis. Ele foi o primeiro a romper o olhar, inclinando
a cabeça para trás para ofegar seu prazer quando ela o tomou
totalmente, até a base.
Era dotado como qualquer outro homem, mas encaixava em sua
boca perfeitamente, assim como dentro dela, como se tivesse sido
feito para ela, somente para ela. Martise o saboreou, a pele suave de
seu eixo contra a língua, a ponta sensível correndo por sua
longitude. O cheiro de sabonete e almíscar, encheu seu nariz
enquanto o segurava em sua boca. Os músculos de suas coxas fortes
estremeceram sob suas mãos, quando acariciou suas bolas.
Profundos gemidos saíram dele. Depois da sutil pressão de sua mão
sobre sua cabeça, Martise chupou mais forte, mais rápido passou a
língua sobre o eixo e a ponta de seu pênis. Ela o deixou quase sair de
sua boca antes toma-lo todo novamente. Sua garganta trabalhou
com ruídos incoerentes e suas mãos agarraram seu cabelo. Dois
movimentos profundo ao longo de seu eixo e ele encheu sua boca.
Martise tomou dele, saboreando o gosto salgado na língua.
Continuou chupando, drenando seu pênis que suavizava e até que
ele saiu de sua boca e se ajoelhou. Ficou de frente para ela, com a
cabeça baixa, ofegando mais forte que um cavalo de corrida. Moveu-
se o suficiente para descansar a testa em seu ombro, estremecendo
ainda. Martise passou as mãos por seu cabelo sedoso, umedecido
aos lados com suor.
— Eu o satisfiz?
Silhara levantou lentamente a cabeça para olhá-la. A cor intensa
marcando suas bochechas. As pupilas negras engoliram as partes
claras dos olhos. — Satisfez-me? Derrotou-me.
Ele ficou de pé e puxou-a para a cama. Deitaram-se nas peles suaves.
— Irá me manter quente. — Disse e a fez cair sobre ele. Martise ficou
sobre seu corpo, passando os dedos ao longo das panturrilhas e
entre as coxas onde estava seu sexo. Ela o desejava. Suas coxas
estavam escorregadias com a necessidade, mas podia esperar. Ele
gostou de suas atenções e era um prazer estar com ele, beijar a forte
coluna de sua garganta e sentir o sabor dele. A língua dela fez um
círculo lento, os dentes mordendo suavemente o lábio inferior.
— Está úmida para mim. — Murmurou contra sua boca.
— Como não estaria? — Ela passou a língua no lábio que mordeu. —
Você é lindo ao tato e no gosto. — Ela não escondeu sua paixão
honesta por ele. Ele era seu amante e ela o desejava sobre todas as
coisas.
Um empurrão suave contra sua vagina lhe fez saber que suas
palavras o afetaram. Ele a fez rodar sobre suas costas e se inclinou
sobre ela. — Quero sentir seu gosto também e tomar meu tempo
para desfrutar.
Ele a tomou como ela fez com ele antes, usando seus lábios e a língua
para leva-la a loucura. Ela se desfez em seus braços, chamando seu
nome enquanto arranhava seus ombros e apertava as pernas contra
seus lados. O pulsar entre suas pernas não diminuiu quando se
elevou sobre ela, girou-a sobre o estomago e a colocou sobre as mãos
e joelhos. Não disse nada, apenas abriu suas coxas com um joelho e
agarrou seu pescoço com uma mão.
Martise gemeu, arqueando as costas sem folego. Montou-a em
silêncio, seu pau duro afundando-se até que ficou contra ela.
Deleitou-se com a sensação, sua plenitude, estirando-a quando seu
pênis bombeava dentro e fora dela. Os músculos internos se
apoderaram dele, tentando prendê-lo dentro e Silhara grunhiu. Seu
agarre no pescoço aumentou e entrou nela mais rápido, mais
profundo, até que Martise pensou que poderia senti-lo no fundo da
garganta. Sem cortejo ou os rituais entre os homens e mulheres, isto
era uma reinvindicação, uma posse de um macho por uma fêmea
disposta.
Um último empurrão e gemeu em triunfo. Uma onda de calor pulsou
profundamente dentro dela. A mão segurando seu pescoço
afrouxou, deslizando pelo ombro em uma caricia lenta. Silhara os
virou de lado cuidadosamente, mantendo a conexão intima
enquanto se curvava contra ela. Seu coração pulsava forte em suas
costas.
— Se não fossemos convidados de honra, não iria assistir as
festividades desta noite. — Suas palavras saíram enquanto
recuperava o fôlego.
Martise, que não queria mentir, apenas desfrutar da sensação de tê-
lo dentro e ao redor dela, concordou. — Ficaria muito feliz em ficar
assim e deixar que celebrem sem nós. Mas nos querem ali.
Especialmente você.
Silhara passou a mão na curva de seu quadril para segurar seu seio.
Esfregou sua cabeça. — Haverá comida e boa companhia, cerveja o
suficiente para colar os dentes e muita dança. Perguntarão porque
não posso fazer nada mais que me arrastar sobre os joelhos e as
mãos. Você me esgotou.
Martise riu. — Não exagere, ambos o fizemos, duvido que
perguntem porque não está dando saltos ao redor do fogo.
Riu e deu tapinha em seu quadril antes de se afastar. Um jato de
calor úmido banhou suas coxas quando ele saiu dela e agradeceu
quando voltou com um pano seco. No momento que um dos Kurman
apareceu para chama-los à celebração, já estavam vestidos e Martise
tinha acabado de trançar o cabelo de Silhara.
A aldeia se reunia ao redor de duas grandes fogueiras, os homens
em uma, as mulheres em outra. Silhara assentiu uma vez para ela
antes de ser levado por um dos homens. As mulheres de boa vontade
a levaram com elas. Martise se alegrou por conhecer alguns Kurman
e logo se uniu as conversar que inevitavelmente se concentravam
nos homens, crianças e fofocas da aldeia. Novo para ela era a
conversa sobre as propriedades e as especulações políticas. Devido
que as mulheres Kurman possuíam terras e casas e elegiam o Sarsin
da aldeia, discutiam entre elas. Martise ficou fascinada e com inveja.
A noite era clara e fria, sua respiração saia a sua frente como uma
nuvem, mas a comida era boa, a cerveja forte como advertiu Silhara
e a dança selvagem. Ficou tonta ao tentar aprender os passos e
juntar as mãos com as mulheres enquanto dançavam no amplo
círculo ao redor do fogo. Ela vislumbrou Silhara, bonito como
sempre, enquanto dançava com os homens. Ele encontrou seu olhar
através do fogo e seus olhos arderam com um olhar que prometia
mais esta noite. Ela desejava que esta noite pudesse durar para
sempre. Ali, nas montanhas altas, rodeada por um povo estrangeiro,
ela era simplesmente Martise. Não de Asher, mas de Neith. O
estigma da escravidão não existia e os parentes de Silhara a
aceitavam como a mulher dele.
No momento que a celebração terminou, ela estava com calor e
bêbada por causa da cerveja. Silhara chegou a ela enquanto se
despedia de suas companheiras.
— Karduk quer conversar comigo novamente. Ele pode ter algo para
nos ajudar da derrota de Corruption. — Seu rosto era sombrio. — Os
Kurman gostam de conversar. Geralmente a uma troca de tabaco,
mais cerveja, mais fumo e mais cerveja. — Ele sorriu de leve. — Terei
sorte se estiver em nossa cama ao amanhecer. Volte e durma um
pouco. Vamos embora amanhã e quero estar descansado.
Martise queria tocá-lo, mas muitos observavam e os Kurman não
demonstravam afeto em público, exceto com seus filhos.
Conformou-se em se inclinar. — Estarei esperando.
Ela o observou caminhar, antes de encontrar seu caminho para a
casa. Rodeou a fogueira no centro e tirou a roupa, entrando sob as
mantas que Silhara deixou de lado antes. Dormiu em minutos.
Um forte cheiro de tabaco a despertou de um sono profundo.
Martise, aturdida pelo sono e os efeitos residuais de muita cerveja,
rodou de lado. A alta figura de Silhara se recortava sob a luz do fogo
enquanto se sentava perto dela, fumando um cachimbo.
— Está de volta. — Disse. — Que horas são?
As brasas na ponta do cachimbo crepitaram quando ele tragou. Ela
via apenas o forte contorno de seu rosto, mas seus olhos brilhavam
de um vermelho selvagem pelo resplendor do fogo.
— A hora mais escura. Volte a dormir. Me reunirei contigo logo.
Martise franziu o cenho, perguntando a si mesma se a cerveja
realmente apodreceu seus sentidos. A voz de Silhara era um eco de
Corruption, vazia e fria como uma cripta.
Capítulo
Dezessete
— Deve estar bem bêbado. O que faz um homem sóbrio se sentar
fora no frio e escuro, enquanto sua mulher dorme em uma casa
quente? — Dercima estava sobre ele, projetando uma longa sombra
sobre seus pés. Com a lua brilhante atrás dela, Silhara não podia ver
sua expressão, mas seu tom era irônico. — Quanto Arkhi Shimiin
tomou esta noite?
— Não o suficiente. — Acariciou o chão junto a ele em um convite. —
Quer se sentar, tia? Compartilhar um cachimbo? — Ele levantou a
bolsa de pele e uma xicara. — Inclusive há Arkhi Shimiin aqui para
adormecer. — Sua voz estava rouca pelo excesso de fumo e o caos de
raiva dentro dele.
Dercima aceitou o convite e se deixou cair ao seu lado. Ela assentiu
em agradecimento quando Silhara lhe passou o cachimbo. Com a luz
da lua em suas feições de ossos fortes, podia ver a observação astuta
em seu olhar, mesmo através da neblina de fumaça. — O que há,
sobrinho? Eu esperaria que estivesse tomando o prazer entre as
coxas de Martise neste momento. Ela o expulsou da cama?
Derramou Arkhi em um copo, já não fazendo uma careta pelo sabor
amargo e derramou uma recarga da bolsa de pele. Leite de cabra
fermentado não era como fogo de Peleta, mas serviria. — Martise
nunca me negou.
— E se o fizesse?
Silhara sorriu em seu copo. Sua tia formidável o estrangularia com
sua própria trança se ele desse a resposta errada. — Não tenho
interesse em tomar pela força o que posso comprar ou receber
livremente.
A fumaça se enrolava em uma coroa turva ao redor de sua cabeça. —
Então, porque está aqui?
— Poderia perguntar o mesmo a você.
Ela encolheu os ombros. — Karduk está ocupado com sua primeira
consorte, assim estou livre até o amanhecer.
Escondeu sua diversão por trás de outro gole de Arkhi. Ela podia ser
a quarta consorte do Sarsin, mas Silhara suspeitava que Dercima era
a que determinava se e quando Karduk poderia desfrutar de seus
prazeres. Ele trocou o copo pelo cachimbo.
— Não gosto de arrependimentos ou remorsos. — Disse.
Dercima sorriu. — E como isto diferencia você do resto de nós?
Sem usar sua própria ironia dirigida contra ele, as sobrancelhas de
Silhara se arquearam. — Costuma ser tão direta?
Ela riu e tomou um gole do copo. — Não recebeu este traço de seu
pai. — Seu olhar o manteve no lugar. — Agora diga-me, porque está
aqui? Não se incomode em esconder. Karduk me contará se
perguntar.
Não havia surpresa. Silhara encolheu os ombros. — Pensando na
divindade, na destruição e no sacrifício.
Ele lhe deu uma palmada das costas quando ela engasgou com a
bebida. Ela o olhou com olhos chorosos e golpeou seu braço com
força para se afastar. — Pare.
— Desculpe. — Tragou o cachimbo e olhou para ela.
— A maioria dos homens pensa sobre os potros que irão vender,
sobre a noiva que tomarão ou o jogo de dados que querem vencer.
Silhara inclinou a cabeça e olhou para o céu cheio de estrelas. A
estrela de Corruption o seguiu, pairando acima das árvores em seu
halo de luz mal-humorado. Acima dele, dentro do manto de luzes
cintilantes, a constelação de Zafira brilhava clara e zombava dele do
alto. — Não sou a maioria dos homens.
— Não, não é, embora tenha visto você jogar dados como o melhor
deles. — Dercima piscou.
Mesmo enquanto estava em seu momento mais melancólico,
Dercima ainda podia fazê-lo rir. — Se houver tempo amanhã antes
de sair, jogarei um ou dois jogos. Sempre preciso de dinheiro.
— Está evitando minha pergunta, kurr.
Sim ele estava, por boas razões. As informações que Karduk lhe deu
se esfregavam na ferida de sua alma. Ele tinha escolhas a fazer.
Nenhuma delas eram boas. Tragou mais duas vezes antes de
responder. — Pensei que Berdikhan não fosse nada além de um
demônio Kurmanji. — Dercima esboçou um sinal de proteção à
menção do nome.
— No momento que ele morreu, era. Qualquer Kurman que sacrifica
suas esposas e filhos para ganhar mais magia é um demônio. As
tribos não o exilaram rápido o suficiente. E verdade seja dita, eles
deveriam tê-lo matado de uma vez.
Dercima pegou o cachimbo. — Porque isso te incomoda? Berdikhan
e seus atos sujos já estão quase esquecidos pelo povo. Isto foi o que
o trouxe aqui para fora?
Silhara considerou sobre o quanto dizer a sua tia. Dercima era
discreta. E tinha força de vontade. Nada menos do que a tortura
poderia fazê-la falar e ele não tinha certeza de que até mesmo isso
pudesse fazê-lo. Ainda assim, outra pessoa dependia de sua
discrição. Martise colocou sua fé na promessa de que ele manteria
sigilo.
— Martise e eu recuperamos os manuscritos de Iwehvenn.
Seus olhos se arredondaram. — Você é estúpido? O que estava
fazendo no salão do Lich? E arrastando a garota com você? —
Dercima olhava sobre o ombro em sinal de desaprovação.
— Quer ouvir o restante ou não?
Sua boca se abriu, mas mordeu a língua. Silhara observou como sua
mandíbula se apertou ao redor da boca do cachimbo. Estaria o
Sarsin em sua porta ao amanhecer exigindo ressarcimento se sua tia
obstinada quebrasse seu cachimbo favorito com os dentes.
— Levei Martise comigo para que pudesse traduzir. Os manuscritos
foram escritos na língua antiga de Helenese. Não entendo. Ela sim.
— Terminou o copo de Arkhi e deixou de lado. Seu estômago se
revolveu e não queria tomar mais do que já o fez. — Encontramos
várias passagens que descrevem a morte de um antigo deus
chamado Amunsa. Foi preso e destruído por uma reunião dos Reis
Magos do Norte. Foram ajudados por um – rei do Sul–. Um homem
que chamaram Birdixan. — Ele usou a língua de Helenese,
alongando a palavra e dando ênfase na primeira silaba.
— E você acha que era Berdikhan? — Ela fez o sinal de proteção no
ar mais uma vez.
— Estou certo disso. As terras distantes não tinham reis neste
momento, apenas Chefes e Sarsin. Mas um Sarsin que governasse
várias tribos como Berdikhan seria visto como um rei pelos
Senhores do Norte. E os nomes são semelhantes o suficiente para
notar.
— Então Karduk não lhe disse nada de novo? — Bufou Dercima. —
Velho charlatão. Provavelmente apenas queria uma desculpa para
que viesse visitá-lo.
Silhara sorriu. Dercima poderia queixar-se de seu marido, mas
ouviu afeto por ele em sua voz. — Posso descobrir algo com tempo e
a ajuda de Martise. Mas o tempo não está do nosso lado. Corruption
está cada vez mais forte. O Conclave impaciente. — E o deus soprava
sua avareza em seus sonhos quase todas as noites agora. — Karduk
me demonstrou que perdi o obvio. — Ele desenhou o símbolo
misterioso que apareceu junto ao nome de Berdikhan nos
manuscritos. — Zafira.
Dercima olhou para o céu e Silhara seguiu seu olhar. Ambos ficaram
olhando a constelação, gravada na escuridão da noite em um padrão
de labirintos de estrelas atravessada por mais dois caminhos de
estrelas, uma coincidência com os símbolos nos manuscritos
Helenese.
— Pobre Zafira. — Entregou-lhe o cachimbo. — Aqui. Fume o último.
Já tive o suficiente. — Sua saia se agitou enquanto ela passava a
mãos pelas dobras do tecido. — Agora é uma história trágica. Gosto
de pensar que o amava e de boa vontade lhe deu seu poder. No
entanto. A grande marca de uma Jide Bide sempre foi a força, não
consentimento. Suspeito que Berdikhan a sacrificou da mesma
forma que sacrificou suas outras consortes.
A fumaça do cachimbo encheu sua boca, agora amarga em vez de
picante. O Arkhi borbulhou ameaçador em seu estomago. Berdikhan
usou a vida de sua esposa para tentar conseguir o poder de um deus
e governar o mundo. A história poderia muito bem se repetir.
— O que dirá aos padres quando retornar a Neith?
Nada, se pudesse evitar, mas isso era pouco provável. Por muito que
ambas as partes poderiam detestar a ideia, precisavam da ajuda um
do outro para derrotar Corruption. A pergunta era se estava disposto
a morrer no esforço ou sacrificar outro pela oportunidade de viver.
Pensou em Martise dormindo tranquilamente na casa atrás dele, à
espera do amante que contemplava sua destruição.
Se Dercima pudesse ler seus pensamentos neste momento,
arrancaria seu intestino e o faria comer.
— Seus pensamentos são sombrios. Este conhecimento que tem
agora te preocupa enormemente. Não é bom saber de uma forma
para derrotar o deus caído?
— É um conhecimento útil. Agora tenho que decidir o que fazer com
a informação.
— Considera-se um homem inteligente? — Os olhos escuros de
Dercima refletiam a luz das estrelas.
— Sim.
— Você é fiel?
Riu da pergunta. — Depende. Fiel a quem?
— A si mesmo.
— Sempre. — Ficou curioso com as perguntas.
Ela se levantou e ele também. — Um homem com uma visão clara
de sua própria alma sempre toma uma decisão sábia.
Silhara tocou o braço brevemente. — Estou menos preocupado com
a sabedoria e mais com o que seja benéfico para mim.
Ela envolveu os seus dedos. — E a mulher que trouxe consigo? É ela
mais que um prazer para a noite ou algo mais?
Martise. Espiã e amante, serva e detentora de um grande poder
inexplorado, uma vez foi nada além de incomodo. Agora, era o eixo
sobre o qual suas escolhas fatais cairiam.
— Ela é mais do que isso e ao mesmo tempo, menos.
— Isto não é uma resposta, sobrinho.
— E você faz muitas perguntas, tia.
Dercima sorriu. — Vou para a cama. — Sua respiração embaçou na
sua frente. — Está frio e sinto mais meus ossos nestes dias. — Ela
bateu-lhe no braço. — Não fique aqui por muito tempo. Outros
podem acordar e vê-lo. Não quero que as pessoas me perguntem se
meu sobrinho é um idiota.
Sorriu e se inclinou. — Boa noite, tia.
Sua suave risada sumiu enquanto abria caminho pela área aberta e
desaparecia na maior das casas de pedra. Silhara continuou olhando
uns momentos antes de voltar para a casa que compartilhava com
Martise.
Ela estava deitada de lado, sobre as costas com um braço jogado no
espaço onde deveria dormir. Seu cabelo estendido em ondas sobre
as peles e algumas mechas sobre o rosto e pescoço.
Não tinha a intenção de desperta-la antes. Sua conversa com Karduk
lhe deixou com as mãos tremulas e com a necessidade de vê-la.
Enquanto ficava em silencio, o cheiro da fumaça do cachimbo a
acordou. Aconchegada pelo sono e o calor do fogo, ela se virou para
ele com um olhar sonhador. Quase afastou o olhar e agradeceu
quando ela se virou e voltou a dormir. Fugiu para fora depois disso.
Seus pensamentos giravam enquanto limpava o cachimbo e tirava
as roupas. O fogo ardia na fogueira e ele avivou as brasas o suficiente
para gerar mais calor. Birdixan das crônicas Helenese não era
nenhum herói, apenas um homem consumido pela necessidade de
poder que viu a oportunidade chegar, sem importar o custo.
Berdikhan dos Kurman não viajou para o norte, com o propósito de
ajudar os reis magos, mas para tomar o poder de Amunsa para si
mesmo. Levou suas esposas com ele, uma disposta a lhe entregar
sua vida e sacrificar-se a sua avareza que tudo consumia. Ele falhou
em sua tentativa de controlar o deus e volta-lo contra os reis. E
Amunsa foi destruído.
Silhara refletiu muito sobre o passado. As ações de Berdikhan, por
mais egoístas que tivessem sido, foram a chave para o triunfo dos
reis. Um mago poderoso, ainda mais forte pelo sacrifício de Jide
Bide, prendeu Amunsa tempo suficiente para que os reis pudessem
destruí-lo. A ideia funcionou uma vez. Poderia funcionar
novamente? Mas, pelo mesmo preço?
Nu e frio, se agachou junto a Martise, admirando a forma como
umas pálidas bochechas ficavam mais rosadas pelo calor do fogo.
Uma vez ele a viu como simples. Não mais. Nas sombras avermelhas
das chamas baixas, era a coisa mais bela que alguma vez viu.
A lembrança de sua voz quando lhe chamou de volta da morte em
Iwehvenn fez eco em sua mente. — Fique comigo. — Este motivo
tocou alguma necessidade em seu interior, prometeu um gosto de
algo que nunca experimentou. Ela o tirou do abismo com a tentação
de seu afeto. E agora era tentado a pagar isto com sua traição.
Ele levantou uma mecha suave de seu cabelo, deixando-o cair
através de seus dedos em uma cascata de ondas avermelhadas. —
Deveria ter me deixado morrer.
Capítulo
Dezoito
Ao primeiro indicio dourado do sol da manhã nas copas das
laranjeiras de Silhara, Martise saiu calmamente da cama para se
vestir. Ainda quente pelo seu calor corporal, ela inalou
profundamente pela repentina descarga de ar frio sobre a pele nua.
As mantas sussurraram contra suas pernas enquanto tirava uma
coxa do quadril dele e se arrastava fora da cama. Com o movimento
fez uma careta de dor. Ele sentiu um apetite voraz por ela na noite
anterior. Não lhe machucou, mas suas atenções duras deixaram
marcas em seu quadril e uma lembrança em suas coxas.
Olhou ao redor pelas mantas. Estava deitado sobre seu estomago, o
rosto parcialmente escondido por seu braço. Ainda estava um pouco
escuro para distinguir seus traços. Ela o imaginava com o cenho
franzido, mesmo dormindo. Desde a volta da aldeia Kurman, era um
cadeirão fervente de emoção silenciosa, desencadeado apenas na
escuridão quando ela estava sob ele.
Exausto de amá-la toda a noite, ele a arrastou sobre ele e
rapidamente dormiu. Seu repouso não foi tranquilo. Sonhos
violentos o fizeram se mover na cama e duas vezes Martise evitou
um golpe quando ele atacou, lutando contra um demônio invisível.
Ela considerou sair do quarto para não ser atingida, mas abandonou
a ideia. Fossem quais fossem os pensamentos sombrios do Mestre
dos Corvos em seus pesadelos, ela não o deixaria sozinho com eles.
Finalmente se acalmou, sua tranquilidade interrompida por uma
maldição entre dentes de vez em quando, cortando seus leves
roncos. Martise suspirou de alivio e aconchegou-se ao seu lado. O
sono não apareceu fácil para ela. Refletia sobre a inquietação de
Silhara e a sutil mudança em seu comportamento quando voltaram
para Neith.
Percebeu a mudança na manhã que arrumava suas coisas e se
despediram dos Kurman. Ela não perguntou o que o Sarsin discutiu
com ele e ele ficou em silencio sobre o assunto. Este silencio durou
quase toda a viagem de volta a Neith. Nunca jovial no melhor dos
estados de ânimos, ficou ainda mais distante. As poucas vezes que
falou, foi sobre o almoço ou instruí-la sobre como arrumar o
acampamento para uma melhor proteção, depois sempre ficava
distante, mal reconhecia sua presença.
Martise sempre foi ignorada pelos outros. Mas não por ele. Suas
ações poderiam tê-la ferido, salvo pelo fato de que a tocou
constantemente na viagem de volta. Ela montou na frente dele e ele
manteve um forte controle sobre ela enquanto guiava Gnat. A única
noite que passaram no tempo, ficou de vigia enquanto ela dormia.
Acordou para encontra-lo passando o dedo polegar pela trança
como se fosse um rosário de orações.
Voltaram para Neith em um dia e permaneceu sério e distraído.
Mesmo quando a tomou com tanta paixão na noite anterior, disse
pouco, ainda que seus olhos escuros ardessem quando a olhava.
Dormia agora, sem prestar atenção a seus movimentos. Ou isso era
o que pensava.
— Não precisa andar nas pontas dos pés. Estou acordado.
A fita para cabelo caiu de seus dedos ao ouvir sua voz. Inclinou-se
para pegá-la, fazendo uma careta novamente. — Perdoe-me. Tentei
ficar em silencio.
— Eu a machuquei.
Parou. Ele a viu estremecer na escuridão? Sua visão era excepcional.
Movia-se com um andar seguro pelos corredores sem luz de Neith,
mas pensou que não fosse mais que uma graça natural combinada
com a familiaridade de sua casa. Perdeu-se um pouco naqueles
olhos negros astutos.
Ela sorriu e passou a fita pelos cabelos. — Não percebi no momento.
Talvez tenha deixado um hematoma ou dois.
— Venha aqui. — Sua voz era menos imponente. As mantas se
moveram e se sentou.
Pacientemente de pé entre seus joelhos abertos, Martise observou
seu rosto austero na pálida luz que lentamente entrava no quarto.
Os círculos escuros que rodeavam seus olhos, revelavam um cansaço
que ia além dos músculos e ossos. Seus dedos quentes puxaram a
fita do cabelo, levantando a barra de seu vestido até que suas pernas
ficaram expostas no ar frio. Ela abriu a boca suavemente a seu
contato, o calor sobre a pele enquanto acariciava as marcas azuladas
nos ossos dos quadris e na parte interna das coxas.
— Não me refiro a estas.
O desejo a percorreu quando ele lhe deu um beijo onde a coxa se
encontrava com o quadril. — Eu sei.
Apoiou a testa contra seu ventre. — Diga meu nome.
Martise engoliu um nó que se alojou na garganta. Algo estava muito
mal. O bruxo volátil que capturou uma tempestade, ridicularizou um
deus e cuspiu no rosto do Conclave, estava sentado frente a ela,
cansado e em busca de seu abraço.
— Silhara. — Seu cabelo deslizou através de seus dedos em uma
cascata de tinta enquanto acariciava sua cabeça. Seu nome deslizou
por sua língua e ela saboreou a sensação. Ela gostava de seu nome,
a graça dele em sua boca, o som do mesmo nos ouvidos. Na antiga
língua da Costa, seu nome significava – Invicto – e o homem que
carregava o nome estava à altura em todos os sentidos.
Ela tocou sua mandíbula, inclinando o rosto para poder olhar em
seus olhos. Suas bochechas estavam ásperas com o crescimento da
barba de um dia e seus lábios ainda inchados de seus beijos
entusiasmados da noite anterior. Suspirou quando ela passou os
polegares levemente sobre as bochechas. — Dormiu mal e perseguiu
demônios em seus sonhos. O que aconteceu?
Um leve sorriso curvou sua boca e se foi. — Não preciso dormir para
perseguir os demônios, Martise. — Os longos dedos flutuaram
suavemente por suas coxas. — Ninguém se preocupa por nada. Tive
muitas noites ruins. — Ele deixou cair seu vestido.
Assim não. Ao menos não desde que chegou a compartilhar sua
cama. Não dormia muitas horas, mas quando o fazia, dormia bem e
era tão imóvel como a morte em seus braços. A última noite foi
muito diferente e Martise percebeu que as palavras de Sarsin, o que
foram, pesava muito nos pensamentos de Silhara. O brilho de
advertência em seus olhos lhe disse para não ir mais a fundo.
Ficou de pé em seu abraço por vários momentos, contentando-se
simplesmente em acariciar seu cabelo enquanto ele pressionava o
rosto contra seu estômago. O ruído das panelas e o golpe na porta
do pátio no andar de baixo sinalavam a chegada de Gurn na cozinha.
— Tenho que descer e ajudar Gurn. Queimou a mão em uma panela
quente ontem e ficará alguns dias com uma faixa. Precisa de algo?
— Ela se mostrava hesitante em deixa-lo.
As dobras do tecido amorteceram sua risada. — Pode me dar a
salvação?
A estranha pergunta a fez se arrepiar com temor. — Não.
— Então vá fazer o chá. — Afastou-se dela, golpeando-a levemente
no traseiro. Um humor sombrio endureceu seu sorriso. —
Encontrarei você e Gurn na cozinha. Diga que quero dar uma olhada
em sua queimadura.
Ela e Gurn quase terminavam o café da manhã quando Silhara
finalmente apareceu. Bem barbeado, mas ainda abatido, se sentou
no lugar habitual e começaram a tomar suas xicaras de chá sem dizer
uma palavra. Um olhar de lado de Gurn e Martise balançou a cabeça.
Silhara estava pensativo na intimidade de seu quarto. Agora era
severo com nuvens de tempestade aproximando-se de seus olhos. As
laranjas ficaram sem ser tocadas na bacia, outra raridade. Apenas
uma vez o viu renunciar ao ritual de comer duas laranjas e foi devido
a um problema no estômago por causa do Fogo de Peleta.
— Não quer laranjas esta manhã?
Seu olhar negro brilhava. — Hoje não. — Olhou para Gurn, ocupado
reavivando o fogo. —Gurn, mostre-me sua mão.
Depois da inspeção na queimadura e recitar um feitiço para aliviar
a dor, a ferida começou a se curar. Estava saindo quando Martise o
interrompeu.
— Pode me usar para curá-lo, verdade? — Ela viu a expressão
perplexa de Gurn.
— Não.
Aturdida, o olhava com os olhos abertos. Mentia, pura e
simplesmente. Os dois sabiam que a combinação de seu dom com as
habilidades dele, poderiam curar a mão de Gurn. Porque não ajudar
o seu servo mais confiável?
— Mas...
— Martise! — Sua voz era dura e ecoou pela cozinha. — Esqueça.
Disse que não.
A indignação pelo tratamento insensível e surpreendente para com
Gurn quase a fez ignorar vinte e dois anos de servidão. Ela apertou
os dentes contra as palavras correndo para seus lábios e finalmente
com os dentes apertado disse. — Perdoe-me Mestre.
Seus pulmões ardiam com a necessidade de gritar. Martise manteve
o olhar firme no chão, supondo que a postura de longa data de um
servo dominado. O silencio da cozinha pulsava em seus ouvidos,
tenso e fazendo sua ira silenciosa ferver. Ela saltou quando Silhara
de repente agarrou seu braço e a puxou para a porta que levava ao
grande salão.
— A biblioteca. Agora.
Ele a arrastou pela escada e pelo corredor, seu agarre inflexível em
seu pulso. Martise se apressou para seguir seu ritmo de longos
passos. A porta da biblioteca golpeou contra a parede oposta e
Silhara a empurrou dentro. Um fogo frio brilhava em seu olhar
enquanto ele fechava a porta atrás de si mesmo.
— Seu dom é um perigo para todos aqui, Martise. Se Gurn souber
sobre seu dom especial, minha vontade de permanecer em silêncio
sobre ele não significará nada. O Conclave fará o que for preciso para
conseguir a informação que quer. — Andou na frente dela. — Posso
resistir a qualquer vidente que o Conclave usar. Não descobrirão
nada e assim podem matar nós dois no esforço. Gurn, no entanto,
não tem dons e não tem meios para resistir a união. Acha que se não
puderem interrogar o mestre, não o farão com o servo? Ser mudo
não o fará guardar todos seus segredos. E como será se eles a
pegarem?
Seu rosto ficou quente. Durante todo este tempo vivendo com
Silhara e Gurn, deveria ter percebido que Silhara teria uma boa
razão para deixar que seu servo e amigo sofresse com a ferida. —
Desculpe-me Silhara.
Sua expressão suavizou. — Não precisa se desculpar. Não a culpo
por sua compaixão, apenas sua indiscrição. — Aproximou-se da
mesa onde suas notas estavam cuidadosamente empilhadas junto
com as antigas páginas que resgatou de Iwehvenn. — Se o Conclave
unir um vidente a Gurn, seria para recompilar informação sobre
mim, não de você. Mas se descobrir algum indício de seu dom, suas
lembranças o irão trair. — O olhar que lhe lançou de lado foi
engraçado. — Não tem nenhum motivo para suspeitar do Conclave
como eu. Mas me pergunto se o faz.
Os ombros de Martise se afundara, — Estou mais preocupada com
Gurn. Nunca o machucaria deliberadamente.
— Eu sei.
O pergaminho antigo rangia sob seus dedos enquanto o virava
suavemente sobre a mesa e olhava sua escritura. — Os Heleneses
tornaram heróis aqueles que foram tolos.
Ela se aproximou dele, desconcertada com o comentário crítico. As
escrituras Helenese queimavam por trás de seus olhos agora. Leu os
documentos dezenas de vezes, em busca de algo mais na história de
Amunsa para poder ser aplicado na derrota de Corruption. — Não
sei como estes papeis podem ajudar. O Conclave antigo, o primeiro
que exilou Corruption usou um ritual muito semelhante, mas não
foi suficiente para matá-lo. Talvez os reis foram capazes de destruir
Amunsa porque ele não era tão forte.
A próxima declaração de Silhara surpreendeu Martise. — Sem estes
documentos, as informações de Karduk seriam inúteis. — Ele sorriu
para ela com os olhos arregalados.
— Quando os Kurman eram maiores em número e mais poderosos,
foram governados por apenas um Sarsin. Quem reclamou seu lugar
através de um fratricídio em lugar de eleições.
Martise esperou, intrigada. Ela sabia muito pouco da história
Kurman, mas era fascinante, mesmo sem seus vínculos com os
documentos Helenese. Silhara continuou.
— O Sarsin era poderoso e uniu as tribos por um curto tempo sob
seu governo. Também era um bruxo, tão hábil como qualquer bispo
do Conclave nos caminhos de Magery e sem medo de invocar os
arcanos escuros. Mas tais dons não eram suficientes. Procurou mais
através de qualquer meio, enviou espiões por todas as partes para
encontrar segredos de outros povos. Inclusive sacrificou duas de
suas consortes e meia dezena de filhos para ganhar mais poder.
— Deuses. — Ela estremeceu ante a ideia de tal monstruosidade.
Silhara virou mais o pergaminho, parando na última página que
descrevia a morte de Amunsa. Um longo dedo traçou o misterioso
símbolo junto ao nome de Birdixan. — Este era seu objetivo. Ser um
deus. Ele não era diferente do Lich de Iwehvenn, exceto que era
movido por um desejo de governar o mundo. O devorador de almas
era movido pelo medo da morte e abraçou algo muito pior.
— Então porque iria ajudar os reis do Norte a derrotar Amunsa?
— Não havia nada para ele. As tribos se levantaram contra ele, ele e
suas esposas restantes foram expulsos do território Kurman. Não
tinham nenhum lugar para onde ir, apenas para o norte. O único a
quem buscou na maior parte de sua vida, ele encontrou exilado e por
acidente.
Martise esfregou os braços que se arrepiavam. — Os Kurman
deveriam tê-lo matado ao invés de exilar.
Silhara deu uma risada com humor sombrio. — Você não está
sozinha em sua opinião. Seu nome era Berdikhan e enganou aos reis
para pensarem que ele era um viajante peregrino, um homem de
grande poder que buscava de boa vontade, ajudar a destruir
Amunsa.
Martise ficou sem folego e puxou o pergaminho de Silhara. Moveu-
se através das páginas que tinha o nome de Birdixan mencionado.
— Berdikhan. Birdixan. Eu o perdi. Os Heleneses não tinham o
equivalente para o som duro de seu nome. Por exemplo, Cumbria se
escreveria como — Xumbria — Deveria ter visto.
Encolheu os ombros. — Não vejo como. Pode fazer seu caminho
através de uma sentença quando se fala Kurmanji, mas como saber
fazer uma conexão deste tipo? Os Kurman nunca colocaram seu
idiota em um dicionário. Não tem nada para comparar.
Ela apreciava seu apoio, mas ainda amaldiçoava sua loucura. Um
documento a fez parar. — Esta parte diz que ele engoliu o deus.
Apenas posso pensar que ele foi possuído por ele.
— Sim. Berdikhan acreditava ser forte o suficiente para não apenas
se aproveitar do deus tempo o suficiente antes dos reis o pegarem,
mas também para tomar posse do poder dele para si próprio.
— Converter-se em deus e destruir os reis.
— Sim. Mas ele subestimou suas forças neste sentido e a inteligência.
Os reis sabiam o que pretendia.
— No entanto, eles o lembram como um herói nestas passagens, não
um traidor. Porque?
Silhara curvou os lábios em um sorriso. — As pessoas estariam
menos inclinadas a exaltar aqueles a quem fizeram de tolo.
Martise encontrou seu olhar, impressionada. Silhara era um astuto
observador da natureza humana. Este talento apenas o fazia ser
formidável, mesmo sem sua magia para fortalece-lo. Passou pelo
pergaminho até a última página ao símbolo junto ao nome de
Birdixan. — Karduk não sabe nada sobre este símbolo?
— Não.
Parou para olhá-lo. Nada em seu comportamento o entregava.
Olhou-a nos olhos com calma, mantendo seu corpo virado para ela,
os ombros largos relaxados. Mas seu instinto estava inquieto.
Silhara estava mentindo. Ele sabia algo sobre este símbolo e
escolheu não dizer a ela.
Manteve suas suspeitas para si mesma no momento. — O que dirá
ao Conclave?
Uma sutil mudança em sua postura apontou seu alívio quando
abandonou o tema do símbolo. — Tudo o que acabo de lhe dizer. Tão
repulsivo como todos podemos ver, preciso dos sacerdotes e eles
precisam de mim se quisermos derrotar Corruption.
O Conclave definitivamente poderia usar Silhara no ritual. Não
apenas era talentoso, era jovem e forte fisicamente. A magia e a força
dependiam um do outro nos feitiços rituais. No entanto, ela não
acreditava que o Conclave confiasse nele o suficiente para convida-
lo a matar um deus em um ritual.
— Eles rejeitarão sua ajuda.
— Não, não o farão.
Ela lhe ajudou a empilhar o pergaminho, refletindo em voz alta
sobre o ritual. — O padre mais forte teria que atuar como Berdikhan
para manter Corruption para que os demais o matassem. — Ela
balançou a cabeça, desconcertada. — Alguns bispos mais jovens são
poderosos o suficiente para fazê-lo, mas não conheço nenhum
disposto a ser um mártir.
As sobrancelhas de Silhara se ergueram. — Não fique tão segura.
Sempre há algum idiota disposto a se sacrificar pela fama e glória. A
imortalidade através do martírio não é tão incomum.
Ele colocou a mão sobre a dela enquanto continuavam guardando o
pergaminho. — É o suficiente por agora. Tenho que escrever uma
carta a Luminary. Tenho certeza que Gurn a manterá ocupada até
meio-dia, certo?
A estranha inquietude não a deixava. Ele a dispensou. Ouviu em sua
voz, sentia na tensão de seu corpo junto ao dela. — Silhara...
— Mais tarde, Martise.
Ele saiu da biblioteca, deixando-a para trás, doente com a sensação
de temor.
Distraída por pensamentos de sua conversa com Silhara, passou a
manhã com Gurn, ajudando-o em suas tarefas. Seu estômago
continua revolto em inquietude. Silhara odiava o Conclave, não era
nenhum segredo sua aversão pelo sacerdócio. Se fosse honesta,
simpatizava com sua inimizade. Mas ele querer assumir o papel de
Berdikhan? Sabão pingava de suas mãos enquanto limpava um
prato sujo e ficou olhando-o, sem ver, a água limpá-lo. Os instintos
de sobrevivência de Silhara eram muito fortes para ele dar de boa
vontade sua vida por tal causa, mas poderia muito bem sucumbir à
tentação da vingança. Talvez não morrer por um mundo, mas fazê-
lo por seu próprio ódio?
— Ah deuses. — Murmurou. — O que traz entre as mãos Silhara? —
Chegou a Neith com o propósito de traí-lo, enviá-lo a uma morte
diferente. Mas isto foi quando a tentação da liberdade ignorou a
moralidade de sua alma e quando Silhara de Neith não era nada
além de um meio para o fim. Tudo mudou desde então. Inclusive se
nunca houvesse descoberto seu dom ou ela fosse testemunha de
uma centena de atos de traição de sua parte, não o trairia. Astuto e
desdenhoso, no entanto, generoso e leal aos seus, ele tomou seu
coração e fez com que o amasse. — Você deve viver por mim. — Ela
disse suavemente. — Não torne o meu sacrifício um vazio.
Ela falaria com ele, imploraria se preciso, se estes fossem seus
planos. Sua esperança estava nos sacerdotes. Silhara poderia se
oferecer para atuar como Berdikhan, mas os sacerdotes não eram
como os reis do Norte. Não confiavam no Mestre dos Corvos. A ideia
de que poderiam lhe permitir participar no ritual era em absoluto
descabelada. Que o permitisse atuar como o jogador chave, estava
fora de questão.
Ao meio-dia, Martise e Gurn comeram o almoço na cozinha sem
Silhara. Estava fechado no escritório do andar de baixo desde a
manhã, não surgiu com o cheiro tentador da sopa de Gurn. Gurn
carregou uma bandeja com a sopa, dois pedaços de pão e uma jarra
de vinho. Martise, desesperada para conversar com Silhara uma vez
mais, rapidamente se ofereceu para levar a bandeja.
A porta do escritório estava parcialmente aberta, permitindo feixes
de luz ondularem ao longo das paredes escuras do corredor. Martise
equilibrou a bandeja em um ombro e bateu na porta para anunciar
sua presença antes de entrar. Viu Silhara na mesa, mas de pé perto
de uma pequena janela que dava para o bosque. Um vento seco
Zephyr, com cheiro de pó perto da pequena janela. Flutuava pela
sala, arrastando os pergaminhos sobre a mesa com mãos invisíveis
e brincava com o cabelo escuro de Silhara antes de desaparecer em
um suave suspiro.
Martise poderia não ter pensado em nada disso, salvo pelo calor de
boas-vindas que não trazia. A sala estava gelada com um frio
sepulcral que lhe lembrava o cemitério do Conclave, ou os piores e
breves momentos antes de invocar à luz um demônio. O medo
percorreu suas costas.
De algum lugar no labirinto da casa de corredores e quartos, Cael
uivava forte o suficiente para levantar os mortos. Silhara se
mantinha na janela, inquietando-a ainda mais. Martise tentou
engolir e encontrou a garganta seca como palha. O instinto gritava
para correr, deixar cair a bandeja e procurar um lugar para se
esconder. O suor salpicava sobre o lábio apesar do frio que entrava
pela porta. Rezou para que não soubesse que estava ali, temia que
pudesse ver quando finalmente enfrentasse ela.
Ela retrocedeu nas sombras da sala com um passo de cada vez. Gurn.
Ela precisava advertir Gurn. Porque, não sabia, apenas que todos
estavam em um perigo iminente e o Mestre de Neith de alguma
forma se converteu em uma maior ameaça para sua segurança.
Seu grito ecoou pelo corredor quando uma força invisível de repente
a golpeou nas costas, empurrando-a mais na sala. Ela tentou se
soltar justo a tempo de evitar bater o nariz contra a porta. A bandeja
que levava saiu voando de sua mão, a inclinação enviando uma
chuva de sopa e vinho em todas as direções. Martise caiu adiante,
cambaleando até seu quadril golpear a mesa de trabalho. Agarrou a
borda em uma tentativa de manter o equilíbrio no chão escorregadio
agora.
A mão invisível parou abruptamente, empurrando-a para frente.
Martise correu para a porta, o terror dando asas a seus pés. O crack
da porta de madeira batendo contra o marco chicoteou seus ouvidos.
Ela deslizou em uma poça e caiu contra a porta. Quando se virou
para enfrentar seu adversário, Silhara havia abandonado seu lugar
na janela e se dirigia lentamente a ela. Iluminado pelos raios
vermelhos do sol, não era mais que uma sombra ágil, sinistra.
— Nos encontramos novamente, serva.
Martise ficou sem folego. O suor corria em rios pelas costas apesar
do frio brutal na pele. Já não estava mais rouca sua voz. A voz grossa
que normalmente caracterizava seu discurso deu lugar a um
profundo timbre tão suave quanto um lenço de seda. Quem, ou o
quê, falava com ela não era Silhara de Neith.
— Silhara? — A pergunta desapareceu em uma respiração enquanto
ele se aproximava, ela deu uma boa olhada em suas feições.
O rosto duro que conhecia e amava, todos os planos e ângulos
afiados e implacáveis, agora era um molde esquelético. As maçãs do
rosto proeminentes se destacavam no alto, acentuando os ocos sob
seus olhos. Parecia morto de fome, drenado de vida e espírito. Seus
olhos foram com loucura para a porta e ao longo do caminho na
parede. O branco dos olhos desapareceu, substituído por um sólido
olhar negro de algo inumano e antigo, que lhe devolvia o olhar.
Silhara, ou o que habitava em seu corpo, a olhava com curiosidade
sem piscar, como uma víbora esperando para atacar. Seus dentes
batiam um contra o outro e um fraco gemido escapou de seus lábios.
Ele inclinou a cabeça, as fossas nasais dilatadas, como se para captar
a essência de seu terror. Suas ações lhe lembravam Corruption
quando entrou pela primeira vez em seu quarto como uma
abominação branca e sem rosto.
Manteve o passo para ela, enquanto deslizava ao longo da parede em
uma vã tentativa de manter a distância entre eles. — Ele anseia por
você. — Os longos dedos se aproximaram para tocar sua clavícula.
Ela estremeceu ao contato. — Porquê? Você não tem nenhuma
beleza. — Inclinou-se para ela, soltando seu fôlego profundamente
contra seu pescoço. — No entanto, há algo dentro de você – único –
apetitoso. Algo sem medo.
Horror quase borrou toda a razão e se lançou para longe dele – ou
tentou – apenas para ser mantida firme no lugar. Seu dom,
enterrado dentro das profundezas de sua alma, reagiu.
O poder que a empurrou para a sala, agora a prendia contra a
parede. Seu coração pulsava forte contra as costelas. Sobre o ombro
inclinado de Silhara vislumbrou a janela, o campo de laranjeiras na
sombra do sol de verão e a estrela sem brilho aproximando-se cada
vez mais no horizonte.
Corruption o tomou, possuindo o homem cujas ambições e desejos
coincidia com a vontade do deus caído. Martise tinha vontade de
vomitar. Suas noções de escravidão queimada as cinzas mais uma
vez ali em Neith. Mas isto superava tudo. Ela nunca conheceu esta
forma de escravidão singular e de pesadelo. Sua voz, final e instável,
implorou por misericórdia. — Por favor. Solte-o. Ele não irá servi-lo
de boa vontade.
O deus riu baixinho em seu ouvido, os doces sons levantando os
pelos finos de sua nuca. — Discordo. Silhara de Neith é intencional
e teimoso, mas também é ambicioso. Todas essas coisas que ele
deseja – poder, controle, respeito – eu posso lhe dar. Ele sabe disso.
Com o tempo, se converterá a mim totalmente.
Martise fez o possível para afundar-se na parede de pedra em suas
costas enquanto Silhara se endireitava. Seu rosto marcado encheu
sua visão uma vez mais. O intenso amante, apaixonado que se
arqueou sob suas mãos na noite anterior, desapareceu, substituído
por um mau sorriso que nunca alcançava os olhos negros e mortos.
Passou a mão por seu corpo. — Como pode ver, é quase meu agora.
Repulsão revirou a comida em seu estomago. — Seu preço para este
tipo de recompensa é muito alto.
— Não para ele. Ele terá o domínio sobre o mundo através de mim,
a riqueza e a imortalidade. E terei o maior Avatar que já nasceu, mais
forte do que antes dele. Um que conduzirá exércitos e conquistará
tudo diante de mim.
O terror de Martise se misturava com choque. Pelas asas de Bursin!
Silhara era o Avatar renascido. Já sabia. Sem dúvida, sabia. As
lágrimas de desespero e raiva nadaram em sua visão. Um homem
mais fraco poderia servir Corruption, mas não o Mestre dos Corvos.
Um homem que se negava a se inclinar ante o Conclave não seria
uma marionete para um deus.
Seu lábio se curvou enquanto olhava nos olhos mortos do deus. Esta
criatura não era digna de adoração, era apenas um parasita sem
grandes desejos além de querer que o mundo servisse aos seus
caprichos.
— Você está enganado. — Ela encontrou um pouco de força na
firmeza renovada de sua voz. — Não se entregará a você. Alimentou
sua tentação e ele se entregou neste momento, mas não irá durar. —
Ela encontrou o olhar escuro, de réptil, sem piscar. — Solte-o. Você
é falso e indigno de qualquer culto ou escravidão de Silhara.
Um brilho de algo, incerteza, dúvida, apareceu rodando nas sombras
do olhar possuído de Silhara. Atacou, os dedos se curvaram em sua
garganta enquanto a levantava do chão. Não houve sequer tempo de
gritar. Ela ficou pendurada no ar, sufocando e arranhando a mão
esmagando lentamente o fôlego dela.
Era muito forte, segurava-a no alto facilmente, sem prestar atenção
a suas unhas fazendo arranhões ensanguentados em sua mão. Seus
pés chutavam em uma tentativa desesperada de encontrar alguma
forma de se soltar, mais manchas negras dançavam em sua visão.
Sua luta foi recompensada quando seu pé conectou com algo suave.
Mas a expressão de Silhara não mudou. A força de seu golpe, que
deveria tê-lo deixado de joelhos, não teve nenhum efeito, estava
cheio do poder do deus.
Ele apertou seu braço lentamente, a boca se curvando em um frágil
e calculado sorriso. — Terá a honra de ser minha primeira herege
condenada.
Sua visão ficou cinza. Seus pulmões sem ar queimavam no peito. Em
algum lugar, no fio de consciência, ouviu o som de passos
apressados, os latidos frenéticos do cão. A parede atrás dela vibrou
quando a porta se sacudiu nas dobradiças em um golpe incessante.
Gurn e Cael estavam ali para salvar a ambos. Muito tarde, lhe
sussurrou sua mente. Muito tarde.
— Por favor. — Implorou em um sussurro abafado. — Me ajude.
O deus não respondeu, mas seu Dom sim. Soltou-se de seu controle,
surgindo dela, banhando a ambos em uma luz âmbar. Uma poderosa
força bateu a cabeça contra a parede, quando Silhara perdeu o
controle. Mãos invisíveis o levantaram do chão e o jogaram pela sala.
Ele chocou contra a mesa, com força o suficiente para derrubá-la.
Martise caiu no chão em um ofego, sentindo náuseas. Se esforçou e
antes de ficar de costas deu dois preciosos puxões de ar. O teto
dançava sobre ela em um mar resplandecente e os golpes na porta
combinava com as batidas monstruosas de seu coração nos ouvidos.
Ela ficou de lado e viu Silhara.
Caído contra a mesa, virado, parecendo um boneco quebrado. Sua
cabeça estava baixa e os ombros caídos, como se Corruption
houvesse cortado repentinamente as correntes que o seguravam
como prisioneiro. O nariz e a boca estavam manchados de sangue.
As gotas pingavam em suas mãos, misturando com o sangue que
saía das feridas que cortavam sua pele.
Ela segurou o fôlego pela dor e arrastou-se até ele, com medo de
Corruption ainda estar o dominando, mas desesperada para chegar
a ele. Seu suspiro de alívio queimou na garganta quando Silhara
levantou a cabeça e piscou lentamente. Seus olhos injetados de
sangue e quase vidrados eram quase humanos agora. As lágrimas
pingavam sobre suas bochechas, que se misturavam com o sangue
em suas mãos. Martise tocou o nariz e a boca dele, beijando-o na
testa. Ela tentou falar, agradecer aos deuses por ele estar de volta,
mas perdeu a voz por causa do estrangulamento.
Silhara a olhava aturdido. Seus lábios se separaram. De repente, a
pouca cor que ainda conservava sumiu de sua pele. Sua boca se abriu
com dor e agarrou o lugar entre suas pernas. Martise se contorceu
quando caiu de lado e ficou em posição fetal, ofegando de dor sem
palavras.
Capítulo
Dezenove
A dor negra rugiu através de seu corpo, deslizando o olhar como
garras cravando-se profundamente em suas costelas, crânio e em
especial entre as pernas. As feições de Martise nadavam em sua
visão. Silhara não conseguia conciliar a mulher que agora acariciava
seu rosto suado com dedos suaves com a mesma que praticamente
enfiou suas bolas na garganta.
— Afaste-se de mim, demônio. — Ofegou.
Seus ombros caíram com sua reprimenda. As lágrimas pintavam
rios luminosos em suas bochechas pálidas e marcas vermelhas
deixadas por seus dedos rodeavam seu pescoço em um colar
espantoso. No entanto, ela encontrou valor para se aproximar dele
depois do que fez com ela.
Os golpes na porta continuaram até que o bruxo a abriu. Gurn,
brandindo sua faca e Cael com os olhos vermelhos e pelo eriçado,
entrou na sala preparados para a batalha. O cão deslizou até Silhara,
mostrando os dentes. Qualquer reconhecimento de seu Mestre
sumiu e seu nariz se abria com o cheiro de Corruption no ar.
Muito ferido para se esquivar de um possível ataque, Silhara disse a
Gurn. — Tire-o daqui antes que decida afundar os dentes em mim.
Gurn arrastou Cael, tomando cuidado para manter-se afastado da
mandíbula dele quando o cão resistiu a seus esforços para tirá-lo
dali. No momento que Gurn fechou a porta, Cael uivou fazendo
Silhara se contorcer.
Deitando-se lado, deixou a dor fluir através de seu corpo e ficou
olhando Martise. Sentada junto a ele, uma mistura de temor e
compaixão em seu olhar. Gurn agachou-se junto a ele, movendo a
cabeça. Suas grandes mãos eram suaves cutucando Silhara em busca
de lesões.
Silhara não se incomodou com seu contato. — Ficarei bem em um
momento. Verifique Martise. Eu tentei matá-la.
Os olhos de Gurn ficaram redondo com seu aspecto desalinhado e
as marcas escuras em seu pescoço. Ela sorriu brevemente e tentou
falar. O grunhido resultante fez todos ficarem parados. Gurn olhava-
a com simpatia. Mostrou que voltaria com bebidas para os dois e
algo para Silhara limpar o sangue. Levantou e ofereceu a mão para
ajudar Martise. Ela negou com um movimento rápido de cabeça. As
sobrancelhas de Silhara se ergueram quando usou os mesmos
movimentos de mãos que Gurn, que sorriu e se inclinou antes de sair
da sala.
Silhara, tão satisfeito como Gurn, sorriu através da dor residual
retumbando em seus músculos. — Não poderia ter demonstrado
mais que é sua amiga com isso. Mesmo que não tenha salvado a vida
dele. — Ela corou e assinalou para ele que gostava muito de Gurn.
Ele se apoiou em uma posição sentada e limpou o sangue do nariz e
da boca com uma mão trêmula. O sabor metálico na garganta fez seu
estômago revirar, cuspiu no chão para se desfazer do sabor. Martise
deslizou para se sentar de frente a ele e se desculpou.
Silhara se queixou e protegeu entre as pernas com uma mão. —
Quem poderia imaginar que uma mulher tão pequena seria uma
oponente tão formidável? — Fez uma careta. — Tenho a sorte de não
ter quebrado uma costela ou duas. Com frequência joga seus
amantes pela sala assim?
Martise tentou rir e parou. Esfregou a garganta.
Silhara se esticou para passar um dedo sobre as marcas em seu
pescoço. — Eu quem deveria pedir perdão. Já roubei e matei e
lamento pouco estas ações. Mas se destruir está voz maravilhosa...
Foi duro com ela, mortal também. Marcou-a como sua amante e
novamente quando tentou estrangulá-la. Duas caras de uma mesma
moeda. Um nó se instalou sob suas costelas. Acabou seu tempo em
Neith. Assim como o de Gurn. O mais recente ataque de posse do
deus – foi o pior e mais longo até agora – solidificou a decisão que
ponderou ao longo dos últimos dias. Para sua proteção, enviaria
Martise de volta ao bispo antes da hora programada e iria com Gurn
para o leste.
Martise conhecia seu segredo agora e não importava se ela contasse
ao mundo. Ganharia qualquer batalha contra o Conclave e
finalmente perderia a guerra e a mulher que chegou a amar.
Ela tocou sua mão, entrelaçou os dedos com os seus. Ficou olhando
os nós irritados, as unhas rosas com seu sangue. A história poderia
vê-lo como um herói, como Berdikhan. Ninguém saberia que ele
mesmo martirizou, não o mundo, mas esta mulher.
Ele afastou sua mão. — Aproxime-se.
Hesitou por um breve momento e logo se aproximou mais até que
ficou quase em seu colo.
Acariciou seu pescoço. — Posso curá-la com sua ajuda. Mas vamos
fazê-lo agora antes que Gurn volte.
Depois do que acabou de fazer com seu Dom a ele, tomava um risco
pedindo que usasse sua magia. Ele esperava que ela tivesse reagido
a sensível presença de Corruption dentro dele e não apenas a ele.
Martise assentiu com a cabeça e fechou os olhos. Em questão de
segundos o ar ao seu redor brilhou com luz âmbar, redemoinhos
envolviam seus pulsos como a carícia de um amante, tão diferente
da força combativa que lhe jogou através da sala. Poder, limpeza e
redenção fluíam de suas mãos e se estendia por seu corpo. A força
de seu Dom limpando a presença de Corruption e o enchia com a
essência de Martise, que ardia baixo, mas forte e envolvia sua alma
em um abraço suave.
Enfeitiçado com a sensação sedutora de poder vivo, Silhara se
deleitou na união profunda. Martise ficou quieta diante dele, as
pálpebras se levantaram para encontrar seu olhar. Sua língua se
sentia grossa enquanto recitava um simples feitiço de cura, o que
não fazia mais que curar um arranhão. Com o poder do Dom dela, o
feitiço funcionava com uma magia maior. Os hematomas
desapareceram de sua pele, os músculos e tendões inchados sob seus
dedos, suavizaram.
— Suficiente. — Disse e retirou as mãos.
Martise respirou profundamente e fechou os olhos uma vez mais. A
luz âmbar passou pelos braços e pulsos de Silhara, ondulando longe
dele para unir-se em um ponto de luz concentrado no peito de
Martise. Pulsou duas vezes antes de desaparecer no tecido da túnica.
Silhara assentiu em sinal de aprovação. Ela tinha um bom domínio
sobre seu Dom agora e o reprimia com menos esforço. Com a prática
continua, não teria nenhuma dificuldade em escondê-lo dos
sacerdotes, assim nunca suspeitariam que seu Dom se manifestou.
Sem a força reconfortante de seu poder correndo por seu sangue, a
dor de suas feridas voltou. Moveu-se e amaldiçoou quando este leve
movimento enviou uma dor aguda através do seu lado. Martise
levantou a mão para ele, mas ele a descartou com um gesto.
— Vamos testar se o feitiço foi bom para a voz. Tente falar.
— Obrigada. — Disse e sorriu quando as palavras saíram como algo
mais que um grunhido incoerente. Sua voz continuava um pouco
rouca, mas não era pior do que quando tinha um resfriado.
— Você canta muito mal, sabe disse. — Brincou. — Você conseguiu
soar como eu.
Sua suave risada o acalmou. Não o odiava ou temia, mesmo agora,
depois que quase a matou. O desespero o ameaçava consumir. Ele
iria chorar por ela, mesmo além de sua morte. Se as circunstâncias
fossem diferentes, ele lutaria para mantê-la, mataria Cumbria se
necessário, para arrancá-la dele e enfrentaria a ira do Conclave por
matar seu bispo mais poderoso. Mas o destino jogava uma
brincadeira diabólica com ele. Ele não seria melhor que Berdikhan
ou mesmo Corruption se sacrificasse sua Jide Bide para ter a
oportunidade de sobreviver ao ritual para matar o deus. Uma raiva
mortal o enchia. Ele não era nobre, apenas tinha um coração mais
mole e com certeza o segundo era mais patético que o primeiro.
Daria a Martise sua liberdade, destruiria a si mesmo para salvá-la.
O que lhe disse uma vez? Os deuses riam. De fato, o faziam.
Baniu os autos recriminações. Não havia necessidade de ressaltar o
tolo fraco em que se converteu. Martise estendeu a mão uma vez
mais quando se levantou cambaleando. Uma vez mais, lhe descartou
com a mão.
— Não o faça. Tenho um grande respeito pelos seus pés agora. Tão
logo tiver certeza que não me castrou por completo, pode ajudar.
Ela ficou vermelha. — Não pode curar a si mesmo da mesma forma
que curou minha garganta?
A ideia da mão, quente pela magia de seu Dom, tocando suas bolas
o teria deixado duro. Agora, com a dor constante entre as pernas, a
ideia era menos atraente.
— Sua confiança em mim é maior que a minha em você. Por muito
que poderia desfrutar disso, acho que é melhor manter suas mãos
fora do meu pênis por agora, Martise.
Sua declaração contundente tirou a picada de sua negativa. Um leve
sorriso se desenhou em seus lábios antes de desaparecer.
— Está bem, Silhara? — Lembranças escuras causaram sombras em
seus olhos. — O deus... seus olhos...
Bílis misturada com sangue, queimou em sua garganta. Levantou as
mãos e franziu o cenho a seu tremor. — Agora sabe por que a estrela
se situa em Neith.
Martise juntou as mãos diante dela. Seus nós brancos contrastavam
com sua voz tranquila. — Você é o Avatar renascido.
— Sim.
A volta de Gurn lhe impediu de dizer mais. O servo carregava uma
bandeja com duas xícaras fumegantes e uma pilha de toalhas
úmidas. Entregou uma xícara para Martise e outra para Silhara,
junto com uma toalha.
Martise puxou a toalha da mão de Silhara. — Confia em mim o
suficiente para limpar seu rosto? Prometo não chutar.
Ela deixou a xícara no chão quando ele assentiu e continuou
limpando o sangue. O tecido estava fresco em seu rosto e suave ao
tato. Silhara ficou quieto sob seus cuidados, sem se afastar enquanto
esfregava as manchas de sangue seco do nariz e do queixo. A toalha
flutuava no canto de sua boca. Silhara estava em sintonia com cada
respiração sua, inclinou-se para ela enquanto ficava nas pontas dos
pés e beijou o lugar.
— Ninguém deve sofrer este cativeiro. — Sussurrou contra sua boca.
— Gostaria de poder tomar sua carga se pudesse.
Um relâmpago disparou através de sua alma. Tal devoção. Martise
era uma mulher compassiva, mas isto ia além da simpatia. Ela o
amava como ele a ela? Via nele algo diferente da ameaça que o
Conclave via? Iria lamentar sua separação no mesmo silêncio? A
angústia em seus olhos respondeu sua pergunta.
Acariciou sua testa com o polegar. — Esta é uma dívida que não pode
pagar e eu não deixaria. — O mesmo polegar pressionou seus lábios
quando ela tentou argumentar. — Sempre há um custo, Martise.
Pegou a toalha com cautela e limpou as mãos antes de dar a volta. —
Não se esqueça de sua xícara. Meu feitiço fez a maior parte do
trabalho, mas posso assegurar que o chá de Gurn a curará por
completo.
Sua xícara estava cheia do chá preto e adoçado com mel em grande
medida. Um remédio simples, mas eficaz. Silhara levantou a xícara
em saudação a Gurn. A dor surda no peito aumentou. Ele logo
perderia Gurn e isto o machucaria tanto quanto perder Martise.
Gurn, satisfeito por seus pacientes tomarem seu chá, começou a
limpar o escritório. Tentou, sem êxito espantar Martise para longe
quando quis ajudá-lo. Silhara, ainda com muita dor não fez nada
além de observar, apenas mancou até o outro lado da mesa virada.
Os pergaminhos estavam espalhados pelo chão, grande parte deles
salpicados por tinta. Pegou uma página, sua carta ao Luminary do
Conclave. Uma mancha de negro estava na parte inferior da carta,
mas continuava sendo legível.
Eminência, lhe ofereço a oportunidade de me matar e destruir
Corruption de uma única vez. Está interessado?
Silhara, Mestre de Neith
A carta estava seca, grãos de areia continuavam presos ao papel.
Sacudiu-o e colocou o pergaminho em um rolo apertado. Gurn fez
um gesto a ele quando passou pelas poças de vinho e sopa e se dirigiu
para a porta.
— Estou muito bem, ainda que duvido que possa ter filhos agora. —
Sorriu levemente ao ver o rubor de Martise.
Como Gurn, tinha uma expressão de preocupação. — Corruption...
— Esperará sua oportunidade. Duvido que o veja novamente. — Se
asseguraria que ela voltasse para Asher na próxima vez que
Corruption fizesse uma visita.
Parou na porta. — Estarei no meu quarto. Quando você e Gurn
terminarem aqui, traga-me uma taça de Fogo.
Martise pegou uma das toalhas de Gurn, agora manchadas com
vinho. — Ficará bem sozinho?
Silhara bufou. — Não sou uma criança, Martise. Não preciso de uma
mãe desde muitos anos.
Deixou-os no escritório e mancou para o quarto. Uma vez dentro,
ele gemeu e segurou entre as pernas uma vez mais. — Pelas asas de
Bursin, mulher. Não tinha pensado que poderia morrer como um
eunuco.
Por um momento se arrependeu de rejeitar a oferta de seu Dom para
curar suas dores e incômodos e lançou um simples feitiço apenas
para adormecer a dor entre as pernas. Sua camisa estava arruinada,
com manchas de sangue no peito e rasgada nos lugares que Martise
arranhou. Tirou-a e lançou-a sobre a cama. Suas mãos feridas ainda
tremiam, sinais persistentes do controle brutal do deus. Silhara
grunhiu e saiu a sua sacada. Contra o céu azul, a estrela de
Corruption brilhava com um branco forte agora.
— Satisfeito consigo mesmo, Corruption?
O deus se manteve em silêncio desta vez, mas a estrela pulsou em
triunfo. Silhara franziu o cenho. Corruption ficava cada dia mais
forte. Apesar da força e habilidade, não acreditava que poderia
resistir muito mais tempo. Se ele não fosse ao deus de boa vontade,
Corruption finalmente iria apoderar-se dele. Sim, no entanto,
mesmo com a posse do deus, ainda conseguia manter um certo
controle de si mesmo e Corruption por um curto período de tempo,
o suficiente para concluir o ritual que prenderia o deus, matando a
ambos.
Cumbria o veria morto, mas não como desejava. Em lugar de ser
executado por traição ou heresia, Silhara morreria como um mártir,
um herói.
Ele não se preocupava com heroísmo, ser um mártir ou frustrar os
planos de Cumbria. Queria viver, para colher laranjas, viver em
Neith sem o Conclave em suas costas e manter Martise ao seu lado
até que morresse velho no lugar desta maldita nobreza que de
repente o afligia.
Mas nada disso seria seu destino se ele se limitasse a observar
Corruption se encher de poder até que o consumisse e ao mundo que
tentava conquistar. Apesar do que os outros pudessem pensar ou
como a história poderia ser escrita, Silhara era fiel. Corruption não
era diferente de Lich de Iwehvenn e Silhara escolheria morrer com
sua alma intacta, em lugar de viver em uma casca de homem que
perdeu sua humanidade.
Uma voz maliciosa interior sussurrou. —É possível viver. Dorme
com uma Jide Bide cada noite. Use-a para o que ela é.—
Semanas antes, poderia tê-lo feito sem pensar duas vezes, quando
Martise não era mais que um instrumento do Conclave, cujo
propósito era entrega-lo. As coisas mudaram.
— Sou patético. — Murmurou. — Condeno a mim mesmo e arrisco o
mundo por uma mulher.
Voltou ao quarto. A carta a Luminary em sua cama quase aberta
junto a sua camisa manchada. Silhara voltou a ler antes de enrola-la
e transformá-la em uma esfera de luz do tamanho de um dedal.
Voltou a sacada e convocou um corvo de uma das árvores e colocou
a esfera sob a asa da ave enfeitiçada. As penas negras brilhantes
ficaram lisas enquanto acariciava as costas do corvo.
— Conclave. — Disse. — Luminary.
O pássaro grande grasnou uma vez antes de alçar voo, fazendo seu
caminho para a costa, a fortaleza do Conclave.
Esperava que os sacerdotes estivessem em sua porta em questão de
dias. Luminary poderia não se incomodar em responder, mas com
certeza não iria discutir os planos de Silhara.
Atrás dele, um suave golpe soou na porta. A voz de Martise o
alcançou na sacada.
— Silhara?
— Aqui. Estou na sacada.
Seus leves passos se aproximaram. Despenteada e suja por ajudar
Gurn abaixo, ela sorriu e lhe entregou um copo. — Como estão...
— Minhas bolas? Doendo, mas pelo menos já não me sufoco com
elas. Como está sua garganta?
Tocou o pescoço. — Bem. Gurn me fez tomar um pouco de Fogo e
ajudou.
Silhara levantou o copo e tomou um gole. A bebida queimou em seu
interior, deixando uma agradável euforia no caminho. Ele respirou
com força e esfregou os olhos com lágrimas. — Nada pode matar a
dor como urina de dragão. — Deixou o copo sobre o pequeno muro
da sacada. — Sabia que os soldados usavam o Fogo de Peleta para
manter, e impedir que as feridas da batalha inflamassem?
Indicou que se aproximasse e a puxou para ele. Suas costas estavam
quentes e cheirava a flores de laranjeira. Ele acariciou seu pescoço.
— Agora tem algo para contar ao bipo.
Martise ficou rígida.
— Sem dúvida, você sabia que eu adivinharia seu propósito quando
chegou, verdade? — Ele a beijou na testa.
Sua voz era firme. — Sim, mas não teria admitido se me enfrentasse
antes. — Deu a volta em seus braços, os olhos escuros encontraram
seu olhar. — E não tenho nada a dizer ao bispo.
Silhara lhe acariciou as costas e correu a longa trança entre os dedos.
— Não importaria se o fizesse, Martise. Apenas você e eu saberemos
sobre seu Dom. Seu segredo está a salvo.
Apertou-se contra ele, seus seios suaves sob sua túnica. O sol de
verão acariciou o rosto dela. — Inclusive se não tivesse nenhum
segredo para proteger ou uma recompensa para receber, não diria
nada ao bispo sobre hoje.
Uma declaração de lealdade. Silhara fechou os olhos e a abraçou. Ele
deveria se sentir triunfante. Ganhou a batalha sobre a espiã e
derrotou Cumbria em seu pequeno jogo. Mas perdeu a mulher no
processo.
Ele olhou para ela. — Que recompensa tem para receber por seu
silêncio?
Seu olhar se afastou. — Não vale a pena a vida de um homem.
Silhara riu. — Minha justa inocente. Os homens sacrificam outros
homens pelo poder e riqueza, comida e às vezes apenas por
entretenimento.
Ela o olhou com olhos sombrios. — O que sacrificará?
Sua pergunta o pegou de surpresa. Ele não respondeu, apenas beijou
sua testa.
— O que significa o símbolo, Silhara?
Mais tenaz que um bruxo em uma matança, se negava a renunciar a
ideia do que sabia sobre o símbolo junto ao nome de Berdikhan.
Pelas asas de Bursin, não teria esta discussão esta noite. Ele poderia
não resistir à tentação de olhar para a constelação de Zafira como
fez tantas vezes desde sua volta da aldeia de Kurman.
— Não sei.
Seus olhos se estreitaram. — Está mentindo.
Silhara riu. Gostava muito quando era tão feroz. Ele desceu a boca
sobre a dela, passou a língua pelo lábio inferior. — Prove. —
Sussurrou.
Apertou-se contra ele enquanto a beijava. Saboreou a sensação dela
nos braços. Se não estivesse se recuperando da posse de Corruption
e a defesa efetiva, teria levado ela para a cama e feito amor com ela
pelo resto da tarde e noite.
Ele gemeu quando ela se afastou e olhou de forma penetrante. —
Espere. O que quis dizer com que não importa que conte ao bispo
que é o Avatar?
Levantou os olhos para o céu. — Isto diz muito de minha capacidade
de sedução. — Martise não esboçou um sorriso. — A primeira
tentativa do Conclave para destruir Corruption apenas deu lugar a
um longo exilio. Desta vez, deve confiar no Avatar para derrotar o
deus.
Compreensão a golpeou, rápido e forte. Seus olhos se escureceram
até que ficaram quase negros como os dele. — Não! — Ela agarrou
seus braços. — Deixe que outra pessoa seja Berdikhan. Luminary ou
Cumbria. Eles são tão fortes como você. Tão poderosos quanto. Este
é o propósito do Conclave, não o seu!
Silhara respondeu. — Mas é minha redenção. — Ele levantou sua
mão aos lábios e lhe beijou os nós dos dedos. — O que viu quando
olhou para meu rosto há uma hora?
Sua mão tremia em seu agarre. — Algo sem alma.
Ele inclinou a cabeça. — Uma boa descrição. O Conclave me acusou
de tal coisa muitas vezes. Agora, teriam razão. — Ele soltou sua mão.
— Não tenho nenhum desejo de ser reduzido a um número, Martise.
Morrerei antes que aconteça e levo Corruption comigo.
Ela inclinou a cabeça. — Queria que me amasse. — Disse em voz
baixa. — Talvez então poderia impedir está loucura.
Sua declaração quase o fez cair de joelhos. Era porque a amava que
seguiria este caminho, mas dizer, apenas iria deixar tudo mais difícil
ou pior ainda, poderia fazer algo tolo e colocar ambos em perigo.
Fechou os olhos por um momento e contou sua maior mentira.
— Eu não te amo. É uma mulher admirável, mais que qualquer outra
pessoa que conheci além de Gurn. Mas tem pouca importância aqui.
Um gemido leve flutuou entre eles antes que a brisa da tarde o
levasse. Martise juntou as mãos.
— Importa em absoluto se disser que eu te amo?
Uma parte de Silhara, a menor parte que lembrava sua humanidade
e sua capacidade de amar, estremeceu. — Não.
Ele levantou a cabeça com um dedo sob seu queixo. As lágrimas
corriam por seu rosto e pingava em sua mão. Pareciam queimar. —
Pegue suas coisas. Vou devolvê-la ao seu verdadeiro Mestre.
Beijou-a novamente, com força. Guardaria a lembrança e levaria
com ela em sua morte.
Ela lhe devolveu o beijo brevemente antes de fugir da sacada. Uma
vez que a porta se fechou atrás dela, entrou em seu quarto com o
copo sem terminar de Fogo de Peleta, vestiu uma camisa limpa e
preparou seu narguilé.
O suave sabor do tabaco umedecido contrastava com o de álcool
enquanto Silhara fumava o narguilé de tempo em tempo. Exalou
uma nuvem em uma respiração lenta, murmurando palavras
arcanas enquanto o fazia. A fumaça serpenteava e criava padrões
próprios, dando forma a si mesma em uma réplica de nevoa com o
rosto de Martise. A imagem fantasma flutuou no ar diante dele e
traçou seu contorno.
— Minha própria Zafira. Condenou-me.
Capítulo
Vinte
— Como sabemos que podemos confiar em você?
A pergunta de Cumbria soou através do ruído das xícaras de chá e o
sussurro das túnicas.
Silhara vestido com sua túnica vermelha em sua biblioteca, em uma
reunião com os bispos do Conclave, reclinado em sua cadeira,
sorriu. — Você não sabe.
O vapor da chaleira quente queimou os dedos de Martise enquanto
voltava a encher as xícaras. Os sacerdotes, entre eles o Luminary
todo poderoso, estavam ali em menos de duas horas e o bispo e o
bruxo estavam preparados para entrar em combate.
Cumbria virou-se para o menor e quase calvo padre ao seu lado.
Mais jovem do que Cumbria e não tão imponente, tinha um rosto
redondo e jovial, os olhos afiados que queimavam buracos em uma
pessoa com seu olhar. Martise apenas ficou tão perto de Luminary
uma vez antes e ficou muito impressionada.
O bispo tocou a testa em deferência. — Eminência, descansaria a
sorte do mundo neste proscrito e a mitologia desses selvagens, cujo
sangue compartilha?
As sobrancelhas de Silhara se ergueram. Passou um dedo preguiçoso
na borda de sua xícara de chá. — Compartilho seu sangue, tio. É um
selvagem?
O choque ofegante dos outros sacerdotes ecoou à pergunta de
Silhara. Martise quase deixou cair o copo de água quase cheio no
colo do bispo menor. No aparador improvisado às pressas para esta
reunião, Gurn cortava calmamente o pão em fatias, sorria.
— Não me chame assim! — Suas mãos se fecharam em punhos e
Cumbria inclinou-se sobre a mesa como se fosse saltar sobre Silhara
e golpeá-lo.
— Cumbria! Este não é o momento para disputas familiares. — A
ordem de Luminary chamou a atenção de todos, incluindo de
Silhara que se endireitou com uma careta insolente.
Martise pegou uma das fatias de pão de Gurn com um gesto
distraído. Seus pensamentos giravam. O bispo era tio de Silhara?
Duvidava que ficaria mais surpresa se ele dissesse que Cumbria era
na verdade uma mulher.
Eram parentes de sangue e se odiavam mutuamente, com uma
ferocidade reservada aos inimigos nascidos. Ela entendia um pouco
da animosidade de Silhara. Foi tratado mal pelo Conclave, mais que
a maioria dos iniciados e Cumbria foi o culpado por cada abuso.
Silhara apenas insinuou a motivação do bispo pela intimidação e
achou seu comportamento estranho. Vinte e dois anos de escravidão
na casa de Asher e ela nunca foi submetida a tanta crueldade por seu
Mestre. Cumbria era justo em sua forma, duro quando preciso,
desinteressado para com seus servos na maioria das vezes. Porque
atuaria tão brutalmente com outro, especialmente um parente, seu
sobrinho?
Rodeou a mesa com Gurn, colocando o alimento no centro ao
alcance de todos. Serviu mais chá e a tensão na biblioteca diminuiu
lentamente. Estava à vontade com este papel familiar. Malvista e
nunca ouvida, podia observar cada ação, ouvir cada palavra dita e se
lembrar de tudo. Cumbria a interrogaria uma vez que estivessem
sozinhos, a faria recitar cada frase pronunciada por qualquer pessoa
em uma conversa.
Luminary serviu-se de pão. Apontou com um pedaço para Silhara.
— Eu o conheço desde que era uma criança, Silhara. Um rebelde, um
garoto incontrolável, de caráter forte, com um instinto afiado para a
sobrevivência. O homem é igual, salvo pelo controle. É muito mais
controlado agora. O ritual dos reis do Norte poderia funcionar,
especialmente com um mártir tão disposto no centro. O que quero
saber, é porque escolheu ser um mártir?
Silhara empurrou sua xícara para longe e se encontrou com o olhar
agudo de Luminary. — Sou o Avatar renascido.
Sufocando um fraco gemido de desespero Martise fechou os olhos.
Condenou a si mesmo com esta admissão.
Cumbria golpeou a mesa com as mãos. — Eu sabia! — Sua voz soava
triunfante. — Quantas vezes Eminência, disse que ele era o único?
Temos uma víbora em nosso meio e ele nos traiu.
Silhara rodou os olhos. — Diga-me tio. — Enfatizou a última palavra
e sorriu quando os olhos de Cumbria se abriram mais. — Como trai
o Conclave? Fui a você por um aprendiz para que pudesse matar o
deus. — Pela primeira vez Martise viu a semelhança entre os dois
homens no desprezo de Silhara. — Martise foi uma tradutora melhor
que uma espiã. Está desperdiçando seu talento. — Olhou para o
outro lado quando ele a olhou. — Juntos, encontramos um ritual que
funcionará e um idiota pronto e disposto a atuar como oferenda ao
sacrifício.
— Está mentindo. — Disse Cumbria.
— Acredite no que quiser. Usando o ritual ou não. Usando-me nele
ou não, mas tome uma decisão, então saberei se devo me preparar
para morrer ou para a colheita. Teremos flores de laranjeira em
breve para colher.
Martise balançou a cabeça. Não era de estranhar que o Conclave
rangesse os dentes. Não mostrava deferência, não oferecia
subserviência. Pragmático, mesmo ante os homens mais poderosos
das terras longínquas. O fato destes mesmo homens se reunirem em
Neith em lugar de chama-lo ao Reduto do Conclave, falava de muita
aceitação aos termos do Mestre dos Corvos.
— Tem certeza que é o Avatar? — O intenso escrutínio de Luminary
poderia ter ateado fogo na túnica de Silhara.
Silhara não se encolheu. — Se não sou, então Corruption perdeu
tempo possuindo a marionete errada. Quatro dias atrás, o deus
tomou posse do meu corpo e quase matou a pupila do bispo. —
Martise corou quando uma dúzia de pares de olhos de repente se
viraram para ela. — Ele me quer e até me nomeou como seu Avatar.
Cumbria esfregou a testa. — Eminência, ele irá nos conectar no
ritual.
— Posso fazê-lo agora e não tem como me impedir.
O bispo ignorou. — Use outra pessoa.
O líder do Conclave olhou para o bispo e suspirou em frustração. —
Quem Cumbria? Está se voluntariando? — Ele levantou uma
sobrancelha quando Cumbria empalideceu.
Silhara riu. — Sua Graça, você tenta cravar ou pendurar meu cadáver
na árvore mais próxima há mais de vinte anos. Agora, quando me
ofereço, se nega? Esperando um pouco mais de sangue?
Luminary entrelaçou os dedos e olhou cada um dos sacerdotes que
estavam sentados diante dele. — Gostemos ou não, Silhara é a chave
para o ritual. Como Berdikhan diante dele. Ele é o suficiente para
nós, para fazermos nosso trabalho e fisicamente forte o suficiente
para resistir ao ataque até que o deus esteja morto. Acima de tudo,
Corruption quer Silhara. Nenhum esforço tem que ser feito para
atrair o deus a ele.
Cumbria ainda resistia. — Devemos levar isto para a Santa Sede.
— Não temos tempo e a metade da Sede já está aqui. Votaremos
agora. Se for assim, então iremos para o leste e encontraremos
novamente Tor de Ferrin em dois dias. — Olhou para Silhara. —
Pode defender-se de Corruption por tanto tempo? Ou preciso usar
um feitiço de inconsciência?
O bruxo sorriu. — Um ou dois dias não é nada. Um mês e poderia
precisar de um descanso.
Luminary levantou a mão. — Diga seu voto. Sim para o ritual. Não
para contra. Eu digo sim.
Um coro de — sim — seguiu sua declaração, mesmo Cumbria,
concordou de forma sombria.
Martise ficou quieta. Ela queria vomitar. Silhara assinou sua própria
sentença de morte, junto com os sacerdotes. Que irônico que o
homem que mais queria vê-lo morto, era o mais resistente em dar
sua aprovação.
Dois dias. Se apenas estes dois dias fossem a eternidade.
Ela levantou os olhos e encontrou Silhara olhando-a, seus olhos
escuros tão profundos, tão cheios de segredos e sombras. — Por
favor. — Articulou a ele. Ele negou com a cabeça antes de se levantar
e sair com Luminary ao seu lado.
Cumbria ficou para trás, olhando pelas janelas. Gurn flutuava perto,
aparentemente limpando a mesa e os restos do lanche. O bispo não
usava adornos em seus trajes de seda cinza, exceto pela pedra com
sua alma em uma corrente de prata. Um terrível anseio aumentou
dentro dela, seguido pelo desespero. Deixou sua oportunidade de
viver como uma mulher livre, para recuperar a parte de si mesma
que tomou dela quando criança. Dada a oportunidade, o faria
novamente se isto fosse proteger Silhara do Conclave, mas o
conhecimento não diminuiu a dor.
— Falhou.
Martise tirou o olhar da joia azul e foi para o rosto de Cumbria. —
Sim, Sua Graça. — Não tinha nenhuma desculpa, então não se
desculpou.
Sua boca se enrugou. — Tentou?
Ela o fez. Antes. — Sim. Cantei ao seu corvo. Ele nunca veio. Fui
testemunha da posse, mas Sil... — Parou antes o olhar estreito. — O
bruxo enviou uma mensagem a Luminary antes que pudesse enviar
uma a você.
O movimento de seus dedos acariciando a pedra a hipnotizava.
Martise não escondeu seu desejo. Ambos sabiam o muito que
significava para ela estava pedra. O rosto marcado de Cumbria
suavizou e ele deixou cair a mão de lado. — Nada saiu como
esperava. Espero que para você, sim.
— Não. — Disse simplesmente. Sua perda não era nada comparada
com o que enfrentava Silhara.
— Não me surpreende que Silhara descobrisse seu propósito aqui.
Surpreende-me que ele permitiu ficar tanto tempo. — Uma
sobrancelha cinza se levantou quando ele a olhou com desconfiança.
— E não foi uma estadia ruim. Está um pouco mais magra, um pouco
mais bronzeada pelo sol.
Seu corpo estava bem, o coração que estava em pedaços. Ela puxou
as dobras da saia. — Ajudei com os escritos Helenese. E ajudei na
colheita.
Cumbria apertou suas roupas mais perto. — O Conclave lhe
recompensará por seu descobrimento, mas não lhe dará a liberdade.
— Martise se encolheu por dentro, mas manteve a expressão em
branco. — Preciso de suas habilidades. E a morte de Silhara não é
para fazer dele um herói. Prepare-se. Sairemos em uma hora.
Ela o viu se afastar e ficou sem fôlego quando um peso caiu sobre
seu ombro. Gurn estava a seu lado, a simpatia em seus olhos azuis.
Concentrou-se em Cumbria e a confirmação de sua continua
escravidão, então se esqueceu que ele ainda permanecia na sala com
eles. Ele bateu em seu ombro em um gesto de conforto.
Suas mãos desenharam padrões no ar, movendo os lábios em
palavras sem som. Martise riu apesar de seu abatimento. — Matá-lo
não ajudará nenhum dos dois, Gurn. A justiça do Conclave é rápida
e sem piedade. Estaria morto e eu provavelmente seria vendida a
outro pior. — Ela encolheu os ombros. — Não é tão ruim. A vida de
escravo nunca é fácil, mas a minha tem sido mais que a da maioria.
Ela lhe acariciou a mão. — Tenho que arrumar minhas coisas. — Ela
se afastaria de Gurn e Cael. Eles, como Silhara, se converteram em
sua família. O nó na garganta fazia com que fosse difícil de falar.
Conseguiu soltar uma pergunta. — Nos acompanhará até os
portões?
Ele assentiu e bateu em seu braço mais uma vez. Martise o deixou
terminar de arrumar a biblioteca e voltou ao seu quarto.
A porta se fechou quando Silhara saiu de um canto sombreado em
seu quarto. Uma onda de ar fluiu de seus dedos, passando por todo
o quarto e rodando nas paredes. Seus ouvidos se contrariam em
protesto. Invocou um feitiço de silêncio. Ninguém fora da porta
ouviria nem sequer um grito.
Seus olhos brilhavam em um rosto branco pela fúria. — Eu sabia que
era a pupila de Cumbria. — As palavras geladas e afiadas, enviaram
arrepios pelos braços de Martise. Ela se afastou enquanto ele se
aproximava. — Uma serva, sim. Uma que foi educada. Mas uma
escrava? — Ele atacou, chutando um objeto para o outro lado do
quarto que bateu contra a parede oposta. Dividiu-se com um estalo
em dois. — Porque não me contou? — Grunhiu. Os tendões do
pescoço ficaram tensos, sua pele vermelha e deixando o tecido da
cicatriz se destacando.
Martise olhou-o surpresa com sua ira. Porque deveria revelar seus
status? — Não vi nenhuma razão...
— Não havia razão? — Ela fez uma careta ante o desprezo em seu
tom. — Havia muitas razões.
Ele a empurrou contra a parede mais próxima da janela. Martise,
ficou abatida por ter somente estes poucos minutos com ele, mas
não tinha medo. Tocou o rosto com dedos suaves. — Porque está
irritado?
Sua carícia fez sua própria magia. Silhara fechou os olhos e apoiou a
testa contra a dela. Seus cílios se apoiaram em suas bochechas.
Acariciou a linha dura de sua mandíbula, passou os dedos pela
cicatriz branca.
Endireitou-se e abriu os olhos, mas não se afastou dela. — Ele lhe
ofereceu sua liberdade, verdade? — Seus olhos se estreitaram até
ficar uma linha. — Você não é avarenta e nem ambiciosa. Tampouco
tem o sangue frio. Mas está escravizada. Que outra coisa poderia
motivar uma mulher tranquila, suave a escolher um homem sobre
seus inimigos?
Ele não deu a ela uma chance de responder. — Não podia tirar seus
olhos da corrente que ele usava, ele não pode resistir em jogar seu
fracasso na cara. — Mais uma vez, sua voz era fria. — Eu sei o que
aquela joia é. A sua alma.
— Sim.
Ficou contra a parede quando se afastou e começou a andar. —
Martise, disse que meu silêncio sobre seu Dom foi dado livremente.
— Parou, levantou os braços em sinal de frustração. — Porque não
lhe contou algo? Qualquer coisa? Quando enviei uma carta para
Luminary poderia ter enviado uma para Cumbria.
Martise esfregou os olhos com as mãos. — Não sabia que planejou
escrever para Luminary e derramar seus segredos. — Ele franziu o
cenho quando ela levantou as mãos para defender seus argumentos.
— Quero dormir à noite, Silhara. Não posso, em consciência,
negociar a vida de um homem a qualquer preço.
Diminuiu a distância entre eles. Martise se apoiou nas mãos quentes
que seguravam sua cintura. Seu fôlego fez cócegas na garganta. —
Qualquer homem? — Sussurrou em seu ouvido.
Seus olhos se fecharam e deslizou os braços ao redor dele,
aproximando-se de seus músculos tensos. — Especialmente você.
Você mais que ninguém. — Seu cabelo era de seda contra seus dedos
e ela respirou o aroma das laranjas. — Você não me ama, mas eu te
amo. Nunca o trairei.
Silhara a beijou, brincando com sua língua, persuadindo. Provou o
desespero e o chá de amoras de Gurn. As mãos quentes dançaram
por suas costas e traseiro. Martise gemeu em protesto quando ele
rompeu o beijo. Uma mão subiu para seu rosto, dedos longos
acariciaram suas bochechas, a ponte do nariz.
— Se fosse um homem rico, eu a compraria dele.
Seu sorriso sombrio refletia seus pensamentos igualmente
sombrios.
— Cumbria de Asher não lhe venderia uma manta rasgada se
pensasse que a queria, mesmo se fosse o homem mais rico do
mundo.
— O bispo possui mantas rasgadas?
— Acho que não. — Seu coração pulsava forte sob sua mão — o
coração de um rei pobre. — Porque não disse que o bispo era seu tio?
Ele ficou rígido e sua boca sedutora se comprimiu em uma linha
apertada. — Porque não penso nele como tal. Era o irmão distante
de minha mãe, nada mais.
Martise não concordava. Silhara poderia reclamar apenas um
reconhecimento superficial do seu parente, mas havia muito mais
estre eles, coisas escuras e dolorosas. — Por que se odeiam?
Silhara olhou sobre sua cabeça. — Nós dois jogamos a culpa um no
outro por sua morte. Odeia-me porque sou a razão pela qual não
voltou para os braços da família. Casou-se com um selvagem
Kurman contra seus desejos e envergonhou o sobrenome Asher. Eu
o odeio porque seu orgulho a obrigou a viver uma vida curta e brutal.
— Franziu os lábios. —Claro, esta é uma das razões na longa lista do
porquê odeio Cumbria de Asher.
Ele gemeu suavemente quando ela apertou os lábios na pele
enrugada de sua cicatriz. — Cumbria foi um dos sacerdotes que o
estrangulou, verdade?
— Sim.
Ela estremeceu por dentro pela falta de coração. Que homem
poderia estar perto e ver como o filho de sua irmã, uma vez amado,
lutava contra as mãos de um carrasco estrangulando-o? A vida às
vezes ditava escolhas duras. Sua própria mãe a vendeu como
escrava, mas por desespero e uma necessidade de alimentar outras
seis crianças. Cumbria era rico sem medida, não sofreu tal
dificuldade. Não era de estranhar que Silhara o odiasse.
Seus olhos negros brilharam triunfantes quando ela disse. —
Triunfou sobre ele em todos os momentos. — Ao ver o brilho
continuou. — E, no entanto, irá lhe dar o que mais quer.
— Doce mulher, já estou morto.
Silhara a levantou, envolvendo-a em um abraço que ameaçava
romper suas costelas. Beijou seus olhos, o nariz e a boca, ignorando
as lágrimas. Martise tentou invocar seu Dom, oferecer uma última
conexão e tomar algo dele para si mesma. A magia se elevou dentro
dela e atrás das pálpebras seus olhos formigaram com a luz
sobrenatural que fluía através de seu corpo.
Silhara a deixou no chão, agarrou-a pelos pulsos e afastou as mãos
de seu rosto, cortando bruscamente a conexão de seu Dom. — Não.
Martise tentou falar, surpresa pela veemência de sua negativa. Ele
se suavizou com um sorriso melancólico. — E não acredite que não
estou tentado tomar o que está oferecendo. Mas nunca poderá
invocar seu Dom sem qualquer razão, não se quiser mantê-lo em
segredo de seu Mestre.
Beijou a palma de sua mão com respeito. — Enviarei primeiro Gurn
ao Leste. Será um dia mais ou menos atrás de você. Se precisar, vá
ao templo da lua. — Suas sobrancelhas se levantaram. Silhara riu. —
A linda Anya é amável e ficará feliz em lhe oferecer um refúgio
temporário.
— Ele não me deixará ir de boa vontade.
Silhara encolheu os ombros. — Mas ele irá, ainda que tenha que
quebrar suas duas pernas e jogá-lo de Gnat por mim mesmo. Ele
pode voltar a Neith em um prazo de uma semana se quiser. — Seu
olhar escuro perfurava-a. — Poderia voltar, se estivesse livre.
Martise limpou as lágrimas das bochechas. — Livre ou não, não
haverá nada aqui para mim em uma semana. — Ela se agarrou a
túnica vermelha, os fios desgastados rangendo sob suas mãos. —
Peço de joelhos. Não faça isso.
Afastou os dedos da túnica, roçou os lábios nos dela. Um beijo de
despedida. — Seu Mestre a espera no pátio. Não vou me despedir. —
Deu a volta e passou pela porta, parando quando ela estendeu a mão
suplicante e chamou seu nome.
— Silhara...
Seus ombros largos se mantiveram rígidos, não se voltou para ela.
— Que a fortuna a favoreça, aprendiz. — A porta se fechou com um
clique final.
Capítulo
Vinte e
Um
O silêncio pairava sobre Neith, misturando-se com as últimas gotas
de luz à medida que a tarde dava lugar à noite. Silhara atravessou o
pátio, contornando o cemitério de pedra quebrada e o matagal.
Galhos secos e fragmentos de rocha trituraram sob suas botas
enquanto ele passava os portões de ferro. Eles aclamaram-no em um
fino choro de dobradiças rangendo, balançando suavemente na
brisa quente que rola fora das planícies circunvizinhas. Seu manto
vacilou atrás dele, as extremidades esfarrapadas acariciando os
trilhos e os restos de uma escada estilhaçada enquanto passava.
No tempo que residiu aqui, essa parte de Neith sempre estivera
quieta. Os fantasmas de seus construtores descansavam
pacificamente, sem perturbações pela marcha do tempo e do destino
que a tinham transformado em uma ruína em ruínas. Ruim ou não,
Em Neith estava em casa. Com sua madeira cheia de maldição,
paredes quebradas e um laranjal cheio de corvos lutando, a mansão
e suas terras eram um refúgio para ele, longe da imundície e da
miséria dos ancoradouros do Prime Oriental e da crueldade da
antiga fortaleza à beira-mar do Conclave. Seu espírito sempre se
acalmou em Neith, as bordas irregulares de sua amargura embotada
por seu isolamento. Até agora.
Silhara parou para contemplar a sombria madeira de carvalho e a
faixa de estrada que cortava uma cicatriz direta através de seu
coração até a ampla planície além. Gurn estava em seu caminho para
o Prime Oriental, guiando Gnat e um vagão carregado de gado – a
única verdadeira riqueza de Neith – através de um oceano
balançando sementes de gramas. Ele imaginou Cael, seu pelo
desalinhado decorado com sementes de grama, a ponta de sua cauda
como chicote se movendo para frente e para trás enquanto trotava
ao lado da carroça.
Ele não recorreu a Gurn, incapaz de fazê-lo partir, mas ele se
aproximou. A melancolia do servo na partida de Martise se
transformou em confusão quando Silhara ordenou que arrumasse
qualquer coisa de valor e cavalgasse para Prime Oriental. A confusão
deu lugar à descrença e à fúria quando ele questionou quais eram os
planos reais de Silhara para os sacerdotes.
Os dois homens sentaram-se na mesa da cozinha. Silhara bebeu uma
xícara de Fogo de Peleta, dando boas-vindas à lenta queimadura
lambendo sua garganta e costelas. — Você já ouviu os planos reais,
Gurn. Vou encontrar o Conclave no Tor Ferrin em dois dias. Nós
destruiremos o deus e salvamos o mundo. — Ele deu de ombros e
drenou o último do Fogo. Olhos revelando os efeitos dos espíritos,
ele ergueu a taça agora vazia para seu servo. — E eu morro como um
herói, — ele sibilou.
Gurn agarrou sua xícara de chá em uma grande mão. Fraturas de
tensão floresceu através da superfície do copo sob seu aperto. Sua
mão livre cortou o ar em um movimento afiado, e seu rosto ficando
vermelho.
Silhara empurrou sua taça e a garrafa de Fogo para a outra
extremidade da mesa. — Nós não faremos nada mais do que carregar
a carroça e aproveitar o Gnat. Você vai conduzir para a cidade. Pegue
Cael. Já fiz arranjos para você ficar com sua amiga Anya por uma
semana, ou mais, se quiser. — Ele sorriu para os traços de Gurn. —
Você deve possuir habilidades consideráveis sob os cobertores. Ela
enviou uma mensagem expressando sua ânsia por sua visita.
Gurn não devolveu o sorriso, apenas bateu suas grandes mãos sobre
a mesa com força suficiente para fazê-lo balançar e assinalou
freneticamente.
O entorpecimento inchado no coração de Silhara desde que Martise
partiu com os sacerdotes piorou. O Fogo borbulhou em sua barriga.
Ele tinha perdido a mulher que amava e agora o amigo que ele
admirava. Gurn tinha sido mais companheiro do que servo – um que
entendia uma necessidade de solidão, mas ajudou a manter anos de
solidão na baía com sua presença tranquila. Silhara apreciou sua
lealdade, agradeceu por isso. Como ele, um rato de cais, conseguiu
engendrar tal fé em um servo convertido em amigo?
— Você não pode ficar, não, e você não pode ajudar. Não aqui. Se
você é meu amigo como você diz, você vai me fazer este último favor.
Quando chegar a Eastern Prime, encontre Martise. Veja se ela está
bem.
Uma mão mais irritada acenava, o rosto de Gurn empalideceu e se
tornou suplicante diante da implacável vontade de Silhara.
Silhara franziu o cenho. Suas palavras saíram mais duras do que ele
pretendia. — Eu sou forte, Gurn, mas não invencível. E eu sou
apenas um homem. Você não viu o que eu submeti Martise sob a
influência do deus. A questão não é se Corruption me possuir, mas
quando. Eu não sou melhor do que a isca Lich, eu não vou viver
como um boneco. Quero que você tenha ido ao pôr-do-sol.
A resistência e teimosia de Gurn o surpreendeu, Silhara foi
finalmente forçado a impor sua vontade nele para fazê-lo sair.
Lágrimas de raiva frustrada e tristeza escorriam pelas bochechas do
gigante enquanto ficava ao lado da carroça carregada e encarava seu
mestre e amigo uma última vez.
Silhara apertou a mandíbula, achando difícil falar. — Eu disse isso
inúmeras vezes. Você é um pobre servo. — Ele agarrou o antebraço
de Gurn tanto em despedida como para afastar um abraço que
poderia esmagar suas costelas. — Viva muito, meu amigo. Viva bem.
Como com Martise mais cedo, ele não assistiu Gurn sair, mas
retirou-se para sua câmara e estudou as sombras da tarde enquanto
se estendiam através do laranjal. Ele tinha queimado duas tigelas do
narguilé antes de emergir para andar até os limites internos de
Neith.
Uma vasta onda de poder correu através dele quando tirou as
armadilhas da floresta. A magia negra, não mais um dreno constante
em sua força, bateu como maré de tempestade em seu sangue.
Escaldante contra o súbito influxo de poder, Silhara respirou fundo.
Um relâmpago negro disparou de seus dedos, chamuscando a grama
seca a seus pés.
A madeira, livre da maldição de deformação que mantinha os
visitantes à distância, iluminava-se com a luz do sol. Qualquer que
fosse a escuridão que a enchesse dentro de uma hora era da descida
do sol, nada mais. Silhara enrolou as mãos em punhos, apontando
as ondas residuais de magia. Precisava de cada força que pudesse
reunir. Se tais meios incluíam deixar a entrada de Neith
desprotegida, assim seja.
Deixou o pátio e voltou para a casa, atravessando os corredores
vazios até chegar à porta que dava para o bosque. Os ecos
fantasmagóricos o seguiam – a voz sedutora de Martise, o barulho
de panelas e bacias, enquanto Gurn rodava na cozinha, o clique
estalado das garras de Cael no chão enquanto patrulhava a casa.
Silhara parou um momento e ouviu. Silêncio.
Ele suspirou e se dirigiu ao bosque. Como os bosques na entrada de
Neith, tinha protegido as paredes do pomar com feitiços poderosos.
Novamente, Silhara absorveu o inchaço de poder quando levantou
os encantamentos. Tribos inteiras de ladrões poderiam escalar essas
paredes agora e deixar suas árvores limpas. A raiva disparou contra
ele ao pensar antes de sufocar a emoção.
A casa o acolheu de volta com suas sombras frias e isolamento
penetrante. Silhara fechou a porta do quarto e dirigiu-se para a
varanda. Pendurado no índigo mais profundo do crepúsculo
invadindo, a estrela da Corruption brilhava mais forte desde que
apareceu pela primeira vez. Silhara olhou para a manifestação
celestial do deus e transformou sua magia para dentro. Seus
pensamentos, suas emoções, todos os aspectos de seu espírito
estavam trancados, empurrados para trás de uma porta etérea de
dobradiças de alças e fechaduras formadas pelo mago.
Corruption irromperia, mas não antes que Silhara o tivesse
aprisionado dentro da concha do seu corpo e ligado aos sacerdotes
que pretendiam destruí-lo. Os traços pálidos de Martise se ergueram
em sua mente. À beira do horizonte noturno, a constelação al Zafira
fez sua subida constante com as estrelas de sua irmã. Sorriu. Tinha
feito a coisa certa não lhe dizendo sobre o símbolo. Ele seria honrado
por se sacrificar por um mundo. Ninguém saberia que ele tinha feito
isso por si mesmo e para uma simples, escrava.
A estrela do deus pulsou em reconhecimento de seu respeito. Silhara
abriu os braços e encarou o destino escolhido. — Quer que eu te
prostitua agora, Corruption? — Ele sussurrou.
Ele sabia pouco mais além dessas palavras, exceto uma agonia
dolorosa, como se uma mão enorme quebrasse cada osso em seu
corpo e triturasse os restos sob um calcanhar. A escuridão explodiu
em sua visão, ficou cego para o mundo ao seu redor. Uma antiga
malícia, criada de mil anos de ódio, encheu-o, batendo na porta,
guardando sua alma.
Silhara piscou e viu diante dele não o seu laranjal ou o céu índigo,
mas a paisagem sombria de um pesadelo familiar. Ele estava de volta
às costas negras de um mundo morto, de frente para um oceano
igualmente sem vida. No derramamento de ondas cobertas de prata,
a ascensão e queda de uma forma maciça e escura, afiada contra uma
noite sem lua, surfou na água. Aproximou-se cada vez mais para
atraí-lo para dentro das ondas.
Ele respondeu a sua chamada silenciosa, vadeando no surf. As ondas
mornas rodavam lentamente contra suas pernas, lutou contra seu
empurrão e puxar como se ele nadasse através de sangue em vez de
água. Um sussurro de som atrás o fez virar, pisou na água, sentindo
o leviatã se aproximando de suas costas.
Um espectro em um leão branco estava em uma fileira de cinzas e
ossos queimados e levantou uma mão acenando. Acima do ritmo
sombrio das ondas que lambia seu rosto, sua voz gritou –
implorando, girando a luz das estrelas vencido.
— Venha para terra, meu amor.
Silhara quis responder, queria nadar para trás, mas a força da maré
o afastou firmemente, longe da praia e daquele último pálido
remanescente de esperança. A água fechou sobre sua cabeça, o
puxando para baixo, para dentro da boca bocejante da criatura que
o aguardava.
Preso num vórtice de loucura, fechou os olhos apenas para abri-los
imediatamente. Desta vez ele estava de volta em sua varanda, de
frente para uma paisagem estranha e distorcida. Ele viu camadas de
movimento e cor, movimento e tempo como se fosse através de um
filtro de água suja. Sua visão, alterada pela possessão do deus,
mostrou-lhe o calor do verão despojado de sua vibração. Os ouros
eram amarelos desbotados, verdes apenas cinzas opacos. O céu
crepuscular não passava de tons de cinza pontilhados pelo brilho
doentio de estrelas moribundas.
A saudação doce e venenosa de Corruption ecoou dentro dele. —
Bem-vindo, Avatar. Esperei muito tempo por você. —
Silhara, sua voz clara e livre da marca da rouquidão, desumano em
sua clareza, respondeu. — Eu vim de boa vontade. Os sacerdotes do
Conclave tentam nos destruir no Tor de Ferrin.
O deus riu. —Então vamos jogar seu jogo. Eles me enganaram há
mil anos. Não dessa vez. —
Silhara observou seus corvos vibrarem e se acalmarem em suas
árvores durante a noite. Corruption se acalmou dentro dele, sentia
a medida do deus.
—Eu vou recompensá-lo, Avatar. Um mundo a seus pés, reinos sob
seu domínio, imortalidade além de sua imaginação. — Um frio
chocante queimou as veias de Silhara. — Mas primeiro, um castigo
por me desafiar. —
Como se puxado por cordas, Silhara levantou os braços. Magia, mais
poderosa do que qualquer coisa que ele já tinha exercido, rugiu
através dele. O fogo branco se arqueou de suas palmas, derramando
cascatas que corria pelo chão e disparava através das árvores. Seu
bosque, prova de seu triunfo sobre uma vida de obstáculos e
destinatário de seu maior cuidado, irrompeu em um inferno de
árvores carbonizadas e pássaros gritando. Atrás da porta protetora,
a alma quebrada de Silhara chorava angustiado.
Capítulo
Vinte e
Dois
— Eu não vou chorar por um homem ainda não morto.
Martise esfregou os olhos inchados. Apesar de sua declaração, ela
passara a noite alternando entre chorar e passear pelo chão. Estava
desesperada por uma ideia, uma solução, até mesmo um milagre
que poderia liberar Silhara da armadilha que conscientemente tinha
lançado sobre si mesmo. No momento em que a madrugada cortou
a pequena janela de seu quarto no sótão, já estava meio louca de
frustração.
Os sacerdotes selecionados para participar do ritual no Tor de Ferrin
tinham deixado Prime Oriental antes da primeira luz. Cumbria se
ofereceu antes mesmo de ser escolhido. Martise sabia que suas
intenções não eram nem nobres, nem corajosas. Uma chance de
assistir a morte de seu sobrinho e eterno adversário, pelas mãos de
Conclave valia o risco de enfrentar Corruption.
O sol subiu mais alto, pintando os telhados, telhas de casas vizinhas,
em tons de fogo de vermelho e laranja. O fio de mar visto de sua
janela refletia as mesmas faixas de carmesim brilhante na face das
águas. O baixar, era sua hora favorita do dia, mais uma vez Martise
poderia ter parado para admirar a beleza da luz. Mas hoje tinha um
cavalo para roubar, uma viagem a fazer e um homem para salvar.
Cumbria negara seu pedido de juntar-se aos que o seguiam até Tor
de Ferrin. — Preciso de você aqui. Se falharmos, você deve
apresentar-se ao Luminary no Conclave. Ele será a última barreira
contra o deus. Seu tempo em Neith pode ajudá-lo. — Ele a olhou com
desconfiança, sua boca ficando fina em uma careta. — Por que você
pergunta, você se apaixonou pelo mago bastardo?
Aquele bastardo mago acabara de se entregar voluntariamente
como um sacrifício. Enquanto Cumbria tinha escolhido participar
do ritual, duvidava que ele estivesse tão disposto quanto Silhara que
enfrentava com a mesma circunstância.
— Não, — ela disse, orgulhosa que sua voz permaneceu fria e
inexpressiva. — É apenas por uma questão de curiosidade. — Se ela
pudesse ajudar, o bispo nunca saberia de seu vínculo com Silhara,
ou a descoberta de seu Dom. Devia isso a ele tanto quanto a si
mesma. Sua alma teria raiva pela eternidade se Cumbria
conseguisse usurpar o poder da Luminary através dela.
Ela endireitou sua roupa, deslizou em seus sapatos e respirou
profundamente tomando coragem. Uma surra esperava por ela,
uma vez que Cumbria descobrisse que ela não só desafiava
abertamente seu comando para permanecer no Oriente Prime, mas
também – pegara emprestado – um de seus valiosos cavalos. Mas
ela se curvaria diante do chicote e sofreria cada golpe se pudesse
ajudar Silhara de alguma forma.
A casa estava silenciosa, mantida por um mínimo de funcionários da
cidade, sem uso para a presença do mestre. Quase todos os servos
de Asher o tinham seguido até Tor de Ferrin. Ninguém notaria se ela
escorregasse e desaparecesse por um dia ou dois.
Muito menor que sua mansão em Asher, a casa na cidade de
Cumbria não era menos opulenta. Martise percorreu salas e salões
decorados e mantidos com cuidado requintado. Muito longe do
desalinho de Neith, mas se lhe fosse dada uma escolha, preferia
estar em Neith, negociando um caminho traiçoeiro de teias de
aranha e buracos no chão para alcançar a acolhedora cozinha de
Gurn.
Atravessou a cozinha a caminho dos estábulos. Bendewin acenou
para ela com uma mão enrugada pela farinha e um cenho franzido.
Uma mulher alta e magra como um ancinho, que carregava os traços
distintivos de uma tribo de Kurman. Cabelos negros, com olhos
cinzentos e igualmente escuros, formavam um nariz aquilino e
maçãs do rosto cheias. — E quem ateou fogo em suas saias a esta
hora do dia?
Martise fez uma pausa. — Tenho recados para entregar. Vou estar
fora o dia todo. Você precisa de mim?
A cozinheira respondeu, mas foi interrompida por uma batida na
porta que levava ao jardim dos fundos. Uma criança apontou,
espiando para dentro. — Me desculpe. Saldin me enviou. Você tem
um visitante.
Os olhos de Bendewin se arregalaram. Ela olhou para Martise que
deu de ombros. Ela seguiu o menino para o jardim com uma ordem
para Martise. — Fique aqui. Eu quero saber o que você está fazendo.
A cozinheira ficou na soleira da porta, bloqueando a saída que
conduzia aos estábulos. Martise bateu os dedos impacientemente na
mesa de trabalho, enviando pequenas nuvens de farinha. Ela estava
tentada a empurrar a mulher para fora do caminho e correr, mas não
faria isso para contrariar a cozinheira. Bendewin manteria seus
segredos e poderia até ajudá-la.
Seus dedos desenharam linhas sinuosas na dispersão de farinha,
ficou assustada ao ver que ela tinha rastreado o símbolo enigmático
ao lado do nome de Berdikhan nos rolos Helenese. — O que isso
significa, Silhara? — Ela sussurrou.
Tão absorto em tentar desvendar o quebra-cabeça do silêncio
teimoso de Silhara, Martise não ouviu Bendewin retornar até que ela
falou ao lado dela.
— Menina tola. Você está tentando se dar azar? — Bendewin
estendeu a mão sobre seu ombro e rapidamente apagou o símbolo.
— Eu ouvi que o Mestre dos Corvos tinha sangue de Kurman, mas
você acha que ele iria lhe ensinar algo melhor do que isso sobre o
seu povo.
O fundo do estômago de Martise caiu em suas palavras, seu coração
começou a bater. Uma esperança cautelosa surgiu nela. — Você
conhece esse símbolo?
A cozinheira deu de ombros. — Eu sou uma Kurman. Claro que eu
conheço. — Ela assinou uma proteção apressada no ar. — Um
padrão de estrelas. As pessoas das planícies não veem o céu noturno
da maneira que os Kurmans fazem. Para você, a constelação Curl faz
parte do Touro e da Serpente. Para nós, ele está sozinho. Em
Kurmanji, a chamamos de al Zafira.
Martise respirou fundo. Sua visão das estrelas tinha sido moldada
pelos ensinamentos do Conclave e ele não ensinava os caminhos das
tribos de montanha. Sem o conhecimento de Bendewin, ela nunca
teria visto al Zafira.
Ela retornou o padrão na farinha. — O que isso significa?
Bendewin encolheu os ombros. — Nada, exceto um pouco de má
sorte. A consorte de um Sarsin antigo as estrelas levam o nome após
sua morte. Seu marido era um mago, como os padres. Zafira
encontrou um fim ruim em suas mãos. Ela era o que chamamos de
— jide —.
— Um dono de vida. — A voz de Martise estava sem fôlego.
Os olhos da cozinheira se arregalaram. — Sim. Os contos velhos
dizem que ele tentou ganhar o poder de um deus e usou-a para fazê-
lo. Ambos morreram. Nenhuma mulher de Kurman nomeia sua
menina Zafira nestes dias. — Bendewin franziu o cenho e colocou
uma mão pesada no ombro de Martise. — É melhor você se sentar.
Você ficou mais branca do que o leite.
Martise a sacudiu. Sua garganta se fechou contra outro ataque de
choro, só que essas lágrimas de raiva, lágrimas frustradas. Se ela
pudesse subir ao telhado e gritar sua raiva, ela o faria.
As palavras de Silhara sussurraram em sua mente. — Eu não te amo.
Suas mãos se enrolaram em punhos. Maldito seja! Ele a olhou nos
olhos com aquele olhar frio e sardônico e virou as costas para a
chance de sobrevivência com aquelas palavras.
— Mentiroso, — ela estalou e correu pela porta.
O grito de Bendewin de — Espere! — Foi ignorado. Martise correu
pelo jardim em direção aos estábulos próximos. Tropeçou com a
visão de um criado que levava uma figura familiar através da estrada
de carro empoeirada até o portão de trás.
— Gurn! — Exclamou.
Agradeça aos deuses. Em sua miséria sobre o destino escolhido de
Silhara, havia se esquecido de que ele planejava enviar seu fiel servo
a Prime Oriental por segurança. Gurn a encontrou a meio caminho
enquanto ela voava em direção a ele. Martise pensou que ele iria
espremer o fôlego fora dela e lutou até que ele a soltou de seu abraço.
Ele parecia abatido, seus olhos fundos e maçantes em um rosto
pálido de dor. Suspeitava que ela estivesse do mesmo jeito.
Gurn ainda a segurava em um braço enquanto gesticulava
freneticamente com o outro. Martise pegou seus dedos, parando
seus sinais frenéticos.
— Estou bem, Gurn. — Ela segurou seu amplo rosto em suas mãos e
sorriu. — Estou feliz em ver que Silhara não quebrou suas pernas
para você deixar Neith.
A expressão de tristeza de Gurn enfureceu-se. Ele rosnou baixo em
sua garganta enquanto ele assinalava.
Martise suspirou. Ser forçado era quase tão ruim. Ligado pela força
da magia e resistindo a cada passo do caminho, Gurn deixara Neith
com Cael. Um pensamento lhe ocorreu. —Silhara colocou algum
encanto proibindo você de voltar para Neith?
Ele assentiu com a cabeça, olhos azuis reluzindo de curiosidade.
Ela baixou a voz para quem estava próximo não escutasse. — Acho
que posso salvar Silhara, mas preciso roubar um cavalo.
As palavras mal saíram da boca antes de puxá-la para os estábulos.
Combinou o passo de Gurn. Quando chegaram às portas do
estábulo, puxou seu braço. Ele fez uma pausa, os olhos brilhando
com fogos esperançosos. — O mestre do estábulo ou um dos
meninos podem estar lá. Você vai ter que os distraís enquanto eu
pego o cavalo. Eu suspeito que seu tamanho seja distração
suficiente, e tal talento nunca foi meu.
Entraram nos estábulos, espantando pombos que voavam para as
sombrias vigas em um frenético farfalhar de asas. Dentro, o ar era
quente e pungente com o cheiro de cavalo e feno, couro oleado e
esterco de cavalo. Todas, exceto três baias estavam vazias, dois dos
cavalos esticaram seus pescoços sobre os portões para um olhar
mais atento aos visitantes. Um se contorceu em saudação, Martise
reconheceu a égua malhada que a carregou a primeira vez até a
Neith de Asher.
A luz perfurou a escuridão interior pela porta aberta, mas não
penetrou na escuridão do sótão ou nas barracas na outra
extremidade da fileira de estábulos. Martise olhou para os cantos
mais próximos e ouviu. — Olá? — Ela chamou. Só a malhada
respondeu com outro relinchar. Olhou para Gurn, radiante em uma
coluna cintilante de pó girando iluminada pelo sol da manhã.
Alternava observando a porta e o sótão.
— Nossa sorte está mudando. Somos apenas nós. Cumbria saiu
antes da primeira luz. Eu não ficaria surpresa se o mestre do
estábulo tenha voltado para casa para desfrutar do seu café da
manhã. Cuide da porta enquanto eu selo a égua.
O cavalo era uma criatura amistosa e sólida. Suas longas pernas
cobriam muito terreno em pouco tempo. Ela enfiou o nariz no braço
de Martise, bufando de prazer quando a ação lhe deu um rápido
arranhão atrás das orelhas. Martise a tinha encurralado e selado e
estava a conduzindo para fora da tenda quando o rangido da porta
do estábulo soou um aviso.
Martise congelou e olhou sob o pescoço da égua. O mestre do
estábulo, um homenzinho, grisalho, com um pouco de cabelo branco
e pedaços de ovo na barba, olhou fixamente para ela
acusadoramente. Ele teve tempo apenas para uma única respiração
antes que uma mão gigante sair da escuridão e o segurar. O homem
desceu com um baque em meio a uma nuvem de poeira e palha.
Martise olhou fixamente para Gurn, quando saiu de seu canto oculto
e se inclinou para colocar os dedos contra a garganta do homem
caído.
A ideia de distração de Gurn não era tão sutil quanto a dela. Martise
estremeceu. — Ele está morto? — Ela perguntou em um sussurro
alto e respirou um suspiro de alívio quando Gurn sacudiu a cabeça.
Ele assinalou a ela para se mover e lançou o homem inconsciente
sobre seu ombro como se não fosse nada mais do que um saco de
grãos meio vazio. Martise girou sobre as costas da égua e trotou-a
até a entrada. Estendeu a mão para Gurn e apertou brevemente a
mão estendida.
— Amarre, amordace ele se você precisar, então saia daqui. Você
cavalgou Gnat para Eastern Prime? — Ele assentiu. — Bom. Eu vou
montar essa égua com força. Gnat não será capaz de acompanhar,
mas você pode me encontrar no Ferrin's Tor mais tarde. — Gurn
franziu o cenho, sua mão cortando o ar. Martise sacudiu a cabeça. —
Não, Silhara só colocou os encantamentos contra você para Neith.
Não há magia que o impeça de ir ao Tor.
Seus olhos se iluminaram. Ele sorriu e bateu a égua no traseiro.
Martise agarrou um punhado de rédeas e uma grossa crina, segurou
enquanto o animal galopava para fora do estábulo.
Eles fizeram isto através do portão e no coração da cidade sem
incidente. Martise abrandou o cavalo para caminhar, guiando-a pelo
caminho sinuoso de ruas estreitas manchadas de lodo e repletas de
lixo.
Apesar da ânsia da égua de esticar suas pernas em uma corrida
mortal, Martise manteve-a sob controle uma vez que deixaram a
cidade para as planícies abertas. Reprimiu o impulso de ceder à
impaciência do cavalo, frenética para alcançar o Tor. Cavalgar com
força não significava cansar o cavalo até o chão, isso não a levaria
para longe. Não seria de muita utilidade para Silhara se a égua
desabasse de exaustão, deixando-a a pé o resto do caminho para o
Tor, ou esperar Gurn e Gnat.
Milhas de grama alta voaram por elas enquanto galopavam para
oeste em direção ao monte sagrado. Parou duas vezes para
descansar a égua e beber dos riachos que esculpiram caminhos
sombreados dos picos nevados de Dramorin até a costa sul, pegou
um punhado de frutas de uma ameixeira. Lembrou-se de outro
quente dia de verão, quando descansou sob a sombra de uma
ameixeira frondosa e admirou o beijo do sol na pele bronzeada de
Silhara.
Martise sabia que estava perto do Tor mesmo antes de avistar suas
encostas íngremes na distância. Luz de obsidiana esfaqueava o céu,
deixando feridas irregulares no azul e espirrando as nuvens em uma
luminescência oleosa. Enquanto se aproximava, a égua começou a
tremer. Seus cascos bateram no chão em protesto, ela se levantou
quando Martise bateu seus calcanhares em seus lados para
persuadi-la para a frente.
Mais perto do céu, se tornara uma noite falsa. Nuvens negras, feias
e ameaçadoras, surgiram acima, apagando o disco carmesim do sol
enquanto ele navegava mais baixo no horizonte ocidental. Um vento
alto e agudo serpenteava pela planície, curvando a grama enquanto
se aproximava deles. O cavalo sacudiu a cabeça, gritando de pânico.
Martise lutou para segurar seu assento enquanto as rédeas saíam de
suas mãos, quando a égua se afastou.
O céu inclinou, obscurecido por suas saias e o chicote de capim-azul.
Martise caiu da sela, batendo no chão empoeirado o suficiente para
balançar os dentes. Uma dor pungente acompanhava o gosto de
sangue do ferro, onde ela mordeu a língua. Os cascos da égua batiam
como uma tatuagem marcando o solo, enquanto corria para a
segurança.
— Maldição... maldito, maldito! — Martise cambaleou em seus pés,
doloridos da queda e da longa viagem. Cuspiu sangue e enxugou
suas saias. O vento uivava sua raiva, queria uivar com ele. Tão perto.
O Tor estava à vista – apenas alguns minutos a cavalo, uma boa meia
hora a pé. O medo de morrer era um ponto discutível agora. Se
conseguisse sobreviver ao ritual com Silhara, Cumbria a mataria por
ter perdido seu cavalo.
Ela pulou para fora, para o Tor, lutando contra a tempestade mágica
que destruía seu pico. O vento rasgou suas roupas, secou seus olhos.
Na base, descobriu os cavalariços e seus cavalos reunidos dentro dos
limites protetores de um círculo de guarda. Nenhum olhou para ela,
seus olhares aterrorizados se fecharam na coluna giratória de luz,
em jato, que irrompia da coroa do Tor.
Se afastou dos empregados, com cuidado para não chamar a atenção
para si enquanto subia a colina.
A subida foi mais íngreme do que parecia e muito mais traiçoeira. A
magia fluindo do topo congelou o relvado circundante,
transformando a face do Tor em um escorregadio de gelo e lama.
Martise gritou maldições enquanto escorregou com o pé duas vezes
e deslizou para baixo no declive. Limpando a lama de suas
bochechas, arranhou seu caminho para cima em mãos dormentes e
joelhos molhados.
Sem fôlego e tremendo de frio, alcançou o topo e desabou contra
uma pedra em pé. O quadro diante dela a enviou correndo atrás da
pedra.
As pedras, sentinelas antigas levantadas pelas mãos não muito
humanas de uma raça desaparecida, cercaram o pico do Tor em uma
coroa de granito. Dentro de seu anel, uma dúzia de sacerdotes do
Conclave confrontava o tornado negro em seu centro. Reduzidos a
espelhos pálidos, de olhos ocos, oscilavam no redemoinho uivante,
lanças de luz carmesim disparando de suas palmas levantadas para
prendê-las à manifestação terrena da Corruption. Cumbria estava
entre eles, com os olhos arregalados e vidrados pelo ritual mágico.
Martise cobriu a boca e gemeu. Treze magos lutavam contra a
Corruption neste lugar alto e antigo, doze dentro do círculo, um
dentro da própria tempestade. Silhara estava dentro do centro do
redemoinho. Ela viu apenas flashes de seu rosto áspero, encobertos
pelo giro de nuvens, magro e despojado de sua humanidade pela
plena posse do deus. Ele parecia mais alto do que antes, igual à
altura de Gurn, e seus olhos eram do mesmo preto reptiliano que
haviam sido quando ele a atacou em Neith. O vento não o tocou, ele
observou os esforços dos sacerdotes com um meio sorriso de triunfo
gelado. O Mestre dos Corvos tinha se tornado completamente um
escravo de Corruption.
O desespero e a raiva se misturaram com o medo, diminuindo-a de
modo que abandonou a segurança da pedra e entrou no perímetro
da reunião no ritual. Seu dom surgiu dentro dela, hostil,
desesperado para engajar a força malévola preenchendo o espaço
dentro do anel de pedras.
Martise se aproximou lentamente de um dos sacerdotes, uma
mulher que reconheceu de seus anos no Conclave. O bispo nem
sequer se contorceu quando ela tocou seu braço. Relâmpagos de
magia dispararam através dos dedos de Martise, quentes e afiados.
Seu Dom se agitava em resposta, batendo contra sua vontade. Ela
segurou, passando a mão sobre o antebraço da mulher até alcançar
a cascata de luz escarlate que derramava de sua palma.
A luz que ligava os sacerdotes ao deus era o caminho para Silhara.
Martise deu um suspiro trêmulo, olhou para seu amante preso no
redemoinho e tocou o riacho carmesim.
Seu dom socou através da barreira de seu controle, enterrou garras
etéreas no caçador de mago e arrancou sua alma ao longo, enquanto
corria em direção a uma pilastra de obsidiana cintilante.
As cores – amarelo esmeralda e nacarado, prata e ferrugem – caíram
sobre ela em um caleidoscópio louco. Martise ofegou com o ímpeto
do vento, a sacudida agonizante de seu espírito se separando de seu
corpo quando seu Dom atingiu o pináculo preto e quebrou a parede.
Bateu em algo suave com um baque abafado. Nenhuma dor se agitou
pelo braço ou pelas costas. Ela rolou e saltou para seus pés. A lama
fria manchada no rosto e as roupas tinham desaparecido. Ela estava
em uma praia, mas uma praia diferente de qualquer uma existente
no mundo vivo. A areia cinzenta flutuava sobre seus pés, brilhando
como cinzas e cheirando a piras funerárias. Atrás dela, penhascos de
rochas desgastadas alcançavam uma noite interminável iluminada
apenas por doze estrelas vermelhas. Um oceano se estendia diante
dela, ondas negras caindo em direção à costa silenciosa.
Este era um lugar morto, uma prisão de memórias desaparecidas,
vida sem vida, da eternidade que passou sem a medida dos dias.
Uma quietude sem alma que se devorava, como uma serpente
engolindo sua cauda. Ela estava na barriga do deus e em algum lugar
nesta prisão miserável estava Silhara.
Acima dela, os doze pontos de luz brilharam no céu sem lua. O mar
plano que rolava um horizonte desaparecendo subitamente dividido
em ondas agitadas. Martise vislumbrou uma forma arqueada e uma
enorme barbatana dorsal, mais alta do que uma torre de um templo,
antes de afundar nas profundezas. Algo nadava nas águas mortas,
algo titânico que se agitava com fúria. As ondas se elevavam, mais
altas que as paredes do castelo. O canto dos antigos feitiços encheu
o ar pesado e foi respondido por gritos e risos.
Pelo canto do olho, vislumbrou um afloramento de rocha que se
erguia da água, não muito longe da costa. Uma figura, mostrada em
silhueta com a luz das estrelas vermelhas, sentou-se sobre a rocha e
viu as ondas caírem aos seus pés.
— Silhara! — Martise gritou seu nome e saltou com o eco
fantasmagórico de sua voz, que saltou fora dos penhascos em jato
atrás dela. Ela prendeu o fôlego quando a água de repente bateu,
deixando um rastro de picos brancos quando a coisa na água
acelerou para a superfície.
Ela correu ao longo da borda da costa, seguindo o trajeto do leviatã,
até que enfrentou o poleiro rochoso de Silhara no santuário da costa.
Ele não olhou para ela, mas olhou para o horizonte distante.
— Silhara! — Ela gritou mais uma vez, ele se virou o suficiente para
lhe dar um olhar entediado. Martise gesticulou freneticamente. —
Nade para a praia, Mestre!
Este Silhara era a alma do homem ainda não reclamado pelo deus.
Ele a observava com olhos humanos, olhos cheios de uma
determinação dura, uma aceitação de sua própria morte. O sorriso
amargo que lhe dava era pungentemente familiar.
— Não foi o suficiente você queimar meu bosque até o chão,
Corruption? Você me torturaria com essa ilusão? — Como a de
Martise, sua voz ecoou nas profundezas da prisão do deus. Ele se
afastou dela.
Martise fechou os olhos por um momento, uma dor simpática
alojada em seu peito. A possessão disposta não era suficiente. O deus
o punira destruindo o que mais significava para Silhara – suas
árvores. Tal crueldade mesquinha falava de seres inferiores indignos
de uma oração, muito menos de adoração. O ódio por Corruption a
abalou.
Aterrorizada até os ossos, pelo que seu futuro imediato mostrava,
ainda estava feliz por estar aqui com o homem que escolhera sua
vida acima da sua. Ela o amava. Ele valia a pena morrer por isso.
— Mestre — chamou. — Não sou uma ilusão.
Silhara a ignorou. Martise fechou as mãos em punhos e grunhiu sua
frustração. Maldito o bastardo teimoso, ele a faria nadar até ele.
Ela tirou os sapatos e enfiou a bainha de seu vestido no cinto. A água
lambia seus pés, nem fria nem quente. Ela tinha apenas uma
sensação de umidade oleosa, como se a maré fosse de sangue em vez
de água na costa. Este mar não tinha cheiro de sol ou sal ou peixe,
provavelmente nunca lançou um navio em suas águas ou tinha nada
além do leviatã a nadar nas profundezas. Tomando fôlego, Martise
entrou, certo de que ela entrou em um sarcófago líquido.
Ondas negras atingiram seu rosto enquanto nadava pela rocha. Ela
manteve a boca bem fechada contra a água, temendo de alguma
forma engolir a essência do deus e manchar sua alma para sempre.
Algo vasto se movia abaixo dela, mexendo a corrente subaquática.
Martise sentia sua presença, uma entidade colossal que a observava
do fundo negro. Ela nadou com mais força. Neste mundo não
natural, ela não se cansou do esforço e logo alcançou o afloramento
em que Silhara se sentou, os braços apoiados casualmente sobre
seus joelhos.
— Silhara, ajude-me. — Ela estendeu uma mão. Ele olhou para ela,
irritado.
— O que você quer de mim, Corruption?
Martise bateu a mão contra a rocha escorregadia. — Pare de ser tão
estúpido! Eu não sou o deus ou uma ilusão. — Segurou mais
duramente, tentando manter um aperto contínuo, certa de que o
monstro com sua aleta imponente, estava agora mesmo se
aproximando nas profundezas, sua boca grande, com fileiras de
dentes afiados, aberta largamente para engoli-la — Porra, Silhara.
Eu sou Zafira.
O aperto de sucção da água puxou suas pernas enquanto Silhara a
arrancava do mar sem vida. Ele olhou para ela, a primeira emoção
vibrante que vira em seu rosto desde que caíra neste lugar
alternativo.
Ele deixou cair a mão como que queimada por seu toque. — Tenho
má sorte. Você descobriu o significado do símbolo muito cedo.
Sem se importar com seu estado encharcado e sua aguda recepção,
Martise o abraçou, o apertando com ferocidade. Como as águas e a
costa, ele cheirava a uma pira funerária. Podia ver suas mãos pelas
suas costas e estremeceu. Neste mundo, sua alma tinha tomado a
forma física como a dela, mas estava se desvanecendo. Como os
sacerdotes, ele estava se tornando um fantasma, drenado pelo deus
e segurando a vida com um aperto cada vez mais fraco.
Ainda assim, Martise sentiu o peso de seus braços enquanto ele a
abraçava, a ferocidade de seu beijo. Ele não saboreava laranjas ou
chá, mas de um terrível desespero. Seu Dom, acalmou uma vez que
a lançou através da barreira das realidades, despertou. Martise o
segurou, acumulou sua força. Capturou a boca de Silhara em um
beijo próprio, saboreando a sensação dele em seus braços.
— Mulher tola — ele sussurrou contra seus lábios. — Você fez isso,
sem sentido.
A aprendiz retornou. A voz da Corruption, zombando e cheia de
malícia, trovejava sobre as ondas.
— Não tem sentido — disse ela. — Sobreviver — ela quis dizer mais,
mas Silhara de repente agarrou em seu abraço, convulsionando
quando uma lança de luz vermelha das estrelas distantes o atingiu.
Seus olhos rolaram para trás em sua cabeça, abrindo a boca em um
grito silencioso. Martise gritou com ele, lutando para mantê-lo ereto
quando seus joelhos se dobraram. A criatura sombria que surfava
debaixo das ondas bateu uma enorme barbatana contra a rocha e o
uivo furioso de Corruption a ensurdeceu.
Martise baixou Silhara para o chão molhado, segurando-o como
uma criança. Bursin! A força dos sacerdotes e seus feitiços. Eles
atacaram como um, jogando toda a sua força contra Corruption e o
mago que o mantinha em um corpo crescendo frágil com a tensão.
Se esse tempo e o mundo permitisse, teria chorado quando Silhara
abriu os olhos. Todas as estrelas ausentes da falsa noite brilhavam
em seu olhar negro.
— Eu amaldiçoei o dia que você veio a Neith. — Ele virou seu rosto
em sua mão, beijando sua palma. — E amaldiçoo o dia que você
partiu.
— Deixe-me ajudá-lo. — Ela acariciou uma mecha de cabelo de sua
bochecha, o amando com seus olhos, seu toque. — Eu não quero sua
nobreza, Silhara. Não lhe convém.
Ele a encarou por um longo momento. — Você pode morrer aqui
comigo. Nem Berdikhan, nem Zafira sobreviveram.
Ela encolheu os ombros, fazendo o seu melhor para esconder seu
terror, sabendo que ele o viu em seus olhos. — Há mortes piores.
Silhara a puxou para baixo e beijou-a novamente. Desta vez, Martise
provou a essência amarga da magia na batalha. Os sacerdotes
continuariam a dizimá-lo. Contanto que prendesse o deus e fosse
prendido por ele, o Conclave atacaria até que a Corruption caísse e
seu Avatar caísse com ele.
— Eu não te deixei morrer em Iwehvenn, — disse ela. — Não vou
fazer isso agora.
Sua boca sensual, diluída com dor, curvado em um sorriso raso. —
O que aconteceu com aquele rato triste, a sombra de uma mulher, a
primeira, que veio a Neith e saltava com sua própria sombra?
— Eu te amo agora. — Martise acariciou sua bochecha. — E eu ainda
salto com minha própria sombra.
A luz carmesim choveu sobre o mar. O afloramento estremeceu
abaixo de Martise e Silhara, quando o monstro na água bateu contra
a rocha em agitação. Silhara lutou em seus braços. Martise o ajudou
a ficar de pé, segurando seu peso enquanto cambaleava.
— Estou morrendo — ele murmurou.
Martise envolveu seus braços em torno de sua cintura e olhou
fixamente em seus traços desenhados. Seus olhos escuros, acesos
com estrelas momentos antes, eram maçantes.
— Então faça isso parar — ela lhe suplicou. — Me use. Use meu dom.
Eu não fiz seu sacrifício fútil. Não faça do meu Dom um desperdício.
— Ela curvou sua palma contra sua bochecha. — Deixe-me te amar
neste momento. Será suficiente.
Silhara riu, um som profundo e oco. — Não, Martise de Asher. —
Uma nuvem de luz sangrenta banhou-o em um brilho macabro. Suas
mãos em seus ombros apertaram. — Eu sou um homem ganancioso.
Poderíamos viver mil anos mais do que este deus retorcido, e ainda
assim não será suficiente.
Ele inclinou-se para ela, brincou com seus lábios. — Abra para mim,
bide jide. Me deixar entrar.
Martise estremeceu de medo e riu de alegria. Seu Dom, quebrando
contra as portas de sua vontade, se libertou, correu para o homem
em seus braços em uma onda de luz viva âmbar. Ela caiu na
escuridão.
Capítulo
Vinte e
Três

Ela morreria em seus braços, por sua mão. Silhara se aproximou de


Martise e reivindicou sua alma disposta, a acumulou dentro de seu
próprio espírito frágil e furioso contra o deus por suas ações. Este
não era um acasalamento, mas uma possessão, vil e parasita. O
controle do deus sobre ele era limitado, onde a parte mais poderosa
de seu ser permaneceu intocada. Silhara não só possuía Martise, ele
a consumia. Ele quase a deixou cair, recuando ao pensar no que
estava fazendo com a mulher que o salvara, não uma, mas duas
vezes.
Aquela garota simples e despretensiosa segurava um Dom mais
poderoso do que cem sóis, um Dom passando por ele como um vasto
rio desimpedido. Ele tinha aceitado o que ela oferecia porque havia
oferecido algo que nenhuma outra pessoa lhe tinha dado –
esperança. Seu Dom se reuniu sob uma força, como uma boia,
enchendo sua alma de modo que já não via o mar, ou as rochas
através de suas próprias mãos. Já não sofria com a força do
espancamento da posse do deus ou o ódio único dos sacerdotes.
As águas rugiam ao redor deles enquanto a criatura no fundo agitava
a rocha, enviando pedras quebradas caindo nas ondas. As estrelas
acima, manifestações dos sacerdotes, brilharam, convergindo sua
magia em preparação para atacar o deus mais uma vez.
Silhara olhou para o rosto calmo de Martise, seus olhos fechados.
Neste lugar sujo, ela brilhava suavemente, com uma aura de luz
âmbar. Ele a amava até a loucura, a obsessão e até o sacrifício. Ele
não era Berdikhan, não a faria Zafira. Ele a roubaria de seu Dom,
mas ela viveria. Se ele tivesse que destruir Corruption, o Conclave,
ou a ele mesmo, ela viveria.
Ele consumiu seu Dom como um homem faminto em um banquete.
A repentina agonia de estar arrancando sua espinha o fez gritar. Os
sacerdotes lançaram contra eles o seu poder combinado, através
dele, para o deus. Apesar da agonia, Silhara agarrou seu poder, o
canalizou, o fortaleceu, o aperfeiçoou, até que a magia pulsou em
sua mão, um dardo ardente. Ele jogou a lança nas ondas, arpoando
a sombra negra ondulando logo abaixo da superfície. O choque de
Corruption, seu repentino terror, os açoitaram com tanta força
quanto o ataque dos sacerdotes. Uma pulverização de água viscosa
disparou para o céu quando a criatura se lançou das ondas em um
arco convulsivo – uma coisa grande, parecida com uma enguia, com
escamas escuras e escorregadias, cuja cabeça sem olhos se erguia
sobre eles. A boca aberta, perfurada pela lança magica que Silhara
criou, era larga o suficiente para engolir a lua.
Corruption se retorceu no ar enquanto se precipitava para Silhara.
O mago invocou um feitiço de escudo, usando a força residual da
magia de Conclave e o fluxo incessante do Dom de Martise. A enguia
bateu contra o escudo do mago antes de cair na água, enviando um
maremoto alto como um pico rochoso para a costa sem vida.
O deus gritou sua raiva. —Fui traído! —
Os sacerdotes do Conclave inundaram o oceano em luz carmesim.
Silhara, triunfante e cheio de dor, riu. — Você não acredita, — ele
gritou.
O leviatã agitou as águas em pânico crescente. —Você é meu Avatar!

Silhara sorriu com um sorriso sombrio. — Eu sou sua ruína e seu
carrasco.
Um súbito silêncio caiu ao redor deles e o mar se tornou achatado.
A voz de Corruption sussurrava compreensão e malícia. —A
Aprendiz. —
Silhara abraçou o corpo fraco de Martise, estremecendo com sua
leveza, sua pele translúcida enquanto sua força vital se desvanecia
com a diminuição de seu Dom. Ele não podia mais esperar. O deus
agora conhecia a fonte de sua maior força. — Minha mulher, — ele
sussurrou. — Minha arma.
Mais luz sacerdotal brilhou, Silhara a agarrou, tecendo uma teia
inquebrável, pois não só drenava Martise, como também os
sacerdotes. Uma nebulosa escuridão surgiu do horizonte
desaparecido e subiu sobre a superfície do oceano em sua direção.
Silhara se preparou, sabendo que o deus havia transformado toda a
sua vontade e poder sobre ele. Para destruir Martise, destruí-lo e
libertar-se da prisão de sua própria posse.
Silhara apertou os dentes quando a escuridão o atingiu. Garras
invisíveis raspavam sua pele. Não conseguia ver nada, só ouvia a
cacofonia dos gritos e gritos dos demônios quando Corruption se
esforçava por eliminá-lo. Silhara lutou para trás, amarrou o deus em
cadeias etéreas e feriu a escuridão que começou a sangrar. Um
último sussurro gritava em suas orelhas antes que a nuvem negra se
quebrasse como vidro e explodisse em uma chuva de estilhaços
obsidiana. O Mestre dos Corvos desmoronou.
Acordou de costas, com uma visão de perto do rosto franco de Gurn
e os olhos cheios de lágrimas, olhando para ele. Uma frieza úmida
penetrou em suas costas e pernas. Os gemidos quebrados do
sofrimento e da angústia o levaram à plena consciência. Tentou
falar, mas só conseguiu dar um sorvo de sangue. Gurn rodou-o
gentilmente para o lado para poder cuspir.
— Martise. — Ele lutou para respirar. — Gurn, encontre Martise.
O gigante acariciou os cabelos úmidos da testa de Silhara e assinalou
antes de partir. Silhara permaneceu de lado. A umidade incômoda
era a grama abaixo dele, enlameada e quebradiça com geada
derretida. De onde se amontoou, viu formas brancas e surradas
esparramadas no chão. Os sacerdotes jaziam ao redor dele, suas
vestes, uma vez intocadas, agora manchadas com sujeira e sangue.
Alguns se contraíram e gemeram. Outras ainda estavam
ameaçadores.
Sua visão se desvaneceu, entrecerrou os olhos, desesperado por ver
outra forma – pequena e vestida de lã marrom – entre a reunião. —
Por favor, — ele orou sinceramente pela primeira vez em sua vida.
— Deixe-a estar viva.
Sua oração foi respondida quando um par de sapatos incrustados de
lama e uma bainha suja encheu sua visão. Martise caiu de joelhos ao
lado dele. Tão suja e ensanguentada como ele, ela olhou para ele
como Gurn tinha feito, olhos grandes e cheios de lágrimas, mas
exultante.
— Você conseguiu, — disse ela. Sua mão deslizou sobre seu rosto em
uma carícia leve de uma pluma. — Você derrotou um deus, Silhara.
Ele a puxou para baixo e rolou para que ela descansasse em cima
dele. Cada músculo e osso em seu corpo gritavam em protesto, mas
ignorou a dor. Ela estava congelada, enlameada e abençoadamente
viva. Segurou seu rosto em suas palmas e beijou-a profundamente,
sem se importar com o gosto de sangue. Assim fez ela, que devolveu
seu beijo com um fervor desesperado, varrendo sua língua em sua
boca e chupando seu lábio inferior.
Lágrimas pintaram faixas de prata em suas bochechas sujas quando
finalmente se separaram. — Eu vou dar tributo aos deuses todos os
dias no templo. Você é um herói, não um mártir.
Ele bufou seu desdém. — Eu não sou e quero ficar assim. Pegue o
seu crédito. Sem você, eu não teria vivido para cantar a derrota de
Corruption.
Martise enxugou um fio de sangue por baixo do nariz. — Estou feliz
que acabou.
Silhara não podia concordar mais. — Você pode convocar seu dom?
Ela franziu a testa, fechou os olhos por um momento, depois os
abriu. Seu sorriso irônico contou sua história. — Não. Ele se foi.
Ambos sabiam que esse seria o resultado, no caso de sua magia
única, esse resultado era uma bênção. Ainda assim, ele se lembrou
da emoção em seus olhos quando seu Dom se manifestou e ficou
triste pela sua perda. Ele acariciou suas costas. — Você acreditaria
em mim, se dissesse que sinto muito?
Martise passou o dedo sobre o lábio antes de beijar o local que ele
havia acariciado. Nenhuma condenação obscureceu seu olhar. —
Sim. Mas por que se arrepender? Meu sacrifício não é maior do que
o seu. Eu estou livre de outro jugo, tenho vivido minha vida até agora
sem tal poder. Vou fazê-lo novamente. E você está aqui. Inteiro e
não foi derrotado. Eu estou feliz com isso. — Ela o beijou novamente,
seu olhar segurando uma dor como a dele. — Eu ouvi você na praia.
Sinto muito pelo seu bosque. Corruption exigiu um castigo terrível.
A angústia subiu dentro dele, apesar de suas atuais circunstâncias
fortuitas. Seu bosque. O coração de Neith, uma vez o coração dele.
Até Martise. O pensamento aliviou sua tristeza. Ele esfregou a ponta
da trança entre o polegar e o indicador. — Ele não tomou o mais
importante para mim.
Seus olhos brilhavam, quase tão escuros quanto os dele nas sombras
da verdadeira noite. — Eu te amo, — ela sussurrou.
Ele a abraçou, beijou-a e inalou seu cheiro, quase escondido sob os
cheiros pungentes de lã úmida e sangue. Corruption não a tinha
tirado dele, mas Cumbria o faria. Não por muito tempo. Não, se ele
tivesse uma palavra a dizer.
Gurn fazia sombra sobre eles, se ocupando visivelmente de observar
as estrelas. Olhou para baixo quando Silhara levantou a mão. O
servo os ajudou a ficar de pé. Seus olhos estavam vidrados de
lágrimas, mas deu um sorriso iluminado a Silhara e assinalou.
O mundo inclinou-se em seu eixo enquanto Silhara cambaleava. Seu
estômago se agitou. Queria vomitar, suas roupas estavam
encharcadas e frias. Todas aquelas coisas empalideceram diante da
óbvia felicidade de Gurn. Ele bateu no braço do gigante e deu-lhe
uma carranca fingida. — Merda, servo desobediente como sempre.
Pensei ter colocado um encanto contra você.
Mais sinais e Martise piscou inocentemente, quando Gurn apontou
para ela. — Sua magia o impediu de voltar a Neith, não ao Tor.
Desta vez, o cenho de Silhara era genuíno. — Normalmente não sou
tão descuidado.
Servo e aprendiz ambos encolheram os ombros. — Você estava
distraído — disse ela.
Mais gemidos dos sacerdotes sobreviventes, juntamente com o
gemido de cavalos e o chocalho de carrinhos com os cavalariços do
Conclave começaram a subir para ajudar seus senhores.
Ele estava sem tempo. Mesmo com seu Dom agora extinto, o
Conclave nunca poderia saber que Martise estava aqui. Nenhuma
mentira, por mais habilmente dita, convenceria os sacerdotes de que
ela viera como uma espectadora, se a vissem de pé com ele. Eles
sentiram a mudança em sua força, a sensação da marca de uma
magia poderosa que não era a sua própria. Ele desprezava os
clérigos, mas nunca os subestimava.
Doía com a necessidade de manter Martise próxima, de roubá-la. De
volta à Neith onde governava incontestavelmente e poderia
defender seu direito de mantê-la. Mas mesmo ele não conseguia
quebrar a corrente que a ligava a Cumbria. Ela tinha que voltar.
— Saia daqui Martise — disse ele com uma voz áspera.
Perplexa por sua repentina mudança de humor, ela o olhou.
— Eles não podem encontrá-la aqui. Ninguém pode saber que você
participou do ritual. Os sacerdotes sentiram o fortalecimento de
minha magia, mas não sabem por quê. Se você ficar, eles vão.
Ela balançou a cabeça, afastando-se como se para impedi-lo de
forçá-la fisicamente pela encosta. — Eu não posso deixar você aqui.
E se os sacerdotes...
— Eu tenho Gurn para me proteger, eles não são mais fortes do que
eu sou no momento. Posso me defender se for preciso. Graças a
você. — Ele se virou para seu servo, evitando seu olhar de simpatia.
— Coloque-a ali e não deixe que os criados a vejam também. Se você
tiver que matar um deles para roubar um cavalo, faça-o. — Gurn
assentiu e tocou uma adaga na bainha do cinto.
Martise estava de pé diante dele, as mãos enterradas em suas saias,
sua boca tremendo. —Por favor, — ela murmurou.
Ele não se atreveu a confrontá-la, não se atreveu a chegar muito
perto. Se o fizesse, ele não a deixaria ir. Suas palavras seguintes o
cortaram como facas, ele sangrou por dentro. — Você não é minha,
— ele disse em uma voz suave. — Vá para casa, Martise... de Asher.
Capítulo
Vinte e
Quatro
— Eu a vendi.
As palavras pareciam trovejar nos ouvidos de Martise. Ela ficou
boquiaberta para Cumbria, sentado em frente a ela, entronizado
atrás de sua mesa. Os dois meses que se seguiram à derrota da
Corruption não foram bons. O grande e altivo bispo que ela servira
por quase toda a sua vida, estava caído nos dias de hoje, mais fraco
em corpo e espírito. Mas seus olhos eram tão duros, como vidro e
sem emoção como sempre.
O coração de Martise bateu contra suas costelas. Fora convocada
aqui por um servo entediado e não pensou nisso. Cumbria
frequentemente a convocou ao atribuir tarefas de transcrição ou
espionagem menor aos sacerdotes que vieram visitá-lo. Ele a tinha
surpreendido com sua declaração.
Ela apertou as mãos atrás dela para ocultar seus tremores. — Sinto
muito, Vossa Graça, — disse ela suavemente. — Eu não entendo.
O riscar de uma agulha ocupada acentuou o silêncio, enquanto
Cumbria voltou a rabiscar uma pilha de documentos diante dele.
Não olhou para cima quando respondeu. — O que há para não
entender? Me ofereceram um bom preço por você. Um que eu não
posso recusar. — Ele disse o último em tons ácidos. — Você vai
arrumar suas coisas e sair hoje. Um dos meus acompanhantes irá
escoltá-lo até Ivenyi. Uma caravana levará o resto do caminho. Sua
pedra espiritual já está com seu novo mestre.
Martise caiu de joelhos. Em algum lugar lá fora, sua pedra espiritual
repousava nas mãos de um mestre desconhecido. Ela desejara estar
livre da escravidão de Cumbria, mas não assim.
Sua voz tremia. — Por favor, Mestre. Eu imploro, deixe-me ficar.
Asher é minha casa. Certamente, ainda sou de algum uso para você.
Cumbria mergulhou sua pena em um pequeno tinteiro, impassível
por sua súplica. — Você tem outra casa agora, eu sempre posso
encontrar alguém com habilidades semelhantes às suas. Talvez não
seja tão bom, mas suficientemente adequado para servir meus
propósitos. — Ele finalmente olhou para ela, o aborrecimento
marcado em seu rosto duro. — Estou ocupado, Martise. Reúna suas
posses e saia.
Tropeçando em seus pés, Martise se curvou desajeitada e saiu da
sala. Inundada pelo medo de um futuro incerto, se dirigiu à pequena
câmara que partilhava com uma das donzelas de Dela-fé. O quarto
estava sufocante. Mesmo a brisa que soprava da janela aberta não
diminuía o calor que jorrava do sol do meio-dia. Os deuses lhe
concederam uma pequena misericórdia neste dia. Ninguém
testemunhou seu choro silencioso.
Sentou na beirada de sua estreita cama, olhou sem ver o remendo
de céu azul que enchia a janela. Exceto pelos anos fúteis no Reduto
do Conclave, Martise tinha vivido a maior parte de sua vida em
Asher. Conhecia os ritmos das vidas aqui, até mesmo a própria casa
grande. Como o velho galo que cantava antes do sol nascer e evitava
o machado de Bendewin ano após ano, a forma como os feixes do
telhado rangiam e estalavam na tarde de verão, com o pôs do sol ou
no ar frio, como as mulheres faziam coro ao cantar uma canção,
acompanhadas pela bofetada úmida de fibra enquanto lavavam a lã
no pátio.
Muitos dos servos a conheciam desde a infância, enquanto alguns se
dignavam a não fazer amizade com ela por causa de seu status, ainda
eram familiares, ainda conhecidos. Sentiria falta deles tanto quanto
aqueles a quem tinha se aproximado. Mesmo se tivesse conquistado
sua liberdade, teria pedido para ficar. Amava Asher. Só queria o
direito de sair se quisesse. Ainda era uma escrava e nem tinha o
direito de ficar. Levantou-se e começou a esvaziar o conteúdo do
quarto, a partir da cama.
A porta do seu quarto abriu e Bendewin entrou, com a face afiada e
polvilhada com farinha. Martise lhe deu um rápido olhar, um fungar
e continuou empurrando suas posses magras em um saco
desgastado.
— Acabei de ouvir. Por que você não me disse, garota?
Martise encolheu os ombros. — Acabei de descobrir eu mesma.
Quem te contou?
Bendewin olhou para ela, com os braços cruzados, mas um brilho
suspeito iluminou seus olhos escuros. — Jarad. Ele é quem a levará
a Ivenyi para encontrar as caravanas.
Tentando não explodir em lágrimas, Martise limpou a garganta e
dobrou um vestido em sua mochila. — Ele sabe para onde eles vão
me levar?
— Não. Eles geralmente tomam as estradas do Norte nesta época do
ano, mas isso é tudo que eu sei. — O rosto da cozinheira endureceu.
— Você pode fugir. Posso te ajudar. Ainda tenho parentes Kurman
que me devem favores depois de todos esses anos. Eles podem te
oferecer um refúgio seguro.
— De que me servirá isso, Bendewin? O bispo já transferiu a minha
pedra espiritual para o meu novo mestre. Eu estou ligada, de alma e
carne a outro proprietário. — Ela fez uma pausa na expressão
abatida de Bendewin e acariciou seu braço. — Obrigada, no entanto.
— A dor em seu peito cresceu. — Você foi minha melhor amiga, até
mãe, quando eu precisava de uma. Sentirei mais a sua falta quando
eu partir.
Bendewin acariciou sua mão desajeitadamente. — Acabe aqui e
venha para as cozinhas. Eu vou ter comida embalada para você. Eu
não gosto daqueles descansos de caravana. Eles servem pão
maggoty e carne rançosa para os viajantes. Pelo menos você sabe
que terá uma refeição decente se eu preparar.
Quando Martise entrou nas cozinhas, encontrou uma pequena
multidão de pessoas que esperavam por ela. Ela foi abraçada e
chorou, abençoada com protetores e um pequeno feitiço de mau
cheiro. Bendewin lhe entregou uma pesada toalha amarrada em um
saco, que se abaulava por todos os lados.
— Há enjita lá, junto com um pouco de frango, algum queijo e alguns
ovos. Também ameixas e um frasco de vinho de damasco. — As
sobrancelhas de Martise levantaram-se no último. Bendewin
fungou. — O bispo tem três barris do material. Ele não vai sentir por
perder um copo ou dois. Aquele velho lhe deve muito.
Martise abraçou Bendewin uma última vez. A mulher a levara,
ensanguentada e meio consciente, para seu quarto, cuidando dela e
guardando o segredo de sua jornada. Ela até conseguiu subornar o
mestre do estábulo para não falar do incidente no celeiro, apesar do
ovo de galinha que ele usava no lado da cabeça do golpe de Gurn.
Bendewin a empurrou gentilmente para fora da porta da cozinha.
Jarad esperou no pátio com dois cavalos, um a égua malhada.
Martise sorriu levemente e acariciou a égua no pescoço. — Que bom
vê-la de novo, moça.
O passeio a Ivenyi era curto e quieto. Jarad ficou em silêncio, exceto
para perguntar uma vez se precisava de água ou de um descanso.
Quando chegaram à aldeia, ele a ajudou a sair da égua, descarregou
suas mochilas da sela e se despediu dela.
Nada mais do que uma parada de descanso empoeirada para
caravanas comerciais, Ivenyi ferveu no calor da tarde. Martise
estava de pé diante de uma casa de repouso enfraquecida, em meio
a um círculo de carros e carrinhos pintados de cores vivas,
carregados de todo tipo de mercadorias. Os comerciantes, um grupo
nômade formado por pessoas de todos os clãs, tribos e cidades, se
misturavam, alguns se acotovelavam em grupos para trocar, outros
atiravam enquanto esperavam que seus compatriotas terminassem
as refeições na casa ou visitassem amigos.
Três caravanas distintas lotaram o resto. Martise não tinha ideia de
qual a levaria para sua nova casa. Estava pronta para caçar o mestre
de vagões e perguntar quando o homem mais incrível se aproximou
dela. Vestido em um arco-íris de cores brilhantes, ele brilhava
enquanto caminhava a luz do sol, saltando fora dos muitos fios de
contas de gimcrack que usava. Forrado pelo tempo e pelo sol, ele
captou o olhar de olhos arregalados de Martise e segurou-o com um
o seu própio, duro, astuto.
— Você é Martise de Asher? — Ela assentiu. — Então você vai
comigo. Vou levá-la até sua carroça.
Ele não esperou para ver se ela o seguia. Martise empunhou sua
mochila, agarrou o almoço e se apressou para alcançá-lo.
— Para onde você vai me levar?
A fraca sombra de pena, nos olhos que um momento atrás estava
duro, fez seu intestino se torcer em nós. — Um lugar pouco visitado
e ninguém é bem-vindo.
Trilharam um caminho através de carros e carrinhos estacionados,
passando o nó de mulheres lotadas em torno de fogueiras que
pararam em suas conversas para vê-los passar. As crianças correram
ao redor deles, gritando e rindo no jogo. Martise se esquivou de um
cão mal-humorado, que se quebrava nos calcanhares quando
caminhava muito perto.
O mestre do vagão parou diante de um vagão de passageiros com
um cavalo cinza-pálido preso à frente. Pintado em cores desbotadas
de índigo e Borgonha, o vagão foi generosamente nomeado por
padrões da caravana. Janelas largas, permitiam uma brisa de
arrefecimento para passar pelo interior. Cortinas de brocado foram
desenhadas para trás, dando uma visão de tapetes grossos e
travesseiros espalhados para o conforto do passageiro. Este era o
transporte de uma pessoa rica.
Martise admirou o vagão e olhou para o mestre do vagão. — Por que
estamos parando?
Ele a fitou como se ela fosse idiota. — Este é o seu.
Ela olhou para ele e olhou para o vagão. Os escravos não andavam
em acomodações tão luxuosas. Na maioria das vezes eles não
cavalgaram. Sua viagem para Neith a cavalo tinha sido uma questão
de velocidade e conveniência para Cumbria, não bondade. Que tipo
de mestre gastou boa moeda em uma mera propriedade?
Martise recuou. — Deve haver algum engano.
Os sinos bateram junto quando o líder da caravana encolheu os
ombros. — Passeie nele ou caminhe ao lado dele. Significa pouco
para mim. Eu já fui pago. — Ele a deixou com outro encolher de
ombros.
Não querendo parecer tão tola como ele supôs, Martise abriu a porta
e subiu os dois degraus cautelosamente. Uma vez dentro do escuro
interior, estava cercada por uma opulência desbotada. O cheiro de
algum perfume exótico permanecia no ar. Deixou cair sua mochila e
almoçou num canto, se acomodou nas almofadas enquanto os
comerciantes da caravana se reuniam e se preparavam para partir.
Uma brisa rolou, carregando a última sugestão do mar e um toque
de perda, enquanto varria as janelas largas do vagão. A vegetações
ficaram mais altas e grossas à medida que viajavam para longe da
costa e para o interior das terras longínquas. À distância, os
Dramorins sombreavam o horizonte em uma silhueta irregular. Os
parentes de Silhara teriam começado sua descida para as planícies
para o inverno.
Lembrava de seu amante todos os dias. Martise sentia saudades
dele. Ansiava por ele até que esse anseio queimasse um fogo quente
em seu coração. Não ouvira nada dele ou Gurn desde que deixara o
Tor de Ferrin, nem esperava. Silhara era cauteloso, se Cumbria
suspeitasse que seu adversário sentia algo por sua humilde escrava,
o bispo a mataria. Qualquer coisa para fazer o Mestre dos Corvos
sangrar.
Ainda assim, o silêncio de Neith era pesado em sua mente. As
semanas haviam se arrastado lentamente. Martise perguntou se
Silhara pensava nela tanto quanto pensava nele. Não duvidava que
a amasse. Ele estava disposto a se sacrificar para protegê-la. Tal
devoção não era dada a ataques repentinos, aprendera que Silhara
era tão constante em sua lealdade e afeto como era em seu ódio.
Uma percepção súbita iluminou sua melancolia. Ela já não pertencia
a Cumbria de Asher. A menos que Silhara de alguma forma
conseguisse insultar e se tornar inimigo de seu novo mestre – e
conhecendo Silhara, isso não estava fora do campo da possibilidade
– ela poderia lhe enviar uma mensagem. Algo curto, impessoal.
Apenas para lhe dizer onde estava se quisesse saber.
Animada por seu plano futuro, cavou na comida que Bendewin
embalou para ela. Ela comeu os ovos, o pão e bebeu um pouco do
vinho. O cenário imutável, o rítmico rangido das rodas do vagão e a
potência do vinho a deixavam letárgica. Bocejando, afrouxou as
cortinas na janela, mergulhando o interior do vagão na
semiescuridão. As almofadas eram macias contra seu corpo quando
se enrolou nelas e adormeceu com a memória de Silhara colhendo
em seu bosque, o sol brilhante, refletindo em seu cabelo comprido,
escuro como as asas de um corvo.
Os sonhos a atormentavam. Imagens de sacerdotes mortos
espalhados pelo chão gelado do Tor, jogavam em sua mente. Silhara
em uma costa negra, convulsionando e curvado diante dos feitiços
dos sacerdotes e da raiva do deus. Seu Dom, sangrando fora dela em
um fluxo de sangue âmbar, deixando um vazio profundo na alma.
A batida afiada de nódulos em sua porta de vagão seguido por uma
igualmente afiada —Mulher de Asher, — estalou-a acordada.
Perplexa com a súbita parada na vigília, Martise espiou na escuridão
do vagão. A noite tinha descido enquanto dormia.
— Sim? — Ela respondeu com uma voz rouca.
— Sua viagem está no fim. Cuide de suas posses e seja rápida sobre
isso.
Martise endireitou seu vestido, alisou sua trança o melhor que pôde
e recolheu seus pertences. O mestre do vagão estava esperando por
ela quando abriu a porta. Suas feições douradas adquiriram um
aspecto medonho à luz da tocha que ele segurava. Atrás dele, a fila
de vagões esperava. Os motoristas a observavam de seus assentos
altos, enquanto mulheres e crianças olhavam por trás do abrigo de
cortinas e portas de vagões.
— Você terá de caminhar o resto do caminho, ninguém aqui vai
percorrer esse caminho, nem mesmo os cavalos.
Essa última declaração fez seu coração acelerar até que ele trovejou
em seus ouvidos. Martise se afastou do abrigo da porta do vagão. À
sua direita, o mar de grama alta balançava em uma dança
sussurrante sob a luz da lua prateada. À sua esquerda, uma floresta
negra de árvores aleijadas, agachavam na planície e sugavam o luar
em suas sombras. Um longo e sombrio caminho envolto em uma
escuridão mais profunda cortou uma linha através das árvores.
— Um lugar que poucos visitam e ninguém é bem-vindo.
Martise apertou sua mochila no peito e tentou não gritar sua alegria.
Sorriu para o líder da caravana em vez disso, rindo quando suas
sobrancelhas se arquearam. Ele deu um cauteloso passo para trás e
empurrou a tocha para ela.
— Aqui. Você vai querer isso. — Ele olhou para as sombras
contorcidas da grande avenida e assinalou uma ala protetora com os
dedos. — Que os deuses te favoreçam. Você vai precisar deles neste
lugar amaldiçoado.
Ela pegou a tocha com um aceno de agradecimento e outro sorriso
radiante. — Eles já têm.
A floresta que outrora a aterrorizava com suas árvores agarradas e
sombras escorregadias, a acolhia agora. Martise sentiu seu estímulo
sibilante, seu reconhecimento de sua presença no momento em que
pôs o pé no caminho que levava a Neith. Os assobios e os chamados,
o rolar das carroças e o ruído dos bens comerciais desapareceram ao
silêncio enquanto seguia a avenida escura para Neith. Formas
sinuosas percorriam o mato esparso, fitas fluídas de escuridão que
ficavam mesmo em seu ritmo. Ela já não os temia. Eles eram
guardiões agora, escoltas para acompanhar um de seus próprios
para casa.
Sua tocha lançou uma coroa de luz pálida em volta dela e foi engolida
pela névoa ondulante acariciando seus tornozelos. A floresta
cheirava a umidade, musgo e o odor subjacente de cinzas.
À distância, viu um vislumbre de bruxas verdes familiares, como
vagalumes estranhos, movendo-se em direção a ela.
As luzes brilharam à medida que se aproximavam, revelando
duas figuras familiares.
— Gurn! Cael! — Martise correu para encontrá-los no meio do
caminho, quase deixando cair sua tocha no processo.
Gurn a pegou num abraço feroz. Ele parecia o mesmo, um homem
gigante, com sua cabeça calva, brilhando como uma lua pálida, seus
olhos azuis escuros no brilho espectral da lua. Cael gemeu uma
saudação. Sua cauda, chicoteando, estalando de um lado para o
outro, quando Martise inclinou para abraçá-lo e coçou as orelhas
peludas.
Ela se levantou e enrugou o nariz. — Deuses, você cheira ainda pior
desde a última vez que eu vi você. Ninguém nunca vai te dar banho?
Gurn pegou a bolsa e o almoço, dando uma olhada apreciativa no
conteúdo do lenço de comida. Agarrou a mão de Martise, quase a
arrastando pela estrada em direção à mansão em sua excitação
quando chegou. Quando chegaram às portas enferrujadas que
fechavam o pátio, ela estava ofegante.
Avermelhado ao luar, Neith era como ela se lembrava, um antigo
naufrágio, ainda gracioso e imponente em sua decadência. Aqui, o
aroma de cinzas e lenha queimada permanecia no ar, fazendo a
felicidade de Martise se obscurecer.
— O bosque. Sinto, o que resta dele?
Os olhos de Gurn brilhavam de lágrimas. Seus dedos moveram em
padrões rápidos.
— Tanta coisa foi perdida aqui. — Ela assentiu com a resposta
silenciosa de Gurn. — Você está certo. Muito se ganhou também.
Ela o seguiu pelos portões e entrou na mansão, parando apenas uma
vez para um rápido olhar para o grande salão, um lugar de duras
lições e revelações ásperas. Gurn a conduziu para a escada,
assinalando que o mestre a esperava em seu quarto.
Um súbito nervosismo se misturou com a sua exaltação e ela limpou
as palmas das mãos nas saias antes de subir os degraus desajeitados
para o segundo andar. Os feitiços pairaram diante dela, conduzindo
o caminho pelo corredor preto até chegar à porta de Silhara. Estava
aberta, deslizou para dentro com pés silenciosos.
Tinha amado e sido muito amada neste quarto. Como o resto de
Neith, era um santuário da grandeza do envelhecimento, governado
por um rei feroz, indigente de poder imenso.
Silhara estava em seu lugar habitual, de frente para a janela que
levava à varanda. Usava uma nova túnica de rico veludo Borgonha.
Um fino cinto de prata e pedras preciosas circundava sua cintura
estreita. Contornado pelo brilho quente de várias velas acesas, era
magro e alto. As mãos de Martise coçaram com a necessidade de
tocar os ombros largos, orgulhosos.
Ela não estava tão silenciosa como pensava, ou ele sentiu sua
presença. Estendeu o braço, sua respiração ficou presa à visão de sua
pedra espiritual balançando da corrente entrelaçada por seus longos
dedos.
— Eu acredito que isto é seu.
Sua voz rouca ressonou na câmara, enviando arrepios pelos seus
braços. Ele fizera amor com ela com aquela voz tão habilmente como
tinha com as mãos. Ela seguiu seu chamado como um sonâmbulo,
atraído tanto para ele, como para a safira de prata que continha uma
parte de sua alma.
Ela chegou perto dele, estendendo a mão. A corrente derramou em
sua palma em uma cachoeira reluzente, a joia azul um peso morno,
pesado contra sua pele. Martise agarrou o colar com os dedos
apertados.
O perfil de Silhara, dourado ao luar que brilhava através da janela,
era inexpressivo. Ele se virou para ela, olhou fixamente muda,
esquecendo o tesouro que ela segurava. Como Cumbria, ele usava o
trauma do ritual em seu rosto. As linhas dos cantos de seus olhos
haviam se aprofundado, suas maçãs do rosto eram mais afiadas,
dando a seus traços ausentes uma aparência pálida. Mas o que
segurava o olhar dela era o cabelo dele. Uma mecha branca percorria
o comprimento do couro cabeludo até a ponta.
Martise estendeu a mão e acariciou a mecha sedosa, seus dedos
roçando sua bochecha. — Quando você conseguiu isso?
Sua boca curvou-se em um sorriso fraco. — Algumas semanas atrás.
Eu acordei uma manhã ostentando esta prova de meus anos em
declínio. Eu ainda tenho que decidir se é o resultado do ritual ou se
foi o que Gurn me serviu para o jantar na noite anterior.
— Fica bem em você. Você parece quase civilizado — brincou ela.
— Um Kurman selvagem é o que sou, — ele brincou de volta, seu
sorriso se alargou.
Ela levantou o colar. — Cumbria disse que foi feito uma oferta que
ele não poderia recusar.
O sorriso se transformou em um completo sorriso de satisfação. —
O Luminary comprou você. Uma das minhas recompensas por
salvar o mundo e tudo isso. O bispo não ousaria recusar seu
superior.
— Ele não sabia que era você.
— Não. Ele teria enforcado você em suas vigas estáveis, antes que eu
tivesse a chance de recuperá-la se ele soubesse.
Ela estremeceu. Morrer no ato de salvar um ente querido era uma
coisa. Morrer por causa de uma vingança mesquinha era outra.
Ela empurrou o colar para ele gentilmente. — Você não quer ficar
com ele?
Ele afastou a oferta com um movimento casual. — Eu guerreei com
um deus para manter minha liberdade, Martise. Por que eu gostaria
de ter um escravo?
Seus dedos fecharam sobre a joia mais uma vez, ela segurou-a contra
seu peito. — Eu nunca poderei pagar por isso. Eu poderia viver dez
vidas servindo você e não seria suficiente.
Os olhos de Silhara se estreitaram. — Não há dívida. Tirei seu dom
de você para me salvar.
— Você não aceitou nada que eu não tenha dado de bom grado. E
você me deu a minha liberdade em troca. Um sempre foi muito
maior em meus olhos do que o outro.
Borboletas voavam loucamente em sua barriga. Ele era lindo.
Ficando tão perto, iluminado pela luz da vela e pelo brilho da lua,
ele era uma estrela caída, manchada, mas não diminuída. Ela se
sentiu suja e simples em comparação.
— Por favor, diga que o Conclave lhe deu algo além de mim. Caso
contrário, isso é um mau pagamento para tão grande risco e tão
grande sucesso.
Ele encolheu os ombros. — Foi-me oferecida outra mansão ao sul,
uma que cresce azeitonas e a baronia que veio com ela – aliada ao
Conclave, é claro. — O lábio superior levantou-se um pouco de
desdém. — Eu recusei. Neith é a minha casa. Laranjas são minha
colheita. Eu negociei em ajudar, plantar e trabalhar para os
próximos dois anos. E uma bolsa gorda o suficiente para nos manter
alimentados até que eu possa começar a colher.
Seus pensamentos cambalearam. Ele pediu tão pouco. O conclave
era rico o suficiente e grato o suficiente para recompensar o Mestre
dos Corvos com qualquer coisa que ele pedisse. Uma grande
propriedade, uma frota de navios, um bispado, se ele quisesse. Em
vez disso, ele pediu uma escrava superdotada, mãos-de-obra para o
campo, laranjeiras e uma bolsa de dinheiro.
— Eu sempre pensei que você gostaria de ser um rei.
A risada baixa de Silhara a acariciou. Ele estendeu a mão atrás dela
para puxar sua trança sobre seu ombro. As pálpebras de Martise
caíram a meio mastro no suave puxão de seus dedos enquanto
acariciava seus cabelos. — Eu quero, mas de um reino de minha
escolha e eu escolho Neith.
— Não levará anos, fazer o bosque ser de volta ao que era?
— Um pouco. Eu desaprovo em usar a mágica para ter uma colheita,
mas eu não tenho nenhum escrúpulo em empregá-lo para persuadir
as árvores para a vida.
Seus dedos se afastaram de sua trança, dançaram em sua clavícula
com um toque tão leve que ela suspirou. Eles seguiram pelo centro
do peito dela, parando brevemente para descansar contra seu decote
antes de parar em sua mão segurando o colar. A escuridão de seus
olhos se aprofundou.
— Você é uma mulher livre, — disse ele. — Eu lhe darei o feitiço para
quebrar a pedra e devolver essa parte de sua alma para você. Você
será capaz de viajar pelo mundo, ver as coisas que uma vez foram
proíbidas para você. — Sua outra mão se levantou, polegar
deslizando através de seu queixo enquanto seus dedos curvaram ao
longo de seu pescoço. — Você não é mais uma propriedade.
Os olhos de Martise se fecharam e ela se inclinou para ele. Ela podia
não ser mais uma propriedade, mas ela não era livre, ele não
precisava de uma corrente ou pedra espiritual para prendê-la a ele.
Ela abriu os olhos e encontrou seu olhar negro. — E se eu quiser ficar
aqui? Com você?
A mão em seu pescoço ficou tensa, os dedos apertando sua pele. Sua
voz era quase gutural em sua intensidade. — Você tem um lugar aqui
se quiser.
Ele respirou fundo quando ela deslizou seus braços ao redor de sua
cintura e puxou-o contra ela. Eram músculos esticados e ossos
longos, a suave carícia de veludo e o aroma picante de tabaco. E ele
era dela – tanto quanto ela era dele.
Ela inclinou a cabeça para trás e sorriu para seus traços sombrios e
amados. — Um lugar como o quê? Uma serva?
Silhara abaixou a cabeça, uma mecha de cabelo branco, conquistada
por meio dos sacrifícios duros e devoção inabalável, fez cócegas em
sua bochecha.
— Uma companheira, — ele sussurrou contra sua boca. — Uma
amante. — Ele mordiscou seu lábio inferior, sua mão deslizou de sua
nuca para cobrir a parte de trás de sua cabeça. — Uma esposa
amada.
Ele provocou o canto de sua boca com toques de plumas e apertos
leve. Ela fez cócegas em seu lábio superior com a ponta de sua língua
antes de puxar para trás o suficiente para ver seus olhos.
— E você vai me amar por um dia? Um ano? Uma vida inteira? —
Ela sabia a resposta, mas queria ouvi-lo dizer naquela voz linda e
arruinada.
— Além disso, — ele sussurrou, olhos brilhando com a tempestade
de emoção que tinha mantido em cheque até agora. — Além do reino
dos falsos deuses e sacerdotes intrometidos. Além de Zafira, quando
suas estrelas brilhantes desaparecerem.
Ele a beijou então, soprou sua vida em sua boca, seu coração, seu
espírito – da mesma forma que ela tinha soprado seu dom dentro
dele, enquanto estavam dentro da alma vazia de um deus que
morria.
Martise beijou-o ferozmente em troca, segurando-o tão fortemente
que seus braços doíam, o colar que ela agarrou escavado em suas
costas. Quando se separaram, inclinou a testa contra a dele. — Isso
é muito tempo para amar alguém.
Os dedos ágeis trabalharam os laços de seu vestido, os
desamarrando com facilidade. — Não o suficiente.
— Eu ficaria feliz com hoje.
Silhara separou o decote do vestido, revelando seu peito e a pele
pálida de seus seios sob o fino tecido. Um rubor de desejo escureceu
suas maçãs do rosto, seus olhos brilhavam. A ponta áspera de um
dedo mergulhou na cavidade de sua garganta, tentando,
provocando. — Então é melhor eu começar. — O timbre de sua voz
se aprofundou ainda mais. — O dia está acabando enquanto falamos.
Martise arqueou em seus braços. — E a cama está muito longe.
Uma risada curta, pontuada por uma suave mordida no lóbulo da
orelha, a fez rir também. — Como sempre, doce mulher. Como
sempre.

Fim...

Você também pode gostar