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Dedicações
Este livro é dedicado aos meus editores, Lora Gasway e Mel
Sanders. Senhoras, sem a sua ajuda, eu nunca teria sido capaz de
escrever “The End”. Obrigada pelo seu tempo, sua paciência, suas
sugestões e acima de tudo pela sua maravilhosa amizade.
Para minha irmã, Kim Sayre, que leu quase tudo o que escrevi e foi
uma das minhas fãs mais “entusiasmada”. Obrigada, garota.
Por último, mas não menos importante, um imenso obrigada a
Louisa Gallie que encontrou o coração deste livro e trouxe-o para
a vida vívida em sua pintura impressionante Beyond Neith.
Capítulo
Um
— Renda-se a mim, Mestre dos Corvos, e farei de você o senhor dos
reinos s.
Silhara de Neith gemeu e se dobrou, apertando sua barriga. O
sangue escorria de seu nariz e pingava nas pedras desgastadas da
varanda. A voz do deus, familiar e traiçoeira, envolveu sua mente.
Paralisado sob os raios de uma estrela amarelada, se apoiou contra
o parapeito em ruínas, lutando contra um mal que os sacerdotes
acreditavam não mais existir.
O deus o seduziu, encheu sua cabeça com imagens fantásticas e
terríveis – sangue de sacrifícios acumulado em uma pedra, os
exércitos marchando por um deserto queimado pelo sol, um mar de
pessoas passando fome ajoelhadas como uma forma de adoração.
Magia surgiu através dele, um poder colossal criado do ódio.
Imparável. Aterrorizante. Estava embriagado com o conhecimento
de que os exércitos se moviam às suas ordens, que as pessoas o
adoravam a seus pés. As vítimas sacrificadas foram oferecidas ao
deus, Silhara reinava sobre tudo diante dele.
A voz cantou sua canção malévola. — Você será um imperador
incontestável, um feiticeiro inigualável.
Silhara rangeu os dentes contra a agonia que dividia seu crânio. — E
ser o servo de um deus mendigo? — Seus lábios sangraram com a
pergunta. — Eu não vou me render.
A suave risada ecoou dentro dele. — Você vai, Avatar1. Você sempre
irá.
O deus o soltou de repente, um puxão doloroso que quase sugou a
medula de seus ossos. Gritou, caindo de joelhos. As visões e a voz
desapareceram, deixando uma impureza invisível em seu rastro. O
gosto salgado do sangue queimou sua garganta, suor e urina
encharcavam suas vestes. Uma luz venenosa pulsava da estrela
amarela acima dele.
Silhara caiu no chão da varanda. — Me ajude, — suplicou sozinho.
Seu servo o encontrou horas mais tarde, quando o sol nascente
iluminava o horizonte. Silhara se pôs de pé sob as mãos firmes de
Gurn. O gigante o olhou com simpatia, apontando para o rosto do
mago. Silhara tocou seu nariz, traçando uma linha áspera, com uma
crosta do nariz a mandíbula.
— Sangue?
3 Mijo de Dragão.
4 Dotados.
Cael choramingou, recuando ainda mais quando Martise estendeu a
mão. — Vamos lá, meu grande rapaz, — ela cantarolou. — Eu não
vou te machucar. — Ela sorriu para a risada de Gurn.
Levantou devagar e soluçou. O quarto girou sobre um eixo inclinado.
Ela agarrou a borda da mesa para se sustentar. — O mestre me
mandou de volta para você, Gurn. Você deveria me dar tesouras e
uma bolsa.
Sua voz arrastava as palavras. Saíam de uma língua inchada e
grossa. O Fogo serpenteava através dela, aquecendo seu sangue.
Gurn a fez sentar e trouxe um pedaço de pão para comer. Ela piscou,
certa por um momento que havia dois pães na sua frente. Sua mão
pairou sobre eles antes de Gurn empurrar o pão mais perto, quando
ele se tornou uma peça novamente. Ela comeu devagar, ainda cheia
do café da manhã e mais bêbada do que um comerciante de vinho
no final do dia de mercado.
A porta do corredor para a cozinha se abriu para um Silhara de
cenho franzido. Parou ao vê-la. Tentou se levantar, mas a grande
mão de Gurn sobre seu ombro a segurou no lugar.
O mago tinha trançado seus cabelos e amarrado um lenço em volta
da cabeça. Ele usava roupas de trabalho mais sujas do que qualquer
coisa que ela possuía, e ela era uma escrava. Martise sorriu para ele
com admiração bêbada, apesar de seus pensamentos assassinos
sobre ele momentos antes. Mesmo vestido com sua roupa
desgastada, ele era uma figura atraente de pé ali, na cozinha de
Gurn, iluminado pelo sol. Demasiado místico para ser bonito, havia
algo impressionante em seu rosto e a maneira confiante como ele se
mantinha, como se ele governasse um reino em vez desta miserável
desculpa de mansão.
Seu sorriso desapareceu. Ele tinha acabado de colocar um demônio
sobre ela e ficou parado, com divertimento curvando seus lábios,
enquanto ela recitava feitiços vazios em um esforço inútil para parar
a gritante abominação de pular em cima dela. Oh sim, não só ela
colocaria a primeira tocha, ela também traria um carrinho cheio de
extras para compartilhar com os espectadores.
O aborrecimento puxou suas feições em linhas apertadas. — O que
você está fazendo? Você não tem trabalho para atender? Nós não
vivemos para atendê-la, Martise, não importa quão generosa é a
contribuição do bispo para os seus cuidados.
Oh, como ela queria lhe dar uma bronca, algo que iria zumbir em
suas orelhas e silenciar o desprezo que ele generosamente distribuía
a qualquer um que escutasse, mas estava muito embriagada para ter
um pensamento coerente e muito menos disputar verbalmente com
Silhara. Gurn veio em seu socorro, suas mãos se movendo em
agitados gestos rápidos demais para ela seguir.
Os olhos de Silhara se arregalaram diante da conversa silenciosa de
Gurn. — Ela virou a coisa toda? — Exasperação se juntou ao
desprezo em sua voz. — O que você estava pensando, sua idiota? —
Ele advertiu. —Provavelmente tinha o suficiente naquela xícara para
derrubar um cavalo de arado, — ele foi igualmente cortante com o
seu servo. — O que você estava pensando em dar tanto a ela?
Martise deu de ombros. Peleta’s Fire fazia mentirosos serem
honestos. — Eu estava com muito medo de pensar, — ela murmurou.
— Gurn estava apenas tentando ajudar a me acalmar.
Uma expressão assombrada passou pelos olhos de Silhara tão
rápido, que pensou ser apenas uma alucinação provocada pelo efeito
do Fogo em seus sentidos confusos. Ele franziu a testa para Gurn,
que franziu a testa em troca e fez outro gesto largo com as mãos.
— Saia, Gurn, — ele retrucou. — Eu não estou no clima.
Martise olhou para os dois homens em confusão. A conversa não
verbal entre eles estava carregada de tensão. Ela se admirou da
segurança do servo, que quase o repreendeu pela sua conduta e a
paciência do seu mestre volátil para tal comportamento. Cumbria a
teria despido e a espancado no pátio por esse tipo de insolência.
Silhara caminhou de volta por onde veio, dando ordens sobre seu
ombro quando saiu. — Faça com que ela termine o pão. Ele vai
impedir que vomite até suas entranhas. Volto logo. — Ele fez uma
pausa longa o suficiente para nivelar um olhar enojado para ela. —
Você é mais problemas do que você vale a pena. — Ele pontuou a
declaração batendo a porta com força suficiente para sacudir os
pratos e copos na pia seca do Gurn.
Focada em manter seu estômago calmo, Martise sentou calmamente
no banco e mordeu o pão. A figura alta de Gurn vacilou em sua visão
enquanto trabalhava na cozinha. Até agora, ela falhou
miseravelmente como uma espiã. Sua tentativa de se introduzir na
casa de Silhara tão perfeitamente quanto possível foi uma catástrofe.
Um pouco mais de uma quinzena e fizera nada mais do que agir
como assistente de Gurn e se submeter aos testes diários de Silhara.
Não estava mais perto de revelar alguma informação condenatória
sobre ele do que no primeiro dia em que chegou. O corvo mensageiro
de Cumbria definharia nas árvores, à espera de sua convocação, até
que suas penas ficassem brancas.
Martise deu outra mordida do pão e empalideceu com a irritação
ameaçadora em sua barriga. Cumbria podia se irritar, mas ele não
era o único lutando contra demônios, sendo incendiada ou atiradas
para o telhado da mansão sem meios para se salvar, exceto um
assistente de misericórdia questionável.
A porta que dava para o grande salão se abriu mais uma vez. Silhara
tinha retornado. Empurrou um cálice debaixo de seu nariz. — Beba
isso, — ordenou.
A taça, finamente feita de prata gravado com um complicado
trabalho de Kurman, sentia-se fria na palma da mão. Inclinou a taça
à boca e hesitou. Ao longo da borda da xícara, encontrou o olhar de
Silhara, perguntando se o que ele deu a ela foi realmente um
restaurador. Seus olhos negros brilharam com aborrecimento e um
toque de desafio.
Desgraçado infeliz. Martise meio que lamentou seu crescente
conhecimento de seu caráter. Após as sessões de tortura no grande
salão, sabia que ele não iria se preocupar a envenenando. Não havia
nenhum valor de entretenimento nisso. Estreitou os olhos para ele,
efeitos intoxicantes do incêndio dando a ela uma coragem
temporária, tomou de um gole do conteúdo do cálice.
Frio na garganta e amargo na língua, a dose apagou as brasas
quentes em sua barriga e ainda conseguiu conter a náusea e limpar
a cabeça de um só gole. Olhou para a taça e depois a Silhara,
espantada com a rapidez com que sua poção funcionou. — O que há
nesta bebida?
Seu olhar zombou dela. — Todos os tipos de pequenos males,
aprendiz. Você realmente quer saber?
— Não.
Ele pegou o copo dela. — Você se recuperou o suficiente para
trabalhar. — Ele se dirigiu a Gurn. — Quando ela terminar suas
tarefas, a leve para o bosque. — Ele saiu sem olhar para trás.
O pátio não parecia melhor do que o resto da mansão. A parede que
o cercava desintegrou em um canto, outras secções foram reparadas
com uma mistura de tijolo quebrado e pedaços de madeira. Como o
resto da região, Neith sofreu com a seca do verão e os trechos nus de
terra, espalhados pelo pátio em padrões rachados, ondulando com
lama seca. Um varal se agitava na brisa, ocultando parcialmente o
esboço de um grande cavalo que se alimentava em uma cremalheira
de feno, próximo de uma cabra preta que mascava com entusiasmo
ao lado de uma camisa secando. Uma porca e três leitões, expulsos
de seu chiqueiro por um Cael ainda mais sujo, enraizou ao longo do
perímetro do pátio, acompanhado por uma comitiva de gritos de
galinhas.
Por toda a sua aparência desorganizado, o pátio fez Martise sorrir.
Como Gurn, era um ponto de normalidade nesse estranho lugar
esquecido.
Passou o resto da manhã completando suas tarefas atribuídas.
Ordenhou a cabra, alimentou as galinhas recolhendo os ovos,
carregou baldes de água do poço para lavar e ajudou Gurn a dobrar
os lençóis limpos do varal. Somente quando Gurn sinalizou uma
pausa e indicou que ela devia segui-lo para o bosque, é que recordou
a natureza da sua missão e sua boca ficou seca.
Eles voltaram para a casa, navegando pelo labirinto de corredores
escuros até chegar à parte de trás da mansão a uma porta
envelhecida ricamente esculpida com patina preta. Martise apertou
os olhos contra a luz do sol quando Gurn abriu a porta e gentilmente
a levou para fora. Desse ponto de vista, poderia virar e ver a fachada
posterior da mansão. As janelas que davam para o sul estavam
fechadas, localizou seu quarto na outra extremidade do edifício.
Apenas uma janela continuava aberta, na câmara abaixo dela.
Cortinas, bandeiras de lápis desbotadas e enferrujadas, se agitavam
para fora, estalando no vento como saias de um dançarino de
Kurman.
Enfrentou o bosque novamente. Laranjeiras cobriam o campo em
um padrão ordenado, seus ramos frondosos se inclinavam com
frutas maduras. Folhas verdes escuras camuflavam os pássaros que
se assentavam nos ramos, revelando o brilho ocasional da luz solar
em um bico preto. Em algum lugar, dentro desse murmúrio de asas,
o corvo mensageiro de Cumbria esperava por um sinal dela.
Esta foi a primeira vez que entrara no bosque. Até agora, suas
incursões haviam sido limitadas ao interior do pátio da mansão. Só
vira o bosque de sua janela todas as manhãs e noites, admirando as
fileiras ordenadas de árvores e respirando o cheiro de flor de
laranjeira persistente no ar ameno.
Gurn a levou para o bosque, com os passos seguros enquanto
navegava pelo labirinto do pomar. Martise ficou perto dele. Cada
caminho sombreado parecia igual ao outro. Até que a mansão não
podia mais ser vista como um marco.
Dobraram uma esquina e pararam diante de uma linha de caixotes
cheios de laranjas e uma escada alta encostada nos ramos de uma
árvore. O topo da escada desapareceu nas folhas, mas Martise viu
um par de sapatos equilibrados em um dos degraus. Gurn assobiou
baixo e os sapatos se moveram. Silhara desceu a escada
parcialmente e os enfrentou. Engoliu um suspiro, silenciosamente
se repreendendo por sua reação visceral à sua aparência.
Trabalhar no calor da manhã tinha deixado um brilho de suor sobre
ele, sua pele morena brilhava na luz.
Sua camisa estava grudada em suas costas e peito, lhe dava uma
visão clara de seus músculos magros, com ombros que ondulavam
com a força construída pelo trabalho duro. Um rubor rosa enfeitava
suas proeminentes maçãs do rosto, uma gota de suor escorria pelo
seu pescoço, deslizando em um caminho sinuoso através da cicatriz
branca antes de desaparecer sob o decote aberto da camisa.
Ele passou a manga pela testa e ajustou o saco, meio cheio de
laranjas, em seu ombro. A escada rangeu sob o peso dele enquanto
subia até o último degrau. Martise olhou para baixo, esperando que
seu rosto não revelasse seu fascínio. Qual era o problema com ela,
desejando o homem que tinha quase a matado de susto apenas
algumas horas antes?
— Ela é uma ajuda ou um obstáculo?
Sua cabeça se levantou. Obstáculo? Suas unhas cravaram em suas
palmas. Havia muitas coisas pelas quais ela poderia ser
legitimamente acusada – simplicidade, timidez, às vezes covardia –
mas nunca de preguiçosa ou incompetente. Apertou as mãos em
punhos, se impedindo de ataca-lo. Era uma escrava e dominara a
arte do comportamento submisso em uma idade precoce, contudo
havia algo sobre o Mestre dos Corvos que a fazia esquecer todo seu
treinamento, seu baixo status no mundo. Ele não era mais imperioso
ou arrogante do que qualquer outro nobre abastado, mas gerava um
sentimento de raiva nela a cada vez que falava.
Gurn gesticulou com as mãos, a cabeça calva balançando ao mesmo
tempo que seus gestos entusiásticos. Martise se sentiu vingada. Pelo
menos uma pessoa aqui estava satisfeita com seu desempenho até
agora.
O mago grunhiu e se afastou para vasculhar uma caixa vazia. Se
aceitou a avaliação silenciosa de Gurn do seu trabalho da manhã ou
não, nenhum elogio estava vindo. Ficou rígida quando ele voltou.
— Você tem medo de altura?
— Não, — disse suavemente, transformando seus traços em uma
expressão plácida. — Eu não tenho.
— Bom. Você pode me ajudar no bosque enquanto Gurn prepara a
refeição do meio-dia. Coloque sua mochila. — Ele esperou enquanto
ela ajustou a bolsa em seu ombro. — Se bem me lembro, o bispo
planta azeitonas em suas terras.
Quando Silhara teve alguma vez oportunidade de visitar Cumbria
em Asher? Nunca tinha o visto lá e ela servia na mansão de seu
mestre desde que tinha sete anos. Mas ele estava correto. Os olivais
em Asher eram muitas vezes maiores que os pequenos pomares de
Silhara.
— Ele ainda leva os aprendizes do Conclave a colher como mão-de-
obra não remunerada? — Sua boca se transformou em um sorriso
fraco, que mudou para um sorriso relutante. — Ele é pão - duro, mas
astuto. Se eu empregasse a mesma técnica, Gurn seria capaz de me
alimentar com uvas o dia inteiro.
Martise cerrou os dentes mais forte, desta vez para suprimir o riso.
Quaisquer que fossem suas falhas, o Mestre dos Corvos sabia muito
sobre os modos miseráveis do bispo. Durante toda temporada de
colheita Cumbria trazia aprendizes aos seus pomares para ajudar na
colheita das culturas. Usou a desculpa de que poderiam praticar
seus feitiços de movimento para sacudir as árvores até cair os frutos
e recolhê-los nos panos que esperavam.
— Esse costume permanece.
Ele bufou. — Eu imaginei. — Sua expressão escureceu. — Eu não
concordo com a prática. A Magia tem o seu lugar no mundo, mas
não como um meio para uma vida fácil. E se Cumbria reconhece ou
não, esses feitiços danificam suas árvores. Não vou ter nada disso
aqui. Nós o fazemos da maneira mais difícil – como os não dotados
– com escadas, sacos e dor nas costas, — ele a olhou de relance. — É
muito para você, aprendiz. Eu duvido que você vai ser de alguma
ajuda.
Ela endureceu, indignada com sua suposição. — Eu sou mais forte
do que pareço, Mestre e eu vou administrar bem isso.
Ele não parecia convencido. — Vamos ver, — ele bateu Gurn no
ombro e se afastou para recuperar outra escada deitada no chão
perto das grades. — Vou começar com ela agora, Gurn. Chame
quando o almoço estiver pronto.
Gurn afagou Martise no braço e caminhou de volta para a casa. Ela
congelou com o olhar ameaçador de Silhara.
— Você ganhou a confiança do meu servo. Não abuse dela.
A apreensão arrefeceu em suas veias. A advertência era uma ameaça
velada, ameaçadora em sua promessa de retribuição mortal, se ela
se aproveitasse de Gurn. Quer Silhara sentia alguma afeição por seu
servo ou exigia sua lealdade a todo custo, sabia que sua interação
com Gurn seria crucial para sua sobrevivência aqui em Neith.
— Eu não sou uma mulher cruel. Eu gosto de Gurn também.
Seu olhar frio não aqueceu. — Mantenha isso em mente e qualquer
sentido de autopreservação que você puder abrigar.
Ela engoliu em seco e correu atrás dele enquanto tomava a segunda
escada e a carregava para outra árvore mais abaixo na fila. Ele
encostou a escada contra um galho baixo, e um afobado corvo fugiu
para cima, gritando em protesto por ser afugentado de seu abrigo.
— Você vai encontrar um par de luvas em sua mochila, — ele ergueu
as mãos, exibindo luvas bem gastas com manchas nas palmas das
mãos. — Árvores de laranja tem espinhos tão longos como seus
dedos e eles são perversamente afiados.
Ela enfiou a mão na bolsa e encontrou um par igualmente
desgastado. Eles eram muito grandes, mas não tão grandes que a
tornavam desajeitada. Silhara parou na frente dela e Martise quase
esqueceu de respirar. Estava tão perto dele que foi bombardeada por
uma infinidade de sensações – o cheiro de citrus e flor de laranjeira
misturada com o calor almiscarado de suor, o ritmo tranquilo de sua
respiração enquanto a ajudava a ajustar as luvas, acima de tudo, o
formidável fluxo de seu dom, derramando fora dele como as rápidas
águas de uma correnteza.
Silhara apertou as tiras de couro que seguravam as luvas em seus
pulsos. Seus movimentos abrandaram quando Martise correu a
ponta da língua sobre os lábios secos. Ela corou diante de sua
expressão fechada, uma que se tornou calculadora.
— Eu deixo você nervosa, — a voz áspera era calma, quase
acariciadora.
Ela não tinha razão para mentir, exceto o orgulho e essa era uma má
razão. — Sim, Mestre, — ela baixou os olhos para olhar a cicatriz. —
Dizem que você é um mago perigoso e poderoso.
Um murmúrio de riso sussurrou sobre ela. — Também é dito que eu
levanto os mortos, falo com os mortos e como os mortos, — inclinou
seu queixo com a ponta do dedo para obriga-la a olhar para ele. Ele
estava tão perto que ela viu as linhas finas se expandindo de seus
olhos negros e as cavidades debaixo de suas bochechas. Sua boca
sensual se curvou em um sorriso zombeteiro. — No que você
acredita?
— Eu acredito em aprender por mim mesma, ao invés de confiar em
boatos.
Um lampejo de aprovação disparou através de seus olhos antes que
baixasse a mão e se afastasse dela. Martise suspirou, aliviada. O
Mestre dos Corvos era uma presença esmagadora, assustadora,
irritante e fascinante. Estar tão perto dele, com seus sentidos
inundados pela força de seu dom e sua própria masculinidade, era
difícil pensar.
Ela se enrijeceu ao toque em seu cotovelo, então o seguiu até a
escada e sua árvore designada. A centelha de calor de momentos
antes tinha desaparecido. Sua voz era desinteressada, instrutiva – a
do professor que dava a lição ao aluno.
Silhara segurou uma das laranjas penduradas em um grupo de um
ramo baixo e chegou a um bolso exterior em sua mochila. Ele retirou
um par de pequenas tesouras. — Corte o fruto suavemente. Se você
preferir usar suas mãos em vez da tesoura, escolha algo como isto, –
ele demonstrou com cuidado torcendo e puxando a laranja do galho,
deixando um pedaço de caule e o botão da fruta. — Você ainda
precisa usar a tesoura para cortar as hastes ou elas vão perfurar a
fruta que você deixou fazendo ela estragar, — ele cortou a haste
restante com a tesoura. — Agora você.
As laranjas eram frescas ao toque, fez como instruído, torcendo e
puxando uma laranja com um puxão cuidadoso.
Ele lhe deu a tesoura. — Você pode usá-la. Eu tenho um par extra.
Quando ela mostrou ser satisfatoriamente competente, ele seguiu
para a próxima aula, levantando sua mochila para que pudesse ver
os laços de cordão na parte inferior. — Quando o seu saco ficar muito
pesado, liberte este cordão. O fundo será aberto, e sua fruta vai rolar
para fora. Eu prefiro que você os leve para as caixas antes de soltá-
lo, mas você vai perder muito tempo andando nas fileiras, então
basta descer a escada e fazer uma pilha próximo a árvore, — seus
olhos se estreitaram. — Não abra o saco quando estiver na escada.
Você vai machucar a fruta se você deixá-la cair de tão alto.
— Onde eu deveria começar na árvore?
Mais uma vez aquele sorriso zombeteiro enfeitou sua boca. — Tão
próximo ao topo, como você pode alcançar. Tem certeza de que não
tem medo de altura?
Ele estava a provocando novamente. Suas aulas matutinas haviam
lhe dado cabelos brancos, mas mesmo que tivessem incutido um
súbito medo de alturas nela, Martise não lhe daria a satisfação de
deixá-lo ver. Havia algumas coisas que seu orgulho ordenava que
fizesse, escrava ou não.
Ela agarrou o cortador com os dedos tensos. — Muito certo.
— Bom. Então não há nenhuma razão para se atrasar. Suba as
escadas, isto se você conseguir escalar nessas saias.
Ela silenciosamente lhe entregou a tesoura e deixou cair a laranja
em sua bolsa. Rapidamente teve suas saias torcido em torno de suas
pernas, como calças improvisadas, com as extremidades dobradas
firmemente envolta das pernas.
Desta vez, seu pequeno sorriso era genuíno. — Eu admiro uma
mulher prática, — ele voltou a tesoura para ela e se afastou. —
Lembre-se das minhas instruções, — disse ele sobre um dos ombros.
— Torcer e puxar com cuidado, cortar os caules, não deixar cair o
fruto.
Ou o quê? Ela foi tentada a perguntar, em um raro momento de
rebelião.
Silhara continuou andando. — Ou eu vou adicionar um toque
especial a lição de encantamento de amanhã, aprendiz.
Suas tesouras caíram quase prendendo seu pé na terra.
Capítulo
Sete
Um corvo pousou no parapeito da janela e olhou para Silhara se
vestindo para a manhã. A luz fluindo para dentro da sala mostrava
a silhueta do pássaro, criando uma mancha de escuridão contra o
pano de fundo de laranjeiras e o céu de verão.
Ignorando seu visitante, mandou para longe o sangue e os últimos
vestígios de sono. A luz feriu seus olhos, mas o impediu de cair de
volta na cama com a esperança de conseguir algumas horas de sono
sem pesadelos. A Corruption o tinha torturado durante a noite com
sonhos sinistros de um mundo sobrecarregado pelo domínio do
deus. Nessas visões, ele viveu uma vida de privilégios decadentes.
Riqueza incalculável, exércitos a fazer sua vontade, as mulheres de
cumprir qualquer capricho carnal, todo o luxo e desejo satisfeito
com um estalar de dedos. Todas as possibilidades pelo o preço de
sua humanidade. O mais tentador de tudo era a magia ilimitada. A
habilidade de mover montanhas, desviar rios, atingir uma vida
quase imortal — Este era o maior presente que o deus oferecia e isto
verteu um atormentado fluxo de desejo sobre tal poder no mago
adormecido.
“Um gosto, Avatar, do que eu posso lhe dar se você der para mim”.
A voz diminuiu, substituída por um novo sonho – um pesadelo que
ainda fazia Silhara estremecer. Ele estava de pé em uma praia
interminável feita de cinzas em vez de areia. Acima dele, um céu sem
estrelas e a lua sangrando sobre um oceano igualmente negros.
Somente a luz opaca da estrela da Corruption fornecia qualquer
iluminação, seu reflexo dançava sobre a água rolando em caminhos
incandescentes. Um vento constante, cheirando não a pólvora ou a
peixe, mas sim a ossos queimados, balançou seus cabelos e enviou
as cinzas girando suavemente sobre seus pés, uma carícia de dedos
frios e mortos nos dedos dos pés.
Diante dele, o oceano se estendia para um horizonte ilimitado.
Nenhuma gaivota sobrevoava. Nenhum peixe saltou da água.
Nenhum navio navegava nas ondas. Sabia, com a certeza de todos
os sonhos, que, se saísse da praia e mergulhasse na água, não
haveria fundo para tocar, apenas um vasto poço de negrume líquido
no qual se afogaria.
As ondas avançavam e recuavam, incessantes em sua oca canção de
ninar. Sua música foi quebrada abruptamente por um dobrar de
escuridão subindo fora do abismo. A forma afundou sob a água
apenas para subir novamente. As baleias não nadavam nesses mares
sem vida. Sabia o que montava as ondas e perseguia aquela praia
morta. Um leviatã, imortal e sem piedade, com uma goela
escancarada que engolia almas. A pausa constante das ondas seguia
o ritmo do vento enquanto a criatura nadava para mais perto.
O terror o enraizou no local, ele esperou. Esperou em uma praia
cujas cinzas eram os restos cremados de criaturas que caminharam
em um mundo outrora vivo. Esperou que o monstro chegasse a
superfície, esticasse amplamente a boca preta e o sugasse para
dentro de um eterno nada.
Corruption sussurrou em seus sonhos mais uma vez.
“Um gosto se você não o fizer”.
Despertara em um travesseiro ensanguentado e mãos que
formigavam por causa do toque do deus. Ficou tentado a tropeçar
até a cozinha e roubar um pouco de Dragon Piss de Gurn. Só o
pensamento da expressão de seu servo e do olhar vigilante de seu
aprendiz o impediu. Não queria explicar o sangue em seu rosto, ou
porque suas mãos tremiam tanto que seria desafiador segurar uma
taça de forma constante.
Terminou seu banho e olhou para o corvo que ainda o observava.
Um grande pássaro. Maior do que aqueles que normalmente se
aninhavam na copa sombria do bosque.
— Venha, — ele disse, gesticulando. Um raio saiu de seu braço. Os
olhos do corvo se arquearam e ele gritou um último grito antes de
explodir em uma pilha de penas fumegantes e ossos carbonizados.
Embalando a mão queimada em seu peito, Silhara olhou para o
monte fumegante no canto. A Corruption tinha deixado sua marca
nele na noite anterior. O feitiço, um apelo suave que deveria ter
persuadido em vez de coagido, tinha dado horrivelmente errado. Ele
levantou a mão. Manchados por nada mais do que duros calos e
manchas de tinta, seus dedos e palma agora sustentavam um poder
deformado, que tornava sua magia imprevisível. Rosnou. Isso não
era bom. Poder descontrolado e desconhecido era inútil. Por
enquanto, a menos que ele escolhesse lançar qualquer feitiço,
independentemente da consequência, o deus tornara sua magia
impotente.
Ainda assim, não negou a onda de euforia correndo em seu sangue.
Seus dedos se contraíram e pontos de luz dispararam de suas
pontas. Esse poder era mais sedutor do que uma mulher bonita e
disposta. Silhara conhecia suas fraquezas. E assim fazia o deus.
Ele baixou a mão e se aproximou da janela. A brisa morna da manhã
enviou penas pretas chamuscadas girando ao longo do bosque. —
Minhas desculpas, amigo. Matá-lo não era o que eu...
O cheiro de magia, diferente daquela da Corruption, provocavam
suas narinas. Conhecia aquele perfume, familiar e detestado. O
pássaro cheirava a Conclave. Passou a mão contra os restos em um
gesto afiado, limpando a borda da janela. Os restos caíram em uma
chuva preta fina no chão abaixo.
Outro espião para os sacerdotes. Seu aprendiz poderia muito bem
ter trazido o pássaro com ela, ou poderia ter vivido entre seus corvos
por meses, voando para casa ocasionalmente para mexericar aos
seus senhores. Seu pesar por destruir a ave desapareceu.
Terminou de se vestir e saiu para a cozinha. Como de costume, chá
e laranjas o aguardavam na mesa. Gurn e Martise sentavam em
frente um do outro, tendo uma conversa composta de sinais
manuais e da voz lírica de Martise. Silhara parou na entrada,
satisfeito em observar desapercebido.
Apesar de não gostar de tê-la enfiada em sua casa, lentamente
começou a admirar a espiã de Cumbria. Tenaz e resoluta, sofreu
através de suas aulas matinais sem vacilar. Seu dom ainda tinha que
se manifestar, mas ela não tinha fugido em terror. Silhara desprezou
admitir o fracasso, mas considerou abandonar os exercícios
matutinos. Eles não haviam conseguido nada além de lhe dar um
sentimento doentio em seu estômago.
O mais surpreendente de tudo, Martise foi uma boa colhedora. O
que lhe faltava em força, compensava com rapidez e rigor. Ele só
teve que a instruís uma vez sobre a técnica adequada de colheita dos
frutos. O calor, as picadas de formigas e as picadas ocasionais de
uma vespa bêbada em laranjas fermentadas não a dissuadiram.
Depois de uma semana, era quase tão rápida quanto Gurn e
arruinou poucas laranjas.
Ele admirava o brilho da luz do sol em seus cabelos ruivos e o timbre
de sua incrível voz. Ela raramente sorria e nunca para ele, mas
muitas vezes ele se divertia com os breves flashes de inteligência que
ela revelava. O servo aborrecido que se desvanecia nas sombras de
seu escritório estava desaparecendo lentamente. A mulher que
emergia em seu lugar o fascinava um pouco mais a cada dia.
Cumbria era mais sutil e astuto do que primeiramente creditou.
Havia mais nessa mulher do que sua simples fachada comum. Na
superfície, ela era sombria em seu papel de espiã, mas nunca
confiara em aparências superficiais. Martise possuía algo único, algo
que Cumbria poderia usar para trazer seu adversário mais odiado
para baixo. O truque era descobrir isso antes que ela conseguisse
encurrala-lo com alguma traição condenatória que atrairia a justiça
do Conclave.
Cael, estendido debaixo da mesa, o viu primeiro. Lançou uma
saudação, mas não se levantou, satisfeito em ficar deitado sob o pé
de Martise enquanto esfregava metodicamente o comprimento de
sua barriga com o calcanhar.
— Vira-lata preguiçoso, — murmurou enquanto tomava seu lugar ao
lado de Gurn na mesa. Olhou para Martise, que o cumprimentou
com um olhar suave e fala mansa — Mestre.
— Você arruinou meu cão.
O protesto de Cael revelou que Martise havia interrompido sua
massagem. Ela deu um olhar cauteloso para Silhara. — Me perdoe,
eu não entendo.
As laranjas na bacia pareciam brilhantes, exuberantes e pouco
atraente, esta manhã. Pegou uma e descontraidamente descascou a
casca em uma espiral contínua. — Se eu ouvir outra desculpa de
você, acho que eu vou te afogar no poço, — ele engoliu uma risada
quando ela empalideceu. — Martise, você deve suportar um fardo
terrível de culpa sobre pecados passados. Acho que nunca ouvi uma
pessoa dizer — me desculpe — com tanta frequência quanto você faz,
com tão pouca provocação. — Ele colocou um gomo alaranjado em
sua boca e lutou com a vontade de vomitar, devido à explosão de
suco em sua língua.
Martise ficou vermelha, mas não disse nada. Silhara engoliu a
porção de laranja e bebeu um gole de chá para limpar sua boca.
Olhou debaixo da mesa e franziu a testa para Cael. O cão o ignorou
e rolou para debaixo do pé de Martise em uma solicitação óbvio para
retomar com sua carícia.
— Você o estraga. Agora tenho um mage-finder que passa seus dias
descansando com os porcos e mendigando carícias de uma mulher,
— Gurn bufou em sua xícara de chá e Silhara levantou uma
sobrancelha. — Não que eu o culpe pelo último.
— Eu estou confusa, Mestre. Você fala das falhas dos homens ou dos
cães?
Ele quase se engasgou com o segundo pedaço de laranja e o cuspiu
no chão. O rosto de Martise ficou turvo quando seus olhos
lacrimejaram. Gurn riu. Seu aprendiz o observou, com seus firmes
olhos cor de cobre. Por um momento, Silhara captou um brilho de
humor provocante em seus olhos antes de desaparecer.
— Isso importa? Nós somos muitas vezes uma e a mesma coisa, —
ele a deixou terminar seu mingau, enquanto ele e Gurn faziam
planos para o dia de mercado ao leste de Prime.
— Vamos pegar o que temos agora e entregar para Fors um dia antes
do mercado abrir. Ele vai tentar cobrar uma taxa de
armazenamento. — Silhara serviu outra xícara de chá. — Você
pensaria que ele aprenderia depois de todos esses anos de comércio
que eu não sou um alvo fácil.
As mãos de Gurn esboçou padrões no ar, enquanto Silhara assistiu
e respondeu.
— Martise estará viajando conosco. Os dois podem comprar
suprimentos enquanto negócio com nosso pequeno comerciante
ganancioso. Quanto mais cedo terminarmos, melhor. Há mais para
colher e não quero que meu fruto apodreça nas árvores antes que
possamos pegá-lo.
Ele esperou Martise comer sua última colherada de café da manhã.
— Alguma vez você já esteve em Eastern Prime?
— Não desde que eu era criança. É muito longe de Asher para se
incomodar. O Alto Bispo envia seu fator a Calderes, embora seja
uma cidade e mercado menor.
— Mas bem conhecida por seus produtos de luxo e patronos ricos.
— Ele traçou um símbolo do comércio Calderan sobre a mesa cheia
de cicatrizes. — Você vai nos acompanhar quando viajamos para
Eastern Prime em dez dias. Esteja preparada. Você pode não
lembrar, mas Prime é uma cidade portuária. Maior e muito menos
gentil do que Calderes. Eles dirigem os mercados de escravos de lá e
os cafetões estão sempre à espreita de mulheres jovens. Quando
estivermos lá, fique perto de Gurn.
Silhara franziu a testa, intrigado com seu súbito humor sombrio. —
Não é um desejo, Martise. É uma ordem.
Ela levantou para limpar seu lugar, vacilante enquanto sua mão livre
segurava a borda da mesa em um aperto que deixou seus dedos
brancos. Se arrastou para a pia, se movendo mais como uma idosa,
meio morta, do que uma jovem saudável. Uma palidez cinza
dominou sua pele, não conseguiu esconder um estremecimento
quando o encarou.
— Devo esperar por você no corredor para a nossa lição?
A imagem do corvo destruído surgiu através de sua memória.
Silhara tinha incendiado Martise durante as aulas. Brutal tanto no
propósito quanto na execução, o feitiço tinha sido um que ele
controlava por inteiro. Seu aprendiz tinha saído da experiência
cambaleando de choque, mas sem nenhum ferimento, salvo uma
bainha queimada. Embora pudesse sentir que se desvanecia, o toque
do deus ainda permanecia em suas mãos, fazendo seus dedos
espasmarem em curtos intervalos. Apesar de sua desconfiança,
Silhara não tinha nenhum desejo de infligir o mesmo fim, ou algo
pior, a sua aprendiz. Se ele tivesse que matá-la, iria fazê-lo em seus
termos com sua magia firmemente sob controle.
Ela ficou pacientemente diante dele, esperando sua resposta.
Martise sempre se mantinha ereta, com uma dignidade tranquila
que ele admirava cada vez mais. Esta manhã ela estava curvada, o
ombro direito inclinado um pouco mais baixo que o esquerdo.
—Eu acho que nós vamos renunciar as aulas hoje, — surpresa
arregalou seus olhos. Mesmo Gurn olhou para ele, intrigado. — Você
anda como uma velha. Por que você não disse à Gurn que você está
dolorida da colheita?
O rubor subiu do pescoço até as bochechas, afugentado o cinza. Ela
olhou para Gurn, que franziu o cenho, desaprovando seu segredo. —
Eu não acho que é importante. Meu trabalho não sofreu por isso.
Silhara levantou para ficar diante dela. Ela ficou rígida e estremeceu.
Gostava de seu perfume, do sol e do sabonete de rosas de Gurn. —
Não, ainda não. Mas vai. Você não é muito boa em uma escada
quando mal consegue andar ou se manter em pé.
— Eu posso trabalhar bem o suficiente... — ela discutiu, antes de
manter a boca fechada em um silêncio contrariado. — O que quer
que eu faça, Mestre? — Perguntou.
— Você pode olhar para mim em vez dos meus pés.
Ela encontrou seus olhos, sua expressão em branco. Silhara sacudiu
a cabeça. — Isso pode enganar os outros, mas não a mim, — ele se
dirigiu a Gurn por cima do ombro. — Eu preciso dela na biblioteca
hoje de qualquer maneira. Vamos voltar a colher amanhã. Há velas
no alambique?
O servo acenou com a cabeça e começou a limpar os restos de café
da mesa. Ele acenou com a mão para Martise, franzindo ainda mais
o cenho. Silhara suspirou e olhou para ela. — Gurn acredita que você
é uma coisa frágil, merecedora da minha delicadeza, — ele sorriu
levemente quando ela levantou as palmas das mãos, revelando uma
riqueza de calos, bolhas e uma ou duas cicatrizes.
— Estas não são as mãos de uma mulher delicada. Eu não preciso de
tratamento especial, — ela olhou em torno dele para piscar para
Gurn. — Embora eu aprecie a preocupação de Gurn.
Silhara encarou Gurn. Seu servo deu de ombros, sem nenhum
remorso sobre sua amizade óbvia com o fantoche do Conclave. A
expressão de Martise refletia a de Gurn, um lampejo de rebelião
dançando em seus olhos por um momento, como se ela o desafiasse
a proibir tal relacionamento.
Ele deu um passo em torno dela e caminhou até a porta que se abria
para o pátio. — Ninguém em Neith recebe tratamento especial, mas
eu preciso que você trabalhe em sua melhor forma. Você não está
nela hoje, — ele acenou para ela. — Venha. Tenho algo para aliviar
suas dores.
O medo e a curiosidade brilharam em seu rosto, mas ela o seguiu,
mantendo a distância, seguiu atrás dele enquanto atravessavam o
pátio e passavam pelas roseiras de Gurn, antes de chegarem a um
pequeno anexo ao lado sul da mansão.
Demorou alguns momentos para que seus olhos se ajustassem à
escuridão da sala. Encontrou velas em uma caixa perto da porta e
acendeu quatro. Martise colocou duas nos suportes que ele apontou,
na longa mesa no centro da sala. Ele colocou suas próprias velas no
lugar e esperou enquanto ela examinava seus arredores.
A sala, cheia de cheiros de flor de laranjeira e azeite de oliva, era sua
verdadeira criadora de dinheiro. Ele e Gurn quebraram suas costas
a cada temporada de colheita carregando carroças de laranjas para
a vender no movimentado mercado em Eastern Prime. Isto fez o
suficiente para mantê-los ambos alimentados. Mas foi o óleo de
neroli e o petitgrain destilado que trouxe os maiores lucros. Artigos
de luxo feitos em pequenos lotes e procurados pelos aristocratas
ricos, que rendiam um alto preço no mercado.
Sua aprendiz, fascinada pelas fileiras de garrafas e decantadores
preenchendo cada espaço nas mesas e prateleiras construídas
contra as paredes, passeou ao redor da sala, ocasionalmente tocando
em uma cuba de destilação vazia ou um frasco de perfume decorado
para capturar os olhos de uma mulher. A mesa mantinha uma
variedade de castiçais, tigelas, filtros, morteiros e pilões. Ervas secas
pendiam em gastas cordas de pequenos feixes e as fores alaranjas
trituravam secas debaixo dos pés.
— Você faz perfumes, — um desejo fraco coloriu sua declaração.
— Entre outras coisas. Nós colhemos flores de um determinado
número de árvores no final da primavera, juntamente com folhas e
galhos jovens. Os óleos e petitgrains saem por um preço mais
elevado do que os xaropes e elixires, mas os dois últimos lucram bem
o suficiente. Vamos colher novamente no outono. O rendimento não
é tão bom ou de tão alta qualidade, mas as pessoas continuam a
comprar.
— A Senhora Dela-fé sempre usava perfume de flor de laranjeira. Eu
não gostava da mulher, mas adorava a maneira como ela cheirava.
Silhara ergueu a mão quando ela ficou tensa e separou seus lábios
para o pedido de desculpas inevitável. — Você iluminou minha
manhã com esse pouco de conhecimento, Martise, mas as desculpas
são cansativas, — ele não expôs sobre o prazer que teve em saber que
a esposa perturbada de Cumbria comprava seus produtos.
Um grande armário, resistia de pé em um canto. As portas foram
removidas, revelando prateleiras forradas com pequenos jarros e
potes. Pegou um e o colocou sobre a mesa perto de onde estava
Martise.
— Tire a roupa, — disse ele.
Ele franziu o cenho ante o horror crescente em seu olhar. Ele ganhou
sua notoriedade, fez muitas coisas em sua vida que o fizeram pária
entre seus vizinhos, conhecidos e o poderoso sacerdócio que
procurava controlá-lo. Mas ele nunca tinha violado uma mulher e
não tinha intenção de começar agora.
Sua maravilhosa voz se transformou em um guincho de rato
enquanto ela implorava a ele, apoiada contra a mesa. — Por favor,
— ela sussurrou, levantando uma mão para afastá-lo. — Eu te
imploro…
— Martise, — ele manteve sua própria voz desprovida de inflexão e
apontou para o frasco que tirara da prateleira. — Eu tenho um óleo
para aliviar a dor nas costas, — ele esperou, imóvel enquanto suas
palavras se infiltravam em sua mente em pânico. — Você não acha
que se eu quisesse forçá-la, eu já teria feito isso? Mesmo Gurn,
apesar de sua amizade com ele, não me deteria. E nem ele
conseguiria.
Ela olhou para ele, os olhos ainda enormes de medo, mas sua
respiração tinha abrandado com suas palavras. Silhara observou
que, enquanto ela se encolhia diante dele, a mão que não o segurava
simbolicamente longe estava procurando na mesa atrás de si uma
arma. Inclinou a cabeça em aprovação. Ela poderia estar
aterrorizada, mas não abatida. Lutaria com ele, apesar das
esmagadoras probabilidades.
— Se você aceita a minha ajuda ou não, significa pouco para mim.
Você pode continuar colhendo laranjas com todo o seu nobre
sofrimento, desde que você continue colhendo. Decida-se. O dia está
passando.
Vários momentos tensos passaram em silêncio enquanto ele
esperava. Martise respirou fundo e relaxou um músculo dolorido de
cada vez. — Minhas costas e ombro doem.
— Eu imagino que sim, — ele fez um gesto para que ela apresentasse
suas costas e puxou a rolha do frasco. — Gurn faz este unguento, não
eu. Se eu não soubesse melhor, eu pensaria que usa magia na
fabricação. É tão eficaz, — manteve um fluxo constante de conversa
enquanto ela virou de costas para ele e começou a desatar sua túnica
e vestido. — Ele é um bastardo cauteloso com a receita. Se recusa a
revelar seus segredos. Acho que terei de torturá-lo um dia desses.
Martise abaixou suas roupas deixando descansar contra os seus
cotovelos. A voz dela estava afetada. — Isso deve ser suficiente.
Ele poderia ter rido se não estivesse tão distraído com a visão diante
dele. A nuca, uma escurecida cor de mel de trabalhava no exterior,
contrastava nitidamente com a pele cor marfim de seus ombros.
Envolto em seus casacos de lã, ela apresentava uma forma que tinha
todo o fascínio de uma batata. Não era assim quando as roupas
saíam. A linha graciosa de suas costas fluía em uma cintura delgada
até a curva suave de seus quadris. Duas covinhas rasas marcavam
sua parte traseira mais baixa, o tentando a pressionar um dedo em
seus recortes. Silhara não era nenhum escultor, mas de repente
compreendeu por que homens com tal talento eram inspirados a
esculpir a beleza em pedra.
Aquelas costas impecáveis estavam marcadas atualmente por uma
ondinha distorcida de músculos que se curvavam abaixo do seu
ombro direito. Outro nódulo inchado estava onde seu pescoço se
encontrava com o seu ombro.
Martise, ainda parecendo um pilar de mármore, endureceu ainda
mais sob sua leitura silenciosa. Vaiou de dor por suas aflições e
chegou automaticamente para massagear a parte superior de seu
ombro com a mão oposta. Silhara pegou um breve vislumbre da
curva de um peito antes de ela se lembrar de sua posição e puxar a
mão de volta no lugar. Ele riu com o rubor que avermelhava sua
nuca.
— Sua modéstia é desperdiçada comigo, — ele aplicou um montão
de unguento fresco em suas costas, ignorando-a ofegar. — Eu vi mais
seios nus na minha vida do que uma guilda inteira de amas de leite,
— seus dedos trabalharam alguns círculos firmes em suas costas e
ombros, massageando com a pomada de cicatrização. O músculo
congelado abaixo de seu ombro era inflexível em princípio, se
perguntou como tinha conseguido dias de colheita sem pronunciar
uma única queixa.
— Antes da minha mãe contrair varíola, ela trabalhou em um bordel
para aristocratas como prostituta. Eu ganhei uma moeda ou duas
passando recados ou correndo entregar mensagens para uma e
outra hourin5. Era uma prática comum para uma hourin se exibir, –
e uma maneira fácil e eficaz para exibir seus produtos para um
cliente em potencial.
Ela virou a cabeça uma fração. Seu olhar de soslaio estava curioso.
— Quantos anos você tinha?
— Seis ou sete. Foi a mesma coisa quando eu era mais velho e minha
mãe trabalhava nas docas, – ele continuou massageando suas
costas, se movendo para o cume apertado na parte superior do
ombro. Sorriu enquanto ela lentamente relaxava sob suas mãos. —
E eu tive o meu quinhão de aprendizes no reduto do Conclave, — ele
apertou a palma da mão em uma faixa apertada de músculo e
Martise gritou. — Agora, se você tiver três seios, eu poderia ser
curioso o suficiente para te dar uma olhada.
Sua risada encheu a pequena sala antes dela camuflar com uma
tosse. Isso, mais do que o deslizamento de seda de sua pele sob as
palmas das mãos, o enfeitiçou. Ele nunca tinha ouvido sua risada
antes. Por mais lírica que fosse sua voz, seu riso transformou o som
5 Prostitutas.
em poesia. Em pé atrás dela, ele tinha apenas uma visão de seu
cabelo firmemente amarrado em suas costas flexíveis. Podia olhar
por cima do ombro e ver a impressão de seu decote contra os braços
cruzados, mas não podia ver seu rosto. O desejo de virá-la de modo
que pudesse vê-la rir novamente foi quase esmagador.
Suas mãos escorregadias deslizaram até a cintura, os dedos
pressionados contra seus lados, com os polegares descansando nas
covinhas que o tinham tentando quando ela revelou incialmente as
costas. Uma onda de calor inundou seus membros. Martise, de pele
lisa, com cheiro de flores e mulher quente, estava perto o suficiente
para que seus batimentos cardíacos enviassem vibrações por todo o
seu peito quando ele se inclinou para ela. Ela não se moveu, mas seu
silêncio era a de uma presa encurralada. Ela respirou em rasos
ofegos e um rubor se espalhou pelo seus pescoço e ombros.
Ele limpou as mãos na barra da camisa e tampou o jarro de
unguento. — Nós terminamos aqui. Se vista, — disse,
congratulando-se pela frieza em sua voz.
Ela vestiu a túnica e o vestido com um puxão, atando os laços sem
olhar para ele. Ele deslizou o frasco em sua direção. — Aqui. Eu
suspeito que suas pernas se sentem como as suas costas, mas você
pode fazer você mesmo, não esqueçamos quem é o mestre e quem
não é.
Ele derramou uma riqueza de escárnio em suas palavras, irritado
com seu breve lapso de controle. Martise o encarou, seu rosto sem
expressão, os olhos brilhando nas sombras do alambique. Ela
agarrou o frasco. — Obrigada mestre.
Ele caminhou até a porta. — Leve-o para o seu quarto, em seguida,
me encontre na biblioteca. Gurn irá lhe mostrar onde é, se você
ainda não sabe. É hora que eu use você para o propósito que a trouxe
a minha casa.
Ele saiu da sala em silêncio e se dirigiu para a casa, resmungando o
caminho todo sobre cães preguiçosos, servos insolentes, deuses
intrometidos e os males do sexo feminino.
Capítulo
Oito
Martise alcançou entre os galhos eriçados de espinhos e cortou um
cacho de laranjas. Eles caíram na palma da mão com força suficiente
para pressionar a sua mão para baixo em um espinho, que perfurou
sua luva e espetou-lhe o dedo médio.
— Ai! — Ela se afastou do espinho mal-encarado que se sobressaia
do ramo. O espinho quebrou, deixando uma dor aguda irradiar para
os dedos. Deixou cair as laranjas em sua mochila e tirou a luva para
verificar sua lesão. Nada mais do que uma alfinetada vermelha,
sentiu como se Cael tivesse lhe dado uma mordida com seus caninos.
Olhou para a árvore. Colher laranjas era um trabalho sujo e penoso
– Muito diferente de colher azeitonas. Até agora ela tinha sido
cutucada, picada e mordida pelos vários insetos rastejantes ou que
voavam sobre as arvores e até pela própria árvore. Os corvos eram
outra peste. Raramente havia um dia que ela não limpava fezes do
seu chapéu.
Agradecia ao misericordioso Bursin pela biblioteca de Silhara.
Esperava ansiosamente pelo almoço e as horas seguintes. Passar a
última parte do dia e da noite entre os tomos cheirando a mofo e
traduzir línguas mortas era preferível a isso, mesmo que lutasse
contra uma aranha ao longo de um manuscrito.
Um jorro molhado golpeou a borda do seu chapéu. Acima dela, um
corvo pousou em um ramo e a olhou com um olhar preto e lustroso.
Ela o espantou com sua luva. O pássaro agitou as asas e saltou fora
de alcance, mas recusou-se a desistir do seu lugar.
— Mestre dos Corvos, — ela murmurou. — Está mais para Mestre
das Formigas, ou Mestre das Vespas, ou Mestre dos Excrementos de
Pássaros, — ela puxou a luva sobre a mão ferida e olhou para o corvo.
Silhara talvez desaprovasse o uso de mágica por Cumbria para
colher sua colheita de azeitona, mas de onde ela estava, equilibrada
em uma escada bamba e encravada entre galhos eriçados de
espinhos, a ideia tinha mérito real.
Olhou para o corvo. O tempo tinha voado em Neith. Mais de um mês
se passara, e não estava mais perto de encontrar evidências dos
crimes suspeitos de Silhara do que quando chegou. Cumbria ficaria
impaciente por notícias. Martise não tinha nada para lhe dar além
de que a estrela da Corruption parecia pairar sobre a mansão por
estes dias e que o mago ignorava sua presença. O bispo poderia estar
interessado em saber que ela agora tinha acesso à biblioteca, mas
havia pouco a dizer a não ser que a ela tinha sido dada a tarefa de
encontrar um ritual de morte que poderia destruir o deus. Era
melhor do que nada.
Com centenas, se não milhares, de corvos que residiam no bosque,
não havia como dizer se corvo mensageiro de Cumbria estava nas
proximidades, esperando por ela para chamá-lo. Se ao menos ele
tivesse escolhido outra maneira de chamar Micah para ela. Embora
tivesse sido agraciada com uma bela voz que hipnotizava multidões,
ela não podia cantar uma única nota. Os servos de Asher
imploraram para não cantar com eles enquanto produziam a lã,
pressionavam azeitonas ou executavam as tarefas intermináveis que
mantiveram Asher funcionando perfeitamente. E os cães de caça
nunca deixavam de criar um coro de uivos se a ouviam.
Ela encolheu os ombros. Foi ideia de Cumbria que cantasse para o
pássaro para chamá-lo e ela era uma escrava obediente. Ela desceu
dois degraus da escada e olhou sob os ramos. O bosque ao redor dela
estava silencioso e vazio. Silhara colhia as árvores no outro canto do
pomar e Gurn estava em casa preparando o almoço. Ela estava
sozinha aqui, exceto pelo o corvo que tinha graciosamente decorado
seu chapéu. Martise esperava que ele ficasse tempo o suficiente para
ouvir os primeiros acordes de sua canção de ninar. Era uma
vingança adequada.
Ela subiu na árvore novamente, grata por sua capa desta vez.
Apoiando na escada, clareou sua garganta e cantou a primeira
estrofe da canção de ninar de Nanteri. Como previu, o corvo
rapidamente abandonou seu poleiro e voou para longe. Nenhum
pássaro voltou para substituí-lo. Martise terminou a canção de
ninar, estremecendo com as notas finais gotejando de seus lábios e
esperou. Micah não veio. Tentou novamente, um pouco mais alto.
Ainda sem corvo mensageiro. Tentou uma terceira vez, quase
gritando as palavras para que o pássaro ouvisse. À distância, Cael
uivou em resposta.
Longe na segunda estrofe e quase rouca com seus esforços, não
ouviu seu visitante até que os ramos ao redor dela tremeram. Gritou
de surpresa quando sua escada bateu contra seu ramo de apoio.
Folhas farfalharam e se separaram, revelando os traços fortes e
empoeirados de Silhara. Seus olhos estavam arregalados de
assombrado espanto. Ele subiu na árvore e se equilibrou sobre um
galho grosso logo abaixo dela. Sua altura o colocou ao nível dos olhos
dela, ela corou com o olhar horrorizado em seu rosto.
— O que no santo nome de Bursin é isso? — Ele rosnou.
Se fosse possível morrer de vergonha, Martise tinha certeza que não
sobreviveria aos próximos minutos. — Eu estava cantando.
Ele levantou as sobrancelhas quase até a linha do cabelo. —
Cantando. É disto que você chama? Parecia que alguém estava
torturando um gato.
— Eu pensei que poderia trabalhar mais rápido se cantasse. — Ela
limpou o suor da testa com uma mão enluvada e lamentou a ação. O
golpe de óleo de citrino que ela derramou na mão esquerda
queimava sua pele. Cael continuou a uivar e uma porta se fechou
com um estrondo.
— Isso deve ser Gurn vindo nos resgatar de qualquer demônio que
ele pensa estar nos atacando, — o ramo que apoiava Silhara rangeu
quando ele ajustou sua postura e se inclinou para mais perto dela.
— Diga-me uma coisa, Martise, — uma folha lhe bateu nos olhos e
ele arrancou seu galho em um piscar de olhos irritados. — Como é
que uma mulher, abençoada com uma voz que poderia fazer um
homem gozar, canta mal o suficiente para assustar os mortos?
Foi salva de ter que responder à estranha pergunta pelo baque
rápido de passos correndo. Silhara desapareceu brevemente da vista
quando se inclinou para cumprimentar o visitante. Infelizmente,
suas respostas às perguntas não ditas de Gurn eram altas e claras.
— Isso foi Martise que você ouviu. Ela estava... cantando.
— Confie em mim, eu não estou brincando. Você pode descarregar o
seu arco.
Sua próxima resposta indignada a fez sorrir. — Não, eu não estava
batendo nela! Ela é a que me atormenta com esse lamento horrível!
Martise escondeu o sorriso quando ele reapareceu diante dela. Sua
carranca era feroz. — Não cante, — ele apontou um dedo para ela
para dar ênfase. — Você assustou meu cão, meus pássaros e o meu
servo com os seus berros, — ele fez uma pausa. — Você ainda
conseguiu me assustar.
— Sinto muito, mestre... — Ela parou quando seu cenho se
aprofundou.
— Não cante, — repetiu ele.
Ela assentiu com a cabeça. Ele a olhou uma última vez em
advertência antes de sair do ramo e descer agilmente da árvore.
Bem, pensou Martise. Isso terminou em completo fracasso e
humilhação. Ela não sabia como Cumbria esperava que lhe enviasse
mensagens quando seu mensageiro não respondia aos seus
chamados. Então, novamente, se Micah tivesse algum juízo, teria
voado para longe como o resto dos corvos em sua primeira nota
estridente.
Seus pensamentos perceberam o comentário grosseiro de Silhara a
respeito de sua voz. Era o elogio mais torto que já recebera, ainda
que conseguisse enviar um calor agradável através dela. Na maioria
das vezes, ela temia essas observações das pessoas, mesmo as mais
refinadas. Eles eram geralmente acompanhados pela observação
insensível de que era uma pena que seu rosto não combinasse com
sua voz.
Ela nunca tinha tido quaisquer ilusões sobre sua aparência. Fora
enganada uma vez por pensar que a aparência não importava para a
outra pessoa e saíra com um coração ferido por seu erro. Os
pequenos golpes sobre a sua simplicidade, intencional ou não,
feriam menos depois de tantos anos, mas a dor nunca ia embora
realmente. Estava grata que Silhara, tão brusco e malicioso como ele
poderia ser às vezes, tinha comentado apenas uma vez sobre sua
aparência. Mesmo assim, não tinha certeza se tinha entendido mal
a sua observação improvisada sobre não se preocupar em enfeitar-
se para ele. Se ele a considerava tão monótona quanto os outros,
manteve suas opiniões para si mesmo.
Fez uma pausa para alcançar outro cacho de laranjas e sacudiu a
cabeça para se livrar da memória de seu tempo com ele no
alambique. A violação não exigia beleza. O comando brusco de
Silhara para que ela se despisse quase a levou a um pânico cego.
Apenas o óbvio desinteresse em seus olhos e a nota meio aborrecida
e meio irritada em sua voz áspera a acalmou. Ele tinha massageado
o unguento em suas costas com dedos fortes, apertando músculos
duros e doloridos até que quase caiu em um monte desossado no
chão.
Ele tinha boas mãos. Elegantes e peritas. Eram as mãos de um
estudioso exceto pelos calos ásperos que cobriam as pontas dos
dedos e as palmas das mãos endurecidas. Aliviou a dor dos músculos
que tinham sido machucados pela colheita rigorosa, ao mesmo
tempo que a entretinha com histórias de seu passado. Ele tivera uma
infância dura, mas falou disto e da sua mãe em um tom de voz
neutro, como se ter seis anos de idade e viver em um bordel agindo
como mensageiro para as hourin e clientes não fosse nada. Ele até
arrancou dela uma risada. Seu humor era irreverente, limpo e
muitas vezes sarcástico.
Martise franziu a testa e cortou os cachos de laranjas do seu ramo
com mais força do que o necessário. Ele a fascinava, a atraia de
maneiras que nenhum homem jamais tinha conseguido. Nem
mesmo seu antigo amante Balian, a quem ela pensava que amava. A
sensação de Silhara logo atrás dela, alisando a pele com as mãos
ásperas, tinha a hipnotizado. Seu medo tinha evaporado, a fazendo
ciente de que estava sozinha com ele no escuro, no alambique
perfumado.
Essa consciência tinha mudado para um zumbido de tensão que
dançou ao longo de sua espinha quando suas mãos abaixaram até a
sua cintura, os dedos flexionando levemente contra sua pele. Ele
tinha curvado seu corpo alto no dela, ela se afogou em uma miríade
de sensações – a doçura enfumaçada de tabaco e flor de laranjeira,
um sussurro de pano, o sopro do ar fazendo cócegas em seus ouvidos
enquanto ele se aproximava. Agradecia a Bursin ele ter se afastado
naquele momento, ou ela poderia ter sido tentada a se inclinar para
trás em seu calor, esquecendo seu propósito em Neith e as muitas
razões pelas quais ela deveria desprezá-lo.
Ele era um enigma a todo mundo, exceto talvez a Gurn. Filho de uma
prostituta, pobre fazendeiro, treinador do Conclave, um mago de
notoriedade em vez de fama, ele era uma estranha combinação de
papéis opostos. Eloquente e depois vulgar, era rápido com uma
piada ou insulto. Seus métodos para tornar o seu desagrado
conhecido foram terríveis e extremos. Martise tinha ficado aliviada
quando ele os pronunciou inúteis e os interrompeu. Ele era um
tirano rigoroso a repreendendo quando fazia algo errado, mas tão
disposto a lhe mostrar a maneira correta de completar a tarefa.
Trabalhou com ela e com Gurn do amanhecer e até mesmo despois
do anoitecer, quando trabalhava distraída em suas traduções e
pesquisas na biblioteca à luz de velas. Ninguém questionava quem
era o governante aqui, mas Silhara trabalhava tão duro, se não mais,
do que eles e nunca se colocava acima de qualquer tarefa.
Mesmo agora, se escondia em uma laranjeira nas proximidades,
provavelmente golpeando vespas e se esquivando dos excrementos
de pássaros, conforme colhia frutas e amaldiçoava seu nome por
contundir seus ouvidos com sua canção de ninar. A imagem a fez
sorrir e afugentou o bolo de calor sedutor em sua barriga.
Ela foi salva de uma maior introspecção por um estrondo alto. Gurn
os chamava para o almoço. Seu estômago roncou em resposta, ela
fez um rápido trabalho de deixar o pomar, tirando o chapéu e
limpando o rosto e as mãos na bomba do poço.
Os olhos azuis do servo cintilaram quando ela apareceu na porta da
cozinha. Martise, agora acostumada com a sua linguagem
particular, corou e ergueu o queixo. — Está exagerando. Meu canto
não foi tão ruim, — ele bufou em desacordo e a empurrou para a
mesa.
Ela estava sentada e servindo o chá para todos quando Silhara
entrou pela porta. Seu rosto, ainda úmido por uma rápida lavagem,
era sombrio. Sentou em seu lugar costumeiro em frente dela.
Martise esperava um comentário ácido adicional sobre seu canto,
mas ele só se dirigiu a Gurn.
— Precisamos de chuva. Essa seca já durou muito tempo. Algumas
das árvores mais jovens estão deixando folhas cair. Se continuar
assim, teremos pouca floração no outono.
As características normalmente amáveis de Gurn ficaram tão
escuras quanto as de Silhara. Ele terminou de preparar o resto do
almoço e sentou-se. A cozinha estava em silêncio até que Martise,
comendo e com curiosidade, falou.
— O que isso significa para o seu pomar?
Silhara encheu seu prato com queijo, pão, fatias de carne de porco
assado e tomates pequenos do jardim de Gurn. — Uma má colheita
para o próximo ano, — ele deslizou a sempre presente bacia de
laranjas em direção a Gurn. — Muita queda de folhas significa
menos flores. Menos flores significa menos frutas. Menos frutas
para vender, significa menos dinheiro feito. Nós passaremos fome,
— ele usava aquele meio-sorriso familiar e irônico. — Ainda bem que
eu sou o mago dos corvos. Nós vendemos a nossa magia como
hourins vendem seus corpos.
Todos sabiam da aversão do Conclave pelos magos que usavam os
seus dons como um trabalho para ganhar dinheiro. O título dado a
Silhara de Mestre dos Corvos não era um elogio.
Ela estava contente de beber chá e ouvi-lo conversar com Gurn e
planejar sua viagem para Eastern Prime. Ela não mais observava
espantada enquanto comia. A primeira vez que ele se sentou para
almoçar com ela e Gurn, ficou boquiaberta enquanto ele consumia
um pedaço de pão, uma meia roda de queijo, um frango inteiro,
cinco ovos cozidos e uma tigela de azeitonas.
Ela esperava que ele comesse mais no almoço do que no café da
manhã, mas ele a surpreendeu. Depois de horas de trabalho no
bosque, ela estava morrendo de fome na hora do almoço e isso com
o mingau de Gurn aderido as suas costelas. Não sabia como Silhara
conseguia trabalhar com tão pouco café da manhã. Sua refeição
escassa de chá e duas laranjas pela manhã não seguraria uma
criança até o meio-dia. Ele compensava isso no almoço. Não era de
se estranhar que o servo cozinhasse pão suficiente para um exército
e mantivesse um viveiro cheio de galinhas aninhadas.
— Você encontrou alguma coisa sobre rituais de Deuses? — Ele
disparou um tomate em sua boca e mastigou.
Ela fez uma pausa em passar manteiga em uma fatia de pão. —
Apenas algumas coisas e nenhuma que fala de derrotar um deus
através de magia. As crônicas Dalatianas mencionam um deus
destruído pela descrença. Mas isso levou gerações para realizar e a
introdução de um novo deus.
Silhara apunhalou uma fatia de carne de porco com sua faca. —
Gerações? Isso é um luxo de tempo que não temos. Duvido que
Corruption se contente em esperar mais algumas centenas de anos
antes de tomar o controle.
Ela assentiu com a cabeça. — Antes de vir para Neith, houve rumores
de pragas estranhas nas províncias do sul. Culturas morrendo sem
causa aparente e fome nas áreas periféricas.
Ele fez uma careta. — Um deus impaciente é perigoso, — ele juntou
as mãos e olhou para ela por cima dos seus dedos. — Tente mais
duro. Minha biblioteca é extensa. Deve haver alguma coisa.
Um grunhido de frustração subiu em sua garganta e ela o engoliu.
Ele não tinha lhe dado uma tarefa fácil. Sua biblioteca era
extraordinária. Uma sala de prateleiras que se estendia do chão ao
teto, cheia de tábuas, edições e rolos de manuscritos de folhas soltas.
Alguns pareciam quase novos, enquanto outros se despedaçavam
sob seus dedos, tão antigos que sua tinta havia se tornado mera
sombra no pergaminho amarelado. Não tinha dúvidas de que
alguma joia de informação estava escondida naquela montanha de
conhecimento, mas a busca provou ser monumental e esmagadora.
Ela possuía um talento único para lembrar cada detalhe que tinha
lido, cada conversa que ouvia. Mas ela era uma mulher entre
milhares de documentos.
Silhara a ajudava à noite, quando seu trabalho do dia no bosque
estivesse terminado. Às vezes almoçavam na biblioteca, com Gurn
pegando livros das prateleiras altas, enquanto ela e Silhara
examinavam páginas de palavras arcaicas, procurando aquela
cerimônia que pudesse ajudá-los. Embora seu dom fosse poderoso,
ele não possuía suas habilidades com tradução nem sua memória.
Ele decifrou os textos muito mais devagar do que ela. Houve
momentos em que ele a mirou com um olhar especulativo quando
ela o orientou para uma página específica, de um grimório
específico, para obter mais informações. Até agora, seus melhores
esforços tinham sido infrutíferos, Martise estava tão frustrada
quanto ele pela falta de progresso. Tente mais. Ela olhou para o
prato.
— Martise, abaixe a faca. Há mais do que algumas pessoas ansiosas
para esculpir meu coração. Você terá que tomar o seu lugar na fila.
Ela olhou para cima, assustada. Diversão iluminava seus olhos
escuros. Ela olhou para a mão, fechada em torno da faca de comer
em um aperto de morte. A faca bateu na mesa com um estrondo.
Limpou a garganta e parou um pouco antes de pedir desculpas
quando seus olhos se estreitaram. — Eu não estava...
— Não estava o que? Sonhando com maneiras de esfolar o meu
couro e pregá-lo à porta do meu quarto? — Ele riu em um som
áspero. — Você é melhor do que a maioria em esconder seus
pensamentos. — Ele fez uma pausa, seu olhar baixou. O timbre de
sua voz mudou, suavizando e aprofundando. — Mas você tem uma
boca expressiva. O que você esconde em seus olhos é revelado lá.
Seu estômago deu um salto mortal contra as costelas. Ela lambeu o
lábio inferior. Seus olhos ficaram mais negros do que o feitiço mais
proibido. Ela respirou fundo, tão nervosa por sua reação a suas
palavras como com as próprias palavras. — Eu vou tentar mais.
— Eu estou certo que você vai. — Ele arrastou o olhar para Gurn. —
Retire a arca grande que fica no canto perto da janela sul e a
desbloqueie. Ela pode procurar nesses grimórios.
Ele olhou para trás. Sua voz estava rouca novamente. — Vamos
tentar algo novo hoje à noite. Eu tenho livros retirados de Iwehvenn
Keep. Tomos velhos com escritos sobre Wastelands e sua magia
antiga. Pode não haver nada de útil para nós, mas vale a pena dar
uma olhada.
O gole de chá que ela tinha tomado azedou em sua boca. Ela engoliu
em seco. — Iwehvenn Keep? O reduto de Lich?
Ele assentiu. — O próprio. O comedor de almas está muito mais
interessado em banquetear-se com os espíritos dos viajantes
azarados do que em literatura. Ele não vai sentir falta do que eu
levei.
Martise lutou para manter sua boca fechada. Ela cresceu ouvindo as
histórias de horror do comedor de espíritos de Iwehvenn e as
infelizes vítimas do seu apetite voraz. Que Silhara tivesse
voluntariamente invadido a fortaleza de Lich e saído ileso era
extraordinário e um testamento da sua astúcia e da força de seu
dom.
Não era de admirar que o sacerdócio o temesse. Um mago jovem,
que comandava tal poder, era formidável e não facilmente igualado
e nem derrotado.
Silhara esvaziou o copo e se levantou. — Já perdemos muito tempo.
— Ele olhou Martise. — Gurn irá lhe mostrar onde eu mantenho os
tomos. Seus dedos podem doer. A mancha de Lich ainda persiste nas
páginas.
Ele a deixou com um lembrete de advertência. — Não cante na
biblioteca. Não cante em qualquer lugar. Se eu te ouvir, vou cuidar
para que fique tão muda como Gurn pelo resto da sua estadia em
Neith.
Ela levantou as mãos em sinal de rendição. — Não vou cantar. Eu
juro.
O resto do almoço foi rápido e sem complicações. Martise ajudou
Gurn a limpar a comida e lavar os pratos.
— Gurn, — disse ela. Ele fez uma pausa em arrumar a despensa. —
O bosque é mais do que uma fonte de renda, não é? Silhara ama
aquelas árvores.
Mudo, mas hábil em expressar seus pensamentos e opiniões, ele
colocou os longos braços sobre a porta da despensa e a olhou com
sombria aprovação. Mesmo que não tenha confirmado sua
suposição, sabia que estava certa. Silhara prezava seu pequeno
laranjal da mesma forma que um outro homem apreciaria uma
amada esposa ou filhos. Martise franziu a testa, estranhamente
perturbada por sua observação. Ela ainda tinha que descobrir sua
heresia, mas ela tinha encontrado sua vulnerabilidade.
O pensamento inquietante ficou com ela enquanto fez seu caminho
para a biblioteca e para os tomos que aguardavam sua leitura. Seu
suspiro de sofrimento ecoou na sala cavernosa, muito diferente de
sua reação ao ver a biblioteca pela primeira vez. A biblioteca de
Cumbria em Asher era extensa, mas nada comparado com a de
Neith. Somente a do Conclave a igualava em extensão e variedade, e
essa biblioteca servia a centenas de sacerdotes e aprendizes.
Janelas estreitas, flanqueadas por estantes, filtravam luz do Sul e do
Leste. À noite, ela era muitas vezes distraída de sua leitura pelo
brilho das estrelas e da lua, penduradas como joias na janela que
emoldurava o céu noturno – e ficava aliviada por não conseguir ver
a estrela da Corruption a partir deste ponto de vista.
A câmara não estava tão empoeirada como na maioria das mansões,
mas estava longe de estar limpa. Grimórios e pergaminhos estavam
espalhados pelo chão e empilhados de forma aleatória nas
prateleiras. As duas mesas colocadas no centro quase sediam por ter
peso demais. Caixas abertas derramavam páginas soltas no chão.
Levou dois dias para descobrir uma maneira ordenada de conduzir
sua pesquisa e não se afogar em um mar de pergaminhos.
Gurn chegou e apontou para um pequeno baú escondido em um
canto perto das janelas sul. Ele o abriu com uma chave enferrujada
e uma nuvem de poeira subiu do interior do baú. Martise engasgou,
Gurn cobriu a boca com a bainha da túnica enquanto puxava a pilha
de grimórios e os empilhava no chão.
Ela olhou para a capa do primeiro tomo, cativada pelos símbolos
curvos gravado no couro rachado. Reconheceu a escrita, um
manuscrito extinto dos países do extremo norte que beiravam a
Waste Outland. Um de seus mentores do Conclave, uma antiga
sacerdotisa e escriba dessas terras distantes, lhe ensinara a ler o
Helenês primitivo.
— Lembre-se sempre, Martise, — ela tinha comandado em uma voz
débil. — São poucas pessoas vivas que sabem ler a antiga língua do
Norte. Muitos conhecimentos já estão perdidos.
Gurn pairava ao seu lado, olhando os livros com mais repulsa do que
fascínio. Ela acenou para ele. — Vá em frente, Gurn. Silhara
provavelmente está se perguntando o que está tomando tanto
tempo, — ela caiu de joelhos diante dos livros. — Eu vou ficar bem
aqui.
Suas mãos formigavam desagradavelmente cada vez que ela tocava
as páginas. A náusea leve fez seu estômago se agitar, mas não foi
suficiente para fazê-la abandonar o tesouro de informações diante
dela. Sentou-se mais confortável no chão e começou a ler.
O pôr do sol lançou longas sombras em seu colo. Martise levantou a
cabeça pela primeira vez em horas, consciente de uma dor no
pescoço e o início de uma dor de cabeça. A biblioteca tinha sido
preenchida por um matiz surreal, prateado por causa da ascensão
da lua e o último brilho de partículas de poeira.
— Uma mulher revestida com a luz da lua é uma bela visão, de fato.
Silhara ficou de pé sobre ela, sua aproximação silenciosa, como
sempre. Sombras invadiam os espaços sob suas maçãs do rosto e
destacavam o arco do seu nariz. Ele olhou para ela com os olhos
brilhando. — Você se esforçou mais, Martise? — Sua voz deteriorada
demais para ser um afago, acariciou sua pele.
Ela levantou o livro que segurava. — Eu o fiz, Mestre. E acho que
encontrei o seu deus assassino.
Capítulo
Nove
— O que quer dizer com a metade do ritual está faltando?
Silhara franziu o cenho diante da dispersão de papéis soltos que
Martise espalhou diante dele. As luzes de uma vela dançavam junto
com o brilho da lua que se movia pelas janelas da biblioteca. Martise,
sentada ao lado dele, beliscou a ponta do seu nariz. A ação lhe deu
uma pausa. Sua aprendiz, normalmente tão diligente em esconder
suas emoções, revelou sua frustação duas vezes diante dele.
Primeiro a faca que segurou em sua mão no almoço e agora está. Ele
não sabia se ria ou a repreendia. Mas não pôde resistir a
possibilidade de provoca-la.
— Você perdeu as outras páginas? Eu não gosto de descuido,
Martise.
Ele ouviu seus dentes rangerem. — Não, mestre. Não havia mais
páginas a perder, — ela esfregou as têmporas. Passava da meia-
noite, os dois haviam estudado este tomo em particular desde que
ele retornara à biblioteca e a encontrara sentada no chão, com os
livros de Lich espalhados ao seu redor. — Como você pode ver, as
páginas do livro estão faltando, — seu olhar de soslaio estava
hesitante. — É possível que algumas páginas tenham caído e ficaram
para trás quando você roubou... quer dizer, pegou os livros?
Ele se recostou contra sua cadeira e amaldiçoou. — É mais que
possível. É provável. Eu não tinha o desejo de relaxar e provar da
hospitalidade do comedor de almas. Essas páginas e outras mais,
provavelmente devem estar juntando pó na biblioteca de Iwehvenn,
— ele sorriu para ela. — E eu normalmente sou um ladrão
meticuloso.
Martise corou e baixou os olhos. — Eu não quis ofender.
— Ah, uma outra maneira de se desculpar. Você tem um
impressionante arsenal de declarações conciliatórias. Conheço
escravos menos contrito do que você, — sua boca expressiva se
apertou em uma linha fina. Ela tinha uma mandíbula elegantemente
curvada e um longo pescoço revelado por seus cabelos presos.
Silhara não tinha notado antes. Um truque do luar, ele pensou.
Enfeitada por um pedaço de brilho prateado que perfurava a janela,
ela o lembrou de uma borboleta noturna – sem cor à luz do dia, mas
etérea à noite.
Ele lançou um olhar feroz aos papéis com as suas linhas de escritos
arcaicos. Ele tinha ido razoavelmente bem com transcrição e
tradução durante seus anos no Conclave, mas suas habilidades
estavam longe da perícia de Martise. Estava muito ocupado
brigando com colegas aprendizes nos corredores sombreados,
aterrorizando seus professores com a força imprevisível de seu dom
e causando caos geral no reduto do Conclave.
— Leia de novo. Deve haver o suficiente para trabalhar encima.
Seu débil suspiro carregava uma riqueza de aquiescência relutante.
Silhara prometeu a si mesmo que iria escutar atentamente e não iria
ficar fascinado por sua voz enquanto ela lia a passagem pela terceira
vez.
— Na primavera da lua, antes que Waste tomasse as terras entre as
montanhas Kor e o mar gelado, treze reis se reuniram na colina de
Gladia para destruir o falso deus Amunsa. Desses treze, apenas uma
era das terras do sol. Birdixan. Ligados pelo sangue e pela luz, eles
juraram...
Silhara gemeu e levantou uma mão para detê-la. — Que os deuses
nos salvem dos pardos que divagam descontroladamente. Nós
ficaremos aqui até de manhã antes que este escriba morto chegue ao
ponto, — o leve sorriso de Martise diminuiu o cansaço em seu rosto.
— Você tem uma boa voz, Martise, mas eu quero ir logo para cama.
Vamos resumir.
Ele começou a marcar pontos relevantes com os dedos. — Há alguns
milhares de anos atrás, uma dúzia de reis magos se reuniram para
matar um falso deus que soa como um irmão de Corruption. Eles
invocaram a ligação de sangue, o mais forte e mortal ritual de magia.
Um dos reis, Birdixan, escolheu agir como mártir e se sacrificar no
ritual. Mas como?
Ela encolheu os ombros. — Precisamos das páginas que faltam.
— Diga-me algo que eu não sei, — ele tamborilou com os dedos no
braço da cadeira e amaldiçoou em voz baixa. Ele teria que voltar
para Iwehvenn e encontrar essas páginas. Se tivesse sorte, elas ainda
estariam onde ele as deixou cair, na biblioteca em ruínas do Lich. Se
sua sorte se mantivesse, teria que conseguir sair da fortaleza pela
segunda vez, vivo.
Junto com sua aprendiz.
Ela massageou as costas. — Seja qual for o ritual que os reis usaram,
eles foram bem-sucedidos. Não há Amunsa citado em histórias
depois dessa, ou templos em ruínas construído para ele, nem mesmo
no Norte.
Silhara sufocou um bocejo atrás da sua mão. Círculos escuros
rodeavam seus olhos e suas pálpebras caíam para meio mastro
apesar de seus melhores esforços para ficar alerta. Havia trabalhado
duro nas duas últimas semanas, acrescentando mais e mais
responsabilidades, esperando mais dela. Ela ainda estava aqui e
fazendo uma contribuição significativa para o funcionamento de sua
casa. Ficou satisfeito e aborrecido.
— Nós vamos viajar para Iwehvenn, — um olhar incrédulo se seguiu
a sua declaração.
— Nós? — Ela chiou.
— Sim, nós, — ele arqueou uma sobrancelha. — Eu não leio Helenese
antigo e há várias páginas faltando nesse livro. Há, provavelmente,
mais páginas perdidas de outros livros que eu tomei de Iwehvenn.
Preciso que você tenha certeza que estamos reunindo as páginas
certas. Eu não gosto de ter que fazer uma segunda viagem para o
covil do comedor de almas. E ao inferno que eu vou fazer isso uma
terceira vez.
Um engolir convulsivo trabalhou os músculos de sua garganta. —
Como é que vamos passar desapercebidos pelo comedor de almas?
Ele se levantou da cadeira. Martise rapidamente seguiu seu
exemplo. — Eu posso nos encobrir com um feitiço de ocultação e
essa magia vai enganar o Lich.
— Eu ouvi dizer que ele tem um grande poder e pode sentir um
homem vivo como um lobo cheira o sangue da sua presa.
— Você ouviu corretamente. Se alguma vez um predador mais
mortal existiu, eu ainda não o conheço, — ele ficou tentado a toca-
la, para passar os seus dedos na pele arrepiada de seus braços.
— E se ele nos atacar?
— Então nós vamos lutar para abrir caminho, é claro.
Ela estendeu as mãos. — Eu não sou uma guerreira nem uma maga.
Eu seria inútil em uma batalha.
Sua risada grosseira era áspera por causa do cansaço. — Eu não
preciso de uma lutadora forte e minha magia é mais forte do que a
de um bando de sacerdotes combinados. Se você puder ler Helenese
e lê-lo rápido, você será de grande utilidade para mim.
— E se a sua magia não for o suficiente? — Horror tingiu sua voz,
escurecendo seus olhos.
Sua reação era justificada. Todos os aprendizes do Conclave eram
ensinados sobre aqueles raros, mas devastadoramente poderosos e
malévolos seres, chamados de Lich ou comedores de almas. Ele
sabia o que aconteceria se o Lich de Iwehvenn os pegasse. Silhara
estava grato por ter tido tal conhecimento. Ele não teria que explicar
o perigo ou abala-la sobre os riscos envolvidos.
Ele sustentou seu olhar. — Vou te matar antes que ele te toque, — a
declaração contundente o fez estremecer. Por alguma razão
inexplicável, ele queria suavizar suas palavras. — Há coisas piores
do que uma morte limpa.
— Suponho que eu não possa respeitosamente recusar? — Ela deu a
ele um sorriso fraco.
— Você pode, mas você teria que deixar Neith, — isso, mais do que
qualquer lição brutal que ele poderia dar a ela, iria medir a sua
determinação. — Se eu não tenho nada para você traduzir, não tenho
utilidade para você então vou te mandar de volta para o bispo.
Muitas emoções passaram em seus olhos. Medo, aceitação, um
toque de raiva e acima de tudo, determinação. — Quando nós
saímos?
Seu respeito por ela cresceu. Estava aterrorizada, mas disposta a
acompanhá-lo. Uma mulher corajosa e uma sábia o suficiente para
aceitar seu medo. Isso a manteria viva. — Amanhã.
— Tão cedo?
— Eu quero colocar minhas mãos nessas páginas o mais rápido
possível. E eu tenho uma colheita para vender no mercado na
próxima semana. Jogar de gato e rato com um comedor de almas
não estava nos meus planos.
Ele apagou três das quatro velas que estavam acesas sobre a mesa.
A última lançou um raio de luz fraca ao redor dele e de Martise. —
Guarde os livros e os papéis. Vamos lidar com eles quando
voltarmos.
Uma vez no corredor, ele lhe entregou a vela. Como único ponto de
brilho no corredor escuro, a chama cintilou e dançou, emprestando
ao rosto de Martise um aspecto fantasmagórico dominado por seus
amplos olhos cor de cobre.
— Descanse o quanto puder, — disse ele. — E traga uma bolsa leve.
Uma troca de roupa e nada mais. Vejo você no pátio uma hora antes
do amanhecer.
Ela segurou a vela para ele. — Você não precisa disso?
A escuridão escondeu sua diversão. — Eu estou acostumado a viajar
por caminhos escuros, Martise. Você precisa da vela mais do que eu.
Ela balançou a cabeça em agradecimento e subiu as escadas. Ouviu
as tábuas do chão rangendo acima dele enquanto ela se dirigia para
o quarto. A vela era realmente mais útil para ela do que para ele. Ele
podia abrir caminho com fogo mágico, mas mesmo isso não era
necessário. Vivera em Neith por quase vinte anos e podia percorrer
seus corredores sinuosos, com suas curvas e pisos quebrados, de
olhos vendados.
A sonolência que o atormentava na biblioteca tinha desaparecido
quando chegou ao quarto. A lua brilhante, suspensa no alto do céu,
banhava a varanda e a câmara em prata. A estrela da Corruption
pairava abaixo dela, lançando sua própria luz febril sobre o bosque
e além das planícies planas. Silhara sentiu a proximidade do deus, o
seu olhar predatório. Melhor não dormir. Só podia imaginar os
horrores que o aguardavam no que devia ser um sono tranquilo.
— Você não tem nada melhor para fazer além de me irritar em meu
sono e sujar minha magia? — Ele lembrou as palavras de Martise. —
Você sabe, pestilências para criar? Aldeias para destruir? Cães
mortos para ressuscitar?
Ele preparou seu narguilé para fumar seu último trago da noite e
tentou ignorar o riso vazio que enchia sua mente.
“Manchar? Achei que você gostaria de receber essa pequena
amostra de poder. A minha oferta é ilimitada se você me aceitar”.
Silhara soprou na ponta da mangueira, observando como a fumaça
flutuava pela janela em redemoinhos fantasmagóricos. — Seu
pequeno “gosto” tornou meu dom sem valor por um dia. Não estou
interessado no que não consigo controlar.
Novamente, a diversão do deus raspou o interior de seu crânio.
“Somos muito parecidos, feiticeiro. Renda-se e você terá
supremacia sobre toda a magia. Seu Dom parecerá um brinquedo
de criança comparado a uma espada e você empunhará essa
espada com o poder de um deus”.
O tabaco especial, doce quando enchia pela primeira vez a boca,
ardia acre agora. Muito tentador. Ele não podia negar a persuasão
das palavras de Corruption. O seu Dom, a única coisa que o fazia
inteiro, que o fez igual àqueles que, de outra forma, poderiam cuspir
nele nas ruas, era uma bênção. Manifestando enquanto ele ofegava
por ar e se retorcia contra o aperto de seu carrasco, o poder do Dom
mudou sua vida, lhe dando um lugar acima da imundície e da
violência das docas de Eastern Prime.
O Conclave, já desconfiado da potência de seu Dom e da habilidade
com que o empunhava, entraria em pânico se aceitasse a oferta de
Corruption. Ambos sacerdócio e feiticeiro sabia que o Conclave seria
a primeira vítima da recém-adquirida divindade de Silhara. Seus
olhos se fecharam. As imagens agradáveis do famoso reduto
transformado em nada mais do que escombros e os sacerdotes,
especialmente o Bispo de Asher, presos ou executados, passava por
sua cabeça.
“Você não vê? Isso seria fácil para você com a minha ajuda. Sem
mais esforço do que esmagar um mosquito enfadonho”.
A voz de Corruption acariciava e acariciava, Silhara oscilava em seu
abraço. A memória de um sonho substituiu a fantasia da destruição
do Conclave. Um céu sem lua sobre um oceano negro e o leviatã
atravessando suas águas mortas. Ele abriu os olhos, de repente
desesperado para se assegurar que a lua e suas estrelas ainda
reinavam durante a noite. Abaixo dele, o bosque dormia sem ser
perturbado. Vivas e crescendo, as árvores eram testemunhas de sua
vontade de sobreviver e conquistar.
Seus lábios se curvaram em desdém quando a estrela do deus
piscou. — Deuses poetas, — ele exalou elos de fumaça na direção da
estrela. — Como se não estivéssemos já invadidos por homens tão
inúteis. Você fala em manejar espadas, de reis, riquezas e poder
imensurável. Mas o seu preço... — ele balançou a cabeça. — Eles me
chamam de um mago imundo agora. Ceder a você me fará nada mais
do que um sanguessuga inchado, sugando o sangue do mundo.
“Quem saberia que você é tão nobre? ”
Silhara riu, seu humor tão falso como o do deus. — Que nobreza há
em ser um falso boneco de deus? — Sua risada morreu
abruptamente. — Eu irei destruí-lo.
Corruption zombou dele. “Você poderia? Com que sacrifício? Você
está disposto a agir como assassino para fazer isso? Ou mártir? O
que você fará, Silhara de Neith, para permanecer pobre,
difamado... e livre? ”
Silhara colocou de lado o narguilé e fechou as persianas. Sua
câmara, lançada em uma escuridão súbita, tornou-se uma cripta. —
Você fez a pergunta errada, — ele disse para a escuridão
ininterrupta. — Melhor perguntar, o que eu não faria?
Capítulo
Dez
Se ela conseguisse sobreviver a esta jornada, Martise tinha a
intenção de matar seu antigo mestre no momento em que estivesse
livre. Ela passeava em frente a Gurn, que esperava com ela no pátio.
Até recentemente, sua aversão tinha sido reservada para Silhara e
seus métodos de ensino heterodoxo, mas o Mestre dos Corvos ainda
não a tinha enganado. Ela sabia desde o início que ele seria um
professor impiedoso e esperava o pior.
Ao contrário de Silhara, Cumbria a tinha enganado. Ele a advertiu
da natureza mutável de Silhara e de sua língua afiada, de seu poder
e de sua reputação. Mas ele minimizou seu papel como espiã. Se
aventurar nunca tinha sido parte do plano.
— Você só precisa fazer o que você é inigualável. Observe suas ações,
ouça suas palavras e lembre-se de cada detalhe. Ele vai se trair.
Nenhum homem, nem mesmo Silhara, pode esconder todos os seus
segredos para sempre.
— Ha! — Ela retrucou, ignorando o olhar perplexo de Gurn. Até
agora, o Mestre dos Corvos tinha feito um excelente trabalho de
esconder qualquer coisa que pudesse trazer a Justiça do Conclave
encima de sua cabeça. Ela não tinha visto nenhuma evidência da
influência da Corruption sobre ele nem qualquer interesse na
presença celestial do deus. Se o Conclave proibisse a colheita de
laranjas e o roubo de livros, Silhara era um homem morto. Caso
contrário, ela não tinha nada.
Os riscos que assumiu ao vir aqui valiam a pena para recuperar sua
pedra espiritual. Mas um Lich? Cumbria não mencionou o sentido
destemido de propósito de Silhara ou que tinha um comedor de
alma como um vizinho.
Seu cavalo de viagem estava ao lado dela e sacudiu seu xale com uma
suave exalação. Martise acariciou seu pescoço e arranhou um ponto
atrás da correia de freio. O cavalo, um animal castanho castrado e
gentil, estava muito longe das tensas montarias de Cumbria. Selado
e carregado com suprimentos, incluindo a besta de Silhara e um par
de facas longas, também aguardava a chegada de Silhara.
Martise olhou para Gurn. — Você acha que ele ainda está dormindo?
— Eu nunca durmo, aprendiz. Você deve aprender a ter um pouco
de paciência.
De costas para a porta da cozinha, perdera sua chegada. Como
sempre, ele se moveu em pés silenciosos. Ela se inclinou para
esconder seu espanto. — Bom dia, mestre.
Seu olhar deslizou sobre o xale, a túnica longa e as calças
improvisadas. Ele não era o único que não tinha dormido. Martise
passou as horas restantes antes do amanhecer cortando uma saia e
a costurando em algo parecido com os trajes adequados para
equitação.
Silhara usava seu traje habitual de camisa desgastada, calças pretas
desbotadas e botas. Seu cabelo, livre de sua habitual trança, caia reto
e sedoso sobre seus ombros largos, enquadrando um rosto aguçado
pela fadiga. Apesar de sua aparência rançosa e do cansaço em seus
olhos, mantinha o ar de um aristocrata poderoso, arrogante, seguro
de seu lugar no mundo. Às vezes, Martise achava difícil acreditar que
era filho de uma humilde houri.
Desviou o olhar, perturbada pelo agradável formigar que dançava
acima de suas pernas e através de sua parte inferior das costas. Ela
o achara atraente na primeira reunião e mesmo depois, quando ele
fez o melhor para assustá-la e abandonar seu propósito aqui. Agora,
mais acostumada aos seus caminhos e depois de testemunhar sua
lealdade com seus dependentes, estava ainda mais atraída por ele.
Cruzou os braços e em silêncio se censurou por tais sentimentos.
Tinha um papel a desempenhar, um objetivo a alcançar. O preço de
sua liberdade crescia a cada dia.
— Que pensamentos sombrios te atormentam tão cedo de manhã,
Martise? — Sua voz rouca a tirou de seus pensamentos e ela se
endireitou. — Você caiu dormindo de pé ali? Já lhe perguntei duas
vezes se você está pronta para partir.
Seu pedido de desculpas pairava na ponta da língua. — Eu estou
pronta, Mestre. Eu só me perguntava quanto tempo a nossa viagem
poderia durar.
— A maior parte do dia. Vamos acampar cerca de três milhas fora de
Iwehvenn e alcançar a fortaleza em uma ou duas horas antes de
anoitecer. Nós vamos voltar para Neith na parte da manhã.
Sozinha com ele por um dia e uma noite. Mais se contasse a viagem
de volta. O nervosismo guerreava com uma ansiedade inquietante.
— Então não devemos nos atrasar.
Seus lábios se curvaram, mas ele não respondeu. O cavalheiro se
manteve imóvel quando tomou as rédeas, balançou agilmente sobre
as costas amplas do cavalo e acariciou seu pescoço sob os arreios. —
Você ficou gordo pela grama da planície, Gnat. Essa jornada te fará
bem.
Os olhos de Martise se arregalaram. — Gnat6? Seu nome é Gnat? —
Olhou para a montanha de carne de cavalo, fortemente musculosa e
de ossos grande, com uma circunferência que faria montar a cavalo
um desafio, com pelo menos três metros de altura.
Gnat balançou a grande cabeça em sua direção, como se
questionasse sua incredulidade. Silhara olhou por cima do nariz, a
expressão se tornou ainda mais imperiosa por seu assento alto nas
costas do cavalo. — Eu não achei que “Butterfly” seria adequado.
Fim...