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Arrebatador

Josiane Veiga
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obra sem a prévia autorização da autora.

Todos os direitos pertencem a Josiane


Biancon da Veiga
Sumário
Arrebatador

Prólogo

Capítulo 01

Capítulo 02
Capítulo 03

Capítulo 04

Capítulo 05
Capítulo 06

Capítulo 08

Capítulo 09
Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14
Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

DEMAIS LIVROS DA AUTORA


ESMERALDA
A INSÍGNIA DE CLAYMOR

A CANÇÃO DE OUTRORA

NO CALOR DOS SEUS BRAÇOS

DEMAIS OBRAS:

A autora
Prólogo

O Deus Negro

Não era o calor, nem tampouco o


ar carregado que o impedia de fechar os
olhos.
Ao seu lado, no leito, a bela
rainha Judith, com seus longos e
vibrantes cabelos vermelhos
esparramados pelas fronhas de linho
branco, ressonava sem se incomodar
com a insônia frequente do marido.
Quantas noites Angus, o Rei de
reinos, não dormia? Não sabia ao certo.
Perdeu as contas depois da segunda
semana em claro, enquanto a mente
vibrava em culpas e pensamentos
destrutivos.
Como havia chegado até ali?
Jovem, foi educado e treinado para ser
um bom monarca. E, definitivamente,
sonhou com isso. Ser justo como o
antigo rei Atho, ou ser corajoso como
Cedric. Porém, a vida havia passado, e
os anos lhe trouxeram a certeza de que
todos os seus sonhos haviam fracassado.
E tudo se resumia a isso: Aos
trinta e poucos anos, Angus era um dos
piores reis que os reinos já tiveram.
Não que fosse cruel ou corrupto.
Apenas, não tinha capacidade de lutar
contra a bestialidade que assolava a
realeza.
A maioria dos primos desviava o
ouro das aldeias, viviam em orgias
financiadas pelo suor dos pobres,
banqueteavam sem incomodar-se com a
fome que estava arrasando as terras de
Cashel e do interior de Masha.
E ele, o que fazia?
Até tentava se impor, mas o medo
e a timidez venciam e Angus baixava a
fronte diante de tanta crueldade e
malvadeza.
Lá fora o pio agudo de uma coruja
anunciava uma noite cada vez mais
profunda, arrastando-o para sua
escuridão.
— Quem você é? — o som de
uma voz masculina soou repentinamente.
A pergunta o assustou, fazendo-o
erguer-se rapidamente da cama.
Judith permanecia em seu sono, e
nada estava fora do local no quarto,
senão, a figura taciturna de um homem
negro, alto e sério, aos pés da sua cama.
— Quem você é? — o homem
voltou a perguntar.
O coração de Angus pulsou com
força no peito. Ele sabia quem era
aquele homem, mesmo jamais tendo o
visto antes.
Rezou para aquele ser de pele
semelhante a sua durante muitas noites e,
agora, enfim, pareceu que Cashel havia
ouvido suas preces.
— Eu sou um rei — respondeu,
um tanto temeroso.
Cashel lhe deu as costas,
caminhando em direção ao corredor.
Cravado em sensações poderosas e
absolutas, Angus o seguiu.
— Quem você é? — Cashel
voltou à pergunta, e aquela indagação
vibrou pelas paredes estreitas do
corredor.
Aquele local, chamado de
corredor dos reis, trazia retratos
daqueles que haviam reinado antes até
de Cedric de Bran. Era um local que
impunha respeito.
A pergunta ecoava em sua alma.
Já havia respondido, mas havia sido
sincero em sua resposta? Ele realmente
era um Rei? Ou apenas ocupava aquele
cargo sem condições para tanto?
— O que você vê? — Cashel
indagou, erguendo as mãos e apontando
os quadros.
Lá estavam figuras de tempos que
já haviam se findado. Reis e rainhas que
mudaram o mundo.
Passando o olhar por cada rosto,
Angus imaginou qual era a intenção
daquele Deus. Ele conhecia aqueles
rostos pintados, havia parado para
observar os quadros inúmeras vezes.
Cada um dos reis ali presente possuía o
sangue dos deuses sagrados.
— Eu não entendo — murmurou.
Cashel parou diante de um dos
quadros. Um ruivo de beleza exótica
encarava-os com seriedade.
— Cael de Masha, filho de Iran,
sem descendentes diretos, pois não se
casou com mulher — murmurou. — O
último ruivo com o sangue de Masha que
viveu.
Angus volveu o olhar para os
demais quadros, descendentes de
Esmeralda e Cedric. Morenos de beleza
escura ou de pele branca e cabelos
negros. Subitamente, confrontou-se com
a constatação de que o sangue feminino
da deusa havia se perdido no tempo.
— Os descendentes ruivos de
Esmeralda traíram a realeza, há muitos
anos — explicou-se. — Foram
desprovidos do direito ao trono.
— E, desde então, só nascem
mulheres ruivas. Mesmo quando elas
são mães de reis, seus filhos têm
cabelos escuros — Cashel completou.
Angus deu os ombros.
— Não entendo... Qual seu
objetivo nisso tudo?
— Um rei digno não é apenas
aquele que governa com determinação,
mas sim aquele que não tem medo de
entregar o trono para alguém que
realmente o mereça.
A frase caiu como uma bomba
sobre Angus.
— Para um ruivo? — inquiriu. —
Não há ruivos com sangue real há muitas
eras.
— Um ruivo nascerá em breve,
sangue do teu sangue, filho de uma
mulher de Masha e de um homem de
Bran. É dele o trono, preparado pelos
deuses antes mesmo de sua concepção.
Você, Angus, deve reinar até o rapaz ter
idade para ser rei. Não deve se envolver
na sua criação, permita-o aprender o
certo e o errado por si mesmo.
Um ruivo estava vindo ao mundo
para reinar? Judith estava grávida? Mas
a esposa, além da abastada idade, havia
sofrido muito na ultima gravidez, e a
parteira comunicara de que a rainha não
poderia mais ter filhos.
— O rapaz terá um temperamento
difícil. É proposital. Diante do que
ocorre nos reinos, um rei precisa ser
duro e bárbaro, para manter a dignidade
do povo. Você, Angus, é um bom
homem. Contudo, não consegue ser um
bom rei.
Era uma verdade, Angus sequer
tentou se defender.
— Esse menino nascerá de uma
de minhas filhas?
— O menino tem parentesco, mas
sua linhagem foi excluída da realeza.
Aquilo explicava muito. Havia
uma moça ruiva, afastada da família há
muito tempo, vivendo no frio norte.
— Será filho de Elisabeth? Um
Brace?
Cashel sorriu.
— É muito perspicaz.
— A única pessoa com sangue de
Esmeralda, que está excluída da
linhagem real é ela. Porém, soube de seu
recente casamento com Andrew de
Clark. Fico feliz, portanto, que o menino
terá sangue de um grande amigo.
Cashel nada respondeu.
— Não há nenhuma resistência de
sua parte, portanto?
Angus negou.
— Quando tiver idade, o filho de
Elisabeth será rei. Eu mesmo deixarei o
trono em suas mãos e irei me isolar nas
terras de Cashel com minha esposa e
filhos.
Curvou-se, levemente.
— Muito me honra ser um
instrumento da vontade dos deuses.
Cashel sorriu.
— Sua humildade e bondade
serão recompensadas pela felicidade,
Angus. Meus olhos sempre estarão sobre
ti.
Naquela noite, após tantas outras,
Angus dormiu um sono sem sonhos.
Capítulo 01

O filho ruivo de Masha

O farfalhar das folhas nas copas


das árvores era o único som audível
naquele dia primaveril aos arredores do
Castelo Branco.
Obviamente, não foi um som
isolado. Aos poucos, uma sinfonia de
vozes em gargalhadas animadas invadiu
a floresta, todas masculinas e juvenis,
enquanto corriam como se a juventude
fosse o combustível ideal de suas vidas.
Então pararam.
Diante deles estava a caça que
haviam perseguido durante toda a
manhã. Não uma caça para se
alimentarem, mas um animal para sua
diversão. Uma cadela marrom e feia, de
olhar assustado, e com a pele
arrebentada pelas pedradas que haviam
desferido contra ela anteriormente.
— Pega! — um dos maiores
gritou a ninguém em especial, enquanto
observava a corrida em direção ao
animal.
A cadela tentou correr, porém,
havia sido cercada.
Na sua vida de animal
indesejável, ela poderia pensar, caso
tivesse memórias, de que toda a sua
existência não havia sido muito boa, até
então.
Abandonada filhote, sobreviveu
comendo o resto que era jogado nas
ruas, bebendo a água das chuvas.
Teve muitas ninhadas de
cachorros, e todos os seus filhos
morriam nas mãos de garotos como
esses que, agora, queriam se livrar dela.
Se pensasse, talvez imaginasse os
motivos. Muito provavelmente, chegaria
à conclusão que era sua feiura associada
a sua falta de utilidade. Contudo, a
verdade, que ela jamais descobriria é
que aqueles garotos queriam matá-la
apenas porque ouvir seus uivos de
agonia era engraçado e porque a vida
em Castelo Branco era bem enfadonha e
matar animais era uma das poucas
diversões para jovens naquela idade.
Um chute.
A cachorra baixou-se,
choramingando de dor. Preparou-se para
o fim iminente.
Eis uma das grandes verdades da
natureza: o animal sempre sabe quando
tudo acabou. E, para aquela cachorra
marrom que ninguém queria, ali estava o
fim.
Com suas vistas nubladas, ela os
viu pegando pedras pontiagudas para
atirar em seu corpo já ferido.
Acabou... Acabou.
Mas, a vida é aquela pequena
coisa passageira que sempre reserva
surpresas. E a surpresa veio de um
assovio que cortou o ar, fazendo com
que os garotos olhassem para trás.
— É o filho do Lorde — um dos
jovens murmurou, derrubando as pedras
no chão.
Todos seguiram seu exemplo. O
rapaz ruivo que herdaria todas as terras
do norte surgiu diante deles, e seu
sorriso mordaz os arrepiou.
— Ora! — gracejou. — Por que
pararam a brincadeira? Achei que
estivesse divertido.
Iwan de Clark, o único filho do
lorde do Castelo Branco, tinha aquele
olhar verde-esmeralda que chegava a
machucar. Ele sabia deixar qualquer um
com medo sem sequer uma única
ameaça.
— Não estávamos...
— Oh, não? — cortou-o. — Está
dizendo que sou cego, agora?
Silêncio. Desde a infância, Iwan
não ganhara a amizade de ninguém
naquele local. Agressivo e violento, ele
parecia ser a própria encarnação de
Masha, com uma espada na mão.
Sua solidão, contudo, não dava
ares de lhe incomodar. Iwan era assim,
tranquilo com sua própria presença.
Bastava-lhe a mãe, a quem amava mais
que tudo, e aos animais, que pareciam
gostar daquele jeito bruto dele.
— Nós iremos embora, lorde
Iwan — um dos jovens comentou, já se
preparando para caminhar.
Iwan se colocou em seu caminho.
Tinha dezesseis anos, mas quando agia
com sua costumeira crueldade, parecia
ter bem mais. Era alto, de bela
aparência, e porte atlético.
— Não vão, não. Não acharam
engraçado bater na cachorra? —
indagou, a voz neutra, como se o assunto
fosse trivial. — Agora vão sofrer na
pele tudo que ela passou, para terem
noção do mal que fizeram.
Andrew Clark encarou a esposa
enquanto os pais aldeões dos garotos
que foram surrados reclamavam sobre
seu filho inconsequente.
— Me pergunto o porquê disso
tudo! — Um dos homens ergueu as mãos
para o céu. — Por uma cachorra de rua?
Sentada adiante, Elisabeth tecia
um casaco e parecia alheia a conversa
que aflorava os ânimos.
Diante dela a lareira colocava um
pouco de calor no ar um tanto fresco do
ambiente. Mesmo em plena primavera,
Castelo Branco continuava gélido.
— Falarei com Iwan, e ele será
punido por...
— Meu filho não será punido por
nada — Enfim, a mulher disse algo,
firme. — Muito menos por defender um
inocente, seja este humano ou animal.
Punam vocês aos seus rebentos por não
saberem respeitar a vida.
Andrew ferveu de alguma
maneira. Elisabeth sempre o confrontava
diante de qualquer um, sem medo de
represarias. Era tão diferente da mulher
que ele teve por noiva, tantos anos antes.
— Poderiam nos dar licença? —
pediu aos seus homens que,
respeitosamente, curvaram-se e se
afastaram.
Então, respirou fundo,
aproximando-se da mulher.
— Por que me insulta assim, Lis?
— perguntou, o tom cansado.
— Quando o insultei?
— Você acabou de me desafiar
diante dos meus homens. O que acha que
eles estão pensando? No quão fraco eu
sou por minha esposa.
O olhar verde dela voltou para
ele. Percebeu o fogo ali, camuflado, mas
vívido, a manifestar-se.
— Aquela cerimônia ridícula há
quase dezessete anos nunca me fez sua
esposa. Jamais o serei.
— Eu poderia tê-la tomado
mesmo contra a sua vontade, Lis —
argumentou. — Mas, não o fiz. Por
respeito.
— Iria me estuprar? — ela
ergueu-se, colocando-se diante dele. —
Estuprar a esposa do seu irmão?
— Não tenho irmão e você é
minha mulher! — ele ralhou. — Nós
dois poderíamos ser felizes se...
— Jamais poderíamos ser felizes
depois de você ter me arrancado do lar
que criei, do esposo que aprendi a amar.
Andrew respirou fundo. Apesar
da gana que havia em si, diante de tal
confronto, ele buscou paciência.
— Como pode chamar de esposo
aquele homem? Não se lembra de tudo
que encontramos ao voltarmos ao
castelo branco?
— Joshua estava preso no barco
— alegou. — Não foi ele que matou sua
mãe.
— Foi Anna — Andrew
contrapôs. — A amante dele.
Elisabeth fechou os olhos com
força. Aquelas palavras sempre a
feriam.
— Isso já tem quase duas
décadas. É passado — Andrew respirou
fundo. — Nós dois temos uma família...
— Iwan não é seu filho — ela foi
felina.
— Eu o criei como se fosse.
— Você nunca o amou — ela
rebateu. — E você é a pessoa
responsável por meu filho jamais ter
conhecido o pai. Portanto, não tente
vitimar-se porque a única vítima nessa
história toda é Iwan.
Andrew a encarava como se
nunca a tivesse visto antes.
— E eu, Lis? E você?
— Você fez a sua escolha e eu fiz
a minha. Apenas Iwan vive na
ignorância.
Como se estivesse cansada da
discussão, ela virou-se de costas ao
marido e se afastou.
— Meu filho não será punido por
nada. E se alguém for falar com ele
sobre o incidente dessa manhã, serei eu.
Juro por Masha que se tentar puni-lo, eu
mesma o matarei.

— Você gosta dela, não é?


Andrew voltou o olhar para Flora.
A prostituta braiana que o servia há
algum tempo o encarava com nítida
duvida.
— De quem?
— De Lady Elisabeth, ora essa!
— É minha esposa — ele
retrucou, sem pestanejar.
A mulher sorriu, curvando-se
diante dele, esfregando os seios
desnudos no peito masculino.
— Falo de paixão — ela
murmurou. — Muitos lordes toleram
suas esposas por necessidade, mas
quando vejo seu olhar para ela, percebo
aquele brilho de espera, como se você
realmente buscasse retorno de
sentimentos.
Andrew fechou os olhos enquanto
pensava nas palavras de Flora.
Anos antes, ele havia banido o
irmão bastardo e tomado Elisabeth para
si. Descobriu, ao retornar para Castelo
Branco, que sua casa havia sido
marcada por Anna, sua primeira esposa.
Sua mãe, Sophie, havia sido brutalmente
assassinada, enquanto um dos servos
também tivera mesmo fim.
Ordenou uma busca a Anna, mas
só lhe encontraram o corpo esfolado e
estuprado, atirado de um penhasco.
Ninguém pranteou a mulher, nem mesmo
a irmã, Elisabeth, que tinha o olhar seco
e frio, durante o enterro.
Anna não teve lápide, da mesma
forma que seu nome foi banido das
terras do Castelo Branco. Não apenas
Anna, mas Joshua também. Nomes
proibidos, inclusive de se darem a
crianças recém-nascidas.
O tempo encarregou-se de apagar
lembranças, e o nascimento de um
garotinho ruivo, quase sete meses depois
daqueles acontecimentos, fez com que as
conversas mudassem de rumo.
Um ruivo! Um ruivo!
Era o que se dizia, em todas as
prosas. Há quanto tempo um legítimo e
masculino descendente te Masha não
nascia? Até mesmo o Rei Angus lhe
enviou uma missiva parabenizando-os.
Porém, Andrew não conseguia
amar a criança. Até tentou, mas era
impossível. Não porque não tivesse seu
sangue, mas sim porque não era seu
filho.
Jamais deitou-se com Elisabeth.
Ela sempre o recusou, e ele nunca
insistiu.
Porquanto, aquele garoto que tinha
sim seu sangue nas veias não era seu
filho, e sim seu sobrinho.
Mais que isso, Andrew via seu
irmão Joshua na forma de Iwan falar, de
andar, até mesmo de segurar os garfos
para comer.
Apesar de o menino ser uma cópia
da mãe, a personalidade assemelhava-se
muito ao verdadeiro genitor. Até mesmo
o fascínio por Elisabeth.
Iwan era loucamente obcecado
pela mãe. Recusou-se a viajar para
pajem, e a estudar nas terras além mar.
Não deixaria a mãe, e somente sairia do
lado dela se alguém o vencesse na
espada.
Ninguém o venceu.
Nem na espada, nem no intelecto.
Os professores que conseguiu para
educá-lo assustavam-se com o
pensamento rápido, e os soldados que
deviam ajudá-lo na arte da defesa
pessoal, sempre perdiam as batalhas
para ele.
Então, Andrew acabou-se por
dar-se por vencido. O que mais poderia
fazer além de esgueirar-se com
prostitutas enquanto os anos passavam?
Jamais teria uma esposa, filhos e
uma família. Culpa de si mesmo, de seus
erros, de suas escolhas. Culpa também
daquela vagabunda por quem foi
apaixonado na juventude, e do irmão, a
quem amou mais que tudo.
Afastou os pensamentos,
voltando-se a Flora.
— O que um homem deve fazer
para conquistar uma esposa que o
odeia?
A braiana pareceu se compadecer
de seu cliente antigo.
— Se eu soubesse a verdade
sobre o amor, não estaria me vendendo e
sim estaria feliz ao lado de um marido,
meu lorde.
A sinceridade de Flora o fez rir.
Então, puxou-a para seus braços,
trazendo-a para mais uma sessão de
amor.

Adam sorriu para a cachorra feia


enquanto lhe fornecia um pedaço de
carne seca.
Próximo dele, acariciando a
cabeça de um cavalo velho e preto, o
ruivo Iwan parecia alheio a tudo.
Naquela manhã, quando o jovem
surgiu trazendo nos braços a cadela
machucada, Adam sorriu, recordando-se
de alguém que costumava, ali naquele
mesmo celeiro, cuidar dos animais com
o mesmo carinho.
Adam era um homem de trinta e
poucos anos, que havia crescido no
Castelo Branco e vivera lá por toda a
sua vida. Filho de um lavrador, havia
aprendido o ofício dos cavalos com um
dos homens que assumira o posto do
irmão bastardo do lorde que ninguém
citava o nome.
Contudo, aquele cavalo em
especial, ao qual Iwan tocava, ninguém
mais ousava se aproximar.
— Sou a única pessoa de quem
Tormenta gosta — Iwan murmurou,
como se lesse seus pensamentos.
O cuidador dos cavalos assentiu,
incomodado com uma verdade: antes de
Iwan, Tormenta havia demonstrado
carinho apenas para outra pessoa.
Espantou os pensamentos, porque
de nada lhe servia envolver-se com os
problemas da nobreza.
Subitamente, o som de passos fê-
los voltar-se a entrada. Diante do
estábulo, Lady Elisabeth surgiu com sua
eterna face pacífica. Porém, o filho
sabia que havia labaredas de fogo no
olhar calmo.
— Adam, pode nos dar licença?
O servo curvou-se e se afastou. A
senhora do Castelo Branco então se
aproximou do filho.
— Não comece — Iwan
reclamou, antes mesmo de a mãe abrir a
boca. — Covardes devem ser tratados
como merecem.
Elisabeth ergueu os dedos pálidos
e acariciou levemente o braço do filho.
— Não estou recriminando-o —
ela murmurou. — Apenas, existem
maneiras mais diplomáticas de resolver
as coisas.
— Não existem, mãe — o rapaz
negou. — Diga-me, quando nesse mundo
de Bran, Masha e Cashel, as coisas
foram resolvidas com conversa?
A mulher pareceu pensar. No
fundo, cria que o filho tinha razão.
Desde sempre, sua personalidade calma
lhe trouxe problemas. Agradecia aos
céus por Iwan não ter lhe herdado
aquela faceta.
Porém, na mesma medida, temia
muito por ele. Era jovem e
inconsequente. Precisava de um pulso
que ela não tinha. Mesmo assim,
esforçava-se para ser a melhor mãe que
pudesse.
— Prometa-me de que não vai
mais sair agredindo as pessoas.
Aquele pedido soou como uma
blasfêmia.
— Nem fodendo!
— Iwan! – O tom ficou furioso.
— Ainda me pergunto onde aprendeu
esse linguajar!
O filho riu, puxando a mãe para
seus braços e enchendo sua bochecha de
beijos.
— Prometo que nunca atacarei
alguém que não mereça — ele murmurou
contra seus ouvidos.
E naquele curto momento, mãe e
filho achegaram-se no abraço um do
outro.
Capítulo 02

O filho negro de Cashel

O nascimento de Liam havia sido


organizado há muitas eras, apesar do
garoto negro desconhecer tal fato.
E era assim, ora, o nascimento de
um predestinado. Determinado ser é tão
especial para os Deuses que eles
planejam cada detalhe de sua vida,
desde o nascimento até a morte, a fim de
prepará-lo para cumprir seu destino.
Na época do reinado de Cedric,
Lugus, o rei deposto de Cashel, havia
estuprado várias aldeãs.
Muitas delas tiveram filhos.
Dessas, em especial, uma garota de
catorze anos havia pegado barriga, e
lutou muito para ter seu bebê.
Os deuses olharam por ela.
Nasceu, daquela corajosa menina,
o primeiro de uma linhagem que teria
seu ápice em Liam, conhecido entre a
trindade como “O filho de Cashel”.
O menino era filho de uma negra
muito bonita, conhecida como Ralia, que
fazia sucesso no cais, e seduzia a
maioria dos marinheiros que
desembarcavam em Cashel.
Prostituta, ela não gostara nada de
saber da gravidez. Na época, era
requisitada por um braiano, por quem se
apaixonara, e o homem não pestanejou
em trocar de concubina ao descobrir a
barriga.
Com ódio pelo bebê, ela enfiou na
vagina agulhas grandes, e esforçou-se
para matá-lo ainda no ventre. Não
conseguiu. Era como se uma mão
invisível protegesse aquela criança.
Quando Liam nasceu, ela não quis
vê-lo. Pediu à parteira que o jogasse no
mar, mas a mulher se recusou. Todos
sabiam que os deuses não gostavam de
assassinato.
O menino foi criado, porém. Aqui
ou acolá, sempre havia uma prostituta
com bebê para lhe oferecer as tetas, e
alguém para lhe dar alguns centavos.
A mãe, Ralia, não o queria por
perto, mas logo viu nele a chance de
renda extra. Cada moeda de ouro que o
garotinho recebia, ia para seus bolsos e,
por isso — apenas por isso — ela o
aceitava.
A vida do menino, todavia, sofreu
uma brusca reviravolta.
Quando tinha sete anos, Liam
encontrou no cais um homem a limpar o
chão. Havia em seu olhar o fogo do ódio
e ele compadeceu-se imediatamente.
Porque o garoto sabia que o
sofrimento causava ódio. Liam lutava
contra a revolta todos os dias, como um
guerreiro bramando uma espada, diante
de um inimigo poderoso.
Ia vê-lo sempre. Algumas vezes, o
homem de cabelos longos e negros como
a noite, e de olhar escuro e ameaçador
sorria para ele, mas no geral, apenas lhe
dava a mais absoluta indiferença.
Algum tempo depois, aquele
homem conseguiu se tornar membro da
tripulação de AVASSALADOR, o navio
pirata mais famoso dos mares.
Numa das noites que retornou a
Cashel, a mãe Ralia atraiu a atenção
daquele abastado. Jogou sobre ele seu
charme, e logo esgueirava-se com ele
pelas mesas, em beijos desejosos e
lascivos.
Ciente do quanto ele ajudava no
orçamento, Liam surgiu entre eles, e
pediu uma moeda ao homem.
A mãe gritou com ele, mandando
que fosse embora. Pela primeira vez,
parecia querer um homem pelo que ele
era e não pelo ouro que carregava.
Assustado, Liam começou a
recuar.
— É seu filho? — lembrava-se do
homem indagar.
— Não tenho filhos. Essa coisa
apenas saiu de mim, mas não o amo, nem
nunca o amarei.
O homem arqueou as
sobrancelhas, como se as palavras
fossem costumeiras, como se já as
tivesse ouvido muitas vezes, como se
reconhecesse a dor de ser um bastardo
num mundo onde os tais eram
considerados mais sujos e podres do
que qualquer outra coisa. Então, andou
até ele e agachou-se, ficando a sua
altura.
— Ela não é sua mãe, então? —
perguntou ao menino, apesar de saber a
resposta. — E pai, você tem?
O garoto negou.
— Agora você tem — o homem
que se chamava Joshua sorriu. — Agora
você é meu filho. Pegue suas coisas
porque hoje mesmo embarcará comigo
para Masha.

Liam entregou o quadrante ao pai.


Joshua pegou o objeto e sorriu para ele.
— Agora você é um homem, meu
filho — disse, gentil, ao rapaz de vinte e
poucas primaveras. — Está na hora de
aprender a navegar como um verdadeiro
tripulante de Avassalador.
As palavras, entretanto, não
satisfizeram Liam.
— Diz isso porque pensa em
deixar Avassalador de lado e retornar a
Bran para se vingar do seu irmão e da
mulher que o destruiu, não é?
Silêncio. Joshua prosseguia a
encarar o mar que parecia infinito a sua
frente.
— Pai, quantos anos já se
passaram? Dezesseis? Dezessete? Por
que não esquece isso?
— Um homem jamais esquece
uma promessa, Liam. Eu não
descansarei enquanto não me vingar de
Andrew e destruir Elisabeth — seu tom
era mordaz. — Ela me fez acreditar em
amor, me enganou...
Joshua respirou fundo, tentando
controlar a raiva. Prática essa que havia
aprendido com o falecido capitão Ben,
homem que o encontrou a limpar o cais
em Cashel, o convidou para embarcar
com ele no submundo da pirataria.
Com Ben, aprendeu a controlar
Avassalador, a designar tarefas e a
pilhar sem matar ninguém. Quando o
antigo capitão caiu acamado pela peste,
deixou para Joshua seu navio e a
incumbência de prosseguir naquela vida.
Agora, Joshua queria o mesmo para
Liam.
Daria ao filho adotivo a única
coisa que possuía, antes de voltar a Bran
para vingar-se.
Esperou muito por aquilo, é
verdade. Durante os anos que foram
passando, ele conseguiu muitos tesouros.
Precisava de ouro mais do que do ar.
Jamais poderia atingir uma casa como a
de Clark sem estar protegido pela
ganância de gente que lhe serviria a tal
propósito.
Apelidou-se com um nome
próprio, alheio aquele que ficara para
trás. Os não íntimos o chamavam de
Tigre do Mar, por causa de sua posição
como pirata e de seu olhar sempre felino
e preparado para dar o bote.
— Se o senhor for, irei contigo —
Liam afirmou, sem medo.
Joshua negou.
— Estou indo para matar ou
morrer, meu filho.
— Por isso mesmo!
— Quero que perpetue o que Ben
nos deixou. Ele era um bom homem, e
merece ver Avassalador sendo guiado
por alguém como você.
Liam sentiu lágrimas vindas aos
olhos. Mas, tudo que fez foi assentir, a
contragosto.
Ralia esgueirou-se pelos lençóis
macios enquanto suspirava pensando no
amante. Desde que Joshua, o pirata,
havia adotado seu filho, ela fizera o
possível para embarcar com ele no
navio, e tornar-se sua amante fixa.
Provavelmente, pelo garoto, ela
conseguiu seu intento.
Não era apenas pela conveniência
de uma cama macia e de comida boa
servida pelos marinheiros, sua maior
alegria em estar ali era dividir o leito
com aquele homem grande, bonito e
poderoso.
Joshua a fazia fraquejar, as pernas
tremerem, e o coração balançar. Ela era
completamente apaixonada por ele, e
por causa dele, passou a tolerar o
moleque preto que colocou no mundo,
evitando ofendê-lo diante do amante.
Até tentou chamá-lo de filho, certa
vez, mas Joshua ficou possesso e quase
lhe agrediu.
“Você nunca foi uma mãe para
ele, não ouse tentar ser agora só
porque lhe é conveniente!”, ele gritou.
O porquê de aquele homem viril
amar o moleque Liam, era um mistério
para Ralia, mas ela passou a aceitar a
posição que conquistara na vida dele.
Vivia bem no barco, protegida,
alimentada e satisfeita com sexo bom
todas as noites. O que mais uma mulher
poderia querer?
Suspirando, irritada, ela pensou
que queria, no fundo, os sentimentos de
Joshua.
Contudo, para aquele pirata
bonito, não havia nada além de uma
vagabunda chamada Elisabeth, uma puta
ruiva que o trocou pelo irmão.
Joshua, o bastardo pirata,
respirava vingança. Pensava nisso dia e
noite, a cada pilhagem, a cada momento
que se aproximava o dia de retornar a
Bran e destruir tudo.
O som da porta abrindo fê-la
encarar o homem que entrava.
— Vamos ancorar em Cashel —
Joshua avisou. — Se quiser sair para
comprar alguma coisa, é o momento.
Depois, deu-lhe as costas como se
ela ou aquele assunto não tivesse maior
importância.
— Soube que irá deixar o navio
para o negrinho — Tajan, o taberneiro,
comentou, enquanto lhe servia uma taça
de cerveja preta.
— O negrinho tem nome —
Joshua devolveu. — É melhor ter
respeito!
O homem assentiu rapidamente.
— Peço desculpas, capitão.
Sempre esqueço que ele é seu filho.
Joshua bebeu a taça com
sofreguidão.
— Notícias de Bran?
— Tudo permanece a mesma
coisa, pelo que sei. Os navios com os
porcos e com as lãs do norte chegam
todo mês, e falam que lá está tudo em
paz. Porém, parece que aqui há três
meses o rei Angus dará uma enorme
festa, na qual fará um anúncio
importante.
O homem riu.
— É claro que vão festejar.
Gastando mais dinheiro à custa do povo
que passa fome — retrucou. — Preciso
de um favor.
— Estou sempre pronto a cumprir
suas ordens.
— Algum nobre sem recursos está
disponível para me ceder o sobrenome?
Fingir-se ser meu tio, ou coisa do tipo?
Preciso desembarcar em Bran em breve.
— Parece que enfim levantou o
recurso necessário para se vingar de seu
irmão — o homem comentou.
A vingança era conhecida por
poucas pessoas. O taberneiro Tajan, que
lhe deu emprego há quase duas décadas
quando lá desembarcou, era uma dessas
pessoas.
— Faz quase dezessete anos que o
vi pela primeira vez — Tajan murmurou.
— E o brilho de ódio no seu olhar
permanece o mesmo.
Joshua riu.
— Posso contar com sua ajuda?
— Sei de um nobre que perdeu
tudo no jogo. Nasceu em Bran, mas mora
há algum tempo em Cashel. Deve
fortunas a nobreza daqui. Pelo preço
certo, ele pode dizer que você é um dos
muitos sobrinhos que têm.
— Fale com ele então — ordenou.
— E consiga os documentos. Ambos
serão bem recompensados por isso.
Assentindo o homem apenas
curvou-se quando Joshua se afastou.
Capítulo 03

Maternidade

Desde a chegada da missiva


comunicando sobre a festa, até o
presente momento em que Elisabeth se
encontrava num dos quartos do enorme
palácio de Bran, decorreu cerca de três
meses.
Não queria comparecer. Não era
acostumada a festividades e, bem da
verdade, não havia nada a comemorar.
Ela se esforçava para ser uma boa
mãe, e para viver os dias sem dar cabo
da própria vida. Mal conseguia olhar
para o rosto de Andrew, e sempre estava
preocupada com o que o futuro
reservara ao ex marido, aquele a quem
ela jamais deixou de amar.
Porém, não se desafiava o Rei, e
por isso ela aceitou entrar no coche que
a levou até o enorme palácio, onde
lendários homens e mulheres exerceram
poder.
Muitas das matronas do lugar
haviam sido, na juventude, amigas de
Anna, e muitas a encaravam com nítido
deboche. Sabiam que ela havia sido
preterida em favor da irmã. E que só
havia se casado com Andrew quando
esse se tornara viúvo. O matrimônio
com Joshua jamais chegara ao
conhecimento geral, e tudo parecia um
sonho idílico compartilhado apenas pelo
povo do norte do reino.
Volveu o olhar para o marido, que
estava tão ou mais incomodado que ela
pela companhia forçada.
Andrew devia estar com saudades
da amante. Sim, Elisabeth sabia que ele
se esgueirava com uma bonita braiana
que se prostituía na cidade. Vira a
mulher algumas vezes na estrada, e até
lhe sorrira certa vez, agradecida por
livrá-la do fogo do marido.
Chamava-se Flora, pelo que
soubera. Ansiou por ter qualquer
conversa com a mesma, mas decidiu não
provocar mais escândalo. Ainda podia
sentir o peso dos olhares acusadores
sobre si daqueles que viveram em
Castelo Branco na época de seu
casamento com Joshua.
Provavelmente, criam-na uma
vagabunda, que deixara o marido unido
em sangue para deitar-se com o irmão
dele.
Não sabiam que ela preferiria
uma vida de penitência no templo que
compartilhar seus dias com Andrew.
— Nós já fomos os melhores
amigos, você lembra?
O tom complacente do esposo fê-
la encará-lo.
— Também já acreditei nisso —
ela murmurou.
— Nosso filho será homem em
breve, e ainda não conseguimos
restabelecer nossa amizade, Lis — ele
murmurou.
— Meu filho — ela corrigiu.
Sempre se incomodava, quando
ele se dava um titulo que não lhe
pertencia.
— Eu sei que me odeia, mas eu te
salvei, Elisabeth. Ele te enganava —
afirmou.
Ela fechou os olhos, mais uma
vez. Aquele assunto sempre surgia, vez
ou outra, e como sempre, a resposta era
de praxe:
— Não tenho como ter certeza, já
que nunca pude falar com ele sem sua
interferência.
Andrew negou.
— Ele a teria enganado com suas
palavras falsas. Teria jurado amor, e
pedido fidelidade. E, nas suas costas,
estaria se acostando com Anna.
Como aquilo machucava! Tantos
anos se passaram e ainda a feria
demasiadamente.
— O que importa? Anna está
morta e Joshua se perdeu nas curvas do
tempo.
— Exatamente — Andrew
reafirmou. — O que nos impede de
sermos amigos, novamente?
Não havia exatamente um motivo
claro. Apenas, um amontoado de razões
desconexas. A maior delas era o fato de
que Andrew havia tomado dela o direito
as próprias decisões desde sempre, e a
avassalado com seus mesquinhos
anseios.
— Como mulher, não tenho
permissão de tomar as rédeas da minha
própria vida — ela murmurou. — Mas,
reservo-me o direito de, ao menos,
evitar a sua presença o máximo que
puder.
Em segundos, Andrew se ergueu.
Ele parecia revoltado, mas não era dado
a rompantes de agressividade.
De cabeça baixa, Elisabeth
aguardou que sua revolta acalmasse e,
então, ele se afastasse como sempre
fazia. Porém, para sua surpresa, Andrew
aproximou-se dela e, puxando-a da
cadeira, beijo-a com ardor.
Revoltada, ela lutou para se livrar
daqueles braços e daquela boca
molhada que lhe deu ânsia, mas o
homem parecia firme e determinado.
— Solte a minha mãe.
O som da voz de Iwan enfim fez
Andrew se afastar.
Tão logo isso aconteceu,
Elisabeth encarou a figura determinada,
parada à porta, com o olhar possesso.
— Sua mãe é minha esposa, meu
filho — o homem retrucou.
— Ela não parecia disposta, meu
pai — ele murmurou.
Andrew deu os ombros, como se
não desejasse um combate. Então,
simplesmente desviou-se dela e de
Iwan, e saiu do quarto.
— A senhora está bem? — Iwan
questionou, aproximando-se.
Elisabeth encarou o filho com os
olhos lacrimejantes. Nunca quis que o
único vínculo que possuía com Joshua
soubesse o quanto ela era infeliz naquela
vida como Senhora do Castelo Branco.
— Vai ficar tudo bem, mãe — ele
sorriu, trazendo-a para um abraço. — Eu
prometo.
Cerrando os olhos, ela afundou o
rosto nos ombros gentis do filho, o único
lugar do mundo onde se sentia protegida.
Joshua encarava o papel que lhe
servia de documento com um sorriso
enigmático.
Enquanto se aproximava de uma
hospedaria, o Tigre do Mar, como era
conhecido, imaginou o que faria aqueles
tão abastados senhores que cruzavam
com ele se soubessem que o homem de
vestes impecáveis era um bastardo
deportado.
Entrou no local, e dirigiu-se a
bancada onde o gerente do local o
recebeu com um sorriso.
— Lorde Loray — o homem leu.
— É parente da casa Loray de Bran? Ou
pertence aos Loray de Cashel?
— Cashel. — mentiu.
— Conhece Lorde Varton?
— É meu tio.
Aquelas mentiras tinham preço.
Custara-lhe um baú de ouro.
— Sua família é muito querida
por aqui. Seu tio ainda é dado a jogos?
— Que homem não é? — riu.
— Pelo que vejo, veio para as
festividades.
— Sim, é verdade. Como não sou
da nobreza não posso me hospedar no
castelo. Procuro, portanto, por uma boa
hospedaria. Espero que a sua tenha
algum aposento livre.
— Para um Loray sempre há —
assentiu.

— Pergunto-me o motivo da festa


— Joshua bebeu um cálice do excelente
vinho.
O homem, que respondia pela
alcunha de Zereni, e que mantinha há
muitas gerações aquela hospedaria cara
a beira do cais de Bran, sorriu para o
novo hóspede.
Naquela noite ambos jantavam
juntos, trocando conversas sobre a
nobreza, as terras, os deuses e, enfim, o
rei Angus.
— Nosso Rei sempre tem um
motivo para festejar. Nunca, na história
dos reinos, houve tantas comemorações
sem propósito aceitável.
Joshua bebeu mais um gole.
Depois, pigarreou.
— Pergunto-me se todos da
nobreza estarão presentes. Lembro-me
de, na juventude, ter dançado uma valsa
com uma bela jovem De Brace...
— Anna de Brace? — o homem
indagou, imediatamente. — O senhor e
metade dos homens do reino dançaram,
se é que me entende — gargalhou. —
Bom, desculpe-me, não devemos falar
mal dos mortos.
— Mortos? A dama morreu?
— Há muito tempo. Era casada
com Lorde Clark, do norte. Já ouviu
falar? O coitado sequer imaginava que a
esposa era um dos nomes mais mal
falados da região. Enfim, por sorte, o
destino se livrou dela numa sucessão de
eventos trágicos para Andrew Clark. Ele
perdeu a mãe e a esposa na mesma
semana. Lady Sophie morreu dormindo,
no quarto, e Anna foi encontrada num
penhasco.
Joshua não se comoveu. Por
nenhuma delas.
— E depois disso? Casou-se
novamente?
— Sim, com a antiga noiva que
havia deixado de lado por Anna.
Elisabeth, se não me engano, era esse
seu nome. Enfim, essa não tem nenhuma
mancha no nome, mulher muito honrada.
Joshua bebeu novamente. A cada
gole, mais fogo centralizava-se no seu
estômago.
— E veio dela o evento mais
extraordinário dos últimos anos.
— Como assim?
— Pense um pouco, Lorde Loray:
quando uma jovem ruiva com sangue
predominante de Masha se casa com um
jovem de sangue predominante de Bran,
como seriam seus filhos?
A menção de crianças enervou
ainda mais Joshua.
— Um braiano — respondeu o
óbvio.
— Não é? Mas, acredite em mim,
da união deles nasceu um mashiano.
Mais que isso, um puro. Cabelos ruivos,
olhos verdes, pele pálida e sardenta.
Nada de Bran. Nada. É como se ainda
fossem da época dos reinados de Atho e
Iran. Da época que união de raças era
crime. Jamais vi algo igual. O rapaz é
surpreendente.
Joshua também ficou nitidamente
surpreso. Em muito pela característica
única, não vista há muitos séculos nos
reinos, em muito porque Elisabeth e
Andrew haviam constituído uma família
com filhos. Com certeza, sua lembrança
era apenas uma leve mancha na
felicidade de ambos.
O quão irado ficou diante de tal
fato!
Terminou a bebida e pediu
licença. Depois disso, rumou até o cais,
andando até um veleiro ancorado, um
dos seus muitos barcos extras, que usava
quando queria se aproximar das cidades
sem denunciar a presença de
Avassalador.
O filho estava lá, como se o
aguardasse. Nada disseram, até
chegarem ao quarto do capitão, onde
Liam havia traçado as rotas de fuga após
a concretização do plano.
A presença do jovem acabou por
ser tolerada de forma bastante incômoda
por Joshua. Liam se instalou naquele
barco e declarou que não iria embora
dali sem Joshua. Para evitar brigas,
enfim, o homem aceitou.
— Não irei mais sequestrar
Elisabeth — Joshua contou a Liam.
O rapaz abraçou o pai, num misto
de alívio e comoção.
— Não, não... — Joshua renegou
os abraços. — Não desisti da vingança,
apenas mudei os planos. Soube que ela
tem um filho. Andrew e ela, pais de um
ruivo. Algo muito extraordinário, não é?
Devem ter ficado enlouquecidos de
felicidade quando o menino nasceu.
Liam negou com a face.
— O garoto não tem culpa.
— Mas a vida não é isso, meu
filho? Pagam-se os inocentes pelos erros
de seus pais?
Liam parecia chocado.
— Que idade tem? É uma
criança?
Joshua deu os ombros.
— Não faço ideia, e também não
me importa. Não farei mal ao garoto, só
quero atingir os pais dele, antes de tê-
los em minhas mãos. Porque só a
vingança não basta. Não descansarei
enquanto não vê-los sofrendo... Muito.
Capítulo 04

Paternidade

Era como se todos os habitantes


dos reinos estivessem ali, naquele salão
enorme, oval, cercado de pilastras
adornadas com ramos e joias,
aglomerados em danças empolgadas
numa comemoração sem motivo.
Joshua, escondido não só pela
memória falha dos poucos que pudessem
tê-lo conhecido num passado já
longínquo, mas também pela máscara
que todos usavam, num símbolo em
homenagem a Cedric de Bran,
caminhava entre os pares, os olhos em
busca de uma figura conhecida.
Então, ele a viu.
Sentada próxima de uma janela, o
olhar perdido no horizonte escuro da
noite que já havia chegado. Alheia a
festa, e sem nenhum sorriso nos lábios
bonitos, única parte do rosto que a
máscara não escondia.
Parecia igual. O corpo não havia
mudado. Permanecia magra, mas ainda
tinha um belo par de seios que lhe dava
exuberância. Os cabelos ruivos, agora
com alguns fios mais claros, estavam
presos num coque modesto.
Na mesa diante dela, não havia
bebida, nem comida. Diferente do resto,
não parecia estar se divertindo. Isolada,
ela apenas transparecia sofrimento.
E talvez fosse esse motivo que fez
seu coração bater tão forte no peito que
quase o sufocou.
Enquanto andava vagarosamente
em sua direção, palavras malditas há
muito pronunciadas agora se cravavam
em sua mente:
“Por favor, me permita ser feliz”.
Por quê? Por que, Elisabeth? Se
tudo que queria era estar ao lado de
Andrew, porque agora seu olhar perdido
entre as árvores dos campos longínquos
só lhe transparecia infelicidade?
“Eu jamais amaria um bastardo”.
Aquelas palavras ele levaria por
anos. Reviveu-as todas as noites, antes
de fechar os olhos. Imaginou-a
divertindo-se ao lado de seu amor,
enquanto ele chorava em dor, pensando
nela.
Se não o amava, que não o
iludisse. Ele perdoaria o desamor, mas
jamais perdoaria a falsidade, as juras
nas tardes geladas de Castelo Negro, o
sexo desesperador, os gemidos baixos
indicando sentimentos.
Estava a centímetros dela.
E era como se ainda estivessem
milhares de quilômetros longes.
Lutou contra a ânsia de tomá-la
nos braços, abraçá-la, beijá-la, roubá-la
para si. Por fim, tudo que fez foi
estender sua mão, num claro e mudo
convite para uma dança.
Elisabeth volveu o olhar para ele.
Apática, ela não deu sinais de tê-lo
reconhecido. Talvez, percebesse a
semelhança, mas não mais via aquele
jovem com quem desposara naquele
homem de cabelos longos e pele
queimada do sol.
— Eu não danço — foi tudo que
ela disse.
E voltou a olhar para a janela.
Ora, ela dançava. Recordou-se da
única festa que tiveram juntos, do bailar
durante toda a noite, da felicidade que
parecia transportá-los a outro mundo.
Mas, aquela Elisabeth parecia morta e a
mulher de agora era seca e desgostosa
demais para qualquer pretensão.
— Eu insisto.
Diante de sua voz, ela voltou o
olhar. Percebeu a duvida no olhar por
trás da máscara, o rosto sério, mas
transparecendo algo além do que as
palavras pudessem expressar.
Ela o havia reconhecido? Ela
estava feliz por aquilo?
— Você não ouviu, seu bosta? —
A voz masculina e enfezada chegou até
ele. — Minha mãe disse não, então vá se
foder bem longe dela!
Joshua ficou pasmo pelas
palavras descomedidas. Voltou o olhar e
deu de cara com o ruivo de quem
falavam.
O filho de Elisabeth só tinha dela
a aparência. Que temperamento
incontrolável, que gênio difícil! Sequer
o conhecia e já sabia que ele era como
um leão ferido.
— Iwan! — Elisabeth se ergueu,
bastante irritada.
— Você disse não, mas o
cabeludo aí deve ter ficado confuso,
então estou reforçando.
Joshua quase riu. Quantos anos
tinha aquele garoto? Quinze? Dezesseis?
Como podia falar assim com alguém que
tinha idade para ser seu pai.
Subitamente, o ruivo se
aproximou dele. Podia sentir sua
respiração irritada contra sua face.
— Fica longe da minha mãe,
entendeu? Não gosto de gaviões a cercá-
la.
Depois disso, pegou Elisabeth
pelo braço e pareceu prestes a sair com
ela do lugar quando o som de uma
clarinete indicava a entrada do clero.
Mais uma vez, o suspiro irritado.
Joshua notou que qualquer coisa parecia
despertar raiva no jovem.
— Vamos sair pelo outro lado,
filho — Elisabeth murmurou a ele.
— Não vou fugir porque nada
devo a esses religiosos.
— Iwan... — ela tentava dissuadi-
lo.
Porém, era tarde demais. Logo o
sacerdote supremo de Bran se
aproximava deles. Parou diante da
dupla, enquanto Joshua observava-lhes a
reação.
— Filho de Masha — o homem
citou. — Sua presença é um alento.
Era quase possível ouvir um
razinzar baixo e zangado, e foi difícil
para o pirata esconder o riso.
— Curve-se diante de mim, meu
garoto.
Ocorreu um silêncio aterrorizador
enquanto o rapaz ruivo arrancava a
máscara e encarava o sacerdote.
— Por que motivo faria isso?
— Sou o sacerdote de Bran.
— Só respondo a Deusa Masha, e
apenas a ela me curvo.
Passos alterados se fizeram ouvir.
Andrew surgiu, de onde Joshua não fazia
ideia, e parou diante do filho.
O irmão bastardo ficou pasmo.
Aquele homem de olhar abatido era o
mesmo lorde que havia entrado em
embate com ele tantos anos antes?
— Curve-se agora, Iwan!
— Se algum homem ou mulher no
salão quiser que eu me curve, que me
desafie a um duelo. Se eu perder, me
curvarei. Porém, se eu vencer, é sinal de
que Masha está ao meu lado e não tolera
que eu me curve a esse clero corrupto
que vende a dignidade do Deus Bran por
ouro e favores.
Andrew ergueu a mão diante da
blasfêmia, mas Elisabeth se colocou
diante do filho.
— Não ouse... — ela murmurou.
E era a primeira vez que Joshua
via aquela mulher como uma leoa que
sempre imaginou que ela fosse.
— Você o educou como se
educaria um moleque sem eira nem
beira, um menino das ruas, um bastardo!
Os modos dele são dignos dos piores
selvagens — Andrew estava
alvoroçado.
— Eduquei sobre as leis de
Masha, a Deusa que ele e eu servimos.
Se você e sua religião traíram os deuses,
isso em nada importa a nós.
Joshua percebeu a animosidade
entre ambos, e ficou feliz por isso.
Havia, então, problemas no paraíso?
— Uma mulher desafiando os
deuses e o próprio marido, e um filho
rebelde — o sacerdote quase gritou,
diante de uma plateia que parecia adorar
o espetáculo. — O que dizem os livros
sobre tal coisa? Merecem ou não um
castigo público?
Subitamente, uma gargalhada. O
riso frouxo de Iwan denotava sua falta
de preocupação.
— Toque na minha mãe e ganhará
uma passagem direta para o submundo,
sem direito a retorno — ameaçou ao
sacerdote sem rodeios.
Definitivamente, Joshua gostou
daquele garoto. Sinceridade e coragem
sempre o atraíam.
Logo, o soar de vozes alteradas
deu lugar a um silêncio sepulcral. O Rei
Angus aproximou-se do embate. Ele
parecia sério, e parou diante de Iwan.
— Entendo agora, meu caro Iwan,
porque Masha te colocou no mundo —
murmurou. — Prometi a Cashel, muitos
anos atrás, que jamais interferiria na sua
educação. Não soube os motivos de tal
pedido, mas compreendo que eles
queriam que Elisabeth te educasse de tal
forma a qual não conhecesse o medo
nem o respeito. Porque, francamente,
não há homem nesse reino que mereça
um ou outro.
As palavras do monarca foram
devastadoras sobre os sorrisos
vencedores que os membros da corte
mantinham. Um por um, eles foram
ficando sérios e preocupados.
— Meu Rei — o sacerdote
chamou-lhe a atenção. — O jovem Clark
cometeu grave ofensa aos deuses.
— Já li os livros de Bran, Masha
e Cashel inúmeras vezes e nunca li
nenhuma referência sobre me curvar
diante de um sacerdote — Iwan
retrucou.
— Você leu? — O clérigo estava
possesso. — Alguém não preparado
pelos deuses não tem percepção para
compreender as escrituras.
— É engraçado que diga isso,
quando claramente eu sou um escolhido
de Masha.
A discussão parecia sem fim,
portanto, Angus apenas ordenou para o
sacerdote se afastar. Os olhares
enfezados mantiveram-se contra mãe e
filho, apesar da proteção do rei.
Em um canto, Joshua permaneceu
parado, ouvindo o que se seguiria.
— Sempre tão silenciosa,
Elisabeth — Angus sorriu. — Me
surpreende que tenha educado Iwan com
tal temperamento.
— Não caia no erro da maioria,
majestade — ela devolveu. — Não
confunda quietude com fraqueza. Eu
faria qualquer coisa por meu filho.
— Não a estou recriminando,
parente — ele negou. — Estou admirado
de sua força, e feliz por ela. Haverá um
dia, durante esse festival, que entenderá
minhas palavras, mas ainda não é o
momento.
Ela não estava interessada em
nada referente aquilo, então apenas
curvou a fronte, submissa. No fundo,
tudo que ansiava era que as festividades
terminassem logo e ela pudesse voltar
para Castelo Branco e para sua vida
anônima.

Elisabeth acariciou os cabelos


ruivos, com tal gentileza que o filho
sorriu.
Era sempre assim, entre eles. Na
hora de dormir, Iwan vinha até ela,
sentava-se em seu colo, e permitia que a
mãe lhe fizesse cafuné enquanto lhe
cantasse canções.
Claro que depois de certa idade,
ele não mais coube no colo feminino, e
precisou sentar-se na cama. Porém, o
rosto ainda dormitava em seu peito, e os
dedos pálidos ainda lhe traziam alento.
— Você é a minha pessoa favorita
no mundo inteiro — a mãe murmurou. —
Meu filho, minha vida...
O ruivo sorriu. Normalmente, ele
aceitava aquelas palavras como um
desejo de boa noite e voltava ao quarto,
para dormir.
Porém, naquele dia, naquele
quarto estranho no palácio, ele
simplesmente ergueu o torso e a
encarou:
— Como pode me amar tanto se
odeia meu pai?
Ela sorriu.
— Não odeio seu pai.
E era completamente sincera.
— Mal consegue olhar para ele.
Será que algum dia poderia contar
a verdade para Iwan? Como ele
reagiria?
— Amei seu pai mais que tudo
nessa vida, e ainda o amo, apesar de...
Emudeceu. As lágrimas pareciam
queimar sua garganta.
— Perdoe-me — Iwan pediu. —
Não queria aborrecê-la.
Trazendo-o novamente para seus
braços, Elisabeth o apertou.
Palavras que jamais poderiam ser
pronunciadas apertavam-lhe a garganta
como mãos de um devorador cruel.
Porém, o sentimento que ainda
acalentava seu coração lhe dava a
certeza de que poderia proteger o fruto
de Joshua com sua própria vida.
Porque agora ela era mais que
uma mulher... Ela era mãe.
Capítulo 05

O reencontro

Durante os dias que se seguiram


as festividades, Iwan tentou passar suas
horas sem ater-se a insuportável
presença do clero e da nobreza, sempre
tão arrogante e fútil.
Sentia falta da liberdade do norte,
dos animais que lhe serviam de amigos e
da solidão das próprias ideias.
Aliás, analisando friamente tal
pessoa, podíamos dizer que Iwan era do
tipo que olhava para a própria vida e se
via alguém completamente livre, e não
solitário.
A falta de companhia era
completamente preenchida pela mãe. E
apenas ela parecia lhe bastar.
Com o pai, o relacionamento era
mais difícil. Andrew jamais ficava ao
seu lado, e já havia tentado, algumas
vezes, ser duro em sua disciplina.
Porém, ele sempre esbarrava na
interferência de Elisabeth.
Enquanto caminhava pelo cais de
Bran, naquela manhã ensolarada e um
tanto quente, Iwan pensou na mãe.
Elisabeth se transformava quando
o assunto era o filho.
A sempre tão quieta e reservada
senhora do Castelo Branco, mostrava as
garras quando era para proteger seu
rebento. Analisando melhor, Iwan notou
que muito do afastamento do pai
Andrew se devia pela mãe, que não
gostava da presença do outro em sua
vida.
— Nunca o deixe tomar as
decisões que cabe a você — ela lhe
aconselhou, certa vez.
Era como se, no passado que Iwan
desconhecia, o Lorde Clark tivesse
cometido graves erros que resultou
naquele casamento completamente
infeliz.
Subitamente, sentiu a presença de
alguém a observá-lo.
Volveu o rosto. Na multidão não
havia faces conhecidas, mas Iwan tinha
o sangue arredio de Masha. Logo ele
percebeu o olhar fixo de um homem.
Era alto, cabelos longos e negros,
e olhar escuro e inquisidor. Parecia
assustador, naquela postura séria, mas
Iwan nada temia.
Percebendo que o olhar do outro
não desviava de si, ele se aproximou.
— O que quer? — exigiu, já
perdendo a paciência.
— Sou Lorde Loray — o homem
apresentou-se.
— E isso devia me dizer alguma
coisa?
Joshua gargalhou.
— Você é tão direto.
— Sou muitas coisas, Lorde sei-
lá-o-quê. E nenhum dessas
características te diz respeito. Agora,
diga-me logo o que quer?
Por que demônios aquele garoto
atrevido e sem papas na língua lhe
causava tanta simpatia? Sabia terem o
mesmo sangue, Iwan de Clark era seu
sobrinho. Mesmo assim, ele era filho
das duas pessoas que Joshua mais
odiava no mundo.
— Você não parece em nada com
sua mãe — Joshua murmurou, atraindo a
atenção do outro. — Nem de seu pai.
O olhar de Iwan arregalou-se.
— Conhece meus pais?
— Num passado muito distante,
Andrew já foi meu melhor amigo, e
Elisabeth a pessoa mais importante de
minha vida.
Iwan não escondeu a dúvida no
semblante.
— Nunca ouvi falar de ti.
— Muitas coisas você
desconhece.
O retruco dos lábios felinos quase
surgiu, não fosse à interrupção pelo som
auspicioso das pessoas a dar passagem
ao clero.
— Mas que merda, cara... —
ouviu o suspiro irritado.
Joshua encarou ao longe o
sacerdote. O homem, ao vê-los, e ainda
ressentido pela noite anterior, não
deixou de se aproximar.
— O filho de Masha que diz
claramente que não responde aos outros
deuses — o clérigo comentou, num
cumprimento informal. — Em outras
épocas, seria morto pela audácia.
— Nessa também, não fosse à
interferência do rei — Iwan devolveu.
Joshua quase não conseguiu
segurar o riso que brotou no seu íntimo.
O que era aquela criatura tão atrevida?
— Tem sorte por Bran ser
benevolente.
— Tem sorte o senhor dos deuses
serem piedosos — Iwan voltou a
rebater. — Não o fossem, todos os
religiosos já estariam mortos.
O sacerdote mordeu o lábio,
irritado. Porém, decidiu que não era
bom para sua imagem travar aquela
discussão e se afastou, seguido dos
devotos que encaravam Iwan com raiva.
— Você definitivamente odeia os
religiosos — Joshua comentou. —
Pergunto-me o motivo.
Iwan voltou-se para ele.
Acreditou que receberia mais palavras
cruéis, mas o tom parecia calmo.
— Se um homem, seja ele quem
for, clama a seu povo que tenham pelo
próximo amor e misericórdia, o povo o
rejeita ou o aceita de forma monótona e
passiva. Mas, um homem, seja ele quem
for, faz um discurso alvoroçado e clama
por ódio contra alguém ou um grupo
excluído, o povo se atiça e vai à luta.
Respirou fundo, antes de
prosseguir.
— Essa é a função da religião:
dar algo a que se odiar. Veja bem, caso
pedissem amor, logo estariam
esquecidos. Mas, enquanto apontam
algo, uma minoria qualquer, tornam-se
arautos de uma perseguição. É assim que
possuem poder.
Joshua pareceu impressionado.
— Na época de Rainha
Esmeralda, eram os imundos,
miscigenados de raças. A filha dela,
Brione, a Liberta, puniu tal blasfêmia.
Então, com o tempo, passaram a caçar
outra classe. Encontraram, então, nos
bastardos uma desculpa aos seus
deslizes.
Olhou para o céu.
— Um filho bastardo carregaria o
pecado da profanação do corpo de seus
pais. Ora, vamos pensar com
sinceridade, como uma criança poderia
ser culpada por tamanho erro? Não
deviam ser os pais os punidos?
Acontece que a maioria dos pais são
Lordes poderosos, e os templos sabem
que perderiam recursos se perseguissem
os nobres.
Voltou a olhar para o cais. O olhar
verde brilhou.
— Da mesma forma, eles
incentivam a crueldade contra os
animais. Não é um cachorro ou um gato
algo inferior a nós, homens? Então,
vamos maltratá-los porque isso nos é
direito — ridicularizou. — Acontece
que nenhum dos deuses aceitaria tal
coisa. Os animais deviam ser protegidos
e amados por nós.
Então, novamente, encarou
Joshua.
— Lorde Loray, todos lembram
que Masha é a deusa mãe, mulher, e
forte. Mas, parecem esquecer que ela
também é justiça. E a justiça não faz
acepção de classes nem de gêneros. A
justiça é para todos.
Depois disso, afastou-se,
deixando um Joshua fascinado para trás.
— O garoto é simplesmente
impressionante.
Liam bebeu um pouco do vinho,
antes de voltar a encarar o pai.
— Pensa em desistir da sua
vingança?
— Não, é claro que não. Porém,
fazer sofrer alguém com aquela
personalidade é quase um crime. Os
reinos merecem um Iwan de Clark a
atirar-lhes na cara todas as suas
maldades.
O negro assentiu.
— Perguntei por aí sobre o ruivo.
Dizem ser o demônio com a espada. Que
durante um festival de verão, anos antes,
caminhava pelo cais e vários homens
tentaram emboscá-lo por conta da sua
personalidade revoltante. Tinha catorze
anos e quase matou cerca de quinze
homens armados com espada. Isso sem
sequer suar. Só foi impedido pela mãe,
que surgiu na hora.
Joshua acreditava naquilo.
— Não podemos capturá-lo com a
espada, porque é quase impossível.
Teremos que dopá-lo — encarou o filho.
— Liam, terá que se aproximar do
garoto e beber cerveja com ele. Irá
colocar um elixir do sono em sua taça.
O outro assentiu. Um tanto
acanhado, depois, mudou de assunto:
— Pai, perdoe-me perguntar, mas
o que sentiu ao ver Elisabeth?
Joshua respirou fundo.
— Eu não sei... — admitiu.
— Não foi ódio?
— Entranho que desenhei uma
Elisabeth maldita, desgraçada como a
irmã. Porém, a mulher que vi naquele
baile parecia à mesma a qual amei,
tantos anos antes.
Liam pareceu compreender algo
além das palavras de Joshua.
— Já pensou na possibilidade de
nem tudo ser exatamente como ocorreu?
— Como assim?
— E se Elisabeth foi tão vítima
quando o senhor?
— Ela disse olhando nos meus
olhos que nunca amaria um bastardo —
prevaleceu.
— Mas ensinou o filho que a
religião persegue os bastardos sem
motivo, e o fez lutar contra isso. Talvez
devesse esperar um pouco mais, estudar
melhor a...
— Pensei bem por todos esses
anos, Liam. Não mudarei de pensamento
agora.
O rapaz então aquiesceu, sem
saída.

Amália, uma menina serva de


Castelo Branco e que viajara juntamente
com a Senhora Elisabeth para a corte,
abotoava o colete de sua lady enquanto
os olhos arregalaram, diante do tom.
— Era a voz de quem?
— De alguém que conheci há
muito tempo, querida — Elisabeth
comentou. — Quer dizer, não tenho
certeza, já se passaram tantos anos, e o
homem se escondia por trás de uma
máscara. Além disso, ninguém sem
sobrenome poderia entrar no baile real.
— Suspirou. — Esqueça o que eu disse,
é apenas uma besteira sem propósito.
Repentinamente, Iwan entrou no
quarto e encarou a mãe. Amália,
respeitosamente, curvou-se diante dele e
afastou-se.
— Já ouviu falar num tal de Lorde
Loray?
A mãe volveu para ele, negando.
— Nunca ouvi tal nome.
— Ele me disse que no passado
era amigo de meu pai e seu — contou,
sem preparativos. — Achei estranho
porque nunca ouvi seu nome sendo
citado em Castelo Branco.
A mão de Elisabeth tremeu, e ela
escondeu a reação alisando o vestido
bordado.
— Como ele era, filho?
— Cabelos longos, negros. Um
braiano. Parece com papai.
Não devia ser... Não devia ser...
— Não me lembro dele... —
disse, contudo. — Talvez se eu o visse...
— Ver quem?
A entrada obtusa de Andrew fez o
coração de Elisabeth quase sair pela
boca.
— Ninguém — ela respondeu
rápido. — Pode me acompanhar à sala
de chá?
Diante da postura conflitiva da
mãe, claramente Iwan preferiu ficar em
silêncio.
— É claro — Andrew comentou.
— Será um prazer.
Não foi um prazer. Para nenhum
deles.
Capítulo 06

O sequestro

Ralia entrou no convés do veleiro


que o filho mantinha a encosta de Bran
com rapidez. Seus olhos negros não
buscavam seu rebento, e sim seu amante.
Logo o viu, parado diante da proa,
a encarar o horizonte daquele mar
belíssimo tingido pela luz solar.
— Joshua — ela o chamou,
fazendo com que ele voltasse para ela,
pasmo.
— O que está fazendo aqui? Não
ordenei que permanecesse em
Avassalador?
— Disse que sua vingança seria
rápida, mas já faz uma semana que veio.
Estava preocupada.
O homem deu os ombros.
— Sua preocupação não me
importa. Quero que volte ao navio, pois
não desejo que atrapalhe meus planos.
Porém, a mulher negra mordeu o
lábio inferior, cada vez mais nervosa.
— Você a viu, não é? É por isso
que está olhando para o mar tão
apaixonadamente? Você ainda a deseja?
O homem achou melhor não
responder.
— O que eu penso sobre
Elisabeth é problema meu.
— Sou sua companheira há anos.
— Nunca foi minha companheira
— ele negou. — É apenas alguém que eu
fodo e pago bem pra isso.
Mãos femininas chocaram-se
contra seu rosto. Em segundos, ela o
agredia com os dois pulsos. Porém, o
pirata logo a segurou, firme.
— Cruel! — ela gritou. — Eu
achei que gostasse de mim!
— Como você pôde considerar
que eu lhe teria sentimentos depois de
ser testemunha, por anos, do desprezo
com que trata Liam? Se você é incapaz
de amar aquele que nasceu de ti, não é
capaz de amar a nada.
Então, soltou-a, sem piedade, com
força, contra o chão.
Ralia sentiu a carne doer de
encontro com a madeira do veleiro.
— Volte para Avassalador e não
apareça mais aqui.
Depois disso ele saiu, deixando-a
chorosa para trás.
Elisabeth entrou na hospedaria
com nítida apreensão. O coração aos
saltos, uma ânsia que mal conseguia
expressar tomando conta de sua alma,
uma felicidade mesclada a medo.
No fundo, creu que não devia
estar ali. Se o que desconfiasse fosse
verdade, e Andrew descobrisse, seria o
fim de Joshua. Mesmo assim, era como
uma tábua de salvação num mar revolto
em desespero.
Se fosse ele... Se fosse ele...
Apenas olharia para seu rosto. Apenas
isso. Mesmo que ele lhe dirigisse
palavras cruéis, o simples olhar seria
sua joia preciosa. Ela guardaria a
lembrança para todo o sempre.
— Bom dia — cumprimentou o
dono da propriedade que sorriu em
retribuição. — Procuro um homem que
responde por Lorde Loray — explicou.
O homem pareceu reconhecer o
nome imediatamente.
— Lorde Loray saiu nessa manhã
e ainda não retornou. A senhora deseja
deixar algum recado?
Talvez fosse melhor nada dizer.
Provavelmente, o homem devia ser
apenas alguém parecido, que havia se
confundido com os nomes. De qualquer
maneira, viu-se a abrir a boca:
— Diga-lhe que lady Clark esteve
atrás dele. E que eu gostaria de lhe falar,
se possível.
O homem assentiu e ela então saiu
do ambiente.
Não entendeu os motivos, mas em
segundos chorava.
O pai Joshua lhe deu uma única
pista de aproximação do ruivo: Iwan
gostava de animais. Com isso em mente,
Liam começou a planejar seus passos
para um encontro casual com aquele a
quem buscaria amizade.
Era ciente do temperamento
difícil, mas também sabia ser
compreensivo e bondoso. Responderia
qualquer palavra rude com gentileza.
Acreditava no poder das palavras
amáveis e esperava atrair Iwan através
delas.
Porém, o destino dos dois jovens
já estava traçado. E foi de forma tão
singela quanto um simples esbarrão
pelas ruas lotadas do cais.
Encararam-se por alguns
segundos, como se já se conhecessem,
depois, desviaram o olhar, e voltaram a
andar.
Liam sabia ser Iwan. Ora, era o
único ruivo existente. Iwan não sabia ser
Liam, mas de alguma maneira, sentiu
algo em seu íntimo. Era a irmandade de
Masha e Cashel que os criou juntos,
para juntos mudarem tudo.
Mais tarde, naquele mesmo dia,
Liam voltava ao barco. Ainda sem
planos, ele andava meditando no que
devia fazer.
Não era a favor da vingança. Ora,
o ódio nunca atraia coisas boas. Porém,
sabia que a mágoa de Joshua era por
demais enorme. E, depois de tudo que se
sucedeu entre ambos, o mínimo que ele
devia fazer era ajudar seu pai da melhor
maneira que conseguisse.
Foi naquele instante que esbarrou
num gato maltrapilho. Assustado, o
felino rugiu contra ele, numa clara
demonstração de medo.
Apiedou-se, enquanto erguia a
mão em sua direção. Com a palma
levantada para cima, demonstrou que
não faria mal. Então ouviu o ronronado e
o acariciou.
— Como conseguiu pegá-lo?
Atrás de si, o ruivo o encarava
com nítido interesse.
— O quê?
— O vi machucado ainda de
manhã. Passei o dia todo tentando
capturá-lo, mas não consegui.
Então, Iwan sorriu. Aquele
sorriso era tão bonito que Liam viu-se a
devolver.
— Se você estender a mão com a
palma para baixo, ele acreditará que
você está tentando feri-lo, está
ameaçando-o. Mas, se demonstrar
gentileza, ele vai perceber que é amigo.
Naquele instante, o felino
maltrapilho não foi o único a ganhar seu
primeiro amigo.

A taberna estava lotada, mas eles


nem percebiam. Sentados diante de uma
mesa, os dois rapazes contavam
histórias aquém das imagináveis.
Iwan era filho do gelo, cresceu no
norte de Bran, acostumado à neve fofa e
ao ar gélido. Liam, filho do mar, sentia o
sol forte contra o rosto todos os dias, a
água salgada era sua companhia e o
barulho das ondas uma terapia.
Cada um a sua maneira, eles
tinham muito a compartilhar.
Abaixo deles, dentro de uma
caixa, após tomar um pote cheio de leite,
o gato machucado dormia sem se
importar com o riso que ocorria sobre
sua cabeça.
— E sua mãe, como é? — Liam
indagou, depois de algum tempo.
Muito lhe interessava saber sobre
Elisabeth.
— Não existe outra mulher tão
maravilhosa nesse mundo.
Aquelas palavras apaixonadas
eram muito doces.
— E a sua?
Liam deu os ombros.
— Eu não tenho mãe — contou.
— Uma mulher me pôs no mundo, mas
não me aceita como filho.
O outro assentiu, compreensivo.
— Eu entendo isso, porque apesar
de, teoricamente, ter um pai, na verdade,
eu também não o tenho.
— Seu pai é um mau sujeito?
— Existe algo nele que não tolero
— admitiu, pela primeira vez na vida,
em voz alta. — Alguma coisa... Não sei
o que é.
Um pequeno silêncio surgiu,
enquanto os rapazes meditavam sobre a
palavra ponderada.
— Lembro-me de ler nos livros
dos reis sobre Cael e o quanto ele era
respeitador com Iran, mesmo o maldito
não merecendo. Gostaria de ser assim
também, mas não consigo.
Liam quis dizer algo, quando a
figura de uma mulher ruiva surgiu diante
deles.
— A sorte por uma moeda — ela
pediu, estendendo a mão.
Iwan não acreditava na sorte, mas
apiedava-se dos adivinhos pobres que
faziam seu espetáculo pelos bares do
cais a fim de ganhar trocados para
comer pão.
Então, estendeu a ela uma moeda.
Enquanto a mulher puxava seus
dedos e olhava com intensidade para
seus olhos verdes, Liam derramava,
discretamente, um líquido na caneca do
ruivo.
— Vocês são almas gêmeas.
A frase quase fez Liam derrubar o
pote. Por sorte, derramou o suficiente na
caneca e depois escondeu-o no casaco a
tempo do olhar de Iwan voltar-se para
ele, enquanto gargalhava.
— Está enganada, mulher — o
garoto ruivo retrucou. — Se tem algo
que eu não sou nesse mundo é comedor
de macho.
Liam quase riu junto, pelo tom
completamente divertido do outro.
Apesar das palavras serem rudes e
ignorantes, seu modo de falar era tão
nitidamente sincero e brincalhão que não
ofendia a ninguém ali, caso houvesse
algum homossexual no lugar.
Afinal de contas, desde Cael e
Kian, não era mais crime ter amantes
homens, até maridos.
— Acha que almas gêmeas são
apenas parceiras românticas? — Ela
inquiriu, calma. — Masha e Cashel eram
irmãos, e eram almas gêmeas. Randu e
Cael também. Às vezes acontece de
almas gêmeas se apaixonarem, mas na
maioria das vezes se descobrem irmãos.
Depois disso, afastou-se da mesa,
não sem antes aconselhar.
— Carece ainda estudar bem as
escrituras, ruivo de Masha. Embora
saiba muito, ainda tem muito que
aprender.
Enquanto ela se afastava, Iwan
pegou a caneca e bebeu tudo, num gole
único.
— Que mulher estranha —
murmurou ao outro.
Recebeu uma aquiescência como
resposta.
Momentos depois, as vistas
começaram a pesar e tudo tornou-se
escuridão.
Capítulo 07

Encontro

Havia um murmuro baixo, como


se gaivotas, ao longe, estivessem a
conversar entre si e não quisessem lhe
incomodar o sono.
Iwan remexeu-se em uma cama
dura de colchão de feno, e abriu os
olhos lentamente, mais chocado pelo
amargo da saliva do que pelo ambiente
funesto.
Levou cerca de dez segundos para
ele enfim perceber que não estava nos
habituais ambientes luxuosos que sua
família usufruía.
O balanço aos seus pés lhe
indicava que estava em um navio, mas a
escuridão do local fê-lo notar que estava
preso em uma cela.
Ergueu-se, habituando-se a pouca
iluminação.
Diante dele, grades grossas o
mantinham afastado de barris enormes
onde o cheiro de rum parecia asfixiá-lo.
De alguma maneira, tentou manter
a frieza para analisar sua situação. Tudo
que se lembrava era de estar bebendo
com o rapaz simpático que salvara um
gato no cais. Depois disso, escuridão.
Como fora parar ali? E, o mais
importante, por quê? Que interesse
poderia ter alguém nele?
Som de passos. Preparou-se para
visualizar o negro da taberna. As
palavras rudes e agressivas dançaram
entre seus lábios, ansiosas para se
tornarem audíveis.
Iria xingar tanto aquele
desgraçado! E ameaças! Iria jurá-lo de
morte!
Contudo, foi outra figura que
apareceu diante dele.
— Lorde sei-lá-o-que... —
murmurou. — Seu filho da puta, eu vou
te matar!
Joshua riu, enquanto puxava um
banco e aproximava-se da cela. Sentou-
se diante do jovem como se nada
temesse dele.
— Não me ofende, rapaz.
Primeiro porque Loray não é meu nome.
Eu sou um bastardo que atendo por
Joshua. Também, no reino, me chamam
por Tigre do Mar. E, segundo, porque
puta era realmente a profissão de minha
finada mãe.
Um pirata? O que um pirata queria
com ele?
— Não me interessa quem você é.
Exijo que me solte agora!
— Você exige? — Joshua riu.
— Eu sou o ruivo de Masha.
— Com todo o respeito, mas estou
cagando para a sua deusa.
O rapaz enervou-se
imediatamente. As mãos chocaram-se
contra as grades, e ele as balançou,
tentando movê-las.
— Apesar de saber de sua
habilidade com a espada, ela não fará
diferença para as grades chumbadas no
cimento.
Iwan gritou, de puro ódio.
— O que quer comigo, maldito?
— rugiu.
— Com você? Nada. Será bem
tratado aqui. Receberá alimento, água e
ninguém lhe fará mal. Minha intenção
não é machucá-lo de forma alguma.
Havia negação no olhar
esmeralda.
— Por que me prendeu? Que tipo
de psicopata é você? E o que aconteceu
com o rapaz que estava comigo?
— Liam é meu filho — explicou.
— Ele me ajudou a capturá-lo.
Fora confundido pela sinceridade
do outro, então? E ele que acreditou
haver encontrado um amigo!
— Iwan, não fique tão nervoso, de
nada valerá. Em breve, estará livre.
O outro ficou pasmo.
— Vai se arrepender — ameaçou.
— Porque uma hora terá que abrir essa
cela, e eu sairei. E quando isso
acontecer, eu irei matá-lo.
— Suas ameaças não me causam
nada, garotinho — Joshua retrucou. —
Já disse para se acalmar que ninguém
nesse navio te quer mal.
— Por que me prendeu, então?
— Há um motivo, mas não carece
saber dele. Não precisa se angustiar por
algo que não deve. É aquela vagabunda
que você chama de mãe, e aquele infeliz,
que chama de pai, que pagarão caro por
tudo que fizeram.
E sem mais palavras, Joshua
afastou-se, deixando o outro nitidamente
chocado.

— Jovens na idade dele estão


com o sangue em combustão, Elisabeth
— Angus riu diante do total desespero
da lady. — Deve ter encontrado uma
mulher bonita e está...
— Escute, majestade! Eu coloquei
Iwan nesse mundo, eu o criei, eu
conheço cada olhar dele, cada
respiração. Meu filho jamais iria se
enredar pela corte deixando-me em
agonia. Nunca, em todos esses anos, ele
se atrasou um único minuto...
— Lis, acontece que ele é quase
um homem...
— Ele tem dezesseis anos! Não é
um homem! É um menino!
— Que poderia fazer outro
menino, se assim o quisesse — Angus
gargalhou e os outros homens riram
junto.
Elisabeth apertou o tecido do
vestido, tentando conter o tremor nas
mãos. Andrew surgiu ao lado dela, e
sorriu em sua direção.
— Quanta besteira, Elisabeth —
deu os ombros. — Rapazes são assim
mesmo.
Que ânsia de levantar a mão e
bater nele. Além de ter destruído sua
vida, ainda desprezava seu desespero?
— Eu não te perguntei nada,
Andrew — ela murmurou. Depois,
volveu ao rei. — Se algo acontecer ao
meu filho tenha certeza que Masha
colocará fogo nas ruas de seu reino e de
todos os outros, majestade.
Aquela voz soou profética e
Angus se arrepiou.
— Só porque é a mãe do único
ruivo, não é sacerdotisa, Elisabeth —
um dos sacerdotes que lá estava a
desprezou.
— Meu ventre foi escolhido para
trazer Iwan ao mundo. De mim, ele veio.
E eu juro que se Masha não punir esse
reino, eu punirei.
Depois disso, ela se afastou.
O riso masculino inundou o
ambiente assim que ela sumiu pela
porta.
— Mulheres — Andrew
comentou, desprezando-a.
Angus, porém, negou.
— As palavras de uma
descendente de Esmeralda nunca devem
ser desvalidas. Há fogo correndo
naquelas veias.
Depois disso, o rei chamou um
dos guardas e pediu para que o homem
organizasse uma busca pelas ruas da
capital.

Lis ergueu a barra do vestido,


enquanto transitava pelas ruas
enlameadas do cais.
Tudo estava esquecido, naquele
instante. O homem que surgiu no baile, o
lorde que havia dito ao filho que a
conhecia, até mesmo a raiva por
Andrew. A única coisa que lhe
importava era encontrar Iwan, e logo.
Havia algo errado. Ela sentia
isso. E revoltou-se contra o rei por ele
ter ridicularizado suas emoções de mãe.
Fez uma ameaça em nome de Masha e
recriminou-se pela blasfêmia. Porém,
como ficar em silêncio diante daquela
afronta?
O que eles pensavam que seu filho
era? Um ser igual a eles? Ela não havia
criado um irresponsável e idiota, como
eram os demais jovens da corte. Iwan
era sério e responsável. Iwan jamais a
deixaria uma única noite em aflição.
A escuridão já dominava as ruas,
mas ela nada temeu. Não porque
houvesse segurança, bem da verdade,
Angus não tinha pulso e estupros eram
comuns das cidades maiores. Era sua
necessidade de procurar pelo rebento
que a guiava e lhe transmitia segurança.
Masha cuidaria dela...
Ela mesma cuidaria de si...
Elisabeth, subitamente, deu-se
conta de que não trouxera a espada.
Afastou os pensamentos, enquanto
andava em direção as tabernas. Se
alguém tivesse visto o ruivo por ali, lhe
daria alguma indicação.
Abruptamente, som de vozes.
Voltou-se em direção a uma esquina e
viu cerca de cinco homens lá.
O olhar deles cruzou-se com o
dela, por alguns segundos.
Elisabeth desviou o olhar
primeiro e voltou a andar.
Passos... Passos.
Pensou em correr, mas não quis
demonstrar medo. Voltou o rosto para
trás e percebeu os homens próximos,
cada vez mais rápidos.
Então ela ergueu o vestido e
correu. Se estivesse com alguma arma,
os enfrentaria, mas sem proteção, o que
mais poderia fazer?
Se chegasse a taverna, ou a
alguma hospedaria, conseguiria ajuda.
Mas, sozinha nas ruas desertas...
Tropeçou, caindo sobre as pedras
ásperas do cais. Logo estava cercada.
Não houve muito dito ou ouvido.
Ela gritou enquanto giravam seu corpo
para trás, e erguiam suas saias.
A intenção era tão clara quanto o
sol. Iriam estuprá-la como uma cadela,
num ato repugnante da imundície de suas
necessidades.
— Soltem a dama!
Uma voz jovem emergiu da área
escura de um dos becos. De lá, ela
visualizou um rapaz negro, de beleza
extraordinária. Muito jovem, idade
aproximada de seu filho, talvez um
pouco mais velho, mas com a mesma
integridade no olhar.
— Quer foder também, pirralho?
— Um dos homens indagou,
inescrupulosamente.
O garoto ergueu a espada.
— Eu não quero matá-los, porque
matar não é desejo dos deuses, mas se
for necessário, eu o farei — ameaçou.
O primeiro avançou diante das
palavras, provavelmente firme na sua
imagem de que a figura miúda do outro
seria facilmente derrotada. Contudo,
perdeu a vida segundos depois, após o
jovenzinho desviar-se de um golpe e
cravar a espada em seu coração.
Enquanto o homem caia morto, os
demais perderam a valentia. O som dos
seus passos em corrida indicou que
fugiam como os ratos que eram.
— A senhora está bem? — o
jovem indagou. — Chamo-me Liam.
Está em segurança — avisou, antevendo
o olhar assustado.
Porém, percebeu ser apenas
impressão. A ruiva não estava temerosa
e sim raivosa.
— Salvou minha vida. Sou-lhe
muito grata.
Sorriu. Era um sorriso tão doce.
Lembrava-lhe alguém.
— Desculpe-me o atrevimento,
mas percebo pelas vestes que é uma
distinta dama. O que faz nesse beco
escuro há essa hora?
Elisabeth colocou-se de pé.
— Meu filho sumiu — explicou-
se. — Talvez você o tenha visto —
comentou. — Ele se chama Iwan, e é
ruivo.
Liam abriu a boca, chocado.
Depois disso, negou com a face, numa
mentira que lhe cortou o coração.
— Senhora, não deve sair tão
tarde, desacompanhada. Irei levá-la até
a corte, onde ficará em segurança.
— Não voltarei sem meu filho.
Então, aquilo era a maternidade
tão lindamente clamada em canções?
Nunca experimentou tal sensação,
daquele tipo de amor. Iwan era
realmente um sortudo.
— O procurarei pela senhora, eu
prometo.
— Agradeço, mas irei
acompanhá-lo, portanto. Não irei para o
castelo descansar, sem saber onde e
como está meu Iwan.
Sem saída, o rapaz assentiu.
Capítulo 08

A verdade

Para alguém com sangue de


Masha tão latente nas veias, aquela
prisão era uma tortura sem igual.
Não apenas ela. A
indisponibilidade da espada, a falta do
sol contra o rosto, a ausência da mãe...
Tudo o tornava ainda mais fraco.
Naquele momento, pensou em
Esmeralda, a grande Rainha que Bran já
teve. Ela também havia sido
enclausurada. Como havia se sentido,
naqueles dias terríveis?
Quanto tempo ele ficaria ali?
E, acima de qualquer outra coisa,
o que significavam aquelas palavras que
o pirata havia dito a ele?
Qual era o envolvimento dele com
seus pais?
Negou com a face. Não, a mãe
amorosa e gentil jamais teria tido
qualquer contato com aquele bruto
desgraçado, sem honra. A mãe jamais...
Porém, por que havia a nítida
sensação de que havia verdade nas
palavras do maldito?
O sangue esquentou e ele sentiu a
raiva tomá-lo ao lembrar-se das
palavras que o tal Joshua desferiu.
“Vagabunda...”
Ele pagaria muito caro por aquilo.
Ninguém falava tal coisa de Elisabeth! A
mãe era a mulher mais honrada e
decente que ele conhecia. Incapaz de
praticar o mal. E, mesmo assim, era
difamada por aqueles lábios
amaldiçoados.
Repentinamente, o som de passos
na escada mudou seus pensamentos.
Ficou em pé, esperando pelo rosto
masculino, preparado para enfrenta-lo
com palavras, fazê-lo perder a cabeça e
abrir aquela cela.
Livre, Iwan era o demônio.
Ninguém o pararia.
Porém, foi o rosto bonito de uma
negra exuberante que surgiu diante dele.
Não precisou pensar muito para saber
que ela tinha parentesco com Liam.
Eram muito parecidos, apesar de haver
no olhar feminino uma réstia de maldade
que ela mal conseguia camuflar.
— Olá, jovem ruivo — ela o
cumprimentou com um sorriso animado.
— Eu sou...
— É a mulher do pirata! — ele
constatou, imediatamente.
Apesar de não ser verdade, Ralia
não escondeu a satisfação.
— Sou mãe do filho dele —
contou, sem pestanejar. — E você, pelo
que sei, é o filho de Elisabeth.
Como aquela gente conhecia sua
mãe?
— Qual é o seu envolvimento com
a minha mãe?
— Nem a conheço — ela deu os
ombros. — Mas, ouvi falar muito sobre
e ela e Andrew, nos últimos anos.
Silêncio. Havia conflito nos olhos
verdes.
— Trouxe para ti pão e vinho, a
fim de que se alimente.
Aquela gentileza não o enganava.
— O que o pirata quer com minha
mãe?
— E com seu pai, não se esqueça
de completar — ela riu.
Iwan não ligava a mínima para
Andrew.
— Eu me chamo Ralia — ela se
apresentou. — Sou a atual mulher de
Joshua, mas ele já teve muitas. Sua mãe
foi uma delas, há tempos que já se
foram.
Algo explodiu no íntimo de Iwan.
— Você mente, cadela! — gritou.
— Não minto. Se acha que sim,
um dia pergunte a ela. Claro, se a
encontrar com vida, depois de Joshua
acabar com ela.
Iwan segurou as barras de ferro e
passou a balançá-las com força,
querendo movê-las. Tomado pelo
desespero, ele sentiu as lágrimas vindo
aos olhos.
— Você ama muito sua mãe, não
é? Ela é a figura materna perfeita, aos
seus olhos — a outra se aproximou das
grades. — Mas, Elisabeth teve um
passado terrível. Você sabia que ela
tinha uma irmã?
Uma irmã?
— E Andrew, seu pai, um irmão.
Aquilo não podia ser verdade.
— Ambos são filhos únicos —
ele prevaleceu.
— Joshua é um bastardo, mas
cresceu em Castelo Branco. Ele é irmão
de Andrew e ambos se adoravam, até
que uma mulher, Anna, irmã de sua mãe,
surgiu na vida deles e os desgraçou. Ela
casou-se com Andrew, mesmo sendo
amante de Joshua. Elisabeth, que era
noiva prometida a seu pai, morta de
inveja e ciúmes porque Andrew a
preteriu por Anna, aceitou-se casar com
o bastardo, para não ficar sem marido.
Iwan negou. Aquilo jamais seria
verdade.
— Mas, então, um dia Andrew
soube a verdade, e quis a antiga noiva
de volta. Ele roubou Castelo Negro de
Joshua e o sobrenome que havia lhe
dado. Depois disso, livrou-se de Anna.
Então, ele e Elisabeth traíram Joshua, o
colocaram em um navio e o mandaram
para longe. Casaram-se, tiveram você,
viveram felizes para sempre, enquanto o
verdadeiro marido dela, o homem com
quem ela uniu o sangue diante de Bran,
limpava o vômito e o mijo dos bêbados
no cais de Cashel.
Ralia respirou fundo, antes de
prosseguir.
— Não faz ideia do quanto Joshua
batalhou nesses anos todos para
conseguir recursos e realizar sua
vingança. Nada tem contra ti, não pensa
em punir um inocente por causa daquela
puta ruiva e do maldito irmão. Mas, vai
se vingar. Isso é fato. Ele vai destruir
tudo que puder, ele vai avassalar com a
vida de Elisabeth. Quando sair dessa
cela, meu jovem, só encontrará o corpo
morto de sua mãe.
Depois disso, ela voltou-se para a
escada que dava acesso a parte superior
do navio.
— Se tocarem na minha mãe, eu
juro que eu os mato.
Ralia gargalhou.
— Então prepare desde já sua
vingança, porque é certo que o crime
daquela vagabunda não ficará impune.
E saiu.
Dentro daquela jaula, Iwan
sentou-se no chão. Chocado, destroçado,
amargurado. Toda aquela história
parecia uma grande mentira, e
provavelmente o era. Sua mãe jamais
seria capaz de fazer tal coisa. Contudo,
por que sentia que sempre houvera um
segredo terrível entre ela e seu pai
Andrew?

Conhecedor dos lugares onde


Iwan havia estado, Liam fez o possível
para levar Elisabeth pelas vielas
contrárias.
Andaram por ruas escuras,
visitando várias tabernas, hotelarias e,
por fim, até encontraram uma guarda
solicitada pelo rei que também buscava
pelo ruivo. Ninguém tinha novidades,
ninguém o viu.
— Se não encontrar meu filho, eu
não aguentarei essa vida, Liam —
Elisabeth murmurou, segurando-se em
seu braço solícito.
O jovem a encarou, comovido.
A mulher pintada por Joshua, nem
de longe, lembrava aquela pessoa doce
e de voz suave que agora se apoiava a
ele, em sofrimento.
— Iwan é seu único filho?
Ela o encarou, as lágrimas já se
derramando pela face.
— Eu sempre quis ter muitos
filhos, Liam. Mas, aconteceram tantas
coisas. — Suspirou. — A vida nunca é
como desejamos, não é?
Ele assentiu.
— Sempre quis ter uma mãe assim
— ele confessou. — A mulher que me
deu a luz me odeia.
— Não posso crer nisso —
Elisabeth negou. — Provavelmente ela
apenas tem dificuldade de demonstrar
sentimentos.
O outro negou.
— Engana-se, Milady. Nem todas
as mulheres querem um filho. A mulher
que me pôs no mundo não tem
problemas em manifestar seu amor ao
amante, ou aos outros homens. Mas, a
mim, só dirige palavras ásperas.
— Não a chama de mãe —
Elisabeth observou.
— Desde cedo aprendi que
chamá-la de mãe era uma ofensa grave.
— Breve silêncio. — Sou um bastardo.
Elisabeth parou os passos e
voltou-se para ele. A mão pálida
contrastou contra a pele escura do rosto
sofrido. Ela sorriu, calorosa,
transmitindo afeto, e então o trouxe para
um abraço.
— Isso não a ofende, Milady?
— O homem que eu amei também
o era — murmurou contra seus ouvidos.
— E ele foi o melhor homem que já
conheci.
Aquelas palavras cravaram fundo
na mente de Liam.
— Mas... — ele balbuciou,
incerto. — Milady é casada com um
nobre, não? Contou-me isso enquanto
andávamos.
— Sim, mas nunca amei meu
marido. Fui obrigada a esse casamento.
Enfim, faz tantos anos, sequer sei o que
ocorreu a Joshua, o homem que amei. Eu
o perdi para sempre. Mas, restou-me
suas lembranças e são elas que me
sustentam a cada dia.
Havia verdade no tom daquela
mulher. Ele tinha certeza disso. E não
podia mais aguentar seu olhar sofrido,
em desespero pelo filho.
Pai Joshua que o perdoasse, mas
se ele queria vingança, teria que fazer
isso de outra forma. Liam não conhecia
o amor materno, mas entendia o
significado de tal.
Tirar um filho de uma mãe era
algo além do tolerável.
— Lady Elisabeth — disse, firme.
— Eu sei onde está Iwan.
Ela o encarou, assustada.
— O quê? Por que não me disse
nada antes?
— Porque eu ajudei a capturá-lo.
Joshua encarou o jovem dentro da
cela. Sentado em um canto, Iwan parecia
alheio a ele, pensativo, numa postura
que não havia visto antes naquele
furacão em forma de gente.
— O que houve?
— Você conhece Tormenta? — a
pergunta repentina o fez arregalar os
olhos.
— Quem falou com você?
— Sua mulher esteve aqui.
— Não tenho nenhuma mulher.
— A casheana — ele apontou.
— Ralia não é minha mulher.
— Isso não importa. Quero saber
se conhece Tormenta. Se conhece,
realmente é verdade tudo que ela disse.
Joshua respirou fundo.
— O indomável, negro e temível
cavalo Tormenta? — riu. — Ele era
meu. Ainda vive?
— Sim, agora é meu — o jovem
contou.
O mais velho assentiu.
— Você é bom para os animais,
fico feliz que seja o dono de Tormenta,
agora.
Iwan jogou a cabeça para trás,
escorando-a na parede gelada.
— Você era casado com minha
mãe?
— Sim.
— Mas a negra disse que você é
um bastardo.
— Andrew me deu um nome.
— E o tomou depois de saber que
você dormia com a mulher dele...
— Eu dormi sim com Anna, mas
foi antes do casamento dela com
Andrew. Quando eu soube que ela era
noiva de meu irmão, eu nunca mais a
toquei!
— Mas não o alertou sobre a
esposa.
— Condena-me, mas teria feito o
mesmo em meu lugar. Meu silêncio
permitiu-me casar com Elisabeth, a
mulher que eu amava.
— À custa do sofrimento do seu
irmão.
— Foi Andrew que abandonou
Elisabeth! Foi ele que se permitiu
seduzir por Anna! — defendeu-se. —
Você não viveu aqueles dias, não sabe o
quanto eu sofri... Ele teria entregado
Elisabeth a um homem mesquinho, um
maldito que havia jurado violentá-la na
noite de núpcias!
Iwan negou com a face.
— Não sou o maior dos
admiradores de meu pai, mas sei que ele
não é esse crápula.
— Se um dia ver novamente sua
mãe, pergunte a ela. Se ainda tem o
mínimo de honra, te falará a verdade.
Iwan se ergueu.
— Por que a odeia tanto? Ela
também não é uma vítima?
— Sua mãe me enganou. Brincou
com meus sentimentos e depois me
abandonou, ajudando seu pai a me
deportar, me excluir. Passei o diabo
nesses anos todos, apenas no desejo de
revê-la e vingar-me.
— Ou talvez porque ainda a ama
— retrucou. — Mas nunca a terá. Nem
tocará nela.
— Você tem muita confiança para
alguém que está preso nessa cela.
— Você se esqueceu de algo,
Tigre do Mar.
— É mesmo?
— Fala como se eu fosse a única
ameaça, o único ruivo. Mas, minha mãe
também é sangue de Masha e você
mexeu com a cria dela. Prepare-se para
enfrentar uma fera.
Definitivamente, ninguém em sã
consciência entraria em um debate com
Iwan de Clark.
Aquela língua afiada fez Joshua
sorrir. Enquanto subia as escadas em
direção ao convés, ele imaginou os
motivos que o faziam gostar tanto
daquele garoto.
Provavelmente era porque tinham
o mesmo sangue, mesmo que ele fosse
filho das duas pessoas que ele mais
odiava.
Iwan era seu sobrinho. Tinha um
pouco dele. Muito, aliás. Nada de
Andrew, o que era surpreendente, e
pouco de Elisabeth.
O sorriso ficou mais extenso.
Andrew devia se corroer em olhar
para o filho e ver o irmão que ele
renegou na forma de falar, de mover-se e
de desafiar.
Subitamente, chegou ao convés.
O sorriso sumiu da face, e o olhar
dele chocou-se com o verde-esmeralda
de Elisabeth.
Capítulo 09

Lis e Joshua

Havia lágrimas nos olhos claros.


Era semelhante a um mar límpido,
carregado de emoções. Pirata
experiente, Joshua sabia que poderia se
perder para sempre naquele oceano.
Elisabeth deu passos temerosos
em sua direção, como se não acreditasse
nos próprios olhos, como se a imagem
dele fosse algo fantasmagórico que
sumiria em segundos.
Então, ela ergueu a mão. Os dedos
pálidos tocaram sua bochecha, num
carinho que mais parecia uma
constatação de tato.
As lágrimas despencaram. Nela.
Nele.
Uma fusão de sentimentos surgia
em ambos, e Joshua sabia que ela era,
mais uma vez, sua perdição.
Porque tudo se resumia a isso:
devia odiá-la, mas o ódio nem de longe
batia em seu peito. Ao contrário, era o
amor pungente, aquela aflição da paixão
que o perseguiu por toda a mocidade e
que agora voltava a tocá-lo, como se
amar Elisabeth fosse o único propósito
de sua vida.
— É você mesmo? — ela
murmurou, e então abraçou-o,
fortemente.
Quis recusar aqueles braços. Quis
enxotá-la. A ela e a sua falsidade. Mas,
o corpo não resistiu, e ele viu-se a
tomando contra si, apertando-a contra o
peito, afundando o rosto dos cabelos
cacheados, percebendo ser aquela ruiva
sua própria condenação.
Contudo, a razão voltou ao erguer
os olhos e ver Liam a encará-los.
Afastou Elisabeth, empurrando-a com
força, dizendo a si mesmo para não cair
naquele truque barato de bondade.
— Você me traiu!
A acusação era em direção ao
filho. Liam negou.
— Precisa falar com ela, pai —
ele apontou.
— Pai? — Lis volveu a Liam e
depois retornou a Joshua. — Você teve
um filho?
Foi ignorada.
— Eu tinha um plano e você
colocou tudo a perder — estava furioso,
mas tentou se controlar. — Vá para o
porão. Quero falar a sós com ela.
Joshua só voltou a encará-la
quando Liam sumiu de suas vistas.
Elisabeth sabia os motivos de
tamanha raiva. No fundo, acreditou que
se contasse a verdade para ele,
provavelmente a perdoasse. Talvez,
ainda restasse uma réstia de amor no
coração daquele homem, apesar de
claramente ele ter constituído uma nova
família.
Contudo, havia mais um motivo
para o qual ela devia ficar em silêncio.
As ameaças de Andrew ainda ecoavam
em seus ouvidos. Temia por Joshua e,
acima de tudo, por Iwan.
O que faria o clero ao descobrir
que Iwan era fruto de um relacionamento
fora dos laços dela com Andrew?
— Liam me contou que você
sequestrou meu filho — ela começou,
diante do silêncio masculino. — Sei que
me odeia e têm motivos para isso.
Porém, Iwan nada tem a ver com toda
essa história. Se você quer punir
alguém, puna a mim — avisou. — Estou
aqui, diante de ti. Solte Iwan e me
coloque em seu lugar.
O olhar sombrio volveu para ela.
— Sempre se sacrificando,
Elisabeth — ele comentou, zombeteiro.
— Qualquer coisa pelo seu amor,
Andrew. E, agora, pelo filho dele...
Entrar naquela discussão era algo
que ela não faria. Desde sempre, Joshua
nunca confiou em seus sentimentos.
Cresceram juntos e, no passado,
ele também duvidou de suas emoções.
Bem da verdade, se algum dia a tivesse
amado verdadeiramente, teria pelo
menos suspeitado que havia algo a mais
por trás das suas palavras cruéis.
Mas, dela, Joshua só enxergava a
falsidade. Ele a comparava a Anna, que
não tinha problemas em enganar.
Era assim, sempre. Elisabeth, uma
sombra da irmã.
Ela doou-se àquele homem de
corpo e alma, e ele sequer lhe deu o
beneficio da dúvida. Agora, voltava
para cumprir sua promessa de vingança
tocando na única coisa que fazia a vida
de Elisabeth valer a pena.
Um fogo cruzou por suas veias e
ela apertou o vestido, prática comum
sempre que tentava controlar a raiva.
— O que aconteceu entre nós é
problema nosso. Solte Iwan, Joshua... —
A voz transparecia raiva, apesar de
baixa. — Você não fará nada ao meu
filho...
— E por que não faria?
Porque ele é seu! Ela quis gritar.
Contudo, de que adiantava? Ele jamais
acreditaria.
— Solte meu filho — ela repetiu.
Subitamente, os passos
começaram a avançar. Joshua sorriu,
percebendo a animosidade.
Elisabeth era uma flor de estufa,
sem forças, nem voz. Ela era fraca no
sentido mais literal da palavra.
Acreditava mesmo que conseguiria
colocar medo nele. Nele? O pirata mais
temido dos mares?
Seu riso sumiu quando a percebeu
levar a mão à direita, onde um pedaço
de madeira repousava contra um pilar.
Foi tudo muito rápido. Em um segundo a
madeira estava escorada, em outro, era
quebrada na sua cabeça.
Ele caiu no chão enquanto ela
correu na direção onde Liam havia ido.
O homem recuperou-se rápido e a
alcançou, derrubando-a no chão.
Houve uma luta frenética depois
disso. Ele tentava segurar as mãos
femininas, enquanto ela avançava contra
seu rosto, tentando unhá-lo ou socá-lo,
exatamente o quê, Joshua não sabia.
Estava completamente
descontrolada. Como ele jamais havia
visto antes.
Iwan, o ruivo que agora estava
preso na cela do porão era,
definitivamente, o grande ponto fraco
daquela mulher.
Levou alguns segundos para
perceber que havia mais que isso
naquela batalha. Era os corpos
esfregando-se um no outro, subitamente
cientes de um calor adormecido. O
vestido que aos poucos subiu, o quadril
masculino que em segundos ondulava
contra a pélvis...
E então houve o desespero. As
bocas se encontrando, aquela agonia que
os encontrava antes do amor.
Porque nisso, ambos estavam
cientes, o tempo que passou não havia
apagado o desejo que nutriam.
Por fim, Joshua descolou os
lábios. Eles se olharam, em choque.
— Acha que vai me enganar de
novo com sua sedução barata?
Ela negou, o orgulho dominando
seus sentimentos.
— Me solte! — ordenou, nervosa,
querendo se afastar daquele olhar cruel.
Porém, Joshua não parecia
disposto a deixá-la sair debaixo de si.
— Por que está tão nervosa? Eu
sou seu marido! — gritou. — Foi o meu
sangue que se uniu com o seu. Eu tirei a
tua virgindade e se eu quisesse te foder
agora, o faria porque não há nada que
possa me impedir.
Odiou aquelas palavras. Não tanto
pelo tom, mas pela raiva que sentia
nelas.
— Vai me estuprar? — Ela
indagou, provocando. — Se tornou esse
tipo de homem?
— Sou o tipo de homem que você
me transformou, Elisabeth! — devolveu.
Subitamente, deixou-a.
— Não sairá desse barco —
avisou-a. — Nem tu, nem aquele
moleque, filho de Andrew. Ambos estão
agora sobre meu domínio, até que eu
decida o que fazer com vocês.
— Comigo, não importa — ela
retrucou, erguendo-se. — Mas no meu
filho você não toca.
Ele poderia voltar a brigar com
ela, mas estava destruído. Então
simplesmente lhe deu as costas e
caminhou em direção a sua cabine.
Não atentou-se a Ralia, atrás de
uma pilastra, a observar tudo.

Liam estava em silêncio. Iwan


também. Ambos apenas se encaravam
como se houvesse muitas vidas vividas
através daquele olhar.
Talvez fosse por isso que Iwan
havia confiado nele, imediatamente. Não
apenas pelo gato que o negro salvara,
mas porque se via naqueles olhos
escuros.
Respirou fundo, incomodado.
Como devia estar a mãe?
Provavelmente, desesperada. O sol já
havia se posto, e Elisabeth já devia estar
em sua busca. Contudo, jamais o acharia
em um veleiro ancorado próximo ao
cais.
— O que aconteceu com o gato?
— indagou, baixo.
O rapaz escuro o olhou. Parecia
assustado e alegre pelo ruivo ter dito
alguma coisa.
— Esta dormindo no refeitório.
Dei-lhe comida e leite.
— Vai ficar com ele?
— O mar não é lugar para um
bichano, mas se ninguém o querer, que
escolha terei?
Iwan assentiu.
— O homem que você ajudou...
ele é seu pai, não é?
— Não de sangue. Sou bastardo.
Joshua apenas me adotou.
Iwan ergueu-se da cama de feno.
Aproximou-se das grades.
— Tudo que o pirata disse, é
verdade?
— Indaga a mim?
— Estranhamente, apesar de ter
me enganado, vejo bondade em seu
olhar.
Liam mordeu o lábio,
aproximando-se das grades.
— Encontrei sua mãe no cais. Ela
foi atacada por alguns homens, mas eu a
salvei.
O olhar do ruivo arregalou.
— Onde ela está?
— Aqui — acalmou-o, colocando
uma mão em seu ombro. — Não se
preocupe. Apesar do que diz, claramente
Joshua não conseguirá lhe fazer mal.
— Tem tanta certeza... Por que
motivo?
— Não é óbvio? Ele a ama.
Houve dúvida no olhar esmeralda.
Porém, em seguida, Iwan viu-se a dizer.
— Se ele machucá-la, eu o
matarei — ameaçou. — Eu juro por
Masha. Não terei piedade.
Mesmo preso atrás daquelas
grades, Liam soube que o jovem
cumpriria sua palavra.
Capítulo 10

Intriga

Houve uivos de excitação pela


passagem dela. Ralia já havia se
aproximado dos quarenta anos a um bom
tempo, mas ainda tinha aquela áurea
magnética, exótica, de quem dizia
exatamente o quão experiente era numa
cama apenas pelo olhar.
Chegou-se diante do guarda. O
homem a examinou lambendo os beiços,
e ela quase riu, perante aquela prova de
imbecilidade masculina.

Porque, para ela, eram todos


assim: idiotas.
Bastava mexer o quadril ou piscar
os cílios rapidamente, e eles deixavam-
se dominar pelo pênis e não pela mente.
Obviamente, Joshua era a
exceção. E, talvez por isso, era, na
mesma medida, aquele a quem ela mais
queria.
— Procuro Andrew, da Casa
Clark — ela anunciou e ouviu
gargalhadas.
— Você e todas as putas do cais,
querida — o outro retrucou, ansioso por
desfrutar de tudo que ela podia oferecer.
Ralia ouviu risos maliciosos
enquanto tocava o corpo do guarda real
com seu próprio, exuberante. Seus seios
grandes, firmes como melões,
esfregaram-se no peito masculino e ela
ouviu um gemido baixo.
— Diga a ele que uma mulher lhe
procura para falar de seu irmão, Joshua.
Ergueu a mão e depositou nos
dedos do guarda uma pérola. A joia era
valor bem pago pelo favor.
— O lorde não tem irmão — o
guarda retrucou.
— Apenas lhe diga isso. Caso ele
não queira me ver, irei embora.
Andrew era parecido com Joshua
de muitas maneiras. Os olhos intensos, a
pele pálida, os lábios carnudos, bem
feitos, o corpo sensual. Ela ficou
admirada diante daquele homem,
imaginando como podiam ser tão
parecidos e tão diferentes ao mesmo
tempo.
Andrew tinha cabelos curtos,
cortados à ultima moda, próximo a nuca.
Sua roupa bem talhada ajustava-se com
louvor ao corpo esbelto. No rosto, sua
expressão taciturna fez Ralia sorrir.
— Como sabe sobre Joshua? —
ele questionou, sem sequer um
cumprimento.
— Eu sei tudo — ela retrucou. —
Sei também que ele está com sua esposa,
nesse momento.
Enfim, algo além da completa
apatia. Andrew arregalou os olhos,
negando com a face.
— Impossível...
— Onde está Lady Elisabeth?
A resposta demorou um pouco.
— Ela saiu à procura do filho
dela...
A frase era cheia de implicações.
— Muito me admira que deixe sua
esposa a sair à noite, sozinha, à procura
do seu filho. — Ela balançou os braços,
rindo. — Oh, desculpe-me, entendi
errado, mas você insinuou que o filho é
apenas dela?
Andrew não conseguia deixar de
transparecer o nervoso. Caminhou até
uma jarra e encheu um cálice de vinho.
— O que você quer?
— O mesmo que você. Não quero
vê-los juntos.
Bebeu tudo em um único gole. As
mãos tremiam.
— Onde eles estão? Irei buscá-la
e matá-lo!
— Você — Ralia desdenhou. —
Um almofadinha que nunca saiu do
casulo? Alguém que nunca enfrentou a
morte de perto? Joshua é pirata e pilha
cargas há dezessete anos. Ele vai matá-
lo assim que cruzar com ele. Aliás, é
esse o seu objetivo.
— E por que ainda não veio até
mim?
— Porque quer te fazer sofrer
antes. Por isso capturou o “seu filho”.
Subitamente, Andrew viu ali todas
as respostas.
— O que aconteceria com ele
quando tentasse matar Iwan e depois
descobrisse que atentou contra o próprio
filho? — indagou a si mesmo. — Ele se
destruiria...
— E Elisabeth o odiaria o
suficiente para nunca se aproximar
dele...
Andrew aproximou-se dela.
Ofereceu um cálice. Enquanto ela bebia,
ele passeou os olhos pelas formas
generosas.
— Acredito que seremos uma
excelente dupla. Como se chama?
— Ralia — ela murmurou. —
Mas você pode me chamar de amor —
ela riu.
Depois disso, beijaram-se.
Joshua aproximou-se da mulher
parada a encarar o mar. Estendeu a ela
uma caneca, na qual ela encarou com
olhos arregalados.
— Rum sempre ajuda — ele
murmurou. — Aprendi isso há muito
tempo.
Elisabeth quase sorriu.
— Ainda se preocupa comigo —
o sussurro dela era saudoso. — Lembra-
se de como éramos amigos?
Ele assentiu.
— Me recordo de cada detalhe de
nossa infância. De como nós nos
amparávamos mutuamente. Porém, era
tudo falso, não é?
Elisabeth sorriu, triste. Pegou a
caneca e bebeu um gole.
— Se você pensa assim, então
deve ter sido.
Ela quis afastar-se dele, mas foi
segurada pelo braço. O copo de metal
caiu de seus dedos, atirando o resto de
rum no chão.
Nenhum deles se importou.
— Por que reage como se fosse
inocente de todas as minhas acusações?
Ambos sabemos o que ocorreu em
Castelo Negro!
Ela negou.
— Do que vale tudo isso? Já se
passaram tantos anos...
Joshua arqueou as sobrancelhas.
Aquele olhar verde dizia mais do que
qualquer palavra. O que Lis escondia
dele?
— Fale — ordenou.
— O quê?
— O que oculta.
— Não há nada a ser dito.
— Não brinque comigo, Elisabeth
— ele murmurou. — Eu perdi a
capacidade de ter honra. Eu faria
qualquer coisa contra você ou contra o
moleque no porão para saber o que
preciso.
Com raiva, ela puxou o braço.
— Já lhe antecipei. Pare de
ameaçar meu filho.
— Então desembuche!
Ela morde o lábio inferior.
No fim, não seria mais fácil
simplesmente contar tudo? Mas, e o
depois? O que aconteceria quando
Joshua soubesse que Andrew não só os
separou como também o privou do
filho?
As duas opções lhe corroíam a
alma. Se Joshua matasse Andrew, seria
caçado pelos reinos, seria morto,
enforcado como exemplo. Um bastardo
tocando em alguém da nobreza? Depois
disso, o filho dela se tornaria bastardo
também, um imundo fruto de algo fora
do matrimônio oficial.
Iwan era odiado pelo clero, e
tinha certeza que os sacerdotes fariam o
impossível para vê-lo morto.
E se Andrew fosse o vencedor?
Ver Joshua ser arrastado pelas ruas do
cais de Bran, sua humilhação perante
aqueles malditos do clero... Ela não
suportaria.
Então, tudo seria mais simples se
simplesmente Joshua aceitasse esquecer
sua vingança. Embarcasse em seu navio
e partisse.
O que importava seus sentimentos
se ele estivesse em segurança? Se Iwan
ficasse protegido pela mentira que
Andrew aceitou, anos antes?
— Você é feliz? — a questão o
homem a fez estremecer.
— O que importa?
— Sempre quis que fosse — ele
suspirou.
Repentinamente, ela se
aproximou, pousando as mãos no rosto
masculino.
Era impossível não reagir aquele
tom, e ainda havia tanto carinho no
corpo e no coração de Elisabeth.
— Por favor, solte Iwan... Estou
te implorando.
— O filho de Andrew é tudo que
te importa? — insistiu.
— Por que me acusa? Não tem
você também um filho? Não tem uma
mulher?
— Liam é adotado. O encontrei
nas ruas de Cashel — resmungou,
confessando a verdade, apesar de
considerar que ela não o merecesse. —
Bastava você fazer as contas e saberia
que seria impossível eu ter um filho da
idade dele...
Contas? E ele não fazia as dele?
Subitamente, viu no olhar escuro
uma réstia de consciência.
— Quantos anos tem Iwan?
Elisabeth soltou-o e tentou se
afastar. Novamente, foi segurada. Dessa
vez com mais força.
— Diga-me, Elisabeth!
— Ele não é seu filho! — ela
negou. — Ele foi gerado tão logo você
foi banido.
O olhar de Joshua apagou. Ele
nunca a havia machucado, mas não
conseguiu se conter. Estapeou-a,
enquanto a atirava contra a madeira fria
do chão.
— Eu te odeio — ele disse. —
Sequer esperou que eu chegasse em
Cashel para deitar-se com Andrew?
Ela não negou. Nunca o faria. Por
ele e por Iwan, a boca dela ficaria em
silêncio.
Somente quando a presença dele
sumiu do convés foi que Elisabeth
permitiu-se chorar.

Lis desceu ao porão tão logo


conseguiu controlar as emoções. Estava
destruída, de muitas maneiras, mas nada
a preparou para ver Iwan preso naquela
cela, com o olhar abatido e a
preocupação estampada em sua face.
Enquanto Liam curvava-se
respeitosamente e saia do porão, a fim
de deixá-los a sós, a mulher correu até o
filho, e eles trocaram um abraço
desengonçado, entre as grades. Ela não
conseguiu controlar a raiva e quis
arrancar aquele ferro com as próprias
mãos, mas foi contida pelo filho, que
parecia mais lúcido.
— Mãe — Iwan segurou suas
mãos. Encarou-a de forma firme. —
Preciso que me diga algo. E, imploro,
não minta para mim.
Ela assentiu. Depois de tudo,
devia ao menos isso a ele.
— Nunca teve nada com Andrew,
não é? Por isso o rejeita sempre! Foi
casada à força, mas não o aceita no
leito. Sempre soube que dormiam em
quartos separados.
Ela engoliu em seco, antecipando
a questão que mais a angustiava.
— O pirata... — ele murmurou. —
O pirata é meu pai?
Capítulo 11

Sentimento

Liam encontrou Joshua no convés,


a olhar para o nada. Aproximou-se,
pousando a mão em seu ombro, numa
muda e carinhosa partilha de dor.
— Pai... — ele sussurrou. — Eu
acho que Lady Elisabeth é inocente.
— Ela não negou nada — anteviu,
cortando. — Se fosse, tentaria ao menos
se explicar.
O rapaz negou.
— E se ela estiver tentando
proteger o filho? Desculpe-me a
intromissão, mas Iwan nasceu poucos
meses após sua partida.
— Também pensei nisso, mas ela
garantiu que o garoto é de Andrew.
— E seu irmão é tão covarde
assim que deixaria a esposa sair sozinha
à procura do rebento? Do seu único
varão?
O rosto de Joshua voltou-se
novamente para Liam.
— Você acha...?
— Sim, eu acho.

— Andrew nunca a tocou, então?


Elisabeth sentava-se ao chão. As
costas escoradas nas grades de ferro.
Iwan, de costas para ela, mantinha-se na
mesma posição. Não se viam, mas
compartilhavam naquele instante um
momento absoluto que ela levou anos
para encorajar-se a ter.
— Eu o odeio — ela confessou.
— E, não, não estou confundindo ódio
com amor. Nunca confundi. Sou muito
clara nos meus sentimentos. Eu tinha
afeição por Andrew, mas ele me largou
praticamente no altar para desposar
Anna. Mesmo assim, não o odiei e torci
por sua felicidade. Quando ele tentou me
casar à força com Lorde Barton, que
pela glória de Masha você jamais
chegou a conhecer aquele desprezível,
eu me acostei com Joshua porque estava
desesperada, não por ciúme ou ódio.
Nos meses que se seguiram, quando
Joshua ganhou nome e foi-me dado como
esposo, eu percebi que sempre o havia
amado. E eu estava feliz em partilhar a
vida com ele. Não que tudo tenham sido
flores, mas ele é um homem bom. Ele
sempre foi meu melhor amigo. — As
lágrimas que a custo ela escondeu, agora
deslizaram pela face. — Você tem ideia
de como é descobrir-se ao lado de
alguém que você ama mais do que a si
mesmo? Joshua me deu luz, me fez feliz,
e na manhã que fui tirada de seus braços,
eu comentava sobre gravidez, eu
suspeitava que estivesse esperando um
filho dele... Tivemos um pequeno
momento no qual eu confessei o quanto
desejava um filho.
A memória voltou. Podia ainda
enxergar o olhar amoroso do marido ao
ouvi-lhe as palavras. A promessa de
muitos bebês, coisa que ele jamais pôde
cumprir.
— Andrew invadiu Castelo Negro
naquela manhã com a certeza do
adultério de Anna. Eu tinha
conhecimento que Joshua e ela haviam
tido um envolvimento antes do
casamento, mas Andrew o acusava de
terem dormido juntos após nossas
núpcias.
Ela suspirou longamente.
— Não vou mentir, eu não sabia
em quem acreditar. Era uma menina tão
boba, tão insegura, imatura, sempre a
sombra de uma irmã belíssima e
cativante. Por que Joshua não dormiria
com ela, se ela estivesse disposta a
isso? No momento, não pensei, e deixei-
me levar por Andrew. Somente após
isso, foi que tentei falar com ele, mas
era tarde demais. Andrew fez ameaças e
eu as aceitei para proteger Joshua.
Voltou-se para trás e encarou os
cabelos ruivos do filho. Iwan tinha o
olhar fixo na parede, como se
absorvesse cada palavra.
— Sempre fui tão covarde, filho.
Ele negou, volvendo a ela.
— Fez tudo para proteger aquele
homem e a mim. Não é justo, mãe... —
murmurou. — Precisa dizer a verdade a
ele.
— Não posso!
— Eu cresci sem pai! — ralhou.
— Andrew nunca conseguiu dar-me
sentimentos e agora entendo os motivos.
Permita-me, ao menos agora, saber que
eu tenho um.
— O clero vai te matar se
souber...
— O clero que vá para a puta que
os pariu — ralhou. — Diga a ele a
verdade, eu exijo! Mesmo que seja tarde
para desenvolver qualquer afeição, eu
quero que ele saiba quem eu sou, da
mesma forma que eu sei quem ele é.

Elisabeth temia o confronto,


mesmo assim, avançou firme em direção
ao homem.
Joshua continuava a beber rum,
mas não estava alterado. Apenas,
parecia querer manter um controle que
não tinha.
Ela o conhecia bem demais.
Mesmo todos aqueles anos não tiraram
dela a percepção dos sentimentos
daquele que um dia foi seu melhor
amigo.
— Eu tenho algo a lhe dizer.
Liam, ao lado dele, encarou-a
com seriedade. Era como se o garoto
negro soubesse exatamente as palavras
que viriam.
Para surpresa da lady, ele
caminhou em sua direção e colocou as
duas mãos em seus ombros, apertando-
os. Elisabeth sorriu para ele.
Ele entendia sua dor, mesmo não a
conhecendo. Quis abraçá-lo e agradecê-
lo, mas Liam simplesmente afastou-se,
voltando para o porão.
— Fale — Joshua mandou, tão
logo ficaram sozinhos.
— Você sabe o que quero dizer —
ela afirmou. — Temo confessar em voz
alta porque temo por Iwan.
Ele voltou a beber.
— Por que Andrew assumiu um
filho que não é dele?
— Andrew nunca me tocou —
contou, sem constrangimento. — Em
muito porque sempre amou Anna, em
muito porque eu jamais permitiria.
Contudo, ele se casou comigo, e não
havia escolhas. Ou ele assumia que o
filho era dele, ou ele teria que confessar
que praticou pecado perante Bran
naquele longínquo reino do Norte.
Joshua, repentinamente, ri. Aquela
faceta causa arrepios em Elisabeth.
— E o que mais dirá? Que ainda
me ama?
— Você zomba do meu
sofrimento?
— Seu sofrimento? Casou-se com
um lorde rico por quem foi apaixonada
desde menina. Quem aqui sofreu fui eu,
quando foi me dado à chance aos
sonhos, e depois me usurpado isso,
enquanto me baniam para um lugar onde
eu não conhecia ninguém.
Elisabeth avançou contra ele, mas
o som de remos aproximando-se daquele
barco ancorado, afastou-os.
Logo, uma negra esbelta e bonita
subia ao convés. Ela sorriu zombeteira
para Elisabeth e, depois, voltou-se para
Joshua.
— O que faz aqui? — o homem
questionou. — Eu já não lhe disse...
— Estive em Bran — ela
retrucou. — Para me divertir —
apontou. — E acho que gostaria de
saber que conheci aquela delícia
chamado Andrew Clark. E ele está lá,
no porto, aguardando-o para uma
conversa.

Elisabeth implorou para que ele


não fosse. Talvez por medo de que
Andrew a desmascarasse, talvez porque
temia que um deles não saísse vivo
daquele embate.
De qualquer maneira, Joshua
sequer pestanejou. Entrou no pequeno
barco que Ralia havia usado e foi na
direção do porto.
Não demorou muito para vê-lo.
Estava sozinho, o que indicava
que não era uma armadilha. Parecia
dono de si, bastante confiante, apesar de
desarmado.
Aproximou-se o suficiente e
desembarcou. Subiu no cais, uma das
mãos tocando a espada, a outra no
bolso, tentando demonstrar uma
tranquilidade que nem de longe ele
sentia.
— Então está vivo? — Andrew
indagou com indiferença.
Contudo, havia um além naquele
tom. Não era apenas raiva ou mágoa.
Parecia preocupação.
— Não graças a você.
Andrew deu os ombros. Logo
voltou a postura desdenhosa.
— Soube que está com minha
esposa e filho...
— Minha esposa — ele retrucou.
— Minha esposa — reafirmou. — E
meu filho, pelo que Elisabeth me disse.
Andrew riu, desgostoso.
— Sabia que ela faria isso...
— Fazer o quê?
— Mentir — afirmou, sem
piedade. — Mentir para proteger Iwan.
É bem coisa de Elisabeth, mesmo. Ela
faz qualquer coisa pelo nosso garoto.
O pronome possessivo machucou
o já ferido Joshua, que mordeu o lábio
inferior, tentando se acalmar.
— Eu posso esquecer tudo isso e
não delatá-lo — Andrew afirmou. —
Ainda tem meu sangue, apesar de não
considerá-lo um irmão. Devolva minha
esposa e filho, e vá embora.
O outro negou.
— Eu jamais faria isso —
retorquiu. — Vim pelo teu sofrimento.
— prossegue. — E pelo dela. Não irei
embora sem ambos pagarem caro por
tudo que me fizeram.
— E pelo que você fez, hem? —
Andrew devolveu. — Destruiu minha
vida!
— Foi você quem escolheu Anna!
E depois que a escolheu, não toquei um
dedo nela!
— Era meu irmão e não me disse
uma palavra sobre...
— Eu iria te contar! — cortou-o.
— Mas, perdi a coragem porque amava
Elisabeth. E era a única chance que eu
tinha de tê-la. Além disso, não sei...
Pensei que estivesse feliz com Anna.
Andrew negou com a face.
— Você acha que têm motivos
para me odiar, mas acredite: ninguém
aqui tem mais motivos para machucar do
que eu.
— Ousa dizer isso? Tirou-me
tudo...
— Tudo que te dei! — reagiu. —
Elisabeth era minha noiva!
Joshua avançou, segurando-o pelo
colarinho.
— Foi você que a abandonou! —
gritou.
Andrew soltou-se daquelas mãos,
e arrumou o casaco. Não estava ali para
luta corporal. Ainda não...
— Elisabeth dirá qualquer coisa
para proteger o garoto. E você não terá
coragem de atentar contra um inocente.
Iwan nunca te fez nada. Devolva meu
filho e minha esposa e vá embora.
Esqueçamos tudo isso.
Depois disso, deu-lhe as costas e
saiu em passos retos.
Joshua chorou quando não mais o
viu a vista. Jamais soube, mas Andrew
derramou as mesmas lágrimas.

Ralia encarava Elisabeth com


excessivo nojo, mas a ruiva sequer a
olhava. Sentada em um canto, ela
parecia perdida no além-mar, esperando
em angústia pelo resultado da conversa
dos irmãos.
— Leite azedo — a outra a
chamou. Levou um certo tempo para que
Lis percebesse que o desprezo vinha
pela palidez de sua pele. — Não sei o
que Joshua viu em você.
De um canto, Liam colocou-se em
sua defesa.
— Não lhe dê atenção, milady —
disse, aproximando-se. — Senhora
Ralia tem muito ciúme porque em todos
esses anos, meu pai sempre nutriu amor
pela vossa pessoa.
De um canto, um riso debochado
surgiu.
— Apesar de ter nascido de meu
ventre, nunca perde a chance de ficar
contra mim, não é Liam?
Elisabeth ficou espantada e tocou
o braço do rapaz.
— Ela é sua mãe?
— Mãe? — Ralia gritou. —
Jamais seria mãe dessa coisa asquerosa.
O rapaz não devolveu o insulto.
Apenas sorriu triste em direção a
Elisabeth, como se fosse normal receber
tais palavras.
— Está tudo bem — a ruiva
murmurou, compreensiva. Sabia o
quanto os bastardos eram odiados no
reino. — Se precisar, estou aqui.
Ouviu uma gargalhada histérica.
— Leite azedo quer ser mãe do
pretinho?
Subitamente, Elisabeth se ergueu.
O rosto branco dela estava rubro.
— Pare de me insultar que meu
sangue é o mesmo da Rainha Brione de
Cashel. Meus seios pretos mostram isso.
E mesmo que não fosse, não sou melhor
nem pior que você por ser branca. Da
mesma forma, teu filho. Liam, desde que
o conheci se mostrou muito mais digno
que a maioria das pessoas que passaram
por minha vida. Se continuar a provocá-
lo, saberá que ele não está
desamparado. Não mais.
Ralia gargalhou, diante daquela
mulher de aparência tão gentil.
— Por que não se cala? Ele
nasceu de mim, falo e faço com ele o
que eu quiser.
— Você é um insulto a todas as
mulheres do reino, por desprezar dessa
forma seu próprio filho.
— Não diga que essa coisa é meu
filho! — Ralia gritou, aproximando-se
rapidamente da ruiva. — Não queira
levar uma surra, leite azedo!
Liam tentou se aproximar, a fim de
proteger a frágil lady. Contudo, mais
rapidamente do que seus olhos puderam
ver, Ralia estava no chão com Elisabeth
por cima dela, enchendo-a de tapas no
rosto.
A negra pareceu surpresa e,
depois, assustada, porque ninguém diria
que aquela mulher tão delicada pudesse
ser tão forte.
Por fim, Liam saiu do torpor e
puxou a ruiva de cima da outra. Quando
Ralia achou que poderia revidar,
Elisabeth a chutou e ela curvou-se de
dor.
— Tem razão — a ruiva gritou.
Sequer parecia a mesma mulher de
antes. — Nunca mais direi que Liam é
seu filho. Porque você não é digna dele!
E depois dessa determinação, ela
puxou o rapaz pelo braço e desceu com
ele em direção ao porão.
Capítulo 12

A cabine do capitão

— O que diabos aconteceu com


seu rosto?
Ralia encarou Joshua com nítido
ódio. O homem adentrou o barco com os
olhos fixos nelas e nos machucados que
ela tinha no rosto.
Liam surgiu em seguida. Havia um
sorriso no rosto que ele não conseguia
disfarçar.
— A senhora Elisabeth fez isso —
o filho respondeu por ela.
Em algum canto da mente do
pirata, ele imaginou que fosse por sua
causa. Uma leve satisfação o tomou, ao
imaginar as mulheres brigando por ele,
aquela leve carícia no ego que todo
macho gostava. Contudo, em seguida,
levou um balde de água fria diante das
palavras do rapaz:
— Ralia tentou ser agressiva
comigo, e senhora Elisabeth não tolerou.
A boca de Joshua abriu, em
espanto.
— Aquela vadia — Ralia xingou.
— Ela ousou...
— O que você disse para Liam?
— cortou-a, já nervoso.
Há muito tempo que lutava para
proteger o jovem das palavras maldosas
da outra. Falhava, em várias ocasiões.
— Nada que ele não mereça
escutar! — gritou. — Esse moleque
desgraçou minha vida, tornou meu corpo
feio e se recusou a sair dele quando
tentei matá-lo no ventre! Agora, torna-se
o queridinho da mulher que mais odeio!
Joshua permaneceu estático diante
dos berros. Ao menos, Ralia era sincera,
apesar de cruel.
Foi até o filho e colocou a mão
em seu ombro.
— Onde está Lis?
— Está no porão, com o filho.
— Leve-a até a cabine. Depois
disso, coloque Iwan num barco e vá com
ele para Avassalador.
— Não falará com o jovem? Ele é
seu filho legítimo.
Joshua negou.
— Andrew diz que Elisabeth
mente.
— E confia nele ao ponto de
sequer questionar?
— Estou questionando. Por isso
não vou entregá-lo. Se ele for realmente
meu, nunca irei entregá-lo. Contudo, até
ter certeza, preciso de um momento a
sós com Lis.
Volveu para Ralia.
— E quanto a você, volte para
Bran. Leve uma missiva minha a
Andrew. Iremos duelar por Elisabeth. Se
ele ainda a quiser, terá que tê-la pela
espada — avisou.
— Vai lutar por ela? — Ralia
estava revoltada.
— Se eu voltar desse combate,
partiremos para Cashel e você será
deixada lá com ouro o suficiente para
viver pelo resto dos seus dias. Porém,
não mais fará parte da tripulação de
Avassalador. Não a quero perto de
Liam.
Diante disso, ele foi ao refeitório
para beber. O rum lhe daria a coragem
necessária para enfrentar a ruiva.
Seguindo as ordens de Liam,
Elisabeth entrou na cabine e aguardou.
Fora do local, uma chuva fraca
começava a cair, tornando tudo ainda
mais sombrio. De certa forma, recordou-
se de Castelo Negro e de como, à
primeira vista, considerou o lugar triste
e assustador, mas da forma como foi
feliz lá, nos meses que o desfrutou.
Joshua levou quase uma hora para
entrar no aposento que servia de quarto.
Encarou a mulher sentada na cama,
estudando-a por alguns segundos, antes
de ir até uma jarra para servir-se de
vinho.
— Você nunca foi de beber... —
ela murmurou.
— A bebida é a única coisa que
consegue amenizar a minha dor — ele
retrucou, engolindo em um gole único
uma dose.
Elisabeth negou com a face.
— Se a bebida curasse alguma
coisa, Joshua... A vida seria tão mais
fácil. Bastaria um cálice e os problemas
estariam resolvidos.
Ele riu, um tanto admirado da
sabedoria feminina.
— Você pode passar a noite nesse
quarto. Amanhã decidiremos seu
destino.
— Acha mesmo que irei dormir
numa cama enquanto meu filho está numa
cela de porão?
— Iwan não está mais na cela.
Liam acabou de levá-lo até Avassalador.
— Avassalador?
— Meu veleiro — explicou. — O
quê? Considerou mesmo que esse
humilde barco era meu único pertence?
Avassalador é o navio mais rápido dos
mares, uma preciosidade. Minha
tripulação ficou em Cashel, porque era
de meu desejo não envolvê-los em meus
problemas, mas Liam veio com
Avassalador até próximo do porto.
— E Ralia veio com ele?
— Sim — admitiu. — Liam tem
dificuldade de cortar laços. Não o
culpo. Até o dia da morte da minha mãe,
eu também buscava sua afeição.
Elisabeth conhecia aquela
história. Ainda a fazia lacrimejar.
Imaginar o pequeno menino de cabelos
negros a implorar por afeição era algo
extremamente perturbador. Ela não
conviveu com os pais, e Sophie, que a
criou, era desumana e cruel, mas havia
dado tudo de si por Iwan. Amava o filho
mais que tudo, mais que todos. Fazia
todo o possível para que Iwan jamais
conhecesse a indiferença materna, a
mancha que marcava o coração de
qualquer homem.
— Como se sente?
A pergunta masculina fê-la erguer
a face e encará-lo. Havia seriedade
naquele olhar. Ele definitivamente
estava preocupado com ela. Também
havia culpa pela agressão que cometeu,
momentos antes. Ela não o culpava. A
carga tensa entre eles poderia ter
ocasionado coisas piores.
— Estou bem — respondeu.
— Não parece. Tente dormir,
talvez consiga...
— Não quero dormir — retrucou.
— Só quero meu filho protegido.
O amor materno que Joshua nunca
experimentou, subitamente chegou até
ele de forma arrebatadora. Aquele olhar
era tão pueril indicava um amor além
dos limites.
Se Iwan era filho dele...
E, se aqueles sentimentos eram
pelo filho dele...
Haveria algo em Elisabeth para
ele também?
— Andrew disse que você mente
— contou.
— Não me importo com o que ele
diz. Passei a vida aceitando tudo de
cabeça baixa, sendo uma vergonha como
descendente de Esmeralda. Mas, creia-
me, tudo que fiz, o fiz por amor. Fiz para
te proteger e proteger Iwan. E o faria
novamente, mil vezes se necessário
fosse. Aquelas palavras cruéis que fui
obrigada a te dizer no Norte doeram
mais em mim do que em ti, acredite.
— Como eu poderia ter certeza?
— Nunca o terá. Porque não vou
implorar. Não vou sequer tocar no
assunto novamente. Acreditar é um
problema seu, não meu. — Ela secou as
lágrimas que começaram a cair. Havia
orgulho no gesto. — Estou cansada,
Joshua. Cansada de uma vida subjugada,
cansada de ser um boneco nas mãos
manipuláveis de meus ventríloquos.
Agora, eu sou uma mãe, e a única coisa
que me permito pensar é em Iwan. Goste
você ou não, terá que descobrir a
verdade por si mesmo.
As palavras não o magoaram.
Porque, repentinamente, ele soube que
Elisabeth o amava. Talvez Iwan fosse
realmente filho de Andrew, talvez o
irmão a houvesse estuprado sua esposa e
ela se envergonhava disso; o que de fato
aconteceu, ele não tinha como saber.
Mas, o tremor nos lábios e a forma firme
com que ela o encarava deixava muito
às claras.
Durante anos, ouviu em tom
zombeteiro que Elisabeth era a legítima
dama do norte: fria, calada, calculista.
Não sabiam o verdadeiro fogo que tinha
aquela mulher em sua alma. Ela era
forte. Forte o suficiente para aguentar a
dor por anos, para suportar todas as
humilhações em Castelo Branco, ser
renegada à beira do casamento,
entregar-se a ele sem reservas num
celeiro sem romantismo, e depois
aceitar a incumbência de tecer uma nova
vida em Castelo Negro.
Joshua a admirava, e mesmo
tantos anos depois, o sentimento
prosseguia.
— No que pensa? — ela indagou,
diante do olhar febril.
— Em você. — Foi sincero.
— E no que, precisamente?
Ele gargalhou diante daquela
faceta desconfiada.
— Em nada — deu os ombros. —
Bom... — respirou fundo. — Entrei
apenas para ver se está bem. Irei dormir
no convés, espero que fique confortável.
— E Iwan?
— Já disse. Ele está seguro em
Avassalador.
Joshua voltou-se em direção a
porta, quando Elisabeth se ergueu.
Encarou-a novamente, esperando por
alguma palavra, alguma observação.
Então viu as lágrimas que ela não mais
conseguia controlar.
— Você ama Ralia?
Ele quase riu.
— Nunca amei outra mulher além
de você. E todas elas souberam disso,
inclusive Anna.
Houve um momento de silêncio,
como se ambos analisassem um ao
outro. Quantos anos desde a última vez
que se encaravam assim? Quantas
histórias haviam se cruzado até aquele
reencontro sincero? Subitamente,
novamente, eram Lis e Josh, os dois
jovens perdidos da juventude, buscando
desesperadamente o sentimento um do
outro.
Ela deu o primeiro passo. Tinha
que ser ela, então o fez.
Não que Joshua não fosse capaz
de ir até aquela mulher e tomá-la nos
braços. Mas, foi ela que viveu aqueles
anos amando-o em sua alma. Enquanto
o pirata, à noite, chorava de raiva contra
o travesseiro, às lágrimas de Elisabeth
eram de desespero e amor. Enquanto ele
desfrutava corpos em busca de
satisfação física, ela embalava o filho
dele nos braços, transmitindo-lhe tudo
que o homem não podia.
E foi assim...
Elisabeth havia sido o pai e a mãe
de Iwan. Agora, ela era o homem e a
mulher.
Foi dela o primeiro passo. Dela.
E foi deleitoso, mais do que nunca, para
ela, saber-se corajosa o suficiente para
abraçá-lo como nunca até então.
— Você ainda me ama? — o
murmuro feminino contra seu peito fê-lo
cerrar os olhos, enquanto continha as
lágrimas.
Porque na frente dela, ele não
choraria. Não... Nunca!
Quando Joshua curvou-se diante
da dor, eles trocaram os papeis. Agora,
eram ambos lágrimas e carícias, beijos e
abraços, reencontros e perdas.
— Não me deixe... — ele
implorou.
E essa era a exata palavra. Não
era uma ordem, era um pedido. Não
subjugá-la como todos haviam feito,
tantas vezes. E sim, dar-lhe a escolha de
ficar ao seu lado para sempre.
— Eu sinto medo pelo nosso filho
— ela abraçou-o como jamais imaginou
que poderia. — O que farão com Iwan
quando Andrew contar a verdade?
— Ele seria considerado um
bastardo... — admitiu. — É uma triste
sina, mas...
— Não entende! O clero o odeia.
Iwan os enfrenta desde que era uma
criança. Cansou-se de levantar-se diante
de assembleias e desafiar o poder de
Bran. Eles sempre quiseram ter uma
desculpa para matá-lo. Só não o tocaram
porque estava sobre a proteção da casa
Clark.
Joshua segurou o rosto da mulher.
Beijou-lhe as lágrimas, num carinho
confortador.
— Eu sou Tigre do Mar. Já ouviu
falar?
Ela abriu a boca, pasma.
— Sim, quem não ouviu?
— Nunca me capturaram. Jamais
tocarão em Iwan. Eu prometo.
Era nítido o medo no olhar de
Elisabeth. Joshua suspirou e preparou-se
para deixá-la. Porém, não avançou muito
e logo foi seguro por um par de braços.
As mãos femininas circularam sua
cintura, enquanto o corpo resvalava
contra o seu. E então, todo o seu
organismo tomou ciência de que ali,
naquele barco, longe de tudo e todos,
estava a mulher de sua vida, e que ele
tinha a oportunidade de tê-la para si
mais uma vez.
Girou novamente, ficando de
frente para ela. Sobre o olhar ardente,
ele tirou a camisa.
O corpo estava diferente. Não era
apenas os anos que passaram, Joshua
agora era marcado pelo sol, diferente de
sua época no norte do reino de Bran.
E ela? Ainda era tão bonita quanto
as flores que cresciam nas florestas
próximas de Castelo Branco. Era
delicada como rosa, pálida como a
neve, preparada como se houvesse sido
criada, desde sempre, para ser dele.
— Você é tão linda...
Ela ergueu as mãos contra o rosto,
as lágrimas ininterruptas ainda tomando-
lhe a face.
— Tanto tempo se passou. Estou
velha e...
Joshua puxou-a e beijou-a. Não de
forma pacífica ou gentil, mas de uma
forma como se estivesse dizendo que
estava de volta para tomar o lugar que
lhe pertencia. Apertou-a contra o corpo,
enquanto enfiava a língua dentro da boca
quente.
— Joshua... — ela tentou
interrompê-lo, mas ele não permitiu.
— Elisabeth! — cortou. — Não
diga nada... Apenas sinta... Apenas
sinta...
Segurou seus dedos finos e levou-
o até o baixo ventre. Espremeu a mão
contra sua saliência na calça. Queria que
ela soubesse o que só ela era capaz de
despertar nele com um simples beijo.
E aquele ato parecia adentrar seu
corpo de mulher, fazendo o sangue
correr com mais rapidez, a pele
arrepiar-se e uma languidez sem limites
tomar conta de toda sua consciência.
Foi a própria Elisabeth que
desabotoou o vestido. Diante dele, com
os dedos trêmulos, ela abriu os botões
do corpete, e depois desceu a saia.
Havia muitos panos a lhe servir de
peças íntimas, mas ela não pestanejou
em remover nenhuma.
O olhar completamente devotado
de Joshua a incentivou. Esqueceu-se que
já era uma mulher com um filho entrando
na fase adulta, esqueceu-se que o tempo
havia lhe dado uma máscara de
sofrimento, esqueceu-se de que muitos
anos passaram até pertencer novamente
àquele a quem ela sempre amou... Agora
era sua chance de viver um ato por toda
uma vida, e ela não desperdiçaria.
Nua, permitiu que as mãos
ásperas de Joshua a arrepiassem. Ela
fechou os olhos enquanto os dedos
deslizaram pelos seios de aréolas
negras, os bicos salientes, a barriga
bonita, pousando em seu centro.
Ele apertou os dedos ali,
querendo a sentir úmida. Sorriu quando
o molhado deslizou entre seus dedos.
Então a empurrou contra a cama,
deixando com que ela caísse contra os
lençóis, sentisse seu peso másculo
contra seus músculos frágeis, o
movimento ritmado que a fazia gemer
mais e mais.
Com uma das mãos, ele
desabotoou a calça. Livrou-se dela em
seguida, enquanto os lábios brincavam
com os seios enrijecidos. Esfregou o
rosto naquela pele macia, aspirando o
perfume, percebendo que o corpo ainda
se lembrava de cada detalhe que, anos
antes, o fazia perder a cabeça.
Segurou as coxas, abrindo as
pernas, adentrando naquele ninho
quente. Logo, guiava seu membro para
dentro dela, ouvindo-a ronronar.
Numa entocada firme, ele entrou
inteiro. O grito mudo foi cortado pelo
beijo sensual. Com a língua, ele dançava
com o mesmo movimento do quadril.
Elisabeth choramingou. Eram
muitas emoções a arrebatando, levando-
a a um mundo além daquela cama.
Num segundo depois, ele
escapuliu dela. Sentou-se na cama,
diante do olhar confuso. Puxou-a,
voltando a beijá-la com ardor, soltando
os cabelos presos por grampos
desgrenhados. Fê-la subir em seu colo,
ensinou-a em poucos segundos a
cavalgar sobre si, fazendo dela a única
senhora daquele momento.
— Você está no controle — ele
murmurou nos ouvidos femininos,
fazendo-a rir.
— Estou?
— Hoje e sempre — ele afirmou.
— Minha dona...
O choro voltou, e ela sentiu-se
absurdamente ridícula por chorar na
cama e naquele momento. Mas, havia
tanta saudade, tanta falta, tanta ânsia.
Enquanto movia-se para cima e
para baixo, sentindo o pênis do marido
afundando-se nela, Elisabeth agarrou os
cabelos negros, trazendo-o para mais um
beijo.
E foi assim que o clímax os
tomou. As bocas unidas, os copos
juntos, entregues, as almas tão
mescladas como se fossem uma só.
E eram...
Elisabeth abriu os olhos diante da
claridade que adentrava a janela. O
movimento leve do mar a fez sorrir.
Estava nua, ainda. Não se
lembrava de ter dormido sem roupa há
muito tempo. Mas, enfim, havia passado
a noite com Joshua e o filho estava em
segurança. Apenas isso a tranquilizava.
Buscou o rosto do marido e o
achou. Joshua vestia o casaco no exato
momento que o olhar dele voltou-se para
ela.
— Iremos para o seu navio?
— Estarei levando-a para lá em
breve.
Havia algo implícito naquele tom.
— Quero ver Iwan — ela insistiu.
— Estou indo ver Andrew — ele
contou, mesmo sabendo que ela não
aceitaria tal coisa.
E, definitivamente, o horror ficou
nítido no olhar esverdeado.
— Por quê? — indagou,
erguendo-se, buscando as roupas. — Se
você acha que podemos fugir, por que
irá até ele? Podemos reconstruir...
— Ele roubou tudo de mim,
Elisabeth — antecipou. — Mais que
isso, mais do que nosso casamento, eu
não vi Iwan dando seus primeiros
passos, mamando em teus seios,
cavalgando em Tormenta pela primeira
vez. Eu sequer sei como me aproximar
do meu filho! Não quero perdoar e não
vou.
— E fará o quê? Irá matá-lo? Ele
é seu irmão!
— Andrew mesmo disse que não
mais me considera assim.
Ela abraçou-o com força.
— Estou te implorando — quis se
ajoelhar, mas ele não permitiu.
— Irei deixá-la em Avassalador
— contou. — Voltarei tão logo resolva
tudo, e então iremos para além de
Masha.
— Não, Josh... Por favor, não...
Mas era tarde demais. O ódio de
Joshua para com Andrew foi maior que
o amor que nutria por ela.
Capítulo 13

Irmãos

Andrew não parecia se atentar


pelas palavras da mulher negra.
Aquilo incomodou Ralia de uma
forma que jamais imaginou, pois creu
que iria ver o irmão de Joshua gritando
e esbravejando, ansioso por uma luta.
Contudo, sentado diante da
varanda onde a floresta de Bran se
alastrava no horizonte, o homem parecia
pensar seriamente se havia sido uma boa
ideia aquele duelo.
— Você o teme?
A pergunta de Ralia teve por
único objetivo lhe provocar os brios.
Era interesse dela que Andrew quisesse
lutar.
Havia inúmeros motivos em sua
ânsia. Desde a raiva por ter sido trocada
tão facilmente por aquele leite azedo, a
vergonha em ser devolvida a terra de
Cashel, o ódio pelo braiano casado que
havia dormido com ela anos antes e que
depois se recusou a abandonar a esposa
e viver ao seu lado, criando Liam, até
mesmo sua notória necessidade de
sangue.
— Enquanto você lutarem, envie
homens até Avassalador. Indicarei onde
o navio está ancorado.
O outro assentiu.
— Porém — murmurou Andrew
—, não quero que toquem em Elisabeth
ou Iwan.
Ralia ouviu a frase como sinal de
fraqueza.
— Aquela mulher nunca o amou.
— Lis foi minha amiga.
— Ela lhe odeia agora.
— Por minha culpa — assumiu.
— Lis é minha amiga, não a toquem.
Além disso, Iwan é sangue do meu
sangue.
— Ele não é seu filho!
— É meu sobrinho — retrucou. —
Sangue do meu sangue — repetiu. —
Tragam os dois vivos para mim.
Ralia saiu do quarto do lorde
sabendo exatamente o que faria.

— Mas ninguém vence o ruivo! —


Um dos soldados parecia prestes a
recusar a ordem. — É suicídio.
— Vai ir contra a vontade do seu
senhor? — Ralia bramou. — Andrew
quer Iwan e Elisabeth mortos.
— Não há maneira de alguém
matar o garoto. A mulher, sim, seria até
fácil, apesar de sabermos que ela sabe
lutar com a espada. Porém, o ruivo
derrotaria um exército sozinho com as
mãos atadas! — retrucou.
Ralia aproximou o corpo do
soldado. Não sabia seu nome, tampouco
importava. Ela usava da sedução para
alcançar seu objetivo.
— Todos tem um ponto fraco... —
murmurou.
— Iwan Clark não tem pontos
fracos!
Ela riu, mordendo o lábio inferior
do homem. Próximo dele, os demais
ficaram alvoroçados.
— Como você é tolo — brincou,
usando de sua sagacidade. — Uma vida
servindo aos Clark e nunca viu um ponto
fraco no menino. Eu, em alguns dias, já
sei o que fazer para pegá-lo.
Todos se encararam, ansiosos.
— A mãe dele — contou. —
Peguem Elisabeth e terão Iwan nas
mãos. Depois, matem os dois.

Joshua aproximou o barco de


Avassalador e ajudou Elisabeth a saltar
para o veleiro. Viu a mulher correndo
para o filho, e ficou a encará-los, sem
saber exatamente como agir diante do
rapaz.
— Vocês conversaram? — ele
ouviu o ruivo indagar.
Elisabeth assentiu, enquanto
Joshua enrubesceu.
Por fim, o pirata decidiu se
aproximar. Pela primeira vez, lhe dar um
abraço de pai, palavras de conforto e
carinho. Tinham tanto a falar, tantos
momentos que haviam perdido um da
vida do outro... Agora, teriam uma
chance. Nada o faria desperdiçá-la.
Só quando estava a centímetros de
Iwan, foi que percebeu o filho recuando.
Viu os olhos em chamas, latentes, como
se não quisesse nenhuma aproximação.
Condoeu-se, enquanto encarava
Elisabeth, que parecia tão transtornada
quanto ele.
— Enquanto minha mãe passou
todos esses anos sendo leal a você,
preocupada com seu destino, criando
seu filho, sozinha, chorando por teu
amor, tu se se esgueirava com rameiras e
a odiava. Jurava-a de morte, chamava-a
de vagabunda! Você não a merece. Não
importa se é meu pai, não te aceito.
Joshua abriu a boca, espantado,
enquanto Liam segurava Iwan pelo
braço e o puxava para trás, querendo
tirá-lo daquele embate.
— Iwan — quis antecipar-se,
explicar-se, quando a voz firme voltou a
ecoar.
— O quê? Vai me dizer que
também sempre amou minha mãe?
— Eu amei! — afirmou. — Disso
nunca restou nenhuma dúvida.
— Mas a traiu. De que vale um
amor que não respeita, que não é leal e
fiel.
— Você não entende! — gritou. —
Eu achava que ela...
— Liam me contou tudo —
avisou. — Você a traiu em Castelo
Negro também. Não com Anna, mas com
uma prostituta qualquer que não sabe
nem o nome.
O rapaz negro pareceu
envergonhado, mas Joshua não o
condenou. Liam devia ter aproveitado
aquela noite a sós em Avassalador para
narrar toda a vida que Iwan
desconhecia.
— Iwan... — Elisabeth tentou se
aproximar, mas o rapaz simplesmente
deu as costas e correu para o interior do
navio.
Naquele instante, a mulher volveu
para Joshua. Quis ampará-lo ao ver as
lágrimas escorrendo, mas nada do que
dissesse poderia acalmar aquela dor.
— Eu não sei o que dizer ao meu
filho — Joshua murmurou. — Se fosse
Liam que me dissesse isso tudo —
apontou o rapaz, que o encarava com
nítida pena —, eu saberia o que
responder.
Secou as lágrimas com a manga
da camisa.
— Mas eu não sei como
conversar com Iwan — repetiu, aquilo
parecia destruí-lo. — Eu não o vi
criança, nunca ajudei a controlar seus
rompantes, não tenho noção de nada de
sua personalidade. — Deu às costas a
mulher e se aproximou da lateral do
veleiro. Chutou com força uma escora
de madeira. — Ainda quer que eu
perdoe Andrew? — quase gritou,
voltando a encará-la. — Se hoje não sei
o que meu filho gosta de comer, não sei
se gosta de livros, de mar ou da neve, se
não sei nada de Iwan, é por culpa dele!
Depois disso, saltou para o barco
que tocava o veleiro. Ao longe, encarou
uma Elisabeth muda, sem palavras para
alentar tanta dor.
— Eu vou matar o homem que
tirou meu filho de mim.
O local escolhido para o duelo
dos irmãos era uma clareira afastada do
castelo de Bran, num ambiente onde
muitos anos antes havia uma cabana em
que o príncipe Cael recebia punições
covardes do seu pai, Iran.
A cabana fora destruída há
séculos. Agora, era apenas um lugar
triste, sem árvores ou flores, como um
cemitério de lembranças infelizes.
Andrew já estava lá. A espada nas
mãos, aguardando pelo outro como se
não houvesse nada a temer, como se
fosse uma prática da infância, quando
eles fingiam-se dos antigos reis, e
duelavam com pedaços de paus.
Aquele tempo morreu.
Agora, diante um do outro, só
havia rancor.
Joshua mais que nunca, trazia o
olhar carregado por uma raiva
inquietante. Estava descontrolado, o que
era uma desvantagem para o mais velho.
A conversa com o filho o abalou
demais.
— Pelo jeito você já sabe... —
Andrew murmurou, diante do estado do
pirata.
Joshua avançou, batendo com sua
espada na do irmão.
— Não vim para conversar —
avisou. — Eu vou matá-lo.
Mais dois golpes. Andrew desvia
a espada e recua. Subitamente, por mais
que tivesse o desejo, por anos, daquela
luta, ele não mais a desejava.
Talvez fosse o olhar de desespero
do outro. Talvez porque, no fundo, já
estava vingado, ou talvez fosse
simplesmente o fato de que eram irmãos
e a semelhança física não negava jamais
esse fato, Andrew estava ali, a sensação
da infância e de um amor que dormiu
por anos, e resolveu acordar naquele
instante, subjugando-o.
Em segundos, tinha lágrimas nos
olhos. Ambos tinham. Mas, ambos
também tinham objetivos diferentes.
Joshua avançou com mais força.
Anos no mar, pilhando, lhe deu
experiência. Andrew tinha treinamento
como lorde, sabia como se defender.
E foi tudo que fez. Defendeu-se.
Em nenhum momento avançou nem
tentou revidar.
— Por que não ataca? — Joshua
gritou, cheio de ódio.
Repentinamente, pararam a luta.
Encaravam-se, como se fossem a
primeira vez que se viam.
— Iwan é seu filho — Andrew
contou, a voz balbuciada.
— Eu sei disso.
— Nunca toquei em Elisabeth.
— Eu sei disso, também.
— Mas, eu tentei — avisou. — Eu
a quis como esposa. Eu a fiz dizer
aquelas palavras duras a ti, quando
estava preso no norte.
Joshua fechou os olhos.
— Você tentou forçá-la? — A
pergunta estava engasgada em sua
garganta.
— Tentei beijá-la, mas a verdade
é que eu jamais chegaria às vias de fato.
Aquela frase fez Joshua baixar a
arma.
— Meu filho me odeia — disse
ao outro. — Ele é meu filho e não me
aceita! E por que aceitaria? Já é quase
um homem e sequer tivemos uma
conversa amistosa antes!
Andrew baixou o olhar.
— Não apenas destruiu meu
casamento — Joshua acusou. — Você
acabou com a minha vida! Roubou
minha esposa e o bebê que ela
carregava! Que ficasse com seu nome,
com o título, com o que construímos no
norte, com tudo que quisesse! Mas, que
não me tirasse Elisabeth! Eu teria
reconstruído a vida ao lado dela, eu
teria criado meu filho, mesmo que na
miséria, eu teria feito tudo que podia
para que nada os faltasse.
Andrew jogou a arma no chão.
— E você acha que eu não sonhei
com uma vida feliz para ti? — revidou.
— Eu consegui uma assinatura do rei em
pessoa para que deixasse de ser
bastardo!
— Mas me tomou tudo depois!
— Por Anna! Eu amava aquela
mulher! — gritou. — E vocês eram
amantes!
Joshua negou com a face.
— Não irei ficar me justificando.
Já disse...
— Anna assassinou minha mãe
antes de partir para o Norte.
Diante daquele fato, Joshua
arregalou os olhos.
— Ela matou minha mãe e um dos
servos, roubou joias e saiu à sua
procura. Morreu no caminho, parece que
numa emboscada. Ninguém sabe ao
certo. Eu não a matei, mas queria ter
feito isso.
— Eu lamento por sua mãe... —
murmurou. — Eu não sabia que sua
morte havia sido pelas mãos de Anna.
— Evidente que não, eu já havia
te despachado para Cashel quando
voltamos para Castelo Branco e
descobri tudo. Portanto, se alguma culpa
me corroeu naqueles dias, ela sumiu
diante do corpo de mamãe, assassinado.
E ali estavam eles, irmãos, cada
um com sua dor. Cada um com sua
própria culpa e raiva. Lados opostos e,
ao mesmo tempo, tão juntos.
— Ordenei uma emboscada ao
seu navio para roubar novamente Lis e
Iwan de ti — confessou.
Estava cansado daquela luta,
daquela briga. Queria paz. Por isso,
talvez, estivesse a narrar seus planos.
— Você não sabe onde está
Avassalador — Joshua contrapôs,
guardando a espada.
— Ralia me disse — avisou. —
Ela está com os homens e indicará o
caminho.
Subitamente, havia algo errado. O
olhar de Joshua se arregalou.
— Você confiou nela?
Andrew ficou nervoso.
— O que quer dizer?
— Você tem uma péssima
impressão sobre as mulheres — ralhou.
— Preciso voltar para Avassalador
agora!
— Por quê? Acha que ela irá
armar algo? Os homens da Casa Clark
são de confiança!
— Ralia seduziria o próprio Bran
em pessoa! — resmungou. — Se algo
acontecer a minha mulher e filhos, eu
nunca vou te perdoar.
Andrew respirou fundo.
— Isso quer dizer que você me
perdoa?
Não houve resposta, Joshua já
corria em direção ao cais.
Capítulo 14

Guerra

Liam sentou-se ao lado de Iwan e


lhe ofertou um pedaço de pão. O outro
negou com a face, mas o moreno insistiu.
— Você não come nada desde que
o prendemos — comentou. — Por favor,
faça um esforço.
Iwan o encarou. Por fim, segurou
nos dedos o alimento e o mordeu, de
forma displicente.
— Acha que ela vai querer ficar
com esse cara?
— Esse cara é seu pai — Liam
retrucou.
— Não, ele é seu pai —
devolveu. — Ele te criou.
— Ele só não te criou porque não
sabia da sua existência. Acredite em
mim, caso soubesse, ele teria voltado
muito antes e teria te roubado de
Andrew sem pensar duas vezes.
O outro pareceu pensar. Liam
sabia que a mente do ruivo devia estar
uma tempestade, muitos pensamentos
desconexos e, por fim, o medo do
desconhecido.
Porque, bem da verdade, assim
como ele, mas por motivos bem
diferentes, Iwan nunca tivera uma
família completa. Liam não tinha mãe, e
Iwan cresceu sem o afeto do pai.
— Por que não lhe dá uma
oportunidade de provar seu valor? —
indagou o outro. Subitamente, riu,
lembrando-se de algo. — Sabia que ele
ficou encantado quando te conheceu?
Iwan pareceu se lembrar do
momento e logo riu.
— Chamei-o de bosta!
— Ele me contou sobre a sua
personalidade difícil. Estranhamente,
para mim ela é tão simples.
— Simples?
— Você é sincero, doa a quem
doer. Isso é algo maravilhoso num
mundo onde tudo é tão falso.
Repentinamente, o som de botas.
Iwan e Liam se encararam, como se
estranhassem aquele barulho.
Contudo, foi o grito de Elisabeth,
segundos depois, que fez os jovens
largarem à mesa onde se alimentavam, e
correrem até o convés.
O grupo de homens não passava
de dez e, analisando friamente, Iwan
percebeu que daria cabo facilmente de
todos eles. Contudo, havia algo que o
impedia de avançar.
Um dos homens prendia Elisabeth
pelo pescoço, ameaçando-a com uma
faca.
— Avance, filho de Masha, e ela
morre — o homem advertiu.
A mente de Iwan começou,
imediatamente, a traçar estratégias.
Não podia arriscar a vida da mãe,
mas se conseguisse se aproximar
rapidamente, talvez pegasse a faca. Ou
poderia...
O pensamento mudou ao ver Ralia
ao lado de um dos homens. O sorriso
satisfeito dela parecia dar vazão a
muitos sentimentos guardados a sete
chaves.
— Foi você... — disse, irritado.
— Você armou isso.
— Com a ajuda do seu... Ah,
como devo chamá-lo? Pai? Tio? Ou
assassino? Andrew Clark quer sua
cabeça em uma bandeja.
Iwan duvidava muito. Por mais
que não houvesse amor entre eles, havia
o sangue que os unia. E isso ele sempre
sentiu.
O foco mudou do soldado para a
negra. Se conseguisse chegar até ela,
poderia devolver a ameaça, soltar a sua
mãe, e então avançar contra os homens.
— Quero que o primeiro a morrer
seja o negrinho — Ralia apontou Liam,
com nítida raiva.
Iwan abriu a boca, pasmo.
Elisabeth sentiu o ar faltar aos pulmões,
e passou a se debater.
— Não encoste nele! — a ruiva
gritou. — Eu te mato, sua vadia!
O riso satisfeito da outra foi uma
resposta arrepiante.
— Seu pai, Liam, era um homem
poderoso e rico. Um braiano de boas
origens. Mas, sabe o que aconteceu
quando ele descobriu que eu estava de
barriga? Largou-me como lixo! Passei a
ter que me vender a qualquer um, até
encontrar Joshua. Você é o culpado de
todas as minhas mazelas. Então, é você
que eu quero ver morrer primeiro.
Quando um dos homens avançou
contra Liam, Iwan ficou dividido entre
salvar o amigo ou proteger a mãe. Sua
inquietação fê-lo mover-se, fazendo com
que um dos soldados avançasse contra
ele.
Tudo aconteceu muito rápido,
depois disso.
Temendo ferir a mãe, Iwan andou,
mas recuou. Foi o suficiente para um dos
soldados ver uma brecha no movimento
e desferir um golpe de faca na lateral da
sua barriga.
Ao ver o filho no chão, com as
mãos no ventre, manchadas de sangue,
Elisabeth se cegou. Empurrando o
soldado atrás de si, ela conseguiu lhe
tirar a faca.
Liam, o único que talvez pudesse
ser testemunha do que ocorreu, jamais
conseguiu explicar.
Os mashianos eram rápidos
demais para qualquer olhar. E ele só
conseguiu se ater ao que de fato
acontecia quando todos os homens
agonizavam no chão, com a ruiva
empunhando uma espada (Perguntas o
tomaram. Como ela pegara a espada? De
onde ela pegara? De quem?) a encarar
Ralia.
Foi o gemido de Iwan que salvou
a negra. Abandonando a espada,
Elisabeth correu até o corpo ferido do
filho.
Liam, então, agiu, buscando a
própria arma, colocando a espada na
face da mãe e prendendo suas mãos com
uma corda.
Ele sumiu por alguns segundos, a
fim de levá-la ao porão e, quando
voltou, encontrou Elisabeth coberta com
o sangue do filho, a embalá-lo nos
braços como se ainda fosse uma criança.
Tendo ciência que a mulher não
estava em condições de agir
racionalmente, ele girou o mastro em
direção a Bran.
Depois de muitos anos,
Avassalador ancoraria no cais.
Iwan veria um médico. Ele
salvaria o ruivo, custasse o que
custasse.
Joshua foi o primeiro a avistar o
navio. Atrás dele, Andrew encarou o
imponente veleiro com admiração.
Logo, o pirata corria em direção
ao barco, pulando dentro dele, e
encontrando a imagem mais
aterrorizadora possível.
Umas fileiras de homens mortos
jaziam no chão. No centro dos
cadáveres, a mulher que ele amava
ninava o filho que ele não pôde criar.
— Ele não está morto — Liam
correu até ele, tentando não deixá-lo
cair em loucura, como Elisabeth. —
Mas, precisa ver um médico, agora!
Uma mão no ombro de Joshua o
fez olhar para trás.
— Vamos para o castelo. O
médico real irá salvá-lo.
Capítulo 15

A herança de Anna

Joshua observou o ambiente


luxuoso, onde a Casa Clark havia se
instalado, naquele castelo milenar.
No leito, o filho dele dormia.
Após o médico real ter cuidado de Iwan,
dando-lhe remédio para uma febre que o
acometeu, costurado o ferimento
enquanto o rapaz gritava de dor entre um
desmaio perturbador, ele pôs-se ao lado,
a encarar o corpo dormente na cama.
Na outra ponta, estava Elisabeth.
Seu olhar vago, como se não acreditasse
nos próprios olhos, lhe corroeu.
De tudo, em muito, a culpa tinha
sido sua. Jamais devia ter enviado Ralia
para avisar Andrew sobre o combate.
Pior... Se ele tivesse ouvido Lis, e
partido com ela e com o filho, tão logo a
ruiva fez o pedido, jamais teriam feito a
emboscada a Avassalador, e Iwan nunca
teria sido machucado.
Subitamente, a fúria o acometeu.
Se perdesse Iwan, ele mataria
Andrew. Estava decidido, não
importava mais o quê. Porque ele
suportou tudo na vida, e suportaria mil
vezes, aguentava as chibatadas do
destino... Mas, não... Não com Iwan!
Não com o filho dele!
Liam entrou no aposento e o
encarou. O outro filho sempre conseguia
ler seu pensamento, e aquilo o
incomodou. Desviou o olhar, temendo
que mais do que o preciso
transparecesse nos olhos negros.
Viu o rapaz negando com a face,
como se dissesse: “não faça nada que
irá se arrepender”, mas tudo que Joshua
conseguia alcançar com sua mente
turbada era o corpo de Iwan deitado, e
os gemidos de dor que escapavam de
seus lábios.
Deu-lhe as costas, e saiu sem se
despedir.
Naquele corredor estreito, ele pôs
novamente a mão sobre a espada.
Cruzou por um dos guardas, exatamente
como Esmeralda havia feito, anos antes,
quando procurava Iran.
Ela, a Grande Rainha, queria o
sangue do pai. Ele, o bastardo, buscava
pelo irmão.
Logo o viu, sentado em um banco
a encarar um jardim lendário: O “Jardim
de Lyn”.
Andrew não volveu o rosto em
sua direção, mas o sentiu. Simplesmente
sorriu, triste, e depois o encarou como
se palavras não pudessem expressar
seus sentimentos.
— Tudo que restou entre nós foi o
ódio, Joshua? — indagou, como se
aquela pergunta significasse sua vida. —
Foi isso que Anna nos deixou?
Simplesmente o ódio?
Joshua retirou a mão da espada e
sentou-se ao lado do outro.
— Eu lembro que a única vez que
te vi levar um tapa do nosso pai foi
quando ele nos pegou juntos —
relembrou. — Recorda-se?
— Ele não gostava de nos ver
conversando — Andrew assentiu. —
Mas, para mim, você sempre foi parte
da minha alma.
Joshua riu, diante do comentário.
Hor Clark havia estapeado o filho mais
velho, e surrado tanto o bastardo que ele
ficou por dias atirado contra o feno.
Lembrou-se de algo então, que
nunca havia pronunciado em voz alta:
— Fui eu que soltei a sela do
cavalo... — murmurou. — Eu sabia que
nosso pai não conferia se estava bem
amarrada. Então, no dia que ele iria
cavalgar, deixei-a bem frouxa, torcendo
para que ele caísse e morresse enquanto
galopava.
Breve silêncio. Andrew respirou
fundo.
— Eu sei — disse por fim. — Eu
sempre soube.
O olhar de Joshua arregalou.
— Você... sabia?
— Nosso pai era um Clark, um
cavaleiro que servia ao castelo de Bran.
De que outra maneira ele iria cair de um
cavalo? — deu os ombros.
— Por que nunca disse nada?
— Pelo mesmo motivo que você.
A existência dele era a única coisa que
podia nos afastar.
Joshua assentiu. Havia completo
entendimento naquele diálogo.
— Se algo acontecer ao meu
filho...
— Se algo acontecer ao meu
sobrinho você não precisará me matar.
Eu mesmo me matarei, porque a culpa
não me deixaria viver.
Então se levantou. Preparou-se
para voltar ao quarto, quando sua mão
foi segurada por Joshua.
— Há anos, você confiou na
palavra de uma mulher que mentia, e nos
separou. Cometeu o mesmo erro agora,
colocando a vida de Iwan em risco.
Respirou fundo.
— Se algo acontecer a Iwan, só
quero que fique ao meu lado, e de
Elisabeth. Precisaremos de você... —
murmurou. — Porque você é meu irmão,
é minha família.
Viu lágrimas no olhar de Andrew
e então se ergueu.
— Por favor — disse, enquanto o
abraçava. — Se conhecer uma dama e se
casar com ela, escolha direito dessa vez.
A sonora gargalhada de Andrew
selou a paz entre eles.
Elisabeth encarou o corpo
dormente enquanto alisava o braço do
filho que tanto amava. Ao seu lado,
Liam também parecia aflito.
Abruptamente, a mente dela
voltou a pensar além da dor e encarou o
jovem que Joshua adotara. O rapaz
havia sido ameaçado pela própria mãe.
Quão pesado devia estar seu coração?
— Você está bem? — ela
perguntou, não por cortesia e sim porque
realmente se preocupava com ele.
— Estou, milady.
— Pode me chamar de Lis — ela
murmurou. — Ou de mãe, se quiser —
sentiu as lágrimas inundando-a. — Sei
que não sou sua genitora, mas eu posso
aprender a ser, como Joshua
definitivamente terá que aprender a ser
de Iwan.
Ele sorriu.
— A senhora é muito gentil.
Ela podia sentir a dor daquele
menino, dos anos que fora humilhado e
desprezado, e de como ele lutava para
não deixar-se dominar pela revolta.
Liam era tão formoso e carinhoso, não
entendia como coisas tão más podiam
acontecer à gente tão boa.
Iwan gemeu no leito. Elisabeth
voltou a atenção ao filho, esperando na
ânsia de ver seus olhos verdes lúcidos
novamente. Contudo, ele apenas parecia
absorvido pela dor, e não acordou.
Lágrimas a tomaram, ciente de
que poderia jamais vê-lo novamente. Se
aquilo acontecesse, como ela viveria?
Voltou a olhar Liam, percebendo a
preocupação estampada no rosto do
rapaz.
Ele sentia o mesmo que ela, mas
não falava, apenas para não deixá-la
ainda mais nervosa. Simplesmente
permitia-se a ficar ali, uma companhia
silenciosa e calorosa.
— Nunca tive isso, sabe? —
ouviu o tom masculino, baixo e numa
confissão bastante dolorida. — Nunca
tive alguém para zelar por mim, doente.
— Nem Joshua?
— Pai Joshua estava sempre
comandando Avassalador. Ele vinha me
ver, mas não podia ficar ao meu lado.
— Ralia também não o fez, não é?
Negou.
— Ela só aparecia no meu quarto
para me dizer que esperava que eu
morresse.
Silêncio novamente. Ao longe, a
sinfonia de grilos anunciava que a noite
se aproximava.
— Eu preciso de um pouco de ar,
meu amor — ela murmurou a Liam. —
Você pode cuidar de Iwan por mim?
O rapaz assentiu.
Elisabeth saiu do quarto
apertando o pano do vestido.
A porta do porão de Avassalador
abriu, num estrondo que fez Ralia
estremecer.
Esperava ver Joshua, e ouvir seu
patético sermão sobre ter ameaçado
Liam e Iwan. Talvez, até lhe desse uns
tapas, por causa da puta ruiva que ela
odiava.
Portanto, ficou surpresa quando
encarou Elisabeth vindo em sua direção,
o olhar em chamas, a espada empunhada
como se estivesse pronta para uma
guerra.
— Seu bebê morreu? —
questionou, gargalhando histericamente.
— Espero que tenha agonizado bastante.
Elisabeth nada disse. Pegou um
molho de chaves e abriu a cela. Ralia a
encarava, como se não conseguisse
decifrar sua intenção.
Então, viu uma espada sendo
jogada em sua direção. Abriu a boca, em
espanto.
— Eu sou puta do cais de Cashel,
mashiana — Ralia disse, firme. — Uma
vadiazinha criada no palácio não é
páreo para alguém que cresceu nas ruas.
Elisabeth ergueu sua espada.
— Fale menos e lute — avisou.
— Porque você mexeu com minha cria e
eu não vou te perdoar. — Levantou a
espada à altura do queixo de Ralia. —
Hoje você morre pelo meu filho e pelo
teu.
— Oh, vai lutar por Liam
também?
— Liam não merece ter nascido
de uma cobra venenosa como você. Vou
livrá-lo de você, e depois irei amá-lo
tanto que sua imagem será apenas uma
triste lembrança que irá adormecer em
seu coração.
Diante de tais palavras, por fim,
Ralia ergueu sua espada.
Capítulo 16

Família.

Era cômico que Elisabeth e Ralia


representassem Masha e Cashel, os
deuses irmãos, sendo as duas mulheres
tão rivais.
Aquilo fez Lis entender,
definitivamente, que nem todos
cumpriam a vontade dos deuses. A irmã,
Anna, sempre se professou uma
seguidora apaixonada de Masha, mas foi
mesquinha e atroz durante toda a vida.
Cashel sempre pediu aos seus que
fossem bondosos e piedosos, e ela só
via maldade disfarçada de revolta em
Ralia.
A mulher negra culpava o filho, ao
braiano que a deixou, a Joshua e até
mesmo a ela, Lis, pelas suas desgraças.
Contudo, não enxergava que a principal
responsável havia sido ela e suas
escolhas.
Elisabeth uma vez ouvira Sophie
dizer que ninguém plantava trigo e
colhia milho. Não entendeu a citação até
aquele instante. Tanto Ralia quanto Anna
plantaram coisas ruins. Ambas colheram
exatamente o que semearam.
A irmã morreu pelas mãos de
assassinos de estrada. Ralia cairia pelas
suas. Porque disso Elisabeth tinha
certeza. Ela não perderia aquela batalha.
Avançou com a espada e sentiu o
impacto do contato dos ferros. Ralia
tremia, havia tanto ódio em seu olhar,
em seus sentimentos, que uma parte de
Lis se apiedou.
Era mulher, também. Compadecia-
se em ser subjugada. Entretanto, não
perdoava que, em nome de uma espécie
de revolta, Ralia atingisse inocentes.
Liam mais que todos.
— É só isso que sabe fazer uma
mashiana? — ela indagou, enquanto
desviava-se de um golpe. — Derrotou
quase uma dúzia de homens armados
assim?
— Talvez eu esteja pensando se
vale a pena te matar — Lis ponderou. —
Talvez se você se arrependesse...
— Me arrepender do quê? Eu
tentei tirar aquele merdinha, e ele se
recusou a sair do meu corpo! — gritou.
— Um parasita que se alimentou dos
meus dias, da minha juventude!
Enquanto eu viver, eu vou querer vê-lo
morto!
Se Elisabeth esperava uma
indicação dos deuses para seu ato,
aquela era sua deixa. Ali estava Ralia,
completamente aberta, sendo exatamente
o que ela era, uma mulher fria,
amargurada, incapaz de amar.
Mais que isso, uma ameaça.
Foi então que Elisabeth avançou
rapidamente e desferiu o golpe fatal em
seu peito.
Naquele instante, ela entendeu
exatamente o que ela era, o que cada
mashiana era. O sangue que queimava
em suas veias aliviou-a de qualquer
culpa.
Não era vingança. Era justiça.
A madrugada avançou enquanto
Joshua e Liam permaneciam em volta do
leito, a velar pelo machucado. Iwan não
acordara e Elisabeth desaparecera.
Aquilo estava deixando Joshua ainda
mais nervoso, mas ele tentou manter o
controle.
Precisava aprender a confiar na
mulher. Não havia sido ela que manteve,
por todos aqueles anos, o amor acesso
por ele enquanto cuidava de seu filho,
sozinha?
Mordeu o lábio inferior enquanto
a culpa o dominava. Ele a odiou.
Tremendamente. Desejou com fúria que
ela morresse, que pagasse pelo crime de
não amá-lo. Só quando ouviu a voz de
Iwan professando a verdade foi que
percebeu o quão maligno e estúpido
havia sido.
O pior era: e agora? O que ele
faria?
Estava impotente diante do filho
ao leito. Ele, o pirata mais temido dos
mares, não podia fazer nada por Iwan a
não ser aguardar ansiosamente que ele
abrisse os olhos.
E depois?
Iwan não o queria como pai e
estava absolutamente certo em seus
argumentos.
Joshua encolheu-se ao perceber
que não era um bom homem. Era um
fato.
Percebeu Liam a encará-lo.
Momentos depois, o filho negro se
aproximava dele, e o abraçava. Não
precisavam de palavras, sempre se
entendiam.
— Ele nunca vai me aceitar —
disse, sem nenhuma dúvida em seu tom.
— Quem aceitaria?
— Iwan só precisa de um tempo.
Descobriu que toda a sua vida foi uma
mentira.
— Mais que isso... Elisabeth está
certa... Preciso tirar Iwan daqui, porque
quando descobrirem a verdade farão o
possível para puni-lo. Vão acusá-lo de
querer se passar por filho legítimo.
— Essa culpa não é dele...
— Como se o clero precisasse de
alguma infração para poder devastar
alguém — Deu os ombros. — Andrew
me contou, certa vez, quando éramos
crianças, que rei Cedric teve um
encontro com os deuses onde eles
diziam que todos somos iguais, de peles
diferentes, mas com a mesma essência.
Que não havia imundos...
Respirou fundo, antes de
continuar.
— O mal sempre dá seu jeito de
desvirtuar a mensagem de amor e torná-
la de ódio. Reparou?
Liam assentiu e abriu a boca para
respondê-lo quando Elisabeth entrou no
quarto. Ambos assustaram-se ao vê-la
coberta de sangue, com o olhar apático,
como se estivesse num momento casual.
— Ralia está morta — avisou, a
ninguém em especial. Era como se
estivesse em transe. — Eu a matei.
Joshua abriu a boca, como se
quisesse dizer algo, mas
definitivamente, não sabia o que falar.
Liam, então, avançou contra a mulher e a
apertou nos braços. Ali, unidos,
simplesmente choraram.
— Eu sinto muito — Liam
murmurou. — Eu realmente sinto muito.
— Eu também — Lis completou.
— Mas, eu não tive escolha. Não havia
escolhas. Era ela ou você.
Liam sabia. Naquele mundo torpe,
para Ralia, não havia espaço para os
dois, não podiam coexistir. Assim
sendo, ela obrigou Elisabeth a fazer uma
escolha. Não foi por Iwan que a ruiva
matou a outra. Nem por ciúmes dos
momentos que ela viveu ao lado de
Joshua, mas sim pelo garoto de pele
escura que não tinha alguém do sexo
feminino a lhe servir de mãe.
Soltaram-se. Elisabeth encarou
Joshua, aguardando sua opinião, quando
a mudança brusca no tom do outro a
arrepiou.
— Perdoei Andrew — ele contou.
E esperou. Porque,
definitivamente, ele não era o único a
odiar o irmão. Elisabeth havia sido a
maior vítima do Lorde do Norte. Ela
também seria capaz de dar-lhe outra
chance?
— Eu preciso de um tempo — a
mulher pareceu ler sua mente.
Ele assentiu. Acima de tudo, a
respeitava.
— E quanto a nós? — indagou.
Liam fez menção de se afastar
para deixá-los a sós, mas Elisabeth
segurou-o.
— Estou disposta a viver ao seu
lado. Nós quatro — ela incluiu o rapaz.
— Sermos a família que nunca pudemos
ser.
A voz ecoou com força e
convicção. Porém, não foi tão
determinada quanto àquela que emergiu
da cama.
— Pois eu não!
Capítulo 17

Masha
Jamais haveria palavras para
descrever o quão aterrorizado ficou
Joshua ao olhar para o leito e perceber a
amargura e o rancor em seu filho.
O SEU FILHO!
Por Bran, Masha e Cashel!,
aquele garoto era fruto do seu amor por
Lis, era um sonho em carne e osso e, na
mesma medida, parecia um pesadelo.
Ele sempre sonhou com uma
família. Elisabeth, ele, e muitos filhos.
Não puderam realizar aquele desejo, e o
único ser que geraram parecia odiá-lo.
— Iwan... — ouviu o som da voz
feminina, emocionada. — Meu amor...
— As lágrimas a embargaram. — Você
acordou, minha vida... — correu até o
leito.
O gemido baixo do ruivo indicava
que ele recebia o abraço da mãe com
alguma leve oposição.
— Eu já disse — ele avisou, alto,
em bom tom, para que não restassem
dúvidas. — Esse homem não te merece,
mãe.
— Ele é seu pai, Iwan...
— Eu nem o conheço —
resmungou.
Joshua permanecia parado diante
da cama. O que poderia dizer? O que
poderia fazer? Estava tão transtornado
que mal ouviu Liam tentando acalmar os
ânimos.
— Não é o momento para esse
tipo de conversa. Iwan ainda está...
— Eu te aceito como irmão — o
ruivo antecipou, o olhar fixo no outro
rapaz do quarto. — Te aceito como
amigo, também. Aceito que chame minha
mãe de sua mãe. Aceito sua presença.
Mas, a desse homem — apontou Joshua.
— Que eu morra agora, se tolerarei
como pai alguém que tentou destruir a
minha mãe.
Era uma punhalada tão forte que
Joshua simplesmente recuou.
— Eu... — murmurou, incerto,
destruído. — Eu voltarei depois...
— Não volte! Não o quero aqui!
— o outro gritou.
— Iwan... — Elisabeth tentou
intervir. — Se acalme e recupere-se
primeiro, meu filho. Depois disso, nós
poderemos conversar com calma.
O outro negou.
— Não é o ferimento na minha
barriga que me tira a lucidez. É sabê-la
amando esse...
— Ele é seu pai! — Elisabeth
repetiu, dessa vez a voz mais alta e mais
firme. — Não o desrespeite!
O rapaz o encarou, ainda mais
afrontado.
— Não falarei o que penso de ti
em respeito a Masha, minha Deusa, que
ordena que os filhos respeitem seus
pais. Assim como Cael sempre respeitou
Iran, mesmo ele não merecendo, terá
minha consideração. Mas, apenas isso
terá de mim.
O homem assentiu, abalado. Pela
movimentação, o ferimento de Iwan
voltou a sangrar, e Elisabeth fê-lo
resvalar novamente contra o travesseiro.
Por fim, tudo se acalmou, e Joshua
decidiu sair do quarto.
Caminhou em passos rápidos
pelos corredores, como se fugisse do
demônio em pessoa.
Nunca pensou que um filho
poderia magoar tanto. Nunca pensou que
as palavras de outro homem pudessem
feri-lo como nada mais o fez.
Nem Hork Clark, nem Anna de
Brace, nem seu irmão, nem mesmo a
mulher que ele amava, Elisabeth, havia
machucado tanto seus sentimentos.
Sentiu, então, um toque no braço.
Voltou-se e encarou Lis.
— Dê um tempo a ele — ela
pediu. — Iwan está nervoso, foram
muitas emoções.
— A sinceridade dele não vem do
nervosismo, e sim é fruto da verdade. O
quanto eu já te feri, Elisabeth? De todas
as formas que um homem pode machucar
uma mulher. E, mesmo assim, ainda me
quer. Por quê?
Ela sorriu, enquanto o puxava
contra si. Beijaram-se.
— Que pergunta tola — murmurou
contra os lábios masculinos. — Não é o
único homem que amei em toda vida,
Josh?
Ele não resistiu àquela doçura.
Segurou a face da esposa com firmeza e
adentrou seus lábios com a língua. Em
segundos, os corpos moldaram-se,
ajustando-se um ao outro. Caso não
estivessem vivendo tantos problemas,
ele não resistiria a levá-la a um canto
escuro e tomá-la ali mesmo.

— Vamos voltar para Castelo


Negro ou iremos navegar com
Avassalador? — ela questionou.
— Eu gostaria de voltar para casa
— ele assumiu. — A nossa casa, na
neve tingida pelo carvão das lareiras.
Mas, e nosso filho? Andrew também
seria punido caso descubram o que ele
fez.
Elisabeth concordou.
— Não temos escolha, portanto
— ela sussurrou. — Iremos para o mar.

Ele podia ouvir o som melodioso


da voz gentil.
Era uma canção de ninar que os
antigos cantavam desde sempre.
“Dorme, dorme, criancinha, que
os deuses por ti olham;
Dorme em paz, criancinha,
protegida sempre está;
Dorme, dorme, pequenino, que
nada de mal te tocará”.
Iwan abriu os olhos. Imaginou ver
a mãe ao seu lado, mas apenas Liam
estava ali, com o rosto escorado na
parede, ressonando.
Buscou pela voz, ansioso por
saber o dono daquele tom que lhe tocava
profundamente.
Por fim, viu a ruiva, sentada aos
pés da cama, roupas velhas e gastas e
um baralho brincando entre seus dedos.
Era a adivinha que ele havia visto
com Iwan, no dia que foi sequestrado!
Subitamente, ela voltou-se para
ele. As roupas abandonaram a
simplicidade, e ela se mostrou
maravilhosamente bem vestida num traje
branco, um vestido que lhe chegava aos
pés.
Sabia quem era. Sentia quem era.
Quis se ajoelhar, mas não podia se
mexer, mesmo assim, comoveu-se pela
presença.
— Minha Deusa! — exclamou. —
Aquela por quem vivo...
— Aquela por quem te chamam
— ela sorriu, completando. — O ruivo
de Masha.
Iwan assentiu, sentando-se com
dificuldade. As lágrimas escorriam pelo
seu rosto, mas ele não estava
envergonhado por elas. Era outro fato
que lhe trazia vergonha e humilhação.
— Deixei-me apunhalar...
— Ora, não se culpe. Estava
confuso e só queria proteger sua mãe.
Você nunca me envergonhou — ela
contou, seu sorriso ainda mais firme.
— Nem quando falo palavras
grosseiras?
— Que me importa se faz uso
vulgar das palavras quando o que diz é a
verdade? Mais me vale palavras
ásperas, mas sinceras, que doces como
mel, todavia traiçoeiras como serpentes.
Masha se levantou. Caminhou até
a lateral da cama, sentando-se próximo
de Iwan. Ali, ao alcance dos seus dedos,
Iwan percebia a semelhança com sua
mãe. Era incrível e ao mesmo tempo
arrebatador.
— Há muitos anos escolhi uma
ruiva para ser mãe de uma rainha.
Apesar de ser a história da mãe,
Esmeralda, a mais citada nos reinos, foi
Brione, a Liberta, que reinou com
sabedoria e prosperidade. Depois dela,
muitos passaram pelo trono, e os
princípios professados pela Rainha
negra de Bran foram se perdendo. Os
descendentes de Bran, Cashel e, até
mesmo, os meus, não são dignos do
trono. Então, eu escolhi outra mãe.
Diferente de Esmeralda, e ao mesmo
tempo, tão igual. — Ela sorriu,
deslizando a mão pela face pálida. —
Para ser mãe do futuro rei. Aquele que,
como Brione, não terá medo de guerrear
pela justiça.
Ele entendeu a referência e ficou
pasmo.
— Mas, não posso ser rei —
avisou. — Não estou na linha
sucessória.
— Angus lhe dará a Coroa. Ela é
sua, você é o escolhido.
— Alguém como eu? — ele
parecia não acreditar. — Não tenho
autocontrole, vou acabar colocando fogo
no reino em uma semana.
Masha riu alto.
— É exatamente por isso que
você precisa da sua alma gêmea —
apontou o rapaz a dormir ao lado. —
Ele é a parte de você com paciência,
benevolência e piedade. Liam te ajudará
a reinar, será seu braço direito. Vocês
são irmãos de alma, e nada é mais forte
do que isso.
Iwan mordeu o lábio inferior.
— Eu não quero ser rei — sua
voz deixava claro sua emoção. — Mas,
se é a sua vontade, eu a cumprirei.
Masha assentiu, e então se ergueu.
Depois disso pousou a mão sobre o
ferimento. Uma luz surgiu entre seus
dedos, e em segundos, Iwan estava
curado.
— Eu a verei novamente?
Um sorriso brando cruzou pelos
lábios da ruiva.
— Estou em cada pássaro que
canta, em cada sorriso de criança, em
cada abraço entre pai e filho. Você me
vê a cada segundo, basta prestar
atenção.
Iwan curvou a face. O conflito
nele era intenso. Sua Deusa protetora
entendia o porquê.
— As pessoas cometem erros
Iwan — ela disse, franca. — Muitos
erros. Todos os reis que você admira
também já falharam, várias vezes.
Cedric de Bran negou o próprio filho
quando soube que Esmeralda era uma
imunda. Cael tratou os sentimentos de
Kian com deboche, tão logo soube
deles. Randu tomou Rhianna por mulher,
mesmo dizendo que não o faria. E, seus
erros não apagaram a grandiosidade do
seu legado. Acredite em mim, Joshua
merece uma chance como pai. Ele nunca
falhará com você, nisso, tem minha
palavra.
E desapareceu.
Elisabeth encarou a porta com
apreensão. Depois, volveu ao marido
que parecia mais nervoso do que ela.
— O que eu digo a ele? — o
homem questionou, mais uma vez.
Liam surgiu à porta. Encarou-os e
saiu, fechando-a atrás de si.
— Diga apenas o que sente. São
as únicas palavras que podem tocar
Iwan.
Prepararam-se para entrar, quando
um barulho no corredor chamou a
atenção. Voltaram-se para trás e viram
Andrew correndo na direção deles.
— Ontem Ralia enviou uma
missiva ao sacerdote de Bran contando
toda a verdade — ele avisou, sem
cumprimentos. O momento exigia
pressa. — Passava no templo quando
ouvi sobre o plano do clero. O
sacerdote está vindo cá afim de prender
Iwan e julgá-lo por ser bastardo.
Naquele instante, o Clark mais
velho retirou a espada da bainha, e
voltou-se para a direção que veio.
Segundos depois, um montante de
homens armados se aproximava, em
passos retos e vitoriosos.
— O bastardo de Masha — o
sacerdote gritou, feliz, vencedor. — O
bastardo deve morrer.
E em algum lugar, Bran chorou
por aqueles que falavam por ele.
Capítulo 18

O fim.

Apesar de ser apenas quatro,


aquela vigília sobre a porta era
considerável. Não seria fácil para os
soldados do clero invadirem o quarto do
ruivo de Masha.
A mãe do rapaz colou as costas à
porta, como se declarasse que só
abririam aquela entrada sob seu
cadáver. Diante dela, um jovem negro já
empunhava uma espada, preparando-se
para combate. E, na dianteira, os irmãos
braianos que passaram a vida a se
amarem e odiarem na mesma proporção
completavam o time de proteção.
— Ninguém passará por nós —
Andrew declarou. — Iwan foi ferido,
precisa se recuperar de seus ferimentos.
— Muito me surpreende que um
filho legítimo como você, Andrew
Clark, proteja um bastardo que tenha se
passado por teu fruto.
— Iwan não é bastardo —
Andrew retrucou. — Meu irmão Joshua
tem um documento assinado pelo Rei
que o reconhece como filho de Hor
Clark.
Aquele papel ainda estava sobre
posse de Andrew. Apesar de toda raiva
que viveu, jamais o tocou a fim de
destruí-lo.
Ao lado dele, Joshua esperava o
fim do embate com preocupação. Se
nada valia a palavra de Andrew, ele
teria que matar aqueles homens, e
escapar do castelo até Avassalador.
Seria algo muito difícil, digno de uma
cena das histórias dos reis.
— Iwan é um bastardo! — O
sacerdote retrucou. — Ganhar tempo a
fim de que o jovem que foi apunhalado
se recupere não te valerá de nada.
— Como sabem que ele foi
apunhalado? — Liam interveio.
— Ora, o médico que o cuidou já
espalhou a notícia. — o clérigo volveu
para os soldados. — Se não o pegarem
agora, não o pegarão nunca mais.
Então os soldados avançaram.
Porém, o combate não ocorreu. Por mais
que os três homens tenham erguido a
espada e se preparado para a luta, a
porta abriu e surpreendeu a todos.
Elisabeth só teve tempo de olhar
para trás e ver, assustada, o filho em
total condição de luta.
— Estou curado — Iwan
adiantou-se a mãe, esclarecendo logo
sua preocupação. — Masha surgiu para
mim e me curou — ergueu a camisa de
linho, ainda ensanguentada, e mostrou a
pele lisa. — Eu agora vou fazer o que
preciso.
Houve um breve recuo dos
homens. Ora, todos ali viram o milagre,
sabiam que o jovem havia chegado ao
castelo carregado nos braços pelo
pirata, que o médico que o cuidou não
deu esperanças de vida, e agora ele
aparecia completamente bem, pronto
para decepar a cabeça de qualquer um
que ousasse desafiá-lo.
Temeram, cada um por si, cada um
por determinado motivo. Alguns
pensaram nas esposas e filhos, outros
nas putas das tavernas, nas bebidas e na
juventude, e alguns até em sua alma.
Porém, a chegada de Angus, o Rei
dos reinos, interrompeu a batalha que
poderia se travar.
— Meu Rei — o sacerdote
adiantou-se, prostrando-se levemente.
— O ruivo é...
— Ele é o novo Rei — Angus
anunciou.
Era impossível que tal coisa
acontecesse, na visão de todos ali. Mas,
Iwan recebeu a notícia com facilidade.
Repentinamente, Elisabeth sabia
que o filho já tivera conhecimento da
informação.
— Masha esteve comigo — o
rapaz adiantou-se, diante de Angus. —
Eu tenho medo... — confessou, baixo,
envergonhado. — Não acho que serei
um bom rei.
— Nossos deuses não te
escolheriam se não fosse como é — deu
os ombros. — Farei o anuncio oficial
em algumas horas, até lá descanse e
converse com seus familiares.
Depois, voltou-se para o
sacerdote.
— Em pouco tempo a Coroa será
entregue a Iwan, o ruivo. Você tem
poucas horas para fugir antes que ele
mande te matar.
O sacerdote aceitou o sábio
conselho e desapareceu entre os
corredores.
O jovem ruivo subiu a escadaria
que levava ao trono. Diante dele, muitas
pessoas pareciam assustadas e surpresas
pelo ocorrido.
Angus não lutara pela Coroa. Ao
contrário, tanto o antigo rei quanto a sua
esposa e filhas pareciam entender que
aquilo era vontade divina.
O anúncio de que Angus partiria
para Cashel e viveria lá até o fim de
seus dias foi ouvido antes de Iwan
sentar-se no trono. Depois disso, o
jovem simplesmente moveu-se para trás
e resvalou no assento.
Encarou a todas as pessoas, viu
estampada uma indignação seletiva,
onde muitos viam nele um rival e não um
soberano.
Teria que cortar algumas cabeças
para adquirir o respeito ou o temor
daqueles a quem governaria?
Ao lado dele, Liam, a quem ele
declarou Conselheiro, parecia mais
tranquilo e sorridente.
Iwan respirou fundo dizendo a si
mesmo para não tomar nenhuma atitude
precipitada antes de ter a certeza da
ação pelo pensamento de Liam.
Almas gêmeas... Não amantes,
mas irmãs. Era um pensamento
confortador.
Desde o momento que a família
soube de seu destino, até aquele em que
ele sentara no trono, não houvera
conversa entre eles. Por mais que
tivessem algumas horas, Iwan estava
nervoso demais para dialogarem.
Acalmou a mãe com um sorriso, e
ao tio Andrew com um aperto no ombro.
Não olhou para Joshua, mas dirigiu-se a
Liam, explicando a ele a sua
incumbência daquele momento em
diante.
Tossiu. Depois, chamou o escriba.
O homem com a pena sentou-se abaixo
da escadaria, e preparou-se para pôr no
papel as primeiras ordens de Iwan como
Rei dos Reinos.
— Que todos saibam, que minha
mensagem seja levada de Bran até
Masha e Cashel: Não há imundos. Nem
na época da Rainha Esmeralda, nem
hoje. Trocaram o foco da perseguição,
mas continuam a achar vitimas para suas
maldades. — Encarou Liam, vendo o
rosto pacífico do outro, prosseguiu. —
Nenhum filho é culpado pelo crime ou
pecado de seu pai. Portanto, não há
motivos ou razões para a perseguição
contra os bastardos, camuflada de amor
aos deuses. Aliás, caso alguém ouse
perseguir outro, seja quem for, usando a
desculpa de que essa é a vontade de
Masha, Bran ou Cashel, tal pessoa
pagará pelo crime de blasfêmia.
Houve um burburinho leve, mas
nada que o impedisse de continuar.
— Hoje sairão do Castelo,
mensageiros para todas as casas
importantes do reino. Cada casa deverá
nos enviar um escriba, que irá copiar os
livros dos deuses para seu povo. Cada
lorde deverá providenciar cópias de tal
documento aos seus, sem adulteração,
sob pena de morte. O conhecimento das
escrituras é a única proteção que o povo
tem perante a manipulação do clero.
Era óbvio que ninguém gostara da
novidade. Ele percebia a imagem
nervosa de alguns sacerdotes parados ao
longe, mas acreditou que ninguém iria
lhe desafiar, até um homem que,
aparentemente, servia a Cashel, ergueu a
voz no meio da multidão:
— O povo não tem consagração
para entender a intenção dos deuses.
Para isso, precisamos dos sacerdotes!
Em segundos, Iwan estava de pé.
Caminhou reto até o homem,
aproximando-se o suficiente para ver as
gotículas do suor frio que escapava de
sua testa.
— Eu, Iwan de Masha, não estou
perguntando se é uma boa ideia. Estou
anunciando que é isso que acontecerá. E
a renúncia em cumprir tais ordens será
considerada lesa-majestade, um crime
sem perdão.
O homem se calou, enquanto Iwan
voltava ao trono. Enfim, em si, ficara
satisfeito em saber que conseguiria dar
ordens sem matar ninguém. Quando
desceu aquela escadaria, estava pronto
para estrebuchar o homem. Agora,
congratulava-se pelo autocontrole.
— Todas as festas e
comemorações estarão proibidas nos
reinos pelos próximos três anos.
Então sim houve uma gritaria
extensa e revoltada. Religiosamente,
parecia que ninguém se preocupava com
a mudança das leis dos deuses. Mas,
tirar dos nobres suas festas regadas a
vinho e abominações causou enorme
frenesi.
— Calem a boca! — Iwan gritou.
— Já disse que a renúncia às minhas
ordens será considerada crime contra o
rei. Quem não se calar, será preso
agora!
Enfim, silêncio.
— Por anos e anos, os recursos da
Coroa enviado aos reinos mais
afastados foi desviado por vocês,
cobras peçonhentas, para festas
luxuosas. O povo em Cashel e Masha
passa fome enquanto vocês banqueteiam
e profanam seu corpo e ao nome dos
Deuses que lhes deu vida. Agora,
acabou. Não haverá comemorações e,
durante esse tempo, será feito uma
enorme varredura nos gastos e nos
valores enviados pela Coroa as suas
casas, em cada reino. Aquele que
praticou corrupção terá que responder
pelo crime. Perderá o nome, e será
banido da nobreza e do sangue real.
Os olhares assustados não
deixavam dúvida que quase todos ali
eram culpados de tal delito.
— Depois desse tempo, cada festa
deverá ser feita com os recursos
próprios. A Coroa enviará, de tempo em
tempo, vigias até as colônias para saber
como está o povo. Caso o povo padeça
enquanto o senhor do feudo esteja cada
vez mais poderoso, esse senhor terá que
vir até mim e me dar respostas
satisfatórias.
Subitamente, o olhar cruzou com o
da mãe. Viu Elisabeth sorrindo para ele,
lágrimas de orgulho nos olhos. Aquilo
lhe deu forças para prosseguir.
— Corrupção terá o mesmo peso
que assassinato, em julgamentos. Não
irei tolerar que o povo sofra pela
sovinice daqueles que deviam honrar o
sangue de Esmeralda.
Então, com um aceno ele
dispensou a todos, ergueu-se e rumou
para seus aposentos, seguido pela
família.
Iwan entrou no quarto e caminhou
até o cantil. Bebeu a água com as mãos
tremulas, enquanto respirava fundo,
tentando manter o controle.
Estava muito nervoso. Sentiu uma
mão no braço e um sorriso feliz. Por
fim, abraçou Liam, seu irmão de alma, e
permitiu-se acalmar contra os braços do
outro.
— Será um grande rei.
— Eu não tenho certeza disso —
contrapôs.
— Você é justo e corajoso. — ele
murmurou. — Angus era bom e justo,
mas não corajoso. Por isso ele te
entregou a Coroa sem lutar. Ele sabia
que não havia nascido para ser rei.
O som de passos fê-los voltar-se
para os pais e o tio atrás dele.
Iwan sabia que era o momento de
falar com os seus, e percebeu que aquilo
o deixava ainda mais nervoso que falar
ao público.
— Meu tio, Andrew — ele
começou. — Tudo que aconteceu entre
nós... — calou-se.
Não conseguia mais falar nada.
— Eu sei que não mereço seu
perdão nem o de sua mãe.
Iwan encarou Elisabeth. Ela
parecia pensativa.
— O meu, o senhor tem. O de
minha mãe pode demorar um pouco
mais, mas certamente também virá. Eu o
agradeço por tudo, e espero que tenha
uma vida feliz. Como tio do Rei, conto
com seu apoio no norte, e terá o meu, em
tudo que precisar. — Aproximou-se do
outro, e o abraçou. — Eu o amo —
confessou, mesmo nunca tendo dito
aquilo antes. — Não como pai, mas
como parente.
— Eu sei... — ouviu o murmuro.
— Estarei ao seu lado, não importa o
quê. — Então afastou-se. — Liam,
acompanhe-me, por favor.
Era clara a intenção de deixar os
três a sós. Iwan percebeu isso, assim
como os demais. Quando a porta fechou,
ele encarou os pais.
— Por que nunca me disse...?
Elisabeth foi interrompida
imediatamente.
— Desconhecia meu futuro, mãe.
Ainda estou absorvendo a informação.
Joshua, em silêncio ao lado dela,
não sabia exatamente o que dizer. Tinha
medo de ser retalhado pelo filho. Então
aguardou enquanto um mar de desespero
cruzava o olhar esverdeado do novo rei.
— Eu tenho medo do poder me
enlouquecer e eu sair matando todo
mundo — murmurou. — Porque eles
bem que merecem! Hipócritas, nojentos!
Quanto usaram do poder...
O abraço da mãe o calou. Aquela
dor que ele sentia era completamente
compreensível para ela.
— Sempre torturando... Animais,
pessoas, crianças... Tudo que podem!
Como o sangue que corre nas veias
deles é o mesmo que corre nas minhas?
Como todos nós, nobres, descendemos
de Esmeralda?
— Você esquece que a própria
Rainha era filha de Iran, que estuprou
Brione, e matou a mãe de Cedric. O
mesmo sangue não indica nada. Veja o
exemplo de Ralia e Liam. Tão
diferentes...
Iwan assentiu. Então, volveu-se
para o homem. Encararam-se, um tanto
enrubescidos.
— Às vezes o sangue significa
algo — murmurou.
Silêncio. Eram pai e filho, mas
tinham tanta dificuldade de
aproximação.
— Se for sua vontade, eu partirei
— Joshua disse a ele, apesar de sentir-
se destroçado ao falar tais palavras. —
Eu não irei me impor...
— Não quero que vá — o rapaz
cortou. — Eu... Eu só preciso me
acostumar à ideia — murmurou. — Eu
não te odeio.
Joshua sorriu, completamente
emocionado. Não era muito, mas já era
alguma coisa.
— Eu o amo — o pirata afirmou,
sem medo. — Eu te amei no exato
momento que te vi, a retrucar o
sacerdote naquela festa. Mesmo que eu
não tenha reconhecido o sentimento, meu
coração o sentiu e o viveu. Então, eu
vou lutar com todas as forças para que
você também, um dia, possa me perdoar
e possa me aceitar... Quem sabe me
chamar de pai.
O outro assentiu, um tanto
envergonhado. Joshua então o puxou
para os braços e eles trocaram um
abraço caloroso.
Um abraço que lhes valeu toda a
vida.
Capítulo 19

Epílogo – O Recomeço

Joshua encarou a esposa contendo


uma gargalhada. Lis estava pasma, a
boca aberta, perante a filha deles de
cinco anos, que postava-se batendo o pé
diante do trono do Rei como se
estivesse pronta para ser a próxima
monarca.
— Eu já disse que não, Lyanna —
Iwan negou a irmã, apesar da voz falha.
— Você sequer alcança o pé no estribo!
Depois, o rei encarou o pai,
furioso.
— Ela é sua filha! — avisou. —
Por que não nega as coisas a ela?
— Sempre digo que ela deve
perguntar ao rei — Joshua ergueu as
mãos, em inocência. — Então se ela
quer aprender a cavalgar, o Rei é quem
pode autorizar ou não.
— Pai! — Iwan exclamou,
nervoso, raivoso.
Joshua era desgraçadamente o pai
mais bonzinho que podia existir. Não
negava nada a nenhum dos três filhos,
fazia-lhe todas as vontades, mas quando
surgia algo que envolvia perigo, ele
jogava a responsabilidade da decisão
para Elisabeth ou Iwan.
Ou seja, ele era a pessoa dos
“sim” enquanto Elisabeth era a megera
que dizia não sempre que necessário.
— Eu quero cavalgar como os
homens! — Lyanna contou, bem alto,
enquanto corria até o trono e sentava-se
no colo do rei. — Por que Iwan não me
ensina?
— Liam pode te ensinar — fez-se
de esperto, tentando passar a
responsabilidade ao outro irmão, que
postava-se ao lado da mãe deles, e que
arregalou os olhos diante da bomba
jogada em suas mãos.
— O quê? — o rapaz negou. —
Eu?
— Chega disso! — Lis
interrompeu-os. — Mama irá te ensinar
quando for maior — decretou. —
Enquanto isso, deixe seus irmãos em paz
que eles têm muito trabalho a fazer.
A menina assentiu, a contragosto.
Depois, beijou a bochecha de Iwan, e
saiu de seu colo. Apesar da idade, já
sabia ser o xodó do Rei e não se fazia
de rogada em reclamar sua atenção.
Correu até a mãe, que a segurou
no colo e pediu licença, ao sair.
Enquanto o riso de Joshua para os
filhos indignados soava, ouviu o som de
passos que antecederam ao esposo
cercar-lhe a cintura com um abraço
afetuoso.
Depois, um beijo rápido trocado,
e Lyanna foi para os braços do pai.
— Por que você os provoca
tanto?
— Porque é engraçado — ele
respondeu, o sorriso ainda presente. —
E eu adoro a forma como Iwan grita
“Pai!” sempre que se zanga.
Ela riu diante das palavras doces.
Era um alento que o filho e o marido,
enfim, haviam conseguido criar laços
tão fortes.
— Andrew me escreveu — ele
contou, buscando o olhar esverdeado da
mulher. — Disse que vai se casar.
Elisabeth sorriu. E havia uma
pungente sinceridade naqueles lábios.
Joshua gostou do que viu. Queria que a
esposa e o irmão voltassem a serem
amigos. No passado, sentia um ciúme
devastador do outro. Agora,
compreendia que era apenas falta de
confiança no amor de Elisabeth. Porém,
depois de tantas provas, ele teria que ser
muito tolo para não mais crer nos
sentimentos da mulher.
— Que boa notícia.
— Com Flora — ele murmurou.
— Ela era sua cortesã particular.
Elisabeth arregalou os olhos,
surpresa.
— É uma boa mulher — adiantou.
— Não a conheço, mas cruzávamos
pelas ruas e ela sempre me passou
respeito, apesar de considerar que eu
era esposa de Andrew.
— Está feliz por ele, então?
— Estou.
— Iremos ao seu casamento?
Era cômico que aquele homem
mandão e grande parecia mais não ter
confiança de tomar decisões sem ouvir a
opinião da esposa.
E aquilo lhe fez bem. Enfim, eram
iguais naquela relação.
— Certamente.
Joshua segurou seu rosto, e
beijou-a profundamente. Sentiu as mãos
pequenas de Lyanna batendo em suas
faces, como se quisesse lembrá-los de
que ela estava ali, no colo do pai, e não
queria ver beijos.
— Vou levar Lyanna para suas
lições — ele murmurou a esposa. —
Nos encontramos no quarto?
Ela riu.
— Sim.
O som feminino interrompeu a
sintonia dos olhares.
— Vocês vão dormir a essa hora
da tarde? — a pergunta embraveada
veio da pequena. — Papa e mama são
muito preguiçosos — ralhou.
Joshua riu.
— Nós não iremos dormir, Lyanna
— ele negou. — Iremos fazer outro
irmão para você.
— Pai!
A exclamação irritada surgiu da
esquerda, onde Iwan caminhava na
direção do casal.
— Não deve falar dessas coisas
na frente dela — recriminou-o, tomando
a irmã no colo e saindo com ela em
direção à sala de estudos.
Sozinhos, Lis e Joshua se
encararam.
— Você o viu vindo, não é?
— Eu adoro quando ele diz “Pai!”
— repetiu. — Sinceramente, creio que é
esse o som do paraíso.
Quando a esposa gargalhou
novamente, ele entendeu que a risada
dela também lhe remetia ao divino.
Fim.
DEMAIS LIVROS DA
AUTORA
A ROSA ENTRE ESPINHOS
Na maldade da vida, ela aprendeu a viver...

Mairi amou Ian McGreggor no mesmo instante em que o viu.


No entanto, a moça de olhos claros não imaginava que sua
paixão pelo duque de York estava seriamente corrompida por
uma maldição... E que o amor de seus sonhos se tornaria um
pesadelo.

Violada, grávida, destruída, ela se vê obrigada a viver ao


lado de um homem que não mais conhece. O antigo amor
tornou-se repulsa, e as crenças tão firmemente enraizadas em
seu ser começam a tornar-se dúvidas. Nesse mar de
sentimentos e incertezas, enfim, ela precisa saber se está
pronta para perdoar.

Nos braços de uma mulher, ele aprendeu a crescer...

Ian McGreggor viu sua vida virar do avesso. Acusado de


assassinato, com a loucura da mãe, e fantasmas pelo castelo,
o rapaz se vê tomado de ódio pela única mulher que amou.
Sem escrúpulos, fere-a sem piedade, para mais tarde
entender que o sofrimento dela não lhe causava nenhum
alento. Como recuperar o amor de alguém que não o
suporta? E como provar sua inocência duvidando de si
mesmo?
ESMERALDA
Três reinos. Três povos. Uma mulher,
unindo todos eles...

Esmeralda de Cashel era uma imunda. Filha de


um estupro, uma branca em terra de negros.
Tudo que buscava em sua vida era encontrar o
maldito homem que havia destruído sua mãe...
Mesmo que para isso ela precisasse avassalar o
coração solitário de um Rei amargurado.
Cedric de Bran via seus dias cruzarem
diante de seus olhos por trás de uma máscara
que escondia seu rosto deformado. Não
acreditava no amor, mas, quando chegou ao seu
reino uma mulher de cabelos vermelhos e
olhos cor de esmeralda, ele não pôde escapar
da magia que parecia dela emanar.
A INSÍGNIA DE
CLAYMOR
Jehanie Claymor é uma jovem Lady que cresceu
protegida pelo amor incestuoso do irmão Alexei. Sem
conhecer os perigos e maldades da época, ela foi
mimada e amada ao extremo. Mas, em uma viagem
em que abandona o castelo de seu pai para ir de
encontro ao seu noivo Garreth, vê todas as suas ilusões
românticas chegando ao fim.
Sir Daniel Trent só busca vingança. Sua irmã mais
jovem foi seduzida pelo cavaleiro Alexei Claymor, e
abandonada por ele após engravidar. Sem esperança, a
jovem matou-se, deixando Trent com a incumbência de
limpar sua honra. No entanto, seu destino muda
completamente ao encontrar uma jovem que perdeu a
memória. ...E assim, sem saber, ele acaba se
apaixonando pela irmã de seu maior inimigo...
A CANÇÃO DE OUTRORA
EUA, 1865
A Guerra de Secessão levou de Rose seu único amor, e lhe
devolveu seu maior inimigo.
Damien e Drew são gêmeos idênticos, mas possuem
características distintas. Enquanto um é artista, doce e
gentil, o outro é sádico e torturador. Quando o Sul declara
independência e a guerra se inicia, o pai, um poderoso
fazendeiro texano separatista, não pestaneja em enviar seus
filhos à luta, contudo, apenas um volta de lá.

Rose Davis é filha de arrendatários e desde cedo sofre nas


mãos do padrasto. Espancada, molestada e destruída, ela
encontra em Damien Hill o amor que a salva da destruição.
Contudo, quando a guerra irrompe o Texas, e ela vê seu
amado partir, sabe que com ele vai seu coração. Ao saber
que Damien morre em combate, ela foge, grávida, em um
território hostil e perigoso, buscando um canto de paz para
criar seu filho. Anos depois, a morte a faz ficar face a face
com Drew, um dos homens que mais lhe fez mal. Porém,
agora, aquele rapaz estava mudado e lhe lembrava muito seu
grande amor. Como resistir aos encantos, quando tudo nela
exalava saudade e paixão?
NO CALOR DOS SEUS
BRAÇOS
No deserto escaldante do Qatar, eles aprenderam a se amar...

Rosário Guerra acreditava na premissa de que almas gêmeas


eram espelhos uma da outra. Aos vinte e nove anos, virgem,
completamente invisível aos olhos de todos, ela mantinha
uma fagulha acesa de esperança de um dia conhecer alguém,
apaixonar-se, constituir uma família e ser feliz.

Não sabia, claro, que a felicidade era um árduo caminho pelo


deserto do coração de um homem que, primeiramente, em
nada se assemelhava a ela.

Porém, Darius Hayek escondia mais do que seus olhos


verdes pudessem expressar. O passado de rejeição, a
autodestruição e o fogo de uma alma indomável, enfim,
pareceu completar a de Rosário.

Ambos, figuras tristes, cada um ao seu modo, num mundo


que os arrasou em dor.

O amor poderia curar suas feridas, mas para isso eles


precisavam aceitar que haviam, enfim, se encontrado. Almas
gêmeas que haviam passado toda a eternidade a se buscar.
DEMAIS OBRAS:

TRILOGIA SAGA JISHU


KINSHI NA KARADA (1º LIVRO DUO NA
KARADA)
JIYUU NA KARADA ( 2º LIVRO DUO NA
KARADA)
ABNARA – O PILAR
TRAÇOS
A SENHORA DAS MONTANHAS
NÃO VAI TER COPA
AVASSALADOR – DESTINADOS, LIVRO UM
TÃO MINHA MULHER - Série EroRomantic
Contos 1
MIL RAZÕES - Série EroRomantic Contos 2
A autora
https://www.facebook.com/JosianeVeigaOficial/

Josiane Biancon da Veiga nasceu no Rio


Grande do Sul. Desde cedo, apaixonou-se por
literatura, e teve em Alexandre Dumas e
Moacyr Scliar seus primeiros amores.
Aos doze anos, lançou o primeiro livro “A
caminho do céu”, e até então já escreveu mais
de quarenta histórias, de originais a contos
envolvendo o universo da animação japonesa.

Leia mais: http://josianeveiga.webnode.com/a-


autora/

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