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MARIA, A VIRGEM

SAGRADA BIOGRAFIA
Da Obra de Anna Catharina Emmerich

Gilmar de Oliveira

Editora Compaixão
itor: Gilmar de Oliveira
pa: Inês Ruivo
one de Maria, Mãe de Deus, de Vladimir
agramação: So Wai Tam
visão: Gilmar de Oliveira

Editora Compaixão
Rua dos Fiéis, 205A, térreo, Portão
42713-800 Lauro de Freitas, BA
T 55 71 99224 8960
editoracompaixao@gmail.com
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ISBN 978-65-80-63000-4
© EDITORA COMPAIXÃO, Lauro de Freitas, Brasil, 2019
Agradecimentos especiais ao senhor Antônio Bastos Pereira da
Silva, editor no Brasil das Obras de Anna Catharina
Emmerich: “Santíssima Virgem Maria” e “Vida, Paixão e
Glorificação do Cordeiro de Deus”, pela corroboração que
possibilitaram a publicação do presente livro.
Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois
vós entre as mulheres, e bendito é o Fruto do vosso ventre,
Jesus! Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores,
agora e na hora de nossa morte. Amém!
CONTENTS

Title Page

Índice das figuras


Prefácio
DESCENDÊNCIA DA VIRGEM MARIA
RELAÇÃO DA FAMÍLIA DE NOSSA SENHORA COM OS ESSÊNIOS
E SUAS PRÁTICAS ESPIRITUAIS. A MARCA DA PROMISSÃ
ESTERILIDADE DE ISMÉRIA, MÃE DE SANTA ANNA.
SANTA ANNA, ASSIM COMO NOSSA SENHORA, TAMBÉM FOI
CRIADA NO TEMPLO.
PARENTESCO DE JOAQUIM, PAI DE MARIA SANTÍSSIMA, E SÃO
JOSÉ.
CASAMENTO DE SANTA ANNA E SÃO JOAQUIM.
A PRIMEIRA FILHA DE ANNA, MARIA HELÍ.
ANNA SE TORNOU ESTÉRIL.
ANNA E JOAQUIM SE MUDA PARA NAZARÉ, E MARIA HELÍ, SUA
PRIMEIRA FILHA, FICA MORANDO COM SEUS AVÓS, OS
ANNA E JOAQUIM ORAVAM PELO FIM DA ESTERILIDADE DE
ANNA. DEUS ESCUTA SUAS PRECES. UM ANJO ANUNCIA À A
UM ANJO APARECE A JOAQUIM NO TEMPLO E ENTREGA UM
PERGAMINHO COM O NOME “MARIA”.
A BÊNÇÃO DA PROMISSÃO.
A CONCEPÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA; ANNA TINHA
APROXIMADAMENTE 43 ANOS.
A PROMESSA DA VINDA AO MUNDO DE UMA VIRGEM, DA QUAL
NASCERIA O MESSIAS, E QUE DEU INÍCIO A UM CULTO
CRIAÇÃO DA SANTISSIMA ALMA DE MARIA. O NASCIMENTO DE
MARIA, À MEIA-NOITE, COMO SEU FILHO JESUS.
A PURIFICAÇÃO DE ANNA E A APRESENTAÇÃO DE MARIA NO
TEMPLO.
CERIMÔNIA DE PREPARAÇÃO À APRESENTAÇÃO DA
SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA NO TEMPLO.
PARTIDA DE MARIA PARA O TEMPLO. MOISÉS E ELIAS, EM
APARÊNCIA DE CRIANÇAS, ACOMPANHARAM MARIA EM SUA
CHEGADA EM JERUSALÉM.
ENTRADA DE MARIA PARA O TEMPLO: MARIA ESTAVA COM
TRÊS ANOS E TRÊS MESES. ROTINA E VIDA DE MARIA NO T
A HORA DE MARIA DEIXAR O TEMPLO. A ESCOLHA DO NOIVO,
O CASAMENTO E A VOLTA PARA NAZARÉ. SUA MÃE, ANN
A ANUNCIAÇÃO.
VISITAÇÃO À SUA PRIMA ISABEL, COM A QUAL PERMANECE
ATÉ ISABEL DAR À LUZ.
MARIA RETORNA DA CASA DE ISABEL. JOSÉ PERCEBE SUA
GRAVIDEZ. UM ANJO VEM AO ENCONTRO DE JOSÉ.
PREPARATIVOS PARA O NASCIMENTO DE JESUS. UM ANJO DIZ A
JOSÉ QUE JESUS DEVERIA NASCER EM BELÉM.
JORNADA DE NAZARÉ A BELÉM.
A CHEGADA EM BELÉM. SÓ RESTOU A GRUTA.
APROXIMA-SE O MOMENTO DO NASCIMENTO DO SALVADOR.
O NASCIMENTO DE NOSSO SENHOR. JESUS NASCE À MEIA-
NOITE DO SÁBADO.
OS PASTORES.
UM JUMENTO AJOELHA-SE DIANTE DE JESUS NA GRUTA DE
BELÉM. SANTA ANNA ENVIA SERVAS PARA AUXILIAREM MAR
A CIRCUNCISÃO DE JESUS NA GRUTA DE BELÉM.
VISITA DE ISABEL À SAGRADA FAMÍLIA NA GRUTA DE BELÉM.
OS REIS MAGOS E SUA ORIGEM.
A SAGRADA FAMÍLIA MUDA-SE PARA OUTRA GRUTA PRÓXIMA
PARA DAR LUGAR À SANTA ANNA E SUA COMITIVA, QUE C
CHEGADA DOS REIS MAGOS A JERUSALÉM E ENCONTRO COM
HERODES.
CHEGADA DOS REIS MAGOS À GRUTA DA NATIVIDADE EM
BELÉM. OS REIS ADORAM O SANTO MENINO.
DESPEDIDA DOS REIS MAGOS. (UM DIA DEPOIS)
VISITA DE ZACARIAS, ESPOSO DE ISABEL, À SAGRADA FAMÍLIA.
ANNA VOLTA À GRUTA DE BELÉM.
A SAGRADA FAMÍLIA E SANTA ANNA SE MUDAM PARA OUTRA
GRUTA, POR MEDO DOS SOLDADOS DE HERODES, QUE COME
ANNA VOLTA PARA NAZARÉ.
A SAGRADA FAMÍLIA DEIXA BELÉM E PARTE RUMO A
JERUSALÉM PARA APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO E
PARA P
UM ANJO AVISA AO VELHO SIMEÃO DA CHEGADA DA
SAGRADA FAMÍLIA. REENCONTRO DE MARIA COM SIMEÃO,
COM SUA
CERIMÔNIA DE APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO E
PURIFICAÇÃO DE MARIA.
PALAVRAS DE SIMEÃO À MARIA. JOSÉ FAZ DOAÇÃO DE OURO
AO VELHO SIMEÃO E À PROFETIZA ANNA PARA AJUDAR N
PARTIDA DA SAGRADA FAMÍLIA, DE JERUSALÉM PARA
NAZARÉ.
A SAGRADA FAMÍLIA CHEGA EM NAZARÉ, NA CASA DE ANNA.
COMO SEMPRE, MARIA É MUITO LIGADA À SUA MÃE, ANN
MARIA SEGUE PARA SUA PRÓPRIA CASA.
ANNA VISITA MARIA TODOS OS DIAS. INQUIETAÇÃO DE
HERODES.
A FUGA PARA O EGITO. UM ANJO ORIENTA JOSÉ ACERCA DA
VIAGEM.
A SAGRADA FAMÍLIA EM HELIÓPOLIS, EGITO.
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS POR MARIA E JOSÉ EM
HELIÓPOLIS PARA GANHAR O SUSTENTO.
EM HELIÓPOLIS, A NOTÍCIA DO MASSACRE DOS INOCENTES NA
TERRA SANTA.
A PERSEGUIÇÃO DE HERODES, À PROCURA DO MENINO-REI,
LEVA À MORTE DE ZACARIAS, PAI DE JOÃO BATISTA.
A SAGRADA FAMÍLIA SAI DE HELIÓPOLIS RUMO A MÊNFIS E EM
SEGUIDA PARA MATAREA, EGITO, ONDE VIVERAM POR
O RETORNO DA SAGRADA FAMÍLIA DO EGITO. JESUS JÁ ESTAVA
COM APROXIMADAMENTE OITO ANOS.
MARIA VIVEU COM JESUS E JOSÉ EM NAZARÉ ATÉ JESUS
COMPLETAR TRINTA ANOS. DEPOIS DA MORTE DE JOSÉ, MAR
JESUS É BATIZADO POR JOÃO BATISTA E FAZ JEJUM POR
QUARENTA DIAS.
ELEIÇÃO DOS PRIMEIROS DISCÍPULOS DE JESUS E A
INTERCESSÃO DE NOSSA SENHORA NO MILAGRE DE CANÁ.
RESUMO DO PRIMEIRO ANO DA VIDA PÚBLICA DE JESUS
RESUMO DO SEGUNDO ANO DA VIDA PÚBLICA DE JESUS.
RESUMO DO TERCEIRO ANO DA VIDA PÚBLICA DE JESUS.
PREPARATIVOS PARA A CEIA PASCAL
O CENÁCULO
MARIA SENTE A ANGUSTIA DE JESUS NO GETSÊMANI ANTES DE
SER PRESO.
MARIA DESMAIA AO SABER DA PRISÃO DE JESUS.
MARIA VAI ÀS ESCONDIDAS AO TRIBUNAL DE CAIFÁS, SENTIR
MAIS DE PERTO A DOR DO FILHO.
MARIA VÊ JESUS JÁ DESFIGURADO.
A VIRGEM MARIA DEU ORIGEM À CONTEMPLAÇÃO DA PAIXÃO
DE JESUS CRISTO ATRAVÉS DA VIA-SACRA.
A VIRGEM SANTÍSSIMA DURANTE A FLAGELAÇÃO DE JESUS.
MARIA ESCUTA A SENTENÇA DE MORTE DO SEU FILHO AMADO.
O SAGRADO ENCONTRO ENTRE MARIA E SEU AMADO FILHO, A
CAMINHO DO CALVÁRIO.
NOSSA SENHORA NO CALVÁRIO.
JESUS ENTREGA MARIA A JOÃO E JOÃO À MARIA. EM JOÃO,
MARIA PASSA A SER MÃE ESPIRITUAL DE TODA A HUMAN
A SANTÍSSIMA VIRGEM FICA AO LADO DO FILHO AMADO ATÉ O
FINAL.
MARIA, SENTADA AO PÉ DA CRUZ, RECEBE EM SEUS BRAÇOS O
FILHO MUITO AMADO MORTO. PREPARAÇÃO DO CORPO P
O ENTERRO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO.
O ENCONTRO DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA COM A ALMA DE
JESUS NA NOITE DO SÁBADO SANTO, VÉSPERA DA RESSU
AINDA NA NOITE DO SÁBADO SANTO, MARIA REFAZ SOZINHA
A VIA-SACRA. NO CAMINHO, ENCONTRA-SE PELA SEGUND
RESSURREIÇÃO DE NOSSO SENHOR. MARIA, SUA MÃE, É A
PRIMEIRA A VÊ-LO.
MARIA SANTÍSSIMA TORNA-SE “PORTA” ENTRE OS DISCÍPULOS
E JESUS.
NOSSA SENHORA ESTAVA PRESENTE QUANDO JESUS APARECEU
A TODOS OS APÓSTOLOS NO CENÁCULO. INÍCIO DA ADOR
COROAÇÃO DE NOSSA SENHORA PELA SANTÍSSIMA TRINDADE.
MARIA ASSUME PAPEL CENTRAL NA VIDA IGREJA, SENDO
JESUS, ANTES DA ASCENSÃO, VAI SE DESPEDIR DE SEUS
AMIGOS LÁZARO, JOSÉ DE ARIMATEIA E NICODEMOS.
A ÚLTIMA CEIA COM OS APÓSTOLOS ANTES DA ASCENSÃO.
JESUS ESTABELECE MARIA COMO CENTRO E INTERCESSORA
ASCENSÃO DE JESUS.
A VINDA DO ESPÍRITO SANTO. TODOS ESTAVAM EM VOLTA DA
SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA NO MOMENTO DO PENTECOST
MARIA EM ADORAÇÃO AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO.
PRIMEIRA SANTA MISSA E ORDENAÇÃO DE SACERDOTES.
MARIA EM ÉFESO. VIAGEM DE MARIA A JERUSALÉM. RETORNO
A ÉFESO. REUNIÃO DOS APÓSTOLOS EM ÉFESO POR CON
NOSSA SENHORA, ANTES DA MORTE, DESPEDE-SE E ABENÇOA
OS APÓSTOLOS, OS DISCÍPULOS E AS MULHERES.
A ÚLTIMA MISSA CELEBRADA PELOS APÓSTOLOS NA CASA DA
SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA.
SÃO PEDRO DÁ A EXTREMA-UNÇÃO À VIRGEM MARIA.
A ALMA DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA É LEVADA AO CÉU.
MARIA CHEGA AO TRONO DE DEUS E RECEBE O CETRO DA
REALEZA. MARIA REINA SOBRE TODA A TERRA.
PREPARATIVOS PARA O SEPULTAMENTO DE NOSSA SENHORA.
SEPULTAMENTO E ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA
ÍNDICE DAS FIGURAS

19 Primeiro ícone de Nossa Senhora pintado por São Lucas Evangelista


21 Santa Anna e São Joaquim
48 Encontro de Anna e Joaquim no Templo de Jerusalém
51 Profeta Elias
54 Natividade de Nossa Senhora
78 Entrada de Maria no Templo
87 Casamento de São José com a Virgem Santíssima
99 Anunciação
105 Visitação
134 Natividade Jesus
154 Adoração dos Reis Magos ao Sagrado Menino
169 Apresentação de Jesus no Templo
175 Fuga para o Egito
188 Sagrada Família no Egito
191 Martírio dos Santos Inocentes
202 Retorno do Egito para Nazaré
205 Casa da Sagrada Família em Nazaré
206 Sagrada Familia em Nazaré
207 São José
210 Batismo do Senhor
212 Bodas de Caná
227 Santa Ceia
247 Crucificação
255 Descida da Cruz
260 Nossa Senhora da Piedade
267 Senhor morto
274 Ressurreição do Senhor
277 Testemunhas da Ressurreição do Senhor, Cenáculo
283 Coroação de Maria pela Santíssima Trindade
288 Ascensão do Senhor
290 Pentecostes
316 Dormição de Maria
321 Assunção de Nossa Senhora
322 Casa de Maria, Éfeso, Turquia. A casa foi descoberta no século XIX através da descrição
obtida através das visões da beata Anna Catarina Emmerich
PREFÁCIO

O
processo de autoconhecimento implica em uma busca por conhecer as
origens desde os aspectos étnicos, sociais, culturais, psicológicos e
espirituais. Movido por essa busca, e voltando-me ao aspecto
espiritual, cheguei à conclusão de que é de fundamental importância
conhecer o mais profundo possível o conjunto de “ENTES” que são objetos
de nossa fé, que temos como modelo de vida, que nos inspiram e que nos
conduzem por um caminho virtuoso.
Na condição de Cristão Católico, movido por um amor filial, coloquei-
me a caminho na busca de conhecer mais Àquela que é objeto de tanto
amor e devoção por parte de todos nós, católicos, a Santíssima Virgem
Maria. Comecei a ler livros, artigos, entre outros objetos de estudo. Vi que
existe muito material que fala das devoções Marianas e pouco da sua vida,
de relatos biográficos. A partir daí, despertou o desejo em mim de juntar os
“recortes” encontrados sobre Maria e tentar traçar uma linha cronológica da
sua vida. Cheguei à conclusão de que deveria ir à Terra Santa, visitar os
lugares onde Maria viveu e lá tentar encontrar mais material que pudesse
me ajudar nessa nova missão “pessoal”. Dias antes de viajar, comprei o
livro “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus”, de Anna
Catharina Emmerich, uma freira alemã que viveu no século XIX. Eu já
tinha informação de que as visões dessa mística eram no mínimo
intrigantes. Seus escritos foram base para o filme de Mel Gibson, “A Paixão
de Cristo”.
Na Terra Santa, depois de já ter viajado por diversos lugares referentes
à vida da Virgem Maria, parei em Jerusalém por vários dias e, durante esses
dias, comecei a ler o livro de Anna Catharina. Fiquei extremamente
impressionado com a precisão como ela descrevia os lugares da Via-Sacra.
Por várias vezes eu saí com o livro na mão, verificando os aspectos
geográficos descritos no livro sobre a Via-Sacra. Em alguns momentos eu
não consegui conter as lágrimas diante da precisão descrita.
Com isso, descobri que ela, Anna Catharina, tinha um livro sobre a
vida de Maria. Foi um sufoco para consegui comprar, visto que o livro já
estava esgotado, mas, graças ao grande empenho de amigos no Brasil,
conseguimos comprá-lo em um sebo. De volta ao Brasil, debrucei-me sobre
este livro, “Santíssima Virgem Maria”, leitura fantástica, rica em detalhes.
Contudo, o livro ocultou toda a vida de Maria durante os anos de vida
pública de Jesus, bem como durante a paixão, morte e ressurreição, partes
importantíssimas da vida de Maria. Essa parte foi ocultada porque já se
encontrava no livro sobre a vida de Jesus, “Vida, Paixão e Glorificação do
Cordeiro de Deus”. Então, minha missão agora era começar a fazer uma
compilação dos escritos sobre a vida de Maria a partir dessas duas obras de
Anna Catharina Emmerich.
Este trabalho resultou no presente livro: “Maria, a Virgem Sagrada”.
Creio que atualmente é o que existe de mais completo sobre a vida de
Nossa tão amada Senhora, Maria.

Observação
O presente livro é uma compilação de recortes dos livros de Anna
Catharina Emmerich: “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus” e
“Santíssima Virgem Maria”, ambos publicados no Brasil pela MIR Editora.
Para facilitar a identificação do texto referente a cada obra, onde o texto se
encontra em itálico, é referente a “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro
de Deus”, tudo o mais referente-se à “Santíssima Virgem Maria”.
DESCENDÊNCIA DA VIRGEM MARIA

Santa Anna, a mãe de Nossa Senhora, descendeu, pelo pai, da tribo de


Leví, e pela mãe, da de Benjamin. Vi alguns de seus avós carregarem a
Arca da Aliança, mui piedosos e devotos, e notei que receberam nessa
ocasião raios do mistério, os quais se lhe referiam à descendência: Ana e
Maria. Vi sempre muitos sacerdotes frequentarem a casa paterna de Ana,
como também a de Joaquim; daí o parentesco com Isabel e Zacarias.
“Vi os avós da Santíssima Virgem, conta Anna Catharina Emmerich,
gente extraordinariamente piedosa e simples, que alimentava secretamente
o vivo desejo da vinda do Messias prometido. Vi-os levar uma vida
mortificada; os casados muitas vezes fizeram a promessa de mútua
continência durante certo tempo. Eram tão piedosos, tão cheios de amor a
Deus, que os vi frequentemente sozinhos no campo deserto, de dia e
também de noite, clamando por Deus com um desejo tão veemente que
arrancavam as vestes do peito, como para deixar que Deus entrasse pelos
raios do sol, ou como para saciar com o brilho da lua e das estrelas a sede
que os devorava, do cumprimento da promissão”.
Segundo Anna Catharina Emmerich, chamava-se Emorun a avó de
Santa Anna e teve do matrimônio com Stolanus três filhas, uma das quais,
Isméria, foi mais tarde a mãe de Santa Ana. Ana tinha uma irmã mais
velha, chamada Sobe, e uma mais moça, com o nome de Maharha, além de
uma terceira, que era casada com um pastor.
O pai de Santa Ana, de nome Eliud, era da tribo de Leví, ao passo que
a mãe pertencia à tribo de Benjamin. Santa Ana nasceu em Belém, mas os
pais foram depois viver em Seforis, perto de Nazaré. Após a morte de
Isméria, Eliud morava no vale de Zabulon. Ali se encontraram Santa Ana e
São Joaquim e travaram conhecimento. O pai de Joaquim, Matthat, era o
segundo irmão de Jacó, pai de São José, esposo da Virgem Maria.
Joaquim, cujo nome legítimo era Helí, e José eram descendentes, pelo lado
paterno, da estirpe real de Daví.
RELAÇÃO DA FAMÍLIA DE NOSSA SENHORA COM
OS ESSÊNIOS E SUAS PRÁTICAS ESPIRITUAIS. A
MARCA DA PROMISSÃO.

Esses israelitas devotos que eram ligados aos antepassados de Santa


Anna eram chamados de Essênios. Eles, contudo, mudaram seu nome três
vezes: primeiramente Escarênios, depois Chasidaees e finalmente Essênios.
Seu primeiro nome, Escarênios, veio da palavra Escara ou Azcara, que é o
nome de parte do sacrifício pertencente a Deus e também do incenso de
suave odor no oferecimento da farinha de trigo. O segundo nome,
Chasidaees, significa misericordioso. Eu não consigo me lembrar de onde
vem o nome Essênios. O estilo de vida desses homens devotos é uma
herança do tempo de Moisés e Araão, e em particular dos sacerdotes que
carregavam a Arca da Aliança; mas não foi assim até o período que vai de
Isaías (724 a.C) a Jeremias (645 a.C.), período no qual seu estilo de vida foi
regularmente estabelecido. No começo não havia muitos deles; mais tarde,
contudo, suas colônias na Terra Prometida ocupavam um espaço
equivalente a uma jornada de 24 horas de comprimento por 36 horas de
largura. Eles só vieram para a região do Jordão mais tarde; viviam, em sua
maioria, nas encostas do Monte Horeb e do Monte Carmelo, o lar de Elias
(870 a.C).
Durante a vida dos avós de Santa Anna, os Essênios tinham um líder
espiritual que vivia no Monte Horeb. Ele era um profeta idoso chamado
Arcos ou Arkas. Suas organizações eram bastante semelhantes às de uma
ordem religiosa. Todos que quisessem nela entrar tinham de passar por anos
de testes, e a duração do tempo em que eram aceitos era decidida por
inspirações proféticas de Deus. Os verdadeiros membros da Ordem, que
viviam em uma comunidade, não se casavam, vivendo em castidade. Havia
outros (que pertenceram anteriormente à Ordem ou que eram ligados a ela)
que se casavam e viviam com suas famílias e com os filhos em suas casas,
semelhante, em muitas formas, à tradicional disciplina dos verdadeiros
Essênios. Sua relação com esse grupo era semelhante à dos membros leigos
de uma Ordem Terceira Católica e os sacerdotes dessa Ordem. Em todos os
assuntos importantes, especialmente sobre os casamentos de seus parentes,
os Essênios casados sempre procuravam instruções e aconselhamento do
profeta idoso no Monte Horeb. Os avós de Santa Anna pertenciam a este
tipo de Essênios, os casados.
Os Essênios eram muito austeros e levavam uma vida frugal.
Geralmente só comiam frutas, que usualmente cultivavam em seus jardins.
Vi que Arcos costumava comer uma fruta amarela amarga. Cerca de 200
anos antes do nascimento de Cristo, vi, perto de Jericó, um Essênio muito
devoto chamado Chariot.
Arcos, o velho profeta do Monte Horeb, comandou os Essênios por 90
anos. Vi como a avó de Santa Anna consultou-o sobre seu próprio
casamento. É notável que as previsões feitas por esses profetas eram sempre
sobre as meninas e que os antepassados de Anna, bem como ela própria,
tinham filhas em sua maioria. Era como se o objeto de toda a sua devoção e
de suas orações fosse obter de Deus uma bênção de mães piedosas, de cujos
descendentes a Bem-aventurada Virgem, a Mãe do Salvador, pudesse surgir,
tanto quanto as famílias de Seu precursor e Seus servos e discípulos.
O lugar onde o líder dos Essênios orava e profetizava no Monte Horeb
era a caverna em que o profeta Elias havia morado. Muitos degraus ao lado
da montanha levavam a essa gruta e, para adentrá-la, havia uma pequena e
estreita abertura e ainda alguns degraus seguindo para baixo. O profeta
Arcos entrava sozinho. Para os Essênios, isso era como se o sumo sacerdote
entrasse no Santíssimo, no Templo, o que aqui seria o Santo dos Santos. Lá
dentro havia muitas coisas sagradas misteriosas, difíceis de descrever. Direi
o que consigo me lembrar. Vi a avó de Santa Anna buscando conselhos do
profeta Arcos.
A avó de Santa Anna veio de Mara no deserto, onde sua família, que
pertencia aos Essênios casados, possuía uma propriedade. Seu nome
parecia com Moruni ou Emorun. Foi-me dito que significava “boa mãe” ou
“nobre mãe”. Quando chegou seu tempo de casar, ela teve muitos
pretendentes, e eu a vi se aconselhando com o profeta Arcos para saber
qual deles devia aceitar. Ela foi a um lugar separado da grande sala de
reunião e falou com Arcos por meio de uma grade, como se estivesse
fazendo sua confissão. Era somente assim que as mulheres se
aproximavam do lugar. Vi então Arcos colocar suas vestes de cerimônia e
subir assim, paramentado, os muitos degraus para o topo do Monte Horeb,
onde entrou na gruta de Elias pela pequena porta e desceu os degraus. Ele
fechou a pequena porta da gruta atrás de si e abriu um buraco na abóbada,
iluminando levemente a caverna cujo interior tinha sido cuidadosamente
escavado. Contra a parede vi um pequeno altar esculpido na rocha e notei,
embora não claramente, vários objetos sagrados nele. No altar havia muitos
potes com arbustos de ervas ainda pouco crescidos. Essas eram as ervas
que cresciam à mesma altura que a bainha da veste de Jesus. Conheço essa
erva, ela cresce conosco, mas menos vigorosamente. As plantas deram a
Arcos algum tipo de indicação quanto ao seu conhecimento profético,
dependendo de como murchavam ou floresciam. No meio, entre estes
pequenos arbustos de ervas, vi algo como uma árvore, mais alta do que
eles, com folhas que pareciam meio amareladas e enroladas como conchas
em espiral. Pareciam haver pequenas figuras nessa árvore. Nessa pequena
árvore com as folhas torcidas, podia ser visto, como na árvore de Jessé ou
genealógica, o quão próxima estava a vinda da Bem-Aventurada Virgem.
Pareceu-me que essa arvorezinha estava viva e que ainda parecia estar num
receptáculo, no qual vi um ramo florescendo. Achei que fosse o cajado de
Araão, que uma vez esteve na Arca da Aliança. Quando Arcos, na caverna
de Elias, orou por revelações sobre a ocasião dos casamentos dos
antepassados de Nossa Senhora, ele pegou esse cajado de Araão em suas
mãos. Se o casamento estivesse destinado para ocorrer com os verdadeiros
antepassados da Mãe do Salvador, o cajado produzia um botão em que
floresciam uma ou mais flores em meio às quais surgiam algumas vezes
marcas com o sinal do eleito. Certos botões representavam antepassados
específicos de Anna. Quando estes se casavam, Arcos observava os botões
em questão e pronunciava suas profecias de acordo com a maneira com
que eles desabrochavam.
Os Essênios do Monte Horeb tinham, contudo, uma outra santa
relíquia na caverna de Elias — nada menos que um pedaço do santíssimo
mistério da Arca da Aliança, que veio parar em suas mãos quando esta foi
levada pelos inimigos. [Ela falou aqui sem certeza de uma disputa e de um
cisma entre os Levitas.] Essa relíquia, escondida dentro da Arca da Aliança
no temor de Deus, era conhecida apenas pelos mais santos dos sumos
sacerdotes e por alguns poucos profetas. Acho que isso é de alguma forma
mencionado nos pouco conhecidos livros secretos de antigos pensadores
judeus. Não estava mais íntegra a nova Arca da Aliança no Templo como
foi restaurado por Herodes. Essa relíquia não era trabalho de mãos
humanas, mas um mistério, o mais sagrado mistério da divina graça sobre o
surgimento da Bem-
Aventurada Virgem cheia de graça, na qual, pela sombra do Espírito Santo,
o Verbo se fez Carne e Deus se fez Homem. Antes do cativeiro na
Babilônia, essa santa relíquia estava intacta na Arca da Aliança. Eu agora vi
parte dela aqui, em posse dos Essênios. Foi colocada num cálice marrom
brilhante, que me parecia ser feito de uma pedra preciosa. Eles profetizaram
também, com a ajuda dessa santa relíquia, que parecia algumas vezes
florescer como se fossem pequenos botões.
Arcos, depois de entrar na caverna de Elias, fechou a porta e ajoelhou-
se em oração. Ele olhou para cima por uma abertura na abóbada e jogou-se
com a face prostrada no chão. Vi então o conhecimento profético que foi
dado a ele. Ele viu que do coração de Emorum, que estava buscando seu
aconselhamento, crescia uma espécie de roseira com três ramos, com uma
rosa em cada um. A rosa no segundo ramo estava marcada com uma letra,
acho que um M. Ele viu ainda mais. Um anjo escreveu letras na parede. Vi
Arcos se levantar, como se acordasse, e ler essas letras. Esqueci os detalhes.
Ele então foi para o fundo da caverna e anunciou para a virgem que estava
esperando sua resposta de que devia se casar e que o seu sexto pretendente
deveria ser seu marido. Ela daria à luz uma criança, marcada com um sinal,
escolhida como um vaso eleito em preparação para a vinda do Salvador.
Em seguida, Emorun casou-se com o sexto pretendente, um Essênio
chamado Stolanus; ele não provinha de Mara e, como consequência de seu
casamento e dos bens de sua esposa, foi-lhe dado um novo nome, o qual
não consigo mais me lembrar claramente. Seu nome era pronunciado de
diferentes maneiras e soava como Geresha ou Sarzirius. Stolanus e Emorun
tiveram três filhas, chamadas, eu me lembro, Ismeria e Emerenciana, e uma
mais jovem cujo nome, eu acho, era Enue. Eles não permaneceram muito
tempo em Mara, pois se mudaram mais tarde para Ephron. Vi que suas
filhas Ismeria e Emerenciana casaram-se de acordo com os conselhos
proféticos do profeta do Monte Horeb. (Não consigo entender por que ouço
tantas vezes que Emerenciana era a mãe de Anna, porque sempre vi que era
Ismeria.) Direi em nome de Deus o que ainda tenho em minha mente sobre
essas filhas de Stolanus e Emorun.
Emerenciana casou-se com Aphras ou Ophras, um Levita. Desse
casamento nasceu Isabel, a mãe de João Batista. Uma segunda filha foi
chamada de Enue, como a irmã de sua mãe. Na época do nascimento de
Maria, ela já era viúva. Houve uma terceira filha, Rhode, cuja filha
chamava-se Mara, que vi presente na morte da Bem-Aventurada Virgem.
Ismeria casou-se com Eliud. Viveram segundo o costume dos Essênios
casados da região de Nazaré e herdaram de seus pais a tradição da
disciplina e da continência na vida de casados. Anna era uma de suas
crianças. O primogênito de Ismeria e Eliud era uma filha chamada Sobe.
Como essa criança não trazia o sinal da promissão, ficaram muito aflitos e
foram novamente ao profeta do Monte Horeb buscar aconselhamento.
Arcos exortou-os a dedicarem-se à oração e aos sacrifícios, prometendo-
lhes consolação.
ESTERILIDADE DE ISMÉRIA, MÃE DE SANTA
ANNA.

Após o nascimento de Sobe, Ismeria ficou estéril por uns dezoito anos.
Quando ficou grávida novamente por graça de Deus, vi que foi dada a
Ismeria uma revelação à noite. Ela viu um anjo ao lado de sua cama
escrevendo uma letra na parede. Pareceu-me que era novamente aquela letra
M. Ismeria contou a seu marido; ele também viu isso em seu sono. Agora
acordados, ambos viram o sinal na parede. Depois de três meses, Ismeria
deu à luz Santa Anna, que veio ao mundo com aquele sinal em seu corpo.
SANTA ANNA, ASSIM COMO NOSSA SENHORA,
TAMBÉM FOI CRIADA NO TEMPLO.

Em seu quinto ano, Anna foi levada, como Nossa Senhora, à escola no
Templo, onde permaneceu por doze anos. Ela foi trazida para casa
novamente aos dezessete anos e encontrou duas crianças: sua irmãzinha
Maraha, que nasceu enquanto estava fora, e um filhinho de sua irmã mais
velha Sobe, chamado Eliud. Um ano depois Ismeria contraiu uma doença
mortal. Enquanto estava morrendo, ela falou a todos os seus parentes e
apresentou-lhes Anna como a futura preceptora da casa. Depois falou uma
vez mais a sós com Anna, dizendo-lhe que ela era um vaso da graça,
escolhido por Deus, e que deveria se casar e buscar os conselhos do profeta
no Monte Horeb. Em seguida, faleceu.
Sobe, a irmã mais velha de Anna, era casada com Salomo. Além de
seu filho Eliud, ela teve uma filha, Maria Salomé, que se casou com
Zebedeu e foi mãe dos apóstolos Tiago e João. Sobe teve uma segunda
filha, que era tia do noivo de Caná e mãe de três discípulos de Nosso
Senhor. Eliud, o filho de Sobe e Salomo, era o segundo marido de Maroni,
viúva de Naim, e pai do menino ressuscitado por Jesus.
Maraha, a irmã mais nova de Anna, recebeu a herdade em Sephoris,
quando seu pai Eliud mudou-se para o vale de Zabulon. Ela casou-se, teve
uma filha e dois filhos, Arastaria e Cocharia, que se tornaram discípulos.
Anna teve ainda uma terceira irmã, que era muito pobre e esposa de um
pastor dos pastos de Anna. Frequentemente estava na casa de Anna.
Enue, a terceira filha de Stolanus, casou e viveu entre Belém e Jericó.
Um de seus descendentes esteve com Jesus. Os pais de Anna eram ricos.
Isso era claro para mim por causa de suas posses; tinham muitos bois, mas
não reservavam nada para si, pois tudo repartiam com os pobres.
PARENTESCO DE JOAQUIM, PAI DE MARIA
SANTÍSSIMA, E SÃO JOSÉ.

Joaquim estava longe de ser bonito. São José era, em comparação, um


homem muito bonito. Joaquim era baixo, tinha ossatura larga, mas era
magro e ainda maravilhosamente piedoso, um santo homem. Tinha
parentesco com São José da seguinte forma: o avô de José era descendente
de Davi por meio de Salomão e chamava-se Matã. Tinha dois filhos, Jacó e
Josué. Jacó era o pai de José. Quando Matã morreu, sua viúva casou-se
novamente com Levi (descendente de Davi por Natã) e com ele teve Matat,
o pai de Heli, também chamado Joaquim.
CASAMENTO DE SANTA ANNA E SÃO JOAQUIM.

Joaquim e Anna casaram-se num lugarejo com uma pequena escola.


Apenas um sacerdote estava presente. Anna tinha em torno de 19 anos.
Viveram com Eliud, o pai de Anna. Sua casa pertencia à cidade de
Sephoris, mas estava um pouco distante dela, em meio a um grupo de casas
das quais a sua era a maior. Penso que viveram ali por muitos anos. Havia
algo bastante distinto neles. Eram totalmente judeus e, embora não
notassem, possuíam uma seriedade maravilhosa. Raramente os vi rindo,
mas certamente não eram tristes quando começaram suas vidas de casados.
Tinham um temperamento sereno e tranquilo e, mesmo em seus dias de
juventude, pareciam pessoas maduras e sóbrias. Frequentemente em minha
juventude tenho visto jovens casais igualmente serenos e digo a mim
mesma: eles são exatamente como Anna e Joaquim.
Seus pais eram abastados; tinham muitos rebanhos e manadas, belos
tapetes e utensílios domésticos, bem como muitos servos e servas. Nunca os
vi cultivando os campos, mas frequentemente os via conduzindo o gado ao
pasto. Eram muito piedosos, devotos, caridosos, simples e justos. Muitas
vezes dividiam seu rebanho e tudo o mais em três partes e davam uma terça
parte ao Templo, conduzindo eles mesmos os animais até os cuidados dos
servos do Templo. A segunda parte, davam-na aos pobres e como resposta
aos pedidos de seus conhecidos que vinham algumas vezes pessoalmente
conduzir os animais. O que sobrava, e era geralmente o que tinham de pior
qualidade, guardavam para suas próprias necessidades. Viviam frugalmente
e ajudavam todos os que pediam.
A PRIMEIRA FILHA DE ANNA, MARIA HELÍ.

A primeira criança nascida de Anna na casa de seu pai foi uma


menina, mas esta não era a criança da promissão. Os sinais que haviam sido
preditos não estavam presentes em seu nascimento, o que foi visto como um
problema. Vi que Anna, quando estava com a criança, era atormentada por
suas servas. Uma delas tinha sido desencaminhada por um conhecido de
Joaquim. Anna, em grande desânimo por essa infração da rigorosa
disciplina de sua casa, repreendeu-a severamente por sua falta, e a serva
tomou seu infortúnio tão profundamente que teve um parto prematuro e
perdeu a criança. Anna ficou inconsolável por isso, temendo que fosse sua
culpa. Como consequência disso também teve um parto prematuro. Sua
filhinha, contudo, não morreu. Uma vez que a criança não tinha os sinais da
promissão e havia nascido muito antes do tempo, Anna tomou isso como
um castigo de Deus. Ficou muito aflita diante do que acreditava ser seu
pecado. Entretanto, Anna também se alegrou por sua filhinha recém-nascida
e a chamou de Maria Heli. Ela era querida, boa, uma doce criança, e eu a
via crescendo sempre forte e saudável. Seus pais gostavam muito dela, mas
sentiam alguma preocupação e aflição, porque imaginavam que ela não era
um fruto bendito de sua união. Por causa disso fizeram penitência e viveram
por um longo tempo em continência.
ANNA SE TORNOU ESTÉRIL.

Adiante, Anna ficou estéril, o que interpretou como consequência por


ter pecado, fazendo-a redobrar todas as suas boas ações. Eu a vi muitas
vezes sozinha em oração profunda; vi também quando o casal vivia
separado um do outro, entregando donativos e animais que eram ofertados a
Deus no Templo.
ANNA E JOAQUIM SE MUDA PARA NAZARÉ, E
MARIA HELÍ, SUA PRIMEIRA FILHA, FICA
MORANDO COM SEUS AVÓS, OS PAIS DE ANNA.

Anna e Joaquim viveram com Eliud, pai de Anna, por cerca de sete
anos (como pude ver pela idade de sua primeira criança). Por fim,
decidiram separar-se de seus pais e estabelecerem-se numa casa com terras
na vizinhança de Nazaré, que lhes foi dada pelos pais de Joaquim. Lá
pretenderam viver isoladamente e começar uma nova vida de casados,
buscando as bênçãos de Deus sobre sua união por meio de um estilo de vida
mais agradável a Ele. Vi que essa decisão foi tomada em família; vi também
os pais de Anna fazendo preparativos para a nova casa das crianças. Eles
dividiram os rebanhos e as manadas, separando, para suas crianças, bois,
asnos e ovelhas, todos muito maiores do que os que temos aqui em casa.
Todos os utensílios domésticos, louças de barro e roupas foram
empacotados sobre asnos e bois que estavam junto à porta. Toda aquela boa
gente era esperta no empacotamento das coisas e os animais de carga eram
hábeis em carregar e transportar. Nós nem de longe somos tão eficazes em
empacotar coisas em carroças quanto eles eram em animais. Seus utensílios
domésticos eram belos; todos os vasos eram mais delicados que os de hoje,
como se cada um tivesse sido feito por um artesão com especial amor e
atenção. Eu os vi empacotando frágeis jarros e cântaros, decorados com
belíssima ornamentação; eles os encheram com musgo e os embrulharam
com mais musgo, prendendo-os a uma correia para pendurá-los sobre o
lombo dos animais, que eram cobertos com tapetes adornados com ouro.
Quando partiram, os pais deram às crianças um pequeno e pesado objeto
numa bolsa, sem dúvida uma peça de metal precioso.
Quando tudo estava pronto, os servos e servas juntaram-se à procissão,
conduzindo os rebanhos, as manadas e os animais de carga até a nova casa
que ficava distante, umas cinco ou seis horas de jornada. Creio que essa
habitação pertenceu aos pais de Joaquim. Depois de Anna e Joaquim terem
se despedido de todos os amigos e servos, com agradecimentos e
recomendações, eles deixaram a antiga casa com muita emoção e bons
propósitos. A mãe de Anna não era mais viva, mas vi que seus pais
acompanharam o casal até a nova casa. Talvez Eliud tivesse se casado
novamente ou talvez fossem apenas os pais de Joaquim que ali estavam.
Maria Helí, a filha mais velha de Anna, que tinha seis ou sete anos de idade,
estava também nesse grupo.
Sua nova casa ficava no campo, num lugar agradável e montanhoso;
era rodeada por prados e árvores e ficava uma hora e meia a oeste de
Nazaré, num cume entre o vale de Nazaré e o vale de Zabulon. Um
desfiladeiro com uma avenida de terebintos partia da casa em direção a
Nazaré. Em frente à casa havia um pátio anexo, seu piso parecia ser de
pedra aparente. Era, ainda, rodeada por um muro baixo de pedras brutas,
com uma cerca de varas trançadas sobre o muro ou atrás dele. Em um lado
desse pátio havia casas não muito robustas para os trabalhadores e para o
armazenamento de ferramentas de vários tipos; também havia um abrigo
aberto para o gado e para os jumentos de carga. Tinha muitos jardins e em
um deles, próximo à casa, vi uma grande árvore de uma espécie estranha.
Seus galhos pendiam para o chão e misturavam-se entre raízes de outras
árvores, que formavam um grande círculo. Havia uma porta com dobradiças
no centro da casa mais larga. O interior dessa casa era tão grande quanto
uma igreja de tamanho médio e era dividida em diferentes ambientes por
biombos de vime móveis que não chegavam até o teto. A porta abria para
dentro da primeira parte da casa, uma grande antessala que se estendia por
toda a largura e era usada para grandes reuniões e refeições, ou, se
necessário, podia ser dividida com biombos móveis mais leves para fazer
pequenos dormitórios quando havia muitos convidados. Oposta a essa porta
principal, havia uma outra menos robusta, que ligava o meio da casa por
uma passagem em que se encontravam quatro dormitórios de cada lado.
Esses quartos eram divididos por biombos leves, da altura de um homem,
com uma treliça na parte superior. Adiante, a passagem ligava à terceira
parte da casa, os fundos, que não era retangular, pois terminava num
semicírculo. No meio da sala, oposta à entrada, a parede do forno erguia-se
até uma abertura para a saída da fumaça no telhado; nesse forno preparava-
se o alimento. Uma lâmpada de cinco braços pendurada no teto iluminava
tudo em frente ao forno. Ao seu lado e atrás, encontravam-se vários quartos
amplos divididos por pequenos biombos. Atrás desse forno, divididos por
tapetes, estavam os ambientes usados pela família — os dormitórios, a sala
de orações, o refeitório e salas de trabalho.
Além dos belos pomares que rodeavam a casa, estavam os campos e
depois uma floresta com uma montanha ao fundo.
Quando os viajantes chegavam à casa, encontravam já tudo em ordem
e no lugar, porque os anciãos enviavam sua bagagem antecipadamente,
antes de chegarem. Os servos e servas desempacotavam e arrumavam as
coisas tão bela e cuidadosamente como antes de terem sido empacotadas.
Os servos eram prestativos e silenciosos, trabalhavam inteligentemente por
conta própria, de modo que não havia necessidade de alguém lhes dar
ordens todo o tempo sobre cada simples tarefa. Assim, tudo logo ficou
arrumado e quieto. Os pais de Joaquim e Anna, depois de terem trazido seus
filhos para o novo lar, os abraçaram e se despediram, iniciando seu retorno
para casa, acompanhados pela pequena neta, que voltou com eles. Nunca vi
festejos durante essas visitas e outras ocasiões semelhantes; eles
costumeiramente deitavam-se em círculo, tinham diante de si pequenas
tigelas e jarros sobre o tapete, mas suas conversas eram geralmente sobre
temas espirituais e santas expectativas.
Vi agora o novo casal iniciando uma vida inteiramente nova. Era sua
intenção oferecer a Deus tudo o que haviam passado e se portarem como se
então tivessem acabado de se casar, esforçando-se para viverem de uma
maneira agradável a Deus, e assim trazerem sobre eles as bênçãos divinas
que tão sinceramente desejavam acima de tudo. Vi o casal andando em
meio aos seus rebanhos e manadas, seguindo o exemplo de seus pais,
dividindo-os em três partes: entre o Templo, os pobres e eles mesmos. A
melhor e mais seleta parte era destinada ao Templo; aos pobres, a segunda
melhor parte; e a de menor qualidade permanecia com eles. Eles faziam o
mesmo com todas as suas posses. Sua casa era muito espaçosa; viviam e
dormiam em quartos separados, onde muitas vezes os vi em oração
individual com grande devoção. Permaneceram vivendo dessa maneira por
um longo tempo, ofertando generosos donativos e, a cada vez que dividiam
seus animais e suas posses, tudo crescia e se multiplicava rapidamente de
novo. Viviam em grande abstenção, observando períodos de abnegação e
continência. Eu os vi usando vestes de penitência e muitas vezes vi Joaquim
ajoelhando-se em súplicas a Deus, quando estava com seus rebanhos
distantes nas pastagens.
Por dezenove anos após o nascimento de sua primeira criança, eles
permaneceram vivendo assim devotadamente diante de Deus, em constante
desejo da graça da frutificação e com uma aflição crescente. Vi alguns
vizinhos mal-intencionados vindo murmurar contra eles, dizendo que eles
deviam ser pessoas más, uma vez que não tinham filhos e que a menina que
estava com os pais de Anna não era realmente sua filha, mas tinha sido
adotada por causa de sua esterilidade. Caso contrário ela deveria estar com
ela em sua casa, e assim por diante. Cada vez que ouviam essas palavras, a
aflição do bom casal era renovada.
ANNA E JOAQUIM ORAVAM PELO FIM DA
ESTERILIDADE DE ANNA. DEUS ESCUTA SUAS
PRECES. UM ANJO ANUNCIA À ANNA O NOME DA
FILHA DA PROMISSÃO, MARIA.

A fé inabalável de Anna era sustentada pela certeza interior de que a


vinda do Messias estava próxima e de que ela mesma estaria entre os seus
parentes. Ela orava pelo cumprimento da Promessa com sonoras súplicas.
Tanto Anna quanto Joaquim estavam sempre se esforçando na busca por
uma vida mais perfeita e pura. A vergonha por sua esterilidade a afligia
muito profundamente. Raramente podia aparecer na sinagoga sem que fosse
afrontada. Joaquim, embora baixo e magro, era forte, e muitas vezes o vi
indo para Jerusalém com as bestas para o sacrifício. Anna também não era
alta, mas delicadamente bem formada. Sua tristeza a consumia de tal forma
que suas bochechas, embora ainda levemente rosadas, haviam afundado em
seu rosto. Eles continuavam repartindo tudo o que tinham e cada vez mais
diminuíam a parte que retinham para si.
Após terem suplicado pelas bênçãos de Deus sobre seu casamento por
tantos anos, eu vi que Joaquim tinha em mente oferecer um outro sacrifício
no Templo. Ele e Anna prepararam-se para essas devoções penitenciais. Eu
os vi deitados no chão duro de terra em oração durante a noite,
paramentados com vestes de penitência. Depois disso, no nascer do dia, vi
Joaquim ir pelos campos, onde seus rebanhos estavam pastando, enquanto
Anna permanecia sozinha em casa. Pouco depois vi Anna enviando a
Joaquim pombos, outros pássaros em gaiolas e muitas coisas diferentes em
cestas. Tudo foi levado por servos para que ele pudesse oferecer a Deus no
Templo. Joaquim pegou dois jumentos no pasto e os carregou com cestas,
nas quais colocou, creio eu, três pequenas criaturas vivas, brancas e de
pescoço longo. Não consigo lembrar se eram ovelhas ou cabritos. Ele tinha
consigo um bastão com uma luz em cima, que parecia estar brilhando
dentro da concavidade de uma cabaça. Eu o vi chegando com seus servos e
suas bestas de carga num belo campo verde entre Betânia e Jerusalém, um
lugar onde mais tarde vi Jesus ficar muitas vezes. Eles viajaram para o
Templo e alojaram os jumentos na mesma estalagem onde Joaquim e Anna
se hospedaram na Apresentação de Maria. Em seguida levaram as oferendas
escada acima e passaram pela moradia dos servos do Templo, como
anteriormente. Lá os servos de Joaquim retornaram depois de levar as
oferendas.
Joaquim entrou sozinho na sala, onde ficava o tanque de água no qual
todos os sacrifícios eram lavados. Ele, então, seguiu por uma longa
passagem para dentro da sala onde estava o altar do incenso, a mesa dos
pães ázimos e o candelabro de sete braços. Havia muitos outros ali reunidos
para oferecer sacrifícios e era ali que Joaquim teria de suportar sua mais
dura provação. Vi que um dos sacerdotes, de nome Reuben, desdenhou suas
oferendas e não as juntou com as outras do lado direito da sala, onde
poderiam ser vistas por trás das barras. Pelo contrário, empurrou-as para o
lado. Ele censurou em alta voz o infeliz Joaquim por sua infertilidade diante
de todos os que ali estavam, não admitiu sua presença e o enviou, em
desgraça, para uma alcova anexa com grades. Vi que diante disso Joaquim
deixou o Templo em grande angústia e dirigiu-se para uma casa de reuniões
dos Essênios perto de Macaerus, passando por Betânia. Foi onde ele
encontrou aconselhamento e consolação. (Nessa mesma casa, e
anteriormente numa casa similar, perto de Belém, viveu o profeta
Manachem, que profetizou para o jovem Herodes a respeito de seu reino e
de seus crimes.) De lá Joaquim dirigiu-se para as pastagens mais distantes
do Monte Hermon. Em seu caminho passou pelo Jordão e pelo deserto de
Gaddi. O Monte Hermon é uma longa e estreita montanha, lindamente
verde e rica em árvores frutíferas do lado ensolarado, mas coberta de neve
do outro lado.
Joaquim estava tão triste e envergonhado por ter sido rejeitado com
escárnio no Templo que nem se lembrou de mandar avisar Anna sobre o seu
paradeiro. Ela ouviu, entretanto, por testemunhas, sobre a humilhação que
ele havia sofrido; a angústia de Anna era indescritível. Eu a vi muitas vezes
derramando lágrimas com o rosto prostrado no chão, porque não tinha
nenhuma informação sobre onde estava Joaquim. Creio que ele permaneceu
escondido nas pastagens do Monte Hermon por cerca de cinco meses.
Durante o final daquele tempo, a angústia de Anna havia aumentado muito
pela aspereza de uma de suas servas, que a censurava por seus infortúnios.
Uma vez, contudo, quando essa serva pediu permissão para ir à Festa dos
Tabernáculos (que estava começando naquela ocasião), Anna, recordando
como uma ex-serva tinha sido desencaminhada, negou a permissão,
explicando que sua propriedade não devia ficar sozinha. Em consequência
disso, sua serva a atacou violentamente, declarando que sua esterilidade e o
abandono de Joaquim eram castigo de Deus por sua severidade. Como
Anna não podia mais suportar ter essa serva em sua casa, ela enviou-a de
volta para seus pais com presentes, acompanhada por dois servos, e com o
pedido de que aceitassem de volta a filha que havia sido confiada a ela, uma
vez que não podia mais a manter em sua casa. Após despedir essa serva,
Anna entrou em seu quarto, entristecida, a fim de rezar. Ao entardecer ela
colocou um xale sobre a cabeça, envolvendo-se completamente, e foi com
uma luz tênue para o pátio da grande árvore (um caramanchão), descrito
anteriormente. Ali ela acendeu uma lâmpada e pendurou-a numa espécie de
caixa, rezando a partir de um rolo de pergaminho. Havia alguns assentos
debaixo dessa árvore, que se assemelhava à árvore do Jardim do Éden que
tinha o fruto proibido. Esses frutos ficavam pendurados na extremidade dos
galhos, geralmente em ramos de cinco. Tinham formato de pera e sua carne
tinha faixas cor de sangue. Havia um buraco no centro, arredondado, em
que ficavam as sementes. As folhas eram bem grandes, assemelhando-se
àquelas com as quais Adão e Eva se cobriram no Jardim do Éden. Os judeus
usavam suas folhas especialmente na Festa dos Tabernáculos. Eles
decoravam as paredes com elas, porque conseguiam fazer um arranjo no
qual colocavam uma atrás da outra, como se fossem escamas de peixe.
Anna permaneceu debaixo dessa árvore por um longo tempo, chorando a
Deus e suplicando que, mesmo que Ele a tivesse feito estéril, não afastasse
dela seu piedoso companheiro Joaquim. E eis que, de repente, apareceu-lhe
um Anjo de Deus; parecia ter descido da árvore diante dela. O anjo disse-
lhe que se alegrasse, pois o Senhor havia ouvido suas preces. Ela deveria
viajar no dia seguinte para o Templo com duas servas, levando consigo
pombos para sacrifício. As preces de Joaquim, também, disse ele, foram
ouvidas, e ele já estava a caminho do Templo com suas oferendas. Ela
deveria encontrá-lo sob a Porta de Ouro. O sacrifício de Joaquim seria
aceito e eles seriam abençoados e frutificariam. Em breve ela saberia o
nome pelo qual sua criança deveria ser chamada. Ele disse-lhe também que
havia dado a mesma mensagem a seu marido. Então, desapareceu.
Anna, cheia de alegria, agradeceu a Deus por Sua misericórdia. Em
seguida entrou em casa e deu as ordens necessárias às suas servas para que
ocorresse a viagem ao Templo na manhã seguinte. Eu a via, depois disso,
indo deitar-se após rezar. Sua cama era um acolchoado estreito, que de
manhã era enrolado, com um travesseiro debaixo da cabeça. Ela tirou suas
vestes de cima e envolveu-se da cabeça até os pés com uma ampla coberta,
deitando-se inteiramente sobre seu lado direito, com a face virada para a
parede. Após Anna ter dormido por um curto período, vi uma luz brilhante
descer sobre ela, e, ao se aproximar de sua cama, transformar-se na figura
de um jovem resplandecente. Era o anjo do Senhor, que havia dito que ela
conceberia uma santa criança; ele estendeu sua mão sobre ela, escreveu
letras brilhantes na parede que formavam o nome MARIA. Em seguida,
transformou-se em luz e desapareceu. Durante esse tempo Anna parecia
estar envolta por um sonho secreto e extasiante. Ela ergueu-se um pouco de
sua cama, rezou com grande intensidade e então caiu no sono novamente,
sem ter recobrado sua total consciência. Após a meia-noite ela levantou-se
alegremente, como que por uma inspiração interior. Foi nessa hora em que
viu, com espanto, misturado à alegria, o escrito na parede. Este parecia ser
de letras reluzentes em dourado avermelhado, grandes, mas em pequeno
número. Ela lançou um olhar para essas letras com inexplicável alegria e
humildade contrita até o raiar do dia, quando desapareceram. Ela viu o
escrito tão claramente e a sua alegria diante disso era tão grande, que
quando se levantou parecia de novo completamente jovem. No momento
em que a luz do anjo envolveu Anna em graça, eu vi um esplendor sob seu
coração e reconheci nela a Mãe eleita, o vaso iluminado pela graça, que
estava finalmente ao alcance. O que vi posso apenas descrever dizendo que
reconheci nela o berço e o tabernáculo da sagrada Criança que ela estava
para conceber e cuidar — de fato, a abençoada mãe. Vi que, por graça de
Deus, Anna foi capaz de dar à luz. Não posso descrever a maravilhosa
maneira pela qual reconheci isso. Vi Anna como o berço da salvação da
humanidade e ao mesmo tempo como o sagrado vaso do altar, exposto,
ainda que oculto atrás de uma cortina. Reconheci isso, depois, de uma
maneira natural, e todo esse meu conhecimento era um só e era natural e
sagrado ao mesmo tempo. (Anna estava, nessa ocasião, acredito eu, com 43
anos). Ela agora se levantou, acendeu uma lâmpada, rezou e então partiu
para Jerusalém com suas oferendas. Todos os seus servos estavam repletos
de uma estranha alegria naquela manhã, embora ninguém, exceto Anna,
soubesse da vinda do anjo.
Ao mesmo tempo eu vi Joaquim entre seus rebanhos no Monte
Hermon, além do Jordão, constantemente em oração a Deus para atender às
suas suplicas. Enquanto olhava as ovelhinhas balindo e brincando em volta
de suas mães, Joaquim ficou sentidamente triste por não ter filhos, mas não
disse aos seus pastores por que estava tão triste. Estava perto do tempo da
Festa dos Tabernáculos e ele e seus pastores estavam começando a preparar
os tabernáculos. Recordando sua humilhação no Templo, Joaquim tinha
abandonado a ideia de ir até Jerusalém para a festa e de oferecer sacrifícios
como de costume. Enquanto rezava, contudo, vi um anjo aparecer a ele,
dizendo para que tivesse coragem e que viajasse para o Templo, pois os
seus sacrifícios seriam aceitos e as suas preces atendidas. Ele iria encontrar
sua esposa sob a Porta de Ouro. Depois disso vi Joaquim alegremente
dividindo seu rebanho em três partes novamente — e quantos animais de
carga ele tinha! A pior parte retinha para si, a segunda melhor parte enviava
para os Essênios e a melhor parte levava ao Templo com seus servos. Ele
chegou a Jerusalém no quarto dia da festa e ficou com alguns amigos de
Zacarias perto do mercado de peixe. Anna só encontrou Joaquim ao final da
festa.
Embora na ocasião anterior tenha sido por um sinal de cima que as
oferendas de Joaquim tinham sido rejeitadas, vi que o sacerdote, que o
tratou tão asperamente em vez de o confortar e o consolar de alguma forma,
foi (não lembro como) punido por Deus. Agora, entretanto, os sacerdotes
tinham recebido um aviso divino para aceitarem suas oferendas, e eu vi que
alguns deles, sabendo da aproximação de Joaquim com bestas para o
sacrifício, saíram do Templo para encontrá-lo e para aceitarem suas
doações. O rebanho que ele havia trazido como oferta para o Templo não
era sua real oferenda. O sacrifício que ele trouxera consistia de dois
cordeiros e três pequenos animais, cabritos, creio eu. Vi também que muitos
de seus conhecidos o congratulavam por seu sacrifício ter sido aceito.
Vi que, por causa da festa, todo o Templo estava aberto e decorado com
guirlandas de frutas e folhagens, e em certo lugar um Tabernáculo tinha
sido montado em oito pilares separados. Joaquim foi de lugar em lugar no
Templo, exatamente como havia feito antes. Seu sacrifício foi imolado e
queimado no lugar de costume. Uma parte desse sacrifício foi, entretanto,
queimada em um outro lugar, creio que à direita do saguão de entrada com
o grande púlpito.
UM ANJO APARECE A JOAQUIM NO TEMPLO E
ENTREGA UM PERGAMINHO COM O NOME
“MARIA”.

Vi os sacerdotes fazendo sacrifícios no Lugar Sagrado. Lâmpadas


eram acesas e as luzes ardiam no candelabro de sete braços, mas não todas
ao mesmo tempo. Frequentemente vi que, em ocasiões distintas, braços
diferentes desse candelabro eram acesos. À medida que a fumaça subia das
oferendas, eu vi como se fosse um raio de luz descendo sobre o sacerdote
celebrante no Lugar Sagrado e sobre Joaquim, ao mesmo tempo,
externamente ao salão. Subitamente ocorreu uma pausa no que estava
acontecendo, talvez por causa do espanto e da realização de algo
sobrenatural. Em virtude disso vi que dois sacerdotes foram dali para o
salão onde estava Joaquim, por ordem de Deus, levando-o para os salões
laterais até o altar dourado de incenso no Lugar Sagrado. O sacerdote então
colocou algo sobre o altar. Não eram grãos de incenso; parecia um pedaço
sólido, mas não consigo me lembrar o que era. Esse pedaço gerou um forte
e doce cheiro de incenso, enquanto era queimado no altar de incensos atrás
do véu do Santo dos Santos. Então vi o sacerdote indo embora, deixando
Joaquim sozinho no Lugar Sagrado. Enquanto a oferta de incenso estava
sendo consumida, vi Joaquim em êxtase, ajoelhado e com os braços
estendidos. Vi aproximando-se dele a brilhante figura de um anjo, tal como
mais tarde apareceu a Zacarias, quando ele recebeu a promessa do
nascimento de João Batista. O anjo falou com Joaquim e deu-lhe um
pergaminho, no qual reconheci, escritos em letras brilhantes, três nomes:
Helia, Hanna, Miriam. Ao lado do último desses nomes, vi a imagem de
uma pequena Arca da Aliança e um tabernáculo. Joaquim amarrou esse
pergaminho em seu peito debaixo de sua veste.
A BÊNÇÃO DA PROMISSÃO.

O anjo disse que sua infertilidade não era uma desgraça para ele, mas
ao contrário, uma honra, por causa da criança que sua esposa estava para
conceber — o fruto imaculado da bênção de Deus sobre ele e o momento da
coroação da bênção de Abraão. Joaquim, incapaz de alcançar o sentido real
disso, foi levado pelo anjo atrás do véu pendurado em frente ao Santo dos
Santos. Entre esse véu e as barras do biombo diante do Santo dos Santos
havia um lugar amplo o suficiente para se permanecer de pé. Vi o anjo
aproximar-se da Arca da Aliança: pareceu-me que ele tirou algo dela,
porque o vi segurar na direção de Joaquim um globo brilhante ou um
círculo de luz, mandando-o que soprasse sobre ele e olhasse para dentro
dele. Então eu vi como se todos os tipos de imagens aparecessem nesse
círculo de luz. Quando Joaquim soprou nele, vi que essas imagens eram
visíveis para ele. Seu sopro de forma alguma diminuiu a intensidade do
círculo de luz. O anjo disse-lhe que a concepção da criança de Anna seria
tão imaculada quanto esse globo, que permanecia brilhando apesar de ter
sido soprado por Joaquim. Logo após, vi o anjo levantando o globo, até que
este permaneceu parado no ar como um halo circular. Por uma abertura
nesse halo, vi uma série de imagens, começando com a queda e terminando
com a Redenção da humanidade. Todo o curso do mundo passou diante dos
meus olhos, como se uma imagem fundisse na outra. Eu conheci e entendi
todas elas, mas não consigo reproduzir os detalhes. Acima, no topo, vi a
Santíssima Trindade, e abaixo, em um dos lados vi o Jardim do Éden, com
Adão e Eva, a queda, a promessa da Redenção e todos os seus ícones: Noé;
o dilúvio; a arca; a recepção da bênção por meio de Abraão; seu auxílio no
nascimento do primogênito Isaac; a história de Isaac até Jacó; como este
último lutou com o anjo; e em como a bênção veio sobre José do Egito e
cresceu, em glória, nele e em sua esposa. Vi como a presença sagrada da
bênção foi retirada do Egito por Moisés com as relíquias de José e de sua
esposa Aseneth e tornou-se o Santo dos Santos da Arca da Aliança, a
presença do Deus Vivo entre Seu povo.
Em seguida vi a reverência feita pelo povo de Deus a esse objeto
sagrado e suas cerimônias em respeito a ele; vi os relacionamentos e
casamentos que formaram a sagrada genealogia dos antepassados de Nossa
Senhora, bem como os precursores e símbolos da Virgem e de Nosso
Salvador na História e nos profetas. Tudo isso vi em símbolos que me
rodeavam e também surgiam da parte inferior do anel de luz. Vi imagens de
grandes cidades, torres, palácios, tronos, portões, jardins e flores, tudo
estranhamente entrelaçado, como se fossem pontes de luz; tudo estava
sendo atacado e violentado por ferozes bestas e outras figuras de poder.
Todas essas imagens significam como a família ancestral de Nossa Senhora,
pela qual Deus se faria Carne e se tornaria Homem, estava sendo conduzida
pela graça de Deus, como tudo o que é santo, por meio de muitas
tribulações e sofrimentos.
Lembro-me também de ter visto entre essa série de imagens um jardim
rodeado por uma densa cerca de espinhos, em que uma multidão de
serpentes e outras criaturas repugnantes tentavam em vão penetrar. Também
vi uma forte torre atacada de todos os lados por soldados armados, que
caíam de cima desta. Vi muitas imagens desse tipo relativas à história dos
antepassados de Nossa Senhora; as pontes e passagens eram todas
interligadas e significavam a vitória contra todos os ataques para perturbar,
retardar, impedir ou interromper a obra de salvação. Era como se, pela
compaixão de Deus, houvesse sido derramado sobre a humanidade, tal qual
em um rio turvo, uma carne pura e um sangue puro, de modo que toda a
humanidade tivesse de reconstituir-se sozinha, em meio a dificuldades e
lutas, a partir de seus elementos dispersos. Pelas incontáveis misericórdias
de Deus e pela fiel cooperação da humanidade, ocorre uma última
oportunidade, após muitas manchas, erros e consequentes limpezas e
consertos, num fluxo infalível de onde surge a Santíssima Virgem, a partir
da qual o Verbo se fez Carne e habitou entre nós.
Entre as imagens que vi no globo de luz, havia muitas que estão
presentes na ladainha de Nossa Senhora. Sempre que rezo essa ladainha,
vejo essas imagens, reconheço-as e venero-as com grande devoção. As
imagens no globo continuaram a se desenrolar até que atingissem o
cumprimento de toda a compaixão de Deus sobre a humanidade, ora tão
dividida e dispersa em seu estado decaído, terminando, do lado oposto ao
Jardim do Éden, com a Jerusalém Celestial aos pés do Trono de Deus. Após
ter visto todas essas imagens, o globo desapareceu. Creio que tudo isso foi
uma comunicação para Joaquim das visões que lhe foram reveladas pelo
anjo e que também foram vistas por mim. Sempre que recebo tais
comunicações, elas aparecem num círculo de luz como um globo.
Vi também que o anjo tocou ou ungiu a fronte de Joaquim com a ponta
de seu polegar e indicador, e que ele lhe deu um alimento brilhante e um
líquido luminoso de um pequeno cálice radioso. Era do mesmo formato do
cálice da Última Ceia. Pareceu-me também que esse alimento colocado em
sua boca tomou a forma de uma espiga de trigo brilhante e de um cacho de
uvas. Depois entendi que toda impureza e todo desejo pecaminoso haviam
deixado Joaquim. Com referência a isso, o anjo concedeu a ele o maior e
mais sagrado fruto da bênção dada por Deus a Abraão, culminando em
José, no sagrado conteúdo da Arca da Aliança, na presença de Deus entre
seu povo. Ele deu a Joaquim essa bênção da mesma forma como me tinha
sido mostrado antes, exceto que, enquanto o anjo da bênção deu a Abraão a
bênção de si mesmo, do seu íntimo por assim dizer, ele parecia dá-la a
Joaquim de fora do Santo dos Santos.
A bênção de Abraão foi, por assim dizer, o princípio da graça de Deus
dada na bênção ao pai de Seu futuro povo, de forma que dele procederiam
as pedras para a construção de Seu Templo. Quando Joaquim recebeu a
bênção, contudo, era como se o anjo tivesse tomado a bênção sagrada do
tabernáculo desse Templo e a entregado para um sacerdote, a fim de que a
partir dele se pudesse formar o vaso sagrado no qual o Verbo se faria Carne.
Tudo isso não pode ser expresso em palavras, porque eu estava falando do
Santo do Santos inviolado, ainda que violado no homem quando do seu
pecado e queda. Desde o início da minha juventude, tenho muitas vezes, em
minhas visões do Antigo Testamento, visto o Interior da Arca da Aliança, e
tenho tido sempre a impressão de que há uma Igreja completa, mas mais
solene, que inspira o santo temor. Vi dentro não só as Tábuas da Lei como
Palavra de Deus escrita, mas também uma presença sacramental do Deus
Vivo, como as raízes do vinho e do trigo, da carne e do sangue do futuro
sacrifício de nossa redenção.
A graça dada por essa presença abençoada produziu, com a cooperação
de homens tementes a Deus segundo a Lei, aquela árvore cuja florescência
final era a pura flor na qual o Verbo se fez carne e Deus se fez Homem,
dando-nos assim na Nova Arca a Sua humanidade e a Sua divindade pela
instituição do Sacramento do Seu Corpo e Sangue, sem o qual não podemos
alcançar a vida eterna. Nunca conheci a Arca da Aliança sem a presença
sacramental de Deus, exceto quando esta havia caído nas mãos do inimigo,
em cujo período a Santa Presença estava segura nas mãos do Sumo
Sacerdote ou com um dos profetas.
Quando apenas as Tábuas da Lei estavam presentes na Arca da
Aliança, sem o santo tesouro, parecia para mim como o Templo dos
Samaritanos no Monte Garizim ou como uma igreja do nosso tempo, que
está sem o Santíssimo Sacramento e, em vez das Tábuas da Lei escritas
pelas mãos de Deus, contém apenas os livros das Sagradas Escrituras,
imperfeitamente compreendidos pela humanidade.
Na Arca da Aliança feita por Moisés, que permaneceu no Templo e
Tabernáculo de Salomão, vi o Santíssimo Objeto da Arca da Aliança na
forma de um círculo brilhante cruzado por dois raios menores de luz que
formavam uma cruz; mas agora, quando o anjo concedeu a bênção a
Joaquim, eu vi essa bênção sendo dada a ele como se fosse algo brilhante,
como uma semente brilhante, com formato de um feijão, o qual ele
depositou no peito aberto da veste de Joaquim. Quando a bênção foi
concedida a Abraão, vi a graça sendo conduzida a ele da mesma maneira,
bem como sua virtude e eficácia na intensidade ordenada por Deus até que
ele a transmitisse para seu primogênito Isaac, que depois passou a Jacó e, a
partir dele, por meio do anjo, para José, e de José e sua esposa, com virtude
aumentada, para a Arca da Aliança. Percebi que o anjo restringiu o segredo
com Joaquim, e eu entendi o porquê disso mais tarde, com Zacarias, o pai
de João Batista, que ficou mudo depois de ter recebido a bênção e a
promessa da fertilidade de Isabel pelo Anjo Gabriel no Altar do Incenso [Lc
1,9-22]. Foi-me revelado que, com essa bênção, Joaquim recebeu o mais
alto fruto e o completo cumprimento da bênção de Abraão, isto é, a bênção
para a concepção imaculada da Santíssima Virgem, que deveria esmagar a
cabeça da serpente. O anjo levou então Joaquim de volta para o Santo
Lugar e desapareceu, com Joaquim caindo no chão, em êxtase, ao mesmo
tempo em que ficou paralisado. Os sacerdotes que reentraram no Santo
Lugar o encontraram radiante de alegria. Eles o levantaram reverentemente
e o colocaram num assento geralmente usado só por sacerdotes. Ali lavaram
seu rosto, seguraram algo com forte cheiro junto às suas narinas, deram-lhe
de beber e, de forma geral, o trataram como alguém que tivesse desmaiado.
Quando ele se recuperou, parecia jovem e forte, irradiando alegria.
Foi um aviso do alto que levou Joaquim para o Santo Lugar e foi por
uma inspiração similar que ele foi trazido por uma passagem subterrânea,
que pertencia à parte consagrada do Templo, e igualmente sob a Porta de
Ouro. Foi-me dito qual era o significado e a origem dessa passagem quando
o Templo foi construído, e também para qual finalidade era usada, mas não
tenho uma clara recordação disso. Certa observância religiosa relativa à
bênção e à reconciliação dos estéreis estava ligada a essa passagem. Em
certas circunstâncias pessoas eram trazidas por meio dela para ritos de
purificação, expiação e absolvição.
Joaquim foi conduzido pelos sacerdotes, perto do local do abate de
animais, por uma pequena porta que dá para essa passagem. Os sacerdotes
retornaram, mas Joaquim continuou ao longo dela, que gradualmente se
inclinava para baixo. Anna também tinha vindo ao Templo com suas servas,
que carregavam os pombos para o sacrifício em cestas de vime. Ela havia
entregado suas oferendas e tinha revelado a um sacerdote que ela havia sido
mandada por um anjo para encontrar seu marido debaixo da Porta de Ouro.
Vi agora que ela foi conduzida por sacerdotes, acompanhada por algumas
veneráveis mulheres (entre as quais penso que estava a profetisa Anna), por
uma entrada do outro lado, para dentro da passagem consagrada, onde suas
acompanhantes a deixaram. Tive uma maravilhosa visão de como era essa
passagem. Joaquim entrou por uma pequena porta; a passagem inclinava-se
para baixo e era estreita no início, mas se tornava mais larga adiante. As
paredes eram de ouro reluzente e verde, e uma luz avermelhada brilhava
acima. Vi belos pilares, como árvores torcidas e videiras. Depois de
atravessar cerca de um terço da passagem, Joaquim veio a um lugar no
meio do qual se erguia um pilar com formato de uma palmeira, com folhas
e frutos pendentes. Ali ele encontrou Anna radiante de felicidade. Eles
abraçaram-se com santa alegria e um contou ao outro as boas notícias. Eles
estavam em estado de êxtase e envolvidos por uma nuvem de luz. Vi essa
luz emanando de uma multidão de anjos, que estava carregando o que
parecia ser uma alta e brilhante torre, que pairava sobre as cabeças de Anna
e de Joaquim. A forma dessa torre era a mesma que eu havia visto, por
imagens, da ladainha de Nossa Senhora, da Torre de Davi, a Torre de
Marfim, e assim por diante. Vi que essa torre parecia desaparecer entre
Anna e Joaquim, que estavam envoltos pela glória brilhante.
Entendi que, como resultado da graça ali dada, a concepção de Maria
foi tão pura quanto todas as concepções teriam sido, não fosse pela queda.
Tive, ao mesmo tempo, uma visão indescritível. Os céus abriram-se acima
deles e eu vi a alegria da Santíssima Trindade e dos anjos, e sua
participação na misteriosa bênção conferida aos pais de Maria. Anna e
Joaquim retornaram, louvando a Deus, para a saída debaixo da Porta de
Ouro. Nessa direção a passagem inclinava-se para cima. Eles entraram em
uma espécie de santuário debaixo de um belo e alto arco, onde muitas luzes
estavam acesas. Lá eles foram recebidos por sacerdotes que os deixaram ali.
A parte do Templo acima, que era o saguão do Sinédrio, ficava sobre a
metade da passagem subterrânea. Acima do final desta estava, creio eu, a
habitação dos sacerdotes cuja tarefa era cuidar dos paramentos. Joaquim e
Anna foram para a extremidade da colina do Templo, com visão para o Vale
de Josafá, onde o caminho não podia mais seguir reto, mas bifurcado à
direita e à esquerda. Depois de terem visitado outra casa de sacerdotes, vi
Joaquim, Anna e suas servas em jornada para casa. Em sua chegada a
Nazaré, Joaquim, depois de uma alegre refeição, deu alimento para muitas
pessoas pobres e distribuiu generosas esmolas. Vi quão cheios de alegria e
de fervor ele e Anna estavam, em gratidão a Deus, quando pensavam em
Sua compaixão para com eles; eu os vi muitas vezes juntos em oração e
cheios de lágrimas.
Foi-me explicado que a Santíssima Virgem fora concebida por seus
pais em santa obediência e em completa pureza de coração, e que desse dia
em diante eles viveram em continência, na mais alta devoção e temor a
Deus. Ao mesmo tempo fui instruída sobre quão incomensurável a
santidade das crianças é estimulada pela pureza, castidade e continência de
seus pais e pela sua resistência a todas as tentações impuras; a continência
pós-concepção preserva o fruto do ventre materno de muitos impulsos
pecaminosos. Em geral, foi-me dada uma torrente abundante de
conhecimento sobre as raízes da deformidade e do pecado.
A CONCEPÇÃO DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA;
ANNA TINHA APROXIMADAMENTE 43 ANOS.

Vi através de uma imagem maravilhosa que Deus mostrou aos anjos


como era de sua vontade restaurar a humanidade após a queda. À primeira
vista não entendi essa imagem, mas logo ficou totalmente clara para mim.
Vi o Trono de Deus, a Santíssima Trindade e, ao mesmo tempo, um
movimento entre a Trindade. Vi os nove coros angélicos e vi como Deus
anunciou-lhes de que forma era a sua vontade de restaurar a raça humana
decaída. Vi uma alegria inexprimível entre os anjos por isso. Foi-me
mostrado, então, um certo número de imagens simbólicas sobre o
desenrolar dos desígnios de Deus para a salvação da humanidade. Vi as
imagens aparecendo diante dos nove coros dos anjos numa espécie de
sequência histórica. Vi os anjos ajudando a construir essas imagens,
protegendo-as e defendendo-as. Não me lembro ao certo em que ordem
apareceram, mas direi, em nome de Deus, o que ainda posso recordar. Vi
uma montanha com aspecto de pedras preciosas aparecer diante do trono de
Deus, que crescia e se espalhava. Tinha patamares como um trono. Em
seguida transformou-se em torre — uma torre que guardava como relíquia
cada tesouro do espírito e cada dom da graça e era circundada pelos nove
coros angélicos. Em um dos lados da torre havia ramos de videira e espigas
de milho entrelaçados como os dedos de mãos cruzadas, parecendo estarem
jorrando para baixo da extremidade de uma nuvem dourada. Não consigo
me lembrar em que exato momento na imagem toda vi isso.
Vi no céu a figura de uma virgem que passou pela torre e que se fundiu
a ela. A torre era muito larga e plana no topo; parecia ter uma abertura atrás,
pela qual ela entrava. Esta não se parecia com a Bem-Aventurada Virgem
como ela era na terra, mas como é na Eternidade, em Deus. Vi sua
aparência sendo formada diante da Face da Santíssima Trindade, como
quando alguém, ao assoprar no ar frio, forma diante da boca uma pequena
fumaça. Vi também algo saindo da Santíssima Trindade em direção à torre.
Nesse momento da visão eu vi um vaso como um cibório sendo formado
diante dos coros angélicos. Todos os anjos se uniram e deram a esse vaso a
forma de uma torre rodeada por muitas imagens cheias de significado.
Além disso, duas pessoas de mãos dadas estavam de pé logo atrás do vaso.
O vaso espiritual prosseguiu aumentando de tamanho, beleza e riqueza.
Então vi algo procedente de Deus passar por todos os nove coros dos anjos;
parecia-se com uma pequena e brilhante nuvem sagrada, que se tornava
mais e mais distinta à medida que se aproximava do vaso sacramental no
qual finalmente entrou. A fim de que eu pudesse reconhecer isso como
sendo a real e essencial bênção de Deus, que conferia a graça de uma pura e
imaculada linhagem de geração para geração (como o cultivo de uma planta
em toda a sua pureza), finalmente vi essa bênção na forma de um raio
luminoso entrando no cibório, que passou para dentro da torre. Vi os anjos
ativamente tomando parte no desenrolar das visões.
A PROMESSA DA VINDA AO MUNDO DE UMA
VIRGEM, DA QUAL NASCERIA O MESSIAS, E QUE
DEU INÍCIO A UM CULTO ININTERRUPTO, QUE
OCORRE DESDE OS TEMPOS DO PROFETA ELIAS
ATÉ O MOMENTO.

Vi toda a Terra Prometida debilitada e seca com a falta de chuva e vi


Elias subindo o Monte Carmelo com dois servos para suplicar a Deus por
chuva. Primeiro eles escalaram uma alta montanha e subiram alguns
degraus até um terraço. Depois subiram vários degraus na rocha, chegando
a um grande espaço aberto com uma colina no meio, onde havia uma
caverna. Elias subiu os degraus dessa colina rochosa. Deixou os servos na
ponta do espaço aberto e ordenou para que um deles ficasse olhando na
direção do Mar da Galiléia, que tinha, contudo, um aspecto terrível, pois
estava totalmente seco, cheio de buracos e de cavernas com corpos de
animais podres no solo enlameado. Elias prostrou-se no chão com a cabeça
entre os joelhos e, cobrindo-se com um manto, rezou fervorosamente a
Deus. Gritou sete vezes para seu servo a fim de saber se ele havia visto uma
nuvem erguer-se do lago. Em sua sétima chamada, vi uma nuvem se formar
e vi o servo avisar Elias, que se decidiu por enviá-lo ao rei Acab. Vi um
turbilhão branco formar-se no meio do lago; fora desse turbilhão ergueu-se
uma pequena nuvem negra, como um punho fechado, que se abriu e se
espalhou. Nessa nuvem vi uma pequena e brilhante figura como uma
virgem. Percebi que Elias também viu essa figura. A cabeça da virgem
estava rodeada por raios. Ela abriu seus braços em forma de cruz e tinha
uma coroa de triunfo pendendo de uma das mãos. Seu longo manto parecia
estar amarrado abaixo dos pés. Ela parecia estar flutuando sobre toda a
Terra Prometida dentro da nuvem que se espalhava ainda mais. Vi como
essa nuvem dividiu-se em diferentes partes e caiu como chuvas de orvalho
cristalino em forma de turbilhão sobre certos lugares santos e consagrados,
habitados por homens devotos e por aqueles que rezam pela salvação. As
chuvas eram cercadas pelas cores do arco-íris; vi essa bênção tomando
forma no centro como uma pérola na concha. Foi-me explicado que essa era
uma imagem simbólica e que os lugares favorecidos pela água da chuva
eram de fato aqueles que tinham contribuído para a vinda da Bem-
Aventurada Virgem.
Também vi uma visão profética de como Elias, à medida que a nuvem
se erguia, discerniu quatro mistérios relacionados à Bem-
Aventurada Virgem. Infelizmente esqueci os detalhes, e muito mais, como
resultado dos distúrbios e interrupções do momento. Elias discerniu na
nuvem, dentre outras coisas, que Maria nasceria na sétima era do mundo;
por isso suas sete chamadas para seu servo. Ele viu também de qual família
ela deveria vir. Em um dos lados do campo, viu uma árvore genealógica
baixa, mas muito ampla, e, do outro lado, uma bem alta, larga na base, mas
se afilando em direção ao topo, que se curvava para baixo na direção da
primeira árvore. Entendeu tudo isso e discerniu quatro mistérios sobre a
futura Mãe do Salvador. Em seguida tive uma visão de como Elias alargou a
caverna sobre a qual ele tinha rezado e como fez dos Filhos dos Profetas
uma organização mais regular. Alguns destes estavam sempre rezando na
caverna em prol da Vinda da Santíssima Virgem, honrando-a
antecipadamente por seu futuro Filho. Vi que essa devoção à Nossa Senhora
continuou aqui ininterruptamente e que os Essênios a mantiveram durante a
vida terrena de Maria. Subsequentemente foi perpetuada até os dias atuais
pelos eremitas e pela Ordem Carmelita, que eventualmente os sucedeu.
Vi uma grande comoção no Templo em Jerusalém, muitas consultas,
muita escrituração com canetas de junco, e mensageiros sendo enviados por
todo o país. A chuva foi implorada a Deus com lamentações e súplicas e
Elias foi procurado em todo lugar. Vi Elias recebendo comida e água no
deserto pelas mãos de um anjo que segurava um vaso como um pequeno e
brilhante barril com tiras diagonais vermelhas e brancas. Vi todas as
relações de Elias com Acab, o sacrifício no Monte Carmelo, o massacre dos
profetas de Baal, a oração de Elias por chuva e o ajuntamento das nuvens.
Vi a secura da terra, uma grande seca e a escassez de bons frutos entre os
homens. Vi que, por sua oração, Elias alcançou a bênção representada pela
forma da nuvem e que ele dirigiu e distribuiu as chuvas de acordo com suas
visões interiores; de outra forma poderiam, talvez, ter se tornado um dilúvio
destruidor. Elias perguntou a seu servo sete vezes por notícias da nuvem;
em outras palavras, eram as sete gerações ou eras do mundo que deveriam
ocorrer antes da bênção formar raiz em Israel. Elias mesmo viu na nuvem
que surgia uma imagem da Bem-Aventurada Virgem e dela discerniu vários
mistérios relacionados ao seu nascimento e aos seus antepassados.
Vi que a oração de Elias pedia primeiro que a bênção viesse sob forma
de orvalho. Camadas de nuvens desceram, tornando-se turbilhões, com
arco-íris, que finalmente se transformaram em chuva. Vi aqui uma
associação com o maná no deserto, que se depositava espesso e ondulado
no chão pela manhã como lã de carneiro e que podia ser enrolado e
transportado (embora devesse ser consumido no mesmo dia). Vi o turbilhão
de orvalho flutuando ao longo das margens do Jordão, precipitando-se
somente em lugares especiais, e não por toda parte onde passava. Em
particular em Aialon e nos lugares onde os batismos ocorreram mais tarde.
Perguntei o que as bordas coloridas dos turbilhões prognosticavam e recebi
como explicação o exemplo das ostras produtoras de pérolas no mar cujas
conchas têm bordas de colorido brilhante. Elas expõem-se ao sol,
absorvendo a luz que clareia a pérola até que esta tome forma em seu
interior. Foi-me mostrado que o orvalho que se tornava chuva era muito
mais do que simplesmente água para molhar a terra. Compreendi
claramentc que, sem esse orvalho, a vinda da Bem-
Aventurada Virgem seria adiada em mais de 100 anos. Após essa bênção da
terra, a fartura de alimento e de água foi concedida aos seres humanos que
viviam dos frutos da terra; a bênção era, portanto, transmitida a seus corpos,
tornando-os mais dignos. O orvalho fertilizante estava associado à vinda do
Messias, pois vi seus raios penetrando geração após geração, até que
atingissem o corpo da Santíssima Virgem. Não posso descrevê-lo. Algumas
vezes, nas bordas coloridas que mencionei, vi surgirem uma ou mais
pérolas, com aparência de figura humana, que desapareciam num instante
para se unirem com outras pérolas. A imagem da concha de pérola era um
símbolo de Maria e Jesus.
CRIAÇÃO DA SANTISSIMA ALMA DE MARIA. O
NASCIMENTO DE MARIA, À MEIA-NOITE, COMO
SEU FILHO JESUS.

Tive uma visão da criação da santissima alma de Maria e de sua união


com o puríssimo corpo. Na Glória pela qual a Santissima Trindade é
usualmente representada em minhas visões, vejo um movimento de uma
grande montanha brilhante e semelhante a uma figura humana; vi algo
erguer-se do meio dessa figura em direção à sua boca e ir adiante, como um
brilho reluzente. Em seguida vi esse brilho permanecer separado diante da
Face de Deus, girando e transformando-se, ou melhor, sendo formado, pois
vi que, enquanto esse brilho tomava forma humana, era pela vontade de
Deus que recebia uma forma tão inexplicavelmente bela. Vi também que
Deus mostrou a beleza dessa alma para os anjos e que eles tiveram êxtase
inexplicável durante a contemplação. Sou incapaz de descrever em palavras
tudo o que vi e entendi.
Quando já havia se passado dezessete semanas e cinco dias após a
concepção da Santíssima Virgem (exatamente cinco dias depois da metade
do período de gravidez de Anna), vi a santa mãe de Nossa Senhora deitada,
dormindo na cama, em sua casa perto de Nazaré. Veio uma luz brilhante
sobre ela, e um raio dessa luz caiu sobre o meio de seu lado, e a luz passou
para dentro dela na forma de uma pequena e brilhante figura humana. No
mesmo instante vi a mãe de Nossa Senhora erguer-se da cama rodeada de
luz. Ela estava em êxtase e teve uma visão de seu ventre abrindo-se como
um tabernáculo para acolher a pequena e brilhante virgem, de quem a
salvação de toda a humanidade estava para florescer. Vi que esse foi o
instante no qual, pela primeira vez, a criança moveu-se em seu ventre. Anna
ergueu-se de sua cama, vestiu-se e anunciou a sua alegria para o santo
Joaquim. Ambos agradeceram a Deus, e eu os vi rezando debaixo da árvore
no jardim onde o anjo a havia confortado. Foi-me dado saber que a alma da
Santíssima Virgem foi unida ao seu corpo cinco dias antes do que
normalmente acontece com as outras crianças. Seu nascimento ocorreu
doze dias mais cedo.
Vários dias antes do nascimento de Nossa Senhora, Anna disse a
Joaquim que a hora estava chegando. Ela enviou um mensageiro para a sua
irmã mais nova, Maraha (em Séforis), para a viúva Enue, no vale de
Zabulom, e para sua sobrinha, Maria Salomé, em Betsaida, pedindo a essas
três mulheres para irem até ela. Eu as vi em suas jornadas. A viúva Enue
tinha um jovem servo com ela; as outras duas mulheres estavam
acompanhadas de seus maridos que, entretanto, retornaram quando
chegaram próximo a Nazaré. Vi que, na véspera de Anna dar à luz, Joaquim
enviou para as suas propriedades seus muitos servos. Entre as novas servas
de Anna, ele manteve na casa somente aquelas que eram necessárias. Ele
também saiu para o pasto próximo à casa. Vi que a primeira filha de Anna,
Maria Heli, tomava conta da casa. Ela estava com dezenove anos e era
casada com Cleofas, um dos mais importantes pastores de Joaquim, com
quem tinha uma filhinha, Maria Cleofas, então com quatro anos. Após
rezar, Joaquim escolheu seus melhores cordeiros, cabritos e bois, enviando
pastores para levá-los ao Templo como oferenda de gratidão. Ele não
retornou para casa antes do anoitecer.
Vi as três primas chegando à casa de Anna ao anoitecer. Elas foram até
ela em seu quarto, atrás da lareira, e a abraçaram. Após Anna ter-lhes dito
que a hora estava próxima, elas se levantaram e cantaram um hino juntas:
“Louvado seja o Senhor Deus; Ele mostrou misericórdia ao seu povo e
redimiu Israel, cumprindo a promessa que deu a Adão no Paraíso — a
descendência da mulher deveria esmagar a cabeça da serpente.” Não
consigo mais o recitar de cor. Anna rezou como que em êxtase. Ela
introduziu ao hino todos os símbolos proféticos de Maria. Disse: “A
semente dada por Deus a Abraão completou-se em mim.” Ela falou da
promessa dada a Sara no momento do nascimento de Isaac e disse: “A
florescência da vara de Aarão aprimorou-se em mim.” Naquele momento eu
a vi envolta em luz; vi o quarto repleto de brilho e a escada de Jacó
aparecendo em cima. As mulheres estavam completamente maravilhadas e
repletas de júbilo. Creio que elas também tiveram essa visão. Quando a
oração de boas-vindas terminou, as viajantes revigoraram-se com uma
refeição leve a base de pão e frutas e de água misturada com bálsamo. Elas
comeram e beberam em pé e depois deitaram até à meia-noite para
descansar da viagem. Anna não foi para a cama, mas rezou, e à meia-noite
acordou as outras mulheres para orarem com ela. Elas a seguiram até seu
local de oração atrás de uma cortina.
Anna abriu as portas de um pequeno armário na parede, que continha
uma caixa com objetos sagrados. De cada lado havia luzes, talvez
lamparinas, mas não estou certa. Havia um banquinho acolchoado (um
genuflexório) aos pés desse pequeno altar. A caixa continha uma mecha do
cabelo de Sara (Anna tinha grande veneração por ela), alguns ossos de José
(trazidos por Moisés do Egito) e algo que pertencia a Tobias, creio que uma
relíquia de suas vestes; havia também um pequeno e brilhante cálice em
forma de pera, do qual Abraão tinha bebido no momento em que havia sido
abençoado pelo anjo. (Isso foi dado a Joaquim e estava na Arca da Aliança
quando houve sua bênção no Templo. Agora sei que essa bênção tomou a
forma de vinho e pão e era um alimento sacramental e fortificante.)
Anna ajoelhou diante do pequeno armário com uma das mulheres de
cada lado e a terceira atrás dela. Recitou um outro hino, creio que
mencionava a sarça ardente de Moisés. Em seguida vi o quarto cheio de
uma luz sobrenatural que se tornou mais intensa à medida que rodeava
Anna. As mulheres caíram no chão espantadas. A luz ao redor de Anna
tomou a exata forma da sarça ardente de Moisés no Horeb; eu já não podia
mais ver Anna. A chama toda fluía para dentro; subitamente vi que Anna
recebeu a reluzente criança Maria em seus braços, envolveu-a em sua
manta, pressionou-o de encontro ao seu coração e deitou-a despida no
banquinho defronte às sagradas relíquias, ainda em oração. Ouvi a criança
chorar. Vi que Anna retirou alguns panos debaixo do grande véu que a
envolvia para ali envolver a criança, primeiro com uma faixa cinza e depois
com uma vermelha; em seguida, atou seus braços e peito, deixando a
cabeça exposta. A aparição da sarça ardente tinha desaparecido.
As mulheres levantaram-se e receberam com grande espanto a criança
recém-nascida em seus braços. Derramaram lágrimas de alegria, unindo-se
num hino de louvor. Anna levantou sua criança para o alto como que
fazendo uma oferta. Vi que naquele momento o quarto encheu-se de luz e
contemplei vários anjos cantando Glória e Aleluia. Ouvi todas as suas
palavras, anunciando que, a partir do vigésimo dia, a criança deveria ser
chamada Maria.
Anna, então, foi para seu dormitório, onde se deitou em sua cama. As
mulheres, nesse meio-tempo, desenrolaram a criança, banharam-na e
enfaixaram-na novamente. Depois, a deitaram ao lado de sua mãe. Havia
uma pequena cesta de vime que podia ser presa ao lado da cama, contra a
parede ou aos pés da cama, onde quer que se desejasse, de modo que a
criança pudesse sempre estar perto de sua mãe.
As mulheres chamaram Joaquim, o pai. Ele veio até a cama de Anna e
ajoelhou-se, chorando; suas lágrimas caíam sobre a criança. Ele levantou-a
pelos braços e proferiu seu hino de louvor, como Zacarias no nascimento de
João Batista. Joaquim falou nesse hino sobre a sagrada semente, implantada
por Deus em Abraão, que permaneceu com o povo de Deus por meio da
aliança confirmada na circuncisão e que tinha agora atingido o ápice da
florescência nessa criança e que estava completa na carne. Também ouvi
como essa canção de louvor proclamava que ali havia se cumprido a
palavra do profeta: “Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento
brotará de suas raízes” (Is 11,1). Ele disse, também, em grande humildade e
devoção, que agora morreria feliz.
Foi somente nesse momento que percebi que Maria Heli, a filha mais
velha de Anna, ainda não tinha visto a criança. Embora tivesse se tornado
mãe de Maria de Cleofas vários anos antes, Maria Heli não estava presente
no nascimento de Nossa Senhora — talvez porque, de acordo com as leis
judaicas, não era considerado próprio para uma filha estar com sua mãe
nessa hora.
Na manhã seguinte vi os servos e servas, e muitas pessoas das
redondezas, reunidos em volta da casa. Foi-lhes permitido entrar em grupos
e a criança era mostrada a todos pelas mulheres. Muitos ficaram comovidos
e passaram a viver suas vidas mais retamente depois de terem visto a
criança. Os vizinhos tinham vindo porque haviam visto durante a noite uma
luz intensa sobre a casa, e como o nascimento da criança de Anna era visto
como um grande favor do céu, após um longo período de infertilidade, lá
estavam eles.
No momento em que a criança recém-nascida deitou-se nos braços de
sua santa mãe Anna, vi que, ao mesmo tempo, a criança tinha sido
apresentada no céu diante da Santíssima Trindade e saudada com grande e
inexplicável alegria por toda a multidão celestial. Entendi que lhe foi
tornado conhecido, de uma maneira sobrenatural, todo o seu futuro, com
todas as alegrias e tristezas. Maria recebeu ensinamentos sobre infinitos
mistérios e ainda assim permaneceu como uma criança comum. Esse seu
conhecimento não podemos entender, porque o nosso conhecimento cresce
na árvore do bem e do mal. Ela aprendeu tudo da mesma forma que uma
criança o faz com relação ao seio de sua mãe e entende que pode beber
dele. À medida que ia desaparecendo a visão, na qual a criança Maria era
instruída no céu pela graça, ouvi seu choro pela primeira vez.
No momento do nascimento de Maria, vi as novidades sendo levadas
até os patriarcas no limbo. Vi todos, especialmente Adão e Eva, cheios de
inexplicável alegria diante do cumprimento da promessa dada no Paraíso.
Percebi também que os patriarcas avançaram em seu estado de graça, de
modo que o lugar em que permaneciam tornou-se mais brilhante e mais
amplo e que lhes havia sido dada mais influência sobre a terra. Foi como se
todos os seus trabalhos e sofrimentos, todos os esforços, lágrimas e anseios
de suas vidas, tivessem amadurecido em seus frutos predestinados.
Na hora do nascimento de Maria, vi uma grande e feliz agitação na
natureza, no mundo animal, nos corações de todos os homens bons, e ouvi o
som de uma doce canção. Os pecadores, contudo, foram oprimidos por
medo e tristeza. Vi, especialmente perto de Nazaré, mas também no resto da
Terra Prometida, muitos que estavam possessos libertaram-se, naquele
momento, em violenta fúria. Eles eram arremessados de um lado para o
outro com altos gritos, enquanto os demônios guinchavam de dentro deles:
“Nós devemos nos render, devemos sair!”
Em Jerusalém vi como o velho sacerdote Simeão, que vivia no
Templo, estava atônito no momento do nascimento de Maria, pelos altos
gritos provenientes dos homens loucos e daqueles possessos pelo diabo,
muitos dos quais foram silenciados em um edifício em uma das ruas na
colina do Templo. Simeão vivia perto deles e era em parte responsável por
cuidar deles. Por volta da meia-noite, eu o vi sair ao ar livre diante da casa
daqueles possessos e perguntar para um deles, que vivia mais próximo,
sobre a causa dos altos gritos com os quais todos tinham sido despertados
do sono. O homem gritou ainda mais alto, de modo que ele teve de sair.
Simeão abriu a porta, o possesso saiu correndo, e Satanás gritou de dentro
dele: “Eu devo sair, nós devemos todos sair! Uma virgem nasceu! Há anjos
demais na terra que estão nos atormentando! Nós devemos sair agora e não
podemos nunca mais entrar nos homens!” Deu-me muito prazer ver o velho
Simeão rezando fervorosamente; o pobre possesso foi arremessado para
frente e para trás ao ar livre, e eu vi o demônio sair dele. Também vi as
profetisas Anna e Noemi acordarem e serem informadas, por meio de
visões, sobre o nascimento da criança escolhida. [Noemi era a irmã da mãe
de Lázaro; ela estava no Templo e mais tarde tornou-se a professora de
Maria.] Elas encontraram-se e disseram uma à outra sobre o que tinham
visto. Creio que conheciam Anna, a mãe de Nossa Senhora.
Em 9 de setembro, um dia após o nascimento de Maria, vi na casa
vários outros conhecidos da vizinhança. Ouvi muitos nomes, mas os
esqueci novamente. Também vi muitos servos de Joaquim chegando dos
pastos mais distantes. Todos conheceram a criança recém-nascida e ficaram
repletos de grande alegria. A refeição na casa foi acompanhada de muito
júbilo.
Nos dias 10 e 11 de setembro vi novamente muitos que visitavam
Maria, dentre os quais havia muitos parentes de Joaquim vindos do Vale de
Zabulon. Nessas ocasiões a criança era trazida para a parte da frente da casa
em seu pequeno berço e posta numa base alta (como uma bancada de serrar)
para ser mostrada para as pessoas. A criança estava embrulhada de
vermelho e tinha um pequeno véu transparente em torno do pescoço. O
berço era coberto com um tecido vermelho e branco.
Vi Maria Cleofas (a neta de Anna, de dois ou três aninhos, filha de sua
filha mais velha com Cleofas) brincando com Maria e acariciando-a. Maria
Cleofas era uma criança forte e gordinha que usava um vestidinho branco
sem manga, com uma bainha vermelha presa com botões vermelhos
semelhantes a pequenas maçãs. Em torno de seus braços ela vestia
pequenas grinaldas brancas, que pareciam ser feitas de penas, seda e lã.
A PURIFICAÇÃO DE ANNA E A APRESENTAÇÃO
DE MARIA NO TEMPLO.

Algumas semanas após o nascimento de Maria, vi Joaquim e Anna


viajarem para o Templo com a criança para oferecer o sacrifício prescrito.
Eles apresentaram a criança no Templo, em devoção e gratidão a Deus, que
retirou deles a longa infertilidade. Mais tarde, a Santíssima Virgem, de
acordo com a Lei, ofereceu e reencontrou o Menino Jesus no Templo. No
dia seguinte após sua chegada, eles fizeram o sacrifício e, ao mesmo tempo,
fizeram o voto de oferecer sua criança completamente ao Templo em pouco
tempo. Depois Viajaram de volta para Nazaré com a criança. Na segunda
rua (próximo ao Templo) há uma casa com pátio que pertencia à Santa
Anna, mãe de Maria, onde ela e a família moravam e onde guardavam os
animais para os sacrifícios, quando vinham a Jerusalém. Se me lembro bem,
foi também nessa casa em que foram celebradas as núpcias de José e Maria.
CERIMÔNIA DE PREPARAÇÃO À APRESENTAÇÃO
DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA NO TEMPLO.

[Em 28 de outubro de 1821, Catharina Emmerich descreveu com estas


palavras o que estava vendo no momento, numa visão, acordada:] A
pequena Maria será em breve trazida para o Templo em Jerusalém. Já há
alguns dias atrás, a vi com três aninhos de pé diante de Anna, numa sala em
sua casa, sendo instruída em suas orações, uma vez que os sacerdotes logo
viriam examinar a criança em preparação para a sua recepção no Templo.
Hoje está contecendo uma festa em preparação para esse evento na casa de
Anna. Os convidados estão reunindo-se ali: parentes, homens, mulheres e
crianças. Há também três sacerdotes, um de Séforis (sobrinho do pai de
Anna), um de Nazaré, e um terceiro de um lugar na montanha a cerca de
quatro horas de Nazaré. O nome do lugar começa com a sílaba Ma. Esses
sacerdotes vieram em parte examinar Maria Menina para ver se ela
preenche as condições para se dedicar ao Templo, e em parte para dar
orientações sobre suas vestimentas, que têm de concordar com padrões
eclesiásticos prescritos. Havia três conjuntos de roupas: cada um consistia
de uma anágua, um carpete e um manto de diferentes cores. Havia também
duas grinaldas de seda e lã e uma coroa arqueada. Um dos sacerdotes
retirou algumas peças das vestimentas e arrumou tudo como deveria ser.
Hoje vi grandes festividades na casa dos pais de Maria. Os três
sacerdotes ainda estavam lá e ao lado deles havia muitos amigos da família
com suas filhinhas; por exemplo, Maria Heli e sua filha de sete anos Maria
Cleofas, que é muito mais robusta e forte do que Maria Menina. Maria é
delicadamcnte formada e tem um cabelo claro avermelhado, liso, mas
cacheado nas pontas. Ela já pode ler e todos estão atônitos com as sábias
respostas que ela dá; Maraha, a Irmã de Anna, de Séforis, também está lá
com uma filhinha, bem como outros parentes com suas meninas.
As vestimentas, que tinham sido parcialmente cortadas pelos
sacerdotes, foram agora terminadas pelas mulheres. Durante a cerimônia a
criança foi vestida com essas roupas várias vezes e questionada com muitas
perguntas. Foi tudo muito solene e sério: ainda que os velhos sacerdotes
algumas vezes sorrissem gentilmente durante os procedimentos, eles
estavam muito impressionados pelas inteligentes respostas de Maria e pelas
lágrimas de alegria de seus pais. A cerimônia aconteceu numa sala
quadrada próxima ao refeitório. Foi iluminada por uma abertura no teto
coberta com gaze. Um tapete vermelho foi colocado no chão e sobre ele
uma mesa-altar coberta com um tecido vermelho e um branco. Acima da
mesa estava uma tela com uma figura, feita de bordado ou costura,
pendurada como uma cortina na frente de um armário contendo rolos de
escrituras e orações.
Foram depositados sobre o altar os três conjuntos de vestimentas
cerimoniais de Maria, bem como muitas outras coisas apresentadas por seus
parentes para a ocasião da entrada da criança para o Templo. Havia uma
espécie de trono elevado com alguns degraus em frente ao altar. Joaquim,
Anna e os outros parentes estavam reunidos em círculo; as mulheres
estavam de pé atrás de Maria e as meninas ao seu lado. Os sacerdotes
entraram descalços. Havia cinco deles, mas apenas três tomaram parte na
cerimônia sobre suas vestimentas. Um dos sacerdotes pegou as vestimentas
sobre o altar, explicou seu significado, deu-as para a irmã de Anna, que
morava em Séforis (7 Km a NO de Nazaré), que vestiu a criança conforme
o que fora recomendado. Primeiramente vestiu nela um pequeno vestido
tricotado, e sobre ele um colorido escapulário ou corpete decorado no peito
com cordas. Este era posto sobre a cabeça e amarrado em volta dela. Por
cima, ela ainda vestiu um manto marrom com abertura para os braços, dos
quais pendiam pedaços do tecido (semelhante a franjas). O manto era aberto
no pescoço, mas fechado do peito para baixo. Maria vestiu sandálias
marrons com solas verdes e finas. Seu cabelo claro avermelhado e cacheado
nas pontas foi escovado suavemente, e ela usava uma grinalda de lã branca
ou seda ornamentada em intervalos com tiras de pluma, da largura de um
dedo, curvadas para dentro. Conheço o pássaro do campo de onde vieram
essas plumas. Um grande tecido quadrado, de cor cinza, era então posto
sobre a cabeça da criança, como um grande véu. Pareciam vestes de oração
ou penitência, ou mesmo um manto para viagem.
Enquanto Maria permanecia de pé nessas vestimentas, os sacerdotes
apresentaram-lhe toda espécie de perguntas que tinham a ver com o modo
de vida do Templo. Entre outras coisas eles disseram a ela: “Quando seus
pais consagraram você ao Templo, eles fizeram um voto em seu nome de
que você jamais experimentaria o vinho, vinagre, uvas ou figos; o que você
vai agora acrescentar a isso? Você pode refletir sobre isso durante a
refeição.” Os judeus, e especialmente as meninas judias, gostam muito de
beber vinagre, e assim era com Maria. Após mais algumas perguntas como
essa, o primeiro grupo de vestimentas cerimoniais foi retirado e o segundo
colocado. Primeiro um vestido azul-céu, depois um corpete mais
ornamentado do que o primeiro, um manto branco azulado e um véu
brilhante como seda, com dobras atrás do pescoço, como de uma freira,
preso à cabeça por uma grinalda com botões de flores em seda e pequenas
folhas verdes. Em seguida os sacerdotes puseram um véu branco sobre sua
cabeça e levantaram a parte que ficava para frente, de modo a parecer um
capuz. Este era preso com três fivelas, que permitiam que o véu fosse
jogado para trás para descobrir tanto um terço quanto a metade ou toda a
face. Maria foi instruída sobre o uso desse véu, como deveria ser levantado
e então baixado, como seria usado nas refeições e quando ela tivesse de dar
respostas a perguntas, e assim por diante.
Ela também foi instruída em muitas outras regras de conduta durante a
refeição, da qual todo o grupo participava na sala ao lado. O lugar de Maria
na mesa era entre dois sacerdotes, com um outro de frente para ela. As
mulheres e as meninas ficavam na ponta da mesa, separadas dos homens.
Durante a refeição a criança era interrogada várias vezes por meio de
pergunta e resposta sobre o uso do véu. Eles também disseram a ela: “Você
ainda tem permissão para comer qualquer tipo de comida”, e davam-lhe
vários pratos a fim de testar seu poder de renúncia. Mas Maria comeu
apenas alguns pratos e em pequena quantidade, satisfazendo seus ouvintes
com grande assombro pela sabedoria simples e pura das suas respostas. Vi
que durante a refeição e durante todo o exame havia anjos ao seu lado,
ajudando-a e dirigindo-a.
Quando a refeição terminou, todos foram uma vez mais para a outra
sala e ficaram de pé em frente ao altar, onde a criança teve suas vestes
trocadas novamente por vestes cerimoniais. Dessa vez ela colocou um
vestido azul-violeta tecido com um desenho de flores amarelas. Sobre este
estava um corpete ou colete, bordado em diferentes cores, amarrado
debaixo dos braços. Sobre ele, havia ainda um manto azul violeta, mais
amplo e formoso do que os outros, terminando numa curta cauda
arredondada. Na parte inferior da fronte desse manto, havia três faixas
prateadas bordadas com pequenos botões de rosas dourados; o manto era
atado em torno do tórax por uma faixa segura por fivelas presas no corpo do
manto. A coroa que foi posta sobre sua cabeça era uma larga faixa de metal
fino, mais larga em cima do que em baixo. Sua borda superior possuía
pontos com pequenas bolas. Sobre o topo da coroa, cinco faixas de metal
encontravam-se em uma esfera central. Essas faixas eram cobertas com
cordões de seda; as laterais das faixas de metal eram ornamentadas com
pequenas rosas de seda e com cinco pérolas ou pedras preciosas. A parte
interna da faixa brilhava como ouro. Maria, vestida com os trajes
cerimoniais cujo significado foi explicado pelos sacerdotes, foi conduzida
pelos degraus e posta de frente para o altar. As meninas presentes ficaram
ao lado dela. Ela então declarou com o que iria se comprometer a renunciar
quando estivesse no Templo. Disse que não iria comer peixe nem beber
leite, mas apenas uma bebida feita de miolo de cana e água, tal como
pessoas pobres bebiam na Terra Prometida, como leite de arroz. Algumas
vezes ela iria pôr um pouco de suco de terebinto na água. Isso é como o
melaço, muito refrescante, mas não tão delicado como o bálsamo. Ela abriu
mão de todo condimento e disse que não iria comer frutas, exceto por um
tipo de baga amarela que cresce em cachos. Eu a conheço bem; naquele
país é comida apenas por crianças e pessoas pobres. Ela disse que iria
dormir no chão de terra e se levantaria três vezes durante a noite para orar.
As outras companheiras do Templo levantavam-se apenas uma vez.
Os pais de Maria estavam profundamente comovidos com suas
palavras. Joaquim, tomando a criança em seus braços, disse em lágrimas:
“Oh, minha querida criança, isso é muito duro. Seu velho pai nunca verá
você novamente se você pretende viver tão austeramente.” Foi muito
tocante ouvir isso. Os sacerdotes, contudo, disseram que ela deveria
levantar-se somente uma vez durante a noite, como as outras, e eles fizeram
as outras condições mais suaves; por exemplo, em dias de grande festa, ela
poderia comer peixe. (Havia um grande mercado de peixe em Jerusalém, na
parte mais baixa da cidade, com água da piscina de Betesda. Uma vez,
quando esta secou, Herodes quis fazer um aqueduto e uma fonte, cobrindo
os gastos com a venda de vasos sagrados e vestimentas do Templo. Essa
decisão causou um verdadeiro tumulto. Os Essênios vieram de todas as
partes do país para Jerusalém para impedi-lo, pois, como acabei de me
lembrar, os Essênios tinham a responsabilidade de cuidar das vestimentas
sacerdotais.)
Os sacerdotes também disseram à pequena Maria: “Muitas das virgens
que são aceitas pelo Templo sem pagamento ou paramentos são obrigadas,
com o consentimento de seus pais, tão logo se tornem fortes o bastante para
lavar as vestimentas sujas de sangue dos sacerdotes e outras roupas grossas
de lã. Esse é um trabalho duro e muitas vezes resulta em mãos machucadas.
Mas isso você não precisa fazer, uma vez que seus pais estão pagando pela
sua estadia no Templo.” Maria disse, em seguida, sem hesitação, que ela iria
com prazer incumbir-se desse trabalho se ela fosse considerada digna.
Enquanto essas perguntas e respostas eram feitas, a cerimônia das
vestimentas chegou ao fim. Durante os santos procedimentos, vi muitas
vezes Maria parecer tão alta entre os sacerdotes que ela ficava muito acima
deles, de forma que me foi dada uma imagem de sua sabedoria e graça. Os
sacerdotes estavam repletos de agradável assombro. Ao final da cerimônia
vi Maria sendo abençoada pelo sacerdote principal. Ela ficou de pé num
pequeno trono elevado entre os sacerdotes e aquele que a abençoou ficou
com os olhos fixos nela, com os outros sacerdotes atrás dele. Os sacerdotes
rezaram lendo alguns rolos, respondendo um ao outro. O primeiro impôs as
mãos sobre ela, abençoando-a. Nesse momento foi-me dada uma
maravilhosa visão do ser interior da santa criança Maria. Eu a vi como que
traspassada de luz pela bênção do sacerdote; no interior de seu coração,
numa glória de luz indescritível, vi a mesma aparição que tinha visto na
contemplação do Santo dos Santos na Arca da Aliança. Num espaço
brilhante na forma do cálice de Melquisedec, vi figuras indescritíveis da
bênção na forma de luz. Era como se trigo e vinho, carne e sangue
estivessem unindo-se um ao outro. Vi de uma só vez e ao mesmo tempo
como acima dessa aparição seu coração se abriu como a porta de um templo
e como esse mistério, cercado por uma espécie de dossel de jóias
simbólicas, passou por seu coração aberto. Era como se eu visse a Arca da
Aliança entrando no Santo dos Santos no Templo. Daí em diante, o maior
bem na Terra foi posto no relicário de seu coração. Vi somente a santa
criança Maria repleta de um brilho de devoção flamejante. Eu a vi como
que transfigurada e flutuando acima do chão. Durante essa visão percebi
que um dos sacerdotes (creio que Zacarias) foi inspirado com uma
convicção interior de que Maria era o vaso escolhido do mistério da
salvação; pois eu o vi recebendo um raio da bênção que, na minha visão,
tinha entrado nela.
Os sacerdotes então conduziram a criança, abençoada e paramentada
em suas mais belas vestes cerimoniais, até seus pais, que estavam muito
comovidos. Anna ergueu Maria até seu peito, dando-lhe um afetuoso e
solene beijo. Joaquim, com profunda emoção, deu-lhe sua mão séria e
reverentemente. A irmã mais velha de Maria abraçou a bem-aventurada
criança em seu belo vestido de uma maneira muito mais vigorosa do que
Anna, que fazia tudo refletidamente e com moderação. Maria Cleofas, a
sobrinha de Maria, lançou seus braços alegremente em volta do seu
pescoço, como qualquer outra criança faria. Após Maria ter sido
cumprimentada por todos os presentes, suas vestes cerimoniais foram
tiradas e ela apareceu uma vez mais em vestes comuns. Ao entardecer,
muitos dos convidados, incluindo alguns dos sacerdotes, foram embora para
as suas casas. Eu os vi esperando para tomarem uma refeição leve; havia
frutas, pãezinhos, tigelas e pratos numa mesa baixa. Todos beberam de um
cálice. As mulheres comeram separadamente.
PARTIDA DE MARIA PARA O TEMPLO. MOISÉS E
ELIAS, EM APARÊNCIA DE CRIANÇAS,
ACOMPANHARAM MARIA EM SUA JORNADA
PARA A APRESENTAÇÃO NO TEMPLO, SUA NOVA
MORADA.

Na casa dos pais de Maria, durante a madrugada, vi muitos de seus


parentes dormindo ali. A própria família estava ocupada com os
preparativos da partida. A lâmpada de vários braços estava acesa diante da
lareira. Aos poucos vi toda a casa de pé.
Joaquim tinha enviado ao Templo alguns servos, na manhã anterior,
com animais para o sacrifício; cinco de cada tipo, dos melhores que
possuía. Esses animais faziam um belo rebanho. Eu o vi ocupado,
carregando a bagagem nos animais de carga que estavam diante da casa. As
vestimentas de Maria foram cuidadosamente arrumadas em diferentes
pacotes e presas nos animais, junto a presentes para os sacerdotes. Tudo
fazia uma carga bem pesada. Um pacote largo foi arrumado para fazer um
assento confortável no meio do dorso do animal. Anna e as outras mulheres
arrumaram tudo em pacotes, para facilitar o carregamento. Vi também
vários cestos pendurados nos lados dos burros. Em uma das cestas,
arredondadas como as sopeiras que as pessoas ricas usam para as sopas,
com uma tampa de abertura no meio, havia pássaros do tamanho de uma
perdiz. Outras cestas, como as usadas para carregar uvas, continham
diferentes tipos de frutas. Quando o carregamento estava terminado, uma
grande cobertura com pesadas borlas penduradas nas extremidades foi posta
sobre tudo. Na casa vi toda a agitação e o alvoroço da partida. Vi uma
jovem mulher, a irmã mais velha de Maria, deslocando-se com uma
lâmpada. Vi sua filha, Maria Cleofas, seguindo-a a maior parte do tempo.
Notei ainda uma outra mulher, por quem tomei ser uma serva. Agora vi ali
dois sacerdotes. Um era bastante idoso, usando um capuz pendendo até sua
testa com abas sobre as orelhas. Sua veste de cima era mais curta do que a
de baixo e possuía tiras penduradas nela, como uma estola. Foi ele que
presidiu o exame de Maria no dia anterior e a abençoou. Eu o vi
continuando a falar para a criança, ensinando-a diferentes coisas. Maria,
muito delicada e muito bem constituída, tinha pouco mais de três anos e era
tão desenvolvida quanto uma criança de cinco anos. Tinha cabelo loiro
avermelhado, macio, liso, mas encaracolado nas pontas; era mais comprido
que o cabelo loiro, curto e encaracolado de Maria Cleofas, já com sete anos.
A maioria das crianças e adultos vestia longas túnicas de lã marrom.
Fiquei particularmente encantada com dois meninos do grupo que não
pareciam pertencer à família e não conversavam com ninguém. Parecia que
ninguém os tinha visto, contudo eles falaram comigo. Eram muito
charmosos e atraentes com seus cabelos loiros e encaracolados. Tinham
livros que pareciam ser de estudos. (A pequena Maria não tinha livro,
embora já pudesse ler.) Seus livros não eram como os nossos, eram faixas
com cerca de sessenta centímetros de largura enroladas num bastão com
esferas salientes nas pontas. O mais alto dentre os dois meninos aproximou-
se, abriu um rolo, leu algo para mim e depois explicou o sentido. As letras
de ouro, cada uma independente, eram bem estranhas para mim; elas eram
escritas no sentido contrário, e cada letra parecia significar uma palavra
inteira. A língua era completamente estranha aos meus ouvidos, ainda que
eu a tenha entendido. Infelizmente esqueci agora o que eles me explicaram,
mas acho que tinha a ver com Moisés; talvez ainda me recorde. O mais
jovem dos dois segurava seu rolo como se fosse um brinquedo; pulava
como uma criança e brincava com seu rolo, balançando-o no ar. Não
consigo expressar completamentc o quanto fiquei fascinada com essas
crianças; eram diferentes de todas as pessoas dali, que pareciam não os
notar.
[Catharina Emmerich falou por um longo tempo com encantamento de
criança sobre esses dois meninos, mas não podia realmente dizer quem eles
eram. Entretanto, depois de ter comido e dormido por alguns minutos, ela se
recompôs e disse:] Foi o significado espiritual desses dois meninos que eu
vi; sua presença não era natural. Eles eram a representação simbólica dos
profetas. O mais alto dos dois, o que carregava seu rolo solenemente,
mostrou-me no capítulo terceiro do livro do Êxodo onde Moisés vê o
Senhor na sarça ardente e é instruído a tirar as sandálias. Ele explicou-me
isto: como a sarça estava em chamas sem ser queimada, assim agora o fogo
do Espírito Santo estava queimando na pequena Maria, que, totalmente
inconsciente disso, carregava consigo a sagrada chama. A passagem, disse
ele, também prenunciava a união, agora próxima, da Divindade com a
humanidade. O fogo significava Deus, e a sarça, a humanidade. O menino
também me explicou a retirada das sandálias, mas não consigo me recordar
do que ele disse. Acho que significava a remoção da camada externa para
expor a realidade interior; em seguida, prenunciou o cumprimento da lei e a
vinda de Alguém maior do que Moisés e os profetas. O outro menino
carregava seu rolo pela ponta do fino bastão, soprado pelo vento como uma
bandeira; isso significava a alegre entrada de Maria no caminho que a
levava para o seu destino como Mãe do Redentor. O comportamento
infantil desse menino enquanto brincava com o rolo mostrava como Maria,
embora coberta pela sombra de tão grande Promessa e chamada para um tão
sagrado destino, mantinha todo o inocente divertimento de uma criança.
Vi os viajantes iniciando sua viagem para Jerusalém ao raiar do dia.
Maria Menina saiu correndo da casa para junto dos animais de carga, de tão
ansiosa que estava para ir ao Templo. Os meninos profetas e eu ficamos na
porta, seguindo-a com os nossos olhos. Eles mostraram-me novamente
passagens nos rolos, e um de cada vez falou sobre a glória do Templo, mas
acrescentaram que uma glória ainda maior estava contida dentro dele. Os
viajantes tinham dois animais de carga com eles. Um dos asnos, que estava
pesadamente carregado, era conduzido por um servo e estava sempre um
pouco adiante do grupo. No outro asno, que estava carregado em frente à
casa, foi preparado um assento, e Maria foi posta sobre ele. Ela usava um
vestidinho amarelo, do primeiro grupo de roupas, e estava coberta por um
grande manto que foi posto em volta de si, de modo que seus braços
apoiavam-se nas dobras. Joaquim, que guiava o animal, carregava um longo
bastão, como um peregrino, com uma grande bola na ponta. Anna andou
um pequeno trecho adiante com a pequena Maria Cleofas. Uma serva
acompanhou-os a viagem toda, enquanto algumas das mulheres e crianças
apenas os acompanhou por uma parte do caminho. Eles eram parentes e
retornaram para suas casas no lugar onde as estradas se dividiam. Um dos
sacerdotes acompanhou o grupo por um tempo.
Eles levavam uma lâmpada acesa, mas esta parecia desaparecer
completamente em meio à luz que, em minhas visões sobre viagens
noturnas, sempre iluminava a estrada em volta da Sagrada Família ou de
outras pessoas santas, embora eles mesmos pareciam não ver essa luz que
os cercava. Primeiramente parecia que eu estava andando como os meninos
profetas atrás de Maria Menina, e, adiante, quando ela estava a pé,
estávamos ao seu lado. Algumas vezes ouvi os meninos cantando o salmo
44 (Eructavit cor meum verbum bonum) e o salmo 49 (Deus deorum
Dominus locutus est). Eles disseram-me que esses salmos seriam cantados
por dois coros na recepção da criança no Templo, como pude comprovar na
chegada.
Vi a estrada indo morro abaixo e depois subindo novamente. Quando
era de manhã ou pleno dia, vi os viajantes repousando ao lado de uma
nascente, da qual corria um riacho; havia um prado ali, e eles descansavam
junto a uma cerca viva de arbustos de bálsamo.
Esses arbustos sempre tinham bases de pedra para recolher bálsamo,
que pingava deles, provendo, assim, aos passantes, uma bebida refrescante,
com a qual podiam encher seus jarros. Nas cercas vivas havia frutas que
eles colhiam e comiam. Eles também tinham pequenos rolos de pão para
comer. Os meninos profetas tinham desaparecido agora. Um deles era Elias,
o outro, creio, era Moisés. Tenho certeza de que Maria Menina os via, mas
nada falava sobre isso.
Mais tarde vi os viajantes pararem em uma casa, onde foram bem-
vindos e receberam comida. As pessoas que ali viviam pareciam ser
parentes. A pequena Maria Cleofas foi mandada de volta para casa a partir
desse ponto. Durante o dia tive vários lampejos de sua jornada bastante
difícil. Eles tiveram de passar por morros e vales, muitas vezes tomados por
neblina fria e muito sereno, embora aqui e ali se viam caminhos ensolarados
onde as flores fulguravam. Antes de chegarem ao local de descanso para a
noite, eles cruzaram um pequeno rio. Passaram a noite em uma hospedaria
no pé da montanha, na qual há uma cidade. Infelizmente não consigo ao
certo lembrar o nome do lugar. Eu o vi em outras viagens da Sagrada
Família, e posso facilmente estar enganada sobre seu nome. Posso apenas
dizer esse pouco, mas não com certeza; eles viajaram na mesma direção que
Jesus seguiu no mês de setembro de Seu trigésimo ano, quando foi de
Nazaré a Betânia, para então ser batizado por João. A Sagrada Família
tomou o mesmo caminho em sua fuga de Nazaré para o Egito. Naquela
fuga, seu primeiro abrigo foi em Nazara, um pequeno lugar entre Massaloth
e uma cidade de montanha, mais perto dessa última. Vejo tantos lugares à
minha volta e ouço tantos nomes que posso facilmente confundi-los. Essa
cidade estende-se até a encosta e está dividida em várias partes diferentes,
embora todas pertençam umas às outras. A grande falta de água faz com
que esta tenha de ser retirada de poços com cordas.
[Em 4 de novembro de 1821, ela disse:] Esta tarde vi Joaquim, Anna
com a criança Maria e uma serva chegarem a uma hospedaria distante umas
doze horas de Jerusalém. Eles estavam acompanhados por um servo, que
muitas vezes ia à frente com um asno pesadamente carregado. No caminho
para o Templo, eles alcançaram o seu rebanho de bestas que ia ser
sacrificado. Contudo, a caravana continuou seu caminho. Joaquim deve ter
sido bem conhecido ali, pois parecia estar em sua própria casa. Suas bestas
para sacrifício sempre costumavam parar por aquela região. Ao retornar de
sua vida escondida em meio aos pastores, ele também esteve lá quando foi
para Nazaré. Vi Maria Menina adormecida ao lado de sua mãe. (Tive tanto a
fazer estes dias com as Santas Almas que creio que isso me fez esquecer
parte da jornada para o Templo, disse Anna Catharina Emmerich.)
[Em 5 de novembro de 1821, ela relatou:] Nesta tarde vi Maria Menina
com seus pais chegarem a uma cidade a noroeste de Jerusalém, a menos de
seis horas de jornada. Essa cidade é chamada Bet-Horon (ou Betoron) e está
no pé da colina. No caminho eles cruzaram um rio que fluía a oeste para o
mar perto de Jope, onde Pedro pregou após a vinda do Espírito Santo.
Eram umas duas horas de viagem daqui até um lugar na estrada
principal, de onde se podia ver Jerusalém. Ouvi o nome da estrada ou lugar,
mas não consigo recordar-me claramente.
Bet-Horon é uma cidade grande, habitada por levitas. Excelentes e
grandes uvas crescem ali, bem como outras frutas. A Santa Família ficou
com amigos em uma bem cuidada casa. Era uma escola levita, havia um
professor e algumas crianças na casa. Fiquei bastante surpresa ao ver muitas
mulheres aparentadas com Anna e com suas filhinhas. Estas estavam,
pensei, a caminho de suas casas. Contudo, como vejo agora, essa parentela
veio por uma estrada mais curta e lá chegou primeiro, suponho que para dar
as boas vindas aos viajantes. Essas mulheres e crianças eram de Nazaré,
Séforis, Zabulon e imediações; algumas delas já tinham estado na casa de
Anna durante o exame; por exemplo, a irmã mais velha de Maria e sua
filhinha Maria Cleofas e a irmã de Anna, de Séforis, com suas filhas. A
estada foi de muito júbilo para Maria Menina. Ela foi levada para uma
grande sala, acompanhada por outras crianças e posta num assento elevado
com um pálio, preparado para ela como um pequeno trono. O professor e
outros membros novamente fizeram a ela toda espécie de questões enquanto
colocavam grinaldas em sua cabeça. Todos ficaram espantados com a
sabedoria das respostas de Maria. Também ouvi a respeito da esperteza de
uma outra menina que havia passado por lá pouco tempo antes, a caminho
de casa, vinda da escola do Templo. Seu nome era Susana, que mais tarde
passou a seguir Jesus com as Santas Mulheres. Era o lugar dela que Maria
iria tomar no Templo. Havia um número limitado de lugares. Susana tinha
quinze anos de idade quando deixou o Templo, portanto, onze anos mais
velha que Maria. Anna também havia sido educada no Templo, mas não
antes de ter cinco anos de idade. Maria Menina estava extremamente feliz
por estar tão perto do Templo; eu vi Joaquim pressionando-a junto ao seu
coração entre lágrimas, dizendo; “Oh, minha criança, temo não a ver
novamente”.
Uma refeição foi então preparada e, enquanto todos se reclinavam à
mesa, vi Maria correndo repleta de encantadora festividade, algumas vezes
se aconchegando junto à sua mãe, outras permanecendo atrás dela, lançando
seus bracinhos em volta de seu pescoço.
[Em 6 de novembro de 1821:] Hoje muito cedo vi os viajantes
deixando Bet-Horon para Jerusalém. Todos os seus parentes, as crianças e
as pessoas da hospedaria foram com eles. Eles levaram consigo presentes,
como roupas e frutas para a Menina. Pareciam estar indo para grandes
festividades em Jerusalém. Aprendi por certo que Maria tinha três anos e
três meses de idade, mas era como uma menininha de cinco ou seis nos
padrões de nosso país.
CHEGADA EM JERUSALÉM.

Hoje ao meio-dia vi a chegada de Maria Menina e seus acompanhantes


a Jerusalém. Os viajantes, com Maria Menina, aproximaram-se de
Jerusalém pelo norte, mas não entraram por esse lado. Assim que
alcançaram os jardins e palácios afastados, eles contornaram a cidade,
virando para leste através da parte do Vale de Josafá (do hebraico: “lugar
onde Javé julga”), deixando o Monte das Oliveiras e a estrada para Betânia
à sua esquerda. Daí entraram na cidade pela Porta das Ovelhas, que leva até
o mercado de gado. Junto a esse portão há uma piscina, na qual as ovelhas
destinadas ao sacrifício são lavadas pela primeira vez para remover a sujeira
pesada. Essa não é, contudo, a piscina de Betesda.
O pequeno grupo virou novamente à direita entre muros, como se
estivesse indo para uma outra região da cidade. No caminho eles passaram
por um longo vale. Em um lado deste erguem-se os altos muros de uma das
partes superiores da cidade. Os viajantes foram rumo ao lado oeste de
Jerusalém para a vizinhança do mercado de peixes, onde a ancestral casa de
Zacarias de Hebron está situada. Nesta estava um homem bastante idoso,
creio que era um irmão do pai de Zacarias.
Zacarias sempre ficava aqui quando executava seu serviço no Templo.
No momento, ele estava na cidade; seu tempo de serviço tinha acabado,
mas ele havia decidido permanecer alguns dias mais em Jerusalém com o
propósito de estar presente à recepção de Maria no Templo. Ele não estava
em sua casa quando o grupo chegou. Havia ainda outros parentes na casa,
da vizinhança de Belém e Hebron, com suas crianças, dentre as quais duas
sobrinhas de Isabel, que não estava lá. Todos saíram com muitas meninas
jovens, carregando pequenas grinaldas e ramos, para encontrar os viajantes,
que estavam ainda a um quarto de hora de distância no caminho do vale.
Eles deram-lhes alegres boas-vindas e os levaram até a casa de Zacarias,
onde houve muito regozijo. Lá receberam alguns refrescos e, em seguida,
alguns preparativos foram feitos para conduzir todo o grupo para uma
hospedaria de cerimônia nas vizinhanças do Templo. Os animais de
Joaquim destinados ao sacrifício já tinham sido levados perto do mercado
de gado para estábulos próximos a essa hospedaria especial. Zacarias veio
então levar o grupo de sua casa para a hospedaria. Maria Menina estava
vestindo seu segundo conjunto de roupas cerimoniais com um vestido azul
celeste.
Uma procissão foi formada, liderada por Zacarias, Joaquim e Anna.
Maria seguiu cercada por quatro meninas vestidas de branco, e atrás delas
vinham outras crianças e parentes. Todos caminharam por muitas ruas,
passaram o palácio de Herodes e a casa onde, mais tarde, viveu Pilatos. Seu
caminho os levou em direção à ponta noroeste da colina do Templo; atrás
deles estava a fortaleza Antônia, um grande e alto edifício no lado noroeste
do Templo. Subindo uma parede alta por uma escada de muitos degraus, o
grupo queria tomar Maria Menina pelas mãos, mas, para a surpresa de
todos, ela correu por conta própria, rápida e alegremente.
A casa para onde estavam indo era uma hospedaria cerimonial não
muito longe do mercado de gado. Havia quatro hospedarias em torno do
Templo, e aquela onde estavam tinha sido alugada para eles por Zacarias.
Era um amplo edifício, com um grande pátio cercado por uma espécie de
claustro com dormitórios e longas mesas baixas. Havia também uma grande
sala com um forno para cozinhar. O lugar para onde os animais de Joaquim,
destinados ao sacrifício, tinham sido levados, ficava próximo. Em cada lado
desse lugar havia habitações para os servos do Templo encarregados dos
animais de sacrifício.
Quando o grupo entrou na hospedaria, os seus pés foram lavados,
como é o costume em relação aos recém-chegados; os pés dos homens eram
lavados pelos homens e os das mulheres pelas mulheres. Imediatamente
entraram em uma sala onde havia um grande candelabro de vários braços
pendurado no meio do teto sobre uma grande bacia de metal com
corrimões, cheia de água, na qual lavaram suas mãos e rostos. O burro de
carga, que pertencia a Joaquim, foi descarregado e levado por um servo
para o estábulo. Joaquim, que tinha avisado a sua intenção de oferecer o
sacrifício, seguiu os servos do Templo até os estábulos próximos, onde eles
inspecionaram seus animais.
Joaquim e Anna, então, seguiram juntos com Maria Menina até a casa
dos sacerdotes colina acima. Ali também, a criança percorreu os degraus
acima com surpreendente energia, como que auxiliada e movida por força
espiritual. Os dois sacerdotes da casa, um bastante idoso e o outro bem mais
jovem, deram-lhes amáveis boas-vindas; ambos estiveram presentes ao
exame de Maria em Nazaré e já a esperavam. Após falarem sobre a viagem
e sobre a proximidade da cerimônia de apresentação, eles chamaram uma
das mulheres do Templo, uma viúva idosa que seria a responsável por
cuidar das crianças. (A anciã vivia perto do Templo com outras mulheres
que, como ela, ocupavam-se de vários serviços femininos e do treinamento
das moças. A habitação dessas outras era mais distante do Templo do que os
quartos onde ficavam os oratórios das mulheres e das servas dedicadas ao
Templo. Esses quartos eram construídos diretamente no Templo e deles
podia se olhar, sem ser visto, para dentro do santo lugar localizado abaixo.)
A mulher que chegou estava tão coberta que somente um pedacinho de sua
face podia ser visto. Maria Menina foi apresentada a ela pelos sacerdotes e
pelos pais como sua futura criança adotiva. Ela era séria, mas amável, e a
criança estava séria, humilde e respeitosa. Eles falaram-lhe sobre a
disposição e o caráter de Maria, enquanto discutiram vários assuntos
ligados à cerimônia da apresentação. Essa anciã acompanhou-os até a
hospedaria e recebeu um pacote com os pertences da criança. Levou-os
consigo para arrumá-los na nova casa de Maria. Aqueles que
acompanharam o grupo desde a casa de Zacarias haviam retornado para lá e
apenas os parentes que vieram com a Santa Família permaneceram na
hospedaria alugada por Zacarias. As mulheres do grupo acomodaram-se por
lá e fizeram os preparativos para um banquete do dia seguinte.
[Em 7 de novembro, Catharina Emmerich disse:] Passei todo o dia de
hoje vendo os preparativos para o sacrifício oferecido por Joaquim e para a
recepção no Templo. Logo pela manhã Joaquim e alguns outros homens
conduziram os animais destinados ao sacrifício até o Templo, onde
passaram por uma outra inspeção sacerdotal; alguns foram rejeitados e
levados para o mercado de gado da cidade. Os animais aceitos foram
encaminhados para o local do sacrifício, onde vi muitas coisas acontecerem,
mas não posso mais dizer em qual ordem. Lembro-me de que Joaquim pôs
sua mão sobre a cabeça de cada animal antes que fosse sacrificado. Ele
tinha de recolher o sangue em um vaso e receber também certas partes dos
animais. Havia todo tipo de pilares, mesas e vasos ali; tudo era cortado,
distribuído e organizado. O refugo ensanguentado era jogado fora, enquanto
a gordura, o baço e o fígado eram postos à parte. Tudo era salpicado com
sal. Os intestinos dos cordeiros foram limpos e, após serem recheados,
postos de volta no corpo para parecer íntegro novamente. As pernas de
todos os animais foram amarradas em forma de cruz. Um pouco da carne
foi levado para um outro pátio e dado para as virgens do Templo, que
tinham de fazer algo com ele, talvez prepará-lo para si ou para os
sacerdotes. Tudo era feito com incrível ordem. Os sacerdotes e levitas
andavam por ali sempre de dois em dois, e as tarefas mais difíceis e
complicadas eram cumpridas com a precisão de um relógio. As peças de
carne, na verdade, não eram oferecidas até o dia seguinte. Nesse meio-
tempo, permaneciam no sal.
Havia muito júbilo na hospedaria, e um banquete. Deviam haver ali
umas cem pessoas, contando as crianças. Estavam presentes pelo menos
vinte e quatro meninas de várias idades; entre elas vi Seráfia, que, após a
morte de Jesus, passou a ser conhecida como Verônica. Ela era alta e devia
ter dez ou doze anos de idade. Mas estavam (as meninas) fazendo coroas e
grinaldas para Maria e suas acompanhantes; decoravam círios ou tochas. Os
castiçais, que não tinham pedestais, possuíam formato de cetro (não consigo
me lembrar o que alimentava a chama no topo, se era óleo, cera ou outra
coisa). Durante as festividades havia muitos sacerdotes e Levitas entrando e
saindo da hospedaria, e estes também tomaram parte no banquete. Quando
expressaram surpresa sobre a grandeza do sacrifício de Joaquim, ele
explicou-lhes que desejava demonstrar sua gratidão com todas as suas
forças. Ele não podia se esquecer como, por misericórdia de Deus, sua
vergonha ante a rejeição das suas ofertas para o sacrifício no Templo foi
seguida pelo atendimento de suas súplicas. Hoje, também, vi Maria Menina
indo para uma caminhada, perto da hospedaria, com as outras meninas.
ENTRADA DE MARIA PARA O TEMPLO: MARIA
ESTAVA COM TRÊS ANOS E TRÊS MESES. ROTINA
E VIDA DE MARIA NO TEMPLO.

Naquele dia, Joaquim foi primeiro para o Templo com Zacarias e


outros homens. Depois Maria foi levada para lá por sua mãe, Anna, em uma
procissão de festa. Primeiro Anna e sua filha mais velha, Mari Heli, com a
filhinha Maria Cleofas, depois, a Santa Menina Maria em seu vestido e
manto azul-céu, com coroas em volta dos braços e do pescoço. Em sua mão
ela levava uma vela ou tocha entrelaçada com flores. Velas decoradas como
essa também eram carregadas por três virgens, que andavam de cada lado
dela; estas trajavam vestidos brancos bordados com ouro. Também usavam
mantos azul-claros, estavam envoltas por grinaldas e flores, e vestiam
pequenas grinaldas em torno do pescoço e dos braços. Depois vieram as
outras virgens e menininhas, todas em vestidos de festa diferentes uns dos
outros. Todas as meninas vestiam pequenos mantos. As outras mulheres
vieram no final da procissão. Elas não puderam ir diretamente da
hospedaria para o Templo, porque tiveram de fazer um desvio por várias
ruas. A bela procissão agradava todos que a viam, e em várias casas uma
homenagem era prestada à medida que esta passava. Havia algo
incrivelmente tocante na visível santidade da criança. Conforme a procissão
se aproximava, vi muitos servos do Templo fazendo um grande esforço para
abrir uma porta imensamente grande e pesada, reluzente como ouro e
ornamentada com uma multidão de cabeças esculpidas, cachos de uvas e
feixes de milho. Essa era a Porta de Ouro. A procissão passou por essa
porta depois de subir uma escada de quinze degraus; não me lembro se o
fizeram em apenas um lance. Maria não tomou as mãos que foram
estendidas para ela. Para a admiração de todos, ela subiu vigorosa e
alegremente os degraus sem dar um passo em falso. Ela foi recebida na
entrada por Zacarias, Joaquim e vários sacerdotes, e, em seguida, levada do
Portal (que era um longo arco) para a direita, dentro de uns salões; em um
deles uma refeição estava sendo preparada. Então a procissão se dispersou.
Várias das mulheres e crianças foram para a área de oração reservada às
mulheres no Templo, enquanto Joaquim e Zacarias prosseguiram com o
sacrifício. Em um dos salões, os sacerdotes examinaram novamente Maria
Menina, fazendo-lhe perguntas. Eles estavam impressionados com a
sabedoria de suas respostas e, por isso, deixaram-na para que fosse
paramentada com o terceiro e mais belo conjunto de vestes cerimoniais em
azul-violeta, com manto, véu e coroa já descritos na cerimônia na casa de
Anna.
Nesse meio-tempo Joaquim foi com os sacerdotes para o sacrifício. Ele
recebeu fogo em um determinado lugar e depois ficou entre dois sacerdotes
no altar.
Podia aproximar-se do altar por três lados apenas. A carne preparada
para o sacrifício não era posta toda junta, pois era dividida em porções
separadas, postas em torno do altar. Prateleiras podiam ser puxadas para
fora dos três lados do altar; as oferendas eram colocadas sobre essas tábuas
e empurradas para o centro, pois o altar era muito largo para o sacerdote
celebrante alcançá-las com seu braço. Nos quatro cantos do altar ficavam
pequenas colunas ocas de metal, coroadas com chaminés ou algo similar —
funis largos feitos de cobre, terminando em tubos curvados para fora como
chifres, que retiravam a fumaça acima das cabeças dos sacerdotes
celebrantes. Quando o sacrifício de Joaquim começou a queimar, Anna foi
com Maria Menina, em suas vestes cerimoniais, e com suas acompanhantes
para o pátio feminino externo, que era o lugar no Templo reservado às
mulheres. Esse pátio era separado do pátio do altar do sacrifício por uma
parede encimada por uma grade. Havia, entretanto, uma porta no centro da
parede divisória. O pátio feminino inclinava-se para cima, a partir dessa
parede, de modo que só quem estava no fundo podia ver o altar do
sacrifício. Maria e as outras meninas ficaram na frente de Anna, e as outras
mulheres da família permaneceram próximas à porta. Num lugar separado
havia um número de meninos do Templo vestidos de branco, que tocavam
flautas e harpas. Após o sacrifício, foi preparado um altar móvel decorado,
na porta de passagem do pátio do altar para o pátio feminino.
Zacarias e Joaquim saíram do pátio de sacrifício e foram com um
sacerdote para esse altar decorado, na frente do qual ficou um outro
sacerdote e dois Levitas com rolos e material de escrever. Anna conduziu
Maria até eles; as virgens acompanhantes de Maria ficaram um pouco atrás.
Maria ajoelhou-se nos degraus do altar móvel, enquanto Joaquim e Anna
impuseram suas mãos sobre sua cabeça. O sacerdote cortou um pouco de
seus cabelos e queimou-os num braseiro. Seus pais, oferecendo sua criança,
também disseram algumas palavras, que foram anotadas por dois Levitas.
Enquanto isso, as virgens cantaram o Salmo 44 (Eructavit cor meum
verbum bonum) e os sacerdotes, o Salmo 49 (Deus, deorum Dominus.
locutus est), acompanhados por dois meninos e seus instrumentos.
Então vi Maria sendo levada pela mão por dois sacerdotes a vários
degraus acima, para um lugar elevado na parede divisória dos pátios do
altar e da área reservada às mulheres. Eles puseram a criança em uma
espécie de nicho no meio dessa parede, de modo que ela podia ver dentro
do Templo, onde havia muitos homens de pé em fileiras; eles pareciam
também ser dedicados ao Templo. Dois sacerdotes permaneceram atrás dela
e ainda havia outros nos degraus abaixo; cantavam e liam de seus rolos em
alta voz. No outro lado da parede divisória, havia um sumo sacerdote idoso
de pé no altar de incenso, tão acima que se podia ver metade de sua figura.
Eu o vi oferecer incenso e a fumaça envolver Maria Menina.
Durante essas cerimônias tive uma visão simbólica em torno da
Santíssima Virgem. Vi uma luz gloriosa dentro do Coração de Maria e
entendi que essa glória referia-se à Promissão, a mais sagraria bênção de
Deus. Vi essa glória aparecer como que cercada pela Arca de Noé, de modo
que a cabeça da Virgem Maria se projetava acima dela. Vi, ainda, a forma
da Arca em torno da glória mudar para a forma da Arca da Aliança, que,
por sua vez, mudou para a forma do Templo. Depois vi essas formas
desaparecerem e surgir, da glória, diante do peito de Nossa Senhora, uma
forma como a do Cálice da Última Ceia. Acima deste, diante de sua boca,
havia um pão marcado com uma cruz. De cada lado dela fulgiam raios de
luz e nas suas extremidades apareciam figuras de muitos mistérios e
símbolos relacionados à Santíssima Virgem, como, por exemplo, todos os
títulos da Ladainha de Nossa Senhora. Atrás de seus ombros, dois ramos de
oliva e cipreste ou de cedro e cipreste, estendidos cm cruz acima de uma
longa palma, apareceram exatamente atrás dela, com um pequeno arbusto
frondoso. Nos espaços entre esses arranjos de verdes ramos vi todos os
instrumentos da Paixão de Nosso Senhor. O Espírito Santo pairava acima
dessa imagem em forma humana, em vez de pomba, alado com raios de luz;
acima vi os céus abertos e revelados, flutuando acima de Nossa Senhora —
era a Jerusalém Celeste, a Cidade de Deus, com todos os seus lugares e
jardins, bem como as mansões dos futuros santos. Tudo estava repleto de
anjos e toda a glória que agora envolvia a Santíssima Virgem, estava cheia
com as faces dos anjos.
Com essa visão diante de mim, todo o esplendor e magnificência do
Templo, assim como a parede lindamente decorada atrás da Virgem Maria,
pareciam totalmente ofuscados e sombrios; até mesmo o próprio Templo
parecia não estar mais ali, tão repleto tudo estava pela presença de Maria e
sua glória. À medida que toda a significância da Santíssima Virgem se
desdobrava diante de meus olhos nessas visões, eu a vi não mais como
Maria Menina, mas como a Santíssima Virgem, uma mulher alta que
flutuava acima de mim. Vi os sacerdotes e a fumaça das oferendas e tudo o
mais nesta imagem: era como se os sacerdotes atrás dela estivessem
proferindo profecias e admoestando as pessoas a agradecer a Deus e a rezar,
pois a criança deveria ser exaltada. Todos os que estavam presentes no
Templo estavam quietos e repletos de solene admiração, embora não vissem
as imagens que eu via.
Tudo começou a desaparecer aos poucos, exatamente como tinha visto
antes. Por último não via nada, a não ser a glória dentro do Coração de
Maria, com a Bênção da Promissão brilhando em seu interior. Em seguida
isso desapareceu também e eu vi a santa e delicada criança em suas vestes
cerimoniais permanecer sozinha mais uma vez entre os sacerdotes. Os
sacerdotes tiraram as grinaldas dos braços da criança e a tocha de sua mão e
as deram para seus acompanhantes. Eles puseram um véu marrom ou capuz
em sua cabeça e a conduziram pelos degraus abaixo, através de uma porta,
para uma outra sala, onde ela encontrou seis outras virgens do Templo
(mais velhas), que espalhavam flores diante dela. Atrás dela estavam suas
professoras: Noemi, a irmã da mãe de Lázaro; a profetiza Anna; e ainda
uma terceira mulher. Os sacerdotes confiaram Maria a elas e retiraram-se.
Seus pais e parentes próximos se aproximaram; o canto havia cessado e
Maria disse adeus.
A emoção de Joaquim era particularmente profunda; ele ergueu Maria,
pressionou-a junto ao seu coração e disse-lhe, entre lágrimas: “Lembre-se
de minha alma diante de Deus!” Logo a seguir Maria com suas professoras
e várias virgens foram para a habitação das mulheres no lado norte do
Templo. Elas viviam em quartos construídos em meio às paredes do
Templo. Passagens e escadas sinuosas levavam a pequenas celas de oração,
próximas ao Santo Lugar e ao Santo dos Santos.
Os pais de Maria e seus parentes voltaram para o salão pela Porta de
Ouro, onde primeiramente haviam esperado por ela. Lá participaram de
uma refeição com os sacerdotes. As mulheres comeram em um salão
separado.
(Os pais de Maria estavam em abstinência; era apenas para a
mortificação e doação de esmolas que eles viviam de modo tão pobre.
Esqueci-me por quanto tempo Anna não comia nada, a não ser comida fria;
as suas servas, contudo, eram alimentadas com o necessário). Vi muitas
pessoas rezando no Templo e muitas tinham seguido a procissão através dos
portões. Alguns dos presentes devem ter tido uma ideia do destino de Nossa
Senhora, pois me lembro de Anna falando com grande alegria a várias
mulheres, dizendo-lhes: “Agora a Arca da Aliança, o Vaso da Promissão
está entrando para o Templo”. Os pais de Maria e outros parentes chegaram
a Bet-Horon no mesmo dia em que voltaram para casa.
Vi ali um festival entre as virgens do Templo. Maria devia perguntar às
professoras e a cada uma das jovens meninas se iriam aceitar que ela
vivesse entre elas. Esse era o costume. Depois, elas tomaram uma refeição e
dançaram entre elas. Elas ficaram em frente umas das outras aos pares e
dançaram de várias formas e com passos distintos. Não havia pulos, era
como o minueto. Algumas vezes havia um movimento de vaivém,
movimentos circulares, como os movimentos dos judeus quando rezam.
Algumas das jovens acompanhavam a dança com flautas, triângulos e sinos.
Havia um outro instrumento que soava particularmente estranho e
maravilhoso. Era tocado dedilhando-se as cordas esticadas nos lados
inclinados de uma espécie de caixa. No meio dessa caixa havia foles que,
quando pressionados para baixo e para cima, enviavam o ar através de
vários tubos, alguns retos e outros curvos. Assim faziam um
acompanhamento para as cordas. O instrumento era firmado nos joelhos de
quem tocava.
Ao entardecer vi a professora Noemi levar a Santíssima Virgem para
seu pequeno quarto, que era voltado para dentro do Templo. Não era
totalmente quadrado e as paredes eram marchetadas com formas
triangulares e em diferentes cores. Havia um banco e uma mesa, e, nos
cantos, prateleiras para se guardar coisas. Diante desse quarto havia um
dormitório, um quarto para roupas e o quarto de Noemi. Maria falou com
ela novamente sobre levantar-se frequentemente durante a noite para rezar,
mas Noemi ainda não lhe havia dado permissão.
As mulheres do Templo vestiam túnicas brancas longas, completas,
com faixas na cintura e mangas bem largas, que eram enroladas durante o
trabalho. Elas estavam veladas.
Não me recordo de ter visto em tempo algum Herodes ter reconstruído
inteiramente o Templo; apenas vi várias reformas serem feitas durante seu
reinado. Agora, quando Maria veio para o Templo, onze anos antes do
nascimento de Cristo, nada estava sendo construído, mas (como sempre)
nas partes externas deste, o trabalho nunca parava.
[Em 21 de novembro, Catharina Emmerich disse;] Hoje tive uma
visão da habitação de Maria no Templo. No lado norte do saguão do
Templo, voltados para o Santo Lugar, havia vários quartos que eram
ligados com a habitação das mulheres. O quarto de Maria era um dos mais
afastados do Santo dos Santos. A partir do corredor, podia-se passar
através de uma cortina até uma espécie de antecâmara, que era dividida do
próprio quarto por uma divisória semicircular ou angular. Nos cantos à
direita e à esquerda havia prateleiras para se colocar roupas e outras coisas.
Oposto à porta, nessa divisão, alguns degraus levavam a uma abertura no
alto da parede, que dava para baixo no Templo. Essa abertura era cortinada
com gaze e tinha, em frente, um tapete pendurado. Contra a parede do lado
esquerdo da sala havia um tapete enrolado que, quando esticado, fazia-se
de cama para Maria dormir. Um candeeiro de braço era fixado num nicho
na parede, e hoje vi a criança num banco, junto a essa luz, rezando de um
rolo de pergaminho com pontas vermelhas. Era uma visão muito tocante.
Ela estava usando um vestidinho azul e branco listrado com flores
amarelas bordadas. Havia uma mesa redonda e baixa no quarto. Vi Anna
entrar e colocar na mesa um prato com frutas do tamanho de feijões ao
lado de um pequeno jarro. Maria era precocemente habilidosa: eu a vi
trabalhando em pequenas roupas brancas para o serviço do Templo.
Vi a Santíssima Virgem no Templo sempre progredindo no
aprendizado, na oração e no trabalho. Algumas vezes eu a vi na habitação
das mulheres com as outras meninas, em outras vezes estava sozinha em
seu pequeno quarto. Ela trabalhou, teceu e tricotou faixas estreitas de pano
em longas varas para o serviço do Templo. Ela lavou as roupas e limpou os
potes e panelas. Frequentemente a via em oração e meditação. Nunca a vi
castigando ou mortificando seu corpo, ela não necessitava disso. Como
todas as pessoas muito santas, ela se alimentava somente para sobreviver e
não comia outra comida, exceto aquela que tinha feito voto de comer. Além
das orações prescritas do Templo, a devoção de Maria consistia de um
desejo incessante pela redenção, um estado perpétuo de oração interior,
executada secreta e silenciosamente. Na tranquilidade da noite, ela
levantava-se da cama e orava a Deus. Muitas vezes a vi chorando em suas
orações, rodeada de um intenso brilho. Quando crescida, eu sempre a via
usando um vestido azul brilhante. Ela usava um véu enquanto rezava,
quando falava com os sacerdotes ou quando descia a uma sala no Templo
para receber trabalho ou para lidar com seus afazeres. Havia salas como
essa em três lados do Templo; elas sempre me lembram sacristias. Todo tipo
de coisa era mantido lá e era responsabilidade das servas do Templo tomar
conta de tudo, inclusive os reparos e a reposição.
Vi a Santíssima Virgem vivendo no Templo num êxtase perpétuo de
oração. Sua alma não parecia estar na Terra e ela muitas vezes recebia
consolação e conforto do Céu. Tinha um anseio interminável pelo
cumprimento da Promissão e, em sua humildade, apenas ousava desejar ser
a mais humilde serva da Mãe do Redentor. A professora e tutora de Maria
no Templo tinha cinquenta anos. Chamava-se Noemi e era a irmã da mãe de
Lázaro. Ela e outras mulheres do Templo pertenciam ao povo Essênio.
Maria aprendeu com ela como tricotar e a ajudava, quando lavava o sangue
dos sacrifícios dos vasos e instrumentos ou quando cortava e preparava
certas partes da carne para as mulheres e sacerdotes do Templo; partes estas
que formavam uma parcela de sua alimentação. Mais tarde, Maria foi ainda
mais ativa quanto às tarefas. Quando Zacarias realizou seu serviço no
Templo, ele costumava visitá-la. Simeão também a conhecia.
A importância da Santíssima Virgem não podia ser totalmente
desconhecida pelos sacerdotes. Inteiramente, todo o seu ser, a abundância
de graça que nela havia e sua sabedoria eram tão notáveis em sua infância, e
mais tarde no Templo, que não podiam ser ocultadas, apesar de sua grande
humildade. Vi velhos sumos sacerdotes preenchendo muitos rolos com
relatos sobre ela.
A HORA DE MARIA DEIXAR O TEMPLO. A
ESCOLHA DO NOIVO, O CASAMENTO E A VOLTA
PARA NAZARÉ. SUA MÃE, ANNA, PREPARA UMA
CASA PARA O NOVO CASAL.

A Santíssima Virgem vivia com outras virgens no Templo, sob os


cuidados de piedosas matronas. As virgens bordavam e teciam outras
formas de decoração de tapetes e vestimentas, além de limparem roupas e
vasos utilizados no Templo. Viviam em pequenas celas, das quais podiam
olhar para dentro do Templo, enquanto rezavam e meditavam. Quando essas
virgens cresciam, eram dadas em casamento: seus pais, ao dedicarem-nas ao
Templo, ofereciam-nas totalmente a Deus; os israelitas mais piedosos e
profundos tinham já há bastante tempo um pressentimento secreto de que o
casamento das virgens poderia contribuir um dia para a vinda do prometido
Messias.
Quando a Santíssima Virgem atingiu a idade de quatorze anos e estava
para ser dispensada do Templo junto a sete outras virgens prontas para se
casarem, vi que sua mãe Anna veio visitá-la. Joaquim já não estava vivo e
Anna tinha, por ordem divina, casado-se novamente. Quando Nossa
Senhora foi instruída a deixar o Templo para se casar, eu a vi explicando
para os sacerdotes com grande sofrimento no coração que era seu desejo
nunca deixar o Templo, porque ela era somente noiva de Deus e não
desejava se casar. Foi-lhe dito, entretanto, que assim deveria ser.
Em seguida vi a Santíssima Virgem suplicando a Deus com grande
fervor em sua cela de oração. Lembro-me também de ter visto Maria, que
estava com muita sede enquanto rezava, descer com um pequeno jarro para
pegar água de uma fonte ou cisterna. Lá ela ouviu uma voz (somente a voz,
sem qualquer aparição visível), da qual recebeu uma revelação que a
confortou e que lhe deu força para aceitar casar-se.
Vi também um sacerdote muito idoso, que não podia mais andar (era,
sem dúvida, o sumo sacerdote), ser carregado em uma cadeira por outras
pessoas diante do Santo dos Santos. Enquanto a oferta de incenso estava
sendo queimada, ele leu orações de um rolo de pergaminho aberto em um
suporte em frente a ele. Vi que estava em êxtase espiritual e que tinha tido
uma visão, quando o seu indicador pairou sobre a passagem de Isaías no
rolo; “Um renovo sairá do tronco de Jessé e um rebento brotará de suas
raízes.” [Is 11,1.]
Quando o velho sacerdote voltou a si novamente, leu essa passagem e
compreendeu algo dela.
Então vi que mensageiros foram enviados pela região e todos os
homens solteiros da linhagem de Davi foram chamados ao Templo. Quando
estavam todos reunidos em grande número em trajes de festa no Templo, a
Santíssima Virgem foi apresentada a eles. Dentre eles havia um jovem
piedoso da região de Belém. Ele havia sempre rezado com muito fervor
pelo cumprimento da Promissão e eu discerni em seu coração um ardente
desejo de tornar-se esposo de Maria. Ela, entretanto, retirou-se novamente
para a sua cela, chorando, incapaz de suportar a ideia de que não poderia
permanecer virgem.
Agora vi o sumo sacerdote, de acordo com uma inspiração interior que
recebera, entregar um ramo a cada um dos candidatos presentes e ordenar
que cada um escrevesse seu nome em seu respectivo ramo e o segurasse nas
mãos durante a oração e o sacrifício.
Após o terem feito, os ramos foram recolhidos e postos sobre o altar
diante do Santo dos Santos. Foi-lhes dito que aquele cujo ramo florescesse
seria destinado pelo Senhor a se casar com a Virgem Maria de Nazaré.
Enquanto os ramos permaneciam diante do Santo dos Santos, o sacrifício e
a oração continuaram. Nesse meio-tempo, vi o jovem, cujo nome talvez eu
me recorde, num salão do Templo, chorando apaixonadamente com os
braços estendidos para Deus. Eu o vi romper-se em lágrimas quando, após o
intervalo indicado, os ramos foram devolvidos aos candidatos com o
anúncio de que nenhum havia florescido, e por isso nenhum deles era o
noivo destinado por Deus para aquela virgem. Os homens foram mandados
para as suas casas, mas o jovem dirigiu-se para o Monte Carmelo, junto aos
filhos dos profetas que lá haviam vivido como eremitas desde o tempo de
Elias. Desde aquele dia ele dedicou seu tempo à oração contínua pelo
cumprimento da Promissão.
Então eu vi os sacerdotes no Templo fazendo uma nova pesquisa na
lista de antepassados para ver se havia qualquer descendente de Davi que
não tivesse sido chamado. Como perceberam que, de seis irmãos
registrados em Belém, um estava desaparecido e incógnito, eles procuraram
sua moradia e encontraram José não muito longe de Samaria, em um lugar
ao lado de um riacho, junto à água, onde vivia só e trabalhava para um
outro mestre. Com a ordem de um Sumo Sacerdote, José foi com sua
melhor roupa para o Templo em Jerusalém. Ele também teve de segurar um
ramo em sua mão durante a oração e o sacrifício. Quando estava para
depositar o ramo sobre o altar diante do Santo dos Santos, uma flor branca
como um lírio floresceu no topo e eu vi sobre ele uma aparição de luz
semelhante ao Espírito Santo. José foi agora reconhecido como sendo o
escolhido por Deus para ser noivo da Santíssima Virgem. Foi, em seguida,
apresentado a ela pelos sacerdotes, na presença da mãe dela. Maria,
submissa à Vontade de Deus, aceitou-o humildemente como seu noivo. Ela
sabia que todas as coisas são possíveis para Deus, que tinha aceitado seu
voto de pertencer de corpo e alma a Ele somente.
José, cujo pai era chamado Jacó, era o terceiro de seis irmãos. Seus
pais viveram em uma casa grande nos arredores de Belém. Era a antiga casa
de Davi, cujo Pai Isai ou Jessé era proprietário. No tempo de José, pouco
havia sobrado da velha construção, exceto as paredes principais. O local
dispunha de água em abundância. Conheço o caminho daquela região
melhor do que o de nossa própria vila em Flamske.
Na frente da casa havia um pátio externo (como nas casas da Roma
antiga), rodeado de uma colunata parecida com um claustro. Vi esculturas
nessa colunata em forma de cabeças de homens idosos. Em um lado do
pátio, havia uma fonte sob um dossel de pedra. A água fluía da cabeça de
animais na pedra. Não havia janelas à vista no andar inferior da casa, mas
havia algumas aberturas circulares elevadas. Vi uma porta. Uma larga
galeria rodeava a parte superior da casa; nela havia pequenas torres em cada
um de seus quatro cantos, iguais a pequenos e grossos pilares, que
terminavam em grandes bolas ou domos com pequenas bandeiras presas a
eles. Escadas davam acesso á parte superior desses domos, que possuíam
aberturas pelas quais se podia ver tudo em redor da casa sem que se fosse
visto pelo lado de fora. Havia pequenas torres como essa no palácio de
Davi, em Jerusalém, e foi do domo de uma dessas torres que ele viu
Betsabéia em seu banho. A galeria percorria todo o andar superior com teto
plano, no qual estava uma outra construção com uma pequena torre. José e
seus irmãos viviam no andar superior e seu professor, um judeu idoso, vivia
no último andar de cima. Todos eles dormiam em um círculo, em um quarto
no meio do andar, rodeado por uma galeria. Dormiam em tapetes, enrolados
até a parede durante o dia e separados por biombos removíveis. Várias
vezes os vi brincando em seus quartos. Eles tinham brinquedos, no formato
de animais, parecidos com pequenos cachorros. [Catharina Emmerich assim
chama indiscriminadamente qualquer criatura que não conhece.] Vi também
como seu professor deu-lhes toda espécie de estranhas lições, que eu
mesma não entendi totalmente. Eu o vi fazendo com galhos todo tipo de
figuras no chão; os meninos tinham de andar sobre essas figuras. Então vi
os meninos andando sobre as figuras e empurrando os galhos de lado,
colocando-os de forma diferente, rearranjando-os e fazendo várias medidas
ao mesmo tempo. Vi seus pais também. Eles não se preocupavam muito
com seus filhos; tinham pouco contato com eles e não pareciam ser nem
bons nem ruins.
José, que nessa visão tinha cerca de oito anos, possuía caráter bem
diferente de seus irmãos. Ele era bastante talentoso e era muito bom aluno.
Era também simples, quieto, piedoso e nem um pouco ambicioso. Seus
irmãos o tratavam rudemente e faziam toda sorte de brincadeiras de mau
gosto. Os meninos tinham pequenos jardins separados, na entrada dos quais
havia figuras como bebês de fraldas em pilares protegidos (talvez em
nichos?). Vi muitas vezes figuras como essas. Havia algumas na cortina
pendurada no local de oração de Santa Anna e também na da Santíssima
Virgem. Na cortina de Maria, a figura segurava algo em seus braços que me
lembrava um cálice com algum líquido transbordando. Na casa de José, as
figuras eram bebês de fraldas com rostos arredondados rodeados de raios.
Em tempos mais antigos, ainda notei muitas figuras desse tipo,
particularmente em Jerusalém. Essas apareciam também na decoração do
Templo. Eu as vi no Egito, onde algumas vezes usavam capacetes. Dentre
as figuras diante das quais Raquel chorou por seu pai Labão, havia algumas
como essas, menores, bem como outras diferentes. Vi também essas figuras
em pequenas caixas ou cestas em casas judias. Creio que talvez eles tenham
representado o bebê Moisés flutuando no rio Nilo, enquanto as faixas de sua
fralda simbolizavam o firme comprometimento da Lei. Muitas vezes
ponderei sobre o que essa figura representava para eles. Creio que elas são
como o Jesus Menino para nós.
Vi ervas, arbustos e pequenas árvores no jardim dos meninos e como
os irmãos de José frequentemente iam escondidos até seu jardim,
pisoteando ou desenraizando alguma planta. Eles causavam-lhe bastante
desgosto. Muitas vezes vi José, debaixo da colunata, no pátio externo,
ajoelhado, com o rosto virado para a parede, rezando com os braços
estendidos. Vi seus irmãos aproximarem-se furtivamente e o chutarem.
Uma vez o vi assim ajoelhado, quando um deles o atingiu nas costas. Como
José não parecia dar importância, o irmão repetiu o ataque com tal violência
que ele caiu para frente no chão duro de pedra. Por isso pensei que ele não
estivesse consciente do que estava acontecendo — era como um êxtase de
oração. Quando ele voltou a si, não perdeu a paciência ou revidou o ataque;
procurou um canto escondido, onde continuou a rezar.
Vi algumas habitações, construídas junto às paredes externas da casa,
habitadas por algumas senhoras de meia-idade. Elas circulavam com véu e,
muitas vezes, eu as vi ajudando aqueles que moravam no campo, próximos
à escola. Elas pareciam formar parte da família, pois com frequência saíam
e entravam na casa, cuidando de várias incumbências. Carregavam água
para a casa, lavavam e varriam, fechavam as grades da frente das janelas,
enrolavam as camas junto à parede e colocavam biombos trabalhados em
vime em frente a estas. Os irmãos de José algumas vezes falavam com essas
mulheres, ajudando-as no trabalho ou fazendo troças com elas também.
José não fazia isso; ele era sério e solitário. Parecia-me que havia filhas
também na casa. As salas de estar do andar inferior eram arrumadas como
as da casa de Anna, mas tudo era mais espaçoso. Os pais de José não
estavam muito satisfeitos com ele; eles o queriam usando seus talentos em
alguma profissão mundana, mas para isso José não tinha inclinação. Para
eles seu filho era muito simples e despretensioso; sua única inclinação era a
oração e o trabalho manual silencioso. Quando tinha cerca de doze anos, eu,
muitas vezes, via-o indo para o outro lado de Belém para escapar das
constantes provocações de seus irmãos. Não muito longe da futura gruta da
Natividade, havia uma pequena comunidade de piedosas mulheres
pertencentes aos Essênios, que habitavam numa série de câmaras-rochosas
escavadas na colina em que se situavae Belém. Elas cuidavam de pequenos
jardins perto de suas habitações e ensinavam as crianças de outros Essênios.
O pequeno José foi visitar essas mulheres e muitas vezes eu o via
escapando das brincadeiras de seus irmãos, que o chacoteavam dizendo
para ele ir juntar-se a elas em suas orações, que eram lidas à luz de
lamparina de um rolo pendurado na parede da caverna. Eu também o vi
visitando as cavernas, dentre as quais aquela que seria o local do
nascimento de Nosso Senhor. Ele rezou ali totalmente só. Fez toda espécie
de pequenas coisas em madeira, pois ali havia um velho carpinteiro, que
tinha sua oficina perto desses Essênios e com quem passava muito de seu
tempo. José o ajudava com seu trabalho e aos poucos foi aprendendo seu
ofício. A arte de medir, que José havia praticado em casa com o auxílio de
seus tutores, foi de grande utilidade. A hostilidade de seus irmãos, por fim,
tornou impossível sua permanência na casa dos pais. Vi que um amigo de
Belém deu-lhe roupas para que se disfarçasse. Trajando essas roupas, ele
deixou a casa, à noite, com o intuito de ganhar a vida vivendo em outro
lugar por meio da carpintaria. Ele deveria ter entre dezoito e vinte anos
nessa época. Pra começar, eu o vi trabalhando com um carpinteiro em
Lebona. Esse foi o lugar onde José primeiro aprendeu realmente seu ofício.
Seu mestre tinha sua habitação construída contra um antigo muro, que
ia da cidade ao longo da estreita saliência da colina como uma estrada que
leva acima até um castelo em ruína. Muitas pessoas pobres viviam nos
muros. Vi José fazendo longas estacas em um lugar entre muros altos, com
aberturas em cima para deixar a luz entrar. Essas estacas eram molduras
para biombos de vime. Seu mestre era um homem pobre que fazia coisas
comuns como esses biombos. José era muito piedoso, bom e simples; todos
o amavam. Eu o vi ajudando seu mestre, muito humildemente, em todas as
atividades — pegando a plaina, catando madeira e levando-a em seus
ombros. Tempos depois ele passou pelo mesmo local com a Santíssima
Virgem em uma de suas viagens. Creio que visitou seu antigo ateliê com
ela.
Seus pais pensaram inicialmente que ele havia sido levado por ladrões,
mas vi que ele foi descoberto por seus irmãos e severamente repreendido,
pois eles estavam envergonhados de seu baixo padrão de vida. Ele era,
contudo, muito humilde para desistir, embora tenha deixado aquele lugar e
trabalhado depois em Tamnat, perto de Megido, junto a um pequeno rio,
chamado Quison, que corre para o mar. (Esse lugar não está longe de Afec,
lar do Apóstolo Tomé.) José viveu aqui com um mestre abastado, e o
trabalho de carpintaria que eles produziam era de melhor qualidade.
Mais tarde eu ainda o vi trabalhando em Tiberíades para um
carpinteiro mestre. Ele deveria ter cerca de trinta e três anos naquele tempo.
Seus pais em Belém tinham falecido há algum tempo. Dois de seus irmãos
ainda viviam em Belém, os outros tinham se dispersado. A casa paterna
tinha passado para outras mãos, e toda a família tinha decaído socialmente
muito rápido. José era muito piedoso e rezava fervorosamente pela vinda do
Messias. Ele estava, nessa época, ocupado na construção de um quarto mais
reservado para rezar, ao lado de sua habitação, quando um anjo apareceu-
lhe e disse para que não o fizesse, pois como de outra feita o patriarca José
tinha, por vontade divina, sido feito supervisor de todos os celeiros do
Egito, assim ele, o segundo José, deveria ser agora encarregado de cuidar
do celeiro da salvação. José, em sua humildade, não compreendeu isso, e
entregou-se então à oração contínua, até receber o chamado para ir a
Jerusalém para tornar-se, por decreto divino, o esposo da Santíssima
Virgem. Nunca vi que ele fosse casado antes; ele era muito reservado e
evitava as mulheres.
O casamento de Maria e José, que durou sete ou oito dias, foi
celebrado no Monte Sião, em Jerusalém, em uma casa que frequentemente
era alugada para festividades do tipo. Além das professoras e colegas da
escola do Templo, estavam presentes muitos parentes de Anna e de
Joaquim; entre outros, estava a família de Gofna com as duas filhas. O
casamento era bastante cerimonioso e elaborado. Muitos cordeiros foram
abatidos e oferecidos em sacrifício. As vestes de casamento da Santíssima
Virgem eram tão extraordinariamente belas e esplêndidas que as mulheres
presentes tinham prazer em falar sobre isso, mesmo depois de velhas. Em
minha visão ouvi a conversa e vi o seguinte:
Vi Maria muito distinta em seu vestido de noiva. Primeiro vestia uma
roupa de lã branca sem mangas: seus braços estavam enrolados em faixas
do mesmo material; naquele tempo, isso tomava o lugar de mangas
fechadas. Depois ela colocou uma gola que ia do peito até sua garganta;
tinha pérolas incrustadas e um bordado branco do mesmo formato da gola
usada por Arcos, o Essênio. Sobre essas roupas ela usava um amplo manto,
aberto na frente, que caía até seus pés. Era tão grande como uma capa e
tinha mangas largas. O manto era azul na parte inferior e coberto com um
bordado de rosas tecidas em vermelho, branco e amarelo, entremeadas com
folhas verdes, parecidas com ricas e antigas casulas sacerdotais. A bainha
tinha franjas e borlas, enquanto a parte superior juntava-se à cobertura
branca do pescoço.
Após esse manto ter sido arrumado para cair em longas dobras retas,
uma espécie de escapulário foi posto por cima, como o que alguns
religiosos (por exemplo, os carmelitas) usam. Era feito de seda branca com
flores douradas: com quase meio metro de largura. Era, ainda, trabalhado
com pérolas e pedras preciosas no peito. Estava pendurado com uma frente
única cobrindo toda a abertura frontal do manto. A parte inferior era
ornamentada com franjas e contas. Uma parte similar à frontal cobria a
parte de trás das vestes, enquanto tiras mais curtas e estreitas de seda
penduravam-se sobre os ombros, cobrindo os braços. Os quatro pedaços,
estendidos em torno do pescoço, formavam uma cruz. As partes frontal e
traseira do escapulário estavam unidas debaixo dos braços por laços
dourados ou pequenas correntes; o volume todo do manto era assim
mantido junto na frente e a gola incrustada mantinha-o pressionado. O
material com padronagem de flor do manto era meio bufante nas aberturas
entre os laços. As amplas mangas sobre as quais pendia o escapulário eram
levemente mantidas juntas por braceletes acima e abaixo dos cotovelos e
punhos. As mangas terminavam num babado branco de seda ou lã, creio eu.
Sobre tudo isso ela aindavestia uma manta azul-celeste. A manta era usada
por mulheres judias em certas cerimônias religiosas. A manta de Maria era
fechada no peito, abaixo do pescoço, com um broche acima do qual, em
torno do pescoço, havia um babado branco que parecia com penas ou seda
frouxa. Essa manta caía atrás, sobre os ombros, vinha para frente
novamente pelos lados e terminava na parte de trás, como uma cauda. Sua
ponta era bordada com flores douradas.
O adorno de seu cabelo era indescritivelmente belo. Era partido ao
meio e dividido em pequenas tranças entremeadas com seda branca e
pérolas, que formavam uma grande rede caindo sobre os ombros até a
metade das costas. As pontas das tranças eram enroladas para dentro e toda
essa rede de cabelo era decorada na borda com franjas e pérolas cujo peso a
mantinha para baixo e no lugar. Seu cabelo estava rodeado por uma grinalda
de seda branca ou lã; três tiras do mesmo material encontravam-se sobre a
cabeça num topete, mantendo-a no lugar. Sobre essa grinalda foi posta uma
coroa da largura de um palmo, decorada com joias e cuja estrutura consistia
de três tiras de metal com uma esfera na parte superior. A coroa era
ornamentada na frente com três pérolas, uma em cima da outra, e com uma
pérola de cada lado.
Em sua mão esquerda ela carregava uma pequena grinalda de seda
com rosas brancas e vermelhas, e em sua mão direita, como um cetro, uma
bela tocha dourada no formato de um castiçal sem pé. Sua haste (mais
grossa no meio do que nas pontas) era decorada com bolas acima e abaixo
de onde se empunhava. Na parte superior havia um copo chato no qual uma
chama branca queimava.
Os sapatos tinham solas com dois dedos de espessura. Essas solas
eram feitas de um material verde, de modo que o pé parecia pousar sobre a
grama. Duas tiras brancas e douradas prendiam o peito do pé descalço,
enquanto os dedos do pé eram cobertos por uma pequena aba presa à sola.
Era um calçado comumente usado pelas mulheres bem vestidas.
Foram as virgens do Templo que fizeram o belo arranjo de cabelo de
Maria. Eu o vi sendo feito; várias delas trabalhavam ao mesmo tempo e o
faziam mais rapidamente do que se pode imaginar. Anna tinha trazido belas
roupas, mas Maria, em sua humildade, estava sem vontade de usá-las. Após
o casamento o arranjo feito em sua cabeça foi tirado; a coroa foi removida e
um véu branco, cobrindo até os cotovelos, foi posto sobre a sua cabeça;
depois, a coroa foi novamente posta sobre o véu.
A Santíssima Virgem tinha cabelo em abundância e em um tom
dourado-avermelhado. Suas sobrancelhas escuras eram altas e bem
delineadas. Tinha testa alta, grandes olhos resguardados por longos cílios e
um nariz longo e afilado, bem como uma boca delicada e nobre, e um
queixo acentuado. Era de estatura média, mais alta do que suas
companheiras do Templo, movia-se em seu rico vestido com suavidade,
grande modéstia e seriedade. Depois do casamento ela pôs um outro vestido
com tecido listrado, menos volumoso. Ela usou esse vestido listrado
também em Caná e em outras ocasiões santas. Seu vestido de noiva foi
usado novamente no Templo por várias vezes.
Pessoas muito ricas costumavam trocar seus vestidos três ou quatro
vezes nos casamentos. Maria, em suas vestes grandiosas, parecia com as
grandes damas de tempos mais à frente; por exemplo, a Imperatriz Helena,
ou mesmo Cunegundes 1210-1292 (Imperatriz da Polônia, declarada santa),
embora a maneira como as mulheres judias se cobriam em ocasiões comuns
era bem diferente, sendo mais parecida com a moda da mulher romana. (Em
relação a essas roupas, observei que muitos tecelões, que viviam perto do
Cenáculo no Monte Sião, faziam muitos tipos de belíssimos trabalhos.)
José vestia uma capa longa em azul claro, amarrada na parte inferior
do peito até a bainha, com laços e botões; suas largas mangas também eram
amarradas nos lados com laços; tinham uma bela aparência e possuíam
bolsos por dentro. Em torno do pescoço, ele vestia uma gola marrom que
mais parecia uma estola larga, ao mesmo tempo em que duas faixas
pendiam na frente de seu peito. Assemelhavam-se às dos sacerdotes de
hoje, embora fossem mais longas.
Vi todo o curso do matrimônio de José e Maria, o banquete de
casamento e todas as festividades, mas vi tantas outras coisas ao mesmo
tempo, e porque estou tão enferma e incomodada de tantas maneiras, não
ouso dizer mais a esse respeito, por receio de confundir-me em meu relato.
Vi o anel de casamento da Santíssima Virgem; não é nem de ouro,
prata ou metal: é de uma cor escura que refletia as cores do arco-íris. Não
era estreito e fino, mas bastante grosso e tinha a largura de um dedo. Era
liso e parecia ter sido coberto com pequenos triângulos regulares, nos quais
havia letras. Na parte interna a superfície era plana. O anel era incrustado
com algo.
Quando as festividades do casamento terminaram, Anna voltou para
Nazaré com seus familiares. Maria também foi para lá, acompanhada por
muitas de suas companheiras que haviam sido dispensadas do Templo no
mesmo período em que ela. Eles deixaram a cidade em uma procissão
festiva. Não sei até onde as virgens a acompanharam. Eles, uma vez mais,
passaram a primeira noite na escola dos Levitas em Bet-Horom. Maria fez
a viagem de retorno a pé.
José foi para Belém, após o casamento, a fim de acertar alguns
negócios da família. Somente mais tarde ele foi para Nazaré.
Anna, seu segundo marido e a Santíssima Virgem, com algumas outras
companheiras, voltaram para a Galiléia, para a casa de Anna, que ficava a
uma hora de distância de Nazaré. Anna preparou para a Sagrada Família
uma pequena casa em Nazaré, que também pertencia a ela. A Santíssima
Virgem ficou morando com sua mãe durante a ausência de José.
A ANUNCIAÇÃO.

Pouco depois do casamento da Santíssima Virgem, eu a vi na casa de


José, em Nazaré, onde fui levada por meu guia. José tinha saído com dois
jumentos, creio que para buscar suas ferramentas ou algo que tinha herdado.
A mim parecia que ele estava a caminho de sua casa. O segundo marido de
Anna e alguns outros homens tinham estado na casa pela manhã, mas já
haviam saído. Além da Santíssima Virgem e de duas meninas da mesma
idade (creio que companheiras do Templo), vi na casa de Anna a sua prima
enviuvada, que em princípio trabalhou para ela como governanta e que mais
tarde foi para Belém, após o nascimento de Cristo. Toda a casa tinha sido
recém-arrumada por Anna. Vi essas quatro mulheres bem atarefadas pela
casa e depois andando no jardim para descansar. Próximo ao entardecer eu
as vi entrando em casa e permanecendo em oração em uma pequena mesa
redonda. Em seguida, após comerem alguns vegetais, elas se separaram.
Anna entrava e saía da casa, ocupando-se com afazeres domésticos. As duas
meninas foram para seus quartos separados. Maria também foi para seu
quarto de dormir.
O quarto da Santíssima Virgem ficava na parte de trás da casa, perto da
lareira, não no centro, como na casa de Anna. A entrada para seu quarto era
ao lado da cozinha. Três degraus inclinados levavam a esse quarto; o piso
dessa parte da casa ficava sobre a parte elevada de uma rocha. A parede do
quarto voltada para a porta era arredondada e junto a ela (isolada por um
alto biombo de vime) ficava a cama enrolada da Santíssima Virgem. As
paredes do quarto eram cobertas, até uma certa altura, com trabalho em
vime bem menos elaborado do que os biombos móveis. Madeiras de
diferentes cores foram usadas para fazer um padrão xadrez nesses trabalhos.
O teto era formado por vigas cruzadas, e os vãos preenchidos com vime
decorado com figuras de estrelas.
Fui trazida para dentro desse quarto pelo jovem reluzente que sempre
me acompanha. Vou relatar o que vi tanto quanto esta miserável serva for
capaz.
A Santíssima Virgem foi para trás do biombo em frente à sua cama. Lá
colocou um longo manto de oração branco de lã com uma larga faixa e
cobriu sua cabeça com um véu branco amarelado. Nesse meio-tempo a
criada entrou com uma pequena lamparina, acendeu um candelabro de
vários braços pendurado no teto e saiu novamente. A Santíssima Virgem
pegou uma mesinha baixa que estava desmontada e apoiada contra a parede
e a colocou no meio do quarto. Essa mesinha foi coberta com um tecido
vermelho e azul, com franjas nas pontas. No meio do tecido havia um
bordado; não me lembro se era uma letra ou ornamento. No lado redondo
da mesa, havia um tecido branco enrolado, bem como um rolo de escrever.
Nossa Senhora colocou a mesinha no meio do quarto, entre o local de
dormir e a porta, mais à esquerda, num lugar onde o chão estava coberto
por um tapete. Pôs em frente a ela uma pequena almofada redonda e
ajoelhou-se, apoiando ambas as mãos sobre a mesa. Ela estava voltada para
a porta do quarto, à direita, e as suas costas estavam voltadas na direção de
seu local de dormir.
Maria abaixou o véu diante de seu rosto e cruzou as mãos (mas não
seus dedos) sobre o peito. Eu a vi orando fervorosamente assim por um
longo período, com seu rosto voltado para o céu. Ela estava implorando a
Deus pela redenção, pelo Rei prometido. Suplicava a Ele que sua oração
pudesse, de alguma forma, contribuir para que Ele fosse enviado. Ela ficou
ajoelhada, em êxtase, por bastante tempo; depois curvou sua cabeça para
baixo.
Em sua mão direita derramava-se uma intensa massa de luz do teto do
quarto, que descia inclinada. Eu senti-me pressionada para trás contra a
parede perto da porta. Vi nessa luz um jovem brilhante, com cabelo
escorrido e loiro, flutuando diante dela. Era o Anjo Gabriel. Ele gentilmente
afastava seus braços do corpo enquanto falava a ela. Vi as palavras fluindo
de sua boca como letras reluzentes. Eu as podia ler e ouvir. Maria virou
suavemente sua cabeça velada para a direita. Ela era muito discreta e não
olhou para cima. O anjo continuou a falar e, como que a seu comando,
Maria virou um pouco seu rosto na direção dele, levantou levemente o véu
e respondeu. O anjo novamente falou e Maria levantou todo o véu, olhou
para ele e respondeu com as santas palavras: “Eis aqui a serva do Senhor,
faça-se em mim segundo a Tua palavra”.
A Santíssima Virgem estava envolta em êxtase. O quarto estava repleto
de luz; não vi mais o brilho da lamparina acesa nem o teto do quarto. O Céu
parecia se abrir; um caminho de luz fez-me olhar acima do anjo e, na
origem desse feixe de luz, vi a figura da Santíssima Trindade na forma de
uma torrente triangular de luz. Nela eu reconheci — o que só pode ser
adorado e nunca exprimido —
Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo, e ainda somen-
te Deus Todo-Poderoso.
Tão logo a Santíssima Virgem falou as palavras, “faça-se em mim
segundo a Tua palavra”, vi o Espírito Santo com aparência de uma figura
alada, mas não na forma de uma pomba, como usualmcnte é representado.
A face Dele era como a de um homem e Sua luz era difundida como asas ao
lado da figura de cujo peito e mãos vi três outros fluxos de luz derramando-
se em direção ao lado direito da Santíssima Virgem. Esses fluxos uniam-se
ao atingi-la. O influxo de luz sobre seu lado direito fez com que a
Santíssima Virgem se tornasse completamente permeada de radiância e
transparência; tudo que era opaco parecia desaparecer, tal qual a escuridão
com a luz. Nesse momento ela estava tão penetrada de luz que nada escuro
ou oculto permaneceu nela; toda a sua forma estava brilhando, transpassada
com luz. Após essa radiância penetrante, vi o anjo desaparecer, com o
caminho de luz no qual ele havia vindo. Era como se a torrente de luz
retornasse para o Céu. Vi que essa torrente caía sobre Nossa Senhora como
botões de rosas brancas, cada uma com suas folhas verdes.
Enquanto via tudo isso no quarto de Maria, tive uma sensação pessoal.
Estava num estado de constante apreensão, como se estivesse sendo
perseguida; subitamente, vi uma serpente hedionda rastejando pela casa e
subindo os degraus até a porta onde eu estava. A horrível criatura tinha
chegado até o terceiro degrau, quando a luz se derramou sobre a Santíssima
Virgem. A serpente tinha mais de um metro de comprimento, uma cabeça
larga e chata e em seu ventre havia duas garras curtas, semelhantes às dos
morcegos, com as quais se movia para frente. Era manchada com toda
espécie de cores horrendas e fazia-me lembrar da serpente do Jardim do
Éden, terrivelmente deformada. Quando o anjo desapareceu do quarto de
Nossa Senhora, ele calcou a cabeça desse monstro em frente à porta e este
gritou tão horrivelmente que estremeci. Vi, em seguida, três espíritos
aparecerem e removerem o monstro com golpes e chutes.
Após o anjo desaparecer, vi, ainda, a Santíssima Virgem envolta no
mais profundo êxtase. Vi que ela reconheceu a Encarnação do Redentor
prometido dentro de si mesma, na forma de uma minúscula figura humana
de luz, perfeitamente formada em todas as suas partes e até mesmo com
seus dedinhos.
Em Nazaré, ao contrário de Jerusalém, as mulheres têm de permanecer
num pátio externo e não podem entrar no Templo. Apenas os sacerdotes
entram no Santo Lugar. Em Nazaré, ali, naquela igreja, uma virgem é o
próprio Templo, o Santíssimo estava dentro dela, o Sumo Sacerdote estava
dentro dela e somente ela estava com Ele. Oh, quão belo e maravilhoso é
isso, e ainda tão simples e natural! As palavras de Davi, no Salmo 45, se
cumpriram: “O Altíssimo santificou Seu tabernáculo; Deus está no seu
centro e este é inabalável”.
Era meia-noite quando vi esse mistério acontecer. Após pouco tempo,
Anna com as outras mulheres entraram no quarto de Maria. Elas foram
acordadas por uma estranha agitação na natureza. Uma nuvem de luz tinha
aparecido sobre a casa. Quando elas viram a Santíssima Virgem, ajoelhada
sob uma lâmpada, em um êxtase de oração, elas respeitosamente se
retiraram. Após algum tempo vi a Santíssima Virgem erguer-se e ir para seu
pequeno altar junto à parede. Ela desenrolou uma pintura pendurada na
parede, que representava uma figura humana velada — a mesma pintura
que tinha visto na casa de Anna quando ela se preparava para a viagem de
Nossa Senhora para o Templo. Maria acendeu a lâmpada na parede e
permaneceu orando diante do altar. Havia pergaminhos diante dela numa
estante elevada. Próximo ao amanhecer, eu a vi ir para a cama.
VISITAÇÃO À SUA PRIMA ISABEL, COM A QUAL
PERMANECE ATÉ ISABEL DAR À LUZ.

Alguns dias depois da Anunciação, São José retornou a Nazaré e fez


preparativos adicionais para poder realizar seu ofício em casa. Ele nunca
havia morado em Nazaré nem estado mais que alguns dias ali. José nada
sabia sobre a Encarnação. Maria era a Mãe do Senhor, mas também a serva
do Senhor, e manteve Seu segredo com toda humildade. Quando a
Santíssima Virgem sentiu que o Verbo se fez carne, ela teve um grande
desejo de ir para Juta, perto de Hebron, fazer uma visita à sua prima Isabel.
O anjo havia lhe contado que ela estava agora no sexto mês. Como o tempo
da Páscoa estava chegando, José desejou ir a Jerusalém e Nossa Senhora
decidiu acompanhá-lo a fim de ajudar Isabel em sua gravidez. José, então,
iniciou a viagem com a Santíssima Virgem para Juta.
Eles viajaram em direção ao sul, levando um burrico no qual Maria
montava de tempos em tempos. No lombo do animal estava amarrado um
pouco da bagagem, dentre a qual estava uma mochila listrada de José
(parecia ser tricotada). Nessa mochila estava uma veste de cor marrom de
Maria, com uma espécie de capuz. Essa veste era amarrada na frente com
tiras. Maria a vestia quando entrava no Templo ou em uma sinagoga. Na
viagem ela usava uma veste de lã marrom e sobre ela um vestido cinza
com uma faixa. Seu capuz era amarelado. Eles fizeram a longa jornada
bem rápido. Eu os vi, após terem cruzado a planície de Esdrelon em
direção ao sul, entrarem na casa de um amigo do pai de José, na cidade de
Dotam, numa colina. Ele era um homem próspero originário de Belém. Seu
pai era chamado de irmão pelo pai de José, embora não fosse realmente
irmão de sangue. Ele vinha da linhagem de Davi por meio de um homem,
creio eu, que também era rei, chamado Ela, Eldoa ou Eldad; não me
lembro claramente. Havia muito comércio nesse lugar.
Uma vez eu os vi passando a noite num casebre e numa tarde, quando
ainda estavam a 12 horas distantes da casa de Zacarias, eu os vi num
bosque, entrando em um casebre de varas trançadas, onde folhas verdes e
belas flores brancas cresciam. Era um abrigo para viajantes: à margem das
estradas, naquela região, existem muitos caramanchões abertos como esse
ou construções mais sólidas. Os viajantes podem passar a noite neles ou se
abrigarem do calor e prepararem a comida que tiverem consigo. Alguns
desses abrigos são cuidados por famílias que vivem próximas e que podem
suprir qualquer necessidade em troca de um pequeno pagamento.
(Depois da Festa da Páscoa em Jerusalém) José e Maria não foram
direto de Jerusalém para Juta, mas fizeram um desvio para o leste, a fim de
evitar as multidões. Passaram perto de uma cidadela, distante duas horas de
Emaús, pegando estradas pelas quais Jesus viajaria muitas vezes nos anos
de Seu ministério. Eles ainda tinham duas colinas para ultrapassarem. Entre
essas duas colinas, vi-os sentados, descansando, comendo pão e misturando
à água que bebiam gotas de bálsamo colhidos pelo caminho. Era muito
montanhosa essa região. Eles passaram por rochas salientes com grandes
cavernas, nas quais havia toda espécie de pedras estranhas. Os vales eram
muito férteis. Depois seu caminho os levou através de bosques, charnecas,
prados e campos. Próximo ao fim da viagem, notei particularmente uma
planta com pequenas folhas delicadas e com feixes de flores de nove sinos
fechados ou vasos de cor vermelho-claro. Havia algo nelas, mas não me
lembro o quê.
A casa de Zacarias ficava no topo de uma colina. Ao redor dela havia
outras casas. Não muito distante um rio relativamente grande fluía
montanha abaixo. Pareceu-me ser esse o momento em que Zacarias
retornava da Páscoa em Jerusalém para casa. Vi Isabel movida por grande
anseio, caminhando de sua casa por uma distância considerável rumo a
Jerusalém; vi quão apreensivo estava Zacarias ao encontrar Isabel na
condição de grávida, na estrada, tão longe de casa. Ela disse-lhe quão
agitada estava em seu coração porque não podia deixar de pressentir, um só
instante, que sua prima Maria de Nazaré estava vindo até ela. Eles voltaram
para casa juntos. Isabel, contudo, não podia abandonar sua expectativa, por
ter descoberto em sonho que alguém de sua família tinha se tornado a mãe
do prometido Messias. Ela pensou imediatamente em Maria, desejou vê-la
e, em espírito, percebeu a sua proximidade. Decidiu aprontar um pequeno
quarto à direita da entrada e por assentos lá. No dia seguinte sentou-se lá
por longo tempo, esperando e olhando atentamente para fora da casa,
procurando pela aguardada visita. Num certo momento levantou-se e foi a
uma boa distância pela estrada para encontrá-la.
Isabel era uma mulher alta e já madura, com um rosto pequeno e
delicado. Sua cabeça estava envolta por um véu. Ela só sabia da Santíssima
Virgem por ouvir dizer. Maria a viu ainda bem distante, reconheceu-a
imediatamente e correu para encontrá-la, enquanto José discretamente ficou
para trás. Maria já estava entre as casas vizinhas cujos moradores, movidos
por sua maravilhosa beleza e tomados pela dignidade sobrenatural em todo
o seu ser, retiraram-se timidamente quando ela e Isabel se encontraram. Elas
cumprimentaram-se calorosamente com as mãos estendidas. Naquele
momento vi um brilho radiante na Santíssima Virgem, como um raio de luz
passando dela para Isabel, tornando-a plena de extraordinária alegria. Elas
não ficaram próximas às pessoas das casas, mas saíram segurando uma no
braço da outra, pelo pátio externo, em direção à casa. À porta, uma vez
mais Isabel cumprimentou Maria e depois entraram. José vinha pelo pátio
conduzindo o burrico; entregou-o a um servo e foi até Zacarias, que estava
num salão aberto ao lado da casa. Cumprimentou o venerável sacerdote
com grande humildade. Zacarias o abraçou calorosamente e comunicou-se
com ele ao escrever numa tabuinha, pois estava mudo desde que o anjo
aparecera-lhe no Templo. Maria e Isabel, após passarem pela porta da casa,
foram para uma sala que parecia ser também a cozinha. Apoiadas uma na
outra pelos braços, Maria saudou Isabel muito afetuosamente enquanto
pressionavam as faces uma contra a outra. Novamente vi um fluxo brilhante
fluir de Maria para Isabel, que também foi trespassada com luz. Seu
coração estava repleto de santa alegria. Ela deu um passo para trás, ergueu a
mão e exclamou cheia de humildade, júbilo e exaltação: “Bendita és tu
entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem esta
honra de vir a mim a mãe do meu Senhor? Pois, assim que a voz de tua
saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria em
meu seio. Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas
que da parte do Senhor te foram ditas!”
Depois de dizer essas palavras, ela levou Maria para um pequeno
quarto que havia preparado, de modo que pudesse se sentar e descansar
após a longa jornada. Esse quarto estava distante a poucos passos. Maria
soltou o braço de Isabel, o qual tinha abraçado, cruzou suas mãos sobre seu
peito e proferiu o Magnificat em grande louvor.
Vi que Isabel acompanhou em oração todo o Magnificat em igual
exaltação; depois elas sentaram-se em bancos bem baixos com uma mesa
diante delas, também baixa, onde estava uma pequena taça. Oh, eu estava
tão alegremente feliz, que rezei com elas todo o tempo. Então me sentei
perto: oh, eu estava tão feliz! [Catharina Emmerich narrou isso pela manhã,
como se tivesse acontecido no dia anterior. À tarde ela disse em seu sono:]
José e Zacarias estão juntos agora, falando da proximidade do Messias em
acordo com o cumprimento das profecias. Zacarias é um velho homem, alto
e belo, vestido como sacerdote; ele responde sempre por sinais ou escreve
numa tabuinha. Eles estão sentados num salão aberto ao lado da casa,
olhando para o jardim. Maria e Isabel estão sentadas no jardim em um
tapete disposto debaixo de uma frondosa árvore; atrás dela está uma fonte
onde a água flui quando se puxa uma torneira. Vejo grama e flores ao redor
e árvores com pequenas ameixas amarelas. Estão ambas as duas comendo
pequenas frutas e pãezinhos tirados da sacola de José (que tocante
simplicidade e frugalidade!). Havia duas servas e dois servos na casa, que
se moviam atarefados para todo canto. Eles estavam preparando uma mesa
para a refeição debaixo de uma árvore. Zacarias e José aproximaram-se
para comer um pouco. José desejava voltar a Nazaré imediatamente, mas eu
acho que ele vai ali ficar por uma semana. Ele nada sabe sobre a gravidez
de Nossa Senhora. Maria e Isabel estavam silenciosas a esse respeito; no
íntimo das duas primas, havia um entendimento secreto. Várias vezes ao
dia, e especialmente antes das refeições, quando eles estavam todos juntos,
as duas santas mulheres rezavam uma espécie de ladainha.
[Em 3 de julho, ela relatou o seguinte:] Ontem à noite eles estavam
todos juntos. Sentaram-se debaixo de uma árvore no jardim sob a luz de
uma lamparina até meia-noite. Então vi José e Zacarias sozinhos no local de
oração. Vi Maria e Isabel em seu pequeno quarto, uma de frente para a
outra, como que envoltas em êxtase. Disseram o Magnificat juntas, em
oração. Além das vestes já descritas, a Santíssima Virgem usava um véu
preto transparente, que ela abaixava quando falava com os homens.
Naquele dia Zacarias levou São José a um outro jardim a alguma distância
da casa. Zacarias é muito disciplinado e meticuloso em tudo o que faz. Esse
jardim é rico em belas árvores de frutos abundantes e é muito bem cuidado.
Uma viela sombreada leva até o meio dele. No fim do jardim, há escondida
uma pequena casa de verão com uma porta lateral. No topo dessa casinha,
estão algumas aberturas fechadas por venezianas deslizantes. Nessas janelas
existem cochos de vime forrados com musgos e outras flores delicadas.
Nessa tarde vi Maria e Isabel trabalhando juntas na casa. A Santíssima
Virgem tomou parte em todos os trabalhos domésticos. Fez preparativos
para a criança esperada. Vi que elas tricotaram uma grande colcha para o
parto de Isabel. As mulheres judias usavam colchas como essa quando
entravam em trabalho de parto; um revestimento interno era preso ao meio,
de modo que a mãe podia ser envolvida junto à criança, como se estivesse
em um pequeno barco ou num grande sapato, embrulhada como uma
criança em cueiros. Podia depois se apoiar em travesseiros e sentar-se na
vertical ou se deitar, caso preferisse. As pontas da colcha eram costuradas
com flores e textos. Maria e Isabel prepararam também muitas outras
coisas, como presentes para os pobres, para quando a criança nascesse. (Vi
Anna muitas vezes enviar suas servas para cuidar de tudo na casa, em
Nazaré, durante a ausência da Sagrada Família. Uma vez ela esteve lá
pessoalmente.)
[Em 4 de julho, ela disse:] Zacarias tinha saído com José para
caminhar nos campos. Sua casa ficava numa montanha e era a melhor casa
da vizinhança. Outras construções ficam espalhadas ao redor. Maria está
bem cansada e encontra-se sozinha com Isabel na casa.
[Em 5 de julho, ela contou:] Ontem à noite vi Zacarias e José no
jardim, que fica distante da casa, ora dormindo ora rezando. Ao amanhecer
eles retornaram para casa, onde vi Isabel e a Santíssima Virgem. Toda
manhã e ao entardecer elas reuniam-se em oração e recitavam o
Magnificat, oração que Maria tinha recebido do Espírito Santo durante a
saudação de Isabel. Com a saudação do Anjo, a Santíssima Virgem foi
consagrada como sendo a Igreja. Com as palavras: “Eis aqui a serva do
Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra”, o Verbo entrou em Maria,
saudado pela Igreja, por meio de sua serva. Deus estava em Seu Templo;
Maria era agora o Templo e a Arca da Nova Aliança. A saudação de Isabel
e o movimento de João abaixo do coração de sua mãe foi o primeiro ato de
adoração da comunidade na presença do Santíssimo.
Na noite de ontem, sexta, 6 de julho, vi Isabel e a Santíssima Virgem
indo para o distante jardim de Zacarias. Elas carregavam frutas e pãezinhos
em uma pequena cesta para poderem passar a noite lá. Mais tarde, quando
José e Zacarias foram para lá, vi a Santíssima Virgem indo em direção a
eles. Zacarias tinha consigo a tabuinha de escrever, mas estava muito escuro
para isso; vi Maria, por inspiração interior do Espírito Santo, dizer-lhe que
ele falaria naquela noite. Depois vi que Zacarias pôs de lado sua tabuinha e
que foi capaz de falar e rezar com José por toda a noite.
Vi as quatro santas figuras passarem a noite no jardim. Eles sentaram-
se e comeram; também os vi andando dois a dois, conversando e orando.
Eles o faziam em turnos para descansarem na casa de verão. Entendi que,
quando terminado o Sabá , José estava para voltar para Nazaré e que
Zacarias iria acompanhá-lo até parte do caminho. O céu estava estrelado, e
o luar, intenso. Ao redor dessas santas pessoas havia uma indescritível paz e
beleza.
[Em 8 de julho (um sábado), ela disse:] Quando o Sabá começou
ontem, no entardecer de sexta, vi uma lamparina sendo acesa e o Sabá
sendo celebrado numa sala, na casa de Zacarias, que eu não tinha visto
antes. Zacarias, José e seis outros homens, provavelmente da vizinhança,
estavam rezando debaixo da lamparina. Estavam de pé, em volta de uma
cômoda, com rolos em cima. Eles estavam usando um vestuário próprio
sobre suas cabeças; não faziam tantos movimentos como os judeus de hoje,
embora ocasionalmente curvassem suas cabeças e erguessem os braços.
Maria, Isabel e outras poucas mulheres permaneceram afastadas, atrás
de uma grade em um caramanchão, do qual podiam ver o local de oração.
Todas as suas cabeças estavam cobertas com mantos de oração. Após a
refeição do Sabá, vi a Santíssima Virgem em seu pequeno quarto com
Isabel, de pé, recitando o Magnificat em oração. Suas mãos estavam
cruzadas sobre o peito, e seu véu preto abaixado sobre sua face; elas
ficaram uma de frente para a outra contra a parede, rezando em coro.
No domingo, ao anoitecer, quando o Sabá terminou, eles estavam
novamente juntos debaixo da árvore no jardim ao lado da casa, comendo
umas folhas verdes embebidas num molho. Sorviam pequenos chumaços
verdes, também embebidos num molho. Havia na mesa algumas tigelas
com pequenas frutas e outras tigelas nas quais comiam algo com colheres
marrons. Alguns pãezinhos também foram trazidos à mesa.
Depois disso José, acompanhado por Zacarias, iniciou sua viagem para
casa. Era uma noite enluarada, tranquila, cheia de estrelas. Eles rezaram de
antemão, individualmente. José tinha de novo consigo o cajado encurvado
na ponta e a sua trouxa, na qual havia pãezinhos e um pequeno jarro.
Zacarias tinha um longo cajado com uma bola na ponta. Ambos usavam
mantos de viagem sobre suas cabeças. Antes de saírem, eles abraçaram
Maria e Isabel alternadamente. Não os vi beijando um ao outro. Partiram
alegres e silenciosamente, e as duas mulheres os acompanharam por um
pequeno trecho. Maria e Isabel retornaram para casa, para o quarto de
Maria, onde havia uma lâmpada acesa sobre um braço saliente da parede.
Era sempre assim quando rezavam e quando iam dormir. As duas mulheres
permaneceram novamente uma de frente para a outra, recitando o
Magnificat em oração.
Maria ficou por três meses com Isabel, até o nascimento de João, mas
não esteve presente na ocasião da circuncisão.
MARIA RETORNA DA CASA DE ISABEL. JOSÉ
PERCEBE SUA GRAVIDEZ. UM ANJO VEM AO
ENCONTRO DE JOSÉ.

A Santíssima Virgem retornou a Nazaré após o nascimento de João e


antes da circuncisão. José veio ao seu encontro na metade do caminho.
Quando José viajou de volta com a Santíssima Virgem, durante a segunda
parte de sua jornada de Juta para Nazaré, ele notou, por sua aparência, que
ela estava grávida, e foi tomado de tristeza, inquietação e dúvida, pois nada
sabia sobre a anunciação do anjo à Nossa Senhora. Imediatamente após seu
casamento José foi para Belém cuidar de uma herança; nesse meio-tempo
Maria seguiu para Nazaré com seus pais e algumas de suas companheiras
do Templo. A saudação do anjo aconteceu antes do retorno de José a
Nazaré. Maria, em reservada humildade, guardou o segredo de Deus para si.
José, embora bastante inquieto pelo que havia percebido, nada disse, mas
lutou em silêncio contra suas dúvidas. A Santíssima Virgem, que tinha
previsto esse problema, tornou-se pensativa e séria, o que apenas aumentou
o desconforto de São José. Quando eles chegaram a Nazaré, vi que a
Santíssima Virgem não foi de imediato para a casa de José com ele, mas
passou alguns dias com parentes. Estes eram os pais de Parmenas (ainda
não nascido), que se tornou discípulo de Jesus e que era um dos sete
diáconos na primeira comunidade de cristãos em Jerusalém. Essas pessoas
eram ligadas à Sagrada Família, pois a mãe era irmã do terceiro marido de
Maria Cleofas, o pai de Simeão, bispo de Jerusalém. Eles tinham uma casa
e um jardim de especiarias em Nazaré. Também eram ligados à Sagrada
Família através de Isabel. Vi que a Santíssima Virgem ficou vários dias com
essas pessoas antes de ir para a casa de José. A inquietação de José
aumentou em tal intensidade que, quando Maria estava se preparando para
retornar para a sua casa, ele decidiu deixá-la e desaparecer em segredo.
Enquanto abrigava esse pensamento, um Anjo apareceu-lhe em sonho e o
tranquilizou.
PREPARATIVOS PARA O NASCIMENTO DE JESUS.
UM ANJO DIZ A JOSÉ QUE JESUS DEVERIA
NASCER EM BELÉM.

A verdadeira data do nascimento de Cristo, como sempre vejo, é


quatro semanas antes da que é celebrada pela Igreja; deve ter acontecido no
dia da festa de Santa Catarina. Sempre vi a Anunciação como tendo
acontecido no final de fevereiro. Já no fim de outubro, vi sendo anunciado
na Terra Prometida que uma listagem e uma taxação das pessoas deviam ser
feitas por decreto do Imperador. Após isso, vi muitas pessoas viajando pelo
país.
[Domingo, 11 de novembro de 1821:] Por quatro dias consecutivos,
tenho visto a Santíssima Virgem com sua mãe, Anna, cuja casa fica a cerca
de uma hora de viagem de Nazaré, no vale de Zabulon. A única mulher a
permanecer na casa de Nossa Senhora, em Nazaré, é a serva de Anna, que
serviu São José enquanto Maria esteve com Anna. Na realidade, enquanto
Anna esteve viva, Maria não tinha os cuidados de casa completamente
separados dos de sua mãe, mas sempre recebia suas provisões dela. Por
muitas semanas tenho visto a Santíssima Virgem ocupada com preparativos
para o nascimento de Cristo. Ela está costurando e tricotando colchas,
roupas e faixas para serem usadas como fraldas. Há mais do que o
suficiente de tudo.
Joaquim não está mais vivo; vejo um outro homem na casa. Anna
casou-se novamente. Seu segundo marido era um empregado no Templo
ligado ao sacrifício dos animais. Vi Anna enviando-lhe comida, quando ele
estava com os rebanhos e manadas. Havia peixes e pães numa bolsa de
couro com várias divisórias. Há na casa uma garotinha bastante alta, com
cerca de sete anos, que ajuda a Santíssima Virgem e que é ensinada por ela.
Creio que deva ser a filha de Maria Cleofas. Seu nome era Maria também.
José não está em Nazaré, mas deve chegar em breve, pois está retornando
de Jerusalém para onde havia levado animais para o sacrifício.
Com a gravidez já bem avançada, vi a Santíssima Virgem na casa,
sentada numa sala, trabalhando com várias outras mulheres. Elas estavam
preparando colchas e outras coisas para o parto de Maria. Anna, que
possuía pastos com rebanhos e manadas, era abastada. Ela supria a
Santíssima Virgem com o suficiente daquilo que era costumeiro a uma
pessoa de sua posição. Anna achou que Maria estaria em sua casa para o
nascimento da criança e que todos os seus parentes viriam visitá-la. Fez,
portanto, todos os preparativos em grande quantidade: colchas
especialmente belas e pequenos tapetes. Vi uma colcha igual à que havia na
casa de Isabel, quando João nasceu. Era bordada com toda espécie de textos
e emblemas e tinha uma espécie de forro interno, no qual a mãe podia se
enrolar. Ela podia prender esse forro em seu corpo com faixas e botões,
reclinando-se confortavelmente, apoiada em almofadas, quando visitada por
amigas. Estas sentavam-se ao seu redor nas pontas da colcha. Todas essas
coisas, bem como muitas fraldas para a criança, foram preparadas na casa
de Anna. Vi fios de ouro e prata sendo usados. Nem todas as colchas e
outras coisas eram para o uso de Maria; muito seria dado como presente
para os pobres, que eram sempre lembrados em ocasiões felizes como
aquela. Vi a Santíssima Virgem e outras mulheres sentadas no chão, em
torno de uma grande arca, a tricotar e trabalhar em uma grande colcha,
posta sobre a arca entre elas. Elas usavam duas pequenas varetas, nas quais
linhas coloridas eram enroladas. Anna estava muito ocupada: andava para
todos os lados, buscando e distribuindo lã e delegando tarefas para as suas
servas.
[12 de novembro:] José chegará de volta a Nazaré nesse dia. Ele estava
em Jerusalém, levando bestas para o sacrifício. Ele as deixou numa pequena
estalagem, a quinze minutos, na estrada de Jerusalém para Belém. A casa
era mantida por um piedoso casal sem filhos. Era um alojamento adequado
para pessoas discretas. De lá, José foi para Belém, sem, entretanto, visitar
seus parentes naquela cidade, pois apenas desejava obter informações sobre
o recenseamento e a cobrança de taxas da população, obrigatórios para
todos. Ele não tinha ainda se apresentado, pois pretendia viajar com Maria
ao Templo em Jerusalém após os dias da purificação. Em seguida, iria a
Belém acertar tudo. Não sei ao certo suas razões, mas José não gostava de
estar em Nazaré. Ele, por causa disso, olhou os arredores de Belém, fez
perguntas sobre pedras e madeira, pois tinha em mente construir uma casa
lá. Encontrando o que queria, ele retornou para a hospedaria perto de
Jerusalém, ofereceu seu sacrifício no Templo e correu de volta para casa.
Quando ele atravessava o campo de Chimki, seis horas de Nazaré, à
meia-noite do dia anterior, um anjo apareceu-lhe e o avisou de que ele
deveria ir imeadiatamente com Maria a Belém, pois era lá que ela deveria
dar à luz a criança. Também indicou tudo o que ela deveria levar consigo
para seu uso pessoal, explicando que essas coisas deveriam ser poucas e
simples, tais como as colchas bordadas. Também, além do asno em que
Maria deveria viajar, ele teria de levar uma jumentinha de um ano que ainda
não tivesse dado cria. Deveria deixá-la correr livremente e sempre seguir o
caminho que ela tomasse. Nessa tarde, Anna foi com a Santíssima Virgem
para Nazaré; sem dúvida, sabiam que José estava chegando. Mas não
pareciam saber que, da casa de Anna, Maria iria viajar para Belém. Elas
pensavam, decerto, que Maria teria a criança em sua própria casa em
Nazaré, pois as vi levando para lá muita bagagem empacotada com coisas
que haviam preparado para o nascimento. Vi, dentre essas coisas, muitos
xales de um material azul com capuz. Creio que deviam ser para envolver a
criança. José chegou a Nazaré ao entardecer.
[13 de novembro:] Hoje vi a Santíssima Virgem e sua mãe, Anna, na
casa, em Nazaré, no momento em que José revelava o que o anjo havia lhe
dito na noite anterior. Em seguida, os três retornaram para a casa de Anna;
eu os vi prepararem-se para partir imediatamente. Anna estava aflita. A
Santíssima Virgem devia saber que teria a criança em Belém, mas manteve
o silêncio por humildade. Ela sabia sobre o local do nascimento do Messias
pelos escritos dos Profetas, guardados em seu pequeno armário em Nazaré.
(Esses escritos foram-lhe dados por suas professoras no Templo, onde
essas santas mulheres a haviam instruído. Ela costumava lê-los com
bastante frequência e rezava por seu cumprimento. Suas orações eram
sempre cheias de fervor e de desejo pela vinda do Messias. Anna sempre
exaltava como bendita aquela que deveria trazer a Sagrada Criança e
desejava apenas ser agraciada em servir aquela bem-aventurada senhora
como sua menor serva. Em sua humildade, nunca imaginou que ela mesma
seria a escolhida.) Uma vez que sabia daquelas passagens dos Profetas que
indicavam que o Salvador iria nascer em Belém, ela cedeu à Divina
Vontade e começou a viagem, o que era difícil para ela naquela época do
ano, já que era sempre bastante frio nos vales e entre as passagens
das montanhas.
JORNADA DE NAZARÉ A BELÉM.

Essa noite vi José e a Santíssima Virgem, acompanhados por Anna,


Maria Cleofas e alguns servos, saindo da casa de Anna. Maria sentou-se
confortavelmente no silhão do asno, que também carregava sua bagagem.
José conduzia o animal. Um segundo asno foi tomado por Anna. Seu
marido estava fora, nos campos, quando eles começaram a viagem.
[14 de novembro:] Esta manhã vi os santos viajantes chegarem a um
campo aberto chamado Ginim, a seis horas de viagem de Nazaré, onde o
anjo tinha aparecido a José dois dias antes. Anna tinha um pasto ali e seus
servos foram buscar a jovem jumentinha que José devia levar junto. Anna e
Maria Cleofas receberam um carinhoso adeus dos viajantes e retornaram
para casa juntamente aos servos.
Vi a Sagrada Família caminhando e subindo o Monte Gilboa. Eles não
passaram por nenhuma cidade; seguiram a jovem jumentinha, que sempre
tomava caminhos retirados e solitários. Eu os vi parando em uma casa, nas
colinas, pertencente a Lázaro, não muito distante da cidade de Ginim e na
direção de Samaria. O administrador, que os conhecia de outras jornadas,
deu-lhes amistosas boas-vindas. A família de José e Maria tinha intimidade
com Lázaro. Há belos pomares e alamedas ali. A casa fica no alto, e do teto
pode-se ter uma visão bem ampla. Lázaro herdou-a de seu pai. Nosso
Senhor Jesus muitas vezes ali ficou durante Seu ministério, pois costumava
pregar nos campos e arredores. O administrador e sua esposa conversaram
muito amigavelmente com a Santíssima Virgem. Eles estavam surpresos
pelo fato de ela estar fazendo uma viagem tão longa na sua condição, uma
vez que deveria ter todo o conforto em casa, ao lado de sua mãe, Anna.
[Noite de quinta para sexta-feira — 15-16 de novembro:] Vi a Sagrada
Família, algumas horas de viagem depois do último lugar, ir pela noite em
direção a uma montanha através de um vale muito frio. Parecia ter ocorrido
uma geada. A Santíssima Virgem estava sofrendo com o frio e disse a São
José: “Precisamos descansar, não consigo ir adiante.” Ela nem tinha
acabado de falar quando a jumentinha que os acompanhava parou debaixo
de um terebinto, muito grande e antigo, perto do qual havia uma nascente
de água. Eles pararam. José abriu um manto sobre o chão para a Santíssima
Virgem se sentar. Depois, ajudou-a a descer do burrico para ela se sentar
debaixo da árvore. José pendurou um lampião aceso que carregava consigo
nos galhos mais baixos da árvore. (Muitas vezes vi viajantes daquele país
fazerem isso à noite.)
A Santíssima Virgem orou seriamente a Deus para que não sofresse
nenhum mal por causa do frio. Imediatamente ela ficou tão repleta de calor
que estendeu sua mão para aquecer as mãos de José. Eles se renovaram ali
com frutas e pãezinhos que levavam consigo e beberam água da nascente ao
lado, misturada com bálsamo que São José trazia em uma pequena jarra.
São José falou de forma muito confortante para a Santíssima Virgem: ele é
tão bom, e tão pesaroso pela dificuldade da viagem. Quando Nossa Senhora
lamentou o frio, ele falou-lhe sobre a boa hospedaria que esperava
encontrar em Belém. Disse que sabia de uma casa com pessoas muito boas,
onde encontrariam pousada confortável a um pequeno preço e que era
melhor pagar do que ser aceito por nada. Falou elogiosamente de Belém, de
um modo geral, e confortou Nossa Senhora de toda forma possível. (Isso
me entristece, pois sabia que as coisas seriam totalmente diferentes. Mesmo
esse santo homem, como se vê, entregou-se a esperanças humanas.)
Até ali eles haviam cruzado dois riachos em sua jornada: tiveram de
passar um deles por um caminho de pedestres mais alto, enquanto os
jumentos atravessaram pela água. Era estranho ver como a jovem
jumentinha, que estava livre para ir aonde quisesse, ficava correndo em
volta dos viajantes. Onde o caminho estreitava, como, por exemplo, entre as
montanhas (portanto, não podia estar enganada), ela corria algumas vezes
na frente e outras vezes entre eles. Já onde havia uma separação de
caminhos, ela sempre aparecia na frente e tomava o caminho certo. Onde
deviam descansar, ela ficava imóvel, como ali no terebinto. Não me recordo
se passaram a noite sob o terebinto ou se foram para outro abrigo.
Esse terebinto era uma árvore muito antiga e sagrada, do arvoredo de
Moré, perto de Siquém. Quando Abraão estava viajando pela terra de
Canaã, teve nesse local uma visão de Deus, que lhe prometeu uma terra
para seus descendentes (Gn 15). Ali ele construiu um altar sob esse mesmo
terebinto. Antes de Jacó ir para Betel oferecer um sacrifício ao Senhor, ele
enterrou sob o terebinto todos os deuses estranhos de Labão e as joias que
sua familia carregava com ele (Gn 35,4). Sob a árvore Josué construiu o
tabernáculo para a Arca da Aliança e fez o povo ali assentado renunciar
seus ídolos (Jos 24,26). Ainda aí, Abimelec, o filho de Gedeão, foi
aclamado como rei dos Siquemitas (Jz 9,6).
[16 de novembro:] Hoje vi a Sagrada Família chegando a uma grande
fazenda, cerca de duas horas de viagem da árvore mencionada. A mulher da
casa estava ausente e seu marido mandou São José embora, dizendo que ele
podia facilmente prosseguir. Após terem continuado por certa distância, eles
descobriram que a jumentinha tinha corrido para dentro de uma choça
vazia, na qual eles também entraram. Alguns pastores, que estavam
ocupados limpando o lugar, foram muito atenciosos e deram-lhes palha,
gravetos e pedaços de madeira para fazerem fogo. Esses pastores foram
para a casa de onde a Sagrada Família tinha sido mandada embora.
Disseram à mulher da casa, que já havia retornado, o quanto José era
amável e temente a Deus e quão bela e maravilhosamente santa era a sua
esposa. Após isso ela repreendeu seu marido por ter mandado embora tão
boas pessoas. Vi também que a mulher foi imediatamente ao lugar onde a
Sagrada Família estava se abrigando, mas, como era muito tímida para
entrar lá, voltou em casa para buscar algum alimento.
(Estavam no lado norte de uma colina, em algum lugar entre Samaria e
Tebes. Um pouco ao leste, além do Jordão, está Sucot, e um pouco mais ao
sul, também além Jordão, está Aialon, ao lado de Salém. Deve ficar umas
doze horas de viagem de Nazaré.)
Após algum tempo a mulher, acompanhada por duas crianças, veio até
a Sagrada Família com algumas provisões. Pediu desculpas e foi muito
simpática e amável. Depois de terem se renovado e descansado, apareceu
também o marido e pediu a José que o perdoasse por tê-lo mandado
embora. Ele o aconselhou a continuar acima por uma hora, onde
encontraria uma boa hospedaria, na qual poderia passar o Sabá. De volta à
estrada, subindo por uma hora, eles encontraram uma hospedaria bastante
considerável, que consistia de várias edificações, rodeadas por árvores e
agradáveis jardins, nos quais havia arbustos de bálsamo. Localizava-se
num declive ao norte.
A Santíssima Virgem havia descido de seu jumento, que era guiado por
José. Chegaram à casa e, quando o estalajadeiro saiu, José perguntou-lhe
sobre a hospedagem. Ele desculpou-se dizendo que a casa estava cheia. Sua
esposa também saiu e, quando a Santíssima Virgem aproximou-se dela,
suplicando de modo tão humilde e simples por abrigo, ela ficou
profundamente comovida; o próprio estalajadeiro não pôde recusar-lhe.
Preparou alojamentos confortáveis para eles num abrigo próximo e pôs o
jumento num estábulo. A jumentinha não estava lá, corria livremente nos
campos ao redor. Ela sempre sumia quando não era necessário mostrar o
caminho. José preparou sua lâmpada e passou o Sabá orando com a
Santíssima Virgem na mais tocante piedade. Comeram pouco e em seguida
descansaram em esteiras espalhadas sobre o chão.
[17 de novembro:] Vi a Sagrada Família passando o dia todo em
oração. Vi a dona da casa com suas três crianças junto à Santíssima Virgem;
vieram também a esposa do fazendeiro do dia anterior com suas duas
crianças. Havia tamanha intimidade entre elas que se sentaram juntas; as
duas mulheres estavam bastante impressionadas com a sabedoria de Maria e
com seu comportamento modesto. Elas ouviram com grande atenção Nossa
Senhora, que falou muito com as crianças e lhes deu ensinamentos. Como
as crianças tinham pequenos rolos de pergaminho, Maria fez com que elas
os lessem para ela. Falou-lhes de forma tão doce sobre o que tinham lido
que não podiam tirar os olhos dela. Era maravilhoso ver essa cena e mais
belo ainda ouvi-la. Durante a tarde, vi São José caminhando com o
estalajadeiro no campo ao redor, olhando para os jardins e para o campo,
falando sobre coisas santas, como tenho visto sempre a prática do Sabá
pelas pessoas piedosas naquela terra. Eles também permaneceram ali na
noite seguinte.
[Domingo, 18 de novembro:] As boas pessoas da hospedaria tornaram-
se muito amigas da Santíssima Virgem. Davam atenção intensa a ela, em
razão da sua condição. Até mesmo pediram da forma mais amável possível
que ficasse e esperasse pelo parto ali. Mostraram-lhe um quarto confortável
que desejavam preparar para ela. A mulher ofereceu-se, de todo coração,
para cuidar e ajudá-la de toda maneira possível. Contudo, eles retomaram
sua jornada cedo, pela manhã, e desceram para um vale no lado sudoeste
das montanhas. Passaram bem distante de Samaria, embora a primeira parte
de sua jornada tivesse sido direcionada para lá.
À medida que desciam a montanha, eles avistaram o templo no Monte
Garizim, que pode ser visto de uma grande distância. Há muitas figuras de
leões e outros animais pintados no teto, que brilham com a luz, ao nascer do
sol. Depois de viajarem por seis horas, próximo ao anoitecer, chegaram a
uma grande casa de pastores no campo. Foram bem recebidos nessa casa,
que ficava a uma hora de viagem a sudeste de Siquém.
O homem da casa era o administrador dos pomares e campos
pertencentes à cidade vizinha. A casa não estava num lugar plano, mas num
declive. Todo campo ali é melhor e mais fértil do que os da primeira parte
da viagem, pois esse lado era ensolarado. Na Terra Prometida, nessa época
do ano, isso faz uma diferença considerável. Entre esse lugar e Belém há
muitas outras casas de pastores espalhadas pelos vales. Essas pessoas eram
ligadas aos pastores cujas filhas casaram-se, mais tarde, com membros da
comitiva dos três reis magos e permaneceram ali, mesmo quando seus
senhores partiram. De um dos casamentos, nasceu um menino que foi
curado por Nosso Senhor, naquela casa, por um pedido da Santíssima
Virgem, no segundo ano de Seu ministério, em 31 de julho (7o dia do mês
Ab), depois que Ele falou com a mulher samaritana. Jesus tomou-o com
mais dois jovens como companheiros em Sua jornada para a Arábia, após a
ressurreição de Lázaro. Esse mesmo menino tornou-se discípulo. Jesus
frequentemente ficava nessa aldeia e dava ensinamentos. Havia crianças na
casa e José as abençoou antes de ir embora.
[19 de novembro:] Hoje eu os vi viajando por um campo mais plano.
A Santíssima Virgem, algumas vezes, ia a pé. Frequentemente paravam
para descansar e se refazerem. Levavam consigo pãezinhos e uma bebida
refrescante e fortificante dentro de uma jarra bem feita, brilhante como
bronze, com duas alças. Era bálsamo que eles misturavam com água.
Algumas vezes colhiam algumas bagas e frutas que ainda podem ser
encontradas penduradas em lugares ensolarados, em árvores e em arbustos.
A sela de Maria no jumento tinha dois estribos de cada lado, de modo
que seus pés não ficavam pendurados, como é comum em nosso país.
Algumas vezes ela se sentava para a direita e outras para a esquerda do
jumento, que se movia bem silencioso e tranquilo. A primeira coisa que São
José faz, sempre que descansam pelo caminho ou param para passar a noite,
é preparar um lugar confortável para a Santíssima Virgem sentar-se e
descansar. Ele frequentemente lava os próprios pés enquanto Maria lava os
dela. É um hábito.
Já estava escuro quando chegaram a uma casa isolada. José bateu na
porta e pediu hospedagem. O dono da casa recusou-se a abrir. José explicou
as condições de Maria e disse que ela não podia ir mais adiante, salientando
que queria pagar pela hospedagem. O homem de coração duro retrucou,
com raiva, que sua casa não era uma hospedaria e que não queria ser
incomodado pelas batidas na porta, porque não cederia a nenhuma
insistência. Disse a José que fosse embora e foi tão insensível que nem
mesmo abriu a porta. Apenas gritou com palavras duras atrás dela.
Decidiram continuar um pouco até encontrar a jumentinha parada em uma
cabana. José acendeu uma lamparina e preparou uma cama para a
Santíssima Virgem com sua ajuda. Trouxe o jumento para dentro também e
arrumou-lhe um pouco de palha e forragem.
Eles rezaram, tomaram alguma coisa e dormiram por algumas horas.
Esse lugar estava a cerca de seis horas de viagem da última hospedaria.
Deviam estar a umas vinte e seis horas de Nazaré e dez de Jerusalém. Até
então não haviam tomado nenhuma estrada principal, mas cortaram
caminho por várias estradas comerciais que ligavam o Jordão à Samaria, de
onde alcançavam as estradas principais que ligam a Síria ao Egito. Os
caminhos alternativos que eles tomaram são muito precários e nas
montanhas eram algumas vezes tão estreitos que um homem devia
prosseguir muito cautelosamente para não dar um passo em falso. Os
jumentos, entretanto, davam passos muito firmes.
[20 de novembro:] O dia não tinha nascido ainda quando deixaram
esse lugar. Seu caminho ia morro acima novamente. Creio que estavam
perto da estrada que vinha de Gabara para Jerusalém, e creio que a fronteira
entre Samaria e a Judéia era ali. Foram novamente recusados em uma outra
casa. Quando estavam várias horas a nordeste de Betânia, Maria teve
grande necessidade de repousar e de se alimentar; assim, José afastou-se da
estrada, por cerca de meia hora, para um lugar onde ele sabia haver uma
bela figueira, usualmente cheia de frutos. Essa árvore tinha bancos ao redor
para as pessoas descansarem. José sabia disso por causa de uma viagem
anterior que havia feito. Quando, contudo, lá chegaram, não encontraram
nenhum fruto em toda a árvore, o que os desapontou muito. Tive em
seguida uma leve lembrança de que, posteriormente, Jesus tinha algo a ver
com essa árvore. Nunca mais deu nenhum fruto, mas era cheia de folhas
verdes. Penso que Nosso Senhor a amaldiçoou, quando por ali passou,
fugindo de Jerusalém, tornando-a inteiramente seca.
Chegaram finalmente a uma casa em que o dono falou muito
asperamente com José, quando ele humildemente pediu alojamento.
Apontou sua lâmpada para o rosto da Santíssima Virgem e zombou de José
por levar uma mulher tão jovem com ele. A mulher da casa apareceu e teve
consideração com a Santíssima Virgem. Mostrou muito amavelmente a ela
um quarto numa casa lateral; levou-lhes pãezinhos. O homem arrependeu-
se por sua aspereza e decidiu tornar-se amável com os santos viajantes.
Depois ainda chegaram a uma terceira casa, habitada por pessoas jovens.
Vi, no entanto, uma velha senhora com bengala. Sua recepção foi tolerável,
mas sem amabilidades. Ninguém se preocupava muito com eles. As pessoas
não eram realmente pastores, mas camponeses ricos. Jesus visitou uma
dessas casas em 20 de outubro (o primeiro dia do mês Tishri), após Seu
Batismo. Encontrou o local de descanso de seus pais decorado e usado
como local de oração. Não sei se era o lugar em que o homem zombou de
José. Tive uma leve lembrança de que as pessoas do local o arrumaram
imediatamente após as maravilhas que acompanharam o Nascimento de
Jesus. Quase chegando ao fim da caminhada, José parou muitas vezes, pois
a jornada se tornava mais e mais difícil para a Santíssima Virgem. Seguiram
o caminho tomado pela jumentinha e fizeram um desvio de um dia e meio a
leste de Jerusalém. O pai de José possuiu pastagens naquela região, por isso
ele conhecia muito bem o campo. Se eles tivessem viajado diretamente para
o sul, através do deserto atrás de Betânia, provavelmente teriam chegado a
Belém em seis horas, mas aquele caminho era montanhoso e, naquela época
do ano, muito difícil. Assim, a jumentinha os guiou por vales que os
trouxeram para mais perto do Jordão.
[21 de novembro:] Hoje vi os santos viajantes entrarem numa grande
casa de pastores em pleno dia. Ficava a cerca de três horas de onde João
batizava no Jordão, a sete horas de Belém. Era a mesma casa em que, trinta
anos mais tarde, Jesus passou a noite de 11 de outubro até a manhã anterior
à Sua aproximação de João pela primeira vez, após Seu Batismo. Perto da
casa havia uma cabana, onde eram guardados implementos agrícolas e
coisas de pastor. No pátio havia uma fonte com lugares para banho ao redor,
que eram abastecidos com água da fonte trazida por meio de canos. O dono
da casa devia possuir muita terra, porque era um estabelecimento bem
grande. Vi muitos servos entrando e saindo para receberem refeição. Esse
homem, muito solícito, recebeu os viajantes amavelmente. Deu-lhes um
quarto muito confortável, e seu jumento foi bem tratado. Um servo lavou os
pés de José na fonte e deu-lhe outras roupas, enquanto as suas eram limpas
da poeira. Uma serva fez o mesmo com a Santíssima Virgem. Comeram e
dormiram ali. A dona da casa era muito perversa, vivia num quarto
separado e mantinha-se afastada. Sorrateiramente examinou os viajantes e,
como ela era jovem e vaidosa, ficou injuriada pela beleza da Santíssima
Virgem. Ficou com receio de que Maria suplicasse para deixá-la ficar a fim
de ter a criança ali, por isso afastou-se de maneira hostil e insistiu que eles
deviam ir embora no dia seguinte. (Essa é a mesma mulher que Jesus
encontrou naquela casa, cega e aleijada, trinta anos mais tarde, em 11 de
outubro, após Seu Batismo. Depois de censurá-la por sua falta de
hospitalidade e por sua vaidade, Jesus a curou.) Havia também crianças na
casa. A Sagrada Família passou a noite ali.
[22 de novembro:] Vi a Sagrada Família deixando o abrigo ao meio-
dia . Alguns dos moradores da casa os acompanharam por um trecho do
caminho. Depois de uma curta jornada de duas horas para oeste, eles
chegaram a um lugar com casas esparramadas, com jardins e pátio frontais,
situadas nos dois lados da estrada. Alguns parentes de José viviam nas
redondezas. Eles eram, segundo me lembro, filhos do segundo casamento
de um padrasto ou de uma madrasta. Vi a casa, tinha uma boa localização e
era bem grande. Eles, entretanto, atravessaram esse lugar e viraram à direita
por meia hora, na direção de Jerusalém, até alcançarem uma grande
hospedaria em cujo pátio havia uma grande fonte com muitas bicas. Um
grupo numeroso estava reunido enquanto participava de um funeral. No
interior da casa havia uma grande sala que, dividida por biombos de
madeira, podia sevir de dormitório com quartos separados. No seu centro
havia uma lareira com chaminé. Cortinas pretas estavam penduradas atrás
da lareira; na frente, havia um caixão coberto com um pano preto. Um
grupo grande de homens estava rezando ao seu redor. Vestiam roupas
longas e pretas com uma outra branca menor por cima. Numa outra sala, as
mulheres de luto, completamente veladas, estavam sentadas no chão em
pequenas caixas.
Os próprios donos da hospedaria, ocupados com o funeral, receberam
os viajantes apenas a distância. Os servos da casa, porém, receberam-lhes
muito amavelmente e lhes deram toda a atenção necessária. Um alojamento
separado fora-lhes preparado. Nessa casa havia muitas camas enroladas
contra a parede; esteiras podiam ser colocadas no chão para formar células
separadas. Mais adiante vi as pessoas da casa visitarem a Sagrada Família e
conversarem com eles de maneira cordial. Elas não usavam mais roupas
brancas sobre as pretas. Depois que José e Maria tinham se renovado e
comido algum alimento, rezaram juntos e se retiraram para dormir.
[23 de novembro:] José e Maria partiram dali para Belém ao meio-dia.
Ainda tinham pela frente umas três horas de viagem. A dona da casa
insistiu com eles para ficarem onde estavam, pois a ela parecia que Maria
daria à luz a qualquer momento. Maria, contudo, abaixando seu véu, disse
que ainda tinha trinta e seis horas antes do parto. (Não estou certa se ela
teria dito 36 ou 38 horas.) A mulher estava muito ansiosa por retê-la, não
nessa casa propriamente, mas numa outra. Quando saíam, vi José falando
com o estalajadeiro sobre os jumentos. Elogiou-os a respeito do tratamento
oferecido e disse-lhes que tinha trazido a jumentinha com ele a fim de
penhorá-la em caso de necessidade.
Quando as pessoas falaram da dificuldade de encontrar hospedagem
em Belém, José disse que tinha amigos lá e que certamente seria bem
recebido. (Sempre que fala assim, isso me causa muita tristeza. Também
para Maria ele se mostrou confiante.)
A jornada do último alojamento até Belém deve ter levado cerca de
três horas. Fizeram um caminho em volta do lado norte de Belém e
aproximaram-se da cidade pelo oeste. Pararam sob uma árvore,
ligeiramente afastados da estrada. Maria desmontou do jumento e arrumou
sua roupa; em seguida, José levou-a para uma grande casa distante alguns
minutos de Belém. Essa casa era rodeada por jardins e por outras casas
menores. Havia muitas árvores em frente e, ao redor dela, uma multidão
acampava em tendas. Era a antiga casa de Davi e também, certa vez, fora a
casa da família de José. Familiares ou conhecidos de José ainda viviam ali.
Eles o trataram como um estranho, uma pessoa de quem não queriam saber.
A casa estava sendo usada agora para receber o dinheiro da taxação romana.
José, levando o jumento pelas rédeas, foi de maneira resoluta para essa casa
com a Santíssima Virgem, porque todos os que chegavam tinham de se
reportar a fim de receberem um papel, sem o qual não se podia entrar em
Belém.
[Após muitas pausas, Catharina Emmerich falou em estado visionário:]
A jovem jumentinha que corria livre não os acompanhou, ela tinha corrido
para os arredores da cidade em direção ao sul, onde é mais plano e há uma
espécie de vale aberto. José entrou na casa. Maria ficou com algumas
mulheres numa pequena casa ao lado do pátio. Elas foram muito amáveis
com ela e ofereceram-lhe algum alimento. Eram as mulheres que
cozinhavam para os soldados romanos, que usavam tiras de couro
penduradas em torno dos ombros. O clima é muito agradável e não muito
frio. A colina entre Jerusalém e Betânia está toda iluminada pela luz do sol;
dali se pode ter uma bela vista. José está numa grande sala com um piso
irregular. Eles estão lhe perguntando quem ele é. Ao mesmo tempo,
desenrolam alguns rolos pendurados na parede e ditam em voz alta os seus
ancestrais e os de Maria. José parecia não saber que ela também descendia
diretamente de Davi através de Joaquim; ele propriamente descendia dos
primeiros filhos de Davi. Um homem perguntou a José: “Onde está sua
esposa?”
Devido a muita desorganização, as pessoas do campo não foram
propriamente registradas por sete anos. Eu vejo os números V e II,
compondo o sete [ela faz os números com seus dedos]. Esta taxação tem
ocorrido já por vários meses. Alguns pagamentos foram feitos aqui e ali
durante esses sete meses, mas nada de modo regular. As pessoas tiveram de
pagar duas vezes. Algumas permaneceram aqui por até três meses. José
chegou muito tarde ao posto de cobrança, mas foi tratado de forma bastante
amistosa. Ele nada pagou, mas foi inquirido sobre seu meio de sustento.
José declarou que não tinha terras, mas vivia do trabalho manual e da ajuda
da mãe de sua esposa.
Há um grande número de escribas e altos oficiais em muitas salas. Nos
pisos superiores estão cidadãos romanos e muitos soldados. Estão presentes
também fariseus e saduceus, sacerdotes, anciãos e todo tipo de oficiais e
escribas, tanto judeus como romanos. Não existe tal comissão em
Jerusalém, mas eles estão estabelecidos em muitos outros lugares, como
Magdala, no Mar da Galiléia, onde os habitantes da Galiléia são taxados.
Também o são os de Sidon, acho que por causa de suas atividades
comerciais. Apenas as pessoas que não têm residência nem terra é que têm
de se apresentar no local de nascimento para que possam ser taxadas. De
agora em diante, a taxa tem de ser paga em três meses e em três parcelas.
Cada uma dessas parcelas destinava-se a uma finalidade diferente. A
primeira é dividida entre o imperador Augustus, Herodes e um outro rei que
vive perto do Egito. Ele apresentou alguma ajuda na guerra e tinha direito a
um distrito no extremo norte, por isso tinham de repartir algo com ele. A
segunda parcela era para a construção do Templo; parecia que era para
pagar uma dívida. A terceira parcela era para as viúvas e pessoas pobres,
que por muito tempo não tinham nada. Essa contribuição raramente
chegava às pessoas certas, tal qual acontece nos dias de hoje. O dinheiro
devia ser apenas para boas causas, mas ainda permanecia nas mãos dos
poderosos. Todo esse trabalho de escrituração causava uma terrível
confusão e comoção.
José foi liberado e, quando chegou ao andar debaixo, a Santíssima
Virgem foi chamada diante dos escribas. Eles não leram nada em voz alta
para ela. Disseram a José que não precisaria ter trazido sua esposa consigo e
pareciam estar caçoando dele por causa da idade dela: era muito jovem.
José ficou envergonhado por terem dito isso diante de Maria; ele estava
preocupado que ela pudesse achar que ele não era respeitado em sua cidade
natal.
A CHEGADA EM BELÉM. SÓ RESTOU A GRUTA.

Depois disso foram para Belém, cujos prédios estavam a uma certa
distância um do outro. A entrada era através de paredes em ruína, como se o
portão tivesse sido destruído. Maria permaneceu com o jumento na entrada
da rua, enquanto José procurava uma hospedaria nas casas próximas — em
vão, pois Belém estava cheia de forasteiros, todos correndo de lugar em
lugar. José voltou para junto de Maria, dizendo que, como não havia
encontrado nenhum abrigo ali, eles iriam mais para dentro da cidade. José
conduzia o jumento pelas rédeas, enquanto a Santíssima Virgem andava ao
seu lado. Quando chegaram ao início de uma outra rua, Maria novamente
ficou junto ao jumento, enquanto José ia de casa em casa, à procura de
abrigo. Novamente voltou entristecido. Isso aconteceu várias vezes, e a
Santíssima Virgem teve de esperar por um longo tempo.
Por toda a parte as casas estavam cheias e em todo lugar eram
recusados. José disse a Maria que eles deveriam ir para a outra parte de
Belém, onde certamente iriam encontrar abrigo. Por isso retornaram um
pouco pelo caminho de onde tinham vindo e viraram para o sul. Iam
hesitantes pela rua, que mais parecia uma estrada rural, porque as casas
eram construídas em declives. Ali também sua procura foi infrutífera. No
outro lado de Belém, onde as casas ficam muito separadas, eles chegaram a
uma depressão em espaço aberto, como um campo, onde era mais solitário.
Havia uma espécie de cabana e, não muito distante, uma árvore frondosa,
como uma tília. O tronco era liso e os ramos faziam uma espécie de telhado.
José levou a Santíssima Virgem até essa árvore e fez para ela um assento
confortável contra o tronco, usando os fardos que carregavam. Ali ela
poderia descansar, enquanto ele procurava abrigo nas casas próximas. O
jumento conservou a cabeça virada em direção à árvore. A princípio Maria
permaneceu sentada verticalmente, recostada no tronco. Seu vestido largo
de lã não tinha faixa e a rodeava em dobras; sua cabeça estava coberta com
um véu branco. Muitas pessoas passavam e olhavam para ela, sem saber
que o Redentor estava tão perto delas. Ela era tão paciente, tão humilde, tão
cheia de esperança. Oh, ela teve de esperar muito, muito tempo! Por fim,
sentou-se sobre um tapete com sua cabeça inclinada e as mãos cruzadas
abaixo do peito.
José voltou a ela em grande sofrimento por não ter encontrado abrigo.
Seus amigos, de quem ele havia falado para a Santíssima Virgem, com
muita dificuldade o reconheceram. Ele estava em lágrimas quando Maria o
confortou. Mais uma vez ele foi de casa em casa. Quando informou a
proximidade do parto de sua esposa como o motivo principal de seu apelo,
ele encontrou recusas ainda mais fortes. Embora o lugar fosse solitário, os
passantes por fim começaram a parar e olhar curiosamente para a
Santíssima Virgem a distância, como se deve fazer quando alguém está
esperando na penumbra por um longo tempo. Creio que algumas até
falaram com ela, perguntando-lhe quem ela era.
Por fim, José voltou. Ele estava tão triste que apareceu hesitante,
dizendo que não obteve sucesso. Como conhecia um lugar fora da cidade,
pertencente aos pastores que frequentemente iam para lá quando traziam os
rebanhos para a cidade, pensou que, em último caso, lá encontrariam
abrigo. Disse que conhecia o lugar desde a sua infância. Quando seus
irmãos o atormentavam, ele costumava fugir para lá para se esconder deles
e rezar. Mesmo que os pastores aparecessem, ele facilmente entraria num
acordo com eles. Nessa época do ano era improvável que chegassem. Assim
que ele acomodasse a Santíssima Virgem lá, em paz e sossego, ele
novamente iria procurar nas redondezas por um outro abrigo.
Seguiram para fora de Belém, a leste da cidade, por um caminho
isolado, pela esquerda, ao longo de muros em ruína, valas e encostas de
algum vilarejo. No início o caminho subia suavemente e, em seguida,
descia depois de passar por uma colina. A leste da cidade, alguns minutos
para fora, eles chegaram a uma colina ou alta encosta, em frente da qual
havia um campo aberto bem agradável, cheio de árvores. Algumas eram
parecidas com o cedro ou terebinto, outras tinham folhas pequenas como o
buxo.
Dentre muitas outras grutas ou cavernas habitáveis e diferentes, no
extremo sul da colina, ao redor da estrada que percorria até o vale dos
pastores, estava a gruta na qual José procurou abrigo para a Santíssima
Virgem. Do oeste, a entrada levava para dentro da colina, em direção leste,
através de uma estreita passagem, que levava para uma câmara, metade
semicircular, metade triangular. As paredes da caverna eram de rocha
natural e apenas para o lado sul era rodeada pela estrada que vai para o vale
dos pastores. Era feita de alvenaria mal-acabada. No lado sul havia uma
outra entrada para a caverna, que geralmente ficava fechada. José teve de
límpá-la antes que pudesse usá-la. Se você saísse pela entrada e virasse à
esquerda, daria numa entrada mais larga a uma câmara mais baixa, estreita e
imprópria, que se estendia sob a Gruta da Natividade. Da entrada comum da
gruta, voltada para o oeste, nada se podia ver, a não ser alguns telhados e
torres de Belém. Se você virasse para a direita, saindo por essa entrada,
você daria na entrada de uma gruta inferior, que era escura e foi por um
tempo o esconderijo da Santíssima Virgem. Na frente da entrada principal,
sustentado por pilares, havia um telhado leve de juncos, de modo que se
podia sentar abrigado em frente à caverna. No alto do lado sul, havia três
aberturas para luz e ar, fechadas com grades fixas em alvenaria. Havia uma
abertura similar no teto da gruta. Este era coberto com turfa e formava a
extremidade da serrania na qual estava Belém.
Ao sudeste da Gruta da Natividade, chegava-se ao pico do topo do vale
onde estava a tumba de Maraha, aquela que amamentou Abraão e que é
chamada de Caverna do Leite ou Caverna dos Lactentes. A Santíssima
Virgem veio diversas vezes ali com o Menino Jesus. Acima da caverna,
havia uma grande árvore com assentos ao redor, de onde se tinha uma visão
melhor de Belém do que a da Gruta da Natividade.
Foi-me revelada muita coisa que aconteceu na Gruta da Natividade e
que possui significação simbólica e profética nos tempos do Antigo
Testamento. Apenas me lembro que Set, a criança da promessa, foi aqui
concebida e dada à luz por Eva depois de uma penitência de sete anos. Um
anjo disse-lhe nesse local que aquela semente foi dada por Deus no lugar de
Abel. Set foi escondido e amamentado por sua mãe nessa gruta e na gruta
de Maraha, pois seus irmãos eram-lhe hostis, assim como os filhos de Jacó
o eram com José. Nessas grutas, já habitadas por homens no princípio dos
tempos, vi muitas vezes lugares escavados na rocha, nos quais se podia
dormir confortavelmente sobre peles ou sobre o capim. Assim, talvez, a
cavidade na pedra, abaixo da manjedoura, pode ter sido o berço de Set ou
de um morador posterior. Não posso me assegurar disso agora.
APROXIMA-SE O MOMENTO DO NASCIMENTO
DO SALVADOR.

O sol já estava baixo quando alcançaram a entrada da gruta. A jovem


jumentinha, que os tinha deixado na antiga casa de São José para correr em
torno da cidade, encontrou-os assim que chegaram; saltava alegremente em
volta deles. “Veja”, disse a Santíssima Virgem a José, “certamente é da
vontade de Deus que entremos aqui.” José estava, contudo, muito triste e
secretamente envergonhado por ter falado tantas vezes sobre a boa recepção
que teriam em Belém. Ele pôs o jumento de carga sob o abrigo na entrada
da gruta e preparou um lugar para Nossa Senhora descansar, enquanto
acendia uma lamparina, abria a porta de vime da gruta e entrava.
A passagem para a caverna era estreita, pois estava cheia de fardos de
palha, como juncos empilhados contra a parede e cobertos com esteiras
marrons. No fundo, a caverna estava entulhada com várias coisas. José
abriu espaço suficiente para proporcionar um local de descanso confortável,
na extremidade leste da gruta, para a Santíssima Virgem. Depois amarrou
um candeeiro na parede da gruta escura e conduziu a Santíssima Virgem
para dentro. Ela sentou-se no sofá de tapetes e fardos que ele havia
preparado. José desculpou-se, muito humildemente, pela pobreza do abrigo,
mas Maria estava feliz e contente em seu espírito. Enquanto ela descansava,
José correu com um odre que trazia consigo para o prado atrás da colina,
onde havia um riacho. Depois de enchê-lo, retornou para a gruta. Em
seguida foi para a cidade e trouxe duas tigelas, algumas frutas e feixes de
lenha.
O Sabá estava se aproximando e, por causa dos muitos estrangeiros na
cidade, que tinham necessidades de última hora de toda espécie de coisas,
mesas haviam sido montadas nas esquinas das ruas, onde o indispensável
podia ser comprado por preço reduzido. Os vendedores eram servos ou
pessoas não judias. Não me lembro de tudo. José retornou trazendo carvões
em brasa numa espécie de cesto de metal. Despejou as brasas na entrada da
caverna, no lado norte, e fez um pouco de fogo. Ele sempre levava um
braseiro e outros utensílios em suas viagens. O feixe de lenha tinha
pequenos gravetos firmemente amarrados com cavilhas. José preparou uma
refeição, que consistia de um mingau feito de grãos amarelos e frutas
cozidas, grossas e cheias de sementes. Havia também alguns pãezinhos
chatos. Depois de terem se alimentado e rezado, José preparou um lugar
para a Santíssima Virgem dormir. Primeiro fez um colchão de palha e
depois cobriu-o com uma colcha igual à já descrita, feita na casa de Anna.
Na cabeceira, ele pôs um tapete enrolado. Depois de trazer o jumento de
carga e amarrá-lo à parte, fechou as aberturas no teto para interromper a
corrente de ar. Só depois preparou seu local de dormir na entrada. Como o
Sabá já havia começado, ele permaneceu com a Santíssima Virgem sob uma
lâmpada, recitando com ela as orações próprias. Tomaram sua pequena
refeição em espírito de grande piedade. José saiu da gruta e foi para a
cidade, enquanto Maria se cobria para descansar. Durante a ausência de
José, eu vi pela primeira vez ali a Santíssima Virgem em oração. Ela
ajoelhou-se sob a cama e depois se deitou na colcha ao seu lado. Sua cabeça
repousava sobre seu braço apoiado no travesseiro. José só voltou mais
tarde. Estava entristecido, creio que chorou. Ele rezou e depois se deitou,
resignado, em sua cama, na entrada da caverna.
A Santíssima Virgem passou o Sabá na Gruta da Natividade, em
oração e meditação, com grande fervor espiritual. José saiu várias vezes,
provavelmente para a sinagoga em Belém. Eu os vi partilhando a comida
preparada no dia anterior e rezando juntos. Na tarde do Sabá, quando é
costume judaico sair para caminhar, José levou a Santíssima Virgem
através do vale atrás da gruta para a tumba de Maraha, a ama de leite de
Abraão. Eles passaram algum tempo nessa gruta, que era mais espaçosa do
que a Gruta da Natividade, onde José preparou um lugar para Nossa
Senhora se sentar. O resto do tempo eles passaram debaixo da árvore
sagrada ali perto, em oração e meditação. Perto do fim do Sabá, José levou
Maria de volta.
Ela disse a São José que naquela noite, à meia-noite, seria a hora do
nascimento da criança, pois então os nove meses desde a Anunciação
teriam se completado. Ela pediu-lhe que fizesse todo o possível para que
pudessem mostrar toda a honra para com a criança prometida por Deus e
sobrenaturalmente concebida. Pediu, ainda, que se unisse a ela em oração
pelas pessoas de coração endurecido que lhes haviam recusado abrigo. José
sugeriu à Santíssima Virgem que ele fosse chamar algumas mulheres
piedosas que conhecia em Belém para ajudá-la. Ela não aceitou, dizendo
que não necessitava da ajuda humana. Apenas depois do Sabá, José foi para
Belém. Assim que o sol havia se posto, ele rapidamente comprou algumas
coisas necessárias: um banco, uma mesinha baixa, algumas tigelas, frutas
secas e uvas. Com tudo em mãos, correu de volta para a gruta. José
preparou um pouco mais de comida. Eles alimentaram-se e rezaram juntos.
Em seguida separou completamente o seu local de dormir do resto da gruta,
pendurando esteiras que já estavam ali na caverna. Ele alimentou o
jumento, que estava à esquerda da entrada, junto à parede da gruta. Depois
encheu o suporte acima da manjedoura com feixes de capim e musgo.
Assim que a Santíssima Virgem lhe disse que sua hora estava se
aproximando e que ele deveria ir para a entrada onde dormia, José pendurou
mais alguns candeeiros na gruta e saiu. Quando ouviu um barulho do lado
de fora, ele saiu e encontrou a jumentinha que até então estava vagando
solta no vale dos pastores. Ela veio correndo alegremente, saltitandoà sua
volta. Ele a amarrou sob o abrigo em frente à a gruta e espalhou forragem
diante dela.
Ao voltar para a gruta, olhou na direção em que estava a Santíssima
Virgem e viu sua face voltada para o leste; ela permanecia ajoelhada sobre a
cama. José a viu como se estivesse rodeada de chamas; toda a caverna
estava repleta de luz sobrenatural. Olhou-a exatamente como Moisés fez ao
ver a sarça ardente. Depois dirigiu-se ao seu local de dormir em santa
admiração; lá prostrou seu rosto em oração.
O NASCIMENTO DE NOSSO SENHOR. JESUS
NASCE À MEIA-NOITE DO SÁBADO.

Vi o brilho em torno da Santíssima Virgem crescer sem parar. A luz


das lâmpadas acesas por José não eram mais visíveis. Nossa Senhora
ajoelhou-se sobre um tapete com seu manto desenfaixado, espalhado à sua
volta, e sua face voltada para o leste. À meia-noite, ela estava absorta em
oração extática. Eu a vi levitando acima do chão. Suas mãos estavam
cruzadas sobre o peito. O brilho à sua volta aumentava; tudo, mesmo os
objetos sem vida, possuía alegria interior; as pedras, o teto, as paredes e o
chão tornaram-se vivos naquela luz. Não vi mais o teto da gruta. Uma
estrada de luz abriu-se sobre Maria, subindo em glória sempre crescente em
direção aos altos céus. Nesse caminho de luz, havia um movimento
maravilhoso de glórias interpenetrando-se umas nas outras e, à medida que
se aproximavam, apareciam mais claramente na forma de coros de espíritos
celestes. Enquanto isso, a Santíssima Virgem, ainda em êxtase, agora olhava
para baixo, adorando seu Deus, de quem ela se tornara Mãe e que estava
deitado no chão diante dela na forma de um recém nascido indefeso. Vi
nosso Redentor, uma pequena criança brilhando com uma luz que se
sobrepunha a todo o brilho ao redor, deitado sobre o tapete, diante da
Santíssima Virgem. Pareceu-me inicialmente que Ele era muito pequeno,
mas passou a crescer diante dos meus olhos. O movimento do brilho intenso
era tal que não sei como pude vê-lo.
A Santíssima Virgem permaneceu por algum tempo arrebatada em
êxtase. Eu a vi pondo um pano sobre a Criança, mas a princípio ela não
tocou nem pegou o Menino Deus. Após algum tempo, vi o Menino Jesus se
mover e O ouvi chorar. A partir disso, Maria pareceu ter voltado a si, pois
pegou a Criança do tapete, envolveu-O no pano que ela depositara sobre
Ele, segurando-O em seus braços junto ao seu Coração. Sentou-se ali,
envolvendo completamente a si e ao Menino com seu véu. Creio que, em
seguida, amamentou o Redentor. Vi anjos em forma humana ao seu redor,
adorando a Criança. Por volta de uma hora depois de Seu Nascimento,
Maria chamou São José, que ainda estava em oração. Quando ele se
aproximou, prostrou-se com o rosto no chão em piedosa alegria e
humildade. Maria, então, pediu que ele segurasse o Menino, o sagrado
presente do Deus Altíssimo, junto ao coração, em júbilo e gratidão. Ele
levantou-se, tomou o Menino em seus braços e louvou a Deus com lágrimas
de alegria.
A Santíssima Virgem enfaixou o Menino Jesus com tiras de pano. Não
me lembro como essas faixas eram enroladas; apenas sei que o Menino foi
enfaixado com um pano vermelho até as suas axilas e depois com faixas
brancas; Sua cabeça e ombros foram enfaixados com um tecido menor.
Maria tinha apenas quatro jogos de cueiros consigo. Vi Maria e José
sentandos sobre seus próprios pés, lado a lado no chão. Eles não falavam e
pareciam estar ambos mergulhados em meditação. No tapete, diante de
Maria, estava o recém nascido Jesus, enfaixado, uma pequena Criança, bela
e radiante como a luz. Ah, eu pensei, nesse lugar está a salvação de todo o
mundo; ninguém pode sequer imaginar. Então eles deitaram a criança na
manjedoura, que estava cheia de feno e plantas delicadas, coberta com um
pano que pendia dos lados. Ambos ficaram ao lado Dele, com lágrimas de
alegria, dando graças a Deus. José arrumou o lugar de dormir da Santíssima
Virgem e seu assento ao lado da manjedoura. Tanto antes como depois do
Nascimento de Jesus, eu a vi vestida de branco e com véu. Eu a vi lá nos
primeiros dias após a Natividade, sentada, ajoelhada, de pé e dormindo de
lado, coberta, mas de modo algum enferma ou cansada. Quando chegavam
pessoas para vê-la, ela se cobria ainda mais e sentava-se ereta sobre sua
colcha de parto.
Nas imagens do Nascimento de Cristo, que vi como um acontecimento
histórico, e não como uma Festa da Igreja, não havia tanto júbilo extático e
brilho na natureza como vejo na noite de Natal em minhas visões de
significação interior. Também percebi na visão sobre o nascimento de Jesus
uma alegria incomum e um movimento extraordinário, à meia-noite, em
muitos lugares, até mesmo nas partes mais distantes da Terra. Vi os
corações de muitos homens bons repletos de alegre piedade, enquanto todos
os malvados foram tomados de grande medo. Vi muitos animais cheios de
alegria. Em alguns lugares, vi flores, ervas e arbustos crescendo e se
desenvolvendo; árvores deleitando-se com revigoramento, espalhando
doces fragrâncias. Vi muitas nascentes de água jorrarem e aumentarem em
volume. Na noite do Nascimento do Salvador, uma nascente de água jorrou
na gruta da colina ao norte da Gruta da Natividade. No dia seguinte São
José represou essa água e fez um escoadouro.
Vi ontem à noite (no momento do nascimento de Jesus) que Noemi, a
professora da Santíssima Virgem; a profetisa Anna e o velho Simeão no
Templo; a mãe de Nossa Senhora, Anna, em Nazaré; e Isabel em Juta,
tiveram visões e revelações sobre o nascimento do Salvador. Vi o bebê
João, na casa de Isabel, movido de extraordinária alegria. Embora todos
tenham visto e reconhecido Maria nessas visões, não sabiam onde o milagre
tinha ocorrido, nem mesmo Isabel. Somente Anna sabia que Belém era o
lugar da salvação.
Na hora em que o Menino Jesus nasceu, contemplei a visão
maravilhosa que apareceu para os três reis magos. Eles eram adoradores das
estrelas e tinham uma torre em forma de pirâmide com degraus. Esta era
feita com toras e ficava no topo de uma colina; um deles sempre estava lá,
ao lado de vários sacerdotes, com o propósito de observar as estrelas. Os
reis sempre escreviam o que viam, relatando um para o outro. Nessa noite
creio que vi dois dos reis na torre. O terceiro, que vivia a leste do Mar
Cáspio, não estava com eles. Sempre observavam uma estrela em particular.
Nela viram várias alterações, que associaram às suas visões no céu. Ontem
à noite vi a imagem que apareceu a eles, em suas muitas variações. Eles não
viram essa imagem em uma estrela, mas numa figura composta de várias
estrelas que estavam em movimento. Viram um belo arco-íris sobre a lua,
que estava em um de seus quartos (crescente ou minguante). Sobre o arco-
íris, uma Virgem estava entronizada; seu pé direito estava apoiado na lua.
No arco-íris, à esquerda da Virgem, havia uma vinha; à direita, um feixe de
trigo. Em frente à Virgem, vi a figura de um cálice semelhante ao que
Nosso Senhor usou na instituição do Santíssimo Sacramento.
OS PASTORES.

O céu sobre Belém estava nublado e com um brilho avermelhado;


sobre a Gruta da Natividade, sobre o vale junto à tumba de Maraha e sobre
o Vale dos Pastores havia uma névoa de orvalho brilhante. No Vale dos
Pastores havia uma colina a cerca de uma hora e meia de jornada da Gruta
da Natividade, onde as vinhas começam e se estendem até Gaza. Nessa
colina estavam as cabanas de três pastores, que eram os líderes das famílias
dos pastores da região. Eram como os três reis magos, líderes de suas tribos.
Duas vezes mais distante da Gruta da Natividade estava a chamada Torre
dos Pastores. Era uma construção erigida com vigas de madeira, entre
verdes árvores, numa base de pedras na colina, no meio dos campos. Essa
colina era rodeada de escadas e galerias, e em alguns lugares havia
observatórios cobertos, como torres de observação. Tudo era coberto com
esteiras. Parecia com aqueles edifícios, em forma de torre, usados na terra
dos três reis magos para observação das estrelas à noite. Ali era possível ter
uma ampla visão de toda a região; avistava-se Jerusalém e o Monte da
Tentação no deserto de Jericó. Os pastores colocavam homens ali para olhar
os rebanhos e avisar sobre qualquer perigo (ladrões ou bandos armados)
com o toque de trombetas. As famílias de vários pastores viviam em torno
da torre, dentro de uma circunferência de cerca de vinte e cinco
quilômetros. Suas fazendas eram separadas e rodeadas de campos e jardins.
A torre era seu local de encontro, bem como de observação. Ali guardavam
seus pertences e dali também obtinham alimento.
Havia cabanas construídas nas encostas da colina onde ficava a torre.
Distante dela havia um abrigo dividido em várias partes, onde as viúvas dos
observadores viviam e preparavam suas refeições. Ao redor da torre vi,
nessa noite, alguns rebanhos nos campos, enquanto na colina dos três
pastores eu os vi em abrigos. Quando Jesus nasceu, vi três pastores juntos
diante de sua cabana, maravilhados com a belíssima noite. Eles olharam ao
redor e ficaram atônitos ao ver o maravilhoso brilho sobre o lugar onde
ficava a Gruta da Natividade. Vi também os pastores muito comovidos
numa torre mais distante. Alguns deles subiram na torre para olhar mais
atentamente o estranho brilho sobre a gruta. Enquanto os três pastores
olhavam a cena, vi uma nuvem de luz descendo na direção deles. À medida
que se aproximava, percebi dentro dela um movimento, uma mudança e
uma transformação em figuras e formas. Ouvi uma canção que crescia
gradualmente. Ela era doce, suave, além de clara e alegre. Os pastores
inicialmente estavam assustados. Nisso um anjo apareceu diante deles e
lhes falou:
“Não temais”. “Eis que vos anuncio uma boa nova, que será alegria
para todo o povo: hoje vos nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é o
Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal. Achareis um recém-nascido envolto
em faixas e posto numa manjedoura.”
Enquanto o anjo anunciava os fatos, o brilho ao seu redor aumentou.
Vi então cinco ou sete brilhos grandes e intensos de anjos diante dos
pastores. Eles seguravam uma longa faixa, na qual continham escritos em
letras grandes como uma mão. Eu os vi louvando a Deus e cantando:
“Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens de boa
vontade”. Os pastores na torre tiveram a mesma visão, um pouco mais
tarde. Os anjos também apareceram a um terceiro grupo de pastores perto
de uma fonte de água a três horas de Belém, para o leste da torre dos
pastores. Eu não os vi correrem imediatamente para a Gruta da Natividade,
que estava cerca de uma hora e meia de distância deles e duas vezes mais
longe a partir da torre. Eu os vi perguntando-se imediatamente sobre o que
deveriam levar como presente para a Criança recém-nascida. Depois de
pegarem seus presentes, saíram juntos apressadamente. Somente chegaram
à gruta de manhã cedo.
[Domingo, 25 de novembro (manhã):] Ao amanhecer, após o
nascimento de Cristo, os três principais pastores vieram de sua montanha
para a Gruta da Natividade trazendo presentes, que já tinham reunido de
antemão. Esses presentes eram pequenos animais. Não sei se eram cabritos,
pois eram bem diferentes dos nossos: tinham pescoço longo, olhos
brilhantes e eram bem velozes e graciosos. Os pastores os conduziam com
cordas longas e finas. Carregavam também aves abatidas amarradas pelas
patas em cordas penduradas nos ombros e, ainda, levavam aves vivas
maiores debaixo dos braços.
Quando eles timidamente bateram na porta da gruta, São José veio até
eles com uma saudação amigável. Os pastores contaram-lhe o que o anjo
havia anunciado a eles naquela noite: que tinham ido para adorar a Criança
Prometida e para lhe ofertar presentes. José recebeu seus presentes com
humilde gratidão e os fez levar os animais para uma pequena câmara cuja
entrada está ao sul da gruta. Depois ele os acompanhou para dentro da gruta
principal e os levou até a Santíssima Virgem, que estava sentada sobre a
colcha, no chão, ao lado da manjedoura, segurando o Menino Jesus em seu
colo. Os pastores, segurando seus cajados nas mãos, lançaram-se de joelhos
ao chão, humildemente, diante de Jesus; choravam de alegria.
Permaneceram um longo tempo sem falar, em estado de beatitude, e depois
cantaram o hino de louvor dos anjos que tinham ouvido naquela noite, bem
como um salmo, do qual me esqueci. Quando eles se levantaram para ir
embora, a Santíssima Virgem pôs o pequeno Jesus em seus braços, um a
um. Eles O devolveram à Santíssima Virgem entre lágrimas; em seguida,
saíram da gruta.
À tarde vários pastores, pastoras e crianças da Torre dos Pastores, que
fica a quatro horas de distância da Gruta da Natividade, vieram até a
manjedoura com presentes. Trouxeram ovos, pássaros, mel, tecidos de
diferentes cores, punhados de seda crua, além de folhas e espigas cheias de
grossos grãos. Após entregarem seus presentes para São José, eles
aproximaram-se humildemente da manjedoura, ao lado da qual estava a
Santíssima Virgem. Saudaram a ela e à Criança, e, depois, ajoelhando-se à
sua volta, cantaram hinos encantadores, como o Gloria in Excelsis e alguns
pequenos versos. Cantei com eles, enquanto eles cantaram em partes. Em
um desses hinos, apenas cantei a segunda parte. Lembro-me mais ou menos
das palavras: “Oh, criancinha vermelha como uma rosa, como um arauto
vens adiante.” Quando se despediram, os pastores se curvaram sobre a
manjedoura, como se estivessem beijando o Menino Jesus.
[26 de novembro:] Hoje vi os três pastores se alternando em turnos
para ajudar São José a arrumar as coisas de modo mais confortável na gruta,
em torno dela e nas grutas laterais. Vi também mulheres muito piedosas ao
lado Nossa Senhora, ajudando-a de diversas maneiras. Essas mulheres eram
Essênias e viviam ao leste da colina, não muito longe da gruta. Moravam
próximas umas das outras na parte mais baixa do vale, em pequenas
câmaras no alto de uma rocha, num lugar onde a colina se dividia. Havia
pequenos jardins ao lado de suas habitações; lá ensinavam lições para as
crianças que pertenciam ao seu grupo religioso. Foi São José quem pediu
que elas viessem. Ele conhecia essa comunidade desde a infância, pois,
quando menino, escondeu-se de seus irmãos na Gruta da Natividade.
Algumas vezes visitou essas mulheres piedosas que viviam em casas nas
rochas. Elas revezavam-se para ir até a Santíssima Virgem, trazendo-lhe
feixes de lenha e outras pequenas necessidades, bem como cozinhando e
lavando para a Sagrada Família.
UM JUMENTO AJOELHA-SE DIANTE DE JESUS NA
GRUTA DE BELÉM. SANTA ANNA ENVIA SERVAS
PARA AUXILIAREM MARIA. AS MULHERES
ESSÊNIAS DA REGIÃO TAMBÉM VÃO AJUDAR
MARIA NA GRUTA DE BELÉM.

[27 de novembro:] Hoje vi uma cena muito tocante na gruta. José e


Maria estavam ao lado da manjedoura, olhando para o Menino Jesus com
grande devoção, quando o jumento ajoelhou-se de repente e curvou sua
cabeça para o chão. Maria e José choraram. Ao entardecer chegaram
mensageiros de Anna, a mãe de Nossa Senhora: um homem idoso e a serva
de Anna, uma viúva aparentada com ela, vindos de Nazaré. Trouxeram todo
tipo de pequenas coisas de que Maria necessitava. Ficaram muito
comovidos ao verem o Menino; o servo idoso derramou lágrimas de alegria.
Ele logo voltou para casa para levar notícias para Anna. A serva
permaneceu com a Santíssima Virgem.
[28 de novembro:] Hoje vi a Santíssima Virgem com o Menino Jesus e
a serva deixarem a gruta por várias horas. Vi que depois de passar pela
porta, a Santíssima Virgem virou para a direita, sob o teto coberto de folhas,
passou por alguns degraus e abrigou-se na gruta lateral. Essa era a gruta
onde a fonte de água jorrou no Nascimento de Cristo e que havia sido
represada por São José. Ela permaneceu quatro horas na gruta e depois
passou alguns dias ali. José tinha estado lá ao amanhecer para fazer algumas
arrumações, a fim de deixá-la mais confortável. Haviam recebido uma
inspiração divina para irem para lá, pois naquele dia vieram alguns homens
de Belém até a gruta, emissários de Herodes, creio eu, por causa do rumor
espalhado pelos pastores de que algo maravilhoso tinha ocorrido ali com
relação a uma criança. Vi esses homens trocando algumas palavras com São
José, a quem encontraram em frente à gruta na companhia de pastores.
Quando viram a pobreza e a simplicidade do local, eles o deixaram com
sorrisos desdenhosos. A Santíssima Virgem permaneceu com o Menino
Jesus cerca de quatro horas dentro da gruta lateral. Em seguida, o Menino
retornou para a manjedoura. A Gruta da Natividade está situada num lugar
muito bom e quieto. Ninguém vem de Belém para esse local, exceto os
pastores cujos trabalhos os trazem até lá. Em geral, ninguém em Belém dá
muita atenção ao que ocorre ali, por causa dos muitos forasteiros que
chegam e partem da cidade. Há muito comércio e abate de animais, uma
vez que muitas pessoas pagam seus impostos com animais.
Hoje vi também alguns parentes de São José, por cujas moradias a
Sagrada Família passou perto, na noite de 22 de novembro. Foram até a
Gruta saudar a Criança. Dentre eles estava o pai daquele Jonadab, que, na
crucifixão, trouxe um pano para cobrir a nudez de Jesus. Ele tinha ouvido
do estalajadeiro de sua aldeia sobre a jornada de José pelo lugar e sobre os
acontecimentos maravilhosos ocorridos no Nascimento da Criança. Trouxe
presentes para Ele a caminho do Sabá, em Belém. Saudou Maria e adorou o
Menino Jesus. José foi muito amável, mas dele nada aceitou. Ao contrário,
deu-lhe a jumentinha (que corria à frente livremente com eles) como
penhor, com a condição de que ele a vendesse por algum dinheiro. José
necessitava do dinheiro para pagar pelos presentes e pela refeição na
cerimônia de circuncisão. Depois de José ter concluído o negócio e de todo
mundo ter ido embora para a sinagoga em Belém, ele pendurou uma
lâmpada com sete mechas, acendeu-a e a pôs debaixo de uma mesa coberta
com um pano vermelho e branco, sobre a qual colocou rolos com orações.
Debaixo da lâmpada, ele celebrou a véspera do Sabá, recitando orações com
a Santíssima Virgem e a serva de Anna. Dois pastores ficaram de pé, mais
para trás na entrada da gruta. As mulheres Essênias também estavam
presentes e depois elas prepararam a refeição. Na, véspera do Sabá, as
mulheres Essênias e a serva prepararam vários pratos para o dia seguinte. Vi
as aves depenadas e limpas sendo assadas num espeto sobre brasas.
Enquanto as assavam, elas envolviam as aves numa espécie de farinha feita
de grãos socados, que cresciam em espigas de uma planta parecida com o
junco. Essa planta selvagem cresce somente em lugares úmidos e
pantanosos naquele país e no lado ensolarado. Em alguns lugares ela é
cultivada. Cresce perto de Belém e Hebron, mas nunca a vi nas redondezas
de Nazaré. Os pastores da torre trouxeram algumas dessas espigas para
José. Eu os vi transformando os grãos numa grossa farinha branca e
brilhante, com a qual assavam pães. Vi buracos abertos, debaixo da lareira
muito quente, onde assavam bolos, aves e outras coisas. Guardavam para si
muito pouco das muitas provisões dadas pelos pastores a São José. A maior
parte era dada em forma de presentes e comida para outras pessoas,
especialmente os pobres. No dia seguinte, ao entardecer, durante a refeição
da cerimônia da circuncisão, haverá uma grande partilha.
A CIRCUNCISÃO DE JESUS NA GRUTA DE BELÉM.

[1o de dezembro:] Nesta tarde vi mais pessoas, que estavam guardando


o Sabá, irem para a Gruta da Natividade. Ao entardecer, depois do término
do Sabá, vi as mulheres Essênias e a serva de Maria preparando a refeição
em um caramanchão em frente à entrada da gruta. José começou a montar
esse caramanchão com os pastores vários dias antes. Ele também havia
desocupado seu quarto, na entrada da gruta, e coberto o chão com tapetes,
decorando tudo do modo mais festivo possível, conforme sua pobreza
permitia. Ele havia feito todos os arranjos antes do início do Sabá, pois no
dia seguinte seria o oitavo dia do nascimento de Cristo, quando a criança
precisava ser circuncidada, de acordo com a lei de Deus. Perto do
entardecer, José foi para Belém e retornou com três sacerdotes: um homem
mais velho e uma mulher, que parecia atuar como enfermeira nessa
cerimônia solene. Esta trouxe uma cadeira especialmente usada para a
ocasião e uma grossa prancha octogonal de pedra contendo tudo o que era
necessário. Todas essas coisas eram dispostas sobre esteiras espalhadas pelo
lugar onde a cerimônia ocorria. Isso foi na entrada da gruta, não muito
longe da manjedoura, entre a divisória removida mais tarde por José e a
lareira. A cadeira era, na realidade, uma caixa e podia ser estendida para
formar uma espécie de sofá baixo com um braço de um lado. Estava coberta
com um material vermelho. Era usada mais para se deitar do que se sentar.
A pedra octogonal devia ter sessenta e seis centímetros de diâmetro. No seu
centro havia uma cavidade octogonal com uma placa de metal; possuía três
caixas com uma faca de pedra em um dos compartimentos separados. Essa
pedra era disposta ao lado da cadeira numa banqueta de três pernas, que até
então estava sempre coberta com um pano, no lugar onde Nosso Senhor
nascera. Quando tudo havia sido arrumado, os sacerdotes saudaram a
Santíssima Virgem e o Menino Jesus. Falaram palavras amáveis a ela e
tomaram o Menino em seus braços com emoção. Depois tomaram uma
refeição sob o caramanchão diante da entrada. Várias pessoas pobres (que
haviam seguido os sacerdotes como sempre ocorre nessas ocasiões)
rodearam a mesa, recebendo durante a refeição presentes de José e dos
sacerdotes, de modo que rapidamente tudo foi distribuído. Vi o sol se
pondo; parecia ser maior do que o de casa. Vi seus raios brilhando através
da porta aberta para dentro da Gruta da Natividade.
[Domingo, 2 de dezembro. Anna Catharina não menciona se depois da
refeição feita no dia anterior, os sacerdotes retornaram para cidade ou se
retornaram na manhã seguinte ou ainda se passaram a noite na gruta ou nas
proximidades:] Havia lâmpadas acesas na gruta e eu os vi rezando e
cantando durante a noite. A circuncisão ocorreu ao amanhecer, oito dias
após o nascimento do Nosso Senhor. A Santíssima Virgem estava aflita e
ansiosa. Ela mesma havia preparado pequenos panos para recolher o sangue
e enfaixar a Criança. Guardava tudo junto ao peito, na dobra de seu manto.
A pedra octogonal foi coberta pelos sacerdotes, primeiro com um tecido
vermelho e depois com um branco. Tudo era acompanhado com orações e
cerimônias. Um dos sacerdotes posicionou-se na cadeira, mais recostado do
que sentado, enquanto a Santíssima Virgem, que estava velada, segurando o
Menino Jesus em seus braços, no fundo da gruta, deu a Criança para a serva
junto às bandagens. São José pegou Jesus dos braços da serva e deu-O à
enfermeira que acompanhava os sacerdotes. Ela deitou o pequeno Jesus,
coberto com um véu, sobre a pedra octogonal.
Orações foram novamente oferecidas, até que a mulher desenfaixou o
Menino de Sua fralda e O colocou no colo do sacerdote, que estava na
cadeira. São José curvou-se sobre os ombros desse sacerdote ao segurar a
parte superior do corpo da Criança. Dois sacerdotes ajoelharam-se à direita
e à esquerda, segurando, cada um, um dos pés da Criança: aquele que ia
comandar a cerimônia ajoelhou-se diante Dela. A coberta foi removida da
pedra para descobrir as três caixas com unguentos curativos e loções. O
cabo e a lâmina da faca eram ambos de pedra. A lâmina não parecia muito
afiada. O corte era feito com a ponta em forma de gancho da lâmina, que
devia ter cerca de vinte e dois centímetros de comprimento. Depois ele
enxugou o ferimento e untou-o com a loção curativa e com uma substância
anestésica de uma das caixas.
A parte que foi cortada, ele colocou entre dois discos redondos de um
material precioso, brilhante e de coloração avermelhada, levemente
côncavo no centro, formando uma espécie de caixa achatada que foi
entregue para a Santíssima Virgem. A enfermeira tomou a Criança,
enfaixou-A e enrolou-A novamente nas faixas da fralda. Até então estas,
que eram vermelhas em baixo e brancas em cima, tinham sido enroladas até
embaixo de seus braços. Agora os bracinhos também haviam sido
enfaixados e o véu enrolado em torno de Sua cabeça, em vez de apenas
cobri-la. Ele foi deitado novamente sobre a pedra octogonal, que foi coberta
com suas roupas, enquanto mais orações foram pronunciadas sobre Ele.
Embora eu soubesse que o anjo havia dito a José que a criança devia se
chamar Jesus, lembro-me ainda de que o sacerdote não havia aprovado esse
nome de imediato, por isso começou a orar. Vi então um anjo reluzente
aparecer diante desse sacerdote, segurando diante de seus olhos uma
tabuleta (como aquela na Cruz) com o nome Jesus. Não sei se ele ou
qualquer outro dos sacerdotes viu esse anjo do modo como eu o vi, mas ele
ficou aterrado. Eu o vi escrevendo esse nome por inspiração divina num
pergaminho.
O Menino Jesus chorou em alta voz após a sagrada cerimônia. Ele foi
entregue a São José e depois à Santíssima Virgem, que estava de pé com
mais duas mulheres no fundo da gruta. Ela chorou quando O tomou nos
braços e retirou-se para o canto onde estava a manjedoura. Ali sentou-se,
envolveu o Menino Jesus em seu véu e acalmou o choro, amamentando-O.
José também deu à Maria os paninhos em que foi recolhido o Preciosíssimo
Sangue: a enfermeira guardou os panos ensanguentados que sobraram.
Novas orações foram proferidas, acompanhadas de hinos; a lâmpada estava
ainda acesa, mas o dia já ia nascendo. Depois de um tempo, a Santíssima
Virgem veio para frente e deitou o Menino sobre a pedra octogonal; os
sacerdotes ergueram suas mãos na direção de Maria e sobre o Menino.
Depois disso ela se retirou, levando consigo a Criança.
Antes dos sacerdotes irem embora, levando tudo o que haviam trazido,
eles tomaram uma refeição leve, no caramanchão, com José e com alguns
pastores que tinham ficado na entrada da gruta. Vi que todos que tomaram
parte dessa santa cerimônia eram pessoas boas e que os sacerdotes foram
posteriormente iluminados e obtiveram a salvação.
VISITA DE ISABEL À SAGRADA FAMÍLIA NA
GRUTA DE BELÉM.

[3 de dezembro:] Neste entardecer vi Isabel vindo de Juta para a Gruta


da Natividade. Ela estava montada num jumento, conduzido por um antigo
servo. José a recebeu afetuosamente. Ela e Maria abraçaram-se com grande
alegria. Depois Isabel aconchegou o Menino Jesus junto ao seu coração
entre lágrimas. Sua cama foi preparada ao lado do lugar onde Jesus nasceu.
Em frente desse lugar, ficava, algumas vezes, um suporte alto, parecido com
um cavalete de serrar, com uma pequena caixa em cima. Eles
frequentemente deitavam o Menino Jesus nessa caixa, onde ficavam em
oração à sua volta, acariciando-O. Devia ser o costume lá, pois vi Maria
criança, na casa de Anna, também deitada num suporte semelhante. Isabel e
Maria conversaram com a mais doce intimidade.
[4 de dezembro:] Ontem ao entardecer e novamente hoje, vi Maria e
Isabel sentadas juntas conversando docemente. Senti vontade de sentar-me
junto a elas para ouvir toda a conversa, com o coração cheio de alegria. A
Santíssima Virgem contou tudo o que lhe havia acontecido. Quando
descreveu a dificuldade em encontrar um alojamento em Belém, Isabel
chorou comovida.
OS REIS MAGOS E SUA ORIGEM.

Agora vi todos os três reis magos juntos. O que chegou por último,
Theokenos, é o que morava mais longe. Sua face era de uma bela cor
amarelada. (Eu o reconheci como aquele que estava doente em sua tenda,
quando trinta e dois anos mais tarde Jesus o visitou em seu assentamento
perto da Terra Prometida.) Cada um dos três reis tinha quatro parentes
próximos ou amigos de sua família, de modo que, contando os reis, havia
quinze pessoas importantes do grupo, além dos vários servos e guias dos
camelos que os acompanhavam. Os muitos jovens na comitiva andavam
sem roupa da cintura para cima e eram incrivelmente ágeis para saltar e
correr.
À tarde, quando o seu confessor lhe perguntou os nomes dos três reis
magos, ela, Anna Catharina, respondeu: “Mensor, o de face marrom, depois
da morte de Cristo recebeu o nome de Leandro ao ser batizado por São
Tomé. Theokenos, o velho, de face amarelada, que estava doente durante a
visita de Jesus ao acampamento de Mensor, na Arábia, foi batizado por São
Tomé com o nome de Leo. O de pele marrom, que já havia falecido quando
Nosso Senhor fez Sua visita, era chamado de Seir ou Sair.” Seu confessor
lhe perguntou: “Como foi ele então batizado?” Ela respondeu, sorrindo, sem
hesitação: “Como ele já havia morrido recebeu o batismo de desejo”. Seu
confessor disse ainda: “Nunca ouvi tais nomes em minha vida: como eles
obtiveram os nomes Gaspar, Melquior e Baltazar?” Ela respondeu: “Eles
assim eram chamados por causa de seu caráter, já que estes nomes
significam: (1) Ele vai com amor; (2) Ele vagueia e se aproxima
gentilmente com gestos agradáveis; (3) Ele toma decisões rápidas, e
rapidamente direciona sua vontade para a vontade de Deus”. Acrescentou
isso com grande carinho, expressando o sentido dos nomes por mímica.
Fica para os especialistas em linguística decidir como analisar os
significados.
Sair vivia a três dias de jornada da casa de Mensor, e Theokenos a
cinco dias de viagem. Cada dia de viagem compreendia doze horas de
deslocamento. Mensor e Sair estavam juntos no acampamento quando
tiveram a visão da estrela sobre o Nascimento de Nosso Senhor. Partiram no
dia seguinte com seus acompanhantes. Theokenos teve a mesma visão em
sua casa e seguiu atrás dos outros com grande pressa, alcançando-os na
cidade abandonada. Creio que a duração de sua viagem até Belém foi em
torno de 700 horas. A viagem durava cerca de sessenta dias, cada um com
doze horas de movimentação. Eles a fizeram em 33 dias devido à grande
velocidade de seus animais e por terem algumas vezes viajado também à
noite.
A estrela que ia adiante deles não era um cometa, mas uma
luminosidade brilhante transportada por um anjo. De dia, seguiam o anjo.
No coração da estrela, ou melhor, do globo de luz, que ia adiante deles
para indicar-lhes o caminho, eu vi a aparição de uma Criança com uma
Cruz. Quando eles viram a Virgem nas estrelas, no nascimento de Jesus, o
globo de luz apareceu na frente da imagem e subitamente começou a
mover-se para frente de modo suave.
Se considerarmos a distância que tinham de viajar, a velocidade de sua
jornada era impressionante. Seu passo era tão rápido e constante que eu os
vi se deslocando para frente com a mesma organização, rapidez e ritmo de
um voo de pássaros migratórios. As casas dos três reis ficavam nas três
pontas de um triângulo. Mensor e Sair viviam mais próximos um do outro
do que Theokenos. Eles já haviam passado a Caldeia, creio eu, onde uma
vez eu vi o jardim anexo ao templo. A distante cidade de Theokenos tinha
suas fundações de pedras, sobre as quais estavam todas as tendas. Existia
água à sua volta. Parecia-me do mesmo tamanho de Münster.
Os ancestrais dos reis descendem de Jó, que viveu uma vez no
Cáucaso e que possuía outras terras afastadas. Cerca de 1500 anos antes
do nascimento de Cristo, apenas uma tribo deles permaneceu lá.
A SAGRADA FAMÍLIA MUDA-SE PARA OUTRA
GRUTA PRÓXIMA PARA DAR LUGAR À SANTA
ANNA E SUA COMITIVA, QUE CHEGARAM PARA
VISITÁ-LOS.

[19 e 22 de dezembro:] No entardecer de 19 de dezembro, vi Anna,


acompanhada de seu segundo marido e de Maria Heli, bem como de uma
serva e de um servo com dois jumentos, interrompendo a viagem para
passar a noite não muito longe de Betânia, em seu caminho rumo a Belém.
José já havia terminado com os preparativos que estava fazendo na Gruta da
Natividade e nas grutas adjacentes. Aguardava a chegada tanto dos
visitantes de Nazaré quanto dos reis, prevista por Maria há pouco, quando
ainda estavam em Causur.
José e Maria tinham se mudado com o Menino Jesus para outra gruta.
A Gruta da Natividade tinha sido inteiramente esvaziada; apenas o jumento
havia sido deixado dentro dela. Mesmo a lareira e os utensílios para a
preparação de alimentos foram tirados de lá. José já tinha, lembro-me bem,
pago sua segunda taxa. Novamente havia visitantes curiosos vindos de
Belém para ver a Criança. Alguns, Ele permitiu que O pegassem nos
braços, a outros, recusou-se, chorando. Vi a Santíssima Virgem, calma e em
paz na nova habitação, que tinha sido arrumada muito confortavelmente.
Sua cama estava enrolada junto à parede. O Menino Jesus ficava a seu lado
em uma cesta confeccionada com longas e largas tiras de casca de árvore,
com uma cobertura para a cabeça e sobre cavaletes. A cama de Nossa
Senhora e o berço de Jesus ficavam separados do resto do ambiente por um
biombo de vime. Durante o dia, exceto quando desejava ficar recolhida, ela
se sentava em frente a esse biombo com a Criança ao seu lado. O local de
descanso de José ficava um pouco distante, na lateral da gruta, e era
dividido da mesma forma. Um vaso com uma lâmpada ficava sobre um
pedaço de madeira, preso na parede, alto o suficiente para iluminar os dois
cantos separados pelos biombos. Vi José trazendo para Maria uma tigela de
comida e uma botija de água.
[20 de dezembro:] No entardecer, iniciou-se o jejum. Todo o alimento
para o dia seguinte era preparado antecipadamente, o fogo era apagado, as
aberturas da gruta eram cobertas com cortinas e todos os utensílios
domésticos eram guardados. Anna tinha chegado à gruta com seu segundo
marido, juntamente à irmã mais velha de Maria e a uma serva. Vi Anna em
sua jornada vários dias atrás. Os visitantes iriam dormir na Gruta da
Natividade; por isso a Sagrada Família mudou-se para a gruta lateral,
embora o jumento tenha ficado para trás. Hoje vi Maria deitar o Menino
Jesus no colo de sua mãe; Anna ficou muito comovida. Ela trouxe consigo
cobertas, roupas e provisões. A serva de Anna estava estranhamente
vestida. O cabelo dela era trançado e ia até a sua cinta; usava um vestido
que ia até os joelhos somente. Seu corpete, acentuado, estava apertado
firmemente em torno dos quadris e do peito. Carregava uma cesta
pendurada em seu braço. O velho (marido de Anna) era muito tímido e
humilde. Anna dormiu onde Isabel havia dormido e Maria disse-lhe tudo o
que havia dito a Isabel, em feliz intimidade, Anna chorou com a Santíssima
Virgem; frequentemente interrompiam a conversa para afagar o Menino
Jesus.
[21 de dezembro:] Hoje vi a Santíssima Virgem mais uma vez na Gruta
da Natividade e o Menino Jesus na Manjedoura. Quando José e Maria estão
sozinhos, eu os vejo frequentemente adorando o pequeno Jesus; agora vejo
Anna e a Santíssima Virgem ao lado da Manjedoura, com as cabeças
curvadas, olhando atentamente para o Menino Jesus em grande devoção.
Não estou certa se os demais acompanhantes de Anna dormiram na mesma
gruta ou se foram embora. Estou quase certa de que partiram. Hoje vi Anna
entregar para Maria e à Criança diversas coisas, tais como cobertas e faixas
(usadas como fraldas). Desde que chegou, Maria tem ganhado muitas coisas
boas; mas tem muito pouco de tudo, porque sempre doa imediatamente
qualquer coisa que não seja absolutamente necessária. Eu a ouvi dizendo a
Anna que reis do extremo oriente estariam chegando em breve, trazendo
grandes presentes e que isso causaria grande sensação. Creio que, enquanto
os reis estão a caminho dali, Anna irá para a casa de sua irmã, distante umas
três horas, voltando depois.
[22 de dezembro:] No entardecer, depois de terminado o Sabá, vi Anna
e seus acompanhantes partirem por um curto tempo. Ela foi, em uma
jornada de três horas, para a tribo de Benjamim, até a casa de uma irmã
casada e mais nova que lá vivia. Não me recordo o nome do vilarejo, que
consistia de umas poucas casas e um campo. Fica a meia hora do último
lugar de parada da Sagrada Família, em sua jornada para Belém, onde os
parentes de José viviam.
CHEGADA DOS REIS MAGOS A JERUSALÉM E
ENCONTRO COM HERODES.

Hoje [entardecer de sábado, 22 de dezembro] vi os três reis magos e


sua comitiva chegando diante de Jerusalém. Vi a cidade sobressaindo para o
céu. A estrela guia tinha quase desaparecido, havia se tornado pequena e
brilhava muito pouco atrás da cidade. Os viajantes ficaram mais e mais
deprimidos à medida que se aproximavam de Jerusalém, porque a estrela
não brilhava tanto, sendo raramente vista na Judéia. Esperavam, também,
encontrar grande alegria e festividades em todas as partes pelo Salvador
recém-nascido, por amor de quem tinham feito tão longa jornada. Quando,
entretanto, não encontraram em lugar algum o menor traço de alegria por
causa Dele, entristeceram-se e encheram-se de dúvidas, pensando que
talvez estivessem completamente enganados.
O palácio de Herodes ficava num lugar elevado, não muito longe dali;
eu vi o local iluminado com tochas e braseiros em postes. Herodes enviou
um servo para escoltar o mais velho dos reis, Theokenos, ao seu palácio e
em segredo. Era depois das dez da noite. Este foi recebido, num salão
inferior, por um dos cortesãos de Herodes e questionado sobre o objetivo de
sua jornada. Respondeu tudo da maneira mais inocente e suplicou-lhe que
perguntasse a Herodes onde encontrar o Rei dos Judeus recém-nascido cuja
estrela tinham visto e seguido a fim de adorá-Lo. Quando o cortesão
reportou isto a Herodes, ele ficou muito assustado; disfarçou e em resposta
enviou uma mensagem dizendo que iria investigar. Nesse meio-tempo os
reis deveriam descansar.
No dia seguinte, cedo, ele pessoalmente falaria com todos os reis e
diria o que houvesse descoberto. Theokenos, por isso, não tinha condições
de dar nenhuma palavra de encorajamento a seus companheiros quando se
juntou novamente a eles. Não fizeram preparativos para descansar; ao
contrário, ordenaram que tudo que havia sido descarregado fosse
novamente carregado. Não os vi dormindo naquela noite toda; ficaram
vagando separadamente pela cidade com guias, olhando para o céu como se
estivessem procurando sua estrela. Em Jerusalém, tudo estava quieto. Havia
muita conversa e movimentação da guarda da cidade diante do pátio. Os
reis eram da opinião de que Herodes provavelmente sabia de tudo, mas
desejava manter segredo.
Herodes estava dando uma festa quando Theokenos foi ao palácio; os
salões estavam iluminados, cheios de convidados e de mulheres sem pudor
trajando vestes finas. As perguntas de Theokenos sobre um Rei recém-
nascido perturbaram profundamente Herodes, e ele imediatamente
convocou todos os sumossacerdotes e escribas. Eu os vi chegando até ele,
antes da meia-noite, com seus rolos, trajando vestes sacerdotais, cintas e
peitorais com inscrições. Vi cerca de vinte deles. Herodes perguntou-lhes
onde o Cristo devia nascer e eu os vi desenrolando seus pergaminhos,
apontando com seus dedos: em Belém de Judá, pois está escrito pelo profeta
Miquéias: “Mas tu, Belém, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que
sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel.” Vi Herodes
andando sobre o teto do palácio com alguns dos sacerdotes, procurando em
vão pela estrela da qual Theokenos havia falado. Ele estava num estado de
inquietação extrema. Os experientes sacerdotes esforçaram-se para que ele
não acreditasse no que os reis tinham dito. Esse povo sonhador, disseram
eles, estão sempre cheios de ideias fantásticas sobre suas estrelas; se tal
coisa tivesse de fato acontecido, Herodes e eles mesmos, no Templo na
Cidade Santa, seriam certamente os primeiros a saber.
[23 de dezembro, domingo:] Bem cedo, naquela manhã, Herodes
convocou secretamente os três reis ao seu palácio. Foram recebidos sob
uma arcada e levados para um salão, onde havia ramos verdes e arbustos
arrumados em vasos como sinal de boas-vindas. Receberam alguma bebida.
Permaneceram de pé por um momento até Herodes chegar e, depois de se
curvarem diante dele, novamente lhe perguntaram sobre o Rei dos Judeus
recém-nascido. Herodes ocultou seu desconforto o melhor que pôde e até
fingiu certa alegria. Alguns dos escribas ainda estavam com ele. Perguntou
aos reis sobre o que viram e Mensor descreveu-lhe a última vista antes de
partirem em viagem. Disse ele: era uma Virgem com uma Criança diante
dela; do lado direito da imagem crescia um ramo de luz, contendo uma torre
com vários portões. A torre tinha crescido e tornado-se uma grande cidade,
sobre a qual a Criança aparecia como um rei com coroa, espada e cetro.
Viram a si próprios e aos reis de todo o mundo curvarem-se diante da
Criança em adoração, porque Seu reino iria conquistar todos os outros
reinos. Herodes disse-lhes que uma profecia desse tipo sobre Belém Efrata
existia de fato e pediu-lhes que fossem logo para lá muito discretamente, e,
quando tivessem encontrado e adorado a Criança, retornassem para avisá-lo
para que também ele pudesse ir adorá-Lo. Herodes falou-lhes em segredo
por causa do falatório na cidade. Quando o dia começou a raiar, eles
fizeram todos os preparativos para a partida.
CHEGADA DOS REIS MAGOS À GRUTA DA
NATIVIDADE EM BELÉM. OS REIS ADORAM O
SANTO MENINO.

Quando os reis e sua comitiva chegaram (em Belém), uma multidão de


curiosos se aglomerou à sua volta. A estrela havia desaparecido e eles
estavam um pouco inquietos. Alguns homens puseram-se a questioná-los.
Desmontaram e nisso os oficiais da casa aproximaram-se, oferecendo-lhes
um lanche com pão, frutas e bebida. Era a maneira usual de se receber
forasteiros como esses. Enquanto isso vi seus animais recebendo água numa
fonte, sob as árvores. Pensei comigo: esses estrangeiros, por causa das
pequenas peças de ouro que distribuíam, são mais amavelmente recebidos
do que o pobre José. Disseram-lhes que o Vale dos Pastores era um bom
lugar para acamparem, mas permaneceram por algum tempo indecisos. Não
os vi perguntarem pelo Rei dos Judeus recém-nascido; sabiam que, de
acordo com a profecia, aquele era o lugar, mas por causa do que Herodcs
havia-lhes dito, estavam com receio de fazer qualquer comentário. Contudo,
quando viram uma luz brilhando no céu ao lado de Belém, como se a lua
estivesse surgindo, montaram novamente e cavalgaram ao lado de uma vala
e de alguns muros em ruínas ao redor do lado sul de Belém em direção ao
leste, aproximando-se da Gruta da Natividade a partir do campo onde os
anjos apareceram aos pastores. Entrando no vale atrás da gruta, próximo ao
túmulo de Maraha, desmontaram. Sua gente descarregou a maior parte da
bagagem e levantou uma grande tenda. Fizeram todos os preparativos para
um acampamento com a ajuda de alguns pastores, que lhes indicaram os
lugares.
O acampamento tinha sido parcialmente arrumado, quando os reis
viram a estrela aparecer, brilhante e clara, acima da colina onde estava a
Gruta da Natividade. A luz que dela emanava descia numa linha vertical
sobre a colina. A estrela parecia crescer à medida que se aproximava, até se
tornar um corpo de luz.
Primeiro eu os vi olhando para ela com grande espanto. Como já
estava escuro, não viram nenhuma casa, mas apenas o contorno da colina.
Subitamente ficaram repletos de grande alegria, pois viram na luminosidade
o brilho da figura de uma Criança, como a que tinham visto anteriormente
na estrela. Todos descobriram suas cabeças em sinal de respeito e os três
reis, indo colina acima, encontraram a porta da gruta. Ao abri-la, Mensor
viu-a repleta de luz celestial com a Virgem, ao fundo, sentada com a
Criança, exatamente como em suas visões. Ele voltou um pouco para trás
para relatar isso aos seus companheiros. Nesse meio-tempo, José,
acompanhado por um pastor idoso, saiu da gruta para encontrar-se com
eles. Eles disseram-lhe, com a simplicidade de uma criança, que tinham
vindo para adorar o recém-nascido Rei dos Judeus, cuja estrela tinham
visto. Traziam-Lhe presentes.
José deu-lhes cordiais boas-vindas e o velho pastor os acompanhou até
seu acampamento para ajudá-los em seus preparativos; alguns dos pastores
cederam alguns abrigos. Eles mesmos se prepararam para a cerimônia
solene que estava para se realizar. Eu os vi vestindo grandes mantos brancos
com longas caudas. O material tinha um brilho amarelado, como seda crua,
lindamente fino e leve. Usavam esses mantos esvoaçantes em todas as suas
cerimônias. Todos os três usavam cintos com muitas bolsas e caixas de ouro
(como açucareiro com puxador na tampa) penduradas por pequenas
correntes. Cada um dos reis era seguido por quatro membros de sua família.
Além disso, vários servos de Mensor seguravam uma pequena tábua como
bandeja, um tapete com pendões e algumas tiras de tecido fino.
Os reis seguiram São José numa procissão ordenada até a cobertura da
entrada da gruta, onde cobriram a bandeja com o tapete. Cada rei colocou
nessa bandeja algumas das caixas de ouro e dos vasos que estavam em seus
cintos; essa foi a oferta que fizeram em comum. Mensor e todos os outros
tiraram as sandálias dos pés, enquanto José abria a porta da gruta.
Dois jovens, que acompanhavam Mensor, foram adiante dele,
estendendo tiras de pano no chão da gruta diante de seus pés e depois as
retirando. Dois outros vieram atrás dele com a bandeja de presentes. Diante
da Santíssima Virgem, Mensor, caindo de joelhos, colocou a bandeja, a seus
pés, sobre uma mesinha. Aqueles que carregavam a bandeja recuaram.
Atrás de Mensor estavam os quatro membros de sua família, curvando-se
humildemente. Sair e Theokenos, com seus acompanhantes, ficaram na
entrada debaixo da cobertura. Estavam como que embriagados de êxtase e
pareciam transpassados pela luz que enchia a gruta, embora não houvesse
nenhuma luz ali, a não ser a Luz do Mundo. Maria estava recostada em um
carpete, apoiada em seu braço, à esquerda do Menino Jesus. A Criança
estava deitada numa gamela com um tapete e posicionada sobre uma mesa
alta, oposta à entrada da gruta, no lugar onde havia nascido. À medida que
os reis entravam, a Santíssima Virgem posicionava-se sentada, coberta por
um véu, com o Menino Jesus em seu colo sob seu amplo véu. Mensor
ajoelhou-se, declamando tocantes palavras enquanto apresentava seus
presentes, curvando-se humildemente e cruzando suas mãos em seu peito.
Sua cabeça estava descoberta. Maria desatou as faixas brancas e vermelhas
da parte superior do corpo da Criança, que brilhava suavemente atrás de seu
véu. Ela segurava Sua cabeça com uma mão e o restante do corpo com a
outra. Ele segurava suas mãozinhas diante de Seu peito como que em
oração. Ele resplandecia em sinal de boas-vindas e fazia pequenos gestos
amáveis com as mãos.
Vejo Mensor tirando de uma bolsa, pendurada em seu cinto, uma mão
cheia de pequenas barras grossas e brilhantes, compridas como um dedo e
pontudas em cima, salpicadas com pequenos grãos dourados no meio. Ele
as ofereceu para Nossa Senhora como um presente seu, depositando-as
humildemente junto aos seus joelhos, ao lado da Criança. Ela aceitou o ouro
com carinhosa gratidão e o cobriu com a ponta de seu manto. As barras de
ouro eram o presente de Mensor, porque ele era cheio de fidelidade e amor
e estava à procura da sagrada verdade com fervor inabalável e devoção. Em
seguida retirou-se com seus companheiros.
Sair veio à frente com sua gente. Caiu de joelhos com grande
humildade e ofereceu seu presente com tocantes palavras de homenagem.
Depositou sobre uma mesa diante do Menino Jesus um vaso de incenso
feito em ouro, cheio de grãos esverdeados de resina. Incenso era o seu
presente, porque ele havia acolhido a vontade de Deus e a seguia de bom
grado, reverentemente e com amor. Permaneceu ajoelhado por um longo
tempo, em profunda devoção, antes de se retirar.
Depois veio Theokenos, o mais velho. Era bem idoso e pesado e não
foi capaz de se ajoelhar, mas permaneceu curvado. Colocou sobre a mesa
um vaso de ouro contendo uma delicada planta verde. Parecia estar
enraizada; era uma pequena árvore reta, muito delicada, com folhagem
curva e pequenas flores brancas. Seu presente, a mirra, simboliza
mortificação e superação das paixões; pois esse bom homem tinha vencido
grandes tentações de idolatria, poligamia e violência. Permaneceu em pé
por um longo tempo com seus companheiros, em profunda emoção, diante
do Menino Jesus. Senti muito pelos outros servos diante da Manjedoura
terem de esperar tanto tempo a fim de verem a Criança.
Os discursos feitos pelos reis e seus acompanhantes foram
extremamente tocantes e inocentes. Quando se ajoelhavam e ofereciam seus
presentes, diziam: “Nós vimos Sua estrela, vimos que Ele é Rei acima de
todos os reis e viemos adorá-Lo e prestar-Lhe homenagens com nossos
presentes” — ou algo semelhante. Pareciam estar em êxtase, e, com orações
inocentes, cheias de enlevo, consagravam a si próprios, suas famílias, suas
terras e povos, todos os seus bens e posses e tudo de valor que possuíam ao
Menino Jesus. Suplicaram ao Rei recém-nascido que aceitasse seus
corações e almas, todos os seus pensamentos e ações, rogando-Lhe que os
iluminasse, concedendo-lhes todas as virtudes, felicidade, paz e amor.
Enquanto assim rezavam, transbordavam de encantadora humildade;
lágrimas de alegria corriam por seus rostos e barbas. Estavam
extremamente felizes e pensaram que tinham alcançado ali a própria estrela,
à qual seus antepassados tinham visto por séculos em ardente desejo e fé.
Eram só alegria pelas promessas cumpridas depois de muitos séculos.
A Mãe de Deus aceitou todos esses presentes com humilde gratidão.
Primeiramente nada disse. Em um delicado movimento, sob seu véu,
mostrou a alegria e emoção que sentiu. O corpo da Criança, à mostra,
enrolado em seu véu, parecia brilhar debaixo do manto. Depois disso ela
falou algumas amáveis e humildes palavras de gratidão para cada rei. Ah,
disse para mim mesma, recebi uma nova lição. Com que doce e adorável
gratidão ela aceita cada presente — ela, que nada precisa, além do próprio
Jesus, aceita com humildade todo presente de amor. Por certo aprendi como
presentes de amor deveriam ser recebidos; eu, também, no futuro, aceitarei
toda gentileza com toda gratidão e humildade. Quão doces são Maria e
José; nada guardam para si, mas doam tudo para os pobres.
DESPEDIDA DOS REIS MAGOS. (UM DIA DEPOIS)

Os reis, sem dúvida, pretendiam viajar no dia seguinte para Jerusalém


e dizer a Herodes que eles haviam encontrado a Criança. Eles desejavam
fazê-lo mais discretamente e foi por isso que mandaram muitos partirem
antes, tornando a jornada mais fácil. Eles e seus dromedários podiam
alcançá-los sem dificuldade.
Ao entardecer foram para a Manjedoura para se despedirem. Mensor
entrou primeiro, sozinho. Maria colocou o Menino Jesus em seus braços;
ele derramou lágrimas, enquanto seu rosto brilhava de alegria. Depois dele,
os dois outros entraram e choraram ao se despedirem. Levaram, ainda, mais
presentes: muitas peças de diferentes tecidos, algumas com aparência de
seda natural, algumas vermelhas e outras com bordados florais; além disso,
levaram um número razoável de belas e delicadas colchas; deixaram
também seus amplos e finos mantos, que eram amarelo-claros e pareciam
ser tecidos da mais pura lã — eram tão leves que se moviam com o menor
movimento do ar. Também levaram muitas tigelas empilhadas, uma dentro
da outra, e caixas cheias de grãos, bem como uma cesta com pequenos e
delicados arbustos, com pequenas flores brancas, dispostos em potes. Havia
três desses arbustos no centro de cada pote, dispostos de forma que um
outro pote pudesse ser colocado na ponta. Esse arbusto era mirra. Também
deram a José cestas longas e estreitas contendo pássaros, que poderiam ser
preparados em futuras refeições.
Todos derramaram muitas lágrimas quando deixaram a Criança e
Maria. Vi a Santíssima Virgem de pé ao lado deles enquanto se despediam.
Ela segurava o Menino Jesus em seus braços, enrolado em seu véu. Andou
alguns passos acompanhando os reis até a porta da gruta. Ali permaneceu e,
a fim de dar a esses santos homens uma recordação, ofereceu-lhes um fino
véu amarelo que cobria o Menino Jesus e a ela; entregou-o a Mensor. Os
reis receberam o presente com profunda reverência; seus corações
transbordaram de fervor e gratidão quando viram o Menino Jesus com a
Santíssima Virgem de pé diante deles, sem o véu que os cobria. Eles
choravam de felicidade enquanto deixavam a gruta. Desse dia em diante, o
véu era o tesouro mais precioso que possuíam.
A maneira como a Santíssima Virgem aceitava presentes, embora não
mostrasse satisfação pelas coisas, era particularmente muito tocante devido
à humildade e real gratidão que demonstrava a quem lhe ofertava alguma
coisa. Durante essa maravilhosa visita, não vi nela qualquer traço de
interesse pessoal, exceto o amor pelo Menino Jesus e a piedade por José.
Ela permitia-se, com toda simplicidade, a esperança de que agora
pudessem, talvez, encontrar um abrigo em Belém e não serem tão
maltratados quando lá chegassem. Maria havia ficado profundamente triste
ao ver o sofrimento de São José na procura por um abrigo.
Depois da despedida dos reis, a escuridão da noite aumentou. Por isso
uma lâmpada foi acesa na gruta. Os reis foram com seus acompanhantes até
o grande e velho terebinto, acima do túmulo de Maraha, para o culto do fim
da tarde, como haviam feito no dia anterior. Uma lâmpada foi acesa debaixo
da árvore. Quando viram as primeiras estrelas brilhando no céu, rezaram e
cantaram suas doces canções. As vozes dos garotos soaram particularmente
belas em meio às outras. Depois disso foram para a tenda onde José uma
vez preparou-lhes uma refeição leve. Os outros retornaram para a
hospedaria em Belém.
À meia-noite, subitamente, tive uma visão. Vi os reis deitados sobre
tapetes, adormecidos em suas tendas, e a aparição de um jovem brilhante
entre eles. Era um anjo. A lâmpada deles estava acesa e os vi sentarem-se
ainda meio adormecidos. O anjo acordou-os, dizendo que partissem
imediatamente e que não passassem por Jerusalém, mas pelo deserto que
circundava o Mar Morto. Levantaram-se às pressas; alguns correram para
acordar os demais; um foi até a gruta e acordou São José, que foi até Belém
para chamar os que estavam na hospedaria. Estes, entretanto, o encontraram
no meio do caminho, pois tiveram a mesma visão. A tenda foi desmontada,
empacotada, e o resto do acampamento removido com espantosa rapidez.
Enquanto os reis despediam-se mais uma vez, emocionados, de São José,
diante da gruta, seus seguidores já estavam correndo em direção ao sul
através do deserto de Engadi, ao longo do Mar Morto, em grupos separados,
a fim de avançarem mais rapidamente.
Os reis suplicaram para que a Sagrada Família fugisse com eles, pois o
perigo certamente os ameaçava também. Ao menos Maria deveria se
esconder com a Criança para que não fossem molestados. Choraram como
crianças, abraçando José, falando da maneira mais comovente. Em seguida
montaram seus dromedários, que carregavam apenas bagagem leve, e
apressaram-se na direção do deserto. Vi o anjo mostrando-lhes o caminho;
parecia até que tinham partido num instante. Tomaram caminhos diferentes,
cerca de quinze minutos de distância um do outro. Primeiro viajaram por
uma hora em direção ao leste e depois ao sul, pelo deserto. O caminho para
casa levou-os pela região que Jesus atravessou durante Seu retorno do
Egito, no terceiro ano de Seu ministério.
[25 de dezembro:] O anjo avisou os reis bem na hora, pois as
autoridades em Belém — talvez por uma ordem secreta de Herodes ou,
creio, por zelo de seu trabalho — pretendiam prender os reis que estavam
alojados na hospedaria em Belém e os aprisionar em celas abaixo da
sinagoga. Iriam, em seguida, denunciá-los a Herodes como perturbadores
da paz. Contudo, quando souberam de sua partida pela manhã, já estavam
perto do Engadi. O vale onde haviam acampado estava quieto e deserto
como de costume, embora a relva amassada e algumas estacas indicassem
sua estada ali.
VISITA DE ZACARIAS, ESPOSO DE ISABEL, À
SAGRADA FAMÍLIA. ANNA VOLTA À GRUTA DE
BELÉM.

Vi Zacarias vindo de Hebron para visitar a Sagrada Família pela


primeira vez. Maria ainda estava na gruta. Ele chorou de alegria, pegou o
Menino Jesus nos braços e recitou (em parte ou um pouco modificado) o
hino de louvor proclamado durante a circuncisão de João.
[26 de dezembro:] Zacarias foi embora, mas Anna retornou para visitar
a Sagrada Família com sua filha mais velha, seu segundo marido e sua
serva. A filha mais velha de Anna é maior do que sua mãe e parece ser mais
velha do que Anna. O segundo marido de Anna é mais alto e mais velho do
que Joaquim. Seu nome é Eliud. Tinha um cargo no Templo ligado à
supervisão do sacrifício de animais. Anna teve uma filha com ele e chamou-
a Maria. Quando Jesus nasceu, ela devia ter entre seis e oito anos de idade.
Pouco tempo depois Eliud morreu e foi da vontade de Deus que Anna ainda
se casasse uma terceira vez. Desse casamento nasceu um filho, que ficou
conhecido como um dos irmãos de Cristo.
A Sagrada Família está agora profundamente alegre. Anna está
extremamente feliz. Maria muitas vezes coloca o Menino Jesus em seus
braços para que ela o embale. Não a vi fazendo isso com ninguém mais. Vi,
para minha grande surpresa, que o cabelo do Menino Jesus, loiro e
cacheado, termina em pequenos raios de luz. Creio que eles fizeram seu
cabelo ficar cacheado, pois eu os vi esfregando sua cabeça depois de lavar.
Elas puseram um pequeno manto em volta dele por um momento. Sempre
vejo a Sagrada Família prestando a mais tocante e piedosa honra ao Menino
Jesus, de modo muito simples e humano, como é comum nas pessoas santas
e escolhidas. A Criança olha para a Sua Mãe com um Amor nunca visto em
alguém tão pequeno.
Maria contou tudo sobre a visita dos três reis magos e Anna ficou
muito tocada ao ouvir que o Sumo Deus havia-os chamado de tão longe
para conhecerem a Criança Prometida. Foram-lhe mostrados os presentes
dos reis, escondidos numa cesta de vime dentro de um nicho coberto na
parede. Ela os considerou um sinal de honra e olhou os presentes com
profunda humildade. Ajudou a doar uma parte para pessoas pobres e
empacotou o resto. Tudo estava calmo agora na vizinhança; todos os
caminhos, exceto o que passa pelo portão, tinham sido fechados pelas
autoridades. José não mais vai até Belém quando precisa; os pastores
trazem tudo de que necessitam.
A SAGRADA FAMÍLIA E SANTA ANNA SE MUDAM
PARA OUTRA GRUTA, POR MEDO DOS SOLDADOS
DE HERODES, QUE COMEÇAVAM A PROCURAR
POR RECÉM-NASCIDOS. A SAGRADA FAMÍLIA
COMEÇA A SE ESCONDER.

Anna enviou, por seu marido Eliud, um jumento carregado, e pela


serva, sua parenta, dois grandes pacotes. Ela carregava um nas costas e
outro na frente. Continham parte dos presentes dos reis, tecidos de vários
tipos e vasos de ouro, que mais tarde foram usados nas primeiras
cerimônias religiosas cristãs. Enviaram tudo às escondidas, pois havia
sempre alguma investigação acontecendo no local. Parece-me que estavam
levando essas coisas até parte do caminho para Nazaré, onde alguns
empregados iriam encontrá-los no meio do caminho. Em visões anteriores
vi Eliud de volta a Belém para acompanhar Anna, o que logo ocorreria.
Anna estava sozinha com Maria, na gruta lateral. Vi que elas estavam
trabalhando juntas, tricotando uma colcha de acabamento simples. A Gruta
da Natividade estava totalmente limpa e vazia. O jumento de São José
estava oculto atrás de um biombo de vime. Naquele dia, novamente, havia
alguns oficiais de Herodes, em Belém, procurando em algumas casas por
uma criança recém-nascida. Os soldados vieram também à procura do filho
recém-nascido de um rei. Eram particularmente persistentes em sua busca
por uma distinta mulher judia que tivesse dado à luz recentemente. Não iam
perto da Gruta da Natividade, pois já haviam estado lá antes e encontrado
apenas uma família pobre. Tomaram como certo de que essa família nada
tinha a ver com sua busca.
Dois anciãos, pastores, creio, foram até José e o alertaram sobre tais
investigações. Por isso vi a Sagrada Família e Anna fugindo com o Menino
Jesus para a tumba de Maraha. Nada que pudesse indicar que houvesse
alguém morando ali foi deixado na Gruta da Natividade, que parecia
totalmente deserta. Eu os vi indo pelo vale, de noite, com uma lâmpada
coberta. Anna segurava o Menino Jesus em seus braços. Maria e José
caminhavam ao lado dela. Os pastores os acompanharam, carregando os
cobertores e outras coisas que serviam de camas para as santas mulheres e
para o Menino Jesus. Ao alcançarem a passagem para dentro da gruta,
fecharam a porta e entraram para preparar o local para dormirem.
[27 de dezembro:] A Santíssima Virgem contou à sua mãe sobre os três
reis. Olharam tudo o que eles haviam deixado na tumba de Maraha. Vi dois
pastores chegarem e avisarem à Santíssima Virgem sobre alguns oficiais
enviados pelas autoridades, que estavam vindo para ver sua Criança. Maria
ficou muito aflita por causa disso. Em seguida, São José entrou e pegou o
Menino Jesus de seus braços, envolveu-o num manto e levou-o embora; não
consigo me lembrar para onde. Vi a Santíssima Virgem permanecer ao
menos meio dia sozinha na gruta, sem o Menino Jesus, cheia de apreensão e
ansiedade materna.
José aproveitou-se da ausência da Santíssima Virgem, que estava na
tumba de Maraha, para decorar, com a ajuda dos pastores, a Gruta da
Natividade, em homenagem ao seu casamento. Quando tudo estava em
ordem, ele buscou a Santíssima Virgem, o Menino Jesus e Anna, e os
conduziu para dentro da Gruta da Natividade, toda decorada. Eliud, a serva
e os três velhos pastores já estavam lá.
Que comovente ver a alegria deles quando a Santíssima Virgem levou
o Menino Jesus para dentro da gruta! O teto e as paredes estavam decorados
com grinaldas de flores e uma mesa de centro havia sido preparada para
uma refeição. Alguns dos belos tapetes dos reis magos foram dispostos no
chão e em cima da mesa, enquanto outros foram pendurados nas paredes.
Sobre a mesa uma pirâmide de folhas e flores erguia-se até uma abertura no
teto: no galho mais alto, havia uma pomba, que havia sido feita para a
ocasião. Vi toda a gruta repleta de luz e brilho. Puseram o Menino Jesus
sentado em Seu berço portátil, apoiado em um suporte. Maria e José,
coroados com flores, ficaram ao lado de Jesus e beberam de uma taça. Além
dos parentes estavam presentes os velhos pastores. Cantaram hinos e
partilharam felizes uma leve refeição. Ouvi coros de anjos e vi seres
celestiais aparecerem na gruta. Todos os presentes estavam repletos de
emoção e fervor. Depois da cerimônia, a Santíssima Virgem, o Menino
Jesus e Anna dirigiram-se para a tumba de Maraha.
ANNA VOLTA PARA NAZARÉ.

Então, em um outro dia, arrumaram e empacotaram tudo. Anna leva


consigo, em dois jumentos, muitos dos presentes dos três reis magos,
especialmente tapetes, coberturas e tecidos. Observaram o Sabá naquela
noite, na tumba de Maraha, até o dia seguinte (sábado), quando a
vizinhança estava calma. Após o término do Sabá, todos os preparativos
foram feitos para a partida de Anna, Eliud e seus servos para Nazaré.
[Domingo, 30 de dezembro:] Cedo, pela manhã, vi Anna com seu
marido e os servos partirem para Nazaré, depois de se despedirem
carinhosamente da Sagrada Família e dos três velhos pastores. A serva de
Anna os seguia. Pegaram tudo o que ainda restava dos presentes dos reis e
empacotaram-nos sobre os animais de carga.
A SAGRADA FAMÍLIA DEIXA BELÉM E PARTE
RUMO A JERUSALÉM PARA APRESENTAÇÃO DE
JESUS NO TEMPLO E PARA PURIFICAÇÃO DE
NOSSA SENHORA. ANJOS DESCEM DO CÉU PARA
ADORAREM O MENINO JESUS.

Estava próximo o dia em que a Santíssima Virgem Maria devia,


segundo a Lei, apresentar o primogênito no Templo e purificar-se. Tudo
estava preparado para a viagem da Sagrada Família ao Templo e depois
para sua casa, em Nazaré. Ao entardecer do domingo, 30 de dezembro, os
pastores receberam tudo o que havia sido deixado pelos servos de Anna. A
Gruta da Natividade, a gruta lateral e a tumba de Maraha foram
completamente esvaziadas. José as deixou totalmente limpas. Na noite
desse domingo, 30 de dezembro, para segunda, 31 de dezembro, vi José e
Maria com a Criança visitarem a Gruta da Natividade uma vez mais e
despedirem-se daquele santo lugar. Abriram um dos tapetes dos reis sobre o
local de nascimento de Jesus, deitaram a Criança sobre ele e rezaram.
Finalmente, no local onde Ele havia sido circuncidado, ajoelharam-se e
rezaram também. Ao amanhecer da segunda-feira, 31 de dezembro, vi a
Santíssima Virgem montar o jumento, que os velhos pastores tinham trazido
para a gruta, todo equipado para a jornada. José segurou a Criança,
enquanto ela se sentava confortavelmente; depois, colocou o Menino no
colo da Mãe. Ela sentou de lado na sela, com os pés num suporte bem alto,
voltada para trás. Segurava a Criança no colo, enrolada em seu grande véu.
Com a face voltada para baixo, olhava para Ele com uma expressão de
grande felicidade. Havia apenas alguns tapetes e pequenos sacos no
jumento. Maria sentou-se no meio dessa carga. Os pastores os
acompanharam até parte do caminho após terem se despedido de forma
comovente. Não tomaram o caminho pelo qual vieram, mas seguiram entre
a Gruta da Natividade e a Gruta de Maraha, ao redor do lado leste de
Belém. Ninguém os notou.
Pela manhã eu os vi indo muito lentamente na curta viagem de Belém
até Jerusalém, em que ocorreram muitas paradas. Eu os vi descansando ao
meio-dia em bancos ao redor de uma fonte coberta. Vi algumas mulheres se
aproximarem da Santíssima Virgem, trazendo-lhe jarros com bálsamo e
pequenos pães. A oferta de sacrifício da Santíssima Virgem para o Templo
está pendurada numa cesta ao lado do jumento. Essa cesta tinha três
compartimentos, dois dos quais estavam forrados com algo, e que
continham frutas. O terceiro era de vime, trançado e vazado, e continha dois
pombos. Eu os vi entrando, ao entardecer, numa pequena casa ao lado de
uma grande hospedaria, distante cerca de quinze minutos de Jerusalém.
Essa estalagem era mantida por um casal sem filhos que os recebeu com
especial atenção. Agora sei por que confundi os acompanhantes de Anna no
dia anterior com as pessoas de uma hospedaria em Jerusalém; eu os vi se
hospedando aqui com essas boas pessoas, em seu caminho para Belém.
Eles, sem dúvida, providenciaram um alojamento para a Santíssima Virgem.
O velho casal era Essênio e aparentado de Joana Chusa. O marido era um
jardineiro: podava cercas vivas, sebes e era contratado para a manutenção
de estradas.
Vi a Sagrada Família com os velhos estalajadeiros perto de Jerusalém
durante todo o dia. A Santíssima Virgem estava geralmente sozinha, em seu
quarto, com a Criança deitada num tapete sobre uma saliência baixa da
parede. Ela rezava o tempo inteiro e parecia estar se preparando para a
cerimônia que se aproximava. Foi-me revelado, ao mesmo tempo, como
devemos nos preparar para a Sagrada Comunhão.
Vi a aparição de um grande número de anjos, em seu quarto, adorando
o Menino Jesus. Não sei se a Santíssima Virgem também viu esses anjos.
Creio que sim, porque eu a vi em profunda contemplação. As boas pessoas
da hospedaria faziam tudo o que era possível para agradá-la; devem ter
percebido a santidade do Menino Jesus.
UM ANJO AVISA AO VELHO SIMEÃO DA
CHEGADA DA SAGRADA FAMÍLIA. REENCONTRO
DE MARIA COM SIMEÃO, COM SUA PROFESSORA
(NO TEMPLO) NOEMI E COM A PROFETIZA
ANNA.

Cerca de sete horas da noite, tive uma visão do velho Simeão. Ele era
magro, bastante idoso, com uma pequena barba. Era um sacerdote comum,
casado e com três filhos adultos; o mais jovem devia ter vinte anos. Vi
Simeão, que vivia perto do Templo, andando, em uma passagem escura e
estreita pelos muros do Templo, rumo a uma cela abobadada, construída
dentro do espesso muro. Nada vi dentro dessa cela, a não ser uma abertura,
através da qual se podia olhar para dentro do Templo. Ali o velho Simeão
ajoelhou-se em oração profunda. Um anjo apareceu diante dele e o avisou
para prestar atenção à pequena criança, a primeira a ser apresentada cedo
pela manhã do dia seguinte, pois ela era o Messias por quem ele tinha
esperado por tanto tempo. Depois que O visse, em breve morreria. Vi isso
muito claramente; a cela estava iluminada e o santo homem irradiava
alegria. Depois eu o vi a caminho de sua casa para contar à sua esposa, com
grande alegria, o que lhe havia sido anunciado. Depois que ela havia se
retirado para dormir, Simeão colocou-se em oração novamente.
Nunca vi Israelitas devotos ou mesmo seus sacerdotes orarem com
gestos exagerados como os judeus de hoje em dia. Eu os vi, entretanto, se
autoflagelando. Vi a profetiza Anna orar em sua cela enquanto visionava a
Apresentação do Menino Jesus no Templo.
Essa manhã, quando ainda estava escuro, vi a Sagrada Família,
acompanhada de pessoas da estalagem, deixar a hospedaria e dirigir-se para
o Templo em Jerusalém, com as oferendas e com o jumento carregado para
a jornada. Eles foram para um pátio, cercado de muros, no Templo.
Enquanto José e o estalajadeiro guardavam o jumento num estábulo, a
Santíssima Virgem e a Criança eram amavelmente recebidas por uma velha
senhora e conduzidos para dentro do Templo, por uma passagem coberta.
Uma lâmpada foi levada, pois ainda estava escuro. Nem bem haviam
entrado por essa passagem, o velho Simeão aproximou-se, cheio de
expectativa, da Santíssima Virgem. Depois de pronunciar algumas palavras
amigas para ela, tomou o Menino Jesus em seus braços. Aconchegou-o
junto ao coração e, depois, apressou-se de volta para o Templo por um outro
caminho. A mensagem do anjo no dia anterior o deixara tão ansioso para
ver a Criança da Promissão, por quem havia esperado tanto tempo, que se
dirigiu ao lugar reservado para as mulheres. Simeão usava uma longa veste,
parecida com a dos sacerdotes cristãos quando não estão celebrando (um
tipo de batina). Frequentemente o vejo no Templo e sempre como um velho
sacerdote de posição sem destaque. No entanto, sua grande piedade,
simplicidade e sabedoria o distinguem muito.
A Santíssima Virgem foi levada por sua guia aos pátios externos do
Templo, onde ocorria a cerimônia. Ela foi recebida por Noemi, sua antiga
professora, e pela profetiza Anna, que viviam nesse lado do Templo.
Simeão veio uma vez mais para fora do Templo, ao encontro da Santíssima
Virgem. Com a Criança nos braços de Maria, ele levou-os ao lugar
destinado à purificação do primogênito. Anna, a quem José deu as cestas
com as oferendas, seguiu-a ao lado de Noemi. Os pombos estavam na parte
inferior da cesta; acima deles havia um compartimento com frutas. José
entrou por uma outra porta para o lugar reservado aos homens.
CERIMÔNIA DE APRESENTAÇÃO DE JESUS NO
TEMPLO E PURIFICAÇÃO DE MARIA.

Simeão aproximou-se da Santíssima Virgem, em cujos braços estava o


Menino Jesus, deitado e enrolado numa coberta azul-celeste. Conduziu-a
até a mesa, onde a Criança foi deitada sobre o berço. Nesse momento vi
uma incrível luz inundando o Templo. Vi o Sumo Deus nessa luz e, acima
da Criança, os céus se abrindo para revelar o Trono da Santíssima Trindade.
Simeão, então, levou a Santíssima Virgem de volta para o lugar reservado
às mulheres. Maria usava uma veste azul-celeste claro e um véu branco.
Estava completamente envolvida por um manto amarelo longo. Simeão
dirigiu-se ao altar permanente, onde estavam as vestes da cerimônia; ele e
três outros sacerdotes paramentaram um ao outro. Tinham uma espécie de
pequeno escudo nos braços e nas cabeças barretes que se assemelhavam a
mitras. Um deles foi para a frente, enquanto outro seguiu para a parte de
trás da mesa das oferendas, onde outros dois já estavam nas laterais, orando
sobre a Criança. Anna veio até Maria e entregou-lhe uma cesta de
oferendas, que continha frutas e pombos em dois compartimentos
separados. Maria levou-a até o cercado em frente à mesa e ali ambas
permaneceram de pé. Simeão, que estava diante da mesa, abriu a cerca,
conduziu a Mãe de Jesus até a mesa e colocou suas oferendas sobre ela. As
frutas foram depositadas sobre uma das tigelas ovais; na outra, ficaram as
moedas. Os pombos permaneceram na cesta. Simeão estava em pé com
Maria diante da mesa das oferendas, enquanto o sacerdote, atrás da mesa,
erguia o Menino Jesus do berço e segurava-o no alto, em direção aos
diferentes lados do Templo. Ao mesmo tempo, proclamou uma longa
oração. Depois, ele deu a Criança para Simeão, que O deitou uma vez mais
nos braços de Maria, enquanto orava sobre ambos e lia um pergaminho
pendurado numa prateleira ao seu lado. Simeão levou, em seguida, a
Santíssima Virgem de volta para onde Anna a aguardava, em frente a uma
cerca. Depois Anna levou-a para a área das mulheres. Umas vinte mulheres
aguardavam para apresentarem seus primogênitos. José e um outro homem
estavam de pé, bem atrás, no lugar reservado aos homens.
PALAVRAS DE SIMEÃO À MARIA. JOSÉ FAZ
DOAÇÃO DE OURO AO VELHO SIMEÃO E À
PROFETIZA ANNA PARA AJUDAR NA EDUCAÇÃO
DAS MENINAS POBRES CUIDADAS NO TEMPLO.

Os sacerdotes no altar permanente iniciaram uma cerimônia com


incenso e orações. Os sacerdotes assentados tomaram parte na cerimônia,
fazendo gestos não violentos, como os dos judeus de hoje. Ao término da
cerimônia, Simeão aproximou-se novamente de Maria, pegou o Menino
Jesus e colocou-O em seus braços, exaltando-O por um bom tempo, em alta
voz, em êxtase de alegria, agradecendo a Deus porque Ele havia cumprido a
Sua Promessa. Finalizou com sua Nunc Dimittis [Lc 2,29-32]. Depois da
Apresentação, José acercou-se de Maria e ouviu, com grande reverência, as
inspiradas palavras de Simeão dirigidas à Nossa Senhora [Lc 2,34]. Quando
finalizou seu anúncio, a profetiza Anna, também cheia de inspiração, falou
por muito tempo, em alta voz, sobre o Menino Jesus, aclamando Sua Mãe
como bendita. Vi que os presentes ficaram muito tocados com tudo isso; os
sacerdotes também pareciam ouvir extasiados o que estava acontecendo.
Nenhuma confusão ocorreu ali. Esses anúncios, inspirados e proclamados
em alta voz, não eram incomuns, pareciam ocorrer frequentemente. Vi
ainda que os corações de todos os presentes estavam muito comovidos e
todos mostraram grande reverência à Criança e à Sua Mãe. Maria era como
uma rosa celestial radiante.
Aparentemente, a Sagrada Família havia feito a oferta mais humilde,
no entanto, José deu a Anna e ao velho Simeão, secretamente, muitas das
peças triangulares de ouro, para serem empregadas na educação de meninas
pobres, cuidadas no Templo, que não podiam custear suas despesas.
PARTIDA DA SAGRADA FAMÍLIA, DE JERUSALÉM
PARA NAZARÉ.

Vi a Santíssima Virgem e sua Criança sendo acompanhadas por Anna e


por Noemi de volta para o pátio externo, onde primeiramente se
encontraram. Lá se despediram. José já estava lá com as duas pessoas da
hospedaria; ele havia trazido o jumento que transportou Maria e a Criança.
Partiram imediatamente para Nazaré.
A Apresentação deve ter terminado por volta das nove horas daquela
manhã, pois foi a essa hora em que vi a partida da Sagrada Família.
Naquele dia eles viajaram até Bet-Horon, onde passaram a noite na casa
usada na última parada da Santíssima Virgem, quando ela foi levada para o
Templo, treze anos antes. O dono da hospedaria parecia ser um professor
escolar. Servos enviados por sua mãe, Anna, esperavam por eles. Foram
para Nazaré por uma estrada mais direta do que quando estavam a caminho
de Belém, a fim de evitarem todas as cidades e pararem apenas em casas
isoladas. José havia deixado com seus parentes, como combinado, a jovem
jumentinha que lhes havia mostrado o caminho em sua jornada a Belém,
pois ele ainda pretendia retornar àquela cidade e construir uma casa no Vale
dos Pastores. Havia comentado com os pastores a esse respeito. Disse-lhes
que estava levando Maria até a mãe dela apenas por um tempo, até que se
recuperasse do desconforto dos alojamentos pelos quais passou. Com esse
plano em mente, ele havia deixado uma boa quantidade de coisas com os
pastores. José tinha um estranho tipo de dinheiro; creio que deve ter sido
dado pelos três reis. Dentro de seu manto, havia uma espécie de bolsa, na
qual carregava uma quantidade de pequenas e finas folhas amarelas
brilhantes, enroladas umas nas outras.
A SAGRADA FAMÍLIA CHEGA EM NAZARÉ, NA
CASA DE ANNA. COMO SEMPRE, MARIA É MUITO
LIGADA À SUA MÃE, ANNA, E ESTA, POR SUA
VEZ, À MARIA. ANTES DE IR PARA SUA PRÓPRIA
CASA, MARIA PASSA UNS DIAS NA CASA DE SUA
MÃE.

Vi a Sagrada Família chegar à casa de Anna, que fica a trinta minutos


de distância de Nazaré, na direção do Vale de Zabulon. Havia uma pequena
festa familiar como aquela dada quando Maria deixou sua casa para
ingressar no Templo. Uma lâmpada estava acesa sobre a mesa. Joaquim já
havia falecido e eu vi o segundo marido de Anna, o novo chefe da casa. A
filha mais velha de Anna, Maria Heli, também a visitava. O jumento foi
descarregado, pois Maria pretendia ficar ali por algum tempo. Todos
estavam repletos de alegria pelo Menino Jesus, mas era uma tranquila
alegria interior. Nunca vi qualquer uma dessas pessoas manifestando fortes
emoções. Alguns velhos sacerdotes estavam lá; todos os presentes
partilhavam uma refeição leve. As mulheres comiam separadas dos homens,
pois era o costume nas refeições.
Vi a Sagrada Família na casa de Anna por mais alguns dias. Havia
muitas mulheres lá: Maria Heli, a filha mais velha de Anna, com sua filha
Maria Cleofas,; uma mulher da casa de Isabel; e a serva que esteve com
Maria em Belém. Essa serva não quis se casar novamente depois da morte
do marido, que não fora um bom homem. A Santíssima Virgem conheceu-a
quando visitou Isabel em Juta, antes do nascimento de João. Dali a viúva foi
para a casa de Anna. Naquele mesmo dia vi José carregando muitas coisas
sobre os jumentos (dois ou três). Em seguida, foi para Nazaré acompanhado
pela criada.
MARIA SEGUE PARA SUA PRÓPRIA CASA.

Nessa tarde vi a Santíssima Virgem indo da casa de Anna para a de


José, em Nazaré. Ela estava acompanhada por sua mãe, que carregava o
Menino Jesus. Era uma caminhada muito agradável, de meia hora, entre
montanhas e jardins. Anna enviou provisões de sua própria casa para José e
Maria em Nazaré. Quão bela era a vida da Sagrada Família! Maria era ao
mesmo tempo mãe e a mais humilde criada da Santa Criança, além de ser
serva de José. Ele era o fiel amigo dela e o mais humilde dos servos. Que
maravilhoso era ver a Santíssima Virgem embalar o Menino Jesus para lá e
para cá em seus braços. Justo Ele, que é o Deus Todo Misericordioso, que
fez o mundo, e permitiu a Si próprio, a partir de Seu imenso Amor, ser
tratado como uma pequena criança indefesa!
ANNA VISITA MARIA TODOS OS DIAS.
INQUIETAÇÃO DE HERODES.

A mãe de Nossa Senhora ia visitá-la regularmente todos os dias.


Tive uma visão de Jerusalém e de Herodes, que convocava um grande
número de homens, tal como os soldados são recrutados entre nós. Esses
homens foram levados para um amplo pátio, onde receberam roupas e
armas. Usavam uma espécie de meia-lua em um braço, carregavam lanças e
espadins, usavam capacetes e muitos deles tinham tiras enlaçadas em suas
pernas. Todos deviam estar ligados ao massacre dos inocentes. Herodes
estava muito perturbado.
Ainda vejo Herodes excessivamente inquieto, exatamente como na
época em que os três reis perguntaram-lhe sobre o recém-nascido Rei dos
Judeus. Eu o vi aconselhando-se com vários velhos escribas, que liam
longos rolos trazidos consigo. Vi também os soldados, que haviam recebido
roupas novas dois dias antes, serem enviados a Belém e vários lugares em
torno de Jerusalém. Creio que foram ocupar os locais onde as crianças
seriam levadas pelas mães, até Jerusalém. De nada suspeitavam. A presença
dos soldados tinha como objetivo evitar qualquer insurreição quando os
rumores do massacre atingissem as casas das crianças.
Hoje vi os soldados de Herodes, que partiram de Jerusalém em dia
anterior, chegarem a três lugares: Hebron, Belém e um outro lugar entre os
dois primeiros, na direção do Mar Morto. Esqueci-me do nome. Os
habitantes não tinham ideia do motivo pelo qual os soldados haviam sido
enviados. A ansiedade era crescente. Herodes foi ardiloso. Manteve seu
próprio conselho e procurou por Jesus em segredo. Os soldados
permaneceram nas cidades por algum tempo. Após ter falhado
completamente no encontro da criança nascida em Belém, Herodes decidiu
massacrar todas as crianças abaixo de dois anos de idade.
A FUGA PARA O EGITO. UM ANJO ORIENTA JOSÉ
ACERCA DA VIAGEM.

Nesse fim de tarde, vi Anna e sua filha mais velha com a Santíssima
Virgem. Maria Heli tinha com ela um menino vigoroso de quatro ou cinco
anos de idade, seu neto, o filho mais velho de Maria Cleofas. José tinha
partido para a casa de Anna. Eu olhava as mulheres ali sentadas,
segredando umas com as outras. Ao mesmo tempo, brincavam com o
Menino Jesus, abraçando-O ou colocando-O nos braços do menino. As
mulheres são sempre iguais, pensei; tudo é feito exatamente como hoje em
dia.
José voltara cedo na manhã anterior, quinta-feira, da casa de Anna. Ela
e sua filha mais velha ainda estavam em Nazaré. Haviam acabado de ir
dormir, quando o anjo avisou José. Maria e o Menino Jesus tinham um
quarto à direita da lareira; o de Anna era à esquerda; e o de sua filha mais
velha estava entre os quartos delas e o de José. Esses quartos eram
compartimentos divididos e algumas vezes cobertos com painéis de vime. O
quarto de Maria tinha ainda uma outra cortina ou biombo que o dividia. O
Menino Jesus ficava deitado sobre um tapete diante de seus pés, para que
ela O pudesse pegar sem sair da cama.
Vi José, em seu quarto, deitado de lado, dormindo com a cabeça sobre
o braço. Vi também um jovem luminoso aproximar-se de sua cama e falar
com ele. José sentou-se, mas, ainda sonolento, voltou a deitar-se. O jovem
segurou sua mão e levantou-o. José tomou consciência do que ocorria e o
jovem desapareceu. José foi até a lâmpada acesa em frente à lareira, no
centro da casa, acendeu a sua própria lâmpada e bateu na porta do quarto da
Santíssima Virgem, perguntando se podia entrar. Eu o vi entrar e falar com
Maria, sem que ela abrisse a divisória diante de sua cama. Depois dirigiu-se
até o jumento no estábulo e para um quarto onde toda espécie de coisas era
guardada, a fim de preparar tudo para a partida. Logo que José saiu do
quarto da Santíssima Virgem, ela levantou-se e vestiu-se para a viagem;
depois, foi avisar sua mãe sobre a ordem de Deus. Anna, Maria Heli e seu
menino levantaram-se, enquanto o Menino Jesus permanecia dormindo.
Para essas boas pessoas, a Vontade de Deus vinha em primeiro lugar.
Embora tristes, apressaram-se em preparar tudo para a jornada, antes de se
permitirem lamentar pela partida. Anna e Maria Heli ajudaram nos
preparativos. Maria deixou muitas coisas que havia trazido de Belém.
Carregaram apenas um pacote de tamanho moderado e alguns cobertores,
que foram levados por José até o jumento. Tudo foi feito em silêncio e
muito rápido, como era próprio para uma viagem em segredo, depois de um
aviso no meio da noite. Quando Maria buscou sua Criança, ela estava com
tanta pressa que nem mesmo a vi trocando as fraldas de Jesus. Vieram as
despedidas, e eu não consigo descrever quão tocante foi ver o sofrimento de
Anna e de sua filha mais velha. Elas abraçaram o Menino Jesus entre
lágrimas. Anna abraçou a Santíssima Virgem repetidas vezes; chorava
amargamente, como se nunca mais fosse vê-la. Maria Heli lançou-se ao
chão em lágrimas.
Não era ainda meia-noite quando saíram de casa. Anna e Maria Heli
acompanharam a Santíssima Virgem a pé por um pequeno trecho na saída
de Nazaré. Esse caminho ia em direção à casa de Anna, bem mais à
esquerda. Maria carregava o Menino Jesus diante dela numa espécie de
tipoia, que envolvia os ombros e era presa atrás de seu pescoço. Ela vestia
um longo manto, que envolvia a ambos, além de um grande véu quadrado,
preso ao redor da nuca, que caía amplamente dos lados de seu rosto. Não
tinham caminhado muito, quando José chegou com o jumento, carregado
com um odre de água, uma cesta com vários compartimentos contendo
pãezinhos, pequenos jarros e aves vivas. A bagagem e os cobertores foram
dispostos em volta da sela lateral, que tinha um apoio para os pés. As
mulheres se abraçaram novamente entre lágrimas. Anna abençoou a
Santíssima Virgem, que por fim se sentou no jumento conduzido por José.
Em seguida partiram.
Pela manhã vi Maria Heli com seu menino indo para a casa de Anna,
enquanto a governanta e um servo seguiram para Nazaré. Após isso, ela foi
para sua própria casa. Vi Anna pondo tudo em ordem na casa de José e
empacotando muitas coisas. Depois, chegaram dois homens da casa de
Anna; um deles vestia apenas uma pele de carneiro e usava sandálias
grossas presas com tiras em torno das pernas. O outro vestia um longo
manto; parecia ser o atual marido de Anna. Eles ajudaram a arrumar tudo na
casa de José e carregaram tudo o que pudesse ser transportado para a casa
de Anna.
Durante a noite da fuga da Sagrada Família de Nazaré, eu os vi
passarem por muitos lugares e descansarem num abrigo antes de clarear o
dia. Perto do anoitecer, quando não podiam seguir mais adiante, eu os vi
pararem numa vila chamada Nazara, na casa de pessoas que viviam isoladas
e eram bastante menosprezadas. Não eram propriamente judeus; sua
religião era estranha e participavam de um culto religioso num templo no
Monte Garizim, perto da Samaria, cujo caminho era de difícil acesso,
através de uma montanha, com vários quilômetros de distância. Eles eram
oprimidos por muitas tarefas difíceis e obrigados a trabalhar como escravos
no Templo, em Jerusalém, e em outros prédios públicos. Essas pessoas
deram calorosas boas-vindas à Sagrada Família, que ali permaneceu todo o
dia seguinte. Ao retornar do Egito, a Sagrada Família mais uma vez visitou
essas boas pessoas e, novamente, os visitaram quando Jesus esteve no
Templo aos doze anos, seguindo dali para Nazaré.
Ao entardecer, no final do Sabá, a Sagrada Família saiu de Nazara e
continuou a viagem durante a noite e por todo o domingo; na noite seguinte
eu os vi escondidos naquele velho terebinto onde tinham parado na época
do Advento, em sua viagem a Belém, quando a Santíssima Virgem sentia
muito frio. Era o terebinto de Abraão, perto do arvoredo de Moré, não longe
de Siquém, Thenat, Silo e Arumah. As notícias sobre a perseguição de
Herodes tinham se espalhado por ali, e a região deixou de ser segura. Foi
perto dessa árvore que Jacó enterrou os ídolos de Labão. Josué reuniu o
povo próximo dessa árvore e ergueu um tabernáculo contendo a Arca da
Aliança. Foi ali que ele os fez renunciar aos seus ídolos. Abimelec, o filho
de Gedeão, foi aclamado nesse local como rei pelo povo de Siquém.
Vi a Sagrada Família descansando pela manhã numa parte fértil do
campo, refrescando-se ao lado de um riacho, onde havia um arbusto de
bálsamo. O Menino Jesus estava deitado sobre os joelhos da Santíssima
Virgem com Seus pezinhos descalços. Incisões haviam sido feitas aqui e ali
nos galhos do arbusto de bálsamo, que tinha frutos vermelhos. Dessas
incisões caía um líquido dentro de pequenos potes pendurados nos galhos.
Fiquei impressionada pelo fato de os potes não terem sido roubados. José
encheu os pequenos jarros, que havia trazido consigo, com sumo de
bálsamo. Eles comeram pequenos pães e alguns frutos desse arbusto. O
jumento bebeu do arroio e pastou nas proximidades. À sua esquerda, vi
Jerusalém ao longe. Era uma cena encantadora.
Zacarias e Isabel também receberam o aviso de perigo iminente. Creio
que a Sagrada Família enviou-lhes um mensageiro de confiança. Vi Isabel
levar o pequeno João para um lugar bem escondido, no deserto, a algumas
horas de distância de Hebron. Zacarias acompanhou-os apenas até parte do
caminho, num lugar onde atravessaram um riacho, através de uma viga de
madeira. Depois ele os deixou e rumou para Nazaré (pelo caminho que
Maria seguiu em sua visita a Isabel), provavelmente para obter mais
informações com Anna. Muitos dos amigos da Sagrada Família estavam
abatidos com sua partida.
O pequeno João não usava nada mais do que uma pele de cordeiro.
Embora com apenas dezoito meses de idade, ficava de pé com firmeza e
podia correr e pular ao redor. Mesmo naquela idade já tinha um cajado na
mão, que ele usava como brinquedo. Não se deve pensar que essa região
deserta possui apenas areia. Mais do que um lugar desolado com pedras,
cavernas e ravinas, há também arbustos, pés de frutas selvagens e amoras.
Vi a Sagrada Família, depois de terem cruzado algumas das cristas do
Monte das Oliveiras, indo em direção a Hebron, além de Belém, para uma
gruta ampla, cerca de dois quilômetros da floresta de Mambre, na garganta
de uma montanha. Nessa montanha havia uma cidade cujo nome soava
como Efraim. Creio que era o sexto ponto de parada em sua jornada. Vi a
Sagrada Família chegar bastante cansada e abatida. Maria estava bastante
triste e chorava. Faltava tudo de que necessitavam e, em sua fuga, tomaram
trilhas secundárias, evitando as cidades e alojamentos públicos. Passaram o
dia todo descansando ali. Muitos favores especiais foram-lhes concedidos
nesse local. Um anjo apareceu e os confortou; uma fonte de água jorrou
após a oração da Santíssima Virgem. Uma cabra veio até eles e deixou-se
ordenhar. Um profeta costumava orar nessa gruta e creio que Samuel lá
esteve várias vezes. Davi cuidava das ovelhas de seu pai nesse lugar, onde
sempre orava. Foi ali que recebeu de um anjo a ordem de lutar contra
Golias.
Da gruta viajaram para o sul, por sete horas, com o Mar Morto sempre
à sua esquerda. Duas horas depois de deixarem Hebron, passaram pelo
deserto, onde o pequeno João Batista estava escondido. Seu caminho levou-
os a apenas uns cem metros de distância de sua gruta. Vi a Sagrada Família,
abatida, vagar através de um deserto arenoso. O cantil e o jarro com
bálsamo estavam vazios. A Santíssima Virgem estava muito aflita, e tanto
ela quanto o Menino Jesus sentiam sede. Eles afastaram-se um pouco da
trilha, para onde o nível do chão descia. Havia arbustos e um pouco de relva
murcha.
A Santíssima Virgem desceu do jumento, sentou-se um pouco com a
Criança em seu colo e rezou em sua aflição. Enquanto rezava pedindo água,
como Agar no deserto, foi-me mostrado um incidente maravilhosamente
tocante. A gruta na qual Isabel tinha se escondido com seu filhinho era bem
perto dali, num pico rochoso abrupto, e eu vi o menininho não muito longe
da gruta, vagando ao redor das pedras e arbustos, como se estivesse ansioso
e desejosamente à espera de algo. Não vi Isabel nessa visão.
Ver esse pequeno menino caminhando e correndo pelo deserto com tal
confiança causou-me grande impressão. Tal como quando, ainda no ventre
de sua mãe, ele havia saltado com a aproximação de seu Senhor, igualmente
ali se sentiu tocado pela proximidade de seu Redentor. Vi a criança usando
sua pele de cordeiro sobre os ombros, cingida em volta da cintura,
carregando seu pequeno cajado. Sentiu que Jesus estava perto, sedento e
cansado. João caiu de joelhos e chorou suplicando a Deus com as mãos
estendidas. Depois saltou de pé, correu, guiado pelo Espírito, para o topo
das rochas e golpeou o chão com o cajado, de onde jorrou água em
abundância. Correu adiante da torrente até a ponta da rocha, onde a água
caía sobre as pedras. Ficou de pé ali e viu a Sagrada Família passar a
distância.
A Santíssima Virgem ergueu o Menino Jesus para o alto em seus
braços, dizendo: “Veja! João no deserto!”; e eu vi João pulando alegremente
ao lado da água corrente, acenando para eles com uma pequena bandeira na
ponta de seu cajado. Depois correu de volta para o deserto. Em pouco
tempo, a água chegou até o caminho dos viajantes, que pararam para se
refrescar em um agradável lugar, onde havia arbustos e relva fina. A
Santíssima Virgem desmontou do jumento com a Criança; todos estavam
alegres. Maria sentou-se na relva e José cavou um buraco, um pouco
afastado, para encher com a água. Quando esta tornou-se totalmente
límpida, eles beberam e Maria lavou a Criança. Depois lavaram as mãos, os
pés e os rostos. Por fim, José levou o jumento até a água e encheu seu cantil
de couro. Estavam todos felizes e agradecidos. A relva murcha, agora
saturada com água, crescia novamente. O sol nasceu e brilhou sobre eles.
Sentaram-se renovados, repletos de silenciosa alegria, e descansaram por
duas ou três horas.
O último lugar onde a Sagrada Família se abrigou, no território de
Herodes, não ficava longe de uma cidade na extremidade do deserto, a
poucas horas de viagem do Mar Morto. Seu nome soava como Anem ou
Anim. Pararam em uma casa solitária, que servia de alojamento para
aqueles que viajam no deserto. Havia várias cabanas e abrigos na colina,
bem como alguns frutos selvagens, que cresciam ao redor. Os habitantes
pareceram-me serem condutores de camelos, pois mantinham alguns
camelos em cercados nos prados. Eram bastante rudes e haviam se
entregado à prática de roubos, mas receberam bem a Sagrada Família ao lhe
mostrarem hospitalidade. Na cidade vizinha encontravam-se também
muitas pessoas desregradas que haviam se assentado ali depois de terem
lutado nas guerras. Entre as pessoas da hospedaria, havia um homem de
vinte anos chamado Rubem.
Vi a Sagrada Família viajando numa noite clara de céu estrelado
através de um deserto arenoso coberto com pequenos arbustos. Senti como
se estivesse viajando com eles também. Era perigoso por causa da
quantidade de cobras que se enrolavam entre os arbustos, nos pequenos
buracos debaixo das folhas. Elas rastejavam em direção à trilha, sibilando
alto e esticando seus pescoços para a Sagrada Família que, entretanto,
passava em segurança, rodeada de luz. Vi outras feras malignas com corpos
longos e pretos, pernas curtas e asas como grandes barbatanas. Estas
lançavam-se sobre o chão, como se estivessem voando. Suas cabeças eram
semelhantes às dos peixes. Vi a Sagrada Família chegar a uma depressão do
solo, atrás de alguns arbustos, onde pretendiam descansar.
A Sagrada Família viajou sempre afastada da estrada principal, dois
quilômetros ao leste. O nome do último lugar em que passaram, entre a
Judeia e o deserto, soava como Mara. O lugar fez-me lembrar da casa de
Anna, embora não o fosse. Os habitantes eram rudes e desregrados; a
Sagrada Família não obteve qualquer ajuda deles. Depois disso chegaram a
um grande deserto arenoso. Não havia uma trilha, nada que indicasse a
direção, e por isso não sabiam o que fazer. Depois de algum tempo, viram o
pico escuro e sombrio de uma montanha à sua frente. Penosamente
abatidos, ajoelharam-se e pediram ajuda a Deus.
Um número de feras selvagens reuniu-se ao redor deles. A princípio
pareciam perigosos, mas não eram de todo maus, pois olhavam para eles da
mesma maneira amigável que o velho cãozinho do meu confessor me olha
quando se aproxima de mim. Percebi, então, que tais feras haviam sido
enviadas para mostrar-lhes o caminho. Olharam em direção à montanha e
correram para lá. Depois retornaram, exatamente como os cães fazem
quando querem que os sigamos para algum lugar. Por fim, a Sagrada
Família seguiu os animais e passou sobre o pico da montanha, através de
uma região inóspita e deserta. Estava escuro e o caminho passava por uma
mata. Em frente a essa mata, a alguma distância do caminho, vi uma
cabana pobre. Não muito longe, uma lâmpada, pendurada numa árvore,
atraía os viajantes. O caminho era sinistro: valas haviam sido cavadas aqui
e ali e também ao redor da cabana. Cordões ocultos estavam esticados
através das partes boas do caminho. Quando tocados pelos viajantes, tais
cordões balançavam sinos na cabana, alertando seus habitantes ladrões que
vinham assaltá-los. Essa cabana de ladrões não ficava sempre no mesmo
lugar, pois podia ser mudada e remontada onde seus habitantes assim
quisessem.
Quando a Sagrada Família aproximou-se da luz pendurada na árvore,
vi o líder dos ladrões e cinco comparsas cercarem-na. A princípio suas
intenções eram más. Ao olharem para o Menino Jesus, porém, um raio,
como uma flecha, atingiu o coração do líder, que ordenou aos seus
companheiros para não lhes fazerem nenhum mal. A Santíssima Virgem
também viu o raio atingir o coração do ladrão, fato que ela relatou mais
tarde à profetisa Anna em seu retorno.
O ladrão agora guiava a Sagrada Família pelos lugares perigosos do
caminho até sua cabana. Era noite. Nessa cabana estavam a mulher do
ladrão com algumas crianças. O homem contou à sua mulher sobre a
estranha sensação que teve quando viu a Criança. Ela, no entanlo, recebeu a
Sagrada Família timidamente, mas não foi rude. Os viajantes sentaram-se
no chão, num canto, e começaram a comer algumas das provisões que
tinham consigo.
As pessoas da cabana estavam, a princípio, constrangidas e tímidas
(totalmente diferente, ao que parecia, do usual), mas, gradualmente,
aproximaram-se mais e mais da Sagrada Família. Alguns dos outros
homens, que haviam guardado o jumento de José, entravam e saíam a todo
instante. Finalmente todos ficaram mais à vontade e começaram a conversar
com os viajantes. A mulher trouxe para Maria alguns pãezinhos com mel e
frutas, bem como taças com bebida. Um fogo permanecia aceso num
buraco, no canto da cabana. Ela arranjouainda um lugar à parte para a
Santíssima Virgem e uma gamela com água para banhar o Menino Jesus.
Lavou o linho para Maria e o secou junto ao fogo.
Maria banhou o Menino Jesus debaixo de um pano. O homem, muito
agitado, disse à sua esposa: “Essa criança hebreia não é uma criança
comum; ela é uma criança santa. Peça à sua mãe que nos deixe lavar nosso
menino leproso na água em que essa criança foi banhada, talvez faça bem a
ele.” Assim que a mulher se aproximou de Maria para lhe pedir isso, Nossa
Senhora disse, antes que aquela mãe dissesse uma palavra, para que lavasse
seu menino leproso na água do banho. A mulher colocou seu menino de três
anos nos braços de Maria. Ele estava rijo com a lepra e, por causa das
escaras, não se podia ver as suas feições. A água em que Jesus havia sido
banhado parecia mais límpida do que antes. Tão logo a criança leprosa foi
mergulhada, as escamas de lepra se desprenderam e ela ficou limpa. A
mulher estava fora de si de tanta alegria e tentou abraçar Maria e o Menino
Jesus, mas esta afastou sua mão e não quis permitir que ela a tocasse ou a
Jesus. Aconselhou-a a cavar um poço fundo na rocha e colocar aquela água
dentro: isso iria dar ao poço o mesmo poder de cura. Maria conversou
bastante com ela; creio que a mulher prometeu deixar o lugar na primeira
oportunidade.
As pessoas estavam extremamente felizes com a cura do filho e o
mostraram para seus companheiros, que não paravam de entrar e sair
durante a noite. Contavam a bênção que havia lhes acontecido. Os que
chegavam (alguns eram meninos) ficavam em volta da Sagrada Família e
olhavam para eles maravilhados. O mais extraordinário é o fato de esses
ladrões serem tão respeitosos com a Sagrada Família e, ao mesmo tempo,
naquela noite, enquanto hospedavam seus visitantes, atacarem outros
viajantes atraídos para lá pela luz. Os últimos eram levados para uma
grande gruta dentro da mata. Esta, cuja entrada estava escondida, era
coberta com a vegetação selvagem e não podia ser vista. Parecia ser o real
local de moradia. Vi vários meninos na gruta, entre sete e nove anos de
idade, que haviam sido roubados de seus pais. Uma velha senhora mantinha
a casa lá. Havia toda espécie de produtos de roubo — roupas, tapetes, carne,
garotos, ovelhas e animais grandes também. A gruta era grande e continha
uma enorme quantidade de coisas.
Maria dormiu pouco naquela noite; permanecia sentada, em seu
acolchoado, a maior parte do tempo. Decidiram sair cedo pela manhã, bem
abastecidos de provisões. As pessoas do lugar caminharam com eles por um
pequeno trecho e os guiaram além das valas, até a estrada certa. Quando os
ladrões deixaram a Sagrada Família, o homem disse com profunda emoção;
“Lembrem-se de nós aonde quer que forem.” Diante dessas palavras, vi, na
cena da Crucifixão, o Bom Ladrão dizendo a Jesus, “Lembra-te de mim
quando tiveres entrado no teu reino!” Reconheci nele o menino que havia
sido curado. A mulher do ladrão, depois de algum tempo, abandonou esse
meio de vida e juntou-se a famílias honestas num outro local de descanso
por onde a Sagrada Família passou. Lá surgiram uma fonte de água e um
jardim de arbustos de bálsamo.
Novamente vi a Sagrada Família viajando pelo deserto. Quando
estavam perdidos, outra vez vi várias espécies de feras arrepiantes
aproximarem-se deles: lagartos com asas de morcego e serpentes. Não eram
hostis. Pareciam apenas querer mostrar-lhes o caminho. Adiante, quando
haviam perdido todo vestígio do caminho, eu os vi sendo guiados por um
lindo milagre. De cada lado do caminho, a planta chamada de a rosa de
Jericó apareceu com suas folhas enroladas em volta da flor central, na parte
superior da haste. Aproximaram-se delas com alegria e quando estavam
diante de uma delas podiam ver uma outra mais adiante florescendo, e
assim foi por todo o deserto. Foi revelado à Santíssima Virgem que, tempos
depois, as pessoas desse lugar colheriam essas flores para vendê-las aos
viajantes como meio de vida. (Vi isso acontecendo em outra ocasião.) O
nome do lugar soava como Gase ou Gose [Gaza?]. Então eu os vi em um
lugar cujo nome era Lepe ou Lape [Pelusium?]. Havia ali um lago com
valas, canais e altos aterros. Cruzaram a água numa balsa com uma espécie
de cercado, onde foi colocado o jumento. Maria sentou-se com sua Criança
num pedaço de tora. Dois homens feios, pardos, seminus, com narizes
achatados e lábios protuberantes conduziram a balsa através do lago.
Passaram apenas pelas casas distantes do lugar. As pessoas eram tão rudes e
antipáticas que os viajantes passavam sem falar com ninguém. Creio que
essa era a primeira cidade pagã. Estiveram por dez dias em solo judeu e dez
dias no deserto.
Agora vi a Sagrada Família em território egípcio. Estavam em um
campo plano com áreas verdes aqui e ali, nas quais os rebanhos pastavam.
Vi árvores nas quais ídolos haviam sido amarrados; assemelhavam-se a
meninos de fraldas com figuras e letras inscritas. Havia pessoas atarracadas
e gordas, vestidas como fiandeiras de algodão, parecidas com as que vi
perto da fronteira dos três reis. Essas pessoas corriam para adorar seus
ídolos. A Sagrada Família foi para um abrigo onde estavam alguns animais,
que sairam para lhes dar espaço. As suas provisões haviam se acabado; não
tinham nem pão nem água. Ninguém lhes deu nada. Maria alimentava sua
Criança com dificuldade. De fato, suportaram toda a miséria humana. Por
fim, alguns pastores vieram para dar água aos animais numa fonte fechada.
José suplicou-lhes um pouco de água. Depois a Sagrada Família, exausta e
desamparada, adentrou uma mata. Ao saírem dela, viram uma tamareira alta
e fina com frutos crescendo em pencas, como um cacho de uvas, bem no
topo da árvore. Maria aproximou-se da árvore com o Menino Jesus em seus
braços e rezou, levantando a Criança em sua direção. A árvore dobrou-se
para baixo como se estivesse ajoelhando, de modo que foram capazes de
colher todos os seus frutos. A árvore permaneceu naquela posição. Alguns
miseráveis da última cidade haviam seguido a Sagrada Família. Maria
distribuiu os frutos da árvore para as muitas crianças sem roupa que corriam
atrás deles. Cerca de quinze minutos depois da primeira árvore, eles
chegaram a um grande sicômoro com tronco oco. Saíram da vista das
pessoas que os seguiam e esconderam-se na árvore para que elas seguissem
adiante. Passaram a noite ali.
No dia seguinte, continuaram por terras abandonadas e desertos de
areia. Eu os vi sentados numa colina de areia, totalmente exaustos, pois
estavam sem água. A Santíssima Virgem pediu a Deus em oração e uma
abundante fonte de água jorrou ao seu lado, correndo pelo chão. José
nivelou um pequeno monte de areia e fez um pequeno dique para a água;
cavou um canal para fazer fluir o excedente. Refrescaram-se com a água e
Maria banhou o Menino Jesus. José deu água ao jumento e encheu seu
cantil. Vi tartarugas e feias criaturas aproximarem-se para beber a água.
Não fizeram nenhum mal à Sagrada Família. Ao contrário, olharam para
eles de forma amistosa. A água fluía num largo círculo, desaparecendo no
chão novamente, perto da nascente. O lugar por onde ela passava foi
maravilhosamente abençoado; logo se tornou verde e produziu os mais
deliciosos arbustos de bálsamo. Cresceram tanto que refrescaram a Sagrada
Família em sua volta do Egito. Mais tarde o lugar tornou-se conhecido
como um jardim de bálsamo. Muitas pessoas foram se instalar ali; entre
elas, creio, a mãe da criança leprosa que foi curada no covil dos ladrões.
Depois tive visões desse lugar. Uma bela cerca viva de arbustos de bálsamo
circundou o jardim, no meio do qual havia grandes árvores frutíferas. Um
grande poço foi cavado e dele se retirava abundante suprimento de água
através de uma roda, que era acionada por um boi. Essa água foi misturada
à água do poço de Maria, de modo a suprir todo o jardim. A água do novo
poço seria nociva se não fosse misturada. Foi-me mostrado que os bois que
moviam a roda não trabalhavam do meio-dia de sábado até a manhã de
segunda-feira.
A SAGRADA FAMÍLIA EM HELIÓPOLIS, EGITO.

Depois de se refrescarem, viajaram para uma grande cidade chamada


Heliópolis ou On, cujas belas construções foram destruídas posteriormente.
No tempo em que os filhos de Israel estavam no Egito, o sacerdote egípcio
Putifar, que habitava naquela região, abrigou em sua casa Asenet (a filha de
Dina dos Siquemitas), com quem José (do Egito) casou-se. Também
Dionísio, o areopagita, viveu nesse lugar na época da morte de Cristo. A
cidade foi devastada pela guerra, mas muitas pessoas ergueram suas casas
sobre as ruínas.
A Sagrada Família cruzou uma ponte muito alta sobre um largo rio,
que me parecia ter vários braços. Chegaram a um lugar aberto, em frente ao
portão da cidade, cercado por uma espécie de passeio público. Ali havia um
pedestal, mais espesso na parte inferior, com um grande ídolo com cabeça
de touro, segurando em seus braços algo como uma criança de fraldas. O
ídolo estava rodeado por um círculo de pedras com bancos ou tábuas. As
pessoas vinham em multidões da cidade para depositar oferendas a ele. Não
muito longe dali, havia uma grande árvore, sob a qual a Sagrada Família
sentou-se para descansar. Pouco tempo depois ocorreu um terremoto; o
ídolo tremeu e veio ao chão. Houve um alvoroço entre as pessoas e uma
multidão de trabalhadores do canal correu para as proximidades. Um bom
homem que acompanhou a Sagrada Família em seu caminho até ali (creio
que era um escavador de escoadouros) conduziu-os apressadamente pela
cidade. Deixavam o lugar onde o ídolo estava, quando a multidão,
aterrorizada, os observou. Começaram a atacá-los com ameaças e insultos,
dizendo-lhes que eram a causa do desabamento do ídolo. Não tiveram
tempo de cumprir suas ameaças, visto que um outro tremor chegou,
desenraizando e engolindo a grande árvore, de modo que nada, além de
suas raízes, aparecesse para fora da terra. O espaço vazio onde ficava o
ídolo ficou cheio de água escura e suja. Nela, o ídolo desapareceu por
inteiro, exceto seus chifres. Alguns dos mais perversos, em meio à massa
enfurecida, foram engolidos por essa piscina escura. Enquanto isso a
Sagrada Família silenciosamente saiu da cidade, tomando como domicílio
as grossas paredes próximas a um templo pagão, onde havia um grande
número de salas vazias.
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS POR MARIA E
JOSÉ EM HELIÓPOLIS PARA GANHAR O
SUSTENTO.

Depois de algum tempo, estive no Egito novamente. Encontrei a


Sagrada Família ainda vivendo na grande e devastada cidade. Ela era muito
extensa e construída ao lado de um grande rio com muitos braços. Essa
cidade podia ser vista de longe. Em muitos lugares, o rio corria por debaixo
das construções. As pessoas cruzavam os braços dos rios em balsas prontas
para serem usadas. Vi, espantada, enormes prédios em ruínas, templos,
grandes quantidades de alvenaria sólida, torres pela metade ou inteiramente
destruídas. Vi pilares grandes como torres com escadas em caracol do lado
de fora. Vi pilares cônicos completamente cobertos com estranhas figuras e
grandes figuras de cães com cabeça humana.
A Sagrada Família vivia nas galerias de um grande prédio de pedras,
sustentado de um lado por pilares baixos e grossos, alguns quadrados e
outros redondos. As pessoas haviam construído para si habitações junto aos
pilares, outras embaixo deles. Acima do prédio passava uma rua com muito
tráfego, cujo trajeto levava a um grande templo pagão com dois pátios. No
prédio havia um espaço com uma parede de um lado e uma fileira de pilares
baixos e grossos do outro. Em frente, José construiu uma habitação leve, de
madeira, repartida com divisórias. Eu os vi todos juntos. O jumento estava
lá também, mas separado por um biombo, como José sempre fazia. Notei
pela primeira vez que eles tinham um pequeno altar junto à parede, oculto
atrás de um desses biombos — consistia de uma pequena mesa com um
pano vermelho coberto por outro branco e transparente. Havia uma lâmpada
acima, porque costumavam rezar ali. Depois vi que José tinha organizado
uma oficina em sua casa; frequentemente saía para trabalhar. Fazia longos
cajados com bolas na ponta e pequenos bancos redondos e baixos de três
pernas, com alças atrás para se carregar. Também fazia cestos e biombos
leves de vime, que eram depois manchados com uma substância que os
tornava firmes. Eram então usados para fazer cabanas e compartimentos
apoiados em paredes de alvenaria. Com tábuas longas e finas, ele também
fez pequenas torres leves, hexagonais e octogonais, com bolas nas pontas.
Essas torres tinham uma abertura e podiam ser usadas como guaritas. Vi
torres como essas aqui e ali, em frente aos templos pagãos e sobre telhados
planos. As pessoas sentavam-se em seu interior.
A Santíssima Virgem tecia tapetes e realizava também um outro
trabalho. Havia um bastão ao seu lado, com uma massa informe presa na
ponta; não sei o que ela estava fazendo, se fiava ou não. Muitas vezes vi
pessoas visitarem Maria e o Menino Jesus, que ficava numa espécie de
berço, no chão, ao seu lado ou sobre um suporte, um cavalete de serra, em
que a Criança permanecia deitada e muito contente. Algumas vezes Seus
braços ficavam soltos para fora, nos lados. Uma vez eu O vi sentado. Maria
tecia junto a Ele, com uma cesta ao lado. Havia três mulheres com ela.
As pessoas, na cidade parcialmente destruída, estavam vestidas como
aqueles fiadores de algodão que eu vi no encontro com os três reis; naquela
ocasião em que eles usavam aventais, parecidos com saias curtas. Não havia
muitos judeus e os da região pareciam viver com alguma tolerância. Ao
norte de Heliópolis, estava a terra de Gessen. Entre seus canais havia um
lugar onde muitos judeus viviam. Sua religião havia se deteriorado. Alguns
deles tornaram-se conhecidos da Sagrada Família. Maria fez vários
trabalhos para eles em troca de pães e de provisões. Os judeus da terra de
Gessen tinham um Templo que fizeram parecer com o Templo de Salomão,
mas o dali era bem diferente.
Novamente vi a Sagrada Família em Heliópolis. Ainda estavam
vivendo perto do templo pagão, debaixo da abóbada das sólidas paredes.
Não muito distante, José construiu um lugar de oração com o auxílio dos
judeus que viviam na cidade. Antes disso não dispunham de um local de
encontro para oração. O local tinha uma pequena abóbada em cima, que
podiam abrir para ficar a céu aberto. No meio do ambiente, ficava uma
mesa de sacrifício ou altar, coberta de vermelho e branco, com rolos de
pergaminho em cima. O sacerdote ou mestre era um homem bastante idoso.
Os homens e as mulheres não eram tão rigorosamente separados em suas
orações como na Terra Prometida, onde os homens ficavam de um lado e as
mulheres do outro.
Tive uma visão da Santíssima Virgem visitando o lugar de oração com
o Menino Jesus pela primeira vez. Ela sentou-se no chão, inclinada sobre
um braço; a Criança estava sentada diante dela e usava um pequena túnica
azul-celeste. Maria pôs as mãos de Jesus juntas sobre Seu peito. José ficou
atrás dela, como sempre fazia ali, embora os outros homens e mulheres
estivessem em grupos separados de cada lado da sala. Sempre me era
mostrado como o pequeno Jesus estava crescendo e como era
frequentemente visitado por outras crianças. Já podia falar e correr muito
bem. Passava muito tempo com José e creio que ia com ele, quando este
saía para trabalhar fora de casa. Usava uma pequena túnica, como uma
camisa tricotada e tecida em peça única. Alguns dos ídolos caíram no
templo perto de onde moravam, tal como a estátua junto ao portão, quando
eles entraram na cidade. Muitos diziam que isso era um sinal da ira dos
deuses contra a Sagrada Família; por causa disso sofreram muitas
perseguições.
EM HELIÓPOLIS, A NOTÍCIA DO MASSACRE DOS
INOCENTES NA TERRA SANTA.

Por volta do segundo ano de Jesus, a Santíssima Virgem soube do


Massacre dos Inocentes por um anjo que apareceu a ela em Heliópois. Ela e
José ficaram muito angustiados e o Menino Jesus chorou aquele dia inteiro.
Vi o que segue.
Quando os três reis não retornaram a Jerusalém, a ansiedade de
Herodes diminuiu um pouco; ele estava, naquele tempo, muito ocupado
com questões familiares. Sua ansiedade retornou, entretanto, quando vários
relatos chegaram sobre as profecias de Simeão e Anna a respeito do Menino
Jesus, na Apresentação no Templo. Naquele momento a Sagrada Família
tinha estado por um tempo em Nazaré.
Sob vários pretextos, Herodes enviou soldados para diferentes lugares
ao redor de Jerusalém, como Guilgal, Belém e Hebron. Ordenou que fosse
feito um recenseamento das crianças. Os soldados, creio eu, permaneceram
por nove meses nesses lugares. Enquanto isso, Herodes estava em Roma.
Logo depois de seu retorno, as crianças foram massacradas. João Batista
tinha dois anos quando isso aconteceu. Tinha estado novamente por algum
tempo na casa com seus pais, em segredo. Antes de Herodes emitir a ordem
para que todas as mães trouxessem apenas os meninos com até dois anos
perante as autoridades, Isabel tinha sido avisada por um anjo e fugiu uma
vez mais para o deserto com seu filhinho. Jesus tinha cerca de um ano e
meio e já podia correr ao redor. As crianças foram massacradas em sete
lugares diferentes. As mães, enganadas, haviam recebido a promessa de
serem recompensadas por sua fertilidade. Vieram de suas casas, dos campos
próximos, para os escritórios do governo nas várias cidades, trazendo
consigo seus meninos em roupas de festa santa. Os maridos foram
mandados de volta, enquanto as mães foram separadas de suas crianças.
Estas foram apunhaladas pelos soldados atrás dos muros de jardins
solitários; seus corpos foram empilhados e queimados em valas.
Nessa tarde eu vi uma cena horrível: o Massacre dos Inocentes
acontecia na casa de execução. O grande prédio atrás do pátio tinha dois
andares de altura: o andar inferior era um grande salão abandonado,
parecido com uma prisão ou sala de guarda; acima, vi um número de
oficiais dispostos como numa corte de justiça. Diante deles havia uma
mesa, onde estavam alguns rolos de pergaminho. Creio que Herodes estava
lá também, pois vi um homem com um manto vermelho, forrado com pele
branca e pequenos rabos pretos. Ele estava usando uma coroa e o vi
rodeado por outros homens, que olhavam para fora, pela janela.
As mães foram chamadas uma a uma com suas crianças. Vinham dos
prédios laterais para dentro do salão inferior do prédio de trás do pátio. À
medida que entravam, suas crianças eram separadas pelos soldados e
levadas pelo portão para o pátio, onde uns vinte soldados se encarregavam
do trabalho homicida de passar a espada através de suas gargantas e
corações. Algumas ainda eram crianças de colo e em fraldas; outras eram
menininhos usando longas túnicas bordadas. Os soldados não se
envergonhavam em tirar suas roupas, passar a espada em suas gargantas e
corações, agarrar seus corpos por um braço ou perna e arremessá-las sobre
uma pilha de corpos. Era uma cena horripilante. As mães eram empurradas
para trás uma a uma, pelos soldados, para dentro do grande salão. Quando
viram o que fora feito com suas crianças, elas ergueram um terrível clamor,
unindo-se umas às outras. Arrancavam os próprios cabelos, ajuntando-se de
tal forma no final que mal podiam se mover. Creio que o massacre durou
até a noite.
Depois, os corpos das crianças foram enterrados num buraco no
mesmo pátio. O número de crianças foi-me mostrado, mas não tenho uma
clareza a respeito disso. Creio que eram 700 e um outro número com 7 ou
17 nele.
Na noite seguinte vi as mães serem levadas de volta para as suas casas
pelos soldados, amarradas e em grupos separados. O local do Massacre dos
Inocentes foi usado mais tarde como tribunal. Não era longe do lugar de
julgamento de Pilatos, mas, em sua época, o local já havia mudado bastante.
Na morte de Cristo, vi a sepultura das crianças massacradas afundar e suas
almas aparecerem de lá de dentro.
Vi como Isabel, avisada por um anjo, uma vez mais fugiu para o
deserto com o pequeno João para escapar do Massacre dos Inocentes.
Isabel procurou por muito tempo até encontrar uma gruta que fosse
suficientemente escondida. Ficou lá por cerca de quarenta dias. Quando foi
para casa, um essênio da comunidade do Monte Horeb foi até o menino no
deserto, levando comida e dando-lhe toda a ajuda necessária. Esse essênio
(cujo nome ainda não me recordo) era um parente da Anna do Templo. A
princípio ele vinha a cada oito dias, depois a cada quatorze; logo João não
precisou mais de ajuda, porque ficava mais no abrigo no deserto do que
entre os homens. Foi designado por Deus que ele crescesse no deserto, sem
contato com a humanidade e livre de seus pecados. Como Jesus, ele nunca
foi à escola; o Espírito Santo ensinou-lhe tudo no deserto. Sempre via a seu
lado uma luz ou figuras brilhantes como anjos. O deserto nesse local não
era árido e estéril; cresciam muitas plantas e arbustos, que produziam
muitos tipos de frutas. Entre as rochas havia morangos, que João colhia e
comia quando passava. Ele possuía uma familiaridade incomum com os
animais, especialmente com os pássaros, que voavam até ele,
empoleirando-se em seus ombros. João conversava com eles, que pareciam
compreendê-lo, comportando-se como seus mensageiros. Costumava vagar
pelas ribanceiras dos rios e era igualmente familiar com os peixes, que
nadavam perto dele quando ele os chamava. Seguiam-no de dentro d`água,
à medida que ele caminhava pela margem.
Vi que ele se deslocou para bem longe de sua casa, talvez por causa do
perigo que o ameaçava. Era tão amável com os animais que eles o
ajudavam e o alertavam para fugir, conduzindo-o até seus ninhos e tocas ou
ocultando-o dentro de seus esconderijos, caso alguém se aproximasse. João
vivia de frutos, raízes e ervas. Não tinha de procurar muito pelos alimentos,
pois sabia onde cresciam ou os animais lhe mostravam. Estava sempre
vestido com sua pele de cordeiro e seu pequeno cajado. Ia ocasionalmente
para ainda mais longe no deserto. Algumas vezes aproximava-se de sua
casa. Em várias ocasiões esteve com seus pais, que sempre desejavam estar
com ele. Creio que sabiam um do outro por revelação divina, pois sempre
que Isabel ou Zacarias queriam vê-lo, vinha de muito longe para encontrá-
los.
A PERSEGUIÇÃO DE HERODES, À PROCURA DO
MENINO-REI, LEVA À MORTE DE ZACARIAS, PAI
DE JOÃO BATISTA.

Quando João tinha cerca de seis anos de idade, Isabel aproveitou a


ausência de Zacarias, que havia levado alguns animais para o sacrifício no
Templo, para fazer uma visita a seu filho no deserto. Zacarias, creio, nunca
foi vê-lo lá, de modo que pudesse dizer sinceramente que não sabia sobre
onde estava seu filho, caso interrogado por Herodes. A fim de satisfazer,
contudo, a intensa saudade que sentia por João, o menino vinha várias vezes
do deserto para a casa de seus pais, em segredo, pela noite. Demorava-se
pouco tempo lá. Provavelmente seu anjo da guarda o conduzia no momento
certo e quando não havia perigo. Sempre o vi guiado e protegido pelos
poderes do alto e algumas vezes acompanhado por figuras brilhantes como
anjos.
João estava destinado a viver no deserto, separado do mundo e do
alimento comum dos humanos, a fim de ser ensinado e treinado pelo
Espírito de Deus. A Providência ordenava tudo, de modo que os
acontecimentos exteriores o faziam se refugiar no deserto sempre que seus
instintos naturais o guiassem com força irresistível. Desde o começo da sua
infância, sempre o vi pensativo e solitário. Assim como Jesus fugiu para o
Egito, como resultado do aviso de Deus, também o fez João, Seu precursor,
ao fugir para um lugar escondido no deserto. Suspeitas eram lançadas sobre
ele, pois havia muito falatório na região sobre João, desde seus primeiros
dias de vida.
Era bem sabido que coisas extraordinárias haviam acontecido em torno
de seu nascimento. Ele frequentemente era visto rodeado de luz. Por esses
motivos, Herodes tinha suspeitas particulares a seu respeito, o que fez com
que Zacarias fosse interrogado muitas vezes sobre o paradeiro de seu filho.
Sua prisão ainda não havia sido ordenada. Dessa vez, entretanto, enquanto
ia a caminho do Templo, os soldados de Herodes atacaram Zacarias numa
rua rebaixada, fora da Porta de Belém, em Jerusalém, de onde ainda não se
conseguia ver a cidade. Os soldados, que estavam deitados à sua espera,
arrastaram-no brutalmente para a prisão no barranco do Monte Sião, onde,
mais tarde, costumava-se ver os discípulos de Jesus a caminho do Templo.
O velho sacerdote foi sujeitado ali a maus-tratos e até a tortura, a fim de
forçá-lo a confessar o paradeiro de seu filho. Como isso não produziu
efeito, os soldados de Herodes o apunhalaram até a morte. Seus amigos
enterraram seu corpo não muito distante do Templo.
Isabel chegou do deserto, em casa, esperando encontrar Zacarias já de
volta de Jerusalém. João acompanhou-a por um pedaço do caminho.
Quando se separaram, ela o abençoou e o beijou na testa. Em seguida, ele
retornou correndo, tranquilo, para o deserto. Chegando em casa Isabel
ouviu a notícia do terrível assassinato de Zacarias. Chorou e lamentou tão
dolorosamente o fato que, por não encontrar paz ou descanso em casa,
deixou Juta para sempre. Apressou-se para juntar-se a João no deserto.
Morreu lá, não muito tempo depois, antes que a Sagrada Família retornasse
do Egito. Foi sepultada no deserto pelo essênio do Monte Horeb, aquele que
sempre ajudou o pequeno João.
Uma filha da irmã de Isabel vivia agora na casa da família de João, em
Juta, perto de Hebron. A casa estava bem suprida. Já adulto, João esteve ali
uma vez em segredo. Depois seguiu para ainda mais longe no deserto e
permaneceu lá até o momento em que começou sua missão entre os
homens.
A SAGRADA FAMÍLIA SAI DE HELIÓPOLIS RUMO
A MÊNFIS E EM SEGUIDA PARA MATAREA,
EGITO, ONDE VIVERAM POR ALGUNS ANOS.
JESUS ESTÁ COM DOIS ANOS. MARIA REALIZA O
MILAGRE DA FONTE DE ÁGUA POTÁVEL.

Depois de ficar por um ano e meio em Heliópolis, até Jesus ter cerca
de dois anos de idade, a Sagrada Família deixou a cidade, por causa da falta
de trabalho e das várias perseguições, em direção ao sul, rumo a Mênfis.
Quando passaram através de uma pequena cidade, não muito longe de
Heliópolis, sentaram-se para descansar na varanda aberta de um templo
pagão. O ídolo caiu e quebrou-se em pedaços. (Ele tinha a cabeça de boi
com três chifres; havia buracos em seu corpo, onde as oferendas dos
sacrifícios eram colocadas para queimar.) Isso causou tumulto entre os
sacerdotes pagãos, que passaram a perseguir e a maltratar a Sagrada
Família. Quando os sacerdotes começaram a conferenciar entre si, um deles
disse que pensava ser sábio colocarem-se sob a proteção do Deus daquelas
pessoas, recordando sobre as pragas que abateram seus antepassados,
quando estes perseguiram os israelitas e, como na noite anterior ao seu
êxodo, os primogênitos morreram em todas as casas egípcias. Seguiram seu
conselho e liberaram a Sagrada Família sem lhes fazer mal algum.
Eles foram para Tróia, um lugar na margem leste do Nilo, oposta a
Mênfis. Era uma cidade grande, mas muito suja. Pensaram em ficar ali, mas
não foram recebidos. De fato, não obtiveram nem mesmo um gole de água
ou um pouco de tâmaras que pediram. Mênfis ficava do lado oeste do Nilo,
que era ali muito largo e com ilhas. Parte da cidade ficava do lado leste. No
tempo do Faraó, havia um grande palácio com jardins e uma torre alta, em
cujo topo a filha do Faraó costumava subir para observar a região em volta.
Vi o lugar onde o bebê Moisés foi encontrado em meio aos juncos. Mênfis
parecia ser composta de três diferentes cidades, uma de cada lado do Nilo e
uma outra, chamada Babilônia, que parecia pertencer a ela. Esta ficava bem
abaixo do rio, na margem leste. De fato, no tempo do Faraó, toda a região
ao redor do Nilo entre Heliópolis, Babilônia e Mênfis era tão cheia de
canais, prédios e aterros de pedra que tudo parecia formar uma única
cidade.
No tempo da visita da Sagrada Família, tudo se tornou separado por
grandes espaços desertos. De Tróia, foram para o norte rio abaixo em
direção à Babilônia, que era malconstruída, suja e desolada. Contornaram a
cidade entre ela e o Nilo e voltaram por onde vieram por certa distância.
Rio abaixo seguiram a margem pela qual Jesus viajou mais tarde, quando
atravessou da Arábia até o Egito, depois da ressurreição de Lázaro e antes
de encontrar seus discípulos novamente no Poço de Jacó em Sicar. Viajaram
rio abaixo por duas horas. Ao longo de seu caminho, havia construções
destruídas. Tiveram de cruzar um pequeno braço do rio ou canal até
chegarem a um lugar cujo nome, naquela época, não lembro. Depois, foi
chamado de Matarea, que era perto de Heliópolis. Esse lugar, que fica num
promontório cercado por água dos dois lados, era bastante solitário. Suas
construções dispersas eram, na maioria, malfeitas, de madeira de palma e
barro grosso, cobertas com junco. José encontrou muito trabalho ali,
reforçando as casas com varas de vime e construindo galerias de água até
elas.
Nessa cidade, a Sagrada Família viveu em uma sala abobadada, num
bairro solitário do lado oposto ao rio, não muito longe do portal pelo qual
entraram. Como anteriormente, José construiu um quarto em frente à sala
abobadada. Ali também, quando chegaram, um ídolo caiu num pequeno
templo e depois todos os ídolos caíram. Novamente um sacerdote pagão
acalmou as pessoas, lembrando das pragas do Egito.
Depois, quando uma pequena assembleia de judeus e pagãos
convertidos reuniu-se em torno da Sagrada Família, os sacerdotes cederam-
lhes o pequeno templo onde o ídolo havia caído. José o transformou numa
sinagoga. Ele tornou-se o fundador da congregação e introduziu o canto
apropriado dos salmos, visto que os primeiros cultos tinham sido bem
desorganizados. Apenas alguns judeus, bem pobres, viviam ali em buracos
miseráveis e em fossos, embora na cidade judia entre On e o Nilo houvesse
muitos judeus que tinham um Templo regular. Apesar disso, caíram em uma
horrível idolatria a um bezerro de ouro, uma imagem com cabeça de boi,
rodeada por pequenas imagens de animais como o furão ou doninha,
coberta por um pálio. Eram esses animais que protegiam as pessoas dos
crocodilos. Tinham também uma imitação da Arca da Aliança, com coisas
horríveis dentro dela. Continuaram numa revoltante idolatria, que consistia
de práticas imorais executadas numa passagem subterrânea cujo pretexto
era causar a vinda do Messias. Eram bastante obstinados e recusavam-se a
mudar suas vidas. Mais tarde muitos deles deixaram o lugar e foram morar
onde a Sagrada Família vivia, não mais do que duas horas de distância. Por
causa dos muitos diques e canais, não podiam viajar diretamente, mas
tinham de usar um desvio em torno de On.
Os judeus na terra de Gessen já haviam se familiarizado com a
Sagrada Família na cidade de On. Maria fez muitos trabalhos para eles —
tricotava, tecia e costurava. Nunca confeccionou coisas que fossem
supérfluas ou de luxo, apenas vestes de oração ou o que fosse necessário.
Mesmo precisando de dinheiro, muitas vezes vi Maria recusar trabalhos que
as mulheres lhe pediam por vaidade ou moda. Vi também que as mulheres a
insultavam com desprezo.
Em um primeiro momento, tiveram um período muito duro em
Matarea. Havia grande escassez de boa água e madeira. Os habitantes
cozinhavam com relva seca ou junco. A Sagrada Família geralmente comia
comida fria. José recebeu uma grande quantidade de trabalho para fazer
melhorias nas cabanas, mas as pessoas lá o tratavam como escravo, dando-
lhe apenas o que queriam. Algumas vezes trazia para casa algum dinheiro
referente a seu trabalho, outras vezes não. Os habitantes eram bastante
desajeitados na construção de suas casas. Estava faltando madeira e,
embora eu visse troncos de árvore caídos aqui e ali, notei que não havia
ferramentas para que pudessem ser usados. A maioria das pessoas não tinha
nada além de pedras e facas de osso, usadas como corta-grama. José havia
trazido as ferramentas necessárias consigo. A Sagrada Família logo ajeitou
um pouco sua moradia. José dividiu a sala de forma muito conveniente com
biombos de vime leves, preparou um lugar para a lareira, fez bancos e
mesinhas baixas. As pessoas do local comiam longe do chão.
Viveram ali por vários anos. Tenho visto muitas cenas sobre a infância
de Nosso Senhor. Vi onde Jesus dormia. Na parede espessa do dormitório
de Maria, vi um nicho escavado por José, no qual estava o acolchoado de
Jesus. Maria dormia a Seu lado e eu a vi muitas vezes durante a noite,
diante dele, orando a Deus. José dormia em outro quarto.
Também vi um local de oração que José ajeitou em seu quarto. Ficava
numa passagem separada. José e a Santíssima Virgem tinham seus próprios
lugares especiais, e o Menino Jesus também tinha seu próprio cantinho,
onde orava sentado, de pé ou de joelhos. A Santíssima Virgem tinha uma
espécie de pequeno altar, diante do qual rezava. De um armário de parede,
ela podia abaixar uma aba que ora funcionava como porta ora como
mesinha, sobre a qual se colocava um pano vermelho e branco. Na parede
espessa eram guardadas relíquias sagradas. Vi pequenas plantas, em potes,
em forma de cálice. Vi, ainda, a ponta do cajado de São José, que floresceu
e o elegeu como esposo de Maria. Essa ponta foi colocada numa caixa com
quatro centímetros de espessura. Além disso, havia uma outra relíquia
preciosa, mas não sei mais explicar o que era. Numa caixa transparente vi
cinco pequenas varetas brancas da grossura de canudos grandes, que
ficavam cruzadas e pareciam estar amarradas no meio; no topo eram curvas
e mais largas.
Em Matarea, onde os habitantes tinham de matar a sede com a água
lamacenta do Nilo, uma fonte brotou, como antes, em resposta às orações
de Maria. A princípio sofreram grande escassez de tudo e foram obrigados a
viver de frutos e água ruim. Fazia muito tempo desde que tiveram boa água
pela última vez e José estava aprontando-se para pegar seus cantis de couro
e colocá-los no jumento a fim de buscar água da fonte de bálsamo no
deserto, quando, em resposta às suas orações, um anjo apareceu à
Santíssima Virgem. Disse-lhe para procurar uma fonte atrás de sua casa. Eu
a vi saindo de seu quarto para um lugar aberto, num plano mais baixo,
rodeado por um aterro entrecortado. Havia uma árvore muito grande ali.
Nossa Senhora tinha uma vara com uma pá na ponta, tal como as pessoas
naquele país costumavam carregar em suas viagens. Ao espetar o chão,
perto da árvore, um belo e claro fluxo de água jorrou. Ela correu feliz para
chamar José que, ao cavar em redor da fonte, descobriu que esta tinha sido
revestida com alvenaria embaixo, mas havia secado porque ficou entupida
com lixo. José fez alguns reparos e limpezas e rodeou-a com um belo e
novo trabalho em pedra. Perto da fonte, do lado pelo qual Maria havia se
aproximado, havia uma grande pedra, tal qual um altar. De fato, creio que
fora uma vez um altar, mas esqueci a ligação.
Nesse local, a Santíssima Virgem costumava secar as roupas de Jesus
ao sol depois de lavá-las. Essa fonte permaneceu desconhecida e foi usada
somente pela Sagrada Família, até que Jesus tivesse crescido o bastante
para assumir pequenas incumbências, como pegar água para a Sua Mãe.
Uma vez vi que Ele trouxe outras crianças para a fonte. Deu-lhes um pouco
de água numa folha. As crianças contaram isso a seus pais e logo outros
vieram até ela. Mas, como regra, era usada apenas pelos judeus. Vi Jesus
buscar água para a Sua Mãe pela primeira vez. Maria estava em seu quarto,
ajoelhada em oração, quando Jesus foi para a fonte sem ser visto, com um
cantil, e pegou água; essa foi a primeira vez. Maria ficou inexprimivelmente
tocada quando O viu retornando. Suplicou-lhe que não fizesse isso
novamente, pois podia cair na fonte. Jesus disse que seria bastante
cuidadoso e que desejava pegar água sempre que ela precisasse.
O Menino Jesus realizava, com grande atenção e solicitude, toda
espécie de serviços para Seus pais. Quando José estava trabalhando perto de
casa, algumas vezes eu o vi correndo para buscar alguma ferramenta que
havia sido deixada para trás. Jesus prestava atenção a tudo. Estou certa de
que a alegria que Ele deu a Seus pais deve ter compensado todos os
sofrimentos que enfrentaram posteriormente. Também vi Jesus ir algumas
vezes ao povoado judeu, cerca de um quilômetro e meio de Matarea, para
buscar pão como pagamento pelos trabalhos de Sua Mãe. Os muitos
animais repugnantes que se encontravam naquele país não Lhe faziam mal;
ao contrário, eram muito amistosos com Jesus. Eu O vi brincando, mesmo
com as serpentes.
A primeira vez que foi sozinho para o povoado judeu (não sei se já
estava com cinco ou sete anos de idade), Ele vestia uma túnica marrom com
flores amarelas na barra, tecida pela Santíssima Virgem. Ele ajoelhou-se no
chão para rezar ainda a caminho da cidade; vi dois anjos surgirem e
anunciarem a morte de Herodes, o Grande. Jesus nada disse aos pais, não
sei por quê. Talvez por humildade; ou pelo fato de o anjo assim ter
recomendado; ou talvez não tivesse chegado a hora de deixarem o Egito.
Uma vez eu O vi ir para o povoado com outras crianças judias. Quando
voltou para casa, chorou amargamente por causa da degradação dos judeus
que ali viviam.
A fonte que apareceu em Matarea, em resposta às orações da
Santíssima Virgem, não era nova, mas uma antiga fonte que jorrou
novamente, após ter ficado obstruída, embora estivesse forrada de
alvenaria. Vi que Jó esteve no Egito bem antes de Abraão e que havia
habitado naquele lugar, na mesma região. Foi ele quem encontrou a fonte e
fez sacrifícios sobre a grande pedra encontrada ali.
O RETORNO DA SAGRADA FAMÍLIA DO EGITO.
JESUS JÁ ESTAVA COM APROXIMADAMENTE
OITO ANOS.

Finalmente vi a Sagrada Família deixando o Egito. Embora Herodes


tivesse morrido já fizesse algum tempo, não podiam retornar, pois ainda
havia perigo. A permanência no Egito tornou-se cada vez mais difícil para
São José. As pessoas ali praticavam uma abominável idolatria.
Sacrificavam crianças deformadas. Muitas vezes consideravam um ato de
devoção especial ofertar crianças sadias para o sacrifício. Além disso,
praticavam ritos obscenos em segredo. Mesmo os judeus, em seu reduto,
foram infectados por esses horrores. Tinham um Templo que diziam ser
igual ao de Salomão; era uma pretensão, pois era completamente diferente.
Não mais cantavam os salmos. José, por outro lado, organizou tudo
admiravelmente na escola de Matarea. Tinha sido acolhido por um
sacerdote pagão, que tomou o partido da Sagrada Família no momento em
que os ídolos ruíram naquela pequena cidade perto de Heliópolis. Outros o
acompanharam, unindo-se à comunidade judaica.
Vi São José atarefado em sua carpintaria, na véspera do Sabá. Estava
muito aflito, porque não era devidamente pago por seus serviços. Não tinha
nada para levar para casa; havia muita necessidade de dinheiro. Em sua
tribulação, ajoelhou-se ao ar livre e orou a Deus, pedindo que o ajudasse em
suas necessidades. Na noite seguinte um anjo veio até ele em sonho. Disse-
lhe que aqueles que procuravam tirar a vida do menino estavam mortos e
que ele devia se levantar e se preparar para a jornada de regresso para casa,
pela estrada principal. Não devia ter medo, pois o anjo iria acompanhá-lo.
Vi São José comunicando à Santíssima Virgem e ao Menino Jesus a ordem
recebida de Deus. Eu os vi preparando tudo rápida e obedientemente, tal
como quando fugiram para o Egito.
Quando a sua decisão tornou-se conhecida, na manhã seguinte, muitas
pessoas foram até eles muito aflitas para se despedirem. Levaram consigo
todo tipo de presentes em pequenos recipientes de casca de árvore. Em sua
maioria eram judeus e alguns pagãos convertidos; todos estavam
verdadeiramente entristecidos. (Os judeus daquele país estavam tão
mergulhados na idolatria que dificilmente se podia reconhecê-los. Algumas
pessoas alegraram-se com a partida da Sagrada Família, a quem olhavam
como adivinhos cujo poder era proveniente de maus espíritos.) Dentre as
boas pessoas que trouxeram presentes, vi mães com seus filhinhos,
amiguinhos de Jesus. Notei, em particular, uma mulher proeminente da
cidade e seu filho pequeno, a quem ela costumava chamar de “o filho de
Maria”. Essa mulher, cujo nome era Mira, desejou por muito tempo ter
filhos. Recebeu a graça de Deus por meio das orações da Santíssima
Virgem. Ela o chamou de Deodatus. [Quando Catharina Emmerich viu
Jesus em sua viagem pelo Egito a caminho do poço de Jacó, depois da
ressurreição de Lázaro, disse que Ele tomou esse Deodatus como
discípulo.] Vi a mulher ofertar dinheiro para Jesus — peças amarelas,
brancas e marrons, de formato triangular. Jesus olhou para a Sua Mãe
enquanto aceitava o presente.
Assim que José empacotou tudo de que necessitavam sobre o jumento,
partiram em sua jornada, acompanhados por todos os seus amigos. O
jumento era o mesmo no qual Maria havia viajado para Belém. (Em sua
fuga para o Egito, eles também possuíam uma jumenta; José foi obrigado a
vendê-la quando passaram necessidades.) Eles passaram entre On e o
vilarejo judeu e então se dirigiram para o sul, na direção da fonte que havia
jorrado em resposta às orações de Maria, antes de chegarem a On ou
Heliópolis. Tudo estava verde agora e a torrente dessa fonte rodeava o
jardim, circundado pelos quatro lados (menos na entrada) por uma cerca
viva de arbustos de bálsamo. O jardim era tão grande quanto a escola de
equitação de Duke Croy, em Duelmen (Alemanha). Nele havia jovens
árvores frutíferas, tamareiras e sicômoros. Os arbustos de bálsamo já
estavam tão grandes quanto videiras de porte. José havia feito pequenos
recipientes de casca de árvore, muito macios e delicados, exceto nos lugares
que eram untados com resina de árvore.
Enquanto descansavam, ele frequentemente fazia recipientes como
esses, para usos diversos. José arrancou as folhas em forma de trevo das
garras avermelhadas do bálsamo e pendurou suas pequenas garrafas de
casca de árvore a fim de recolher as gotas de bálsamo para serem levadas na
viagem. Seus acompanhantes deram um caloroso adeus a eles. A Sagrada
Família ainda permaneceu ali por algumas horas. A Santíssima Virgem
lavou e secou algumas coisas e, depois de se refrescarem com água,
encheram seus odres e partiram em sua jornada pela estrada principal. Vi
muitas cenas deles nessa jornada de retorno para casa, sempre livres de todo
perigo. O Menino Jesus, Maria e José tinham sobre suas cabeças pedaços
finos e redondos de casca de árvore, que eram amarrados sob o queixo com
panos, para se protegerem do sol. Jesus usava sua túnica marrom e sapatos
feitos por José com casca de árvore. Estes foram ajeitados de modo a
cobrirem metade de seus pés. Maria usava apenas a parte das solas. Vi que
ela estava frequentemente preocupada, porque o Menino Jesus sentia
dificuldade em andar na areia quente. Muitas vezes a vi sacudir a areia de
Seus sapatos ou por Jesus sobre o jumento para que Ele pudesse descansar.
Eu os vi passando por muitas cidades. Outras eram contornadas por fora. Os
nomes dos lugares escapam-me agora. Ainda me lembro do nome Ramsés.
Atravessaram torrentes que também haviam sido cruzadas na ida para o
Egito. Elas corriam do Mar Vermelho para o Nilo.
José não desejava realmente voltar para Nazaré. Queria fixar-se em
Belém, terra de seus antepassados. Estava, entretanto, indeciso, porque na
Terra Prometida ouvira dizer que a Judéia era governada por Arquelau, que,
como Herodes, era muito cruel. A Sagrada Família permaneceu três meses
em Gaza, terra de muitos pagãos. Ali novamente um anjo apareceu a José
em sonho. Ordenou que fossem para Nazaré, o que ele fez imediatamente.
Anna ainda estava viva. Ela e uns poucos parentes sabiam onde a Sagrada
Família estava vivendo. O retorno do Egito ocorreu em setembro. Jesus
tinha perto de oito anos de idade.
MARIA VIVEU COM JESUS E JOSÉ EM NAZARÉ
ATÉ JESUS COMPLETAR TRINTA ANOS. DEPOIS
DA MORTE DE JOSÉ, MARIA E JESUS SE MUDAM
PARA CAFARNAUM, ONDE VIVERAM ATÉ A
PAIXÃO DE JESUS CRISTO.

Aos oito anos foi Jesus pela primeira vez a Jerusalém, para a festa da
Páscoa, e depois ia todos os anos.
Depois de voltar de Jerusalém, viveu Jesus, até a idade de trinta anos,
com Maria e José, em paz e recolhimento, na pequena casa de Nazaré. Nem
a Escritura Sagrada, nem a tradição nos transmitem pormenores dessa
época; o Evangelho diz apenas: “E era-lhes (aos pais) submisso.” (Luc.
2,51). Também Anna Catharina Emmerich conta pouco dessa fase da vida
de Jesus. Ouçamos os fatos principais:
“Depois de Jesus ter voltado a Nazaré, vi prepar-se uma festa, em
casa de Sant’Ana, onde todos os moços e moças, parentes, e amigos de
Jesus, se reuniram. Nosso Senhor era a pessoa principal dessa festa, à qual
estiveram presente 33 meninos, todos futuros discípulos do Salvador. Ele os
ensinou e contou-lhes uma belíssima parábola de núpcias, nas quais a água
seria mudada em vinho e os convidados indiferentes em amigos fiéis;
depois lhes falou de outras bodas, nas quais o vinho seria mudado em
sangue e o pão em carne; e essa boda permaneceria, com os convidados,
até o fim do mundo, como consolação e conforto e como vínculo vivo de
união. Disse também a Natanael, jovem parente seu; “Estarei presente às
tuas bodas.”
Desde esse tempo, Jesus sempre foi como que o mestre dos
companheiros. Sentava-se no meio, contando ou ensinando, ou passeava
com eles pelos campos.
Aos 18 anos, começou a ajudar a S. José na profissão. Dos vinte aos
trinta anos, teve muito que sofrer, por secretas intrigas dos judeus. Estes
não podiam suportá-lo, dizendo, com inveja, que o filho do carpinteiro
queria saber tudo melhor.
Na época em que começou a vida pública, tornou-se cada vez mais
solitário e meditativo. Quando Jesus se aproximava dos trinta anos, tornou-
se José cada vez mais fraco. Vi Jesus e Maria mais vezes em companhia
dele. Maria sentava-se ao lado do leito, de quando em quando. Quando
José morreu, estava Maria sentada à cabeceira da cama, segurando-o nos
braços; Jesus achava-se em frente, junto ao peito do moribundo. Vi o
quarto cheio de luz e de Anjos. O corpo de José foi envolvido num largo
pano branco, com as mãos postas abaixo do peito, deitado num caixão
estreito e depositado numa bela gruta sepulcral, perto de Nazaré, gruta que
recebera como doação de um homem bom. Além de Jesus e Maria, foram
poucos os que acompanharam o caixão; vi-o, porém, acompanhado de
anjos e rodeado de luz. O corpo de José foi levado mais tarde pelos cristãos
para um sepulcro perto de Belém. Julgo vê-lo jazer ali, ainda hoje, em
estado Incorrupto.
José teve de morrer antes de Jesus, pois, sendo muito fraco e amoroso,
não lhe teria sobrevivido à crucificação. Já sentira profundamente as
perseguições que o Salvador teve de sofrer, dos vinte aos trinta anos, pelas
repetidas maldades secretas dos judeus. Também Maria havia sofrido muito
com essas perseguições. É indizível com que amor o jovem Jesus suportava
as tribulações e intrigas dos judeus.
Depois da morte de José, Jesus e Maria se mudaram para uma aldeia
situada entre Cafarnaum e Betsaida, em que um homem chamado Leví
ofereceu uma casa a Jesus. Maria Cleophae, que, com o terceiro marido,
vivia na casa de Sant’Ana, perto de Nazaré, mudou-se para a casa de
Maria, em Nazaré.
Entre os moços de Nazaré, Jesus já tinha muitos adeptos; mas sempre
o abandonavam de novo. Andava com eles pelas regiões marginais do lago
e também em Jerusalém, pelas festas. “A família de Lázaro, em Betânia,
era também já conhecida de Jesus.”
INICIO DA VIDA PÚBLICA DE JESUS
JESUS É BATIZADO POR JOÃO BATISTA E FAZ
JEJUM POR QUARENTA DIAS.

“Estava reunida uma extraordinária multidão de povo e João falou


com grande alento sobre a próxima vinda do Messias e sobre a penitência;
disse também que teria de desaparecer, para dar lugar Àquele. Jesus estava
no meio do apinhado auditório. João, que O viu bem, ficou extremamente
satisfeito e fervoroso. Já tinha batizado a muitos, quando Jesus, por sua
vez, desceu ao tanque do Batismo. Então disse João, inclinando-se diante
dEle: “Sou eu que devo ser batizado por Vós e vindes a mim!” Jesus
respondeu-lhe: “Deixa fazer por ora; convém que assim cumpramos toda a
justiça, que me batizes e que eu seja batizado por ti”. Também lhe disse:
“Receberás o Batismo do Espírito Santo e de sangue.”
O Salvador dirigiu-se então por cima da ponte, à ilhota, acompanhado
por João e pelos discípulos André e Saturnino. Entrando numa tenda,
despiu as vestes e veio para fora, coberto de uma túnica de um tecido
pardo; desceu à margem do tanque, onde despiu também a túnica, tirando-
a pela cabeça. Cingiu os rins com uma faixa, que lhe envolvia as pernas,
até abaixo dos joelhos. Assim entrou na fonte. João estava de lado, ao sul
do tanque; tinha na mão uma taça com aba larga e três biqueiras.
Abaixando-se, tirou água, com a taça e derramou-a, pelas três biqueiras,
sobre a cabeça do Senhor, dizendo mais ou menos as seguintes palavras:
“Javé derrame a sua bênção sobre ti, pelos Querubins e Serafins, com
sabedoria, inteligência e fortaleza.” Jesus subiu então e André e Saturnino
cobriram-no com um pano, com o qual se enxugou; vestindo-O depois de
uma comprida túnica branca de batismo, impuseram-Lhe as mãos aos
ombros, enquanto João lhe pôs a mão na cabeça.
Ouviu-se então um grande bramido vindo do céu, como um trovão, e
todos que estavam presentes olharam para cima, estremecendo. Desceu
uma nuvem branca e luminosa e vi uma figura lúcida, com asas, pairar por
cima de Jesus, derramando sobre Ele uma torrente de luz; vi também a
aparição do Pai Celestial e ouvi as palavras: “Eis meu Filho muito amado,
em quem ponho minha afeição.” (Mat. 3,17)
Jesus, porém, subiu os degraus, vestiu a túnica e dirigiu-se, cercado
dos discípulos, ao largo da ilha. João falou com grande alegria ao povo,
dando testemunho de que Jesus era o Messias prometido. Citou as
promissões dos patriarcas e profetas, que nesse momento foram cumpridas;
contou o que tinha visto e que era a voz de Deusque todos tinham ouvido.
Disse também que, daí a pouco, se retiraria, logo que Jesus voltasse.
Exortou todos a seguirem Jesus.
Jesus confirmou simplesmente o que João dissera. Disse também que
se retiraria por algum tempo; mas depois viessem a Ele todos os enfermos e
aflitos, pois que lhes daria consolação e socorro.
Depois de batizado, Jesus partiu com os companheiros, primeiro para
Belém, seguindo daí para o sul do Mar morto, pelo mesmo caminho que a
Sagrada Família tomara, na fuga para o Egito. De lá, voltando, foi
conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, para jejuar quarenta dias.
Começou o jejum na montanha de Jericó, onde subiu ao monte deserto e
íngreme de Quarantania e rezou numa gruta. Descendo do monte,
atravessou, numa embarcação, o rio Jordão e foi a uma montanha muito
íngreme, distante cerca de nove léguas do Jordão. Jesus rezava numa gruta,
ora prostrado por terra, ora de joelhos, ora em pé. Não comia nem bebia,
mas era confortado pelos Anjos.
Jesus desceu do monte e veio ao Jordão, perto do lugar onde João
estava batizando. Este se voltou logo para o Mestre, exclamando: “Eis o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo”. Podia-se perguntar: Por
que fez Jesus um jejum tão rigoroso? Por que se sujeitou àquelas
tentações?
Jesus está para começar sua vida pública; quer percorrer abertamente
o país, repreender os pecadores, convidá-los a converterem-se e a fazerem
penitência; na sua doutrina, terá de fazer frente, muitas vezes, a opiniões
errôneas a respeito da fé e da moral; terá de apresentar-se ao povo como o
Messias prometido, como o Filho de Deus, e de exigir humilde aceitação de
sua doutrina. É uma tarefa dificílima, que traz consigo muitos trabalhos
penosos, mortificações, sofrimentos, inimizades e perseguições. Por isso se
prepara o Salvador para essa obra com jejum e meditação, na solidão do
deserto.
Ali, no retiro absoluto, deixa tentar-se por Satanás!
ELEIÇÃO DOS PRIMEIROS DISCÍPULOS DE JESUS
E A INTERCESSÃO DE NOSSA SENHORA NO
MILAGRE DE CANÁ.

Do número ainda pequeno dos aderentes, só poucos se lhe tinham


juntado, acompanhando-o nas viagens apostólicas. Quando, porém, saiu do
deserto, depois do jejum de quarenta dias, aumentou o número dos
discípulos; entre estes era André um dos primeiros. Ouvira, com Saturnino,
João indicar a Jesus, dizendo: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tira os
pecados do mundo.” Ambos se reuniram a Jesus. André conduziu o irmão
Simão ao Salvador, que lhe disse: “Tu és Simão, filho de Jonas; no futuro
serás chamado Kephas (latim: Petrus).” Jesus encontrou-se depois com
Filipe e convidou-o para discípulo, dizendo-lhe: “Segue-me”. Filipe falou
a Natanael do Messias; mas só o saber sobrenatural de Jesus o induziu a
segui-lo.
Com os discípulos e parentes, dirigiu-se Jesus a Caná, para assistir às
bodas a que Ele e sua Mãe tinham sido convidados. O noivo chamava-se
Natanael e tinha certo parentesco com Jesus; pois era sobrinho da Filha de
Sobe, que já conhecemos como irmão de Sant’Ana. Conta-nos Anna
Catharina Emmerich o seguinte:
Estavam reunidos mais de cem convidados. Jesus dirigia a festa,
presidia aos divertimentos, temperando-os com palavras de sabedoria. Foi
também quem organizou todo o programa da festa.
Vi os convidados, homens e mulheres, divertirem-se separados num
jardim, conversando ou brincando. Jesus também tomou parte num jogo de
frutas, com amável seriedade. Dizia, às vezes, sorrindo, algumas palavras
sábias, que todos admiravam ou escutavam comovidos. Nesses dias falou
Jesus muito em particular com aqueles discípulos que, mais tarde, se lhe
tornaram Apóstolos. Quis revelar-se, nessa festa, a todos os parentes e
amigos, e desejou que todos até então por Ele eleitos se conhecessem uns
aos outros naquela reunião, em que havia maior franqueza.
No terceiro dia depois da chegada de Jesus, foi celebrada a cerimônia
do casamento. Noivo e noiva foram conduzidos da casa da festa à
sinagoga. No cortejo havia seis meninos e seis meninas, que levavam
grinaldas; depois seguiam seis moços e moças, com flautas e outros
instrumentos. Além desses, doze donzelas acompanhavam a noiva, como
paraninfas e o noivo, doze mancebos.
A cerimônia do casamento foi feita pelos sacerdotes, diante da
sinagoga. Os anéis que trocaram foram um presente de Maria Santíssima e
tinham sido bentos antes por Jesus.
Para o banquete nupcial, reuniram-se todos de novo, no jardim. Vi um
jogo preparado pelo próprio Jesus, para os homens: a sorte que caía a
cada um dos jogadores indicava-lhe as qualidades, os defeitos e virtudes.
Jesus interpretava a sorte de cada um, conforme a combinação das frutas
que ganhavam. O noivo ganhou para si e a esposa duas frutas estranhas,
num só pé, como já vi antes, no paraíso. Todos se admiravam muito e Jesus
falou do matrimônio e do cêntuplo fruto da castidade. Depois dos noivos
terem comido a fruta, vi que uma sombra escura deles se afastava. A fruta
tinha relação com a castidade e a sombra que se apartava, era a
concupiscência da carne.
Ao jogo no jardim, seguiu-se o banquete nupcial. A sala estava
dividida em três partes; na do meio estava Jesus, sentado à cabeceira da
mesa. À mesma mesa sentaram-se também Israel, o pai da noiva, os
parentes masculinos de Jesus e da noiva e também Lázaro. Às outras mesas
laterais, sentaram-se os outros convidados e os discípulos. O noivo serviu
as mesas dos homens e a noiva as das mulheres.
Jesus encarregara-se das despesas do segundo prato do banquete.
(Lázaro pagou as despesas, mas só Jesus e Maria o sabiam). Tudo estava
bem arranjado pela Santíssima Virgem e por Marta. Jesus tinha-lhes dito
que forneceria o vinho para esse prato. Depois de ter sido servido às mesas
laterais o segundo prato, que constava de aves, peixe, iguarias de mel,
frutas e uma espécie de pastéis, que Seráfia (Verônica) trouxera, Jesus
aproximou-se e repartiu todas as iguarias; depois se sentou de novo à
mesa. Serviram-se as iguarias, mas faltou o vinho. Jesus, porém, estava
ensinando. Essa parte do banquete ficou aos cuidados da Santíssima
Virgem e, como notasse que faltava vinho, aproximou-se de Jesus,
lembrando-lhe ansiosamente essa falta, porque Ele tinha dito que o
forneceria.
Jesus, que falava do Pai Celestial, disse-lhe então: “Mulher, não vos
apoquenteis. Deixai de inquietar-vos e a mim, minha hora ainda não
chegou.” Assim falando, não manifestava falta de respeito à sua Mãe.
Disse mulher e não mãe, porque quis, nesse momento, como Messias e
Filho de Deus, realizar uma ação misteriosa diante dos seus discípulos e
parentes, mostrando que ali estava presente na sua missão divina. Maria
não se inquietou mais; disse aos criados: “Fazei tudo que Ele vos
mandar”.
Depois de algum tempo, mandou Jesus aos criados trazerem as
ânforas vazias e virarem-nas. Trouxeram-nas; eram três ânforas de água e
três de vinho. Os criados mostraram que estavam vazias, virando-as por
cima de uma bacia. Jesus mandou que enchessem todas com água. As
ânforas eram grandes e pesadas; era preciso dois homens para
transportarem cada uma. Depois de estarem cheias de água, e postas ao
lado do aparador, Jesus aproximou-se, benzeu as ânforas e, tendo-se
sentado de novo à mesa, disse: “Enchei os cálices e levai um ao
despenseiro.” Este, tendo provado o vinho, aproximou-se do noivo e disse-
lhe que sempre fora costume dar primeiro o bom vinho e, depois de os
convidados terem bebido bastante, oferecer o vinho inferior, mas que ele
tinha dado o melhor no fim. Então beberam também o noivo e o pai da
noiva, ficando ambos pasmos; os criados protestaram que haviam enchido
de água as ânforas e tirado delas para encher os cálices e copos das mesas.
Então, beberam todos. Não houve, porém, nenhum barulho por causa do
milagre, mas reinava silêncio respeitoso em toda a reunião e Jesus ensinou
muito a respeito do que se passara. Todos os discípulos, parentes e
convidados estavam agora convencidos do poder de Jesus e de sua
dignidade e missão. Desse modo esteve Jesus a primeira vez na sua
comunidade e foi o primeiro prodígio que nela e para ela operou, para
confirmar-lhe a fé. Por isso é relatado na história da sua vida como o
primeiro milagre, e a última Ceia, como o último milagre, quando já era
firme a fé dos apóstolos.
Ao fim do banquete veio o noivo sozinho a Jesus e declarou-lhe, com
muita humildade, que sentia extinta em si toda a concupiscência da carne e
que desejava viver em santidade com a esposa, se ela consentisse. Também
a noiva veio a Jesus, sozinha, dizendo-lhe o mesmo. Chamou-os então
Jesus a ambos e falou-lhes do matrimônio, da castidade, tão agradável a
Deus, e do fruto cêntruplo do espírito. Citou muitos profetas e santos, que
viveram castos, sacrificando a carne, por amor do Pai Celestial, que
tiveram como filhos espirituais muitos homens perdidos, reconduzindo-os
ao caminho da virtude e que assim tinham grande e santa descendência. Os
noivos fizeram então voto de continência e de viverem como irmãos durante
três anos. Ajoelharam-se diante de Jesus, que os abençoou.

RESUMO DOS TRÊS ANOS DA VIDA


PÚBLICA DE JESUS
RESUMO DO PRIMEIRO ANO DA VIDA PÚBLICA
DE JESUS

O primeiro ano de pregação de Nosso Senhor compreende o tempo da


primeira viagem, antes do Batismo, até a primeira Páscoa em Jerusalém.
Nesse tempo, tiveram lugar o Batismo de Jesus por João Batista, sua
estadia por quarenta dias no deserto e seu primeiro milagre público,
relatado pelas Escrituras Sagradas — o das bodas de Caná.
Pouco tempo depois de voltar do deserto, Jesus mandou André e
Saturnino batizarem perto de Betabara. Quando Jesus, vindo de Caná e
passando por Cafarnaum, ao longo do Lago Genezaré, foi a Jericó, ao
lugar onde João batizava, já este não batizava quase ninguém, mas
mandava todos a Jesus. Partindo Jesus da região de Jericó, caminhou por
um desvio para Nebo, onde instruiu os neófitos, como também em outros
lugares, mandando-os batizar pelos discípulos. De lá, foi a Jazrael, ao sul
da Galiléia, onde os discípulos da Galiléia se lhe juntaram; Madalena
deixara-se persuadir por Lázaro e Marta a ir também lá. Viu Jesus passar
pelas ruas e o Salvador olhou-a tão sério, que ficou toda arrependida e
envergonhada da vida pecaminosa que levava.
Jesus encaminhou-se depois para Cafarnaum e, passando por Betúlia
e Kistoth, no monte labor, voltou a Jezrael. Em todo o país já se lhe tornara
conhecida a doutrina e os milagres; por isso concorria o povo aos lugares
onde o Mestre pregava.
Tendo ido de novo a Cafarnaum, visitou sua Mãe, ensinou na sinagoga
e curou enfermos; saiu da Galiléia e viajou por Dothain, Seforis, através da
Samaria, até Betânia, na Judéia, onde se hospedou na casa de Lázaro.
Todos os dias ia a Jerusalém, para rezar no Templo e ensinar. Num desses
dias mandou, muito amável e delicadamente, aos numerosos negociantes
que se retirassem do átrio dos orantes para o átrio dos gentios.
Encontrando-se ali de novo, procedeu com maior severidade, avisando-lhes
de que duas vezes os exortava por bem e que da terceira vez empregaria
violência.
Como a Páscoa estava perto, chegara já muita gente a Jerusalém.
Jesus comeu o Cordeiro pascal, na casa de Lázaro, no monte Sião, junto
aos discípulos e parentes. A maior parte da noite, passou em oração. Ao
amanhecer, dirigiu-se ao Templo, onde os negociantes se encontravam de
novo no átrio dos orantes. Quando, à ordem que lhes deu de se retirarem,
queriam resistir, pegou num cabo e, derrubando as mesas, empurrou os
renitentes para fora; os discípulos também empurraram e forçaram todos a
sair. Um grande número de sacerdotes acorreu, perguntando-Lhe quem Lhe
dera o direito de fazer isso, ao que Ele respondeu que o Templo era ainda
um lugar sagrado, apesar do Santo tê-lo abandonado, e que não devia
tornar-se lugar de usura e comércio. Em outro dia Jesus curou, no átrio do
Templo, cerca de dez paralíticos e mudos, o que causou grande sensação.
RESUMO DO SEGUNDO ANO DA VIDA PÚBLICA
DE JESUS.

Três semanas depois da Páscoa, partiu Jesus da Betânia e foi ao lugar


de Batismo, perto de Ono. Ali o procurou um mensageiro do Rei Abgar de
Edessa, que estava doente e pediu para ser curado. Enquanto Jesus
ensinava, pintou-lhe esse homem o rosto, num pequeno quadro branco.
Esforçou-se por muito tempo, mas não conseguiu fixá-lo bem, pois cada vez
que olhava para Jesus, parecia estar admirado do seu rosto, julgando que
devia começar de novo. Acabada a pregação de Jesus, ajoelhou-se o
mensageiro diante dEle e entregou-Lhe uma carta do rei. Jesus leu-a e
escreveu nela algumas palavras. Depois, apertou a parte mole do invólucro
de encontro ao rosto e devolveu a carta ao mensageiro; este a apertou
também sobre o desenho que fizera, que depois mostrou perfeita
semelhança com o rosto de Jesus. Também no pano em que Jesus tocara,
ficou gravado o retrato.
Por causa do grande concurso de povo, no lugar onde Jesus batizava,
mandaram os fariseus invejosos mensageiros, com cartas, a todas as
sinagogas do país, com a ordem de prendê-lo, entregá-lo e de prender e
repreender seus discípulos. Jesus mandou, por isso, os discípulos se
dispersarem, enquanto Ele, com poucos companheiros, fez a longa viagem
para Tiro e Sidônia, onde pregou a doutrina e curou enfermos. Entretanto,
foram chamados os discípulos a Jerusalém e Genabris, para responderem
acerca da doutrina de Jesus e das relações que tinham com Ele. Pedro,
André e João foram também citados e presos. Mas rasgaram os laços com
um leve esforço, como por milagre, e foram soltos.
Jesus, porém, voltou furtivamente a Cafarnaum, onde consolou sua
Mãe e os discípulos, retirando-se depois novamente para Tiro. Ali foi a
Sichor, Libnath e Adama. Nesse último lugar, contou a parábola do
administrador infiel. Um velho judeu dessa cidade, que obstinadamente
falou contra a doutrina de Jesus e por um milagre ficou com o corpo
curvado, converteu-se e foi curado por outro milagre. De Adama, dirigiu-se
Jesus ao monte do Sermão, perto de Berota, a seis léguas de Adama, e lá
pregou a alguns milhares de homens, das dez horas da manhã até a noite.
Quando chegou a Cafarnaum, vieram os discípulos de João dar-lhe a
notícia da prisão do mestre. Jesus continuou a viagem, encaminhando-se
para Betânia, onde permaneceu alguns dias. De noite se retirou para a
gruta do Monte das Oliveiras, para rezar na solidão e também porque Adão
e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram pela primeira vez a terra ali, no Monte
das Oliveiras. Lázaro e as piedosas mulheres ofereceram-se para
edificarem hospedarias para Jesus e os discípulos e, assim, resolveram que
se construíssem quinze hospedarias, distribuídas por todo o país. Jesus
contou a parábola da pedra preciosa, aplicando-a a Madalena, que, como
tal, se tinha perdido. Depois partiu para Bethoron, Kibzaim, passando por
Gabaa e Najoth, falando em toda parte do último tempo da graça e da
justiça que se Lhe seguiria. Contou também a parábola do dono da vinha,
que, afinal, havia enviado o filho, e proferiu os “Ais” sobre Jerusalém.
Continuando o caminho pela Samaria, veio ao poço de Jacó, perto de
Sichar, onde conversou com a Samaritana Dina e se lhe deu a conhecer
como o Messias prometido. Depois tomou o caminho à Galiléia, por
Atharot e Engannim, onde curou cerca de quarenta coxos, cegos, mudos,
etc., seguindo depois, por Naim e Caná, para o Lago de Genezaré. Em
Caná lhe veio ao encontro o mensageiro do tribuno de Cafarnaum, cujo
filho moribundo curou. Dirigiu-se então a Cafarnaum; ensinou ali alguns
dias, curando muitos enfermos. Tendo visitado Betsaida, veio também a
Nazaré e, entrando na sinagoga, interpretou como referente a Ele mesmo o
trecho do profeta Isaías: (61,1). “O Espírito do Senhor repousou sobre
mim, porque o Senhor me encheu de sua unção; mandou-me evangelizar os
pobres, curar os contritos de coração, pregar remissão aos cativos e
liberdade aos encarcerados, etc.”. Repreendeu também severamente a
injustiça dos fariseus, que por isso se enraiveceram e o levaram a um
monte, para lançá-lo de um rochedo ao abismo. Jesus, porém, passou
despercebido pela multidão apinhada e escapou.
Perto de Trariquéia, à margem austral do Lago Genezaré, curou Jesus
cinco leprosos; depois veio a Galaad, atravessando o lago, e visitou a casa
de Pedro. Num dia curou cerca de cem enfermos; no dia seguinte, outros
tantos em Cafarnaum, entre estes a sogra de Pedro.
Então percorreu diversas povoações, entre Caná e o lago, como
Betúlia, Jotapata, Dothaim, Genabris e, algumas léguas para o sul,
Abelmehola e Bezech; atravessando o Jordão, ensinou em Ainon Ramoth-
Galaad, Azo, Ephron e Betharamphta-Julias, dirigindo-se depois mais
para o norte, a Abila e Gadara, onde curou grande número de doentes e
possessos; de lá voltou, ao longo do Jordão, por Dion e Jogbeha, a Ainon,
onde contou a parábola do filho pródigo e celebrou a festa dos
Tabernáculos. Atravessando de novo o Jordão, foi a Acrabis, Siloé
Coreia, na província de Samaria; depois ao norte, a Salem, Aser-
Michmethath e, a oeste, a Meroz, onde Judas Iscariotes se juntou a Jesus;
ali curou também as duas filhas possessas do demônio, de uma viúva
chamada Lais de Naim. Em Dothaim, curou um homem hidrópico, de
nome Issachar, e recebeu Tomé no número dos discípulos. Em Endor,
livrou um rapaz pagão de um demônio mudo. Em Gischala curou o filho
coxo e mudo do tribuno daquele lugar.
Quando Jesus ensinou num monte, perto de Gabara, estava também
presente Madalena, obedecendo a um convite de Marta e das santas
mulheres. Ficou comovida com as palavras de Jesus e, seguindo-o à casa
de Simão, onde Ele se sentara à mesa, derramou-lhe sobre a cabeça um
frasco de óleo aromático e recebeu o perdão dos pecados. Converteu-se,
mas recaiu pouco depois na antiga vida de pecados.
Jesus curou o servo do tribuno de Cafarnaum e depois um leproso,
pronunciando apenas estas palavras: “Quero. Fica são”.
Enquanto ensinava na sinagoga, entrou por ela precipitadamente um
endemoniado; Jesus livrou-o, dizendo ao demônio: “Cala-te! E sai deste
homem!”
Em Naim, ressuscitou Jesus o filho da viúva Maroni. Quando estava
curando em Megido, vieram discípulos de João, dizendo: “João manda
perguntar-vos: — Sois aquele que há de vir ou devemos esperar por
outro?” Jesus respondeu: “Ide, anunciai a João o que tendes ouvido e
visto: cegos enxergam, coxos andam, surdos ouvem, leprosos ficam sãos,
mortos ressuscitam. O que é torto, fica direito e feliz de quem não se
escandalizar de mim.” Depois falou de João, chamando-o o maior dos
profetas.
Em Cafarnaum, ressuscitou a filha do chefe da sinagoga, Jairo.
Nesse tempo chamou Mateus; no dia seguinte, disse a Pedro e André:
“Segui-me; far-vos-ei pescadores de homens.” Também Tiago e João, filhos
de Zebedeu, foram convidados a segui-lo. Atravessando na mesma noite o
mar de Galiléia, na barca de Pedro, com os doze Apóstolos, apaziguou a
tempestade com sua palavra. Alguns dias depois se realizaram a pesca
milagrosa e o sermão da montanha.
Em Cafarnaum, Jesus curou um paralítico, que fizeram descer pelo
teto e colocaram diante do Senhor. A filha do chefe da sinagoga recaiu e
faleceu de novo. Jesus foi, a pedido de Jairo, à casa deste. No caminho se
deu a cura da mulher que padecia de fluxo de sangue, só pelo contato com
as vestes do Salvador. A filha de Jairo ressuscitou pela segunda vez, pelo
poder divino de Jesus.
Os fariseus de Cafarnaum, desde muito inimigos de Jesus,
murmuraram contra Ele e propuseram-Lhe muitas perguntas ardilosas.
Jesus operou muitos milagres à vista deles, curando aí também o homem
que tinha uma das mãos secas.
Depois foi à terra dos Gerasenos, onde encontrou dois possessos. Os
demônios pediram-Lhe que os deixasse entrar numa manada de porcos, que
estavam perto. Jesus permitiu-lhes. Então se lançou a manada num lago
vizinho. Os dois homens, porém, ficaram livres dos demônios.
Jesus mandou os discípulos atravessarem o lago antes dEle e seguiu-
os mais tarde, andando sobre a água. Salvou então Pedro, que ia afundar-
se, por falta de fé.
Jesus celebrou a festa da Dedicação do Templo em Cafarnaum; depois
enviou os Apóstolos e discípulos a diversas regiões, para ensinarem,
batizarem e curarem. Com os restantes discípulos, percorreu a região ao
norte do lago Genesaré. Na vila de Azanoth, situada mais para o sul,
pregou um sermão longo e severo, ao qual, às insistências de Marta,
também Madalena assistiu. Durante o sermão, teve esta diversos ataques,
como convulsões, e o demônio saiu-lhe do corpo em forma escura. Ela
chorou e recebeu do Senhor o perdão dos pecados, permanecendo depois
no estado de graça.
Jesus viajou então para Betânia e Hebron, onde visitou a casa paterna
de João Batista, dando aos parentes a notícia da decapitação do Precursor.
Em Jerusalém, curou o homem que por trinta e oito anos estivera doente,
ensinando em seguida no Templo. Chegando a Tirza, remiu um certo
número de presos e dirigiu-se de novo a Cafarnaum, onde ensinou e
explicou o “Pai nosso”; ali escolheu os Apóstolos, subordinando-lhes os
discípulos.
Com cinco pães e dois peixes saciou cinco mil homens, que por isso
queriam fazê-lo rei. Atravessou, porém, o lago e deu em Cafarnaum a
promessa da SS. Eucaristia. Pouco depois fartou, com sete pães e sete
peixes, a quatro mil homens. Esse milagre, assim como a primeira
multiplicação de pães, operou-o Jesus numa montanha, entre Betsaida e
Chorozaim, à margem setentrional do lago Genezaré.
Dirigiu-se depois para o norte, à região de Cesaréia Filipe. Foi ali
que interrogou os doze Apóstolos: “Por quem toma o povo o Filho do
Homem?” Pedro respondeu com entusiasmo: “Vós sois o Cristo, o Filho de
Deus vivo.” Como recompensa, recebeu Pedro a promissão do poder das
chaves: “Tu és Pedro e sobre esta (pedra) edificarei minha Igreja e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino
dos céus: Tudo que ligares na terra, será ligado no Céu; e tudo que
desligares na terra, será desligado, no Céu”. Dali viajou Jesus para
Betânia, para celebrar a Páscoa.
RESUMO DO TERCEIRO ANO DA VIDA PÚBLICA
DE JESUS.

Jesus comeu o cordeiro pascal, em casa de Lázaro; diariamente ia ao


Templo, para ensinar; contou também a parábola do homem rico e do
pobre Lázaro. Partindo depois da festa, Jesus viajou para o monte Tabor e,
subindo ao monte com Pedro, João e Tiago, o Maior, transfigurou-se diante
deles. Ouviram a voz do Pai Celestial: “Eis O meu Filho muito amado, em
quem pus toda minha afeição: ouvi-O!” De volta, curou Jesus, ao pé do
monte, um rapaz lunático e endemoniado; depois se dirigiu a Cafarnaum e
pregou por dois dias diante de uma grande multidão de povo, sobre um
monte, perto de Gabara, algumas léguas a oeste do lago; de lá tomou o
caminho de Tiro, para embarcar e navegar pelo Mar Mediterrâneo, para a
ilha de Chipre.
Jesus desembarcou na cidade de Salamis, onde foi bem recebido:
pregou e curou ali, assim como em outras vilas da ilha, na qual também
celebrou a festa de Pentecostes, tendo ali convertido, ao todo, 570 judeus e
pagãos. Então, voltou à Palestina. Desembarcou, com os companheiros, na
baía do Monte Carmelo e encaminhou-se para Cafarnaum, onde visitou sua
Mãe. Os Apóstolos, de volta da missão, relataram-Lhe os trabalhos e
receberam novas instruções.
Depois tomou o caminho de além do Jordão a Betabara, perto da foz
desse rio, no Mar Morto. Continuando a viagem, curou dez leprosos,
mandando-lhes que se apresentassem aos sacerdotes; só um voltou, para
agradecer-Lhe.
Ao entrar em Jericó, viu Jesus a Zaqueu na figueira, foi à casa deste e
converteu-o. Marta e Madalena enviaram mensagem, convidando-O a vir a
Betânia, porque Lázaro estava muito doente. Perto de Jericó, Jesus
ressuscitou uma menina, que estava morta havia já quatro dias. Ao
aproximar-se de Samaria, trouxeram-Lhe a notícia da morte de Lázaro. Foi
logo a Betânia: ao chegar, havia já oito dias justos que Lázaro morrera e
quatro dias que fora sepultado. Jesus fez-se conduzir ao sepulcro, mandou
tirar a pedra do túmulo e a tampa do caixão e exclamou: “Lázaro, vem
para fora, sai.” No mesmo instante se levantou este, indo depois para casa,
com o Senhor e aqueles que estavam presentes.
A ressurreição de Lázaro excitou, em Betânia, assim como em
Jerusalém, um grande tumulto; por esse motivo fugiu Jesus, com Mateus e
João, para além do Jordão, fazendo dali uma viagem à terra dos Reis
Magos, acompanhado apenas por três jovens: o rei Sair já tinha falecido;
Mensor, porém, e Theokenos estavam ainda vivos, esperando que Jesus os
visitasse. Nessa viagem, Jesus pregou e curou muitos na cidade de Kedar e
ressuscitou também um homem rico dos arredores, de nome Nazor,
proprietário de grandes rebanhos.
Jesus foi recebido pelos Reis Magos com grande alegria e solenidade.
Ensinou-lhes e ao povo, exortando-os a abandonarem a idolatria; o povo
tirou logo todos os ídolos dos templos. Jesus disse também que o rei Sair
recebeu o Batismo, de desejo. Na despedida, Mensor chorou como uma
criança.
Passando pela Caldeia, Jesus operou diversos milagres e ensinou em
várias vilas pagãs. Repreendeu severamente os habitantes por causa da
idolatria, lembrando-lhes de que se lhes tinham quebrado todos os ídolos
na noite em que aparecera a estrela aos Reis Magos; assim, em verdade,
acontecera. Jesus continuou o caminho, em marcha forçada, até o Egito,
para visitar ali os lugares onde vivera a Sagrada Família. Ensinou também
aos judeus dessas terras, revelou-se-lhes como o Messias e falou-lhes da
sua morte próxima.
Depois de uma ausência de três meses, voltou à Judéia, tomando o
caminho de Sichar, Ephron e Jericó. Na primeira cidade Lhe vieram Pedro
e João ao encontro, em Jericó O esperavam sua Mãe e as santas mulheres.
Dirigiu-se dali a Cafarnaum e Nazaré, voltando depois a Betânia, de onde
fez diversas visitas aos arredores.
Em seguida, ia diariamente com os Apóstolos ao Templo, para ensinar.
Anunciou à Virgem SS. que o tempo da Páscoa se aproximava. Instruiu
também os Apóstolos a respeito e deu-lhes instruções sobre os lugares para
onde deviam ir, depois da sua morte. No fim de um grande sermão, ao sair
do Templo, quiseram lapidá-lo os fariseus; mas Jesus escapou-se e deixou
de ir ao Templo por três dias. Quando ensinou a última vez, antes do
domingo de Ramos, estava o Templo cheio de povo. Disse que dentro em
pouco seria abandonado pelos seus; mas, antes disso, entraria triunfante
no Templo e ficaria ainda quinze dias com eles. Por causa dessas palavras,
reuniram-se os fariseus e escribas num conselho, em casa de Caifás,
proibindo depois publicamente que se recebessem Jesus e os discípulos em
casa.
No dia anterior ao domingo de Ramos, anunciou Jesus que, na manhã
seguinte, faria a sua entrada triunfante em Jerusalém e mandou convocar
os discípulos a Betânia. De manhã mandou dois Apóstolos trazerem a
jumenta, com o jumentinho. Dirigiu-se com os doze e os discípulos a
caminho de Bethphagé. Maria e as mulheres piedosas seguiram-no.
Chegado a Bethphagé, montou na jumenta. Os Apóstolos caminhavam à
frente, dois a dois, levando nas mãos ramos de palmeira; atrás de Jesus
seguiam os discípulos, aos quais se juntavam as santas mulheres.
À notícia da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, o povo
começou a enfeitar as ruas. Inumeráveis forasteiros, que estavam em
Jerusalém para celebrarem a próxima festa, foram com o povo ao encontro
de Jesus. Muitos arrancaram ramos das árvores, cobrindo com eles o
caminho; outros estenderam os mantos na estrada diante dEle, cantando e
aclamando Jesus jubilosamente. O Mestre, porém, chorou e choraram
também os Apóstolos, quando disse que muitos daqueles que então O
aclamavam, cheios de alegria, daí a poucos dias O escarneceriam; que um
deles O trairia e que a cidade seria destruída. No caminho curou alguns e,
chegado ao Templo, ensinou até à noite, quando estavam de novo abertas
as portas da cidade, que antes tinham sido fechadas pelos inimigos de
Jesus.
Nos três dias seguintes, Jesus continuou a ensinar no Templo; entre
outras coisas, contou também a parábola do dono da vinha e da pedra
angular rejeitada. No quarto dia, ficou com os apóstolos e as piedosas
mulheres, em casa de Lázaro, ensinando-os e exortando-os até alta noite.
No quinto dia sentou-se em frente à caixa de esmolas do Templo, ensinando
aos Apóstolos sobre a esmola da viúva pobre, que dera mais do que os
outros. De volta, disse Jesus que do Templo não ficaria pedra sobre pedra.
No sexto dia depois do domingo de Ramos, ensinou de novo no Templo e,
assim, no sétimo dia, falou claramente da sua próxima Paixão.
O oitavo dia passou na vizinhança de Betânia, consolando os
discípulos. Nos dois dias seguintes, ensinou novamente no Templo, sem ser
incomodado, despedindo-se enfim do santuário com lágrimas.
PREPARATIVOS PARA A CEIA PASCAL

(Quinta-feira Santa, 13 de Nisan ou 29 de Março; Jesus na idade de 33


anos, 18 semanas menos 1 dia)
Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia a última e grande
refeição de Nosso Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão, curado da
lepra por Jesus, e durante a qual Maria Madalena ungiu Jesus pela última
vez. Judas, indignado com isso, correu a Jerusalém, onde negociou ainda
uma vez com os príncipes dos sacerdotes, para entregar-lhes Jesus. Depois
da refeição, voltou Jesus à casa de Lázaro e uma parte dos discípulos
dirigiu-se à albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio ainda de
noite à casa de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor; voltou a
Jerusalém antes do amanhecer, acompanhado numa parte do caminho por
Lázaro.
Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o
cordeiro pascal. Naquele dia, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou
vir Pedro e João e falou-lhes muito de tudo que deviam comprar e preparar
em Jerusalém; disse-lhes que, subindo o monte Sião, encontrariam um
homem com um jarro de água. (Eles já conheciam esse homem, pois fora
quem já na última Páscoa, em Betânia, preparara a ceia de Jesus; por isso
diz S. Mateus: um certo homem). Deviam segui-lo até a casa em que
morava e dizer-lhe: “O Mestre manda avisar-te que seu tempo está perto e
que quer celebrar a Páscoa em tua casa”. Deviam pedir que lhes mostrasse
o Cenáculo, que já estaria preparado, e fazer-lhe depois todos os
preparativos necessários.
Vi os dois Apóstolos subirem a Jerusalém, seguindo um barranco ao
Sul do Templo, e subirem ao monte Sião pelo lado setentrional. Ao lado Sul
do monte do Templo, havia algumas fileiras de casas; seguiram um
caminho que passava em frente dessas casas, ao longo de um ribeiro, que
corria no fundo do barranco e os separava das casas. Tendo chegado à
altura de Sião, que é mais alto do que o monte do Templo, dirigiram-se a
um largo um pouco em declive, na vizinhança de um velho edifício, cercado
de pátios; ali, no largo, encontraram o homem que lhes fora indicado,
seguiram-no e, perto da casa, disseram-lhe o que Jesus lhes ordenara. Ele
regozijou-se muito de os ver e, ouvindo o recado, respondeu-lhes que a
refeição já lhe tinha sido encomendada (provavelmente por Nicodemos),
sem que soubesse para quem era, mas que muito lhe agradava saber que
era para Jesus. Esse homem era Eli, cunhado de Zacarias de Hebron, o
mesmo em cuja casa Jesus anunciara, no ano anterior, em Hebron, a morte
de S. João Batista. Tinha só um filho, que era Levita e amigo de Lucas,
antes deste se juntar a Jesus, e além desse, também cinco filhas solteiras.
Todos os anos ia com os criados à festa e, alugando uma sala, preparava a
Páscoa para as pessoas que não tinham casa em Jerusalém. Nesse ano
tinha alugado um cenáculo, pertencente a Nicodemos e José de Arimateia.
Mostrou aos dois Apóstolos a sala e o arranjo interior.
O CENÁCULO

Ao lado sul do monte Sião, perto do castelo abandonado de Davi e do


mercado situado na subida, a leste desse castelo, acha-se um velho e sólido
edifício, entre duas fileiras de árvores copadas e bem no meio de um pátio
espaçoso, cercado de muros fortes. À direita e à esquerda da entrada, há
ainda outras construções encostadas ao muro: à direita, a habitação do
mordomo; e, perto desta, outra, à qual Nossa Senhora e as santas mulheres
às vezes se retiravam, depois da morte de Nosso Senhor. O Cenáculo,
antigamente mais espaçoso, servira de morada aos bravos capitães de
Davi, que ali se exercitavam no manejo das armas; também estivera ali por
algum tempo a Arca da Aliança, antes da construção do Templo, e ainda há
indícios da sua estada num subterrâneo da casa. Vi também uma vez o
profeta Malaquias escondido nos mesmos subterrâneos, onde escreveu as
profecias acerca da sagrada Eucaristia e do sacrifício do Novo Testamento.
Salomão tinha também essa casa em muito respeito, por certa relação
simbólica, que, porém, esqueci. Quando grande parte de Jerusalém foi
destruída pelos Babilônios, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho
visto muitas outras coisas, mas me lembro só do que acabo de contar.
O edifício estava meio arruinado quando se tornou propriedade de
Nicodemos e de José de Arimateia, que restauraram a casa principal e
acomodaram-na bem, para a celebração da festa da Páscoa, fim para o
qual costumavam alugá-la a forasteiros, como fizeram também na última
Páscoa do Senhor. Além disso, serviam-lhes a casa e os pátios de armazém
para monumentos sepulcrais e pedras de construção, como também de
oficina para os operários, pois José de Arimateia possuía excelentes
pedreiras nas suas terras e negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas
colunas e capitéis, esculpidos sob sua direção. Nicodemos trabalhava
muito como construtor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-se também
com a escultura; fora da época das festas, esculpia estátuas e monumentos
de pedra, na sala ou no subterrâneo debaixo desta. Essa arte pusera-o em
contato com José de Arimateia; tornaram-se amigos e muitas vezes se
associaram também nas empresas.
Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus,
conversavam com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele ano,
vi Nicodemos indo para além e para aquém das casas à esquerda do pátio,
para onde tinham sido transportadas muitas pedras, que impediam as
entradas da sala do Cenáculo. Havia uma semana, eu vira algumas pessoas
ocupadas em pôr as pedras ao lado, em limpar o pátio e preparar o
Cenáculo para a celebração da Páscoa; julgo até ter visto, entre outros,
alguns discípulos de Jesus, talvez Aram e Temeni, sobrinhos de José de
Arimateia.
A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no meio
do pátio, um pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido, cercado por
uma arcada menos alta de colunas, que, afastados os biombos entre os
pilares, pode ser unida à grande sala interior; pois todo o edifício é aberto
de lado a lado e pousa sobre colunas e pilares; apenas estão as passagens
fechadas ordinariamente por biombos. A luz entra por aberturas existentes
no alto das paredes. Na parte estreita da frente, há um vestíbulo, ao qual
conduzem três entradas; depois se entra na grande sala interior, alta e com
bom soalho lajeado; do teto pendem diversas lâmpadas; as paredes estão
ornadas para a festa, até meia altura, com belas esteiras e tapetes, e no teto
há uma abertura coberta com um tecido brilhante, transparente,
semelhante à gaze azul.
O fundo da sala está separado do resto por uma cortina igual. Essa
divisão do Cenáculo em três partes dá-lhe uma semelhança com o Templo;
há também um adro, o santo e o santo dos santos. Nessa última parte é que
são guardados, à direita e à esquerda, as vestimentas e vários utensílios.
No meio há uma espécie de altar. Sai da parede um banco de pedra com a
ponta cortada no meio das duas faces laterais; deve ser a parte superior do
forno, no qual o cordeiro pascal, é assado; pois naquele dia, durante a
refeição, estavam os degraus em roda muito quentes. Ao lado dessa parte
do Cenáculo, há uma porta, que dá para o alpendre, que fica atrás da
pedra saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no
forno; há ali ainda outros subterrâneos e adegas, debaixo da grande sala.
Naquela pedra ou altar saliente da parede há várias divisões, semelhantes
a caixas ou gavetas, que se podem tirar; em cima há também aberturas
como de uma grelha, uma abertura também para fazer fogo e outra para
apagá-lo. Não sei mais descrever exatamente tudo o que ali vi, parece ter
sido um forno para cozer o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também
para queimar incenso ou certos restos das refeições da festa; é como uma
cozinha pascal. Por cima desse forno ou altar há uma caixa de madeira,
saliente, semelhante a um nicho, que tem em cima uma abertura, com uma
válvula, provavelmente para deixar sair a fumaça. Diante desse nicho ou
pendente por cima dele, vi a figura de um cordeiro pascal; tinha cravado
na garganta uma faca e o sangue parecia cair gota a gota sobre o altar;
não sei mais exatamente como era feito. Dentro do nicho da parede há três
armários de diversas cores, os quais se fazem girar como os nossos
tabernáculos, para se abrirem e fecharem. Neles vi toda espécie de vasos
para a Páscoa, taças e mais tarde também o SS. Sacramento.
Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano
inclinado, feitos de alvenaria, sobre os quais se acham mantas grossas
enroladas; são leitos de dormir. Debaixo de todo o edifício há belas
adegas; antigamente esteve ali no fundo a Arca da Aliança, onde em
seguida, foi construído o forno pascal.

O SOFRIMENTO DA SANTISSIMA VIRGEM


NA PAIXÃO E MORTE DE NOSSO SENHOR
JESUS CRISTO
MARIA SENTE A ANGUSTIA DE JESUS NO
GETSÊMANI ANTES DE SER PRESO.

Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do


Cenáculo com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de aflição e
crescente tristeza. Conduziu os onze, por um desvio, ao vale de Josafá,
dirigindo-se ao monte das Oliveiras (Horto do Getsêmani).
Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de
tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com
Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de
joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exteriormente,
pois viu grande parte dos tormentos de Jesus. Já enviara mensageiros a
Jesus, para ter noticias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhes a
volta, saiu com Madalena e Salomé para o vale de Josafá. Ela andava
velada e estendia muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque
via, em espírito, Jesus banhado em suor de sangue, e ela, parecia, com as
mãos estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses
caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que
Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses movimentos de
compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam de um para o
outro.
MARIA DESMAIA AO SABER DA PRISÃO DE
JESUS.

Vi a SS. Virgem e outras nove mulheres, impelidas pelo medo, irem de


novo ao vale de Josafá. Estavam com ela: Marta; Madalena; Maria, filha
de Cleofas; Maria Salomé; Maria Marcos; Suzana; Joana Chusa;
Verônica; e Salomé. Estavam ao sul de Getsemani, defronte àquela parte do
monte das Oliveiras, onde há outra gruta, na qual Jesus, em outras
ocasiões, costumava rezar. Vi com elas também Lázaro, João Marcos, como
também o filho de Verônica e de Simeão. Este estivera também com os oito
Apóstolos em Getsêmani e passara no meio dos soldados em tumulto.
Trouxeram a notícia às santas mulheres. Nesse momento ouviram a gritaria
e avistaram as lanternas das duas tropas, que se encontravam. A SS.
Virgem perdeu então os sentidos, caindo nos braços das companheiras, que
se retiraram com ela a certa distância, para, depois de passado o cortejo,
levá-la à casa de Maria Marcos. (Falar aqui quem era Maria Marcos, e
por que Maria ficava aí hospedada)
Os habitantes de Ofel ainda estavam cheios de susto e tristeza, quando
outro incidente lhes renovou a compaixão: a Mãe de Jesus, conduzida pelas
santas mulheres e pelos amigos de Jesus, vindo do vale de Cedron, passou
por Ofel, indo à casa de Maria Marcos, situada ao pé do monte Sião.
Quando a boa gente de Ofel a reconheceu, começou de novo a chorar
compadecida; apinhava-se de tal modo em roda de Maria e dos
companheiros, que a Mãe de Jesus foi quase transportada pela multidão.
Maria, muda de dor, não falava, nem depois de chegar à casa de
Maria Marcos, senão quando chegou mais tarde João; então começou a
perguntar com grande tristeza e João contou-lhe tudo o que vira, desde a
saída do Cenáculo até aquela hora. Mais tarde levaram a SS. Virgem à
casa de Marta, a leste da cidade, ao pé do palácio de Lázaro. Conduziram-
na novamente por desvios, evitando os caminhos pelos quais Jesus fora
conduzido, para não lhe aumentar demais a tristeza e dor.
Em nenhuma parte da cidade se manifesta tanta compaixão como em
Ofel, entre os pobres escravos do Templo e os jornaleiros que habitam essa
colina. A dolorosa nova surpreendeu-os tão repentinamente no meio da
noite silenciosa; a crueldade despertou-os do sono: ali passara o santo
Mestre, o benfeitor que os curara e consolara, passara como uma horrível
visão noturna, ferido e maltratado; depois se lhes concentrou novamente a
compaixão na Mãe dolorosa de Jesus, passando pelo meio deles, com as
companheiras. Ai! Que espetáculo triste, a Mãe dilacerada pela dor e as
amigas de Jesus, obrigadas a percorrer as ruas, inquietas e tímidas, à hora
insólita da meia-noite, refugiando-se de uma casa amiga à outra! Diversas
vezes se veem obrigadas a esconder-se num canto das casas, para deixar
passar um grupo de impertinentes; outras vezes são insultadas como
mulheres notívagas; frequentemente ouvem ditos maliciosos dos
transeuntes, raras vezes uma palavra de compaixão para com Jesus.
Chegadas, afinal, ao abrigo, caem abatidas por terra, chorando e torcendo
as mãos, todas igualmente desconsoladas e sem forças; sustentam ou
abraçam umas às outras, ou sentam-se, em dor silenciosa, apoiando sobre
os joelhos a cabeça velada. Batem à porta, todas escutam em silêncio e
medo; batem devagar e timidamente: não é um inimigo; abrem com receio:
é um amigo ou um criado de um amigo de seu Senhor e Mestre; rodeiam-
no, pedindo notícias e ouvem falar de novos sofrimentos; a compaixão não
as deixa ficar em casa, saem de novo à rua, para se informar, mas voltam
sempre com crescente tristeza.
MARIA VAI ÀS ESCONDIDAS AO TRIBUNAL DE
CAIFÁS, SENTIR MAIS DE PERTO A DOR DO
FILHO.

A SS. Virgem, em contínua e profunda compaixão para com Jesus,


sabia e sentia tudo o que a Ele faziam. Sofria em contemplação espiritual e,
como Ele, continuava em oração pelos carrascos. Mas o coração de mãe
também lhe clamava a Deus que não permitisse esses pecados e que
afastasse essas torturas do santíssimo Filho; durante todo esse tempo tinha
o desejo irresistível de estar com o pobre Filho, tão cruelmente tratado.
Quando João, depois do grito, “É réu de morte!”, saiu do átrio de Caifás,
vindo a ela, em casa de Lázaro, perto da porta do Angulo e confirmou-lhe
com a triste narração e entre lágrimas todos os terríveis tormentos de
Jesus, os quais, em sua compaixão espiritual, já lhe dilaceravam o coração,
Maria pediu-lhe, como também Madalena, quase desvairada de dor, e
algumas outras mulheres, que as conduzisse ao lugar onde Jesus sofria.
João, que deixara Jesus só para consolar aquela que, depois de Jesus, a ele
merecia mais amor, saiu da casa com a SS. Virgem, conduzida pelas santas
mulheres; Madalena caminhava-lhes ao lado, torcendo as mãos. As ruas
estavam iluminadas pelo claro luar e viam-se muitas pessoas, que voltavam
para casa. Iam veladas as santas mulheres; mas o andar apressado e as
exclamações de dor atraíam sobre elas a atenção de vários grupos de
inimigos de Jesus que passavam; e muitas palavras insultuosas e cruéis,
proferidas de propósito em alta voz contra Jesus, renovavam-lhe a dor. A
Mãe de Jesus, sempre unida a Ele, na contemplação espiritual do seu
suplício, caiu diversas vezes desmaiada, nos braços das companheiras;
conservava tudo no coração, sofrendo em silêncio com Ele e como Ele.
Quando, desse modo, caiu nos braços das mulheres, sob uma porta ou
arcada da cidade interior, vieram-lhes ao encontro um grupo de pessoas
bem-intencionadas, que voltavam do tribunal de Caifás, lamentando a sorte
do Mestre. Estas aproximaram-se das santas mulheres e, reconhecendo a
Mãe de Jesus, demoraram-se algum tempo, cumprimentando-a
compadecidamente; “Oh! Mãe infeliz! Oh! Mãe, cheia de tristeza, Oh! Mãe
dolorosa do mais Santo de Israel!” Maria, voltando a si, agradeceu-lhes e
continuaram o triste caminho a passo apressado.
Avizinhando-se do tribunal de Caifás, passaram para o caminho do
lado oposto da entrada, onde apenas um muro cerca a casa, enquanto que
o lado da entrada conduz por dois pátios. Ali sobreveio nova dor amarga à
Mãe de Jesus e às companheiras. Tinham de passar em frente a um lugar,
um pouco elevado, onde estavam homens, sob uma leve tenda, aparando a
Cruz de Jesus Cristo, à luz de lanternas. Logo que Judas saíra para trair
Jesus, os inimigos haviam ordenado que se preparasse uma cruz, para que,
se Jesus fosse preso, Pilatos não tivesse motivo para atrasar a execução;
pois já tinham a intenção de entregar Nosso Senhor de manhã cedo a
Pilatos e não esperavam que levasse tanto tempo até a condenação. As
cruzes para os dois ladrões, os romanos já as tinham preparado. Os
operários amaldiçoavam e insultavam a Jesus, por terem de trabalhar
durante a noite por causa dEle; todas as machadadas e todas essas
palavras feriam e traspassavam o coração da pobre Mãe; mas ainda assim
rezava por esses homens tão horrivelmente cegos, que, com maldições,
preparavam o instrumento de sua redenção e do martírio de seu Filho.
Tendo passado em volta da casa e chegado ao pátio exterior, Maria
entrou, acompanhada das santas mulheres e de João, dirigindo-se à porta
do pátio interior, que estava fechada. Tinha a alma cheia de intensa
compaixão para com Jesus. Desejava ardentemente que a porta se abrisse e
que pudesse entrar, por intermédio de João; pois sentia que apenas essa
porta a separava do Filho querido, que, ao segundo canto do galo, estava
sendo levado do tribunal à cadeia subterrânea. De súbito, abriu-se a porta
e, na frente de algumas pessoas, saiu Pedro, correndo para eles, cobrindo
com as mãos o rosto velado e chorando amargamente. À luz da lua e das
lanternas, conheceu logo a João e a SS. Virgem; parecia-lhe que a voz da
consciência lhe vinha ao encontro, na pessoa da Mãe de Jesus, depois que
o seu Divino Filho a tinha despertado. Ah! Como ressoava a voz de Maria
na alma de Pedro, quando ela disse: “Oh! Simão! Que fizeram de Jesus,
meu Filho?” Ele não podia enfrentar o olhar de Maria, desviou os olhos
para o lado, torcendo as mãos e não pôde proferir palavra. Mas Maria não
o deixou, aproximou-se-lhe e perguntou com voz triste: “Simão, filho de
Jonas, não me respondes?” Então exclamou Pedro, na sua dor: “Oh, Mãe,
não faleis comigo; vosso Filho sofre coisas indizíveis; não me faleis a mim,
pois condenaram-nO à morte e eu O neguei vergonhosamente por três
vezes.” E como João se aproximasse para falar-lhe, fugiu Pedro,
desvairado de tristeza e, saindo do pátio e da cidade, retirou-se àquela
gruta do monte das Oliveiras, na qual as mãos de Jesus se tinham
imprimido na pedra. Creio que nessa mesma gruta também nosso primeiro
pai, Adão, fazia penitência, quando veio para a terra amaldiçoada por
Deus.
A SS. Virgem, sentindo com veemente compaixão essa nova dor de
Jesus, a quem negara o mesmo discípulo que fora o primeiro a reconhecê-
Lo como Filho de Deus Vivo, caiu, após as palavras de Pedro, sobre a
pedra ao lado da porta onde estava, e imprimiram-se-lhe as formas das
mãos e dos pés na pedra, a qual ainda existe, mas não me lembro onde. As
portas dos pátios estavam abertas, porque a maior parte do povo se
retirara, depois que Jesus fora fechado na cadeia. Maria Santíssima, tendo
voltado a si, desejava estar mais perto do Filho querido; João levou-a e as
santas mulheres até diante da prisão do Senhor. Ah! Bem sentia Maria a
presença de Jesus e Jesus a de sua Mãe, mas a Mãe fiel quis também ouvir
com os sentidos exteriores os gemidos do Filho adorado, e ouvia-os e
também às palavras insultuosas dos guardas. Não podiam demorar-se ali
muito sem ser notadas; Madalena, na veemência da dor, manifestava a
comoção e, embora Maria conservasse nessa extrema dor uma santa
calma, que impunha respeito, devia também ouvir nesse curto caminho as
palavras amargas e maliciosas: “Não é esta a mãe do Galileu? O filho com
certeza há de morrer na cruz, mas naturalmente não antes da festa, a não
ser que fosse o homem mais criminoso.” Então ela voltou e, impelida pelo
coração, foi ainda até à fogueira do Átrio, onde havia ainda alguns
populares; as companheiras seguiram-na, em dor silenciosa. Nesse lugar
de horror, onde Jesus dissera que era Filho de Deus e a raça de Satanás
gritara: “É réu de morte!”, Maria perdeu de novo os sentidos. João e as
santas mulheres levaram-nas dali, parecendo mais morta do que viva. A
plebe nada disse, calou-se admirada; foi como se um espírito puro tivesse
passado pelo inferno.
MARIA VÊ JESUS JÁ DESFIGURADO.

Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe de


Jesus, com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício,
esperando a aproximação do cortejo. A alma de Maria estava sempre com
Jesus, mas quando podia ficar também corporalmente perto dEle, não lhe
dava descanso o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o caminho e as pegadas.
Depois da visita noturna ao tribunal de Caifás, ficara só pouco tempo no
Cenáculo, entregue à muda dor; pois, quando Jesus foi tirado do cárcere,
de madrugada, para ser apresentado ao tribunal, a Virgem SS. levantou-se,
cobriu-se com o manto e véu e, saindo, disse a João e a Madalena:
“Sigamos meu Filho à casa de Pilatos, quero vê-Lo com meus olhos.”
Dando uma volta, chegaram assim em frente do cortejo; a SS. Virgem
parara nesse lugar e os outros com ela. A santa Mãe de Jesus sabia bem o
que era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre ante os olhos da alma;
mas com o olhar interior não O podia ver tão desfigurado e maltratado
como na realidade estava, pela maldade e crueldade dos homens. De fato,
via-Lhe sempre os horríveis sofrimentos, mas inteiramente penetrados pela
luz da santidade, do amor e da paciência, da vontade, que se oferecia
vítima pelos homens. Mas, nesse momento, se lhe apresentou à vista a
realidade terrível e ignominiosa. Passaram diante dela os orgulhosos e
assanhados inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do verdadeiro Deus,
nas vestes santas de gala; passaram com a intenção deicida, representantes
da malícia, mentira e maldição. Os sacerdotes de Deus haviam-se tornado
sacerdotes de Satanás. Que aspecto horrível! Depois o tumulto e a alegria
dos judeus, todos os perjuros inimigos e acusadores e, afinal, Jesus, Filho
de Deus e do Homem, seu filho, horrivelmente desfigurado e maltratado,
amarrado, batido, empurrado, cambaleando mais do que andando,
arrastado pelas cordas por cruéis carrascos, no meio de uma nuvem de
injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o mais
desamparado, o único que se conservava calmo, a rezar no íntimo do
coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do inferno
desencadeado, a angustiada Mãe não O teria reconhecido, naquele estado,
horrivelmente desfigurado. Quando se aproximou, vestido da túnica tão
suja, a Virgem Santíssima exclamou, soluçando: “Ai de mim! É esse meu
filho? Ai! É mesmo meu filho, oh! Jesus, meu Jesus!” O cortejo passou-lhe
em frente; o Senhor volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar
comovente à sua Mãe e ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-
na dali, mas logo que voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de
Pilatos.
Jesus tinha de suportar, também nesse caminho, que os amigos nos
abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos reunidos
num certo lugar do caminho e, quando viram Jesus tão humilhado e
desfigurado entre os soldados, levado com injúrias e maus tratos, ficaram
também abalados na fé; não podiam imaginar o rei, o profeta, o Messias, o
Filho de Deus em tão miserável estado. Os fariseus, ao passarem, ainda
zombaram deles, por causa da afeição que dedicavam a Jesus: “Eis o vosso
rei, saudai-O; agora deixais pender a cabeça, agora que Ele vai para a
coroação e dentro em pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os
milagres, o sumo sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc.” Aquela boa
gente, que vira tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus,
ficou abalada na fé, pelo horrível espetáculo que lhe apresentavam as
pessoas mais santas do país, o sumo sacerdote e o Sinédrio. Os melhores
elementos retiraram-se duvidosos, os piores juntaram-se ao cortejo como
podiam; pois a passagem em várias ruas estava impedida por guardas dos
fariseus, para evitar qualquer tumulto.
A VIRGEM MARIA DEU ORIGEM À
CONTEMPLAÇÃO DA PAIXÃO DE JESUS CRISTO
ATRAVÉS DA VIA-SACRA.

Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena e


João ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum, ouvindo
com profunda dor a gritaria raivosa dos acusadores. Quando Jesus foi
conduzido a Herodes, João voltou com a SS. Virgem e Madalena por todo o
caminho da Paixão. Foram até a casa de Caifás e a de Anás, atravessando
Ofel, até chegarem a Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os
lugares onde Ele caíra ou onde tinham causado a Ele um sofrimento;
paravam e, em silêncio, choravam e sofriam com Ele. Muitas vezes a SS.
Virgem se prostrava no chão, beijando a terra onde Jesus caíra; Madalena
torcia as mãos; e João, chorando, consolava-as, levantava-as e continuava
com elas o caminho. Foi esse o começo da Via-Sacra e da contemplação e
veneração da Paixão de Jesus, antes mesmo que estivesse terminada. Foi
nessa ocasião que começou, na mais santa flor da humanidade, na
Santíssima Virgem Mãe de Deus e do Filho do Homem, a devoção da Igreja
às dores do Redentor; já naquele momento, quando Jesus ainda trilhava o
caminho doloroso da Paixão, a Mãe Cheia de Graça venerava e regava
com lágrimas as pegadas de seu Filho e Deus. Oh! Que compaixão! Com
que violência lhe entrou a espada no coração, ferindo-o sem cessar! Ela,
cujo bem-aventurado seio O trouxera, que concebera, acariciara e nutrira
o Verbo, que era desde o princípio com Deus e era mesmo Deus; ela, que
em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que os homens, seus irmãos, Lhe
recebessem a bênção, a doutrina e a salvação, ela participava de todos os
sofrimentos de Jesus, inclusive a sua sede da salvação dos homens, pela
dolorosa Paixão e Morte. Assim a Virgem Puríssima e Imaculada
inaugurou para a Igreja a Via-
Sacra, para juntar em todos esses lugares os infinitos merecimentos de
Jesus Cristo, como se juntam pedras preciosas, ou para colhê-los, como se
colhem flores à beira do caminho, e oferecê-los ao Pai Celeste, por aqueles
que creem. Tudo que tinha havido e haverá de santo na humanidade, todos
que têm almejado a salvação, todos que já uma vez celebraram
compadecidos o amor e os sofrimentos do Senhor, fizeram esse caminho
com Maria, choraram, rezaram e sacrificaram no coração da Mãe de
Jesus, que também é terna Mãe de todos os seus irmãos, os fiéis da Igreja.
Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e
santo amor a Jesus; mas quando queria verter a alma aos pés do Salvador,
como Lhe vertera o óleo de nardo sobre a cabeça, abria-se um horrível
abismo entre ela e o Bem-Amado. O arrependimento dos pecados, como a
gratidão pelo perdão, lhe eram sem limites e, quando o seu amor queria
fazer subir a ação de graças aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem
de incenso, eis que O via maltratado e conduzido à morte, por causa dos
pecados dela, que Ele tomara sobre si. Então se lhe horrorizava a alma,
diante de tão grande culpa, pela qual Jesus tinha de sofrer tão
horrivelmente; precipitava-se no abismo do arrependimento, que não podia
nem exaurir, nem encher; e de novo se elevava, cheia de amor e saudade,
para seu Mestre e Senhor, e via-O sofrendo indizíveis crueldades. Assim
tinha a alma cruelmente dilacerada, vacilava entre o amor e o
arrependimento, entre a sua gratidão e a dolorosa contemplação da
ingratidão do povo para com o Redentor; todos esses sentimentos se lhe
manifestavam no rosto, nas palavras e nos movimentos.
João sofria em seu amor; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus,
que também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira vez, nas
pegadas da Via-Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro.
A VIRGEM SANTÍSSIMA DURANTE A
FLAGELAÇÃO DE JESUS.

Vi a SS. Virgem, durante a flagelação do Redentor, em contínuo êxtase;


via e sofria na alma, e com indizível amor e tormento, tudo quanto sofria o
Divino Filho. Muitas vezes lhe saíram fracos gemidos da boca; os olhos
estavam inflamados de tanto chorar. Jazia velada nos braços da irmã mais
velha, Maria Helí, que já era muito idosa e se parecia muito com a mãe,
Sant’Ana. Maria, filha de Cleofas e de Maria Helí, estava também presente
e segurava sempre o braço de sua mãe. As santas amigas de Maria e Jesus,
todas veladas e envolvidas em mantos, rodeavam a SS. Virgem, tremendo de
medo e dor, como se esperassem sua própria sentença de morte. Maria
vestia uma longa veste azul e sobre essa, um comprido manto branco de lã
e um véu branco-amarelo. Madalena estava desnorteada e desolada de dor
e lamentação; tinha o cabelo em desalinho, sob o véu.
Quando Jesus, depois da flagelação, caíra ao pé da coluna, mandara
Cláudia Prócula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes panos à Mãe de
Deus. Não sei mais se julgava que Jesus ficaria livre e a Mãe do Senhor lhe
devia tratar as feridas com esses panos ou se a pagã compadecida mandou
os panos para o fim que a SS. Virgem os empregou.
Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho, dilacerado, conduzido
pelos soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a túnica para fitar a
SS. Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num transporte de dor, e seguiu com
a vista as pegadas sangrentas. Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena,
quando o povo se dirigia mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar
da flagelação. Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e por outra
gente boa, que se aproximara, prostraram-se por terra, ao pé da coluna da
flagelação, e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus, por toda a
parte onde encontraram algum vestígio.
Não vi nessa hora João junto às santas mulheres, que eram cerca de
vinte. O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também Aram e
Temeni, os sobrinhos de José de Arimateia, estavam todos ocupados no
Templo, cheios de tristeza e angústia.
Foi pelas nove horas da manhã que acabou a flagelação.
Vi as faces da SS. Virgem pálidas e mortiças, o nariz delgado e
comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas lágrimas que
derramou; não é possível descrever a impressão que faz a figura de Maria,
na sua simplicidade e graça natural. Já desde o dia anterior e durante
toda a noite, tem ela vagueado, cheia de angústia e amor, pelo vale de
Josafá e pelas ruas de Jerusalém e através do povo e, contudo, não se
pode ver nenhuma desordem nas suas vestes; cada prega do vestido da SS.
Virgem respira santidade; tudo nela é simples e digno, puro e inocente. Os
movimentos, ao olhar em redor de si, são nobres, e as pregas do véu,
quando vira um pouco a cabeça, são de uma singular beleza e
simplicidade. Nos movimentos não era notada agitação e, mesmo na mais
dilacerante dor, todo o porte era conservado simples e calmo. Tem o manto
umedecido pelo orvalho da noite e por inúmeras lágrimas, mas em tudo
mais estava limpo e bem arrumado. Era inefavelmente bela e de uma
beleza toda sobrenatural; pois toda sua beleza era também pureza,
simplicidade, dignidade e santidade.
MARIA ESCUTA A SENTENÇA DE MORTE DO SEU
FILHO AMADO.

Pilatos mandou preparar tudo para pronunciar a sentença. Deu ordem


para trazer outras vestes solenes e vestiu-as; puseram-lhe na cabeça uma
espécie de coroa ou diadema, no qual havia uma pedra preciosa ou outra
coisa brilhante; vestiram-no também de outro manto e diante dele levavam
um bastão. Foi acompanhado de muitos soldados; oficiais do tribunal iam
na frente, transportando uma coisa e seguiam-se escreventes, com rolos de
papel e tabuinhas, precedidos por um homem que tocava trombeta. Assim
saiu do palácio para o fórum, onde, em frente ao lugar da flagelação, havia
um belo assento elevado, construído de pedras, para pronunciar as
sentenças; só depois de pronunciadas desse lugar, tinham as sentenças
vigor legal. Esse tribunal era chamado Gábata e era um estrado circular,
para o qual subiam escadas de vários lados; em cima havia um assento
para Pilatos e atrás dele um banco, para outros membros do tribunal.
Muitos soldados cercavam esse tribunal e, em parte, ficavam nos degraus
das escadas. Muitos dos fariseus já tinham ido do palácio de Pilatos ao
Templo. Somente Anás e Caifás, com cerca de vinte e oito outros, se
dirigiram ao tribunal no fórum, logo que Pilatos começou a vestir as
vestimentas oficiais. Os dois ladrões já haviam sido conduzidos ao tribunal,
quando Pilatos apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce homo! O assento
de Pilatos estava coberto de uma manta vermelha e sobre essa havia uma
almofada azul, com galões amarelos.
Jesus, ainda vestido do rubro manto derrisório, com a coroa de
espinhos na cabeça, as mãos atadas, foi então conduzido pelos esbirros e
soldados que O cercavam, entre as vaias do povo, para o tribunal, onde O
colocaram entre os dois ladrões. Pilatos, ali sentado, disse mais uma vez,
em voz alta, aos inimigos de Jesus: “Eis aí o vosso rei!” Eles, porém,
gritaram: “Fora! Morra! Crucifica-O!” — Pilatos disse: “Devo então
crucificar vosso rei?” — Mas os príncipes dos sacerdotes gritaram: “ Não
temos outro rei senão o César.” Então Pilatos não disse mais palavra em
favor de Jesus, nem mais Lhe falou, mas começou a pronunciar a sentença.
Os dois ladrões tinham sido condenados, já havia mais tempo, à morte na
cruz, mas a execução fora adiada para esse dia, a pedido dos Sumos
Sacerdotes, porque queriam ultrajar Jesus, crucificando-O entre assassinos
ordinários. As cruzes dos ladrões já estavam ao lado deles, no chão,
trazidas pelos ajudantes dos carrascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não
estava lá, provavelmente porque a sentença ainda não fora pronunciada.
A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação de
Jesus por Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu caminho, em
companhia de algumas mulheres, por entre a multidão e aproximou-se do
tribunal, para ouvir a sentença de morte, proferida contra seu Filho e
Deus; Jesus estava nos degraus da escada, diante de Pilatos, rodeado de
soldados, e os inimigos lançavam-Lhe olhares cheios de ódio e escárnio.
Um toque de trombeta ordenou silêncio e Pilatos pronunciou, com a raiva
de um covarde, a sentença de morte contra o Salvador.
Senti-me sufocada de indignação diante de tanta baixeza e
duplicidade; o aspecto desse celerado arrogante, do triunfo e ódio
sanguinário dos príncipes dos sacerdotes, satisfeitos após tantos esforços
fatigantes, o estado lastimoso e os sofrimentos do pacientíssimo Salvador, a
indizível angústia e os tormentos da Mãe Santíssima e das santas mulheres,
a furiosa ansiedade com que os judeus esperavam a morte da presa, o frio
orgulho dos soldados e minha visão das horrendas figuras diabólicas entre
a multidão do povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente. Ai!
Percebi que eu devia estar no lugar de Jesus, meu querido esposo; então a
sentença seria justa. Eu estava tão dilacerada pela dor que não me lembro
mais da ordem exata das coisas. Vou contar mais ou menos o que me
lembro.
Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com os
mais pomposos títulos ao imperador Cláudio Tibérío. Depois expôs a
acusação contra Jesus, que fora condenado à morte pelos Sumos
Sacerdotes e cuja crucificação tinha sido unanimemente exigida pelo povo,
por ser um rebelde, perturbador da paz pública, violador da lei judaica,
por se fazer chamar Filho de Deus e rei dos judeus. Quando, porém,
acrescentou ainda que achava essa sentença justa, — ele, que por várias
horas continuara a declarar Jesus inocente —, quase não pude conter-me
mais, à vista desse homem infame e mentiroso. Ele disse ainda: “Por isso
condeno Jesus Nazareno, rei dos judeus, a ser pregado na Cruz.” Depois
deu ordem aos carrascos que fossem buscar a cruz. Também me lembro,
mas não tenho plena certeza, que ele quebrou uma vara comprida, cuja
metade era visível, e lançou os pedaços aos pés de Jesus.
A essas palavras a Mãe de Jesus caiu por terra, sem sentidos e como
morta; agora então estava decidida, era certa a morte de seu santíssimo e
amantíssimo Filho e Salvador; morte horrível, dolorosa, ignominiosa. As
companheiras e João levaram-na para fora da multidão, para que aqueles
homens cegos de coração não pecassem, insultando a dolorosa Mãe do
Salvador; mas Maria não podia deixar de seguir o caminho da Paixão de
Jesus; as companheiras viram-se obrigadas a levá-la outra vez de lugar em
lugar; pois o culto misterioso de unir-se-Lhe nos sofrimentos impelia a
Santíssima Mãe aoferecer o sacrifício de suas lágrimas em todos os lugares
onde o Redentor, seu Filho, sofrera pelos pecados dos homens, seus irmãos;
e, assim, a Mãe do Senhor consagrou com as lágrimas todos esses santos
lugares e tomou posse deles para a futura veneração pela Igreja, Mãe de
todos nós, como Jacó erigiu uma pedra e, ungindo-a com óleo, consagrou-a
em memória da promissão, que ali recebera.
O SAGRADO ENCONTRO ENTRE MARIA E SEU
AMADO FILHO, A CAMINHO DO CALVÁRIO.

A Mãe de Jesus, transpassada de dor, tinha retirado-se do fórum, com


João e algumas mulheres, depois de ouvir a sentença que condenara
injustamente o Filho. Tinham visitado muitos dos lugares sagrados pela
Paixão de Jesus, mas quando o correr do povo, o toque dos clarins e o
séquito de Pilatos, com os soldados, anunciaram a partida para o Calvário,
Maria não pôde conter-se mais: o amor impelia-a a ver o divino Filho no
seu sofrimento e ela pediu a João que a conduzisse a um lugar onde Jesus
tivesse de passar.
Eles tinham vindo dos lados de Sião; passaram ao lado do tribunal
donde Jesus, havia pouco, fora levado por portas e alamedas que noutros
tempos estavam fechadas, mas nessa ocasião abertas, para dar passagem à
multidão. Passaram depois pela parte ocidental de um palácio, que do
outro lado dá, por um portão, para a rua larga, na qual o séquito entrou
depois da primeira queda de Jesus. Não sei mais com certeza se esse
palácio era uma ala da casa de Pilatos, com a qual parece estar ligada por
pátios e alamedas, ou se era, como me lembro agora, a própria habitação
do Sumo Sacerdote Caifás; pois a casa em Sião era apenas o tribunal. João
conseguiu de um criado ou porteiro compassivo a licença de passar, com
Maria e as companheiras, para o outro lado e o mesmo empregado abriu-
lhes o portão para a rua larga. Estava com eles um sobrinho de José de
Arimateia; Suzana, Joana Chusa e Salomé de Jerusalém seguiram a
Santíssima Virgem.
Quando vi a dolorosa Mãe de Deus, pálida, olhos vermelhos de
chorar, tremendo e gemendo, envolta da cabeça aos pés num manto azul-
cinzento, passando com as companheiras por aquela casa, senti-me presa
de dor e susto. Já se ouviam por sobre as casas o tumulto e os gritos do
séquito, que se aproximava, o toque da trombeta e a voz do arauto,
anunciando nas esquinas das ruas a execução de um condenado à cruz. O
criado abriu o portão; o ruído tornou-se mais distinto e assustador. Maria
rezava e disse a João: “Que devo fazer, ficar para vê-Lo ou fugir? Como
poderei suportar vê-Lo neste estado?” João disse: “Se não ficardes,
arrepender-vos-eis amargamente toda a vida”. Então saíram da casa,
ficando à espera, sob a arcada do portão; olhavam para a direita, rua
abaixo, que até lá subia, mas continuava plana, do lugar onde estava
Maria.
Ai! Como o som da trombeta lhe penetrou no coração! O séquito
aproximava-se; ainda estaria distante uns 80 passos, quando saíram do
portão. Ali o povo não andava na frente, mas aos lados e atrás havia
alguns grupos; grande parte da gentalha, que saíra por último do tribunal,
corria por atalhos para a frente, para ocupar outros lugares, de onde
pudesse ver passar o séquito.
Quando os servos dos carrascos, que transportavam os instrumentos
do suplício, aproximaram-se, impertinentes e triunfantes, começou a Mãe
de Jesus a tremer e chorar e torcer as mãos de aflição. Um dos miseráveis
perguntou aos que iam ao lado: “Quem é essa mulher, que está ali
lamentando?” Um deles respondeu: “É a mãe do Galileu.” Ouvindo isso os
perversos insultaram-na com palavras de zombaria, apontaram-na com os
dedos e um desses homens perversos tomou os cravos, com os quais Jesus
devia ser pregado na cruz, e mostrou-os à Santíssima Virgem, com ar de
escárnio. Ela, porém, torcendo as mãos, olhava na direção de seu Filho e,
esmagada pela dor, encostou-se ao pilar do portão. Tinha a palidez de um
cadáver e os lábios roxos. Passaram os fariseus a cavalo; depois veio o
menino, com o título da cruz e, ai!, alguns passos atrás, Jesus, o Filho de
Deus, seu próprio Filho querido, o Santo, o Redentor: lá ia cambaleando e
curvado, afastando penosamente a cabeça, com a coroa de espinhos, do
pesado fardo da cruz. Os carrascos arrastavam-nO pelas cordas para a
frente; tinha o rosto pálido, coberto de sangue e pisaduras, a barba toda
junta e colada sob o queixo pelo sangue. Os olhos encovados e sangrentos
do Salvador, sob o horrível enredo da coroa de espinhos, lançaram um
olhar grave e cheio de piedade à Mãe dolorosa e, depois, tropeçando, Ele
caiu pela segunda vez, sob o peso da cruz, sobre os joelhos e as mãos. A
Mãe, na veemência da dor, não via mais nem soldados nem carrascos, via
só o Filho querido em estado tão lastimoso e tão maltratado. Estendendo os
braços, correu os poucos passos do portão até Jesus, através dos carrascos
e abraçando-O, caiu-Lhe ao lado de joelhos. Ouvi as palavras: “Meu
Filho!” — “Minha Mãe!” — não sei se foram pronunciadas pelos lábios ou
só no coração.
Houve um tumulto: João e as mulheres tentavam afastar Maria, os
carrascos praguejavam e insultavam-na; um deles gritou: “Mulher, que
queres aqui? Se O tivesses educado melhor, não estaria agora em nossas
mãos.” Vi que alguns dos soldados estavam comovidos; eles afastaram a
Santíssima Virgem; nenhum, porém, a tocou. João e as mulheres levaram-
na e ela caiu de joelhos, como morta de dor, sobre a pedra angular do
portão, que suportava o muro; estavam de costas viradas para o séquito,
apoiando-se com as mãos na parte superior da pedra inclinada, sobre a
qual caíra. Era uma pedra com veias verdes; onde os joelhos de Nossa
Senhora tocaram, ficaram cavidades, e onde as mãos se lhe apoiaram,
deixaram marcas menos profundas. Eram impressões chatas, com
contornos pouco claros, semelhantes a impressões causadas por uma
pancada sobre massa de farinha. Era uma pedra muito dura. Vi que no
tempo do bispo Tiago, o Menor, essa pedra foi colocada na primeira Igreja
católica, que foi construída ao lado da piscina de Betesda.
Já o tenho dito varias vezes e digo-o mais uma vez, que vi em diversas
ocasiões tais impressões causadas pelo contato de pessoas santas em
acontecimentos de grande importância. Isso é tão certo que há até a
expressão: “Uma pedra sentir-se-ia comovida”.
Como os soldados, armados de lanças, que marchavam aos lados do
séquito, impeliam o povo para diante, os dois discípulos que estavam com a
Mãe de Jesus reconduziram-na pelo portão, que foi fechado atrás deles.
Os carrascos tinham, no entanto, levantado Jesus aos arrancos e
puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro, mas de outra maneira. Os braços
da cruz, amarrados ao tronco haviam ficado um pouco soltos e um deles
descera um pouco ao lado do tronco; foi esse que Jesus abraçou então, de
modo que o tronco da cruz pendia atrás, mais no chão.
NOSSA SENHORA NO CALVÁRIO.

Depois do doloroso encontro da SS. Virgem com o Divino Filho


carregando a cruz, quando Maria caiu sem sentidos sobre a pedra angular,
Joana Chusa, Suzana e Salomé de Jerusalém, com auxilio de João e do
sobrinho de José de Arimateia, conduziram-na para dentro da casa,
impelidos pelos soldados, e o portão foi fechado, separando-a do Filho
bem-amado, carregado do peso da cruz e cruelmente maltratado. O amor e
o ardente desejo de estar com o Filho, de sofrer tudo com Ele e de não O
abandonar até o fim davam-lhe uma força sobrenatural. As companheiras
foram com ela à casa de Lázaro, na proximidade da porta Angular, onde
estavam reunidas as outras santas mulheres, com Madalena e Marta,
chorando e lamentando-se; com elas estavam também algumas crianças.
De lá saíram em número de 17, seguindo o caminho doloroso de Jesus.
Vi-as todas, sérias e decididas; não se importavam com os insultos da
gentalha, mas impunham respeito pela sua tristeza; passaram pelo fórum, a
cabeça coberta pelos véus; no ponto onde Jesus tomara ao ombro a cruz,
beijaram a terra; depois seguiram todo o caminho da Paixão de Jesus,
venerando todos os lugares onde Ele mais sofrera. Maria e as que eram
mais inspiradas procuravam seguir as pegadas de Jesus e a SS. Virgem,
sentindo e vendo-lhes tudo na alma, guiava-as, onde deviam parar e
quando deviam prosseguir nessa via-sacra. Todos esses lugares se lhe
imprimiram vivamente na alma; ela contava até os passos e mostrava às
companheiras os santos lugares.
Desse modo a primeira e mais tocante devoção da Igreja foi escrita no
coração amoroso de Maria, Mãe de Deus; escrita pela espada profetizada
por Simeão; os santos lábios da Virgem transmitiram-na aos companheiros
do sofrimento e, por esses, a nós. Essa é a santa tradição vinda de Deus ao
coração da Mãe Santíssima e do coração da Mãe aos corações dos Filhos;
assim continua sempre a tradição na Igreja. Quando se vêm às coisas como
as vejo, parece esse modo de transmissão mais vivo e mais santo. Os judeus
de todos os tempos sempre veneraram os lugares consagrados por uma
ação santa ou por um acontecimento de saudosa memória. Eles não
esquecem um lugar onde se deu uma coisa sobrenatural: marcam-no com
monumento de pedras e vão em peregrinação, para rezar. Assim também
nasceu a devoção da Via-Sacra , não por uma intenção premeditada, mas
da natureza dos homens e das intenções de Deus para com seu povo, do fiel
amor de uma mãe, e, por assim dizer, sob os pés de Jesus, que foi o
primeiro que a trilhou.
Chegou então esse piedoso grupo à casa de Verônica, onde entraram,
porque Pilatos com os cavaleiros e os duzentos soldados, voltando da porta
da cidade, vinham-lhes ao encontro. Ali Maria e os companheiros viram o
sudário, com a imagem do rosto de Jesus e, entre lágrimas e suspiros,
exaltaram a misericórdia de Jesus para com sua fiel amiga. Levaram o
cântaro com o vinho aromático, com que Verônica não conseguira
confortar Jesus, e dirigiram-se todos, com Verônica, à porta do Gólgota.
No caminho se lhes juntaram ainda muitas pessoas bem-intencionadas e
outras comovidas pelos acontecimentos, entre as quais também certo
número de homens, formando um cortejo que, pela ordem e seriedade com
que passou pelas ruas, me fez uma singular impressão. Esse cortejo era
quase maior do que aquele que conduziu a Jesus, não contando o povo que
o acompanhou.
As angústias e dores aflitivas de Maria nesse caminho, ao ver o lugar
do suplício, com as cruzes no alto, não se podem exprimir em palavras; a
alma amantíssima da Virgem sentia os sofrimentos de Jesus e era ainda
torturada pelo sentimento de não poder segui-lo na morte. Madalena, toda
transtornada e como embriagada de dor, andava cambaleando, como que
arremessada de angústia em angústia; passava do silêncio às lamentações,
do estupor ao desespero, das lamentações às ameaças. Os companheiros
eram obrigados a sustê-la, a protegê-la, a exortá-la e a escondê-la da vista
dos curiosos.
Subiram o monte Calvário pelo lado mais suave, ao oeste, e
aproximaram-se em três grupos do aterro circular do cume, a certa
distância, um atrás do outro. A Mãe de Jesus; a sobrinha desta, Maria de
Cleofas; Salomé; e João avançaram até o lugar do suplício. Marta, Maria
Heli, Verônica, Joana Chusa, Suzana e Maria, mãe de Marcos, ficaram um
pouco afastadas, rodeando Maria Madalena, que não podia conter a dor.
Um pouco mais atrás, estavam ainda sete pessoas e entre os três grupos
havia gente boa, que mantinha uma certa comunicação entre eles. Os
fariseus a cavalo estavam em diversos lugares ao redor do local do
suplício, enquanto os soldados romanos ocupavam as cinco entradas.
Que espetáculo doloroso para Maria: o lugar do suplício, o cume com
as cruzes, a terrível cruz do Filho adorado e, diante dela, no chão, os
martelos, as cordas, os horrendos pregos e os repelentes carrascos, meio
nus, quase embriagados, fazendo o horroroso trabalho entre imprecações.
Os troncos das cruzes dos ladrões já estavam arvorados, munidos de paus
encaixados para subir. A ausência de Jesus ainda prolongava o martírio da
Mãe Santíssima; ela sabia que ainda estava vivo; desejava vê-Lo, tremia ao
pensar em que estado O veria; ia vê-Lo em indizíveis tormentos.
Desde a madrugada até às dez horas, quando foi pronunciada a
sentença, caíra várias vezes chuva de pedra; durante o caminho de Jesus
ao Calvário clareou o céu e brilhava o sol; mas pelas doze horas começou
uma neblina avermelhada a velar o sol.
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz;
Ele próprio sentou-se sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas.
Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da
cruz e aí Lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o santo
peito, enquanto outro Lhe segurava a mão, que se estava contraindo, e um
terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre
essa mão cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um
martelo de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o
sangue sagrado salpicou os bravos dos carrascos; rasgaram-Lhe os
tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para
dentro do estreito orifício. Contei as marteladas, mas esqueci, na minha
dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem
sentidos exteriormente; Madalena estava desnorteada.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os
crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço
da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas
polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao
braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a
toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos
tocantes, pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações; os
ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares,
nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito levantou-se-Lhe e as
pernas encolheram-se sobre o corpo. Os carrascos ajoelharam-se sobre os
braços e o peito, amarraram-Lhe fortemente os braços e cravaram-Lhe
então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e
ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado
martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos que formavam uma
linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha
oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.
A SS. Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma
palidez cadavérica e fracos gemidos saiam-lhe da boca. Os fariseus
dirigiram insultos e zombarias para o lado onde ela estava; por isso os
amigos conduziram-na para junto às outras santas mulheres, que estavam
um pouco mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como
louca; feria o rosto de modo que tinha as faces e os olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, em baixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma
peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a suportar os
pés de Jesus, afim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro
modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso do corpo e os pés não
poderiam ser pregados sem quebrá-los. Nessa peça de madeira tinham
perfurado o orifício para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para
os calcanhares, como também havia outras, em vários pontos da cruz, para
que o Mártir pudesse ficar suspenso mais tempo e para que o peso do
corpo não rasgasse Suas mãos, fazendo-O cair.
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da
cruz, pela violenta extensão dos braços, e os joelhos tinham-se-Lhe
dobrado. Os carrascos lançaram-se então sobre esses e, por meio de
cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos
orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia
suportar. Então começaram os carrascos a praguejar e a insultar. Alguns
julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos,
pois mudar o suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de
Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós O ajudaremos.”
Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrivel violência até o pé
tocar no suporte, e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível
que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu
Deus!” Tinham-Lhe amarrado também o peito e os bravos, para os pregos
não rasgarem as mãos; o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas
pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência,
colocando-o sobre o pé direito e, como os pés não repousavam com
bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram
primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais
chata do que os cravos, como se fura a sovela. Feito isso, tomaram o cravo
mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o
brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a marteladas
o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e,
através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego
atravessou os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de
todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e
penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e
maldições, pareciam-me sombrias e sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação
do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os gemidos de Jesus
causaram-lhe tão veemente dor e compaixão que caiu novamente nos
braços das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo. Então
acorreram alguns fariseus a cavalo, insultando-as, e os amigos afastaram
Maria outra vez a alguma distância. Durante a crucifixão e a elevação da
cruz, que se lhe seguiu, ouviam-se, especialmente entre as mulheres, gritos
de compaixão, como: “Por que a terra não traga esses miseráveis? Por que
não cai fogo do céu para os devorar?” — A essas manifestações de amor,
respondiam os carrascos com insultos e escárnio.
Os gemidos que a dor arrancava de Jesus misturavam-se com
contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas
predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até a morte,
não cessava de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com Ele
todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos;
mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não
sei mais as juntar. Durante esse horrível suplício, vi anjos a chorar
aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a
tábua, como titulo que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados,
porque os romanos se riam alto do titulo “Rei dos judeus.” Por isso
voltaram alguns fariseus à cidade, depois de terem tomado medida para
uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a
trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita
a cova e a rocha muito dura. Alguns dos carrascos, em vez de dar a Jesus
para beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, beberam-no
eles mesmos e ficaram embriagados; queimava-lhes as entranhas e
causava-lhes tanta dor nos intestinos que ficaram desvairados; insultavam
a Jesus, chamando-O de feiticeiro, e enfureciam-se a vista da paciência do
Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para beber leite
de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que pertenciam a um
acampamento de peregrinos, vindos para a festa da Páscoa, que tinham
jumentas cujo leite vendiam.
Pela posição do sol, era cerca de doze horas e um quarto quando
Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do
Templo o soar de muitas trombetas: era a hora em que imolavam o cordeiro
pascal.
JESUS ENTREGA MARIA A JOÃO E JOÃO À
MARIA. EM JOÃO, MARIA PASSA A SER MÃE
ESPIRITUAL DE TODA A HUMANIDADE.

A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Heli e João


estavam entre as cruzes dos ladrões, ao redor da cruz de Jesus, olhando
para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava
interiormente a Jesus que a deixasse morrer com Ele. Então olhou o Senhor
com inefável ternura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João,
disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se
tivesse nascido de ti.” Elogiou ainda João, dizendo: “Ele teve sempre uma
fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse
elevado acima dos outros.” A João, porém, disse: “Eis aí tua Mãe!” João
abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se
tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. A
SS. Virgem ficou tão abalada de dor, após essas solenes disposições do
Filho moribundo, que caindo nos braços das santas mulheres, perdeu os
sentidos exteriormente; levaram-na para o aterro em frente à cruz, onde a
sentaram por algum tempo e depois a conduziram para fora do círculo,
para junto das outras amigas.
Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as
interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima como
Mãe ao Apóstolo querido e este como filho à sua Mãe. Em tais
contemplações se percebem muitas coisas que não foram escritas; e
poucas, apenas, é o que pode exprimir a língua humana. O que lá é tão
claro, que se julga compreender por si mesmo, não se sabe explicar com
palavras. Assim, não é de admirar que Jesus, dirigindo-se à Santíssima
Virgem, não dissesse: “Mãe”, mas “mulher”, pois ela ali estava na sua
dignidade de mulher que devia esmagar a cabeça da serpente, naquela
hora em que aquela promessa se realizava, pelo sacrifício do Filho do
Homem, seu próprio filho. Não era de admirar lá que Jesus desse João por
filho àquela a quem o Anjo saudava: “Ave Maria, cheia de graça”, porque
o nome de João significa “graça”; pois todos são o que os respectivos
nomes significam e João tornara-se filho de Deus e Jesus Cristo vivia nele.
Percebia-se que Jesus, naquele momento, dava com aquelas palavras uma
mãe, Maria, a todos que, como João, O recebem e, crendo nEle, tornam-se
filhos de Deus, que não foram nascidos do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas do próprio Deus. Sentia-se que a
mais pura, a mais humilde, a mais obediente de todas as mulheres, que se
tornara a Mãe do Verbo feito carne, respondendo ao Anjo: “Eis aqui a
serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!”, ali, ouvindo
do Filho moribundo que se devia tornar Mãe espiritual de outro filho, dizia,
obediente e humilde, as mesmas palavras, no íntimo do coração, dilacerado
das dores da separação: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim
segundo a Vossa palavra”, aceitando, assim, por filhos todos os filhos de
Deus, todos os irmãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples e
necessário, mas aqui é tão diferente, que é mais fácil senti-lo, pela graça de
Deus, do que o exprimir em palavras.
A SANTÍSSIMA VIRGEM FICA AO LADO DO
FILHO AMADO ATÉ O FINAL.

Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e


um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe
os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz
no lado de trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a
de Jesus, amparada pelos braços de Maria de Cleofas e Salomé, olhando
para o Filho, que lutava com a morte. Então disse Jesus: “Tudo está
consumado!” e, levantando a cabeça, exclamou em alta voz: “Meu Pai, em
Vossas mãos entrego o meu espírito.” Foi um grito doce e forte, que
penetrou o Céu e a terra; depois, inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de
Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao
Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra.
Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos
pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a
alma a Deus, seu Pai, e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso
esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-Lhe
convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido, e os vestígios do
sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O rosto
alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e
pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-
se, meio envidraçados. O Senhor levantou pela última vez e por poucos
momentos a cabeça, coroada de espinhos e deixou-a depois cair sobre o
peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos
entreabriram-se, deixando ver a língua ensanguentada. As mãos, antes
fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços,
as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo
desceu sobre os pés. Os joelhos curvaram-se, tornando para um lado, e os
pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara.
Então se entesaram as mãos da Mãe Dolorosa, a vista escureceu-se-
lhe, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os
pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena, João e os outros se
prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor.
Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães,
dirigindo os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido na
virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua carne, osso de
seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado formado no seu seio pela
virtude divina, agora privado de toda a beleza e formosura, separado da
alma santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de
que os homens tinham abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o corpo
do Filho Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos
daqueles que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza e verdade,
de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado,
desprezado, insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender
toda a dor da Mãe de Jesus, rainha de todos os mártires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi
acompanhado de calor sufocante; mas se seguiu depois de um frio sensível.
O corpo de Nosso Senhor morto na cru, causava um sentimento de respeito
e estranha comoção. Era pouco depois das três horas, quando Jesus
expirou.
Os carrascos ainda pareciam duvidar da morte do Senhor e os
parentes de Jesus estavam ainda mais assustados, pela brutalidade com
que haviam procedido e com medo de que pudessem voltar. Mas Cássio,
oficial subalterno, homem de 25 anos, ativo e um pouco precipitado, cuja
vista curta e cujos olhos tortos, juntamente aos ares de importância que se
dava, provocavam frequentemente a troça dos subordinados, recebeu de
repente uma inspiração sobrenatural. A crueldade e vil brutalidade dos
carrascos, o medo das santas mulheres e um impulso repentino, causado
por uma graça divina, fizeram-no cumprir uma profecia. Ajustando a
lança, que trazia em geral dobrada e encurtada, firmou-lhe a ponta e
virando o cavalo, esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde
o cavalo quase não podia virar; vi como o afastou da fenda do rochedo.
Parando, assim, entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, ao lado direito do
corpo de Nosso Salvador, tomou a lança com ambas as mãos e introduziu-a
com tal força no lado direito do Santo Corpo, através das entranhas e do
coração, que a ponta da lança saiu um pouco do lado esquerdo, abrindo
uma pequena ferida. Quando tirou depois com força a santa lança, brotou
da larga chaga do lado direito do Redentor um rio de sangue e água que,
caindo, banhou o rosto de Cássio, como uma onda de salvação e graça. Ele
saltou do cavalo e, prostrando-se de joelhos, bateu no peito e confessou a
fé em Jesus em alta voz, diante de todos os presentes.
A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos no
Salvador, viram a súbita ação do oficial com grande angústia e
acompanharam o golpe da lança com um grito de dor, precipitando-se para
a cruz. Maria caiu nos braços das amigas, como se a lança lhe tivesse
transpassado o próprio coração e sentisse o ferro cortante atravessá-lo de
lado a lado. Cássio, caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado
pela graça, ficou crendo e também os olhos do corpo se lhe curaram e
desde então via tudo claro e distinto. Mas, ao mesmo tempo, ficaram todos
profundamente comovidos a vista do sangue que, misturado com água, se
juntara, espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da cruz; Cássio, Maria
Santíssima, as santas mulheres e João apanharam o sangue e a água em
tigelas, guardando-o depois em frascos e enxugando-o da rocha com panos.
Cássio estava como que transformado; tinha recobrado a vista
perfeita e, profundamente comovido, curvava-se diante de Deus, com
coração humilde. Os soldados presentes, tocados pelo milagre que se
operara nele, prostraram-se de joelhos, batendo no peito e louvando a
Jesus. O sangue e a água corriam abundantemente da larga chaga do lado
direito do Salvador, sobre a rocha limpa, onde se juntaram; apanharam-no
com indizível comoção e as lágrimas de Maria e Madalena misturavam-se-
lhe. Os carrascos, que nesse ínterim tinham recebido a ordem de Pilatos de
não tocar no corpo de Jesus, que doara a José de Arimateia, para o
sepultar, não voltaram mais.
A lança de Cássio constava de várias peças, que eram ajustadas umas
sobre as outras; quando dobrada, parecia apenas um bastão, de pouco
comprimento. A parte de ferro que feria, tinha a forma de pêra achatada;
quando se queria servir da lança, enfiava-se-lhe a ponta e abriam-se em
baixo duas lâminas de ferro, curvas e movediças.
Tudo isso se passou ao redor da cruz de Jesus, logo depois das quatro
horas, quando José de Arimateia e Nicodemos estavam ocupados em juntar
as coisas necessárias para o enterro. Os criados de José de Arimateia
foram enviados para limpar o sepulcro e anunciaram aos amigos de Jesus
no Gólgota que José recebera de Pilatos licença para tirar da cruz o corpo
do Mestre e sepultá-lo no seu sepulcro; então voltou João, com as santas
mulheres, à cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a Santíssima
Virgem pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns
objetos para o enterro. Maria tinha uma pequena habitação nos edifícios
laterais do Cenáculo. Não entraram pela porta mais próxima, mas, mais ao
sul, pela porta que conduz a Belém; pois a porta para o Calvário estava
fechada e ocupada por dentro pelos soldados que os fariseus tinham
requisitado, com medo de um levante do povo.
MARIA, SENTADA AO PÉ DA CRUZ, RECEBE EM
SEUS BRAÇOS O FILHO MUITO AMADO MORTO.
PREPARAÇÃO DO CORPO PARA A SEPULTURA.

A Santíssima Virgem e Madalena estavam sentadas ao pé da cruz, à


direita, entre a cruz de Dimas e a de Jesus; as outras mulheres estavam
ocupadas em arrumar as especiarias e os panos, a água, as esponjas e os
vasos. Às vezes, quando a pressa e atenção à obra santa o permitiam, se
ouvia cá e lá um gemido abafado ou soluço. Sobretudo Madalena, muito
exaltada, abandonava-se inteiramente à dor e não se lembrava dos
presentes, nem se moderava por qualquer consideração.
Nicodemos e José encostaram as escadas por detrás da cruz, levando,
ao subirem, um pano largo, no qual estavam presas três largas correias.
Prenderam o corpo de Jesus, sob os braços e joelhos, ao lenho e
seguraram os braços de Nosso Senhor, atando-os pelos pulsos aos
madeiros transversais. Depois tiraram os cravos, batendo-os por detrás
com ponteiros colocados sobre as pontas. As mãos do Senhor não foram
muito abaladas pelos golpes do martelo e os cravos caíram facilmente das
chagas, que estavam muito alargadas pelo peso do corpo e este, seguro
por meio dos panos, não pendia mais dos cravos. A parte inferior do
corpo, que, com a morte, tombara sobre os joelhos, repousava, então, em
posição natural, sobre um pano, que estava seguro no alto, aos braços da
cruz. Enquanto José tirava o cravo e deixava cair cuidadosamente o braço
esquerdo sobre o corpo, atou Nicodemos o braço direito do mesmo modo
ao da cruz, segurando também a cabeça coroada de espinhos em posição
natural, pois caíra sobre o ombro direito; tirou o cravo da mão direita e
fez descer o braço, com as respectivas ataduras, ao longo do corpo. Ao
mesmo tempo o centurião Abenadar tirou, com grande esforço, o longo
cravo dos pés.
Cássio apanhou respeitosamente os cravos e depositou-os aos pés da
Santíssima Virgem. José e Nicodemos colocaram então as escadas no lado
da frente, próximo do santo corpo. Desataram a correia superior do tronco
da cruz e sucessivamente as correias, pendurando-as nos ganchos da
escada. Descendo então devagar das escadas e passando as correias de
gancho em gancho, cada vez mais para baixo, vinha também o santo corpo
descendo gradualmente para os braços do centurião Abenadar, que de pé
sobre um escabelo segurou o corpo sobre os joelhos e desceu depois com
ele, enquanto Nicodemos e José, segurando a parte superior pelos braços,
desciam degrau por degrau das escadas, devagar e com todo cuidado,
como se transportassem um amigo querido, gravemente ferido. Assim
desceu o santo e desfigurado corpo do Salvador da cruz à terra.
O descendimento do corpo da cruz foi um espetáculo indizivelmente
tocante. Faziam todos os movimentos com tanto cuidado e carinho, como se
receassem causar sofrimento ao Senhor; manifestavam ao santo corpo o
mesmo amor e respeito que tinham sentido para com o Santo dos santos
durante a Sua vida. Todos que estavam presentes não desviavam os olhos
do corpo do Senhor; acompanhavam todos os movimentos e manifestavam
solicitude, estendendo os braços, derramando lágrimas ou por outros
gestos de dor. Mas todos guardavam silêncio; os homens que trabalhavam,
penetrados de um respeito involuntário, como quem toma parte num ato
religioso, só falavam a meia voz, para chamar a atenção ou pedir qualquer
objeto. Quando ressoaram as marteladas que fizeram sair os pregos, Maria
Santíssima, Madalena e todos que tinham assistido à crucificação sentiram
de novo as dores dilacerantes daquela hora pois esses golpes lhes
lembravam das dores cruéis de Jesus causadas pelas marteladas Todos
estremeceram, pensando ouvir-Lhe novamente os gemidos penetrantes e
contudo afligiam-se de que a santa boca Lhe houvesse emudecido, no
silêncio da morte. Depois de descer o santo corpo, os homens o envolveram
dos joelhos até os quadris e depositaram-no sobre um pano, nos bravos da
Mãe Santíssima, que lhos estendeu, cheia de dor e saudade.
A Santíssima Virgem estava sentada sobre uma coberta, estendida
sobre a terra; o joelho direito, um pouco elevado, como também as costas,
apoiavam-se sobre uma almofada, feita de mantos enrolados; fizeram esse
arranjo para facilitar à Mãe, exausta de dor e cansaço, a triste obra de
caridade que ia fazer para com o santo corpo do Filho querido, cruelmente
assassinado. A santa cabeça de Jesus, um pouco curvada, estava encostada
ao joelho de Maria; o corpo jazia estendido sobre o pano. Igualavam-se a
dor e o amor da Virgem Santíssima. Tinha de novo nos braços o corpo do
Filho adorado, a quem, durante tão longo martírio, não pudera
testemunhar seu amor; via quanto estava desfigurado o santo corpo, pelas
horríveis crueldades, via-lhe de perto as feridas, beijava-lhe as faces
sangrentas, enquanto Madalena jazia prostrada por terra, com o rosto
sobre os pés de Jesus.
Os homens retiraram-se, então, para um pequeno vale, situado a
sudoeste, na encosta do Calvário, onde tencionavam terminar o
embalsamamento, e arrumaram tudo quanto era necessário para esse fim.
Cássio, com um grupo de soldados que se tinham convertido, mantinha-se a
respeitosa distância; toda a gente inimiga do Mestre tinha já voltado para a
cidade e os soldados ainda presentes ficaram para servir de guarda e
impedir que alguém fosse perturbar as últimas honras prestadas a Jesus.
Alguns ajudavam, comovidos e humildes, prestando pequenos serviços,
quando lhes pediam.
Todas as santas mulheres ajudavam, onde era preciso, passando os
vasos com água, esponjas, panos, unguentos e especiarias ou mantinham-
se atentas a certa distância. Entre elas se achavam Maria, filha de Cleofas;
Salomé; e Verônica. Madalena estava sempre ocupada com o santo corpo;
Maria Helí, a irmã mais velha da Santíssima Virgem, senhora já idosa,
estava sentada silenciosa; João estava sempre ao lado da Santíssima
Virgem, pronto a prestar-lhe qualquer auxílio: era o mensageiro entre as
mulheres e os homens, ajudando àquelas e depois prestando também muitos
serviços aos homens, durante o embalsamamento. Estava tudo muito bem
preparado; as mulheres trouxeram odres de couro, que se podiam abrir e
dobrar, e um vaso com água, que estava sobre uma fogueira de carvão.
Trouxeram à Maria e à Madalena tigelas com água e esponjas limpas,
espremendo as usadas e despejando a água usada nos odres de couro.
Creio, pelo menos, que os chumaços redondos que as vi espremerem eram
esponjas.
A Santíssima Virgem conservava um ânimo forte, em toda a sua
indizível dor; mesmo em sua tristeza, não podia deixar o santo corpo no
horrendo estado em que o pusera o ignominioso suplício e, assim, começou,
com atividade infatigável, a lavá-lo cuidadosamente. Abrindo a coroa de
espinhos pelo lado posterior, tirou-a cuidadosamente da cabeça de Jesus,
com auxílio dos outros. Para que os espinhos que entraram na cabeça não
alargassem as feridas, foi preciso cortá-los um a um da coroa. Colocaram
depois a coroa junto aos cravos, ao lado, e Maria tirou alguns espinhos
compridos e fragmentos que tinham ficado na cabeça do Salvador, com
uma espécie de pinça curva e elástica, de cor amarela, e mostrou-os
tristemente aos amigos compassivos. Puseram os espinhos junto à coroa;
mas é possível que alguns fossem guardados como lembrança.
Quase não se podia mais reconhecer o rosto do Senhor, tão
desfigurado estava pelas feridas e pelo sangue. O cabelo e a barba, em
desalinho, estavam completamente colados pelo sangue. Maria lavou-Lhe o
rosto e a cabeça, passando esponjas molhadas sobre o cabelo para tirar o
sangue que secara. À medida que lavava, tornavam-se mais visíveis os
efeitos do cruel suplício, causando cada vez novas manifestações de
compaixão, novos cuidados, de ferida em ferida. Maria limpou-Lhe as
feridas da cabeça e lavou o sangue dos olhos, das narinas e dos
ouvidoscom uma esponja e um pequeno lenço, estendidos sobre os dedos da
mão direita; limpou também a boca entreaberta, a língua, os dentes e os
lábios de Nosso Senhor. Dispôs o pouco que restava da cabeleira de Jesus
em três partes, uma para cada lado e uma para o lado posterior da cabeça
e, depois de alisar os cabelos de ambos os lados, fê-los passar por trás das
orelhas. Quando acabou de limpar a cabeça, deu-Lhe um beijo na face e
cobriu o santo rosto. Dirigiu então os cuidados ao pescoço, aos ombros, ao
peito e às costas do santo corpo, aos braços e às mãos laceradas e
sangrentas. Ai! Então se viu toda a horrenda dilaceração do santo corpo.
Todos os ossos do peito e todas as articulações estavam deslocadas e
tornaram-se inflexíveis; o ombro sobre o qual Jesus transportou a pesada
cruzera uma grande chaga; toda a parte superior do corpo estava coberta
de feridas e pisaduras, causadas pela flagelação; no lado esquerdo se via
uma ferida pequenina, onde saíra a ponta da lança, e no lado direito se
abria a larga chaga feita pela mesma lança, que também Lhe traspassou o
coração de lado a lado. Maria Santíssima lavou e limpou todas essas
feridas. Madalena, prostrada de joelhos, ficava às vezes em frente, para a
ajudar, mas quase sempre estava aos pés de Jesus, os quais lavou então
pela última vez, mais com as lágrimas do que com água, enxugando-os com
o cabelo.
A cabeça, o peito e os pés do Senhor foram assim limpos do sangue e
de toda a imundície; o corpo, de um branco azulado, com o brilho de carne
exangue, coberto de manchas pardas e de outros lugares vermelhos, onde a
pele fora arrancada, repousava sobre os joelhos de Maria, que envolvia os
membros lavados e que se pôs a embalsamar todas as feridas, começando
novamente pela cabeça. As santas mulheres ajoelhavam-se alternadamente
diante dela, apresentando-lhe um vaso, do qual, com o indicador e o
polegar da mão direita, tirava um bálsamo ou unguento precioso, com que
ungia e untava todas as feridas. Derramou também unguento sobre o
cabelo; vi que, segurando as mãos de Jesus com a mão esquerda, beijou-as
respeitosamente e encheu as largas chagas dos cravos com o mesmo
unguento ou as mesmas especiarias de que enchera os ouvidos, as narinas
e a chaga do lado. Madalena estava quase todo o tempo ocupada com os
pés de Jesus, ora enxugando-os e untando-os, ora banhando-os novamente
com as lágrimas; muitas vezes apoiava neles o rosto.
Vi que não despejavam fora a água usada, mas a guardavam nos odres
de couro, nos quais também espremiam as esponjas. Vi diversas vezes que
Cássio e outros soldados foram buscar água na fonte de Gion, em odres e
jarros, que as mulheres tinham trazido; essa fonte de Gion estava tão perto
que se podia enxergá-la do jardim do sepulcro.
Quando a Santíssima Virgem acabou de untar todas as feridas,
envolveu a santa cabeça em faixas; mas ainda não pôs o lenço que devia
cobrir-Lhe o rosto. Fechou-Lhe os olhos entreabertos, pousando sobre eles
a mão por algum tempo; fechou tambem a boca do Senhor, abraçou o santo
corpo do Filho e, chorando, deixou cair o rosto sobre o de Jesus.
Madalena, pelo grande respeito que tinha ao Senhor, não Lhe tocou no
semblante, mas apenas descansou o rosto sobre os pés do santo corpo.
José e Nicodemos já tinham estado por algum tempo perto, esperando,
quando João se aproximou da Santíssima Virgem, pedindo que se separasse
do corpo de Jesus para que o pudessem preparar para a sepultura, porque
o sábado já estava perto. Maria abraçou mais uma vez, com o maior fervor,
o corpo do Filho adorado, despedindo-se dele com palavras comoventes.
Então levantaram os homens o santo corpo no pano em que jazia, sobre os
joelhos da Mãe Santíssima, e levaram-no para o lugar do
embalsamamento. A Virgem Santíssima, novamente entregue à dor, para a
qual tinha achado alguma consolação nos piedosos cuidados, caiu, com a
cabeça velada, nos braços das mulheres; Madalena, porém, seguiu os
homens, correndo-lhes alguns passos atrás, com os braços estendidos,
como se lhe quisessem raptar o Amado, mas voltou depois para junto da
SS. Virgem.
Levando o santo corpo, os homens desceram um pouco do alto do
Gólgota, para um lugar, numa dobra da encosta, onde havia uma pedra
chata e lisa, própria para esse fim. Ali já tinham feito todos os preparativos
para o embalsamamento. Vi primeiro, ali estendido, um pano trabalhado a
crivo, semelhante a uma rede, como que feita de rendas; parecia-se com o
grande pano de fome, que se pendura em nossas igrejas.
Vi mais um pano grande, estendido sobre a pedra. Deitaram o corpo
do Senhor sobre o primeiro e alguns seguravam o outro por cima.
Nicodemos e José de Arimateia ajoelharam-se e desataram, sob essa
coberta, o lençol em que tinham envolvido o ventre do Senhor, ao descê-Lo
da cruz. Depois tiraram também do santo corpo a cinta que Jonadab,
sobrinho do pai nutrício do Salvador, Lhe trouxera antes da crucifixão.
Lavaram então o ventre do Senhor com esponjas, sob o pano com que o
cobriam, com piedoso recato e que o tornava invisível aos seus olhos.
Coberto ainda com o pano, levantaram-nO depois, por meio de outros
panos, passados sob os braços e joelhos e assim Lhe lavaram também as
costas, sem virar o corpo. Continuavam a lavar, até que a água espremida
das esponjas escorria clara e limpa. Depois O lavaram ainda com água de
mirra e vi que depuseram o santo corpo sobre a pedra, estendendo-o
respeitosamente com as mãos, dando-lhe uma posição reta, pois o meio do
corpo e as pernas estavam ainda um pouco curvas, entesadas, na posição
em que se encolhera, morrendo. Puseram-Lhe então sob os lombos um
pano da largura de um côvado e cerca de três côvados de comprimento,
enchendo-Lhe o seio de molhos de ervas, — como vejo às vezes em
banquetes celestes, ervas verdes em pratos de couro, com borda azul, — e
de fibras finas e crespas de plantas parecidas com açafrão, e, sobre tudo
isso, espalharam um pó fino, que Nicodemos trouxera num vaso.
Envolveram depois o ventre, com todas essas especiarias, no pano,
puxaram uma parte deste, por entre as pernas, para cima e fixaram-na
sobre o ventre, fazendo entrar a extremidade do pano por baixo do cinto.
Depois de O ter desse modo envolvido, ungiram todas as chagas das coxas,
cobriram-nas de especiarias, puseram molhos de ervas entre as pernas até
os pés e enrolaram as pernas junto às ervas, de baixo para cima.
Então foi João chamar a Santíssima Virgem e as outras santas
mulheres. Maria ajoelhou-se ao lado da cabeça, colocando sob essa um
lenço fino, que recebera de Cláudia Prócula, mulher de Pilatos e que
trouxera ao pescoço, sob o manto. Ela e as outras santas mulheres
encheram, então, os espaços entre a cabeça e os ombros, ao redor do
pescoçoaté as faces de Jesus, com molhos de ervas, com as fibras e o pó
fino e, feito isso, a Santíssima Virgem atou tudo com aquele pano,
envolvendo cabeça e ombros. Madalena derramou ainda um frasco
inteiro de um líquido aromático na ferida do lado de Jesus e as santas
mulheres puseram-Lhe ainda ervas e especiarias nas mãos e ao redor dos
pés. Os homens puseram especiarias nas axilas, na cova estomacal,
enchendo todo o espaço em redor do corpo; cruzaram sobre o seio os
santos braços entorpecidos e envolveram finalmente todo o corpo, junto
às especiarias, no grande pano branco, até o peito, como se enfaixa uma
criança; depois fizeram entrar sob um dos braços já enfaixados a
extremidade de uma faixa, com a qual enrolaram todo o corpo,
levantando-o e começando pela cabeça. Feito isso, puseram-no sobre o
pano grande, de seis côvados de comprimento, o qual José de Arimateia
comprara, e nele o envolveram. O corpo jazia obliquamente sobre o
pano, do qual dobraram uma extremidade dos pés até o peito, a outra, de
cima, sobre a cabeça e os ombros; com as partes salientes dos lados,
envolveram o meio do corpo.
Todos se ajoelharam então ao redor do corpo para se despedirem,
chorando, e eis que um milagre comovente se lhes deparou ante os olhos:
toda a figura do santo corpo, com todas as feridas, apareceu na superfície
do pano que o cobria, desenhado em cor vermelho-escura, como se Jesus
quisesse recompensar-lhes os cuidados carinhosos e a tristeza, deixando-
lhes o retrato, através de todo o invólucro. Chorando alto, abraçaram o
santo corpo, beijando e venerando a milagrosa imagem. A admiração de
que estavam possuídos era tão grande que de novo abriram o pano, e
tornou-se ainda maiorquando acharam todas as faixas e ataduras do corpo
brancas como dantes; só o pano exterior trazia a imagem da figura do
Senhor.
O ENTERRO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO.

Os homens colocaram o santo corpo sobre a padiola de couro,


cobriram-no com uma coberta parda e enfiaram em cada lado um varal, o
que me causou uma viva recordaçã da Arca da Aliança. Nicodemos e José
carregavam as extremidades anteriores dos varais sobre os ombros; atrás
seguravam Abenadar e João. Depois se seguiam a Santíssima Virgem; sua
irmã mais velha, Maria Helí; Madalena; e Maria de Cleofas; e, após elas,
o grupo das mulheres que dantes estavam um pouco mais afastadas:
Verônica, Joana Cuza, Maria Marcos (mãe de Marcos), Salomé Zebedaei,
Maria Salomé, Salomé de Jerusalém, Susana e Ana, sobrinha de S. José,
educada em Jerusalém. Encerravam o séquito Cássio e os soldados. As
outras mulheres, por exemplo, Maroni, de Naim, Dina, a Samaritana e
Mara, a Sufamita, estavam então em Betânia, na casa de Marta e Lázaro.
Dois soldados, com fachos torcidos, iam na frente, pois precisavam de
luz na gruta do sepulcro. Cantando salmos, em tom triste e baixo,
caminharam cerca de sete minutos através do vale em direção ao jardim do
sepulcro. Vi na encosta, além do vale, Tiago, o Maior, irmão de João, olhar
o cortejo e voltar, depois, para o anunciar aos outros discípulos, refugiados
nas cavernas.
O jardim irregular, coberto de relva, que ficava diante do rochedo da
gruta, na extremidade do jardim, era cercado de uma sebe e, além desta,
tinha na entrada uma cancela cujas trancas, com gonzos de ferro, estavam
fixas em estacas. Defronte da entrada do jardim, diante do rochedo do
sepulcro, à direita, havia várias palmeiras. A maior parte das outras
plantas eram arbustos, flores e ervas aromáticas.
Vi o cortejo parar na entrada do jardim e abrir a cancela, tirando
algumas trancas, das quais se serviram depois, como alavancas, para fazer
rolar para dentro da gruta a grande pedra que devia fechar o sepulcro.
Chegando ao pé do rochedo, abriram a padiola e tiraram o santo corpo,
deitando-o sobre uma tábua estreita, coberta de um largo pano. Nicodemos
e José carregaram as duas extremidades da tábua, enquanto os outros dois
seguravam o pano. A nova gruta sepulcral fora limpa e perfumada pelos
criados de Nicodemos; era bem graciosa e no alto das paredes interiores
tinha um friso esculpido. A cova mortuária era, no lugar da cabeça, um
pouco mais larga do que no lugar dos pés, e havia sido escavada na forma
côncava de um cadáver amortalhado, com pequenas elevações no lugar da
cabeça e dos pés.
As santas mulheres assentaram-se em frente à entrada da gruta. Os
quatro homens desceram com o santo corpo do Senhor à gruta, onde o
depuseram no chão; encheram ainda parte do leito sepulcral de
especiarias, estenderam sobre ele um pano, colocando sobre este o santo
corpo. O pano pendia ainda dos lados do sepulcro. Manifestando ao santo
corpo o seu amor com lágrimas e abraços, saíram da gruta. Entrou então a
Santíssima Virgem. Sentou-se à cabeceira de Jesus, à beira do sepulcro,
que tinha cerca de dois pés de altura, e inclinou-se, chorando, sobre o
cadáver do Filho. Depois de Maria Santíssima sair, entrou Madalena, com
ramos e flores, que colhera no jardim e que espalhou sobre o santo corpo.
Torcendo as mãos e chorando alto, abraçou os pés de Jesus. Como, porém,
os homens lá fora insistissem em fechar o sepulcro, voltou para junto das
mulheres. Os homens dobraram sobre o santo corpo a parte pendente do
pano, cobriram tudo com uma coberta parda e fecharam as portas.
Puseram uma barra transversal e uma perpendicular; parecia uma cruz.
A grande pedra destinada a fechar as portas do sepulcro e que ainda
estava fora da gruta tinha uma forma semelhante a uma arca ou um
monumento sepulcral; um homem podia deitar-se sobre ela. Era muito
pesada e os homens rolaram-na para dentro da gruta, com auxílio das
trancas tiradas da cancela do jardim, e encostaram-na às portas fechadas
do sepulcro. A entrada exterior da gruta foi fechada com uma porta de
ramos entrelaçados.
Já era a hora em que começava o sábado. Nicodemos e José voltaram
à cidade, passando por uma pequena porta que havia no muro da cidade,
perto do jardim e que, se bem me lembro, lhes era concedida por favor
particular. Disseram à Santíssima Virgem, a João, à Madalena e a algumas
mulheres que ainda queriam ir ao Monte Calvário para rezarem e
buscarem algumas coisas ali deixadas que essa porta, como também o
portão para o Cenáculo, lhes seriam abertos, se batessem. Maria Helí, a
irmã já idosa da Santíssima Virgem, foi conduzida à cidade por Maria
Marcos e outras mulheres. Os criados de Nicodemos e José voltaram ao
Monte Calvário para buscar os utensílios que lá tinham deixado.
Os soldados reuniram-se àqueles que ocupavam a porta que dava
para o Monte Calvário; Cássio seguiu para o palácio de Pilatos, levando a
lança, e relatou-lhe tudo o que acontecera, prometendo também lhe dar
notícias exatas de tudo quanto ainda sucedesse, se o mandasse acompanhar
a guarda do sepulcro, à qual os judeus, segundo fora informado, viriam
requerer-lhe. Pilatos escutou todas as informações com um oculto terror;
tratou-o, porém, como fanático, e com nojo e medo supersticioso da lança
que Cássio trouxera consigo, mandou-lhe que a levasse para fora da sala.
Quando a Santíssima Virgem e os amigos voltavam com os utensílios
do Monte Calvário, onde ainda tinham rezado e chorado, viram um
destacamento de soldados que lhes vinha ao encontro; retiraram-se então
para os dois lados do caminho, para deixar passar a tropa. Esta dirigiu-se
ao Monte Calvário, provavelmente para tirar, ainda antes do sábado, as
cruzes e enterrá-las. Depois de terem passado, as santas mulheres
continuaram o caminho em direção à pequena porta da cidade.
José e Nicodemos encontraram-se na cidade com Pedro, Tiago, o
Maior, e Tiago, o Menor. Todos estavam chorando. Pedro especialmente
estava muito triste, preso de violenta dor; abraçou-os soluçando, acusou-se
a si mesmo, lastimando não ter estado presente à morte do Senhor e
agradeceu-lhes por terem dado sepultura ao corpo sagrado. Todos estavam
desvairados de dor. Pediram ainda para serem recebidos no Cenáculo,
quando batessem, e despediram-se para procurar ainda outros discípulos
dispersos.
Vi mais tarde a Santíssima Virgem e as amigas baterem à porta do
Cenáculo e serem recebidas, como também Abenadar e, pouco a pouco, os
demais Apóstolos e vários discípulos. As santas mulheres retiraram-se para
a parte onde habitava a Santíssima Virgem; tomaram um pouco de alimento
e passaram ainda alguns minutos recordando com tristeza e dor tudo o que
se tinha passado. Os homens revestiram-se de outras vestes e vi-os
começarem o sábado de pé, sob um candeeiro. Depois comeram ainda
carne de cordeiros, em diversas mesas, no Cenáculo, mas sem cerimônias,
pois não era o cordeiro pascal, que já tinham comido na véspera. Reinava
tristeza e desânimo geral. Também as santas mulheres rezavam com Maria,
à luz de um candeeiro. Mais tarde, quando já escurecera totalmente, foram
ainda recebidos Lázaro, Marta, Maroni, a viúva de Naim, Dina Sumarites e
Maria Sufanites, que depois de começar o sábado, vieram da Betânia, e a
dor renovou-se pela narração de tudo o que se passara.
Vi à noite, como já mencionei, os homens reunidos no Cenáculo, cerca
de vinte, de vestes longas e brancas, e cingidos, celebrando o sábado, à luz
de um candeeiro. Depois de comer, separaram-se para dormir. Diversos
foram para casa. Também hoje os vi reunidos no Cenáculo, na maior parte
do tempo em silêncio, rezando e lendo alternadamente e, de vez em quando,
deixando entrar alguns que chegavam.
No local onde ficava a Santíssima Virgem, havia uma grande sala, e
nessa alguns recantos separados por biombos ou tapetes para servirem de
quartos de dormir. Depois que as santas mulheres, voltando do sepulcro,
tinham posto todos os utensílios nos respectivos lugares, acendeu uma
delas um candeeiro, que pendia no centro da sala. Reuniram-se sob esse
candeeiro, em roda da Santíssima Virgem, rezando alternadamente, com
grande devoção e tristeza. Depois tomaram algum alimento. Entraram na
sala Marta, Maroni, Dina e Mara, que depois de começar o sábado, tinham
vindo de Betânia, com Lázaro, que se juntou aos homens reunidos no
Cenáculo. Contaram chorando aos recém-chegados a morte e a sepultura
do Senhor, e como já era tarde, alguns dos homens, entre os quais José de
Arimateia, mandaram chamar as mulheres que queriam voltar para suas
casas na cidade e despediram-se. Ao voltar esse grupo para casa, José de
Arimateia foi preso, perto do tribunal de Caifás.
As mulheres que ficaram no Cenáculo separaram-se, então, indo para
as mencionadas celas de dormir; puseram panos compridos sobre a cabeça
e por algum tempo ali permaneceram sentadas no chão, em triste silêncio,
encostadas às cobertas, que estavam enroladas ao pé da parede. Depois se
levantaram, desenrolaram as cobertas, tiraram as sandálias, cintas e parte
do vestuário, velaram-se da cabeça aos pés, como costumam fazer para
dormir, e deitaram-se para um curto descanso sobre as cobertas
estendidas; pois logo depois de meia-noite se levantaram de novo,
arrumaram a roupa, enrolaram os leitos e reuniram-se sob o candeeiro, em
roda da Santíssima Virgem, para rezarem alternadamente. Tenho visto
muitas vezes filhos fiéis de Deus e homens santos, desde que se reza neste
mundo, observarem esse costume de orações noturnas, seja inspirados por
uma graça pessoal, seja incitados por preceitos divinos e eclesiásticos.
O ENCONTRO DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA
COM A ALMA DE JESUS NA NOITE DO SÁBADO
SANTO, VÉSPERA DA RESSURREIÇÃO.

Depois de terminado o sábado, entrou João na sala das piedosas


mulheres, chorou com elas e consolou-as. Quando, após algum tempo saiu,
entraram Pedro e Tiago, o Maior, para o mesmo fim, demorando-se
também pouco tempo apenas. Retiraram-se então as santas mulheres mais
uma vez para a cela, chorando ainda por algum tempo, sentadas sobre a
cinza e cobertas do véu de luto.
Enquanto a Santíssima Virgem estava sentada, em ardente oração,
cheia de saudade de Jesus, vi acercar-se-lhe um Anjo, que lhe disse que
saísse pela portinha de Nicodemos, pois o Senhor se aproximava. Encheu-
se então o coração de Maria de profunda alegria; envolvendo-se no manto,
ela deixou as santas mulheres, sem dizer onde ia. Vi-a dirigir-se apressada
àquela portinha do muro da cidade pela qual tinham entrado, ao voltar do
Sepulcro.
Podiam ser cerca de 9 horas da noite, quando vi a Santíssima Virgem
parar de repente o passo apressado, num lugar deserto, perto dessa
portinha; olhou com radiante amor para o muro da cidade. A alma de
Jesus veio voando, resplandecente, sem sinais das chagas, ao encontro de
Maria, seguida de um grande número de almas dos patriarcas. Virando-se
para os patriarcas e indicando Maria, disse estas palavras: “Maria, minha
Mãe” e foi como se a abraçasse; depois desapareceu. Maria, porém, caiu
de joelhos e beijou a terra onde Ele pisara; os sinais dos joelhos e pés da
Virgem ficaram impressos na pedra. Voltou, então, cheia de indizível
consolação, para junto das santas mulheres, que encontrou reunidas em
redor de uma mesa, preparando unguentos e especiarias. Não lhes disse o
que lhe sucedera, mas estava confortada e consolou a todas, confirmando-
as na fé.
AINDA NA NOITE DO SÁBADO SANTO, MARIA
REFAZ SOZINHA A VIA-SACRA. NO CAMINHO,
ENCONTRA-SE PELA SEGUNDA VEZ COM A
ALMA DE JESUS.

Eram, porém, cerca de onze horas quando a Santíssima Virgem,


impelida pelo amor e pela saudade, não achou mais sossego; levantou-se,
envolveu-se inteiramente no manto cinzento e saiu sozinha de casa. Pensei
ainda: “Ah! Como podem deixar sair sozinha nessas condições a santa
Mãe, tão angustiada e abatida?” Vi-a, porém, ir cheia de tristeza até a casa
de Caifás e dali até ao palácio de Pilatos, o que significava uma longa
volta para dentro da cidade. Assim percorreu sozinha toda a via-sacra de
Jesus, pelas ruas desertas, demorando-se nos lugares onde o Senhor
sofrera qualquer dor ou mau-trato. Era como se procurasse algo que
tivesse perdido. Muitas vezes se lançava por terra, apalpava com as mãos
as pedras ao redor, tocando depois com a mão à boca, como se tivesse
tocado numa coisa sagrada, o sangue do Senhor e o beijasse
respeitosamente. Estava, porém, num estado sobrenatural; pelo amor via
tudo ao redor de si luminoso e claro, estava toda absorta em amor e
adoração. Acompanhei-a pelo caminho e senti e fiz, na medida de minhas
poucas forças, tudo quanto ela sentiu e fez.
Ela seguiu o caminho da cruz até o Monte Calvário. Quando se
aproximou deste, parou de repente e vi Jesus, com o santo corpo torturado,
aparecer diante da Santíssima Virgem; um anjo ia à frente, os dois anjos
que o adoravam no sepulcro iam ao lado, seguindo-se um grande número
de almas remidas. O corpo não se movia, era como um cadáver ambulante,
rodeado de luz; mas ouvi sair dele uma voz, que anunciou à Mãe
Santíssima o que Ele tinha feito no limbo e que em breve ressuscitaria, com
corpo vivo e glorificado e viria ao seu encontro; que o esperasse perto da
pedra em que caíra, no Monte Calvário. Vi depois essa aparição se dirigir
à cidade e a Santíssima Virgem, envolta no manto, prostrando-se de
joelhos, rezar no local onde o Senhor a mandara esperar. Já devia ser mais
de meia-noite, pois Maria gastara muito tempo em seguir a via-sacra.
Vi, porém, o cortejo do Senhor percorrer também todo o caminho da
cruz. Todo o suplício e os padecimentos de Jesus foram mostrados às almas
e os anjos colheram, de maneira misteriosa, toda a substância sagrada que
Lhe fora arrancada durante a Paixão. Vi que lhes foi mostrado também a
crucifixão, a elevação da cruz, o golpe da lança no lado, a descida da cruz
e a preparação para a sepultura; a Santíssima Virgem contemplou tudo em
espírito e adorou-O com amor.
RESSURREIÇÃO DE NOSSO SENHOR. MARIA, SUA
MÃE, É A PRIMEIRA A VÊ-LO.

Vi a alma de Jesus aparecer, com grande esplendor, entre dois anjos de


figura guerreira, (os anjos que eu via dantes tinham figura sacerdotal),
rodeado de muitas outras figuras luminosas; passando por cima através do
rochedo do sepulcro, desceu sobre o santo corpo, como se se inclinasse
para ele e com ele se fundisse. Então vi os membros se lhe moverem nos
invólucros e o corpo vivo e resplandecente do Senhor, unido à alma e à
divindade, sair, ao lado das mortalhas, como se saísse da chaga do lado.
Essa visão me recordou Eva, que saiu do lado de Adão. Tudo estava cheio
de luz e esplendor.
No mesmo momento em que o anjo desceu ao sepulcro e a terra
tremeu, vi o Senhor aparecendo à Mãe Santíssima, perto do Monte
Calvário. Estava maravilhosamente belo, sério e luminoso. A veste, que lhe
envolvia o corpo como um largo manto, flutuava no ar atrás dEle quando
caminhava e tinha reflexos de cor branca-azulada, como fumaça vista
através da luz do sol. As chagas estavam largas e brilhavam; nas chagas
das mãos se podia introduzir bem um dedo. Os lábios das chagas tinham a
forma de três triângulos equiláteros, coincidindo no centro de um círculo.
Do meio das mãos saiam raios luminosos para os dedos. As almas dos
patriarcas inclinaram-se diante da Mãe de Jesus, à qual o Senhor disse, em
poucas palavras, que me fugiram da memória, que tornaria a vê-Lo.
Mostrou-lhe as chagas e quando ela se prostrou por terra, para beijar-lhe
os pés, tomou-a pela mão e levantando-a, desaparecendo.
Vi ao longe o brilho das lanternas ao lado do sepulcro e a leste de
Jerusalém uma luz branca no horizonte — o amanhecer do dia.
MARIA SANTÍSSIMA TORNA-SE “PORTA” ENTRE
OS DISCÍPULOS E JESUS.

Nicodemos preparou uma refeição para os Apóstolos, para as


mulheres e para uma parte dos discípulos, sob as colunatas abertas, no
vestíbulo do Cenáculo. Depois de meio-dia ali se reuniram dez dos
Apóstolos; Tomé retraíra-se arbitrariamente, afastando-se um pouco dos
outros. Tudo quanto se fez ali, foi para cumprir a vontade de Jesus, que na
ceia pascal se sentara entre Pedro e João, revelando-lhes diversos
mistérios do SS. Sacramento e fazendo-os depois sacerdotes; ordenou-lhes
também que ensinassem essas verdades aos outros, juntamente às doutrinas
anteriores a esse respeito.
Vi primeiro Pedro e João, no meio dos outros oito Apóstolos,
comunicando-lhes os mistérios que Jesus lhes confiara; explicaram-lhes
também a doutrina do Senhor a respeito do modo de administrar esse
Sacramento e de ensiná-lo aos discípulos. Vi que, de uma maneira
sobrenatural, tudo quanto Pedro ensinou foi dito também por João. Todos
os Apóstolos estavam revestidos das vestes brancas de cerimónia, sobre as
quais Pedro e João haviam colocado nos ombros uma estola, cruzada no
peito e segura com um gancho; os outros Apóstolos traziam uma estola
sobre um ombro, que, passando pelo peito e as costas, cruzava debaixo do
outro braço e era segura por um gancho. Pedro e João eram sacerdotes,
ordenados por Jesus; os outros eram ainda diáconos.
Terminada essa explicação, entraram na sala também as santas
mulheres, em número de nove; Pedro falou-lhes e ensinou-lhes. João,
porém, foi receber na casa do despenseiro, perto do portão, dezessete dos
mais provados discípulos, aqueles que estiveram mais tempo com Jesus.
Entre esses estavam: Zaqueu, Natanael, Matias, Barsabás e outros. João
serviu-os no lava-pés e na vestição; vestiram longas vestes brancas e
cintas. Depois da explicação da doutrina, Mateus foi enviado por Pedro a
Betânia, para ensinar a muitos outros discípulos, durante uma refeição
semelhante, na casa de Lázaro, e fazer tudo o que os Apóstolos tinham feito
no Cenáculo.
A refeição foi realmente um banquete. Rezaram em pé e comeram
deitados sobre os leitos; durante a refeição Pedro e João ensinaram. No fim
do banquete, foi colocado em frente a Pedro um pão delgado e estriado,
que ele partiu nas partes marcadas, subdividindo cada parte mais uma vez.
Depois mandou passar esses bocados, em dois pratos, por ambos os lados
da mesa. Passou também de mão em mão um grande cálice, do qual todos
beberam. Se bem que Pedro benzesse o pão, não era contudo o SS.
Sacramento, mas apenas um ágape; Pedro disse ainda que ficassem unidos,
como era um só o pão que os alimentara e o vinho que beberam. Depois se
levantaram todos e cantaram salmos.
Tiradas as mesas, as santas mulheres formaram um semicírculo na
extremidade da sala; os discípulos colocaram-se de ambos os lados e todos
os Apóstolos andavam de um lado para outro, ensinando e revelando a
esses discípulos mais provados o que lhes podiam comunicar sobre o SS.
Sacramento. Pareceu-me ser a primeira explicação do catecismo depois da
morte de Jesus. Vi também que depois apertaram as mãos uns aos outros,
declarando ardentemente que queriam ter tudo em comum, dar tudo uns
aos outros e ficar todos unidos.
Então vi em todos uma grande comoção. Talvez tivessem sentido só
interiormente o que vi exteriormente: pois os vi, no meio de uma luz
brilhante, fundirem-se uns nos outros e tudo formou, afinal, um templo de
luz, em que apareceu a SS. Virgem como cume e centro de todos. Até mesmo
vi que toda a luz emanava dela para os Apóstolos e destes voltava, pela SS.
Virgem, ao Senhor. Era uma imagem das relações recíprocas entre os
presentes.
NOSSA SENHORA ESTAVA PRESENTE QUANDO
JESUS APARECEU A TODOS OS APÓSTOLOS NO
CENÁCULO. INÍCIO DA ADORAÇÃO AO
SANTÍSSIMO SACRAMENTO.

Achavam-se os Apóstolos, com exceção de Tomé, na sala do Cenáculo,


junto a muitos discípulos, entre os quais também Nicodemos e José de
Arimateia. As portas da casa e da sala estavam em fechadas. Três vezes se
reuniram para a oração, formando sob o candeeiro um círculo, aberto para
o lado do Santíssimo. Todos vestiam longas vestes brancas e cintos; três
dos Apóstolos, porém, estavam com vestimentas mais vistosas e, entre estes
três, era Pedro o primeiro. Num vestíbulo que dava para a sala, assistiram
à oração a Santíssima Virgem, Maria Cleofé e Madalena.
Apesar de Jesus já ter aparecido a vários Apóstolos, não havia ainda
uma fé firme na sua ressurreição. Chegaram, então, os dois discípulos,
anunciando com muita alegria que tinham visto o Senhor e que o
reconheceram ao partir o pão.
“Tendo-se reunido de novo para a oração”, conta Anna Catharina,
“vi-lhes os rostos tornarem-se luminosos, pensativos e felizes e vi o Senhor
aparecer na porta, que estava fechada. Vestia também uma longa veste
branca, com uma simples cinta. Pareciam ter um sentimento indefinido de
sua presença, até que, passando pelo meio deles, parou sob o candeeiro; ao
vê-Lo, ficaram todos espantados e comovidos. O Senhor mostrou-lhes os
pés e as mãos e, abrindo a túnica, mostrou-lhes a chaga do lado. Falou-
lhes e, como estavam muito assustados, pediu alguma coisa para comer. Vi
que da boca se lhe derramava luz sobre os Apóstolos, que estavam como
encantados.
Então foi Pedro atrás de um biombo ou tapete, a uma parte separada
da sala, onde era guardado o SS. Sacramento, sobre o forno pascal; havia
ali também um aposento lateral, onde guardavam a mesa baixa (tinha cerca
de um pé de altura), depois de terminada a refeição. Sobre essa mesa se
encontrava um prato fundo, oval, coberto com uma toalha branca, o qual
Pedro trouxe ao Senhor. Havia nele um pedaço de peixe e um pouco de mel;
Jesus agradeceu, benzeu a comida e comeu; deu também alguns bocados
aos outros, mas não a todos. Ofereceu também à Virgem Santíssima e às
outras mulheres, que estavam no vestíbulo.
Depois O vi ainda ensinar e distribuir os poderes. Os discípulos
formavam-lhe em roda um tríplice círculo, no meio do qual ficaram os dez
Apóstolos; Tomé não estava presente. Pareceu-me maravilhoso que parte
das palavras e instruções do Mestre só os Apóstolos percebessem; digo
percebessem, pois não O vi mover os lábios. Estava resplandecente,
irradiava-se-Lhe luz das mãos, dos pés, do lado e da cabeça sobre os
Apóstolos, como se soprasse sobre eles e essa luz os penetrasse;
perceberam que podiam perdoar os pecados, que deviam batizar e curar os
enfermos, impor as mãos e que podiam beber veneno, sem que lhes fizesse
mal. Jesus explicou-lhes vários trechos da Escritura Sagrada, que se Lhe
referem e ao Santíssimo Sacramento e mandou fazer uma adoração ao
Santíssimo Sacramento, depois do culto do sábado. Falou também dos
ossos e das relíquias dos antepassados e do respectivo culto, para que
alcançassem a intercessão. Também Abraão tinha em seu poder os ossos de
Adão e colocava-os no altar, quando oferecia sacrifícios. Além disso, falou
Jesus também do mistério da Arca da Aliança e que esse mistério seria, daí
em diante, o seu Corpo e Sangue; que lhes tinha dado para sempre esse
Sacramento. Discorreu também sobre a Sagrada Paixão e ainda algumas
coisas maravilhosas de Davi, as quais os discípulos ainda não sabiam.
Depois lhes mandou que fossem à região de Sicar, para ali dar testemunho
da ressurreição.”
Durante a viagem a Sicar, procurou Tomé os Apóstolos, que lhe
contaram a aparição do Salvador ressuscitado. Ele, porém, não quis
acreditar, antes de Lhe ter tocado nas chagas. Mesmo quando Pedro falou
publicamente, na escola de Thaenath-Silo, sobre a ressurreição de Jesus e,
a seu convite, mais de cem das pessoas presentes levantaram a mão, como
testemunhas, pois tinham visto Jesus ressuscitado, Tomé ainda não chegou
a crer firmemente.
Os Apóstolos e discípulos tornaram a celebrar o sábado na sala do
Cenáculo, em Jerusalém. Terminado o sábado, fizeram um grande ágape e
reuniram-se depois para a oração. Tomé estava também presente nessa
ocasião. Depois que a SS. Virgem e Madalena entraram, fecharam-se as
portas.
Os Apóstolos oraram primeiro, ajoelhados diante do Santíssimo, e
cantaram salmos, em coros alternados; depois começaram a conversar.
“Mas, pouco depois”, narra a piedosa freira, “se lhes tornaram os
rostos maravilhosamente felizes e comovidos pela aproximação do Senhor.
Vi Jesus no pátio, resplandecente e vestido de branquíssima veste e cinta.
Dirigiu-se à porta do vestíbulo, que se abriu diante dEle e fechou-se-Lhe
após. Os discípulos, que estavam no vestíbulo, viram a porta abrir-se e
retiraram-se para o lado, para dar caminho. O Senhor atravessou depressa
o vestíbulo e, entrando na sala, passou entre Pedro e João, que, como todos
os Apóstolos, também se afastaram para o lado, enquanto o Senhor ficava
no lugar de Pedro. Nesse instante parecia a sala vasta e clara, pois vi o
Senhor rodeado de luz. Os Apóstolos retiraram-se apenas desse círculo de
luz; parecia-me que, do contrário, não O teriam visto.
Jesus disse primeiro: “A paz seja convosco.” Depois conversou algum
tempo com Pedro e João e colocou-se sob o candeeiro, acercando-se um
pouco mais da roda.
Vi que Tomé, ao ver Jesus, ficou muito comovido, recuando
timidamente um pouco. Jesus, porém, tomou com a mão direita a mão
direita de Tomé e, segurando-a pelo dedo indicador, colocou a ponta desse
dedo na chaga da mão esquerda. Depois tomou com a esquerda a outra
mão de Tomé e pôs-lhe os dedos na chaga da mão direita; levou a mão
direita de Tomé ao peito, sob a roupa, sem descobrir o peito, pondo-lhe o
indicador e o médio na chaga do lado. Disse então algumas palavras que
não me recordo mais. Tomé, porém, exclamou: “Meu Senhor e meu Deus!”
e caiu desmaiado por terra, enquanto Jesus ainda o segurava pela mão. Os
que estavam perto socorreram-no e Jesus levantou-o pela mão.
A princípio não vi as chagas de Jesus, mas quando tomou a mão de
Tomé, vi-as, não como chagas sangrentas, mas como pequenos sóis
ofuscantes. Os outros discípulos ficaram muito comovidos por essa cena e
estendiam as cabeças para a frente, porém, sem avançar muito, para ver o
que o Senhor fazia Tomé apalpar. Só Maria vi, durante toda a presença do
Senhor, sem movimento exterior, em profunda e silenciosa adoração
interior; estava como extasiada. Madalena parecia um pouco mais
comovida, mas não tanto exteriormente como os discípulos.
Jesus não desapareceu imediatamente; conversou ainda um pouco e
pediu também algo de comer. Vi que Lhe trouxeram novamente um prato,
que continha algo de semelhante a peixe, de que comeu, benzendo-o, dando
um bocado primeiro a Tomé e depois o resto a alguns outros.
Depois da conversão de Tomé, explicou Jesus ainda por que estava no
meio deles, apesar de O terem abandonado e por que não ficava ao lado de
alguns que Lhe tinham permanecido mais fiéis. Recordou-lhes também de
que tinha dito a Pedro que confortasse os irmãos e o motivo por que lhe
dissera. Dirigindo-se a todos, disse-lhes por que quis dar-lhes Pedro como
chefe, embora este O tivesse negado, pois o rebanho precisava de um
pastor. Falou também do zelo de Pedro.
Vi que João entrou no Santuário e, ao voltar, trouxe sobre o braço um
manto largo, bordado a várias cores, e na mão um bordão alto, fino e oco,
que em cima era curvo como um cajado de pastor. Pedro ajoelhou-se diante
de Jesus, que lhe deu um bocado a comer, como um pequeno bolo luminoso,
com o qual Pedro recebeu um poder particular. Jesus aproximou também a
boca da boca e depois dos ouvidos de Pedro e infundiu-lhes uma força ou
um poder. Vi, porém, que não era ainda o Espírito Santo, mas algo que o
Espírito Santo, no dia de Pentecostes, devia vivificar plenamente. Impôs-
lhe também as mãos e deu-lhe poder e jurisdição sobre os outros. Depois o
vestiu com o manto que João, ao lado de Pedro, tinha sobre o braço e pôs-
lhe o báculo na mão. Disse-lhe também que esse manto era como para
guardar e recolher nele toda a força e todo o poder que lhe tinha dado,
indicando-lhe também que devia usar esse manto sempre que quisesse fazer
uso do seu poder.
Jesus falou também de um grande batismo, depois da vinda do
Espírito Santo; disse que Pedro desse o poder que recebera, também aos
outros, após oito dias. Ordenou ainda que alguns depusessem a veste
branca e vestissem a outra, com um peitoral; outros, no entanto, deviam
vestir as vestes brancas. Era a instituição de graus elevados da hierarquia
e das ordens, em que deviam entrar.
Depois se agruparam os discípulos, por ordem de Jesus, em sete
grupos separados, dos quais cada um recebeu como chefe um Apóstolo.
Tiago, “o Menor”, e Tomé ficaram ao lado de Pedro. Foi por ordem de
Jesus que se agruparam. Pareciam representar sete comunidades ou sete
Igrejas; o que representavam os três Apóstolos restantes não sei bem.
Pedro, com o novo poder e dignidade, fez uma alocução a todos;
parecia um novo homem, cheio de energia. Escutaram-lhe as palavras,
chorando e com grande emoção; consolou-os o Apóstolo e falou de muitas
coisas, que Jesus sempre predissera e que agora se tinham realizado.
Lembrou-lhes também que Jesus sofrera por horas o escárnio e a
ignomínia do mundo inteiro.
Durante o discurso de Pedro, desapareceu Jesus. Nenhum susto nem
admiração interrompeu a atenção prestada ao discurso de Pedro, que
parecia dotado de nova força. Depois cantaram um salmo em ação de
graças. Jesus não falara nem com a Virgem Santíssima nem com Madalena.
COROAÇÃO DE NOSSA SENHORA PELA
SANTÍSSIMA TRINDADE. MARIA ASSUME PAPEL
CENTRAL NA VIDA IGREJA, SENDO A MÃE,
PROTETORA E CONSELHEIRA.

Os Apóstolos e vinte discípulos estavam novamente reunidos na sala


do Cenáculo, em oração. Então falou João aos Apóstolos e Pedro aos
discípulos sobre as relações para com a Mãe do Senhor.
“Vi, durante essa explicação, que me parecia basear-se numa
comunicação de Jesus, a aparição da Santíssima Virgem, pairando sobre
eles, vestida de um manto luminoso desdobrado, que, por assim dizer,
encerrava todos. Por cima de Maria vi o céu aberto e a Santíssima
Trindade, que lhe pôs uma coroa sobre a cabeça. Tive a impressão de que
Maria era a cabeça verdadeira de todos aqueles fiéis, o Templo que os
abrigava. Durante essa visão não vi mais a Santíssima Virgem fora, onde
estava rezando. Creio que era uma imagem do que sucedeu à Igreja, por
vontade de Deus, durante essa explicação dos Apóstolos; ou era a imagem
de um êxtase de Maria, durante a pregação dos Apóstolos.”
Seguiu-se uma refeição, na qual a Santíssima Virgem estava sentada
entre Pedro e João, à mesa dos Apóstolos. Depois rezou Maria, coberta
com o véu, juntamente aos Apóstolos, na sala do Cenáculo. Abriu-se
também o Santíssimo, diante do qual rezaram de joelhos.
“Meia-noite já podia ter passado, quando a Santíssima Virgem
recebeu de joelhos o Santíssimo Sacramento da mão de Pedro, que trouxe
os bocados sobre o pratinho do cálice e lhe pós na boca o pedaço que
ainda fora partido pelo próprio Jesus. Vi no mesmo momento o Senhor
aparecer à Maria e desaparecer de novo, mas invisível para os outros. A
Virgem Santíssima estava penetrada de luz e esplendor. Rezaram ainda e
depois se separaram. Os Apóstolos manifestaram durante essa cerimônia
ainda mais respeito para com Maria; outrora eram sempre familiares,
embora respeitosos.”
Depois de ter recebido o Santíssimo Sacramento, retirou-se Maria,
com as outras mulheres, para a sua morada, na casa de João Marcos, onde
ainda permaneceu mais tempo em oração. Ao amanhecer, entrou Jesus,
através das portas fechadas, no quarto da Mãe Santíssima, conversando
muito tempo com ela.
“Disse-lhe que devia ajudar os Apóstolos e tudo o que lhes devia ser.
Era tudo espiritual e misterioso. Deu-lhe, porém, poder sobre a Igreja,
força e qualidade de protetora, e vi que a luz do Filho de Deus se derramou
na Virgem Santíssima, como se Ele mesmo a penetrasse. Não posso
descrever bem. Desapareceu de novo pela porta. Ela, porém, rezou ainda e
deitou-se depois, para dormir.
Vejo a Santíssima Virgem, desde que comungou, mais vezes com os
Apóstolos; são outras agora as relações que tem com eles; pedem-lhe
conselho, é como a Mãe de todos e até como um Apóstolo.”
Nos últimos dias se mostrava Jesus continuamente e muito natural
para com os Apóstolos. Comia e rezava com eles e ensinava-lhes. Fazia
com eles longos passeios, repetindo-lhes toda a doutrina. Somente durante
a noite permanecia em outros lugares, sem que soubessem.
JESUS, ANTES DA ASCENSÃO, VAI SE DESPEDIR
DE SEUS AMIGOS LÁZARO, JOSÉ DE ARIMATEIA
E NICODEMOS.

Na véspera da ascensão foi Jesus, com cinco discípulos, à casa de


Lázaro, em Betânia, onde se encontraram com Maria e as outras santas
mulheres. Muitas pessoas se reuniram ao redor da casa, para ver mais uma
vez Jesus e despedir-se dEle. O Divino Mestre apareceu à gente de fora,
benzeu e distribuiu-lhes muitos pãezinhos; depois se afastaram.
Na casa tomou Jesus, em pé, um refresco com os discípulos, que
choravam amargamente, porque ia deixá-los. Ele, porém, disse: “Por que
chorais, queridos irmãos? Vede esta mulher, que não chora.” Dizendo-o,
apontou para a Mãe Santíssima.
Jesus despediu-se mais intimamente de Lázaro. Deu-lhe do pão bento
a comer, abençoou-o e apertou-lhe a mão.
Depois se encaminharam todos, com exceção de Lázaro, que morava
escondido em casa, para Jerusalém, onde Nicodemos e José de Arimateia
(que já estava solto) prepararam uma refeição.
“Vi Jesus, com os Apóstolos, andando por vários caminhos, em
arredores do Monte das Oliveiras; os outros grupos O seguiam. Às vezes
parava Jesus para lhes explicar alguma coisa. Todos estavam em grande
angústia, alguns choravam; outros estavam muito abatidos. Vi um deles
pensando: “Quando Ele for embora, quem será o mestre? E como se
cumprirá tudo o que foi prometido a respeito do Messias?”. Pedro e João
pareciam-me mais calmos e compreendendo tudo melhor. Muitas vezes
faziam perguntas ao Senhor e Ele parava, explicando-lhes muitas coisas.
Assim andaram até à noite. O Senhor parava frequentemente, estava muito
sério; ao ensinar-lhes, às vezes desaparecia repentinamente. Então ficavam
muito assustados, mas de repente lhes voltava de novo. Era como se
quisesse prepará-los para a próxima separação. Vi-os andando por belas
campinas, por caminhos agradáveis e debaixo de árvores. O sol brilhava
lindamente à tarde.
Quando Jesus e os Apóstolos se aproximaram da casa do banquete, já
o sol se tinha posto. Maria, Nicodemos e José de Arimateia vieram-Lhe ao
encontro em frente à casa. Jesus entrou ao lado de sua Mãe. As outras
mulheres vieram mais tarde. Depois de lhes haver dito algumas palavras e
de terem chegado os outros discípulos, Jesus entrou na grande sala do
banquete. Benzeu o peixe, o pão e as verduras e ofereceu a todos; cada um
recebeu um bocado.
Durante o banquete, Jesus não deixou de ensinar-lhes, com palavras
muito sérias. Vi as palavras saírem-lhe da boca como raios de luz e
entrarem na boca dos Apóstolos: num mais depressa, noutro mais
vagarosamente, conforme o grau de desejo ou sede da doutrina de Jesus.
No fim da refeição, Jesus benzeu também um cálice de vinho, bebeu e
ofereceu-o aos outros, e todos beberam. Mas não foi o Santíssimo
Sacramento.
Depois dos discípulos se terem levantado do ágape, reuniram-se os
outros, que comeram nas salas laterais, debaixo das árvores, em frente à
grande sala; vi Jesus aproximar-se-lhes, ensinar-lhes por muito tempo e
abençoá-los; depois se afastaram.
Vi então as outras mulheres, que nesse meio tempo tinham chegado,
entrarem no jardim, debaixo das árvores. A Santíssima Virgem estava com
elas. Jesus aproximou-se-lhes e deu a mão à sua Mãe. Falou-lhes muito
sério. Todas estavam muito comovidas e senti que Madalena desejava
veementemente abraçar os pés do Senhor. Tendo-lhes falado assim por
algum tempo e depois de as haver abençoado, deixou-as Jesus. Choraram
muito, mas silenciosamente, abafando a dor; a Santíssima Virgem, porém,
não vi chorar nessa ocasião.
A ÚLTIMA CEIA COM OS APÓSTOLOS ANTES DA
ASCENSÃO. JESUS ESTABELECE MARIA COMO
CENTRO E INTERCESSORA DOS FIÉIS.

Ao aproximar-se a meia noite, saiu Jesus com os Apóstolos, tomando o


caminho pelo qual viera à cidade no domingo de Ramos. Maria seguiu
depois dos Apóstolos e, após ela, um grupo de discípulos. Muita gente se
lhes aproximou no caminho e o Senhor falou-lhes.
“Em companhia dos onze Apóstolos e cerca de trinta discípulos, a
Santíssima Virgem e algumas mulheres dirigiram-se ao Cenáculo.
Só Jesus, os onze e Maria penetraram na sala interior; os discípulos
entraram nas salas laterais, onde havia bancos de dormir; não sei se
dormiram ou rezaram. As companheiras de Maria ficaram no vestíbulo. Foi
preparada a mesa da última Ceia e aceso o candeeiro. Havia na mesa
apenas um pão ázimo e um pequeno cálice. Os Apóstolos revestiram-se das
vestes de cerimônia e Pedro pôs a veste própria de sua dignidade. A
Santíssima Virgem sentou-se em frente ao Senhor. Vi Jesus fazer o mesmo
que fizera na última ceia: marcar o pão, oferecê-lo a Deus, parti-lo, benzê-
lo e dá-lo aos discípulos; depois beberam também do cálice, sem que o
enchessem de novo. Vi o Santíssimo Sacramento brilhando, ao pronunciar
Jesus as palavras, e penetrar como um pequeno corpo luminoso na boca
dos Apóstolos. Na consagração do cálice, derramou-se a palavra
sacramental no cálice como um rubro fulgor de sangue. Madalena, Marta e
Maria Cleofé já tinham recebido o SS. Sacramento nos últimos dias.
No começo da noite, fizeram a oração e cantaram com mais
solenidade do que comumente, à luz do candeeiro. Jesus deu mais uma vez
a Pedro poder sobre os outros. Impôs-lhe mais uma vez o manto, repetindo
o que dissera ao aparecer-lhes na praia do lago Tibérias e no cume da
montanha. Ensinou ainda sobre o batismo e a bênção da água. Durante a
oração e a doutrina, já pela manhã, vi ainda cerca de dezessete discípulos,
dos mais íntimos de Jesus, atrás da SS. Virgem, na sala do Cenáculo.
Antes de saírem de casa, o Senhor apresentou-lhes a Santíssima
Virgem como centro e intercessora dos fiéis. Pedro e os outros inclinaram-
se diante dela; Maria, porém, abençoou-os.
No momento em que isso se deu, vi Maria revestida, de um modo
sobrenatural, de um grande manto, de cor azul celeste, colocada sobre um
trono, tendo na cabeça uma coroa. Era um símbolo de sua “dignidade”.
ASCENSÃO DE JESUS.

Ao amanhecer do dia, saiu o Senhor do Cenáculo, conduzindo os onze


Apóstolos pelas ruas de Jerusalém, por todo o caminho da Paixão.
Seguiram-nos Maria e um grupo de discípulos. Onde se dera uma cena da
Paixão, demorava-Se alguns momentos, explicando-lhes a significação do
lugar ou um trecho dos profetas referente a isso. Onde, porém, os judeus
tinham obstruído o lugar, para impedir a veneração dos fiéis, mandou Jesus
tirar esses obstáculos.
Assim saíram da cidade e foram a um jardim ou lugar de oração, onde
se sentaram à sombra das árvores, e Jesus ensinou-os e consolou-os.
Como, no entanto, começava a amanhecer, tornaram-se-lhes os corações
um pouco mais alegres, na esperança de que Jesus ainda ficasse com eles.
Aproximaram-se então muitas turbas de povo. Jesus continuou o
caminho para o monte Calvário e dali para o Monte das Oliveiras, onde se
sentou novamente num jardim, falando ainda muito tempo com os
discípulos, como para terminar a sua obra.
Já estava reunida numerosa multidão ao redor de Jesus e por toda a
redondeza; em Jerusalém correu o boato do grande concurso de povo no
Monte das Oliveiras, ao qual se juntaram novos grupos da cidade.
Então se dirigiu o divino Salvador ao Horto de Getsêmani e subiu o
Monte das Oliveiras.
“A multidão caminhava como em procissão, subindo o monte pelos
diversos caminhos, de todos os lados, e muitos grupos passavam pelas
moitas, pelas sebes e cercas”.
O Senhor, porém, tornava-se cada vez mais resplandecente e ligeiro.
Os discípulos seguiam-no, mas não mais podiam alcançá-Lo. Tendo o
Senhor chegado ao cume do monte, brilhava como a luz branca do sol. Do
céu, porém, desceu sobre Ele um círculo luminoso, que brilhava com todas
as cores do arco-íris. Todos os que O seguiamficaram parados, em vasto
círculo, como que ofuscados. O Senhor brilhava ainda mais do que o
esplendor que O cercava. Pousando a mão esquerda sobre o peito,
abençoou com a direita elevada todo o mundo, virando-se para todos os
lados. A multidão ficou imóvel, vi que todos foram abençoados. Jesus não
abençoava como os rabinos, com a mão aberta para a frente, mas como os
bispos cristãos. Senti com grande felicidade essa bênção sobre todo o
mundo.
Então se Lhe uniu o próprio esplendor à luz do alto e notei que Se
tornava invisível, a partir da cabeça, dissolvendo-se-lhe a figura na luz
celeste e desaparecendo como que subindo. Era como se um sol entrasse no
outro ou como uma chama entrando numa luz ou uma centelha numa
chama. Era como se se fitasse o sol radioso do meio-dia e ainda mais
branco e claro; o pleno dia parecia escuroem comparação àquela luz.
Quando já não se Lhe via mais a cabeça, ainda se podia distinguir-Lhe os
pés resplandecentes, até que desapareceu inteiramente, no esplendor do
céu. Inúmeras almas vieram de todos os lados, entrando nessa luz e
desapareceram no céu com o Senhor. Não posso dizer que O vi tornar-se
cada vez mais pequeno, como algo que voa no ar; mas vi-O desaparecer
numa nuvem de luz.
Ao aparecer a nuvem luminosa, caiu, por assim dizer, um orvalho de
luz sobre todos, e não podendo mais suportar essa luz, ficaram todos cheios
de espanto e admiração. Os Apóstolos e discípulos achavam-se mais perto
de Jesus; estavam em parte deslumbrados e olhavam para baixo; muitos se
prostraram por terra. A Santíssima Virgem estava logo atrás dos Apóstolos,
olhando tranquilamente para a frente.
Após alguns momentos, quando o esplendor diminuiu um pouco, toda
a assembleia, no maior silêncio e nas mais intensas emoções da alma,
olhou para a luz do alto, que ainda ficou por algum tempo. Nessa luz vi
descer duas figuras, no começo pequenas, crescendo cada vez mais e
aparecendo, com vestes longas e brancas e um bastão na mão, como
profetas, falando à multidão; as vozes soavam alto e forte, como as de
trombetas e parecia-me que as deviam ouvir em Jerusalém. Não se moviam,
mas estavam inteiramente imóveis, ao dizer as poucas palavras: “Homens
da Galiléia, que estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que acaba de vos
ser arrebatado, para subir ao céu, voltará como o vistes subir ao céu.”
Tendo dito essas palavras, desapareceram.
O esplendor, porém, ficou ainda por algum tempo, até que afinal se
desfez, como do dia se passa à noite. Os discípulos estavam fora de si,
sabiam agora o que lhes tinha sucedido: O Senhor tinha ido embora para o
Pai Celestial. Muitos caíram por terra, de dor e atordoamento. Enquanto
desaparecia o esplendor, recobraram ânimo e ergueram-se, cercados pelos
outros. Muitos formaram grupos, as mulheres aproximaram-se também e
assim se demoraram ainda, olhando para o céu, pensando e falando sobre
o sucedido; depois voltaram os discípulos a Jerusalém, seguidos pelas
mulheres. Alguns dos mais simples choravam como crianças, outros se
conservavam recolhidos e pensativos. A Santíssima Virgem, Pedro e João
estavam muito tranquilos e consolados. Vi, porém, também muitos outros
que não estavam comovidos, mas descrentes e duvidosos, e que se
apartaram dos outros e se afastaram; pouco a pouco se dispersou toda a
multidão.
No lugar onde Jesus subiu ao céu, havia uma grande laje, sobre a qual
o Divino Mestre estava ensinando ainda, antes de dar a bênção e
desaparecer na nuvem luminosa. As pegadas do Senhor ficaram impressas
na pedra e numa outra se imprimiu uma das mãos da Santíssima Virgem.
Meio dia já tinha passado, quando toda a multidão acabou de
dispersar-se. Os discípulos e a Santíssima Virgem dirigiram-se ao
Cenáculo. Sentindo a princípio a separação de Jesus, estavam inquietos e
julgavam-se abandonados. Quando, porém, se acharam reunidos no
Cenáculo, encheram-se todos de consolação, principalmente pela presença
calma da Santíssima Virgem no meio deles e, confiando inteiramente na
palavra de. Jesus, de que Maria lhes seria o centro, a Mãe e intercessora,
recuperaram a paz de coração.
A VINDA DO ESPÍRITO SANTO. TODOS ESTAVAM
EM VOLTA DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA NO
MOMENTO DO PENTECOSTES, ÀS TRÊS HORAS
DA MANHÃ. BATIZADO DE MARIA. PRIMEIRA
PROCISSÃO SOLENE DO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO, DO CENÁCULO PARA A
PRIMEIRA IGREJA CRISTÃ, JUNTO À PISCINA DE
BETESDA.

Para a santa festa de Pentecostes, enfeitaram a sala da última Ceia


festivamente, com árvores, grinaldas e flores. Nas vésperas da festa, Pedro
benzeu dois pães ázimos, partiu-os e distribuiu-os aos Apóstolos e à
Santíssima Virgem. À cidade, porém, chegaram muitos peregrinos para a
festa de Pentecostes, estrangeiros de variadíssimos trajes e costumes
estranhos.
Os Apóstolos e discípulos passaram a noite antes de Pentecostes junto
à Maria e às santas mulheres na sala da última ceia, em oração e
silenciosa meditação, preparando-se para a vinda do Espírito Santo.
Estavam reunidas ao todo mais de cento e vinte pessoas. Todos desejavam
ardentemente a vinda do Consolador prometido, que os encheria, segundo
a promessa de Jesus, de força celeste. A piedosa serva de Deus descreve
esse importante acontecimento com palavras intuitivas:
“Percebi, depois de meia-noite, uma maravilhosa intensidade e um
movimento misterioso e benfazejo na natureza inteira, que se comunicava a
todos os presentes. Pareceu-me também que, pela abertura no teto da sala,
podia-se ver o céu tornar-se mais claro. Os Apóstolos tinham-se retirado
em silêncio do meio da sala para junto às paredes, ficando perto das
colunas; por entre eles vi os discípulos nos pórticos laterais, olhando pelas
paredes abertas para dentro da sala. Pedro estava diante da cortina atrás
da qual se guardava o Santíssimo Sacramento; a Santíssima Virgem,
porém, estava na sala, diante da porta do vestíbulo, no qual se achavam as
santas mulheres.
Estando assim todos silenciosos, cheios de veemente desejo, com os
braços cruzados sobre o peito, olhos baixos, propagou-se a calma e o
silêncio por toda a casa. Os discípulos, nos átrios laterais, dirigiram-se
todos aos respectivos lugares e após alguns momentos, reinava o maior
silêncio em todo o redor da casa.
Pela manhã vi sobre o Monte das Oliveiras, onde Nosso Senhor subira
ao céu, aproximar-se uma nuvem luminosa, resplandecente, prateada,
vinda do céu em direção à casa dos Apóstolos, em Sião. Vi-a primeiro, à
grande distância, como um globo cujo movimento acompanhava uma doce
e ardente brisa. Ao aproximar-se, aparecia cada vez maior a nuvem
luminosa, passando como um nevoeiro brilhante sobre a cidade, até que
parou sobre Sião e a casa da última Ceia, concentrando-se cada vez mais e
tornando-se cada vez mais clara e transparente como um sol brilhante;
finalmente desceu, com crescente sussurro, como uma nuvem de trovoada
muito baixa. Muitos judeus, que ouviram o bramido e viram a nuvem,
correram assustados ao Templo. Toda essa cena tinha alguma semelhança
com uma trovoada que se aproxima rapidamente, mas em vez de trovão,
ouvia-se o zunido, que se sentia, porém, como uma brisa cálida e
profundamente reconfortante.
Quando a nuvem luminosa pairava muito baixo sobre o Cenáculo e, a
par do crescente ruído, tornava-se cada vez mais brilhante, vi também a
casa e os arredores banhados numa luz intensa, mas os Apóstolos,
discípulos e mulheres, cada vez mais silenciosos e ardentes.
Eram cerca de três horas da manhã, antes do nascer do sol, quando
vi de repente saírem da nuvem, sussurrante, torrentes de luz branca, que se
cruzavam sete vezes e, ao cruzarem, dissolviam-se em raios e gotas ígneas,
que caíram sobre a casa e os arredores. O ponto em que as sete torrentes
de luz se cruzavam era cercado como de um arco-íris, onde vi formar-se
uma figura luminosa e pairar sobre a casa; parecia- me que essa figura
tinha asas estendidas sob os ombros; mas não posso dizer com certeza se
eram asas, pois tudo parecia emanação de luz. Nesse momento, porém,
toda a casa estava cheia de luz ao redor. Não vi mais a luz do candelabro
de cinco braços. As pessoas reunidas estavam todas como pasmas e
extasiadas; levantaram inconscientemente os rostos, com desejo ardente, e
vi derramar-se na boca de todos uma torrente de luz, como pequenas
línguas de fogo em chamas. Era como se respirassem e recebessem
ardentemente esse fogo e como se algo de sua boca, em ardente desejo,
fosse ao encontro dessas chamas. O santo fogo derramou-se também sobre
os discípulos e as mulheres, no vestíbulo, e dessa forma se dissolveu a
nuvem luminosa gradualmente, como uma nuvem que derrama chuva de
luz. As línguas de fogo vieram sobre todos, mas com intensidade e cores
diferentes.
O estrondo, semelhante a uma trovoada, acordou muitos homens. O
Espírito comoveu muitos fiéis e discípulos que moravam nos arredores.
Depois de acabada a efusão do Espírito, nasceu alegre coragem em
toda a assembleia. Todos estavam comovidos e como que embriagados de
alegria e confiança. Rodeavam a Santíssima Virgem, única que permanecia
toda tranquila e calma, em seu habitual recolhimento e santo silêncio,
apesar de feliz e confortada. Os Apóstolos, porém, abraçavam-se uns aos
outros, penetrados de uma jubilosa audácia de falar. Era como se
clamassem uns aos outros: “Em que estado estávamos? Que foi feito de
nós?” — Também as santas mulheres abraçavam umas as outras; todos os
discípulos, nos corredores, estavam do mesmo modo comovidos. Os
Apóstolos correram para eles e em todos havia, por assim dizer, nova vida,
cheia de alegria, confiança e coragem.
Esse transporte de iluminação do coração e de conforto terminou em
uma ação de graças. Reuniram-se em oração, dando graças a Deus, com
profunda comoção. No entanto, desapareceu gradualmente a luz. Pedro fez
então um discurso aos discípulos e enviou alguns para os acampamentos de
peregrinos bem-intencionados, vindos para a festa de Pentecostes.
Havia, porém, entre o Cenáculo e a piscina de Betesda, diversos
barracões e dormitórios abertos, onde os forasteiros que vinham para a
festa dormiam e guardavam os animais. Estavam ali muitos dormindo;
outros estavam acordados e receberam também a graça do Espírito Santo,
pois passara uma emoção geral pela natureza. Muitos homens bons
receberam iluminação e a graça da conversão; os maus, porém, ficaram
tímidos, medrosos e ainda mais endurecidos. — A maior parte dessa gente,
que estava acampada naqueles arredores, onde se reunira a nascente
comunidade, estava já ali desde a Páscoa, porque, pela distância de sua
terra, não valia a pena fazer a viagem de ida e volta entre a Páscoa e
Pentecostes. Esses, pois, por tudo que ouviram e viram, tornaram-se mais
familiares e amigos dos discípulos do que os outros. Quando os discípulos
enviados por Pedro os procuraram e lhes anunciaram o cumprimento da
promissão do Espírito Santo, tornaram-se de diversos modos conscientes de
sua própria conversão e, obedecendo à palavra dos discípulos, reuniram-se
todos ao redor da piscina de Betesda, que ficava próxima.
No entanto, Pedro no Cenáculo impôs as mãos a cinco Apóstolos, que
deviam ajudar a ensinar e batizar na piscina de Betesda. Se me lembro
bem, foram esses: Tiago, o Menor; Bartolomeu; Matias; Tomé; e Judas
Tadeu. Vi nessa ordenação, que o último tinha uma visão: foi como se o
visse abraçar o corpo de Nosso Senhor.
Antes de irem à piscina de Betesda, para benzer a água e batizar, vi-os
ainda receber a bênção da SS. Virgem, ajoelhados diante dela; antes da
ascensão de Jesus recebiam em pé. Vi os Apóstolos receberem essa bênção
sempre, nos dias seguintes, antes de saírem e depois de voltarem. Nesses
atos de bênção e sempre quando comparecia entre os Apóstolos, em sua
dignidade, a SS. Virgem vestia um longo manto branco, um véu amarelo
sobre o rosto e na cabeça, caindo de ambos os lados até quase ao chão,
uma larga faixa de pano azul-celeste, dobrada sobre a testa um pouco para
trás, enfeitada de bordado e segura na cabeça por uma pequena coroa de
seda branca.
A Mãe de Deus foi batizada depois de Pentecostes, sozinha, na piscina
de Betesda, por João, que celebrou antes a Santa Missa, como era
celebrada naqueles tempos: consagravam-se a hóstia e o vinho com
algumas orações.
A pequena comunidade dos fiéis recebera um forte incremento no dia
de Pentecostes. Com toda a razão se dá a esse dia o nome de data da
fundação da santa Igreja. Na sala do Cenáculo cabia só um número
relativamente pequeno de fiéis; já tinham começado a instalar uma Igreja
na velha sinagoga, situada na vizinhança da piscina de Betesda. Esses
trabalhos estavam então terminados e Pedro, seguido dos Apóstolos, dos
discípulos, de Maria e das santas mulheres levou o Santíssimo Sacramento,
em solene procissão, do Cenáculo para essa primeira Igreja cristã e
colocou-O no tabernáculo, sobre o altar.
MARIA EM ADORAÇÃO AO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO. PRIMEIRA SANTA MISSA E
ORDENAÇÃO DE SACERDOTES.

Pedro ensinou novamente, com grande poder, no Templo, onde


também se reuniram os outros Apóstolos e discípulos, confirmando as
explicações de Pedro. Então se dirigiram, com os batizados e recém-
convertidos, em procissão, dois a dois, ao Cenáculo, em Sião. Chegados
ali, Pedro e João conduziram a SS. Mãe de Jesus, que vestira as vestes
festivas e rezara ajoelhada diante do SS. Sacramento, à porta do vestíbulo.
Pedro fez uma alocução aos recém-convertidos, entregando-os à proteção
de Maria, a Mãe comum. Apresentou-lhos em grupos de vinte; a Virgem
Santíssima, porém, abençoou cada grupo, dirigindo-lhes algumas palavras.
Pedro celebrou então a santa missa no cenáculo. Vi fazer-se tudo
como Jesus fizera na instituição do SS. Sacramento: oferecer, depositar
vinho no cálice, lavar as mãos e consagrar. O vinho e a água foram
depositados de lados diferentes. Num lado do altar havia rolos da
Escritura. Pedro, após ter comungado, deu também o SS. Sacramento e o
cálice aos dois que o ajudavam. João deu a sagrada Comunhão também
aos outros; Maria foi a primeira que a recebeu, depois os Apóstolos e mais
seis discípulos, que em seguida receberam ordens, e ainda muitos outros.
Aqueles que comungavam tinham diante de si uma toalha e uma faixa
comprida de pano, que dois — discipulos — seguravam dos lados. Não vi,
porém, que todos recebessem o cálice.
Os seis discípulos que então receberam as santas ordens avançaram
do lugar dos discípulos para o dos Apóstolos, mais para o coro. Maria
trouxe-lhes as vestes, pondo-as sobre o altar. Eram: Zaqueu, Natanael, José
Bársabas, Barnabas, João Marcos e Eliú, filho do velho Simeão.
Ajoelhavam-se dois a dois diante de Pedro, que lhes dirigia a palavra e
rezava, lendo num pequeno rolo da Escritura. João e Tiago tinham velas na
mão; pousavam-lhes a mão sobre os ombros e Pedro sobre a cabeça. Pedro
cortou-lhes o cabelo, pondo-o sobre um prato no altar, e ungiu-lhes a
cabeça e as mãos com óleo de um vaso que João segurava. Depois lhes
puseram também as vestes e estolas, que cruzavam em parte debaixo do
braço, em parte sobre o peito.
No fim da solenidade, Pedro abençoou a comunidade com o grande
cálice da última Ceia, no qual era conservado o SS. Sacramento.”
Acabada a cerimônia, dirigiram-se todos à piscina de Betesda, onde
os recém-convertidos, homens e mulheres, foram batizados.
Catharina Emmerich descreve em outro lugar a cerimônia da Missa:
“Pedro rezava diante do altar e dois Apóstolos ao lado lhe
acompanhavam a oração e os atos. Vi que levantou o pão e o vinho no
cálice, oferecendo-os; depois partiu o pão em bocados, benzeu-os e
pronunciou as palavras da consagração sobre o pão e o vinho, depois do
que começaram a luzir.
Quando elevou o pão e o cálice, oferecendo-os, vi aparecer uma mão
resplandecente por cima do altar, como saindo de uma nuvem; quando
benzeu e disse as palavras da consagração, moveu-se também essa mão,
benzendo; só desapareceu quando todos se afastaram. Não vi que Pedro o
notasse também.
Depois da consagração, Pedro tomou primeiro um bocado e encheu
então o vaso, que era tão largo que muitos dos bocados ali cabiam uns
sobre os outros. Então se aproximaram os Apóstolos que estavam presentes
e receberam na boca o SS. Sacramento, da mão de Pedro; depois vieram
também os outros assistentes, recebendo o SS. Sacramento, como da
primeira vez. Acabando os bocados no vaso, Pedro voltou ao altar para
encher de novo com os que restavam no prato e continuou distribuindo a
Santa Comunhão.
Como na sala não cabiam todos e muitos ficavam fora, saíram os
primeiros, depois de terem recebido o Sacramento, e os outros entraram.
Os que comungavam não se ajoelhavam, mas inclinavam-se
respeitosamente, ao receber o SS. Sacramento. Tendo saído os últimos,
entraram de novo os primeiros. Quando Pedro consagrou o vinho, não
rezou tanto tempo como da primeira vez; vi-o falar sobre ele palavras que
luziam. Depois bebeu e deu também aos Apóstolos para beberem. Os
Apóstolos ofereceram o cálice ainda aos outros”.
MARIA EM ÉFESO. VIAGEM DE MARIA A
JERUSALÉM. RETORNO A ÉFESO. REUNIÃO DOS
APÓSTOLOS EM ÉFESO POR CONTA DA MORTE
DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA.

Depois da ascensão do Filho querido, viveu Maria, segundo a narração


de Anna Catharina Emmerich, três anos em Jerusalém e depois outros três
anos em Betânia, na casa de Lázaro. São João, que sempre a acompanhava,
levou-a para Éfeso, a fim de a salvar da perseguição, e ali ela viveu ainda
nove anos, tendo a Santíssima Virgem alcançado a idade de sessenta e
quatro anos.
Maria não viveu propriamente em Éfeso, mas no campo perto da
cidade, onde várias mulheres, bem amigas, haviam se estabelecido. Sua
moradia ficava numa colina. Essa colina era bem íngreme na direção de
Éfeso. Avenidas largas levavam até a cidade e o chão abaixo das árvores
ficava coberto com frutos amarelos. Caminhos estreitos levavam ao sul,
para uma colina em cujas proximidades do topo havia um platô irregular
muito grande, fazendo uma circunferência de meia hora de caminhada. Lá
havia árvores selvagens e arbustos. Nesse platô, colonos judeus fizeram
suas casas. Era um lugar muito solitário, rodeado por pequenas porções de
areia, embora tivesse encostas muito férteis e agradáveis, bem como
cavernas rochosas limpas e secas. Era deserto mas não desolado. Possuía
algumas árvores em forma de pirâmide, espalhadas ao redor, de troncos
suaves, com ramos amplos, que produzem boa sombra.
João providenciou a construção de uma casa para a Santíssima Virgem
antes de levá-la para lá. Várias famílias cristãs e santas mulheres já haviam
se estabelecido ali; algumas moravam em grutas, na terra ou nas pedras,
com acabamento em madeira leve para se tornarem habitáveis, e outras em
frágeis cabanas ou tendas. As pessoas haviam escolhido aquela região a fim
de escaparem da perseguição violenta. Suas habitações eram como celas de
eremitas; usavam como refúgios o que a natureza lhes oferecia. Como
regra, viviam cerca de quinze minutos de distância uns dos outros. Todo o
assentamento era uma vila dispersa. A casa de Maria era a única construída
com pedras. Um pouco atrás dela estava o cume da colina rochosa, de onde
se podia ver por sobre as árvores e colinas a cidade de Éfeso e o mar com
suas muitas ilhas. O lugar ficava mais próximo do mar do que Éfeso. O
distrito era solitário e pouco frequentado. Perto dali havia um castelo
habitado por um rei, que parece ter sido deposto. João o visitava com
frequência, e ele acabou se convertendo. O lugar tornou-se mais tarde uma
sede episcopal. Entre a casa da Santíssima Virgem e Éfeso corre uma
pequena torrente, que dá voltas de uma forma muito singular.
A casa de Maria foi construída com pedras retangulares, arredondadas
ou pontiagudas na parte de trás; as janelas eram altas e próximas ao telhado
reto. Era dividida em dois compartimentos, com a lareira no centro. A
lareira ficava no chão, oposta à porta; era escavada no chão ao lado de uma
parede, onde havia degraus que subiam dos dois lados até o forro. No centro
dessa parede, um duto profundo, como a metade de uma chaminé, levava a
fumaça para fora através de uma abertura no teto. Vi um funil inclinado de
cobre acima do teto sobre essa abertura. A parte frontal da casa era dividida
do ambiente atrás da lareira com biombos leves de vime de cada lado da
lareira. Na parte frontal, as paredes eram bem grosseiras e escurecidas com
a fumaça. Vi pequenas celas, de ambos os lados, fechadas com biombos de
vime amarrados juntos. Se essa parte da casa precisasse ser ampliada, esses
biombos, que não chegavam até o teto, eram movidos conforme a
necessidade. As celas eram usadas como dormitórios pela serva de Maria e
por outras mulheres que vinham visitá-la. À direita e à esquerda da lareira,
portas davam para a parte de trás da casa, que era mais escura do que a
frente e terminava num semicírculo. Esse local era arrumado e
aconchegante; as paredes eram cobertas de telas de vime e o teto era
abobadado. Suas vigas eram decoradas com uma combinação de tecido e
vime com desenhos de folhas. Era tudo simples e digno.
O canto mais afastado (abside) desse ambiente era dividido por uma
cortina que formava o oratório de Maria. No centro da parede havia um
nicho no qual foi colocado um receptáculo, como um tabernáculo, que
podia ser aberto e fechado puxando um cordão para mover sua porta. Nele
ficava uma cruz, do tamanho do braço de um homem, na qual estavam
inseridos dois braços levantados para frente e para cima na forma da letra Y.
Sempre via a Cruz de Cristo nesse formato. Não tinha nenhuma
ornamentação em particular; seu entalhe era mais rudimentar do que o das
cruzes que vem da Terra Santa, hoje em dia. Creio que João e Maria devem
tê-la feito em diferentes tipos de madeira. A haste principal era de cipreste,
o braço marrom de cedro, o outro braço de madeira amarela de palmeira,
enquanto o pedaço adicionado ao topo, com o título, era de um amarelo
suave de madeira de oliveira. A cruz ficava encaixada num pequeno globo
ou pedra, como a Cruz de Cristo no Monte Calvário.
No pé da cruz havia um pedaço de pergaminho com algo escrito. Eram
as palavras de Cristo, creio eu. Na cruz em si, a Figura de Nosso Senhor era
toscamente delineada; as linhas do entalhe eram destacadas com cor mais
escura para realçar a Figura mais claramente. As meditações de Maria sobre
os diferentes tipos de madeira que formavam essa cruz me foram reveladas,
mas, ai de mim, esqueci esse belo ensinamento. Nem posso ter certeza, no
momento, se a própria Cruz de Cristo era feita dessas diferentes madeiras,
ou se Maria fez essa cruz a seu modo apenas por razões devocionais. A cruz
ficava entre dois pequenos vasos com flores frescas. Também vi um tecido
depositado ao lado dela. Tenho a impressão de que é o mesmo tecido usado
pela Santíssima Virgem para recolher o sangue de todas as feridas de Nosso
Senhor, depois que Ele foi descido da cruz. A razão pela qual tive essa
impressão foi porque, ao ver o pano, vi a manifestação do amor maternal de
Nossa Senhora. Ao mesmo tempo tive o sentimento de que era o pano com
que os sacerdotes cristãos limpam o cálice, depois de beberem o
Preciosíssimo Sangue, durante a Missa. Maria, ao limpar as feridas de
Nosso Senhor, pareceu-me segurar o pano da mesma forma que os
sacerdotes.
À direita do oratório, contra um nicho na parede, ficava o dormitório
ou cela da Santíssima Virgem. Do lado oposto, à esquerda desse oratório,
havia uma cela com suas roupas e seus pertences. Entre as duas celas, uma
cortina pendurada dividia o oratório. Era costume de Maria sentar-se em
frente a essa cortina quando estava trabalhando ou lendo. Seu dormitório
tinha na parede de trás um tapete pendurado; já as paredes laterais tinham
telas de casca de árvore trançadas em diferentes cores, que formavam um
desenho. Na parede da frente havia um tapete pendurado e uma porta com
duas abas, que se abriam para dentro. O teto da cela também era de vime
trabalhado que subia até a abóbada, em cujo centro ficava suspensa uma
lâmpada com vários braços. O acolchoado de Maria, junto à parede, era
uma caixa com meio metro de altura. Uma colcha era esticada sobre esta e
presa em bolas em cada um dos quatro cantos. Os lados da caixa eram
cobertos com tapetes que iam até o chão e eram decorados com franjas e
borlas. Uma almofada redonda servia de travesseiro. Havia uma cobertura
de material marrom com padrão xadrez. A pequena casa ficava perto de
uma mata, em meio a árvores de formato piramidal e de tronco suave. O
local era muito quieto e solitário. As moradias das outras famílias eram
todas espalhadas a alguma distância. Todo o assentamento parecia uma vila
de camponeses.
A Santíssima Virgem vivia ali sozinha, com uma mulher mais nova,
sua serva, que buscava o alimento de que precisavam. Viviam muito
tranquilas e em profunda paz. Não havia homem na casa. Algumas vezes
eram visitadas por um Apóstolo ou discípulo em viagem. Vi um homem
entrar e sair da casa mais vezes do que outros; sempre o tomava por João,
mas ele não ficava permanentemente próximo à Santíssima Virgem, nem
aqui nem em Jerusalém, ia e vinha de passagem em suas viagens. Não
vestia o mesmo tipo de túnica usada no tempo de Nosso Senhor. Sua roupa
era bem comprida, com dobras, e de um material fino, branco-acinzentado.
Ele era bem magro e ativo; seu rosto era longo, estreito e delicado; seu
longo cabelo louro era partido e penteado para trás, passando por trás da
orelha. Em contraste com os outros Apóstolos, isso lhe dava uma aparência
feminina. Na última vez em que esteve lá, vi Maria cada vez mais silenciosa
e meditativa; mal se alimentava. Era como se estivesse só em aparência,
como se seu espírito já tivesse partido e todo o seu ser estivesse longe. Nas
últimas semanas antes de morrer, algumas vezes, eu a vi, fraca e mais idosa,
ser conduzida pela casa por sua serva. Uma vez, vi João entrar na casa,
parecia bem mais velho também, além de muito magro e abatido. Assim
que entrou ele cingiu sua longa túnica branca com o cinto. Depois, tirou-o e
vestiu um outro, com letras inscritas, que estava sob seu manto. Colocou
uma espécie de manípulo em seu braço e uma estola ao redor do pescoço. A
Santíssima Virgem saiu de seu quarto, totalmente coberta por seu manto,
apoiando-se no braço de sua serva. Sua face estava branca como a neve,
como se fosse transparente. Parecia inclinar-se com intenso anseio.
Desde a Ascensão de Nosso Senhor, todo o seu ser parecia estar
repleto de um desejo de ir para Deus cada vez mais crescente, que
gradualmente a consumia. João e ela foram juntos para o oratório. Nossa
Senhora puxou a fita ou tira que girava o tabernáculo na parede para
mostrar a cruz que ficava dentro. Depois de se ajoelharem por um bom
tempo, em oração diante do oratório, João retirou de seu peito uma caixa de
metal. Abriu-a em um dos lados e retirou um tecido de lã enrolado, que
continha um pequeno pedaço de pano branco dobrado. Deste retirou o
Santíssimo Sacramento na forma de uma pequena partícula quadrada.
Depois de pronunciar algumas palavras solenes, deu o Sacramento à
Santíssima Virgem. Ele não deu a ela do cálice.
Atrás da casa, a alguma distância colina acima, a Santíssima Virgem
fez uma espécie de Caminho da Cruz. Quando viveu em Jerusalém, desde a
morte de Nosso Senhor, nunca deixou de seguir Seu caminho até o
Calvário, em meio a lágrimas de compaixão. Mediu em passos todas as
distâncias entre as Estações daquela Via Crucis. Seu amor pelo Filho
tornou-a incapaz de viver sem a constante contemplação de Seus
sofrimentos. Logo depois de sua chegada ao seu novo lar, eu a vi subir parte
do caminho, atrás de sua casa, a fim de manter essa devoção. No princípio
foi sozinha; media o número de passos, tantas vezes contados por ela, que
separavam os lugares dos diferentes sofrimentos de Nosso Senhor. Em cada
um desses lugares, colocou uma pedra. Caso já houvesse uma árvore no
lugar certo, ela fazia uma marca. O caminho levava a um bosque, onde,
colina acima, ela marcou o lugar correspondente ao Calvário. Numa outra
colina, em uma pequena gruta, reproduziu o sepulcro de Cristo.
Depois de ter marcado esse Caminho da Cruz com doze Estações, foi
para lá, com sua serva, em meditação silenciosa. Em cada Estação sentavam
e renovavam em seus corações os significados de cada mistério; louvavam
o Senhor por Seu amor, cheias de lágrimas de compaixão. Posteriormente
ela ajeitou melhor as Estações e eu a vi inscrevendo nas pedras o sentido de
cada Estação, o número de passos e assim por diante. Ela também limpou a
gruta do Santo Sepulcro e fez dali um lugar de oração. Naquele tempo não
havia nenhuma figura ou cruz fixa que designasse as Estações, apenas
pedras planas com inscrições. Como resultado de constante visita e zelo, vi
o lugar tornando-se incrivelmente belo e de fácil acesso. Após a morte da
Santíssima Virgem, vi o Caminho da Cruz ser visitado por cristãos, que se
lançavam ao chão e o beijavam. Passados três anos de permanência no
local, Maria teve um grande desejo de ver novamente Jerusalém. Foi levada
para lá por João e por Pedro. Vários dos Apóstolos, creio eu, estavam lá
reunidos. Vi Tomé entre eles. Creio que foi formado um Concílio, ao qual
Maria prestou assistência com seus conselhos. Em sua chegada a Jerusalém,
ao cair da noite, antes de irem para a cidade, eu os vi visitando o Monte das
Oliveiras, o Calvário, o Santo Sepulcro e todos os santos lugares fora de
Jerusalém. A Mãe de Deus estava tão pesarosa, comovida e cheia de
compaixão que mal podia se manter ereta. Pedro e João tiveram de dar-lhe
apoio enquanto caminhavam.
Maria veio de Éfeso para Jerusalém uma vez mais. Dezoito meses
antes de sua morte, eu a vi novamente nos Santos Lugares, ao lado dos
Apóstolos, à noite, envolta em seu manto. Ela estava inexprimivelmente
dolorosa; suspirava constantemente, “Oh meu Filho, meu Filho”. Quando
chegou à porta, atrás do palácio, onde encontrou Jesus caído sob o peso da
Cruz, caiu também no chão em desfalecimento, vencida por lembranças
atrozes. Seus acompanhantes pensaram que ela estivesse morrendo.
Levaram-na para o Cenáculo, onde se hospedou em um dos prédios
exteriores. Ali, por vários dias, esteve tão fraca e enferma, a ponto de sofrer
frequentes desmaios, que seus amigos novamente pensaram que sua morte
estava próxima e fizeram preparativos para o sepultamento. Ela mesma
escolheu uma gruta no Monte das Oliveiras e os Apóstolos providenciaram
que fosse preparado um belo sepulcro pelas mãos de um pedreiro cristão.
[Numa outra ocasião, Catharina Emmerich disse que Santo André
também ajudou nesse trabalho.] Durante esse período, foi anunciado mais
de uma vez que ela estava morta e o rumor espalhou-se em Jerusalém e em
outros lugares. Quando, entretanto, o sepulcro ficou pronto, ela recuperou-
se e, já forte o bastante, viajou de volta para a sua casa em Êfeso, onde de
fato morreu dezoito meses depois. O sepulcro preparado no Monte das
Oliveiras foi mantido em sua honra; mais tarde, uma igreja foi construída
no lugar. João Damasceno (assim ouvi em espírito, mas quem era ele?)
escreveu sobre o rumor de sua morte e o sepultamento em Jerusalém.
Entre as santas mulheres, que viviam nos assentamentos cristãos perto
de Éfeso e que visitavam a Santíssima Virgem em sua casa, havia uma filha
da irmã de Anna, a profetiza do Templo. Eu a vi uma vez viajando para
Nazaré com Seráfia (Verônica) antes do batismo de Nosso Senhor. Essa
mulher estava ligada à Sagrada Família por meio de Anna. Era aparentada
com Santa Anna e ainda mais próxima à Isabel, sobrinha de Santa Anna.
Outra mulher, que vivia na vizinhança de Maria, a quem eu também vi a
caminho de Nazaré, antes do Batismo de Jesus, era a sobrinha de Isabel,
chamada Mara. Ela tinha parentesco com a Sagrada Família da seguinte
forma: Ismeria, a mãe de Santa Anna, tinha uma irmã chamada
Emerenciana. Ambas viviam nas pastagens de Mara entre o Monte Horeb e
o Mar Vermelho. Foi dito a ela, pelo líder dos essênios no Monte Horeb,
que alguns dos seus descendentes seriam amigos do Messias. Ela casou-se
com Aphras, da família dos sacerdotes que carregaram a Arca da Aliança.
Emerenciana teve três filhas: Isabel, a mãe de João Batista; Enue (a viúva
presente ao nascimento da Santíssima Virgem, na casa de Santa Anna); e
Rhode, cuja filha Mara estava, como disse antes, em Éfeso. Rhode casou-se
muito distante da casa de sua família; viveu primeiro na região de Siquém,
depois em Nazaré e em Celeset, no Monte Tabor. Além de Mara, Rhode
teve duas outras filhas. Os filhos de uma delas tornaram-se discípulos de
Nosso Senhor. Um dos dois filhos de Rhode foi o primeiro marido de
Maroni. Depois de ficar viúva, casou-se com Eliud, um sobrinho de Santa
Anna, e mudou-se para Naim. Maroni teve com Eliud um filho ressuscitado
por Nosso Senhor em Naim, depois de sua mãe tornar-se viúva pela
segunda vez. Ele era o jovem de Naim, tornado discípulo e batizado com o
nome Martialis. Mara, a filha de Rhode, que estava presente à morte de
Maria em Éfeso, era casada e vivia perto de Belém. Na época do
nascimento de Cristo, quando Santa Anna se ausentou de Belém em
determinada ocasião, ela foi para a casa de Mara, que não tinha boa
condição financeira, pois tanto Rhode como o resto da família haviam
deixado para seus descendentes apenas um terço de sua propriedade; os
outros dois terços foram dados ao Templo e aos pobres. Creio que Natanael,
o noivo de Caná, era filho dessa Mara, e que, ao ser batizado, recebeu o
nome de Amador. Mara teve outros filhos que se tornaram discípulos.
Ontem à noite e na noite anterior, tive muitas visões sobre a Mãe de Deus
em Éfeso. Eu a segui pelo Caminho da Cruz, estando ela acompanhada de
cinco outras santas mulheres. A sobrinha da profetiza Anna estava lá, além
da sobrinha de Isabel: a viúva Mara.
A Santíssima Virgem ia à frente delas. Vi que ela estava fraca; seu
rosto estava bastante pálido, quase transparente. Sua aparência era
indescritivelmente tocante. Pareceu-me que eu a acompanhava pela última
vez. Enquanto ela meditava nas Estações, João, Pedro e Tadeu já estavam,
creio eu, em sua casa. Vi a Santíssima Virgem, bem avançada em anos, sem
nenhum sinal de velhice em aparência, mas consumida por um desejo
intenso que a transfigurava. Havia uma solenidade indescritível em torno
dela. (Nunca a vi dando risada, embora ela tivesse um belo sorriso.) À
medida que ficava mais velha em anos, sua face tornava-se cada vez mais
pálida e mais transparente; era muito magra, mas sem rugas. Não havia nela
qualquer sinal de definhamento ou declínio. Estava vivendo em espírito.
[Manhã de 9 de agosto de 1821:] Cheguei até a casa de Maria, cerca
de três horas de viagem de Éfeso. Eu a vi deitada num acolchoado baixo e
estreito em seu pequeno quarto de dormir. Sua cabeça estava apoiada numa
almofada redonda. Estava muito fraca e pálida, e parecia estar consumida
de um desejo ardente por Deus. Sua cabeça e todo o corpo estavam
envoltos em seu longo manto. Estava também coberta por um cobertor de
lã marrom. Vi várias mulheres (cinco, creio eu) dirigirem-se ao seu quarto,
uma de cada vez, como se estivessem dizendo adeus a ela. Quando saíam,
faziam gestos comoventes de oração ou pesar. Notei entre elas Anna, a
sobrinha da profetiza do Templo, e Mara, sobrinha de Isabel, que eu tinha
visto nas Estações da Cruz. Vi seis dos Apóstolos já reunidos ali — Pedro,
André, João, Judas Tadeu, Bartolomeu e Matias —, assim como um dos
sete diáconos, Nicanor, sempre prestativo e ansioso por servir. Vi os
Apóstolos, juntos e de pé, em oração ao lado direito da parte frontal da
casa, onde foi arrumado um oratório.
[10 de agosto, 1821:] A data em que a Igreja celebra a morte da
Santíssima Virgem, sem dúvida alguma, é a correta, embora não caia todo
ano no mesmo dia da semana.
Hoje vi mais dois Apóstolos chegando com as vestes cingidas como
viajantes. Eram Tiago Menor e Mateus, que é seu meio-irmão, porque Alfeu
casou-se, após se tornar viúvo da mãe de Mateus, com Maria Cleofas, mãe
de Tiago Menor.
Ontem, ao entardecer, e nesta manhã, vi os Apóstolos reunidos
celebrarem uma Missa na parte frontal da casa. Para isso, removeram os
biombos de vime que dividiam a casa em dormitórios. O altar era uma mesa
coberta com dois tecidos: o primeiro era vermelho e, por cima, havia um
branco. A mesa foi movida de seu lugar habitual à direita da lareira e
colocada junto à parede para ser usada na cerimônia; depois, foi colocada
de volta no lugar. Em frente ao altar havia um suporte coberto com um
pano, onde jazia um rolo de pergaminho. Acima havia lâmpadas acesas.
Sobre o altar foi colocado um vaso em forma de cruz, feito de uma
substância lustrosa, parecida com madrepérola, que tinha cerca de vinte
centímetros de comprimento e largura. Continha também cinco caixas
fechadas com tampa de prata. Na do meio estava o Santíssimo Sacramento
e nas outras, óleo de crisma, óleo de unção, sal, outras coisas santas e tiras
de pano (de algodão, talvez). Tudo era muito bem fechado e guardado para
impedir qualquer vazamento.
Era costume dos Apóstolos, em suas viagens, carregar a cruz
pendurada no pescoço debaixo de suas vestes, o que os fazia, então,
superiores ao sumo sacerdote, que carregava em seu peito o santo tesouro
da Antiga Aliança. Não consigo me lembrar se eram ossos de santos, em
uma das caixas, ou em outro lugar. Sei que, no sacrifício da Nova Aliança,
eles sempre deixavam próximo ao altar ossos dos profetas ou, mais tarde,
dos mártires, tal como os Patriarcas, em seus sacrifícios, sempre colocavam
sobre o altar os ossos de Adão ou de outros, sobre os quais pairava a
Promissão. Na Última Ceia, Cristo ensinou os Apóstolos a fazerem o
mesmo.
Pedro, em vestes sacerdotais, estava diante do altar; os outros, atrás
dele, formavam um coro. As mulheres estavam mais para trás.
[11 de agosto de 1821:] Hoje vi a chegada de Simão, o nono Apóstolo.
Tiago Maior, Filipe e Tomé eram os únicos que ainda não estavam ali. Vi
vários outros discípulos chegarem também, dentre os quais me lembro de
João Marcos e do filho ou neto do velho Simeão, que havia sido
responsável pelo sacrifício do cordeiro na última Ceia Pascal de Cristo. Era
parte de suas responsabilidades supervisionar os animais para sacrifício no
Templo. Dez homens estavam presentes. Novamente houve uma Missa no
altar. Alguns dos recém chegados mantiveram suas túnicas erguidas, o que
me fez pensar que iriam partir logo em seguida. Em frente à cama da
Santíssima Virgem, ficava um banquinho baixo triangular, igual àquele em
que os três reis magos depositaram seus presentes, diante dela, na Gruta da
Natividade. Neste havia uma pequena tigela com uma colher marrom.
Naquele dia não vi ninguém no quarto da Santíssima Virgem, exceto uma
mulher.
Pedro trouxe-lhe, novamente, o Santíssimo Sacramento, depois da
Missa, naquele vaso em forma de cruz. Os Apóstolos ficaram em duas filas,
do altar até sua cama; curvavam-se quando Pedro passava com o
Santíssimo. Os biombos ao redor da Santíssima Virgem foram afastados
para trás.
[12 de agosto de 1821:] Estavam presentes não mais do que doze
homens na casa de Maria. Hoje vi uma Missa sendo celebrada em seu
dormitório. Seu pequeno quarto estava aberto dos quatro lados. Uma
mulher estava ajoelhada ao lado da cama de Maria, e vez ou outra a
colocava sentada. Vi isso se repetindo ao longo do dia e vi as mulheres
dando à Santíssima Virgem colheradas de um líquido de dentro de uma
tigela. Maria tinha uma cruz em sua cama, na forma da letra Y, como eu
sempre vejo a Cruz Sagrada, com um braço de comprimento. A parte
superior é um pouco mais larga do que os braços. Parecia ser feita de
diferentes tipos de madeira; a figura de Cristo é branca. A Santíssima
Virgem recebeu a Comunhão.
O Caminho da Cruz de Maria tinha doze Estações. Ela mediu em
passos todas as distâncias. João providenciou os marcos de pedra com as
inscrições. Inicialmente eram apenas pedras brutas para marcar os lugares.
Depois, foram mais elaboradas. Agora havia pedras brancas baixas e lisas
com muitos lados — creio que oito — e uma pequena depressão no centro.
Cada uma dessas pedras apoiava-se sobre uma base do mesmo tipo de
pedra, cuja espessura ficava oculta pela relva e pelas belas flores ao redor.
As pedras e suas bases eram inscritas com letras em hebraico. Essas
Estações localizavam-se em depressões, semelhantes a pequenas bases
redondas. Eram cercadas; uma trilha circundava a pedra com largura
suficiente para uma ou duas pessoas aproximarem-se e lerem a inscrição.
Os espaços ao redor das pedras, cobertos com grama e belas flores,
variavam de tamanho. As pedras nem sempre ficavam descobertas. Quando
ninguém estava rezando, havia uma esteira ou cobertura, presa de cada
lado, fixada com duas cavilhas. As doze pedras assemelhavam-se; eram
todas gravadas com inscrições em hebraico, mas em posições diferentes. A
Estação do Monte das Oliveiras ficava num pequeno vale, perto de uma
gruta, onde várias pessoas podiam ajoelhar-se em oração. A Estação do
Monte Calvário era a única que não ficava numa depressão, mas numa
colina. Para chegar à Estação do Santo Sepulcro, devia-se passar sobre essa
colina e chegar à pedra numa depressão. Ainda mais abaixo, ao pé da
colina, numa gruta, ficava o Sepulcro no qual a Santíssima Virgem foi
sepultada. Creio que a sepultura ainda deva existir debaixo da terra e que
será descoberta um dia.
Vi que os Apóstolos, as santas mulheres e outros cristãos, quando se
aproximavam das Estações para rezar, ajoelhavam-se ou prostravam seus
rostos no chão. Tiravam de dentro de seus mantos uma cruz em forma de Y,
com cerca de trinta e três centímetros, e a colocavam num suporte atrás das
pedras.
Pouco tempo antes da morte da Santíssima Virgem, à medida que
sentia a aproximação do encontro com seu Deus, seu Filho e Redentor, ela
rezou para que pudesse se cumprir o que Jesus havia-lhe prometido na casa
de Lázaro, em Betânia, no dia anterior à Sua Ascensão. Foi-me mostrado,
em espírito, a súplica que fez a seu Filho, naquela ocasião, para que ela não
vivesse naquele vale de lágrimas por muito tempo depois que Ele subisse
aos Céus. Jesus revelou-lhe, de modo geral, quais as tarefas espirituais que
ela deveria cumprir antes de seu fim na terra. Disse também que, em
resposta às suas orações, os Apóstolos e vários discípulos estariam
presentes na sua morte. Disse-lhe o que ela deveria dizer a eles e como
deveria abençoá-los. Vi, ainda, como Ele orientou a inconsolável Maria
Madalena para que se escondesse no deserto. Já para a irmã dela, Marta,
disse para encontrar uma comunidade de mulheres. Ele pessoalmente
estaria sempre com elas.
Depois de a Virgem Santíssima ter rezado para que os Apóstolos
fossem ao seu encontro, eu os vi serem chamados de diferentes partes do
mundo. Sobre isso consigo me lembrar o seguinte:
Em muitos dos lugares onde haviam pregado, os Apóstolos já tinham
erguido pequenas igrejas. Algumas delas ainda não estavam construídas
com pedras, mas com chapas de junco cobertas de barro. Contudo, todas
tinham na parte de trás uma abside semicircular ou de três lados, como na
casa de Maria em Éfeso, bem como altares onde o sacrifício da Missa era
celebrado.
Vi todos os Apóstolos, tanto os mais distantes como os mais próximos,
serem chamados por meio de visões para irem ao encontro da Santíssima
Virgem. As longas e indescritíveis jornadas feitas pelos Apóstolos só
puderam ser cumpridas com a miraculosa assistência de Deus. Creio que,
muitas vezes, viajavam de forma Sobrenatural e sem perceber, posto que
frequentemente os vi passando por multidões de homens, aparentemente
sem serem notados.
Quando o chamado de Deus para irem a Éfeso chegou aos Apóstolos,
Pedro e creio que também Matias estavam na região da Antioquia. André,
que estava a caminho de Jerusalém, local onde sofreu perseguição, não
estava muito longe deles. Durante a noite vi Pedro e André adormecidos no
caminho, em diferentes lugares, mas não muito distantes um do outro.
Nenhum deles estava em uma cidade. Repousavam em abrigos públicos.
Pedro dormia junto a uma parede. Vi um jovem resplandecente aproximar-
se e acordá-lo, tomando-o pela mão, dizendo-lhe que se levantasse e que
corresse até a casa de Maria. Disse-lhe ainda que encontraria André no
caminho. Vi Pedro, que já estava debilitado pela idade e pelo trabalho
árduo, sentar-se e apoiar as mãos nos joelhos enquanto ouvia o anjo. A
visão mal acabara de desaparecer e ele levantou-se, cobriu-se com um
manto, cingiu-se com o cinturão, agarrou seu cajado e partiu. Logo
encontrou André, que havia sido chamado pela mesma visão. Depois se
encontraram com Tadeu, que também recebera a mensagem. Assim os três
chegaram juntos à casa de Maria, onde já estava João.
Tiago Maior, que tinha rosto fino e pálido e cabelo preto, foi da
Espanha até Jerusalém com vários discípulos. Ficou um tempo em Sarona,
perto de Jope. Lá recebeu o chamado para Éfeso. Depois da morte de
Maria, foi com uns seis discípulos para Jerusalém, onde sofreu o martírio. O
homem que o denunciou acabou sendo convertido e batizado pelo próprio
Tiago. Depois foram decapitados juntos. Judas Tadeu e Simão estavam na
Pérsia quando receberam o chamado.
Tomé era de baixa estatura e tinha cabelo castanho avermelhado. Era o
que estava mais distante e só chegou depois da morte de Maria. Ele estava
rezando quando vi o anjo dizer-lhe para ir a Éfeso. Eu o vi sozinho, num
pequeno barco, com um servo muito simplório, cruzar uma grande extensão
de água — depois viajou através de um país, sem passar, creio eu, por
nenhuma cidade. Estava na Índia, acompanhado por um discípulo, quando
recebeu o chamado do anjo. Antes disso já havia decidido ir mais ao norte
para Tartary e não pôde mudar de ideia e abandonar esse plano. (Tomé
sempre tentava assumir muitas coisas e frequentemente chegava atrasado.)
Assim, foi ainda mais longe para o norte, através da China, onde agora é a
Rússia, quando recebeu um segundo aviso, que o fez correr para Éfeso. O
servo que o acompanhava, a quem havia batizado, era de Tartary. Esse
homem participou de eventos posteriores, mas me esqueci de quais. Tomé
não retornou para Tartary depois da morte de Maria. Foi morto na Índia,
traspassado por uma lança. Vi que usava uma pedra naquele país, na qual se
ajoelhava e rezava, e que as marcas de seus joelhos ficaram impressas sobre
essa pedra. Ele profetizou que, quando o mar atingisse aquela pedra, um
outro viria àquele país para pregar sobre Jesus Cristo.
João esteve em Jericó pouco tempo antes; viajava frequentemente para
a Terra Prometida. Costumava ficar em Éfeso e vizinhanças. Lá recebeu o
chamado.
Bartolomeu, que era bonito e muito talentoso, estava na Ásia, a leste
do Mar Vermelho. Tinha pele clara, testa alta, olhos grandes, uma barba
curta dividida no meio e cabelo preto, ambos encaracolados. Havia acabado
de converter um rei e sua família. Vi tudo e contarei quando for mais
adequado. Quando retornou a essa região, foi morto pelo irmão do rei.
Esqueci-me onde estava Tiago Menor quando foi avisado. Ele era
muito bonito e parecia-se muito com Nosso Senhor; por isso era chamado
por todos os seus irmãos de irmão do Senhor.
Sobre Mateus, vi hoje novamente que ele era o filho de Alfeu, fruto de
um casamento anterior. Era, portanto, enteado da segunda esposa de Alfeu,
Maria Cleofas.
Esqueci-me sobre André.
Paulo não foi avisado. Só foram chamados aqueles que eram
aparentados ou conhecidos mais próximos da Sagrada Família.
Vi Tomé com os outros, mas não o vi na morte de Maria; ele estava
muito longe e chegou atrasado. Era o único dos Apóstolos que faltava. Eu o
vi a caminho, mas muito distante.
Também vi cinco discípulos. Lembro-me com especial clareza de
Simeão Justus e Barnabé (ou Barsabas). Quanto aos outros, havia um dos
filhos dos pastores (Eremensor) que acompanhou Jesus em Suas longas
jornadas depois da ressurreição de Lázaro. Os outros dois vieram de
Jerusalém. Vi também Maria Heli, a irmã mais velha da Santíssima Virgem,
e sua meia-irmã mais nova, uma filha de Santa Anna com seu segundo
marido. Maria Heli (que era esposa de Cleofas e mãe de Maria Cleofas e
ainda avó dos Apóstolos Tiago Menor, Tadeu e Simão) já era uma mulher
idosa. (Era vinte anos mais velha do que a Santíssima Virgem.) Todas essas
santas mulheres viviam perto dali; haviam chegado a essa região algum
tempo antes para escaparem da perseguição em Jerusalém. Algumas delas
viviam em grutas, nas rochas, que tinham sido arrumadas como moradias
através do uso de biombos de vime.
Ao meio-dia, vi que já havia grande pesar e luto na casa da Santíssima
Virgem. Sua serva estava extremamente triste, caída de joelhos e orando de
braços estendidos, nos cantos e algumas vezes do lado de fora, na frente da
casa. A Santíssima Virgem jazia deitada imóvel, próxima da morte, em sua
pequena cela. Estava completamente envolta, inclusive os braços, numa
colcha branca. Parecia uma peça que descrevi quando ela foi dormir na casa
de Isabel na época da Visitação. O véu sobre a sua cabeça foi arrumado em
dobras ao redor de sua testa. Quando falava com os homens, ela abaixava o
véu sobre sua face. Até suas mãos eram cobertas, a não ser quando estava
sozinha. Nos últimos dias de sua vida, não a via tomando qualquer
alimento, exceto, de vez em quando, uma colher de suco que sua serva
preparava, espremendo um cacho de bagas amarelas como uvas numa tigela
junto ao seu leito.
NOSSA SENHORA, ANTES DA MORTE, DESPEDE-
SE E ABENÇOA OS APÓSTOLOS, OS DISCÍPULOS
E AS MULHERES.

[14 de agosto:] Ao entardecer, a Santíssima Virgem sentiu que sua


morte estava chegando; por isso, importava realizar seu desejo, em
conformidade com a vontade de Jesus, de abençoar e de se despedir dos
Apóstolos, dos discípulos e das mulheres que estavam presentes. Sua cela
de dormir foi aberta de todos os lados e ela sentou-se na cama,
resplandecendo como que banhada de luz branca. Depois de rezar, a
Santíssima Virgem abençoou cada um, colocando suas mãos cruzadas sobre
suas testas. Falou a todos uma vez mais, conforme Jesus havia-lhe dito em
Betânia. Quando Pedro se aproximou dela, vi que em sua mão havia um
pergaminho escrito. Maria, ainda, disse a João o que deveria ser feito com o
seu corpo e ordenou que suas roupas fossem divididas entre sua serva e
outra moça pobre da vizinhança que algumas vezes viera ajudá-la. Ao dizer
isso, apontou para o armário do lado oposto à sua cela. Pediu que o
abrissem e fechassem. Assim vi as roupas da Santíssima Virgem; irei
descrevê-las mais tarde. Depois dos Apóstolos, os discípulos presentes
aproximaram-se da cama da Santíssima Virgem e receberam a mesma
bênção. Os homens voltaram para a parte frontal da casa e prepararam-se
para a Missa. Enquanto isso, as mulheres presentes aproximaram-se da
Santíssima Virgem, ajoelharam-se e receberam a sua bênção. Vi que uma
delas curvou-se sobre Maria e foi abraçada por ela.
A ÚLTIMA MISSA CELEBRADA PELOS
APÓSTOLOS NA CASA DA SANTÍSSIMA VIRGEM
MARIA.

Nesse meio-tempo, o altar foi preparado e os Apóstolos


paramentaram-se para a cerimônia, trajando seus longos mantos brancos,
amarrados por cintos largos com letras inscritas. Cinco deles, que
cocelebravam o Sagrado Sacrifício (tal como vi quando Pedro presidiu a
Missa pela primeira vez na nova igreja, na piscina de Betsaida, depois da
Ascensão de Nosso Senhor), vestiram amplas e ricas vestes sacerdotais.
Pedro, que era o celebrante, vestia uma túnica bem longa atrás que,
contudo, não se arrastava pelo chão. Alguma coisa fazia a barra ficar bem
ampla ao redor dele. Ainda estavam se preparando quando vi Tiago Maior
chegar com três companheiros. Ele veio com Timão, o diácono da Espanha.
Depois de passar por Roma, encontrou-se com Eremensor e ainda um outro.
Os Apóstolos já presentes ali, que se dirigiam ao altar, cumprimentaram-no
com sentida seriedade e pesar, dizendo-lhe, em poucas palavras, que fosse
até a Santíssima Virgem. Ele e seus companheiros, depois de terem seus pés
lavados e suas vestes arrumadas, foram com as mesmas roupas de viagem
até o quarto da Santíssima Virgem.
Ela deu sua bênção primeiro a Tiago, em separado, depois a seus três
companheiros juntos. Em seguida, Tiago foi juntar-se à cerimônia. A Missa
já havia começado há algum tempo quando Filipe chegou do Egito com um
companheiro. Imediatamente foi até a Mãe de Nosso Senhor e chorou
amargamente enquanto recebia sua bênção. Nesse meio-tempo, Pedro
concluiu o Sagrado Sacrifício. Fez a consagração, recebeu o Corpo do
Senhor e deu a Comunhão aos Apóstolos e discípulos. A Santíssima Virgem
não podia ver o altar de seu leito, mas, durante o Sagrado Sacrifício, sentou-
se ereta, em profunda devoção. Pedro, então, levou o Santíssimo
Sacramento para Nossa Senhora e deu-lhe também a extrema-unção. Os
Apóstolos o acompanharam, numa procissão solene. Tadeu foi à frente, com
um turíbulo. Pedro levava o Santíssimo num recipiente, em forma de cruz.
João seguia-o, carregando um prato sobre o qual estavam o Cálice com o
Preciosíssimo Sangue e algumas pequenas caixas. Esse Cálice era pequeno,
branco e grosso como metal fundido; sua haste, de tão curta, só podia ser
segurada com dois ou três dedos. Possuía uma tampa e era do mesmo
formato do Cálice da Última Ceia.
Um pequeno altar tinha sido preparado pelos Apóstolos ao lado da
cama da Santíssima Virgem. A serva trouxe uma mesa e cobriu-a com
panos, um vermelho e um branco. Foram colocadas sobre ela algumas luzes
(creio que tanto velas quanto lâmpadas). A Santíssima Virgem deitou-se em
seu travesseiro, pálida e imóvel. Seu olhar estava dirigido para o alto. Não
disse nenhuma palavra a ninguém; parecia estar num estado de êxtase
perpétuo, radiante de desejo. Pude sentir esse seu anseio, que a transportava
para cima — ah, meu coração estava desejoso por ascender para Deus com
ela!
SÃO PEDRO DÁ A EXTREMA-UNÇÃO À VIRGEM
MARIA.

Pedro aproximou-se e deu-lhe a extrema-unção, muito semelhante ao


modo como é feito nos tempos atuais. Das caixas que João segurava, ele
tirou o santo óleo e ungiu-a na face, mãos, pés e lado, onde havia uma
abertura no vestido, mas que não a deixava descoberta. Enquanto isso os
demais Apóstolos recitavam orações em coro. Pedro deu-lhe a Sagrada
Comunhão. Ela ergueu-se no leito para recebê-lo e deitou-se novamente. Os
apóstolos rezaram um pouco mais. Erguendo-se, com dificuldade, ela
recebeu do Cálice que estava com João. Ao receber o Santíssimo
Sacramento, vi um brilho penetrá-la; caiu para trás como que em êxtase e
não falou mais nada. Os Apóstolos retornaram para o altar, na parte frontal
da casa, em procissão solene, e continuaram a cerimônia. São Filipe
recebeu, em seguida, a Sagrada Comunhão. Apenas algumas mulheres
permaneceram com a Santíssima Virgem.
A ALMA DA SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA É
LEVADA AO CÉU.

Ainda vi os Apóstolos e os discípulos uma vez mais em oração, ao


lado da cama da Santíssima Virgem. O rosto de Maria estava radiante e
sorridente como em sua juventude. Seus olhos estavam voltados para o céu
em santo júbilo. Tive, a seguir, uma visão maravilhosamente tocante. O teto
do quarto de Nossa Senhora desapareceu, e eu vi a Jerusalém celeste no
céu. Desceram duas nuvens radiantes de luz, cheias de rostos de anjos.
Entre as nuvens, apareceu um caminho de luz sobre Maria. Vi uma
montanha brilhante, que subia à sua frente até a Jerusalém celeste. Maria
estendeu seus braços em direção ao céu, em desejo infinito. Vi seu corpo,
todo coberto, erguer-se tão acima de sua cama que se podia ver abaixo dela.
Sua alma deixou seu corpo como uma pequena figura de luz infinitamente
pura. Foi levada muito alto, com os braços estendidos, acima da montanha
brilhante, para o céu. Os dois coros de anjos nas nuvens posicionaram-se
abaixo de sua alma, separando-a de seu santo corpo, que, no momento da
separação, desceu de volta para a cama, com os braços cruzados sobre o
peito. Meu olhar seguiu sua alma até que ela entrasse na Jerusalém celeste,
pelo caminho de luz, e subisse até o trono da Santíssima Trindade. Vi
muitas almas aproximando-se para encontrá-la, em júbilo e reverência.
Dentre elas reconheci muitos patriarcas, bem como Joaquim, Anna, José,
Isabel, Zacarias e João Batista.
MARIA CHEGA AO TRONO DE DEUS E RECEBE O
CETRO DA REALEZA. MARIA REINA SOBRE
TODA A TERRA.

A Santíssima Virgem flutuou por entre eles até o Trono de Deus e de


seu Filho, cujas chagas brilhavam com uma luz que ultrapassava até mesmo
a luz emanada de todo o Seu corpo. Ele a recebeu com Seu Amor Divino e
colocou em suas mãos um cetro. Com um gesto em direção à Terra, indicou
o poder dado a ela.
Vendo-a assim entrando na glória do céu, esqueci toda a cena em torno
de seu corpo na terra. Alguns dos Apóstolos, Pedro e João, por exemplo,
devem ter visto isso também, pois suas faces estavam voltadas para o céu.
Os outros estavam de joelhos, muitos curvados em direção ao chão. Por
todo lado havia luz e brilho, tal como na Ascensão de Nosso Senhor. Para
minha grande alegria, vi a alma de Maria, enquanto entrava no céu, ser
seguida por um grande número de almas libertadas do purgatório.
Novamente hoje, no aniversário de sua morte, vi muitas almas entrando no
céu, dentre as quais conhecia algumas. Recebi a consolação de saber que
todo ano, no dia da morte de Nossa Senhora, muitas almas dos que a
veneraram receberão essa recompensa.
Quando uma vez mais olhei para baixo, vi o corpo da Santíssima
Virgem deitado na cama. Ele estava brilhando; sua face radiante, os olhos
fechados e os braços cruzados sobre seu peito. Os Apóstolos, discípulos e
mulheres ajoelharam-se em volta, em oração. Enquanto via tudo isso, havia
um belo som e um movimento em toda a natureza como o que eu percebo
na noite de Natal. A Santíssima Virgem morreu depois da hora nona (três
horas da tarde), na mesma hora em que o Nosso Senhor expirara.
PREPARATIVOS PARA O SEPULTAMENTO DE
NOSSA SENHORA.

As mulheres colocaram uma cobertura sobre o santo corpo e os


Apóstolos e discípulos dirigiram-se para a frente da casa. O fogo na lareira
foi apagado. Os utensílios domésticos foram reunidos de lado e cobertos.
As mulheres cobriram-se e puseram véus, sentando-se no chão da sala, na
parte frontal da casa, onde começaram a se lamentar, ora ajoelhadas, ora
sentadas. Os homens cobriram suas cabeças com o pedaço de pano que
usavam em torno do pescoço e iniciaram uma cerimônia de luto. Havia
sempre duas pessoas rezando na cabeceira e no pé da cama, onde estava o
santo corpo. Mateus e André seguiram o Caminho da Cruz de Nossa
Senhora até a última Estação, a gruta que representava o sepulcro de Cristo.
Levaram algumas ferramentas para alargar essa tumba, pois lá ficaria o
corpo da Santíssima Virgem.
A gruta não era tão espaçosa quanto a de Nosso Senhor; a altura sequer
permitia a um homem entrar de pé. O chão da entrada era mais baixo que
do lado de fora e logo se podia ver a sepultura diante de uma espécie de
altar estreito, sobre o qual a parede de rocha se projetava. Os dois Apóstolos
tiveram um trabalho razoável. Fizeram também uma porta para fechar a
entrada da tumba.
No local da sepultura, fizeram um buraco do tamanho do corpo,
ligeiramente mais alto na posição da cabeça. Na frente da gruta havia um
pequeno jardim com uma cerca de madeira em volta, semelhante ao que
havia na frente do sepulcro de Cristo. Não muito longe, estava a Estação do
Calvário numa colina. Não havia uma cruz erguida lá, apenas uma gravada
na pedra. A tumba devia ficar a meia hora de caminhada da casa de Maria.
Vi os Apóstolos alternando-se quatro vezes para rezarem e velarem junto ao
santo corpo.
Hoje vi algumas mulheres, dentre as quais me lembro da filha de
Verônica e a mãe de João Marcos, prepararem o corpo para o sepultamento.
Trouxeram panos, bem como especiarias para embalsamar o corpo, segundo
o rito judaico. Todas carregavam pequenos potes de ervas frescas. A casa
estava fechada e elas trabalharam sob a luz de lâmpadas. Os Apóstolos
ficaram em coro, rezando na parte frontal da casa. As mulheres levaram o
corpo da Santíssima Virgem, de seu leito de morte, e o colocaram sobre
uma cesta comprida, na qual tinham sido empilhadas algumas mantas
grossas e rústicas. Então duas mulheres cobriram o corpo com um pano
largo, enquanto outras duas removeram a cobertura da cabeça e outros
panos debaixo deste, deixando o corpo coberto apenas com uma longa
túnica de lã. Cortaram belos cachos de cabelo da Santíssima Virgem para
serem guardados como lembrança. Vi que essas duas mulheres lavaram o
santo corpo; parecia que elas tinham esponjas nas mãos. A longa túnica,
que cobria o corpo, foi cortada. Executaram esse serviço com grande
respeito e reverência; lavaram o corpo coberto por um pano, sem olhá-lo.
Uma quinta mulher espremia as esponjas numa bacia e as mergulhava em
água fresca; vi essa bacia ser esvaziada três vezes, num buraco fora da casa,
e mais água fresca ser trazida. O santo corpo foi vestido com uma túnica
nova, com abertura frontal, e reverentemente levantado, por meio de panos
que passavam por debaixo, até uma mesa, onde as faixas mortuárias haviam
sido colocadas para facilitar o trabalho. As mulheres enrolaram o corpo
bem firmemente, do tornozelo até abaixo do peito, deixando a cabeça, o
peito, as mãos e os pés sem faixas.
Nisso, os Apóstolos auxiliaram no Sagrado Sacrifício oferecido por
Pedro e receberam a Comunhão. Após a cerimônia, vi Pedro e João, ainda
em grandes mantos de bispo, irem para o local onde estava o santo corpo.
João carregava um vaso com unguento e Pedro, mergulhando o dedo de sua
mão direita nele, ungiu o peito, as mãos e os pés da Santíssima Virgem, em
oração. (Essa não era a extrema-unção, que ela já havia recebido quando
ainda estava viva.) Pedro tocou as mãos dela e os pés com unguento,
marcando a testa e o peito com o sinal da cruz. Creio que foi feito como
sinal de respeito pelo santo corpo, como no sepultamento de Nosso Senhor.
Depois dos Apóstolos terem saído, as mulheres continuaram com a
preparação do corpo. Colocaram punhados de mirra nas axilas, no peito,
nos espaços entre os ombros em torno do pescoço, no queixo e na face; os
pés também foram completamente envolvidos com ervas. Depois cruzaram
os braços dela sobre o peito, envolveram o santo corpo num grande tecido
mortuário e o enrolaram com uma faixa presa debaixo de um dos braços, de
modo que parecia uma criança recém-nascida. Um lenço transparente foi
cingido atrás da cabeça, que brilhava entre os punhados de ervas. Então
colocaram o santo corpo no caixão que estava perto; era como uma cama ou
uma longa cesta, uma espécie de prancha com borda baixa e uma tampa
levemente arqueada. Sobre o peito depositaram uma coroa de flores
brancas, vermelhas e azuis-celeste, como símbolo de virgindade. Os
Apóstolos, discípulos e todos os outros presentes entraram para ver o
amado rosto uma vez mais, antes que fosse coberto. Ajoelharam-se
silenciosamente, derramando muitas lágrimas, ao redor do corpo da
Santíssima Virgem; tocaram as mãos de Maria, despediram-se e depois
saíram. Às santas mulheres, depois de se despedirem, cobriram o santo
rosto e colocaram a tampa do caixão, que foi presa com faixas cinzas nas
extremidades e no meio. Depois vi o caixão ser erguido e levado para fora
da casa sobre os ombros de Pedro e João. Devem ter trocado de lugar,
porque depois vi seis dos Apóstolos colocando-se como portadores do
caixão — na frente, Tiago Maior e Tiago Menor; no centro, Bartolomeu e
André; e atrás, Tadeu e Mateus. Devia haver uma esteira ou um pedaço de
couro preso nas varas de carregar, pois o caixão estava suspenso entre eles.
Alguns dos Apóstolos e discípulos foram na frente; outros, atrás com as
mulheres. Já estava anoitecendo; por isso quatro lâmpadas eram carregadas,
em varas, em volta do caixão.
SEPULTAMENTO E ASSUNÇÃO DE NOSSA
SENHORA

O cortejo fúnebre seguiu pelo Caminho da Cruz montado por Nossa


Senhora até a última Estação. Depois passou sobre a colina em frente
daquela Estação e parou à direita da entrada da tumba. Lá abaixaram o
santo corpo. Quatro deles o carregaram para dentro da câmara funerária na
rocha e o colocaram no lugar previamente escavado. Todos os presentes
entraram um a um e depositaram especiarias e flores ao lado do corpo.
Ajoelharam-se, oferecendo suas orações e lágrimas. Muitos se demoraram
ali, tomados de amor e tristeza. Era noite quando os Apóstolos fecharam a
entrada da tumba. Cavaram uma vala diante da entrada estreita da tumba e
plantaram ali uma cerca viva, formada de vários arbustos trazidos com
raízes de um outro lugar. Alguns arbustos tinham folhas, outros botões e
outros ainda frutos. Fizeram com que a água de uma fonte próxima fluísse
na frente da sebe, de modo que nenhum vestígio da entrada pudesse ser
visto. Ninguém conseguiria entrar na gruta sem forçar passagem por detrás
da cerca.
Foram embora em grupos separados. Alguns ficaram para rezar e velar
diante da tumba, outros pararam aqui e ali nas Estações da Cruz. Aqueles
que estavam a caminho de casa viram a distância uma estranha
luminosidade sobre a tumba de Maria. Isso os deixou maravilhados, embora
não soubessem o que era realmente. Eu a vi também, mas me lembro
apenas do seguinte: era como se um facho de luz descesse do céu na direção
da tumba e, nesse facho, houvesse um lindo contorno da alma da Santíssima
Virgem, acompanhada pela de Nosso Senhor. Depois, o corpo de Nossa
Senhora, unido à alma brilhante, ergueu-se brilhando para fora da tumba e
subiu para o céu com a figura de Nosso Senhor.
Tudo isso reside em minha memória e ainda algo mais distinto. De
noite vi vários dos Apóstolos e santas mulheres rezarem e cantarem no
pequeno jardim em frente à tumba. Um largo facho de luz desceu do céu
sobre a rocha enquanto um esplendor de três círculos de anjos e espíritos
rodeavam a aparição de Nosso Senhor e a alma brilhante de Maria. A
aparição de Nosso Senhor, de cujas marcas das chagas saíam raios de luz,
moveu-se para baixo, em frente da alma dela. Em volta da alma de Maria,
no círculo de dentro da glória, vi apenas pequenas figuras de crianças; no
círculo do meio, pareciam ter seis anos de idade; no círculo de fora, eram
jovens adultos. Pude ver apenas as faces claramente; todo o resto vi como
figuras de luz trêmula. À medida que essa visão se tornava mais clara e
fluía sobre a gruta, vi um caminho brilhante aberto, que subia até a
Jerusalém celeste. Depois vi a alma da Santíssima Virgem passar na frente
da aparição de Nosso Senhor e flutuar para dentro da tumba. Logo em
seguida, vi a alma dela, unida ao seu corpo transfigurado, erguer-se para
fora da tumba, ainda mais brilhante e clara, e subir para a Jerusalém celeste
com Nosso Senhor e com toda a glória. A seguir toda a radiância foi
perdendo o brilho e o céu totalmente estrelado cobriu novamente a terra.
Não sei se os Apóstolos e as santas mulheres que estavam rezando
diante da tumba viram tudo isso da mesma maneira, mas eu os vi olharem
para cima em adoração e assombro, lançando-se ao chão, cheios de
admiração com os rostos por terra. Vi também como vários daqueles que
estavam rezando e cantando pelo Caminho da Cruz, indo para casa,
voltaram com grande reverência e devoção na direção da luz sobre a tumba.
Retornando para casa, os Apóstolos e discípulos tomaram algum
alimento e depois foram descansar. Dormiram fora da casa, em cabanas
construídas para isso. A serva de Maria, que havia permanecido na casa
para deixar as coisas em ordem, e as outras mulheres, que ficaram lá para
ajudá-la, dormiram no quarto atrás da lareira. Durante o sepultamento a
serva havia esvaziado completamente o ambiente, de modo que parecia
agora uma pequena capela. Dali em diante os Apóstolos a usaram para orar
e oferecer o Sagrado Sacrifício. Nessa noite ainda os vi em seus próprios
quartos, em oração e lamentos. As mulheres já tinham ido se deitar. Vi o
Apóstolo Tomé com dois companheiros, de túnicas cingidas por causa da
viagem, chegarem ao portão do pátio e baterem à porta. Havia com ele um
discípulo chamado Jonatan, aparentado da Sagrada Família. O outro
companheiro era um homem muito simplório da terra do rei mago que vivia
mais longe; costumo chamar esse lugar de Partherme, por não conseguir
lembrar dos nomes exatamente. Tomé havia-o trazido de lá. Ele carregava
seu manto, era como uma criança e um servo obediente. Um discípulo abriu
o portão e Tomé foi com Jonatan até o quarto dos Apóstolos, dizendo ao seu
servo para sentar-se junto ao portão e esperar. O bom homem, que fazia
tudo que lhe era dito, sentou-se imediatamente em silêncio. Oh, quão
angustiados ficaram ao descobrirem que haviam chegado tarde demais!
Tomé chorou como uma criança quando soube da morte de Maria. Os
discípulos lavaram os seus pés e os de Jonatan e deram-lhes um refresco.
Nesse meio-tempo as mulheres haviam acordado e levantado-se. Quando
elas se retiraram do quarto de Nossa Senhora, Tomé e Jonatan foram
levados até o lugar onde ela havia morrido. Eles lançaram-se ao chão e
debulharam-se em lágrimas. Tomé ficou bastante tempo ajoelhado, em
oração, no pequeno altar de Maria. Seu pesar era inexprimivelmente
tocante; o que me faz chorar sempre que penso nisso. Quando os Apóstolos
terminaram suas orações (que ainda não haviam interrompido), foram
cumprimentar os recém-chegados. Tomaram Tomé e Jonatan pelos braços,
levantaram-nos do chão, pois estavam ajoelhados, os abraçaram e os
levaram para a parte frontal da casa, onde lhes deram mel e pequenos pães.
Eles beberam de umas taças, abraçaram-se uns aos outros e depois rezaram
juntos uma vez mais.
Como Tomé e Jonatan suplicaram para ver a tumba da Santíssima
Virgem, os Apóstolos acenderam lâmpadas e seguiram todos pelo Caminho
da Cruz de Maria até sua tumba. Falaram pouco e pararam brevemente nas
Estações onde meditaram a Via Dolorosa de Nosso Senhor e o piedoso
amor de Sua Mãe, que havia colocado aquelas pedras em Memória do
Filho. Quantas vezes ela as regou com lágrimas. Quando chegaram até a
tumba, todos se lançaram ao chão de joelhos. Tomé e Jonatan correram em
direção à tumba, seguidos por João. Dois discípulos afastaram os arbustos
da entrada; eles entraram e ajoelharam-se, em reverência, diante do
sepulcro da Santíssima Virgem. João aproximou-se do caixão, desfez os três
laços cinzas, que estavam em volta, e colocou-os de lado. Quando as luzes
das tochas iluminaram dentro do caixão, viram com estupefação e assombro
os panos mortuários ainda enrolados como antes, mas vazios. Na altura da
face e do peito, as faixas estavam desenroladas; as dos braços estavam
frouxas, mas não desenroladas. O corpo transfigurado de Maria não estava
mais na Terra. Olharam para cima admirados, levantando os braços, como
se o santo corpo tivesse acabado de desaparecer diante deles. João chamou
os que estavam fora da gruta: “Venham, vejam e maravilhem-se; ela não
está mais aqui.” Todos foram, dois a dois, para dentro da gruta estreita e
viram, assombrados, os panos mortuários vazios diante deles. Olharam para
o céu e, com os braços erguidos, choraram e rezaram, louvando o Senhor e
Sua amada Mãe transfigurada (sua verdadeira e querida Mãe). Como
piedosas crianças, exprimiram todo tipo de carinho e apreço que o espírito
lhes inspirava. Devem ter lembrado, em seus pensamentos, daquela nuvem
de luz vista de longe, quando estavam a caminho de casa, imediatamente
após o sepultamento. De como esta havia descido sobre a tumba e depois
subido ao céu novamente. Com grande reverência, João pegou do caixão os
panos mortuários da Santíssima Virgem, dobrou-os juntos cuidadosamente
e os levou consigo, depois de fechar a tampa do caixão e amarrá-la
novamente com as faixas cinzas. Deixaram a tumba e fecharam a entrada
com os arbustos. Retornaram para casa, pelo Caminho da Cruz, rezando e
cantando hinos. Ao chegarem, dirigiram-se para o quarto de Nossa Senhora.
João colocou reverentemente os tecidos mortuários sobre a pequena mesa
diante do lugar onde Nossa Senhora costumava rezar. Tomé e os outros
rezaram novamente no lugar onde ela havia morrido. Pedro afastou-se,
meditando em espírito; creio que estava se preparando, pois, depois, vi o
altar ser montado diante do local de oração de Nossa Senhora, onde ficava
sua cruz. Vi Pedro celebrar um culto solene ali; os outros ficaram atrás dele,
em fileiras, rezando e cantando alternadamente. As santas mulheres
estavam ainda mais para trás, perto da porta e atrás da lareira.
Depois da morte da Santíssima Virgem, vi os Apóstolos e os discípulos
frequentemente reunidos em grupo, contando um para o outro onde tinham
estado e o que lhes tinha acontecido. Ouvi tudo e, se for da vontade de
Deus, recordarei depois.
Após muitas orações, quase todos os discípulos partiram e retornaram
para os seus trabalhos. Os Apóstolos ainda estavam na casa, com Jonatan,
que foi com Tomé, mas iriam partir tão logo terminassem seus trabalhos.
Retiraram pedras e ervas daninhas do Caminho da Cruz de Maria e
plantaram belos arbustos, ervas e flores. Enquanto trabalhavam, rezavam e
cantavam; não consigo expressar quão tocante era vê-los assim. Era como
se, em seu amor e tristeza, estivessem oficiando uma cerimônia religiosa
solene, triste, mas bela. Como piedosas crianças, enfeitavam os passos da
Mãe de Deus e — os acompanhavam, em devoção piedosa, seguindo o
caminho de sofrimento de seu Divino Filho até Sua morte redentora sobre a
Cruz.
Fecharam inteiramente a entrada da tumba de Maria com mais terra e
arbustos plantados na frente. Arrumaram e embelezaram o pequeno jardim
diante dela, além de abrirem um caminho atrás da colina que ia até a parede
de trás da tumba. Fizeram alí uma abertura na rocha, através da qual se
podia ver o lugar onde o corpo da Santa Mãe havia sido depositado —
aquela Mãe que o Redentor, quando estava morrendo na Cruz, confiou a
João, a eles todos e à Sua Igreja. Oh, que filhos verdadeiros e fiéis,
obedientes ao quarto mandamento, eram. Por muito tempo seu amor viverá
sobre a Terra!
Acima da tumba fizeram uma capela com tapetes; nela havia paredes e
teto de junco trançado. Construíram ali um pequeno altar com uma grande
pedra chata apoiada sobre outra pedra com um degrau, também de pedra.
Junto à parede atrás do altar, penduraram um pequeno tapete, onde a figura
da Santíssima Virgem tinha sido tecida ou bordada, de modo simples e
claro. Cores vibrantes mostravam-na em trajes de festa, marrom com azul e
tiras vermelhas. Quando tudo estava terminado, realizaram um ofício; todos
rezaram de joelhos com as mãos levantadas. Transformaram o quarto de
Maria numa igreja. Sua serva e algumas mulheres continuaram a viver na
casa. Dois dos discípulos, um dos quais chegara do vale dos pastores além
do Jordão, foram deixados alí para oferecerem conforto espiritual aos fiéis
que viviam na vizinhança.
Logo depois, os Apóstolos separaram-se e seguiram diferentes
caminhos. Bartolomeu, Simão, Judas Tadeu, Filipe e Mateus foram os
primeiros a partir para os países de suas missões, depois de uma
emocionante despedida. Os que restaram, exceto João, que ali permaneceu
por um tempo, seguiram juntos para a Palestina, antes de se separarem.
Havia, ainda, muitos discípulos ali; várias mulheres os acompanharam de
Éfeso a Jerusalém. Maria Marcos fez muito pelos cristãos da região;
estabeleceu uma comunidade de umas vinte mulheres que, de uma certa
forma, passaram a viver uma vida conventual. Cinco delas viveram em sua
casa, que era um local de encontro regular para os discípulos. Os cristãos
também possuíam uma igreja no Tanque de Betsaida.
[Em 22 de agosto, Anna Catharina Emmerich disse:] João é o único
deixado na casa. Todos os outros já partiram. Ficou para executar os
pedidos de Maria, para dividir as roupas dela entre sua serva e uma outra
moça que algumas vezes a ajudava. Algumas das coisas dadas pelos três
reis magos estavam nessa partilha. Duas longas túnicas brancas, vários
mantos compridos e véus, bem como colchas e tapetes. Vi também
claramente aquele vestido com listras que ela usou em Caná e no Caminho
da Cruz — do qual possuo uma pequena tira. Algumas dessas coisas
tornaram-se propriedade da Igreja. Por exemplo: o belo vestido de
casamento azul-celeste, ornamentado com linhas de ouro e rosas bordadas,
foi transformado numa veste para a celebração do Sagrado Sacrifício para a
igreja de Betsaida, em Jerusalém. Ainda existem relíquias dessa veste em
Roma. Eu as vi, mas não sei se estão corretamente identificadas. Maria usou
esse vestido uma única vez, somente em seu casamento.
Tudo que descrevi aconteceu calma e silenciosamente. Havia sigilo (ao
contrário de hoje), mas não medo. A perseguição ainda não havia atingido o
estágio em que espiões e informantes vigiavam todos; não havia nada para
perturbar a serenidade e a paz.

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