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São Caetano do Sul – SP – Brasil
Rússia, 1812
T
udo começou em dezembro.
A calamidade, que só acabaria
anos luz à frente deste tempo, teve
início com o choro de uma criança sentada
no último banco da igreja. Ela fitava o chão
com lágrimas vertendo de seus olhos sem
cessar, pois não queria ver — e guardar na
memória — o rosto inexpressivo de sua
mãe morta.
II
Aqui em cima!
Irmandade
Longínqua
L EONA R DO R I BE I RO
1825
N
ão seria possível criar uma analo-
gia tão crível a ponto de fazer jus
ao tamanho daquela propriedade.
Mas, de fato, era grande o suficiente para
fazer Gastão se perder, após ser deixado no
jardim principal para explorar a magni-
tude do edifício Muskov, mesmo não sen-
do sua primeira visita ao hospício. Agora,
trinta minutos depois – vinte somente de
caminhada, desbravando relvas, cômodos
24
e escadas –, estava posicionado numa re-
cepção, ainda na solitude, contemplando
o modo como as diminutas partículas de
poeira entravam pelas janelas colossais e
se encurralavam no canto oposto da sala.
Ele levantou o olhar quando ouviu os
passos compassados ecoarem e fitou a
senhora baixinha e redonda, vestida de
enfermeira, adentrar a sala, a roupa se
dissipando antes de tocar os joelhos. Um
som estridente saía da cadeira de rodas
empurrada pela mulher e, junto a ela, um
paciente desgrenhado choramingava, mar-
tirizando-se por algo que não conseguiu
concluir.
— O que você está fazendo aqui? – o
espanto era evidente em sua voz. — Des-
culpe, mas não estamos mais contratando
negros. As últimas vagas acabaram mês
passado. Deveria ter vindo antes.
25
Gastão ficou de pé, soltando um riso for-
çado e estendeu a mão num cumprimento
que demorou a ser retribuído.
1829
E
ugênia pisava em cacos de vidro
que, dez minutos antes, eram frascos
de sedativo. Os olhos vibravam de
determinação e sua postura indicava que
44
nada a faria desistir de nocautear Anatólia.
Ergueu uma cadeira caída de lado, desviou
de uma prateleira despencando da parede
e, enfim, se aproximou da figura agitada e
furtiva, escondida nas sombras do quarto
semidestruído. O avental branco encar-
dido, sujo com manchas de sangue seco e
café derramado, não tornava Eugênia uma
visão menos apavorante.
1832
O
relógio marcava dez horas em pon-
to quando o Sr. e a Sra. Kuznetsov
passaram pela porta da recepção.
O homem entrou primeiro e foi direto
ao balcão, onde uma mulher carrancuda
realizava atendimento. Enquanto isso, sua
esposa fechava a sombrinha ensopada pela
tempestade, que caía desde o momento em
que a tragédia resolvera se declarar como
parte de sua família.
1841
E
m 1840, vinte e oito anos após a
fundação do Hospício de Muskov,
na Rússia, recebi um convite para
trabalhar naquela que dizia ser a institui-
ção de referência no tratamento de doen-
tes mentais na Europa. O convite chegou
a minha residência em Peste, Hungria,
dentro de um envelope vermelho, o qual
continha uma carta escrita a próprio punho
pelo fundador, o psicólogo Gabor Nagy.
Assim dizia um trecho da carta:
Ecos do silêncio
DA YA N N E F E R N A N D E S
1843
J
á passava das nove da noite quando
Anna sentiu a primeira pontada em
seu ventre. A dor veio intensa e cres-
cente, em espaços de tempo cada vez mais
curtos. Ela mordia os próprios lábios para
não gritar, pois não queria chamar atenção
de Dimitri, o enfermeiro-chefe. Se ele a
ouvisse, então estaria acabado. Não ousaria
arriscar, não naquele momento quando
81
estava prestes a... Anna arfou, trincando
os dentes. As pontadas agudas reviravam
suas entranhas e arrancavam o ar de seus
pulmões. O corpo pesava e, zonza, ela ta-
teou a parede no escuro até encontrar a
maçaneta da porta, o suor escorrendo por
seu rosto.
Terror Noturno
L E L E N H A YA S H I DA
1847
D
esde que minha memória falhou
em alguns aspectos, depois de um
terrível acidente, minhas noites
andavam turbulentas. Havia imagens em
minha mente que eu não conseguia apa-
gar, tampouco saber de que se tratavam.
Os pesadelos eram frequentes e a dúvida
93
sobre o que era real e o que era alucinação
me acompanhava sempre.
Aparentemente, sim.
O Enfermeiro da Ala
43
L . F. D E L B O S C O
1851
A
s garras viscosas arranham o chão,
cada vez mais próximas de Alek —
um aviso de que seu fim chegava,
105
lentamente. Seu coração pulsa forte, fazendo
o homem em desespero sentir que logo o
colocará para fora, junto a todos os outros
órgãos e vísceras. Ele encontra-se parado,
como se algo o congelasse e o mantivesse
preso ao chão, uma estátua viva. Os olhos
da criatura que se aproxima são como
covas de terra molhada, com uma fraca
luz azulada brilhando ao centro, como se
tentasse escapar em agonia. Seus dentes
são ainda mais afiados que suas garras, e
Alek consegue ver todos eles no que supõe
ser um sorriso. A criatura então diz:
E ele acorda.
Ela se surpreende.
— Como assim?
— Só me dê alguns segundos e eu te
acompanho.
115
Complexo de
Pandora
R A FA E L F. FA I A N I
1864
A
luz do dia é como um ferrão nos
olhos. Na cama, você pisca até se
acostumar com a luminosidade. O
inverno é um monstro branco com dentes
e garras, que lhe toma o mundo de cores
que tanto ama. Pela janela de grades, é
quase impossível enxergar o lado de fora,
mas não é sempre que você fica livre no
quarto. Hoje você permanece amarrada
na cama, os membros imobilizados por
cintas de couro desgastadas, que cumprem
bem o serviço.
— Tra-ta-mento?
120
— Siga-me, por favor.
— Rurik?
Katrina?
A
ficha marcava o início do trata-
mento. A mulher não progredia.
Pelo contrário, seu caso havia se
tornado ainda mais desolador. Os gritos
130
ecoavam pelo quarto, e a sua pele clara,
coberta por linhas mal cicatrizadas, era
a prova da raiva contida no corpo frágil
e esbelto. Os longos cabelos loiros já não
existiam, dando lugar ao crânio arroxeado,
com marcas de queimadura. Um dia, ela
foi o alvo de desejo de inúmeros preten-
dentes. Inclusive meu.
— SEU PORCO!
— Tragam a mordaça!
Eu a estava perdendo.
Temperatura Crítica
V INÍCIUS GU T TER R ES
1885
T
odos os modernos microfones que
seriam utilizados na transmissão de
rádio em escala nacional já estavam
prontos, e as lentes das pesadas máquinas
fotográficas focavam no tirano enquanto
a maquiadora finalizava o seu trabalho.
145
Assim que a experiente profissional termi-
nou de borrifar o último produto estético, o
ditador se virou para o consultor de moda
pessoal e, expondo o rosto, perguntou:
— Requer?!
— Desembuche.
— Claro, Vos...
— Qual?
A Dama de duas
faces
“A morte é fria e lenta, bela e mórbida”
J. M. MENEZ
Dezembro de 1902
O
s murmúrios dos outros pacientes
amordaçados ecoavam pelos cor-
redores. Fazia apenas seis meses
que eu estava presa ali, meses que mais
157
pareciam anos. Eu ainda sonhava com
o dia em que papai entraria por aquela
porta e me libertaria – sonho esse que
nunca se realizou.
— Eu não posso.
— Quem? – perguntei.
— Anton Gorbachev.
Celese
M A R I N A AV I L A
1906
F
ui feita destes pequenos pedaços de
estrelas, como pode ver. Perdoe a ex-
pressão, quero dizer na verdade que
você não pode ver; são pequenos demais
173
para os olhos, mas vibram em energia como
as das lâmpadas piscando no corredor lá
fora. Por isso, sabia que minha vida seria,
de certa forma, infinita.
— Sim. Física.
— Continue...
— Eu sinto muito.
188
A Vidente Vangelia
RODR IG O ORT I Z V I N HOL O
1911
D
entro das paredes de Muskov, vive-
ram todo tipo de coitados, sádicos,
maníacos e até indivíduos que
acreditavam ter tido uma oportunidade
única na vida. Mas como todo local em
que habitam mentes humanas instáveis,
a autopercepção de quem estava em cada
uma dessas posições frequentemente era
errônea.
201
Incógnitas de
Muskov
M AT EUS L I NS
1914
E
la preferia estar morta, mas seu olhar
continuava vivo como as marcas de
violência em sua pele. Em cada ci-
catriz, repousavam os túmulos dos senti-
mentos e dos sorrisos que a abandonaram
há muito tempo.
Era cautelosa.
Havia sangue.
Yeva.
1894
— Svethana...
A Boneca da Igreja
BRU NO G ODOI
1917
E
ntre julho e dezembro de 1917, a rea-
lidade interna da Rússia se agravou.
Fome, exploração dos trabalhadores
217
urbanos e rurais, revoltas e movimentos
contra o czar; o país deixou a Primeira
Guerra e a Revolução Russa estava pronta
para começar. A nação não tinha dinheiro
para manter soldados na guerra nem para
tratar a população – os que mais sofreram
foram os doentes mentais. Os bolcheviques
estavam chegando ao poder e a família do
czar Nicolau II era ameaçada. Escândalos
ligados à Igreja Ortodoxa Russa envolveram
as mulheres da família do czar; por isso,
ele as mandou para o Hospício Muskov,
aos cuidados de um jovem médico, Dr.
Guy, que iniciara uma técnica secreta – e
desumana – para tratar os loucos.
252
O gato caolho
do Hospício de
Muskov
H E R ÁC L I T O PI N H E I RO
1920
O
prédio magnífico do palacete do
Hospício de Muskov, a visão de
suas torres sinistras cobertas de
neve, na pálida luz invernal, encheu de
júbilo o coração do jovem médico Czerno-
bog Kozlov. Nevava quando ele se aproxi-
mou pela primeira vez do hospital; estava
tão frio que a neve não derretia ao toque
ou enlameava o solo, mas era sim um pó
branco puro e límpido, acumulando-se
sobre tudo e trazendo um brilho espec-
tral à construção. Vista sob o prisma da
dança dos minúsculos flocos de neve, era
253
impossível saber ao certo a sua distância
ou discernir o seu tamanho, e o uivo do
vento gélido parecia dar as boas-vindas ao
jovem e ambicioso médico.
260
A jovem, chamada Bertha Nikolayevna
Spielrein, estava curada de todos os seus
sintomas; ao assassinar o pai, eles sumi-
ram, exceto a sua incapacidade de falar
russo e todos os outros idiomas em que era
fluente, menos o alemão. Desde o parricí-
dio, ela teve uma crise maníaca e depois
entrou em um estado de profunda apatia.
Em seu histórico, havia um dado curioso,
aos quinze anos – a jovem contava então
com 22 anos –, ela atuou como médium,
recebendo mensagens de três espíritos,
incluindo o seu avô paterno.
Absolutamente fascinante, foi o que a men-
te de Kozlov, repleta de teorias sobre a
261
loucura, imediatamente pensou. Curar uma
alma tão atormentada lhe daria o material
empírico necessário para se tornar uma
estrela em ascensão no mundo competiti-
vo da Psiquiatria. Sem demora, ele exigiu
ser levado até a jovem, que estava presa
numa cela na mais alta torre do sanatório,
a fim de iniciar os procedimentos para
tratá-la. Uma enfermeira rotunda e enor-
me lhe deu um maciço molho de chaves,
carcomido pela ferrugem, e lhe indicou
a direção, pois os funcionários evitavam
ao máximo se aproximar da jovem judia.
Coisas estranhas aconteciam àqueles que
se aproximavam dela.
275
Visita Para Svetlana
L . S . WO LT E R
1921
A
corde! Acorde Svetlana!
290
Os Sigilos do
Amanhã
C A E SA R C H A RON E
1927
E
naquele pedaço de papel roto e en-
sebado estava escrito:
Mando-lhe frequências feitas de fogo-
-fátuo e esperanças, o que, se pensadas pela boa
vontade, se resumem na mesma coisa. Todos
os infernos são espelhos da humanidade. To-
dos os infernos são tão seus quanto meus, e nas
marés que fazem a vida, eles nos engolem aqui
e acolá para sermos depois regurgitados sob a
desculpa vã de que seremos felizes. Olhe bem
para as coisas belas sabendo que os segredos que
nelas habitam serão um dia revelados, quando
finalmente fechares teus olhos para tudo aquilo
que a luz rege.
291
Foi assim que o fim começou.
Dia 1
Dia 2
Dia 9
Dia 11
Dia 12
348
Não houve despertar de imediato. Mesmo
com o berro terrível da sirene, Vladímir
não abandonou seu refúgio sem sonhos.
Foi preciso que os enfermeiros do plantão
da madrugada entrassem e o acordassem
com uma dose conjugada de veemência e
mau humor. E quando finalmente acordou,
as lembranças da noite anterior tintilavam
em sua cabeça como fragmentos furiosos
de um universo distante, uma vida que
não era dele.
Dia 15
Dia 17
Dia 18
Dia 26
Dia 32
Dia 36
Dia 37
372
Poucas vezes na vida Vladímir lembrara
de ficar tão alegre com a visão de outro
ser humano. Os dois olhos diferentes da
esposa eram sóis desiguais a lhe trazer o
mesmo calor. Ela trouxera chocolates de
Amsterdam, mas eles foram confiscados
na inspeção de chegada. Depois dos proto-
colos de praxe, um relatório interminável
foi exposto por Belykh e Karamazov aos
ouvidos incrédulos de Aleksandra. Os dois
homens pareciam ignorar completamente
Vladímir, considerando sua presença — na
mesma sala onde desfiavam um rosário
de horrores — tão relevante quanto um
abajur.
Após o almoço, o casal Baranov teve
acesso ao pátio externo, só liberado naquele
dia porque o sol permitira mais um raro
espetáculo de exibicionismo.
Karamazov foi até eles para apresentar
373
suas considerações longe dos ouvidos de
Belykh. A justificativa era que o diretor
tendia excessivamente aos resultados, en-
quanto ele se mantinha confiante no pro-
cesso, o que julgava mais sábio. Aleksan-
dra queixou-se de que Vladímir oscilava
momentos de atenção e embotamento.
Assim como ela estava ciente, nas poucas
horas desde que chegara a Muskov, que o
marido variava um estado febril.
— Claro, Sra. Baranov. Isso é exatamente
o esperado. O óbvio não esperado é que a
Sra. compreendesse isso — disse o médico
irritado.
— Bem, Karamazov, torço realmente para
que você saiba o que está fazendo. Estamos
pagando caro por este tratamento, e eu não
estou falando de dinheiro. São muitos em
São Petersburgo que acompanham de lon-
ge e com expectativa o que acontece com
374
Vladímir —devolveu Aleksandra. — Muitas
e poderosas são as luzes que desconfiam
da escuridão que acompanha Muskov, e
não estamos falando do inverno.
— É...
— Sempre.
Dia 38
Dia 49
Dia 50
Dia 61
Dia 63
Dia 66
— Todos os dias.
Dia 69
E sorriram.
Dia 70
Dia 71
E acabou.
E sorriu.
Dia 72
Amada Aleksandra,
Com amor,
Vladímir Baranov
461
Ursel Miezel
S T E FA N O S A N T ’A N N A
1931
O
quê vocês vão fazer comigo
agora? Vocês acham que eu
— posso ser controlada com cho-
ques e drogas, não é mesmo? – debochou
ela, atada na cadeira de paciente, forçando
um sorriso nas feições quase anestesiadas
de dor. O filete de sangue seco atravessan-
do o olho esquerdo não a incomodava a
ponto de se importar. — Eu vou provar
que estão enganados.
— Ava Lindsay.
— Dez anos.
Clube noturno
de mariposas mortas
JEFTER HA AD
1936
C
omumente catalogadas por hábitos no-
turnos, a Coscinocera hercules possui
coloração cinza-amarronzada e apresen-
ta uma das maiores extensões de superfície de
contato corporal, medindo até 30 centímetros
484
da ponta de uma asa à outra. Oriundas da
Austrália e Papua-Nova Guiné, o ciclo vital
destes insetos é composto por quatro estágios:
ovo, lagarta, pupa – desenvolvendo-se dentro
da crisálida – e imago – ou fase adulta pro-
priamente dita.
Idade: 16 anos
— S u b l i m e.
— FALA!
— FALA!
Idade: 16 anos
— Eu não quero.
— ENFERMEIRA! ENFERMEIRA!
— ENFERMEIRA! ENFERMEIRA!
O coração secreto
de Marte
L U C A S O D E R S VA N K
Inverno de 1937
A
rrastavam-no por um labirinto de pe-
numbra, uma treva de gelo lhe roubava
o calor à alma. Era como despertar
para um pesadelo. Ecos sussurravam distan-
tes e um véu turvo colava-se à retina, apenas
deixando adivinhar vultos e sombras que se
564
projetavam à luz mortiça das raras lâmpadas.
Em silêncio marcial, mãos de aço agarravam-
-lhe ambos os braços com a violência de quase os
partir. E partiriam. Pararam em frente a uma
porta colossal, forjada em um ferro tão maciço
quanto as trevas daquele lugar. Sem cerimônia,
uma daquelas bestas vestidas de branco cuspiu
uma ordem seca e, antes que o eco de sua voz
se perdesse na escuridão, o metralhar de mil
ferragens fez-se ouvir. A porta moveu-se com
um lamento metálico de cortar a alma, liber-
tando um hálito de podridão e desespero. Não
tão distante, um coro de lamentos, loucura e
dor chegou-lhe aos ouvidos, infectando o que
lhe restava da esperança. Deixou-se cair. Seus
olhos perderam-se naquela imensa boca negra,
a entrada para as entranhas do devorador das
almas infelizes.
Uma entrada para o inferno.
565
Ilya despertou, afogando-se em seu próprio
vômito. Virou-se à beira da cama decrépita
onde tremia de frio e vomitou a bile escura
que lhe queimava a garganta. Como em
todas as vezes que fechava os olhos, fora
atormentado por aquele mesmo pesadelo
onde era atirado à escuridão infernal do
Hospício de Muskov.
Um dia desses, arrastem-me até a saída,
pensou, como quem pede uma esmola de
piedade a um deus qualquer.
Arriscou a erguer-se na cama, mas seus
músculos e ossos estavam liquefeitos em
dor. Sentiu então uma presença que chega-
va ao seu lado e o amparava com alguma
gentileza. Fez um esforço dolorido para
virar o rosto e viu a figura raquítica e mal-
tratada de Pavel. Era um rapaz de idade
indecifrável, que fora ali parar por insistir
em vestir-se como a Marlene Dietrich. O
566
jovem oferecia-lhe um largo sorriso, talvez
feliz por vê-lo ressuscitar daquela quase
morte, ou porque Pavel sorria até para as
paredes.
— Não precisava.
— Estou bem.
O caso
Zhenshchina Tchort
DAV I D C R O F T
1939
E
ra uma noite quente como colo de
cortesã, de uma quarta feira tão desa-
gradável quanto qualquer quarta-feira
578
pode ser. Eu aguardava o telefone tocar
em meu escritório xexelento, como fiz
desde que deixei a força nove anos atrás.
O ar fedia a bunda gorda e suada, graças
à fábrica de conservas ao final da rua. O
ventilador no teto soprava mais barulho
que a fumaça do meu cigarro, enquanto
me distraía inutilmente com o jornal de
domingo.
Os negócios iam bem. A cidade incha-
va e se erguia como a estátua de Édipo,
emergindo de um lago de bosta. As várias
famílias de comerciantes e industriais, com
seus patriarcas tão ricos quanto depra-
vados, rendiam bons serviços de esposas
gordas e pelancudas, que desconfiavam de
seus maridos com suas lindas, estúpidas e
gananciosas secretárias.
Maldito janeiro. Há algo na água desta
cidade que causa impotência nos ricos no
579
início do ano. Por todo esse tempo como
detetive, tive tantos trabalhos em janeiro
quanto um galo tem pentelhos no saco.
No jornal, notícias velhas e idiotas, que
já eram idiotas quando frescas, mas uma
delas, por algum motivo igualmente idiota,
chama minha atenção:
“INAUGURADA NOVA ALA DA CASA DE
CUIDADOS PSIQUIÁTRICOS DE MUS-
KOV. A ala será chefiada pelo novo médico
austríaco, pesquisador de vanguarda, es-
pecialista no tratamento de esquizofrenia
e psicose”.
A vodca acabou junto com a minha pa-
ciência. Decidi fechar e seguir para o meu
“outro escritório”.
Oito quarteirões a pé.
O cheiro de tabaco e vodca barata de
meu escritório deram lugar ao de urina e
580
devassidão que impregnava as ruas, mas
a de bunda gorda e suada continuava lá.
Ramalhetes de mendigos enfeitavam as
entradas dos becos, e o lixo decorava os
cantos como os babados dos vestidinhos
dominicais das mulheres ricas.
— Já procurou a polícia?
584
— Claro. Na verdade, de forma tão direta
quanto inútil, já que seu marido é policial.
Aí estava: o penhasco.
593
Os dezesseis
reflexos de Maria
IA PSA
1940
D
izem que no fim do corredor prin-
cipal de Muskov, perto de uma sala
de eletroconvulsoterapia, havia
um espelho rachado. Pequeno, oval, com
uma moldura de madeira escura e gasta,
e quinze riscos formando um mosaico de
partes pouco uniformes. O espelho nunca
foi encontrado. Porém, era onde Maria cos-
tumava passar longos minutos se olhando.
E onde o Dr. Baryshnikov a observava.
Eu Sou a Casa
Silenciosa
K A R I N E R I BE I RO
1941
O
Dr. Jonathan Hall viu a morte nos
olhos de sua esposa quando o cân-
cer terminou de devorá-la. Prendeu
612
a respiração, segurando as mãos suadas e
delicadas da única mulher que amou de
verdade, e esperou que o sopro de vida
voltasse ao corpo. Não era a primeira vez
que ele via a morte refletida naquele mar
bravio e azul – nos últimos quatro meses
da doença, Jonathan perdera a conta de
quantas vezes se aproximara do leito de
Aria, esperando
(querendo)
A Herança de Simon
A LLA N BA XTER
1942
A
única lembrança que Simon, o
último dos Mountford, guardava
de seu tio fora adquirida na mais
tenra idade. Na época, o parente pousara
sua mão deformada de artrite na cabeça
da criança, numa espécie de breve cum-
primento, e a imagem perpetuou em sua
memória: um velho corcunda, entre os 60
e os 500 anos, cujo cabelo branco começava
623
a amarelar de uma forma desagradável; o
rosto enrugado parecia inchado de sono
e a barba crescia há dias. Seu pai fazia a
barba todas as manhãs, e Simon achou que
provavelmente aquele velho fosse um dos
bêbados maltrapilhos que perambulavam
pelos becos da cidade.
626
O escritório de seu tio era um verdadeiro Mu-
seu de História Natural; havia uma parede
exclusiva para vidros que ostentavam coisas
que um dia foram vivas, além de todo o tipo
de monstruosidades conservadas em formol e
catalogadas na própria caligrafia — objetos
que permaneceram no local por ordem maior.
Todos os livros sobre a profissão foram enviados
para a biblioteca universitária de sua escolha
e, conforme suas instruções, seus registros estão
sendo legados ao senhor na esperança de que
sejam publicados, elevando e perpetuando assim
o “prestígio da família” — palavras do doutor
—, como garantirá o conteúdo da caixa.
Não havia.
Cordialmente,
Constance.
635
São pesadelos, tenho certeza! Continuarei
acumulando,
Epílogo
A maldição
do conhecimento
V Í TOR DE L ER BO
1944
N
ão importa qual seja seu cárcere, a
pior das prisões é a sua própria men-
te. A segunda pior, sem dúvidas, é o
Hospício de Muskov.
643
Ninguém passa incólume por aqui. Os sãos tor-
nam-se insanos. Os insanos tornam-se a pior
versão de si próprios. E a única porta de saída é
a morte. Aqueles que ainda conseguem manter
um pingo de lucidez, como eu, têm um destino
ainda pior do que a morte: o esquecimento.
Mesmo o inferno é lar para alguns anjos.
Alef, um dos enfermeiros da casa, arranjou-me
papel e caneta para que minha história não se
perca. Ele garantiu que esta carta será entre-
gue à minha família e aos principais veículos
midiáticos do mundo todo, para que a verdade
venha à tona.
Tenho duas horas para escrever este relato,
ato que só consigo realizar por não ter toma-
do nenhuma pílula nos últimos dias. Mais um
presente de Alef, que me permitiu despedir-me
de minha mente antes que ela me abando-
ne por completo. E desde já, peço perdão por
possíveis furos em minha narrativa; os gritos
644
dos pacientes torturados no segundo andar
desconcentram-me tanto quanto a respiração
acelerada de meu companheiro de quarto, que
já não abre mais os olhos.
Por não ter um futuro, agarro-me com todas
as forças ao passado. Essa foi uma das manei-
ras de manter a consciência aqui dentro. Mas
escrevo este texto ciente de que minhas palavras
carregam uma sombra de dúvida em relação à
minha sanidade. Não deixe de duvidar; mas
não apenas de mim. O mundo é uma versão
ampliada desse sanatório, e muitos que aqui
estão confinados enxergam uma realidade mais
verdadeira do que os que vivem sob a falsa
sensação de liberdade.
Se hoje durmo em um quarto úmido e escu-
ro, é por ter duvidado. Minhas incertezas se
provaram reais, me tornei um risco. Mas eu
não mudaria nada. Continuo a preferir uma
verdade amarga a uma mentira doce.
645
Isso se deve à minha origem e à minha profis-
são. Nasci em Minsk, em 1890, e sou jornalista.
Ao menos era até 1943.
Latitude 59,
Longitude 30
T YA N N E M A I A
1945
Q
uando chegaram no hospício, pen-
saram que ele estaria complemente
deserto. Estavam enganados.
657
O exército avançou para defender a Fren-
te Oriental. Em janeiro de 1945, o general
Krasnov fora enviado em uma missão de
reconhecimento e limpeza de soldados
alemães naquelas terras congelantes. Como
haviam caminhado muito, foi necessário
que se abrigassem em local seguro para
suportar aquele inverno tenebroso de –
40º. O único lugar grande o bastante para
receber as tropas era o Hospício de Muskov,
localizado em ponto estratégico.
— Obrigada.
— Lá pra baixo.
669
Equipe 6 – Subsolo – Crematório
— Vocês demoraram.
Salão principal
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688