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Organização: Tyanne Maia e Valquíria Vlad

Capa e Projeto Gráfico: Marina Avila


Revisão: Kamile Girão
Karine Ribeiro (revisão da novela Sigilos do Amanhã)

1ª edição, luxo – 2017

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O Hospício de Muskov / organizado por Tyanne Maia e Valquíria Vlad.


São Caetano do Sul, SP: Wish, 2017.
264 p. Vários autores.
ISBN 978-85-67566-08-5 (Ed. de luxo)
CDD 869.93

1. Contos brasileiros I. Maia, Tyanne II. Vlad, Valquíria


1. Contos : Literatura brasileira 869.93
Catalogação na Fonte: Ana Cláudia Carvalho de Miranda – CRB15/261

Editora Wish
www.editorawish.com.br
São Caetano do Sul – SP – Brasil

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009. Copyright Editora Wish. Todos os direitos reservados.
A insanidade real é solitária, íntima, cruel.
Não há glamour ou escapatória;
Apenas longos instantes de pavor e abandono.
Arquivo especial para assinantes da
Sociedade das Relíquias Literárias.
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Conteúdo

O filho bastardo da Rússia 8


Irmandade Longínqua 24
Eugênia & Anatólia 44
Alma Insana 58
O mais insano dos mundos 67
Ecos do silêncio 81
Terror Noturno 93
O Enfermeiro da Ala 43 105
Complexo de Pandora 116
Duas vozes, um grito 130
Temperatura Crítica 145
A Dama de duas faces 157
Celese 173
A Vidente Vangelia 189
Incógnitas de Muskov 202
A Boneca da Igreja 217
O gato caolho do Hospício de Muskov 253
Visita Para Svetlana 276
Os Sigilos do Amanhã 291
Ursel Miezel 462
Clube noturno de mariposas mortas 484
O coração secreto de Marte 564
O caso Zhenshchina Tchort 578
Os dezesseis reflexos de Maria 594
Eu Sou a Casa Silenciosa 612
A Herança de Simon 623
A maldição do conhecimento 643
Latitude 59, Longitude 30 657
O filho bastardo da
Rússia
VA L Q U Í R I A V L A D

Rússia, 1812

T
udo começou em dezembro.
A calamidade, que só acabaria
anos luz à frente deste tempo, teve
início com o choro de uma criança sentada
no último banco da igreja. Ela fitava o chão
com lágrimas vertendo de seus olhos sem
cessar, pois não queria ver — e guardar na
memória — o rosto inexpressivo de sua
mãe morta.

Metros à frente, aos pés do altar, ela


repousava dentro de um caixão coberto
8
de flores. As mãos estavam unidas so-
bre o peito inerte e atadas com um terço
oferecido por uma das freiras da capela
de São Petersburgo. Ao som de um coral
cantando ao fundo, acompanhados de
um órgão desafinado, o padre lhe oferecia
suas últimas bênçãos para que ela fosse
bem-recebida na vida após a morte e en-
contrasse a paz.

Alexandre I não acreditava na paz. Pelo


menos, não na paz dos suicidas. Ele assis-
tia à missa em silêncio, escondido sob as
sombras da lateral da capela. Ao seu lado,
Gabor Nagy se distraía transferindo o pró-
prio peso de um pé para o outro, como se
isso fizesse o tempo passar mais rápido.
Ele bem gostaria que o tempo passasse
mais rápido. Desde o incidente, parecia
que nada avançava. Os jornais continua-
vam falando sobre a bailarina suicida que
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tirou a própria vida durante o clímax de
sua maior apresentação. A cidade estava
preocupada com as consequências que
isso poderia gerar; afinal, mortes autopro-
vocadas atraíam mais mortes e ninguém
queria assistir a mais uma cena lamentável
como a partida dela.

— Depois do enterro, qual será o seu


próximo passo, Majestade? – perguntou
Nagy. O sotaque entregava sua origem
húngara, por mais que os anos passados
na Rússia houvessem aliviado as nuances
mais acentuadas. — Não podemos permi-
tir que a população entre em uma onda
de suicídio em massa, não é mesmo?

— Para ser bem honesto, existem outras


coisas que me preocupam – disse o czar,
olhando para o menino sentado ao fundo
da Igreja de relance.
10
— Sim, este também é um problema...
Não podemos permitir que o seu envolvi-
mento com esta mulher venha a público.
Não é incomum que... pessoas com tama-
nha influência como a sua tenham casos
extraconjugais, porém um relacionamento
com a bailarina esquizofrênica e suicida
seria um escândalo, se me permite dizer.
Ainda maior se descobrirem que teve um
filho com ela. Um garoto de oito anos! –
disse ele, fazendo-se de alarmado. — Já
consigo até imaginar as manchetes hor-
ríveis que os jornais irão publicar.

— E o que me sugere para evitar tudo


isso, hm? – perguntou Alexandre. Os lábios
se transformaram em uma linha fina, e ele
parecia muito desinteressado em escutar
os conselhos de um médico a essa altura.
Ainda assim, era grato pelos anos de ser-
viço que ele havia prestado com a máxima
11
discrição. Gabor havia tratado da doença
da bailarina em segredo durante todos es-
ses anos, e o tratamento havia permitido
que ela não saísse dos palcos. No entanto,
existiam limites para o que um médico
com tão poucos recursos poderia fazer.

— A população necessita de um lugar


para internar os familiares doentes. Um
lugar grande o bastante para lhes ofere-
cer um pouco de conforto e o melhor dos
tratamentos. Um conhecimento que tenho
de sobra para dar e oferecer.

Alexandre desviou o olhar do altar por


um momento e fitou o homem ao seu lado.
Gabor falava sério, e sua expressão era
prova disso. Encarava o czar fixamente,
sem a menor hesitação.

— Não vejo como isso impedirá que a


12
notícia sobre meu filho bastardo se espalhe
por toda a Rússia, meu bom amigo.

— Então ainda não enxergou a saída que


tenho a lhe oferecer. Ora, que lugar me-
lhor para esconder o menino do mundo,
senão em um hospício? – Gabor lançou
um sorriso com o canto da boca.

— Ficou louco? Perdeu o juízo? Como


posso enfiar um menino de oito anos den-
tro de um hospício?

— Bem sabe que o menino é tão saudável


quanto a mãe... – lembrou ele, agora olhan-
do o garoto. — Já o peguei diversas vezes
conversando sozinho. Diz ele que tem um
amigo, um morcego albino, mas como isso
seria possível se animais não falam? Talvez,
ter passado os oitos anos de sua tenra vida
trancafiado em uma casa, longe dos olhos
do mundo para que ninguém soubesse de
13
sua existência, o tenham enlouquecido.
Se quiser um império estável, Majestade,
longe do mundo ele deve permanecer.

Com exceção deles, da pequena comitiva


de guardas do czar e do próprio menino,
não havia mais ninguém para se despedir da
bailarina. Aquela era uma missa realizada
a portas fechadas, no único lugar seguro o
suficiente para que eles pudessem debater
o assunto sem que as paredes ouvissem.

Alexandre deliberou. Não queria que a


Rússia ficasse conhecida como uma terra
de loucos, tampouco desejava uma onda
de suicídio em massa. Era seu dever man-
ter o bem-estar da população e também
esconder do mundo o seu envolvimento
com a bailarina suicida. E foi assim, no
auge de sua preocupação e urgência, que
ele aceitou a proposta de Nagy.
14
— Se é isso o que tanto deseja, então
é exatamente isso o que terá. Monta seu
hospício longe daqui e leva o garoto com
você. Não quero ter de me preocupar com
esses problemas nunca mais.

II

O lugar escolhido para ser o primeiro


hospício do reinado de Alexandre I foi a
mansão do Norte-Negro, localizada a dez
milhas do centro de Muskov, uma cidade
próxima à capital russa. Era perto o bastan-
te para que os pacientes não se sentissem
abandonados pela família quando fossem
internados — em tese, porque na prática
tal sentimento era inevitável —, e longe o
suficiente para que os familiares não os
visitassem com frequência.
15
A mansão era de uma aparência quase
patriarcal, com sua torre principal ladeada
por duas torres gêmeas de menor tama-
nho, construídas sob tal ângulo que o sol
só tocava um dos lados por vez. Os muros
de pedra fria não eram tão acolhedores
quanto se propunham a ser. No inverno,
porém, eles barravam com louvor as tem-
pestades, abraçando apenas os ecos que se
perpetuavam ao longo dos corredores.

A estrada que levava até o hospício era


estreita e cheia de curvas, mas fácil de
encontrar. Ficava ao centro de um vasto
descampado, com jardins floridos em volta,
um bosque fechado e um pequeno lago.
Nagy gostava da localização e do espaço.
Acreditava que os jardins eram ideais para
banhos de sol matinais, e o lago à noite
haveria de ser frio o bastante para alguns
tratamentos mais radicais. Ele gostava
16
ainda mais do interior da mansão. Eram ao
todo 54 quartos amplos, que ele posterior-
mente dividiria para aumentar o número
de leitos. Criaria um sistema de alas para
separar os mais variados tipos de casos, e
também ampliaria a mansão para a cons-
trução de laboratórios de pesquisa e salas
de tratamento. Ele possuía investidores
para isso, pessoas de grandes posses que
tinham interesses em ver crescer o mais
novo hospício russo. A maior parte deles,
distribuidores de medicamentos naturais.
O mercado da insanidade lhes renderia
muito dinheiro.
A inauguração do Hospício de Muskov
não foi uma ocasião de intensa festividade.
A população recebeu com receio a notícia
veiculada nos jornais de que a cidade teria
um lugar para internar seus familiares
doentes, mas tão logo Muskov declarou
17
pleno funcionamento, os primeiros pa-
cientes começaram a aparecer.
O filho bastardo estava na sala de aco-
lhimento, sentado sobre o tapete e com
o queixo repousado nos braços, em cima
da mesa de centro, olhando atentamente
o girar da bailarina dentro da caixinha de
música deixada por sua mãe. A melodia
reverberava pela sala, às vezes rápida e
enérgica, às vezes calma e suave. Ele en-
tão ouviu passos no corredor e viu uma
mulher sendo empurrada na cadeira de
rodas até a janela, por onde um pouco da
luz do sol entrava. Ela não se movia e sua
boca estava levemente aberta, liberando
um pouco de baba. O menino não enten-
deu o que ela tinha e não teve tempo para
perguntar aos enfermeiros, pois estes logo
deixaram a sala.
Colocou-se de pé e caminhou até ela. No
18
primeiro minuto, ficou apenas admirando
as feições da pobre moça, que não parecia
olhar para coisa alguma. Em seguida, ele
a tocou com a mais suave das carícias na
mão direita. A pele dela estava quente, e
uma lágrima quase lhe passou desperce-
bida ao escorrer pelo canto do olho. Ela
sentia dor, ele teve certeza.

Você poderia por fim ao sofrimento dela,


disse uma voz já conhecida.

— Amigo? – chamou o menino, mas


novamente ele não apareceu num lugar
onde a criança pudesse vê-lo de primeira.

Aqui em cima!

O garoto levantou o olhar e o encontrou,


o morcego branco, pendurado na barra da
cortina de cabeça para baixo.

Acabe com o sofrimento dela. Ela não merece


19
passar por isso. Pense em sua mãe, pense em
tudo o que ela sofreu.

O menino passou a fitar o chão e em


seguida, ela. Agora a moça na cadeira de
rodas estava encarando-o como se estivesse
implorando por ajuda.

— Mas como eu farei isso? Como posso


ajudar ela? – perguntou.

Você sabe exatamente o que fazer, disse o


morcego, e saiu voando para além da sala
de acolhimento, para o corredor. Ao en-
contrar as escadas, ele desapareceu.

O menino engoliu em seco e usou de


toda a sua força para mover a cadeira de
rodas. A mulher pesava, e não foi sem di-
ficuldade que ele empurrou a cadeira pelo
corredor, até as escadas, onde ele parou,
pensando...
20
Faça isso! Pelo bem dela e em nome da alma
de sua mãe, faça isso.
A cadeira seguiu em alta velocidade pelos
degraus, a moça escorregando do acento na
metade do lance das escadas, e continuou
rolando até atingir o chão duro e frio do
saguão de entrada. Sem os movimentos, ela
não pôde usar os membros para se defender
dos impactos, a cabeça batendo repetidas
vezes. Ela caiu com as pernas dobradas, o
corpo encurvado e uma das mãos ao lado
do rosto. Os dedos embebedaram-se com
o sangue que banhava o chão abaixo do
couro cabeludo. Ela estava imóvel, ainda
mais imóvel do que antes, ao pé da janela.
Com o barulho da queda, vários en-
fermeiros largaram seus postos e, ao se
depararem com a cena, tentaram prestar
socorro, mas era tarde demais. A mulher
havia encontrado a paz.
21
Foi então que o menino, ainda parado
no topo da escada, viu outros dois homens
pararem ao lado do corpo, próximos à por-
ta de saída de Muskov, tentando entender
o que estava acontecendo. Um deles, ele
já conhecia — Gabor Nagy, o homem que
havia o levado para aquele lugar. O outro
ele nunca vira na vida, mas pelas roupas
que vestia, parecia um senhor importante.

— Acredito que seu filho tenha acabado


de matar um dos nossos pacientes, Majes-
tade – disse Gabor, meio envergonhado,
meio indiferente.

Alexandre não tirava os olhos do filho.

— Prenda-o. Prenda-o em uma cela onde


ele não poderá ferir a mais ninguém com
suas loucuras.

E foi assim que o filho bastardo da Rússia


ganhou passagem sem volta para as celas
22
de isolamento. Escuridão e medo seriam as
únicas coisas que ele conheceria durante os
próximos anos de tratamento. E também,
a memória daquela única conversa, aquela
que entregara os motivos pelos quais vi-
veria uma vida miserável.

Ele era filho de um imperador. Um im-


perador que o renegava, já que ele jamais
se dera ao luxo de conhecê-lo. O menino
que até então não sabia o que era ódio de
repente compreendia o significado daquela
palavra.

O morcego branco pousou em seu om-


bro, ambos envolvidos pela escuridão do
isolamento.

Não se preocupe, meu amigo. Eu sei de coisas,


vi coisas... Um conhecimento tão antigo quanto
o mundo. Se dominá-lo, todos irão se ajoelhar
aos seus pés e clamar pela sua misericórdia. A
23
Rússia ainda se lembrará do seu nome. Todos,
um dia, haverão de saber quem foi Rasputim.

Irmandade
Longínqua
L EONA R DO R I BE I RO

1825

N
ão seria possível criar uma analo-
gia tão crível a ponto de fazer jus
ao tamanho daquela propriedade.
Mas, de fato, era grande o suficiente para
fazer Gastão se perder, após ser deixado no
jardim principal para explorar a magni-
tude do edifício Muskov, mesmo não sen-
do sua primeira visita ao hospício. Agora,
trinta minutos depois – vinte somente de
caminhada, desbravando relvas, cômodos
24
e escadas –, estava posicionado numa re-
cepção, ainda na solitude, contemplando
o modo como as diminutas partículas de
poeira entravam pelas janelas colossais e
se encurralavam no canto oposto da sala.
Ele levantou o olhar quando ouviu os
passos compassados ecoarem e fitou a
senhora baixinha e redonda, vestida de
enfermeira, adentrar a sala, a roupa se
dissipando antes de tocar os joelhos. Um
som estridente saía da cadeira de rodas
empurrada pela mulher e, junto a ela, um
paciente desgrenhado choramingava, mar-
tirizando-se por algo que não conseguiu
concluir.
— O que você está fazendo aqui? – o
espanto era evidente em sua voz. — Des-
culpe, mas não estamos mais contratando
negros. As últimas vagas acabaram mês
passado. Deveria ter vindo antes.
25
Gastão ficou de pé, soltando um riso for-
çado e estendeu a mão num cumprimento
que demorou a ser retribuído.

— Na realidade, estou aqui para me en-


contrar com o Dr. Kontcharov. Chamo-me
Gastão.

— Então, você é o Dr. Gastão? O psica-


nalista? Perdoe-me, mas não haviam me
dito que, bem, você era...

— Uma pessoa de cor? – completou a


frase, deixando-a ainda mais envergonha-
da. Desde pequeno, Gastão foi incumbido
a sabe lidar com essas situações. Não por
prepotência, mas por sobrevivência de uma
estima. — Eu sei, não estão acostumados
a ver pessoas como nós em um patamar
tão alto. A propósito, me chame apenas de
Gastão.

A senhora deu um meio sorriso e ajeitou


26
a pequena tiara usada para esconder os
fios falsamente loiros colados ao crânio.
Balbuciou algo sobre ter sido boba, deve-
ria ter presumido, pois eram ínfimos os
que tinham condições de usar um terno
transpassado como o dele.

Forçando as juntas de mais de cinquentas


anos, ela se abaixou e sussurrou rente ao
ouvido do paciente amarrado a cadeira de
rodas, deixando-o alegre por momentos.
“Desculpe, Estripador, mas por mim você
teria arrancado a cara daquela vadia. Oh!
Não chore, não chore! Na próxima você irá
conseguir.” E retirou um pequeno lenço
do bolso e limpou o sangue jorrando da
têmpora do homem de aparência fantas-
magórica.

— Vou levá-lo até a sala do Dr. Kontcha-


rov – após endireitar-se, ela concluiu para
27
Gastão. — Não saia daí, Estripador. Logo
retornarei.

— Creio que ele não tenha tanta esco-


lha – os olhos de Gastão escorreram pela
camisa de força e as amarras.

— Ah, você não imagina do que ele é


capaz. Mas é um dos nossos melhores hós-
pedes. O meu favorito, arrisco dizer.

Assim, deram os primeiros passos ao in-


terior intrínseco do hospício, embarcando
por corredores sinuosos, sentindo o cheiro
forte sucumbir às narinas, ouvindo lamúrias
e vozes tortuosas suplicando piedade. Ha-
via uma áurea fúnebre. O hospício possuía
um contraste enrançado, julgava Gastão. A
beleza exterior era capaz de atrair os mais
resignados e, na mesma intensidade, te
fazia desejar nunca ter estado ali, depois
de provar as nuances da essência.
28
Os olhares furtivos de interrogação dos
outros funcionários pairavam à medida
do avanço.

Gastão nunca fora o tipo de profissional


da saúde nos padrões, aquele cuja simples
presença lhe faz se sentir bem e seguro.
Nunca se importou com vestimentas, com
uma aparência receptiva, ou em alimen-
tar seu ego num ápice de tirania, sempre
buscando mostrar uma capacidade cogni-
tiva maior do que a dos outros. Sentia-se
bem, até, deixando os tolos presumirem
sua personalidade e seu modo de vida, le-
vados por estereótipos.

Seu foco era a ciência e, por assim ser,


abdicar de uma vida saudável e uma apa-
rência era necessário.

Quando chegaram, a enfermeira indi-


cou uma porta estreita. A placa de metal
29
cravada denunciava ser aquele o local onde
seu amigo se encontrava. Em um cumpri-
mento, ela se despediu e galgou de volta
para seu querido Estripador.

Não foi necessário mais do que três to-


ques na madeira e logo a porta se abriu,
revelando a feição pálida e sorridente de
quase trinta anos.

— Aleksei! – Gastão quase gritou, e não


se conteve.

A formalidade fora deixada de lado e o


amigo o puxou para dentro da sala, num
abraço, interrompendo a fala do psicana-
lista.

— Quanto tempo, Gastão! Você não


imagina o tamanho de minha felicidade
ao receber sua carta e a encomenda con-
firmando sua participação no projeto – Dr.
Kontcharov assumiu.
30
Envolveram-se então nas conversas
não tão antigas, relembrando o tempo de
universidade e como se conheceram. As
desavenças, conquistas e derrotas, como
quando Gastão foi expulso por prática
ilegal de medicina, sua verdadeira paixão,
sendo obrigado a interromper o curso de
psicanálise e voltar para França, três anos
após sua partida da casa onde sua mãe lim-
pava pratos e era abusada semanalmente.
Gastão começou a escutar os gritos distor-
cidos ultrapassando as paredes finas, feitas
de um material tão vagabundo quanto o
homem que os mantinha ali, aos onze anos
de idade. Mas faltava-lhe compreensão. Foi
somente quando a juventude avizinhou, aos
dezoito anos, que se deu conta do porquê
o patrão da mãe custear seus estudos.

Doeu voltar para o lugar onde, na in-


fância, passou por infinitas tonalidades de
31
sofrimento. De todo modo, acreditava que
teria de ser grato – nem todos possuíam
um lugar para retornar. O que Gastão não
sabia, na época, era que o infortúnio de
regredir iria lhe render estudos e desco-
bertas.

Em momentos íntimos, ele pesquisava


sobre a ciência da mente, empunhando fer-
ramentas roubadas da faculdade, fingindo
realizar feitos para mudar a humanidade.
A ficção de sua mente nunca poderia se
concretizar, sabia, em uma sala de aula.
Era separado da área por uma linha tênue.

Depois de algumas doses de chá, imer-


gidos no passado, perceberam o horário
e resolveram iniciar o processo.

— Onde ela está?

— Nessa outra salinha – Dr. Kontcharov


indicou a porta à sua esquerda, escondida
32
por uma das inúmeras estantes que ro-
deavam o cubículo. — Já fiz metade do
planejado.

— Os documentos estão organizados?

— Sim. Você trouxe o elixir?

Gastão elevou a pequena maleta, res-


pondendo o amigo em um gesto.

O médico começou a caminhar na dire-


ção da sala escondida com o psicanalista
em seu encalço.

— Você deu sorte, Aleksei. Há um acer-


vo e tanto de corpos nesse local. Ótimas
cobaias, se a mente não tiver ferrado o
corpo completamente. Diga-me, como não
percebem?

— A maioria dos que estão aqui são pes-


soas sem família, seres renegados, enxota-
dos por aqueles que deveriam os amar – de
33
forma professoral, iniciou a explicação. —
Quando somem, apenas forjo uma morte,
crio um laudo qualquer. Em sua maioria,
digo que cremei o corpo pra prevenir que
uma doença se espalhasse... Tudo fica bem.
Gabor confia muito em mim.

Iluminado pelo nome, Gastão arfou como


uma criança envolvida nos seus desejos,
vendo o amigo abrir a porta para o outro
cômodo e entrar.

— Quando irei conhecer o famigerado


Gabor Nagy? Já escutei grandes histórias a
seu respeito no ramo da psicologia. Creio
que sejam verdadeiras, agora, vendo esse
lugar tão de perto.

— Gabor tem uma mente à frente do


seu tempo, e sofre muito por isso. Talvez,
na sua próxima visita, ele esteja por aqui.
34
Não se preocupe, será um enorme prazer
apresentá-los.

O som foi totalmente abafado quando


ambos se posicionaram na saleta ainda
menor em comparação a anterior. Um baú
recluso ao fundo exalava um cheiro pútri-
do, e Gastão sabia muito bem o que havia
ali. Mais à frente, no chão, com correntes
circundando os braços e as pernas, jazia
uma mulher de aparência semelhante a
do psicanalista. Traços idênticos, se rejei-
tássemos comparar as cores de pele.

A moça se contorceu em espasmos ao


notar a presença na sala. Vendo Gastão, a
feição aliviou, a paz momentânea domi-
nando. Ela tentou sibilar seu nome, mas
somente um grunhido desarticulado saiu.

— Precisei fazer uma pequena cirurgia.


Retirei as cordas vocais dela. Não parava
35
de gritar. Márgabe, uma de nossas enfer-
meiras puritanas, notou algo estranho e
tentou me chantagear.

— A anestesia não estava mais fazendo


efeito? – Gastão questionou, espantado. Era
admiração por o organismo da mulher ser
tão resistente, não remorso ou pena pelo
sofrimento. — Tudo bem, vamos logo dar
início ao processo.

De dentro de uma enorme pasta, retirou


um caderno de couro, a capa contendo o
nome provisório do projeto, “Rastejantes”,
delineado em letra cursiva. Com o sinal,
Dr. Kontcharov tratou de escrever tudo o
que Gastão fosse dizendo, assim como as
cenas vindouras. Não poderia haver furo
nos registros.

Naquele meio tempo, o psicanalista abriu


a pequena maleta de couro e dela retirou
36
fracos com líquidos estranhos. Era evidente.
Era palpável. Suas mãos tremiam, o suor
gélido escorria relutante pela nuca.

— Está nervoso? – perguntou o doutor.

— Aleksei, você tem noção do que es-


tamos prestes a fazer? Se isso der certo,
teremos criado a fórmula para uma arma
tão letal quanto qualquer outro dispositivo
já feito para uma guerra.

— E se não conseguirmos, seremos mor-


tos pelo imperador Alexandre I.

Gastão procurou dar de ombros, não


queria se preocupar com prazos. Tinha
convicção, ocorreria bem.

Tudo em nome da ciência, disseram eles


meneando a cabeça.

Dr. Kontcharov apreciou os movimentos


de Gastão, elevando um frasco de vidro
37
para enxergá-la melhor. Pegou o tubo de
ensaio e encheu com a fórmula verde e
viscosa, utilizando o conta-gotas para cal-
cular a medida minuciosamente.

Três passos foram suficientes para ficar


próximo da vítima. Abaixou-se lentamen-
te, sentindo os soluços e o cheiro de bile e
sangue emanando da jovem. O ser humano
é mesmo uma coisa frágil, pensou ele.

— Não precisa temer, Zegebel – disse,


afagando a bochecha dela e obrigando-a
a beber o líquido. — Aleksei, me traga o
bebê.

As pupilas de Zegebel explodiram como


centelhas ao ouvirem a última frase pro-
ferida, e ela se debateu freneticamente. Os
dois acharam que as correntes formando
uma linha grossa em sua pele não seriam
capazes de segurá-la.
38
Dr. Kontcharov se aproximou do baú po-
dre, passo a passo, e levantou sua tampa. O
odor inundou de vez o local, obrigando-os
a usar as máscaras para protegerem suas
narinas. Foi impossível romper a vinda do
vômito. Ao contrário do amigo, o psicana-
lista não estava acostumado com corpos
em decomposição.

O frágil corpinho envolto num emara-


nhado de panos foi trazido para os braços
de Zegebel, que ignorou totalmente o fato
do filho estar gélido e roxo e se afundou,
abraçando-o, sentindo a obliteração de um
amor.

As lágrimas correram como notas de


desespero, mostrando aquilo que Zegebel
não conseguia verbalizar.

— Primeira parte: impacto emocional


– disse Gastão.
39
E logo verificou a hora no relógio mar-
rom em seu pulso. Ela rejeitou o toque do
homem quando este tentou verificar sua
pressão, contando os batimentos cardíacos
por dez segundos. O psicanalista fisgou seu
olhar nos da moça e, numa fala natural,
passou a ordem:

— Coma seu filho, Zegebel.

Logicamente, a jovem não correspondeu.


As palavras invadiram suas membranas
timpânicas de uma forma tão cruel que ela
não se importou em jogar o filho no chão,
afastando-se em agito. A mente conjeturou
a situação. Ela não conseguia raciocinar,
mesmo tentando ao máximo.

— Segunda parte: indução ao subcons-


ciente de forma sã – Aleksei sussurrou, e
fez mais algumas anotações.

Mais do líquido foi forçado na boca da


40
mulher, mesmo em meio aos protestos. O
corpo de Zegebel estava frágil demais, re-
sultado de inúmeros dias sem se alimentar
bem. Rapidamente, a carcaça composta de
pernas e braços se ajustou ao estímulo da
fórmula, convulsionando, expelindo se-
creções... Seus olhos, no momento grandes
órbitas de fogo, se reviravam dentro do
crânio e protuberâncias sobressaltavam
de sua carne. Não parecia haver resquício
de humanidade naquele ser.

— Terceira parte: ação da fórmula.

Após longos segundos, o corpo cessou


os tremores. Zegebel continuou curvada
quando Gastão pegou o miúdo corpo flá-
cido ao chão, entregando o pó ao pó.

— Coma seu bebê, Zegebel – ordenou.

O cérebro da moça recebeu a sentença


como uma ordem incapaz de refutar.
41
Unindo-se ao sangue do seu sangue,
provido dos seus pensamentos e desejos
mais reclusos, os dentes foram de encontro
à cabeça do menino. Gastão precisou se
afastar, não ousaria ver e nem se sujar com
o vermelho viscoso esguichando disperso
pelo quarto. Zegebel seguia seu instinto.
Era humana, vulgar e estava com fome.
Praticava o ato em meio ao sentimento
gostoso de satisfação. As pernas finas da
criança perpassaram os lábios por último,
conspurcando a linha do real e irreal.
Sentindo o triunfo do êxito, o psicana-
lista e o doutor se entreolharam fascinados
com a cena presenciada. Nem mesmo eles,
homens da ciência, os que haviam desen-
volvido a fórmula, conseguiam acreditar.
Porém, subitamente, com uma força de-
sumana também advinda do elixir, Zegebel
pulou, as mãos e os pés se desprendendo
42
das amarras de ferro, urrando a fúria na
direção de Gastão. Obteve glória no ataque
ao cravar os dentes na pele negra.

A dor incisiva invadiu o braço do psica-


nalista. Ele não conseguia controlar o peso
sobre seu corpo, prendendo-o. A sala gi-
rava em um multicolorido reino de preto,
roxo e vermelho.

Em meio ao desespero, crendo que seu


fim chegava, os ouvidos de Gastão foram
abafados por cinco tiros. Quando recupe-
rou os sentidos, vislumbrou Aleksei com
uma arma na mão, a ponta do objeto ainda
enfumaçada.

Ambos respiravam descompassadamen-


te. Gastão se levantou tonto, entrevendo o
cenário. Seu corpo doía, a cabeça palpitava.
Mas nada importava.

Tudo em nome da ciência.


43
— Conseguimos... – sussurrou Dr. Kont-
charov, logo a voz assumindo um tom de
tristeza. — Mas perdemos nossa cobaia
perfeita.

— Não se preocupe, Aleksei, há muito


mais de onde veio esta – Gastão informou
por fim, lembrando-se de seus oito meios-
-irmãos, filhos daquele homem que um
dia maltratou sua mãe.

Eugênia & Anatólia


RÚ BI A DI A S

1829

E
ugênia pisava em cacos de vidro
que, dez minutos antes, eram frascos
de sedativo. Os olhos vibravam de
determinação e sua postura indicava que
44
nada a faria desistir de nocautear Anatólia.
Ergueu uma cadeira caída de lado, desviou
de uma prateleira despencando da parede
e, enfim, se aproximou da figura agitada e
furtiva, escondida nas sombras do quarto
semidestruído. O avental branco encar-
dido, sujo com manchas de sangue seco e
café derramado, não tornava Eugênia uma
visão menos apavorante.

— Não adianta reagir assim, Anatólia. A


hora do seu medicamento chegou e não
há nada que você possa fazer – Eugênia
exalava toda sua autoridade de enfermeira.
Trabalhava há mais de dez anos com os
pacientes de Muskov e tinha um espírito
inquebrantável, de quem já tinha visto e
vivido de tudo. Sua voz era modulada no
tom perfeito entre a intimidação e a em-
patia, exatamente para usar com pacientes
maníacos, que eram sua especialidade. Ela
45
era capaz de lidar com qualquer tipo de
transtorno psiquiátrico, mas sempre tivera
uma inclinação pela mania.
Anatólia arregalava os olhos, tomada não
apenas pela loucura como também pelo
desespero. Seu cérebro rangia e maquina-
va, tentando compreender a totalidade do
que lhe acontecia, esforçando-se para sair
das profundezas de si mesma e enfrentar a
realidade – embora ninguém ali em Mus-
kov fosse capaz de defini-la. Mas ali, presa
entre as paredes trincadas e devastadas pela
umidade do quarto do hospício, ninguém
poderia ajudá-la, nem na realidade, nem
no seu inconsciente. Ela tentava fundir-
-se às sombras para desaparecer daquele
universo doentio e malcheiroso onde sua
família a havia largado.
Sua única companhia era Eugênia, que
conversava com ela todos os dias, enquanto
46
os outros enfermeiros nem sequer a olha-
vam no rosto. Anatólia perdera a noção do
tempo pouco depois de chegar a Muskov,
e seu único contato com a realidade –logo
ela, que ninguém sabe reconhecer neste
hospício – era a enfermeira. Eugênia forne-
cia a Anatólia mais do que medicamentos
e roupas limpas: também era responsável
pela sua parca conexão com a vida.

Eugênia parecia ser diferente dos de-


mais integrantes da equipe médica, pois
realmente entendia os episódios manía-
cos de Anatólia. A enfermeira descrevia
com palavras exatas as alterações bruscas
de humor e os excessos de energia que a
mente não era capaz de processar, per-
doava imediatamente os acessos de agres-
sividade dela e ouvia, pacientemente, os
ataques verborrágicos típicos da mania.
Em seus momentos de lucidez, embora
47
ralos e infrutíferos, Anatólia compreendia
por que Eugênia sempre era a responsável
pelos pacientes maníacos, com sua aura de
pura eficácia e propósito.
Havia dias, inclusive, que Eugênia falava
tão rápido e por tanto tempo que Anatólia
gostava de imaginar que sua mania era
contagiosa e contaminara a enfermeira.
Os papéis quase se invertiam quando isto
acontecia: Anatólia sentada na cama, pa-
cientemente escutando a enfermeira, e
Eugênia agitada, andando de um lado para
o outro, tanto quanto o minúsculo quarto
permitia.
Eugênia era o mais próximo de uma
amiga que Anatólia tivera em toda a sua
vida. Poucos conseguem suportar o excesso
e o exagero que emanam de uma pessoa
maníaca. No caso de Anatólia, nem sua
mãe foi capaz de aceitá-la, com todos os
48
seus transbordamentos de emoções e pen-
samentos. A enfermeira, no entanto, agia
como um muro de contenção, impedindo
que Anatólia se esparramasse pelo mundo
e se perdesse para sempre.
Tudo isso só aumentava ainda mais o
choque de Anatólia ao ver aquela cena, a
cena que arregalou seus olhos e que a fez
juntar-se às sombras. Estava diante de uma
traição e sua personalidade, tão frágil e
normalmente doce, não sabia como ab-
sorver aquela nova informação. Anatólia
confiava em Eugênia mais do que confiava
em si mesma (e sem dúvida, muito mais do
que confiara em sua mãe). O horror vinha
da violência, do golpe e da exasperação.
Alguns quartos de Muskov eram à prova
de som. Os pacientes costumavam gritar
à noite, quando os médicos de plantão
precisavam dormir, e na grande parte das
49
vezes, gritavam sem nenhuma razão lógica
ou específica. Mas, mesmo que se esgoelas-
sem com motivos ou por ajuda, ninguém
se incomodaria do mesmo jeito. O acesso
para esses quartos era mal iluminado, com
goteiras atravessando o teto e uma atmos-
fera empoeirada que nunca desaparecia, e
este ambiente deprimente afastava a equipe
médica, que preferia manter-se sã e salva.
Pior do que a sujeira e o abandono era o
descaso, como Anatólia percebeu logo no
primeiro dia de internação.

Eugênia desviava do caos do quarto


sem se abalar e, em seus olhos, havia uma
chama que a deixava distante de qualquer
traço da enfermeira gentil de antes. Mes-
mo tão pouco mobiliado, o quarto oferecia
muito o que ser destruído quando o pa-
ciente tinha episódios maníacos violentos,
e as dimensões diminutas do aposento só
50
aumentavam a sensação de aturdimento
de Anatólia. Eugênia já estava pronta para
lhe dar um sonho longo e pesado, mais
pesado do que a gravidade através de for-
tes sedativos. A enfermeira não recuava
diante do olhar assustado da paciente.

Fazia muito tempo que nada mais era


capaz de assustar Eugênia.

Neste momento, a porta do quarto se


abriu com seu rangido característico, re-
velando o médico de plantão daquele dia.
Todos eram iguais para Anatólia: rostos
cansados e desamparados de quem tra-
balhava no inferno que era Muskov. Uma
aura de fracasso pairava sobre todos eles.
O jaleco encardido, a prancheta puída,
seu prontuário – tudo aquilo se repetia
diariamente.

Naquele dia, pela primeira vez, Anatólia


51
sentiu-se aliviada com a chegada do mé-
dico. Seu cérebro apertou-a com força,
espremendo o pouco de raciocínio que
ainda lhe restava e gritando acima das
outras dezenas de vozes que circulavam
na sua mente: não perca esta oportunidade
de buscar ajuda.
— Foi ela quem fez tudo isso, eu juro!
Ela é maníaca também! – Anatólia saiu
das sombras, os pés descalços pisando nos
cacos de vidro, apontando para Eugênia e
gritando com toda sua força. Seu cabelo
sujo e desgrenhado e o mau hálito decor-
rente do estômago vazio não lhe conferiam
uma aparência digna de credibilidade, mas
Anatólia não sabia disso.
O médico a encarou com olhos distan-
tes e desinteressados e não tardou para
que simplesmente ignorasse sua presença,
como se Anatólia fosse somente um inseto
52
zumbindo no vidro da janela. Dirigindo-
-se a Eugênia com uma voz monótona,
perguntou:

— Você vai ministrar o sedativo para


acabar com o episódio maníaco? – Eugê-
nia apenas acenou afirmativamente, sem
dizer uma palavra, e o médico fez uma
alguma marcação no prontuário de Ana-
tólia. – Chamarei a limpeza para arrumar
o quarto.

O médico saiu em meios aos gritos de


Anatólia:

— Não me deixe aqui com ela! Eugênia é


louca! Ela que fez isso, o episódio de mania
foi dela! – as solas dos seus pés sangravam
por causa dos cacos de vidro, mas Anatólia
também parecia não se dar conta disso.
Manchas de sangue apareceram no chão
53
do quarto, adicionando um elemento dra-
mático ao caos vigente.

A porta fechou-se com a mesma indife-


rença do semblante do médico.

— Anatólia, querida. – Eugênia usava


aquele tom de voz calculado de novo. –
A grande ironia da minha situação é que
ninguém duvida da minha sanidade, já
que cuido da sanidade dos outros. E a
grande graça disso tudo é que posso ter
meus surtos e culpar vocês, meus ado-
ráveis maníacos. Afinal, quem saberá a
diferença dos seus ataques e dos meus, já
que ninguém aqui neste inferno se preo-
cupa com nada? – Eugênia sorriu doce e
delicadamente, como se conversasse com
uma criança sobre um dia no parque de
diversões. E, para a enfermeira, aquilo
tudo talvez não passasse mesmo de uma
54
brincadeira, com seus pacientes fazendo
os papéis das marionetes e Muskov sendo
seu circo particular.
— Alguém vai te descobrir, Eugênia! –
Anatólia recuou às sombras, a seringa cada
vez mais próxima, enquanto a enfermeira
a alcançava em seu refúgio. Ela não tinha
tanta certeza disso, com os olhos de Eugê-
nia tão próximos de seu rosto e o cheiro
de seu creme hidratante circundando seus
pensamentos.
— Tenho mais de dez anos nesta pro-
fissão e sou como você – Eugênia fez um
gesto amplo, abarcando a destruição do
quarto. – Você deve ser minha centésima
paciente. A experiência me diz que escolhi
a profissão e o hospício certos. Muskov é o
lugar perfeito para me esconder. Eu vejo
como eles tratam pessoas como nós e não
quero viver assim.
55
A seringa já entrava nas veias azuladas
e finas de Anatólia, levando-a para um
mundo de impotência e escuridão. A en-
fermeira encontrara sua maior veia sem
hesitar, acostumada a tais procedimentos
como era. Anatólia sentiu um peso se es-
palhar por toda a sua corrente sanguínea,
dissipando pedaços invisíveis de chumbo
que a derrubaram para o submundo de
sua consciência. Ela descia, descia e descia,
como uma âncora afundando no oceano. O
quarto saiu de foco em poucos segundos e,
dali um minuto, ela nem sequer sabia seu
próprio nome.

— Os loucos, querida, não tem vez no


nosso mundo. Somos preteridos, abando-
nados e confinados. Nem nossas famílias
são capazes de nos amar quando estamos
em nossos piores dias. Há muito tempo,
decidi que não teria o mesmo destino que
56
vocês e estou perfeitamente em paz com
minhas ações. Ah, querida, esta é uma li-
bertação que você nunca terá, e sinto tanta
pena de você – Eugênia tirou a seringa da
veia de Anatólia com cuidado, descartando
o material usado logo em seguida.

Anatólia, portanto, não viu quando a


enfermeira colocou-a na cama, com difi-
culdade em carregar o corpo imóvel. Ela
não viu Eugênia abrindo a porta para o
Médico de Plantão, que retornava com as
faxineiras. E também não viu a anotação
da enfermeira, seguida de sua assinatura:
Paciente apresentou episódio maníaco grave,
com um surto agressivo de destruição do quarto.
Também demonstrou pensamentos paranoicos e
sentimentos de perseguição, dirigidos à equipe
médica. Recomendo reclusão nos próximos dias.
57
Alma Insana
P OL I A NA M A RQU E S

1832

O
relógio marcava dez horas em pon-
to quando o Sr. e a Sra. Kuznetsov
passaram pela porta da recepção.
O homem entrou primeiro e foi direto
ao balcão, onde uma mulher carrancuda
realizava atendimento. Enquanto isso, sua
esposa fechava a sombrinha ensopada pela
tempestade, que caía desde o momento em
que a tragédia resolvera se declarar como
parte de sua família.

Raios rasgavam o céu em meio ao tempo-


ral mais furioso daqueles dias. O barulho
fazia estremecer as almas fracas do hos-
pício. O homem já estava discutindo com
a mulher de branco há dez minutos. Os
58
lábios carrancudos diziam que o horário
de visita já tinha acabado. O Sr. Kuznetsov
estava ficando nervoso e irritado. Sua pele
branca começava a adquirir uma tonali-
dade vermelha conforme seu tom de voz
aumentava. As lágrimas da Sra. Kuznetsov
corriam-lhe pela face, levando consigo um
pouco do rímel que dava um tom mais es-
curo aos seus cílios. Em sua cabeça, uma
leve pontada de dor surgia a cada grito que
o marido dava em resposta para a mulher
carrancuda. Seu coração estava cada vez
mais apertado, em uma crescente agonia.

A mulher de branco já estava mais do que


impaciente, quando um homem de jaleco
passou pelas portas duplas que ligavam a
recepção ao interior do sanatório. No cra-
chá que se prendia ao tecido branco, era
possível ler o nome Dimitri Petrov, acom-
panhado da palavra psicólogo. O homem
59
conversou com o casal Kuznetsov por um
breve momento e depois pediu para que
eles o acompanhassem, ignorando a en-
fermeira brava da recepção.

O corredor pelo qual o trio seguia era


longo, estreito e mal iluminado. As pare-
des de pedras pareciam querer abraçar
as pessoas que ali caminhavam e davam
a impressão de que estavam se fechando
e cercando o caminho em um labirinto
infinito. Contudo, o desejo secreto dos
blocos incrustrados nas paredes parecia
não afetar o Dr. Petrov, que andava com
a cabeça erguida e olhos fixos no cami-
nho à sua frente. A mulher, com o rosto
borrado pela maquiagem, seguia atrás do
psicólogo. As mãos úmidas dela tremiam
incessantemente e mal davam conta de
segurar o lenço que o marido lhe ofe-
recera momentos antes. Atrás dela, o Sr.
60
Kuznetsov parecia impassível. Mas era só
aparência. Os nervos do homem estavam
mais do que abalados desde que sua filha
mais nova, Valentina, desaparecera e seu
filho mais velho, Ethan, fora encontrado
banhado em sangue enquanto cantarolava
com o olhar fixo no horizonte.

Depois de andarem pelo que pareceu uma


eternidade, o corredor terminou e o trio
se viu no meio de um segundo corredor
branco, mais largo que o anterior e com
uma iluminação tão forte, que os olhos do
casal arderam e doeram mesmo depois de
percorrerem alguns metros, após virarem
à direita. Dimitri Petrov continuava com a
cabeça erguida, olhando para frente e pis-
cando pouco. A luz não lhe incomodava.
Atrás dele, o casal Kuznetsov entrelaçou
as mãos enquanto encaravam as portas à
sua esquerda.
61
Algumas dessas portas tinham olhos tão
enlouquecidos quanto o mar revolto. Outras
gritavam na esperança de serem ouvidas
pelos surdos. E tinha essa porta, a última
do corredor. Essa porta cantava. A voz era
infantil e entoava monocordicamente a
mesma rima desde que fora encontrada
atrás do celeiro da família Kuznetsov.

— Você sabe? Você sabe? O que acontece


com uma pessoa que desaparece?

A senhora Kuznetsov deixou mais uma


das muitas lágrimas que segurava escapar
ao ver o filho de sete anos sentado no chão,
no centro de sua pequena cela. O marido
apertou-lhe a mão. Contudo, isso não foi
o suficiente para impedi-la de correr em
direção ao filho, tão logo o Dr. Petrov abriu
a porta e deu-lhes passagem.

— Ethan? – a mulher perguntou, com


62
a voz sofrida e as mãos segurando o rosto
do garoto. Os olhos dele estavam fixos em
algum lugar perdido no tempo.

Ao perscrutar minuciosamente o rosto


do filho, ela percebeu que o cabelo claro
e sedoso de Ethan fora substituído por li-
nhas pretas de sutura, que mantinham os
pedaços do coro cabeludo do garoto presos
em sua cabeça.

— O que é isso? – a voz da mulher sus-


surrou para um impassível Dimitri Petrov.

— Parte do tratamento dele.

— Ethan? – a senhora Kuznetsov sussur-


rou novamente, enquanto outra lágrima
descia rasgando mais um pouco de sua já
falha maquiagem. — Onde está Valentina?
Onde está sua irmã?

— Você sabe? Você sabe? O que acontece


63
com uma pessoa que desaparece? – o me-
nino voltou a entoar.

— Não. Eu não sei – murmurou a voz


embargada da mãe.

A mulher não sabia mais o que fazer. Ela


queria apenas descobrir onde estava sua
filha. Sua pequena Valentina. Sua garoti-
nha estava perdida e ela sabia, no fundo
de seu coração, que a menina estava em
algum lugar perto de casa. Nas terras da
família. Nas terras onde Ethan foi achado
banhado de sangue.

— Você sabe? Você sabe? O que acontece


com uma pessoa que desaparece? – a mu-
lher entoou com o filho.

O menino não respondeu. Contudo,


olhou no fundo dos olhos da mãe. A se-
nhora Kuznetsov olhou de volta à procura
de respostas.
64
Pareciam estar hipnotizados um pelo
outro. Eles ficaram ali, daquele jeito por
alguns minutos, até que a mulher derra-
mou uma última lágrima pela lateral do
olho direito. Assentiu para o filho, como se
concordasse com o que quer que o silêncio
tenha dito e se levantou para ir embora
junto ao marido.
— Cuide dele – sua voz fraca e cansada
disse ao psicólogo.
Marido, mulher e psicólogo voltaram
à recepção pelos mesmos corredores que
os levaram até Ethan. Os mesmos olhares
raivosos e desesperados os acompanhavam,
e as mesmas vozes gritavam em seus ouvi-
dos com o intuito de falar com suas almas
perdidas na tristeza. Nenhuma palavra foi
trocada. A mulher pegou seu guarda-chuva
ensopado e, junto ao marido, adentrou a
tempestade.
65
Era quase duas horas da manhã quando
Dimitri Petrov chegou à residência. No
meio da lama, atrás do grande celeiro
construído na propriedade da família, ele
encontrou a Sra. Kuznetsov em um misto
de chuva, lama e sangue. As unhas de suas
mãos estavam quebradas e sujas de terra.
E ali ao seu lado, parcialmente sob a lama
formada pela chuva, jaziam os corpos do
marido e da filha menor, Valentina.

— Você sabe? Você sabe? O que acontece


com uma pessoa que desaparece? – can-
tarolou a mulher, enquanto o Dr. Dimitri
Petrov ajudava o enfermeiro a colocar a
mulher na camisa de força.

— Sim. Eu sei – o médico respondeu a


mulher. — Agora vamos. Irei lhe mostrar
o que acontece.
66
O mais insano
dos mundos
E V E RT ON M E DE I ROS

1841

E
m 1840, vinte e oito anos após a
fundação do Hospício de Muskov,
na Rússia, recebi um convite para
trabalhar naquela que dizia ser a institui-
ção de referência no tratamento de doen-
tes mentais na Europa. O convite chegou
a minha residência em Peste, Hungria,
dentro de um envelope vermelho, o qual
continha uma carta escrita a próprio punho
pelo fundador, o psicólogo Gabor Nagy.
Assim dizia um trecho da carta:

“Caro Dr. Andras Lengyel, considerando sua


larga e notória experiência no tratamento de
doentes mentais, convido-o a conhecer nossa
67
moderna instituição para, igualmente, apresen-
tar-lhe uma proposta de trabalho irrecusável.”

Graduado em medicina em 1825, o estudioso


Dr. Lengyel especializara-se em psiquiatria,
notadamente em casos de esquizofrenia e
transtorno de múltiplas personalidades,
que eram suas especialidades. Por ser um
médico bastante requisitado, dada sua
grande competência em diagnósticos e
tratamentos, alcançando a cura para mui-
tos de seus pacientes, o Dr. Lengyel optara
por tratar dos casos mais complicados,
que necessitassem de maiores cuidados e
estudos. Aqueles com transtornos mentais
considerados leves eram encaminhados a
outros psiquiatras da cidade de Debrecen,
na Hungria, boa parte deles amigos dos
tempos de faculdade.
68
Dentre todos os pacientes que passa-
ram pela clínica do Dr. Lengyel, o mais
problemático e de difícil tratamento foi
Antal Magyar.

O Hospício de Muskov, desde a sua funda-


ção, prometia tratamento de ponta aos seus
pacientes e também a cura para quaisquer
tipos de transtornos psíquicos ou físicos.
Tal propaganda fez com que o sanatório
recebesse muitos enfermos num curto es-
paço de tempo, muito além do esperado
pelo Sr. Nagy. Como resultado, o fundador
do hospício teve que rapidamente contratar
mais psiquiatras, tivessem ou não expe-
riência, para atender todos os enfermos. No
entanto, o pragmático Gabor Nagy sabia
que não conseguiria curar seus pacientes,
conforme apregoado pela imprensa.
69
A cura anunciada estava vinculada ao
tempo de permanência no hospício. Para
os casos mais complicados, de difícil ou
mesmo impossível resolução, os médicos
do sanatório eram orientados a dizer aos
familiares que a cura seria alcançada, mas
apenas ao final da vida do paciente, o que
era sabido pelos psiquiatras como sendo
uma grande mentira. Não obstante essa
afirmativa soar absurda, os familiares não
a recebiam dessa forma. Para eles, a chan-
ce da recuperação era tudo o que queriam
ouvir, e parecia importar mais do que a
própria vida que levaria para alcançá-la.
Daquela instituição, os pacientes só sairiam
sãos com a autorização do czar da Rússia,
ou, em último caso, pela morte.

O Sr. Nagy almejava fama e fortuna e, de


fato, pouco lhe importava se os enfermos
do seu hospício seriam ou não curados.
70
Enriquecer era o que lhe interessava, mesmo
que fosse à custa da saúde dos pacientes.
Então, para tirar dinheiro dos inocentes
familiares, os psiquiatras, todos muito bem
pagos e mancomunados com o fundador,
prolongavam a estada dos enfermos tanto
quanto conseguissem, fosse acintosamente
piorando seu estado mental, ou, simples-
mente, ludibriando os parentes com falsas
pioras. Naquele local, a ética médica e o
respeito humano foram deixados do lado
de fora.

Após aqueles vinte e oito anos de fun-


cionamento, a propaganda de cura do
hospício mostrava-se ilusória. Muitos dos
pacientes que foram internados logo após
a inauguração, em 1812, já haviam falecido
sem alcançarem melhorias. Nenhuma alta
médica fora dada naquele período, ain-
da que um deles tivesse fugido. Nenhum
71
paciente se curou, pelo menos aos olhos
dos amigos e familiares. Os enfermos que
entraram com alguma sanidade naquele
lugar já haviam perdido o resto da lucidez.
Muskov tinha duas facetas bem definidas
e distintas, mas poucos dos que lá traba-
lhavam conheciam os dois lados daquela
sórdida moeda. Uma das facetas era o modo
altivo como a sociedade via o sanatório,
acreditando em seus nobres propósitos. A
outra era a verdadeira face da instituição:
um ambiente cruel, sombrio e desespera-
dor para os internos.
As pressões sobre o Sr. Nagy aumentavam
dia após dia, pois a tão prometida cura não
dava as caras. Dúvidas crescentes sobre a
verdadeira intenção daquele empreendi-
mento começavam a correr pela cidade e
chegaram aos ouvidos do czar, que estava
temeroso com o que pudesse ser revelado.
72
Havia muito em jogo no Hospício de
Muskov. Não apenas fama e fortuna, mas
também a reputação e o futuro de seu
proprietário, de todo o corpo clínico que
lá trabalhava e, ainda, do governo russo.
Diante disso, qualquer investida para re-
velar ao mundo os métodos de tratamen-
to empregados no sanatório, ou os falsos
diagnósticos para internação e prolonga-
mento dos tratamentos, seria prontamente
coibida. Tudo o que acontecia dentro do
hospício em hipótese alguma poderia sair
de lá. E para garantir que nada fugisse ao
seu controle, o Sr. Nagy tinha informantes
da mais alta confiança, misturados entre
os enfermeiros e serviçais do hospício.

Em janeiro de 1841, mês em que iniciei


meus trabalhos no hospício, começaram
a surgir, fora dos muros da instituição, ru-
mores sobre métodos bárbaros utilizados
73
no sanatório, como surra, afogamento e
encarceramento. Correram também boa-
tos sobre o desaparecimento de internos,
supostamente assassinados por médicos
ou enfermeiros. Tais rumores eram espar-
sos e alguns eram dignos de gargalhadas.
Para mim, não fazia sentido acreditar que
uma instituição criada para curar doentes
pudesse destruí-los.
Nos primeiros meses de trabalho, eu não
havia visto nada de anormal no hospício.
Então, quando um interno conseguiu,
pela segunda vez, fugir de Muskov e relatar
a seus familiares as atrocidades que havia
presenciado, fortes pressões começaram a
cair sobre o hospital psiquiátrico. Para o
desespero do interno, não demorou que
fosse capturado e devolvido ao sanatório,
sendo suas declarações publicamente des-
creditadas pelo Sr. Nagy. Não obstante o
74
esforço oratório do fundador, as palavras
daquele fugitivo, publicadas no jornal de
maior circulação da cidade nos dias seguin-
tes à captura, fizeram com que ascendesse
uma certa desconfiança sobre a instituição.
A primeira crise que o hospício sofreu
desde sua fundação.
Após aquele incidente, comecei a me
preocupar com o hospital. Algo de errado
tinha de estar acontecendo naquele lugar.
Curiosamente, eu não conseguia ver nada
que desabonasse a instituição.
Desde que comecei a trabalhar em
Muskov, eu ainda não havia conhecido
pessoalmente o Sr. Nagy. Aquilo parecia
por demais estranho, pois o fundador do
hospício tinha demonstrado, no convite
que me fizera no ano anterior, um grande
interesse pelo meu trabalho, mas em mo-
mento algum dignou-se a me encontrar.
75
Nem mesmo a equipe de assistentes, pro-
metida na carta, fora concedida.

Numa dada manhã, ao chegar ao meu


consultório, percebi que a sala estava com-
pletamente vazia, como se nunca tivesse
sido ocupada. Aquilo não tinha lógica.
Sentindo-me confuso e desnorteado, per-
guntei à primeira pessoa que cruzou o
meu caminho:

— Por que o meu consultório está vazio?

— Eu não sabia que o senhor tinha um


consultório aqui em Muskov! – hesitou, ao
responder, o enfermeiro.

— Como assim não sabia? Eu trabalho


aqui há meses.

— Não estou entendendo.

Impaciente, dei as costas a ele e saí apres-


sado.
76
— Sr. Nagy? – disse o enfermeiro, sem
ser ouvido.

Acreditando trabalhar dentro de uma


grande e elaborada mentira, decidi sondar
o passado daquele misterioso psicólogo.
Para tanto, inventei um problema fami-
liar, dizendo que precisaria afastar-me do
trabalho por três semanas, o que me daria
tempo suficiente às minhas investigações.

Era do meu conhecimento que o Sr. Nagy


provinha de Eger, cidade húngara situada a
140 quilômetros a nordeste de Peste. Então,
sem perder mais do meu precioso tempo,
viajei para a pequena Eger à procura de
informações.

Logo no início das investigações, fui agra-


ciado pela sorte ao encontrar uma antiga
clínica psiquiátrica por onde o Sr. Nagy tinha
passado, supostamente antes de mudar-se
77
para Muskov. Na rápida conversa que tive
com o dono da clínica, fui pego totalmen-
te de surpresa ao ser informado que o Sr.
Gabor Nagy fora assassinado por um de
seus pacientes. Segundo o proprietário, tal
fato aconteceu em meados de 1809 – três
anos antes da construção do hospício em
Muskov. Naquele momento, alguns fatos
começaram a encaixar-se na minha men-
te: o homem que se passava pelo Sr. Gabor
Nagy era, de fato, um impostor. Mas quem
seria aquele trapaceiro?, pensava eu.
Passaram-se mais de trinta anos do as-
sassinato e aquele incidente caíra no es-
quecimento dos moradores de Eger. Eu
não tinha dúvidas de que a maneira mais
rápida e eficiente para obter informações
confiáveis sobre a morte do psicólogo seria
pela pesquisa em jornais da época.
Sem saber a data correta do incidente,
78
apenas com a informação de que acontece-
ra em meados de 1809, acabei levando três
dias de incessantes pesquisas na biblioteca
pública da cidade, até encontrar um único
jornal que falasse daquele assassinato.

Ao ler o início da notícia, o assombro me


tomou por completo. Meu coração dispa-
rou e comecei a suar frio. Mesmo sentado,
senti uma intensa vertigem, não obstante
momentânea, além de fortes náuseas. Sem
sequer terminar de ler, rasguei a página
do jornal, dobrei-a, e a guardei em meu
bolso. Em seguida, deixei a biblioteca às
pressas e voltei para Muskov.

A notícia assim iniciava:

“Na noite de ontem, ao redor das 22h, quando


voltava para sua residência, o psicólogo Gabor
Nagy foi apunhalado repetidas vezes no mo-
mento em que passava em frente à igreja Saint
79
Orban, vindo a falecer no local. Um morador de
rua, que não quis identificar-se, disse ter visto
o assassino esfaquear o psicólogo, mas não con-
seguiu ver sua fisionomia. No entanto, mesmo
sem a identificação do criminoso, as suspeitas
recaem sobre Antal Magyar, um dos pacientes
do psicólogo morto, que se supõe ter também
assassinado o psiquiatra Andras Lengyel, na
cidade de Debrecen, há dois anos. O suspeito,
que está foragido, também era paciente do fa-
lecido Dr. Lengyel.
De acordo com os registros médicos do psiquia-
tra, à época recolhidos pela polícia, Antal fora
diagnosticado como esquizofrênico e portador
de transtorno de múltiplas personalidades. É
um homem muito perigoso e violento.
Pelas investigações policiais, médico e psi-
cólogo eram amigos. Pois, entre os documentos
recolhidos do consultório do Dr. Lengyel, em
1807, havia um envelope vermelho com uma
80
carta assinada pelo Sr. Gabor Nagy, convidan-
do o estimado amigo a trabalharem juntos num
hospital psiquiátrico que o psicólogo construiria
em Muskov, na Rússia”.

Ecos do silêncio
DA YA N N E F E R N A N D E S

1843

J
á passava das nove da noite quando
Anna sentiu a primeira pontada em
seu ventre. A dor veio intensa e cres-
cente, em espaços de tempo cada vez mais
curtos. Ela mordia os próprios lábios para
não gritar, pois não queria chamar atenção
de Dimitri, o enfermeiro-chefe. Se ele a
ouvisse, então estaria acabado. Não ousaria
arriscar, não naquele momento quando
81
estava prestes a... Anna arfou, trincando
os dentes. As pontadas agudas reviravam
suas entranhas e arrancavam o ar de seus
pulmões. O corpo pesava e, zonza, ela ta-
teou a parede no escuro até encontrar a
maçaneta da porta, o suor escorrendo por
seu rosto.

Os tremores a acompanhavam enquan-


to ela seguia pelo corredor. Sua mente
estava nublada, como se ela acabasse de
acordar de um sono muito, muito longo.
Não se lembrava de quase nada sobre si
mesma desde sua chegada àquele lugar.
Pouco a pouco, suas lembranças desa-
pareciam, enquanto ela definhava len-
tamente nos consultórios da instituição.
O Hospício de Muskov – era assim que o
chamavam. Inaugurado há trinta anos, era
o melhor centro de tratamento psiquiátri-
co em toda a União Soviética, referência
82
nacional em metodologia. Contudo, a ra-
zão pela qual Anna estava ali não tinha
qualquer relação com transtornos mentais,
disso ela tinha certeza. Mas, quem acredi-
taria em uma jovem garota de dezessete
anos em pleno ano de 1843?

Esse havia sido o maior erro de sua vida:


falar sobre a sua maldição. Sobre como as
letras se embaralhavam enquanto ela as
observava e lutava para lembrar a pronún-
cia de cada uma delas. Nunca deveria ter
dito nada à sua mãe, pois assim não seria
levada ao consultório do psiquiatra Mar-
ko Piotrov e diagnosticada de pronto com
retardamento mental. O pior de tudo foi
assistir ao seu pai e à sua mãe assinando
sua sentença de morte.

Logo na primeira semana, Anna foi


83
enviada para uma sala de tratamento in-
termediário, onde um tanque cilíndrico
fora instalado no centro do cômodo. O
Dr. Piotrov a recebeu pessoalmente.

— Não vai doer nada. Eu prometo – fa-


lou o psiquiatra, prendendo a máscara de
oxigênio no rosto delicado da garota. Os
olhos azuis brilharam em um pavor mudo.
— É tudo para sua recuperação.

E acreditando na voz calma e concen-


trada do médico, Anna mergulhou na
escuridão. Foi quando descobriu que o
tanque estava cheio de água.

Piotrov tinha razão – não doeu. Ele es-


colhera bem suas palavras. Dor era algo
físico e muito imediato. O que Anna sentiu
depois de dez horas submersa era puro de-
sespero, medo e uma angústia primitiva.
84
Ela nem mesmo sentia o próprio corpo ou
sua respiração.
Julgou estar morta durante o tempo de
permanência dentro do tanque. E dese-
jou estar, não apenas naquela, mas todas
as vezes em que o procedimento se repe-
tiu. Contudo, depois de algumas horas,
o psiquiatra sempre aparecia para tirá-la
daquele sarcófago úmido. As sessões acon-
teciam semanalmente e, após cada uma
delas, Anna era levada para um cubículo
com paredes forradas em espuma branca,
na qual era obrigada a passar horas a fio,
escutando uma canção de ninar que tocava
repetidas vezes. Ela não suportava mais a
canção. A trilha sonora de seus pesadelos.
— O que vocês estão tentando fazer por
mim é real? – perguntou certo dia ao Dr.
Piotrov, durante uma sessão em seu con-
sultório.
85
— Tudo que fazemos faz parte do tra-
tamento. Você está indo bem – ele sorriu
para ela.

A dor voltou a atormentar seus pensamentos,


trazendo-a de volta das lembranças dolo-
ridas. Ela se recostou na parede e o grito
estrangulado morreu em sua garganta A
respiração acelerada provocava uma névoa
fina no ar, enquanto ela avançava pelos
corredores brancos em busca de alguém
em quem pudesse confiar. Há meses não
recebia notícias dos pais, de modo que o
cenário do mundo lá fora não parecia mais
promissor. E havia uma pessoa no Hospí-
cio, o enfermeiro chamado Dimitri, que
insistia em dizer que Anna lhe pertencia,
apavorando-a um pouco mais a cada dia.

Acontecia sempre depois dos choques.


86
Aquele era talvez o pior de todos os proce-
dimentos aos quais o Dr. Piotrov a subme-
tera; e em todas as vezes, ela lhe suplicava
para não o fazer. Mas, o psiquiatra era
irredutível e não hesitava em amarrá-la à
cadeira para dar continuidade ao seu tra-
balho. A onda de choque doía mais do que
todas as outras dores que a consumiam
diariamente. Devorava-a de dentro para
fora, da mente para o corpo. Sugava suas
lembranças, deixando apenas o vazio as-
sombroso em seu lugar.

Eram nesses momentos, após ser deixada


em seu quarto, que Dimitri a tocava. Ainda
paralisada de terror e sentindo pequenos
espasmos de eletricidade em seu corpo,
Anna não possuía a menor chance de de-
fesa. Seus olhos ficavam abertos durante
cada mísero momento, mas seus pensa-
mentos se desconectavam. Os choques a
87
silenciavam muito mais do que as drogas
que era obrigada a tomar.

Os cabelos dourados se grudaram em sua


testa suada quando ela chegou à ala dos
banheiros femininos. Abriu um dos chu-
veiros com os dedos trêmulos e se enfiou
debaixo dele, ainda vestida. Água e lágri-
mas se misturavam enquanto escorriam
pela sua pele, seguindo curso até o ralo. A
dor agora era insuportável; um filete ru-
bro abriu caminho por entre as pernas e
encontrou o chão cimentado.

Não havia mais como adiar.

O som de botas ecoou do lado de fora, e


Anna se encolheu ao redor da barriga na
tentativa de proteger a única pessoa que
lhe fizera companhia ao longo dos últi-
mos nove meses. Na entrada do cômodo
88
frio, surgiu uma mulher alta e corpulenta.
Anna respirou aliviada; pelo menos não se
tratava de Dimitri.
— Ajude-me – ela estendeu a mão en-
sanguentada para a mulher.
— O que você fez, Anna? – perguntou
a zeladora, correndo em sua direção com
os olhos arregalados.
— Eu não consigo... Não consigo fazê-lo
sair – a garota chorou.
— Não se mova! Eu vou chamar os en-
fermeiros!
Anna respirava com dificuldade, mas
sabia que tão logo a zeladora voltasse com
os enfermeiros, eles levariam o seu bebê.
Ela precisava trazer Ivan ao mundo, ainda
que isso lhe custasse a própria vida. En-
tão, trincando os dentes com força, Anna
reuniu toda a coragem que podia. A dor
89
aguda deixara seus olhos injetados de san-
gue, mas ela havia conhecido sofrimentos
muito maiores.

Um grito doloroso ecoou pelo Hospício


de Muskov.

A zeladora voltou às pressas com uma


expressão de completo horror e tristeza.
Isso, Anna não percebeu.

— Me deixe segurá-lo. Me dê o meu filho


– pediu a garota, visivelmente esgotada.

A zeladora, de nome Zhenia, se aproxi-


mou, enrolando-a nos lençóis imaculados
que imediatamente se tingiram de verme-
lho vivo.

— Eu sinto muito, criança. Eu sinto muito.

— Eu ouço ele chorando. Me deixe se-


gurar o meu bebê pelo menos uma vez.

A porta do banheiro se abriu num


90
rompante e uma equipe de enfermeiros
adentrou o local, com Dimitri à frente
deles.

— O que vocês fizeram? – cuspiu ele ao


ver a cena diante de si.

Zhenia não se deixou intimidar.

— Não está vendo, seu monstro? Avi-


se ao Dr. Piotrov que sua loucura custou
mais uma vida – e saiu, fuzilando-o com
os olhos sem lhe mostrar a criança.

Dimitri caminhou até Anna, que can-


tarolava uma canção de ninar enquanto
embalava um emaranhado de lençóis em
seus braços. A única canção que conhecia
e por tantas vezes odiara.

— Venha, minha querida. Vamos cuidar


de você – ele a pegou no colo, retirando a
tesoura de sua mão com cuidado. Deitou-a
91
sobre uma maca de aço que já a esperava,
posicionada no corredor.

— Veja, Dimitri. Veja como nosso filho


é lindo – falou ela.

— Sim, querida. Vamos cuidar dele tam-


bém.

E então Anna sentiu a agulha pinicar


seu pescoço. Seus olhos faiscaram em
um alívio mudo. Desde o primeiro dia,
desejara se apossar daquela injeção. Por
vezes tentara, sem sucesso, invadir a sala
de medicamentos em busca dela. A chave
para a liberdade. O fim de seu sofrimento.
Já havia visto Dimitri aplicá-la em muitas
outras internas, de modo que aguardava
ansiosamente pela sua vez. Agora que tinha
concluído sua missão, agora que colocara
Ivan no mundo, não havia mais nada que
92
desejasse a não ser partir do Hospício de
Muskov.

E logo seu pedido se firmou.

O mundo à sua volta ficou negro e, com


um último suspiro, ela pôde enfim se li-
bertar.

Terror Noturno
L E L E N H A YA S H I DA

1847

D
esde que minha memória falhou
em alguns aspectos, depois de um
terrível acidente, minhas noites
andavam turbulentas. Havia imagens em
minha mente que eu não conseguia apa-
gar, tampouco saber de que se tratavam.
Os pesadelos eram frequentes e a dúvida
93
sobre o que era real e o que era alucinação
me acompanhava sempre.

Estava sentado na beira do lago, obser-


vando-a, Natasha, mergulhar apenas com
as roupas de baixo. Ela olhou para mim
sorrindo, seus traços delicados acompa-
nhando o gesto.

— Venha, Dmitri! A água está uma de-


lícia! – ela acenou do meio do lago me
chamando.

— Talvez mais tarde, Tasha – sorri de


volta, colocando apenas os pés na água.
Nadar naquele momento não era meu la-
zer favorito, ela sabia sobre meu acidente
no rio do acampamento, é claro que sabia.
Ela estava lá quando aconteceu.

Era dia de chuva no acampamento de


verão e é nesse período que as piores tem-
pestades acontecem. Estávamos no meio
94
de uma trilha na mata, não tínhamos con-
seguido voltar ao acampamento antes da
chuva nos pegar. Nosso grupo ia bem até
chegarmos a travessia do rio. Precisávamos
passar por ele seguindo um caminho de
pedras para ir à outra margem. As pedras
estavam lisas e escorregadias demais para
alcançarmos do outro lado com segurança,
mas Mikhail insistia que era possível e que
éramos um bando de medrosos.

Para provar que o grupo estava com


medo, ele saltou para a primeira pedra
perto da margem, com facilidade.

— Mikhail, volta, por favor! – Natasha


gritou e, chegando um pouco mais perto
da margem barrosa, eu a segurei.

— Não, eu vou atravessar – ele foi teimoso.

— Mikhail, você vai acabar escorregando


e ninguém vai entrar nessa água agitada
95
para te salvar – Yerik vociferou, tentando
convencer o irmão a voltar.

— Não vou escorregar, cala a boca, seu


amarelão! – Mikhail reclamou, pulando
mais duas pedras e chegando na metade
do caminho.

Ele estava confiante e quase chegando


na outra margem. Todos nós soltamos um
suspiro de alívio, mas foi cedo demais.
Quando Mikhail estava prestes a alcançar
o seu destino, uma pequena onda bateu
em seus pés, fazendo-o se desequilibrar,
escorregar e bater a cabeça em uma rocha
antes de ser carregado pela correnteza.

— MIKHAIL! – Yerik e Tasha gritaram


juntos. Todos estavam estáticos, obser-
vando a cena aterrorizados. O corpo de
Mikhail afundava cada vez mais rápido.
Foi quando percebi que o que Yerik dissera
96
anteriormente era verdade: ninguém mer-
gulharia para dentro do rio para salvá-lo.
Mas eu era ninguém? Eu ficaria parado ali,
vendo meu amigo morrer sem fazer nada?
Não, definitivamente eu não era desse tipo.

Sem mais delongas, pulei atrás de Mikhail,


e pude sentir a correnteza tentando me
empurrar mais rapidamente para o fim,
mas eu conseguiria. Precisava conseguir.

Cheguei até Mikhail, que estava inerte.


Puxei-o para a superfície e tentei manter
a cabeça dele ali. Foi quando ouvi Tasha
gritar...

— CUIDADO, DMITRI! – mas já era tar-


de demais. Algo acertou minha cabeça, e
tudo que me lembro foi de sentir uma dor
intensa antes de mergulhar na escuridão.

O que havia acontecido com Mikhail? Ele


estava bem? “Calma, Yerik. Você não podia ter
97
feito nada quanto a isso...” Ouvi a voz doce,
porém afetada, de minha namorada ao
longe, falando com Yerik. E só podia ser
sobre Mikhail... Então ele estava morto...
Eu não conseguira salvá-lo.
E de repente, como num pesadelo, senti
a água do rio invadir meu corpo novamen-
te, mas não era mais fria, e sim morna e
calma, sem correnteza me puxando ou
tentando me afundar. 
— Dmitri, DMITRI! – ouvi Tasha gri-
tar meu nome em algum lugar da escu-
ridão. Então, mãos frias e desesperadas
bateram de leve nas laterais de meu rosto.
Abri meus olhos agora embaçados, piscan-
do algumas vezes para retomar o foco. A
primeira coisa que vi foi o rosto preocupa-
do de Natasha me encarando. Assim que
percebeu que eu havia despertado, ela me
abraçou com força, soluçando alto.
98
— Aah Dmitri, eu pensei que perderia
você! – ela choramingou perto de meu
ouvido.

— O que houve? – perguntei confuso.


Não estávamos no acampamento, mas sim
no pequeno lago da reserva perto de casa.

— Eu não sei... Eu estava falando com


você e de repente você parou de respon-
der. Tinha o olhar vago e começou a falar
sozinho... Foi então que você pulou para
dentro do lago e começou a se afogar! – ela
estava realmente desesperada. Eu  fizera
isso?

Aparentemente, sim.

Meus pais ficaram sabendo, desespera-


dos por ajuda, procuraram uma clínica de
reabilitação psiquiátrica. Muskov  ficava
no meio de um vasto nada e, para quem
achava que era são, assim como eu, esse
99
era o lugar para se tornar completamente
louco.

Os pacientes daquela clínica pareciam


não ter cura e nem tratamento. Viviam
presos naquela enorme casa, com milha-
res de quartos transformados em celas.
Um desses dormitórios estava reservado
para mim.

Em um dia de visitas, eu estava animado


porque meus pais e Natasha viriam me ver
e eu queria estar com boa aparência para
minha namorada. Vesti uma roupa limpa e
tentei arrumar o cabelo. Fiz o melhor que
se pode fazer sem um espelho. Eu torcia
para meu rosto não estar com péssima
aparência, pois não queria assustá-los. As
noites em Muskov eram muito mais fá-
ceis com a ajuda dos remédios calmantes
e soníferos.
100
Nove da manhã, hora da visita. A porta
de minha cela foi aberta e eles entraram.

Natasha estava à frente, com um enor-


me sorriso no rosto. Aquele sorriso que eu
tanto amava.

Meus pais vieram logo atrás, um pouco


acanhados.

Passamos uma hora inteira conversando,


até o limite de tempo de visita se esgotar.
Meus pais se despediram primeiro, deixan-
do Tasha por último. Ela me deu um beijo
carinhoso e logo se levantou, caminhando
em direção à saída. No mesmo instante,
a porta se abriu e ela levou um susto. Um
rapaz estava a minha porta, com um olhar
completamente desnorteado. Ele encarava
Natasha de tal forma que me deixou preo-
cupado. Ela, como sempre fazia, sorriu
se desculpando e pedindo licença, logo
101
tentando sair. Sua passagem foi bloqueada
pelo rapaz, que a segurou pelo braço.

Tasha voltou o olhar para mim um pou-


co assustada, e o mesmo fez o homem à
sua frente. Eu me levantei para tirar satis-
fações, mas quando senti seus olhos em
mim, meu corpo simplesmente parou, não
respondendo mais aos meus comandos.
Ele segurava um garfo, provavelmente
adquirido escondido da cozinha.

Eu o encarei, perplexo. O que ele tenta-


ria fazer? Minha resposta veio rápido. O
homem, num movimento rápido, levou
Natasha ao chão e tentou feri-la com o
garfo.

Meu corpo continuava sem reagir aos


meus comandos, eu tentava me impul-
sionar para impedir aquela coisa horrível
acontecendo a minha frente, mas nada
102
adiantava. O que me restou foi gritar em
desespero, pedindo por ajuda.

Logo tudo estava acabado. Natasha estava


completamente desfigurada. Seu lindo rosto
agora não tinha mais seus traços delica-
dos, apenas aranhões e cortes profundos,
que iam desde o rosto até certa parte do
pescoço. E seus olhos... Seus olhos verdes
já não se encontravam nas órbitas. O glo-
bo ocular tinha sido arrancado a garfadas
pelo homem. Agora Natasha estava morta
e mais um grito de horror surgiu em mi-
nha garganta.

— DMITRI, DMITRI, ACORDE! – ouvi


uma voz me chamar. Mas quem era?

— Ah meu Deus, vou chamar um médico.


Ivo, venha comigo pelo amor do Senhor!
– ouvi a voz de minha mãe gritar.

— Dmitri, acorde, meu amor! – agora eu


103
reconhecia a voz... Era Tasha. Forcei-me
a abrir os olhos e me vi deitado em seus
braços quentes e macios.
Tudo que pude fazer foi sorrir.
— Foi só uma alucinação, Dmitri. Fique
calmo – ela sussurrou, me abraçando.
E então tudo voltou ao normal. Depois de
uma medicação qualquer, eu estava pronto
para a visita de verdade. O que havia acon-
tecido até então não passava de uma falsa
realidade projetada por minha mente.
Eles ficaram meia hora comigo. Meus
pais se despediram e me deixaram a sós
com Tasha. Ela sorriu e selou nossos lábios
em forma de despedida. Quando estava
prestes a sair do meu quarto, um homem
a deteve na porta: o mesmo homem que
eu já tinha visto em algum lugar...
Em poucos segundos, a cena de meu
104
pesadelo se repetiu. O homem jogou Tasha
no chão e passou a dilacerá-la.
— Dmitri, me ajude! – ela exclamou com
pavor, me encarando.
— Está tudo bem, Tasha... É só mais uma
alucinação – sorri para ela, voltando para
minha cama. Eu deitei e adormeci com
os gritos de dor de Natasha ecoando em
minha cabeça.

O Enfermeiro da Ala
43
L . F. D E L B O S C O

1851

A
s garras viscosas arranham o chão,
cada vez mais próximas de Alek —
um aviso de que seu fim chegava,
105
lentamente. Seu coração pulsa forte, fazendo
o homem em desespero sentir que logo o
colocará para fora, junto a todos os outros
órgãos e vísceras. Ele encontra-se parado,
como se algo o congelasse e o mantivesse
preso ao chão, uma estátua viva. Os olhos
da criatura que se aproxima são como
covas de terra molhada, com uma fraca
luz azulada brilhando ao centro, como se
tentasse escapar em agonia. Seus dentes
são ainda mais afiados que suas garras, e
Alek consegue ver todos eles no que supõe
ser um sorriso. A criatura então diz:

— Os relatórios estão prontos?

E ele acorda.

— Hein, Alek, os relatórios referentes aos


pacientes da ala 43 já estão prontos? – Dr.
Ivan pergunta, sacudindo o enfermeiro
que estava com a cabeça deitada sobre os
106
braços cruzados. Ele levanta e se espregui-
ça, como se não visse importância no fato
de ser pego dormindo no trabalho pelo
próprio chefe.
— Estão sim, doutor – afirma, pegando
com as duas mãos a pilha pesada de rela-
tórios em sua mesa e os entregando ao Dr.
Ivan, que agradece e se retira da sala sem
chamá-lo a atenção, como se também não
visse importância em permitir que seus
empregados tirassem intervalos de sono
inadequados em suas mesas.
Alek espera até não ouvir mais os pas-
sos de Dr. Ivan atravessando o corredor
e então sai da sala. Caminha lentamente
até a ala 43 e retira seu chaveiro recheado
do bolso. Passa as chaves até encontrar a
mais enferrujada, com numerais roma-
nos gravados na extremidade. Destranca a
porta, que geme quando empurrada — tal
107
rangido ecoa por todo o corredor. Ele a
fecha atrás de si e continua caminhando
até parar em frente ao quarto 21. Katya
Pietrov. Dá três batidas, destranca a cela e
entra educadamente.

— Como você está se sentindo hoje, Kat-


ya?

— Você sabe, meu enfermeiro – ela lhe


mostra a língua enquanto pronuncia a úl-
tima palavra. —, o mesmo de sempre.

— Então você acha que... – Alek olha


para baixo e apalpa suas calças brancas.

Os olhos esverdeados brilham com a


cena. Seus cabelos ruivos e desgrenhados
e sua pele preenchida por sardas se apro-
ximam lentamente da pele do enfermei-
ro, branca e lisa como seus cabelos loiros
e muito claros. Os fios se tocam. O beijo
flameja e então acelera. Muitos toques
108
— ora suaves, ora brutais. Tudo acontece
em instantes. Os dois se saciam e, quando
acabam, Alek volta a falar como se nada
tivesse acontecido:
— Sabe, o Dr. Ivan tem me aborrecido
muito ultimamente.
— Por que? – Katya se veste enquanto o
enfermeiro repousa deitado na pequena
cama, apenas coberto pelo fino cobertor
branco.
— Ele vem me enchendo de trabalhos
para fazer. Trabalhos que ele deveria estar
fazendo, entende? Mas, eu continuo ope-
rando porque senão, você sabe, ele pode
me denunciar.
— E por que você não acaba com ele
também? – ela abre um sorriso safado.
— Katya, Katya... Você sabe que não é
simples assim. Pacientes são mais tranquilos
109
de ter suas mortes justificadas, e até seus
sumiços, mas médicos? Descobririam na
certa.

— É verdade... – responde, caminhan-


do até a cama. Começa então a vesti-lo,
fazendo com que cada pedaço da pele do
enfermeiro desaparecesse aos poucos.

— Antes eu não me importava, sabe? Até


porque sei que no fundo ele gosta disso
também. Ele talvez até faça como eu ou
pior, mas não tenho provas. Só que toda
essa cobrança dele está começando a ficar
insuportável!

— E se você acabasse com ele durante


uma intervenção com um dos pacientes?
–sugere. — Acho que ninguém suspeitaria.
É só colocar a culpa no sujeito.

Os olhos de Alek se arregalam com a


110
possibilidade e Katya termina de amarrar
o cadarço dos sapatos do enfermeiro.

— Até que não é uma má ideia... – ele se


levanta e a mulher o encara, começando
a sorrir e a lamber os lábios novamente.

— E quando você vai voltar para me ver


de novo? Já fazia semanas!

— Sobre isso... – ele hesita por um breve


segundo. — Acho que está ficando perigo-
so, Katya.

Ela se surpreende.

— Como assim?

— Não podemos mais continuar nos


encontrando dessa forma. Os outros en-
fermeiros já começaram a suspeitar... Acho
que essa deveria ser a nossa última vez.

— Mas, Alek, e tudo o que nós tivemos?


Você foi o único que me fez aguentar este
111
lugar. Por favor, não me abandone sozi-
nha neste inferno! – seus olhos começam
a lacrimejar. O enfermeiro se sente com-
padecido e abre um sorriso calmo.

— Você sabe que é minha preferida. –


Ambos se encaram, ainda cheios de desejo
e ele não consegue resistir: — Tudo bem,
tudo bem. Eu vou voltar, fique tranquila.

Ela sorri de volta e Alek se despede com


um beijo, retornando à sala. Ao chegar,
encontra mais dois enfermeiros trabalhan-
do e Dr. Ivan assinando diversos papéis,
provavelmente referentes aos inúmeros
tratamentos que realizava.

— Alek! Estava perguntando por você


agora mesmo. Meninos – ele olha para os
outros enfermeiros na sala —, vocês pode-
riam nos dar licença? Trata-se de um dos
tratamentos confidenciais, vocês sabem.
112
Os dois rapazes se retiram e Alek fecha
a porta, começando a falar:

— Até quando isso vai durar? – Sua voz


irritada espanta o doutor.

— Como assim, Alek?

— Você me enche com os seus serviços,


já estou cansado disso!

— Cansado? – Ele ri. — Alek, o que


você mais faz é dormir e matar os nossos
pacientes – Sua expressão muda. — Essa
última parte, creio que seja melhor nin-
guém saber.

O rosto do enfermeiro se fecha cada vez


mais. Decide respirar fundo e mudar de
assunto.

— Você soube da emergência no quarto


21?

— Emergência? De qual ala?


113
— A da que sou responsável: 43. O quarto
é o de Katya Pietrov. Ela tentou se suicidar
ontem à noite. Fui visitá-la hoje e acredito
que a sua presença seja indispensável para
melhora do tratamento.

— Pois então me leve até lá! Sua ala, afi-


nal, é a que mais me atrai, você sabe... – E
abre um sorriso malicioso.

— Só me dê alguns segundos e eu te
acompanho.

O doutor continua assinando os docu-


mentos e o espera. Alek termina de sepa-
rar os arquivos que precisava e leva o Dr.
Ivan até o quarto de Katya. Ao entrarem,
o enfermeiro resolve todos os seus pro-
blemas: Numa só facada, consegue salvar
sua preferida de toda a dor que sentia e
se livrar do chefe que arriscava o futuro
de sua carreira. Coloca a faca que pegara
114
enquanto o doutor não olhava sobre a mão
inerte da mulher e encara os dois corpos
imobilizados no chão por alguns minutos,
banhados de um vermelho contrastante à
brancura das roupas e paredes no quarto.
Ao retornar para a sala, também observa
por um tempo a mesa de instrumentação,
com uma faca bisturi faltando. Por fim,
senta-se novamente no banco da mesa de
relatórios, cruza os braços, repousa a ca-
beça sobre eles e volta a dormir.
Dessa vez, nenhuma criatura o persegue
em seus sonhos.

115
Complexo de
Pandora
R A FA E L F. FA I A N I

1864

A
luz do dia é como um ferrão nos
olhos. Na cama, você pisca até se
acostumar com a luminosidade. O
inverno é um monstro branco com dentes
e garras, que lhe toma o mundo de cores
que tanto ama. Pela janela de grades, é
quase impossível enxergar o lado de fora,
mas não é sempre que você fica livre no
quarto. Hoje você permanece amarrada
na cama, os membros imobilizados por
cintas de couro desgastadas, que cumprem
bem o serviço.

Você prefere as noites, mesmo com os


pesadelos constantes. É o único período que
116
evitam entrar no quarto, mas é impossível
deixar de ouvir os passos dos enfermeiros
nos corredores e os gritos e gemidos dos
outros internos. O sono não chega nun-
ca, então você fantasia que Rurik abrirá
as portas de seu cárcere e lhe salvará de
toda essa loucura. Ah, se a vida fosse um
conto de fadas. É essa fantasia arraigada
que lhe dá coragem para não falar o que
eles querem ouvir.

O cheiro do quarto é nauseabundo, mas


suas narinas estão acostumadas com aquele
odor. Pouco se importa com a sujeira, as
baratas e os lençóis amarelados. Não passam
de preocupações fúteis, pois o mundo como
conhecia não existe mais. Sua percepção é
limitada ao cubículo onde é mantida, mas
sua mente alça vôos maiores. No entanto,
não sabe até quando manterá a sanidade,
117
que não passa de uma corda que se esfiapa
devido ao fardo que carrega.
Os enfermeiros entram e verificam as
cintas, deixando-as mais justas. Você não
emite qualquer som de dor. Todos que tra-
balham naquele hospício são alimentados
por ela. É o que mais anseiam. Aqueles
homens possuem feições duras, cruéis e
envergam jalecos respingados com sangue.
Você reconhece o de bigode. Chama-se
Pavel. O outro, gordo e careca, lhe encara
antes de fechar a pesada porta de ferro.
O dia demora a passar e você aguarda
até que a levem à sala de ladrilhos azuis.
É penoso movimentar o rosto. Durante a
maior parte do tempo, você olha para cima,
para o teto irregular. A tinta está descasca-
da como se o teto trocasse de pele. Depois
de semanas, não sente mais fome. Parece
um sonho pensar em morangos. Será que
118
são reais ou só existe mesmo aquela ração
branca e insípida que a obrigam ingerir?

Quando a porta se abre novamente, não


é necessário se desviar para saber que é a
Dra. Melnikov. Como de costume, ela lhe
aplica uma injeção no braço. A carne está
tão maculada que não sente mais a agulha.

— Hoje será um dia especial, Yeva – ela


diz.

Faz tanto tempo que não utiliza a voz


que duvida da própria capacidade de dar
uma resposta. Seu pensamento se foca em
Rurik e em como seu amor deve estar de-
sesperado lhe procurando. Os enfermeiros
a arrastam porta afora sob a vigilância da
Dra. Melnikov e guiam-na por um longo
corredor. Descem uma rampa até se de-
pararem com uma porta sem maçaneta.

Aquela é a sala de ladrilhos azuis.


119
Todos os terrores que sofrera naquela
sala sem janelas passam por seus olhos em
um segundo. Apesar das torturas físicas e
psicológicas, dos exaustivos interrogatórios
e das injeções alucinógenas, não consegui-
ram lhe extrair a informação. Um segredo
mais importante que sua vida.

Eles a deixam sozinha no centro da sala,


sem amarras. Há uma porta menor que
sempre se mantém fechada. Seu corpo
congela quando ela é aberta e uma mulher
de cabelos curtos aparece.

— Sou a Dra. Petrova, Yeva. Tenho acom-


panhado o seu caso e há um tratamento
para o mal que lhe aflige. Não peço con-
fiança de sua parte, só peço que me escute.

Você abre a boca para falar, mas o som


não sai de início:

— Tra-ta-mento?
120
— Siga-me, por favor.

Ela se volta para a porta menor e, a pas-


sos comedidos, você a segue. Deixa a sala
de ladrilhos e se aprofunda num corredor
de paredes brancas, em formato de túnel.
Atrás da porta no final do corredor, há um
amplo salão com piso de madeira. Fica
com medo de entrar ali, mas então a Dra.
Petrova estende a palma da mão e você
não acredita no que vê.

É um morango. Vermelho e perfeito.

— Foi difícil encontrá-los nesta época,


mas fiz um esforço. Sei que é importante
para você, para sua recuperação.

— Como você sabe que...

— Está na sua ficha. Agora venha.

Você entra no salão, apreciando o sabor


depois da mordida, coisa que pensou que
121
nunca mais sentiria na vida. As paredes do
salão são cobertas por espelhos, mas você
evita qualquer vislumbre de sua imagem.
No centro, há uma mesa com duas cadei-
ras, uma de frente para a outra. Em cima
da mesa, uma bandeja com uma tampa
circular as aguarda. Desta vez, você vê
seu reflexo na tampa de prata. Seu rosto
está pálido, seus lábios arroxeados e os
olhos de um vermelho injetado. O que lhe
acontecera? Parece ter envelhecido uma
década nestas últimas semanas.

A Dra. Petrova se senta e pede para que


você faça o mesmo. Todo o seu corpo está
pesado agora e você parece girar na cadeira.

— O que a Dra. Melnikov aplicou em


mim?

— Um medicamento para acalmá-la. É


muito raro o que tem. A cura só poderá
122
partir de sua ajuda. É necessário se libertar
do fardo, se abrir para outras pessoas.

— Não falarei nada – você grita. — Por


que não me matam de uma vez?

— Rurik veio ontem. A cada dia, seu ir-


mão está mais preocupado.

— Rurik?

Você se levanta com as mãos na cabeça.

— Não, não... Rurik é meu noivo.

— Amanhã, vai fazer três anos e você


continua a insistir em não cooperar.

Aquilo lhe deixa atordoada. Três anos?


Não é mais 1861? Você olha para os espe-
lhos, que parecem se mover como as ondas
do mar. Há um rosto lhe encarando e você
se reconhece mais velha: seus cabelos es-
tão brancos, o rosto descarnado, os dentes
podres. O medo é sufocante e você grita...
123
A Dra. Petrova lhe ampara.

— O que aconteceu? – você pergunta.

— Uma alucinação. É parte da sua mo-


léstia. Permita-me lhe ajudar, Yeva. Con-
te-me onde eles estão escondidos.

Você vira o rosto, fechando-se como


uma ostra.

— Conhece mitologia grega?

Você não responde, ainda está aturdida.

— Denominei sua doença de Complexo


de Pandora. Imagine que você é uma caixa
com segredos e que pensa que está fazen-
do bem em guardá-los, mas se engana. Na
mitologia grega, Pandora abre uma caixa
e liberta todos os males no mundo. Sabe o
que sobra no fundo? A esperança. Se você
se libertar desse segredo, haverá esperança
para a sua recuperação.
124
Você permanece em silêncio.

— Embaixo desta tampa, está a chave


para abrir sua caixa de segredos. Você pode
retornar por aquele corredor ou ver o que
há na bandeja. Quer passar a vida inteira
nesse hospício?

Você se levanta e se apressa em direção


ao corredor. O chão, no entanto, parece se
afundar como areia movediça e você apri-
siona o grito na garganta, pois sabe que é
mais uma alucinação. Raízes se enrolam
nas suas pernas e lhe puxam para baixo.

— Está com medo, Yeva? Se levantar a


tampa, estará a um passo da cura. Por que
desistir? Seu irmão lhe espera do lado de
fora.

Ela está distorcendo a realidade, mas


seu coração aperta no peito. Você sempre
125
deu ouvidos à sua consciência e deseja ver
o que há na bandeja.
Quando a alucinação termina, você se
volta para a mesa. A Dra. Petrova tem nos
lábios um sorriso de triunfo e faz uma
anotação na sua prancheta.
— Eu vou ficar curada?
Ela assente e você encosta a mão na tam-
pa. Seu estômago embrulha e de repente
acha uma péssima ideia. Você quer voltar
para a sala de ladrilhos azuis e ser subme-
tida a qualquer tortura que seja. Qualquer
coisa menos estar parada ali.
— Levante! – a Dra. Petrova lhe incen-
tiva.
A voz dela chega distante. Tudo parece
enevoado, e sombras escuras lhe cercam.
Esta alucinação é mais forte e lhe assalta os
sentidos. Não há mais espelhos circundando
126
a sala, mas pessoas que você conhece. Pes-
soas que dependem do seu silêncio. Precisa
resistir, não pode falar nada. Ainda sente
o toque frio da tampa sob a mão e quando
a ergue, vê dúzias de morangos.
— Obrigada pela confiança, Yeva.
— Mas... Mas... – você gagueja.
— Eu sinto por usá-la, mas precisava de
sua ajuda para o meu estudo. Já obtemos
a informação de onde os conspiradores
estão escondidos. Rurik nos disse.
— Ele jamais diria – você rebate, enfu-
recida.
Seu olhar então é atraído para a bande-
ja e você dá um grito estridente. Deixa a
tampa cair no piso de madeira, que ressoa
como mil gongos. Lágrimas, que achava
que não mais existiam, lhe escapam. Você
se deita no chão em posição fetal, enquanto
127
soluça e chora. Esforça-se para tirar aquela
visão da mente.

Você é erguida pelos dois enfermeiros.


Seus olhos, inconscientemente, se voltam
novamente para a bandeja, para a cabe-
ça de Rurik. Seu rosto está machucado e
com uma expressão de completa surpresa.
Olhos abertos e vazios.

Aos gritos, você é arrastada para a sala


de ladrilhos azuis.

Como se nada tivesse acontecido, eles


insistem no mesmo interrogatório. Você
suporta a tortura como antes, mas chora
por Rurik, prolongando ainda mais a se-
ção. No final, em meio ao sofrimento da
perda e do esgotamento, as feições da Dra.
Melnikov se mesclam com as da Dra. Pe-
trova. Até mesmo a sala de ladrilhos azuis
se parece com o salão dos espelhos.
128
No quarto, os enfermeiros injetam um
líquido viscoso no seu braço, o que lhe
toma a consciência num instante. Ao acor-
dar, você está desorientada. Ainda é dia,
mas será o mesmo dia? Teria sido tudo um
pesadelo?

Você é surpreendida pela voz da Dra.


Petrova. Ela está parada ao seu lado com
uma prancheta nas mãos.

— Hoje será um dia especial, Katrina –


ela diz.

Katrina?

Suas memórias estão confusas. Com um


terror crescente, você se dá conta de que
não sabe mais quem é. Sua identidade foi
esfacelada. Quantas vidas havia vivido em
sua cabeça? Talvez toda sua existência fosse
uma mentira...
129
Perguntas sem respostas. Um rosto sem
nome.

Finalmente, você encara aquele lugar


como um lar e dá uma risada esganiçada
para o teto descascado.

A sua caixa de segredos foi aberta.

No fundo não há esperança, apenas lou-


cura.

Duas vozes, um grito


A N YA P I R E S

1879 – Solstício de inverno  

A
ficha marcava o início do trata-
mento. A mulher não progredia.
Pelo contrário, seu caso havia se
tornado ainda mais desolador. Os gritos
130
ecoavam pelo quarto, e a sua pele clara,
coberta por linhas mal cicatrizadas, era
a prova da raiva contida no corpo frágil
e esbelto. Os longos cabelos loiros já não
existiam, dando lugar ao crânio arroxeado,
com marcas de queimadura. Um dia, ela
foi o alvo de desejo de inúmeros preten-
dentes. Inclusive meu.

— SEU PORCO!

— Fique calma, meu amor. Logo o remé-


dio fará efeito. Chegará o dia em que essas
alucinações não irão mais te perturbar.

Minha voz tranquila nunca atravessa-


va a muralha entre nós. Mavra deixou os
fantasmas a dominarem. Os dias felizes
como minha esposa foram perdidos. Ela
só se lembrava de sua vida como interna
do Hospício de Muskov.

— IMUNDO! SOCORRO, MEU DEUS!


131
As súplicas nunca cessavam e, com o pas-
sar dos dias, os delírios se tornaram piores.
Em dois meses de tratamento, a mãe da
minha filha estava sendo consumida pela
insanidade, restando apenas uma sombra
da mulher que ela já foi.

— Dr. Erilovich? Podemos levá-la? – a


voz da enfermeira soou como um alarme.

— NÃO! EU IMPLORO... Não, por favor!


A banheira não!

— Sim, faça o que é necessário.

A maca logo sumiu pelo corredor, le-


vando consigo os gemidos de puro terror
da minha esposa. Ela não conseguia dis-
cernir o que era bom e ruim. A medicina
parecia insuficiente para ajudá-la, apesar
de seu avanço. O corpo humano era visto
como a máquina perfeita, criada por Deus.
Porém, quando a engrenagem principal
132
apresentava defeito, todo o resto era des-
cartado.

O tempo seguia diferente para aqueles que


frequentavam o Muskov. Seria impossível
dizer se era dia ou noite do lado de fora.
As baixas temperaturas não davam trégua,
e protegido por um grosso casaco, eu la-
mentava não poder fazer o que desejava
por Mavra. Sua falta de lucidez a impos-
sibilitava de aceitar qualquer coisa vinda
de seu próprio marido.

— Senhor Erilovich? – um dos enfer-


meiros gritou, respirando como se tivesse
corrido uma maratona. — A sua esposa,
ela... Precisa de você. Agora!

Não busquei respostas. Corri na direção


oposta, atravessando os corredores sem me
ligar aos detalhes. O aroma me invadiu
133
antes do som, mas o grito ensurdecedor,
vindo da porta 503C, prendeu a minha
atenção. As batidas do meu coração quase
davam para ser ouvidas por quem estivesse
ao meu lado. Aquela visão, eu nunca esque-
ceria. Seria o motivo dos meus pesadelos
durante os próximos anos.

— Segurem com mais força. É só uma mulher!

— Amarre os pulsos. Cuidado com as mor-


didas. Deus nos ajude!

Tudo passou como um borrão diante


dos meus olhos. Dois médicos não eram
suficientes para contê-la. As enfermeiras
tentavam segurar suas pernas e braços,
enquanto outra rezava, agarrada a um
crucifixo. Porém, o meu foco se prendeu
no sangue. A ferida, na base do pescoço,
manchava a pele clara de vermelho. O
134
aroma de ferrugem incomodava, piorando
a situação.

— Tragam a mordaça!

— Por Deus, alguém chame mais um homem.

O terror tomou conta do meu corpo. Sem


pensar, empurrei os dois homens que es-
tavam entre nós e me joguei sobre a cama,
apoiando as duas mãos sobre a ferida. A
pressão fez o fluxo do sangramento dimi-
nuir e o meu peso a travou por instantes.
Ela me encarava com ódio e logo passou
a investir contra mim, debatendo-se com
uma força que não parecia dela. Mesmo
desesperado, a minha mente buscava uma
lógica para a lesão.

— ELE ME CONTOU! O HOMEM... Eu


posso vê-lo, o dono da voz. Solta-me, seus
desgraçados! – ela urrava, entre as tentativas
de morder quem estivesse mais próximo.
135
— VOCÊS VÃO PARA O INFERNO! O
DEMÔNIO... ELE VIVE NESTE LUGAR!

Eu a estava perdendo.

— SODOMISTA! EU VOU CONTAR


PARA TODOS. OUVIRAM? – Mavra ge-
meu as palavras, entre os gritos falhados.
— EU ESTOU SUJA POR SUA CAUSA! – a
cólera inundava as ofensas. Todos os pre-
sentes pareciam ainda mais perplexos.

Seria impossível dizer como a situação


saiu do controle. Um dos braços da Mavra
acertou o meu rosto. Por culpa da surpresa,
minha cabeça tombou para trás, me dese-
quilibrando da cama estreita, sem colchão.
Ela não perdeu tempo, usando as pernas
para afastar as enfermeiras e se jogar em
cima do meu corpo. O tempo livre foi su-
ficiente para a minha esposa agarrar um
136
caco de vidro, escondido embaixo do tra-
vesseiro, e tentar afundá-lo no meu rosto.

— DEVE MORRER! A VOZ DISSE...

O primeiro golpe rasgou a carne do meu


braço. A dor acordou cada sentido de so-
brevivência. Entretanto, não medi forças
para contê-la. Podia não entender como
aquele caco de vidro apareceu no quarto,
mas o foco era ela. O corpo pequeno não
apresentou resistência quando a detive
contra o chão, sem a machucar. Apenas
alguns segundos foram suficientes para
que o outro médico pudesse sedá-la. Desa-
cordada, logo estava atada contra a cama,
sendo atendida. O corte parecia controla-
do, mesmo que molhasse os retalhos de
algodão.

— Como este objeto chegou aqui? – mi-


nha voz ecoou pelo quarto no instante
137
em que fiquei de pé. Com o caco de vidro
entre os dedos e a dor latente no corte, o
meu ódio pelo descuido de um deles só
aumentava. — Eu exijo uma resposta! Ela
tentou se matar!

Ninguém teve coragem de falar sobre


o ocorrido até o momento da chegada do
diretor da ala, o Dr. Dmitrievitch. Tinha a
expressão dura no rosto e a postura ereta.
Seu foco vagou por cada centímetro do
ambiente e se fixou no meu braço ensan-
guentado, como se o olho clínico tivesse a
capacidade de compreender rapidamente
o que acontecera nos últimos momentos,
captando apenas os detalhes.

Minha esposa sussurrava algumas pala-


vras, nenhuma compreensível. O láudano
conseguia fazer efeito muito rápido.

— Levem-na para a sala de reclusão. Ela


138
só sairá após a minha avaliação. Irei vê-la
mais tarde.
A voz do Dmitrievitch se sobrepôs ao
efeito sedativo. A enferma começou a cho-
rar, produzindo sons agoniantes. Alguns
chegavam a ser comparados com o uivo de
um animal moribundo. Aquilo me quei-
mava por dentro, causando um sentimento
impossível de ser expresso. Porém, eu não
podia ser consumido pela cena. Deixando
de lado a repreensão de todos, os meus pés
me guiaram para perto daquela que um
dia dividiu a cama comigo todas as noites,
por vários anos. Os olhos azuis pareciam
duas bolas opacas, e somente um suspiro
baixo escapou dos seus lábios feridos. As
palavras por mim sussurradas a emude-
ceram.
— É a verdade. Não se esqueça dos
meus reais sentimentos por ti – disse ao
139
me afastar, sendo imediatamente levado
à enfermaria.

Com dez pontos no braço direito e um


conselho de descanso, a minha última pa-
rada daquela minha passagem pelo hospí-
cio seguia a minha espera. Não foi preciso
bater na porta, apenas entrei. A tosse rouca
e o cheiro do charuto continuavam sendo
algo característico das reuniões. Ele me
olhava de maneira divertida, ainda que
encarrasse o meu ferimento recente.

— Por quanto tempo pretende manter


aquela vadia viva? Quer dar a ela uma
chance de matá-lo ou deseja ser delatado?

— Pelo tempo que for necessário, Rurik.


Estou sofrendo pela loucura dela. Não seja
cruel!

A sobrancelha negra levantou assim


que seu primeiro nome foi pronunciado.
140
O charuto continuou entre os seus dedos,
mas ele logo abandonou a postura de in-
diferença. Saiu do conforto de sua cadeira
e se posicionou à minha frente, obrigan-
do-me a encará-lo.

— Jovem e tolo. Tem tanto o desejo de


ser morto? Pois se a louca não o matar,
as nossas autoridades se encarregarão do
serviço – o aviso veio junto das baforadas
de fumaça.

— Não se esqueça do mais importante,


diretor. Caso eu seja indiciado, o senhor
também será. Ou acha que pratico a sodo-
mia sozinho? Conta-me a verdade, o que
colocou para a Mavra tomar? Ela alegou
ouvir vozes, ver um homem e conversar
com seres inexistentes. Aquela mulher
pode ser tudo, menos louca.

Rurik abriu um belo sorriso, ostentando-o


141
a ponto de formar pequenas rugas ao lado
dos olhos verdes.
— Um bom médico deve ter conhecimen-
tos vastos, meu bom colega de profissão.
Porém, eu não faço ideia do que pergunta.
Ela não possui mais uma mente sã. Você
mesmo a chama de louca – ele disse, ao
encostar-se contra a mesa. — Sobre a con-
versa, quem sabe o que ela pode ter ouvido.
As paredes deste hospital tem vida.
— Então espero que sejam surdas, ou
estamos mortos. E a minha esposa não pre-
cisava ouvir nada, pois ela viu. Eu já perdi
as contas das vezes que serviu de plateia.
Mas é diferente. Nunca a vi naquele estado.
— Tolo! Às vezes, me pergunto como
conseguiu o diploma de medicina. Achou
mesmo que eu narrei a forma que o mari-
do dela prefere ser na cama? Acredita que
me preocupo com o que ela possa pen-
sar? Não sou eu que procuro abrigo entre
142
os seus lençóis – o deboche na voz dele
causava-me ânsia, mas não o interrompi.
— Além disso, tenho um trabalho árduo
na Ala 43. Aquilo não ganhou o apelido
de limbo sozinho. Não gasto o meu tempo
com algo que já é meu.
— Isso não explica como o vidro apare-
ceu no quarto. Bom, eu não podia deixá-
-la se matar. Ainda tenho uma reputação
para manter. O “crente” na recuperação
milagrosa.
— O que fez com a sua filha? Ouvi as
enfermeiras comentando, já que tu és o
partido mais requisitado dentro deste in-
ferno.
— Colégio interno.
— Um peso a menos.
O silêncio ganhou espaço ao nosso redor.
Como ele não parecia disposto a falar, eu
143
apenas o deixei para trás, dirigindo-me a
saída.
— Já vai?
— Sim – respondi, com a porta aberta.
— Aleksandr? O que disse a ela? No sus-
surro.
Usando o mesmo sorriso que o dele,
apenas virei o rosto para trás, deixando
que visse a minha animação. Pouco me
importei por ele ter me chamado pelo
primeiro nome.
— Minha amada esposa, espero que aproveite
a sua língua, pois ela não ficará muito tempo
dentro da sua boca. Não gosto de ouvir a sua
voz quando estou querendo escutar apenas aos
gemidos do Rurik. Até mais tarde – repeti as
palavras, uma a uma. — E Sr. Dmitrievitch,
aconselho que descanse um pouco. Tere-
mos algumas horas bem atarefadas mais
tarde. Passe bem!
144
A surpresa era uma expressão difícil de
conseguir esboçar no rosto dele, ainda mais
de maneira tão sincera. Não poderia negar,
apesar dos riscos, que o nosso envolvimento
seguia delicioso. As salas do Muskov eram
perfeitas para guardar os maiores segredos
de um homem. Desde infidelidade e luxú-
ria, até uma morte acidental.

Temperatura Crítica
V INÍCIUS GU T TER R ES

1885

T
odos os modernos microfones que
seriam utilizados na transmissão de
rádio em escala nacional já estavam
prontos, e as lentes das pesadas máquinas
fotográficas focavam no tirano enquanto
a maquiadora finalizava o seu trabalho.
145
Assim que a experiente profissional termi-
nou de borrifar o último produto estético, o
ditador se virou para o consultor de moda
pessoal e, expondo o rosto, perguntou:

— Está tudo perfeito?

A maquiadora prendeu a respiração du-


rante a avaliação do consultor.

— Sim, Vossa Tirania primorosa, um


serviço impecável.

Com um gesto displicente de sua mão,


o tirano dispensou a esteticista.

— Bom, então vamos começar o show!

Aprumou-se na cadeira aguardando o


sinal do diretor de comunicação. A con-
tagem regressiva para o pronunciamento
foi iniciada.

— Boa noite, Nação! Saudações do Líder


Supremo que tanto os estima! Como vocês,
146
com certeza, vêm acompanhando nas ga-
zetas matutinas e vespertinas distribuídas
pela Editora Única, o sucesso do Programa
Temperatura Crítica continua crescendo
em velocidade excepcional! A glória do
PTC só corrobora aquilo que eu já sabia:
todos vocês concordam comigo sobre a no-
cividade da água quente! Se mantivermos
esse ritmo, logo baniremos a água quente
de nossas vidas! Essa moléstia há de cessar
de uma vez por todas!
O ditador interrompeu o apaixonado
discurso por alguns segundos – precisava
respirar. As palavras haviam esguichado
de sua boca em uma sucessão alucinante.
Tossiu discretamente e retomou a fala,
agora em um compasso moderado:
— O intuito desta mensagem é apenas
enfatizar a importância do Programa
Temperatura Crítica e, principalmente,
147
ressaltar o orgulho que eu tenho da minha
Nação! Fico deveras honrado pela dádiva
que é representar o meu povo na garantia
de seus interesses! O carinho de vocês sig-
nifica o mundo para mim... É a motivação
que me leva a sempre querer ser um Líder
Supremo melhor! Até breve, Nação! Digam
não à água quente!

O tirano removeu a gravata e jogou-a no


chão no instante seguinte à confirmação
de que a gravação havia sido suspensa –
ou seja, o Canal Único já retornara à pro-
gramação habitual. Um servo correu até o
ponto em que a sofisticada peça de roupa
pousara como se a vida dele dependesse
disso (talvez dependesse mesmo) e, com
excessiva cautela, guardou-a em uma caixa
revestida de veludo. Percebendo que o Lí-
der Supremo estava prestes a se levantar da
cadeira, o homem permaneceu agachado
148
para que Sua Tirania se apoiasse em suas
costas e tivesse o esforço facilitado. O di-
tador não perdeu a oportunidade.

— Muito obrigado! – agradeceu o servo.

Um assessor de relacionamentos se apres-


sou para alcançar o tirano antes que ele
entrasse em seu banheiro particular.

— Com toda licença e respeito, Vossa


Tirania paciente, acaba de surgir um as-
sunto delicado que requer vossa atenção.

— Requer?!

— Suplica... – a voz do assessor quase


sumiu, e ele teve de conter as lágrimas.
— Um bilhão de perdões, Vossa Tirania
misericordiosa!

— Desembuche.

— É referente ao vosso amigo Feodorov,


o teórico de envenenamento em massa.
149
Ele foi capturado pela Polícia Governa-
mental. Fontes seguras alegam que agentes
flagraram Feodorov realizando testes em
crianças apreendidas.

— E qual o problema nisso?

— Os espécimes não tinham os docu-


mentos oficiais de deferimento de flage-
lação.

— Hum... Pena de três anos de reclusão,


correto?

— Exatamente, Vossa Tirania erudita!

— Dê algum jeito de arranjar foro privi-


legiado para ele. Feodorov não é relevante
o suficiente para uma interferência direta
minha. Ademais, não passa de um colega.

— Claro, Vos...

O baque da porta do banheiro se fechan-


do encerrou a conversa.
150
Após alguns minutos, batidas hesitantes
ecoaram pelos trinta metros quadrados
do recinto. O ditador entreabriu a porta e
colocou a cabeça para fora, fitando o co-
mandante do Batalhão Hídrico. Cortinas de
vapor escapavam pela fresta, embaçando
os óculos do chefe militar. O comandante
era calejado o bastante para não encarar
a maquiagem que escorria pelo rosto do
Líder Supremo.

— Lamento a interrupção, Vossa Tirania


clemente, mas fui informado de que o Lí-
der Supremo demandava minha presença
com urgência.

— À vontade, comandante. Enumere as


últimas estatísticas na caçada aos dissiden-
tes do Programa Temperatura Crítica.

— Duzentas e quarenta e cinco famílias


encarceradas por posse de aquecedores.
151
Um rapa no centro do Distrito Leste confis-
cou outras centenas de aquecedores, ainda
sem uma contagem precisa. As casas dos
comerciantes presos estão sendo vasculha-
das nesse momento. Demolimos noventa
e seis lareiras e impedimos a construção
de outras oitenta. Todos os proprietários
estão trancafiados. Uma vila inteira no
Distrito Sul foi tomada sob a acusação de
aquecimento de água com energia solar. O
Tribunal Térmico Federal julgou oitocen-
tos e sessenta criminosos hoje, declarando
oitocentos e cinquenta e nove culpados.
Sete...

— Os números não param de subir – o


tirano interrompeu.

— Verdade, Vossa Tirania astuciosa!

— Isso ocorre por aumento da eficiência


152
do Batalhão ou por proliferação dos trans-
gressores?
O comandante pareceu incomodado.
— Permissão para falar com absoluta
sinceridade, Vossa Tirania compreensiva.
— Quer dizer que até agora você só me
contava mentiras?!
— De forma alguma, Vossa Tirania pie-
dosa! Expressei-me equivocadamente.
— Então, se expresse direito!
— O Batalhão vem, de fato, trabalhando
com força redobrada, porém...
— Porém...!
O comandante se aprumou.
— Porém, a impressão que se tem é de
que a rebeldia dos opositores se expande
exponencialmente. A insubmissão e a resis-
tência dos delinquentes chegaram a níveis
153
astronômicos! Temos de quebrar a moral
dessa peste! Temos de descer ao patamar
deles, agir com a mesma sordidez que eles
agem!

— O que você está sugerindo?

— Não sugerindo, mas implorando...


Implorando, Vossa Tirania implacável, por
consentimento para aplicar os métodos
banidos pelo Comitê de Padronização da
Tortura. Não anseio pela crueldade, meu
desejo é apenas limpar a escória que de-
sacata a Ordem. Receio, no entanto, que
truculência seja o caminho.

O ditador refletiu um pouco, até que se


decidiu:

— Comandante, você tem o meu consen-


timento. Se o preço para salvar a integri-
dade da Nação é um bocado de violência,
não sejamos avarentos!
154
— Alegra-me imensamente ouvir isso,
Vossa Tirania generosa!

Curvando-se em uma reverência exa-


gerada, o comandante se retirou. O tirano
trancou a porta para que conseguisse relaxar.

Gotículas cobriam as paredes do banhei-


ro, uma névoa tórrida abafava o aposento, a
água borbulhava e o visor do termômetro
se mantinha turvado.

O ditador ignorou a escada de ouro ma-


ciço, escorregando para dentro da vasta
banheira circular pela borda. Imergiu len-
tamente, absorto em pensamentos.

Quanto mais tento ajudar a Nação a se lim-


par, mais sujeira respinga em mim, ruminou.
O ofício de Líder Supremo não é moleza... Mal
imaginava que me metia numa fria quando
conquistei o poder.
155
E lá permaneceu, mergulhado até o pes-
coço.

No corredor, o psiquiatra encontrou um


colega de trabalho.
— Advinha para qual cargo o tirano me
designou hoje – desafiou entre risinhos.
— Cientista de refrigeração bélica?
— Comandante do Batalhão Hídrico!
O colega assobiou admirado.
— Foi promovido!
A dupla gargalhou.
— Mas, cá entre nós – o psiquiatra se re-
compôs, — ele está piorando.
— A temperatura da banheira já superou
50°?
— Sim, há dias. Experimentaremos um
156
novo tratamento a partir da próxima se-
mana.

— Qual?

— Choque térmico extremo – endirei-


tando os óculos, o psiquiatra explicou: — A
janela do quarto dele será removida.

A Dama de duas
faces
“A morte é fria e lenta, bela e mórbida”

J. M. MENEZ

Dezembro de 1902

O
s murmúrios dos outros pacientes
amordaçados ecoavam pelos cor-
redores. Fazia apenas seis meses
que eu estava presa ali, meses que mais
157
pareciam anos. Eu ainda sonhava com
o dia em que papai entraria por aquela
porta e me libertaria – sonho esse que
nunca se realizou.

Os passos da besta faziam meu cora-


ção disparar novamente; mais uma vez
eu teria de enfrentar aquele demônio. A
cada dia, me sentia mais fraca e sem for-
ças; minha esperança sumia aos poucos,
assim como eu mesma desaparecia presa
ali dentro. Anya sorria para mim com um
tom de deboche.

— Você é patética, Eleni!

Lágrimas começavam a se formar em


meus olhos quando a besta entrou no
quarto. Eu estava encolhida em um canto
escuro; Anya apenas olhava e recusava-se
a me ajudar.

A besta sorriu, vindo em minha direção.


158
Tentei lutar contra ela, mas era forte demais.
Arrastou-me pelos corredores, puxando-me
pelos cabelos. Minha pele branca exibia
enormes machucados vermelhos, alguns
ainda em carne viva. Esse era meu ritual
macabro, repetido dia após dia desde que
me trouxeram ao Hospício de Muskov. Fui
espancada até desmaiar, sem entender o
motivo de tanta raiva.
Acordei já na cadeira elétrica e justo
hoje, no natal, as coisas pareciam piores.
Havia apenas dor. Dor de ser abandonada
ali como lixo.
Quando tudo finalmente acabou, fui
jogada novamente em minha cela. Anya
nenhuma palavra dizia, apenas olhava
para o nada. Uma mistura de ódio e re-
volta misturava-se com toda a minha dor
física e emocional. Como ele pudera fazer
aquilo comigo? Como simplesmente me
159
abandonara naquele lugar? Se mamãe es-
tivesse viva, jamais permitiria tamanha
brutalidade, mas por algum motivo ele
acreditava que eu era a culpada por ela já
não estar mais entre nós.

Eu podia ouvir gritos vindos de todos


os lados daquele lugar. Quando eles pa-
ravam, continuavam reverberando em
minha mente. Aquelas paredes cheiravam
a morte. Aqueles corredores exalavam
sangue e dor.

Naquele dia, algo incomum aconteceu


– a besta que antes apenas uma vez ao dia
aparecia, novamente a me olhava pelo pe-
queno buraco na porta. Paralisei. Será que
meu tormento não havia acabado ainda?
Ele me olhava com ódio, ficou ali um lon-
go tempo. O que estaria tramando? Não
desviei o olhar nem por um segundo.
160
Anya estava na cama, nos olhando. Quan-
do ele finalmente se foi, ela veio até mim,
parando bem a minha frente.
— Mate-o, Eleni – sussurrou.
— Você está maluca? – respirei com di-
ficuldade por causa das dores. — Jamais
seria capaz de tamanha brutalidade.
— Ele é capaz de muitas outras – ela
insistia.
— Eu não sou como ele! – protestei. –
Ele é um monstro sem coração.
Anya ria.
— Você precisa fazer algo, ou ele fará.
Eu tinha medo do que aquele monstro
poderia me fazer e nem sequer sabia como
me libertar daquele tormento. Mas matá-lo?
Eu não conseguiria, isso não seria correto.
Por muitas vezes, eu desejava ser como
161
Anya, ela possuía uma alegria que há muito
tempo me era desconhecida. Porém, jun-
to de seu bom humor existia algo muito
negro, uma maldade latejante, como uma
cobra pronta para dar o bote, esperando
sempre a melhor oportunidade.

Ignorei todos os pedidos sombrios de


Anya. Existia ainda um fundo de esperança
em meu coração, que lutava bravamente
para permanecer vivo dentro de mim.
Por algumas noites, a besta repetiu sua
visita, o motivo ainda era uma incógnita
para mim.

No dia seguinte, acordei assustada de-


pois de uma série de pesadelos confusos
e misturados. Neles, eu podia ouvir meus
pais conversando:

— Não é possível que você não esteja


162
enxergando que há algo errado com ela,
Ilya! – dizia meu pai.

— Você está sugerindo que criamos um mons-


tro, Anton? – contestava minha mãe. – Não
pode estar falando sério! Como uma criatura
tão doce poderia ser capaz de tamanhas atro-
cidades?

— Ela a manipula! – ele fez uma pausa. –


Por Deus, você precisa acreditar em mim!

Acordei assustada. De quem estariam


falando? Eu não conseguia me lembrar.
Adormeci novamente, e mais alguns fla-
shes dos sonhos vieram em minha mente.

— Não! Por favor... você tem que parar


querida!

Um silêncio se seguiu, mamãe chorava.


163
Minha cabeça doía. Aqueles sonhos pare-
ciam tão reais, porém não faziam senti-
do algum para mim. Com quem mamãe
estava falando? Tentei me recuperar, pois
em alguns segundos a besta estaria ali no-
vamente para me torturar.

— Está pronta? – ela falou ao parar em


frente à porta.

— O que você quer de mim? – perguntei,


não entendia o propósito de tudo aquilo.

— Quero curá-la – ele sorriu. – Demore


o tempo que precisar.

Não importava quantas vezes eu tentasse


explicar que não era responsável por nada
daquilo que me acusavam, ninguém nunca
me ouvia.

— Você que é doente!


164
O sorriso sumiu de seu rosto, dando lugar
a uma expressão de ódio. Caminhou em
minha direção, segurando meus cabelos
com força e me batendo contra a parede.

— Você se acha muito esperta não é


mesmo?

Eu tentava com todas as minhas forças


me libertar de suas garras, mas parecia em
vão. Até que em um momento de descuido
da besta, consegui golpeá-lo na face. Um
corte profundo formou-se em sua pele,
libertando seu pior lado.

Me espancaram diversas vezes naquele


dia. Meus cabelos e pele foram cortados, e
fui submetida à cadeira elétrica por mais
vezes do que eu conseguia contar. Ao fim
do dia, eu mal conseguia me mover, sendo
jogada novamente na masmorra.
165
— Estou tão cansada – sussurrei deitada
no chão, olhando fixamente para o teto.

— Você sabe o que deve fazer – pronun-


ciou Anya, agora séria.

— Eu não posso.

— Sim, você pode! Ele merece, olhe bem


para o que ele fez com você.

— Não consigo me mover, o meu corpo


dói.

— Sabe quem mais precisa morrer?

Olhei para Anya, havia desejo por san-


gue em seu olhar.

— Quem? – perguntei.

— Anton Gorbachev.

— Não, Anya. Não podemos matar o


papai – supliquei, tentando levantar-me.

— Ele que fez a cabeça de todos contra


166
nós e nos jogou nesse lugar imundo – ela
fez uma pausa e se aproximou. — E é por
causa dele que ela está morta.

— Isso não é verdade, ele não faria isso.

— Não mesmo? Nunca nos fez nem se-


quer uma visita nesses meses todos em que
estamos presas aqui.

— Ele deve estar ocupado demais, talvez


não tenham o deixado entrar.

— Não, Eleni. Ele quer nos ver mortas.


Só não teve coragem de nos matar com as
próprias mãos.

— Não pode ser, Anya...

— Lembre-se Eleni, Lembre-se...

O que haveria acontecido naquela noite?


Do que Anya estava falando? Tudo come-
çou a girar em volta de mim, e meu corpo
foi tomado por uma escuridão profunda.
167
— Eu sinto muito, querida. Mas isso precisa
acabar – mamãe estava parada ao lado de
minha cama, e em sua mão havia uma faca.

Ela chorava muito. Seu choro me acordou.

— O que está fazendo, mamãe?

Ela afastou a faca rapidamente, esconden-


do-a atrás das costas.

— Nada, querida. Nada.

— Ela ia nos matar, Eleni – acusou Anya,


que estava sentada ao meu lado na cama. —
Essa vadia ia nos esfaquear.

— Isso é verdade, mamãe? Você ia nos matar?

— Olhe para você, Eleni. Você não está bem...


– mamãe fez uma pausa, chorando muito. —
Eu não sei mais como ajudá-la.

— E por isso ia nos matar?


168
Antes que eu pudesse processar aquela infor-
mação, Anya levantou-se da cama e foi na di-
reção de mamãe, pegando a faca de suas mãos.
Esfaqueou-a várias vezes, sem hesitar, motivada
por um instinto primitivo de autopreservação.
— Anya, o que você fez?!
— O que era necessário – ela sorria para
mim enquanto eu olhava para mamãe caída
ao chão, ensanguentada e já sem vida.
Papai entrou no quarto naquele instante.
Junto dele, estavam alguns homens vestidos
com roupas brancas.
— Ah meu deus! Ilya, não... – ele abaixou-se
ao lado do corpo de mamãe. — O que você fez,
Eleni?
— Não fui eu, pai...
Tentei explicar que quem havia matado
mamãe era Anya, mas eles pareciam ignorar a
presença dela. Os homens me arrastaram para
169
fora de casa, levando-me para longe, e desde
então nunca mais vi minha família.
Anya havia matado a mamãe. Papai ha-
via chamado aqueles homens para que se
livrassem da gente. No fundo, nenhum
deles nos amava. Lágrimas começaram
a escorrer por meu rosto, pois era difícil
admitir que Anya estivesse certa quando
dizia que aquelas pessoas mereciam mor-
rer, inclusive ele.
Naquela noite, a besta apareceu de ma-
drugada, e eu estava dormindo quando ela
começou a me arrastar com brutalidade.
— O que está fazendo? – gritei. — Me
solte!
A besta ficou em silêncio. Seria mais uma
sessão de tortura?, perguntei-me. Entretanto,
o caminho era outro.
— Para onde está me levando?
170
Eu me debatia como uma presa prestes a
ser devorada. Ele me arrastava pela neve,
até o casebre aos fundos da instalação que,
apesar da aparência abandonada, era onde
morava o zelador cabana. Tentei gritar por
ajuda, mas ele tapava minha boca quase me
sufocando. Jogou-me em um colchão velho
e começou a se despir. Fiquei assustada.
Embora ainda estivesse fraca das últimas
torturas, procurava desesperadamente al-
gum objeto que pudesse me salvar.
Percebi que em sua cinta havia um ca-
nivete, mas como poderia pegá-lo? Ele
deitou-se em cima de mim, rasgando mi-
nha roupa. Ao lado do colchão, notei um
velho pipidouro jogado por ali. Segurei o
objeto com toda minha força e o acertei
na cabeça. Ele se afastou meio confuso.
Levantei-me e voltei a golpeá-lo várias
vezes, até que finalmente desmaiasse. Em
seguida, peguei o canivete em sua calça.
171
— Mate-o – dizia Anya. — Liberte-nos.

Segurei o canivete em cima de seu peito


e desci a mão de uma só vez. Sangue co-
meçou a escorrer através da ferida.

— Ele não é o único que merece morrer


– continuou Anya. — Existe outros como
ele, mate-os!

Caminhamos em direção ao hospício


novamente, cobertas de sangue. Uma das
bestas viu quando nos aproximávamos e
gritou para alertar os demais. Não sei expli-
car como, mas consegui passar o canivete
em sua garganta. Ignorei o corpo caído
aos meus pés e segui pelo corredor, onde
mais deles se amontoavam para ver o que
estava acontecendo. Tentaram segurar-me,
mas eu lutei contra eles Corri o mais rápi-
do que pude, atravessando o prédio rumo
ao portão principal em frente ao hospício,
172
mas a porta de entrada da construção es-
tava trancada.
— Nunca vamos sair daqui – admiti,
desolada.
— Vivas não – disse Anya, me olhando
de modo estranho antes de me apunhalar
na barriga.
— Por que fez isso, Anya?

— Porque agora estamos livres.

Celese
M A R I N A AV I L A

1906

F
ui feita destes pequenos pedaços de
estrelas, como pode ver. Perdoe a ex-
pressão, quero dizer na verdade que
você não pode ver; são pequenos demais
173
para os olhos, mas vibram em energia como
as das lâmpadas piscando no corredor lá
fora. Por isso, sabia que minha vida seria,
de certa forma, infinita.

Aquela foi minha última noite em Mus-


kov. Senti-me como uma pequena borbo-
leta desejando causar um furacão do outro
lado do mundo, mas que acabou morta
por um corvo faminto. Minhas asas nunca
foram o bastante para voar mais alto que
os predadores.

No entanto, eu ainda cintilava com vida.


Meu cérebro havia se desconectado aos
poucos do corpo e, embora não percebesse,
fui dia após dia perdendo minha vontade
de fugir e fazer algo pelo mundo que havia
me esquecido.

Por favor, deixe-me contar sobre minha


174
última noite em Muskov. Eu me lembrava
de tudo.

O vento congelante adentrava através


das janelas, avançava pelos corredores e
insensibilizava meus pés graças ao chão
frio. Andar descalça, porém, não foi o pior
que Muskov me causou. Pelo menos, eu
ainda podia andar.

Sorri ao saber que meu corpo ainda era


meu. Os enfermeiros não precisaram me
puxar com violência. Em minha última
noite viva, sabendo que não havia saída,
eu só queria acompanhar o embalo me-
lancólico que o pôr do sol havia me pro-
porcionado naquele momento. O som dos
meus passos junto aos das pessoas ao meu
lado formavam uma melodia tão calma
que, estou certa disso, não sairia da mi-
nha mente.
175
Eles fingem nos dar uma última chance
ao nos colocar de frente ao chefe do depar-
tamento médico. O Dr. Krupin terminava
de comer uma Solyanka na própria mesa
de trabalho quando chegamos. Os enfer-
meiros foram delicados ao me pedir para
sentar, o que, pela primeira vez, causou
um grande incômodo.
Eles estão sendo gentis porque sabem que vou
morrer.
O Dr. Krupin entregou o prato sujo para
uma enfermeira, que se retirou da sala,
deixando-me a sós com dois homens. Sem
sentir uma energia feminina, soube que
tinha minha condenação assinada.
— Celese, boa noite.
— Boa noite, Dr. Krupin.
Ele disfarçou um sorriso entre os dentes
amarelados.
176
— Sempre foi muito mais educada do
que os outros pacientes. Universidade de
São Petesburgo, se me lembro bem?

A mesma universidade que me colocou atrás


destas paredes frias, pensei.

— Sim. Física.

— Ah, Celese. Eu adoro física. A filosofia


da natureza!

— Bem... É uma forma de lermos a poe-


sia da natureza.

— Ah, lermos! – o Dr. Krupin enrugou


os olhos, fixando-os nos meus. — E o que
a física nos escreveu, Celese?

Naquele momento, soube que, mais uma


vez, havia me denunciado. No outro se-
gundo, senti que não importava a resposta.
Então, eu poderia ao menos morrer em
paz ao dizer a verdade.
177
Esgueirei o olhar para o enfermeiro ao
lado, que distraidamente limpava o nariz.
O Dr. Krupin era realmente meu público
final.

— A física escreveu quem somos, quem


éramos e para onde vamos.

— Quem somos, Celese?

— Poderia dizer que somos pequenos


demais para se ver de fora, Dr. Krupin.
Pequenos mundos de criaturas internas,
energia, vida... Como se não vivêssemos
sós.

Ele negou com a cabeça de forma tão leve


que, se eu tivesse piscado, teria perdido o
movimento.

— E você disse mais. Disse sobre o que


éramos e para onde vamos.

Abaixei a cabeça, fazendo-o continuar:


178
— Não se acanhe, Celese. Preciso ouvi-la.
Estamos aqui para isso.

— Dr. Krupin, acho que me enganei. Os


remédios mexeram um pouco com a minha
cabeça – e pensei como todo e qualquer
ser humano que, por mais compreensão
que tenha, acaba sentindo medo da morte
iminente e faz qualquer coisa para evitá-
-la. — Desculpe, com certeza não sei quem
éramos e para onde vamos.

O homem corpulento bateu a mão tão


forte contra a madeira da mesa que seu
tinteiro caiu, derramando uma matéria
tão escura quanto a própria noite lá fora.

— Não sou homem de se enganar, senho-


ra. A Inglaterra pode ter sido fácil em sua
infância, mas a Rússia não aceita mentiras.

— É c-claro, Dr. Krupin – respondi,


sentindo a garganta arder ao segurar uma
179
lágrima. — Certa vez, eu disse que... que
somos feitos de estrelas. E vamos voltar a
elas daqui a muitos, muitos anos, quando
a Terra não mais existir.

A verdade me faria morrer em paz?

— Continue...

— Nossos ossos, pele, órgãos e vida são


feitos de energia, como a que nos ilumina
neste momento. Como... como as lâmpadas
de Edison.

— Edison é um homem de Deus, – ele


respondeu entre dentes cerrados — e sua
criação só nos ajuda a enxergar seu esplen-
dor. Se a ajuda a enxergar um desígnio
diferente da gênese divina, seu problema
está além do mental. Eu poderia entre-
gá-la à Igreja, mas gosto de oferecer mais
chances aos meus pacientes.
180
— A Igreja não condena mais a ciência,
Dr. Krupin. Já passamos das trevas.
Embora minha voz parecesse firme, ja-
mais me senti tão vazia por dentro. Vivi
uma infância feliz na Inglaterra, com pais
estudados que sempre desenvolveram
minhas habilidades de questionar. Cursar
física na Rússia e acreditar que eu ainda
vivia com meus pais me causou a maior
solidão do mundo: eu morreria sem vê-
-los. Morreria sem que eles soubessem.
Eles estavam velhos e sentiram-se em paz
com minha partida, já que iria focar-me
em continuar o trabalho de meu pai fora
do país. Estudar, mesmo não estando mais
tão jovem, ensinar e viver pela física.
— Você, Celese, está trazendo as trevas
de volta – o Dr. Krupin voltou minha aten-
ção para suas mãos de unhas longas ao
estender o dedo indicador próximo a meu
181
rosto. — Estamos em guerra e as pessoas
precisam de Deus.

— Sermos feitos de estrelas nos torna


mais próximos a Ele! Não vê? Somos um
universo de criações! Todos iguais! Todos
feitos do mesmo...

Ele se levantou em um bote e chutou a


cadeira em que sentava para longe.

— Eu... não... sou... – seu esforço para


falar causava-lhe tanta dor que a veia da
testa saltava como uma serpente a devorar
seu cérebro e inchar-se de prazer — igual
a você! Igual a essas pessoas de quem cuido!

O enfermeiro agora mexia repetidas


vezes na orelha, mas ainda de forma des-
preocupada. Era como se a explosão de
raiva de Krupin fosse tão comum quanto
as manhãs de neve em Muskov. Nada iria
me tirar daquele lugar.
182
Naquela noite, eu me sentia viva nova-
mente, pronta para ouvir mais da sinfonia
da natureza. Mesmo com Krupin e tantos
outros, muitos que ainda mereciam saber
a verdade – uma verdade que eu não po-
deria ajudar a descobrir.

— Eu sinto muito.

Ele andou da janela para o armário, e


novamente do armário até a janela, for-
mulando seus próprios pensamentos.

— A universidade em que estudou foi


fundada por Pedro, o Grande, o czar que
desrespeitava completamente as leis de
Deus – vi seu nariz se apertar em aversão.
— É por isso que uma mulher como você
pôde estudar lá. Celese... eu entendo que foi
a universidade que lhe causou isso. Essas...
ideias malucas. Mas você sabe que as mu-
lheres já são mais fracas para acreditarem
183
em qualquer coisa. Por isso, me ajude a lhe
ajudar – seu rosto se virou para mim e as
sobrancelhas tremeram ao se levantar, em
uma atuação pouco magistral.

— A universidade já há muito perdeu


o espírito de Pedro, o Grande, doutor. O
novo reitor é um homem de Deus.

— Sim, está certa. E o reitor percebeu o


perigo de mantê-la lá.

— E aqui estou, Dr. Krupin. Aqui estou.

O médico bufou quase em silêncio. Le-


vantou a cabeça ao pedir para o enfermeiro
se retirar.

Puxou a cadeira lascada do chão e sen-


tou-se ao meu lado. O som da madeira
arrastando lembrou-me de todas as vezes
que meu próprio corpo era arrastado con-
tra o piso de Muskov.
184
Sua mão tocou meu joelho, arranhado
depois de tantas vezes em que tentei fugir
dos enfermeiros.

— Você tinha um lindo futuro, Srta.


Celese. Não se casou, não teve filhos, de-
cidiu abdicar de sua vida pelos estudos
para acompanhar um trabalho que seu
pai trouxe da escuridão.

Afastei meu joelho de sua mão com cui-


dado.

— Minha vida sempre será dos estudos,


doutor.

Ele retirou a mão completamente e, in-


clinando-se para trás, sorriu:

— A sua vida é minha, Celese.

Seu jogo durou mais algumas horas,


em que me obrigava a falar ou chorar em
185
troca de pequenas doses de “eu posso lhe
ajudar”.
Quando se cansou, o Dr. Krupin pegou
o carimbo vermelho e o bateu contra mi-
nha ficha.
— Estamos decididos. Sabe que pode es-
colher um último desejo, e recomendaria
a solyanka, que está especialmente sabo-
rosa hoje. Então, o que será? – perguntou,
desinteressado.
— Peço só que... não contem a meu
pai que morri. Ele já está velho demais e
perdeu minha mãe há alguns meses. É a
única coisa.
Ele torceu o lábio e passou a caneta no
chão, onde o tinteiro havia quebrado.
As primeiras letras falharam no papel
pela tinta já ter começado a secar, então a
única parte que ficou escrita foi, também,
186
o pior que Muskov fizera contra mim, mes-
mo depois de me amordaçarem por trás e
me levarem para a sala de lobotomia:

A última frase da ficha dizia apenas:


“contem ao pai que morreu”.

Naquele momento em que o médico não


consertou seu erro, percebi que todas as
suas perguntas tentavam desvendar meu
único lado delicado. A última coisa que ele
queria machucar dentro de mim e que não
era atingida através da carne.

E ao meu pai eu pediria desculpas, caso


realmente algum dia voltássemos a ser es-
trelas, unidos mais uma vez pela energia,
e diria que faria de tudo para lhe causar
orgulho, nunca dor.

E eu, talvez, jamais saberia em vida que


meu pai havia falecido poucos dias antes de
minha condenação, em paz em sua cama,
187
abraçado a um desenho que eu fizera de
minha mãe. Que o que lhe causava orgulho
foi exatamente o que me fez morrer jovem
demais; a minha entusiasmada, inquebrá-
vel e galopante determinação, moldada no
calor de uma estrela há muito apagada, mas
que continua a dar vida a tudo que jamais
vimos, amamos ou criamos até então.
Eu saberia então que, aquecendo lâmpa-
das, esculpindo montanhas e vivendo em
pequenas criaturas que observam o céu,
a energia que certa vez habitou em mim,
por fim, perdura e sobrevive em paz, in-
finitamente.
Uma homenagem a Carl Sagan, o pai de mi-
nha admiração pelas estrelas.

188
A Vidente Vangelia
RODR IG O ORT I Z V I N HOL O

1911

D
entro das paredes de Muskov, vive-
ram todo tipo de coitados, sádicos,
maníacos e até indivíduos que
acreditavam ter tido uma oportunidade
única na vida. Mas como todo local em
que habitam mentes humanas instáveis,
a autopercepção de quem estava em cada
uma dessas posições frequentemente era
errônea.

Anatoly, o jovem enfermeiro, acreditava


que tinha ali uma ótima oportunidade. Após
um ano de trabalho lá dentro, sentia uma
segurança que há muito tempo não tinha.
O serviço em Muskov era desagradável,
mas garantia que ninguém o escolheria
189
para servir como soldado em um campo
de batalha. Significava que tinha abrigo e
comida, o que era a diferença entre a vida
e a morte para alguém como ele, sem ap-
tidões e posses.
Assim, sem esse tipo de preocupação,
o que viesse era lucro. Anatoly, então, se
achou o homem mais sortudo do mundo
quando lhe atribuíram a responsabilida-
de de cuidar de Vangelia. Ele não era do
tipo preguiçoso; sempre fazia o que lhe
era indicado sem procrastinar, ainda que
não sem falhas, mas tinha de admitir certo
terror quando seus superiores colocavam
algum novo paciente sob seus cuidados.
Por ser jovem e inexperiente, ficava em
suas mãos a tarefa de lidar com os pacien-
tes mais problemáticos.
Pela simpatia que havia conquistado de
alguns médicos, nunca tinha que lidar com
190
os mais violentos — especialmente porque
seu tipo físico franzino dificilmente ser-
viria —, mas isso não queria dizer que as
demais experiências fossem agradáveis.
Ainda tinha pesadelos com o mês em que
ficou responsável por um paciente com
tendências coprofágicas.
Assim que viu o nome de Vangelia pela
primeira vez, esperou o pior. Quando Dr.
Kruvayev lhe apresentou a jovem, porém,
ele ficou encantado. Vangelia tinha dezoi-
to anos e possuía a pele mais branca que
Anatoly já vira — tão branca que nem mes-
mo seus lábios ou as maçãs do seu rosto
pareciam ter cor, característica intensi-
ficada pelos cabelos muito claros. Como
era cega, tinha os olhos sempre cerrados,
e seu sorriso doce completava o efeito que
a assemelhava a uma estátua de mármore.
Dr. Kruvayev tinha uma expressão séria
191
enquanto contava a história da garota: no
local onde Vangelia vivia, ela havia adqui-
rido fama como vidente. Todos da região
vinham consultá-la para saber sobre cui-
dados com colheitas, filhos que haviam
partido para a guerra, amores, objetos
perdidos, brigas de vizinhos, segredos e
família e até mesmo sobre o clima – Van-
gelia era o oráculo que explicava para eles
como viverem suas vidas. Até o início de
sua adolescência, ela era uma garota co-
mum. E quando a cegueira chegou, súbita
e inexplicavelmente, veio acompanhada
de um dom que só ela possuía.

Aparentemente, a pequena comunidade


onde Vangelia vivia com sua família se vol-
tou contra ela quando a garota previu que
o filho do prefeito tinha futuro como um
soldado mercenário, em uma vida cheia
de glórias e conquistas. O garoto então
192
roubou um rifle de seu pai e fugiu de casa.
Nunca mais foi visto.
Usando esse caso como prova do mal
que poderia representar a todos da vila, e
embasando-se em citações bíblicas para
levantar a suspeita de que a menina tinha
algum acordo com o demônio, conse-
guiram internar Vangelia no Hospício de
Muskov. Sua família estava dividida e, se
não acatassem a vontade da comunidade,
seriam expulsos da região, ainda que não
vissem nada de errado com o dom. Acaba-
ram aceitando, sob a fé de que a medicina
e a ciência provariam que não havia nada
de errado com a menina e ela seria enfim
libertada.
Anatoly ouviu a história atentamente.
Ele não tinha certeza se a expressão séria
no rosto do médico vinha pela crença de
que a garota era mesmo uma vidente, ou
193
se estava surpreso que as pessoas acredita-
vam que ela era uma vidente. Sobre isso, o
médico limitou-se a recomendar que Ana-
toly não desse atenção a qualquer previsão
que ela tentasse fazer sobre seu futuro. O
enfermeiro acatou imediatamente, sem
perguntas, como havia aprendido a fazer.
Ele suspeitava o motivo por trás de sua
instrução. Alguns dos pacientes pioravam
se dessem atenção para suas loucuras.
Quanto mais desenvolvessem os enredos
que existiam apenas em suas cabeças, mais
se distanciavam do mundo real. Talvez
fosse o caso; talvez Vangelia se tornasse
cada vez mais convencida de que era uma
vidente, quando era na verdade a vítima
de um vilarejo supersticioso.
De fato, ao conhecê-la, Anatoly se per-
guntou como é que alguém algum dia
poderia ter visto nela qualquer problema.
194
Além de linda, Vangelia era educada,
gentil e a paciente mais fácil de lidar até
então. Movia-se com lentidão, mas cada
movimento era preciso. Andava sem mui-
ta necessidade de condução, obedecia às
instruções e parecia sempre feliz, apesar
das circunstâncias.
Anatoly não conseguia acompanhar a
maior parte das avaliações psicológicas e
testes a que Dr. Kruvayev submetia Vange-
lia, sempre feitos a portas fechadas. Porém,
sempre que a acompanhava em passeios no
jardim ou coisa parecida, ela fazia questão
de contar a Anatoly sobre esses encontros,
relatando com informalidade algo que o
doutor havia lhe dito sobre sua vida pes-
soal, ou alguma história de sua vida na
vila. Se não fossem as circunstâncias, ela
realmente seria uma garota comum.
Mais semanas se passaram até a primeira
195
vez em que Vangelia relatou uma previsão
a Anatoly. Ele havia seguido à risca as ins-
truções sobre nunca perguntar sobre seu
futuro, mas Vangelia nunca chegara a tocar
no assunto. Naquele dia, ela também não
falaria do futuro dele, e sim do próprio.
Quando Anatoly a viu de olhos abertos,
ele sabia que teria de ouvir.
Ao abrir os olhos, pela eterna certeza de
seus gestos, da sua voz e de seu conheci-
mento, as duas esferas esbranquiçadas que
se apresentavam ao mundo não davam a
ela o ar de quem enxergava menos, mas
o oposto: combinando com a fama de vi-
dente que lhe fora atribuída, ela parecia
enxergar muito mais e muito além do que
qualquer outro ser humano.
Ela falou, e sua voz transmitia uma ma-
turidade até então nunca demonstrada,
que a sua vida estava ameaçada; lá dentro,
196
em Muzkov, mesmo com sua cela indivi-
dual, mesmo com a vigilância de guardas,
médicos e enfermeiros 24 horas por dia.
Ameaçada por aqueles que a vigiavam e
que viam em suas habilidades proféticas
uma ameaça a ser detida. Enquanto expli-
cava isso, seus olhos cegos pareciam fo-
car no rosto de Anatoly, que só conseguia
sentir um medo incontrolável. Era ainda
mais difícil duvidar da profecia quando a
menina, ao fechar os olhos, sorriu com a
leveza habitual e não tocou mais assunto,
como se momentos antes outra consciência
tivesse assumido o controle e profetizado
por ela.

Nos dias seguintes, os momentos de pre-


visão se repetiram. A cada vez que Vangelia
abria os olhos e avisava sobre os perigos
que se aproximavam, Anatoly se assustava
mais. Corroborando a história da paciente,
197
ele notara que os médicos andavam agi-
tados, e mais de uma vez o Dr. Kruvayev
o questionou se Vangelia havia lhe feito
alguma previsão. O enfermeiro começava
a temer pela própria vida e enfatizava que
não sabia de coisa alguma.
Certa tarde, Vangelia tinha um pedido
especial para Anatoly. Com seus olhos
abertos e a voz de vidente, ela lhe expli-
cou que havia chegado o momento mais
importante: o ataque dos médicos acon-
teceria antes do amanhecer. Ela precisava
que Anatoly abrisse a porta de sua cela às
três da manhã, caso contrário ela não so-
breviveria. Bastava abrir a porta da cela,
o destino cuidaria do resto.
Anatoly temia pela própria segurança.
Temia perder tudo o que havia conquis-
tado. Mas e se fosse verdade? Viveria para
sempre com o peso da morte de uma
198
inocente, pois teria ignorado a oportuni-
dade de salvar uma vida.
Sendo assim, ele acatou o pedido. Às
três da manhã em ponto, durante a tro-
ca de guardas, Anatoly esgueirou-se pelo
corredor dos enfermos e abriu a porta da
cela de Vangelia, voltando ao seu próprio
quarto em seguida.
Cerca de duas horas depois, sem ter pe-
gado no sono em nenhum momento nes-
se espaço de tempo, ele começou a ouvir
os gritos. Gritos não eram incomuns em
Muskov, mas geralmente não ocorriam
com aquela intensidade e não eram acom-
panhados da fumaça que empestava o cor-
redor; Alguém havia iniciado um pequeno
incêndio nos arquivos, deslocando todos os
funcionários disponíveis para lá. O crimi-
noso foi encontrado enquanto espalhava
querosene em um dos escritórios, e foi só
199
após o disparo da arma que o guarda se
deu conta de que havia acabado de matar
Dr. Kruvayev.
Após uma luta exaustiva contra o fogo,
que acabou danificando uma parte consi-
derável dos registros do Hospício, notaram
a ausência de Vangelia. Frente aos gritos
do diretor, vieram as confissões.
Os médicos envolvidos com a garota re-
lataram que ela havia descrito a cada um
deles, em segredo, uma versão da profecia
de que alguém estava querendo assassi-
ná-la — e o culpado seria sempre outro
membro da equipe. A única maneira de
protegê-la era destrancando uma porta ou
distraindo um guarda qualquer. Nenhuma
das ações, em si, garantiria sua fuga, mas a
soma de todas, incluindo a de Anatoly, lhe
proporcionou passagem livre até o lado de
fora. Nenhum dos envolvidos com Vangelia
200
havia comunicado aos outros a existência
das profecias, com medo de serem preju-
dicados ou de prejudicá-la.
Dr. Kruvayev fora o responsável por abrir
o portão da frente e, analisando seu diário,
descobriram seus planos para o incêndio.
Vangelia nunca mais foi vista.
Para servir de exemplo para todos, o di-
retor optou por demitir Anatoly, que era o
mais dispensável dos envolvidos. O rapaz
acabou ingressando para o exército a fim
de não morrer de fome, mas caiu em sua
primeira batalha.

201
Incógnitas de
Muskov
M AT EUS L I NS

1914

E
la preferia estar morta, mas seu olhar
continuava vivo como as marcas de
violência em sua pele. Em cada ci-
catriz, repousavam os túmulos dos senti-
mentos e dos sorrisos que a abandonaram
há muito tempo.

Chamava-se Svethana e contava que


chegou a Muskov ainda adolescente.

Era uma garota insegura, a ponto de


beirar a mudez. Vivia tão sozinha que o
medo tornou-se sua única companhia. Era
ele quem a abraçava nos dias frios, limpava
suas lágrimas nas noites de insônia e dava
vida aos rumores dissipados pelo hospício.
202
Os pacientes espalhavam histórias sobre
suas cicatrizes. Falavam dos abusos que
sofreu do pai e do irmão, vulgarizando si-
tuações que facilmente morreriam abafadas
em um país machista como a Rússia. Com
isso, Svethana desfrutava de um desespe-
ro denso que a sufocava, fazendo-a gritar
pelos corredores vazios nas madrugadas
em que escapava de seu quarto.

Assim, peregrinar pela noite tornou-se


uma rotina perturbadora que a levou à
necessidade de compartilhar seus anseios
e teorias sobre aquele lugar. Foi quando
conheceu Yeva, uma senhora de aparência
mal cuidada que vivia em Muskov há mais
de quarenta anos.

Svethana saiu para o jardim em uma tarde


de inverno. Cruzou a ala feminina e pulou
203
a janela, evitando ser vista pelos enfermei-
ros. E, embora os aquecedores parecessem
charmosos demais para impedir um en-
contro no meio da neve, ela confidenciava
suas inquietações a uma recém-conhecida.

— Há algo obscuro em Muskov.

Havia convicção em suas palavras. Na


medida em que Svethana falava, prolon-
gando seu discurso, Yeva concordava com
tudo, aprofundando-se em debates exis-
tenciais e concluindo que a loucura que
habitava aquele lugar era proporcionada
através dos responsáveis pelo hospício.

No decorrer da conversa, percebiam


que o medo as tornava mais próximas.
Próximas ao ponto de expor intimidades
e vivenciar uma confiança excêntrica e
recíproca. Assim, quando a noite abra-
çou a terra fértil sobre a qual plantavam
204
mistérios, partiram com a promessa de
um novo encontro. Logo, eles se fizeram
frequentes.

— Ouvi rumores de que os enfermeiros


estão sedando e retirando pacientes dos
quartos, enquanto todos dormem.

Svethana desconfiava de experiências


humanas. Yeva não ousava tanto, mesmo
tendo descoberto que a maioria dos pa-
cientes não tinha recordações da vida que
levavam antes de Muskov.

— Nossa liberdade está morta. Foi en-


terrada com nossas memórias, um papel
assinado e um apertar de mãos – havia
resignação nas palavras e no olhar de Yeva.

— Não acho que ela está morta de fato.


Ainda podemos nos livrar deste manicô-
mio.
205
— Então, me diga: como podemos ser
livres?

— Uma rebelião? – Svethana ariscou.

— Uma revolta de loucos tende ao impos-


sível. Mas talvez possa haver outra saída...

— No que está pensando?

Ao cair da madrugada, Svethana deixou


para trás o silêncio de uma cama vazia.
Movia-se a passos furtivos pelos corredores
desbotados, assistindo às sombras dança-
rem nas paredes conforme avançava.

Era cautelosa.

Em seu percurso, viu uma enfermeira


rasgar a noite carregando uma bandeja
com injetáveis. Escondeu-se como pode e
a seguiu até uma porta revestida em me-
tal, estranhando o fato de que, durante
206
todos os anos em Muskov, nunca havia se
esbarrado com aquela passagem.

Trêmula, empurrou a porta, deparando-se


com uma escadaria que descia em caracol
por um caminho envolvido por tochas.
Respirou fundo ao enfrentar a escuridão.
E no momento em que os pés tocaram o
último degrau e as paredes de terra batida
ficaram para trás, já não ouvia os passos
da enfermeira.

Estava em uma masmorra.

No centro da sala, canhões de luz cla-


reavam maquinários, instrumentos cirúr-
gicos reluzentes e uma estrutura metálica
que dominava o perímetro, dando-lhes
vida própria. Gigantes tubos de ensaio se
destacavam em tons de roxo, guardando
corpos humanos submersos em água, que
207
se contorciam. Havia homens, mulheres e
crianças; velhos, grávidas e fetos.

Havia sangue.

Sem conseguir abafar o grito, Svetha-


na deu um passo para trás enquanto seus
anseios sobre Muskov eram confirmados.
Quis correr até não sentir as pernas, es-
capar daquele hospício que se recusava
a chamar de casa e apagar aquela sala da
memória, mas a enfermeira lhe barrou a
passagem.

Sem sucesso, a garota buscou outra saída.

Não havia nenhuma.

Passos emergiram das sombras e outros


enfermeiros contornaram seu raio de visão
para que um homem velho abrisse cami-
nho entre as batas brancas.

Ela reconheceu aquele rosto.


208
— Dr. Yerik Rand... – dirigiu-se ao mé-
dico responsável pela administração do
hospício.
— Estávamos à sua espera, Svethana.
Bem-vinda à sala de Atlas. Bem-vinda ao
meu segredo – estendendo os braços, ele
se aproximou com um sorriso macabro
no rosto. — Não imagina quantas noites
insones vivi para saborear o contato físico
com a primeira evolução que alcancei nos
últimos vinte anos – ousou cheirar um
chumaço do cabelo dela.
— Afaste-se! – gritou, empurrando-o.
Ele riu.
— Olhe só pra você, o quão curiosa e
independente se tornou. Isso me deixa
orgulhoso.
— Do que está falando? O que está fa-
zendo conosco?
209
Ele a estudou por um momento, ponde-
rando. Em seguida, relaxou e disse:

— Desperdicei longos anos da minha vida


em laboratórios mantidos pelo governo
russo, desenvolvendo pesquisas genéticas
à procura da cura para doenças incuráveis.
Me sentia um escravo moldado às normas
de um mundo fechado, enquanto trabalhava
naqueles lugares imundos. Meus superio-
res eram contrários às minhas inovações
e pareciam sentir prazer em me ver cas-
trado. Eles não conseguiam entender que
a cura, além de genética, deveria ser social
e ideológica – fez uma pausa. — Vivi dias
sombrios, mas foi em meio a eles que en-
contrei um sujeito curioso que me falou
sobre Muskov. Apresentou-se como um
seguidor de Rasputin e insistiu que eu de-
veria conhecer o lugar. Que devolveriam
210
minha liberdade e me permitiriam expe-
rimentar minhas ideias.

— Então o preço da sua liberdade é a


liberdade de todos nós? Você a resume
em experimentos com os pacientes desse
hospício?

— A questão é mais profunda.

— Não é o que parece.

— Imagine quantos gênios estão espalha-


dos pelo mundo, mas censurados – existia
raiva no discurso dele. — Essa é uma das
angústias que me fez concluir que precisa-
mos de líderes, não de sistemas políticos. A
humanidade é violada por seus Estados em
nome de um “bem maior”. Uma mentira!
Nos últimos tempos, tudo que contemplei
foram nossos interesses sendo postos de
lado para que investimentos em armamento
bélico aumentassem, enquanto esses vermes
211
defensores da máquina pública iludiam
seu povo para serem amados, em meio a
uma corrida armamentista. Não vê que
deixar um Estado assumir o total controle
é colaborar para a produção de doenças
sociais, para a impotência humana? No
fundo, somos apenas instrumentos dessa
máquina e jamais seremos tão grandes
quanto ela.
A garota optou pelo silêncio como res-
posta.
— Será que não percebe o que estamos
criando aqui? Será que não consegue ficar
feliz por fazer parte disso? Estamos cons-
truindo uma sociedade perfeita, Svethana!
Um ambiente sofisticado em que nenhum
homem precisará depender de outro para
crescer, onde conquistas virão mediante
esforços próprios. Sem interferências ex-
ternas!
212
— Jamais conseguiremos viver em har-
monia.

— É aí que você se engana. A harmonia


deve ser quebrada para evoluir, mas só
existe diante da perfeição. Do ideal!

— Você vai nos levar à destruição! – disse


em bom tom.

— Não, minha cara. Irei levá-los à sal-


vação. Vou liderar essa nova sociedade
como seu fundador. Seu criador. Mostrarei
que podemos ser livres e baniremos figu-
ras opressoras, projetando nosso próprio
mundo. Sem sistema. Sem censura. Apenas
seres fortes, inteligentes, autossuficientes
e que não têm medo de ultrapassar bar-
reiras sociais, quebrar muros políticos e
redescobrir regras científicas. O que es-
tamos criando em Muskov são seres que
213
pertencerão a uma nova evolução humana.
Uma evolução genética e social.

— Acha que os governos irão sucumbir


a essa ideia? – perguntou, incrédula. —
Haverá opositores!

— Eles serão engolidos por uma raça


perfeita!

Yerik investiu para tocá-la novamente,


mas em um movimento rápido, Svetha-
na o golpeou com um murro na testa e
jogou-se entre os enfermeiros, abrindo
caminho. Escapar, porém, era um esforço
inútil. Logo, mãos seguraram seus braços,
pernas e roupas. Sem sucesso, ela lutou. E
enquanto Yerik se recuperava da pancada,
outro rosto conhecido surgiu na escuridão.

Yeva.

De cabelos amarrados em um coque e


214
maquiagem forte, a senhora cruzou a sala
vestida em uma bata branca.

— Me tira daqui, Yeva – suplicou Sve-


thana.

— Minha missão era apenas trazê-la até


aqui. Chegamos à próxima fase de seu ex-
perimento, minha querida – com a mão
direita, Yeva aplicou um injetável no braço
da garota.

E então a visão da paciente se fez turva,


ganhou adornos cor de cinza e em seguida,
apagou. Desapareceu tal qual sua esperança.

1894

Yeva acordou com batidas em sua porta.

— Trouxe o relatório – um jovem


215
enfermeiro estendeu um envelope fecha-
do a ela.
— Já deram início aos procedimentos?
— As memórias serão implantadas gra-
dativamente, durante os anos em que ela
ficar incubada.
— Que tipo de memórias?
— As de sempre... Traumáticas – res-
pondeu com estranheza.
— Ela vai ficar louca? – havia preocupa-
ção em sua voz.
— O doutor disse que não. Estamos ten-
do avanços – pousou a mão sobre o om-
bro dela. — Não se preocupe, fez a coisa
certa. Yerik pediu que eu a avisasse que o
dinheiro está no pacote. Faça bom uso.
E com um sorriso falso, ele se retirou.
Yeva abriu o envelope, atentou a alguns
216
gordos maços de dinheiro, papéis com
informações desconexas e à foto de uma
garotinha, bebê, dentro de um grande tubo
de ensaio cheio de água.

Instantaneamente, deu vida a um choro


inconsolável. Conhecia a menina na foto.
Era sua filha. A pequena que nasceu em
Muskov como um dos primeiros experi-
mentos do Dr. Yerik.

— Svethana...

A Boneca da Igreja
BRU NO G ODOI

1917

E
ntre julho e dezembro de 1917, a rea-
lidade interna da Rússia se agravou.
Fome, exploração dos trabalhadores
217
urbanos e rurais, revoltas e movimentos
contra o czar; o país deixou a Primeira
Guerra e a Revolução Russa estava pronta
para começar. A nação não tinha dinheiro
para manter soldados na guerra nem para
tratar a população – os que mais sofreram
foram os doentes mentais. Os bolcheviques
estavam chegando ao poder e a família do
czar Nicolau II era ameaçada. Escândalos
ligados à Igreja Ortodoxa Russa envolveram
as mulheres da família do czar; por isso,
ele as mandou para o Hospício Muskov,
aos cuidados de um jovem médico, Dr.
Guy, que iniciara uma técnica secreta – e
desumana – para tratar os loucos.

A seita misturava religião com erotismo.


Os incitadores embalavam os movimen-
tos de vaivém da orgia escandalosa com
óperas. Nossa última missa foi no subsolo
218
abandonado de um anexo distante, uma
propriedade mais ao norte do principal
prédio do Muskov. O lugar já fora um aglo-
merado de edifícios de luxo, onde famílias
abastadas se reuniam para a prática de atos
que deviam ficar no anonimato, até o peso
da insanidade do hospício chegar ao lugar
e tudo ser transformado numa ala especial
– para os mais loucos entre os insanos e
pacientes importantes demais para serem
jogados ao estrume dos ordinários. Nossa
seita se concentrava na capela iluminada
por velas, a construção mais opulenta do
lugar, depois descíamos para o subsolo.

Os pacientes usaram togas desfiadas nas


laterais, alguns mais maltratados do que
criminosos; outros, ou nus ou com trapos
endurecidos de suor. Parte caiu no escuro
quando chegou ao prazer e, sobre a palha,
morreram asfixiados. O túnel era estreito,
219
mal cabiam dois loucos lado a lado, por
isso os mais excitados foram amarrados
em correntes feito bonecos de ventríloquo
para ficarem suspensos e abrir espaço.

Os ciganos – malditos que cuidavam da


segurança –, sempre com o cassetete e o
molho de chaves balançando no cinto,
carregavam os fonógrafos que tocavam as
óperas, parecendo macaquinhos de circo
com instrumento musical.

No último encontro, Dr. Guy, com a fi-


sionomia agressiva, conduziu as santas, que
usaram o vestido branco de sempre e o
chapeuzinho lembrando barco de papel – a
cruz vermelha no colete contrastava com
os hematomas nos olhos delas. Aonde uma
santa ia, tinha um cigano com o cassetete
atrás, e assim iam os dias no Muskov.

Eles batiam nelas e em nós; a diferença


220
era que as santas pediam a surra – infelizes
enfermeiras que mal sorriam, tanto era a
vaidade em mostrar a falta dos dentes.
Guy tinha uma massa de sebo branco
constante no canto da boca e a barba gor-
durosa; até os loucos ficavam chocados
diante dele, os próprios ciganos abaixa-
vam a cabeça para deixá-lo passar. Ele se
autoproclamava um homem santo – como
Rasputin fizera no momento em que eu o
vi pela primeira vez, antes dos escândalos
religiosos na minha família começarem.
Doutor Guy ainda se dizia um curandei-
ro místico, a um passo de ser um profeta
para conduzir a nação. Na última missa,
ele insistiu em manter a placa EM TRA-
TAMENTO na entrada da igreja, mesmo
todos sabendo que estávamos em orgia.
— Veem o crucifixo? É a Boneca – Guy
explicou antes de começar. — Venham aqui!
221
Ajoelhem-se diante dele e orem. Apertem
a testa nele. Contemplem, ele é a Boneca
da Igreja que vai exorcizar a loucura da
Rússia! Só aqui, neste lugar distante, aca-
baremos com o misticismo profano que
se alastra pelo país.
Depois da sessão, alguns quiseram co-
mer e dormir, mas os seguranças aumen-
taram o som da ópera até lhes sangrarem
os ouvidos e levaram a comida para a sala
com grade de ferro; era impossível entrar.
As coisas nunca podiam ficar sossegadas
nas mansões fedidas do hospício, sempre
chegava alguém trazendo o caos.
No último andar do edifício, espalhadas
pelos corredores, as enfermeiras prepararam
as poltronas do choque para criar aquela
sensação dolorosa, espantando o estado
de alienação de quem ainda podia sentir
algo. A energia até falhou, tantas foram
222
as poltronas ligadas – tiveram de usar o
gerador para continuar com a brincadeira.
Um demente tremeu a ponto de trincar os
dentes e vomitar – paramos para aplaudir
na hora. Foi lindo, disseram as santas aos
ciganos. Em sequência, vieram os loucos
sem higiene, que defecaram nas poltronas.
As enfermeiras levaram os sujos para
os banhos de água fria na sala longe, onde
tinha a lona que cobria o corpo, ficando só
a cabeça de fora. Depois, foram com eles
para as cadeiras giratórias que rodopia-
vam por horas, até bater o sono gostoso
da tarde. Não podíamos nos sujar, o corpo
devia ficar limpo para o momento em que
os seguranças quisessem usar os pacientes.
Uma das cadeiras giratórias emper-
rou com um sujeito que vomitou tanto
na engrenagem a ponto de cuspir dentes
que travaram a máquina. Então, jogaram
223
o banguela dentro de uma estrutura de
madeira que girou sem parar, acelerando
e freando, parecendo roda de engenho –
quebraram todos os ossos dele. Os gritos
saíram mais altos que qualquer música que
os seguranças já usaram. Foi ensurdecedor.
Ficamos perto, assistindo tudo.

Vi um companheiro de corpo bonito ser


levado para a sala com camas, na parte
limpa do segundo andar; fui junto para ver
o sujeito pelado. Os seguranças tiraram a
roupa das enfermeiras e as ajeitaram com
o rapaz no canto, onde montavam um pre-
sépio com velas cheirosas. No começo, o
sujeito não entendeu o que era para fazer,
por isso ele recebeu o picador de gelo na
cara até ficar sem iniciativa – a coisa parecia
um espeto que entrava por dentro, acima
do olho; batiam-na com um martelo até a
ponta acertar uma parte do cérebro, então
224
giravam a haste para destruir a maldade
enraizada na cabeça, fazendo a pessoa
abrir a boca e babar. Diziam ser uma téc-
nica nova que o mundo desconhecia – o
maior segredo do hospício –, invenção do
próprio Dr. Guy. Tal técnica era tão bru-
ta que só podiam usá-la no anexo, com a
ressalva de que ninguém da organização
de Muskov poderia tomar conhecimento
dela.
— Agora, venha se deitar – as santas
murmuraram na orelha do garoto. — A
dor afasta a loucura para longe. Sente isso?
Vê a cura fluindo pelo furo do olho?
No subsolo da missa, tinha uma fornalha
onde os ciganos queimavam as bandagens
ensanguentadas e o cabelo raspado dos
pacientes que recebiam furos no crânio; e
uma mesa com pães e garrafas de vinho,
onde os médicos passavam horas rasurando
225
os prontuários, criando histórias e expli-
cando as mortes pelo mau uso do picador
para não terem de revelar o segredo da
técnica.

Desci para rabiscar a história do rapaz,


que já tinha morrido no presépio, e apro-
veitei para comer alguns pães dos rituais.
O doutor estava lá e lançou aquela língua
diabólica para cima de mim e me fez vo-
mitar; sua expressão congelada feito más-
cara de cera me fazia tremer.

— Você não tem autorização para inter-


ferir nos trabalhos – gritou e me mandou
para as correntes do teto sem comida, quase
esmagando o meu pulso com as algemas
enferrujadas. Virei o rosto sem reclamar,
segurando o vômito na boca para não ba-
bar mais.

Fiquei dias presa. O desconforto de ficar


226
pendurada aumentou a fome, parece que a
posição nas correntes deixava meu estôma-
go pesado; não aguentei mais a gritaria nas
tripas e comi um pedaço do meu parceiro
de corrente, preso bem perto de mim, ele
sacudiu tanto a canela na minha frente
que avancei feito uma hiena. Enquanto
eu digeria o calcanhar dele, a Boneca da
Igreja saiu do meu bolso – controlando o
meu corpo como se fosse um mestre de
fantoches. Consegui me soltar dos grilhões.
A Boneca veio até o meu rosto e cortou a
minha testa, então me estrangulou com
a corrente. Depois, usou os meus pulsos
para me amarrar no cano da fornalha e
me fez chutar a cadeira para longe; fiquei
balançando igual ao lustre da igreja. Era
aquele maldito crucifixo que fazia todo o
mal comigo, eu não tinha controle sobre
227
o meu próprio corpo, parecia que eu era
obrigada a fazer as coisas em mim mesma.

— Você quer me matar… Por quê? – con-


segui babar no crucifixo. — Pensei que…
existia amor entre nós.

A vagabunda da Boneca da Igreja tentara


me matar; não sei quando ela começou a
me odiar tanto. De toda forma, o alarme
disparou; os seguranças chegaram com
muita raiva e me jogaram no fosso séptico
e deixaram o esgoto me despejar no lago.
Mas não teve jeito, a bagunça acordara
todo o pavilhão; disseram que eu tinha a
voz estridente.

— Não podemos perder a imperatriz


Alexandra Feodorovna, idiotas! Essa é a
ordem.

Logo, meus amigos não me deixaram


ir, alegaram que o czar era o meu marido
228
e que ele não queria a minha morte; pelo
contrário, ordenara a retirada de toda a
loucura do meu corpo e a vergonha reli-
giosa de nossa família. Guy lhe mandou
uma carta, dizendo que eu estava com es-
píritos e que faria o expurgo pela sangria.
— O senhor pode ficar sossegado, czar.
Cuidarei disso pessoalmente. A Igreja Or-
todoxa Russa será glorificada na mesa de
jantar de vossa família. A Boneca da Igreja
será louvada com a graça do Muskov, cui-
darei de suas mulheres em segredo.
O médico, servo fiel do czar, mandou as
enfermeiras me resgatarem. Elas corre-
ram até o esgoto com agulhas para confi-
nar minha loucura nas garrafas de vidro
verde. Furaram meus braços. Ficamos
horas no processo de sangria, enchendo
todos os recipientes até eu cair de sono.
Depois, levaram as coisas para um abrigo
229
antibomba e as ajeitaram na estante dos
vinhos. Ficou tudo misturado nas mesmas
garrafas: vinho e sangue.

Fui para a cama e me deitei, esperando a


próxima ordem do czar, que não veio – mas
os boatos chegaram: a guerra teve início.
A Revolução Russa havia começado, e dei
graças por ter o hospício para me abrigar.

Pelos boatos, meu marido estava com sé-


rios problemas: opositores, o povo com
fome, trabalhadores insatisfeitos; os mo-
vimentos contra o czarismo ganharam
força. Alguns membros da minha família
foram assassinados e enterrados em valas
nas florestas de pinheiros. A Rússia não ti-
nha dinheiro para manter os soldados na
guerra; deprimente. Só me restara dormir
com um pesar no peito.
230
Quando acordei, fiquei sabendo que Olga
Romanova, minha filha linda, havia se
mudado para o Muskov, e que a uma en-
fermeira com a Boneca da Igreja descera
todas as noites ao abrigo para buscar um
pedaço de pão para Olga, uma garrafa de
vinho para mim e um frasco com minha
loucura para borrifar pelo corredor.

Mas dormi o tempo todo e nunca bebo


vinho!

A Boneca estava começando a ficar alu-


cinada, isso era sinal de querer entrar no
choque das santas. Depois, o crucifixo
contou coisas sobre a igreja, lendo tudo
no livro preto do médico. De toda forma,
ele sabia que o Senhor amava as próprias
criações, mas se sentia temeroso, pois no
anexo ele era chamado apenas de Boneca.

— Será que você seria amada? A Boneca


231
da Igreja merece todo o amor do mundo?
– eu a sacudia enquanto murmurava no
ouvido dela.

Esse crucifixo maldito começou a pi-


char com fezes os muros da torre, ques-
tionando os ensinamentos. Dr. Guy não
gostou, disse ser pecado e, como o czar
parou de enviar dinheiro, mandou os úl-
timos funcionários abrirem a represa no
alto do morro, dispersando muita água
sobre o pátio do anexo, onde uma fila de
pacientes estava acorrentada a soldados
inimigos que o próprio czar mandara em
segredo para receber o choque. Corri para
fora, mal respirei o ar puro e vi que perdi
todos aqueles bonecos de ventríloquo na
primeira onda de barro. Lamentável, tão
novos, felizes e burros. O pátio parecia
uma bacia, por isso concentrou a água e
ficou igual a um lago.
232
— Deviam ter comido as mãos para tirar
a corrente e nadado – gritei igual a uma
louca, não crendo na falta de iniciativa
deles. — Mas não, ficaram e se afogaram!
Depois de arrebentar uma parte do
pátio, a água continuou descendo para a
floresta. Foi quando os seguranças fizeram
algo escandaloso com o rádio do escritó-
rio, soltando tanto chiado e palavras de
SOS que chamaram a atenção de alguma
antena do céu, porque as cruzes voadoras
nos detectaram e logo bombardearam a
região, riscando o ar com aquele barulho de
hélice. Um pedaço do prédio foi enterrado
junto com os últimos muros da represa,
esparramando mais a lama. Chegou um
momento em que o barro não desceu, a
água não ia embora de jeito nenhum, pa-
recia uma maldição.
— O Senhor vai afogar os miseráveis e
233
enterrá-los com as bombas que se escon-
dem nas nuvens – a Boneca escreveu isso
nas próprias costas enquanto apontava os
objetos caindo.
Não podíamos nos preocupar com a
guerra, travávamos a nossa própria luta.
Nesse tempo, eu já estava cuidando da Olga
e da Boneca, elas precisavam do choque
antes de ficarem alucinadas; tive de pro-
curar pela chave da sala com as cadeiras
elétricas, por isso entrei na administração
e corri de canto em canto. Foi quando uma
santa agarrou o meu braço e me jogou no
pátio, perto das caixas enterradas, onde as
bombas não chegavam.
— Fiquem dormindo no abrigo antibom-
ba enquanto vou me limpar. Volto para me
deitar com vocês – a santa estava agitada.
Lembrei-me dela, era a mesma que ficava
olhando para a minha bunda na hora dos
234
banhos e que passava uma pomada ardi-
da na minha genitália antes de me pôr na
cama.

Deixei Olga e a Boneca no abrigo, voltei


para a superfície e fiquei parada, esperan-
do a santa voltar. Quando ela reapareceu,
apontei um inimigo que apareceu bem
atrás; eu queria alertar a vagabunda, mas
ela me deu um murro tão forte que mal
tive tempo para mexer a língua. A safada
nem viu o tiro que passou pela nuca dela,
arrebentando tudo. Morreu na hora. Pre-
guei o amor igual está no livro preto, que-
ria o bem dela, mas ela me bateu. Olga me
confortou, puxamos a santa para o abrigo
e fechamos a tampa antes que o inimigo
atirasse mais. Ali, montei um palco para
brincar com as marionetes restantes, sa-
cudindo o esqueleto ainda com carne da
santa sem cabeça. Quando a carne dela
235
acabou, subi para enfiar a Boneca nas ruí-
nas do que sobrara da Igreja. O inimigo
jogara algumas bombas ali.
— Todos pecavam, tiveram o merecido,
foram esmagados e lavados – a Boneca
profetizou. — Vê como a água ainda está
alta, parecendo uma ilha? Depois daqui,
será a vez do Muskov apodrecer debaixo
das bombas, tudo vai virar uma sopa.
Mudei de ideia, eu não podia fincar o
crucifixo naquela terra, não agora, quando
toda a loucura vermelha se misturara ao
solo. Se o mal fosse escorrer até o Muskov,
eu devia fazer algo em nome da Rússia.
Peguei o lenço que dei para Olga esma-
gar o próprio pescoço e limpei o corpo da
Boneca; passei dias a higienizando para a
noite especial que me veio à cabeça. Achei
um tambor com óleo diesel e esfreguei o
objeto.
236
As bombas arrebentaram mais algumas
comportas do rio, por isso a água conti-
nuou subindo no pátio, até ficar a poucos
metros de nós; se eu soltasse a Boneca,
seria perigoso ela escorrer e afundar. Ela
era tão frágil, cabia na palma da mão e era
de bronze, afundaria fácil.

Na torre da igreja, tinha uma varanda


do sino; Olga pediu para passar o lenço lá
e deixar limpo para a gente se deitar.

— A água não vai chegar lá, mamãe, e


preciso me enforcar, minha garganta está
coçando.

Fomos todas para lá – foi a nossa pri-


meira noite em família. Depois de anos
juntas, até que enfim pude sentir o corpo
de alguém em mim, e foi no coração da
Igreja, sem sentir pecado. Olga, a Boneca
237
e eu. Dr. Guy dizia que nunca poderíamos
nos amar, pois era uma aberração.

Aberração era a caixa em que ele deixou


minha filha dormir no começo! Uma cova
fedida debaixo da capela, mas Olga tinha
adorado. A imbecil não tentava fugir nem
quando alguma santa deixava o tampão
aberto. Burra. Bastava tirar os ferrolhos
do calcanhar, cortar os pés e puxar os gri-
lhões; mas não, ela queria dormir no bar-
ro, gostava de rasgar as unhas nas tábuas,
falava que ia abrir espaço para o sol.

— Filha, preste atenção na mamãe, tirei


os seus olhos, você não precisa de luz – eu
explicava. Só assim consegui convencer
Olga a sair do buraco.

Quando o inverno chegou, tivemos de


nos mudar novamente para o abrigo, pois
não tinha mais o que comer nem como
238
sobreviver. Guy estava escondido num
abrigo na floresta e ninguém mais cuidou
do anexo. Nesse tempo, a guerra estava
quase acabando para nós e o frio atacava a
região; foi quando Olga apareceu com um
monte de pano tirado do fundo dos caixões
da funerária. Disse ela que os mortos não
mereciam, pois esperariam pelas bom-
bas para queimarem. Ela costurou tudo e
fez uma manta. Fiquei preocupada com
minha filha, pois estava dando mostras
de loucura; a coitada não enxergava nem
sabia costurar. Onde ela arrumara agulha?

Deixei a preocupação de lado e corri


para reunir o corpo de alguns amigos. As
vozes no meu estômago não paravam de
reclamar da fome que viria no frio; peguei
várias coisas da cozinha e amontoei num
balde, seria o suficiente para preparamos
receitas com os dedos deles.
239
Quando o inverno passou, Dr. Guy apare-
ceu no subsolo com coisas do cemitério.
Disse que as últimas ordens do czar foram
transformar o pátio das mansões num ce-
mitério militar, por isso agora passamos a
trabalhar com ferramentas para enterrar
soldados. Revoltante isso! Guy usou o nos-
so choque naquele bando de desgraçados
com fuzis que mal aguentavam e morriam,
depois iam para as valas ocupar o nosso
espaço. Até os cassetetes dos seguranças
foram para os buracos; Olga disse que eles
nada podiam mandar na guerra, os brutos
foram massacrados pelos inimigos. Cla-
ro, eles só sabiam bater nas enfermeiras e
martelar nosso olho!
Olga foi egoísta, não cedeu espaço para
os mortos que chegavam, ela só ficava se
arrastando pelas beiradas, atrapalhando
240
qualquer coisa em que alguém estive tra-
balhando; Guy teve que tirar as pernas
dela do joelho para baixo. Dias depois, ela
mudou de humor, porque ficou sem nada
para fazer e só sabia irritar as últimas santas
com pedidos para ser colocada num lado
e depois noutro, e reclamando de dores.
Sem falar que pedia para ir ao banheiro
também, não tinha como se manter em pé
para descarregar aquela massa escura que
saía todos os dias. Então, jogaram a Bone-
ca novamente no buraco para exorcizar a
loucura da minha filha, pois disseram que
as dores dela eram pecados. Dessa vez, eu
vi a Boneca direito, olhei bem e vi que es-
tava pelada, pregada numa cruz, só com
um pano na cintura e um anel de espinhos
na cabeça; estava um pouco maior, pare-
cendo um boneco de pelúcia. Olga ficou
241
amiga dela e lhe costurou um vestido de
bailarina.

Quando comentei com o médico que


iria ver a Boneca dançar na caixinha de
música que encontrei na sala do antigo
zelador, ele ficou furioso, disse que os de-
mônios entraram em mim de novo e que
não era para eu ver nada, por isso me de-
volveu no buraco com o olho ferido, pois
o picador entrou errado e acertou o meio
da minha íris. Sem enxergar, tive de ficar
quieta, só ouvindo. Foi quando ouvi Olga
sussurrando com a Boneca:

— Você prega o amor e acaba com a lou-


cura? Você me amaria com todo o amor
do mundo? Assim, do jeito que estou, toda
desfigurada? Eu sou bonita? Sou uma bai-
larina, sabia? Sei dançar sem as pernas.

Fiquei alguns dias no meu lugar, sem


242
me mover. Ninguém apareceu mais. Ne-
nhuma santa nem cigano, nada de refu-
giados mortos, muito menos o seboso do
Guy; nem notícias do Muskov. Parece que
a guerra estava se afastando de nós, porém
nossa família estava acabada, a Revolução
Russa levara tudo. Pelo menos não passei
fome, Olga cozinhou para mim, oferecen-
do um dedo por vez em cada refeição. Foi
um tempo feliz, jantares amigáveis entre
minha filha e eu.

Na terceira semana, escutei os passos


da Boneca; já estava acostumada a eles e
podia identificar o gemido. Dessa vez, ela
estava assustada e vinha em minha dire-
ção, arrastando Olga junto. Criei coragem
e me levantei, senti o corpo delas se pro-
jetando ao meu. A Boneca sussurrou que
queria se deitar comigo de novo e ficamos
em silêncio por dias, até que eu fiz aquilo
243
que o doutor me mandara não fazer nunca
mais: abri os olhos e vi.

A Boneca estava toda machucada, pulsos


sangrando, pés perfurados, testa ferida e
um corte horrível no lado direito do peito.
Minha filha fez isso com ela! Parecia um
homem preso num pedaço de madeira.

— Por que você fez isso, louca? – rolamos


no chão. Peguei Olga e a joguei no fosso.
Sem pernas e nem dedos, ela afundou nas
fezes. — Vá com todo o amor do mundo,
filha, você está livre. Seja feliz, mas leve
a loucura para longe. Aqui não tem lugar
para tipos como você.

Eu tinha de tirar a Boneca de lá. Fiz um


vestido e amarrei em seu corpo. Arranca-
mos a tampa do calabouço, pegamos uma
tábua comprida da porta, levamos tudo
para cima. A tampa flutuou perfeitamente.
244
Atravessamos pela água, a Boneca usou a
tábua como remo. Chegamos ao jardim
do anexo.

Estava queimado, cheio de crateras e


soldados despedaçados. Corremos para
dentro e vasculhamos o lugar. Achei um
piano no sótão, ajeitei a Boneca na mola
que saía dele e ela começou a tocar sem
parar, rodopiando o vestido. Saí de perto
para não atrapalhar e desci.

No sótão, havia muita bagunça, parecen-


do uma despensa de coisas importantes; o
zelador escondeu aquelas tranqueiras para
Olga não pegar, pois a ladra tinha mania
de roubar, por isso as santas deixavam as
mãos dela roxas de tanto apertar com as
correntes.

Sentei-me no sofá da recepção e fiquei


em paz, até aparecer o novo morador do
245
lugar, o capelão do exército inimigo. Ele
trazia o livro preto do doutor. Certeza que
ele roubou, é igual, olhe, a voz me alertou.
Eu precisava recuperar o objeto e esmagar
as mãos do ladrão com as correntes, mas
antes precisava salvar a Boneca.

— O que você está fazendo aqui? – ele


indagou.

Contei que deixei a Boneca no piano en-


quanto comia o corpo dos soldados, pois
queria ter mais uma noite a sós com ela e
precisava me fortalecer. O inimigo mur-
murou algo e me estudou com o olhar que
os ciganos tinham. Era feio e falava uma
língua estranha, mas eu precisava dele.
Expliquei tudo sobre a Igreja.

— Capelão! Já faz dias que a Boneca pa-


rou de tocar e ainda não desceu. Não tive
coragem para subir. Estou com medo. O
246
que aconteceu com ela? As bombas volta-
ram, precisamos continuar. Quem são os
loucos, os médicos ou os pacientes? Quem
vai matar o Muskov, a guerra ou o próprio
tratamento? A Boneca precisa me ajudar
a remar. A louca da minha filha foi para
casa chamar o meu marido.
— Os demônios estão na sua cabeça –
ele respondeu, arranhando um sotaque
horrível. — Vamos buscar essa Boneca e
depois tirar os espíritos de você.
Contei da técnica secreta de acertar o
cérebro pelos olhos. O capelão achou in-
teressante e pegou um picador de gelo
na cozinha e uma pedra para usar como
marreta. Ofereceu para segurar minha
mão e subimos. Estava tudo escuro, com
um cheiro adocicado; o capelão explicou
que foi a bomba que eles arremessaram,
eliminando toda a parte biológica do vale.
247
— A guerra acabou para o seu país. Ven-
cemos.
Ele tinha a mão pequena; com poucos
anéis da corrente, daria para esmagá-las.
O safado precisa pagar, não se esqueça. Mas
ele estava me levando para a Boneca, era
meu melhor amigo, não tive coragem. En-
tão, ele sugeriu ter um plano melhor para
me curar, usando uma cruz. Você não vai
permitir isso, vai? O ladrão queria partir a
tábua e fazer uma cruz para me amarrar
com a corrente dos condenados. Insano!
Não podíamos fazer isso! Se quebrássemos
a tábua, como a Boneca remaria?
Ele se irritou por eu ir contra e começou
a ler o livro, erguendo a mão e me esta-
peando sem parar, mandando-me repe-
tir tudo o que a voz me contava. Depois,
ajoelhei-me e fiz tudo o que ele mandou;
foram coisas nojentas que duraram horas.
248
Por fim, ele pegou a Boneca, ergueu a coi-
tada e a espremeu à minha testa, rezando
alguma coisa estranha, apertou tanto que
senti arder, depois enfiou o dedo no meu
olho machucado, colocou-me numa roda
de madeira e empurrou-me pela escada.
Levou a coisa para o pátio e brincou por
algumas horas até os demônios começarem
a falar na minha cabeça e pedirem para
sair dos ossos – eram muitos, eles partiram
quase todo o meu corpo para fugir.
Já à noite, o capelão amarrou a Bone-
ca no meu pescoço e jogou água de um
frasquinho em meu rosto. Meus ouvidos
estavam sangrando com as vozes que gri-
tavam. Implorei para silenciar a baderna,
ele prometeu que o faria e foi buscar o
picador e a pedra.
Eu ainda tinha uma perna e um braço,
então me afastei e achei uma corrente.
249
Quando o safado retornou, a voz me man-
dou dar uma lição nele, falei que não podia
porque precisava abrir caminho nos ossos
para os sons saírem.

— Não posso… como vou exorcizar o


capeta da minha cabeça sem a ajuda dele?
Ele só sai pelo suco dos ossos. Temos de
continuar moendo o meu corpo – a voz
disse que sabia como usar o picador e que
iria me guiar, era a melhor técnica que tí-
nhamos, e eu devia defender o trabalho do
Dr. Guy em nome da Rússia. — Está bem,
vamos fazer, vou destruir esse safado.

Quando o ladrão voltou, joguei a cor-


rente no braço dele, ela bateu com força e
rodou várias vezes, prendendo o maldito.
Ele caiu, continuei com a corrente, dei mais
voltas e puxei tão forte que expulsei vários
espíritos dos ossos dele. Quando ele parou
250
de berrar, a Boneca entrou por sua língua,
rasgando tudo. Ele se engasgou e morreu.
Voltei com ela ao piano e a enrosquei na
mola. A engrenagem começou a rodar, a
música da caixinha saiu macia – a baila-
rina girou. Ficamos por dias ali, curtindo
a ópera, até tudo silenciar e, então, pude
novamente ouvir as vozes que me instruí-
ram: Pegue o picador, a pedra e procure um
espelho.
Obedeci e fiquei em frente ao espelho,
ajeitei o picador no olho furado e, num
golpe, a coisa entrou, não senti nada. As
vozes disseram que seria assim. Eu estava
livre, o procedimento dera certo. Livre e em
silêncio. Tudo se foi, comecei a babar. Pela
primeira vez, eu estava feliz. Puxei a coisa
do meu crânio e saí da casa. Caminhei até
o lago ao fundo, a água me cobriu, lavan-
do o sangue do rosto. Ali fiquei, de volta
251
às águas sujas que corriam até o Muskov,
com a cabeça sendo preenchida de barro
enquanto o cérebro escorria, sem espaço
para mais espíritos. Eu estava curada e o
Muskov, lavado. Não havia qualquer outra
pessoa viva no anexo, os inimigos tinham
descarregado mais bombas adocicadas, le-
vando toda a loucura e os soldados juntos.
As mansões distantes se foram todas.

Ficou tudo vermelho – vermelho de


loucura e branco da neve que coroava a
região. Porém, falhamos, nós pecamos!
Você não devia ter se deitado com a Boneca,
o vento sibilou. Uma janela foi aberta no
sótão, a ópera voltou, a bailarina rodopiou
o vestido. Parece que algo pegou o picador
e está vindo atrás de mim, se arrastando.
Não, o lago vai até o Muskov…

252
O gato caolho
do Hospício de
Muskov
H E R ÁC L I T O PI N H E I RO

1920

O
prédio magnífico do palacete do
Hospício de Muskov, a visão de
suas torres sinistras cobertas de
neve, na pálida luz invernal, encheu de
júbilo o coração do jovem médico Czerno-
bog Kozlov. Nevava quando ele se aproxi-
mou pela primeira vez do hospital; estava
tão frio que a neve não derretia ao toque
ou enlameava o solo, mas era sim um pó
branco puro e límpido, acumulando-se
sobre tudo e trazendo um brilho espec-
tral à construção. Vista sob o prisma da
dança dos minúsculos flocos de neve, era
253
impossível saber ao certo a sua distância
ou discernir o seu tamanho, e o uivo do
vento gélido parecia dar as boas-vindas ao
jovem e ambicioso médico.

Kozlov pertencia à fina flor da aristo-


cracia russa; sua mãe era prima do czar e
seu pai, um poderoso general. Era o mais
jovem de sete filhos homens, e pôde usu-
fruir do dinheiro proveniente das imensas
propriedades da família para seguir seus
interesses acadêmicos por toda a Europa.
Estivera em Paris, estudando sob a tutela
da grande Jean Martin Charcot, no famoso
hospital La Salpêtrièr, e lá, pela primeira
vez, escutou sua revolucionária tese so-
bre a histeria, que contradizia as fantás-
ticas descobertas da anatomia patológica,
da qual ele fora o maior defensor! Tinha
assistido, embasbacado, suas demonstra-
ções de hipnose, quando magistralmente
254
ele induzia os mais variados sintomas de
conversão histérica: cegueiras, paralisias,
anestesias, parestesias; quase como um
Merlin redivivo controlando suas mentes
enfermas! A arte de Mesmer, o charlatão
francês, recrutada para o uso da ciência!
Estudou as teses sobre hipnose de Pierre
Janet e chegou até mesmo a conhecer o
desagradável neurologista de Viena, Sig-
mund Freud. Tempos depois, leu as teses do
judeuzinho impertinente sobre a histeria,
sua teoria do trauma e o método catárti-
co. Mesmo não passando de escória judia,
talvez a argúcia do doutor Freud pudesse
ajudá-lo a se tornar famoso em sua terra
natal. Ao menos na Rússia, sabiam exata-
mente como tratar a praga judaica, dife-
rente dos liberais franceses e austríacos.

Estivera em Leipizg, onde obteve seu


título de doutor em Psicologia sob a tutela
255
do renomado Wilhelm Wundt, o pai da
moderna Psicologia Experimental. De-
pois, leu o trabalho de Franz Riklin, seu
colega nos anos de doutoramento, sobre
seu experimento inovador com o teste de
associação de palavras, que ele publicou
com um tal de Carl Gustav Jung. Ambos
trabalhavam no célebre hospital universi-
tário Burgholzli, dirigido pelo mundial-
mente famoso Eugene Bleuler. Esse hos-
pital de Zurique, assim como os demais
hospitais do mundo, e todos esses nomes
que marcavam a fogo a Psiquiatria logo
seriam pálidas sombras diante da chama
que seria acessa no Muskov! Kozlov estava
disposto a tentar de tudo, hipnose, o método
catártico, talvez até mesmo a tolice judia
supersticiosa da interpretação de sonhos
de Freud, os testes de associação; cada um
desses métodos seria nada mais do que um
256
pequeno passo em direção à imorredoura
glória futura que ele granjearia em meio
aos psiquiatras de todo o mundo!

O jovem doutor em seu primeiro dia, a


despeito de ter a cabeça repleta das mais
fulgurantes descobertas da Anatomia
Patológica, Psiquiatria e Psicologia Expe-
rimental, não chamou muito a atenção
dos funcionários ou médicos do Muskov.
Era alto, sem dúvida, porém magro e de-
sajeitado. Tinha os cabelos loiros, mas o
amarelo era pálido como a palha e não
brilhante como o ouro; possuía profundos
olhos azuis, que se escondiam sob óculos
de aros de ouro e grossas lentes para sua
miopia. Era um jovem elegante, vestindo
as roupas mais caras que se podia achar
em toda a Europa, porém sua preferência
pelo negro e o cinza fazia com que ele
parecesse um corvo. Caminhava com a
257
segurança e empáfia daqueles que nasce-
ram com sangue nobre nas veias, que sa-
bem ser superiores aos demais e os olham
de um patamar elevado, mas suas costas
eram encurvadas pelas infindáveis horas
de estudo, e suas elegantes mãos com de-
dos longos de pianista estavam manchadas
com os químicos e reagentes que utiliza-
ra nos inúmeros laboratórios pelos quais
passou. Sem dúvida, deveria ser belo, ele-
gante e confiante, todavia pairava sobre
ele uma estranha sombra que obscurecia
suas qualidades. Apenas o brilho, em seus
profundos olhos azuis, revelava o fogo de
sua terrível ambição.

Kozlov, em seu primeiro dia, pediu para


ser levado de imediato à ala dos loucos incu-
ráveis, pois ali residia o seu caminho para a
eterna glória como cientista. Pobre Kozlov!
Se ao menos soubesse o que o destino o
258
reservava...! Mas, naquele preciso instante,
ele não sabia. Seus olhos azuis miravam
um futuro em que legiões de médicos es-
trangeiros viriam até ele humildemente
pedindo pelos seus ensinamentos, ansio-
sos para receber diretamente do mestre os
segredos da mente humana que ele estava
prestes a desvendar!

Ao analisar os prontuários, um deles pa-


receu mesmerizá-lo; uma jovem judia, rica
e culta, com uma histeria incurável que,
num acesso de loucura, matara o próprio
pai enfermo. Estava internada há menos
de dois dias. Uma história fascinante! Ela
alucinara, enquanto estava cuidando do pai
doente, que seus dedos se transformavam
em serpentes com sinistros crânios huma-
nos no lugar de suas cabeças, e tamanho
choque paralisou seu braço direito. Antes
de matar o pai, esquecera completamente
259
sua língua materna, o russo, sendo capaz
de se comunicar apenas em alemão, pois
se recordara de uma antiga rima nesse
idioma.

Hoppe hoppe Reiter


wenn er fällt, dann schreit er,
fällt er in den Teich,
find’t ihn keiner gleich.
Hoppe hoppe Reiter
wenn er fällt, dann schreit er,
fällt er in den Graben,
fressen ihn die Raben. 1

1 Tradução do autor: Quando ele cai, ele grita/ Se ele cai na


grama verde/ ele faz as calças molhadas/ ele cair na vala/
do corvo vai comê-lo/ Se ele cai nas sebes/ os caracóis vão

260
A jovem, chamada Bertha Nikolayevna
Spielrein, estava curada de todos os seus
sintomas; ao assassinar o pai, eles sumi-
ram, exceto a sua incapacidade de falar
russo e todos os outros idiomas em que era
fluente, menos o alemão. Desde o parricí-
dio, ela teve uma crise maníaca e depois
entrou em um estado de profunda apatia.
Em seu histórico, havia um dado curioso,
aos quinze anos – a jovem contava então
com 22 anos –, ela atuou como médium,
recebendo mensagens de três espíritos,
incluindo o seu avô paterno.
Absolutamente fascinante, foi o que a men-
te de Kozlov, repleta de teorias sobre a

comê-lo/ agarrando-Müller mosquitos/ frente e pitada tra-


seira dele/ Se ele cai no pântano/ seguida, o piloto faz chape.

261
loucura, imediatamente pensou. Curar uma
alma tão atormentada lhe daria o material
empírico necessário para se tornar uma
estrela em ascensão no mundo competiti-
vo da Psiquiatria. Sem demora, ele exigiu
ser levado até a jovem, que estava presa
numa cela na mais alta torre do sanatório,
a fim de iniciar os procedimentos para
tratá-la. Uma enfermeira rotunda e enor-
me lhe deu um maciço molho de chaves,
carcomido pela ferrugem, e lhe indicou
a direção, pois os funcionários evitavam
ao máximo se aproximar da jovem judia.
Coisas estranhas aconteciam àqueles que
se aproximavam dela.

Camponeses supersticiosos e tolos, foi o que


Kozlov pensou, ainda intoxicados por lendas
medievais e contos infantis que se escutam nos
vilarejos distantes. Mesmo pessoas cultas
podiam ser ludibriadas por charlatões e
262
lunáticos que acreditavam poder fazer
contato com os mortos. Pura tolice, char-
latanice e insanidade! O bisturi afiado da
ciência estava prestes a dissecar aquela
pobre alma atormentada e dali extrair,
em meio ao lodo negro do ocultismo e da
loucura, o brilho da sanidade.

Kozlov percorreu os corredores labirín-


ticos do hospital por horas antes de encon-
trar o caminho até sua paciente. Quando
finalmente achou a ala correta, teve de
fazer uso de inúmeras chaves em seu pe-
sado molho, pois sete portões separavam
a torre do restante do hospital. Escadas
em espiral levavam ao alto da construção,
uma miríade de degraus. No meio do ca-
minho, ainda nas escadas, sentiu-se subi-
tamente tonto e quase tropeçou, tendo de
se apoiar desajeitadamente em uma das
paredes. Estava escuro, ele carregava um
263
lampião, que por pouco não escapuliu de
suas mãos. Ao se recobrar de sua tontura,
teve a vívida impressão de ver um gato
preto, movendo-se rapidamente em meio
as trevas da velha torre. O médico respirou
fundo, trincou os dentes e prosseguiu; a
mente era algo misterioso e a sua estava a
lhe pregar peças.

Quando chegou ao corredor onde esta-


va confinada a jovem Bertha, ele pensou
ter ouvido um miado sinistro. Caminhou
alguns passos e viu, numa das celas, um
estranho gato negro de um olho só, que
brilhava esverdeado nas trevas da tor-
re. Uma ânsia subiu de seu estômago até
provocar um gosto amargo em sua boca,
e Kozlov sentiu novamente tontura; toda
a torre girou e ele caiu desajeitadamente,
espatifando o lampião. Ainda no chão,
quando olhou novamente para a cela, o
264
misterioso gato havia desaparecido. Ko-
zlov estava banhado de suor frio, mas usou
cada porção de sua poderosa vontade para
se levantar e prosseguir.

Ao finalmente abrir a porta da cela onde


estava a sua paciente, sentiu algo estranho
e recuou alguns passos diante da visão da
jovem. Magra e elegante, ela estava com
uma palidez fúnebre; seus cabelos negros
caíam sobre os seios nus, escondendo-os,
e seus olhos verdes pareciam emitir um
estranho brilho espectral. Kozlov estava
preparado para todos os horrores que a
loucura tinha a oferecer, mas não ima-
ginara que a jovem estaria nua, sentada
elegantemente na sua cama, com as cos-
tas retas e as mãos pousadas sobre as co-
xas. Tinha olhos grandes, lábios grossos,
e era bem mais baixa do que ele. Seus
cabelos negros mal podiam esconder os
265
seios voluptuosos. Kozlov permaneceu
ali, pateticamente paralisado, com a boca
escancarada e o olhar vidrado por vários
minutos – para ele, uma eternidade. Os
olhos verdes de Bertha estavam dirigidos
para ele, mas tinham aquela qualidade
distraída e desfocada daqueles olhos que,
apesar de abertos, não se interessam pelo
mundo exterior. Depois de algum tempo,
o corpo de Kozlov começou a tremer e ele
balbuciou alguma coisa incompreensível
em alemão. Foi quando ela pareceu se dar
conta da sua presença e, com um sorriso
amigável perguntou:

— Não quer se sentar, Dr. Czernobog?

Ela apontou para uma cadeira, e sua voz


o causou um choque que o fez recobrar
um pouco de compostura.
266
— Pode me chamar de Dr. Kozlov, Srta.
Spielrein.

Caminhando rigidamente, ele se aco-


modou na cadeira, puxou para perto uma
mesinha de madeira, colocando-a entre os
dois e tirando de uma bolsa que trazia a
tiracolo seus papéis, uma caneta tinteiro
e um cronômetro.

— Pode me chamar de Bertha.

Kozlov tentou responder, mas as pala-


vras teimavam em não sair da sua boca.
Após alguns segundos, engoliu em seco e
continuou a organizar suas folhas.

Kozlov pigarreou e começou a explicar


que iria fazer com ela um teste de associa-
ção de palavras; a cada palavra estímulo, ela
deveria responder com a primeira que lhe
ocorresse, o mais rápido possível e sempre
com apenas uma palavra. Jung e Riklin
267
estudaram as perturbações nas respostas
do teste para descobrir os complexos de
seus pacientes, especialmente tempos de
reação muito prolongados e as falhas em
seguir a instrução do teste. Talvez com isso,
pensava ele, poderia penetrar na mente de
Bertha e descobrir o que a tornava louca;
mais tarde, talvez, tentasse provocar uma
catarse por meio de transe hipnótico. Ela
ouviu as instruções de maneira impassível
e, ao final, apenas assentiu com a cabeça
de maneira quase imperceptível.

De uma maneira mecânica e emperti-


gada, Kozlov começou a recitar a lista de
cem palavras. A primeira delas, “cabeça”,
ela respondeu em três segundos “doente”.
Depois, “verde”; em quatro segundos, ela
disse “azul”, em seguida “água”. Após trin-
ta segundos, Bertha respondeu com uma
passagem da rima infantil: “se ele cair na
268
lagoa, ninguém vai achá-lo logo”. Várias
palavras se seguiram com respostas espe-
radas, até que Kozlov disse “doente”, ao que
Bertha replicou “a Rússia está doente e o
czar está morto!”. Então, algumas palavras
depois, veio o verbo “morrer”, ao que ela
completou em três segundos: “em breve,
nós dois”. Mais palavras: parte, velho, flor,
bater, caixote, selvagem. Surgiu a palavra
“família” como resposta e, depois de quase
um minuto de silêncio, ela disse “morte”.
Mais palavras, até que Kozlov disse “bei-
jar”, e ela, quase que imediatamente, falou
“Kozlov”. Ele engasgou por um instante,
depois prosseguiu; a palavra seguinte foi
“noiva”. Bertha respirou fundo e arregalou
os olhos, riu de maneira histérica e des-
controlada, chacoalhando todo o corpo
e respondeu, encarando diretamente os
profundos olhos azuis do jovem médico:
269
— Não podemos nos casar, Czernobog,
eu realmente não gosto de você!
Kozlov engasgou novamente, tentou di-
zer algo, mas ao invés de falar em alemão,
disse algo em francês e sentiu-se muito
tonto, como se todo o aposento girasse sem
parar ao seu redor. O cronômetro caiu de
sua mão, espatifando o vidro do visor no
chão de pedra fria.
Quando a tontura passou, e ele pôde
encará-la novamente, Bertha estava de
pé, olhando tudo ao redor de maneira
confusa, até que, ao vê-lo, agarrou-o com
força pelos ombros. Kozlov se assustou
com a força da jovem Spielrein; ele devia
ter o dobro do tamanho dela, mas mesmo
assim ela o agarrou com tal força que ele
foi completamente imobilizado. Quando
ela finalmente disse algo, sua voz estava
modificada; não era a voz da jovem judia
270
enferma, mas de um homem, e uma que
soava estranhamente familiar:

— Czernobog! Fuja! Eles estão vindo, eu


e sua mãe, nos pegaram, não sei se algum
de seus irmãos conseguiu escapar, mas acho
que estão todos mortos, todos mortos! Fuja
da Rússia imediatamente se quiser viver!

Bertha se afastou cambaleando, coberta


de suor e caiu sentada na cama, não mais
em sua postura elegante. Ela simplesmente
tombou sobre o colchão, apoiando as cos-
tas na parede fria, com as pernas abertas e
os braços apoiados nos joelhos. Enquanto
o suor pingava do seu rosto, ela disse ofe-
gante:

— Eu sinto muito pela morte do general


Kozlov.

Czernobog levou quase um minuto para


registrar em sua mente aquelas palavras;
271
quando finalmente compreendeu, uma
onda de fúria o invadiu. Avançou sobre ela
e agarrou seu pescoço com as duas mãos;
a jovem Spielrein não lutou ou tentou re-
sistir, mas parecia sorrir de maneira ma-
níaca enquanto era estrangulada. Kozlov
continuou apertando e apertando mesmo
depois dela estar completamente sufocada.
Quando a largou, o corpo caiu estatelado
na cama, como se fosse uma boneca, com
os olhos verdes arregalados e o rosto pe-
trificado em um sorriso maníaco. Kozlov
olhou para ela horrorizado e tapou a boca
com a mão para sufocar um grito de hor-
ror. O médico caiu de joelhos e começou a
pensar freneticamente. Estava no inverno,
poderia preservar o corpo, continuar fin-
gindo vê-la por alguns dias, depois simular
um suicídio por enforcamento. Seria uma
272
mancha na sua carreira, mas algo melhor
do que um assassinato a sangue frio.

Com esse plano em mente, o doutor


Kozlov saiu da cela da jovem Bertha e viu,
diante dele, sob a luz de uma das lâmpa-
das do corredor, o gato preto caolho. Um
pavor irracional o dominou, e ele correu
dali. Antes de passar pelo portão de ferro,
olhou para trás e viu o gato entrando na
cela da sua paciente. Ele desceu na escuri-
dão das escadas o mais rápido que pôde e,
depois de correr pelos corredores labirín-
ticos vazios, conseguiu retornar a ala prin-
cipal do hospital. Para sua surpresa, havia
uma grande agitação; diversos homens
esfarrapados, carregando rifles e armas,
andavam para lá e para cá. Dois homens
armados, parecidos com os servos imundos
que cultivavam as terras da sua família,
conversavam com a enfermeira rotunda;
273
ela apontou o dedo em sua direção e os
dois caminharam até ele, engatilhando
seus rifles. Sem que o médico percebesse,
um outro se aproximou por trás e o der-
rubou com uma coronhada nas costas,
seguida de uma coronhada na lateral da
cabeça que o jogou de cara no chão. Caído
no chão, sangrando, ele repetia baixinho
em alemão “não foi minha culpa! Eu não
queira ter feito aquilo”. Os dois homens
o agarraram pelos braços e o arrastaram
até o pátio, largando-o de joelhos diante
de um homem imenso, maltrapilho, que
fumava um cigarro.

O homenzarrão de rosto vermelho e


barba malfeita o encarou friamente. Deu
uma grande tragada em seu cigarro, que
brilhou escarlate na escuridão, e enquanto
a fumaça saía pelo seu nariz, perguntou
aos dois homens que o tinha carregado:
274
— Esse é o filho do general Kozlov?
Czernobog?

Um deles apenas assentiu com a cabeça,


sem dizer palavra.

— Camarada Trotsky, general do Exército


Vermelho, ordenou que todos os membros
da sua família fossem mortos imediata-
mente assim que fossem encontrados. E
você, Dr. Czernobog, é o último membro
vivo, mas não por muito tempo.

Kozlov ergueu os olhos e viu o homem


sacar um revólver; ele calmamente o en-
gatilhou e encostou em sua têmpora. Antes
que ele apertasse o gatilho, dizem que o
médico apontou para algum lugar com a
mão trêmula e disse algo sobre um gato
de um olho só. Essas foram as suas últimas
palavras.

275
Visita Para Svetlana
L . S . WO LT E R

1921

A
corde! Acorde Svetlana!

— Ela abre os olhos e logo sente a


fetidez do seu próprio vômito,
que consome o quarto escuro. Por mais
escuro que esteja, não sente medo. Svetlana
nunca sentiu medo do escuro, nem mesmo
depois da morte de seu marido, que fale-
cera na guerra. O que realmente a apavora
são as repugnantes visitas do Dr. Krasnov,
que ocorrem enquanto está amarrada
na cama. Indefesa, ele a abusa com certa
frequência. O médico sente prazer com
o sofrimento alheio, algo que somente os
sádicos são capazes de sentir.

Svetlana se levanta, sentindo os pulsos


276
ainda em carne viva e uma dor latente entre
as pernas. Por mais que esteja confusa, sa-
bia que isso não deveria estar acontecendo.
Tomada por um acesso de fúria, Svetlana
solta um berro e bate a cabeça repetida-
mente contra a parede. Ela continua com
os golpes até que tudo se apaga e cai no
chão, desacordada.

Nem sempre foi assim. Svetlana um dia


fora Svetlana Stanislav, uma linda mulher
casada com Isak Stanislav, um soldado
bolchevique. Seu marido era um homem
forte que não tinha medo da guerra. Era
devoto às causas do exército vermelho e
próximo a Leon Trotsky. Estavam casados
há dois anos e, desde então, tentavam ter
um filho – o maior sonho de suas vidas.
Mas em agosto de 1920 tudo mudou. Isak
foi convocado para uma ofensiva em Var-
sóvia e de lá nunca retornou.
277
Foram meses de angústia para Svetlana,
que recebia informações desencontradas
sobre o paradeiro do marido. Ora diziam
que falecera no confronto, ora diziam que
estava muito ferido, porém vivo, mas sem
condições de retornar a Moscou; ela não
sabia como e onde encontrá-lo, até que
um dia recebeu uma carta do exército
confirmando a sua morte e, desde então,
Svetlana nunca mais foi a mesma.

Ela não aceitava a morte do marido


e começou a agir como se nada tivesse
acontecido. Preparava o jantar para duas
pessoas, recusou-se a vestir o luto e come-
çou a falar frequentemente sozinha. Tudo
piorou quando Svetlana passou a se com-
portar como se houvesse um bebê em casa,
um bebê que ela sempre sonhou, mas que
nunca fora concebido. Ele era forte como
278
o pai e belo como a mãe, uma mistura
perfeita dos dois.
Amigos e familiares tentavam argumen-
tar sobre seu comportamento, porém pre-
senciavam ataques de fúria e, em alguns
casos, eram agredidos pela pobre viúva, que
arremessava objetos contra quem insistisse
no assunto. O que eles não entendiam é
que Svetlana via seu marido pela casa, con-
tando-lhe como fora vitorioso na guerra e
como havia aniquilado os inimigos. Depois
de um tempo, cansada dos julgamentos
alheios, Svetlana se isolou completamente
dentro de casa; ela estava confusa e total-
mente deprimida. Até que uma tarde, foi
levada à força para o Hospício de Muskov
– o maior hospital psiquiátrico da capital
–, onde ainda permanece.
Svetlana acorda em outro quarto sujo,
pouco iluminado, onde a enfermeira Kalina
279
lhe faz uns curativos improvisados na tes-
ta e nos pulsos, que não sangravam mais.
Kalina é uma das poucas enfermeiras que
sentem empatia pelos doentes.

— Não se assuste! Eu não vou te machu-


car – Kalina fala com a voz calma. — Viu
só como foi rápida?

Svetlana encara a enfermeira com seus


assustados olhos cor de esmeralda.

— Onde está meu marido?

— Ele não está aqui, querida.

— Nós tivemos um bebê, não tivemos?!


– pergunta Svetlana, confusa.

Ultimamente, ela tem visto com pouca


frequência seu marido ou o ilusório bebê.
Porém, ganhou a companhia de uma voz
que comenta o que acontece à sua volta.
De alguma forma, essa voz lhe acalma.
280
— O Dr. Krasnov já está vindo exami-
ná-la – diz Kalina
— NÃO! – Svetlana grita ao ouvir esse
nome, encostando-se na parede.
— Ele vai lhe ajudar.
— Ele me machuca – diz a paciente à
Kalina.
— O tratamento é dolorido, mas é para
o seu bem.
— Não! Ele me machuca... – Svetlana
põe as duas mãos na cabeça, balançando
o corpo, atordoada.
Kalina solta um suspiro. Svetlana, ainda
acuada no canto do quarto, escuta a suave
e companheira voz:
“Defenda-se!”
Ela olha para a mesa onde Kalina reco-
lhe o restante do material e visualiza uma
281
tesoura pequena, porém afiada, perfeita
para esconder sob o vestido. Svetlana se
aproxima de Kalina e lhe abraça para a
surpresa da enfermeira, que retribui o
gesto, emocionada.

Svetlana, então, apanha a tesoura e a es-


conde dentro da manga, sem que a enfer-
meira perceba. Logo em seguida, Kalina
a conduz de volta ao alojamento, até que
outro enfermeiro sinaliza para que esta se
aproxime. Ela se afasta de Svetlana, que
aproveita para sentir a tesoura próxima ao
seu pulso. Em seguida, Kalina volta toda
sorridente ao encontro da paciente:

— Você tem visita! – diz empolgada, mas


Svetlana não esboça nenhuma emoção.

Kalina abre a porta da sala reservada para


visitas e aguarda do lado de fora. Svetlana
entra com os olhos voltados para baixo,
282
encarando a ponta da tesoura que insistia
em sair da manga do vestido. Ao levantar
o olhar, ela o vê parado na sua frente, sor-
rindo. Ele estava um pouco mais magro
e um dos olhos estava cego. Mas, ainda
assim, era como o recordava.

— Svetlana meu amor, sou eu! Você não


sabe o tanto te procurei. Eu estava em um
hospital na Romênia, foram meses até me
recuperar. Por engano, lhe deram uma
falsa notícia sobre minha morte. Foi hor-
rível, não consegui te encontrar em lugar
algum. Mas assim que confirmaram que
você estava aqui, vim o mais rápido que
pude.

— Isak… Tanto tempo que você não vem


aqui me visitar, a última vez foi no ano
passado.

— Essa é a primeira vez que eu venho


283
e não se passaram anos, meu amor. Você
está aqui há oito meses.

Ela fica confusa e percebe que há algo


diferente nessa visita. Ela olha para as pró-
prias mãos envelhecidas. “Somente oito
meses? Esse inferno foi capaz de fazer isso
comigo em tão pouco tempo?”

— Eu vou tirar você daqui. Você não


está louca, só não acreditava que eu estava
morto e, afinal, estava correta todo esse
tempo. Eu sempre estive vivo. Você não
fica neste lugar nem um minuto a mais.

Svetlana sente que realmente aquele


homem era o seu marido e finalmente o
abraça. Ele tinha o cheiro que ela tanto
sentia falta.

Isak abre a porta e solicita que Kalina


leve-o até a sala do diretor para acertar
sobre a liberação da esposa. Então, Kalina
284
pede para Svetlana aguardar enquanto
acompanha o marido.

Depois de muito tempo, Svetlana se


permite sorrir. Aquele pesadelo acabou,
seu marido está vivo e ela vai poder voltar
finalmente para casa.

A porta se abre, mas para sua surpresa


não era o marido que entrava, e sim Dr.
Krasnov.

— O quê... o quê você faz aqui? – per-


gunta Svetlana, sentindo um calafrio subir
pelas costas.

— Vim te levar para seu quarto, onde é


seu lugar. Está na hora dos seus exames –
ele sorri sadicamente.

— Eu vou embora... Meu marido vai me


tirar daqui. Ele está agora mesmo na sala
do diretor.
285
— O quê? – Dr. Krasnov dá uma garga-
lhada que faz Svetlana tremer. — Estou
vendo que vamos ter que aumentar a carga
dos choques. Você está mais louca do que
eu previa. Eu acabei de sair da sala do Di-
retor Nagy e não há ninguém conversando
com ele.
— Mas... mas a enfermeira Kalina estava
com ele. Ela o levou, eu vi.
— Kalina está te procurando porque você
fugiu do quarto.
— Não... Ele estava aqui, eu o abracei –
Svetlana chora. — Ele ia me tirar daqui!
Dr. Krasnov conduz Svetlana, que vai
até seu quarto sem resistência. Estava de-
primida demais para se opor. Ela sempre
ouviu os outros a chamarem de louca e,
pela primeira vez, concorda.
O médico a deixa sozinha no quarto e,
286
então, depois de poucos minutos, ela escuta
alguém abrindo a porta.

— Porque você voltou para cá? Eu estou


te procurando em todos os lugares – per-
gunta Isak.

— Por favor, para!

—Vamos embora querida. Foi muito


complicado, mas o diretor te liberou para
sair comigo e nós, finalmente…

— CHEGA! – Svetlana solta um grito de


fúria para o suposto marido. — Vai embora!
Eu não aguento mais isso. Eu não sei mais
o que é real e o que não é. Você aparece e
depois vai embora sem dizer nada.

— Mas meu amor, eu…

Svetlana levanta alterada, saca a tesoura


que ainda está escondida na manga do ves-
tido e golpeia o pescoço do irreal marido,
287
numa forma desesperada e simbólica de
cessar aquelas imprevisíveis visitas. Ela
se agacha e chora; dessa vez sua mente
tinha sido cruel demais. Ainda agachada,
ela escuta passos vindo em sua direção e
logo em seguida os gritos de Kalina, que
ecoam por todo quarto.

Svetlana abre os olhos e vê que está co-


berta de sangue. Quando olha à sua volta,
vê o corpo no chão, com Kalina e os de-
mais enfermeiros tentando, em vão, salvar
a vida do seu marido.

— Vocês estão vendo? – Svetlana per-


gunta, perplexa. — Vocês conseguem ver
o meu marido?

— Claro que sim! Por que fez isso? – per-


gunta Kalina, chocada.

— Porque ela está louca – fala Dr. Kras-


nov sem nenhuma emoção.
288
— Não! Foi você quem disse que ele não
estava aqui, que eu era louca – protesta
Svetlana entre lágrimas. — Você fez isso!
Seu monstro! – ela se lança contra Dr. Kras-
nov com a tesoura na mão, mas é contida
pelos demais enfermeiros.

— Amarrem-na na cama e a levem para


o quarto-forte.

Entre protestos e gritos, eles fazem o que


o doutor manda e então a deixam sozinha
no quarto especificado pelo médico. Após
três horas sozinha e amarrada na maca,
Dr. Krasnov entra no quarto sorrindo.

— Você realmente achou que eu te dei-


xaria ir? O meu brinquedinho favorito?
Como você é estúpida – ele ri novamente.
— Acabou matando a sua única chance de
sair daqui. Agora vamos comemorar.

Svetlana é violentada enquanto recebe


289
tapas e cuspes no rosto. Sem reação, ela
olha para a porta e vê o rosto de Kalina,
que assiste a cena horrorizada.

Ela desmaia e acorda desamarrada com


Kalina em pé, ao seu lado, com o rosto som-
brio. Sem dizer nada, a enfermeira deixa a
tesoura que Svetlana havia roubado ao seu
lado, e sai do quarto em silêncio. Svetlana
sorri agradecida. Ela poderia se proteger
do próximo ataque do doutor monstro,
mas ela prefere acabar com este pesadelo,
pois não conseguiria viver em um mun-
do onde era assassina do próprio marido.
Sem pensar, Svetlana dá um golpe certeiro
contra o pescoço – como havia feito com
seu marido – e fecha os olhos, para nunca
mais abri-los.

— Adeus, Svetlana, adeus!

290
Os Sigilos do
Amanhã
C A E SA R C H A RON E

1927

E
naquele pedaço de papel roto e en-
sebado estava escrito:
Mando-lhe frequências feitas de fogo-
-fátuo e esperanças, o que, se pensadas pela boa
vontade, se resumem na mesma coisa. Todos
os infernos são espelhos da humanidade. To-
dos os infernos são tão seus quanto meus, e nas
marés que fazem a vida, eles nos engolem aqui
e acolá para sermos depois regurgitados sob a
desculpa vã de que seremos felizes. Olhe bem
para as coisas belas sabendo que os segredos que
nelas habitam serão um dia revelados, quando
finalmente fechares teus olhos para tudo aquilo
que a luz rege.
291
Foi assim que o fim começou.

Dia 1

Eles adentraram o umbral do sanatório


como se toda a espontaneidade houves-
se congelado lá fora. Vladímir Baranov
era burocraticamente empurrado em sua
cadeira de rodas pela enfermeira austera
cujos anos já pesavam a face. Eram segui-
dos por Aleksandra Baranov, que analisava
discretamente o local com seus olhos de
cores diferentes. Muskov fora uma esco-
lha pensada, menos pela dubiedade de seu
passado de glórias e mais por suas tera-
pias de vanguarda — as únicas, segundo
Petrochev — que poderiam dar conta da
terrível demanda de Vladímir.
Agora, depois de toda a Via Crúcis, das
292
velas, dos gritos noturnos e dos narcóticos,
ali estavam eles, que doaram dois terços
de suas vidas aos esplendores da magia,
mendigando os últimos resquícios de es-
perança em sua irmã antagônica, a ciência.

O trio parou na bancada da recepção.


Dois enfermeiros carrancudos se revezavam
entre pilhas de prontuários empoeirados
e móveis devastados pelo tempo. Por um
estranho motivo, suas carrancas pareciam
combinar perfeitamente com o cenário.
E a despeito dos jalecos impecavelmente
brancos, havia uma opressiva predomi-
nância da cor verde em toda a atmosfera
do lugar.

A carranca mais nova se aproximou de


Aleksandra e a olhou com indiferença. Vi-
rou-se lentamente para a enfermeira que
empurrava a cadeira de rodas e disse:
293
— Suas malas serão levadas para o quarto
23. O doutor Belykh encontra-se no escritó-
rio, e já espera há um tempo considerável.
Notoriamente constrangida pela colo-
cação, Aleksandra tentou se justificar de
imediato.
— Ora, vejam, nós fizemos o possível
para chegar ainda ontem. Todos os prepa-
rativos foram devidamente providencia-
dos. Mas a nevasca nos pegou de surpresa
e nada podemos fazer. Novembro é um
mês realmente terrível.
Ninguém fez qualquer referência ao
comentário. A enfermeira, em silêncio,
tomou a frente empurrando a cadeira de
rodas enquanto Vladímir olhava conster-
nado para a esposa.

O escritório de Ivan Belykh ficava bem


294
próximo da grande porta trabalhada de me-
tal e madeira na entrada da instituição. Era
amplo, monocromático e simetricamente
organizado, quase de forma compulsiva.
Quadros desbotados de vitórias heroicas
disputavam espaço na parede com dezenas
de diplomas e condecorações científicas.
Atrás da mesa de mogno do psiquiatra,
dois enormes armários de ferro fundido —
exatamente na mesma cor azul esverdeada
das paredes — recheados com pelo menos
uma centena de tomos envelhecidos; al-
guns ostentando nas lombadas títulos em
diferentes línguas, todos organizados em
fileiras harmônicas: sempre dos maiores
para os menores, respeitando seus países
de origem. Sobre o tampo da mesa, peque-
nas pilhas de papéis — tão bem arranjadas
que pareciam cubos — e uma belíssima
faca artesanal, cujo cabo irmanava osso e
295
madrepérola. Havia alguma coisa naquela
harmonia maníaca que oprimiu o casal.

— Fiquem à vontade, por favor — disse


Belykh olhando para a enfermeira como
uma deixa que ela imediatamente enten-
deu, partindo em silêncio.

— Senhora, queira sentar-se. Diante das


horas, creio que a viagem tenha sido bem
cansativa, não?

O velho esquálido disse isso olhando


para Vladímir. Os olhos vivos, perscruta-
dores, contrariavam a aparência frágil do
médico idoso. Aleksandra ia dizer algo,
mas Vladímir tomou a palavra:

— Dr. Belykh, ainda não fomos apresen-


tados. Sou Vladímir Baranov e essa é minha
mulher, Aleksandra. Teríamos chegado
cedo pela manhã, conforme o planejado,
mas fomos apanhados por uma nevasca
296
infernal e quando demos pela chegada, a
noite já estava...

— Não se preocupe com isso, Sr. Baranov


— interrompeu o médico. — Há muito nos
acostumamos com atrasos nesta época do
ano. É quase uma tradição, creia. — Belykh
sorriu. — O que importa é que estão aqui,
sãos e salvos, para iniciar uma nova etapa
de saúde e esperança. Um tempo de reco-
meçar sob um novo prisma. Mais lógico,
leve e obviamente mais lúcido.

O sorriso aparentemente congelara por


alguns segundos nos lábios tortos e desbo-
tados de Belykh. Então ele continuou seu
discurso de boas-vindas:

— Como certamente estão a par, aqui se


encontram os mais engenhosos avanços na
esfera das ciências mentais: a atualização
constante dos métodos, dos preceitos. O
297
treinamento primoroso dos assistentes. O
maquinário esplêndido. As mais recentes
pesquisas e comprovações de campo na
área cerebral. A eficácia técnica e farmaco-
lógica posta em prática pelas mãos habili-
dosas e mentes iluminadas de nosso seleto
corpo clínico. Saibam que a elite científi-
ca do planeta está aqui, meus queridos. A
vanguarda da vanguarda, isso eu afirmo.
Sr. Vladímir, o senhor está realmente em
mãos divinas — encerrou o médico com os
cantos da boca já secos, brancos de saliva.

Aleksandra segurou gentilmente o om-


bro do marido na cadeira de rodas e disse:

— Foi Petrochev quem nos indicou Mus-


kov. Ele nos garantiu que aqui Vladímir
encontraria o que precisava para mudar
o... — hesitou — quadro de saúde instável...

— Oh, sim, sim — continuou Belykh,


298
fitando os olhos de cores distintas da mu-
lher enquanto retirava habilmente a pasta
com um calhamaço de papéis da gaveta à
sua frente. — O Dr. Petrochev nos enviou
o prontuário do Sr. Vladímir com bastan-
te antecedência, e devo dizer que ele não
poupou detalhes. Não mesmo, de forma
alguma. O Dr. Petrochev é um médico
de perfil cirúrgico. Todos os pormeno-
res foram devidamente registrados, cada
minudência, cada particularidade, data
ou contingência aqui está. De fato, se não
pesasse a sua carência de atualização técni-
ca, Petrochev bem poderia compor nosso
quadro clínico.
Vladímir olhou discretamente para a
esposa, que lhe devolveu o olhar.
— Por enquanto fiquemos por aqui,
meus caros — disse o médico, novamen-
te com aquele sorriso artificial enquanto
299
retirava o telefone do gancho e discava um
número. — Estão ambos cansados, tenho
certeza. Amanhã será um novo dia. E logo
após o alvorecer, estarei convosco para
lhes apresentar o psiquiatra responsável,
o Dr. Karamazov. Ele está completamente
ciente do seu caso, Sr. Vladímir, e junto
com nossa equipe trabalhará arduamente
por sua plena recuperação. Quero apenas
lembrar-lhes que nossa instituição segue
normas rígidas. Elas são a nossa garantia
da manutenção de um trabalho estável e
da funcionalidade dos tratamentos. Por-
tanto, ao chegarem ao quarto reservado
para o Sr. Vladímir, atentem ao protocolo
e leiam encarecidamente todas as regras
comportamentais e horários de Muskov,
todos devidamente registrados na ficha
de cabeceira ao lado do prontuário de
300
evolução. E, por favor, Sr. e Sra. Baranov,
queiram assinar na linha pontilhada.
Enquanto Aleksandra assinava a inter-
nação, a velha enfermeira responsável
por trazer o casal ali silenciosamente re-
tornara à sala. Ninguém ouviu quando
ela abriu a porta do escritório. E quando
saiu — empurrando maquinalmente a
cadeira de rodas junto à bela mulher do
recém-internado —, Ivan Ivanov Belykh,
o diretor-chefe responsável pelo Hospício
de Muskov, finalmente relaxou e demoliu
do rosto o sorriso cenográfico.

Dia 2

Pontualmente, às cinco e quarenta e cinco,


alguém bateu à porta do quarto de nú-
mero 23, destinado a Vladímir Baranov.
301
Aleksandra, sonolenta, abriu lentamente
a porta apenas alguns centímetros, o su-
ficiente para ver com seu olho direito — o
verde — Belykh acompanhado de outro
médico, este mais alto, jovem e sério que
o psiquiatra.

— Bom dia, Sra. Baranov — disse Belykh,


com sua peculiar alegria de plástico.

— Bom dia, doutor — respondeu Alek-


sandra com voz rouca.

— Conforme o combinado e, creio eu,


devidamente formalizado pelo protocolo
agora de seu conhecimento, cá estamos
nós, bem no horário do despertar. Normal-
mente usamos a sirene, mas não hoje. Em
feriados especiais, particularmente no Dia
do Acordo e Reconciliação, prescindimos das
trombetas de Jericó — concluiu o médico
com uma breve gargalhada, aparentemente
302
divertido com a própria piada. Ao seu lado,
Karamazov não mudou sequer um milí-
metro a expressão.
— Só um momento, por favor — mur-
murou Aleksandra.
O quarto em que fora improvisadamen-
te alojada era desconfortável e estoico. A
despeito das dimensões generosas, contava
apenas com uma cama — na qual estava
deitado Vladímir —, um pequeno sofá de
couro marrom — onde ela se contorceu
durante a noite toda em uma sequência de
sonos interrompidos —, uma mesinha de
cabeceira de madeira —encimada por um
exemplar de O Diabo de Tolstói, que Vladí-
mir trouxera para possíveis noites insones
—, um pequeno armário de ferro na cor
verde combinando com as paredes — onde
ficavam as roupas e pertences do internado
—, um antigo e enferrujado aquecedor a
303
gás, dois penicos destinados às diferentes
funções fisiológicas, e toda a solidão que
um manicômio pode proporcionar.

— Eles estão aí? — perguntou Vladímir,


sentado na borda da cama, já vestindo sua
camisa.

— Sim, eu estava acordada, mas ainda


não composta, Vlad. Lemos que era esse o
horário, mas, Cristo... é muito cedo. Como
você está?

Vladímir pareceu à esposa menos exau-


rido naquela manhã. Talvez, no fim das
contas, Petrochev estivesse certo. Só o que
ela queria era ter o seu marido de volta.
O homem altivo, sereno e arrogante de
sempre e não aquele fantoche cadeirante,
aparentando vinte anos a mais.

— Peça-os para entrar, querida — disse


Vladímir complacente. — Vamos encarar
304
o abismo. Aliás, não encaramos abismos
maiores?

Ela sorriu para o marido e voltou-se para


a porta, abrindo-a totalmente desta vez e
deixando os visitantes entrarem.

— Ora, ora. Não é que estamos muito


bem esta manhã? — disse Belykh.

Vladímir sorriu em resposta, já perscru-


tando o outro médico.

— Jovens, deixe-me apresentá-los ao Dou-


tor Aleksey Karamazov. Karamazov é um
dos baluartes desta instituição. Na verdade,
nosso luminar definitivo. Um psiquiatra
cujo conhecimento da alma e criativida-
de rivalizaria com qualquer filósofo da
mente. Também é um grande cirurgião.
Ele foi convocado, Sr. Vladímir, para o seu
caso em especial graças ao seu enorme e
enciclopédico conhecimento nesta... área
305
específica da natureza humana. Digo isso
devido às inúmeras nuances... como direi?...
peculiares envolvidas no caso.

O psiquiatra apresentado, completa-


mente formal, apenas meneou a cabeça
em direção a Vladímir.

— É um prazer conhecê-lo, doutor. Sou


Aleksandra, esposa de Vladímir.

— De fato é — Karamazov respondeu


indiferente.

Belykh aproveitou o vácuo e apressou-se:

— Bem, creio que minha missão matu-


tina está concluída. É chegada a hora dos
doutores prosseguirem com suas lidas, eu
inclusive. Tenham um dia bom, e... por fa-
vor, não esqueçam o protocolo. Senhores,
senhora.
306
Mal Belykh fechara a porta e Karama-
zov despejou:
— Aproveitando que sua esposa está
aqui, Senhor Vladímir, pretendo fazê-los
compreender o mais importante. Existem
apenas duas maneiras de vocês encara-
rem o que está acontecendo. A primeira
é baseada em seus sistemas de crenças e
tratamentos obsoletos que, de acordo com
o que li, resultaram em absolutamente
nada. A segunda é confiarem plenamente
em Muskov, e decididamente em mim. Se
estão aqui agora, entendam que o que é
mais importante que suas crenças, tenta-
tivas frustradas de recuperação e o valor
tremendamente dispendioso deste trata-
mento, é justamente essa confiança a que
me refiro. E claro, também é sua última
chance, Senhor Vladímir.
O homem em nenhum segundo piscou
307
ao falar, tampouco tirou seus olhos do pa-
ciente.

O mago aristocrata, pego de surpresa,


ficou debilitado com o peso daquela obje-
tividade da qual não estava acostumado.
Mas retrucou sem parcimônia:

— Com o devido respeito a sua autoridade


aqui, Doutor Karamazov, sempre acreditei
que confiança fosse uma construção entre
os homens.

— Sim, uma construção espontânea e


não automática — completou Aleksandra.

— Vamos deixar claro o seguinte — dis-


se Karamazov, desta vez encarando Alek-
sandra. — Não se trata mais só de visões
e delírios e fantasias. Li nos prontuários
que a diabete do Sr. Vladímir se agravou
tremendamente. Outros sintomas estão
associados. O organismo está colapsando.
308
Não temos tempo para construções, Sra.
Aleksandra.

Ela piscou duas vezes, fitando o médico.

— E como bem lembrou Belykh, siga-


mos o protocolo. Amanhã pela manhã, a
sua esposa já terá partido. Cedo. Às 6:00
o senhor fará o desjejum com os demais
pacientes no refeitório. Às 6:30 retornará
a este quarto e daremos início ao seu pro-
cesso. Conforme já deveria saber, o almoço
acontecerá pontualmente às 12:35. Depois
disso, poderá passear pelo pátio externo,
caso não neve. Retornaremos à investiga-
ção às 15:40, e às 18:45 será servido o jantar.
Dependendo de nossos avanços, antes das
dezenove horas já terei traçado seu plano
de tratamento, ao qual o senhor terá ciên-
cia antes do apagar das luzes, às 21:45. Por
hoje, apenas obedeçam o prescrito. Tenham
309
um bom dia — encerrou Karamazov, já se
dirigindo à saída.

— Acredito que merecíamos um pouco


mais pelo que passamos para chegar aqui
e pelo que pagamos — disse Aleksandra
desafiadora.

— Entendo. Infelizmente, a Sra. não tem


razão, Sra. Aleksandra. Tenho certeza que
sabiam exatamente o que esperar de Mus-
kov. E não se iludam com o caráter folião
de Belykh. A austeridade, tanto quanto a
confiança, são patrimônios aqui. E nem as
suas origens nobres modificarão isso. — O
psiquiatra fez uma pausa. — Mas em caso
de dúvida, consultem seu desespero. — E
finalmente saiu.

E assim o resto do dia se esvaiu, lento


e amarelado, completamente dentro das
profecias diárias de Muskov. Se o dia de
310
feriado deveria ser uma comemoração, ali
não houvera nenhuma. Muskov, em todos
os sentidos, era uma opressão cinzelada
em pedra e cimento. Em seus corredores,
ramificações, andares e compartimentos, a
instituição apresentava a mesma configu-
ração inescapável de dor e lamento velados.
A própria iluminação pálida e espaçada
após o cair do sol contribuía para o aze-
dume da atmosfera. O refeitório, local da
reunião diária de quase todos os internos,
era a antítese de um lugar consagrado à
alimentação. O imenso galpão de paredes
verdes, espocando mofo e acumulando
limo por todos os cantos, deixou Vladímir
prostrado e sem apetite; justamente ele,
dado aos banquetes e salões de festa em
São Petersburgo.

Durante o café, o almoço e o jantar, Vladí-


mir vislumbrou quase todos os internados.
311
Pequena burguesia europeia — medíocres
em sua maioria, mas que tiveram a fortuna
de nascer em famílias abastadas. Alguns
nobres, cuja sanidade — e dignidade —
foram abandonadas há décadas. E havia
ainda os casos mais graves, cujos nomes
e faces permaneceram um mistério para
Vladímir Baranov — junto a outros tantos
segredos reservados aos subterrâneos da
instituição.
Mas havia exceções.
Dimitra Ivanovitch era uma das internas;
doce, bonita e culta, cujos eventuais surtos
de lucidez pareciam iluminar o local. E Jan
Binski, um altíssimo e alegre albino polaco,
dotado de uma esquizofrenia flutuante que
aparentemente nunca vencia sua inteligên-
cia. A despeito das patologias definitivas,
ambos destoavam severamente daquela
atmosfera. Infelizmente, pensou Vladímir,
312
Aleksandra teve que fazer as refeições na
sala de visitantes. Ela teria apreciado a
companhia de seus novos colegas. Naquele
dia, não houve passeios pelo pátio, assim
como não haveria nos próximos trinta e
cinco em que a neve reinaria absoluta nos
horizontes da região.
Conforme havia prometido, Karamazov
veio ter com Vladímir no meio da tarde e
pouco depois das vinte horas, trazendo seu
plano inicial de tratamento, que na verda-
de se tratava da continuidade de esquemas
barbitúricos com alguns acréscimos, uma
anamnese construída de forma diária e
obsessiva, e uma série de ameaças disfar-
çados de autoridade e confiança mútua.
Quando as luzes finalmente se apagaram,
apenas a lua — engasgada numa fresta com
pretensões à janela na parede do quarto
23 — iluminava o casal Baranov.
313
— Tudo vai ficar bem, meu Vlad — dis-
se Aleksandra com genuína esperança.
— Você viu só? Nem precisamos mais da
cadeira de rodas. Apenas alguns passos
lentos, mas firmes, e meu Vlad voltando a
ser um herói.

— Acha que vai dar certo? — perguntou


o marido.

— Claro! Aliás, tem que dar. Vamos acre-


ditar um pouco mais, meu sacerdote.

— Acreditar... Do que adiantou a fé? Onde


estão os deuses, invocações e levitas, agora
que mais precisamos deles? Onde estão
nossos amigos da Confraria Iridescente?
Lembra do que eles viviam nos dizendo?
“Somos aqueles que comandam de dentro e de
cima. Somos o Sal da Terra após a queda do
sol. Se estamos na elite do mundo é unicamente
porque merecemos estar. Nunca esqueçam que
314
caminhamos entre lendas para que sejamos
lendas.”

— Muitos deles não tiveram culpa — ela


considerou.

— Todos tiveram culpa. Todos nós. So-


mos o que sempre fomos, Aleksa, uma corja
de arrogantes iludidos com pretensões de
poder. É muito difícil mudar. Simples-
mente não aceitamos. Se para o mundo
a humildade é uma virtude, para nós é
um deboche. Olhe para nós dois, Aleksa.
É possível pessoas que recitaram juntas o
Czert-Hazaar sob uma Lua de Sangue, que
retornaram em sonhos às muralhas de
pérola da Ínsula de Platão, que dançaram
com as sílfides a Canção do Ilacrimável,
estarem aqui, numa cama de ferro fundi-
do neste fim de mundo, implorando por
migalhas de sanidade? Não. Não é digno.
315
Mas eu sei quem ficou com as consequên-
cias do pior crime.
— Já chega, Vladímir. Em poucas horas
eu retorno à São Petersburgo. O que passou,
passou, e é inútil alimentar ódio ou rancor.
É isso mesmo o que somos. Orgulhosos e
donos do mundo. Isso foi uma escolha. A
Escolha dos Destemidos. Não era assim que
você arrebatava os crentes?
Na quase escuridão do quarto, por al-
guns minutos, ninguém mais disse nada.
Então Vladímir sentiu o hálito quente de
sua mulher transformar-se em saliva, a
língua macia que deslizava em sua gargan-
ta enquanto ela desabotoava lentamente
a camisa. A ereção — inesperada dada à
condição débil — veio surpreendentemente
fácil. O abandono sereno também. E depois
do amor e do silêncio, dormiram juntos e
saciados uma noite sem sonhos.
316
Dia 3

Aleksandra se fora antes do nascer do sol


entre beijos e renovações de esperanças.
E mesmo antes das sirenes anunciarem
um novo despertar, Vladímir já estava
no refeitório seboso, esperando sozinho
o desjejum enquanto lembrava o olhar
triste e colorido da esposa no momento
da despedida. Fora severamente censura-
do, já que a saída dos quartos deveria ser
controlada pelos enfermeiros de plantão.
E foi só isso. Naquele momento ele per-
cebeu duas coisas; uma: que o tratamento
concedido a ele, a despeito da reprimen-
da, se diferia do resto dos internos desde
o começo — talvez por ser o financiador
da própria internação e não um parente
317
distante dali como todos os outros; e duas:
havia bem mais funcionários em Muskov
do que havia imaginado. Uma pequena
procissão de enfermeiros, técnicos e au-
xiliares acompanhava os pacientes que
agora chegavam — como objetos — até
suas mesas.

Naquela manhã a bela Dimitra sentou-se


ao lado dele e começou a cantarolar nos
intervalos entre o pão preto e o mingau.
Vladímir achou aquilo estranho. Entretan-
to quando ela começou a conversa sobre o
amor que transcende existências, ele baixou
a guarda. Perspicaz, a moça fez referência
à beleza da esposa de Vladímir, observada
de longe no dia anterior, aspirando vínculos
de amizade na próxima visita oficializada
para dali a trinta dias, segundo o protocolo
da instituição. Dimitra não recebia visi-
tas de parentes há seis meses e Vladímir
318
imaginou que diante disso só mesmo a
loucura poderia resguardá-la do despre-
zo. Conversaram amenidades por mais
uns minutos, e nem bem a interna havia
terminado seu desjejum, fora rudemente
alavancada da mesa por um enfermeiro.

— O que significa isso? — perguntou Vla-


dímir, já se preparando para o confronto,
mesmo na condição frágil.

— Não é de sua alçada, senhor. — respon-


deu friamente o enfermeiro corpulento,
conhecido como Godo, enquanto arrastava
uma silenciosa Dimitra para fora dali.

— Volte para seu quarto. O turno do café


terminou, senhor — disse outro enfermei-
ro um pouco mais magro que o primeiro.

Com o desentendimento, os outros


pacientes foram levados de volta a seus
alojamentos, na tentativa de evitar um
319
descontrole coletivo. Todos se mantive-
ram, por força da coação aprendida, em
completo silêncio. Mesmo os mais com-
prometidos mentalmente.

Godoretski, ou Godo, sempre vagava


pelos corredores escuros da instituição
acompanhado de seu parceiro Godunov,
ou Godu. Godo e Godu eram antigos sinô-
nimos de terror em Muskov, e a antipatia
sentida por Vladímir pelos enfermeiros
foi automática.

No meio da tarde, na sessão terapêutica


do dia, Karamazov foi inquerido por Vla-
dímir sobre os dois enfermeiros.

— Seus métodos são às vezes questioná-


veis, mas eles nos são de total confiança, e
já provaram isso incontáveis vezes — disse
o médico. — Desconsidere essa preocu-
pação vazia e vamos à anamnese. Este é o
320
começo de muitas investigações, Vladímir.
Sem elas não poderemos encontrar a chave
para sua sanidade.

— Eu não sou insano — respondeu Vla-


dímir.

— Por enquanto não. Mas isso é só uma


questão de tempo. E o tempo agora é o seu
mais precioso bem.

Foram três horas extenuantes de inves-


tigação. Nascimento, relações parentais,
amizades, adolescência, uso de substân-
cias ilícitas, genealogia, consanguinidade,
sexualidade, fobias, hábitos, tendências,
contingências e aspirações. Um espiral
ascendente de memórias pressionadas e
introspecção forçada ao limite.

De noite, depois de mais uma sessão in-


vestigativa, Vladímir foi comunicado por
Karamazov que novas medicações seriam
321
acrescentadas ao esquema de barbitúricos.
Anfetaminas era o nome das substâncias.
Segundo o psiquiatra essas drogas revo-
lucionariam a ciência mental nas próxi-
mas décadas, não mais como dilatadores
bronquiais ou estimulantes do sistema
nervoso, mas principalmente nos casos das
deficiências da atenção — estado disfun-
cional que ele, após as entrevistas, detectou
eventualmente em Vladímir. Quando o
paciente tentou argumentar que a dificul-
dade de lembrar de imediato o que lhe era
solicitado poderia ser um efeito colateral
do uso de barbitúricos, o médico abando-
nou imediatamente o quarto.

Dia 9

Os dias e as noites em Muskov se tornavam


322
uma incontrolável alternância de embo-
tamento e ansiedade para Vladímir. Pelo
menos duas vezes por dia, ele era inun-
dado de perguntas por Karamazov, di-
versas delas já feitas anteriormente ou já
respondidas nos relatórios de Petrochev.
Fosse qual fosse a configuração planejada
pelo médico, aparentemente não estava
ajudando na recuperação. Consumido pelo
esquema medicamentoso ambíguo e pela
rotina desgastante, os devaneios e alucina-
ções pareciam sutilmente ressurgir, ainda
que ele não revelasse nada ao psiquiatra.
Suas únicas consolações eram os poucos
minutos de conversa com Jan e Dimitra,
nos intervalos do dia. Jan partilhava com
Vladímir o gosto pela música e pela bo-
tânica, conhecendo inclusive estranhas
raridades e as espécies ditas alucinóge-
nas. Dimitra coloria esses momentos de
323
descontração e cultura bizarra com suas
canções improvisadas e seu otimismo nos
dias vindouros.
Depois do grito da última sirene, a sau-
dade da esposa era o que mais devorava
o tempo das noites de Vladímir, man-
tendo-o acordado além da salubridade.
Num exercício tremendo de vontade, seus
pensamentos, como dedos entorpecidos,
insistiam em tatear as imagens dela por
horas, até que o peso negro e ondulante
dos barbitúricos o levasse para longe, dis-
solvendo lentamente o mundo.

Dia 11

As noites insones e a nova sopa química


de Karamazov se mostraram um perigo-
so veneno para a racionalidade, ainda que
324
Vladímir acreditasse que a origem das
acidentais alucinações fosse metafísica e
não psicológica.
Eram pequenas evidências, colhidas na
imprecisão da consciência. Uma sombra
que se deslocava por um segundo perdido
no canto dos olhos. O rugido grave de um
animal soando paralelo ao berro da sirene
da noite. A oscilação fugaz de temperatu-
ras. Enquanto ele pudesse controlar o fluxo
espontâneo desses eventos, nada diria ao
psiquiatra. Para quem copulou com o in-
ferno, as cócegas dessas pequenas assom-
brações não lhe seriam um incômodo.
Nada de novo na rotina massacrante
daquele dia, a não ser a figura encarqui-
lhada de Belykh cruzando os corredores
que davam para os subterrâneos do prédio,
com suores na testa e envolto em completo
silêncio. Algo extraordinário ocorrera, mas
325
provavelmente Vladímir nunca saberia o
quê.

A sessão noturna com Karamazov fora


estafante como sempre, mas desta vez uma
nova tonalidade se destacava no desenro-
lar da inquisição. O psiquiatra, conforme
prometido por Belykh, de fato conhecia
algumas das peculiaridades da natureza psí-
quica, ainda que não se mostrasse crédulo
a nenhuma delas, relacionando-as todas às
projeções do subconsciente. Desfilou um
rosário de fenômenos paranormais que
se dizia relegados às mesas espíritas e aos
crédulos, mas que também pertenciam
aos meios ocultistas aos quais Vladímir
frequentava.

— E nesses — o médico afirmou — o


último pecado aceito é a simplicidade.

Durante toda a sessão ele refletiu sobre


326
a consistência da telepatia e da telecinésia,
investigou a fisiologia cerebral por trás das
projeções de consciência e dos sonhos lú-
cidos, aferiu sobre entidades e fantasmas,
correlacionou demônios, anjos e elementais,
e citou luminares históricos do ocultismo.
Apesar do caráter burocrático e racionalista
das explanações, ficou claro para Vladímir
que Karamazov estava inteiro na busca da
patologia que o acometia. Havia pesquisa
— e equívoco, claro — naquela erudição,
mas também entrega e validação.

Antes do final, o psiquiatra anotou dili-


gentemente todos os sintomas supostamente
paranormais que o paciente permitira es-
capar. Aquilo tudo seria interpretado sob
as luzes opacas da alucinação e do delí-
rio, portanto os vislumbres recentes de
Vladímir foram mantidos em segredo. O
que de fato o levara ali, naquele local de
327
aridez e distanciamento, foi o desejo de
equilíbrio, um meio termo entre mundos;
a necessidade de restabelecer a máquina
psicológica que discerne a que é da mente
e o que é do espírito. Ferramenta há muito
perdida nas noites do ontem e nunca mais
encontrada. Se ele a recuperasse — talvez,
e só talvez, ele retornasse às glórias secre-
tas dos círculos iniciáticos.

Pouco depois das luzes se apagarem, Vla-


dímir pensou na conversa que tivera com
Karamazov. Havia tomado seu quinhão
diário de barbitúricos, mas como sempre
o sono não vinha. Uma luz branca, do ta-
manho de um alfinete, cintilou e dardejou
em direção à janela, fundindo-se com a
luz das estrelas. Ele a ignorou fechando
os olhos. E em vez de dirigir seus pensa-
mentos à esposa como nas outras noites,
lembrou-se do mar, das montanhas e do
328
homem que há cinco anos lhe ensinara do
que são feitas todas as coisas.

Cefalù, costa norte da Sicília. Novembro


de 1922

A tarde estava esplendorosa naquele final


de outono.
Um céu sem nuvens parecia conspirar com o
Mediterrâneo, enquanto fundiam seus limites
em anil e celeste. O ar nas montanhas estava
elétrico e tingia as cores da vida com energia,
luz e movimento. Pássaros cantavam canções
de aliciamento sob o gorgolejo preguiçoso de
um riacho próximo. Sentado displicentemente
entre flores amarelas, o homem trajava azul.
Estava sempre nessa cor. Cabelos brancos, es-
voaçantes. Dizia ter 60 anos, mas aparenta-
va a virilidade de um cadete recém-ingresso.
329
À sua frente, um rapaz sereno e culto, cujas
explorações nos mistérios — o jovem acredi-
tava — rivalizavam com o primeiro. Os dois
homens estavam já bastante próximos naquela
ocasião. Haviam se embriagado nas ruínas do
Templo de Diana, próximo da abadia onde
agora estavam hospedados. Haviam tomado
banhos nus e adorado o sol, quatro vezes por
dia. E dividido algumas mulheres (às vezes ao
mesmo tempo) após as missas gnósticas e nos
rituais de Aniquilamento das Convenções.

— O que pensas do Careca? — perguntou o


homem de azul com um sotaque indefinido.

— Hum... Ele é engraçado. E um tanto vil


— respondeu o jovem mago, encostado displi-
centemente num tronco de amendoeira.

— A arrogância é infantil. Mas eu não o


subestimaria. Pelo menos não teoricamente.
330
Há conhecimento ali — concluiu o homem de
azul enquanto acariciava algumas flores.

— O que quer dizer com teoricamente?

— Bem, ele é brilhante. Mas, sinceramen-


te, meu caro, aquilo que já experimentamos, o
que vimos e para onde fomos... A finalidade do
lugar é ensinar magia. Mas para nós? — riu
o homem de azul. — O probacionismo nos é
uma lembrança distante, Vladímir. No final
das contas estamos aqui mais pela diversão que
pela sabedoria.

— É verdade — concordou o jovem mago.


— Ele escolheu esse lugar para propagar a sua
filosofia para o mundo, nem desconfia da nossa
bagagem e menos ainda das nossas intenções.
Acredita que ainda estamos na fase da me-
ditação, visualização, asanas, pranayamas e
mutilações de aprendizado, como o resto dos
331
esnobes. Não gosto disso, velho. Sinto-me como
se o estivéssemos enganando.
— Oh, mas não estamos — replicou o ho-
mem de azul. — A nossa simples presença aqui
potencializa a vontade dele, tanto quanto a
nossa. Estamos de fato realizando uma tro-
ca. A única diferença é que ele esconde os ases
na própria manga, enquanto nós mostramos
os nossos, um para o outro. Este é um local de
poder, Vladímir. Ao menos temporariamente.
E precisamos aproveitar isso.
O jovem russo ficou pensativo, e num ato
falho puxou o lenço púrpura que mantinha
impecavelmente dobrado no bolso da camisa.
— Foi ela quem te deu, não? — inquiriu com
um sorriso cínico o homem de azul.
— Ela quem? — O russo forjou displicência.
— Sabemos quem, meu querido. Ah, o raiar
da primavera em pleno outono... Somente os
332
jovens possuem tal mágica, saiba. Reparou que
ela nunca participa das orgias rituais? Nem o
Careca conseguiu vencê-la. É... é desse tipo de
arrogância que o mundo precisa, meu rapaz.

Vladímir tinha se aproximado da jovem logo


depois de sua chegada à abadia. Ela veio com
um grupo de aristocratas russos de São Pe-
tersburgo, cansados do ocultismo moralista de
Blavatsky. A maioria veio pela fama do mago
anfitrião, pelo calor e pela sede de novidade em
suas vidas monocromáticas. Na primeira vez
que conversaram, ele ficara hipnotizado pela
beleza dela, e havia mais: inteligência, cultura
e as cores verde e castanho que residiam uma
em cada íris da moça. Aleksandra, Defensora
da Humanidade, ela lhe confidenciou o nome
e o significado. Também conhecia o significado
mais antigo do sobrenome dele, Baranov —
Cordeiro. Depois disso a russa não lhe saíra
mais da cabeça. E ela tinha talento. Atravessara
333
rápida e brilhantemente os desafios probatórios
da abadia. Conhecia praticamente todos os
bruxedos e feitiçarias de seus ancestrais sibe-
rianos. Ele teria tanto para lhe ensinar, tanto
para viver. Prometera a si mesmo que ela lhe
carregaria o sobrenome algum dia, depois que
Aleksandra lhe dera aquele presente púrpura
com as iniciais dele caprichosamente bordadas.

Vladímir tirou o lenço do bolso, passou na


testa e voltou a guardá-lo com delicadeza.

— Não te preocupes, o Careca é poderoso,


mas não tem a menor chance. Ela será tua de
qualquer jeito. Apesar de que tu já pertencias
a ela há muito tempo — divertiu-se o homem
de azul. — E, sobretudo, caríssimo Vladímir,
ele já está de olho naquele menino Loveday. O
quer como um discípulo e um possível sucessor,
mas ele não o terá. Não do jeito que deseja.
334
— Que Loveday? Aquele jovem com a esposa
neurótica? Como você pode saber disso?
— Sei uma coisa ou outra, meu jovem e des-
confiado russo. Nem todas as habilidades podem
ser aprendidas. Qualquer neófito estagiário
deveria saber disso. Resigne-se.
— Às vezes acho que você me esconde demais,
velho — jogou Vladímir.
— Claro que escondo! Onde estaria a graça
da vida sem algumas fatias de assombro? —
gracejou o homem de azul.
— O que mais sabe, velho louco?
— Sei, por exemplo, que o menino Loveday
não vai durar três meses. Vai morrer evacuando
sangue nos braços da esposa. Sei que há mais
demônios nos córregos das montanhas que nos
templos da abadia. E sei que tudo isso é um
sacrifício necessário cobrado por este lugar. O
primeiro, mas não o último...
335
Ao longe, a vela aflita de um navio pesqueiro
quebrava a mansidão do horizonte.

— Sabe, velho, quando você divide toda


aquela heroína com o Careca, me soa bem mais
lúcido do que quando está sóbrio. Às vezes
parecem dois homens diferentes habitando o
mesmo corpo horroroso. Um ajuizado, outro
insano. — Sorriu Vladímir. — Sua sorte é que
eu gosto dos dois.

— Isso denota sabedoria, meu caro. Sabe-


doria, bom gosto... e alguma insanidade, devo
confessar. Aliás, já que estamos em confissão de
afeto, saiba que é principalmente por essas três
razões que tanto o estimo.

O homem de azul pôs os braços para cima e


espreguiçou-se. Olhou fixamente para o mar e
continuou a argumentação, sem olhar para o
colega.

— Duas coisas ditas confirmam tua sabedoria,


336
russo. Uma é que a loucura se encontra onde
menos esperamos. Lucidez em excesso é uma
forma de insanidade.

— Concordo. Assim como eventualmente o


excesso de vinho provoca iluminação. Lembra
da cara de felicidade do Careca quando in-
terpretamos as obscenidades que ele pintou na
parede daquele Quarto dos Pesadelos dele?

Os amigos riram alto, levantando um enxa-


me de libélulas que estavam próximas.

— Inesquecível — disse ainda rindo o mago


mais velho.

— Ainda sobre a loucura... Sabe, russo, uma


vez conheci um polonês que me disse onde mora
de fato a loucura. Lech Bukowski era o nome
do beberrão. Ele dizia que não encontraríamos
a loucura na grande tragédia. Não. A queda
da cidade, o terremoto, o incêndio, o fracasso
de um grande amor ou mesmo a morte, não
337
levavam o homem para o hospício. A loucura,
segundo ele, está escondida numa legião de
trivialidades do cotidiano, nos contratempos
acumulados, naqueles momentos que a vida
parece conspirar particularmente contra nós:
um botão que arrebenta quando estamos sem
tempo, o dedo que encosta na chaleira quente,
a goteira que nos acorda à noite, a cobrança
da conta que esquecemos de pagar, a criança
que choraminga no quintal ao lado, a tinta que
acaba no final do texto urgente. É lá, na última
pequena gota do copo, que reside o inferno.

— Não lhe disse que o vinho às vezes ilumi-


na? — gracejou Vladímir extasiado.

— Russo, tens algum louco na família?

— Bem, que eu lembre não... espere... sim,


sim, quando eu era pequeno, mamãe costumava
falar de um primo nosso, Nicolai. Parece que
ele, num ataque de pânico, fugiu de casa e se
338
perdeu no bosque. Foi encontrado quase um
mês depois, congelado junto com uma sacola
de sapatos. Por que a pergunta?
— Curiosidade. A loucura não é um refúgio
escolhido, jovem. Não se pode ser louco por fuga
ou vontade. De qualquer forma, precisamos
sempre saber com quem andamos, não?
— De fato. Aliás, diga-me com quem an-
das que te direi quem és...
A indireta divertiu o homem de azul, que
voltou a perscrutar o mar. Vladímir retomou a
conversa lembrando que o amigo não concluíra
um pensamento.
— Mas há pouco você disse que sou sábio, o
que, diga-se de passagem, é óbvio — brincou,
ajeitando o topete. — Disse isso por eu ter re-
lacionado duas coisas. Uma foi a loucura, a
outra...
— A duplicidade da existência — concluiu
339
o mago mais velho. — Tudo são duas coisas,
Vladímir. Sabemos como ninguém dessas po-
laridades complementares. Yin e Yang, noite e
dia, macho e fêmea e etecetera. Mas o fenôme-
no é mais vasto, profundo e poderoso que esses
clichês. Há uma verdade que sustenta o uni-
verso nessa dicotomia, nesse casamento entre
o ativo e a inatividade, entre a existência e a
não existência. É disso que trata O Ritual.

Nesse momento Vladímir, antes relaxado


e indulgente, se aproximou do colega e aga-
chou-se, encarando-o. Desde que o homem de
azul lhe prometera compartilhar um ritual que
o elevaria aos píncaros da transcendência, o
mago russo ficara obcecado com aquela reve-
lação. Isso foi antes da abadia. Antes mesmo
de se conhecerem pessoalmente, quando ainda
se correspondiam por cartas, através dos seus
círculos esotéricos. Mas desde então o homem
340
de azul era só subterfúgios e gotas de curiosi-
dade líquida.
— Vamos finalmente falar disso, ou vai
desviar a conversa como das outras vezes? —
perguntou Vladímir.
— Sim e não. Não podes ter plena ciência dos
arranjos vindouros, Vladímir. Isso faz parte do
ritus operandi, e também é condição primeira
para o sucesso da Obra.
— Então vamos jogar nos misteriozinhos?
— O tom de voz denunciando a irritação. O
homem de azul sorriu e olhou através das flores
ao entorno.
— É verdade que algo precisa ser revelado,
mas não tudo. É necessário que compreendas
as bases do Arcano. E como disse antes, é disso
que se trata.
— Você se julga muito superior a todos nós,
não, velho? Maior até que o Careca.
341
O mago mais velho levou a mão ao ombro
do mais novo.

— Não se trata de dar dimensões, Vladímir.


Se trata de adentrar dimensões. Algo além e
muito mais significativo que os planos astral e
mental que superestimamos.

— Sei. E do que estamos falando, velho?

— Estamos falando do esqueleto do mundo,


meu querido, as estruturas que sustentam o
universo: o uso das potências de dois.

— De novo a história dos opostos que se com-


plementam?

— A natureza nos dá pistas, pois o cérebro


humano está naturalmente capacitado para
essa matemática mágica e profunda. Ciência
e magia captaram, cada uma ao seu olho, essa
realidade onipresente em todos os níveis. Muitos
acreditam que foi Leibniz...
342
— Leibniz, o filósofo alemão? — interrom-
peu Vladímir, sentando-se à frente do homem
de azul.

— Ele. Credita-se a esse homem a descoberta


daquilo que será, no futuro, o alicerce de pra-
ticamente todas as relações do homem com o
mundo. Um códex primordial que sempre existiu
na natureza, mas que em breve será espelhado
nas construções, realizações e relações humanas.
Para chegar a isso, Leibniz se inspirou num dos
brinquedos preferidos do Careca, o I Ching.

— Impressionante — disse com sinceridade


Vladímir.

— Oh, mas não te impressione tão rapida-


mente. De fato não foi Leibniz quem primeiro
desvendou o mistério. Foram os nativos de
Mangareva, uma pequena ilha da Polinésia.
Usando a própria linguagem para contar peixes,
frutas e polvos em suas relações de comércio,
343
eles descobriram aquilo que rege as forças do
universo. Percebeste a ironia disso? Contar
peixes e cocos reflete a matemática de Deus.

— Continue, ainda estou organizando tudo


isso — disse Vladímir, confuso, mas faminto
por aquela metafísica.

— As complexidades são formadas de inú-


meras simplicidades. Aquilo que é mais simples
parece se agrupar, para compor o que é mais
complexo.

— Sei. E o que isso tem a ver com O Ritual?


— inquiriu Vladímir. — Onde eu entro nisso?

— Onde nós entramos, meu querido. Nós


somos as simplicidades que se unem. O Ritual
é a grandeza... e a complexidade divina
que dela vem.

— Muito bem, velho. Continuo nas sombras.


Se não posso ter acesso aos pormenores, já que
344
essa é uma condição magika, ao menos me
diga o porquê disso, desse segredo todo.

— Claro. Existe uma necessidade premen-


te de frescor, de descoberta nesta realização
magika. Uma vez que eu sei quase tudo sobre
ela, tu não deves saber quase nada. E assim,
neste equilíbrio, daremos realidade a um êxtase
completamente novo.

O navio pesqueiro agora era só um ponto no


horizonte do Mediterrâneo.

— Entenda — prosseguiu o homem de azul.


— Funciona como o sexo. Digo o sexo realmen-
te sublime. Aquele que nos marca a memória
e nos leva à maravilhosa transcendência. Ele
tem necessariamente uma característica de
novidade, de encontro, de descoberta. É uma
espécie de revelação. Se continuado de forma
condicionada, por obrigação ou hábito, descolore
e perde o viço. O êxtase se torna uma reação
345
pasteurizada. Bom, mas fisiologia apenas. E
é daquela revelação primeira que precisamos,
meu caro. Compreende agora?

— De certa forma, sim. E até concordo. Mas


acredito que, usando seu exemplo, uma vez que
nos encontremos, nos realizemos, um limite de-
veria ser estabelecido, compreende? Digo isso
em relação ao desejo.

— De forma alguma. E tenho quase certeza


que o Careca compartilha do meu pensamento.
Veja meu caso, por exemplo. Durante algum
tempo, meninas de onze, doze anos eram a luz
da minha vida. Hoje não passam de passatem-
pos ocasionais. Aquilo que move o êxtase parece
ter vida própria, e se vai para onde deseja ir...
principalmente se deixamos ir.

Vladímir sabia que alguns hóspedes da aba-


dia tinham predileções especiais. Já vira al-
gumas práticas em determinados círculos que
346
a sociedade chamaria de aberrações (a própria
abadia era pródiga nisso), e ele mesmo já expe-
rimentara uma coisa ou outra com suas irmãs
magistas, além das orgias de fé. Mas havia
algo nas palavras do homem — ou na forma
como foram ditas — que realmente incomodou
o russo.

— Vai haver crianças nesse ritual, velho? —


perguntou seriamente.

— Sim. Duas. Duas mil — disse o homem de


azul. — Tu e eu faremos os sacrifícios — con-
cluiu com um sorriso.

O silêncio entre os dois homens foi quebrado


com o grasnar de uma gaivota no azul distante.

— Por favor, não me estranhe, Vladímir, não


somos iguais. Não espero de ti o mesmo que es-
peras de mim. Assim como não deves esperar de
Aleksandra o que teu amor anseia dela, ainda
que ela te ame. Aliás, esse é o maior pecado do
347
mundo, a equanimidade. Essa sede pela per-
feição é perversa. A simetria sempre trouxe a
ilusão de segurança para a humanidade. Mas
a vida não é simétrica, Vladímir. O amor de
tua amada, mesmo que verdadeiro, vai diferir
em forma ou intensidade do teu, assim como
aquilo que esperas de mim. É sempre assim.
Aceite isso. A equivalência é a fome que nos
consome por trás do amor e da vingança.
O jovem mago inclinou-se e segurou com
cuidado o braço do homem mais velho, levan-
tando-o. Pequenas borboletas laranja e azul
alçaram voo, incomodadas.
— E o que espera de mim, velho louco?
— Além da tua amizade? Confiança... e aque-
la maldita vodca dos deuses siberianos que sei
que escondes debaixo da cama.

Dia 12
348
Não houve despertar de imediato. Mesmo
com o berro terrível da sirene, Vladímir
não abandonou seu refúgio sem sonhos.
Foi preciso que os enfermeiros do plantão
da madrugada entrassem e o acordassem
com uma dose conjugada de veemência e
mau humor. E quando finalmente acordou,
as lembranças da noite anterior tintilavam
em sua cabeça como fragmentos furiosos
de um universo distante, uma vida que
não era dele.

Naquele dia, seu amigo botânico albino


não se encontrava no refeitório. Dimitra,
como todas as manhãs, veio sentar-se ao
lado dele, sempre acompanhada do enfer-
meiro Godo; mas a moça relaxava somente
quando ele ia ter com os colegas na entrada
do refeitório encardido.
349
— Dimitra, você viu o Jan por aí?

— Não. Também achei estranho. O Godu


costuma trazê-lo logo porque ele acorda
muito cedo. Costume, sabe? Mesmo com
todas as medicações. Ele diz que é mal de
família.

A julgar pelo tempo em que Dimitra e


Jan Binski estavam em Muskov, a ausência
do amigo parecia algo inédito, ou quase.

— Dimitra, sei que são amigos de longa


data. Jan costuma lhe falar o que acontece
quando eles não nos trazem? Isso já ocor-
reu com você? Quero saber porque quase
não consigo vir hoje. Estava me sentindo
completamente dopado. Se não fosse pelos
trogloditas provavelmente ainda estaria lá.

— Isso só aconteceu duas vezes, Vladí-


mir, meu rouxinol. O Jan de neve só faltou
quando contraiu varíola e quando teve um
350
surto que durou três dias, ao saber da morte
de sua mãe. Foi muito triste. Eu também
quase surtei para lhe fazer companhia —
lamentou Dimitra, sinceramente compade-
cida. — Mas não me lembro de ter falhado
ao protocolo de alimentação. Dessas duas
vezes Jan ficou no próprio quarto.
— Deus... Será que ele está doente?
— Não, não. Não acredito. Jan de neve tem
uma saúde de ferro. Veja, ele se recuperou
totalmente da varíola. E a única doença
que ele não se recupera porque não pode
é a diabete, uma doença diabrete.
Apesar do trocadilho, Vladímir percebeu
a apreensão no rosto de Dimitra.
— Também sou diabético.
— Que pena, Vladímir, meu rouxinol. Se
eu pudesse, também seria. Para lhe fazer
companhia, sabe?
351
— Ele lhe falou sobre alguma coisa es-
tranha? Sei lá, algo que o estava incomo-
dando? — perguntou Vladímir.

Dimitra pensou um pouco e subitamente


pareceu ainda mais preocupada.

— Meu Jan de neve! Sim, ele estava preo-


cupado sobre uma conversa que ouviu en-
tre os enfermeiros, sobre alguns pacientes
que iriam conhecer os calabouços.

Calabouço era como os empregados cha-


mavam os subterrâneos de Muskov.

— Quando foi que ele lhe disse isso, Di-


mitra?

— Não sei. Talvez ele não tenha dito. Ou


talvez tenha. Talvez isso seja minha ima-
ginação... ou a letra de uma canção. Quer
ouvir uma canção, Vladímir?

Ele já havia percebido este padrão na


352
colega. Dimitra, em situações de angústia
ou pressão, tendia a dois comportamentos
opostos. Ou se recolhia no mais absoluto
silêncio ou tornava-se uma desvairada
verborrágica. Era o sinal de que um surto
mais violento se avizinhava. Imediatamente
Godo e Godu vieram fazer seu serviço com
a mesma truculência de sempre. Vladímir
ensaiou uma reação, mas não pôde fazer
nada. Já estava com mais dois enfermeiros
em sua cola, prontos para levá-lo para o
quarto. E foi o que fizeram.

Deitado em sua cama muito depois que as


luzes se apagaram, Vladímir lembrava as
sessões infrutíferas que tivera com Kara-
mazov naquele dia. Apenas mais do mes-
mo. As tediosas perguntas sobre o passado
recente e as reflexões sobre o significado
simbólico dos rituais que ele usara para se
353
defender das — na opinião dele — projeções
do inconsciente. Por sorte ainda não lhe fa-
lara que essas projeções haviam aumentado
de intensidade e frequência; do contrário,
provavelmente haveria mais drogas para
compor o banquete noturno.

Fechou os olhos e pensou em Aleksandra.


Um ruído, a princípio baixo e reticente,
veio da parede oposta. Por algum motivo
lembrou-se de Jan e do fato de Karama-
zov ter evitado todas as perguntas sobre o
desaparecimento do colega.

O ruído tornou-se mais audível, e pare-


cia uma cacofonia híbrida de um rebanho
bovino e pessoas chorando.

Foi quando Vladímir resolveu abrir os


olhos.

A cabeça da coisa ocupava quase toda


a metade superior da parede. O formato
354
quadrado, anguloso e negro do crânio de-
safiava todas as anatomias conhecidas por
Vladímir. E para deixar a situação ainda
mais absurda, o corpo gigantesco, que
parecia fluir daquela cabeça, era hirsuto
e sem nenhum membro visível; apenas
um chacoalhar nervoso de peles soltas,
flutuando embaixo do abdômen. Nem
em suas pretensas viagens pelos planos da
alma vira algo parecido; nem mesmo em
seus imortais pesadelos infantis.

Imediatamente ele sentou-se na cama,


cruzando as pernas em postura iogue
para iniciar uma visualização de prote-
ção. Riscava o ar com os dedos. Formas e
diagramas invisíveis faiscavam. E com o
olho da mente iniciou uma galáxia de ima-
ginação. Em pouco tempo a atmosfera do
quarto se transformou num céu de estrelas
guardiães enquanto os movimentos das
355
mãos do mago se tornavam mais urgentes
e coordenados. A fera rugiu mais alto, e
no rugido lamentoso a mobília começou
a voar em todas as direções, chocando-se
contra a parede de forma violentíssima.
Em segundos o quarto estava destroça-
do. Urina e fezes maculavam as paredes.
Vladímir, trêmulo e febril, ergueu-se de
pé sobre a cama, gesticulando; e naquela
obliteração desesperada, todos os pontos
cardeais eram excitados por seus dedos
que arranhavam o éter em consagração
aos elementos.
Foi quando a coisa abriu os olhos.
Duas fossas luminosas empurravam
calor e som em direção a Vladímir, que
percebera — tarde demais — que as luzes
amarelas que fluíam daquelas órbitas pos-
suíam odor e poder. Um fedor pungente
de carne putrefata, pelo molhado e jasmim
356
lhe vinha em ondas poderosas, cada vez
mais densas como uma ventania, acom-
panhadas do mugido grave de mil touros
montados por mil cavaleiros chorosos.
Vladímir não suportou mais a pressão
daquela insanidade e voou, projetado de
encontro à parede. Caiu em cima da cama
e finalmente fechou o olho da mente para
abrir os da face e ver quatro enfermeiros
lhe imobilizarem os membros enquanto
Karamazov lhe injetava a salvação. Antes
de apagar, Vladímir ainda teve tempo de
vislumbrar um quarto impecavelmente
ordenado.

Dia 15

Quando Karamazov adentrou o quarto de


número 23, o que encontrou lá foi menos
357
um homem que um boneco de carne. Vla-
dímir, prostrado na cama, virou-se lenta-
mente para o psiquiatra como se olhasse
através dele. Haviam decorrido três dias
de sedação pesada.
— Vladímir, está me ouvindo? — o mé-
dico perguntou com voz grave.
— Sim, estou — respondeu Vladímir, a
milhas dali.
— Seu prognóstico está cada vez pior. Os
testes mostram um declínio em seu qua-
dro orgânico. Tudo indica que ele parece
acompanhar seu estado mental.
O mago meneou a cabeça lentamente,
concordando com algo que não sabia o
que era.
— Há um novo elemento em minhas
investigações. Precisamos falar sobre
isso quando você estiver mais lúcido. Já
358
encarreguei os enfermeiros da gradual di-
minuição da dosagem de suas medicações.
— Que... bom — respondeu sem pensar.
— Por hoje ficamos por aqui. O soro vai
suprir os nutrientes em déficit, e daqui a
pouco seu jantar será trazido aqui mesmo.
Agradeça a mim por essas regalias quando
estiver recomposto.
— Obri... gado.
E com essas palavras, Vladímir fechou
os olhos e retornou à inexistência.

Dia 17

Durante o almoço, o refeitório estava ilu-


minado por um sol que caprichosamente
invadira as janelas e que há muito deixa-
ra de compartilhar sua presença com os
359
pacientes de Muskov. Vladímir se sentia
particularmente melhor naquele dia. De
fato fazia algum tempo que não se sen-
tia tão bem. Sua cabeça parou de girar,
as lembranças daquela noite — mesmo
que traumáticas — se tornavam cada vez
mais embaçadas e, depois do almoço, ele
se divertiu um pouco com as histórias de
Dimitra. Jan reapareceu sem mencionar
absolutamente nada do que lhe ocorrera.
Monossilábico, sua única ação foi perma-
necer próximo de Dimitra, que lhe fazia
as vezes de mãe protetora.
Houve apenas uma única sessão de terapia
com Karamazov, mas esta fora devastado-
ra, pois o médico encontrava-se convicto
do diagnóstico final de Vladímir. Aquele
de que sempre desconfiara, a despeito da
funcionalidade do paciente.
— Os sintomas são agora mais claros
360
que nunca — afirmou Karamazov, ornado
com um raríssimo sorriso. — Trata-se de
um transtorno de associação. No seu caso,
bastante extravagante. A predileção pela
fantasia, a ambivalência intelectual com
inclinação a distanciar-se da realidade. Há
aí uma descontinuidade das associações,
alterando assim os processos de pensamen-
to. Em outras palavras, na esquizofrenia, a
percepção não se relaciona com a realidade
percebida, produzindo um pensamento
confuso, uma interpretação bizarra e in-
correta da realidade. Você é louco, Vladí-
mir — concluiu convicto Karamazov.
O mago baixou a cabeça e cerrou os lá-
bios, mantendo-se em silêncio por alguns
segundos enquanto absorvia o veredicto
do psiquiatra. Depois, balbuciando com a
boca seca, quase sem voz:
— Como pode ter tanta certeza?
361
— Por um acúmulo de evidências. Os
pareceres de Petrochev, as alucinações e
delírios que você vivenciou antes de vir
para cá. Acredito que elas nunca cessa-
ram de fato e que você as omitiu de mim
o tempo todo. E, claro, o surto daquela
noite. Foram precisos quatro gorilas para
lhe conter e mais uma boa dose sedativa
que derrubaria um cavalo. Você gritava
alucinado sobre uma ameaça à humani-
dade. Algo sobre máquinas e sombras e
monstros e pessoas perdidas no futuro.
Lembra-se disso?
Vladímir manteve-se calado. Então, Ka-
ramazov prosseguiu:
— É claro que existem hiatos, ilhas de
lucidez. No seu caso é espantosa a forma
como consegue manter a clareza mental
na maior parte do tempo. Mas essas ilhas
de saúde tenderão a submergir. Talvez
362
alguma demanda tremendamente repri-
mida seja a responsável por desencadear
surtos como o daquela noite.

O psiquiatra parecia ávido em explanar


suas conclusões, em abalizá-las com o ce-
tro da autoridade científica.

— Um genial médico vienense estabele-


ceu um valor essencial para a ilusão, como
a realização do desejo. Segundo Sigmund,
a ilusão das fantasias histéricas, dos sonhos
e devaneios, a ilusão das idealizações e
ideais narcisistas são todas formas de lidar
com desejos. No caso dos esquizofrênicos,
esses elementos transbordariam do seu
inconsciente, de forma caótica e subjetiva,
misturando medos e anseios, restando ao
médico somente debelar os sintomas. Mas
um psiquiatra talentoso talvez decifre o
quebra-cabeça mental e neurológico, se
363
conseguir anular os sintomas da loucura,
podendo, quem sabe... extingui-la.

Vladímir percebeu alguma insanidade


na maneira como aquela ambição era re-
velada, mas desde o princípio sabia que
não lhe restava outra opção.

— E como pretende me curar, Karama-


zov?

— Amanhã, meu caro, você contrairá


malária.

Dia 18

O mais asfixiante não eram os prepara-


tivos em si: o movimento de entra e sai
dos enfermeiros no quarto 23, o cheiro
de álcool e gaze, a privação de alimentos;
nem mesmo os arranjos exagerados de
364
Karamazov para tornar aquilo um evento
em Muskov — e talvez produzir a desejada
inveja em seus iguais. O que de fato inco-
modava Vladímir era o som de pequenos
frascos de vidro que se chocavam, tilin-
tando com a trepidação dos preparativos:
o prenúncio sonoro de uma doença que
matara milhões e da qual ele seria uma
vítima intencional.

— Entenda, Vladímir, a natureza tem


seus próprios cursos de sabedoria. Foi
graças à promiscuidade humana, a mes-
ma promiscuidade que abasteceu Muskov
por décadas de loucura causada pela sífilis,
que chamou a atenção do colega austríaco
Jauregg. Ele percebeu que quando estes
incautos pervertidos sofriam febres altas
e convulsionavam, eles melhoravam. En-
tão ele, corajosa e criativamente, inoculou
365
sangue contaminado com malária em seus
pacientes e obteve assim a glória.

— É a glória que você deseja, Karamazov?


Pensei que o objetivo fosse a minha cura
— disse Vladímir, irritado com a condição
vulnerável.

— Os louros são sempre bem-vindos,


mas no caso será apenas uma consequên-
cia natural. Jauregg curou quatro pessoas
num estágio avançado de demência pela
sífilis. Com meu arranjo medicamentoso
associado à malarioterapia, eu pretendo
extirpar a loucura do mundo.

Em pouco tempo o quarto 23 estava abar-


rotado de gente. A plateia de enfermeiros e
outros psiquiatras que o mago aristocrata
nunca vira antes parecia aprovar a teatrali-
dade do procedimento. Belykh estava ver-
borreico como sempre, e particularmente
366
excitado com a misancene clínica. Vladímir
percebia tudo aquilo como um mero coad-
juvante e não como o ator principal.

Depois da ingestão de um novo esquema


de barbitúricos e anfetaminas, o sangue
contaminado lhe chegou às veias. No fim,
só lhe restara aquela troca nefasta. Sabia
que, na melhor das hipóteses, ficaria cura-
do da esquizofrenia e carregaria a malária
para o resto de seus dias; na pior, levaria
ambas para o inferno.

Dia 26

A semana serpenteou trôpega como um


bêbado perdido, sem nenhum sinal da pa-
tologia redentora. Os dias se liquefaziam
iguais, e as bordas entre a realidade e o de-
lírio pareciam sempre estar diluídas pelos
efeitos do coquetel químico de Karamazov.
367
Os poucos momentos de vivacidade vie-
ram na companhia de seus dois amigos
insanos, Dimitra e Jan, este cada dia mais
ensimesmado e estranho. Dimitra aventou,
daquele seu jeito carinhoso, a proximidade
de um surto significativo para o colega —
o que ele contestou em silêncio, e ela fez
do conteste uma canção.
Durante quase toda a semana, depois do
último toque da sirene, a insônia deixara
de ser um demônio silencioso e o sono
chegava rápido para Vladímir — ao que
ele era muito grato, principalmente de-
pois do trauma daquela aparição terrível.
Entretanto, os pesadelos eram dantescos
e sempre estavam repletos de augúrios do
passado e do futuro. Ao acordar, a confusão
parecia ser a promessa do mundo.
Karamazov monitorava todos os dias os
sintomas físicos e mentais com a mesma
368
obsessão de sempre, mas agora tentava
extrair o máximo de informações acerca
das possíveis alucinações. Vladímir não
pretendia controlar mais nada, ainda que
não acreditasse que aquilo fosse fruto de sua
insanidade — pelo menos não inteiramente
—, revelou tudo ao psiquiatra: as pequenas
presenças serpentinas semitransparentes
que o acompanhavam quando andava pe-
los corredores, a descrição detalhada de
pacientes que não estavam internados lá
— mas cujos trajes remetiam aos usados
na instituição no século passado —, o fedor
de peixe e os reflexos distorcidos de feições
marinhas na água quente da banheira, na
hora do banho semanal; as crianças que
gargalhavam sempre junto com o último
toque da sirene. Tudo devidamente anotado
e protocolado por Karamazov, que a cada
dia ansiava mais pelas febres e convulsões
369
do seu principal paciente, do mesmo jeito
que uma criança deseja seu sonhado pre-
sente no dia do aniversário.

Dia 32

Começou lentamente. Apenas um cansaço


moroso, típico daquele estado que antecede
uma gripe. Mas já no meio da tarde a febre
veio calcinando o corpo e a mente de Vla-
dímir. Karamazov anotava tudo de forma
compulsiva e quase não deixava o paciente
sozinho na companhia dos enfermeiros.
Em algum momento, o mago solicitou a
companhia dos amigos Jan e Dimitra — o
que lhe foi negado instantaneamente.
Vladímir rezava para que a prostração
não durasse muito tempo, sobretudo com
os cuidados redobrados de Karamazov.
370
O fogo da febre se alastrou até o início da
noite, quando começaram as convulsões.
Daí, o mago de São Petersburgo não lem-
brou mais de nada.

Dia 36

O purgatório durou três dias de extrema


agonia. No momento em que a febre pare-
cia amainar, uma nova onda vinha ainda
mais devastadora, trazendo dores de ca-
beça, vômitos e visões atrozes. A fraqueza
era tamanha que ele voltou à cadeira de
rodas. Em alguns — poucos — momentos
de lucidez, Vladímir chegara a amaldiçoar
Muskov e todos os seus habitantes respon-
sáveis pela deliberação.
Mas, como por milagre de suas preces a
Júpiter ou pela fé matemática de Karamazov
371
na administração do quinino, no quarto
dia de tratamento o mago estava revigo-
rado e com a mente clara como o céu lá
fora. O dia tornou-se decididamente lu-
minoso com chegada de um telegrama e
a notícia de que Aleksandra retornaria à
instituição no outro dia pela manhã. Nem
mesmo a carranca dos enfermeiros que
vigiavam como abutres os internos — que
pela primeira vez em mais de trinta dias
conseguiram sair para o pátio externo —
tiraram o sorriso do rosto de Vladímir.
Naquela tarde um quê de esperança lhe
deixou o coração mais leve e sereno, e ele
dançou na neve com Dimitra sob um sol
frio e acinzentado de inverno.

Dia 37

372
Poucas vezes na vida Vladímir lembrara
de ficar tão alegre com a visão de outro
ser humano. Os dois olhos diferentes da
esposa eram sóis desiguais a lhe trazer o
mesmo calor. Ela trouxera chocolates de
Amsterdam, mas eles foram confiscados
na inspeção de chegada. Depois dos proto-
colos de praxe, um relatório interminável
foi exposto por Belykh e Karamazov aos
ouvidos incrédulos de Aleksandra. Os dois
homens pareciam ignorar completamente
Vladímir, considerando sua presença — na
mesma sala onde desfiavam um rosário
de horrores — tão relevante quanto um
abajur.
Após o almoço, o casal Baranov teve
acesso ao pátio externo, só liberado naquele
dia porque o sol permitira mais um raro
espetáculo de exibicionismo.
Karamazov foi até eles para apresentar
373
suas considerações longe dos ouvidos de
Belykh. A justificativa era que o diretor
tendia excessivamente aos resultados, en-
quanto ele se mantinha confiante no pro-
cesso, o que julgava mais sábio. Aleksan-
dra queixou-se de que Vladímir oscilava
momentos de atenção e embotamento.
Assim como ela estava ciente, nas poucas
horas desde que chegara a Muskov, que o
marido variava um estado febril.
— Claro, Sra. Baranov. Isso é exatamente
o esperado. O óbvio não esperado é que a
Sra. compreendesse isso — disse o médico
irritado.
— Bem, Karamazov, torço realmente para
que você saiba o que está fazendo. Estamos
pagando caro por este tratamento, e eu não
estou falando de dinheiro. São muitos em
São Petersburgo que acompanham de lon-
ge e com expectativa o que acontece com
374
Vladímir —devolveu Aleksandra. — Muitas
e poderosas são as luzes que desconfiam
da escuridão que acompanha Muskov, e
não estamos falando do inverno.

Karamazov não se intimidou com a


ameaça velada, e lembrou o casal de que
a qualquer momento eles poderiam par-
tir, mas que a sanidade de Vladímir fica-
ria para sempre nas paredes de Muskov.
Dizendo isso, levantou-se e retornou ao
prédio principal.

— Por que você não diz nada? — per-


guntou Aleksandra ao marido.

Vladímir parecia alheio a tudo aquilo,


concentrado na entrada e saída de dezenas
de internos acompanhados de seus enfer-
meiros. Um pequeno grupo de médicos
fumava a alguns metros do banco de pedra
onde estavam sentados.
375
— Sabe, meu amor, Karamazov diz que
quase todos aqui são esquizofrênicos. As-
sim como eu. Disse que ele e Belykh pla-
nejaram isso há muito tempo, pois assim
poderiam se concentrar na cura da principal
calamidade. Os outros dementes, os neu-
róticos e maníacos são bucha de canhão,
apenas alimento financeiro para manter
o monstro Muskov. Lembra quando fa-
lávamos que todo prédio tem uma alma,
uma personalidade? Muskov tem a alma
faminta de um monstro que se alimenta
de nossas almas. Desconfio que aqui não
se trate a insanidade, querida. Desconfio
que aqui se alimentem dela.
Aleksandra entristecera com a pintura
do marido. Mas não se deu por vencida.
— Quero lembrar-lhe de quem somos,
Vladímir. Reaja, homem. Onde está o mago
que seria a promessa dos Hierofantes? Será
376
que você esqueceu do que passou, daquilo
que viu e viveu? Daquilo que me fez viver?

O mago baixou a cabeça, envergonhado.

— Vlad, o que é a loucura de Muskov


perto das contemplações que presencia-
mos e que fariam a maioria das pessoas
normais enlouquecer instantaneamente?
— ela disse isso enquanto o abraçava com
carinho.

— Alguém me disse um dia que a loucura


não é uma opção — retrucou Vladímir. —
Olha, eu preciso lhe dizer o que eu tenho
visto. Abraçou a esposa, subitamente fora
daquele estado letárgico. A urgência da
revelação parecia causar um efeito restau-
rador em Vladímir. E ele revelou para ela
todo o seu teatro de horrores crescentes.
— E não é só isso. Tenho sonhado todas
as noites com ele. E vejo... coisas que não
377
compreendo. Máquinas de luzes. Sinto que
são poderosas, umas maiores que outras,
algumas portáteis. Vejo ódio e confusão,
mas não são espontâneos, entende? Tudo
foi planejado. Eu sei que ele está por trás
disso.
O cenário combinado das visões meta-
físicas e sonhos de Vladímir era maior e
mais bizarro do que qualquer experiência
espiritual que ambos viveram muitas ve-
zes antes. Mesmo nos círculos mais proi-
bidos e obscuros. Isso solapou a esperança
de Aleksandra. E se Karamazov estivesse
certo? E se — no fim das contas — Vladí-
mir estivesse louco? Ela trouxe o rosto do
marido para perto do seu e o fulminou
com aquelas pupilas desiguais.
— Escute aqui, Vlad. Isso é só um mo-
mento, faz parte do processo. Você está
doente, é só isso. Quem convalesce tem
378
que purgar a convalescência. Eu não esta-
rei aqui. Tentei a projeção astral, mas você
sabe que nunca fui muito boa nisso, então
você vai ter que ter coragem e continuar
com fé. Faça tudo o que Karamazov man-
dar. Ouviu?

— Sim — ele respondeu.

E ficaram ali até a sirene os mandar de


volta para as gargantas de Muskov.

Naquela noite, quando as luzes se apaga-


ram, o clima entre o casal Baranov estava
mais ameno. Durante o jantar Aleksandra
conhecera Jan e Dimitra, que não foram a
eles durante a tarde no pátio apenas para
garantir o tempo e a privacidade do casal.
Dimitra se encantou com Aleksandra; e
Jan, apesar do silêncio, foi uma presença
atenciosa. O afeto fora retribuído com a
379
promessa de flores para ambos na próxima
visita dela a Muskov.

— Eles parecem duas crianças — disse


mais tarde Aleksandra.

— São maravilhosos. Não tão bonitos


quando surtam — replicou Vladímir.

— Você tem jeito com eles. A impressão


que eu tive é que encontraram um herói
— ela disse, já se aconchegando nele.

— É...

Ele ficou pensativo.

— O que foi, a febre voltou? — ela per-


guntou preocupada.

— Não, não é isso. Sabe o que mais me


entristece? Você falou em crianças. Nunca
consegui realizar seu sonho... nosso sonho.
Acho que o problema está comigo, Alek-
sandra. Sua família é pródiga em fazer
380
crianças. Além do mais, realizamos tantos
rituais de fecundidade e nada aconteceu.

— Não fizemos os rituais certos. Tenho


certeza que depois que tudo isso passar
vamos trabalhar duro nesse projeto. Aliás...
— A cabeça estava colada no peito do ma-
rido e a mão já deslizando em direção a
púbis dele.

— Não, Aleksa, não acredito que eu con-


siga. São os remédios. Eles também não
me deixam projetar a minha consciência.
Por isso não fui te visitar em corpo sutil.
Eles não me permitem nem sequer ler.

— Eu compreendo, meu amor — dis-


se ela, disfarçando o constrangimento e
acendendo um cigarro. — “O Diabo” — ela
leu a capa do livro que estava sobre a ca-
beceira. — Não seria a melhor leitura para
este lugar, Vlad — brincou.
381
— Não li. Quando tento, as letras parecem
fugir pelas bordas. Os malditos remédios
de Karamazov.

— Bem, eu é que não vou ler para o meu


marido uma história de infidelidade conju-
gal — disse ela, devolvendo o livro à mesa.
E ao fazê-lo, um pedaço de papel amare-
lado deslizou das páginas. — “Mando-lhe
frequências feitas de fogo-fátuo e esperanças...”
— ela leu. — Deus, esse é...

— Sim — ele a interrompeu. — Eu o


trouxe, nem sei porquê. Mas talvez ainda
venha a saber.

— Você disse que tem sonhado com ele.

— Praticamente todas as noites.

— O que será que isso significa? Não será


influência disso aqui? — ela inquiriu, de-
volvendo o pergaminho ao livro, apagando
382
o cigarro e deitando novamente ao lado
dele.

— Que melhor lugar que um hospício


para descobrir?

Ele a abraçou com ternura e lhe sussur-


rou:

— Vamos deixar esses mistérios de lado.


Eu quero aproveitar cada momento com
você... ainda que não do jeito que eu de-
sejaria... — a entonação da voz dele dela-
tava a maledicência. — Sabia que esposas
e maridos são proibidos de dormir juntos
em Muskov? Cigarros também são privi-
légios dos bons.

— E por que tantos privilégios? — ela


perguntou irônica enquanto enrolava os
dedos nos cabelos dele.

— Por que eu sou a grande ferida aberta


383
de Karamazov, a que ele prometeu cica-
trização.

— Então, somos mesmo os bons?

— Sempre.

Dia 38

As marés são o movimento da vida, tudo


o que existe, existe em marés — nisso há
constância e eternidade. As vagas vindou-
ras que nos roubam e devolvem a saúde,
as ondas de fé que nos afloram os sonhos
para depois submergi-los, as marolas de
entusiasmo que nos arrebatam para nos
deixar mais tarde vazios — a preamar de
alegria e pesar —, os vagalhões de ódio e
amor, a vazante rubra e lunar das mulhe-
res. São todas marés. Mas mesmo as marés
384
não são iguais num dia e noutro. E as areias
nunca se ressentem disso. Nós sim.

No momento em que Vladímir despertou


gritando, Aleksandra instintivamente soube
que perdera o marido e que não o reen-
contraria mais. Pelo menos não o marido
em si. Se o dia anterior, a despeito de suas
manchas, fora um dia de esperança, este
era tingido pelo desespero. A insanidade
tomou conta de Vladímir de tal forma que
desta vez foi preciso seis homens para a
contenção até a chegada de Karamazov
e os tranquilizantes. Acometido de uma
febre feroz que lhe potenciara a força,
acabou por lesar gravemente a esposa no
momento em que ela tentava lhe acalmar.
O braço só não se partiu porque os enfer-
meiros arrombaram a porta a tempo de
retirá-lo de cima dela. Vladimir se debatia
385
e urrava numa mistura de choro e gar-
galhada, tão alto que acabou acordando
metade de Muskov, desorientando os in-
ternos e causando um pandemônio. Antes
de cair em sedação pelo soco químico de
Karamazov, todos ouviram os gritos que
ecoaram pelos corredores do manicômio:

— Eu sou o cordeiro de Deus! Eu sou o


cordeiro de Deus! Mas não vim redimir os
pecados do mundo. Vim sacramentá-los!

Os protocolos de Muskov foram feridos


demais pelo casal Baranov, e Belykh não
poderia mais abrir exceções. Depois daque-
la tempestade, Aleksandra teria de partir
no mesmo dia.

Ao recolher sua bagagem em meio os


destroços do quarto 23, a maga russa de
olhos coloridos viu que de longe uma moça
386
de aspecto cândido lhe observava, atrás de
uma curva no corredor da ala principal.
Era Dimitra. Ela sorriu timidamente para
Aleksandra, que acenou com a cabeça e
partiu, devastada.

Naquele dia, Dimitra não encontrou ne-


nhuma razão para cantar.

Dia 49

— Calma, Vladímir — disse Karamazov,


tranquilizando seu paciente. — Você pas-
sou as últimas 48 horas balbuciando coisas
sem sentido. Sedado. Mas agora já está em
condições de entender.

— Aleksa! — chamou Vladímir, olhando


através de nuvens. — Aleksandra! Onde
está minha mulher?
387
— Você não se lembra de nada — arguiu
Karamazov enquanto fazia suas anotações.
— Sua mulher partiu há mais de uma se-
mana, Vladímir. E, creio, não totalmente
feliz.
— Deus, o que... o que eu fiz?
— O que você fez ou disse, ela deixou
em Muskov. Não levou nada para São Pe-
tersburgo além de esperanças. Dadas por
mim, é claro. — Com um mal reprimi-
do entusiasmo, o médico deixou de lado
seus papéis e olhou diretamente para seu
paciente. — Uma das grandes vantagens
de ser um expoente na própria área de
atuação é a facilidade com que podemos
acessar colegas extraordinários, ainda
que jovens ou desconhecidos. Conheci Dr.
Sakel este ano, mas depois de duas horas
parecia que éramos amigos de infância.
— Karamazov fez uma pausa, para depois
388
ascender com ainda mais vigor. — Enten-
da que tudo começou com um acidente,
Vladímir. A paciente dele era como você,
uma diabética psicótica, mas Sakel estava
particularmente distraído naquele dia e
exagerou na administração de insulina.
A paciente entrou em coma. O resultado
poderia ter sido catastrófico, mas não. Ao
sair do coma ela estava revigorada, assin-
tomática, eu diria. Então onde está a lógica
disso? Durante o ano inteiro estive inte-
ressado na experiência acidental de Sakel.
Doses maciças de insulina reduzem exces-
sivamente as taxas de açúcar, bem além do
metabolismo ideal, provocando um coma
induzido. É brilhante. Se eu estiver certo,
o resultado em esquizofrênicos...
Revoltado com aquele palavrório, Vla-
dímir irrompeu.
— Foi isso que você fez comigo? Arriscou
389
minha vida? Primeiro me contaminou
com malária... para nada! Depois me en-
fiou num coma induzido por excesso de
insulina? Você é louco, Karamazov. De-
veria estar internado aqui e não tratando
os que estão. — As veias da garganta de
Vladímir dilatavam enquanto ele gritava
com o médico. — Quero falar com Belykh.
Não quero mais ficar aqui, nem quero mais
a sua assistência. Preciso voltar para casa.
Chame Belykh. Você é um Victor Fran-
kenstein frustrado, Karamazov. Ainda mais
monstruoso que os monstros que cria.
A ofensa bateu mais forte do que o pre-
tendido, e Karamazov imediatamente re-
tornou a sua frieza habitual.
— Ignorância e ingratidão. Por que não
estou surpreso? O que mais eu poderia es-
perar de um mago aristocrata? — As palavras
saíram num tom áspero e monocórdio.
390
— Saiba, mago, que no dia do seu último
surto fui eu quem conseguiu contê-lo. Os
barbitúricos não surtiram efeito, provavel-
mente por uma explosão de adrenalina. O
organismo humano produz uma secreção
glandular chamada insulina, que pode
reduzir o excesso de energia reduzindo a
taxa de açúcar, que a produz. Você vai me
agradecer, Vladímir. Esse torpor é causado
pelo esquema de medicação pós-coma, mas
você vai ficar melhor, vai lembrar e vai me
agradecer. Até esse momento chegar, que-
ro que pense o que significa ‘comunicação
mundial’, ‘o segundo sacrifício’ e ‘o poder de
todos os poderes’. Sim, foi o que você gritou
por mais de três horas. E há muito mais
de onde vieram essas, mas vou te deixar só
com mais uma última lembrança. O braço
de sua bela esposa, que quase foi arranca-
do do corpo. Boa noite, Vladímir — disse
391
Karamazov, batendo a porta do quarto 23
e deixando seu habitante na mais completa
escuridão.

Dia 50

As profecias de Karamazov se mostraram


verdadeiras. Durante o almoço, Vladímir
sentia-se absurdamente leve e revigora-
do — mais: completamente são. Com sua
nova condição, até aqueceu o coração dos
amigos Dimitra e Jan Binski — agora mais
relaxado, ainda que longe da antiga elo-
quência. A conversa animada orbitara à
recuperação do interno, mas Vladímir se
limitou às amenidades, omitindo o trata-
mento e as rusgas do último encontro com
Karamazov.
Dois dias se passaram e o médico evitava
392
seu paciente mais ilustre, a despeito das
inúmeras tentativas de Vladímir em con-
tatar Karamazov para pedir-lhe as devidas
desculpas. Blindado em seu orgulho, Ka-
ramazov não deu as caras e só depois de
passadas 48 horas ressurgiu no quarto 23.

O diálogo — muito mais um monólo-


go por parte de Vladímir — foi encarado
pelo psiquiatra com indiferença, e após a
redenção deliberada do paciente, Karama-
zov bateu o martelo.

— Não, você ainda não poderá abando-


nar Muskov. Precisa ficar em observação
pelo menos por mais uns dez meses. Quero
que saia daqui com a convicção, entenda,
com a devida convicção, do trabalho que eu
realizei. Leve a bandeira de sua sanidade
a Petersburgo. Será mais que o suficiente.
Nem precisa citar meu nome — disse o
393
médico numa combinação inequívoca de
mágoa e vaidade camuflada.

— Creio que não me fiz compreender


— respondeu Vladímir. —Mas o que me
surpreende é que justamente você, o psi-
quiatra, não entendeu a minha condição
e as minhas razões para ter desabafado
daquela forma. Se me mantiver aqui por
mais tempo for uma maneira de você se
sentir melhor, então seja claro em sua re-
taliação.

— Não há retaliação alguma, Vladímir.


Jamais colocaria as emoções à frente de
um processo tão importante quanto o seu.
Você pode fazer isso, eu não. Caso contrá-
rio nossos papéis estariam invertidos.

— Então não há mais nada que eu possa


dizer para mudar esse prognóstico?
394
— Você sabe que não. Muskov não ad-
mite barganhas.

Dia 61

Após muitos meses de escuridão e deses-


pero calado — mesmo antes de Muskov,
dos diagnósticos eloquentes de Petrochev,
dos rituais vazios dos iniciados dissiden-
tes, das promessas otimistas, mas falhas
de Aleksandra — Vladímir pela primeira
vez sentia-se esperançoso. Sim, esperança.
A despeito das drogas e do mortificante
regime de quartel, nenhum sintoma se
mostrou contundente. O tratamento com
insulina se revelara um sucesso. No má-
ximo uma ou duas noites de pesadelos,
mas nada comparado ao que viera antes. A
instabilidade de humor, as energias opres-
soras, a ansiedade que lhe devorava como
395
um cão o cume do estômago — todos esses
pequenos demônios permaneciam exor-
cizados. Vladímir seguia com disciplina
monástica tudo o que vinha de Karama-
zov. Cada pequena mudança de hábito,
cada entrevista enfadonha, cada mínima
variação no esquema medicamentoso era
encarada como um ofertório. E ele reagia
tão bem a tudo isso que retornara aos seus
antigos exercícios de meditação. Aparen-
temente até seu casal de amigos internos
foram abençoados com essa melhora sú-
bita. Tanto Dimitra Ivanovitch quanto Jan
Binski se mostraram mais tranquilos e
estáveis naqueles dias. Frente a estes dou-
rados augúrios, o mago então decidiu que
havia mais beleza que ilusão na esperança,
e se essa esperança em particular tivesse
um nome, certamente seria Aleksandra —
um nome verde e castanho.
396
Na noite que veio, foi nessas cores —
verde do oceano e castanho do céu nubla-
do — que Vladímir fundiu as lembranças
luminosas da esposa com a memória da
relampejante noite que deflagrara todas
as razões — mentais e metafísicas — para
estar onde estava.

Cefalù, costa norte da Sicília. Fevereiro


de 1923

Os magos escolheram bem o momento. Na noi-


te que se iniciara, as ondas ribombavam na
praia em camadas furiosas de espuma pratea-
da e clamor, música de festa para a dança dos
elementos que agora cresciam em intensidade.
Em breve a tempestade — agora tão somente
um feixe de águas leves — mostraria sua face
397
triunfal, e eles rearranjariam os preparativos
de acordo com o cenário.

— Vamos, velho louco, precisamos aprovei-


tar o tempo certo. Cada segundo conta. Tem
certeza que as constelações estão corretas? —
questionou Vladímir, ansioso e excitado como
um rapaz virgem frente à prostituta.

O nervosismo do colega pareceu divertir


Antar Al-Rashid, o homem de azul.

— Ora, ora. Então vamos ensinar o padre a


rezar a missa. Tudo está perfeito, russo.

Enquanto o mago mais jovem traçava o cír-


culo na areia molhada, o homem de cabelos de
prata alinhava com precisão os componentes
do ritual. Finalmente chegara o tão sonhado
momento e a noite parecia saber disso, pois cho-
rava e gritava e urrava em trovões distantes
enquanto os relâmpagos intermitentes ilumi-
navam o horizonte negro do Mediterrâneo.
398
— Em meia hora a tempestade deverá alcançar
a praia. Tome, russo. Posicione os pergaminhos
conforme lhe ensinei, leste e oeste. Ah, tudo
que precisamos está agora aqui. Magnetismo
e eletricidade, os pilares de todos os elementos
— disse deliciado Antar.
O ventou assoviou mais alto, fazendo coro
com as ondas e os trovões.
— Você tinha razão, velho louco. Como sabia
sobre o garoto Loveday? Foi uma morte repen-
tina e terrível a dele.
— Uma tragédia anunciada, meu caro. E
não só por mim. O Careca avisou do perigo das
águas contaminadas...
— Isso tem relação com nosso trabalho aqui,
não é? — interrompeu Vladímir, o rosto en-
charcado pela garoa.
— Tudo tem relação com tudo, amigo. O
universo é feito de relações. A maioria delas
399
com uma razão e sentido. Agora mesmo, veja
as águas em relação à areia. Os raios em rela-
ção às nuvens. Eu em relação a ti. Isso carece
de sentido?

Vladímir manteve-se em silêncio.

— Nessa matemática divina, Vladímir, eu


sou o um e tu és o não-um. Quanto ao rapazola
Loveday, sim ele foi um sacrifício físico. Mas
foi deliberado pelo acaso e pelas circunstâncias.
Nada fizemos para que ele sucumbisse, se é isso
o que te atormenta.

— Alguém me disse um dia que o acaso ine-


xiste — disparou Vladímir.

— Alguém também me disse que a intenção


de Deus é feita de acasos — devolveu Antar.

A tempestade estava mais próxima, o vento


rugia e o mar se agitou como um Leviatã em
gozo.
400
— É agora, Vladímir... Preparemo-nos para
o sagrado.

E eles então começaram.

Não havia nada de deliberadamente fantástico


nos ritos, ao contrário. Perto das elaborações
místicas de que ambos haviam participado, o
que saltava aos olhos era o caráter prosaico,
quase simplório dos procedimentos.

O início era composto de um banimento aos


quatro ventos — muito utilizado pelo dono
da abadia onde estavam hospedados. Depois
sentaram, ambos nus, dentro do círculo; um ao
leste e o outro ao oeste, cercados do material
tilintante previamente consagrado.

Somente duas coisas se mostraram estranhas


aos rituais que estavam acostumados a realizar:
o uso de uma bebida trazida por Antar — não
sem grandes dificuldades — das distantes terras
da América do Sul, feita da maceração de uma
401
folha — que segundo o mago comportava um
princípio feminino —, e um cipó, morada de
um princípio masculino; e o dialeto da litur-
gia proferida pelo mago árabe, uma mistura
de estalidos expirados e modulações guturais
cantaroladas — algo que mesmo Vladímir
em sua cultura invejável nunca ouvira antes.
Mais um dos mistérios de Antar revelados no
momento adequado.

Após sorverem a bebida mágica, Antar pediu


a Vladímir que tomasse o frasco com sangue de
menarca e traçasse com os dedos um triângulo
no finíssimo pergaminho. Ele fez a mesma coi-
sa do seu lado do meridiano. A água da chuva
curiosamente não diluía os desenhos de sangue,
que pareciam coagular instantaneamente. As
mãos trêmulas de Vladímir delatavam seu
nervosismo. As expectativas eram tamanhas.
Mas, segundo Antar, em pouquíssimo tempo ele
estaria inebriado de divindade e sabedoria.
402
— É o momento da oblação. Mil crianças
sacrificadas ao leste e mais mil ao oeste.
Que a luz esteja em nós para que sejamos
sombra — clamou Antar.
Quando a masturbação se iniciou, a chuva
farta já atingira implacável a costa da aldeia.
Durante o decurso para o arrebatamento, o
jovem pensava em Aleksandra, seu amor; e o
velho, no futuro, seu amante.
Depois de alguns minutos o êxtase veio a
ambos quase em simultaneidade. Ejacularam
fartamente sobre os pergaminhos ensanguen-
tados, enquanto entoavam canções esquecidas.
Antar pegou o pergaminho de Vladímir, ainda
mais transparente pela junção dos fluídos, e o
sobrepôs invertido sobre o seu, os dois triân-
gulos formando uma estrela de sangue. Com
o que sobrou da menarca, Antar desenhou
um olho no centro da estrela, cuja íris Vladí-
mir nunca vira antes. Um círculo vazado por
403
cima, transpassado nessa brecha por uma linha
vertical. Quase como a íris de um réptil — O
grande réptil do amanhã — foi o pensa-
mento que lhe lacerou a mente, remodelando
a realidade. Dois triângulos dotados de olhos
formavam dois Olhos da Providência; um na
posição tradicional, o outro, invertido — visões
de diferentes planos. Sobrepostos, uma Estrela
de Davi se revelara, agora imbuída de visão.
Diferentes sigilos formavam um só.
Enfim a bebida sagrada surtira efeito.
A borrasca agora atingira o seu esplendor bem
em cima deles, e a atmosfera eletrificada enchia
de vida e cintilância toda a matéria circundan-
te. A cada raio, um sol explodia em miríades
de cores impossíveis que começavam no céu e
terminavam na boca do estômago de Vladímir.
Antar gargalhava enquanto os ouvidos eram
torturados pelas canções da tempestade: mar,
céu, ventos, raios e trovões — todos os deuses
404
estavam em fúria. As estrelas, desrespeitosas
das nuvens densas que as cobriam, brilhavam
como os olhos do universo, invadindo o cená-
rio e matizando as extremidades da existência
com sua luz. Um novo e belíssimo ecossistema
espiritual se revelou, vestindo-os de prazer e
desnudando-os de ego — tudo cheirava a luz.
Vladímir não estava suportando a intensi-
dade daquela conflagração. Talvez ele tivesse
superestimado os próprios dotes. Talvez sua
mente não fosse assim tão treinada. Ele estava
sucumbindo ao poder dos elementos. E havia
poder ali, Vladímir pensou. Poder como ele
nunca presenciara ou presenciaria novamente.

— Nos subterrâneos de todas as coisas


reinaremos. Nós seremos a sombra de
tudo — bradou Antar, de pé, nu, tingido de
prata pelos relâmpagos e ostentando uma ere-
ção gloriosa, quebrando o círculo de proteção
com a arrogância de um deus.
405
Foi a última vez que Vladímir viu o homem
que costumava vestir-se de azul. Depois disso
a realidade oscilou, liquefez-se e se dobrou à
escuridão.

Dia 63

A euforia tomara conta de Aleksandra mes-


mo antes de encontrar Petrochev. Ainda
que fosse uma criatura diurna, ela acorda-
ra muito mais cedo que o habitual, e veio
de uma noite cujas horas insones levaram
vantagem. Mas ela não estava cansada, ao
contrário, parecia singularmente revigorada
e cheia de energia. É claro que as últimas
— e pelas próprias condições físicas e bu-
rocráticas — raríssimas notícias de Muskov
que lhe chegaram às mãos contribuíram
para pintar o quadro de alegria. Vladímir
406
estava se recuperando de forma quase
miraculosa. Aparentemente Karamazov
era mesmo o prodígio que achava que era.
E eles deviam isso ao médico Petrochev,
o mesmo Petrochev que lhe confirmara
a razão desconfiada e não acreditada do
atraso das regras. Ela não contaria nada
aos pais por enquanto, nem aos amigos.
Queria que a notícia chegasse em primeira
mão ao coautor da benção dentro dela. E
que benção! — pensou a maga Aleksandra.
Mesmo aqueles que como eles caminham
à margem do senso comum frequente-
mente se esquecem daquele pequeno e
belo milagre. Principalmente para eles,
os Baranov, cuja impossibilidade do so-
nho já virara uma crença. Mas agora, uma
vez sacramentada a certeza, que se danas-
sem os protocolos de Muskov. Ela visita-
ria o marido a despeito das proibições da
407
instituição, das intempéries do inverno e
das admoestações de Petrochev. Ela queria
falar com o marido, tocar o marido e lem-
brar-lhe do real significado daquela magia
em processo; afinal, em tudo e por tudo,
aquela condição em si sempre fora uma
das maiores iniciações da humanidade.

Dia 66

Vladímir percebera os sinais. Eles eram


particularmente sutis, mas para aqueles
mais sensíveis, também eram passíveis
de percepção — a forma como a neve en-
viesava ao cair no final da tarde, as breves
oscilações de humor naqueles internos
mais estáveis e a estabilidade passageira
nos desvairados crônicos, os perfumes
levemente amadeirados que emanavam
408
nos corredores sem quê nem porquê ao
cair da madrugada, a forma elegante e
simultânea com que os pássaros noturnos
estancavam seus cantos ao nascer do dia,
a rápida proliferação de insetos nos nichos
do refeitório — até mesmo o sorriso, agora
contumaz nos lábios de Karamazov, reve-
lava que algo significativo estava se aproxi-
mando, algo cujo desdobramentos seriam
substanciais em amplitude e magnitude. A
despeito dessas captações, Vladímir resol-
veu-se pela indiferença. A cada novo dia
ele se sentia mais estável e lúcido. Estava
esperançoso demais, feliz demais por sua
nova condição para tentar decodificar mis-
térios subliminares. Fossem o que fossem
não eram mais da sua conta. Nem mesmo
as intuições treinadas em tantos anos de
magia foram suficientes para lhe demo-
ver daquela resolução. Até porque, caso o
409
fizesse, poderia reinterpretar os sinais de
uma forma bem menos confortável, po-
deria ver nessa tênue configuração aquele
momento de saúde desperta, de energia
e vivacidade que acomete os gravemente
enfermos antes da devastadora chegada
da morte.

— Feche a porta ao entrar — disse Belykh


enquanto acariciava com uma mão sua
faca, cujo cabo era osso e madrepérola, e
com a outra se servia de mais uma dose
de vodca, a terceira naquela noite. — Pa-
rabéns, Karamazov. Apesar dos pesares,
os prognósticos se mostraram mais que
acertados. Que tal um brinde? — pergun-
tou, já buscando na gaveta outro copo.

— Não, obrigado — respondeu sorrindo


o médico que nunca sorria. — Esse caso
410
está se revelando um verdadeiro achado.
Belykh, temos aqui um divisor de águas
na história dos tratamentos psiquiátricos.
São tantas nuances, tantas possibilidades...
Quando você der uma olhada nas minhas
últimas anotações, vai ficar assombrado
com as conclusões do acompanhamento
até agora.
— Ele não respondeu muito bem às con-
vulsões químicas pelos barbitúricos — disse
Belykh, bebericando um gole.
— De fato, mas não podemos olhar para
os fragmentos do tratamento e sim para o
processo como um todo. Nunca lidamos
com nenhum paciente assim, Vladímir é
decididamente único. A cada novo experi-
mento e a cada nova derrocada, ele se ergue
melhor e mais são. Veja o que aconteceu
após a infecção por malária. Todo aquele
pesadelo poderia tê-lo sucumbido, mas
411
aí eu entrei com o choque insulínico. Um
risco, é verdade, mas o resultado foi um
novo alento às nossas expectativas.

— Sinceramente, depois daquele pan-


demônio eu pensei que íamos descer as
escadas com ele. Pensei que você só conse-
guiria contê-lo naquele tanque de serpen-
tes. Argh! Só de pensar naquelas coisas...
— Belykh franziu o rosto com se chupasse
um limão.

— Não são serpentes. E não, eu teria de


tentar todos os nossos recursos antes. Não
esqueça quem é nosso paciente. Só usaria
aquela contenção como última possibili-
dade. Não há controle nem segurança, e
não se esqueça dos riscos. Enquanto eu
não encontrar um método de modular as
frequências, perderemos muitos ali.

— Que assim seja. Seria difícil explicar


412
o desaparecimento de um paciente do ca-
libre de Vladímir, principalmente casado
com aquele bolo de mel da nobreza que é
a mulher dele.

— Exatamente. Tenho conseguido, a


cada sessão de terapia, a autorização por
escrito de Vladímir de todos os procedi-
mentos implicados. Isso nos dará o devido
respaldo caso as coisas saiam do controle.

— Sair do controle? Como assim? — O


último gole desceu queimando a garganta
de Belykh.

— Não posso lhe explicar de uma for-


ma que faça sentido, mas a cada nova cri-
se Vladímir se recupera com mais fatias
de memória. E o mais estranho... quanto
maior sua recuperação, mais as memórias
carecem de sentido. Ele me confessou que
a princípio me ocultava esses detalhes,
413
mas agora afirma que confia plenamente
em mim.

— E o que isso significa? — perguntou


o preocupado diretor de Muskov.

— Significa que suas revelações, clara-


mente reminiscências de antigos delírios,
de certa forma fazem algum sentido.

— Que tipo de sentido? Presságios ou


algo como aquelas baboseiras místicas?

— De certa forma, sim. Fala de coisas


como ‘influência tentacular’ e ‘relações eletro-
magnéticas’. Mas há um quê de sinceridade,
de verdade e sentido nesses arranjos que
me deixa intrigado. — Karamazov pon-
derou o que acabara de dizer.

— Você acredita que ele possui alguma


capacidade psíquica real como o nosso
Rasputin?
414
— É possível. Talvez ele possa vislumbrar
o futuro, assim como Rasputin. Mas inde-
pendente de seu dito treinamento mágico,
Vladímir talvez não seja capaz de proces-
sar adequadamente esses conteúdos. Tal-
vez seu cérebro seja incapaz de organizar
essas informações pela complexidade de
seu recebimento e então transforma tudo
isso num alegórico carnaval metafísico.

— Ou talvez ele seja só um louco mais


sofisticado, Karamazov. Já lhe ocorreu isso?

— Todos os dias.

Dia 69

Ele despertou abruptamente, como se o


despertar fosse o final de uma queda surda
e silenciosa.
415
Com os sentidos em órbita, Vladímir
tentou organizá-los um de cada vez, e ao
final sentia algo que convulsionava em
seu estômago. Levantou-se, acendeu com
dificuldade a vela da cabeceira e serviu-se
da pequena latrina que era reservada a
todos os internos de Muskov, mas a sen-
sação desagradável em seu baixo ventre
só aumentou. O silêncio frio do quarto foi
quebrado por um som baixo e estridente,
como um quarteto de violinos desafinados,
seguido de um raspar de unhas na parte
inferior da porta e um gemido, mais dis-
tante. Vladímir levantou-se e caminhou
até a porta, colando o ouvido na tentativa
de identificar a origem daquela pequena
serenata, mas subitamente todos os sons
se calaram e o silêncio voltou a reinar na
penumbra. Apesar de saber do protocolo
que mantinha todas as portas trancadas
416
após a última sirene do dia, ele tentou a
maçaneta, bem devagar. Um click e a por-
ta rangeu, abrindo-se para os corredores
escuros do manicômio. Subitamente, Vla-
dímir sentiu várias presenças à altura de
seus joelhos. Apesar de invisíveis aos olhos
físicos, o mago percebeu que eram pe-
quenas entidades que se deslocavam entre
suas pernas como crianças de ar. A tempe-
ratura ali também atestava as presenças,
tornando-se ligeiramente mais baixa. Ele
cogitou aguçar o olho astral, mas o mero
pensamento revolveu e pesou a pedra fria
no fundo de seu estômago — não pela
possibilidade de desvelar o cenário, mas
pelo temor de que estivesse, a despeito de
sua recente salubridade, ensaiando um
novo surto psicótico. Os infantes etéreos
em suas pernas então pareceram dançar,
mobilizando a atmosfera, querendo que
417
ele seguisse adiante e fosse engolido pe-
las trevas que habitavam os corredores de
Muskov naquelas horas mortas. Quando
não havia visitações, Vladímir sabia que
Belykh, por uma questão de contenção de
gastos, mantinha apagadas as luzes dos cor-
redores e só as acendia no caso de algum
evento excepcional entre os internos. Ele
então sopesou a possibilidade de levar seu
candelabro, mas curiosamente a escuridão
se rarefez, tornando os corredores daquele
labirinto um pouco mais claros, com uma
luminescência opaca e fantasmagórica. A
princípio, ele pensou se tratar da adequa-
ção de seus olhos à escuridão, mas não
era o caso. Ele havia inconscientemente
aberto o terceiro olho, pois além da recente
definição das texturas, ele agora percebia
claramente as pequenas entidades em seu
entorno — seres semelhantes a medusas
418
e outras espécies que eram simples for-
mas geométricas, saltitantes e translúci-
das, apontando o tempo todo para frente.
Ele os seguiu. Depois de alguns minutos
atravessando o corredor que dava para o
pátio externo central e os que levavam às
escadas principais e ao refeitório, Vladímir
então estancou, e com ele seu pequeno
cortejo invisível. Logo após um grupo de
salas amplas destinadas aos médicos resi-
dentes, ficava um quarto onde, ele sabia,
os funcionários guardavam materiais de
limpeza e estocavam as roupas de cama
sujas para a lavagem. O quarto era pega-
joso e claustrofóbico, e quase sempre se
encontrava fechado. Dali uma estranha
sinfonia emergia; um aglomerado de sons
orgânicos, molhados — junto a gemidos
de dor e ao baque surdo de metal contra
concreto, parecia compor uma cacofonia
419
que destoava da quietude de até então. O
ribombar ácido recomeçou no estômago
de Vladímir, estreitando sua garganta e
lhe secando a boca. Na hora ele pensou em
retornar ao quarto 23, mas as crianças de
ar em sua volta estavam excitadas demais e
clamavam a atenção do mago para aquela
urgência ululante. Vladímir prosseguiu len-
tamente, pé ante pé, até próximo da porta
do quarto, que se encontrava escancara-
da. Os sons, agora acrescidos de gemidos
e pequenos lamentos, tornaram-se mais
contundentes. O ruído líquido de carne
martelando carne, sempre seguido de um
lamento de dor cada vez mais intenso, co-
locara o mago numa espécie de estupor.
Mas a sensação em seu estômago tomara
proporções insuportáveis e ele avançou em
direção à porta sem pensar em mais nada.

E lá, na semiescuridão do ambiente


420
asfixioso, entre lençóis manchados de fezes
e vômito, Vladímir viu Dimitra, deitada de
bruços em uma maca de ferro cru. O ab-
dômen inteiramente esfolado da altura do
peito até às genitais, as fibras dos músculos
reluzentes expostas em sangue e muco, dos
seios sem mamilos até a vulva. As bordas
da pele do peito e do ventre arregaçadas,
presas abaixo da maca por uma tecedura
de arames. O olhar da moça, perdido no
vazio, era de quem havia desistido de lu-
tar e se abandonado à situação. Dos dois
lados da maca, Godo e Godu, eficientes,
escancaravam as pernas de Dimitra num
ângulo impossível, contradizendo as in-
tenções da natureza, enquanto Jan Binski,
completamente concentrado na ação, a
penetrava com estocadas vigorosas. Em
volta daquele espetáculo de Grand Guignol,
preenchendo todos os espaços restantes,
421
entidades portentosas, escuras e translú-
cidas, giravam alegremente numa roda
infantil, vivificando ainda mais os horro-
res do abuso. Um cheiro forte de urina e
secreção venérea emanou quente daquela
atmosfera direto na face de Vladímir, nau-
seando-o. Foi quando todos os personagens
daquele pesadelo subitamente estancaram
seus afazeres e encararam o homem que
lhes observava...

E sorriram.

Então ele gritou.

Repentinamente todos os elementos


que compunham a tessitura da realida-
de se revoltaram e partiram-se em todas
as direções, fragmentando a trama até o
último fio que ligava Vladímir à própria
sanidade. Em poucos minutos ele estava
agonizando, berrando, lutando com toda a
422
ferocidade com um pequeno batalhão de
enfermeiros empenhados em lhe roubar a
súbita e perigosa euforia. Socos, cabeçadas,
cotoveladas, chutes e dentadas — o reper-
tório improvisado pela loucura parecia lhe
dar alguma chance de fuga. Em meio ao
caos, vários internos observavam a cena
atônitos ou aos gritos. Entre eles Dimitra,
desconsolada em suas roupas de dormir,
abraçada a um tristonho Jan. Vladímir
tentou se libertar de seus algozes e correr
em direção a eles, mas a agulha de Kara-
mazov encontrou seu braço, e mais uma
vez a realidade partiu, esfacelando-se.

Dia 70

A sedação cavalar administrada pelo maior


psiquiatra de Muskov em seu mais ilustre
423
paciente se provou ineficaz. Vladímir per-
maneceu mortificado e sonolento — mas
sem nunca adormecer — por no máximo
duas horas. Depois, uma energia esfuziante
que emergia não se sabe de que recôndito
cerebral, tomava conta de seu organismo,
humilhando toda medicina ansiolítica e
debandando clássicos protocolos sedativos.
Vladímir era uma espécie de pilha humana
que se auto-alimentava do próprio sistema
em pane. No final, só restou a Karamazov
a vexação de colocá-lo numa camisa de
forças e levá-lo escada abaixo, aos temidos
e lendários subterrâneos de Muskov.

Desde os primórdios de sua ascensão


como casa mental que se falava nos subter-
râneos de Muskov. Apelidado às vezes de O
Porão e em outras décadas de A Garganta,
o fato é que, se a própria instituição even-
tualmente incorria na desconfiança e no
424
medo daquilo que se mostrava à luz, seus
lugares escuros certamente eram conside-
rados um verdadeiro caldo de cultura para
o horror, combustível de imaginação para
as mais terríveis possibilidades — ainda que
nada nunca fosse provado. Mas sempre se
falou de estranhos experimentos, técnicas
clinicamente mórbidas, utilização de ani-
mais e a reconfiguração de suas biologias,
aparelhos bizarros cuja intrincada ciência
desprezava ética, moralidade — ou a pró-
pria natureza humana. E , principalmente,
o obscuro desaparecimento de internos ao
longo de décadas.

A sala na qual Vladímir foi depositado


— como um pacote de carne prenhe de
absurdos — em nada remetia aos horrores
das antigas conjecturas e fofocas da corte.
Era um compartimento amplo, branco, bem
iluminado e cuidadosamente aquecido.
425
Pouquíssima instrumentação clínica fica-
va às vistas, porém três grandes armários
estavam apinhados com os mais diversos
frascos contendo diferentes e coloridas
substâncias, todos alinhados de acordo com
suas espécies. Quatro macas laqueadas, in-
crivelmente conservadas, harmonizavam
com o arranjo. Havia grande assepsia ali.
A única exceção era um tanque de dois
metros por três, com quase um metro de
profundidade, localizado adjacente à pare-
de de fundo. Nele, a água escura e limosa
guardava segredos. Algo revolvia próximo
da superfície — mas fora de qualquer ca-
pacidade de identificação —, as ondulações
lançando no ar quente um intenso ranço
de peixe e pântano.

O cenário oscilava constantemente aos


olhos de Vladímir, em parte por causa da
intensa iluminação refletida nas paredes
426
impecavelmente alvas, em parte em fun-
ção de sua condição emocional colapsa-
da. Seu corpo tremia em ondas febris por
baixo da camisa de força, fazendo ranger
a cadeira de rodas a que estava atado e
que representara um fardo difícil para os
enfermeiros que a arrastaram com seu
cadeirante escada abaixo. A mordaça era
outro obstáculo para qualquer expressão
indesejada. A operação deveria ser sigilosa,
ao menos nos limites do que o estardalhaço
provocado pela explosão do dia anterior
despertara na comunidade de Muskov.
Karamazov estava resoluto em conter o
surto vulcânico do paciente que, até ontem,
imaginou levá-lo ao olimpo científico que
tanto almejara, mas que agora se apresen-
tava como uma dolorosa ilusão.

— Sei que pode não estar entendendo


o que estou falando, Vladímir, mas você
427
nem imagina a lida de Hércules que foi
trazer estas espécies para Muskov. Conta-
tos privilegiados em três países. Biólogos
especializados que falassem russo. Ca-
ríssimas condições de armazenamento e
transporte, e mesmo assim perdemos dois
deles mesmo antes de atravessar o ocea-
no — disse um contrariado Karamazov
enquanto acionava um maquinário anexo
ao tanque, emparelhando constantemente
duas pesadas alavancas.

O aparato parecia bombear mecanica-


mente água limpa e aquecida para o tanque
por uma grossa mangueira, enquanto uma
outra, na extremidade oposta do tanque,
recolhia a água infecta.

Gradativamente o líquido ia clareando,


revelando assim seus desconhecidos ha-
bitantes.
428
— Belykh comprou a ideia, mas confesso
que me custou meses de insistência e até
mesmo uma chantagem ou duas. Tam-
bém tive que entrar com a maior parte dos
recursos financeiros, pois só Muskov não
poderia bancar o trâmite e os cuidados
necessários para que não nos chegassem
todos mortos — disse Karamazov, suando
com a atividade em curso.

Mesmo em sua condição caótica, Vladí-


mir não pôde deixar de sentir o horror ao
finalmente enxergar com nitidez as confi-
gurações ondulantes no fundo do tanque.
Três criaturas monstruosas serpenteavam
preguiçosamente; duas absolutamente ne-
gras, e a terceira — maior e mais encorpada
— na cor de laranja vivo. Mediam quase
dois metros, e na sua biologia geografica-
mente alienígena, se movimentavam lenta
429
e sensualmente nas águas aquecidas, como
pequenos Krakens.
— Electrophorus Electricus, ou simples-
mente Poraquê, como são conhecidos no
Brasil, um distante país da América do Sul,
e que significa na língua dos nativos de lá
‘aquele que entorpece’. Belykh os vê como
serpentes, mas de fato são peixes aparen-
tados dos bagres. Essas criaturas podem
liberar uma descarga elétrica de quase mil
e quinhentos volts a cerca de três ampères.
Tínhamos mais um, mas um paciente, no
processo de tratamento, acabou matando-
-o. Infelizmente ele também sucumbiu.
Vladímir começou a se debater ainda
mais violentamente, a revolta frustrada
pelas amarras da camisa de força e pelos
gritos abafados pela mordaça, agora em-
papada de vômito — os espasmos ferozes
quase derrubaram a cadeira. Mas dois dos
430
seis enfermeiros presentes agiram rápido
e conseguiram frear a tempo àquela in-
surreição.

— Acalme-se, Vladímir. Tudo vai dar


certo. Eu mesmo desenvolvi essa técnica
revolucionária... É experimental, devo
confessar. O problema é que nunca sabe-
mos até onde as descargas devem ir. Há
muitas variações de calibragem por tem-
po de exposição. E nem todos os voluntá-
rios resistem. Principalmente quando os
três espécimes resolvem trabalhar juntos.
Maldição, os pacientes apresentam limites
completamente diferentes de resistência.
Mas tenha fé, Vladímir. Aquele seu ami-
go esquizofrênico teve. Como é mesmo o
nome dele...? Jan! Ele já se banhou nessas
águas e hoje se encontra em paz — expli-
cou Karamazov enquanto olhava para seus
auxiliares e apontava para uma espécie de
431
capacete, coberto de fios metálicos conec-
tados. — Preparem o eixo — ordenou.

Os enfermeiros imediatamente alçaram


um instrumento simples e pesado que se
encontrava atrás do tanque: uma sólida
haste de ferro, cheia de amarras de borra-
cha, suspensa por um sistema de cabos de
aço. Outro sistema de roldanas deslocava,
para a frente e para trás, a viga acima do
tanque.

— Dispam-no — mais uma ordem.

Foi trabalhoso retirar o paramento de


loucura de Vladímir e deixá-lo completa-
mente nu. Mesmo lutando como uma fera
acuada e com a ajuda de toda a adrenalina
que seu sistema pudesse excretar, ele não
foi páreo para a truculência dos seis auxi-
liares, treinados por anos de insubmissão
dos internos. Godo era um deles.
432
Vladímir fora então atrelado às amarras
da viga de ferro. Mãos e pernas devida-
mente presas. O membro flácido caía-lhe
desajeitadamente entre as pernas enquanto
ele tentava cuspir a nova mordaça que lhe
fora posta — desta vez um cilindro metá-
lico, empurrado goela adentro por uma
fita de gaze que lhe envolvia e pressionava
o crânio. Estava com a cabeça completa-
mente raspada e não conseguia lembrar-se
como adquirira mais aquela indignidade.
Amarrado como um porco para o abate
sobre o tanque, teve a cabeça finalmente
encaixada no capacete, cujos cabelos de
metal tornavam parecido com um faminto
Octopus mecânico. O corpo de Vladímir
respondia a todos esses estímulos ultrajan-
tes com mais arrebatamento, o que, sem
que ele percebesse, aumentava ainda mais
as deliberações de Karamazov.
433
— Podem descer — ele disse. — Parem.
É o suficiente.

A costa nua de Vladímir tocou a superfí-


cie morna da água, lançando em seu corpo
uma sinfonia de sensações contraditórias.
Calor, frio e expectativa desesperada pro-
duziam uma interpretação ambígua dos
estímulos.

— Agora! — ordenou Karamazov.

O mago foi lançado de uma só vez nas


águas quentes. Seu corpo mergulhou até o
fundo do tanque, revolvendo seu conteúdo
e irritando seus habitantes, que imediata-
mente reagiram lançando cargas poderosas
em todas as direções do ambiente con-
dutor. Vladímir fora alçado para fora do
tanque com a mesma velocidade com que
fora mergulhado, mas os fios condutores
do capacete continuaram em contato com
434
a água, trazendo todo o inferno elétrico
direto para o seu cérebro.

Vladímir berrou e berrou, mas o seu


brado permanecia mudo e calcinado pelo
relâmpago de metal que trazia amarrado
na boca. Sem alternativa, seu sistema vio-
lado reagia, fazendo o intestino e a bexiga
derramarem todo o conteúdo no tanque
abaixo. A cada nova descarga, a pele eri-
çava como couro de réptil, enquanto os
espasmos musculares permaneciam por
mais alguns segundos, trazendo-lhe, como
numa dança grotesca, novos e involuntá-
rios movimentos, até o afluxo das águas
serenar e a deflagração imposta por seus
moradores cessar.

A sessão se repetiu por mais sete vezes,


exaurindo todas as energias físicas e emo-
cionais de Vladímir, por fim levando-o à
435
inconsciência após uma descarga mútua
e definitiva.
Quando o levaram de volta ao quarto
23, ninguém percebeu os olhos úmidos de
Karamazov, que permaneceu mais alguns
minutos à frente do seu tanque de pesade-
los. Ele não se emocionara por quaisquer
afetos ou pesar nutridos por seu paciente,
mas pela certeza de que todos os seus so-
nhos, todas as suas esperanças de glórias,
reconhecimento e imortalidade pereceram
para sempre no fundo daquelas águas,
agora turvas.

Dia 71

Naquela manhã, as sirenes de Muskov não


abriram, como de costume, as portas da
consciência para Vladímir. E nem seria
436
possível. Depois da sessão de surto infligi-
do para conter seu surto original, o mago
não teria condições de reagir aos estímulos
cotidianos da instituição. Karamazov sabia
disso e, em deliberada autoindulgência,
permitiu que Vladímir voltasse à realidade
espontaneamente.
Vladímir abriu os olhos devagar, se apro-
priando da existência um momento de
cada vez. Seu corpo estava completamente
relaxado... não, completamente abandona-
do, como se os músculos, ossos e nervos
tivessem esquecido suas funções. A des-
peito desse torpor físico, a mente estava
excepcionalmente clara; mesmo que não
lembrasse nada do que lhe ocorrera após
a imersão naquele tanque diabólico.
Foi quando as lembranças de Cefalù, as
últimas, lhe vieram cristalinas como dia-
mantes lapidados. Ele olhou para a mesa
437
de cabeceira, constatando que um dos
mimos que Belykh lhe proporcionara con-
tinuava ali. Apanhou a caneta, o tinteiro
e uma folha de papel, apoiando tudo em
sua prancheta de evolução clínica, e co-
meçou a escrever. Quando terminou, teve
a sensação de que uma porção dele, uma
fração sóbria e serena, estava apartada de
si mesmo. Esse não ele era uma espécie de
despedida. Um adeus melancólico, ainda
que lúcido, às esperanças e a tudo o que
um dia desejou, odiou e amou. Em breve
o último fio que o conectava à sanidade
dos homens rebentaria e a loucura seria
sua condição derradeira.

Vladímir estava resignado, mas não in-


diferente. Vivera tempo demais ao lado
de Karamazov para saber que o homem
não ia deixar seu fracasso em aberto. O
psiquiatra arranjaria um jeito de apagar
438
as pistas de seus crimes bem intenciona-
dos, tendo toda Muskov como cúmplice;
e Vladímir não estava disposto a dar essa
última benção a ele. Desta vez, ele cairia
atirando.

Quando a segunda sirene do dia tocou


sinalizando o almoço, Vladímir já estava
preparado para o que viria. Aquela porção
sua, objetiva e sã, havia partido há horas,
deixando um pequeno e divergente con-
clave de eus em sua mente angustiada. A
única coisa que todas essas vozes concor-
davam era que o mago Vladímir, agora
seu vassalo, seu escravo perpétuo, teria de
sair dali a qualquer preço, mesmo que este
preço fosse a morte, torcendo para que fosse.

Karamazov entrou no quarto 23 ladea-


do por Godo, Godu e mais um armário
439
vestido de enfermeiro. Traziam consigo o
aparato necessário para a aplicação venosa
de soro e medicação. Ao notar a sonolência
do paciente à sua frente, o médico relaxou
a postura. Algumas vozes dentro de Vladí-
mir gargalharam alto, felizes pelo sucesso
da dissimulação.

— Vladímir, acredito que você ainda não


está em condições de acompanhar os ou-
tros pacientes no refeitório, então teremos
que efetuar os procedimentos aqui mesmo.
Está fraco agora, mas em breve estará bem
melhor — o médico falava pausadamen-
te, parecendo duvidar da capacidade de
compreensão do paciente.

— Claro, claro — concordou com voz


pastosa um agastado Vladímir, fazendo
coro às esfuziantes vozes internas.

— Sente-se — ordenou Karamazov.


440
— Vai levar só um instante — ele disse ao
atarraxar a agulha ao tubo de borracha
enquanto dois dos assistentes preparavam
os suportes do soro ao lado da cama.

Quando a agulha encontrou a veia, Vladí-


mir subitamente olhou em direção à porta
e apontou com queixo, como se estivesse
vendo algo ou alguém. Todos se viraram
ao mesmo tempo naquela direção e essa
fora a deixa. Vladímir, como um Lázaro
amaldiçoado, apanhou a caneta na mesa de
cabeceira e levantou-se numa velocidade
impressionante, trazendo no ato inespera-
do Karamazov preso pelo pescoço e com
a caneta apontada para sua jugular.

— Calma agora, calma agora, calma


agora, calma agora — disse Vladímir. Os
olhos arregalados e a força triplicada pela
loucura. — Saiam da frente. Quem se
441
mexer, ele morre. Ele pensa que não, mas
ele é mortal.
— Fiquem calmos — disse Karamazov,
quase inaudível pela aflição em sua gargan-
ta. — Deixem que ele relaxe. Res... Respire,
Vladímir... Fique calmo também...
— Oh, mas eu estou calmo, Doutor. Nun-
ca, nunca estive tão. Agora pegue a chave.
Karamazov apanhou as chaves do quarto
em seu bolso ao mesmo tempo em que era
arrastado lentamente em direção à porta.
Os três enfermeiros suavam e se entreo-
lhavam tensos, sem saber se deviam agir
ou não. Em um instante os dois, médico
e paciente, já estavam do lado de fora do
quarto, enlaçados num abraço letal. Vla-
dímir, então ordenou:
— Tranque.
O médico obedeceu.
442
Com o término do almoço, uma peque-
na multidão formada por pacientes e pela
equipe de plantão se aglomerou embas-
bacada, observando impassível a cena no
corredor à frente. Ninguém se movia ou
dizia qualquer coisa. De repente um dos
internos deu um grito e o caos começou.
Os enfermeiros, e até alguns médicos,
tentavam conter os pacientes excitados
que aparentemente interpretaram mal a
pequena revolução de Vladímir. Muitos
corriam sem direção, enquanto outros
permaneciam indiferentes. A maioria ria
ou chorava alto.

Aproveitando a guerrilha conflagrada,


Vladímir obedeceu a cacofonia em sua
cabeça — que agora não mais falava em
uma única voz, mas em cem — e gradati-
vamente deslizava pelos corredores atre-
lado à sua carga preciosa, garantia única
443
de fuga. Karamazov, em choque, não mos-
trava oposição, mas o portão de saída de
Muskov ainda estava longe. Um pouco mais
de esforço, a legião em sua cabeça lhe dizia.
Só mais alguns metros agora.
Vladímir estava há poucos passos da
imensa porta de madeira e metal que fazia
as vezes de sentinela na entrada de Muskov.
Sua fuga era certa e lá fora, já em liberdade,
despacharia Karamazov quando obtivesse
uma boa dianteira.
Havia acabado de ouvir essa sugestão em
sua cabeça quando o mundo girou e tudo
assumiu cores quentes. A caneta redentora
voou de sua mão. Suas pernas vacilaram.
Um gosto metálico invadiu sua boca en-
quanto suas narinas eram assoladas pelo
cheiro pungente de sangue. Ele olhou titu-
beante para trás e viu Jan Binsky, resoluto,
segurando um enorme vaso de cerâmica.
444
Atrás dele, Dimitra, já agarrando Jan pelo
braço e falhando lamentavelmente em seu
intento de conter o amigo. Karamazov
aproveitou a ocasião e se desvencilhou do
abraço mortal do seu algoz, protegido agora
pelo cerco de pacientes e enfermeiros que
finalmente tomaram coragem para agir.
Mas havia vantagens na loucura. Um
grande surto pode trazer grandes dotes
ao surtado. Com a mente ainda em calei-
doscópio pelo ataque, mas já sentindo a
renovada vivificação de suas energias, as
vozes dentro dele gritaram mais alto; e
ele partiu, como um punhal, em direção à
porta imediatamente à sua frente — aquela
que antecedia a última de Muskov, antes
da sua liberdade.
Trancando-se pelo lado de dentro do
escritório de Belykh, Vladímir perscrutava
ensandecido todas as direções em busca do
445
velho. Estava com uma aparência terrível.
Desgrenhado, com o sangue a lhe descer a
face sorridente e empapar a parte de trás
do uniforme. A agulha e o tubo de bor-
racha dependurados, ainda presos à veia
do braço. Era um monstro em si mesmo,
erguido pelas forças acumuladas por anos
de horrores naquelas paredes.

— Por favor, por favor, não faça nada


de que vá se arrepender, Vladímir. Onde
está Karamazov? — perguntou o diretor
de Muskov.

— Sabe, eu lembrei de muitas coisas, Sr.


Belykh — disse Vladímir olhando através
do homem aterrorizado à sua frente.

— Naquela noite, naquela praia, naquela


tempestade, sabe... Antes de eu desmaiar...

Belykh estava atrás de sua mesa, com


as mãos levantadas e os olhos vivos em
446
direção ao louco. O desespero em seu ros-
to revelava o pensamento acelerado em
centenas de possibilidades, mas nenhuma
se resolvia.

— Ele me teve, Belykh. Aquele velho


louco... Ele me teve como se tem uma mu-
lher. E ele também vai possuir o futuro.
— A lembrança da indignidade arrancou
o sorriso da boca do louco e uma lágrima
de seu olho.

— Não sei do que você está falando, Vla-


dímir, mas seja o que for, encontraremos
uma resposta para suas angústias. Sempre
encontramos, querido, apenas acalme-se
e tudo vai terminar bem. Eu prometo.

Os olhos de Belykh encontraram rápido


demais a faca de cabo de osso e madrepé-
rola sobre a mesa, traindo-o.

Num único movimento feito de instinto,


447
Vladímir se adiantou ao diretor e apanhou
a arma com impressionante destreza, tra-
çando um semicírculo brilhante em dire-
ção ao rosto do homem. Belykh, ao invés
de desviar-se, tentou segurar a lâmina
com as mãos, pagando um preço terrível
quando Vladímir puxou o cabo de volta
e deixou o polegar do diretor por uma
tira de pele. O grito de dor de Belykh foi
subitamente interrompido por um som
vermelho, aquoso e gorgolejante. Vladímir
arremetera uma segunda vez e desta vez
não encontrou resistência. A lâmina da
faca entrou inteira, até o cabo, na garganta
de Belykh, tingindo meio escritório com
a cor de Marte.

O ribombar de um trovão invadiu o es-


critório quando a porta foi violentamente
arrombada e lascas de madeira voaram para
todos os lados. A cena dantesca resultante
448
do drama flagrado lá dentro estarreceu a
todos imediatamente — internos e enfer-
meiros —, fazendo os invasores abrirem
caminho ao lampejo cromo e carmim da
lâmina assassina que bailava nas mãos de
Vladímir.

Ao ganhar o corredor, o louco avistou


novamente a enorme porta de entrada
— ou saída — de Muskov. Estava de fato
muito próxima. Oito ou nove metros de
distância, mas a loucura, as vozes que gar-
galhavam em seu cérebro e o conglomera-
do monocromático que ainda habitava os
corredores da casa mental fizeram aquela
senda parecer infinita. Ele então reuniu as
últimas energias que lhe restavam e par-
tiu em direção à liberdade, fosse ela qual
fosse, enquanto via à sua frente a legião
de faces sazonadas pelo pânico, euforia
449
ou indiferença abrir-se e transformar-se
num borrão acinzentado.

Quando o louco pôs o pé no lado de fora


de Muskov, ganhando o ar livre, a luz da
tarde refletida na neve o cegou por dois
ou três segundos. E na primeira lufada
de vento frio ao seu rosto, o tempo, como
num último encantamento de uma vida
dedicada ao encanto, desacelerou num áti-
mo, rompendo os limites da percepção e
presenteando Vladímir com a sensação de
totalidade. Então ele viu, lenta e perfeita-
mente, as belíssimas, simétricas e únicas
arquiteturas de cada floco de neve que caía
do céu e encontrava o chão, num estrondo
musical harmonioso e eternamente imper-
ceptível. Sentia a fragrância agridoce de
diferentes flores que desabrochavam dis-
tantes, salivando com a delícia dos aromas.
O cheiro acre e alegre do cio de uma loba
450
em algum recôndito das montanhas o fez
lagrimar. Bebeu a iluminação onipresente
nos raios dourados de um pai-sol opaco,
dedicado e gigante.

E acabou.

Da mesma forma em que foram sus-


pensas, as vozes, as angústias e as dores
voltaram a ele com intensidade redobrada.
E ele disparou em seguida.

Na corrida, o louco olhou brevemente


sobre os ombros para ter certeza que não
era seguido. Ninguém vinha ao seu encalço
— a despeito do rastro de sangue que fluía
da ferida aberta em sua cabeça e macula-
va a brancura do caminho. Muskov não
mais o reclamava. Porém, quando chegou
próximo do declive que dava para a es-
trada principal colina abaixo, ele avistou
os três vultos. De alguma forma Belykh,
451
Karamazov, ou mesmo os dois, aparente-
mente previram aquela fuga e tomaram
as devidas providências para evitá-la. Mas
ele não se renderia, não agora depois de
tudo. Morrer parecia um fim mais digno
que retornar ao inferno de Karamazov. E
ele morreria. Por que não? Do que vale a
vida sem uma alma para habitar o corpo?
E mataria novamente se fosse o caso. Em-
punhou a faca ainda firme em sua mão
e foi ao encontro do destino, cego pelas
lágrimas, pela luz refletida na neve e pela
loucura.
Dos três enfermeiros que vinham em seu
encontro, dois estancaram o passo, mas o
terceiro fez o contrário e arremeteu em
sua direção com os braços estendidos.
— Vladímir... eu... meu... — murmurou
Aleksandra atônita, com meia lâmina alo-
jada em seu ventre.
452
O sangue desceu em profusão quando
Vladímir retirou a faca. Ele deixou a arma
cair no chão e, com as mãos trêmulas se-
gurou o corpo de sua esposa, agora mais
pesado que nunca. Balbuciou algumas
palavras ininteligíveis e encostou sua face
na dela, misturando suas lágrimas. Com
lentidão os joelhos cederam ao solo de
neve, e ele a abraçou ainda mais forte.

E sorriu.

Enquanto deixava a gravidade agir sobre


seu corpo e sobre o corpo em seus braços,
tudo o que um dia fora Vladímir o aban-
donara naquele instante: o aristocrata, o
mago, o sábio, o amigo, o amante, o ama-
do. Todos os arquétipos sucumbiram dei-
xando para o derradeiro, o louco, a casca
humana que um dia amara aquela mulher
de olhos desiguais.
453
Vladímir e Aleksandra permaneceram
abraçados. Abaixo deles um casamento
em vermelho se espalhava lentamente,
tingindo o frio de brancura implacável.

Dia 72

— Então quer dizer que ele disse que você


poderia ficar com tudo? — perguntou o
auxiliar de limpeza estagiário.

— Sim. Mas isso é um privilégio conquis-


tado. Só os enfermeiros de elite gozam da
plena confiança dos maiorais — respondeu
Godu, o enfermeiro de elite.

— Ainda mais agora que Karamazov vai


assumir a direção de Muskov. Viu só a cara
de satisfação que ele tentava disfarçar no
enterro de Belykh hoje de manhã? Nem
454
parecia que passou por aquele todo inferno
ontem — continuou Godu. — Aliás, que
inferno! Estou aqui há anos e nunca vi
nada parecido com isso em toda a minha
carreira profissional. Mas agora as coisas
vão mudar, só temos que ir devagar. Esse
é o lema de Karamazov: sem pressa, mas
tenaz.

O estagiário observava curioso o en-


fermeiro mais velho empacotar na mala
surrada todas as roupas e objetos perten-
centes ao paciente do quarto 23.

— Não vai ter problema? Digo, são rou-


pas caras essas aí — lembrou o estagiário.

— Claro que não. Até porque ninguém


aqui vai abrir o bico, sob pena da fúria de
Karamazov cair sobre a cabeça do infeliz.
Acho que nos entendemos, não? — ad-
moestou o enfermeiro.
455
— Sim, sim. Ninguém aqui vai abrir o
bico... Quer dizer... Mas e ele? Não corremos
o risco de ele dar com a língua nos den-
tes? — perguntou o estagiário apontando
para Vladímir, que se encontrava deitado
em sua cama, os olhos inexpressivos en-
carando o teto.

— Não se preocupe, Karamazov passou a


madrugada trabalhando nele. Lobotomia.
Algo complicado, não adiantaria explicar
para um estagiário como você. Basta saber
apenas que agora ele é um vaso de carne.
Um vaso vazio.

— Vaso, vazio... — divertiu-se o estagiário


com o trocadilho. — O Diabo... Ei, Godu,
posso ficar com esse livro? — perguntou.

— Sim, pode. Mas se perguntarem diga


que é seu.
456
— Ei, aqui tem dois... bilhetes dentro. O
que eu faço? — perguntou o estagiário.

— Jogue fora. Karamazov não quer ne-


nhum rastro do sujeito.

O estagiário lançou os bilhetes no balde


de dejetos. Um deles, o mais recente, se
abriu ao pousar sobre a imundice.

Amada Aleksandra,

Se estas palavras lhe caírem em mãos, então eu


terei partido. Apenas meu corpo se dará ao luxo
da existência, caso eu sobreviva, como surda
testemunha de meus pecados. Creio que estes
são os últimos instantes de minha sanidade, e
os aproveitarei ao máximo para lhe expor tudo
o que você precisa saber. Karamazov, creio,
não vai suportar o peso da frustração. E assim
457
sendo, certamente vai me submeter a um de
seus experimentos terminais, eliminando seus
equívocos com a minha lobotomia. Não quero
essa última indignidade para mim e sei que você
também não a quererá, portanto tentarei fugir.
Desejo a morte como prêmio de minha evasão,
e não me privarei de também infringi-la caso
alguém se oponha ao meu caminho.
Você precisa saber o que está por trás dessa
minha condição, as razões de eu terminar onde
estou terminando.
Eu me lembrei dos últimos instantes daquele
ritual, Aleksa. Foi Antar Al-Rashid. Ele tinha
tudo planejado desde o começo, desde o nosso
encontro em Cefalù, na Sicília, onde conheci
você e nos apaixonamos. Nós estávamos todos
num local de poder, e ele precisava de dois
sacrifícios; um físico — o garoto Loveday foi
providencial, e outro mental: eu mesmo, muito
em breve. O ciclo finalmente se fecha e não sei
458
como nem onde Antar vai controlar o ama-
nhã, mas ele vai. Vivo ou morto, ele vai ter
o futuro. Construirá uma velada autocracia
subterrânea sob os alicerces das sociedades.
Ele reinará abaixo de grandes corporações,
conglomerados de poder e instituições de todo
o planeta. Sua ferramenta é o código binário,
sacramentado sob os nossos sigilos, e que apa-
rentemente será a matéria básica por trás de
quase todas as coisas — máquinas, sistemas e
relações humanas. Será uma época de mara-
vilhas e monstruosidades, essa nova era. E ele
vai entorpecer gradativamente as massas com
alienação e artificialidade colorida, enquanto
a certeza entrará num colapso coletivo. Será a
derrocada da fé. Por um lado as pessoas não
acreditarão em mais nada, e por outro terão
necessidade de acreditar em qualquer coisa.
É assim que ele vai obter o controle. Através
da desorientação e da incerteza. A vitória da
459
instabilidade que governa e controla nações.
Frente ao caos incitado, as pessoas buscarão
desesperadamente a segurança em ideologias,
religiões e teorias conspiratórias, polarizando
tremendamente as contradições.
E todos estarão errados, minha amada.
Enquanto perderem energia discutindo
qual conspiração é a mais verdadeira, uma
conspiração maior, reptiliana e invisível, vai
lhes devorar o tempo, os afetos e a fé. Solidão e
melancolia serão a herança desse novo mun-
do cauterizado pela ansiedade, Aleksandra.
Mas em meio a tudo isso ainda existirá luz,
meu amor. Pessoas, pensamentos e ações serão,
como sempre foram, agentes poderosos daque-
las forças que sustentam a vida, e é para isso
que deveríamos atentar. Nós não o fizemos em
nosso tempo, Aleksa. Cada era é vítima de suas
próprias sombras, e as do futuro serão devas-
tadoras.
460
Eu temeria o amanhã, pois quem, minha
amada, pode enxergar as luzes que projetam a
própria sombra quando se já está em completa
escuridão?

Minha esperança é que isso tudo, esse espectro


dissonante seja apenas a configuração distor-
cida de minha própria insanidade.

Ao final, que o grande nada, aquela imensi-


dão que a tudo julga, de forma justa nos julgue.

Com amor,

Vladímir Baranov

461
Ursel Miezel
S T E FA N O S A N T ’A N N A

1931

O
quê vocês vão fazer comigo
agora? Vocês acham que eu
— posso ser controlada com cho-
ques e drogas, não é mesmo? – debochou
ela, atada na cadeira de paciente, forçando
um sorriso nas feições quase anestesiadas
de dor. O filete de sangue seco atravessan-
do o olho esquerdo não a incomodava a
ponto de se importar. — Eu vou provar
que estão enganados.

O homem sentado de frente para ela,


encarava-a com a expressão mil vezes mais
fria que a do hospício inteiro. Por alguma
razão, ele se orgulhava do nome, Hans
Stein. Os olhos pequenos estremeciam, a
462
mandíbula travada. Os raros fios de cabe-
los louros em sua cabeça pareciam brilhar
em contraste com a opacidade da sala de
azulejo branco fosco.

— Você acha que tem o que precisa, Ur-


sel. Que é livre. Uma jornalista – brincou
ele com a voz às pausas. Mexeu os olhos e
as sobrancelhas num breve vislumbre de
desprezo. — Eu vou te dizer o que você é.

Ursel engoliu em seco. Se pudesse, não


ouviria a sequência a seguir. Entre as cordas
que a prendiam brutalmente à cadeira de
paciente, ela fez o possível para disfarçar
o medo que deslizava em torno dos calca-
nhares feito serpentes geladas.

— Você acha que é uma enfermeira


qualificada, não é mesmo? Mas você não
é. Não é nem uma enfermeira. Você não
463
é nada e nunca vai conseguir provar suas
teorias inconsequen...

— Que dia é hoje, senhor? – interrompeu


ela. Sabia muito bem a resposta. O dia que
injetava gotas de esperança em seu sangue.
Dia primeiro de agosto.

Hans não respondeu. Se mostrou inte-


ressado, mas jamais poderia compreender.

A enfermeira verdadeira deveria estar


chegando lá. Para ela, aquele dia fazia sen-
tido. Tudo fazia sentido. Todos eles iriam
pagar.

Há um ano, Ursel tinha desembarcado em


Muskov no primeiro trem da manhã.

— É o único lugar onde ninguém vai te


encontrar, querida – dizia o Dr. Freitag,
464
enfiando o papel com o endereço nas mãos
da jovem.

A voz fraca de Freitag ecoava pelos átrios


da câmara subterrânea. O esconderijo de
ratos fedia a esgoto e cinzas. A neve der-
retida se acumulava no portão escuro e
estreito por onde Ursel forçou o corpo até
atravessar, deixando o hospital. A claridade
não se interessava em dominar o ambiente,
mesmo acabando de amanhecer.

— Doutor, eu posso procurar a polícia


aqui na Áustria, alguém que me ajude, te-
nho informações suficientes – contrapôs
ela do lado de fora. O coração desesperado
vindo à boca.

O homem alcançou os pulsos da jovem


e puxou-a com força, de forma que o ros-
to dela colou nas grades. Ela soltou um
gemido enquanto as feições amigáveis do
465
médico se tornavam mais sombrias do que
a noite anterior.

— Você não tem pra onde ir, Ursel. Onde


quer que você tente, eles vão te encon-
trar – sussurrou o homem, fechando as
mãos com mais força ainda. – Você tem
essa maldita câmera. Você sabe demais.
Se quiser ficar viva, não pode confiar em
ninguém. Vá para Muskov, se esconda no
vilarejo mais próximo por um tempo. Fin-
ja ser ninguém. E quando realmente for
ninguém, suma do mapa.

— Posso me esconder em outro lugar.

— Então nunca vai ter a liberdade que


precisa. Você precisa de um lugar sem
atrativo, menina. Pense.

Ursel puxou os braços antes que o doutor


466
a aliviasse. A respiração se alterava enquanto
os pés arrastados na neve a faziam recuar.
— Por quanto tempo? – perguntou ela.
– Por quanto tempo devo me esconder
nessa cidade?
O olhar misterioso do doutor não revelou
a resposta. E ele desapareceu nas sombras
do prédio, enquanto a garota corria para
o que pensava ser a liberdade.

— Vou te pedir delicadamente pela última


vez – avisou o psiquiatra, depois de arrastar
o traseiro para a ponta do banco e puxar
a mesinha de trabalho para perto. — Me
diga o que você descobriu até aqui.
Um calafrio subiu pela a espinha de Ur-
sel quando ela notou as doses e seringas
à disposição. Sabia muito bem o que cada
uma delas poderia causar.
467
— Eu sei sobre tudo. Tudo – contou,
empurrando saliva para a garganta seca.

— O que quer dizer com “tudo”?

Ela sustentou o olhar do homem, pre-


parando-se por dentro para repetir as pa-
lavras que odiava com a alma.

A memória de sua chegada naquele hos-


pício permanecia nítida. Assim que che-
gou a Muskov, a cidade silenciosa, alugou
um cômodo no vilarejo mais pacato onde
tudo o que se ouvia era o barulho da neve
tocando o chão. Não levou muito tempo
para descobrir o edifício imponente e
sombrio afastado da cidade... um hospital
psiquiátrico. As poucas pessoas da região
criavam passagens para se distanciar do
lugar de onde saíam berros de dor e vultos
mal assombrados. Era o que diziam.

Quando Ursel bateu na porta da frente


468
do edifício, tinha apenas uma mala aos
pés e um pedaço de jornal na mão. Um
anúncio de oportunidade de emprego para
enfermeira assistente. Na mala, ela escon-
dia muitos papéis, um currículo falsificado
e a preciosa câmera fotográfica. Um ano
atrás, dentro de seu disfarce, ela não fazia
a menor ideia do que iria encontrar.

— Os choques elétricos. Os experimen-


tos. Os maus-tratos. Esses medicamentos
anormais. Vocês não deviam fazer nada
disso aqui.

— Isso te faz se sentir mal?

— Essa é a minha pergunta pra você.

O silêncio encarou os dois durante um


longo momento.

— Não – negou ele, sem sequer piscar.


– Sua vez.
469
Ursel não respondeu. Apenas observou o
homem coçar os próprios dedos. Conhecia
aquele movimento, sabia o que ele gostaria
de fazer naquele instante. Aplicar-lhe uma
das doses malditas desenvolvidas pelos
laboratórios químicos do hospício. Preci-
sava de mais tempo, mas não conseguiu
conduzir.

— Posso te perguntar uma coisa? Dentro


dessa sua fantasia, você acha que veio aqui
por vontade própria? – instigou ele. – É
que eu me pergunto se alguma vez você
se perguntou o porquê de ter sido enviada
para Muskov.

— Não tem fantasia nenhuma. E eu não


fui enviada para cá. Vim porque quis. Pra
me esconder.

— Isso é o que todos nós queremos que


você pense – explicou o psiquiatra. – Quanto
470
tempo você acha que levou para que des-
cobríssemos seu currículo falso? E sobre
o hospital de onde você veio foragida? E
sobre seus pais terem te internado por
atestarem sua insanidade? Conhecemos
todas essas histórias.

— É bom vocês saberem, porque eu sou


insana mesmo – disse ela, travando os den-
tes. Pelas costas, tentava afrouxar a corda
movendo uma das mãos disfarçadamente.
— E eu não estou sozinha.

Hans Stein riu e decidiu, finalmente,


preparar uma seringa, desatando a dose
do soro mais temido por Ursel.

— Francamente, a quem você acha que


pode recorrer? Você acha que alguém vai
te dar crédito depois de saber que você
veio da minha casa?
471
— Isso não importa agora que eu tenho
o que preciso.

— Não. Você não tem. Está esquecendo


da verbotene zimmer. A sala branca que você
não conseguiu entrar. Onde capturamos
você – o homem se levantou e se aproxi-
mou dela com passos lentos. Inclinou o
rosto até poder inalar o cheiro de suor e
o sangue espalhado na cabeça da jovem.
Quando falou, chegou a roçar os lábios no
ouvido de Ursel. — Me diga: o que acha
que escondemos lá?

— Não tenho ideia – murmurou ela sem


conseguir tirar os olhos da seringa na mão
dele.

— CHUTE! – gritou o homem num


acesso de fúria.

As lágrimas brotaram nos olhos da mu-


lher, mas ao mesmo tempo, de dentro de
472
si, saiu o sorriso que ela não exibiu quando
finalmente soltou a mão antes atada.
— Estou prestes a descobrir – disse ela
e, num único gesto que valeria sua vida,
moveu o braço na direção da seringa obri-
gando o médico a injetar em si mesmo o
medicamento mortífero.
Em poucos segundos, o psiquiatra caiu
duro no chão.
Ursel descobriu que tremia por inteiro e
afastou-se do corpo caído. Passou as mãos
pela boca ressequida, tentou secar o resto
de sangue na testa. Lembrou-se dos socos
e pontapés que tinha levado ao ser desco-
berta a caminho da sala proibida.
“Se eu continuar aqui, minha vida aca-
ba. Eles nunca vão me deixar escapar viva.
Preciso descobrir o que tem naquela sala”.
Aquela era de longe a opção mais segura,
473
ela bem sabia. Nem podia imaginar a que
tipo de perigo estava acometida. Talvez
pudessem afogá-la nas banheiras químicas,
ou usá-la como boneca de experimentos...
talvez pudessem abusar dela sexualmente,
ou fazê-la sofrer através de torturas. As
possibilidades atacavam a mente de Ursel
conforme ela corria desesperadamente pe-
los corredores do hospício. Conhecia bem
aquele lugar e não demorou para perceber
que a sala proibida jazia a poucos metros
de distância.

Bateu os pés pelo chão com velocidade,


mal respirando, os olhos atentos. Se sua
câmera não tivesse desaparecido há duas
semanas, ela poderia finalmente registrar
o que a sala escondia. Não tinha pra onde
fugir. Precisava ver e, se tivesse muita sor-
te, talvez conseguisse sair de Muskov com
um coração batendo no peito.
474
Não apareceu alguém para impedi-la.
Ela ignorou as placas de proibição nas por-
tas, adentrando cada vez mais o coração
do hospício. O lugar que todos evitavam,
proibido de alcançar. Evitou as máscaras
sugestivas apoiadas em suportes nas pare-
des de azulejo branco. Ignorou as lâmpa-
das piscando vez ou outra, ou o espectro
do medo brincando de assustá-la em sua
imaginação. Tateou as paredes úmidas
conforme se aproximou, engoliu em seco
diante do portal branco e leu uma última
vez antes de tentar forçar entrada. Verbo-
tene zimmer.
Não foi necessário sequer tocar a maça-
neta. A porta se abriu.
O cômodo apertado e quadrado cheirava
a álcool etílico. Parecia mais vazio do que a
mente dos internados em Muskov. As lâm-
padas fraquejavam como se estivessem por
475
um fio. As paredes claras tentavam iludir a
ótica, dando a impressão de um lugar mais
amplo e iluminado. Uma delas guardava
um buraco quadrado próximo ao teto, de
onde um tipo de projetor despontava. No
meio da sala, havia um único assento de
costas para o furo na parede macilenta.
Como se pudesse notar a presença de
Ursel, o projetor disparou um fraco jato
de luz contra o lado paralelo. Resíduos e
poeira começaram a dançar com leveza no
fio de claridade. Levou um tempo até o ba-
nho de luz fantasmagórica se transformar
em um chuvisco pálido. A mal iluminação
local acentuava o paredão transformado
em tela. Com passos silenciosos e descon-
fiados, Ursel se aproximou. O coração não
parecia afim de recuperar a calma.
De repente, um som grave e contínuo
surgiu de algum lugar do cômodo. Ursel
476
conhecia bem o ruído de uma gravação
e não se espantaria com a constatação de
estar numa verdadeira sala de cinema,
não fosse pelo choque ao notar a imagem
reproduzida. A projeção mostrava uma
Ursel aos prantos, sentada na beira de sua
cama. No lugar de Gisela, sua companheira
de dormitório, Hans Stein a contemplava
com uma prancheta na mão. Ela não se
lembrava de ter visto o homem com um
olhar tão complacente.

— Acho que você conseguiu se encon-


trar, meine liebe.

A Ursel da projeção mal conseguiu se-


car as lágrimas, embora chorasse em total
silêncio. A outra Ursel sentou-se de frente
para a tela sem nem notar.

— Você consegue. Temos certeza disso –


insistiu o psiquiatra, convicto, estudando
477
a jovem com atenção. – Me diga. Quem é
você?

— Ava Lindsay.

O homem meneou a cabeça em confir-


mação.

— Há quanto tempo está aqui?

— Dez anos.

Ursel prendeu a respiração, estatelada.

— Por quê? – continuou Hans.

— Porque... eu... – ela engoliu em seco


e fechou os olhos buscando forças. – Eu
matei meus pais.

— Como você fez isso? – perguntou o


homem, franzindo as sobrancelhas como
se continuar a entrevista fosse pesaroso.

— Foi um acidente. Eu botei fogo na casa.


Eles estavam dormindo.
478
Hans fez breves anotações sobre os pa-
péis na prancheta. Depois, voltou-se para
a jovem com a voz passiva.

— Ava... você não está aqui porque ma-


tou seus pais acidentalmente – afirmou
ele. – Você está aqui porq...

— Porque eu inventei a Ursel Miezel –


interrompeu ela, de olhos fechados. – Uma
enfermeira... jornalista... Eu... precisava fugir
da verdade e enlouqueci, construindo um
monte de mentiras. Mas eu não sou uma
investigadora. Eu preciso ser controlada,
se não eu... posso atacar a mim mesma e...
por favor, Dr. Hans... me ajude!

Assistindo à projeção, Ursel Miezel, ou


Ava Lidsay, estremecia.

As lágrimas caíam conforme lembran-


ças de uma casa em chamas e gritos de
desespero ecoavam em sua mente.
479
De repente, o interior da mulher passou
a ganhar a competição do lugar mais va-
zio. Ela fez silêncio, prestes a desmoronar.
Nem mais podia discernir o péssimo ruí-
do da filmagem. Porque dentro dela, me-
mórias manchadas e psicodélicas falavam
alto demais. Os lábios dela tremiam, com
medo da verdade. Levou a mão direita ao
coração e sentiu a tinta grossa por cima do
tecido do pescoço. Deslizou os dedos trê-
mulos pelo pano e, quando ela conseguiu
examiná-lo, nada mais fazia sentido para
a Ava Lindsay.

“Espere-me no Pivbar Kolomenskoye, no


dia primeiro de agosto daqui a um ano.”
Foi o que Ursel sussurrou para seu irmão
no único dia em que recebeu a visita da
família, uma semana após sua primeira
internação, antes de Muskov. Seus pais
480
fizeram isso porque queriam se ver livres
dela. E, desde criança, Ursel já havia en-
tendido que a única pessoa de confiança
era seu irmão mais velho. Foi para ele que
ela sussurrou a data, caso as coisas dessem
errado.

Em menos de uma semana, descobriu


coisas sobre a tal casa psiquiátrica capaz de
provocar incessantes arrepios. Então, ela
tinha encontrado algo interessante para
investigar, mesmo percebendo a cada dia
o buraco sem volta por onde estava se in-
trometendo. A não ser que houvesse uma
ligação externa de confiança.

Por isso, ela arriscou.

O garoto, Anton Miezel, tamborilava os


dedos impacientes no balcão do bar. Não
via a irmã desde aquele episódio esquisi-
to: visitá-la no manicômio sem entender
481
o que, de fato, ela estava fazendo ali. Seus
pais nem sequer sabiam da viagem. Ele
mal conseguiu explicar para a noiva que
faria uma viagem de Berlim para a Rússia.
Tudo por causa de uma promessa sussur-
rada há um ano. Mas a verdade é que ele
conhecia Ursel o suficiente para saber que
ela tinha alguma intenção naquela data e
que jamais esqueceria do combinado. Algo
estranho demais para ser mencionado
acontecera naquela visita. Algo tão errado
que ele nunca deixou de se lembrar do que
a irmã sussurrou bem baixinho.

— O senhor é Anton Miezel?

Anton virou o rosto em direção à voz,


esperando ver a irmã. Ao contrário, avistou
uma mulher magra, seca, com dificuldades
para esconder o medo que ia escapando
pelo olhar.
482
— Tenho algo para você, mas não deve
me olhar sair. Nem me seguir.

Anton encarou a mulher com dureza,


umedeceu os lábios secos com a língua,
examinou as pessoas desatentas ao redor...
manteve o envelope encardido entre os
dedos enquanto a mulher deslizava para
fora do bar. Mal sabia como proceder.
Queria seguir a desconhecida, mas antes...
precisava pelo menos espiar o conteúdo
pesado da entrega.

Na aba que selava o envelope, a caligra-


fia de Ursel dizia “espero que receba isso
antes que eles me façam acreditar que sou
louca”.

E, cá pra nós, o homem precisaria de


muito, muito estômago para encarar as
atrocidades de Muskov que Ursel conseguira
483
documentar em seus meses de investiga-
ção e disfarce.
Com muita sorte e disposição, aquele
poderia ser o início do fim de uma era de
sofrimento, banalidade e condenação.
Estava nas mãos de Anton. Continuava
nas mãos de um Miezel.

Clube noturno
de mariposas mortas
JEFTER HA AD

1936

C
omumente catalogadas por hábitos no-
turnos, a Coscinocera hercules possui
coloração cinza-amarronzada e apresen-
ta uma das maiores extensões de superfície de
contato corporal, medindo até 30 centímetros
484
da ponta de uma asa à outra. Oriundas da
Austrália e Papua-Nova Guiné, o ciclo vital
destes insetos é composto por quatro estágios:
ovo, lagarta, pupa – desenvolvendo-se dentro
da crisálida – e imago – ou fase adulta pro-
priamente dita.

Pelos corredores do Hospício de Muskov,


às 2h53 da madrugada, ouvia-se ruídos
semelhantes a um choro abafado por mui-
tas cobertas. As paredes frias e escuras de
concreto alinhavam a simetria assustadora
de múltiplos ângulos que resguardavam o
vazio do espaço, cujo alarido ecoava etéreo
sob a comunidade presa em sua própria
loucura. O que deveria ser mais uma noi-
te de sono aos pacientes apenas escondia
outra madrugada de balbúrdias induzida
por amarras, correntes de aço e soníferos
alucinógenos.
485
Abaixo de tudo isso, num armário de
vassouras pouco frequentado, três adoles-
centes tramavam um plano – que talvez
fosse o último de suas vidas.

— Eu topo. – Sveta Lyubov sussurrou à


meia luz de uma vela que oscilava entre
as garotas.

— Tasya...? – Khristeen, a líder do único


plano do grupo, cobrou respostas da amiga.

— Eu não sei... Mas e se…?

— “E se” o quê, Tasya?! Não vê que essa


pode ser a nossa única chance?

— As coisas não são tão simples assim,


Khristeen! Formar um plano em cima de
possibilidades, em chances, é praticamente
atirar no escuro! E se o plano der errado
na metade, como ficamos?

— Não se trata de o plano dar errado pela


486
metade, mas sim se estaremos preparadas
quando a chance aparecer! E, convenha-
mos, você sabe que ela vai aparecer!
— Querida – Sveta apanhou a mão de
Tasya com extrema delicadeza, — nos
encontramos nesse armário fedorento há
meses, conversamos sobre o mesmo plano
dia após dia, confiamos na palavra uma da
outra e o desejo de abandonar esta porca-
ria de lugar é maior do que qualquer outra
coisa. Então, por que não ir a fundo nisso?
Por que não mostrar a esses otários que
eles não têm poder sobre nossas atitudes?
Essa é a hora, Tasya! Não temos outra al-
ternativa.
Tasya Ivanov sentiu as lágrimas de medo
escorrendo pelo rosto abatido. Ergueu os
olhos para Sveta e viu bondade no rosto
deformado da amiga, depois encarou Kh-
risteen Kuznetsov como se cobrasse uma
487
certeza que, infelizmente, a menina não
pôde lhe dar.

— Eu tenho um irmão, Khristeen. Tudo


o que restou da minha família – Khris-
teen sentiu o aperto na garganta ao vê-la
chorando em meio as incertezas. — Eu
sou tudo o que ele tem nesse mundo e não
posso deixá-lo para trás nesse hospício de
merda. Eles o usariam como cobaia, me-
ninas! Eles o matariam!

— Não vamos permitir isso, Tasya. O


resgate do Dimi é a segunda parte do pla-
no; acalme-se, amiga. Apenas acredite e
todo o resto dará certo.

“Acredite, Dimi...” – Tasya repetiu a si


mesma, acreditando que o irmão mais
novo ouviria seus pensamentos para além
da sela onde mantinham-no encarcerado
– “...que no fim todo o resto dará certo”.
488
Paciente: Tasya S. Ivanov

Idade: 16 anos

Laudo clínico: A paciente apresenta leves


cortes nas mãos, eritema em parte do pes-
coço e perfurações superficiais ao longo da
face medial do antebraço. Deu entrada na
enfermaria do hospício com 76% do corpo
coberto por sangue, cujo fator Rh difere
do seu em 99% dos testes realizados.

Laudo Psiquiátrico: Paciente diagnosticada


com Transtorno Psicótico Agudo, demons-
trando tendências obsessivas à proteção
maternal, sendo capaz de cometer assas-
sinatos ou persuadir terceiros a executar
tal delito. Influenciada por um meio deses-
truturado, sofreu as consequências de uma
família adicta e igualmente descontrolada.
489
Atualmente, responde na justiça ao pro-
cesso de homicídio do padrasto.

Tasya Ivanov conhecia cada segundo no-


jento de sua rotina e simplesmente odiava
o mundo por conta disso. Sabia que des-
pertaria com os gritos da mãe em apuros,
que a encontraria com um novo hemato-
ma no rosto e que os ossos de sua costela
estariam mais evidentes a cada dia. Sabia
que o irmãozinho Dimitri correria para
os seus braços com medo da briga entre
os adultos, e que os dois se trancariam no
quarto, esperando a enxurrada de pala-
vrões e louça quebrada terminar do lado
de fora. Era sempre a mesma rotina, o
mesmo fiasco de vida.

Ano após ano, o inverno impiedoso cei-


fava a vida de milhares à oeste de Muskov,
490
e o lar improvisado – de madeira, pape-
lão e zinco enferrujado – era tudo o que
tinham contra a neve. Tasya conhecia a
liberdade à sua própria maneira, tinha-a
enclausurada em sua mente e adubava a
sanidade em defesa da única alegria que
a vida lhe presenteara: Dimitri Ivanov, o
irmão de seis anos. Ele era uma parte –
quase física – da irmã que, aos 15 anos, o
alimentava, o vestia, lhe dava carinho e
todo o tempo necessário em prol de uma
vida decente.

Aos 7 anos, Tasya perdera o pai de uma


forma ainda pouco esclarecida. A mãe
trêmula, vestindo trapos pelo corpo, com
o rosto molhado de suor e vestígios de
sangue, abraçou-a de repente, caindo num
choro profundo – que mais parecia arre-
pendimento –dando-lhe a notícia de que
nunca mais veria o pai.
491
— Ele nos abandonou, querida. Ele real-
mente fez isso. Mas não importa. As coisas
vão melhorar a partir de agora.
Nenhum sinal de polícia ou interesse
dos vizinhos foi relatado – sequer houve
um corpo para ser enterrado –, mas a cer-
teza dos fatos predominou do começo ao
fim; o pai estava morto e qualquer esforço
em prol do contrário seria mera perda de
tempo.
Dias depois, a visita de um homem gran-
de e com cicatrizes até o pescoço tornou
os dias da menina num completo inferno.
A mãe trancava Tasya imediatamente em
um dos quartos assim que batiam à porta,
já sabendo se tratar do visitante diário, e
esquecia a filha por horas no cômodo, sem
água, comida ou o menor vestígio de civi-
lização. Contudo, foi sentindo o chão frio
de alvenaria de seu quarto que a menina
492
extraiu da atmosfera uma energia de ex-
trema acuidade, passando a fazer disso
sua principal válvula de escape. Foi deste
pressuposto que Tasya Ivanov libertara
sua mente da ociosidade através da mais
pura imaginação.

Presa em seu quarto, ela tinha banquetes


com reis e rainhas, viajava pelas belezas
do mundo, escalava montanhas e colhia
flores nos campos coloridos da Rússia. En-
tre aquelas quatro paredes, o universo de
sua mente expandia-se como a galáxia do
mundo lá fora e, dessa maneira, o sonho
de ter uma família perfeita fora substituído
pela verdade cultivada no terreno fértil de
sua cabeça. Após quase um ano sofrendo
os mesmos abusos dentro de casa, Tasya
já não pertencia a qualquer ser humano
desta terra – tornou-se livre das chagas
e das dores de ter uma família, com seu
493
mundo resumindo-se a fantasias rechea-
das –, até o dia em que a barriga da mãe
crescera inesperadamente e um feto pre-
maturo chamado Dimitri veio ao mundo
num parto extremamente complicado.
Dimitri fora o resultado da genuína co-
munhão entre a mãe e o estranho visitan-
te que, descobrira depois de um tempo,
chamava-se Boryenka – um rapaz cinco
anos mais jovem que a mãe e talvez mil
vezes mais louco do que ela. Aos 3 meses
do pequeno Dimi, Boryenka tornou-se
parte integrante da casa, levando à ruína
completa ao que restava dos Ivanov.
A mãe tornou-se um fantasma pálido,
vagando pelos cômodos da casa com um
dos seios de fora, dando de mamar ao
recém-nascido que lhe sugava as últimas
forças arraigadas a um segredo que escon-
dera por meses a fio: os entorpecentes do
494
ópio injetados na veia duas vezes ao dia. O
braço se resumia a um osso recoberto de
pele murcha, que balançava uma pelanca
cinza e necrosada, as têmporas profundas
como piscinas negras e os olhos grandes
lhe acentuavam o rosto magro. Enquanto
isso, Boryenka, o cretino, seguia exata-
mente no mesmo ritmo de sempre, com
a fisionomia um tanto semelhante a de
tempos atrás – a mesma altura, o mesmo
cheiro de imundície e todo o restante de
lixo que compunha seu arcabouço.
— Arrume suas coisas, garota – essa foi
a terceira vez, em meses, que o rapaz di-
rigiu a palavra à menina: — Estamos de
mudança.
A casa simples onde morava tinha sido
alvo de apostas azaradas do cretino, e o
único bem que ainda remetia ao passado
dos Ivanov fora o preço da derrota que os
495
fizera morar num trapiche ao lado da flo-
resta Filin, selando, dessa forma, o fundo
do poço ao qual todos foram destinados.
Foi uma questão de tempo até que Dimi-
tri perdesse o interesse na única estrutura
familiar que conhecia. Deixou o colo da
mãe, entregando-se instintivamente à irmã
que, de alguma forma, teve forças para
construir os laços mais fortes que ambas
as vidas tiveram a sorte de presenciar. Se
ele tinha pesadelos, era ela quem sentia
a angústia; ele caía, ela sentia suas dores;
ele criava esperanças e ela ia até o fim do
mundo para realizá-las. Desde a chegada
do irmãozinho, o sentido de tudo conver-
teu-se num ato de amor inesperado que
findaria por mudar a vida dos dois para
sempre.
O final daquele setembro trouxe com a
chuva gelada uma onda ainda maior de
496
danos por conta do vício de ópio susten-
tado pelos adultos. Havia anos que Bory, o
cretino, batia em Sonja com o punho fecha-
do, e tudo se tornava um motivo plausível
para isso: o pó de café tinha acabado, ela
merecia ser punida; o  chão  amanhece-
ra úmido pela geada, então ela sofreria as
consequências; ele acordou mal-humo-
rado, Sonja era a genuína culpada. Tinha
dias  que  sequer havia um motivo, e os
gritos explodiam pelo casebre improvi-
sado. Seja lá qual fosse a razão, Boryenka
parecia sempre determinado a ver o san-
gue da mulher entre os juncos dos dedos.
Sonja Ivanov, a essa altura, virara refém de
seu próprio capricho, levando consigo os
filhos e a integridade da alma que  já  se
encontrava em frangalhos.  

Numa manhã negra do mês de outubro,


o pequeno Dimitri sentiu um tremelique
497
no cabelo – era uma mariposa cinzenta
com listras delicadas em ambas as asas.
Ela ergueu voo, cambaleou no ar oscilante
e pousou no papelão que cobria um dos
buracos na parede. Ele ergueu-se de onde
estava e correu para capturá-la, fazendo-a
levantar voo novamente e aterrissar na
terceira prateleira, acima do fogão a lenha
enferrujado. Ele escalou o artefato, pendu-
rou-se na velha grade que o protegia e viu
que era capaz de alcançar o inseto com a
mão direita. O pequeno segurou firme onde
pôde, sentiu os dedos encostarem em uma
das asinhas aveludadas e subiu um pouco
mais para apanhá-la num único impulso.
Até que um som agudo de ferro contor-
cido explodiu abaixo das vigas corroídas,
e o menino caiu violentamente ao chão,
derrubando a prateleira e todas as seringas
sujas de sangue que lá repousavam.  
498
Bory, o cretino – alto e ossudo como era
–, surgiu na cozinha como um fantasma
atraído pelo barulho e agarrou o menino
pelos cabelos, arrastando-o para fora de
casa.  

— Já tem idade suficiente para aprender


as coisas do meu jeito!  

O homem prendeu firmes os dedos nas


mechas escuras do garoto, enquanto uma
das mãos estrangulava o menino que sequer
teve forças para chorar. Ele arrastava-o
pela casa rumo à porta, tentando levá-lo
à floresta de Filin onde tiraria as roupas
do menino e, com galhos de pinheiro,
açoitaria a criança até que ela aprendesse
bons modos através da crueldade. Contudo,
antes de deixarem a varanda escorregadia
pela neve, Tasya surgiu como um vulto
desesperado e apunhalou o homem pelas
499
costas com duas das seringas que encon-
trou no chão.
Ela gritou como se o seu coração tivesse
prestes a explodir pela raiva, retirou brusca-
mente as agulhas contaminadas e o golpeou
novamente, repleta de cólera. Boryenka
largou o menino com o rosto contorcido
em angústia e, antes que Tasya pudesse
perceber, as mãos dele já lhe apertavam o
pescoço, obstruindo as artérias e nervos
da menina com uma força sobrenatural
materializada naqueles dedos imundos.
Um filete escuro de sangue escorreu pelo
canto dos lábios do cretino e a adrenalina
do ódio não se desfaria até ver a menina
sufocar em suas mãos.
Tasya sentiu a cabeça arder na falta de
oxigênio e a visão tornou-se turva quando
notou que os olhos do homem maldito se
contorciam numa dor macabra. Foi então
500
que os dedos em seu pescoço aliviaram
bruscamente até que – entre lágrimas e
numa tosse violenta – ela recobrou parte da
consciência e viu o irmão mais novo apu-
nhalar as costas de Bory com as seringas
que restaram. O rostinho estava banhado
numa ira inocente enquanto a coragem,
que ele mesmo desconhecia, acertava as
vértebras daquele monstro. Ele enfiava a
agulha até sentir a rigidez da espinha e
retirava, tomando impulso para cravá-la
novamente. Introduzia e retirava. Intro-
duzia, empurrava e retirava. Introduzia,
empurrava, entortava a agulha e retirava,
esguichando pingos vermelhos sobre a
neve em frente de casa.  

Tasya recuperou a plena consciência já


coberta pelo sangue do homem, submerso
num patamar de dor que o levaria à morte
em poucos segundos. Ela viu o irmãozinho
501
revestido pela gosma vermelha, chorando
ainda em desespero, golpeando o corpo que
se contorcia, e tomou das mãos da criança
uma das seringas que usava. Segurando-a
firme com o grito preso na garganta, ajudou
o menino a garantir os últimos vestígios
de vida do sujeito.

Dias depois, ambos acordaram com os


braços amarrados e vendas nos olhos. Eles
ainda não sabiam, mas já eram parte do
seleto grupo de pacientes do Hospício de
Muskov.

Tanto mariposas quanto borboletas sofrem


um processo de transformação denominado
metamorfose, sendo as primeiras providas de
antenas peludas com curto prolongamento e
maior espessura. Em certas regiões do globo,
os espécimes de maior tamanho e coloração
502
obscura também são conhecidos como ‘ bruxas-
-de-bosque’.

Khristeen achava incrível como um mon-


tante incompreendido de pessoas era capaz
de conviver sob mentiras e torturas por
tanto tempo. Dera entrada no Hospício de
Muskov em 1913, no apogeu de sua fama,
e mesmo assim não entendia como tanta
barbárie passava batido aos olhos do mundo
que vangloriava a estrutura magnânima.
Todo mês – em média – um novo suicídio
causava alvoroço entre os funcionários.
“Limpem! Limpem tudo em menos de uma
hora e juntem os fragmentos do corpo an-
tes que os pacientes vejam. Limpem!”. As
taxas de suicídio só não eram maiores do
que os desaparecimentos arquivados como
“paradeiro desconhecido” – o que Khristeen
particularmente entendia como assassinato
503
em prol de experimentos laboratoriais que
deram errado. Por esse e outros motivos
que a menina surgira com um audacioso
plano de fuga.
Sveta Lyubov se resumia a uma figura
isolada no canto da sala de jogos, que obser-
vava a movimentação de todos por debaixo
do cabelo desorganizado propositalmente.
Khristeen trocou olhares em segredo com
a amiga, atravessou o hall repleto de almas
transeuntes e chegou em Tasya Ivanov,
encolhida entre o sofá de couro e a parede
fria de concreto, interpretando o mesmo
papel há meses em busca da única recom-
pensa que mais valia a pena: o resgate do
irmão Dimitri, preso na ala de “crianças
com necessidades especiais”.
Um esquadrão de homens sérios e far-
dados adentrou a recepção do hospício em
meio ao silêncio de cada um dos pacientes,
504
cujos olhos cinzentos paralisaram com o
frescor dos visitantes. Para as meninas, no
entanto, a visita confirmava o sopro de li-
berdade que crescia conforme o esperado.
No dia seguinte, o Hospício de Muskov
programara uma visita guiada ao ilustrís-
simo redator chefe do jornal local a fim de
expor as “ótimas” opções de tratamentos
oferecidos a pacientes recém-chegados – o
que, em tese, traria ainda mais prestígio
à instituição. O cadastro de donativos por
empresas privadas aumentaria conside-
ravelmente, e o reembolso de quase tudo
seria destinado a fins de interesse particular
aos fundadores. Em suma, eles ganhariam
dinheiro com a exposição, isso – é claro
– se o padrão de excelência fosse confir-
mado em frente às câmeras fotográficas
da imprensa.
Khristeen, ao ter conhecimento prévio
505
do assunto, agarrou-se à oportunidade
como se aquela fosse a porta de entrada
ao paraíso de seus sonhos – ou a porta de
saída de um inferno que começou bem
antes de sua entrada no hospício.

Paciente: Khristeen Kuznetsov


Idade: 17 anos
Laudo Clínico: A paciente deu entrada com
múltiplas escoriações no corpo resultan-
tes de “apedrejamento” pelos moradores
locais de Muskov. Eritema no tórax e face
foram detectados, assim como inchaço na
pálpebra esquerda sem grande prejuízo à
sua visão.
Laudo Psiquiátrico: Paciente diagnosticada
com demência severa, incapaz de conviver
em sociedade após assassinar o próprio
pai com requintes de crueldade. Segundo
506
dados da perícia médica, a vítima teve os
olhos arrancados pela paciente em questão,
assim como foi perfurada por dentes em
cinco pontos vitais do corpo. Apesar da
pouca idade, a srta. Kuznetsov responde na
justiça a processos de homicídio, atentado
ao pudor e prática de magia negra.

Tinha-se dúvidas sobre Khristeen Kuz-


netsov ser realmente uma bruxa. A garota
demonstrava fixação por pentagramas e
incensos de camomila, assim como his-
tórias celtas do século XV e pequenas er-
vas bravas de costume medicinal. Apesar
disso, o peculiar mundo da primogênita
dos Kuznetsov se resumia a “cumpra os
deveres de boa filha, finja ser o que eles
querem de você e permaneça nas som-
bras” – somente assim outros segredos
passarão desapercebidos. “A filha serena
507
de olhar marcante” dos comerciantes da
cidade desenvolveu um interesse espontâ-
neo pelo que a vida escondia nas camadas
mais profundas de mistério e, por conta
dessa paixão, passou por cima dos olhares
bucólicos do povo que, de alguma forma,
sabia que Khristeen guardava bem mais
do que alguns segredos.

Aos 12 anos, viu o comércio dos Kuznetsov


ruir pela avareza da própria ganância. A
colheita daquele ano tinha sido prejudicada
pela intensa nevasca, o transporte de carne,
leite e ovos encareceu absurdamente e os
cofres de bancos faliram junto à cidade,
que – outrora próspera – provou o fel da
desgraça por quase seis anos consecutivos.
Os filhos mais novos foram obrigados a
abandonar o internato, os recursos à ali-
mentação e higiene tornaram-se incrivel-
mente escassos e, no fim do inverno 1928,
508
o Sr. Kuznetsov fora vítima de um roubo
à mão armada, ocasionando a perca do
único veículo automotivo que restava à
família. Dessa forma, viram-se obrigados
a vender a residência e procurar estabili-
dade em um estilo de vida inferior ao que
conheciam. 

A nova casa era consumida por um chei-


ro vegetal forte, talvez de grama molhada
ou manjericão fresco; até pelas brechas e
rachaduras das paredes, podia-se ver bro-
tos de erva-doce e outras iguarias surgin-
do para interior da casa – o que, de certo
modo, fez Khristeen acreditar que morava
em ruínas de uma civilização empoeira-
da. Seu quarto resumia-se a duas camas,
ao tapete antigo da família e a um guar-
da-roupas fedorento e de madeira negra,
cujo entorno talhado em arabescos era tão
repleto de minúcias que mal teve coragem
509
de tocar sob receio de estragar a crosta de
poeira que o tornava magnífico. Desejou
fazer do móvel o seu esconderijo para lei-
turas, mergulhando nas trevas do bolor
que fermentava lá dentro só pelo prazer
de notar os cupins no interior amadeirado
movendo-se como vermes de um defunto
apodrecido. Mas permaneceu inerte aos
desejos e deixou que o móvel continuasse
intocado na extremidade mais escura de
seu quarto.

Num certo dia de setembro, quando o


crepúsculo projetou os galhos secos do
outono através da janela, Khristeen Kuz-
netsov ouviu batidas na porta do quarto
enquanto organizava seus vestidos recém
lavados. O dia em específico selara uma
carga negativa sobre a menina, cujo humor
abatido a tornara relutante em autorizar
a presença do desconhecido. Por conta da
510
ausência de outros manifestos no lado de
fora do quarto, Khristeen pôs-se a conferir
o corredor vazio e silencioso da mórbida
residência. Visitante algum reivindicara a
autoria do chamado.

“toc – toc – toc”

Novamente, ouviu-se o leve ressoar de


toques pelo cômodo. Dessa vez ela sequer
moveu um músculo; teve a certeza de que
um dos irmãos monstrinhos pregava-lhe
uma peça às escondidas. Continuou seu fim
de tarde dobrando vestidos e toalhas lim-
pas, organizando-os por cores em fileiras
acima da cama, até que as mesmas batidas
explodiram com força, culminando num
susto que remexera suas vísceras.

“TOC – TOC – TOC”

Khristeen jogou-se ao lado da cama,


percebendo que, na verdade, as batidas
511
ecoavam da escuridão de dentro do móvel
negro.

— Luka, se você me fizer ir até esse guar-


da-roupas VOU SOCAR A TUA CARA ATÉ
CAIR O RESTANTE DOS SEUS DENTES,
ME OUVIU BEM?! Saía do meu quarto!
AGORA!

De alguma forma, após a gritaria, o si-


lêncio se propagou não somente no inte-
rior da mobília, mas em todo o entorno
da residência dos Kuznetsov.

— SAI! – ela insistiu, até perceber que o


autor não obedeceria sua ordem.

A garota ergueu-se bruscamente, notou


a perna oscilar por um segundo e cor-
reu para abrir a porta do guarda-roupas
empoeirado. Estava vazio. Nada além da
escuridão sem fim, como se o interior da
mobília fosse um túnel enegrecido onde
512
as paredes eram capazes de criar uma
bela ilusão de ótica de infinidade. Nunca
tinha investigado profundamente a beleza
do artefato e, talvez por essa razão, tenha
descartado a possibilidade de se tratar de
um fenômeno sobrenatural.

Era tudo tão grande e imponente; o ne-


grume, o cheiro, a atmosfera, o nada. Kh-
risteen criou coragem de tatear o interior
onde os únicos feixes de luz adentravam,
mas nada encontrou além de besouros e
mariposas secas num canto sombrio. Ela
agarrou a portinha com força e, antes de
criar coragem de fechá-la, encontrou pa-
lavras entalhadas na superfície interna da
porta que segurava. A caligrafia era impe-
cável no verniz embaçado de anos e anos;
ao que parecia, tinha sido escrito com um
grampo de cabelo, um prego ou qualquer
artigo pontiagudo. Os dedinhos sentiram
513
a textura perfeita do nome que a princípio
lhe soou de extremo bom gosto: M.me Mor-
gaine Le Fay – um mistério à parte que
lhe povoara o futuro de forma magnífica.

A noite chegou de sobressalto, e Khris-


teen percebeu o breu que agora tornou-se
o quarto. A menina acendeu a lamparina
na cabeceira da cama, cujo azeite produ-
zira uma chama menor que a dos outros
dias, projetando sombras animalescas nas
paredes ao seu lado. Foi então que, ainda
de costas, ouviu o sussurro ecoar devagar
no interior do cômodo amadeirado:

— Um nome poderoso destinado a feitos ex-


traordinários.

Ela encarou petrificada o móvel, sentindo


o gelo das mãos correr pelo corpo todo e
acelerar o coração com um batuque desgo-
vernado. A voz tinha sido clara como um
514
trovão, concisa e plena aos ouvidos, mas
ainda assim o timbre do sussurro surgiu
novamente – num tom grave e arrastado
–, confirmando o impossível de uma vez
por todas:

— Este cheiro a agrada?

— Eu... Gosto de mad... – ela encarava


os entalhos perfeitos no topo do guarda-
-roupas e mal acreditou que fora capaz de
responder uma única palavra. — Gosto de
madeira envelhecida. Do cheiro...

— Te satisfaz esta família?

Ela olhou para a porta trancada do quar-


to, lembrando-se dos pais que dormiam
no cômodo ao lado, e não respondeu a
pergunta.

— O quarto tem lhe suprido as necessidades?


A vista da janela? A mobília?
515
— O quarto cheira a manjericão e tem
pequenas ervas crescendo entre as racha-
duras. Meus pais dizem que é um absur-
do eu acreditar que, por conta disso, este
quarto é o que tem de melhor nessa casa.

— Tolos! Ambos sabemos que estão equi-


vocados – a voz tenebrosa fazia tremer a
madeira e o corpo da pálida menina.

— É – respondeu com cuidado.

— Diga-me, estes entalhes estão do seu agra-


do?

Ela oscilou por um segundo, observou os


detalhes do guarda-roupas e prosseguiu,
acostumando-se ao fantástico:

— São lindos, hipnotizantes. Confesso,


nunca vi algo parecido. Até guardaria meus
vestidos aí dentro se não fosse à madeira
podre e todo esse cheiro.
516
— Não é madeira que apodrece aqui
dentro, menina. – e então, propôs sibilan-
te: — Por que não se aproxima e toma-lhe a
visão do curioso?
As sombras que rodeavam o quarto nu-
triam o temor e a curiosidade em propor-
ções quase exatas e, ainda que a escuridão
lhe fosse um problema, Khristeen mergu-
lhou naquele medo de muito bom grado.
A intimidade criou raízes robustas entre
Khristeen e o ser que respondia ao chama-
do – antes preso dentro da menina. Ela já
não era a mesma garota retraída de anos;
agora sorria sozinha à mesa de jantar da
família, saía para passeios demorados na
floresta ao longo do crepúsculo e, nas ma-
drugadas de sexta-feira, ouvia-se sussur-
ros esporádicos em seu quarto (pequenas
confissões, risos contidos, por vezes cho-
ros de sinceridade). Khristeen conseguira
517
esconder seu segredo por tempo suficiente
até o destino se encarregar em colocá-la
no lugar certo, na hora exata.

— ... o templo dela é você, Khristeen. Ela


aceitará sua oferta de bom grado.

Luka Kuznetsov, o pirralho de oito anos


que fazia a vida da irmã um inferno, es-
piava por uma das brechas repletas de
fungos do quarto. Nesse dia, um barulho
estranho fez o menino despertar na ma-
drugada, levando-o ao banheiro da casa
que mais parecia uma fossa ao ar livre. No
trajeto, viu a chama da lamparina de Kh-
risteen acesa, irradiando pequenos feixes
de luz que cruzavam as ranhuras do quarto
trancado. O coração do menino parou por
um instante ao ter a certeza de que ouvira
bem mais do que somente a voz habitual
de sua irmã.
518
— E quanto a você? O meu corpo tam-
bém lhe agrada? – Khristeen questionou
em frente ao guarda-roupas, encarando-o
com uma pompa que Luka nunca vira em
seu rosto.

— S u b l i m e.

Uma voz grave ecoava de dentro do mó-


vel, fazendo o garotinho tremer de medo
ao saber que um estranho invadira a casa
da família.

— Tenho um convite para lhe fazer...

Luka prendeu a respiração, tremendo da


cabeça aos pés com o pedido do homem
escondido no armário. A voz grave e im-
potente ordenou que a menina se despisse,
tirando lentamente as vestimentas, da cabeça
aos pés, e que mostrasse de perto “as quali-
dades de uma Aurora-Herdeira”. Luka sequer
fazia ideia do que tudo aquilo significava,
519
mas bastou ver a irmã tirar o vestido que
um senso de perigo fez o garoto imaginar
os piores pecados, arraigados na educação
religiosa que recebeu. Khristeen tirou sua
roupa íntima como se tranquilamente fosse
tomar banho, aproximou-se do móvel e,
nua, entrou pela portinhola, sumindo por
completo na escuridão.
Um barulho de garrafas quebrando na
varanda fez o garoto se sentir o menino
mais encrencado do universo – se um dos
pais o pegasse espiando Khristeen, ele seria
morto, de certo.
O Sr. Kuznetsov retornava de uma ma-
drugada difícil no único bar que encontrara
a quilômetros de sua casa, e o rum barato
que lhe consumia as entranhas ardia tal
qual a raiva que em si vivia aprisionada.
Quando chegou à velha casa, o pai deixou a
amargura tomar conta de seus atos e, sem
520
ao menos tentar abrir o ferrolho da porta,
derrubou-a com um único chute, trazendo
pavor aos moradores submersos em sonífe-
ros segredos. Luka sentiu o coração pulsar
na boca e tentou correr o mais rápido que
pôde para não ser descoberto. 

O homem olhou para Luka assustado –


que tinha a culpa impressa nos olhos – e
soube que o filho se condenara antes de
qualquer julgamento. 

— O que essa moléstia faz acordado uma


hora dessas?! – o pequeno permaneceu
calado. — Anda, menino, por que ainda
está acordado?! 

O garoto continuou paralisado pelo medo,


até o próprio Sr. Kuznetsov notar Khris-
teen despida por entre as brechas, apres-
sada em vestir qualquer coisa após ouvir
521
o barulho lá de fora. Luka reuniu forças
suficientes para uma única justificativa: 

— Ela estava conversando com o guarda-


-roupas de novo, papai. Eu apenas... Fiquei
preocupado. 

Khristeen estava nua, segurando um robe


branco quando o pai invadiu seu quarto
em descontrole. 

— Que merda é essa,  Khristeen?! O


quê...? – ele reparou o ambiente ao redor.
A  visão  oscilava, mas fora capaz de  en-
xergar  os  inúmeros  pentagramas dese-
nhados na parede. — Então, você se acha
grande o bastante para mexer com essas
porcarias,  não  é mesmo? Diga-me: com
quem você tem conversado aqui dentro?  

Ela fechou o rosto de medo, cobriu a


nudez e sentiu-se acuada feito um animal
indefeso. Pensou em mentir, mas viu de
522
relance o irmão Luka na porta e percebeu
que agora seria inútil regredir em seus atos. 

— FALA!  

— Você... Não o conhece, papai.  

— EU NÃO O CONHEÇO?! Agora existem


segredos dentro dessa maldita casa?! Não me
venha com esse papo de merda, escória
imprestável! Onde ele está? Onde?? 

— Por favor, papai... 

— FALA!  

Ela começou a chorar, enquanto o corpo


envergava de vergonha e medo. Pediu que
o pai fosse embora, mas o homem conti-
nuou à sua frente, proferindo palavras de
ódio, amaldiçoando a garota desorientada
que tremia por baixo da pele fria.  

— Eu mandei você falar, garota malcriada!


523
Diga-me! Que tipo de blasfêmias tem feito
em nossas costas?  
— Por favor, pai. Vá embora... Está tudo
bem, apenas... Vá embora.  
Nesse momento, um vento frio desceu
pela espinha do Sr. Kuznetsov ao ouvir um
tremor forte pulsando no interior do mó-
vel negro. Seus olhos arregalaram-se, os
braços enrijeceram cimentando-se ao
corpo, e, naquele exato instante, retomou
o medo de assombrações que não lhe visi-
tavam desde a infância. Uma força maior
levou o homem a confrontar o horror que
se escondia lá dentro, porém, antes que pu-
desse pôr as mãos no guarda-roupas, Kh-
risteen  impediu que o pai prosseguisse,
segurando-o firme pelo casaco surrado. O
homem revidou a atitude da filha com um
tapa no rosto que a fez despencar na outra
extremidade do quarto. Khristeen sentiu o
524
rosto arder e, antes que o pai prosseguisse
com a barbárie, soltou um grito mortífero
capaz de acordar toda a vizinhança.  
— Cala a boca! – desferiu na filha outro
golpe com o punho fechado. — CALA A
BOCA, BRUXA NOJENTA! – e deu um
novo soco na menina aterrorizada. — CALA
A BO... 
Numa explosão de tábuas podres partin-
do-se ao meio, a porta do guarda-roupas
fora destruída com tamanha violência que
o quarto se contaminou com o cheiro
pútrido, fermentado lá dentro por anos
e anos. Da escuridão do seu interior, um
grande ser peludo, de corpo oblongo e
busto animalesco exibiu os chifres longos
e os olhos malditos para o homem outrora
perdido em sua raiva.  Luka  gritou apa-
vorado, enquanto  Khristeen  corria para
fora do quarto e ouvia o pai pigarreando
525
a dor de sua jugular sendo arrancada pelos
dentes da besta-fera, cujo veneno trouxe
a primeira morte – de muitas – que cru-
zariam o caminho daquela família.  

Seu tempo de vida é curto, pois espécimes adul-


tos alimentam-se de gordura do próprio corpo
e sobrevivem, em média, uma semana. Um fato
curioso, no entanto, tem mobilizado parte da
comunidade científica em prol de um fenômeno
conhecido como “Nuvem Cinza Intercontinen-
tal”, que transporta milhares destas mariposas
ao extremo continente da Rússia para morrerem
congeladas sob temperaturas negativas. Relatos
empíricos colhidos de década em década des-
crevem que, minutos antes da morte, os insetos
sofrem uma súbita desoxigenação, levando-os
à inconsciência por volta de 30 segundos ou
até recuperarem as forças e levantarem voo
novamente – desta vez, o último de suas vidas.
526
Sveta, na estranha manhã que vira os
homens fardados, dobrou um papel em
quatro partes, fez movimentos cautelosos
para Khristeen Kuznetsov – que a esprei-
tava à distância – e abandonou o bilhete
no estofado do qual levantara, pondo-se a
caminhar como se nada tivesse acontecido.
Khristeen aproximou-se do sofá, sentou em
cima do papel amarelado e lentamente o
pôs no bolso. Horas depois, para sua sur-
presa, não se tratava de algum bilhete ou
mensagem relevante a ser compreendida.
Sveta abandonara a página de um dos li-
vros da biblioteca, cujo tema resumia-se
no título: “Artrópodes”. Khristeen correu
a visão nas letras quase apagadas do título
“Coscinocera hercules” e devolveu o papel
ao bolso, pondo em dúvida a sanidade de
527
Sveta Lyubov – que sempre fora a mais
peculiar das três, no fim das contas.

— Você não leu?! – Sveta cobrou da amiga


na noite do último dia, quando se encon-
traram às três da madrugada no armário
de vassouras. — Khristeen, você não leu o
artigo?! Está falando sério comigo?!

— Não, Sveta, eu não li! Será que é tão


difícil perceber que vamos arriscar nos-
sas vidas daqui a algumas horas e que não
podemos tirar o foco das prioridades!?
Não me interessa conhecer a porcaria de
artrópodes a essa hora, Sveta, temos um
plano para pôr em prática!

— Que vadia egoísta é você, Khristeen


Kuznetsov – as outras duas arregalaram
os olhos atônitas com a ousadia da menina
mais doce do trio. — Então, o mundo real-
mente gira em torno de você, não é mesmo?
528
Pois eu tenho uma ótima novidade, se é
que vocês querem saber: vocês não são as
únicas que querem sair desse inferno! E é
justamente por isso que eu arrisco minha
pele arrancando folhas dos livros da bi-
blioteca! – ela tomou o papel dobrado da
mão de Khristeen. — Essa “porcaria”, que
a propósito NÃO FOI LIDA, é que pode
muito bem ser a nossa maior aliada ama-
nhã de manhã. Se me permitem ler “esta
porcaria”...

Sveta Lyubov leu um velho artigo sobre


uma espécie peculiar de artrópodes que
participava do fenômeno que cientistas
costumam chamar de “Nuvem Cinza In-
tercontinental”; um acontecido relatado de
década em década por moradores locais
da Rússia e Austrália. Milhares de mari-
posas da espécie Coscinocera hercules atra-
vessam o sul da Austrália até chegarem
529
misteriosamente em focos isolados da Rús-
sia, seguindo – acredita-se – uma corrente
de ar fria sobre o oceano, levando-as (por
fim) à morte sob temperaturas negativas
na Eurásia.

— Está difícil de entender ou querem


que eu desenhe? – Sveta sabia bem mais
do que as amigas julgavam pertinente.

— Você não está dizendo que será amanhã


o dia dessa... “Nuvem Cinza”... Está? – Por
uns segundos, Tasya temeu pela sanidade
da amiga.

— Não, não estou lhes dizendo isso –


retrucou, num lapso de ironia que estava
pouco acostumada. — Estou apenas expondo
um fato que foi documentado há dez anos,
num livro acadêmico de biologia, finan-
ciado pelo fundo de amparo à pesquisa de
Muskov. Precisam de mais evidências do
530
que isso? – o silêncio permaneceu entre as
meninas. — Se esse artigo for verdadeiro
e a data desse livro for mesmo de dez anos
atrás, então essa corrente de ar frio passa
por Muskov exatamente amanhã, às 11 da
manhã, uma hora depois da chegada da
imprensa.

— E se... – Khristeen foi tomada por um


ânimo súbito — ...se for verdade tudo isso?
Se amanhã elas realmente aparecerem?

— Então, minha cara, teremos certeza


absoluta de que essa é, de fato, a oportu-
nidade que esperávamos.

Um barulho enorme forçou o trinco da


porta do armário, assustando o trio espe-
rançoso iluminado à luz de vela. Khristeen
apagou a chama com o coração batendo
na garganta, Tasya ergueu-se num pulo
com o sangue pulsando rápido nas veias e
531
Sveta esquecera no chão o papel rasgado
que segurava. Todas enfiaram-se na escu-
ridão de detergentes e vassouras velhas no
fundo da salinha.
Quando Khristeen percebeu que havia
deixado o lampião para trás, já era tarde,
e uma velhota roliça cruzou a porta como
se sentisse o cheiro de fugitivos à espreita.
O rosto envelhecido e assustadoramente
pálido fez as meninas tremerem da cabe-
ça aos pés, imaginando o fim trágico que
teriam nas mãos da faxineira do hospício.
A velha deu um salto para trás ao ver o pa-
vio da vela ainda fumegante e recolheu o
artigo estático na irregularidade do chão
frio, descobrindo, por fim, a presença de
pacientes fora de suas celas.
Ao ver a silhueta das três encolhidas
nas trevas, a mulher teve certeza de que
o momento de sua própria liberdade se
532
aproximava. Um suor frio correu veloz
sobre o corpo enrugado, e todos os anos
de sofrimento que presenciara no hospício
esvaeceram-se à presença da luz divina de
uma vingança pessoal que custou a apa-
recer. A anciã viu nas três amigas a opor-
tunidade de provar sua autonomia. Teria
a chance de ser um raio de esperança às
crianças amedrontadas à sua frente e, ain-
da, provaria a si mesma que não era parte
da corja corrupta de administradores do
hospício.
A senhora fechou a porta atrás de si, catou
a caixa de fósforos no fundo do avental e,
incapaz de expressar a alegria em palavras,
optou por manter o mistério em torno de
suas reais intenções.
Sveta agarrou firme o cabo grosso de ma-
deira de um esfregão ali perto e aguardou
que a proximidade da morte revelasse o
533
instante decisivo de uma ação instantânea.
A velha acendeu um fósforo lentamente,
iluminando os olhos macabros a fim de pôr
medo em qualquer intruso que a aguardasse
na escuridão. Mas antes que iluminasse o
pavio da vela abandonada, ela soprou forte
aquela única chama e prosseguiu estática
no escuro da saleta.

— Vocês têm dois minutos e nada além


disso – disse a velha, rouca pelos quarenta
anos de fumo. — Voltarei pelo meu esfre-
gação.

Sveta suou frio, assim como as amigas,


sem compreender o ocorrido. A vida no-
vamente lhe mostrara uma generosidade
desconhecida, e os fantasmas de seu pas-
sado vieram lhe assombrar uma vez mais
nos pesadelos ocultos de uma memória
sofrida.
534
Paciente: Sveta Thornton Lyubov

Idade: 16 anos

Laudo Clínico: A paciente deu entrada com


queimaduras de terceiro grau em 85% do
corpo, tendo rosto, tórax, cabelos e unhas
altamente comprometidos pelo fogo. De-
tectou-se cortes profundos nas pernas, sem
danos a artérias de caráter nobre ou qual-
quer ligamento importante. Visivelmente
afetada pelo estado de choque, a paciente
permaneceu duas semanas sob coma in-
duzido na enfermaria deste instituto.

Laudo Psiquiátrico: Paciente diagnosticada


com transtorno delirante persistente, tem
histórico de negação, compulsão alimen-
tar, comportamento antissocial e delírio
profundo relatado em ficha do Orfanato
de Muskov, do qual veio encaminhada.
535
Atualmente, encontra-se sob estado de
choque e em recuperação parcial da epi-
derme. Responde judicialmente por crime
ambiental, sendo a responsável pela quei-
ma ilegal de 38 hectares da floresta Filin.

“Um único morango, possui sementes suficientes


para plantar 200 mudas.” Foi agarrada nes-
te fato que Sveta Lyubov encontrou uma
nova paixão para o seu dia a dia: cultivar
morangos na floresta vizinha ao orfanato
onde morava. A floresta Filin estava longe
de ser o ambiente mais seguro para esse
tipo plantio, porém ainda menos seguro
era o orfanato que sequer tinha uma horta,
um quintal ou o menor vestígio de verde
que lhe trouxesse a esperança de um cul-
tivo. Por esse motivo, saía todas as noites
pelo duto de lixo, levando consigo uma pá,
uma escova de  plástico, uma garrafa de
536
água e restos de alimentos que encontrava
no caminho.
Por alguma razão desconhecida, Sveta
nunca teve medo de entrar na floresta altas
horas da madrugada, talvez por conta de
sua aparência pouco atrativa, talvez pela
valentia que o rosto balofo sempre apa-
rentava, ou quem sabe pela convicção de
que em Filin não existem segredos obscu-
ros, apesar de sua flora milenar alimentar
um mistério curioso. O fato é que, todas as
noites, driblava a inspetora idosa, passava
pela cozinha e embrenhava-se no duto de
lixo como um rato faceiro e, quando me-
nos esperava, via-se livre para além dos
muros de concreto chumbado.  
Sveta Lyubov dera início a essa ativida-
de muito antes das crianças começarem a
zombaria: “Rolha de poço não consegue brin-
car no pula-corda.”, “ desse lado ficam todas as
537
meninas do meu time, e do outro fica Sveta,
para equilibrar o peso da gangorra.”, “a orca
deve estar ressecada por tanto tempo longe do
oceano!”, etc. No geral, as gracinhas vinham
acompanhadas de um coral medonho de
gargalhadas que, no fim das contas, em
nada entristecia a menina; ela sabia que
devido ao seu sobrepeso e altura era capaz
de aleijar metade daqueles pirralhos com
uma única porrada bem dada – o que ex-
plica o fato de a xingarem à distância.  

A princípio, sentiu o peso da solidão con-


sumir boa parte dos anos enquanto se via
obrigada a aceitar a perda precoce dos pais
mortos acidentalmente. Contudo, após o
luto, Sveta amadureceu tão abruptamen-
te que já se sentia livre da necessidade de
convivência com outras crianças. Tornou-
-se autossuficiente até mesmo para cobrir
os rastros de medo que tinha de um futuro
538
solitário e, portanto, agora era destemida
em todos os sentidos da palavra, dispos-
ta a aguçar a única paixão que ainda lhe
satisfazia por completo e que nunca  lhe
magoara os sentimentos: a paixão pelas
coisas que cresciam da natureza. 

Numa manhã fresca de sábado, quando


todos alardeavam pelo pátio em suas brin-
cadeiras, Sveta percebera um pinheiro no
lado oposto do muro, onde filetes de uma
planta verde-escuro enrolava-se vigorosa
às folhas e galhos espiculados. Soube de
imediato que se tratava de uma fruteira
silvestre somente pela vivacidade daqueles
contornos. O morangueiro escalava a ár-
vore como uma espécie de visgo solitário,
embrenhando-se tronco acima em busca
de luz, sumindo em meio às folhas que o
preservavam com sucesso. Após isso, basta-
ram poucos meses até que Sveta Lyubov se
539
apossasse da floresta Filin como sua ado-
rável plantação particular.
Com os próprios morangos recém-de-
sabrochados, ela semeou uma nova sa-
fra que cresceu incrivelmente sadia e viu
um túnel maravilhoso se formar naquele
trecho de floresta intocado. Quase todas
as noites, fugia de seu aposento e adubava
o terreno com restos de comida, e isso a
fazia sentir-se viva e alegre por enfim ter
encontrado um propósito à adolescência.  
No começo de outubro de 1932, Sveta fez
o mesmo trajeto de sempre ao encontro
de sua paixão. Adentrou pelas árvores te-
nebrosas da madrugada, pisou firme no
caminho úmido recoberto por limo, pas-
sou pelos mesmos pinheiros secos, escalou
uma pilha esquisita de pedras e chegou à
extremidade sul da floresta. De lá, pôde ver
o muro do orfanato negro no breu da noite
540
e ficou aliviada ao perceber que as luzes do
seu interior permaneciam apagadas – um
sinal de que a fuga fora bem-sucedida.
Ela prosseguiu no trajeto, agora entrando
em seu túnel maravilhoso de morangos,
correndo os olhos nas folhas robustas que
ela mesma ajudara plantar até que, mais
à frente, encontrou uma novidade que
fez o coração bater ligeiro. Casulos amar-
ronzados  pendiam da estrutura vegetal,
sufocando os frutos que vieram com o
outono. Sveta prosseguiu assustada em di-
reção aos últimos ramos da plantação afe-
tada, tendo esperanças de encontrar uma
parte do  morangueiro, por menor que
fosse, livre da tal praga, mas infelizmente
deparou-se com péssimas notícias.  
A natureza cuidou em distribuir a meta-
morfose por cada galho e folha verde im-
pregnada abaixo dos pinheiros, formando
541
um corredor repleto de pontos cinzas,
onde larvas hibernavam sob uma camada
grossa de veludo, nutrindo o mistério de
um futuro resumido em graça, beleza e
morte.    

Um flash amarelo cruzou o tronco dos


pinheiros ao seu lado, e ela não custou a
perceber que se tratavam de tochas cru-
zando a  escuridão  de Filin.  Sveta  enco-
lheu-se no chão úmido, contraindo cada
músculo do diafragma devido ao medo;
nenhum  vestígio  de fôlego foi capaz de
deixar os pulmões naquela hora. Uma gri-
taria bizarra atravessou a floresta até seus
ouvidos, e o desejo de jamais ter deixado
o orfanato veio à tona como um arrepen-
dimento que provavelmente lhe custaria
a vida. Eram gritos femininos, que mes-
clavam dor e prazer no timbre alucinado,
atingindo picos agudos capaz de mostrar
542
o quão perto o grupo de lunáticas estava
do morangueiro. Sveta viu a floresta cla-
rear de repente com uma fogueira gigante,
que  bruxuleava  entorno  de uma antiga
cerimônia pagã.
O calor das labaredas chegava ao seu
corpo em nuvens grandes de aflição, le-
vando-a a percorrer o caminho de volta
a passos largos enquanto suava frio. Ela
escorregou no limo das pedras, erguendo-
-se tão rápido que mal pode reconhecer o
caminho que adentrara. Sveta correu entre
cactos, cipós queimados, troncos caídos e
lama pegajosa e, em seu medo de ser cap-
turada, mal enxergou o labirinto do qual
a mata lhe guiara.
Quando menos esperava, as chamas da
fogueira surgiram bem à sua frente como
feitiçaria, e todas as sete mulheres que antes
dançavam, agora fechavam um círculo ao
543
redor da menina, que gritou assombrada
vendo os olhos negros e famintos das fi-
guras pálidas. Sveta gritou ainda mais alto
antes de perceber que ninguém a escutaria
no interior da floresta. Foi então que, num
ato desmedido, correu em direção à moça
mais ossuda do grupo e, com o punho fe-
chado, acertou-lhe o rosto, concentrando os
95 quilos do corpo num só golpe. Mesmo
sem ver o resultado daquela proeza, cor-
reu como nunca na vida pela única brecha
que teve.

Gritos selvagens rasgavam a garganta


das feiticeiras que seguiam a menina hor-
rorizada, todas em bando, correndo como
fadas assassinas até a presa que adentrava a
escuridão  debulhando-se em lágrimas.
Sveta Lyubov manteve-se por um tempo a
uma distância segura de suas predadoras,
para em seguida sentir o alívio no peito
544
desaparecer com uma claridade indescri-
tível que lhe cegou por completo, envol-
vendo-a em fogo. O calor das labaredas
engelhava seu corpo com a adrenalina de
uma morte inegociável.

“Então é esse o meu fim?”, ela imaginou


enquanto ardia nas brasas. “A balofa do or-
fanato terá um fim tão digno quanto o de uma
carne de churrasco?”.

Quando Sveta foi capaz de abrir os olhos


sob a dor profunda de queimaduras pelo
corpo, ela reparou o concreto estendendo-
-se à frente como uma muralha gigantesca
que a separava de uma possível salvação.
Rastejou entre os galhos queimando à
procura da passagem secreta de lixo que
conhecia. Os pés tremiam sobre o chão es-
caldante e a pele tornou-se pegajosa como
cera derretida.
545
Bastou ver o brilho negro daqueles olhos
ainda no encalço que Sveta tateou o muro,
numa última tentativa de sobrevivência, e
sentiu os dedos em carne viva encontra-
rem um ferrolho quase tão quente quanto
seu próprio sangue – o que a trouxe de volta
ao jardim do orfanato. Rastejou-se como
um animal, já sem saber se eram lágrimas
ou sangue o que umedecia seu rosto. Das
janelas, as crianças a observavam boquia-
bertas; Filin agora era um inferno repleto
de chamas, e a “baleia” Sveta Lyubov sur-
gira desfigurada pelo fogo, agonizando no
pátio do recinto. “A gorda maluca incendiou
metade da floresta!”, eles concluíram. E sem
ter a menor chance de conversa ou maio-
res explicações, Sveta Lyubov fora internada
na ala emergencial do Hospício de Mus-
kov – lugar no qual permaneceria até os
últimos dias de sua vida.
546
No simbolismo filosófico da Roma de Nero, esta
classe de artrópodes sente-se atraída pela luz
como indicativo à busca arrebatadora pela ver-
dade; assim como sua atração fatal pelo brilho
do fogo simboliza a paixão consumidora de
almas que voam de encontro às chamas, sem
qualquer medo de serem queimadas.

Quando o grupo emblemático de jor-


nalistas cruzou o salão principal, todos
estavam acomodados em seus quartos, a
maioria agitada pela reclusão prematura
daquela manhã. No geral, os internos cho-
ravam quando privados da luz do sol ou
da brisa fresca que entrava pelas janelas
engradadas. No entanto, aquele dia tinha
sido diferente: eles gemiam, reclamavam
esporadicamente, andavam de um lado a
547
outro em seus cômodos e demonstravam
um sexto sentido nervoso às intempéries
daquele sábado.

Khristeen Kuznetsov tremia por baixo da


estrutura que lhe escondia a alma, pressentia
o cheiro da morte bem perto e, apesar de
ter escolhido ir a fundo no plano de fuga,
teve medo de fazer parte da estatística de
desaparecidos – ou assassinados – do hos-
pício. Tasya Ivanov chorava em silêncio no
quarto ao lado, rezando em segredo pelo
irmão e extremamente preocupada com a
agitação incongruente dos amigos de cela.
E Sveta Lyubov sentia o coração acelerar
a cada vulto acinzentado que cruzava o
basculante de poucos centímetros acima
do beliche onde deitava. Ela sentia o co-
ração da natureza lá fora pulsando dentro
de seu corpo, e com isso tinha a certeza de
que sua teoria sobre as mariposas estava
548
correta. Havia muita neve acumulada no
entorno do hospício, e com ela havia uma
outra beleza que cruzara o pacífico, orna-
mentando os entornos de Muskov sob asas
frágeis rumo à morte premeditada.

Os detalhes foram repassados um por


um naquela última madrugada, muito
antes do susto enfrentado no armário de
vassouras, e Khristeen sabia que seria a
primeira a pô-lo em prática.

— Ivo – ela chamou um homem franzino,


que conhecera há pouco tempo como “o
esquizofrênico-peida-chumbo” por sua habili-
dade de comer qualquer porcaria e obrigar
os colegas de quarto a cheirar o resultado
da fermentação em seu estômago. — Por
que está tão agitado, meu amigo?

— Eles. Eles. E-E-Eles não... Eles não


deixam a gente brin... A gente brincar lá
549
fora. Eles trancaram a gente. Trancaram
todo mundo.

— Eu sei, querido. – não se sabe como,


mas a menina criara habilidades incríveis
para a mentira. — Mas eles vão nos soltar
em breve, tá bom? Venha, sente-se aqui.

— Eu não quero.

— Não quer? – e sequer existia remor-


so gravado em sua índole. — Nem por
um delicioso suco de laranja? Eu guardei
o meu para beber após o café da manhã,
mas toda essa movimentação de vocês me
deixou enjoada.

O pobre Ivo tinha quase quarenta anos


e mesmo assim era desprovido de muitas
malícias. Ela o fez beber do suco tran-
quilamente, escondeu o copo de plástico
e juntou-se aos demais colegas de quarto
que sequer perceberam o feito. Khristeen
550
agarrou-se às grades da porta e aguardou
até o surgimento do sinal que esperava.
Quando Ivo fez uma careta contorcida e
soltou leves arfadas pela boca, ela gritou
o mais alto que pôde:

— ENFERMEIRA! ENFERMEIRA!

Os demais internos que ouviram o grito


instauraram a onda de pânico crescente
em meio a gritos, choros, pulos e palmas.
Eles sentiam desde cedo que havia algo de
errado em sua rotina sabatista, e ouvir um
grito tão pavoroso tomar os corredores da-
quele jeito fez com que o medo corroesse
o pouco de sanidade em suas cabeças.

Um contingente de serventes correra


com os olhos arregalados para saber do
ocorrido. Especialmente neste dia, sur-
giram desprovidas de cassetetes ou varas
de ferro com ponta espiculada devido a
551
manutenção das aparências para um dia
tão “festivo”.

— Que merda está acontecendo aqui?! –


uma velha magricela sussurrou, temendo
que as formalidades no andar de baixo
fossem interrompidas. — O que este filho-
-de-uma-porca está fazendo?! – Ivo vomi-
tou jatos concentrados da gosma marrom
servida no café-da-manhã. — Pare com
isso com isso, porco miserável! Vocês aí,
entrem o quanto antes e limpem a merda
desse imundo! Rápido!

A porta se abriu em meio aos uivos de


todos, que escutavam o caos instaurado.
Um grupo de cinco mulheres entrou com
panos molhados para esfregar o chão.

— O RESTANTE DE VOCÊS CALE A


BOCA AGORA MESMO! – a velha inspetora
enrubesceu por um segundo, imaginando
552
que os gritos alcançaram os ouvidos dos
visitantes, que agora estavam entregues às
solenidades de reconhecimento territorial.
Khristeen percebeu que perdeu o controle
de si devido ao choque de adrenalina que
tomara seu corpo e, enquanto observava
as mulheres limparem o vômito num de-
safio contra o tempo, ela ouviu um brado
ainda mais forte ecoar do quarto ao lado:

— ENFERMEIRA! ENFERMEIRA!

Era a voz de Tasya que anunciava mais


um paciente sucumbindo a jatos incríveis
de vômitos alaranjados. Nesse momento,
três das cinco serventes deixaram o quar-
to de Khristeen e correram até o próximo
incidente a ser limpado antes que o fato
viesse à tona aos visitantes.

— AH! ENFERMEIRAAA! ELA ESTÁ


VOMITANDO EM CIMA DA CAMA!
553
– Sveta também gritou na outra extremi-
dade do salão, de dentro do quarto onde
mais uma poça de excremento manchava
o chão daquela unidade.
“Vánia”, Khristeen sussurrou no ouvido
de uma jovem atordoada com o barulho,
a única em sua cela diagnosticada com
Síndrome de Down. “Eles trouxeram os
monstros para cá essa manhã, por isso estamos
trancados aqui dentro. Eles vão nos encontrar
se não fugirmos! Nós temos que fugir, Vánia!
Vai, corre! Não perde tempo!”. A moça se pôs
para fora da cela com as mãos tapando os
ouvidos, correndo em meio aos gritos en-
surdecedores da crescente loucura.
Os demais pacientes fizeram exatamente o
mesmo, sendo impossível a equipe de cinco
serventes e uma inspetora deterem a onda
de malucos que corriam aleatoriamente.
A velha inspetora, vermelha da cabeça aos
554
pés, se viu obrigada a pôr o apito entre os
lábios e soprar com o máximo de força
que os pulmões cansados eram capazes
de aguentar. O contingente de seguranças
que estava tranquilo na recepção do reda-
tor-chefe e toda a comitiva de imprensa
ergueram-se num pulo ao som do brado
agudo e adentraram os corredores escuros
até o saguão de demência na Ala Leste.

Khristeen foi a primeira a chegar no lo-


cal combinado e já aguardava ansiosa as
amigas no armário de vassouras quando
percebeu a agitação anormal do lado de
fora. Os guardas juntaram-se ao montante
desesperador de pacientes soltos, agarran-
do-os pelos cabelos, amarrando-os com
cordas, tirando-lhes sangue à força bruta.
Khristeen ouviu alguém forçando a ma-
çaneta da salinha escura e entrando tão
555
depressa que mal foi capaz de distinguir os
tiros e choros da presença recém-chegada.

Quando se deu pela realidade, notou que


era a velha roliça da limpeza quem entra-
ra no armário, empurrando um carrinho
grande de panos sujos, fazendo Khristeen
gelar em desespero sob um grito repentino.
As duas ficaram frente a frente na escuri-
dão de vassouras empoeiradas quando, de
dentro do carrinho abarrotado de panos,
Tasya saiu, procurando fôlego. Junto con-
sigo estava o irmão Dimitri, tão assustado
quanto os gritos de dor que rondavam lá
fora.

— O que ela faz aqui, Tasya?! – pergun-


tou Khristeen, estupefata.

— Não sei ao certo, mas não teria con-


seguido sem a ajuda dela. Ela nos trouxe
556
em segurança, Khristeen! Dimitri está aqui
conosco, isso não é ótimo?!

A velha permaneceu estática na escuri-


dão, em silêncio, absorvendo os vestígios
de uma redenção que, em seu interior,
explodia como fogos de artifício. Encon-
trara Tasya e o irmão às sombras de uma
fuga improvisada, e que certamente seria
frustrada não fosse por sua audácia de
escondê-los no interior do carrinho, em-
purrando-o pelos corredores. Após todos
esses anos de serviço a um corpo tirano,
finalmente teve coragem de agir em prol
de alguma justiça.

Enquanto os três se abraçavam, Sveta


surgiu ofegante na porta do armário, com
a voz encorajada e os olhos arregalados
ao ver a senhora da limpeza submersa em
sentimentos de culpa e absolvição:
557
— Eu disse, meninas! Elas chegaram, eu
disse! Vamos, a imprensa está aglomerada
na Ala Leste junto aos guardas. A porta dos
fundos não ficará desprotegida por muito
tempo!
Os quatro correram com todas as for-
ças que o universo os presenteara; iriam
deixar o Hospício de Muskov por uma
fenda estreita escondida entre o container
enferrujado de lixo orgânico e o paredão
dos fundos que cercava o recinto. Khris-
teen descobrira a existência da brecha por
conta dos lobos que avistara vez ou outra
devorando restos nojentos de carne e que,
desde então, adentravam desapercebidos.
Assim que a meia luz do dia brilhou
sobre o rosto das fugitivas, Sveta soltou
um brado de felicidade ao ver que, agora,
as amigas presenciavam a benção da na-
tureza àquele feito corajoso: o Hospício de
558
Muskov tinha sido invadido por milhares
de mariposas gigantescas, que formavam
um enorme manto cinza-amarronzado
nas paredes frias do local. Os guardas
debatiam-se cobertos de asas aveludadas;
uns pacientes gritavam de horror, outros
simplesmente desmaiaram. Um manto
inacreditável de mariposas invadia a porta
dos fundos escancarada e, foi através de-
las que as três meninas e o pequeno Dimi
sentiram os pés afundarem na neve do
quintal infestado pelo bater das asas de
uma invasão fantástica de seres adoráveis.

Tasya segurou firme o irmão, encora-


jando-o a correr o mais rápido que pu-
desse, mas antes que ele ganhasse o ritmo
para acompanhá-la na corrida, uma pedra
enorme acertou a cabeça da irmã, derru-
bando-a sobre o sangue que se misturou
à brancura da neve densa. Um homem
559
robusto agarrou Dimitri pelo pescoço e
deu-lhe um soco, fraturando o osso nasal.
A irmã gritou tão alto que sentiu a cabeça
girar e as forças terminarem ali mesmo
na neve.
— KHRISTEEN! – Sveta gritou, correndo
em meio às mariposas. — ELES PEGARAM
O DIMITRI! A TASYA ESTÁ NO CHÃO!
TASYA ESTÁ INCONSCIENTE!
Khristeen sentiu o frio na espinha ao
ver a neve tingida de sangue logo abaixo
da amiga desorientada. Parou de correr
por um instante e travou uma batalha
entre salvar a própria pele ou resgatar o
que restara de Tasya Ivanov. Foi então que
surgiu, por detrás do agressor do menino
ensanguentado, uma silhueta avantajada,
coberta de asas que batiam freneticamente:
a velha da limpeza surgiu munida de seu
facão, que prontamente enterrou nas costas
560
do homem furioso que caiu em seguida,
perdendo os sentidos. Tasya fora erguida
pela senhora que a ajudara uma vez mais,
agarrou o irmão debulhando-se em lágri-
mas e continuou correndo em direção às
amigas, segurando o menino pelos pulsos,
correndo o mais rápido que pôde.

Um rojão forte explodiu no ouvido de


todos, precedendo um grito rouco que
anunciara a morte da senhora que ainda
segurava o facão ensanguentado. E como
se o tempo passasse em câmera lenta, as
milhares de asas gigantes do lugar come-
çaram a perder o vigor da vida precoce.
Desfalecendo uma a uma, as centenas de
mariposas paralisaram como estátuas e
foram de encontro ao chão como uma
chuva infinita de pontos cinzas cobrindo
a brancura da neve – um verdadeiro mar
de mariposas inebriadas, paralisadas pelo
561
frio e pela genética desconhecida de sua
natureza. Foi então que o novo segurança
teve a mira livre para perpetuar o servi-
ço que tanto lhe dava prazer na vida; um
novo rojão ecoou pelo quintal do hospício.

Tasya pôde ver ao longe a fresta de sua


liberdade, Khristeen e Sveta estavam pró-
ximas dele e, por um segundo, acreditou
que era tarde demais para alguém detê-las.
Tasya Ivanov sentiu o peso da mão direi-
ta aumentar conforme prosseguia com o
irmão mais novo e, sem olhar para trás,
baixou os olhos para o que agora se resu-
mia a um corpinho sendo arrastado entre
o mar de mariposas paralíticas. Dimitri
Ivanov não respirava, e o sangue em sua
boca agora era quase negro, agravado pelo
tiro que lhe atravessou o olho esquerdo.
Khristeen e Sveta correram até a amiga,
imersas no grito profundo que saiu de sua
562
boca, agarrando-a com força e tentando
separar os dois corpos que se prendiam
numa dor inimaginável.
As mariposas, como num passe de má-
gica, ergueram-se num retrocesso triste
do destino e agora retomavam os ares sob
uma onda poderosa de cores, escondendo
as três amigas sob lágrimas que tentavam
acima de tudo escapar com vida do hospício.
Deixando o corpo desfigurado de Dimitri
para trás, Khristeen, Sveta e Tasya atra-
vessaram a fresta do muro e adentraram a
floresta vizinha ao som de tiros perdidos,
que nada acertaram além de uma porção
de insetos graciosos e infinitos.
Enquanto as lágrimas salgadas consu-
miam tudo por dentro das amigas, cada
uma delas imaginava um futuro de vin-
gança e redenção à loucura que Muskov
envenenara em seu passado. A injustiça da
563
sanidade, a força oculta por trás das coisas,
o poder fantasmagórico da natureza; tudo
se resumia a um caleidoscópio na cabe-
ça das meninas que cruzavam pinheiros
gelados, abetos esbranquiçados e grutas
escuras à espera de um bom recomeço.

O coração secreto
de Marte
L U C A S O D E R S VA N K

Inverno de 1937

A
rrastavam-no por um labirinto de pe-
numbra, uma treva de gelo lhe roubava
o calor à alma. Era como despertar
para um pesadelo. Ecos sussurravam distan-
tes e um véu turvo colava-se à retina, apenas
deixando adivinhar vultos e sombras que se
564
projetavam à luz mortiça das raras lâmpadas.
Em silêncio marcial, mãos de aço agarravam-
-lhe ambos os braços com a violência de quase os
partir. E partiriam. Pararam em frente a uma
porta colossal, forjada em um ferro tão maciço
quanto as trevas daquele lugar. Sem cerimônia,
uma daquelas bestas vestidas de branco cuspiu
uma ordem seca e, antes que o eco de sua voz
se perdesse na escuridão, o metralhar de mil
ferragens fez-se ouvir. A porta moveu-se com
um lamento metálico de cortar a alma, liber-
tando um hálito de podridão e desespero. Não
tão distante, um coro de lamentos, loucura e
dor chegou-lhe aos ouvidos, infectando o que
lhe restava da esperança. Deixou-se cair. Seus
olhos perderam-se naquela imensa boca negra,
a entrada para as entranhas do devorador das
almas infelizes.
Uma entrada para o inferno.

565
Ilya despertou, afogando-se em seu próprio
vômito. Virou-se à beira da cama decrépita
onde tremia de frio e vomitou a bile escura
que lhe queimava a garganta. Como em
todas as vezes que fechava os olhos, fora
atormentado por aquele mesmo pesadelo
onde era atirado à escuridão infernal do
Hospício de Muskov.
Um dia desses, arrastem-me até a saída,
pensou, como quem pede uma esmola de
piedade a um deus qualquer.
Arriscou a erguer-se na cama, mas seus
músculos e ossos estavam liquefeitos em
dor. Sentiu então uma presença que chega-
va ao seu lado e o amparava com alguma
gentileza. Fez um esforço dolorido para
virar o rosto e viu a figura raquítica e mal-
tratada de Pavel. Era um rapaz de idade
indecifrável, que fora ali parar por insistir
em vestir-se como a Marlene Dietrich. O
566
jovem oferecia-lhe um largo sorriso, talvez
feliz por vê-lo ressuscitar daquela quase
morte, ou porque Pavel sorria até para as
paredes.

— Ora, seja muito bem-vindo de volta,


Ilya Petrovich – Pavel cumprimentou-o
com a cordialidade excêntrica de quem
perdera alguns pedaços do perfeito juízo.

— Há quanto tempo está aí?

— Estou sempre por aqui, Ilya Petrovich.

— Não precisava.

— Está pálido, Ilya Petrovich. Fome?

— Estou bem.

Ilya ofereceu-lhe um sorriso pálido,


engolindo a dor aguda que explodia nas
têmporas. Pavel amparava-o pelos ombros,
ajudando-o a sentar-se na cama e a pôr os
pés no chão gelado.
567
Como em todos os miseráveis dias, o
hospício estava mergulhado em um fedor
cadavérico que o infestava como uma mal-
dição. Por suas paredes, ecoava o eterno
coral de almas sofridas, que embalava as
sombras em uma cantilena doentia. Ilya
não era capaz de saber se seria dia ou noi-
te, pois o hospício jamais dormia e aquele
inverno de chumbo engolira o Sol.

Quem não enlouquece em um lugar como este?

Naquelas galerias amaldiçoadas, centenas


de infelizes amontoavam-se em agonia,
apodrecendo no abandono e na crueldade
de torturas medievais. Nunca vira alguém
sair dali curado. Até então, apenas presen-
ciara duas formas de escapar àquele infer-
no: a demência vegetativa, ou a fornalha.

Pavel pegou um pequeno lenço, prova-


velmente rasgado de sua própria camisa, e
568
começou a limpar o vômito que se colara
ao rosto do objeto de sua devoção. Sorria
como se cuidasse de algo precioso. De perto,
Ilya pousou os olhos na cicatriz retorcida
que o rapaz carregava na cabeça raspada,
poucos centímetros acima da orelha di-
reita. Era a assinatura de uma lobotomia.

Mais uma alma miserável condenada a este


lugar.

Alheio ao mundo, Pavel ruminava uma


de suas canções. Ilya, por sua vez, tentava
imaginar por quanto tempo sobreviveriam
àquele abismo. Muskov era um cemitério
onde se sepultavam coisas quebradas, in-
desejáveis, ou que desafiavam as leis de
um deus que os havia esquecido. O desti-
no das almas perdidas de uma nação em
escombros.

— Obrigado – murmurou a Pavel, com a


569
voz empastada e uma gratidão que trans-
cendia palavras. — Mas agora vá...

Com um gesto delicado, encaminhou


Pavel a afastar-se. O rapaz seguiu em pas-
sos nervosos sem olhar para trás, sorrindo
e cumprimentando os olhos vazios pelos
quais passava.

Ainda nos trará problemas...

Ilya cedo aprendera que em Muskov a


solidão era a chave para sobreviver e não
ser arrastado em uma desgraça ainda
maior. Procurava ser invisível, solitário,
um fantasma nas sombras. Um passo em
falso, um olhar, uma palavra errada po-
deria sacramentar uma ida sem volta para
uma das salas brancas.

Afastando aquele pensamento, levan-


tou-se e saiu farejando algum buraco onde
pudesse desaparecer e sobreviver a mais
570
um dia. Apesar de sua condição miserável,
Ilya não queria morrer, não ali. Era uma
esperança que jamais brotaria de seus lá-
bios, pois ouvira dizer que a morte não
compartilha dos desejos de quem está vivo.

Ilya dormitava no vão de uma escada


quando ouviu gritos de desespero e dor.
Reconheceu de imediato.

Raios te partam, Marlene Dietrich!

Precipitou-se aos tropeços em direção


ao tumulto e descobriu Pavel com o rosto
pintado em uma imitação grotesca de sua
musa, onde pó e tinta misturavam-se ao
olho roxo e lábio partido. Amarrara ao cor-
po um lençol imundo, como se fosse um
vestido de gala. Ilya mastigou uma praga.
Dois brutamontes travestidos de enfer-
meiros tentavam contê-lo com violência.
571
Detrás deles, enfiado em um longo guarda-
-pó que lhe dava ares de santo de catedral,
Dr. Gorsky parecia divertir-se.
— Ilya Petrovich! Ilya Petrovich! – Pavel
metera-se a gritar assim que o vira e es-
tendeu-lhe a mão como podia, oferecendo
o pedaço de pão que defendia com a vida.
Como cães que perseguem o sangue da
caça ferida, aqueles animais de branco
voltaram a sua atenção para Ilya.
— Como disse? – o médico rosnou a Pa-
vel, que tremia como um rato descarnado
e urinava pernas abaixo.
— Ilya Petrovich Veligurov! – Ilya respon-
dera, elevando a voz em provocação. — Mas
vossas mães gostavam de me chamar por
outros nomes!
Sacramentou a provocação, oferecendo-
-lhes o dedo médio e agarrando as partes
572
baixas. Largaram Pavel e viraram-se para
Ilya com sede de sangue. Os olhos de Gor-
sky eram punhais. Com um simples aceno,
atiçou sobre ele a fúria de seus carrascos.

Atiraram-no ao chão com violência. O


rosto beijou a cerâmica castigada da sala
branca, pagando o preço de um dente da
frente. O sangue logo lhe brotou pela boca,
somando-se à imundície do chão.

— As roupas – Dr. Gorsky atirou-lhes.

As mãos rudes dos sabujos de Gorsky


atacaram-no com violência. Camisa, calças,
roupas de baixo, todo e qualquer pedaço
de tecido que lhe ocultava a pele pálida e
maltratada fora-lhe arrancado. Com um
sorriso de réptil, o médico mandou que
trouxessem um espelho estreito e alto,
chiando sobre rodas estridentes.
573
— Olhe.
— Vá se foder, Gorsky.
O médico enfiou-lhe a caneta sob o quei-
xo, fria como a lâmina de um punhal.
— Olhe para o espelho.
Ilya olhou, por fim. Estava ali, à sua frente,
de pele nua e lívida, o fantasma trancado
no sigilo das roupas. Seu olhar pousou no
corpo nu da mulher que o assombrava de
dentro do espelho. Um corpo que era seu,
que lhe doía como a carne viva. Com um
braço, tentou cobrir os pequenos seios nus,
onde a pele ainda guardava as marcas do
apertado pano que usava para escondê-los.
Com a outra mão, escondeu seu púbis, a
mais profunda intimidade de um corpo
que lhe nascera errado, mas de alma certa,
e no qual pulsava um coração secreto.
— O que vê?
574
— Ilya.

Estava lá, encarando de volta como uma


memória que minguava. Ilya. Os cabelos
cor de rato cortados curtos, cada vez mais
curtos. Sobrancelhas fartas sobre um olhar
que ameaçava desabar. Seu rosto anguloso,
de maxilar bem definido, suportava a dor
e o peso dos anos de violência.

— Vejamos, diz aqui: Paciente 4488,


Svetlana Petrovna Veligurova. Psicose, desvio
de comportamento e perversão – Dr. Gorsky
anunciou em voz alta, com pompa enve-
nenada. Sua corte de hienas desfez-se em
risos.

— Que pensa saber sobre mim?

Soubera-se Ilya em algum lugar meio


esquecido da primavera da vida. Viera à
luz como Svetlana, a pequena Sveta que o
carregava no silêncio daqueles que cedo
575
aprendem a tristeza de quem germina
segredos. Eram de Ilya os sonhos de suas
noites, era dele a voz que lhe sussurrava
no fundo da alma. Sempre, desde sempre.
Ilya existindo sob a pele de Sveta, um fan-
tasma de si mesmo.
Quando em seu corpo magro floresce-
ram as primeiras curvas e o sangue das
regras descera-lhe como uma maldição,
o destino fez o ultimato. Tinha dezesseis
anos quando se derramara em um mundo
que se consumia em guerra e escuridão.
Ilya nascera à força para que a alma não
lhe morresse por dentro. Estaria morto
antes de permitir que a roubassem.
O soco saiu-lhe como um disparo, es-
tilhaçando o espelho, a pele e a carne do
punho cerrado. O sangue jorrou quente
e rubro. Ilya nem teve tempo para a dor.
Em uma explosão de fúria, derrubou Dr.
576
Gorsky com uma cabeçada e lançou-se
sobre ele, apertando-lhe o pescoço magro
como se quisesse libertar todas as almas
infelizes que aquele demônio havia engo-
lido. Foram cinco segundos até as gárgulas
de Muskov lhe lançarem as garras, subju-
gando-o no chão, sobre o vidro cortante e
longe de Gorsky, que tossia em um desa-
linho rubro. Em seus olhos, faiscava uma
promessa de morte.
Cuspindo sangue e maldições, o mé-
dico levantou-se ofegante, escolheu uma
seringa e marchou sobre Ilya, que se con-
torcia no chão como um animal ferido, nu
e vulnerável. Pisou-lhe o rosto em triunfo
covarde.
— Abrirei sua cabeça como um ovo – o
demônio de Muskov rosnou-lhe do alto.
Ilya engoliu a dor quando a agulha afun-
dou em seu pescoço. O líquido o invadiu
577
como uma serpente de gelo, espalhando-se
pelo labirinto de veias e artérias. Torpor. A
luz dançava como neve soprada. Um som
de pancada e Gorsky caindo a seu lado.
Gritos, tumulto, sangue, espasmos, um
rapaz de vestido e uma barra de ferro.
Raios te partam, Marlene Dietrich...
O mundo ecoou distante e uma promessa
de escuridão o engoliu por inteiro.

O caso
Zhenshchina Tchort
DAV I D C R O F T

1939

E
ra uma noite quente como colo de
cortesã, de uma quarta feira tão desa-
gradável quanto qualquer quarta-feira
578
pode ser. Eu aguardava o telefone tocar
em meu escritório xexelento, como fiz
desde que deixei a força nove anos atrás.
O ar fedia a bunda gorda e suada, graças
à fábrica de conservas ao final da rua. O
ventilador no teto soprava mais barulho
que a fumaça do meu cigarro, enquanto
me distraía inutilmente com o jornal de
domingo.
Os negócios iam bem. A cidade incha-
va e se erguia como a estátua de Édipo,
emergindo de um lago de bosta. As várias
famílias de comerciantes e industriais, com
seus patriarcas tão ricos quanto depra-
vados, rendiam bons serviços de esposas
gordas e pelancudas, que desconfiavam de
seus maridos com suas lindas, estúpidas e
gananciosas secretárias.
Maldito janeiro. Há algo na água desta
cidade que causa impotência nos ricos no
579
início do ano. Por todo esse tempo como
detetive, tive tantos trabalhos em janeiro
quanto um galo tem pentelhos no saco.
No jornal, notícias velhas e idiotas, que
já eram idiotas quando frescas, mas uma
delas, por algum motivo igualmente idiota,
chama minha atenção:
“INAUGURADA NOVA ALA DA CASA DE
CUIDADOS PSIQUIÁTRICOS DE MUS-
KOV. A ala será chefiada pelo novo médico
austríaco, pesquisador de vanguarda, es-
pecialista no tratamento de esquizofrenia
e psicose”.
A vodca acabou junto com a minha pa-
ciência. Decidi fechar e seguir para o meu
“outro escritório”.
Oito quarteirões a pé.
O cheiro de tabaco e vodca barata de
meu escritório deram lugar ao de urina e
580
devassidão que impregnava as ruas, mas
a de bunda gorda e suada continuava lá.
Ramalhetes de mendigos enfeitavam as
entradas dos becos, e o lixo decorava os
cantos como os babados dos vestidinhos
dominicais das mulheres ricas.

No bar, a disputa no rosto daqueles ho-


mens vazios, sobre quem tem a vida mais
deprimente esgotou a paciência que já não
tinha. Malditos carcamanos.

No dia seguinte, retornava para o escri-


tório pela terceira vez, depois de um dia
andando feito um filho da puta e sendo
fodido feito à mãe dele. Crie cobras com
asas, mas não crie devedores. Elas são me-
nos traiçoeiras.

Em frente ao escritório, quase fui atro-


pelado por um carro cor de marfim.

— Vê se olha por onde anda, bêbado


581
fedorento – gritou o gorila vestido de
branco que dirigia. Ao seguir seu caminho,
pude ler na lateral do carro as palavras:
“Hospício de Muskov”.
Subi as escadas, remexendo no bolso e
na memória o retrato de minha falecida
esposa. Sempre que sua falta me atingia,
lembrava-me de seu olhar no dia do nosso
casamento. Aqueles olhos que um dia bri-
lharam como vagalumes no tecido negro
da noite tornaram-se amarelos e murchos
com a doença. Dez anos de sua doença,
nove de sua partida.
Cheguei ao escritório, a porta estava
aberta. Com meu velho cano curto na mão,
esperava encontrar algum marido insa-
tisfeito por ser pego e ter de entregar até
as ceroulas à ex-mulher, mas o que vi me
surpreendeu. No escuro de meu escritó-
rio, de pé diante da janela cuja luz passava
582
teimosa entre as persianas, estava a silhueta
de uma mulher esguia e de movimentos
suaves, quase imperceptíveis. Apertei o
interruptor ao lado da porta. A mulher
virou-se e me encarou. Usava um casaco
grã-fino, vermelho escuro como uma ca-
beça decepada de cavalo. Emoldurando seu
rosto, havia uma volumosa cabeleira ruiva,
que caía em seda e misturava-se às suas
roupas. De seus olhos verdes impossíveis,
emanava uma aura de petulância e poder
como o de um general siberiano. Seu rosto
delicado, apesar de não propriamente bo-
nito por sua extrema magreza, possuía um
feitiço, um encanto e uma nota familiar.
O próprio diabo decidira me procurar.

— Posso ajudá-la, madame?

— Me diga você. É Ivan Romanenko?

— Sou eu – respondi, dirigindo-me à


583
minha cadeira e indicando a ela outra. Ela
ignorou.

— Procuro por minha irmã.

Uma voz na minha cabeça cantava alto,


como um barítono interpretando Carmina
Burana, avisando que havia algo errado.
Havia um penhasco depois daquelas cur-
vas.

— O que houve com ela?

— Seu nome é Tathiana – disse, desabo-


toando o casaco com suas mãos de dedos
hábeis e compridos, enluvadas em couro
vinho escuro. – Há um mês, foi ao Hos-
pício de Muskov em busca de ajuda, mas
segundo os funcionários, ela nunca esteve
lá. Temo que tenham feito algo com ela.

— Já procurou a polícia?
584
— Claro. Na verdade, de forma tão direta
quanto inútil, já que seu marido é policial.

Aí estava: o penhasco.

— Sinto muito, dona. Não posso ajudá-la.

— O senhor é detetive ou não? – pergun-


tou, finalmente caminhando até a cadeira
à minha frente, sentando-se de pernas
cruzadas. Movia-se com a suavidade de
uma vespa e a segurança de uma leoa. Tão
selvagem quanto o olhar que mantinha.

— Não posso cuidar do seu caso.

— E posso saber por quê? – perguntou


outra vez, inclinando o rosto para o lado
com aquele olhar ameaçador, passando em
seguida a fitar os livros na estante, fingindo
desinteresse na resposta.

— Olha, madame... Não me envolvo com


assuntos policiais.
585
— Ela é esposa e não assunto policial, Sr.
Romanenko. Além do mais, estou dispos-
ta a ser bastante... generosa. Generosa de
maneiras inesquecíveis, até, – voltou a me
olhar nos olhos, sorrindo pela primeira
vez e fazendo-me estremecer – caso traga
à tona o destino de minha irmã.

A ruiva então deslizou a mão para o bol-


so, retirando uma cigarreira com cigarros
franceses, afastando ao fazer isso, uma
parte do casaco, expondo uma surpreen-
dente quantidade de curvas mascaradas.
Suas pernas partiam grossas e decididas
de dentro da saia curta e seguiam até os
sapatos de salto alto italianos. Jamais ima-
ginaria que uma mulher com rosto tão
magro pudesse esconder tal volúpia. Rá-
pida e instintivamente, saquei o isqueiro
da gaveta, sem sequer perceber que o tirei
586
dali e acendera seu cigarro. Um tanto in-
seguro, continuei.
— Sinto muito, madame. Não há nada
que eu possa fazer.
— Se procurasse por desculpas, teria ido
mais uma vez ao marido dela e sua laia
inútil – disse, levantando-se e sacando
um retrato, com um nome e um telefone
escritos atrás. – Para caso perceba o erro
que é essa sua regra – explicando isso, ca-
minhou estalando os saltos no assoalho
velho até a porta.
— E qual seu nome?
Da porta, ela virou-se, me fitou em si-
lêncio com um olhar perturbador e foi
embora.
Mas por mil baratas vesgas! Esse maldito
hospício parece estar me perseguindo! Exa-
minei a foto deixada na mesa. “Tathiana”.
587
A irmã desaparecida mal parece com a
que acabou de sair. Possui cabelos escuros
e um rosto austero e honesto. Seu sorriso
é um embalar de bebê, um convite a um
sono tranquilo. O tipo de suavidade que
sempre me atraiu. Por mais que a selva-
geria no olhar da dondoca tenha mexido
com meus botões, foi algo nesse olhar de
brisa marinha da foto que me inquietou
e me fez repensar minhas regras.
Atraído por uma força inexplicável, como
uma mariposa no lampião, lá estava eu,
diante do prédio desagradável do Muskov.
Aquela imagem me fez pensar se Merry
Shelley teria se hospedado aqui algum dia.
O que tinha certeza é de que Victor teria
se sentido em casa neste lugar.
Atravessei o enorme e soturno jar-
dim, chegando às escadarias e à entrada
em seguida. Meia dúzia de funcionários
588
perambulava de cá para lá no saguão da
recepção, e uma jovem de cabelos na cor e
no estado de palha estava sentada por trás
de uma mesa, me observando.

— Boa noite, boneca.

— Como vai, senhor. Em que posso aju-


dá-lo?

— Procuro por minha esposa – menti,


sacando a foto do bolso. – Ela veio para cá
há coisa de um mês. O nome dela é Tathia-
na – acrescentei, mostrando-lhe a foto.

— Sim, vi sua senhora dando entrada


conosco. Deixe-me verificar nos registros.

A jovem levantou-se e pôs-se a procurar


nos arquivos que ficavam atrás dela.

— Estranho. Deve haver algum engano.


Não encontro o registro dela.

Obser va ndo o mov i mento dos


589
funcionários, percebi uma porta meio
escondida em um canto à esquerda, com
um aviso “SOMENTE FUNCIONÁRIOS”.
Aproveitei o momento, enquanto uma ideia
tomava forma em minha cabeça.

— Escute, você poderia me dizer como


puderam perder uma pessoa aqui dentro?
Exijo falar com o seu chefe imediatamente!

Minha súbita mudança de humor abalou


a recepcionista.

— Senhor, infelizmente o...

— Não pedi por desculpas, chame al-


guém que possa me dar as respostas que
você não tem!

— Claro, senhor. Só um instante.

Aproveitando-me da saída da garota e


da total apatia dos poucos funcionários
que por ali passavam, me esgueirei pela
590
porta de funcionários, tomando de assalto
um uniforme deixado com desleixo duas
salas adentro.

Já nos meus primeiros passos pelos corre-


dores, pude sentir minha sanidade e qual-
quer traço de felicidade vazar de dentro
de mim. Depois de dois longos lances de
escada de pedra, como as das masmorras
medievais mais sombrias, achei que che-
gara aos portões do inferno. Reverberava
pelos corredores sons de gemidos como
os dos condenados aos mais profundos
círculos de Dante. Batidas metálicas, sons
de eletricidade, zumbidos indescritíveis e
todo tipo de gritos e murmúrios.

Caminhei perturbado e sem rumo como


um cego num museu até ver, distante em
um corredor, Tathiana entrar em uma sala
sozinha. Caminhei com cuidado para não
591
ser visto e cheguei à sala, abrindo a porta
silenciosamente.

— Tathiana? – sussurrei. A sala estava


escura, iluminada apenas pela luz que
vinha do corredor que eu estava. — Ta-
thiana? – insisti enquanto entrava. A luz
se estendia para dentro, cobrindo como
um lençol uma escrivaninha com fichas,
canetas, carimbos e uma luminária. Che-
guei à mesa e, logo em cima da pilha de
fichários, o nome chamou minha atenção:
“Romanenko, Tathiana”. Em pânico, sem
entender o que aquilo poderia significar,
sentei-me na cadeira e acendi a pequena
luminária, passando a ler o conteúdo do
prontuário.

NOME: ROMANENKO, TATHIANA


...FALECIDA AOS 23 ANOS...
...ENCONTR ADA MORTA COM LACER AÇÕES
592
PROV ENIENTES DE OBJETO CORTANTE
(LAUDO EM ANEXO)...
. . . PA R E N T E S C ON H E C I D O S : PA I , M Ã E ,
CUNHADO E IRMÃ MORTOS EM ACIDENTE
MISTERIOSO...
...PAI E MARIDO POLICIAIS...

...MARIDO: ROMANENKO, IVAN – CASO LEVE


DE ESQUIZOFR ENI A. R ECOMENDAÇ ÃO:
AVALIAÇÕES BIMESTR AIS.

Na porta, surgiu o Dr. Iannovich com seu


familiar, calmo e dissimulado semblante,
acompanhado por três funcionários gorilas.
— Bem-vindo de volta, Sr. Romanenko.

593
Os dezesseis
reflexos de Maria
IA PSA

1940

D
izem que no fim do corredor prin-
cipal de Muskov, perto de uma sala
de eletroconvulsoterapia, havia
um espelho rachado. Pequeno, oval, com
uma moldura de madeira escura e gasta,
e quinze riscos formando um mosaico de
partes pouco uniformes. O espelho nunca
foi encontrado. Porém, era onde Maria cos-
tumava passar longos minutos se olhando.
E onde o Dr. Baryshnikov a observava.

Sergey Baryshnikov havia se formado


psiquiatra há pouco tempo quando come-
çara a trabalhar em Muskov. O psiquiatra-
-chefe o havia contratado como assistente
594
em maio de 1939, confiando no potencial
do jovem médico para assumir alguns
casos no hospício à beira do colapso. Foi
em janeiro de 1940 que a moça de cabelos
negros foi admitida.

Nome: Maria Ulyana Kotcheva.

Diagnóstico: Distúrbio Dissociativo. Múl-


tiplas Identidades. Sem possibilidade de cura;
terminal.

A ficha passou um breve momento nas


mãos do psiquiatra-chefe, e depois foi di-
retamente para a mesa do Dr. Baryshni-
kov. Casos catatônicos como aquele eram
sempre entregues aos assistentes, para que
o psiquiatra-chefe não tivesse trabalho. No
fim, eles acabavam vendo o paciente uma
única vez e deixando-o à própria sorte por
595
aqueles corredores deploráveis. Mas, o Dr.
Baryshnikov não era desse tipo.
A primeira consulta com Maria foi em
uma quinta-feira. Após ter visto três esqui-
zofrênicos, quatro casos de melancolia e
uma histérica no mesmo dia, Dr. Baryshni-
kov achava que nada mais o surpreenderia.
E não foi o raro diagnóstico naquela ficha
que o fez, e sim os olhos azuis-foscos da
jovem mulher que, trazida por um enfer-
meiro, foi colocada na cadeira em frente
à sua mesa.
Diferente de todos até então, seu olhar
era cálido, profundo e ao mesmo tempo
frio, por causa da cor, infinito na neutrali-
dade estranha que mostrava. Ela não pa-
recia calma ou agitada, tampouco triste,
feliz ou com medo. Pela primeira vez, o
Dr. Baryshnikov sentiu que não conseguia
ler os olhos de um paciente.
596
— Qual é o seu nome? – perguntou ele.
— Maria – a resposta soou baixa, como
se sequer houvesse saído, mas o olhar de
Maria se contrapunha a ela pela maneira
como deixara o médico se perguntando o
que haveria por trás dele. Ele olhou para a
ficha novamente. Sem possibilidade de cura.
Não havia um barulho sequer na sala a
não ser, talvez, a falha elétrica na lâmpa-
da, deixando os dois em um silêncio que
Baryshnikov não pôde compreender.
Maria era esguia, tinha cabelos lisos e
um rosto fino e bem desenhado. Muito
quieta para alguém com a intensidade
de seu olhar, embora ele não mostrasse
nenhum sentimento específico. Não quis
responder a maioria das perguntas que o
Dr. Baryshnikov lhe fez. Após uma hora,
ele prescreveu um antipsicótico e mandou-
-a embora, dando espaço para o próximo
597
paciente. Porém, não conseguiu tirar de
sua cabeça aquele olhar pelo resto da tar-
de. Não vira sequer um traço de doença
em Maria, o que o deixou curioso. No dia
seguinte, perguntou ao psiquiatra-chefe
sobre ela.
— Quando a internou, o pai disse que ela
tem sido estranha desde sempre – respon-
deu ele. — Com os sentimentos sempre à
flor da pele, memória prejudicada e uma
grande predisposição para se traumatizar.
Com a morte do noivo na guerra, a cabeça
dela não aguentou. Só a deixe de lado, ela
é inofensiva.
Aquela resposta ficou pairando na mente
do Dr. Baryshnikov. Por um bom tempo
no dia seguinte, ele ficou a observar Ma-
ria pelos corredores, de longe, para que
ela não percebesse que ele estava ali. Ela
continuava quieta, olhando para frente,
598
sentando-se encostada às paredes brancas,
sem qualquer sinal de delírio, como se es-
tivesse fechada em um mundo só seu. Por
um momento, o psiquiatra pôde ter certeza
de que havia um erro em seu diagnóstico.
Porém, quando um sorriso mais puro e
alegre do que todos os que ele já havia visto
surgiu subitamente no rosto de Maria, ele
finalmente começou a entender.

Ela começou a andar rápido pelos corre-


dores, leve como se flutuasse, e sorrindo,
com uma alegria que, em um instante,
contaminou o estado de miséria de Mus-
kov. E uma interrupção como aquela nunca
passava despercebida por ali. Antes que
o Dr. Baryshnikov pudesse se aproximar
o suficiente, dois enfermeiros seguraram
Maria pelos braços e a arrastaram pelo
corredor principal. O médico sabia bem
para que sala a estavam levando, e algo o
599
fez correr na mesma direção. Quando che-
gou à sala de eletroconvulsoterapia, Maria
já estava amarrada na cama, dando-lhe
tempo apenas para uma pergunta.

— Qual é o sou nome?

Maria ainda sorria, como se não soubesse


o que estava prestes a lhe acontecer.

— Radost... – foi o que ela conseguiu


dizer, antes que a máscara protetora fos-
se colocada em sua boca. Quando o Dr.
Baryshnikov pôde ver, a eletricidade já
percorria o corpo da jovem moça, apagan-
do o sorriso inocente de seu rosto.

Pelo resto daquela tarde, Baryshnikov


sentiu-se culpado por não ter interrompi-
do a ECT. Já havia visto diversos pacientes
passarem por aquilo, mas com aquela moça
alguma coisa era diferente. Ela estava ape-
nas feliz. Ou, pelo menos, ele desejava que
600
assim fosse. A verdade era que sabia que
não era. Radost. Fosse lá quem ela fosse,
agia diferente de Maria. Seu olhar não era
mais o mesmo.

Normalmente, o fim do expediente do


Dr. Baryshnikov seria às oito da noite, mas,
naquele dia, ele esperou em sua sala até que
Maria – ou Radost – acordasse do trata-
mento. E, para sua surpresa, a encontrou
com lágrimas nos olhos, o colchão surrado
já úmido abaixo de sua cabeça.

— Maria? – ele chamou. Porém, como


não obteve resposta, tentou o outro nome:
— Radost?

— Pechal... – a moça corrigiu-o, engas-


gando-se com seu choro, quase incapaz de
pronunciar o nome por completo. O mé-
dico se aproximou com cuidado e olhou
em seus olhos. A neutralidade havia ido
601
embora por completo, deixando apenas
uma dor agonizante de se ver. O psiquia-
tra pensou em perguntar a quem quer que
fosse à sua frente por que estava chorando,
mas logo os enfermeiros voltavam à sala e
tiravam a moça da cama. Ele apenas lhes
assistiu levarem-na para longe, seu reflexo
pintando por alguns instantes o espelho
rachado na parede.

Havia mais pacientes no dia seguinte,


alguns ele já havia visto, outros não. Tenta-
va tratar todos como se não fosse ver mais
ninguém naquele dia, mas era impossível
devido à quantidade de doentes e do esta-
do em que alguns deles já se encontravam.
Por isso, o Dr. Baryshnikov apenas fazia
seu trabalho e ignorava as condições de-
gradantes daquele lugar. Era óbvio para
qualquer um que Muskov estava em ruínas
e que não duraria muito mais tempo, mas
602
ele tentava ignorar isso também. A única
coisa que não conseguia ignorar era Maria.
Sua ficha pendia em sua cabeça a todo
o momento. Ele não podia interromper
seu trabalho para falar com ela, por isso a
observava sempre que tinha algum tem-
po livre. Mas a moça que havia se sentado
do outro lado de sua mesa parecia nunca
estar ali. Maria estava sempre saltitando
alegremente, ou chorando, ou tentando
seduzir alguém... Aquela era uma terceira
personalidade, que ele descobriu se chamar
Seks, e que causava problemas até demais.
Para evitar que Maria engravidasse, foi
esterilizada no terceiro mês de estadia.
Diante da ordem do psiquiatra-chefe, o
Dr. Baryshnikov não pôde fazer nada além
de assistir.
Só foi ver Maria mais uma vez algum
tempo depois disso. Quando percebeu
603
seus olhos lúcidos novamente, começou a
bombardeá-la com perguntas – sobre as
personalidades, o noivo, tudo. No entan-
to, ela não respondeu a nenhuma delas. O
médico tentou pedir, argumentar, chegou a
ameaçá-la para que falasse, e se sentiu des-
prezível por isso, mas não obteve nenhum
resultado. Foi só quando o enfermeiro já
estava tirando-a da sala que ela sussurrou:
— Me mate. Antes que ela mate alguém.
O psiquiatra ficou paralisado em pé, assis-
tindo a Maria ser carregada para fora. Sabia
que não adiantaria perguntar de quem ela
estava falando, mas não conseguiria ficar
sem descobrir. Por isso, se empenhou em
observar todos os seus movimentos sempre
que podia. E assim os meses se passaram.
Abril, maio... O Dr. Baryshnikov não sabia
exatamente quantas personalidades Ma-
ria tinha, nem muito menos quais eram
604
os nomes de todas elas, mas estava quase
certo de que já podia contar ao menos dez.
A alegre, a triste, a desinibida, a raivosa...
Com a chegada de junho, Maria ardeu em
febre por várias noites seguidas. Em uma
delas, o médico a observou. Ela conseguia
se manter em pé e olhava fixamente para o
espelho rachado do corredor principal. Ele
se perguntou se seria Maria quem estava lá.
Mas não. O olhar de quem quer que fosse
era aterrorizado, cheio de pânico. Ele não
sabia se era apenas um delírio da febre,
porém era como se houvesse alguém de
quem Maria estivesse com medo.

Foi duas semanas depois que, já quase


no fim de seu expediente, Baryshnikov
ouviu gritos vindos de um dos quartos.
Vários enfermeiros correram para ver o
que acontecia, e ele, por algum motivo, foi
atrás. E sua visão paralisou no momento
605
em que viu, dentro de um dos quartos
mais afastados, Maria com sangue nas
vestes, mãos e, principalmente, na boca,
sugando o pulso de uma paciente morta.
Seus olhos pareciam tão doentios que ele,
por um instante, pensou ver o demônio
em pessoa.

Antes que ele pudesse fazer qualquer


coisa, os enfermeiros separaram Maria da
outra paciente e a levaram quarto afora. O
Dr. Baryshnikov os seguiu. Naquele estado,
era de se esperar que a moça resistisse, mas
não: ela andou com eles, calmamente, até
a sala de ECT no fim do corredor princi-
pal. Vendo isso, o médico teve certeza: era
Maria. Mas alguém havia matado a outra
paciente e estava sugando seu sangue. Se-
ria ela a quem Maria havia se referido na
última vez? Dr. Baryshnikov sabia que não
podia perder a oportunidade de descobrir.
606
— Podem deixar que eu cuido disso –
disse aos enfermeiros, que haviam acabado
de amarrar Maria à cama. Eles hesitaram
por um momento, mas a deixaram de lado,
um quase esbarrando em uma bacia de
água perto da porta da sala. O Dr. Barysh-
nikov fechou a porta e olhou para Maria.
Seus olhos haviam voltado a ser cálidos e
ao mesmo tempo frios, dando-lhe certeza
de que era ela mesma. Porém, desta vez,
eles não estavam neutros.
— Maria? – o psiquiatra chamou. A moça
apenas assentiu com a cabeça, e uma lá-
grima escorreu de seu olho esquerdo.
— Eu ainda sinto o gosto do sangue –
disse. – Ela matou, não foi?
O médico se sentou na beirada da cama.
— Quem era ela?
Maria suspirou profundamente.
607
— Bolenz. A parte mais obscura de mim.
O Dr. Baryshnikov prestou atenção na
voz de Maria. Da primeira vez que a havia
ouvido, ela quase não soara. Agora, seu
tom era como uma sentença fria e impie-
dosa, forte, como quem sabia bem o que
queria. Mate-me antes que ela mate alguém.
Mas ela já havia matado. O psiquiatra não
sabia por quê, porém seu coração o impe-
dia de ao menos tocar aquela pobre alma.
Abandonada, esterilizada, torturada pelo
simples fato de estar ali. Pelo simples fato
de ter a mente que tinha.
— Me mate. Por favor. Eu preciso morrer
– suplicou Maria. O médico se desesperou.
— Você pode melhorar. Se continuarmos
o tratamento, você pode sair daqui – disse
ele.
— Não adianta sair. Não existe lugar
nesse mundo para uma pessoa como eu.
608
Mais uma lágrima escorreu do olho es-
querdo de Maria.
— Eu posso cuidar de você... Nós pode-
mos acabar com Bolenz...
— Ela é parte de mim. Todas elas são
parte de mim. E eu quero morrer – Maria
estava certa, irredutível, olhando apenas
para o teto. — Nós queremos morrer.
O Dr. Baryshnikov perdeu a função
da fala por um momento, porque sabia,
no fundo, que não poderia negar aquele
pedido a Maria. O que faria? Deixaria a
moça sofrendo naquele lugar horrível até
que Bolenz matasse de novo? Ou que mais
alguma coisa fosse feita com Maria para
impedir isso?
— Me deixe voltar para o meu amor...
– pediu Maria, finalmente olhando para
o médico. Ela sorria melancolicamente
com a possibilidade de se libertar daquela
609
mente assombrada. Baryshnikov olhou
para a bacia de água perto da porta. Um
pouco de água seria o suficiente para ma-
tá-la durante a ECT, embora ele soubesse
que seriam as suas mãos que queimariam
se tocassem o líquido. Via naquela moça
alguma coisa que não podia explicar, fa-
lhava em entender a si mesmo quando
estava perto da verdadeira Maria. Mas
Maria não estaria ali por muito tempo. Ele
sabia que aquela era a única chance para
sua liberdade.
O Dr. Baryshnikov pegou um pouco de
água nas mãos e despejou cuidadosamen-
te sobre a cabeça de Maria. Ela fechou os
olhos de alívio, como se aquilo fosse um
batismo sombrio. O médico então colocou
a máscara protetora em sua boca, mesmo
sabendo que aquilo não faria a menor di-
ferença. Que ela não gritaria mesmo que
pudesse, e ele nunca mais voltaria a ouvir
610
sua voz. O psiquiatra-chefe sequer ligaria
para a morte de mais um naquele hospí-
cio dos infernos, e os enfermeiros se im-
portariam menos ainda para verificar por
que a ECT a havia matado. Antes de dar
o choque, ele olhou nos olhos da garota
uma última vez: seu azul resplandecia a
palavra “obrigada”. Dr. Baryshnikov, por
fim, deixou a eletricidade correr pelo cor-
po de Maria.
O choque durou poucos segundos. Maria
trepidou sobre a cama, a luz em um ins-
tante se extinguiu de seus olhos, até que a
eletricidade acabou. O silêncio daquela sala
foi uma tortura, todo o barulho costumei-
ro de Muskov pareceu desaparecer como a
luz dos olhos azuis de Maria. O psiquiatra
não aguentou olhar para ela uma última
vez; apenas saiu da sala e parou em frente
ao espelho rachado, olhando seu reflexo
fragmentado, todas as dezesseis partes
611
encarando-o de volta. Então, voltou à sua
sala e completou a ficha.

Nome: Maria Ulyana Kotcheva.

Diagnóstico: Distúrbio Dissociativo. Múl-


tiplas Identidades. Sem possibilidade de cura;
terminal.

Laudo final: veio a óbito durante uma ele-


troconvulsoterapia.

Eu Sou a Casa
Silenciosa
K A R I N E R I BE I RO

1941

O
Dr. Jonathan Hall viu a morte nos
olhos de sua esposa quando o cân-
cer terminou de devorá-la. Prendeu
612
a respiração, segurando as mãos suadas e
delicadas da única mulher que amou de
verdade, e esperou que o sopro de vida
voltasse ao corpo. Não era a primeira vez
que ele via a morte refletida naquele mar
bravio e azul – nos últimos quatro meses
da doença, Jonathan perdera a conta de
quantas vezes se aproximara do leito de
Aria, esperando

(querendo)

que ela estivesse morta. Costumava de-


ter-se um instante, franzindo a boca muito
fina para os ossos que se delineavam perfei-
tamente sob a pele frágil. Ficava ali, ereto
como uma estátua de mármore, pensando
no bonito funeral que faria.

Aria viveu bem seus vinte e sete anos, taga-


relava em mente, planejando o discurso.
Sempre foi bonita, minha Aria... Sempre tão
613
doce, tão caridosa. Um exemplo de mulher. Eu
amava seus cabelos louros e as sardas em seu
rosto e seu sorriso e as covinhas e a curva de
seu pescoço e a voz mansa e os olh...

Bem, ele amava aqueles olhos, mas não


quando estavam abertos. Não quando gri-
tavam em sua cara que Aria estava viva,
ainda que parecesse um cadáver. Ainda que
fedesse como um. Mesmo esquadrinhado
pelas íris azuis, Jonathan continuava imó-
vel. Ignorava a respiração chiada que vinha
do leito, ignorava as piscadelas dolorosas
e ignorava quando uma mão trêmula e
muito branca era erguida.

Em sua mente, o discurso continuava.

... e os olhos. Os olhos lindos. Os olhos que me


afogavam... diziam... que me diziam que ela
não estava morta. Que não está morta, mas
devia. Os olhos, os olhos... OS OLHOS!
614
— Jon... – Aria gemia com pesar, e então
Jonathan aceitava a verdade.
Naquela noite solitária em 1938, não houve
discussão. Os olhos mostravam o que ele
queria ver, deixavam que ele continuasse
seu discurso mental. Jonathan soltou as
mãos de Aria, enojado e surpreso, pouco
antes de irromper num soluço choroso,
velado pela luz moribunda do mar que
enfim se acalmara.
Três anos se passaram antes que ele tor-
nasse a ver olhos que falavam. Quando
chegaram, grandes e cheios de opinião
no rosto oval de Adela Dürr, Dr. Hall ficou
estagnado, sofrendo com as lembranças da
doença da esposa. Tinha aceitado a vaga
de psiquiatra no Hospício de Muskov de-
pois da promoção de um ex-colega, que
o indicara à posição. Enquanto Aria mor-
ria no quarto dos fundos, ele se deliciava
615
com a possibilidade de deixar Londres e
embarcar em uma viagem sem volta até
a Rússia. Jonathan não esperou sequer o
enterro — na manhã seguinte, deixou o
cadáver na funerária e pegou o primeiro
trem da estação. A atitude nunca lhe pe-
sara a consciência, afinal os olhos estavam
mortos e ele tinha um plano: quando se
aposentasse, voltaria a Londres e deixaria
um ramalhete de rosas brancas — suas
favoritas — no túmulo de Aria.
A liberdade viera com a morte dos olhos,
mas os olhos estavam de volta. Estavam
vivos, pulsantes e falantes, tão vivos, pul-
santes e falantes como nunca estiveram
na vida da primeira esposa. Dr. Hall não
podia se casar com Adela, mas sabia que
ela era sua noiva prometida no instante
em que a viu. Os olhos contaram.
A senhora Dürr se internou em Muskov
616
na primavera de 1941. Era esposa do ge-
neral Maximillien Dürr, que morrera em
batalha dois anos antes. Como viúva de
guerra, Adela transformara o grande ca-
sarão em que vivia, no sul da Alemanha,
em hospital e casa de repouso para os sol-
dados feridos. Não havia nenhum repouso,
Adela confessou ao Dr. Hall na primeira
consulta, enquanto ele aguçava os sentidos
para entender o que os olhos diziam.

— Desculpe, pode repetir? – Dr. Hall


pediu, endireitando-se na cadeira.

— Eu disse que atormentava os pobres


homens, tão logo eles podiam se pôr de pé.
Aqueles que podiam se pôr de pé, claro –
Adela tinha uma voz macia, saída de lábios
pintados de carmim. Usava um vestido de
mangas curtas e motivos florais, as mãos
pequenas cobertas por luvas, pousadas no
617
colo. — É por isso que quero me internar.
Para dar-lhes descanso, digo.

Havia vergonha nos grandes olhos casta-


nhos que confessavam pecados, mas havia
também desejo de redenção. De silêncio.
Os olhos não aguentavam mais o fantas-
ma ululante da vulgaridade da casa. Dr.
Hall ignorou, porém os primeiros dias da
internação de Adela trouxeram aos seus
ouvidos fofocas contadas por línguas cur-
vas e afiadas. Aparentemente, a casa de
repouso era o maior bordel da Alemanha,
mas só tinha uma puta. Uma. Adela ouvia,
quieta com seus pensamentos, tricotando
perto da janela com vista para o bosque,
os grandes olhos ignorando a beleza das
árvores ao acompanhar Dr. Hall pra lá e
pra cá. Implorando. Ela tinha habilidade o
bastante com as mãos para não precisar
vigiá-las.
618
— Quando começamos o tratamento? –
Adela perguntou na quarta sessão. — Não
quero questionar seus métodos, Dr. Hall,
mas estou começando a ficar impaciente.
Não gosto
(que você me olhe assim)
de ficar parada, pensou Adela, removendo
as luvas para expor seus dedos compridos
e pálidos. Não gosto que me mantenha nesse
cubículo horroroso, e o pior: fazendo nada!
Mas era assim que Dr. Hall gostava dela
– de boca fechada, quieta como uma bone-
ca, enquanto os olhos contavam histórias
hipnotizantes e fantásticas para abafar a
vergonha.
— Estamos em tratamento – o doutor
respondeu, muito sério. — Acho que você
só precisa de um bom ouvinte, senhora
Dürr.
619
— Não foi pra isso que me internei aqui
– A voz suave de Adela subiu dois tons. —
Eu estou doente, doutor. Se eu quisesse ser
ouvida, ficaria na cama com um dos meus
amantes!

Os olhos incendiaram e berraram. Não


gostavam de relembrar os dias na casa de
repouso, onde repouso não havia, mas o
fariam se esse fosse o desejo de Adela. Se
ela os forçasse, contariam sobre as camas e
os dosséis e as portas fechadas e os gemidos
sussurrados e as confidencias trocadas e o
suor e (E) percebendo o sofrimento naque-
les olhos, o Dr. Jonathan Hall incendiou e
berrou de volta. Adela afundou na cadei-
ra, a mão pequenina cobrindo os lábios
para conter o susto. Os olhos cresceram,
arregalados e profundos, até envolver por
completo o médico. Quando Jonathan des-
pertou, os músculos doendo por ter lutado
620
tanto contra a sufocante onda castanha – a
onda castanha que imploravaeimploravaeim-
plorava por redenção –, a paciente tinha
fugido para a segurança de seu quarto na
ala feminina.

A dose de láudano veio como uma benção


e foi o único consolo do doutor quando sua
segunda esposa trocou de psiquiatra. Pas-
sou a segui-la pelos corredores cinzentos
do hospício, por vezes se esquecendo da
obrigação de suas funções. Surgia como
um fantasma na sala ao lado da usada
pelo outro psiquiatra e colava o ouvido
na parede enquanto Adela se consultava.
Ouvia – o estômago se revirando em suas
próprias dobras –, os sons de satisfação que
saíam de ambas as bocas, do médico de
loucos e da única puta do maior bordel da
Alemanha. Passou a esperar por Adela no
corredor – apenas para ver a confirmação
621
de seus olhos –, o gosto do láudano ainda
amargando na língua.

O sequestro no meio da noite a deixou


muda de pavor, mas os olhos só se cala-
ram quando o direito foi atravessado pela
agulha fria e invasiva. O corpo entrou em
um embonecamento letárgico, fazendo
Dr. Hall contemplar com suspirante satis-
fação a beleza da lobotomia. Carregou sua
segunda esposa pelos caminhos insípidos
e tunelares como um príncipe triunfante
ao salvar a donzela.

— Donzela sim – Jonathan disse para os


olhos entorpecidos, tão afogados no reflexo
da morte que não podiam falar. — Esque-
ça a casa e o que fazia lá. Donzela, sempre
donzela.

Os olhos emergiram para sorrir ante


sua nova alcunha. O desejo fora realizado:
622
eram agora a casa silenciosa. O Dr. Jona-
than Hall viu a morte nos olhos de sua
segunda esposa quando a lobotomia ter-
minou de devorá-la.

A Herança de Simon
A LLA N BA XTER

1942

A
única lembrança que Simon, o
último dos Mountford, guardava
de seu tio fora adquirida na mais
tenra idade. Na época, o parente pousara
sua mão deformada de artrite na cabeça
da criança, numa espécie de breve cum-
primento, e a imagem perpetuou em sua
memória: um velho corcunda, entre os 60
e os 500 anos, cujo cabelo branco começava
623
a amarelar de uma forma desagradável; o
rosto enrugado parecia inchado de sono
e a barba crescia há dias. Seu pai fazia a
barba todas as manhãs, e Simon achou que
provavelmente aquele velho fosse um dos
bêbados maltrapilhos que perambulavam
pelos becos da cidade.

Conforme amadureceu, Simon com-


preendeu que seu tio era o galho excên-
trico da família. Percorrendo a linhagem,
os privilegiados Mountford sempre consti-
tuíram lar com mulheres comuns e ainda
assim seu tio nunca produziu um herdei-
ro, nem se entregou às sentimentalidades
do matrimônio, muito menos construiu
uma casa para chamar de sua. Graduado
na Alemanha, sua reputação oscilava en-
tre a figura do gênio e do louco graças à
devoção religiosa ao Hospício de Muskov,
624
onde atuava como médico cirurgião e bra-
ço direito do atual diretor.

Àquela altura, seu tio deselegante nunca


entrara em contato. Simon vivia com os
empregados na sombria mansão Mount-
ford, e o parente não enviara seus pêsames
quando uma doença dos pulmões levara sua
mãe. Também não se manifestara quan-
do o pai — seu próprio irmão — faleceu
pouco tempo depois, como ele costumava
contar, doente de tristeza. Não que Simon
guardasse remorso acreditando que as
mãos deformadas de artrite, porém excep-
cionalmente habilidosas do tio — como
provava seus registros médicos e ilustra-
ções extraordinárias do próprio punho —,
pudessem ter cortado a raiz de todo o mal
que ceifou a vida de seus pais, de modo
que recorreu a todos os tratamentos que
o dinheiro pudesse promover.
625
Apenas não contava com ele como mem-
bro de sua família, como se não passasse
de uma criatura fictícia vagando mundo
afora, com o mesmo sobrenome.

Em abril de 1942, Dr. Aidan Mountford


morreu.

Simon tomou conhecimento enquanto


passeava os olhos pelo obituário, se depa-
rando com o próprio sobrenome. Numa
estranha mistura de aversão e nostalgia,
decidiu não se dar ao luto por um homem
que mal conhecia.

Sete dias depois, recebeu alguns perten-


ces do tio enviados pelo advogado, o Sr.
O’Hare, que confidenciou em meio a uma
carta pessoal:

626
O escritório de seu tio era um verdadeiro Mu-
seu de História Natural; havia uma parede
exclusiva para vidros que ostentavam coisas
que um dia foram vivas, além de todo o tipo
de monstruosidades conservadas em formol e
catalogadas na própria caligrafia — objetos
que permaneceram no local por ordem maior.
Todos os livros sobre a profissão foram enviados
para a biblioteca universitária de sua escolha
e, conforme suas instruções, seus registros estão
sendo legados ao senhor na esperança de que
sejam publicados, elevando e perpetuando assim
o “prestígio da família” — palavras do doutor
—, como garantirá o conteúdo da caixa.

Enquanto bebericava seu bourbon, Simon


pediu ao mordomo uma chave de fenda
para remover os parafusos da caixa de
madeira. Seja lá o que fosse, a extraordiná-
ria conquista de seu tio não pesava muito
627
além da própria caixa. Enquanto folheava
a gorda resma de registros em sua biblio-
teca, foi surpreendido por um estampido,
então as luzes dos candelabros apagaram
e inundaram o cômodo em escuridão.

— Ótimo, um fusível – murmurou Si-


mon, pousando o copo na mesa.

Ele levou a caixa para baixo e logo a tam-


pa correu solta, revelando o interior vazio.
Simon observou pensativo, de modo que
ele mesmo tinha verificado os parafusos
perfeitamente firmes. Seja lá o que fosse,
era vivo e tinha se libertado de alguma
forma. Estudou a contragosto a madeira,
procurando alguma fresta que permitisse
ventilação.

Não havia.

Linhas de expressão brotaram em sua


testa geralmente lisa.
628
Uma coisa de carne e osso não sobreviveria
a quase uma semana de transporte sem oxi-
gênio – refletiu, a insegurança estampada
no rosto.

Na semana seguinte, Simon viajou para


respirar os ares do campo. Durante uma
de suas caminhadas, sentou-se num banco
protegido do sol, acendeu seu cachimbo
com cheiro de merda de cavalo e sacou
o profuso manuscrito, estudando minu-
ciosamente os registros detalhados do tio.
Com olhos ultrajados, descobriu experiên-
cias que não tinham relação alguma com
a saúde mental dos pacientes. Em suma:

Hoje, injetei o agente causador de tuber-


culose numa jovem mulher e acompanhei seu
processo de degeneração – relativamente breve.
Crematório. Depois de realizar o parto de uma
629
paciente que foi internada grávida, amputei
seus seios para descobrir em quanto tempo o
bebê recém-nascido morria de fome – cerca de
70 horas. Crematório. Descobri que um de meus
pacientes era gêmeo. Cobrei alguns favores e
o irmão foi atraído e internado sem nenhum
distúrbio aparente. Costurei os dois pelos pulsos
e costas, unindo também os seus órgãos... Por
fim, os membros gangrenaram – 121 horas.
Crematório.
— Por Deus! – soltou uma baforada su-
focante. — Meu tio era um demônio san-
guinário!
Num caleidoscópio entorpecente de
emoções, também sentia mal-estar, des-
conforto e humilhação. O último por ter
sido apenas considerado para receber tais
registros. Simon soltou o ar novamente,
uma vertigem dentro de sua cabeça rugin-
do que ele jamais poderia tornar aquilo de
630
conhecimento público. Numa sociedade
onde as opiniões dos vizinhos tinham o
poder de elevar ou destruir uma reputação,
apenas a perspectiva daqueles relatos seria
sua ruína. Mesmo sendo um solteirão àque-
la altura, pretendia gerar herdeiros num
futuro próximo. Aquelas folhas tinham o
poder de destruir seu legado e perseguir
seus descendentes até a última geração.
Sentindo suor nas axilas, folheou mais
algumas páginas. As últimas sustentavam
a mesma caligrafia, porém um tanto de-
cadente.
Extremamente satisfeito. Usando o pretexto
dos estudos para determinar as características
humanas genéticas, depois da extração de ou-
tro par de olhos, encontrei mais do filete negro,
daquela espécie de luz liquefeita. São pesadelos,
tenho certeza! Continuarei acumulando, pois
a coisa parece estar tomando vida própria!
631
Obviamente, nos dias finais seu tio estava
tão louco quanto suas vítimas.

Na mesma semana, um Simon imerso em


pensamentos recebeu uma carta da Sra.
Constance, sua governanta.

Caro senhor Mountfort,


Algumas coisas aconteceram depois de sua
partida da mansão. Os empregados andam
um tanto inquietos, conversando entre si sobre
vultos e barulhos pelos cantos durante a noite.
Recorreram a mim para confidenciar sobre pe-
sadelos constantes, mesmo quando acordados.
Como o senhor bem sabe, sou protestante desde
quando me conheço por pessoa e não creio em
tais disparates, como casas assombradas. O
fato é que ando sobrecarregada, de modo que
sugiro que contrate uma governanta que não
632
tenha objeções a propriedades desta dimensão.
Portanto, informo sobre meu aviso prévio e
ficaria muito grata se contasse com a sua reco-
mendação, em nome de todos os bons anos de
serviço prestados.

Cordialmente,

Constance.

Simon retornou imediatamente.

Apesar dos esforços, a Sra. Constance


provou-se resoluta em sua decisão e recu-
sou a proposta de aumento. Pálida, com
olhos fundos e com olheiras, finalizou logo
a conversa e desculpou-se por sua partida
no fim do mês. Em seguida, dirigiu-se ra-
pidamente à cozinha, como se fugisse de
uma multidão de espectadores que só ela
via.
633
Então, o fim de semana transcorreu sem
nenhuma novidade. Simon interrompia o
sono profundo de um lenhador e caminha-
va sorrateiro durante as madrugadas em
busca de alguma evidência que provasse
as suspeitas veladas dos criados sobre um
intruso na casa, porém suas tentativas fo-
ram frustradas e suas observações não o
levaram a lugar nenhum.
No entanto, na terceira noite, conseguiu
sua descoberta.
Estava descendo os degraus, bocejando
à larga quando foi surpreendido por uma
rasteira. Acabou rolando escadaria abai-
xo pelo que pareceu um momento inter-
minável, desabando pesadamente como
um fantoche malfeito. Abriu os olhos e
fechou-os com força, um bisturi de dor
atravessando-lhe o crânio. Apoiou os coto-
velos no tapete e abriu os olhos novamente,
634
enxergando através de uma névoa espessa
o próprio corpo projetando não uma, mas
duas sombras.

— O quê... – o sussurro emergiu frágil


e débil.

Pálido como uma mortalha, Simon er-


gueu-se e oscilou para trás, procurando seu
agressor. Estava absolutamente só. Con-
cluiu então que provavelmente tropeçara
no próprio calcanhar grande e estúpido.
Seus olhos varreram o chão, caçando o
segundo vulto. 

Foi quando a sombra abandonou o chão


e projetou-se à sua frente, uma massa re-
fulgente que sustentava inúmeros filetes
revolvendo como serpentes negras, corpos
ondulantes disputando o mesmo espaço.

635
São pesadelos, tenho certeza! Continuarei
acumulando,

pois a coisa parece estar tomando vida pró-


pria!

Simon encarou com olhos assustados e


arregalados de terror a sombra feita à
imagem do criador, corcunda como seu
tio ególatra. Toda a vida, saúde e boa sorte
evaporaram. Seu coração batia com tanta
força que podia sentir a pulsação no pes-
coço e nas têmporas.

A coisa o tocou como que provando seu


corpo. Sufocado e pregado ao chão, Simon
teve a certeza de que seu coração seria ar-
rancado diretamente do peito como nos
contos de fadas de sua biblioteca particular.
Os dedos liquefeitos subiram para o seu
rosto, e ele sentiu os pulmões inundados
636
pelo cheiro da morte. Então, a coisa sus-
surrou tenebrosamente em seu ouvido:

— Bons sonhos, Simon.

Primeiro, ele mergulhou numa escuridão


opressiva e aterrorizante. Depois, o choque
veio em forma de visões vertiginosas, um
redemoinho dilacerante de xilogravuras
animadas. Em sua espiral infinitamente
deslizante, encontrou um leproso brotan-
do insetos asquerosos pelas feridas, uma
garotinha berrando alucinada enquanto
um lobo engolia seu braço até o cotovelo
e um oficial usando seu uniforme da SS
nazista, enlouquecido pela sífilis e fodendo
o próprio filho...

Perdido em imagens vívidas e indes-


critíveis de homens e mulheres moribun-
dos, retardados psicológicos e vítimas de
diferentes tipos de experimentos atrozes,
637
Simon estatelou no chão numa série de
espasmos violentos. Sentindo os vasos san-
guíneos puxados por uma mão invisível,
sua bexiga o traiu e uma mancha escura
se espalhou por suas vestes.

De repente, Simon ergueu-se com um


sorriso fino e feroz nos lábios, uma beleza
selvagem. Com olhos vazios e uma con-
tração espasmódica na pálpebra direita,
seguiu o caminho até o quintal e retornou
cantarolando com a boca fechada, carre-
gando um galão. Apanhou uma caixa de
fósforos na cozinha e levou cerca de vinte
minutos verificando e trancando todas as
portas, janelas e saídas possíveis.

Por uma razão que jamais sonharia nos-


sa vã filosofia, Simon desenhou uma tri-
lha de combustível pela maior parte dos
638
corredores. Riscou uma dúzia de fósforos,
foi atingido pelo forte sopro de enxofre e
observou o buquê ardente entre os dedos
com os olhos insensíveis de um demônio.
Quando os lançou, as chamas subiram
imediatamente e transformaram a man-
são da família construída através de seis
gerações num insano pântano flamejante.
Durante seu pôr-do-sol privado, Simon
caminhou meditativamente até a biblioteca
e sentou-se para degustar seu bourbon. Cer-
cado pela construção que gemia e derretia,
fitou as rachaduras se abrindo como bocas
ao som dos gritos dissonantes e histéricos
de seus criados. O calor se aproximava
conforme as labaredas famintas lambiam
a mobília, e ele apreciou o cheiro dos pró-
prios pelos torrando.
A criatura abandonou Simon para con-
templar o homem ardendo, sua carne
639
sendo assada. Ficou lá como uma excên-
trica espécie de urubu em deleite. Os gri-
tos de sua nova vítima soavam como um
tenor desafiando o próprio alcance vocal
na ópera mais surpreendente.

Epílogo

Em meados de 1943, o incêndio foi de-


terminado como criminoso. A partir de
então, iniciou-se uma rigorosa investi-
gação. Como todos os cômodos estavam
trancados, exceto a biblioteca onde esta-
va Simon Mountford, o próprio amo foi
mencionado como o autor do crime. Ele
passou meses em tratamento intensivo —
oscilando entre a vida e a morte — e ao ser
interrogado pelo investigador da polícia,
nada conseguiu fazer além de manter a
640
boca escancarada como se esperasse seu
próximo remédio amargo.
O robusto herdeiro dos Mountford foi
reduzido a uma criatura vazia e horrenda.
Ataduras estavam distribuídas pelo corpo
e a pouca pele descoberta lembrava frutas
apodrecidas. Seu olhar estava sempre fixo
em lugar nenhum e o peito deformado ele-
vava-se tão lentamente que as enfermeiras
precisavam ficar verificando entre intervalos
para ter certeza de que não estava morto.
Numa das matérias distribuídas, um cor-
respondente local o chamara de Múmia e
o nome pegou. O cerco começou a fechar,
mas apesar das provas incriminadoras,
não foi possível levar um homem de saú-
de frágil e estado psiquiátrico deplorável
a julgamento.
Considerando sua ruptura com a realida-
de, um comunicado foi emitido sobre seu
641
destino: Simon Mountford seria submetido a
tratamento físico e psiquiátrico na instituição
de Muskov até que recobrasse suas funções bá-
sicas e fosse capaz de responder às acusações.
À uma hora da manhã, a enfermeira-chefe
instalou Simon numa cadeira de rodas com
a ajuda de um subalterno. O jovem nobre
parecia menos homem e mais um lunático
beijado pelo diabo. Quando se sentou na
cadeira, alguns dedos livres das ataduras
resvalaram pelo braço da enfermeira, a
pele fria como a de réptil. Durante uma
fração de segundo, suas pupilas encheram-
-se com um raio de luz. Então seus olhos
desbotados se alargaram e Simon soube
exatamente para onde estava indo.
Enquanto se aproximavam do transporte
que os aguardava, o vento esganiçava em
rajadas furiosas. Simon gemia desesperado,
dividindo aquele casulo carbonizado com
642
um hospedeiro demoníaco, irrompendo
em pequenas pérolas de lágrimas que de-
sapareciam nas ataduras. O Hospício de
Muskov seria seu leito de morte.

O Mal estava voltando para casa.

A maldição
do conhecimento
V Í TOR DE L ER BO

1944

Sergej Kafelnikov, 6 de Junho de 1944.

N
ão importa qual seja seu cárcere, a
pior das prisões é a sua própria men-
te. A segunda pior, sem dúvidas, é o
Hospício de Muskov.
643
Ninguém passa incólume por aqui. Os sãos tor-
nam-se insanos. Os insanos tornam-se a pior
versão de si próprios. E a única porta de saída é
a morte. Aqueles que ainda conseguem manter
um pingo de lucidez, como eu, têm um destino
ainda pior do que a morte: o esquecimento.
Mesmo o inferno é lar para alguns anjos.
Alef, um dos enfermeiros da casa, arranjou-me
papel e caneta para que minha história não se
perca. Ele garantiu que esta carta será entre-
gue à minha família e aos principais veículos
midiáticos do mundo todo, para que a verdade
venha à tona.
Tenho duas horas para escrever este relato,
ato que só consigo realizar por não ter toma-
do nenhuma pílula nos últimos dias. Mais um
presente de Alef, que me permitiu despedir-me
de minha mente antes que ela me abando-
ne por completo. E desde já, peço perdão por
possíveis furos em minha narrativa; os gritos
644
dos pacientes torturados no segundo andar
desconcentram-me tanto quanto a respiração
acelerada de meu companheiro de quarto, que
já não abre mais os olhos.
Por não ter um futuro, agarro-me com todas
as forças ao passado. Essa foi uma das manei-
ras de manter a consciência aqui dentro. Mas
escrevo este texto ciente de que minhas palavras
carregam uma sombra de dúvida em relação à
minha sanidade. Não deixe de duvidar; mas
não apenas de mim. O mundo é uma versão
ampliada desse sanatório, e muitos que aqui
estão confinados enxergam uma realidade mais
verdadeira do que os que vivem sob a falsa
sensação de liberdade.
Se hoje durmo em um quarto úmido e escu-
ro, é por ter duvidado. Minhas incertezas se
provaram reais, me tornei um risco. Mas eu
não mudaria nada. Continuo a preferir uma
verdade amarga a uma mentira doce.
645
Isso se deve à minha origem e à minha profis-
são. Nasci em Minsk, em 1890, e sou jornalista.
Ao menos era até 1943.

Como praticamente todos os jovens pobres de


Minsk, comecei a trabalhar logo cedo na cons-
trução de extensas linhas ferroviárias. “Um
lugar em que o trem não chega, não existe”, é
o que a propaganda dizia. Minha rotina era
monótona e cansativa, mas a vodca e meus
parceiros, vários deles judeus, faziam com que
o tempo passasse mais rápido.

Ao longo de alguns anos, guardando o pouco


dinheiro que eu não gastava em álcool, consegui
comprar minha primeira máquina de escrever,
artigo inusitado para a época.

A única coisa que minha mãe levou da Ale-


manha para a Rússia, quando se casou com meu
pai, foi sua coleção de escritos de Goethe. Eu
nunca fui para a escola, mas os ensinamentos
646
de minha mãe, juntamente com os melhores da
literatura germânica, me fizeram desenvolver
grande apreço pela leitura e escrita. E também
tornaram-me o único jovem pobre de Minsk
fluente em alemão.

Após a compra da máquina de escrever, mi-


nhas horas de sono diminuíram drasticamente.
Durante o dia, eu trabalhava com martelos e
pedras. À noite, imitava meu ídolo Goethe, e
escrevia ensaios sobre a natureza e a arte.

Foi então que a Grande Guerra explodiu


– por força do hábito, não consigo deixar de
chamá-la assim, mesmo sabendo que a guerra
atual tem proporções muito mais catastróficas.

Pela primeira vez, vi o meu país e a terra


natal de minha mãe em conflito. Por sorte,
tanto minha mãe quanto meu pai haviam fa-
lecido no ano anterior à guerra. Um soldado
russo casado com uma alemã sofreria fortes
647
represálias. Você não se importa com a guerra
mundial quando tem uma guerra pessoal es-
tourando dentro de si.
Bizarramente, a guerra me auxiliou de uma
maneira que eu jamais esperaria. Foi numa
quinta-feira cinzenta que minha vida mudou.
Terminando mais uma garrafa de vodca, pas-
sei pela sede de um pequeno jornal. O que me
chamou a atenção foi a ironia do aviso colado
no muro:
“Precisa-se de jornalista destemido, boa es-
crita. Disposto a conhecer o mundo e perceber
que Minsk não é tão ruim assim”.
Entrei na redação com a garrafa na mão.
“Eu sou um jornalista destemido e tenho uma
boa escrita”, gritei na sala, repleta de jorna-
listas temerosos e que tinham uma má escrita.
Ninguém me deu atenção.
“Eu sou um jornalista destemido e tenho
648
uma boa escrita”, gritei novamente, dessa
vez em alemão.

Alguns jornalistas olharam para mim.


Outros se levantaram apressadamente,
indo para o fundo da redação. Um velho
obeso veio em minha direção.

“Alemão? Aqui? Você quer morrer?”. A


veia em sua testa vermelha estava quase
explodindo.

“Talvez. Mas que seja em outro lugar do


mundo, de preferência um que me prove
que Minsk é tão ruim assim”.

“E por acaso você sabe escrever?”

Percebi que qualquer palavra dita por


um moleque com uma garrafa de vodca
na mão não seria suficiente para convencer
aquele senhor.

Me dirigi até uma das máquinas de


649
escrever, retirei o papel que dizia algo sobre
a vida pessoal de Gavrilo Princip e escrevi
uma crônica rápida sobre o ataque de sol-
dados alemães situados na Namíbia contra
a África do Sul, e como era provável que a
represália viesse através dos britânicos na
Nova Zelândia contra a colônia alemã em
Samoa – o que veio a acontecer.

O velho, que se chamava Yuri e seria meu


chefe por alguns anos, ficou impressionado
com o texto. De alguma maneira, aquele
garoto bêbado se tornou um jornalista, um
enviado de guerra, e conheceu doze países
espalhados pelos cinco continentes.

No entanto, Minsk continuava sendo o


pior para mim.

A Grande Guerra acabou, assim como


qualquer resquício de otimismo que pudes-
se existir em mim. Na teoria, eu e meu pai
650
ganhamos. Minha mãe perdeu. Tornei-me
um jornalista reconhecido e fui transferi-
do para o maior jornal de Moscou. Porém,
menos de um ano depois, a guerra estava
na minha casa novamente. Especialmente
na minha antiga casa, Minsk. Voltei para
lá para cobrir mais destruição. Mais traba-
lho. Mais prêmios. Menos horas dormidas
e mais traumas.
Minsk virou parte da Polônia. Depois
da Bielorrúsia. Depois da União Soviética.
Para mim não importava; Minsk era parte
do passado.
Com o fim da Guerra Civil, pela primeira
vez tive algo parecido com uma vida nor-
mal. O clima era de ebulição, mas perto
dos anos que haviam passado, parecia que
eu estava de férias. Eu trabalhava no jor-
nal em horário comercial e ia para o bar
depois do expediente.
651
Ironicamente, uma garçonete me fez
abandonar a vodca. Eu, que já havia teste-
munhado a aurora boreal, que mergulhara
em meio a coloridos recifes de corais em
oceanos límpidos e apreciara lindas flores
em florestas tropicais, jamais vi tamanha
beleza concentrada em um só lugar.

Sônia. Uma jovem que nascera em Vla-


divostok e fugira para Moscou durante a
Guerra Civil. Mais uma vez, uma guerra
me trazia o que era meu.

Nos casamos menos de um ano depois


de nos conhecermos. Mais um ano e já tí-
nhamos nossa única filha, Svetlana. Sônia
parou de trabalhar e eu parei de beber.
Vivemos anos de relativa tranquilidade,
até que a sombra de uma nova guerra co-
meçou a se apresentar nos anos 30. E se
solidificou até explodir.
652
A essa altura, eu já não era mais um jo-
vem inconsequente sem nada a perder. O
romantismo de viajar o mundo escreven-
do sobre a guerra havia passado. Eu me
tornara um bom pai de família. Consegui
me esquivar de cobrir os fatos da crise
pré-guerra, mas quando o Japão trouxe a
batalha até a Rússia, meus serviços foram
requisitados.
Ir até o front e fazer a cobertura daquela
batalha brutal, deixando minhas garotas
em casa, foi a coisa mais difícil que já fiz.
Tudo o que eu queria era que aquela guerra
acabasse antes que ela acabasse com a mi-
nha família. Mas as terras de minha mãe
e de meu pai não estavam contentes com
esse destino. Após um breve pacto de não
agressão, novamente os dois países que
estão no meu sangue trocavam tiros.
Foi em 43 que assinei a matéria que se
653
transformaria em meu atestado de óbito.
Ávido por um texto que externasse para
o mundo o perigo de uma guerra daquela
proporção, comecei a investigar meu pró-
prio país.

Utilizando meus contatos militares e


passando por cima de certas regras, a ver-
dade apareceu: a União Soviética estava
desenvolvendo seu primeiro artefato nu-
clear. Como já era praticamente certo que
os Aliados também tinham suas armas de
destruição em massa, um futuro embate
entre URSS e os Aliados poderia significar
o fim do mundo.

Antes mesmo que minha matéria fosse


às ruas, três homens de branco apareceram
na redação do Jornal. Um homem de terno,
chamado Alexei, disse que recebera o meu
texto e que aquelas palavras só poderiam
654
ter sido escritas por alguém que sofresse
de problemas mentais.
Sem direito a me despedir de minha família,
fui jogado num veículo com grades e trazido
para esse hospício. Nunca mais recebi notícias
de Sônia e Svetlana, e elas devem achar que
morri.
Creio que nenhuma bomba atômica foi lan-
çada. Já não me preocupo mais comigo, mas
não posso imaginar o destino do mundo caso

Antes que Sergej pudesse finalizar seu


texto, Alef entrou abruptamente em seu
dormitório.
— Me dê a carta!
— Calma, eu só...
— Agora!
Sergej entregou rapidamente a carta ao
655
homem de branco, que a colocou embai-
xo de outros papeis em sua prancheta. A
porta abriu-se novamente.
— Chegou a hora de colocar fim aos de-
vaneios dessa mente perigosa – tocando o
rosto do paciente, Alexei Nagy, psicólogo
chefe do Hospício de Muskov, abriu um
sorriso amarelo. — Não me surpreende
que você tenha sangue alemão, traidor.
Levem-no! – ao seu comando, dois homens
fortes carregaram Sergej para outra sala,
ainda mais escura e úmida.
No jardim do sanatório, sobre a grama
morta, Alef empurrava a cadeira de rodas
de Sergej. O antigo jornalista babava e não
se movia.
Depois de uma olhada para trás, o en-
fermeiro retirou um apanhado de papeis
do bolso de seu avental. Alef encharcou as
cartas com álcool, e após depositá-las em
656
um urinol metálico que repousava no colo
do enfermo, acendeu um fósforo. Dois se-
gundos se passaram, e os relatos dos sete
pacientes que sofreram lobotomia naquele
dia foram extintos.
O fogo reluzia nas retinas opacas de
Sergej. Quando as chamas se extinguiram
e tudo o que sobrou de sua carta foram
cinzas, seu coração bateu pela última vez.

Latitude 59,
Longitude 30
T YA N N E M A I A

1945

Q
uando chegaram no hospício, pen-
saram que ele estaria complemente
deserto. Estavam enganados.
657
O exército avançou para defender a Fren-
te Oriental. Em janeiro de 1945, o general
Krasnov fora enviado em uma missão de
reconhecimento e limpeza de soldados
alemães naquelas terras congelantes. Como
haviam caminhado muito, foi necessário
que se abrigassem em local seguro para
suportar aquele inverno tenebroso de –
40º. O único lugar grande o bastante para
receber as tropas era o Hospício de Muskov,
localizado em ponto estratégico.

Ao chegar, encontraram o lugar abando-


nado, com os portões dianteiros trancados
com grandes cadeados. Estes foram facil-
mente destruídos pelos homens treinados.
As portas principais foram destrancadas
em dois tempos. Os soldados fizeram uma
busca em um curto perímetro para garan-
tir a segurança dos homens e descobrir
sobreviventes no lugar. Nada acharam.
658
A maioria dos homens montou acampa-
mento do lado de fora do prédio, no meio
de árvores sem folhas e retorcidas. Tudo
ali fora coberto pela mortífera cor branca.
Dentro do edifício, os oficiais com as maio-
res patentes reorganizavam os planos de
ataque. Ninguém se sentia completamen-
te seguro, compartilhando a sensação de
estarem sendo observados o tempo todo.
As primeiras noites passaram tranquilas
e sem pormenores. Os oficiais tratavam
de assuntos de guerra, os batedores iam
e vinham com informações e os soldados
tentavam se distrair enquanto as tropas
nazistas não chegavam ao lugar.
Foi por volta da quarta noite que as coi-
sas começaram a sair do controle. Alguns
soldados estavam dormindo no salão
principal próximo à saída, quando foram
acordados pelo capitão Jakov.
659
— Camaradas, espero que estejam ven-
do isso!

Quando levantaram a cabeça, perceberam


a presença de uma mulher completamente
nua no meio da sala. Seus cabelos longos
e negros cobriam seus seios e ela sorria,
mostrando os dentes sujos. Tinha olhos
verdes, enormes e redondos, e uma estatura
baixa. Seu pescoço apresentava uma forte
mancha escura arroxeada, numa região
em que ela passava a mão para massagear.
Ela começou a gargalhar histericamente
e parou de repente, encarando o general
Krasnov.

— Vocês estão preparados para o que


vem aí? – disse a mulher.

— O que vem aí, querida? – retrucou o


general, armando seu revólver e já apon-
tando para a mulher.
660
— A morte de vocês.

A mulher saiu correndo para o interior


do hospício e nenhum homem foi capaz
de segurá-la, pois estavam atônitos com
sua declaração.

— Que merda foi aquela? – perguntou


o capitão Jakov.

— Não sei, mas vamos descobrir – res-


pondeu o general, aborrecido, levantando
e vestindo seu casaco. — Vocês quatro,
tragam aquela coisa aqui agora mesmo.

— Sim, senhor – os soldados respon-


deram em uníssono grito de obediência.
Imediatamente, saíram à busca da mulher
no interior do prédio.

De repente, um soldado entrou pela


porta principal
661
— Camarada Krasnov, os homens... todos
eles, lá fora... senhor, eles... eles sumiram.

— Como assim, Camarada Tyverskaya?

— Eu fui lá fora para ver se havia algo


estranho, como essa mulher, e encontrei
o acampamento vazio.

— O que está acontecendo neste lugar?


Meus homens nunca desertariam! Como
é possível mais de 150 soldados sumirem?
Um batalhão inteiro não desaparece assim!
Verifiquem as redondezas. Eles não podem
ter nos abandonado. Vamos, quero dois
grupos de busca lá fora. Agora!

Neste momento, os soldados ouviram


disparos de armas de fogo nos andares
superiores, junto ao som de gritos. Todos
ficaram em alerta. Alguns pegaram suas
armas, outros começavam uma corrida
para o andar acima, mas pararam de subir
662
as escadas no exato momento em que mais
gritos e mais disparos foram ouvidos.

— Camarada Ultkin, quero você lá em


cima. É meu melhor capitão, a pessoa mais
competente deste lugar. Descubra o que
aconteceu. Eu só confio em você, filho – e
colocou a mão pesada no ombro esquerdo
do jovem. — Vão agora, o que estão espe-
rando? – ordenou o general.

Uma equipe de dez homens acompa-


nhou Ultkin, sumindo enquanto subiam as
escadas, freneticamente. Enquanto isso, o
general Krasnov gritou a plenos pulmões:

— Quero várias equipes espalhadas em


todos os cômodos desse lugar. Quero saber
exatamente com o que estou lidando.

Vários grupos se organizaram rapida-


mente, decidiram suas posições e partiram.
663
Apenas um pequeno grupo continuou no
salão principal.

Equipe 5 – Piso Superior – Dormitórios

Os homens invadiram o lugar rapidamente.


Eram apenas cinco. Apontavam seus rifles
e lanternas em todas as direções. Aquele
cômodo era enorme e cheio de camas des-
feitas, colchões e lençóis rasgados, e tudo
estava sujo e bagunçado.

— Vamos sair logo daqui, rapazes – disse


o líder do grupo.

— Por que a presa? – perguntou uma


mulher, ao entrar na sala. Ela estava em
um vestido azul escuro, segurava um rifle
apoiado em seu ombro direito e tinha os
cabelos tão curtos que sumiam embaixo do
664
capacete militar soviético. Sua pele branca
destacava com o azul e o negro objeto em
sua mão.

— Largue a arma, senhora – gritou La-


gupin enquanto apontava um revólver na
direção da mulher.

— Vocês querem escutar uma verdade?


Talvez a única que vão ouvir hoje à noite?

— Largue a arma, é uma ordem! – re-


petiu o soldado, que estava no comando.

A mulher caminhou na direção dos ho-


mens, que continuavam apontando suas
armas para ela.

— Nem todos nós queríamos fazer parte


dos planos dele. Mas fomos obrigados. Eu
sinto muito – disse a mulher.

Um dos soldados disparou e atingiu o


lado esquerdo do peito da mulher, que caiu
665
para trás. No chão, ela começou a garga-
lhar e, quando seu riso de êxtase começou
a cessar, ainda conseguiu dizer:

— Obrigada.

Equipe 7 – Salas de cirurgias

Quando os soldados entraram na sala, per-


ceberam que era um enorme vão com várias
mesas cirúrgicas montadas em círculo. Em
todas elas, encontravam-se equipamentos
para uso dos médicos e maquinários sus-
pensos por grandes mãos mecânicas.

— Veja, senhor. É um dos nossos – disse


um dos soldados, apontando na direção
de uma mesa cirúrgica com uma forte luz
ligada, focando em cima de uma pessoa
desacordada. O homem estava deitado
666
e um tubo, do qual escorria um líquido
gosmento e amarelado, estava conectado
a uma veia em seu braço direito.

— Arranque isso dele – ordenou o co-


mandante.

— Já é tarde demais – disse uma voz fe-


minina ecoando na sala. Os soldados tenta-
ram sair, mas a porta estava trancada. Por
mais que eles forçassem, não conseguiram
abri-la. — Acorde – falou a voz.

O homem deitado começou a se mexer,


debatendo seu corpo até cair pesadamente
no chão. Os soldados olharam assustados
para ele que, aos poucos, abria os olhos.
Apoiou o corpo com os braços e ficou de
pé, com o corpo torto, aguardando um
novo comando.

— Quero todos vivos. Apenas coloque-os


667
para dormir – disse a voz feminina incor-
pórea.
O recém-desperto então atacou o solda-
do mais próximo. Ele foi tão rápido que o
jovem não teve tempo nem de pensar. O
homem, controlado pela voz, acertou um
soco de direita em cheio no rosto do rapaz,
que foi ao chão, completamente apagado.
O homem procurou o alvo seguinte e,
quando se aproximou dele, foi alvejado por
quatro tiros nas costas. Ele virou-se e enca-
rou o soldado que o atingira, partindo em
sua direção, acertando-o em cheio com um
solavanco que o arremessou para o outro
lado da sala. O homem já caiu desmaiado.
O recém-desperto seguiu derrubando os
soldados, um a um. Não importava quantos
tiros levasse, ele resistia. Quando terminou
de cumprir sua missão, tombou para trás,
morto.
668
A porta foi aberta e, finalmente, uma
mulher velha e gorda entrou no recinto,
acompanhada por quatro homens fortes,
vestidos como enfermeiros.

— Pra onde os levamos?

— Lá pra baixo.

Eles recolheram os corpos desmaiados


e suas armas. Ela caminhou até o homem
morto e sentou do seu lado. Colocou a ca-
beça dele em seu colo e passou os dedos
pelo seu cabelo.

— Que triste, gracinha. Você era um


verdadeiro garanhão, teria me feito muito
feliz, mas o sacrifício de alguns salva a vida
de outros. Obrigada – deu um beijo em
sua boca e saiu, com as coxas manchadas
pelo sangue do soldado.

669
Equipe 6 – Subsolo – Crematório

— Por favor, alguém me ajude. Tem al-


guém ai?

Foi o que os homens que desciam as es-


cadas escutaram.

— Estou aqui em baixo tão sozinho! Aque-


les monstros me prenderam e saíram. Isso
foi há uma semana. Por favor, me ajudem.
Eu era enfermeiro neste lugar. Os loucos...
eles tomaram tudo.

— Calma, senhor. Como vamos saber


que está falando a verdade?

— Eu tenho identificação. Vejam, meu


crachá está jogado ali, perto da fornalha.
Cuidado, ela continua acessa.

— Vá verificar – disse Nikolaev, que fa-


lava com o enfermeiro, ordenando a um
670
soldado que verificasse a informação. — O
senhor disse que está aqui há uma semana?

— Eu, sim, mas o hospício foi tomado


há quase um mês. Um dos pacientes con-
seguiu escapar e montou um cerco que
prendeu todos os enfermeiros e médicos.
Eles fizeram experimentos conosco, apli-
caram soluções e outras coisas que não sei
dizer o que eram. Não só na equipe mé-
dica, mas também em outros pacientes.
Você consegue soltar essa corrente?

— Confirmado, senhor, ele é quem diz


ser. Um enfermeiro. Aqui diz que traba-
lhava na ala 43.

— Tudo bem, senhor, vamos soltá-lo e


levá-lo conosco para que possa contar toda
a história ao nosso general.

Com um pouco de dificuldade, os três


soldados conseguiram desprender as mãos
671
do enfermeiro. Como ele estava fraco, dois
deles ajudaram-no a ficar em pé.

— Venha, beba um pouco de água – disse


um dos soldados, oferecendo seu cantil.

— Vocês são tão bons em ser otários.

O homem agarrou-se com o soldado que


ofereceu o cantil e mordeu a sua jugular,
deixando-o no chão, banhado pelo próprio
sangue.

— Vocês realmente não questionariam,


nem por um segundo, por que aqueles
loucos me prenderam aqui em vez de ter
me matado? Eu sou um deles, seus idiotas.
Na verdade, fui um dos pacientes prefe-
ridos desse enfermeiro carniceiro, só que
resolvi tomar seu lugar! Sou o pior deles,
por isso eles me prenderam. Estou louco
para comer carne assada. O forno já está
em pleno funcionamento.
672
Equipe 4 – Quadrante Norte – Salas dos di-
retores e médicos

— Até o momento, tudo limpo, capitão


Ultkin.
— Continue em frente.
Eles escutaram uma porta abrindo adiante
e pararam por um segundo. O capitão faz
um gesto com a cabeça e seus soldados pa-
raram, mas ele continuou sozinho à frente.
Ele fez um gesto indicando que iria entrar.
Passaram-se alguns segundos e a equipe
seguiu na mesma direção. Quando chega-
ram à soleira, depararam-se com Ultkin
feito de refém por um homem corpulento,
vestido com uma roupa branca encardida,
segurando um revolver soviético bem na
têmpora do capitão.
673
Um segundo homem foi visto na sala.
Também de branco, com um corpo alto e
esquelético. Ele estava parado, em pé, pró-
ximo a uma abertura na parede que mais
parecia uma passagem criada para uma
fuga dramática. Sorria e encarava um ho-
mem com cabelo grande e amarrado. De
alguma forma, ele sabia que aquele seria o
segundo em comando, já que seu capitão
estava sob a mira de revólver.

— Vocês demoraram.

— Quem é você? O que fizeram com


nossos homens? Solte o capitão Ultkin ago-
ra mesmo, isso é uma ordem! – gritou o
primeiro imediato, apontando a arma na
direção do homem alto.

— Isso não será necessário. Não vamos


soltar ninguém. Na verdade, há algum
tempo, desde de que este inferno de guerra
674
começou, não recebemos cobaias tão pre-
ciosas. Vamos explorar cada ponto de seus
corpos, e se, eu disse, se tiverem sorte,
serão um dia eternizados com as várias
descobertas que faremos. Graças a vocês.
— Do que você está falando?
— Sou o novo diretor deste hospício. Toda
a equipe anterior foi, digamos, forçada a se
retirar. Nós assumimos o controle e vamos
continuar seus experimentos. Meu nome é
Anton Sokolov, e já fui um paciente deste
lugar, mas graças aos vários experimentos
que são realizados aqui, eles conseguiram
me trazer da morte mais de uma vez. A
cada vez que voltava, eu me tornava mais
forte e mais inteligente, e foi uma questão
de organização e dissimulação para do-
minar o lugar. Reconheço que os vários
experimentos que eles fizeram aqui foram
de grande sucesso e trarão fama a quem os
675
divulgar. Pena que não estão finalizados,
parece que um século de tortura, pesade-
los e horrores não foram suficientes para
aperfeiçoar as técnicas e fórmulas. Mas
agora estou muito perto de atingir o ápice.
— Você é um louco! Solte o soldado ago-
ra mesmo!
— Acho melhor soltar os meus.
Anton retorceu os lábios em um sorriso
grotesco e disse baixinho, de modo quase
imperceptível:
— Devorem.
Sem esperar, os corredores escuros en-
cheram-se de sombras e criaturas huma-
noides, que se contorciam e rastejavam
pelo chão. Os soldados foram cercados e os
antigos pacientes do lugar, agora alterados
geneticamente, pularam em cima deles.
Eles até tentaram puxar seus rifles, mas os
676
monstros foram mais rápidos e, por mais
que tentassem, o corredor apertado im-
possibilitava uma defesa efetiva. Homens
e mulheres de várias idades haviam se
transformado em criaturas asquerosas e
estavam agora em cima dos combatentes
mortos, devorando-os por completo.
— Alimentem-se, crianças. Estes serão
seus aperitivos. Mas os próximos quero vi-
vos. Vamos continuar nossos experimentos.
E você, capitão – disse Anton, dirigindo-se
ao homem feito de refém, — vai retornar
ao seu comandante e dizer que ele deve se
render ou terá o mesmo destino que esses
homens. Diga-lhe isso também... – e co-
chichou no ouvido de Ultkin, cujo olhar
mostrou-se aterrorizado.
Ultkin, que ainda continuava com a arma
presa a cabeça, não parava de chorar e
suas calças estavam banhadas pelo líquido
677
quente e malcheiroso que escorria de sua
bexiga. Escutou o homem murmurar algo
para o grandalhão que o segurava, e este o
soltou. Ele caiu no chão e foi chutado para
que seguisse o seu caminho. Teve de pas-
sar pelas criaturas que comiam a carne e a
roupa dos amigos. Seu primeiro imediato
já havia sido praticamente todo devorado.
As criaturas rosnavam e se contorciam,
mas não o atacaram.

Equipe 3 – Quadrante Sul – Salas de corre-


ção de postura

— Você sabe? Você sabe... – uma voz que


ecoou na sala.

— Quem está aí? – perguntou um dos


soldados.
678
— ... o que acontece com uma pessoa que
desaparece? – uma voz diferente continuou
a frase anterior.
Risos
— Apareçam agora mesmo.
Silêncio total na sala.
Os homens entraram armados, apon-
tando para todos os lados. Aos poucos, o
lugar foi sendo revelado, pois a luz oscilava
muito, e as lanternas foram imprescindíveis
para avançar. Os soldados viram cadeiras
elétricas ainda em uso, algumas contendo
pacientes recém-eletrocutados, incluindo
uma mulher sem olhos, um soldado da
mesma infantaria deles e um homem sem
a pele. O cheiro de carne tostada invadia
o lugar e todos eram obrigados a tapar o
nariz com a mão.
Os soldados avançaram, atravessaram a
679
sala de eletrochoque e entraram em ou-
tra com várias banheiras cheias de água.
Nelas, corpos flutuavam, enquanto água
continuava saindo das torneiras, inundan-
do o recinto.

— Vamos sair daqui – disse o cabo Kirill.

Nesse momento, os corpos dos soldados


foram agarrados por criaturas deformadas
e molhadas. Eles saíram das banheiras e
pularam em cima dos homens desatentos,
puxando-os para lá. As criaturas começa-
ram a rir ao mesmo tempo e, em poucos
segundos, era possível escutar risos vindo
de todos os lugares do hospício, de todas as
direções, em um grande coro demoníaco
e ensurdecedor. Seguiu-se assim até um
silêncio mortal predominar no lugar de
uma só vez – era tão arrebatador que só
se podia escutar os corações dos homens
680
que estavam no salão principal. E só uma
voz ecoou pelo lugar:

— Você sabe? Você sabe? O que acontece


com uma pessoa que desaparece? – uma
terceira voz pronunciou a frase toda.

Equipes 1 e 2 – Jardim e floresta

— Vocês sete vão pelo lado direito, o resto


vem comigo – disse o comandante Pavel
Mikhaylov. — Vamos nos encontrar nos
fundos do prédio.

— Sim, senhor – Yuri bateu continência


e partiu com sua equipe.

— O que o senhor acha que aconteceu


com o batalhão?

— Isso é o que viemos descobrir, Camarada


681
Maksim – o outro apenas balançou a ca-
beça positivamente.

O grupo do comandante deu a volta no


lugar, até a parte de trás do hospício. Espe-
raram um minuto pelo outro grupo, ainda
atentos, e caminharam até a outra ponta,
de onde deveriam vir os companheiros.
De repente, os soldados do outro grupo
apareceram, com os braços baixos e sem
suas armas. Um olhar vago fazia com que
parecessem catatônicos. Caminharam e
passaram pelo seu superior e companhei-
ros como se não estivessem ali.

Pararam enfim, apontando na direção


da floresta retorcida, para o mar branco
que cobria tudo e que congelava os ossos.
Sem que esperassem, mais soldados co-
meçaram a sair de trás das árvores mor-
tas pelo inverno perverso, escurecendo o
682
lugar. Todos estavam no mesmo transe,
como se suas almas não existissem mais.
O grupo do comandante Mikhaylov,
ainda consciente, avançou para encarar
a multidão de soldados soviéticos que se
aglomerava a poucos metros. Seu pior erro
foi baixarem a guarda. Os soldados na re-
taguarda dominaram, aplicando golpes de
imobilização temporária, de forma que
continuassem conscientes.
Os combatentes não conseguiram se
mover ou falar, tudo que podiam fazer era
observar os antigos líderes se aproximarem.
Os homens de olhar vago abaixaram-se e
começaram a revirar seus próprios olhos
com os dedos, retirando, aos poucos, uma
gosma negra. Quando já tinham uma
quantidade que consideravam satisfató-
ria, introduziam o conteúdo nos olhos dos
soldados imobilizados.
683
Os soldados foram soltos. Eles se con-
torciam e tentavam impedir que o líquido
viscoso entrasse por seus canais lacrimais.
Inútil. Uma vez que ela tocava a pele do seu
hospedeiro, nada mais a detinha. Quando
pararam de se debater e ficaram em pé,
encarando o resto do exército demoníaco,
um dos soldados de olhar vago falou:
— Vamos fazê-los sonhar.

Salão principal

Enquanto os relatos anteriores acontece-


ram simultaneamente entre as equipes, no
salão principal os demais soldados ficaram
imobilizados diante dos gritos e tiros que
escutavam. Esperavam que alguma das
equipes retornasse com respostas, de for-
ma que eles pudessem agir.
684
Foi quando os risos histéricos ecoaram
por todos os lugares do hospício. Muitos
soldados cobriram seus ouvidos, enquanto
outros acompanharam armados o coro in-
fernal. Alguns saíram correndo e a maioria
ficou lá, calada, perscrutando o que aquilo
significava. Nenhum deles percebeu o com-
batente que entrava no salão. Ele tremia de
tão nervoso e sua presença foi detectada
pelo seu cheiro de urina e fezes.

— Senhor, senhor. Temos que sair daqui


– disse Ultkin. — Na verdade, acho que já
é tarde demais, senhor. Os loucos, os pa-
cientes, eles dominaram o lugar, senhor.
Ele disse... ele disse que vão dominar toda
Moscou com suas armas genéticas, modi-
ficadas, senhor... experimentos de anos,
décadas. Os pacientes são armas, senhor,
eles atacam com um comando de voz.
685
— Calma, Ultkin, você não está falando
coisa com coisa. Explique melhor.

— Ele está vindo, senhor, ele está vin-


do, e vai prender todos nós. Seremos suas
cobaias, e Deus sabe o que mais. Ele tem
conhecimento e poder para transformar
as pessoas em monstros, senhor. Ele disse
que usará nosso exército para dominar
todo o mundo. E ele vai conseguir isso,
senhor, ele vai conseguir.

— Eu não consigo entender. Quem é ele?


Como vai conseguir isso?

— Ele tem todas essas pessoas sob o


comando agora. Ele tem poder químico
e genético para alterar quem quiser. Ele
tomou o hospício e transformou todos os
pacientes e a junta médica em armas letais.
Todas as nossas equipes foram dizimadas
686
senhor, acredite em mim. Não restará ne-
nhum de nós, ele pegará todos.

— Não irá, não. Rádio, venha aqui – um


soldado se aproximou, colocando uma
mochila no chão e puxando o aparelho.
Fez as ligações necessárias e, depois de um
primeiro contato, entregou o aparelho ao
general. — Sim, aqui é o general Krasnov,
eu ordeno que...

Alguns minutos depois, do alto das es-


cadas, Anton Sokolov apareceu, cercado
por vários pacientes rastejantes. Soldados
com olhos negros entraram pela porta
principal, cercando todos naquele recinto.
Risos ecoaram pelos corredores, as luzes
oscilaram graças às cadeiras elétricas que
não paravam de trabalhar. A neve e o frio
invadiram o lugar.
687
O que nenhum deles percebeu foi o avião
Kochyerigin DI-6 soltar um míssil com as
coordenadas exatas do hospício de Muskov.
O que nenhum deles conseguiu prever foi
que suas vidas de tortura, dor e sofrimento
acabariam tão rápido. E todos os procedi-
mentos e experimentos que poderiam ser
finalizados com sucesso, mesmo que um
sucesso sombrio e terrível, acabaram em
um segundo de puro silêncio.

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