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Roberto Pazzi
Tradução
Ana Thereza B. Vieira
2004
-2-
Monsenhor Giorgio Contarini celebra a missa,
assistido pelo seu capelão. Naquele momento, um
raio de sol incide sobre o pequeno altar, através
das portas escancaradas do grande armário,
pousando sobre a toalha branquíssima e sobre o
cálice dourado. Um raio cálido como uma carícia,
que tem a medida das paredes, do vidro e da
janela, e repousa ali, junto dele e da hóstia no
pano de linho. Sente aquele raio tocando o braço
direito, justamente onde a articulação dói, com o
benéfico efeito de um calor que alivia o
sofrimento, suave e afetuoso como a mão de uma
pessoa que lhe quer bem: a irmã, o sobrinho, o
cunhado, a cunhada viúva de seu irmão, Contarini,
os amigos que se casaram depois de deixarem o
seminário e tiveram filhos, que, por sua vez,
também tiveram seus filhos. Rapidamente,
recapitula todos os nomes das poucas pessoas
ainda vivas que o amam. Depois vêm os mortos,
que são tantos, mas cujos nomes não vêm, apenas
uma fileira de rostos, que se dispersam na
memória, como se o vento os separasse de seus
nomes, confundindo-os.
Surpreende-se, alguns instantes depois, durante a
elevação, pronunciando o cânone em latim, e até
Contarini expressa um gesto de admiração,
virando a cabeça para o lado, como se quisesse
controlar o que diz sua eminência: "Hoc est enim
corpus meum."
Por que pronunciou tais palavras em latim? É a
língua em que pela primeira vez ouviu uma missa,
quando era criança, sem conseguir entender seu
significado, mas participando do rito como se
participasse do final misterioso de uma fábula.
Pega a hóstia com as mãos: parece estar
submetida à sua força em crer no milagre da
transformação do pão em carne. Quantas vezes na
vida segurou-a assim, apesar de sentir-se cansado,
inadequado, incerto e distraído pelo murmúrio da
vida, estúpida, mecânica e estranha, que
fervilhava ao redor... E com aquela hóstia nas
mãos, sentira-se levar pela banalidade do
cotidiano, quase vencido pelo sentido do ridículo,
pela consciência de uma derrota na inútil réplica
do Calvário.
Agora é a tosse de seu secretário que o distrai, e
também o eco de uma buzina ao longe, e depois o
cheiro da cera no chão, e os passos apressados no
corredor: alguém que se apressa para abrir e
fechar portas no palácio sacro, no sexto dia do
conclave. Enfim, o ronco do estômago vazio; tal
barulho sobrepõe-se a todos os demais porque
vem de dentro dele, de um corpo inquieto e
indócil, talvez indiferente ao milagre que se realiza
naquele cômodo.
Em sua antiga catedral podia culpar o incômodo
dos parâmetros, a lerdeza dos rituais, a invasão
daquela gente por não conseguit se concentrar na
hóstia, por não saber responder sinceramente à
pergunta: "Mas você acredita? Acredita que eu
seja o seu Deus?" Aqui, ao contrário, o espaço é
ínfimo, apertado, discreto, ninguém espera
nenhuma representação teatral e exterior. Está
sozinho, com a hóstia e Contarini atrás dele.
Então, por que ainda não consegue ser completo
naquele gesto e responder àquela pergunta? E um
homem desses pode estar ali, em meio àqueles
que devem eleger o papa, ou, pior ainda, em meio
àqueles que podem ser eleitos?
Ajoelha-se, como sempre, diante da hóstia. O sol já
se fora, não tocando mais seu braço, quando se
levantou para bendizer o vinho no cálice.
O restante da missa passa rápido nas palavras que
a memória envia a seus lábios, mortas como os
rostos sem nome daqueles que amou e que não
vivem mais. Um formulário de palavras precisas,
todas em italiano desta vez, como designa a
reforma do Concílio Vaticano II. Contarini não tosse
mais, como se estivesse associado àquela
silenciosa corrida para chegar ao fim do rito, sem
mais empecilhos nem interrupções.
Quando a missa terminou, seu secretário lhe
serviu a refeição: sobre a mesa, ao lado do
guardanapo e da xícara, se encontra a
correspondência, que chega sempre com um dia
de atraso em relação à casa, e já aberta. As regras
do conclave impõem um controle rigoroso.
Agora, já se sente por todo o palácio o burburinho
da vida.
- Eminência, a votação é às dez horas; falta uma
hora e meia. Vou preparar, então, seu hábito e
sua carteira. Depois, devo correr para uma reunião
com o prefeito da Casa Pontifícia, pois parece
que há novas instruções urgentes.
- Algo deverá mudar; as regras já estão
ultrapassadas, como essa censura à
correspondência.
- Ah, não, as comunicações entre nós, que
estamos em conclave, são livres; deve estar
faltando outra coisa.
- Eu não estaria tão seguro assim.
Abre a missiva e lê; foi escrita à mão, com uma
letra muito pequena:
-4-
Solene, apoiado no pastor, recusando o amparo de
um prelado doméstico, surge da cancela de
mármore, cerca de meia hora depois, o patriarca
maronita Abdullah Joseph Selim.
A determinação do camerlengo venceu apenas um
de seus recrutados indóceis.
Quanto aos outros três — os cardeais do Rio de Ja-
neiro, de Santiago do Chile e de Sydney —, não
houve mais nada a fazer, como monsenhor
Attavanti, secretário do colégio cardinalício, está
sussurrando ao ouvido do camerlengo com
detalhes úteis a convencê-lo de que tentou de
tudo.
— O cardeal de Sydney tinha dores terríveis;
a certa altura nem sequer me escutava mais,
escondendo-se debaixo do lençol. O arcebispo do
Rio não me deixou terminar de falar, convidando-
me a sair e a deixá-lo morrer em paz.
— E o de Santiago do Chile? — insiste,
descontente, o camerlengo, tocando a campainha
para restaurar o silêncio na capela.
— Eminência... ele estava no banheiro, e eu
não tive coragem de dirigir-lhe a palavra da
antecâmara, depois de ter mandado seu secretário
avisá-lo de que estava ali. Mas este me garantiu
que a incontinência de seu arcebispo lhe impediria
realmente de participar.
O fantasma de um cardeal preso a uma cadeira de
enfermos desfaz a tensão de Veronelli. Tem de se
contentar com o patriarca maronita, que nesse
meio-tempo deu vários passos em sua direção e
agora parece ameaçá-lo com seu bastão pastoral.
O rosto pálido e os olhos vermelhos sob o chapéu
redondo, de cujos lados cai um véu negro, de
barba longa e branca, compõem um aspecto
majestoso que chama a atenção geral e abafa o
vozerio.
- Se eu não sair vivo do conclave,
e m i n e n t í s s i m o c a merlengo, ficarei n a sua
consciência. Que diferença faz... - e um acesso de
tosse sacode o peito do libanês, impedindo-lhe de
falar por alguns instantes – que diferença faz se eu
não participar da votação de hoje? Ainda está
c e d o para amadurecer a escolha, todos os
conclaves tiveram necessidade d e u m tempo
precioso para a reflexão, a sua pressa é má
conselheira.
— Já se passaram muitos dias, caro irmão, o
tempo não é mais o mesmo do último conclave;
medimo-lo muito mais rápido agora.
— Não somos obrigados a segui-lo; a doença
também é um convite à reflexão, a não imitar a
corrida do tempo que leva à loucura lá fora. A
cautela de espírito também pode revestir-se da
fragilidade da carne!
O cardeal Veronelli não relata mais.
Os ânimos naquela sala parecem agitados por
motivos opostos, mas todos parecem ter seguido o
debate com muita atenção. O patriarca maronita
tem carisma, e o seu incontestável sofrimento
físico acrescentou um páthos às suas palavras.
Veronelli se contenta em ver que a muito custo o
doente chega ao seu assento, perto do arcebispo
de Turim, exercitando a virtude da obediência.
Ele teria pressa para terminar? Mas era apenas
dele a responsabilidade de comandar o conclave
mais difícil dos últimos tempos, pois recebia
pressões dos governos de meio mundo. Ele
deveria responder ao telefonema do presidente
italiano, àquele da ONU, ao francês, ao líder da
Ucrânia e ao Prêmio Nobel da Paz, dizendo que
não conseguia sugerir o nome de um papa negro,
em homenagem à causa de todos os perse-
guidos... E os judeus? O que o patriarca do Líbano
sabia das pressões que tiveram de exercer sobre
aquele inimigo do Islã, o cardeal de Sarajevo,
como garantia de que de modo algum levariam em
conta a eleição do palestino, como se sussurrava
em muitos ambientes religiosos do Oriente Médio?
Agora era o palestino que estava manso como um
cordeirinho, sentado à esquerda, em um dos
tronos mais próximos da cancela, lendo
tranqüilamente seu breviário — talvez -, sem
tomar parte na discussão, sem trocar uma palavra
com seus vizinhos. Pela aparência, era o mais
manso e angelical dos príncipes da Igreja, mas
capaz de esconder em seu carro com licença
diplomática uma bela coleção de Mausers e de
mitras para levar ajuda às suas ovelhas em
Jerusalém...
M a s j á é hora de proceder à chamada dos
nomes e iniciar a discussão antes da votação. São
onze e meia, e não é prudente perder o controle
daquela assembléia indócil por mais alguns
minutos.
O cardeal decano Antonio Leporati lê a lista dos
eminentíssimos e reverendíssimos cardeais em
ordem alfabética, repleta dos nomes das igrejas de
Roma, de onde são titulares. Agora o silêncio foi
quase completo.
Terminada a chamada, o camerlengo anuncia que
a discussão está aberta, se acaso algum dos
eminentíssimos quiser tomar a palavra, antes da
votação.
Alguns minutos de um abafado vozerio se passam,
como se muitos se contivessem, falando entre si,
desejando dirigir-se à assembléia em voz alta.
Não querem assumir a responsabilidade de dar um
rumo àquela navegação do conclave ainda em mar
aberto. Os nomes que haviam sido queimados nas
votações pareciam reconhecimentos de terras
fantasmas, fadas morganas, enganos.
O boato de que o cardeal de Milão tivesse aceitado
converter sobre seu nome os votos dos italianos e
talvez o dos franceses e dos espanhóis não
conseguiu chegar a tempo a todos os
componentes do Sacto Colégio. Mas a licença da
palavra durante a troca de deixas entre o
camerlengo e o patriarca maronita chegou à
maioria, obtendo as primeiras inoportunas
reações.
— A história não ensina nada mesmo aos italianos
— comentou o arcebispo de Havana —, eles nos
reprovam.
Ettore Malvezzi olha à sua volta, estudando os ros-
tos dos mais próximos: o patriarca do Líbano, os
prelados de Palermo, Bolonha, Paris, Viena,
Colônia, Bordeaux, Madri e Toledo, até os que se
encontram mais abaixo, por onde se estendem "as
legiões do Leste", como às vezes Rabuiti costuma
denominá-las com antipatia e temor: o cardeal
uniata de Lviv e o latino, o de Riga, Budapeste,
Zagábria, Varsóvia, Cracóvia,
Minsk, Kaunas, Praga, Fagaris e Alba Júlia, Nitra e
Sarajevo.
De onde partiram a s hostilidades?
Quem dará início às grandes manobras do poder
mais desarmado e mais antigo e universal da
Europa?
Ele percebe um ruído vindo da esquerda, perto de
Cerini; alguém se agita e se vira para chamar a
atenção de seu vizinho de banco, o arcebispo de
Palermo. Intercepta a mensagem do inquieto
genovês Marussi:
— Você deve apresentar sua candidatura...
Mas Rabuiti parece uma estátua do pensamento,
enlevado a contemplar profetas e sibilas no teto,
surdo a qualquer solicitação. Os secretários do
camerlengo já se movem para pegar os pratos
com as cédulas e percorrer a Capela Sistina,
distribuindo-as aos votantes.
O silêncio persistente convence os membros do
Sacro Colégio que o convite a uma reflexão mais
demorada, feita pelo patriarca maronita, não foi
em vão. Ainda está cedo para acelerar a máquina
do conclave.
Do altar vem a ordem do camerlengo para
distribuírem as cédulas sem mais delongas. Os
sinos de São Pedro acabaram de soar o meio-dia.
Agora os cardeais estão todos debruçados sobre
suas mesas, um procura os óculos, o outro passa e
repassa os dedos sobre a cédula para esticá-la
melhor, outro ainda tira a tampa da esferográfica,
alguém escreve rápido um nome, outro se
entretém ainda falando ao ouvido de um colega,
há quem permaneça imóvel como Malvezzi, com a
cédula aberta, sem escrever nada, olhando
fixamente para aquele papel branco com o brasão
da Sede vacante.
"O papa? Quantas divisões tem o papa?", vem-lhe
à mente a irônica pergunta de Stalin, enquanto
observa o cardeal uniata de Lviv, a seu lado,
chamando primeiro os adeptos à retirada das
cédulas.
Tentou escrever seu nome, mas deu sua palavra
aos colegas italianos de que votaria em Cerini. Não
pode fazer isso. As cédulas estão controladas, não
sabe como, mas sempre se consegue saber em
quem votaram, mesmo queimando as cédulas
depois.
I n c l i n a - s e e e s c r e v e lentamente o nome de
Alfonso Cerini, arcebispo de Milão.
Mais da metade já colocou a cédula nos
grandes pratos de prata, cujo conteúdo
v er t e r ã o n o c á l i c e d e o u r o s o b r e o a l t a r ,
quando Ettore finalmente desperta de um
sonho que o levou para bem longe.
Foi atraído pela cena da ressurreição dos mortos,
no grande afresco de Michelangelo, com aquelas
expressões hesitantes e surpresas, carregadas de
sono e espanto, que voejavam sobre os rostos
despertos para a vida pela trombeta dos anjos.
Que escritor moderno descreve Lázaro e a sua
vida de exilado da m o r t e , constrangido a respirar
pela segunda vez o ar e a i n f e l i c i dade dos
viventes, com a mente sempre voltada para a
melancolia do sono, para onde espera voltar?
Talvez um poeta italiano? Corrado Govoni? Ou
Rilke?
— Eminência, quer entregar-me sua cédula?
— solicitou um prelado, fazendo-o reabrir os olhos
entreabertos, procurando lembrar o autor daquela
vida de Lázaro.
— Você estava dormindo? Eu entendo,
também o acordaram à noite para convencê-lo...
— comenta o patriarca maronita, seu vizinho.
Sorri, sem replicar. Mas o libanês, que simpatiza
com ele, não desiste.
— Votei em você.
O sangue sobe à cabeça do arcebispo de Turim,
que de repente se vira para fitá-lo, segurando-o
pelo braço:
— Mas o que você fez? Está brincando?
— Não, não estou brincando. Acho que você
merece...
— Não faça mais isso, por favor, é um voto
perdido, eu nunca poderia...
Não termina a frase, tomado por um estranho
terror, como se alguma coisa ou alguém lhe
impedisse de continuar, de revelar como se sentiu
naquela manhã enquanto celebrava a missa, com
a hóstia nas mãos, incapaz de responder à
pergunta "Mas você acredita? Acredita que seja
aquele Seu Deus?"
— E o que você sabe sobre o que é possível
para Deus, que você nunca conseguiria?
E o imponente patriarca, enquanto se levanta a
muito .....................................................custo,
apoiando-se em sua bengala, lança-l h e um o l h a r
reluzente que por um instante lhe recorda a luz
trágica do único olho aberto do danado de
Michelangelo — o outro está coberto pela palma
da mão — escutando a sentença que o c o n d e n a
à eternidade do inferno: a figura do Juízo universal
que mais o comoveu na primeira vez que o viu,
ainda rapaz...
O secretário do patriarca já estava se apressando
para ajudá-lo a descer os degraus e sair para uma
pausa antes do resultado da votação. O patriarca
maronita precisa beber, a febre subiu e o está
desidratando.
O camerlengo permite que ele se retire à sua cela,
sem esperar pelo resultado do 11o. escrutínio.
Malvezzi observa a cadeira vazia a seu lado, com
aquela luz intensa ainda viva em seus olhos. Tudo
aconteceu tão rápido e foi-se o homem, o único do
Sacro Colégio que teria votado nele.
Certifica-se de que nenhum de seus outros
vizinhos, sobretudo Rabuiti, tenha escutado a
conversa. Mas a voz do enfermo era muito baixa e,
além disso, Rabuiti parecia absorto num denso
conciliábulo, num banco mais abaixo, com um
purpurado do Leste, com quem fala em francês.
— Por favor, eminentíssimos, voltem aos seus
lugares.
Veronelli levanta-se, assistido pot dois cardeais
escrutadores, para 1er um grande livro de
registros sustentado por monsenhor Attavanti.
— Comunico os resultados da 11ª. votação para
eleger o sumo pontífice da Igreja universal e bispo
de Roma. Aceitos para votação 127 cardeais, dos
quais 124 estão presentes. Receberam votos... —
E a voz monótona e recitada do camerlengo dá a
entender desde o início que mais uma vez não foi
possível encontrar um novo pontífice. A dispersão
é ainda maior. Apenas o cardeal de Milão
conseguiu 12 votos, mas isso pode ser um
resultado perigoso, capaz de prejudicar o futuro,
queimando sua candidatura.
Quando Malvezzi ouve seu nome, com o único voto
que obteve, é tomado novamente pelo terror. O
sorriso irônico de Rabuiti, que naquela hora se
virou para observá-lo, acena-lhe com a dúvida da
autovotação.
- Não se tendo conseguido o quorum da maioria
simples dos votantes, suficiente desde o quinto
escrutínio, agendaremos os trabalhos para esta
tarde, às cinco horas, para proceder ao 12º.
Escrutínio. Pedimos vossa pontualidade,
eminentíssimos.
A voz de Veronelli o distraiu, lembrando-o de sair
da sala e v oltar à sua cela, onde Contarini já o
esperava para almoçar.
Há uma multidão na saída. Os cardeais comentam,
em diversas línguas, aquela situação, que se
mostra cada vez mais difícil de resolver.
O nome do arcebispo de Milão passa pela boca de
muitos, alguém se aproxima do cardeal em quem
votou para exprimir-lhe seu descontentamento e
apoio. O interessado recebe as manifestações de
simpatia com a costumeira impecável discrição,
apertando as mãos para agradecer-lhes.
Apenas na hora de receber a homenagem de
Rabuiti se permite um desabafo:
— Não me querem, caro Celso, mas a coisa
não podia ser-lhes apresentada de modo mais
confuso.
— Era muito cedo para anunciar sua
candidatura, arriscava queimá-la. Mas podemos
sempre remediar. Já agendei um encontro com o
primaz dos alemães, com Dublin e Londres.
Passarei o dia discutindo com eles outras
possibilidades, os franceses e os espanhóis ficarão
do nosso lado, mas é melhor falar-lhes em outro
lugar...
— É conveniente. É preciso contatar o
patriarca de Beirute, ele tinha razão.
"A Senhora" é sempre extravagante, pensa
Rabuiti; é assim que os inimigos de Cerini
costumam chamar o arcebispo de Milão. Ei-lo
pronto a lançar uma ponte aos adversários, para
se tornarem amigos e ter o resultado de uma
abertura mental realmente superior. Logo tomará
ares de laudator temporis acti, nostálgico da
antiga lentidão, amante da contemplação... Mas
para sairmos daqui, devemos inserir nosso cartão
de identidade no computador... No tocante aos
votos, aquele árabe é que conta... Mas fez uma
bela de uma saída teatral... Será melhor lembrar
Malvezzi de suas responsabilidades, eu não
esperava que ele votasse em si mesmo
Os cardeais remanescentes, aglomerados na
entrada, se vêem obrigados a dar passagem a três
prelados que passam com a caixa das 124 cédulas
a serem queimadas no forno do conclave.
Resgatara-se o antigo costume de queimá-las para
anunciar ao mundo, com a fumaça negra ou
branca, o resulta do negativo ou positivo da
votação.
O arcebispo de Bogotá faz entender, em espanhol,
que aquela fumaça, além de penosa, é ridícula.
Com freqüência, a fumaça de cor incerta dá
margem a interpretações equivocadas. Quem, hoje
em dia, sabe acender aquele forno? O primaz
cubano lhe dá razão, acrescentando em voz alta
que se fosse o camerlengo procederia logo a uma
outra votação, seguindo assim até à noite, com
vários escrutínios... afora a lentidão por causa da
doença!
— Vocês ouviram? Contardi recebeu a extrema-
unção — se intromete o mexicano Ezcuderos.
Por um instante a notícia de que o estado de
saúde do setuagenário arcebispo do Rio de Janeiro
é grave suspende todos os comentários,
recordando a uma tão incomum e forçada reunião
de machos, naquela obra-prima de símbolos, ritos
e tradições que é um conclave, o pensamento
natural e espontâneo da morte.
A lembrança faz retornar ao próprio país, à própria
cidade, à casa: lugares que o pobre coitado
percebe que não verá mais. E o sentimento de um
inseparável obstáculo à liberdade de ação chega,
de repente, para abalar os cardeais, restituindo-
lhes, entre saudade e ânsia, a verdade de uma
condição já sofrida por muitos no passado. Não era
a primeira vez que alguém morria ali.
— Rezemos hoje pelo nosso irmão Emanuele,
eminentíssimos. — A voz do camerlengo chega ao
último grupo na saída.
-5-
A morte de Emanuele Contardi à noite reduz o
número dos membros do Sacro Colégio admitidos
em conclave para 126.
O camerlengo, que não é poupado das
repercussões negativas daquele evento lutuoso
sobre o bom andamento do c o n c lave, põe a culpa
no príncipe médico-chefe Aldobrandini, porque
este consentira o ingresso de um purpurado
moribundo, o que, pelo bem da Igreja, não deveria
ter sido feito.
Agora esse novo empecilho retardará os
movimentos daquele motor que custa a pegar. Os
funerais, aos cuidados de dois assistentes da
cadeira pontifícia, os príncipes Orsini e Colonna,
devem ser celebrados apenas com a participação
dos cardeais. Roubam tempo e desviam energias,
difundindo sobre cada um daqueles velhos uma
sombra negativa, que pode complicar as coisas. O
camerlengo conhece a psicologia daqueles
homens de poder, o sofrimento que cresce por
causa de uma clausura imposta pela história e
que, de repente, imprime às suas vidas o ritmo
das sociedades medievais.
Poucos têm simpatia pelo clero regular, como são
chamados os sacerdotes que escolheram a regra
dos conventos e as ordens religiosas, que têm
ainda seu maior prestígio naquelas ordens de
clausura.
Entre os poucos cardeais elevados ao purpurado
por um desses conventos distingue-se o estônio
Matis Paide, obrigado pela obediência ao pontífice
a renunciar à sua vida contemplativa e a aceitar o
barrete cardinalício, para imprimir sua
espiritualidade a um dos dicastérios vaticanos
vacantes.
O dicastério, a Congregação para a Evangelização
dos Povos, fora acolhido pelo santo homem como
uma penitência, e um pouco daquela resignada
obediência havia caracterizado seu estilo de
governo, abandonando a alegria da expansão da
verdade revelada pelo Cristo.
No caso do conclave, aconteceu exatamente o
contrário: o ex-trapista se mostra mais pronto do
que qualquer outra pessoa para aquela fuga do
mundo, solícito de conselhos e disponibilidades
com o camerlengo e o seu ofício, como se a outra
experiência de sua vida, a clausura, agora fosse
colocada à disposição de quem sente falta dela.
O cardeal, originário de uma ilha da Estônia,
Saaremaa, logo após o funeral do primaz
argentino, encontra se sozinho com o camerlengo
em seu apartamento.
— Estou preocupado, Paide, muito
preocupado com o andamento das coisas. — É
como Veronelli inicia a conversação, dirigindo-se
até a poltrona.
— Mas não devia. A mim me parece que tudo
sucede como tantas outras vezes — responde-lhe
Paide, o ex-trapista, que viveu por quase vinte
anos na clausura da abadia de Tre Fontane, em
Roma.
— Não estamos mais naquele tempo, é uma
situação incomparável, atropelada pelas
contingências que não admitem confrontos,
vencida por um papa muito embaraçoso para a
memória... Como seremos no alto? Percebe que
não chegamos a um acordo? Às vezes acho que
não querem eleger um sucessor, a não ser pelo
fato de que permanecer aqui por muito tempo os
aterroriza.
— Você está exagerando, Vladimiro. Votamos
apenas poucas vezes, alguns conclaves duraram
vários meses...
— Sete dias já se passaram.
— E o que são sete dias?
— Em sete dias Deus criou o mundo.
— E nós mal começamos a entender a graça
desta clausura... Ainda é cedo para acolhê-la em
sua plenitude.
— A graça da clausura? Você acha que eles
podem entendê-la dessa maneira?
— Eles precisariam ficar aqui não um mês,
mas um ano inteiro para renascer quando saírem.
— E quem governa a Igreja nesse meio-
tempo?
- Ela se governa por si só, talvez até os crentes
redescubram o valor de seus pastores, na
ausência de seus pecados.
- Você pensa como trapista, não como cardeal,
você também deve ajudar no conclave; quando
aceitou o barrete cardinalício do papa, também
assumiu tais honras.
- M a s e s t o u lhe ajudando, s ó que você ainda
não entendeu, você pensa em termos muito
mundanos, semelhantes àqueles dos poderosos da
Terra.
- P o r que n ó s , cardeais, não somos os poderosos
da Terra? O equilíbrio de tantos governos não
depende dos homens alojados aqui dentro? Não
decidem o destino de mil alianças d e partidos,
regimes, forças econômicas? Até mesmo n a Itália
já descobriram o poder de mediação do cardeal da
c i d a d e e m algumas greves.
- Não insinue tais palavras dentro destes muros, o
inundo desmorona sob o peso dessas palavras...
partidos, sindicatos, coalizões, economia,
indústria. Se você as evocar, este conclave cairá
no ridículo, como quem escreve com a pena de
p a t o , e m vez de usar o computador... Ao menos
aqui a linguag e m impura de nossa era se cale.
— Mas eu devo mediar entre os dois mundos
que você quer separados! Sabe quem me
telefonou há pouco, com a desculpa de dar os
pêsames por Contardi? O presidente do Conselho.
E você devia ver como ele se estendia em
perguntas e como insistia em saber os nomes dos
mais cotados! E como foi hábil ao apresentar o
discurso da paridade escolástica até numa ocasião
como essa, para condicionar-me.
— Deixe-o falar, deixe-os dizer, confunda-os
com boatos e promessas genéricas e diga-lhes
sempre que sim. Serão mentiras santas a serviço
da verdade.
— Então você concorda com meu modo de
agir.
— E quem foi que declarou guerra a você?
Quando foi que eu me furtei ao meu dever? Já são
dez anos que comando o dicastério que o Santo
Padre me impôs, e Deus sabe quanto me custou
obedecer-lhe, deixar minha cela de Tre Fontane...
Eu tinha apenas Deus comigo... eu já havia
morrido para o mundo e aquele homem venerável
o b r i g o u - m e a s u p o r t a r n o vamente o peso de
que e u já havia me livrado.
— E você não acredita que também custa muito
para mim bancar o policial do Sacro Colégio, e
seguir unicamente os problemas práticos e
políticos deste evento?
Paide se cala. Prefere não magoar seu amigo,
dizendo lhe que, por sua natureza, ele é o homem
certo, no lugar certo. Muda de assunto e faz isso
de um modo surpreendente e radical.
— Observe que a clausura é uma alegria, mas
é preciso ajudarmos aquele que nunca
experimentou reconhecê-la. O corpo se adapta às
condições para usufruí-la também nos sentidos.
Aprenda isso de nós, nórdicos, que vivemos a mais
esplêndida e pungente das solidões em nossas
terras semidesertas. Pense, na minha ilha eu devia
caminhar 50 quilômetros anres de encontrar uma
pessoa com quem pudesse trocar uma palavra.
Quando era criança, durante anos nunca vi outra
criança além de minha irmã Karin ou outros
adultos além de meus pais e avós.
— Eu o entendo, o que deverei fazer para
abrandar os rigores dessa clausura?
Por um instante Paide silencia até o pensamento.
Veronelli, que reduz tudo à prática, não entende.
Procura seguir aos poucos para não perturbá-lo.
— Em nossa solidão residem muitos tabus
que dividem os seres humanos mais contidos.
Procurávamos uns aos outros porque éramos tão
poucos...
— Aqui não somos tão poucos assim. Além
dos 126 cardeais existem 110 pessoas de serviços
variados, vinte prelados domésticos, uma
companhia de cem guardas suíços, mais um
secretário para cada purpurado... sem contar com
as irmãs que ficam nas cozinhas, não admitidas no
conclave.
— Mas é a mesma solidão: lá na minha ilha,
Saaremaa, era diante da natureza, aqui é diante
de Deus. Desde menino eu conseguia sentir Deus
apenas no mar, na grama, nas estrelas da noite,
no sol da aurora boreal. Depois os olhos se
voltaram para dentro e vi...
É um terreno difícil para Veronelli.
Paide se compadece dele, não quer fazê-lo sentir-
se inadequado com seus pensamentos, não quer
humilhá-lo. Ele tem uma cabeça velha, formada
pelo costume da cúria vaticana, não consegue
assimilar a diversidade. É o destino da maior parte
dos homens, morrer antes de morrer, na
incapacidade de reconhecer o novo, o diverso.
Dado o limite, é inútil continuar com esse
argumento. É melhor ir direto a o ponto.
- A maior alegria, quando eu era criança, na minha
ilha, era fazer sauna com meus parentes, nus
como Deus nos fez, às margens de um lago que
ficava atrás de nossa casa. Tínhamos uma parte
da casa equipada com aquecedor e piscina, não
faltava nada, nem mesmo os ramos de bétula do
lado de fora da porta para bater em nossas
costas...
- Certa vez, em Helsinque, o bispo luterano
que me hospedava me levou para fazer sauna no
hotel; e a única coisa que consegui foi pegar uma
bela de uma gripe.
- Não lhe ensinaram como se faz, a sauna é
uma arte. T a lvez seja melhor tentar de novo, eu
lhe ensino como se faz.
— Onde? Não acredito que volte a Helsinque.
— Em Helsinque não, aqui mesmo.
— Aqui?...
— Sim, no conclave.
O camerlengo da Santa Igreja Romana, cardeal
Vladimiro Veronelli, sob o título de San Carlo dei
Catarini, levanta a cabeça que estava encostada
no assento, observando bem os olhos do ex-
trapista, elevado à púrpura pela fama de sua
doutrina e de sua espiritualidade.
— Não se espante. Todos os cardeais do Leste fica-
riam felizes se pudessem recobrar suas energias,
alternando o calor seco e o vapor a que sempre
estiveram acostumados desde crianças, como eu
fazia com meus parentes em minha ilha. A nudez
do corpo não é nenhum mal e a experiência ensina
que isto faz com que desmoronem muitas das
barreiras entre as pessoas. Imagine aqueles que
estão enclausurados aqui dentro: a idade e o
poder fizeram com que se acovardassem dentro
de muralhas mais altas do que as da China.
- Mas... então você não está brincando, acredita
mesmo nesta... como diria... loucura, disparate,
provocação ou algo pior, mas eu respeito o hábito
que vestimos.
— Talvez eu não esteja conseguindo me
explicar. Eu repito, a clausura pode ser uma
alegria, a morte para o mundo e o renascimento
em outro lugar, em outro mundo... Mas necessita
de uma ajuda, e o corpo é uma dádiva de Deus,
não uma culpa da qual seremos perdoados.
— E você fazia sauna quando estava na
clausura em Tre Fontane?
— Não, além de ser um convento católico,
ficava em Roma. Eu tinha de respeitar as regras.
Eu falo de uma clausura diferente, a da minha ilha,
na Estônia. E desta, deste conclave que está
justamente deslocado da história, e que você
receia ser muito longo, longo demais para esses
velhos que viveram ignorando a solidão; na
maioria das vezes sufocados pelo falso brilho não
de seus paramentos, mas de seus próprios
poderes, papéis e privilégios, máscaras cansadas
de um manuscrito. E se esqueceram da carne nua,
sem pecado, sem malícia, inocente de quando
eram crianças...
— E você acha mesmo que podemos fazer
sauna em conclave?
— Observe aquele crucifixo ali, atrás de você.
Está nu, fora aquela pequena faixa, está nu como
quando todos nós nascemos. É diante desse
mesmo crucifixo que nossos irmãos rezam toda
noite quando se despem.
— Você não quer colocar num mesmo plano o
Cristo crucificado e um cardeal nu!
— É você que vê malícia nessa aproximação,
você, com sua cultura latina, romana, contra-
reformística, que nega a santidade à carne. E
pensar que uma das promessas mais belas de
nossa religião é a da ressurreição da carne com o
corpo glorioso, aquele da juventude, no auge de
nossa forma.
— Por que você finge que não sabe que
alguns de nossos hóspedes não conseguiriam
olhar com olhos inocentes as carnes nuas?
— Eu não finjo que não sei. Acho apenas que
alguns deles não teriam tal inclinação do olhar se
desde crianças se vissem nus, como eu em minha
terra, visto que tal inclinação é realmente um
pecado, e não um simples modo de sentir
diferente da maioria. Não, não faça essa cara, o
meu pensamento não é filho do olhar sobre a
carne de meus semelhantes; pode ficar tranqüilo.
- M a s v o c ê j á se deu conta do que
significaria para o Vaticano se o mundo soubesse
que os cardeais, fechados em conclave, fazem
sauna pata repousar, em vez de ler, dormir,
conversar e rezar?
- O mundo? E o que é o mundo? O que temos em
mente? Você mesmo reconhece que ele mudou,
que não existe mais aquele mundo do passado
que eu evocava há pouco. O mundo está em
constante transformação; por isso você se aflige
com o governo do conclave, porque nenhuma
experiência anterior pode lhe ajudar, você não
pode se valer de um manual em que se apoiar. O
mundo também é feito por nós, pela noss a
coragem em melhorá-lo por amor ao homem.
— Talvez eu seja muito velho para
acompanhá-lo. Sou e continuarei sendo um
cardeal da Santa Igreja, católico, apostólico e
romano.
— A clausura deve ser vivida como um
Carmelo de delícias, não como umaTebaida de
tentações demoníacas nem tomo um deserto de
espinhos. Há também a glória dos sentidos,
alegria inefável, que leva a Deus. Lembre-se de
Boaventura e esqueça Tomás de Aquino.
— Mas sua proposta é inaceitável.
Desencadearia até uma revolta geral aqui dentro.
— É apenas uma iniciativa para nos deixar em
condições de vivenciar melhor esta experiência,
mas existem outras. Não penso que suscite tantas
contrariedades. Você ignora que metade dos
cardeais costuma ter uma relação direta com o
físico, com o corpo. No Oriente Médio, o banho
turco é um dos mais freqüentados lugares de
encontros. Até os indianos reservam um grande
tributo espiritual ao prazer da carne. Além disso,
se a sauna era apenas um exemplo no meu
discurso, não devemos esquecer que em todo o
Mediterrâneo gregos e latinos convergiam às
termas como a um lugar de cultura e de encontros
políticos, não apenas um lugar de prazeres. Há
uma vivência humana anterior ao Cristianismo que
ainda circula em nossas veias.
— E o que você quer? Transformar o palácio
apostólico em um hotel de luxo, com serviços de
tratamento estético, massagens, restaurantes
chineses e típicos, enotecas, palestras, barbeiros e
esteticistas?
— Já que você coloca a questão nestes
termos, confesso que não haveria tanto mal em
remodelar esta clausura. Mas já é tarde, caro
Vladimiro, e não quero abusar de sua gentileza. É
melhor irmos dormir, a noite é ótima conselheira.
— O sono pode transformar tudo em uma
dádiva, exceto a idéia de dessacralizar este lugar.
— Desculpe-me, mas não concordo. O
sagrado não é apenas renúncia, penitência,
mortificação, escuro, mas também expansão,
felicidade, beleza e luz. De qualquer modo, boa-
noite e até amanhã.
Despedem-se à porta do apartamento sem se
apertarem as mãos. Um, o camerlengo, ainda
perturbado pelo diálogo com "o frade", como
aqueles que chamam o arcebispo de Milão de "a
Senhora" chamam o cardeal Paide no Vaticano; o
outro, confuso pelo pesar de ter desiludido aquele
homem, que esperava dele apenas alguma
sugestão técnica para passar o tempo, e pela
surpresa de terem se dado a liberdade de tratar de
certos argumentos.
Paide se encaminha pelo longo corredor que leva à
escada. No canto daquela passagem estreita, um
pêndulo soa as horas: duas da manhã. Está
ventando mais adiante. Na escuridão da noite há
uma enorme vidraça escancarada, que dá para o
lado sul, por cima das casas de Roma.
As luzes distantes da capital pulsam, assinalando a
vida que não pára nem mesmo nas horas do sono,
quando até as horas de repouso podem ser
reinventadas para outras necessidades da carne,
para o prazer, acima de tudo, e para o amor em
todas as suas formas.
Naquela hora roubada ao sono, experimentou uma
estranha prova que desafiava mais a ele que ao
camerlengo. Ali no coração da tradição católica, na
Sede apostólica onde tudo era filtrado por um
cerimonial e nada era improvisado ou deixado ao
acaso, teve a ousadia de falar dos prazeres da
carne, da alegria de viver, de uma idéia do
sagrado que via no Cristo a beleza e a vitória.
O que lhe deu coragem para falar assim? Em
outros tempos, não poderia mais exercer suas
funções; no dia seguinte viriam buscá-lo para
levá-lo ao Santo Ofício para responder a o
p r o c e s s o . Era uma heresia sua? Era o diabo que
se escondia em sua inflamada defesa da natureza
e dos sentidos? O que ele sabia sobre o prazer e
sobre o amor, ele que sempre se sublimou n a fé,
após ter visto sua luz encantadora no deserto de
s u a ilha, quando uma paixão que não podia se
legitimar lhe f e z entender aos vinte anos que não
poderia amar como a uma irmã sua irmã Karin?
Quando aquele primeiro e único amor de sua vida
se manifestou, sentiu a força de ir embora para
sempre, sem deixar nenhum rastro, temeroso de
que Karin o seguisse aonde quer que fosse. Cinco
anos depois, quando era estudante da faculdade
de teologia de Marburgo, recebeu a notícia da
morte prematura da irmã, e nem então teve
coragem de encontrar seus pais para a chorarem
juntos. Mas naquele momento sentiu que poderia
amá-la, vivendo na prece a chama remida de tal
paixão.
Aos 66 anos aquela lembrança ainda vive em sua
memória, como se quase cinqüenta anos não
tivessem passado. E é estranhamente grato ao
destino que lhe permitiu experimentar aquela
febre, o amor por uma mulher.
O conclave é proibido às mulheres, como toda a
vida sacerdotal daqueles anciãos. Metade do
mundo falta àquela fileira de homens que devem
entender o mundo e tratar de seus males,
temperar sua violência, acompanhar sua loucura,
perdoar suas fraquezas. É o maravilhoso escândalo
da razão que rege o amor universal na renúncia ao
amor: seguiu aquele caminho pelas vicissitudes de
sua juventude, antes mesmo de entender que era
o primeiro degrau dos devotos. Foi a graça de sua
vida.
Mas talvez afronte seus velhos confrades que em
seus leitos pagam o débito da carne com o sono.
Talvez muitos guardem no coração o segredo de
um amor proibido, impossível ou vetado pela
mesma ética que ora representam. E talvez justo
por aquela remoção total, como ele por um
caminho diferente, retiraram sua própria força de
amar a Deus.
-6-
A mesa de estudos de Ettore Malvezzi, em torno
da qual estão reunidos os cardeais italianos, está
repleta de jornais em várias línguas.
O cardeal de Palermo lê em voz alta alguns títulos,
destacando os mais insinuantes e maliciosos.
— "O conclave gira no vazio. Nenhum acordo ainda
no décimo dia"; "Desenha-se uma dura batalha
entre facções opostas no conclave mais difícil dos
últimos séculos"; "Os italianos resistirão? Por
enquanto perdem os primeiros movimentos no
conclave. Fumaça negra ainda na 17a votação";
"Votos para Cerini queimados nas primeiras
votações", mas vejam que descaramento! —
comenta Rabuiti sobre a escolha das palavras. —
"Sobe a cotação para os purpurados do Leste, mas
não se exclui a escolha de transição com um
francês da cúria"... percebeu Jean? Essa é para
você... — E continuam a mostrar o título do Le
Monde ao ex-secretário de Estado de Sua
Santidade. — Ouçam esses chineses, cuja
tradução eu já consegui: "Qual é o custo diário
para a Itália de um conclave em Roma? Os
pretensos representantes de um Deus de pobreza
e de amor não fazem nada entre mil comodidades
e luxos às custas do Estado italiano e não têm a
menor intenção de voltarem para casa. O nosso
governo fez muito bem ao negar ao chinês
nomeado cardeal de Hong Kong em Roma a per-
missão para sair e participar daquela reunião."
Não podemos combinar nada com a China... Os
russos são mais moderados em sua aversão
filortodoxa: "Os cardeais perdem tempo em Roma,
é difícil entender o que sucede naquele centro de
poder"... desde o tempo de Dostoievski que os
católicos são vistos dessa maneira na Rússia.
— Nem por isso, nunca nos entenderam antes; na
corte de Pedro o Grande ficaram uma semana
imitando a corte de Roma elegendo o papa entre
gritarias e festas — precisa Nicola Gistri, arcebispo
de Florença, que conhece bem o russo e traduziu
aqueles artigos.
Foi ele quem exigiu a nova reunião dos italianos
no aposento de Malvezzi, suspeito de ter votado
em si mesmo, para sentirem o peso da sombra de
tal falta de confiança.
Malvezzi não opôs nenhuma resistência, aceitando
em silêncio a suspeita, nem um pouco disposto a
revelar — como poderia fazer com o testemunho
do cardeal libanês — quem escrevera seu nome na
cédula do conclave. Seria como exagerar uma
verdade que continua a assustá-lo, sobretudo no
clima cada vez mais indeciso das últimas votações
em que disputaram os cardeais do Leste e da
América, resgatando o fantasma de uma guerra
fria sem, contudo, anular aquele único voto a seu
favor.
Nas últimas noites, ficou umas três ou quatro
horas tentando dormir; os sentidos despertos e
vigilantes continuavam a ouvir os inúmeros ruídos
daquele antigo palácio, e aos poucos vai
começando a arrancar seus segredos e a vida
oculta, que fervilha por trás daquelas portas
fechadas.
-7-
O cardeal Vladimiro Veronelli nem sequer acaba
de comer; deve acompanhar imediatamente o
conde Nasalli Rocca, engenheiro-chefe dos
serviços técnicos da Cidade do Vaticano, até a
torre de São João. E pensar que duas noites antes
pôde saborear com toda tranqüilidade a cozinha
das irmãs: o menu oferecia risoto ao açafrão,
alcachofras à judia, salada de frutas ao
marasquino, vinho branco de Locorotondo...
- 10 -
Eis o cardeal camerlengo, pontualíssimo, entrando
na Sistina, acompanhado do decano e dos
dignitários que levam o chapéu simbólico da Sede
vacante e as cédulas de veludo vermelho com os
documentos secretos do conclave. Só tem tempo
de ultrapassar a soleira e, de repente, ao ver o
grande afresco no fundo, pára, petrificado de
horror.
Toda a parte alta da maravilhosa pintura, onde os
beatos estão enfileirados ao lado do Salvador, à
medida que acordam para a eternidade, despertos
pelas trombetas dos anjos, é um imenso fervilhar
verde e mutável, um tapete monstruoso de
escorpiões que já impedem a visão das cores e
das formas.
Os olhos dos cardeais se viram para o alto; um
começa a sacudir a cabeça sem parar, outro tem a
face coberta de lágrimas, outro cai aniquilado
sobre a cadeira cobrindo os olhos com as mãos,
outro ainda procura por alguém na multidão,
talvez o camerlengo. Porque é justamente para ele
que se vira o trêmulo cardeal Ettore Malvezzi,
quando o distingue à porta.
— Estão atacando apenas o Bem, apenas os
santos... o que faremos? Não podemos ficar aqui
de braços cruzados!
Veronelli, que ainda sente nas veias um leve efeito
do contraveneno, tem uma vertigem momentânea.
O que quer que façamos? Que cantemos o Veni
Creator como das outras vezes? Que chamemos
por socorro para limpar as paredes, correndo o
risco de arruinar as pinturas?
Malvezzi nunca o ajudou.
— Também estou vendo isso, Malvezzi. Se você
voltar para o seu lugar sem perdermos a calma, e
se me deixar subir ao altar, encontraremos uma
saída juntos. Mas não sairemos daqui senão depois
de eleger um novo papa.
Decidido, vai até o fundo da sala, a muito custo
abrindo caminho por entre a multidão daqueles
cardeais que ainda não tiveram coragem para
tomar lugar em seus assentos, como nos outros
dias.
Nem sequer o exemplo do camerlengo os leva a
seus lugares. A atmosfera é a de uma assembléia
bastante perturbada e deslocada pelas emoções, e
ele não consegue governá-la. Mas Veronelli não
cede e vai diretamente se sentar em seu assento
de presidência, no altar. Com um aceno, chama
para perto de si monsenhor Squarzoni.
— Autorize Nasalli Rocca a deixar aqueles animais
entrarem pela pequena porta aqui atrás de mim; e
ande logo, porque eles já estão perdendo a razão.
E sabe que tem aquelas nojentas metástases do
Mal às suas costas e sobre a cabeça. Com o canto
do olho, olha para o alto e consegue distinguir
ainda intactas as santas formas do Salvador e de
sua veneradíssima Mãe. Repete-se o fenômeno
das pinturas sacras nos museus vaticanos. Sente-
se encorajado a continuar aquela luta, certo de
que as forças do Bem prevalecerão.
Como se estivesse em transe, saem de sua boca,
mais gritadas que pronunciadas, bem perceptíveis
até no fundo da capela, as palavras latinas: "Vade
retro, vade retro, Satana!"
É naquele preciso momento que aos transtornados
cardeais, espalhados pela Capela Sistina, um no
corredor central entre os assentos, outro em seu
lugar, outro à saída, outro ainda nas escadas entre
os tronos, outro ao redor do altar, surge uma
miríade de galinhas brancas, empurradas para
dentro, em meio a um barulho ensurdecedor em
que as últimas palavras latinas do camerlengo se
perdem.
- 11 -
A luz acesa na janela de vidros amarelos em frente
acorda Ettore Malvezzi, como em tantas outras
2 "Passamos por dores e alegrias / juntas, de mãos dadas...", de
Vier letze Lieder, de Richard Strauss. (N. do A.)
manhãs. As sombras em movimento por trás
daqueles vidros opacos lhe recordam o novo dia
que o espera. O que acontecerá hoje, depois da
confusão infernal da Sistina?
O miado persistente de uma gatinha de cor
castanha e branca, ocupada em se esfregar em
suas cobertas, recorda-lhe que os felinos estão
esperando a comida. À essa hora Contarini já deve
estar preparando o altar para a missa e a ração
das galinhas. As tarefas foram divididas, tendo em
vista que seu capelão tem verdadeira aversão aos
felinos. Ei-lo batendo à porta. São seis e meia.
O cardeal se levanta e bebe o café de cevada,
preparado pelo capelão. Que cara sonolenta tem
Contarini... E os cabelos, desgrenhados, rebeldes
ao gel que os mantinha sempre em perfeita
simetria, cortados ao meio... Esse não é Contarini.
Mas com o que vem acontecendo é natural que
até os hábitos mais íntimos, os rituais do despertar
e do cotidiano sofram alguma alteração.
No entanto, o pedido que lhe é feito o deixa
verdadeiramente boquiaberto:
— Eminência, eu queria me confessar antes da
missa...
Há anos não lhe fazia tal pedido. Depois de alguns
instantes, responde-lhe que o fará de bom grado.
E o rosto inquieto de monsenhor Contarini, que
fecha os olhos, como se um misto de alívio e de
um grande embaraço chegasse até ele com o
consentimento de seu arcebispo, de novo espanta
Ettore Malvezzi. Enquanto se lava e observa a
galinha repousada em seu poleiro, pensa no
comportamento de Contarini durante aquele mês e
sete dias do conclave, muito mais misterioso do
que em casa. Sobretudo pelas companhias às
quais se mostrou propenso, ele que era sempre
tão solitário, como os jovens da Guarda Suíça,
convidados para cear com freqüência. Últimos
arroubos da juventude, sem dúvida alguma.
Imberbe, perfumado, penteado, já vestindo os
paramentos da missa, o cardeal de Turim sentou-
se ao pé do genuflexório, para onde Contarini,
mais que ajoelhado, atirou-se mal o viu pronto,
sob o grande crucifixo gótico.
— Há quanto tempo não se confessa?
— Desde que entramos em conclave,
eminência.
— E o que tem para confessar diante de
Deus?
— Negligência em minhas tarefas, e o fumo,
eminência, o senhor não tem idéia do quanto
fumei às escondidas neste período.
— Você se engana, eu sei perfeitamente. A
atmosfera pesada que paira por aqui pode
testemunhar isso. Mas é sempre uma culpa,
primeiro com você mesmo; desculpe-me,
Contarini, eu o tratei intimamente, como se
estivesse censurando meu sobrinho, que tem o
mesmo vício.
— Mas essa não é a culpa mais grave,
eminência... e não sei como poderá perdoar o que
vou lhe dizer...
— Deus perdoa qualquer culpa, se a confissão
é sincera; mas diga, diga sem demora, até porque
já é tarde e não podemos chegar atrasados, ainda
mais esta manhã — e, ao espreitar o relógio de
parede que bate 7hl5, seu pensamento corre até a
Capela Sistina.
— Ainda que apenas em pensamento, eu
pequei, eminência, pequei; é uma tentação que
não me deixa em paz nem sequer nesta hora.
Então aqueles alegres bandos de guardas suíços
foram atraídos para aqui para aventuras
conjuntas... Mas com que mulheres?... E por que a
insistência de "nesta hora"? E que olhos tem
Contarini quando observa as duas galinhas, que
cacarejando vêm bicar algumas migalhas perto do
confessionário. Como as observa...
— Mas o que você tem, Contarini?
— Nada, eminência, mas veja essas
despudoradas, como se comprazem em provocar,
como mostram suas vergonhas, quando se
abaixam!
O cardeal se vira para olhar melhor os inocentes
animais que foram para o meio da sala e,
enquanto continuam bicando, sentem um leve
arrepio antes de mostrar o traseiro livremente
exposto com o duplo débito de uma natureza de
rosada consistência. Até o cardeal sabe que tais
preciosas penosas possuem apenas uma solução
para suas necessidades distintas.
— Desculpe-me, Contarini, mas o que você
tem contra esses pobres animais? Não quer que
lhes coloquemos umas calcinhas, você sabe muito
bem a que se deve a honra de sua visita nos
palácios sacros.
— Mas, eminência, eminência! São mulheres,
são mulheres seminuas e nuas que foram
plantadas aqui e não param de nos tentar... não
sei mais até quando conseguirei resistir! — E
desata num choro, levando as mãos à cabeça.
Sempre houve algo estranho naquele bravo rapaz
de passado misterioso, assolado por sua tragédia
conjugal. Agora vem à tona toda a sua fragilidade,
a sua afetividade reprimida e problemática. Ah,
aquele conclave, quantos danos fazia à psique dos
hóspedes mais fracos!...
E fica sem palavras o pobre confessor, que gozava
da fama de ser maravilhoso na absolvição de tal
piedoso ministério, a ponto de ter tido a honra de
ser chamado à Roma para confessar o papa, e que
só não o fez por causa de sua morte.
Se trouxer de volta à realidade a alma perturbada
do capelão, negando tal conturbada associação
galinácea e feminina, teme desencadear uma
violenta reação, e quiçá vê-lo levantar-se e
abraçar uma das galinhas para demonstrar toda a
verdade de sua obsessão, com grande algazarra e
espanto do animal, objeto de atenções exclusivas,
que poderiam atrair as pessoas e incutir-lhes a
acusação de maus-tratos. Por outro lado, se for
condescendente com a loucura do secretário,
teme vê-la tomando dimensões maiores nos
próximos dias e assim prejudicar as chances de
recuperação daquela bela inteligência, e também
a longa convivência pacífica, cuja substituição não
consegue nem imaginar.
Vence a preguiça, o medo da troca, o receio de ter
de renunciar a tal preciosa companhia.
— Mas, Contarini, acredita que eu também
não vejo isso? Acredita que eu não vejo como
essas desavergonhadas se comportam? Acredita
que eu não sei que elas foram enviadas para cá
sob o pretexto de caçar escorpiões, mas que na
verdade vieram nos tentar, a nós pobres padres?
Então faça como eu, exercite a virtude da
paciência, reforce sua castidade com a prece,
evite ficar sozinho com elas. Você vai ver,
sairemos santificados dessas provas: este
conclave é uma espécie de grande exame das
virtudes heróicas da Igreja, com seus ministros.
Considere, como o seu indigno arcebispo, um
privilégio ter participado disso. Lembre-se de que
apenas aos santos na Tebaida, a Pacômio e ao
abade Antônio foram concedidas as tentações do
diabo em forma de mulher, como a nós... — E
vendo que aos poucos se desfazia a expressão
perturbada do pobre padreco, e notando como seu
rosto vai perdendo as rugas e ele volta ao seu
comportamento habitual, sem demora lhe dá a
absolvição, olhando para o relógio.
— Agora vamos celebrar a missa e peçamos
ao Senhor toda a força necessária para enfrentar o
novo dia. Como penitência, você deve me entregar
todos os cigarros que escondeu e rezar dez Ave-
Marias a Nossa Senhora.
— Certo, eminência, mas... aquelas... posso
primeiro encerrá-las ali?...
— Faça como quiser, Contarini, mas penso
que devemos mostrar desde já nossa força de
vontade, sem nos incomodarmos, como se elas
não existissem, como se fossem apenas galinhas.
E vê o secretário baixar a cabeça, depois de uma
espiada nas duas bestas, que estão saltitando em
direção à mesa de trabalho do cardeal e catando
as pulgas com o bico vez ou outra.
- 12 -
Alguns sintomas evidentes de claustrofobia
começavam a se manifestar logo após o
fechamento da Capela Sistina, a quase quarenta
dias do início do conclave.
Quem a sofre em suas formas mais sutis são os
mais alheios às "delícias" da clausura, tão caras ao
cardeal Paide: os purpurados habituados a viver no
centro da realidade das mais importantes
dioceses, entre telefones, fax, celulares, e-mail,
carros e aviões sempre prontos a levá-los a
qualquer canto da Terra.
São registrados os primeiros casos de internação
urgente na enfermaria vaticana, que dá para os
jardins particulares do pontífice, e que engana
com suas janelas, com as copas dos plátanos
avermelhados em novembro, dando ares de
liberdade e abertura a um mundo impossível de
ser percebido pelos cardeais em seus aposentos.
Mas a tentativa de fuga de dois conclavistas,
Horace Winnipeg, de Nova York, e Anthony O'Hara,
da Filadélfia, por uma daquelas janelas no segundo
andar dá a medida exata do quanto o mal-estar de
vários internos é apenas a manifestação
psicossomática de um único mal: o medo de
permanecerem trancafiados lá dentro e uma
vontade louca de fugir.
Os dois purpurados, de 73 e 79 anos, fizeram um
acordo para tentar fugir durante a noite, quando a
vigilância do pessoal da enfermaria era mais
escassa.
Depois de escolherem a janela, que dava para um
teto 3 metros abaixo, de onde depois poderiam
descer para o chão por uma calha cheia de pontos
de apoio, lançaram da janela uma espécie de
corda rudimentar feita com todos os seus lençóis
amarrados. Mas, no escuro, não conseguiram
controlar bem onde a corda improvisada iria cair. A
algazarra dos frangos é que os revelou, para sua
desgraça, chamando a atenção até dos enfermei-
ros meio adormecidos. Era um dos grandes
poleiros preparados pelo conde Nasalli Rocca, fora
do palácio. Ali se concentravam reforços de
galinhas mandadas vir de Colleferro, Zagarolo e
Frosolone, para compensar a série de animais
debilitados por causa das picadas dos escorpiões
que lhes acertaram, mas também para permitir o
plano de uma presença desses animais cada vez
mais capilar e racional em toda a Sede apostólica.
Descobriram-nos pouco depois, em malha de
ginástica e tênis, com bonés pretos nas cabeças
para torná-los irreconhecíveis, fingindo correr em
volta dos jardins como num treino, se por acaso
viessem a encontrar alguém àquela hora.
Um cúmplice deveria ficar pronto para recebê-los
num grande conversível cinza, à saída da estação
ferroviária vaticana; de fato, um carro com placa
americana suscitou muita curiosidade dos guardas
de serviço naquele acesso, por causa da parada
prolongada e pelo nervosismo do motorista, que
não parava de olhar para o relógio.
Devido ao evidente embaraço dos enfermeiros que
ajudavam os cardeais a retirar a longa corda, os
eminentíssimos fizeram um silêncio de desdém.
Não estavam certos de que deveriam prestar
contas de seu comportamento nem mesmo ao
cardeal camerlengo...
— Se eu estivesse de melhor saúde também
teria tentado — confessava no leito vizinho Di
Sacramento, o cardeal negro de Luanda,
observando os fugitivos ocupados em livrar-se dos
lençóis.
— E você tampouco teria êxito —
acrescentava sorrindo —, paciência, quem sabe
numa outra hora.
Os dois americanos não responderam nada,
distraídos pelo alvoroço que começava a vir do
fundo das escadas, além da entrada da sala.
Naquele exato momento apareceu o comandante
da Guarda Suíça com dois soldados de notável
estatura. Levavam aos purpurados de Nova York e
da Filadélfia ordens para segui-los até os
aposentos do cardeal camerlengo.
A notícia se propaga pelo conclave como uma
bomba. O pobre camerlengo ainda está tentando
achar o motivo.
Um escândalo inusitado, dois cardeais que tentam
fugir do conclave! Não havia sombra de tal
precedente na história da Igreja, ao menos após o
Concílio de Trento. Jamais houve um caso tão
grave. Contudo, o que mais aflige Veronelli,
afetado pela notícia que vinha da enfermaria, de
madrugada, é a previsão de suas conseqüências
psicológicas em vários outros conclavistas.
— Mas como fizeram isso? — Veronelli insiste em
perguntar ao monsenhor Squarzoni, enquanto
veste o roupão às pressas.
Squarzoni, que diferentemente de muitos jovens
colegas privilegia os gatos em suas alucinações,
percebendo nos felinos uma presença mais efébica
que feminina, um objeto de desejo de identidade
indefinida, responde acariciando nos braços um
enorme gato preto de olhos castanhos que ronrona
totalmente relaxado.
— Eu estava quase preferindo que eles tivessem
usado aquela corda de lençóis para se enforcarem
— exclama o camerlengo, sem conseguir se conter
diante do cardeal —, pois conseguiríamos fazer um
suicídio passar por morte natural, já aconteceu
isso antes. Mas esse escândalo vai contagiar os
ânimos, vai se alastrar como uma mancha de óleo;
muitos tentarão fugir. Já os vejo abandonando o
navio que afunda, e deixando-me aqui sozinho.
Dada a ordem para conduzi-los à sua presença o
mais rápido possível, enquanto os espera, manda
logo o prefeito da Casa pontifícia pedir notícias
sobre as restaurações que não paravam;
trabalharam na recuperação do ambiente até de
noite. Procura em meio a seus papéis a lista dos
estragos que lhe fora apresentada, mas não a
encontra. Afugenta as galinhas que se
empoleiraram na poltrona ao lado da lareira e
encontra a folha que procurava. Pega um
desodorante e esparge com perfume de rosas o
quarto empesteado; e acaba de vestir-se.
Squarzoni volta com uma notícia positiva,
finalmente, a primeira da manhã: a Sistina está
pronta, e os estragos se revelaram bem menos
graves do quanto se imaginava. O prefeito da Casa
pontifícia manda dizer que só não puderam ainda
evitar um inconveniente: a desagradável
persistência de um fedor causado pelos animais,
que por prudência decidiram manter defendendo a
capela. Por mais que procurem perfumar com
incenso o ar da Sistina, galinhas e gatos seguem
pagando o débito de sua natureza, emporcalhando
o chão e empesteando o ar. De qualquer modo,
uma turma de criados estaria sempre presente
com vassouras e lixeiras, serragem e cascalho
para tentar conter o desagradável fenômeno.
— Vá lá, há males piores do que ir ao conclave
entre galinhas e gatos... — comenta o camerlengo
sobre tais observações. E acrescenta: — Vamos,
Squarzoni, chame logo os dignatários e os
prelados. Diga-lhes para estarem prontos às 8h30,
aqui comigo, para o ingresso oficial no conclave.
Quê? Já estão aqui? Bom, faça-os entrar
imediatamente.
Monsenhor Squarzoni o interrompe para anunciar-
lhe suas eminências, os arcebispos de Nova York e
da Filadélfia, que surgem naquele momento à
entrada do estúdio, escoltados por dois guardas
suíços.
A primeira coisa que chama a atenção é a roupa
com que se apresentam: a mesma da fuga, visto
que não tiveram tempo para vestir a batina. A do
nova-iorquino é toda azul com listras horizontais
pretas com uma conhecida marca de pneus
estampada; o prelado da Filadélfia tem uma malha
rosa com um pentagrama do incipit da música
Cheek to cheek.
A longuíssima conversa entre os três cardeais não
está isenta de momentos difíceis: as vozes se
elevam até chegarem aos ouvidos dos dignatarios
vindos nesse ínterim para escoltar o camerlengo.
Tanto que, para encobrir as palavras, Antonio
Leporati, que conduzia o séquito, aproveitou
aquela espera para experimentar logo o Veni
Creator Spiritus, com alguns jovens coristas. Com
isso as vozes dos três cardeais não são mais
ouvidas, e começam os miados raivosos de alguns
felinos assustados, enquanto uma galinha, sabe-se
lá por que, sente-se convidada a cacarejar como
se tivesse acabado de botar um ovo.
— Quanto alvoroço aqui dentro! — exclama
Veronelli, escancarando a porta para deixar sair os
dois colegas de malha.
Mas o espetáculo que se apresenta é tão mais
inadequado à vista do que a confusão das vozes
humanas e animais aos ouvidos. Porque os jovens
coristas parecem se sujeitar à sedução daquelas
mulheres que são as galinhas a seus olhos,
atraídas pelo seu rapto canoro; eles procuram
vencer a tentação de observá-las, mas erram as
entradas, perdem compassos, diminuem os
tempos, enfurecendo-se contra o cardeal decano.
— Deixe para lá, Leporati, deixe para lá. É melhor
que nem cantem na capela: até lá devemos
hospedar nossos bravos guardas... — sugere o
camerlengo ao pé do ouvido do decano,
transtornado por causa da renovação de tais
obscenas visões.
E o cortejo segue adiante, enquanto os dois
cardeais que foram repreendidos correm até seus
aposentos para vestir a batina bordada de
vermelho, mais consoante à sua dignidade.
Apenas quando o último corista sai é que o alarido
dos gatos e das galinhas diminui.
Por outro lado, o espetáculo que se apresenta ao
camerlengo, mal este ultrapassa a soleira da
Sistina, apinhada de cardeais, parece animador.
A fila dos tronos à direita e à esquerda parece
perfeitamente em ordem, assim como o corredor
no meio, onde a cada metro um prelado de serviço
se mostra pronto para ajudar os eminentíssimos a
encontrar seu lugar ou aos mais anciãos a subir as
escadas um pouco estreitas. Reina, sobretudo, o
murmúrio laborioso de uma assembléia cheia de
fervor, disposta ao trabalho num espírito ainda
intranqüilo, mas que promete não deixar de tentar
nada para o fim ao qual foi chamada.
O maravilhoso afresco do Juízo universal, livre de
toda e qualquer monstruosa metástase de sua
grandiosa alegoria da luta entre o Bem e o Mal,
fica limpo e nítido, sem a menor sombra de
escorpiões. E é tamanha a alegria de vê-lo
restituído à esplêndida figuração que há mais de
quatro séculos iluminava as escolhas daquela
assembléia que conseguem até suportar o fedor
da urina de gato e do esterco das galinhas que, de
repente, chegou às narinas dos cardeais, logo que
estes entraram.
Se prestarmos atenção, poderemos notar aqui e
ali, por entre os bancos, nas escadas, no corredor
e diante do altar, a discreta presença de alguns
velhos prelados — essa função foi proibida aos
mais jovens por prudência, por causa de sua
vulnerabilidade — com rodos, vassouras e
pequenas lixeiras, ocupados em limpar
escrupulosamente o chão. Os objetos de tantos
cuidados, gatos e galinhas, passeiam pela capela,
com a segurança de um hábito já pacífico, quase
esquecidos de suas ruas e praças romanas, e de
seus hospitaleiros abrigos em Colleferro.
Um gato enrolado no assento do trono observa
desconfiado o velho que se aproxima para
escolher outro lugar para a sesta, após devorar
seu último rato.
Uma galinha afoita pula de um degrau para outro
das escadas, com o costumeiro salto de sua raça,
movendo a cabeça atônita, e com o olho que não
esquece a presa que vez ou outra ainda ousa
desafiar seu domínio. Pois alguns escorpiões
sobreviventes, aproveitando o escuro de algum
buraco no reboco das paredes úmidas e
descascadas, continuam a meditar sobre sua
obstinada vingança. E assim, do buraco em que se
enfiaram, aos poucos mostram a ameaça de seu
ferrão, agitado como um pano vermelho diante de
um touro ou como uma bandeira de desafio.
Vendo isso, as galinhas perdem o pouco lume de
inteligência que a natureza também lhes destinou
e se lançam de asas abertas sobre a toca do
inimigo, várias vezes batendo inutilmente com o
bico no chão.
Contudo, Veronelli não pode apreciar muito o
prazer da retomada ordem das coisas, até das
últimas coisas, como o Juízo universal, pois de
repente se agita ao ver o diretor da capela musical
pontifícia, maestro Antonio Liberale, convidando os
jovens coristas para entrar para o canto do Veni
Creator. E suas ordens ao cardeal decano foram
bastante claras.
— Squarzoni, vá lhes dizer que esta manhã não
haverá canto, de modo algum! Vá, vá logo, por
caridade, antes que aqueles jovens entrem!
O rosto perplexo e mortificado do maestro Liberale
lhes assegura que entendeu a ordem.
Mas um dos coristas, talvez o mais zeloso, o mais
afoito a mostrar às suas eminências reunidas a
beleza de sua voz, consegue entrar. E,
concentrado na leitura da partitura, não vê nem os
gestos de seu maestro, nem os de Squarzoni. É
apenas mais um canto para levantar o moral,
movido pelo estupor, como todos os demais lá
dentro, e desconcertado e desapontado para fazer
com que este perceba o convite para se retirar.
Um galo, que não se separou de suas galinhas
nem mesmo no conclave, e que talvez tenha
escapado ao controle dos homens escolhidos por
Nasalli Rocca, canta. E canta com tamanha
gloriosa ostentação de força e alegria, com tal
convencimento de poder chamar o sol e ajudá-lo a
se levantar — ou melhor, a ressurgir até mesmo
naquela sala apinhada de velhos, em meio a
nuvens de incenso, gatos, ratos, escorpiões e
alguns rostos imóveis sobre as paredes, como se
esperassem apenas um aceno para descer —, que
por alguns instantes, ninguém se mexe.
Então, como que desafiado por aquela dupla
imobilidade, dos vivos na capela e dos mortos que
estão na parede, talvez duvidando de não ter
mostrado toda a sua força, renova-a, desta vez
auxiliado por outros dois galos que estão
escondidos entre as galinhas. Devem saudar todos
juntos a chegada do sol!
Não é um despertar semelhante ao que está
acostumado, no seu harém de Colleferro, onde a
luz se derrama aos poucos, no meio da noite, no
grupo de suas fêmeas. Este é um galinheiro triste,
onde tem dificuldades para fazer entrar a luz; por
isso o chamaram com todo o seu povo de filhos e
filhas do sol. Porque o seu canto também baixa o
sol, ele o sabe, não há outro galo que cante
assim... muito menos aqueles dois frangos que
agora o acompanham, não ousando sobrepor suas
notas às dele, mas apenas as reforçam, nos
momentos de pausa de seu hino ao sol.
Os cardeais estavam em silêncio, ouvindo aquela
extraordinária variação no programa musical da
capela. Havia quem evocasse naquele canto a
tríplice repreensão ao primeiro pontífice romano,
Pedro, que renegou três vezes o nome de Cristo.
Outro olhava no teto as sibilas e os profetas,
pensando a que incomum associação se
constringia aquele céu de santos, heróis e
majestade de espírito. Outro ainda fechava os
olhos, e se perguntava, assustado, que prova
ainda iria suportar naquele conclave, antes de ver
o novo Pedro. Perdidos e confusos, entraram os
dois fugitivos, os purpurados americanos, quando
se ouve, interrompendo a estática escuta, a forte
exclamação de uma voz:
— Mas façam-no calar-se!
O sotaque toscano denuncia que é um italiano.
De fato, é o cardeal Zelindo Mascheroni, prefeito
da Congregação para a doutrina da fé, filho de
uma porteira dos condes Cenami di Lucca, um dos
mais rígidos paladinos da ortodoxia clássica.
Foi ele quem inspirou as rígidas teses sobre a ética
da família, mantidas pelo falecido pontífice. A ele
se deviam os mais cerrados ataques à legislação
civil a favor do aborto, do controle de natalidade,
do divórcio e das uniões de fato.
- 13 -
O cardeal Mascheroni não se limita a intimar ao
silêncio o galo impertinente, que, no entanto, é
procurado entre as galinhas pelos mais zelosos
prelados domésticos. Mas, tendo tomado a
palavra, antes mesmo de o camerlengo a
conceder, e em meio ao tumulto dos frangos que
protestam por terem sido incomodados pelos
inquisidores daquele Giordano Bruno dos penosos,
lança uma severa advertência.
E se irrita com todos. Com o camerlengo, com o
decano, com os outros cardeais e, em particular,
com quem tentou fugir e com quem ficou doente.
Com os coristas, com os jovens capelães, com
Nasalli Rocca, com o chefe da sala de imprensa,
monsenhor Michel De Basempierres. Com quem
teve mais votos entre os purpurados.
Não escapa ninguém. Todos se comportaram mal
ao invocar a justa ira do Senhor naquela
assembléia de homens assustados, sensuais,
fracos, indignos de receber o Espírito Santo no
coração e na mente. O cardeal camerlengo da
Santa Igreja Romana de fato reduziu o conclave a
um galinheiro, não tanto porque aqueles animais,
por uma questionável decisão do conde Nasalli
Rocca, afligem as narinas e ofendem a santidade
daquele lugar, mas porque sua indecisão e sua
capacidade de dar uma direção à periclitante
barca de Pedro humilharam com um cacarejar das
galinhas as votações da augusta assembléia. Sim,
o conclave transformou-se num verdadeiro
cocorico de frangos.
E como que censurando as palavras do cardeal, o
último canto do galo torna-se mais agudo,
estridente, irreverente e imperativo que nunca,
antes de cair nas garras do sacerdote ceroferário,
monsenhor José Felipe Gomez, justo enquanto o
terrível purpurado de Lucca repete a metáfora do
cocorico galináceo de seus eminentíssimos
colegas.
Outros camerlengos souberam guiar a Igreja em
momentos não menos delicados, mostrando toda a
têmpera necessária! O cardeal Mascheroni se
enfurece, enquanto o pobre Veronelli finalmente
chegou a seu assento junto com seus em-
baraçados dignatários. E como se vê-lo sentado
em seu lugar, resignado a ouvir, o tenha
aborrecido logo, o cardeal Zelindo Mascheroni,
prefeito da Congregação para a doutrina da fé,
volta-se para uma outra ala da capela, atrás dele,
onde tomam seu lugar os dois arcebispos, da
Filadélfia e de Nova York.
E, de repente, começa um assunto que muitos pre-
feririam omitir. Tanto o camerlengo, pelo efeito
que teme em quem ainda não sabe de nada,
quanto os dois culpados, que já haviam prometido
a Veronelli reconhecer sua culpa, garantindo não
tentar mais fugir, quanto todos aqueles
purpurados que compreendem as razões dos dois
americanos e preferem esconder no silêncio o
incômodo de sua consciência dividida.
O cardeal de Xangai, Zacarias Fung Pen-Mei, que é
um tanto surdo, piora as coisas, quando no silêncio
em que caem as palavras de Mascheroni,
incomodado apenas com a intermitente agitação
dos frangos, quase urra a sua pergunta a um
vizinho:
— Como? Quem fugiu?
E o seu colega de Veneza, Aldo Miceli, deve
sussurrar-lhe diversas vezes que ninguém fugiu;
até que o próprio Mascheroni, irritado com a
interrupção e com o denso conluio entre o surdo e
o veneziano, grita a resposta ao chinês:
— Sim, eminentíssimo, os nossos irmãos da
Filadélfia e de Nova York tentaram fugir!
A expressão confusa do arcebispo de Xangai
satisfaz a ânsia teatral de Mascheroni. Mas o
chinês, tendo ouvido mal, logo se vira para o
colega de Veneza para entender o motivo da fuga
pretendida pelos dois cardeais. De fato, não lhe
passa pela cabeça que tenham sido presos, como
ele, que definhou por anos nos cárceres chineses.
Conhece-os, são dois bravos homens... E não está
ciente de nenhuma perseguição religiosa nos
Estados Unidos, onde há muitos anos vive no
exílio...
No entanto, Mascheroni se lançou a todo vapor
contra os dois culpados. E arriscou hipóteses
espantosas sobre sua sorte, se tivessem
conseguido fugir do conclave. O ridículo sobre o
Sacro Colégio, que se declarava inspirado pelo
Espírito Santo; a funesta orgia televisiva de
entrevistas, às quais não poderiam se subtrair, e
que os atormentaria e marcaria por toda vida; a
instrumentação de seu caso, por parte dos
inimigos da Igreja, que não esperam por outra
coisa para mostrar a Casa de Deus minada em
seus alicerces...
Os dois acusados pararam de mascar chiclete,
depois de uma passagem do ardente discurso,
durante o qual não tiveram coragem de observar
seu acusador. Mas uma cena que se apresenta a
seus olhos lhes restitui a vontade de levantar a
cabeça, ainda que a surpresa lhes impeça de
continuar mascando.
Bem em cima da cabeça do cardeal Mascheroni,
por cima da decoração que enfeita o dossel do
trono, há uma galinha branca empoleirada; que
visceralmente comovida pelos contínuos
sobressaltos que a pausa declamatória e a
impetuosidade dos gestos imprimem à poltrona do
purpurado, ou por cansaço e tédio daquela altura
que lhe veda uma operação mais terrena, do alto
de sua superioridade, acomodando bem seu
traseiro, mira com uma rosada emissão a careca
de Mascheroni, interrompendo-lhe o discurso.
O incidente tira o vigor e a dramaticidade de seu
protagonista, que, enquanto se limpa com o lenço,
não consegue evitar alguns risinhos e os gestos de
muitas mãos levadas à boca para esconder a
expressão do rosto. Do fundo da Capela Sistina,
por trás do altar, no silêncio que segue podem ser
sentidos o espernear e o bater de asas do galo,
entre as mãos de seu carcereiro, monsenhor
Gomez, que procura prender seus pés antes de
levá-lo para fora, depois de várias bicadas.
O camerlengo, que não perdeu nenhuma cena,
não consegue passar sem associar os diversos
momentos... Sabe-se lá o que aquela galinha fez
para meter-se lá em cima, por sobre a cabeça de
quem pedia silêncio!... Contudo, a criatura que
chama o sol, seguindo seu inocente instinto, foi
vingada pela galinha ajuizada...
Depois o cardeal Mascheroni retoma seu discurso.
Mas não tem mais o poder de espetar e inquietar
as consciências como antes de a galinha maliciosa
elegê-lo como depositário de suas mais viscerais
confidências.
E assim pode tocar no assunto do comportamento
dos coristas, que cederam às mais descaradas das
luxúrias, entregando-se a fantasias mais dignas
das gueixas encantadoras de clientes, em algumas
casas de Xangai, com a arte do fan-chung, que de
jovens seminaristas vaticanos. Pelas mesmas
razões pode escandalizar-se com o fato de que
homens de tão intensa experiência religiosa, como
os secretários dos cardeais, pudessem ceder às
tentações de ver por toda parte mulheres em
emboscada. Pode censurar o conde Nasalli Rocca
por um pragmatismo mais digno de uma
assembléia ferroviária que de um conclave de
cardeais da Santa Igreja Romana. Pode lançar-se
contra a incapacidade de quem dirige a sala de
imprensa do Vaticano, monsenhor De
Basempierres, que está perdendo os contatos com
o mundo, menos atento e menos partícipe do
maior evento religioso do Ocidente. Enfim, pode
lançar-se contra o arcebispo de Milão, culpado de
paralisar o conclave em diversas votações, por
causa de suas ambições pessoais, e contra o
cardeal palestino Nabil Youssef, culpado de ter
jogado na nau de Pedro o peso da política. Depois
passa a destruir um a um os partidos que se
delinearam em quase dois meses de conclave,
jogando a culpa em seus expoentes mais notáveis
e em destaque e em algum cardeal que obteve
mais votos. Mas não consegue obter a mesma
atenção de antes.
Pelo longo discurso do cardeal Zelindo Mascheroni,
a tensão — que deveria ter suscitado reações de
ressentimento, contra-ataques e defesas —,
contudo, parece materializar-se no olhar dos
purpurados e dos prelados de serviço: que é
unanimemente capturado por um único objeto, no
alto, acima da cabeça do orador. A galinha,
irreverente e pensativa, continua empoleirada no
dossel, nem um pouco impressionada com a
gravidade dos argumentos expostos pelo cardeal,
e a espera por uma possível réplica de seu gesto
desfaz os sentimentos de culpa, lança no ridículo
cada passagem provocante desse vibrante
discurso, tira a vontade de responder e de se
defender.
Assim, à exceção do prefeito da Congregação para
a doutrina da fé, ninguém se espanta quando,
passada a confusão, a voz do camerlengo se eleva
para agradecer a Mascheroni pela sua generosa
intervenção, dando logo o direito a quem quiser
tomar a palavra.
Longos minutos de silêncio se passam,
interrompidos apenas pelo barulho dos cardeais à
entrada, onde começa a se espalhar a notícia de
que uma gata deu à luz cinco belíssimos gatinhos
dentro de um caixote de velas vazio.
De repente, alguns purpurados encontram-se
envolvidos numa animada discussão sobre a
oportunidade de esterilizar suas gatas, visto que
muitas estão prenhes e logo darão à luz.
A questão propõe, de um modo diverso e
paradoxal, aqueles princípios éticos fundamentais
que justamente o cardeal Mascheroni defendera,
muitas vezes enfrentando críticas e
incompreensões, chegando ao limite da laceração,
sobretudo numa parte do norte da Europa e na
América do Sul. Se isso não era permitido às filhas
de Eva, como poderia sê-lo para as gatas? Como
deveria se apresentar o problema do controle de
natalidade no mundo animal?
O cardeal Veronelli, na outra ponta da Sistina, não
consegue entender bem por que a espera por um
orador se prolonga tanto. Mas a persistência do
barulho, que aumenta e parece animar-se cada
vez mais, faz com que ele perceba que algo rou-
bou a atenção geral da já parcial autoridade de
Mascheroni.
— Eminência, nasceram cinco gatinhos... —
sussurra ao seu ouvido Thomas Tabone, prelado
de honra maltês.
— Cinco? Onde?
—- Aqui dentro, eminência, à entrada da capela,
num caixote de velas... as gatas procuram sempre
lugares abrigados para seus filhotes.
Um dos cardeais mais próximos à cadeira do
camerlengo deve ter ouvido a conversa e, dando
um sorriso de consentimento, quer assegurar a
Veronelli que tal curiosa e imprevisível novidade
por ora ocupa a atenção de muitos conclavistas.
— Se visse como são bonitinhos, um é listrado
como a mãe, e os outros são...
Mas o camerlengo já não ouve mais, estudando a
expressão zangada e ofendida do cardeal Zelindo
Mascheroni, que por certo não quer falar de gatos
e gatinhos no conclave.
Olha por sobre a cabeça do cardeal. Alguém está
tentando afastar com uma vara de apagar velas a
ameaçadora galinha que atentou contra sua
dignidade e dissolveu a tensão com uma risada.
O que fazer agora? Mas o maltês Tabone já está
falando ao ouvido de Veronelli, contando-lhe que o
nascimento de tais criaturas apresentou a
oportunidade de esterilizar também as outras
gatas e que o princípio da defesa da dignidade
está dividindo os ânimos no conclave.
Que fazer então?
Um camerlengo da Santa Igreja Romana jamais
deveria ter esse tipo de problema.
Devem passar à votação, mas cabe-lhe saber
prepará-la e não desperdiçá-la antes que aquele
inútil problema dos felinos deixe de preocupar os
cardeais. E é necessário tentar algo o quanto
antes, porque perto do cardeal Paide a discussão
se inflama, envolvendo Rabuiti e alguns outros
italianos, talvez pouco animalescos. Além disso, o
rosto cada vez mais sombrio de Mascheroni,
advertido sobre que futilidade lhe roubou a
primazia da atenção, não lhe deixa saída. Os dois
olhos fixam o camerlengo, solicitando-o a expulsar
da Sistina até mesmo o menor suspeito de tal
inconveniente.
Mas alguém se levanta de repente para tomar a
palavra.
Pede ao camerlengo permissão para falar em
latim, pois não sabe se expressar bem em italiano.
A assembléia volta ao silêncio.
Quem teve a coragem de intervir depois de
Mascheroni? É provável que seja o cardeal
ucraniano arcebispo-mor de Lviv? Franzino e
tímido como é, faz-se notar pouco. Ele é conhecido
mais como nome e carta de manipulação do que
como pessoa. De saúde fraca, algumas vezes foi
obrigado pelos médicos a ficar em seus aposentos,
durante as votações.
O arcebispo uniata ucraniano inicia seu discurso
com uma homenagem à prudência do cardeal
camerlengo da Santa Igreja Romana, que recebeu
a dura tarefa de conduzir a assembléia num dos
momentos mais delicados na história da Igreja.
Depois presta homenagem ao cardeal Zelindo
Mascheroni, prefeito da Congregação para a
doutrina da fé, cuja nobre ânsia pela sorte do
conclave não pode deixar de ser dividida com
quem foi eleito por Deus para aquela dura tarefa.
Tudo é obscuro e sem precedentes, naquela hora.
Na Sistina e no palácio apostólico parecem
assentar forças ameaçadoras, que evocam
fantasmas de outros tempos da Igreja, quando as
forças do Mal pareciam prevalecer, entre cismas e
divisões que chegaram até a afastar a sede de
Pedro de Roma, levando-a até Avignon.
Mas hoje, onde há uma Santa Catarina protetora
da família que consiga conciliar e seguir as
manobras da Igreja, se o seu chefe tomar decisões
inspiradas mais no diabo do que no Senhor?
O purpurado lança a palavra "diabo" na
assembléia como se lança uma pedra no pântano
e esta faz com que propositadamente crie vários
círculos concêntricos nas águas antes tranqüilas.
Pois o purpurado a pronuncia e repete três vezes,
permanecendo depois em silêncio, observando
atentamente a parte inferior do afresco de
Michelangelo, onde estão os danados e os diabos.
Retomada a palavra, depois de beber um copo de
água, decidido, volta às propostas que apresenta a
seus eminentíssimos irmãos, cujo ânimo, suspenso
pela estranha intensidade de tais simples palavras
pronunciadas num latim mais digno de São
Jerônimo que de Santo Tomás, espera pelas
conclusões.
— "Summa hac Ecclesiae Magistrae tempestate
novam animam inpróximo pontífice necesse
esse..."3 para renovar as forças debilitadas pela
luta contra o antigo adversário. E sua alma mais
jovem é a África, a terra onde a evangelização
floresce mais exuberante, é verdade, mas é
também onde o embate entre o Bem e o Mal
chega a seu ápice. Lá, as guerras raciais e tribais,
as lutas incessantes pelo poder têm o caráter de
embates primitivos de uma humanidade ainda
ardente da criação, que acabou de ser expulsa do
paraíso terrestre. Lá, a cada dia Caim e Abel
renovam as forças opostas e complementares do
amor e do ódio no fratricídio. Lá, os atores
protagonistas da queda, Adão, Eva e a serpente,
ainda estão vivos... O mundo deve voltar à África,
partilhar de sua terrível inocência, de sua
fidelidade à luta entre a luz e as trevas, que se
ofuscou e se escondeu no progresso do Ocidente,
o grande doente da Terra... O novo pontífice
romano deve ser realmente "novo", banhando-se
nas águas revigorantes da África para renascer
com um verdadeiro batismo. O novo papa deve
tomar emprestada daquela terra uma
espiritualidade que não conhece dúvidas e
ambigüidades, exceções e mediações, a mesma
que deu a Tertuliano e Agostinho, que eram
trigueiros, a força para lutarem como heróis da
Ilíada contra o inimigo. O príncipe das trevas
desferiu agora o último ataque contra a Igreja, órfã
de seu chefe, estabelecendo ali, em seu seio, no
conclave, o estado-maior de suas milícias, o
arsenal de suas máquinas mais tenebrosas...
3 "Por esta grande tempestade da Igreja Mestra é necessária
uma nova alma no próximo pontífice..." (N. da T.)
E enquanto o cardeal eslavo faz uma nova pausa
para beber, seus olhos voltam ao afresco, seguidos
por toda a assembléia, num silêncio cada vez mais
profundo.
— Talvez vocês se admirem que um seu irmão do
Leste, um homem que vocês privilegiaram dentre
muitos, em suas escolhas, pensando por um
momento que ele pudesse resolver o problema
que lhes atormenta, se dirija a vocês dessa
maneira. Talvez o detenham a covardia, o medo, a
fuga às responsabilidades. Mas não é bem assim.
A minha terra também está doente, como o
Ocidente. O seu coração cristão não bate tão forte
a ponto de dar o ritmo de toda uma nação, como
nos tempos de Dostoievski e de Tolstoi; em
setenta anos de regime o materialismo da pobreza
a desvirtuou, assim como o materialismo da
riqueza corrompeu a Europa. Procurem o novo
pontífice na África! Num homem que saiba voltar
às fórmulas mais primitivas da fé, em contato com
as forças mais terrestres e originárias, capaz de
lutar contra o Mal, com as suas armas, e de vencer
o diabo que está se apoderando de nossas
mentes, vencendo-nos pelo cansaço, pelo temor
de tatear no escuro, pelas dúvidas de fé, pelo
medo da solidão e pela angústia de terminar numa
clausura insensata os poucos dias que nos restam.
Há um homem que vem da África, e é um pastor
muito amado na África, digno dessas esperanças.
Eu lhes exorto a dar-lhe o seu voto, irmãos
caríssimos!
Assim Wolfram Stelipyn concluiu seu discurso, sen-
tando de novo em seu lugar, enxugando o suor
que fez com que o solidéu escarlate deslizasse
para sua nuca.
Não pronunciou o nome do cardeal negro que indi-
cou, deixando a assembléia na mais inquieta das
suspensões, conturbada com a intensidade de tais
palavras, com a força de um raciocínio que em
formas tão rígidas e convincentes repropõe o
dualístico conflito entre Deus e o diabo.
Mas a ilusão de um retorno às origens, evocado
pelo retrato da África, soa a muitos europeus como
uma condenação de sua formação e de suas
escolhas no governo da Igreja. E suscita uma
efervescência e um sofrimento que parecem reno-
var, nos mais propensos a se questionar, o conflito
dualístico pintado pelas palavras do eslavo.
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Por que aquele homem — que parece inspirado até
mesmo para os menos convencidos da sua
proposta — evitou apresentar o nome do
candidato africano?
Naquela noite, na torre de São João, perguntam-se
por isso muitos dos que vieram se recuperar das
fadigas do dia no banho turco, depois que as
votações matutina e vespertina dispersaram os
nomes dos papáveis entre os 11 cardeais africanos
e o próprio ucraniano.
— Não houve jeito de arrancar de sua boca
aquele bendito nome — repete o cardeal de Paris,
De Jouy, mais para si mesmo que para Matis Paide,
enquanto fecha os olhos, entregando-se à benéfica
sensação de calor.
— Disse apenas que devemos saber procurá-
lo... parece até que tinha medo de nomeá-lo, como
se urna sombra de cautela lhe impedisse de ter
tamanha responsabilidade — replica Paide.
— Mas que descaramento o dele em nos dizer
que fomos todos superados pela história —
observa Rabuiti, que se livrou do roupão, não
agüentando mais o vapor.
— Posso estar enganado, mas aqui há um
segredo, há um ar muito grande de mistério.
Aquele uniata esconde alguma coisa, talvez esteja
mandando uma mensagem em código... —
intervém Siro Ferrazzi, cardeal de Bolonha.
— Mas para quem? — pergunta Rabuiti.
— Para a pessoa em questão, para o novo
Tertuliano ou para o novo Agostinho, se preferir —
brinca de novo Ferrazzi.
— Sim, parece até que convida aquele
homem a se manifestar — acrescenta Paide —,
como se lhe coubesse se nomear.
— Contudo, conseguiu colocar os africanos
uns contra os outros, esse é o resultado de seu
silêncio — rebate o cardeal de Palermo, dirigindo-
se ao chuveiro, incomodado com o excesso de
calor.
— E não é o único resultado. Conseguiu dar
ao conclave uma direção; já é algo. Não
voltaremos atrás, pelo rastro que deixou, muitos
outros pensam que há necessidade de um retorno
às origens, que ele entrevê na escolha africana —
diz Paide enquanto uma ária de Albinoni ao fundo
passa a um movimento mais vivo —, resta apenas
saber se será o pastor de Luanda, de Kinshasa, de
Lusaka, de Nairobi, de Dar Es-Salaam ou de
Antananarivo...
— ... Ou de Maputo ou de Dacar — censura
Ettore Malvezzi, que chegou naquele momento,
entrando logo na conversa para reprimir o impulso
de voltarem atrás.
— Parece que podem ser também aqueles de
Adis-Abeba e de Kampala — intervém o prelado de
Gênova.
— Um deles está aqui... Fale mais baixo... —
sugere Rabuiti, voltando do chuveiro.
E logo depois se abre a porta de vidro e aparece,
com a pele contrastando com o roupão branco, o
cardeal que acabara de ser citado, mas ainda não
muito bem identificável em meio aos jatos de
vapor.
Ao ver o africano, o pensamento volta às horas
vividas pela manhã e à tarde durante as votações,
seguidas do convite do cardeal eslavo. Um convite
que não caiu no vazio, mas que não conseguiu
formar nenhum acordo.
Logo após a intervenção de Wolfram Stelipyn, o
camerlengo agradeceu ao prelado eslavo e abriu a
votação, mandando distribuir imediatamente as
cédulas, na tentativa de não dispersar o clima de
reflexão suscitado pelo discurso de candidatura
dos africanos. Não quis esclarecer a qual dos 11
prelados negros se dirigiu o imprevisível orador:
por certo, a cautela de Stelipyn aos poucos foi
revelando todo o seu valor. Se aquele homem se
calava, é porque deveria ter suas razões, e todas a
favor da solução do problema, sem nenhuma
intenção de apresentar um novo obstáculo à
iluminação do Espírito Santo. De resto, pela idade
avançada, quatro ou cinco deles se livraram de tal
possibilidade. O nome viria após as primeiras
operações de voto, iria se manifestar à luz das
tentativas iniciais de evocá-lo quando fossem
votar. Esperaram por quase dois meses, então
poderiam esperar um pouco mais.
Quando as cédulas dos 126 votantes lhe foram
entregues, enquanto as lia em voz alta, de repente
teve a sensação de adivinhar que a verdade
daquele nome traçasse seu caminho sozinha em
seus corações. Havia 23 votos para o cardeal de
Uganda, 22 para o de Angola, 19 para o de
Madagascar, 17 para o de Moçambique e nove
para o cardeal de Camerum. Os outros 25 votos
ficaram entre o cardeal de Milão, com sete deles, o
próprio Stelipyn, com três, e uma quantidade de
outros cardeais que tinham um ou dois votos,
como o palestino, o prelado de Bombai, o de
Sarajevo e o de Buenos Aires. Havia também um
voto para Malvezzi e uma cédula em branco.
Todos eram perfeitamente elegíveis, tendo o
cardeal de Camerum, o mais velho deles, 69 anos.
Um rapazola, se pensarmos na idade média...
Os 23 votos para o ugandense, cardeal Joseph
Masaka, constituíam o recorde de todo o conclave,
pois nenhum outro tivera tantos nos dias
anteriores.
A tarde, quando foram retomadas as operações de
voto, após uma densa consulta dos cardeais que
parecia acelerar a propensão pela escolha
africana, poderia se sentir no ar a ânsia pelo
resultado. Ninguém mais se importava com gatos
e galinhas, ninguém mais se lamentava por causa
daquele fedor, que se agravara nesse meio-tempo.
O caixote de velas com os cinco gatinhos fora
confiado às irmãs africanas da cozinha. Os galos
foram requisitados e levados ao grande galinheiro
abaixo da enfermaria, onde logo voltaram a
cantar. Os serviços de limpeza na capela, com
tantas vassourinhas e pás de prata, continuavam,
mas com uma discrição que parecia camuflar os
sacristãos e os prelados, muito hábeis em andar
na ponta dos pés, temerosos de chamar a atenção.
Foi apresentada até a proposta deles mesmos
cantarem todos juntos o Veni Creator Spiritus, na
ausência dos coristas confinados em suas celas
por causa das visões tentadoras. E as velhas vozes
se elevaram para enaltecer ao Senhor, num coro
cheio de desacordos e dissonâncias, uma
esperança unânime.
Foi a única situação em que os animais deram
sinal de renovada inquietude, espantados com
aquela confusão; mas a paciência prevaleceu, e
nenhum cardeal protestou contra o gato que
bufava ou contra a galinha comovida que botava
ovos bem ali, debaixo da batina do purpurado. E o
Veni Creator Spiritus conseguiu chegar até o
fundo, até as últimas palavras choramingadas pelo
atraso da surdez do arcebispo de Xangai, já no
silêncio dos confrades.
Os resultados do escrutínio causaram grande
perplexidade. A dispersão se difundiu por todos os
africanos, até pelos não votados pela manhã, à
custa do ugandense e do angolano, dando votos
também para o cardeal da Etiópia, ao do Senegal,
ao do Zaire e ao da Tanzânia. Só o cardeal de
Milão mantinha sua posição, com os sete votos de
sempre. Todos os demais haviam-na mudado e
alguns, como Malvezzi, o palestino e o prelado de
Sarajevo, chegaram até mesmo a perder seu único
sufrágio.
Era evidente que o convite africano continuava a
inspirar as mentes dos purpurados, mas
justamente pelo seu poder de atração provocava
uma luta interna com relação às candidaturas
negras. Ninguém desejava ficar alheio àquele
pronunciamento inicial; talvez todos exigissem a
honra das armas, ao menos uma colocação para
as primeiras provas de fogo, que salvasse sua
dignidade para depois capitular a favor daquele
eminentíssimo que Stelipyn deveria conhecer.
Sentiram a ausência do ucraniano na segunda
votação, mas sua saúde nunca foi estável. Ou
talvez, devido às pressões que deve ter recebido
naquela hora, a sua ausência tivesse sido
diplomática, para deixar livres o processo de refle-
xão e a maturação da escolha. Ao adiar para o dia
seguinte a 80â votação, o camerlengo sentiu que
as coisas se mexiam e a máquina voltara
realmente a girar, mesmo com os sobressaltos e
os desacordos fisiológicos depois de tanta inércia.
Também estão pensando nisso os hóspedes do
bastião de São João, uns espalhados na sauna,
outros no banho turco, quando com grande
emoção se espalha a notícia de que ocardeal
ucraniano está chegando e já recebeu seu roupão
branco. Então, sua saúde não lhe permite deixar o
leito para ir ao conclave, mas nas últimas horas de
"sua" jornada dá-lhe o alívio de um banho de
vapores... Talvez este seja um dos tantos hábitos
de sua terra. Ou será que o próprio médico
pontifício foi visitá-lo para aconselhá-lo sobre tal
experiência?
O comparecimento do cardeal negro e do grande
inspirador de tal escolha, lá onde se concede ao
corpo o alívio para o cansaço da idade, difunde
entre os purpurados uma estranha agitação. Mal
tiveram tempo de se admirar em ver o cardeal de
Turim, que não viera antes àquele lugar, e já corre
pelas bocas a notícia de que está para chegar
ninguém menos do que o cardeal Zelindo
Mascheroni. Seguem-no alguns guardas suíços
cantando o hino de seu corpo: "Notre vie est un
voyage / dans l’hiver et dans la nuit, / nous
cherchons notre passage / dans le ciel où rien ne
luit..."4
O que significa tanto aparato? E haverá lugar para
os guardas, naqueles locais reservados aos
purpurados? E se fosse uma provocação do mais
43 "Nossa vida é uma viagem / no inverno e na noite, /
procuramos nossa passagem / no céu onde tudo brilha..." (N. da
T.)
intransigente deles todos para reprovar a
corrupção dos costumes?
Pode-se esperar de tudo daquele homem;
infelizmente, não há nenhuma galinha maliciosa
na sauna nem no banho turco que possa
neutralizar o ardor de seu moralismo.
Veio-se a saber que Mascheroni pediu também
permissão para que seus quatro guardas
entrassem, o que os monsenhores filipino e
africano não puderam negar. E agora, no banho
turco onde se encontraram os italianos com Paide
e os cardeais negros, de uma hora para outra
espera-se a chegada do arcebispo de Lviv, do
prefeito da Congregação para a doutrina da fé e
dos quatro jovens soldados.
No entanto, a espera resulta no reconhecimento
das formas do purpurado africano, divisando em
seu grande rosto a expressão sorridente do
prelado de Maputo, no moçambicano Carlo Felipe
Maria Dos Angeles.
Na segunda votação daquele dia, conseguiu vinte
votos, um a mais do que na primeira. Aquele
homem nu, que acabara de se sentar e retirar o
roupão, poderá ser o primeiro papa negro da
história.
É um pensamento que passa pela cabeça de
todos, tão logo o reconhecem, tornando-os mudos.
E o mal-estar desse silêncio, em contraste com a
conversação que o africano chegou a ouvir em
parte, coloca numa situação embaraçosa,
sobretudo quem é o motivo disso tudo.
Dos Angeles aceitou o convite de Stelipyn para ir
àquele lugar onde se pode entender melhor o
rumo que as coisas tomaram, sem suspeitar que
os demais cardeais africanos receberam o mesmo
conselho. Porque em poucos minutos quase todos
aparecem, espremendo-se nos bancos ainda livres.
Agora se encontram ali os nove candidatos negros
que receberam votos.
E pela surpresa que não conseguem esconder,
pode-se intuir que não esperavam encontrar seus
companheiros. Alguém, como o prelado de
Luanda, se arrepende e reconsidera a verdade
daquele pensamento de Pascal, segundo a qual a
maior parte dos aborrecimentos nos atinge pela
incapacidade de permanecermos sozinhos em
nossos quartos.
A porta de vidro se abre e surge o arcebispo de
Lviv envolto num roupão que lhe dificulta o passo,
muito longo para sua pequena estatura. Mal
ultrapassa a soleira, os nove cardeais africanos se
levantam para ceder-lhe o lugar, mas ele faz
pouco caso de tamanha atenção e vai sentar-se no
canto, ao lado de Malvezzi.
— Que bela música... O que é? — pergunta ao
purpurado de Turim, num italiano com forte
sotaque estrangeiro.
— Deve ser um músico dos idos de 1700.
— Na minha catedral há sempre uma música
de fundo, como aqui. Os meus coristas são bons,
registramos todos eles, assim não deixam nunca
de cantar.
— Caro Stelipyn, se você gosta de uma boa
massagem com ramos de bétula, mandei buscar
uma grande quantidade delas. Você tem de
experimentar, faz muito bem para a circulação do
sangue... — Foi Matis Paide que fez tal convite,
mostrando os ramos amontoados no chão a seu
lado.
— Que gentil, obrigado, disseram-me que
você é finlandês, deve entender destas coisas...
— Não, sou estônio, de uma ilha em frente à
Finlândia, onde as bétulas crescem como as
acácias e as tílias daqui.
— Então, diga-me, como é feita essa
massagem?
— Vou lhe mostrar. Pegue um ramo na mão e
bata-o de leve, mas continuamente, em minha
pele, nas costas. — E o ex-trapista, o mais
convencido mantenedor das delícias da clausura,
se despe, ficando de pé e oferecendo as costas ao
chicote improvisado pelo colega eslavo.
A visão do maciço corpo nu do cardeal estônio faz
um contraste curioso com aquele corpo franzino e
flácido de seu tímido flagelante, que, agarrando o
menor ramo que encontrara, começa a bater nas
costas largas daquele homem, ainda vigorosas e
retas, apesar de seus 66 anos.
— Mais forte, Wolfram, mais forte — suplica Paide.
E o pequeno ucraniano, cujo capucho sobre a
cabeça faz com que ele pareça mais um elfo que
um príncipe da Igreja, procura imprimir mais força
à sua mão. O cansaço e o calor fazem seu rosto
corar, enquanto o movimento solta o cinto de seu
roupão.
Seja por um espírito de emulação ou por um mal-
estar a ser vencido com alguma iniciativa, os
africanos sentados à sua frente levantam-se um a
um para pegar os ramos de bétula que sobraram,
e, seguindo os conselhos de Paide, começam a
chicotear-se reciprocamente. E Kinshasa chicoteia
Dar Es-Salaam, Maputo chicoteia Antananarivo,
Douala chicoteia Kampala, Dacar açoita tanto Adis-
Abeba quanto Luanda.
Aos poucos, contagiados pelo silencioso ritmo
desses gestos, os italianos também pegam um
ramo e, escolhendo sua vítima consciente,
começam a bater nas costas sem jamais perder de
vista a dupla de flagelantes que guia a turma,
Stelipyn e Paide, os dois grandes postos
avançados da Igreja do Norte. Ouve-se apenas a
repetição do convite "Mais forte, mais forte", que o
mesmo Paide dirige a Stelipyn e que, como um
mantra, anima aquele exercício, evocando na
mente de muitos deles as práticas de mortificação
de outros tempos.
Paide sabe que dentro em breve deverá convidar
Stelipyn a interromper sua massagem para trocar
de lugar e para que lhe bata. Mas a fraqueza do
prelado ucraniano lhe impede de fazer isso,
temendo não agüentar tal esforço. Foi Stelipyn que
o livrou do embaraço:
— Agora é a minha vez — e tirou o roupão branco.
Aquele pequeno corpo encolhido, sem músculos,
de pele flácida e amarelada, de ossos
protuberantes, arqueado, que se oferece ao ultraje
do chicote, não pode completar melhor o clima
penitencial aos olhos dos presentes. A mão de
Paide é mais leve que uma pluma, mas não
impede que uma leve oscilação de Stelipyn
convença o estônio a parar.
— Mais forte, mais forte — é o convite do eslavo
que não quer perder sua prova de mortificação,
observando os africanos, cuja energia supera em
muito a de qualquer outro príncipe da Igreja por
seu toque na pele e pela amplidão de seu gesto.
Naquele momento, a porta se abre novamente, en-
quanto Stelipyn observa a nudez que emana
energia daqueles corpos negros. Imóvel,
paralisado pelo estupor, surge o cardeal Zelindo
Mascheroni, prefeito da Congregação para a
doutrina da fé.
Atrás dele, mostram-se apenas as cabeças louras
de quatro guardas suíços.
- 15 -
O cardeal Zelindo Mascheroni não tem coragem de
entrar. A cena dos flagelantes nus, envolvidos
pelos vapores, com o crucifixo no fundo da parede
que ele divisa à sua frente, tem seu auge de
piedosa intensidade na figura do pobre Stelipyn,
que se submete ao chicote do energúmeno do
Paide.
Mas o que completa o quadro, evocando cenas in-
fernais afins àquela que contempla todos os dias
no afresco da Sistina, são os nove cardeais negros
ocupados em apanhar muito. O prefeito da
Congregação para a doutrina da fé fecha os olhos,
rogando ao Senhor para inspirar-lhe palavras com
maior sucesso do que no conclave.
Com grande dificuldade aceitou a veste branca
atoalhada que lhe parecia irrisória em relação à
papal. Mas se impôs uma inspeção naquele lugar,
conseguindo saber que até lá convergiriam os
africanos e seus mantenedores. No entanto, ele
veio com os guardas suíços e com um oficial,
temeroso de que algum inconveniente pudesse
ofender sua dignidade e obrigá-lo a pedir ajuda.
Nunca esteve antes num banho turco, mas se
opusera fortemente à sua instauração.
Agora, diante daquilo que se apresenta a seus
olhos, sente seus temores injustificados, pois
jamais poderia pensar que naquele lugar se
entregassem a práticas de mortificação tão
ascéticas e severas. Assim, verdadeiramente
confuso e arrependido de suas suspeitas, a
princípio não consegue responder ao cardeal de
Nápoles, que lhe pede para fechar a porta, para
não desperdiçar o calor. Mas deixa-se conduzir
docilmente pela mão úmida de Rabuiti para dentro
da vasta sala de banho. Atrás dele, deslizando
como sombras, escorregam para dentro também
os quatro suíços, fiéis às ordens de nunca deixar o
cardeal Mascheroni sozinho, mesmo quando
estivesse mais à vontade.
O efeito imediato da chegada de Mascheroni foi
que ele interrompeu as massagens dos purpurados
com os raminhos de bétula, não tanto por eles
estarem temerosos de sua presença, quanto por
estarem ainda comovidos pela cena da galinha
que depositou em sua cabeça o fruto de suas
concentrações. Assim, ficam imóveis, com os
raminhos nas mãos. E enquanto voltam a se
sentar sorrindo, esquadrinham com os olhos, por
entre os jatos de vapor, se por acaso alguma
penosa conseguiu chegar até ali, esquivando-se à
vigilância...
Paide se levanta para recolher uma a uma as
bétulas das mãos dos purpurados, notando nos
olhos deles um lampejo malicioso de sua
esperança aos danos do pobre Mascheroni. Este
sentou-se, rígido e teso, bem diante da maior boca
de vapor, que lança baforadas em seu rosto. A
tosse sacode-lhe o peito quando se aproxima,
cingido de uma toalhinha, Kapplmüller, o tenente
dos guardas suíços, que recebeu a tarefa de
escoltá-lo, perguntando como sua eminência se
sente.
— Como me sinto?... Um pouco estranho, mas vai
passar — e na parede que continua a vomitar um
vapor branco às suas costas vê apenas uma forma
indistinta, alta, à sua frente, mal reconhecível pela
sua voz. Apenas quando acaba a emissão,
calculada por um termostato, sua tosse começa a
abrandar e o olho vai se habituando à penumbra
da sala.
Então, vê o tenente, o jovem Hans Kapplmüller,
que lhe dá as costas, juntando-se a seus três
companheiros. A visão daquelas costas de
musculatura perfeita, daquela nuca forte coroada
por uma cabeleira de cachos dourados e de pernas
sólidas como colunas parece-lhe insustentável.
De fato, também está diante dele a degradação do
corpo rigoroso de Wolfram Stelipyn e do arcebispo
de Palermo, reduzido pela obesidade a uma
caricatura vergonhosa. Logo à direita o ladeia o
prelado de Nápoles, cuja artrose reduziu seu perfil
a um parêntese curvo, com um queixo que chega
até as orelhas, e de escassos cabelos brancos
desalinhados pelo vapor de água e eriçados sobre
a cabeça, como se fosse um espantalho. O passo
fatigado e claudicante do cardeal de Gênova
parece que deseja se entregar logo à imobilidade,
enquanto o rosto avermelhado assinala o cansaço
daquela respiração que nos jovens suíços, ao lado
de seu oficial, ao contrário, se assemelha ao sopro
natural de uma brisa marinha.
- 17 -
Na sala Clementina, onde as corujas dormem
durante o dia, como em qualquer aposento do
palácio, se celebram o funeral do cardeal Zelindo
Mascheroni. Ao acordar, de noite, as aves de
rapina arranjadas por Nasalli Rocca retomariam
sua luta contra os ratos voadores. Porém, o mais
terrível inimigo dos morcegos, o fogo, ajudaria na
guerra com as tochas e os archotes que seriam
acesos por todo o palácio para espantá-los.
O rito fúnebre é concelebrado por três cardeais de
cúria —- Rondoni, Racanelli e Lo Caseio —, que
durante anos trabalharam ao lado do defunto, e
pelo caráter oficial do lugar, onde foi exposto o
corpo do falecido pontífice, há um tom modesto
próprio a um conclave. Nenhum canto, nenhum
hóspede externo, nenhum representante do
governo italiano.
Até a família do morto poderá acolher seu
estimado parente apenas em Frascati, onde será
recebido para o solene sepultamento na catedral
da cidade.
O cardeal decano Antonio Leporati foi encarregado
das celebrações. Durante seu discurso, diante dos
purpurados, todos sentados, com os olhos várias
vezes voltados para o teto, para espiar as corujas,
também levou os cardeais a se distraírem do
féretro, das velas, dos quatro guardas suíços que
prestam serviço de honra nos cantos do tapete sob
o caixão ainda aberto.
Da primeira fila, o camerlengo observa pela última
vez a máscara em que o rosto maquiado do
cardeal foi recomposto pelas mãos piedosas do
secretário do falecido.
Por uma singular coincidência, é justamente o te-
nente Kapplmüller que presta serviço de honra ao
príncipe da Igreja, com o rosto semi-encoberto
pelo elmo recurvado, impenetrável. Parece que os
atores daquela tragédia, após a catarse final,
ainda não decidiram se separar, numa última
despedida de seus espectadores secretos. Do
fundo da sala, misturados à pequena multidão de
prelados, monsenhor Tommasini e monsenhor
Squarzoni notam a inoportuna presença daquele
jovem oficial. Entreolharam-se logo que viram o te-
nente se apresentar para ceder a passagem aos
soldados. Nunca trocaram uma palavra sobre o
que aconteceu naquela noite, mas ambos
preferiam que sua presença fosse evitada.
Antonio Leporati terminou sua homenagem.
Falou, matizando com longas pausas suas
observações sobre o rigor e sobre a extraordinária
riqueza doutrinal que caracterizaram a vida e o
ministério do prefeito da Congregação para a
doutrina da fé. Não deixou de lembrar, entre as
prováveis causas de uma morte tão imprevista,
sua preocupação em contribuir para a solução
daquela difícil escolha que os reúne em Roma.
Naquela altura o camerlengo, que está sentado a
poucos metros de Kapplmüller, notou um pequeno
estremecimento do tenente, uma oscilação
mínima de sua esguia figura.
Na primeira fila, a poucos metros de distância de
Veronelli, está sentado também o arcebispo uniata
Stelipyn. Várias vezes Veronelli intercepta seu
olhar comovido, talvez o único de todos os
presentes que verte lágrimas durante o discurso
de Leporati. Aquele homem sabe, mesmo não
tendo visto o que descobrira, quando ele foi
acordado no meio da noite. Tem de falar-lhe a sós,
não negará os dons de sua premonição a quem
possui a suprema responsabilidade sobre o
conclave.
Terminado o rito fúnebre, enquanto o corpo do
cardeal Mascheroni deixa os muros leoninos, os
cardeais voltam para suas celas.
Um outro dia inútil se foi, entristecido outra vez
pela morte, após a do arcebispo do Rio de Janeiro,
Emanuele Contardi. Cresce a sombra da reclusão
forçada, num lugar infestado de morcegos como
uma antiga ruína medieval, defendido por gatos e
galinhas como se fosse uma cidadela abandonada.
Parece que a única saída daquele conclave infinito
seja a trilhada por Contardi e Mascheroni, o
primeiro após extenuantes sofrimentos, como se
custasse a merecê-la; o segundo, com a
velocidade de um relâmpago, como quem não
quisesse perder uma oportunidade que não iria se
repetir mais. Há quem ainda ouça as palavras de
Stelipyn, no momento em que Mascheroni deixava
a torre de São João para ir morrer, aludindo "ao
que está para acontecer e que cairá sobre nós".
Não é difícil verificar a credibilidade de tais
palavras, no clima de sobrecarregada depressão
causado pela morte repentina do homem que
apenas 24 horas antes de morrer clamara contra a
inércia do conclave. A quem irão se referir agora,
na confusão geral dos ânimos?
A Stelipyn, com sua contagiante carga de
apreensão pelo futuro da Igreja e da humanidade,
que parecem convidadas a voltar às origens, a um
estado de natureza distante do progresso? A
Leporati, o italiano douto e eurocêntrico que leva
ao auge a centralidade romana e a habilidade de
tecer o futuro da Igreja, numa rede mais de
relações políticas que de interesses pastorais?
Talvez ao arcebispo de Dar Es-Salaam, cuja fama
de exorcista se deflagrou como um maquinismo
que evoca poderes mágicos e antigos apocalipses
sobre a presença do Mal no coração da Igreja? Ou
ao patriarca maronita, Abdullah Joseph Selim, cuja
voz se elevou para apresentar a contribuição de
uma sabedoria difundida sobre o sentimento de
um tempo tão fatalista e entregue aos desígnios
de Deus?
Ou talvez ao cardeal ex-trapista Paide, que,
mesmo tão ascético, nutre da fé uma visão aberta
ao diálogo ecumênico? A Nabil Youssef, o
palestino, cuja possibilidade de subir ao trono de
Pedro se fundamenta no fato de sentir-se pastor
de um povo em luta, que se tornou símbolo de
todas as opressões e vinganças em nome da
justiça?
- 18 -
Mas é apenas uma breve pausa de poucos
minutos, a interrupção de uma dança que mal
começou sua contagiante sedução.
Porque ao soar meia-noite, como se um acordo
secreto coordenasse os três prelados negros com
os portadores das tochas, àquela hora, prontos
para acender em cada ala do palácio o fogo para
espantar os morcegos, tudo reinicia, com um
frenesi mais endiabrado. Os três monsenhores
africanos, ao sinal de Marangu, voltam a ritmar
corpo e voz, com um contraponto ainda mais
ciente de agudos e batidas dos pés, acenando da
- 19 -
"Deus amentat quos vult perdere...”, lia naquela
noite, a altas horas, num velho comentário dos
Sermons de Bossuet, o cardeal de Milão, Alfonso
Cerini.
A citação do comentador, do Livro de Zacarias da
Bíblia, é muito pertinente. Sim, é assim mesmo,
Deus tira o juízo daquele que deseja que se dane...
É o que está acontecendo dentro destes muros,
pensa, sentado à mesa repleta de volumes, há três
meses a sua companhia preferida naquela
reclusão, volumes que são apenas uma pequena
provisão levada consigo da sua grande biblioteca,
em Milão.
Agora a medida chegou ao extremo; aquela dança
infernal pelos quartos dos sacros palácios! Quem
ainda duvida que o Maligno tenha assinalado outro
ponto, na luta que conseguiu iscar no coração da
cristandade?
O isolamento do mundo não é mais a condição
sábia e ideal que a tradição aconselha a se seguir
num conclave? Agora aparece para Cerini a
armadilha em que, por medo, devem cair os
chamados àquela prova. Sabe que os contatos
com o exterior se enfraquecem. Sabe que de
várias partes do mundo cresce a tendência a
imaginar uma possível autonomia de Roma. Sente
o esquecimento e o desinteresse crescerem como
grama ao redor dos muros do Vaticano. E a
estratégia do Mal foi muito sutil, suspensa entre
jogo e terror, malícia e violência, divertimento e
loucura, alusão e violação. "Deus amentat quos
vult perdere...” É verdade...
Como um encantador atuou sobre os sentidos,
amolecendo seus severos costumes com práticas
físicas indignas dos ministros da Igreja, que na
torre de São João haviam tocado muitos deles,
seduzindo a ele também. O Mal pressionou a
imaginação, evocando espectros de chapas
bíblicas, com a infestação de animais infernais
como os ratos, os escorpiões e os morcegos.
Apelou ao seu apagado sentimento de realidade,
suscitando reações de fuga, por causa da
claustrofobia que aos poucos foi aterrorizando
suas almas, como foi o caso de seus dois irmãos
que tentaram a evasão. Procurou desordenar seu
equilíbrio com a horrível visão de seu poder
confiado à horda de escorpiões sobreposta ao
afresco do Juízo universal. Brincou com sua
inteligência, entorpecendo-a com a extenuante
prova de efêmeras alianças, que pela manhã
anulavam os projetos da noite anterior. Enfim,
tomou posse de modo violento e dessacralizado de
seus velhos corpos, com aquela espécie de baile
de São Vito de uma noite inteira, que atingira no
coração a dignidade do Sacro Colégio. Mas a
malícia mais atroz foi aumentar as esperanças
com a escolha de um purpurado da África, para
depois fazê-las desabar de repente justo graças
àquela escolha. E mais, o golpe desferido no
conclave pelo mistério daquela morte tão
repentina, tão silenciosa e tão inesperada de
Zelindo Mascheroni, pedra angular da ortodoxia
católica, bem no dia seguinte à sua vibrante
intervenção no conclave. Dois de seus irmãos se
foram naqueles três meses: o prelado do Rio de
Janeiro e Mascheroni. Aquele espectro também
paira sobre as mentes de quem pela idade já se
sente próximo do fim. E o pensamento sobre a
loucura, que agora reencontra nos Sermons de
Bossuet, conspira para aos poucos confundir sua
inteligência sobre as coisas. Que desventura ainda
virá, após a mordida da tarântula daquele baile?
Não, não é perseguir a juventude do mundo,
refugiar-se na antiguidade da África e no seu
pensamento mágico, não é regredir ao estado de
natureza que salvará a Igreja, com um papa afri-
cano. Quando muito, ocorrerá apontar mais para o
alto, para a romanismo da tradição, para aquele
divino equilíbrio entre o mundo romano e o mundo
bárbaro, do qual nasceu a modernidade,
continuando a viver a herança do apóstolo Paulo, o
cidadão romano de Tarso que conduzira a
supremacia de Roma alta como uma bandeira. O
mundo ainda tem necessidade de um centro, de
um guia, de um pastor. Todo o mal que a Igreja
dividiu com a história da humanidade é o preço
pago para poder guiar seus passos, para não
deixá-la só. Já é ingrato virar-lhe as costas porque
se manchou com tantas culpas, por amor da falha
natureza humana. E vil voltar à alusão de uma
segunda juventude, banhando-se nas águas da
África. A tradição não se evaporou com o tempo, o
passado não é um arabesco de fumaça a se
disseminar para libertar o olhar numa nova
compreensão das coisas. O passado é uma rocha;
a tradição, um tesouro. Por isso, o herdeiro de
Santo Ambrósio e de São Carlos Borromeu
continuará a acreditar na sua candidatura ao
papado.
- 20 -
Naquela noite o patriarca maronita, Abdullah
Joseph Selim, viera para devolver alguns livros ao
cardeal Malvezzi, ficando para o jantar. A longa
reclusão do conclave pesa nas condições de saúde
do prelado médio-oriental, cada vez mais
debilitado, mas capaz de opor uma resignação que
não cessa de espantar e edificar o espírito do
colega de Turim, seu vizinho de assento na Capela
Sistina. Sentados ao pé da lareira acesa, enquanto
monsenhor Contarini está tirando a mesa do
jantar, os dois amigos repassam os eventos do dia,
a começar pela votação vespertina, a única
realizada, apesar da limitada presença de
votantes.
A maior parte do Sacro Colégio, de fato,
permanecera encerrada em seus aposentos, ainda
aterrorizada pela cena de dissolução no nada de
um dos mais notáveis candidatos à eleição papal.
O resultado da votação foi seriamente influenciado
pelo discurso do prelado de Brasília, pois 22 votos
foram à seu favor. Mas se tratava de uma oposição
ainda precária, graças a uma força numérica ainda
distante da maioria simples da assembléia
suficiente depois dos dois primeiros dias de
votação.
Malvezzi se admirou de ter um voto a mais, além
daquele do patriarca libanês, de quem ouviu a
réplica:
— O que você sabe sobre o que é possível para
Deus?
Mas, agora, a frase que tanto mexeu com ele há
quase dois meses vinha se completando com um
sentido mais trágico e inquietante. Pois Deus
parecia estar longe de seus filhos, tornando
possíveis dias terríveis como aquele: um deles,
talvez culpado de ter exercido poderes de magia,
fora engolido pelas forças do Mal.
O Senhor deixava livre assim o campo de batalha?
Aquele conclave, ao longo de sua história, algumas
vezes consumado em poucos dias com uma
eleição ocorrida segundo a Inspiração, agora se
arrastava penosamente e se tornava a prova do
afastamento de Deus.
A sua presença se encontrava alhures? Elegeria
outros para receber sua graça e representá-lo?
Malvezzi meditou durante a noite anterior sobre a
página bíblica da loucura de Saul, consciente do
abandono do Senhor e ignorando que o jovem Davi
já tinha sido ungido em segredo por Samuel como
rei de Israel. O diabo já se apoderara da alma
perturbada do rei Saul, condenado a morrer em
breve.
A Igreja está distante de Deus como a alma de
Saul? Se assim for, onde estará escondido o jovem
Davi?
- 21 -
— Brincamos de esconde-esconde, caro Francesco,
e algumas vezes fazemos isso tão bem que não
encontramos mais quem se escondeu, mesmo
depois do jogo terminado. Depois dançamos, às
vezes sem trégua, e por toda a noite até o
amanhecer, indo para a cama estafados. Depois
brincamos de ilusionistas; imagine, há um entre
nós tão bom que consegue fazer desaparecer e
depois restaurar todo o afresco do Juízo universal,
na Capela Sistina. E nos diverte muito também a
luta entre os animais, aqui são aceitas sempre
apostas nos confrontos entre galinhas e
escorpiões, ratos e gatos, morcegos e corujas. De-
pois, quando nos cansamos de todas essas
diversões, vamos votar no papa na Sistina ou
repousamos em meio a jatos de vapor do banho
turco, na torre de São João. Diga-me se não nos
divertimos a valer no conclave, caro Francesco!
— Ah, tio, você é demais, que espírito tem,
você é ótimo... — E as risadas do jovem sobrinho o
contagiam, fazendo-o rir com vontade, enquanto a
coruja com a asa ferida volta a pousar na haste do
cortinado. Menos mal que lhe ocorreu aquela
tentação de parodiar a verdade; mas Francesco
lhe incutiu esse espírito, se falasse com Clara não
teria nunca esse entusiasmo. A irmã o teria
interrompido para perguntar-lhe se estava se
sentindo mal.
— Então, eminentíssimo tio, posso ficar
tranqüilo, você está bem e nos veremos logo, no
Natal.
— Tem coisa melhor do que isso?! Não! No
Natal levarei para você algumas galinhas do
conclave, para o almoço do primeiro do ano
também... Se você visse como são gordas...
E enquanto Francesco se despede sempre rindo, o
cardeal arcebispo de Turim sente o cerco da
loucura fechando à sua volta, cada vez mais forte,
na inútil saída de sua cadeira devido à brincadeira,
à fábula, à absurda confissão permitida aos
bufões, que apenas nos gracejos da
dessacralização podem homenagear a verdade.
Pois era isso que estavam se tornando, ele e os
outros cardeais em conclave, uma espécie de
bobos, bufões, idiotas de Deus, que levam à dor a
provocação, a fim de que Deus se manifeste. Um
conclave que se reinventa como carnaval, a fim de
que Ele desponte em outro lugar, mas que
apareça. Um sol que não surge no levante, mas no
poente, porém que ainda surge.
- 23 -
O camerlengo entra nos aposentos do arcebispo
de Turim no fim de um outro dia de votações sem
sucesso. Visitar os enfermos é uma das sete obras
de misericórdia corporal. Mas não é com esse
espírito de piedade que o purpurado da cúria ultra-
passa a soleira de quem continua ainda nas
últimas votações a obter tantos votos: ganhara 37
no dia anterior, na véspera da nova manifestação
de excessos, devido à travessura de uma irmã
meio bruxa. E recebe 37 também na votação
seguinte.
Tal qual uma febre, mantém-se a alteração
daquele corpo unitário que é o Sacro Colégio,
legível nos votos, como na escala graduada de um
termômetro. Não sai dali e não se pode imaginar
nenhum expediente eficaz para remover a ameaça
da possível elevação ao papado de Malvezzi, além
de sua renúncia oficial à candidatura.
Mas de maneira alguma é uma empresa fácil falar
com um homem que conversa com os mortos,
prevê os acontecimentos e, desde que no banho
turco chamou o cardeal Ugamwa, passa os dias a
ler em silêncio, perto da janela do escritório.
Sabe-se que Malvezzi deixa suas leituras apenas
para fazer as refeições frugais e para prover
pessoalmente a comida dos animais que estão em
seus aposentos. É um dos poucos que não foi
contagiado pela peste da risada, mandando servir-
lhe comidas não provenientes da cozinha daquela
bruxa de Sahel... Até nessa frugalidade
demonstrou sua premonição.
Pouco antes, naquela tarde, para complicar as
coisas telefonaram para o camerlengo. A notícia
de que se tratava do Quirinal, ficou tentado a
negar-se a atender, mas depois o senso do dever
prevaleceu.
Teve de suportar uma angustiada advertência do
chefe de Estado, que se achava no direito de
exprimir todas as mais vivas preocupações do
povo italiano pela inusitada demora na escolha do
novo bispo de Roma. Se, por um lado, Veronelli se
alegrava por um sinal de atenção de tão alto nível,
em contraste com o crescente desinteresse dos
jornais pelo que acontecia no conclave, o
telefonema o aborreceu como se fosse uma in-
tromissão indevida. Mas, alegando problemas de
equilíbrios não fáceis de se resolver, não
descobriram que eles estavam se resolvendo.
Aquele telefonema era uma obra-prima de falsida-
des diplomáticas, mas com um apêndice em que
se concebia uma pequena vingança.
O chefe de Estado, no fim da comunicação, passou
o telefone para a mulher, senhora Gina. O capelão
palatino do Quirinal recentemente lhe tinha
revelado que a esposa do presidente, na visita
oficial ao futuro pontífice, se propunha a usar um
vestido branco, há séculos privilégio exclusivo das
rainhas católicas: a de Espanha e a da Bélgica,
além da grã-duquesa de Luxemburgo e da
princesa de Mônaco. Assim, quando a senhora
Gina Tarallo em Salviati expressou a ele seus mais
sinceros votos para uma escolha iluminada dos
eminentíssimos, a frieza do seco "obrigado" da
resposta atingiu a mulher. Gina se deteve um
pouco, talvez para aplacar o cardeal camerlengo. E
acrescentou que desejava receber em breve, para
uma refeição, os membros italianos do Sacro
Colégio, quando o conclave estivesse concluído,
mesmo que a cozinha do Quirinal deixasse a
desejar...
Àquela altura, a malícia toscana de Veronelli havia
despertado. Mudando o tom, a voz suave do
camerlengo pedia permissão para emprestar ao
Quirinal algumas cozinheiras não italianas que
tinham feito verdadeiros milagres naqueles longos
dias de conclave. A senhora Gina aceitara a oferta,
agradecendo por esse favor realmente delicado do
Vaticano ao Quirinal.
— Mande-me logo essas cozinheiras, eminência;
de onde são?
— Senhora, são irmãzinhas africanas, de Sahel...
Ah, se tudo fosse tão fácil quanto enganar aquela
mulher vaidosa! Mas como se faz para convencer
um louco?
- 24 -
Madre Elizabeth, a cozinheira negra, foi imolada
com suas sorores, vítima oferecida ao Quirinal
para as ambições da esposa do chefe de Estado.
Quase todos os capelães e secretários mais jovens
que tinham afligido o conclave com as suas
alucinações sobre as galinhas foram substituídos
por pessoal mais velho, mandado pelas várias
dioceses de Roma. O cardeal Ettore Malvezzi
prometera sua renúncia formal à candidatura. O
arcebispo de Dar Es-Salaam havia prometido
prestar contas da atividade de exorcista, em
particular ao camerlengo e, publicamente, diante
do Sacro Colégio reunido...
- 26 -
Nunca se soube quem, no Sacro Colégio, preparou
a brincadeira da direta televisiva daquela tarde de
dezembro, enquanto a cidade eterna gemia com a
violência do temporal.
Na sala de imprensa do Vaticano, para onde foi o
camerlengo em pessoa para os primeiros
interrogatórios, havia uma troca recíproca de
culpas e uma descarga de responsabilidades. Um
dizia que o telefonema sobre a iminente procla-
mação do novo pontífice tinha vindo do capelão de
um dos três cardeais mais votados; outro
sustentava que foi um dos eminentíssimos que
solicitou o diretor de um telejornal para um
contato bem rápido com a RAI e as outras
televisões privadas; outro ainda falava de um
telefonema da direção da TV estatal para obter a
confirmação da escolha realizada pelo conclave,
como se a notícia tivesse sido filtrada por um dos
protagonistas daquele dia com a própria RAI.
Nunca se encontrou o comunicado de imprensa,
nem o capelão indiscreto, nem o diretor da TV que
pudesse testemunhar quem foi o autor dessa
indiscrição. O camerlengo se aborreceu com o
conde Nasalli Rocca, com os príncipes Colon na e
Orsini, com o responsável da sala de imprensa,
ameaçando de propor ao novo papa a suspensão
de seus cargos. O caráter sagrado daquela
segregação, que consentia apenas aos espíritos
dos cardeais a autonomia da escolha, sofria pelas
suas negligências um golpe não menos grave que
os infligidos em três meses por tantas
desventuras. Pois esse dano se consumara diante
dos olhos do mundo, aquele mundo que já mostra-
va forte indiferença. Mas aquelas desventuras se
realizaram de portas fechadas, sem que o mundo
tomasse conhecimento delas.
O camerlengo deve ficar contente com a
suspensão de qualquer prelado adepto das
comunicações e de uma severa censura a quem
cuidava das relações externas, durante a Sede
vacante. Os diários do dia seguinte completam o
quadro negativo com a imagem da fumarada
negra emoldurada por títulos irreverentes de um
evento não difícil de ligar ao clima deprimente
numa Roma assolada por uma tempestade de
singular violência, nem um pouco intencionada a
largar a presa sobre a cidade, após 24 horas.
Assim, as votações daquele novo dia se efetuam
num clima de suspeitas, rancores e sentimentos
de culpa que oferecem a mais ampla medida da
estranheza da cidade, cujo bispo se deve eleger.
De fato, em alguns conclavistas vai progredindo a
consciência de que aquele flagelo se deve à sua
desunião, como se Roma sem um pastor sofresse
por causa disso, como um corpo doente.
Monsenhor Giorgio Contarini há pouco perguntou
ao cardeal Malvezzi a que horas deve ser servida a
ceia naquela noite. As rajadas de vento que
continuam a bater nas janelas dos aposentos do
arcebispo de Turim às vezes são tão fortes que
encobrem as vozes. As fendas dos vidros e dos
caixilhos, muito antigos, atingidos por golpes e
correntes de ar, investem contra cortinas, toalhas
e cobertas. Ao cardeal parece que todo o seu
quarto foi sacudido por um estremecimento que
não dá trégua e por fim o desvia da leitura e da
concentração.
A sua leitura é Agostinho, as Confissões que há
anos vinha se prometendo reler. "Pondus meum
amor mei”, o meu cárcere é o amor a mim
mesmo. Naqueles dias discutira longamente com
os seus invisíveis visitantes a frase do santo afri-
cano, lapidaria definição do mal moderno mais
difundido. Mas tanto Contardi quanto Mascheroni
tinham manifestado semelhantes dúvidas sobre o
monopólio moderno daquela doença. O egoísmo e
o culto a si mesmos se ocultavam em muitas
propensões a cuidar dos outros, habilmente
camuflados em todos os tempos. Às vezes, porém,
a santidade conhece as metástases daquele
câncer, como demonstrava o próprio Agostinho de
Ipona. O álibi de exercer em nome do Senhor um
ministério universal freqüentemente havia
mascarado tal soberba. O eu recebe da relação
direta com Deus, congênita ao sacerdócio, não
apenas frutos do bem. Com freqüência são frutos
do orgulho e da vaidade, ímpetos de auto-estima
que, segundo os papéis investidos, se tornam
poder de lesar em nome de Deus. Nas três
religiões irmãs, o álibi da revelação de Moisés, de
Cristo e de Maomé comumente operara tal conse-
qüência, renovando a chaga do integralismo.
Malvezzi deduziu que a corrupção do poder, em
qualquer nível, mesmo em nome de um poder
espiritual, está implícita em seu exercício. E
apenas a inocência da juventude pode oferecer
uma reparação e um antídoto.
A idade avançada dos cardeais e dos papas expõe
a tendência típica do ser humano que, ao se
aproximar da morte, deseja compensar o
sentimento de fragilidade com a mais segura
posse de comando em suas mãos. A velhice é
sentir a vida que se vai, sentir o medo do grande
salto, o espanto de deixar males conhecidos a
outros desconhecidos, como escreveu
Shakespeare. Vale muito mais para os ministros de
Deus, que devem oferecer ao seu rebanho
certezas e consolos sobre aquela grande
passagem para a outra margem.
O latido do cachorro, que está acorrentado no
pátio escuro para onde dão as janelas, desperta
Ettore Malvezzi de suas reflexões.
Em breve a janela de vidros amarelos dos
aposentos em frente estaria acesa de novo.
Àquela hora da noite seus misteriosos habitantes
voltavam. A imobilidade dos longos dias, longe da
Capela Sistina e dos cardeais, em total isolamento,
o tornou sensível como os seus animais — gatos,
galinhas, corujas — a qualquer movimento ou
mudança naqueles quartos, naquele pátio,
naquela ala do palácio. O soar das horas, ritmado
pela leitura e pela luz do sol, de manhã à noite,
tem alusões fixas a quem lhe agrada consentir,
detendo-se para observá-los.
Um deles, talvez o mais esperado, é aquela janela,
com seu acender pela manhã, ao alvorecer, e com
seu apagar-se depois. E então o seu acender de
novo, ao cair da noite. As sombras que se movem
além daquele vidro lhe fazem companhia.
- 27 -
Na manhã da vigília de Natal, a aparição no
conclave do cardeal de Turim é saudada por
muitos como um sinal encorajador; um clima mais
normal restitui à sala aquele que a excep-
cionalidade das provas sofridas havia subtraído.
Até mesmo o tempo, durante a noite, acena uma
tímida melhora. As notícias de Roma, ainda que
continuem graves as situações de diversos bairros,
não transmitem ecos de novos desastres. Já é algo
positivo, após o afluxo de notícias cada uma pior
que a outra. Outros cardeais da cúria vivem em
Roma e a impossibilidade de acorrer aos lugares
onde o mau tempo causou mais danos, muitas
vezes nos bairros em que habitam ou onde
residem seus parentes, se junta às outras
angústias daquela reclusão.
Quase quatro meses se passaram. E o dia seguinte
é Natal. É quase certo que Roma e a cristandade o
celebrem órfãos do supremo pastor. Mas o mundo
não parece perturbado com essa eventualidade; o
efeito do falso alarme ao vivo resultou no
distanciamento ainda maior da atenção da Sistina,
como se até naquele contratempo se manifestasse
a maligna vontade de quem não desejava a
eleição do novo pontífice.
Aproximando-se da grade de mármore que divide
em duas a Sistina, muitos cardeais param
Malvezzi. Um o cumprimenta pela ótima
aparência, outro brinca com aquela hospitalização
de doente imaginário. Outro pergunta à queima-
roupa se ainda pode votar nele. Outro ainda, mais
desconfiado, pergunta se cogitou alguma nova
solução após a longa espera. Outro, com ar de
mistério, pede para falar a sós com ele à noite, em
seus aposentos.
O sorriso enigmático de Ettore Malvezzi, mesmo
na evasiva gentileza das respostas, resulta na
desorientação de seus interlocutores.
Já não os via há muitos dias. E o seu aspecto
cansado, as expressões inquietas e propensas à
comoção, a incerteza que sente ainda a dominá-
los, depois de um lapso de tempo tão grande,
particularmente lhe dão pena. Muitos se
ressentiram grandemente daquela demora da
espera. Selim, o seu amigo patriarca maronita, não
consegue mais ficar de pé sem a ajuda de dois
prelados. Youssef, o purpurado palestino, bem
mais magro, parece a sombra de si mesmo.
Rabuiti, o corpulento cardeal de Palermo, sofre de
freqüentes ataques de asma que lhe obrigam a
recorrer ao oxigênio. O arcebispo de Nairobi, muito
pálido, apenas com um fio de voz, pede permissão
para votar logo, para poder se retirar, tendo em
vista suas péssimas condições de saúde; há pouco
tempo superou um colapso cardiocirculatório. O
arcebispo de Lviv, primeiro de uma longa lista de
purpurados que deve recorrer ao mesmo meio
para poder passar a entrada da Sistina, avança
numa cadeira de rodas, empurrada pelo
secretário.
A paciência realmente ultrapassou as medidas.
Olha para um canto c vê, já sentados em suas
poltronas, os dois que tentaram fugir, os prelados
de Nova York e da Filadélfia.
Eles também são a sombra de si mesmos. Quem
agora poderia acreditar que pudessem ser capaz,
apenas algumas semanas antes, de tentar descer
no vazio com cordas improvisadas, para escapar
do conclave? E ainda assim, o único pensamento
que se sente dominar a multidão dos
eminentíssimos é sair, conseguir voltar para casa,
colocar um ponto final naquela clausura.
- 28 -
Mas na noite de Natal o Espírito Santo tem piedade
do sofrimento de seus filhos e, dissolvendo a
névoa em suas mentes, mostra-lhes a verdade do
mesmo sonho.
Eles se revêem ainda reunidos na Capela Sistina,
no momento em que o arcebispo de Turim, Ettore
Malvezzi, aparece à soleira de uma das portas, sob
o afresco do Juízo universal.
A seu lado, como durante a última votação do
conclave, os dois presbíteros Lino e Estevão
escoltando-o. Às costas de cada um dos dois
jovens, duas altíssimas asas. Os olhos, de
insustentável fulgor, resplandecem e obrigam os
cardeais a abaixar os seus, entrevendo apenas o
esplendor da nudez daqueles corpos divinos, o
mesmo dos anjos pintados na parede do Juízo
universal, o mesmo do Cristo juiz, de semblantes
tão parecidos.
O cardeal Malvezzi continua a perorar a causa de
sua candidatura, sem notar o sorriso inefável e
concorde das duas belíssimas criaturas. Porque os
anjos transmitem naquele sorriso a consciência de
que o cardeal não percebe suas asas, protegido
por uma misteriosa cegueira.
O sonho termina com o imprevisto
desaparecimento de Lino e Estevão, no momento
em que o cardeal acaba de falar...