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Conclave

Roberto Pazzi
Tradução
Ana Thereza B. Vieira

2004

"A loucura, talvez o único olho que pode fitar o


sol."
RITA MAZZINI
-1-
É difícil perceber que horas são, porque durante
toda a noite ele teve a impressão de que já
amanhecera, talvez por causa da luz numa das
janelas da frente, que nunca se apagara. Ao se
levantar, divisara algumas sombras detrás da
janela de vidros opacos, amarelo-escuros. Um
cachorro acompanhara aquelas aparições com um
longo ganido, que poderia se assemelhar a um
chamado, mais que a um lamento, como se
procurasse chamar a atenção de quem estava nos
andares superiores, fosse ele próprio ou os
desconhecidos hóspedes do quarto por trás
daquela janela. O claustro é tão sombrio e estreito
que não deixa entrever esse animal, se realmente
ele está ali.
No entanto, os sinos agora sufocam o triste latido
do cachorro, dando início ao seu concerto de
saudação à luz de Roma. São anunciadas as
primeiras missas, e não é inverossímil que durante
aquelas funções matutinas as preces do sacerdote
e os pensamentos dos fiéis evoquem também o
que acontece no palácio, onde, com grande
dificuldade, ele tenta conciliar novamente o sono.
Nem todos os seus companheiros de aventura, os
ilustres hóspedes daquela ala do palácio
apostólico, sofrem de insônia.
Numa certa manhã, um dos mais jovens, primaz
da Irlanda, recém-eleito cardeal, unira-se a eles na
Capela Sistina com algum atraso. E, de repente,
alguém dentre os propensos a interpretar
presságios e sinais tinha deduzido que seria ele o
escolhido, o eleito daquele dia. Previsão esta que
fora desmentida umas duas vezes pelo resultado
das votações. Não fora um sonho visitado pelo
Espírito Santo, mas ofuscado pela fraqueza da
carne.
Um dos cardeais mais amigos, o madrileno Oviedo,
como ele renitente em fechar os olhos, recordava
o silêncio estranho que no último conclave —
apenas dois sobreviventes conseguiam se lembrar
disso — reinava nos quartos superiores, os
mesmos em que tudo ocorreria em pouco tempo.
Mas Roma era uma outra cidade, então, e não se
podia ouvir o barulho de seu tráfego chegando até
lá em cima.
— Se você arrumar belos tampões de ouvido como
os meus, o seu problema logo estará resolvido —
observou, com sua costumeira ironia, Celso
Rabuiti, o cardeal de Palermo, que ficara
escutando as observações do velho colega
espanhol.
Quem sabe quem dorme detrás daqueles vidros
opacos?
Não consegue ver nada, embora ache que aquela
parte do palácio, no terceiro andar, está reservada
quase exclusivamente a cardeais italianos.
São eles os mais ativos nos contatos em curso
entre as duas votações diárias, em vista do acordo
sobre para quem convergirão os votos. A perda do
papado pesa para os italianos, e comenta-se por aí
que um altíssimo expoente político tenha feito
insistentes pressões sobre a componente nacional
do Sacro Colégio, em nome do governo:
— Quem sabe do sul, ou até mesmo um velho,
mas que seja italiano, por favor, eminência. A
Itália, que não ocupa na Europa o seu devido
lugar, tem essa viva esperança... que elejam um
italiano....
Fantasmas de outros tempos, quando o cardeal de
Cracóvia, Puzyna, se dispusera a apresentar o veto
do imperador da Áustria no conclave, no qual,
mais tarde, Sarto fora eleito papa. As intromissões
agora são muito mais indiretas e veladas; não
acredita que algum político italiano já as tenha
exercido daquela maneira.
Aquelas sombras inquietas, aquelas formas
indefinidas, mas vivas na noite, parecem um
teatro mudo, um jogo de sombras chinesas, que
imitam a vida, aludindo às suas necessidades: o
poder, o abraço, a ira, a sedução, a palavra que é
ajudada pelo silêncio e pelo gesto, o segredo, a
conspiração, a prece.
O seu não é o único quarto em que as sombras se
agitam nessas horas. Mas ele não percebe as
outras: só consegue pensar nelas. Como milhões
de seres vivos que, naquele momento,
alternadamente, numa das metades do mundo
dormem e sonham, na outra metade do mundo
despertam e correm como formigas
enlouquecidas. Depois trocam de lugar: dorme
quem correu durante todo o dia e corre quem
dormiu e sonhou. A incapacidade de pensar nos
ausentes, principalmente os mais queridos,
movendo-se ao longe enquanto ele estava
separado deles, sempre lhe havia atormentado.
Pensar neles não os trazia de volta à vida: fazia
apenas com que se sentisse ainda mais sozinho.
Por isso, ama tanto as fotografias e os
telefonemas, ainda que eles aumentem as
saudades.
Assim, aquelas sombras ainda em movimento lhe
sugerem tal quantidade de perguntas, provocam
tantas curiosidades e interesses no porvir, quando
se dissolverão para sair em carne viva pela porta,
que lhe parece que não conseguirá mais voltar
para a cama.
No entanto, ele não quer acordar Contarini. Pelo si-
lencio absoluto do quarto do lado, percebe que seu
capelão e secretário continua dormindo. Olha para
o telefone. Deve ligar para sua irmã Clara, em
Bolonha? Mas a essa hora não se pode incomodar
ninguém. Quem sabe Francesco já fez a prova de
técnica das construções: já é a segunda vez que
tenta, e ainda pediu que seu tio rezasse por ele.
Ele está ali, no porta-retratos, na moldura de
prata, ao lado de sua mãe, que sempre o
acompanha. Quanto mais cresce, menos se parece
com o pai. E não se parece comigo, tem algo de
sua avó e do meu irmão, pobre Carlo: talvez o
nariz ou a boca, quando ri. Ah, os tios se mostram
especiais no estudo das semelhanças, sobretudo
quando se pode descobrir no sangue alguns
mistérios...
Tenta se espreguiçar novamente, esforçando-se
por permanecer na cama ainda um pouco mais.
São apenas cinco horas da manhã, e antes das
sete horas não poderá celebrar missa, assistido
pelo seu capelão Contai ini. Pode rezar, em vez de
refletir sobre as sombras à sua frente ou as
semelhanças do sobrinho. Muitas pessoas lhe
pedem: "Lembre-se de mim em suas preces,
eminência." E quase todas lhe confidenciam uma
dor, uma angústia, um desgosto, um segredo.
Observa o genuflexório dourado, com a almofada
vermelha, diante do crucifixo, um objeto que deve
estar presente em todas as celas dos 127 cardeais
em conclave. Pensa na mesma pose, no mesmo
gesto, de outros tantos orantes, todos vestidos de
preto e vermelho: uma cadeia de montagem de
prece. Não juntaria sua pose àquelas. Pode rezar,
relaxado na cama, e contemplar as pinturas do
teto em semicírculo e os anteparos do armário,
que, ao se abrir, revela o pequeno altar onde
celebra a missa.
Pega o rosário e começa a rezar por aqueles que
mais sofrem entre seus postulantes. A mãe com
um filho de apenas vinte anos, que sofre de
câncer; um pai de duas jovens viciadas em drogas,
que acabavam de ser reencontradas, após um ano
de ausência, e estavam num centro de
recuperação; uma viúva que ficara sem ninguém
para olhar por ela; um diretor e o presidente de
uma grande indústria, que não tiveram coragem
para confessar-lhe o motivo do pedido, mas
precisavam de ajuda. Talvez tenham algum
sentimento de culpa relacionado ao seu poder, ou
ao medo de serem descobertos por terem se
envolvido em algum escândalo.
Reza, e do panorama dos seus fiéis sai um fedor
indistinto e confuso de vilanias, vícios, fraquezas,
egoísmos: a massa de que foram feitos os seres
humanos, como ele, é como as sombras em
movimento por trás daquele vidro. Mas também
uma estranha capacidade de se doar sem
interesse, de se consumir por alguém que amam.
A única força capaz de libertá-los do egoísmo é o
amor. O milagre de amar alguém mais do que a si
mesmo ainda acontece. Observa o crucifixo. E um
objeto escuro e retorcido, obra de algum escultor
do século XVIII, que quisera imprimir um tom
expressionista de inspiração flamenga ou mesmo
nórdica. Os braços abertos, os ossos à flor da pele,
o corpo tenso e arqueado, o rosto escavado pelo
sofrimento, a faixa decomposta, como se um
vento fortíssimo a estivesse arrancando. Vira
imagens semelhantes num museu em Estocolmo,
num lugar da Europa longe do classicismo.
Desvia os olhos. Não consegue rezar à vontade
diante daquele crucifixo. Coloca o rosário sobre a
mesinha-de-cabeceira. Fecha os olhos. Talvez,
recitar a Ave-Maria tenha conciliado seu sono,
talvez a necessidade de adiar o despertar, o
levantar-se, a missa, a saída da cela. Nós nos
refugiamos freqüentemente no sono para evitar
algo que não nos agrada.
Monsenhor Contarini está se mexendo: o capelão
se levanta e abre uma porta. Eis a primeira tosse.
É o primeiro cigarro aceso às escondidas.
Sabe muito bem que depois ele abrirá os vidros
para deixar a fumaça sair. Em tantos anos de
serviço, deve ter tentado parar de fumar umas
vinte vezes.
E agora, quem ainda continua dormindo?
A verdade é que não sabe mais rezar. Seu
pensamento voa longe enquanto move os lábios e
passa à sua frente um filme da vida alheia. Esse
descanso forçado, essa suspensão da sua
existência que é o conclave, acentuou uma curiosa
atitude dos últimos tempos: a de sair de si para
seguir a vida alheia, esquecendo-se da sua
própria. Dizem que ele é um confessor
maravilhoso. Pena que a sua função de cardeal
arcebispo de uma grande cidade industrial do
norte lhe permita exercer aquele ofício somente
algumas vezes ao ano.
Certa vez, durante a visita pastoral a um vilarejo,
permaneceu quase o dia inteiro no confessionário.
Eram os jovens da região que mais o encantavam,
os poucos que vieram à igreja e que se ajoelharam
diante dele. Pareciam pedir para ele não romper o
fio que se formara entre eles, continuando a
questioná-lo com perguntas, sobretudo as mais
pessoais. A fé não fazia parte daquelas confissões,
mas um estranho protagonismo misturado a uma
fome de amor, a uma vontade de exibir daquela
maneira incomum a própria vida sem pudor,
timidez, embaraços.
Ele entrevia por fora da grade rostos com os olhos
fixos nele, cabeças peladas, cuidadosamente
raspadas, algumas vezes com um brinco reluzente
no lóbulo da orelha ou um pequeno brilhante no
nariz.
Quando ouviu um deles perguntar-lhe se voltaria
em breve, começou a inquietar-se:
— Por que você me pergunta isso?
— Porque quero ir embora... com o senhor.
— Comigo? E por quê?
— Porque aqui ninguém me escuta, preciso
fingir com todos.
— Mas o que você esconde? Por que precisa
fingir?
— Preciso esconder tudo, tudo: que não tenho
vontade de trabalhar, que desejaria viajar e ser
rico; que gostaria muito de ter uma Ferrari e não o
Fiat do meu pai, que gosto da namorada do meu
amigo, que desejaria viver na cidade...
— Na cidade...?
— Sim, por isso quero ir para Turim com o
senhor. Por acaso não precisa de um motorista, de
um cozinheiro? Sei dirigir, e faço crepes que são
de lamber os beiços, faço também pizzas e pelo
menos três tipos de molhos para macarrão...
— Mas eu como pouco: macarrão, salada e
um bife.
— Melhor, isso é rápido de se cozinhar, o que
deseja?
— Mas eu sou cardeal arcebispo, e isso seria
muito tedioso para alguém como você. A
propósito, quantos anos você tem?
— Dezenove.
— Seria muito tedioso para você viver
comigo, sou um velho de 63 anos.
— Os velhos sempre me agradaram mais que
os jovens, são mais interessantes; e depois, o
senhor é importante, não é uma pessoa qualquer,
com o senhor nunca ficarei entediado.
— Mas antes de ser este velho interessante,
fui também um jovem. Cada idade tem a sua
beleza, viva-a como uma dádiva, pois logo
desaparecerá; não tenha pressa de viver a sua
juventude.
— Conversa. Um jovem não vale nada, não é
nada.
— É o nada que agrada ao Senhor. Lembre-se
do que diz o Evangelho sobre as crianças: "Se não
forem como estas crianças, não entrarão no reino
dos céus.
O cardeal lembra que, após aquela citação, o
rapaz parou de falar de repente. Não que o tivesse
convencido, muito pelo contrário. Talvez a menção
mesma ao Evangelho o tivesse distanciado. A
confissão fora apenas o pretexto para se
aproximar de uma estrela, alguém que emanava a
mágica aura do sucesso.
Num vilarejo rural, um cardeal é como um ator, um
industrial, quase como um jogador de futebol ou
um cantor. A l i m e s m o e n t r e os jovens do seu
seminário mais de uma pessoa tinha o sonho de
uma carreira eclesiástica.
A c a r r e i r a da Igreja...
Eis o máximo a que poderia chegar: o conclave. E
daí sentir saudades dos degraus mais baixos, dos
primeiros degraus no seminário de Bolonha.
Levanta-se novamente, percebe que os
movimentos de Contarini se tornam cada vez mais
freqüentes, um discreto sinal para dizer-lhe que
está na hora de preparar-se para a missa.
Vai até a janela olhar para fora, agora há mais luz.
Divisa-se menos a janela defronte com os vidros
opacos; as sombras que gesticulavam sumiram;
mas o cachorro ainda late.
Levanta os olhos, o céu de Roma é de um azul
diferente daquele de sua cidade. Um azul de lápis-
lazúli, presságio dos céus da África. E se dissolveu
a neblina da madrugada, como havia em sua
cidade. Acordar aqui é mais alegre.
Vai até o banheiro, observa a banheira com pés de
leão e os vidros opacos do postigo oval. Pensa que
127 banheiros semelhantes àquele recebem,
naqueles instantes, outros tantos cardeais anciãos.
Vê seu rosto no espelho. Deve barbear-se, tem a
barba longa, pois ontem não a fez.
Já se passaram cinco dias desde que se reuniram
em conclave, após o extra omnes proclamado pelo
cardeal camerlengo.1 As portas do palácio estão
lacradas, é impossível manter contato com o
exterior, a não ser através de comunicação prévia
à secretaria do camerlengo. Todos devem desligar
o celular. Mas ontem alguém deve ter quebrado a
regra, porque lhes pediram para entregá-los, para
1 Cardeal que desempenha as funções de papa interinamente
e governa a Igreja católica entre a morte de u m pontífice e a
eleição de seu sucessor. (N. da E.)
evitar futuras desagradáveis apreensões. Ele sabe
que alguns americanos os mantiveram sempre
ligados, pois os surpreendeu falando ao telefone. E
quiçá quantos outros farão o mesmo.
Corta o lóbulo esquerdo enquanto se barbeia com
o velho barbeador de lâmina. Dói-lhe o braço
direito, o que às vezes dificulta seus movimentos.
Uma das tantas dores reumáticas que lhe afligem
naquela estação. Até mesmo quando deve dar a
bênção solene, no altar vizinho à capela do
Sudário, em sua catedral, sente aquela dor.
De repente pensa na cena da bênção urbi et orbi,
no pórtico de São Pedro. Pára e se vê novamente
no espelho, com o barbeador no ar. E se fosse ele
dessa vez?
Apóia a mão esquerda na beirada do lavabo e
abaixa os olhos. Não há a menor possibilidade de
ver-se naquela condição, seu nome nunca fez
parte das previsões, nem da cúria nem de fora.
Não representa uma facção, não tem apoio de
nenhuma pasta da Igreja. Recém-eleito cardeal,
ainda está em observação no Vaticano. Sabe que é
mais considerado um pastor que um sábio ou um
político. E a pastoralidade não é um dos requisitos
mais pedidos dentre os manifestos. Após um papa
como o que morreu, é difícil que elejam alguém
como ele, que vive à sombra dos italianos. Mas
sabe que deve a sua nomeação de cardeal à
grande estima daquele homem inesquecível.
— Se a divina providência tivesse disposto
tudo de uma outra forma e eu tivesse ficado lá, em
minha diocese, viveria como você... — dissera-lhe
no café-da-manhã, entre poucos amigos, naquele
ano antes da assembléia, em que se tornara
cardeal. E depois acrescentou: — Em seu país as
pessoas têm poucos filhos, e se divorciam muito,
foi o que me disseram.
— É verdade. São as conseqüências de um
bem-estar mal-compreendido, sem valores
espirituais. Mas devem existir outros motivos, que
ainda não percebi e que ainda procuro... procuro...
– E assim parara, pousando o garfo de prata sobre
o prato de Limoges. Não dissera ao papa que
procurava tais motivos em si mesmo. Mas foi
exatamente isso que li em seus lábios.
— E que você procura... em você.
— Concordei, observando a velha e curva
figura. Como poderia ler isso em meus
pensamentos?
Naquele dia memorável, durante todo o café-da-
m a n h ã , n ã o s a í r a mais de sua cabeça a
expressão atenta, mas benévola, com que o
estudava um dos homens mais influentes da cúria,
O cardeal Vladimiro Veronelli, o camerlengo da
Santa Igreja Romana.
Instintivamente, divisara algumas dúvidas,
reservas, mais antipatia que estima, como se até
mesmo por aquela pequena conversa tivessem
vindo à tona provas de sua falta de aptidão para
governar a Igreja, com certas desconfianças em
relação à sua problemática tão aberta e declarada.
Os vértices supremos devem representar apenas
as certezas, de que sentem necessidade milhares
de pessoas fracas e confusas. Parecia ser este o
pensamento de um homem que o estudara bem
aquele dia, replicando com poucas palavras as
suas observações.
E Veronelli é hoje o camerlengo que preparou em
cada mínimo detalhe, juntamente com o decano
Antonio Leporati, a complexa máquina do conclave
destinado a apresentar um sucessor para o
pontífice, que deixou um sinal tão palpável na
história. O homem que deve falar latim, mas que
também deve proibir o uso de celulares para
controlar a saída de notícias. O homem que deve
lacrar com o brasão das chaves cruzadas de Pedro,
transpor com o chapéu da Sede vacante as portas
para o exterior, como se faz há séculos, mas
também impedir que os computadores dos
cardeais e de seus capelães se conectem com a
internet para filtrar as expectativas de todo o
mundo.
Não, definitivamente ele não tem chance alguma
de dar a bênção urbi et orbi do pórtico de São
Pedro, em alguma manhã daquele outono ameno.

-2-
Monsenhor Giorgio Contarini celebra a missa,
assistido pelo seu capelão. Naquele momento, um
raio de sol incide sobre o pequeno altar, através
das portas escancaradas do grande armário,
pousando sobre a toalha branquíssima e sobre o
cálice dourado. Um raio cálido como uma carícia,
que tem a medida das paredes, do vidro e da
janela, e repousa ali, junto dele e da hóstia no
pano de linho. Sente aquele raio tocando o braço
direito, justamente onde a articulação dói, com o
benéfico efeito de um calor que alivia o
sofrimento, suave e afetuoso como a mão de uma
pessoa que lhe quer bem: a irmã, o sobrinho, o
cunhado, a cunhada viúva de seu irmão, Contarini,
os amigos que se casaram depois de deixarem o
seminário e tiveram filhos, que, por sua vez,
também tiveram seus filhos. Rapidamente,
recapitula todos os nomes das poucas pessoas
ainda vivas que o amam. Depois vêm os mortos,
que são tantos, mas cujos nomes não vêm, apenas
uma fileira de rostos, que se dispersam na
memória, como se o vento os separasse de seus
nomes, confundindo-os.
Surpreende-se, alguns instantes depois, durante a
elevação, pronunciando o cânone em latim, e até
Contarini expressa um gesto de admiração,
virando a cabeça para o lado, como se quisesse
controlar o que diz sua eminência: "Hoc est enim
corpus meum."
Por que pronunciou tais palavras em latim? É a
língua em que pela primeira vez ouviu uma missa,
quando era criança, sem conseguir entender seu
significado, mas participando do rito como se
participasse do final misterioso de uma fábula.
Pega a hóstia com as mãos: parece estar
submetida à sua força em crer no milagre da
transformação do pão em carne. Quantas vezes na
vida segurou-a assim, apesar de sentir-se cansado,
inadequado, incerto e distraído pelo murmúrio da
vida, estúpida, mecânica e estranha, que
fervilhava ao redor... E com aquela hóstia nas
mãos, sentira-se levar pela banalidade do
cotidiano, quase vencido pelo sentido do ridículo,
pela consciência de uma derrota na inútil réplica
do Calvário.
Agora é a tosse de seu secretário que o distrai, e
também o eco de uma buzina ao longe, e depois o
cheiro da cera no chão, e os passos apressados no
corredor: alguém que se apressa para abrir e
fechar portas no palácio sacro, no sexto dia do
conclave. Enfim, o ronco do estômago vazio; tal
barulho sobrepõe-se a todos os demais porque
vem de dentro dele, de um corpo inquieto e
indócil, talvez indiferente ao milagre que se realiza
naquele cômodo.
Em sua antiga catedral podia culpar o incômodo
dos parâmetros, a lerdeza dos rituais, a invasão
daquela gente por não conseguit se concentrar na
hóstia, por não saber responder sinceramente à
pergunta: "Mas você acredita? Acredita que eu
seja o seu Deus?" Aqui, ao contrário, o espaço é
ínfimo, apertado, discreto, ninguém espera
nenhuma representação teatral e exterior. Está
sozinho, com a hóstia e Contarini atrás dele.
Então, por que ainda não consegue ser completo
naquele gesto e responder àquela pergunta? E um
homem desses pode estar ali, em meio àqueles
que devem eleger o papa, ou, pior ainda, em meio
àqueles que podem ser eleitos?
Ajoelha-se, como sempre, diante da hóstia. O sol já
se fora, não tocando mais seu braço, quando se
levantou para bendizer o vinho no cálice.
O restante da missa passa rápido nas palavras que
a memória envia a seus lábios, mortas como os
rostos sem nome daqueles que amou e que não
vivem mais. Um formulário de palavras precisas,
todas em italiano desta vez, como designa a
reforma do Concílio Vaticano II. Contarini não tosse
mais, como se estivesse associado àquela
silenciosa corrida para chegar ao fim do rito, sem
mais empecilhos nem interrupções.
Quando a missa terminou, seu secretário lhe
serviu a refeição: sobre a mesa, ao lado do
guardanapo e da xícara, se encontra a
correspondência, que chega sempre com um dia
de atraso em relação à casa, e já aberta. As regras
do conclave impõem um controle rigoroso.
Agora, já se sente por todo o palácio o burburinho
da vida.
- Eminência, a votação é às dez horas; falta uma
hora e meia. Vou preparar, então, seu hábito e
sua carteira. Depois, devo correr para uma reunião
com o prefeito da Casa Pontifícia, pois parece
que há novas instruções urgentes.
- Algo deverá mudar; as regras já estão
ultrapassadas, como essa censura à
correspondência.
- Ah, não, as comunicações entre nós, que
estamos em conclave, são livres; deve estar
faltando outra coisa.
- Eu não estaria tão seguro assim.
Abre a missiva e lê; foi escrita à mão, com uma
letra muito pequena:

Caro Ettore, eu, Gênova, Nápoles, Milão, Florença,


Bolonha e Veneza devemos nos ver antes da
votação matinal. Agradeceríamos se você também
participasse. É importante. Encontramo-nos em
minha casa.

Importante? Urdir a trama dos italianos contra os


cardeais do Leste, que sempre contaram como
favoritos? Ou
contra aqueles negros da África, o verdadeiro
futuro da Igreja,
segundo alguns? E a Ásia? O problema da China?
Por causa
da desforra de um herdeiro de Matteo Ricci — um
desafio
pata a Igreja ainda banida, clandestina, perseguida
naquele
outro futuro da igreja, que é a China —, um chinês
teria um
grande séquito.
Relê a lista dos Colegas: Gênova, Nápoles, Milão,
Florença, Bolonha e Veneza e ele próprio, Turim.
Faltam os cardeais da cúria, o que não é casual.
— Onde mora o cardeal Rabuiti?
— Na ala da frente, conheço o caminho. É
preciso apressar-se, se devo acompanhá-lo, para
depois voltar correndo para a minha reunião.
— Estarei pronto num minuto.
Veste-se com a batina bordada de vermelho, com
botões do mesmo tom de escarlate. Leva consigo
a carteira com os documentos, onde guarda a
carta que sequer teve tempo de ler.
— Vamos, Contarini.
Sai, tranca a porta à chave, a qual entrega a seu
secretário.
Faz frio no corredor onde não bate mais o sol, uma
umidade que vence qualquer odor, um cheiro de
mofo que vem das paredes onde o reboco, em
vários pontos, está descascando e intumescendo.
Divisa uma freira, que pega um outro corredor.
Como é possível? Mulheres não são admitidas no
conclave.
— Mas era uma freira?
— Não, eminência, era o hábito de um
beneditino.
Como pode ter cometido tamanho erro? Naquele
universo só há lugar para homens. Até alguns
conclaves atrás, o pontífice eleito deveria se
submeter a um exame médico para atestar sua
virilidade.
Observa Contarini caminhar todo ligeiro, com
aquele passo uniforme. Emana um rasto de água-
de-colônia, com que costuma se perfumar. Está
irrepreensível como sempre em suas vestes
sacerdotais de corte reto, elegante, de mãos bem
cuidadas, de cabelos jamais desgrenhados e de
sapatos com fivela de cetim escuro. É o melhor de
seus colaboradores, mas também o mais
misterioso. Não lhe passou despercebido aquele
brilho em seus olhos quando negou que fosse uma
freira a figura que virava no corredor.
Contarini é um homem ainda jovem, que acabou
de chegar aos 40. As notas pessoais e reservadas,
lidas na hora de convocá-lo ao serviço,
informavam que sofrera uma trágica vicissitude
matrimonial, quando era muito jovem, e que termi-
nou com o suicídio da esposa. Com a morte da
mulher, logo lhe veio a idéia de seguir a carreira
sacerdotal. Ninguém jamais conseguiu com que
ele falasse daquele evento. E, no entanto, algo do
velho marido parecia reverberar no elegante
secretário d o c a r d e a l . G i o r g i o C a n t a r i n i
ainda desejava agradar, como se um raio
da sua perdida condição matrimonial
r ev e r b e r a s s e n a q u e l a n o v a c o n d i ç ã o d e
inseparável anjo-guardião de seu arcebispo.
Não lhe agradavam aqueles cuidados um pouco
exagerados consigo mesmo, a meticulosidade com
que Contarini controlava o seu guarda roupa,
freqüentemente repreendendo seu cardeal pelas
modestas e de mau gosto com relação aos
t e c idos, a mobília, aos sapatos e até à roupa
íntima. Mais n ã o ligava, vencido por tão aguda
sensibilidade no tocante às cores, a aceitação da
comida, dos perfumes, das flores para enfeitar um
altar e da escolha dos presentes que lhe cabia
inventar em diversos momentos para as muitas
pessoas que ficavam à sua volta na cúria
arcebispal.
Certa vez seu sobrinho Francesco, que estava em
Turim p o r ocasião de seu aniversário, deixou
escapar num comentário os ciúmes que sentia de
Contarini:
— Tio, ao menos no dia do seu aniversário
podíamos comer sozinhos, sem o seu cão de
guarda.
— Mas aqui estamos mais à vontade... —
replicara, aproveitando um momento em que o
secretário havia se afastado para atender ao
telefone.
— Com ele, nem pensar. E depois, como
fuma! Muito mais que eu...
O sobrinho soubera atacar o ponto fraco de
Contarini, aquele homem perfeito.
— Não, eminência, vamos por aqui; há um
patamar na escada de caracol.
Contarini o trouxe de volta à realidade, quando ia
virar à direita, no corredor em que viu desaparecer
a figura de batina que o confundiu.
Nunca perde o senso de direção, nem mesmo
quando está dirigindo no tráfego mais caótico de
Roma e o carro, com a bandeira na capota que lhe
dá a preferencial, se perde no mar de carros e
ônibus. Contarini enfrenta todos que com ele
rivalizam pela passagem, pronto a discutir com
motoristas de praça e guardadores de carro, calmo
e sereno, sem nunca perder aquele senso de
superioridade que, se não d e i x a seu interlocutor
irritado, consegue fazer com que o deixem passar.
Então, ele se fecha em copas, dentro do carro, e
se esconde por trás das cortininhas, porque sente
vergonha daquele tom, mas não tem coragem de
censurar seu motorista pelo resultado d a
operação. E ele sabe que Contarini percebe o seu
mal-estar, e sente até um certo prazer em afligi-lo,
só para vê-lo dependendo dele, e para reprimir a
vontade deste de lhe impor sua mansidão.
Desce a estreita escada em forma de caracol,
segurando na barra de sua veste com a mão
direita, para não tropeçar. A velha madeira dos
degraus range a cada passo. A luz vem apenas de
uma clarabóia, no alto. Mas parece que Contarini
também pode ver naquela penumbra, e continua
com o mesmo passo ligeiro. De resto, as vestes
sacerdotais de seu capelão lhe permitem um
passo mais rápido. Num primeiro patamar se
divisa a luz por baixo de uma porta, mas as vozes
chegam mais distintas que aquela luz fraca. Um
diálogo agitado é interrompido tão logo sentem a
presença de alguém nas escadas.
Contarini parou e virou-se para ele. Parece que
espera pelas ordens, mas um sorriso paira em
seus lábios.
— Vamos, Contarini... não podemos perder tempo.
Só depois de ter pronunciado tais palavras
percebeu que as havia sussurrado, podendo ser
mal interpretado, como se fosse cúmplice dos que
discutem por trás daquela porta, como se não
desejasse interromper a animada conversação, e
procurasse esconder sua identidade, com aquele
convite para seguir adiante.
Não se espanta com a voz alta de seu secretário,
que parece se comprazer em vez de perturbar os
desconhecidos.
— Pois não, eminência, vamos logo!
Não, não são desconhecidos para ele, juraria que
conhece seus nomes. Duas ou três rampas abaixo
sentem a porta se fechando e logo Contarini pára
para se debruçar e observar.
—Deixe disso, Contarini, estamos atrasados!
Agora também ele elevou a voz, irritado.
Não é a primeira vez que seu secretário
assume ares de desafio, reveladores do forte
caráter sob a simulada docilidade de seu
serviço.
Contarini se contém e torna a descer,
apressado.
Finalmente chegam a o largo patamar que se
une à escadaria e leva à ala onde estão os outros
italianos. Transpõem uma porta com o brasão de
P i o X e ouvem uma voz:
- Ah, eminência, quanta honra, os
eminentíssimos cardeais são do arcebispado
de Palermo, faltava apenas o senhor.
É um prelado de câmara de Sua Santidade que o
recebe e precede, l o g o depois de ter-lhe beijado
o anel, enquanto Contarini se afasta para não
se atrasar para a sua reunião.
- Por aqui, eminência, por favor.
E l o g o se inicia uma série de vai-e-vem, mas
desta vez i o d o s no mesmo andar, guarnecido
pelos brasões dos últimos pontífices, com os
retratos de seus secretários de Estado nas
p a r e d e s : Merry del Val, Maglione, Gasparri,
Tardini. Ao se virar, viu um longo pórtico que se
abre sobre o pátio de São D âmaso, cheio de
grandes vasos de limoeiros e, mais adiante, outro
corredor luminoso, com vitrais que o ladeiam. O
prelad o se aproxima de uma porta minúscula,
quase invisível, no meio do reboco e da mesma cor
da parede. Abre-a sem bater e depois se afasta
pata deixar passar o cardeal de Turim.
De repente aparece Rabuiti, arcebispo de Palermo,
baixo e atarracado, com um rosto que irradia
sempre alegria, cujos lábios revelam um sorriso,
expressão que nunca desaparece, nem mesmo
quando os argumentos são sérios e secretos, como
aqueles que iremos tratar em breve.
— Que gentileza você ter vindo! Ah, mas eu dizia
justamente aos nossos amigos: vocês vão vet que
Ettore virá, que ele não faltará ao nosso café! — e
rápido como um passarinho, segurando Malvezzi
pelo braço, ei-lo cambaleando em direção à outra
porta, que após ser transposta prorrompe em
novas manifestações: — Eis o nosso caro amigo,
eis o nosso Ettore!
Todos estão sentados ao redor da mesa posta,
onde estão servindo uma refeição bem mais farta
do que a da observância, que acabara de ser
consumida com Contarini, trazida pelas irmãs das
cozinhas centrais. Um enorme crucifixo de
madeira, ao estilo clássico de Donatelli — bem
diferente daquele estilo gótico que o entristece,
visto do genuflexório em sua cela —, sobressai na
parede, acima de suas cabeças, todos estão
vestidos como ele, prontos para se dirigirem à
Capela Sistina, onde dentro de uma hora deverão
votar.
Um a um vão passando os rostos que há anos
aparecem com ele nos jornais e na televisão, nas
viagens do pontífice pela Itália, prontos a acolhê-lo
em suas sedes e a entrar no carro, atrás dele,
atravessando a multidão com aquele sorrisinho
eterno nos lábios, cujo melhor modelo é Rabuiti.
Lembra-se dos comentários feitos para os
jornalistas, que os circundavam enquanto
transpunham a entrada dos palácios sacros,
respondendo às perguntas sobre a possibilidade
de o conclave escolher um papa. Alguns tremiam
só de pensar em tal contingência. Outros
afastavam de si o amargo cálice. Outros, ainda,
sabiam que deveriam ser a última pessoa a
merecer se tornar um papa. Outros, enfim, não
queriam nem tocar no assunto, de tanto que se
sentiam indignos. Segundo um manuscrito antigo,
para dar sorte, cada príncipe da Igreja negava tal
esperança e possibilidade. Todos sabiam que
"quem entra em conclave papa sai cardeal". Os
jornalistas só não perguntaram nada a ele e ao
patriarca de Veneza.
Observa os bules de prata, cheios de chocolate,
aquele mesmo que é servido aos papas após a
missa, para revigorar aqueles anciãos do jejum.
Enquanto o maravilhoso serviço barroco de prata
reluz debaixo de um lampadário de Murano aceso
em pleno dia para apresentar o fausto de tudo
quanto pode brilhar na mesa, vê Rabuiti trazendo-
lhe uma cadeira.
— Sente-se, falamos melhor de estômago cheio, o
chocolate ainda está quente; vou servir-lhe uma
taça.
-3-
Sim, o homem era insubstituível. Nunca houve
outro papa capaz de mostrar-se assim para o
mundo, interpretando os anseios de toda a
humanidade... E, no entanto, devemos nomear seu
sucessor, que será t ã o importante e tão difícil de
ser encontrado, como estamos vendo — principia o
astuto arcebispo siciliano, focando o problema.
E continua:
- Por isso devemos nos examinar e nos preparar
para a eleição; não podemos considerá-la um jogo
das maiorias numéricas. Devemos encontrar algo
que canalize as razões ideais mais profundas. O
acordo sobre o número necessário para chegar à
maioria não deve existir por si só, como vem
acontecendo nesses últimos dias. Eu me
penitencio por não ter definido as categorias entre
nós mesmos antes.
— Não foram dias inúteis, Celso. Foi assim
que se procedeu em outros conclaves, os
primeiros dias são apenas teatro, mas servem
para entender onde o Espírito Santo vai baixar —
observa Silvio Marussi, prelado de Gênova.
— Mas o Espírito Santo deve ser ajudado,
Rabuiti tem razão — comenta com sua voz
pausada e grave Alfonso Cerini, arcebispo de
Milão, aquele que todos ansiavam por ouvir, como
se quisessem dar sua opinião somente depois de
saber como ele pensa.
— É verdade, não podemos deixá-lo à mercê
da lentidão de nossos cérebros — concorda Aldo
Miceli, patriarca de Veneza.
— Contudo, eu, que sou talvez o mais velho
daqui — intervém o prelado de Florença, Nicola
Gistri —, queria que vocês lembrassem que,
quando Pio XII morreu, parecia impossível
encontrar um sucessor. E, o mesmo aconteceu
com Pio X I , Bento XV e, sobretudo, às vésperas
da guerra mundial, quando Pio X nos deixou
órfãos, e quem hoje veneramos no altar...
— Sim, não podemos nos deixar tomar pelo
desencorajamento, pois não serve para ponderar
sobre a escolha m a i s oportuna — desta vez
falando Siro Ferrazzi, cardeal de Bolonha, que
naquele momento, ao tocar em sua veste na altura
do peito, descobre que deixou sua cruz peitoral na
cela.
— De resto, as virtudes heróicas deste nosso
venerado pontífice, como veremos, servirão para
acrescentar mais um papa à lista dos santos —
reforça Salvatore Carapelle, arcebispo de Nápoles,
que nunca perde de vista a expressão atenta do
colega de Milão.
— Como veremos, certamente...
O arcebispo de Milão assenta a segunda pedra
tumular sobre os despojos do defunto, pensa
Ettore Malvezzi, enquanto se dá conta de que
agora esperam apenas a vez naquela roda de
pronunciamentos.
Então ele arrisca tudo, tirando a máscara de todos:
— Mas nós estamos aqui porque queremos
eleger um italiano, não o merecedor, não é
mesmo?
— Ettore, o que você está dizendo ? Um
italiano e merecedor, se possível — corrige
Rabuiti, que nem sequer diante de uma saída tão
pouco diplomática perde o brilho daquele seu
sorriso. Todavia, ficava-lhe agradecido por ter ido
direto ao ponto da conversação.
— Não um italiano a qualquer custo. Mas
devemos tentar de tudo — insiste Carapelle, que,
de repente, desejaria não ter falado, quando ouve
as palavras de Cerini:
— Um italiano a qualquer custo, a qualquer custo.
Na sala paira um profundo silêncio.
Portanto, o sucessor de Santo Ambrósio se
candidatou e ninguém mais pode fingir que ignora
o fato. Pronunciou-se com o grande prestígio de
sua figura e de sua cidade. Mas faltam os cardeais
da cúria, não convidados para a reunião, observa
Malvezzi. É presumível que estejam juntos, o
próprio Cerini vem daquele grupo. Talvez seja
apenas uma manobra tática: trabalhar primeiro os
pastores de dioceses, depois os políticos da cúria
vaticana.
- Ettore, o seu chocolate está esfriando... – observa
Rabuiti, atencioso.
Malvezzi, em verdade, não conseguira beber
sequer
um gole, tomado pela velocidade premente
daquele jogo de acordos, uma primeira tentativa
de experimentar os ânimos antes de desferir os
golpes. Mas por que tanto espanto? Há
milhares de fiéis espalhados pelo mundo, à espera
de conhecer o nome do representante de Cristo na
Terra. É natural que aquela antiga máquina
comece a rodar para não errar o resultado. O
conclave também é isso: um jogo por trás dos
bastidores, que findará com toda a sua carga de
pressões e derrotas, vitória s e compromissos, mal
se revele ao mundo a nova figura branca, sobre
quem irá se projetar a necessidade de um padre,
d e um intermediário entre Deus e o homem, a
quem a esmagadora maioria dos homens ainda
não consegue renunciar.
Até mesmo o Dalai Lama responde a essa
necessidade, e também o imã dos ismaelitas, o
patriarca de Mosca, o de Constantinopla, e tantos
aiatolás muçulmanos. Cada um faz sua parte para
tranqüilizar o homem de que não está só e que
osofrimento, a infelicidade, a velhice e, enfim, a
morte têm um sentido preciso, visto que residem
no coração de Alguém. Deus não abandona suas
criaturas por um minuto sequer, tudo é contado,
pesado, acompanhado, nada é gratuito. Os
homens precisam acreditar nisso desde a idade
mais remota, desde que temiam o raio e os
trovões, imaginando que ali estava a marca de
Zeus, pai. E continua a mesma coisa na época da
internet e do concorde, da bomba atômica e dos
antibióticos. Sentimos parte daquela poderosa
sociedade de socorro mútuo que são as religiões,
todas unidas pela mesma piedade para com o
homem, que nunca cresce, que ainda não
consegue encarar o Nada de que é feito.
Malvezzi bebe seu chocolate, regozijando-se do
silêncio incomum após as palavras de Cerini, não
disposto a interrompê-lo por nada neste mundo,
como lhe implorava o sorriso de Rabuiti.
A voz lamuriosa de Carapelle parece ainda mais
falsa quando toma a palavra que ninguém queria
tomar:
— Então, Alfonso, converteremos os votos
para você, estou certo de que muitas outras
nacionalidades farão o mesmo... aqui somos
apenas sete.
— Teremos um trabalho enorme para
convencer os outros — reflete o patriarca de
Veneza.
— A Itália deve retomar seu primado católico
e romano, renovar na figura de um papa do seu
sangue as forças de sua estirpe, a altivez de sua
vocação univetsal, as geometrias da inteligência e
do gosto latino que se perderam na mescla de
culturas, no coração da Igreja, ainda muito
próximos de suas raízes bárbaras...
Quem mais pode ser o sucessor de Santo
Ambrósio, agora que confirmou aquele apoio? A
fama de sua oratória conquistava universidades,
fundações culturais e círculos filosóficos exclusivos
mundo afora, e ninguém podia ficar insensível a
seu encanto.
Mas alguém avisa suas eminências de que na
Capela Sistina começam as operações de
reconhecimento dos votantes. É preciso ir, até
porque um eventual atraso de todo o grupo levaria
a desconfianças, revelando as intenções dos
italianos.
Ninguém se admira da candidatura de Alfonso
Cerini. Apenas Gistri, prelado de Florença, poderia
competir com aquele homem, se não fosse tão
idoso. Agora já está quase excluído do voto
passivo em conclave, como todos os cardeais à
frente de uma diocese e que tenham mais de 75
anos; daí para a frente, em verdade, obrigados a
deixar suas dioceses não são mais votados para
governar a diocese de Roma, ao contrário dos
colegas da cúria, aos quais é permitido manter
seus cargos além daquele limite temporal.
Então saem, sem mais comentários, procurando
chegar à Capela Sistina "separadamente", como
recomendara Celso Rabuiti.
Ettore Malvezzi pensa na idade de seus colegas,
na assembléia de anciãos, quando, ao passar de
novo pela escada em forma de caracol por onde
Contarini lhe guiara, ouve novamente as vozes
que divisara em sua passagem anterior. Vozes
jovens, cheias de ímpeto e matizes, pungentes e
zombeteiras quando se ofendem, irresistíveis e
contagiosas quando rebentam de rir, capazes de
se elevarem e diminuírem, como as dos velhos
jamais conseguiriam ser novamente.
Quem pode ser? Pessoal de assistência, capelães
de eminências, clérigos secretos, sacerdotes que
levam os círios,
capelães de honra... ou guardas suíços, aquelas
tropas que não servem para nada, mas albergam
paixões e rivalidades às vezes trágicas, como fora
demonstrado pelo tríplice homicídio cometido p o r
um dos soldados mais jovens, há alguns anos.
Tudo fora abafado pela única justiça no mundo
que em poucos dias poderia decidir sobre a versão
única e absoluta do delito e arquivar o caso. Mas
ele sabe o que aconteceu à q u e l e s três — o
comandante da guarda, a mulher e o jovem
soldado. Ele conheceu o jovem suíço. Era sobrinho
de um de seus amigos de seminário mais antigos.
Enquanto recorda os detalhes do relato
perturbador feito por seu amigo, a quem
encontrara certa tarde num congresso de estudos
teológicos, eis que finalmente surge a porta
escancarada da Capela Sistina, apinhada de
prelados domésticos e guardas suíços, capelães e
cardeais. Estes, um de cada vez, depois de serem
reconhecidos, entram para ocupar seus assentos,
debaixo do dossel. Cento e vinte e seis dosséis
perfilam os dois lados mais compridos da capela
com outros tantos pequenos tronos, em várias
ordens de postos. O assento do camerlengo, 127o.
membro do Sacro Colégio, fica à parte, próximo do
altar.
Apenas um daqueles dosséis se manterá elevado,
no momento da proclamação do novo pontífice
romano, quando os outros 125 serão abaixados
como reconhecimento da nova dignidade, saudada
pelo canto Tu es Petrus; enquanto o camerlengo,
junto com o decano, se apressa pelo labirinto de
sal que liga os palácios vaticanos à basílica de São
Pedro. Lá em cima, da sacada, será anunciado
para Roma e para o mundo o Habemus Papam.
Ettore observa os cardeais orientais, o grupo de
japoneses, vietinamitas, indianos, filipinos, que
andam sempre juntos a cada chamada para
votação, e continuam manifestando seu espanto
pela arte de Michelangelo, todos elevando a
cabeça para admirar a abóbada e as paredes,
onde sibilas e profetas se alternam, conduzindo o
olhar para o lado mais curto, onde se encontra a
cena do Juízo universal.
Quem sabe como deverá parecer para homens
daquela cultura o sistema de símbolos e sinais do
universo de Michelangelo! Todos foram educados
em seminários e universidades católicas, mas suas
mentes foram instruídas no universo figurativo de
Brahma, Vishnu e Shiva, nas lutas entre o Bem e o
Mal. Recordava os belíssimos afrescos daqueles
gigantismos dos dois princípios em luta entre si,
vistos em Bali, Bangcoc, Lhasa, Calcutá... Diante
dos olhos de Michelangelo estava a visão do
homem de Atenas e de Roma, seus nus viris
vibravam de harmonia clássica, da inesgotável
fonte de inspiração que eram as obras de Fídias,
Praxíteles, Scoppa, Lísipo.
Então, graças à mediação cultural do catolicismo,
podia-se fazer uma ponte entre Oriente e
Ocidente, gregos e judeus, romanos e germanos.
Até aquele verídico crucifixo de estilo flamengo,
que dominava o seu genuflexório, fruto de uma
arte gótica próxima da profundidade da
predestinação de Lutero, demonstrava isso. Tudo
se compunha numa única representação teatral
naquele lugar. As partes se harmonizavam, sem
que nenhuma delas prevalecesse, cada qual fiel à
sua razão de estar num manuscrito, parecendo
ainda esperar por novas páginas, de imprevisíveis
soluções para o drama, longe da catarse final.
Malvezzi percebe que ele também perdeu vários
minutos observando o afresco do Juízo universal,
como os cardeais orientais, esquecido da multidão
circunstante.
— Eminência, desculpe-me, mas devemos verificar
seu documento. — A voz suave de um prelado
convida-o a entrar.
E, de repente, reconhece a seu lado o arcebispo de
Milão, silencioso, com seu rosto de expressão
impenettável. Quem sabe com que ânimo
ultrapassará esta soleira, no dia de sua grande
ocasião...

Todas as luzes da Capela Sistina se acendem


inesperadamente e logo se eleva o Veni Creator
Spiritus, entoado pelo coro da capela papal. Os
últimos purpurados se apressam para ocupar seus
lugares.
Então o canto cessa e o cardeal camerlengo
Vladimiro Veronelli manda fechar as portas de
acesso à capela e a cancela de mármore que a
divide.
Extra omnes.
Todos devem sair. Permanecem apenas os 127
eleitores e os prelados de assistência.
Mas algo faz com que o camerlengo franza as
sobrancelhas. Uma nota que lhe chegara pelo
arquiatra, o príncipe Aldobrandini, informa-lhe que
quatro eminentíssimos estão doentes e não
podem deixar seus quartos. O camerlengo balança
a cabeça, visivelmente contrariado, e decide adiar
a conv o c ação numa tentativa de chamar de novo
os ausentes.
O vozerio aumenta na sala. O inesperado intervalo
dá lugar a deduções e comentários, enquanto se
dissolve a atmosfera evocada pelo canto do Veni
Creator.

-4-
Solene, apoiado no pastor, recusando o amparo de
um prelado doméstico, surge da cancela de
mármore, cerca de meia hora depois, o patriarca
maronita Abdullah Joseph Selim.
A determinação do camerlengo venceu apenas um
de seus recrutados indóceis.
Quanto aos outros três — os cardeais do Rio de Ja-
neiro, de Santiago do Chile e de Sydney —, não
houve mais nada a fazer, como monsenhor
Attavanti, secretário do colégio cardinalício, está
sussurrando ao ouvido do camerlengo com
detalhes úteis a convencê-lo de que tentou de
tudo.
— O cardeal de Sydney tinha dores terríveis;
a certa altura nem sequer me escutava mais,
escondendo-se debaixo do lençol. O arcebispo do
Rio não me deixou terminar de falar, convidando-
me a sair e a deixá-lo morrer em paz.
— E o de Santiago do Chile? — insiste,
descontente, o camerlengo, tocando a campainha
para restaurar o silêncio na capela.
— Eminência... ele estava no banheiro, e eu
não tive coragem de dirigir-lhe a palavra da
antecâmara, depois de ter mandado seu secretário
avisá-lo de que estava ali. Mas este me garantiu
que a incontinência de seu arcebispo lhe impediria
realmente de participar.
O fantasma de um cardeal preso a uma cadeira de
enfermos desfaz a tensão de Veronelli. Tem de se
contentar com o patriarca maronita, que nesse
meio-tempo deu vários passos em sua direção e
agora parece ameaçá-lo com seu bastão pastoral.
O rosto pálido e os olhos vermelhos sob o chapéu
redondo, de cujos lados cai um véu negro, de
barba longa e branca, compõem um aspecto
majestoso que chama a atenção geral e abafa o
vozerio.
- Se eu não sair vivo do conclave,
e m i n e n t í s s i m o c a merlengo, ficarei n a sua
consciência. Que diferença faz... - e um acesso de
tosse sacode o peito do libanês, impedindo-lhe de
falar por alguns instantes – que diferença faz se eu
não participar da votação de hoje? Ainda está
c e d o para amadurecer a escolha, todos os
conclaves tiveram necessidade d e u m tempo
precioso para a reflexão, a sua pressa é má
conselheira.
— Já se passaram muitos dias, caro irmão, o
tempo não é mais o mesmo do último conclave;
medimo-lo muito mais rápido agora.
— Não somos obrigados a segui-lo; a doença
também é um convite à reflexão, a não imitar a
corrida do tempo que leva à loucura lá fora. A
cautela de espírito também pode revestir-se da
fragilidade da carne!
O cardeal Veronelli não relata mais.
Os ânimos naquela sala parecem agitados por
motivos opostos, mas todos parecem ter seguido o
debate com muita atenção. O patriarca maronita
tem carisma, e o seu incontestável sofrimento
físico acrescentou um páthos às suas palavras.
Veronelli se contenta em ver que a muito custo o
doente chega ao seu assento, perto do arcebispo
de Turim, exercitando a virtude da obediência.
Ele teria pressa para terminar? Mas era apenas
dele a responsabilidade de comandar o conclave
mais difícil dos últimos tempos, pois recebia
pressões dos governos de meio mundo. Ele
deveria responder ao telefonema do presidente
italiano, àquele da ONU, ao francês, ao líder da
Ucrânia e ao Prêmio Nobel da Paz, dizendo que
não conseguia sugerir o nome de um papa negro,
em homenagem à causa de todos os perse-
guidos... E os judeus? O que o patriarca do Líbano
sabia das pressões que tiveram de exercer sobre
aquele inimigo do Islã, o cardeal de Sarajevo,
como garantia de que de modo algum levariam em
conta a eleição do palestino, como se sussurrava
em muitos ambientes religiosos do Oriente Médio?
Agora era o palestino que estava manso como um
cordeirinho, sentado à esquerda, em um dos
tronos mais próximos da cancela, lendo
tranqüilamente seu breviário — talvez -, sem
tomar parte na discussão, sem trocar uma palavra
com seus vizinhos. Pela aparência, era o mais
manso e angelical dos príncipes da Igreja, mas
capaz de esconder em seu carro com licença
diplomática uma bela coleção de Mausers e de
mitras para levar ajuda às suas ovelhas em
Jerusalém...
M a s j á é hora de proceder à chamada dos
nomes e iniciar a discussão antes da votação. São
onze e meia, e não é prudente perder o controle
daquela assembléia indócil por mais alguns
minutos.
O cardeal decano Antonio Leporati lê a lista dos
eminentíssimos e reverendíssimos cardeais em
ordem alfabética, repleta dos nomes das igrejas de
Roma, de onde são titulares. Agora o silêncio foi
quase completo.
Terminada a chamada, o camerlengo anuncia que
a discussão está aberta, se acaso algum dos
eminentíssimos quiser tomar a palavra, antes da
votação.
Alguns minutos de um abafado vozerio se passam,
como se muitos se contivessem, falando entre si,
desejando dirigir-se à assembléia em voz alta.
Não querem assumir a responsabilidade de dar um
rumo àquela navegação do conclave ainda em mar
aberto. Os nomes que haviam sido queimados nas
votações pareciam reconhecimentos de terras
fantasmas, fadas morganas, enganos.
O boato de que o cardeal de Milão tivesse aceitado
converter sobre seu nome os votos dos italianos e
talvez o dos franceses e dos espanhóis não
conseguiu chegar a tempo a todos os
componentes do Sacto Colégio. Mas a licença da
palavra durante a troca de deixas entre o
camerlengo e o patriarca maronita chegou à
maioria, obtendo as primeiras inoportunas
reações.
— A história não ensina nada mesmo aos italianos
— comentou o arcebispo de Havana —, eles nos
reprovam.
Ettore Malvezzi olha à sua volta, estudando os ros-
tos dos mais próximos: o patriarca do Líbano, os
prelados de Palermo, Bolonha, Paris, Viena,
Colônia, Bordeaux, Madri e Toledo, até os que se
encontram mais abaixo, por onde se estendem "as
legiões do Leste", como às vezes Rabuiti costuma
denominá-las com antipatia e temor: o cardeal
uniata de Lviv e o latino, o de Riga, Budapeste,
Zagábria, Varsóvia, Cracóvia,
Minsk, Kaunas, Praga, Fagaris e Alba Júlia, Nitra e
Sarajevo.
De onde partiram a s hostilidades?
Quem dará início às grandes manobras do poder
mais desarmado e mais antigo e universal da
Europa?
Ele percebe um ruído vindo da esquerda, perto de
Cerini; alguém se agita e se vira para chamar a
atenção de seu vizinho de banco, o arcebispo de
Palermo. Intercepta a mensagem do inquieto
genovês Marussi:
— Você deve apresentar sua candidatura...
Mas Rabuiti parece uma estátua do pensamento,
enlevado a contemplar profetas e sibilas no teto,
surdo a qualquer solicitação. Os secretários do
camerlengo já se movem para pegar os pratos
com as cédulas e percorrer a Capela Sistina,
distribuindo-as aos votantes.
O silêncio persistente convence os membros do
Sacro Colégio que o convite a uma reflexão mais
demorada, feita pelo patriarca maronita, não foi
em vão. Ainda está cedo para acelerar a máquina
do conclave.
Do altar vem a ordem do camerlengo para
distribuírem as cédulas sem mais delongas. Os
sinos de São Pedro acabaram de soar o meio-dia.
Agora os cardeais estão todos debruçados sobre
suas mesas, um procura os óculos, o outro passa e
repassa os dedos sobre a cédula para esticá-la
melhor, outro ainda tira a tampa da esferográfica,
alguém escreve rápido um nome, outro se
entretém ainda falando ao ouvido de um colega,
há quem permaneça imóvel como Malvezzi, com a
cédula aberta, sem escrever nada, olhando
fixamente para aquele papel branco com o brasão
da Sede vacante.
"O papa? Quantas divisões tem o papa?", vem-lhe
à mente a irônica pergunta de Stalin, enquanto
observa o cardeal uniata de Lviv, a seu lado,
chamando primeiro os adeptos à retirada das
cédulas.
Tentou escrever seu nome, mas deu sua palavra
aos colegas italianos de que votaria em Cerini. Não
pode fazer isso. As cédulas estão controladas, não
sabe como, mas sempre se consegue saber em
quem votaram, mesmo queimando as cédulas
depois.
I n c l i n a - s e e e s c r e v e lentamente o nome de
Alfonso Cerini, arcebispo de Milão.
Mais da metade já colocou a cédula nos
grandes pratos de prata, cujo conteúdo
v er t e r ã o n o c á l i c e d e o u r o s o b r e o a l t a r ,
quando Ettore finalmente desperta de um
sonho que o levou para bem longe.
Foi atraído pela cena da ressurreição dos mortos,
no grande afresco de Michelangelo, com aquelas
expressões hesitantes e surpresas, carregadas de
sono e espanto, que voejavam sobre os rostos
despertos para a vida pela trombeta dos anjos.
Que escritor moderno descreve Lázaro e a sua
vida de exilado da m o r t e , constrangido a respirar
pela segunda vez o ar e a i n f e l i c i dade dos
viventes, com a mente sempre voltada para a
melancolia do sono, para onde espera voltar?
Talvez um poeta italiano? Corrado Govoni? Ou
Rilke?
— Eminência, quer entregar-me sua cédula?
— solicitou um prelado, fazendo-o reabrir os olhos
entreabertos, procurando lembrar o autor daquela
vida de Lázaro.
— Você estava dormindo? Eu entendo,
também o acordaram à noite para convencê-lo...
— comenta o patriarca maronita, seu vizinho.
Sorri, sem replicar. Mas o libanês, que simpatiza
com ele, não desiste.
— Votei em você.
O sangue sobe à cabeça do arcebispo de Turim,
que de repente se vira para fitá-lo, segurando-o
pelo braço:
— Mas o que você fez? Está brincando?
— Não, não estou brincando. Acho que você
merece...
— Não faça mais isso, por favor, é um voto
perdido, eu nunca poderia...
Não termina a frase, tomado por um estranho
terror, como se alguma coisa ou alguém lhe
impedisse de continuar, de revelar como se sentiu
naquela manhã enquanto celebrava a missa, com
a hóstia nas mãos, incapaz de responder à
pergunta "Mas você acredita? Acredita que seja
aquele Seu Deus?"
— E o que você sabe sobre o que é possível
para Deus, que você nunca conseguiria?
E o imponente patriarca, enquanto se levanta a
muito .....................................................custo,
apoiando-se em sua bengala, lança-l h e um o l h a r
reluzente que por um instante lhe recorda a luz
trágica do único olho aberto do danado de
Michelangelo — o outro está coberto pela palma
da mão — escutando a sentença que o c o n d e n a
à eternidade do inferno: a figura do Juízo universal
que mais o comoveu na primeira vez que o viu,
ainda rapaz...
O secretário do patriarca já estava se apressando
para ajudá-lo a descer os degraus e sair para uma
pausa antes do resultado da votação. O patriarca
maronita precisa beber, a febre subiu e o está
desidratando.
O camerlengo permite que ele se retire à sua cela,
sem esperar pelo resultado do 11o. escrutínio.
Malvezzi observa a cadeira vazia a seu lado, com
aquela luz intensa ainda viva em seus olhos. Tudo
aconteceu tão rápido e foi-se o homem, o único do
Sacro Colégio que teria votado nele.
Certifica-se de que nenhum de seus outros
vizinhos, sobretudo Rabuiti, tenha escutado a
conversa. Mas a voz do enfermo era muito baixa e,
além disso, Rabuiti parecia absorto num denso
conciliábulo, num banco mais abaixo, com um
purpurado do Leste, com quem fala em francês.
— Por favor, eminentíssimos, voltem aos seus
lugares.
Veronelli levanta-se, assistido pot dois cardeais
escrutadores, para 1er um grande livro de
registros sustentado por monsenhor Attavanti.
— Comunico os resultados da 11ª. votação para
eleger o sumo pontífice da Igreja universal e bispo
de Roma. Aceitos para votação 127 cardeais, dos
quais 124 estão presentes. Receberam votos... —
E a voz monótona e recitada do camerlengo dá a
entender desde o início que mais uma vez não foi
possível encontrar um novo pontífice. A dispersão
é ainda maior. Apenas o cardeal de Milão
conseguiu 12 votos, mas isso pode ser um
resultado perigoso, capaz de prejudicar o futuro,
queimando sua candidatura.
Quando Malvezzi ouve seu nome, com o único voto
que obteve, é tomado novamente pelo terror. O
sorriso irônico de Rabuiti, que naquela hora se
virou para observá-lo, acena-lhe com a dúvida da
autovotação.
- Não se tendo conseguido o quorum da maioria
simples dos votantes, suficiente desde o quinto
escrutínio, agendaremos os trabalhos para esta
tarde, às cinco horas, para proceder ao 12º.
Escrutínio. Pedimos vossa pontualidade,
eminentíssimos.
A voz de Veronelli o distraiu, lembrando-o de sair
da sala e v oltar à sua cela, onde Contarini já o
esperava para almoçar.
Há uma multidão na saída. Os cardeais comentam,
em diversas línguas, aquela situação, que se
mostra cada vez mais difícil de resolver.
O nome do arcebispo de Milão passa pela boca de
muitos, alguém se aproxima do cardeal em quem
votou para exprimir-lhe seu descontentamento e
apoio. O interessado recebe as manifestações de
simpatia com a costumeira impecável discrição,
apertando as mãos para agradecer-lhes.
Apenas na hora de receber a homenagem de
Rabuiti se permite um desabafo:
— Não me querem, caro Celso, mas a coisa
não podia ser-lhes apresentada de modo mais
confuso.
— Era muito cedo para anunciar sua
candidatura, arriscava queimá-la. Mas podemos
sempre remediar. Já agendei um encontro com o
primaz dos alemães, com Dublin e Londres.
Passarei o dia discutindo com eles outras
possibilidades, os franceses e os espanhóis ficarão
do nosso lado, mas é melhor falar-lhes em outro
lugar...
— É conveniente. É preciso contatar o
patriarca de Beirute, ele tinha razão.
"A Senhora" é sempre extravagante, pensa
Rabuiti; é assim que os inimigos de Cerini
costumam chamar o arcebispo de Milão. Ei-lo
pronto a lançar uma ponte aos adversários, para
se tornarem amigos e ter o resultado de uma
abertura mental realmente superior. Logo tomará
ares de laudator temporis acti, nostálgico da
antiga lentidão, amante da contemplação... Mas
para sairmos daqui, devemos inserir nosso cartão
de identidade no computador... No tocante aos
votos, aquele árabe é que conta... Mas fez uma
bela de uma saída teatral... Será melhor lembrar
Malvezzi de suas responsabilidades, eu não
esperava que ele votasse em si mesmo
Os cardeais remanescentes, aglomerados na
entrada, se vêem obrigados a dar passagem a três
prelados que passam com a caixa das 124 cédulas
a serem queimadas no forno do conclave.
Resgatara-se o antigo costume de queimá-las para
anunciar ao mundo, com a fumaça negra ou
branca, o resulta do negativo ou positivo da
votação.
O arcebispo de Bogotá faz entender, em espanhol,
que aquela fumaça, além de penosa, é ridícula.
Com freqüência, a fumaça de cor incerta dá
margem a interpretações equivocadas. Quem, hoje
em dia, sabe acender aquele forno? O primaz
cubano lhe dá razão, acrescentando em voz alta
que se fosse o camerlengo procederia logo a uma
outra votação, seguindo assim até à noite, com
vários escrutínios... afora a lentidão por causa da
doença!
— Vocês ouviram? Contardi recebeu a extrema-
unção — se intromete o mexicano Ezcuderos.
Por um instante a notícia de que o estado de
saúde do setuagenário arcebispo do Rio de Janeiro
é grave suspende todos os comentários,
recordando a uma tão incomum e forçada reunião
de machos, naquela obra-prima de símbolos, ritos
e tradições que é um conclave, o pensamento
natural e espontâneo da morte.
A lembrança faz retornar ao próprio país, à própria
cidade, à casa: lugares que o pobre coitado
percebe que não verá mais. E o sentimento de um
inseparável obstáculo à liberdade de ação chega,
de repente, para abalar os cardeais, restituindo-
lhes, entre saudade e ânsia, a verdade de uma
condição já sofrida por muitos no passado. Não era
a primeira vez que alguém morria ali.
— Rezemos hoje pelo nosso irmão Emanuele,
eminentíssimos. — A voz do camerlengo chega ao
último grupo na saída.

-5-
A morte de Emanuele Contardi à noite reduz o
número dos membros do Sacro Colégio admitidos
em conclave para 126.
O camerlengo, que não é poupado das
repercussões negativas daquele evento lutuoso
sobre o bom andamento do c o n c lave, põe a culpa
no príncipe médico-chefe Aldobrandini, porque
este consentira o ingresso de um purpurado
moribundo, o que, pelo bem da Igreja, não deveria
ter sido feito.
Agora esse novo empecilho retardará os
movimentos daquele motor que custa a pegar. Os
funerais, aos cuidados de dois assistentes da
cadeira pontifícia, os príncipes Orsini e Colonna,
devem ser celebrados apenas com a participação
dos cardeais. Roubam tempo e desviam energias,
difundindo sobre cada um daqueles velhos uma
sombra negativa, que pode complicar as coisas. O
camerlengo conhece a psicologia daqueles
homens de poder, o sofrimento que cresce por
causa de uma clausura imposta pela história e
que, de repente, imprime às suas vidas o ritmo
das sociedades medievais.
Poucos têm simpatia pelo clero regular, como são
chamados os sacerdotes que escolheram a regra
dos conventos e as ordens religiosas, que têm
ainda seu maior prestígio naquelas ordens de
clausura.
Entre os poucos cardeais elevados ao purpurado
por um desses conventos distingue-se o estônio
Matis Paide, obrigado pela obediência ao pontífice
a renunciar à sua vida contemplativa e a aceitar o
barrete cardinalício, para imprimir sua
espiritualidade a um dos dicastérios vaticanos
vacantes.
O dicastério, a Congregação para a Evangelização
dos Povos, fora acolhido pelo santo homem como
uma penitência, e um pouco daquela resignada
obediência havia caracterizado seu estilo de
governo, abandonando a alegria da expansão da
verdade revelada pelo Cristo.
No caso do conclave, aconteceu exatamente o
contrário: o ex-trapista se mostra mais pronto do
que qualquer outra pessoa para aquela fuga do
mundo, solícito de conselhos e disponibilidades
com o camerlengo e o seu ofício, como se a outra
experiência de sua vida, a clausura, agora fosse
colocada à disposição de quem sente falta dela.
O cardeal, originário de uma ilha da Estônia,
Saaremaa, logo após o funeral do primaz
argentino, encontra se sozinho com o camerlengo
em seu apartamento.
— Estou preocupado, Paide, muito
preocupado com o andamento das coisas. — É
como Veronelli inicia a conversação, dirigindo-se
até a poltrona.
— Mas não devia. A mim me parece que tudo
sucede como tantas outras vezes — responde-lhe
Paide, o ex-trapista, que viveu por quase vinte
anos na clausura da abadia de Tre Fontane, em
Roma.
— Não estamos mais naquele tempo, é uma
situação incomparável, atropelada pelas
contingências que não admitem confrontos,
vencida por um papa muito embaraçoso para a
memória... Como seremos no alto? Percebe que
não chegamos a um acordo? Às vezes acho que
não querem eleger um sucessor, a não ser pelo
fato de que permanecer aqui por muito tempo os
aterroriza.
— Você está exagerando, Vladimiro. Votamos
apenas poucas vezes, alguns conclaves duraram
vários meses...
— Sete dias já se passaram.
— E o que são sete dias?
— Em sete dias Deus criou o mundo.
— E nós mal começamos a entender a graça
desta clausura... Ainda é cedo para acolhê-la em
sua plenitude.
— A graça da clausura? Você acha que eles
podem entendê-la dessa maneira?
— Eles precisariam ficar aqui não um mês,
mas um ano inteiro para renascer quando saírem.
— E quem governa a Igreja nesse meio-
tempo?
- Ela se governa por si só, talvez até os crentes
redescubram o valor de seus pastores, na
ausência de seus pecados.
- Você pensa como trapista, não como cardeal,
você também deve ajudar no conclave; quando
aceitou o barrete cardinalício do papa, também
assumiu tais honras.
- M a s e s t o u lhe ajudando, s ó que você ainda
não entendeu, você pensa em termos muito
mundanos, semelhantes àqueles dos poderosos da
Terra.
- P o r que n ó s , cardeais, não somos os poderosos
da Terra? O equilíbrio de tantos governos não
depende dos homens alojados aqui dentro? Não
decidem o destino de mil alianças d e partidos,
regimes, forças econômicas? Até mesmo n a Itália
já descobriram o poder de mediação do cardeal da
c i d a d e e m algumas greves.
- Não insinue tais palavras dentro destes muros, o
inundo desmorona sob o peso dessas palavras...
partidos, sindicatos, coalizões, economia,
indústria. Se você as evocar, este conclave cairá
no ridículo, como quem escreve com a pena de
p a t o , e m vez de usar o computador... Ao menos
aqui a linguag e m impura de nossa era se cale.
— Mas eu devo mediar entre os dois mundos
que você quer separados! Sabe quem me
telefonou há pouco, com a desculpa de dar os
pêsames por Contardi? O presidente do Conselho.
E você devia ver como ele se estendia em
perguntas e como insistia em saber os nomes dos
mais cotados! E como foi hábil ao apresentar o
discurso da paridade escolástica até numa ocasião
como essa, para condicionar-me.
— Deixe-o falar, deixe-os dizer, confunda-os
com boatos e promessas genéricas e diga-lhes
sempre que sim. Serão mentiras santas a serviço
da verdade.
— Então você concorda com meu modo de
agir.
— E quem foi que declarou guerra a você?
Quando foi que eu me furtei ao meu dever? Já são
dez anos que comando o dicastério que o Santo
Padre me impôs, e Deus sabe quanto me custou
obedecer-lhe, deixar minha cela de Tre Fontane...
Eu tinha apenas Deus comigo... eu já havia
morrido para o mundo e aquele homem venerável
o b r i g o u - m e a s u p o r t a r n o vamente o peso de
que e u já havia me livrado.
— E você não acredita que também custa muito
para mim bancar o policial do Sacro Colégio, e
seguir unicamente os problemas práticos e
políticos deste evento?
Paide se cala. Prefere não magoar seu amigo,
dizendo lhe que, por sua natureza, ele é o homem
certo, no lugar certo. Muda de assunto e faz isso
de um modo surpreendente e radical.
— Observe que a clausura é uma alegria, mas
é preciso ajudarmos aquele que nunca
experimentou reconhecê-la. O corpo se adapta às
condições para usufruí-la também nos sentidos.
Aprenda isso de nós, nórdicos, que vivemos a mais
esplêndida e pungente das solidões em nossas
terras semidesertas. Pense, na minha ilha eu devia
caminhar 50 quilômetros anres de encontrar uma
pessoa com quem pudesse trocar uma palavra.
Quando era criança, durante anos nunca vi outra
criança além de minha irmã Karin ou outros
adultos além de meus pais e avós.
— Eu o entendo, o que deverei fazer para
abrandar os rigores dessa clausura?
Por um instante Paide silencia até o pensamento.
Veronelli, que reduz tudo à prática, não entende.
Procura seguir aos poucos para não perturbá-lo.
— Em nossa solidão residem muitos tabus
que dividem os seres humanos mais contidos.
Procurávamos uns aos outros porque éramos tão
poucos...
— Aqui não somos tão poucos assim. Além
dos 126 cardeais existem 110 pessoas de serviços
variados, vinte prelados domésticos, uma
companhia de cem guardas suíços, mais um
secretário para cada purpurado... sem contar com
as irmãs que ficam nas cozinhas, não admitidas no
conclave.
— Mas é a mesma solidão: lá na minha ilha,
Saaremaa, era diante da natureza, aqui é diante
de Deus. Desde menino eu conseguia sentir Deus
apenas no mar, na grama, nas estrelas da noite,
no sol da aurora boreal. Depois os olhos se
voltaram para dentro e vi...
É um terreno difícil para Veronelli.
Paide se compadece dele, não quer fazê-lo sentir-
se inadequado com seus pensamentos, não quer
humilhá-lo. Ele tem uma cabeça velha, formada
pelo costume da cúria vaticana, não consegue
assimilar a diversidade. É o destino da maior parte
dos homens, morrer antes de morrer, na
incapacidade de reconhecer o novo, o diverso.
Dado o limite, é inútil continuar com esse
argumento. É melhor ir direto a o ponto.
- A maior alegria, quando eu era criança, na minha
ilha, era fazer sauna com meus parentes, nus
como Deus nos fez, às margens de um lago que
ficava atrás de nossa casa. Tínhamos uma parte
da casa equipada com aquecedor e piscina, não
faltava nada, nem mesmo os ramos de bétula do
lado de fora da porta para bater em nossas
costas...
- Certa vez, em Helsinque, o bispo luterano
que me hospedava me levou para fazer sauna no
hotel; e a única coisa que consegui foi pegar uma
bela de uma gripe.
- Não lhe ensinaram como se faz, a sauna é
uma arte. T a lvez seja melhor tentar de novo, eu
lhe ensino como se faz.
— Onde? Não acredito que volte a Helsinque.
— Em Helsinque não, aqui mesmo.
— Aqui?...
— Sim, no conclave.
O camerlengo da Santa Igreja Romana, cardeal
Vladimiro Veronelli, sob o título de San Carlo dei
Catarini, levanta a cabeça que estava encostada
no assento, observando bem os olhos do ex-
trapista, elevado à púrpura pela fama de sua
doutrina e de sua espiritualidade.
— Não se espante. Todos os cardeais do Leste fica-
riam felizes se pudessem recobrar suas energias,
alternando o calor seco e o vapor a que sempre
estiveram acostumados desde crianças, como eu
fazia com meus parentes em minha ilha. A nudez
do corpo não é nenhum mal e a experiência ensina
que isto faz com que desmoronem muitas das
barreiras entre as pessoas. Imagine aqueles que
estão enclausurados aqui dentro: a idade e o
poder fizeram com que se acovardassem dentro
de muralhas mais altas do que as da China.
- Mas... então você não está brincando, acredita
mesmo nesta... como diria... loucura, disparate,
provocação ou algo pior, mas eu respeito o hábito
que vestimos.
— Talvez eu não esteja conseguindo me
explicar. Eu repito, a clausura pode ser uma
alegria, a morte para o mundo e o renascimento
em outro lugar, em outro mundo... Mas necessita
de uma ajuda, e o corpo é uma dádiva de Deus,
não uma culpa da qual seremos perdoados.
— E você fazia sauna quando estava na
clausura em Tre Fontane?
— Não, além de ser um convento católico,
ficava em Roma. Eu tinha de respeitar as regras.
Eu falo de uma clausura diferente, a da minha ilha,
na Estônia. E desta, deste conclave que está
justamente deslocado da história, e que você
receia ser muito longo, longo demais para esses
velhos que viveram ignorando a solidão; na
maioria das vezes sufocados pelo falso brilho não
de seus paramentos, mas de seus próprios
poderes, papéis e privilégios, máscaras cansadas
de um manuscrito. E se esqueceram da carne nua,
sem pecado, sem malícia, inocente de quando
eram crianças...
— E você acha mesmo que podemos fazer
sauna em conclave?
— Observe aquele crucifixo ali, atrás de você.
Está nu, fora aquela pequena faixa, está nu como
quando todos nós nascemos. É diante desse
mesmo crucifixo que nossos irmãos rezam toda
noite quando se despem.
— Você não quer colocar num mesmo plano o
Cristo crucificado e um cardeal nu!
— É você que vê malícia nessa aproximação,
você, com sua cultura latina, romana, contra-
reformística, que nega a santidade à carne. E
pensar que uma das promessas mais belas de
nossa religião é a da ressurreição da carne com o
corpo glorioso, aquele da juventude, no auge de
nossa forma.
— Por que você finge que não sabe que
alguns de nossos hóspedes não conseguiriam
olhar com olhos inocentes as carnes nuas?
— Eu não finjo que não sei. Acho apenas que
alguns deles não teriam tal inclinação do olhar se
desde crianças se vissem nus, como eu em minha
terra, visto que tal inclinação é realmente um
pecado, e não um simples modo de sentir
diferente da maioria. Não, não faça essa cara, o
meu pensamento não é filho do olhar sobre a
carne de meus semelhantes; pode ficar tranqüilo.
- M a s v o c ê j á se deu conta do que
significaria para o Vaticano se o mundo soubesse
que os cardeais, fechados em conclave, fazem
sauna pata repousar, em vez de ler, dormir,
conversar e rezar?
- O mundo? E o que é o mundo? O que temos em
mente? Você mesmo reconhece que ele mudou,
que não existe mais aquele mundo do passado
que eu evocava há pouco. O mundo está em
constante transformação; por isso você se aflige
com o governo do conclave, porque nenhuma
experiência anterior pode lhe ajudar, você não
pode se valer de um manual em que se apoiar. O
mundo também é feito por nós, pela noss a
coragem em melhorá-lo por amor ao homem.
— Talvez eu seja muito velho para
acompanhá-lo. Sou e continuarei sendo um
cardeal da Santa Igreja, católico, apostólico e
romano.
— A clausura deve ser vivida como um
Carmelo de delícias, não como umaTebaida de
tentações demoníacas nem tomo um deserto de
espinhos. Há também a glória dos sentidos,
alegria inefável, que leva a Deus. Lembre-se de
Boaventura e esqueça Tomás de Aquino.
— Mas sua proposta é inaceitável.
Desencadearia até uma revolta geral aqui dentro.
— É apenas uma iniciativa para nos deixar em
condições de vivenciar melhor esta experiência,
mas existem outras. Não penso que suscite tantas
contrariedades. Você ignora que metade dos
cardeais costuma ter uma relação direta com o
físico, com o corpo. No Oriente Médio, o banho
turco é um dos mais freqüentados lugares de
encontros. Até os indianos reservam um grande
tributo espiritual ao prazer da carne. Além disso,
se a sauna era apenas um exemplo no meu
discurso, não devemos esquecer que em todo o
Mediterrâneo gregos e latinos convergiam às
termas como a um lugar de cultura e de encontros
políticos, não apenas um lugar de prazeres. Há
uma vivência humana anterior ao Cristianismo que
ainda circula em nossas veias.
— E o que você quer? Transformar o palácio
apostólico em um hotel de luxo, com serviços de
tratamento estético, massagens, restaurantes
chineses e típicos, enotecas, palestras, barbeiros e
esteticistas?
— Já que você coloca a questão nestes
termos, confesso que não haveria tanto mal em
remodelar esta clausura. Mas já é tarde, caro
Vladimiro, e não quero abusar de sua gentileza. É
melhor irmos dormir, a noite é ótima conselheira.
— O sono pode transformar tudo em uma
dádiva, exceto a idéia de dessacralizar este lugar.
— Desculpe-me, mas não concordo. O
sagrado não é apenas renúncia, penitência,
mortificação, escuro, mas também expansão,
felicidade, beleza e luz. De qualquer modo, boa-
noite e até amanhã.
Despedem-se à porta do apartamento sem se
apertarem as mãos. Um, o camerlengo, ainda
perturbado pelo diálogo com "o frade", como
aqueles que chamam o arcebispo de Milão de "a
Senhora" chamam o cardeal Paide no Vaticano; o
outro, confuso pelo pesar de ter desiludido aquele
homem, que esperava dele apenas alguma
sugestão técnica para passar o tempo, e pela
surpresa de terem se dado a liberdade de tratar de
certos argumentos.
Paide se encaminha pelo longo corredor que leva à
escada. No canto daquela passagem estreita, um
pêndulo soa as horas: duas da manhã. Está
ventando mais adiante. Na escuridão da noite há
uma enorme vidraça escancarada, que dá para o
lado sul, por cima das casas de Roma.
As luzes distantes da capital pulsam, assinalando a
vida que não pára nem mesmo nas horas do sono,
quando até as horas de repouso podem ser
reinventadas para outras necessidades da carne,
para o prazer, acima de tudo, e para o amor em
todas as suas formas.
Naquela hora roubada ao sono, experimentou uma
estranha prova que desafiava mais a ele que ao
camerlengo. Ali no coração da tradição católica, na
Sede apostólica onde tudo era filtrado por um
cerimonial e nada era improvisado ou deixado ao
acaso, teve a ousadia de falar dos prazeres da
carne, da alegria de viver, de uma idéia do
sagrado que via no Cristo a beleza e a vitória.
O que lhe deu coragem para falar assim? Em
outros tempos, não poderia mais exercer suas
funções; no dia seguinte viriam buscá-lo para
levá-lo ao Santo Ofício para responder a o
p r o c e s s o . Era uma heresia sua? Era o diabo que
se escondia em sua inflamada defesa da natureza
e dos sentidos? O que ele sabia sobre o prazer e
sobre o amor, ele que sempre se sublimou n a fé,
após ter visto sua luz encantadora no deserto de
s u a ilha, quando uma paixão que não podia se
legitimar lhe f e z entender aos vinte anos que não
poderia amar como a uma irmã sua irmã Karin?
Quando aquele primeiro e único amor de sua vida
se manifestou, sentiu a força de ir embora para
sempre, sem deixar nenhum rastro, temeroso de
que Karin o seguisse aonde quer que fosse. Cinco
anos depois, quando era estudante da faculdade
de teologia de Marburgo, recebeu a notícia da
morte prematura da irmã, e nem então teve
coragem de encontrar seus pais para a chorarem
juntos. Mas naquele momento sentiu que poderia
amá-la, vivendo na prece a chama remida de tal
paixão.
Aos 66 anos aquela lembrança ainda vive em sua
memória, como se quase cinqüenta anos não
tivessem passado. E é estranhamente grato ao
destino que lhe permitiu experimentar aquela
febre, o amor por uma mulher.
O conclave é proibido às mulheres, como toda a
vida sacerdotal daqueles anciãos. Metade do
mundo falta àquela fileira de homens que devem
entender o mundo e tratar de seus males,
temperar sua violência, acompanhar sua loucura,
perdoar suas fraquezas. É o maravilhoso escândalo
da razão que rege o amor universal na renúncia ao
amor: seguiu aquele caminho pelas vicissitudes de
sua juventude, antes mesmo de entender que era
o primeiro degrau dos devotos. Foi a graça de sua
vida.
Mas talvez afronte seus velhos confrades que em
seus leitos pagam o débito da carne com o sono.
Talvez muitos guardem no coração o segredo de
um amor proibido, impossível ou vetado pela
mesma ética que ora representam. E talvez justo
por aquela remoção total, como ele por um
caminho diferente, retiraram sua própria força de
amar a Deus.

-6-
A mesa de estudos de Ettore Malvezzi, em torno
da qual estão reunidos os cardeais italianos, está
repleta de jornais em várias línguas.
O cardeal de Palermo lê em voz alta alguns títulos,
destacando os mais insinuantes e maliciosos.
— "O conclave gira no vazio. Nenhum acordo ainda
no décimo dia"; "Desenha-se uma dura batalha
entre facções opostas no conclave mais difícil dos
últimos séculos"; "Os italianos resistirão? Por
enquanto perdem os primeiros movimentos no
conclave. Fumaça negra ainda na 17a votação";
"Votos para Cerini queimados nas primeiras
votações", mas vejam que descaramento! —
comenta Rabuiti sobre a escolha das palavras. —
"Sobe a cotação para os purpurados do Leste, mas
não se exclui a escolha de transição com um
francês da cúria"... percebeu Jean? Essa é para
você... — E continuam a mostrar o título do Le
Monde ao ex-secretário de Estado de Sua
Santidade. — Ouçam esses chineses, cuja
tradução eu já consegui: "Qual é o custo diário
para a Itália de um conclave em Roma? Os
pretensos representantes de um Deus de pobreza
e de amor não fazem nada entre mil comodidades
e luxos às custas do Estado italiano e não têm a
menor intenção de voltarem para casa. O nosso
governo fez muito bem ao negar ao chinês
nomeado cardeal de Hong Kong em Roma a per-
missão para sair e participar daquela reunião."
Não podemos combinar nada com a China... Os
russos são mais moderados em sua aversão
filortodoxa: "Os cardeais perdem tempo em Roma,
é difícil entender o que sucede naquele centro de
poder"... desde o tempo de Dostoievski que os
católicos são vistos dessa maneira na Rússia.
— Nem por isso, nunca nos entenderam antes; na
corte de Pedro o Grande ficaram uma semana
imitando a corte de Roma elegendo o papa entre
gritarias e festas — precisa Nicola Gistri, arcebispo
de Florença, que conhece bem o russo e traduziu
aqueles artigos.
Foi ele quem exigiu a nova reunião dos italianos
no aposento de Malvezzi, suspeito de ter votado
em si mesmo, para sentirem o peso da sombra de
tal falta de confiança.
Malvezzi não opôs nenhuma resistência, aceitando
em silêncio a suspeita, nem um pouco disposto a
revelar — como poderia fazer com o testemunho
do cardeal libanês — quem escrevera seu nome na
cédula do conclave. Seria como exagerar uma
verdade que continua a assustá-lo, sobretudo no
clima cada vez mais indeciso das últimas votações
em que disputaram os cardeais do Leste e da
América, resgatando o fantasma de uma guerra
fria sem, contudo, anular aquele único voto a seu
favor.
Nas últimas noites, ficou umas três ou quatro
horas tentando dormir; os sentidos despertos e
vigilantes continuavam a ouvir os inúmeros ruídos
daquele antigo palácio, e aos poucos vai
começando a arrancar seus segredos e a vida
oculta, que fervilha por trás daquelas portas
fechadas.

Algumas noites antes, não conseguira ficar na


cama acordado e se vestira novamente, por volta
das cinco e meia, tomando cuidado para andar
sem fazer barulho, a fim de não acordar
monsenhor Contarini no outro quarto. Foi passear
no grande átrio daquele andar do palácio, sob as
abóbadas pintadas em afresco por Alessandro
Mantovani, saudado como um novo Rafael no
tempo de Leão XIII. Descobriu que quase ninguém
dormia àquela hora, exatamente como ele.
Diversas vezes encontrou prelados e camareiros
particulares correndo com pressa, para responder
à chamada de algum de seus colegas. E muitos
dos secretários pessoais subiam e desciam as
escadas que levavam às cozinhas, um com
caixinhas de medicamentos na bandeja ao lado de
um jarro d água e de copos, outro com uma
bandeja de comida.
A atividade dos médicos também deveria ser
constante, a julgar pelos doutores da equipe do
médico responsável, encarregados da saúde de
suas eminências, que andavam numa roda-viva
entre os diversos aposentos, uns com o medidor
de pressão, outros com a caixa de seringas na
mão. De todo aquele vasto e irrequieto vai-e-vem
de pessoas, no meio da noite, emergia a razão
fundamental, a melancólica necessidade: a idade
avançada de seus companheiros de aventura, que
só depois dos oitenta perdiam o direito de
participar do conclave.
Na noite seguinte, se aventurou além do átrio, à
procura do ar fresco da noite em uma das
varandas que davam para o pátio de São Dâmaso.
Ao passar por uma porta, ouviu os gritos de dor do
cardeal de Sydney, controlados apenas com o uso
de morfina. Debilitado pelo câncer, não quis deixar
de participar do conclave, intimando o médico a
não revelar a gravidade de sua doença. Dizia-se
que as autoridades médicas do Vaticano
permitiam o uso de uma quantidade bem mais
generosa de morfina.
Alguém, talvez Rabuiti, lhe revelara que o que deu
cabo do arcebispo do Rio de Janeiro foi tal abuso,
em vista de uma das enésimas crises de sua
doença: a leucemia.
Ao amanhecer da noite em que ouviu os lamentos
do pobre Murray, prelado de Sydney, quando
voltava para o quarto pediu à central telefônica
para falar com sua irmã Clara, em Bolonha, já
sabendo que ela se levantava bem cedinho.
— É você, Ettore? Como vai?
— Estou bem, mas um pouco preocupado.
— Por quê? O que está acontecendo? Como
vão as coisas?
— Não vão... está tudo parado... como você
vai ver pelos jornais. Mas vamos falar de outra
coisa. O que Francesco está fazendo? Você
comprou o carro para ele? E ele vai para os
Estados Unidos no verão?
— É claro que tivemos de comprar o carro; é
melhor do que andar de vespa. Agora passamos
de um medo obsessivo para uma apreensão um
pouco mais amena. Você pode imaginar..., mas o
que podíamos fazer? Todos os amigos dele tinham
carro.
— E os Estados Unidos?
— Ainda não cedemos em relação a isso, mas
estou vendo que não adiantará de nada.
— Vocês o colocaram desde criança numa
escola inglesa, não iriam esperar que ele tirasse
férias em Rimini ou em Rapallo...
— O motivo real deve ser a namorada rica.
— Tão cedo?
— Mas, Ettore, ele já tem 20 anos!
— E quem é ela? Já se informaram a seu
respeito?
— É claro; ela tem mais dois anos que ele e
também vai para os Estados Unidos. É de boa
família, como se costumava dizer antigamente.
— Ainda se diz isso. Vocês já a viram?
— Muitas vezes, rapidamente, sem que ele
percebesse. Você não imagina como é vê-lo de
braços dados com aquela loura. Ontem ele nos
apresentou a ela.
— Não seja ciumenta.
— Queria ver se fosse você no meu lugar.
— Tem razão; mas não o deixem ir para os
Estados Unidos, é muito novo.
— Não é verdade, Ettore, não é verdade. Com
20 anos, seus amigos já rodaram meio mundo.
Enquanto a irmã ainda falava, respondendo às
suas perguntas, Ettore Malvezzi finalmente sentiu
a atmosfera pesada daqueles quartos se
dissipando, e sua mente divagando em outras
regiões de sua memória: a imagem do sobrinho
viva nos olhos, a última vez que o viu, já mais alto
que ele: um menino travesso, em constante
movimento, sempre telefonando para alguém ou
recebendo chamadas. Conversava ao mesmo
tempo com o tio, com a mãe e com a namorada
por telefone, enquanto comia, com uma camisa de
jeans azul aberta no peito e um brinco na orelha
direita.
Mas, a certa altura do telefonema para a irmã,
algo em seu escritório o trouxe de volta à
realidade daquele lugar, dissipando a imagem do
brilho da juventude. A poucos metros, perto da
parede e de seu reboco descascado, dois ratos
enormes corriam para cá e para lá, tentando
ganhar coragem para chegar a posições mais
avançadas, tendo em vista alguma presa. E só
podia ser uma presa alimentar, como o pão com
queijo deixado pela metade sobre a bandeja, e
sabe-se lá por que o deixou no chão antes de sair.
Eram ratos horrendos, pretos, compridos e
magros, de focinho pontiagudo e bigodes muito
salientes, e de olhos estranhamente brancos, que
sobressaíam ao pêlo preto.
Teve um arrepio, não eram os ratos do campo a
que estava acostumado em sua residência nas
colinas de Langhe. Tampouco pareciam os de
Veneza, as ratazanas dos canais. Tinham um
aspecto sinistro e um comportamento descarado,
como vinham demonstrando ao se lançarem sobre
a bandeja para apanhar o queijo, embora este se
encontrasse no meio da sala, a poucos metros
dele.
— Ettore, você ainda está aí? Está me
ouvindo?
— Sim, Clara, desculpe-me, eu me distraí.
— Você está bem? Como vai sua coluna?
— Muito bem... Uns ratos me distraíram... é
incrível como são grandes...
— Mande desratizar o Vaticano!... — irrompe
Clara, que nunca manifestou simpatias clericais.
— Não será uma empresa fácil. — E, enquanto
Malvezzi tentava iniciar a despedida, os dois ratos,
num último sinal de atrevimento, começaram a
brigar a poucos passos dele por causa do
provolone. Um duelo nos mínimos detalhes: as-
saltos, retiradas, dentadas e ferozes guinchos de
desafio.
— Ouça, eu tenho de desligar porque os ratos
estão pintando e bordando.
— Eu estava me esquecendo de lhe perguntar
uma coisa. É uma futilidade, mas me deixou
curiosa e até Francesco começou a rir. Uma amiga
de Vicenza me telefonou para dizer-me que leu em
um jornal que farão um belo de um banho turco no
conclave!
— Um banho turco? Eu queria saber como
eles conseguiram inventar uma coisa dessas.
— Ettore, é preciso mesmo modernizar um
pouco esse conclave...
Terminado o telefonema, Malvezzi se apressa para
espantar aqueles ratos agitando um jornal,
enrolado como um bastão. Mas eles se foram,
esconderam-se do outro lado da grande sala, em
direção à porta de comunicação com o quarto de
Contarini, que acabara de aparecer naquele
instante. O seu jovem secretário, ao ver a
confusão dos ratos, tem um ataque de nervos;
muito menos senhor de si do que parecia,
começou a gritar.
— Contarini, o que está fazendo, vá pegar uma
vassoura, e diga que precisam desratizar o
apartamento... vá!
Contarini nunca escondeu sua necessidade de um
cigarro, nem sequer diante do cardeal. E,
enquanto se apressava para seguir suas ordens,
pegou um cigarro dentro do bolso e acendeu-o.
— Contarini, não permito que fume no meu quarto.
— Mas a esbelta figura do capelão já desaparecera
da porta e era difícil de acreditar que não tivesse a
coragem de fumá-lo nas escadas. Até mesmo seu
sobrinho enlouquecia sua mãe com a quantidade
de cigarros que começara a fumar às escondidas.

Não conseguia evitar que seu pensamento


voltasse ao sobrinho — enquanto a reunião dos
cardeais italianos se anima diante do jornal
exposto em cima da mesa —, quando a porta é
escancarada e um jovem guarda suíço aparece:
ele mal consegue ficar de pé, com o uniforme
descomposto, o casaco semidesabotoado no peito
e de elmo na mão.
Nenhum dos prelados tem coragem de falar nada.
Um guarda de serviço bêbado? É caso para um
estardalhaço, daqueles de fazer pular o
camerlengo e sua corte.
O rapazinho evidentemente errou de porta e
Malvezzi temia saber a qual ele se dirigia. Os mais
assíduos companheiros de solidão de Contarini já
haviam notado aquele belo rosto atrevido, de
olhos azuis e com os cabelos louros rebeldes no
elmo.
— Como ousa nos incomodar? E em que estado...
Dê logo o seu nome, amanhã você se reportará ao
seu comandante. — Foi o arcebispo de Milão
exprimindo seu desprezo e talvez até um certo
medo de seus colegas, por aquela imprevista
irrupção. Mas a surpresa maior ainda estava por
vir. O jovem se virou rapidamente e fugiu,
desaparecendo num abrir e fechar de olhos pelo
labirinto daqueles corredores que conhece muito
bem.
— Bem-aventurada juventude, deixemo-lo ir, no
fundo deve ser muito chato servir de guarda para
velhos aos 20 anos...
Tais palavras saíram da boca de Malvezzi, quase
sem perceber, dirigidas mais a si mesmo que a
seus amigos; mas está pensando em Francesco,
na santa irracionalidade daquela idade, que dá ao
conclave algo de mais humano.
Mas "a Senhora" parece ter uma opinião bem
diferente.
-— Eu me admiro você, Ettore! Defendendo um
patife que descumpriu as instruções, ofendeu-nos
e zombou de nossas ordens — exclama Alfonso
Cerini.
O cardeal decano Antonio Leporati, o único que
saiu da sala para ver se conseguia chamá-lo, está
na porta, ofegante.
— Desapareceu... se eu tivesse alguns anos a
menos, não conseguiria fugir de mim. Amanhã vou
mandar o comandante procurá-lo, vocês vão ver
como o reconhecerão.
— Deixe-o para lá, ele deve ter tomado um
susto tão grande que jamais fará tamanhas
bravatas outra vez — Malvezzi insiste, nem um
pouco preocupado com o desprezo de Cerini. E
logo muda de assunto, tentando distrair os ânimos
dispostos a se ocupar de coisas mais urgentes,
como a imagem do conclave lá fora, por culpa dos
jornais.
— Devemos filtrar ainda mais as notícias,
talvez seja preciso bloquear todos os telefonemas.
Ou submetê-los a um controle.
— É um trabalho árduo, caro Ettore, muito
difícil de se realizar, e que corre o risco de fazer
com que a cotação dos telefonemas clandestinos
suba às alturas — observa o arcebispo de
Florença, solícito a aceitar o convite para esquecer
a bravata do jovem armeiro. — Além disso,
estamos esquecendo da extravagância da
internet.
— Eu tenho uma observação a fazer, e não me
admiro se já foi levantada. — O preâmbulo
promete argumentos polêmicos, bem de acordo
com quem o apresentou, o arcebispo de Milão.
Todos se calam, para observá-lo sentado a uma
ponta da mesa, onde a luz menos bate.
— Ouçam, somos nós que fazemos o conclave
ou os diretores desses almanaques de mentiras?
Deixar-se tomar pelo pânico enquanto não somos
rápidos o suficiente é como admitir que devemos
agir conforme a imagem que passamos, graças a
esses artistas da mentira interessada. Há tempos
que conhecemos um a um todos os diretores dos
jornais. Sabemos muito bem a quem servem,
quem temem, quem os gerencia, e o quanto
pagaram para sentar em suas poltronas. Talvez al-
gumas vezes nós mesmos nos valemos de suas
influências, de seu poder de controlar e mudar a
situação conforme nossos interesses. E ainda lhes
digo uma coisa: não os leiamos mais, tenhamos a
coragem e a dignidade nesta tarefa para a qual
fomos chamados!
— Você tem razão, Alfonso, estamos correndo
atrás de nossa imagem para nos ligarmos a ela, é
como se a sombra se tornasse senhora do corpo e
o corpo a seguisse como um pobre escravo —
comenta Malvezzi, surpreso com as observações
do milanês, mais acostumado, no governo da
Igreja, a raciocinar em termos políticos que ideais.
— Se a Igreja também cair na armadilha da
busca do consenso, pobres de nós — concorda o
prelado florentino, olhando ao seu redor com seus
óculos pesados para ver quantos estariam
propensos a ignorar o clamor dos meios de
comunicação sobre um evento tão acompanhado.
— Não exageremos, a televisão sempre nos
ajudou. A própria abertura do conclave teve
milhões de espectadores — refuta o siciliano
Rabuiti, irritado pelo colega de Milão assumir uma
posição tão distante do espírito dos tempos.
Depois, aproveitando a oportunidade de
abandonar um argumento tão espinhoso, lembra
aos colegas das prioridades daquela reunião:
— Desculpem-me, mas não viemos aqui para nos
prepararmos para a votação? Não devíamos
relatar os êxitos de nossas sondagens e contatos?
Após alguns instantes, a conversação retoma
aquelas que parecem ser as orientações de
algumas novas nacionalidades emergentes na
última hora.

-7-
O cardeal Vladimiro Veronelli nem sequer acaba
de comer; deve acompanhar imediatamente o
conde Nasalli Rocca, engenheiro-chefe dos
serviços técnicos da Cidade do Vaticano, até a
torre de São João. E pensar que duas noites antes
pôde saborear com toda tranqüilidade a cozinha
das irmãs: o menu oferecia risoto ao açafrão,
alcachofras à judia, salada de frutas ao
marasquino, vinho branco de Locorotondo...

Saboreara umas porções daquela ceia preparada


pelas irmãs que estavam de serviço naqueles dias
nas cozinhas do palácio. Os dentes da nova
prótese, ainda pouco habituados à sua função pela
extrema sensibilidade das gengivas, não lhe
permitiam a costumeira rapidez. Estava lembrando
que sempre fora tão rápido na mesa... Desde
rapaz, era freqüentemente censurado em família
pela velocidade com que mandava a comida para
dentro em relação aos irmãos, apontados como
modelos de comportamento. Há tempos não sabia
de seus irmãos, cunhadas, sobrinhos, todos já
casados e com filhos. Uma família numerosa não
fica recorrendo aos favores do tio cardeal, que
tinha uma queda pela sobrinha, há algum tempo
noviça em um convento de Nápoles. Uma família
que também lhe dera muitos aborrecimentos,
talvez até um pouco viciada nele. Mas nunca tanto
quanto aquela espécie de família, de mais de cem
irmãos, que agora em aparência era dirigida por
ele... Apenas em aparência, porque todos os dias,
deveria verificar se as iniciativas, os manejos, as
tentativas de quebrar os regulamentos, os
despeitos, as rivalidades, as alianças e as rupturas
imprevistas, as extravagâncias de um mosaico
composto de tantas raças e tradições respeitavam
de fato sua vontade.
Enquanto reconsiderava o êxito paradoxal da
última reunião de prelados a que fora obrigado a
participar — a dos colegas do Leste —, passava
novamente em revista as últimas esquisitices
daqueles dias.
Primeiro: a invasão dos ratos no Vaticano.
Não eram ratos de esgoto, nem de rio, nem do
campo; eram bestas monstruosas, de focinho feroz
e olhos que pareciam querer devorá-los. Em
poucos dias dividiram o campo de ação como
tropas infernais assaltando o paraíso. Pois que
encontrá-los correndo entre seus pés, até na
Capeia Sistina, enquanto era entoado o Veni
Creator Spiritus, causara arrepios em muita gente.
O cardeal de Tóquio não resistiu, ao sentir uma da-
quelas bestas morder seu pé quando tentava roer
a sola de seus sapatos, e soltou um grito, com o
cômico efeito de enriquecer com uma nota
verdadeiramente dramática a escala cromática
daquele hino sacro. Na votação da tarde, pela
primeira vez solidificara-se um simulacro de
maioria, o mais consistente de todos desde o início
do conclave, sobre o nome de um dos purpurados
mais discutidos, o palestino Nabil Youssef.
Mas Veronelli refletia, bebendo bem devagar um
cálice de vinho branco: foi uma zombaria aquela
simulação de princípio a um acordo com relação a
tal nome, mais uma brincadeira do diabo que uma
inspiração do Espírito Santo. Porque, por causa
desse nome, reacenderam mais violentas que
nunca a divisão e a luta, explicitamente
declaradas por um dos próprios purpurados, logo
após a proclamação do resultado, com um gesto
que ele iria ver diversas vezes. O arcebispo de
Boston levantou-se de repente, e ao passar diante
da cadeira do palestino exclamou em inglês: "A
sua carreira termina aqui, não se iluda."
O problema do flagelo dos ratos ainda não fora en-
frentado; as firmas especializadas em desratização
não podiam ultrapassar a soleira do conclave,
ainda que a cada dia que se passava chegassem
testemunhas mais alarmantes.
As mais inquietantes vinham de uma recentíssima
visita aos museus vaticanos, para onde Veronelli
teve de correr a pedido do diretor. Os ratos,
horrendos, se alastraram por lá e começavam a
roer retábulos, imagens, telas, mesas de madeira,
pinturas de todo e qualquer assunto, mas com
uma larga preferência por aquelas sacras,
predominantes nesta coleção única no mundo.
Portanto, era assustador agarrá-los à mão,
enquanto roíam os dedões dos santos, as mitras
dos bispos, as rodas dentadas de Santa Catarina,
os olhos de Santa Luzia, os seios de Santa Ágata,
os dedões dos querubins, o manto de Nossa
Senhora em fuga pelo Egito, a túnica vermelha de
Nosso Senhor tirada à sorte nos dados pelos
legionários romanos... E quando, não temendo as
tentativas para afugentá-los, voltavam ao assalto
triturando com seus dentes afiados a juba de um
leão que descansa diante de São Jerônimo
extasiado em seu estúdio, os remos da barca de
São Paulo náufrago em Malta e suas velas
agitadas pelo vento no lago de Tiberíade, pouco
antes de o Senhor aplacar a tempestade...
O fenômeno era mais perturbador ainda pelo fato
de, ao menos até aquele instante, os dentes
incansáveis das blasfemas criaturas nunca terem
ousado tocar nas santíssimas formas do Senhor e
de sua veneradíssima Mãe...
Até o confuso camerlengo, assim como os dois
cardeais da cúria que os apontaram, Rafanelli e
Rondoni, deduziu que a proteção de Deus ainda se
estendia àquele palácio, onde por séculos
continuavam a servi-lo e a traí-lo...
Mas até quando isso iria durar?
Parecia que dependeria deles, dos dons do Espírito
Santo que os enriqueceram, iluminando suas
escolhas... Escolhas que, à parte as votações dos
cardeais de um conclave que chegara ao 22o. dia,
tais escolhas deviam ser feitas diariamente até
mesmo em outros âmbitos daquela vida em
comum de tantas pessoas que nunca se tinham
visto e traziam consigo os mais diversos hábitos.
Um dos mais desagradáveis fora aquele de poucas
horas antes, na reunião dos purpurados do Leste,
no aposento do "irmão", cardeal Matis Paide.
Todos estavam de acordo quando Paide, com a
mais completa desenvoltura, questionara sobre a
possibilidade da sauna e do banho turco em
conclave. Gentil nos modos, simples e espontâneo
como se pedisse um cobertor de lã a mais para
aqueles velhos friorentos. E Veronelli suspeitava
ainda que se devia a Paide a indiscrição passada
para fora para um jornal de que os cardeais no
Vaticano podiam usufruir dos tépidos vapores de
tais estruturas... Quem mais poderia ser?
Parece que, segundo o costume, a imagem criada
pelo jornal é que ditava o comportamento, e não
vice-versa. Sabia que falaram muito de tal
questão, de considerável peso para o andamento
do conclave, em uma das mais agitadas reuniões
dos italianos. Teve de ceder, mesmo não estando
convencido de tamanha enormidade. E já tomara a
iniciativa de mandar trabalhar à noite a equipe de
assistência e a empresa de trabalhos do Vaticano,
a serviço do conclave, para aprontar em dois dias
aquela estrutura numa ala afastada dos sacros
palácios, na torre de São João. Em troca obteve
algo: o compromisso de não fazerem oposição ao
palestino, se nas próximas votações ainda
persistisse a tendência a concentrar os votos nele.
Veronelli pensou, quem sabe não elegem um papa
antes de se ter tempo de preparar o banho turco...

Mas não foi bem isso que aconteceu depois.


Os recentes escrutínios, tanto da manhã quanto da
tarde, por umas quatro vezes renovam a dispersão
dos votos enquanto o engenheiro-chefe da Cidade
do Vaticano, duas noites após aquela tristíssima
cena, adverte o eminentíssimo camerlengo de que
tudo está pronto, na torre de São João. E se sua
eminência quiser acompanhá-lo, ele poderá lhe
mostrar as novas estruturas em funcionamento.
— Em funcionamento? Mas desde quando?
— Desde hoje à tarde, desde que os arcebispos de
Praga e de Varsóvia, junto com seus secretários,
quiseram inaugurá-las. — E o engenheiro, conde
Paolo Nasalli Rocca, se espanta de que Veronelli
não saiba de nada.
Assim, depois de uma refeição feita às pressas,
desta vez reduzida a algumas porções, por causa
do conhecido problema da dentadura, o
camerlengo se dispõe a seguir o artífice daquele
abominável serviço, para o qual o purpurado nem
imagina como deve se vestir. Caminha bem
devagarinho atrás de Nasalli Rocca, carregando
uma bolsa na mão preparada às pressas pelo
secretário particular. Não quis nem ver seu
conteúdo, deixando a escolha do traje que deveria
envergar naquele lugar a cargo do monsenhor
Squarzoni, que há vinte anos cuida de seu guarda-
roupa, junto com a irmã Maria Rosária, que ficou
para atendê-lo fora do conclave.
À medida que num longo vai-e-vem por quartos
fracamente iluminados percebe que está
chegando à torre, cresce a tentação de pedir ao
engenheiro o que não teve coragem de perguntar
ao seu secretário. Como nos vestimos num banho
turco? Está prestes a abrir a boca e fazer a
embaraçosa pergunta, quando uma imprevista
balbúrdia de ratos, vinda de uma porta semi-
aberta à direita, barra-lhes a entrada. Nunca viram
tantos deles juntos, nas várias alas do palácio
apostólico; e com uma equipe de socorro armada
com um raticida mortal, ele já havia inspecionado
de alto a baixo uma fila de coristas da tribuna
pontifícia no momento transformada num flagelo
de ratos. Pois que o isolamento do mundo nesses
dias que passavam cada vez mais devagar os
obrigava a se adaptarem a muitos ofícios.
— Até aqui... até aqui... não tenho mais
pessoal para intervir, todos foram para as obras de
nossos museus... O que dirá o mundo, quando
souber que o São Jerônimo de Leonardo da Vinci
foi comido pelos ratos!
— Cuidado, eminência, são perigosos, estão
famintos e não encontram mais nada para comer,
desde que decidimos guardar a comida necessária
para os próximos dias.
— Vá na frente, Nasalli Rocca, você que é
mais novo e se mantém de pé melhor que eu
nessa hora.
Mas não é fácil chegar à outra ponta daquela sala
onde se encontra o último corredor que leva à
torre de São João. Não consegue entender por que
justo do quarto ao lado saem tantos ratos. O
camerlengo acena para Nasalli Rocca parar.
Deseja abrir aquela porta. Volta alguns passos e a
escancara.
E percebe a razão. É um depósito de quadros à es-
pera de restauração; são os retratos oficiais dos
cardeais. Os purpurados conservam apenas um
vago contorno do rosto e dos hábitos, do busto, do
manto escarlate e das mãos postas sobre o
Evangelho. É tudo um imenso fervilhar de
monstruosos assassinos que apagam da memória
tais rostos, nomes e títulos; um único grande
fremir de telas, molduras e madeiras, desfiguradas
e trituradas antes de terminar naqueles pequenos
corpos famintos.
Quando o intruso surgiu, parece que os ratos
pressentiram a ameaça: os maiores deram um
pulo para enfrentar o perigo daquela interrupção,
chegando à porta.
Nasalli Rocca mal tem tempo de proteger o
cardeal Veronelli, arrastando-o consigo para fora
daquele quarto, e fechando a porta com
dificuldade.
— Mas é... monstruoso!
— Amanhã, eminência, pedirei a intervenção do
prefeito de Roma. Eles têm um pessoal
especializado.
— Não, não podemos, você sabe.
— Como sua eminência quiser, mas a situação
aconselha uma exceção às regras do conclave.
— Para ratos que comem quadros? No fundo
essas não são obras de grande valor... E talvez
muitos de nós não devam ser lembrados...
— Mas e os museus vaticanos? E as telas das
capelas dos palácios vaticanos?
— Esses, sim, me preocupam, mas por hora
bastam os coristas.
— Aqueles gentis cantores? Têm gargantas de
ouro, mas, perdoe-me, eminência, não sabem
sequer manejar um extintor, uma mangueira,
muito menos uma máscara antigás, são um
desastre!
Recobrada a coragem, o camerlengo caminha para
chegar ao fundo da longa sala. E esquece o
discurso. Aquele conclave cabia a ele, ele que não
via a hora de voltar para sua casa de campo em
Arcetri, nas colinas da sua Toscana... Por que justo
ele?

E agora? O que fazemos num banho turco? Como


nos comportamos entre tantos homens nus?
Porque os cardeais não terão nada que os distinga
dos outros homens, lá, naquele lugar...
Ele se enche de coragem e fala.
— Nasalli Rocca... Venha para o banho turco
também... — O tom é tão acanhado e suplicante
que por uns instantes o engenheiro fica
atrapalhado. O que poderia dizer àquele velho
trêmulo? E Nasalli Rocca, que é um homem de 52,
de 1,90 metro, de boa aparência e forte, bom
conhecedor da natureza humana, recupera todo o
fôlego e a desenvoltura:
— É claro, eminência, mesmo que precise
emprestar-me uma toalhinha porque eu não
trouxe nada comigo.
— Uma toalhinha? Por quê? Nos vestimos com
toalhinhas?
— Com isso ou com roupões, mas vejo que a
bolsa de sua eminência deve estar bem fornida.
— Não faço idéia do que contém, monsenhor
Squarzoni preparou-a para mim. Mas não tenho a
mínima idéia de como devemos nos vestir. Por isso
peço-lhe para entrar, com certeza o senhor sabe
como se portar.
O engenheiro-chefe sorri da ingenuidade e
inexperiência daquele bom homem que é o
cardeal.
Já se apresenta a entrada do último andar da torre.
Por trás daquela porta de vidro, flamante,
encontra-se a sauna com seu banho turco, explica
o engenheiro ao camerlengo. Mas antes de
ultrapassar a soleira, toma coragem para dar um
conselho a Veronelli, algo que ele não teve forças
para dizer, e muito menos o purpurado ousou
perguntar que traje usaria.
— Eminência, desculpe-me, mas com relação
a essa invasão de ratos, um remédio muito antigo,
muito mais eficaz que a desratização... ainda que
um pouco inadequado para esse lugar.
— Por que, parece-lhe que uma sauna seja
mais adequada? A uma altura dessas eu não me
espanto com mais nada.
— Gatos, eminência, os gatos são o mais
seguro flagelo dos ratos, desde que Deus criou o
mundo...
— Gatos!... É verdade, serão o fim dos ratos...
Até na minha casa, em Arcetri!
— E Roma está cheia deles, há quarteirões
infestados de gatos, que pediriam para lançar-se
sobre nossos ratos e fazer uma bela refeição.
— É verdade, em Trasteveri minha sobrinha
alimenta uma dúzia deles. Por que não pensamos
nisso antes? Informe-se como podemos pegar um
bom número deles, faremos até um serviço para
alguns quarteirões da cidade, podemos pagar-lhes
bem, se necessário... Se os donos os emprestarem
de bom grado, prometa-lhes que os devolverá,
garantindo que serão bem alimentados; se for
gente piedosa, terá também o conforto de ganhar
uma bela indulgência por uma boa ação a favor da
Igreja...
— E da arte, eminência, se não são crentes,
não se esqueça dos museus vaticanos — emenda
Nasalli Rocca.
— Você deve agir com discrição, pois nem
sequer num caso desses podemos nos dirigir ao
prefeito ou ao governo.
— Para a caça aos gatos utilizarei os mais
espertos de nossos seminaristas e estudantes,
espero que os cantores se saiam melhor na
captura de felinos do que na caça aos ratos.
— Esperemos, conde, esperemos. E é preciso
fazer isso depressa, eu lhe peço, depressa...

Já passara das 11h30 quando o cardeal


ultrapassou a soleira da sauna. Ele se sentiu tão
aliviado com aquela idéia que encontrou forças
para sorrir para os dois monsenhores de roupão
violeta que o receberam inclinando-se para beijar-
lhe o anel.
— Por aqui, eminência, nós iremos lhe mostrar
seu vestiário.
— Arranjem um para o engenheiro-chefe do
Vaticano; ele quer ver como funciona sua obra-
prima — brinca Veronelli. E de bom grado segue os
dois monsenhores corredor adentro.
-8-
— Quê? Só os cardeais de Praga e de Varsóvia?
Mas não, o engenheiro está mal informado,
trabalhamos toda a tarde para servir a todos... — e
o ar cansado do mais ancião dos dois atesta a
verdade de suas palavras.
— Foi quase... uma procissão, eminência..., mas...
— Depois se conteve, porque tal comparação lhe
parecia indelicada.
O cardeal camerlengo, no entanto, encontra um
tom mais ameno:
— Ah, sim, uma procissão. Vá se entender a
natureza humana... E eu que temia tanto que me
censurassem por esta bendita nova "estrutura". A
propósito, deverei abençoá-la.
— O balde com a água benta e o aspersorio já
estão prontos, eminência. Eis o seu vestiário e o
do engenheiro.
— Dê-me a bolsa. Agora a abriremos juntos
porque não sei exatamente que vestimenta dar ao
engenheiro, mas deverei dar alguma: ele
esqueceu sua bolsa em casa. — Preferiu não
contar aos dois serventes que não sabia o que ela
continha. Desejava parecer desenvolto.
Da bolsa de viagem saem cuecas de lã com
suspensórios, duas toalhinhas brancas, uma
menor, um par de meias, chinelos de borracha,
uma calçadeira, um pente, uma escova, um
secador, um creme tonificante e uma eau de
toilette.
Os olhares dos dois monsenhores são
impenetráveis e de modo algum sugerem ao
camerlengo se o equipamento é próprio e,
sobretudo, que objeto ele deve destinar ao
engenheiro. Mas o próprio Nasalli Rocca livra
Veronelli de tal estorvo:
— Basta-me essa toalhinha menor para enxugar-
me os flancos. Se tiver chinelos de borracha, já
estarei pronto.
— Nós os buscaremos logo.
— Vocês não têm um roupão como o seu para
sua eminência? Creio que seria o ideal — ousa
sugerir o engenheiro-chefe.
— Não um da mesma cor. O branco cabe aos
cardeais. Ei-lo, eminência. Quando estiver lá
dentro, poderá tirá-lo e pendurá-lo num cabide.
— Leve também uma de suas toalhinhas,
eminência — acrescenta Nasalli Rocca —, poderá
ser-lhe útil quando tirar o roupão. Dependerá do
calor da sauna e do vapor. Se os meus operários
trabalharam bem, deveremos ter tanto calor que
não agüentaremos ficar de roupão.
— Trabalharam muito bem — retruca um dos
dois monsenhores —, os purpurados do Leste
disseram que é a temperatura ideal; e eles
entendem disso.
— Agora vamos, pois já é tarde. Mas será que
tem alguém aí dentro?
— É claro, eminência.
O velho cardeal e o engenheiro-chefe vão para
seus vestiários. O primeiro a sair é Nasalli Rocca,
com uma toalhinha cor de ameixa na cintura, de
chinelos nos pés. Não sente frio, como temia, o
ambiente está muito quente; ao longe começa a
perceber uma leve música de fundo, uma música
de órgão já ouvida, talvez Händel, talvez O
Messias, mas não está certo disso. Após uns bons
minutos, abre-se a outra porta e sai Veronelli,
agasalhado em seu roupão branco, de chinelos um
pouco grandes nos pés.
— Ouça, virei outra hora abençoar o local, quando
perceber que não há ninguém; se eu não puder
vir, com tanto que tenho a fazer nesses dias, virá
monsenhor Attavanti. Mas engenheiro, não está
com frio?
— Não, estou muito bem, eminência.
— Vá na frente, monsenhor.
— Por aqui, por favor.
O pequeno grupo caminha em direção a uma porta
giratória que se encontra no fundo da sala. A
música que vem daquela porta aumenta. O
monsenhor ugandense entra primeiro, seguido por
Nasalli Rocca e pelo vacilante camerlengo.
O interior é muito úmido e fica mais na penumbra.
Melhor, pensa logo o cardeal, assim ninguém se
reconhece. Seu coração bate forte, e por um
instante tem a tentação de voltar atrás, virando-se
para olhar de canto de olho a porta giratória. Mas
uma mão suavemente toca seu braço.
— Você também está aqui, Vladimiro?
A sua frente, envolto num roupão aberto apoiado
apenas nos ombros, está um homem pequeno e
redondo, ainda pouco perceptível naquela luz
fraca. De uma porta que se abre e fecha de
repente, um jato de vapor anula as já exíguas
possibilidades de reconhecer o homem, mas pela
voz Veronelli capta a sua identidade: é Celso
Rabuiti.
Mas eis que na ambígua penumbra, de tempos em
tempos cortada por ondas de luz facultadas pela
dispersão do vapor, diante das pupilas do confuso
camerlengo aparecem outras formas brancas, em
movimento, enquanto a música atinge um volume
mais alto. É com certeza O Messias de Händel, em
seu trecho mais glorioso: o "Aleluia"; alguém
interrompeu a sinfonia pastoral do Messias para
pôr no ar aquele grande final.
— É para você, caro Vladimiro, num instante se
espalhou a notícia de que você estava aqui...
Veronelli, que sua e não sabe mais para onde olhar
porque começa a acostumar a vista à penumbra e
divisa muitos conclavistas nus como o Senhor lhes
fez, reconhece a voz de barítono de Siro Ferrazzi,
arcebispo de Bolonha.
Aqueles que durante sua vida usaram o longo
roupão branco não podem passar sem evocar,
naquela atmosfera onírica, a suprema dignidade
dessa roupa, que caberá a um deles envergar. A
veste que já está pronta em três tamanhos,
segundo a compleição física do eleito.
Já não suporta mais o calor. Desaperta a cintura,
levantando sobre os ombros a indumentária.
Parece-lhe que pesa como uma capa de chumbo —
a mesma que na Divina Comédia atormentava os
hipócritas com sua horrível temperatura —, só que
revestida de ouro por fora.
— Você deve ir para ali, onde está a sauna
finlandesa — é a voz de Rabuiti convidando-o.
— Nasalli Rocca... Onde está? — implora, e se
sente perdido, incapaz de seguir sem seu guia, o
homem que acompanhou sua metamorfose de
camerlengo em um corpo que se despe e absorve
os vapores: a única testemunha que naquele
momento é capaz de tranqüilizá-lo e de não deixá-
lo duvidar que vive um dos mais angustiantes
pesadelos de sua vida.
— Eminência, estou aqui, atrás do senhor.
Não está me vendo?
— Agora sim, agora sim! Pensava que o tivesse
perdido.
Ah, mas se ele sair daquela aventura, a primeira
pessoa que vai se ver com ele será aquele
mentecapto do Paide: por sua causa ele caiu numa
armadilha... E a quem ele poderá confessar sua
culpa? Quem poderá absolver sua consciência por
ter cedido e feito do palácio apostólico um lugar
de curas e de banhos? E como é possível que seus
confrades perambulem por ali, como sombras
angelicais do paraíso... E aquele "Aleluia" que está
chegando ao auge de sua força rejubilante... como
puderam recebê-lo com aquele trecho? Ele só o
tinha escutado na glória dos altares, revestido com
os mais suntuosos paramentos, incrustados com
ouro e pedras preciosas, sob uma mitra de
bordados dourados, nas festividades mais solenes,
quando concelebrava, assistido por dois bispos. E
agora o entoavam enquanto ele estava seminu e o
cansaço da carne o convidava a despir-se do
pouco que defendia a sua decência... E aquele seu
roupão branco, aquele seu roupão branco, por
cima das carnes nuas ou semivestidas! Mas se já
faz tanto calor nessa antecâmara, que forno não
estará lá dentro? Detrás daquela porta ninguém
vai conseguir vestir o roupão... E, numa tentativa
desesperada, abre a boca:
— Nasalli Rocca, mas não havia também um
banho turco? Leve-me até lá, por favor.
— Então venha por aqui, de onde saiu aquele
primeiro jato de vapor...
Segue o conde Nasalli Rocca e passa por uma
porta de madeira clara com um visor redondo, que
não deixa ninguém perceber nada.
A penumbra agora dá lugar a uma luz artificial
azulada, que não se consegue perceber de onde
vem, até porque o intenso vapor não lhes permite
distinguir muitos particulares. Em três lados da
sala se encontram espécies de assentos, onde
estão sentadas algumas pessoas sem o roupão
branco. Ao menos aquela blasfema semelhança de
roupas sumiu. Mas quem serão eles? Vê que se
levantam... Meu Deus, reconheceram-me e
querem me prestar homenagem... Eis as últimas
notas do "Aleluia"...
— Quanta honra, Vladimiro...
— Seja bem-vindo, seja bem-vindo, caro
Vladimiro.
— Que prazer revê-lo!
— Fiquem à vontade, por favor, podem continuar
sentados.
Entre as vozes maviosas, reconheceu a do homem
que provocou tudo isto: Matis Paide. E Nasalli
Rocca o convida para sentar-se a seu lado:
— Relaxe, eminentíssimo camerlengo, o melhor do
banho turco é o alívio que dá a uma carne cansada
como a nossa. Sente-se aqui, perto de mim, deixe-
me pendurar seu roupão, tenha apenas a
toalhinha no colo, mas deixe-a livre, a circulação
deve estar solta, sem vínculos nem laços, assim.
Ele se deixa levar como uma criança, cede à
última resistência. Senta-se ao lado de Nasalli
Rocca e se entrega ao tepor do ambiente, à carícia
quente daqueles jatos que, ritmados, saem de
duas aberturas abaixo. Agora a música ainda é de
Händel, mas o trecho é um recitativo muito lento e
contido, distante de qualquer entoação triunfal. E
é agradável seguir aquelas notas enquanto uma
moleza crescente distende seus membros rijos,
apagando aos poucos as últimas sombras que o
atormentam.
Os ratos e sua bíblica invasão. Os gatos que
devem ser roubados da cidade para transformá-los
em paladinos do Vaticano. As notícias de fora, nos
recentes telefonemas com os inquietos poderosos
da Terra. Os acordos não respeitados na votação
da manhã. O entusiasmo e as polêmicas após a
candidatura do palestino... Enfim, tudo se esvai,
não há mais nada por que valha a pena continuar
se afligindo, se a carne, a sua velha carne de 78
anos, responde com tanta presteza à concessão de
uma pausa, naquele incrível conclave...
Entrevê em meio aos jatos do vapor uma forma
que reconhece ser Paide; até o ressentimento por
aquele homem desaparece e dá lugar a algo
diferente, mais semelhante à compaixão e à
cumplicidade.
A alegria da clausura... Recorda as palavras do
nórdico: "É preciso ajudar os sentidos a reconhecer
esta alegria", disse ele... E só se espanta de não
ter reparado nos olhares, no tipo de olhares que
mais temia num lugar como aquele. Agora está de
olhos fechados, não tem mais vontade de olhar, de
seguir as leis da realidade, basta seguir as análises
volumétricas das livres associações da mente; ele
não é mais o camerlengo, não é ninguém por trás
das pálpebras...
Quando as reabre, distingue a voz lenta e
aveludada de um dos cardeais francófonos; está
falando do próximo escrutínio, votará no primaz da
Espanha, com muitos espanhóis e franceses...
É, volta ao pensamento do dia seguinte...
Mas o mundo em que falam parece tão diferente
do tom que os domina quando estão vestidos, há
quase uma simplicidade e uma falta de
animosidade, uma ausência de competição... A voz
não tem uma tonalidade certa, mas não consegue
distingui-la. Ainda escuta a conversação de um
hispano-americano, cardeal de Bogotá, o tom
pacato de quem não é levado muito a sério... Que
mudança aconteceu! Por alguns instantes não
reparam mais uns nos outros, ali dentro, nus, não
se lembram mais, como ocorria na Capela Sistina,
quem são, que papel desempenham e como
devem ser tratados pelos outros, melhor ainda,
como esperam ser tratados pelos outros.
Arregala os olhos quando, na penumbra, no vapor
um pouco rarefeito, reconhece as formas nuas de
um pequeno crucifixo na parede da frente.
É quase uma hora da madrugada quando, acompa-
nhado do engenheiro-chefe e de três purpurados,
Vladimiro Veronelli deixa a torre de São João para
voltar ao seu quarto.
Há muito tempo que não se sentia assim tão bem.
Olha por um instante o ambiente de onde sai,
enquanto os monsenhores filipino e africano se
inclinam para beijar-lhe o anel.
Tem um momento de melancolia, diante daquele
gesto que lhe restitui toda a gravidade de sua
função, a consciência de que, junto com a roupa
que recompôs sua pessoa e a de seus
companheiros de aventura, logo virá à sua mente
a horrível necessidade de se representar. E
percebe que o lugar que lhe inspirou tanta
repulsão se assemelha a um conclave no conclave.
Cum claude, fechado à chave. Mas no coração do
homem, na nudez da carne, não na efêmera
duração dos papéis dados às máscaras do poder, o
diretor de tantos espetáculos da história.
Só naquela hora, enquanto lhe beijam o anel,
percebe que os dois monsenhores aceitaram o
encargo, talvez porque não sejam insensíveis ao
olhar que ele teme. E pela primeira vez consegue
rir daquilo que lhe dava medo, e pára para
abençoá-los paternalmente.
-9-
No dia seguinte à inauguração da sauna e do
banho turco, enquanto os príncipes da Igreja
procuram mais uma vez um acordo sobre o nome
do futuro pontífice, o conde Paolo Nasalli Rocca
procura saber de alguém quais são os lugares de
Roma com mais gatos.
Trata-se de uma caça com todas as letras, que dá
a muitos dos romanos mais velhos a impressão de
que revive a ameaça da carestia, flagelo da
cidade, nos últimos terríveis meses de guerra.
Enfim, o destino daquelas pobres bestas só pode
ser as panelas. Nos bairros destinados — nas
cercanias do Panteão, no Foro Romano, ao longo
da Praça Argentina, na saída do Grillo, na praça
Vittorio, na praça Sallustio — surgem naquela
manhã alguns grandes carros pretos em marcha
lenta e furtiva. Deles saem magras figuras de
pálidos jovens desorientados, mas todos
docilmente obedientes às instruções de um
homem que conhece bem Roma e anda para cá e
para lá de um grupo a outro.
Atraindo os felinos com caixinhas de saborosas
iguarias colocadas nos lugares onde o fedor do pipi
de gato mais trai sua presença, jogam-se com
enormes redes por cima dos bichinhos, ocupados
em devorar aquele maná. Debatendo-se e miando
furiosamente, todos desaparecem nos grandes
porta-malas daqueles carros, que em poucas horas
voltam aos lugares de caça, depois de terem
deixado a preciosa presa no pátio de São Dâmaso.
Só algumas vezes surge uma discussão entre os
jovens de modos gentis, os padrecos e o povo. São
os donos dos gatos das zonas mais populares de
Roma, insensíveis às generosas ofertas de dinheiro
para compensar a perda de alguma daquelas
criaturas. Mas os mais bravos conseguem virar o
saco já cheio na rua, livrando os gatos enfezados.
Alguém nota que nem todas as placas são de
Roma; de fato, alguns daqueles carros furtivos têm
placas do Vaticano. O que é mais estranho é que
estes parecem ser de representação, com
pequenos tronos no lugar dos assentos
posteriores, que lembra uma viatura de absoluto
direito preferencial no agitado trânsito de Roma.
Mesmo a caça tendo prosseguido noite adentro,
naquele dia os gatos fazem seu solene ingresso no
Vaticano, tomando posse do lugar.
Até o amanhecer, enquanto alguns carros ainda
continuam num vai-e-vem contínuo entre a cidade
e as entradas dos muros leoninos, os jovens
seminaristas do coro soltam dos sacos os felinos
em diversos andares dos palácios apostólicos.
Os cardeais, advertidos pela secretaria do Estado
acerca do estratagema para se livrarem dos ratos,
prudentemente se retiraram antes, pois nem todos
possuem a mesma intimidade com os felinos, e
alguns sentem uma certa irritação só de pensar na
idéia de terem de se ocupar dos gatos e deixá-los
vagar pelos seus quartos entre seus pertences.
Quase ninguém consegue pregar o olho naquela
noite, porque os pobres animais miam
desesperados, perdendo-se nos vastos espaços
daquele palácio que mais parecia um angustiante
labirinto do que a morada de seres vivos,
esquecendo-se de comer e beber das tigelas
espalhadas por aqui e por ali. Procuravam a saída
do conclave, ignorando que até os cardeais tinham
dificuldade para encontrá-la... Os mais indômitos,
enervados pelo frio, pela escuridão e pela fome,
bufam, mal percebem a veste púrpura de um
prelado, e, se o desventurado ousa se aproximar
demais, tentam arranhá-lo, prendendo-se às suas
vestes.
No dia seguinte, muitos deles encontram-se
mortos de medo, velhos demais para poderem
renunciar à imundície e à liberdade das ruas e das
praças romanas.
No entanto, depois de duas noites as coisas
começam a mudar. A atávica guerra entre gatos e
ratos explode com toda sua violência, para grande
satisfação do Sacro Colégio. E isso ocorre de modo
tão direto e sem nenhuma culpa que consegue
persuadir o camerlengo de que o bom pelotão de
gatos deve ser enquadrado e enviado
imediatamente aos museus vaticanos. Porque,
iniciada a ambientação e caídas as primeiras
vítimas do rapto, a vitalidade e o instinto
predatório daqueles animais tomam conhecimento
da presença inquietante e saborosa de tão
magníficos exemplares do inimigo. E tem início
uma das balbúrdias mais infernais de que se possa
imaginar.
Embaixo das camas, em cima dos armários de
objetos sacros, sobre os altares das capelas, nos
grandes crucifixos pendurados nas paredes, em
cima dos dosséis dos pequenos tronos da Capela
Sistina, nos genuflexórios, pelas escadas, nas cozi-
nhas, nos arsenais da Guarda Suíça, nos cômodos
do apartamento do pontífice, no pátio de São
Dâmaso: por toda parte há lutas horrendas, até a
última gota de sangue.
Os ratos, aterrorizados por aquele inimigo
presente em massa, parecem encontrar na
ameaçada herança genética estranhas energias
que promovem de chiados a guinchos estridentes.
E, tomados pelo medo da morte iminente, pelo
odor de um fim que só poderia ser adiado,
erguem-se sobre as patinhas posteriores,
levantando o focinho afilado com seus longos
bigodes, lançando-se ao ataque, tirando sempre
vantagem da surpresa e fincando seus dentes
agudos nos olhos e no focinho dos felinos.
Os palácios sacros ficam apinhados de ratos
mortos, de gatos estropiados, com sinais de uma
batalha que cada vez mais ganha as
características de um embate anormal e sinistro.
— Basta! Não agüento mais, não agüento mais,
Cerini, devemos nos decidir e chegar logo a um
acordo ou enlouqueceremos aqui dentro —
comenta naqueles dias o cardeal de Dublin com o
colega de Milão, enquanto é atacado por dois ratos
que se jogaram do lustre sobre um gato branco a
seus pés.
E enquanto observa os pingentes do lustre da
Boêmia ainda balançando, a criar estranhos jogos
de luz nas paredes forradas de seda vermelha,
custa a crer nas palavras da resposta do
purpurado milanês:
— Caro John, isso é só o começo...
— O começo? Por que, isso não lhe basta?
— Porque esta noite o meu quarto estava
infestado de escorpiões!
— Você só pode estar brincando!
— São testemunhas meus dois secretários,
que me ajudaram a perseguir esses perigosos
insetos por horas.
— Escorpiões? Mas é terrível...
— Você vai ver, ainda teremos de lutar contra
mais esse flagelo do Maligno. Eles têm uma cor
especial, não são exatamente pretos, mas verde-
escuro, um verde iridescente, que lembra as
escamas das serpentes.
— Que horror...
— Quando você os vir todos juntos, em
legiões, como eu os descobri debaixo da minha
cama, no chão do banheiro e no armário de meus
hábitos, aos montes, parecem verdadeiramente
viscosos e mutáveis como serpentes...
— Mas... será que foi só no seu quarto, Alfonso?
Talvez algo não esteja funcionando bem nos canos
e nos esgotos daquela parte do palácio.
— Assim espero, para o bem de todos nós.

Mas não é um caso isolado o que se verifica nos


aposentos do cardeal ambrosiano.
Aos poucos os escorpiões vão manifestando sua
presença, primeiro nos andares mais baixos dos
palácios sacros; depois, tentados por vertiginosas
esperanças de novas conquistas e de domínios
mais altos, tomam posse do terceiro, do quarto e
do quinto andares, até chegarem aos
apartamentos privados do pontífice, no último
andar.
E são todos daquela estranha cor incomum, verde-
escuro, com variações iridescentes nas tenazes e
na cauda.
O camerlengo é o último a se dar conta da nova
praga, quando os descobre em seus aposentos no
quinto andar, pouco antes de sair para dizer a
missa, perto da votação da manhã. Está calçando
os sapatos com fivela de prata, quando solta um
grito: dentro do sapato, um escorpião picou-lhe o
dedão.
— Squarzoni, chame o médico! Rápido!
O corpulento médico leva tempo por causa da
avaria de um elevador que o obriga a subir as
escadas a pé. Aos 70 anos, esse é um exercício
um tanto cansativo e não aconselhável por causa
de seus problemas de coração. Mas o dever
profissional e o alto cargo do enfermo não
permitem delongas. Quando entra no quarto do
camerlengo, este está tão pálido que monsenhor
Squarzoni se pergunta se não seria melhor chamar
um outro médico para socorrer aquele homem.
Mas o velho cansado descende de um dos
pontífices mais nepotistas da história, Clemente
VIII, e não perde o ânimo. Tira de sua bolsa uma
seringa e um frasquinho, prepara logo uma injeção
para anular o veneno, já colocado a par de tudo
pelo capelão. Só tem tempo de injetar o líquido no
braço do camerlengo e pede uma cadeira. Mas só
após ter cumprido com o dever é que senta para
recobrar o fôlego.

Divulgada a notícia sobre o mal-estar do


camerlengo, que adia a votação do conclave, a
iniciativa de uma ala de cardeais dá a Veronelli a
medida do quanto é perigoso para a Igreja o rumo
tomado pelos acontecimentos.
Os cardeais da índia, do Japão, da Austrália e das
Filipinas, com um documento unitário, propunham
a todos os colegas o nome do cardeal uniata
ucraniano, Wolfram Stelipyn. Quando recebe uma
cópia do documento, Veronelli pensa logo numa
nova provocação, como aquela para eleger o
palestino Nabil Youssef.
— Diga a Rabuiti para reunir os italianos. Quero
vê-los esta tarde, depois do almoço, Squarzoni,
mas não aqui... na torre de São João.
Veronelli, confiante de conseguir se recuperar em
poucas horas graças à presteza de Aldobrandini,
dá ordens para reunir o conclave às quatro da
tarde, tentando ganhar tempo, e quem sabe
consigam votar duas vezes antes do anoitecer.
Mas a noite será dedicada a discutir aquela
problemática candidatura com os mais chegados,
visto que não há novidades irreparáveis, naquela
tarde, graças ao nome eslavo.
Depois de minuciosamente organizarem a agenda
do dia, Squarzoni aparece à porta para anunciar-
lhe o telefonema de Nasalli Rocca.
— Passe-o logo... Alô?
— Como vai, eminência? Já está se
recuperando?
— Acho que sim. Hoje à tarde tentaremos
votar duas vezes. É um prazer ouvi-lo.
— Tenho uma proposta para ajudar-nos a
resolver o problema dos escorpiões — e o
engenheiro sorri, lembrando-se da resistência do
camerlengo em tomar ciência daquele novo
problema, nos últimos dias.
— O senhor é especial para resolver certas
situações, reconheço. Foi extraordinário com os
gatos; mas às vezes me desconcerta, parece
tomar gosto por... certas situações escabrosas...
eu duvidei do senhor... outra noite sonhei que foi
Nasalli Rocca quem infestou de ratos os palácios
sacros, enchendo nossos próprios escritórios
daqueles animais em vez dos gatos. Será que não
recebe do prefeito uma porcentagem sobre os
gatos?
O engenheiro morre de rir.
— Então o senhor me tomará por um criador
de frangos, quando ouvir minha nova proposta.
— Por quê? Fale, fale logo...
— Porque o inimigo mais natural dos
escorpiões são as galinhas, animais muito menos
estúpidos do que se possa imaginar e, contudo, os
mais corajosos contra tais insetos infernais. Suas
bicadas são mortais.
— Agora que me fez pensar nisso, tem razão.
Lembro-me bem do galinheiro de minha mãe, no
campo; ela soltava umas galinhas dentro de casa
vez ou outra justamente para qualquer
eventualidade.
— E nós poderemos soltá-las também nos
palácios sacros...
— Mas é abominável!
— Posso arranjar logo algumas centenas
delas. Informei-me sobre uma criação de frangos
aqui perto, em Colleferro. Calculei quantas delas
colocaremos em cada andar, fora a Capela Sistina.
— A Capela Sistina? Está louco? Galinhas na
Capela Sistina? Nunca!
— Eminência, talvez não lhe tenham
informado de que esta manhã eles chegaram lá
também e... ameaçam os afrescos, que já
escalaram... e seguem uma estranha geometria,
em sua operação de devastação: arranham
sobretudo a parte do alto com relação a quem
olha, onde a cor é mais clara...
— Eu não sabia de nada, logo que estiver de
pé correrei para a Capela... Mas temos a votação
às quatro horas, como faremos? Já são 11 horas...
— Se o senhor me autorizar, até lá já teremos
nossas galinhas trabalhando, são robustas e bem
alimentadas, acostumadas a acordar no meio da
noite para comer mais, acreditando que já seja
pleno dia. O senhor vai ver, farão um magnífico
trabalho.
O cardeal camerlengo da Santa Igreja Romana, en-
quanto ouve o engenheiro ir direto ao ponto com
sua costumeira desinibição, pensa na mítica figura
do arcanjo Miguel, o mais seguro inimigo do diabo,
que também soube afugentar as forças das trevas
para o lugar de onde elas vieram.
— Eminência, está me ouvindo?
— Claro que estou ouvindo, Nasalli Rocca,
nosso grande patrono... no fundo o senhor é como
o arcanjo Miguel para este conclave ameaçado
pelo... — E não teve coragem de terminar a frase,
de precisar por quem é ameaçado.
— Faço apenas o meu trabalho, nada mais. Os
poderes que o senhor me atribui não competem a
mim, mas lhe agradeço. Então... posso fazer isso?
— Faça, dê-me apenas um tempo para avisar
meus colaboradores mais próximos, não será fácil
fazê-las entrar no conclave... Quantas galinhas
disse mesmo que eram?
— Três mil e setecentas, eminência, ao menos
por hoje.
— Esperemos que bastem.
— Farei com que entrem pela estação
ferroviária do Vaticano, para darem menos na
vista, num vagão de alimentos. O senhor sabe que
não são animais silenciosos.
— Bem lembrado.
— Obrigado, eminência, até mais, e melhoras.
Vou correndo até Colleferro, às galinhas.

O que seus colegas diriam agora desta nova


iniciativa, tão pouco consoante à dignidade de tão
ilustre assembléia? Uns já lhe reprovavam a
presença dos gatos. Ainda soava em seus ouvidos
a voz tonitruante do espanhol Oviedo, cardeal de
Madri, que lhe reprovava por criar uma atmosfera
impossível com aqueles animais em luta entre si,
pouco depois de ter sido arranhado por um gato
preto.
Não tinha ânimo nem para imaginar que confusão
causaria agora um conclave rebaixado a
galinheiro. Se não fosse pela inquietante
referência de Nasalli Rocca à erosão do afresco do
Juízo universal, jamais teria aceitado admitir as ga-
linhas, promovidas a ajudantes dos anjos contra as
forças do Mal.

- 10 -
Eis o cardeal camerlengo, pontualíssimo, entrando
na Sistina, acompanhado do decano e dos
dignitários que levam o chapéu simbólico da Sede
vacante e as cédulas de veludo vermelho com os
documentos secretos do conclave. Só tem tempo
de ultrapassar a soleira e, de repente, ao ver o
grande afresco no fundo, pára, petrificado de
horror.
Toda a parte alta da maravilhosa pintura, onde os
beatos estão enfileirados ao lado do Salvador, à
medida que acordam para a eternidade, despertos
pelas trombetas dos anjos, é um imenso fervilhar
verde e mutável, um tapete monstruoso de
escorpiões que já impedem a visão das cores e
das formas.
Os olhos dos cardeais se viram para o alto; um
começa a sacudir a cabeça sem parar, outro tem a
face coberta de lágrimas, outro cai aniquilado
sobre a cadeira cobrindo os olhos com as mãos,
outro ainda procura por alguém na multidão,
talvez o camerlengo. Porque é justamente para ele
que se vira o trêmulo cardeal Ettore Malvezzi,
quando o distingue à porta.
— Estão atacando apenas o Bem, apenas os
santos... o que faremos? Não podemos ficar aqui
de braços cruzados!
Veronelli, que ainda sente nas veias um leve efeito
do contraveneno, tem uma vertigem momentânea.
O que quer que façamos? Que cantemos o Veni
Creator como das outras vezes? Que chamemos
por socorro para limpar as paredes, correndo o
risco de arruinar as pinturas?
Malvezzi nunca o ajudou.
— Também estou vendo isso, Malvezzi. Se você
voltar para o seu lugar sem perdermos a calma, e
se me deixar subir ao altar, encontraremos uma
saída juntos. Mas não sairemos daqui senão depois
de eleger um novo papa.
Decidido, vai até o fundo da sala, a muito custo
abrindo caminho por entre a multidão daqueles
cardeais que ainda não tiveram coragem para
tomar lugar em seus assentos, como nos outros
dias.
Nem sequer o exemplo do camerlengo os leva a
seus lugares. A atmosfera é a de uma assembléia
bastante perturbada e deslocada pelas emoções, e
ele não consegue governá-la. Mas Veronelli não
cede e vai diretamente se sentar em seu assento
de presidência, no altar. Com um aceno, chama
para perto de si monsenhor Squarzoni.
— Autorize Nasalli Rocca a deixar aqueles animais
entrarem pela pequena porta aqui atrás de mim; e
ande logo, porque eles já estão perdendo a razão.
E sabe que tem aquelas nojentas metástases do
Mal às suas costas e sobre a cabeça. Com o canto
do olho, olha para o alto e consegue distinguir
ainda intactas as santas formas do Salvador e de
sua veneradíssima Mãe. Repete-se o fenômeno
das pinturas sacras nos museus vaticanos. Sente-
se encorajado a continuar aquela luta, certo de
que as forças do Bem prevalecerão.
Como se estivesse em transe, saem de sua boca,
mais gritadas que pronunciadas, bem perceptíveis
até no fundo da capela, as palavras latinas: "Vade
retro, vade retro, Satana!"
É naquele preciso momento que aos transtornados
cardeais, espalhados pela Capela Sistina, um no
corredor central entre os assentos, outro em seu
lugar, outro à saída, outro ainda nas escadas entre
os tronos, outro ao redor do altar, surge uma
miríade de galinhas brancas, empurradas para
dentro, em meio a um barulho ensurdecedor em
que as últimas palavras latinas do camerlengo se
perdem.

O espetáculo ainda visível aos príncipes da Igreja


parece a dramática paródia do que levou a
fantasia de Michelangelo a dar forma ao Juízo
universal.
Uma enorme onda verde, flutuante como a água
do mar, se anima e se agita na parede dos beatos,
enquanto as galinhas enlouquecidas pela visão de
tais aéreos escorpiões parecem ter realizado o
antigo sonho de reabrir as asas. Os pobres
cardeais se retiram aterrorizados para o canto
oposto da capela, na saída. Os ratos que ficaram
na Sistina, todos refugiados debaixo do assoalho
de madeira dos tronos, fogem procurando chegar
às saídas, perseguidos por uma fileira de gatos. A
fúria dos felinos é tamanha que derruba muitos
dos purpurados mais anciãos, enquanto se
consuma o massacre dos ratos.
Mas o chão já virou o reino das penosas: as
galinhas se lançam sobre os escorpiões que caem
do afresco em pencas e começam a liberar os
rostos dos eleitos, dos anjos e dos mortos que
correm para o reencontro no vale de Josafá. De
fato, com um vôo que faz com que os presentes
duvidem das próprias pupilas, uma ou outra
consegue trespassar a bicadas os escorpiões que
estão mais embaixo; isso pareceria o suficiente
para todo o grupo infernal perder vigor e começar
a se desprender da parede em ondas.
E com dificuldade que se reconhece, junto ao altar,
o grupo severo do camerlengo e dos prelados, que
não se mexeram naquele caos, verdadeiro grupo
estatuário de virtude estóica, ocupado em pregar,
seguindo as palavras latinas do camerlengo,
palavras que ninguém nunca conhecerá. No vão
de uma das pequenas portas de trás, de onde
aquela fúria galinácea irrompeu, quase
imperceptível por causa da poeira que impregna o
ar já irrespirável, se avista a figura maciça do
grande diretor de tal liberação do Mal, o conde
Nasalli Rocca, o arcanjo Miguel do conclave.
Mas é o tumulto dos conclavistas que torna cada
vez mais forte a consonância com o afresco de
Michelangelo. A tosse dos cardeais anciãos, de
respiração fatigante, as invocações de ajuda de
quem, caído ao chão, foi arrastado pelas galinhas
e pelos gatos, os miados raivosos dos felinos, o
bater de asas furibundo de milhares de galinhas, o
guincho desesperado dos ratos pegos pela goela,
os lamentos de quem — homens e animais —
sente que é picado ou mordido, tudo isso compõe
um dramático universo sonoro.
Horas devem se passar até que o silêncio e a paz
voltem a reinar no local mais sagrado dos palácios
vaticanos. Horas em que, seguindo as ordens do
incansável Nasalli Rocca, todo o pessoal de serviço
no conclave é chamado para socorrer os pobres
príncipes da Igreja.
Nenhum dos salvadores, vendo o que aconteceu lá
dentro, consegue conter um sentimento de horror;
um dos mais fracos desmaia pouco depois de
entrar na capela. É preciso toda a ferrenha
determinação do engenheiro-chefe da Cidade do
Vaticano, auxiliada pela estóica firmeza do
camerlengo — imóvel em seu lugar, mas capaz de
dirigir cada operação com os olhos — para colocar
ordem naquele inferno que lentamente volta ao
objetivo destinado, desde o início dos tempos.
Os purpurados mais graves devem ser
transportados com urgência para a enfermaria,
pedindo socorro aos hospitais mais próximos. Logo
que percebe que a tempestade terminou e que
pode descer do altar, o camerlengo dá ordens à
sala de imprensa para bloquear as comunicações
telefônicas e desligar os computadores ligados à
internet. Mas não quer abandonar o campo de
batalha antes de ver livrarem a Capela Sistina dos
últimos animais mortos e das últimas montanhas
de escorpiões. Dá ordens para levarem os gatos e
as galinhas vitoriosos, sobreviventes do embate,
atraídos por carne e ração, até as sacristias e
jardins vaticanos, onde deveriam ser preparados
suas camas e seus poleiros. Toma para si a
responsabilidade da incomum decisão,
incompreensível fora do Vaticano, num mundo que
ignorava e que deveria continuar ignorando a ver-
dade daquele escrutínio que faltava. O sexagésimo
desde que as portas do conclave foram fechadas.

Apenas quando, algumas horas depois, tudo voltou


à tranqüilidade, com o ar purificado pelas janelas
abertas, no chão varrido com serragem, no altar
onde velas foram novamente acesas, nos tronos
reordenados e limpos, Veronelli decide obedecer a
Squarzoni e a Nasalli Rocca, cada vez mais
preocupado com sua palidez. Cedendo à
insistência, esgotado pelo cansaço e pelas
emoções, aceita voltar para seus aposentos
subindo na cadeira gestatoria. Ao longo do
caminho, enquanto o balanço da cadeira
inutilizada há muitos anos o embala até quase
fazê-lo fechar os olhos, a visão repentina da porta
por trás da qual se encontravam os retratos de
cardeais devastados por ratos lhe relembra a
imagem das obras de arte arruinadas nos museus
vaticanos. Informa-se logo sobre o que aconteceu
ali, para onde Nasalli Rocca enviou boa parte dos
gatos. E recebe a notícia consoladora de que os
ratos quase desapareceram e todas as obras de
arte restantes estão em segurança, ao menos por
enquanto.
Já são oito da noite quando se joga na cama, em
seu quarto.
Squarzoni deixa sua lareira acesa, com o fogo
crepitante emanando um calor agradável. Há um
bilhete para ele da parte do cardeal Malvezzi.
Abre-o: "Você foi grande. Agora eu sei mesmo que
não sairemos daqui senão quando tivermos um
novo papa. Que poderá até ser você."
Há outro, do cardeal de Palermo: "Não sei quantos
de nós conseguirão se arrastar à noite, após o
jantar, até o banho turco, como você pediu, mas
procurarei estar lá."
Já tinha se esquecido de que convocara todos os
italianos àquele lugar. Mas quando pensou nisso,
nada ainda tinha acontecido. Depois, o secretário
passa-lhe a lista dos telefonemas, feitos antes da
ordem para bloqueá-los. E tão longa que só
consegue ler os primeiros nomes. Ligam de todos
os lugares do mundo. Por um instante, afloram em
sua mente cansada todos os diferentes horários da
Terra, os fusos que cortam o globo em medidas
temporais e criam tantos problemas nas
comunicações internacionais. Não responderá a
ninguém. Mas por telefone dá ordens à central
telefônica e à sala de imprensa para religarem os
contatos com o mundo a partir da meia-noite em
ponto. Se o silêncio se prolongar, teme que este
possa ser equivocado e considerado como sinal da
última eleição papal.
Relê os dois bilhetes dos purpurados. Malvezzi
está inconstante como sempre. Agora propõe até
sua candidatura... como se todos não soubessem
que ele já tem uma idade muito avançada. Como
se não soubessem que é considerado como um
político da cúria de visão rigidamente centralizada.
Malvezzi tem a idade certa, com apenas 63 anos.
Mas o que veio à mente dos asiáticos para
proporem a candidatura ucraniana? A Igreja uniata
é um paiol, pois poderiam reabrir as feridas com a
Rússia... Precisa mesmo se restabelecer no banho
turco, para saber o que aqueles cardeais estão
tramando...
— Squarzoni, prepare minha bolsa, vou à torre de
São João. Venha me chamar em meia hora.
Comerei qualquer coisa quando voltar.
Sozinho, fechando os olhos, revê o terrível
espetáculo da Sistina. E finalmente desata num
choro liberador, cujo benefício não teve naquela
hora difícil, diferente de tantos cardeais. A cena
infernal lhe evocara o Dies irae, a prece latina que
ele, junto com seus prelados, continuou recitando,
em todo o interminável momento da luta, imóveis
e alheios à confusão da Sistina...
E aos poucos, recordando as palavras latinas
desse hino, cai num sono tão profundo que
monsenhor Squarzoni não tem coragem de
acordá-lo, quando volta ao quarto de dormir, com
a bolsa pronta para sua eminência e com um prato
frio para quando voltasse da torre de São João.
Finalmente o cardeal camerlengo do conclave
dorme. E sonha.
Ainda está no altar da Capela Sistina, mas o que
acontece na sala em que há séculos ocorre o
conclave tem um sentido mais adequado ao
evento e não necessita mais da sua prece.
A sua frente, disposta em duas fileiras, está uma
multidão de homens e mulheres nus ou
semivestidos, cobertos pelos mesmos jatos de
vapor do banho turco. Ele os reconhece, a
começar pelo danado da esquerda, que tem
apenas um olho aberto, cheio de horror. Beatos e
danados do Juízo universal desceram todos da
parede do afresco, às suas costas.
As carnes frescas das beatas, sobretudo aquelas
mais vigorosas e morenas das danadas, mal
suportam as tangas e os véus nas partes
pudendas, que Daniele da Volterra pintou, por
ordens do papa, quando Michelangelo ainda
estava vivo. Todos têm a mesma expressão de
espera, mesmo na condição de resgatados e
rejeitados, que bem conhecem. Foi estabelecida
uma trégua na execução da pena. Uma pausa
entre o tempo e a eternidade permite ao Juiz e aos
julgados descansarem.
As mulheres continuam a massagear seus seios,
joelhos, colo e braços, com o tépido calor do
vapor, e fecham os olhos quando sorriem. Algumas
voltam seus olhares para o altar, em sua direção,
porém não o procuram, mas alguém que deve
estar escondido ou que demora a chegar. O
embaraço do camerlengo diante daquelas
mulheres é temperado pela consciência de ser
invisível. Ele sabe que elas esperam o Juiz, sabe
que procuram com os olhos pelo Salvador e se
fazem belas para ele.
Dentre as mais jovens há uma, na primeira fila,
que chama sua atenção, com os cabelos louros,
tão longos que quase chegam ao joelho,
encobrindo sua nudez. Ela tem a cabeça inclinada
e canta, porque move os lábios, absorta... Ele
desejava ser visível apenas para aquela jovem e
poder falar com ela. Pode-se notar um homem à
seu lado, de costas, de nádegas robustas e um
dorso musculoso. Tem um braço apoiado no ombro
da companheira, e por um instante o camerlengo
se pergunta se não é um danado que se despede
daquela que amou e agora, pelo julgamento de
Cristo, divisa um último gesto de afeto por ele...
A carne branca da jovem e a negra do homem
parecem sinais do Bem e do Mal à luz das cores do
Juízo universal.
Mas o companheiro da mulher faz menção de
voltar, e com extrema lentidão, sem nunca parar,
troca de braço para continuar se apoiando em seu
ombro, torce o busto e se vira.
É Matis Paide, nu como o vira na sauna, mas "com
o corpo glorioso da juventude, em seu pleno
vigor", como ele mesmo disse, um dia, ao falar da
ressurreição da carne... E a encantadora figura que
está a seu lado, com a cabeça inclinada, cantando,
é sua irmã Karin, a irmã que Paide disse ter sido a
única menina que por muitos anos viu em sua ilha
báltica.
Mas agora acontece algo que descompõe o afresco
vivo e palpitante de Michelangelo; pois Matis Paide
observa-o como se o estivesse vendo, ou melhor,
reconhece-o mesmo, porque depois de um aceno
com a mão que o convida a descerdo altar e a se
aproximar, ouve bem nítido o seu nome, pro-
nunciado pausadamente com seu sotaque nórdico:
— Venha, Vladimiro!...
Mas ele não pode sair de sua cadeira, não pode ir
ao seu encontro, não pode separar-se da vida, que
ficou imóvel como antes era o afresco de
Michelangelo, há uma distância infinita entre
mortos e vivos...
— Venha, Vladimiro! — continua o jovem belíssimo
Matis Paide, que já está envolvendo com o braço
os ombros da irmã...
— Venha ouvir minha irmã, Vladimiro!
Ele se dá conta de estar mexendo os lábios para
responder que não pode se mexer, mas sua voz
não sai, nem sequer um som inteligível... Um jato
de vapor mais denso que os outros se interpõe e
por um instante não consegue ver mais os dois
irmãos, enquanto um odor acre e pungente
começa a molestar suas narinas... Ei-los
novamente, enquanto o vapor se dispersa. Teve
medo de perdê-los, de vê-los se esvaindo, porque
algo lhe sugere que não são de verdade, e que
podem desaparecer de uma hora para outra. E não
deseja que seja assim, deseja que sejam de
verdade, que se deixem acariciar por ele, que
Karin o perceba, e que ele possa ouvir o seu
canto... E como se a sua prece fosse atendida,
finalmente ouve a voz da irmã, distingue as
palavras que antes escapavam de seus belos
lábios mudos: "Wir sind durch Not und Freude /
gegangen Hand in Hand... "2
Mas o odor pungente que aflige suas narinas está
aumentando, a visão dos danados e dos beatos
empalidece, a voz da jovem irmã de Paide vai se
abrandando até sumir, algo está apagando o
afresco vivo da morte, descorando as cores e as
vozes, ele não se encontra mais na Sistina...

Agora acordou em seu quarto de dormir, e o odor


que venceu o sono e dissolveu o sonho é o mau
cheiro de três galinhas que remexiam perto de sua
cama à procura dos últimos escorpiões.
Recorda que, durante o trajeto da Sistina, Nasalli
Rocca lhe lembrou da oportunidade de soltar os
animais, galinhas e gatos, em todos os ambientes
do conclave para livrá-los das outras bestas; o que
ele, distraidamente, consentiu da liteira.

- 11 -
A luz acesa na janela de vidros amarelos em frente
acorda Ettore Malvezzi, como em tantas outras
2 "Passamos por dores e alegrias / juntas, de mãos dadas...", de
Vier letze Lieder, de Richard Strauss. (N. do A.)
manhãs. As sombras em movimento por trás
daqueles vidros opacos lhe recordam o novo dia
que o espera. O que acontecerá hoje, depois da
confusão infernal da Sistina?
O miado persistente de uma gatinha de cor
castanha e branca, ocupada em se esfregar em
suas cobertas, recorda-lhe que os felinos estão
esperando a comida. À essa hora Contarini já deve
estar preparando o altar para a missa e a ração
das galinhas. As tarefas foram divididas, tendo em
vista que seu capelão tem verdadeira aversão aos
felinos. Ei-lo batendo à porta. São seis e meia.
O cardeal se levanta e bebe o café de cevada,
preparado pelo capelão. Que cara sonolenta tem
Contarini... E os cabelos, desgrenhados, rebeldes
ao gel que os mantinha sempre em perfeita
simetria, cortados ao meio... Esse não é Contarini.
Mas com o que vem acontecendo é natural que
até os hábitos mais íntimos, os rituais do despertar
e do cotidiano sofram alguma alteração.
No entanto, o pedido que lhe é feito o deixa
verdadeiramente boquiaberto:
— Eminência, eu queria me confessar antes da
missa...
Há anos não lhe fazia tal pedido. Depois de alguns
instantes, responde-lhe que o fará de bom grado.
E o rosto inquieto de monsenhor Contarini, que
fecha os olhos, como se um misto de alívio e de
um grande embaraço chegasse até ele com o
consentimento de seu arcebispo, de novo espanta
Ettore Malvezzi. Enquanto se lava e observa a
galinha repousada em seu poleiro, pensa no
comportamento de Contarini durante aquele mês e
sete dias do conclave, muito mais misterioso do
que em casa. Sobretudo pelas companhias às
quais se mostrou propenso, ele que era sempre
tão solitário, como os jovens da Guarda Suíça,
convidados para cear com freqüência. Últimos
arroubos da juventude, sem dúvida alguma.
Imberbe, perfumado, penteado, já vestindo os
paramentos da missa, o cardeal de Turim sentou-
se ao pé do genuflexório, para onde Contarini,
mais que ajoelhado, atirou-se mal o viu pronto,
sob o grande crucifixo gótico.
— Há quanto tempo não se confessa?
— Desde que entramos em conclave,
eminência.
— E o que tem para confessar diante de
Deus?
— Negligência em minhas tarefas, e o fumo,
eminência, o senhor não tem idéia do quanto
fumei às escondidas neste período.
— Você se engana, eu sei perfeitamente. A
atmosfera pesada que paira por aqui pode
testemunhar isso. Mas é sempre uma culpa,
primeiro com você mesmo; desculpe-me,
Contarini, eu o tratei intimamente, como se
estivesse censurando meu sobrinho, que tem o
mesmo vício.
— Mas essa não é a culpa mais grave,
eminência... e não sei como poderá perdoar o que
vou lhe dizer...
— Deus perdoa qualquer culpa, se a confissão
é sincera; mas diga, diga sem demora, até porque
já é tarde e não podemos chegar atrasados, ainda
mais esta manhã — e, ao espreitar o relógio de
parede que bate 7hl5, seu pensamento corre até a
Capela Sistina.
— Ainda que apenas em pensamento, eu
pequei, eminência, pequei; é uma tentação que
não me deixa em paz nem sequer nesta hora.
Então aqueles alegres bandos de guardas suíços
foram atraídos para aqui para aventuras
conjuntas... Mas com que mulheres?... E por que a
insistência de "nesta hora"? E que olhos tem
Contarini quando observa as duas galinhas, que
cacarejando vêm bicar algumas migalhas perto do
confessionário. Como as observa...
— Mas o que você tem, Contarini?
— Nada, eminência, mas veja essas
despudoradas, como se comprazem em provocar,
como mostram suas vergonhas, quando se
abaixam!
O cardeal se vira para olhar melhor os inocentes
animais que foram para o meio da sala e,
enquanto continuam bicando, sentem um leve
arrepio antes de mostrar o traseiro livremente
exposto com o duplo débito de uma natureza de
rosada consistência. Até o cardeal sabe que tais
preciosas penosas possuem apenas uma solução
para suas necessidades distintas.
— Desculpe-me, Contarini, mas o que você
tem contra esses pobres animais? Não quer que
lhes coloquemos umas calcinhas, você sabe muito
bem a que se deve a honra de sua visita nos
palácios sacros.
— Mas, eminência, eminência! São mulheres,
são mulheres seminuas e nuas que foram
plantadas aqui e não param de nos tentar... não
sei mais até quando conseguirei resistir! — E
desata num choro, levando as mãos à cabeça.
Sempre houve algo estranho naquele bravo rapaz
de passado misterioso, assolado por sua tragédia
conjugal. Agora vem à tona toda a sua fragilidade,
a sua afetividade reprimida e problemática. Ah,
aquele conclave, quantos danos fazia à psique dos
hóspedes mais fracos!...
E fica sem palavras o pobre confessor, que gozava
da fama de ser maravilhoso na absolvição de tal
piedoso ministério, a ponto de ter tido a honra de
ser chamado à Roma para confessar o papa, e que
só não o fez por causa de sua morte.
Se trouxer de volta à realidade a alma perturbada
do capelão, negando tal conturbada associação
galinácea e feminina, teme desencadear uma
violenta reação, e quiçá vê-lo levantar-se e
abraçar uma das galinhas para demonstrar toda a
verdade de sua obsessão, com grande algazarra e
espanto do animal, objeto de atenções exclusivas,
que poderiam atrair as pessoas e incutir-lhes a
acusação de maus-tratos. Por outro lado, se for
condescendente com a loucura do secretário,
teme vê-la tomando dimensões maiores nos
próximos dias e assim prejudicar as chances de
recuperação daquela bela inteligência, e também
a longa convivência pacífica, cuja substituição não
consegue nem imaginar.
Vence a preguiça, o medo da troca, o receio de ter
de renunciar a tal preciosa companhia.
— Mas, Contarini, acredita que eu também
não vejo isso? Acredita que eu não vejo como
essas desavergonhadas se comportam? Acredita
que eu não sei que elas foram enviadas para cá
sob o pretexto de caçar escorpiões, mas que na
verdade vieram nos tentar, a nós pobres padres?
Então faça como eu, exercite a virtude da
paciência, reforce sua castidade com a prece,
evite ficar sozinho com elas. Você vai ver,
sairemos santificados dessas provas: este
conclave é uma espécie de grande exame das
virtudes heróicas da Igreja, com seus ministros.
Considere, como o seu indigno arcebispo, um
privilégio ter participado disso. Lembre-se de que
apenas aos santos na Tebaida, a Pacômio e ao
abade Antônio foram concedidas as tentações do
diabo em forma de mulher, como a nós... — E
vendo que aos poucos se desfazia a expressão
perturbada do pobre padreco, e notando como seu
rosto vai perdendo as rugas e ele volta ao seu
comportamento habitual, sem demora lhe dá a
absolvição, olhando para o relógio.
— Agora vamos celebrar a missa e peçamos
ao Senhor toda a força necessária para enfrentar o
novo dia. Como penitência, você deve me entregar
todos os cigarros que escondeu e rezar dez Ave-
Marias a Nossa Senhora.
— Certo, eminência, mas... aquelas... posso
primeiro encerrá-las ali?...
— Faça como quiser, Contarini, mas penso
que devemos mostrar desde já nossa força de
vontade, sem nos incomodarmos, como se elas
não existissem, como se fossem apenas galinhas.
E vê o secretário baixar a cabeça, depois de uma
espiada nas duas bestas, que estão saltitando em
direção à mesa de trabalho do cardeal e catando
as pulgas com o bico vez ou outra.

Durante a missa Contarini tem um comportamento


normal. Poderíamos pensar que a confissão fez
bem àquela mente perturbada. Mas, quando vai
ajudar o prelado a despir os paramentos, uma
frase do jovem monsenhor lhe mostra que ele não
está bem:
— Zaira e Zenóbia se comportaram bem durante a
missa. Não causaram incômodo, nem saíram de
seu canto.
É melhor deixar passar mais esta vez, pensa
Malvezzi, e replica com ar indiferente:
— Um comportamento verdadeiramente digno
delas, caro Contarini, não há o que dizer. Parece
que saberão se conter até em seus oferecimentos.
Mas agora vamos, pelo amor de Deus, senão
chegaremos atrasados.
Zaira e Zenóbia, mas de onde é que ele foi tirar
isso?
Não consegue associar a primeira a nenhum
personagem, mas a segunda sim, deveria ser uma
rainha de Palmira, rebelde a Roma, lembra
Malvezzi, enquanto bebe seu café com leite. E
pensa na esquisitice que deverá ajudar, se o
tempo não curá-la. É melhor falar com o médico,
prevendo que possa se agravar e tornar-se mais
importuna.
Ettore Malvezzi deverá se lembrar daquela
oportunidade quando, com uma certa ansiedade
diante da Sistina, encontra um grande cartaz
pregado em suas portas trancadas:

O conclave está suspenso para restauração


urgente dos afrescos da Capela Sistina. Os
eminentíssimos e reverendíssimos cardeais
receberão durante o dia comunicações a respeito
do lugar onde serão realizadas as novas sessões
plenárias, em caso de prolongada impossibilidade
da capela.
Vladimiro Veronelli,
camerlengo da Santa Igreja Romana

O que o incomoda não é tanto a notícia — por si só


bastante perturbadora — da suspensão dos
trabalhos; mas, na multidão de purpurados
apinhados na entrada fechada, entre sussurros,
confidência e comentários, pega no ar a certeza de
um mal-estar muito parecido com o de seu
Contarini, que se difundira entre muitos outros
jovens prelados enclausurados lá dentro. Primeiro
foi um comentário muito vago do arcebispo de
Rennes:
— Nunca acreditei que certas alucinações
pudessem se difundir por aqui também.
Depois foi uma retomada do assunto bem mais ex-
plícita, da parte do prelado de Dublin, primaz da
Igreja da Irlanda:
— Galinhas que parecem odaliscas... não é
incrível... é o que vêem meus colaboradores, até
meu jovem corista que é mais inocente que Abel;
você deveria ver como ele descreve os encantos
daquelas lascivas!
Até o arcebispo de Westminster parece
consternado pela mesma razão, enquanto ouve o
colega de Montreal:
— É uma alucinação que, sabe-se lá por que, deixa
imune apenas nós, os velhos... e contagia apenas
os mais jovens.
Àquela altura Malvezzi já se decidiu a consultar os
médicos para saber como deve se comportar com
seu secretário. Mas o problema é de ordem geral,
e mesmo com a incredulidade de alguns, como
Rabuiti e Cerini, se consegue deduzir que tal
contágio alucinatório não atingiu todos os jovens
prelados.
Mas com que estratagema convenceria Contarini a
ir visitar um médico? Como começar essa
conversa?
Confidencia ao cardeal Lo Caseio suas
preocupações, enquanto trata de voltar com seus
colegas.
— Não poderemos imaginar algo que obrigue
todos os nossos colaboradores a uma visita
médica? Quer dizer, uma circular do prefeito da
casa pontifícia ou do diretor dos serviços sanitários
que imponha a visita por causa dos perigos pela
falta de higiene da convivência com as galinhas?
— Mas é justamente isso que temos de evitar,
citar as galinhas, falar de transtornos de higiene
causados por aquelas criaturas. Iriam se inquietar
ainda mais, desconfiados de algum logro dos
velhos para gozar de algumas graças, talvez...
Deixe Dunvegan lhe contar o que dizem de nós!
— Entendi. Mas se não há nada a fazer, que
desculpa usaremos para uma consulta? — insiste
Malvezzi, que não consegue se conformar com
Contarini.
— Ouça, para ser sincero, não vejo
necessidade de uma consulta numa atmosfera,
como direi, um tanto alucinada em seu complexo.
Tenho a impressão de que precisamos todos de
um médico que nos dê uma bela de uma cura...
Não acredita nisso? — refuta Lo Caseio, enquanto
escapa de uma furiosa perseguição a uns ratos
feita por um bando de gatos, que correm por entre
os hábitos dos cardeais.
— O melhor é seguir adiante, convivendo com
nossos infortúnios; algumas vezes as curas são
ainda piores... Você vai ver que eles não são
eternos e desaparecerão com a eleição do papa.
— Está certo, mas como vamos sair dessa?
Eis a questão! Facilis descensus averni? mas sair
dessa... coisa, se ainda há um conclave, sempre
parece mais difícil — comenta alusivo e misterioso
Alfonso Cerini, que se aproximou depois de ouvir
as últimas falas do diálogo entre Malvezzi e Lo
Cascio.
Com a costumeira perspicácia, o arcebispo de
Milão — até o momento o candidato italiano mais
respeitado — expressou o receio que vai
aumentando entre uma dezena de pessoas, há 37
dias: o medo de não sair mais daqueles aposentos,
que se tornaram um labirinto de visões e
pesadelos, limitado como uma prisão.
Muitos lembram de certas indiscrições vindas da
sala de imprensa, onde a internet recebe o eco do
mundo. Uma multidão de manifestantes da
Comunhão e Libertação, irmãs e padres poloneses
fiéis ao Opus Dei, desfilou naqueles dias diante da
colunata de Bernini, com grandes cartazes de
protesto pela inércia dos cardeais, por causa do
inacreditável atraso de sua escolha, pela
irresponsabilidade de um comportamento que
ameaçava criar dilacerações insanáveis no cora-
ção da Igreja. Pois de algumas Igrejas nacionais,
sobretudo da África e da América Latina,
começava a difundir-se a ameaça de eleger o papa
em outro lugar, com uma assembléia de bispos e
sacerdotes.

E não era o temor de um cisma o sintoma mais in-


quietante vindo do exterior. Bem mais
preocupante era o de um progressivo desinteresse
pelo conclave, demonstrado por muitos jornais e
televisões estrangeiros, mas, sobretudo italianos.
As primeiras páginas não se ocupavam mais do
que se tramava no Vaticano, por trás do portão de
bronze. Começava a desenhar-se o fenômeno de
um certo cansaço das mais importantes fontes de
informação, propensas a adiar para amanhã e
depois para outro dia o artigo sobre o conclave, à
espera de prognósticos e notícias mais concretos e
definitivos. Assim se podia concluir que nada era
filtrado dos acontecimentos extraordinários que
assolaram aqueles pobres sucessores dos
apóstolos; de um lado deduzir o alívio de uma
pressão pública menor sobre suas escolhas, de
outro lado a dúvida da demora no conhecimento
da verdade causada por um poder maligno e
misterioso. De fato, não era normal que nada do
que aconteceu na Sistina, diante de dezenas de
testemunhas, tivesse transparecido. Como
explicação, não podia satisfazer a prudência
louvável do camerlengo, que proibiu as comunica-
ções por 12 horas. E, passado esse intervalo de
tempo, como se pode acreditar que todos
conseguiram resistir à tentação de passar notícias
tão saborosas para a imprensa, que nem sequer
um mexerico tivesse escapado de um ambiente
tão dilacerado por lutas e rivalidades, tão
permeável a invejas e represálias como o
Vaticano?
Assim, o enfraquecimento de interesse da
imprensa, que publica as notícias apenas em dias
alternados e lhes reserva espaços cada vez
menores e menos importantes, em vez de divulgar
a tranqüilidade de espírito que no início do
conclave teria sido mais apreciada, depois do que
aconteceu comprometia sua serenidade,
aumentando a febre da inquietação e a
consciência de viver quase sem imagem, sem
janelas ou portas para o mundo.

- 12 -
Alguns sintomas evidentes de claustrofobia
começavam a se manifestar logo após o
fechamento da Capela Sistina, a quase quarenta
dias do início do conclave.
Quem a sofre em suas formas mais sutis são os
mais alheios às "delícias" da clausura, tão caras ao
cardeal Paide: os purpurados habituados a viver no
centro da realidade das mais importantes
dioceses, entre telefones, fax, celulares, e-mail,
carros e aviões sempre prontos a levá-los a
qualquer canto da Terra.
São registrados os primeiros casos de internação
urgente na enfermaria vaticana, que dá para os
jardins particulares do pontífice, e que engana
com suas janelas, com as copas dos plátanos
avermelhados em novembro, dando ares de
liberdade e abertura a um mundo impossível de
ser percebido pelos cardeais em seus aposentos.
Mas a tentativa de fuga de dois conclavistas,
Horace Winnipeg, de Nova York, e Anthony O'Hara,
da Filadélfia, por uma daquelas janelas no segundo
andar dá a medida exata do quanto o mal-estar de
vários internos é apenas a manifestação
psicossomática de um único mal: o medo de
permanecerem trancafiados lá dentro e uma
vontade louca de fugir.
Os dois purpurados, de 73 e 79 anos, fizeram um
acordo para tentar fugir durante a noite, quando a
vigilância do pessoal da enfermaria era mais
escassa.
Depois de escolherem a janela, que dava para um
teto 3 metros abaixo, de onde depois poderiam
descer para o chão por uma calha cheia de pontos
de apoio, lançaram da janela uma espécie de
corda rudimentar feita com todos os seus lençóis
amarrados. Mas, no escuro, não conseguiram
controlar bem onde a corda improvisada iria cair. A
algazarra dos frangos é que os revelou, para sua
desgraça, chamando a atenção até dos enfermei-
ros meio adormecidos. Era um dos grandes
poleiros preparados pelo conde Nasalli Rocca, fora
do palácio. Ali se concentravam reforços de
galinhas mandadas vir de Colleferro, Zagarolo e
Frosolone, para compensar a série de animais
debilitados por causa das picadas dos escorpiões
que lhes acertaram, mas também para permitir o
plano de uma presença desses animais cada vez
mais capilar e racional em toda a Sede apostólica.
Descobriram-nos pouco depois, em malha de
ginástica e tênis, com bonés pretos nas cabeças
para torná-los irreconhecíveis, fingindo correr em
volta dos jardins como num treino, se por acaso
viessem a encontrar alguém àquela hora.
Um cúmplice deveria ficar pronto para recebê-los
num grande conversível cinza, à saída da estação
ferroviária vaticana; de fato, um carro com placa
americana suscitou muita curiosidade dos guardas
de serviço naquele acesso, por causa da parada
prolongada e pelo nervosismo do motorista, que
não parava de olhar para o relógio.
Devido ao evidente embaraço dos enfermeiros que
ajudavam os cardeais a retirar a longa corda, os
eminentíssimos fizeram um silêncio de desdém.
Não estavam certos de que deveriam prestar
contas de seu comportamento nem mesmo ao
cardeal camerlengo...
— Se eu estivesse de melhor saúde também
teria tentado — confessava no leito vizinho Di
Sacramento, o cardeal negro de Luanda,
observando os fugitivos ocupados em livrar-se dos
lençóis.
— E você tampouco teria êxito —
acrescentava sorrindo —, paciência, quem sabe
numa outra hora.
Os dois americanos não responderam nada,
distraídos pelo alvoroço que começava a vir do
fundo das escadas, além da entrada da sala.
Naquele exato momento apareceu o comandante
da Guarda Suíça com dois soldados de notável
estatura. Levavam aos purpurados de Nova York e
da Filadélfia ordens para segui-los até os
aposentos do cardeal camerlengo.
A notícia se propaga pelo conclave como uma
bomba. O pobre camerlengo ainda está tentando
achar o motivo.
Um escândalo inusitado, dois cardeais que tentam
fugir do conclave! Não havia sombra de tal
precedente na história da Igreja, ao menos após o
Concílio de Trento. Jamais houve um caso tão
grave. Contudo, o que mais aflige Veronelli,
afetado pela notícia que vinha da enfermaria, de
madrugada, é a previsão de suas conseqüências
psicológicas em vários outros conclavistas.
— Mas como fizeram isso? — Veronelli insiste em
perguntar ao monsenhor Squarzoni, enquanto
veste o roupão às pressas.
Squarzoni, que diferentemente de muitos jovens
colegas privilegia os gatos em suas alucinações,
percebendo nos felinos uma presença mais efébica
que feminina, um objeto de desejo de identidade
indefinida, responde acariciando nos braços um
enorme gato preto de olhos castanhos que ronrona
totalmente relaxado.
— Eu estava quase preferindo que eles tivessem
usado aquela corda de lençóis para se enforcarem
— exclama o camerlengo, sem conseguir se conter
diante do cardeal —, pois conseguiríamos fazer um
suicídio passar por morte natural, já aconteceu
isso antes. Mas esse escândalo vai contagiar os
ânimos, vai se alastrar como uma mancha de óleo;
muitos tentarão fugir. Já os vejo abandonando o
navio que afunda, e deixando-me aqui sozinho.
Dada a ordem para conduzi-los à sua presença o
mais rápido possível, enquanto os espera, manda
logo o prefeito da Casa pontifícia pedir notícias
sobre as restaurações que não paravam;
trabalharam na recuperação do ambiente até de
noite. Procura em meio a seus papéis a lista dos
estragos que lhe fora apresentada, mas não a
encontra. Afugenta as galinhas que se
empoleiraram na poltrona ao lado da lareira e
encontra a folha que procurava. Pega um
desodorante e esparge com perfume de rosas o
quarto empesteado; e acaba de vestir-se.
Squarzoni volta com uma notícia positiva,
finalmente, a primeira da manhã: a Sistina está
pronta, e os estragos se revelaram bem menos
graves do quanto se imaginava. O prefeito da Casa
pontifícia manda dizer que só não puderam ainda
evitar um inconveniente: a desagradável
persistência de um fedor causado pelos animais,
que por prudência decidiram manter defendendo a
capela. Por mais que procurem perfumar com
incenso o ar da Sistina, galinhas e gatos seguem
pagando o débito de sua natureza, emporcalhando
o chão e empesteando o ar. De qualquer modo,
uma turma de criados estaria sempre presente
com vassouras e lixeiras, serragem e cascalho
para tentar conter o desagradável fenômeno.
— Vá lá, há males piores do que ir ao conclave
entre galinhas e gatos... — comenta o camerlengo
sobre tais observações. E acrescenta: — Vamos,
Squarzoni, chame logo os dignatários e os
prelados. Diga-lhes para estarem prontos às 8h30,
aqui comigo, para o ingresso oficial no conclave.
Quê? Já estão aqui? Bom, faça-os entrar
imediatamente.
Monsenhor Squarzoni o interrompe para anunciar-
lhe suas eminências, os arcebispos de Nova York e
da Filadélfia, que surgem naquele momento à
entrada do estúdio, escoltados por dois guardas
suíços.
A primeira coisa que chama a atenção é a roupa
com que se apresentam: a mesma da fuga, visto
que não tiveram tempo para vestir a batina. A do
nova-iorquino é toda azul com listras horizontais
pretas com uma conhecida marca de pneus
estampada; o prelado da Filadélfia tem uma malha
rosa com um pentagrama do incipit da música
Cheek to cheek.
A longuíssima conversa entre os três cardeais não
está isenta de momentos difíceis: as vozes se
elevam até chegarem aos ouvidos dos dignatarios
vindos nesse ínterim para escoltar o camerlengo.
Tanto que, para encobrir as palavras, Antonio
Leporati, que conduzia o séquito, aproveitou
aquela espera para experimentar logo o Veni
Creator Spiritus, com alguns jovens coristas. Com
isso as vozes dos três cardeais não são mais
ouvidas, e começam os miados raivosos de alguns
felinos assustados, enquanto uma galinha, sabe-se
lá por que, sente-se convidada a cacarejar como
se tivesse acabado de botar um ovo.
— Quanto alvoroço aqui dentro! — exclama
Veronelli, escancarando a porta para deixar sair os
dois colegas de malha.
Mas o espetáculo que se apresenta é tão mais
inadequado à vista do que a confusão das vozes
humanas e animais aos ouvidos. Porque os jovens
coristas parecem se sujeitar à sedução daquelas
mulheres que são as galinhas a seus olhos,
atraídas pelo seu rapto canoro; eles procuram
vencer a tentação de observá-las, mas erram as
entradas, perdem compassos, diminuem os
tempos, enfurecendo-se contra o cardeal decano.
— Deixe para lá, Leporati, deixe para lá. É melhor
que nem cantem na capela: até lá devemos
hospedar nossos bravos guardas... — sugere o
camerlengo ao pé do ouvido do decano,
transtornado por causa da renovação de tais
obscenas visões.
E o cortejo segue adiante, enquanto os dois
cardeais que foram repreendidos correm até seus
aposentos para vestir a batina bordada de
vermelho, mais consoante à sua dignidade.
Apenas quando o último corista sai é que o alarido
dos gatos e das galinhas diminui.
Por outro lado, o espetáculo que se apresenta ao
camerlengo, mal este ultrapassa a soleira da
Sistina, apinhada de cardeais, parece animador.
A fila dos tronos à direita e à esquerda parece
perfeitamente em ordem, assim como o corredor
no meio, onde a cada metro um prelado de serviço
se mostra pronto para ajudar os eminentíssimos a
encontrar seu lugar ou aos mais anciãos a subir as
escadas um pouco estreitas. Reina, sobretudo, o
murmúrio laborioso de uma assembléia cheia de
fervor, disposta ao trabalho num espírito ainda
intranqüilo, mas que promete não deixar de tentar
nada para o fim ao qual foi chamada.
O maravilhoso afresco do Juízo universal, livre de
toda e qualquer monstruosa metástase de sua
grandiosa alegoria da luta entre o Bem e o Mal,
fica limpo e nítido, sem a menor sombra de
escorpiões. E é tamanha a alegria de vê-lo
restituído à esplêndida figuração que há mais de
quatro séculos iluminava as escolhas daquela
assembléia que conseguem até suportar o fedor
da urina de gato e do esterco das galinhas que, de
repente, chegou às narinas dos cardeais, logo que
estes entraram.
Se prestarmos atenção, poderemos notar aqui e
ali, por entre os bancos, nas escadas, no corredor
e diante do altar, a discreta presença de alguns
velhos prelados — essa função foi proibida aos
mais jovens por prudência, por causa de sua
vulnerabilidade — com rodos, vassouras e
pequenas lixeiras, ocupados em limpar
escrupulosamente o chão. Os objetos de tantos
cuidados, gatos e galinhas, passeiam pela capela,
com a segurança de um hábito já pacífico, quase
esquecidos de suas ruas e praças romanas, e de
seus hospitaleiros abrigos em Colleferro.
Um gato enrolado no assento do trono observa
desconfiado o velho que se aproxima para
escolher outro lugar para a sesta, após devorar
seu último rato.
Uma galinha afoita pula de um degrau para outro
das escadas, com o costumeiro salto de sua raça,
movendo a cabeça atônita, e com o olho que não
esquece a presa que vez ou outra ainda ousa
desafiar seu domínio. Pois alguns escorpiões
sobreviventes, aproveitando o escuro de algum
buraco no reboco das paredes úmidas e
descascadas, continuam a meditar sobre sua
obstinada vingança. E assim, do buraco em que se
enfiaram, aos poucos mostram a ameaça de seu
ferrão, agitado como um pano vermelho diante de
um touro ou como uma bandeira de desafio.
Vendo isso, as galinhas perdem o pouco lume de
inteligência que a natureza também lhes destinou
e se lançam de asas abertas sobre a toca do
inimigo, várias vezes batendo inutilmente com o
bico no chão.
Contudo, Veronelli não pode apreciar muito o
prazer da retomada ordem das coisas, até das
últimas coisas, como o Juízo universal, pois de
repente se agita ao ver o diretor da capela musical
pontifícia, maestro Antonio Liberale, convidando os
jovens coristas para entrar para o canto do Veni
Creator. E suas ordens ao cardeal decano foram
bastante claras.
— Squarzoni, vá lhes dizer que esta manhã não
haverá canto, de modo algum! Vá, vá logo, por
caridade, antes que aqueles jovens entrem!
O rosto perplexo e mortificado do maestro Liberale
lhes assegura que entendeu a ordem.
Mas um dos coristas, talvez o mais zeloso, o mais
afoito a mostrar às suas eminências reunidas a
beleza de sua voz, consegue entrar. E,
concentrado na leitura da partitura, não vê nem os
gestos de seu maestro, nem os de Squarzoni. É
apenas mais um canto para levantar o moral,
movido pelo estupor, como todos os demais lá
dentro, e desconcertado e desapontado para fazer
com que este perceba o convite para se retirar.
Um galo, que não se separou de suas galinhas
nem mesmo no conclave, e que talvez tenha
escapado ao controle dos homens escolhidos por
Nasalli Rocca, canta. E canta com tamanha
gloriosa ostentação de força e alegria, com tal
convencimento de poder chamar o sol e ajudá-lo a
se levantar — ou melhor, a ressurgir até mesmo
naquela sala apinhada de velhos, em meio a
nuvens de incenso, gatos, ratos, escorpiões e
alguns rostos imóveis sobre as paredes, como se
esperassem apenas um aceno para descer —, que
por alguns instantes, ninguém se mexe.
Então, como que desafiado por aquela dupla
imobilidade, dos vivos na capela e dos mortos que
estão na parede, talvez duvidando de não ter
mostrado toda a sua força, renova-a, desta vez
auxiliado por outros dois galos que estão
escondidos entre as galinhas. Devem saudar todos
juntos a chegada do sol!
Não é um despertar semelhante ao que está
acostumado, no seu harém de Colleferro, onde a
luz se derrama aos poucos, no meio da noite, no
grupo de suas fêmeas. Este é um galinheiro triste,
onde tem dificuldades para fazer entrar a luz; por
isso o chamaram com todo o seu povo de filhos e
filhas do sol. Porque o seu canto também baixa o
sol, ele o sabe, não há outro galo que cante
assim... muito menos aqueles dois frangos que
agora o acompanham, não ousando sobrepor suas
notas às dele, mas apenas as reforçam, nos
momentos de pausa de seu hino ao sol.
Os cardeais estavam em silêncio, ouvindo aquela
extraordinária variação no programa musical da
capela. Havia quem evocasse naquele canto a
tríplice repreensão ao primeiro pontífice romano,
Pedro, que renegou três vezes o nome de Cristo.
Outro olhava no teto as sibilas e os profetas,
pensando a que incomum associação se
constringia aquele céu de santos, heróis e
majestade de espírito. Outro ainda fechava os
olhos, e se perguntava, assustado, que prova
ainda iria suportar naquele conclave, antes de ver
o novo Pedro. Perdidos e confusos, entraram os
dois fugitivos, os purpurados americanos, quando
se ouve, interrompendo a estática escuta, a forte
exclamação de uma voz:
— Mas façam-no calar-se!
O sotaque toscano denuncia que é um italiano.
De fato, é o cardeal Zelindo Mascheroni, prefeito
da Congregação para a doutrina da fé, filho de
uma porteira dos condes Cenami di Lucca, um dos
mais rígidos paladinos da ortodoxia clássica.
Foi ele quem inspirou as rígidas teses sobre a ética
da família, mantidas pelo falecido pontífice. A ele
se deviam os mais cerrados ataques à legislação
civil a favor do aborto, do controle de natalidade,
do divórcio e das uniões de fato.

- 13 -
O cardeal Mascheroni não se limita a intimar ao
silêncio o galo impertinente, que, no entanto, é
procurado entre as galinhas pelos mais zelosos
prelados domésticos. Mas, tendo tomado a
palavra, antes mesmo de o camerlengo a
conceder, e em meio ao tumulto dos frangos que
protestam por terem sido incomodados pelos
inquisidores daquele Giordano Bruno dos penosos,
lança uma severa advertência.
E se irrita com todos. Com o camerlengo, com o
decano, com os outros cardeais e, em particular,
com quem tentou fugir e com quem ficou doente.
Com os coristas, com os jovens capelães, com
Nasalli Rocca, com o chefe da sala de imprensa,
monsenhor Michel De Basempierres. Com quem
teve mais votos entre os purpurados.
Não escapa ninguém. Todos se comportaram mal
ao invocar a justa ira do Senhor naquela
assembléia de homens assustados, sensuais,
fracos, indignos de receber o Espírito Santo no
coração e na mente. O cardeal camerlengo da
Santa Igreja Romana de fato reduziu o conclave a
um galinheiro, não tanto porque aqueles animais,
por uma questionável decisão do conde Nasalli
Rocca, afligem as narinas e ofendem a santidade
daquele lugar, mas porque sua indecisão e sua
capacidade de dar uma direção à periclitante
barca de Pedro humilharam com um cacarejar das
galinhas as votações da augusta assembléia. Sim,
o conclave transformou-se num verdadeiro
cocorico de frangos.
E como que censurando as palavras do cardeal, o
último canto do galo torna-se mais agudo,
estridente, irreverente e imperativo que nunca,
antes de cair nas garras do sacerdote ceroferário,
monsenhor José Felipe Gomez, justo enquanto o
terrível purpurado de Lucca repete a metáfora do
cocorico galináceo de seus eminentíssimos
colegas.
Outros camerlengos souberam guiar a Igreja em
momentos não menos delicados, mostrando toda a
têmpera necessária! O cardeal Mascheroni se
enfurece, enquanto o pobre Veronelli finalmente
chegou a seu assento junto com seus em-
baraçados dignatários. E como se vê-lo sentado
em seu lugar, resignado a ouvir, o tenha
aborrecido logo, o cardeal Zelindo Mascheroni,
prefeito da Congregação para a doutrina da fé,
volta-se para uma outra ala da capela, atrás dele,
onde tomam seu lugar os dois arcebispos, da
Filadélfia e de Nova York.
E, de repente, começa um assunto que muitos pre-
feririam omitir. Tanto o camerlengo, pelo efeito
que teme em quem ainda não sabe de nada,
quanto os dois culpados, que já haviam prometido
a Veronelli reconhecer sua culpa, garantindo não
tentar mais fugir, quanto todos aqueles
purpurados que compreendem as razões dos dois
americanos e preferem esconder no silêncio o
incômodo de sua consciência dividida.
O cardeal de Xangai, Zacarias Fung Pen-Mei, que é
um tanto surdo, piora as coisas, quando no silêncio
em que caem as palavras de Mascheroni,
incomodado apenas com a intermitente agitação
dos frangos, quase urra a sua pergunta a um
vizinho:
— Como? Quem fugiu?
E o seu colega de Veneza, Aldo Miceli, deve
sussurrar-lhe diversas vezes que ninguém fugiu;
até que o próprio Mascheroni, irritado com a
interrupção e com o denso conluio entre o surdo e
o veneziano, grita a resposta ao chinês:
— Sim, eminentíssimo, os nossos irmãos da
Filadélfia e de Nova York tentaram fugir!
A expressão confusa do arcebispo de Xangai
satisfaz a ânsia teatral de Mascheroni. Mas o
chinês, tendo ouvido mal, logo se vira para o
colega de Veneza para entender o motivo da fuga
pretendida pelos dois cardeais. De fato, não lhe
passa pela cabeça que tenham sido presos, como
ele, que definhou por anos nos cárceres chineses.
Conhece-os, são dois bravos homens... E não está
ciente de nenhuma perseguição religiosa nos
Estados Unidos, onde há muitos anos vive no
exílio...
No entanto, Mascheroni se lançou a todo vapor
contra os dois culpados. E arriscou hipóteses
espantosas sobre sua sorte, se tivessem
conseguido fugir do conclave. O ridículo sobre o
Sacro Colégio, que se declarava inspirado pelo
Espírito Santo; a funesta orgia televisiva de
entrevistas, às quais não poderiam se subtrair, e
que os atormentaria e marcaria por toda vida; a
instrumentação de seu caso, por parte dos
inimigos da Igreja, que não esperam por outra
coisa para mostrar a Casa de Deus minada em
seus alicerces...
Os dois acusados pararam de mascar chiclete,
depois de uma passagem do ardente discurso,
durante o qual não tiveram coragem de observar
seu acusador. Mas uma cena que se apresenta a
seus olhos lhes restitui a vontade de levantar a
cabeça, ainda que a surpresa lhes impeça de
continuar mascando.
Bem em cima da cabeça do cardeal Mascheroni,
por cima da decoração que enfeita o dossel do
trono, há uma galinha branca empoleirada; que
visceralmente comovida pelos contínuos
sobressaltos que a pausa declamatória e a
impetuosidade dos gestos imprimem à poltrona do
purpurado, ou por cansaço e tédio daquela altura
que lhe veda uma operação mais terrena, do alto
de sua superioridade, acomodando bem seu
traseiro, mira com uma rosada emissão a careca
de Mascheroni, interrompendo-lhe o discurso.
O incidente tira o vigor e a dramaticidade de seu
protagonista, que, enquanto se limpa com o lenço,
não consegue evitar alguns risinhos e os gestos de
muitas mãos levadas à boca para esconder a
expressão do rosto. Do fundo da Capela Sistina,
por trás do altar, no silêncio que segue podem ser
sentidos o espernear e o bater de asas do galo,
entre as mãos de seu carcereiro, monsenhor
Gomez, que procura prender seus pés antes de
levá-lo para fora, depois de várias bicadas.
O camerlengo, que não perdeu nenhuma cena,
não consegue passar sem associar os diversos
momentos... Sabe-se lá o que aquela galinha fez
para meter-se lá em cima, por sobre a cabeça de
quem pedia silêncio!... Contudo, a criatura que
chama o sol, seguindo seu inocente instinto, foi
vingada pela galinha ajuizada...
Depois o cardeal Mascheroni retoma seu discurso.
Mas não tem mais o poder de espetar e inquietar
as consciências como antes de a galinha maliciosa
elegê-lo como depositário de suas mais viscerais
confidências.
E assim pode tocar no assunto do comportamento
dos coristas, que cederam às mais descaradas das
luxúrias, entregando-se a fantasias mais dignas
das gueixas encantadoras de clientes, em algumas
casas de Xangai, com a arte do fan-chung, que de
jovens seminaristas vaticanos. Pelas mesmas
razões pode escandalizar-se com o fato de que
homens de tão intensa experiência religiosa, como
os secretários dos cardeais, pudessem ceder às
tentações de ver por toda parte mulheres em
emboscada. Pode censurar o conde Nasalli Rocca
por um pragmatismo mais digno de uma
assembléia ferroviária que de um conclave de
cardeais da Santa Igreja Romana. Pode lançar-se
contra a incapacidade de quem dirige a sala de
imprensa do Vaticano, monsenhor De
Basempierres, que está perdendo os contatos com
o mundo, menos atento e menos partícipe do
maior evento religioso do Ocidente. Enfim, pode
lançar-se contra o arcebispo de Milão, culpado de
paralisar o conclave em diversas votações, por
causa de suas ambições pessoais, e contra o
cardeal palestino Nabil Youssef, culpado de ter
jogado na nau de Pedro o peso da política. Depois
passa a destruir um a um os partidos que se
delinearam em quase dois meses de conclave,
jogando a culpa em seus expoentes mais notáveis
e em destaque e em algum cardeal que obteve
mais votos. Mas não consegue obter a mesma
atenção de antes.
Pelo longo discurso do cardeal Zelindo Mascheroni,
a tensão — que deveria ter suscitado reações de
ressentimento, contra-ataques e defesas —,
contudo, parece materializar-se no olhar dos
purpurados e dos prelados de serviço: que é
unanimemente capturado por um único objeto, no
alto, acima da cabeça do orador. A galinha,
irreverente e pensativa, continua empoleirada no
dossel, nem um pouco impressionada com a
gravidade dos argumentos expostos pelo cardeal,
e a espera por uma possível réplica de seu gesto
desfaz os sentimentos de culpa, lança no ridículo
cada passagem provocante desse vibrante
discurso, tira a vontade de responder e de se
defender.
Assim, à exceção do prefeito da Congregação para
a doutrina da fé, ninguém se espanta quando,
passada a confusão, a voz do camerlengo se eleva
para agradecer a Mascheroni pela sua generosa
intervenção, dando logo o direito a quem quiser
tomar a palavra.
Longos minutos de silêncio se passam,
interrompidos apenas pelo barulho dos cardeais à
entrada, onde começa a se espalhar a notícia de
que uma gata deu à luz cinco belíssimos gatinhos
dentro de um caixote de velas vazio.
De repente, alguns purpurados encontram-se
envolvidos numa animada discussão sobre a
oportunidade de esterilizar suas gatas, visto que
muitas estão prenhes e logo darão à luz.
A questão propõe, de um modo diverso e
paradoxal, aqueles princípios éticos fundamentais
que justamente o cardeal Mascheroni defendera,
muitas vezes enfrentando críticas e
incompreensões, chegando ao limite da laceração,
sobretudo numa parte do norte da Europa e na
América do Sul. Se isso não era permitido às filhas
de Eva, como poderia sê-lo para as gatas? Como
deveria se apresentar o problema do controle de
natalidade no mundo animal?
O cardeal Veronelli, na outra ponta da Sistina, não
consegue entender bem por que a espera por um
orador se prolonga tanto. Mas a persistência do
barulho, que aumenta e parece animar-se cada
vez mais, faz com que ele perceba que algo rou-
bou a atenção geral da já parcial autoridade de
Mascheroni.
— Eminência, nasceram cinco gatinhos... —
sussurra ao seu ouvido Thomas Tabone, prelado
de honra maltês.
— Cinco? Onde?
—- Aqui dentro, eminência, à entrada da capela,
num caixote de velas... as gatas procuram sempre
lugares abrigados para seus filhotes.
Um dos cardeais mais próximos à cadeira do
camerlengo deve ter ouvido a conversa e, dando
um sorriso de consentimento, quer assegurar a
Veronelli que tal curiosa e imprevisível novidade
por ora ocupa a atenção de muitos conclavistas.
— Se visse como são bonitinhos, um é listrado
como a mãe, e os outros são...
Mas o camerlengo já não ouve mais, estudando a
expressão zangada e ofendida do cardeal Zelindo
Mascheroni, que por certo não quer falar de gatos
e gatinhos no conclave.
Olha por sobre a cabeça do cardeal. Alguém está
tentando afastar com uma vara de apagar velas a
ameaçadora galinha que atentou contra sua
dignidade e dissolveu a tensão com uma risada.
O que fazer agora? Mas o maltês Tabone já está
falando ao ouvido de Veronelli, contando-lhe que o
nascimento de tais criaturas apresentou a
oportunidade de esterilizar também as outras
gatas e que o princípio da defesa da dignidade
está dividindo os ânimos no conclave.
Que fazer então?
Um camerlengo da Santa Igreja Romana jamais
deveria ter esse tipo de problema.
Devem passar à votação, mas cabe-lhe saber
prepará-la e não desperdiçá-la antes que aquele
inútil problema dos felinos deixe de preocupar os
cardeais. E é necessário tentar algo o quanto
antes, porque perto do cardeal Paide a discussão
se inflama, envolvendo Rabuiti e alguns outros
italianos, talvez pouco animalescos. Além disso, o
rosto cada vez mais sombrio de Mascheroni,
advertido sobre que futilidade lhe roubou a
primazia da atenção, não lhe deixa saída. Os dois
olhos fixam o camerlengo, solicitando-o a expulsar
da Sistina até mesmo o menor suspeito de tal
inconveniente.
Mas alguém se levanta de repente para tomar a
palavra.
Pede ao camerlengo permissão para falar em
latim, pois não sabe se expressar bem em italiano.
A assembléia volta ao silêncio.
Quem teve a coragem de intervir depois de
Mascheroni? É provável que seja o cardeal
ucraniano arcebispo-mor de Lviv? Franzino e
tímido como é, faz-se notar pouco. Ele é conhecido
mais como nome e carta de manipulação do que
como pessoa. De saúde fraca, algumas vezes foi
obrigado pelos médicos a ficar em seus aposentos,
durante as votações.
O arcebispo uniata ucraniano inicia seu discurso
com uma homenagem à prudência do cardeal
camerlengo da Santa Igreja Romana, que recebeu
a dura tarefa de conduzir a assembléia num dos
momentos mais delicados na história da Igreja.
Depois presta homenagem ao cardeal Zelindo
Mascheroni, prefeito da Congregação para a
doutrina da fé, cuja nobre ânsia pela sorte do
conclave não pode deixar de ser dividida com
quem foi eleito por Deus para aquela dura tarefa.
Tudo é obscuro e sem precedentes, naquela hora.
Na Sistina e no palácio apostólico parecem
assentar forças ameaçadoras, que evocam
fantasmas de outros tempos da Igreja, quando as
forças do Mal pareciam prevalecer, entre cismas e
divisões que chegaram até a afastar a sede de
Pedro de Roma, levando-a até Avignon.
Mas hoje, onde há uma Santa Catarina protetora
da família que consiga conciliar e seguir as
manobras da Igreja, se o seu chefe tomar decisões
inspiradas mais no diabo do que no Senhor?
O purpurado lança a palavra "diabo" na
assembléia como se lança uma pedra no pântano
e esta faz com que propositadamente crie vários
círculos concêntricos nas águas antes tranqüilas.
Pois o purpurado a pronuncia e repete três vezes,
permanecendo depois em silêncio, observando
atentamente a parte inferior do afresco de
Michelangelo, onde estão os danados e os diabos.
Retomada a palavra, depois de beber um copo de
água, decidido, volta às propostas que apresenta a
seus eminentíssimos irmãos, cujo ânimo, suspenso
pela estranha intensidade de tais simples palavras
pronunciadas num latim mais digno de São
Jerônimo que de Santo Tomás, espera pelas
conclusões.
— "Summa hac Ecclesiae Magistrae tempestate
novam animam inpróximo pontífice necesse
esse..."3 para renovar as forças debilitadas pela
luta contra o antigo adversário. E sua alma mais
jovem é a África, a terra onde a evangelização
floresce mais exuberante, é verdade, mas é
também onde o embate entre o Bem e o Mal
chega a seu ápice. Lá, as guerras raciais e tribais,
as lutas incessantes pelo poder têm o caráter de
embates primitivos de uma humanidade ainda
ardente da criação, que acabou de ser expulsa do
paraíso terrestre. Lá, a cada dia Caim e Abel
renovam as forças opostas e complementares do
amor e do ódio no fratricídio. Lá, os atores
protagonistas da queda, Adão, Eva e a serpente,
ainda estão vivos... O mundo deve voltar à África,
partilhar de sua terrível inocência, de sua
fidelidade à luta entre a luz e as trevas, que se
ofuscou e se escondeu no progresso do Ocidente,
o grande doente da Terra... O novo pontífice
romano deve ser realmente "novo", banhando-se
nas águas revigorantes da África para renascer
com um verdadeiro batismo. O novo papa deve
tomar emprestada daquela terra uma
espiritualidade que não conhece dúvidas e
ambigüidades, exceções e mediações, a mesma
que deu a Tertuliano e Agostinho, que eram
trigueiros, a força para lutarem como heróis da
Ilíada contra o inimigo. O príncipe das trevas
desferiu agora o último ataque contra a Igreja, órfã
de seu chefe, estabelecendo ali, em seu seio, no
conclave, o estado-maior de suas milícias, o
arsenal de suas máquinas mais tenebrosas...
3 "Por esta grande tempestade da Igreja Mestra é necessária
uma nova alma no próximo pontífice..." (N. da T.)
E enquanto o cardeal eslavo faz uma nova pausa
para beber, seus olhos voltam ao afresco, seguidos
por toda a assembléia, num silêncio cada vez mais
profundo.
— Talvez vocês se admirem que um seu irmão do
Leste, um homem que vocês privilegiaram dentre
muitos, em suas escolhas, pensando por um
momento que ele pudesse resolver o problema
que lhes atormenta, se dirija a vocês dessa
maneira. Talvez o detenham a covardia, o medo, a
fuga às responsabilidades. Mas não é bem assim.
A minha terra também está doente, como o
Ocidente. O seu coração cristão não bate tão forte
a ponto de dar o ritmo de toda uma nação, como
nos tempos de Dostoievski e de Tolstoi; em
setenta anos de regime o materialismo da pobreza
a desvirtuou, assim como o materialismo da
riqueza corrompeu a Europa. Procurem o novo
pontífice na África! Num homem que saiba voltar
às fórmulas mais primitivas da fé, em contato com
as forças mais terrestres e originárias, capaz de
lutar contra o Mal, com as suas armas, e de vencer
o diabo que está se apoderando de nossas
mentes, vencendo-nos pelo cansaço, pelo temor
de tatear no escuro, pelas dúvidas de fé, pelo
medo da solidão e pela angústia de terminar numa
clausura insensata os poucos dias que nos restam.
Há um homem que vem da África, e é um pastor
muito amado na África, digno dessas esperanças.
Eu lhes exorto a dar-lhe o seu voto, irmãos
caríssimos!
Assim Wolfram Stelipyn concluiu seu discurso, sen-
tando de novo em seu lugar, enxugando o suor
que fez com que o solidéu escarlate deslizasse
para sua nuca.
Não pronunciou o nome do cardeal negro que indi-
cou, deixando a assembléia na mais inquieta das
suspensões, conturbada com a intensidade de tais
palavras, com a força de um raciocínio que em
formas tão rígidas e convincentes repropõe o
dualístico conflito entre Deus e o diabo.
Mas a ilusão de um retorno às origens, evocado
pelo retrato da África, soa a muitos europeus como
uma condenação de sua formação e de suas
escolhas no governo da Igreja. E suscita uma
efervescência e um sofrimento que parecem reno-
var, nos mais propensos a se questionar, o conflito
dualístico pintado pelas palavras do eslavo.

- 14 -
Por que aquele homem — que parece inspirado até
mesmo para os menos convencidos da sua
proposta — evitou apresentar o nome do
candidato africano?
Naquela noite, na torre de São João, perguntam-se
por isso muitos dos que vieram se recuperar das
fadigas do dia no banho turco, depois que as
votações matutina e vespertina dispersaram os
nomes dos papáveis entre os 11 cardeais africanos
e o próprio ucraniano.
— Não houve jeito de arrancar de sua boca
aquele bendito nome — repete o cardeal de Paris,
De Jouy, mais para si mesmo que para Matis Paide,
enquanto fecha os olhos, entregando-se à benéfica
sensação de calor.
— Disse apenas que devemos saber procurá-
lo... parece até que tinha medo de nomeá-lo, como
se urna sombra de cautela lhe impedisse de ter
tamanha responsabilidade — replica Paide.
— Mas que descaramento o dele em nos dizer
que fomos todos superados pela história —
observa Rabuiti, que se livrou do roupão, não
agüentando mais o vapor.
— Posso estar enganado, mas aqui há um
segredo, há um ar muito grande de mistério.
Aquele uniata esconde alguma coisa, talvez esteja
mandando uma mensagem em código... —
intervém Siro Ferrazzi, cardeal de Bolonha.
— Mas para quem? — pergunta Rabuiti.
— Para a pessoa em questão, para o novo
Tertuliano ou para o novo Agostinho, se preferir —
brinca de novo Ferrazzi.
— Sim, parece até que convida aquele
homem a se manifestar — acrescenta Paide —,
como se lhe coubesse se nomear.
— Contudo, conseguiu colocar os africanos
uns contra os outros, esse é o resultado de seu
silêncio — rebate o cardeal de Palermo, dirigindo-
se ao chuveiro, incomodado com o excesso de
calor.
— E não é o único resultado. Conseguiu dar
ao conclave uma direção; já é algo. Não
voltaremos atrás, pelo rastro que deixou, muitos
outros pensam que há necessidade de um retorno
às origens, que ele entrevê na escolha africana —
diz Paide enquanto uma ária de Albinoni ao fundo
passa a um movimento mais vivo —, resta apenas
saber se será o pastor de Luanda, de Kinshasa, de
Lusaka, de Nairobi, de Dar Es-Salaam ou de
Antananarivo...
— ... Ou de Maputo ou de Dacar — censura
Ettore Malvezzi, que chegou naquele momento,
entrando logo na conversa para reprimir o impulso
de voltarem atrás.
— Parece que podem ser também aqueles de
Adis-Abeba e de Kampala — intervém o prelado de
Gênova.
— Um deles está aqui... Fale mais baixo... —
sugere Rabuiti, voltando do chuveiro.
E logo depois se abre a porta de vidro e aparece,
com a pele contrastando com o roupão branco, o
cardeal que acabara de ser citado, mas ainda não
muito bem identificável em meio aos jatos de
vapor.
Ao ver o africano, o pensamento volta às horas
vividas pela manhã e à tarde durante as votações,
seguidas do convite do cardeal eslavo. Um convite
que não caiu no vazio, mas que não conseguiu
formar nenhum acordo.
Logo após a intervenção de Wolfram Stelipyn, o
camerlengo agradeceu ao prelado eslavo e abriu a
votação, mandando distribuir imediatamente as
cédulas, na tentativa de não dispersar o clima de
reflexão suscitado pelo discurso de candidatura
dos africanos. Não quis esclarecer a qual dos 11
prelados negros se dirigiu o imprevisível orador:
por certo, a cautela de Stelipyn aos poucos foi
revelando todo o seu valor. Se aquele homem se
calava, é porque deveria ter suas razões, e todas a
favor da solução do problema, sem nenhuma
intenção de apresentar um novo obstáculo à
iluminação do Espírito Santo. De resto, pela idade
avançada, quatro ou cinco deles se livraram de tal
possibilidade. O nome viria após as primeiras
operações de voto, iria se manifestar à luz das
tentativas iniciais de evocá-lo quando fossem
votar. Esperaram por quase dois meses, então
poderiam esperar um pouco mais.
Quando as cédulas dos 126 votantes lhe foram
entregues, enquanto as lia em voz alta, de repente
teve a sensação de adivinhar que a verdade
daquele nome traçasse seu caminho sozinha em
seus corações. Havia 23 votos para o cardeal de
Uganda, 22 para o de Angola, 19 para o de
Madagascar, 17 para o de Moçambique e nove
para o cardeal de Camerum. Os outros 25 votos
ficaram entre o cardeal de Milão, com sete deles, o
próprio Stelipyn, com três, e uma quantidade de
outros cardeais que tinham um ou dois votos,
como o palestino, o prelado de Bombai, o de
Sarajevo e o de Buenos Aires. Havia também um
voto para Malvezzi e uma cédula em branco.
Todos eram perfeitamente elegíveis, tendo o
cardeal de Camerum, o mais velho deles, 69 anos.
Um rapazola, se pensarmos na idade média...
Os 23 votos para o ugandense, cardeal Joseph
Masaka, constituíam o recorde de todo o conclave,
pois nenhum outro tivera tantos nos dias
anteriores.
A tarde, quando foram retomadas as operações de
voto, após uma densa consulta dos cardeais que
parecia acelerar a propensão pela escolha
africana, poderia se sentir no ar a ânsia pelo
resultado. Ninguém mais se importava com gatos
e galinhas, ninguém mais se lamentava por causa
daquele fedor, que se agravara nesse meio-tempo.
O caixote de velas com os cinco gatinhos fora
confiado às irmãs africanas da cozinha. Os galos
foram requisitados e levados ao grande galinheiro
abaixo da enfermaria, onde logo voltaram a
cantar. Os serviços de limpeza na capela, com
tantas vassourinhas e pás de prata, continuavam,
mas com uma discrição que parecia camuflar os
sacristãos e os prelados, muito hábeis em andar
na ponta dos pés, temerosos de chamar a atenção.
Foi apresentada até a proposta deles mesmos
cantarem todos juntos o Veni Creator Spiritus, na
ausência dos coristas confinados em suas celas
por causa das visões tentadoras. E as velhas vozes
se elevaram para enaltecer ao Senhor, num coro
cheio de desacordos e dissonâncias, uma
esperança unânime.
Foi a única situação em que os animais deram
sinal de renovada inquietude, espantados com
aquela confusão; mas a paciência prevaleceu, e
nenhum cardeal protestou contra o gato que
bufava ou contra a galinha comovida que botava
ovos bem ali, debaixo da batina do purpurado. E o
Veni Creator Spiritus conseguiu chegar até o
fundo, até as últimas palavras choramingadas pelo
atraso da surdez do arcebispo de Xangai, já no
silêncio dos confrades.
Os resultados do escrutínio causaram grande
perplexidade. A dispersão se difundiu por todos os
africanos, até pelos não votados pela manhã, à
custa do ugandense e do angolano, dando votos
também para o cardeal da Etiópia, ao do Senegal,
ao do Zaire e ao da Tanzânia. Só o cardeal de
Milão mantinha sua posição, com os sete votos de
sempre. Todos os demais haviam-na mudado e
alguns, como Malvezzi, o palestino e o prelado de
Sarajevo, chegaram até mesmo a perder seu único
sufrágio.
Era evidente que o convite africano continuava a
inspirar as mentes dos purpurados, mas
justamente pelo seu poder de atração provocava
uma luta interna com relação às candidaturas
negras. Ninguém desejava ficar alheio àquele
pronunciamento inicial; talvez todos exigissem a
honra das armas, ao menos uma colocação para
as primeiras provas de fogo, que salvasse sua
dignidade para depois capitular a favor daquele
eminentíssimo que Stelipyn deveria conhecer.
Sentiram a ausência do ucraniano na segunda
votação, mas sua saúde nunca foi estável. Ou
talvez, devido às pressões que deve ter recebido
naquela hora, a sua ausência tivesse sido
diplomática, para deixar livres o processo de refle-
xão e a maturação da escolha. Ao adiar para o dia
seguinte a 80â votação, o camerlengo sentiu que
as coisas se mexiam e a máquina voltara
realmente a girar, mesmo com os sobressaltos e
os desacordos fisiológicos depois de tanta inércia.
Também estão pensando nisso os hóspedes do
bastião de São João, uns espalhados na sauna,
outros no banho turco, quando com grande
emoção se espalha a notícia de que ocardeal
ucraniano está chegando e já recebeu seu roupão
branco. Então, sua saúde não lhe permite deixar o
leito para ir ao conclave, mas nas últimas horas de
"sua" jornada dá-lhe o alívio de um banho de
vapores... Talvez este seja um dos tantos hábitos
de sua terra. Ou será que o próprio médico
pontifício foi visitá-lo para aconselhá-lo sobre tal
experiência?
O comparecimento do cardeal negro e do grande
inspirador de tal escolha, lá onde se concede ao
corpo o alívio para o cansaço da idade, difunde
entre os purpurados uma estranha agitação. Mal
tiveram tempo de se admirar em ver o cardeal de
Turim, que não viera antes àquele lugar, e já corre
pelas bocas a notícia de que está para chegar
ninguém menos do que o cardeal Zelindo
Mascheroni. Seguem-no alguns guardas suíços
cantando o hino de seu corpo: "Notre vie est un
voyage / dans l’hiver et dans la nuit, / nous
cherchons notre passage / dans le ciel où rien ne
luit..."4
O que significa tanto aparato? E haverá lugar para
os guardas, naqueles locais reservados aos
purpurados? E se fosse uma provocação do mais
43 "Nossa vida é uma viagem / no inverno e na noite, /
procuramos nossa passagem / no céu onde tudo brilha..." (N. da
T.)
intransigente deles todos para reprovar a
corrupção dos costumes?
Pode-se esperar de tudo daquele homem;
infelizmente, não há nenhuma galinha maliciosa
na sauna nem no banho turco que possa
neutralizar o ardor de seu moralismo.
Veio-se a saber que Mascheroni pediu também
permissão para que seus quatro guardas
entrassem, o que os monsenhores filipino e
africano não puderam negar. E agora, no banho
turco onde se encontraram os italianos com Paide
e os cardeais negros, de uma hora para outra
espera-se a chegada do arcebispo de Lviv, do
prefeito da Congregação para a doutrina da fé e
dos quatro jovens soldados.
No entanto, a espera resulta no reconhecimento
das formas do purpurado africano, divisando em
seu grande rosto a expressão sorridente do
prelado de Maputo, no moçambicano Carlo Felipe
Maria Dos Angeles.
Na segunda votação daquele dia, conseguiu vinte
votos, um a mais do que na primeira. Aquele
homem nu, que acabara de se sentar e retirar o
roupão, poderá ser o primeiro papa negro da
história.
É um pensamento que passa pela cabeça de
todos, tão logo o reconhecem, tornando-os mudos.
E o mal-estar desse silêncio, em contraste com a
conversação que o africano chegou a ouvir em
parte, coloca numa situação embaraçosa,
sobretudo quem é o motivo disso tudo.
Dos Angeles aceitou o convite de Stelipyn para ir
àquele lugar onde se pode entender melhor o
rumo que as coisas tomaram, sem suspeitar que
os demais cardeais africanos receberam o mesmo
conselho. Porque em poucos minutos quase todos
aparecem, espremendo-se nos bancos ainda livres.
Agora se encontram ali os nove candidatos negros
que receberam votos.
E pela surpresa que não conseguem esconder,
pode-se intuir que não esperavam encontrar seus
companheiros. Alguém, como o prelado de
Luanda, se arrepende e reconsidera a verdade
daquele pensamento de Pascal, segundo a qual a
maior parte dos aborrecimentos nos atinge pela
incapacidade de permanecermos sozinhos em
nossos quartos.
A porta de vidro se abre e surge o arcebispo de
Lviv envolto num roupão que lhe dificulta o passo,
muito longo para sua pequena estatura. Mal
ultrapassa a soleira, os nove cardeais africanos se
levantam para ceder-lhe o lugar, mas ele faz
pouco caso de tamanha atenção e vai sentar-se no
canto, ao lado de Malvezzi.
— Que bela música... O que é? — pergunta ao
purpurado de Turim, num italiano com forte
sotaque estrangeiro.
— Deve ser um músico dos idos de 1700.
— Na minha catedral há sempre uma música
de fundo, como aqui. Os meus coristas são bons,
registramos todos eles, assim não deixam nunca
de cantar.
— Caro Stelipyn, se você gosta de uma boa
massagem com ramos de bétula, mandei buscar
uma grande quantidade delas. Você tem de
experimentar, faz muito bem para a circulação do
sangue... — Foi Matis Paide que fez tal convite,
mostrando os ramos amontoados no chão a seu
lado.
— Que gentil, obrigado, disseram-me que
você é finlandês, deve entender destas coisas...
— Não, sou estônio, de uma ilha em frente à
Finlândia, onde as bétulas crescem como as
acácias e as tílias daqui.
— Então, diga-me, como é feita essa
massagem?
— Vou lhe mostrar. Pegue um ramo na mão e
bata-o de leve, mas continuamente, em minha
pele, nas costas. — E o ex-trapista, o mais
convencido mantenedor das delícias da clausura,
se despe, ficando de pé e oferecendo as costas ao
chicote improvisado pelo colega eslavo.
A visão do maciço corpo nu do cardeal estônio faz
um contraste curioso com aquele corpo franzino e
flácido de seu tímido flagelante, que, agarrando o
menor ramo que encontrara, começa a bater nas
costas largas daquele homem, ainda vigorosas e
retas, apesar de seus 66 anos.
— Mais forte, Wolfram, mais forte — suplica Paide.
E o pequeno ucraniano, cujo capucho sobre a
cabeça faz com que ele pareça mais um elfo que
um príncipe da Igreja, procura imprimir mais força
à sua mão. O cansaço e o calor fazem seu rosto
corar, enquanto o movimento solta o cinto de seu
roupão.
Seja por um espírito de emulação ou por um mal-
estar a ser vencido com alguma iniciativa, os
africanos sentados à sua frente levantam-se um a
um para pegar os ramos de bétula que sobraram,
e, seguindo os conselhos de Paide, começam a
chicotear-se reciprocamente. E Kinshasa chicoteia
Dar Es-Salaam, Maputo chicoteia Antananarivo,
Douala chicoteia Kampala, Dacar açoita tanto Adis-
Abeba quanto Luanda.
Aos poucos, contagiados pelo silencioso ritmo
desses gestos, os italianos também pegam um
ramo e, escolhendo sua vítima consciente,
começam a bater nas costas sem jamais perder de
vista a dupla de flagelantes que guia a turma,
Stelipyn e Paide, os dois grandes postos
avançados da Igreja do Norte. Ouve-se apenas a
repetição do convite "Mais forte, mais forte", que o
mesmo Paide dirige a Stelipyn e que, como um
mantra, anima aquele exercício, evocando na
mente de muitos deles as práticas de mortificação
de outros tempos.
Paide sabe que dentro em breve deverá convidar
Stelipyn a interromper sua massagem para trocar
de lugar e para que lhe bata. Mas a fraqueza do
prelado ucraniano lhe impede de fazer isso,
temendo não agüentar tal esforço. Foi Stelipyn que
o livrou do embaraço:
— Agora é a minha vez — e tirou o roupão branco.
Aquele pequeno corpo encolhido, sem músculos,
de pele flácida e amarelada, de ossos
protuberantes, arqueado, que se oferece ao ultraje
do chicote, não pode completar melhor o clima
penitencial aos olhos dos presentes. A mão de
Paide é mais leve que uma pluma, mas não
impede que uma leve oscilação de Stelipyn
convença o estônio a parar.
— Mais forte, mais forte — é o convite do eslavo
que não quer perder sua prova de mortificação,
observando os africanos, cuja energia supera em
muito a de qualquer outro príncipe da Igreja por
seu toque na pele e pela amplidão de seu gesto.
Naquele momento, a porta se abre novamente, en-
quanto Stelipyn observa a nudez que emana
energia daqueles corpos negros. Imóvel,
paralisado pelo estupor, surge o cardeal Zelindo
Mascheroni, prefeito da Congregação para a
doutrina da fé.
Atrás dele, mostram-se apenas as cabeças louras
de quatro guardas suíços.

- 15 -
O cardeal Zelindo Mascheroni não tem coragem de
entrar. A cena dos flagelantes nus, envolvidos
pelos vapores, com o crucifixo no fundo da parede
que ele divisa à sua frente, tem seu auge de
piedosa intensidade na figura do pobre Stelipyn,
que se submete ao chicote do energúmeno do
Paide.
Mas o que completa o quadro, evocando cenas in-
fernais afins àquela que contempla todos os dias
no afresco da Sistina, são os nove cardeais negros
ocupados em apanhar muito. O prefeito da
Congregação para a doutrina da fé fecha os olhos,
rogando ao Senhor para inspirar-lhe palavras com
maior sucesso do que no conclave.
Com grande dificuldade aceitou a veste branca
atoalhada que lhe parecia irrisória em relação à
papal. Mas se impôs uma inspeção naquele lugar,
conseguindo saber que até lá convergiriam os
africanos e seus mantenedores. No entanto, ele
veio com os guardas suíços e com um oficial,
temeroso de que algum inconveniente pudesse
ofender sua dignidade e obrigá-lo a pedir ajuda.
Nunca esteve antes num banho turco, mas se
opusera fortemente à sua instauração.
Agora, diante daquilo que se apresenta a seus
olhos, sente seus temores injustificados, pois
jamais poderia pensar que naquele lugar se
entregassem a práticas de mortificação tão
ascéticas e severas. Assim, verdadeiramente
confuso e arrependido de suas suspeitas, a
princípio não consegue responder ao cardeal de
Nápoles, que lhe pede para fechar a porta, para
não desperdiçar o calor. Mas deixa-se conduzir
docilmente pela mão úmida de Rabuiti para dentro
da vasta sala de banho. Atrás dele, deslizando
como sombras, escorregam para dentro também
os quatro suíços, fiéis às ordens de nunca deixar o
cardeal Mascheroni sozinho, mesmo quando
estivesse mais à vontade.
O efeito imediato da chegada de Mascheroni foi
que ele interrompeu as massagens dos purpurados
com os raminhos de bétula, não tanto por eles
estarem temerosos de sua presença, quanto por
estarem ainda comovidos pela cena da galinha
que depositou em sua cabeça o fruto de suas
concentrações. Assim, ficam imóveis, com os
raminhos nas mãos. E enquanto voltam a se
sentar sorrindo, esquadrinham com os olhos, por
entre os jatos de vapor, se por acaso alguma
penosa conseguiu chegar até ali, esquivando-se à
vigilância...
Paide se levanta para recolher uma a uma as
bétulas das mãos dos purpurados, notando nos
olhos deles um lampejo malicioso de sua
esperança aos danos do pobre Mascheroni. Este
sentou-se, rígido e teso, bem diante da maior boca
de vapor, que lança baforadas em seu rosto. A
tosse sacode-lhe o peito quando se aproxima,
cingido de uma toalhinha, Kapplmüller, o tenente
dos guardas suíços, que recebeu a tarefa de
escoltá-lo, perguntando como sua eminência se
sente.
— Como me sinto?... Um pouco estranho, mas vai
passar — e na parede que continua a vomitar um
vapor branco às suas costas vê apenas uma forma
indistinta, alta, à sua frente, mal reconhecível pela
sua voz. Apenas quando acaba a emissão,
calculada por um termostato, sua tosse começa a
abrandar e o olho vai se habituando à penumbra
da sala.
Então, vê o tenente, o jovem Hans Kapplmüller,
que lhe dá as costas, juntando-se a seus três
companheiros. A visão daquelas costas de
musculatura perfeita, daquela nuca forte coroada
por uma cabeleira de cachos dourados e de pernas
sólidas como colunas parece-lhe insustentável.
De fato, também está diante dele a degradação do
corpo rigoroso de Wolfram Stelipyn e do arcebispo
de Palermo, reduzido pela obesidade a uma
caricatura vergonhosa. Logo à direita o ladeia o
prelado de Nápoles, cuja artrose reduziu seu perfil
a um parêntese curvo, com um queixo que chega
até as orelhas, e de escassos cabelos brancos
desalinhados pelo vapor de água e eriçados sobre
a cabeça, como se fosse um espantalho. O passo
fatigado e claudicante do cardeal de Gênova
parece que deseja se entregar logo à imobilidade,
enquanto o rosto avermelhado assinala o cansaço
daquela respiração que nos jovens suíços, ao lado
de seu oficial, ao contrário, se assemelha ao sopro
natural de uma brisa marinha.

Mas que lugar é este?


A que tortura se submeteram seus eminentíssimos
irmãos! E preciso muita coragem para encarar a
verdade sobre o amadurecimento da idéia da
morte; é um verdadeiro exercício de paciência e
mortificação o fato de se despirem todos juntos,
digno de Santo Inácio de Loyola. E ele que temia
sabe-se lá que inconvenientes por causa do hábito
que usam!
Agora lhe tocava apenas o espetáculo do contraste
entre a própria dignidade, sustentada pelo hábito
no esplendor da púrpura, e a verdade daqueles
corpos que mão alguma acariciara durante a noite,
no segredo de um tálamo conjugal. Aquelas carnes
nunca conheceram a doçura que atenuava o seu
declínio. E, se um dia foram vistosas e belas como
a daqueles magníficos jovens, nunca o foram para
deleitar os olhos de uma mulher. Jovens e
fecundas para ninguém, elas foram oferecidas a
Deus e ao tempo que as consumisse. Mas a comu-
nidade dos crentes recebia o tesouro de tal
martírio silencioso; um sacrifício que não era mais
feito com as feras do Coliseu, mas pelo
desabrochar dos amores de irmãos e irmãs,
resultando no nascimento de seus sobrinhos. A
Igreja era rica dessas renúncias, uma ferida aberta
que nos acostumamos a suportar, ainda que às
vezes sejamos levados a pensar em como teria
sido a outra escolha. Os rapazes que prestam
serviço no corpo militar talvez mais antigo da
Europa, como todos os soldados, voltarão para
casa depois de um certo período, e logo
encontrarão uma mulher. Para eles, esse serviço, o
conclave, essa longa separação da outra metade
do céu, será apenas uma recordação da
juventude.

Bem naquele momento vê o tenente Kapplmüller


virar-se, oferecendo à sua vista o rosto encharcado
de suor brilhando pela respiração, o peito todo
aberto, os flancos envoltos por um pedaço de
toalha enrolado com cuidado ao redor da cintura.
O sorriso que paira em seus lábios, resíduo de
alguma conversa com seus companheiros, está se
dissipando, impregnado da consciência do dever.
O dever de vigiar aqueles velhos e ele mesmo,
sem fazer muitas perguntas, sem comentar nem
discutir as ordens do comandante. Mas que
vergonha agora mostrar-se àquele homem na
mesma nudez dos outros cardeais! Como sente
desaparecer toda a sua autoridade sobre aquele
oficial acostumado a receber suas ordens sem
sequer olhar em seus olhos, sem parar nem
mesmo para ver se o rosto dá sinais de cansaço.
Sentado no banco, ao lado de Stelipyn, que está
impaciente para falar com ele, percebe que é
muito pequeno, mas não em estatura, diante
daquele soldado em pé.
O cardeal Zelindo Mascheroni fecha seus velhos
olhos que já estavam desacostumados a amar a
beleza, esquecendo-se do reino de que usufruía na
Terra. E por alguns instantes, recebendo
novamente uma baforada maior e mais forte,
mergulha na vontade de desaparecer por entre
aquelas nuvens, longe do ultraje dos anos e da
solidão da velhice.
— Eminentíssimo... estou muito contente que o se-
nhor esteja aqui conosco... — A voz adocicada de
Stelipyn procura levá-lo de volta à razão de sua
presença ali. Porque agora Mascheroni percebe
que os mexericos sobre a reunião no banho turco
foram apenas um truque, imaginado pelo prelado
eslavo para atraí-lo também.
Reabre os olhos diante daquele homem arqueado
pela idade, com um rosto enrugado que
atravessara muitos invernos russos, alguns no
cárcere na época da perseguição soviética. Proíbe-
se de olhar para o lado dos guardas suíços, e
responde às conveniências do velho cardeal, que é
muito forte, apesar de sua senilidade:
— E eu estou contente de encontrá-lo, caro
irmão; mas tratemo-nos por você.
— Não estamos aqui para fazer o banho turco,
como já deve ter notado. Devemos procurar sair
daqui com idéias claras, mais claras do que as de
hoje à tarde.
— Primeiro, deixe-me mandar os guardas
embora, não é necessário que fiquem.
— Mas por que os trouxe consigo?
— Porque eu temia que... Deixe que eu lhe
explique isso um outro dia. Já é tarde, não temos
muito tempo.
Fechando o roupão, o cardeal Mascheroni se dirige
ao tenente Kapplmüller e a seus soldados, dando
alguns passos em sua direção.
Todos os quatro estão apoiados na parede, de pé,
pois não tiveram a ousadia de se sentar ao lado
dos cardeais.
Tendo-se encharcado de suor, a toalhinha aderira
à sua pele, delineando seus flancos na perfeita
forma física de quem deve manter o próprio corpo
disciplinado.
Um dos quatro cardeais que se levantou naquele
momento, de rosto indiscernível por causa da
névoa dos vapores, mostra seu sexo pela abertura
do roupão na altura da cintura. Mascheroni ainda
está se virando, para se esquecer da ofensa
àquele pobre confrade, que lhe proporcionou sem
querer a indiscrição de uma visão tão penosa.
Recorda o episódio bíblico de Cam, quando
descobre a nudez de Noé, o velho pai bêbado. E a
ofensa do patriarca humilhado. Vira-se ainda para
falar ao tenente, e sente uma garra tocar seu
peito, intimando-o a olhar aquele corpo, onde o
sexo fica apenas em sua imaginação. O cérebro se
obscurece, enquanto com um fio de voz sussurra
ao tenente Hans Kapplmüller para retirar-se com
os seus soldados. E, sem saber como, sai de sua
boca que estará esperando por ele mais tarde, em
sua cela, para que este lhe apresente o relatório
do dia.
Apóia-se na parede. Um grande espelho à sua
frente, por cima da pia, reflete sua imagem. Pelo
espelho vê o grupo dos guardas saindo atrás dele.
O que está acontecendo ? Ceder a esse tipo de
inquietação aos 70 anos?... Logo ele, que é o
exemplo de ética? Ele, que recebeu de Deus o
poder de perscrutar o coração dos crentes,
regulando o mistério e o dom da sexualidade? Ele,
que expulsou da Igreja todo aquele que se
entregou a esse tipo de desejo, o qual antes já se
havia manifestado também a ele com uma força
assustadora, que só encontra oposição em sua
vontade de se humilhar?
Então é isso que sofrem os rejeitados, os
depravados por ele banidos da comunhão dos
sacramentos. Esse é o horror que lhes impunha
em nome de Cristo. Por toda a vida, desde seu
seminário no Prato, ainda rapaz, foi o mais
implacável acusador do professor de teologia,
propenso a certas atenções para com os jovens
seminaristas, quando os recebia em seu estúdio...
Ainda vê a barba ruiva do pálido rosto de padre
Esmeraldo, o teólogo colombiano que chegou aos
40 anos àquele seminário, onde parecia ter sido
escondido por seus superiores. E ainda pode sentir
a mão úmida do padre que acaricia sua nuca entre
o colarinho branco e a pele, o arrepio é o mesmo...
E no dia em que foi interrogado pelo reitor do
seminário depois de ter denunciado o colombiano,
não demoram para assinar a declaração que iria
expulsar padre Esmeraldo. Na memória ecoa a
resposta à pergunta do companheiro de quarto:
"Mas o que aquele infeliz fez contra você? Ainda
que nos tocasse, era um bom professor...". "Não,
era um ser asqueroso..."

— O que você tem, Mascheroni? Está se sentindo


mal? Talvez seja melhor que saia, é perigoso ficar
aqui dentro por mais de 15 minutos. — Paide está
lhe falando, enquanto segura seu braço com
cuidado.
Retira-o dali, como se tivesse sido picado por uma
serpente. E Paide observa-o bem no rosto. Que
tipo de homem deveria ser Mascheroni, vindo até
ali com grande aparato de guardas, como se
quisesse expulsá-los, e que agora está tão
trêmulo, tão pálido, tão incapaz de ser ele mesmo,
sem os emblemas de sua hierarquia? Não
suportava sequer a idéia de ser roçado...
— Sim, talvez seja melhor que eu saia um
instante... É estranho... sinto muita sede.
— Mas isso é natural, você suou muito.
Zelindo Mascheroni sai da sala do banho turco
cambaleando. Encontra logo o monsenhor filipino,
que o leva para beber algo numa salinha equipada
com geladeira e bebidas.
Pede licença para se vestir e é acompanhado até
seu vestiário. Quando sai, com a batina, o solidéu
vermelho e a cruz peitoral de brilhantes, não se
sente melhor como esperava. O hábito não lhe
devolveu, com a aparência, seus mais íntimos
pensamentos, onde reina a imagem daquele corpo
seminu, com o sexo encoberto.
Pede logo um espelho.
Levado até o espelho, em sua imagem vai
lentamente reconhecendo a máscara do homem
que agora duvida poder ser. E sente de novo
vontade de se anular, mesmo não cedendo ao
desejo que já se apoderou dele.
Em seu coração maldiz a idéia de visitar aquele
lugar. O suor corre em seu rosto como cascata,
passa e repassa o lenço na face e no alto da
cabeça, onde pela manhã caiu o esterco da
galinha. Parece realmente que a máscara não
conseguirá mais voltar a seu rosto. É melhor ir
embora, talvez longe dali tudo se recomponha.
— Por favor, diga ao cardeal de Lviv que não me
senti bem e que estou voltando para minha cela.
Falarei com ele amanhã.
Não lhe importa mais o conclave, mesmo que
tenha vindo até ali para ajudar os cardeais a
resolver aquele problema.
O impulso de fugir é mais forte.
Deseja preparar-se para o encontro com
Kapplmüller, que chamou para o relatório. Não
sabe por que lhe deu essa ordem absurda, ele não
pode manter o encontro com o jovem tenente, não
pode, não pode... Não sabe o que lhe dizer,
sozinho, em seu quarto... E, no entanto, deve
correr para recebê-lo, deve preparar-se para o
encontro... Deve haver um jeito para vivê-lo sem
sofrer o horror que sentiu em meio aos jatos de
vapor, enquanto espiava sua beleza... Deve haver
um jeito para que aquele jovem se ocupe dele,
sem ter de sentir essa vergonha... Deve haver um
jeito que salve tudo, sua honra, o desejo que o
sacudia como uma velha planta atingida pelo raio,
e toda a sua vida que levava a julgá-lo... Poder
aparecer sem fingimentos, e logo desaparecer,
mal tendo se revelado... Um gesto, uma máscara,
uma hora que fosse já fora da vida...
A notícia de que Zelindo Mascheroni se foi porque
não estava bem parece perturbar apenas o
arcebispo de Lviv. Todos o sentiram como um
corpo estranho lá dentro. Alguém que viera talvez
para colher alguns segredos ou comportamentos,
com o mesmo ar de superioridade que sempre
teve. E, depois, levar consigo aqueles quatro
soldados, que indelicadeza, que falta de tato!... Só
os modos suaves de Stelipyn lhes fizeram notar a
grossura e os convenceram a se despedir.
— Aquele homem está mal... E estará ainda
pior, precisa de ajuda... — diz Stelipyn, como se
pensasse em voz alta.
— Mas devemos nos ocupar de outra coisa,
Wolfram, estamos aqui por causa de nossos
irmãos africanos — diz Malvezzi, certo de
interpretar o pensamento de muitos, que nesse
ínterim saíram do banho turco, um para relaxar
deitando-se nas camas de espuma, envolto na
toalhinha, outro para ir à sauna.
— Temo pelo que está para acontecer... e que
cairá sobre nós... — acrescenta o prelado eslavo
com um fio de voz. — Devemos rezar por ele...
— Vamos para a antecâmara, não posso mais
agüentar aqui, venha, Wolfram — e Matis Paide
ajuda o ucraniano a se levantar e a sair, imitado
por quem ficou sozinho na sala de vapores.
Agora quase todos sentam nos bancos e nas
cadeiras da antecâmara que dá para os aposentos
e vestiários onde estão os leitos. Os cardeais que
se encontram na sauna também são chamados.
— Estamos quase todos aqui... — brinca Rabuiti,
com o rosto vermelho pela reação ao calor
suportado. E do fundo do coração maldiz aquela
prática física, saudoso do belo sol da sua Sicília,
onde as pessoas podem se aquecer de dia e ao ar
livre.
A conversação entre os cardeais de roupão branco,
uns ocupados em enxugar os cabelos, outros, os
joelhos e os braços, e outro, ainda, o rosto, foi
subitamente encarada pelo cardeal de Kampala,
Joseph Masaka, que naquela manhã obteve 23
votos.
Em nome dos demais africanos exprime toda a sua
gratidão pela confiança nele depositada. Ninguém
pretendia fugir à sua responsabilidade, mas
consentiam expor algumas dúvidas com relação à
conveniência de uma escolha tão radical. Na
Antiguidade, as guerras civis, que despedaçaram a
unidade imperial até chegar à destruição de Roma,
eram iniciadas cada vez que o trono era arrancado
de uma das várias províncias do Império. E assim
aconteceu com os imperadores espanhóis, ilíricos,
africanos, árabes, até a dissolução nas mãos do
bárbaro Odoacro, que devolveu as insígnias
imperiais ao imperador romano de Bizâncio. O
papado na África suscitaria no futuro o direito de
todos os componentes do catolicismo a herdá-lo,
tendo por conseqüência a perda da centralidade
romana, cujos discutíveis frutos já se vira com o
falecido pontífice. A visão parcial prevaleceria
sobre a universal, causando prejuízos à missão do
bispo de Roma. Se um deles fosse eleito,
inevitavelmente levaria consigo todo o peso de
sua cultura, de suas tradições e de seus limites.
Porque a África não era apenas o mito que o
eminentíssimo irmão de Lviv pintara.
Era também animismo, pensamento mágico, fé no
oculto, bruxaria, recusa da racionalidade ocidental,
culto tribal, primazia da força física sobre a razão,
direito do mais forte, promiscuidade sexual,
poligamia, inocência e crueldade dos sentidos.
Eles estavam orgulhosos de pertencer àquela
miscelânea de elementos, àquele ajuntamento de
forças, mas temiam que isso pudesse prejudicar a
Igreja uma vez divulgada pela cátedra de Pedro.
Não se eximiam, confirmavam-no, estavam
prontos para o sacrifício, para aceitar a tiara. Mas
tinham o dever de fazer os outros refletir sobre
uma escolha tão arriscada, convencidos de que a
universalidade da Igreja ainda pudesse encontrar
na escolha de um papa italiano seu mais válido
suporte.
As conclusões do ugandense traziam grande
agitação à sala. Tem o efeito de uma verdadeira
bomba o fato de que venha justamente da África o
apoio à causa perdida da Itália. Cerini, Rabuiti,
Malvezzi, Bellettati, Rossi Del Drago, Ferrazzi,
Capuani, Leporati, Marussi e Lo Caseio sentem-se
de novo no jogo, quando esperavam ver fechada
para sempre a porta à Itália.

Levanta-se primeiro para responder a voz fraca do


prelado ucraniano, suplicando os confrades a ouvi-
lo.
E um grave erro temer que as culturas locais
anulem o papado. Pelo contrário, irá fortalecê-lo.
A centralidade de Roma é só uma fórmula vazia,
um cerimonial exangue, cada vez mais distante
das jovens gerações, da humanidade do futuro. Foi
sempre uma presunção de Roma querer exprimir a
vontade de todos sem ser nenhum deles. Havia
um sentido no início da história da Igreja, quando
esta era ainda herdeira do Império Romano. Mas
que já foi superada há séculos; finge-se esquecer
por que Lutero foi tão perseguido? E o cisma do
Oriente? Ele, que vem de lá, sente que apenas
aceitando a variedade do mosaico poderá
preservar o projeto do conjunto.
Foi interrompido pela reflexão em voz alta do
cardeal de Turim:
— Só um santo poderá salvar a Igreja; é
preciso um santo no topo, que demonstre com a
força de um milagre a origem divina da Igreja. O
mundo quer fatalidades, força de fatos, violência
dos argumentos, escândalo da razão...
— E quem de nós é santo? — exclama Matis
Paide, irônico.
— Ninguém — responde Stelipyn —, nenhum
de nós já é santo. Os santos sempre eram
descobertos depois, quando a morte iluminava sua
santidade... E talvez entre nós haja um que irá se
tornar...
— Mas Deus não quer revelá-lo, ou nós somos
tão cegos que não reconhecemos seus sinais
enquanto está vivo? Nós que acreditamos que o
conclave é iluminado pelo Espírito Santo... — É
Alfonso Cerini quem está falando, com a habitual
dramaticidade de voz e de gesto.
E continua, dirigindo-se a Malvezzi:
— Contudo, caro Ettore, os santos não têm nenhu-
ma nação, não pertencem à história, mas à
eternidade, não acredito que um santo consiga
governar a Igreja, uma instituição comprometida
com a arte de governar os homens, que não são
santos...
— ... Mas um exorcista sim! Este pode ajudar a
Igreja na situação em que nos encontramos.
Vejam todos em que estado estamos, oprimidos
pelas forças do Mal, e certamente não inspirados
pelo Espírito Santo! — exclama Ettore Malvezzi.
- 16 -
No meio da noite Vladimiro Veronelli é acordado
pelo fiel Squarzoni.
— Desculpe-me... eminência, mas ocorreu um
fato grave... o senhor deve vir comigo.
— Mas o que aconteceu?
— Trata-se do cardeal Mascheroni. Disseram-
me para falar apenas com o senhor e pedir-lhe que
venha imediatamente aos aposentos do prefeito
da Congregação para a doutrina da fé. Mas eu
também não sei precisar nada...
Veronelli custa a se vestir, resfriado e sonolento
como está. Não faz mais perguntas, Mascheroni é
um inimigo perigoso, é preciso estar de sobreaviso
e não subestimar a ameaça. E é melhor não falar
com o decano, Leporati. Só iria complicar a
situação, se o que ocorreu requer tanta discrição.
Ao seguir monsenhor Squarzoni, que usa uma lan-
terna, sente repentinamente algo que agarra seus
cabelos e os puxa. Espantado, pára e leva a mão à
cabeça, para livrar-se daquele estorvo. E logo o
retira, horrorizado pelo contato com o pequeno
corpo quente e aveludado, que se agita entre seus
dedos e guincha... É um morcego... Só então
percebe que seu secretário também está tentando
livrar seus cabelos daquele rato voador; a
oscilação da lanterna nas mãos de Squarzoni por
acaso joga um feixe de luz no teto, revelando-o
infestado de morcegos.
Há legiões deles: nas traves, na cornija, nas
molduras dos quadros, e agora, assustados com a
luz elétrica, voam e guincham todos juntos num
concerto insuportável.
Que se trata de uma nova infestação do palácio, o
camerlengo não duvida quando chega à porta dos
aposentos de Mascheroni, onde esperam por ele o
tenente da Guarda Suíça e Tommasini, o
secretário particular do cardeal. Nenhuma sala ou
corredor está livre de tais criaturas, que, depois de
ter livrado seus cabelos da primeira delas com
grande dificuldade, obrigaram-no a manter sempre
as mãos sobre a cabeça para afugentá-las.
— O que aconteceu para acordarem-me a
essa hora da noite?
— Venha conosco, eminência, o senhor
mesmo verá — responde Tommasini, com os olhos
cintilantes de quem andou chorando.
Ultrapassam a soleira da antecâmara, passam ao
estúdio do cardeal e entram no pequeno quarto.
E o camerlengo compreende que motivo
realmente grave levou a acordarem-no.
Na cama jaz, na imobilidade da morte, o cardeal
Zelindo Mascheroni, prefeito da Congregação para
a doutrina da fé.
Está de roupão, deitado sobre o lado esquerdo,
com as mãos e os braços estendidos num esforço
evidente para conseguir tocar a campainha na
mesinha-de-cabeceira, a fim de pedir ajuda. Mas o
rosto não é o do cardeal: é o de uma mulher ainda
não completamente maquiada. As pálpebras
semicerradas estão pintadas, os cílios de um olho
estão escuros, uma sobrancelha delineada com
lápis, as bochechas têm pó-de-arroz e foram
reavivadas com blush, os poucos cabelos da
cabeça pelada desapareceram sob uma grande
peruca louro-escura.
Veronelli não consegue conter as lágrimas.
Passam-se alguns segundos de absoluto silêncio
antes de encontrar sua voz. Pigarreia.
— Mas quem... quem o deixou nesse estado?
—- Ninguém, eminência. Eu o encontrei assim
quando vim, seguindo suas ordens, para
apresentar-lhe o relatório quase à uma da
madrugada. — É o tenente Kapplmüller quem está
falando.
— Deve ter morrido de enfarte, de repente —
acrescenta o tenente. — Dadas as circunstâncias,
preferimos esperar pelo senhor, antes de chamar o
médico, mesmo porque já não havia mais nada a
fazer.
— Fizeram bem. Mas... e a peruca? E a
maquiagem?
— Ele a encontrou no quarto, perto da escada,
onde as mulheres de serviço guardam suas coisas,
às vezes era ele quem lhes dava as ordens,
conhecia todas elas... deixaram lá suas coisas,
antes do conclave... — acrescenta monsenhor
Tommasini, dando livre curso às suas lágrimas. —A
peruca... pegou a peruca da imagem de Santa
Zita, de quem era devoto... e está na capela... Era
Lucchese... mandou trazê-la aqui...
— Oremos pela sua alma agora. — E o cardeal
camerlengo lentamente dá a bênção ao corpo,
dando voltas ao redor do leito, enquanto Squarzoni
recita o Requiem aeternam junto com Kapplmüller.
Não consegue tirar os olhos daquele rosto,
daqueles traços tão estudados, que no último
momento da vida foram o único cuidado desse
homem. É possível que a morte o tivesse
surpreendido enquanto estava ocupado em
transformar o próprio rosto, entregando-o para
sempre àquela nova e monstruosa forma?
E agora, quem teria coragem de desfazer aquela
máscara? É óbvio que não poderiam enterrar na
igreja de que era titular, a catedral de Frascati, o
corpo tão obsceno de um cardeal. E era ele quem
deveria dar as ordens.
— Monsenhor Tommasini, antes de chamar os
médicos, devo pedir-lhe um ato de compaixão
para com o homem que serviu por tantos anos.
— O... o que posso fazer? — pergunta o
secretário particular de Mascheroni.
— Não podemos expor o corpo assim...
— Ah, estou entendendo, deixe comigo... deixe
comigo.
— Para todos, o cardeal faleceu de uma parada
cardíaca durante o sono, não é mesmo, tenente?
— Claro, eminência, claro, entendo
perfeitamente...
— Tenho a palavra de vocês?
— Certamente...
— O senhor, tenente, era o último que deveria
vê-lo, não é mesmo? Marcou um encontro aqui
para apresentar o relatório, se é que entendi certo.
— Sim, é isso; nunca me pedira isso antes.
Estávamos no banho turco, onde não se sentiu
bem.
— O que ele tinha quando falou com você?
Notou algo de estranho?
— Só que custava a respirar.
Logo, preparou-se assim para o encontro com o
tenente: deveria ser este jovem oficial da Guarda
Suíça a pessoa para quem iria se mostrar nessa
máscara fúnebre. E fecha os olhos quando vê
Tommasini tirar rapidamente a peruca da cabeça
do cardeal e ir ao banheiro pegar algodão hidrófilo
para retirar as marcas daquela maquiagem
grotesca, limpando o rosto que vai ficando cada
vez mais pálido.
Quando abre os olhos de novo, é a figura robusta
do suíço que enche seu campo visual. Sem elmo,
com a camisa desabotoada, com o desleixo que
uma hora tão avançada assim permite... As horas
da noite, em que a maioria dos seres humanos
passa junta, um homem e uma mulher, abraçados
na mesma cama... E percebe que o coração de
Zelindo Mascheroni não conseguiu suportar a
emoção. E se comove de novo, enquanto recita o
Requiem aeternam.
Estão batendo à porta do apartamento, alguns
cômodos mais à frente.
— Não deixe ninguém entrar, monsenhor, o
cardeal Mascheroni dorme, e não quer ser
incomodado de modo algum, por nenhum motivo
— recomenda Veronelli.
Tommasini o tranqüiliza:
— Era o cardeal Malvezzi, que não conseguia
dormir. Estava passando por aqui, viu a luz acesa
e ficou preocupado: depois do que aconteceu hoje
ao cardeal Mascheroni, na torre de São João, temia
que tivesse se sentido mal. Mas eu lhe disse que
está bem e que dorme. Ele disse que os morcegos
invadiram todo o palácio e agrediram os
eminentíssimos, quando saíam do banho turco.
— Ao amanhecer, virá nosso médico para lavrar a
certidão que irei lhe ditar. Celebraremos os
funerais, assim que os parentes e as autoridades
de Roma forem avisados. Vocês receberão
instruções minhas. Por ora, a ordem é manter o
mais absoluto silêncio. Até amanhã, boa-noite,
tenente. Vamos, Squarzoni, e que Deus nos ajude
— conclui Veronelli.

O camerlengo, embora ainda resfriado, quer falar


logo com Malvezzi, para saber o que disseram na
reunião no bastião de São João e, se for o caso,
comunicar-lhe a trágica notícia, calando alguns
particulares. Precisa analisar as primeiras reações
e entender o que foi decidido, se é que algo foi
decidido.
Encontra Malvezzi, que acabara de chegar a seus
aposentos, com os cabelos desalinhados, a batina
suja, os dedos arranhados, sinais do inequívoco
tormento dos morcegos. Parece contente de vê-lo,
incapaz de adormecer, desejoso como sempre de
desabafar sua ansiedade com as palavras. Resume
em poucas palavras o que veio à tona no banho
turco. Os africanos fizeram objeções, temendo a
perda de centralidade do papado, no caso de uma
escolha que lhes privilegiasse, e mantinham a
idéia do retorno a um papa italiano. Mas a
resistência de seu "patrono", Stelipyn, fora
incansável e dera lugar a uma conversação cheia
de controvérsias.
Um dos africanos, o arcebispo de Kampala, ressen-
tiu-se mais que os outros das várias insistências
em relação a ele, e então se iniciou uma autêntica
prova de desculpas e de pretextos entre os outros
oito para subtraírem-se a uma candidatura. Um
alegava o direito à iminente aposentadoria, como
o cardeal de Adis-Abeba; outro lamentava suas
condições de saúde, como o de Kinshasa; outro
não podia abandonar um país sempre à beira da
guerra civil, como Moçambique, onde fazia às
vezes de árbitro pacificador em meio a ferozes
rivalidades; outro ainda acabara de iniciar a fase
mais delicada de uma segunda evangelização num
país ainda sacudido pela guerra civil, como Angola.
Um não deixava herdeiros à altura de prosseguir
sua missão, porque eram muito jovens e
inexperientes, como o de Camerum; outro ainda
deveria aperfeiçoar a tradução da Bíblia em
swahili, instrumento indispensável para a difusão
da fé num país como a Tanzânia, em que o
Islamismo tinha cada vez mais adeptos...
Na verdade, pareciam todos unidos contra um
deles, segundo Malvezzi, desde que ele mesmo, no
auge de uma discussão sobre sua santidade, ainda
que sem a intenção de nomear ninguém,
ingenuamente evocou a oportunidade de eleger
um exorcista, tendo em vista o clima que reinava
no conclave...
— Porque durante toda a discussão que se
seguiu — precisa Malvezzi —, olhavam-se nos
olhos por alguns instantes, enquanto alegavam
seus vários pretextos, para depois observarem
sempre a mesma pessoa, como se eu conhecesse
seus poderes e os tivesse evocado de propósito, e
eles não quisessem cair em minha armadilha...
— Mas você não sabia mesmo que há um
exorcista entre os africanos? — pergunta-lhe então
Veronelli, continuando a não acreditar nos modos
suspeitos e hesitantes do arcebispo de Turim.
Depois, diante da perplexidade de Malvezzi, que
permanecia calado, põe fim à conversa e pergunta
quem é esse cardeal.
— O da Tanzânia, arcebispo de Dar Es-
Salaam, Leopold Albert Ugamwa — responde
Ettore Malvezzi. E acrescenta que no fim da
discussão, tarde da noite, Ugamwa fora obrigado a
admitir que em sua diocese expulsou os demônios
de muitas almas, mas nunca deixou ninguém
saber disso.
Veronelli procura lembrar-se dos traços daquele
purpurado africano, mas custa a evocá-los,
receoso de confundir a sua fisionomia entre os
africanos que sentam a seu lado, nas primeiras
filas, à direita de seu assento na Sistina.
Só um particular da descrição de Malvezzi é que
conseguiu iluminá-lo, quando se detém nos olhos
de uma inquietação terrível, grandes, redondos,
negríssimos, móveis, mas quase sempre
cabisbaixos, como se tivesse de domar sua
rebelião. Agora, sim, lembra-se do brilho daquele
olhar, que algumas vezes cruzara com o seu...
Sabe-se lá por que, é nesse momento que a
imagem das pálpebras sombreadas dos olhos
selados pela morte do cardeal
Mascheroni aparece diante dele. Dá a notícia de
sua imprevista morte por infarto a Malvezzi, que
dá mostras de não conseguir se resignar e
continua a repetir, seguindo seus pensamentos:
— Eis por quê! Eis por quê!...
— Por que o quê, Ettore?
— Eis por que ele queria ir embora. Eis por que
tocava várias vezes a sua testa, como se quisesse
afugentar algo que o atormentava, até Paide
percebeu e lhe aconselhou a sair. Mas o mais
impressionante foi o comentário de Stelipyn,
depois que Mascheroni saiu, um comentário que
previa uma tragédia, mas também fazia referência
a conseqüências obscuras para o conclave...
— Que conseqüências?
— Não as precisou, mas lembro-me das palavras
de Stelipyn: "Temo por aquilo que irá lhe
acontecer... e que cairá sobre nós."
Aquele tipo de staretz5 que é o ucraniano, pensa o
camerlengo, então é dotado de espírito profético.
Foi melhor não ter precisado a dolorosa profecia,
permitindo-lhe esconder a parte da verdade que
não pode ser revelada.

5 Estrela. (N. da T.)


— E o que faremos amanhã, votaremos assim
mesmo? — pergunta Malvezzi.
— Não, Ettore, deveremos observar ainda por
um dia o luto pela morte de Mascheroni.
— Melhor assim. Sabe, saímos todos da torre
mais incertos que antes. É como... como se aquele
africano que afugenta os demônios materializasse
o medo que todos sentem aqui dentro.
Mas Veronelli não quer continuar aquele discurso.
Já havia preocupações demais.
É preciso garantir logo um funeral regular ao
cardeal Zelindo Mascheroni, o prefeito da
Congregação para a doutrina da fé, um dos
fundamentos da Santa Sé, apesar de sua es-
candalosa saída de cena. Depois, há a nova praga
dos morcegos. Mas há de se encontrar um
remédio, como para as outras.
E depois deve procurar Stelipyn, cuja previdência
pode ser providencial naquela situação do
conclave e talvez já tenha oferecido seus frutos
mais preciosos, exortando a uma escolha africana.
Veronelli, então, se despede de Malvezzi,
desejando-lhe boa-noite, embora já se possam
entrever as primeiras luzes do alvorecer e alguém
nas janelas defronte, por trás dos vidros amarelos
iluminados, já se encontre de pé e em movimento.
O único alívio por ter se atrasado tanto nessa noite
terrível é que as primeiras luzes afugentam os
morcegos em seus cantos, deixando terreno para
as galinhas e para os gatos...
Ao voltar para seu apartamento, encontra
Squarzoni, que espera por ele:
— Eminência, temos de redigir os proclamas
dos funerais e dar logo as ordens.
— É verdade... Mas o senhor sabia algo sobre
aquele pobre homem?
— Não, eminência, o cardeal Zelindo
Mascheroni era a pedra angular da severidade dos
costumes, nunca ouvi falar nada que pudesse
repreender sua pessoa.
— Ele tinha um irmão e uma irmã em Lucca.
Por favor, comunique-lhes a notícia em meu nome,
do melhor modo. Depois eu gostaria de falar
novamente com o tenente dos suíços; como se
chama?
— Kapplmüller, Hans Kapplmüller.
— Talvez encontremos uma hora para ele,
amanhã não teremos tempo nem para respirar... Já
expliquei ao cardeal de Turim que Mascheroni
morreu de repente durante o sono. Alguém já lhe
perguntou alguma coisa?
— Alguns colegas, e dei a todos a mesma
explicação. Mas é estranho. Parecia que ninguém
estava assim tão curioso de saber dos particulares,
como temíamos.
— E... por que, na sua opinião?
—- Não sei ao certo... Mas, talvez... Talvez porque
ninguém gostasse dele, pobre cardeal. Poderia ter
vivido sua vida... No fundo teria sido mais
humano...
O camerlengo, que já havia tirado a cruz peitoral,
a batina e o manto escarlate, se vira bruscamente:
— Monsenhor Squarzoni! Fingirei que não o ouvi
desta vez. A mulher de César não pode ser
suspeita! Nós somos essa mulher: a Igreja é a
esposa de Cristo. O perdão sim, a compaixão sim,
mas o consenso, lembre-se do hábito que usamos.

- 17 -
Na sala Clementina, onde as corujas dormem
durante o dia, como em qualquer aposento do
palácio, se celebram o funeral do cardeal Zelindo
Mascheroni. Ao acordar, de noite, as aves de
rapina arranjadas por Nasalli Rocca retomariam
sua luta contra os ratos voadores. Porém, o mais
terrível inimigo dos morcegos, o fogo, ajudaria na
guerra com as tochas e os archotes que seriam
acesos por todo o palácio para espantá-los.
O rito fúnebre é concelebrado por três cardeais de
cúria —- Rondoni, Racanelli e Lo Caseio —, que
durante anos trabalharam ao lado do defunto, e
pelo caráter oficial do lugar, onde foi exposto o
corpo do falecido pontífice, há um tom modesto
próprio a um conclave. Nenhum canto, nenhum
hóspede externo, nenhum representante do
governo italiano.
Até a família do morto poderá acolher seu
estimado parente apenas em Frascati, onde será
recebido para o solene sepultamento na catedral
da cidade.
O cardeal decano Antonio Leporati foi encarregado
das celebrações. Durante seu discurso, diante dos
purpurados, todos sentados, com os olhos várias
vezes voltados para o teto, para espiar as corujas,
também levou os cardeais a se distraírem do
féretro, das velas, dos quatro guardas suíços que
prestam serviço de honra nos cantos do tapete sob
o caixão ainda aberto.
Da primeira fila, o camerlengo observa pela última
vez a máscara em que o rosto maquiado do
cardeal foi recomposto pelas mãos piedosas do
secretário do falecido.
Por uma singular coincidência, é justamente o te-
nente Kapplmüller que presta serviço de honra ao
príncipe da Igreja, com o rosto semi-encoberto
pelo elmo recurvado, impenetrável. Parece que os
atores daquela tragédia, após a catarse final,
ainda não decidiram se separar, numa última
despedida de seus espectadores secretos. Do
fundo da sala, misturados à pequena multidão de
prelados, monsenhor Tommasini e monsenhor
Squarzoni notam a inoportuna presença daquele
jovem oficial. Entreolharam-se logo que viram o te-
nente se apresentar para ceder a passagem aos
soldados. Nunca trocaram uma palavra sobre o
que aconteceu naquela noite, mas ambos
preferiam que sua presença fosse evitada.
Antonio Leporati terminou sua homenagem.
Falou, matizando com longas pausas suas
observações sobre o rigor e sobre a extraordinária
riqueza doutrinal que caracterizaram a vida e o
ministério do prefeito da Congregação para a
doutrina da fé. Não deixou de lembrar, entre as
prováveis causas de uma morte tão imprevista,
sua preocupação em contribuir para a solução
daquela difícil escolha que os reúne em Roma.
Naquela altura o camerlengo, que está sentado a
poucos metros de Kapplmüller, notou um pequeno
estremecimento do tenente, uma oscilação
mínima de sua esguia figura.
Na primeira fila, a poucos metros de distância de
Veronelli, está sentado também o arcebispo uniata
Stelipyn. Várias vezes Veronelli intercepta seu
olhar comovido, talvez o único de todos os
presentes que verte lágrimas durante o discurso
de Leporati. Aquele homem sabe, mesmo não
tendo visto o que descobrira, quando ele foi
acordado no meio da noite. Tem de falar-lhe a sós,
não negará os dons de sua premonição a quem
possui a suprema responsabilidade sobre o
conclave.
Terminado o rito fúnebre, enquanto o corpo do
cardeal Mascheroni deixa os muros leoninos, os
cardeais voltam para suas celas.
Um outro dia inútil se foi, entristecido outra vez
pela morte, após a do arcebispo do Rio de Janeiro,
Emanuele Contardi. Cresce a sombra da reclusão
forçada, num lugar infestado de morcegos como
uma antiga ruína medieval, defendido por gatos e
galinhas como se fosse uma cidadela abandonada.
Parece que a única saída daquele conclave infinito
seja a trilhada por Contardi e Mascheroni, o
primeiro após extenuantes sofrimentos, como se
custasse a merecê-la; o segundo, com a
velocidade de um relâmpago, como quem não
quisesse perder uma oportunidade que não iria se
repetir mais. Há quem ainda ouça as palavras de
Stelipyn, no momento em que Mascheroni deixava
a torre de São João para ir morrer, aludindo "ao
que está para acontecer e que cairá sobre nós".
Não é difícil verificar a credibilidade de tais
palavras, no clima de sobrecarregada depressão
causado pela morte repentina do homem que
apenas 24 horas antes de morrer clamara contra a
inércia do conclave. A quem irão se referir agora,
na confusão geral dos ânimos?
A Stelipyn, com sua contagiante carga de
apreensão pelo futuro da Igreja e da humanidade,
que parecem convidadas a voltar às origens, a um
estado de natureza distante do progresso? A
Leporati, o italiano douto e eurocêntrico que leva
ao auge a centralidade romana e a habilidade de
tecer o futuro da Igreja, numa rede mais de
relações políticas que de interesses pastorais?
Talvez ao arcebispo de Dar Es-Salaam, cuja fama
de exorcista se deflagrou como um maquinismo
que evoca poderes mágicos e antigos apocalipses
sobre a presença do Mal no coração da Igreja? Ou
ao patriarca maronita, Abdullah Joseph Selim, cuja
voz se elevou para apresentar a contribuição de
uma sabedoria difundida sobre o sentimento de
um tempo tão fatalista e entregue aos desígnios
de Deus?
Ou talvez ao cardeal ex-trapista Paide, que,
mesmo tão ascético, nutre da fé uma visão aberta
ao diálogo ecumênico? A Nabil Youssef, o
palestino, cuja possibilidade de subir ao trono de
Pedro se fundamenta no fato de sentir-se pastor
de um povo em luta, que se tornou símbolo de
todas as opressões e vinganças em nome da
justiça?

Como se apenas uma palavra de ordem pairasse


sobre as mentes de tantos homens separados do
mundo, naquela tarde, em muitos ambientes do
conclave, houve reuniões e encontros, sob o
pretexto da ceia.
No escritório do comandante da Guarda Suíça,
Kellerman, que toda noite voltava para casa, para
a sua família, o tenente Kapplmüller entretém os
membros menos conhecidos do conclave, mas tão
influentes como os que devem votar o novo papa.
Ao menos uns trinta secretários capelães e uma
dezena de prelados domésticos se reuniram lá,
cada um levando como contribuição alguma
comida ou bebida pessoal para aquela reunião. A
sala das reuniões, com uma grande mesa, foi
cuidadosamente liberada, naquela tarde, de
qualquer presença animal.
Monsenhor Giorgio Contarini faz as honras da casa
junto com Hans Kapplmüller, na porta do
escritório, recebendo garrafas e bandejas de
comida, que logo desaparecem na cozinha.
Enquanto esperam pelo espaguete à matriciana, a
conversação floresce entre os comensais sentados
à mesa.
Parece que uma consciente esquizofrenia domina
as conversações, pois cada secretário, revelando
ao amigo aspectos particulares do cardeal para
quem presta serviço, dá às próprias palavras um
gosto vagamente delator. Ressentimentos, ciúmes
e sofrimentos se confundem com honra,
admiração e afeto. E um tal de indagações
cruzadas, repetição de particulares íntimos, riso
ostentado, maravilha e escândalo teatrais,
chamada de outros amigos por testemunhas do
que é revelado, separação, juramento. A tampa
levantada de uma panela em ebulição não poderia
liberar outro vapor.
Muitas vezes, pela gritaria cada vez mais forte,
Kapplmüller tem a tentação de pedir silêncio a
seus hóspedes. Mas um sentimento indulgente e
afetuoso sempre o detém. Aqueles rostos
possessos, os olhos febris, as mãos delicadas que
volteiam pelo ar para agarrar as figuras que a
palavra inventa, aqueles corpos indóceis aos
hábitos negros, que traem um resquício de
juventude, a mais renitente à mortificação dos
sentidos porque é o último raio de sensualidade
antes da rendição, suscitam-lhe respeito e pena.
Conhece muitos deles lá dentro, que nesses três
meses de conclave se abandonaram com ele e
com seus soldados em tantas confidências. As
alucinações que sofreram diante de gatos e
galinhas não o surpreenderam; não lhe foi difícil
atendê-los para não irritá-los, até por um prazer
sutil e inquieto de conhecimento.
Passaram muitas horas nos aposentos de Contarini
falando das aventuras sentimentais de sua
juventude, em Basiléia. Era o único meio de fazer
frente aos relatos de Giorgio, quando fantasiava o
que Zaira e Zenóbia lhe disseram naquele dia,
propondo-se aquelas mulheres sempre em modo
embaraçoso e provocante, que se deixavam
encontrar nos lugares mais impensados, como se
ele fosse o objeto fixo de suas seduções... Quando
voltava aos aposentos, depois daquelas tardes,
trocando algumas palavras com seus soldados,
muitas vezes vindo de outras similares
conversações loucas, ouvia em seus relatos um
eco do que acabara de ouvir da boca de Contarini.
Eis ali o seu amigo Giorgio, à cabeceira da mesa,
ocupado em preparar a ceia, em responder aos
muitos que lhe dirigem a palavra, em fazer
perguntas, em abrir a porta aos últimos
retardatários.
Naquele exato momento chega à mesa o primeiro
dos três pratos, com o espaguete fumegante.
Eleva-se um coro unânime de elogios. Os
comensais são servidos com rapidez, em meio a
mil comentários, até que o silêncio vem de novo,
enquanto um a um se concentra no prazer de
comer. Na cozinha, no entanto, fervem os
preparativos para a surpresa do segundo prato:
leitão à romana. O aroma que se difunde da porta
da cozinha, freqüentemente aberta, enquanto
terminam o espaguete, lhes convida a apostar
sobre que oferenda irá logo aparecer nas
bandejas. O prazer de comerem todos juntos, na-
quela segregação de meses, restitui a muitos a
vitalidade e a alegria perdidas, removendo os
fantasmas da solidão.
Terminado o primeiro prato, o tom da conversa
muda. O prazer inconsciente de revelar a vida
privada de seus próprios pares, os 125 cardeais
que os prendem a eles naquele cárcere, desta vez
se dissolve na vontade de falar de si. O baricentro
da conversação se desloca, reaparece a miragem
do futuro, da vida que passa lá fora e logo passará
de novo para cada um deles.
Notícias as mais variadas e fúteis voam de uma
ponta à outra da mesa: sobre futebol, política,
esportes, aumento da gasolina, redução da taxa
de descontos, novos episódios da guerra no
Oriente Médio, a Bolsa de Valores, o euro em luta
contra o dólar, o último concerto de Lucio Dalla, o
apresentador escolhido para o novo festival de San
Remo... A língua que prevalece ainda é o italiano,
mas de forma moderada, porque o inglês o segue
bem de perto, com os tantos secretários e ca-
pelães estrangeiros.
O efeito de uma reclusão de meses se encontra na
fome de futilidades, das notícias mais efêmeras e
voláteis sobre o nada, que é a televisão. Pois
alguém como Contarini, vendo aquela orgia de
notícias, não pode deixar de pensar que se anulam
algebricamente no zero do resultado final, a cada
provisória etapa daquele confuso caminho em
direção ao fim de cada coisa, que é a vida.
Por um instante Contarini intercepta o olhar de
Kapplmüller e, no sorriso do amigo, capta sua
própria sombra de fastio e divertimento naquela
viva assembléia de colegiais esfomeados e
desejosos apenas de voltar à normalidade, após
tanta vida de exceção. Mas quem sabe se
Kapplmüller também conseguirá perceber o
imprevisto matiz de tédio que atinge seu amigo, a
idéia de ter de voltar lá para fora, para a tão
cobiçada vida normal?
Contarini teme que não, teme que a vida do
tenente não irá se ressentir da traça que prepara
armadilhas para ele. E talvez muitos dos colegas
que sonham em evadir-se, como os dois cardeais
que não tiveram medo de mostrá-lo ao tentar a
fuga, logo que forem restituídos às jaulas de seus
hábitos provarão o primeiro pedaço desse mesmo
tédio.
Finalmente, o leitão à romana aparece na mesa,
saudado com uma verdadeira ovação a monsenhor
Bini, de pé na porta da cozinha junto a dois
ajudantes, de avental e com seu chapéu de
cozinheiro. O leitãozinho tem na boca um grande
limão e parece estar esperando pelo toque de uma
varinha mágica para voltar a respirar, tão
admirado e encantado como está em sua pose,
surpreendido pela morte. De novo, enquanto as
garrafas de vinho vêm e vão, a conversa sofre um
abrandamento, a gritaria acaba, compensada
apenas pelo tilintar dos talheres. Alguém já olha
para o relógio, pensando no despertar cedo que o
aguarda. Mas não deseja sair da sala por nada no
mundo, disposto a ficar até as tantas, tentando
arrancar alguma informação preciosa, algum
indício que lhe faça entender aquilo que todos, no
fim do segundo prato, voltam a se perguntar: até
onde irá o conclave, quem escolherão?

Assim, no fim do leitão, enquanto são anunciados


os acompanhamentos e o doce, com aquela
pacificada concentração que a barriga cheia deixa
em muitos comensais, volta-se ao assunto.
Os olhares de muitos recaem sobre os dois
secretários negros, o do prelado de Dar Es-Salaam
e o de Luanda. Mas as bocas negras permanecem
caladas, mesmo com o sorriso que nunca falta
com as espetadas das insistentes perguntas, às
quais respondem com monossílabos, sem nunca se
deixarem apanhar. O secretário do cardeal de
Hong Kong, que é um zanzibarita e fala o swahili,
não se contém mais face àquela alardeada
indiferença; e, desejando provocar seus silenciosos
conterrâneos, começa uma estranha série de
gestos acompanhados da rítmica repetição de uma
frase, uma espécie de lamentação que termina
sempre com um breve agudo da voz e com um
movimento do pé que bate no chão. Como que
contagiados pelo gesto e pelo canto melancólico,
os outros dois africanos respondem com a batida
do pé, no exato momento em que o zanzibarita
Augustine Marangu bate o seu pé, após o breve
agudo. E o crescente do ritmo, que não parece
sofrer a mínima interrupção nem embaraçar nem
um pouco os seus autores, tem o efeito de
emudecer todos os presentes, parados para
observar a cena.
Depois acontece aquilo de que se haverá de falar
por tanto tempo.
Um a um, os presentes se sentem invadir por um
frenesi mais forte do que sua capacidade de
autocontrole. A começar por aqueles já de pé,
depois envolvendo os que estão sentados e todos
que se levantam da mesa, difunde-se uma
irresistível vontade de bater o pé ao mesmo tempo
que os três cantores africanos, que nesse meio-
tempo intensificaram a forma da litania, os agudos
e as batidas dos pés, sempre sob a regência do
zanzibarita.
O canto agora se transformou numa dança que
contagia mais da metade da sala; ninguém mais
consegue ficar parado, movendo braços, mãos,
pés e dedos, como se seguissem a regência atenta
de um invisível maestro do coro. O fenômeno mais
incompreensível é que todos têm a certeza de
seguir as palavras em swahili, e respondem com
sons absolutamente inventados, mas que devem
ter um sentido aos ouvidos dos três africanos,
cujas mãos, no entanto, começaram a usar a mesa
como tambor, batendo com ritmo na superfície de
madeira.
Agora até os últimos irredutíveis, vindos da
cozinha com os acompanhamentos e a sobremesa,
monsenhor Squarzoni e os seus ajudantes, são
tomados pelo remoinho das danças que seguem,
levando nas mãos as bandejas com inesperada
habilidade, sem deixar cair uma gota sequer de
seu conteúdo.
Augustine Marangu, então, passa a um ritmo mais
complexo e, segurando pela mão seus dóceis e
bem cordatos coreutas, põe-se a bailar uma dança
que faz estremecer o corpo da cintura para baixo,
dando livre curso à voz cada vez mais alta. A um
sinal dos três, todos os presentes se dão as mãos
e se unem numa cadeia que começa a girar ao
redor da mesa, primeiro lentamente, depois com
mais velocidade, até assumir um ritmo frenético,
que começa a fazer suas primeiras vítimas.
De fato, alguns não suportam o esforço do canto e
da dança e caem no chão, saindo da sardana6
transtornados, com o fôlego entrecortado,
aturdidos pelo cansaço, mas ainda propensos a
seguir com os olhos os três africanos.
De repente, como por encanto, tudo pára: um
agudo mais lancinante de Marangu cessa a dança
e as vozes. Os primeiros a socorrer os decaídos,
sentados no chão, são os guardas suíços e
Kapplmüller, que tampouco conseguiram resistir
ao fascínio do contágio.

- 18 -
Mas é apenas uma breve pausa de poucos
minutos, a interrupção de uma dança que mal
começou sua contagiante sedução.
Porque ao soar meia-noite, como se um acordo
secreto coordenasse os três prelados negros com
os portadores das tochas, àquela hora, prontos
para acender em cada ala do palácio o fogo para
espantar os morcegos, tudo reinicia, com um
frenesi mais endiabrado. Os três monsenhores
africanos, ao sinal de Marangu, voltam a ritmar
corpo e voz, com um contraponto ainda mais
ciente de agudos e batidas dos pés, acenando da

6 Espécie de dança catalã. (N. da T.)


porta. Alguém consegue abri-la. E a fila de
coribantes,7 envolvendo de novo todos os
presentes unidos por uma cadeia de mãos, sai em
passo de dança da sala do comandante da Guarda
Suíça.
Mete-se pelo longo corredor que leva ao pátio de
São Dâmaso, depois sobe a grande escadaria que
leva ao primeiro andar e ali se detém, invadindo
os quartos e as salas dos vários escritórios da
Secretaria de Estado. O espanto leva as galinhas a
se esconderem, evitando o insuportável barulho.
Os gatos não fazem por menos, entocando-se sob
armários, poltronas, cortinados, em qualquer lugar
que lhes ofereça uma proteção contra as criaturas
que invadiram seu campo.
Consumada a primeira ocupação do palácio, a um
sinal de monsenhor Marangu a fúria dionisíaca dos
dançarinos torna a subir para o segundo andar,
onde já dormiam em seus quartos alguns dos
eminentíssimos cardeais, que, acordados no meio
da noite por aquela agitação que se anunciou do
fundo das escadas como uma nova violência, já
têm o rosário em mãos, quando as portas se
escancaram. A maioria, pressagiando uma nova
prova a ser suportada, pelo cansaço de suas forças
se entregou à Virgem Santíssima. E enquanto uma
espécie de febre terçã vai sacudindo
violentamente seus membros, assim como estão,
de pijama e camisa da noite, se unem à fila de
dançarinos, prosseguindo junto com o capelão que
7 Cada um dos sacerdotes da deusa Cibele que dançavam
desvairadamente para representar sua desolação pela morte de
Átis. (N. da T.)
a muito custo reconhecem, despenteado e
descomposto nas roupas, de pés descalços. Antes
de perder o juízo do que estão fazendo, intuem
que o encantamento tem origem nos três prelados
negros, naquela África que eles encarnam na força
de uma de suas mais obscuras magias.
O cortejo dos coribantes ocupa, então, o terceiro e
depois o quarto andares, arrolando a cada nova
ala do palácio sempre novos contagiados por
aquela difusa peste motória e canora. E não há um
cardeal sequer que consiga subtrair-se a ela,
vítima da maior das irreverências, da mais louca
febre do corpo, entregue à necessidade de se
exprimir não mais em palavras, mas na
gestualidade de uma dança hipnótica e conta-
giante, que está privando seus dançarinos no
redemoinho dos gestos e que dura a noite inteira,
até as primeiras luzes do amanhecer, iluminada
pelos archotes e pelas tochas, sob os olhos
arregalados das corujas, acordando com
meticulosa precisão cada um dos eminentíssimos
cardeais, sem excetuar nenhuma função, sem
excluir nem mesmo o cardeal camerlengo.
A insensata excitação parece poupar apenas um
homem, que dormia um sono tranqüilo em seus
aposentos no quinto andar, aonde quem
comandou aquela libertinagem evitou sempre de
subir. É o cardeal arcebispo de Dar Es-Salaam,
Leopold Albert Ugamwa, o exorcista que o bom
Stelipyn sonhara que iria subir ao trono de Pedro.
Mas sua eminência não tem um sono tão pesado
assim que não consiga perceber o crescente rumor
que vem até ele dos andares de baixo, por volta
das seis, quando costuma toda manhã preceder o
despertador e o secretário. E algo no dormitar, no
confuso clamor que sobe dos aposentos de baixo,
começa a agitá-lo. Pois está reconhecendo na
tonalidade da música e nos intervalos fixos das
vozes um eco bastante familiar. Duvidando que
seja apenas um fragmento do sonho daquela
noite, ambientado na escola missionária da sua
infância, em Dodoma, onde desde criança cantava
com seus irmãos, tenta dormir novamente, até
que de repente o acordam uma palavra e uma voz
que apenas em seus exorcismos ousa repetir.
Levanta-se imediatamente, agarrando as primeiras
roupas que encontra sobre a cadeira ao lado da
cama, colocando por último a cruz peitoral no
pescoço. Corre até a porta, depois segue o barulho
que subia, e se precipita até o andar abaixo,
descendo duas grandes rampas.
Finalmente vê o que está perturbando o palácio
apostólico: agitada e possuída por uma força cuja
natureza conhece muito bem, a turba de seus
pobres confrades se lhe apresenta. Mas, como que
por encanto, diante do mesmo grito que na noite
anterior apenas por um instante havia soltado,
agora se acalma diante de um gesto amplo dos
braços que acompanha o agudo.
Desejando garantir sua absoluta eficácia, o cardeal
Ugamwa o repete, após alguns minutos, até se
certificar de que o sortilégio havia desaparecido.

Enquanto todos se prostram, um por terra, no chão


ou sobre os tapetes, outro na cadeira, outro ainda
apoiando as costas na parede, tem início uma
jeremiada de prantos, exclamações, invectivas e
insultos dirigidos aos três africanos que
conduziram a dança, e que, estupefatos e
confusos, como se estivessem acordando de um
pesadelo, estão agora diante do cardeal Ugamwa,
em atitude de profunda contrição, ouvindo suas
palavras severas.
Mas já se entrevêem na multidão as armas da
Guarda Suíça, que, ao comando de seu coronel,
Tobias Kellerman, vem para prender os três
prelados, acusados de terem perturbado a paz do
conclave. E o coronel, visivelmente alterado, inicia
uma viva discussão com o cardeal de Dar Es-
Salaam. O oficial não quer saber dos motivos nem
dos atenuantes; aqueles feiticeiros logo não mais
prejudicarão o conclave, que deve indicar à hu-
manidade que está esperando o nome do sucessor
de Cristo.
No entanto, nas escadas e nos elevadores
aparecem outros guardas suíços, os prelados
domésticos, os médicos do corpo sanitário
vaticano, o médico-chefe príncipe Aldobrandini, os
coristas, o conde Nasalli Rocca, e aqueles a quem
a peste em questão ainda não contagiou no sacro
palácio, que, em vista daquela miserável turba,
ficam sem palavra. A discussão entre o cardeal
Ugamwa e o coronel Kellerman torna-se cada vez
mais animada. Ugamwa percebeu o que deve ter
acontecido aos três africanos, mas precisa
interrogar seus suspeitos numa discussão mais
reservada. Para complicar as coisas, a reação de
muitos capelães dos cardeais está cada vez mais
ameaçadora. E necessário colocar os três a salvo
da fúria dos mais decididos a passar às vias de
fato, como os italianos, que já esbofetearam
Augustine Marangu, o secretário zanzibarita do
cardeal de Hong Kong. Entre a urgência de
entender e a chance de proteger os três
desgraçados, a segunda prevalece no ânimo do
cardeal negro.
Assim, os três "feiticeiros" são rapidamente
escoltados, em meio a uma turba que os
beliscava, até os cárceres do corpo de Guarda,
aonde nenhum sacerdote ainda havia sido levado.
Enquanto os pobres cardeais com seus secretários
começam a desocupar aquele andar do palácio
apostólico, para retornarem a seus aposentos,
Ugamwa se aproxima do arcebispo de Lviv,
Stelipyn, que jaz esgotado sobre uma poltrona.
— Perdoai-os, caro Wolfram, em todo caso
receberão o castigo que merecem.
— Já os perdoei, só espero que isso não se
repita mais... Prejudicaram e muito a causa
africana, e temo que se trate de sabotagem —
refuta o eslavo com um fio de voz.
— Não sei, decerto lhes escapou uma fórmula
de um rito muito antigo, uma dança que expulsa
os espíritos do mal, à noite... é uma maneira de
espantá-los, mas também serve para anular a
noite, povoando de sons...
— Por que não pararam quando viram como
isso nos fazia mal?
— Disseram-me que não sabiam como fazê-lo,
que tentaram, mas sentiram uma poderosa força
contrária, mais forte que a fórmula que
conheciam... e posso imaginar que fosse...
— Mas por que nos dar provas de tais
poderes?
— E o que ainda devo apurar, Wolfram,
mesmo suspeitando, por certos indícios, que fosse
apenas uma brincadeira de quem havia bebido
vinho além da conta e desejava livrar-se das
atenções excessivas dos colegas.
— O mal deste conclave é a falta de segredo:
o palácio está cheio de buracos, todos espiam. Se
nossos secretários e capelães, assim como nossos
irmãos, soubessem colocar um freio na língua, não
haveria tantos contratempos! — As palavras foram
pronunciadas por um camerlengo perturbado, de
rosto ainda vermelho, e de hábitos reduzidos a
trapos ensopados de suor, com a respiração
irregular e o pulso confiado ao médico, que
controla seus batimentos.
— Agrada-me que utilize o eufemismo
"contratempos", caro Veronelli, você é mesmo
inefável. Usarei outros termos, para o sabá infernal
que a África conseguiu evocar dentro destas
paredes!
Até o cardeal de Milão não renuncia a seu
desabafo, utilizando o acontecimento no sentido
em que Stelipyn mais temera. Mesmo na ofegante
respiração e na desordem das roupas de quem
fora tolhido do sono assim como estava, mesmo
de camisa da noite rasgada, mantém um resquício
de sua dignidade.
Nesse instante, passam alguns prelados
domésticos para apagar as tochas e os archotes
acesos para afugentar os morcegos. As corujas
voltam a dormir em cada canto da longa sala e na
antecâmara, espalhando-se até onde se avista o
labirinto dos quartos no quinto andar. O retorno
dos gatos e das galinhas, chamados pelo mesmo
pessoal para a costumeira refeição, parece um
hábito simpático, o divertido episódio de uma
fábula, em comparação ao que acontecera. Talvez
apenas o horror dos escorpiões na parede do Juízo
universal na Sistina pudesse comparar-se a isso.
Naquela manhã, as missas são celebradas com
grande fervor, em todas as capelas privadas.
Capta-se no ar a necessidade de recolhimento e
de preces, jamais tão sentida.
O camerlengo deve sentir essa exigência de
recolhimento, essa oportunidade de consentir a
todos os seus confrades um momento de silêncio
para voltarem a si. E durante todo o dia os isenta
do dever de se reunir na Capela Sistina para a
enésima votação, já no fim do terceiro mês de
conclave. Os eminentíssimos e reverendíssimos
cardeais estão convocados apenas para o dia
seguinte, às nove horas da manhã e às quatro
horas da tarde, em caso de fumaça negra na
primeira votação.
Mas não resta muito tempo naquele dia ao pobre
Veronelli para dedicar-se à meditação, diferente
de seus colegas.
De fora, do mundo além do portão de bronze,
vinham renovados sinais de alarme e sofrimento
pela grande demora na proclamação do papa.
Logo depois de ouvir a missa de monsenhor
Squarzoni, visto que ainda não tinha forças para
ficar de pé para celebrá-la ele mesmo, foi-lhe
entregue a correspondência que a Secretaria de
Estado recebeu de algumas embaixadas. Três
chefes de Estado, dois reis e um presidente de
República transmitem ao eminentíssimo
camerlengo o grande mal-estar de seus povos por
aquele ocultamento do líder espiritual mais ouvido
em seus países.
Dois deles, com singular sintonia, dão a notar o
mesmo preocupante fenômeno: a tendência das
comunidades católicas mais integralistas de
procurar dentro delas, nos bispos que cuidavam de
suas dioceses, uma autoridade que substitua o
bispo de Roma. A ameaça do ressurgimento de
liberdades galicanas, no quadro de Igrejas
nacionais, de fato não deveria ser subestimada
naquele momento. Tampouco se podia calar,
continuavam as cartas, o crescente fenômeno de
conversões a religiões e filosofias de alta
espiritualidade diferentes daquela do catolicismo.
Eram bastante significativos os cada vez mais
freqüentes convites de seus Estados, por parte de
círculos religiosos, ao 13o. Dalai Lama, Tenzin
Gyatso, à procura de adeptos para sua campanha
antichinesa e para a defesa do povo tibetano
ameaçado de limpeza étnica.
O rei do mais católico dos três Estados, a Espanha,
também fazia notar que a mesma política de
ecumenismo religioso do falecido pontífice havia
favorecido aquele extravasamento em outras fés
da ânsia metafísica que está sempre na base da
projeção religiosa.

O cardeal camerlengo, da cama onde folheia as


cartas entregues pela Secretaria de Estado,
levanta os olhos para contemplar o grande
crucifixo em seu quarto. Pousa as cartas no alvo
forro dos lençóis, à sua direita, e tira os óculos.
Sofre ainda nas carnes a prostração do baile de
sete horas; o sono tarda a chegar por causa do
horário tão diferente do costumeiro. Não consegue
conciliar as horas diurnas, mas essas missivas as
roubam definitivamente. A responsabilidade de um
cisma ou de vários cismas pesa em sua alma. Mas
não pode nem deve deixar-se levar ao desespero.
Talvez o papel africano ainda seja utilizável, deve
procurar entender de que natureza são os poderes
dos pastores naquela parte do mundo. Ou, talvez,
se tal possibilidade se fechara depois das
monstruosidades da noite, seja providencial que a
África tenha revelado sua verdadeira alma.
Entretido com tantas hipóteses, o camerlengo nem
percebe mais que as galinhas voltaram a bicar
perto das abas do cobertor de damasco, entrando
pela porta semiaberta...
Por sua vez, quem as percebe e as expulsa do
quarto sem a menor hesitação, impaciente com
essa anômala companhia em seus aposentos no
segundo andar do palácio apostólico, é o cardeal
de Dar Es-Salaam, aguardando os três prelados
negros. Conseguiu permissão para interrogá-los a
sós, em seus aposentos, após nova discussão com
o comandante da Guarda Suíça. Ameaçou
Kellerman de recorrer à autoridade do camer-
lengo, cujos poderes na Sede vacante são quase
absolutos, pelo abuso de autoridade daquela
reclusão, e o venceu.
Agora que se podem vê-los no vão da porta em
seu estúdio, onde há pouco celebrou missa, por
um instante se distancia da idéia da delicadeza da
discussão que deve encarar e da consciência do
irreparável dano infligido à sacralidade do lugar e
do conclave pelo comportamento dos três
monsenhores.
— Posso saber como vocês conseguiram fazer
uma coisa dessas?
— Foi culpa minha, eminência... Eu queria
provocar os meus amigos.
— Eu tive de segui-lo, após o primeiro
movimento...
— Mas era a única maneira de fazê-los se
calar, não conseguíamos mais suportar suas
perguntas... estávamos certos de lembrar de toda
a fórmula, mas... — insiste o secretário do prelado
de Luanda.
— Fale um de cada vez, por favor! Já há
confusão suficiente aqui dentro — ataca o cardeal,
que percebeu as galinhas obstinadas voltando,
tomadas pela visão de alguns escorpiões por entre
as fendas da parede.
— Fale você, Marangu, que me parece ser o
autor dessa bela proeza — acrescenta, abaixando
a voz.
E a longa e confusa explicação apresentada o
certifica de suas suspeitas. Para aquele homem
que conhece os segredos rituais de uma certa
magia, aprendida das mesmas antigas fontes
tribais de sua estirpe, escapou-lhe das mãos a
força que tinha invocado, por brincadeira e talvez
com um toque de exibicionismo. Não era um
palácio em que se pudesse brincar impunemente
com aquelas forças.
O que em qualquer lugar poderia ser também uma
inócua manifestação das capacidades de dominar
os ritmos que pulsam no corpo e governavam sua
voz, respiração, passo, tonalidade, desejo de se
levantar e desejo de adormecer ficou bem
diferente naquele lugar. Pois quem nos sacros
palácios levantara sua garra terrível para ofuscar o
afresco do Juízo universal, lançando a horda de
animais infernais justo para o lado dos bons,
estava sempre à espreita de qualquer outra
repetição da necessidade aberta pela queda de
Adão: a escolha entre o Bem e o Mal. Essa tinha
uma trégua apenas nos instantes em que o ser se
liberta das cadeias do futuro. E era o poder que
possuíam os ritos transmitidos por outros séculos
de história, por outros lugares da Terra distantes
de Roma, onde o Senhor mostrara seu rosto de um
outro modo: liberar a pureza do ser do cárcere do
futuro, sair dos sulcos do tempo, chegar ao
exterior, por alguns instantes — o que monsenhor
Marangu, coadunado por seus mais inexperientes
ajudantes, soube suscitar, no frenesi sem tempo, a
memória e a consciência de uma dança. E que, no
entanto, captado por quem não desejava a
libertação da luta entre o Bem e o Mal, caíra em
armadilhas, fazendo apelo à fragilidade da
memória do pobre Marangu.
O prelado, nascido na mesma região da África do
cardeal, ouve a severa resposta a seu relato, junto
com os colegas, sem nunca replicar, talvez até por
não entendê-la completamente. Mas, no fim,
escapa-lhe da boca uma pergunta mais dirigida a
si mesmo que ao arcebispo:
— Por que o Senhor nos fez assim tão fracos?
Mas logo vem a resposta aos lábios de Ugamwa:
— Porque Ele nos fez livres, Marangu.

- 19 -
"Deus amentat quos vult perdere...”, lia naquela
noite, a altas horas, num velho comentário dos
Sermons de Bossuet, o cardeal de Milão, Alfonso
Cerini.
A citação do comentador, do Livro de Zacarias da
Bíblia, é muito pertinente. Sim, é assim mesmo,
Deus tira o juízo daquele que deseja que se dane...
É o que está acontecendo dentro destes muros,
pensa, sentado à mesa repleta de volumes, há três
meses a sua companhia preferida naquela
reclusão, volumes que são apenas uma pequena
provisão levada consigo da sua grande biblioteca,
em Milão.
Agora a medida chegou ao extremo; aquela dança
infernal pelos quartos dos sacros palácios! Quem
ainda duvida que o Maligno tenha assinalado outro
ponto, na luta que conseguiu iscar no coração da
cristandade?
O isolamento do mundo não é mais a condição
sábia e ideal que a tradição aconselha a se seguir
num conclave? Agora aparece para Cerini a
armadilha em que, por medo, devem cair os
chamados àquela prova. Sabe que os contatos
com o exterior se enfraquecem. Sabe que de
várias partes do mundo cresce a tendência a
imaginar uma possível autonomia de Roma. Sente
o esquecimento e o desinteresse crescerem como
grama ao redor dos muros do Vaticano. E a
estratégia do Mal foi muito sutil, suspensa entre
jogo e terror, malícia e violência, divertimento e
loucura, alusão e violação. "Deus amentat quos
vult perdere...” É verdade...
Como um encantador atuou sobre os sentidos,
amolecendo seus severos costumes com práticas
físicas indignas dos ministros da Igreja, que na
torre de São João haviam tocado muitos deles,
seduzindo a ele também. O Mal pressionou a
imaginação, evocando espectros de chapas
bíblicas, com a infestação de animais infernais
como os ratos, os escorpiões e os morcegos.
Apelou ao seu apagado sentimento de realidade,
suscitando reações de fuga, por causa da
claustrofobia que aos poucos foi aterrorizando
suas almas, como foi o caso de seus dois irmãos
que tentaram a evasão. Procurou desordenar seu
equilíbrio com a horrível visão de seu poder
confiado à horda de escorpiões sobreposta ao
afresco do Juízo universal. Brincou com sua
inteligência, entorpecendo-a com a extenuante
prova de efêmeras alianças, que pela manhã
anulavam os projetos da noite anterior. Enfim,
tomou posse de modo violento e dessacralizado de
seus velhos corpos, com aquela espécie de baile
de São Vito de uma noite inteira, que atingira no
coração a dignidade do Sacro Colégio. Mas a
malícia mais atroz foi aumentar as esperanças
com a escolha de um purpurado da África, para
depois fazê-las desabar de repente justo graças
àquela escolha. E mais, o golpe desferido no
conclave pelo mistério daquela morte tão
repentina, tão silenciosa e tão inesperada de
Zelindo Mascheroni, pedra angular da ortodoxia
católica, bem no dia seguinte à sua vibrante
intervenção no conclave. Dois de seus irmãos se
foram naqueles três meses: o prelado do Rio de
Janeiro e Mascheroni. Aquele espectro também
paira sobre as mentes de quem pela idade já se
sente próximo do fim. E o pensamento sobre a
loucura, que agora reencontra nos Sermons de
Bossuet, conspira para aos poucos confundir sua
inteligência sobre as coisas. Que desventura ainda
virá, após a mordida da tarântula daquele baile?
Não, não é perseguir a juventude do mundo,
refugiar-se na antiguidade da África e no seu
pensamento mágico, não é regredir ao estado de
natureza que salvará a Igreja, com um papa afri-
cano. Quando muito, ocorrerá apontar mais para o
alto, para a romanismo da tradição, para aquele
divino equilíbrio entre o mundo romano e o mundo
bárbaro, do qual nasceu a modernidade,
continuando a viver a herança do apóstolo Paulo, o
cidadão romano de Tarso que conduzira a
supremacia de Roma alta como uma bandeira. O
mundo ainda tem necessidade de um centro, de
um guia, de um pastor. Todo o mal que a Igreja
dividiu com a história da humanidade é o preço
pago para poder guiar seus passos, para não
deixá-la só. Já é ingrato virar-lhe as costas porque
se manchou com tantas culpas, por amor da falha
natureza humana. E vil voltar à alusão de uma
segunda juventude, banhando-se nas águas da
África. A tradição não se evaporou com o tempo, o
passado não é um arabesco de fumaça a se
disseminar para libertar o olhar numa nova
compreensão das coisas. O passado é uma rocha;
a tradição, um tesouro. Por isso, o herdeiro de
Santo Ambrósio e de São Carlos Borromeu
continuará a acreditar na sua candidatura ao
papado.

Enquanto o cardeal arcebispo de Milão está ocupa-


do em ler, no meio da noite, o suntuoso francês de
Bossuet, detendo-se na frase latina do comentário,
bem perto dali, no mesmo palácio apostólico,
Contarini retorna a seus aposentos. Volta da
caserna da Guarda Suíça, onde esteve para jantar
como convidado de Hans Kapplmüller. Depois das
abundantes bebidas, não está nem um pouco
firme das pernas. Não acreditando em seu
equilíbrio, presta muita atenção onde coloca os
pés, receoso de acordar o cardeal Malvezzi. A
última coisa que deseja é ser surpreendido por ele
nesse estado.
Encosta o ouvido na porta que dá para o estúdio
de sua eminência. Silêncio absoluto. Abre-a com
cuidado, tremendo por causa do rangido das
dobradiças.
Um raio de lua desce sobre a escrivaninha e sobre
o piso de madeira. Tudo está em perfeita ordem:
jornais, missal, documentos, cartas, volumes,
canetas, borrachas, lápis, remédios, o porta-
retratos com a foto do cardeal entre os jovens de
seu seminário, em Turim; tudo como ele mesmo
havia deixado, poucas horas antes de sair, sem
precisar a que horas iria voltar. A luz que vem da
fresta da porta, no piso, lhe confirma que o hábito
de sua eminência de ler até bem tarde não mudou
nem mesmo na noite sucessiva à dança infernal.
Da janela vem a luz dos vidros amarelos do quarto
defronte ao do cardeal...

Pela manhã, quando o despertador toca às seis


horas, por um instante não reconhece seu quarto,
tão profundo é o seu sono. Continuaria a dormir de
bom grado; as conseqüências da bebedeira se
fazem notar. Mas, do outro lado do apartamento,
chegam rumores discretos de quem já está de pé
e o aguarda, caminhando de um lado para o outro
do estúdio. Pega o maço de cigarros deixado por
Hans Kapplmüller. Sorri. A visão das primeiras
galinhas do dia lhe é indiferente... Levanta-se para
dar de comer aos animais... Tudo já passou...
Durante a missa na qual assiste ao seu arcebispo,
muitíssimo resfriado pelo suadouro da longa
dança, faz um grande esforço para que note a sua
indiferença ao vai-e-vem das galinhas no quarto.
Preocupa-lhe ainda aquilo que Hans lhe
confidenciou sobre o plano de substituição dos
secretários e capelães mais jovens por outros mais
velhos, chamados das várias dioceses.
E Ettore Malvezzi, com grande alívio, nota a
recuperação de um secretário tão precioso quanto
imprevisível, que se ausentara por toda a noite,
sem saber por onde ele andava... Apagou a luz
apenas quando percebeu que ele já tinha voltado.
São ambos bastante pontuais, às 8h55, diante das
portas da Capela Sistina, onde acontecerá a
votação perdida do dia anterior.
O camerlengo acabara de fazer a chamada, e já se
levantou para pedir a palavra um dos cardeais das
últimas filas, no fundo, perto do balaústre de
mármore.
— É o cardeal de Brasília — sussurra-lhe um
dos dois purpurados escrutadores, Luigi Lo Cascio.
— Ele tem esse direito, eminentíssimo —
responde o camerlengo, que nunca o ouviu falando
nem em público nem em particular, mas desconfia
da precipitação com que o conclavista se
anunciou. E, inclinando-se para o outro escrutador,
Attilio Rondoni, já vigário-geral da Cidade do
Vaticano, pergunta se tem conhecimento do que o
brasileiro irá falar.
— Não, Vladimiro, mas não é um tipo fácil, com
freqüência age na calada... e eu sei que nesta
noite se encontraram todos os cardeais sul-
americanos em sua cela.

O cardeal José Maria Resende Costa deve ser real-


mente um grande intriguista, porque em seu
discurso, calmo e analítico, apesar de sua
anunciação parecer impaciente, sabe apresentar
razões diversas e ainda muito convincentes para
destruir as últimas esperanças do partido africano;
contrapondo-lhe, no entanto, pela primeira vez as
aspirações e as ânsias de justiça de um novo
partido, que ninguém ainda considerara, o
hispano-americano.
Apresenta os seus irmãos um a um, os 22
purpurados que defendiam a parte do mundo mais
humilhada pelo imperialismo econômico dos
Estados Unidos da América, onde milhões de
pessoas viviam na fome, na prostituição, na escra-
vidão das crianças, na venda e no comércio de
droga, numa desumana exploração do trabalho
para permitir ao povo norte-americano desfrutar
de seu primado. Pelas chagas de suas dioceses
conheciam bem a verdade dessa monstruosa
falsidade que continua a oferecer dos Estados
Unidos a imagem de guardião da paz e da justiça
sobre a Terra.
Nomeia-os um a um, fazendo-os ficar de pé, como
se se tratasse da apresentação a um supremo
tribunal de justiça das testemunhas de acusação,
vindas ali diante do supremo juiz para um
processo que não pode ser adiado.
Levantam-se, reconhecendo a verdade de muitas
das terríveis acusações que atormentavam tantos
filhos seus, pastores de Buenos Aires, Bahia,
Bogotá, Tegucigalpa, Santa Cruz de la Sierra, Belo
Horizonte, Caracas, Medellín, Lima, São Paulo,
Cidade do México, Quito, Aparecida, Manágua, Ha-
vana, Córdoba, Guadalajara, Monterrey, San Juan
de Porto Rico, Santiago e Port-Louis. A morte
ocorrida nas primeiras semanas do conclave
justifica a ausência do 18o. pastor, Emanuele
Contardi, arcebispo do Rio de Janeiro.
Há séculos aquele maravilhoso canto da Terra vem
sendo negado ao seu destino de prosperidade e
expansão, pelos copiosos dons que o senhor havia
concedido tanto à natureza de suas planícies, de
seus mares, de suas montanhas, quanto às suas
laboriosas cidades, por causa do cabresto preso a
seu pescoço e da triste servidão que ainda fazia
oposição dos direitos do mais forte aos do mais
fraco. A América do Sul nunca fora livre, a
mensagem de Simon Bolívar e de San Martin ainda
deveria ser observada porque só no mapa as
nações da revolta contra a Espanha conquistaram
o seu direito à autodeterminação. Quem, naquele
continente, pela primeira vez conteve o justo
protesto contra o opressor, expulsando a
Inglaterra com uma longa guerra, inflamado pela
ânsia de liberdade e igualdade, em nome do
direito à felicidade, foi o primeiro a trair depois
aqueles mesmos ideais. Pois os negou à outra par-
te do continente, substituindo a tirania do rei da
Inglaterra por aquela do presidente dos Estados
Unidos. Se o conclave pudesse representar — e
eles acreditavam nisso — o lugar em que o Espírito
Santo teria inspirado um raio maior de sua
potência redentora, a escolha de um deles seria
providencial, porque ofereceria à Igreja a
possibilidade que nenhuma força progressista
política em dois séculos conseguira ter. O Espírito
Paracleto não podia se manifestar nos poderes da
magia negra que haviam mortificado o Sacro
Colégio naquela noite. O horror daquela dança
tribal que fatigara suas carnes foi uma mensagem
até muito clara. A África não estava madura, pode-
ria esperar sua vez para oferecer um de seus
pastores ao topo da Igreja. Mas correm o risco de
cair vítimas da fascinação de tais sinistros
poderes. Um papa exorcista? Seria como voltar às
horas mais sombrias da Idade Média, quando
Gregório VII fora acusado por Henrique IV de ser
um...
O cardeal de Brasília ainda não havia terminado
sua frase e já se elevam gritos do fundo e do meio
da sala. As mãos apontando, os rostos inquietos,
todos concentrados num mesmo ponto, mostram
que ninguém pode mais ouvir.
O afresco de Michelangelo do Juízo universal está
lentamente desaparecendo, como uma visão que
se evapora no ar. Os rostos dos santos e dos
danados estão plúmbeos, sem fisionomia, sem
olhos, rugas, encarnados. Bem e Mal se
confundem.
Desaparecem as roupas, as trombetas dos anjos, a
barca e os remos de Caronte, as rodas e as flechas
do martírio, a coluna da flagelação de Cristo e a
cruz de sua crucifixão, as nuvens, as tumbas, a
pele de São Bartolomeu com o rosto de Buonarroti
impresso, as barbas, as madeixas, as mãos, as
coxas, as pernas e os panos que encobriam as
partes pudendas.
Apenas os rostos de Maria e do Salvador resistem
ao centro daquela imensa sombra cinza que, no
imaginário de milhões de homens, há séculos
estava bem viva nas formas do juízo que espera
pela humanidade no fim dos tempos. Até mesmo
os profetas e as sibilas da abóbada sofrem o
mesmo horrendo fenômeno. As paredes nuas
novamente tomam posse da Capela Sistina pelas
mãos de um outro pintor que pinta o Nada e
mostra isso como se a Terra já fosse apenas um
deserto, consumida a humanidade, desfeitos e
deitados por terra os monumentos e as obras que
haviam alegrado a vida, sem nenhum
sobremundo.
— Ugamwa! Faça alguma coisa! Pare tudo
isso! — ouve-se gritarem em inglês.
— Mas se é ele quem o está destruindo! Com
uma de suas magias, é ele, é ele! — replica do
outro lado, em alemão, o cardeal de Colônia.
O cardeal camerlengo se levanta e em voz alta
chama o eminentíssimo arcebispo de Dar Es-
Salaam, pela primeira vez cedendo à atmosfera
prevalecente na assembléia dos cardeais:
— Eminentíssimo Leopold Albert Ugamwa! Faça al-
guma coisa para dar fim a tudo isto!
No tumulto que segue tais palavras, eis a grande
figura do prelado negro levantando-se de seu
assento e, protegido pela Guarda Suíça, abre
caminho para descer em direção ao corredor.
Um corpo contundente, arremessado de uma
poltrona qualquer, roça-lhe a cabeça, sem acertá-
lo: alguém já tinha atirado um missal.
Vemo-lo virando-se na direção de onde partiu
aquele lançamento. O rosto em lágrimas fala por si
só, constrangendo ao silêncio alguns que estão
mais próximos. Depois, como se lutasse contra um
vento fortíssimo, suas roupas sobem e se
descompõem, enquanto ele e os guardas
protegem o rosto com os braços.
E o esforço de caminhar para o altar, em direção
ao que havia sido o Juízo universal, parece sobre-
humano. Mas o tumulto que causou a monstruosa
queda do afresco já está se acalmando, enquanto
todos na capela sentem um sopro dessa força que
contrista o pobre exorcista e sopra sobre sua
própria cabeça, cada vez mais imperioso e
violento.
Depois ocorre o que vence qualquer tentativa de
continuar a protestar contra esse homem, que
avança com passos curtos para a parede do
afresco.
Ugamwa diz algo, repete-o em voz alta, cada vez
mais alta, com um esforço penoso que parece
dobrar em duas sua solene figura. E, de repente,
vê-se esplender novamente, na vivacidade de suas
cores maravilhosas e de suas mil formas, o Juízo
universal, enquanto o vento abranda de repente
em toda a Capela Sistina.
Mas não há mais um vestígio sequer do exorcista,
do cardeal negro que realizou o sortilégio contra o
espírito do Mal.
Em vão os quatro guardas suíços procuram por
ele, tateando o ar onde até poucos instantes atrás
lutara com eles contra a fúria do vento. Em vão o
procuram por toda a capela, nas entradas, nas
antecâmaras, na sacristia.
O grande exorcista deixou o conclave.

- 20 -
Naquela noite o patriarca maronita, Abdullah
Joseph Selim, viera para devolver alguns livros ao
cardeal Malvezzi, ficando para o jantar. A longa
reclusão do conclave pesa nas condições de saúde
do prelado médio-oriental, cada vez mais
debilitado, mas capaz de opor uma resignação que
não cessa de espantar e edificar o espírito do
colega de Turim, seu vizinho de assento na Capela
Sistina. Sentados ao pé da lareira acesa, enquanto
monsenhor Contarini está tirando a mesa do
jantar, os dois amigos repassam os eventos do dia,
a começar pela votação vespertina, a única
realizada, apesar da limitada presença de
votantes.
A maior parte do Sacro Colégio, de fato,
permanecera encerrada em seus aposentos, ainda
aterrorizada pela cena de dissolução no nada de
um dos mais notáveis candidatos à eleição papal.
O resultado da votação foi seriamente influenciado
pelo discurso do prelado de Brasília, pois 22 votos
foram à seu favor. Mas se tratava de uma oposição
ainda precária, graças a uma força numérica ainda
distante da maioria simples da assembléia
suficiente depois dos dois primeiros dias de
votação.
Malvezzi se admirou de ter um voto a mais, além
daquele do patriarca libanês, de quem ouviu a
réplica:
— O que você sabe sobre o que é possível para
Deus?
Mas, agora, a frase que tanto mexeu com ele há
quase dois meses vinha se completando com um
sentido mais trágico e inquietante. Pois Deus
parecia estar longe de seus filhos, tornando
possíveis dias terríveis como aquele: um deles,
talvez culpado de ter exercido poderes de magia,
fora engolido pelas forças do Mal.
O Senhor deixava livre assim o campo de batalha?
Aquele conclave, ao longo de sua história, algumas
vezes consumado em poucos dias com uma
eleição ocorrida segundo a Inspiração, agora se
arrastava penosamente e se tornava a prova do
afastamento de Deus.
A sua presença se encontrava alhures? Elegeria
outros para receber sua graça e representá-lo?
Malvezzi meditou durante a noite anterior sobre a
página bíblica da loucura de Saul, consciente do
abandono do Senhor e ignorando que o jovem Davi
já tinha sido ungido em segredo por Samuel como
rei de Israel. O diabo já se apoderara da alma
perturbada do rei Saul, condenado a morrer em
breve.
A Igreja está distante de Deus como a alma de
Saul? Se assim for, onde estará escondido o jovem
Davi?

Malvezzi confia tais indagações ao maronita, que o


escuta em silêncio há alguns minutos, observando
o fogo na lareira, enquanto um gato está roçando
em sua batina. Quando Malvezzi terminou de falar,
o maronita ficou ainda em silêncio. Depois,
medindo as palavras com lentidão, convida o
colega a uma visão mais ampla daquela guerra
que arrola apenas cristãos e inimigos de Cristo. O
Senhor se afasta não só da sua Igreja, mas de
meia humanidade, sendo herança apenas da parte
perdedora, a mais pobre. O egoísmo, contrafeito
de progresso econômico, de corrida ao sucesso,
junto com o estágio terminal do mal-estar mais
difundido por toda a sociedade mais rica no
Ocidente, o narcisismo, é a vitória do Mal. O Bem
vive no silêncio, onde não tem voz nem poder.
E é nos povos de que falou naquele dia o cardeal
de Brasília, no subdesenvolvimento da África, nos
milhões de marginalizados pela necessidade que
estão na Rússia de joelhos face ao poder da máfia,
nos rejeitados expulsos de todas as mesas de
negociação como curdos, birmaneses, iraquianos,
nos amarrados a uma corrente, como os iranianos,
sob o jugo dos aiatolás. A Igreja não é privilegiada
nessa luta, mas está apenas envolvida, como toda
a humanidade. Mas para ele, que vem de uma
parte do mundo tão oprimida pela guerra entre
crenças opostas e diversas raças, pode-se dizer
que a Igreja às vezes não está onde a Igreja
Católica oficial abre suas tendas, mas no campo
oposto.
Deus, em seu martirizado Líbano, mudou as insíg-
nias, muito freqüentemente comparecendo não
nas fileiras dos ricos católicos, mas naquelas dos
muçulmanos pobres.
A esta última afirmação Malvezzi tem um gesto de
espanto, empurrando a poltrona para a frente. Cai
a Revelação com esse assunto. Onde irá terminar
o magistério de testemunha da verdade de que a
Igreja é mestra e depositária?
O patriarca ainda leva algum tempo com essa
interrupção. Depois replica que está muito
contente de ter votado nele, naquele conclave,
porque nenhum outro pode com tanta coerência
manifestar a romanização, o italocentrismo do
papado. O problema, no entanto, é indagar-se se
votar um papa significa também chamar Cristo
para guiar a humanidade, através de seu mais
antigo vigário. Ciente de ter dito algo grave, que
causa certo desconforto a seu interlocutor,
Abdullah Joseph Selim se cala.
Agora a frase que tanto iluminara Ettore Malvezzi,
"O que você sabe sobre o que é possível para
Deus?", assume um outro significado, confundindo
suas últimas certezas. Convida a assistir àquela
paralisia do conclave não como perversa
intromissão do Mal, mas como nova escolha de
campo do Bem, que abandona Roma e o seu
direito exclusivo de representá-lo, concordando
perfeitamente com as dúvidas que de noite o
tentaram, relendo as páginas da Bíblia sobre Saul
e sua loucura.
O relógio de pêndulo do estúdio bate nove horas.
O patriarca pega a bengala, apoiada na poltrona, e
se levanta para despedir-se do amigo e voltar a
seus aposentos. Acostumado a deixar a cama por
poucas horas, mesmo de dia, o cardeal
atormentado por um enfisema pulmonar se
aproxima de Malvezzi, beija-o três vezes à maneira
oriental e vira-se para se apoiar no braço de
Contarini.
Ettore Malvezzi continua de pé, observando a
porta por onde saíra aquele homem problemático.
Depois aproxima-se da janela que dá para um
pátio interno, e se surpreende ao ver grandes
flocos de neve. Após a excessiva suavidade da
temperatura nos meses de outubro e novembro, o
inverno começou com uma estranha antecipação,
tornando ainda mais penosa a segregação no
palácio apostólico por causa do frio. A cada dia a
luz era acesa mais cedo. Via-se obrigado a ligar a
luz no estúdio às quatro da tarde, tal como os
desconhecidos habitantes por trás da janela de
vidros amarelos, defronte da sua, e que agora
brilhava de noite. O calor da lareira e dos
termossifões bem antigos custa a tirar a umidade
daqueles quartos enormes. Então, os votos que
Selim lhe deu não constituem uma adesão plena,
mas apenas uma concessão a um ritual de que
ainda não se persuadiu até a alma. E ele, o
arcebispo cheio de dúvidas, que celebra missa
toda manhã atormentado por não ver sempre o
Senhor na hóstia consagrada por ele mesmo,
agora torna-se o eixo portador das antigas e
superadas certezas...
Pensa de novo no apelo do prelado de Brasília, que
por um instante o comovera, fazendo-lhe entrever
uma possibilidade eficaz de escolha definitiva. E,
no entanto, foi um discurso permeado de paixão
política. Decerto não há de se esperar pela reação
dos cardeais norte-americanos, sempre em
contato com seu país. O camerlengo e o cardeal
receberam novas terríveis pressões pelos canais
da diplomacia inobservantes da segregação.
Sente um arrepio de frio enquanto os flocos de
neve batem no vidro, riscando-o. Agora a janela da
frente se anima com sombras, por trás dos vidros,
são as vidas que lhe fazem companhia sem nunca
terem se mostrado. São 9h15. Ainda pode ir à
torre de São João para se esquentar. Encontraria
muitos de seus confrades por lá, friorentos como
ele e talvez à procura de alguém com quem
pudessem trocar idéias mais uma vez,
comentando os últimos inexplicáveis
acontecimentos.
Selim o deixou tomado da dúvida de que poucos,
mesmo em conclave, ainda nutrem as mais
antigas certezas, enquanto lá fora o mundo, que
na queda da bipolaridade política perdeu os faróis
de sua navegação, parece que deve se contentar
com um vago e sincrético deísmo: o perigo que
homens como o arcebispo de Milão mais temiam
que pudesse acontecer.
Já está quase deixando os aposentos quando o
telefone toca, imperioso.
Ficou tentado a não responder e sair. Mas a
preocupação de não receber notícias de seus
parentes há mais de dez dias faz com que ele
mude de idéia.
Atende. A central telefônica lhe passa a irmã, de
Bolonha.
— Faz tempo que não nos falamos, como está?
— Agora estamos bem, Ettore, mas passamos por
maus bocados, por isso não quis lhe incomodar...
— O que aconteceu?
— Francesco teve um acidente grave, mas no fim
saiu apenas com alguns ossos quebrados.
O silêncio que segue do outro lado do telefone dá
a Clara a certeza de como fez bem em não ter
avisado o irmão, a não ser quando o perigo já
tinha passado. Mas ao mesmo tempo lhe
transmite, mais forte que das outras chamadas, o
grande sofrimento do único irmão que lhe restou
após a morte de Carlo, há alguns anos: aquela
segregação pesa-lhe muito. Não o vê desde o
início de setembro, quando foi encontrá-lo em
Roma, na abertura do conclave.
Malvezzi está observando com toda a energia de
suas pupilas a janela iluminada da frente, com os
vidros amarelos. O horror de tal notícia, abrandado
apenas pelo fato de que Francesco está vivo,
penetra-lhe até a alma, dando-lhe pela primeira
vez um irrefreável impulso de fugir.
— Mas... agora está bem, não é, Clara?
— Sim, Ettore, tem apenas um fêmur e
algumas costelas quebradas, levará muitos dias na
cama... Quando você sair, ele já estará de pé.
— Quando eu sair... disse bem; mas quem
sabe se algum dia vou sair daqui!
É a primeira vez que o irmão faz um comentário
desse tipo. Sinal verdadeiramente excepcional de
inquietude e cansaço, num homem tão paciente e
capaz de aceitar as provas de sua condição.
— Como estão as coisas? Na última vez
entendi que algo parecia se projetar no horizonte...
— Mas agora já não se vê mais nada, e há
quem desapareça como um fantasma...
— Também ouvi dizer que alguém, sob
pretexto de saúde, tentou ser mandado para casa,
li sobre isso nos jornais, mas já há algum tempo...
— Não, não se trata deles... Mas deixe para lá,
você não acreditaria se eu lhe contasse, às vezes
até eu penso que é um sonho do qual não consigo
acordar. Falemos de Francesco então, onde está?
— Na clínica, tivemos de deixá-lo numa clínica
perto de Bolonha, de uns amigos de Eugênio;
tiveram de submetê-lo a uma pequena cirurgia.
Mas está tudo bem, só faz receber amigos e
amigas, está aborrecido, e pergunta sempre por
você...
— Dê-me seu número de telefone.
— É claro. Ele está com os cabelos bem
compridos, sabe, vaidoso como é, pede sempre à
namorada para penteá-los e lavá-los, mas não
quer saber de cortá-los.
— Está sempre com a mesma moça?
— Sim, Caterina. É simplesmente uma idiota.
Você vai conhecê-la também. No Natal Francesco
já estará em casa e, se você não tiver nada contra,
eu e Eugênio pensamos em convidá-la para a noite
de Natal.
— Nossa, daqui a pouco já é Natal... — O
pensamento daquela festa, que passou sempre
entre seus fiéis como pároco e depois como bispo
auxiliar, até chegar a cardeal, em Turim,
dedicando a vigília a seus entes queridos, o
comove de novo. Não está nem um pouco certo de
sair do conclave naquela noite. Seria o primeiro
Natal sozinho, depois de tantos anos.
Agora as sombras em movimento por trás dos
vidros opacos da janela defronte desapareceram;
em breve apagarão a luz e irão dormir. Mas deve
moderar-se, frear o que está para transformá-lo e
que a irmã percebe, reprimindo a costumeira
ironia sobre o conclave e os cardeais. Já apagaram
as luzes do quarto em frente. O cachorro, que nem
todas as manhãs se pronunciava, latia. Os gatos
de seu quarto viram os focinhos, assustados.
— Ettore, você ainda está aí? Está me
ouvindo?
— Por certo que sim, Clara.
— Então está bem para você, no Natal com
Francesco e sua namorada?
— Decerto, Clara...
— Não deixarei que se vistam de preto, no fundo
ainda não terão a visita do papa... — brinca sua
irmã.
Mas não é o tom de sua ironia, sempre mais
mordaz. Há um afeto bastante sensível naquela
imagem, e pela primeira vez permitiu que
zombassem disso, desde que está enclausurado
ali.
— Ah, Clara, basta-me sair daqui!
— Pode deixar que eu lhe tiro dessa prisão, mesmo
que tenha de arrancá-lo das garras dos guardas...
— E a voz de Clara ainda está diferente, gutural e
lenta como se uma sombra de medo também lhe
perturbasse.

Já não falam mais. Podem sentir sua respiração,


irmão e irmã, no silêncio.
Mas um sino de Bolonha, que ele sabe que é de
San Domênico, próximo à casa de Clara, toca
pontualmente: 9h45. A vastidão do mundo o leva
até sua casa, onde há sempre pronto para o tio um
quarto que todos, por brincadeira ou por vaidade,
chamavam "o quarto do cardeal".
Aquele som faz Malvezzi lembrar de novo do
sobrinho.
— Pode me dar agora o número de telefone
de Francesco?
— É 05165-7632, pode telefonar quando
quiser porque está sozinho no quarto...
— Bem, então vou ligar para ele amanhã de
manhã, depois da missa, às oito. Diga-lhe isso.
— Irei avisá-lo. E veja se liga mais vezes.
Mas como poderia telefonar mais vezes, para
explicar-lhe que estava falando no meio de
galinhas, gatos e corujas, temendo uma nova
manifestação do Maligno, que faz com que os
cardeais tentem fugir, e rouba aos piedosos, como
o patriarca de Beirute, a fé de que são de fato
eleitores do vigário de Cristo?
Ela não vê aquele clima, não pode perceber como
é bem suave o pendor à loucura, já manifesta nos
gestos de todos lá dentro, desde os jovens
capelães até os velhos prelados.
Ele não pode lhe dizer nada, existe ali dentro o
lento e sutil costume daquele eterno adiamento do
retorno. Talvez seja assim que a loucura se
anuncie: como um estranho hábito que faz com
que deixem para o dia seguinte o propósito de sair
e, no entanto, aos poucos vai se tornando leve e
suportável. Todo o mal da vida tem aquele estilo
ambíguo, aquela atmosfera de engano. Assim é
anunciada a velhice, como uma limagem em
surdina que com uma sábia dissimulação amolece
as carnes, desbota o arco perfeito dos cílios,
corrompe a firmeza dos seios e a curva dos
quadris. Até mesmo a doença conhece aquela
tática de guerra xiita, aquela falta de resistência
que sabe conviver com a saúde, tapando aqui e ali
as aberturas por onde haverá de passar um dia. O
conclave se rornou essa escola de verdadeiro
exercício espiritual, tão perfeita que nem sequer a
mente do papa negro, o general dos jesuítas,
poderia sonhar.
Não, não consegue contar o que está passando,
nem a ela e muito menos ao sobrinho. Ligará para
Francesco amanhã, não agora como sua irmã se
admirou de ele não ter feito. Quem sabe amanhã,
ao despertar, aquele impulso que agora o está
tentando não tenha sumido, como tantos outros
pedidos de ajuda nestas últimas semanas.
— Bem, agora devo despedir-me, Clara, nos
falamos em breve.
— Quando?
— Em poucos dias, depois de amanhã.
— Então até domingo, Ettore. Um beijo.
Desligado o telefone, apóia-se na cadeira ao lado;
uma coruja empoleirada na haste das cortinas se
lança em sua direção para apanhar um morcego.
Foi um tal de eriçar as penas, bater as asas, bater
mais vertiginosamente ainda e depois uma queda
ao chão. O morcego jaz por terra, morto. Mas a
coruja não deve estar muito melhor. Ele a vê
ensangüentada, com uma asa que não é mais
capaz de levantar, saltitante ao lado de sua vítima.
E um gato já a tem em mira, espreitando-a.
Espanta o gato e procura levantar a ave de rapina
até sua mesa, fora do alcance dos felinos.
O telefone toca mais uma vez.
— Tio! Mas agora você não sai mais desse
buraco? Não está cansado de ficar brincando de
papa?
— Francesco... como está? Você teve um
acidente, mas está bem?
— Sim, se um fêmur e três costelas
quebradas não são nada: apenas quarenta dias de
aborrecimento, quase tão longos como o seu
conclave. Mas você sempre ganha de mim, já
percebeu que não nos vimos neste verão?
— Eu sei, eu sei. Mas nesse meio-tempo você
fez as provas de técnica da construção?
— Deveria tê-las feito no dia seguinte ao
acidente, perdi a chance. E pensar que estudei
tanto!
— Nunca se perde o estudo, você vai ver. De
um contratempo nasce uma oportunidade, algo
melhor estará esperando por você.
— Não sou um perfeccionista, basta-me ter
18. Mas e você, tio, como está? Eu daria um olho
para saber como está se saindo aí dentro. Vez ou
outra ouço notícias de vocês e procuro sempre
pelo seu nome. Mas nunca falam de você, tio!
— Não sou um bom jogador, Francesco. E
melhor que não ouça nada sobre mim... A nossa
vida é um pouco dispersiva, quase como a sua na
clínica, penso... Aqui também não acontece
nada....
— Aí é que você se engana, aqui há algumas
enfermeiras belíssimas e tenho a impressão de
que os médicos...
— Isso não é coisa que se diga a um tio
cardeal, ainda mais fechado num conclave,
Francesco. De qualquer maneira, eu disse uma
meia mentira, também nos divertimos aqui dentro,
mas da nossa maneira...
— E que maneira é essa, tio Ettore?

- 21 -
— Brincamos de esconde-esconde, caro Francesco,
e algumas vezes fazemos isso tão bem que não
encontramos mais quem se escondeu, mesmo
depois do jogo terminado. Depois dançamos, às
vezes sem trégua, e por toda a noite até o
amanhecer, indo para a cama estafados. Depois
brincamos de ilusionistas; imagine, há um entre
nós tão bom que consegue fazer desaparecer e
depois restaurar todo o afresco do Juízo universal,
na Capela Sistina. E nos diverte muito também a
luta entre os animais, aqui são aceitas sempre
apostas nos confrontos entre galinhas e
escorpiões, ratos e gatos, morcegos e corujas. De-
pois, quando nos cansamos de todas essas
diversões, vamos votar no papa na Sistina ou
repousamos em meio a jatos de vapor do banho
turco, na torre de São João. Diga-me se não nos
divertimos a valer no conclave, caro Francesco!
— Ah, tio, você é demais, que espírito tem,
você é ótimo... — E as risadas do jovem sobrinho o
contagiam, fazendo-o rir com vontade, enquanto a
coruja com a asa ferida volta a pousar na haste do
cortinado. Menos mal que lhe ocorreu aquela
tentação de parodiar a verdade; mas Francesco
lhe incutiu esse espírito, se falasse com Clara não
teria nunca esse entusiasmo. A irmã o teria
interrompido para perguntar-lhe se estava se
sentindo mal.
— Então, eminentíssimo tio, posso ficar
tranqüilo, você está bem e nos veremos logo, no
Natal.
— Tem coisa melhor do que isso?! Não! No
Natal levarei para você algumas galinhas do
conclave, para o almoço do primeiro do ano
também... Se você visse como são gordas...
E enquanto Francesco se despede sempre rindo, o
cardeal arcebispo de Turim sente o cerco da
loucura fechando à sua volta, cada vez mais forte,
na inútil saída de sua cadeira devido à brincadeira,
à fábula, à absurda confissão permitida aos
bufões, que apenas nos gracejos da
dessacralização podem homenagear a verdade.
Pois era isso que estavam se tornando, ele e os
outros cardeais em conclave, uma espécie de
bobos, bufões, idiotas de Deus, que levam à dor a
provocação, a fim de que Deus se manifeste. Um
conclave que se reinventa como carnaval, a fim de
que Ele desponte em outro lugar, mas que
apareça. Um sol que não surge no levante, mas no
poente, porém que ainda surge.

E com esta agitação no espírito que, às 10h30,


decide ir à torre de São João, onde, ao abrir
lentamente a porta da antecâmara, nota sem se
surpreender uma verdadeira multidão.
Com custo encontra um vestiário disponível.
Estão todos ali: franceses, alemães, espanhóis,
italianos da cúria e da diocese, africanos, norte e
sul-americanos.
Depara-se com o cardeal Paide, que se despe no
vestiário ao lado do seu.
— Três... — diz suspirando, com os olhos desvaira-
dos, observando bem o rosto ascético do ex-
trapista.
— Três... o quê?
— ... Três de nós se foram, caro Paide:
Contardi, Mascheroni e Ugamwa...
— Você não pode colocar o nosso grande
exorcista no mesmo plano dos outros dois. Mas
devemos rezar por ele, lembre-se de fazer isso na
sua missa.
Ettore Malvezzi não responde nada, começando a
trocar-se. O eco da risada de Francesco está
sempre vivo em seu ouvido e em ondas volta tão
intenso para contagiá-lo de novo, sem prestar
atenção se alguém o vê. E naquele momento não
consegue se conter, desatando numa risada seca.
Paide finge não ter ouvido aquela euforia sem
motivos, antecedendo-o no banho turco. Não é o
primeiro dos colegas a dar sinais de
psicolabilidade nos últimos dias. De resto, já notou
que Malvezzi é atormentado por movimentos de
origem nervosa, talvez causados pela
claustrofobia. Ele continua a considerar-se
afortunado pela sua formação de trapista: pode
permanecer em silêncio e sozinho por dias, sem
perceber que está só. Muitas vezes é a companhia
dos outros que o faz sentir a solidão. Até mesmo
por isso agrada-lhe a sauna, para corrigir a
tentação de evitar o próximo; naquele lugar é
forçado à confidência, à conversação, ao contato
direto, como na sua ilha quando era criança.
— Mas quando irá voltar o nosso grande exorcista?
Não consegue vê-lo entre os vapores, mas
reconhece a voz de Malvezzi, que deve tê-lo
seguido e não quer dar-lhe trégua.
Procura não responder, aproveitando-se dos jatos
que o escondem.
— Quem pode saber? Apenas os cardeais
negros podem dizer algo, por que não lhes
pergunta sobre isso? — responde, por sua vez,
uma voz que ele não consegue identificar de tão
intenso que está o vapor; naquela noite, com a
queda da primeira neve, os encarregados das
instalações aumentaram a temperatura.
— Não tenho medo... há algum de nossos
irmãos da África aqui dentro?
Agora a indelicadeza da pergunta, no anonimato
das nuvens de vapor, a um dos prelados talvez
injustamente culpados de práticas mágicas, torna-
se provocante e enfadonha.
— Eu estou aqui dentro.
— Quem é você?
— Carlo Felipe Maria Dos Angeles, de
Maputo...
— Então peço a você: chame por ele, pelo
cardeal Leopold Albert Ugamwa, ou devo chamá-lo
eu mesmo?... Ugamwa, o que está esperando?
Sopre, sopre forte e o muro cairá!
Um longo silêncio segue as últimas bizarras
palavras de Malvezzi.
Matis Paide já está quase abrindo a boca para
diminuir a tensão, quando percebe algo estranho.
O vapor rapidamente se dispersa, enquanto a
temperatura abaixa. Todos os velhos grandes
eleitores já estão visíveis, em costume adâmico,
um sentado, outro em pé, outro apoiado à parede.
E, no meio, no centro do grande cômodo, aparece,
revestido da cabeça aos pés com seu hábito preto
e vermelho, o cardeal arcebispo de Dar Es-Salaam,
Leopold Albert Ugamwa.
Ouve-se uma risada que aumenta, aumenta e não
acaba mais.
É Ettore Malvezzi que não consegue mais parar. A
quem o convida a conter-se responde apenas,
repetindo a frase cada vez mais veloz, que tem de
telefonar logo a Francesco.
— Telefonar? Mas, Ettore, não está vendo que o
nosso Ugamwa voltou? Não foi isso que você
pediu? — procura objetar Rabuiti, começando a
perceber que algo terrível está acontecendo com
seu pobre amigo de Turim.
— Por favor, deixem-me telefonar para Francesco!
O cardeal de Dar Es-Salaam, comovido e aturdido,
nesse ínterim sai da sala que, de repente, volta a
esquentar e a encher-se de vapor.
Diversos cardeais saem do banho, onde com
Ettore Malvezzi permanecem apenas Celso Rabuiti
e Matis Paide.
A pequena turma que circunda o prelado da
Tanzânia não queria mais deixá-lo seguir. Muitos o
tocam e apertam-lhe a mão, ainda sem ter
coragem de falar com ele, de perguntar-lhe o que
apenas uma mente perturbada como a de Malvezzi
poderia ter a inconsciência de perguntar.
— Pobre Ettore, é preciso levá-lo à sua cela —
comenta ao lado de Ugamwa o prelado de Veneza,
Aldo Miceli.
— Mas foi ele quem teve a força para fazer
com que eu voltasse. — As palavras do exorcista
causam espanto a todos.
— O que quer dizer?
— Que a sua é uma extravagância boa, como a
minha magia. Malvezzi ainda percebe tudo, só que
de maneira diferente. Por isso ele me chamou,
porque me viu, sabia que eu ainda estava dentro
destes muros.
De novo paira o silêncio. O discurso toma um rumo
que traz à tona por parte do africano um modo de
pensar que não pode se conciliar com o deles.
Ugamwa, defendendo a fragilidade de Malvezzi,
precipita a si mesmo numa condição que lhe atrai
a desconfiança dos grandes eleitores do papa.
— Por que vocês não querem entender? Se
ele não tivesse também a simplicidade de uma
criança, não poderia ter aberto a passagem para
eu voltar.
— Mas o que está dizendo? Como aquele
pobre Malvezzi faz para abrir... passagens? —
insiste o patriarca de Veneza.
— Até mesmo os mais altos muros erguidos
pelo Mal cedem. Mas qualquer um, sabendo pedir
a quem se tornou prisioneiro um pequeno esforço
para sair, pode mudar o jogo daquela prisão. Foi o
que Malvezzi soube fazer, desafiando-me... a
soprar contra o muro. Assim ele me libertou.
Nesse exato momento aparecem à porta Matis
Paide e Malvezzi, apoiado em seu braço. Um
sorriso estático paira nos lábios do cardeal de
Turim.
Não há necessidade de palavras. Aquele sorriso
sem motivos, sem objeto, aquele sorriso sem fim,
fala. E dá razão a Ugamwa: aquele homem perdeu
o fio das mentiras e das verdades e o Bem e o Mal
deixaram de mentir, de aparecer-lhe de modo
diferente.
Naquele momento Rabuiti observa o telefone
sobre um console da antecâmara, pensando que
não adiantará mais a seu caro Ettore para chamar
Francesco. De fato, o cardeal de Turim passa
diante do aparelho sem nem sequer vê-lo,
deixando-se docilmente levar pelo purpurado da
Estônia até o vestiário.
Alguém deve ter conseguido advertir o capelão,
monsenhor Contarini, porque se vê a esbelta
figura do prelado palidíssimo aparecer na porta e
sumir como um raio pelos vestiários. O purpurado
da Tanzânia está sentado na antecâmara, ainda
circundado por muitos cardeais. Não quer mais
responder a perguntas sobre o ocorrido.
Responderia apenas ao camerlengo, a quem
deveria prestar contas de seus prodigiosos
poderes.
Reaparece agora Ettore Malvezzi, acompanhado
de seu capelão. Parece menos confuso, mesmo
tendo ainda um sorriso estático nos lábios, que
ajuda a entender sua relação com a realidade.
Ugamwa se aproxima para perguntar-lhe como se
sente e Malvezzi, em vez de responder-lhe, lhe
abençoa, traçando no ar o sinal-da-cruz. O gesto
do cardeal porta uma grande dignidade, parece
consciente e projetado além do lugar em que se
encontra. Não se limita a abençoar apenas o
prelado negro, mas olhando à sua volta começa a
abençoar todos os cardeais, com uma solenidade
do gesto que se transmite a quem o observa e
que, por sua vez, o leva a fazer o sinal-da-cruz.
Lentamente, se avia em direção à saída, sempre
levantando as mãos no ar para abençoar. Uma
cabeça se inclina, enquanto os monsenhores
filipino e ugandense de serviço na torre de São
João se ajoelham.
E o próprio monsenhor Contarini que vai ter com o
camerlengo duas horas mais tarde, para lhe falar
das condições de saúde de seu arcebispo, que já
se encontra na cama em seus aposentos.
A notícia de que Malvezzi está fora de si é logo
comunicada ao cardeal Veronelli pelo próprio
Ugamwa, mas em termos tão sugestivos e tão
pouco clínicos que não dá a entender se Ettore
Malvezzi ainda poderá participar das votações do
conclave.
Este é o único e verdadeiro problema a ser
resolvido pelo camerlengo da Santa Igreja
Romana, que não conhece precedentes em que
possa se basear. Em verdade, o purpurado da
Tanzânia não duvidava da oportunidade de
continuar a contá-lo entre os presentes nas
reuniões da Sistina. A sua pessoa é consagrada,
não pode faltar ao Sacro Colégio. Talvez aquele
homem já esteja mais próximo do Espírito Santo.
Veronelli, no entanto, desconfiado da linguagem
de Ugamwa, se sente mais perplexo ainda e
menos capaz de saber que decisão deve tomar. E
se o novo pontífice fosse eleito sem o voto de
Malvezzi, mesmo ele estando presente no palácio
apostólico, não poderia invalidar aquela eleição?
Diante de tal perplexidade, comunicada quando
Ugamwa acabara de sair do escritório do
camerlengo, Contarini não sabe o que responder.
Pode dizer apenas que seu cardeal era de uma
brandura exemplar, ao menos nas horas passadas
desde que "chamou", o desaparecido cardeal da
Tanzânia. Ao ouvir "chamou", o camerlengo
replica, interrompendo irritado a Contarini, que
Malvezzi não é um exorcista, não chama os
mortos, nem expulsa os demônios.
Contarini refuta que não está mais certo de que
exista apenas um exorcista no conclave, porque o
cardeal de Turim fala com as sombras, até mesmo
com aquelas dos dois defuntos que entristeceram
o conclave.
— Com quem? — exclama, então, Veronelli.
— Com suas eminências, os cardeais Emanuele
Contardi e Zelindo Mascheroni. Ele os vê em seu
quarto, sentados à beira de sua cama, como agora
estou lhe vendo. E falam com ele. Confidenciou-
me que eles estão infinitamente sós e desejosos
de companhia e que esta noite não sabe se
conseguirá dormir para não deixá-los sós. Parece
que alguns mortos nunca dormem, e invejam o
sono dos vivos. Diz que o mais insone, o cardeal
Mascheroni, por causa das equivocadas cir-
cunstâncias que levaram à sua morte, está à
espera de...
Diante de tal explicação, Veronelli interrompe o
capelão para dizer-lhe que no dia seguinte sua
eminência poderá repousar em seus aposentos,
ausente justificado no conclave. Ele mesmo, após
a votação, irá ver o cardeal de Turim para ficar
ciente de suas necessidades.

Quando finalmente Vladimiro Veronelli, sozinho,


consegue se deitar na cama, apaga o abajur e fica
longo tempo refletindo sobre o que deveria
defender. Acabara de resolver o problema dos
jovens secretários e capelães visionários, substi-
tuindo-os por colaboradores mais velhos, que não
sofriam de certas alucinações. E melhor não
admitir um louco no conclave, já há excêntricos
demais naquela santa assembléia, que, mais que
boicotada, parece inflacionada pelas
manifestações mais prodigiosas do Espírito Santo,
ainda que o Maligno não lhes dê trégua. Os
místicos na Igreja são uma importunação; quando
menos se espera, depara-se com eles entre os
mais diversos de seus membros: entre os
monsenhores da cúria, secretamente associados à
ordem rosa-cruz; entre os abades de antigas
abadias, nostálgicos dos templários; entre os
dirigentes vestidos de organizações bancárias,
rígidos penitencieiros da basílica de São Pedro e
docentes de seminário de severa formação tomista
que depois se descobre que se dedicam todos à
leitura das escrituras de Val Corba; muitos são os
filhos de São João da Cruz, Santa Teresa d’Ávila, e
poucos os de Santo Alberto Magno, Santo Tomás
de Aquino e São Roberto Belarmino.
Imagine se soubessem fora do conclave que entre
eles há um cardeal assim: esse exército de
místicos poderia fazer pressão para que sua voz
fosse ouvida. Pelo contrário, é preciso manter os
nervos frios. A eleição de um papa é uma
operação prática além de um ato de fé, uma
máquina que deve escolher o melhor e pelo maior
número de anos possível. Não é algo emotivo. O
emocionalismo já reinou demais, é preciso voltar à
razão. O seu filósofo preferido, Kant, sempre
demonstrou os âmbitos da razão e da fé, divididos
por altas paliçadas, que não permitiam confusões.
Fenômeno e noúmeno nunca se abraçavam, e
justamente por essa autonomia os dois conceitos
ajudavam os homens a buscar a verdade de sua
condição.
Ettore Malvezzi sempre lhe causara aflições, pobre
homem, com aquele seu raro dom de complicar as
coisas; mas agora o surgimento da loucura com
certeza agravou a situação. Um exorcista e um
louco são talvez os dois lados da mesma moeda.
E, de fato, os dois logo se entenderam, como pôde
perceber pelas palavras comovidas e afetuosas do
exorcista, pouco antes. Não é mais só um partido
africano, o da Santidade: isso irá se ampliar.
Porque os místicos, ou melhor, os fracos que não
vêem a hora de gritar por um milagre para
confirmar a fé, são um partido transversal,
incutido em todas as nacionalidades dos votantes.
Até entre os purpurados sul-americanos há os da
parte mais politizada do Sacro Colégio.
Sabe-se que o arcebispo de San Juan de Porto Rico
celebra estranhos ritos fúnebres que colocaram
sob suspeita a cúria vaticana. Sabe-se que o de
Medellín admite danças propiciatórias tendo em
vista os vários pedidos dos fiéis durante a missa.
Mas por certo o sucedido ao cardeal Mascheroni,
se vierem a saber como tudo aconteceu graças à
onisciência de Malvezzi, trará sérios
aborrecimentos. Como pode conhecê-la? Talvez
seja verdade que recebe um carisma pela sua
confusão, mas isso não é o bastante para declará-
lo um santo e até para admiti-lo na votação.
Os santos são sempre perigosos, tinha razão
Cerini, são reconhecidos após sua morte e depois
são adorados. Mas enquanto vivos é também
edificante para eles experimentá-los em suas
virtudes, opondo-se a eles. Assim asseguram
melhor o paraíso. Quando se tem muita pressa
para elevá-los aos altares, pode acontecer algo
semelhante ao que ocorreu com a beata Lúcia de
Narni, cujos lenços ensopados de sangue por
causa de seus estigmas foram enviados aos
soberanos devotos de metade da Europa, pelo
duque de Ferrara, que garantiu sua presença na
cidade, pagando por ela vários ducados aos irmãos
da beata. Até que um belo dia os estigmas se
fecharam e a pobre Lúcia teve de sobreviver à sua
fama, enclausurada num convento, esquecida por
todos...
- 22 -
Quando o camerlengo da Santa Igreja Romana,
assistido por dois cardeais escrutadores sorteados
naquela manhã, o arcebispo de Colônia e o de
Ernakulam-Angamaly dos siro-malabareses,
começa a ler as cédulas da primeira votação do
dia, percebe-se logo que algo novo está
desbloqueando o conclave.
Os nomes são sempre os mesmos: Leopold Albert
Ugamwa, Leopold Albert Ugamwa, Leopold Albert
Ugamwa, José Maria Resende Costa, José Maria
Resende Costa, José Maria Resende Costa, Ettore
Malvezzi, Ettore Malvezzi, Ettore Malvezzi...
Depois, menos apontados, os nomes de Alfonso
Cerini e Wolfram Stelipyn, com muito menos votos.
A dispersão, entre os 124 votantes — estando
ausente o cardeal Malvezzi —, finalmente
terminou.
O africano, o político e o santo parecem a Veronelli
as escolhas preferidas dos purpurados, enquanto o
outro italiano e o homem do Leste vão perdendo
terreno. Nem sequer a ausência forçada foi
suficiente para demover o fantasma de Malvezzi
da mente de 37cardeais. E não se pode mais
continuar a mantê-lo segregado, tendo em vista
como se realizaram plenamente as palavras de
Malvezzi, transmitidas ao telefone por Contarini
uma hora antes do conclave:
— O arcebispo de Turim está muito bem,
eminência.
— Mas ele dormiu? Ou continuou... as suas
conversações ?
— Que conversações?
-— Enfim, aquelas com os mortos, que ele via à
beira da cama.
— Ah, sim, eminência, fizeram-se boa companhia
toda a noite. Disse-me que apenas ao amanhecer
foram embora, apiedados de seu cansaço. Mas
poucas horas de sono lhe bastaram, e já celebrou
missa.
— Está precisando de alguma coisa?
— Não, está lendo seu breviário, sentado em sua
poltrona perto da janela. Insiste apenas em um
pedido.
— Qual, monsenhor?
— Que os 37 votos que o Sacro Colégio lhe der
nesta manhã sejam convertidos a outros mais
dignos na segunda votação do dia.
Não tinha comentado nada sobre aquela previsão.
A prudência lhe aconselhava a não se abrir com
aquele capelão que parecia tomar gosto em
manter o camerlengo na grade de suspeitos, já
que conhecia a verdade sobre a morte de Zelindo
Mascheroni.
E agora que a contagem dos votos terminara,
revelando não só que Malvezzi fora votado, mas
que obtivera exatamente 37 votos, se alegra por
não ter se mostrado incrédulo quando não deixou
transparecer seu pensamento.
Logo proclama os resultados oficiais, lendo-os na
ata que o cardeal de Colônia lhe entrega:
— Sua eminência o cardeal arcebispo de Dar Es-
Salaam, Leopold Albert Ugamwa, recebeu
quarenta votos. Sua eminência o cardeal arcebispo
de Brasília, José Maria Resende Costa, obteve 38.
Sua eminência o cardeal arcebispo de Turim,
Ettore Malvezzi, obteve 37. Sua eminência o
cardeal arcebispo de Milão, Alfonso Cerini, obtém
cinco. Sua eminência o cardeal arcebispo de Lviv
dos ucranianos, Wolfram Stelipyn, obtém quatro
votos. Não tendo sido obtida nesta votação nem
sequer a maioria simples exigida, que hoje era de
63 votos, devemos proceder a uma nova votação,
à tarde, às quatro horas. Eu lhes agradeço e peço-
lhes para suplicar ao Senhor Deus Onipotente para
que a decisão, que parece próxima, nos chegue
verdadeiramente inspirada pelo Espírito
Paracleto...
Todos notam que o camerlengo parece confuso:
nunca fizera nenhum comentário após as outras
votações. Desta vez se expôs até a invocar a
escolha iminente. E o sintoma da sua comoção é
que não fez nenhuma exceção, ele que é tão
atento às sutilezas e aos procedimentos, aos votos
recebidos por um cardeal ausente da Sistina. Mas
o arcebispo de Turim está sempre em conclave,
mesmo que temporariamente impedido.
É sobre tais limites temporais que a discussão e os
comentários fervem logo nas horas sucessivas,
quando no almoço se juntam alguns
eminentíssimos: Rabuiti, Stelipyn, Cerini,
Shaouguan, de Xangai; Bradstreet, de Toronto;
Dos Angeles, de Maputo; e Winnipeg, de Nova
York.
Ettore Malvezzi está realmente impossibilitado de
participar da eleição? E, segundo as leis
eclesiásticas que regem o conclave, desde a
constituição de Sisto V, é capaz de teoricamente
receber a eleição pontifical? O mais hostil a essa
escolha, ainda que apenas hipotética, Alfonso
Cerini, não tem dúvidas em colocar em jogo a
possibilidade da ficção: Malvezzi, mestre de
evasivas e subterfúgios, incapaz de assumir res-
ponsabilidades diretas, finge e simula de propósito
a loucura para chamar a atenção sobre sua
candidatura entre conclavistas que perderam a
razão.
Aldo Miceli, patriarca de Veneza, reage com severo
sarcasmo a tal insinuação:
— Você deveria se envergonhar, Cerini! Sabe bem
que Malvezzi sempre rejeitou qualquer hipótese
desse tipo. Depois se soube que nunca votou em si
mesmo, que foi o patriarca maronita que escreveu
seu nome na cédula.
Mesmo com Rabuiti a conversa chega a tons mais
exaltados. Mais que se alarmar e se indagar sobre
o prelado de Turim, na mesa do siciliano urge a
exigência de entender que tipo de guia poderia
oferecer à Igreja o africano que tem comércio com
os demônios. O horror pelo desaparecimento do
afresco de Michelangelo ainda não justifica para a
maioria dos comensais, que são italianos e
europeus, o recurso aos poderes do exorcista. A
presença à mesa de um purpurado de Londres,
que teve como colaborador em sua diocese, há
vários anos, o cardeal negro ainda não elevado à
púrpura, estimula a curiosidade, suscitando várias
perguntas.
— Sim, é verdade, até em Londres, uma cidade tão
distante de certos costumes, monsenhor Ugamwa
não desprezava as práticas mágicas... milhares de
pessoas o procuravam, e muitas vezes eu tive de
intervir para ajudá-lo a se livrar deles e... a nos
livrarmos deles...
O sutil e tortuoso interrogatório cruzado,
subitamente aberto por obra de três colegas de
Paul Linn, prelado de Westminster, é habilmente
confirmado pelo inglês:
— Mas convém sermos justos — precisa e corrige o
cardeal inglês — e reconhecer também os grandes
méritos de Ugamwa. Aquele homem foi capaz de
salvar, com seus poderes de premonição, milhares
de vidas humanas. Lembremos todos sua rápida
intervenção para esconjurar uma colisão de dois
trens que vinham em alta velocidade, e que, se
Ugamwa não tivesse intempestivamente
intervindo, telefonando ao ministro das Ferrovias,
teria causado a morte de centenas de pessoas,
bem no coração da periferia londrina. Esse homem
estava celebrando a missa, certa manhã, quando
eu o vi sair correndo da capela privada,
interrompendo o rito. De fato, Ugamwa ouvira um
apito lancinante e repetido, mas, visto que
perguntasse com grande insistência, ninguém foi
capaz de lhe confirmar que o tivesse escutado.
Insistia e insistia, porque não conseguia acreditar
que ninguém o escutasse, na cúria arcebispal.
Depois entendeu que apitava apenas para ele e
que algo ou alguém lhe transmitia uma mensagem
daquele trem distante. Então, em sua mente tudo
ficou claro: vira o trem correndo e o semáforo
verde que dali a uma hora acolheria o trem de
Liverpool, em vez de fechar e pará-lo, para dar
passagem ao expresso da Cornualha. Não houve
jeito de acalmá-lo e obrigou-me, com minha
autoridade de primaz católico, a telefonar para o
ministro em pessoa, que logo interveio para
verificar a exatidão da advertência, impedindo o
terrível acidente...
Naquele momento, enquanto as irmãs de Sahel
das cozinhas do palácio fazem chegar à mesa uma
apetitosa sopa de peixe, o arcebispo de
Esztergom-Budapeste, Vilmos Apponij, interveio a
falar. No topo da Igreja, tal homem certamente
teria infligido a ferida mais grave na
espiritualidade cristã. Na verdade, ninguém mais
teria acreditado não na fé, mas na força dos
prodígios e na violência dos milagres, que se
tornaram não o fruto de uma confiança infinda no
Senhor, mas a prova exigida para ter confiança
Nele. Sentia-se a exigência de cortar a perniciosa
tendência a limitar a verdadeira fonte da Reve-
lação — as Sagradas Escrituras, a Bíblia e os
Evangelhos —, causada pelo constante e crescente
recurso às formas indiretas da Revelação: os
segredos de Fátima, as cartas dos videntes, as
revelações de Medjugorje, as visões de Val Corba.
Minavam os fundamentos da fé cristã e
substituíam a Palavra do Criador pelos dons
concedidos a algumas criaturas...
É justamente quando o prelado húngaro se anima
sobre aqueles dons concedidos a algumas
criaturas que um frade negro, servindo as comidas
cozinhadas pelas sorores, tropeça nos gatos
excitados pelo cheiro da sopa de peixe, e que
vieram para pegar algum peixinho. Os pratos
fumegantes ficam com seu conteúdo em pedaços
e uma miríade de felinos se precipita sobre o peixe
caído no chão. Mas, mal o primeiro dos animais,
um grande gato marrom, consegue cravar os
dentes num linguado, ele dá um pulo e,
vomitando, começa a bufar e a miar furioso. Num
instante o alarme se estende a todos os gatos, que
fogem daqueles peixes com a mesma violência
que as galinhas, cujo barulho começa a encobrir as
vozes dos cardeais.
Deve tratar-se de um espetáculo verdadeiramente
cômico para a maior parte dos eminentíssimos,
porque o frade africano de serviço naquele
cômodo — mas só virá a saber depois que o
mesmo aconteceu nas outras reuniões conviviais
— vê os comensais desatando a rir com vontade,
cada vez com mais vontade, à medida que levam
a sopa à boca. O estranho é que, após uns 15
minutos, as risadas de toda a mesa, antes bem
atenta ao discurso do primaz húngaro, não dão
nenhum sinal de diminuir, enquanto os animais,
seguindo ura instinto mais forte que o da fome,
procuram sair juntos da sala, como se fossem
impelidos por algo pavoroso.
O frade de Sahel, Adam Mandumi, sai para libertá-
los, na esperança de com esse gesto aliviar a
atmosfera descontraída tão pouco consoante à
dignidade de uma refeição de cardeais.
Mas os eminentíssimos, que provaram todos, a
sopa de peixe, já não se agüentam mais,
escangalhando-se de tanto rir, às vezes
diminuindo os acessos de risos para tomar fôlego e
precipitar novamente numa salva de gritos,
agudos e gorjeios.
Adam Mandumi é o primeiro a suspeitar que a
sopa de peixe preparada pelas irmãs nas cozinhas
do palácio apostólico tem algo a ver com aquela
epidemia de risos. Mas não quer externar suas
dúvidas, até que ao sair da sala depara com os
colegas de serviço dos outros aposentos
igualmente embaraçados por não saber mais como
devem se dirigir aos cardeais, contagiados por um
desejo incontrolável de rir, depois de terem
provado o primeiro prato.
Pergunta, então, se foi a mesma sopa de peixe
que lhes foi entregue no carrinho vindo das
cozinhas.
— Sim, era aquele peixe.
— Mas, por acaso, vocês também o
provaram?
— Nem em sonho, acaso está pensando que
tomamos a mesma sopa dos cardeais?
— Por caridade, não provem nem sequer uma
gota, e suspendam o serviço desse prato a todas
as outras mesas!
Protestando um pouco, um pouco enervados,
todos o obedecem, contando depois que já era
muito tarde: a sopa já fora servida e não restou
nem uma espinha daquele peixe para contar a
história. Mas por toda parte ecoam os acessos de
risos dos eminentíssimos, que já não conseguem
nem falar, vermelhos do esforço de liberar o riso.
Que fazer? Só lhe resta precipitar-se às cozinhas
para entender quem enfeitiçou aquela maldita
mistura, fonte de náusea e vômito para os gatos,
de uma sede insaciável para as galinhas, que em
poucos minutos esvaziaram os baldes de água,
enquanto aos cardeais inspirou aquela risada
sacrílega.
Nas cozinhas, frade Adam encontra as sorores ocu-
padas em preparar o segundo prato: dois belos
linguados à mugnaia, guarnecidos com batatas
cozidas e uma porção de maionese batida à mão e
posta à parte.
As três pequenas irmãs negras cantam, e não
notam logo o intruso.
— O que vocês cozinharam para os cardeais? —
pergunta bruscamente o irmão Adam.
— Como o quê? Peixe, hoje é sexta-feira,
respeitamos o dia de abstinência por ordem do
prefeito da casa pontifícia — respondia uma das
irmãs, surpresa.
— Isso eu já percebi, sei muito bem que
cozinharam peixe! Mas que raios colocaram nesse
peixe?
— Como o que colocamos? E peixe
fresquíssimo, vindo de Óstia, foram pescados esta
manhã. Veja: são raias, badejos, dourados,
rodovalhos, linguados... Quer provar os linguados?
— Por caridade, não quero provar nada, mas
aqueles lá estão cantando há uma hora e não
param mais, desde que ingeriram sua maldita
sopa de peixe! O que vocês colocaram ali dentro,
em nome de Deus?
Ouvindo que os cardeais continuam a cantar sem
parar, uma das irmãs, madre Elizabeth, apaga o
fogo de uma panela.
— Fui eu que fiz a sopa... — diz, cheia de si. E
pensa nos cantos que entoou por toda a manhã,
enquanto limpava os peixes e os cozinhava. Eram
canções de sua aldeia, aquelas que cantavam para
fazer chover, mas também as que espantavam o
mau-olhado... E aquelas que cantavam ao redor do
fogo, à noite, para vencer o medo de que o sol não
voltasse... E depois, a canção mais bela de todas,
a sua preferida, aquela que o feiticeiro deixava
apenas as meninas cantarem... lá lá lá, laaa, lá lá
lá, laaa, lá lá, laaa... Fazia rir os mais velhos, que
já se recusavam a comer e queriam que os
deixassem morrer, e começavam a rir e a comer,
mal a ouviam, a comer e rir, até não agüentar
mais... lá lá lá, laaaa, lá lá lá, laaaa, lá lá lá,
laaaa... Foi isso que fez: entoou aquele canto
enquanto cozinhava a sopa para os velhos
cardeais!
A pequena irmã de Sahel, agora com lágrimas nos
olhos, se esforça para lembrar como o feiticeiro de
sua aldeia fazia os velhos voltarem a si, depois
que tinham cantado, por causa dessa canção, por
quase toda a noite; mas não consegue lembrar.
Depois tem um lampejo, enquanto volta a seus
pratos.
— Já sei! Não se preocupe mais, devemos fazer
apenas com que os eminentíssimos comam um
outro prato após os linguados: um belo abacate,
que os fará parar de cantar, esperando que
ninguém o recuse. Já sei o que devo preparar, mas
saia daqui porque não consigo cozinhar na
presença de estranhos.
— Veja lá se não vai errar desta vez; espero pelos
pratos lá fora para levá-los nas bandejas.
A irmã consegue o seu intento, ou cantando de
novo algo que anulava o feitiço canoro ou talvez
recobrando na memória alguma fórmula que lhe
fora transmitida pelos feiticeiros e que servia para
levar ao silêncio aqueles velhos risonhos de sua
aldeia.
O abacate é servido a todas as mesas dos cardeais
já extenuados pelo cansaço de tanto rir, que não
anula sua consciência, mas os freios inibidores.
Apenas um ou outro se recusa a provar o fruto
exótico, estranho aos seus hábitos alimentares.
Mas vendo que imediatamente se acalma a fúria
dionisíaca nos colegas, percebe seu valor e o
prova. E quando até os mais teimosos comeram do
fruto, um silêncio incomum paira sobre todo o
palácio apostólico.

Riram por três horas. Mas o arcebispo de Viena, o


de Varsóvia e o de Praga ainda mais, observa
Ettore Malvezzi em seus aposentos, onde
consumiu um prato frio preparado por Contarini...

- 23 -
O camerlengo entra nos aposentos do arcebispo
de Turim no fim de um outro dia de votações sem
sucesso. Visitar os enfermos é uma das sete obras
de misericórdia corporal. Mas não é com esse
espírito de piedade que o purpurado da cúria ultra-
passa a soleira de quem continua ainda nas
últimas votações a obter tantos votos: ganhara 37
no dia anterior, na véspera da nova manifestação
de excessos, devido à travessura de uma irmã
meio bruxa. E recebe 37 também na votação
seguinte.
Tal qual uma febre, mantém-se a alteração
daquele corpo unitário que é o Sacro Colégio,
legível nos votos, como na escala graduada de um
termômetro. Não sai dali e não se pode imaginar
nenhum expediente eficaz para remover a ameaça
da possível elevação ao papado de Malvezzi, além
de sua renúncia oficial à candidatura.
Mas de maneira alguma é uma empresa fácil falar
com um homem que conversa com os mortos,
prevê os acontecimentos e, desde que no banho
turco chamou o cardeal Ugamwa, passa os dias a
ler em silêncio, perto da janela do escritório.
Sabe-se que Malvezzi deixa suas leituras apenas
para fazer as refeições frugais e para prover
pessoalmente a comida dos animais que estão em
seus aposentos. É um dos poucos que não foi
contagiado pela peste da risada, mandando servir-
lhe comidas não provenientes da cozinha daquela
bruxa de Sahel... Até nessa frugalidade
demonstrou sua premonição.
Pouco antes, naquela tarde, para complicar as
coisas telefonaram para o camerlengo. A notícia
de que se tratava do Quirinal, ficou tentado a
negar-se a atender, mas depois o senso do dever
prevaleceu.
Teve de suportar uma angustiada advertência do
chefe de Estado, que se achava no direito de
exprimir todas as mais vivas preocupações do
povo italiano pela inusitada demora na escolha do
novo bispo de Roma. Se, por um lado, Veronelli se
alegrava por um sinal de atenção de tão alto nível,
em contraste com o crescente desinteresse dos
jornais pelo que acontecia no conclave, o
telefonema o aborreceu como se fosse uma in-
tromissão indevida. Mas, alegando problemas de
equilíbrios não fáceis de se resolver, não
descobriram que eles estavam se resolvendo.
Aquele telefonema era uma obra-prima de falsida-
des diplomáticas, mas com um apêndice em que
se concebia uma pequena vingança.
O chefe de Estado, no fim da comunicação, passou
o telefone para a mulher, senhora Gina. O capelão
palatino do Quirinal recentemente lhe tinha
revelado que a esposa do presidente, na visita
oficial ao futuro pontífice, se propunha a usar um
vestido branco, há séculos privilégio exclusivo das
rainhas católicas: a de Espanha e a da Bélgica,
além da grã-duquesa de Luxemburgo e da
princesa de Mônaco. Assim, quando a senhora
Gina Tarallo em Salviati expressou a ele seus mais
sinceros votos para uma escolha iluminada dos
eminentíssimos, a frieza do seco "obrigado" da
resposta atingiu a mulher. Gina se deteve um
pouco, talvez para aplacar o cardeal camerlengo. E
acrescentou que desejava receber em breve, para
uma refeição, os membros italianos do Sacro
Colégio, quando o conclave estivesse concluído,
mesmo que a cozinha do Quirinal deixasse a
desejar...
Àquela altura, a malícia toscana de Veronelli havia
despertado. Mudando o tom, a voz suave do
camerlengo pedia permissão para emprestar ao
Quirinal algumas cozinheiras não italianas que
tinham feito verdadeiros milagres naqueles longos
dias de conclave. A senhora Gina aceitara a oferta,
agradecendo por esse favor realmente delicado do
Vaticano ao Quirinal.
— Mande-me logo essas cozinheiras, eminência;
de onde são?
— Senhora, são irmãzinhas africanas, de Sahel...
Ah, se tudo fosse tão fácil quanto enganar aquela
mulher vaidosa! Mas como se faz para convencer
um louco?

Acompanhado por um pálido Contarini, de cujas


roupas o cheiro de tabaco emana mais forte que
nunca, o camerlengo chega à presença de Ettore
Malvezzi.
Pelo seráfico aspecto, não saberia dizer se seu
estado de saúde está realmente comprometido.
Sentado em sua poltrona, com a luz bem no seu
rosto, o homem parece um doutor da Igreja
absorto em sua mais profunda reflexão. Um São
Jerônimo no estúdio com o leão à seu lado —
substituído por galinhas, gatos e corujas — ou um
São Carlos Borromeu que medita sobre a homilia
que vai pronunciar dentro em breve na catedral,
ao lado de um pedaço de pão seco e de um copo
d"água para comer e beber... Não possui mais
aquela expressão suspensa e inquieta que tanto o
enervara. Malvezzi se levanta lentamente quando
percebe quem se aproxima de seu quarto, e coloca
o livro sobre a mesa. Sorri para Veronelli e o
convida a sentar-se a seu lado, diante do fogo,
numa das poltronas do outro lado do quarto.
Pergunta ao camerlengo se deseja algo para
beber, mas adverte-o de que só tem água.
— Água está bem, Ettore... É água...
— ... mineral, naturalmente.
— É agradável aqui. A chaminé suga a fumaça
melhor que a minha. Sabe, acabou de me
telefonar alguém muito importante, lamentando
nossa demora, diz que isso irá prejudicar as
relações entre a Itália e a Igreja, e prevê grandes
complicações. O que acha disso?
— Por que não me diz que era o presidente da
República? Quer me pôr à prova? Você veio para
me tentar?
— Tentá-lo? Com todos os pensamentos que
já tenho, meu caro Ettore... E você mesmo me deu
alguns deles, assustando-nos muito, você também
poderia me dar uma mãozinha...
— Eu sei tanto quanto você.
— Em verdade você deu a impressão de saber
mais. Outro dia, por exemplo, você me fez saber
horas antes que obteria 37 votos no conclave,
nenhum a menos. Que foi o que se constatou
depois, caro Ettore.
— Isso me foi revelado apenas para reforçar meu
pedido.
— Que pedido ?
— O de dar os meus votos a outra pessoa.
— Soube-se disso no conclave, mas todos o
tomaram como uma recusa de modéstia exemplar,
um motivo a mais para votar em você.
— Não pode me censurar por isso.
— Mas você continua com a idéia de se
retirar?
— Mais do que nunca.
O camerlengo dá um belo suspiro de alívio;
arrancou a primeira garantia. Agora, para passar
ao pedido de um ato formal, é preciso um pouco
de tato e de diplomacia. Enquanto bebe o copo
d'água servido por Contarini, observa os vários
animais presentes no quarto, cujo mau cheiro
chega logo às narinas, e que acabaram de entrar.
E, apesar de estar habituado àquele cheiro de
galinha na Capela Sistina e em tantos outros
ambientes, aqui o fedor é quase insuportável.
Espanta o fato de Malvezzi mostrar não estar
percebendo nada.
Lentamente, o mais lentamente possível, termina
de beber sem deixar de observar os animais. Os
gatos e as galinhas estão em semicírculo, com o
focinho e os olhos fixos em seu dono. A perfeita
imobilidade engana. Mal o vêem mover-se ou fazer
qualquer gesto mais rápido, agitam-se como se
quisessem acompanhá-lo em seus movimentos.
Muito mais curiosa é a pose das corujas, que estão
a uma respeitosa distância dos gatos, mas o mais
próximo possível de Malvezzi, sobre sua cabeça,
com as garras presas à cornija que corre entre o
teto e as paredes. Ainda mais estranha é a
absoluta resignação em defender seu dono: nas
duas vezes em que, no ardor da discussão,
Veronelli o roçou com a mão direita, os gatos
sopraram, as galinhas bicaram seus sapatos e as
corujas bateram as asas.
— O que você pensa das outras candidaturas?
— Têm aspectos muito contrastantes.
— Eu também sabia disso.
— Não acredito que nenhum deles passará...
se era isso que você queria me perguntar.
— Mas, então, como sairemos dessa?
— Eu não sei. Até Mascheroni e Contarini
custavam a ver o fim deste conclave.
— Ah... verdade?... Eles lhe revelaram que
você teria 37 votos?
— Não me lembro disso.
— É claro, o Letes das visões...
— Mas parece que pode perceber uma
verdade pelo que aconteceu ao pobre
Mascheroni...
— Depois falaremos do fim daquele infeliz.
Mas diga-me o que é essa verdade.
— Que não estamos tão longe assim do dia
em que veremos uma mulher no pontificado.
Veronelli arregala os olhos, agitando-se na
poltrona.
Notando o sobressalto, os gatos já estavam
prestes a se atirar sobre ele, se Malvezzi não
tivesse logo intervindo para mantê-los calmos.
— Aquela sua trágica máscara no leito de
morte, que você quis apagar, também significava
isso.
— Acaso eu podia deixar de apagá-la, Ettore?
— Não, mas é preciso saber interpretar bem
esse fim. Veja, uma das coisas mais trágicas para
a humanidade, e que colhe mais vítimas que as
próprias guerras, é a lentidão da história. Quantos
homens foram mortos, condenados ou rejeitados
num certo estágio das religiões segundo leis que
eram consideradas absolutas, e depois de algum
tempo foram reconhecidas como obsoletas? E nós,
ministros da Igreja Romana, como fomos bons em
fazer a história seguir o mais lentamente
possível... O homem Zelindo Mascheroni pagou
com a morte pela consciência desesperada de ser
essa máquina lentíssima quando sentiu na carne,
como desejo natural, o que o prefeito da
Congregação para a doutrina da fé deve
considerar como pecado...
— Estou custando a entendê-lo...
— Porque lhe falo de uma pobre vítima que ainda
pertence ao nosso tempo e à nossa vida. Mas se
tomasse como exemplo Huss, Giordano Bruno,
Galileu, Campanella, os hebreus condenados como
deicidas, os albigenses, os processos com tortura e
fogueira para bruxas e magos, você iria entender.
— Talvez eu consiga segui-lo em certas
responsabilidades nossas, pelas quais já pedimos
perdão. Mas não posso fazer isso quando você
quer convencer-me de que um dia será oportuno
eleger para papa uma mulher. Está percebendo? É
contra a lei de Cristo! O Senhor não elevou
nenhuma mulher à função de apóstolo.
— Eu poderia responder que os olhos de
Jesus, enquanto homem, também sofriam da
opacidade e da lentidão da história. Na sociedade
de seu tempo, entre os hebreus, nunca poderia
fazer isso. Era contra o costume da época.
— E quem somos nós para abolir um hábito de 2
mil anos?
— Somos aqueles que não conseguem mais
eleger um papa porque não têm visão do futuro.
— E seria porque não temos coragem de
admitir mulheres no sacerdócio e no papado?
— Foi você quem disse isso, não eu.
O camerlengo está perturbado. Veio buscar uma
iluminação sobre o futuro, e tentou arrancar
daquele louco imprevisível um pouco da luz que
lhe vinha esporadicamente, no que se refere a
uma renúncia a futuras pretensões ao papado, e,
no entanto, ouve a indicação de uma mulher, para
o trono de Pedro, como uma das chaves para as
portas do futuro.
Está realmente louco aquele infeliz. Agora não
receia mais interditá-lo no conclave. Aliás, será
seu preciso dever isolá-lo, para impedir que algum
desprevenido entre os 123 cardeais fique
fascinado com ele.
— Sim, estou de acordo, Vladimiro, é melhor que
eu fique aqui, que eu não vá mais votar — engana
aquele homem impossível, com o sorriso mais
radiante, observando-o com olhos que custa a
sustentar. Aquele olhar faz com que ele se sinta
um carniceiro diante de sua vítima consenciente
da execução capital.
— Não se aflija, sei que é difícil, embora seja
muito cedo para eleger uma mulher, acalme-se.
Devem ainda sofrer por superstição e tabus
religiosos milhões de mulheres infibuladas,
milhões de mulheres que não podem aceitar sua
parte masculina como milhões de homens a sua
feminina, segundo nossa maldição. Devem ainda
passar pelos moinhos lentos da história milhares
de vítimas que faremos junto com os aiatolás,
rabinos e quantos bruxos existirem na Terra.
— Não estou lhe reconhecendo mais, Ettore!
Antes você não falava assim. Não só não consigo
entendê-lo, mas temo ainda que deva condená-lo.
— Eu sei. No passado você teria me
entregado ao Santo Ofício e movido um processo
do qual só poderia sair condenado à fogueira.
— Mas, Ettore, eu lhe suplico! Não se lembra
mais quem é?
— Onde estou ainda não consigo esquecer
disso por completo! É o único sofrimento que me
liga aqui... senão... — e Ettore Malvezzi não
consegue completar a frase, inesperadamente
comovido.
— Senão?
— Senão eu já estaria onde estão Contardi e
Mascheroni..., mas me ligam ainda algumas
memórias, algumas pessoas que me esperam, e
algum amigo... quem sabe, talvez até você... —
Agora o rosto de Malvezzi está banhado de lá-
grimas, e nem sequer Veronelli consegue esconder
mais sua agitação diante daquele homem.
Como se os animais presentes no quarto tivessem
percebido o estado de espírito do dono,
aproximam-se de sua poltrona, contestando o
direito de saltar em seu colo.
— Perdoe-os por sua intromissão... E assim,
veja, suspenso entre aqueles que já me
precederam e os que me querem bem, estou aqui,
incerto e em dúvida como sempre, aquele homem
que nunca lhe agradou.
— Mas o queremos vivo, Ettore; não me faça
a indelicadeza de não acreditar em mim.
— Acredito. Mas o que você faz com alguém como
eu? Sabe que agora vejo a sua mãe, ao seu lado,
acariciando seus cabelos? E vejo seus dois irmãos,
em Roma, um ocupado em caminhar na antiga
Ápia, o outro acamado, assistido pela filha? Sabe,
depois de amanhã haverá aqui em Roma uma
terrível tempestade que irá perturbar a cidade,
causando sérios danos... Você também veio por
isso, confesse, queria saber se é verdade que
Malvezzi vê...
A menção à mãe tirou as palavras da boca do
pobre Veronelli. Por um instante, passa pela sua
cabeça a consciência do tormento que deve sofrer
aquele a quem conui mente chamam louco. Por
um momento apenas viu o que foi concedido
àquele homem, a quem no presente não é possível
firmar o Bem e o Mal, visto que o presente a seus
olhos desliza logo para o futuro, assim como o
quarto aumenta para acolher a cidade. É melhor
calar, não avançar naquela conversação cada vez
mais penosa.

- 24 -
Madre Elizabeth, a cozinheira negra, foi imolada
com suas sorores, vítima oferecida ao Quirinal
para as ambições da esposa do chefe de Estado.
Quase todos os capelães e secretários mais jovens
que tinham afligido o conclave com as suas
alucinações sobre as galinhas foram substituídos
por pessoal mais velho, mandado pelas várias
dioceses de Roma. O cardeal Ettore Malvezzi
prometera sua renúncia formal à candidatura. O
arcebispo de Dar Es-Salaam havia prometido
prestar contas da atividade de exorcista, em
particular ao camerlengo e, publicamente, diante
do Sacro Colégio reunido...

O cardeal Vladimiro Veronelli começa a ter algum


conforto por sua incansável ação de governo do
conclave mais longo da história da Igreja. Para
confortá-lo, chega também a notícia, da parte do
conde Nasalli Rocca, de que a luta contra ratos,
escorpiões e morcegos já pode ser dada como
vencida, ainda que a prudência aconselhe a não se
livrar por completo de gatos, galinhas e corujas.
Até mesmo o telefonema do Quirinal pode dar-lhe
um certo alívio, porque testemunha a atenção
sobre o que acontece dentro dos muros leoninos.
Mas é apenas o raio de um pálido sol. Porque, ao
contrário, a verdade é que os redatores, na sala de
imprensa, estão em silêncio, pois a internet mostra
cada vez menos navegadores desejosos de se
conectar com o site do Vaticano. E os jornais,
vespas molestas da necessária ampliação do
evento, o amargo cálice a ser bebido todas as
manhãs, esnobam os cardeais de Roma e seu
enfadonho conclave. Ao menos disto está seguro.
O conclave não deixou filtrar nada sobre as
loucuras que o transformaram, por sua vez, em
uma assembléia de maneira alguma enfadonha.
Os conclavistas continuam a se mostrar incapazes
de fazer uma escolha, com votações que repetem
os resultados; um fraco manuscrito, ainda que
nem um pouco comparável ao clima de dispersão
dos primeiros dias.
Malvezzi diminuiu a conquista e se assentou em
uns vinte votos. O efeito da sua renúncia e de sua
constante ausência se faz notar e não é mais
interpretado como ato de edificante modéstia.
Ugamwa e Resende Costa são sempre os favoritos;
mais atrás vêm Cerini e Stelipyn, grudados com
cinco e quatro votos. A sensação de Veronelli é
que falta um sopro a esse momento decisivo que
irá tirar a barca de Pedro das águas estagnadas. O
vento virá de repente e começará a revolutear,
empurrando as velas para o porto, para a saída
que o Espírito Santo conhece desde sempre.

Mas o cardeal camerlengo nunca iria imaginar que


a metáfora de seu otimista estado de espírito
pudesse ser tomada pela natureza tão ao pé da
letra. Porque dois dias depois do encontro com
Malvezzi se abate sobre Roma e sobre o campo
romano um vento tão furioso que arranca árvores
pela raiz e arrasta automóveis e algumas pessoas.
Depois uma chuva pesada, que bate e se agita
como um chicote, desce numa atmosfera de treva,
em meio a contínuas interrupções de energia
elétrica, causa de não poucos problemas para as
autoridades municipais e objeto de muitas
chamadas de socorro de diversas partes da Cidade
Eterna. São notadas quedas, desabamentos, até
estranhos rangidos de palácios em ruínas, fruto da
selvagem especulação dos construtores de
palacetes romanos. A cúpula de Sant Andrea delia
Valle, a igreja pucciniana de Tosca, está
seriamente danificada. Villa Borghese parece o
jardim terrestre após o dilúvio universal. A
pequena torre do palacete onde está abrigada a
galeria homônima não resistiu ao vento e
desmoronou, destruindo consigo uma enorme
quantidade de obras de arte.
Mas onde a fúria da natureza, prevista pelo
cardeal Malvezzi durante a visita do camerlengo,
parece se obstinar com uma soberba
voluptuosidade de destruição fica a cidade
assentada sobre a colina do Vaticano. Ali, onde há
muitos séculos se consumou o sacrifício de Pedro e
onde os seus herdeiros se debatiam há meses à
procura de um sucessor, a chuva, o vento e o gelo
parecem paralisar qualquer socorro.
Na torre de São João, a violência da chuva é tão
devastadora que entope esgotos e condutos,
bloqueando todas as instalações do banho turco.
As cozinhas, alagadas pela impossibilidade dos
esgotos de receber outra água, não estão mais em
condições de funcionar. No palácio apostólico
começa, então, um vai-e-vem de capelães e
prelados com pequenos fornos elétricos para
remediar almoço e jantar para os grandes
eleitores.
O vento não se limita a soprar, continuando a
assustar os velhos hóspedes com sua alma
perversa. Várias vezes força janelas mais antigas,
chegando a estilhaçar os vidros, tão antigos e
frágeis como as pessoas que até então
protegeram. Diversas estátuas da colunata de
Bernini, na praça da basílica de São Pedro, caem
ruinosamente. O tambor da cúpula de
Michelangelo, majestoso símbolo de Roma e da
sua catolicidade, está ameaçado de perder a bola
dourada encimada pela cruz, um dos monumentos
mais fotografados e pintados da Terra. Se caísse,
causaria danos de conseqüências incalculáveis.
Após o primeiro dia daquele flagelo começam as
irregularidades mais graves da penosa máquina
que é o palácio apostólico durante o conclave. Os
elevadores param, obrigando vários purpurados a
uma longa espera para conseguir voltar ao térreo,
abaixados pela manivela mecânica. As caldeiras
dos termossifões sofrem graves avarias, limitando
a distribuição de calor. As velas remedeiam até
certo ponto a falta de energia elétrica que
precipitou os cômodos no escuro. O engenheiro-
chefe da Cidade do Vaticano, conde Nasalli Rocca,
auxiliado por dois assistentes no trono pontifício,
os príncipes Orsini e Colonna, no estúdio do
vigário-geral, expediu um bombardeio de
telefonemas, fax e mensagens por correio
eletrônico ao prefeito de Roma e ao ministro do
Interior. Toda a cidade de uma só vez tornou-se
objeto de vários pedidos, impossíveis de serem
atendidos. E, com boa vontade de sua excelência,
os cidadãos italianos têm preferência sobre eles,
órfãos de seu soberano, do Vaticano.
O matiz anticlerical da resposta do prefeito,
aproveitado pelo príncipe mais negro de Roma,
dom Amilcare Colonna, torna ainda mais furiosa a
insistência das autoridades além-Tibre, resultando
na aproximação daquelas italianas, até as mais
pessoalmente religiosas, em uma única frente
negativa.
Nasalli Rocca não conseguiu mais se conter
quando grita para o ministro do Interior, na TV ao
vivo um católico sempre pronto a beijar o anel do
papa, que, lá dentro, às escuras, naqueles
cômodos, se está elegendo o sucessor de Pedro.
Com sua voz esganiçada, imperturbável, o
ministro responde que ainda não percebeu nada,
visto que não parece verdade que os cardeais
tenham tanta pressa assim. Por isso, podem
esperar um pouco mais... E, para se prevenir da
resposta do conde Nasalli Rocca e do príncipe
Colonna, o ministro se põe a recitar a lista das
emergências que se sentem por toda parte: os
plátanos de via Merulana tombaram sobre as
casas à sua volta; a embaixada da Rússia, Villa
Amabelek, foi atingida por um raio que provocou
um incêndio; o palácio Farnese, sede da
embaixada francesa, ficou destelhado; o Tibre
transbordou e já chegou aos primeiros degraus da
Farnesina; a residência do grão-mestre da
maçonaria, no Aventino, foi danificada por um
desmoronamento que invadiu todos os cômodos
com lama e feriu o grão-mestre; no campo de
Marte, sacudida pelo vento, a torre pode ruir de
uma hora para outra; seis condomínios de
Testaccio foram evacuados por precaução; um
asilo de idosos, em São Lourenço, está meio ruído
com sessenta hóspedes ao relento...
— Entendam, suas excelências, isso é só parte da
lista das prioridades! — conclui o ministro.
Nasalli Rocca, Colonna e Orsini não podem
apresentar mais nenhum protesto ao seco clique
telefônico que seguiu suas últimas palavras.
Poderiam invocar algumas normas do acordo que
prevêem por parte do Estado italiano assistência
em caso de calamidades públicas, mas notaram
sua inutilidade, até porque é indubitável a
fraqueza da Sede vacante. Sem papa o Vaticano
está dividido, e quem sabe se, no governo, alguém
não sonhe com uma perpétua ausência, pensa o
príncipe Colonna.
Por outro lado, quem capta naqueles sinais
extraordinários da natureza a graça de
amadurecer com os eventos em vista da solução
dessa insuportável espera que se consome no
Vaticano é o cardeal Ettore Malvezzi. Sentado
perto de sua janela ainda firme diante da violência
do vento, sente que a fúria de morte que se
abateu sobre Roma é o último insulto do príncipe
das trevas, antes de dar-se por vencido.
— Non praevalebunt, non praevalebunt... —
murmuram seus lábios, observando a cortina de
chuva que bate nos vidros da janela, no pátio de
onde às vezes vem o lamento do costumeiro
cachorro.
Não muito longe da janela do cardeal Malvezzi, no
bairro do Gianicolo, numa outra janela um casal de
jovens amantes está observando aquele fim de
mundo.
A escuridão do blecaute, que vai e vem, os
surpreendeu no momento mais doce do encontro,
quando nem mesmo a fúria da natureza podia
separá-los de seu abraço.
A casa, vizinha a Sant’Onofrio, não está menos
exposta que tantas outras, naquela parte de
Roma, mas a intimidade reduz em muito a
impressão da tempestade.
— Minha nossa, como chove, Lorenzo... como
é que você vai fazer para voltar para casa de
vespa?
— Ficarei aqui até a chuva passar... Oxalá não
pare...
O abraço que acolhe o desejo de seu namorado,
estudante do último ano de medicina, faz Anna
fechar os olhos, subtraindo-se do barulho da água
e do vento debaixo do edredom.
O apartamento, que é do tio antiquário em via
Margutta, deve ser devolvido em ordem pela
manhã no dia seguinte, às oito horas. Mas ainda
há tempo, tanto tempo, e aquela tempestade adia
os limites dos horários, suspendendo hábitos e
deveres, como um presente oferecido pela
natureza a ela e a Lorenzo, que não têm a mínima
vontade de se separar. E bom ouvir a chuva
batendo na clarabóia e no teto e ficar entrelaçada
àquele corpo quente.
Ouve apenas o som constante de uma transmissão
televisiva. Deve vir do andar de baixo e algum
trecho parece distrair Lorenzo.
— Quer que ligue a televisão, Anna?
— Não, quem quer saber de televisão?
— Parece que aconteceu alguma coisa...
— E daí?
— Não, você tem razão.
E Lorenzo se inclina para abraçá-la, desta vez sem
esticar o ouvido, até adormecer uma meia hora
depois em seus braços.

Anna não se mexe. Está no auge da felicidade


quando Lorenzo adormece sobre ela. Parece que é
mãe, irmã e esposa para aquele homem que se
entrega a ela. É mais que fazer amor, é amor
aquela entrega total. Ele lhe dá o governo de sua
vida, pode dispor dela a seu bel-prazer. Então,
imagina como será o seu futuro.
Anna não tem dúvidas, o matrimônio lhes
permitirá poder dormir assim, juntos, para sempre.
É esse "para sempre" que a comove, porque o vê
realizado em seus pais, que estão juntos há mais
de trinta anos, mas ainda se desejam, como lhe
calhava intuir por alguns episódios vistos quando
eles não se davam conta. Ainda se beijam às
escondidas, e não sabem que aquele furto de
amor os torna belíssimos a seus olhos.
Talvez ela e Lorenzo pudessem viver os primeiros
tempos naquele apartamento, se o tio Filippo for
persuadido a alugá-lo, assim que Lorenzo arranjar
emprego.
No entanto, a chuva bate no vidro da grande
porta-janela que dá para o terraço. Um vaso deve
ter sido revirado, porque os ramos de um loendro
foram prensados contra o vidro. Um verdadeiro fim
de mundo, mesmo que a luz tenha voltado.
Lorenzo parece não ter mais vontade de se
levantar: a um leve movimento dela, em vez de
acordar, vira-se para a esquerda, estirando-se todo
sobre o flanco para depois se encolher como um
menino em posição fetal. Anna se assegura de que
o edredom o está cobrindo todo, porque faz frio e
talvez o aquecimento seja insuficiente num dia tão
frio. Levanta-se bem devagar, com medo de
acordá-lo. Apalpa o termossifão. Está quase frio. O
pequeno aquecedor elétrico agora funciona, mas
dá pouquíssimo calor.
Para se animar liga a TV, mas tira o som. A tela se
ilumina, e a seus olhos se apresenta o cenário
verdadeiramente inquietante do desastre que
atinge não a Cidade do México ou Manila,
distantes no mundo, mas sua Roma, onde está
naquele momento, na cama com o seu Lorenzo
ignorante. Casas desabadas, desmoronamentos,
alagamentos, árvores que voaram por sobre os
tetos das casas destelhadas, algumas estátuas da
colunata de Bernini no chão... Mas que diabos está
acontecendo?...
De repente, a tela da TV muda de cenário.
É uma transmissão ao vivo da praça de São Pedro,
para a enésima fumarada do conclave.
Ainda o conclave? Mas quem está ouvindo? A
quem ainda poderá interessar aquela cena da
fumaça que nunca anuncia o papa?... Talvez o
conclave esteja terminando... Permanece com o
controle remoto na mão, indecisa se muda de
canal ou se fica olhando o novo papa. Observa o
seu Lorenzo, que não parece estar nem aí para
aquela chuva, muito menos para a história que
pode contar com um novo pontífice no mais
absoluto silêncio.
Eis o alto do muro da Capela Sistina, de onde se
eleva a famosa chaminé. Devem levar tempo,
porque provavelmente ainda não são capazes de
acender o fogo lá: não deve ser fácil fazer uma
fumaça branca depois de tanta negra... Mas logo
surge um tímido penacho de alguma coisa
semelhante a uma fumaça cinzenta. Sem o
comentário do locutor, quem pode perceber de
que cor é? E depois a televisão não é nova, a
imagem está meio turva... Mas agora não, não há
mais dúvidas, é uma fumaça cada vez mais
escura. Mais uma vez a fumaça é negra.
Que droga! E ela que parou para ver isso! Muda
logo de canal e imediatamente o espetáculo da
Roma desastrosa volta a impressioná-la. Sente
frio, muito mais frio que antes. Toca no
termossifão, desta vez está gelado. Aos poucos vai
se enfiando de novo debaixo do edredom, achega-
se ao corpo quente de seu Lorenzo, que, com ura
gesto inconsciente, mas percebendo o seu
contato, se vira dormindo para o seu lado e a
envolve com o braço direito. Agora algo a
incomoda, não consegue mais ficar parada,
imóvel, como antes. Sente a casa como se fosse
um enorme animal ferido, que custa a respirar. As
portas batidas, os passos nas escadas, algumas
vozes, um eco de um nome repetido por uma voz
feminina "Robertooo, Robertoooooo!...".
Se estivesse mais alegre não teria hesitado em
responder do patamar "Eeeeeeeh!", para confundir
aquela mãe chata.
O zumbido insistente e molesto do som da
televisão dos outros andares se espalha. Em mais
de um canal transmitem o que ela ouve da sua
cama: uma chuva que parece querer destruir a
Cidade Eterna. E Lorenzo continua dormindo.
Levantando os olhos, vê uma grande mancha
escura no teto, sem dúvida é a água não escoada
pelas goteiras do telhado. Está sobre a cama e em
breve começará a pingar. E se ela telefonasse para
alguém?... Mas por que alarmar os seus? E, depois,
seria embaraçoso responder se lhe perguntarem
onde está...
Pensa de novo na cena que acabou de ver, a
enésima fumarada negra da Capela Sistina. Que
brincadeira! Mas por que a televisão saiu do ar? Há
tempos notou que ninguém fala mais do conclave
e apenas algum telejornal noturno enquadra a
chaminé da Sistina, no Vaticano. O que terá
acontecido desta vez? Em sua casa, apenas a avó
continua comprando todas as manhãs Il
Messaggero para ler as últimas notícias do concla-
ve. Mas quando trava conversa sobre suas
previsões, ninguém dá corda à avó, que foi
roupeira de um poderoso prelado no Vaticano.
Certa vez ela ficou tão inquieta com a notícia da
enésima votação inútil que teve de desabafar com
o pároco, dizendo que era algo muito ruim para o
mundo e para Roma, um terrível sinal. Para o orbe
e a urbe, dizia a avó, que não tinha esquecido a
linguagem de seu prelado, cuja veste vermelha
das grandes solenidades ela guardava em um
armário. O pároco depois contou aquele desabafo
à sua mãe e a ela, em casa, enquanto esperava o
bonde, convidando-as a ir a São Clemente, para o
concerto matinal de domingo.
— Não temos mais a fé da senhora sua mãe.
Aquela fé que podia ler os sinais da providência e
seus avisos... Hoje, cara senhora Ceroni, para
encher as igrejas temos de organizar concertos...
— comentou, cumprimentando-a.
E agora, vendo aquela tempestade, voltam à
memória as palavras da avó Cesira.
Quando a primeira gota cai do teto, naquela hora
acorda Lorenzo, que a recebeu bem no meio da
cara. Abre os olhos e sorri para ela.
- 25 -
A alguns quilômetros de Roma, numa clínica em
Bolonha, outros dois jovens também estão
gozando da intimidade de um clima hostil a
qualquer saída. Uma feliz oportunidade para
Francesco e Caterina. Pela forçada imobilidade
dele, que ainda deve ficar com o gesso e não
poderia aproveitar um belo dia de sol. E pelo
cansaço dela, que, na renovada ternura favorecida
pelo mau tempo, transforma o tédio daquela
estadia no medo de que alguém venha perturbá-
los.
Ainda não é uma chuva torrencial, mas promete
não parar tão cedo. É uma chuvinha bem no fim,
que vem acompanhada de uma temperatura
abafada, quase estiva, incomum em dezembro.
Mas anunciaram que durante toda a semana o
tempo estará péssimo, até o Natal.
No quarto em que Francesco Cariati, sobrinho do
cardeal de Turim, está hospitalizado há mais de 15
dias, por causa das fraturas sofridas durante o
grave acidente de carro, reina uma alegre
desordem. Em vão Caterina, a mãe de Francesco
ou as enfermeiras da clínica tentam remediar.
Revistas automobilísticas, de decoração, de barcos
a vela, prospectos de viagens, periódicos, jornais,
maços de cartas, um laptop, canetas, papel para
escrever, pesos de ginástica para treinar e perder
a barriga, que crescera por causa da imobilidade
forçada. Um caos coroado pela televisão, pela tela
gigante, por muitos pulôveres e camisas jogadas
na outra cama e na gaveta. E por uma mesinha-
de-cabeceira cheia de várias garrafas mul-
ticoloridas de água e vinho, nem todas vazias,
entre as quais se pode notar uma Veuve Cliquot, o
champanha que tanto agrada a Caterina e faz o
fogo correr em suas veias. Foi ela quem o trouxe,
porque o encontrou de mau humor, pois os
médicos lhe disseram que não o deixariam ir para
casa naquele domingo, como ele esperava.
— Se continuar assim, iremos festejar o Natal aqui
dentro.
— Então iremos festejá-lo aqui, Francesco, que
importa?
— Não agüento mais. Há anos que eu o
passava em Turim, com o tio. E você também era
convidada.
— Não se podem dar socos no ar, dizia minha
mãe, eu acrescento: nem mesmo quando se tem
tios cardeais.

Francesco sonhara com ela naquela noite. No


sonho, a imagem de Caterina, que entrava pela
porta, se confundia sempre com outras figuras
femininas. Uma vez era a mãe, que lhe mostrava o
livrinho com as notas da universidade ou
censurava-o por estar um ano atrasado em seu
curso. Outra vez era o rosto severo, mas belíssimo,
da chefe de enfermagem, que seu pai batizara
como Greta Garbo, surpreendida ao intimá-lo para
ficar quieto na cama e não usar mais aqueles
pesos de ginástica, se desejava sair da clínica.
Outra vez ainda era a moça que se espetara por
causa de Caterina, que vinha ao seu encontro
brandindo uma enorme seringa para dar-lhe uma
injeção. De inquietação em inquietação, chegara
até quase a madrugada, quando todos aqueles
rostos severos se dissolveram, ficando apenas um
em campo, dulcíssimo e triste, que não via há
tantos meses: o tio Ettore.
Tinha falado com ele por muito tempo, mas não
conseguia perceber o sentido daquilo que dizia,
porque era um sussurro indistinto, pouco
perceptível, um balbucio cansado, como se o tio se
esforçasse para dizer-lhe algo que estava bem no
fundo de seu coração, mas não conseguia
encontrar as palavras, por causa de uma estranha
afasia. Então ele mesmo começou a oferecer as
palavras que faltavam ao tio, o grande orador que
encantava com a fineza de suas homilias na cate-
dral de Turim, e que, dizia-se, nos confessionários
chegava ao acme de sua maiêutica, quando podia
falar a sós com a alma... Viram-no falando "Chuva,
Roma, casa, Turim, volta", e depois ainda "Vento,
vela, janela, céu, asas".
E enquanto elas lhe vinham à boca, tinha a
satisfação de ver aquele caro rosto se esticar,
relaxar, sorrir até reencontrar a voz, para repetir
as mesmas palavras.
Agora que a chuva parece estar ficando mais
insistente e a escuridão baixando no quarto, seria
melhor ligar também a luz maior. Mas, ao
contrário, proíbe-a de fazer isso quando a vê se
aproximando do interruptor. Puxa-a para perto de
si, próximo à cama. Naquele momento, enquanto
Caterina procura se esticar a seu lado, o sonho da
noite se reacende em alguma parte da mente de
Francesco. De repente revê os rostos que o tinham
visitado, um a um, até o do tio. Mas agora o
telefone está tocando.
— Atendemos ou não, Caterina?
— Faça como quiser.
— Deve ser a mamãe. É melhor atender.
— Está bem. Mas eu vou me vestir, não quero que
a chefe da enfermaria entre...
No entanto, o telefone continua tocando, com o
característico ritmo acelerado dos circuitos
internos, freqüentemente maçante. E se não fosse
mamãe? Não tem a menor vontade de deparar-se
com amigos, cheios dos habituais cumprimentos
para fazê-lo se sentir menos prisioneiro, e as
habituais promessas sobre o que iriam combinar
assim que ele sair. Eles estão vivendo lá fora, e
ele, ao contrário... Mas, pensando de novo na sua
Caterina, não tem mais por que invejá-los. Estica a
mão para pegar o telefone. É sua mãe.
— Ligue depressa a televisão, no canal 1!
— Por quê? O que há?
— Ligue, estou lhe dizendo! Parece que
escolheram o papa.
— O quê?... Já estou ligando.
Ouve o clique de ligar e nunca lhe pareceram tão
longos os segundos que passam entre o áudio e o
vídeo. Uma voz masculina anuncia a transmissão
da Praça de São Pedro, onde em breve poderemos
ver a fumarada do conclave. Opiniões muito
respeitáveis prenunciam grandes probabilidades
de que finalmente os cardeais tenham chegado a
um acordo sobre a escolha e que a fumarada seja
branca.
O rosto do locutor vai desaparecendo, e logo
depois um enquadramento mais confuso da praça
de São Pedro. O repórter, no entanto, se desculpa
pela má qualidade das imagens, mas Roma foi
atingida em cheio por uma tempestade de
excepcional violência que já provocou danos bem
conhecidos e causou vítimas nos desabamentos e
desmoronamentos de habitações. Uma catástrofe
que levou o prefeito a proclamar estado de
calamidade natural.
A mãe chama Francesco, após a pausa.
— Francesco, Francesco, está me ouvindo?
Ele agarrou outra vez o telefone, mas a mente faz
com que as imagens da Sistina prevaleçam, com
sua chaminé ainda apagada, recortando o céu,
ofuscado pela chuva e pela nuvem, a visão do
sonho da noite. O rosto do tio que sussurrava
frases incompreensíveis, enquanto não lhe fazia
sentido, repetindo algumas palavras...
— Que estranho. Sabe, esta noite sonhei com
ele.
— O quê?
— Nada, sonhei com tio Ettore...
— Francesco, imagine se o víssemos em
breve, no balcão de São Pedro.
— Mãe, você sempre disse que não havia a
menor possibilidade... que não havia um homem
mais longe do que ele daquela ambição...
— É verdade, mas na última vez em que falei
com ele, há mais de uma semana, parecia
reticente, insociável. E você sabe o quanto ele é
expansivo por natureza. E como habitualmente
fala muito. Era como se quisesse calar algo que
lhe pesava.
— Mamãe, eu não achava que as esperanças
de se tornar irmã do papa é que lhe fizessem
lembrar dele assim. Comigo ele foi alegre, muito
simpático, nunca o vi brincando daquele jeito.
— E como estava no sonho?
— No sonho?... Ah, eis que começam a falar da
fumarada, está ouvindo?
— Sim...
Caterina volta naquele momento.
Vê a televisão ligada e o seu Francesco ao
telefone. Com certeza deve estar com a mãe; a
tela da televisão revela isso. O tio em conclave os
unia tanto que às vezes a deixava com ciúmes.
Nunca encontrou com ele, e agora treme como
uma folha diante da possibilidade de vê-lo. Porque
é isso que Francesco e sua mãe estão esperando.
E ela desaparece, não existe mais nesse instante.
Senta-se silenciosa e espera pela fumarada,
desejando do fundo do coração que ela seja negra,
que não apareça aquele desconhecido vestido de
branco.
O primeiro penacho de fumaça ainda é incerto,
deixando ao locutor a possibilidade de manter
milhões de espectadores com a respiração
suspensa. Esse truque teatral tão velho consegue
perfurar até a tela e eleva a audiência, sem dúvida
alguma.
Depois aparece a fumaça negra, e em poucos
instantes, enquanto o locutor cumpre a parte de
maestro de um espetáculo de sucesso falho que se
desculpa com seus espectadores, tudo volta a ser
como antes.
O mundo sem papa já é visível até na propaganda
da ração enlatada para cães que estão
transmitindo naquela hora, enquanto uma densa
conversa ao telefone de seu Francesco com a
desiludida irmã de um cardeal a exclui. Mas desta
vez é uma exclusão indolor, que lhe dá tempo para
fingir as suas emoções e esconder o estado de
espírito que antes a atingira.
— Francesco, você nem sequer me deixou
cumprimentá-la.
— Desculpe-me, ela lhe manda um abraço,
mas tinha muita pressa, tinha de sair com o papai.
— E melhor você se vestir. Antes ficou sempre
descoberto, mas não está fazendo calor algum
aqui dentro esta tarde.
— Você viu? Nem esta tarde tiveram sucesso.
Quem sabe o que aquela gente da TV tem na
cabeça? Que papelão os cardeais estão fazendo...
— Acha que seria melhor não ver outra
ocasião perdida para seu tio?
— Como você é má...
— Sinto muito, desculpe-me. Ouça, amanhã
tenho de ir à casa de Maria, é aniversário dela.
Você se importa se nos virmos só depois de
amanhã?
— Venha cá... o que você tem?
— Nada, por quê?
— Porque você está diferente, eu disse algo
que a magoou, mas não sei o que é.
Ela prefere deixar para lá, paga para vê-lo
carinhoso novamente. Agora não há mais sombra
do conclave lá dentro; o tio cardeal foi vencido
duas vezes, pela televisão e por ela.
Despedem-se com a promessa de se telefonarem
logo que acordarem no dia seguinte. A porta do
quarto ela se vira para olhar para ele, de perfil.
Devia cortar os cabelos, estão começando a
perder a leveza, com ele sempre deitado sobre o
travesseiro. Desejava-o tal como o vira no primeiro
dia, de costas, em um aniversário na casa de
Cinzia. Uma cascata de cabelos tão macios que
logo convidavam a mão a mergulhar ali. Os dois
faziam amor com os cabelos, dissera Francesco
certa vez...
Mal Francesco apagou a luz, o telefone toca de
novo. É a mãe outra vez.
— Desculpe-me, tesouro, imagino que você já
está quase dormindo a essa hora, mas estou um
pouco preocupada. Na TV deram notícias graves
sobre a tempestade que se abateu sobre Roma;
dizem que há muitos anos não acontecia um
desastre desse tipo. E o Vaticano está entre os
lugares mais atingidos... Ruíram estátuas, paredes
e, como em toda Roma, não há energia elétrica.
— Você acha que o tio Ettore está no escuro?
— Sim, Francesco, telefonei logo para ele,
mas as linhas estão interrompidas.
— É normal com esse tempo, tente mais
tarde.
— Está bem, desculpe-me, tesouro. Mas e você...
Como ele estava em seu sonho esta noite?
— No início estava cansado, falava com
dificuldade, não se conseguia entendê-lo, mas
depois se recuperou; pensa que eu o ajudei a
fazer-se entender... Mas, os sonhos...
— Eu liguei para você de novo porque pouco
antes Caterina estava aí e eu não queria tocar
nesse assunto.
— Por quê?
— É melhor que algumas coisas fiquem em
família. Boa-noite, Francesco.
— Boa-noite, mamãe.
Sua mãe e Caterina ainda não se dão bem. É a
única coisa que o aflige, depois de estar atrasado
nos exames. Está além de suas forças fazer com
que as duas mulheres se queiram bem.

Seu tio no escuro, como ele naquela hora. Como


ele na clínica, fechado no conclave. Sua mãe se
preocupa muito, mas é melhor ouvir o telejornal,
com certeza darão notícias da capital. Liga a
televisão e logo vê o que tanto alarmou sua mãe.
Não se pode deixar de dar-lhe razão, não se trata
de um simples mau tempo. Perturbam-no as caras
das pessoas entrevistadas após o desabamento de
algumas casas ou após os desmoronamentos que
envolveram certas áreas da cidade. Parecem ter
visto algo que sentem medo de descrever. Nem a
TV consegue pôr em cena o medo, certas emoções
não podem ser representadas. A mente, sim, pode
acolher e vivê-las, até o espasmo.
Apaga a luz, com um leve sentimento de culpa,
como se tivesse violado a dor daqueles
pobrezinhos que um estúpido entrevistador se
preocupa em interrogar da cama, no hospital, com
vendas ao redor do rosto e nos braços:
— O que será que sentiu quando viu a casa
desabar? A televisão é horrível. O sonho tem muito
mais piedade dos homens.

- 26 -
Nunca se soube quem, no Sacro Colégio, preparou
a brincadeira da direta televisiva daquela tarde de
dezembro, enquanto a cidade eterna gemia com a
violência do temporal.
Na sala de imprensa do Vaticano, para onde foi o
camerlengo em pessoa para os primeiros
interrogatórios, havia uma troca recíproca de
culpas e uma descarga de responsabilidades. Um
dizia que o telefonema sobre a iminente procla-
mação do novo pontífice tinha vindo do capelão de
um dos três cardeais mais votados; outro
sustentava que foi um dos eminentíssimos que
solicitou o diretor de um telejornal para um
contato bem rápido com a RAI e as outras
televisões privadas; outro ainda falava de um
telefonema da direção da TV estatal para obter a
confirmação da escolha realizada pelo conclave,
como se a notícia tivesse sido filtrada por um dos
protagonistas daquele dia com a própria RAI.
Nunca se encontrou o comunicado de imprensa,
nem o capelão indiscreto, nem o diretor da TV que
pudesse testemunhar quem foi o autor dessa
indiscrição. O camerlengo se aborreceu com o
conde Nasalli Rocca, com os príncipes Colon na e
Orsini, com o responsável da sala de imprensa,
ameaçando de propor ao novo papa a suspensão
de seus cargos. O caráter sagrado daquela
segregação, que consentia apenas aos espíritos
dos cardeais a autonomia da escolha, sofria pelas
suas negligências um golpe não menos grave que
os infligidos em três meses por tantas
desventuras. Pois esse dano se consumara diante
dos olhos do mundo, aquele mundo que já mostra-
va forte indiferença. Mas aquelas desventuras se
realizaram de portas fechadas, sem que o mundo
tomasse conhecimento delas.
O camerlengo deve ficar contente com a
suspensão de qualquer prelado adepto das
comunicações e de uma severa censura a quem
cuidava das relações externas, durante a Sede
vacante. Os diários do dia seguinte completam o
quadro negativo com a imagem da fumarada
negra emoldurada por títulos irreverentes de um
evento não difícil de ligar ao clima deprimente
numa Roma assolada por uma tempestade de
singular violência, nem um pouco intencionada a
largar a presa sobre a cidade, após 24 horas.
Assim, as votações daquele novo dia se efetuam
num clima de suspeitas, rancores e sentimentos
de culpa que oferecem a mais ampla medida da
estranheza da cidade, cujo bispo se deve eleger.
De fato, em alguns conclavistas vai progredindo a
consciência de que aquele flagelo se deve à sua
desunião, como se Roma sem um pastor sofresse
por causa disso, como um corpo doente.
Monsenhor Giorgio Contarini há pouco perguntou
ao cardeal Malvezzi a que horas deve ser servida a
ceia naquela noite. As rajadas de vento que
continuam a bater nas janelas dos aposentos do
arcebispo de Turim às vezes são tão fortes que
encobrem as vozes. As fendas dos vidros e dos
caixilhos, muito antigos, atingidos por golpes e
correntes de ar, investem contra cortinas, toalhas
e cobertas. Ao cardeal parece que todo o seu
quarto foi sacudido por um estremecimento que
não dá trégua e por fim o desvia da leitura e da
concentração.
A sua leitura é Agostinho, as Confissões que há
anos vinha se prometendo reler. "Pondus meum
amor mei”, o meu cárcere é o amor a mim
mesmo. Naqueles dias discutira longamente com
os seus invisíveis visitantes a frase do santo afri-
cano, lapidaria definição do mal moderno mais
difundido. Mas tanto Contardi quanto Mascheroni
tinham manifestado semelhantes dúvidas sobre o
monopólio moderno daquela doença. O egoísmo e
o culto a si mesmos se ocultavam em muitas
propensões a cuidar dos outros, habilmente
camuflados em todos os tempos. Às vezes, porém,
a santidade conhece as metástases daquele
câncer, como demonstrava o próprio Agostinho de
Ipona. O álibi de exercer em nome do Senhor um
ministério universal freqüentemente havia
mascarado tal soberba. O eu recebe da relação
direta com Deus, congênita ao sacerdócio, não
apenas frutos do bem. Com freqüência são frutos
do orgulho e da vaidade, ímpetos de auto-estima
que, segundo os papéis investidos, se tornam
poder de lesar em nome de Deus. Nas três
religiões irmãs, o álibi da revelação de Moisés, de
Cristo e de Maomé comumente operara tal conse-
qüência, renovando a chaga do integralismo.
Malvezzi deduziu que a corrupção do poder, em
qualquer nível, mesmo em nome de um poder
espiritual, está implícita em seu exercício. E
apenas a inocência da juventude pode oferecer
uma reparação e um antídoto.
A idade avançada dos cardeais e dos papas expõe
a tendência típica do ser humano que, ao se
aproximar da morte, deseja compensar o
sentimento de fragilidade com a mais segura
posse de comando em suas mãos. A velhice é
sentir a vida que se vai, sentir o medo do grande
salto, o espanto de deixar males conhecidos a
outros desconhecidos, como escreveu
Shakespeare. Vale muito mais para os ministros de
Deus, que devem oferecer ao seu rebanho
certezas e consolos sobre aquela grande
passagem para a outra margem.
O latido do cachorro, que está acorrentado no
pátio escuro para onde dão as janelas, desperta
Ettore Malvezzi de suas reflexões.
Em breve a janela de vidros amarelos dos
aposentos em frente estaria acesa de novo.
Àquela hora da noite seus misteriosos habitantes
voltavam. A imobilidade dos longos dias, longe da
Capela Sistina e dos cardeais, em total isolamento,
o tornou sensível como os seus animais — gatos,
galinhas, corujas — a qualquer movimento ou
mudança naqueles quartos, naquele pátio,
naquela ala do palácio. O soar das horas, ritmado
pela leitura e pela luz do sol, de manhã à noite,
tem alusões fixas a quem lhe agrada consentir,
detendo-se para observá-los.
Um deles, talvez o mais esperado, é aquela janela,
com seu acender pela manhã, ao alvorecer, e com
seu apagar-se depois. E então o seu acender de
novo, ao cair da noite. As sombras que se movem
além daquele vidro lhe fazem companhia.

Agora, no entanto, o vento reforça sua presa no


palácio. Por mais que ele saiba que são os últimos
jatos da violência cega, cujo final sente que está
próximo, aqueles golpes no vidro lhe metem
medo. Não se ouve mais o cachorro, no fundo do
pátio. Até seus animais se afastaram da janela,
entocando-se sob o teto ou debaixo dos armários.
Reacende-se a janela da frente.
Eis a sombra de alguém que se move naquele
quarto. A renovação dos golpes nos vidros faz
pensar na mão que bate, em alguém que tenta
abri-la, e não mais no vento. Quem pode ter
tamanha ousadia na casa do vigário do Senhor?
Agora se entrevê algo mais consistente, nas
sombras que se perfilam além do vidro amarelo, à
sua frente. O mesmo temor que o perturba deve
atingir quem se encontra por trás daquele vidro.
Põe-se de pé. Algo vence o medo da queda das
persianas sacudidas pelo vento que o chama. E
vem daquela mesma janela onde outros vivem a
sua mesma incerteza, o mesmo chamado.
Passaram-se mais de três meses desde que
percebeu aquela presença diante dele, mas
apenas agora se manifesta. Deve ouvi-la.
Já está levando a mão ao puxador da velha janela
para abri-la, quando o vento com um estrondo de
vidros estilhaçados a escancara.
Na mesma hora se escancara a janela defronte. E
aparecem as pessoas a quem pertenciam as
sombras que o acompanharam por tantos dias.
São dois gêmeos, dois jovens tão semelhantes que
o fazem esfregar os olhos, temendo ver dobrado.
Parecem indecisos se devem fechar as persianas
de vidros quebrados, se deixam tudo assim, ou se
recolhem os vidros. Mas agora percebem que
estão sendo observados por ele. São mesmo dois
gêmeos, a sua vista está boa.
Seus olhos se encontram enquanto o vento
continua a sibilar e a água penetra no quarto.
Quem são aqueles dois jovens presbíteros? Porque
o colarinho branco da batina os revela como
sacerdotes. Nunca esteve com eles, e, no entanto,
sente que já os vira antes...
O relâmpago cristaliza as paredes, as janelas, os
rostos, aterrorizando os animais do quarto do
cardeal e o cachorro no fundo do pátio. A luz de
algum átimo brilha nos três rostos debruçados nas
duas janelas. Os olhos se reconhecem.
Agora Ettore Malvezzi se lembra a quem os
gêmeos se assemelham, e se ajoelha para rezar,
agradecendo ao Senhor por essa iluminação. Os
dois jovens sacerdotes se olham, permanecendo
imóveis, fustigados pela chuva e pelo vento.
Passa um tempo incalculável naquela suspensão
enquanto trovões, raios, nuvens baixas e chuva
parecem querer renovar o dilúvio universal.
— Agora tudo irá passar... — repete o cardeal, en-
tregue às lágrimas... — agora tudo irá passar,
acabou, acabou tudo...

Naquela hora entra Contarini, ofegante.


A visão de sua eminência ajoelhado, encharcado
de chuva, em meio a vidros quebrados, à janela
escancarada, ao vento que faz voar os papéis, à
água que banha cortinas e móveis avançando até
debaixo da cama, onde se escondem os animais
aterrorizados, o paralisa. Chega apenas a tempo
de ver que a janela da frente se fecha, com os
vidros quebrados, mas o imediato apagar da luz o
impede de ver quem a fechou.
Precipita-se a fechar a janela, ainda que apenas os
vidros de cima continuem oferecendo proteção.
Depois levanta o cardeal, que tem o rosto e os
cabelos molhados, e as roupas encharcadas.
Uma hora depois que o vidro da janela foi
consertado, o cardeal está de novo vestido com
roupas secas e senta-se à mesa. Dá ordens a
Contarini para levar um bilhete pessoalmente ao
camerlengo.
— Posso lê-lo, eminência?
— Leia-o também.
Contarini lê que Malvezzi avisa o camerlengo sobre
sua presença nas votações do dia seguinte. Um
comunicado breve, sem explicações, como é
próprio a um homem determinado.
Contarini é solícito em seguir a ordem, contente
com a determinação de seu cardeal. Coloca
pessoalmente a mensagem num envelope para o
camerlengo, que ainda estava de pé.
Veronelli a lê em sua presença e franze as
sobrancelhas. Que quer dizer? Malvezzi vai voltar
ao jogo? Mudou de idéia e volta a nutrir
esperanças? Ou é fruto da sua mente, um
conselho recebido das sombras que o visitam?...
— Como se sente sua eminência? — pergunta ao
capelão.
— Eu diria que bem.
— Bem? Mas em que sentido, monsenhor?
Tem novas pretensões? Não será um novo estado
de agitação mental típico de sua enfermidade?
Não seria melhor aconselhá-lo a manter ainda o
repouso, talvez uma consulta médica?
— Permita-me lembrar a vossa eminência que
ninguém nunca declarou que o cardeal Ettore
Malvezzi estava doente da cabeça. E que seu
comportamento até aqui foi de grande moderação
e compreensão devido às exigências que vossa
eminência lhe apresentou.
— É exatamente por isso que me espanta e
me assusta o seu bilhete. Que novidade aconteceu
para mudar sua disposição? O senhor entende,
tenho o dever de proteger o conclave de qualquer
embaraço posterior. Basta-nos os que
experimentamos até então, e o senhor sabe que
ontem mesmo recebemos da televisão a enésima
ferida no prestígio desta assembléia.
— Eminência, não posso entrar na cabeça de
meu arcebispo, mas posso garantir-lhe que está
sereno e senhor de si.
— Concordo, mas se deseja vir amanhã de
manhã ao conclave significa que tem algo a dizer
ou a propor, entende? E isso não me anima.
— Pergunte a ele o que tem em mente.
— Tem razão, pode ir, agradeço-lhe pelo conselho.
Diga-lhe que lhe telefonarei logo, é tarde para
perturbá-lo com uma visita.

Voltando aos aposentos de seu cardeal, Contarini


já encontra Malvezzi ao telefone. Retira-se logo,
mas consegue perceber que o telefonema não
tomou um rumo fácil. Seria problemático.
E, de fato, é um telefonema bem longo.
Pois o tom calmo, relaxado e conciliador de
Malvezzi, enquanto na mente de Veronelli restitui
os caracteres à sua imagem, que é atribuída pela
memória, de um lado faz pensar que ele voltou ao
que era, e, de outro, agita ainda mais o
camerlengo. Pois tanta doçura vem acompanhada
de um controle de si e de uma reserva sobre os
verdadeiros propósitos de seu retorno à votação
que não prometem nada de bom.
Malvezzi tem algo em mente que não deseja
revelar. E poderia ser a reproposta de sua
candidatura com mais posições seguras
conquistadas. Mas quem, naqueles dias, teria dado
novas garantias àquele homem que ficara isolado,
visitado mais pelas visões que por pessoas vivas?
A cada dia foi-se informando de seus movimentos
e de suas condições; após sua visita não recebeu
mais ninguém. E então? De onde tira tanta
segurança? Talvez sua candidatura não deva ser o
objeto de sua mira. Mas a de quem, então, do
Sacro Colégio? Quem poderia ter-lhe transmitido a
necessidade de uma aliança? E que aliança se
pode oferecer a Malvezzi?
São inúmeras as armadilhas a que Veronelli
submete Malvezzi, com mil perguntas. O cardeal
de Turim não cede, firme como uma rocha em seu
direito e dever "de votar amanhã o papa...".

Não há jeito de se entenderem. Ettore Malvezzi


chega a invocar o segredo diante de Deus e de sua
consciência. Deixam-se friamente, mas a menção
ao desastre que se abateu sobre Roma naqueles
dias traz de volta ao camerlengo todas as suas
ânsias na despedida.
De fato, quando Veronelli cita o temporal e seus
danos, que não pouparam o Vaticano, sente-se
refutar que a longa prova já estaria terminando e
dali a pouco voltaria a paz sobre Roma e sobre o
mundo.

- 27 -
Na manhã da vigília de Natal, a aparição no
conclave do cardeal de Turim é saudada por
muitos como um sinal encorajador; um clima mais
normal restitui à sala aquele que a excep-
cionalidade das provas sofridas havia subtraído.
Até mesmo o tempo, durante a noite, acena uma
tímida melhora. As notícias de Roma, ainda que
continuem graves as situações de diversos bairros,
não transmitem ecos de novos desastres. Já é algo
positivo, após o afluxo de notícias cada uma pior
que a outra. Outros cardeais da cúria vivem em
Roma e a impossibilidade de acorrer aos lugares
onde o mau tempo causou mais danos, muitas
vezes nos bairros em que habitam ou onde
residem seus parentes, se junta às outras
angústias daquela reclusão.
Quase quatro meses se passaram. E o dia seguinte
é Natal. É quase certo que Roma e a cristandade o
celebrem órfãos do supremo pastor. Mas o mundo
não parece perturbado com essa eventualidade; o
efeito do falso alarme ao vivo resultou no
distanciamento ainda maior da atenção da Sistina,
como se até naquele contratempo se manifestasse
a maligna vontade de quem não desejava a
eleição do novo pontífice.
Aproximando-se da grade de mármore que divide
em duas a Sistina, muitos cardeais param
Malvezzi. Um o cumprimenta pela ótima
aparência, outro brinca com aquela hospitalização
de doente imaginário. Outro pergunta à queima-
roupa se ainda pode votar nele. Outro ainda, mais
desconfiado, pergunta se cogitou alguma nova
solução após a longa espera. Outro, com ar de
mistério, pede para falar a sós com ele à noite, em
seus aposentos.
O sorriso enigmático de Ettore Malvezzi, mesmo
na evasiva gentileza das respostas, resulta na
desorientação de seus interlocutores.
Já não os via há muitos dias. E o seu aspecto
cansado, as expressões inquietas e propensas à
comoção, a incerteza que sente ainda a dominá-
los, depois de um lapso de tempo tão grande,
particularmente lhe dão pena. Muitos se
ressentiram grandemente daquela demora da
espera. Selim, o seu amigo patriarca maronita, não
consegue mais ficar de pé sem a ajuda de dois
prelados. Youssef, o purpurado palestino, bem
mais magro, parece a sombra de si mesmo.
Rabuiti, o corpulento cardeal de Palermo, sofre de
freqüentes ataques de asma que lhe obrigam a
recorrer ao oxigênio. O arcebispo de Nairobi, muito
pálido, apenas com um fio de voz, pede permissão
para votar logo, para poder se retirar, tendo em
vista suas péssimas condições de saúde; há pouco
tempo superou um colapso cardiocirculatório. O
arcebispo de Lviv, primeiro de uma longa lista de
purpurados que deve recorrer ao mesmo meio
para poder passar a entrada da Sistina, avança
numa cadeira de rodas, empurrada pelo
secretário.
A paciência realmente ultrapassou as medidas.
Olha para um canto c vê, já sentados em suas
poltronas, os dois que tentaram fugir, os prelados
de Nova York e da Filadélfia.
Eles também são a sombra de si mesmos. Quem
agora poderia acreditar que pudessem ser capaz,
apenas algumas semanas antes, de tentar descer
no vazio com cordas improvisadas, para escapar
do conclave? E ainda assim, o único pensamento
que se sente dominar a multidão dos
eminentíssimos é sair, conseguir voltar para casa,
colocar um ponto final naquela clausura.

A multidão de purpurados ainda veda a entrada.


As operações preliminares para a chamada são
lentíssimas, vêem-se alguns médicos numa roda-
viva de uma entrada à outra. Que desconfortável
espetáculo de anciãos, que melancólico campo da
derrota; aquela reunião de grandes eleitores de
Cristo!...
Cristo que vivera 33 anos, e nos últimos três
consumira toda a sua aventura, desaparecendo
nos céus com o corpo glorioso de uma idade
prometida a todos os seus filhos, na ressurreição
da carne... Olha para o alto, acima das cabeças en-
canecidas, acima dos solidéus vermelhos, onde
estava o Cristo juiz no esplendor de sua juventude
imortal.

É nesse momento que os divisa. Estão ali também


os dois gêmeos presbíteros! Desempenham a
humilde função de capelães, provavelmente
servindo a algum cardeal...
Têm as longas pértigas levantadas para acender
os seis círios altíssimos do altar, os únicos não
elétricos, por trás do assento do camerlengo,
separados do confuso corpo do Sacro Colégio,
acima das cabeças, daquela onda de cãs. De
cabelos muito louros, rostos afilados para cima,
controlando os gestos, direcionados aos seis
candelabros de prata que projetam ao Cristo juiz e
à Sua Santíssima Mãe as suas chamas
tremelicantes. Olha ainda o Cristo, abaixa de novo
o olhar para os gêmeos. De novo levanta os olhos
e os abaixa... A memória não o trai, assemelham-
se a ele de modo impressionante... São a cópia
perfeita do rosto do Salvador de Michelangelo, e
ninguém parece notar isto. Invisíveis como dois
anjos, talvez não suportáveis à vista daqueles
anciãos. Mas como é possível que só ele esteja
percebendo?
— O que você está olhando desse jeito, Ettore? —
pergunta-lhe uma voz de forte sotaque
estrangeiro.
Vira-se, abaixa os olhos, confuso. Reconhece o car-
deal estônio Matis Paide. Mostra-lhe sem palavras
os dois gêmeos ainda ocupados em acender as
velas. Depois, dando-se conta de que ele os viu
bem, tocando-lhe no ombro, convida-o a elevar os
olhos mais para o alto, no centro do afresco de
Michelangelo.
— Mas para quem? São Bartolomeu?
— Não, não no centro, mais alto, mais alto, ao
Cristo juiz...
O purpurado nórdico planta bem seus olhos azuis
no Cristo. Depois os abaixa em direção aos dois
jovens sacerdotes, e levanta e abaixa, abaixa e
levanta os olhos, iluminando-se de estupor.
Murmura:
— É incrível, é incrível — incapaz de separá-los da-
quela visão.
No entanto, deve ceder, junto com Malvezzi, ao
convite de um emissário dos cardeais
escrutadores. É preciso tomar seu lugar.
Está para entrar o camerlengo da Santa Igreja
Romana, precedido pela cantoria, que foi
renovada, como muitos capelães dos
eminentíssimos, por cantores mais velhos.
— Prometa-me ajudá-los e ajudar-me quando eu
apresentar uma proposta — murmura Malvezzi a
Paide, que ainda está sem palavras pela
descoberta da incrível semelhança dos gêmeos
com o Cristo.
— Mas... aonde foram? Não estão mais aqui...
— Devem ter se retirado após o extra
omnes... Fique calmo, não sonhamos com eles:
devem estar na sacristia.
— Não sei se entendi o que pretende fazer,
mas estou com você até o fim — responde cada
vez mais perturbado Paide, segurando seu braço
com força.
Entoa-se o canto do Veni Creator Spiritus. As
vozes senis e profundas imprimem àquele hino
uma gravidade ainda mais solene do que a
gentileza das bocas mais jovens apresentava nas
primeiras reuniões do conclave. Lá havia um senti-
mento de paraíso e de angelical leveza, aqui uma
sombra de súplica trágica a Quem não se digna
aparecer.
Mas eis que, atrasado e ofegante, chega o
camerlengo e inicia a chamada, depois de ter se
desculpado pela perda de tempo. Declara abertas
as votações, cedendo logo a palavra a quem
desejar.
Na vida de todos os cardeais presentes
permanecerá até a hora da morte aquele que se
levanta para falar, no início com uma voz
freqüentemente interrompida pela emoção, depois
cada vez mais segura, o cardeal arcebispo de
Turim, Ettore Malvezzi.
E, no entanto, todas as vezes que depois
perguntarem sobre os particulares, a memória não
conseguirá focalizar a sucessão dos argumentos,
as passagens, as perorações, o final. Parece que o
véu do Segredo, obrigação de todos eles diante de
Deus e diante dos homens, envolveu de fato todas
as mentes, tutelando quem havia recebido do
Espírito Santo Paracleto tal iluminação e quem se
dobrou a essa iluminação, numa das escolhas mais
difíceis da história da Igreja.
Por quanto tempo terá falado? Ninguém
conseguiria precisar. Parece impossível medir
aquele rio de palavras, ou melhor, aquele delírio
inspirado por um cardeal que todos consideram
louco, mas respeitam como um idiota de Deus.

Falou da humanidade desejosa de fé, guia, amor,


mas também de júbilo, alegria, força. De uma
Igreja cansada, experimentada pela missão
bimilenar que estava arrasada de culpas, pecados,
erros, muitas vezes rápida em marcar como mal
um novo aspecto dos tempos, que depois teve de
reconhecer, pedindo o perdão da humanidade.
Falou do Sacro que não sabe onde chove, mas
chove na cabeça dos homens, que não conseguem
suportar o vazio de uma existência sem Deus.
Falou da grande esperança que se manifesta a
quem é atormentado por aquele Vazio, que é Deus
mesmo. Falou da fome de um novo Cristo, que
renasceria da sua escolha e ao mesmo tempo
morreria naquela escolha, se morrer para os
cardeais significava escolher além de si mesmos,
além de sua busca consagrada onde Cristo lhes
pediria para segui-lo, renovando as fileiras do
campo cristão. Falou da humildade de se
indagarem sobre o sentido de tudo quanto
acontecera de monstruoso naqueles meses,
quando o Maligno encontrara neles as portas
abertas para desferir o ataque mais mortal,
descobrindo-os tão fracos. Falou de sua triste
velhice, do egoísmo próprio da idade, do medo do
fim iminente, com freqüência a única pressão das
frenéticas reuniões que os mantivera incapazes de
encontrar a solução e a escolha. O Espírito Santo
tinha se afastado deles enquanto estavam apenas
desejosos de sair do conclave, escolhendo um
nome qualquer, uma solução que lhes permitisse
se precipitarem para usufruir dos últimos
privilégios, antes de morrer. Falou do mal que
haviam suportado sem entendê-lo, de seu coração
surdo ao convite à solidão e ao silêncio daqueles
quatro meses de conclave. Não souberam
entender o sentido daquela clausura, porque o seu
coração estava oprimido pela mania de fazer,
fazer e fazer, sem nunca parar para indagar sobre
o sentido de tal confuso modo de agir. Falou da
soberba de suas cartas pastorais, onde não
ressoava mais a caridade, mas apenas uma fria
doutrina, da fraseologia já distante da vida, que
repetiam nos dias de aniversário daqueles, sim,
que para Cristo e seus apóstolos foram a vida.
Naquele Natal, que celebravam com fausto nas
antigas catedrais da Europa e nas outras mais
novas do mundo, já não havia mais nenhum
resquício da agitação dos anjos e dos pastores na
noite em que Ele nasceu...
Pareceu estar parando naquele ponto, talvez
perturbado pela idéia do Natal que os deixava
sozinhos, longe de todos, à procura do sucessor
Daquele que nasceu naquele dia, há mais de 2 mil
anos.
Depois retomou, não escondendo sua comoção.
Quantas vezes tinha celebrado missa
perguntando-se, como tantos deles, se não era um
Dom Quixote que vê gigantes nos moinhos de
vento, segurando a hóstia consagrada nas mãos!
Quantas vezes tinha se desesperado pela ajuda de
Deus!
Quantas vezes tinha vivido os Evangelhos como
jaulas fechadas cuja chave tinham perdido, na
renúncia da inteligência para recriá-los, como os
recriaram os santos de quem se declaravam
herdeiros!
Pois não deviam duvidar disso um instante sequer,
o que lhes tinha censurado repetia para si mesmo
antes de mais nada, ele que era o mais fraco e
irresoluto, o mais cansado, confuso, egoísta e
receoso de morrer entre os tantos que sentavam
hoje em conclave. Implorava perdão por tê-los
ofendido porque só depois de ter dito aquelas
coisas poderia pedir aquilo que estava para ser
pedido em nome do Senhor. Que contemplassem a
juventude de Jesus Cristo, Senhor do tempo e da
eternidade, esplender nos 33 anos imortalizados
naquela parede por
Michelangelo, que entendessem bem o sentido
daquele esplendor da idade que Deus também
lhes daria em sua ressurreição. Procurassem
entender o valor da escolha que estavam para fa-
zer, no novo herdeiro de Cristo, porque pela
primeira vez Ele revivia literalmente o destino de
jovem pastor da humanidade envelhecida. Talvez
toda a humanidade, mesmo a que não se
reconhecia na Igreja, baixasse a cabeça diante do
eleito, para reconhecer o símbolo e a esperança de
seu renascimento.
Mais ou menos a essa altura, recordam as
testemunhas sobreviventes, o cardeal de Turim
apontou com um grande gesto da mão para o
Cristo juiz, na parte superior do afresco. Depois,
enquanto o Sacro Colégio murmura, tendo em
vista as mais contrastantes reações, mas à espera
da proposta de votação ainda não formulada,
viram-no descer correndo de seu assento e,
enquanto o camerlengo perde as estribeiras
tocando a campainha e chamando de novo à
ordem, corre em direção à sacristia.
Não se detém por muito tempo fora da Capela
Sistina. De fato, vêem-no de novo, apenas alguns
minutos mais tarde, reaparecer à porta trazendo
pela mão, um à sua direita e o outro à esquerda,
os dois gêmeos de batina, tão idênticos que
temem um engano da vista.
De repente faz-se silêncio na sala.
Vêem Malvezzi puxar os dois presbíteros louros,
envergonhados, mas belíssimos, em direção ao
centro da Sistina.
Depois, enquanto o murmúrio abranda cada vez
mais e até o camerlengo pára de se agitar,
Malvezzi convida os dois gêmeos a se virarem para
olhar com ele e a assembléia o rosto do Cristo
pintado por Michelangelo — assim disse em voz
alta —, o rosto de seu Senhor, de quem Pedro foi o
primeiro herdeiro.
— E agora, amantíssimos irmãos, eu vos prego a
eleger como sucessores do apóstolo Pedro os
presbíteros Lino e Estevão, que aqui se confiam à
vossa sabedoria iluminada pelo Espírito Santo!
Os urros de ofensa, os gritos de anátema, os
gestos de ultraje, os irônicos convites a não
confundir o conclave com o senado romano, onde
se elegiam os dois cônsules, ou com o palácio de
Esparta, onde reinavam os diarcas, até a tentativa
de esbofetear o cardeal de Turim, defendida pelos
guardas suíços, obrigados a intervir para defender
o pobre arcebispo: tudo isto passa pela sua cabeça
como um mar tempestuoso que bate contra uma
rocha, mas não consegue arranhá-lo nem um
centímetro que seja.
No entanto, começa a impressionar a grande
semelhança com o Cristo de Michelangelo dos dois
jovens sacerdotes, os gêmeos Lino e Estevão, que
alguém disse estarem a serviço do cardeal da
cúria Lo Cascio. Ninguém pode negar, é uma
evidência absoluta: o mesmo nariz, a mesma
fronte, as mesmas arcadas superciliares, a mesma
cabeleira loura, a mesma expressão do olhar.
Há um momento em que, enquanto os dois
gêmeos se movem, nota-se um gesto dos braços,
de propósito ou por acaso, deixados no mesmo
modo, agitados no ar, buscando acalmar o
tumulto, defender Malvezzi e se proteger,
afastando de si alguns dos mais impertinentes
cardeais. Aquela altura, sente-se oscilar na sala
uma exclamação sufocada de admiração. O gesto
do Cristo juiz está muito bem esculpido em suas
mentes para não criar uma enorme emoção.

É a brecha de que se aproveita para se levantar e


falar o cardeal Matis Paide, que após alguns
instantes consegue obter o silêncio suficiente para
tomar a palavra.
É cauteloso, respeitando as reações até bastante
justas do Sacro Colégio, diplomático com o
camerlengo, compreensivo com Malvezzi,
indulgente com os dois gêmeos presbíteros Lino e
Estevão, que estão em pé, ao lado de Malvezzi,
sempre prontos a defendê-lo. Conclui sua
intervenção afirmando que as palavras do cardeal
de Turim transtornaram os ânimos porque
convidam os eminentíssimos cardeais a considerar
sua alta função de um ponto de vista tão novo que
não uma, mas mil noites não seriam suficientes
para meditar.
Senhor, para poder passar em silêncio e naquela
solidão que, como justamente observou o cardeal
Malvezzi, talvez muitos deles não souberam
apreciar até o fim, esgotados pela extenuante
duração do conclave.
Então, convida o cardeal camerlengo Vladimiro
Veronelli a suspender a votação para retomá-la
com uma nova candidatura na manhã seguinte,
quando os ânimos estarão mais serenos.
O camerlengo, aproveitando-se da perturbação
geral, na necessidade de se recolher para pensar
com que estratégia poderia enfrentar a inédita
situação, acolhe a proposta de Paide, sentindo-a
como uma ajuda que lhe é diplomaticamente
oferecida por aquele homem imprevisível. Antes
de tudo, contará com a noite para convocar os
dois jovens presbíteros, cuja presença cheira a
conspiração e a suspeita intervenção em
detrimento do conclave.
O primeiro a sair da Sistina, escoltado pela Guarda
Suíça, é o cardeal Ettore Malvezzi. Depois dele,
todos os outros cardeais, dispostos a enfrentar,
naquela nova angustiada suspensão, a noite de
Natal.

- 28 -
Mas na noite de Natal o Espírito Santo tem piedade
do sofrimento de seus filhos e, dissolvendo a
névoa em suas mentes, mostra-lhes a verdade do
mesmo sonho.
Eles se revêem ainda reunidos na Capela Sistina,
no momento em que o arcebispo de Turim, Ettore
Malvezzi, aparece à soleira de uma das portas, sob
o afresco do Juízo universal.
A seu lado, como durante a última votação do
conclave, os dois presbíteros Lino e Estevão
escoltando-o. Às costas de cada um dos dois
jovens, duas altíssimas asas. Os olhos, de
insustentável fulgor, resplandecem e obrigam os
cardeais a abaixar os seus, entrevendo apenas o
esplendor da nudez daqueles corpos divinos, o
mesmo dos anjos pintados na parede do Juízo
universal, o mesmo do Cristo juiz, de semblantes
tão parecidos.
O cardeal Malvezzi continua a perorar a causa de
sua candidatura, sem notar o sorriso inefável e
concorde das duas belíssimas criaturas. Porque os
anjos transmitem naquele sorriso a consciência de
que o cardeal não percebe suas asas, protegido
por uma misteriosa cegueira.
O sonho termina com o imprevisto
desaparecimento de Lino e Estevão, no momento
em que o cardeal acaba de falar...

Quando na manhã de Natal se difunde a notícia


entre os cardeais, prestes a voltar à Sistina, de
que não há mais traço dos dois presbíteros e que
os seus aposentos, cheios de móveis empilhados e
empoeirados, parecem não ser habitados há anos,
muitos começam a entender o sentido do sonho da
noite, reconhecendo em seu próprio coração o
sinal de uma intervenção sobrenatural, que desta
vez veio em seu socorro.
De fato, mal o cardeal camerlengo declara aberta
a discussão, após o canto do Veni Creator
Spiritus, levanta-se para falar o cardeal Matis
Paide, presidente da Congregação para a
evangelização dos povos. A expressão serena, mas
grave, do rosto impõe logo atenção à assembléia.
Ciente de não poder se demorar sobre o que
soube ter aparecido em sonho a todos, como a ele
mesmo, na noite mais santa do ano, aquela do
Natal do Senhor, declara que se o Espírito
Paracleto se dignou a indicar a escolha na pessoa
que os anjos escoltaram em conclave, infundindo
aos lábios uma sabedoria escandalosa à humana,
seria pecado de soberba não se dobrar diante da
Sua vontade.
Tem, assim, plena consciência de ter de
candidatar a sumo pontífice da Igreja universal e
bispo de Roma a pessoa de sua eminência o
arcebispo de Turim, cardeal Ettore Malvezzi.

O denso rumor que se levanta da assembléia, mal


ele acabou de falar, logo parece ao cardeal
camerlengo Veronelli a previsível reação de quem
se prepara para ceder com dignidade e de quem
sente a alegria de dividi-la.
O cardeal camerlengo olha lentamente à sua volta,
deixando que os pareceres, os comentários, as
confidências e as emoções tenham o livre curso
que é permitido a uma assembléia soberana, antes
de exprimir uma decisão tão importante e tão
longamente sofrida. Mas, com a mais que
quarentenária experiência de consistórios,
assembléias capitulares, concílios, sínodos e
conciliábulos que já possui, é capaz de
experimentar o pulso de sua assembléia. E pela
primeira vez depois de tantos meses de incerteza
não havia dúvida. Sabe que finalmente se chegou
a um acordo unânime. E, como supremo notário do
conclave, está feliz por isso; como testemunha e
instrumento da suprema vontade de Deus, chega
às lágrimas.
— Fiat voluntas tua... fiat voluntas tua... —
repete baixinho, enquanto pensa que aquele que
em breve será proclamado é seu último papa. Pois,
para enriquecer sua alegria, há uma gota de
melancolia, a que descende da consciência da
delicadeza de todas as coisas, mesmo do conclave
que não parecia mais ter fim e que agora tende a
um fim, com todos os seus protagonistas...
Certamente ele não irá viver um outro...

A ausência de Ettore Malvezzi, imóvel em seu


quarto, observando a janela de vidros amarelos
que agora está apagada, o favorece.
A mais ninguém o sonho daquela noite mais clara-
mente revelou que fato o destino já maturava.
E o terror de ter de aceitar a candidatura a
pontífice, cultivado por quase todos os colegas na
ausência do cardeal de Turim, enriquece o homizio
do sabor de uma autêntica humildade. Apenas
agora se define o sentido de todo o seu
comportamento, apenas agora se esclarece na
mente dos cardeais o desígnio providencial de sua
doença, da obscuridade de suas palavras trocadas
pelas de um idiota de Deus.
Desta feita, quando o próprio cardeal camerlengo
se levanta para propor em voz alta a elevação a
pontífice do cardeal Ettore Malvezzi por
aclamação, sem votar, o calafrio que serpenteia
entre os presentes é apenas a súbita
conscientização do acontecimento.
De fato, dali a pouco todos se levantam para
confirmar a unanimidade do consenso. O cardeal
decano Antonio Leporati é o primeiro a entoar o Tu
es Petrus, seguido por todos os outros cardeais.
Enquanto se abaixam, segundo o rito, todos os
dosséis dos pequenos tronos, exceto aquele vazio
do cardeal de Turim, o camerlengo, deixando a
Sistina na inquieta espera de receber o novo papa,
escoltado por cardeais escrutadores e pelo
capelão crucífero, se dirige aos aposentos de
Ettore Malvezzi, para comunicar-lhe a eleição
ocorrida.
Veronelli, ultrapassando a soleira do apartamento
de Malvezzi e entrando no estúdio, encontra o
eleito sentado na poltrona, com os olhos sempre
fixos na janela apagada que vê da sua. Se não
fosse pela respiração cada vez mais rápida que
eleva e abaixa seu peito, ninguém notaria que
tenha percebido quem entrou, enquanto um
monsenhor Contarini comovido e trêmulo lhe
anuncia o cardeal camerlengo Vladimiro Veronelli
e seu séquito.
— Eminentíssimo e reverendíssimo cardeal Ettore
Malvezzi, em nome de Cristo anuncio-lhe sua
eleição a pontífice máximo da Igreja universal e
bispo de Roma, ocorrida por inspiração do Espírito
Santo do Sacro Colégio cardinalício...
Segue um longo silêncio. Depois sente-se a tosse
nervosa do camerlengo, que deve proceder com
suas observâncias. Por uma extrema hesitação sua
voz senil mal é percebida, quando passa à
pergunta do rito:
— Aceita... aceita... então?...

O cardeal Ettore Malvezzi se levanta. Parece mais


alto, murmura consigo mesmo o cardeal decano...
Vira-se com infinita lentidão para o camerlengo e o
observa com seus olhos verdes esbugalhados, e as
mãos segurando a corrente da cruz peitoral para
esconder seu tremor. Passa e repassa a língua
várias vezes nos lábios secos para umedecê-los,
como se penasse para encontrar a voz para
responder.
— Fiat... — é a resposta, enfim, enquanto
abaixa a cabeça, soltando os braços sobre os
flancos. Essa voz é quase um sopro.
— E como deseja se chamar? — quase grita
agora Veronelli, com uma energia que não
consegue mais esconder o alívio dessa
confirmação, por um instante, colocada em
dúvida.
— Lino Estevão.
Todos os presentes, exceto o camerlengo e o
capelão crucífero, num grande farfalhar de batinas
se ajoelham e Ettore Malvezzi dá um último olhar
fugaz à sua esquerda, em direção à janela
apagada que o havia iluminado até aquele dia.
— Então será... Lino Estevão I — responde
Veronelli, lembrando da presença na história da
Igreja de papas que tiveram tanto o nome de Lino
quanto de Estevão, mas ninguém que os tivesse
juntado em sua pessoa. E enquanto por um ins-
tante revê os dois anjos que lhe apareceram em
sonho, ajoelha-se para beijar a mão do novo papa,
depois de lhe ter colocado no anular direito o anel
piscatório.
Depois, dando ordens para escancarar o balcão de
São Pedro para o iminente Habemus Papam,
enquanto a chaminé da Capela Sistina anuncia ao
mundo a fumarada branca no dia de Natal, o
cardeal camerlengo se mexe para guiar o cortejo
do novo pontífice em direção à capela, onde
espera por ele o ato de obediência de todos os
cardeais de seu trono, uma vez endossada sua
veste branca.

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