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Tradução de Maria Aparecida Mello Fontes

FICHA CATALOGRÁFICA

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Todos os direitos reservados à Pedrazul Editora.
Texto adaptado à nova ortografia da Língua Portuguesa,
Decreto n° 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Direção geral: Chirlei Wandekoken


Direção de arte: Eduardo Barbarioli
Tradução: Maria Aparecida Mello Fontes
Revisão ortográfica: Carolina S. L. Pegorini
Capa: Francisco de Zurbarán (1598-1664)

L675m Lewis, Matthew Gregory, 1775-1818.


O Monge / Matthew Gregory Lewis ; – Vitória, ES : Pedrazul Editora,
2021.
Título original: The Monk
1. Literatura inglesa. 2. Ficção. 3. Romantismo I. Título. II. Mello
Fontes,Maria Aparecida.
CDD – 823

Reservados todos os direitos desta tradução e produção.


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VOLUME I
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
VOLUME II
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
VOLUME III
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
FICHA CATALOGRÁFICA
VOLUME I

CAPÍTULO I

Lorde Angelo é muito meticuloso;


mantém a guarda contra o inimigo,
raramente confessa que tem sangue nas veias ou
que tem mais apetite para o pão do que para pedras.
(Shakespeare, Medida por Medida)

Mal fazia cinco minutos que os sinos do mosteiro haviam começado a


tocar e os fiéis já se aglomeravam na igreja dos capuchinhos. Ninguém se
engane imaginando que a multidão estava reunida por motivos de piedade
ou sedenta por informação. Não, apenas uns poucos eram influenciados por
essas razões e, em uma cidade onde a superstição reina com um poder tão
tirânico como Madri, procurar por devoção verdadeira seria uma tentativa
infrutífera. A audiência então reunida na igreja se congregava por várias
causas, mas todas elas eram alheias ao seu real motivo. As mulheres
vinham para se exibir, e os homens para vê-las; alguns haviam sido atraídos
pela curiosidade de ouvir um orador tão célebre; outros, porque não tinham
nada melhor para ocupar seu tempo até o início da peça teatral; muitos,
porque acreditavam que seria impossível encontrar lugares na igreja, e
metade de Madri fora trazida de longe na expectativa de encontrar a outra
metade. As únicas pessoas verdadeiramente ansiosas para ouvir o frade
eram uns poucos devotos antiquados e meia dúzia de oradores rivais,
decididos a encontrar falhas e até ridicularizar o discurso. Quanto ao
restante do público, o sermão poderia ter sido omitido por completo sem o
risco de desapontá-lo, e muito provavelmente sem que as pessoas sequer
percebessem a omissão.
Qualquer que fosse a ocasião, pode-se dizer que a igreja capuchinha
nunca havia testemunhado uma assembleia mais numerosa. Cada canto
estava preenchido, cada assento ocupado. Até as imagens que
ornamentavam as longas naves laterais sentiam a pressão da multidão. Os
meninos penduravam-se nas asas dos querubins; São Francisco e São
Marcos suportavam, cada um, um espectador em seus ombros, e Santa
Ágata encontrava-se ao ponto de carregar o dobro. O resultado era que,
apesar de toda a pressa e diligência, nossas duas recém-chegadas, ao
entrarem na igreja, procuraram lugares em vão.
Mesmo assim, a velha senhora continuou seguindo em frente. De
nada adiantaram as exclamações de desprazer manifestadas contra ela,
vindas de todos os lados. Em vão também lhe dirigiam frases como: “Eu
garanto, senhora, não há lugares aqui.” “Por favor, senhora, não me
empurre desta forma intolerável.” “Senhora, não poderá passar por aqui.
Por Deus! Como certas pessoas podem ser tão inconvenientes!” A velha
mulher era obstinada e continuava em frente. Com muita perseverança e
dois braços musculosos ela conseguiu passar pela multidão, e conseguiu
também colocar-se no centro da igreja, a pouca distância do púlpito. Sua
acompanhante a seguia com timidez e em silêncio, beneficiando-se do
esforço da condutora.
— Virgem Santa! – exclamou a velha senhora em tom de
desapontamento, ao mesmo tempo em que lançava um olhar indagador ao
seu redor. — Virgem Santa! Que calor! Quanta gente! Eu me pergunto qual
a razão para tudo isto. Creio que devemos voltar, não há um só lugar para
sentarmos aqui e ninguém parece ser gentil o suficiente para nos ceder seus
assentos.
Esta franca insinuação atraiu a atenção de dois cavalheiros que
ocupavam bancos à direita e que apoiavam suas costas na sétima coluna a
partir do púlpito. Ambos eram jovens e ricamente vestidos. Ao ouvir tal
apelo aos seus bons modos pronunciado por uma voz feminina,
interromperam sua conversa e buscaram com os olhos a autora de tais
palavras. Ela havia levantado o véu para ter uma visão melhor do templo.
Seu cabelo era ruivo e ela era estrábica. Os cavalheiros deram-lhe as costas
e continuaram sua conversa.
— Certamente – replicou sua companheira. — Certamente, Leonella,
vamos voltar para casa agora mesmo. O calor está insuportável e eu estou
apavorada com esta aglomeração.
Estas palavras foram pronunciadas em um tom de doçura sem igual.
Os cavalheiros, mais uma vez, interromperam seu diálogo, mas agora não
se contentaram em olhar para cima; ambos deixaram involuntariamente
seus assentos e viraram-se em direção à dona daquela voz.
A fala partira de uma dama cuja figura delicada e elegante havia
despertado nos jovens a mais viva curiosidade por conhecer seu rosto.
Porém, tal satisfação lhes foi negada. Sua face estava escondida por um
grosso véu, mas os esforços da luta contra a multidão tinham-no
desarranjado o suficiente para permitir a visão de um pescoço cuja simetria
e beleza se assemelhavam à da própria Vênus de Médici. Era de uma
brancura deslumbrante e recebia um encanto adicional causado pelas ondas
de seus cabelos louros e longos, que desciam em cachos até a cintura. Sua
estatura era um pouco abaixo da média; sua figura era leve e graciosa como
a de uma ninfa Hamadríade. Seu peito estava cuidadosamente coberto; o
vestido era branco, preso por uma fita azul, e permitia apenas vislumbrar
um pequeno pé de proporções delicadas. Um rosário de contas grandes
pendia de seu braço e seu rosto estava coberto por um grosso véu preto. A
dama era tão bela que o mais jovem dos cavalheiros ofereceu-lhe
imediatamente seu assento, enquanto que o outro julgou necessário prestar
as mesmas homenagens à sua acompanhante.
A velha senhora, com grandes demonstrações de gratidão, mas sem
nenhuma dificuldade, aceitou a oferta. A jovem seguiu seu exemplo, mas
não fez nenhum outro elogio além de uma simples e graciosa reverência.
Dom Lorenzo (este era o nome do cavalheiro que havia lhe oferecido o
assento) colocou-se ao seu lado, mas antes sussurrou alguma coisa ao
ouvido do seu amigo, o qual imediatamente captou o sinal e passou a
distrair a atenção da outra mulher.
— A senhorita, sem dúvida, chegou há pouco tempo em Madri –
disse Lorenzo para sua bela vizinha. — É impossível que tantos encantos
tenham passado longamente despercebidos. Se esta não for sua primeira
aparição em público, a inveja das mulheres e a adoração dos homens já
seriam o suficiente para que fosse notada...
Ele aguardou em silêncio, na expectativa de uma resposta. Porém,
como suas palavras não exigiam necessariamente uma réplica, a dama não
moveu os lábios. Depois de alguns momentos ele retomou o discurso:
— Estou errado em supor que a senhorita é uma forasteira em Madri?
A moça hesitou, mas, finalmente, com um tom de voz tão baixo que
era quase inaudível, respondeu:
— Não, senhor.
— Pretende permanecer aqui por algum tempo?
— Sim, senhor.
— Eu me considerarei um homem afortunado se estiver em meu
poder contribuir para que sua estada seja agradável. Sou bem conhecido em
Madri e minha família tem algum interesse na corte. Se eu puder lhe prestar
qualquer serviço, a senhorita não poderá me dar maior honra ao permitir
que eu lhe seja útil.
“Sem dúvida”, pensou consigo mesmo, “ela não poderá responder a
isso com um monossílabo. Terá que falar alguma coisa para mim, agora.”
Lorenzo estava enganado, pois a moça respondeu apenas inclinando a
cabeça.
A esta altura já havia descoberto que sua vizinha não era de muita
conversa, mas não sabia se seu silêncio era resultado de orgulho, discrição,
timidez ou estupidez. Ele ainda era incapaz de decidir.
Após uma pequena pausa, ele continuou:
— Certamente porque a senhorita é forasteira e não está habituada aos
nossos costumes, que continua a usar o véu. Permita-me removê-lo.
Ao mesmo tempo em que ele avançava com a mão na direção do véu,
a moça ergueu suas duas mãos para impedi-lo.
— Eu nunca tiro o véu em público, senhor.
— E que mal há nisso? – interrompeu sua companheira com certa
rispidez. — Não vê que todas as outras damas já retiraram seus véus, sem
dúvida para honrar o local sagrado onde nos encontramos? Eu já tirei o
meu, e se eu posso expor meu rosto para observação geral, você não tem
motivos para sentir-se tão espantosamente alarmada. Virgem Maria! Quanto
barulho e alvoroço por causa do rosto de uma criança. Vamos, menina,
vamos. Eu garanto que ninguém irá fugir com o véu.
— Querida tia, este não é o costume em Múrcia.
— Múrcia! Bendita seja Santa Bárbara, o que isso significa? Você
está sempre me lembrando dessa província detestável. Se este é o costume
em Madri, é tudo o que importa. E, além disso, eu insisto para que você
remova seu véu imediatamente. Obedeça-me agora mesmo, Antonia, você
sabe que eu não gosto de ser contrariada.
A sobrinha ficou em silêncio, mas não mais se opôs aos esforços de
Dom Lorenzo – o qual, com o apoio do sermão da tia, apressou-se em
remover o véu. A cabeça de um verdadeiro anjo surgiu, para sua admiração!
Era mais fascinante do que bonita; seu encanto não estava tanto na
regularidade dos traços quanto na suavidade e doçura da sua expressão. As
muitas partes de sua fisionomia, se consideradas separadamente, estavam
longe de ser consideradas bonitas, mas quando examinadas em conjunto
eram adoráveis. Sua pele, mesmo sendo alva, não era totalmente desprovida
de sardas. Seus olhos não eram grandes demais, nem seus cílios muito
longos, mas os lábios eram donos do mais rosado frescor. Seus cabelos
louros e ondulados, amarrados com uma simples fita, chegavam até a
cintura em uma profusão de cachos. Seu pescoço era bonito ao extremo.
Suas mãos e braços eram formados pela mais perfeita simetria. Seus suaves
olhos azuis possuíam a doçura dos céus e os cristais que neles se moviam
cintilavam com todo o esplendor dos diamantes. Ela parecia não ter mais de
quinze anos. O sorriso astuto que dançava sobre seus lábios revelava que a
jovem era possuidora de uma grande vivacidade, ainda que reprimida pelo
excesso de timidez. Envergonhada, ela olhou de relance ao redor de si, e
quando seus olhos encontraram acidentalmente os olhos de Lorenzo,
imediatamente voltou-se para seu rosário com as faces ruborizadas. Ela
começou a contar as contas do rosário, embora sua atitude demonstrasse
que não sabia o que estava fazendo.
Lorenzo a contemplava com uma mistura de surpresa e admiração.
Mas a tia, no entanto, achou necessário desculpar a falsa vergonha de
Antonia.
— É uma jovem criatura que desconhece o mundo totalmente – disse
ela. — Cresceu em um velho castelo em Múrcia, tendo como única
companhia sua mãe, que Deus a perdoe! Sua mãe não tem mais
entendimento além do necessário para levar a colher de sopa até a própria
boca. Mesmo assim, ela é ao mesmo tempo minha irmã, meu pai e minha
mãe.
— E lhe falta tanto entendimento assim? – perguntou Dom Cristóbal
com falso assombro. — Que extraordinário!
— É verdade, senhor. Não é mesmo estranho? No entanto, esse é o
caso. Que má sorte algumas pessoas têm! Um jovem fidalgo, de origem
ilustre, acreditou que Elvira possuía certa propensão à beleza. Bem,
propensão, para dizer a verdade, ela tinha bastante, mas beleza... se eu
tivesse passado metade do que ela passou só para ter alguém... mas isso não
importa agora. Como eu estava dizendo, senhor, um jovem da nobreza se
apaixonou por ela e eles se casaram sem o conhecimento do pai dele. A
união dos dois permaneceu secreta por cerca de três anos. Mas, um dia, a
notícia do casamento chegou aos ouvidos do velho marquês, o qual, como o
senhor pode imaginar, não ficou muito satisfeito com a novidade. Ele partiu
apressadamente para Córdoba, determinado a apanhar Elvira de surpresa e
mandá-la para algum lugar bem longe, de onde não mais se ouviria falar
dela. Bendito seja São Paulo! Como ele ficou enfurecido ao saber que ela
havia escapado de tal destino, que se juntara ao marido e que ambos
embarcaram juntos para as Índias! Ele amaldiçoou a todos nós, como se
estivesse possuído pelo próprio demônio! Ele mandou meu pai para a prisão
– meu pai, que era o sapateiro mais honesto e trabalhador de toda a Córdoba
e, quando partiu, teve ainda a crueldade de levar com ele o filhinho da
minha irmã, que mal havia completado dois anos de idade, o qual ela fora
obrigada a deixar para trás, por conta da precipitação da fuga. O
pobrezinho, eu imagino, deve ter sido muito maltratado, porque depois de
alguns meses recebemos a notícia da sua morte.
— Ora, mas esse velho era um indivíduo do tipo mais terrível, minha
senhora!
— Oh, é revoltante! E ainda um homem sem o mínimo gosto! O
senhor acredita que, quando eu tentei acalmá-lo, ele me chamou de bruxa e
desejou que, para punir o filho, minha irmã se tornasse tão feia quanto eu?
Feia, de fato! Acredita nisso?
— Que ridículo! – exclamou Dom Cristóbal. — Sem dúvida, o conde
teria sido muito afortunado se lhe fosse permitido trocar uma irmã pela
outra...
— Oh, Jesus! O senhor é mesmo muito cortês. No entanto, eu fico
contente de todo o coração que o conde pensasse de forma diferente. Elvira
deve ter passado por maus bocados, com toda certeza. Depois de trabalhar e
suar nas Índias por treze longos anos, seu marido morre, e ela retorna à
Espanha sem um teto para se abrigar, e sem dinheiro para procurar uma
moradia. Antonia era, então, uma menina, e a única filha que lhe restava.
Ela descobriu que seu sogro havia se casado novamente e que nunca se
reconciliara com o conde, seu filho. Descobriu também que sua segunda
esposa tinha dado à luz um menino, o qual dizem que é um rapaz muito
bom. O velho marquês recusou-se a ver minha irmã ou a menina, mas deu
sua palavra de que, na condição de nunca ouvir falar dela novamente, iria
assegurar-lhe uma pequena pensão, e que ela poderia viver no velho castelo
que ele possuía em Múrcia. Esse castelo era a habitação favorita de seu
filho mais velho, mas, desde que ele fugira da Espanha, o marquês passou a
não suportar o lugar, deixando-o cair em ruínas. Minha irmã aceitou a
proposta e partiu para Múrcia, onde permaneceu até um mês atrás.
— E o que a trouxe a Madri agora? – perguntou Dom Lorenzo, cuja
admiração pela jovem Antonia despertou-lhe um vivo interesse pela
narrativa da velha tagarela.
— Ah, senhor, quando o sogro de minha irmã faleceu, o
administrador das propriedades em Múrcia deixou de fazer os pagamentos
da pensão. Agora ela está em Madri com a intenção de suplicar ao filho dele
que continue a fazer os pagamentos. Mas, eu duvido. Acredito que ela podia
ter se poupado de tanto trabalho. Vocês, jovens fidalgos, sempre têm algo
para fazer com o dinheiro e não estão dispostos a desperdiçá-lo
frequentemente com velhas mulheres. Eu aconselhei minha irmã a enviar
Antonia com o pedido, mas ela não quis ouvir falar disso. Ela é tão teimosa!
Bem, ela vai sentir na carne por não ter seguido meus conselhos. A menina
tem um rosto muito bonito, e provavelmente teria conseguido muita coisa.
— Mas, senhora – interrompeu Dom Cristóbal, simulando um ar
apaixonado. — Se um rosto bonito poderia ter dado conta da missão, por
que sua irmã não recorreu à senhora mesma?
— Oh, Jesus! Meu senhor, eu juro que me tira as forças com tantos
galanteios! Mas asseguro-lhe que estou bem a par dos perigos de tais
missões para colocar-me nas mãos de jovens da nobreza. Não, não. Ainda
preservo minha reputação sem manchas ou reprovações, e sempre soube
manter os homens à distância...
— Disto, senhora, eu não tenho a menor dúvida. Mas, permita-me
perguntar-lhe, a senhora tem alguma aversão ao matrimônio?
— É uma pergunta muito íntima! Não posso deixar de confessar que,
se um amável cavalheiro se apresentar…
Neste momento ela pretendeu lançar a Dom Cristóbal um olhar terno
e cheio de significado, mas, por infelicidade, seu estrabismo tornou-se mais
abominável e fez com que seu olhar caísse na direção do outro homem.
Lorenzo aceitou o cumprimento e respondeu com uma profunda reverência.
— Eu poderia lhe perguntar o nome do marquês?
— Marquês de las Cisternas.
— Eu o conheço muito bem. Ele não está em Madri agora, mas é
esperado a qualquer momento. Ele é um homem muito bom e, se a adorável
Antonia me permitir ser seu advogado nesta questão, duvido que não possa
fazer uma apresentação favorável à sua causa.
Antonia ergueu seus olhos azuis e silenciosamente agradeceu pela
oferta com um sorriso de inexprimível doçura. A satisfação de Leonella foi
muito mais audível. Na verdade, como a sobrinha normalmente ficava em
silêncio quando estava em sua companhia, a mulher se incumbia de falar o
suficiente pelas duas, o que fazia sem dificuldade alguma, já que as
palavras raramente lhe faltavam.
— Oh, senhor! – ela exclamou. — O senhor colocará a nossa família
inteira sob a mais alta obrigação! Aceito sua oferta com toda a gratidão
possível e lhe agradeço mil vezes pela generosidade de sua proposta.
Antonia, por que não fala nada, menina? Enquanto o cavalheiro lhe diz uma
série de coisas amáveis, você fica calada feito uma estátua, sem proferir
uma sílaba de agradecimento, seja ela má, boa ou indiferente!
— Minha querida tia, eu entendo que...
— Quieta, sobrinha! Quantas vezes eu já lhe disse para nunca
interromper quando uma pessoa está falando? Quando você me viu fazer
uma coisa dessas? São esses os modos de Múrcia? Valha-me Deus! Eu
nunca vou conseguir fazer desta menina uma pessoa bem-educada! Mas,
por favor, senhor – ela continuou, agora falando com Dom Cristóbal —
diga-me a razão de tanta gente reunida hoje nesta igreja.
— Será possível que a senhora ignore que Frei Ambrósio, o superior
deste mosteiro, prega um sermão nesta igreja todas as quintas-feiras? A
cidade de Madri inteira proclama suas preces. Até o momento, ele só fez
três sermões, mas todos os que puderam ouvi-lo ficaram satisfeitíssimos
com sua pregação, tanto que se tornou tão difícil conseguir um assento na
igreja, quanto um lugar para a primeira sessão da nova comédia. A fama
dele deve ter chegado aos seus ouvidos.
— Ai de mim! Senhor, até ontem eu nunca tinha tido a sorte de
conhecer Madri. E em Córdoba nós estamos tão pouco informados sobre o
que acontece no resto do mundo, que o nome de Frei Ambrósio nunca
chegou a ser mencionado em seus arredores.
— Pois em Madri a senhora vai ouvir seu nome na boca de todos. Ele
parece ter fascinado os habitantes, e ainda que eu mesmo não tenha
assistido a nenhum de seus sermões, estou abismado com o entusiasmo que
esse homem foi capaz de despertar. A adoração dedicada a ele por jovens e
velhos, homens e mulheres, é sem igual. Os poderosos lhe enchem de
presentes, suas esposas se recusam a ter outro confessor e ele é conhecido
em toda a cidade como “o homem santo”.
— Sem dúvida, senhor, ele é um homem de origem nobre...
— Esta é uma questão que ainda permanece confusa. O falecido
superior dos capuchinhos encontrou-o quando era ainda muito pequeno, nas
portas do mosteiro. Todas as tentativas para descobrir quem o havia deixado
ali foram em vão, e a criança não podia responder por seus pais. Ele foi
educado dentro do mosteiro, onde permaneceu desde então. Ainda muito
cedo demonstrou forte inclinação para os estudos e o isolamento e, assim
que atingiu a idade certa, professou os votos. Ninguém jamais apareceu
para reclamá-lo ou para esclarecer o mistério que cerca seu nascimento, e os
monges, conscientes dos favores concedidos ao estabelecimento em função
do menino, não hesitaram em anunciar que ele foi um presente da própria
Virgem. Na verdade, a austeridade singular de sua vida dá provas disto. Ele
hoje tem trinta anos e cada hora de sua vida transcorreu dedicada ao estudo,
em total reclusão e mortificação da carne. Até três semanas atrás, quando
foi escolhido como superior da comunidade a qual pertence, ele nunca
havia deixado os muros do mosteiro. Mesmo hoje ele só sai de lá às
quintas-feiras, quando faz o sermão na igreja conventual, onde toda Madri
se reúne para ouvi-lo. Dizem que seu conhecimento é bastante profundo e
que sua eloquência é muito convincente. Por toda a vida, ele jamais
infringiu uma só regra da sua Ordem, nem existe uma mancha sequer no
seu caráter. Dizem que ele é rigoroso observador da castidade e que não
conhece as diferenças entre um homem e uma mulher. As pessoas comuns
falam que o homem é mesmo um santo.
— Isso torna uma pessoa santa? – perguntou Antonia. — Valha-me
Deus! Então, eu também sou santa?
— Santa Bárbara! – exclamou Leonella. — Que pergunta! Cale-se
menina, cale-se! Isso não é assunto para uma jovem dama. Você parece não
se lembrar de que existem homens no mundo, e deve imaginar que todos
são do mesmo sexo que você. Bem que poderia ficar evidente às pessoas
que você sabe que um homem não tem seios, nem quadris, nem...
Para sorte de Antonia, cuja inocência a preleção de sua tia estava
prestes a desfazer, um murmúrio geral na igreja anunciou a chegada do
pregador. Dona Leonella levantou-se do assento para vê-lo melhor, e
Antonia seguiu seu exemplo.
Era um homem de presença nobre e imponente. De estatura alta, era
dono de feições notavelmente bonitas. Tinha nariz aquilino, grandes e
reluzentes olhos negros, e sobrancelhas escuras que por pouco não se
juntavam. O tom de sua pele era de um moreno suave, ainda que o estudo e
a vigília o houvessem privado de certa cor nas faces. Em sua testa lisa e
sem rugas imperava a serenidade. A satisfação que se expressava em cada
traço parecia anunciar um homem que desconhecia igualmente pecados ou
preocupações. Ele se curvou com humildade perante a audiência, mas ainda
assim havia certa severidade no seu olhar e nas suas maneiras que inspirava
um temor geral. Poucos se atreviam a sustentar sua mirada ao mesmo tempo
impetuosa e penetrante. Assim era Ambrósio, o superior dos capuchinhos,
conhecido como “o homem santo”.
Antonia, que fitava o frade avidamente, sentiu em seu peito um
frêmito de prazer que até então não conhecia, e para o qual tentou em vão
encontrar explicação. Ela esperou com impaciência até que o sermão
iniciasse, e quando finalmente o monge começou a falar, o som de sua voz
pareceu penetrar fundo na alma dela. Ainda que nenhum outro espectador
estivesse sentindo sensações tão violentas quanto a jovem Antonia, todos
escutavam com interesse e comoção. Mesmo aqueles que eram insensíveis
aos méritos da religião ficaram encantados com a oratória de Ambrósio.
Todos se sentiram irresistivelmente atraídos pelo homem que falava, e o
mais profundo silêncio reinou pelas naves abarrotadas.
O próprio Lorenzo não foi capaz de resistir ao encanto. Esqueceu-se
de que Antonia estava sentada ao seu lado e ouviu o pregador com toda a
atenção.
Com uma linguagem nervosa, clara e simples, o monge discorreu
sobre as belezas da religião. Explicou algumas passagens obscuras das
escrituras em um estilo que resultou em uma convicção generalizada. Sua
voz, às vezes clara e profunda, estava carregada de todos os temores da
tempestade enquanto ele censurava os vícios da humanidade e descrevia os
castigos reservados para seu futuro. Cada ouvinte refletia sobre suas ofensas
passadas e tremia de medo. O homem parecia fazer soar um trovão cujo
raio estava destinado a esmagá-lo, e que o abismo da destruição eterna se
abriria aos seus pés. Porém, quando Ambrósio mudou de tema, passando a
falar sobre a excelência de uma consciência impoluta, da gloriosa
perspectiva com que a eternidade presentearia as almas sem máculas ou
culpas e das recompensas que por elas aguardavam em regiões da Glória
Eterna, seus ouvintes sentiram o ânimo retornando pouco a pouco. Eles
suplicaram com fé a clemência de seu Juiz; eles acolheram com alegria as
palavras de consolo do pregador e, enquanto sua voz se enchia de melodia,
eles foram transportados para aquelas regiões felizes que Ambrósio pintou
na imaginação de todos com cores brilhantes e esplendorosas.
O sermão foi longo, mas uma vez terminado, a audiência lamentou
que não houvesse durado mais. Ainda que o frade tivesse parado de falar,
um silêncio entusiasmado prevalecia na igreja. Por fim, o encanto começou
a se dissipar gradativamente, e a admiração geral pôde ser expressa em
termos audíveis. Enquanto Ambrósio descia do púlpito, seus ouvintes
aglomeraram-se ao seu redor, enchendo-o de bênçãos, atirando-se aos seus
pés e beijando a orla do hábito. Ele passou vagarosamente, com as mãos
cruzadas de forma devota sobre o peito, em direção à porta que dava para a
capela do mosteiro, onde seus co-irmãos o aguardavam. Ele subiu os
degraus e, então, virando-se em direção aos seus seguidores, proferiu
algumas palavras de agradecimento e encorajamento. Enquanto falava, seu
rosário, composto de grandes contas de âmbar, escorregou-lhe da mão e
caiu entre a multidão que o rodeava. Os espectadores apoderaram-se do
rosário e repartiram as contas entre eles. Todos os que se tornaram
possuidores de uma conta cuidaram de preservá-la como se fosse uma
relíquia sagrada. Mesmo se as contas tivessem sido benzidas três vezes pelo
próprio São Francisco não poderiam ter sido disputadas com maior
vivacidade. O superior, sorrindo ante tal entusiasmo, deu suas bênçãos e
deixou a igreja, com humildade refletida em cada gesto. Mas, haveria
humildade também no seu coração?
Os olhos de Antonia o seguiam com ansiedade. Quando a porta se
fechou atrás dele, parecia que ela tinha perdido algo essencial para sua
felicidade. Uma lágrima rolou silenciosamente por sua bochecha.
“Ele está separado do mundo!”, pensou consigo mesma. “Talvez eu
nunca mais o veja!”
Enquanto secava a lágrima, Lorenzo a observava.
— A senhorita está satisfeita com nosso orador? – perguntou ele. —
Ou acha que Madri supervaloriza seus talentos?
O coração de Antonia estava tão tomado de admiração pelo monge
que ela aproveitou a ocasião para falar sobre ele. Além disso, agora que não
mais considerava Lorenzo um completo estranho, sentia-se menos
envergonhada por sua extrema timidez.
— Oh, ele excedeu todas as minhas expectativas – respondeu. — Até
este momento, eu não tinha ideia da força da eloquência, mas quando ele
começou a falar, sua voz despertou em mim tanto interesse, tanta estima, e
quase posso dizer que sinto tanta afeição por ele, que eu mesma fico atônita
com a agudez dos meus sentimentos.
Lorenzo achou graça na força dessas palavras.
— A senhorita é ainda muito jovem e está apenas começando a vida –
disse ele. — Seu coração inexperiente, cheio de amor e sensibilidade recebe
suas primeiras impressões com ansiedade. O seu desconhecimento da
humanidade faz com que não suspeite dos enganos das pessoas e, ao ver o
mundo através da sua própria verdade e inocência, considera que todos os
que estão à sua volta merecem sua confiança e estima. Que lástima que
essas visões alegres venham logo a se dissipar! Que pena que a senhorita
venha a descobrir em breve a baixeza da raça humana, colocando-se em
guarda contra os seus semelhantes assim como faz com seus inimigos.
— Ai de mim, senhor! – respondeu Antonia. — Os infortúnios dos
meus pais já me deram tristes exemplos da perversidade do mundo. Sem
dúvida, neste caso, a calidez da simpatia não poderia ter me enganado.
— Neste caso, reconheço que não. O caráter de Frei Ambrósio é
perfeitamente ilibado. Um homem que passou toda a vida entre as paredes
de um mosteiro não deve ter tido a oportunidade de pecar, ainda que ele
possuísse tal inclinação. Mas, a partir de agora, graças a sua nova condição
que o obrigará a entrar no mundo de tempos em tempos, será exposto às
tentações e deverá demonstrar, então, todo o esplendor da sua virtude. A
provação será perigosa. Ele se encontra precisamente naquela fase da vida
em que as paixões são mais ardentes, indomáveis e tirânicas. Sua reputação
já estabelecida o tornará uma vítima ilustre para a sedução. A novidade
trará um encanto adicional aos aliciamentos do prazer. Mesmo os talentos
que a natureza lhe deu contribuirão para sua ruína, facilitando os meios para
conseguir seu objeto. Poucos retornam vitoriosos de uma luta tão severa.
— Ah, com certeza, Frei Ambrósio será um desses poucos.
— Não tenho dúvidas. Em todos os aspectos, ele é uma exceção à
humanidade em geral, e a inveja buscará em vão manchar sua reputação.
— O senhor me tranquiliza com toda essa segurança. Encoraja-me a
ceder em minha predisposição a favor dele, e não imagina a dor com que
tenho de reprimir este sentimento. Ah, querida tia, convença minha mãe a
escolher Frei Ambrósio para ser o nosso confessor.
— Eu, convencê-la? – replicou Leonella. — Asseguro-lhe que não
farei tal coisa. Não gosto desse tal de Ambrósio. Há um ar de severidade
nele que me faz tremer da cabeça aos pés. Se ele fosse meu confessor, eu
nunca teria coragem de revelar metade dos meus pecadilhos e, então, em
que situação me encontraria? Em toda minha vida nunca vi um mortal de
aspecto mais austero, e espero que nunca veja outro. A sua descrição do
diabo, que Deus nos perdoe, me deixou louca de medo, e quando ele falou
dos pecadores, parecia que estava pronto a devorá-los.
— A senhora tem razão – respondeu Dom Cristóbal. — Dizem que o
único defeito de Frei Ambrósio é a severidade excessiva. Como ele está
isento das falhas humanas, não é indulgente o bastante para com os outros
e, ainda que muito justo e desinteressado em suas decisões, seu governo
sobre os frades já tem mostrado algumas provas de sua inflexibilidade.
Veja, a multidão já se dispersou. A senhora nos permitiria acompanhá-las
até sua casa?
— Ai, Jesus! – exclamou Leonella, enrubescendo. — Senhor, eu não
permitiria isso por nada no mundo! Se eu chegasse em casa acompanhada
por tão galante cavalheiro, minha irmã, que é tão cheia de escrúpulos, iria
me passar um sermão de uma hora e eu nunca ouviria o fim disso. Além do
mais, eu gostaria que o senhor não fizesse o pedido neste momento.
— O pedido? Eu garanto a senhora que…
— Oh, senhor, eu acredito que suas manifestações de impaciência são
muito sinceras, mas eu realmente preciso de um tempo. Não seria muito
delicado de minha parte aceitar sua mão no primeiro dia.
— Aceitar minha mão? Assim como prezo viver e respirar, eu...
— Oh, meu querido, se me ama, não me pressione mais! Eu
considerarei sua obediência como prova de sua afeição. O senhor receberá
notícias minhas amanhã, de modo que agora diremos adeus. Por favor,
cavalheiros, posso perguntar os seus nomes?
— Meu amigo é o Conde d’Ossorio, e eu sou Lorenzo de Medina.
— É o suficiente. Bem, Dom Lorenzo, devo comunicar à minha irmã
a sua gentil oferta e o manterei informado da decisão tão logo seja possível.
Para onde devo enviá-la?
— Eu sempre posso ser encontrado no Palácio Medina.
— Pode contar com notícias minhas. Adeus, cavalheiros. Senhor
conde, suplico que tente controlar o excessivo ardor de sua paixão.
Contudo, como prova de que não estou insatisfeita com o senhor e para
evitar que se entregue ao desespero, receba esta amostra de minha afeição e
dedique alguns pensamentos à ausência de Leonella...
Ao dizer isso, ela estendeu a mão fraca e enrugada, a qual seu suposto
admirador beijou com tanta falta de graça e tão evidente constrangimento
que Lorenzo teve dificuldades em reprimir uma risada. Leonella, então,
apressou-se em deixar a igreja. A adorável Antonia seguiu a tia em silêncio,
mas quando chegou ao átrio, voltou-se involuntariamente e buscou os olhos
de Lorenzo. Ele fez uma reverência para dizer adeus. Ela retribuiu o
cumprimento e saiu apressadamente.
— Então, Lorenzo – disse Dom Cristóbal, assim que ficaram sozinhos
— você me arranjou uma bela confusão. Para favorecer seus planos com
Antonia, eu me vi obrigado a fazer alguns poucos elogios sem importância
à tia da moça, e no final de uma hora já me encontro às vias de um
matrimônio! Como você vai me recompensar por ter sofrido tão
penosamente por sua causa? O que pode fazer para retribuir o fato de eu ter
beijado as garras daquela velha bruxa maldita? Diabos! Ela deixou um odor
nos meus lábios que me fará sentir cheiro de alho durante um mês inteiro! E
quando eu estiver passeando pelo campo, provavelmente serei confundido
com um omelete ambulante ou com uma grande cebola estragada.
— Reconheço, meu pobre conde, que o seu serviço foi acompanhado
de grande perigo – replicou Lorenzo. — Mas estou longe de supor que tal
malefício seja superior às suas forças, tanto que provavelmente solicitarei
que você carregue sua paixão por mais algum tempo.
— Através desse pedido eu concluo que a pequena Antonia tenha
causado alguma impressão em você.
— Não consigo expressar em palavras o quanto estou encantado com
ela. Desde a morte do meu pai, meu tio, o Duque de Medina, tem
demonstrado seu desejo de me ver casado. Até agora tenho me esquivado
de suas insinuações e até me recusado a compreendê-las, mas depois do que
vi nesta tarde...
— Bem, o que foi que você viu nesta tarde? Ora, certamente, Dom
Lorenzo, você não pode estar tão louco a ponto de pensar em tomar como
esposa a neta do “sapateiro mais honesto e trabalhador de toda a Córdoba”?
— Você se esquece de que ela é também a neta do falecido Marquês
de las Cisternas? Mas sem entrar em discussão sobre nascimentos e títulos,
eu lhe asseguro, nunca contemplei uma jovem tão interessante quanto
Antonia.
— É bem possível, mas você não pode ter a intenção de se casar com
ela.
— Por que não, meu caro conde? Tenho riqueza suficiente para nós
dois e você sabe que meu tio tem pensamentos liberais a esse respeito. Pelo
que conheço de Ramón de las Cisternas, estou certo de que ele irá
reconhecer Antonia como sua sobrinha prontamente. Seu nascimento,
portanto, não será obstáculo para que eu lhe ofereça minha mão. Eu seria
um verdadeiro cafajeste se pensasse nela de outra forma que não o
matrimônio. Na verdade, ela parece dotada de todas as qualidades que me
atraem em uma esposa: juventude, beleza, gentileza, sensibilidade...
— Sensibilidade? Ora, ela não disse nada além de sim e não.
— Ela realmente não falou muito, eu concordo, mas ao menos sempre
disse sim e não nas horas certas.
— Verdade? Oh, ela é a mais obediente donzela. Este é exatamente o
argumento usado por alguém que está apaixonado e não serei eu a discutir
com tão profundo casuísta. Suponho que devemos nos dirigir ao teatro?
— Está fora dos meus planos. Cheguei a Madri ontem à noite e ainda
não tive a oportunidade de ver minha irmã. Você sabe que o convento em
que ela está fica nesta rua. Era para lá que eu me dirigia quando vi aquela
multidão se aglomerando nesta igreja e fiquei curioso para saber do que se
tratava. Agora desejo prosseguir do início e provavelmente passarei a noite
com minha irmã diante da grade do locutório.
— Você disse que sua irmã está em um convento? Ah, é mesmo, eu
havia esquecido. E como está Dona Agnes? Estou surpreso, Dom Lorenzo,
como pôde pensar em encerrar uma jovem tão encantadora entre os muros
do claustro?
— Como eu pude pensar nisto, Dom Cristóbal? Como você pode me
considerar capaz de tamanha barbaridade? Sabe que ela tomou o hábito por
vontade própria e que algumas circunstâncias particulares fizeram com que
ela desejasse se retirar do mundo. Usei de todos os meios que estavam ao
meu alcance para fazê-la mudar de ideia, mas todo o esforço foi inútil e eu
perdi uma irmã!
— Você é um homem de sorte; em minha opinião, Lorenzo, você
ganhou mais do que perdeu. Se bem me lembro, Dona Agnes possuía um
dote de dez mil dobrões, e metade desse valor foi revertida em seu favor.
Por Santiago! Quisera eu ter cinquenta irmãs nas mesmas condições! Com
certeza eu me resignaria a perdê-las todas sem muito pesar.
— Como disse, conde? – perguntou Lorenzo, com voz irritada. —
Você me considera tão vil ao ponto de ter influenciado o retiro de minha
irmã? Considera que o desejo desprezível de me apoderar da fortuna dela
faria com que eu...
— Admirável! Sossegue, Dom Lorenzo! Agora o homem está todo
em brasas! Queira Deus que Antonia seja capaz de amenizar seu
temperamento ou certamente teremos cortado nossas gargantas antes que o
mês termine. No entanto, para evitar a tragédia de tal catástrofe no presente
momento, eu me vou, e o deixo como senhor da situação. Adeus, meu
Cavaleiro do Monte Etna. Modere seu caráter explosivo e lembre-se de que,
quando for necessário fazer a corte àquela megera, pode sempre contar com
meus serviços.
Dito isto, ele saiu apressadamente da igreja.
— Que desmiolado – murmurou Lorenzo. — Com um coração tão
excelente, é uma pena que tenha tão pouco bom senso!
A noite avançava rapidamente, mas as lamparinas ainda não estavam
acesas. Os fracos raios da lua crescente podiam apenas atravessar a
obscuridade gótica da igreja. Dom Lorenzo sentia-se incapaz de deixar o
lugar. O vazio em seu peito deixado pela ausência de Antonia e o sacrifício
de sua irmã, o qual Dom Cristóbal lhe havia feito reviver na imaginação,
trouxeram ao seu espírito uma melancolia que combinava bem com as
trevas religiosas que o envolviam. Ainda estava apoiado na sétima coluna a
partir do púlpito. Uma brisa suave e fresca soprava ao longo das solitárias
naves. A claridade do luar que penetrava na igreja através das janelas
pintava as desgastadas abóbadas e os sólidos pilares com os mais variados
tons de luz e cores. Um silêncio universal reinava ao seu redor, apenas
interrompido pelo ocasional fechamento das portas do mosteiro contíguo.
A calma da hora e a solidão do lugar contribuíram para aumentar a
disposição de Lorenzo para a melancolia. Ele deixou-se cair em um assento
e entregou-se às ilusões de sua fantasia. Pensou em sua união com Antonia
e nos obstáculos que poderiam surgir em oposição aos seus desejos. Mil
visões flutuaram por sua imaginação; tristes, por certo, mas não
desagradáveis. O sono insensível roubou-lhe as visões, e a tranquila
seriedade da sua mente, acordada por um instante, continuou a influenciar
seus sonhos.
Ele sonhou que ainda estava na igreja dos capuchinhos, mas ela não
estava mais escura ou vazia. Um grande número de lampadários prateados
derramava seu esplendor por todo o teto abobadado. Acompanhando o
cativante som de um coro distante, a melodia do órgão inundava a igreja. O
altar parecia decorado para alguma festividade importante; estava rodeado
por um esplêndido grupo de pessoas, e próximo a esse grupo estava
Antonia, vestida com um traje branco nupcial e ruborizada com todos os
encantos da modéstia virginal.
Entre esperançoso e temeroso, Lorenzo contemplava a cena diante de
si. De repente, a porta que levava até o mosteiro se abriu e ele viu se
aproximar o pregador que acabara de ouvir com tanta admiração, seguido
de seus frades. Ele aproximou-se de Antonia.
— E onde está o noivo? – perguntou o sacerdote imaginário.
Antonia parecia olhar ao redor da igreja com ansiedade.
Involuntariamente, o jovem avançou alguns passos de onde estivera oculto.
Ela o viu. Um rubor de alegria aflorou de seu semblante. Com um
movimento gracioso da mão ela acenou para que ele avançasse. Ele
obedeceu ao comando, correu em sua direção e atirou-se aos seus pés.
Ela recuou um instante. Então, olhando fixamente para ele com
indescritível deleite, exclamou:
— Sim, é meu noivo, meu noivo prometido!
A moça se apressou para jogar-se em seus braços, mas, antes que ele
tivesse tempo para recebê-la, um desconhecido se interpôs entre os dois.
Tinha uma forma gigantesca, a pele escura e os olhos ferozes e terríveis.
Sua boca soprava labaredas de fogo e na sua testa estava escrito: “Orgulho!
Luxúria! Crueldade!”
Antonia soltou um grito. O monstro tomou-a em seus braços e,
saltando com ela sobre o altar, passou a torturá-la com suas carícias odiosas.
Ela lutou em vão para escapar do seu abraço. Lorenzo correu em seu
socorro, mas antes que tivesse tempo de chegar até a amada, ouviu-se um
alto estrondo de trovão. Instantaneamente, a catedral parecia cair aos
pedaços. Os frades corriam e gritavam de horror. As luzes se apagaram e o
altar afundou no solo. No seu lugar surgiu um abismo que vomitava nuvens
de fogo. Proferindo um berro terrível, o monstro mergulhou no abismo, e na
queda tentou levar Antonia consigo. A luta foi em vão. Movida por poderes
sobrenaturais ela conseguiu desembaraçar-se de seus braços, ainda que seu
vestido branco tenha ficado em poder do monstro. Imediatamente uma asa
de brilhante esplendor surgiu em cada um dos braços de Antonia. Ao
mesmo tempo em que se elevava, a moça gritava para Lorenzo:
— Meu amigo, nós nos encontraremos no Céu!
Nesse momento, o teto da catedral se abriu e vozes harmoniosas
começaram a ecoar pela nave. A gloriosa recepção de Antonia era composta
por raios de brilho tão ofuscante que Lorenzo foi incapaz de continuar
olhando. Sua visão falhou, ele perdeu os sentidos e caiu no chão.
Quando acordou, encontrou-se estendido no pavimento da igreja. O
local estava todo iluminado e o canto dos hinos podia ser ouvido à
distância. Por um momento, Lorenzo não conseguiu acreditar que o que
acabara de testemunhar havia sido apenas um sonho, pois as impressões
deixadas em sua mente ainda eram muito fortes. Uma breve reflexão foi o
suficiente para convencê-lo de que estava enganado. Durante o seu sono, as
lamparinas tinham sido acesas e a música que ouvia era cantada pelos
monges que celebravam as vésperas na capela ao lado.
Lorenzo levantou-se e dispôs-se a caminhar até o convento onde
estava sua irmã. Trazia a mente ainda perturbada por sonho tão peculiar. Ao
aproximar-se do átrio, sua atenção foi atraída por uma sombra que se movia
na parede oposta. Ele olhou ao redor com curiosidade e logo vislumbrou um
homem enrolado em uma capa, o qual parecia verificar cuidadosamente se
seus movimentos estavam sendo observados. Pouquíssimas pessoas podem
dizer que são isentas da influência que a curiosidade exerce; o desconhecido
parecia ansioso a ocultar sua entrada na igreja, e foi exatamente essa
circunstância que fez com que Lorenzo desejasse descobrir o que ele estava
prestes a fazer.
Nosso herói sabia que não tinha o direito de espreitar os segredos
daquele cavalheiro desconhecido.
“Vou embora”, pensou Lorenzo. Mas permaneceu onde estava.
Efetivamente, a sombra da coluna o ocultava da visão do homem
misterioso, o qual continuava avançando com cautela. Finalmente, ele tirou
uma carta de dentro da capa e apressou-se a colocá-la debaixo da enorme
imagem de São Francisco. Ao recuar precipitadamente, tratou de se
esconder em um canto da igreja a uma distância considerável da imagem.
“Então”, pensou Lorenzo com seus botões, “creio que se trata apenas
de algum insensato caso de amor. É melhor eu ir agora, pois não tenho nada
com isso.”
É verdade que até aquele momento não havia passado pela sua cabeça
a ideia de que ele poderia vir a ter algum envolvimento na estória. Mesmo
assim, julgou necessário encontrar uma boa desculpa para justificar sua
curiosidade. Ele fez uma nova tentativa para sair da igreja e desta vez
conseguiu chegar ao átrio sem nenhum impedimento. Mas parece que
estava predestinado a visitar o local novamente nesta noite. Quando descia
os degraus que o levariam até a rua, um cavalheiro correu em sua direção de
forma tão violenta que quase levou os dois ao chão. Lorenzo sacou sua
espada.
— O que significa isto, senhor? – exclamou ele. — O que pretende
com toda essa brutalidade?
— Ah, é você, Medina? – perguntou o recém-chegado, a quem
Lorenzo reconheceu pela voz como sendo Dom Cristóbal. — Você é o
camarada mais afortunado em todo o universo por não ter deixado a igreja
antes do meu retorno! Entre, entre, meu bom rapaz; elas estarão aqui a
qualquer momento.
— Quem estará aqui?
— A velha galinha e todos os seus preciosos pintinhos! Entre, logo
saberá de toda a história.
Lorenzo seguiu o amigo ao interior da igreja e ambos se esconderam
atrás da imagem de São Francisco.
— E agora, posso tomar a liberdade de perguntar o que significa toda
essa pressa, todo esse arroubo? – perguntou o nosso herói.
— Oh, Lorenzo, vamos presenciar uma gloriosa aparição! A madre
superiora de Santa Clara e todo o seu séquito de freiras estão vindo para cá.
Você deve saber que o devoto Frei Ambrósio (que Deus o recompense por
isso!) não tem intenção de deixar seu recinto por nenhum motivo e, uma
vez que, hoje em dia, todo convento deve necessariamente tê-lo como
confessor, as freiras, em consequência disso, são obrigadas a vir até o
mosteiro. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé.
Agora, a madre superiora de Santa Clara, para evitar olhares impuros como
os seus ou deste seu humilde servo, julga conveniente trazer seu santo
rebanho ao anoitecer. Ela será admitida na capela do mosteiro por aquela
porta privada. A zeladora do convento de Santa Clara, uma velha alma
digna e grande amiga minha, acaba de me assegurar que elas estarão aqui a
qualquer instante. Boas notícias para você, velhaco! Estamos prestes a ver
alguns dos rostos mais bonitos de Madri!
— Na verdade, Cristóbal, não estamos prestes a ver nada; as freiras
sempre usam um véu.
— Não, não! Estou mais informado do que você. Ao entrar em um
lugar sagrado, elas sempre retiram o véu em sinal de respeito ao santo
padroeiro. Mas escute: elas estão chegando! Silêncio, silêncio! Observe e
aprecie.
“Bem”, pensou Lorenzo, “é possível que eu descubra a quem são
dirigidas as juras do desconhecido.”
Mal havia Dom Cristóbal parado de falar quando a abadessa apareceu
seguida por uma longa procissão de freiras. Todas elas, ao entrar na igreja,
retiraram seus véus. A madre superiora cruzou as mãos sobre o peito e fez
uma profunda reverência ao passar pela imagem de São Francisco, o
padroeiro da igreja. As freiras seguiram seu exemplo e marcharam adiante
sem satisfazer a curiosidade de Lorenzo. O homem já começava a se
desesperar por querer desvendar aquele mistério quando, ao prestar seus
respeitos a São Francisco, uma das freiras deixou cair o rosário. Assim que
parou para recuperá-lo, a luz brilhou sobre seu rosto; ao mesmo tempo, ela
habilmente pegou a carta que estava debaixo da imagem, escondeu-a nas
suas vestes e apressou-se a ocupar seu lugar na procissão.
— Ahá! – disse Cristóbal em voz baixa. — Temos aqui uma pequena
intriga, sem dúvida.
— Santo Deus, é Agnes! – exclamou Lorenzo.
— O quê? Sua irmã? Diabos! Suponho que alguém terá de pagar por
nossa curiosidade.
— E pagará sem demora – garantiu o irmão enfurecido.
A procissão de devotas já estava dentro da igreja. A porta estava
quase fechada. O homem desconhecido imediatamente abandonou seu
esconderijo e, a passos largos, dirigiu-se à saída. Antes de sair, no entanto,
encontrou Medina barrando sua passagem. O estranho recuou rapidamente
e cobriu os olhos com o chapéu.
— Não tente fugir de mim! – exclamou Lorenzo. — Vou descobrir
quem é o senhor e qual o conteúdo daquela carta!
— Que carta? – replicou o desconhecido. — E com que direito me faz
perguntas?
— Com um direito do qual agora me envergonho; mas não tenho de
lhe dar satisfações. Responda com detalhes as perguntas que fiz ou terá que
responder com a sua espada!
— A última alternativa parece ser a mais rápida – replicou o outro,
sacando sua arma. — Venha, senhor espadachim! Estou pronto!
Furioso, Lorenzo lançou-se ao ataque. Já haviam trocado muitas
estocadas quando Cristóbal, que nesse momento parecia ter mais bom senso
do que os dois antagonistas, colocou-se entre as suas armas.
— Calma! Calma, Medina! – exclamou. — Lembre-se das
consequências de um derramamento de sangue em solo sagrado.
O estranho imediatamente soltou sua espada.
— Medina? – ele perguntou. — Meu Deus, será possível? Lorenzo,
você já se esqueceu de Ramón de las Cisternas?
O assombro de Lorenzo crescia a cada momento. Ramón caminhou
em sua direção, mas, desconfiado das intenções dele, Lorenzo retirou a mão
antes que o outro pudesse pegá-la.
— O senhor aqui, marquês? Qual o significado de tudo isto? O senhor
está trocando correspondência clandestina com minha irmã, cujo afeto...
— Sempre foi meu, e ainda é. Mas este não é o lugar mais apropriado
para estas explicações. Acompanhe-me até meu palácio e eu lhe contarei
tudo. Quem é este que está com você?
— Alguém que, acredito, o senhor já tenha visto antes – respondeu
Dom Cristóbal. — Só que, provavelmente, não em uma igreja.
— Conde d’Ossorio?
— Eu mesmo, marquês.
— Não faço nenhuma objeção ao fato de compartilhar o meu segredo
com o senhor, pois estou certo de que posso confiar no seu silêncio.
— Então o juízo que o senhor faz de mim é melhor do que o meu
próprio, e, por isso mesmo, peço que reconsidere tal confiança. Siga o seu
caminho, e eu seguirei o meu. Marquês, onde posso encontrá-lo?
— Como de costume estou no Palácio de las Cisternas, mas lembre-se
de que sigo incógnito e que se desejar falar comigo, pergunte por Alfonso
d’Alvarada.
— Certo, certo! Adeus, cavalheiros! – disse Dom Cristóbal, partindo
no mesmo instante.
— Como disse, marquês? – perguntou Lorenzo com voz surpresa. —
O senhor, Alfonso d’Alvarada?
— Eu mesmo, Lorenzo. Mas, a não ser que sua irmã já tenha lhe
contado toda a minha história, o que tenho para relatar vai deixá-lo
assombrado. Portanto, siga-me ao meu palácio, sem mais demora.
Nesse momento, o porteiro dos capuchinhos surgiu para trancar as
portas. Os dois fidalgos se retiraram e apressadamente rumaram para o
Palácio de las Cisternas.
— Bem, Antonia – disse a tia Leonella, logo que as duas deixaram a
igreja — qual a sua opinião sobre os nossos cavalheiros? Dom Lorenzo
parece ser um jovem muito distinto. Ele só tinha olhos para você, e
ninguém sabe o que pode acontecer a partir daí. Já Dom Cristóbal, eu
confesso que é a própria Fênix da cortesia. Tão galante e tão educado! Tão
sensível e tão comovente! Bem, se há um homem na face da terra capaz de
me fazer renunciar aos meus votos de nunca me casar, esse homem é Dom
Cristóbal. Veja, minha sobrinha, que tudo saiu exatamente como eu disse
que sairia. Assim que coloquei meus pés em Madri eu soube que seria
rodeada por admiradores. Quando retirei meu véu, você viu, Antonia, o
efeito que causou no conde? E quando lhe ofereci minha mão, você
observou com que paixão ele a beijou? Se alguma vez já vi amor de
verdade, eu o vi hoje no rosto de Dom Cristóbal!
Antonia havia observado o gesto de Dom Cristóbal ao beijar aquela
mão, mas como a sua conclusão era bem diferente da conclusão da tia, foi
sábia o bastante para segurar a língua. Visto que este é provavelmente o
único caso conhecido no qual uma mulher não diz o que pensa, vale a pena
ser comentado aqui.
A velha dama continuou falando com Antonia enquanto seguia o
mesmo rumo, até chegarem à rua onde ficava a residência. Ali, uma
aglomeração em frente à porta impedia a passagem, fazendo com que as
duas fossem para o lado oposto na tentativa de descobrir o que havia atraído
tanta gente. Após alguns minutos a multidão formou um círculo e Antonia
percebeu no centro uma mulher de estatura extraordinária, girando
repetidamente e fazendo todos os tipos de gestos extravagantes. Seu vestido
era composto de retalhos de seda e linho de diversas cores fantasticamente
combinadas, ainda que não fosse totalmente de mau gosto. Sua cabeça
estava coberta por uma espécie de turbante ornamentado com folhas de
videira e flores silvestres. Ela parecia muito bronzeada pelo sol e sua pele
tinha um profundo tom azeitonado. Tinha olhos ardentes e estranhos; levava
na mão uma longa vara negra, com a qual, de tempos em tempos, traçava
estranhos desenhos no chão, ao redor dos quais dançava com atitudes
excêntricas de loucura e desvario. De repente ela parou de dançar, girou três
vezes ao redor de si mesma com movimentos rápidos e depois de uma
pausa, cantou a seguinte balada:

A CANÇÃO DA CIGANA
“Venham, peguem minha mão! Minha arte supera toda a sabedoria
dos mortais;
Venham, donzelas, venham! Minha mágica mostrará seu futuro
esposo
e muito mais;
Pois a mim foi concedido o poder de ver o livro do destino,
De ler as futuras resoluções do céu e mergulhar em seu desígnio;

Eu ajudo a lua a conduzir seu prateado vagão,


Seguro os ventos com um laço encantado,
Eu faço dormir o rubro dragão,
Que adora deitar sobre o ouro enterrado;

Protegida por feitiços, passo ilesa e ligeira,


Por entre as bruxas na estranha noite do Sabbath;
Sem medo, entro no círculo da feiticeira
E sem me ferir, piso sobre serpentes a repousar;

Vejam, aqui estão poções poderosas,


As quais garantem a fidelidade do marido,
E se bebidas à meia-noite, para as desejosas,
Despertarão a paixão do jovem mais introvertido;

Se uma moça muito se permitiu,


Esta poção reparará o que foi perdido,
Devolverá o rubor da face juvenil,
E trará a brancura ao rosto escurecido;
Então ouçam em silêncio enquanto eu vejo
O que mostra o meu sábio espelho;
E todas vocês, depois de um ano ter passado,
Verão que a profecia da cigana terá se realizado.”

— Querida tia – perguntou Antonia quando a estranha terminou —


ela é louca?
— Louca? Não, criança, ela é apenas má. Ela é uma cigana, um tipo
de nômade cuja única ocupação é correr o país contando mentiras e
logrando aqueles que ganham dinheiro honestamente. Afaste-se deste
animal! Se eu fosse o rei da Espanha, mandaria para a fogueira cada um
deles que se encontrasse nos meus domínios pelas próximas três semanas!
Essas palavras foram proferidas em voz tão alta e clara que chegaram
aos ouvidos da cigana. A mulher imediatamente abriu caminho através da
multidão e caminhou em direção às damas. Fez três saudações à maneira
oriental e então se dirigiu à Antonia.
— Senhora, gentil senhora! Saiba que posso adivinhar seu futuro. Dê-
me sua mão e não tenha medo. Senhora, gentil senhora! Escute!
— Minha tia querida – pediu Antonia — permita, só desta vez! Deixe
que ela leia minha sorte!
— Que tolice, menina! Ela não lhe dirá nada além de mentiras.
— Não importa, deixe-me ao menos ouvir o que ela tem a dizer. Por
favor, minha tia. Deixe, eu imploro!
— Está bem, Antonia, já que você está tão resolvida a isso... vamos,
boa mulher, você lerá a sorte de nós duas. Pegue este dinheiro, e agora fale
sobre o meu futuro.
Dizendo isso, Leonella retirou a luva e ofereceu-lhe a mão. A cigana
olhou para aquela mão por um momento e logo deu sua resposta.
A CIGANA

“Seu futuro? Mas se já está envelhecida,


Boa dama, tal verdade já lhe é conhecida;
Então, sem demora, e em troca do dinheiro,
Eu a compensarei com um sábio conselho.
Espantados com a sua vaidade infantil,
Seus amigos tomam-na por demente,
Afligem-se ao vê-la usar seu ardil,
Para conquistar um jovem pretendente.
Creia-me, senhora, que tudo estará terminado
Quando aos cinquenta e um anos chegar,
Os homens têm raramente buscado
O amor em tão estrábico olhar.
Siga meus conselhos, senhora, e deixe de lado
Toda maquiagem, enfeite, luxúria e orgulho
Dê aos pobres o que tem inutilmente usado;
Pense no Senhor, e não mais no futuro,
Pense nos seus pecados, não nos pretendentes,
E pense que o guardião do tempo não tarda
A reduzir os fios ruivos remanescentes.”

A plateia explodiu de rir com o discurso da cigana. De boca em boca


repetiam-se os trechos: “cinquenta e um anos”, “olhar estrábico”, “fios
ruivos”, “maquiagem e enfeite”, etc. Leonella quase sufocou de tanta raiva
e cobriu sua maldosa conselheira com as censuras mais amargas. A
profetiza trigueira ouviu por algum tempo com um sorriso insolente.
Finalmente, depois de uma breve resposta, dirigiu-se à Antonia.
— Paz, senhora, o que eu disse é verdade. E agora, minha jovem
donzela, dê-me sua mão e deixe-me ver seu destino e os decretos do céu.
Imitando Leonella, Antonia retirou a luva e ofereceu sua mão pálida à
cigana – a qual, depois de analisá-la por algum tempo, esboçou uma
expressão de piedade e assombro. A mulher pronunciou seu oráculo com as
seguintes palavras:

A CIGANA

“Jesus! Que mão a senhorita tem,


Tão casta e delicada, mostra juventude e pureza como ninguém;
De espírito e formas perfeitas a senhorita se mostra,
Isto é tudo o que para um bom homem importa.
Mas, ai de mim! Esta linha está revelando,
Que a ruína a está rondando;
Um homem devasso, um demônio astuto, com toda a maldade,
Tudo fará para destruí-la, é a mais pura verdade;
Arrebatada pela dor, a terra irá deixar,
E sua alma, a paz e glória irá alcançar;
Mas para adiar seus sofrimentos,
Leve o que lhe digo nos pensamentos;
Ao conhecer um homem virtuoso, inocente de qualquer crime,
Veja se das falhas alheias ele não lastima.
As palavras da cigana, leve-as sempre consigo,
Mesmo que ele pareça bondoso e amigo;
Pois a aparência sempre faz mascarar,
O que os corações orgulhosos e cheios de luxúria não querem
mostrar;
Adorável donzela, parto com uma lágrima camuflada,
Que minhas profecias não a deixem muito abalada;
Aceite e aguarde com calma e pesar,
A felicidade eterna que em um mundo melhor irá alcançar.”

Tendo dito isso, a cigana girou ao redor de si própria três vezes e


então correu pela rua num gesto frenético. A multidão a seguiu deixando
desimpedida a porta de Elvira. Leonella entrou na casa, irritada com a
cigana, com sua sobrinha e com todas as pessoas. Em suma, irritada com
todos, exceto consigo mesma e com seu encantador cavalheiro. As
previsões da cigana também afetaram Antonia, mas a má impressão logo se
dissipou e, em poucas horas, ela havia se esquecido completamente da
aventura, como se nunca tivesse acontecido.
CAPÍTULO II

Se tivesses experimentado, ao menos uma vez


Uma milésima parte dos prazeres
Que abençoam os corações dos amantes,
Tuas palavras de arrependimento e teus suspiros provariam
Que perdido é o tempo que não foi passado amando.
(Tasso)

Depois de ser acompanhado até a porta de sua cela, o superior


dispensou os monges com certo ar de cônscia superioridade, como se a
aparência de humildade travasse uma luta contra a realidade do orgulho.
Assim que ficou só, Ambrósio entregou-se à indulgência de sua
vaidade. Lembrou-se da comoção que seu discurso havia despertado e seu
coração expandiu-se de êxtase. Sua imaginação lhe presenteava com visões
esplêndidas de engrandecimento. Ele olhou ao redor com exaltação, e seu
orgulho lhe disse em voz bem alta que ele era superior a todos os seus
semelhantes.
“Quem”, pensou ele, “quem, além de mim, foi capaz de superar o
calvário da juventude sem uma mancha na consciência? Quem mais foi
capaz de vencer a violência da paixão e um temperamento impetuoso e
ainda submeter-se, desde os primórdios da vida, a um retiro voluntário? Em
vão procuro por tal homem. Não vejo ninguém além de mim mesmo. A
religião não pode ostentar um outro Ambrósio. Que poderoso efeito o meu
discurso causou entre os ouvintes! Como eles se aglomeraram ao meu
redor! Como me cobriram de bênçãos e me aclamaram o único pilar
incorrupto da igreja! Então, o que me resta a fazer? Nada, apenas vigiar
atentamente a conduta dos meus irmãos assim como tenho vigiado a minha
própria. Mas, um momento! Será que não me sentirei tentado a me afastar
dos caminhos que tenho seguido sem um momento de hesitação? Não sou
eu um homem, cuja natureza é frágil e propensa ao erro? Bem, devo
entregar-me ao isolamento do meu retiro. As damas mais puras e nobres de
Madri continuam a visitar a igreja e não querem saber de nenhum outro
confessor. Devo acostumar meus olhos aos objetos da tentação, e devo
expor-me à sedução do luxo e do desejo. Será que existe neste mundo, onde
fui obrigado a entrar, uma mulher tão amável... como vós, Virgem
Maria...?”
Tendo pensado isso, ele fixou os olhos em uma pintura da Virgem que
estava pendurada na parede à sua frente. Por dois anos este havia sido o
objeto de sua mais crescente veneração. Ele esperou um momento e
contemplou o quadro, completamente extasiado.
“Que beleza este semblante”, ele continuou a refletir depois de alguns
minutos, “que graciosa é a forma da sua cabeça! Que doçura e majestade há
nestes divinos olhos, e com que suavidade seu rosto se reclina sobre as
mãos! Poderá uma rosa competir com o rubor desta face? Poderá o lírio
rivalizar com a brancura destas mãos? Oh, se existisse uma criatura
semelhante, e se existisse apenas para mim! Se eu tivesse permissão para
entrelaçar meus dedos nestes cachos dourados e roçar meus lábios no
tesouro deste colo tão alvo! Deus misericordioso, como eu poderia resistir a
essa tentação? Não poderia pedir um simples abraço em troca dos meus
trinta anos de sofrimento? Não abandonaria...? Que tolo eu sou! Para onde
me leva a admiração por este retrato? Afasta-te, pensamento impuro! Devo
sempre lembrar que esta mulher não existe para mim. Jamais nasceu um ser
mortal tão perfeito quanto esta pintura e, mesmo se existisse, a provação
seria muito difícil para um ser virtuoso qualquer, mas Ambrósio é capaz de
resistir a todas as tentações... Eu disse tentação? Simplesmente não existiria
para mim. Aquilo que me encanta quando idealizo e considero esta imagem
um ser superior, me desagradaria ao vê-la transformada em mulher e
manchada com todas as fraquezas da mortalidade. Não é a beleza da mulher
que provoca em mim tanto entusiasmo, é a habilidade do pintor que admiro,
é a Divindade que venero. Não estão mortas as paixões no meu peito? Já
não me libertei das fragilidades humanas? Não há nada a temer, Ambrósio;
confie na força da sua virtude. Entre no mundo com decisão, pois você está
acima de suas debilidades. Lembre-se de que agora você está isento dos
defeitos da humanidade e desafie todas as artimanhas dos espíritos das
trevas. Eles saberão quem você é.”
Os seus desvarios foram, no entanto, interrompidos por três leves
batidas na porta da sua cela. O superior despertou com dificuldade do seu
delírio. As batidas se repetiram.
— Quem é? – perguntou Ambrósio, por fim.
— Rosário – respondeu uma voz suave.
— Entre, entre, meu filho!
A porta foi imediatamente aberta e Rosário apareceu com uma
pequena cesta nas mãos.
Rosário era um jovem noviço do mosteiro, que pretendia professar os
votos dentro de três meses. Uma espécie de mistério envolvia sua juventude
que já fora um dia objeto de interesse e curiosidade. Sua aversão pela
sociedade, sua profunda melancolia, sua observação rígida das regras da sua
ordem e seu retiro voluntário em idade pouco usual, atraíram a atenção de
toda a fraternidade. Ele parecia receoso de ser reconhecido, e ninguém
jamais havia visto seu rosto. Sua cabeça estava sempre coberta pelo capuz.
Mesmo assim, a julgar pelas características descobertas acidentalmente,
parecia ser muito bonito e nobre. Rosário era o único nome pelo qual era
conhecido no mosteiro.
Ninguém sabia de onde ele vinha e, quando questionado a respeito, o
rapaz guardava um profundo silêncio. Um forasteiro, com ricas vestes e
magnífica carruagem, declarou que o noviço vinha de uma distinta
linhagem; solicitou aos monges que o recebessem e depositou as somas
necessárias. No dia seguinte ele retornou com Rosário, e desde então nunca
mais se ouviu nada sobre ele.
O jovem evitava, cuidadosamente, a companhia dos outros monges;
respondia suas atenções com doçura, ainda que com reserva e,
evidentemente, mostrava inclinação para a solidão. O superior era a única
exceção a essa regra. Era visto pelo rapaz com um respeito que se
aproximava da idolatria. Buscava sua companhia com muita assiduidade e
aproveitava qualquer oportunidade para cair nas suas graças. Na presença
do superior, seu coração parecia bater à vontade e um ar de alegria
contagiava todas as suas maneiras e discursos. Ambrósio, por sua vez, não
se sentia menos atraído pelo jovem. Estando ambos a sós, deixava de lado
sua habitual severidade. Quando conversava com ele, sem perceber, adotava
um tom mais suave do que o habitual, e nenhuma voz lhe era tão doce
quanto a de Rosário. Ele recompensava as atenções do jovem com
instruções sobre as mais variadas ciências. O noviço acolhia as lições com
docilidade. Ambrósio estava cada dia mais encantado com a vivacidade de
seu gênio, com a simplicidade das suas maneiras e com a retidão do seu
coração; em suma, amava-o com toda a afeição de um pai. Não podia evitar,
ocasionalmente, a vontade secreta de vislumbrar o rosto de seu pupilo;
porém, sua regra de abnegação estendia-se também para a curiosidade, e
acabou por impedi-lo de comunicar esse desejo ao jovem.
— Perdoe-me pela intrusão, padre – disse Rosário enquanto colocava
a cesta sobre a mesa. — Recorro ao senhor com uma súplica. Ao saber que
um caro amigo está gravemente enfermo, suplico que reze por seu
restabelecimento. Se alguma oração puder interceder para poupá-lo, a sua é,
com certeza, a mais eficaz.
— No que depender de mim, filho, você sabe que pode contar
comigo. Qual é o nome do seu amigo?
— Vicentino della Ronda.
— É o suficiente. Não me esquecerei dele nas minhas orações, e que
nosso São Francisco, triplamente abençoado, escute minha intervenção. O
que tem na cesta, Rosário?
— Algumas flores, reverendo padre, que notei serem muito
apreciadas pelo senhor. Permite que as deixe em seu aposento?
— As suas atenções me encantam, meu filho.
Enquanto Rosário distribuía o conteúdo da cesta em pequenos vasos
espalhados por várias partes da cela, o superior continuou sua conversa.
— Não o vi na igreja esta tarde, Rosário.
— Mas eu estava lá, meu pai. Sou tão agradecido pela sua proteção
que não perderia a oportunidade de presenciar seu triunfo.
— Ai de mim, Rosário! Tenho poucos motivos para triunfar: o Santo
fala pela minha boca, a ele pertence todo o mérito. Mas parece que você
estava satisfeito com meu sermão?
— Satisfeito, meu pai? Muito mais do que isso. Nunca ouvi pregação
semelhante... exceto uma vez.
Nesse momento o noviço deixou escapar um suspiro involuntário.
— Quando foi isso? – perguntou o superior.
— Quando o senhor fez o sermão no dia da súbita indisposição do
falecido superior.
— Lembro dessa ocasião; já faz mais de dois anos. E você estava
presente? Eu não o conhecia naquela época, Rosário.
— É verdade, meu pai. Gostaria que Deus tivesse me levado antes
para não presenciar aquele dia. Teria sido poupado de tanta tristeza, tanto
sofrimento.
— Sofrimentos na sua idade, Rosário?
— Sim, meu pai, sofrimentos que teriam despertado sua cólera se o
senhor viesse a tomar conhecimento dos mesmos. Sofrimentos que
representam ao mesmo tempo o tormento e o prazer da minha existência.
Mas aqui, neste retiro, meu peito está tranquilo, não fossem as torturas do
medo. Oh, Deus! Oh, Deus! Que cruel é viver com medo. Meu pai, eu
renunciei a tudo, eu abandonei o mundo e suas delícias para sempre. Nada
restou. Nada mais me encanta, além da sua amizade, da sua afeição. Se eu
perder tudo isso, se eu perder tudo isso, eu tremo ao imaginar meu
desespero!
— Você teme perder minha amizade? O que posso ter feito para
justificar esse tremor? Você deveria me conhecer melhor, Rosário, e
considerar-me digno da sua confiança. Quais são os seus sofrimentos? Pode
revelá-los, e acredite que se estiver em meu poder aliviá-los...
— Ah, ninguém mais poderia fazê-lo além do senhor. Mesmo assim,
não devo revelá-los. O senhor me odiaria pela revelação! O senhor me
expulsaria da sua presença com desprezo e vergonha!
— Meu filho, eu suplico, eu imploro!
— Por piedade, não insista. Não devo... não me atrevo. Ouça! O sino
toca para as vésperas. Padre, dê-me a sua bênção e eu o deixarei.
Dizendo isso, ajoelhou-se e recebeu a bênção que havia solicitado.
Depois, pressionando os lábios sobre as mãos do superior, ele se levantou e
deixou a cela apressadamente. Em seguida, Ambrósio desceu para as
vésperas (as quais eram celebradas em uma pequena capela interna do
mosteiro), completamente surpreso com a estranheza do comportamento do
jovem.
Terminadas as vésperas, os monges se retiraram para suas celas. O
superior permaneceu na capela para receber as irmãs de Santa Clara. Não
estava há muito tempo sentado no confessionário, quando a madre superiora
apareceu. Ele ouviu todas as freiras, uma de cada vez, enquanto que as
demais esperavam junto com a abadessa na sacristia adjacente. Ambrósio
ouviu as confissões com atenção, deu muitos conselhos, impôs penitências
proporcionais a cada ofensa e, durante algum tempo, tudo transcorreu como
de costume, até que a última das freiras, que se destacava das demais pelo
seu ar de nobreza e pela elegância de sua silhueta, inadvertidamente deixou
cair uma carta de suas vestes. Ela já ia se retirar sem se dar conta da perda.
Ambrósio, supondo que se tratava de correspondência com algum parente,
recolheu a carta com a intenção de devolvê-la.
— Espere, filha. Você deixou cair...
Então, como o papel já estava aberto, seus olhos involuntariamente
leram as primeiras palavras. Ele deu um passo para trás, tamanha a
surpresa. A freira havia se voltado para ele ao ouvir-lhe a voz; ela viu a
carta na sua mão e, com um grito de terror, correu para tentar recuperá-la.
— Espere, filha – disse o frade, em tom severo. — Eu devo ler esta
carta.
— Então, estou perdida! – exclamou, apertando as mãos
violentamente.
Toda a cor desapareceu do seu rosto. Ela começou a tremer com
agitação e foi obrigada a abraçar uma coluna da capela para não cair no
chão. Enquanto isso, o superior lia as seguintes linhas:
“Tudo está preparado para a sua fuga, minha querida Agnes. Amanhã
à meia-noite eu espero encontrá-la na porta do jardim. Consegui uma chave
e, em poucas horas, você estará em um lugar seguro. Não permita que
escrúpulos equivocados façam com que rejeite essa maneira de
preservarmos tanto você quanto a inocente criança que traz em seu ventre.
Lembre-se de que prometeu ser minha muito antes de se envolver com a
igreja; que seu estado em breve se mostrará evidente aos olhos
bisbilhoteiros das suas companheiras; e que a fuga é a única maneira de
evitar os efeitos dos seus ressentimentos maléficos. Adeus, minha Agnes!
Minha querida e prometida esposa! Não deixe de estar na porta do jardim à
meia-noite.”
Tão logo finalizou a leitura, Ambrósio lançou um olhar severo e
irritado para a freira imprudente.
— A reverenda madre deve ler esta carta! – disse, passando por ela.
Essas palavras soaram como um trovão aos seus ouvidos. Agnes
despertou da letargia apenas para se dar conta dos perigos da situação. Ela
correu atrás do monge e o deteve pelo hábito.
— Espere, espere! – ela gritou com desespero e atirou-se aos pés de
Ambrósio, deixando-os encharcados com suas lágrimas. — Padre, tenha
compaixão da minha juventude! Veja com indulgência a fraqueza de uma
mulher e ajude-me a esconder minha fragilidade! O resto da minha vida
será dedicado a expiar essa única falta e a sua clemência poderá trazer de
volta uma alma para o céu.
— Que confidência extraordinária! O quê? Acaso o Convento de
Santa Clara tornou-se um retiro de meretrizes? Devo consentir que a igreja
de Cristo alimente em seu seio a libertinagem e a vergonha? Sua miserável
indigna! Uma indulgência dessas me tornaria seu cúmplice. Seria uma
clemência para um crime. Você se deixou levar pela luxúria de um sedutor!
Maculou o hábito sagrado com sua impureza e ainda ousa considerar-se
digna da minha compaixão? Por isso, não me detenha mais. Onde está a
senhora abadessa? – ele acrescentou, erguendo a voz.
— Espere, meu pai, espere! Escute-me só por um momento. Não diga
que sou impura, nem pense que errei no ardor do meu temperamento. Muito
antes de tornar-me freira, Ramón já era o dono do meu coração. Ele me
inspirou com a mais pura e irreprovável paixão, e já estava para tornar-se
meu legítimo esposo. Uma aventura horrível e a traição de um parente nos
afastaram um do outro. Pensei que havia perdido seu amor para sempre e
entrei para o convento, impulsionada pelo desespero. O acaso nos uniu
novamente e eu não pude recusar o melancólico prazer de misturar minhas
lágrimas às dele. Nós nos encontramos à noite nos jardins de Santa Clara;
num determinado momento eu baixei a guarda e violei meus votos de
castidade. Logo serei mãe. Frei Ambrósio, tenha compaixão de mim, tenha
compaixão do ser inocente cuja existência está atada à minha! Se
descobrirem minha imprudência, eu e a criança estaremos perdidas! As leis
que o Convento de Santa Clara destina a desafortunadas como eu são muito
severas e cruéis. Reverendíssimo padre, não deixe que sua consciência
imaculada o torne insensível ante aqueles que são menos capazes de resistir
à tentação! Não deixe que a misericórdia seja a única virtude que não toca o
seu coração! Tenha pena de mim, reverendíssimo! Devolva-me minha carta,
e não me condene à morte inevitável!
— A sua ousadia me confunde. Devo ocultar seu crime, eu, a quem
acaba de enganar com uma confissão fingida? Não, filha, não! Eu lhe farei
um favor essencial. Vou resgatá-la de sua perdição, querendo ou não.
Penitência e mortificação expiarão o seu pecado e a severidade irá obrigá-la
a retomar o caminho da santidade. Ora, por favor! – erguendo a voz
novamente — Madre Santa Ágata!
— Padre, por tudo o que é sagrado, pelo que o senhor mais preza, eu
rogo, eu suplico...
— Solte-me! Eu não vou ouvi-la. Onde está a abadessa? Madre Santa
Ágata, onde está a senhora?
A porta da sacristia se abriu e a abadessa entrou na capela, seguida
por suas freiras.
— É tão cruel! Tão cruel! – exclamou Agnes, soltando o hábito do
monge.
Transtornada e desesperada, ela se atirou no chão, batendo no peito e
rasgando o véu no frenesi do desespero. As freiras se assustaram com a
cena que presenciaram. O frade entregou o papel fatal para a madre e
contou como o havia encontrado. Ele também acrescentou que a ela caberia
decidir qual penitência merecia a pecadora.
Enquanto lia a carta, o rosto da superiora se inflamou de cólera. O
quê? Um pecado dessa gravidade cometido em seu convento, e que chegou
ao conhecimento de Ambrósio, o ídolo de Madri, o homem a quem
desejava causar uma impressão de rigor e regularidade no controle da sua
casa? Palavras não podiam expressar sua fúria. Ela ficou calada, mas lançou
um olhar de ameaça e pura maldade para a já humilhada freira.
— Levem-na para o convento! – ela finalmente ordenou a algumas de
suas acompanhantes.
Duas das freiras mais velhas aproximaram-se de Agnes e ajudaram-na
a se levantar para então deixar a capela.
— Como? – exclamou Agnes de repente, enquanto tentava se soltar
dos braços das outras mulheres. — Não há esperanças para mim? Já me
arrastam para o castigo? Onde está você, Ramón? Salve-me! Salve-me!
Então, lançando um olhar desvairado para o superior, ela continuou:
— Ouça-me, homem sem coração! Ouça-me, homem orgulhoso, duro
e cruel! Poderia ter me salvado, poderia ter me devolvido a felicidade e a
virtude, mas não! Será o destruidor da minha alma! Será o meu assassino, e
sobre o senhor cairá a maldição pela minha morte e pela morte do meu filho
que nem nasceu! Insolente em sua virtude ainda inabalada, desprezou as
súplicas de uma penitente. Mas Deus terá misericórdia, embora o senhor
não tenha. E onde está o mérito da sua alardeada virtude? A quais tentações
foi capaz de resistir? Covarde! Só o que sabe fazer é fugir da sedução, não
sabe como enfrentá-la. Mas o dia da provação chegará! E então, quando o
senhor sucumbir às paixões impetuosas, quando sentir que o homem é fraco
e que nasceu para errar, quando, tremendo, voltar os olhos para os seus
próprios pecados e suplicar com terror a misericórdia de seu Deus, nesse
momento pense em mim! Pense na sua crueldade. Pense em Agnes e perca
a esperança do perdão!
Ao pronunciar estas últimas palavras, sentiu-se exausta e caiu sem
sentidos no colo de uma freira que estava ao seu lado. Ela foi
imediatamente levada da capela e suas companheiras a seguiram.
Ambrósio não ouviu todas aquelas censuras sem emoção. Uma
pontada secreta no seu coração fez com que compreendesse que havia
tratado aquela infeliz com excessivo rigor. Por essa razão, ele deteve a
abadessa e se aventurou a proferir algumas palavras em favor da pecadora.
— A violência de seu desespero prova que, ao menos, o vício não é
familiar para ela. Talvez, se tratada com menos rigor do que normalmente é
aplicado nesses casos, e se suavizássemos um pouco a penitência
costumeira...
— Suavizar a penitência, padre? – interrompeu a abadessa. — Não
eu, acredite. As leis da nossa ordem são rigorosas e severas; caíram em
desuso ultimamente, mas o pecado de Agnes mostra justamente a
necessidade da sua restauração. Vou manifestar essa intenção ao convento e
Agnes será a primeira a sentir o rigor das regras, regras essas que deverão
ser seguidas ao pé da letra. Adeus, padre.
Dizendo isto, ela rapidamente deixou a capela.
“Eu cumpri com meu dever”, pensou Ambrósio consigo mesmo.
Ainda assim, essa reflexão não foi capaz de deixá-lo totalmente
satisfeito. Para dissipar as ideias desagradáveis que toda a cena havia
incitado, ele saiu da capela e desceu até o jardim do mosteiro.
Em toda Madri não havia lugar mais bonito e mais ordenado. O
jardim era tratado com o mais refinado gosto. Era adornado com a máxima
exuberância por flores cuidadosamente selecionadas e, ainda que
habilmente arranjadas, pareciam ter sido plantadas pela própria natureza. As
fontes que jorravam de vasos de mármore branco refrescavam o ar com
chuvas constantes. Os muros estavam completamente cobertos por jasmins,
videiras e madressilvas. O adiantado da hora acrescentava uma beleza
especial à cena. A lua cheia, cercada por um céu azul sem nenhuma nuvem,
derramava sobre as árvores um trêmulo resplendor e as águas das fontes
reluziam os raios de prata. Uma brisa gentil soprava a fragrância de flor de
laranjeira ao longo das alamedas do jardim; os rouxinóis espalhavam seu
murmurar melodioso por toda a floresta artificial. O superior seguiu
adiante.
No centro deste pequeno bosque havia uma gruta rústica, cuja
formação lembrava um eremitério[1]. As paredes foram construídas com
raízes de árvores, e as fendas preenchidas com musgo e hera. De um lado
ao outro havia bancos feitos de torrões de grama espalhados e uma cascata
natural jorrava de uma rocha acima dos assentos. Totalmente compenetrado,
o monge aproximou-se do local. A calma generalizada tocou seu peito e
uma tranquilidade deliciosa envolveu sua alma.
Ele aproximou-se da gruta e, quando estava entrando para descansar
um pouco, parou ao perceber que o local já estava ocupado. Inclinado sobre
um dos bancos estava um homem em postura melancólica. Sua cabeça
estava apoiada sobre o braço e ele parecida compenetrado em meditação. O
superior aproximou-se mais um pouco e reconheceu Rosário. Ele observou
em silêncio e decidiu não entrar. Após alguns minutos, o jovem ergueu os
olhos e fixou-os com tristeza na parede à sua frente.
— Sim! – disse ele, com um suspiro profundo e lamurioso. — Eu
sinto toda a alegria da Vossa condição e toda a miséria da minha própria.
Que feliz eu seria se pudesse pensar como Vós. Se eu pudesse, assim como
Vós, olhar com desdém para o ser humano e pudesse me enterrar para
sempre em alguma solidão impenetrável e, assim, talvez esquecer de que no
mundo existem pessoas que merecem ser amadas. Oh, Deus! Que bênção
seria para mim a misantropia!
— Este é um pensamento muito estranho, Rosário – disse o superior,
entrando na gruta.
— O senhor aqui, reverendo padre? – exclamou o noviço.
Ao mesmo tempo em que se levantava, ainda um pouco confuso,
puxou o capuz sobre o rosto. Ambrósio sentou-se no banco e obrigou o
jovem a sentar-se junto dele.
— Você não deve alimentar esta disposição para a melancolia –
continuou ele. — O que pode tê-lo feito contemplar a misantropia sob luz
tão bela quanto a do luar, sendo este o mais odioso de todos os sentimentos?
— A leitura destes versos, padre, os quais tinham escapado à minha
observação até agora. A excepcional claridade da lua me permitiu sua
leitura; como eu invejo os sentimentos do autor!
Dizendo isto, ele apontou para uma placa de mármore fixada na
parede oposta; nela estavam gravados os seguintes versos:
INSCRIÇÕES NO EREMITÉRIO

“Quem quer que esteja agora lendo estes versos,


Não pense que porque me retirei do mundo perverso,
Eu aprecio a solidão deste lúgubre deserto,
Pois é com muito pesar que vim parar neste lugar incerto;
Nenhum pensamento de culpa, porém, amarga meu peito,
Pois livremente abandonei o ninho perfeito,
Já que nos palácios e nas torres, eu suspeito,
Há luxúria, orgulho e pouco respeito;
Os demônios e os poderes das trevas lá foram morar,
Eu vi a humanidade secretamente pecar,
Observei a espada da honra enferrujar,
E aprendi que qualquer coisa pode-se cobiçar;
Vi que o homem ainda será traído,
Por seu amor ou por seu amigo,
Então para cá eu vim, como qualquer outro mendigo,
Até que meus dias se tenham esvaído;
Nesta caverna solitária, com vestuário modesto,
Como um tolo, minha loucura manifesto,
Espanto a melancolia, sentimento indigesto,
Minha vida e meu santo ofício seguem em cada gesto;
Nesta gruta encontro alegria e contentamento,
Gruta que já foi um palácio em outro tempo,
Aqui, a Deus nas alturas elevo meu pensamento,
E a cada noite e a cada manhã imploro em desalento;
Permiti-me, Senhor, deixar esta vida,
Sem conhecer o fogo da culpa vivida,
Sem sentir remorso, desejo ou cobiça,
E quando eu morrer, que minha fé permaneça submissa;
E tu, desconhecido, se muito jovem fores e estiveres perturbado,
Mas ainda nenhum pesar houver-te derrubado,
Lança um olhar divertido ao poema aqui gravado;
Mas se possuíres motivo para suspirar, por tua culpa e teus cuidados,
Se conhecido houveres falso amor, se da tua pátria estiveres exilado,
E se tais coisas as forças te roubarem,
oh, quão transtornado deves encontrar-te,
E como deves invejar o meu estado.”

— Como se isso fosse possível! – disse o frade. — Como se fosse


possível para um homem mergulhar em si mesmo, viver em absoluta
reclusão da natureza humana e ainda conseguir sentir a tranquilidade serena
expressa nestes versos. Eu admito que tal estado seria mais desejável do que
viver neste mundo tão impregnado de pecados e loucuras, mas isso não é
aceitável. Esta inscrição foi colocada ali como simples ornamento para a
gruta, e os sentimentos do ermitão são igualmente imaginários. O homem
nasceu para viver em sociedade. Mesmo que não se sinta muito ligado ao
mundo, jamais poderá simplesmente se esquecer de tudo, nem suportará a
ideia de ter sido esquecido. Aborrecido como estava com a culpa e os
absurdos atribuídos à raça humana, busca a misantropia. Resolve tornar-se
um ermitão e enterrar-se na caverna de alguma rocha tenebrosa. Enquanto o
ódio inflamar seu peito, ele possivelmente sentirá certa satisfação com tal
plano. Porém, quando as paixões começarem a esfriar, quando o tempo tiver
sanado suas dores e curado as feridas que levou consigo para seu retiro,
julga que a alegria será sua companheira? Ah, não, Rosário! Quando não
mais for sustentado pela violência das paixões, ele vai sentir toda a
monotonia desse estilo de vida e seu coração será vítima de seu tédio e
cansaço. Ele vai olhar ao redor e descobrir que está só no universo. O amor
pela humanidade vai renascer em seu peito e vai ansiar por retornar ao
mundo que abandonou. A natureza perderá todo o charme aos seus olhos.
Ninguém estará por perto para ouvi-lo falar das suas belezas ou para
compartilhar sua admiração por sua excelência e variedade. Escorado pelo
fragmento de alguma rocha, ele vai contemplar as cachoeiras com olhos
ausentes, vai observar a glória do pôr do sol sem emoção alguma e, ao
anoitecer, vai retornar vagarosamente para sua cela, pois ninguém estará
ansioso pela sua chegada. A refeição solitária lhe parecerá repulsiva. Ele se
deixará cair em sua cama de musgo, desanimado e insatisfeito. E ele apenas
acordará de manhã para viver mais um dia triste e monótono, como foi o
anterior.
— O senhor me surpreende, meu pai. Suponha que algumas
circunstâncias o condenem ao retiro: não crê que as responsabilidades da
religião e a consciência de uma vida bem vivida trariam serenidade ao seu
coração?
— Estaria enganando a mim mesmo se considerasse essa ideia
possível. Estou convencido do contrário, de que toda a minha força não
seria suficiente para me proteger da melancolia e tédio. Depois de passar
um dia dedicado ao estudo, não sabe com que prazer me reúno com meus
irmãos à tarde! Depois de passar muitas horas em total solidão, se eu
pudesse lhe explicar a alegria que experimento ao ver novamente um
semelhante! É neste aspecto particular que eu aprecio o mérito de uma
instituição monástica. Ela isola o homem das tentações do pecado, lhe
concede o repouso necessário para servir o Ser Supremo, priva o indivíduo
da mortificação que é presenciar os crimes do mundo e ainda permite que
ele goze das bênçãos da sociedade. E você, Rosário, você inveja a vida de
um eremita? Será que está tão cego a ponto de não enxergar a felicidade da
sua situação? Reflita por um momento. Este mosteiro tornou-se o seu retiro.
Sua regularidade, sua gentileza e seus talentos fizeram de você objeto de
estima de todos nós. Você está separado do mundo que declara odiar, mas
mesmo assim mantém os privilégios da sociedade, e de uma sociedade
composta pelos homens mais respeitáveis.
— Meu pai, meu pai! Esta é a causa do meu tormento. Felicidade
teria sido passar toda a minha vida entre os pecadores e abandonados. Se ao
menos eu nunca tivesse ouvido falar na palavra “virtude”! É a minha
adoração ilimitada pela religião, é a imensa sensibilidade da minha alma
para com a beleza da pureza e do bem que me cobrem de vergonha. É o que
me empurra para a perdição. Oh, se eu nunca tivesse conhecido os muros
deste mosteiro!
— Como assim, Rosário? Na nossa última conversa, seu tom era
diferente. É essa a consequência da nossa amizade? Se você nunca tivesse
conhecido os muros deste mosteiro, nunca teria me conhecido. É este
realmente o seu desejo?
— Nunca o teria conhecido – repetiu o noviço, levantando-se do
banco e pegando a mão do frade com ar desvairado. — O senhor? O
senhor? Eu gostaria que Deus tivesse enviado um raio para cegar meus
olhos antes que eu pudesse vê-lo, que eu nunca mais voltasse a vê-lo, que
pudesse me esquecer de que um dia já o vi!
Com estas palavras o rapaz saiu correndo dali. Ambrósio permaneceu
onde estava, refletindo sobre a inexplicável conduta do jovem. Ele
suspeitou que o noviço tivesse perdido o juízo, mas sua atitude, a conexão
de ideias e a serenidade no seu comportamento até o instante da saída da
gruta pareciam desmentir essa hipótese. Após alguns minutos, Rosário
retornou e sentou-se novamente no banco. Apoiou um lado do rosto numa
mão, e com a outra enxugava as lágrimas que caíam de quando em quando.
O monge olhou para ele com compaixão e evitou interromper suas
meditações. Por algum tempo, ambos guardaram profundo silêncio. Um
rouxinol pousou no galho de uma laranjeira em frente ao eremitério e
emitiu piados tristes e melodiosos. Rosário levantou a cabeça e ouviu com
atenção.
— Era assim – disse ele, com um profundo suspiro. — Era assim que,
durante o último e desventurado mês de sua vida, minha irmã costumava
sentar ouvindo o rouxinol. Pobre Matilda! Ela agora dorme em sua
sepultura e seu coração partido não mais pulsa com paixão.
— Você tinha uma irmã?
— O senhor disse bem, eu tinha. Ai de mim, agora não tenho mais!
Ela submergiu sob o peso de suas tristezas na primavera da vida.
— Quais eram as tristezas dela?
— As tristezas da minha irmã não são do tipo que provocam sua
piedade. O senhor não conhece o poder desses sentimentos irresistíveis e
fatais que tomaram conta do coração dela. Ela não teve sorte no amor,
padre. Sua paixão por um homem dotado de todas as virtudes – ou, melhor
dizendo, não um homem, mas uma divindade – provou ser fatal para sua
existência. Sua nobre figura, seu caráter imaculado, seus vários talentos, sua
sólida, maravilhosa e gloriosa sabedoria, poderiam ter despertado até o mais
insensível dos corações. Minha irmã o viu e se atreveu a amá-lo, mesmo
sem nenhuma esperança de retribuição.
— Mas se o amor dela foi assim tão bem concedido, o que a impedia
de ter esperanças de ser correspondida?
— Padre, antes que ele a conhecesse, Julián já havia se comprometido
devotadamente com a Noiva mais pura e mais celestial. Mesmo assim,
minha irmã se apaixonou por ele, e por amor ao esposo ideal, amou com
idolatria também a Esposa. Certa manhã, ela encontrou uma maneira de
fugir da casa de nosso pai: ela se vestiu com roupas humildes, se ofereceu
como criada à mulher do seu amado, e foi aceita. Ela, então, passou a estar
constantemente em sua presença. Empenhou-se para captar as boas graças
dele e obteve êxito. Suas atenções despertaram o interesse de Julián. Os
virtuosos são sempre agradecidos, e ele soube distinguir Matilda entre suas
outras companheiras.
— Os seus pais não procuraram por ela? Eles aceitaram a perda com
facilidade, sem tentar recuperar a filha errante?
— Antes que pudessem encontrá-la, ela mesma se revelou. Seu amor
cresceu tão violentamente que não podia mais ser ocultado. Mas ela não
desejava a pessoa de Julián, mas, sim, um lugar no seu coração. Sem pensar
nas consequências, um dia confessou seu afeto. Qual foi sua recompensa?
Amando cegamente a Esposa e acreditando que um simples olhar para outra
mulher seria uma traição a tudo o que devia a ela, ele afastou Matilda de
sua presença. Ela foi proibida de aparecer novamente diante dele. Tal
severidade destruiu seu coração. Ela retornou à casa dos nossos pais e,
depois de alguns meses, foi carregada para o túmulo.
— Pobre menina infeliz! Evidentemente, seu destino foi muito rígido
e Julián foi muito cruel.
— Acredita nisso, padre? – perguntou o noviço com entusiasmo. —
Acredita que ele foi cruel?
— Sem dúvida alguma, e sinto a mais sincera compaixão pela sua
irmã.
— Sente compaixão? O senhor se compadece dela? Oh, meu pai, meu
pai! Então tenha compaixão de mim!
O monge teve um sobressalto. Depois de uma curta pausa, Rosário
continuou com voz insegura:
— Pois meus sofrimentos são ainda maiores. Minha irmã tinha uma
amiga, uma amiga de verdade, que se apiedava da intensidade dos seus
sentimentos e que nunca censurava sua inabilidade para escondê-los. Eu...
eu não tenho nenhum amigo. Em todos os cantos do mundo, não há um só
coração que esteja disposto a partilhar dos sofrimentos do meu.
Ao pronunciar estas palavras, soluçou audivelmente. O superior se
comoveu. Ele tomou uma das mãos de Rosário e pressionou-a com ternura.
— Você diz que não tem amigos? Então, não sou seu amigo? Por que
não confia em mim? Do que tem medo? Meu rigor? Já fui rigoroso com
você? A respeitabilidade do meu hábito? Rosário, deixe o monge de lado e
passe a me ver como amigo, como seu pai. Eu bem posso assumir este
posto, pois nunca houve um pai que tenha zelado mais pelo filho do que eu
por você. Desde a primeira vez que o vi, senti que crescia em mim uma
sensação ainda não conhecida; sinto mais prazer com a sua companhia do
que com qualquer outra pessoa. Quando testemunhei a dimensão da sua
inteligência e do seu saber, alegrei-me como um pai diante das realizações
do seu filho. Então, deixe de lado seus temores e converse comigo com
franqueza. Fale comigo, Rosário, diga que confia em mim. Se minha ajuda
e minha compaixão puderem aliviar sua angústia...
— E podem! Somente a sua ajuda e a sua compaixão podem me
ajudar! Ah, meu pai, como gostaria de poder revelar o que se passa no meu
coração! Como eu desejaria poder me livrar deste fardo tão pesado... mas
tenho medo. Tenho medo!
— Medo de quê?
— De que o senhor abomine a minha fraqueza, medo de que a
recompensa pelas minhas confidências seja a perda da sua estima.
— Como posso tranquilizá-lo? Pense em toda a minha conduta no
passado, pense na ternura paternal que sempre tenho demonstrado.
Abominá-lo, Rosário? Isso não é possível. Perder sua companhia seria
como me privar do maior prazer da minha vida. Vamos, revele as suas
aflições e acredite em mim quando eu juro solenemente...
— Espere! – interrompeu o noviço. — Jure que não importa qual for
o meu segredo, o senhor não me obrigará a deixar o mosteiro até que eu
tenha concluído o noviciado.
— Eu prometo sinceramente que manterei minhas promessas a você,
tanto quanto Cristo mantém Suas promessas para a humanidade. Agora,
explique este mistério e confie na minha clemência.
— Eu vou obedecê-lo. Saiba então… oh, como temo dizer a palavra!
Ouça-me com compaixão, Frei Ambrósio. Apele para toda a centelha
latente de fraqueza humana que puder ajudá-lo a compadecer-se da minha.
Padre – continuou ele, atirando-se aos pés do monge e beijando-lhe a mão
com lábios cheios de ansiedade, enquanto sua voz era estrangulada pela
agitação do momento. — Padre – prosseguiu, em tom vacilante — eu sou
uma mulher!
O superior estremeceu ao ouvir a confissão inesperada. Prostrado no
chão, o falso Rosário parecia aguardar em silêncio a decisão do seu juiz. O
espanto de um e o temor do outro fizeram com que conservassem a mesma
atitude por alguns minutos, como se houvessem sido tocados por uma
varinha de condão. Por fim, recobrando-se da sua confusão, o frade deixou
a gruta e caminhou apressadamente em direção ao mosteiro. Seu ato não
passou despercebido pela suplicante. Ela levantou-se imediatamente, atirou-
se aos pés de Ambrósio e abraçou-lhe os joelhos. Ele tentou em vão
libertar-se do aperto.
— Não fuja de mim! – ela exclamou. — Não me abandone pelo
impulso do desespero! Ouça, enquanto justifico minha imprudência,
enquanto confesso que a história da minha irmã é a minha própria história.
Eu sou Matilda, e é o senhor que eu amo!
Se a surpresa de Ambrósio foi grande no início, esta segunda
confissão excedeu todos os limites. Atônito, envergonhado e indeciso,
sentia-se incapaz de pronunciar uma sílaba; em silêncio fitava Matilda. Ela
viu a oportunidade para continuar suas explicações do seguinte modo:
— Não pense, Frei Ambrósio, que eu vim para roubar a Esposa dos
seus afetos. Não, creia-me: a religião, por si só, é digna do senhor, e longe
de mim tentar afastá-lo do caminho da virtude. O que sinto é amor, não
lascívia. Eu desejo possuir seu coração, não penso em me satisfazer com
sua pessoa. Seja condescendente e escute minha justificativa; em poucos
minutos vou convencê-lo de que este sagrado retiro não está maculado pela
minha presença, e que pode me conceder sua compaixão sem quebrar seus
votos.
Ela sentou-se novamente. Ambrósio, quase sem saber o que fazia,
seguiu seu exemplo. A moça prosseguiu com o discurso.
— Eu pertenço a uma família muito distinta; meu pai era primogênito
da nobre casa de Villanegas. Ele morreu enquanto eu era ainda uma menina,
e me deixou como única herdeira de suas imensas posses. Jovem e rica, fui
cortejada pelos rapazes mais nobres de Madri, mas nenhum conseguiu
ganhar minha afeição. Fui educada por um tio dotado do mais sólido
julgamento e vasta erudição. Ele ficava contente ao transmitir-me um pouco
do seu conhecimento. Sob suas instruções, meu entendimento tornou-se
mais forte e mais preciso do que o de muitas pessoas do meu sexo. A
habilidade do meu preceptor, aliada à minha curiosidade natural, fez com
que eu não apenas fizesse progressos no estudo das ciências mais comuns,
como também em outras, reveladas para poucas pessoas, censuradas como
cega superstição. Mas, enquanto meu guardião se esforçava para ampliar
minha esfera de conhecimentos, ele cuidadosamente incutia em mim todos
os preceitos morais. Ele me protegeu dos grilhões do preconceito vulgar, me
mostrou a beleza da religião, me ensinou a olhar com veneração os puros e
os virtuosos e, ai de mim, eu aprendi muito bem.
Matilda fez uma pausa, suspirou e continuou:
— Em tais condições, julgue por si mesmo se eu poderia observar
qualquer outro sentimento que não fosse o desgosto pelo vício,
extravagância e ignorância, que tanto desonram a juventude espanhola. Eu
rejeitei todas as ofertas com desprezo. Meu coração manteve-se sem dono,
até que o acaso me conduziu à igreja dos capuchinhos. Oh! Sem dúvida,
naquele dia, meu anjo da guarda se descuidou e dormiu em serviço. Essa foi
a primeira vez que o vi. O senhor substituía seu superior, que estava ausente
por enfermidade. Não pode imaginar a emoção que seu sermão despertou
em mim. Oh, como eu sorvia suas palavras! Como sua eloquência parecia
me transformar em outra pessoa! Eu mal me atrevia a respirar, temendo
perder uma sílaba. Enquanto falava, parecia que uma auréola de radiante
glória rodeava sua cabeça e que seu semblante brilhava com a majestade de
um deus. Eu saí da igreja ardendo de admiração. A partir daquele momento
o senhor se tornou o ídolo do meu coração, o permanente objeto das minhas
meditações. Fiz indagações a seu respeito. As informações que me
chegaram sobre o seu modo de vida, seus conhecimentos, piedade e
abnegação reforçaram as correntes que me prendiam à sua eloquência. Eu
estava consciente de que não mais havia um vazio no meu coração, de que
eu havia encontrado o homem que, até então, procurara em vão. Na
expectativa de ouvi-lo novamente, eu visitava a igreja todos os dias. O
senhor permanecia retirado entre as paredes do mosteiro, e eu sempre partia
decepcionada. A noite se mostrava mais bondosa comigo, pois o senhor me
visitava nos meus sonhos, prometendo-me amizade eterna, levando-me
pelos caminhos da virtude e ajudando-me a suportar as vexações da vida.
As manhãs chegavam fazendo essas agradáveis visões desaparecer. Eu
acordava e me encontrava separada do senhor por barreiras que pareciam
intransponíveis. O tempo parecia aumentar a força da minha paixão. Tornei-
me melancólica e abatida. Fugia das companhias e minha saúde declinava
diariamente. Finalmente, não mais podendo viver neste estado de tortura,
resolvi assumir este disfarce no qual me vê agora. Meu artifício foi
afortunado: fui recebida no mosteiro e consegui ganhar sua estima.
Ela suspirou outra vez.
— Agora eu deveria me sentir completamente contente, se minha paz
não tivesse sido perturbada pelo temor da sua descoberta. O prazer que
desfrutava em sua companhia era amargurado pela ideia de que talvez eu
logo fosse privada da mesma. Meu coração batia com tanta intensidade
quando eu conseguia alguma prova de sua amizade, que me convenci de
que nunca poderia sobreviver com sua perda. Resolvi, então, que não daria
a ninguém a chance de descobrir meu sexo, eu mesma confessaria tudo e
me entregaria completamente à sua compaixão e misericórdia. Ah, Frei
Ambrósio, será que me enganei a seu respeito? Poderá ser menos generoso
do que imaginei? Eu não creio. O senhor não vai levar uma miserável ao
desespero. Ainda terei permissão para vê-lo, para conversar com o senhor,
para adorá-lo. Suas virtudes serão meu exemplo por toda a vida e, quando
morrermos, nossos corpos descansarão na mesma cova.
Ela concluiu seu discurso. Enquanto falava, mil sentimentos
contraditórios debatiam-se dentro do peito de Ambrósio. A surpresa pela
particularidade da aventura, a confusão pela revelação inesperada, o
ressentimento pela ousadia de entrar no mosteiro, a consciência da
austeridade que deveria ser aplicada na sua contestação, tais eram os
sentimentos dos quais se dava conta. Mas existiam outros que ainda não
havia percebido. Ele não percebeu que sua vaidade sentia-se lisonjeada com
tantos louvores à sua eloquência e virtude. Ou que sentia um prazer secreto
por uma jovem e sensível mulher ter tido a coragem de abandonar o mundo
e sacrificar todas as outras paixões por aquela que ele havia inspirado.
Também não havia se dado conta de que seu coração batia com desejo
enquanto suas mãos eram gentilmente pressionadas pelos dedos de marfim
de Matilda.
Aos poucos, foi recobrando a razão. Suas ideias tornaram-se menos
perplexas e ele se deu conta da tremenda insensatez que seria permitir que
Matilda permanecesse no mosteiro depois de revelar seu sexo. Ele assumiu
um ar de austeridade e retirou sua mão.
— Vamos, senhorita! – disse ele. — Consegue realmente ter
esperanças de que eu lhe dê permissão para ficar entre nós? Mesmo que eu
atendesse ao seu pedido, qual o bem que poderia resultar disto? Considere
que eu nunca poderei corresponder aos seus afetos, os quais…
— Não padre, não! Eu não espero inspirar no senhor um amor como o
meu. Apenas desejo ter a liberdade de ficar por perto, de passar algumas
horas do dia em sua companhia, obter sua compaixão, sua amizade e
estima. Com certeza o que peço é bem razoável.
— Mas reflita, senhorita. Reflita por um momento no quão impróprio
seria acomodar uma mulher no mosteiro, especialmente uma mulher que
tivesse confessado que me ama. Não é possível. O risco de ser descoberta é
muito grande, e eu não quero me expor a uma tentação tão perigosa.
— Tentação? Esqueça que sou uma mulher e a mulher não mais
existirá. Considere-me um amigo, um desafortunado cuja felicidade
depende da sua proteção. Não tema que irei um dia lembrá-lo de que o amor
mais impetuoso e mais desmedido me fez abandonar meu sexo, ou que,
instigada por desejos ofensivos aos seus votos e minha própria honra, eu
tentarei afastá-lo da sua retidão. Não, Frei Ambrósio, aprenda a me
conhecer melhor. Eu o amo por suas virtudes. Se perdê-las, perderá também
meu afeto. Eu o vejo como um santo. Prove que nada mais é do que um
homem e eu o deixarei com repulsa. E então, sentirá medo desta tentação?
De mim, a quem os deslumbrantes prazeres do mundo não despertaram
outro sentimento senão desprezo? Abandone essas preocupações
perniciosas! Pense em mim com mais nobreza, pense em si próprio com
mais nobreza. Eu seria incapaz de induzi-lo ao pecado. E, com certeza, a
sua virtude está cimentada em uma base muito firme para ser abalada por
desejos injustificáveis. Frei Ambrósio, meu querido Frei Ambrósio. Não me
afaste da sua presença. Lembre-se da sua promessa e autorize a minha
permanência.
— É impossível, Matilda. O seu interesse faz com que eu recuse seu
pedido, uma vez que temo por você, não por mim. Depois de vencer os
arroubos da juventude, depois de passar trinta anos em penitência e
mortificação, eu poderia tranquilamente permitir que ficasse, sem medo de
que inspirasse em mim qualquer sentimento mais caloroso do que a
piedade. Mas para você, permanecer no mosteiro pode trazer consequências
fatais. Você iria interpretar mal minhas palavras e meus atos; aproveitaria
com avidez todas as circunstâncias que encorajassem sua esperança de ser
correspondida na sua afeição; insensivelmente, sua paixão predominaria
sobre a razão e, ainda que reprimida na minha presença, cada momento que
passássemos juntos serviria apenas para excitá-la ainda mais. Creia-me,
pobre mulher, você tem a minha mais sincera compaixão. Estou convencido
de que até agora você agiu pelos motivos mais puros. Mas, mesmo que
esteja cega pela imprudência da sua conduta, eu seria culpado por não tentar
abrir seus olhos. Sinto que meu dever é tratá-la com certa rispidez: devo
rejeitar sua súplica e eliminar toda sombra de esperança que possa alimentar
sentimentos tão perniciosos para a sua paz. Matilda, você tem que ir embora
amanhã.
— Amanhã, Frei Ambrósio? Amanhã? Não pode estar falando sério.
Não pode ter escolhido me lançar ao desespero! Não pode ter a crueldade
de...
— Você ouviu minha decisão e deve obedecê-la. As leis da nossa
ordem proíbem sua permanência aqui. Seria perjúrio ocultar o fato de que
há uma mulher entre estas paredes, e meus votos me obrigam a revelar sua
história à comunidade. Consequentemente, você deve partir. Sinto por você,
mas não há nada que eu possa fazer.
Ele pronunciou estas palavras com uma voz débil e trêmula. Então,
levantando-se do banco, partiu apressadamente em direção ao mosteiro.
Matilda, proferindo um grito bem alto, correu atrás dele a tempo de detê-lo.
— Espere um momento, Frei Ambrósio! Permita-me dizer uma coisa.
— Não quero escutar. Solte-me! Já conhece minha decisão.
— Só uma palavra! Uma apenas, e eu terei terminado!
— Deixe-me! Suas súplicas são em vão! Deve partir amanhã.
— Vá, então, seu bárbaro! Mas ainda tenho um último recurso.
Ao dizer isto, a moça subitamente sacou um punhal. Ela abriu o
hábito e posicionou a ponta da arma contra o peito.
— Padre, eu jamais sairei viva destes muros!
— Espere! Espere, Matilda! O que vai fazer?
— O senhor já se decidiu e eu também. No instante em que me
deixar, eu cravo este punhal no meu coração!
— Por São Francisco! Matilda, você perdeu o juízo? Conhece as
consequências do seu ato? Sabe que suicídio é o maior dos pecados? Que
você vai destruir sua alma? Que perderá toda possibilidade de salvação?
Que estará preparando um tormento eterno para si mesma?
— Eu não me importo! Não me importo! – ela replicou
apaixonadamente. — Ou a sua mão me conduz ao paraíso ou a minha me
condena à perdição! Fale comigo, Frei Ambrósio! Diga que vai esconder
minha história, que eu posso contar com sua amizade e companhia, ou este
punhal beberá o meu sangue!
Ao pronunciar tais palavras, ela levantou o braço e fez um movimento
como se estivesse sendo esfaqueada. Os olhos do superior seguiram,
espantados, a trajetória da adaga. Ela havia rasgado o hábito e seu peito
estava parcialmente exposto. O punhal estava apoiado sobre seu seio
esquerdo. Oh, que seio! Os raios da lua permitiam ao monge observar sua
brancura deslumbrante. Seus olhos se demoraram com insaciável cobiça
naquela linda esfera. Uma sensação que ainda não conhecia inundou seu
coração com uma mistura de ansiedade e prazer. Um fogo violento corria
por todos os seus membros. O sangue fervia em suas veias enquanto que
milhares de desejos selvagens aturdiam-lhe a imaginação.
— Espere! – ele exclamou com a voz hesitante. — Não posso mais
resistir. Fique, então, feiticeira! Fique para a minha perdição.
Abandonando rapidamente o lugar, ele dirigiu-se ao mosteiro.
Quando entrou na cela, atirou-se no leito, distraído, indeciso e confuso.
Durante algum tempo, ele achou impossível organizar as ideias. A
cena que havia presenciado despertara uma diversidade de sentimentos tão
grande que foi incapaz de decidir qual era o predominante. Não sabia qual
atitude deveria tomar com relação à perturbadora de sua paz. Ele estava
consciente de que a prudência, a religião e o decoro exigiam que a
obrigasse a deixar o mosteiro. Mas, por outro lado, eram tantas as razões
para deixá-la ficar que ele sentia-se inclinado a permitir sua permanência.
Não podia negar que estava lisonjeado com a declaração de Matilda e, sem
ter consciência disto, por ter conquistado um coração que já tinha resistido
aos assédios dos mais nobres cavalheiros da Espanha. A maneira como
havia adquirido seu afeto também era muito satisfatória para sua vaidade.
Ele pensou nas muitas horas felizes que passara na companhia de Rosário e
passou a temer o vazio no coração que sua partida deixaria. Além disso, ele
considerou que Matilda era abastada e que seu auxílio seria de grande
benefício para o mosteiro.
“E qual risco eu corro”, pensou consigo mesmo, “ao autorizá-la a
ficar? Será que não posso confiar com segurança em suas promessas? Não
será mais fácil esquecer o seu sexo e continuar a considerá-la minha amiga
e discípula? Com certeza, seu amor é tão puro como ela o descreve. Se
fosse simplesmente fruto de libertinagem, teria ela sufocado esse amor por
tanto tempo em seu peito? Não teria tentado encontrar alguma forma de
satisfação? Ela fez exatamente o contrário: esforçou-se para manter oculto o
seu sexo e se não fosse pelo medo da descoberta e pela minha insistência,
jamais teria revelado o segredo. Ela cumpriu com os deveres da religião tão
rigorosamente quanto eu. Não fez nenhuma tentativa para despertar minhas
paixões adormecidas, nem conversou comigo sobre amor, pelo menos até
esta noite. Se ela tivesse a intenção de conquistar meu afeto, ao invés de
minha estima, não teria escondido seus encantos do modo como escondeu.
Até este mesmíssimo momento ainda não vi seu rosto; contudo, deve ser
um belo rosto, e seu corpo muito bonito a julgar… pelo que vi.”
Enquanto essa última ideia passou por sua imaginação, sentiu o rosto
corar. Alarmado pelos sentimentos aos quais começava a se entregar, o
frade pôs-se a rezar. Levantou-se do leito, ajoelhou-se diante da bela
Virgem e implorou pela sua assistência para sufocar aquelas emoções
condenáveis. Depois, voltou para a cama e resignou-se a dormir.
O monge acordou suado e cansado. Durante o sono, sua imaginação
abrasada foi povoada com as cenas mais libidinosas. Sonhara que Matilda
estava diante dele e que seus olhos novamente demoraram-se fitando o seio
desnudo. No sonho, ela repetia suas declarações de eterno amor e jogava os
braços ao redor do seu pescoço, enquanto o cobria de beijos. Ele retribuía
os beijos. Ele a pressionava apaixonadamente contra seu peito e… a visão
desaparecia. Algumas vezes, os sonhos mostravam a imagem da sua
favorita Madona e ele imaginava que estava ajoelhado diante dela. Quando
lhe oferecia seus votos, os olhos da figura pareciam sorrir para ele com
doçura inexplicável. Ele pousava os lábios nos lábios do retrato e sentia que
eram quentes. A imagem saía do quadro e o abraçava afetuosamente,
tornando-o incapaz de suportar sentimentos de tanto prazer e intensidade.
Tais eram as cenas que ocupavam seus pensamentos enquanto dormia. Seus
desejos insatisfeitos dispunham diante dele as imagens mais lascivas e
provocantes, e ele se agitava em alegrias até então desconhecidas.
Ele se levantou confuso com as lembranças dos sonhos. Sentia-se
ainda mais envergonhado quando pensava nas razões que, na noite anterior,
tinham induzido sua consciência a permitir a permanência de Matilda. A
nuvem que encobrira seu discernimento já não estava mais lá. Ele
estremeceu ao reconhecer seus reais motivos e percebeu que havia
sucumbido à adulação, avareza e ao amor próprio. Se em apenas uma hora
de conversa Matilda conseguira produzir uma mudança tão considerável em
seus sentimentos, o que ele não poderia esperar da sua estada no mosteiro?
Consciente do perigo que o cercava, despertou do seu sonho de confiança e
resolveu insistir na partida dela sem demora. Começava a entender que não
era tão invulnerável à tentação e que, ainda que Matilda pudesse
permanecer dentro dos limites da modéstia, ele não se sentia capaz de
enfrentar uma paixão desse tipo, da qual equivocadamente achava-se
liberto.
— Agnes, Agnes! – ele exclamou, enquanto refletia sobre suas
perturbações. — Já começo a sentir sua maldição!
Ele deixou a cela determinado a expulsar o falso Rosário. Assistiu às
matinas, mas como seus pensamentos estavam ausentes, prestou pouca
atenção. Seu coração e sua mente estavam repletos de coisas mundanas; ele
rezou sem devoção. Quando a cerimônia terminou, desceu ao jardim e
caminhou até o mesmo lugar onde, na noite anterior, fizera aquela
descoberta embaraçosa. Ele não tinha dúvidas de que Matilda iria procurá-
lo ali e não estava enganado. Pouco depois ela entrou no eremitério e
aproximou-se do monge com timidez. Depois de alguns minutos em
silêncio, parecia que estava pronta a falar; mas o superior, que durante todo
esse tempo esteve concentrado na sua decisão, interrompeu-a rapidamente.
Ainda que não tivesse muita consciência do poder contido na voz da
mulher, temia uma sedução melodiosa.
— Sente-se ao meu lado, Matilda – disse ele, assumindo uma
expressão de firmeza, embora tentasse cuidadosamente evitar qualquer
atitude mais severa. — Ouça-me com paciência e acredite que o que vou
dizer não me favorece mais do que a você: acredite que sinto por você a
mais calorosa amizade, a mais sincera compaixão, e que você não pode se
sentir mais miserável do que eu quando digo que não podemos mais nos
ver.
— Frei Ambrósio! – ela exclamou, em um tom que misturava
surpresa e dor.
— Mantenha a calma, minha amiga. Meu Rosário. Permita-me
continuar a chamá-la pelo nome que me é tão querido. Nossa separação é
inevitável. Sinto vergonha ao confessar o quanto isso me afeta... contudo, é
assim que deve ser. Eu me sinto incapaz de tratá-la com indiferença e essa
convicção me obriga a insistir na sua partida. Matilda, você não deve
permanecer aqui por mais tempo.
— Oh! Onde devo agora procurar por honestidade? Enojada deste
mundo traiçoeiro, haverá alguma região feliz onde a verdade se esconde?
Padre, eu esperava que a verdade estivesse aqui, eu acreditava que o seu
coração fosse seu altar predileto. E o senhor diz que isso também é falso?
Oh, Deus! O senhor também pode me trair?
— Matilda!
— Sim, padre, sim. É justo que eu o censure. Onde estão suas
promessas? Meu noviciado ainda não terminou e ainda assim quer me
obrigar a deixar o mosteiro? Como pode ter coragem de me mandar para
casa? Não me jurou solenemente que faria o contrário?
— Eu não irei obrigá-la a deixar o mosteiro; você entendeu errado o
meu juramento solene. Mesmo assim, quando apelo para sua generosidade,
quando falo sobre a perturbação que sua presença causa em mim, você não
é capaz de me libertar deste juramento? Reflita sobre o perigo de ser
descoberta, na vergonha que uma ocorrência como esta iria me causar.
Pense que minha honra e minha reputação estão em risco, e que minha paz
de espírito depende da sua compaixão. Como até agora meu coração está
livre, eu me separarei de você sem arrependimento, mas não sem aflição.
Fique, e em poucas semanas irá sacrificar minha felicidade com seus
encantos. Você é muito atraente, muito afetuosa. Eu provavelmente iria
passar a amá-la, ficaria louco por você. Meu peito se encheria de desejos, os
quais a minha honra e meu ofício não me permitiriam satisfazer. Se eu
resistisse, a intensidade desses desejos não satisfeitos me levaria à loucura.
E se eu cedesse à tentação, estaria sacrificando minha reputação neste
mundo e salvação no outro, tudo por um condenável momento de prazer.
Então, suplico a você que me defenda de mim mesmo. Ajude-me a não
desperdiçar a recompensa merecida por trinta anos de sofrimentos. Proteja-
me para que eu não me torne uma vítima do remorso. O seu coração já
sentiu a angústia de um amor não correspondido. Se realmente me ama,
poupe-me desta angústia! Livre-me desta promessa. Fuja destes muros. Vá
e leve com você minhas preces mais calorosas em favor da sua felicidade,
minha amizade, estima e admiração. Fique e transforme-se em uma fonte
eterna de perigo, de sofrimento, de desespero. Responda-me, Matilda, o que
decide? – ela ficou em silêncio. — Não vai dizer nada, Matilda? Não vai
me dizer o que decidiu?
— Cruel! Cruel! – exclamou Matilda, torcendo as mãos em agonia.
— O senhor sabe muito bem que não tenho escolha! Sabe que a minha
vontade é a sua.
— Então eu não estava enganado! A generosidade de Matilda
equipara-se às minhas expectativas.
— Sim, demonstrarei a verdade do meu afeto submetendo-me à
sentença que me corta o coração. Eu o liberto da sua promessa. Hoje
mesmo deixarei o mosteiro. Tenho uma parenta, a abadessa de um convento
em Estremadura; para lá dirigirei os meus passos e irei isolar-me deste
mundo para sempre. Mas diga-me, padre, poderei levar para o isolamento
seus votos pela minha felicidade? Ao menos de vez em quando, abandonará
sua atenção aos objetos divinos para dedicar um pensamento a mim?
— Ah, Matilda, temo que pensarei em você mais do que deveria para
manter minha serenidade!
— Então não desejo mais nada, a não ser que possamos nos encontrar
no céu. Adeus, meu amigo, meu Ambrósio! Mas, antes, gostaria de poder
levar comigo algum símbolo como sinal da sua estima.
— O que eu poderia lhe dar?
— Algo... qualquer coisa. Uma dessas rosas será o suficiente – ela
apontou para um arbusto de rosas plantado na entrada da gruta. — Eu a
esconderei junto ao coração e, quando eu estiver morta, as freiras irão
encontrá-la murcha sobre o meu peito.
O monge não soube o que responder; com passos lentos e a alma
pesada pela aflição, deixou o eremitério. Aproximou-se do arbusto para
colher uma rosa. De repente, soltou um grito penetrante, afastou-se
rapidamente e deixou cair a flor que já havia colhido. Matilda ouviu o grito
e correu em sua direção.
— O que aconteceu? – perguntou. — Responda, pelo amor de Deus!
— Acabo de receber minha sentença de morte! – ele respondeu, com
a voz já enfraquecida. — Escondida entre as rosas... uma serpente...
Então, a dor tornou-se tão intensa que sua natureza não foi capaz de
suportar; seus sentidos o abandonaram e ele desmaiou nos braços de
Matilda.
A angústia da moça era indescritível. Ela começou a arrancar os
cabelos, golpear o peito e, não se atrevendo a deixar Ambrósio, com grande
esforço conseguiu gritar e chamar os monges para ajudá-la. Alarmados
pelos gritos, vários irmãos apareceram e transportaram o superior até o
mosteiro. Ele foi imediatamente colocado na cama e o frade que exercia a
função de cirurgião na comunidade dedicou-se a examinar a ferida. A essa
altura, a mão de Ambrósio havia inchado até um tamanho considerável. Os
remédios administrados lhe devolveram a vida, por certo, mas não os
sentidos. Alucinando e sentindo todos os horrores do delírio, ele espumava
pela boca e quatro dos monges mais fortes mal conseguiam segurá-lo na
cama.
Frei Pablos, este era o nome do cirurgião, examinou a mão ferida. Os
frades rodeavam o leito, aguardando ansiosamente o diagnóstico; entre eles
estava Rosário, nem um pouco insensível à calamidade do superior. Ele
contemplava o paciente com uma angústia inexpressível e os gemidos que a
todo momento escapavam de seu peito eram suficientes para trair a
violência das suas aflições.
O cirurgião perfurou a ferida. Ao retirar a lanceta, notou que a ponta
estava manchada com uma tonalidade esverdeada. Ele sacudiu a cabeça
penosamente e afastou-se da cama.
— É o que eu temia! – exclamou. — Não há esperanças.
— Não há esperanças? – perguntaram os monges a uma só voz. — O
senhor disse que não há esperanças?
— Pelos efeitos imediatos eu suspeitei que nosso superior tivesse sido
picado por uma Cientipedoro[2]. O veneno que podemos ver na ponta da
faca confirma minha suspeita: ele não deve viver mais de três dias!
— E não é possível encontrar um remédio? – indagou Rosário.
— Sem a extração do veneno ele não conseguirá se recuperar e, para
mim, a forma de extraí-lo ainda é misteriosa. Tudo o que posso fazer é
aplicar algumas ervas na ferida para aliviar a dor. O paciente deve recobrar
seus sentidos, mas o veneno irá espalhar-se por toda a corrente sanguínea
em três dias e, então, ele morrerá.
Todos receberam o diagnóstico com intenso pesar. Frei Pablos, como
havia prometido, cobriu a ferida com as ervas e se retirou, seguido pelos
seus companheiros. Apenas Rosário permaneceu na cela, depois de suplicar
para cuidar do superior. Ambrósio, sem energia depois de tanto esforço,
adormecera profundamente. Ele estava tão tomado pela exaustão que mal
dava sinais de vida. A situação ainda era a mesma quando, mais tarde, os
monges retornaram para ver se havia alguma mudança no quadro. Frei
Pablos afrouxou a bandagem que cobria a ferida, mais por curiosidade do
que pela esperança de descobrir algum sintoma favorável. Qual não foi o
seu assombro ao constatar que a inflamação havia desaparecido
completamente! Ele examinou a mão, a ponta da faca saiu limpa e sem
manchas, não havia nem sinal do veneno e nem o orifício estava visível.
Frei Pablos duvidava de que alguma vez tivesse havido uma ferida ali.
Ele deu a notícia aos seus irmãos. A alegria geral foi equiparada
somente com a surpresa do acontecimento. Quando ao último sentimento,
no entanto, puseram-se a explicar as circunstâncias de acordo com suas
próprias ideias. Eles estavam perfeitamente convencidos de que o superior
era um santo e acreditavam que nada era mais natural do que o fato de São
Francisco ter realizado um milagre a seu favor. Tal opinião foi acolhida por
unanimidade e declarada da forma mais espalhafatosa. Eles gritavam
“Milagre, milagre!” com tanto fervor, que logo interromperam o descanso
de Ambrósio.
Os monges agruparam-se de imediato ao redor do leito e expressaram
sua alegria pela admirável recuperação. Ele havia recobrado inteiramente os
sentidos e não mais sofria, a não ser por certa fraqueza e apatia. Frei Pablos
lhe administrou um medicamento fortificante e aconselhou que
permanecesse na cama pelos próximos dois dias. Então se retirou,
recomendando ao paciente que não se esgotasse conversando muito e que
tentasse repousar. Os outros frades seguiram seu exemplo, e o superior e
Rosário foram deixados a sós.
Durante alguns minutos, Ambrósio contemplou sua acompanhante
com um olhar que misturava prazer e apreensão. Ela estava sentada aos pés
da cama, com a cabeça inclinada para baixo e, como sempre, coberta pelo
capuz do hábito.
— E você ainda está aqui, Matilda? – disse o monge, por fim. — Não
está satisfeita por ter quase causado minha morte, da qual nada, senão um
milagre, poderia ter me salvado do túmulo? Ah, não tenho dúvidas de que
aquela serpente foi enviada pelos céus para me punir...
Matilda interrompeu seu discurso colocando a mão sobre os lábios do
monge num gesto de pura alegria.
— Quieto, padre, quieto! Não deve falar.
— Quem deu essa ordem desconhece quão interessantes são as
questões que desejo discutir.
— Mas eu conheço e faço a mesma recomendação. Fui nomeada sua
enfermeira e o senhor não deve desobedecer minhas ordens.
— Você está de bom humor, Matilda.
— Pode ser que sim: acabei de receber a maior alegria da minha vida.
— De qual alegria está falando?
— Algo que preciso ocultar de todos, principalmente do senhor.
— Principalmente de mim? Não, Matilda, eu imploro...
— Silêncio, padre, silêncio! Não deve falar. Mas como o senhor não
parece estar disposto a dormir, permite que eu o entretenha com minha
harpa?
— Como? Não sabia que você conhecia música.
— Oh, eu toco muito mal. Porém, visto que o senhor deve
permanecer em silêncio pelas próximas quarenta e oito horas, eu procurarei
entretê-lo quando estiver cansado de suas reflexões. Vou pegar minha harpa.
Ela logo retornou com o instrumento.
— Bem, o que devo cantar? Gostaria de ouvir a balada que fala sobre
o valente Durandarte, que morreu na famosa batalha de Roncesvales?
— Como quiser, Matilda.
— Oh, não me chame de Matilda. Diga ‘Rosário’ ou ‘amigo’. Esses
são os nomes que adoro ouvir dos seus lábios. Agora ouça!
Ela afinou a harpa e, após alguns momentos, fez a introdução com
tamanho bom gosto que comprovou seu perfeito domínio do instrumento. A
sensação causada pela sua música era suave e lamuriosa.
Ambrósio, enquanto ouvia, sentia sua inquietação diminuir e uma
melancolia invadia-lhe o peito. De repente, Matilda mudou o ritmo. Com a
mão firme e rápida tirou alguns acordes marciais e, então, cantou a seguinte
balada de forma simples e melodiosa:

DURANDARTE E BELERMA[3]

“Triste e terrível é a história


De Roncesvales, a batalha;
Naqueles fatais campos de glória
Pereceram cavaleiros valentes pelo fio de uma navalha;

Ali caiu Durandarte,


De capitão mais nobre, nunca se ouviu falar;
Antes que seu lábios se calassem,
Seu peito se pôs a exclamar:

‘Oh, Belerma! Oh, minha amada!


Causadora de tanto prazer e dor estremada,
Sete longos anos eu te dediquei,
Por sete longos anos eu me humilhei;

‘E agora, quando seu coração corresponde ao meu desejo,


Agora que arde com o mesmo desespero,
O destino cruel, negando minha felicidade,
Da minha vida, anuncia a brevidade;

‘Ah, ainda que morra jovem, eu juro,


À morte, nunca dedicarei um sussurro,
Perder você, deixar você,
É o que me faz pensar no quanto é difícil morrer;

‘Oh, meu primo Montesinos,


Pela nossa firme amizade, selada pelo destino,
Depois de tantos anos da juventude decorridos,
Escuta agora o meu último pedido;

‘Quando a minha alma, na ruptura,


Partir para uma atmosfera mais pura,
Arranca do meu peito o coração e entrega,
Aos cuidados de minha querida Belerma;

‘Diga a ela que será minha herdeira,


Terá meu nome e minha bandeira;
Diga que a abençoo com meu último suspiro,
Antes que a morte me leve ao retiro;

‘Duas vezes por semana eu a adorava,


Diga a ela quão sinceramente a amava;
Duas vezes por semana, peça a ela
Que reze por quem sempre foi dela;

‘Montesinos, já está na hora,


O destino não mais demora;
Veja, minha mão está tão pesada,
Veja, não seguro mais minha espada;

‘Olhos que me viram partir,


Agora me verão ressurgir;
Primo, contenha sua agonia,
E deixe-me morrer na sua companhia;

‘Que sua mão gentil feche meus olhos,


E, ainda, um último favor eu lhe imploro:
Reze pelo descanso da minha alma
Prometa e traga-me a calma;

‘Que Jesus ainda atenda generosamente,


A súplica de um cristão temente;
Que aceite minha alma com um sorriso,
E conceda-me um lugar no paraíso’;

Assim falou Durandarte e, depois,


Seu coração logo se partiu em dois;
Os mouros sentiram uma grande alegria,
Pois o bravo cavaleiro agora morria;

Chorando muito, Montesinos,


Retirou-lhe o elmo e a espada;
Chorando muito, Montesinos,
Viu a sepultura do primo escavada;
Para cumprir sua promessa,
Arrancou seu coração, sem pressa;
Para que Belerma, desafortunada,
Recebesse seu legado, a desgraçada;

Triste estava o coração de Montesinos,


Sentia seu peito angustiado, sem norte,
‘Oh, meu primo, Durandarte
Que desgraça a minha, ver sua morte;

‘Doce nas maneiras, justo nos favores,


De caráter amável, mas feroz ao lutar;
De guerreiro mais nobre, gentil e bravo
Nunca se ouvirá falar;

‘Primo, veja! Minhas lágrimas caem sobre você,


Como sobreviver ao vê-lo morrer;
Durandarte, aquele que o assassinou
Por conseguinte, deixou-me viver’.”

Enquanto Matilda cantava, Ambrósio escutava com prazer; jamais


tinha ouvido voz mais harmoniosa. O monge se perguntava como sons tão
celestiais podiam ser produzidos por outras criaturas, que não anjos. Mas,
por mais que apreciasse o recital, bastou um simples olhar para convencer-
se de que não deveria confiar naquela visão. A cantora estava sentada a
certa distância da cama. A maneira como se inclinava sobre a harpa era
natural e graciosa. Seu capuz estava mais caído mais para trás do que o
usual, revelando os lábios vermelhos, carnudos, frescos e úmidos, e um
queixo cujas covinhas pareciam ocultar mil cupidos. A longa manga do
hábito ameaçava encostar nas cordas do instrumento, mas para evitar tal
inconveniência, estava dobrada acima do cotovelo, expondo um antebraço
dotado da mais perfeita simetria, cuja delicadeza da pele competia com a
brancura da neve. Ambrósio se atreveu a olhar somente uma vez. Aquela
rápida espiadela bastou para convencê-lo do quão perigosa era a presença
dessa criatura sedutora. Ele fechou os olhos, mas empenhou-se em vão para
afastá-la dos pensamentos. Continuava a vê-la na sua frente, adornada com
toda a formosura que sua exaltada imaginação podia forjar. Para cada um
dos encantos que havia visto, um novo se apresentava em cores esplêndidas.
No entanto, seus votos e a necessidade de mantê-los ainda estavam
presentes em sua memória. Ele lutou contra o desejo e tremeu ao
contemplar a profundeza do abismo que tinha diante de si.
Matilda parou de cantar. Temendo a influência do seu charme,
Ambrósio permaneceu com os olhos fechados e fez uma prece a São
Francisco pedindo ajuda para suportar tamanha provação. Matilda pensou
que ele estivesse dormindo. Ela levantou-se, aproximou-se da cama
silenciosamente e pôs-se a observá-lo com atenção por alguns minutos.
— Ele dormiu – disse em voz baixa, ainda que o superior pudesse
ouvi-la perfeitamente. — Agora posso admirá-lo sem ofendê-lo. Posso
misturar minha respiração com a dele, posso contemplar seu rosto sem que
ele suspeite de impureza e falsidade da minha parte. Ele teme que eu possa
induzi-lo a violar seus votos. Oh, que injustiça! Se eu quisesse despertar seu
desejo, por que ocultaria meu rosto com tanto cuidado? Este mesmo rosto,
sobre o qual todos os dias o ouço...
Ela se calou e ficou perdida em pensamentos. Logo continuou:
— Ontem mesmo, há poucas horas, eu era querida por ele. Era
estimada e meu coração estava satisfeito. Agora... oh, agora a minha
situação mudou cruelmente. Ele me vê com desconfiança! Pede que eu vá
embora, que eu o deixe para sempre! Oh, meu santo, meu ídolo! Sabe que
ocupa o segundo lugar em meu peito, depois de Deus? Dentro de dois dias,
meu coração será revelado a você. Se conhecesse meus sentimentos quando
presenciei sua agonia; se pudesse saber o quanto o seu sofrimento fez com
que meu amor só aumentasse! Mas chegará o momento quando irá ficar
convencido de que minha afeição é pura e desinteressada. Então irá se
apiedar de mim, e sentirá o peso dessa mágoa.
Ao dizer isto, sua voz foi abafada por um soluço. Enquanto se
inclinava sobre Ambrósio, uma lágrima caiu no rosto dele.
— Ah, acabei perturbando seu sono! – exclamou Matilda, retirando-
se apressadamente.
Sua ansiedade era infundada. Ninguém tem um sono mais pesado do
que aqueles que estão decididos a não acordar. O frade achava-se nessa
categoria: aparentava estar em um profundo repouso – o qual, a cada
minuto, tornava-se mais difícil de desfrutar. A lágrima ardente havia
aquecido seu coração.
“Quanto afeto! Quanta pureza!”, pensou ele. “Ah, se meu peito é tão
sensível à compaixão, o que aconteceria se fosse tocado pelo amor?”
Matilda mais uma vez levantou-se e afastou-se do leito. Ambrósio
aventurou-se a abrir os olhos e, temerosamente, lançou um olhar sobre a
moça. Viu que seu rosto estava voltado para o outro lado. Ela descansava a
cabeça sobre a harpa e contemplava o quadro na parede oposta à cama.
— Que imagem feliz! – exclamou, dirigindo-se à bela Virgem. —
Este é o receptáculo de suas preces, é para esta imagem que ele olha com
admiração! Eu confiava que iria aliviar minhas angústias, mas tudo o que
fez foi torná-las mais intensas. Fez com que eu percebesse que se
houvéssemos nos encontrado antes que ele professasse os votos, tanto
Ambrósio como a felicidade teriam sido meus. Com que prazer ele
contempla este quadro! Com que fervor ele dirige suas preces à imagem
insensível! Ah, não poderiam ser estes sentimentos inspirados por algum
gênio amável e secreto, testemunha do meu afeto? Não seria possível que o
instinto natural do homem que lhe instrui... silêncio, inútil esperança! Não
me encoraje a encobrir o esplendor da virtude de Ambrósio. É a religião, e
não a beleza, que suscita sua admiração. Não é diante da mulher, mas da
divindade, que ele se ajoelha. Ah, se ele se dirigisse a mim com ao menos
um pouco da mesma expressão terna que derrama sobre sua Madona! Se
declarasse que, se não fosse pelo seu comprometimento com a igreja, não
teria desprezado Matilda! Oh, permita-me alimentar esta ideia adorável!
Quem sabe ele não reconhece que sente por mim algo mais do que piedade,
e que um afeto como o meu merece reciprocidade. Talvez ele venha a
reconhecer tais sentimentos quando me vir em meu leito de morte, quando
não tiver mais medo de quebrar seus votos e, então, a confissão do seu afeto
aliviará as dores da minha agonia. Se eu pudesse ter certeza disso, com que
veemência aguardaria o momento do rompimento!
O superior não perdeu nenhuma sílaba deste discurso; e o tom
utilizado por Matilda para pronunciar as últimas palavras penetrou em seu
coração. Involuntariamente, ele levantou a cabeça do travesseiro.
— Matilda! – ele disse, com voz perturbada. — Oh, minha Matilda!
Ao ouvir estas palavras, Matilda se sobressaltou e voltou-se para ele
com rapidez. Tal movimento repentino fez com que seu capuz caísse da
cabeça, e seu rosto ficou visível para os olhares inquiridores do monge.
Qual não foi seu espanto ao constatar que era a réplica exata do rosto de sua
admirada Virgem! A mesma delicada proporção dos traços, a mesma
abundância de cabelos dourados, os mesmos lábios rosados, os olhos
celestiais e a expressão majestosa adornavam o rosto de Matilda. Proferindo
uma exclamação de surpresa, Ambrósio deixou-se cair novamente no
travesseiro, sem saber se a criatura que estava diante de si era mortal ou
divina.
Matilda parecia confusa. Ela ficou imóvel no mesmo lugar, apoiada
no seu instrumento. Olhava fixamente para o chão enquanto suas pálidas
bochechas enrubesciam. Ao recuperar-se, sua primeira atitude foi esconder
o rosto e, então, com voz conturbada e insegura, conseguiu dizer as
seguintes palavras para o monge:
— O destino fez com que o senhor descobrisse um segredo que só
seria revelado em meu leito de morte. Sim, Frei Ambrósio; no rosto de
Matilda de Villanegas o senhor vê o original da imagem da sua amada
Virgem. Assim que me dei conta da minha paixão desafortunada, me
ocorreu a ideia de lhe enviar meu retrato: uma multidão de admiradores
havia me convencido de que eu possuía alguma beleza, e eu estava ansiosa
para saber qual efeito poderia produzir no senhor. Contratei Martin Galuppi,
um célebre pintor veneziano que estava residindo em Madri, para pintar
meu retrato. A semelhança era assombrosa. Enviei a pintura ao mosteiro
dos capuchinhos como se fosse vendê-la, e o judeu de quem o senhor a
comprou era um dos meus emissários. Imagine meu entusiasmo ao saber
que Frei Ambrósio havia contemplado o quadro com admiração, ou melhor,
com adoração, que o havia pendurado na sua cela e que não dirigia suas
orações a nenhum outro santo! Esta descoberta fará com que desconfie
ainda mais de mim? Eu gostaria que ela pudesse convencê-lo da pureza do
meu afeto e que pudesse movê-lo a oferecer-me sua companhia e sua
estima. Todos os dias, eu ouço sobre o louvor com que reza para o meu
retrato, sou testemunha ocular do êxtase que a beleza da pintura provoca no
senhor. Mesmo assim, não quis me aproveitar desta arma, que o senhor
mesmo me proporcionou, contra sua virtude. Escondi dos seus olhos o rosto
que o senhor amava inconscientemente. Procurei não excitar nenhum desejo
através da minha aparência, nem tentei ganhar seu coração através dos seus
sentimentos. Meu único objetivo era atrair sua atenção atendendo
assiduamente aos deveres religiosos, e obter sua estima convencendo-o de
que meu propósito era virtuoso e minha devoção sincera. E eu consegui.
Tornei-me sua companheira e sua amiga. Ocultei meu sexo do seu
conhecimento e, se não tivesse me pressionado a revelar meu segredo e, se
eu já não estivesse sendo atormentada pelo medo da descoberta, nunca
deixaria de ser Rosário. Mesmo assim, quer me afastar de si? As poucas
horas que ainda me restam de vida, não posso passá-las com o senhor?
Diga, Frei Ambrósio, diga que posso ficar.
Tal discurso deu ao superior a oportunidade de recuperar a razão. Ele
tomou ciência de que, diante de tudo isso, a única coisa que poderia fazer
era evitar a companhia daquela mulher encantadora.
— Sua confissão me assusta de tal forma que, no momento, não me
sinto capaz de responder a essa pergunta. Não insista em uma resposta,
Matilda. Deixe-me, por favor. Preciso ficar sozinho.
— Eu atenderei seu pedido, mas antes de ir, prometa não insistir mais
para que eu abandone o mosteiro imediatamente.
— Matilda, reflita um pouco sobre a sua situação. Pense nas
consequências da sua permanência. Nossa separação é inevitável, é assim
que deve ser.
— Mas não hoje, padre. Oh, por misericórdia, não hoje!
— Você está me pressionando demais, mas não posso resistir à sua
súplica. Já que é tão importante para você, eu me rendo: você pode ficar
aqui pelo tempo suficiente para, de alguma maneira, preparar os irmãos
para a sua partida. Fique mais dois dias. Mas no terceiro... – ele suspirou
involuntariamente. — Lembre-se, você deve partir daqui a três dias, para
sempre.
Matilda pegou a mão do superior e beijou-a com veemência.
— Daqui a três dias! – ela exclamou solenemente. — O senhor está
certo, padre. O senhor está certo. No terceiro dia nos separaremos para
sempre.
Ao pronunciar essas últimas palavras, seus olhos exprimiam um
temor tão grande que foi capaz de encher de horror a alma do monge. Mais
uma vez ela beijou sua mão e, então, saiu rapidamente do aposento.
Apreensivo por ter autorizado a presença de uma hóspede tão
perigosa e, ao mesmo tempo, consciente de que a permanência dela
infringia as leis da sua ordem, Ambrósio viu-se em um cenário de batalha
entre mil paixões. Por fim, seu afeto pelo fingido Rosário, combinado com
o ardor natural da sua personalidade, pareciam ter vencido o conflito. A
vitória era certa, uma vez que o orgulho, que formava o fundamento do seu
caráter, vinha em auxílio de Matilda. O superior concluiu que vencer a
tentação seria um mérito muito maior do que simplesmente evitá-la. Ele
deveria alegrar-se com a oportunidade de provar a solidez da própria
virtude. Santo Antônio havia resistido a todas as seduções da luxúria. Por
que não poderia ele? Além disso, Santo Antônio havia sido tentado pelo
próprio diabo, o qual colocou em prática todas as suas artimanhas para
despertar paixões, ao passo que o perigo de Ambrósio vinha de uma mulher
mortal, temerosa e modesta, cujo temor pela rendição era ainda maior do
que o seu próprio.
“Sim”, pensou ele, “a infeliz pode ficar. Não devo temer sua presença.
Mesmo se eu fosse demasiadamente fraco para resistir ao desejo, estaria
protegido do perigo pela inocência de Matilda.”
Ambrósio iria ainda aprender que, para um coração inexperiente, o
vício é sempre mais perigoso quando se esconde por trás da máscara da
virtude.
Ele sentia-se tão completamente recuperado que, quando frei Pablos
retornou para vê-lo mais tarde, pediu permissão para deixar a cela no dia
seguinte. Seu pedido foi atendido. Matilda não retornou naquela tarde, a
não ser na companhia dos outros monges quando estes vieram indagar sobre
a saúde do superior. Ela parecia temer uma conversa privada e ficou no
aposento por apenas alguns minutos. O monge dormiu bem, mas repetiram-
se os sonhos da noite anterior e as sensações de volúpia eram ainda mais
agudas e intensas. As mesmas visões excitantes de luxúria flutuaram diante
de seus olhos: Matilda, com todo o esplendor de sua beleza, fogosa e
afetuosa, apertando-o contra seu peito enquanto lhe dedicava as carícias
mais ardentes. Ele correspondia na mesma intensidade e já estava a ponto
de satisfazer seus desejos quando a figura traiçoeira desapareceu, deixando-
o abandonado aos horrores da vergonha e da decepção.
O dia amanheceu. Cansado, perturbado e consumido pelos sonhos
provocantes, não estava disposto a deixar o leito. Desobrigou-se de assistir
as matinas; era a primeira vez em toda a sua vida que se ausentava da
missa. Levantou-se tarde. Durante todo o dia, não teve oportunidade de
falar com Matilda sem observadores. Sua cela estava constantemente cheia
de monges, ansiosos para expressar as preocupações com sua saúde. O
superior ainda estava ocupado recebendo congratulações por sua
recuperação quando o sino tocou chamando todos ao refeitório.
Após a refeição, os frades se separaram e se dispersaram por várias
partes do jardim, onde a sombra das árvores ou o retiro de alguma gruta
oferecia a forma mais agradável de dormir a siesta. Ambrósio caminhou em
direção ao eremitério. Um simples olhar convidou Matilda a acompanhá-lo.
Ela obedeceu e seguiu atrás dele em silêncio. Ambos entraram na
gruta e se sentaram. Nenhum dos dois parecia disposto a iniciar o diálogo e
tiveram que lidar com o constrangimento mútuo. Finalmente, o superior
falou; ele iniciou uma conversa sobre temáticas neutras e Matilda
respondeu no mesmo tom. Ela parecia querer fazê-lo se esquecer de que a
pessoa ali sentada não era Rosário. Nenhum deles ousou ou mesmo quis
fazer uma alusão ao assunto que dominava seus corações.
Os esforços de Matilda para parecer alegre eram evidentes. Sentia-se
oprimida pelo peso da ansiedade e, quando falou, sua voz era baixa e fraca.
Parecia aflita para terminar uma conversa que tanto a agoniava. Queixando-
se de que não se sentia bem, pediu permissão para retornar ao mosteiro.
Ambrósio acompanhou a moça até a porta da sua cela e, quando lá
chegaram, ele a deteve para comunicar-lhe de que havia consentido que ela
continuasse sendo sua companhia na reclusão pelo tempo que desejasse.
Mas ela não deu nenhum sinal de satisfação com a notícia, ainda que,
no dia anterior, estivesse ansiosa para receber tal permissão.
— Ai de mim, padre! – disse, movendo a cabeça com tristeza. — Sua
bondade está atrasada. Meu destino está selado! Nós devemos nos separar
para sempre. Mas, acredite, sou grata pela sua generosidade, pela sua
compaixão por uma desafortunada que não merece tanto.
Ela levou o lenço aos olhos; seu capuz cobria apenas uma parte do
rosto. Ambrósio observou que a jovem estava pálida e que seus olhos
estavam fundos e pesados.
— Deus meu! – exclamou. — Você está muito doente, Matilda. Vou
chamar Frei Pablos imediatamente.
— Não, não chame. Eu estou doente, é verdade. Mas ele não pode
curar minha enfermidade. Adeus, padre! Lembre-se de mim em suas
orações amanhã, e eu me lembrarei do senhor no céu.
Ela entrou na cela e fechou a porta.
Sem perder um só instante, o superior enviou o médico ao seu
aposento e aguardou impacientemente pelo diagnóstico. Mas Frei Pablos
logo regressou e declarou que a missão fora infrutífera. Rosário recusara-se
a vê-lo e rejeitara sua ajuda. Ambrósio ficou muito apreensivo, mas decidiu
deixar que a moça passasse a noite da maneira que desejava. No entanto, se
seu estado não estivesse melhor pela manhã, ele insistiria para que ouvisse a
opinião de Frei Pablos.
Ele não conseguia dormir. Abriu a janela para contemplar os raios da
lua que refletiam sobre o pequeno riacho cujas águas banhavam os muros
do mosteiro. O frescor da brisa e a tranquilidade do horário traziam certa
melancolia. Ele pensou na beleza e em todo o afeto de Matilda, e nos
prazeres que poderiam ter compartilhado se ele não estivesse acorrentado
aos grilhões monásticos. Refletia que, sem esperanças, o amor da moça por
ele acabaria sucumbindo. Acreditava que, sem dúvida alguma, essa paixão
cessaria e ela buscaria a felicidade nos braços de alguém mais afortunado.
Estremeceu ao pensar no vazio que a ausência dela deixaria no seu peito.
Ficou aborrecido com a monotonia do convento e suspirou ao imaginar um
mundo do qual estava separado para sempre. Tais eram seus pensamentos
quando ouviu uma forte batida na porta. O sino da igreja havia anunciado
duas horas da madrugada. Ele apressou-se para descobrir a causa daquela
agitação. Abriu a porta da cela e um irmão entrou; seus olhos declaravam
que estava confuso e com pressa.
— Depressa, reverendo padre! – disse ele. — Corra até a cela de
Rosário! Ele insiste que precisa vê-lo. Ele está à beira da morte!
— Deus misericordioso! Onde está Frei Pablos? Por que não está com
ele? Oh, eu tenho medo! Tenho medo!
— Frei Pablos está com ele, mas suas habilidades não podem ajudar.
Suspeita que o jovem tenha sido envenenado.
— Envenenado? Que tristeza! É como eu suspeitava! Vamos, vamos
logo! Talvez ainda haja tempo para salvá-lo!
Ele correu para a cela do noviço. Havia muitos monges no aposento.
Frei Pablos era um deles; tinha um remédio nas mãos e tentava persuadir
Rosário a ingeri-lo. Os outros estavam ocupados em admirar a divina
fisionomia do paciente, contemplada agora pela primeira vez. Sua
expressão era mais encantadora do que nunca. Já não estava pálida e fraca;
um novo brilho se espalhava por todo seu semblante, seus olhos brilhavam
com uma alegria serena e sua atitude expressava confiança e resignação.
— Oh, não me atormente mais! – ela dizia a Frei Pablos quando o
superior, apavorado, entrou na cela. — Minha enfermidade está muito além
das suas habilidades e eu não quero ser curado. Ah, ei-lo aqui! – exclamou,
ao ver Ambrósio. — Eu o vejo uma vez mais, antes de partir para sempre.
Deixem-me, irmãos. Tenho muito que conversar em particular com o
homem santo.
Os frades retiraram-se imediatamente e Matilda e o monge ficaram
sós.
— O que você fez, mulher imprudente? – perguntou, tão logo ficaram
sozinhos. — Diga-me, minhas suspeitas têm fundamento? Estou, de fato,
prestes a perdê-la? Sua própria mão será o instrumento da sua destruição?
Ela sorriu e segurou a mão dele.
— Como eu fui imprudente, padre? Sacrifiquei um cristal para salvar
um diamante. Minha morte preserva uma vida valiosa para o mundo, uma
vida que me é mais querida do que a minha própria. Sim, fui envenenada.
Mas deve saber que o veneno circulou antes pelas suas veias.
— Matilda!
— O que vou lhe contar agora é o que estava disposta a somente
revelar no meu leito de morte. É chegado o momento. Não pode já ter se
esquecido de quando sua vida corria perigo por causa da picada de uma
serpente. Frei Pablos o desenganou, assumiu não saber como extrair o
veneno. Eu conhecia um método e não hesitei em usá-lo. Ficamos sozinhos
na sua cela, o senhor dormia; eu removi o curativo da sua mão e beijei a
ferida; extraí o veneno com meus lábios. O efeito foi mais rápido do que eu
esperava. Já sinto a morte em meu coração. Ao término de uma hora, devo
ter partido para um mundo melhor.
— Deus Todo Poderoso! – exclamou o superior, deixando-se cair na
cama, quase sem sentidos.
Após alguns minutos, ele se levantou subitamente e contemplou
Matilda com toda a selvageria do desespero.
— Você se sacrificou por mim! Você vai morrer, vai morrer por salvar
Ambrósio! Mas, não existe um remédio, Matilda? Não há nenhuma
esperança? Diga-me, por favor, diga-me que há uma maneira de salvar sua
vida!
— Console-se meu amigo! Sim, ainda existe uma maneira de salvar
minha vida, mas não me atrevo a empregá-la. É perigoso! É terrível! O
preço a pagar seria muito caro... a menos que me fosse permitido viver para
o senhor.
— Então, viva para mim, Matilda, para mim e pela minha gratidão!
Lembre-se, lembre-se das nossas últimas conversas. Concordarei com todas
as coisas. Lembre-se das cores alegres que usou para descrever a união de
duas almas; que sejam nossas almas as realizadoras dessas ideias. Vamos
nos esquecer das distinções de sexo, apesar do preconceito do mundo,
vamos apenas nos relacionar como irmãos e amigos. Viva, então, Matilda!
Viva para mim! – rogou, pegando-lhe a mão e levando-a aos lábios.
— Frei Ambrósio, não é possível. Quando eu pensava assim, estava
enganando o senhor e a mim mesma. Ou morro agora, ou me matam os
intermináveis tormentos dos meus desejos não satisfeitos. Desde nossa
última conversa, o véu terrível que estava diante dos meus olhos foi
arrancado. Eu o amo, não mais com a devoção dedicada a um santo, meu
apreço não mais diz respeito à virtude de sua alma, eu desejo o prazer que
posso ter com o senhor! A mulher domina meu peito, tornei-me uma presa
das paixões mais violentas. Não quero sua amizade, palavra fria e
insensível! Meu peito arde de amor, um amor extraordinário, e só o amor
pode reconfortá-lo. Estremeça, Frei Ambrósio, estremeça se suas preces
forem atendidas! Se eu viver, sua fidelidade, sua reputação, sua recompensa
por uma vida de sofrimentos, tudo o que estima estará perdido! Eu não serei
mais capaz de combater minha paixão, aproveitarei qualquer oportunidade
para despertar seus desejos e me esforçarei para alcançar sua desonra e
também a minha. Não, não, Frei Ambrósio! Eu não devo viver! Estou cada
vez mais convencida de que esta é minha única alternativa; sinto, em cada
latejar, que devo amá-lo como homem, ou morrer.
— Espantoso! Matilda! É você mesma quem diz isso?
Ele tentou se levantar, mas Matilda deu um grito e, quase caindo da
cama, conseguiu jogar os braços ao redor do monge para detê-lo.
— Oh, não me deixe! Ouça meus pecados com compaixão. Em
poucas horas eu não mais existirei. Só mais um pouco, e estarei livre desta
paixão desonrosa.
— Oh, mulher desgraçada, o que posso lhe dizer? Eu não posso... não
devo... mas não morra, Matilda. Não morra!
— O senhor não sabe o que está pedindo. Viver e ser difamada,
tornar-me uma agente do mal? Viver e provocar sua destruição e a minha?
Sinta meu coração, padre.
Ela pegou a mão do monge. Confuso e envergonhado, mas fascinado,
ele não retirou a mão e sentiu a batida do coração da moça.
— Sinta meu coração, padre. Ainda é um coração íntegro, verdadeiro
e casto. Se amanhã ainda estiver batendo, tornar-se-á presa dos crimes mais
terríveis. Oh, por favor, deixe-me morrer hoje! Deixe-me morrer enquanto
mereço suas lágrimas virtuosas. Quero partir assim – ela recostou a cabeça
no ombro dele e seus cabelos dourados caíram-lhe sobre o peito. — Nos
seus braços, vou adormecer; suas mãos fecharão meus olhos para sempre e
seus lábios receberão meu último suspiro. O senhor pensará em mim, de
vez em quando? Não derramará, ocasionalmente, uma lágrima sobre minha
sepultura? Ah, sim, sim, sim. Este beijo é a minha garantia.
Já era tarde da noite. O silêncio reinava lá fora. A luz fraca, vinda de
um lampião solitário, iluminava o semblante de Matilda ao mesmo tempo
em que difundia um brilho confuso e misterioso no recinto. Nenhum olhar
indiscreto ou ouvido curioso vigiava os amantes. Nenhum som era
percebido a não ser a toada melodiosa de Matilda. Ambrósio encontrava-se
em pleno vigor de sua virilidade. Ele via diante de si uma mulher jovem e
bela, uma mulher que salvara sua vida, que o adorava e que por causa desse
amor encontrava-se à beira da morte. Ele estava sentado na cama, sua mão
repousava sobre o peito dela e ela, por sua vez, tinha a cabeça deitada sobre
o peito dele. Quem poderia culpá-lo por cair em tentação? Embriagado pelo
desejo, ele aproximou seus lábios dos lábios que o buscavam. Seus beijos
disputavam com os de Matilda em ardor e paixão. Ele a tomou nos braços e
se esqueceu dos seus votos, da sua santidade e da sua reputação. Não
conseguia pensar em mais nada, a não ser no prazer que sentia.
— Ambrósio! Oh, meu Ambrósio! – suspirou Matilda.
— Seu, para sempre seu! – murmurou o monge, mergulhando no
peito da moça.
CAPÍTULO III

Estes são os vilões


A quem todos os viajantes tanto temem.
Alguns deles são cavalheiros,
Mas com a fúria desgovernada da juventude
Desconfie da companhia de homens tão detestáveis.
(Shakespeare, Dois Cavalheiros de Verona)

O marquês e Lorenzo prosseguiram em silêncio até o palácio. O


primeiro estava ocupado tentando evocar todas as circunstâncias das quais
era capaz de se lembrar que pudessem produzir em Lorenzo uma opinião
mais favorável da sua relação com Agnes. O último, preocupado com a
honra da sua família, sentia-se desconcertado na presença do marquês: a
aventura que acabara de presenciar o impedia de tratá-lo como amigo. Mas,
levando em consideração os interesses de Antonia, viu que seria imprudente
tratá-lo como inimigo. Concluiu, a partir de tais reflexões, que o plano mais
sábio seria permanecer em silêncio e esperar, ainda que impacientemente,
as explicações de Dom Ramón.
Eles chegaram ao Palácio de las Cisternas. O marquês imediatamente
o conduziu aos seus aposentos e passou a expressar sua satisfação ao
encontrá-lo em Madri. Lorenzo o interrompeu com ar indiferente:
— Perdão, meu senhor, se respondo com alguma frieza suas
expressões de estima. A honra de uma irmã está envolvida neste assunto.
Até que a questão esteja resolvida e que o motivo da sua correspondência
com Agnes seja esclarecido, não posso considerá-lo meu amigo. Estou
ansioso para conhecer a razão da sua conduta e espero que a explicação não
demore.
— Primeiramente, dê-me a sua palavra de que irá me ouvir com
paciência e indulgência.
— Eu amo tanto minha irmã que seria incapaz de julgá-la duramente
e, até o presente momento, não possuo um aliado que preze mais do que o
senhor. Também preciso confessar que, se estiver em seu poder atender-me
em um assunto que muito me afeta, poderá contar ainda mais com a minha
estima.
— Lorenzo, você me comove. Nada pode me dar maior prazer do que
poder prestar um serviço ao irmão de Agnes.
— Convença-me de que posso aceitar seus favores sem nenhuma
forma de desonra e não haverá homem no mundo a quem eu tenha maior
apreço.
— Provavelmente você já ouviu sua irmã mencionar o nome de
Alfonso d’Alvarada?
— Nunca. Ainda que sinta por Agnes uma afeição verdadeiramente
fraternal, as circunstâncias impediram nossa aproximação. Quando criança,
ela foi enviada aos cuidados de uma tia que havia se casado com um nobre
alemão. Ela viveu no seu castelo até dois anos atrás, quando retornou à
Espanha, determinada a isolar-se do mundo.
— Santo Deus! Lorenzo, você tinha conhecimento das intenções dela
e mesmo assim não tentou dissuadi-la?
— Marquês, o senhor me ofende. A notícia que recebi, quando estava
em Nápoles, me chocou profundamente; apressei meu retorno a Madri com
o objetivo expresso de evitar este sacrifício. No instante em que cheguei,
corri ao convento de Santa Clara, o qual Agnes havia escolhido para fazer o
noviciado. Pedi para ver minha irmã e imagine minha surpresa ao constatar
que ela não queria me ver. Ela declarou categoricamente que temia minha
influência sobre sua resolução e que não queria conversar comigo até a
véspera do dia em que professaria seus votos. Eu supliquei às freiras, insisti
para ver Agnes e até suspeitei de que ela estivesse sendo mantida longe de
mim contra sua vontade. Para livrar-se das minhas acusações, a abadessa
trouxe algumas linhas escritas com a caligrafia da minha irmã, repetindo a
mensagem que já tinha sido entregue. Todas as minhas tentativas
posteriores para conseguir uma breve conversa com Agnes foram tão
infrutíferas quanto a primeira. Ela estava inflexível e eu não pude vê-la até
a véspera do dia em que ingressou no claustro para nos deixar para sempre.
Neste dia, também estavam presentes nossos parentes mais próximos. Foi a
primeira vez que a vi desde que era uma menina, e foi uma cena muito
comovente. Ela se atirou nos meus braços, me beijou e chorou
desoladamente. Tentei fazê-la abandonar seu intento de todas as maneiras
possíveis: chorei, supliquei, me ajoelhei aos seus pés. Expliquei-lhe todos
os rigores de uma vida religiosa, enchi sua imaginação com todos os
prazeres que estava a ponto de renunciar e implorei para que me revelasse o
que a havia feito querer abandonar o mundo. Esta última pergunta tirou a
cor das suas faces e fez com que as lágrimas brotassem de seus olhos de
forma mais abundante. Ela me pediu para não insistir neste assunto; que,
para mim, seria o suficiente saber que a decisão estava tomada e que o
convento era o único lugar onde podia ter esperanças de encontrar a paz.
Ela persistiu no propósito e professou os votos. Fui vê-la muitas vezes
através das grades do locutório e, a cada momento que passamos juntos,
sentia mais aflição por tê-la perdido. Um tempo depois, fui obrigado a
deixar Madri. Só retornei na tarde de ontem e, desde então, ainda não tive
tempo de ir ao convento de Santa Clara.
— Então, até este momento, você nunca tinha ouvido o nome de
Alfonso d’Alvarada?
— Na verdade, minha tia me escreveu sobre um aventureiro assim
chamado que conseguiu ser apresentado no Castelo de Lindenberg. Disse
que ele se insinuou para minha irmã e que ela tinha concordado em fugir
com ele. No entanto, antes que tal plano pudesse ser colocado em prática, o
cavalheiro descobriu que as propriedades na Espanha que acreditava
pertencerem a Agnes, pertenciam, na verdade, a mim. Esta informação fez
com que mudasse seus planos. Ele desapareceu no dia da fuga e Agnes,
desesperada com tal perfídia e baixeza, decidiu retirar-se em um convento.
Minha tia também acrescentou que este aventureiro havia dado a entender
que era um amigo meu, e ela me perguntou se eu o conhecia. Eu respondi
que não. Eu não tinha a menor ideia de que Alfonso d’Alvarada e o
Marquês de las Cisternas fossem a mesma pessoa. A descrição que me foi
passada não se encaixava de nenhuma maneira com a descrição do
marquês.
— Reconheço o caráter pérfido de dona Rodolfa em tudo o que está
dizendo. Cada palavra desse relato está marcada com sua malícia, sua
falsidade e sua habilidade para confundir aqueles a quem ela quer ferir.
Perdoe-me, Medina, por falar tão livremente de uma pessoa da sua família.
O dano que ela me causou justifica meu ressentimento e, quando você ouvir
o meu lado da história, ficará convencido de que minhas palavras não são
tão severas.
Ele, então, começou sua narrativa da seguinte maneira:

HISTÓRIA DE DOM RAMÓN, MARQUÊS DE LAS CISTERNAS

A longa experiência, meu prezado Lorenzo, convenceu-me da


generosidade da sua natureza. Não esperei que declarasse desconhecer o
infortúnio da sua irmã para supor que isso havia sido propositadamente
escondido de você. Se tivesse tomado conhecimento dos fatos, de quantas
desventuras eu e Agnes não teríamos escapado! Mas o destino decidiu o
contrário. Você estava viajando quando conheci sua irmã e, como nossos
inimigos decidiram ocultar seu paradeiro, foi impossível para ela escrever e
implorar por seus conselhos e proteção.
Ao deixar Salamanca, em cuja universidade, eu soube depois, você
ainda permaneceu por um ano após a minha partida, embarquei
imediatamente em uma série de viagens. Meu pai me supria com o dinheiro
de que necessitava, mas insistia para que eu escondesse minha linhagem e
que me apresentasse como um simples cavalheiro. Tal recomendação
resultava dos conselhos de um amigo, o Duque de Villa Hermosa, um
fidalgo cujo talento e conhecimento do mundo sempre me causaram a mais
profunda veneração.
— Acredite, meu caro Ramón – dizia ele, — mais tarde você se dará
conta dos benefícios dessa degradação temporária. É certo que, como
Conde de las Cisternas, você seria recebido de braços abertos e sua vaidade
juvenil seria gratificada pelas atenções que viriam de todos os lados. Dessa
outra forma, tudo dependerá de você: terá boas recomendações, mas só
você saberá quando usá-las. Deve esforçar-se para conquistar a aprovação
daqueles a quem será apresentado. Aqueles que teriam cortejado a amizade
do Conde de las Cisternas não terão interesse em averiguar seus méritos,
nem terão paciência com as faltas de Alfonso d’Alvarada.
Consequentemente, quando for aceito de verdade, você poderá atribuir o
fato às suas boas qualidades, e não à sua linhagem. Essa diferença será
infinitamente satisfatória. Além disso, suas condições de nascimento não
permitirão que você se relacione com as classes mais baixas da sociedade, o
que agora está nas suas mãos e que, na minha opinião, resultará em um
benefício de valor inestimável. Não limite seus contatos aos ilustres dos
países por onde passar. Examine os modos e os costumes do povo. Entre
nos chalés dos camponeses e, através da observação de como são tratados
os súditos dos estrangeiros, aprenda a diminuir a carga e aumentar o
conforto dos seus próprios súditos. Ao meu modo de ver, entre todas as
vantagens que um jovem destinado às posses, poder e riqueza pode obter de
uma viagem, ele deveria considerar essencial a oportunidade de se
relacionar com as classes inferiores e até testemunhar o sofrimento do povo.
Perdoe-me, Lorenzo, se minha narrativa parece enfadonha. A estreita
relação que existe entre nós, agora, me deixa ansioso para que você conheça
cada detalhe sobre mim. E, por receio de omitir a menor circunstância que
possa induzi-lo a julgar favoravelmente tanto a mim quanto à sua irmã,
corro o risco de relatar coisas que não parecem ter interesse nenhum.
Eu segui os conselhos do duque. Estava convencido da sua sabedoria.
Deixei a Espanha usando o suposto título de Dom Alfonso
d’Alvarada, acompanhado por um único criado de fidelidade irreprovável.
Paris foi meu primeiro destino. Por algum tempo me senti encantado com a
cidade, assim como todos os homens jovens, ricos e amantes dos prazeres.
Mas, mesmo com toda a diversão, sentia que faltava algo no meu coração.
Cansei-me de toda aquela devassidão e descobri que as pessoas com as
quais eu convivia e que aparentavam ser tão educadas e sedutoras, eram, na
verdade, fúteis, insensíveis e hipócritas. Com repugnância, deixei os
habitantes de Paris e abandonei o teatro da luxúria sem o menor suspiro de
arrependimento.
Então, parti rumo à Alemanha com a intenção de visitar a maior parte
das cortes principais. Antes disso, porém, pretendia passar algum tempo em
Estrasburgo. Assim que desci da carruagem em Luneville para tomar um
refresco, observei um esplêndido cabriolé escoltado por quatro criados
ricamente uniformizados, parado na porta do Leão de Prata. Pouco depois,
quando olhava pela janela do estabelecimento, vi uma dama de postura
elegante, seguida por duas acompanhantes, subir na carruagem e partir
imediatamente.
Perguntei ao proprietário quem era a dama que acabara de partir.
— Uma baronesa alemã, monsieur, dona de boa posição e fortuna.
Veio visitar a Duquesa de Longueville, assim me disseram suas criadas. Ela
está indo para Estrasburgo, onde vai encontrar o marido para retornarem
juntos ao seu castelo na Alemanha.
Abreviei minha viagem com a intenção de chegar a Estrasburgo
naquela mesma noite, mas meus planos foram frustrados por um problema
apresentado na minha carruagem. Visto que o acidente aconteceu no meio
de uma densa floresta, eu não sabia bem o que fazer.
Estávamos no meio do inverno, a noite já se fechava à nossa volta, e
Estrasburgo, que era a cidade mais próxima, ainda estava a muitas léguas de
distância. Percebi que a única alternativa, se não quisesse passar a noite na
floresta, seria tomar o cavalo do meu criado e seguir para Estrasburgo, o
que não seria muito agradável naquela época do ano. No entanto, como não
pude pensar em mais nada, decidi que assim o faria. Comuniquei minha
decisão ao cocheiro, dizendo que enviaria alguém para ajudá-lo assim que
chegasse em Estrasburgo. Não confiava inteiramente na honestidade dele,
mas como Stéfano estava bem armado e sendo o cocheiro de idade
avançada, considerei que não havia perigo de perder minha bagagem.
Felizmente, ou assim me pareceu, surgiu a oportunidade de passar a
noite de forma mais agradável do que eu esperava. Ao informá-lo da minha
intenção de seguir sozinho até Estrasburgo, o cocheiro sacudiu sua cabeça
em desaprovação.
— O caminho é muito longo – disse ele. — Será muito difícil chegar
sem um guia. Além do mais, monsieur não parece estar acostumado aos
rigores do inverno; é possível que não consiga suportar o frio...
— De que adianta apresentar todas essas objeções? – perguntei,
impaciente com a interrupção. — Não tenho outra solução. E o risco maior
seria eu morrer de frio passando a noite na floresta.
— Passar a noite na floresta? – replicou. — Oh, por São Denis! Não
estamos em tão grande apuro. Se não estou enganado, estamos a menos de
cinco minutos da cabana do meu velho amigo, Baptista. Ele é um lenhador
e uma pessoa muito honesta. Não tenho dúvidas de que ele terá muito gosto
em abrigá-lo por uma noite. Nesse meio tempo, eu posso pegar o cavalo
com a sela, ir para Estrasburgo e voltar com ajuda para consertar sua
carruagem antes de o dia amanhecer.
— Em nome de Deus! – eu exclamei. — Como pode me deixar tanto
tempo em suspense? Por que não falou logo sobre essa cabana? Que
estupidez!
— Eu pensei que, talvez, monsieur não se dignaria a aceitar…
— Que absurdo! Vamos, vamos, não diga mais nada, apenas nos
conduza até a cabana do lenhador.
Ele obedeceu e começamos a caminhar. Os cavalos tiveram alguma
dificuldade para arrastar o veículo quebrado. Meu criado quase perdeu a
fala e eu comecei a sentir os efeitos do frio antes mesmo de alcançar a tão
desejada cabana. Era uma construção pequena, mas limpa. Assim que nos
aproximamos, fiquei feliz ao perceber a chama de uma lareira aconchegante
que podia ser vista pelo lado de fora da janela. Nosso condutor bateu à
porta. Tivemos de esperar um pouco pela resposta; as pessoas no interior da
casa pareciam se perguntar se deviam nos receber ou não.
— Vamos! Vamos, amigo Baptista! – gritou o condutor, com
impaciência. — O que está acontecendo? Vocês estão dormindo? Ou não
querem abrigar por uma noite um cavalheiro cuja carruagem acaba de
quebrar na floresta?
— Ah, é você, meu bom Claude? – replicou a voz do homem no
interior da cabana. — Aguarde um minuto e eu abrirei a porta.
Logo os ferrolhos foram abertos e a porta se abriu. Um homem
apresentou-se com uma lamparina nas mãos. Ele recebeu o guia
calorosamente e, então, dirigiu-se à minha pessoa.
— Entre, monsieur. Entre e seja bem-vindo. Desculpe-me por não ter
aberto a porta antes, mas há tantos trapaceiros neste lugar que, se não fosse
pela sua aparência, teria suspeitado dos senhores.
Dizendo isto ele me conduziu à sala onde eu havia visto a lareira. Fui
imediatamente acomodado em uma cadeira confortável que estava perto do
fogo. Uma mulher, supostamente a esposa do meu anfitrião, levantou-se do
seu assento e me cumprimentou com uma reverência leve e distante. Ela
não respondeu à minha saudação, sentou-se novamente e retomou o
trabalho que estava fazendo. As maneiras do seu marido eram tão amistosas
quanto as suas eram secas e repulsivas.
— Gostaria de poder oferecer um alojamento mais confortável,
monsieur – disse ele. — Mas não temos muito espaço neste casebre. No
entanto, creio que podemos oferecer um cômodo para o senhor e outro para
seu criado. Terá que se contentar com uma refeição modesta. Mas, acredite,
oferecemos de coração tudo o que temos. Ora, Marguerite, como pode
permanecer sentada, com toda essa tranquilidade, como se não houvesse
nada a fazer? Mexa-se, traga algo para comer, traga alguns lençóis limpos.
Vamos, vamos; ponha mais lenha na fogueira. O cavalheiro parece estar
morrendo de frio.
A esposa jogou seu trabalho sobre a mesa e tratou de executar as
ordens do marido, porém a falta de vontade era bem evidente. Sua
fisionomia me desagradou desde o primeiro minuto. Mesmo assim, seus
traços apresentavam uma beleza inquestionável quando analisados em
conjunto. Mas sua pele era amarelada, e sua figura, minguada e descarnada.
Uma expressão sombria contraía-lhe o rosto, marcas bem visíveis de rancor
e má vontade não podiam passar despercebidas, mesmo ao observador mais
distraído. Cada olhar e cada gesto demonstravam descontentamento e
impaciência. As respostas que dava à Baptista quando este reclamava do
seu mau humor eram mordazes, curtas e afiadas. Em suma, desde o
primeiro momento desenvolvi grande antipatia pela mulher e muita
predisposição em favor do marido, cujo semblante inspirava estima e
confiança. Seu rosto era franco, sincero e amistoso. Suas maneiras
possuíam toda a honestidade de um camponês, porém sem ser rude. Tinha o
semblante largo, cheio e corado. A solidez da sua personalidade parecia
querer desculpar-se pela rigidez no rosto da mulher. Pelas rugas na testa,
julguei que ele já havia passado dos sessenta, mas que havia suportado bem
todos aqueles anos, uma vez que ainda aparentava ser forte e vigoroso. A
mulher não devia ter mais de trinta anos; porém, graças à sua falta de
vivacidade e ânimo, parecia ser muito mais velha do que o marido.
No entanto, apesar da sua falta de vontade, Marguerite começou a
preparar a ceia enquanto o lenhador conversava animadamente sobre temas
diversos. O cocheiro, já provido de um copo de aguardente, encontrava-se
disposto a partir para Estrasburgo e perguntou se eu tinha alguma outra
ordem.
— Para Estrasburgo? – interrompeu Baptista. — Você não está
pensando em chegar lá ainda hoje, está?
— Como disse? Ora, se eu não conseguir alguém para consertar a
carruagem, de que forma monsier poderá viajar amanhã?
— É verdade, esqueci da carruagem. Bem, mas Claude, você não
poderia, ao menos, cear aqui antes? Isso não fará você perder muito tempo e
o monsieur parece ser uma pessoa de bom coração, não vai querer que você
parta com a barriga vazia em uma noite tão fria feito esta.
Concordei prontamente e disse ao cocheiro que não faria a menor
diferença se eu chegasse a Estrasburgo uma hora ou duas mais tarde. Ele
agradeceu e, deixando a cabana na companhia de Stéfano, guardou os
cavalos no estábulo do lenhador. Baptista acompanhou os homens até a
porta e olhou para fora com certa preocupação.
— Sopra um vento cortante! – ele disse. — Pergunto-me o que estará
detendo os meus garotos por tanto tempo. Monsieur, eu lhe apresentarei os
dois rapazes mais elegantes que já se viu. O mais velho tem vinte e três
anos, o segundo é um ano mais novo. Não há ninguém mais sensato,
corajoso ou disposto para o trabalho em um raio de cinquenta milhas até
Estrasburgo. Eles já deviam estar voltando. Estou ficando preocupado.
Marguerite estava ocupada arrumando a mesa para a refeição.
— A senhora não está igualmente preocupada com o regresso dos
seus filhos? – perguntei.
— Eu não! – ela respondeu de mau humor. — Eles não são meus
filhos.
— Vamos, vamos Marguerite! – disse o marido. — Não se zangue
com o cavalheiro por causa de uma pergunta simples como esta. Se não
estivesse sempre tão zangada, ele nunca pensaria que você tem idade
suficiente para ter um filho de vinte e três anos. Veja o que você consegue
com a sua rabugice. Desculpe a grosseria da minha esposa, monsieur. Fica
irritada com qualquer coisa e agora está insatisfeita porque o senhor não
percebeu que ainda não tem trinta anos. Foi isso mesmo, não foi
Marguerite? O senhor sabe, monsieur, como são as mulheres com relação à
idade. Vamos, Marguerite, dê um sorriso. Se você não tem filhos tão velhos
agora, terá daqui a vinte anos, e espero que possamos viver o suficiente para
vê-los crescer tão saudáveis como Jacques e Robert.
Marguerite juntou as mãos e agitou-as com veemência.
— Deus me livre! – disse ela. — Deus me livre! Se assim fosse, eu os
estrangularia com minhas próprias mãos.
Ela saiu da sala apressadamente e subiu as escadas.
Não pude deixar de expressar ao lenhador o quanto eu lastimava o
fato de ele estar preso pelo resto da vida a uma parceira tão mal-humorada.
— Monsieur, todos nós temos nossa penitência, e a minha é
Marguerite. Mas, veja, ela é apenas mal-humorada, não é realmente má. A
pior coisa é que seu afeto pelos dois filhos que teve com o primeiro marido
faz com que ela se comporte como uma verdadeira madrasta para os meus
filhos. Ela não suporta a presença deles e, se dependesse da sua vontade,
eles nunca colocariam os pés dentro desta casa. Neste ponto, sou sempre
muito firme e jamais consentirei em abandonar os pobres meninos à própria
sorte, como tantas vezes ela me pediu que fizesse. Quanto a todo o resto,
deixo que ela faça como achar melhor. Devo dizer em seu favor que ela
administra uma casa como ninguém.
Estávamos conversando desta maneira quando nosso diálogo foi
interrompido por uma voz que gritava “olá”, soando através da floresta.
— Meus filhos, assim espero! – exclamou o lenhador, correndo para
abrir a porta.
O grito se repetiu. Agora podíamos distinguir o trote dos cavalos e, a
seguir, o som de uma carruagem escoltada por vários cavaleiros parando na
frente da cabana. Um dos homens perguntou quanto faltava para chegar a
Estrasburgo. Como ele havia se dirigido a mim, respondi o número de
milhas segundo o que Claude me havia dito. O homem, então, passou a
ofender e amaldiçoar os cocheiros por terem se distanciado do caminho. As
pessoas que estavam dentro da carruagem foram informadas da distância e
também de que os cavalos estavam muito cansados para prosseguir. Uma
dama, que parecia ser a patroa, mostrou-se muito contrariada com a
informação, mas como não havia remédio, uma das suas acompanhantes
perguntou ao lenhador se ele poderia lhes oferecer alojamento por uma
noite.
O homem ficou muito constrangido, mas respondeu que não seria
possível, acrescentando que um cavalheiro espanhol e seu criado já
ocupavam os únicos cômodos livres que havia na cabana. Ao ouvir essas
palavras, pensei que a cortesia da minha pátria não permitiria que eu
mantivesse as acomodações diante das necessidades de uma dama.
Imediatamente expressei ao lenhador o meu desejo de conceder meu direito
à viajante. Ele fez algumas objeções, mas acabou concordando e apressou-
se a abrir a porta da carruagem para ajudá-la a descer. No mesmo instante
reconheci na mulher a mesma pessoa que havia visto na estalagem de
Luneville. Aproveitei a oportunidade para perguntar a uma das
acompanhantes qual era o nome dela.
— Baronesa de Lindenberg.
Não pude deixar de notar a diferença na recepção dispensada pelo
nosso anfitrião aos recém-chegados e à minha pessoa. A relutância em
admiti-los tornou-se visivelmente percebida no seu semblante, e ele teve
que se esforçar bastante para dar as boas-vindas à mulher. Eu a conduzi até
a casa e lhe ofereci a mesma cadeira onde me sentara antes. Ela me
agradeceu muito graciosamente, ao mesmo tempo em que pedia mil perdões
por causar tamanha inconveniência. Subitamente, a fisionomia do lenhador
se iluminou.
— Por fim, está tudo arranjado! – disse, interrompendo as desculpas
da mulher. — Posso alojar a senhora e seu séquito sem a necessidade de
fazer com que o cavalheiro sofra em consequência da própria cortesia. Nós
temos dois cômodos disponíveis, um para a senhora e outro para o senhor,
monsieur. Minha esposa cederá seu quarto para as duas moças que a
acompanham. Já os criados devem se contentar em passar a noite no
celeiro, a curta distância da casa. Lá, eles terão fogo e a melhor ceia que
pudermos preparar.
Depois de muitos agradecimentos por parte da dama e da minha
oposição ao fato de que Marguerite deveria ceder seu quarto, os arranjos
estavam acordados. Como a sala era pequena, a baronesa logo dispensou
seus criados. Baptista estava pronto para levá-los ao celeiro que havia
mencionado quando dois jovens apareceram na porta da cabana.
— Diabos! – exclamou o primeiro, voltando-se para a porta. —
Robert, a casa está cheia de estranhos.
— Ah, aqui estão meus filhos! – exclamou nosso anfitrião. — Ora,
Jacques, Robert, onde estão indo? Há lugar de sobra até mesmo para vocês.
Com esta afirmação, os rapazes retornaram. O pai os apresentou à
baronesa e a mim, e então saiu com os criados. Atendendo aos pedidos das
duas damas de companhia, Marguerite conduziu-as ao quarto destinado à
sua senhora.
Os recém-chegados eram rapazes altos, fortes, musculosos e muito
queimados do sol. Eles nos cumprimentaram com poucas palavras e
saudaram Claude, que agora entrava na casa, como um velho conhecido.
Então, retiraram suas capas, seus cintos de couro de onde pendiam suas
machadinhas e, sacando cada um uma pistola da cintura, acomodaram tudo
sobre uma prateleira.
— Vocês viajam bem armados – comentei.
— É verdade, monsieur – respondeu Robert. — Já era noite quando
saímos de Estrasburgo e é necessário tomar algumas precauções para
atravessar a floresta depois de escurecer. O local não goza de boa reputação,
eu garanto.
— Como? – perguntou a baronesa. — Há ladrões por aqui?
— Assim dizem, madame. Da minha parte, já cruzei estes bosques em
diferentes horários do dia e jamais encontrei um inimigo.
Marguerite regressou neste mesmo instante. Seus enteados a levaram
até o outro lado da sala e conversaram com ela em voz baixa por alguns
minutos. Pelos olhares que lançavam aos demais de quando em quando,
deduzi que perguntavam o que fazíamos na cabana.
Nesse meio tempo, a baronesa expressou seus temores de que seu
marido estivesse preocupado. Ela havia pensado em enviar um dos criados
para informar ao barão o motivo da sua demora; porém, depois de receber
tais notícias acerca daqueles bosques, decidiu abandonar um plano tão
impraticável. Claude, no entanto, aliviou a dama de seu embaraço.
Comunicou a todos que tinha a necessidade de ir a Estrasburgo naquela
mesma noite, e que se ela lhe confiasse uma carta, poderia ficar segura de
que a mesma seria devidamente entregue.
— Então o senhor não tem nenhum receio de encontrar um desses
bandidos? – perguntei.
— Ai de mim, monsieur! Um pobre homem com uma família
numerosa não pode desperdiçar a oportunidade de obter algum lucro por
medo do perigo; quem sabe o senhor barão não me oferece alguma
recompensa pelos meus cuidados? Além disso, não tenho nada a temer, a
não ser pela minha vida, que não tem valor algum para os ladrões.
Seus argumentos não me pareceram convincentes e eu tentei
aconselhá-lo a esperar até a manhã seguinte, mas a baronesa não concordou
comigo e fui obrigado a abandonar o assunto. A Baronesa de Lindenberg,
como vim a descobrir mais tarde, estava acostumada a sacrificar os
interesses dos outros, colocando o seu próprio sempre em primeiro lugar.
Seu desejo de enviar Claude a Estrasburgo não permitia que enxergasse os
perigos envolvidos na tarefa e, assim, ficou decidido que ele deveria partir
imediatamente. A baronesa escreveu a carta ao marido e eu enviei umas
poucas linhas ao meu banqueiro, informando que só chegaria a Estrasburgo
no dia seguinte. Claude apanhou as cartas e deixou a cabana.
A dama declarou estar muito fatigada da viagem, pois, além de estar
vindo de longe, os cocheiros haviam perdido seu caminho na floresta. Ela
agora falava com Marguerite, solicitando que fosse levada aos seus
aposentos a fim de poder descansar por meia hora. Uma das acompanhantes
foi chamada; a moça apareceu com uma vela e, juntas, subiram as escadas
para o andar de cima. A toalha da mesa estava na sala onde eu me
encontrava e Marguerite sugeriu que eu estava atrapalhando seu serviço.
Suas insinuações foram tão claras que logo pedi a um dos jovens rapazes
que me conduzisse ao cômodo onde eu deveria dormir, e onde poderia
permanecer até que a ceia fosse servida.
— Qual quarto é o dele, mãe? – perguntou Robert.
— O quarto com cortinas verdes – ela respondeu. — Acabei de
colocar roupas limpas na cama. Se o cavalheiro desejar deitar-se e
desarrumar a cama, ele mesmo deverá arrumá-la depois.
— A senhora está de mau humor, mãe, mas isso não é novidade.
Tenha a bondade de me seguir, monsieur.
Ele abriu a porta e caminhou em direção a uma escadaria estreita.
— Você não está levando uma vela! – disse Marguerite. — É o seu
pescoço ou o do cavalheiro que você tem a intenção de quebrar?
Ela passou por mim e colocou uma vela nas mãos de Robert, o qual,
depois de recebê-la, começou a subir os degraus. Jacques estava ocupado
com a toalha de mesa, de costas para mim. Marguerite, aproveitando o fato
de não estarmos sendo observados, segurou minha mão e a apertou com
força.
— Olhe os lençóis! – sussurrou, ao passar junto a mim. Logo,
retomou sua ocupação anterior.
Surpreendido pelo inesperado do acontecimento, eu não conseguia
sair do lugar. A voz de Robert, insistindo para que eu o seguisse, trouxe-me
de volta à realidade. Subi as escadas e fui guiado até um cômodo bem
aquecido por uma esplêndida lareira. O rapaz colocou a vela em cima da
mesa, perguntou se eu precisava de mais alguma coisa e, ao receber minha
resposta negativa, deixou o quarto. É claro que, tão logo me encontrei
sozinho, procurei atender as instruções de Marguerite. Peguei a vela,
aproximei-a da cama e, sem demora, afastei as cobertas. Imagine com que
surpresa e terror eu percebi que os lençóis estavam cobertos de sangue!
Naquele instante, mil ideias confusas inundaram minha imaginação.
Os ladrões que infestavam a floresta, as exclamações de Marguerite com
relação aos enteados, os braços e aparência dos dois jovens e os vários
relatos que tinham chegado aos meus ouvidos sobre uma relação secreta
entre ladrões e cocheiros; todas estas ideias passaram pela minha cabeça e
me deixaram cheio de receio e apreensão. Comecei a refletir sobre a
provável verdade de todas aquelas conjecturas. De repente, percebi que
alguém estava no andar de baixo caminhando de um lado ao outro. Tudo,
agora, parecia muito suspeito. Com cuidado, me aproximei da janela que
estava aberta, apesar do frio. Aventurei-me a espiar o lado de fora; os raios
da lua iluminavam um homem, um homem a quem não tive dificuldades
para reconhecer senão como meu anfitrião. Observei seus movimentos.
Ele andava rapidamente; então, parava e parecia ouvir alguma coisa.
Ele chutava o solo e batia com os braços na barriga, como se estivesse
tentando se proteger do frio. Ao menor ruído, se ouvisse alguma voz vinda
da parte inferior da cabana, ou se um morcego passasse por ele, ou ainda se
o vento movesse uma folha, ele se sobressaltava e olhava ao redor com
ansiedade.
— Que a peste se encarregue dele! – praguejou com impaciência. —
O que quer que seja!
Ele falava murmurando, mas, como estava bem abaixo da minha
janela, eu não encontrava nenhuma dificuldade para ouvir o que dizia.
Comecei a ouvir passos se aproximando, e Baptista foi ao encontro
desse som. Ele parou junto a um homem, cuja baixa estatura e o chifre
pendurado no pescoço indicavam ser ninguém mais do que o fiel Claude,
quem eu acreditava já estar a caminho de Estrasburgo. Esperando que
aquela conversa pudesse esclarecer algo sobre a situação, procurei uma
posição que me permitisse escutar tudo com segurança. Com este propósito,
apaguei a vela que estava sobre a mesa; as labaredas do fogo não eram
suficientes para acusar minha presença e, então, imediatamente voltei ao
meu posto.
Os homens que despertaram minha curiosidade estavam parados bem
abaixo da minha janela. Suponho que, durante minha ausência
momentânea, o lenhador tenha culpado Claude por um atraso, porque,
quando retornei, o mesmo tentava desculpar-se por alguma coisa.
— De qualquer maneira – disse ele. — meus esforços a partir de
agora devem compensar meu atraso anterior.
— Neste caso, eu o perdoo – respondeu Baptista. — Mas, já que
vamos dividir igualmente o lucro, o seu próprio interesse deveria estimulá-
lo a trabalhar com mais diligência. Seria uma vergonha deixar escapar uma
presa tão nobre. Você disse que esse espanhol é muito rico?
— O criado costumava vangloriar-se na estalagem de que os objetos
dentro da carruagem devem valer uns dois mil dobrões[4].
Oh, como abomino a vaidade imprudente de Stéfano!
— E eu também soube – continuou o cocheiro. — que essa baronesa
carrega com ela um pequeno cofre com joias de muito valor.
— Pode ser, mas eu teria preferido que ela ficasse em algum outro
lugar. O espanhol era uma presa fácil. Eu e os meninos poderíamos
facilmente ter dado conta dele e do criado e, então, os dois mil dobrões
seriam divididos entre nós quatro. Agora temos de dividir com todo o
bando, e pode ser que ainda escapem da gente. Se nossos amigos tiverem
deixado seus postos antes de você chegar na caverna, tudo estará perdido.
Os acompanhantes da baronesa são muito numerosos para que possamos
dominá-los sozinhos. A menos que nossos companheiros cheguem a tempo,
teremos que deixar os viajantes seguirem pela estrada amanhã, sem nenhum
dano.
— Foi mesmo um grande azar que os meus camaradas que
conduziram a carruagem não tivessem conhecimento da nossa aliança. Mas
não tema, amigo Baptista. Estarei na caverna em uma hora. Não passa
muito das dez agora; você pode esperar a chegada do bando por volta da
meia-noite. A propósito, cuidado com sua esposa. Você sabe o quanto ela
antipatiza com nosso modo de vida. Ela pode encontrar alguma forma de
avisar os criados da baronesa sobre os nossos propósitos.
— Ah, estou seguro do seu silêncio. Ela tem muito medo de mim, e
ama demais os filhos para se arriscar a trair meu segredo. Além disso,
Jacques e Robert vigiam-na de perto e não permitirão que ela saia da
cabana. Os criados estão bem alojados no celeiro. Vou manter tudo calmo
até a chegada dos nossos amigos. Se eu pudesse ter certeza de que você vai
conseguir encontrá-los, despacharíamos os estrangeiros imediatamente.
Mas como existe o risco de você não encontrar o bando, temo que os
criados venham procurá-los pela manhã.
— E se um dos viajantes descobrir seu plano?
— Então deveremos apunhalar aqueles que estão em nosso poder e
fazer o possível para nos livrarmos também do restante. Entretanto, a fim de
evitar riscos desnecessários, vá para a caverna. O bando nunca sai de lá
antes das onze e, usando a carruagem, você deve chegar a tempo de detê-
los.
— Diga a Robert que eu levei o cavalo dele; o meu está com a rédea
partida e fugiu para o bosque. Qual é a senha?
— A recompensa da coragem.
— É o suficiente. Estou indo para a caverna.
— E eu vou me juntar aos hóspedes; não quero que minha ausência
desperte suspeita. Adeus, e vá depressa.
Os dois cúmplices se separaram. Enquanto um se dirigia ao estábulo,
o outro retornava à cabana.
Se pudesse imaginar a minha aflição ao ouvir aquela conversa; eu
ouvi tudo, não perdi uma sílaba sequer. Não ousei perder tempo refletindo
sobre aquilo, tampouco enxerguei um meio de escapar do perigo que me
ameaçava. Sabia que não adiantaria resistir: além de estar desarmado, era
apenas um homem contra três. No entanto, estava disposto a cobrar o preço
mais caro possível pela minha vida. Temendo que Baptista percebesse
minha ausência e suspeitasse que escutei sua conversa com Claude, eu
rapidamente reacendi a vela e deixei o quarto. Quando desci as escadas, vi a
mesa posta para seis pessoas. A baronesa estava sentada junto à lareira,
Marguerite estava ocupada temperando a salada e seus enteados estavam
cochichando no outro extremo da sala. Baptista, que decidira fazer uma
ronda ao redor da cabana antes de entrar, ainda não havia chegado. Sentei-
me diante da baronesa.
Um simples olhar para Marguerite foi o suficiente para que ela
entendesse que seu aviso não tinha sido em vão. Ela me parecia uma mulher
inteiramente diferente agora. O que antes parecia tristeza e mau humor era,
na verdade, profundo desgosto pelos seus companheiros e compaixão pelo
perigo que eu corria. Olhei para ela pedindo socorro, mas sabendo que seu
marido a vigiava com olhos desconfiados, não podia esperar muito de sua
boa vontade.
Apesar de todos os esforços para ocultar meus receios, era visível que
eu estava muito agitado. Eu estava pálido, e tanto minhas ações quanto
minhas palavras eram nervosas e atrapalhadas. Os jovens perceberam e me
perguntaram o que havia de errado. Culpei meu cansaço e o frio em
excesso. Se eles acreditaram ou não, não posso dizer. Ao menos, deixaram
de me agoniar com suas perguntas. Tentei não pensar nos perigos que me
rodeavam conversando sobre assuntos diversos com a baronesa. Falei sobre
a Alemanha e minha intenção de visitá-la imediatamente. Bem sabe Deus
que essa era a menor das minhas preocupações. Ela respondia com muita
graça e naturalidade, e declarou que o prazer da minha companhia
compensava amplamente o atraso da sua viagem. Ela me convidou para
passar alguns dias no castelo de Lindenberg. Enquanto falava, os rapazes
sorriam maliciosamente, o que insinuava que a dama seria muito afortunada
se voltasse a ver o castelo algum dia. Não pude deixar de perceber suas
intenções, mas consegui ocultar a emoção que sentia no peito. Continuei a
conversar com a dama; porém, meu discurso frequentemente carecia de
coerência, fazendo com que ela começasse a duvidar da minha sanidade
mental – assim me disse mais tarde. A verdade é que, enquanto falava sobre
um assunto, meus pensamentos estavam inteiramente ocupados por outro.
Eu tentava descobrir um meio para deixar a cabana, ir ao celeiro e avisar os
criados sobre os planos do nosso anfitrião. Logo me convenci de que isso
era praticamente impossível. Jacques e Robert vigiavam todos os meus
movimentos com olhos atentos e fui obrigado a abandonar a ideia.
Depositei todas as minhas esperanças na possibilidade de Claude não
encontrar os bandidos. Nesse caso, de acordo com o que ouvi, poderíamos
partir livremente.
Estremeci ao ver Baptista entrar na casa. O homem pediu mil
desculpas pela sua longa ausência, pois precisou resolver alguns assuntos
que não podiam ser adiados. Depois disso, pediu permissão para que sua
família pudesse se sentar à mesa conosco – porque, sem essa permissão,
jamais tomaria tal liberdade. Oh, como amaldiçoei o coração daquele
hipócrita! Como eu odiava a presença do homem que estava determinado a
acabar com a minha vida, vida que me era agora tão cara! Eu tinha todos os
motivos para estar satisfeito: tinha juventude, riqueza, berço, educação e
muitas expectativas do que ainda estava por vir. Porém, sentia que todos
esses projetos poderiam terminar da pior maneira. Então, fui obrigado a
dissimular e agradecer todas as falsas cortesias daquele homem que,
praticamente, já tinha uma adaga apontada para o meu peito.
A permissão foi rapidamente concedida. Nós nos sentamos à mesa: eu
e a baronesa ocupamos um lado, os filhos do lenhador sentaram-se nas
cadeiras opostas, de costas para a porta. Baptista sentou-se entre a baronesa
e uma das extremidades da mesa, e sua esposa deveria ocupar o lugar
próximo a ele. Ela não demorou a entrar na sala e logo nos serviu uma
refeição simples, mas saborosa, à moda do campo. Nosso anfitrião achou
necessário se desculpar pela simplicidade do jantar, pois não havia sido
informado da nossa vinda e podia apenas nos oferecer o alimento destinado
à sua própria família.
— Mas – ele acrescentou — caso algum acidente os obrigue a ficar
por mais tempo, espero poder lhes oferecer um tratamento melhor.
Que patife! Eu bem sabia qual era o acidente ao qual se referia, e
tremia ao pensar no tratamento que nos aguardava.
Minha companheira parecia ter se esquecido da aflição causada pelo
atraso. Ela ria e conversava alegremente com a família. Tentei seguir seu
exemplo, mas foi em vão. Minha boa disposição era evidentemente forçada
e meu constrangimento não passou despercebido por Baptista.
— Vamos, monsieur, anime-se! – ele disse. — O senhor não parece
ter se recuperado do cansaço. Para animar seu espírito, que tal uma taça de
um excelente vinho que me foi deixado por meu pai? Que Deus tenha sua
alma, ele partiu desta para melhor. Eu raramente bebo este vinho, mas como
hoje tenho a honra de receber nobres tão ilustres, acredito que a ocasião
merece uma garrafa.
Ele deu à esposa uma chave e instruções sobre onde encontrar o vinho
do qual falava. Ela não parecia contente com a incumbência, mas pegou a
chave e, com certo embaraço, hesitou em deixar a mesa.
— Você ouviu o que eu disse? – perguntou Baptista, em tom de fúria.
Marguerite, antes de sair da sala, lançou-lhe um olhar que misturava
raiva e medo. Os olhos do marido seguiram-na com desconfiança até que
ela fechasse a porta.
Pouco depois, ela retornou com uma garrafa lacrada com cera
amarela. Colocou a garrafa na mesa e devolveu a chave ao marido. Eu
suspeitei que havia uma intenção por trás da oferta daquela bebida e,
silenciosamente, observei os movimentos de Marguerite. Ela estava
ocupada enxugando algumas pequenas taças feitas de chifre. Ao colocá-las
na frente de Baptista, percebeu que eu a observava e, naquele instante,
quando acreditou que o bandido não olhava para ela, fez um sinal com a
cabeça me dizendo para não provar a bebida e, então, voltou para o seu
lugar.
Enquanto isso, nosso anfitrião sacou a rolha da garrafa e encheu dois
cálices com o vinho, oferecendo um para a baronesa e outro para mim. A
princípio a dama fez algumas objeções, mas depois de muita insistência por
parte de Baptista, sentiu-se obrigada a satisfazê-lo. Temendo despertar
suspeitas, aceitei a taça que me foi oferecida, sem vacilar. Pelo aroma e pela
tonalidade pensei que fosse champanhe, mas alguns grãos de poeira que
flutuavam na superfície me convenceram de que o líquido havia sido
adulterado. No entanto, não me atrevi a recusar a oferta; levei a taça aos
lábios e fingi engolir a bebida. Subitamente, levantei da cadeira e me
aproximei da vasilha com água que estava um pouco afastada da mesa,
onde Marguerite tinha lavado as taças. Simulei cuspir o vinho com
desagrado e aproveitei a ocasião para esvaziar o líquido na vasilha.
Os bandidos pareceram ficar alarmados com o meu gesto. Jacques
ameaçou levantar-se da cadeira e colocou a mão no peito, onde descobri
que havia o punho de uma adaga. Retornei ao meu assento com
tranquilidade e fingi não ter percebido sua confusão.
— Você não acertou o meu gosto, meu bom amigo – falei, dirigindo
minhas palavras a Baptista. — Não posso beber champanhe sem sentir uma
indisposição violenta. Creio que engoli um bocado antes de saber o que era,
e temo que minha imprudência vá me custar muito caro.
Bapista e Jacques trocaram olhares desconfiados.
— Talvez não tenha gostado do aroma – disse Robert.
Ele se levantou da cadeira e pegou a taça. Notei que ele a examinava
para saber se estava vazia.
— Ele deve ter bebido o suficiente – dirigiu-se ao irmão, em voz
baixa, enquanto voltava a se sentar.
Marquerite parecia apreensiva, temendo que eu tivesse provado a
bebida. Eu a tranquilizei com um olhar.
Aguardei ansiosamente pelos efeitos que a bebida causaria na
baronesa. Não duvidava de que os grãos que observei fossem venenosos e
lamentei não poder adverti-la do perigo. Alguns minutos se passaram antes
que eu percebesse que seus olhos estavam pesados e que sua cabeça
tombava para o lado. Ela caiu em um sono profundo. Fingi não notar o que
se passava e continuei minha conversa com Baptista, com toda a boa
disposição que era capaz de aparentar. Ele me observava com desconfiança
e assombro e notei que os ladrões estavam frequentemente cochichando
entre eles. Minha situação ficava mais difícil a cada instante; tentava manter
uma atitude de confiança, porém sem a menor graça. Receoso da chegada
dos outros cúmplices e de que suspeitassem que eu já soubesse dos seus
planos, eu não sabia como dissipar a desconfiança dos bandidos. Mais uma
vez Marguerite veio em meu socorro. Ela passou por trás das cadeiras dos
enteados, parou por um momento na minha frente e fechou os olhos, ao
mesmo tempo em que reclinava a cabeça sobre o ombro. Seu gesto desfez
todas as minhas dúvidas: ela queria dizer que eu deveria imitar a baronesa e
simular que a bebida me afetara também. Fiz como ela sugeriu e, em alguns
minutos, fingi que tinha sido completamente vencido pelo sono.
— Certo! – exclamou Baptista, assim que caí na minha cadeira. —
Ele dorme, finalmente. Eu já começava a pensar que ele conhecia nosso
plano e que teríamos que executá-lo de um jeito ou de outro.
— E por que não podemos executá-lo agora? – perguntou o feroz
Jacques. — Por que devemos conceder a ele a possibilidade de trair nosso
segredo? Marguerite, alcance-me uma das pistolas. Um simples apertar de
gatilho acabará com ele de uma vez.
— E suponha – replicou o pai —, suponha que nossos amigos não
consigam chegar esta noite, o que diríamos aos seus criados quando
perguntassem por ele de manhã? Não, não, Jacques. Devemos esperar pelos
nossos parceiros. Juntos, somos fortes o bastante para dar conta dos criados
assim como de seus amos, e a recompensa será toda nossa. Se Claude não
encontrar o bando, devemos ter paciência e deixar que as presas
escorreguem por nossos dedos. Ah, meninos, meninos, se tivessem chegado
cinco minutos antes, já teríamos terminado com o espanhol e agora
seríamos donos de dois mil dobrões! Mas vocês nunca estão aqui quando
preciso de ajuda. Vocês são os ladrões mais desgraçados que há!
— Ora, ora, meu pai! – respondeu Jacques. — Se o senhor pensasse
como eu, tudo já estaria terminado. O senhor, Robert, Claude e eu teríamos
dado conta dos estrangeiros, eu garanto, mesmo estando em número menor.
Mas Claude não está aqui e é tarde para pensar nisso agora. Devemos
esperar pacientemente pela chegada da gangue e, se os viajantes se
salvarem nesta noite, devemos assaltá-los amanhã.
— Certo, certo! – disse Baptista. — Marguerite, você deu o sonífero
para as damas de companhia?
Ela respondeu afirmativamente.
— Então, tudo está encaminhado. Vamos, rapazes! Não importa o que
aconteça, não temos do que nos queixar. Não corremos nenhum perigo e
não há nada a perder.
Nesse mesmo instante, ouvi alguns cavalos se aproximando. Oh, que
terrível era aquele som aos meus ouvidos! Senti um suor frio escorrendo
pela testa e pressenti todos os horrores da morte iminente. Fiquei ainda mais
perturbado quando ouvi Marguerite exclamando, em tom desesperado:
— Deus Todo Poderoso! Estão perdidos!
Felizmente, o lenhador e seus filhos estavam muito ocupados com a
chegada dos comparsas para pensar em mim ou na minha agitação, a qual
certamente lhes revelaria que meu sono era fingido.
— Abram, abram! – gritaram várias vozes do lado de fora da cabana.
— Sim, sim! – respondeu um alegre Baptista. — São eles! Agora
nossa recompensa está garantida. Vamos, rapazes, vamos! Levem-nos ao
celeiro; vocês sabem o que deve ser feito.
Robert correu para abrir a porta.
— Mas antes, deixe-me despachar estes dorminhocos – disse Jacques,
pegando as armas.
— Não, não, não! – replicou o pai. — Vão para o celeiro, onde vocês
são necessários. Deixem que eu me encarrego destes dois e das mulheres lá
em cima.
Jacques obedeceu e seguiu o irmão. Aparentemente, conversaram por
alguns minutos com os recém-chegados. Em seguida, ouvi os homens
desmontarem e, imagino, dirigirem-se ao celeiro.
— Muito bem – murmurou Baptista. — Eles deixaram os cavalos e,
assim, podem atacar os estrangeiros de surpresa. Bem, bem, agora aos meus
negócios.
Ouvi o homem se aproximar de um pequeno armário do outro lado da
sala e destrancá-lo. Nesse momento, senti que era sacudido de leve.
— Agora, agora! – sussurrou Marguerite.
Eu abri os olhos. Baptista estava de costas para mim. Não havia mais
ninguém na sala, a não ser Marguerite e a dama adormecida. O vilão tirou
uma adaga de dentro do armário e passou a examiná-la para ver se estava
afiada. Eu não tinha pensado em me proteger usando armas, mas concluí
que essa seria a única maneira de escapar; então, resolvi que não perderia a
oportunidade. Levantei de um salto, atirei-me sobre Baptista e apertei sua
garganta com muita força, para que não pudesse gritar. Talvez você se
recorde da fama que eu tinha em Salamanca por causa da força nos meus
braços. Nessa ocasião, essa força me prestou um serviço essencial.
Surpreso, aterrorizado e sem conseguir respirar, o vilão não era nem de
longe um adversário perigoso. Joguei-o no chão, apertei seu pescoço com
mais força e, enquanto o mantinha imobilizado, Marguerite arrancou-lhe a
arma da mão e cravou-lhe a adaga repetidamente no coração até que
estivesse morto.
Assim que concluiu seu ato terrível, mas necessário, Marguerite pediu
que eu a seguisse.
— Fugir é nossa única salvação! – ela disse. — Rápido, rápido,
vamos embora!
Obedeci sem vacilar, mas não queria que a baronesa fosse vítima da
vingança dos assaltantes. Então, carreguei-a nos braços, ainda adormecida,
e corri atrás de Marguerite. Os cavalos dos bandidos estavam atados junto à
porta. Minha condutora saltou sobre um deles. Segui seu exemplo,
acomodei a baronesa diante de mim e pressionei as esporas no meu cavalo.
Nossa única esperança era chegar a Estrasburgo, que estava muito mais
próxima do que o pérfido Claude havia assegurado. Marguerite conhecia
bem o caminho e galopava na minha frente. Fomos obrigados a passar pelo
celeiro onde os ladrões estavam assassinando nossos criados. A porta estava
aberta e pudemos ouvir os berros dos moribundos e as blasfêmias dos
assassinos. É impossível descrever o que senti naquele momento.
Jacques ouviu o ruído dos cascos dos nossos cavalos e correu para a
porta com uma tocha nas mãos; ele nos reconheceu de imediato.
— Fomos traídos! Fomos traídos! – gritou para seus companheiros.
Instantaneamente eles abandonaram a tarefa sanguinolenta e correram
para seus cavalos. Não ouvimos mais nada. Cravei as esporas no meu
cavalo e Marguerite incitou o seu com a adaga que tão bem nos servira
anteriormente. Nós corríamos como um raio e logo alcançamos o campo
aberto. Já podíamos ver a torre da Catedral de Estrasburgo quando ouvimos
os ladrões se aproximando. Marguerite olhou para trás e avistou os
perseguidores descendo uma pequena colina, não muito longe de onde
estávamos. Já não era possível conseguir mais dos nossos cavalos; o
barulho chegava cada vez mais perto.
— Estamos perdidos! – ela exclamou. — Estão nos alcançando.
— Continue, continue! – repliquei. — Ouço alguns cavalos vindo da
cidade.
Redobramos nossos esforços e logo percebemos que um grande
número de cavaleiros vinha em alta velocidade em nossa direção. Estavam
a ponto de passar por nós.
— Esperem, esperem! – gritou Marguerite. — Salvem-nos, pelo amor
de Deus, salvem-nos!
Aquele que parecia ser o líder do bando, imediatamente freou seu
cavalo.
— É ela, é ela! – ele exclamou, saltando do cavalo. — Pare, meu
senhor, pare! Eles estão a salvo. Esta é a minha mãe.
Nesse momento, Marguerite pulou do cavalo e abraçou o rapaz,
cobrindo-o de beijos. Os outros cavaleiros também se detiveram.
— A baronesa de Lindenberg? – perguntou, com ansiedade, um dos
desconhecidos. — Onde está ela? Não veio com vocês?
Então, parou de falar ao ver a mulher sem sentidos nos meus braços.
Ele a segurou imediatamente. O sono profundo no qual a dama se
encontrava fez com que o homem, a princípio, tremesse pela sua vida; mas
o batimento do seu coração logo o tranquilizou.
— Graças a Deus! – ele disse. — Ela escapou ilesa.
Interrompi sua euforia apontando os bandidos que vinham em nosso
encalço. Assim que mencionei os ladrões, a maior parte do grupo, que
parecia ser composta por soldados, partiu imediatamente naquela direção.
Os vilões não esperaram pelo ataque; percebendo o perigo que corriam,
deram meia volta e galoparam em direção à floresta, sendo perseguidos
pelos nossos salvadores. Nesse meio tempo, o desconhecido, que julguei ser
o Barão de Lindenberg, depois de muito me agradecer por salvar sua
senhora, sugeriu que nos apressássemos de volta à cidade. A baronesa,
ainda sob o efeito do ópio, foi colocada diante dele; Marguerite e seu filho
tornaram a montar seus cavalos, os criados do barão nos seguiram e logo
chegamos à estalagem onde o barão reservara alguns aposentos.
Tratava-se da Águia Austríaca, a mesma estalagem onde meu
banqueiro havia feito reservas para mim, tão logo tomou conhecimento da
minha intenção de visitar Estrasburgo, ainda antes de deixar Paris.
Regozijei-me ao constatar a coincidência; isso me deu a oportunidade de
travar amizade com o barão, o que acreditava que viria a ser muito útil na
Alemanha. Assim que chegamos, a dama foi prontamente colocada na
cama. Um médico foi chamado; ele prescreveu um medicamento para
interromper os efeitos do sonífero, e depois que a baronesa o ingeriu,
deixou-a aos cuidados da dona da pensão. Só então o barão se dirigiu a mim
e solicitou que lhe narrasse com detalhes toda a aventura. Atendi sua
solicitação de imediato, pois a dor que sentia por ter abandonado Stéfano à
crueldade dos bandidos não me deixava descansar até que tivesse alguma
notícia do rapaz. Infelizmente, eu logo soube que meu fiel criado havia
perecido. Os soldados que perseguiram os ladrões retornaram enquanto eu
relatava minha aventura ao barão. Através deles, soube que os ladrões
tinham sido apanhados. A culpa e a coragem não andam juntas; eles haviam
se atirado aos pés dos perseguidores, renderam-se sem o menor sinal de
luta, revelaram o local do esconderijo secreto e ainda ofereceram a contra-
senha que deveria ser usada para a captura dos outros bandidos. Assim,
todo o bando, constituído por cerca de sessenta pessoas, foi preso e levado
para Estrasburgo. Alguns dos soldados foram até a cabana utilizando um
dos bandidos como guia. Primeiramente, inspecionaram o celeiro, onde
encontraram dois dos criados do barão ainda vivos, ainda que muito feridos.
Os outros tinham morrido pelas espadas dos ladrões; e o meu desafortunado
Stéfano encontrava-se nesse grupo.
Alarmados pela nossa fuga e com pressa para nos alcançar, os ladrões
não vistoriaram a cabana. Como consequência, os soldados encontraram as
duas damas de companhia com vida, também mergulhadas no mesmo sono
profundo que havia vencido a baronesa. Ninguém mais foi encontrado na
cabana, exceto um menino que devia ter uns quatro anos de idade, o qual
fora trazido para a cidade com os soldados. Enquanto fazíamos mil
conjecturas acerca de sua origem, Marguerite entrou no aposento com a
criança nos braços. Ela se ajoelhou aos pés do oficial que estava fazendo o
relato e o abençoou mil vezes por salvar o seu filho.
Uma vez terminada aquela explosão de ternura maternal, supliquei a
Marguerite que nos explicasse de que maneira ela se unira àquele homem
cujos princípios pareciam ser tão incompatíveis com os seus. Ela baixou os
olhos e secou algumas lágrimas do rosto.
— Cavalheiros – começou, depois de alguns minutos de silêncio —
peço-lhes um favor. Os senhores têm o direito de saber a quem devem seus
agradecimentos. Não irei ocultar uma confissão que me enche de vergonha,
mas permitam-me que o faça com o menor número de palavras possível.
Nasci em Estrasburgo, em uma família muito respeitável. No momento, não
posso revelar o nome, pois meu pai ainda vive e não merece ser envolvido
na minha desonra; se atenderem ao meu pedido, poderão vir a saber o nome
da minha família. Um homem desprezível tornou-se senhor dos meus
afetos, e eu deixei a casa dos meus pais para segui-lo. Porém, ainda que
minha paixão tenha sido mais forte do que minha virtude, não caí na
degeneração da libertinagem, como é tão comum acontecer com as
mulheres que dão seu primeiro passo em falso. Eu amava meu conquistador,
amava muito. Fui fiel até o final. Esta criança e o jovem que o advertiu do
perigo que corria sua dama, senhor barão, são frutos deste afeto. Mesmo
agora eu lamento a morte dele, ainda que ele seja o responsável por todas as
misérias da minha existência.
Ela suspirou, e então prosseguiu:
— Ele era um nobre por nascimento, mas já havia esbanjado toda a
fortuna deixada pelo pai. Seus parentes o consideravam uma desgraça para
a família e abandonaram-no completamente. Seus excessos chamaram a
atenção da polícia. Ele foi obrigado a deixar Estrasburgo e, não encontrando
nenhuma outra maneira de evitar a penúria extrema, uniu-se aos bandidos
que infestam os bosques da região, cujo bando era composto principalmente
por jovens de boa família, na mesma situação em que se encontrava. Eu
estava decidida a não abandoná-lo; segui-o até o covil dos salteadores e
compartilhei com ele todas as misérias que acompanham a vida dos ladrões.
Mas, mesmo sabendo que nossa sobrevivência se dava à custa de roubos, eu
ignorava as circunstâncias horríveis vinculadas às atividades do meu
amante. Ele ocultava tudo isso com muito cuidado, pois sabia que meus
sentimentos não eram perversos o suficiente para presenciar um assassinato,
senão com horror. Ele suspeitava, e com razão, de que eu fugiria
horrorizada dos braços de um assassino. Durante oito anos, seu amor por
mim não se abateu. Com toda cautela, ele evitou que o menor conhecimento
dos fatos reais me levassem a suspeitar dos crimes que tantas vezes
praticava. E ele saiu-se muito bem: até o momento de sua morte, eu não
imaginava que suas mãos estavam marcadas pelo sangue de inocentes. Em
uma noite fatal, eles o trouxeram para a caverna todo coberto por
ferimentos. Ele havia recebido tais machucados ao atacar um viajante
inglês, o qual foi imediatamente morto por seus parceiros. Ele só teve
tempo para pedir perdão por todo o mal que havia me causado; beijou
minhas mãos e morreu. Minha dor foi indescritível. Assim que me senti
mais forte, decidi voltar para Estrasburgo e atirar a mim e as crianças aos
pés do meu pai para implorar seu perdão, embora não tivesse muita
esperança de obtê-lo. Para minha surpresa, fui informada de que ninguém
que conhecia o lugar secreto dos bandidos poderia deixar a quadrilha. Eu
deveria deixar de lado todas as esperanças de voltar à sociedade e deveria
também aceitar um outro membro do bando como marido. Todas as minhas
súplicas e protestos foram inúteis. Os homens tiraram a sorte para ver quem
seria o próximo a me possuir e, a partir daquele momento, passei a ser
propriedade do abominável Baptista. Um ladrão, que um dia fora um
monge, nos uniu perante uma cerimônia mais grotesca do que religiosa;
meus filhos e eu fomos entregues ao meu novo marido que nos levou
imediatamente para sua cabana. Ele declarou que há muito tempo sentia por
mim a mais ardente estima, mas que a amizade pelo meu falecido marido o
obrigara a reprimir seus desejos. Ele esforçou-se para me ajudar a aceitar
meu destino e, por algum tempo, me tratou com respeito e gentileza.
Finalmente, ao perceber que minha aversão só aumentava ao invés de
diminuir, ele conseguiu o que queria, mas somente através de violência,
pois eu persistia em rejeitá-lo. Nada mais me restava além de suportar meus
sofrimentos com paciência. Eu tinha a consciência de que tais sofrimentos
me eram merecidos. Seria impossível fugir: meus filhos estavam em poder
de Baptista e ele havia jurado que, se eu tentasse escapar, as crianças
pagariam pelo meu delito com suas próprias vidas. Tive muitas
oportunidades de testemunhar a barbaridade da sua natureza para duvidar
de que cumpriria com a palavra ao pé da letra. Essa triste experiência me
convenceu do horror da minha situação. O meu primeiro amor tinha
escondido tudo de mim; Baptista, pelo contrário, sentia prazer em exibir
todas as crueldades do seu ofício e se esforçava para me familiarizar com o
sangue das suas matanças. Minha natureza era selvagem e ardente, mas não
cruel. Minha conduta fora imprudente, mas meu coração não era perverso.
Imaginem o que eu sentia ao ser uma testemunha constante dos crimes mais
horríveis e abomináveis. Imaginem o quanto sofri por ser cúmplice de um
homem que recebia os hóspedes fingindo sinceridade e hospitalidade, ao
mesmo tempo em que planejava sua eliminação. Quanto desgosto e pesar
atormentaram minha existência! Os poucos encantos com os quais a
natureza havia me dotado já não existiam mais e a tristeza que trazia no
coração era refletida no meu semblante. Muitas vezes pensei em colocar um
fim na minha vida, mas fui detida pelo amor aos meus filhos. Eu tremia ao
imaginar meus queridos meninos nas mãos daquele tirano, e tremia ainda
mais pelas suas virtudes do que por suas vidas. O menor era ainda muito
novo para beneficiar-se dos meus ensinamentos; mas, com o mais velho,
trabalhei incansavelmente para plantar no seu coração os princípios certos
que o manteriam longe dos crimes cometidos por seus pais. Ele me ouvia
com docilidade, ou melhor, com avidez. Mesmo quando ainda era bem
pequeno, já dava sinais de que não tinha nascido para viver entre ladrões; o
único consolo que eu tinha em meio às minhas tristezas era o de
testemunhar as virtudes do meu Teodoro. E essa era a minha situação
quando o condutor traiçoeiro que levava Dom Alfonso o conduziu até a
cabana. Sua juventude, seu aspecto e seus modos chamaram minha atenção
e me predispuseram a seu favor. A ausência dos filhos do meu marido
proporcionou a oportunidade que eu tanto esperava, e resolvi arriscar tudo
para proteger o estrangeiro. A constante vigilância de Baptista me impedia
de prevenir Dom Alfonso do perigo que corria. Eu sabia que minha traição
seria imediatamente punida com a minha morte e, embora minha existência
seja marcada por amarguras e desgraças, eu não tinha coragem de me
sacrificar por um estranho. Minha única esperança estava em pedir socorro
em Estrasburgo. Então, decidi aproveitar avidamente qualquer oportunidade
que surgisse para advertir Dom Alfonso do perigo, sem ser descoberta.
Seguindo ordens do próprio Baptista, subi para arrumar a cama do
estrangeiro. Cobri o leito com os lençóis usados para matar um viajante
algumas noites atrás, os quais ainda estavam manchados de sangue. Eu
esperava que este sinal chamasse a atenção do nosso hóspede e que ele
fosse capaz de deduzir as intenções do meu marido traidor. Mas não foi só
isso o que fiz para proteger o estrangeiro. Teodoro encontrava-se doente em
sua própria cama. Entrei no seu quarto sem ser observada e contei-lhe o
meu plano; ele imediatamente se prontificou a me ajudar. Levantou-se e,
apesar da febre, mudou de roupa com rapidez. Amarrei um dos lençóis ao
redor dos seus braços e o ajudei a descer pela janela. Ele correu até o
estábulo, pegou o cavalo de Claude e partiu para Estrasburgo. Se fosse
abordado pelos bandidos, deveria dizer que levava uma mensagem de
Baptista; mas, felizmente, chegou à cidade sem nenhum impedimento.
Assim que chegou à Estrasburgo, buscou a ajuda do magistrado. Sua
história correu de boca em boca até chegar aos ouvidos do senhor barão, o
qual, receoso pela segurança de sua esposa – pois sabia que ela estava
passando pela mesma estrada naquela noite –, suspeitou de que ela pudesse
estar em poder dos ladrões. Ele acompanhou Teodoro, que guiava os
soldados até a cabana, e chegou a tempo de impedir que ficássemos mais
uma vez nas mãos do inimigo.
Nesse ponto interrompi Marguerite para perguntar por que me haviam
dado a poção sonífera. Ela contou que Baptista acreditava que eu possuía
alguma arma comigo e que ele queria me incapacitar de oferecer qualquer
resistência. Era uma precaução que sempre tomava, pois, como os viajantes
não tinham nenhuma chance de escapar, o desespero poderia fazer com que
lutassem pela vida.
O barão quis saber quais eram os planos de Marguerite. Eu também
declarei prontamente que estava disposto a mostrar-lhe minha gratidão por
salvar minha vida.
— Cansada deste mundo – ela respondeu — onde só conheci
desgraças, meu único desejo é poder me retirar em um convento. Mas, antes
disso, preciso resolver a vida dos meus meninos. Acredito que minha mãe
esteja morta, talvez tenha até morrido prematuramente como consequência
da minha fuga de casa. Meu pai ainda vive. Não é uma pessoa inflexível;
talvez, cavalheiros, apesar da minha ingratidão e imprudência, a
intervenção dos senhores possa persuadi-lo a me perdoar e tomar conta dos
seus netos desaventurados. Se conseguirem obter esse benefício para mim,
os senhores terão retribuído cem vezes os meus serviços.
Tanto eu quanto o barão garantimos a Marguerite que não
pouparíamos esforços para obter esse perdão, e que mesmo se seu pai se
mostrasse inflexível, ela não teria razão para se preocupar com o destino
dos filhos. Comprometi-me a tomar conta de Teodoro e o barão prometeu
criar o mais novo sob sua proteção. A mãe nos agradeceu com lágrimas nos
olhos pelo que chamou de generosidade, mas que, na verdade, nada mais
era do que o nosso agradecimento por tudo o que ela havia feito. Ela deixou
o local para colocar o filho pequeno na cama, pois ele já estava dominado
pelo sono e pelo cansaço.
A baronesa, ao recobrar os sentidos e ser informada dos perigos dos
quais fora resgatada por mim, mostrou-se imensamente grata. Ela uniu seus
apelos aos do marido, insistindo de forma muito calorosa para que eu os
acompanhasse até seu castelo na Bavária; tanto pediram, que não fui capaz
de resistir. Durante a semana que passamos em Estrasburgo, não nos
descuidamos dos interesses de Marguerite: nossa conversa com seu pai foi
tão frutífera quanto esperávamos. O bondoso velho tinha perdido a esposa;
não tinha filhos além da sua filha desafortunada, da qual não tivera notícias
por quase quatorze anos. Estava rodeado por parentes distantes que
esperavam impacientemente pela sua morte para tomar posse do seu
dinheiro; e, quando Marguerite reapareceu de forma tão inesperada, ele
considerou o acontecimento como um presente dos céus. O homem recebeu
a filha e os netos com os braços abertos e insistiu para que se instalassem na
sua casa sem demora. Os primos, decepcionados, viram-se obrigados a
deixar o local. O ancião não quis saber dos planos da filha de se retirar em
um convento. Ele alegou que precisava dela para sua felicidade, e logo a
convenceu a renunciar ao seu projeto original. Nenhuma razão, porém, foi
capaz de persuadir Teodoro a abandonar os planos que eu havia feito para
ele. O menino me dedicou um apreço muito sincero durante minha estada
em Estrasburgo e, na hora da partida, implorou com lágrimas nos olhos que
eu o levasse comigo. Descreveu seus pequenos talentos com variedade de
detalhes, e tentou me convencer de que poderia ser de ajuda infinita quando
ganhássemos a estrada. Eu não estava muito entusiasmado com a
perspectiva de carregar comigo um menino que mal completara treze anos,
sabendo que só poderia ser um fardo para mim. No entanto, não pude
resistir às súplicas do jovem – que, de fato, possuía muitas qualidades
consideráveis. Não sem alguma dificuldade, ele convenceu a família a
deixá-lo partir comigo e, uma vez obtida a permissão, conferi-lhe o título de
pajem. Após uma semana em Estrasburgo, Teodoro e eu partimos para a
Bavária na companhia do barão e de sua esposa. Antes, convencemos
Marguerite a aceitar alguns presentes de valor, tanto para ela quanto para
seu filho mais novo. Ao deixá-la, prometi-lhe que devolveria Teodoro ao
término de um ano.
Relatei toda esta aventura com riqueza de detalhes, Lorenzo, para que
você compreenda de que forma o aventureiro Alfonso d’Alvarada foi
introduzido no castelo de Lindenberg. Julgue por si próprio quanto crédito
merecem as afirmações da sua tia.
VOLUME II

CAPÍTULO I

Vá embora! Saia da minha vista!


E deixe que a terra o esconda!
Seus ossos estão ocos, seu sangue é frio!
Não há reflexão nesses olhos
Afaste-se daqui, sombra tenebrosa!
Você é uma zombaria irreal, afaste-se!
(Shakespeare, Macbeth)

CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DE DOM RAMÓN

Minha jornada foi extremamente agradável; o barão demonstrou ser


um homem de bom senso, mas com pouco conhecimento do mundo. Havia
passado grande parte da vida dentro dos limites de seus próprios domínios
e, consequentemente, seus modos estavam longe de ser os mais refinados.
Mas ele era muito cordial, bem-humorado e amistoso. Suas atenções para
comigo eram tão boas quanto eu poderia desejar e eu tinha todos os motivos
para ficar satisfeito com o seu comportamento. Sua paixão principal era a
caça, o que considerava uma séria ocupação. Quando falava de alguma
caçada notável, tratava o assunto com muito mais seriedade do que uma
batalha da qual dependessem o destino de dois reinos. Eu, como esportista
considerável que sou, assim que cheguei a Lindenberg dei uma amostra das
minhas destrezas. O barão logo passou a me considerar um homem genial e
jurou-me eterna amizade.
Esta amizade, porém, não fez muita diferença. Foi no castelo de
Lindenberg que vi sua irmã, a adorável Agnes, pela primeira vez. Como
meu coração há muito estava desocupado e eu me afligia com esse vazio,
vê-la e passar a amá-la foi uma consequência imediata. Encontrei em Agnes
todos os requisitos necessários para assegurar minha afeição. Ela não tinha
mais do que dezesseis anos, mas sua figura delicada e sua elegância já
estavam formadas. Ela possuía muitos talentos artísticos, particularmente a
música e o desenho. Sua personalidade era alegre, aberta e bem-humorada,
e a graciosa simplicidade de seus vestidos e das suas maneiras formava um
vantajoso contraste com o coquetismo das damas parisienses, também
estudantes de arte, que eu acabara de deixar. Desde o primeiro momento
que a contemplei, senti o mais vivo interesse pelo seu destino. Fiz muitas
perguntas sobre a moça à baronesa.
— É minha sobrinha – respondeu a dama. — O senhor ainda ignora,
Dom Alfonso, que somos compatriotas. Sou irmã do Duque de Medina;
Agnes é filha do meu segundo irmão, Dom Gastón. Ela está destinada à
vida no convento desde que nasceu, e em breve irá professar os votos em
Madri.
Aqui, Lorenzo interrompeu o marquês com uma exclamação de
surpresa.
— Destinada ao convento desde que nasceu? – perguntou. — Por
Deus, esta é a primeira vez que ouço tal coisa!
— Eu acredito, meu caro Lorenzo – respondeu Dom Ramón. — Mas
deve ouvir toda a história com paciência. Você ainda terá muitas surpresas
quando eu relatar algumas particularidades da sua família que ainda lhe são
desconhecidas, e das quais tomei conhecimento pela boca da própria Agnes.
Ele, então, retomou sua narrativa:
Você deve estar ciente de que seus pais eram, infelizmente, escravos
de uma superstição irracional; quando essa fraqueza teve início, quaisquer
outros sentimentos ou paixões foram dominados por essa força irresistível.
Na época em que estava esperando Agnes, sua mãe contraiu uma doença
perigosa e foi desenganada pelos médicos. Dona Inesilla, então, fez uma
promessa de que se conseguisse se recuperar da enfermidade, e que se a
criança que carregava no ventre fosse uma menina, esta seria destinada à
Santa Clara; se fosse um menino, a São Benedito. Suas preces foram
ouvidas e ela ficou curada daquela enfermidade. Agnes nasceu viva e foi
imediatamente prometida ao serviço de Santa Clara.
Dom Gastón apoiou prontamente a vontade da esposa; mas,
conhecendo os sentimentos do seu irmão, o duque, com relação à vida
monástica, decidiu que o destino da criança deveria ser cuidadosamente
ocultado do tio. Para melhor manter o segredo, ficou resolvido que Agnes
iria acompanhar a tia, dona Rodolfa, à Alemanha, onde esta deveria juntar-
se ao homem com quem acabara de se casar, o barão de Lindenberg. Logo
após a chegada, a pequena Agnes foi encarcerada em um convento
localizado a poucas milhas do castelo. As freiras responsáveis pela sua
educação desempenharam o papel com exatidão. Elas transformaram Agnes
em uma moça com perfeito domínio de variados conhecimentos, e
esforçaram-se para despertar na jovem um gosto pelo retiro e pelos prazeres
tranquilos do convento. Porém, um instinto secreto dizia à reclusa que ela
não havia nascido para o isolamento. Com toda a liberdade e alegria da
juventude, não tinha medo de ridicularizar muitas das cerimônias que as
freiras respeitavam com temor. Nada a fazia mais feliz do que se deixar
levar pela imaginação e bolar algum plano para importunar a rígida
abadessa ou a feia, mal-humorada e velha porteira. Ela via com desagrado o
futuro que tinha diante de si. No entanto, não existia alternativa e Agnes
submetia-se à vontade dos pais, embora não sem um secreto pesar.
A moça não conseguiu disfarçar sua resistência por muito tempo;
Dom Gastón foi logo informado do fato. Com medo de que seu afeto pela
menina pudesse interferir nos projetos já definidos, ele resolveu manter
todo o assunto longe de você e também longe do duque, até que o sacrifício
fosse consumado. A data para a tomada do véu foi marcada para coincidir
com o período em que você estivesse viajando. Nesse meio tempo,
nenhuma insinuação foi feita a respeito da promessa fatal de Dona Inesilla.
Sua irmã nunca descobriu por onde você andava; todas as suas cartas eram
lidas antes que ela as recebesse, e aqueles trechos que pudessem despertar o
interesse dela pelo mundo foram apagados. As respostas eram ditadas por
sua tia ou por Dona Cunegunda, a governanta. Estes detalhes me foram
relatados em parte por Agnes, e em parte pela própria baronesa.
Eu logo me decidi a resgatar aquela adorável jovem de um destino tão
oposto às suas inclinações e tão pouco de acordo com seus méritos.
Esforcei-me para advogar em seu favor e falei da nossa amizade e
intimidade. Agnes ouvia com avidez e parecia querer devorar minhas
palavras enquanto eu falava das suas glórias, ao mesmo tempo em que me
agradecia com os olhos pela afeição que eu tinha pelo seu irmão. Minha
atenção constante e perpétua finalmente conquistou seu coração. Com
dificuldade, fiz com que me confessasse seu amor. Quando, no entanto,
sugeri que abandonássemos o Castelo de Lindenberg, ela rejeitou a ideia
energicamente.
— Seja generoso, Alfonso – ela disse. — Já é dono do meu coração,
mas não use esse poder de forma tão desprezível. Não use sua influência
sobre mim para me convencer a dar um passo do qual posso vir a me
envergonhar. Sou jovem e solitária. Meu irmão, meu único amigo, está
separado de mim e meus outros parentes agem como se fossem meus
inimigos. Tenha piedade da minha situação. Ao invés de tentar me seduzir
para que cometa um ato que me cobriria de vergonha, você deveria se
esforçar para ganhar o afeto daqueles que me governam. O barão o estima.
Minha tia, sempre tão dura e orgulhosa, ainda se lembra de que você a
salvou das mãos de assassinos e mostra-se, na sua frente, como uma mulher
afável e doce. Use sua influência com os meus guardiões. Se eles
consentirem na nossa união, eu me casarei com você. Por tudo o que me
contou sobre meu irmão, não tenho dúvidas de que ele também dará sua
aprovação. E, quando meus pais descobrirem que será impossível levar seus
planos adiante, espero que me desculpem e que paguem a promessa fatal de
minha mãe por meio de algum outro sacrifício.
Desde o primeiro momento em que a vi, esforcei-me para conquistar
o apreço dos seus familiares. Autorizado pela confissão do seu afeto,
redobrei meus esforços e dirigi toda a atenção à baronesa, pois não demorei
a descobrir que sua palavra era lei dentro do castelo. O barão lhe era
totalmente submisso e a considerava um ser superior. Ela já estava perto dos
quarenta anos. Tinha sido muito bela na juventude, mas perdera parte dos
seus encantos com o passar dos anos, embora ainda possuísse alguns
vestígios daquela beleza. Seu raciocínio era sólido e bem coerente quando
não ofuscado pelo preconceito, o que, por azar, não acontecia com
frequência. Suas paixões eram violentas: não poupava esforços para ter suas
vontades satisfeitas e perseguia com vinganças intermináveis aqueles que
contrariassem seus desejos. A amiga mais íntima e, ao mesmo tempo, a
mais arraigada inimiga: assim era a Baronesa de Lindenberg.
Empenhei-me bastante para satisfazê-la; mas, infelizmente, parece
que me saí bem demais. Ela parecia sentir-se grata pelas minhas atenções e
me tratava com mais distinção do que qualquer outra pessoa. Uma das
minhas ocupações diárias era ler para a baronesa durante algumas horas,
tempo que poderia ter passado na companhia de Agnes. No entanto, como
acreditava que ao agradar sua tia estaria facilitando cada vez mais a nossa
união, eu me submetia de boa vontade à penitência que me era imposta. A
biblioteca de Dona Rodolfa era composta principalmente por antigos
romances espanhóis, que eram os seus estudos favoritos. Uma vez ao dia,
um desses volumes impiedosos era colocado em minhas mãos; eu li as
tediosas aventuras de Perseforest; Tirante, o Branco; Palmerin da
Inglaterra e O Cavaleiro do Sol, até o livro cair das minhas mãos por puro
tédio. Porém, como a baronesa parecia sentir cada vez mais prazer na minha
companhia, eu me sentia encorajado a continuar. Num determinado
momento, sua inclinação por mim tornou-se tão evidente que Agnes
aconselhou-me a aproveitar a primeira oportunidade para anunciar à tia a
paixão mútua que sentíamos.
A oportunidade surgiu quando, em uma tarde, eu me encontrava a sós
com Dona Rodolfa nos seus aposentos. Visto que nossas leituras geralmente
falavam de amor, a presença de Agnes não era permitida. Eu estava
justamente me congratulando por haver terminado Os Amores de Tristão e
Isolda.
— Ah, que infelizes! – choramingou a baronesa. — O que pensa
sobre a história, senhor? Acredita que é possível para um homem sentir um
afeto tão desinteressado e sincero?
— Não tenho dúvidas – repliquei. — Meu próprio coração me
proporciona a prova dessa certeza. Ah, Dona Rodolfa, se eu pudesse contar
com sua aprovação, se pudesse confessar o nome daquela que é dona dos
meus sentimentos sem lhe causar indignação!
Dona Rodolfa me interrompeu:
— Suponha que eu possa poupar-lhe da confissão. E se eu admitisse
que o objeto dos seus desejos não me é desconhecido? E se eu lhe
declarasse que seu afeto é correspondido e que ela lamenta sinceramente
uma infeliz promessa de união que a separa de você?
— Ah, Dona Rodolfa! – exclamei, ajoelhando-me diante dela e
beijando-lhe a mão. — A senhora descobriu meu segredo! E qual é a sua
decisão? Devo perder minhas esperanças ou posso colocar-me em suas
mãos?
Ela não retirou a mão que eu segurava, mas cobriu o rosto com a
outra.
— Como posso recusar? – perguntou. — Ah, Dom Alfonso, há muito
tempo percebi a quem suas atenções eram dirigidas, mas até este momento
não havia me dado conta do efeito que causavam no meu coração. Já não
posso mais esconder minha vulnerabilidade, tanto do senhor quanto de mim
mesma. Eu me rendo à violência da minha paixão e confesso que adoro o
senhor! Por três longos meses tenho reprimido meus desejos, que só
aumentam como resultado dessa resistência a ponto de me vencer pela
intensidade! O orgulho, o medo, a honra, o respeito por mim mesma e o
meu casamento com o barão, tudo foi superado. Sacrifico tudo em nome do
sentimento que tenho pelo senhor e, ainda assim, parece um preço muito
baixo a pagar por esse amor.
Ela ficou em silêncio, aguardando uma resposta. Imagine, Lorenzo, o
quanto fiquei confuso com essa descoberta. Imediatamente me dei conta da
magnitude de um obstáculo que eu mesmo havia construído: a baronesa
tomara para si as atenções que eu lhe dedicava meramente por causa de
Agnes. E a força da sua revelação, os olhares que a acompanharam e a
consciência que eu tinha do seu caráter vingativo me fizeram tremer por
mim mesmo e por minha amada. Fiquei em silêncio por alguns minutos.
Não sabia como reagir a tudo isso. Concluí que não restava mais nada senão
desfazer o mal-entendido e ocultar por algum tempo o nome da minha
querida. Mal havia ela confessado sua paixão quando toda a excitação,
antes tão evidente nas minhas expressões, dava lugar agora à consternação e
constrangimento. Soltei a mão dela e me levantei. Minha mudança de
atitude não escapou à sua observação.
— O que significa esse silêncio? – perguntou com voz trêmula. —
Onde está a alegria que o senhor me induziu a esperar?
— Perdoe-me, senhora – respondi — se a necessidade me obriga a
parecer duro e ingrato; o fato de ter sido induzida a um erro, ainda que eu
me sinta muito lisonjeado com isso, deve ser para a senhora uma grande
decepção e faz com que eu pareça um criminoso aos olhos de todos. A
honra me obriga a informá-la de que a senhora entendeu como solicitude de
amor o que era apenas uma consideração de amizade. Esse era o sentimento
que eu desejava despertar no seu coração. O respeito que tenho por todos e
a gratidão pelo generoso tratamento a mim dispensado pelo barão me
impedem de alimentar pela senhora um sentimento mais ardente. Talvez
estas razões não fossem suficientes para proteger-me dos seus atrativos se
meu afeto já não pertencesse a outra pessoa. A senhora tem tantos encantos
que poderia cativar até mesmo os mais insensíveis. Nenhum homem cujo
coração esteja disponível poderia resistir ao seu charme. Sorte a minha que
já tenho o coração tomado, ou eu lamentaria por toda a vida ter violado as
leis da hospitalidade. Lembre-se, nobre senhora, da sua honra, como eu me
lembro do barão, e substitua por estima e amizade os sentimentos que eu
nunca poderei retribuir.
A baronesa ficou pálida ao ouvir essa declaração inesperada e
indiscutível. Não sabia se estava acordada ou sonhando. Finalmente, ao
recobrar-se da surpresa, a consternação deu lugar à raiva e a cor voltou ao
seu rosto violentamente.
— Vilão! – ela gritou. — Monstro da falsidade! É assim que recebe
minha confissão de amor? É assim que... não, não! Não pode, não deve ser
assim! Alfonso, eis-me aos seus pés! Seja testemunha do meu desespero!
Veja com compaixão uma mulher que o ama com o afeto mais sincero. O
que fez para merecer tamanho tesouro aquela que possui seu coração? Qual
sacrifício ela fez por você? O que a eleva acima de Rodolfa?
Eu fiz com que se levantasse.
— Pelo amor de Deus, senhora, reprima esse arroubo antes que
desgrace a mim e a si mesma. Alguém pode ouvi-la e espalhar o seu
segredo entre os serviçais. Vejo que minha presença só está lhe irritando;
rogo sua permissão para me retirar.
Eu já estava deixando o aposento quando ela repentinamente me
segurou pelo braço.
— E quem é essa feliz rival? – indagou em tom ameaçador. — Quero
saber o nome, e quando eu descobrir... deve ser alguém sob meu comando,
uma vez que o senhor solicitou minha permissão, minha proteção! Espere
até que eu descubra quem é ela, deixe-me descobrir quem ousa roubar de
mim o seu coração, e ela irá sofrer todos os tormentos que o ciúme e a
decepção puderem causar! Quem é ela? Responda-me agora mesmo! Não
pense que pode protegê-la da minha vingança. Colocarei espiões atrás do
senhor, cada passo e cada olhar será observado. Seus olhos entregarão
minha rival. Eu saberei quem é; e, quando eu descobrir, trema, Alfonso, por
ela e por si mesmo!
Ao proferir essas últimas palavras, sua fúria cresceu tanto até o ponto
de cortar-lhe a respiração. Ela ofegou, gemeu e, por fim, desmaiou. Quando
percebi que estava prestes a cair, carreguei-a nos braços até o sofá. Então,
corri até a porta e chamei uma de suas damas de companhia. Deixei-a aos
seus cuidados e aproveitei a ocasião para escapar.
Inexprimivelmente agitado e confuso, decidi caminhar pelo jardim. A
doçura da baronesa no início da nossa conversa elevou minhas esperanças
ao mais alto nível; imaginei que ela havia percebido meu afeto pela
sobrinha e que eu teria sua aprovação. Meu desapontamento ao
compreender o verdadeiro sentido do seu discurso foi tão extremo que
fiquei sem saber o que fazer. As crendices dos pais de Agnes aliadas à
paixão desafortunada de sua tia tornavam-se obstáculos intransponíveis
para nossa união.
Ao passar pelo salão do andar inferior, cujas janelas davam para o
jardim, vi Agnes pela porta entreaberta, sentada à mesa. Ela estava
desenhando e havia diversos esboços inacabados espalhados ao seu redor.
Entrei na sala ainda em dúvida se devia ou não deixá-la a par da declaração
da baronesa.
— Ah, é você – disse ela, erguendo a cabeça. — Como não é mais um
estranho, continuarei minha ocupação sem cerimônia. Pegue uma cadeira e
sente-se ao meu lado.
Obedeci e sentei perto da mesa. Sem saber ao certo o que estava
fazendo e ainda totalmente aturdido pela cena que acabara de presenciar,
apanhei alguns desenhos e passei a vista sobre eles. Um, em especial,
chamou minha atenção pela singularidade do tema. Representava o grande
salão do Castelo de Lindenberg. Uma porta, que levava a uma escadaria
estreita, estava entreaberta. Em primeiro plano havia um grupo de figuras
expostas nas atitudes mais grotescas; cada semblante expressava puro
terror. Uma delas estava de joelhos e olhava fixamente para o céu enquanto
rezava fervorosamente; outra se arrastava para longe do grupo; algumas se
escondiam atrás de suas capas ou de seus companheiros; outras buscavam
refúgio embaixo de uma mesa, sobre a qual era possível ver os restos de um
banquete. As demais mantinham a boca aberta e os olhos escancarados
apontando para uma figura que parecia ser a causa de todo o espanto. Essa
figura representava uma mulher de estatura muito superior à do ser humano,
vestindo o hábito de alguma ordem religiosa. Seu rosto estava oculto por
um véu, carregava um rosário no braço e sua vestimenta continha muitas
manchas de sangue que pingava de uma ferida que tinha no peito. Com uma
das mãos, segurava uma lamparina e, com a outra, uma grande adaga.
Parecia caminhar em direção aos portões de ferro do salão.
— O que isto significa, Agnes? – perguntei. — É alguma invenção
sua?
Ela deu uma olhada no desenho.
— Ah, não – respondeu. — Essa é a invenção de mentes muito mais
sábias do que a minha. Mas como é possível que já esteja vivendo em
Lindenberg há três meses e ainda não tenha ouvido falar da Freira
Sangrenta?
— Você é a primeira pessoa a mencionar este nome na minha frente.
Diga, por favor, quem é esta senhora?
— Isso eu não poderia dizer. Tudo o que sei sobre a história dela é
baseado em uma velha lenda desta família, transmitida de pai para filho e
merecedora de firme crédito por todos nos domínios do barão. Aliás, o
próprio barão acredita na história e minha tia, que tem uma atração especial
pelo extraordinário, duvidaria mais da veracidade dos fatos da Bíblia do que
da história da Freira Sangrenta. Quer que eu lhe conte a história?
Respondi-lhe afirmando que ficaria encantado; ela retomou seu
desenho e começou a relatar os fatos de forma séria e grave.
— É surpreendente que, em todas as crônicas dos tempos passados,
esta notável personagem não tenha sido citada uma só vez. Eu lhe contaria
com prazer tudo sobre a vida dela, mas, lamentavelmente, só ficamos
sabendo da sua existência depois que ela morreu. Após seu falecimento, a
freira achou necessário fazer algum barulho pelo mundo e, com essa
intenção, atreveu-se a tomar posse do Castelo de Lindenberg. Como tinha
muito bom gosto, ela tomou pra si o melhor aposento da casa e, uma vez
instalada, passou a se divertir batendo as mesas e cadeiras no meio da noite.
Talvez tivesse problemas para dormir, mas não há como comprovar este
detalhe. De acordo com a tradição, esta forma de entretenimento teve início
no século passado, sendo acompanhada por gritos, uivos, gemidos,
blasfêmias e outros ruídos desagradáveis da mesma natureza. Embora
apenas um dos aposentos tenha sido especialmente honrado com suas
visitas, ela não se limitava a ele. Às vezes, aventurava-se pelas velhas
galerias e passeava para cima e para baixo nos grandes salões. Outras vezes,
ficava parada na porta dos dormitórios, chorando e gemendo, para o
absoluto terror dos seus habitantes. Nestas excursões noturnas, ela foi vista
por várias pessoas e todas elas a descreviam como você a vê aqui,
desenhada pelas mãos desta humilde investigadora.
A singularidade deste relato cativou minha atenção.
— Ela nunca dirigiu a palavra às pessoas que encontrava? –
perguntei.
— Nunca. Essas manifestações noturnas não eram muito convidativas
para a conversação. Muitas vezes suas pragas e maldições ecoavam pelo
castelo. Na sequência, ela recitava o Pai Nosso para logo depois gritar as
blasfêmias mais terríveis e, então, passava a cantar De Profundis[5] como se
ainda fizesse parte do coral. Em resumo, parecia ser muito versátil. Mas
rezando ou praguejando, mostrando-se irreverente ou devota, ela procurava
sempre aterrorizar os que podiam ouvi-la. Tornou-se cada vez mais difícil
habitar o castelo e seu senhor estava tão assustado com essa farra noturna
que, em uma bela manhã, foi encontrado morto em sua cama. Tal êxito
parecia ter agradado a freira, que passou a fazer mais barulho do que nunca.
Porém, o barão seguinte demonstrou ser astuto demais para ela. Ele trouxe
um conhecido exorcista, o qual não teve medo de passar uma noite no
aposento assombrado. Ao que parece, o homem travou uma terrível batalha
com o fantasma até que este prometesse que ficaria quieto a partir de então.
A freira era obstinada, mas ele era mais e, como consequência, durante
algum tempo os habitantes do castelo puderam desfrutar de boas noites de
sono. Porém, depois de cinco anos, o exorcista morreu e a freira tornou a
aparecer. Dessa vez, no entanto, mostrou-se mais gentil e educada. Ela
caminhava em silêncio e só aparecia uma vez a cada cinco anos. Segundo o
barão, a tradição ainda se mantém. Ele está convencido de que a cada cinco
anos, no dia cinco de maio, assim que o relógio bate uma hora, a porta do
aposento assombrado se abre (repare que a porta deste quarto foi lacrada
por quase um século), então, sai o fantasma da freira carregando sua
lamparina e sua adaga. Ela desce as escadas da torre leste e cruza o grande
salão. Nessa noite, o porteiro sempre deixa os portões do castelo abertos,
em respeito à aparição. Não que isso seja realmente necessário, uma vez
que ela poderia facilmente passar pelo buraco da fechadura se quisesse, mas
por mera cortesia e para evitar aparições depreciativas de sua senhoria, o
fantasma.
— E para onde ela vai, depois de deixar o castelo?
— Para o céu, eu espero. Mas, se for assim, o lugar não deve lhe
agradar, pois ela sempre retorna depois de uma hora. A freira, então, volta
ao seu quarto e não torna a aparecer durante cinco anos.
— E você acredita nisso, Agnes?
— Como pode pensar tal coisa? Não, não, Alfonso. Tenho todos os
motivos para lamentar a influência das superstições, pois eu mesma sou
uma vítima delas. É claro que não demonstro minha incredulidade para a
baronesa, pois ela não tem nenhuma dúvida quanto à veracidade desta
história. Dona Cunegunda, minha governanta, afirma que, quinze anos
atrás, viu o fantasma com seus próprios olhos. Ela me contou que ela e
outros criados foram aterrorizados durante o jantar pela aparição da Freira
Sangrenta, como o fantasma é chamado no castelo. Foi através do seu relato
que produzi este esboço e pode estar certo de que não me esqueci de
Cunegunda. Aqui está ela. Jamais me esquecerei de como ficou zangada por
tê-la desenhado de forma tão fiel.
Ela apontou para a figura burlesca de uma velha em atitude
aterrorizada.
Apesar de todo o meu aborrecimento, não pude deixar de rir com a
imaginação de Agnes: ela desenhou com perfeição o rosto da senhora
Cunegunda, mas exagerou tanto nos seus defeitos que acabou
transformando-a em uma caricatura tão engraçada que não foi difícil
imaginar a raiva da mulher.
— O desenho é admirável, minha querida Agnes! Não sabia que você
possuía tanto talento para captar o ridículo.
— Espere um pouco, vou mostrar-lhe uma figura ainda mais ridícula
do que a senhora Cunegunda. Se quiser, pode ficar com ele, pois acredito
ser apropriado que o possua.
Ela se levantou e caminhou até um armário perto da mesa. Abriu uma
gaveta e tirou de lá uma pequena caixa. Ao abri-la, apresentou o desenho.
— Reconhece este retrato? – perguntou, sorrindo.
Era o seu próprio rosto.
Comovido pelo presente, beijei o retrato com paixão. Atirei-me aos
pés de Agnes e declarei meus agradecimentos de maneira afetuosa e
apaixonada. Ela ouviu com prazer e garantiu que compartilhava dos meus
sentimentos. Subitamente, Agnes deu um grito, retirou a mão que eu
segurava e saiu correndo pela porta que dava para o jardim. Assustado com
aquela saída inesperada, levantei-me rapidamente. Foi então que vi a
baronesa ao meu lado, rubra de ciúme e quase engasgada pela raiva. Desde
que recobrara os sentidos, ela vinha se torturando para descobrir quem era
sua rival e ninguém parecia mais merecedora de suas suspeitas do que
Agnes. Ela imediatamente correu em busca da sobrinha com o propósito de
censurá-la por incentivar meus galanteios e comprovar se suas conjecturas
estavam corretas. Infelizmente, ela tinha visto o suficiente para comprovar
suas suposições. A baronesa apareceu na porta no exato momento em que
Agnes me dava seu retrato; ouviu quando proclamei meu amor eterno por
sua rival e também viu quando me ajoelhei aos pés da moça. Ela entrou no
salão decidida a nos separar, mas como estávamos totalmente absorvidos
um com o outro, não percebemos sua aproximação até que Agnes a viu de
pé, ao meu lado.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Eu, pelo embaraço da
situação; ela, pela raiva. Dona Rodolfa foi a primeira a recobrar a fala.
— Então, minhas suspeitas tinham fundamento – disse ela. — O
coquetismo de minha sobrinha triunfou, e é por ela que sacrifica o meu
amor. Contudo, ao menos em um aspecto tenho consolo: não serei a única a
lamentar uma paixão frustrada. O senhor também conhecerá o amor sem
esperança. A qualquer instante, devo receber instruções para devolver
Agnes aos seus pais. Assim que chegar à Espanha ela irá professar os votos
e uma barreira intransponível será colocada entre vocês. Pode poupar-me
das suas súplicas – ela continuou, percebendo que eu me preparava para
dizer alguma coisa. — Minha decisão já está tomada e não mudarei de
ideia. Sua amada permanecerá trancada feito uma prisioneira em seus
aposentos até o momento de trocar o castelo pelo claustro. Talvez a solidão
lhe devolva o sentido do dever. Mas para evitar que se oponha a tão
desejado acontecimento, devo informá-lo, Dom Alfonso, que sua presença
nesta casa não é mais apreciada pelo barão ou por mim. Não foi para dizer
tolices à minha sobrinha que seus parentes o enviaram à Alemanha. Sua
missão era viajar e eu lamentaria muito postergar por mais tempo um
propósito tão sublime. Adeus, senhor. Lembre-se de que amanhã de manhã
nos veremos pela última vez.
Dito isso, dirigiu-me um olhar repleto de orgulho, desprezo e maldade
e deixou o salão. Eu também me retirei e passei a noite toda planejando
uma maneira de resgatar Agnes do poder daquela tia impiedosa.
Depois dessa comunicação categórica por parte da senhora do castelo,
me foi impossível permanecer por mais tempo em Lindenberg. Assim, nas
primeiras horas do dia seguinte, anunciei minha partida imediata. O barão
declarou que lamentava sinceramente e mostrou-se tão amistoso que tratei
de garantir seu interesse pela minha causa. Porém, mal havia mencionado o
nome de Agnes e o barão me interrompeu dizendo que estava totalmente
fora das suas possibilidades, interferir no assunto. Percebi que seria inútil
discutir, pois a baronesa dominava o esposo de tal forma que não foi difícil
entender que ela já tinha influenciado o barão contra minha união com sua
sobrinha. Agnes não apareceu. Pedi permissão para despedir-me da moça,
mas não tive sucesso. Fui obrigado a partir sem vê-la.
Ao despedir-me do barão, ele estendeu sua mão com afeto e me
garantiu que, tão logo a sobrinha deixasse o castelo, eu poderia retornar a
qualquer tempo.
— Adeus, Dom Alfonso! – disse a baronesa, estendendo a mão.
Eu a tomei e tentei levá-la aos lábios. Ela não permitiu. Seu marido
estava no outro lado da propriedade e não podia nos ouvir.
— Cuide-se – ela continuou. — Meu amor foi transformado em ódio
e meu orgulho ferido não se dará por satisfeito. Aonde quer que o senhor
vá, minha vingança irá acompanhá-lo!
Enquanto dizia estas palavras, seus olhos me faziam tremer. Não
respondi, mas apressei minha saída do castelo.
No momento em que minha carruagem deixava o pátio, olhei para as
janelas dos aposentos de sua irmã, mas não vi ninguém. Voltei para o meu
assento, totalmente desanimado. Os únicos criados que me acompanhavam
era um francês, a quem eu havia contratado em Estrasburgo para ocupar o
lugar de Stéfano, e o pequeno pajem do qual já lhe falei. A fidelidade,
inteligência e bom caráter de Teodoro já tinham conquistado minha estima.
Mas, a partir daquele instante, os serviços prestados pelo rapaz fizeram com
que eu o visse como meu anjo da guarda. Mal havíamos nos afastado do
castelo quando ele colocou a cabeça na porta da carruagem.
— Anime-se, senhor! – disse-me em espanhol, pois já havia
aprendido a falar o idioma com fluência e exatidão. — Enquanto o senhor
conversava com o barão, eu observei o momento em que Dona Cunegunda
estava no andar de baixo e corri para o cômodo que fica acima dos
aposentos de Dona Agnes. Cantei o mais alto que pude uma canção alemã
que sabia que ela conhecia, na esperança de que reconhecesse minha voz.
Não me decepcionei, pois logo ouvi sua janela se abrindo. Ligeiramente,
deixei cair uma corda que tinha comigo. Ao ouvir a janela se fechar, recolhi
a corda e encontrei este bilhete amarrado na ponta.
Ele, então, ofereceu-me o bilhete que estava a mim endereçado. Abri-
o com impaciência e li as seguintes palavras escritas em pincel fino:
“Esconda-se durante os próximos quinze dias em algum vilarejo
vizinho. Minha tia acreditará que você deixou Lindenberg e me devolverá a
liberdade. Eu estarei na ala oeste à meia-noite do dia trinta. Não falte e
teremos a oportunidade de acertar nossos planos futuros. Adeus. Agnes.”
Ao ler essas linhas minha emoção excedeu todos os limites e não sei
dizer quantas vezes agradeci a Teodoro. Na verdade, sua habilidade e
atenção mereciam os aplausos mais entusiasmados. Veja que eu não tinha
lhe revelado minha paixão por Agnes, mas o jovem fora esperto o suficiente
para descobrir meu segredo e, também, muito discreto ao ocultar o que já
sabia. Ele observou em silêncio tudo o que se passou e aguardou até que sua
interferência fosse necessária para poder agir. Admirei sua sensatez, sua
perspicácia, sua habilidade e fidelidade. Esta não foi a primeira ocasião em
que o rapaz me foi de utilidade infinita, e a cada dia que se passava eu me
convencia mais e mais da sua agilidade e capacidade. Durante minha breve
estada em Estrasburgo, ele se dedicou diligentemente a aprender as
primeiras noções da língua espanhola. Ele continuou seus estudos e logo
passou a falar espanhol com a mesma facilidade com que falava sua língua
materna. Passava quase todo o tempo lendo. Tinha adquirido muitos
conhecimentos para sua pouca idade, e adicionou ao seu rosto cheio de vida
e à sua figura bem-apessoada uma inteligência excepcional e o melhor dos
corações. O rapaz tem hoje quinze anos. Ainda trabalha para mim e, quando
você tiver a oportunidade de vê-lo, estou certo de que ele o agradará. Mas
peço desculpas pela interrupção e volto ao tema que interrompi.
Obedeci às instruções de Agnes e parti pra Munique. Deixei minha
carruagem aos cuidados de Lucas, meu criado francês, e retornei a cavalo
até um pequeno vilarejo cerca de quatro milhas distante do castelo de
Lindenberg. Ao chegar, contei uma história ao dono da estalagem onde me
hospedei, para que não estranhasse minha longa estadia em sua casa.
Felizmente, o velho senhor era muito crédulo e pouco curioso. Acreditou
em tudo o que eu disse e não quis saber nada além do que considerei
necessário dizer. Só Teodoro havia me acompanhado. Nós dois usávamos
disfarces e, assim, ninguém suspeitou que fôssemos outra coisa além do que
parecíamos ser. Dessa forma, duas semanas se passaram. Nesse meio
tempo, tive a comprovação de que Agnes estava mais uma vez em
liberdade. Ela passou pelo vilarejo com Dona Cunegunda e parecia estar
saudável e animada, conversando com sua acompanhante sem a menor
limitação.
— Quem são as damas? – perguntei ao meu anfitrião quando a
carruagem passou.
— A sobrinha do Barão de Lindenberg e sua governanta – respondeu-
me. — Ela vai todas as sextas-feiras ao Convento de Santa Catarina, onde
cresceu, a uma milha de distância daqui.
É claro que aguardei impacientemente a chegada da próxima sexta-
feira. Mais uma vez pude ver minha amada. Ela olhou para mim quando
passava em frente à estalagem; o rubor que inundou seu rosto deu-me a
certeza de que havia me reconhecido. Fiz uma reverência e ela devolveu o
cumprimento com uma inclinação de cabeça, como normalmente fazemos
com alguém em posição inferior. Ela olhou para o outro lado até a
carruagem se perder de vista.
Finalmente a noite tão desejada e esperada chegou. Reinava uma
grande quietude e a lua estava cheia. Assim que o relógio marcou onze
horas dirigi-me ao local combinado, ansioso para não me atrasar. Teodoro
tinha providenciado uma escada feita de cordas e eu pude escalar o muro do
jardim sem dificuldades. O pajem me seguiu e retirou a escada. Aproximei-
me da ala oeste e aguardei impacientemente pela chegada de Agnes. A cada
brisa que sussurrava e cada folha que caía, eu acreditava serem seus passos
e corria ao seu encontro. Assim me vi obrigado a passar uma hora inteira, e
cada minuto parecia um século. Por fim, o sino do castelo bateu às doze
horas e eu mal pude acreditar que a noite avançava tão devagar. Outro
quarto de hora se passou até que, finalmente, ouvi os passos leves da minha
amada se aproximando do pavilhão. Corri ao seu encontro e a conduzi até
um assento. Atirei-me aos seus pés e tentei expressar toda a alegria que
sentia ao vê-la, quando fui interrompido:
— Não temos tempo a perder, Alfonso. Cada minuto é precioso, pois
ainda que eu não seja mais uma prisioneira, cada passo meu é vigiado por
Cunegunda. Recebemos uma carta do meu pai. Devo partir imediatamente
para Madri e foi com muita dificuldade que consegui adiar a viagem por
uma semana. A superstição dos meus pais, apoiada pelas declarações da
minha tia cruel, não me deixam ter esperanças de apaziguá-los e obter
compaixão. Diante de tal dilema, decidi entregar-me à sua honra. Deus
queira que você nunca me dê motivos para que me arrependa desta decisão!
Fugir é a única maneira de escapar dos horrores de um convento e a minha
imprudência justifica-se pela iminência do perigo. Agora, ouça o plano para
minha fuga: hoje é dia trinta de abril. O fantasma da freira é esperado
dentro de cinco dias. Na minha última visita ao convento, consegui um traje
apropriado para interpretar essa personagem. Uma amiga que permanece no
convento, e para quem confidencio todos os meus segredos, aceitou de bom
grado providenciar um hábito de religiosa para mim. Providencie uma
carruagem e fique aguardando a pouca distância dos portões do castelo.
Assim que o relógio soar uma hora da madrugada, devo deixar meus
aposentos vestida da mesma forma como se espera ver o fantasma.
Qualquer pessoa que me encontrar ficará tão assustada que nada fará para
impedir minha fuga. Devo chegar ao portão sem dificuldade e, então,
estarei sob sua proteção. Não há como dar errado; mas, Alfonso, se você me
enganar, se desprezar minha imprudência e me pagar com ingratidão, não
haverá no mundo uma criatura mais miserável do que eu. Tenho consciência
dos perigos que corro e sei que estarei lhe dando o direito de me tratar com
leviandade, mas acredito em seu amor e sua honra. O passo que estou
disposta a dar irá colocar minha família contra mim; se me abandonar, se
trair a confiança que deposito em você, eu não terei nenhum amigo para
castigá-lo ou defender minha causa. Toda a minha esperança está em você
e, se o seu coração não estiver comigo, eu estarei perdida para sempre.
O tom em que ela proferia essas palavras era tão comovente que,
apesar da minha alegria ao ouvir sua promessa de me acompanhar, não pude
deixar de sentir uma grande emoção. Eu lamentava em segredo o fato de
não ter tido a precaução de trazer um coche até o vilarejo, ou poderia ter
partido com Agnes naquela mesma noite. Quanto a isso, nada podia fazer,
pois havia deixado minha carruagem e meus cavalos em Munique, cuja
distância de Lindenberg era de dois dias inteiros de viagem. Portanto, fui
obrigado a concordar com seu plano – o qual parecia ser, na verdade, muito
bom. Seu disfarce impediria que fosse detida no momento de sair do castelo
e lhe permitiria entrar na carruagem que já estaria no portão, sem
dificuldade ou perda de tempo.
Agnes apoiou a cabeça no meu ombro e, pela claridade da lua, pude
ver que lágrimas corriam por suas bochechas. Encontrei forças para dissipar
sua tristeza e a encorajei a pensar na nossa felicidade futura. Prometi
solenemente que sua virtude e inocência estariam a salvo sob minha
proteção e que, até que se tornasse minha esposa aos olhos da igreja, sua
honra seria para mim tão sagrada quanto a de uma irmã. Afirmei que minha
primeira providência seria encontrá-lo, Lorenzo, para que aprovasse nossa
união. Eu continuava dizendo coisas desse tipo quando um ruído chamou
minha atenção. De repente, a porta do pavilhão se abriu e Cunegunda surgiu
diante de nós. Ela tinha percebido que Agnes saíra sigilosamente do quarto,
seguiu-a até o jardim e observou-a entrando no pavilhão. Protegida pela
sombra das árvores, conseguira passar despercebida por Teodoro, que
esperava perto dali. Aproximou-se em silêncio e ouviu toda a nossa
conversa.
— Admirável! – exclamou Cunegunda, com a voz trêmula de raiva,
enquanto Agnes soltava um grito de terror. — Por Santa Bárbara, que
excelente ideia a senhorita teve! Deixar-se passar pela freira sangrenta! Que
barbaridade! Que impiedosa! Sim, penso em deixá-la levar seu plano
adiante e, quando encontrar o verdadeiro fantasma, eu garanto, que bela
situação terá diante de si! Dom Alfonso, o senhor deveria envergonhar-se
por seduzir uma criatura tão jovem e ignorante e por incentivá-la a
abandonar sua família e seus amigos. No entanto, pelo menos desta vez,
devo frustrar seus projetos malvados. A baronesa será informada de tudo
isto e Agnes terá de aguardar por uma ocasião mais propícia para
representar o fantasma. Adeus, senhor. Dona Agnes, permita-me
acompanhar sua figura espectral de volta aos seus aposentos.
Ela aproximou-se do assento onde sua pupila estava sentada e pegou-
a pela mão. Já estava se preparando para deixar o pavilhão quando eu a
detive, com súplicas, promessas e adulações, tudo para trazê-la para o meu
lado. Quando percebi que tudo o que dizia não apresentava nenhum
proveito, abandonei a vã tentativa.
— Sua obstinação será seu próprio castigo – disse eu. — Ainda tenho
um último recurso para salvar Agnes e não hesitarei em usá-lo.
Apavorada com a ameaça, ela mais uma vez tentou abandonar o
pavilhão. No entanto, eu a segurei pelo pulso e a detive à força. Nesse
momento, Teodoro surgiu, fechou a porta e impediu sua saída. Peguei o véu
de Agnes e com ele enrolei a cabeça da governanta, que soltava gritos tão
estridentes que temi que pudessem ser ouvidos do castelo, apesar da
distância. Por fim, consegui amordaçá-la tão completamente que ela não
pôde mais produzir som algum. Eu e Teodoro, ainda que com alguma
dificuldade, conseguimos amarrar suas mãos e pés com nossos lenços.
Aconselhei Agnes a retornar aos seus aposentos o mais rápido possível.
Prometi-lhe que não faria nenhum mal a Cunegunda e que no dia cinco de
maio estaria esperando por ela no principal portão do castelo. Despedimo-
nos carinhosamente. Assustada e preocupada, Agnes mal teve forças para
manifestar sua conformidade com o plano e correu para o dormitório com o
pensamento transtornado e confuso.
Nesse meio tempo, Teodoro me ajudou a carregar minha idosa
prisioneira. Nós içamos seu corpo por cima do muro e o colocamos sobre o
meu cavalo, diante de mim, feito uma maleta de viagem, e partimos a
galope para longe do Castelo de Lindenberg. Aquela mulher infeliz nunca
havia feito uma viagem tão desagradável em toda a sua vida. Ela passou por
tantos solavancos e foi tão sacudida que, ao final, parecia estar pouco mais
animada do que uma múmia. E eu nem mencionei o medo que sentiu
quando cruzamos um pequeno riacho no caminho do vilarejo. Antes de
chegar à estalagem, eu já havia decidido o que fazer com a problemática
Cunegunda. Ao entrarmos na rua da hospedaria, enquanto o pajem batia na
porta, eu esperei a uma pequena distância. O senhorio abriu a porta com
uma lamparina nas mãos.
— Dê-me a vela – pediu Teodoro. — Meu mestre está chegando.
Ele pegou a lamparina com rapidez e, deliberadamente, deixou que
caísse no chão. O homem voltou para a cozinha a fim de reacendê-la,
deixando a porta aberta. Aproveitando a escuridão, desmontei do cavalo
com Cunegunda nos braços, subi as escadas correndo, entrei no meu
cômodo sem ser visto e, abrindo a porta de um roupeiro espaçoso, coloquei-
a lá dentro e tranquei o móvel com a chave. O senhorio e Teodoro logo
chegaram com as velas. O primeiro mostrou-se surpreendido pelo meu
regresso tão tarde da noite, mas não fez nenhuma pergunta indiscreta. Em
seguida ele saiu e me deixou exultando com o sucesso da minha façanha.
Imediatamente fui ver a prisioneira. Tentei persuadi-la a submeter-se
com paciência ao seu confinamento provisório. Todas as minhas tentativas,
porém, foram inúteis. Impossibilitada de falar ou mover-se, ela expressava
sua fúria com os olhos e, com exceção dos momentos de alimentação, eu
não me atrevia a desatar suas amarras ou retirar sua mordaça. Nessas
ocasiões eu mantinha uma espada de prontidão e a ameaçava, dizendo que,
se ela emitisse qualquer som, eu cravaria a arma no seu peito. Logo que ela
terminava a refeição, a mordaça era colocada de volta. Eu sabia que tal
procedimento era muito cruel; porém, plenamente justificado pela
circunstância. Quanto a Teodoro, o rapaz não tinha nenhum escrúpulo com
relação ao assunto. A prisão de Cunegunda o divertia muito, pois durante
sua estada no castelo, existia uma guerra constante entre os dois. Agora, que
mantinha a inimiga sob seu poder, desfrutava do seu triunfo sem nenhuma
piedade. Parecia não pensar em outra coisa a não ser em novas formas de
atormentá-la. Às vezes, fingia compadecer-se da sua sorte para logo rir da
sua desgraça, proferindo insultos e até imitando a mulher. Ele lhe pregava
inúmeras peças, uma mais maldosa do que a outra, e divertia-se dizendo
que seu sequestro devia ter causado uma grande surpresa na residência do
barão. E isso era verdade. Ninguém além de Agnes poderia imaginar o que
de fato havia acontecido com Dona Cunegunda. Ela foi procurada em todos
os cantos; dragaram o lago e fizeram uma busca completa no bosque.
Mesmo assim, Dona Cunegunda continuava desaparecida. Agnes mantinha
o segredo e eu mantinha a governanta. A baronesa, ainda que ignorasse por
completo o destino da velha senhora, suspeitava de um suicídio. Assim
passaram-se os próximos cinco dias, período em que me dediquei a preparar
tudo o que era necessário para a execução do nosso plano. Ao despedir-me
de Agnes, minha primeira atitude foi enviar um aldeão com uma carta para
Lucas em Munique, solicitando providências para que uma carruagem com
quatro cavalos estivesse no povoado de Rosenwald na noite de cinco de
maio, pontualmente às dez horas. O rapaz obedeceu minhas instruções e o
coche chegou na hora marcada. Quanto mais se aproximava o momento da
fuga da sua ama, mais aumentava a raiva de Cunegunda. Cheguei realmente
a pensar que sua ira e indignação acabariam por matá-la, mas, por sorte,
descobri sua inclinação por licor de cerejas. A mulher foi mantida
devidamente suprida por sua bebida favorita e, como era constantemente
vigiada por Teodoro, sua mordaça podia ser removida de tempos em
tempos. A bebida parecia produzir o maravilhoso efeito de suavizar a
rispidez da sua natureza e, tendo em vista que seu confinamento não lhe
permitia nenhuma outra diversão, costumava embriagar-se regularmente
uma vez ao dia, só para passar o tempo.
Enfim, chegou o dia cinco de maio, data que jamais esquecerei. Antes
que o relógio soasse as doze badaladas, dirigi-me ao local combinado.
Teodoro seguia a cavalo. Escondi a carruagem em uma espaçosa caverna na
mesma montanha onde o castelo fora erguido. O local possuía uma
profundidade considerável e era conhecido como a Caverna de Lindenberg.
A noite estava calma e bonita; a lua iluminava as antigas torres do castelo e
derramava os raios prateados sobre seus cumes. Tudo estava quieto, não se
ouvia nada além da brisa da noite suspirando entre as folhas, os distantes
latidos dos cães do vilarejo ou a coruja que se instalara em um rincão na
torre oriental abandonada. Ouvi seu piado melancólico e olhei para cima.
Ela havia pousado no parapeito de uma janela, a qual reconheci como a
janela do quarto assombrado. Lembrei-me da história da freira sangrenta e
suspirei ao pensar na influência de uma superstição e na fraqueza da razão
humana. De repente, ouvi um fraco coro em meio ao silêncio da noite.
— O que pode ter causado este som, Teodoro?
— Um homem estrangeiro – respondeu ele — passou hoje pelo
povoado a caminho do castelo. Dizem que é o pai de Dona Agnes. Com
certeza o barão está dando uma festa para celebrar sua chegada.
O sino do castelo anunciou a meia-noite. Este era o sinal habitual para
que a família se retirasse para dormir. Pouco depois, percebi luzes no
castelo que se moviam de um lado ao outro em direções distintas, e concluí
que as pessoas estavam se separando. Pude ouvir o ranger das portas
pesadas sendo abertas com dificuldade e o tremor dos seus caixilhos
carcomidos quando novamente fechadas. O dormitório de Agnes era
situado no outro lado do castelo. Eu imaginava se ela teria conseguido a
chave do aposento assombrado; era necessário que passasse por esse
cômodo para chegar à estreita escadaria por onde se acreditava que o
fantasma desceria para o grande salão. Angustiado, mantive os olhos
constantemente fixos na janela, onde esperava avistar o resplendor amistoso
de uma lamparina trazida por Agnes. Já podia ouvir as portas maciças sendo
desaferrolhadas. Reconheci o velho porteiro, Conrado, pela vela em suas
mãos. Ele abriu os portões de par em par e se retirou. As luzes no castelo
foram desaparecendo gradativamente até que todo o prédio fosse envolvido
pela escuridão.
Enquanto esperava sentado na ponte quebrada de uma colina, a
quietude do cenário me trouxe ideias melancólicas, mas não de todo
desagradáveis. O castelo, agora visto na sua totalidade, formava uma
imagem pitoresca e terrível ao mesmo tempo. Suas muralhas pesadas sendo
iluminadas pela lua, suas torres antigas e parcialmente destruídas erguendo-
se por entre as nuvens e dominando as planícies ao redor, suas ameias
cobertas de hera e sua ponte levadiça agora baixada em honra da ilustre
habitante fantasmagórica; tudo provocava em mim uma sensação de tristeza
e horror. Ainda assim, não havia perdido a noção do tempo que passava
vagarosamente. Aproximei-me do castelo e me aventurei a caminhar por
ali. Uns poucos raios de luz brilhavam nos aposentos de Agnes. Eu
observava essa luz com alegria quando percebi alguém se aproximar da
janela e fechar completamente as cortinas para ocultar a claridade da
lamparina. Convencido de que Agnes não tinha abandonado nosso plano,
retornei animadamente ao meu posto.
O relógio soou meia hora e depois três quartos de hora. Meu coração
batia forte com esperança e expectativa. Finalmente, o horário esperado
havia chegado! O sino bateu uma hora da madrugada e a mansão
reproduziu seu tinido grave e solene. Olhei para cima, fitando a janela do
quarto assombrado. Apenas cinco minutos se passaram até que vi surgir a
tão aguardada luz. Eu me achava, agora, perto da torre. Sua janela não
ficava muito longe do chão e pude perceber uma figura feminina que se
movia lentamente pelo aposento, carregando uma lamparina nas mãos. A
luz logo desapareceu e tudo ficou escuro e tenebroso outra vez.
Ocasionalmente, algumas luzes piscavam nas janelas da escadaria à
medida que o adorável fantasma passava por elas. Segui a luz através do
salão; ela chegou à entrada e, por fim, vi Agnes cruzar a ponte levadiça. Ela
estava vestida exatamente como a aparição era descrita. Tinha um rosário
de contas nos braços, a cabeça estava escondida por um longo véu branco, o
hábito de freira estava manchado de sangue e ela tivera o cuidado de
carregar uma lamparina e uma adaga. Ela veio até o lugar onde eu estava.
Corri ao seu encontro e agarrei-a em meus braços.
— Agnes! – exclamei, enquanto a apertava contra o peito. — Agnes!
Agnes! Você é minha! Agnes! Agnes! Eu sou seu! Pelo tempo em que o
sangue correr em minhas veias, você será minha! Eu serei seu! É seu o meu
corpo! É sua a minha alma.
Aterrorizada e sem fôlego, ela foi incapaz de dizer alguma coisa.
Deixou cair a lamparina e a adaga e mergulhou no meu peito em silêncio.
Ergui-a nos braços e a levei até a carruagem. Teodoro manteve-se atrás de
nós para libertar Dona Cunegunda. Eu também lhe incumbi de deixar uma
carta para a baronesa onde explicava todo o ocorrido ao mesmo tempo em
que suplicava que utilizasse seus bons ofícios para tentar reconciliar a união
entre Dom Gastón e a filha. Na carta, eu revelava meu nome verdadeiro e
provava a ela que minha origem e também minhas expectativas
justificavam as aspirações de me casar com sua sobrinha, e ainda lhe
garantiam que, ainda que me fosse impossível retribuir seu amor, eu lutaria
incansavelmente para obter sua estima e amizade.
Entrei no coche, onde Agnes já estava sentada. A porta foi fechada e
os cocheiros deram início à marcha. A princípio fiquei satisfeito com aquele
ritmo rápido, mas assim que passou o perigo de sermos perseguidos, pedi-
lhes que moderassem o passo. Eles até tentaram seguir minhas ordens;
porém, os cavalos recusaram-se a obedecer ao comando das rédeas e
continuaram a correr assustadoramente. Os homens redobraram os esforços
para deter os animais que, através de coices e saltos, conseguiram livrar-se
das amarras. Com um grito terrível, os condutores foram arremessados ao
solo. Nesse mesmo instante, nuvens espessas escureceram o céu. Ventos
fortes uivavam ao nosso redor, relâmpagos riscavam a escuridão e trovões
ecoavam tremendamente. Eu nunca antes presenciara uma tempestade tão
assustadora. Apavorados, os cavalos aumentavam a velocidade cada vez
mais. Nada podia interromper sua carreira. Eles arrastaram a carruagem
através de cercas e valas, saltaram os barrancos mais perigosos e pareciam
competir com o vento para saber quem era o mais veloz.
Enquanto tudo isso acontecia, minha companheira permanecia imóvel
em meus braços. Muito alarmado pela magnitude do perigo, eu tentava
fazê-la recobrar os sentidos quando um estrondo altíssimo anunciou que
nossa jornada havia chegado ao fim da maneira mais desagradável. A
carruagem se partira aos pedaços. Na queda, bati a cabeça contra uma
pedra. A dor do ferimento, a violência do choque e a ansiedade pela
segurança de Agnes me dominaram completamente. Os sentidos me
abandonaram e caí desmaiado no chão.
Provavelmente permaneci neste estado por muito tempo, pois quando
abri os olhos já era dia claro. Vários camponeses encontravam-se parados
ao meu redor; eles pareciam discutir se eu me recuperaria ou não. Eu falava
alemão razoavelmente bem e, tão logo me foi possível articular algum som,
perguntei por Agnes. Imagine minha surpresa e desespero quando os
homens me asseguraram que não tinham visto ninguém que correspondesse
àquela descrição. Contaram-me que, ao se dirigirem ao trabalho diário,
foram surpreendidos com os destroços da minha carruagem e os gemidos de
um cavalo, o único dos quatro que sobrevivera; os outros três jaziam ao
meu lado. Não havia ninguém comigo quando eles chegaram e muito tempo
se passou até que eles conseguissem me reanimar. Eu estava tão aflito com
relação ao paradeiro da minha companheira que supliquei aos aldeões que
organizassem uma busca nos arredores. Descrevi sua aparência e prometi
uma imensa gratificação para quem trouxesse alguma notícia. Quanto a
mim, era impossível partir em sua procura, pois tinha quebrado duas
costelas. Meu braço, que estava deslocado, pendia inutilmente em paralelo
ao corpo, e minha perna esquerda fora tão machucada que eu não acreditava
poder recuperar seu uso algum dia.
Os camponeses atenderam ao meu pedido: todos partiram, com
exceção de quatro, que confeccionaram uma padiola com alguns galhos e se
dispuseram a me transportar até a cidade vizinha. Perguntei o nome dessa
cidade e me disseram que era Ratisbon. Não pude acreditar que tinha
percorrido uma distância tão considerável em uma só noite. Contei que,
pouco depois da uma hora da madrugada, eu havia cruzado o vilarejo de
Rosenwald. Os homens sacudiram a cabeça com tristeza e fizeram sinais
uns aos outros de que eu provavelmente estava delirando. Fui levado até
uma hospedaria decente e colocado na cama. Chamaram um médico que foi
capaz de encaixar meu braço no lugar com muito sucesso. Ele, então,
examinou meus outros ferimentos e disse que eu não deveria me preocupar
com sequelas de nenhum deles, mas ordenou que permanecesse imóvel e
que me preparasse para uma cura penosa e enfadonha. Respondi-lhe que, se
esperava que eu ficasse imobilizado, deveria tentar descobrir alguma notícia
sobre a dama que abandonara Rosenwald em minha companhia na noite
anterior, e que estava comigo no instante em que o coche quebrou. Ele
sorriu e limitou-se a recomendar tranquilidade para que eu pudesse me
curar da forma mais apropriada. Nem bem me deixou, ouvi quando
conversava com a dona do estabelecimento na porta do meu quarto.
— O cavalheiro não está no seu juízo perfeito – falou em voz baixa.
— É uma consequência natural da queda, mas dever passar logo.
Os camponeses retornaram à hospedaria, um atrás do outro, e me
informaram de que nenhum rastro da minha desafortunada dama fora
descoberto.
Minha preocupação transformou-se em desespero. Supliquei que
voltassem a procurá-la e dobrei as promessas de recompensa que havia
feito. Minha atitude frenética e atropelada confirmou aos presentes a ideia
de que eu delirava. Visto que não existia nenhum indício da dama,
acreditavam que se tratava de uma criatura fabricada pela minha mente
febril e não deram atenção às minhas súplicas. No entanto, minha anfitriã
garantiu que fariam uma nova investigação. Mais tarde, descobri que só
fizera a promessa com o intuito de me tranquilizar. Nada foi feito neste
sentido.
Embora minha bagagem estivesse em Munique aos cuidados do meu
criado francês, como havia me preparado para uma longa viagem, minha
maleta estava bem provida. Além disso, minhas vestimentas demonstravam
que eu era um homem distinto e, em consequência disso, todas as atenções
possíveis me foram prestadas. O dia transcorreu sem que eu tivesse
qualquer notícia de Agnes. A ansiedade do temor deu lugar ao desânimo.
Deixei de perguntar insistentemente por ela e mergulhei em um mar de
reflexões melancólicas. Percebendo-me silencioso e tranquilo, meus
cuidadores acreditaram que o delírio tinha cessado e que meu padecimento
havia apresentado alguma melhora. De acordo com as ordens do médico,
ingeri um preparado medicinal e, assim que a noite chegou, todos se
retiraram e me deixaram descansar.
O repouso pouco ajudou. A agitação do meu peito afugentava o sono.
A mente inquieta, apesar da fadiga do corpo, seguia me atormentando até
que o relógio de um campanário vizinho soou uma hora. Logo que escutei
seu som fúnebre que se desvanecia como vento, senti um súbito calafrio
percorrer o corpo inteiro. Estremeci sem saber a razão; gotas de suor
escorriam pela minha testa e meus cabelos se eriçaram, alarmados.
Subitamente, ouvi passos lentos e pesados subindo a escada. Movido por
um impulso involuntário, levantei e abri a cortina. Uma simples vela
colocada sobre a lareira espalhava um brilho fraco por todo o aposento de
paredes cobertas por tapeçaria. A porta foi aberta com violência. Uma
figura surgiu e se aproximou da minha cama com passos solenes e
comedidos. Muito assustado, examinei aquela visitante noturna. Deus Todo
Poderoso! Era a Freira Sangrenta! Ela era a minha companheira
desaparecida! Seu rosto ainda estava coberto, mas ela não carregava mais a
lamparina nem a adaga. Ela ergueu o véu lentamente, oferecendo uma visão
terrível aos meus olhos amedrontados! Eu estava olhando para um cadáver
animado. Seu rosto era comprido e desfigurado, não havia sangue nos
lábios ou bochechas, todos os seus traços apresentavam a palidez da morte e
o globo dos olhos, que tão fixamente me fitavam, estavam apagados e
vazios.
Contemplei aquele espectro com um horror tão grande que é
impossível descrever. O sangue congelou em minhas veias. Quis gritar por
socorro, mas nenhum som passou pelos meus lábios; os nervos
permaneciam impotentes e meu corpo ficou inerte feito uma estátua.
A freira irreal me fitou por alguns minutos em silêncio. Havia algo
petrificante nesse olhar. Por fim, com uma voz muito baixa e profunda ela
pronunciou as seguintes palavras:
— Ramón! Ramón! Tu és meu! Ramón! Ramón! Eu sou tua! Pelo
tempo em que o sangue correr em tuas veias, eu serei tua! Tu és meu! Meu
é o teu corpo! Minha é a tua alma!
Com a respiração paralisada pelo medo, eu a ouvi repetir minhas
próprias palavras. A aparição sentou-se diante de mim, aos pés da cama, e
ficou em silêncio. Seus olhos estavam cravados nos meus e pareciam
dotados do mesmo poder que uma cascavel, pois eu não conseguia me
desvencilhar deles. Estava fascinado e não tinha forças para desviar meu
olhar do olhar da assombração.
Ela manteve a mesma atitude durante uma hora inteira sem falar ou se
mover. Eu também não era capaz de fazer nada. Finalmente, o relógio soou
duas horas. A aparição levantou-se e aproximou-se de mim. Com seus
dedos gelados ela pegou minha mão que pendia sem vida sobre a coberta e
beijou meus lábios, dizendo outra vez:
— Ramón! Ramón! Tu és meu! Ramón! Ramón! Eu sou tua! Etc.
Ela soltou minha mão, deixou o aposento com passos lentos e a porta
se fechou atrás dela. Até aquele momento, as faculdades do meu corpo
estiveram suspensas. Só a minha mente mantivera-se alerta. O encanto,
agora, estava rompido. O sangue, antes congelado nas veias, corria de volta
para o meu coração com violência. Soltei um gemido profundo e afundei
inerte no travesseiro.
O aposento contíguo era separado do meu por uma estreita divisória;
era ocupado pelo dono da hospedaria e sua esposa. O homem acordou com
o meu gemido e correu para o meu quarto; sua mulher veio um pouco
depois. Com alguma dificuldade, conseguiram me reanimar e
imediatamente chamaram o médico, que chegou depressa. Ele declarou que
minha febre havia subido muito e que, se eu continuasse tão agitado como
estava, não poderia responder por minha vida. Os medicamentos
administrados me tranquilizaram um pouco mais. Quando o dia amanheceu
eu ainda estava sonolento, mas pesadelos terríveis impediram qualquer
descanso. Agnes e a freira sangrenta se alternavam na minha imaginação e,
juntas, perturbavam e atormentavam minha alma. Acordei cansado e
desanimado. Minha febre parecia ter aumentado muito ao invés de diminuir
e a aflição da minha mente impedia que meus ossos fraturados se
regenerassem. Tive vários desmaios e durante todo o dia o médico não
julgou prudente que eu ficasse sozinho.
Devido à singularidade da minha aventura, decidi ocultá-la dos
demais, já que não esperava que acreditassem em uma história tão estranha.
Eu estava muito inquieto com relação à Agnes. Eu desconhecia sua reação
ao não me encontrar no local combinado e temia que duvidasse da minha
fidelidade. No entanto, eu confiava na discrição de Teodoro e acreditava
que minha carta para a baronesa pudesse convencê-la da seriedade das
minhas intenções. De alguma forma, essas ponderações aliviaram minhas
preocupações. Porém, a impressão deixada pela visitante noturna ficava
mais forte a cada momento. Conforme a noite se aproximava, mais
assustado eu ficava. Mesmo assim, tentava me convencer de que o fantasma
não apareceria novamente, e tudo o que eu desejava é que um criado
velasse o meu sono no quarto.
A fadiga do meu corpo, por não ter descansado na noite anterior,
associada aos fortes soníferos que havia ingerido, finalmente me
ofereceram o repouso de que tanto precisava. Caí em um sono profundo e
tranquilo e já dormia a algumas horas quando fui despertado por um relógio
que soava uma hora da madrugada. Todo o horror da noite anterior voltou à
minha memória. O mesmo suor frio tomou conta de mim. Eu me sentei e
encarei o criado que dormia em uma poltrona ao lado da minha cama.
Chamei-o pelo nome, mas ele não respondeu. Sacudi-o pelo braço com toda
a força na tentativa de despertá-lo, mas ele permanecia insensível aos meus
esforços. Então, comecei a ouvir passos subindo as escadas, a porta foi
aberta de uma só vez, e novamente a Freira Sangrenta aparecia diante de
mim; mais uma vez, meus membros ficaram paralisados e mais uma vez
ouvi aquelas palavras sinistras:
— Ramón! Ramón! Tu és meu! Ramón! Ramón! Eu sou tua! Etc.
E novamente a cena que tanto me chocara na noite anterior se repetia
diante de mim. O espectro beijou meus lábios como da primeira vez, me
tocou com seus dedos putrefatos e, de novo, abandonou o aposento quando
o relógio soou duas horas.
Esse fenômeno se repetiu todas as noites. Longe de me acostumar
com a aparição, suas sucessivas visitas me deixavam cada dia mais
apavorado. A imagem da freira me perseguia sem cessar e eu me tornei
presa de uma melancolia permanente. A constante agitação do meu cérebro
atrasava o restabelecimento natural da minha saúde. Vários meses se
passaram até que eu pudesse deixar a cama, e quando fui finalmente levado
para um sofá, estava tão fraco, magro e abatido que não podia andar pelo
quarto sem ajuda de alguém. Os olhares dos meus cuidadores revelavam a
pouca esperança que tinham na minha recuperação. Minha profunda tristeza
levava o médico a acreditar que eu fosse hipocondríaco. A causa da minha
angústia, no entanto, eu guardava dentro do peito, pois sabia que ninguém
poderia me ajudar: o fantasma não podia ser visto por nenhuma outra
pessoa além de mim. Sempre insisti para que um criado ficasse no quarto
comigo, mas no segundo em que o relógio marcava uma hora, um sono
avassalador tomava conta dele e assim permanecia até a partida do
fantasma.
Pode parecer estranho que durante todo esse tempo eu não tenha
indagado sobre sua irmã, mas Teodoro – que, com alguma dificuldade, tinha
conseguido descobrir meu paradeiro – tranquilizou-me quanto à segurança
dela. Simultaneamente, ele me convenceu de que qualquer tentativa da
minha parte para libertá-la do cativeiro seria inútil até que eu tivesse
condições de retornar à Espanha. Os detalhes da história que agora vou lhe
contar me foram narrados parcialmente por Teodoro e também pela própria
Agnes.
Naquela noite fatídica, quando seu rapto deveria ter acontecido, um
incidente impediu-a de deixar o aposento no horário combinado. Enfim ela
conseguiu se aventurar pelo quarto assombrado e descer as escadas que
levavam ao salão. Ela encontrou os portões abertos, como já esperava, e
deixou o castelo sem ser notada. Qual não foi sua surpresa quando percebeu
que eu não estava lá para recebê-la! Ela inspecionou a caverna, vagueou
pelos bosques vizinhos e passou duas horas numa busca infrutífera. Não
conseguiu ver nenhum sinal, nem de mim, nem da carruagem. Preocupada e
ao mesmo tempo decepcionada, sua única alternativa era retornar ao castelo
antes que a baronesa sentisse sua falta. Foi então que se deparou com um
novo empecilho: o sino já havia soado duas horas da madrugada. A hora do
fantasma já tinha passado e os portões já estavam trancados pelo cauteloso
porteiro. Hesitou por alguns momentos, mas, por fim, decidiu bater na
porta. Por sorte, Conrado ainda estava acordado. Ele ouviu as batidas e logo
se levantou sem que precisasse ser chamado pela segunda vez. Assim que
abriu a porta e viu a suposta aparição esperando que a deixassem entrar, o
homem deu um grito e caiu de joelhos. Agnes aproveitou o momento e
correu para os seus próprios aposentos, livrou-se do traje de fantasma que
usava e jogou-se na cama, esforçando-se em vão para encontrar uma
explicação para o meu desaparecimento.
Nesse meio tempo, quando Teodoro viu minha carruagem passar com
a falsa Agnes em minha companhia, retornou alegremente ao vilarejo. Na
manhã seguinte, libertou Cunegunda e a acompanhou até o castelo. Lá, ele
encontrou o barão, sua senhora e Dom Gastón discutindo os relatos do
porteiro. Todos acreditavam na existência de fantasmas, mas Dom Gastón
afirmava que nunca se ouvira falar de um fantasma que batesse à porta para
entrar e que tal fato era incompatível com a natureza fluídica de um
espírito. Eles ainda estavam discutindo este assunto quando o pajem surgiu
com Cunegunda e esclareceu o mistério. Ao ouvirem seus relatos, todos
concordaram que a Agnes que Teodoro tinha visto entrando na carruagem
deveria ser a Freira Sangrenta, e que o fantasma que havia aterrorizado
Conrado só poderia ser a filha de Dom Gastón.
Passada a surpresa produzida pelos últimos acontecimentos, a
baronesa decidiu aproveitar a ocasião para persuadir a sobrinha a tomar o
véu. Temendo que um acordo matrimonial tão cheio de vantagens levasse
Dom Gastón a mudar de ideia, ela destruiu minha carta e continuou
referindo-se a mim como um aventureiro desconhecido. Uma vaidade
infantil fizera com que eu ocultasse meu verdadeiro nome, mesmo de minha
amada. Eu queria ser amado por mim mesmo e não por ser herdeiro do
Marquês de las Cisternas. O resultado foi que ninguém no castelo, além da
baronesa, tomou conhecimento do meu nome e ela fez todo o possível para
ocultar essa informação dos demais. Dom Gastón aprovou o conselho da
irmã e mandou chamar Agnes. Ela foi acusada de ter planejado uma fuga,
foi obrigada a fazer uma confissão completa e ficou encantada com a
maneira gentil com a qual seu relato foi recebido, mas afligiu-se demais ao
ser informada de que eu era o responsável pelo fracasso dos seus planos.
Cunegunda, instruída pela baronesa, disse-lhe que no momento em que foi
libertada eu tinha pedido para que comunicasse à sua senhora que o nosso
compromisso estava terminado, que todo o arranjo era fruto de uma
informação falsa e que eu não tinha a menor intenção de casar-me com uma
mulher sem perspectivas de fortuna.
Meu súbito desaparecimento deu à explicação toda a veracidade
possível. Teodoro poderia ter desmentido toda a história, mas foi mantido
longe de Agnes por ordens de dona Rodolfa. Além disso, todos tiveram a
confirmação de que eu era um impostor com a chegada de sua carta,
Lorenzo, na qual você declarava que não tinha nenhum amigo chamado
Alfonso d’Alvarada. Todas essas provas da minha aparente traição aliadas
às insinuações da sua tia, às adulações de Cunegunda e às ameaças do seu
pai, foram suficientes para que sua irmã vencesse a relutância em entrar
para o convento. Indignada pelo meu comportamento e desgostosa com o
mundo em geral, Agnes aceitou tomar o véu. Ela passou ainda um mês no
castelo de Lindenberg. Durante esse período, meu silêncio apenas
confirmou sua resolução e, então, decidiu acompanhar Dom Gastón à
Espanha. Teodoro foi libertado. Ele apressou-se para chegar a Munique,
local onde deveria ter notícias minhas. Porém, ao saber por Lucas que eu
não havia retornado, iniciou uma busca com perseverança incansável até
que finalmente conseguiu me localizar em Ratisbon.
Eu estava tão desfigurado que foi difícil para o rapaz reconhecer seu
mestre. A dor visível estampada no seu rosto atestava o quanto ele se
importava comigo. A companhia deste rapaz amável, a quem eu
considerava mais como um camarada do que um criado, era agora meu
único consolo. Sua conversa era alegre, porém sensível, e suas observações
eram inteligentes e divertidas. Ele havia adquirido muito mais
conhecimento do que o usual para a idade, mas o que mais me agradava
eram sua boa voz e sua aptidão para a música. O rapaz tinha bom gosto para
poesia e, às vezes, chegava a escrever alguns versos. Ocasionalmente
compunha pequenas baladas em espanhol e, ainda que suas composições
não apresentassem nada de especial, confesso, eram aprazíveis pela
novidade e ouvi-las acompanhadas do violão era a minha única distração.
Teodoro percebia claramente que algo me atormentava, mas como eu estava
decidido a ocultar minhas preocupações de todos, ele não se atrevia a fazer
perguntas.
Em uma tarde, enquanto eu estava deitado no sofá, mergulhado em
reflexões nada agradáveis, Teodoro se divertia observando pela janela a
batalha entre dois cocheiros que discutiam no pátio da hospedaria.
— Ah, ah! – pronunciou de repente. — Aquele é o Grande
Mongoliano!
— Quem? – perguntei.
— Apenas um homem que me disse algo estranho em Munique.
— A respeito de quê?
— Agora que me faz pensar nisso, era um tipo de mensagem para o
senhor, mas que, na verdade, nem valia a pena ser entregue. Pensei que o
sujeito estivesse louco. Quando fui procurar o senhor em Munique,
encontrei o homem vivendo na estalagem O Rei dos Romanos e o dono do
local me disse coisas muito estranhas a respeito dele. Pela sua pronúncia,
supunha-se que ele era estrangeiro, mas não se sabia de qual país. Parecia
não conhecer ninguém na cidade, falava muito pouco e nunca fora visto
sorrindo. Não possuía criados ou bagagem, mas sua bolsa parecia estar bem
abastecida e ele fazia muitas coisas boas na cidade. Alguns acreditavam que
se tratava de um astrólogo árabe, outros pensavam que era um cômico
ambulante e muitos declaravam que ele era o Doutor Faustus, a quem o
diabo devolvera à Alemanha. O senhorio, no entanto, confessou que tinha
muitas razões para acreditar que se tratava do Grande Mongoliano, que
seguia incógnito.
— Mas qual era a mensagem estranha, Teodoro?
— É verdade, eu já ia esquecendo. Mesmo assim, não seria uma perda
muito grande. O senhor deve saber que, enquanto eu indagava sobre o seu
paradeiro ao dono da estalagem, esse estrangeiro me interrompeu e olhou
fixamente nos meus olhos. “Jovem”, ele falou com uma voz grave, “aquele
que você procura encontrou algo que gostaria de não ter encontrado.
Somente a minha mão é capaz de estancar o sangue. Peça ao seu mestre que
procure por mim quando o relógio bater uma hora.”
— Como? – perguntei, pulando do sofá. As palavras que Teodoro
havia repetido pareciam dar a entender que o estrangeiro conhecia meu
segredo. — Traga-o aqui, meu rapaz! Peça-lhe que me conceda alguns
minutos de conversa!
Teodoro pareceu surpreso com minha reação. Mesmo assim, não fez
perguntas e obedeceu. Aguardei impacientemente pelo seu retorno, mas
apenas um breve espaço de tempo se passou antes que ele reaparecesse com
o convidado. Era um homem de presença majestosa, suas feições estavam
fortemente marcadas e seus olhos eram grandes, pretos e cintilantes. Porém,
havia algo no seu olhar que, desde o primeiro instante, inspirava certo
temor, para não dizer pavor. Estava modestamente vestido, seu cabelo não
estava empoado[6] e uma faixa de veludo preta ao redor da cabeça
adicionava uma sombra extra aos seus traços. Sua expressão refletia uma
profunda melancolia; seus passos eram lentos e sua atitude era séria,
majestosa e solene.
Ele me saudou com cortesia e depois de responder a todos os
cumprimentos e apresentações usuais, pediu a Teodoro que deixasse o
aposento; o pajem saiu no mesmo instante.
— Estou ciente do seu caso – disse, sem que eu tivesse tempo para
falar. — Tenho poderes para livrá-lo da sua visitante noturna, mas nada
pode ser feito antes de domingo. Na primeira hora do dia do descanso, os
espíritos das trevas têm pouca influência sobre os mortais. A partir de
sábado, a freira não voltará a visitá-lo.
— Posso saber – questionei — de que maneira o senhor tomou
conhecimento de um segredo que tenho cuidadosamente ocultado de todos?
— Como posso ignorar sua aflição, quando a causa dela está neste
momento ao seu lado?
Eu me sobressaltei e o estranho continuou.
— Ainda que para o senhor só seja visível por uma hora entre vinte e
quatro, ela nunca o abandona, nem durante a noite e nem durante o dia.
Nem irá abandoná-lo até que consiga o que deseja.
— E o que ela deseja?
— Ela mesma deve responder esta pergunta, eu não conheço a
resposta. Aguarde com paciência até a noite de sábado, quando tudo será
esclarecido.
Não me atrevi a fazer mais perguntas. Ele mudou o rumo da conversa
e passou a falar sobre vários assuntos. Mencionou pessoas que há séculos
não existiam e que, mesmo assim, parecia tê-las conhecido pessoalmente.
Não consegui citar um só país, não importando a distância, que ele já não
houvesse visitado. Eu não podia deixar de admirar a extensão e variedade
dos seus conhecimentos. Comentei que o fato de ter viajado muito, visto e
conhecido tantas coisas, deve ter lhe proporcionado um infinito prazer. Ele
balançou a cabeça tristemente.
— Ninguém – ele respondeu — seria capaz de compreender todo o
sofrimento da minha alma. O destino me obriga a estar em constante
movimento: não estou autorizado a passar mais de quinze dias em um
mesmo lugar. Não tenho um só amigo no mundo e, em função da inquietude
da minha sina, jamais terei algum. Eu abandonaria com prazer esta vida
miserável, pois invejo aqueles que gozam da paz de uma sepultura. Mas a
morte me evita e foge do meu alcance. Em vão me lanço no caminho do
perigo e mergulho no oceano, pois as ondas me devolvem à praia com
repugnância. Eu me precipito em direção ao fogo e as chamas se encolhem
com minha aproximação. Enfrento a fúria dos bandidos, mas suas espadas
tornam-se cegas e quebram-se ao meio quando atingem meu peito. O tigre
faminto estremece quando me vê e o jacaré foge de um monstro mais
horrível do que ele mesmo. Deus colocou uma marca em mim e todas as
suas criaturas respeitam essa marca terrível.
Ele tocou a faixa de veludo na testa. Havia em seus olhos uma
expressão de fúria, desespero e perversidade que me enchia de terror. Uma
convulsão involuntária me fez estremecer, e o estrangeiro percebeu o
tremor.
— É esta a maldição que pesa sobre a minha pessoa – continuou —
estou condenado a despertar horror e repulsa em todos aqueles que põem os
olhos em mim. O senhor já sentiu a influência do feitiço e sentirá ainda
mais a cada instante que se passar. Não aumentarei seus sofrimentos com
minha presença. Adeus e até sábado. Quando o relógio bater meia-noite o
senhor pode me esperar na porta do quarto.
Depois disso ele partiu, deixando em mim uma sensação de assombro
ante a misteriosa mudança na sua atitude e na sua conversa.
A garantia de que eu logo me veria livre das visitas da aparição
resultou em um enorme benefício à minha saúde. Teodoro, a quem eu
tratava mais como uma criança adotada do que um criado, percebeu com
surpresa a mudança na minha aparência. Ele me felicitou pela recuperação e
disse estar alegre pelo fato de eu ter me beneficiado tanto da conversa com
o Grande Mongoliano. Logo fiquei sabendo que o estrangeiro já estava há
oito dias em Ratisbon. Segundo suas próprias palavras, ele poderia ficar por
apenas mais seis dias. Ainda faltavam três para o sábado. Como esperei
esse momento! Nesse meio tempo, a Freira Sangrenta continuou a fazer
suas visitas noturnas, mas na expectativa de ver-me livre dela totalmente, os
efeitos dessas visitas tornaram-se menos intensos.
A noite tão desejada chegou. Para evitar suspeitas, fui deitar na hora
usual, mas assim que meus cuidadores deixaram o quarto, vesti-me
novamente e me preparei para receber o estrangeiro. Ele chegou à meia-
noite. Trazia uma pequena arca nas mãos, a qual colocou perto do fogo. Ele
me cumprimentou sem dizer uma palavra; eu devolvi seu cumprimento em
igual silêncio. Então, abriu a arca e a primeira coisa que tirou de lá foi um
crucifixo de madeira. Ajoelhou-se, contemplou o objeto com tristeza e
elevou os olhos ao céu; parecia que rezava com fervor. Por último, inclinou
a cabeça respeitosamente, beijou três vezes o crucifixo e ficou de pé outra
vez. Em seguida, retirou da arca uma taça coberta. Borrifou o chão com o
líquido contido na taça, que parecia sangue, e, então, mergulhando uma das
extremidades do crucifixo no líquido, desenhou um círculo no meio do piso
do quarto. Ao redor do círculo, depositou uma variedade de relíquias, entre
elas crânios, ossos, etc. Observei que ele posicionava os objetos formando
várias cruzes. Por fim, retirou da arca uma grande Bíblia e instruiu-me, com
os olhos, a entrar no círculo. Obedeci.
— É importante que não pronuncie uma sílaba sequer! – sussurrou o
homem. — Não saia do círculo e, se tem amor à vida, não olhe para mim!
Segurando o crucifixo em uma mão e a Bíblia na outra, ele parecia ler
com muita atenção. O relógio soou uma hora. Como de costume, ouvi os
passos do fantasma nas escadas, mas não mais senti o costumeiro
estremecimento. Eu a aguardava com confiança. Ela entrou no quarto,
aproximou-se do círculo e parou. O estrangeiro murmurou algumas
palavras indecifráveis para mim. Então ergueu a cabeça e, estendendo o
crucifixo em direção ao fantasma, exclamou com voz clara e solene:
— Beatriz! Beatriz! Beatriz!
— Que queres tu? – perguntou a aparição em tom profundo e
vacilante.
— O que perturba teu sono? Por que afliges e torturas este jovem?
Como podemos devolver o descanso ao teu espírito desassossegado?
— Não me atrevo a dizer! Não devo dizer! Eu desejaria poder
descansar na minha tumba, mas ordens severas me obrigam a prolongar
minha penitência.
— Conheces este sangue? Sabes por quais veias correu? Beatriz!
Beatriz! Em Seu nome, ordeno que me respondas!
— Não me atrevo a desobedecer meus senhores.
— E te atreves a desobedecer a mim?
Ele usou um tom imperativo e retirou a faixa preta da testa. Apesar da
advertência, a curiosidade não me permitiu manter os olhos longe do seu
rosto. Ergui-os e vi uma cruz de fogo gravada na fronte do estrangeiro. Não
posso descrever o horror que senti, mas só posso afirmar que nunca
vivenciei nada igual. Os sentidos me abandonaram por alguns instantes, um
temor misterioso dominou minha coragem e, se o exorcista não tivesse me
segurado pela mão, eu teria caído para fora do círculo.
Quando voltei a mim, percebi que a cruz ardente tinha produzido o
mesmo efeito dramático no fantasma. Sua atitude demonstrava reverência e
horror e seus ilusórios membros tremiam de medo.
— Sim! – ela disse afinal. — Eu temo esta marca! Eu a respeito! Eu
te obedeço! Saibas, então, que meus ossos permanecem sem sepultura. Eles
apodrecem nas trevas da Caverna de Lindenberg. Ninguém, além deste
jovem, tem o direito de devolver meus ossos à terra. Seu corpo e sua alma
me foram entregues pelos seus próprios lábios. Eu nunca o libertarei da sua
promessa, nunca lhe concederei uma noite sem terror, a menos que prometa
recolher meus ossos apodrecidos e depositá-los na cripta da família no seu
castelo em Andaluzia. Então, terá que oferecer trinta missas pelo descanso
da minha alma e eu não mais voltarei a perturbar este mundo. Agora, deixa-
me ir! Estas chamas estão me queimando!
Ele baixou a mão que segurava o crucifixo que, até esse momento,
apontava para ela. A aparição inclinou a cabeça e sua forma desapareceu no
ar. O exorcista permitiu que eu deixasse o círculo. Ele recolocou a Bíblia e
os outros objetos dentro da arca e, então, dirigiu-se a mim, que estava
parado ao seu lado, sem palavras para expressar meu assombro.
— Dom Ramón, o senhor ouviu as condições para o seu descanso.
Cabe ao senhor cumprir tais condições ao pé da letra. Para mim, nada mais
resta do que esclarecer o mistério que envolve a história deste espírito e
informá-lo de que, quando viva, Beatriz recebeu o nome de las Cisternas.
Ela foi tia avó do seu avô. Como se trata de uma pessoa da sua família, as
cinzas dela exigem o seu respeito, ainda que a enormidade dos crimes por
ela cometidos provoque sua aversão. Quanto à natureza dessa maldade,
ninguém poderá lhe explicar melhor do que eu mesmo, pois conheci muito
bem o homem santo que acabou com seus rituais noturnos no Castelo de
Lindenberg, e ouvi este relato dos seus próprios lábios: Beatriz de las
Cisternas tomou o véu quando era muito nova e não por vontade própria,
mas sim por um desejo expresso dos seus pais. Ela era ainda jovem demais
para lamentar os prazeres que lhe seriam negados pelo ofício, mas assim
que seu temperamento ardente e voluptuoso passou a se manifestar, ela
deixou-se levar pelo impulso das paixões, disposta a aproveitar a primeira
oportunidade para satisfazer-se. Finalmente, quando a oportunidade surgiu,
surgiram também muitos obstáculos, os quais só aumentaram a força dos
seus desejos. Ela conseguiu escapar do convento e fugiu para a Alemanha
com o Barão de Lindenberg. Viveu no seu castelo durante muitos meses
como sua concubina declarada. Toda a Bavária ficou escandalizada com sua
conduta indecente e desavergonhada. Suas festas competiam em luxo com
as festas de Cleópatra e Lindenberg se converteu em um cenário de
libertinagem desenfreada. Não satisfeita em ostentar a lascívia de uma
prostituta, ela ainda se autoproclamou uma ateia. A moça aproveitou todas
as oportunidades para zombar dos seus votos monásticos e ridicularizar as
mais sagradas cerimônias religiosas. Possuidora de um caráter tão
depravado, não limitou seus afetos a um só objeto. Pouco depois de chegar
ao castelo, o irmão caçula do barão atraiu a atenção dela por suas feições
fortes, estatura gigante e membros hercúleos. Ela não era o tipo de pessoa
que guarda suas inclinações por muito tempo e encontrou em Otto von
Lindenberg um igual na depravação. Ele correspondeu sua paixão o
bastante para fazê-la aumentar, e quando conseguiu o que desejava, o moço
fixou o preço do seu amor com o assassinato do irmão. A miserável aceitou
esta horrível condição e concordaram em realizar o ato durante a noite.
Otto, que vivia em uma propriedade menor a poucas milhas do castelo,
prometeu que estaria esperando por ela na Caverna de Lindenberg à uma da
madrugada; prometeu que traria com ele um grupo de amigos escolhidos,
cujo auxílio seria necessário para torná-lo o senhor do castelo e que o
próximo passo seria a união dos dois. Foi a última promessa que fez com
que Beatriz vencesse todos os escrúpulos, pois apesar do seus afetos pela
moça, o barão havia declarado que jamais faria dela sua esposa.
O estrangeiro fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu.
— Chegou a noite fatídica. O barão dormia nos braços da traiçoeira
concubina quando o sino do castelo soou uma hora. Nesse momento,
Beatriz sacou um punhal de debaixo do travesseiro e o cravou no coração
do amante. O barão soltou um único gemido e morreu. A assassina
abandonou o quarto de imediato e correu em direção à caverna carregando
uma lamparina em uma das mãos e, na outra, o punhal ensanguentado. O
porteiro não se atreveu a negar a saída à pessoa que temia mais do que tudo,
mais do que seu próprio amo. Beatriz chegou à caverna de Lindenberg sem
nenhuma resistência, onde, de acordo com o combinado, encontrou Otto à
sua espera. Ele recebeu a moça e ouviu seu relato com entusiasmo. Antes
que tivesse tempo de perguntar onde estavam seus amigos, ele a convenceu
de que não desejava testemunhas para esta conversa. Ansioso por ocultar a
própria participação no assassinato e também para livrar-se de uma mulher
cujo temperamento violento e atroz o fazia temer pela própria segurança,
ele estava decidido a eliminá-la. Avançando sobre ela repentinamente,
arrancou o punhal das suas mãos e o cravou, ainda com o sangue do irmão,
no peito da moça, colocando um fim à sua vida com repetidos golpes. Otto,
a seguir, sucedeu ao irmão no baronato de Lindenberg. O assassinato foi
atribuído à freira fugitiva e ninguém suspeitou de que ele havia persuadido
a moça a cometer o ato. Mas, ainda que seu crime tenha ficado impune
perante os homens, a justiça de Deus não permitiu que desfrutasse em paz
das suas honras sujas de sangue. Como os ossos de Beatriz permaneciam
insepultos na caverna, sua alma inquieta continuava a habitar o castelo.
Vestida com o hábito religioso em memória aos votos quebrados,
carregando o punhal com que fizera sangrar seu amante e a lamparina que
guiara seus passos durante a fuga, a moça aparecia todas as noites diante da
cama de Otto. A mais espantosa confusão reinava no castelo: gritos e
gemidos ressoavam nas câmaras abobadadas e o espectro, correndo pelas
antigas galerias, proferia uma mistura incoerente de orações e blasfêmias.
Otto não foi capaz de resistir aos sobressaltos provocados pelas visões; seu
horror aumentava a cada aparição até que, um dia, seus temores tornaram-se
tão insuportáveis que ele foi encontrado na cama, já frio e sem vida. Mas
sua morte não foi o fim dos rituais noturnos. Os ossos de Beatriz seguiam
sem sepultamento e o fantasma continuava a assombrar o castelo. Os
domínios de Lindenberg foram transferidos a um parente distante. Porém,
muito assustado pelos relatos que ouvira sobre a Freira Sangrenta (assim era
chamado o fantasma), o novo barão pediu a ajuda de um conhecido
exorcista. Este homem santo conseguiu convencê-la a descansar por algum
tempo, mas embora ela tenha lhe contado toda a sua história, não permitiu
que a mesma fosse revelada às outras pessoas ou que seus ossos fossem
levados para um solo sagrado. Esta missão foi reservada ao senhor, e até a
sua chegada o fantasma estava condenado a vagar pelo castelo e lamentar o
crime que lá havia cometido. No entanto, o exorcista obrigou Beatriz a ficar
em silêncio durante todo o tempo que ele ainda tivesse de vida. Enquanto
ele existiu, o quarto assombrado ficou trancado e o espectro permaneceu
invisível. Após o seu falecimento, que ocorreu cinco anos depois, ela tornou
a aparecer, mas apenas uma vez a cada cinco anos, no mesmo dia e horário
em que cravou o punhal no coração do amante adormecido. Então, ela visita
a caverna que guarda seu esqueleto, retorna ao castelo assim que o relógio
bate duas horas e não é mais vista durante os próximos cinco anos. Estava
condenada a sofrer durante um século inteiro, e esse período já terminou.
Não há mais nada a fazer senão levar as cinzas de Beatriz à sua tumba. Eu
fui incumbido da missão de livrá-lo desse tormento, e só de pensar que fui
útil ao senhor já é um grande consolo para mim. Meu jovem, adeus! Que o
espírito da sua parenta possa gozar do descanso de uma sepultura, o que me
foi negado pelo Todo Poderoso para todo o sempre.
Então, o estrangeiro se preparou para deixar o aposento.
— Espere um momento – eu pedi. — O senhor satisfez minha
curiosidade com relação ao fantasma, mas me deixa com um mistério ainda
maior no que diz respeito ao senhor mesmo. Por favor, diga-me, a quem
devo esses favores? O senhor mencionou circunstâncias ocorridas há muito
tempo e também pessoas que há muito não se encontram entre nós.
Conheceu pessoalmente o exorcista que, segundo suas próprias palavras,
está morto há quase um século. Qual a explicação para isto? O que significa
essa cruz de fogo marcada na sua testa e por que sinto tanto horror em
minha alma só de olhar para ela?
Ele guardou silêncio por alguns instantes, mas, finalmente, vencido
pelas minhas súplicas, concordou em esclarecer a coisa toda, na condição
de que eu aguardasse suas explicações até o dia seguinte. Eu obedeci e ele
se foi. Na manhã seguinte, minha primeira providência foi perguntar pelo
estrangeiro misterioso. Fiquei muito desapontado quando me informaram
que ele tinha partido de Ratisbon. Enviei alguns mensageiros à sua procura,
mas não havia nenhum traço do fugitivo. Desde então, nunca mais tive
notícias dele, e é provável que nunca mais venha a ter.
Neste ponto, Lorenzo interrompeu a narrativa do amigo:
— Como? – perguntou. — O senhor nunca descobriu quem era ou
mesmo suspeitou de sua identidade?
— Perdão – respondeu o marquês. — Quando contei essa aventura ao
meu tio, o duque cardeal, ele me disse que sem dúvida alguma esse homem
era o personagem universalmente conhecido como o ‘Judeu Errante’. O fato
de não poder ficar mais de catorze dias no mesmo lugar, a cruz de fogo
marcada na testa, o efeito que essa cruz produz naqueles que a contemplam
e várias outras circunstâncias tornam essa suposição plausível. O cardeal
está plenamente convencido disto; da minha parte, estou inclinado a adotar
a única solução que parece existir para este enigma. Vou retornar ao meu
relato, do qual me desviei:
A partir de então, minha recuperação foi tão rápida que chegou a
assustar os médicos. A Freira Sangrenta não voltou a aparecer e logo me
senti capaz de partir para Lindenberg. O barão me recebeu de braços
abertos. Contei a ele tudo o que tinha se passado e ele não ficou nem um
pouco satisfeito ao saber que seu palácio não voltaria a ser perturbado pelas
visitas periódicas do fantasma. Lamentei ao perceber que minha ausência
não havia minimizado a imprudente paixão de Dona Rodolfa. Em uma
conversa privada que tivemos durante minha breve estada no castelo, ela
mais uma vez tentou persuadir-me a corresponder aos seus afetos. Como eu
a considerava a causa principal de todos os meus sofrimentos, o único
sentimento que nutria por ela era o de repulsa. O esqueleto de Beatriz foi
descoberto no exato local onde ela disse que estaria. Sendo essa a única
razão para eu estar em Lindenberg, apressei-me para deixar os domínios do
barão, ansioso para providenciar o sepultamento da freira e escapar dos
assédios daquela odiosa mulher. Parti com a promessa de Dona Rodolfa de
que meu castigo não tardaria a chegar.
Percorri meu caminho em direção à Espanha o mais depressa
possível. Lucas veio ao meu encontro em Lindenberg trazendo com ele toda
a minha bagagem. Cheguei à minha terra natal sem dificuldades e
imediatamente dirigi-me ao castelo do meu pai na Andaluzia. Os restos de
Beatriz foram depositados na cripta da família, as devidas cerimônias foram
celebradas e também o número de missas que ela havia exigido. Nada mais
me impedia de partir em busca do paradeiro de Agnes. A baronesa
assegurou-me de que sua sobrinha já tinha tomado o véu. Eu suspeitava de
que essa informação era fruto do seu ciúme e esperava encontrar minha
amada ainda em liberdade para aceitar se casar comigo. Procurei sua
família e fiquei sabendo que, antes que a filha retornasse a Madri, Dona
Inesilla falecera. Soube, também, que você estava no exterior, mas não
consegui descobrir o lugar. Seu pai encontrava-se em uma província
distante em visita ao Duque de Medina e ninguém soube dizer o que havia
acontecido com Agnes. Teodoro, como combinado, regressou a
Estrasburgo, onde encontrou seu avô morto e Marguerite em posse de seus
bens. Todas as súplicas para que o filho ficasse com ela foram inúteis: ele
partiu pela segunda vez e me acompanhou até Madri. O rapaz esforçou-se
bastante para me ajudar na minha busca, mas mesmo com nossos esforços
unidos, não obtivemos êxito. O retiro onde Agnes se encontrava continuava
sendo um mistério absoluto e eu comecei a perder as esperanças de um dia
reencontrá-la.
Oito meses atrás, eu regressava ao meu palácio, muito aborrecido,
depois de passar algumas horas no teatro. A noite estava escura e eu
caminhava só. Mergulhado em minhas reflexões, que não eram nada
agradáveis, não percebi que estava sendo seguido desde a porta do teatro
por três homens, até que, ao virar em uma rua de pouco movimento, fui
atacado violentamente. Dei alguns passos para trás, saquei a espada e
enrolei minha capa no braço esquerdo. A escuridão da noite estava a meu
favor, pois a maioria dos golpes dos bandidos não chegou a me tocar.
Finalmente tive a sorte de derrubar um dos adversários, mas como já havia
recebido diversos ferimentos e estava sob grande pressão, minha morte
eventual parecia inevitável se a luta de espadas não tivesse atraído a atenção
de um cavalheiro. Ele correu em meu auxílio com sua espada em uma das
mãos, seguido de seus criados que carregavam algumas tochas. A chegada
dele equilibrou o combate. Mesmo assim, os bandidos não abandonaram
seu propósito até que os criados decidiram juntar-se a nós. Então eles
fugiram e desapareceram na escuridão.
O desconhecido dirigiu-se a mim com cortesia e indagou se eu estava
ferido. Debilitado pela perda de sangue, mal consegui agradecer, mas
solicitei que me ajudasse a chegar ao Palácio de las Cisternas. Tão logo
mencionei o nome da residência, ele confessou ser amigo do meu pai e
declarou que não permitiria que eu fosse transportado por tamanha distância
antes que alguém examinasse meus ferimentos. Ele acrescentou que não
estávamos longe de sua residência e implorou-me que o acompanhasse. O
homem demonstrou ser tão atencioso que não pude recusar a oferta. Apoiei-
me em seu braço e em poucos minutos chegamos à entrada um palácio
magnífico.
Ao entrarmos, um velho criado de cabelos grisalhos veio dar as boas
vindas ao meu condutor. Ele perguntou quando o duque, seu mestre,
pretendia deixar o país e obteve a resposta de que ele ainda permaneceria ali
por alguns meses. Meu salvador, então, pediu que chamassem o médico da
família. Suas ordens foram obedecidas; fui acomodado em um sofá dentro
de um luxuoso aposento e tive os ferimentos examinados, os quais foram
considerados muito leves. O médico, no entanto, aconselhou-me a não me
expor ao ar da noite. O desconhecido insistiu tanto para que eu pernoitasse
em sua casa que concordei em permanecer onde estava, pelo menos naquele
momento.
Quando ficamos a sós, aproveitei a ocasião para agradecer
imensamente por tudo o que havia feito, mas ele pediu para que eu não
tocasse mais no assunto.
— Fico muito satisfeito pela oportunidade de lhe prestar esse pequeno
serviço, e ficarei eternamente grato à minha filha por ter me detido por
tanto tempo no convento de Santa Clara. Toda a consideração que tenho
pelo Marquês de las Cisternas, ainda que o destino não tenha nos
aproximado da maneira como eu gostaria, faz com que eu me sinta muito
feliz por ter tido a oportunidade de conhecer seu filho. Estou certo de que
meu irmão, proprietário da casa onde o senhor se encontra agora, lamentará
não estar em Madri para recebê-lo pessoalmente. Mas, na ausência do
duque, eu sou o mestre da família e posso garantir que todo o Palácio
Medina está à sua disposição.
Imagine minha surpresa, Lorenzo, ao descobrir que o meu salvador
era Dom Gastón de Medina! Surpresa igual, para minha secreta satisfação,
foi constatar que Agnes estava no convento de Santa Clara. Meu otimismo
não diminuiu quando, ao responder minhas perguntas supostamente
indiferentes, ele revelou que a filha realmente tinha tomado o véu. Não
permiti que a dor ocasionada por essa notícia criasse raízes na minha alma.
Eu me consolava com a ideia de que a influência do meu tio na corte de
Roma poderia remover este obstáculo e que, sem dificuldades, conseguiria
a dispensa dos votos da minha amada. Alentado por tal esperança, meu
coração se acalmou e redobrei meus esforços para mostrar-me agradecido
pela atenção e também pela companhia de Dom Gastón.
Um criado entrou no aposento e trouxe a notícia de que o bandido que
eu havia ferido dava alguns sinais de vida. Solicitei que ele fosse levado até
o palácio de meu pai para que, assim que recobrasse a voz, eu pudesse
interrogá-lo sobre os motivos que o levaram a atentar contra minha vida.
Disseram-me que ele já podia falar, ainda que com alguma dificuldade.
Dom Gastón, movido por certa curiosidade, insistiu para que eu
interrogasse o espadachim na sua presença. Porém, eu não estava disposto a
satisfazer tal curiosidade. Uma das razões era que eu suspeitava de onde o
golpe partira e não desejava expor a culpa da sua irmã aos olhos de Dom
Gastón. A outra razão era que eu temia ser reconhecido como Alfonso
d’Alvarada e que medidas fossem tomadas para me manter longe de Agnes.
Pelo que eu já conhecia acerca da personalidade de Dom Gastón, confessar
meu amor por sua filha e tentar trazê-lo para o meu lado seria um passo
imprudente. Considerando que era essencial que ele não me conhecesse de
outro modo senão como Conde de las Cisternas, eu estava determinado a
não deixá-lo ouvir a confissão do bandido. Insinuei que suspeitava de que
uma dama estivesse envolvida no assunto, cujo nome poderia ser
acidentalmente mencionado pelo homem, e que, por isso, considerava
necessário interrogá-lo em particular. A delicadeza impediu Dom Gastón de
insistir no assunto e o homem foi levado ao meu palácio.
Na manhã seguinte, despedi-me do meu anfitrião, o qual deveria
regressar até o duque no mesmo dia. Meus ferimentos eram tão leves que, a
não ser pela necessidade de manter o braço em uma tipoia por algum
tempo, não sofri nenhum inconveniente pela aventura noturna. O médico
que examinou o assassino considerou sua ferida mortal. Ele teve apenas o
tempo necessário para confessar que fora instigado a me matar pela
vingativa Dona Rodolfa e morreu em seguida.
Todos os meus pensamentos estavam voltados para conseguir uma
entrevista com minha freira adorada. Teodoro pôs mãos à obra e, dessa vez,
teve mais sorte. Ele abordou o jardineiro de Santa Clara com uma
abundância de subornos e promessas até o homem colocar-se inteiramente a
favor da minha causa. Ficou decidido que eu entraria no convento como seu
ajudante. O plano foi executado sem demora: disfarçado com um hábito
comum e um pedaço de tecido preto cobrindo um dos meus olhos, fui
apresentado à madre superiora, que aprovou a escolha do jardineiro.
Assumi minha posição imediatamente. Botânica fora um dos meus estudos
favoritos na juventude, e assim pude desenvolver um bom trabalho. Durante
alguns dias, continuei trabalhando no jardim do convento sem encontrar a
razão do meu disfarce. No quarto dia tive mais sorte. Ao ouvir a voz de
Agnes, comecei a correr em sua direção, mas a visão da superiora me
deteve. Recuei e me escondi atrás de algumas árvores.
A abadessa chegou mais perto e sentou-se com Agnes em um banco,
não muito longe dali. Eu a ouvi censurando a constante melancolia da sua
companheira; disse-lhe que chorar pela perda de qualquer amante, na sua
situação, era um crime, mas que chorar pela perda de um infiel era uma
loucura absurda. Agnes respondia em voz tão baixa que eu quase não podia
distinguir suas palavras; porém, percebi que usava termos de gentileza e
submissão. A conversa foi interrompida pela chegada de uma jovem
pensionista, que informou à superiora que a mesma era esperada no seu
gabinete. A velha senhora se levantou, beijou o rosto de Agnes e se retirou.
A recém chegada permaneceu no local. Agnes conversou com ela elogiando
muito alguém cujo nome não consegui ouvir, mas sua companheira parecia
encantada e bastante interessada na conversa. Mostrou-lhe uma série de
cartas, as quais a outra leu com evidente prazer e, pedindo permissão para
copiá-las, retirou-se, para minha grande satisfação.
Tão logo a outra ficou fora de vista, eu me aproximei gentilmente de
Agnes, com o propósito de me revelar aos poucos. Mas quem pode enganar
os olhos do amor, ainda que por um só instante? Agnes ergueu a cabeça
com a minha aproximação e, apesar do meu disfarce, conseguiu me
reconhecer com apenas um olhar. Ela se levantou proferindo uma
exclamação de surpresa e tentou fugir, mas eu a detive e implorei que me
escutasse. Certa da minha falsidade, ela se negou a me dar ouvidos e
ordenou que eu deixasse o jardim. Era a minha vez de recusar. Protestei
que, por mais perigosas que fossem as consequências, eu não partiria até
que ela tivesse ouvido minhas justificativas. Assegurei que ela havia sido
enganada pela família e que eu poderia convencê-la, apesar de toda a sua
desconfiança, de que minha paixão era pura e desinteressada. Perguntei-lhe
o que poderia ter me levado a procurá-la em um convento se eu estivesse
influenciado pelos motivos egoístas que meus inimigos tinham atribuído à
minha pessoa.
Minhas preces, meus argumentos e minha decisão de não deixá-la ir
até que prometesse ouvir tudo o que eu tinha a dizer, além do receio de ser
vista na minha companhia, da sua curiosidade natural e do afeto que ainda
sentia por mim, apesar do meu desaparecimento, finalmente prevaleceram.
Ela disse que seria impossível atender aos meus apelos naquele momento,
mas que estaria no mesmo local às onze da noite e conversaria comigo uma
última vez. Obtida a promessa, soltei-lhe a mão e ela correu de volta ao
convento.
Comuniquei a vitória ao meu aliado, o velho jardineiro. Ele indicou
um esconderijo onde eu poderia ficar até o cair da noite sem risco de ser
descoberto. Dirigi-me ao lugar indicado na hora em que deveria me retirar
com meu suposto chefe e aguardei impacientemente pelo momento do
encontro. O frio da noite me favorecia porque manteve as outras freiras
confinadas em suas celas. Somente Agnes parecia ser insensível ao rigor do
clima; antes das onze horas ela veio ao meu encontro no mesmo local da
nossa conversa anterior. Sem interrupções, pude explicar a verdade sobre
meu desaparecimento na noite de cinco de maio. Ela ficou muito abalada
com minha narrativa. Quando concluída a história, confessou ter sido
injusta ao me julgar e culpou-se por ter tomado o véu em uma atitude de
desespero, como resultado da minha ingratidão.
— Mas agora é muito tarde para lamentações! – acrescentou. — A
sorte está lançada: eu professei os votos e me consagrei ao serviço dos céus.
Sei que não estou preparada para a rotina de um convento, minha
repugnância pela vida monástica cresce a cada dia. O tédio e o
descontentamento são meus companheiros constantes e também não vou
negar que a paixão que senti um dia por aquele que esteve tão perto de se
tornar meu marido ainda existe em meu coração. Mas precisamos nos
separar! Barreiras intransponíveis nos mantêm separados e não devemos
nos encontrar novamente pelo lado de dentro da grade.
Então, esforcei-me para convencê-la de que nossa união não era tão
impossível quanto ela imaginava. Falei sobre a influência que o Duque
Cardeal de Lerma possuía em Roma e garanti que conseguiria facilmente a
anulação dos seus votos. Eu também não duvidava de que Dom Gastón
concordaria comigo quando tomasse conhecimento do meu nome
verdadeiro e do meu afeto. Agnes respondeu que se eu realmente acreditava
nisso era porque conhecia muito pouco o seu pai. Ainda que liberal e
amável em todos os outros aspectos, a superstição excessiva constituía a
única mancha sobre o seu caráter. Quanto a isso, ele era inflexível:
sacrificava os interesses mais caros por conta dos seus escrúpulos e
consideraria um insulto supor que ele próprio fosse capaz de autorizar a
quebra dos votos feitos aos céus.
— Sendo assim – interrompi — no caso de ele não aprovar nossa
união, façamos com que ignore nossos planos até que eu possa resgatá-la da
prisão onde se encontra confinada. Quando for minha esposa, estará livre da
autoridade dele e não necessitará de ajuda financeira. Assim que ele
perceber que o ressentimento não tem serventia, não tenho dúvidas de que
irá se posicionar a seu favor. Mas, se o pior acontecer, se Dom Gastón
mostrar-se implacável, minha família fará de tudo para que você esqueça
essa perda e você encontrará no meu pai um substituto para o seu.
— Dom Ramón – respondeu com voz firme e decidida — eu amo
meu pai. Ele tem sido duro comigo neste assunto, mas já me deu tantas
provas de amor paterno que a afeição dele é essencial para a minha
existência. Se eu abandonasse o convento, ele não me perdoaria jamais e
tremo só em pensar que ele poderia me amaldiçoar no leito de morte. Além
disso, sei que meus votos são obrigatórios. Eu, voluntariamente, assumi este
compromisso com Deus e não posso quebrá-lo sem que esteja cometendo
um pecado. Então, esqueça a ideia de que poderemos nos unir novamente.
Estou consagrada à religião e, ainda que lamente nossa separação, devo me
opor a um sentimento que faria com que me sentisse culpada.
Esforcei-me para contestar tais escrúpulos infundados. Nós ainda
discutíamos o assunto quando o sino do convento chamou as freiras para as
matinas. Agnes era obrigada a assisti-las, mas não deixei que partisse antes
de prometer que me encontraria na noite seguinte, no mesmo local e no
mesmo horário. Estes encontros continuaram por várias semanas
ininterruptamente, e é aqui, Lorenzo, que devo suplicar a sua clemência.
Leve em consideração a nossa situação, nossa juventude, nosso grande
afeto. Pese todas as circunstâncias dos nossos encontros e reconhecerá que
a tentação deve ter sido irresistível; você até poderá me perdoar quando eu
confessar que, em um momento não premeditado, a honra de Agnes foi
sacrificada pela minha paixão.
Os olhos de Lorenzo brilharam com fúria e um rubor intenso
inundou-lhe o rosto. Ele se levantou e tentou sacar a espada. O marquês
percebeu o movimento e segurou-lhe a mão com firmeza e afeição.
— Meu amigo! Meu irmão! Ouça até o final! Até lá, contenha sua
emoção e convença-se de que, se o que revelei é um crime, a culpa é toda
minha e não da sua irmã.
Lorenzo deixou-se convencer pelas súplicas de Dom Ramón.
Retomou o assento e ouviu o restante da narrativa com uma expressão
sombria e impaciente. O marquês prosseguiu:
Mal havia passado a primeira explosão da paixão quando Agnes,
recobrando-se, abandonou meus braços com horror. Chamou-me de sedutor
infame, cobriu-me com as reprovações mais amargas e começou a bater no
peito com toda a violência de um delírio. Envergonhado pela minha
imprudência, achei difícil encontrar palavras para me desculpar. Tratei de
consolá-la: atirei-me aos seus pés e implorei que me perdoasse. Ela tentou
retirar a mão que eu segurava e tentava beijar.
— Não me toque! – ela gritou com tanta violência que fiquei
aterrorizado. — Monstro da falsidade e ingratidão, como me enganei com
você! Eu acreditava que fosse meu amigo e protetor. Coloquei-me em suas
mãos, confiando na sua honra e acreditando que a minha não correria
nenhum risco. E foi justamente você, a quem eu adorava, que me cobriu de
infâmia, que me induziu a quebrar meus votos a Deus e me reduziu ao mais
baixo nível do meu sexo! Envergonhe-se, homem desprezível, pois nunca
mais voltará a me ver!
Ela levantou-se do banco onde estava sentada. Tentei detê-la, mas ela
conseguiu livrar-se de mim com violência e correu para refugiar-se no
convento.
Eu me retirei, confuso e preocupado. Na manhã seguinte, apareci no
jardim como de costume, mas não vi Agnes. À noite, esperei no lugar de
sempre, mas não tive sucesso. Muitos dias e noites se passaram da mesma
maneira. Finalmente, vi minha amada ofendida cruzar o passeio onde eu
estava trabalhando. Ela estava acompanhada da mesma jovem pensionista,
em cujo braço se apoiava em função de uma aparente debilidade. Ela me
olhou por um instante, mas logo desviou o olhar. Esperei pelo seu retorno,
porém ela caminhou em direção ao convento sem dar atenção a mim ou ao
meu olhar penitente que implorava pelo seu perdão.
Tão logo as freiras se retiraram, o velho jardineiro se aproximou com
o semblante entristecido.
— Senhor – disse ele. — Sinto em dizer, mas não posso mais ajudá-
lo. A dama que costumava encontrar acaba de me dizer que, se eu continuar
permitindo sua presença no jardim, contará tudo à madre superiora. Ela
também me pediu para informá-lo de que sua presença é um insulto e que
se possui algum respeito por ela, não deverá mais procurá-la. Desculpe-me,
mas não poderei continuar protegendo o seu disfarce. Se a superiora ficar
sabendo dessa minha conduta, ela pode não se contentar em apenas
despedir-me, mas, por vingança, pode acusar-me de ter profanado o
convento e fazer com que eu vá para a prisão da Inquisição.
Em vão, tentei dissuadi-lo dessa decisão. O homem proibiu minha
entrada no jardim e Agnes insistiu na ideia de não permitir que eu a visse ou
que recebesse notícias suas. Após quinze dias, uma doença violenta que se
abateu sobre meu pai obrigou-me a partir para a Andaluzia. Viajei o mais
rápido que pude e, como já imaginava, encontrei o marquês às portas da
morte. Ainda que à primeira vista sua enfermidade fosse considerada
mortal, ele ainda resistiu por alguns meses. Durante esse período, meus
cuidados para com ele e, depois da sua morte, minha ocupação para manter
os negócios em ordem não me permitiram deixar a Andaluzia. Quando,
finalmente, retornei a Madri, assim que cheguei ao palácio, encontrei esta
carta esperando por mim.
Nesse momento o marquês abriu a gaveta de uma escrivaninha. Ele
retirou um papel dobrado e o entregou ao seu interlocutor. Lorenzo abriu a
carta e reconheceu a caligrafia da irmã. O conteúdo era o seguinte:
“Em que abismo de miséria você me deixou! Ramón, você me obriga
a ser tão criminosa quanto você mesmo é. Eu estava decidida a não vê-lo
mais e, se possível, a esquecê-lo. Se não conseguisse, pretendia lembrar de
você apenas com ódio. Uma pessoa pela qual sinto a ternura de uma mãe
aconselhou-me a perdoar meu sedutor e a suplicar pelo seu amor como um
meio de salvação. Ramón, seu filho vive em meu ventre! Tremo em pensar
na vingança da superiora; tremo por mim e mais ainda pela inocente
criatura cuja existência depende da minha. Nós dois estamos perdidos se
minha situação for descoberta. Oriente-me com relação aos passos que devo
tomar, mas não procure me ver. O jardineiro, que se encarregará de lhe
entregar esta carta, foi despedido e não podemos mais contar com a ajuda
dele. O homem que foi contratado para trabalhar no seu lugar é de uma
fidelidade incorruptível. A melhor maneira de fazer sua resposta chegar até
mim é deixá-la embaixo da imagem de São Francisco que está na igreja dos
capuchinhos. Eu lá me confesso todas as quintas-feiras e não será difícil
recolher sua carta. Chegou ao meu conhecimento que você não está em
Madri no momento. Devo suplicar-lhe que me escreva assim que regressar?
Acredito que não. Ah, Ramón! Que situação cruel a minha! Enganada pela
minha família, obrigada a abraçar um ofício para o qual não estou
preparada, ainda que esteja consciente da sua santidade, e ainda induzida a
violar tal compromisso por aquele de quem menos suspeitava de traição;
agora me vejo obrigada, pelas circunstâncias, a escolher entre a morte e o
perjúrio. A timidez da mulher e o afeto maternal não me permitem vacilar
na escolha. Assumo toda a culpa que me aflige por aceitar o plano que me
havia proposto. A morte do meu pobre pai, ocorrida depois do nosso último
encontro, eliminou um dos obstáculos. Ele descansa na sepultura e já não
temo sua ira. Mas quem me protegerá da ira de Deus, Ramón? Quem
poderá me proteger da minha própria consciência? Não me atrevo a deter-
me nestes pensamentos; eles me levarão à loucura. Já tomei minha decisão:
procure a dispensa para os meus votos, estou disposta a fugir com você.
Responda esta carta, meu marido! Diga que o tempo não apagou nosso
amor, prometa-me que irá livrar da morte o seu filho por nascer e também a
sua mãe desafortunada. Vivo sofrendo todas as agonias do medo. Cada
olhar que se volta para mim parece conseguir ler o meu segredo e a minha
vergonha. E você é a causa de todas estas agonias! Ah, quando meu coração
o amou pela primeira vez, eu nem imaginava o quanto você me faria sofrer!
Agnes.”
Depois de ler a carta, Lorenzo a devolveu em silêncio. O marquês a
recolocou na gaveta e prosseguiu:
A alegria que senti ao receber estas notícias, tão desejadas e tão pouco
esperadas, foi indescritível. Logo coloquei meu plano em ação. Quando
Dom Gastón colocou-me a par do paradeiro da filha, não tive dúvidas de
que ela estaria disposta a abandonar o convento. Assim, eu já havia
confiado o assunto ao Duque Cardeal de Lerma, o qual imediatamente
tratou de obter o ofício necessário. Por sorte, eu não havia solicitado que
abandonasse os procedimentos. Pouco depois, recebi uma carta dele
notificando-me de que esperava, a qualquer momento, receber a ordem da
corte de Roma. Eu já me dava por contente com esta notícia, mas o cardeal
me aconselhou a encontrar alguma maneira de tirar Agnes do convento sem
o conhecimento da abadessa. Ele acreditava que a mulher ficaria muito
irritada com a perda de uma pessoa de tal posição na sociedade e que
poderia considerar a renúncia de Agnes como um insulto à sua casa. Ele a
considerava uma mulher de caráter violento e vingativo, capaz de chegar
aos maiores extremos. Era de se esperar, portanto, que tentasse frustrar
minhas esperanças encerrando Agnes no convento e invalidando o mandato
do Papa. Influenciado por esses pensamentos, resolvi resgatar minha amada
e escondê-la até a chegada do esperado ofício aos domínios do duque
cardeal. Este aprovou meu intuito e declarou que estava disposto a dar
proteção à fugitiva. Minha próxima providência foi sequestrar o novo
jardineiro de Santa Clara e mantê-lo no meu palácio. Dessa maneira,
consegui a chave da porta do jardim e agora nada mais me restava a fazer
senão preparar o rapto de Agnes. É disto que trata a carta que você me viu
entregar no dia de hoje. Eu disse a ela que estarei pronto para recebê-la à
meia-noite de amanhã, que consegui a chave do jardim e que ela pode
contar com uma libertação rápida.
Agora, Lorenzo, cheguei ao fim da minha longa narrativa. Não tenho
nada a dizer a meu favor, a não ser que minhas intenções para com sua irmã
sempre foram as mais honestas, que sempre foi o meu desejo casar-me com
ela e que confio, quando considerar todas estas circunstâncias, nossa
juventude e nosso afeto, que você não apenas perdoará nosso deslize não
premeditado, mas que também me ajudará a reparar minha falta para com
Agnes, assegurando um título legítimo à sua pessoa e ao seu coração.
CAPÍTULO II

Oh, você! Para quem a luz da vaidade encobre todos os princípios,


Na viagem em busca da fama através dos ventos da glorificação,
Ventos capazes de mudar o curso da sua empreitada,
Que podem mantê-lo para sempre nas trevas ou içá-lo para a luz!
Todo aquele que busca a glória encontra apenas um breve repouso,
Um sopro é capaz de fazê-lo renascer ou arruiná-lo de vez.
(Alexander Pope)

O marquês terminou o relato de suas aventuras. Lorenzo, antes que


pudesse decidir qual resposta daria, refletiu por alguns momentos. Por fim,
quebrou o silêncio.
— Dom Ramón – disse, segurando-lhe a mão — a honra me obrigaria
a lavar com o seu sangue a mancha que degradou minha família, mas as
circunstâncias do caso me impedem de considerá-lo um inimigo. A tentação
era mesmo muito grande. A crendice dos meus familiares foi o que
ocasionou esta infelicidade, e eles são mais culpados do que o senhor ou do
que a própria Agnes. O que se passou entre vocês não pode ser anulado,
mas ainda pode ser reparado através da sua união com minha irmã. O
senhor sempre foi, e ainda é, meu melhor e único amigo. Sinto por Agnes o
mais sincero afeto e é com grande satisfação que lhes dou meu
consentimento. Prossiga com seu plano. Eu o acompanharei amanhã à noite
e conduzirei Agnes, eu mesmo, à residência do cardeal. Minha presença
abonará sua conduta e evitará que ela se sinta culpada por fugir do
convento.
O marquês ficou muito agradecido. Lorenzo lhe garantiu que não
precisava mais temer a inimizade de Dona Rodolfa, pois cinco meses já
haviam se passado desde que, em um acesso de raiva, ela sofrera um
derrame e falecera após algumas horas. Ele, então, passou a falar sobre
Antonia e seus interesses. O marquês ficou muito surpreso ao ser informado
sobre um novo membro em sua família. Seu pai havia carregado o ódio por
Elvira até o túmulo e nunca dera a entender que sabia o que tinha
acontecido com a viúva do filho mais velho. Dom Ramón lhe assegurou que
tinha toda a intenção de conhecer a cunhada e sua filha adorável. Os
preparativos para a fuga não permitiriam que as visitassem no dia seguinte,
mas, nesse meio tempo, ele gostaria que Lorenzo lhes prometesse sua
amizade e que proporcionasse a Elvira, em seu nome, qualquer soma da
qual necessitasse. O jovem prometeu que assim faria, tão logo tivesse
conhecimento do local onde a moça residia. Ele se despediu do futuro irmão
e retornou ao Palácio Medina.
Um novo dia já estava a ponto de nascer quando o marquês se
recolheu aos seus aposentos. Consciente de que seu relato levaria algumas
horas e desejando evitar interrupções, ordenou aos criados, assim que
chegou ao palácio, que não o esperassem acordados. Deste modo, ficou
surpreso ao encontrar Teodoro na sua antecâmara. O pajem estava sentado
junto a uma mesa com uma pena na mão, e estava tão ocupado na sua
atividade que não percebeu a aproximação do seu mestre. O marquês parou
para observá-lo. Teodoro escreveu algumas linhas, parou e riscou uma parte
da escrita. Então, voltou a escrever, sorriu e pareceu bastante satisfeito com
o que tinha acabado de fazer. Por último, largou a pena, saltou da cadeira e
bateu palmas alegremente.
— Pronto! – exclamou. — Agora estão magníficos!
Seu entusiasmo foi interrompido pela risada do marquês, o qual
suspeitava da natureza do seu trabalho.
— O que está tão magnífico, Teodoro?
O jovem levantou-se e olhou ao redor. Enrubesceu, correu até a mesa,
apanhou o papel no qual estivera trabalhando e o escondeu.
— Oh, meu senhor! Não sabia que estava tão perto de mim. Posso
servi-lo em alguma coisa? Lucas já foi dormir.
— E eu seguirei o exemplo assim que tiver dado uma olhada nos seus
versos.
— Meus versos, senhor?
— Claro, eu tenho certeza de que você estava escrevendo alguns
versos, pois nada mais poderia tê-lo mantido acordado até esta hora. Onde
estão, Teodoro? Eu gostaria de ver sua composição.
O rosto de Teodoro enrubesceu ainda mais; desejava muito expor a
poesia, mas, antes, queria ser pressionado a mostrá-la.
— Na verdade, senhor, meus versos não são dignos da sua atenção.
— Não são esses os versos que acaba de declarar magníficos? Vamos,
Teodoro, deixe-me ver se compartilhamos da mesma opinião. Prometo que
serei um crítico complacente.
O jovem pegou o papel de forma relutante, mas a satisfação brilhava
em seus olhos negros revelando a vaidade que habitava seu pequeno
coração. O marquês sorriu ao observar as emoções de um coração até então
pouco treinado para ocultar os sentimentos. Ele sentou-se no sofá. Teodoro,
com esperança e medo estampados no rosto, esperava com inquietude pela
conclusão do seu senhor, enquanto o marquês lia as seguintes linhas:

O AMOR E A IDADE

“A noite era escura; o vento, frio;


Anacreonte[7], velho e rabugento,
Sentado junto ao fogo, a chama alegre alimentou;
De repente, a porta da cabana se abriu,
E diante dele estava o cupido,
Que lhe lançou um olhar amigável e pelo nome o chamou.

‘És tu?’, perguntou o taciturno ancião


Enquanto a ira enrubescia seu pálido rosto;
‘Mais uma vez queres inflamar com paixão,
Meu peito endurecido pela idade e desgosto?
Tuas flechas não serão suficientes, oh menino vaidoso’.

‘O que buscas neste deserto sombrio?


Aqui não há sorrisos, nem alegria;
Nunca estes vales presenciaram uma risada,
O eterno inverno e a velhice reinam na minha morada,
Meu jardim não dá flores, nem o calor me é camarada’.

‘Vai em busca de uma habitação florida,


Onde alguma virgem necessite da tua habilidade,
Ou te envie sonhos incitantes, próprios da sua idade;
Repouse com Damon em seu peito,
Viole os lábios rosados de Chloe[8],
Ou use suas bochechas rosadas como travesseiro’.

‘Partas em busca de tais moradas, evites estas regiões frias,


Não penses tu que esta cabeça branca, cheia de prudência e idade,
Suportará mais uma vez a tua opressão;
Lembra-te de que já me marcaste com lágrimas e suspiros
Hoje evito tuas ciladas e não confio em tua falsa amizade’.
‘Ainda lembro de todo o sofrimento
Que senti quando por Júlia estava enamorado,
As chamas que me ardiam no peito, as noites em claro no leito,
O ciúme, a desesperança, o sentimento acirrado’.

‘Então vai e leva teus feitiços para longe da minha visão,


Afasta-te da minha porta,
Não fiques nem mais um dia, um momento, uma hora;
Desconfio do teu sorriso, temo tuas flechas,
Conheço teus truques, adivinho tua traição
Vai atrás de outro, comigo não!’

‘Por acaso, ancião, a idade confunde tua inteligência?’


Respondeu a divindade, ofendida e com olhar zangado;

(Sua expressão era tão doce quanto o sorriso de uma virgem)


‘É a mim que diriges estas palavras? Tudo o que faço é amar-te,
Ainda que não aprecies minha amizade e insultes o passado’.

‘Se encontraste uma ninfa orgulhosa, e cem outras te foram amáveis,


A severidade de Júlia poderiam ter compensado;
Mas este homem, com mão injusta, escreve na areia favores
inumeráveis,
Já as pequenas faltas, nas rochas as têm gravado’.

‘Ingrato, quem te guiou até as ondas onde Lésbia gostava de banhar-


se?
Quem te revelou o esconderijo de Dafne?
E quem, quando Caelia[9] pediu ajuda, te disse para beijá-la e
acalmá-la?
Quem mais senão o Amor, oh, Anacreonte?’

‘Então, eu deveria dizer: Menino gentil!


Minha única felicidade, minha fonte de alegria juvenil!
Deverias considerar-me mais valioso do que tua própria alma.
Deverias me beijar e comigo dançar, e então jurar
Que nem mesmo o teu vinho favorito tinha sabor
Antes que tua taça fosse beijada pelos lábios do amor’.

‘Então aqueles doces dias não merecem voltar?


Devo lamentar para sempre a tua perda,
Serei banido do teu coração e dos teus favores?
Ah, não! Este sorriso dissipa meus temores
Teu peito palpitante e teus olhos brilhantes,
Dizem-me que ainda sou estimado e que meus erros foram
perdoados’.

‘Mais uma vez, meu querido, meu estimado, meu protegido,


O cupido estará pronto nos teus braços,
Ajoelhar-se-á diante de ti e dormirá junto ao teu peito,
E o meu ardor acalentará o teu coração machucado,
Minha mão acalmará o inverno rigoroso,
E a primavera e a juventude voltarão a fazer o teu gosto’.

Sorrindo, uma pluma dourada ele arranca das asas,


E nas mãos do poeta a deposita,
Nesse instante, diante dos olhos de Anacreonte,
Surgem os sonhos mais puros da fantasia,
E ao redor de sua cabeça,
Uma inspiração indomável revolteia.

Seu peito arde com o fogo amoroso,


Ansioso, corre os dedos pela lira mágica,
E dela tira um acorde melodioso;
A pluma arrancada da asa do Cupido,
Desliza pelo arco há tanto tempo esquecido,
Enquanto Anacreonte canta a força e o louvor do amor.

Assim que o seu nome foi ouvido,


Os bosques sacudiram a neve,
As águas derretidas romperam o frio,
E o inverno se tornou breve.
Mais uma vez a terra se encheu de flores,
E um vento brando entre os pergolados soprou
O sol glorioso ascendeu e a luz de um novo dia derramou.

Atraídos pelos sons harmoniosos,


Silvanos e faunos[10] se aproximaram da cabana,
Vieram ouvir o trovador, curiosos,
Com as ninfas do bosque, que correm, ouvem e amam
Enquanto escutavam a melodia,
Não se lembravam da sua idade já tardia.
O Cupido, que a nada se prende por muito tempo,
Ouvia a música, debruçado sobre o instrumento;
Ou abafava com beijos as notas mais delicadas
E descansava no peito do poeta,
Ou com rosas seus cabelos alvos enfeitava,
E girava em círculos, suspenso por asas douradas.
Então, Anacreonte exclamou: ‘Nunca mais
Em outro altar derramarei meus votos,
Desde que o Cupido deseja inspirar meus números
Nem de Febo[11], nem da donzela dos mais belos olhos,
Pedirei ajuda para um verso
Pois o Amor será meu único inspirador no universo’.

‘As rimas sublimes, de outrora


Cantavam dos reis e dos heróis a sua glória,
Eu golpeava o acorde marcial com muita vontade,
Mas, adeus, herói! Adeus, Majestade!
Seus feitos não mais serão por mim contados,
Pois o Amor será o único sentimento pela minha lira apresentado’.”

O marquês lhe devolveu o papel com um sorriso de encorajamento.


— Gostei muito do seu pequeno poema – ele disse. — No entanto,
você não deve levar minha opinião em consideração. Não sou crítico de
poesias e, no que me diz respeito, nunca cheguei a compor mais do que
meia dúzia de versos em toda a minha vida. E essa meia dúzia de versos
produziu um efeito tão ruim que estou decidido a nunca mais escrever
outros. Mas estou me desviando do assunto. Eu ia dizer que você não pode
empregar seu tempo de maneira pior do que escrevendo versos. Um autor,
seja ele bom ou ruim, ou entre uma coisa e outra, é um animal a quem todos
se sentem no direito de atacar. Mesmo que nem todas as pessoas sejam
capazes de escrever livros, todas se consideram capacitadas para julgá-los.
Uma composição ruim carrega com ela o seu próprio castigo, o menosprezo
e o ridículo. Uma boa composição desperta a inveja e atrai mil formas de
mortificação para seu autor. Ele fica exposto às críticas parciais e mal-
humoradas: um encontra defeitos na trama, outro no estilo, um terceiro na
ordem que se esforça por revelar; e aqueles que não conseguem encontrar
nenhum defeito no livro, dedicam-se a estigmatizar seu autor. Eles trazem à
tona todas as pequenas circunstâncias que podem ridicularizar seu caráter
ou conduta e buscam ferir o homem, já que não conseguem ferir o escritor.
Em suma, entrar no mundo da literatura equivale a expor-se
voluntariamente aos dardos da negligência, ao ridículo, à inveja e ao
desapontamento. Não importa se escreve bem ou mal, tenha a certeza de
que não escapará da censura. Na verdade, tais circunstâncias apresentam
um consolo para um jovem escritor: ele se recorda de que Lope de Vega e
Calderón foram vítimas de críticas injustas e desagradáveis e,
modestamente, coloca-se na mesma situação. Mas eu compreendo que todas
essas sábias observações não valem nada para você. Escrever é uma mania
para a qual nenhuma razão parece ser forte o suficiente; seria muito difícil
convencer-me a não amar, assim como seria difícil convencê-lo a não
escrever. Assim, se não pode evitar ser tomado, de tempos em tempos, por
uma ânsia poética, tome ao menos a precaução de comunicar seus versos
apenas àqueles cujo respeito por você garanta sua aprovação.
— Então, meu senhor, não considera essas linhas toleráveis? –
perguntou Teodoro, com ar humilde a abatido.
— Você não entendeu. Como eu já disse, gostei muito. Mas meu afeto
por você faz com que eu seja parcial e outros podem julgá-las de forma
menos simpatizante. Devo confessar que mesmo a minha predisposição a
seu favor não é capaz de me cegar completamente a ponto de não observar
alguns defeitos. Por exemplo, você faz uma confusão terrível de metáforas e
tende a colocar a força dos seus versos nas palavras ao invés de usar o
sentido. Alguns versos parecem ser introduzidos apenas para que rimem
com outro, e a maior parte das melhores ideias são emprestadas de outros
poetas, ainda que você possivelmente não tenha se dado conta disso. Tais
faltas podem ser ocasionalmente desculpadas em uma obra mais longa, mas
um poema curto deve ser correto e perfeito.
— Tudo o que diz é verdade, senhor, mas deveria considerar que eu
escrevo apenas por prazer.
— Os seus defeitos são os menos desculpáveis. Pode-se perdoar a
imprecisão daqueles que escrevem por dinheiro, que são obrigados a
completar uma tarefa em um determinado período de tempo e que são
pagos pela quantidade, não pelo valor de suas produções. Mas para aqueles
que não têm necessidade de tornarem-se autores, os quais escrevem
meramente pela fama e que têm todo o tempo do mundo para aperfeiçoar
suas composições, os erros são imperdoáveis e merecem os dardos mais
afiados da crítica.
O marquês levantou-se do sofá. O pajem parecia desanimado e
melancólico, o que não escapou da observação do seu mestre.
— No entanto – acrescentou, com um sorriso — creio que estas linhas
não são capazes de desacreditá-lo. Sua versificação é toleravelmente fácil e
sua percepção parece ajustada. A leitura do seu pequeno poema me agradou
bastante e, se eu não estiver pedindo muito, gostaria de ter uma cópia.
O semblante do jovem iluminou-se imediatamente. Ele não percebeu
o sorriso, meio de aprovação, meio irônico, que acompanhava o pedido e
prometeu que faria a cópia com a maior prontidão. O marquês retirou-se
muito animado com o efeito instantâneo que produzira na vaidade de
Teodoro como conclusão da sua crítica. Ele se deitou e logo adormeceu.
Seus sonhos lhe presentearam com as mais agradáveis cenas de felicidade
com Agnes.
Ao chegar ao Palácio Medina, a primeira providência de Lorenzo foi
perguntar sobre a correspondência. Ele havia recebido muitas cartas, mas
não encontrou a que buscava. Leonella não pôde escrever naquela noite;
porém, sua impaciência para assegurar o amor de Dom Cristóbal, a quem
vangloriava-se de ter causado uma ótima impressão, não permitiria que
passasse um outro dia sem informá-lo do local onde poderia ser encontrada.
Ao retornar da igreja dos capuchinhos, ela relatou à irmã a atenção que o
belo fidalgo lhe dispensara e também como seu companheiro prometera se
encarregar da causa de Antonia junto ao Marquês de las Cisternas. Elvira
recebeu a notícia com sensações bem diferentes daquelas de quem as
transmitia. Censurou Leonella pela imprudência de ter confiado sua história
a um completo estranho e expressou receio de que um passo tão impensado
pudesse predispor o marquês contra ela. Sua maior apreensão, no entanto,
ficou guardada no peito. Tinha observado com preocupação que, assim que
o nome de Lorenzo foi mencionado, um rubor profundo espalhou-se pelo
rosto da filha. A tímida Antonia não ousava pronunciar o nome desse
cavalheiro; sem saber o porquê, sentiu-se envergonhada quando ele passou
a ser o centro da conversa e esforçou-se para mudar o tema para Ambrósio.
Elvira percebeu as emoções no peito juvenil e, como consequência, insistiu
para que Leonella quebrasse a promessa que havia feito aos cavalheiros. O
suspiro que se ouviu de Antonia quando tal ordem foi dada confirmou a
resolução da cautelosa mãe.
Porém, Leonella estava disposta a não obedecer a essa determinação.
Ela imaginava que tal ordem devia-se à pura inveja e que sua irmã receava
vê-la em posição superior à sua. Sem que ninguém soubesse da sua
intenção, aproveitou a ocasião para enviar a seguinte nota a Lorenzo, a qual
lhe foi entregue assim que acordou:
“Sem dúvida, senhor Lorenzo, deve constantemente me acusar de ser
ingrata e descuidada; mas; pela Virgem, não estava em meu poder cumprir a
promessa no dia de ontem. Não encontro palavras para descrever a estranha
atitude de minha irmã ao ser informada do seu desejo de visitá-la. Ela é uma
mulher singular e possuidora de muitas qualidades, mas o ciúme que sente
de mim faz com que tenha ideias completamente estranhas. Ao saber que
seu amigo havia me dedicado alguma atenção, ficou imediatamente
alarmada. Ela reprovou minha conduta e praticamente proibiu-me de
revelar o nosso endereço. Entretanto, meu grande senso de gratidão pelo seu
oferecimento tão amável e... será que devo confessar? Meu desejo de ver
uma vez mais o tão gentil Dom Cristóbal, me impedem de obedecê-la.
Assim, aproveito este instante de inadvertência para informá-lo de que
vivemos na Estrada de Santiago, a quatro portas do Palácio d’Albornos e
quase em frente à casa do barbeiro Miguel Coello. Pergunte por Dona
Elvira Dalfa, visto que, seguindo as ordens do sogro, minha irmã continua
usando o nome de solteira. Esta noite, às oito horas, o senhor nos encontrará
com toda a certeza, mas não diga uma só palavra que levante suspeitas de
que eu lhe escrevi esta carta. Se, por acaso, encontrar o Conde d’Ossorio,
diga-lhe... fico ruborizada ao confessar... diga-lhe que sua presença será
muito apreciada pela sua afetuosa Leonella.”
As últimas palavras foram escritas em tinta vermelha para expressar o
rubor das suas bochechas, ainda que demonstrassem certa violação ao seu
recato virginal.
Logo que recebeu a correspondência, Lorenzo saiu em busca de Dom
Cristóbal. Como não pôde encontrá-lo durante o dia, foi sozinho à casa de
Dona Elvira, para tristeza de Leonella. O criado a quem disse o seu nome
declarou que a senhora encontrava-se em casa e, assim, a mulher não pôde
recusar a visita. Contudo, ela consentiu com muita relutância. Essa
relutância só aumentou ao perceber as alterações que a chegada do moço
provocavam no semblante de Antonia, e mais ainda quando o jovem fez sua
aparição. A simetria das suas feições, a animação do seu rosto e a elegância
natural dos seus modos e palavras convenceram Elvira de que o convidado
representava perigo para a filha. Decidiu tratá-lo com uma cortesia fria,
recusar seus serviços com gratidão pela delicadeza do oferecimento e fazê-
lo entender, sem que se sentisse ofendido, que suas visitas futuras não
seriam bem acolhidas.
Ao entrar na casa o rapaz encontrou Elvira, a qual se achava
indisposta, reclinada em um sofá. Antonia estava sentada com seu bordado
e Leonella, em um vestido pastoral, lia Diana de Montemayor. Apesar de
tratar-se da mãe de Antonia, Lorenzo não podia deixar de imaginar Elvira
como a irmã de Leonella e a filha do “sapateiro mais honesto e trabalhador
de Córdoba”. Um simples relance foi capaz de desenganá-lo. Ele viu uma
mulher que, apesar das marcas do tempo e do sofrimento, ainda conservava
traços de uma beleza sem par. Uma dignidade profunda emanava de sua
pessoa, ainda que amenizada por uma graça e doçura que a tornavam
verdadeiramente encantadora. Lorenzo concluiu que, na juventude, deveria
ter sido muito parecida com a filha e compreendeu a imprudência do finado
Conde de las Cisternas. Ela indicou-lhe um assento e imediatamente voltou
ao seu lugar no sofá.
Antonia o recebeu com uma simples reverência e continuou a bordar.
Ruborizada, esforçava-se para ocultar suas emoções inclinando-se sobre o
bastidor. A tia também decidiu adotar um ar de modéstia, fingindo
enrubescer e tremer enquanto aguardava receber os cumprimentos de Dom
Cristóbal. Ao perceber, depois de um tempo, que não havia sinal da sua
aproximação, ela se aventurou a olhar ao redor do aposento e constatou que
Medina estava desacompanhado. Sua impaciência não lhe permitiu
aguardar a explicação: ela interrompeu Lorenzo, que nesse momento
comunicava a mensagem de Ramón, e perguntou o que tinha acontecido
com seu amigo.
Considerando importante manter-se em bons termos com a mulher,
Lorenzo esforçou-se para consolá-la ao distorcer um pouco a verdade.
— Ah, senhora! – replicou com voz melancólica. — Quão difícil será
para ele saber que perdeu esta oportunidade para prestar-lhe seus respeitos.
A doença de um familiar o obrigou a sair de Madri apressadamente. Mas,
logo que retornar, ele com certeza aproveitará a primeira ocasião para atirar-
se aos seus pés!
Ao dizer isso, seus olhos se encontraram com os de Elvira. Ela
castigou sua falsidade com um simples olhar de desaprovação e censura.
Por outro lado, o engano também não foi de grande serventia. Contrariada e
decepcionada, Leonella levantou-se e, indignada, retirou-se para os seus
aposentos.
Lorenzo tentou reparar sua falta, a qual lhe diminuiu na opinião de
Elvira, e passou a relatar a conversa que tivera com o marquês a respeito
dela. Garantiu-lhe que Ramón estava disposto a reconhecê-la como a viúva
de seu irmão e que, enquanto não pudesse vir pessoalmente apresentar seus
cumprimentos, Lorenzo deveria representá-lo. A notícia tirou um peso dos
ombros de Elvira; ela agora havia encontrado um protetor para a pobre órfã,
por cujo futuro vinha sofrendo as maiores apreensões. A mulher não
economizou agradecimentos por uma intervenção tão generosa em seu
favor, mas não fez o convite para uma nova visita.
Mesmo assim, ao levantar-se para partir, Lorenzo pediu permissão
para indagar a respeito de sua saúde ocasionalmente. A cortesia na sua
atitude, a gratidão pelos seus serviços e o respeito pelo amigo marquês não
permitiram que Elvira recusasse. Ela concordou em recebê-lo com certa
relutância. Ele prometeu não abusar da sua boa vontade e deixou a
residência.
Antonia ficou a sós com a mãe. As duas permaneceram em silêncio
por algum tempo. Ambas estavam ansiosas para falar sobre o mesmo
assunto, mas nenhuma sabia como abordá-lo. Uma sentia tanta vergonha
que selou os lábios, sem saber o porquê; a outra temia que suas suspeitas
estivessem corretas ou que pudesse inspirar a filha com ideias ainda
desconhecidas. Finalmente, Elvira deu início à conversa.
— Este jovem é encantador, Antonia. Gostei muito dele. Ele ficou
perto de você ontem na igreja?
— Ele não me deixou por um momento sequer enquanto estive na
igreja. Ele cedeu o assento para mim e foi muito atencioso e prestativo.
— Verdade? Então por que você nunca mencionou seu nome para
mim? Sua tia foi toda elogios para o amigo dele e você só falou da
eloquência de Ambrósio. Mas nenhuma das duas proferiu uma só palavra
sobre a pessoa ou as virtudes de Dom Lorenzo. Se Leonella não tivesse
comentado sobre a disposição dele para ocupar-se da nossa causa, eu não
saberia sequer da sua existência.
Ela se calou. Antonia enrubesceu, mas não disse nada.
— Talvez você o julgue de forma menos favorável do que eu. Em
minha opinião, sua figura é agradável, sua conversa é sensível e seus modos
muito atraentes. Mas ele pode ter causado uma impressão diferente em
você. Talvez o considere desagradável e...
— Desagradável? Oh, querida mãe, como pode pensar uma coisa
dessas? Eu seria muito ingrata se não me sensibilizasse com um
comportamento tão amável ontem, e só poderia estar cega se não
conseguisse enxergar seus méritos. Sua figura é tão graciosa, tão nobre.
Suas maneiras são tão doces e, ao mesmo tempo, tão másculas. Nunca vi
tantas qualidades juntas em uma só pessoa, e duvido que exista outro igual
em Madri.
— Por que, então, não comentou nada comigo sobre esta fênix de
Madri? Por que não me falou nada sobre o prazer que sentiu em sua
companhia?
— Para dizer a verdade, eu não sei. A senhora faz uma pergunta para
a qual eu mesma não encontro resposta. Estive a ponto de falar sobre ele
uma centena de vezes. Seu nome está constantemente nos meus lábios, mas
quando vou pronunciá-lo, me falta coragem. Mesmo assim, se não falei
sobre ele, não é porque não penso nele.
— Acredito em você. Mas quer mesmo saber por que lhe falta
coragem? Porque você está acostumada a me confiar os seus pensamentos
mais secretos e porque não sabe como ocultá-los. Você temia reconhecer
que o seu coração nutre um sentimento que sabe que eu desaprovaria.
Venha aqui, minha criança.
Antonia abandonou o bastidor e ajoelhou-se junto ao sofá,
escondendo o rosto no colo da mãe.
— Não tenha medo, minha doce menina. Considere que sou tanto sua
amiga como sua mãe e não tema nenhuma repreensão da minha parte. Eu
percebi a emoção no seu peito: você ainda não aprendeu a disfarçá-la, de
modo que não escapou aos meus olhos atentos. Este Lorenzo é perigoso
para a sua paz, ele já causou uma impressão no seu coração. Certamente me
dou conta de que seu afeto é facilmente correspondido. Mas quais podem
ser as consequências desta união? Você é pobre e não tem amigos, Antonia.
Lorenzo é herdeiro do Duque de Medina. Mesmo que seja um homem de
intenções honestas, o tio dele nunca consentirá num casamento como esse.
E sem o consentimento do tio, eu também não dou o meu consentimento.
Por experiência própria eu conheço os sofrimentos que aguardam aquela
que se casa com alguém cuja família não está disposta a recebê-la. Então,
guarde este sentimento para você mesma. Não importa o quanto venha a
sofrer, trate de dominá-lo. O seu coração, tão delicado e sensível, já recebeu
uma forte carga de emoção. Mas, uma vez convencida de que não deve
encorajar tais sentimentos, acredito que você será forte o suficiente para
expulsá-los do seu peito.
Antonia beijou-lhe a mão e prometeu obediência absoluta. Elvira
continuou:
— Para evitar que sua paixão se torne mais forte, será necessário
impedir as visitas de Lorenzo. O serviço que ele nos prestou não nos
permite proibi-las imediatamente. Mas, a menos que eu julgue o seu caráter
favorável, ele deve descontinuar as visitas sem se sentir ofendido quando eu
confessar minhas razões e colocar-me inteiramente à mercê da sua
generosidade. Na próxima vez que encontrá-lo, confessarei honestamente o
embaraço que sua presença nos causa. O que me diz minha filha? Não acha
que é uma medida necessária?
Antonia concordou com tudo sem a menor hesitação, ainda que com
algum pesar. A mãe a beijou carinhosamente e se recolheu para dormir.
Antonia seguiu seu exemplo e prometeu a si mesma não pensar mais em
Lorenzo; e prometeu por tantas vezes que adormeceu sem pensar em outra
coisa.
Enquanto este diálogo se dava na casa de Elvira, Lorenzo corria para
encontrar-se com o marquês. Tudo estava preparado para a segunda fuga de
Agnes e, à meia-noite, os dois amigos e um coche com quatro cavalos
aguardavam junto ao muro do convento. Em posse da chave, Dom Ramón
destrancou o portão. Eles entraram e esperaram ansiosamente pela chegada
de Agnes. Após algum tempo, o marquês começou a ficar impaciente.
Temendo que sua segunda tentativa fracassasse como a primeira, propôs
inspecionar o local. Os amigos foram em frente. Tudo estava tranquilo e às
escuras. A abadessa desejava manter toda a história em segredo, temendo
que o crime de uma de suas freiras trouxesse desgraça para toda a
comunidade, ou que a intervenção de algum parente poderoso a impedisse
de vingar-se da sua vítima iminente. Assim, ela tomou precauções para não
dar ao amante de Agnes nenhum motivo para supor que o plano fora
descoberto e que sua amada estava a ponto de sofrer o castigo pela falta
cometida. Pela mesma razão, rejeitou a ideia de mandar prender o sedutor
desconhecido enquanto estava no jardim. Esta medida teria ocasionado uma
grande confusão e a desgraça do convento seria comentada por toda Madri.
Ela se contentou com a prisão de Agnes. Quanto ao amante, deixou que
prosseguisse com seus planos. O resultado foi exatamente o que ela
esperava: o marquês e Lorenzo aguardaram em vão até o romper do dia.
Então, os dois se retiraram em silêncio, alarmados pelo fracasso do plano e
sem saber qual havia sido a causa.
Na manhã seguinte, Lorenzo se dirigiu ao convento e pediu para ver a
irmã. A abadessa surgiu com a fisionomia bastante entristecida e lhe
informou que há vários dias Agnes vinha se sentindo tão agitada que as
outras freiras, em vão, insistiram com ternura para que ela lhes revelasse a
causa de tal agitação e que orasse por conselho e consolo. Disse que a moça
persistia obstinadamente em ocultar o motivo que a afligia, mas que, na
quinta-feira à noite, o efeito da preocupação fora tão forte que ela caíra
enferma, vendo-se obrigada a permanecer confinada ao leito. Lorenzo não
acreditou em uma só palavra desta história e insistiu para ver a irmã. Se não
pudesse vir ela mesma ao seu encontro, ele desejava ir até sua cela. A
abadessa ficou escandalizada com a ideia de olhos profanos de um homem
penetrando o interior da sua casa sagrada e manifestou assombro por
Lorenzo ter tido ideia semelhante. Ela lhe disse que seu pedido não poderia
ser atendido e pediu que voltasse no dia seguinte. Esperava que sua filha
amada estivesse recuperada o suficiente para encontrar-se com o irmão por
entre a grade do salão. Com esta resposta, Lorenzo não teve outro remédio
senão retirar-se, insatisfeito e temeroso pela segurança da irmã.
Ele retornou na manhã seguinte, um pouco mais cedo. Agnes estava
pior. O médico havia dito que ela corria um grave perigo; ordenou que
permanecesse em repouso e declarou que seria impossível receber a visita
do irmão. Lorenzo ficou enfurecido, mas não havia o que fazer. Ele
suplicou, ameaçou, tentou de tudo para ver Agnes. Seu empenho, porém,
mostrou-se tão infrutífero quanto no dia anterior e ele regressou,
desesperado, para ver o marquês. Este, por sua vez, não poupara esforços
para descobrir a causa do fracasso do plano. Dom Cristóbal, a quem
confiara o assunto, logo tratou de adular a velha porteira de Santa Clara,
com a qual tinha travado amizade, mas ela, prudentemente, não fora capaz
de lhe revelar nada. O marquês estava transtornado e Lorenzo sentia-se
quase tão inquieto quanto ele. Ambos estavam convencidos de que a fuga
tinha sido descoberta e não duvidavam que a doença de Agnes fosse falsa,
embora não soubessem de que jeito poderiam resgatá-la das mãos da
abadessa.
Lorenzo visitava o convento pontualmente, todos os dias. Com a
mesma regularidade era informado de que a irmã piorava a cada dia.
Convencido de que sua indisposição era uma mentira, não se alarmou com
as notícias. Mas não saber o que havia acontecido com ela e nem os
motivos que levaram a abadessa a impedir sua visita deixavam-no
extremamente preocupado. Ele ainda não sabia bem qual medida deveria
tomar quando o marquês recebeu uma carta do Duque Cardeal de Lerma.
Ela continha a tão esperada bula papal ordenando que Agnes fosse
dispensada dos seus votos e restituída aos seus parentes. A chegada de um
documento de tão grande importância trouxe a resposta que os amigos
procuravam. Eles decidiram que Lorenzo deveria levá-lo à superiora
imediatamente e exigir que a irmã lhe fosse entregue. Uma doença não
poderia ser usada contra tal ordem – o que dava ao irmão o poder de levá-la
de imediato ao Palácio Medina – e ele estava determinado a usar este poder
no dia seguinte.
Este pensamento carregava certo alívio e ele ficou bastante animado
com a ideia de devolver a liberdade à Agnes. Então, poderia dedicar seu
tempo ao amor e à Antonia. No mesmo horário da primeira vez, Lorenzo,
com o consentimento de Dona Elvira, foi visitá-la. Logo que anunciaram
sua chegada a filha retirou-se com Leonella, e quando ele entrou no
aposento encontrou apenas a dona da casa. Lorenzo foi acolhido com
menos frieza do que na primeira visita e foi convidado a sentar-se no sofá,
próximo a ela. Sem perder tempo, Elvira abordou o assunto conforme tinha
combinado com Antonia.
— Não quero parecer mal-agradecida, Dom Lorenzo, nem que me
esqueci do quanto seus serviços junto ao marquês nos são essenciais.
Conheço as minhas obrigações. Nada neste mundo me faria tomar esta
decisão se não fosse pelo bem-estar de minha filha, a minha amada
Antonia. Minha saúde está pior a cada dia e só Deus sabe quando serei
convocada a me apresentar diante de Seu trono. Minha filha será deixada
sem pais e, se perder também a proteção da família de las Cisternas, será
deixada sem amigos. Ela é jovem e inocente, não está preparada para
enfrentar a falsidade do mundo e possui encantos que a tornam objeto de
sedução. Imagine, então, como temo pelo seu futuro. Imagine o quanto
estou ansiosa para mantê-la afastada da companhia de alguém que pode
despertar nela paixões que ainda estão adormecidas no seu peito. O senhor é
muito amável, Dom Lorenzo. Antonia possui um coração sensível e
amoroso e está muito agradecida pelos favores a nós concedidos pela sua
intervenção junto ao marquês. Mas a sua simples presença já me faz tremer.
Receio que o senhor inspire em Antonia sentimentos que podem amargurar
o resto de sua vida, ou, ainda, que a encoraje a acalentar esperanças que, na
condição dela, são injustificáveis e inúteis. Perdoe-me se confesso meus
temores e se permito que minha franqueza advogue a meu favor. Não posso
impedir que o senhor venha à minha casa, pois a gratidão me retém. Tudo o
que me resta é colocar-me à disposição da sua generosidade e suplicar que
poupe os sentimentos de uma mãe angustiada. Acredite-me quando lhe
asseguro de que lamento a necessidade de recusar sua amizade, mas não há
outro remédio, e os interesses de Antonia me obrigam a lhe pedir que não
venha mais nos visitar. Se atender ao meu pedido, a estima que tenho pelo
senhor só irá aumentar e estarei convencida de que o senhor é
verdadeiramente merecedor desse sentimento.
— Sua franqueza me encanta – respondeu Lorenzo. — Verá como sua
opinião sobre a minha pessoa é a mais acertada. Mesmo assim, espero que
as minhas razões possam persuadi-la a remover o seu pedido, o qual não
poderei atender sem muita relutância. Eu amo sua filha, amo sinceramente.
O meu maior desejo é que meus sentimentos sejam correspondidos e que eu
possa receber sua mão em casamento. É certo que não sou um homem rico.
A morte do meu pai não me deixou muita coisa, mas minhas esperanças
quanto ao futuro justificam minha pretensão de obter a mão da filha do
Conde de las Cisternas.
Ele ia prosseguir, mas Elvira o interrompeu:
— Ah, Dom Lorenzo, o senhor se esquece das minhas origens quando
se refere a este título pomposo. O senhor se esquece de que já estou há
quatorze anos na Espanha sendo repudiada pela família do meu marido e
que tenho vivido com uma pensão insuficiente para o sustento e educação
de minha filha. E mais, eu fui também esquecida pelos meus próprios
parentes que, por inveja, fingem duvidar da oficialização do meu
matrimônio. Com a descontinuidade da pensão pela morte do meu sogro,
fui reduzida à miséria. Foi nesta situação que fui acolhida pela minha irmã,
a qual, apesar de todas as suas fraquezas, possui um coração caloroso,
generoso e afetuoso. Ela me ajudou com a pequena fortuna que meu pai lhe
deixou, me convenceu a vir para Madri e tem sustentado a todos desde que
partimos de Múrcia. Assim, não veja Antonia como descendente do Conde
de las Cisternas. Considere que é uma órfã pobre e desprotegida, neta do
comerciante Torribio Dalfa, e tão necessitada quanto a filha deste
comerciante. Reflita sobre a diferença entre esta situação e a do sobrinho e
herdeiro do poderoso Duque de Medina. Acredito nas suas intenções, mas
como não tenho esperanças de que seu tio aprove esta união, prevejo que as
consequências do seu afeto seriam fatais para minha filha.
— Perdão, senhora. Está enganada se supõe que o Duque de Medina
se assemelha aos outros homens. Os sentimentos dele são liberais e
desinteressados. Ele me estima muito e não tenho nenhum motivo para
acreditar que será contrário ao nosso casamento quando perceber que minha
felicidade depende de Antonia. E mesmo que ele não aprove nossa união, o
que eu tenho a perder? Meus pais já não vivem e minha pequena fortuna,
que é suficiente para sustentar Antonia, já está à minha disposição. E eu não
hesitaria nem por um segundo se tivesse de abrir mão do ducado de Medina
para casar-me com ela.
— O senhor é jovem e impetuoso. É natural que tenha estas ideias.
Mas a minha experiência me ensinou que as uniões desiguais são sempre
acompanhadas de maldições. Eu me casei com o Conde de las Cisternas
contra a vontade dos pais dele e paguei um preço muito alto por este passo
imprudente. Não importava para onde nos dirigíamos, a maldição do pai de
Gonzalo sempre nos acompanhava. A pobreza nos assediava e não
tínhamos nenhum amigo por perto para nos ajudar quando precisávamos.
Nosso afeto mútuo ainda existia, mas, ai de mim, não sem interrupções.
Acostumado com a riqueza e abundância, meu marido mal podia suportar a
transição para a miséria e privação. Ele se lamentava constantemente por ter
deixado para trás todo o conforto que um dia possuiu; sofria por ter
abandonado tudo por minha causa e, nos momentos de desespero, me
acusava de ter feito dele uma companhia para a miséria e a necessidade. Ele
dizia que eu era a desgraça da sua vida, a fonte das suas mágoas e a
causadora da sua destruição. Oh, Deus! Ele não tinha ideia do quanto o meu
próprio coração me censurava. Ele não sabia o quanto eu sofria, por mim
mesma, pelos meus filhos, e também por ele. É verdade que sua raiva não
durava muito, seu afeto por mim logo ressurgia no seu coração e então o
arrependimento pelas lágrimas que me havia feito chorar torturava-me
ainda mais do que suas acusações. Ele se atirava ao chão, implorava por
perdão e amaldiçoava a si mesmo por ter destruído minha serenidade.
Então, como sei por experiência própria que uma união contraída contra a
vontade das famílias de qualquer uma das partes está destinada a ser infeliz,
quero poupar minha filha do mesmo sofrimento. Sem o consentimento do
seu tio, enquanto eu viver, ela não será sua. E ele, com certeza, não
aprovará esta união. Seu poder é imenso e Antonia não será exposta à sua
ira e perseguição.
— Perseguição? Mas isto pode ser tão facilmente evitado! Se tal coisa
realmente viesse a acontecer, nós simplesmente abandonaríamos a Espanha.
Os bens que possuo facilmente tornariam este plano realidade. As Índias
Ocidentais podem nos oferecer um refúgio seguro. Tenho uma propriedade
na Hispaniola, embora não seja de muito valor. Para lá partiríamos e essa
passaria a ser nossa terra natal, se isso fosse necessário para uma união
serena com Antonia.
— Ah, meu jovem, este é um modo romântico de ver as coisas.
Gonzalo pensava da mesma maneira. Ele imaginava que poderia abandonar
a Espanha sem arrependimentos. Mas ele já tinha dúvidas no momento da
partida. O senhor não sabe o que é deixar sua terra natal, abandoná-la para
nunca mais retornar. O senhor desconhece o que é trocar os cenários da sua
infância por regiões desconhecidas e climas bárbaros. Ser esquecido,
absoluta e eternamente esquecido pelos companheiros da sua juventude e
ver seus amigos mais queridos, aqueles que lhe tinham tanto afeto, morrer
vítimas de enfermidades ocasionais típicas dos ares das Índias e descobrir
que não há nada a fazer para ajudá-los. Eu senti tudo isso. Enterrei meu
esposo e dois bebês em Cuba. Nada poderia ter salvo minha pequena
Antonia a não ser o rápido retorno à Espanha. Ah, Dom Lorenzo, se o
senhor pudesse imaginar o que sofri durante minha ausência, se soubesse o
quanto me arrependi por ter deixado tudo para trás e como era querido o
nome da Espanha! Eu chegava a sentir inveja dos ventos que sopravam
nesta direção, e quando algum marinheiro espanhol que passava pela minha
janela cantava alguma canção conhecida, meus olhos se enchiam de
lágrimas pensando na minha terra natal. Gonzalo sentia também... meu
marido...
Elvira, sem voz para continuar, calou-se e escondeu o rosto com um
lenço. Após breve silêncio, ela levantou-se do sofá e prosseguiu:
— Desculpe-me se tenho de deixá-lo por alguns instantes. A
lembrança do meu sofrimento me deixou agitada e preciso ficar sozinha.
Até que eu retorne, leia estas linhas. Depois da morte do meu marido eu as
encontrei entre os seus papeis. Se eu soubesse que ele era possuidor de tais
sentimentos, a dor teria acabado comigo. Ele escreveu estes versos durante
a viagem para Cuba, enquanto seu espírito estava repleto de tristeza a ponto
de fazê-lo se esquecer de que tinha esposa e filhos. O que estamos para
perder sempre nos parece mais precioso. Gonzalo estava deixando a
Espanha para sempre e, por isso, a Espanha lhe era mais cara do que tudo o
que havia no mundo. Leia, Dom Lorenzo. Os versos lhe darão uma ideia do
sofrimento de um homem banido de seu país.
Elvira pôs um papel nas mãos de Lorenzo e retirou-se do aposento. O
jovem examinou o conteúdo da escrita e encontrou o seguinte:

O EXÍLIO

“Adeus Espanha, minha terra natal. Adeus para sempre!


Estes olhos banidos não mais verão suas costas;
Um presságio fúnebre diz ao meu coração,
Que os passos de Gonzalo nunca mais pisarão sua orla.

Os ventos se calaram enquanto a embarcação navega suavemente,


Enquanto gentilmente vai deslizando pelo mar imperturbável;
Sinto que morre alguma coisa no meu peito,
E abomino as ondas que me afastam num ritmo inabalável.

Ainda posso vê-la! Está abaixo do céu claro e azul,


Ainda consigo ver os campanários tão adorados;
Desde o ponto escarpado, o vento da noite,
Ainda traz aos meus ouvidos os sotaques elaborados.

Apoiado numa rocha cheia de musgo e cantando alegremente,


O pescador, no fim do dia, seca suas redes;
Ouço a balada queixosa, frequentemente,
Trazendo de volta aos meus olhos as cenas mais alegres .

Ah, feliz camponês que aguarda pela hora de sempre,


Quando o crepúsculo escurece o firmamento;
Então, com alegria busca a residência paterna;
E compartilha das festas nos campos, cheio de contentamento.

Cheios de amor e amizade, os moradores da sua cabana,


Acolhem-no com um sorriso sincero;
Sem tristezas que ameacem sua alegria
Sem suspiros no peito, sem lágrimas, sem desespero.

Ah, feliz camponês! A sua alegria me foi negada,


O acaso me faz ver com inveja o seu destino;
Eu, que deixo a Espanha, a minha casa,
Digo adeus a tudo o que amo e estimo.
Nunca mais meus ouvidos escutarão,
A canção da menina da montanha, ao cuidar do seu rebanho;
Ou de algum camponês implorando por um amor,
Ou o canto do pastor entoando tons estranhos.

Nunca mais abraçarei meu pai tão amado,


Nunca mais desfrutarei do lar reconfortante;
Para longe destas alegrias, com recordações e suspiros
Parto em direção a céus sufocantes e climas distantes.

Onde o sol das Índias cria novas doenças,


Onde vivem as cobras e os tigres, é para lá que vou;
A desafiar a sede febril que nada é capaz de saciar
A febre amarela, e o fogo enlouquecedor.

Para sentir dores que destruirão meu fígado,


Para morrer pouco a pouco, na flor da minha idade;
Para ter meu sangue ardente sendo engolido pela febre insaciável,
Com o cérebro delirante pelo sol e sua intensidade.

O que pode me trazer tanto sofrimento, como afastar-me


Com tantos suspiros de tristeza, de ti, minha terra;
Sentir que este coração te amará para todo o sempre;
E que a felicidade aqui se encerra.

Ai de mim! De tempos em tempos, na imaginação e nos sonhos


Evocarei em espírito a minha pátria;
Quantas vezes me lembrarei com tristeza,
De cada prazer e cada amigo que deixo na incerteza.

Vales agrestes de Múrcia, cheios de habitações românticas,


O rio onde tanto brinquei quando criança;
Salões dos meus castelos e torres sombrias,
Da tristeza dos bosques levarei a lembrança.
Sonhos sobre a terra onde moram todos os meus desejos,
Suas paisagens, que nunca mais verei;
Com frequência as lembranças atormentarão minha alma,
E transformarão em dor todo o prazer que um dia desfrutei.

Mas, veja! As ondas retiram-se com o sol baixo,


Apressada para impor seus domínios, chega a escuridão;
As nuvens escurecem os campanários dos povos,
Quase não se vê, e agora desaparecerão.

Oh, vento! Não sopre mais! Aquiete o movimento das águas,


Durma, durma, meu navio, no silêncio do oceano;
Assim, quando o sol amanhã aparecer para dourar as águas
Mais uma vez verei a costa da Espanha que tanto amo.

Desejo inútil. Meu último pedido foi desprezado,


De novo sopra o vento e as ondas crescem ainda mais,
Estaremos muito longe ao romper do dia,
Adeus Espanha querida, até nunca mais!”

Lorenzo mal teve tempo de ler os versos quando Elvira retornou.


Sentia-se melhor depois de ter chorado um pouco e seu ânimo recobrara a
serenidade habitual.
— Não tenho mais nada a dizer, meu senhor – falou. — O senhor
tomou conhecimento dos meus temores e das razões para pedir-lhe que não
volte a nos visitar. Eu depositei toda a minha confiança na sua honra, e
estou certa de que não me arrependerei de ter confiado no senhor.
— Só mais uma pergunta, senhora, e eu a deixarei. Se o Duque de
Medina aprovasse meu amor, meu pedido seria aceito pela senhora e por
Antonia?
— Serei muito sincera com o senhor, Dom Lorenzo. Apesar de haver
poucas chances dessa união acontecer, sinto que minha filha a deseja
ardentemente. O senhor causou uma impressão muito forte no seu coração
tão jovem, o que me deixa muito alarmada. Para evitar que essa impressão
torne-se ainda mais forte, vejo-me obrigada a recusar sua amizade. No que
dependesse de mim, o senhor pode acreditar que eu ficaria muito feliz em
estabelecer minha filha de forma tão vantajosa. Como estou consciente de
que a minha saúde, desgastada pelo sofrimento e pelas enfermidades, não
me permite ter esperanças de viver muito tempo, tenho muito medo de
deixar minha filha sob a proteção de um completo estranho. O Marquês de
las Cisternas é completamente desconhecido para mim. Ele se casará. Sua
esposa poderá ver Antonia com desagrado e, assim, ela seria privada de seu
único amigo. Se o duque, seu tio, der o consentimento, não duvide que
obterá também o meu e o de minha filha. Mas, sem o consentimento dele,
não espere pelo nosso. Em todo caso, não importa quais serão os seus
próximos passos, não importa qual será a decisão do duque: até que tenha
conhecimento dela, eu imploro que evite estimular a predisposição de
Antonia com sua presença. Se o sangue da sua família lhe der permissão
para torná-la sua esposa, minhas portas estarão abertas. Se a resposta for
outra, conforme-se com minha estima e gratidão, mas lembre-se, não
deveremos mais nos encontrar.
Lorenzo, relutantemente, prometeu conformar-se com essa decisão,
mas acrescentou que esperava obter muito em breve o consentimento que
lhe daria o direito de voltar a visitá-las. Ele, então, explicou o porquê de o
marquês não ter comparecido pessoalmente e contou toda a história da sua
irmã. Concluiu dizendo que esperava que Agnes já estivesse livre no dia
seguinte e que, tão logo os temores de Dom Ramón fossem apaziguados,
ele não perderia tempo para garantir a Dona Elvira a sua amizade e
proteção.
A dama negou com a cabeça.
— Sinto por sua irmã – ela disse. — Ouvi muitas peculiaridades sobre
a superiora de Santa Clara, da parte de uma amiga que foi educada no
mesmo convento. Segundo esta amiga, a mulher é orgulhosa, inflexível,
supersticiosa e vingativa. Também ouvi dizer que está obcecada pela ideia
de transformar o seu convento no mais regular de Madri e que nunca
perdoará imprudências que possam trazer a menor mácula ao seu prestígio.
Embora naturalmente violenta e severa quando seus interesses assim
exigem, ela sabe bem como assumir um ar de benevolência. Ela se utiliza
de todos os recursos para convencer as jovens a tornarem-se membros da
sua comunidade. É implacável quando irritada e é ousada o suficiente para
utilizar as medidas mais rigorosas para castigar o transgressor. Sem dúvida,
o fato de sua irmã abandonar o convento será considerado uma desgraça
para essa mulher. Ela lançará mão de todos os artifícios para evitar ter de
obedecer ao mandado de Sua Santidade e eu tremo só em pensar que Dona
Agnes está nas mãos de uma mulher tão perigosa.
Lorenzo levantou-se para sair. Elvira lhe deu a mão, a qual ele beijou
respeitosamente; e, dizendo que esperava obter em breve a permissão para
beijar também a mão de Antonia, retornou ao seu palácio. A dama ficou
muito satisfeita com a conversa que tiveram. Ela via com alegria a
perspectiva de Lorenzo tornar-se seu genro. Mas a prudência lhe
aconselhou a ocultar da filha as esperanças que agora se atrevia a sentir.
Nem bem o dia raiou, Lorenzo encaminhou-se para o convento de
Santa Clara munido com o mandado necessário. As freiras estavam nas
matinas. Ele esperou impacientemente pela conclusão da cerimônia e,
finalmente, a abadessa apareceu no locutório gradeado. Perguntou por
Agnes. A velha senhora respondeu com muita tristeza que o estado da pobre
criatura havia piorado nas últimas horas e que a jovem tinha sido
desenganada pelos médicos. Mas os mesmos médicos também declararam
que a única chance para sua recuperação seria mantê-la em repouso e não
permitir a presença de pessoas que poderiam deixá-la inquieta. Lorenzo não
acreditou em uma só palavra, nem nas expressões de pesar e afeto por
Agnes. Para encerrar o assunto, ele colocou a bula do Papa nas mãos da
superiora e insistiu que, doente ou não, sua irmã deveria ser libertada sem
demora.
A abadessa recebeu o documento com humildade, mas uma simples
olhada no seu conteúdo fez com que seus ressentimentos sobrepujassem
toda a sua hipocrisia. Uma coloração avermelhada se espalhou por todo o
seu rosto e ela lançou a Lorenzo um olhar de raiva e ameaça.
— Esta ordem é categórica – disse com voz enojada, esforçando-se
em vão para disfarçar. — Eu bem que gostaria de obedecer, mas
infelizmente está fora do meu alcance.
Lorenzo a interrompeu com uma exclamação de surpresa.
— Eu repito, senhor, está totalmente fora das minhas possibilidades
obedecer a esta ordem. Por respeito aos sentimentos de um irmão, eu teria
lhe comunicado a triste notícia aos poucos, e teria preparado o senhor para
ouvir o que tenho a dizer. Mas o meu plano não funcionou. Segundo esta
ordem, devo entregar-lhe sua irmã Agnes sem demora, mas vejo-me
obrigada a informar-lhe, sem rodeios, de que ela faleceu na sexta-feira
passada.
Com horror, Lorenzo deu um passo para trás e então ficou pálido. Um
instante de reflexão lhe convenceu de que esta afirmação deveria ser falsa, o
que o deixou um pouco mais calmo.
— A senhora está mentindo para mim! – exclamou, cheio de raiva. —
Nem cinco minutos se passaram desde que a senhora me garantiu que ela
ainda estava viva. Quero vê-la neste instante! Eu devo e quero vê-la, e não
adiantará nada tentar escondê-la de mim!
— Contenha-se, senhor! O senhor me deve respeito pela minha idade
e pela minha posição. Sua irmã faleceu. Se, a princípio, ocultei a sua morte,
foi por receio de que um acontecimento tão inesperado pudesse produzir no
senhor um efeito violento. Na verdade, o senhor se mostra muito mal-
agradecido pela minha intenção. Que interesse eu teria em retê-la? Saber
que ela desejava abandonar nossa comunidade já é motivo suficiente para
eu desejar a sua partida e considerá-la uma desonra para as irmãs de Santa
Clara. Mas ela perdeu meu afeto de maneira ainda mais repreensível. Seus
delitos foram graves e quando souber a causa da sua morte, sem dúvida
ficará alegre, Dom Lorenzo, por ela não estar mais aqui. Ela adoeceu na
quinta-feira passada, quando voltávamos da confissão na capela dos
capuchinhos. Sua doença parecia vir acompanhada por estranhas
circunstâncias, mas ela insistia em ocultar a causa. Graças à Virgem, nós
nem suspeitávamos do que poderia ser. Imagine, então, o quanto ficamos
consternadas e até horrorizadas, quando, no dia seguinte, ela deu à luz uma
criança morta, a qual ela imediatamente seguiu para o túmulo. Como,
senhor? É possível que o seu semblante não demonstre nenhuma surpresa
ou indignação? Será possível que a infâmia da sua irmã tenha chegado aos
seus ouvidos e que, mesmo assim, ela ainda fosse possuidora do seu afeto?
Neste caso, o senhor não precisa da minha compaixão. Não posso dizer
mais nada, a não ser repetir a minha impossibilidade de obedecer às ordens
de Sua Santidade. Agnes faleceu, e para convencê-lo de que estou dizendo a
verdade, juro pelo nosso Salvador que ela foi enterrada três dias atrás.
Ela beijou um pequeno crucifixo que trazia pendurado junto ao cinto.
Então, levantou-se e deixou o locutório. Ao retirar-se, dirigiu a Lorenzo um
sorriso sarcástico.
— Adeus, senhor – ela disse. — Eu não tenho remédio para este mal.
Acredito que nem mesmo uma segunda bula do Papa possa ressuscitar sua
irmã.
Lorenzo também se retirou, consternado de dor. Mas Dom Ramón, ao
receber tal notícia, ficou praticamente louco. Não quis aceitar que Agnes
estivesse realmente morta e continuou insistindo que ela estava presa entre
os muros de Santa Clara. Nenhum argumento foi capaz de fazê-lo
abandonar suas esperanças de recuperá-la. Dia após dia, inventava um novo
plano para obter notícias de Agnes, todos com o mesmo resultado.
Da sua parte, Lorenzo abandonou a ideia de voltar a ver a irmã.
Mesmo assim, ele acreditava que a causa da sua morte não estava muito
clara. Convencido disto, encorajava as investigações de Dom Ramón,
determinado, no caso de descobrir qualquer coisa suspeita, a vingar-se da
abadessa insensível. A perda da irmã o afetou sinceramente. E por sentir
tanta dor, o decoro o obrigou a adiar por um tempo a conversa com o duque
sobre Antonia. Entretanto, seus emissários rondavam constantemente a
porta de Elvira. Ele ficou sabendo de todos os movimentos de sua amada.
Como ela nunca deixava de ir às quintas-feiras ao sermão na igreja
capuchinha, ele estava certo de que poderia vê-la uma vez por semana,
mesmo que, para cumprir sua promessa, tivesse de ficar escondido. Assim
passaram-se dois longos meses. Ainda não havia notícias de Agnes. Todos,
com exceção do marquês, consideravam-na morta. Lorenzo resolveu revelar
seus sentimentos ao tio. Ele já tinha feito algumas insinuações de que
pretendia se casar, as quais foram favoravelmente recebidas, e não havia
dúvida nenhuma quanto ao êxito da sua solicitação.
CAPÍTULO III

Enquanto deitam-se, extasiados, nos braços um do outro,


Eles consagram a noite e insultam o dia que vai nascer.
(Lee)

A explosão do êxtase já havia passado e o desejo de Ambrósio estava


satisfeito. O prazer o abandonou e a culpa apoderou-se do seu peito.
Confuso e assustado com a própria fraqueza, afastou-se dos braços de
Matilda. Seu perjúrio apresentava-se bem diante dos seus olhos. Ele refletiu
sobre a cena na qual acabara de atuar e tremeu ao imaginar as
consequências caso fossem descobertos. Via o futuro com horror: seu
coração estava desanimado e tornara-se a morada da saciedade e
repugnância. Evitou os olhos da sua cúmplice na fragilidade. Reinou um
silêncio melancólico durante o qual ambos pareciam ocupados demais com
pensamentos desagradáveis.
Matilda foi a primeira a romper o silêncio. Ela segurou a mão de
Ambrósio com delicadeza e levou-a aos lábios ardentes.
— Ambrósio! – murmurou com voz suave e trêmula.
O frade se assustou ao ouvir aquela voz. Ele voltou o olhar para os
olhos de Matilda, que estavam rasos de lágrimas. Sua face estava rubra e a
expressão suplicante parecia implorar por compaixão.
— Mulher perigosa! – exclamou. — Você me conduziu para um
abismo de sofrimentos! Se alguém descobrir que é uma mulher, posso
perder minha honra e até minha vida por alguns momentos de prazer. Que
tolo eu fui ao me deixar levar pela sua sedução! O que devo fazer agora?
Como posso expiar minha culpa? O que posso fazer para obter o perdão
pelo meu crime? Matilda, sua desgraçada, você destruiu meu sossego para
sempre!
— É a mim que censura, Ambrósio? Eu, que fui capaz de sacrificar
tudo por você, os prazeres do mundo, o luxo da riqueza, a delicadeza do
sexo, meus amigos, minha fortuna e minha honra? Existe alguma coisa que
você perdeu e que eu pude guardar para mim? Eu não compartilho da sua
culpa? Você não compartilhou do meu prazer? Culpa, eu disse? No que
consiste a nossa culpa, senão em um mundo mal-intencionado? Deixe que
esse mundo ignore a nossa alegria, e nosso prazer se tornará divino e
inocente! O que não era natural eram os seus votos de castidade. O homem
não foi criado para viver assim. E se o amor fosse crime, Deus não o teria
criado para ser tão doce, tão irresistível! Então, afaste essas nuvens de
preocupação, meu Ambrósio! Sinta-se livre para usufruir desses prazeres,
sem os quais a vida não tem nenhum valor. Pare de me repreender por ter
lhe mostrado a felicidade e sinta os mesmos arroubos que sente uma mulher
que o adora!
Enquanto falava, uma languidez deliciosa banhava seus olhos. Seu
peito se agitou. Ela enlaçou os braços ao redor de Ambrósio, aproximando
seus corpos voluptuosamente, e colou seus lábios aos dele. Ambrósio mais
uma vez sentiu o ardor do desejo. A sorte estava lançada. Já havia quebrado
seus votos e cometido o delito; por que não deveria aproveitar a
recompensa? Ele a apertou contra o peito com ardor redobrado. Livre da
sensação de vergonha, entregou-se por inteiro à satisfação do seu desejo, ao
mesmo tempo em que a bela libertina colocava em prática todas as
invenções da luxúria e cada refinamento da arte de aumentar o prazer,
proporcionando ao seu amante arroubos de êxtase ainda mais intensos.
Ambrósio saboreou delícias que até então lhe eram totalmente
desconhecidas. A noite passou rápido e o dia amanheceu acanhado ao
presenciar o frade ainda nos braços de Matilda.
Intoxicado de prazer, o monge levantou-se do leito faustoso da sereia.
Não sentia mais vergonha do seu comportamento, nem medo da vingança
dos céus. Seu único receio era de que a morte lhe roubasse a satisfação cuja
longa privação só fizera aumentar seu apetite. Matilda ainda estava sob a
influência do veneno e o monge devasso temia menos pela vida da sua
salvadora do que pela vida da sua concubina. Se a perdesse, não seria fácil
encontrar outra amante com a qual poderia entregar-se tão plenamente às
suas paixões sem correr perigo. Então, ele a pressionou a usar os meios que
ela mencionara conhecer para salvar sua vida.
— Sim – respondeu Matilda. — Já que me fez sentir que a vida é
valiosa, eu salvarei a minha a qualquer custo. Não terei medo do perigo.
Considerarei as consequências dos meus atos com frieza e não temerei os
horrores que se apresentarem. Quero acreditar que meu sacrifício é um
preço justo a pagar para ter você, e quero lembrar que um momento passado
nos seus braços neste mundo compensará todo o castigo do outro. Mas,
antes de ir adiante, Ambrósio, prometa solenemente que nunca me
questionará a respeito dos meios que salvaram a minha vida.
Ambrósio fez a promessa da maneira mais solene.
— Agradeço-lhe, meu amor. Esta precaução é necessária, pois, ainda
que não tenha conhecimento, você está sob o domínio de preconceitos
vulgares. Os assuntos que me manterão ocupada nesta noite podem assustá-
lo pela sua singularidade e podem diminuir sua admiração por mim. Diga-
me, você possui a chave da porta do lado oeste do jardim?
— A porta que dá acesso ao cemitério que compartilhamos com as
irmãs de Santa Clara? Não tenho a chave, mas posso consegui-la
facilmente.
— Isso é tudo o que terá que fazer: ajude-me a entrar no cemitério à
meia-noite. Vigie enquanto desço até a cripta de Santa Clara e não deixe
que nenhum bisbilhoteiro observe meus atos. Deixe-me sozinha por uma
hora e salvarei a minha vida para dedicar-me ao seu prazer. Para evitar
suspeitas, não me visite durante o dia. Lembre-se da chave e eu estarei
esperando por você antes das doze. Ouça! Passos se aproximam. Deixe-me,
fingirei que estou dormindo.
O frade obedeceu e deixou a cela. Ao abrir a porta, encontrou frei
Pablos.
— Vim saber como está passando o nosso jovem paciente.
— Silêncio! – replicou Ambrósio, colocando o dedo na frente dos
lábios. — Fale baixo. Acabo de vê-lo. Está dormindo profundamente, o
que, sem dúvida, lhe fará muito bem. Não vamos incomodá-lo, ele precisa
descansar.
Frei Pablos obedeceu e, ao ouvir o sino, acompanhou o superior às
matinas. Ambrósio sentia-se envergonhado ao entrar na capela. A culpa era
uma sensação nova para ele e imaginava que todos os olhos podiam ler as
aventuras da noite estampadas no seu rosto. Esforçou-se para rezar. Seu
peito não mais resplandecia pela devoção. Seus pensamentos estavam com
os encantos secretos de Matilda. O que lhe faltava de pureza no coração,
compensava com a aparência de santidade. O melhor para disfarçar sua
transgressão seria redobrar a pretensa aparência de virtude. Nunca se viu
ninguém mais devoto aos céus desde que quebrara seus votos. Assim,
inconscientemente, adicionou hipocrisia ao perjúrio e à fraqueza de caráter.
Tinha cometido os últimos pecados ao sucumbir a uma sedução quase
irresistível; porém, agora era culpado de um pecado voluntário quando
decidiu ocultar as outras faltas.
Quando as matinas terminaram, Ambrósio retirou-se para a cela. Sua
mente ainda estava impressionada pelos prazeres que acabara de saborear
pela primeira vez. Seu cérebro estava ofuscado por um caos de remorso,
volúpia, inquietude e medo. Recordava-se com pesar daquela quietude da
alma e da segurança da virtude que até então pudera desfrutar. Havia se
permitido excessos que repudiava com horror apenas vinte e quatro horas
antes. Tremia ao imaginar que uma simples indiscrição da sua parte ou da
parte de Matilda pudesse derrubar o muro de reputação que levara trinta
anos para construir, e na repulsa daquelas pessoas para quem havia sido um
ídolo. A consciência pintava seu perjúrio e fraqueza com cores vivas; o
medo ampliava os horrores do castigo e ele já podia se imaginar na prisão
da Inquisição. Mas logo voltava a pensar na beleza de Matilda e naquelas
lições que, uma vez aprendidas, não poderiam ser esquecidas. Considerou
que o preço a pagar pelos prazeres da noite anterior seria o sacrifício da sua
inocência e honra. A simples lembrança de tais prazeres encheu sua alma de
êxtase. Ele amaldiçoou sua estúpida vaidade que fizera com que
desperdiçasse a flor da juventude na obscuridade, ignorando os encantos do
amor de uma mulher. Decidiu manter a todo custo o relacionamento com
Matilda e apelou a todos os argumentos que pudessem confirmar essa
decisão. Ele indagava quais seriam as consequências dos seus atos, na
eventualidade da sua falta permanecer ignorada por todos. Se observasse
rigorosamente todas as regras da sua ordem, salvo a castidade, não
duvidava de que poderia conservar a estima dos homens e até a proteção
dos céus. Acreditava que seria facilmente perdoado por essa transgressão
dos votos por ser uma coisa tão simples e natural. Mas ele havia se
esquecido de que, ao professar os votos, a luxúria, o pecado mais
desculpável, tornara-se para ele o crime mais hediondo.
Uma vez decidida à conduta futura, sua mente ficou mais tranquila.
Ele deitou-se na cama e tratou de dormir para recobrar as forças
consumidas nos excessos noturnos. Acordou recobrado e ansioso por uma
repetição dos prazeres. Obediente às ordens de Matilda, não visitou sua cela
durante o dia. Frei Pablos mencionou no refeitório que Rosário consentira
em seguir sua prescrição, mas que a medicação não tinha produzido
nenhum efeito e que não havia nada a fazer que pudesse salvá-lo da morte.
O superior concordou e fingiu lamentar o destino prematuro de um jovem
cujo talento parecia tão promissor.
A noite chegou. Ambrósio tomara o cuidado de solicitar ao porteiro a
chave da porta que dava acesso ao cemitério. Quando tudo estava em
silêncio no mosteiro, ele deixou a cela e correu ao encontro de Matilda. Ela
se levantara da cama e já estava vestida.
— Eu o aguardava com impaciência – disse ela. — Minha vida
depende deste momento. Você conseguiu a chave?
— Consegui.
— Então, vamos para o jardim. Não temos tempo a perder. Siga-me!
Ela apanhou uma pequena cesta coberta que estava sobre a mesa.
Com a cesta em uma das mãos e uma lamparina acesa na outra, deixou a
cela. Ambrósio seguia atrás. Ambos mantiveram um profundo silêncio. Ela
avançava com passos rápidos, porém cautelosos. Eles cruzaram os claustros
e, por fim, chegaram ao lado oeste do jardim. O monge, muito
impressionado pelo fogo selvagem que cintilava no olhar de Matilda,
chegou a sentir medo e terror. Ela parecia estar dominada por uma coragem
desesperadora. Depois de entregar a lamparina para Ambrósio, ela pegou a
chave, abriu o portão e entrou no cemitério. Tratava-se de um retângulo
espaçoso com muitas árvores plantadas. Metade pertencia ao mosteiro, e a
outra metade era propriedade da Irmandade de Santa Clara e era protegida
por um telhado de pedras. A divisão era marcada por uma grade de ferro
cuja portinhola encontrava-se geralmente destrancada.
Matilda caminhou naquela direção. Abriu a portinhola e procurou
pela porta que conduzia à cripta subterrânea onde descansavam os restos
mortais das freiras de Santa Clara. A noite estava totalmente escura. Não
havia lua nem estrelas. Felizmente o vento não soprava e o padre pôde
manter a lamparina acesa sem receio. Graças a essa claridade os dois logo
encontraram a porta do sepulcro. Estava escondida em uma reentrância na
parede e quase totalmente oculta por festões de hera pendurados sobre a
passagem. Três degraus de pedra levavam à porta e Matilda já começava a
descer quando, de repente, recuou.
— Há alguém na cripta! – sussurrou para o monge. — Esconda-se até
que elas saiam.
Ela se escondeu atrás de uma sepultura alta e magnífica, erguida em
homenagem à fundadora do convento. Ambrósio seguiu seu exemplo e
ocultou a chama da lamparina antes que a claridade pudesse traí-los. Alguns
segundos depois, a porta que conduzia às cavernas subterrâneas se abriu. Os
raios de luz que surgiram permitiram aos espectadores observar duas
mulheres vestidas com hábitos religiosos que pareciam estar engajadas em
uma conversa muito séria. O frade não teve dificuldade para reconhecer a
abadessa de Santa Clara acompanhada por uma das freiras mais idosas.
— Já está tudo preparado – disse a abadessa. — O destino dela será
decidido amanhã. Todas as suas lágrimas e suspiros serão inúteis. Não!
Nesses vinte e cinco anos em que sou a superiora deste convento, nunca
testemunhei nada mais ultrajante!
— A senhora deverá contar com muita oposição às suas intenções –
replicou a outra, com voz mais suave. — Agnes tem muitas amigas no
convento, particularmente a madre Santa Úrsula que certamente defenderá
sua causa com todas as forças. Para dizer a verdade, Agnes merece ter
muitas amigas. Eu gostaria de poder lhe convencer a considerar sua
juventude e situação tão peculiar. Ela parece estar arrependida do erro que
cometeu. O excesso de pesar demonstra sua penitência e eu tenho certeza de
que suas lágrimas brotam mais por remorso do que por medo do castigo.
Reverenda madre, se a senhora pudesse abrandar a severidade da sentença,
se pudesse deixar passar esta primeira transgressão, eu poderia me oferecer
como garantia da conduta futura de Agnes.
— Deixar passar? Madre Camila, a senhora me surpreende! O quê?
Depois de ter me humilhado na frente do ídolo de Madri, na frente do
mesmo homem a quem desejo impressionar com o rigor da minha
disciplina? O reverendo padre deve me considerar uma criatura desprezível
depois disto. Não, madre, não! Eu nunca me esquecerei deste insulto. A
melhor maneira de convencer Frei Ambrósio de que abomino tais crimes é
através da punição de Agnes com o máximo rigor que as nossas severas leis
permitirem. Deixe de súplicas! Não servirão para nada. Minha decisão já
está tomada. Agnes será um exemplo aterrador da minha justiça e do meu
ressentimento!
Madre Camila não parecia querer abandonar o assunto, mas a essa
altura as duas freiras já estavam muito longe para serem ouvidas. A
abadessa destrancou a porta que comunicava com a capela de Santa Clara e,
depois de entrar com sua companheira, fechou-a novamente.
Matilda perguntou quem era essa Agnes com a qual a abadessa estava
tão irritada e qual a sua conexão com Ambrósio. Ele relatou toda a história
e acrescentou que, desde o incidente, suas próprias ideias haviam mudado
completamente e que, agora, sentia muita compaixão pela freira
desafortunada.
— Tenho a intenção – disse ele — de solicitar uma audiência com a
superiora amanhã e utilizar todos os meios para conseguir amenizar sua
sentença.
— Tenha cuidado – interrompeu Matilda. — Sua súbita mudança de
sentimentos pode causar surpresa e despertar suspeitas, que é o que mais
nos interessa evitar. Quanto mais austero aparentar, e quanto mais criticar os
erros dos outros, mais ocultará os seus próprios erros. Abandone a freira ao
seu destino. Sua interferência poderia ser perigosa e a imprudência dela
merece ser castigada. Aqueles que não possuem habilidade para ocultar os
prazeres do amor não merecem gozar deles. Mas enquanto discutimos esta
questão sem importância, perdemos um tempo precioso. A noite está
terminando e tenho muito a fazer antes do amanhecer. As freiras já se
foram. Não há mais perigo. Dê-me a lamparina, Ambrósio; devo descer
sozinha até as catacumbas. Espere aqui, e me avise se alguém se aproximar.
Mas, se dá valor à sua vida, não me siga. Sua existência pode ser vítima de
uma curiosidade imprudente.
Dito isso, dirigiu-se às sepulturas carregando a lamparina e a pequena
cesta. Empurrou a porta, que girou lentamente nas dobradiças, e avistou a
estreita escada de mármore negro. Ela desceu os degraus. Ambrósio
permaneceu onde estava, observando a fraca claridade da lamparina
movendo-se pela escada até desaparecer, e então se viu cercado pelas
trevas.
Uma vez sozinho, não pôde deixar de se surpreender ao refletir sobre
o quanto o caráter e os sentimentos de Matilda estavam mudados. Há
poucos dias ela parecia ser a mulher mais dócil e amável, totalmente
submissa à sua vontade e que o adorava como a um ser superior. Agora
havia adotado uma espécie de valentia e virilidade e deixara de falar como
se quisesse agradá-lo. Ela não mais se insinuava, dava ordens. Ele sentia-se
incapaz de discutir com seus argumentos e via-se obrigado a confessar,
ainda que de má vontade, que ela possuía um raciocínio superior ao seu. A
cada momento, mais se convencia dos poderes assombrosos da sua mente.
Mas aquilo que conquistara na opinião do homem, ela perdera no afeto do
amante. Ele sentia falta de Rosário, afável e obediente. Lamentava que
Matilda preferisse as virtudes do sexo masculino e quando pensou na
opinião que ela acabara de manifestar sobre a pobre freira, considerou-a
cruel e pouco feminina. A compaixão é um sentimento tão natural, tão
próprio do caráter feminino que nem chega a ser mérito da mulher que a
possui; mas não ter compaixão, isso sim é uma falta grave. Ambrósio não
poderia perdoar sua amante facilmente por carecer desta amável qualidade.
No entanto, ainda que lhe censurasse a falta de sensibilidade, compreendia a
verdade das suas observações. Por mais que sentisse sinceramente pela
desventurada Agnes, ele decidiu abandonar a ideia de intervir a seu favor.
Quase uma hora havia se passado desde que Matilda descera à cripta
e ainda não regressara. A curiosidade de Ambrósio só aumentava. Ele se
aproximou da escada e tentou ouvir alguma coisa. Tudo estava em silêncio,
ainda que uma vez ou outra pudesse ouvir o som da voz de Matilda
percorrendo as passagens subterrâneas e ecoando nos tetos abobadados dos
sepulcros. Ela estava muito longe para que ele pudesse entender o que dizia;
tudo o que chegava até seus ouvidos eram alguns murmúrios confusos.
Desejando penetrar naquele mistério, decidiu desobedecer às suas
advertências e segui-la até a cripta. Dirigiu-se à escada, e já havia descido
alguns degraus quando a coragem o abandonou. Lembrou-se das ameaças
de Matilda se ele desrespeitasse suas instruções e sentiu um temor
inexplicável tomar conta do peito. Subiu os degraus e retomou seu posto,
aguardando impacientemente pelo fim da aventura.
De repente, sentiu um choque violento. Um terremoto sacudia o solo.
As colunas que sustentavam o teto no local onde se encontrava foram tão
abaladas que ameaçavam ruir. Nesse momento o frade ouviu um som de
trovão, alto e assustador. Quando o barulho cessou, seu olhar estava fixo na
escada e ele viu um raio de luz muito brilhante saindo da cripta. Não durou
mais do que um instante. Logo que desapareceu, tudo voltou a ser calmo e
escuro como antes. Sentiu-se, mais uma vez, envolvido pela escuridão
profunda e o silêncio da noite só foi quebrado pela batida de asas de um
morcego que dele se aproximou.
Ambrósio sentia-se mais assustado a cada momento que passava.
Mais uma hora transcorreu até que a mesma luz tornou a surgir,
desaparecendo subitamente outra vez. Essa luz era acompanhada por uma
melodia doce e solene que inspirava no monge sentimentos de prazer e
terror. Depois de alguns instantes, ouviu os passos de Matilda subindo a
escada. Ela saiu da cripta. Estava alegre e muito animada.
— Você viu alguma coisa? – ela perguntou.
— Vi um forte raio de luz na escada, duas vezes.
— Nada mais?
— Não, não vi mais nada.
— O dia já vai nascer. Vamos retornar ao mosteiro antes que a luz do
sol nos denuncie.
Ela deixou o cemitério com passos rápidos. Regressou à sua cela,
acompanhada pelo frade curioso. Fechou a porta e livrou-se da lamparina e
da cesta.
— Eu consegui! – exclamou, atirando-se nos braços dele. —
Consegui mais até do que esperava conseguir! Eu vou viver, Ambrósio, vou
viver para você! O passo que eu tanto temia dar acabou sendo uma fonte de
prazer indescritível! Oh, se pudesse compartilhar minha alegria com você!
Se tivesse permissão para compartilhar meu poder e elevá-lo ao nível mais
alto do seu sexo, assim como o meu ato me colocou acima do meu próprio!
— E o que a impede, Matilda? – interrompeu o frade. — Por que
tanto segredo a respeito do que aconteceu na cripta? Não me considera
merecedor da sua confiança? Matilda, devo duvidar da veracidade do seu
afeto enquanto você se regozija em alegrias das quais me proíbe de
compartilhar.
— Você me repreende injustamente. Eu sinto, sinceramente, por ser
obrigada a esconder de você a razão da minha alegria. Mas a culpa não é
minha, Ambrósio, é sua! Você ainda é um monge. Sua mente foi
escravizada pelos preconceitos da educação que recebeu. Sua religião o
faria temer o que a experiência me ensinou a apreciar e valorizar. Você não
está preparado para conhecer um segredo tão importante agora. Mas a força
do seu bom senso e a curiosidade que me alegra ao ver brilhar nos seus
olhos fazem com que eu tenha esperança de que esse dia chegará. Até lá,
contenha sua impaciência. Lembre-se de que você jurou solenemente não
fazer perguntas sobre esta noite. Insisto que mantenha sua promessa, pois –
ela acrescentou, sorrindo, enquanto selava os lábios de Ambrósio com um
beijo lascivo — embora eu o perdoe por ter quebrado seus votos com os
céus, espero que mantenha aquilo que prometeu para mim.
O frade lhe devolveu a carícia, o que fez seu sangue ferver nas veias.
Toda a luxúria e os excessos desenfreados da primeira noite foram
renovados e os amantes não mais se separaram até que soasse o sino para as
matinas.
As noites de prazer foram repetidas com frequência. Os monges
alegraram-se ao observar no fingido Rosário uma recuperação inesperada e
ninguém suspeitou do seu verdadeiro sexo. O superior podia possuir sua
amante com tranquilidade e, percebendo que ninguém suspeitava da sua
fraqueza, abandonou-se por completo às suas paixões. A vergonha e o
arrependimento não mais o atormentavam. As repetições frequentes
tornaram-no familiarizado com o pecado e seu coração tornou-se resistente
às ferroadas da consciência. Matilda encorajava estes sentimentos, mas logo
se deu conta de que havia saciado o amante com a liberdade ilimitada das
suas carícias. Acostumado com seus encantos, os mesmos desejos que tanto
o inspiravam no início já não eram suficientes para excitá-lo agora. Passado
o delírio da paixão, teve tempo para observar os menores defeitos. Onde
não deveria existir nenhuma imperfeição, sua saciedade a criava na
imaginação. O monge estava farto da abundância do prazer. Pouco depois
de uma semana já estava cansado da concubina. Sua natureza ardente ainda
fazia com que buscasse os braços de Matilda para a satisfação dos seus
desejos, mas tendo passado o momento da paixão, ele a abandonava com
repugnância, e seu humor, naturalmente inconstante, fazia o frade suspirar
impacientemente em busca de variedade.
A posse, que tanto empanturra os homens, só faz aumentar a afeição
nas mulheres. Matilda, a cada dia que passava, sentia-se mais próxima do
frade. Desde que começara a satisfazer-se com seus favores, ele tornou-se
mais querido do que nunca e ela sentia-se agradecida pelos prazeres que
compartilhavam. Infelizmente, na mesma proporção em que sua paixão
tornava-se mais ardente, a de Ambrósio esfriava. O afeto que ela
demonstrava lhe causava desgosto e o excesso contribuía para a extinção da
chama que ainda lhe queimava no peito. Matilda notou que sua presença
tornava-se menos agradável a cada dia. Ele não prestava atenção quando ela
falava e seu talento musical, o qual dominava com perfeição, perdera o
poder de distraí-lo. Quando se dignava a elogiá-la, seus aplausos eram frios
e forçados. Já não olhava para ela com afeto, tampouco estimava seus
sentimentos com a parcialidade de um amante. Matilda fora capaz de
perceber tudo isso e redobrava seus esforços para reacender no frade
aqueles sentimentos que ele tivera um dia. Todo o seu empenho, no entanto,
estava destinado ao fracasso, pois ele considerava impertinentes todas as
suas tentativas para agradá-lo e estava revoltado com os meios que ela
utilizava para atraí-lo. Mesmo assim, continuavam com suas relações
ilegais. Era evidente que não foi o amor que o levou aos braços de Matilda,
mas a sede de um apetite brutal. Seu temperamento fazia com que
precisasse de uma mulher e Matilda era a única com quem podia entregar-se
às paixões sem perigo. Apesar de toda a beleza que ela possuía, ele olhava
com mais desejo para outras mulheres; entretanto, receoso de que sua
hipocrisia fosse descoberta, mantinha tais inclinações confinadas no peito.
Não era tímido por natureza, mas a educação recebida lhe incutira
tanto medo na consciência que a apreensão passou a fazer parte do seu
caráter. Se tivesse passado a juventude no mundo, teria demonstrado muitas
qualidades, tanto brilhantes quanto viris. Ele era naturalmente
empreendedor, firme e destemido. Possuía o coração de um guerreiro e
poderia ter brilhado esplendidamente como comandante de um exército.
Não lhe faltava generosidade: os desafortunados sempre puderam contar
com sua alma piedosa. Suas habilidades eram rápidas e notáveis, e seu
discernimento vasto, sólido e decidido. Com tantas qualidades, poderia ter
sido motivo de orgulho para seu país. Desde a mais tenra infância, o menino
já dava provas de virtudes que foram observadas por seus pais com deleite e
admiração. Infelizmente, fora afastado da família enquanto era ainda muito
pequeno. Caiu nas mãos de um parente cujo único desejo era não voltar a
vê-lo nunca mais. Para tanto, foi encaminhado a um amigo, o antigo
superior da ordem dos capuchinhos. O monge usou de todos os artifícios
para convencer a criança de que não havia felicidade fora dos muros do
mosteiro. Seu êxito foi total. A maior ambição de Ambrósio era ingressar
na ordem de São Francisco. Seus instrutores reprimiram cuidadosamente
aquelas virtudes cuja grandeza e desinteresse não combinavam com a vida
no claustro. No lugar de benevolência universal, ele adotou uma
parcialidade egoísta pela sua condição particular. Aprendeu a considerar a
compaixão pelos erros das outras pessoas como um crime da pior índole. A
nobre franqueza do seu temperamento foi transformada em humildade
servil e, a fim de interromper o progresso natural do seu espírito, os monges
aterrorizaram-lhe a juventude com todos os horrores que a superstição
poderia proporcionar. Eles lhe pintaram os tormentos dos condenados com
as cores mais tenebrosas e fantásticas e ameaçaram qualquer falta ligeira
com a danação eterna. Eventualmente, sua imaginação, que lutava
constantemente contra esses temas assustadores, tornou o seu caráter tímido
e perturbado. Além disso, sua longa ausência no mundo fora do mosteiro e
sua falta de conhecimento dos perigos da vida lhe deram uma ideia muito
mais sombria da realidade. E assim, enquanto os monges estavam ocupados
em destruir suas virtudes e moderar seus sentimentos, permitiam que seus
vícios naturais alcançassem plena perfeição. Consentiram que o menino
crescesse orgulhoso, vaidoso, ambicioso e arrogante. Ele sentia ciúme dos
seus iguais e depreciava todos os méritos exceto o seu próprio. Era
implacável quando ofendido e cruel na vingança. Contudo, apesar de todo o
trabalho para corrompê-las, suas boas qualidades conseguiam,
ocasionalmente, cruzar as trevas tão cuidadosamente arranjadas para cobri-
las.
Nessa época, a batalha pela supremacia travada entre seu caráter real
e o adquirido era surpreendente e inexplicável para as pessoas que
ignoravam seu temperamento original. Ele prescrevia as penitências mais
severas aos pecadores, mas, no momento seguinte, movido pela compaixão,
tendia a suavizar a pena; realizava as façanhas mais ousadas para depois,
por receio das consequências, ser obrigado a abandoná-las; sua genialidade
natural lançava uma luz extraordinária sobre os assuntos mais obscuros,
mas, quase que instantaneamente, sua fé fazia com que retornassem a uma
escuridão ainda mais profunda do que aquela da qual haviam sido
resgatados. Seus irmãos monges, para quem era considerado um ser
superior, não percebiam as contradições na conduta do seu ídolo. Estavam
convencidos de que tudo o que Ambrósio fazia devia estar certo e
acreditavam que ele tinha razões sólidas para mudar de opinião. A verdade
é que os diferentes sentimentos inspirados ora pela educação, ora pela
própria natureza, estavam em combate no seu coração, e eram as paixões
que ainda não haviam tido oportunidade para entrar em jogo que decidiriam
a vitória. Infelizmente, suas paixões constituíam os piores juízes a quem
poderia pedir ajuda. A reclusão monástica tinha, até o momento, trabalhado
a seu favor, pois nunca antes lhe fora oferecida uma chance para descobrir
quais eram os seus defeitos. A supremacia do seu talento elevara o monge a
uma posição muito superior à dos seus companheiros, impedindo que
sentisse ciúme dos mesmos. Sua piedade exemplar, sua eloquência
persuasiva e seus modos agradáveis lhe asseguraram a estima de todos e,
consequentemente, não havia ofensas para vingar-se. Sua ambição
justificava-se pelo reconhecimento do seu mérito, e seu orgulho, pela
confiança em si próprio. Nunca tinha visto ou conversado com pessoas do
outro sexo. Ignorava os prazeres que uma mulher poderia oferecer e se no
curso dos seus estudos descobrisse que os homens apreciavam tais prazeres,
sorria e perguntava a si mesmo como isso era possível.
Por um tempo, as dietas magras, as vigílias frequentes e as
penitências severas foram suficientes para esmorecer e reprimir o ardor do
seu temperamento. Mas quando a oportunidade surgiu, nem bem
vislumbrou os prazeres para os quais ainda era um estranho e as barreiras da
religião provaram ser demasiado frágeis para resistir à torrente esmagadora
dos seus desejos. Todas as formas de impedimento cederam ante a força do
seu gênio ardente, intenso e excessivamente voluptuoso. Até então, suas
paixões haviam permanecido adormecidas, mas só precisaram ser
despertadas uma vez para mostrarem-se violentas e irresistíveis.
Ele continuava a ser admirado em Madri. Todo o entusiasmo
provocado pela sua oratória parecia aumentar e não diminuir. Todas as
quintas-feiras, único dia em que aparecia em público, a igreja dos
capuchinhos ficava repleta de ouvintes e seu discurso era sempre recebido
com a mesma aprovação. Foi nomeado o confessor favorito de todas as
principais famílias de Madri, e ninguém que fosse considerado moderno
suportaria uma penitência imposta por outro que não Ambrósio. Ele ainda
insistia na decisão de nunca deixar o mosteiro. Esta particularidade
contribuiu para uma opinião ainda mais elevada sobre sua santidade e
abnegação. Acima de tudo, as mulheres cantavam seus louvores em voz
alta, não tanto por devoção, mas principalmente movidas pelo seu nobre
semblante, pelo seu ar majestoso e pela sua figura graciosa e bem
constituída. A porta da igreja estava sempre repleta de carruagens desde as
primeiras horas da manhã até a noite, para que as damas mais nobres e belas
de Madri pudessem confessar a Ambrósio os seus pecadilhos mais secretos.
Os olhos do frade devasso devoravam seus encantos. Se as penitentes
conseguissem interpretar seus sinais, ele não precisaria de outros meios para
expressar seus desejos. Porém, para sua desgraça, elas estavam tão
convencidas da sua castidade que nunca poderiam imaginar que ele nutrisse
tais pensamentos indecentes. O clima quente, como é do conhecimento de
todos, afeta muito o temperamento das damas espanholas. Mas mesmo a
mais desinibida considerava mais fácil inspirar uma paixão na imagem de
mármore de São Francisco do que no coração frio e imaculado de
Ambrósio.
Quanto ao monge, ele estava pouco familiarizado com a depravação
do mundo; não suspeitava de que entre suas penitentes, poucas teriam
recusado seus galanteios. Mesmo assim, ainda que tivesse sido melhor
instruído sobre o assunto, o perigo que acompanhava a tentativa teria selado
seus lábios completamente. Sabia que seria difícil para uma mulher manter
um segredo tão extraordinário e importante quanto a sua fragilidade e ainda
temia que Matilda pudesse traí-lo. Ansioso para conservar uma reputação
que lhe era infinitamente querida, compreendia o risco que correria ao
colocar-se nas mãos de alguma mulher vaidosa e volúvel, e como todas as
belezas de Madri lhe afetavam apenas os sentidos sem lhe tocar o coração,
ele esquecia-se delas assim que saíam de sua vista. O perigo da descoberta,
o medo da recusa, a perda da reputação, todas estas considerações lhe
aconselhavam a sufocar os desejos. E ainda que sentisse por Matilda a mais
completa indiferença, via-se obrigado a limitar-se à sua pessoa.
Em uma determinada manhã, a concentração de penitentes foi maior
do que a usual e ele ficou retido no confessionário até tarde. Por fim,
conseguiu despachar toda a multidão e já se preparava para deixar a capela
quando duas mulheres entraram e se aproximaram humildemente. Elas
levantaram o véu e a mais jovem pediu que a escutasse por alguns
momentos. A melodia da sua voz, o tipo de voz que um homem não pode
ouvir sem demonstrar algum interesse, imediatamente captou a atenção de
Ambrósio. Ele recuou. A suplicante parecia estar muito aflita. Sua
fisionomia estava pálida, tinha lágrimas nos olhos e seu cabelo caía em
desordem sobre o rosto e o peito. Apesar disso, seu semblante era tão doce,
tão inocente e tão celestial que poderia ter encantado até um coração menos
sensível do que aquele que palpitava dentro do peito do superior. Com mais
suavidade do que nunca ele lhe pediu que prosseguisse e passou a ouvir a
moça com uma emoção que aumentava a cada instante.
— Reverendo padre, o senhor tem diante de si uma infeliz, ameaçada
de perder sua única e mais querida amiga! Minha mãe, minha mãe
maravilhosa encontra-se enferma e acamada. Um mal repentino apoderou-
se dela na noite passada e o progresso dessa enfermidade tem sido tão
rápido que os médicos não têm mais esperanças de salvá-la. Não posso mais
contar com a ajuda humana. Nada mais me resta a não ser implorar pela
misericórdia dos céus. Padre, toda Madri comenta a sua piedade e sua
virtude. Imploro que se lembre de minha mãe nas suas orações. Talvez elas
consigam fazer com que o Todo Poderoso a salve, e se assim for, eu me
comprometo a iluminar o altar de São Francisco todas as quintas-feiras,
durante três meses, em sua homenagem.
“Bem”, pensou o monge consigo mesmo, “temos aqui um segundo
Vicentino della Ronda. A aventura de Rosário começou da mesma forma”,
e desejou secretamente que esta nova aventura tivesse a mesma conclusão.
Ele consentiu no pedido. A penitente lhe agradeceu com grandes
mostras de gratidão e, então, continuou:
— Ainda gostaria de pedir outro favor. Nós somos forasteiras em
Madri. Minha mãe necessita de um confessor e não sabe a quem pedir. Nós
sabemos que o senhor nunca deixa o mosteiro e, ai de nós, minha pobre
mãe é incapaz de vir aqui! Se o senhor tivesse a bondade, reverendo padre,
de designar uma pessoa apropriada, cujos conselhos sábios e piedosos
pudessem aliviar as agonias da minha mãe moribunda, o senhor estaria
proporcionando um favor a corações que lhe ficariam eternamente gratos.
O monge consentiu também neste pedido. Na verdade, como poderia
recusar alguma coisa diante de uma solicitação tão encantadora? A
suplicante era tão interessante! Sua voz era tão doce, tão harmoniosa! Até
suas lágrimas e aflições pareciam adicionar um novo atrativo aos seus
encantos. Ele prometeu enviar um confessor naquela mesma tarde e pediu
que deixasse o endereço. A acompanhante lhe apresentou um cartão com o
endereço escrito e retirou-se com a bela requerente que, antes de partir,
proferiu mil bênçãos sobre a bondade do superior. Seus olhos a seguiram
até o momento em que deixou a capela. Só então examinou o cartão, onde
leu as seguintes palavras:
“Dona Elvira Dalfa, Estrada de Santiago, quatro portas a partir do
Palácio d’Albornos.”
A suplicante não era outra senão Antonia, e Leonella era sua
acompanhante. Esta havia concordado em acompanhar a sobrinha, mas não
sem alguma dificuldade: Ambrósio tinha lhe inspirado tanto medo que
bastava a sua presença para fazê-la tremer. O temor de Leonella era mais
forte do que a tagarelice e ela não foi capaz de pronunciar uma só palavra.
O monge retirou-se para sua cela atormentado pela imagem de
Antonia. Ele sentia milhares de novas emoções brotando no peito e receava
investigar a causa dessas sensações. Eram totalmente diferentes daquelas
despertadas por Matilda quando a moça lhe confessou o seu sexo e sua
afeição pela primeira vez. Não sentia a provocação da luxúria; seu coração
não nutria nenhum desejo erótico e nem tentava imaginar ardentemente os
encantos que o recato ocultara de seus olhos. Pelo contrário, o que sentia
agora era uma mistura de sentimentos de ternura, admiração e respeito. Sua
alma estava inundada por uma deliciosa melancolia que não trocaria pelos
mais vívidos momentos de prazer. Não queria a companhia de ninguém.
Sentia-se atraído pela solidão que lhe permitiria entregar-se às visões da sua
fantasia. Seus pensamentos eram todos amáveis, tristonhos e
contemplativos, e tudo o que importava no mundo era Antonia.
— Feliz é o homem – exclamava com entusiasmo romântico — que
está destinado a possuir o coração desta jovem adorável. Que feições
delicadas! Que elegância! Que encantadora é a timidez inocente dos seus
olhos, tão diferente da expressão sensual e do fogo selvagem e lascivo que
brilha nos olhos de Matilda. Oh, muito mais doce deve ser um beijo
roubado dos seus lábios rosados do que todos os favores sensuais tão
facilmente obtidos da outra. Matilda me sacia de prazeres até que me sinta
entediado, me força a permanecer nos seus braços, age como a própria
Messalina e glorifica-se na sua prostituição. Que repugnante! Se ao menos
imaginasse o quanto é irresistível e encantador para um homem o pudor de
uma mulher, se conhecesse o poder escravizador da beleza feminina, ela
jamais teria renunciado a tudo isso. Qual será o preço do amor desta jovem
adorável? Será que eu seria capaz de sacrificar os meus votos para declarar
meu amor aos céus e à terra? E enquanto eu luto para obter um pouco da
sua ternura, amizade e estima, com que tranquilidade as horas são
transcorridas. Pela graça de Deus! Poder contemplar seus olhos azuis tão
recatados a me fitar com tamanha timidez! Poder me sentar e ouvir sua voz
tão gentil! Ter o direito de servi-la para, então, ouvir suas expressões
ingênuas de gratidão! Contemplar as emoções do seu coração imaculado!
Encorajar cada virtude que desperta! Compartilhar das suas alegrias, beijar
suas lágrimas de tristeza e vê-la correr aos meus braços em busca de apoio e
consolo! Sim, a felicidade perfeita existe na Terra, e ela pertence àquele que
será, um dia, seu marido.
Enquanto divagava sobre essas fantasias, o monge caminhava pela
cela com ar transtornado. Seus olhos estavam fixos no vazio, e sua cabeça
repousava reclinada sobre o ombro. Uma lágrima brotou dos seus olhos
quando percebeu que nunca poderia desfrutar de tal alegria.
— Este sonho é impossível – continuou — ela não pode ser minha
pelo matrimônio; seduzir sua inocência, abusar da sua confiança para
provocar sua ruína... oh! Seria o pecado mais abominável que o mundo já
viu. Não tema, menina adorável. Sua virtude não corre o menor perigo. Eu
jamais permitiria que o seu amável coração vivenciasse as dores do
remorso.
Mais uma vez pôs-se a caminhar pelo quarto. Então, seus olhos
encontraram o quadro da sua tão admirada Madona. Ele arrancou a pintura
da parede com indignação e atirou-a no chão, afastando-a com o pé.
— Prostituta!
Pobre Matilda. Seu amante esqueceu-se de que ela havia desgraçado
sua virtude por ele e a única razão para ser desprezada era tê-lo amado
demais.
Ele deixou-se cair em uma cadeira próxima à mesa. Viu o cartão com
o endereço de Elvira e lembrou-se da sua promessa com relação ao
confessor. Ficou em dúvida por alguns minutos, mas o domínio que Antonia
exercia sobre a sua pessoa tornava mais fácil executar a ideia que lhe
ocorrera. Decidiu ser ele mesmo o confessor. Não seria difícil deixar o
mosteiro sem ser notado. Se mantivesse a cabeça coberta pelo capuz,
esperava poder caminhar pelas ruas sem ser reconhecido. Com estas
precauções e recomendando discrição à família de Elvira, não tinha dúvidas
de que poderia manter a cidade de Madri na ignorância de que ele havia
quebrado a promessa de nunca deixar os muros do mosteiro. A vigilância de
Matilda era a sua única preocupação. Porém, se anunciasse que estaria
ocupado em sua cela o dia todo, acreditava que poderia escapar do seu
ciúme. Assim, no horário em que os espanhóis estão geralmente
desfrutando da siesta, ele aventurou-se a deixar o mosteiro por uma porta
secreta, cuja chave encontrava-se em seu poder. O capuz do hábito cobria
seu rosto; as ruas estavam praticamente desertas devido ao calor. O monge
se deparou com poucas pessoas pelo caminho. Encontrou a Estrada de
Santiago e chegou com tranquilidade à residência de Dona Elvira. Bateu à
porta, foi atendido e imediatamente conduzido ao andar superior.
Este era o momento no qual o risco de ser descoberto era muito
grande. Se Leonella estivesse em casa, ela o teria reconhecido na mesma
hora. Seu temperamento comunicativo não descansaria até que toda Madri
soubesse que Ambrósio tinha saído do mosteiro para visitar sua irmã. No
entanto, a sorte parecia estar a favor do monge. Quando Leonella chegou
em casa, encontrou uma carta comunicando o falecimento de um primo, o
qual havia deixado para ela e para Elvira o pouco que possuía. Para tomar
posse do seu legado, foi obrigada a partir para Córdoba imediatamente.
Apesar de todas as suas fraquezas, era dona de um coração verdadeiramente
sincero e afetuoso e não queria deixar a irmã em tais condições de saúde.
Mas Elvira insistiu para que fizesse a viagem, consciente de que a situação
desamparada da filha não poderia deixar passar nenhuma oportunidade de
obter fortuna, por menor que fosse. Assim, Leonella deixou Madri,
verdadeiramente aflita pela doença da irmã e suspirando um pouco pela
recordação do amável, mas inconstante, Dom Cristóbal. Estava plenamente
convencida de que, no início, havia causado um impacto no coração do
conde, mas como não teve mais notícias, julgou que ele tivesse abandonado
o assédio em razão da sua origem humilde – e, também, porque estava
consciente de que nenhuma outra forma de união além do casamento
poderia ser esperada desse dragão de virtude, como se autodeclarava. Além
disso, por tratar-se de um homem caprichoso e inconstante, provavelmente
se esquecera dos encantos de Leonella ao encontrar alguma nova beldade.
Não importava qual a causa do seu afastamento, ela lamentava
profundamente. Tentava, em vão, arrancar a imagem do conde do seu
coração sensível, ou assim dizia às pessoas mais próximas, assumindo os
ares de uma virgem enamorada de forma excessivamente ridícula. Soltava
suspiros tristes, caminhava com os braços cruzados, proferia longos
monólogos e todos os seus discursos, normalmente, giravam em torno de
uma donzela abandonada que agonizava com o coração partido. Seus
cabelos ondulados estavam sempre adornados com guirlandas de salgueiro
e diariamente, ao anoitecer, era vista perambulando pelas margens de um
ribeirão sob a luz do luar. Dizia ser uma grande admiradora das correntes
murmurantes e dos rouxinóis.
— Os locais solitários e os bosques sombrios, lugares amados pelo
coração partido!
Este era o estado de espírito de Leonella quando foi obrigada a deixar
Madri. Elvira não tinha paciência com todas essas tolices e tentava
persuadi-la a se comportar como uma mulher de bom senso, mas seus
conselhos eram inúteis: Leonella, ao partir, lhe assegurou que nada a faria
se esquecer do pérfido Dom Cristóbal. Felizmente, estava enganada. Um
jovem honorável de Córdoba, ajudante de um boticário, considerou que a
fortuna da herdeira era suficiente para instalar um estabelecimento por sua
própria conta. O resultado desta reflexão foi declarar-se um admirador seu.
Leonella não se mostrou muito flexível, mas o ardor dos suspiros do rapaz
abrandou seu coração e ela aceitou transformá-lo no mais feliz dos homens.
Ela escreveu à irmã comunicando seu matrimônio; entretanto, por razões
que serão explicadas mais tarde, Elvira nunca respondeu a carta.
Ambrósio foi conduzido à antecâmara do dormitório onde Elvira
descansava. A criada deixou-o sozinho enquanto anunciava sua chegada à
senhora. Antonia, que estava perto da cama da mãe, apressou-se para
encontrá-lo.
— Perdão, padre – ela disse, avançando em sua direção. Quando
reconheceu seu rosto, parou subitamente e soltou um grito de alegria. —
Não é possível! – continuou. — Será que meus olhos estão me enganando?
Será possível que o magnânimo Frei Ambrósio abandonou sua
determinação para aliviar as aflições da melhor das mulheres? Que prazer a
sua visita proporcionará à minha mãe! Não vamos adiar por um só instante
o conforto que sua piedade e sabedoria lhe trarão.
Ela abriu a porta do dormitório, apresentou o distinto visitante à sua
mãe e, depois de oferecer-lhe uma cadeira ao lado da cama, retirou-se para
o outro aposento.
Elvira sentiu-se imensamente satisfeita com a visita. Suas esperanças
haviam aumentado ao ouvir a notícia dada pela filha; na verdade, sentia-se
excessivamente grata. Ambrósio, naturalmente dotado com o dom de
agradar as pessoas, abusou do seu poder enquanto conversava com a mãe de
Antonia. Com uma oratória convincente, ele acalmou todo o seu temor e
dissipou qualquer receio. Pediu que refletisse sobre a infinita misericórdia
do Criador, despojou a morte dos seus dardos e terrores e ensinou-a a
enxergar sem medo o abismo da eternidade, em cuja beira se encontrava.
Elvira estava absorta e encantada. Enquanto ouvia seus encorajamentos, a
confiança e o consolo voltaram a habitar seu espírito. Ela lhe falou sobre as
suas preocupações e apreensões. Suas inquietudes com relação à vida futura
já haviam sido apaziguadas, mas ainda sentia-se muito ansiosa pelo destino
de Antonia. Sentia medo por ela. Não havia ninguém a quem pudesse
recomendá-la, a não ser o Marquês de Las Cisternas e sua irmã, Leonella. A
proteção do primeiro era incerta e quanto à sua irmã, ainda que Leonella
gostasse muito da sobrinha, era tão insensata e ineficiente que não poderia
ser a pessoa mais indicada para tomar conta de uma menina tão jovem e tão
ignorante a respeito do mundo. Logo que ouviu a causa das suas aflições, o
frade suplicou que ficasse tranquila quanto a isto. Ele não tinha dúvidas de
que poderia garantir para Antonia um refúgio seguro na casa de uma de
suas penitentes, a Marquesa de Villa-Franca. Tratava-se de uma dama de
virtude conhecida, notável por seus princípios rigorosos e caridade
irrestrita. Se, por algum motivo, não pudesse contar com este recurso,
prometeu procurar abrigo para Antonia em algum convento respeitável.
Porém, na qualidade de aluna, visto que Elvira declarara não ser partidária
da vida monástica, e também porque o monge não era tão inocente ou tão
complacente a ponto de afirmar que sua desaprovação era infundada.
Tais provas do seu interesse por Antonia ganharam por completo o
coração de Elvira. Ela manifestou sua gratidão e declarou que agora poderia
resignar-se à morte com tranquilidade. Ambrósio levantou-se para partir.
Prometeu retornar no dia seguinte, no mesmo horário, e pediu-lhe que
guardasse segredo sobre suas visitas.
— Não tenho a intenção – disse ele — de tornar público o fato de ter
quebrado uma regra imposta por pura necessidade. Se não estivesse
decidido a jamais deixar o mosteiro, a não ser em circunstâncias urgentes
como esta que me trouxe à sua porta, eu seria constantemente chamado para
resolver questões triviais. Os curiosos, os desocupados e os caprichosos
tomariam todo o tempo que hoje passo junto ao leito de uma enferma,
confortando aquela que agoniza e retirando os espinhos da sua jornada para
a eternidade.
Elvira elogiou sua prudência e compaixão e prometeu ocultar dos
demais a honra das suas visitas. O monge lhe deu a bênção e retirou-se do
dormitório.
Encontrou Antonia na antecâmara. Ele não conseguiu privar-se de
passar alguns momentos com a moça. Pediu que mantivesse o ânimo, pois
sua mãe aparentava estar serena e tranquila e ele tinha esperanças de que ela
conseguiria se recuperar. Perguntou quem a atendia e comprometeu-se a
enviar o médico do convento, um dos mais habilidosos de Madri. A seguir,
passou a elogiar Elvira. Falou da sua pureza e da sua fortaleza de espírito e
declarou que a mulher lhe inspirava muita estima e respeito. O coração
inocente de Antonia sorveu tudo com gratidão. Havia lágrimas de alegria
nos seus olhos. As esperanças que o frade nutria com relação à recuperação
da mãe, o interesse vivo que parecia sentir por ela e o modo lisonjeiro como
se referia a ela, aliados à sua fama de homem de bom senso e virtuoso e
também à impressão que guardava da sua oratória, tudo isso confirmava a
opinião favorável que formara na primeira ocasião em que o viu. Ela
respondeu com timidez, ainda que sem constrangimentos. Não teve medo
de lhe contar todas as suas pequenas angústias, seus pequenos temores e
ansiedades, e agradeceu-lhe pela bondade da visita com toda a afabilidade
que possuem os corações jovens e inocentes. Somente estes sabem apreciar
e dar valor às graças recebidas. Os que estão conscientes da deslealdade e
do egoísmo do ser humano sempre recebem uma obrigação com apreensão
e desconfiança, pois suspeitam de que existe algum motivo secreto por trás
do ato; manifestam seu agradecimento com cautela e temem agradecer uma
ação generosa, pois sabem que um dia deverão retribuir o favor. Antonia
não era assim: a moça acreditava que só havia no mundo criaturas tão boas
quanto ela; portanto, todo o vício que pudesse nele existir lhe era
completamente ignorado. O monge lhe prestara um serviço, disse que o
fazia para o seu bem e ela sentiu-se agradecida por tanta generosidade,
ainda que não conhecesse termos fortes o suficiente para expressar tamanha
gratidão. Sua graça natural, a doçura da sua voz, sua vivacidade modesta,
sua elegância espontânea, seu semblante expressivo e seus olhos
inteligentes inspiravam prazer e admiração, enquanto que a consistência e
exatidão das suas observações recebiam uma beleza adicional conferida
pela simplicidade natural das palavras que utilizava.
Ambrósio, depois de algum tempo, sentiu-se obrigado a abandonar a
conversa que tanto o fascinava. Ele repetiu a recomendação para que não
comentassem suas visitas e ela se comprometeu a obedecer. Então, afastou-
se da casa enquanto a encantadora Antonia corria para ver a mãe, ignorando
todo o dano que sua beleza havia causado. Estava ansiosa para saber qual a
opinião de Elvira a respeito do homem que tanto admirava e ficou muito
satisfeita ao descobrir que compartilhavam da mesma convicção.
— Mesmo antes que ele dissesse qualquer coisa – falou Elvira, — eu
já estava decidida a seu favor. O fervor dos seus encorajamentos, a
dignidade dos seus modos e a coerência do seu raciocínio contribuíram para
que eu formasse uma opinião a seu respeito. Sua voz agradável e sonora me
surpreendeu de uma forma especial. Com certeza, Antonia, eu já ouvi essa
voz antes. Pareceu-me totalmente familiar. Ou eu já conheci o frade
anteriormente ou a sua voz tem uma maravilhosa semelhança com a de
alguém que conheci muito bem. Algumas entonações tocaram o meu
coração e fizeram com que eu experimentasse uma sensação tão singular
que me impele a lutar, em vão, para encontrar a explicação.
— Minha querida mãe, a voz dele produziu o mesmo efeito em mim.
Ainda assim, nenhuma de nós jamais a ouviu antes de chegarmos a Madri.
Suspeito de que a sensação que atribuímos à sua voz deve-se, na verdade,
aos seus modos amáveis que nos impedem de considerá-lo um estranho.
Não sei por que, mas fico muito mais à vontade conversando com ele do
que com outras pessoas que não conheço. Não tive receio de contar-lhe
meus pensamentos infantis e, de alguma maneira, senti-me aliviada porque
ele ouviu meus disparates com indulgência. Oh! Eu não estava enganada a
seu respeito; ele ouviu meus relatos com tanta bondade e atenção,
respondeu minhas perguntas com tanta doçura e compreensão! E não me
chamou de criança, nem me tratou com indiferença como fazia o nosso
velho confessor no castelo. Sinceramente, acredito que, mesmo se tivesse
vivido em Múrcia por mil anos, nunca teria chegado a gostar daquele gordo
e velho Padre Dominic!
— Reconheço que Padre Dominic não era a pessoa mais educada
deste mundo, mas era honesto, simpático e bem intencionado.
— Ah, minha querida mãe, estas qualidades são tão comuns.
— Queira Deus, minha filha, que a experiência não a ensine a julgar
tais qualidades raras e preciosas, pois a mim assim pareceram muitas vezes.
Mas diga, Antonia, por que é impossível que eu já tenha visto o frade antes?
— Porque desde o momento em que ingressou no mosteiro, ele nunca
deixou o lugar. Ele mesmo acaba de dizer que, devido ao seu
desconhecimento das ruas da cidade, teve alguma dificuldade para
encontrar a Estrada de Santiago, apesar de ser tão perto de onde ele vive.
— É possível, e mesmo assim eu posso tê-lo visto antes de ingressar
no mosteiro. Para que pudesse sair, é necessário que antes disso tenha
entrado.
— Virgem Santa! Como diz, é bem possível. Mas e se ele está no
mosteiro desde que nasceu?
Elvira sorriu.
— Não me parece provável.
— Espere, eu me lembro agora. Ele foi levado ao mosteiro quando
era ainda uma criança. O povo diz que ele caiu dos céus e foi um presente
da Virgem para os capuchinhos.
— Foi muito amável da parte da Virgem. E ele caiu dos céus,
Antonia? Deve ter sido uma queda terrível!
— Nem todos creem nisso, e parece que podemos incluí-la também
entre os que não acreditam. Para dizer a verdade, de acordo com o que a
nossa senhoria contou à minha tia, a crença geral é de que seus pais,
humildes e incapazes de sustentá-lo, abandonaram o menino na porta do
mosteiro. O falecido superior aceitou criá-lo ali por pura caridade, e logo a
criança mostrou-se um modelo de virtude, piedade, aprendizagem e não sei
o que mais. Como consequência, ele foi recebido como irmão da ordem e
recentemente escolhido o novo superior. No entanto, se esta história é
verdadeira ou não, ao menos todos concordam que quando os monges
assumiram o menino, ele não sabia falar. Então, a senhora não pode ter
ouvido sua voz antes que ele entrasse no mosteiro, pois, na época, não
possuía voz alguma.
— É verdade, Antonia, você tem muita razão no que diz. Suas
conclusões são infalíveis. Eu não sabia que dominava tão bem a lógica.
— Ah, a senhora está zombando de mim! Melhor assim. Gosto de vê-
la de bom humor. Além disso, parece tranquila e sossegada e espero que
não tenha mais nenhuma convulsão. Oh! Eu sabia que a visita do frade lhe
faria bem!
— Sim, essa visita me fez muito bem, minha filha. Ele acalmou meu
espírito antes tão agitado por certas questões e eu realmente sinto os efeitos
da sua atenção. Meus olhos estão pesados e creio que vou dormir um pouco.
Abra a cortina, Antonia. Se eu não acordar antes da meia-noite, peço-lhe
que não fique sentada aqui comigo e vá se deitar.
Antonia prometeu obedecê-la e, depois de receber sua bênção, abriu o
dossel da cama. Sentou-se em silêncio com seu bordado e entregou-se a
construir castelos no ar. Sentia-se animada pela evidente melhora de Elvira
e sua imaginação lhe presenteou com visões extraordinárias. Nos seus
devaneios, Ambrósio ocupava um lugar de destaque; ela pensava nele com
alegria e gratidão, mas para cada pensamento que dedicava ao frade,
dedicava o dobro a Lorenzo. Assim, o tempo passou até que o sino no
campanário da igreja dos capuchinhos anunciou a meia-noite. Antonia
lembrou-se da recomendação da mãe e seguiu suas instruções, ainda que
relutantemente. Ela fechou o dossel com cuidado; Elvira dormia
profundamente. Sua face havia readquirido uma cor saudável e um sorriso
declarava que seus sonhos eram agradáveis. Quando Antonia inclinou-se
sobre ela, imaginou ouvir seu nome. Beijou suavemente a testa da mãe e
retirou-se do dormitório. A seguir, ajoelhou-se aos pés da imagem de Santa
Rosália, sua padroeira, e rezou pedindo proteção, como fazia desde
pequena. A moça concluiu suas devoções cantando as seguintes estrofes:

O HINO DA MEIA-NOITE

Agora, tudo está quieto, só ouço o carrilhão


Não há mais vento noturno,
A sua espantosa presença, nesta hora sublime
Com o coração imaculado, mais uma vez o saúdo

Este é o momento do silêncio e do medo


Quando os feiticeiros usam seus poderes sinistros
Quando as tumbas trocam seus mortos
Pelas vantagens da hora, conforme o registro

Isenta da culpa e dos pensamentos culpados


Fiel ao dever e à devoção
Com o coração rápido e a consciência pura
Repouso, e sua ajuda solicito com emoção
Anjo benevolente, dou graças porque
Ainda desprezo as ciladas do vício
Agradeço porque hoje durmo livre do mal
E porque amanhã terei o mesmo benefício

Mas não poderia meu coração desavisado


Abrigar um crime desconhecido?
Algum desejo impuro, inconsciente
Que sente vergonha de ter visto e sentido?

Se assim for, em um doce sonho


Instrua meus pés para evitar a armadilha
Ofereça a verdade em troca do meu erro
E digne-se ainda a chamar-me de filha

Afaste do meu leito sereno


O feitiço da bruxa, inimiga do repouso
E o gnomo da noite, a beldade devassa
O fantasma da dor e o demônio suspeitoso
Não permita que o gênio malvado, em meu ouvido
Derrame lições de prazeres profanos
Não deixe que os pesadelos, rondando meu sono
Destruam a calma do meu descanso

Afaste os sonhos assustadores


Com formas fantásticas e estranhas ao meu olhar
Mas traga visões de brilho e esplendor
Que falem das alegrias que ainda vão chegar

Mostre-me as cúpulas cristalinas do céu


Os mundos de luz onde os anjos habitam
Mostre-me a sorte que aguarda os mortais
Que vivem sem culpa, e sem culpa terminam
Então, ensine-me como obter um lugar
Entre os reinos bem-aventurados
Diga como evitar cada mancha de culpa
E seja meu guia para o sagrado

Então, a cada manhã e a cada noite


Minha voz se elevará e agradecerá
A todos esses guardiões poderosos
Anjos bons, suas glórias cantará

Então eu me empenharei com ardor


Para evitar cada vício, corrigir cada falta
Amarei as lições inspiradas
E apreciarei as virtudes que exalta
Mais tarde, quando finalmente, por alto desígnio
Meu corpo pelo descanso final buscar
Quando a morte se aproximar com mão amiga
Para meus olhos de peregrino fechar

Satisfeita por minha alma estar a salvo


Sem tristeza, minha vida entregarei
E a Deus renderei de volta meu espírito
Puro, como no início, ao fim chegarei.

Tendo terminado suas devoções usuais, Antonia retirou-se para


dormir. Não demorou para que o sono tomasse conta dos seus sentidos e,
durante muitas horas, ela pôde desfrutar do repouso que só os inocentes
conhecem, e pelo qual muitos monarcas ficariam satisfeitos em dar seu
reino em troca.
CAPÍTULO IV

Ah, que escuros são estes vastos reinos e que desperdício lastimável,
Onde nada reina além do silêncio e, mais tarde, na noite escura,
Tão escura quanto o caos antes do surgimento do sol,
Ou antes que seus primeiros raios atravessassem a sombra profunda,
A luz tímida da vela refletindo na lápide da sua triste sepultura,
Encoberta pelo musgo úmido e pelo limo pegajoso,
Pingando um horror sem limites,
E servindo apenas para tornar sua noite mais penosa!
(Blair)

Ao retornar incógnito para o mosteiro, a mente de Ambrósio estava


repleta de imagens prazerosas. Estava deliberadamente cego ante o perigo
de entregar-se aos encantos de Antonia. Ele só pensava no prazer que a
companhia dela lhe proporcionara e enchia-se de contentamento com a
perspectiva de vê-la novamente. Assim, aproveitou-se da doença de Elvira
para visitar sua filha todos os dias. A princípio, limitou-se a inspirar em
Antonia um sentimento de amizade, mas logo se convenceu de que ela
compartilhava do seu verdadeiro sentimento; então, seu objetivo tornou-se
mais decidido e suas atenções adotaram um tom mais caloroso. A forma
inocente e familiar que a moça usava para dirigir-se a ele encorajava seus
desejos. Acostumou-se com sua modéstia, que não despertava mais o
mesmo respeito e temor. Ainda a admirava, mas isto apenas servia para
aumentar a vontade de privá-la da qualidade que constituía seu principal
atrativo. O ardor da paixão e a sua presteza, sentimentos que, tanto para a
sua própria desgraça quanto para a de Antonia, possuía em abundância, lhe
proporcionavam um amplo conhecimento das artes da sedução. Podia
facilmente distinguir as emoções que eram favoráveis aos seus projetos e
aproveitava cada oportunidade para infundir o pecado no coração de
Antonia. Esta tarefa, no entanto, não era fácil. A extrema ingenuidade da
jovem não permitia que entendesse as insinuações do monge, mas sua
gratidão pelo cuidado dispensado à doença de Elvira, sua firmeza e retidão
e, também, uma forte intuição natural sobre o que é certo, fizeram com que
acreditasse que os ensinamentos de Ambrósio deveriam estar errados. Com
algumas simples palavras, ela frequentemente derrubava toda uma trama de
argumentos inconsistentes e o obrigava a ver o quanto eram fracos e se
opunham à virtude e à verdade. Nestas ocasiões, ele buscava refúgio na sua
oratória e a derrotava com uma torrente de paradoxos filosóficos para os
quais, por não compreendê-los, era impossível para Antonia apresentar uma
contestação. Assim, mesmo que não conseguisse convencê-la de que suas
razões eram justas, ao menos evitava que descobrisse que eram falsas. Ele
começou a notar que o respeito que Antonia sentia pela sua opinião
aumentava dia a dia e não duvidava de que depois de algum tempo poderia
levá-la ao ponto desejado.
O monge tinha consciência de que suas tentativas constituíam um
pecado muito grande. Percebia claramente o quão imoral seria seduzir uma
jovem inocente, mas a paixão que sentia era violenta demais para permitir
que voltasse atrás. Ele decidiu seguir adiante e deixar as consequências nas
mãos de Deus. Esperava poder surpreender Antonia em algum momento
desprevenido e, ciente de que não existia nenhum outro homem em sua vida
– ao menos nem ela nem Elvira haviam mencionado outro homem –,
imaginou que seu coração ainda estava vago. Enquanto esperava pela
oportunidade de satisfazer sua luxúria injustificável, tornava-se mais e mais
frio com Matilda. Tal frieza devia-se, em grande parte, à consciência das
suas faltas para com a moça, pois acreditava que não seria forte o bastante
para escondê-las. Tinha medo de que, transtornada pelo ciúme, ela pudesse
trair o segredo do qual dependia a sua reputação e até mesmo sua vida.
Matilda não pôde deixar de notar sua indiferença. Ele sabia disso e,
receando sua desaprovação, passou a evitá-la. Porém, quando o encontro
era inevitável, sua doçura era suficiente para convencê-lo de que não tinha
nada a temer. Ela havia retomado a personalidade do amável e interessante
Rosário. Embora não fizesse nenhuma alusão à ingratidão de Ambrósio,
seus olhos estavam sempre repletos de lágrimas involuntárias e a
melancolia estampada no seu rosto e na sua voz evidenciava uma mágoa
muito maior do que as palavras poderiam expressar. Ambrósio não era
insensível ao sofrimento dela, mas, não sendo capaz de eliminar a causa,
não revelava o quanto isso o afetava. Visto que o comportamento de
Matilda demonstrava que não precisava ter medo da sua vingança,
continuou a negligenciá-la e evitar sua companhia. Ela percebeu que de
nada adiantava esforçar-se para reconquistar seu amor, mas, ainda assim,
tentou sufocar o impulso do ressentimento e continuou a tratar seu amado
inconstante com o mesmo carinho e atenção de antes.
Aos poucos, Elvira recuperava-se da doença: não era mais acometida
por convulsões e Antonia deixou de se preocupar com a mãe. Ambrósio não
via seu restabelecimento com bons olhos. Sabia que Elvira não se deixaria
enganar pela sua conduta santificada e que perceberia facilmente o seu real
interesse pela menina. Ele decidiu testar até onde chegava sua influência
sobre Antonia antes que a mãe deixasse o leito.
Em um entardecer, quando encontrou Elvira com a saúde quase
completamente restabelecida, resolveu deixar seu dormitório mais cedo do
que de costume; como não encontrou Antonia na antecâmara, aventurou-se
a procurá-la nos seus próprios aposentos, os quais eram separados dos
aposentos de Elvira por um quarto onde dormia Flora, a criada. Antonia
estava sentada no sofá com as costas voltadas para a porta, lendo,
atentamente. A moça não percebeu sua aproximação até que ele se sentou
perto dela. Antonia ficou surpresa, mas recebeu o frade com prazer. Então,
levantou-se e tentou conduzi-lo até a sala de visitas, mas Ambrósio
segurou-a pela mão e fez com que voltasse a se sentar. Ela obedeceu sem
dificuldade; não acreditava que conversar a sós com ele no seu quarto fosse
mais impróprio do que na sala, mas que estava igualmente segura pelos seus
princípios e, também, pelos dele; e, assim, novamente sentada no sofá,
iniciou uma conversa com o mesmo desembaraço e animação de sempre.
Ambrósio examinou o livro que estava em cima da mesa, o mesmo
que Antonia estava lendo. Era a Bíblia.
“Como?”, pensou o frade. “Antonia lê a Bíblia e continua na
ignorância?”
Entretanto, ao inspecionar o livro novamente, descobriu que Elvira
havia pensado a mesma coisa. Aquela mãe prudente, ainda que admirasse a
beleza das escrituras sagradas, estava convencida de que, na íntegra, não
existia leitura mais imprópria para uma jovem. Muitas das narrativas
tendem a excitar ideias pouco indicadas para um coração feminino: todas as
coisas são chamadas pelos nomes que possuem e as crônicas de um bordel
não poderiam proporcionar uma seleção maior de expressões indecentes.
Mesmo assim, este é o livro de estudos recomendado para jovens mulheres
e também aquele que se coloca nas mãos das crianças capazes de entender
um pouco mais sobre as passagens que deveriam ignorar; é o livro que
frequentemente introduz as primeiras noções de libertinagem e que desperta
as paixões ainda adormecidas. Elvira estava tão convencida do fato que
teria preferido colocar nas mãos da filha Amadis de Gaula ou Tirante, o
Branco e também teria permitido os estudos das proezas libidinosas de Dom
Galaor ou das piadas lascivas da Donzela Prazer-de-minha-Vida[12]. Como
consequência, existiam duas alternativas para a leitura da Bíblia. A primeira
era que Antonia não deveria ler o livro até que tivesse idade suficiente para
compreender suas belezas e aproveitar sua moralidade. A segunda era fazer
uma cópia à mão, alterando ou suprimindo todas as passagens indecentes.
Ela havia optado pela segunda alternativa e era esta cópia da Bíblia que
Antonia estava lendo. Não fazia muito tempo que o livro estava em suas
mãos, mas ela já percorria as páginas com uma avidez e deleite admiráveis.
Ambrósio percebeu o engano e voltou a colocar o livro sobre a mesa.
Antonia falou sobre a saúde da mãe com todo o entusiasmo e alegria
de um coração juvenil.
— Eu admiro seu afeto filial – disse Ambrósio. — É prova da
superioridade e sensibilidade do seu caráter. Promete um tesouro àquele que
está designado a possuir o seu amor. Um coração que é capaz de sentir tanto
carinho por uma mãe, o que não sentirá pelo ser amado? Ou melhor, talvez,
o que sente agora? Diga-me, minha filha adorada, você sabe o que é o
amor? Responda com sinceridade, ignore meu hábito e pense em mim como
um amigo.
— O que é o amor? – ela disse, repetindo a pergunta. — Oh, sim, sem
dúvida. Eu tenho amado muitas, muitas pessoas.
— Não me refiro a isso. Estou falando do amor que se sente por uma
só pessoa. Você nunca viu o homem que deseja como esposo?
— Oh, não, na verdade, não!
Era mentira, mas Antonia não tinha conhecimento desta falsidade: ela
não conhecia a natureza dos seus sentimentos por Lorenzo, e como não
voltara a vê-lo desde a primeira visita que ele fizera à Elvira, sua lembrança
tornava-se mais fraca a cada dia. Além disso, ela pensava em um esposo
com todo o terror de uma virgem e respondeu negativamente à pergunta do
frade sem um instante de hesitação.
— E você não deseja encontrar esse homem, Antonia? Não sente um
vazio no coração que gostaria de preencher? Não suspira pela ausência de
alguém a quem você quer muito bem, mas que ainda não sabe quem é? Não
percebe que tudo aquilo que antes lhe agradava perdeu o encanto? Que
brotaram no seu peito mil novos desejos, novas ideias, novas sensações
jamais descritas? Ou será possível que, ainda que faça arder com paixão
todos os outros corações, o seu permaneça insensível e frio? Isto não está
certo. Estes olhos doces, estas bochechas coradas, esta melancolia
encantadora e deliciosa que, às vezes, inunda seu rosto, todos estes sinais
contradizem suas palavras. Você ama alguém Antonia, e é inútil tentar
esconder isto de mim.
— Padre, o senhor me surpreende! De que amor está falando? Não
conheço a natureza deste amor e, se conhecesse, por que deveria ocultar tal
sentimento?
— Você não conheceu nenhum homem, Antonia, o qual, ainda que
nunca tenha visto antes, tenha feito você sentir que buscava por ele há
muito tempo? Cuja figura, ainda que seja um estranho, seja familiar aos
seus olhos? Cujo tom de voz tenha lhe agradado, penetrado na sua alma?
Um homem cuja presença faz você se sentir feliz e cuja ausência faz você
lamentar? Alguém capaz de fazer o seu coração bater mais forte e no qual
você confia completamente? Nunca sentiu tudo isso, Antonia?
— Certamente, eu senti isso mesmo na primeira vez que vi o senhor.
Ambrósio teve um sobressalto. Mal podia acreditar no que ouvia.
— Eu, Antonia? – perguntou, com os olhos cintilando de prazer e
impaciência, enquanto pegava a mão da moça e a beijava
arrebatadoramente. — Eu, Antonia? Você sentiu tudo isso por mim?
— E com mais força do que o senhor descreveu. No mesmo instante
em que o vi, fiquei tão contente e tão interessada! Aguardei avidamente
para escutar o som da sua voz e, quando ouvi, pareceu-me tão doce! Sua
voz conversava comigo em uma língua que eu não conhecia. Eu pensei:
“essa voz me diz mil coisas que eu desejo ouvir”. Parecia que já nos
conhecíamos há muito tempo, como se eu tivesse direito à sua amizade, aos
seus conselhos, à sua proteção. Eu chorei quando o senhor se foi e desejei
que o tempo passasse rápido para que pudesse vê-lo novamente.
— Antonia! Minha encantadora Antonia! – exclamou o monge,
apertando-a contra o peito. — Posso acreditar no que diz? Repita para mim,
minha doce menina! Diga outra vez que me ama sincera e ternamente!
— Eu o amo, sim. Além da minha mãe, não há no mundo ninguém a
quem eu ame mais!
Diante de uma confissão tão verdadeira, Ambrósio perdeu o controle
das emoções. Louco de desejo, apertou a jovem nos braços e pressionou
seus lábios nos lábios dela, sorvendo seu hálito puro e delicioso, violando
com a mão atrevida os tesouros do seu peito e prendendo-lhe os braços
suaves e rendidos ao redor do seu corpo. Sobressaltada, alarmada e confusa
com aquela reação, a surpresa, a princípio, impediu que oferecesse qualquer
resistência. Após alguns instantes, já recuperada, ela lutou para livrar-se do
seu abraço.
— Padre!... Ambrósio! – ela gritou. — Solte-me, pelo amor de Deus!
Mas o monge indecente não atendeu às suas súplicas e manteve o
propósito de tomar liberdades ainda maiores. Antonia implorou, chorou e
lutou. Terrivelmente assustada, embora não soubesse bem o porquê, ela
usou todas as suas forças para conseguir afastar aquele homem, e já estava a
ponto de gritar por ajuda quando a porta do quarto foi repentinamente
aberta. Ambrósio teve a presença de espírito suficiente para prever o perigo.
Relutantemente, libertou sua presa e levantou-se rapidamente do sofá.
Antonia deu um grito de alegria, correu em direção à porta e ao encontro
dos braços da mãe.
Alarmada por algumas frases proferidas pelo frade e inocentemente
repetidas por Antonia, Elvira estava decidida a comprovar suas suspeitas.
Ela conhecia o ser humano muito bem e não se deixaria iludir pela suposta
virtude do monge. Havia refletido sobre alguns detalhes, os quais, embora
triviais, quando considerados em conjunto pareciam dar fundamento aos
seus temores. As visitas frequentes que, até onde sabia, limitavam-se à sua
família; a evidente emoção cada vez que ouvia o nome de Antonia; o fato
de encontrar-se em pleno vigor de sua virilidade e, acima de tudo, sua
filosofia perniciosa, reportada por Antonia, a qual combinava tão pouco
com as conversas que tinham na sua presença, todas estas circunstâncias
despertaram muitas dúvidas com relação à pureza da amizade de Ambrósio.
Assim, decidiu que, na próxima vez em que ele se encontrasse a sós com
Antonia, tentaria surpreendê-lo. Seu plano deu certo. É verdade que, no
momento em que entrou no quarto, ele já havia abandonado sua presa, mas
a desordem no vestido da filha e a vergonha e confusão estampadas no rosto
do religioso eram provas que bastavam para justificar suas suspeitas. No
entanto, como era uma mulher muito cautelosa, resolveu não revelar suas
conjecturas. Considerou que desmascarar o impostor não seria fácil, já que
existia uma multidão disposta a defendê-lo. Além disso, como tinha poucos
amigos, julgou perigoso fazer um inimigo tão poderoso. Então, fingiu não
perceber sua agitação e sentou-se calmamente no sofá, alegando um
pretexto qualquer para ter deixado seu dormitório tão inesperadamente e
conversou sobre vários assuntos com aparente serenidade e confiança.
Tranquilizado pelo comportamento da mulher, o monge conseguiu
recobrar-se do susto. Ele esforçou-se para responder às perguntas de Elvira
sem aparentar embaraço, mas como não tinha muita prática na arte da
dissimulação, tinha a impressão de que parecia confuso e desajeitado.
Depois de alguns instantes, interrompeu a conversa e levantou-se para
partir. Porém, ficou muito contrariado quando, ao despedir-se, Elvira lhe
disse, de forma muito educada, que como se sentia plenamente
restabelecida, considerava uma injustiça privar a companhia do padre de
outros penitentes que, talvez, precisassem ainda mais dos seus conselhos.
Ela lhe prometeu gratidão eterna pelo benefício que recebeu de sua
companhia e de seu encorajamento durante a enfermidade, e lamentou que
seus afazeres domésticos, bem como os inúmeros assuntos que exigiam a
presença do frade, pudessem privá-la do prazer de suas visitas, a partir
daquele momento. Ainda que tudo tenha sido dito de forma muito amável, a
intenção era clara. Mesmo assim, o monge ainda tentou fazer alguma
observação, mas um simples e expressivo olhar de Elvira fez com que se
calasse. Ele não se atreveu a falar de novas visitas, pois as atitudes da
mulher denunciavam que ele fora descoberto. O monge resignou-se sem
replicar, despediu-se sem demora e dirigiu-se ao mosteiro com o coração
repleto de raiva, vergonha, amargura e decepção.
Antonia sentiu-se aliviada com sua partida. Ainda assim, lamentava o
fato de nunca mais voltar a vê-lo. Elvira também sentia um secreto pesar,
pois tivera muito prazer em considerar o frade seu amigo e agora lamentava
ter que mudar de opinião. Mas ela já estava muito acostumada com a
falsidade do mundo e não permitiria que a presente decepção a perturbasse
por mais tempo do que o necessário. Por enquanto, o melhor a fazer seria
advertir Antonia sobre o perigo daquela amizade, mas Elvira viu-se
obrigada a abordar o assunto com cuidado – pois, ao remover da filha a
venda da ignorância, corria o risco de remover, também, o véu da sua
inocência. Dessa forma, conformou-se em aconselhar a filha a ficar sempre
atenta e exigir que, se o frade insistisse nas visitas, ela nunca deveria
recebê-lo desacompanhada. Antonia prometeu cumprir estas ordens.
Ambrósio entrou apressadamente em sua cela. Fechou a porta e,
desesperado, atirou-se na cama. O impulso do desejo, a dor aguda resultante
da frustração, a vergonha por ter sido descoberto e o pavor de ser
desmascarado publicamente deixaram-no na mais horrível confusão. Não
sabia qual caminho seguir. Privado da presença de Antonia, não tinha
esperanças de satisfazer aquela paixão que agora se tornara parte da sua
existência. Considerou que seu segredo encontrava-se nas mãos de uma
mulher e ficou muito apreensivo ao contemplar o precipício que tinha
diante de si, e também sentiu muita raiva porque, se não fosse a intervenção
de Elvira, poderia ter possuído o objeto dos seus desejos. Jurou vingar-se
dela, proferindo as pragas mais ofensivas; prometeu que, custasse o que
custasse, ele ainda possuiria Antonia. Pulou da cama e caminhou pelo
aposento com passos agitados, esbravejando com fúria, golpeando as
paredes violentamente e entregando-se a todos os acessos de raiva e
loucura.
Ainda encontrava-se sob a influência de toda a sua ira quando ouviu
uma batida suave na porta da cela. Consciente de que alguém ouvira sua
voz, não ousou negar a entrada do importuno. Tentou acalmar-se e ocultar
sua agitação. Depois de alguns instantes, abriu o trinco e Matilda apareceu.
Naquele exato momento, era quem mais queria evitar. Não estava
controlado o suficiente para esconder sua humilhação. Ele recuou e franziu
o cenho.
— Estou ocupado – disse, em tom severo e apressado. — Deixe-me!
Matilda não lhe deu atenção. Rapidamente abriu a porta e avançou
sobre ele com um gesto doce e suplicante.
— Perdoe-me, Ambrósio – ela disse. — Para o seu próprio bem, eu
não devo obedecê-lo. Não tema nenhuma queixa da minha parte; não estou
aqui para censurar sua ingratidão. Eu o perdoo, do fundo do coração, e já
que seu amor não pode mais ser meu, imploro que me conceda o segundo
melhor presente, que é a sua confiança e amizade. Não podemos forçar
nossas inclinações; aquela beleza que um dia você viu em mim deixou de
existir quando a novidade passou, e se já não posso despertar seu desejo, a
culpa é minha e não sua. Mas por que insiste em me evitar? Por que toda
essa ansiedade em fugir da minha companhia? Você está sofrendo, mas não
compartilha sua dor; está frustrado, mas não aceita meus conselhos; sente
desejos, mas não admite a minha ajuda para satisfazê-los. É disto que me
queixo, e não da sua indiferença. Já renunciei a todos os direitos de amante,
mas nada me fará renunciar ao direito de ser sua amiga.
Sua doçura causou um efeito instantâneo no coração de Ambrósio.
— Matilda, tão generosa! – ele exclamou, tomando-lhe a mão. —
Coloca-se tão acima das fraquezas do seu próprio sexo! Sim, aceito sua
oferta. Necessito de um conselheiro e de um confidente. Em você eu
encontro reunidas todas as qualidades necessárias. Mas, para ajudar-me
quanto à satisfação dos meus desejos... ah, Matilda! Isso não está em suas
mãos!
— Não está nas mãos de ninguém, além das minhas. Ambrósio, você
não tem segredos para mim; cada passo seu, cada gesto, tudo tem sido
observado pelos meus olhos atentos. Você está amando.
— Matilda!
— Por que escondeu isto de mim? Não tema os pequenos ataques de
ciúme que são tão comuns às mulheres. Minha alma enxerga com desdém
uma paixão tão desprezível. Você está amando, Ambrósio, e Antonia Dalfa
é o objeto do seu ardor. Conheço todos os detalhes da sua paixão, cada
conversa entre vocês foi repetida para mim. Fui informada da sua tentativa
de deleitar-se com Antonia e da sua decepção, e de como foi dispensado da
casa de Elvira. Agora está desesperado para possuir sua amada. Mas eu vim
para reavivar suas esperanças e ensinar-lhe o caminho do êxito.
— Êxito? É impossível.
— Nada é impossível para quem se atreve. Confie em mim e pode ser
que você ainda seja feliz. É chegado o momento, Ambrósio, quando a sua
busca por conforto e tranquilidade me obriga a revelar parte da minha
história que você ainda não conhece. Ouça e não me interrompa. Se a minha
confissão lhe desagradar, lembre-se de que meu único objetivo é satisfazer
seus desejos e restaurar a paz no seu coração, que agora está tão perdido. Eu
já lhe falei que meu tutor era um homem de conhecimentos excepcionais e
que ele não mediu esforços para incutir seus conhecimentos na minha
mentalidade infantil. Entre as várias ciências que explorou, movido pela
curiosidade, não faltou uma a qual a maioria das pessoas considera impura e
alguns até dizem ser ilusória. Estou me referindo às artes que se relacionam
com o mundo dos espíritos. As profundas investigações do meu tutor sobre
as causas e efeitos, sua incansável dedicação ao estudo da filosofia natural,
seu profundo e ilimitado conhecimento acerca das propriedades e virtudes
de cada pedra preciosa que enriquece os abismos, de cada erva produzida
pela terra, todas essas coisas fizeram com que ele, finalmente, buscasse a
compreensão do que havia lhe inspirado durante tanto tempo e com tanto
empenho. O resultado é que sua curiosidade foi completamente saciada e
sua ambição amplamente gratificada. Ele conseguiu ditar leis aos elementos
e reverter a ordem da natureza. Seus olhos puderam ler os mandamentos do
futuro e os anjos das trevas submeteram-se à sua vontade. Por que está se
afastando de mim? Eu compreendo este olhar inquiridor, suas suspeitas
estão corretas, embora seus medos sejam infundados. Meu tutor não
escondeu de mim sua aquisição mais preciosa, mas se eu nunca tivesse visto
você, jamais teria exercido o meu poder. Eu também tremia de medo só de
pensar em magia. Igual a você, eu também tinha uma ideia formada sobre
as terríveis consequências de invocar um demônio – mas, para preservar
esta vida que o seu amor me ensinou a estimar, tive de recorrer a
expedientes que nunca pensei em usar. Lembra-se daquela noite que passei
na cripta de Santa Clara? Foi quando, rodeada por cadáveres apodrecidos,
me atrevi a executar alguns rituais místicos para invocar um anjo caído ao
meu auxílio. Você não pode imaginar minha surpresa ao descobrir que meus
temores eram imaginários. Vi o demônio obedecer minhas ordens, vi que
tremia ante um gesto meu e descobri que, no lugar de vender minha alma a
um senhor, minha coragem havia comprado um escravo.
— Mulher imprudente! O que foi fazer? Condenou a si mesma à
perdição eterna, barganhou sua felicidade em troca de um poder
momentâneo! Se a satisfação dos meus desejos depende de bruxaria, eu
recuso a sua ajuda completamente. As consequências serão terríveis: tenho
adoração por Antonia, mas minha luxúria não chega ao ponto de sacrificar
minha existência aqui ou no além!
— Preconceitos absurdos! Devia ter vergonha, Ambrósio, por viver
dominado por preconceitos! Qual o risco de aceitar minha proposta? Como
posso convencê-lo a dar este passo senão para trazer de volta sua paz e
felicidade? Se existe algum perigo, será da minha parte. Sou em quem vai
invocar a intervenção dos espíritos, portanto o pecado será meu e o
benefício todo seu. Mas não há perigo; o inimigo dos homens é meu
escravo e não meu soberano. Não há diferença entre dar e receber, entre
servir e comandar? Desperte destes sonhos inúteis, Ambrósio! Livre-se dos
medos tão impróprios para uma alma feito a sua. Deixe-os para os homens
comuns e atreva-se a ser feliz. Venha comigo à cripta de Santa Clara esta
noite, presencie meus encantamentos e Antonia será sua.
— Eu não posso e não quero possuí-la por estes meios. Não insista,
pois eu não me atrevo a utilizar os agentes do inferno!
— Não se atreve? Como me enganei com você! Esta mente que eu
tanto estimo e admiro revela-se fraca, infantil e servil, escrava dos erros
vulgares e mais frágil do que a mente de uma mulher.
— O quê? Mesmo estando ciente do perigo que corro, devo me expor
voluntariamente às artes da sedução? Devo renunciar para sempre ao meu
direito de salvação? Será que meus olhos devem buscar uma visão que com
certeza irá incendiá-los? Não, não, Matilda. Eu não serei um aliado do
inimigo de Deus.
— E, por acaso, neste momento, considera-se amigo de Deus? Não é
verdade que quebrou seus votos, que renunciou ao seu serviço e que
abandonou seu Deus no impulso das suas paixões? Você não está
planejando a destruição de uma inocente, a ruína de uma criatura por ele
criada nos moldes dos anjos? Se não está contando com os demônios, a
quem invoca para receber ajuda para a execução dos seus propósitos
louváveis? Será que os serafins irão protegê-lo, empurrando Antonia para
os seus braços e consentindo, com seu ministério, seus prazeres ilícitos?
Que absurdo! Mas eu não estou enganada, Ambrósio. Não é a virtude que
faz com que recuse minha oferta: você quer aceitar, mas não tem coragem.
Você não teme o crime em si, mas o castigo. Não é o seu respeito por Deus
que o impede de dizer sim, mas o medo da vingança divina. Você teria
prazer em ofendê-Lo em segredo, mas teme confessar-se Seu inimigo. Sua
alma covarde sente vergonha e carece da coragem de ser firme tanto na
amizade quando na inimizade!
— Temer a culpa, Matilda, já é um mérito. Neste aspecto, alegro-me
de ser covarde. Embora seja verdade que minhas paixões tenham me
afastado das leis de Deus, ainda sinto no meu coração um amor instintivo
pela virtude. Mas você não deveria acusar-me de perjúrio, logo você, que
foi quem me seduziu para que violasse meus votos, quem me fez sentir o
peso das correntes da fé e me convenceu de que a culpa possuía seus
prazeres. Embora meus princípios tenham sucumbido à força do meu
temperamento, ainda possuo honra suficiente para temer a feitiçaria e evitar
um pecado tão monstruoso, tão imperdoável!
— Imperdoável? Onde está, então, aquela misericórdia infinita do
Todo Poderoso da qual você tanto fala? Será que Ele agora passou a impor
limites? Não mais acolhe o pecador com alegria? Você ofende a Deus,
Ambrósio, mas sempre terá tempo para arrependimento, e Ele, bondade
para perdoar. Proporcione a Deus uma oportunidade gloriosa para exercer
Sua benevolência: quanto maior o seu pecado, maior será o mérito do
perdão. Abandone estes escrúpulos infantis, convença-se de que é para o
seu próprio bem e venha comigo até a cripta.
— Já chega, Matilda! Esse tom irônico e essa linguagem descrente e
atrevida soam muito mal na boca de qualquer mulher. Vamos abandonar
esta conversa que só nos causa horror e repugnância. Eu não vou segui-la
até a cripta e não vou aceitar os serviços dos seus agentes do inferno.
Antonia será minha, mas por meios humanos.
— Então ela nunca será sua. Você foi banido da sua presença. A mãe
já abriu os olhos dela sobre as suas intenções e a partir de agora passará a
vigiá-la com atenção. Além disso, ela ama outra pessoa. Um jovem muito
distinto é dono do seu coração e, a menos que você interfira, ela deverá
tornar-se noiva dele em poucos dias. Tomei conhecimento disto através de
um dos meus servidores invisíveis, a quem recorri assim que notei sua
indiferença. Eles vigiaram cada movimento seu e relataram a mim tudo o
que acontecia na casa de Elvira. Também me inspiraram a ideia de ajudá-lo
com seus propósitos. Esses relatos têm sido o meu único conforto. Embora
você tenha evitado minha presença, eu conhecia todos os seus passos. E
mais do que isso, eu estava constantemente ao seu lado, graças a este
precioso objeto.
Com estas palavras, ela apanhou um espelho de aço polido que
guardava sob o hábito, cujas bordas estavam marcadas com diversos
símbolos estranhos e desconhecidos.
— Diante de toda a minha aflição, de toda a tristeza que sua frieza me
causou, consegui evitar o desespero graças a este talismã. Ao pronunciar
determinadas palavras, aparece no espelho a pessoa em quem o observador
concentra seus pensamentos. Portanto, apesar de eu ter sido banida da sua
vista, Ambrósio, você tem estado sempre na minha companhia.
O frade mostrou-se muito curioso.
— O que você diz é incrível. Matilda, você não está zombando da
minha credulidade?
— Deixe que os seus próprios olhos julguem.
Ela colocou o espelho nas mãos do monge. A curiosidade e o amor
por Antonia obrigaram-no a aceitá-lo na esperança de ver a imagem da
moça refletida. Matilda pronunciou as palavras mágicas e, imediatamente,
uma fumaça espessa surgiu a partir dos símbolos traçados nas bordas do
objeto. A fumaça espalhou-se por toda a superfície e, depois, dissipou-se
gradualmente. Uma confusão de cores e imagens surgiu diante dos olhos do
frade, as quais finalmente organizaram-se nos lugares apropriados e
refletiram uma miniatura da forma adorável de Antonia.
Ela estava em um pequeno quarto dentro dos seus aposentos. Já
estava quase despida para banhar-se. As longas tranças dos seus cabelos
estavam presas no alto da cabeça. O monge enamorado pôde observar os
contornos voluptuosos e a admirável simetria do seu corpo. Ela tirou a
última peça de roupa e caminhou em direção à banheira. Colocou um pé na
água, mas achou que estava fria. Mesmo ignorando o fato de estar sendo
observada, um pudor natural lhe impulsionou a esconder seus encantos
enquanto vacilava na borda da banheira, em uma posição semelhante à de
Vênus de Médici. Neste instante, um pássaro doméstico voou em sua
direção, aninhou-se entre os seus seios e passou a bicá-los maliciosamente.
Sorrindo, Antonia tentou em vão espantar o pássaro e, finalmente, usou as
mãos para retirá-lo do seu delicioso refúgio. Ambrósio não podia mais
resistir de tanto desejo.
— Eu me rendo! – ele gritou, jogando o espelho no chão. — Matilda,
irei com você! Faça de mim o que quiser!
Matilda não perdeu tempo. Já era quase meia-noite. Ela correu para
sua cela e logo retornou com sua pequena cesta e a chave da porta do
cemitério, a qual estava em seu poder desde a primeira visita à cripta. Ela
não deu ao monge tempo para refletir.
— Vamos! – exclamou, pegando-lhe pela mão. — Siga-me e
testemunhe os efeitos da sua decisão!
Dito isto, saíram apressadamente. Ninguém viu quando entraram no
cemitério. Abriram a porta do sepulcro e alcançaram a entrada da escada
subterrânea. Até aquele momento, tinham sido guiados pela luz da lua, mas
uma vez dentro da cripta, não podiam mais contar com aquele recurso;
Matilda havia se esquecido de trazer a lamparina. Segurando a mão de
Ambrósio, ela começou a descer os degraus de mármore, mas a escuridão
profunda obrigou-os a caminhar devagar e com cuidado.
— Você está tremendo – disse Matilda ao companheiro. — Não tema,
estamos perto do local destinado.
Eles chegaram ao pé da escada e, tateando as paredes, conseguiram
seguir adiante. De repente, no final de uma curva, avistaram um brilho fraco
que parecia queimar à distância. Caminharam em sua direção; a luz vinha
de uma lamparina sepulcral que iluminava incessantemente a imagem de
Santa Clara. Seus raios lúgubres e tristes iluminavam as grossas colunas
que sustentavam o teto, ainda que não fossem suficientes para dissipar a
escuridão que reinava na cripta.
Matilda pegou a lamparina.
— Espere aqui – ela disse. — Voltarei em alguns instantes.
Com estas palavras ela desapareceu em uma das passagens que
levavam a várias direções a partir daquele ponto e que formavam uma
espécie de labirinto. Ambrósio ficou só. Foi envolvido pela escuridão mais
profunda, que só aumentava as dúvidas que renasciam em seu coração. Ele
se deixara levar pelo delírio do momento. Sentira vergonha de admitir seus
medos na presença de Matilda, mas agora que estava sozinho, recobrara o
domínio sobre seus sentimentos. Temia a cena que estava prestes a
vivenciar. Não sabia até onde os delírios da magia poderiam agir na sua
mente e se poderiam obrigá-lo a cometer algum ato que provocaria uma
ruptura irreparável entre ele e o reino dos céus. Enquanto encontrava-se
neste dilema assustador, implorou pela ajuda de Deus, embora soubesse que
não tinha mais direito à Sua proteção. Queria voltar para o mosteiro, mas
como tinha percorrido inúmeras cavernas e passagens sinuosas, não saberia
retornar à escada. Seu destino estava traçado. Não havia como escapar.
Então, tentou afastar suas apreensões e recorreu a todos os argumentos que
pudessem ajudá-lo a suportar com coragem a difícil tarefa que estava por
vir. Concluiu que Antonia seria a recompensa para a sua ousadia e
estimulou sua imaginação enumerando os encantos da moça. Conforme
Matilda havia observado, convenceu-se de que sempre teria tempo para
arrepender-se e que, se estava solicitando a ajuda dela e não a dos
demônios, não poderia ser culpado pelo crime de bruxaria. Ele já tinha lido
muito sobre o assunto e sabia que, a menos que firmasse um pacto formal
no qual renunciasse ao seu direito à salvação, Satanás não teria nenhum
poder sobre ele. Estava plenamente decidido a não firmar o tal pacto, não se
importando com as ameaças ou com as vantagens que lhe seriam
oferecidas.
Tais eram suas reflexões enquanto esperava por Matilda – reflexões
essas que foram interrompidas por um murmúrio que não parecia vir de
muito longe. Ambrósio ficou alarmado e começou a prestar atenção. Alguns
minutos se passaram e o murmúrio se repetiu. Parecia um gemido de dor.
Em outras circunstâncias, este detalhe teria despertado sua atenção e
curiosidade; naquele instante, a sensação predominante era de terror. Sua
imaginação estava repleta de ideias sobre bruxaria e espíritos e ele
imaginou que algum fantasma deveria estar vagando ao seu redor, ou,
ainda, que Matilda havia sucumbido, vítima de sua presunção, e que
agonizava embaixo das garras cruéis de algum demônio. Às vezes o som se
tornava mais audível, sem dúvida nos momentos em que a pessoa que
estava emitindo os gemidos sentia as dores mais agudas e insuportáveis.
Ambrósio pensava que podia distinguir uma espécie de fala, especialmente
em um momento em particular, quando estava convencido de que uma voz
exausta exclamara:
— Deus! Oh! Deus! Não há esperança! Não há nenhum auxílio!
Gemidos ainda mais profundos seguiram estas palavras. Eles
desapareceram gradativamente e o silêncio universal triunfou mais uma
vez.
— O que será isso? – perguntava-se o monge aturdido.
Neste instante, uma ideia surgiu na sua mente e o monge quase ficou
petrificado de terror. Ele começou a tremer e sentir calafrios.
— Será possível? – gritou involuntariamente. — Será possível? Oh,
que monstro eu sou!
Decidiu esclarecer essas dúvidas e reparar sua falta, se ainda houvesse
tempo para isso. Porém, tais sentimentos generosos e piedosos
desapareceram com o retorno de Matilda. Ele se esqueceu dos lamentos e só
conseguiu pensar no perigo e na dificuldade da sua própria situação. A luz
da lamparina que regressava iluminou as paredes e logo Matilda estava ao
seu lado. Ela se livrara do hábito religioso e agora vestia um longo manto
negro com uma variedade de símbolos desconhecidos bordados em fios de
ouro. Era ajustado por uma guirlanda de pedras preciosas, na qual um
punhal estava preso. Seu pescoço e seus braços estavam descobertos. Em
uma das mãos carregava uma varinha dourada. Seu cabelo estava solto e
caía de forma selvagem sobre os ombros. Seus olhos brilhavam com uma
expressão terrível e todos os seus atos eram calculados para inspirar temor e
admiração.
— Siga-me! – ordenou em voz baixa e solene. — Tudo está
preparado.
As pernas de Ambrósio tremiam enquanto obedecia. Ela o guiou
através de várias passagens estreitas e, em todos os lugares por onde
andaram, a luz da lamparina revelava os objetos mais repugnantes: crânios,
ossos, sepulturas e imagens cujos olhos pareciam arregalados de horror e
surpresa. Finalmente chegaram a uma espaçosa caverna com um teto tão
alto que era impossível enxergá-lo. Uma escuridão profunda tomava conta
do local. Vapores úmidos e frios chegaram ao coração do frade e ele
escutou com tristeza uma corrente de ar que soprava entre as criptas
solitárias. Matilda parou e virou-se para Ambrósio, cujo rosto e lábios
estavam pálidos de tanto medo. Ela reprovou sua covardia com um olhar de
desprezo e raiva, mas não disse nada. Depois de depositar a lamparina no
chão, perto da cesta, fez um sinal para Ambrósio para que ficasse em
silêncio e deu início aos rituais misteriosos. Desenhou um círculo ao redor
do monge e outro ao redor de si mesma. Então, retirando um pequeno
frasco de vidro de dentro da cesta, derramou algumas gotas do seu conteúdo
no círculo à sua frente. Ela inclinou-se, murmurou algumas frases confusas
e imediatamente uma pálida chama brotou do solo. A chama aumentava
gradativamente na medida em que o fogo se espalhava por toda a superfície,
respeitando os círculos onde estavam Matilda e o monge. Em seguida, as
chamas subiram pelas colunas de pedra tosca chegando até o teto e
transformando a caverna em uma câmara totalmente inundada por um fogo
tenebroso e azul. O fogo não irradiava calor algum; pelo contrário, o frio
extremo do ambiente parecia aumentar a cada instante. Matilda prosseguia
com seus encantamentos; de vez em quando, retirava da cesta algum objeto,
cujo nome ou natureza eram desconhecidos pelo superior. Mas, entre os
objetos que pôde identificar, ele notou três dedos humanos e um Agnus Dei
que ela quebrou em pedaços. Então atirou tudo no fogo que ardia diante
dela e observou enquanto os artigos eram instantaneamente consumidos
pelas chamas.
O monge contemplava o ritual com curiosidade. De repente, Matilda
deu um grito alto e muito agudo. Parecia estar tendo algum ataque de
delírio: mexia nos cabelos, batia no peito, gesticulava de modo frenético e,
então, apanhou o punhal que trazia na cintura e cravou-o no braço esquerdo.
Ela cuidou para que todo o sangue que jorrava da ferida pingasse fora do
círculo onde se encontrava. As chamas desapareciam do lugar onde o
sangue pingava. Algumas nuvens escuras surgiram do solo ensanguentado;
elas subiram vagarosamente até atingir o teto da caverna. Nesse meio
tempo, ouviu-se o estrondo de um trovão: o eco retumbou assustadoramente
entre as passagens subterrâneas e o solo estremeceu embaixo dos pés da
feiticeira.
Foi neste momento que Ambrósio tomou consciência da sua
imprudência. A singularidade solene do encantamento preparou o monge
para algo estranho e terrível. Ele temia a aparição de algum espírito, cuja
chegada era anunciada por trovão e terremotos. Olhava para os lados com
pavor, esperando descobrir alguma aparição medonha cuja visão lhe faria
enlouquecer. Um violento calafrio sacudiu seu corpo e ele caiu sobre um
dos joelhos, incapaz de sustentar o próprio peso.
— Está vindo! – exclamou Matilda com alegria.
Aterrorizado, Ambrósio aguardava o demônio. Qual não foi sua
surpresa quando, ao cessar do trovão, uma música melodiosa surgiu no ar.
Ao mesmo tempo, a nuvem se dispersou e ele viu surgir a criatura mais
bonita que a imaginação poderia criar. A aparência era de um jovem de uns
dezoito anos, cujo corpo e rosto possuíam uma perfeição sem igual. Ele
estava completamente nu: uma estrela radiante brilhava na testa, duas asas
vermelhas surgiam dos ombros e seus cachos sedosos estavam presos por
uma faixa de fogo de múltiplas cores que lhe rodeava a cabeça e formava as
mais diversas figuras, brilhando mais do que uma pedra preciosa. Seus
braços e tornozelos eram adornados por argolas de diamantes e na mão
direita ele carregava um ramo de prata, imitando uma murta. Seu corpo
resplandecia com uma aura deslumbrante. Estava rodeado de nuvens de luz
rosada, e no momento em que apareceu, um ar impregnado de perfume
tomou conta da caverna. Maravilhado com uma visão tão diferente daquela
que esperava, Ambrósio olhou atentamente para o espírito, com prazer e
espanto. Mas, ainda que sua figura fosse encantadora, não pôde deixar de
notar o olhar selvagem do demônio e uma misteriosa melancolia
impregnada no seu semblante que revelava tratar-se de um anjo caído, e que
inspirava nos espectadores um medo secreto.
A música parou de tocar. Matilda dirigiu-se ao espírito falando em
uma língua que era incompreensível para o monge e que também foi usada
na resposta. Ela parecia insistir sobre alguma coisa que o demônio se
negava a conceder. Frequentemente ele lançava olhares furiosos em direção
a Ambrósio, cujo coração parecia afundar a cada olhar. Matilda estava cada
vez mais irritada. Ela falava em voz alta de forma autoritária e seus gestos
demonstravam que ameaçava o espírito com sua vingança. As ameaças
obtiveram o efeito desejado: o espírito se ajoelhou, submisso, e ofereceu a
ela seu ramo de murta. Assim que Matilda segurou o objeto nas mãos, a
música recomeçou. Uma nuvem espessa se formou acima da aparição, as
chamas azuis desapareceram e a escuridão completa reinou na caverna. O
frade não saiu do lugar; todas as suas forças estavam paralisadas pelo
desejo, pela ansiedade e pela surpresa. Por fim a escuridão se dissipou e ele
pôde ver Matilda em pé ao seu lado, vestindo o hábito religioso e segurando
a murta em uma das mãos. Não havia qualquer sinal do encantamento e as
criptas estavam iluminadas somente pelos fracos raios da lamparina
sepulcral.
— Eu consegui – disse Matilda — embora tenha sido mais difícil do
que o esperado. Lúcifer, a quem invoquei para ajudar-me, negou-se, a
princípio, a obedecer aos meus comandos. Para obrigá-lo a obedecer, fui
obrigada a recorrer aos encantamentos mais poderosos. Eles produziram o
efeito desejado, mas tive que prometer nunca mais invocá-lo em seu favor.
Tome cuidado, então, na forma como fará uso de uma oportunidade que
nunca mais voltará a se repetir. Meus poderes mágicos não terão mais
nenhuma utilidade para você. No futuro, só poderá contar com ajuda
sobrenatural se você mesmo invocar os demônios e se aceitar as condições
impostas para a execução do serviço. Mas isso não será necessário. Você
precisa ter força espiritual para obrigá-los a seguir suas ordens, e, a menos
que esteja disposto a pagar o preço estipulado, eles nunca irão servi-lo
voluntariamente. Mas desta vez eles irão obedecê-lo: eu estou lhe
oferecendo os meios para desfrutar da sua amada, por isso tente não
desperdiçar a oportunidade. Aceite esta murta reluzente: enquanto a tiver
nas mãos, todas as portas se abrirão para você. A murta lhe mostrará o
caminho até os aposentos de Antonia e, então, sopre três vezes sobre ela,
pronunciando o nome de Antonia e coloque-a sobre o travesseiro dela.
Imediatamente ela será tomada por uma sonolência parecida com a morte,
que a deixará impossibilitada de oferecer qualquer resistência às suas
investidas. Este sono durará até o amanhecer. Dessa forma, você poderá
satisfazer seus desejos sem o perigo de ser descoberto. Quando a luz da
manhã desfizer os efeitos do encantamento, Antonia se dará conta da sua
desonra, mas não saberá dizer quem foi o seu violador. Alegre-se,
Ambrósio, e permita que este serviço o convença da minha amizade pura e
desinteressada. A noite já deve estar terminando, vamos regressar ao
mosteiro antes que alguém perceba a nossa ausência.
O superior recebeu o talismã com muita gratidão. Suas ideias estavam
tão confusas com o resultado das aventuras da noite que ele não podia
expressar seus agradecimentos de forma audível, ou compreender o real
valor do presente. Matilda pegou a lamparina e a cesta e guiou seu
acompanhante através da caverna misteriosa. Recolocou a lamparina no
lugar e continuou seu caminho em meio a escuridão até chegar ao pé da
escada. Os primeiros raios de sol facilitaram a subida. Matilda e o frade
deixaram o sepulcro apressadamente, trancaram a porta e logo chegaram ao
claustro do mosteiro. Sem que se deparassem com ninguém, dirigiram-se às
suas respectivas celas sem ser observados.
A confusão mental de Ambrósio começou a mostrar sinais de
calmaria. Ele se regozijou pelo final feliz da aventura e, ao refletir sobre as
qualidades da murta, considerou que Antonia já estava em suas mãos. Sua
imaginação recordou aqueles atrativos secretos que o espelho mágico lhe
revelara e ele passou a aguardar impacientemente a chegada da meia-noite.
VOLUME III

CAPÍTULO I

Os grilos cantam e o homem, depois do trabalho farto,


Recupera-se através do descanso; o nosso Tarquim, então,
delicadamente
pressiona os juncos: aqui ele desperta a castidade por ele ferida –
Cytherea,
De que forma corajosa caíste na tua própria armadilha;
descansada;e mais branca do que um lençol!
(Shakespeare, Cimbelino)

Todas as buscas do Marquês de las Cisternas foram inúteis: Agnes


estava perdida para sempre. O desespero produziu no rapaz um efeito muito
violento cuja consequência foi uma doença grave e demorada. Tal fato o
impediu de visitar Elvira, como intencionava; e ela, por desconhecer a
causa da negligência, encontrava-se muito preocupada. A morte de sua irmã
havia impedido Lorenzo de comunicar ao tio sua intenção de casar-se com
Antonia. As regras da mãe da menina o proibiam de apresentar-se
novamente sem o consentimento do Duque e, assim, como não ouviu mais
falar dele ou de sua proposta de casamento, Elvira deduziu que Lorenzo
deveria ter encontrado um partido melhor ou que fora instruído a deixar de
pensar na sua filha. A cada dia sentia-se mais inquieta com relação ao
futuro de Antonia. Enquanto possuía a proteção do frade, suportou
valentemente a frustração dos seus planos com Lorenzo e com o Marquês,
mas não podia mais contar com este último recurso. Estava convencida de
que Ambrósio tramava a ruína de sua filha. Quando pensava que, ao morrer,
deixaria Antonia sem amigos e sem proteção em um mundo tão pervertido e
cruel, seu coração enchia-se de amargura e inquietação. Nestas ocasiões,
permanecia sentada por horas e horas contemplando a jovem adorável,
fingindo escutar sua conversa inocente quando, na verdade, seus
pensamentos lutavam contra as tristezas nas quais mergulharia a qualquer
momento. Então, repentinamente, ela apertava a menina nos braços e
apoiava a cabeça sobre o peito da filha, lavando-o com suas lágrimas.
Entretanto, se tivesse ciência de um acontecimento que estava por vir,
Elvira não se sentiria tão alarmada. Lorenzo agora esperava apenas pela
melhor oportunidade para informar ao Duque da sua intenção de se casar.
No entanto, uma circunstância ocorrida neste período o obrigou a adiar suas
explicações por mais alguns dias.
A doença de Dom Ramón parecia se agravar mais e mais. Lorenzo
estava constantemente ao seu lado e tratava o amigo com uma ternura
verdadeiramente fraterna. Tanto a causa quanto o efeito da doença eram
também muito sentidos pelo irmão de Agnes, mas a aflição de Teodoro não
ficava atrás. O bondoso jovem não abandonou seu mestre nem por um
momento e fez tudo o que pôde para consolá-lo e aliviar seus sofrimentos.
O Marquês havia sentido um amor tão profundo por sua falecida amada que
era evidente para todos que ele nunca sobreviveria à sua perda. Nada
parecia ser capaz de impedir que se afundasse na dor, a não ser sua
convicção de que ela ainda estava viva e que precisava da sua ajuda.
Embora convencidos do contrário, seus acompanhantes o encorajavam a
acreditar nesta mentira que constituía seu único conforto. Todos os dias eles
lhe diziam que uma nova investigação estava sendo feita para descobrir o
paradeiro de Agnes. Inventavam histórias sobre diversas tentativas para
entrar no convento e, ainda que tais circunstâncias não garantissem sua
recuperação absoluta, eram suficientes para manter vivas suas esperanças.
O Marquês, constantemente, caía na mais profunda depressão quando
informado do fracasso de uma dessas supostas tentativas. Mesmo assim,
estava convencido de que nem todas as diligências apresentariam o mesmo
resultado e acreditava que o dia seguinte seria mais afortunado.
Teodoro era o único que se esforçava para realizar as quimeras do seu
mestre. Estava sempre ocupado com o planejamento de novos esquemas
para entrar no convento, ou, ao menos, para obter das freiras alguma notícia
de Dona Agnes. A execução desses planos era a única razão capaz de
afastá-lo de Dom Ramón. Ele transformou-se no próprio Proteus[13],
mudando de forma a cada dia. Porém, todas as suas metamorfoses
produziam pouco resultado: ele sempre regressava ao Palácio de las
Cisternas sem nenhuma notícia que confirmasse as esperanças do seu amo.
Um dia, decidiu usar o disfarce de um mendigo. Colocou um curativo sobre
o olho esquerdo e, com o violão em uma das mãos, postou-se no portão do
convento.
“Se Dona Agnes estiver realmente confinada no convento”, pensou
com seus botões, “ela reconhecerá minha voz e, possivelmente, encontrará
uma maneira de me dizer que está lá.”
Com esta ideia na cabeça ele se misturou à multidão de pedintes que
se aglomerava diariamente nos portões de Santa Clara para receber a sopa
que as freiras costumavam distribuir ao meio-dia. Todos levavam seus
jarros ou tigelas para viagem, mas como Teodoro não carregava nenhum
desses utensílios consigo, implorou para que o deixassem tomar sua sopa na
porta do convento. Isso foi conseguido sem muita dificuldade: sua voz doce
e suas feições atraentes, apesar do curativo no olho, conquistaram o coração
da boa e velha porteira que, ajudada por uma irmã leiga, estava ocupada em
servir a cada um a sua porção. Ela pediu a Teodoro que aguardasse até que
os outros tivessem partido e prometeu que então seria servido. Era tudo o
que o jovem queria, uma vez que não era a sopa o que buscava no convento.
Ele agradeceu a velha senhora e afastou-se do portão, sentando-se em uma
grande pedra e divertindo-se com seu violão enquanto os outros pedintes
eram servidos.
Logo que a multidão se dispersou, Teodoro foi chamado ao portão e
convidado a entrar. Ele obedeceu prontamente, mas simulou um grande
respeito ao cruzar o umbral sagrado e pareceu assustado pela presença das
veneráveis senhoras. Sua fingida timidez agradou a vaidade das freiras, que
tentaram tranquilizá-lo. A porteira levou-o até o seu pequeno gabinete.
Nesse meio tempo, a irmã leiga foi até a cozinha e logo retornou com uma
porção dupla de sopa, de qualidade superior àquela oferecida aos mendigos.
Sua anfitriã adicionou algumas frutas e doces da sua reserva particular e
ambas encorajaram o jovem a comer o quanto quisesse. Ele agradeceu
imensamente por toda a atenção recebida e, enquanto comia, as freiras
admiravam a delicadeza dos seus traços, a beleza do seu cabelo e a
suavidade e graça que acompanhavam todos os seus gestos. Lamentaram
em voz baixa que um jovem tão encantador estivesse exposto às seduções
do mundo e concordaram que ele seria um pilar valioso para a Igreja
Católica. Concluíram sua conferência com a resolução de que prestariam
um verdadeiro serviço aos Céus se pedissem à abadessa que intercedesse
junto à Ambrósio para que aceitasse o mendigo na ordem dos capuchinhos.
Assim determinadas, a porteira, que era uma pessoa de grande
influência no convento, encaminhou-se até a cela da superiora. Uma vez lá,
ela fez um relato tão ardoroso dos méritos de Teodoro que a velha senhora
sentiu-se tentada a conhecê-lo. Ela solicitou à porteira que conduzisse o
rapaz até o locutório. Nesse meio tempo, o suposto mendigo indagava à
irmã leiga o que havia acontecido com Agnes, mas as respostas obtidas
apenas corroboraram as afirmações da superiora. Ela disse que Agnes
adoecera ao regressar da confissão, que desde aquele momento nunca mais
deixou seu leito e que ela mesma estivera presente no funeral. Declarou
ainda que viu o cadáver da moça e que ajudou com suas próprias mãos a
colocá-la no caixão. Esta informação deixou Teodoro desencorajado, mas
como já tinha chegado até ali, resolveu esperar para ver como a aventura
terminaria.
A porteira retornou e ordenou que o jovem a seguisse. Ele obedeceu e
foi levado ao locutório, onde encontrou a madre superiora atrás da grade.
Ela estava rodeada por outras freiras, as quais agruparam-se com
impaciência para presenciar uma cena que prometia alguma diversão.
Teodoro cumprimentou a todas com profundo respeito; sua presença era tão
poderosa que por um momento foi capaz até de suavizar a testa franzida da
abadessa. Esta fez muitas perguntas a respeito dos seus pais, sua religião, e
o que o havia levado ao estado de mendicância. As respostas para estas
perguntas foram perfeitamente satisfatórias e perfeitamente falsas. Então,
ela indagou sua opinião sobre a vida monástica. Ele respondeu em termos
de grande estima e respeito. Diante disto, a superiora lhe garantiu que não
seria impossível conseguir seu ingresso em uma ordem religiosa, que sua
recomendação não permitiria que a pobreza do rapaz fosse um obstáculo e
que, se ele se mostrasse merecedor, poderia contar com sua proteção no
futuro. Teodoro lhe assegurou que sua maior ambição seria merecer essa
benevolência. Então, a abadessa ordenou que ele retornasse no dia seguinte
para conversar mais sobre o assunto e deixou o salão.
As freiras, cujo respeito pela superiora fez com que permanecessem
caladas até aquele momento, aproximaram-se da grade e atacaram o jovem
com uma infinidade de questionamentos. Ele havia examinado cada uma
delas com atenção. Nada! Agnes não estava entre elas. As freiras fizeram
tantas perguntas que era quase impossível responder a todas. Uma
perguntou onde ele nasceu, já que sua pronúncia denotava que era
estrangeiro. Outra, queria saber porque ele usava um curativo no olho
esquerdo; a irmã Helena perguntou se ele não tinha uma irmã como ele,
porque gostaria muito de uma companhia assim; e a irmã Raquel estava
convencida de que um irmão seria uma companhia melhor. Teodoro
divertia-se contando para as crédulas freiras as histórias mais estranhas que
sua imaginação podia inventar. Ele narrou suas supostas aventuras com
gigantes, selvagens, náufragos e ilhas desertas, deixando todas as religiosas
completamente espantadas.
Elas ouviam maravilhadas o jovem falar sobre antropófagos e homens
cujas cabeças cresciam embaixo dos seus ombros entre outras coisas.
Afirmou que nascera em Terra Incógnita, que fora educado em uma
universidade Hotentote e que havia passado dois anos entre os americanos
da Silésia[14].
— Quanto à perda do meu olho – disse ele — foi um castigo justo que
recebi pela falta de respeito com a Virgem, quando fiz minha segunda
peregrinação à Loreto. Eu estava perto do altar da capela miraculosa
enquanto os monges adornavam a imagem com as suas melhores
vestimentas. Os peregrinos foram instruídos a fechar os olhos durante a
cerimônia. Ainda que eu tenha uma natureza extremamente religiosa, a
curiosidade era muito grande e, em um determinado momento... senhoras,
ficarão horrorizadas quando eu revelar meu crime... no exato momento em
que os monges trocavam sua anágua, eu me atrevi a abrir o olho esquerdo e
dei uma espiada na imagem. Foi a última vez! O brilho que envolvia a
Virgem era muito intenso para um olhar humano. Fechei rapidamente meu
olho sacrílego, mas nunca mais fui capaz de abri-lo.
Diante deste milagre, as freiras fizeram o sinal da cruz e prometeram
interceder junto à Virgem para que ele recobrasse a visão. Elas expressaram
assombro pelos seus relatos de viagens e pelas estranhas aventuras que ele
havia experimentado sendo tão jovem. Então, repararam no seu violão e
perguntaram se era músico profissional. Ele respondeu modestamente que
não era ele quem deveria julgar seus talentos, mas solicitou permissão para
que julgassem elas mesmas. As freiras concordaram sem qualquer
dificuldade.
— Ao menos – disse a velha porteira — tome o cuidado de não cantar
nada profano.
— A senhora pode contar com minha discrição – respondeu Teodoro.
— Vou cantar sobre os perigos que uma moça corre ao apaixonar-se e sobre
a aventura de uma jovem dama que subitamente caiu de amores por um
cavaleiro desconhecido.
— Mas a história é verdadeira? – perguntou a porteira.
— Palavra por palavra. Aconteceu na Dinamarca e a heroína era tão
bela que todos a conheciam pelo nome de “formosa donzela”.
— Na Dinamarca, você disse? – murmurou uma velha freira. — As
pessoas na Dinamarca não são todas negras?
— Em hipótese alguma, reverenda madre. Elas são de uma delicada
coloração verde ervilha com cabelos e bigodes vermelhos como o fogo.
— Mãe de Deus! Verde ervilha? – exclamou irmã Helena. — Oh! É
impossível.
— Impossível? – repetiu a porteira com um olhar de desprezo e
prazer ao mesmo tempo. — Não é impossível. Quando eu era jovem,
lembro-me de ter visto várias pessoas assim.
Teodoro afinou o instrumento. Ele havia lido a história de um rei da
Inglaterra cuja prisão fora descoberta por um menestrel e esperava que a
mesma estratégia pudesse descobrir o lugar onde Agnes estava aprisionada,
se é que ainda estava no convento. Escolheu uma balada que a própria
Agnes lhe ensinara no Castelo de Lindenberg. Existia uma chance de ela
escutar a música e ele esperava ouvi-la cantando algumas estrofes. Com o
violão afinado, ele preparou-se para cantar.
— Mas antes de começar – ele disse — devo informá-las, senhoras,
de que a Dinamarca está terrivelmente infestada por feiticeiras, bruxas e
maus espíritos. Todos os elementos possuem o seu demônio apropriado. Os
bosques são assombrados por um poder maligno chamado “O Conde do
Carvalho-Rei”: é ele quem seca as árvores, estraga as colheitas e comanda
as crianças levadas e os duendes. Ele aparece na forma de um ancião de
figura majestosa, com uma coroa dourada e uma longa barba branca. Sua
diversão principal consiste em atrair crianças pequenas para longe dos seus
pais, e assim que consegue escondê-las em uma cova, ele as destroça em
mil pedaços. Os rios são governados por um outro demônio chamado “O
Rei das Águas”: sua missão é agitar o mar, provocar naufrágios e arrastar os
pobres marinheiros para baixo das ondas. Ele adota a figura de um guerreiro
e dedica-se a atrair jovens virgens para a sua armadilha. O que ele faz com
essas virgens dentro da água, senhoras, eu deixo para sua imaginação. “O
Rei do Fogo” parece ser um homem formado de chamas. Ele provoca
meteoros e as luzes errantes que enganam os viajantes levando-os até lagoas
e pântanos, para então modificar sua direção mais uma vez e conduzi-los a
lugares ainda piores. O último demônio dos elementais é “O Rei das
Nuvens”: sua figura é a de um jovem bonito que se distingue por suas
grandes asas negras. Ainda que seja encantador na aparência, ele não tem
menos disposição para a maldade do que os demais. Dedica-se
constantemente a provocar tormentas, arrancar as árvores pela raiz e
derrubar castelos e conventos sepultando seus habitantes. O primeiro tem
uma filha, a rainha dos elfos e das fadas. O segundo tem uma mãe que é
uma feiticeira poderosa. Nenhuma dessas damas vale mais do que os
cavalheiros. Não me recordo de nenhum parentesco com os outros dois
demônios mas, no momento, não me interesso por nenhum deles, exceto o
demônio das águas. Ele é o herói da minha balada; apenas julguei
necessário, antes de começar, informá-las sobre seus feitos...
Teodoro, então, tocou uma toada breve. Depois, esticou a voz o mais
que pôde para que esta chegasse aos ouvidos de Agnes. Ele cantou as
seguintes estrofes:

O REI DAS ÁGUAS – UMA BALADA DINAMARQUESA

“O rio corria com um murmúrio agradável,


Enquanto por sua margem, perfumada e florida,
Cantava alegremente a donzela adorável,
Seguindo o caminho para a Igreja de Maria.

O olhar maligno do demônio das águas,


Percebeu quando pela orla a jovem caminhava;
Ele correu ao encontro da bruxa, sua genitora
Suplicou e perguntou o que ela achava:

‘Oh, mãe! Mãe! Diga-me,


Como posso essa donzela surpreender?
Oh, mãe! Mãe! Por favor, me explique,
Como devo exercer o meu poder.’

A bruxa lhe deu uma armadura branca;


Ele vestiu-se como um cavaleiro galante;
Da água cristalina concebeu uma potranca,
Um corcel, feito de areia brilhante.

O Rei das Águas, então, rapidamente partiu,


Em direção à Igreja de Maria galopou;
Ele atou o corcel ao gradil,
E muitas vezes pelo átrio marchou.

Seu corcel, deixou atado ao gradil,


E muitas vezes pelo átrio marchou;
Então, pelos bancos da igreja seguiu,
E à vista de todos, grandes ou pequenos, caminhou.

Enquanto se aproximava, o padre perguntou:


‘O que faz aqui, nobre senhor de branco trajado?’
A adorável donzela sorriu e pensou:
‘Ah, um noivo assim é muito desejado.’

Ele avançou entre os bancos um e dois,


‘Ó, adorável donzela, eu morreria por quem sois!’
Ele pulou os bancos dois e três,
‘Ó, adorável donzela, venha comigo de uma vez!’

A donzela adorável achou graça,


E disse ao oferecer sua mão:
‘Para a minha felicidade ou para a minha desgraça
Pelas montanhas ou pelo vale eu irei, sem objeção.’

O sacerdote uniu os dois amantes,


E eles dançaram à luz do luar;
Pouco sabia a donzela radiante,
Que seu esposo era um duende, um demônio do mar.
Oh, se algum espírito tivesse cantado:
‘Seu noivo é o malvado Rei das Águas!’
A donzela teria temido e odiado,
Aquela mão amaldiçoada que agora apertava.

Mas de nada suspeitou a moça,


Não desconfiou da proximidade do perigo fatal;
Assim, de mãos dadas e sem precisar fazer força,
Seguiram para a areia, seu destino final.
‘Suba comigo no cavalo, minha amada,
Devemos cruzar as águas deste ribeirão;
Coragem, o rio não é fundo, não fique cismada,
Os ventos estão calmos, as ondas mansas permanecerão.’

Assim falou o Rei das Águas,


A donzela obedeceu o desejo do noivo traiçoeiro;
Logo viu o corcel que se banhava,
Nas águas da mãe do rapaz, o agoureiro.

‘Pare, pare, meu amor! Pois as águas da cor do céu


Já estão deixando meus pés enrugados.’
‘Oh, esqueça-se dos seus temores, meu mel,
Nós já atingimos o trecho mais alagado.’

‘Pare, pare, meu amor! Agora eu posso ver


A água já passa do meu joelho.’
‘Deixe os medos de lado, meu bem querer,
Já atingimos a parte mais funda de todo o trecho.’

‘Pare, pare, pelo amor de Deus, meu senhor,


A água já atingiu o primeiro botão.’
Mal pronunciara estas palavras, quando tanto o cavaleiro
quanto o cavalo, desapareceram da sua visão.

Ela gritou, gritou, inutilmente,


Os ventos selvagens abafaram seus gritos e sua voz;
O demônio triunfou, as ondas subiram abruptamente,
E cobriram outra vítima do demônio atroz.

Três vezes, ao lutar contra a correnteza,


Ouviu-se a donzela gritar;
Mas depois da tempestade, que tristeza,
A jovem não se pôde mais avistar.

Lembrem-se desta história, ó donzelas inocentes,


Conheçam bem aqueles que pretendem amar;
Não acreditem em qualquer cavaleiro elegante,
E nunca dancem com o duende do mar!”

O rapaz parou de cantar. As freiras ficaram fascinadas pela suavidade


da sua voz e pela maestria com a qual tocava o instrumento. Mas, por mais
lisonjeiros que parecessem esses elogios em qualquer outra ocasião,
naquele momento tudo parecia indiferente a Teodoro. Sua estratégia não
havia funcionado. Em vão introduzira algumas pausas entre uma estrofe e
outra, mas nenhuma voz acompanhou a sua, o que fez com que perdesse
toda a esperança de se igualar a Blondel[15].
O sino do convento avisou as freiras de que já era hora da reunião no
refeitório. Elas seriam obrigadas a deixar a grade. Agradeceram ao jovem
pelo entretenimento que sua música lhes proporcionara e pediram que
voltasse no dia seguinte. Ele prometeu voltar. As freiras, para garantir que o
rapaz cumprisse a promessa, disseram que ele poderia sempre contar com o
convento para suas refeições e, então, cada uma delas lhe ofereceu um
presente. Uma apresentou uma caixa de doces; outra, uma oração em latim.
Outras trouxeram relíquias de santos, imagens de cera e crucifixos
consagrados. Algumas ainda lhe presentearam com algumas peças
resultantes do trabalho das religiosas, como bordados, flores artificiais e
laços. Elas o aconselharam a vender todas essas coisas e comprar
vestimentas melhores. As freiras lhe asseguraram de que não teria
dificuldade para comercializar os objetos, pois os espanhóis sempre
estimaram muito o trabalho das religiosas. Demonstrando muito respeito e
gratidão, depois de receber todos os presentes, Teodoro confessou que não
saberia como carregá-los, pois não possuía nenhuma cesta. Várias freiras
apressaram-se para encontrar uma, mas detiveram-se diante da visão de
uma velha senhora, a qual não fora notada pelo rapaz até aquele momento.
Seu semblante suave e sua atitude respeitável fizeram com que ele
simpatizasse com ela imediatamente.
— Ah! – disse a porteira. — A Madre Santa Úrsula está vindo com
uma cesta.
A senhora aproximou-se da grade e ofereceu a Teodoro uma cesta
feita de folhas de salgueiro, forrada com cetim azul e pintada nos quatro
lados com cenas sobre a lenda de Santa Genoveva.
— Este é o meu presente – disse ela, enquanto colocava a cesta nas
mãos do rapaz. — Meu bom jovem, não a menospreze, pois, ainda que
pareça de valor insignificante, pode conter muitas virtudes ocultas.
Suas palavras foram acompanhadas por um olhar significativo.
Teodoro percebeu sua intenção. Ao receber o presente, ele aproximou-se o
máximo que pôde da grade.
— Agnes! – ela sussurrou bem baixinho; Teodoro, no entanto,
conseguiu ouvi-la. Ele concluiu que a cesta ocultava algum segredo e seu
coração passou a bater com impaciência e alegria. Nesse momento, a madre
superiora retornou. Ela tinha agora uma expressão sombria e fechada. Ela
parecia, se é que isso é possível, ainda mais severa do que nunca.
— Madre Santa Úrsula, eu gostaria de falar com a senhora a sós.
A madre mudou de cor e ficou claramente desconcertada.
— Comigo? – repetiu com voz trêmula.
A superiora ordenou-lhe que a acompanhasse e retirou-se. Madre
Santa Úrsula obedeceu. Pouco depois, o sino do refeitório soou uma
segunda vez e as freiras saíram do locutório, deixando Teodoro livre para
levar seus presentes. Encantado por ter conseguido, finalmente, alguma
notícia para o marquês, ele voou mais do que correu em direção ao Palácio
de las Cisternas. Em poucos minutos, encontrava-se no aposento do seu
mestre com a cesta nas mãos. Lorenzo estava no local, tentando conciliar o
amigo com uma desgraça que ele mesmo considerava muito severa.
Teodoro contou sobre sua aventura e sobre a esperança despertada com o
presente da madre Santa Úrsula. O marquês pulou da cama. A chama que
parecia haver se apagado desde a morte de Agnes agora voltava ao seu
peito, e seus olhos brilhavam pela ansiedade da expectativa. As emoções
demonstradas por Lorenzo foram um pouco mais tímidas enquanto
aguardava com inexpressiva impaciência pela solução do mistério. Ramón
apanhou a cesta das mãos do pajem, esvaziou o conteúdo em cima da cama
e examinou tudo com muita atenção. Esperava que uma carta pudesse ser
encontrada no fundo da cesta, mas não viu nada ali. Retomou a busca, sem
sucesso. Finalmente, Dom Ramón observou que um dos cantos do forro de
cetim azul estava descosturado. Apressadamente, rasgou o tecido e retirou
de lá um pedaço de papel, que não estava dobrado ou selado. Estava
endereçado ao Marquês de las Cisternas e o conteúdo era o seguinte:
“Tendo reconhecido seu pajem, atrevo-me a enviar-lhe estas linhas.
Obtenha uma ordem do Duque Cardeal para deter a minha pessoa e também
a madre superiora. Mas não deixe que a ordem seja executada antes da
meia-noite de sexta-feira. É quando celebraremos o Festival de Santa Clara.
Haverá uma procissão de freiras à luz de tochas; eu estarei entre elas. Não
conte nada a ninguém. Se uma só palavra despertar as suspeitas da madre
superiora, o senhor nunca mais ouvirá falar de mim. Se preza a memória de
Agnes e deseja punir seus assassinos, tenha muito cuidado. O que eu tenho
para dizer congelará o sangue nas suas veias de tanto horror. Santa Úrsula.”
Nem bem terminou de ler o bilhete, o marquês caiu sem sentidos
sobre o travesseiro. Havia perdido a única esperança que até agora
amparava sua existência; estas linhas o convenceram de maneira conclusiva
que Agnes já não estava mais entre eles. Lorenzo aceitou o fato com menos
resistência, já que sempre suspeitara de que a irmã tivesse morrido
injustamente. Quando soube pela carta da Madre Santa Úrsula que suas
suspeitas eram verdadeiras, seu único sentimento foi o de punir os
assassinos como eles mereciam. Não foi uma tarefa simples fazer o
marquês voltar a si. Logo que recuperou a fala, ele proclamou seu ódio
pelos assassinos da sua amada e jurou vingança. Seguiu atormentando a si
mesmo com tanta raiva, até que seu organismo, debilitado pela tristeza e
pela doença, não suportou a crise, fazendo com que perdesse os sentidos
mais uma vez. Essa situação melancólica afetava Lorenzo profundamente, e
ele teria de bom grado ficado ao lado do amigo por mais tempo – porém,
outras questões exigiam sua atenção. Seria necessário conseguir a ordem
para deter a abadessa de Santa Clara. Com esse objetivo, depois de deixar
Ramón aos cuidados do melhor médico de Madri, ele saiu do Palácio de las
Cisternas e dirigiu-se ao Palácio do Duque Cardeal.
Ficou muito decepcionado ao saber que assuntos de Estado tinham
obrigado o cardeal a viajar para uma província distante. Faltavam apenas
cinco dias para a sexta-feira, mas ele acreditava que se viajasse durante o
dia e também durante a noite, retornaria a tempo para a Procissão de Santa
Clara. E assim foi. Lorenzo encontrou o Duque Cardeal e lhe falou sobre a
suposta culpa da madre superiora e também sobre o efeito violento que a
notícia causara em Dom Ramón. Não poderia utilizar argumento mais forte
do que este último. Dentre todos os seus sobrinhos, o marquês era o único
realmente próximo ao cardeal. Ele sentia muito carinho pelo rapaz e a
abadessa não poderia ter cometido um crime pior aos olhos do cardeal do
que pôr em perigo a vida do marquês. Consequentemente, ele concedeu a
ordem de prisão sem nenhuma dificuldade. O cardeal também entregou a
Lorenzo uma carta destinada a um oficial da Inquisição, expressando seu
desejo de que a ordem fosse executada. Provido destes documentos,
Lorenzo dirigiu-se rapidamente a Madri, onde chegou na sexta-feira,
algumas horas antes do anoitecer. Encontrou o marquês um pouco melhor,
mas tão fraco e cansado que não conseguia falar senão com grande
dificuldade. Depois de passar uma hora ao lado do amigo, Lorenzo partiu
para comunicar seu propósito ao tio e também para entregar a carta do
cardeal a Dom Ramirez de Mello. O primeiro ficou petrificado de horror
quando soube do destino da sua pobre sobrinha. Ele encorajou Lorenzo a
punir seus assassinos e comprometeu-se a acompanhá-lo naquela noite ao
Convento de Santa Clara. Dom Ramirez prometeu o mais firme apoio e
selecionou um grupo de arqueiros de confiança para evitar oposição por
parte da população.
Contudo, enquanto Lorenzo estava ocupado tentando desmascarar
uma religiosa hipócrita, ignorava o sofrimento que outro lhe preparava.
Ajudado por Matilda e seus agentes do inferno, Ambrósio se decidira pela
ruína da inocente Antonia. O momento fatal havia chegado. Ela tinha ido ao
quarto da mãe para lhe dar boa noite. Ao beijá-la, no entanto, sentiu uma
desolação incomum infundir-se dentro do peito. Ela a deixou, mas
imediatamente retornou e atirou-se nos braços maternos, banhando-lhe o
rosto com suas lágrimas. Sentia-se alarmada. Um pressentimento secreto
lhe dizia que não voltariam a se encontrar. Elvira a observou e tentou
acalmá-la, rindo das suas apreensões infantis. Ela repreendeu a filha com
doçura por alentar sensações infundadas e a advertiu sobre os perigos de
encorajar tais ideias.
Todas essas advertências receberam apenas uma resposta:
— Mãe! Minha querida mãe! Quisera Deus que já tivesse
amanhecido!
Elvira, cuja preocupação com a filha representava um grande
obstáculo para seu completo restabelecimento, ainda encontrava-se sob os
efeitos da sua enfermidade recente. Nesta noite, sentia-se particularmente
indisposta e havia se retirado antes do horário usual. Antonia deixou o
dormitório da mãe com pesar e, até o momento de fechar a porta, manteve
os olhos fixos na genitora com uma expressão melancólica. Ela dirigiu-se
aos próprios aposentos sentindo o coração repleto de amargura: parecia que
todas as suas perspectivas de futuro tinham desaparecido e que não havia
mais nada no mundo que fizesse valer a pena viver. Deixou-se cair em uma
cadeira, reclinou a cabeça sobre um braço e passou a fitar o chão com uma
expressão vazia, enquanto imagens sombrias flutuavam na sua imaginação.
Ainda se encontrava neste estado de insensibilidade quando foi
interrompida por uma música embaixo da sua janela. Levantou-se da
cadeira e abriu o caixilho para ouvir melhor a melodia. Como havia coberto
o rosto com um véu, aventurou-se a olhar pela janela. A luz da lua permitiu
que ela visualizasse vários homens com ataúdes e violões nas mãos. A uma
certa distância encontrava-se outra figura envolta em uma capa; sua estatura
e aparência assemelhavam-se muito a Lorenzo. Ela não estava enganada:
tratava-se de Lorenzo em pessoa, o qual havia dado sua palavra de que não
se apresentaria diante de Antonia sem o consentimento do tio e, assim,
presenteava a moça com serenatas ocasionais para convencê-la de que ainda
sentia o mesmo afeto por ela. Mas seu plano não obteve o resultado
desejado. Antonia estava longe de supor que a música noturna tinha o
objetivo de agradá-la. Ela era muito modesta para considerar-se merecedora
de tantas atenções e, concluindo que as serenatas fossem dirigidas a alguma
dama da vizinhança, entristeceu-se ao descobrir que eram oferecidas por
Lorenzo.
A melodia era triste e suave. Combinava com o estado de espírito de
Antonia e a moça passou a ouvi-la com prazer. Após uma introdução
duradoura, a música era acompanhada pelas vozes dos homens e Antonia
conseguiu distinguir as seguintes palavras:

SERENATA

[Refrão]
“Oh! Que minha lira produza um doce acorde!
É aqui o local onde a beleza repousa:
Descreva as dores do desejo profundo,
Que dilacera o coração do amante fiel.
[Melodia]
Em todo o coração encontrará um escravo,
Em cada alma, um reino deverá ser estabelecido,
Nas uniões, os sábios e bravos deverão ser guiados,
E os prisioneiros deverão beijar suas correntes,
Esse é o poder do amor, e, oh!
Como desejo conhecer essa força.
Passar a vida a suspirar,
Por haver degustado um sonho curto e interrompido,
Por um querido objeto inalcançável,
Desprezando todo o resto, observando e chorando,
Estas são as dores do amor, e oh
Como desejo conhecer a dor do amor!
Enxergar o consentimento nos seus olhos puros,
Beijar os lábios nunca antes beijados,
Ouvir o suspiro do êxtase cada vez mais forte,
Estes são os prazeres do amor, mas, oh!
Quando meu coração conhecerá estes prazeres?

[Refrão]
Agora cale-se, minha lira. Cale-se também a minha voz!
Durma, doce donzela!
Que seus pensamentos estejam repletos de anseios amorosos,
Ainda que minha voz não seja mais ouvida e que minha lira esteja
calada.”
A música cessou: os artistas se retiraram e o silêncio voltou a dominar
a rua. Antonia abandonou a janela com pesar; como de costume, invocou a
proteção de Santa Rosália, rezou suas preces habituais e deitou-se. Logo
caiu no sono e a sua presença a libertou de terrores e inquietude.
Já eram quase duas horas quando o monge luxurioso dirigiu seus
passos até a residência de Antonia. Já foi dito que o mosteiro não ficava
muito longe da Estrada de Santiago. Ele chegou à porta da casa sem ser
visto. Então, parou e vacilou por um momento. Refletiu sobre a
monstruosidade do seu crime, sobre as consequências da descoberta e na
probabilidade de que, depois do ato, Elvira suspeitasse de que ele era o
violador de sua filha. Por outro lado, tudo não passaria de uma simples
suspeita: não haveria nenhuma prova contra ele e seria impossível alegar
que o estupro havia acontecido sem que Antonia soubesse quando, onde e,
por quem. Finalmente, julgava que sua reputação estava muito bem
estabelecida e que não seria afetada por acusações infundadas de duas
mulheres desconhecidas. Este último argumento era completamente falso:
ele não tinha conhecimento do quão incerto é o aplauso popular, e de que
basta um instante para que aquele que é hoje um ídolo torne-se a pessoa
mais detestada na face da terra. O resultado das suas deliberações foi que
ele deveria continuar com seu plano. O monge subiu os degraus que
conduziam à casa. Assim que tocou a porta com a murta de prata, ela abriu-
se completamente, deixando a passagem livre. Ele entrou e a porta se
fechou sozinha.
Guiado pelos raios da lua, subiu as escadas com passos lentos e
cuidadosos. A todo momento olhava ao redor com apreensão e ansiedade.
Via um espião em cada sombra e ouvia uma voz em cada murmúrio da brisa
noturna. A culpa que sentia pelo que estava prestes a fazer assustava seu
coração, que se tornara mais tímido do que o coração de uma mulher.
Mesmo assim, ele seguiu adiante. Finalmente, chegou à porta dos aposentos
de Antonia. Parou e tentou ouvir alguma coisa; estava tudo quieto lá dentro.
O silêncio indicava que sua desejada vítima já estava dormindo e ele, então,
tentou abrir o trinco, mas a porta estava trancada por dentro e resistiu. No
entanto, logo que foi tocado pelo amuleto, o trinco se abriu e a porta foi
aberta. Ele entrou no aposento onde dormia a jovem inocente, inconsciente
do perigo que representava aquele visitante que se aproximava do seu leito.
A porta foi novamente fechada e o trinco voltou ao seu lugar.
Ambrósio avançou com precaução. Tomou cuidado para que
nenhuma tábua do assoalho rangesse embaixo dos seus pés e segurou a
respiração até que estivesse bem perto da cama. Sua primeira preocupação
foi executar a cerimônia mágica exatamente como Matilda lhe explicara.
Ele soprou três vezes sobre a murta de prata, pronunciou o nome de
Antonia e colocou o amuleto sobre o travesseiro. Os efeitos que o objeto já
havia produzido não lhe permitiram duvidar do seu poder de prolongar o
sono da sua adorada. Assim que terminou o encantamento, ele já considerou
a jovem inteiramente sob seu poder e seus olhos brilharam de impaciência e
luxúria. Só então ousou admirar a beleza adormecida. Uma única vela que
queimava diante da imagem de Santa Rosália difundia uma luz débil dentro
do quarto, que lhe permitia contemplar os atrativos da adorável criatura que
tinha diante de si. O calor da estação obrigara a moça a desfazer-se de parte
das cobertas e a mão insolente de Ambrósio apressou-se a retirar aquelas
que ainda cobriam o corpo da jovem. Ela dormia com o rosto apoiado sobre
um braço branco como marfim. O outro braço descansava ao lado da cama
com graciosa indolência. Algumas tranças dos seus cabelos escapavam da
touca de musselina que abrigava as demais, e caíam descuidadamente sobre
o peito que arfava lenta e regularmente. O calor do ambiente deixara seu
rosto mais corado do que o usual. Um sorriso doce brincava em seus lábios
perfeitos e corados de onde se podia ouvir, de tempos em tempos, algum
suspiro ou frase incompleta. Um ar de encantadora inocência e candor
irradiava de toda a sua forma e havia uma espécie de pudor em sua nudez, o
que adicionava algumas agulhadas extras aos desejos do monge libidinoso.
Ele manteve-se por alguns momentos devorando com os olhos os
encantos que não tardariam a submeter-se às suas paixões desordenadas.
Aquela boca entreaberta parecia convidar para um beijo; ele inclinou-se
sobre Antonia, uniu seus lábios aos dela e absorveu, extasiado, a fragrância
do seu hálito. Esse prazer momentâneo aumentou sua ânsia por mais. Seus
desejos tornaram-se tão frenéticos como só os brutos conhecem. Decidiu
não demorar nem mais um instante para satisfazer suas vontades e logo
começou a arrancar as roupas que impediam a gratificação das suas
luxúrias.
— Deus misericordioso! – exclamou uma voz por trás do homem. —
Então eu não estou enganada? Isto não é uma ilusão?
Estas palavras, assim que chegaram aos ouvidos de Ambrósio, foram
acompanhadas de terror, confusão e desapontamento. Ele levantou-se e
virou instantaneamente. Elvira estava parada na porta do quarto e olhava
para o monge com uma expressão de surpresa e repulsa.
Ela havia tido um pesadelo assustador em que Antonia estava à beira
de um precipício. A menina tremia e, a cada instante, parecia mais perto da
queda, gritando: “Mãe, salve-me! Salve-me! Não demore um minuto
sequer, já será muito tarde!” Elvira despertou aterrorizada. A visão do seu
sonho deixara uma impressão tão ruim que ela não poderia voltar a dormir
antes de certificar-se de que a filha estava sã e salva. Levantou-se
apressada, vestiu um robe sobre a camisola, passou pelo cômodo onde
dormia a criada e entrou no quarto de Antonia bem a tempo de libertá-la das
garras do seu violador.
A vergonha dele e o assombro dela pareciam ter transformado ambos
em estátua, tanto Elvira quanto o monge. Os dois fitaram-se em silêncio.
Ela foi a primeira a falar:
— Não é um sonho! – exclamou. — É realmente Ambrósio quem está
diante de mim! É o homem a quem Madri estima como um santo quem eu
encontro a estas horas perto do leito da minha pobre criança. Monstro da
hipocrisia! Eu já suspeitava do seu desígnio, ainda que tenha evitado fazer
acusações por compaixão à fragilidade humana. Mas o silêncio agora seria
um crime. Toda a cidade tomará conhecimento da sua devassidão! Vou
desmascará-lo e convencerei a Igreja da espécie de víbora que ela acalenta
em seu seio.
Pálido e confuso, o culpado tremia diante da mulher. Desejava com
toda a sua alma poder atenuar o delito, mas não conseguia encontrar uma
desculpa para o seu comportamento. Tudo o que conseguia pronunciar eram
algumas frases sem sentido e desculpas contraditórias. Elvira estava
demasiadamente enfurecida, com toda a justiça, para conceder-lhe o perdão
que ele tanto implorava. Ela protestou que chamaria a vizinhança e faria
dele um exemplo para todos os futuros hipócritas. Então, correu até a cama
e tentou acordar Antonia. Percebendo que sua voz não produzia efeito para
despertá-la, abraçou a menina e levantou sua cabeça do travesseiro. O
encantamento era muito poderoso. Antonia continuava insensível e caiu
novamente no travesseiro quando a mãe a soltou.
— Este sono não pode ser natural! – exclamou Elvira, cujo assombro
e indignação aumentavam a cada momento. — Há algum mistério aqui.
Mas prepare-se, hipócrita! Toda a sua vilania será revelada sem demora!
Socorro! Socorro! – ela gritou. — Aqui, Flora! Flora!
— Escute-me por um momento, senhora! – exclamou o monge,
recobrando-se diante da iminência do perigo. — Por tudo o que é mais
sagrado, eu juro que a honra da sua filha ainda não foi violada! Perdoe a
minha transgressão! Poupe-me da vergonha da descoberta e permita que eu
retorne para o mosteiro sem problemas. Tenha compaixão de mim.
Prometo-lhe que Antonia não só estará a salvo de mim no futuro como todo
o resto da minha vida irá lhe provar que...
Elvira o interrompeu bruscamente:
— Antonia estará a salvo do senhor? Eu é que irei mantê-la a salvo!
O senhor não mais terá a confiança das famílias! Sua perversidade será
desvelada publicamente. Toda Madri estremecerá diante da sua falsidade,
sua hipocrisia e devassidão! Ei! Aqui! Flora, Flora, venha aqui!
Enquanto ela dizia estas coisas, o monge lembrou-se de Agnes. Ela
também suplicara por misericórdia e ele, igualmente, recusara suas súplicas.
Agora era a sua vez de sofrer e tinha consciência de que o castigo era mais
do que justo. Elvira continuava a chamar por Flora, mas sua voz estava tão
sufocada pela emoção do momento que a criada, profundamente
adormecida, manteve-se insensível aos seus chamados. Elvira não se atrevia
a ir até o quartinho onde Flora dormia, pois o monge poderia aproveitar a
ocasião para fugir. E esta era realmente a sua intenção: ele acreditava que
conseguiria chegar ao mosteiro sem ser visto por mais ninguém além de
Elvira, cujo único testemunho não seria suficiente para arruinar sua
reputação tão bem estabelecida em Madri. Assim, recolheu todas as roupas
que havia despido e correu para a porta. Quando Elvira percebeu sua
intenção, correu atrás dele, e antes que conseguisse abrir o trinco, agarrou-o
pelo braço tentando detê-lo.
— Nem pense em fugir! – ela disse. — Não sairá daqui sem uma
testemunha do seu delito!
Ambrósio tentou desvencilhar-se da mulher, mas não conseguiu.
Elvira não só continuou segurando o seu braço como passou a gritar ainda
mais por socorro. O perigo crescia a cada instante. A qualquer momento
alguém viria atender aos seus chamados. Completamente enlouquecido pela
proximidade da ruína, ele buscou uma solução igualmente desesperadora.
Virando-se subitamente, apertou a garganta de Elvira com uma mão,
tentando fazê-la parar de gritar; e, com a outra mão, derrubou-a ao chão e a
arrastou até a cama. Confusa pelo ataque inesperado, ela não teve forças
para livrar-se do golpe; enquanto o monge pegava o travesseiro que estava
debaixo da cabeça de Antonia e o comprimia contra seu rosto, pressionava
o joelho em seu estômago com toda a força, pondo um fim à sua existência.
O êxito era certo. Com suas forças naturais aumentadas pelo excesso de
angústia, Elvira lutou o quanto pôde, mas foi tudo em vão. O frade
continuou a pressionar o joelho contra seu peito enquanto testemunhava,
sem a menor compaixão, o estremecimento dos seus membros e suportava
de forma desumana o espetáculo da agonia quando seu corpo e sua alma
atingiram o ponto da separação. Finalmente, tudo estava acabado. Ela não
mais lutava pela vida. O monge retirou o travesseiro e olhou para a mulher.
Seu rosto havia adquirido uma negridão espantosa. Seus membros estavam
paralisados. Seu sangue esfriava nas veias. Seu coração não mais batia e
suas mãos estavam rígidas e geladas.
Ambrósio contemplou aquela figura antes tão nobre e majestosa,
agora convertida em um cadáver, frio, insensível e repugnante.
Mal havia concluído o ato terrível e já se dava conta da enormidade
do seu crime. Um suor frio banhou todo o seu corpo. Ele fechou os olhos,
afundou-se em uma cadeira e permaneceu tão inerte quanto a infeliz que
jazia aos seus pés. Não sentia mais desejo por Antonia; a luta e o perigo de
ser descoberto transformaram a menina em um objeto pouco atraente. Um
frio mortal ocupava agora o ardor que antes inflamava seu coração. Só
podia pensar na morte e na culpa, na vergonha que sentia naquele momento
e no castigo que viria no futuro. Aterrorizado pelo remorso e pelo medo,
decidiu fugir. Ainda possuía algum controle sobre seus temores e pôde
tomar as precauções necessárias à sua segurança: recolocou o travesseiro na
cama, recolheu suas roupas e, com o amuleto fatal nas mãos, dirigiu-se à
porta com passos inseguros. Transtornado pelo medo, imaginava se uma
legião de fantasmas tentaria impedi-lo. Não importava para onde tentava ir,
o cadáver desfigurado parecia sempre querer barrar sua passagem e ele
demorou muito para conseguir deixar o quarto. A murta encantada repetiu
seu feito e a porta, mais uma vez, foi aberta. Ambrósio correu escada
abaixo. Chegou ao mosteiro sem ser visto e trancou-se na cela. Lá,
abandonou sua alma às torturas do remorso e aos terrores da descoberta.
CAPÍTULO II

Conte-nos, você que já morreu,


Nenhum de vós, por piedade, revelará seu segredo àqueles que
deixaram para trás?
Oh! Se algum fantasma cordial confessasse o que realmente é e o que
seremos em breve!
Ouvi dizer que algumas das almas que já partiram às vezes previnem
os homens sobre as suas mortes:
Seria muito gentil bater e dar o alarme.
(Robert Blair)

Ambrósio ficava arrepiado consigo mesmo ao refletir sobre os seus


rápidos progressos na maldade. O monstruoso crime que acabara de
cometer deixava-o horrorizado. A imagem de Elvira assassinada estava
constantemente diante dos seus olhos e a culpa era a punição para as
agonias da sua consciência. O tempo, no entanto, tratou de suavizar seus
sentimentos. Um dia transcorreu, e depois outro, sem que suspeitassem
dele. A impunidade amenizou sua culpa; começou a recobrar o ânimo, e o
medo de ser descoberto desapareceu. Passou a desprezar o remorso. Matilda
esforçou-se para acalmar suas inquietudes. Ao tomar conhecimento da
morte de Elvira, ela pareceu realmente comovida e lamentou, juntamente
com o monge, a desgraça de sua aventura. Mas quando percebeu que sua
agitação interior estava mais controlada e que ele se dispunha a ouvir seus
argumentos, começou a falar sobre o delito em termos mais brandos e
tentou convencê-lo de que não era tão culpado quanto considerava. Ela lhe
explicou que tudo o que ele fez foi valer-se dos direitos que a natureza
oferece a cada um de nós, o direito de preservar a nossa própria existência.
Disse que tanto um como o outro poderia ter morrido, e que a
inflexibilidade da mulher e sua decisão de arruiná-lo tinham determinado
que ela fosse a vítima. A seguir, afirmou que, pelo fato de Elvira já
suspeitar das suas intenções anteriormente, era uma sorte que seus lábios
estivessem agora calados pela morte – pois, se não fosse pelo último
acontecimento, ela teria levado suas suspeitas ao público e produzido
consequências muito desagradáveis. Assim, ele agora estava livre de uma
inimiga que conhecia tão bem os vícios do seu caráter e que se tornara
muito perigosa, além de ser também o maior obstáculo para realização dos
seus planos com Antonia. Matilda incentivou o monge a não abandonar seu
objetivo. Ela lhe assegurou que, uma vez sem a proteção dos olhos atentos
da mãe, a filha seria uma conquista fácil. Elogiando e enumerando os
encantos de Antonia, Matilda tentou reavivar os desejos do monge. E isso
ela conseguiu com sucesso.
Era como se os crimes motivados por suas paixões tivessem
intensificado sua violência. Ele desejava Antonia mais do que nunca. Da
mesma maneira como fora capaz de ocultar sua culpa pelos acontecimentos
recentes, esperava poder ocultá-la também no futuro. Deixou de dar
ouvidos aos murmúrios da consciência e decidiu satisfazer seus desejos a
qualquer preço. O monge esperava apenas por uma oportunidade para, mais
uma vez, colocar seu plano em ação. Porém, buscar uma oportunidade
semelhante seria impraticável. Nos primeiros arroubos de desespero ele
havia partido a murta encantada em milhares de pedaços. Matilda foi muito
clara ao dizer que ele não deveria esperar por ajuda das forças do inferno, a
menos que estivesse disposto a aceitar as condições estipuladas. Ambrósio
não queria ir tão longe. Estava convencido de que, mesmo que tivesse
cometido maldades muito grandes, ainda preservava seu direito à salvação;
não precisava desesperar-se para obter o perdão. Assim, negou-se
categoricamente a entrar em alguma forma de acordo ou pacto com os
espíritos malignos, e Matilda, diante da obstinação do monge, não insistiu
mais no assunto. Ela encarregou-se de descobrir uma maneira de colocar
Antonia nas mãos dele, e não demorou muito até que os meios propícios se
apresentassem.
Enquanto sua ruína estava sendo tramada, a infeliz garota sofria
dolorosamente a perda da mãe. Todas as manhãs, ao despertar, sua primeira
preocupação era correr ao dormitório de Elvira. Na manhã seguinte à visita
fatal de Ambrósio, Antonia acordou mais tarde do que o costume; deu-se
conta disto quando ouviu o badalar dos sinos do mosteiro. Ela levantou-se
da cama, vestiu-se apressadamente e já ia correr para saber como a mãe
havia passado a noite quando seu pé tropeçou em algo que obstruía a
passagem. Ela olhou para baixo, e qual não foi o seu horror ao reconhecer o
cadáver azulado de Elvira. Antonia gritou muito alto e atirou-se no chão.
Apertou contra o peito o corpo sem vida da mãe, sentiu que estava frio e,
com um impulso de repugnância que não conseguiu reprimir, deixou o
cadáver cair novamente. Seu grito assustou Flora, que correu para ajudá-la.
A cena que contemplou deixou-a horrorizada, e seus berros foram mais
audíveis do que os de Antonia. Até as paredes da casa vibravam com seus
lamentos, enquanto sua ama, quase sufocada pela aflição, apenas conseguia
demonstrar a angústia através de soluços e gemidos. Os berros de Flora
logo chegaram aos ouvidos da senhoria, que tomou conhecimento da causa
do alvoroço com pavor e surpresa. Um médico foi chamado, mas nem bem
colocou os olhos no cadáver, declarou que a recuperação de Elvira estava
além das suas habilidades. Passou, então, a prestar assistência à Antonia,
que era quem realmente precisava de ajuda. Ela foi levada para a cama
enquanto a senhoria se ocupava dando ordens para o enterro de Elvira.
Dona Jacinta era uma mulher simples, afável, caridosa, generosa e devota,
ainda que não possuísse muita inteligência e fosse uma escrava miserável
do temor e da superstição. Ela estremecia perante a ideia de passar a noite
na mesma casa com um cadáver; acreditava que o espírito de Elvira
apareceria para ela e que tal visita iria matá-la de susto. Assim, decidiu
pernoitar na casa de uma vizinha e insistiu que o funeral acontecesse no dia
seguinte. Visto que o Cemitério de Santa Clara era o mais próximo, ficou
determinado que Elvira deveria ser enterrada lá mesmo. Dona Jacinta
ofereceu-se para arcar com todas as despesas do funeral. Ela desconhecia as
circunstâncias nas quais Antonia fora deixada, mas, com base na maneira
econômica como a família vivia, concluiu que não estava errada.
Consequentemente, tinha poucas esperanças de reaver o dinheiro, mas esta
consideração não a impediu de planejar o enterro com decência e de
mostrar à infeliz Antonia todo o respeito possível.
Ninguém morre de tristeza; Antonia era um exemplo disso. Auxiliada
por um organismo jovem e saudável, a menina conseguiu livrar-se da
prostração em que se encontrava desde a morte da mãe; porém, não foi tão
fácil eliminar o abatimento de sua alma. Seus olhos estavam
constantemente rasos de lágrimas; era afetada por qualquer coisa e,
evidentemente, alimentava no peito uma melancolia profunda e enraizada.
A mais leve menção à Elvira, a circunstância mais trivial à memória da sua
adorada mãe, era suficiente para lhe causar uma grande agitação. Muito
mais teria sofrido, no entanto, se tivesse conhecimento das agonias que
causaram o fim da sua existência! Porém, disto ninguém suspeitava. Elvira
sofria fortes convulsões. Todos imaginaram que, ao sentir que teria outra
convulsão, ela havia tentado chegar aos aposentos da filha para pedir ajuda
e sofrera um ataque súbito e muito violento, impossível de ser resistido por
alguém naquele estado de saúde, e falecera antes de ter tempo de ingerir o
remédio que geralmente lhe trazia alívio – remédio este que se encontrava
em uma prateleira no quarto de Antonia. Esta explicação foi aceita pelas
poucas pessoas que se interessavam pela mulher. Sua morte foi considerada
um acontecimento natural e foi logo esquecida por todos, com exceção
daquela que tinha muitos motivos para lamentar sua perda.
Na verdade, a situação de Antonia era muito embaraçosa e
desagradável. Encontrava-se sozinha no meio de uma cidade prolixa e
dispendiosa. Ela não tinha muito dinheiro e nem amigos. Sua tia Leonella
ainda estava em Córdoba e Antonia não conhecia seu endereço. Nunca mais
recebera notícias do Marquês de las Cisternas e, quanto a Lorenzo, há muito
havia abandonado a esperança de ter despertado algum interesse nele. Não
sabia a quem pedir ajuda. Pensou em consultar-se com Ambrósio, mas
lembrou-se das recomendações da mãe para manter-se afastada dele;
lembrou-se, também, da última conversa que tiveram sobre o assunto
quando a mãe lhe deu a entender quais eram as intenções do monge e que
devia manter-se em guarda contra ele no futuro. Mesmo assim, todas as
advertências da mãe não foram suficientes para mudar sua boa opinião
sobre o frade. Ela continuava acreditando que a amizade e a companhia dele
eram indispensáveis para a sua felicidade. Considerava as fraquezas dele
com olhos imparciais e não podia acreditar que ele realmente desejasse
arruinar a sua vida. No entanto, Elvira lhe ordenara energicamente que
evitasse aquela familiaridade, e ela respeitava demais a mãe para
desobedecê-la agora.
Por fim, decidiu procurar o Marquês de las Cisternas para pedir
conselho e amparo, pois era seu parente mais próximo. Ela lhe escreveu,
relatando brevemente a situação desesperada em que se encontrava;
suplicou que tivesse compaixão pela filha do seu irmão, que continuasse
pagando a pensão de Elvira, agora para ela, e que lhe autorizasse a se retirar
para o velho castelo em Múrcia, seu único refúgio até o presente momento.
Depois de lacrar a carta, pediu a Flora que providenciasse a entrega
imediata. Mas Antonia havia nascido sob uma estrela de azar. Se ela tivesse
enviado a carta ao marquês apenas um dia antes, se tivesse sido recebida
como sua sobrinha e acolhida na família, teria escapado de todas as
desgraças que a ameaçavam. Ramón assim planejara desde o princípio,
mas, primeiro, gostaria de fazer a proposta a Elvira pelos lábios de Agnes,
e, depois, seu desencanto pela perda da noiva prometida e também a grave
doença que, por algum tempo, deixou-o confinado a uma cama, obrigaram
o rapaz a adiar, dia após dia, a oferta de asilo à viúva do irmão. Ele
encarregara Lorenzo de supri-las com dinheiro em abundância, mas Elvira,
não desejando contrair obrigações com este nobre, lhe assegurou que não
tinha necessidade imediata de ajuda pecuniária. Consequentemente, o
marquês não imaginou que uma pequena demora da sua parte pudesse
originar dificuldades, e o pesar e amargura do seu espírito podiam muito
bem desculpar sua negligência.
Se tivesse sido informado que a morte de Elvira havia deixado sua
sobrinha desamparada e sem amigos, ele teria certamente tomado algumas
medidas para protegê-la. Porém, Antonia não estava destinada a tamanha
sorte: sua carta chegou ao destino no dia seguinte à partida de Lorenzo de
Madri. O marquês estava verdadeiramente desesperado, finalmente
convencido de que Agnes tinha morrido. Em estado delirante e com a vida
correndo perigo, foi afastado de todos. Flora foi informada de que ele era
incapaz de receber cartas e que provavelmente seu destino seria decidido
em questão de horas. Com uma resposta tão pouco satisfatória, foi obrigada
a regressar à sua ama, a qual se encontrava agora em dificuldades maiores
do que nunca.
Flora e Dona Jacinta esforçaram-se para consolá-la. Dona Jacinta
tentou tranquilizá-la dizendo que não havia com o que se preocupar, que
poderia viver em sua casa pelo tempo que desejasse e que seria sempre
tratada como uma filha. Antonia, vendo que a boa mulher sentia um
verdadeiro afeto por ela, sentiu-se mais calma pensando que tinha ao menos
uma amiga neste mundo. Uma carta chegou, endereçada à Elvira. Ela
reconheceu a caligrafia de Leonella e, abrindo a carta com alegria,
encontrou uma detalhada narrativa das aventuras da tia em Córdoba. Ela
contava que tinha recebido a herança, que havia se apaixonado e que, em
troca, conhecera o mais amável dos boticários do passado ou do futuro. Ela
disse que estaria em Madri na terça-feira à noite e desejava ter o prazer de
lhes apresentar seu caro esposo. Embora suas núpcias estivessem longe de
agradar Antonia, o pronto regresso de Leonella produziu uma grande
alegria na sobrinha. Ela alegrou-se por estar mais uma vez sob a proteção
de um parente. Não podia deixar de pensar no quão impróprio seria para
uma jovem viver entre desconhecidos, sem ninguém para regular sua
conduta ou protegê-la das ofensas às quais se encontrava exposta, dada a
sua condição desamparada. Dessa forma, esperou impacientemente a
chegada da noite de terça.
A noite tão esperada chegou e Antonia escutava com ansiedade as
carruagens que passavam pela rua. Nenhuma delas parou e a hora já estava
adiantada sem que Leonella aparecesse. Mesmo assim, Antonia decidiu
esperar acordada até a chegada da tia, apesar de todos os protestos de Dona
Jacinta e Flora. Os minutos passavam lenta e tediosamente. A partida de
Lorenzo de Madri havia colocado um fim às serenatas; ela esperava em vão
ouvir os violões embaixo da janela. Ela pegou o seu próprio instrumento e
tocou alguns acordes, mas a música, naquele momento, havia perdido todo
o encanto e logo a menina recolocou o violão no estojo. Ela sentou-se com
seu bordado, mas nada parecia bom o bastante. Faltava seda, a linha
quebrava a todo instante e as agulhas cometiam tantos erros como se
tivessem vida própria. Finalmente, uma gota de cera caiu do círio que
estava acima da sua guirlanda de violetas favorita. Ela ficou completamente
desanimada; deixou a agulha de lado e abandonou o bordado. Parecia certo
que nada era capaz de distraí-la naquela noite. Sentia-se uma presa do tédio
e decidiu apenas fazer votos para que a tia chegasse logo.
Estava caminhando para cima e para baixo pelo recinto quando seus
olhos fixaram-se por um momento na porta que dava acesso aos aposentos
que haviam sido de sua mãe. Lembrou-se de que lá estava a biblioteca de
Elvira e pensou que talvez encontrasse algum livro que a distraísse até a
chegada de Leonella. Ela pegou a vela que estava em cima da mesa, passou
pelo pequeno dormitório e entrou no aposento adjacente. Ao correr os olhos
pelo local, os objetos que lá estavam evocaram milhares de lembranças
dolorosas. Era a primeira vez que entrava naquele quarto desde a morte da
mãe. O silêncio absoluto, a cama sem lençóis, a lareira sem vida, uma
lamparina apagada e algumas plantas meio secas na janela, esquecidas
desde que Elvira se fora, deixaram Antonia apavorada. A escuridão da hora
intensificava aquela sensação. Ela colocou a vela sobre a mesa e sentou-se
em uma grande cadeira, na qual tinha visto a mãe sentada várias e várias
vezes. Elvira nunca mais seria vista sentada ali! Sem querer, lágrimas
inundaram os olhos de Antonia e ela deixou-se dominar por uma tristeza
que se tornava mais profunda a cada instante.
Envergonhada de sua fraqueza, levantou-se e começou a procurar o
que havia lhe atraído para aquele cenário melancólico. A pequena coleção
de livros estava ordenada em várias prateleiras. Antonia examinou todos,
mas não encontrou nada interessante, a não ser um volume de velhos
poemas espanhóis. Leu umas poucas estrofes que despertaram sua
curiosidade. Ela pegou o livro e sentou-se para folheá-lo com mais
facilidade; reforçou a lamparina, cuja chama já estava no fim, e leu a
seguinte balada:

ALONSO, O BRAVO, E IMOGINE, A SINCERA

Um soldado valente e uma donzela radiante


Conversavam sentados na relva;
Eles se olhavam de forma tão insinuante
Alonso, o Bravo, era o nome do amante,
A donzela era Imogine, a Sincera.

“Ah!”, disse o jovem, “amanhã deverei partir


Para lutar em terras muito, muito distantes,
Suas lágrimas pela minha ausência logo deixarão de existir,
Pois outro a cortejará, e não poderá resistir,
Oferecerá sua mão ao mais rico reclamante.”

“Oh! Deixe de receios”, disse Imogine, a Sincera


“Assim ofende a mim e também ao amor!
Pois estando vivo ou morto, enquanto durar minha espera,
Juro pela Virgem, uma promessa muito séria:
Ninguém será marido de Imogine, não atenderei a nenhum clamor.”

“Se alguma vez, movida por prazer ou riqueza


Esquecer-me de Alonso, o Bravo,
Queira Deus que, para castigar minha fraqueza,
O seu espírito, durante as núpcias, sente-se ao meu lado,
E que me acuse de perjúrio, me reclame como esposa, com pouca
gentileza,
E que me leve para sua tumba e meu destino seja assim selado.”

O herói marchou até a Palestina,


E amargamente chorou a donzela;
Mas após alguns meses, quando retornou à rotina,
Um barão coberto em ouro e joias, de forma repentina,
Chegou à porta de Imogine, a Sincera.

Seu tesouro, seus presentes, suas terras a perder de vista,


Logo fizeram com que ela esquecesse da promessa;
Ele deslumbrou seus olhos, seus pensamentos e, otimista
Acreditou no seu falso afeto e na fácil conquista,
E quis torná-la sua esposa com toda a pressa.

Quando a Igreja aprovou a união,


É que a festa realmente começou;
As mesas gemiam com o peso da refeição,
Ainda não haviam cessado as risadas, a diversão,
Quando o sino do castelo, uma hora anunciou.

Então Imogine, com assombro, um estranho ao seu lado notou,


Seus gestos eram horríveis, não emitia nenhum ruído,
Não dizia uma palavra, não se movia, parecia do mundo excluído,
Não olhava para os lados, nem parecia constrangido,
Somente para a noiva seu olhar se voltou.
Sua viseira estava abaixada e parecia um gigante,
Sua armadura era negra ao olhar,
Todo o prazer e diversão se calaram com sua atitude arrogante,
Os cães, com medo, afastaram-se da criatura errante,
E as luzes tornaram-se azuis por todo o lugar.

Sua presença pareceu a todos paralisar,


Os convidados ficaram mudos de terror,
Finalmente, a noiva pôs-se a falar:
“Senhor cavaleiro, não prefere o seu capacete retirar,
E dignar-se a compartilhar do nosso amor?”

A dama aguardou em silêncio: o estranho obedeceu


Ele lentamente ergueu sua viseira,
Oh, Deus! Que visão terrível ofereceu;
Aterrorizada, a moça empalideceu,
Quando o esqueleto expôs sua caveira.

Todos os presentes gritaram apavorados,


Todos deixaram o local;
Os vermes assustavam os desavisados,
Entrando e saindo daqueles olhos vazados,
Enquanto Imogine era o alvo da figura espectral.

“Olhe para mim, sua falsa! Olhe para mim!”, exclamou


“De Alonso, o Bravo, deve se lembrar,
“Que Deus castigue aquela que me desprezou,
Meu espírito veio às suas bodas, da forma como decretou,
Acusou-te de perjúrio, como esposa te reclamou,
E para a sepultura veio para te levar.”

Assim dizendo, a dama nos seus braços carregou,


Enquanto ela gritava, muito assustada;
Então, com sua presa em solo aberto afundou,
E de Imogine nunca mais se falou,
Nem sobre o espírito que a levou sequestrada.

Não viveu muito o barão, que desde que perdeu sua amada
Não quis mais habitar seu castelo admirável,
Pois dizem as línguas, que por ordem elevada,
Imogine teve sua punição solicitada,
E até hoje lamenta seu destino deplorável.

E que seu espírito, à meia-noite, quatro vezes ao ano,


Enquanto dorme o simples mortal,
Aparece no castelo vestida de branco,
Com o cavaleiro-esqueleto, que para seu desencanto
Continua a persegui-la, de forma brutal.

Enquanto bebem de crânios, retirados dos caixões


E outros espíritos vêm para com eles dançar,
O sangue é sua bebida favorita, e estes horríveis refrões
Todos se põem a entoar:
“À saúde de Alonso, o Bravo, e de sua esposa, Imogine, a falsa.”
A leitura não foi suficiente para afastar a tristeza de Antonia. Desde
menina possuía uma inclinação natural para o extraordinário, pois sua ama,
que acreditava sinceramente em aparições, lhe contara tantas aventuras
horríveis dessa natureza que Elvira não fora capaz de apagar as impressões
deixadas na mente da filha. Antonia ainda tinha um pouco de preconceito
quanto a superstições: frequentemente era aterrorizada por alguma coisa,
mas logo que descobria que sua causa era natural e insignificante, corava de
vergonha pela própria fraqueza. Dessa forma, a aventura que acabara de ler
bastou para deixá-la assustada. A hora e o local também contribuíam para
sua inquietação. Já era bem tarde e ela estava sozinha no aposento que
pertencera à falecida mãe. A noite estava fria e tempestuosa; o vento uivava
pela casa, as portas estremeciam nos batentes e a chuva abundante castigava
as janelas. Não era possível ouvir mais nada. A chama da lamparina, agora
perto do fim, às vezes, produzia uma labareda tão forte que iluminava toda
a sala para depois enfraquecer até quase desaparecer. O coração de Antonia
batia forte. Seus olhos vagavam com receio pelos objetos ao redor, quando
iluminados pela chama intermitente. Tentou levantar-se, mas suas pernas
tremiam tanto que ela não conseguia sair da cadeira. Pediu ajuda à Flora,
que estava no outro cômodo, não muito distante, mas o nervosismo
enfraqueceu-lhe a voz e seu grito soou como um murmúrio profundo.
A situação persistiu por alguns minutos, até que seus temores
diminuíram. Ela lutou para recuperar as forças e deixar o aposento. De
repente, porém, pensou ter ouvido um leve suspiro próximo ao seu ouvido.
A simples ideia trouxe a fraqueza de volta. Ela já havia se levantado e
estava a ponto de apanhar a lamparina que estava sobre a mesa quando o
barulho imaginário a deteve. Ela retirou a mão do objeto e buscou apoio no
espaldar da cadeira. Com ansiedade, tentou ouvir mais alguma coisa, mas
não havia nada.
— Deus meu! – disse para si mesma. — O que era aquele som? Estou
enganada ou realmente ouvi aquilo?
Suas reflexões foram interrompidas por outro ruído na porta, quase
inaudível. Parecia que alguém sussurrava. Antonia ficou ainda mais
assustada. Sabia que havia trancado a porta e, de alguma forma, aquela
ideia deixou-a um pouco mais tranquila. Mesmo assim, o ferrolho foi
levantado suavemente e a porta moveu-se para frente e para trás. Antonia
ficou tão aterrorizada que rapidamente recuperou as forças que lhe faltaram
minutos antes; levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta do cômodo
contíguo, onde esperava encontrar Flora e Dona Jacinta. Ela mal tinha
cruzado a metade do aposento quando o ferrolho ergueu-se mais uma vez.
Um movimento involuntário fez com que olhasse para trás. De forma lenta
e gradual, a porta girou sobre as dobradiças, e Antonia vislumbrou uma
figura alta e esguia parada sob o limiar, envolta por uma mortalha branca da
cabeça aos pés.
A visão paralisou suas pernas e Antonia estacou, petrificada, no
centro do quarto. O estranho, com passos calculados e solenes, aproximou-
se da mesa. A lamparina produzia uma triste chama azul enquanto ele
avançava. Acima da mesa havia um pequeno relógio que marcava três
horas. A figura parou em frente ao relógio, ergueu sua mão direita e
apontou para o ponteiro enquanto olhava gravemente para Antonia, que
aguardava imóvel e em silêncio a conclusão do acontecimento.
A figura permaneceu no mesmo lugar por alguns instantes. O relógio
bateu a hora certa. Quando o som terminou, o estranho deu alguns passos na
direção de Antonia.
— Dentro de três dias – disse com uma voz débil, vazia e fúnebre. —
Dentro de três dias nos encontraremos novamente.
Antonia estremeceu ao ouvir aquelas palavras.
— Nos encontraremos novamente? – perguntou com alguma
dificuldade. — Onde nos encontraremos? Quem eu encontrarei?
A figura apontou para o chão com uma mão e, com a outra, levantou
o lençol que lhe cobria o rosto.
— Deus Todo Poderoso! Minha mãe! – gritou Antonia. A jovem,
então, caiu no chão sem sentidos.
Dona Jacinta, que trabalhava em um cômodo vizinho, ouviu o grito de
Antonia. Flora tinha acabado de descer para buscar óleo novo para a
lamparina junto da qual as duas mulheres estavam sentadas. Jacinta correu
para socorrer Antonia e ficou surpresa ao encontrá-la desmaiada no chão.
Pegou a menina nos braços e carregou-a até seus próprios aposentos,
colocando-a na cama. Ela molhou sua testa e esfregou suas mãos, tentando
de toda forma fazê-la voltar a si. Depois de alguns instantes, Antonia abriu
os olhos e, desesperadamente, começou a examinar o ambiente.
— Onde ela está? – indagou com a voz trêmula. — Ela se foi? Eu
estou salva? Diga-me! Ajude-me! Oh, diga-me, pelo amor de Deus!
— A salvo de quem, minha menina? – replicou Jacinta, assombrada.
— Por que está tão agitada? De quem você tem medo?
— Dentro de três dias! Ela disse que nos encontraremos dentro de três
dias! Eu ouvi quando falou isso. Eu a vi, Jacinta, agora mesmo!
— Você a viu? Quem você viu?
— O fantasma de minha mãe!
— Jesus Cristo! – exclamou Jacinta, muito aflita. Levantando-se
imediatamente da cama, deixou Antonia cair sobre o travesseiro, enquanto
saía consternada do quarto.
Encontrou Flora enquanto descia apressadamente as escadas.
— Vá ver sua senhora, Flora! Coisas muitos estranhas estão
acontecendo aqui. Oh, sou a mulher mais desgraçada deste mundo! Tenho a
casa cheia de fantasmas, cadáveres e sabe Deus o que mais! Mesmo assim,
tenho certeza de que ninguém tem menos apreço por essas criaturas do que
eu. Mas vá ver Dona Antonia, Flora, eu tenho algumas coisas para fazer!
Ela alcançou a porta da rua, deixou a casa, e sem se preocupar em
colocar o véu, dirigiu-se ao mosteiro dos capuchinhos. Enquanto isso, Flora
corria ao quarto de Antonia, tão assustada e alarmada quanto Jacinta.
Encontrou a menina deitada, outra vez desmaiada. Utilizou as mesmas
técnicas que Jacinta havia usado para fazê-la recobrar os sentidos, mas ao
perceber que ela mal se recuperava de um desmaio e outro já ocorria,
decidiu chamar um médico. Enquanto aguardava sua chegada, despiu
Antonia e colocou-a novamente na cama.
Não se importando com a tempestade e tão atormentada a ponto de
quase perder as forças, Jacinta correu pelas ruas e só parou quando chegou
ao portão do mosteiro. Ao tocar o sino, o porteiro apareceu e ela solicitou
permissão para conversar com o superior. Ambrósio encontrava-se, neste
momento, discutindo com Matilda sobre qual seria a melhor maneira de
chegar até Antonia. Como a causa da morte de Elvira permanecia
desconhecida, ele estava convencido de que os crimes não eram
imediatamente seguidos pelos seus respectivos castigos, conforme seus
instrutores lhe ensinaram e como ele acreditara até então. Esta convicção
fez com que se decidisse de vez pela ruína de Antonia, pois todos os perigos
e dificuldades que havia enfrentado só aumentaram o seu desejo. O monge
já tinha feito uma tentativa de ser admitido na presença da menina, mas
Flora negou sua solicitação com tanta determinação que ele se convenceu
de que todos os esforços futuros nesse sentido seriam em vão. Elvira havia
revelado suas suspeitas à criada fiel, instruindo-a para que nunca deixasse
Ambrósio a sós com sua filha. Flora prometeu obedecê-la e até então estava
cumprindo essas ordens ao pé da letra. A visita de Ambrósio fora negada
naquela mesma manhã, ainda que Antonia ignorasse o fato. O monge
compreendeu que era impossível conseguir chegar até sua amada por meios
abertos, e tanto ele quanto Matilda haviam passado toda a noite tentando
inventar algum plano cujo resultado fosse mais vantajoso. Era exatamente
neste ponto que se encontravam quando um irmão entrou na cela de
Ambrósio anunciando que uma mulher chamada Jacinta Zuniga desejava
lhe falar por alguns minutos.
Ambrósio não estava disposto a atender ao pedido da visitante. Ele se
negou categoricamente e solicitou ao irmão que pedisse à estranha para
voltar no dia seguinte. Matilda interrompeu suas instruções:
— Vá atender essa mulher – falou em voz baixa. — Tenho meus
motivos.
O frade obedeceu e disse que iria imediatamente à sala de espera.
Com este recado, o irmão retirou-se. Assim que ficaram a sós, Ambrósio
perguntou a Matilda por que desejava que falasse com essa Jacinta.
— Ela é a senhoria de Antonia – respondeu Matilda. — Ela pode ser
útil. Mas deixe que ela fale até sabermos o que a traz aqui.
Dirigiram-se juntos ao gabinete, onde Jacinta aguardava pelo
superior. Ela possuía uma crença muito elevada sobre a piedade e virtude do
religioso, e considerando que deveria ter uma grande influência sobre o
diabo, acreditava que seria fácil para ele mandar o fantasma de Elvira para
o Mar Vermelho. Esta era a convicção que havia conduzido a mulher até o
mosteiro. Assim que viu o monge se aproximando, ela caiu de joelhos e
começou a contar sua história nos seguintes termos:
— Oh, reverendo padre! Que desgraça! Que destino o meu! Não sei o
que fazer e, se o senhor não me ajudar, eu certamente enlouquecerei! Na
verdade, eu juro, nunca houve uma mulher mais desgraçada do que eu. Fiz
tudo o que estava ao meu alcance para manter-me afastada dessas histórias
desprezíveis, mas parece que não foi o suficiente. De que me adianta rezar
um terço quatro vezes ao dia e cumprir todos os jejuns determinados pelo
calendário? De que me adianta ter feito três peregrinações a Santiago de
Compostela e ter comprado tantas indulgências papais quanto Caim para
livrar-se do seu pecado? Nada disso tem valor! Tudo vai mal e só Deus sabe
quando as coisas vão melhorar! Porque agora, julgue o senhor mesmo,
minha inquilina morreu entre convulsões; por pura bondade, arquei com as
despesas do seu enterro (não por ser parente minha ou porque eu lucrarei
alguma coisa com sua morte. Eu não tive benefício algum e, assim, sua vida
ou sua morte não fazem a menor diferença para mim. Mas estou me
desviando do assunto, voltarei ao que estava dizendo), eu cuidei do seu
funeral e fiz com que tudo fosse feito de maneira decente e apropriada, o
que já foi muito, Deus sabe bem disso! E como o senhor imagina que a
senhora retribui minha gentileza? Pois bem, ela se nega a dormir
tranquilamente em sua sepultura, o que é de se esperar de um espírito de
paz e benevolente, e volta para me amaldiçoar – logo eu, que não tenho
nenhum desejo de vê-la novamente! O fato é que ela vem perturbar o meu
lar à meia-noite, entrando no quarto da filha pelo buraco da fechadura e
transtornando a pobre criatura! Mesmo sendo um fantasma, poderia ser
mais bem-educada e não entrar sem mais nem menos na casa de pessoas
que não desejam a sua companhia. Quando a mim, reverendo padre, esta é a
situação: se ela entrar na minha casa, eu terei que sair, pois não tolero este
tipo de visitas, não eu! De modo que o senhor pode ver, sua santidade, sem
a sua ajuda eu estou arruinada e perdida para sempre! Serei obrigada a
abandonar minha casa, ninguém há de comprá-la quando souberem que é
assombrada, e em que situação me encontrarei? Que miséria a minha! O
que farei? O que será de mim?
Neste ponto, ela passou a chorar amargamente, retorcendo as mãos e
suplicando para saber a opinião do superior sobre o caso.
— Na verdade, boa mulher – ele respondeu — será difícil, para mim,
ajudá-la sem conhecer o seu problema. A senhora se esqueceu de dizer o
que aconteceu e o que deseja.
— Valha-me Deus! – exclamou Jacinta — Sua santidade tem razão!
Veja, vou contar rapidamente o que aconteceu: uma inquilina minha morreu
recentemente, uma mulher muito boa, devo dizer isso em seu favor, pelo
menos é o que eu sabia dela, ainda que não seja muito, já que ela mantinha-
se à distância, com ar de superioridade; sempre que eu me atrevia a dirigir-
lhe a palavra, ela me olhava de uma forma que fazia com que eu me
sentisse um pouco estranha. Que Deus me perdoe por dizer estas coisas! No
entanto, ainda que fosse mais arrogante do que o necessário e que estivesse
sempre me olhando de cima a baixo (embora, se estou bem informada,
minhas origens sejam tão distintas quanto as dela, já que o pai dela era um
sapateiro de Córdoba, enquanto que o meu era um chapeleiro de Madri, sim
senhor, um chapeleiro muito conhecido, devo dizer), apesar de todo o seu
orgulho, ela era uma pessoa muito educada e eu nunca tive um inquilino
melhor. E, por isso, eu acho estranho o fato de ela não estar dormindo
tranquilamente na sua sepultura, mas não se pode confiar em ninguém neste
mundo! Da minha parte, eu nunca a vi fazendo nada de errado, a não ser
naquela sexta-feira antes da sua morte. É verdade, eu fiquei muito
escandalizada quando a vi comer uma asa de galinha. ‘Como assim, dona
Flora?’, eu perguntei (Flora, reverendíssimo, é o nome da criada). ‘Como
assim, dona Flora? A sua senhora come carne às sextas-feiras? Bem, bem!
Veja o resultado e lembre-se de que dona Jacinta a advertiu do perigo!’
Estas foram as minhas palavras, mas veja só! Eu bem que poderia ter
segurado minha língua: ninguém me deu ouvidos, e Flora, que é um pouco
rude e respondona (pior para ela, eu costumo dizer), respondeu que não é
mais pecado comer uma galinha do que o ovo que sai dela. E mais, ela
ainda disse que se sua senhora tivesse acrescentado uma fatia de bacon,
ainda assim não estaria mais próxima da condenação eterna, que Deus nos
proteja! Uma pobre alma ignorante! Eu confesso que tremi ao ouvir tais
blasfêmias e que, a cada momento, esperava ver a terra se abrindo para
tragá-la, com a galinha e tudo. Pois como o senhor deve saber,
excelentíssimo padre, que enquanto ela falava estas coisas, segurava um
prato que também continha frango assado. E era um frango muito bom,
devo dizer, assado na grelha, eu mesma supervisionei todo o processo. Era
um franguinho criado no meu próprio quintal, santidade, e sua carne era tão
branca quanto à clara do ovo, como dona Elvira me confessou. ‘Dona
Jacinta’, ela disse, de bom humor, porque, para dizer a verdade, ela sempre
foi muito gentil comigo...
Foi então que Ambrósio perdeu a paciência. Ansioso por saber mais
sobre o assunto que parecia envolver Antonia, quase enlouqueceu enquanto
ouvia as divagações da velha mulher. Ele interrompeu sua narrativa e
declarou que se ela não lhe contasse imediatamente o que tinha a dizer, ele
sairia dali e deixaria que ela resolvesse seus problemas sozinha. A ameaça
deu resultado, pois Jacinta relatou seu caso com o mínimo de palavras que
foi capaz. Porém, seu relato era ainda tão prolixo que Ambrósio precisou de
toda a sua paciência para chegar à conclusão da história.
— E assim, reverendíssimo – ela prosseguiu, depois de relatar a morte
e o enterro de Elvira em todos os detalhes — e assim, reverendíssimo,
depois de ouvir aquele grito, deixei meu trabalho de lado e corri até os
aposentos de Dona Antonia. Como não encontrei ninguém lá, entrei no
quarto adjacente, mas devo confessar que senti um pouco de medo ao
entrar, pois era o mesmo aposento onde Dona Elvira costumava dormir.
Mesmo assim eu entrei e, efetivamente, lá estava a jovem dama, estatelada
no chão, tão fria quanto uma pedra e tão branca quanto uma folha de papel.
Eu fiquei surpresa, como vossa santidade pode imaginar. Mas, surpresa
fiquei mesmo quando vi uma figura alta junto ao meu cotovelo, cuja cabeça
chegava até o teto! Possuía as feições de dona Elvira, é verdade! Mas da sua
boca saíam nuvens de fogo, seus braços carregavam correntes pesadas que
balançavam tristemente e cada fio do seu cabelo era uma serpente tão
grande quanto meu braço! Foi quando eu fiquei realmente assustada e
comecei a rezar minha Ave-Maria, mas o fantasma me interrompeu e deu
três gritos bem longos e, então, rugiu com uma voz terrível: ‘Oh, aquela asa
de galinha! Minha pobre alma sofre por isto!’ Nem bem ela disse isso, a
terra se abriu e tragou o espectro, eu ouvi o estalido de um trovão e o ar
ficou cheirando a enxofre. Quando me recobrei do susto e consegui fazer
Dona Antonia voltar a si, a qual me confessou ter gritado ao ver o fantasma
da sua mãe (e com toda razão, pobre criatura. Se eu estivesse em seu lugar,
teria gritado dez vezes mais alto), logo me veio a ideia de que, se existisse
alguém capaz de acalmar o fantasma, esse alguém seria o senhor. Assim,
corri ao seu encontro para suplicar que benza minha casa com água benta e
envie a aparição para o Mar Vermelho!
Ambrósio ficou perplexo diante da esquisitice dessa história, à qual
não dava o menor crédito.
— Dona Antonia também viu o fantasma? – perguntou.
— Tão nitidamente como eu o vejo agora, reverendo padre.
Ambrósio ficou quieto por um momento. Era uma oportunidade que
se apresentava para que ele se aproximasse de Antonia, mas ficou indeciso
quanto à sua utilização. Ainda apreciava a reputação que gozava em Madri,
e mesmo que tivesse perdido a realidade da virtude, parecia que sua
simulação havia tornado a ilusão ainda mais valiosa. Estava consciente de
que se sua norma de nunca deixar o mosteiro fosse quebrada publicamente,
destruiria grande parte da sua suposta austeridade. Ao visitar Elvira, sempre
tomara a precaução de ocultar seu rosto dos criados; exceto pela dama, sua
filha e a leal Flora, ele era conhecido na residência como Padre Jerônimo.
Se atendesse ao pedido de Jacinta e a acompanhasse à sua casa, sabia que a
violação da regra deixaria de ser um segredo. No entanto, seu desejo de ver
Antonia era mais forte. Esperava que a singularidade do acontecimento
justificasse seus atos diante dos olhos de Madri. Dessa forma, ignorando
todas as consequências, ele decidiu aproveitar a oportunidade que o acaso
lhe proporcionava. Um olhar expressivo de Matilda confirmou sua decisão.
— Boa mulher – dirigiu-se a Jacinta — o que me relata é tão
extraordinário que mal posso acreditar nas suas declarações. No entanto,
vou atender ao seu pedido. Amanhã, depois das matinas, a senhora pode me
esperar em sua casa. Lá eu verei o que pode ser feito e, se estiver em meu
poder, eu a libertarei da sua visitante inoportuna. Agora volte para casa, e
que a paz esteja com a senhora.
— Casa? – perguntou — Voltar para casa? Eu não volto para casa por
nada neste mundo! Se não tiver a sua proteção, nem passarei da porta! Deus
me livre, o fantasma pode vir ao meu encontro nas escadas e levar-me com
ele para o inferno! Oh! Se eu tivesse aceitado a oferta do jovem Melchior
Basco! Então eu teria alguém para me proteger, mas agora sou uma mulher
solitária que só conhece cruzes e desgraças. Graças aos Céus, ainda não é
tarde para arrependimento! Aceitarei a proposta de Simón Gonzales um dia
destes, e se estiver viva de manhã, hei de me casar com ele sem demora:
terei um marido, está decidido; pois, agora que tenho um fantasma em casa,
morrerei de medo de dormir sozinha. Mas, pelo amor de Deus, reverendo
padre, venha comigo hoje! Não poderei descansar até que tenha purificado
minha casa, tampouco aquela jovem miserável! Pobre mocinha! Encontra-
se em uma situação de dar dó: eu a deixei em meio a fortes convulsões e
duvido que se recobre facilmente do susto!
O frade ficou alarmado e interrompeu sua narrativa, ansioso:
— Convulsões, a senhora disse? Antonia está tendo convulsões?
Leve-me até lá, boa mulher. Eu irei agora mesmo!
Jacinta insistiu para que ele levasse o recipiente com água benta; ele
acatou seu pedido. Acreditando que estaria sob sua proteção, mesmo que
fosse atacada por uma legião de fantasmas, a velha senhora se desmanchou
em agradecimentos e eles partiram para a Estrada de Santiago.
A impressão deixada pelo fantasma em Antonia havia sido tão forte
que durante as primeiras duas ou três horas o médico acreditou que sua vida
corria perigo. Finalmente, quando as convulsões tornaram-se menos
frequentes, ele mudou sua opinião. Afirmou que seria necessário deixá-la
tranquila e prescreveu um medicamento para sossegar seus nervos e
proporcionar o descanso de que ela tanto precisava. A visão de Ambrósio,
que agora aparecia com Jacinta ao lado da cama, contribuiu essencialmente
para acalmar seu espírito. Elvira não tinha explicado claramente a natureza
dos propósitos do religioso, deixando a jovem completamente desavisada
sobre os perigos que corria. Neste momento, horrorizada pela cena que
presenciara e com medo de ver a previsão do fantasma concretizada,
quando sua mente precisava de todo o socorro da amizade e da fé, Antonia
recebeu o frade de forma sincera. Aquela estranha predisposição em seu
favor, que sentira desde o princípio, ainda existia. Não sabia explicar o
porquê, mas imaginava que a presença dele a manteria protegida de todos
os perigos, insultos e desgraças. Ela ficou muito grata pela visita e lhe falou
sobre a aventura que tanto mal lhe causara.
O frade esforçou-se para tranquilizá-la e convencê-la de que tudo
havia sido uma ilusão da sua imaginação fértil. A solidão que sentira
durante a noite, o livro que estava lendo, o aposento onde se encontrava,
tudo contribuíra para colocá-la diante da tal visão. Ele chamou de ridícula a
ideia de fantasmas e espíritos e apresentou alguns argumentos sólidos para
comprovar a falácia dessa teoria. Sua conversa pareceu deixá-la mais calma
e confortada, mas não foi capaz de convencê-la. Não podia acreditar que
aquele espírito fosse apenas mero fruto da sua imaginação. Todos os
detalhes estavam bem gravados na sua mente e ela não podia se dar ao luxo
de acreditar nesta ideia. A moça insistia em afirmar que realmente vira o
fantasma da mãe, que ouvira quando ela anunciou a data da sua morte e
quando declarou que nunca deixaria aquela cama com vida. Ambrósio lhe
aconselhou a deixar de lado aqueles sentimentos e logo partiu, prometendo
que repetiria a visita no dia seguinte. Antonia recebeu a promessa com
sinais de alegria, mas o monge percebeu que a criada não via suas visitas
com o mesmo entusiasmo. Flora obedecia Elvira diligentemente. Ela
examinava com preocupação cada detalhe que pudesse prejudicar sua
jovem ama, de quem era bastante próxima há vários anos. Era nativa de
Cuba, havia seguido Elvira no seu regresso à Espanha e amava a jovem
Antonia com afeto maternal. Flora não deixou o aposento por nenhum
momento enquanto o frade esteve lá; ela observava cada palavra, cada
olhar, cada ação. Ele percebeu que aqueles olhos suspeitos estavam sempre
fixos na sua pessoa e compreendeu que seus intentos não passariam por
uma inspeção tão minuciosa. Sentia-se frequentemente confuso e
embaraçado. Estava convicto de que ela duvidava da pureza das suas
intenções, de que nunca o deixaria a sós com Antonia e que o fato de ter sua
amada vigiada de forma tão estreita, fazia com que buscasse
desesperadamente os meios para satisfazer sua paixão.
Assim que deixou a casa, Jacinta encontrou-se com ele e suplicou que
rezasse algumas missas pelo descanso da alma de Elvira, pois não duvidava
de que ela estivesse sofrendo no purgatório. Ele prometeu não se esquecer
deste pedido, mas o que fez com que ganhasse completamente o coração da
velha foi sua promessa de vigiar o quarto assombrado durante toda a noite
seguinte. Jacinta não encontrou palavras suficientes para expressar sua
gratidão e o monge partiu carregando suas bênçãos.
O dia já havia amanhecido quando ele retornou ao mosteiro. Sua
primeira preocupação foi comunicar à sua confidente tudo o que tinha
acontecido. Sentia uma paixão tão sincera por Antonia que não podia ouvir
com indiferença a previsão da sua morte iminente e temia perder um ente
tão querido. Matilda conseguiu tranquilizá-lo. Ela confirmou os argumentos
que ele mesmo utilizara: afirmou que Antonia havia tido uma alucinação
como resultado da tristeza que a oprimia naquele momento, e também pela
sua propensão natural à superstição e ao extraordinário. Quanto à história
de Jacinta, estava claro que era um absurdo. O frade não duvidava de que
ela pudesse ter inventado a história toda, por medo ou na esperança de
convencê-lo a atender seus pedidos. E para dissipar as preocupações do
monge, Matilda continuou:
— Tanto a profecia como o fantasma são igualmente falsos, mas deve
preocupar-se, Ambrósio, com a primeira. Antonia deverá estar efetivamente
morta para o mundo dentro de três dias, mas ela deverá estar viva para
você. A sua enfermidade e esta fantasia que colocou na cabeça, tornarão
mais real um plano que já venho estudando por algum tempo, mas que era
impraticável sem a sua aproximação de Antonia. Ela será sua, não apenas
por uma noite, mas para sempre. De nada adiantará toda a vigilância da
criada; você gozará sem restrições de todos os encantos da sua amada. Hoje
mesmo darei início à execução deste plano, pois não temos tempo a perder.
O sobrinho do Duque de Medina está disposto a pedir a mão de Antonia em
casamento. Em poucos dias ela será removida para o palácio do seu
familiar, o Marquês de las Cisternas, e lá ela estará a salvo do seu assédio.
Eu soube de tudo isso durante a sua ausência, através dos meus espiões que
constantemente me trazem notícias em seu benefício. Agora escute o que
tenho a dizer: existe uma essência extraída de certas ervas pouco
conhecidas, que é capaz de produzir a aparência exata da morte naquele que
dela beber. Faça com que Antonia beba o líquido; não será difícil derramar
algumas gotas no seu medicamento. Os efeitos serão fortes convulsões
durante uma hora, quando, então, o sangue deixará de fluir gradativamente
e o coração deixará de bater. Uma palidez mortal tomará conta de todo o
seu corpo e ela se parecerá com um cadáver aos olhos do mundo. Ela não
tem amigos, você poderá supervisionar o funeral sem suspeitas e fará com
que seja enterrada nas criptas de Santa Clara. O isolamento do local e seu
fácil acesso fazem das cavernas um lugar perfeito para os seus planos. Faça
com que ela beba a poção esta noite. Quarenta e oito horas depois, a vida
retornará ao seu corpo. Ela estará, então, completamente sob o seu poder:
não saberá como resistir e a necessidade a obrigará a recebê-lo em seus
braços.
— Antonia estará sob o meu poder! – exclamou o monge. — Matilda,
você me deixa emocionado! Ela será minha, finalmente, e toda essa
felicidade será um presente de Matilda, um presente de amizade! Eu
apertarei Antonia em meus braços, longe de todos os olhares indiscretos.
Minha alma repousará sobre o seu peito, ensinarei ao seu jovem coração os
primeiros fundamentos do prazer e incontrolavelmente me deliciarei com a
variedade infinita dos seus encantos! Oh, terei eu todo este prazer? Poderei
libertar meus anseios e gratificar cada um dos meus desejos? Oh, Matilda,
como posso agradecê-la?
— Seguindo meus conselhos, Ambrósio. É para isto que eu vivo.
Seus anseios e sua felicidade são meus também. Possua Antonia, mas a sua
amizade e o seu coração ainda serão meus. Contribuir com os seus prazeres
é o único prazer que tenho. Se meus esforços conseguirem satisfazer seus
desejos, considero meu trabalho amplamente recompensado. Mas não
devemos perder tempo! A essência da qual falamos só pode ser encontrada
no laboratório de Santa Clara. Vá procurar a superiora imediatamente e
peça permissão para entrar no laboratório. Ela não deixará de atendê-lo. Há
um armário no fundo do grande salão, repleto de líquidos de cores e
qualidades diferentes. A garrafa em questão está na terceira prateleira, à
esquerda. Ela contém um líquido esverdeado; quando ninguém estiver
observando, encha um pequeno frasco com a poção e Antonia será sua.
O monge não hesitou em adotar um plano tão infame. Seus desejos,
que já eram fortes, adquiriram um vigor renovado ao ver Antonia. Enquanto
esteve sentado ao seu lado, acidentalmente descobriu alguns daqueles
atrativos que até então tinham permanecido escondidos dos seus olhos e ele
julgou que eram ainda mais perfeitos do que havia imaginado. Às vezes,
seu braço branco e reluzente era exposto na tentativa de arrumar um
travesseiro. Outras vezes, um movimento súbito descobria uma parte do seu
seio. A cada vez que um novo encanto surgia, lá estavam os olhos
devoradores do frade. Mal podia ocultar seus desejos de Antonia e de sua
vigilante ama. Ardendo com a recordação de todas aquelas belezas, aceitou
o plano de Matilda sem titubear.
Mal terminaram as matinas e ele já estava a caminho do Convento de
Santa Clara. Sua chegada causou muito espanto entre as irmãs. A abadessa,
consciente da honra que era para seu convento receber tal visita, esforçou-
se para expressar sua gratidão com todas as atenções possíveis. Ele foi
conduzido ao jardim, onde lhe mostraram todas as relíquias dos santos e dos
mártires, e foi tratado com tanto respeito e distinção como se fosse o
próprio Papa. Da sua parte, Ambrósio aceitou as cortesias da superiora com
muita benevolência e procurou dissipar sua surpresa ante a infração da
norma por ele estabelecida. Ele afirmou que a doença impedia que muitos
dos penitentes deixassem seus lares, e estas eram exatamente as pessoas que
mais necessitavam dos conselhos e do alívio da religião. Muitos desses
casos chegaram aos seus ouvidos e, ainda que contrariassem sua
determinação, ele considerou absolutamente necessário, para melhor servir
aos céus, modificar sua decisão e abandonar seu amado retiro. A abadessa
aplaudiu sua dedicação e sua caridade para com a humanidade. Ela afirmou
que Madri tinha sorte de possuir um homem tão perfeito e irreprovável. Em
meio ao diálogo, o frade chegou, enfim, ao laboratório. Ele encontrou o
armário; a garrafa estava exatamente onde Matilda informou que estaria, e o
monge aproveitou uma oportunidade quando não estava sendo observado
para encher um frasco com o sonífero. Mais tarde, depois de participar da
colação no refeitório, ele retirou-se do convento, satisfeito com o êxito da
sua visita e deixando as freiras encantadas com a honra que lhes concedera.
Ele esperou a noite chegar antes de pegar a estrada em direção à
morada de Antonia. Jacinta o recebeu, emocionada, e suplicou para que ele
não se esquecesse da promessa de passar toda a noite no quarto
assombrado. Ambrósio lhe repetiu a promessa. Ele encontrou Antonia
relativamente melhor, mas ainda obcecada pela profecia do fantasma. Flora
não saiu do lado da cama de Antonia, demonstrando com mais evidência do
que na noite anterior o seu desagrado pela presença do frade. Mesmo assim,
Ambrósio fingiu não perceber. O médico chegou enquanto ele conversava
com Antonia. Já estava bem escuro e era necessário providenciar velas e
lamparinas, e Flora viu-se obrigada a ir buscá-las. Como deixava outra
pessoa no quarto e esperava estar de volta em poucos minutos, considerou
que não haveria perigo em abandonar seu posto. Logo que a criada deixou o
local, Ambrósio aproximou-se da mesa onde estava o remédio de Antonia,
em um canto próximo à janela. O médico estava sentado em uma poltrona
fazendo perguntas à paciente, sem prestar atenção ao que o monge fazia.
Ambrósio aproveitou a chance, pegou o frasco e deixou algumas gotas
caírem dentro do vidro do remédio. Rapidamente afastou-se da mesa e
retornou ao assento que havia deixado. Quando Flora reapareceu com as
luzes, tudo parecia estar exatamente como antes.
O médico declarou que Antonia poderia deixar o quarto no dia
seguinte, sem correr nenhum risco. Ele recomendou que continuasse
ingerindo a mesma medicação da noite anterior, quando precisou de um
sono reparador. Flora respondeu que a droga estava preparada sobre a mesa.
Ele aconselhou a paciente a tomar o remédio sem demora e partiu. Flora
colocou a medicação em um copo e entregou à sua senhora. No mesmo
instante, Ambrósio perdeu a coragem. Não poderia Matilda tê-lo enganado?
Não poderia ela, por ciúme, tentar destruir sua rival e substituir a poção por
um veneno? A ideia era tão plausível que Ambrósio sentiu-se tentado a
impedir que Antonia bebesse o líquido; porém, era tarde. O copo já estava
vazio e de volta às mãos de Flora. Tudo o que Ambrósio podia fazer era
esperar impacientemente pelo momento que decidiria sobre a vida ou a
morte de Antonia, e sobre a sua própria felicidade ou desespero.
Temendo despertar suspeitas com a sua permanência no local, ou,
ainda, que seu nervosismo pudesse traí-lo, ele despediu-se de sua vítima e
saiu do aposento. Antonia mostrou-se menos cordial do que na noite
anterior. Flora havia chamado sua atenção para o fato de que admitir as
visitas do frade seria o mesmo que desobedecer as ordens de sua mãe. Ela
descreveu a emoção que havia notado no homem quando ele entrou no
quarto e o modo como seus olhos brilhavam enquanto a contemplava.
Antonia não tinha prestado atenção a estes detalhes, mas a criada, sim. Ela
lhe falou sobre os desejos do monge e das suas prováveis consequências
com muito mais clareza do que Elvira; embora não tenha sido muito
delicada, conseguiu alarmar a menina e persuadi-la a tratá-lo com mais
distância. A simples ideia de obedecer à vontade da mãe foi determinante
para Antonia. Ainda que lamentasse a perda da sua companhia, conseguiu
se controlar e receber o monge com certa reserva e frieza. Agradeceu pelas
visitas anteriores, mas não renovou o convite para visitas futuras. Também
não era do interesse do frade, neste momento, insistir para ser recebido
novamente em sua presença e, assim, despediu-se como quem não desejava
retornar. Completamente convencida de que aquela amizade estava
terminada, Flora sentiu-se comovida pelo desenlace tão fácil e passou a
duvidar da legitimidade das suas suspeitas. Enquanto iluminava o caminho
pelas escadas, ela lhe agradeceu por ter ajudado a dissipar da mente de
Antonia todos os temores sobre a profecia do fantasma. Acrescentou que,
como ele parecia estar muito interessado no bem-estar de Antonia, ela o
avisaria se houvesse alguma mudança no seu estado. O monge, ao
responder, elevou sua voz para que Jacinta também pudesse ouvir e, como
previu, ao chegar ao pé da escada com sua acompanhante, lá estava a
senhoria.
— O senhor não está indo embora, está, reverendo padre? – ela
questionou. — O senhor não prometeu passar a noite no quarto
assombrado? Jesus Cristo! Terei de ficar sozinha com o fantasma, e o que
será de mim quando o dia amanhecer? Fiz tudo o que pude, disse tudo o que
poderia ser dito e, mesmo assim, o bruto do Simón Gonzales recusou-se a
se casar comigo hoje! E antes que amanheça, eu suponho que serei
destroçada pelos fantasmas, e duendes, e demônios e não sei o que mais.
Pelo amor de Deus, sua santidade, não me abandone nesta situação
lamentável! Eu lhe imploro de joelhos para que cumpra sua promessa! Faça
uma vigília no quarto assombrado! Leve a aparição para o Mar Vermelho e
Jacinta mencionará o seu nome nas orações pelo resto da sua existência!
Esse era o pedido que Ambrósio esperava e desejava. Então, fingiu
levantar algumas objeções e mostrou-se relutante em cumprir a promessa.
Disse a Jacinta que o fantasma só existia na imaginação dela, e que sua
insistência para que ele passasse toda a noite na casa era ridícula e sem
sentido. Jacinta estava obstinada: não se deixou convencer, e tanto insistiu
para que ele não a deixasse à mercê do diabo que ele, finalmente, cedeu à
súplica. Toda essa demonstração de resistência, no entanto, não chegou a
impressionar Flora, que possuía um temperamento naturalmente
desconfiado. Ela suspeitava de que o monge estivesse representando um
papel contrário às suas próprias inclinações e que não desejava outra coisa
senão ficar onde estava. Ela chegou a acreditar que Jacinta era conivente
com o plano e classificou a velha mulher como uma alcoviteira. Enquanto
congratulava-se por ter descoberto a conspiração contra a honra da sua
senhora, decidiu inutilizar todo o plano.
— Então – ela dirigiu-se ao frade, lançando um olhar meio irônico e
meio desconfiado — então o senhor pretende passar esta noite aqui? Faça
isso, em nome de Deus! Ninguém irá impedi-lo. Sente-se e espere pelo
fantasma. Eu também ficarei sentada, e rogo a Deus que não veja nada pior
do que um fantasma! Não me afastarei do leito de Dona Antonia durante
toda a bendita noite. Quero ver quem se atreverá a entrar no quarto, seja ele
mortal ou imortal, fantasma, diabo ou humano, eu garanto que se
arrependerá de ter atravessado aquela porta!
A indireta foi clara o suficiente para que Ambrósio compreendesse
seu significado. Mas, ao invés de demonstrar que percebera suas suspeitas,
ele prontamente respondeu que aprovava aquelas precauções e a aconselhou
que assim o fizesse. Flora replicou que ele poderia estar certo de que ela o
faria. Jacinta, então, conduziu o monge ao quarto onde o fantasma havia
aparecido e Flora retornou aos aposentos da sua senhora.
A senhoria abriu a porta do quarto assombrado com uma mão
trêmula. Aventurou-se a dar uma espiada, mas nem por todos os tesouros
das Índias ela ousaria transpor a soleira. Entregou a vela ao monge e lhe
desejou boa sorte, saindo apressadamente. Ambrósio entrou no quarto.
Passou o ferrolho na porta e pôs a vela em cima da mesa, sentando-se na
mesma cadeira onde Antonia se sentara na noite anterior. Apesar das
afirmações de Matilda de que o fantasma era mero fruto da imaginação,
seus pensamentos experimentavam um tipo de horror misterioso. Em vão,
tentou livrar-se daquela sensação. O silêncio da noite, a história da aparição,
o aposento todo forrado com painéis escuros de madeira, a lembrança do
assassinato de Elvira e a incerteza sobre as gotas ingeridas por Antonia,
tudo fazia com que ele se sentisse muito agitado. Mas ele pensava menos no
fantasma do que no veneno. Pensava que poderia ter destruído o único
objeto que fazia com que sua vida tivesse algum sentido, que a profecia do
fantasma poderia ser verdadeira, que Antonia poderia morrer em três dias e
que seria ele a causa da sua morte... não conseguia nem pensar naquela
suposição, pois era horrível demais. Tentou afastar da mente aquelas
imagens assustadoras, mas elas sempre voltavam. Matilda lhe garantira que
os efeitos da poção seriam rápidos. Ele escutava com medo, ainda que
ansioso, esperando ouvir alguma agitação no quarto ao lado. Tudo estava
em silêncio. Concluiu que o efeito das gotas ainda não havia começado. A
prova a que se submetia era muito difícil. Bastaria um momento para que
toda a sua existência se transformasse em um tormento ou pura felicidade.
Matilda tinha lhe ensinado os meios para comprovar se a vida não havia se
apagado para sempre. Todas as suas esperanças dependiam desta prova. Sua
impaciência aumentava a cada instante; seus temores tornavam-se mais
vivos e sua ansiedade mais alerta. Incapaz de suportar tanta incerteza,
tentou se distrair dirigindo a atenção para alguma outra coisa. Os livros,
como já foi dito, estavam ordenados em prateleiras próximas à mesa. Esta
se encontrava exatamente diante da cama que ficava em uma alcova perto
da porta do armário. Ambrósio apanhou um volume e sentou-se perto da
mesa. Porém, não conseguiu manter a atenção nas páginas do livro. A visão
de Antonia e a do assassinato de Elvira permaneciam na sua imaginação.
Mesmo assim, ele seguiu lendo, ainda que seus olhos apenas corressem
pelas palavras sem conseguir atinar seus significados.
Esta era a sua ocupação quando teve a sensação de ouvir alguma
coisa. Ele olhou ao redor, mas não viu ninguém. Retornou ao livro, mas,
alguns segundos depois, voltou a ouvir o mesmo som, seguido por um
sussurro que vinha de trás da sua cabeça. O monge levantou-se da cadeira e
viu que a porta do quartinho estava entreaberta. Logo que entrou no quarto
ele tentou abri-la, mas viu que estava trancada pelo lado de dentro.
“Como é possível?”, perguntou a si mesmo. “Como pode estar
aberta?”
Ele aproximou-se da porta, abriu e olhou dentro do quarto. Não havia
ninguém lá. Enquanto refletia, indeciso, pensou ter ouvido um gemido
vindo do outro aposento. Era Antonia, e ele imaginou que as gotas estavam
começando a fazer efeito; no entanto, ouvindo com mais atenção, percebeu
que o barulho era causado por Jacinta, que dormia junto ao leito da jovem e
roncava ruidosamente. Ambrósio retirou-se e retornou ao outro quarto,
ainda pensando na maneira súbita como a porta havia sido aberta e sem
encontrar explicação para isso.
Caminhou pelo aposento em silêncio. Enfim deteve-se, e sua atenção
foi atraída pela cama. O dossel estava parcialmente aberto. Ele suspirou
involuntariamente.
— Esta cama – murmurou — esta cama era de Elvira. Aqui ela
passou muitas noites tranquilas, pois era bondosa e inocente. Seu sono
deveria ser bem profundo. E agora, agora dorme ainda mais profundamente.
Mas será que ela realmente dorme? Oh, Deus queira que sim! O que
aconteceria se ela se levantasse da tumba nesta hora tão triste e silenciosa?
E se ela rompesse as amarras do caixão e flutuasse furiosamente bem diante
dos meus olhos petrificados? Oh, eu não suportaria tal visão! Ver
novamente o seu corpo retorcido pelas agonias da morte, suas veias
inchadas, seu semblante lívido e seus olhos saltados de tanta dor! Ouvi-la
falar sobre os castigos que virão, ameaçando minha existência com a
vingança dos céus, culpando-me pelos crimes que cometi e pelos que ainda
vou cometer... meu Deus! O que é isso?
Ao dizer estas palavras, seus olhos fixaram-se na cama e viu as
cortinas movendo-se lentamente, para frente e para trás. A ideia da aparição
voltou à sua mente e ele quase pôde distinguir a figura imaginária de Elvira
reclinada sobre a cama. Alguns momentos de reflexão, no entanto, foram
suficientes para acalmá-lo.
— É apenas o vento – ele disse.
Voltou a caminhar pelo quarto, mas um movimento involuntário de
tremor e inquietude sempre levava seus olhos para a alcova. Ele aproximou-
se, indeciso, e se deteve antes de subir os poucos degraus. O monge tentou
abrir o dossel por três vezes, e por três vezes desistiu de abri-lo.
— Terrores absurdos! – exclamou, finalmente, com vergonha da
própria fraqueza.
Ele subiu os degraus rapidamente e, então, uma figura vestida de
branco saiu da alcova e passou por ele, dirigindo-se ao pequeno quarto. A
loucura e o desespero deram ao monge a coragem que até então lhe faltava.
Ele desceu os degraus, correu atrás da aparição e tentou agarrá-la.
— Fantasma ou demônio, eu não deixarei que prossiga! – exclamou,
segurando o fantasma pelo braço.
— Oh, Jesus Cristo! – gritou uma voz penetrante. — Santo padre, por
que me detém? Eu lhe asseguro que não desejo mal a ninguém!
As palavras, assim como o braço que segurava, convenceram o frade
de que o suposto fantasma era feito de carne e osso. Ele arrastou a intrusa
até a mesa e, alcançando a luz, descobriu que era o rosto de... Dona Flora!
Irritado por ter demonstrado, através daquele gesto estúpido, seus
ridículos temores, ele lhe perguntou o que fazia naquele quarto. Flora,
envergonhada por ter sido descoberta e com medo do olhar severo de
Ambrósio, caiu de joelhos e prometeu fazer uma confissão completa.
— Eu afirmo, padre – disse ela — que estou muito constrangida por
ter incomodado o senhor, esta não era a minha intenção! Eu pretendia sair
do quarto tão secretamente como havia entrado; se o senhor não tivesse
tomado conhecimento de que eu o vigiava, teria sido como se eu nunca
tivesse estado aqui. Na verdade, agi muito mal tentando espioná-lo, não
posso negar. Mas Deus! Como poderia uma pobre mulher resistir à
curiosidade? Eu desejava tanto saber o que estava fazendo que eu
simplesmente tive que dar uma olhada, sem que ninguém ficasse sabendo.
Então, deixei Dona Jacinta sentada junto ao leito da minha senhora e
aventurei-me pelo quartinho. Como não queria interrompê-lo, me contentei,
a princípio com uma olhadinha pelo buraco da fechadura. Mas, como não
consegui ver nada, retirei o ferrolho e, enquanto o senhor estava de costas
para a alcova, escorreguei sigilosamente para dentro dela. Lá fiquei
escondida, até que vossa reverência me descobriu e me segurou antes que
eu tivesse tempo de chegar à porta do quarto. Esta é toda a verdade, eu juro,
santo padre, e imploro mil vezes seu perdão pela minha impertinência.
Durante o discurso, o frade teve tempo para recompor sua serenidade.
Ficou satisfeito ao ler para a espiã arrependida um texto sobre os perigos da
curiosidade e da vergonha de ter sido descoberta praticando aquela ação.
Flora declarou-se plenamente convencida de que tinha agido muito mal.
Prometeu nunca mais voltar a agir daquela forma e já se retirava,
humildemente arrependida, para os aposentos de Antonia, quando a porta
do quartinho foi subitamente aberta e Dona Jacinta entrou correndo, pálida
e sem ar.
— Oh, padre, padre! – ela exclamou com a voz engasgada pelo terror.
— O que farei agora? O que farei? Que situação a minha! Mais uma
desgraça! Nada além de pessoas mortas e moribundas. Eu vou ficar louca!
Vou ficar louca!
— Diga, diga! – gritaram Flora e o monge ao mesmo tempo. — O
que aconteceu? Qual é o problema?
— Oh, tenho outro cadáver em minha casa! Não há dúvida de que
uma bruxa lançou alguma maldição sobre minha casa, sobre mim e sobre
tudo o mais que me rodeia! Pobre Dona Antonia! Acaba de sofrer as
mesmas convulsões que mataram sua mãe! O fantasma estava falando a
verdade! Tenho certeza de que o fantasma falou a verdade!
Flora correu, ou melhor, voou até o outro quarto. Ambrósio a seguiu
com o coração tremendo de esperança e medo. Eles encontraram Antonia
como Jacinta havia descrito, contraída por convulsões torturantes que, em
vão, se esforçaram para aliviar. O monge enviou Jacinta ao mosteiro com
toda pressa, e pediu que trouxesse Frei Pablos com ela imediatamente.
— Eu irei buscá-lo – respondeu Jacinta — e pedirei a ele que venha.
Mas não retornarei com ele. Estou certa de que a casa está enfeitiçada e que
morrerei queimada se voltar a por os pés aqui!
Com esta resolução ela saiu em direção ao mosteiro e transmitiu o
recado ao Frei Pablos. Então, dirigiu-se à casa de Simón Gonzales, a quem
decidiu nunca mais abandonar até que fosse seu marido e que se decidisse a
viver com ela.
Assim que Frei Pablos viu Antonia, declarou que seu mal era
incurável. As convulsões continuaram ainda por uma hora. Nesse meio
tempo, suas agonias tornaram-se mais doces do que aquelas causadas pelos
seus gemidos no coração do frade. Cada gesto de dor parecia cravar uma
adaga em seu peito e ele se amaldiçoava mil vezes por ter compactuado
com um plano tão bárbaro. Com o passar das horas, os ataques tornaram-se
menos frequentes e Antonia parecia menos agitada. Sentia-se que o
desenlace se aproximava e que nada poderia salvá-la.
— Digníssimo Ambrósio – ela disse, em voz fraca, enquanto beijava-
lhe as mãos. — Sinto-me livre agora para manifestar o quanto meu coração
está agradecido pela sua atenção e pelo seu afeto. Encontro-me no meu leito
de morte. Dentro de uma hora, não mais existirei. Posso, então, confessar o
quanto sofri por ter que renunciar à sua companhia. Mas essa era a vontade
de minha mãe, e eu não me atrevi a desobedecê-la. Eu morro tranquila:
poucos lamentarão minha morte e poucos são os que lamento perder. Entre
eles, o senhor é o que mais sinto. Mas voltaremos a nos encontrar,
Ambrósio. Algum dia, nos reencontraremos no céu. Lá, renovaremos
nossos laços de amizade que serão, com certeza, aprovados por minha mãe.
Ela fez uma pausa. O frade tremeu quando ouviu o nome de Elvira.
Antonia atribuiu essa emoção à piedade e afeto que ele sentia por sua mãe.
— O senhor sente pena de mim, padre – ela continuou. — Ah, não
lamente minha perda. Não tenho pecados a confessar, não que eu saiba, e é
hora de retornar minha alma àquele de quem a recebi. Tenho apenas alguns
pedidos a fazer: suplico que me conceda tais pedidos. Encomende uma
missa para o repouso de minha alma e outra para a alma da minha amada
mãe. Não que eu duvide que ela descansa em paz, agora estou convencida
de que estava alucinando e a inexatidão na previsão do fantasma é prova
suficiente do meu erro. Mas todos nós temos nossas fraquezas. Minha mãe
tinha as suas, embora eu não tenha conhecimento delas. Portanto, desejo
que celebre uma missa para o seu descanso, e que os gastos sejam cobertos
pelo pequeno pé-de-meia que possuo. O que restar dele, deixo para minha
tia Leonella. Quando eu estiver morta, informe o Marquês de las Cisternas
de que a família infeliz do seu irmão não poderá mais importuná-lo. Mas
estou sendo injusta: fui informada de que ele está doente e, talvez, se
estivesse em seu poder, teria me oferecido proteção. Apenas lhe diga, padre,
que estou morta, e que se por acaso estivesse em falta comigo, eu o
perdoaria do fundo do meu coração. Assim, não tenho mais nada a pedir
além das suas orações. Prometa não se esquecer dos meus pedidos e eu
entregarei minha alma sem dor nem pesar.
Ambrósio prometeu cumprir seus desejos e iniciou os procedimentos
para a extrema-unção. Cada minuto que se passava anunciava a
proximidade do desenlace de Antonia: sua visão falhava, seu coração batia
vagarosamente, seus dedos se enrijeciam e tornavam-se mais frios até que,
às duas da manhã, ela expirou sem nem um gemido. Assim que o último
suspiro abandonou seu corpo, Frei Pablos se retirou, sinceramente
perturbado pela tristeza e melancolia da cena. Flora, por sua vez,
demonstrou sua dor de forma descontrolada.
Ambrósio tinha muito com o que se preocupar. Buscou a pulsação
que, segundo Matilda, provaria que a morte de Antonia era temporária; ele
conseguiu encontrá-la. Sob um pouco de pressão, sentiu a vida de Antonia
pulsando na sua mão e seu coração ficou embargado pela emoção. No
entanto, tentou cuidadosamente ocultar sua satisfação pelo êxito do seu
plano. Adotou uma atitude melancólica e, dirigindo-se à Flora, aconselhou-
a a não se entregar a uma dor inútil. As lágrimas da mulher eram muito
sinceras para ouvir os seus conselhos e, assim, ela seguia chorando
incontrolavelmente.
O frade retirou-se, prometendo ocupar-se pessoalmente do funeral
que, por consideração à Jacinta, como ele explicou, deveria acontecer
rapidamente. Mergulhada na dor pela perda da sua querida ama, Flora
apenas escutava o que Ambrósio dizia. Ele apressou o enterro conseguindo
a permissão da abadessa para que o corpo fosse levado à cripta de Santa
Clara e, na manhã de sexta-feira, todas as cerimônias apropriadas foram
realizadas e o corpo de Antonia foi depositado na tumba.
Neste mesmo dia, Leonella chegou a Madri com a intenção de
apresentar seu jovem esposo a Elvira. Circunstâncias diversas a obrigaram a
adiar a viagem de terça para sexta-feira e ela não tinha tido oportunidade de
comunicar a irmã sobre a alteração dos planos. Como era dona de um
coração afetuoso e sempre nutrira um carinho sincero por Elvira e sua filha,
sua surpresa ao saber do súbito e lamentável destino de ambas foi
acompanhada por muita dor e desapontamento. Ambrósio, seguindo as
instruções de Antonia, prometeu que, assim que quitasse as pequenas
dívidas de Elvira, lhe entregaria o resto do dinheiro. Assim acertados, nada
mais detendo Leonella em Madri, ela retornou a Córdoba com toda a
pressa.
CAPÍTULO III

Oh, se eu pudesse adorar qualquer coisa que está abaixo do céu,


Que a terra tivesse visto ou o desejo pudesse criar,
O teu altar, liberdade sagrada, deveria estar de pé,
Construído, não pelas mãos vulgares de mercenários,
Mas com ervas perfumadas e lindas flores silvestres,
Como arranjadas nas margens, ou sentidas pela brisa do verão.
(Cowper)

Com a atenção totalmente voltada a entregar à justiça os assassinos da


irmã, Lorenzo não podia imaginar quanto sofrimento o aguardava do outro
lado. Como já mencionado, ele não regressou a Madri até o dia em que
Antonia foi enterrada. Tendo que ir pessoalmente transmitir ao Inquisidor
Geral a ordem do Duque Cardeal (exigência necessária quando um membro
da Igreja deveria ser preso publicamente), para comunicar suas intenções a
seu tio e a Dom Ramírez e, ainda, para reunir uma tropa de escolta
suficientemente numerosa a fim de evitar resistência, esteve ocupado
durante as poucas horas que precediam a meia-noite. Portanto, não teve
oportunidade de indagar sobre sua amada, e não tomou conhecimento da
morte dela ou da morte de sua mãe.
O marquês ainda não estava fora de perigo: seus delírios haviam
desaparecido, mas se sentia tão esgotado que os médicos não conseguiam
apresentar um diagnóstico seguro. Tudo o que ele desejava era unir-se à
Agnes na sua tumba. Sua existência era insuportável. Não existia nada no
mundo que merecesse sua atenção e ele só esperava saber que Agnes estava
vingada para, então, morrer no mesmo instante.
Seguido pelas preces ardentes de Ramón pelo seu êxito, Lorenzo
apresentou-se diante dos portões de Santa Clara uma hora antes do horário
indicado por Madre Santa Úrsula. Estava acompanhado por seu tio, por
Dom Ramírez de Mello e um grupo de arqueiros. Mesmo assim, embora em
número considerável, a chegada deles não causou muita surpresa, pois uma
grande multidão já aguardava o início da procissão na frente do convento.
Podia-se imaginar que Lorenzo e os seus acompanhantes lá estavam com a
mesma finalidade. Ao reconhecer o Duque de Medina, as pessoas se
afastaram e abriram passagem para o grupo. Lorenzo tomou sua posição na
frente do portão principal, onde o cortejo deveria passar. Convencido de que
a abadessa não conseguiria escapar, aguardou pacientemente a sua aparição,
que deveria ocorrer exatamente à meia-noite.
As freiras estavam concentradas nos seus deveres religiosos em honra
de Santa Clara, ocasião em que não admitiam a presença de nenhum leigo.
As janelas da capela estavam iluminadas. Do lado de fora, a multidão ouvia
as notas prolongadas de um órgão, acompanhadas por um coral de vozes
femininas que se elevava no silêncio da noite. O coral se calou e foi seguido
por uma melodia simples: era a voz daquela que havia sido designada a
interpretar o papel de Santa Clara durante a procissão. Para esta cerimônia,
elegia-se sempre a virgem mais bonita de Madri, a qual considerava seu
papel como uma das honrarias mais altas e estimadas daquela sociedade.
Enquanto ouvia a melodia, cuja distância parecia torná-la ainda mais doce,
a multidão seguia calada, dedicando total atenção à sua execução. Um
silêncio universal estendia-se por todos os presentes e cada um dos corações
estava repleto de respeito e religiosidade. Todos, menos o de Lorenzo.
Consciente de que dentre aquelas que cantavam as glórias de Deus tão
docemente, havia algumas que escondiam os pecados mais impuros atrás da
devoção, a hipocrisia dos seus cânticos lhe causava repugnância. Já há
algum tempo observava com desaprovação e desprezo a religião que
governava os habitantes de Madri. Seu senso comum lhe apontara as
artimanhas dos monges e o grosseiro absurdo de seus milagres, maravilhas
e supostas relíquias. Ele ficava ruborizado ao ver seus compatriotas
ludibriados por enganos tão ridículos e apenas aguardava o momento certo
para livrá-los dos grilhões da Igreja. A oportunidade há tanto tempo
desejada finalmente surgiu. Estava decidido a não desperdiçá-la e a revelar
diante das pessoas, com todos os detalhes, a enormidade dos abusos
frequentemente praticados nos mosteiros e a forma injusta e indiscriminada
como se concedia estima pública a todos os que vestissem hábitos
religiosos. Ansiava pela chegada do momento de desmascarar os hipócritas
e convencer seus compatriotas de que uma fachada de santidade nem
sempre esconde um coração virtuoso.
O serviço continuou até que o sino do convento soou meia-noite.
Assim que a badalada foi ouvida, a música parou, as vozes diminuíram
suavemente e as luzes desapareceram das janelas da capela. O coração de
Lorenzo começou a bater violentamente ao perceber que logo poderia
colocar seu plano em ação. Ele esperava alguma resistência por conta da
superstição natural do povo, mas confiava que Madre Santa Úrsula
contribuiria com boas razões para justificar sua conduta. Ele seria forte o
suficiente para repelir os primeiros impulsos da multidão até que os
argumentos fossem ouvidos; seu único receio era que a superiora, ciente
desse plano, tivesse aprisionado a outra freira, cujo depoimento seria
essencial para sua execução. A menos que Madre Santa Úrsula estivesse
presente, ele só poderia dizer que a abadessa era suspeita da acusação, e
este pensamento trazia certa apreensão quanto ao sucesso da empreitada. A
tranquilidade que parecia reinar por todo o convento lhe acalmava de algum
modo. Ainda aguardava o momento com ansiedade, quando a aparição da
sua aliada afugentou todas as suas dúvidas.
O mosteiro dos capuchinhos era separado do convento pelo jardim do
cemitério. Os monges tinham sido convidados a assistir a procissão. Eles
agora se aproximavam e marchavam de dois em dois com tochas acesas nas
mãos, e cantavam hinos em homenagem à Santa Clara. Frei Pablos seguia
na frente de todos, já que o superior havia se eximido de comparecer. As
pessoas abriam caminho para o santo cortejo e os frades alinharam-se em
fila em um dos lados do portão principal. Em poucos minutos a procissão já
estava organizada. Então, as portas do convento se abriram e, mais uma vez,
o coral feminino fez-se ouvir em plena melodia. Primeiro, apareceu um
grupo do coral; logo que elas passaram, os monges as seguiram em dupla,
com passos lentos e medidos. A seguir vieram as noviças, que não
carregavam velas como as mais velhas, mas caminhavam com os olhos
baixos e pareciam ocupadas orando com seus rosários. Atrás delas, via-se
uma linda jovem que representava o papel de Santa Luzia; ela trazia um
pires de ouro no qual havia dois olhos. Os seus próprios olhos estavam
cobertos por uma faixa de veludo e ela era conduzida por outra freira
vestida de anjo. Era seguida por Santa Catarina, com uma palma em uma
das mãos e uma espada flamejante na outra; estava vestida de branco e sua
cabeça fora ornamentada com um diadema brilhante. Logo depois vinha
Santa Genoveva, rodeada de inúmeros diabinhos que adotavam atitudes
grotescas, puxando sua roupa e fazendo gestos estranhos, esforçando-se
para desviar-lhe a atenção do livro no qual seus olhos estavam
constantemente fixos. Estes diabinhos alegres foram muito celebrados pela
multidão, que manifestou seu prazer com repetidas gargalhadas. A abadessa
havia sido cuidadosa para escolher uma freira cujo temperamento natural
fosse grave e solene. E ela tinha todas as razões para sentir-se satisfeita com
sua escolha: a reinação dos diabinhos foi em vão e Santa Genoveva pôde
mover-se sem descompor um músculo sequer.
Cada uma das santas era separada da outra por um grupo do coral que
entoava suas glórias com cânticos, ainda que proclamassem serem
inferiores àquelas de Santa Clara, padroeira do convento. Depois delas,
surgiu uma longa fila de freiras, cada uma segurando uma vela, como
aquelas que formavam o coral. Então, vinham as relíquias de Santa Clara,
guardadas em receptáculos igualmente preciosos, tanto pelo material
utilizado quanto pela sua execução. Mas não foi isso que atraiu a atenção de
Lorenzo. A freira que carregava o coração era quem realmente interessava.
De acordo com a descrição de Teodoro, não restava dúvida de que se tratava
de Madre Santa Úrsula. Ela parecia olhar ao redor com ansiedade. Como
ele se encontrava na primeira fila por onde a procissão iria passar, seus
olhos logo se encontraram com os de Lorenzo. Um rubor de alegria inundou
seu rosto até então pálido. Ela virou-se para sua acompanhante:
— Estamos salvas! – ele a ouviu sussurrar. — É o irmão dela.
Sentindo o coração aliviado, Lorenzo assistiu com tranquilidade o
resto do espetáculo. Agora vinha o ornamento mais brilhante: era uma
máquina construída no formato de um trono, enriquecido com joias e luzes
deslumbrantes. Avançava graças a rodinhas escondidas e era guiado por
encantadoras crianças vestidas de serafins. A parte superior estava coberta
por nuvens prateadas sobre as quais descansava a figura mais bonita que os
olhos já viram: a donzela que representava o papel de Santa Clara. Seu
vestido era de valor inestimável e ao redor da cabeça trazia uma coroa de
diamantes que formava uma auréola artificial. Mas todos estes ornamentos
desapareciam diante do esplendor da sua beleza. Ao avançar, um murmúrio
de admiração correu entre a multidão. O próprio Lorenzo reconheceu,
secretamente, que jamais havia contemplado beleza mais perfeita, e que, se
seu coração não pertencesse a Antonia, teria sido vítima daquela moça
encantadora. Deste modo, ele a considerou apenas como uma escultura
delicada, capaz de obter somente sua reservada admiração. Assim que
passou por ele, deixou de pensar no assunto.
— Quem é ela? – perguntou um observador próximo a Lorenzo.
— Alguém cuja beleza já deve ter ouvido falar. Seu nome é Virgínia
de Villa-Franca. É pensionista no convento de Santa Clara, uma parenta da
abadessa, e foi escolhida com toda justiça como o ornamento da procissão.
O trono continuou adiante. Era seguido pela própria abadessa; ela
marchava na frente das outras freiras com expressão devota e santificada,
encerrando a procissão. Movia-se devagar, com os olhos erguidos aos céus.
Seu semblante sereno e tranquilo parecia alheio a todas as coisas deste
mundo, e nenhum traço revelava o orgulho secreto que experimentava
ostentando toda a pompa e opulência do seu convento. Ela caminhava
acompanhada por preces e bênçãos da população. Porém, a confusão foi
imensa e a surpresa geral quando Dom Ramírez deu um passo adiante e
anunciou que ela estava presa.
Durante um momento, a superiora ficou muda e imóvel, mas logo que
se recobrou do susto, exclamou que aquilo era um sacrilégio e uma
barbaridade, e pediu ao povo que resgatasse uma filha da Igreja. As
pessoas, imediatamente, se dispuseram a obedecê-la, mas Dom Ramírez,
protegido da fúria pelos seus arqueiros, ordenou que se resignassem,
ameaçando-os com as mais severas punições da Inquisição. Diante de
tamanha ameaça, todas as armas foram baixadas e as espadas retornadas às
suas bainhas. A abadessa empalideceu e começou a tremer. O silêncio geral
a convenceu de que não havia esperança ali e que apenas sua inocência
poderia salvá-la, e pediu a Dom Ramírez que a informasse sobre o crime do
qual era acusada.
— Saberá na hora oportuna – respondeu ele. — Mas, antes, devo
deter também Madre Santa Úrsula.
— Madre Santa Úrsula? – repetiu a superiora, debilmente.
Neste momento, seus olhos, vagando ao redor, viram Lorenzo e o
Duque de Medina, acompanhantes de Dom Ramírez.
— Ah, meu Deus! – exclamou, apertando as mãos juntas em um gesto
frenético. — Fui traída!
— Traída? – perguntou Santa Úrsula, agora conduzida por alguns
arqueiros e seguida por sua companheira na procissão. — Não traída, mas
descoberta. Eu sou sua acusadora: nem desconfia o quanto eu sei sobre o
seu crime! Senhor! – ela continuou, virando-se para Dom Ramírez —
Coloco-me sob sua custódia. Eu acuso a abadessa de Santa Clara de
assassinato e respondo com minha vida pela justiça da acusação!
Um clamor geral de surpresa ouviu-se por toda parte e explicações
foram exigidas aos brados. As freiras, trêmulas e aterrorizadas com a
gritaria e a confusão geral, se dispersaram e fugiram em várias direções.
Algumas regressaram ao convento, outras buscaram refúgio nas casas dos
familiares, e muitas, conscientes do perigo e ansiosas para escapar do
tumulto, corriam pelas ruas e vagavam sem saber aonde ir. A adorável
Virgínia foi uma das primeiras a fugir. Para que pudesse ser vista e ouvida
melhor, as pessoas pediram para Santa Úrsula sentar-se no trono vazio. A
freira concordou e subiu na máquina deslumbrante e, então, dirigiu-se à
multidão com as seguintes palavras:
— Por mais estranha e imprópria que possa parecer minha conduta,
levando em consideração que sou uma mulher e uma freira, a necessidade
me justificará completamente. Um segredo, um segredo horrível, pesa sobre
a minha alma. Não poderei descansar enquanto não revelá-lo ao mundo e
enquanto não atender aos anseios do sangue inocente que clama por
vingança no seu túmulo. Grande foi a minha ousadia para conseguir esta
oportunidade de aliviar minha consciência. Se eu tivesse fracassado no meu
propósito de revelar o crime, ou se a superiora tivesse suspeitado de que eu
conhecia seu segredo, minha ruína seria inevitável. Os anjos, que velam
constantemente por aqueles que merecem seu favor, permitiram que eu não
fosse descoberta. Eu agora estou livre para contar uma história cujas
circunstâncias causarão horror em todas as almas honestas. Minha missão é
extinguir este véu de hipocrisia e mostrar aos pais desavisados os perigos a
que estão expostas as mulheres que caem sob o poder deste despotismo
monástico. Entre as freiras de Santa Clara, nenhuma era mais amável ou
mais doce do que Agnes de Medina. Eu a conhecia muito bem. Ela me
contou todos os segredos do seu coração, eu era sua amiga e sua confidente
e sentia por ela um afeto sincero. E não era só eu. Sua piedade autêntica,
seu desejo de agradar e sua disposição angelical conquistaram o carinho de
todas as que vivem no convento. A própria superiora, orgulhosa, rigorosa e
ameaçadora, não pôde negar a Agnes este tributo de aprovação que não
outorgava a mais ninguém. Todas nós temos nossas fraquezas. Ai de mim,
Agnes tinha as suas! Ela violou as regras da nossa ordem e incorreu no ódio
profundo da implacável superiora. As regras de Santa Clara são severas.
Mas tornaram-se antiquadas e caíram em desuso, muitas foram até
esquecidas ou modificadas com consentimento geral. A penalidade
destinada ao crime cometido por Agnes era a mais cruel e desumana de
todas. A regra não era seguida há muito tempo. Ah, mas ainda existia, e a
abadessa vingativa decidiu aplicá-la! Esta regra decretava que se
aprisionasse a pecadora em uma masmorra secreta, expressamente
destinada a ocultar para sempre a vítima da crueldade e da tirania da
religião. Nesta terrível moradia ela deveria permanecer em total solidão,
privada de qualquer companhia e acreditada morta por aqueles cujo afeto
poderia resultar no seu resgate. Assim ela deveria definhar pelo resto de
seus dias, sem outro alimento que não pão e água, e sem outro consolo
senão as lágrimas.
A indignação despertada pela narrativa foi tão violenta que Madre
Santa Úrsula teve seu relato interrompido muitas vezes. Quando a multidão
se acalmou e o silêncio novamente reinou, ela continuou o seu discurso
enquanto o semblante da superiora demonstrava um terror maior a cada
palavra dita.
— Foi convocado um conselho entre as doze freiras mais velhas, e eu
estava entre elas. A abadessa descreveu com exagero os pecados de Agnes,
e não demonstrou nenhum escrúpulo ao propor que fosse colocada em vigor
esta regra quase esquecida. Para a vergonha do nosso sexo devo dizer que,
ou porque a força da superiora no convento era absoluta, ou porque as
frustrações, a solidão e o sacrifício endureceram nossos corações e
modificaram nosso caráter, o caso é que a bárbara proposta foi aprovada por
nove votos, dos doze existentes. Eu não estava entre as nove. Tive muitas
oportunidades para convencer-me das virtudes de Agnes, e eu a amava e
sentia muito por ela. As irmãs Bertha e Cornélia juntaram-se a mim. Nós
nos opusemos com a maior força possível e a superiora se viu obrigada a
modificar seu projeto. Apesar do fato de a maioria estar a seu favor, ela
temia romper conosco abertamente. Ela sabia que, apoiadas pela família
Medina, nossas forças seriam demasiado poderosas para que fossem
enfrentadas. E ela também sabia que, uma vez encarcerada e considerada
morta, se Agnes fosse descoberta, sua ruína seria inevitável! Ela, então,
renunciou ao seu plano, ainda que de forma relutante. Solicitou uns dias
para refletir sobre uma punição que satisfizesse toda a comunidade e
prometeu que, assim que chegasse a uma conclusão, voltaria a convocar o
mesmo conselho. Dois dias se passaram; na noite do terceiro dia, foi
anunciado que Agnes seria interrogada no dia seguinte e que, de acordo
com o seu comportamento na ocasião, seu castigo seria reforçado ou
amenizado. Na noite anterior ao interrogatório, eu fui secretamente à cela
de Agnes, em um horário que supunha que as outras freiras estariam
dormindo. Eu a consolei da melhor maneira que pude: pedi que tivesse
coragem, que confiasse na ajuda das suas amigas e lhe ensinei alguns sinais
pelos quais eu deveria lhe instruir se a resposta certa deveria ser afirmativa
ou negativa. Ciente de que nossa inimiga tentaria confundi-la, embaraçá-la
ou intimidá-la, eu temia que caísse em contradição e que prejudicasse seus
interesses. Ansiosa para manter minha visita em segredo, fiquei pouco
tempo com ela. Supliquei que não se deixasse desanimar, uni minhas
lágrimas às dela e a abracei afetuosamente. Já estava a ponto de retirar-me
quando ouvi um rumor de passos que se aproximavam da cela. Eu recuei.
Procurei abrigo atrás de uma cortina que cobria um grande crucifixo. A
porta se abriu. A abadessa entrou, seguida por outras quatro freiras. Elas se
aproximaram do leito de Agnes. A superiora reprovou seus erros com os
termos mais cruéis, afirmou que ela era uma desgraça para o convento e que
estava resolvida a livrar o mundo e ela mesma daquele monstro, ordenando
que bebesse o líquido de uma taça que lhe era oferecida por uma das freiras.
Consciente das propriedades fatais da bebida e temendo estar a um passo da
eternidade, a infeliz esforçou-se para despertar os sentimentos da superiora
com as súplicas mais comoventes. Implorou por sua vida em termos que
teriam abrandando o coração de um demônio; prometeu submeter-se
pacientemente a qualquer castigo, vergonha, encarceramento e tortura, se
lhe fosse permitido viver. Oh, se tivesse permissão para viver mais um mês,
ou uma semana, ou um dia! Sua impiedosa inimiga ouvia aqueles lamentos
de forma impassível. Afirmou que, a princípio, sua intenção era a de poupar
sua vida, e que, se agora mudava de ideia, deveria agradecer à oposição das
suas amigas. Continuou insistindo para que ingerisse o veneno e lhe
aconselhou a recorrer à misericórdia do Todo Poderoso e não à dela, e lhe
assegurou que dentro de uma hora estaria entre os mortos. Percebendo que
seria inútil continuar fazendo súplicas àquela mulher insensível, Agnes
tentou sair da cama e chamar por socorro. Ela esperava que, se não
conseguisse escapar do destino que se anunciava, ao menos alguém
testemunharia a violência cometida contra ela. A abadessa adivinhou suas
intenções, segurou a moça pelo braço e atirou-a de volta na cama. Ao
mesmo tempo, sacou uma adaga e apontou a arma para o peito dela,
afirmando que se gritasse ou vacilasse um só instante em beber o veneno,
ela furaria seu coração naquele mesmo instante. Já meio morta de medo,
Agnes não foi capaz de oferecer mais resistência. A freira aproximou-se
com a taça fatal. A abadessa obrigou-a segurar a taça e engolir todo o
conteúdo. Ela bebeu e consumou o ato terrível. As freiras, então, sentaram-
se ao redor da cama; respondiam aos seus gemidos com reprovações e
interrompiam com sarcasmos suas preces encomendando sua alma à
misericórdia. Elas a ameaçavam com a vingança dos céus e com a
condenação eterna, disseram para não esperar o perdão e tornaram ainda
mais sofrido o seu leito de morte. Estes foram os sofrimentos desta jovem
infeliz, até que o destino a libertou da perversidade das suas
atormentadoras. Ela morreu horrorizada pelo passado e assustada com o
futuro, e suas agonias foram tantas que devem ter satisfeito completamente
o ódio e desejo de vingança das suas inimigas. Assim que deixou de
respirar, a abadessa retirou-se e foi seguida pelas suas cúmplices. Foi então
que deixei meu esconderijo. Eu não me atrevi a ajudar minha desventurada
amiga, pois estava consciente de que, se tentasse alguma coisa, não teria
conseguido salvá-la e teria atraído a mesma sorte para mim. Completamente
chocada e aterrorizada pela cena horrível, mal tive forças suficientes para
retornar à minha cela. Ao transpor a porta da cela de Agnes, me aventurei a
olhar para o leito onde jazia o corpo sem vida, antes tão doce e tão adorável.
Murmurei uma prece pelo seu espírito e prometi vingar sua morte através
da vergonha e punição das suas assassinas. Mantive minha promessa,
correndo certo perigo e com muita dificuldade. Durante o funeral de Agnes,
embargada pela dor, deixei escapar algumas palavras que alarmaram a
consciência culpada da abadessa. Passaram a vigiar e espiar cada um dos
meus passos, e eu era constantemente rodeada pelas espiãs da superiora.
Muito tempo se passou até que eu encontrasse uma maneira de enviar aos
parentes daquela jovem infeliz uma insinuação sobre o meu segredo.
Disseram que Agnes havia morrido subitamente! Esta explicação foi aceita
não apenas pelos amigos em Madri mas também pelas pessoas que a
amavam dentro do convento. O veneno não deixou nenhum sinal no seu
corpo. Ninguém suspeitou da verdadeira causa da morte, que permaneceu
ignorada por todos, exceto pelas assassinas e por mim mesma.
A madre suspirou fundo e concluiu sua narrativa:
— Não tenho mais nada a relatar. Respondo com a minha vida pelo
que foi dito. Eu repito que a abadessa é uma assassina; que ela baniu deste
mundo, quiçá dos céus, uma infeliz cujo pecado era leve e perdoável; que
ela tem abusado do poder a ela confiado; e que tem sido uma déspota,
bárbara e hipócrita! Eu também acuso as quatro freiras, Violante, Camila,
Alix e Mariana, de serem suas cúmplices e igualmente criminosas!
Santa Úrsula terminou sua narrativa, deixando todos surpresos e
horrorizados, mas quando falou sobre o bárbaro assassinato de Agnes, a
multidão manifestou-se de forma tão ruidosa que foi quase impossível ouvir
a conclusão da história. A confusão aumentava mais e mais até que as
vozes, finalmente, gritaram que a superiora deveria ser entregue à fúria do
povo. Dom Ramírez imediatamente recusou a proposta. Até Lorenzo
advertiu as pessoas de que ela não havia sido submetida a um julgamento e
que deveria ser punida pelas mãos da Inquisição. Todos os protestos foram
inúteis; o tumulto ficou ainda mais violento e a população mais enfurecida.
Ramírez não conseguia sair com a prisioneira do meio da multidão. Por
todos os lados havia um bando de revoltosos tentando impedir sua
passagem e exigindo que lhes entregasse a freira. Ramírez ordenou à
escolta que abrisse caminho entre as pessoas; porém, oprimidos pela massa,
não conseguiram sacar suas espadas. Ele ameaçou a multidão com a
vingança da Inquisição, mas a situação de frenesi popular era tamanha que
até a menção deste nome, antes tão amedrontador, perdeu o efeito. Ainda
que a dor pela perda de sua irmã o fizesse olhar para a abadessa com
repugnância, Lorenzo não pôde deixar de se apiedar de uma mulher em tal
situação. Mas, apesar de todos os seus esforços, dos esforços do duque, de
Dom Ramírez e dos arqueiros, a multidão continuou avançando. Abriram
passagem entre os guardas que protegiam a vítima da sua fúria até
conseguirem arrastá-la daquele abrigo, utilizando-se da forma mais rápida e
cruel de vingança. Enlouquecida pelo medo e sem saber o que dizia, a
desgraçada gritava por um momento de misericórdia. Declarou não ser
culpada pela morte de Agnes e que estava acima de qualquer suspeita. Os
arruaceiros só estavam interessados em satisfazer sua vingança. Negaram-se
a escutá-la; passaram a proferir todo tipo de insultos, a cobri-la com lama e
lixo e a chamá-la pelos nomes mais ultrajantes. Começaram a feri-la, um
após o outro, de forma cada vez mais selvagem. Com urros e execrações,
abafavam seus estridentes apelos por piedade. Eles a arrastaram pelas ruas
repelindo-a com desprezo, pisoteando-a e desferindo-lhe todo o tipo de
golpes cruéis que o ódio e a fúria da vingança pudesse inventar. Por fim,
uma pedra lançada por alguma mão certeira atingiu-a diretamente na
têmpora. A abadessa caiu no chão toda coberta de sangue, e em poucos
minutos sua desprezível existência havia terminado. Mesmo assim, ainda
que não pudesse mais ser afetada por insultos, seu corpo sem vida
continuou sendo agredido pela raiva impotente da multidão; ele foi
espancado e arrastado até tornar-se um pedaço de carne disforme e
repugnante.
Incapazes de evitar um acontecimento tão chocante, Lorenzo e seus
amigos presenciaram, horrorizados, o decorrer de toda a ação, mas
abandonaram sua atitude passiva quando souberam que o Convento de
Santa Clara também estava sendo atacado. A população enfurecida,
buscando saciar sua ira e confundindo inocentes e culpados, resolveu
sacrificar todas as freiras daquela ordem e não deixar pedra sobre pedra.
Alarmados ao perceberem tal intenção, eles correram ao convento,
dispostos a defendê-lo, se possível, ou ao menos poder resgatar suas
residentes do furor dos revoltosos. A maioria das freiras já havia fugido,
mas algumas ainda permaneciam no local e sua situação era
verdadeiramente perigosa. No entanto, tiveram a precaução de trancar os
portões e, com a ajuda de Lorenzo, esperavam poder conter a turba até que
Dom Ramírez retornasse com reforços suficientes.
Estando bastante afastado do convento por conta da confusão, que
acabou por empurrá-lo para alguns quarteirões de distância, Lorenzo não
conseguiu alcançar seus portões imediatamente. Quando chegou, foi
impedido pela multidão de entrar no prédio. Nesse meio tempo, as pessoas
cercavam o convento furiosamente: abriam brechas entre os muros,
jogavam tochas acesas pelas janelas e juravam que até as primeiras horas do
dia não restaria viva uma só freira de Santa Clara. Lorenzo conseguiu
avançar em meio ao tropel no exato momento em que um dos portões veio
abaixo. O povo lançou-se para dentro do prédio, vingando-se de tudo o que
estava no caminho. Quebraram a mobília em pedaços, rasgaram as pinturas,
destruíram as relíquias e, no meio de tanto ódio, esqueceram-se do respeito
pela Santa. Alguns começaram a procurar as freiras enquanto outros
derrubavam partes do convento. Outros, ainda, ateavam fogo nas pinturas e
na mobília valiosa que encontraram. Os últimos foram os que provocaram a
devastação definitiva. Na verdade, as consequências de suas ações foram
mais imediatas do que eles mesmos tinham esperado ou desejado. As
chamas que se erguiam das pilhas ardentes atingiram uma parte da
construção – a qual, sendo antiga e desprovida de umidade, contribuiu para
que o fogo logo se espalhasse de sala em sala com muita rapidez. Em
seguida, as paredes foram abaladas pelo elemento devorador: as colunas
cederam, os tetos desabaram sobre as cabeças dos invasores, esmagando
muitos deles sob o seu peso. Tudo o que se ouvia eram gritos e gemidos. O
convento estava envolto pelas chamas em um espetáculo de devastação e
horror.
Lorenzo estava em choque por ter ocasionado tamanha tragédia, ainda
que não tenha sido esta sua intenção. Tentou reparar sua culpa protegendo
as desamparadas habitantes do convento; ele entrou com a multidão e
dedicou-se a reprimir sua fúria, até que a súbita e alarmante propagação das
chamas obrigou-o a buscar proteção para si próprio. As pessoas, agora,
procuravam a saída com a mesma ansiedade que tentaram entrar. Porém, a
grande multidão aglomerada na porta impediu a saída de muitos, que
acabaram morrendo consumidos pelo fogo. A boa sorte de Lorenzo guiou o
rapaz até uma pequena porta localizada na nave mais distante da capela. O
ferrolho estava destrancado: ele abriu a porta e viu-se na entrada da Cripta
de Santa Clara.
Deteve-se por um instante para recobrar o fôlego. O duque e alguns
homens da sua escolta o seguiram até aquele local e, portanto,
encontravam-se a salvo até o momento. Estavam discutindo qual direção
deveriam tomar para escapar daquela situação caótica quando suas
deliberações foram terminantemente interrompidas pela visão do fogo
atingindo as paredes do convento, pelo barulho das pesadas abóbadas
ruindo e pelos gritos das freiras e dos revoltosos sendo pisoteados pela
turba, perecendo nas chamas ou sendo esmagados pelo peso da construção
que desabava.
Lorenzo indagou para onde levava aquela passagem. Responderam
que levava ao jardim dos capuchinhos e decidiram buscar uma saída por ali.
Dessa forma, o duque alcançou o trinco e entrou no cemitério adjunto. Os
outros homens o acompanharam sem cerimônia. Lorenzo, que ficara por
último, já estava quase deixando o claustro quando viu que a porta do
sepulcro se abria suavemente. Alguém apareceu e olhou para fora; mas,
percebendo a presença de estranhos, soltou um gritou e desceu correndo as
escadas de mármore.
— O que é isso? – perguntou Lorenzo. — Há algum mistério aqui.
Sigam-me agora mesmo!
Ele entrou rapidamente no sepulcro, perseguindo a pessoa que
continuava a correr à sua frente. O duque, ainda que desconhecendo a causa
daquelas palavras, supôs que o rapaz deveria ter suas razões e seguiu-o sem
hesitação. Os outros fizeram o mesmo, e logo todo o grupo chegou ao pé da
escada. Como a porta acima deles permanecia aberta, as chamas do
incêndio ofereciam luz suficiente para que Lorenzo pudesse enxergar o
fugitivo correndo por entre as longas passagens e jazigos distantes. Mas, ao
fazer uma curva, ficou desprovido da luz das chamas e viu-se em meio a
total escuridão, podendo apenas contar com o eco dos passos do fugitivo
para continuar a perseguição. Os homens viram-se obrigados a seguir com
cautela e, pelo que puderam perceber, o fugitivo também parecia ter
diminuído seus passos, pois o intervalo entre eles parecia agora maior.
Finalmente, ficaram desorientados naquele labirinto de passagens e
dispersaram-se em várias direções. Movido pela ânsia de esclarecer o
mistério e também por fazer parte dele, instigado por algum impulso secreto
e inexplicável, Lorenzo não se importou com aquela situação até que
encontrou-se completamente sozinho. O som dos passos havia cessado.
Tudo estava quieto ao seu redor, e não havia pista alguma para guiá-lo até o
fugitivo. Ele parou para refletir de que modo continuaria com a
perseguição. Estava convencido de que nenhum motivo natural teria levado
o fugitivo a buscar um lugar tão lúgubre a uma hora tão pouco usual; aquele
grito parecia de uma voz aterrorizada e ele estava seguro de que algum
mistério acompanhava aquele incidente. Depois de alguns minutos de
hesitação, decidiu prosseguir tateando as paredes para encontrar o caminho.
Passado algum tempo de lento progresso, ele pôde distinguir uma centelha
de luz à distância. Guiado por essa visão e com a espada em punho, dirigiu
seus passos até o local de onde parecia vir a luz.
Tratava-se de uma vela que ardia em frente à imagem de Santa Clara.
Diante dela estavam várias mulheres com seus trajes brancos tremulando
em consequência da corrente de ar existente entre as sepulturas do
calabouço. Curioso para descobrir o que faziam naquele lugar tão
melancólico, Lorenzo aproximou-se com precaução. As estranhas pareciam
seriamente envolvidas em uma conversa. Elas não ouviram os passos de
Lorenzo e ele pôde aproximar-se sem ser percebido e escutar o que diziam.
— Eu afirmo! – continuava aquela que falava quando ele chegou, e a
quem as demais escutavam com muita atenção. — Afirmo que os vi com
meus próprios olhos. Desci correndo as escadas e fui seguida, mas escapei
de cair nas mãos deles por puro milagre! Se não fosse pela lamparina, eu
nunca teria encontrado vocês.
— O que será que estão fazendo aqui? – perguntou uma outra, com a
voz trêmula. — Acha que estão atrás de nós?
— Queira Deus que meus medos sejam infundados – respondeu a
primeira — mas receio que sejam assassinos! Se nos descobrirem, estamos
perdidas! Quanto a mim, minha morte é certa. Meu parentesco com a
abadessa será suficiente para a minha condenação; e mesmo que essas
criptas tenham me protegido até agora...
Então, ao erguer os olhos, descobriu Lorenzo, que continuava a se
aproximar lentamente.
— Os assassinos! – ela gritou.
Ela levantou-se do pedestal da imagem, onde estava sentada, e tentou
correr para escapar. Suas companheiras, ao mesmo tempo, soltaram um
grito de terror quando Lorenzo segurou a fugitiva pelo braço. Assustada e
desesperada, ela colocou-se de joelhos diante dele.
— Poupe-me! – ela exclamou. — Por Jesus Cristo, poupe-me! Eu sou
inocente, é verdade, eu sou!
Enquanto falava, sua voz estava quase estrangulada pelo medo. Os
raios de luz da lamparina iluminaram seu rosto descoberto e Lorenzo
reconheceu a bela Virgínia de Villa-Franca. Ele se apressou para ajudá-la a
levantar-se e pediu que tivesse coragem. Ele prometeu protegê-la dos
revoltosos e garantiu-lhe que seu refúgio ainda era secreto, e que ela podia
confiar na sua intenção de defendê-la até a última gota de sangue. Durante a
conversa, as freiras assumiram várias atitudes diferentes: uma ajoelhou-se
suplicando aos céus; outra escondeu o rosto no colo da vizinha; algumas
ouviam, imóveis e temerosas, o discurso do suposto assassino; enquanto
outras ainda se abraçavam à imagem de Santa Clara e imploravam pela sua
proteção com gritos frenéticos. Ao perceberem o equívoco, reuniram-se ao
redor de Lorenzo, cobrindo o rapaz com bênçãos. Ele concluiu que, ao
ouvir as ameaças da multidão e depois de assistir, das torres do convento, às
crueldades infligidas à sua superiora, muitas freiras e pensionistas buscaram
refúgio na cripta. Entre as primeiras, reconheceu a encantadora Virgínia.
Por ser parente da abadessa, tinha mais motivos do que as outras para temer
a ira da turba, e agora suplicava a Lorenzo que não a abandonasse. Suas
companheiras, a maioria mulheres de famílias da nobreza, fizeram as
mesmas súplicas, as quais ele aquiesceu de bom grado. Ele prometeu não
abandoná-las até que estivessem a salvo nos braços de seus familiares, mas
aconselhou que permanecessem na cripta por algum tempo ainda, até que a
fúria popular estivesse mais controlada e que a multidão tivesse sido
dispersada pela força militar.
— Quisera Deus – exclamou Virgínia — que eu já me encontrasse a
salvo nos braços de minha mãe. O que acha, senhor? Ainda teremos de ficar
neste lugar por muito tempo? Cada minuto que passo aqui é uma tortura!
— Acredito que não por muito tempo – ele disse. — Mas até que
possam sair sem perigo, este sepulcro será um refúgio impenetrável. Aqui
não correm risco de serem descobertas, e eu as aconselho a ficar aqui por
mais duas ou três horas.
— Duas ou três horas? – exclamou a irmã Helena. — Se eu ficar mais
uma hora nesta cripta, morrerei de medo! Nem por todos os tesouros do
mundo eu suportaria novamente tudo o que sofri desde que entrei aqui!
Virgem Santa! Ficar neste lugar melancólico, no meio da noite, cercada
pelos cadáveres empoeirados das minhas falecidas companheiras e esperar,
a cada instante, ser destroçada pelos seus espíritos que vagam ao meu redor,
que choram, gemem e se lamentam até que o sangue congele em minhas
veias... Jesus Cristo! É o suficiente para me levar à loucura!
— Desculpe-me – disse Lorenzo — se pareço surpreso pelo fato de
que, enquanto a senhora está ameaçada por perigos reais, é capaz de render-
se a perigos imaginários. Esses medos são pueris e sem fundamento. Deve
combatê-los, santa irmã! Eu prometi defendê-las dos invasores, mas não
posso fazer nada contra os ataques da sua imaginação. A ideia de fantasmas
é ridícula ao extremo. E se continuar a deixar-se levar por medo do irreal...
— Irreal? – exclamaram as irmãs, em uma única voz. — Ora, todas
nós pudemos ouvir, senhor! Cada uma de nós ouviu! Era algo que se repetia
e que parecia cada vez mais triste e profundo. O senhor nunca nos
convencerá de que estamos todas enganadas! Não, de forma alguma! Não
eram ruídos criados pela nossa imaginação.
— Ouçam! Ouçam! – interrompeu Virgínia, com a voz aterrorizada.
— Que o Senhor nos proteja! Aí está o gemido novamente!
As freiras cruzaram as mãos e puseram-se de joelhos. Lorenzo olhou
ao redor com ansiedade, prestes a ceder aos temores das outras mulheres.
Um silêncio universal reinava. Ele examinou a cripta, mas não viu nada. Já
estava disposto a interpelar as freiras e ridicularizar suas apreensões
infantis, quando sua atenção foi atraída por um gemido profundo e
prolongado.
— O que foi isso? – ele perguntou, num sobressalto.
— Aí está, senhor! – respondeu a irmã Helena. — Agora deve estar
convencido! O senhor também ouviu o lamento! Diga se nossos medos são
imaginários! Desde que estamos aqui, os gemidos se repetem a cada cinco
minutos. Sem dúvida, tais lamentos partem de alguma alma que sofre e que
deseja uma oração para que possa deixar o purgatório. Mas nenhuma de nós
se atreve a fazer uma pergunta. Quanto a mim, se eu visse uma aparição,
estou certa de que morreria de medo!
Nem bem a freira terminou seu discurso, ouviu-se um segundo
gemido, ainda mais claro. As freiras imediatamente começaram a rezar para
afugentar os maus espíritos. Lorenzo ouvia com atenção. Parecia que podia
distinguir algumas palavras entre os lamentos, mas a distância impedia a
compreensão. O rumor parecia vir do centro da cripta na qual ele e as
freiras estavam, e de onde partiam múltiplas passagens em direções
diversas, formando uma espécie de estrela. A curiosidade de Lorenzo,
sempre desperta, lhe desafiou a desvendar o mistério. Ele pediu que
ficassem em silêncio e as freiras obedeceram. Tudo ficou quieto até que o
silêncio foi, mais uma vez, interrompido por um lamento que se repetiu
várias vezes, sucessivamente. Ele notou que estava mais perceptível, e à
medida que avançava seguindo o som, percebeu que estava sendo levado ao
túmulo de Santa Clara.
— O som vem daqui – disse ele. — De quem é esta imagem?
Irmã Helena, a quem a pergunta fora dirigida, ficou calada por um
momento. De repente, ela juntou as mãos e exclamou:
— Sim! Deve ser isso mesmo. Eu descobri o significado dos
gemidos!
As freiras amontoaram-se ao seu redor e suplicaram por explicações.
Ela respondeu gravemente que, desde tempos imemoráveis, a imagem era
conhecida pelos seus milagres. Ela concluiu que a santa estava preocupada
com o convento sob sua proteção, e expressava seu pesar com audíveis
lamentações. Lorenzo, que não tinha a mesma fé na santa milagrosa, não
considerou a solução do mistério tão satisfatória quanto as freiras, que
acreditaram sem vacilação. Em um ponto, é verdade, ele concordava com a
irmã Helena. Ele suspeitava de que os gemidos vinham da imagem: quanto
mais escutava, mais convencido ficava. Ele aproximou-se da imagem a fim
de examiná-la mais de perto; mas, ao perceber sua intenção, as freiras lhe
imploraram que desistisse, por amor a Deus – pois, se tocasse na estátua,
sua morte seria inevitável.
— E no que consiste este perigo? – ele questionou.
— Mãe de Deus! No quê? – replicou a irmã Helena, sempre ansiosa
para relatar algum milagre. — Se conhecesse uma centésima parte das
histórias maravilhosas relacionadas a esta imagem que a superiora
costumava contar! Ela nos disse, mais de uma vez, que se alguma de nós se
atrevesse a encostar um dedo na estátua, deveríamos esperar uma
consequência fatal. Entre outras coisas, ela nos contou que, certa vez, um
ladrão entrou na cripta e tentou roubar um rubi de inestimável valor. O
senhor pode vê-lo? Ele brilha no terceiro dedo da mão que segura a coroa
de espinhos. A joia, naturalmente, despertou a cobiça do gatuno e ele
decidiu apoderar-se dela. Ele subiu no pedestal, apoiando-se no braço
direito da santa e estendendo seu próprio braço para pegar o anel. O homem
ficou muito surpreso ao ver que a imagem erguia sua mão em atitude de
ameaça e ao ouvir seus lábios pronunciarem sua perdição eterna!
Aterrorizado e consternado, ele desistiu do roubo e decidiu sair do sepulcro.
Porém, sua fuga não lhe foi permitida: ele descobriu que era impossível
soltar a sua mão do braço direito da estátua. Ele usou toda a força, mas foi
inútil; permaneceu preso à imagem até que uma angústia insuportável e
febril percorreu suas veias, fazendo com que gritasse por ajuda. A cripta
ficou cheia de espectadores. O ladrão confessou seu sacrilégio, mas só foi
possível libertá-lo cortando a sua mão. Desde então, essa mão tem
permanecido presa à imagem. O ladrão tornou-se um ermitão e, a partir
desse dia, levou uma vida exemplar. Mas o decreto da santa se cumpriu, e
dizem que o homem ainda ronda esta cripta implorando pelo perdão de
Santa Clara com gemidos e lamentações. Agora que penso nisso, os
gemidos que ouvimos podem bem ser os gemidos do seu espírito pecador!
Mas, sobre isso, não tenho muita certeza. Tudo o que posso dizer é que,
desde então, ninguém se atreve a tocar a imagem. Então, não seja tolo, meu
bom senhor! Pelo amor de Deus, desista e não se exponha
desnecessariamente a uma morte certa!
Pouco convencido de que sua morte seria assim tão certa quanto a
irmã Helena acreditava, Lorenzo persistiu em sua resolução. As freiras
suplicaram para que desistisse da ideia com muitas súplicas e até apontaram
para a mão do ladrão, a qual, com efeito, encontrava-se visível sobre o
braço da estátua. Esta prova, assim elas imaginavam, seria suficiente para
convencê-lo a desistir do seu intento. No entanto, ficaram escandalizadas
quando ele declarou que suspeitava de que aqueles dedos secos e enrugados
tivessem sido colocados ali por ordem da abadessa. Apesar de todos os
pedidos e ameaças, ele aproximou-se da estátua, saltou sobre a grade de
ferro que a protegia e submeteu a santa a um exame completo. A princípio,
a imagem parecia ser feita de pedra; no entanto, após uma inspeção mais
atenta, parecia ser simplesmente feita de madeira tingida. Ele a empurrou e
tentou movê-la, mas parecia haver uma base sólida debaixo dela. Lorenzo
examinou a estátua novamente, porém não encontrou nenhuma pista para a
solução do mistério – que agora, por sua vez, também despertava a
curiosidade das freiras, que viam o homem tocando a imagem com
impunidade. Ele fez uma pausa e escutou: os gemidos eram repetidos a
intervalos e ele estava convencido de que encontrava-se no local mais
próximo a eles. Meditou um pouco sobre o assunto e voltou a estudar a
estátua com olhos indagadores. De repente, seu olhar voltou-se para a mão
enrugada. Concluiu que uma advertência tão particular deveria obedecer a
uma razão para que não tocassem no braço da imagem. Voltou a subir no
pedestal e examinou o objeto da sua atenção: acabou descobrindo um
pequeno botão de ferro escondido entre o ombro da santa e o que seria
supostamente a mão do ladrão. A descoberta o deixou muito animado. Ele
pôs o dedo sobre o botão e apertou com força. Imediatamente, ouviu-se um
ruído retumbante vindo de dentro da estátua, como se uma corrente
firmemente esticada estivesse sendo liberada. Assustadas pelo som, as
tímidas freiras se afastaram e já se preparavam para deixar a cripta ao
primeiro sinal de perigo. Entretanto, como tudo o mais permanecia quieto e
tranquilo, elas se reagruparam ao redor de Lorenzo e observaram com
curiosidade.
Percebendo que nada havia acontecido por detrás da sua descoberta,
Lorenzo desceu do pedestal. Ao retirar sua mão do braço da santa, ela
tremeu a esse toque, provocando terror entre as espectadoras que
acreditavam que a estátua estava viva. As ideias de Lorenzo quanto a este
particular eram muito diferentes. Logo percebeu que o barulho que ouviram
tinha sido ocasionado pela liberação de uma corrente que prendia a estátua
ao pedestal. Tentou novamente movê-la e, desta vez, obteve êxito sem
muito esforço; colocou a estátua no chão e viu que o pedestal estava oco, e
que sua abertura era coberta por uma pesada grade de ferro.
A curiosidade era tanta, que as irmãs esqueceram-se dos perigos reais
e também dos imaginários. Lorenzo tentou levantar a grade com a ajuda das
irmãs, que usaram todas as suas forças; a tentativa foi bem sucedida, sem
muita dificuldade. Um abismo profundo abriu-se diante deles, cuja
obscuridade era tão densa que os olhos lutavam em vão para penetrar. A
claridade da vela não era forte o bastante para ajudá-los. Não se distinguia
nada, a não ser o ruído de alguns passos irregulares que se fundiam com o
abismo escancarado e que se perdiam completamente na escuridão. Os
gemidos tinham cessado, mas todos acreditavam que vinham daquela
caverna. Ao inclinar-se sobre ela, Lorenzo teve a sensação de ver uma
pequena centelha de luz brilhando na escuridão. Ele fixou atentamente o
olhar naquele ponto e convenceu-se de que era uma luz que às vezes
tornava-se visível e, às vezes, desaparecia. Ao chamar a atenção das freiras
para este detalhe, todas elas puderam perceber o brilho. Quando ele
declarou sua intenção de descer na caverna, no entanto, todas foram
contrárias ao plano. Mesmo assim, seus protestos não foram suficientes
para dissuadi-lo. Ninguém teve coragem para acompanhá-lo, nem ele
pensava em privá-las da proteção da vela. Assim, sozinho e completamente
às escuras, Lorenzo preparou-se para levar sua ideia adiante, enquanto as
freiras lhe ofereciam orações pelo seu êxito e segurança.
Os degraus eram tão estreitos e irregulares que a descida mais parecia
um precipício. A escuridão tornava seus passos inseguros e ele viu-se
obrigado a avançar com muito cuidado para não dar um passo em falso e
cair no abismo que se abria debaixo dele. O risco era real e, mais de uma
vez, ele esteve perto de cair; contudo, atingiu o chão firme muito antes do
que esperava. Percebeu que a escuridão e as brumas impenetráveis que
reinavam na caverna tinham feito com que acreditasse que o local fosse
bem mais profundo do que realmente era. Chegou ao pé da escada sem um
arranhão. Então, parou e olhou ao redor, procurando a centelha de luz que
chamara sua atenção. Não havia nada: tudo estava escuro e quieto. Tentou
ouvir os gemidos, mas não escutou nada exceto os murmúrios distantes das
freiras que rezavam em voz baixa. Ficou indeciso quanto à direção que
deveria seguir. Finalmente decidiu avançar, mas bem devagar, temendo
afastar-se do lugar que procurava ao invés de aproximar-se dele. Os
gemidos pareciam indicar que alguém estava sofrendo ou que estava em
apuros, e ele esperava poder aliviar as desgraças do pranteador. Enfim, uma
voz queixosa, a pouca distância, chegou aos seus ouvidos; mais animado,
ele tomou aquela direção. O som ficava mais nítido à medida que Lorenzo
avançava, e ele logo vislumbrou aquela centelha de luz, que até então
encontrava-se oculta atrás de uma parede baixa.
A luz vinha de uma pequena lamparina colocada sobre uma pilha de
pedras, cujos raios, fracos e melancólicos, ressaltavam os horrores de uma
masmorra estreita e tenebrosa formada em um dos lados da caverna.
Também revelava outros recuos de construção similar, mas cuja
profundidade se perdia na escuridão. A luz parecia fria sobre as paredes
úmidas, cuja superfície devolvia seus débeis reflexos. Uma névoa maléfica
obscurecia o ar acima da masmorra. À medida que avançava, Lorenzo
sentia um frio penetrante se espalhando por suas veias. Os gemidos
frequentes o incentivavam a continuar. Ele avançava em sua direção e,
através da fraca iluminação da vela, conseguiu distinguir, no canto daquele
recinto abominável, uma figura esticada sobre um catre de palha, tão
miserável, tão extenuada, tão pálida, que duvidou tratar-se de uma mulher.
Ela estava meio despida; seus longos cabelos desgrenhados caíam em
desordem sobre o rosto, ocultando-o quase por inteiro. Um braço
enfraquecido caía descuidadamente sobre uma manta esfarrapada que
cobria seu corpo trêmulo; o outro rodeava um pequeno embrulho que trazia
junto ao peito. Havia um grande rosário perto dela; na sua frente, um
crucifixo no qual ela mantinha cravados seus olhos fundos; e, ao seu lado,
uma cesta e uma pequena jarra de barro.
Petrificado de horror, Lorenzo ficou imóvel. Ele contemplou aquela
infeliz com desgosto e piedade. A visão lhe dava calafrios e sentiu uma
angústia insuportável no coração. Não tinha forças e suas pernas pareciam
não querer sair do lugar. Foi obrigado a apoiar-se contra a parede ao seu
lado, incapaz de ir adiante ou de falar com a sofredora. Ela voltou o rosto
em direção à escada. A parede ocultava Lorenzo e ela não pode vê-lo.
— Ninguém vem me ver... – ela murmurou.
Sua voz era profunda e entrecortada. Ela suspirou com amargura.
— Ninguém vem me ver! – ela repetiu. — Não, elas se esqueceram
de mim. Não voltarão mais.
Ela se calou por um momento. Então, continuou pesarosamente:
— Dois dias! Dois longos e intermináveis dias sem comida! E sem
esperança, sem conforto. Mulher estúpida! Como posso desejar prolongar
uma vida tão desgraçada? Mas, que morte! Oh, Deus! Acabar assim!
Prolongar os dias nesta tortura! Até agora, não conhecia a fome. Ah! Não.
Ninguém está vindo! Não voltarão mais!
Ela ficou em silêncio. Estremeceu e jogou a manta sobre os ombros
desnudos.
— Estou com muito frio! Ainda não estou habituada à umidade desta
masmorra. É estranho, mas não importa. Vou ficar ainda mais gelada, e não
vou sentir. Ficarei fria, fria como você!
Ela olhou para o embrulho que tinha sobre o peito. Inclinou-se sobre
ele e o beijou. Depois, afastou-o impulsivamente e tremeu de desgosto.
— Antes era tão doce! Teria sido tão adorável, tão parecido com ele!
Eu o perdi para sempre! Como mudou em tão poucos dias! Eu não o
reconheceria! Mesmo assim, ainda o amo. Deus! Como o amo! Eu me
esquecerei do que ele é: apenas me lembrarei de como ele já foi e o amarei
da mesma forma, como quando era tão doce, tão amável, tão parecido com
ele! Eu pensava que não tinha mais lágrimas, mas parece que ainda tenho
algumas.
Ela secou os olhos com uma mecha dos cabelos, esticou uma mão até
a jarra e a alcançou sem dificuldade. Deu uma olhada inquisitiva e
desesperada no seu interior, suspirou e voltou a colocá-la no chão.
— Completamente vazia! Nem uma gota! Não há uma só gota para
refrescar minha garganta seca. Eu daria qualquer tesouro por um pouco de
água. E pensar que são servas de Deus que me fazem sofrer assim! Elas se
consideram santas enquanto me torturam como demônios. Cruéis e
insensíveis, e são elas que requisitam o meu arrependimento! E são elas que
me ameaçam com a condenação eterna! Senhor! Senhor! O Senhor não
pensa assim!
Mais uma vez, cravou os olhos no crucifixo, pegou o rosário e,
enquanto passava as contas, o rápido movimento dos seus lábios revelou
que rezava com fervor. Enquanto ouvia aqueles tristes lamentos, a
sensibilidade de Lorenzo era ainda mais afetada. A primeira visão de
semelhante miséria havia lhe causado um profundo choque, mas, depois de
algum tempo, conseguiu caminhar em direção à prisioneira. Ela ouviu seus
passos e, soltando um grito de alegria, deixou cair o rosário.
— Sim, sim, sim! – ela exclamou. — Alguém se aproxima!
Ela tratou de levantar-se, mas suas forças não eram suficientes: ela
caiu para trás e afundou novamente no catre de palha. Lorenzo ouviu o
ruído de correntes pesadas. Ele se aproximou ainda mais, enquanto a
prisioneira continuava:
— É você, Camila? Finalmente, você veio! Já era tempo. Eu achava
que vocês tinham se esquecido de mim, que eu estava condenada a morrer
de fome. Dê-me algo para beber, Camila, pelo amor de Deus! Sinto que vou
desmaiar depois de um jejum tão longo e estou tão fraca que não posso me
levantar. Minha boa Camila, dê-me algo para beber, antes que eu morra na
sua frente!
Temendo que a surpresa, dado o seu estado frágil, pudesse ser fatal,
Lorenzo não sabia como falar com ela.
— Não é Camila – ele disse, por fim, com voz baixa e suave.
— Quem é, então? – perguntou a prisioneira. — Alix, talvez, ou
Violante? Minha visão está tão fraca e turva que não sou capaz de
reconhecer seu rosto. Mas não importa quem é, se o seu coração for
sensível à mínima compaixão, se você não for mais cruel do que os lobos
ou tigres e se tiver piedade de mim. Sabe que estou morrendo por falta de
alimento? Este é o terceiro dia desde que minha boca recebeu comida pela
última vez. Você traz alguma comida? Ou veio apenas para anunciar minha
morte e o tempo que me resta de agonia?
— Você está enganada – respondeu Lorenzo. — Eu não sou emissário
da sua abadessa cruel. Eu lamento os seus sofrimentos e venho para libertá-
la.
— Para libertar-me? – repetiu a prisioneira. — Disse que veio para
libertar-me?
Levantando-se e, ao mesmo tempo, apoiando-se no catre com as
mãos, ela olhou com atenção para o desconhecido.
— Bom Deus! Não é uma ilusão! Um homem! Diga, quem é? O que
o traz aqui? Veio me salvar, para me libertar para a vida e para a luz? Oh,
diga, diga sem demora, não encoraje uma esperança cuja decepção acabaria
comigo!
— Fique calma! – respondeu Lorenzo, com a voz suave e cheia de
compaixão. — A abadessa, de cuja crueldade você se queixa, já pagou
pelos crimes que cometeu. Não precisa mais ter medo dela. Dentro de
alguns minutos, estará em liberdade e nos braços de seus amigos, de quem
foi afastada. Você pode confiar na minha proteção. Dê-me sua mão e não
tenha medo. Deixe-me conduzi-la até o lugar onde receberá todas as
atenções que a fragilidade do seu estado exige.
— Oh, sim, sim, sim! – exclamou a prisioneira, com alegria. —
Então, Deus existe, e ele é justo. Aleluia! Aleluia! Eu poderei respirar ar
fresco novamente e verei a gloriosa luz do sol. Eu irei com você, estranho!
Eu irei com você! Oh, Deus o abençoe por sentir compaixão por esta
desafortunada! Mas isto deve ir comigo também – ela acrescentou,
apontando para o pequeno embrulho que ainda apertava contra o peito. —
Não posso separar-me dele. Eu o levarei comigo: ele convencerá a todos do
quão terríveis são as moradas falsamente chamadas religiosas. Bondoso
estranho, dê-me sua mão. Estou fraca de tanta fome, sofrimento e
enfermidades, e minhas forças me abandonaram por completo. Assim está
bem!
Ao inclinar-se para levantá-la, a luz da vela iluminou o rosto de
Lorenzo.
— Deus Todo Poderoso! – ela exclamou. — Será possível? Esse
rosto, esses traços... oh, sim, sim, é...
Ela estendeu os braços para abraçá-lo, mas seu corpo debilitado não
foi capaz de suportar as emoções que lhe agitavam o peito. Ela desmaiou e,
uma vez mais, caiu sobre o catre de palha.
Lorenzo ficou surpreso com suas últimas palavras. Ele achou que já
tinha ouvido aquela voz antes, mas não conseguia se lembrar de onde. Ele
viu que sua condição era perigosa e que o auxílio médico seria
absolutamente necessário, e apressou-se para tirá-la da masmorra. A
princípio, viu-se impedido por uma corrente presa ao corpo da prisioneira,
fixa na parede vizinha. No entanto, sua força natural e a grande ansiedade
em libertar a desventurada foram suficientes para arrancar a argola que unia
a corrente ao outro extremo. Então, carregando a prisioneira nos braços, ele
dirigiu-se à escada. A iluminação da vela acima, assim como os murmúrios
das vozes femininas, guiaram seus passos. Ele subiu a escada e, pouco
depois, alcançou a grade de ferro.
Durante sua ausência, as freiras estiveram terrivelmente atormentadas
pela curiosidade e preocupação. Elas ficaram igualmente surpresas e
encantadas quando viram Lorenzo sair da caverna. Todas se comoveram ao
ver a miserável criatura que ele carregava nos braços. Enquanto as freiras –
e Virgínia em particular – dedicavam-se a fazê-la voltar a si, Lorenzo
relatava em poucas palavras como a encontrara. Então ele observou que,
provavelmente, o tumulto já havia passado e que já poderia levá-las ao
encontro dos seus amigos em segurança. Todas estavam ansiosas para
deixar a cripta. Mesmo assim, para evitar qualquer possibilidade de maus-
tratos, elas pediram a Lorenzo que fosse na frente para confirmar se não
tinha mais ninguém lá fora. Ele concordou. Irmã Helena ofereceu-se para
conduzi-lo até a escada, e eles já estavam prestes a se separar quando uma
luz forte surgiu entre as várias passagens das paredes adjacentes. Ao mesmo
tempo, ouviram passos que se aproximavam rapidamente e em número
considerável. As freiras ficaram aterrorizadas. Acreditavam que seu
esconderijo fora descoberto e que os invasores estavam atrás delas.
Abandonando a prisioneira, que continuava desacordada, elas reuniram-se
ao redor de Lorenzo e suplicaram a sua proteção. Apenas Virgínia foi capaz
de se esquecer do seu próprio perigo e se dedicar a aliviar os sofrimentos da
outra. Ela apoiou a cabeça da sofredora sobre seus joelhos, molhando-lhe a
testa com água de rosas, esquentando-lhe as mãos frias e salpicando-lhe o
rosto com lágrimas de compaixão. Quando os estranhos chegaram mais
perto, Lorenzo foi capaz de dissipar os temores das suplicantes. Seu nome,
pronunciado por várias vozes, entre elas, a do duque, ressoava pelas
sepulturas e o convenceram de que estavam à sua procura. Ele fez o
comunicado às freiras, que sentiram-se imediatamente aliviadas. Alguns
instantes depois, suas palavras foram confirmadas: Dom Ramírez, assim
como o Duque de Medina, apareceram acompanhados por diversos homens
com tochas. Eles o procuravam na cripta para informar que a multidão
havia se dispersado e que o tumulto estava terminado. Lorenzo relatou uma
vez mais e rapidamente a sua aventura na caverna, e explicou o quanto a
desconhecida precisava de assistência médica. Ele pediu ao duque que se
encarregasse dela, assim como das freiras e das pensionistas.
— Quanto a mim – ele disse — outros cuidados reclamam a minha
atenção. Enquanto vocês, com metade desses arqueiros, acompanham estas
damas até seus respectivos lares, eu desejo que a outra metade venha
comigo. Quero examinar a caverna de baixo e inspecionar os recintos mais
secretos do sepulcro. Não descansarei até ter certeza de que esta pobre
vítima era a única aprisionada pelas religiosas nestes subterrâneos!
O duque aprovou a decisão. Dom Ramírez ofereceu-se para ajudá-lo
na inspeção e sua proposta foi prontamente aceita e reconhecida. Depois
dos respectivos agradecimentos a Lorenzo, as freiras colocaram-se sob a
proteção do seu tio e foram conduzidas para fora da cripta. Virgínia
solicitou que a desconhecida fosse deixada aos seus cuidados, e prometeu a
Lorenzo que o manteria informado tão logo ela estivesse suficientemente
recuperada e pronta para receber visitas. Na verdade, ela fez essa promessa
mais por interesse próprio do que pelo interesse de Lorenzo pela
prisioneira. Ela havia testemunhado sua cortesia, sua nobreza e coragem
com considerável emoção. Desejava sinceramente cultivar sua amizade, e,
além dos sentimentos de compaixão despertados pela prisioneira, esperava
também que suas atenções para com a desafortunada a tornassem
merecedora da estima de Lorenzo. Ela nem precisava se preocupar com este
assunto: a bondade que demonstrara e o seu interesse pela desconhecida já
tinham conquistado um lugar elevado nas graças do rapaz. Enquanto estava
ocupada tentando aliviar os sofrimentos da prisioneira, a natureza das suas
atenções havia lhe adornado com novos encantos que tornaram sua beleza
mil vezes mais interessante. Lorenzo a contemplou com admiração e prazer:
era um anjo auxiliador que descera para ajudar uma pobre inocente, e seu
coração não teria resistido a esse charme se já não estivesse prometido à
Antonia.
O duque conduziu as freiras em segurança às residências dos seus
respectivos familiares. A prisioneira resgatada ainda estava desacordada e
não dava sinais de vida, além de alguns grunhidos ocasionais. Ela foi levada
em uma espécie de maca; Virgínia, que estava constantemente ao seu lado,
temia que, esgotada pelo jejum prolongado e pela súbita troca do cativeiro e
escuridão pela luz e liberdade, ela não conseguisse se recuperar do choque.
Lorenzo e Dom Ramírez ainda estavam na cripta. Depois de alguma
discussão sobre qual plano seguir, decidiram que, a fim de evitar perda de
tempo, deveriam dividir os arqueiros em dois grupos: um examinaria a
caverna com Dom Ramírez e o outro penetraria as profundezas da cripta
com Lorenzo. Assim acordados e estando seus acompanhantes
provisionados com as respectivas tochas, Dom Ramírez dirigiu-se à
caverna. Ele já havia descido alguns degraus quando ouviu pessoas se
aproximando rapidamente do interior do sepulcro. Surpreendido, saiu
apressado da caverna.
— O senhor ouviu passos? – perguntou Lorenzo. — Vamos até eles!
Parecem estar seguindo nesta direção!
Neste momento, um grito alto e penetrante fez com que apertassem o
passo.
— Socorro! Socorro, pelo amor de Deus! – gritou uma voz, cujo tom
melodioso penetrou o coração de Lorenzo com terror.
Ele correu feito um raio em direção ao grito, seguido por Dom
Ramírez, com a mesma pressa.
CAPÍTULO IV

Oh, Deus! Quão frágil é a sua criatura, o homem!


Como pode ser insensivelmente traído pelo próprio semelhante!
Quão inseguro estamos diante das nossas próprias forças,
Quão pouco advertidos somos sobre a força oponente,
Como nos deixamos distrair pelos beirais floridos,
Mestres ainda na nossa maneira de voltar,
Até que as fortes rajadas de fúria aumentem nossa paixão,
Até que a tempestade misture a terra e o ar,
E rapidamente os transforme em um oceano infinito,
E tardiamente lamentamos nossa confiança perdida,
Com as cabeças destinadas a bater nas ondas,
E a partir dos nossos problemas, observar a terra retroceder.
(Prior)

Durante todo esse tempo, Ambrósio não tomou conhecimento do


que estava se passando ao seu redor. A execução dos planos com relação
à Antonia ocupava todos os seus pensamentos. Até então, sentia-se
satisfeito com o êxito dos seus projetos. Antonia havia ingerido o
narcótico, fora enterrada na cripta de Santa Clara e estava inteiramente
ao seu dispor. Matilda, muito familiarizada com a natureza e efeitos do
sonífero, tinha calculado que o efeito do mesmo não terminaria até a
madrugada seguinte. Ambrósio aguardava ansiosamente a chegada da
hora certa. A comemoração de Santa Clara lhe oferecia uma ocasião
propícia para consumar seu crime. Ele estava certo de que todos os
monges e freiras estariam engajados na procissão e de que ele não
precisaria temer uma interrupção; como não tinha a intenção de
encabeçar a fila dos frades, ele se eximira daquela obrigação. Ambrósio
não tinha dúvidas de que, ao encontrar-se longe de qualquer tipo de
ajuda, separada do mundo e completamente à sua mercê, Antonia não
resistiria aos seus avanços. Sua garantia era a devoção que ela sempre
lhe demonstrara. Mesmo assim, o superior decidiu que, se ela se
mostrasse obstinada, não haveria nada que o impedisse de se aproveitar
dela. Seguro de que não seria descoberto, não temia ter de recorrer ao
uso da força; e, se ainda relutava, não era por princípios de vergonha ou
compaixão, mas sim porque experimentava por Antonia os sentimentos
mais sinceros e ardentes, e porque não desejava possuir ninguém mais
além dela.
Os monges deixaram o mosteiro à meia-noite. Matilda estava entre
aqueles que formavam o coral e lideravam os cânticos. Ambrósio foi
deixado para trás e estava livre para prosseguir com seus planos.
Convencido de que não haveria ninguém para observar seus movimentos
ou interromper seus prazeres, caminhou apressado em direção à parte
oeste do convento. Seu coração batia com esperança e também
ansiedade. Ele cruzou o jardim, destrancou o portão que dava acesso ao
cemitério e, em poucos minutos, estava diante da cripta. Fez uma pausa e
olhou ao redor com receio, consciente de que seus atos não deveriam ser
vistos por outros olhos que não os seus. Em meio à sua hesitação, ouviu
o piado melancólico de uma coruja. O vento batia forte nas janelas do
convento vizinho e, ao soprar ao redor do frade, carregou consigo as
notas indistintas da música do coral. Abriu a porta com cautela, temendo
ser ouvido; entrou e fechou-a novamente. Guiado por sua lamparina,
percorreu as longas passagens seguindo as curvas ensinadas por Matilda,
e chegou à cripta onde dormia sua amada.
Não era fácil descobrir o exato local da entrada, mas isto não foi
um problema para Ambrósio, pois, durante o funeral de Antonia, havia
observado o caminho com muito cuidado para não se enganar. Encontrou
a porta destrancada e, depois de abri-la, desceu à masmorra. Ele
caminhou em direção à humilde sepultura onde Antonia repousava. O
monge carregava um pé-de-cabra e uma picareta, mas nada disso foi
necessário: a grade estava ligeiramente levantada. Ele conseguiu erguê-
la e curvou-se sobre a sepultura, colocando a lamparina na sua borda. Ao
lado de três cadáveres em decomposição, estava sua bela adormecida.
Um rubor vivo em suas bochechas anunciava sua reanimação iminente.
Envolta em uma mortalha e deitada sobre o esquife, ela parecia sorrir
para as imagens da morte que a rodeavam. Enquanto contemplava
aqueles ossos putrefatos e figuras repugnantes que, talvez, em outros
tempos, já tenham sido doces e amáveis, Ambrósio pensava em Elvira,
por ele reduzida a idêntico estado. A lembrança daquele ato terrível fez
com que ele se sentisse invadido por tristeza e horror; porém, também
reforçou sua resolução de destruir a honra de Antonia.
— Por você, beleza fatal! – murmurou o monge, enquanto
contemplava sua presa. — Por você eu cometi esse assassinato e sofrerei
torturas eternas. Agora, você está sob meu poder e o resultado do meu
pecado será, pelo menos, só meu. Não tenha esperanças de que suas
preces pronunciadas com melodias inigualáveis, que as lágrimas
derramadas por seus olhos brilhantes ou que suas mãos elevadas em
gesto de súplica, como quando implora em penitência o perdão da
Virgem, não espere que a sua inocência tão comovente, que seu pesar
encantador ou que todas as suas artes suplicantes possam ser capazes de
libertá-la dos meus abraços. Antes do nascer do dia, haverá de ser minha,
e minha será!
Ele retirou seu corpo imóvel da tumba, sentou-se em um banco de
pedra e, com Antonia nos braços, passou a observá-la pacientemente,
procurando sinais da sua recuperação. Mal podia conter sua paixão e não
desfrutar do corpo dela enquanto estava ainda inconsciente. Sua luxúria
havia aumentado como resultado das dificuldades que o impediam de
satisfazer-se. Além disso, fazia tempo que não estava com uma mulher,
desde o momento em que deixou de escutar os protestos de amor de
Matilda, que o rechaçou dos seus braços para sempre.
— Eu não sou uma prostituta, Ambrósio – ela havia dito quando,
no auge da sua lascívia, ele lhe solicitava seus favores com mais
intensidade do que o usual. — Agora, não sou mais do que uma amiga
para você, e não serei sua amante. Pare de pedir para que eu satisfaça
seus desejos, pois isso me ofende! Quando o seu coração era meu, eu me
sentia gloriosa entre seus braços, mas aqueles tempos não voltam mais:
eu me tornei indiferente para você, e não é o amor, mas a necessidade
que faz com que busque a minha companhia. Eu não posso atender a um
pedido tão humilhante para o meu orgulho!
Repentinamente privado dos prazeres cujo hábito os havia
transformado em verdadeira necessidade, o monge sentia a abstinência
da maneira mais severa. Naturalmente inclinado à satisfação do seu
apetite, em pleno vigor da virilidade e do ardor da paixão, ele havia
cobiçado este momento tão ardentemente que seu desejo quase o levava
à loucura. Pouco restava do seu afeto por Antonia: ele ansiava por
possuir sua carne, e mesmo a sensação de tristeza que envolvia a cripta,
o silêncio dominante e a resistência que esperava enfrentar, tudo parecia
incentivar seu desejo ardente e descontrolado.
Aos poucos, ele sentia que o peito que repousava nos seus braços
ia voltando à vida. O coração de Antonia começava a bater outra vez.
Seu sangue circulava mais depressa e seus lábios pareciam tremer.
Finalmente, ela abriu os olhos, mas como ainda sentia-se aturdida pelos
efeitos do sonífero, voltou a fechá-los. Ambrósio observava com
atenção, não perdendo um só movimento. Ao perceber que ela havia
retornado à vida completamente, ele a abraçou contra o peito e beijou
seus lábios com força. O gesto súbito foi suficiente para dissipar a
fumaça que ainda ofuscava a razão de Antonia. Ela se ergueu e lançou
um olhar assustado ao redor. As imagens estranhas do recinto deixaram-
na ainda mais confusa. Ela pôs a mão na cabeça em uma tentativa de
colocar seus pensamentos em ordem; e, então, olhou uma vez mais para
a masmorra e logo seus olhos se fixaram no rosto do frade.
— Onde estou? – perguntou abruptamente. — Como cheguei aqui?
Onde está minha mãe? Tenho a sensação de que a vi. Oh, um sonho, um
sonho horrível me disse... mas onde estou? Deixe-me ir! Eu não posso
ficar aqui!
Ela tentou ficar de pé, mas o monge não permitiu.
— Tenha calma, adorável Antonia! – ele respondeu. — Você não
corre nenhum perigo: confie na minha proteção. Por que me olha de
forma tão séria? Por acaso não me reconhece? Não reconhece seu
amigo? Ambrósio?
— Ambrósio? Meu amigo? Ah, sim, sim, eu me lembro... mas por
que estou aqui? Quem me trouxe aqui? Por que está aqui comigo? Oh,
Flora me preveniu de que... Não há nada aqui, além de túmulos e
esqueletos! Este lugar me dá medo! Meu bom Ambrósio, leve-me daqui,
pois este lugar me faz pensar naquele pesadelo horroroso! Parecia que eu
estava morta e que jazia na minha tumba! Ambrósio, leve-me daqui! Por
favor! Por favor! Por que me olha assim? Os seus olhos estão me
assustando! Por favor, padre, poupe-me!
— Por que tanto medo, Antonia? – perguntou o frade, abraçando-a
e cobrindo seu peito com beijos que ela não conseguiu evitar. — Por que
tem medo de mim, que a adoro tanto? O que importa o lugar onde você
está? Para mim, este sepulcro se parece com o jardim do amor, e sua
escuridão, uma noite protetora deste segredo a se espalhar sobre o nosso
deleite. É assim que eu vejo este local é assim que você deve vê-lo. Sim,
minha doce menina. Sim! Suas veias arderão com o fogo que corre nas
minhas, e meu prazer será redobrado quando compartilhado com você!
Enquanto falava, ele repetia os abraços e entregava-se às
liberdades mais indecentes. Nem mesmo a inocência de Antonia poderia
ficar cega à desenvoltura do seu comportamento. Ela pressentiu o perigo
e tentou escapar dos seus braços e, tendo a mortalha como única
vestimenta, embrulhou o corpo com ela.
— Tire suas mãos de mim, padre! – ela gritou de indignação ao
perceber, alarmada, sua posição tão indefesa. — Por que me trouxe para
este lugar? O aspecto me faz tremer de medo! Tire-me daqui, se o senhor
ainda tiver o mínimo senso de compaixão e humanidade! Deixe-me
voltar para a casa de onde não sei como saí, pois não quero e não devo
ficar aqui nem mais um instante!
Ainda que o monge tenha ficado um tanto quanto indeciso pelo
tom dessas palavras, o único efeito causado nele foi o de surpresa. Ele
pegou a mão de Antonia e obrigou-a a sentar-se no seu colo. Com olhar
de desejo, ele respondeu:
— Acalme-se, Antonia. De nada vai adiantar resistir, pois eu não
reprimirei por mais tempo a paixão que sinto por você. Todos acreditam
que você está morta: você perdeu suas companheiras para sempre. Aqui,
somente eu a possuo. Você está absolutamente em meu poder e eu estou
ardendo em desejos que, se não forem satisfeitos agora mesmo, creio que
vou morrer. Mas eu só devo minha felicidade a você, minha menina
encantadora. Minha adorável Antonia! Deixe-me instruí-la pelas alegrias
que ainda não conhece e ensiná-la a sentir prazer nos meus braços e eu
logo sentirei prazer também nos seus. Vamos, esta luta é infantil – ele
continuou, vendo que ela repelia suas carícias e que tentava escapar das
suas mãos. — Não há ajuda por perto, nem o Céu, nem a terra poderão
salvá-la dos meus abraços. E por que recusa prazeres tão doces e tão
sublimes? Ninguém pode nos ver, nosso amor será um segredo para todo
o mundo: o amor e a ocasião a convidam a entregar-se às suas paixões!
Renda-se a elas, Antonia! Renda-se, minha adorável menina! Atire seus
braços ao redor do meu corpo e junte seus lábios aos meus. Entre todos
os seus dons, será que a natureza a privou do mais precioso, o dom da
sensibilidade e do prazer? Oh, não é possível! Cada olhar e cada
movimento seu revelam que está pronta para amar e para ser amada. Não
adianta me olhar assim, eu sou insensível às súplicas. Como posso
renunciar a este corpo tão alvo, tão macio, tão delicado? A estes peitos
abundantes, redondos, cheios e empinados? E a estes lábios repletos de
doçuras inesgotáveis? Como posso privar-me de todos estes tesouros e
deixar para que outro os desfrute? Não, Antonia, nunca, nunca! Eu juro
por este beijo, e este, e este!
A paixão do frade tornava-se mais ardente a cada instante, e o
terror de Antonia, mais intenso. Ela lutava para livrar-se dos seus braços,
mas seus esforços eram inúteis. Vendo que o comportamento de
Ambrósio tornava-se cada vez mais atrevido, ela gritou com todas as
forças. A aparência da cripta, a pálida luz da lamparina, o silêncio
reinante, a visão das sepulturas e dos restos mortais que seus olhos
descobriam por toda a parte, eram pouco apropriados para despertar na
moça as mesmas emoções que dominavam o padre. Até mesmo suas
carícias a apavoraram pela fúria, e não produziam outro sentimento
senão o medo. Por outro lado, o seu pânico, seu evidente desgosto e
resistência incessante pareciam exaltar o apetite do monge, que usava de
mais força e brutalidade. Os gritos de Antonia não podiam ser ouvidos;
ainda assim, ela continuava gritando e fazendo todos os esforços
possíveis para escapar, até que, exausta e sem ar, caiu de joelhos e, mais
uma vez, tentou escapar recorrendo às preces e súplicas. A nova
tentativa não teve mais sucesso do que as anteriores – ao contrário,
aproveitando a ocasião, o violentador deitou-se ao lado de Antonia. Ele
apertou-a com muita força contra o peito, deixando-a quase morta de
medo e fatigada de tanto lutar. Ele sufocou seus gritos com beijos,
tratou-a com a rudeza de um bárbaro sem escrúpulos, tomando cada vez
mais liberdades e, como consequência dos seus delírios de luxúria,
machucando e ferindo seus membros mais macios. Insensível às suas
lágrimas, clamores e rogos, ele a possuiu aos poucos e não desistiu de
sua presa até que o crime estivesse consumado e Antonia, desonrada.
Mal havia atingido seu objetivo quando se deu conta dos meios
utilizados para sua realização. O mesmo excesso de desejo que o fizera
antes ansiar por Antonia contribuía, agora, para aumentar seu desgosto:
um impulso secreto o fez compreender quão baixa e desumana era a
natureza do crime que acabara de cometer. Deixando os braços dela,
levantou-se de um salto. Antonia, que até poucos instantes era objeto de
sua completa adoração, agora não despertava outro sentimento senão
aversão e raiva. Ele afastou-se dela, e se seus olhos, involuntariamente,
encontrassem sua figura, era apenas para lhe lançar olhares de ódio. A
infeliz havia desmaiado antes da consumação da desonra, e somente
voltou a si para tomar conhecimento da sua desgraça. Ela permaneceu
deitada no chão, em silencioso desespero. As lágrimas desciam
lentamente pelo seu rosto e seu peito tremia com os constantes soluços.
Oprimida pela dor, ela continuou por algum tempo neste estado de
apatia. Finalmente, levantou-se e deu uns passos débeis em direção à
porta, disposta a abandonar a masmorra.
O som dos seus passos chamou a atenção do monge. Ele levantou-
se rapidamente da tumba onde se apoiara e, enquanto seus olhos
vagavam pelas imagens de decomposição ao redor, perseguiu a vítima da
sua brutalidade e não tardou a alcançá-la. Ele segurou-a pelo braço e
violentamente forçou-a a retornar à masmorra.
— Onde pensa que vai? – perguntou com dureza. — Volte agora
mesmo!
Antonia assustou-se com a fúria estampada no seu semblante.
— O que quer mais? – questionou com timidez. — Já não está
completa a minha ruína? Não estou perdida, perdida para sempre? Sua
crueldade ainda não está satisfeita, eu devo sofrer ainda mais? Deixe-me
ir. Deixe-me voltar para casa para que eu possa chorar sem impedimento
pela minha vergonha e miséria.
— Voltar para casa? – repetiu o monge, com uma zombaria amarga
e desdenhosa. Então, de repente, com olhos vermelhos de cólera, ele
perguntou: — Para quê? Para que possa me denunciar perante o mundo?
Para que me acuse de hipócrita, estuprador, traidor, monstro de
crueldade, devasso e ingrato? Não, não, não. Conheço muito bem o peso
dos meus pecados: suas queixas seriam totalmente justificadas, e meus
crimes completamente expostos. Não sairá daqui para contar a toda
Madri que sou um vilão, que minha consciência está carregada de
pecados e que não posso contar com o perdão de Deus. Menina infeliz,
terá que ficar aqui comigo! Aqui, entre estas tumbas desoladas, estas
imagens da morte, e estes cadáveres podres, em decomposição! Você
ficará aqui, e testemunhará meu sofrimento, saberá o que é morrer de
medo e de tristeza e dar o último suspiro entre blasfêmias e maldições! E
a quem devo agradecer tudo isto? Quem foi que me induziu a cometer
estas barbaridades, que estremeço só de lembrar? Bruxa maligna! Não
foi a sua beleza? Não é verdade que afundou minha alma na degradação
humana? Que me transformou em um hipócrita, um violentador, um
assassino? E não é só isso: neste momento, não me olha como se fosse
um anjo, despertando o meu desespero para alcançar o perdão de Deus?
Oh, quando eu me sentar no trono da justiça, este olhar será o suficiente
para me condenar! Você dirá ao meu juiz que era feliz até me conhecer,
que era inocente, que tornou-se impura por minha causa! Virá com os
olhos cheios de lágrimas, com o rosto pálido e lívido, com as mãos em
gesto de súplica como quando me implorou por misericórdia e eu
neguei! Eis que minha condenação será certa! Então, aparecerá o espírito
da sua mãe e me mandará para as moradas do inferno, com todas as
chamas, fúria e tormentos eternos. E você é quem me acusará! Você será
a causa da minha agonia! Você, sua desgraçada! Você! Você!
Enquanto dizia estas palavras, o monge agarrou o braço de Antonia
com violência e chutou a terra do chão, delirando de raiva.
Acreditando que ele havia perdido o juízo, Antonia ajoelhou-se e
ergueu os braços, suplicando com voz enfraquecida:
— Poupe-me! Poupe-me! – ela murmurou com dificuldade.
— Silêncio! – exclamou o frade enlouquecido, enquanto a atirava
no chão.
Ele a soltou e passou a caminhar pela masmorra com ar confuso e
selvagem. Seus olhos giravam de tanto medo: Antonia estremecia cada
vez que seu olhar se encontrava com o dele. Ambrósio parecia meditar
sobre algo terrível e ela perdeu todas as esperanças de escapar com vida
daquele sepulcro. Porém, ela estava sendo injusta com ele: em meio a
todo o desespero e desgosto que aprisionavam sua alma, ele ainda sentia
pena da sua vítima. Uma vez passada a tormenta da paixão, ele daria
qualquer coisa no mundo para devolver à moça a inocência que sua
luxúria descontrolada havia lhe roubado. Não guardava no peito nenhum
dos desejos que o levaram a cometer aquele crime; todas as riquezas da
Índia não poderiam tentá-lo a desfrutar daquele prazer novamente. Sua
natureza parecia rebelar-se diante da simples ideia, e com que gosto
apagaria de sua memória a cena que acabara de vivenciar! À medida que
a raiva diminuía, aumentava sua compaixão por Antonia. Ele virou-se
para ela e desejou dizer algumas palavras de consolo, mas não sabia
onde encontrá-las e, então, contentou-se em observá-la com pesar. A
situação dela era tão desesperadora e tão infeliz que nenhum ser mortal
poderia consolá-la. O que ele poderia fazer por ela? Agora Antonia já
não teria mais paz de espírito, e sua honra estava irreparavelmente
destruída. Tinha sido definitivamente afastada da sociedade, e ele não se
atreveria a trazê-la de volta. Ele sabia que se ela simplesmente
reaparecesse, a sua culpa seria revelada e seu castigo seria inevitável.
Para alguém que, como ele, carregava tantos crimes, a morte chegaria
duas vezes mais apavorante. Mesmo assim, ainda que devolvesse
Antonia à luz, colocando em risco a própria segurança, quais seriam as
expectativas dela? Ela nunca mais poderia ter esperanças de viver de
maneira digna, estaria marcada pela desonra e seria condenada à dor da
solidão para o resto dos seus dias. Qual era a alternativa? A solução seria
terrível para Antonia, mas, ao menos, garantiria a segurança do frade.
Ele decidiu deixar que o mundo continuasse acreditando na sua morte e
mantê-la como prisioneira naquele calabouço sombrio. Lá, ele poderia
visitá-la todas as noites, poderia levar-lhe alimento, ouviria suas
confissões e uniria suas lágrimas às dela. O monge sabia que esta
solução era injusta e cruel, mas era a única maneira de evitar que
Antonia propagasse seu pecado e sua própria desonra. Se ela fosse
libertada, ele não poderia confiar no seu silêncio: o delito era muito
grave para que esperasse ser perdoado. Além disso, sua reaparição
despertaria uma curiosidade natural, e sua aflição seria tamanha que
tornaria praticamente impossível ocultar a causa. Assim, ficou decidido
que Antonia permaneceria sendo uma prisioneira na masmorra.
Ambrósio aproximou-se com muita confusão estampada no rosto.
Ele a ajudou a levantar-se do chão; a mão dela estremeceu com o toque e
ele a soltou como se tivesse tocado uma serpente. Seu instinto parecia
fazê-lo recuar diante de um simples toque. Ele sentiu-se,
simultaneamente, com repulsa e atraído por ela, ainda que não pudesse
explicar nenhum daqueles sentimentos contraditórios. Havia alguma
coisa na expressão de Antonia que o deixava aterrorizado e, embora sua
compreensão não percebesse isso, a consciência lhe apontava toda a
dimensão do seu crime. Com palavras atropeladas, agora num tom mais
gentil, enquanto mantinha o olhar distante e a voz quase inaudível, ele
tratou de prepará-la para a infelicidade que não poderia ser evitada.
Declarou-se sinceramente arrependido e disse que com muito gosto
derramaria uma gota de seu sangue por cada lágrima por ela derramada
como fruto da sua crueldade. Amargurada e sem esperanças, Antonia o
ouvia em silenciosa tristeza. Mas quando anunciou sua decisão de deixá-
la confinada na cripta, condenada a um destino tão horrível que a morte
seria preferível, ela despertou da sua apatia. A ideia de viver de forma
tão miserável em uma cela repugnante, ignorada por todos exceto por
aquele que havia violado sua honra, rodeada por cadáveres apodrecidos,
respirando o ar nocivo da decomposição, sem voltar a ver a luz do dia ou
sentir a brisa que vem do céu, era mais terrível do que podia suportar.
Era até mais forte do que sua repulsa pelo padre. Ela ajoelhou-se
novamente e mais uma vez suplicou por misericórdia de forma patética e
insistente. Prometeu que, se ele a libertasse, ela ocultaria suas faltas do
mundo, que explicaria sua reaparição da maneira que ele julgasse mais
apropriada e, para que não restasse nenhuma suspeita, prontificou-se a
deixar Madri imediatamente. Suas súplicas foram tão insistentes que
impressionaram o monge. Ele considerou o fato de que ela já não lhe
despertava os mesmos desejos e que, portanto, não tinha interesse em
mantê-la prisioneira como havia sido sua intenção inicial; que ele estaria
lhe infligindo um novo sofrimento além daqueles que já causara; e que
se ela cumprisse com suas promessas, ele estaria seguro, estivesse ela
encarcerada ou em liberdade. Por outro lado, temia que, levada pela
aflição, Antonia quebrasse o voto, mesmo que sem intenção; ou que sua
simplicidade excessiva e sua ignorância das falsidades permitisse que
alguém mais perspicaz percebesse seu segredo. Apesar do fundamento
dessas apreensões, a compaixão e o sincero desejo de reparar seu crime o
mais rápido possível o levaram a atender as preces da suplicante. A
dificuldade em tornar plausível o inesperado retorno de Antonia depois
de sua suposta morte e sepultamento público era o único ponto de
indecisão. Ele ainda estava meditando sobre as formas de eliminar esse
obstáculo quando ouviu o som de passos se aproximando rapidamente. A
porta da cripta foi aberta e Matilda entrou correndo, claramente confusa
e muito assustada.
Ao ver uma pessoa desconhecida, Antonia gritou de alegria, mas
sua esperança de receber alguma ajuda logo se dissipou. O suposto
noviço, sem expressar a menor surpresa ao encontrar uma mulher a sós
com o monge, em um lugar tão estranho e em horário tão avançado,
dirigiu-se a ele sem perder um minuto.
— O que faremos, Ambrósio? Estamos perdidos, a menos que
encontremos alguma maneira de escapar dos agitadores! Ambrósio, o
Convento de Santa Clara está em chamas, a abadessa foi vítima da fúria
da multidão! O mosteiro também está ameaçado. Alarmados pela ira da
população, os monges estão à sua procura por toda a parte. Eles
acreditam que a sua autoridade será suficiente para acalmar a desordem.
Ninguém sabe o que aconteceu com você e sua ausência ocasionou um
espanto geral e muito desespero! Eu aproveitei a confusão para vir
correndo avisá-lo do perigo!
— Isso será logo resolvido – respondeu o frade. — Eu regressarei
imediatamente à minha cela. Qualquer desculpa justificará minha
ausência.
— Não é possível! – replicou Matilda. — A cripta está repleta de
arqueiros. Lorenzo de Medina e outros oficiais da Inquisição estão dando
buscas em todas as sepulturas e percorrendo todas as passagens. Você
será interceptado ao sair! Irão interrogá-lo para saber que motivo o
trouxe aqui a esta hora, Antonia será descoberta e você estará perdido
para sempre!
— Lorenzo de Medina? Oficiais da Inquisição? Por que estão aqui?
Estão atrás de mim? Eu sou suspeito? Diga, Matilda! Responda, por
piedade!
— Até este momento eles não suspeitam de você, mas desconfio
que não tardará. Sua única chance de escapar reside na dificuldade de
explorar esta sepultura. A porta está habilmente escondida. Com sorte,
talvez não reparem nela e nós poderemos ficar aqui até que a busca
termine.
— Mas Antonia... se os inquisidores se aproximarem e ouvirem
seus gritos...
— Eu vou nos livrar deste perigo! – interrompeu Matilda, enquanto
sacava um punhal e avançava sobre a vítima.
— Espere! Espere! – exclamou Ambrósio, segurando sua mão e
retirando a arma que já estava em posição. — O que quer fazer, mulher
cruel? A infeliz já não sofreu o suficiente, graças aos seus conselhos
malignos? Quisera Deus que eu nunca tivesse escutado seus conselhos!
Quisera Deus que eu nunca tivesse visto seu rosto!
Matilda lhe lançou um olhar de desprezo.
— Que absurdo! – exclamou, em tom de raiva e autoridade,
deixando o monge assustado. — Depois de despojá-la de tudo o que ela
mais prezava, ainda tem medo de privá-la de uma vida tão miserável?
Mas, está bem! Deixe-a viver para convencê-lo da sua tolice. Eu o
abandono ao seu destino miserável! Renuncio à nossa aliança! Quem
tem medo de cometer um crime tão insignificante não merece minha
proteção. Escute! Escute! Ambrósio, não está ouvindo os arqueiros? Eles
estão vindo, sua ruína será inevitável!
Neste momento, o frade ouviu o som de vozes distantes. Ele correu
para fechar a porta, de cujo segredo dependia sua segurança, e que fora
deixada aberta por Matilda. Antes que pudesse alcançá-la, porém, viu
Antonia correr na sua frente, cruzando o limiar com a rapidez de um raio
em direção ao barulho. Ela prestara atenção ao que Matilda dizia. Ouviu
o nome de Lorenzo e resolveu arriscar tudo para colocar-se sob sua
proteção. A porta estava aberta. Os sons a convenceram de que os
arqueiros não estavam longe. Ela reuniu todas as forças que ainda tinha e
pôs-se a correr naquela direção, antes que o monge percebesse suas
intenções. Assim que conseguiu se recuperar da surpresa, ele saiu atrás
dela. Antonia redobrou a velocidade e forçou seus músculos ao máximo,
mas não foi suficiente. Seu inimigo ganhava terreno a cada instante. Ela
ouviu seus passos atrás dela e sentiu o calor do hálito de Ambrósio no
seu pescoço. Ele conseguiu alcançá-la; agarrou-a pelos cabelos e tentou
arrastá-la de volta à masmorra. Antonia resistiu com todas as forças.
Abraçou-se a uma coluna que sustentava o teto e gritou pedindo socorro.
Ele se empenhou em vão para fazer com que ela se calasse.
— Socorro! – ela continuava gritando. — Socorro, pelo amor de
Deus!
Apressado pelos gritos, o ruído dos passos parecia estar mais
próximo. O monge esperava ver a chegada dos inquisidores a qualquer
momento. Antonia ainda resistia, mas, agora, seu silêncio era forçado
pelos meios mais horríveis e desumanos. Ambrósio ainda tinha o punhal
de Matilda; sem se permitir um instante de reflexão, ele ergueu a arma e
a cravou duas vezes no peito de Antonia. Ela gritou e caiu ao chão. O
monge tentou levá-la com ele, mas ela permanecia firmemente abraçada
ao pilar. Imediatamente, as paredes foram iluminadas pela luz das tochas
que se aproximavam. Temendo ser descoberto, Ambrósio foi obrigado a
abandonar sua vítima e rapidamente retornou à sepultura, onde havia
deixado Matilda.
Porém, sua fuga foi percebida. Dom Ramírez, que vinha na frente
dos demais, viu a moça sangrando no chão e um homem que fugia do
local, o qual, a julgar pela sua confusão, deveria ser o assassino. Sem
demora, ele e alguns arqueiros passaram a perseguir o fugitivo, enquanto
os outros permaneceram com Lorenzo para proteger a desconhecida
ferida. Eles a ergueram nos braços: ela havia desmaiado por conta da dor
excessiva, mas logo deu sinais de vida. Ela abriu os olhos e, ao levantar
a cabeça, a quantidade de cabelos que até então ocultava seu rosto, caiu
para trás.
— Deus Todo Poderoso! É Antonia! – exclamou Lorenzo,
enquanto a tirava dos braços dos arqueiros e a carregava em seus
próprios braços.
Embora tenha sido guiado por mão insegura, o punhal havia
respondido bem aos propósitos daquele que o empregou. Os ferimentos
eram mortais e Antonia estava consciente de que nunca se salvaria.
Mesmo assim, os poucos momentos de vida que ainda possuía foram
momentos de felicidade. A angústia refletida no rosto de Lorenzo, a
paixão frenética dos seus lamentos e a preocupação com seus ferimentos
a convenceram de que, sem a menor dúvida, ela era a dona dos seus
sentimentos. Ela não permitiu que a tirassem da cripta, pois temia que o
movimento antecipasse sua morte; não queria perder a chance de ouvir
de Lorenzo suas juras de amor e de saber que era correspondida. Ela lhe
disse que, se não tivesse sido desonrada, lamentaria a própria morte; mas
privada da honra e manchada pela vergonha, a morte seria uma bênção.
Ela não poderia ser sua esposa e, sem esta esperança, resignava-se a
descer à sepultura sem um suspiro de desgosto. Pediu-lhe que tivesse
coragem e que não se deixasse abater por dores inúteis, e também
confessou que lamentava não ter mais ninguém no mundo além dele.
Mesmo que cada pedido seu aumentasse a tristeza de Lorenzo, no lugar
de aliviá-la, Antonia continuou conversando com ele até o momento da
separação. Sua voz foi desaparecendo até tornar-se inaudível. Uma
nuvem densa cobriu sua visão, seu coração passou a bater mais devagar
e de forma irregular; cada instante parecia anunciar seu destino iminente.
Ela jazia com a cabeça apoiada no peito de Lorenzo e seus lábios
ainda murmuravam palavras de conforto. Foi interrompida pelo som
distante do sino do mosteiro anunciando as horas. Subitamente, seus
olhos adquiriram um novo brilho e seu corpo pareceu ganhar uma nova
força e animação. Ela se ergueu dos braços do seu enamorado.
— Três horas! – exclamou. — Mãe, estou indo ao seu encontro!
Ela juntou as mãos e seu corpo caiu no chão, sem vida. Lorenzo,
em grande agonia, atirou-se ao lado dela. No seu desespero, ele arrancou
parte do próprio cabelo, bateu no peito e recusou-se a abandonar o
corpo. Por fim, com as forças exauridas, ele permitiu que o tirassem da
cripta e o levassem para o Palácio Medina, sentindo-se pouco mais vivo
do que a infeliz Antonia.
Nesse meio tempo, ainda sendo perseguido, Ambrósio conseguiu
chegar à sepultura. A porta já estava fechada quando Dom Ramírez se
aproximou; ele levou muito tempo para descobrir o esconderijo do
fugitivo, mas nada resiste à perseverança. Ainda que habilmente
escondida, a porta não escapou à vigilância dos arqueiros. Eles forçaram
sua abertura e entraram na cripta, para o desespero de Ambrósio e de sua
companheira. A confusão do monge, sua tentativa de esconder-se, sua
fuga rápida e o sangue respingado no hábito, não deixavam dúvida de
que era ele o assassino de Antonia. Mas quando foi reconhecido como o
imaculado Ambrósio, “o homem santo”, o ídolo de Madri, seus
perseguidores ficaram enormemente surpresos e mal podiam acreditar
que não era uma aparição o que tinham diante de si. O frade não se
esforçou para justificar seu comportamento e manteve um silêncio
obstinado. O homem foi firmemente detido. A mesma precaução foi
tomada com relação à Matilda. Quando retirarem seu capuz e a
delicadeza dos seus traços e a beleza dos seus cabelos dourados
revelaram seu sexo, mais uma vez os arqueiros ficaram assombrados. O
punhal também foi encontrado na tumba, onde o monge o havia atirado;
e, depois de completa a revista da masmorra, os dois culpados foram
conduzidos às prisões da Inquisição.
Dom Ramírez teve o cuidado de esconder da população tanto os
crimes quanto a identidade dos prisioneiros, pois temia uma repetição da
rebelião que havia seguido a detenção da abadessa de Santa Clara. Ele
limitou-se a comunicar aos capuchinhos os delitos do seu superior. Para
evitar a vergonha da confissão pública e temendo a fúria popular da qual
tinham conseguido salvar o mosteiro com muita dificuldade, os monges
prontamente permitiram aos inquisidores que revistassem o edifício em
silêncio. Não descobriram nada. Tudo o que foi encontrado nas celas do
frade e de Matilda foi levado à Inquisição para ser apresentado como
evidência. Tudo o mais permaneceu como estava, e a ordem e a
tranquilidade foram novamente restabelecidas em Madri.
O Convento de Santa Clara foi completamente destruído pelos
saques dos revoltosos e pelo incêndio. Nada restou além das paredes
mestras, salvas das chamas graças à sua espessura e solidez. Em
consequência disso, as freiras foram obrigadas a procurar outras
comunidades, mas o preconceito era muito grande e as superioras não se
mostravam dispostas a admiti-las. Mesmo assim, uma vez que a maioria
delas tinha parentesco com famílias abastadas e muito distintas, alguns
conventos foram obrigados a recebê-las, ainda que de malgrado. Todo
esse preconceito era, no entanto, extremamente falso e injustificado:
depois de uma investigação minuciosa, ficou provado que todas no
Convento tinham sido persuadidas a acreditar na morte de Agnes, com
exceção das quatro freiras denunciadas pela madre Santa Úrsula. Estas
se tornaram vítimas da fúria popular, assim como outras perfeitamente
inocentes e ignorantes de todo o assunto. Cega de indignação, a multidão
sacrificava cada freira que via pela frente; as que escaparam, devem suas
vidas inteiramente à prudência e moderação do Duque de Medina. Elas
tinham consciência disto e sentiam pelo fidalgo um respeitável
sentimento de gratidão.
Virgínia foi uma que não poupou agradecimentos, pois esperava
poder retribuir as atenções e obter as graças do tio de Lorenzo, o que
conseguiu sem dificuldades. O duque contemplou sua beleza com muita
admiração, e ainda que seus olhos estivessem enfeitiçados pela sua
figura, a suavidade das suas maneiras e seu interesse afetuoso pela freira
doente predispuseram o coração do homem a seu favor. Virgínia tinha
sensibilidade suficiente para perceber a importância disto e redobrava
sua atenção para com a inválida. Quando a deixou nas portas do palácio
do seu pai, o duque pediu permissão para, ocasionalmente, perguntar por
sua saúde. Seu pedido foi concedido e Virgínia lhe garantiu que o
Marquês de Villa-Franca teria muito orgulho em agradecer pessoalmente
a proteção dispensada à sua filha. Separaram-se, ele encantado com a
beleza e doçura de Virgínia, e ela, muito satisfeita com o homem, e mais
ainda com o sobrinho.
Ao entrar em casa, a primeira providência de Virgínia foi chamar o
médico da família para cuidar da desconhecida. Sua mãe prontificou-se a
ajudá-la em uma ação tão caridosa. Alarmado pelo tumulto e temendo
pela segurança da sua única filha, o marquês havia corrido até o
Convento de Santa Clara e ainda estava procurando por ela. Mensageiros
foram enviados a todas as partes para informá-lo de que ela já estava a
salvo e em casa, e que ele deveria regressar imediatamente. A ausência
do pai deu à Virgínia liberdade para dedicar a atenção inteiramente à sua
paciente; e, ainda que estivesse muito abalada pelo ocorrido na noite,
nada poderia persuadi-la a abandonar seu posto junto ao leito da
enferma. Devido à debilidade de sua saúde, causada pelos sofrimentos e
privações, ela demorou a recobrar os sentidos. Foi muito difícil fazê-la
ingerir os medicamentos prescritos, mas uma vez vencido o obstáculo,
ela rapidamente venceu a enfermidade, restando apenas alguma
fraqueza. Toda a atenção recebida, a alimentação saudável que lhe era
oferecida e sua alegria por estar novamente em liberdade, de volta ao
convívio social e – ela atrevia-se a acreditar – de volta ao amor, tudo
contribuía para o seu pronto restabelecimento.
Desde o primeiro momento, sua situação infeliz e seus sofrimentos
sem paralelo tinham lhe garantido a afeição da amável anfitriã. Virgínia
sentia por ela um interesse genuíno, mas ficou imensamente feliz ao
reconhecer na sua convidada, já suficientemente recobrada para lhe
contar sua história, a irmã de Lorenzo!
A vítima da crueldade monástica, efetivamente, não era outra
senão a desafortunada Agnes. Durante o tempo em que viveu no
convento, Virgínia a conheceu muito bem; mas o seu corpo
enfraquecido, seus traços alterados pela dor, seu cabelo longo e
despenteado que lhe ocultava parte do rosto e do peito, e a convicção
geral de que estava morta a impediram, a princípio, de reconhecê-la. A
abadessa havia tentado de todas as maneiras induzir Virgínia a tomar o
véu, pois a herdeira de Villa-Franca seria uma grande aquisição para o
seu convento. Sua bondade aparente e sua intenção incessante eram tão
eficazes que a moça chegou a pensar seriamente em atender à sua
vontade. Mas Agnes, familiarizada com os desgostos e aborrecimentos
da vida eclesiástica, foi capaz de antecipar as intenções da superiora. Ela
temia pela jovem inocente e tentava fazê-la compreender o seu engano,
descrevendo em detalhes os numerosos inconvenientes da rotina no
convento: a limitação constante, o ciúme, as intrigas mesquinhas, a
servidão e a adulação grosseira esperada pela superiora. Ela implorou a
Virgínia que refletisse sobre o brilhante futuro que teria pela frente:
idolatrada por seus pais, admirada por toda Madri, dotada por natureza e
pela educação de toda a perfeição do corpo e da mente, ela poderia
sonhar com a posição mais afortunada. Sua riqueza lhe proporcionaria os
meios para exercer plenamente sua caridade e benevolência, virtudes tão
prezadas por ela, e sua permanência no mundo lhe permitiria descobrir
objetivos merecedores de proteção, o que não poderia fazer isolada
dentro de um convento.
Essas convicções levaram Virgínia a desistir da ideia do véu; mas
outro argumento, não utilizado por Agnes, teve maior peso na sua
decisão. Ela tinha visto Lorenzo pelas grades do locutório, quando ele
visitava a irmã. Ela gostou muito dele e suas conversas com a amiga
terminavam, geralmente, com alguma pergunta sobre o seu irmão.
Agnes, que adorava Lorenzo, só aguardava uma ocasião para elogiá-lo.
Falava a respeito dele com imenso prazer, e para convencer sua ouvinte
do quanto eram nobres os seus sentimentos, do quanto sua mente era
culta e quão elegante era o modo como se expressava, ocasionalmente
lhe mostrava algumas cartas que ele escrevera. Não tardou a perceber
que, graças à leitura dessas cartas, o coração da jovem companheira
estava embriagado de emoções que Agnes não tivera a intenção de
estimular, ainda que essa descoberta a deixasse verdadeiramente feliz.
Não poderia desejar para o irmão uma união mais favorável: herdeira de
Villa-Franca, virtuosa, afetuosa, linda e refinada, Virgínia parecia
perfeita para fazê-lo feliz. Ela sondou o irmão a respeito, sem mencionar
nomes ou circunstâncias. Ele lhe assegurou que seu coração estava
desocupado e Agnes pensou que, neste caso, poderia prosseguir com seu
plano. Consequentemente, esforçou-se para estimular a paixão recém
despertada na amiga. Lorenzo passou a ser o assunto constante das suas
conversas e a avidez demonstrada pela jovem, os suspiros que
frequentemente escapavam do seu peito e a forma ansiosa como trazia o
assunto de volta diante de alguma distração, foram suficientes para
convencer Agnes de que as qualidades do irmão eram muito apreciadas.
Finalmente, ela decidiu mencionar sua intenção ao duque – o qual apesar
de não conhecer a dama propriamente dita, sabia o bastante sobre sua
posição para considerá-la merecedora da mão do seu sobrinho.
Combinaram entre eles que seria Agnes quem insinuaria a ideia a
Lorenzo, e que aguardariam seu regresso a Madri para sugerir que a
amiga dela se tornasse sua noiva. Os tristes incidentes ocorridos nesse
meio tempo, porém, impediram-na de levar seu plano adiante. Virgínia
sentiu muito a sua morte, tanto como companheira como por ser a única
pessoa com a qual podia falar sobre Lorenzo. A paixão continuava
dominando seu coração e ela estava quase determinada a confessar seus
sentimentos à mãe quando o destino, mais uma vez, colocou-a diante do
seu amado. Ao vê-lo tão perto, ao admirar sua cortesia, sua compaixão,
sua coragem, tudo havia contribuído para inspirar um novo ardor ao
afeto já existente. E, ao reencontrar a amiga e defensora, considerou o
fato um presente de Deus: atreveu-se a acalentar a esperança de unir-se a
Lorenzo e decidiu utilizar-se da influência da sua irmã.
Supondo que, antes de morrer, Agnes havia tido a oportunidade de
propor essa união ao irmão, o duque pensava que as alusões do sobrinho
a um matrimônio referiam-se à Virgínia. Consequentemente, ele deu sua
aprovação da forma mais favorável. Ao regressar ao palácio, os relatos
sobre a morte de Antonia e o comportamento de Lorenzo tornaram
evidente o seu engano. Ele lamentou o acontecido; mas, com a infeliz
garota fora do caminho, acreditou que seus desígnios ainda poderiam ser
cumpridos. É certo que a situação de Lorenzo, naquele momento, não era
a mais propícia para pensar em casamento. Suas esperanças foram
destruídas no exato momento em que esperava poder realizá-las: a
assustadora e inesperada morte de sua amada havia lhe afetado
profundamente. O duque o encontrou acamado e doente. Seus cuidadores
manifestaram séria apreensão por sua vida, mas o tio não compartilhava
de tais temores. Afirmava, de forma muito sábia, que os homens morrem
e os vermes comem seus restos, mas não por amor. Assim, costumava
dizer que não importava o quanto estivesse sofrendo o coração do
sobrinho, o tempo e Virgínia acabariam por fazê-lo esquecer da dor. Ele
apressou-se a consolar o jovem aflito, compartilhando a sua angústia,
mas também o encorajava a resistir aos excessos do desespero.
Reconheceu que o rapaz não poderia deixar de sentir-se chocado ante um
acontecimento tão terrível, e não poderia censurar sua sensibilidade.
Implorou-lhe que não se atormentasse com arrependimentos infundados,
mas, sim, que lutasse contra a tristeza e que conservasse sua vida, senão
por ele mesmo, mas por aqueles que sentiam tanto carinho por ele.
Enquanto cuidava para que Lorenzo se recuperasse da perda de Antonia,
o duque visitava Virgínia com regularidade, e aproveitava todas as
ocasiões para incitar no coração da jovem o interesse por seu sobrinho.
Era de se esperar que Agnes logo perguntasse por Dom Ramón.
Ela sentiu-se muito abalada ao saber da situação lamentável a que ele
fora reduzido pelo sofrimento, mas não pôde deixar de alegrar-se
secretamente ao refletir que a doença demonstrava a sinceridade do seu
amor. O duque assumiu a missão de anunciar ao enfermo a felicidade
que o aguardava. Embora tenha tomado todas as precauções ao prepará-
lo para receber a notícia, a súbita mudança do desespero para a mais
completa alegria foi quase fatal para Ramón. Uma vez superado o susto,
a tranquilidade de espírito, a garantia de felicidade e, acima de tudo, a
presença de Agnes (que, logo que se restabeleceu, graças aos cuidados
de Virgínia e da marquesa, apressou-se para encontrar seu amor), lhe
proporcionaram a cura para os efeitos da sua última enfermidade. A
serenidade de espírito espalhou-se pelo corpo, e ele conseguiu se
recuperar com tanta rapidez que causou surpresa geral.
O mesmo não ocorreu com Lorenzo. A morte de Antonia em
circunstâncias tão espantosas ainda lhe pesava na alma. De tão
consumido, parecia ser a sua própria sombra. Nada mais lhe dava prazer.
Com dificuldade, era convencido a engolir algum alimento apenas para
preservar-se vivo. A companhia de Agnes era seu único consolo. Ainda
que o destino não tivesse permitido que passassem muito tempo juntos,
ele sentia por ela muito afeto e uma amizade sincera. Percebendo o
quanto sua presença era necessária, ela quase não abandonava os
aposentos do irmão. Ouvia suas queixas com atenção incansável e lhe
consolava com a doçura dos seus gestos e compartilhando sua dor. Ela
ainda vivia no Palácio Villa-Franca, cujos senhores a tratavam com
muito afeto. O duque havia confiado ao marquês os seus planos com
relação à Virgínia. A união era perfeita: Lorenzo era o herdeiro da
imensa fortuna do tio e era conhecido em Madri como uma pessoa
agradável, de vastos conhecimentos e conduta exemplar. Além disso, a
marquesa tinha descoberto as fortes inclinações da filha em seu favor.
A proposta do duque foi aceita sem hesitação. Todas as precauções
foram tomadas para induzir Lorenzo a considerar a dama com os
sentimentos que ela tanto merecia despertar. Nas suas visitas ao irmão,
Agnes era frequentemente acompanhada pela marquesa; e, tão logo ele
foi capaz de caminhar até a antecâmara, Virgínia, sob o olhar da mãe,
recebeu permissão para expressar a Lorenzo seus votos de pronto
restabelecimento, o que fez com muita delicadeza. Ao referir-se à
Antonia, o fez de maneira muito terna e gentil, e quando lamentou o
destino cruel da sua rival, seus olhos brilharam de forma tão bela através
das lágrimas, que Lorenzo não pôde contemplá-la nem ouvi-la sem
emoção. Os familiares de Lorenzo, assim como a moça, perceberam que
suas visitas pareciam produzir um novo prazer a cada dia, e que ele
falava sobre ela em termos de grande admiração. No entanto,
mantiveram suas observações em segredo. Nenhuma palavra que
pudesse levá-lo a suspeitar do plano foi proferida. Todos mantiveram a
mesma conduta e a mesma atenção, deixando que o tempo se
encarregasse de amadurecer o sentimento de amizade que ele já nutria
por Virgínia.
As visitas tornaram-se mais frequentes, até que não se passava um
dia sem que ela dedicasse algumas horas à companhia de Lorenzo. Ele,
gradualmente, recobrou as forças, mas sua recuperação era lenta e
duvidosa. Uma noite, parecia estar mais animado do que o usual: Agnes
e seu amado, o duque, Virgínia e seus pais, todos estavam sentados ao
seu redor. Pela primeira vez ele perguntou à irmã como ela conseguira
sobreviver aos efeitos do veneno que madre Santa Úrsula a vira ingerir.
Temendo trazer à tona lembranças do cenário onde Antonia falecera, ela
havia ocultado, até aquele momento, toda a história sobre os seus
sofrimentos. Como agora era ele quem perguntava, e acreditando que,
talvez, a narrativa do seu tormento pudesse afastá-lo da reflexão dos seus
próprios, ela concordou em responder. As outras pessoas presentes já
conheciam a história, mas o interesse que sentiam por sua heroína fazia
com que desejassem ouvi-la uma vez mais. Todos reforçaram o pedido
de Lorenzo e Agnes obedeceu. Primeiro, ela falou sobre a revelação na
capela do mosteiro, sobre o ressentimento da superiora e sobre a cena da
meia-noite que Santa Úrsula havia presenciado. Mesmo não sendo a
primeira vez que relatava o acontecido, agora o fazia com maiores
detalhes. Ela prosseguiu com seu relato como segue:

CONCLUSÃO DA HISTÓRIA DE AGNES DE MEDINA

Minha suposta morte foi acompanhada das piores agonias. Aqueles


momentos que eu acreditava serem os últimos, tornaram-se ainda mais
amargos pelas manifestações da superiora de que eu não escaparia à
condenação eterna. Assim que meus olhos se fecharam, eu a ouvi
descarregando sua raiva com maldições pelo meu pecado. O horror da
situação de estar no meu leito de morte, de onde toda a esperança fora
banida, e o sono do qual eu despertaria apenas para conhecer as chamas
e fúrias do inferno, tudo era muito mais assustador do que posso
descrever. Quando recobrei os sentidos, minha alma ainda estava
impressionada por todas essas imagens. Olhei ao redor com muito medo,
esperando enxergar os ministros da vingança divina. Durante a primeira
hora, meus sentidos estavam tão confusos e meu cérebro tão
desorientado, que tentei em vão organizar as figuras que flutuavam
diante de mim. Se eu tentasse me levantar do chão, o devaneio do meu
cérebro me enganava. Tudo ao meu redor parecia girar, e eu caí mais
uma vez. Meus olhos fracos e ofuscados eram incapazes de suportar a
proximidade da luz que via tremendo acima de mim. Eu era obrigada a
fechá-los novamente e permanecer imóvel na mesma posição.
Uma hora se passou antes que eu pudesse me sentir capaz de
examinar os objetos que me rodeavam. Quando finalmente me aproximei
deles, fiquei aterrorizada ao descobrir que estava deitada sobre uma
espécie de cama de vime com alças, com as quais, sem dúvida, as freiras
haviam me transportado até minha sepultura. Eu estava coberta com um
lençol branco e havia algumas flores murchas sobre meu corpo. De um
lado, encontrei um crucifixo de madeira; do outro, um rosário de contas
grandes. Eu estava confinada entre quatro paredes estreitas e baixas. O
teto continha uma pequena abertura gradeada, através da qual entrava o
pouco ar que circulava naquele local miserável. Um fraco brilho de luz
que chegava através das barras permitiu que eu distinguisse os horrores
ao meu redor. Eu sentia um odor sufocante e fétido, e, percebendo que a
porta estava destrancada, pensei que poderia escapar por ali. Ao me
levantar, apoiei a mão em alguma coisa suave que não conseguia
identificar; eu a peguei e levei até a luz. Deus Todo Poderoso! Que nojo,
que aflição! Apesar do estado avançado de putrefação e dos vermes que
a devoravam, percebi que era uma cabeça humana em decomposição, e
reconheci como sendo de uma das freiras que havia morrido alguns
meses antes. Eu a joguei para longe de mim e caí quase desfalecida no
meu esquife.
Quando minhas forças voltaram, ao apreciar o cenário e tomar
consciência de que estava rodeada pelos cadáveres repugnantes das
minhas companheiras, meu anseio para escapar daquele lugar tornou-se
ainda maior. Novamente, tentei alcançar a luz. A porta estava ao alcance
da minha mão e eu a ergui sem dificuldades. Provavelmente, fora
deixada destrancada para facilitar minha fuga. Tentei me agarrar a
algumas pedras desniveladas das paredes, esforçando-me para escalar e
apoiar-me sobre as que se projetavam, a fim de sair daquela prisão.
Agora, eu me encontrava em uma cripta relativamente ampla. Alinhadas
em fila, havia várias tumbas semelhantes àquela que eu deixara para trás,
e que pareciam descer profundamente na terra. Uma lamparina sepulcral
estava suspensa no alto por uma corrente de ferro, a qual difundia uma
luz macabra em toda a masmorra. Por todas as partes eu via símbolos da
morte: crânios, omoplatas, fêmures e outros restos mortais que estavam
espalhados pelo solo úmido. Cada tumba estava adornada com um
grande crucifixo e, em um canto, pude ver a imagem de Santa Clara. A
princípio, não dei atenção a esses objetos: a porta, única saída do recinto,
havia atraído meu olhar. Corri até lá, enrolada em meu sudário, e tentei
abri-la; mas, para meu completo terror, descobri que estava trancada pelo
lado de fora.
Eu imediatamente deduzi que a abadessa já deveria ter percebido
seu engano quando, no lugar de veneno, me obrigara a beber um
poderoso sonífero. Compreendi que, como aparentava estar realmente
morta, havia passado por todos os rituais de um enterro, e que se não
conseguisse provar que estava viva, meu destino seria morrer de fome. A
ideia me aterrorizou, não apenas por mim, mas pela criatura inocente que
ainda vivia no meu ventre. Tentei abrir a porta novamente, mas ela
resistia a todos os meus esforços. Gritei com todas as forças pedindo
ajuda, mas como eu estava muito distante das pessoas, não obtive
nenhuma resposta. Um silêncio profundo e melancólico reinava na cripta
e eu perdi toda a esperança de liberdade. A longa abstinência de comida
já começava a me atormentar. As tonturas eram penosas e insuportáveis,
e pareciam aumentar a cada hora que passava. Às vezes, eu me jogava
no chão e me contorcia descontroladamente. Outras vezes, eu me
levantava e retornava à porta para tentar abri-la e, então, mais uma vez
gritar por socorro. Frequentemente, eu pensava em bater minha cabeça
contra a quina de algum monumento, esmagando meus miolos e
terminando com o sofrimento de uma vez, mas quando pensava no meu
bebê, abandonava a ideia. Temia fazer alguma coisa que colocasse em
risco tanto a vida do meu filho quanto a minha. Então, eu desabafava
toda a minha angústia com exclamações e lamentos, até que minhas
forças me deixassem novamente, quando eu me sentava em silêncio aos
pés da estátua de Santa Clara e, de braços cruzados, me deixava levar
pelo completo desespero. Muitas horas se passaram. A morte se
aproximava com passos rápidos e eu acreditava que o desenlace se daria
a qualquer minuto. De repente, um túmulo chamou minha atenção. Sobre
ele havia uma cesta que eu ainda não tinha visto. Levantei-me e corri o
máximo que minha condição exausta permitiu: dentro da cesta havia um
pão de qualidade inferior e uma pequena garrafa d’água.
Eu devorei avidamente aqueles alimentos tão humildes. Eles
tinham toda a aparência de que estavam ali há vários dias: o pão estava
duro e a água estava podre. Mesmo assim, nunca um alimento me
pareceu mais delicioso! Quando os tormentos da fome foram vencidos,
passei a fazer conjecturas sobre minha situação: eu me perguntava se a
cesta havia sido deixada ali em função da minha necessidade. Eu
esperava que sim. Também pensava em quem poderia saber que eu
precisaria de ajuda. Se alguém soubesse que eu estava viva, por que iria
me manter naquela cripta tenebrosa? Se me quisessem como prisioneira,
o que significava a cerimônia do enterro na cripta? Ou, ainda, se eu
estava condenada a morrer de fome, a troco de quê deixariam provisões
ao meu alcance? Nenhum amigo manteria em segredo um castigo tão
cruel; também era pouco provável que um inimigo tivesse a
consideração de me prover com os meios para a minha sobrevivência.
Em suma, sentia-me inclinada a pensar que a intenção da abadessa havia
sido descoberta por alguma das minhas companheiras do convento, que
esta encontrara um meio de substituir o veneno por sonífero e que
deixara comida para o meu sustento até que pudesse me libertar.
Também pensava que ela deveria estar tentando entrar em contato com
minha família para que viessem me resgatar do cativeiro. Mas, por que a
natureza dos alimentos era tão simples? Como essa minha amiga poderia
ter entrado na cripta sem o conhecimento da superiora? E, se tivesse
entrado, por que a porta havia sido trancada com tanto cuidado? Aquelas
reflexões me deixavam atordoada, mas, ao mesmo tempo, me enchiam
de esperança – e eram, portanto, minhas preferidas.
Minhas indagações foram interrompidas por ruídos de passos que
avançavam, bem devagar. Um raio de luz atravessava uma fresta da
porta. Como eu não sabia se as pessoas que se aproximavam vinham
para me salvar ou se visitavam a cripta por algum outro motivo, comecei
a gritar para chamar sua atenção. Os passos estavam mais perto, a luz se
tornava mais forte. Então, fiquei imensamente feliz ao ouvir a chave
girando na fechadura. Convencida de que seria libertada, corri em
direção à porta gritando de alegria. A porta se abriu e todas as minhas
esperanças de escapar desapareceram: a abadessa apareceu com as
mesmas quatro freiras que testemunharam minha suposta morte. Elas
carregavam tochas nas mãos e olhavam para mim de forma silenciosa e
assustadora.
Eu recuei aterrorizada. A superiora entrou na cripta, assim como
suas companheiras. Seu olhar demonstrava um severo ressentimento,
mas não surpresa por encontrar-me viva. Sentou-se no mesmo lugar onde
eu havia sentado, a porta foi novamente trancada e as freiras colocaram-
se atrás da superiora, enquanto o brilho das tochas, agora pouco
perceptível graças aos vapores e umidade da cripta, iluminavam com
raios frios os monumentos ao nosso redor. Por alguns instantes, todas
mantiveram um silêncio solene e mortal. Eu estava em pé, a certa
distância da abadessa. Por fim, ordenou-me que me aproximasse.
Assustada pela seriedade do seu aspecto, mal tive forças para obedecê-
la. Dei alguns passos, mas minhas pernas não conseguiam suportar meu
peso. Eu caí de joelhos, juntei as mãos suplicando por misericórdia,
ainda que não conseguisse pronunciar uma só palavra.
Ela me olhou com olhos raivosos.
— O que tenho diante de mim, uma penitente ou uma pecadora? –
ela perguntou. — Suas súplicas são de arrependimento pelo crime
cometido ou representam apenas medo do castigo? As suas lágrimas
conhecem a justiça do seu destino, ou imploram por um abrandamento
do seu sofrimento? Temo que a resposta seja a última!
Ela fez uma pausa, mas manteve os olhos fixos em mim.
— Tenha coragem – ela continuou. — Eu não desejo a sua morte,
e, sim, o seu arrependimento. Aquela bebida não era veneno, mas um
sonífero. A minha intenção ao enganá-la era fazer com que sentisse as
agonias de uma consciência culpada, se a morte chegasse repentinamente
quando você ainda não havia se arrependido dos seus pecados. Você
sentiu essas agonias: eu a trouxe aqui para familiarizar-se com a
crueldade da morte, e creio que esta aflição momentânea servirá como
um benefício eterno para você. Eu não desejo destruir sua alma imortal,
nem que desça à sepultura sentindo o peso dos pecados não expiados.
Não, minha filha, longe disso! Minha intenção é purificá-la com um
castigo útil e proporcionar-lhe o tempo suficiente para reconhecer sua
culpa e arrepender-se. Ouça, então, minha sentença: o zelo equivocado
das suas amigas atrasou a execução, mas elas já não podem fazer mais
nada. Toda Madri acredita que você está morta. Seus familiares estão
convencidos de que você não faz mais parte deste mundo, e todas as
irmãs que tomaram o seu partido assistiram ao seu funeral. Ninguém
suspeita de que ainda está viva: eu tomei precauções para que este
segredo nunca seja descoberto. Então, abandone todos os pensamentos
sobre um mundo do qual está separada para sempre, e utilize as poucas
horas que ainda lhe restam para preparar-se para o próximo.
Essa introdução anunciava algo terrível. Eu estremeci e tentei dizer
alguma coisa para aplacar sua ira, mas um gesto da superiora me
ordenou que aguardasse em silêncio. Ela prosseguiu:
— Ainda que tenham sido esquecidas durante os últimos anos e
que hoje não tenham a aprovação de muitas das nossas freiras
desencaminhadas (que Deus possa convertê-las), tenho a intenção de
restabelecer as leis da nossa ordem com todo o rigor. A lei sobre a
incontinência é muito severa, mas não vai além do que a ofensa exige:
submeta-se a ela, filha, sem resistir. Você encontrará o benefício da
paciência e da resignação em uma vida melhor do que esta. Ouça a
sentença de Santa Clara: abaixo destas criptas existem prisões destinadas
a receber pecadoras como você. Seu acesso está habilmente camuflado, e
aquela que entrar em uma das prisões pode renunciar a toda esperança de
liberdade. É para lá que você será levada agora. Continuará recebendo
comida, mas não o suficiente para satisfazer seu apetite: você terá apenas
a quantidade necessária para manter sua alma e seu corpo unidos e,
portanto, a qualidade dos alimentos será a mais simples e rudimentar.
Chore, filha, chore e umedeça o pão com as suas lágrimas: bem sabe
Deus que você tem motivos de sobra para chorar! Acorrentada em uma
dessas masmorras secretas, para sempre afastada do mundo e da luz, sem
nenhum conforto além da religião, sem outra companhia além do seu
arrependimento, assim passará o restante dos seus dias. Estas são as
ordens de Santa Clara: submeta-se sem lamentações. Siga-me!
Completamente atordoada pela barbaridade do decreto, as poucas
forças que eu ainda tinha me abandonaram completamente. Minha única
reação foi cair aos seus pés e banhá-los com minhas lágrimas. A
superiora, insensível à minha aflição, levantou-se com muita altivez. Ela
repetiu seu comando de forma determinante, mas minha debilidade
excessiva me impedia de obedecê-la. Mariana e Alix me levantaram do
chão e me carregaram nos braços. A abadessa foi andando, inclinando-se
sobre Violante e Camila que a precediam com uma tocha. Assim, nosso
cortejo seguia pelos longos corredores em completo silêncio, às vezes
rompido pelos meus soluços e gemidos. Paramos diante do túmulo de
Santa Clara. A estátua havia sido removida do pedestal, ainda que eu não
entendesse de que maneira. A seguir, as freiras levantaram uma grade de
ferro que estava escondida pela imagem e, ruidosamente, deixaram-na
cair do outro lado. Aquele barulho alto e terrível, ecoado nas sepulturas
que estavam acima de mim, e também nas cavernas que estavam abaixo,
me despertaram da apatia em que me encontrava. Eu olhei para a frente:
diante de mim existia um abismo espantoso e uma escadaria muito
íngreme e estreita, por onde fui conduzida pelas freiras. Eu gritei e me
retorci, implorei por compaixão, enchi o ar com meu pranto e supliquei
ajuda ao Céu e à terra. Foi tudo em vão! Elas me arrastaram escada
abaixo e me obrigaram a entrar em uma das celas que se abriam ao lado
das cavernas.
Meu sangue congelou ao contemplar o tenebroso lugar. A bruma
fria que pairava no ar, as paredes esverdeadas pela umidade, a cama de
palha tão miserável e incômoda, a corrente destinada a me deixar para
sempre atada àquela prisão e os répteis de todas as formas que observei
correndo para seus abrigos, com medo das tochas que avançavam em sua
direção, deixaram meu coração apertado de medo pelo castigo tão duro
que teria de suportar. Enlouquecida pelo desespero, consegui me libertar
das freiras que me detinham e fiquei de joelhos diante da abadessa,
suplicando por clemência nos termos mais ardentes e delirantes.
— Se não por mim – eu disse — veja com piedade o inocente cuja
vida está ligada à minha! Grande é o meu pecado, mas não permita que a
criança sofra por ele! Meu filho não cometeu pecado algum. Oh, poupe-
me pelo meu filho que ainda não nasceu e cuja existência está condenada
pela sua crueldade!
A superiora afastou-se com arrogância, puxando seu hábito do meu
alcance, como se meu contato fosse contagioso.
— Como? – ela perguntou, irritada. — Como ousa interceder pelo
fruto da sua vergonha? Como permitir que viva uma criatura que foi
concebida em pecado tão monstruoso? Mulher devassa, não me fale mais
dessa criança! Seria melhor que a infeliz morresse no lugar de viver;
fruto do perjúrio, luxúria e profanação, prova ser um prodígio de
imoralidade! Escute bem, pecadora: não conte com a minha
misericórdia, nem para você, nem para sua criança; reze para que a sua
morte chegue antes do nascimento – mas, se ela chegar a ver a luz, que
seus olhos se fechem imediatamente, para sempre! Não receberá
nenhuma ajuda no parto: traga-a ao mundo, dê-lhe de comer, cuide dela,
trate de enterrá-la sozinha! Deus queira que morra logo para que você
não encontre conforto no fruto da sua iniquidade!
Esse discurso desalmado, as ameaças nele contidas, todos os
sofrimentos anunciados pela superiora e suas preces para que meu filho
morresse – meu filho, por quem eu já sentia um profundo amor antes
mesmo do seu nascimento –, eu não tinha mais estrutura para suportar
tudo aquilo. Emitindo um longo gemido, caí sem sentidos aos pés da
minha inimiga implacável. Não sei dizer por quanto tempo fiquei
naquela situação, mas imagino que um bom tempo tenha transcorrido até
minha recuperação, porque quando acordei, a abadessa e as freiras não
estavam mais lá. Quando minhas forças voltaram, percebi que estava
sozinha e que tudo estava em silêncio. Não cheguei a ouvir os passos das
minhas assassinas. Tudo estava quieto e era espantoso! Eu havia sido
jogada na cama de palha, e a pesada corrente que eu já havia observado,
agora rodeava a minha cintura, tendo sua extremidade firmemente presa
à parede. Uma lamparina iluminava a masmorra com raios fracos e
melancólicos, permitindo a visão de todos os seus horrores. Ela era
separada da caverna por uma parede baixa de pedras irregulares; uma
fenda fazia as vezes da entrada, já que não havia porta. Um crucifixo de
chumbo estava pendurado em frente à minha cama; havia, também, uma
manta esfarrapada ao meu lado, assim como um rosário. Não longe de
mim, avistei uma jarra com água e uma cesta de vime com um pequeno
pedaço de pão e uma garrafa de óleo para abastecer a lamparina.
Observei aquele cenário de sofrimento com olhar desesperado.
Quando percebi que estava condenada a passar o resto dos meus dias ali,
meu coração foi tomado por uma amarga angústia. Em outros tempos,
tinham me ensinado a imaginar o futuro de forma bem diferente. Minhas
perspectivas pareciam tão agradáveis e tão vivas! Agora, nada mais
restava para mim. Amigos, conforto, companhia, felicidade, perdi tudo
de repente! Morta para o mundo, morta para o prazer, eu só viveria para
conhecer a miséria. Aquele mundo do qual eu fora banida me parecia tão
justo! Lá estavam tantas coisas queridas que eu nunca voltaria a ver! Eu
olhei com desespero para a minha prisão, enquanto me encolhia de frio
por conta do vento cortante que soprava na minha habitação subterrânea;
tudo aconteceu de forma tão repentina que era difícil acreditar na minha
nova realidade.
A sobrinha do Duque de Medina, destinada a casar-se com o
Marquês de las Cisternas, nascida na fartura, relacionada com as famílias
mais nobres da Espanha e cheia de amigos afetuosos, em um instante,
tornou-se uma prisioneira, afastada do mundo para sempre, acorrentada e
tendo para seu sustento os alimentos mais rudimentares. Era uma
mudança tão súbita e tão improvável que eu acreditava tratar-se de uma
visão. Porém, sua duração me convenceu de que era real. Todas as
manhãs, eu perdia um pouco das esperanças, até que, finalmente,
abandonei por completo o plano de escapar dali: aceitei o meu destino e
passei a acreditar que a liberdade só viria com a minha morte.
Minha angústia espiritual e as cenas assustadoras das quais fui a
protagonista anteciparam a hora do parto. Sozinha, infeliz, abandonada
por todos, desamparada, sem o consolo dos meus amigos, em meio a
sofrimentos capazes de comover os mais duros corações, eu dei à luz ao
meu filho. Ele chegou ao mundo com vida, mas eu não sabia como
cuidar dele, ou o que fazer para preservar sua existência. Tudo o que
pude fazer foi banhá-lo com minhas lágrimas, aquecê-lo em meu peito e
oferecer-lhe orações para a sua segurança. Em pouco tempo, fui privada
também deste pesaroso cuidado: a falta de atenção adequada, a minha
ignorância sobre amamentação, o frio intenso da masmorra e o ar
insalubre que enchia seus pulmões, terminaram com a vida breve e
infeliz do meu bebê. Ele morreu poucas horas depois do nascimento, e
eu presenciei sua morte com tanta angústia que nem consigo explicar.
Minha aflição não serviu para nada: meu filho havia deixado de
existir, e os meus suspiros não foram suficientes para dar ao seu pequeno
corpo um auxílio para que respirasse. Rasguei meu sudário e com ele
embrulhei seu amado corpinho. Eu o coloquei contra o meu peito, com
seu bracinho ao redor do meu pescoço e seu rostinho colado ao meu.
Assim, seu corpo sem vida descansou, enquanto eu o cobria de beijos,
conversava com ele, chorava e gemia sem descanso, dia e noite. Camila
visitava minha prisão regularmente, trazendo comida a cada vinte e
quatro horas. Apesar do seu gênio impiedoso, ela não conseguia observar
aquela cena de forma impassível. Ela temia que o sofrimento excessivo
me levasse à loucura e, na verdade, eu nem sempre estava em meu juízo
perfeito. Movida por um impulso de compaixão, ela insistiu para que eu
autorizasse o enterro do corpo, mas nunca concordei com isso. Prometi
jamais separar-me dele enquanto eu tivesse um só minuto de vida: sua
presença era meu único conforto, e nenhum argumento poderia
convencer-me a abrir mão dele. Não demorou muito para que seu
corpinho se transformasse em uma massa em decomposição, o que, aos
olhos de todos, não deixava de ser uma coisa repugnante e desagradável
– aos olhos de todos, mas não aos olhos de uma mãe. Nenhum
sentimento humano poderia me fazer rejeitar esta representação da
mortalidade: eu resisti e venci minha repugnância. Continuei mantendo
meu filho junto ao peito, lamentando sua perda com amor, com
veneração. Horas seguidas eu passei em meu leito, contemplando o que
foi um dia o meu bebê, e tentando recordar seus traços por baixo da
decomposição cinzenta que se estendia por todo o seu corpo. Durante o
meu confinamento, esta triste ocupação foi minha única alegria e nada
no mundo me faria abrir mão destes momentos. Mesmo quando fui
libertada da prisão, eu trouxe meu filho nos braços. As súplicas das
minhas duas boas amigas – (nesse momento, ela beijou as mãos da
marquesa e de Virgínia) – finalmente me convenceram a deixar que meu
pobre menino fosse enterrado. Ainda assim, separar-me dele não foi uma
tarefa fácil. Mas a razão prevaleceu e eu concordei que o levassem;
agora ele repousa em solo sagrado.
Eu já disse que Camila vinha diariamente me trazer alimentos. Ela
nunca quis tornar meus sofrimentos ainda piores com suas reprovações.
Ela dizia, é verdade, para eu abandonar todas as esperanças de liberdade
e de felicidade mundana, mas também me encorajava a suportar tudo
com paciência e me aconselhava a buscar consolo na fé.
Minha situação, evidentemente, a afetava mais do que ela se
atrevia a dizer, mas acreditava que se meu pecado fosse atenuado, eu não
buscaria o arrependimento. Frequentemente, enquanto seus lábios
falavam sobre a minha culpa, seus olhos delatavam o quanto ela era
sensível aos meus sofrimentos. Na verdade, estou convicta de que
aquelas que se dedicavam a atormentar minha existência (as outras três
entravam na minha prisão, de tempos em tempos), não agiam movidas
por uma crueldade opressiva, mas, sim, pela ideia de que o martírio do
meu corpo era a única maneira de proteger a minha alma. Não, até
mesmo essa convicção poderia não ter sido suficiente, e elas poderiam
ter considerado tal forma de castigo muito severa se suas consciências
não tivessem cedido à obediência cega pela madre superiora. O
ressentimento desta mantinha-se em pleno vigor. Quando os meus planos
de fuga foram descobertos pelo superior dos capuchinhos, ela julgou que
minha infâmia rebaixava sua posição aos olhos do monge e, como
consequência, passou a me odiar profundamente. Ela contou às freiras
que tomavam conta de mim, que meu pecado era do tipo mais
abominável, que nenhum sofrimento poderia se igualar à minha ofensa, e
que não havia nada que me salvasse da perdição eterna senão a punição
com o castigo mais severo de todos. As palavras da superiora eram como
um oráculo para muitas das que viviam no convento. As freiras
acreditavam em qualquer coisa que ela dissesse. Embora contrários à
razão e à caridade, seus argumentos nunca eram contestados. Elas
seguiam suas decisões ao pé da letra e estavam plenamente convencidas
de que, ao tratar-me com indulgência ou demonstrarem a mínima
compaixão pelos meus sofrimentos, seria o caminho direto para a
destruição das minhas chances de salvação.
Camila era quem melhor me compreendia e foi a ela que a
abadessa ordenou que me tratasse com dureza; de acordo com suas
ordens, a freira frequentemente se esforçava para convencer-me de quão
justo era aquele castigo. Ela dizia que eu deveria me considerar feliz por
ter a oportunidade de salvar minha alma através da mortificação do meu
corpo e, às vezes, até me ameaçava com a condenação eterna. Mesmo
assim, como já disse, ela sempre terminava com palavras de
encorajamento e conforto. Quanto às expressões atormentadoras, ainda
que pronunciadas pelos lábios de Camila, eu facilmente identificava as
palavras da superiora. Uma vez, apenas uma, a abadessa desceu até a
masmorra. Ela me tratou com a mais implacável crueldade, me encheu
de censuras, riu da minha fragilidade e, quando implorei por compaixão,
ela me disse para pedir compaixão ao Céu, pois eu não merecia a
piedade da terra! Ela até olhou para o meu filho morto sem mostrar a
menor emoção; e, quando partiu, eu a ouvi dizer à Camila que
intensificasse o rigor do meu cativeiro. Mulher insensível! Mas vamos
deixar os ressentimentos de lado, pois ela já pagou pelos seus erros
através do modo triste e inesperado como morreu. Que descanse em paz
e que seus pecados sejam esquecidos no Céu, assim como eu a perdoo
pelos meus sofrimentos na terra.
Foi assim que eu mantive uma existência miserável. Longe de
chegar a me familiarizar com a prisão, eu a contemplava cada vez com
mais horror. O frio parecia ficar mais intenso e penetrante; o ar, mais
denso e nocivo; meu corpo ficava mais fraco, febril e consumido. Não
era mais capaz de levantar-me da cama para exercitar as pernas dentro
dos limites estreitos que a corrente permitia. Ainda que estivesse exausta
e sem forças, tinha medo de adormecer: meus sonhos eram
constantemente interrompidos por algum inseto desagradável andando
sobre o meu corpo. Às vezes, eu sentia que um sapo inchado, horroroso e
impregnado com os vapores venenosos da masmorra, arrastava-se pelo
meu peito. Às vezes era o lagarto, rápido e gelado, que me despertava
deixando um rastro viscoso pelo meu rosto e se emaranhando nas
mechas desalinhadas dos meus cabelos. Muitas vezes, ao acordar,
encontrava meus dedos cobertos pelos grandes vermes que se
alimentavam da carne apodrecida do meu filho. Nestas ocasiões, eu
gritava de medo e de nojo, e enquanto sacudia os vermes para longe,
tremia com toda a fraqueza de uma mulher.
Esta era a minha situação quando Camila, subitamente, adoeceu.
Uma febre perigosa, supostamente infecciosa, deixou-a de cama. Todas,
exceto a irmã encarregada dos seus cuidados, a evitavam por precaução,
com medo de contrair a enfermidade. Ela estava delirando e não era
capaz de vir me socorrer. A superiora e as outras freiras que conheciam
meu segredo tinham deixado Camila inteiramente responsável por mim
e, assim, não voltaram a se preocupar com a minha sobrevivência. Como
estavam ocupadas com os preparativos da procissão que se aproximava,
é bem provável que não tenham pensado em mim uma única vez. Madre
Santa Úrsula foi quem me contou, depois da minha liberdade, por que
Camila deixou de me ver. Na ocasião, eu nem suspeitava disso. Pelo
contrário, todos os dias eu aguardava a chegada da minha carcereira. A
princípio, com impaciência, mas depois de algum tempo, com desespero.
Um dia se passou, e outro, até que o terceiro dia chegou e nada de
Camila! Nada de comida! Eu tinha consciência da passagem do tempo
pelo consumo da lamparina – pois, da última vez, deixaram óleo para
uma semana. Eu imaginava que as freiras tinham se esquecido de mim,
ou que a superiora houvesse lhes ordenado que me deixassem morrer. A
última hipótese parecia ser a mais provável. Nosso amor à vida é uma
coisa tão natural que eu não queria acreditar que isso poderia ser
verdade. Mesmo atormentada por todos os tipos de infelicidade, eu ainda
apreciava minha existência e tinha medo de perdê-la. Cada minuto que
passava mostrava que eu deveria abandonar todas as esperanças de
alívio. Eu estava me transformando em um esqueleto: meus olhos
falhavam, meus membros começavam a ficar rígidos, eu só podia
expressar minha angústia e as dores da fome com gemidos, cujos ecos
melancólicos ecoavam no teto abobadado. Enfim, aceitei meu destino, e
já esperava o momento da morte quando meu Anjo da Guarda, meu
amado irmão, chegou a tempo para salvar-me! Minha visão debilitada, a
princípio, recusou-se a reconhecê-lo, e quando eu finalmente pude
distinguir seus traços, a emoção que senti foi muito forte. Eu estava
dominada pela alegria de ver novamente um amigo, um amigo que eu
queria tão bem! Minha condição não permitiu que eu suportasse
emoções, então busquei refúgio na inconsciência.
Vocês já sabem quais são as minhas dívidas para com a família
Villa-Franca, mas não imaginam o quanto sou grata pela excelência dos
meus benfeitores! Lorenzo! Ramón! Nomes tão queridos para mim.
Ensinem-me a suportar esta súbita mudança da miséria à felicidade
plena! Até pouco tempo, uma prisioneira acorrentada, sem ter o que
comer, sofrendo todas as inconveniências do frio e da privação,
escondida da luz, excluída da sociedade, sem esperanças, abandonada, e
o que eu mais temia: esquecida por todos! Agora que recuperei minha
vida e minha liberdade e que posso desfrutar de todas as facilidades e do
conforto, quando estou rodeada por aqueles a quem tanto amo e prestes a
me tornar a noiva do homem que há tanto tempo é dono do meu coração,
minha felicidade é tão intensa, tão completa, que mal posso acreditar!
Tenho apenas um desejo que gostaria de ver realizado: que meu irmão
recupere sua saúde, e que a memória de Antonia seja enterrada com ela.
Ter esse desejo atendido é tudo o que eu peço. Acredito que, por tudo o
que sofri, já obtive dos céus o perdão por aquela fraqueza momentânea.
Sei que pequei, e que pequei gravemente, tenho plena consciência disso;
mas espero que meu marido, que já se apossou da minha honra uma vez,
não duvide nunca da minha conduta no futuro. Eu fui fraca e caí em
tentação, mas não foi por fraqueza da carne. Ramón, foi o meu amor por
você que me traiu; eu confiava tanto na minha força, mas dependia tanto
da sua honra quanto da minha. Eu jurei nunca mais voltar a vê-lo, pois se
não fosse por aquele único momento de imprudência, teria mantido
minha decisão. O destino, no entanto, quis que as coisas acontecessem
de outro modo e eu muito me alegro com isso. Mesmo assim, minha
conduta foi altamente censurável, e ainda que tente me justificar, me
envergonho muito do meu deslize. Vamos, então, mudar de assunto; mas
primeiro, Ramón, quero lhe assegurar de que nunca terá motivos para se
arrepender da nossa união, pois, da mesma forma que sua amada foi
capaz de errar, sua esposa será sempre um exemplo de conduta.
Agnes terminou seu discurso e o marquês lhe ofereceu respostas
igualmente sinceras e afetuosas. Lorenzo expressou sua satisfação diante
da perspectiva de estreitar suas conexões com um homem por quem
sentia uma grande estima. A bula papal havia dispensado Agnes dos seus
compromissos religiosos e o casamento ocorreu logo que os preparativos
foram concluídos, pois o marquês insistiu para que a cerimônia fosse
celebrada com todo esplendor e o máximo de publicidade possível.
Terminadas as comemorações e tendo a noiva recebido os cumprimentos
de toda Madri, ela partiu com seu esposo para o Castelo de Andaluzia.
Lorenzo acompanhou o casal, assim como a marquesa de Villa-Franca e
sua linda filha. Não é necessário dizer que Teodoro também fazia parte
da comitiva, e que é impossível descrever a alegria que sentia pelo
casamento do seu amo. Antes da partida, o marquês, tentando reparar sua
negligência no passado, fez algumas indagações sobre Elvira.
Descobrindo que tanto ela quanto sua filha tinham recebido muita ajuda
financeira de Leonella e também de Jacinta, ele demonstrou seu respeito
à memória da cunhada com alguns presentes valiosos para as duas
senhoras. Lorenzo seguiu seu exemplo. Leonella ficou bastante
lisonjeada pela atenção de fidalgos tão distintos, e Jacinta sentiu-se grata
pelo momento em que sua casa foi enfeitiçada.
Agnes também não se esqueceu das suas amigas no convento. A
digníssima Madre Santa Úrsula, a quem devia sua liberdade, foi
nomeada, a pedido de Agnes, superiora das Damas da Caridade, uma das
melhores e mais ricas sociedades de toda Espanha. As irmãs Bertha e
Cornélia, não desejando abandonar a amiga, foram designadas a
desempenhar cargos importantes no mesmo estabelecimento. Quanto às
freiras que ajudaram a superiora nos tormentos de Agnes, Camilla,
acamada por conta de uma doença, morreu queimada pelas chamas que
consumiram o Convento de Santa Clara; Mariana, Alix e Violante, assim
como outras duas, foram vítimas do levante popular. As outras três, que
tinham defendido a sentença da superiora no conselho, foram
severamente repreendidas e transferidas para casas religiosas em
províncias obscuras e distantes. Ali permaneceram por alguns anos,
envergonhadas da sua fraqueza anterior e evitadas pelas companheiras
que as desprezavam.
A lealdade de Flora também não ficou sem recompensa. Quando
consultada quanto aos seus desejos, declarou estar impaciente para poder
voltar à sua terra natal. Assim, providenciaram uma passagem para
Cuba, onde ela chegou em segurança, carregada de presentes dados por
Ramón e Lorenzo.
Cumpridas as dívidas de gratidão, Agnes sentia-se livre para pôr
em prática seu plano favorito. Alojados na mesma casa, Lorenzo e
Virgínia estavam constantemente juntos. Quanto mais ele a via, mais
convencido ficava dos seus méritos. Da sua parte, Virgínia esforçava-se
para agradá-lo, e era impossível que não fosse bem-sucedida.
Lorenzo contemplava com admiração sua beleza, seus modos
elegantes, seus inumeráveis talentos e seu temperamento sempre doce.
Ele também ficava envaidecido pela preferência que ela demonstrava a
seu favor, e que não conseguia ocultar. Porém, seus sentimentos não
eram tão ardentes como quando estava apaixonado por Antonia. A
imagem daquela jovem tão amável e tão infeliz ainda estava muito viva
no seu coração, e enfraquecia todos os esforços de Virgínia para
substituí-la. Mesmo assim, quando o duque propôs a união, a qual muito
desejava, seu sobrinho não rejeitou o arranjo. As constantes súplicas dos
amigos e as virtudes da dama venceram sua relutância à ideia de assumir
um novo compromisso. Ele mesmo fez o pedido ao Marquês de Villa-
Franca, o qual foi aceito com alegria e gratidão. Virgínia tornou-se sua
esposa e nunca lhe deu motivos para arrependimento. Sua estima por ela
aumentava dia a dia, e os esforços da moça para agradá-lo obtinham
mais e mais sucesso. A imagem de Antonia foi, aos poucos,
desaparecendo, e Virgínia tornou-se a única dona do seu coração; ela
bem que merecia ser exclusiva.
Pelo resto de suas vidas, Ramón e Agnes, e, também, Lorenzo e
Virgínia, foram tão felizes quanto podem ser os mortais nascidos para
serem vítimas da dor e da decepção. Os intensos sofrimentos suportados
no passado aliviaram suas mágoas futuras; eles tinham experimentado os
dardos mais afiados do arqueiro da vida, e os demais pareciam
inofensivos. Tendo resistido às piores tormentas do destino, encaravam
seus medos com serenidade; e, se porventura viessem a se afligir em
consequência de alguma tempestade casual, enfrentavam o problema
como se fosse algo tão suave quanto a brisa que sopra sobre o mar no
verão.
CAPÍTULO V

Ele era um demônio vingativo e cruel:


Não há ninguém mais perverso no inferno:
Com seu orgulho, inteligência, raiva e rancor aguçados
Assim como o homem, o inimigo pode ser bom ou mau.
(Thomson)

No dia seguinte à morte de Antonia, toda a cidade de Madri estava


desconsolada e abismada. Um arqueiro que havia presenciado a cena do
sepulcro, indiscretamente, relatou todas as circunstâncias do assassinato,
revelando também o nome do assassino. A confusão que a notícia causou
entre os devotos foi sem igual. A maioria não podia acreditar e foi
pessoalmente ao mosteiro para confirmar o fato. Querendo evitar a
vergonha que a má conduta do superior causaria em toda a irmandade, os
monges garantiram aos visitantes que Ambrósio não poderia vê-los
porque estava, simplesmente, doente. A mentira foi um fracasso: à
medida que a mesma narrativa era repetida dia após dia, a história do
arqueiro foi adquirindo mais credibilidade. Os discípulos do monge o
abandonaram. Ninguém tinha dúvidas de que ele era culpado, e aqueles
que antes o enalteciam ardorosamente, agora eram os primeiros a
condená-lo.
Enquanto sua culpa ou inocência era debatida em Madri, Ambrósio
era prisioneiro dos tormentos da sua própria consciência e do medo pelo
castigo que receberia. Quando olhava para trás e lembrava da reputação
que carregava até pouco tempo, de homem honrado e respeitado, em paz
com o mundo e consigo mesmo, mal podia acreditar que era
efetivamente culpado por aqueles crimes e temia pelo seu destino.
Poucas semanas haviam se passado desde que ele deixara de ser puro e
virtuoso, respeitado pelos mais sábios e pelos nobres de Madri, venerado
pelo povo com tanto fervor que beirava a idolatria. Agora, encontrava-se
marcado pelos pecados mais monstruosos, era objeto de aversão geral,
um prisioneiro do Santo Ofício e, provavelmente, estava condenado a
sofrer as torturas mais severas. Ele não esperava enganar os juízes: as
evidências do seu crime eram muito fortes. O fato de estar na cripta em
hora tão adiantada, a sua confusão ao ser descoberto, o punhal que
confessou possuir e o sangue de Antonia respingado no seu hábito, eram
provas suficientes de que ele era o assassino. Ambrósio aguardava
ansiosamente o dia do interrogatório. Não existia nada que pudesse
consolá-lo: a religião não lhe dava forças, e se tentasse ler os livros de
moral que colocaram em suas mãos, não conseguia enxergar neles outra
coisa senão a enormidade dos seus delitos. Se tentasse rezar, pensava
que não merecia a proteção do Céu, e acreditava que seus crimes eram
tão monstruosos que superavam até a infinita bondade de Deus.
Acreditava que para qualquer outro pecador poderia haver esperança,
mas que, para ele, não havia nenhuma. Estremecido pelo passado,
angustiado pelo presente e aterrorizado com relação ao futuro: assim
Ambrósio passou os dias que precederam o seu julgamento.
O temido dia chegou. Às nove horas da manhã, a porta foi aberta e
seu carcereiro entrou, ordenando-lhe que o seguisse. Ele obedeceu,
assustado. Foi conduzido a uma sala espaçosa, forrada com tecidos de
cor preta. Diante da mesa, estavam sentados três homens com expressão
grave, também vestidos de preto. Um deles era o Inquisidor Geral, que
tinha se interessado pessoalmente pelo caso. Em outra mesa menor, a
pouca distância, estava o secretário, guarnecido com todos os utensílios
necessários para escrever. Este sinalizou a Ambrósio que ele deveria
avançar e tomar o assento no extremo inferior da mesa. Ao olhar para
baixo, descobriu diversos instrumentos de ferro dispostos no chão. Seus
formatos eram estranhos, mas a apreensão do frade fez com que
adivinhasse que se tratavam de instrumentos de tortura. Ele ficou pálido
e, com muita dificuldade, conseguiu controlar-se para não desmaiar.
Reinava um profundo silêncio na sala, exceto quando os
inquisidores sussurravam algumas palavras misteriosamente. Quase uma
hora havia se passado e Ambrósio ficava cada vez mais apavorado.
Finalmente, uma pequena porta no extremo oposto à entrada girou
pesadamente sobre as dobradiças. Dali saiu um oficial, seguido
imediatamente pela bela Matilda. Seus cabelos caíam em desordem
sobre o rosto, sua face estava pálida, e seus olhos, fundos e sofridos. Ela
lançou um olhar triste para Ambrósio, e ele lhe devolveu um olhar de
aversão e reprovação. Foram posicionados um de frente para o outro.
Um sino soou três vezes: era o sinal para o início do julgamento, e os
inquisidores começaram seu trabalho.
Nestes julgamentos a acusação não é mencionada, nem o nome do
acusado. Os prisioneiros devem apenas responder se irão confessar; se
contestam que não há crime para confessar, são submetidos à tortura
imediata. O processo é repetido a intervalos, até que o suspeito declare-
se culpado ou até que a paciência dos examinadores se esgote. Mas, sem
o reconhecimento direto da culpa, a Inquisição jamais pronunciará a
sentença final aos seus prisioneiros. Em geral, o interrogatório demora
muito para acontecer, mas o processo de Ambrósio foi antecipado graças
a um solene Auto de Fé que aconteceria em poucos dias, no qual os
inquisidores pretendiam incluir o culpado, dando um testemunho da sua
vigilância.
O frade não era apenas acusado de estupro e assassinato: o crime
que mais pesou contra ele foi o de bruxaria, assim como para Matilda.
Ela havia sido detida como cúmplice do assassinato de Antonia. Ao
revistarem sua cela, vários livros e instrumentos suspeitos foram
encontrados, o que justificava a ação movida contra ela. Para incriminar
o monge, apresentaram o espelho brilhante que Matilda acidentalmente
deixara na cela dele. Os estranhos símbolos gravados na borda atraíram a
atenção de Dom Ramírez, enquanto fazia uma busca na cela do superior.
Ele decidiu levar o espelho e mostrá-lo ao Inquisidor Geral – que, depois
de algum tempo examinando o objeto, pegou uma pequena cruz dourada
que trazia no cinto e colocou-a sobre o espelho. Imediatamente se ouviu
um barulho muito alto, semelhante a um trovão, e o aço se espatifou em
mil pedaços, confirmando a suspeita de que o monge praticava magia.
Chegaram até a supor que sua influência sobre a mente das pessoas
devia-se inteiramente à bruxaria.
Determinados a fazê-lo confessar não apenas os crimes cometidos,
mas também outros dos quais era inocente, os inquisidores iniciaram seu
interrogatório. Com medo das torturas e, mais ainda, da morte que o
condenaria a tormentos eternos, o frade proclamou sua pureza com voz
firme e resoluta. Matilda seguiu seu exemplo, mas demonstrou estar
mais nervosa e com medo. Tendo falhado na tentativa de fazê-lo
confessar, os inquisidores ordenaram que o monge fosse submetido à
tortura. A ordem foi imediatamente executada e Ambrósio sentiu as
dores mais violentas já inventadas pela crueldade humana. Porém, a
morte se apresenta tão assustadora quando acompanhada de culpa, que
ele teve forças suficientes para continuar afirmando sua inocência. Como
consequência, redobraram sua agonia até que, vencido pela dor, ele
desmaiou e escapou das mãos dos seus algozes.
Matilda era a próxima a ser torturada; mas, aterrorizada pela visão
do sofrimento do monge, sua coragem a abandonou completamente. Ela
caiu de joelhos, confessou sua comunicação com os espíritos do Inferno
e que havia presenciado o assassinato de Antonia pelas mãos de
Ambrósio. Quanto ao crime de bruxaria, ela declarou ser a única
culpada, sendo Ambrósio perfeitamente inocente. Esta última declaração
não recebeu crédito. O monge recobrou os sentidos a tempo de ouvir a
confissão da sua cúmplice, mas estava muito fraco pelo que já tinha
suportado, e não tinha condições de resistir a novas torturas. Ele foi
levado para o calabouço, mas antes foi informado de que, tão logo
recuperasse as forças, deveria preparar-se para uma segunda seção. Os
inquisidores esperavam que ele se apresentasse menos endurecido e
obstinado. Matilda foi informada de que deveria expiar seu pecado na
fogueira do próximo Auto de Fé. Todas as suas lágrimas e súplicas não
conseguiram minimizar sua condenação e ela foi arrastada para fora da
sala do tribunal.
De volta ao seu calabouço, as dores pelo corpo de Ambrósio eram
mais suportáveis do que as dores que habitavam sua mente. Seus
membros deslocados, as unhas arrancadas das mãos e dos pés, os dedos
esmagados e quebrados pela pressão dos parafusos, tudo era superado
pela angústia e agitação da sua alma e pela intensidade do seu pânico.
Ele compreendeu que, culpado ou inocente, seus juízes estavam
decididos a condená-lo. A lembrança do que a sua negação havia custado
o deixava apavorado ante a ideia de ser torturado novamente. Ambrósio
sentia-se inclinado a confessar seus crimes, mas quando pensava nas
consequências da confissão, sentia-se novamente indeciso. Sua morte
seria inevitável, e seria uma morte terrível: ele tinha escutado a sentença
de Matilda e não duvidava de que algo semelhante estivesse reservado
para ele. O monge temia a proximidade do Auto da Fé, a ideia de morrer
na fogueira para apenas escapar dos tormentos transitórios e passar para
outros mais sutis e duradouros. Com os olhos da mente ele contemplava,
aterrorizado, o espaço além do seu túmulo; não podia esconder de si
mesmo o quanto seria justa a vingança do Céu. Neste labirinto de terror,
bem que ele gostaria de poder refugiar-se nas trevas do ateísmo, poder
negar a imortalidade da alma, convencer-se de que, os olhos, uma vez
fechados, não se abririam nunca mais, e que, nesse mesmo instante, tanto
o seu corpo quanto a sua alma seriam aniquilados. Porém, mesmo este
recurso lhe foi negado: seus conhecimentos eram muito amplos e seu
entendimento muito sólido e justo; ele não podia evitar sentir a
existência de Deus. Aquelas verdades que, em outros tempos, já
serviram de consolo, agora se apresentavam com luzes mais evidentes,
que serviam somente para distraí-lo. Sua crença destruiu as infundadas
esperanças de escapar do castigo, as quais, uma vez dissipadas pelo
brilho da verdade e da sua convicção, faziam com que as névoas
traiçoeiras da filosofia desaparecessem como em um sonho.
O seu martírio era muito maior do que poderia suportar qualquer
mortal e ele só esperava a hora em que seria interrogado novamente.
Enquanto isso, ocupava-se do planejamento de vários esquemas para
escapar tanto do castigo presente quanto do futuro. Não havia como
evitar o primeiro e, quanto ao segundo, seu desespero fazia com que
duvidasse do único caminho. Enquanto a razão o obrigava a reconhecer a
existência de Deus, a consciência duvidava da Sua bondade infinita. Não
acreditava que um pecador como ele pudesse encontrar misericórdia. Ele
não havia sido conduzido ao erro e não poderia usar a ignorância como
desculpa: possuía uma compreensão do vício na sua forma mais
verdadeira. Antes de cometer os crimes, tinha analisado cuidadosamente
as consequências e, mesmo assim, ele os cometeu.
— Perdão? – ele gritou em um acesso de loucura. — Oh, não pode
haver perdão para mim!
Assim convencido, ao invés de humilhar-se em penitência,
lamentar sua culpa e dedicar as poucas horas que ainda lhe restavam
para despertar a misericórdia de Deus, achou melhor entregar-se aos
prazeres da raiva: ele sentia pelo castigo dos seus crimes, mas não por
tê-los cometido; buscava alívio para seu sofrimento com suspiros inúteis,
lamentações infrutíferas, blasfêmias e desespero. Assim, quando os
escassos raios de sol que penetravam por entre as barras da janela da
prisão desapareciam, e no seu lugar brilhava a fraca luz de um lampião,
ele sentia seu pavor aumentar e suas ideias tornavam-se mais tenebrosas,
mais solenes, mais desanimadas. Ele tinha medo de dormir: assim que
fechava os olhos, cansados de tanto chorar, surgiam visões assustadoras
daquilo que sua mente estivera trabalhando durante o dia. Via a si
mesmo em regiões sulfurosas e em cavernas em chamas, rodeado por
demônios designados para atormentá-lo e submetê-lo a diversas torturas,
uma mais assustadora do que a outra. No meio de todo este cenário,
vagavam os espíritos de Elvira e de sua filha. Elas o responsabilizavam
por suas mortes, recontavam seus pecados aos demônios e exigiam que o
atormentassem com a mais refinada crueldade. Estas eram as imagens
que ele via enquanto dormia, e elas não o abandonavam até que seu
descanso fosse interrompido pela dor. Então, ele se levantava do chão
onde costumava dormir, com a testa ensopada pelo suor frio, com olhar
perdido e delirante, e tudo o que podia fazer era substituir aquelas
certezas terríveis por conjecturas mais suportáveis. Caminhava pelo
calabouço com passos desordenados, mirava com horror a obscuridade
que o rodeava e, frequentemente gritava:
— Oh, como é assustadora a noite para aqueles que carregam a
culpa!
O dia do segundo interrogatório se aproximava. Ele fora obrigado
a ingerir alguns tônicos, cujos benefícios eram calculados para restituir
suas forças e fazer com que suportasse o suplício por mais tempo. Na
véspera do temido dia, o medo do que iria acontecer naquela manhã não
o deixou dormir. O pavor que sentia era tão intenso que quase anulava
suas faculdades mentais. Ele permanecia sentado, completamente
atordoado, perto da mesa onde ardia a chama lúgubre do lampião. O
desespero havia transformado suas habilidades em apatia e assim ele
permanecia durante horas, incapaz de falar, de se mexer, ou mesmo de
pensar.
— Olhe para cima, Ambrósio! – disse uma voz familiar.
O monge ergueu seus olhos tristes e viu Matilda diante dele. Ela
não estava vestindo o hábito. Agora usava um vestido feminino, elegante
e esplêndido; uma profusão de diamantes brilhava na sua capa; e seus
cabelos estavam presos em uma coroa de rosas. Na mão direita,
carregava um pequeno livro e irradiava alegria por todo o rosto. Mas
havia também uma espécie de majestade imperial que assustava o monge
e o impedia de alegrar-se com a sua visita.
— Você aqui, Matilda? – ele perguntou. — Como conseguiu
entrar? Onde estão suas correntes? O que significa esta opulência e este
brilho no seu olhar? Será que seus juízes a dispensaram? Há alguma
chance para mim? Tenha compaixão e diga o que eu devo esperar ou
temer?
— Ambrósio – ela respondeu com dignidade autoritária. — Eu
escapei da fúria da Inquisição. Estou livre, e em poucos segundos me
coloquei a uma enorme distância destas masmorras! Porém, o preço da
minha liberdade foi alto. Você estaria disposto a pagar o mesmo,
Ambrósio? Você se atreveria a atravessar os limites que separam os
homens dos anjos? Você está calado. Olha para mim com suspeitas e
receio... eu leio seus pensamentos, e confesso que são justos. Sim,
Ambrósio, eu sacrifiquei tudo pela vida e pela liberdade! Já não sou uma
candidata ao reino do Céu: eu renunciei ao serviço de Deus e me alistei
nas tropas dos inimigos Dele! Não posso voltar atrás e, mesmo se
pudesse, não voltaria. Oh, meu amigo, você sofrerá tanto para morrer,
padecerá entre maldições e pragas, sofrerá os insultos de uma gente
enfurecida, será exposto a todos os tipos de mortificações da vergonha e
da infâmia! Quem pode imaginar tal destino sem sentir-se horrorizado?
Então, deixe que eu me alegre com a minha permuta. Eu troquei uma
felicidade breve e incerta por outra segura e presente. Preservei minha
vida que, de outra forma, seria perdida na tortura. Também ganhei o
direito de buscar toda a felicidade capaz de tornar a vida prazerosa. Os
espíritos do Inferno me obedecem, pois sou sua soberana. Com a ajuda
deles, passarei todos os meus dias em meio ao luxo e à volúpia. Eu
gozarei sem limites de todos os prazeres dos sentidos, saciarei toda a
paixão até a plenitude e, então, ordenarei aos meus serviçais que
inventem novos prazeres, para reviver e estimular meu apetite. Vou
agora, impaciente, exercer meu recém-adquirido domínio. Eu aspiro à
liberdade e nada poderá me deter um só instante neste lugar abominável,
a não ser a esperança de poder persuadi-lo a seguir o meu exemplo.
Ambrósio, eu ainda o amo: nossa culpa e perigo compartilhados o
tornaram ainda mais querido para mim, e eu ficaria muito feliz se
pudesse salvá-lo da sua morte iminente. Pense no que é melhor para
você e renuncie, em troca de benefícios certos e imediatos, à esperança
de uma salvação difícil de conseguir – e, talvez, completamente errada.
Abandone seus preconceitos e as almas vulgares, abandone Deus, que já
o abandonou, e eleve-se aos planos dos seres superiores!
Ela fez uma pausa, aguardando a resposta do monge. Ele
estremeceu e perguntou, depois de um longo silêncio:
— Matilda... qual foi o preço da sua liberdade?
Ela respondeu de maneira firme e destemida:
— Ambrósio, eu paguei com a minha alma!
— Mulher infeliz, o que foi fazer? Passados alguns poucos anos,
você irá sofrer tanto!
— Homem fraco, passada esta noite, você é quem irá sofrer! Você
se recorda do que já passou? Amanhã deverá enfrentar tormentos duas
vezes mais intensos! Você se lembra do horror dos castigos pelo fogo?
Depois de amanhã você será mais uma vítima da fogueira! O que será da
sua existência? Ainda espera obter o perdão? Ainda se deixa seduzir por
falsas visões de salvação? Pense nos seus crimes! Pense na luxúria, no
perjúrio, em toda a brutalidade e hipocrisia! Pense no sangue inocente
que clama por vingança e espere a misericórdia! Então, sonhe com o
Paraíso e aspire pela luz e por reinos de paz e prazer. Que absurdo! Abra
os olhos, Ambrósio, seja prudente. O seu destino é o Inferno, você está
condenado à perdição eterna, você não pode esperar nada do outro lado
senão um abismo de chamas devoradoras. Acaso pretende correr para o
Inferno? Quer experimentar a perdição antes do necessário? Será que
prefere se lançar às chamas quando ainda tem a possibilidade de evitá-
las? Isso é loucura. Não, não, Ambrósio, siga o meu conselho: em um
momento de coragem, compre a felicidade por mais alguns anos; aprecie
o presente e se esqueça daquilo que esse futuro terá deixado para trás!
— Matilda, seus conselhos são perigosos. Eu não me atrevo, eu
não quero segui-los! Não posso renunciar ao meu direito de salvação!
Meus crimes são monstruosos, mas Deus é misericordioso e eu espero
conquistar o Seu perdão.
— É essa a sua decisão? Eu não tenho mais nada a dizer. Estou
partindo em direção à minha felicidade e minha liberdade, e o abandono
à sua própria morte e aos tormentos eternos.
— Espere um instante, Matilda! Você comanda os demônios do
Inferno. Você pode forçá-los a abrir as portas da prisão, você pode me
libertar destas correntes! Salve-me, eu suplico, tire-me deste lugar
abominável.
— Você pede a única coisa que meu poder não é capaz de lhe
conceder. Eu não tenho permissão para ajudar um religioso ou um aliado
de Deus. Renuncie a esses títulos e faça seu pedido!
— Eu não quero vender minha alma!
— Então persista com essa obstinação até que se encontre na
fogueira, quando irá se arrepender do seu erro e desejará escapar a
qualquer custo! Eu o deixo agora. Mas se, ao aproximar-se a hora da
morte, a prudência iluminar o seu juízo, escute o que fazer para reparar
esta falta. Eu deixarei aqui este livro: leia as quatro primeiras linhas da
sétima página contada a partir do final. O espírito que já conhece,
imediatamente, aparecerá na sua frente. Se você for sensato, nos
veremos de novo. Senão, adeus para sempre!
Ela deixou o livro cair no chão. Uma nuvem de fogo azul formou-
se ao seu redor. Matilda acenou para Ambrósio e desapareceu. O brilho
intenso que momentaneamente iluminou a masmorra, ao desaparecer
pareceu aumentar a sua escuridão natural. O lampião solitário mal
iluminava o caminho do monge até a cadeira. Ele sentou-se, cruzou os
braços e, apoiando a cabeça na mesa, afundou-se em reflexões perplexas
e desconexas.
Ainda se encontrava nesta posição quando a porta se abriu,
despertando-o do seu torpor. Estava sendo convocado a comparecer
diante do Inquisidor Geral. O monge levantou-se e seguiu o carcereiro
com passos cheios de dor. Foi conduzido à mesma sala, diante dos
mesmos examinadores, que, mais uma vez, indagaram se confessaria
seus crimes. Ambrósio repetiu sua resposta anterior; ou seja, como não
havia crime, ele não poderia confessar ter cometido nenhum. Mas,
quando percebeu que os executores já se preparavam para submetê-lo a
novos castigos, quando viu os instrumentos de tortura e se lembrou das
dores que eram capazes de infligir, sua determinação desapareceu. Ele se
esqueceu das consequências, e, desejando apenas poder escapar dos
horrores daquele momento, fez uma ampla confissão. Revelou todos os
detalhes dos seus pecados e reconheceu não apenas os crimes dos quais
era acusado, mas também outros dos quais nem suspeitava. Ao ser
interrogado sobre a fuga de Matilda – fato este que havia criado uma
grande confusão –, ele confessou que ela tinha vendido sua alma a
Satanás e que sua fuga era resultado de um ato de bruxaria. Ele garantiu
aos juízes que, da parte dele, nunca tinha feito pactos com os espíritos
infernais, mas as ameaças de novas torturas o obrigaram a declarar-se
um bruxo e um herege, e qualquer outro título que os inquisidores
desejassem lhe atribuir. Como resultado dessa confissão, sua sentença
foi prontamente pronunciada: pediram que se preparasse para morrer no
Auto da Fé, que seria celebrado à meia-noite daquele mesmo dia. O
horário fora escolhido para que o horror das chamas pudesse ser
ampliado pela escuridão da noite e para que a execução produzisse um
efeito maior no espírito do público presente.
Ambrósio, mais morto do que vivo, foi deixado sozinho no seu
calabouço. O momento em que sua sentença foi anunciada quase
antecipou sua morte. Ele pensava nas próximas horas em completo
desespero, e seu temor aumentava à medida que a meia-noite se
aproximava. Algumas vezes, ele ficava mergulhado no silêncio; outras,
se deixava levar por uma forte emoção, retorcendo as mãos e
amaldiçoando a hora em que viu a luz pela primeira vez. Em um desses
momentos, seus olhos caíram sobre o misterioso presente de Matilda,
interrompendo seus rompantes de raiva. Ele observou o livro com
seriedade e tentou pegá-lo, mas, imediatamente, atirou-o para longe, com
desprezo. Passou a caminhar rapidamente pela cela e, então, parou e
olhou para o canto onde o livro tinha caído. Ele pensou que existia,
afinal, um meio de escapar daquele destino tão assustador, e pegou o
livro uma segunda vez. Por alguns instantes, sentiu medo e não soube o
que fazer; ele desejava ardorosamente testar aquele encantamento, mas
temia suas consequências. A lembrança da sentença, no entanto,
contribuiu para a decisão. Ele abriu o livro, e sua agitação era tão grande
que, a princípio, não conseguiu encontrar a página que Matilda havia
mencionado. Envergonhado de si mesmo, apelou a toda coragem que lhe
restava. Abriu o livro na página correta e começou a ler em voz alta;
seus olhos, de quando em quando, afastavam-se do livro para buscar ao
seu redor o espírito que tanto desejava, mas que temia ver. Ainda assim,
ele insistiu com a voz insegura e, através de repetidas interrupções,
conseguiu terminar as quatro primeiras linhas da página.
As palavras estavam escritas em uma língua desconhecida. Mal
tinha acabado de pronunciar a última, quando os efeitos do
encantamento se tornaram evidentes. Ouviu-se um estrondo e a prisão
estremeceu desde as suas fundações. Um raio de luz inundou a cela e,
logo depois, envolto em um redemoinho sulfuroso, Lúcifer apareceu na
sua frente uma segunda vez. Mas ele não se parecia com aquele
invocado por Matilda; na ocasião, tinha adotado a forma de um serafim
para enganar Ambrósio. Agora, surgia com toda a feiura que havia
adquirido desde a sua queda do paraíso: suas pernas e braços
machucados ainda carregavam as cicatrizes dos raios lançados pelo Todo
Poderoso; manchas escuras se espalhavam por toda a sua forma
gigantesca; suas mãos e pés eram dotados de grandes garras; havia uma
fúria no seu olhar que era capaz de paralisar o coração dos mais
corajosos; tinha duas enormes asas negras acima dos ombros e, no lugar
dos cabelos, serpentes vivas que se contorciam sobre a testa, emitindo
silvos assustadores. Em uma das mãos segurava um pergaminho e, na
outra, uma pena de ferro. Raios ainda eram vistos ao seu redor, e os
repetidos estrondos que o acompanhavam pareciam anunciar a
destruição da natureza.
Aterrorizado com a aparição tão diferente do que havia esperado,
Ambrósio ficou observando o demônio, incapaz de dizer alguma coisa.
O estrondo cessou e o silêncio prevaleceu no calabouço.
— Para que fui invocado aqui? – perguntou o demônio, com a voz
rouca abafada pelos gases sulfurosos.
A natureza pareceu estremecer diante destas palavras: um violento
terremoto sacudiu o chão, acompanhado por novos estrondos, ainda mais
altos e mais fortes do que o primeiro.
Ambrósio demorou para responder à pergunta.
— Estou condenado à morte – ele disse com a voz fraca, quase
morto de medo, enquanto olhava assustado para o visitante. — Salve-
me! Tire-me daqui!
— Estás disposto a pagar pelos meus serviços? Terás coragem para
abraçar minha causa? Serás meu em corpo e alma? Estás preparado para
renunciar Àquele que te criou, Àquele que morreu por ti? Responde que
sim, e Lúcifer será teu escravo.
— Não se contentaria com um preço mais baixo? Nada pode
satisfazê-lo a não ser a minha ruína eterna? Espírito, você pede muito!
Apenas leve-me daqui: seja meu escravo por uma hora e eu serei seu por
mil anos. Não é uma oferta justa?
— Não. Tu deverás me entregar tua alma. Ela deve ser minha, e
minha para sempre.
— Demônio insaciável, não quero ser condenado às torturas
eternas! Eu não quero abandonar minha esperança de ser perdoado
algum dia!
— Não queres? Em que se baseia a tua esperança? Míope mortal!
Infeliz miserável! Acaso não és culpado? Não te tornaste um infame aos
olhos dos homens e dos anjos? Pensas que teus pecados podem ser
perdoados? Acreditas que é possível escapar do meu poder? Teu destino
já está decidido. O Eterno te abandonou. Tu estás destinado a ser meu, e
meu tu deves e terás que ser!
— Demônio, não é verdade! A misericórdia do Todo Poderoso é
infinita e a penitência pode encontrar o Seu perdão. Meus crimes são
monstruosos, mas eu não renunciarei ao perdão! Quem sabe, quando
tiver cumprido a minha penitência...
— Penitência? Pretendes chegar ao purgatório com este tipo de
crime? Esperas que os teus pecados sejam perdoados com orações de
beatas supersticiosas e de monges preguiçosos? Ambrósio, sejas sensato!
Tu deves pertencer a mim: estás condenado à fogueira, mas ainda podes
evitá-la. Assina este pergaminho: eu te levarei daqui e tu poderás passar
o resto da tua vida feliz e em liberdade. Desfruta da tua existência,
experimenta todos os prazeres reclamados pelo teu apetite – mas, a partir
do momento em que abandonares teu corpo, lembra-te de que a tua alma
me pertence, e que não deixarei de reclamar meus direitos.
O monge ficou em silêncio, mas seu olhar revelava que aquelas
palavras tentadoras não foram pronunciadas em vão. Ele via com horror
as condições da proposta. Mas, por outro lado, acreditava que já estava
condenado à danação eterna e que, se recusasse a ajuda do demônio,
estaria apenas antecipando as torturas das quais jamais poderia escapar.
O inimigo percebeu que sua resolução estava abalada. Ele mostrou-se
insistente e esforçou-se para convencer o frade a se decidir. Descreveu as
agonias da morte com todos os detalhes e despertou o desespero e o
medo de Ambrósio de forma tão poderosa a ponto de persuadi-lo a
receber o pergaminho. Então, com a pena que segurava, o demônio furou
uma veia da mão esquerda do monge. O ferimento foi profundo, e
instantaneamente ficou cheio de sangue. Ainda assim, Ambrósio não
sentiu dor. A pena foi colocada na sua mão trêmula. O infeliz pôs o
pergaminho na mesa, disposto a assiná-lo. De repente, ele deteve a mão,
afastou-se com rapidez e largou a pena sobre a mesa.
— O que estou fazendo? – gritou. Então, virou-se para o demônio
num gesto desesperado. — Deixe-me! Vá embora! Eu não assinarei o
pergaminho!
— Tolo! – exclamou o demônio, decepcionado, lançando-lhe
olhares tão furiosos que encheram de medo a alma do monge. — Achas
que podes brincar comigo? Está bem, então! Que tu enlouqueças de
medo, morras entre torturas e logo comprovarás o alcance da
misericórdia divina! Mas tenhas o cuidado de não zombar de mim outra
vez! Não voltes a me chamar até que estejas decidido a aceitar minha
oferta. Se tu me invocares mais uma vez por nada, estas garras rasgarão
teu corpo em mil pedaços! Responde-me novamente: vais assinar o
pergaminho?
— Não, deixe-me! Vá embora!
Imediatamente, ouviu-se um estrondo assustador; mais uma vez a
terra tremeu com violência, o calabouço se encheu de gritos agudos e o
demônio partiu entre blasfêmias e maldições.
A princípio, o monge se alegrou por ter resistido às artimanhas do
sedutor e por ter triunfado sobre o inimigo da humanidade. Mas, à
medida que a hora do castigo se aproximava, seu coração se enchia de
pânico. O descanso momentâneo parecia ter acentuado os seus medos.
Quanto mais perto da hora acertada, mais medo ele sentia de apresentar-
se diante do trono de Deus. Tremia ao pensar que logo estaria
mergulhado na eternidade e com que rapidez seria contemplado pelos
olhos do Criador, a quem havia ofendido tão gravemente! Um sino
avisou que já era meia-noite; era o sinal para que fosse levado à
fogueira. Ao ouvir a primeira badalada, o sangue congelou nas suas
veias; parecia ouvir a morte e a tortura murmurando em cada uma das
badaladas seguintes. Ele já esperava ver os arqueiros entrando na prisão,
e nem bem o sino cessou, pegou o livro mágico em um impulso de
desespero. Abriu o volume e rapidamente tentou encontrar a sétima
página. Evitando um único momento de reflexão, leu com muita pressa
as linhas fatais. Acompanhado de todo o cenário assustador de antes,
Lúcifer apareceu uma vez mais diante do condenado.
— Tu me invocaste – disse o demônio. — Estás disposto a mostrar
mais sensatez? Aceitarás minhas condições? Tu já sabes quais são.
Renuncia às tuas pretensões de salvação, entrega-me tua alma e eu te
livrarei deste calabouço em um instante. Ainda há tempo. Decide-te, ou
será tarde demais! Queres assinar o pergaminho?
— Eu devo... o destino me obriga! Eu aceito suas condições.
— Assina o pergaminho – insistiu o demônio em tom exultante.
O contrato e a pena ensanguentada ainda estavam sobre a mesa.
Ambrósio aproximou-se e preparou-se para assinar seu nome. Um
instante de reflexão causou sua hesitação.
— Ouve! – gritou o tentador. — Eles estão vindo! Rápido! Assina
o pergaminho e eu te tirarei daqui agora mesmo.
Com efeito, já se aproximavam os arqueiros que iriam conduzir
Ambrósio à fogueira. O barulho dos passos encorajou o monge a tomar
sua decisão.
— O que está escrito aqui? – ele perguntou.
— Que tua alma será minha para sempre, sem reservas.
— O que vou receber em troca?
— Minha proteção e a tua libertação deste calabouço. Assina, e eu
te tirarei daqui!
Ambrósio segurou a pena e a posicionou sobre o pergaminho. Mais
uma vez a coragem o abandonou. Ele sentia uma pontada de terror no
coração e, novamente, atirou a pena sobre a mesa.
— Fraco e pueril! – exclamou o demônio irritado. — Deixa de
tolices! Assina o contrato de uma vez, ou serás sacrificado à minha
fúria!
Neste mesmo instante, a trava da porta foi retirada. O prisioneiro
ouviu o ruído das correntes, a pesada barra de ferro cair e os arqueiros
prestes a entrar na cela. Completamente enlouquecido pela proximidade
da morte, aterrorizado pelas ameaças do demônio e não encontrando
outra maneira para escapar da sua ruína, o monge obedeceu. Ele assinou
o contrato fatal e o entregou imediatamente nas mãos do espírito
infernal, cujos olhos, ao receber o presente, brilhavam com uma alegria
malévola.
— Pegue! – disse o abandonado por Deus. — Agora, salve-me!
Tire-me daqui!
— Um momento. Tu renuncias, livre e absolutamente, ao teu
Criador e ao Seu Filho?
— Renuncio! Renuncio!
— Tu me entregas a tua alma para sempre?
— Para sempre!
— Sem reserva ou subterfúgios? Sem apelar, no futuro, para a
misericórdia divina?
A última corrente da porta caiu e a chave se moveu na fechadura.
As grades de ferro já giravam nas dobradiças enferrujadas.
— Eu serei seu para sempre e de maneira irrevogável! – gritou o
monge aterrorizado. — Eu renuncio a todo o direito de salvação! Não
reconheço outro poder que não o seu! Escute, escute! Eles estão vindo!
Oh, Salve-me, tire-me daqui!
— Eu triunfei! Tu pertencerás a mim, sem remissão, assim que eu
cumprir minha promessa!
Enquanto ele falava, a porta foi aberta. Imediatamente, o demônio
agarrou um dos braços de Ambrósio, envergou suas amplas asas e saltou
no ar. O telhado se abriu enquanto eles subiam, e se fechou novamente
no instante em que deixaram a prisão.
Ao entrar na cela, o carcereiro ficou estarrecido com o
desaparecimento do prisioneiro. Embora nem ele e nem os arqueiros
tenham chegado a tempo de testemunhar a fuga do monge, o odor de
enxofre que empesteava o lugar foi suficiente para revelar qual o método
usado para a sua libertação. Eles correram para informar o Inquisidor
Geral. A história de como o Diabo havia levado um feiticeiro foi logo
contada em toda Madri: durante alguns dias, a cidade inteira discutiu o
assunto. Aos poucos, foi deixando de ser tema de conversas, pois outras
aventuras surgiram atraindo a atenção geral, e Ambrósio foi
completamente esquecido, como se nunca tivesse existido. Enquanto
isso, o frade, conduzido pelo seu guia infernal, atravessou o ar com a
rapidez de uma flecha e em poucos minutos estava à beira de um
precipício, o mais profundo de Sierra Morena.
Embora tenha sido resgatado da Inquisição, Ambrósio ainda não
sentia o prazer da liberdade. Aquele contrato condenatório pesava na sua
consciência e as cenas que havia protagonizado tinham deixado tantas
marcas que seu coração estava muito confuso. Os objetos que tinha
agora diante dos olhos – aos quais a lua cheia, navegando entre as
nuvens, permitia a contemplação – não eram destinados a produzir a
serenidade de que ele tanto precisava. A desordem da sua imaginação
aumentava com a desolação do cenário à sua volta: cavernas tenebrosas
e rochas íngremes que se elevavam umas acima das outras, dividindo as
nuvens passageiras; árvores solitárias espalhadas aqui e ali, cujos galhos
retorcidos gemiam quando soprava o vento da noite; o grito agudo das
águias da montanha, que tinham construído seus ninhos naqueles
desertos solitários; o rugido ensurdecedor das correntezas intensificadas
pelas chuvas recentes e que desciam, impetuosamente, pelos tremendos
precipícios; as águas negras de um rio silencioso que refletia debilmente
os raios da lua e banhava a base do penhasco onde Ambrósio estava. O
monge olhou ao redor com assombro. Seu guia estava ao seu lado e o
contemplava com uma expressão de malícia, exultação e contentamento.
— Para onde você me trouxe? – perguntou o monge, por fim, com
a voz tremida e profunda. — Por que me trouxe para este cenário tão
melancólico? Leve-me daqui, rápido! Leve-me até Matilda!
O demônio não respondeu e continuou a fitá-lo em silêncio.
Ambrósio não podia suportar aquele olhar. Ele desviou os próprios
olhos enquanto o demônio falava:
— Então, eu te tenho em meu poder! O homem que era um modelo
de piedade! Um ser irreprovável, um mortal que colocou sua virtude
mesquinha à altura das virtudes dos anjos. Ele é meu! Irrevogavelmente,
eternamente meu! Companheiros dos meus sofrimentos! Moradores do
inferno! Todos ficarão muito gratos com o meu presente!
Ele fez uma pausa e, então, dirigiu-se ao monge:
— Levar-te até Matilda? – prosseguiu, repetindo as palavras de
Ambrósio. — Infeliz, vocês logo estarão juntos! Tu mereces um lugar
junto a ela, pois o inferno não pode se vangloriar de abrigar um canalha
pior do que tu! Escuta, Ambrósio, enquanto eu revelo os teus crimes. Tu
derramaste o sangue de duas inocentes: Antonia e Elvira morreram pelas
tuas mãos. Antonia, a quem tu violentaste, era tua irmã. Elvira, a quem
assassinaste, foi quem te colocou no mundo! Estremece, hipócrita
depravado! Parricida desumano! Estuprador incestuoso! Estremece
diante dos teus pecados! E te consideravas imune a qualquer tentação,
livre das fraquezas humanas e muito distante do erro e do vício! Por
acaso o orgulho é alguma virtude? Não é a crueldade um pecado? Saibas,
homem vaidoso, que há muito tempo eu já tinha te escolhido como
minha presa: eu observava os movimentos do teu coração, eu via que
eras virtuoso por vaidade e não por princípio, e aproveitei o momento
oportuno para te seduzir. Eu observei a tua idolatria cega pelo retrato da
Virgem e ordenei a um espírito subordinado e habilidoso que adotasse
uma forma similar, e tu logo te rendeste às lisonjas de Matilda. O teu
orgulho se sentia satisfeito com a adulação dela, e a tua luxúria só
necessitava de uma oportunidade para se manifestar; tu caíste cegamente
na armadilha, e não tiveste nenhum escrúpulo ao cometer a falta que
censuravas nas outras pessoas com tanta severidade. Fui eu quem
colocou Matilda no teu caminho e fui eu quem abriu teu caminho até o
quarto de Antonia; fui eu quem colocou o punhal na tua mão, o qual tu
cravaste no peito da tua própria irmã; também fui eu que avisei Elvira,
em sonhos, sobre os teus desejos com relação à menina, para evitar que
tu a violentasses enquanto dormia, e impedir que acrescentasses estupro
e incesto à tua lista de pecados. Escuta, Ambrósio! Se tu tivesses
resistido um minuto a mais, terias salvado teu corpo e tua alma. Os
guardas que ouviste se aproximando da porta vinham para trazer-te o
perdão. Mas eu triunfei! Meu plano funcionou! Todas as vezes em que
eu te ofereci oportunidade para um novo crime, tu o executaste. Tu és
meu, e o Céu não poderá te resgatar do meu poder! Não esperes que a
tua penitência vá anular nosso contrato. Aqui está o teu compromisso
assinado com o teu sangue: renunciaste ao perdão e nada poderá te trazer
de volta os direitos que, insensatamente, abdicaste. Acreditas que podes
esconder de mim os teus pensamentos mais secretos? Não, não, eu posso
ler todos eles. Tu pensavas que ainda terias tempo para arrependimentos.
Eu vi o teu artifício, eu sabia da tua falsidade e me alegrei ao enganar
um impostor! Tu és meu sem arrependimentos, e eu estou em brasas para
possuir o que é meu por direito; tu não sairás vivo destas montanhas!
Durante o discurso do demônio, Ambrósio permaneceu estupefato
pela surpresa. Esta última declaração, no entanto, fez com que voltasse a
si.
— Não sairei vivo destas montanhas? – questionou. — Traidor, o
que quer dizer? Você se esqueceu do nosso contrato?
O demônio respondeu com uma risada malévola:
— Nosso contrato? Mas eu não cumpri minha parte? O que mais
prometi, além de salvar-te da prisão? Eu não te salvei? Tu não estás a
salvo da Inquisição? A salvo de todos, exceto de mim? Que insensato
foste ao confiar em um demônio! Por que não estipulaste que querias a
vida, o poder e o prazer? Eu teria concedido todas essas coisas. Agora,
tuas reflexões chegam muito tarde! Canalha infame, prepara-te para
morrer: tu não tens muito tempo de vida!
Ao ouvir a sentença, o pobre desgraçado mergulhou em
sentimentos de desespero. Ele caiu de joelhos e elevou as mãos ao Céu.
O demônio antecipou sua intenção e o interrompeu.
— O quê? – gritou, lançando-lhe um olhar furioso. — Ainda te
atreves a implorar ao Eterno por misericórdia? Pretendes fugir outra vez
do teu castigo e representar um papel hipócrita? Vilão, renuncia às tuas
esperanças de perdão! Assim eu garanto a minha presa.
Enquanto falava, cravou suas garras na coroa raspada do monge e
voou, carregando-o acima das rochas. As cavernas e montanhas ecoavam
os gritos de Ambrósio. O demônio continuou voando alto até atingir uma
altura assustadora, e então soltou a vítima. O monge caiu de cabeça no
espaço vazio. Foi recebido pela ponta afiada de uma rocha, e rolou de
precipício em precipício até que, machucado e desfigurado, foi parar na
margem de um rio. Como ainda tinha vida no seu corpo miserável,
tentou levantar-se, mas não conseguiu. Suas pernas quebradas e
deslocadas não respondiam, e ele não foi capaz de deixar o lugar onde
havia caído. O sol, agora, subia além do horizonte e seus raios tórridos
batiam em cheio na cabeça do pecador agonizante. Muitos insetos foram
atraídos pelo calor e começaram a beber o sangue que pingava dos seus
ferimentos. Ambrósio não tinha forças para afugentá-los e teve que
suportá-los aos milhares, picando seu corpo, presos às suas chagas,
causando as torturas mais intensas e insuportáveis. As águias arrancaram
pedaços da sua carne e extraíram-lhe os olhos com seus bicos retorcidos.
Sentia uma sede insuportável. Ouviu o murmúrio do rio e tentou, em
vão, rolar em sua direção. Cego, mutilado, desamparado e desesperado,
desafogando sua raiva com blasfêmias e maldições, abominando a
própria existência e temendo a chegada da morte, que o levaria a
tormentos maiores, o miserável agonizou por seis longos dias. No sétimo
dia, uma tempestade se formou: os ventos furiosos sopravam nas rochas
e nas florestas, o céu estava carregado de nuvens escuras, rasgadas pelo
fogo. A chuva caiu torrencialmente, o rio transbordou, a correnteza
inundou as margens e chegou até o local onde estava Ambrósio. Quando
as águas recuaram, levaram rio abaixo o cadáver de um monge
desesperado.

FIM

[1]
- Nota da Tradutora: eremitério é uma casa religiosa retirada, destinada ao isolamento monástico. O eremita ou ermitão é
um indivíduo que decide viver em lugar deserto e isolado por questões religiosas, para maior proximidade com a natureza – ou,
ainda, para fugir da sociedade.

[2]
- Nota do Autor: supõe-se que a Cientipedoro é nativa de Cuba, e provavelmente foi levada para a Espanha no navio de
Colombo.

[3]
- Nota da Tradutora: algumas baladas espanholas costumavam brincar com nomes franceses para pessoas e coisas. A
mitológica e indestrutível espada de Roland era chamada Durendal, cujo nome possivelmente deriva do verbo francês durer, ou
durar. A palavra também foi usada para nomear um bravo guerreiro, Durandarte. Este personagem da literatura castelhana foi
ferido em uma batalha, mas antes de morrer ofereceu seu coração à sua amada, Belerma.

[4]
- Nota da Tradutora: dobrão é a moeda espanhola de grande peso e valor que circulou entre 1724 e 1822.

[5]
- Nota da Tradutora: De Profundis é um salmo penitencial dedicado às almas do purgatório, que trata de redenção e
misericórdia.

[6]
- Nota da Tradutora: durante o século XVIII, empoar os cabelos, ou cobri-los com pó de farinha de trigo para dar o efeito
branco, era febre entre os homens e mulheres da corte de muitos países na Europa.
[7]
- Nota da Tradutora: Anacreonte (563 a.C. – 478 a.C.) foi um poeta lírico grego, apontado como o inventor das canções de
amor.

[8]
- Nota da Tradutora: Damon e Chloe são personagens da obra The Miscellaneous Works of Richard Linnecar, of Wakefield,
publicada em 1789.

[9]
- Nota da Tradutora: Lésbia, Dafne, Júlia e Caelia são ninfas ou divindades que habitavam os rios e bosques na mitologia
grega.

[10]
- Nota da Tradutora: Silvano, também conhecido como Fauno, é um deus romano responsável pela proteção dos bosques
e das atividades pastoris. Segundo a mitologia, gosta de assustar viajantes solitários.

[11]
- Nota da Tradutora: Febo é um deus romano, também conhecido como Apolo. Irmão gêmeo de Diana, é o deus das
músicas, poesias, e o mais belo de Roma.

[12]
- Nota da Tradutora: Amadis de Gaula e Tirante, o Branco são novelas de cavalaria da Península Ibérica. As novelas de
cavalaria relatavam as aventuras e atos de coragem dos cavaleiros medievais. Dom Galaor é personagem de Amadis de Gaula
em uma versão mais recente. Miguel de Cervantes também cita Amadis de Gaula na sua clássica obra Dom Quixote de la
Mancha. A Donzela Prazer-de-minha-Vida é uma personagem de Dom Quixote.

[13]
- Nota da Tradutora: Proteus, na mitologia grega, era um deus marinho que, para se esquivar das pessoas, gostava de se
metamorfosear assumindo aparências monstruosas.

[14]
- Nota da Tradutora: Terra Incógnita é a forma como chamavam as regiões nunca mapeadas ou documentadas no início da
cartografia, por serem terras desconhecidas. Os Hotentotes são membros de uma tribo africana. Silésia é uma região histórica
hoje dividida entre a Polônia, República Tcheca e Alemanha. Durante a Guerra dos Sete Anos, os americanos auxiliaram a
Inglaterra nas batalhas contra a França e seus aliados. Essa fase ficou conhecida como fase norte-americana ou Guerra Franco-
Indígena.

[15]
- Nota da Tradutora: Blondel de Nesle foi um poeta e trovador que viveu no norte da França entre 1175 e 1210. Foi ele
quem descobriu a prisão em que o rei Ricardo I da Inglaterra encontrava-se aprisionado, cantando uma cantiga conhecida por
ambos e provocando uma resposta do rei.

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