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CRÔNICAS DE ONYX
Livro 2
Elton Moraes
Edição Digital
2014
Copyright © 2014 by Elton Moraes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização do autor.
Diagramação e capa
Elton Moraes
Imagem da capa
Dmitrijs Bindemanis – sob licença do site Shutterstock
Para Thallya Sheron, prima que ajudou a criar os Soldados.
E para Laísa Raupp, que deu vida à princesa Blair.
Porém, quanto ao valor e aos brios d’alma,
Invencíveis nós somos; dentro em breve
Recobraremos o vigor antigo,
Inda que extinta jaz a nossa glória.
Paraíso Perdido (John Milton)
Prólogo
Rapto
Haveria algo mais chato do que ficar sentada ouvindo uma velha falando e
lhe impondo ordens? A princesa Blair Crystan não sabia, mas daria tudo para
sair dali. Ela estava na sala das refeições, usava um vestido azul rendado nas
mangas longas e da cintura para baixo, com sua professora de etiqueta, a Sra.
Dambern. Esta tentava lhe ensinar sobre como se comportar durante as
refeições do dia, mas a princesa odiava isso e mal prestava atenção.
Blair não se sentia inteiramente uma princesa. Ela era muito moleca e
adorava quando, ao contrário de sua mãe, seu pai, o Imperador Asriel
Crystan, deixava-a sair para correr e brincar com as crianças camponesas do
Povoado Imperial Crystan. Ela queria se divertir. Se pudesse passaria o dia
todo correndo e se divertindo com as outras crianças. Mas isso era uma coisa
que sua mãe, a Imperatriz Kassandry Crystan, não permitia. Esta queria que
sua filha fosse uma verdadeira dama e se tornasse uma imperatriz de respeito.
E para isso, também, teria de casar.
Contudo, casamento não estava nos planos da herdeira do Império de
Diamante. Mesmo com seus dezesseis anos, a idade média de se casar. Ao
contrário de muitas garotas de sua idade, filhas de nobres, que já estavam se
casando, repudiava a ideia. Uma vez sua mãe quis lhe forçar a um casamento
com o príncipe Danniel Gwey, para formar alianças com o Império de Rubi.
Mas a princesa foi teimosa e não se casou. Como consequência, ficou de
castigo por vários dias, trancafiada nos interiores do castelo, sem ao menos
poder respirar o ar límpido da natureza.
Quando Blair achou que começaria a cochilar em cima da mesa,
enquanto a Sra. Dambern explicava como se manter numa posição ereta e
elegante, seus olhos verdes enxergaram um homem alto e corpulento que
atravessou a entrada do salão, sem ao menos bater.
– Mas o que é isso? – protestou a professora, interrompendo-se. – Eu
pedi para que não nos incomodasse. Por favor, meu caro homem, queira se
retirar. – Os olhos castanhos da velha senhora demonstravam um incrível
poder de persuasão.
O homem se parecia com uma das sentinelas do castelo, mas Blair não o
reconheceu. Apesar do olhar da professora, ele não se intimidou e lançou um
olhar fulminante em resposta. A velha pareceu se amedrontar.
– Desculpe-me, Sra. Dambern, mas o Sr. Crystan está esperando a
princesa neste exato momento no pátio central do castelo. – O olhar do
homem encontrou os verdes olhos da princesa. Pareciam brasas prontas para
queimarem.
Quando a Sra. Dambern abriu a boca para protestar, viu que Blair já
estava ao lado da sentinela, esperando segui-lo até seu pai.
– Está bem – disse a professora, revirando os olhos e percebendo que não
adiantaria em nada dizer algo contra aquele ato. – Você está dispensada, mas
só por hoje. Volte amanhã, pois teremos que recompensar o tempo perdido.
A princesa Blair assentiu, e seguiu o homem. A garota percebeu que
nunca vira aquela sentinela antes. Ele possuía cabelos castanho-ruivos e seus
olhos, com um tom avermelhado, pareciam que se incendiariam a qualquer
momento. Ele era um pouco diferente demais dos moradores do povoado.
Deu de ombros, por fim, devia ser mais um contratado de outro reino ou
império.
Quando eles chegaram ao pátio central – um espaço gramado encoberto
no meio do castelo imperial –, Blair estranhou, pois não havia ninguém ali,
exceto por ela e a sentinela.
– Ué, onde andas meu pai? – indagou a garota.
– Resolvendo uns probleminhas, e eu, outros. – Com isso o homem
agarrou a princesa por trás, passando seu braço pelo pescoço, conseguindo,
assim, imobilizá-la.
O ataque súbito a surpreendeu e arregalou os olhos, sem compreender o
que acontecia.
– Soco… – tentou gritar, mas era inútil. O homem, com uma mão livre,
pegou uma mistura de ervas no bolso e ateou fogo, produzido pela própria
palma. Transformadas em cinzas, forçou a garota aspirá-las. Ao inalar as
cinzas mornas, a princesa perdeu a consciência nos braços do desconhecido.
Estando ela desacordada, o homem pôs a garota nos ombros e esperou
alguns segundos. Logo em seguida, ouviu-se um forte assovio de vento, e,
subitamente, parte da cobertura em vidro do pátio desmoronou ao seu redor,
despistando-o magicamente. Uma forte rajada tomou conta do lugar,
cercando-os. Mas antes de ser carregado pelo vento, soltou uma pequena
placa metálica no chão. Era um broche. E logo em seguida, segurando
fortemente Blair, teve seu corpo erguido no ar e, lentamente, é carregado para
fora dali pelo vento.
Um
Uma Lenda
Endrich terminou de ler e ficou atônito. Se ele lesse isso algumas luas
atrás, com toda a certeza não acreditaria em nenhuma palavra daquelas. Mas
desde que sua vida começou a mudar, passou a crer em qualquer coisa que
pareça impossível de acreditar.
– Se isso for mesmo verdade, então… – Luany se interrompeu. Nem
mesmo ela estava acreditando que àquilo poderia ser verdade. Era muita coisa
para sua cabeça.
Endrich marcou a página que se tratava da Ilha Elementar com uma pena
de ganso, que repousava em meio aos seus livros. Ele gostaria de mostrar ao
Imperador.
– E o que você fará gora? – interrogou a garota.
Endrich olhou para a lua Cahim através do vidro da janela. Seu brilho
esverdeado iluminava as noites escuras e geladas do inverno.
– Hoje não há mais nada que eu possa fazer – respondeu o Mensageiro e
Guardião. – Mas, ao amanhecer, irei avisar o Imperador o que descobri e com
certeza irei ao resgate da princesa Blair.
Luany assentiu. Estava com medo de deixar o amigo partir, assim, indo
atrás de perigo. Ela sabia que Endrich já correra muitos perigos, mas nunca
imaginava que ele poderia estar passando por dificuldades. E agora era
diferente, ela sabia que o Guardião estava indo atrás de algo que poderia ser
mortal, por isso se sentia tão preocupada. Deixe de ser egoísta, Luany! –
pensava. Isso não é egoísmo… é, é…
– O que foi Luany? – indagou Endrich, tirando-a de seus devaneios.
– Oh, nada. Eu só… estou preocupada – suspirou.
– Entendo. Não precisa ficar assim. Eu ficarei bem – prometeu. Mas nem
mesmo ele tinha essa certeza. E para quebrar aquele clima tenso entre os dois,
Endrich muda totalmente de assunto. – Bom, já está na hora de irmos deitar.
Preciso descansar, amanhã será um longo dia. E por favor, não conte nada
sobre a ilha a ninguém. Certo?
Luany assentiu, resmungando sobre Endrich não confiar nela e logo
dando uma risadinha irônica. Ela se inclinou e, após dar um beijo no rosto do
amigo, saiu do quarto fechando a porta logo ao passar. O rosto do rapaz
formigava. Era uma sensação tão boa!
Suspirou. Endrich não queria deixar Luany para trás mais uma vez. Mas
ele sabia que tinha de seguir para um lugar onde nunca ouvira falar e muito
menos chegara perto. Nem ao menos tinha a certeza de que tal lugar existia!
E se realmente existisse, poderia ser muito perigoso. Não arriscaria a vida
dela.
Por fim, guardou os livros e pôs o Arco de Diamante ao lado da cama,
em cima de uma mesinha. Tocando-o, como uma forma de pedir para que
tenha uma boa noite de sono, ele se deita e dorme.
Seria mais uma noite sem sonhos.
Dois
O Cavalo Alado
Ela despertou do que parecia ser um pesadelo. Sua cabeça doía. Suas pernas
doíam. Seus pulsos doíam. Foi quando percebeu que quase todos os seus
membros estavam presos por correntes.
Seus pulsos e tornozelos haviam sido fortemente apertados por largas
correntes de ferro negro, um tipo de metal originário da Zona Oeste e Central:
aço-minério.
Tentou gritar, mas estava quase sem voz; devia ser por causa do longo
tempo que ficou submetida à friagem, ou algo do tipo. Mas não estava frio
ali. O ambiente estava morno e iluminado – da forma que ela preferia.
Blair, que até então estava jogada no chão, levantou-se com um pouco de
dificuldade; as correntes que lhe prendia os braços e pernas estavam fixadas
em um poste. Ela olhou em volta. A princesa nunca vira um lugar daqueles
antes em sua vida de preparações e viagens com a Imperatriz, mas já estava
se acostumando com ele. Estava numa espécie de altar, a poucos metros do
chão de terra gramada. Logo a frente se estendia uma vasta floresta, onde ela
pôde distinguir uma forma de pedra em meio ao verde que não fazia parte de
seu tempo atual. Algo que se parecia com um templo antigo.
– Gostando da paisagem? – ironizou um homem alto e de cabelos
castanho-ruivos. Era seu raptor.
– O que… você quer? – conseguiu perguntar a princesa. Ela tremia de
medo e mal conseguia sentir as mãos, que já estava formigando pelo longo
tempo presas.
– Eu? Bem, não sou apenas eu, mas ele também quer. Ele quer ainda
muito mais que eu. Mas isso não vem ao caso agora – respondeu.
Blair piscou. Há cinco dias estava sem se alimentar direito e sem uma
boa água. Naquele massacrado momento, a princesa desejaria estar presa
dentro do castelo, sob a custódia de sua mãe, a estar presa àquela indesejável
situação.
– Eu… quero ir… embora! – exclamou ela. – Seu nojento!
– Como é? – O homem de olhos flamejantes deu um tabefe no rosto da
princesa, fazendo-a cair novamente. Aquilo estava se tornando rotineiro. Ele
precisava parar de fazer isso, mas não conseguia se controlar. Ou você para
de enfrentá-lo, ou terá o rosto transformado em uma bola, de tão inchado
que ficará – criticou-se.
O raptor se agachou. Pôs a mão no queixo da garota e puxou seu rosto
magrinho para próximo do dele. Beijando as duas faces da princesa, o
homem se afastou. Pensamento ardilosos pareciam percorrer sua mente. Dava
para perceber em seu olhar que ela o desprezava.
– Está bem, então – disse ele –, irei lhe trazer um pouco de água e
algumas frutas e raízes para você comer. Isso deve ser o suficiente para
passar uns dois dias.
– Mas e Gabrian? – a princesa indagou.
Ele deu de ombros. Assim, retirou-se, deixando a garota novamente.
A princesa Blair olhou para o lado, onde havia um trono, que seu raptor
costumava sentar nos fins de tarde, e, além dele, viu a figura distorcida de um
garoto de mais ou menos a sua idade. Estava desacordado. Sabia que se
tratava de Gabrian Zackiel, filho do Imperador de Cristal. O que ele está
fazendo aqui? Porém, também não tinha ideia de o porquê de estar ali.
Blair olhou para o horizonte, a Estrela de Fogo estava prestes a morrer ao
oeste. Ela não conseguia pensar em nada para escapar, então torcia para que
alguém viesse ao seu encontro para que lhe tirasse dali o quanto antes. Estava
desesperada.
E, enquanto vislumbrava os raios de sol sobre sua pele clara, fantasiou
em sua mente a chegada de uma tropa de guerreiros armados para lhes
salvarem.
––––
O raptor seguiu para um templo antigo, em meio à densa floresta. Ali, outro
homem estaria lhe esperando.
Quando o raptor entrou no templo, lá estava ele, vestindo um casaco,
sobretudo preto, que chegava perto dos pés.
– Então, tudo está saindo como o planejado? – perguntou o de preto.
– Ah, sim. A princesa e o príncipe já estão aqui.
– Ótimo, caso eles não venham em até sete dias, assassine-os, mas não
permita que suas almas escapem de suas mãos. Caso o plano não saia como
planejado, precisaremos utilizar de outras formas de conseguir a Espada, e
suas almas serão uma boa fonte de poder para isso acontecer.
O raptor assentiu.
– Pode deixar comigo, senhor. Mas tenho certeza de que eles irão
aparecer.
– Mas caso os Guardiões não apareçam, você sabe o que fazer. – O
homem de reto deu um passo a trás e se dissipou numa fumaça negra.
Agora sozinho, o raptor precisava concluir mais uma parte do plano. Por
isso seguiu para o pequeno Condado da Terra.
Quatro
Sheron MacWyes
Fazia cinco dias que Endrich saíra em viagem quando, em uma noite fria e
estrelada, sua mente o levou a um lugar que ele nunca imaginara antes.
Ele estava numa espécie de salão ou coisa parecida. Era alto e caberiam
uns cinco dele um sobre o outro. As paredes eram feitas de blocos de pedra
amarelada, com traços e desenhos de pessoas e de uma ilha em alto mar.
Naquele salão estava uma mulher de cabelos ruivos e olhos tão azuis
quanto o mar. Sua expressão não era muito animadora, apesar de esboçar
um leve sorriso.
– Quem é você? – pergunta Endrich, aproximando-se da mulher.
Ela não respondeu. Logo as imagens foram se dissipando. O sonho
estava mudando, dando origem a novas formas e imagens. Quando a imagem
se fixou, Endrich levou um grande susto. À sua frente havia uma gigantesca
cobra. Não dava para se ver muito dela, mas pelos seus olhos amarelos, o
Guardião pôde sentir um grande medo.
E no simples passo que o rapaz deu para trás, o imenso réptil se jogou
contra ele de boca aberta, e então tudo escureceu.
––––
Despertou com um pulo. Ele secou a testa, que pingava em suor, com a
manga de sua camisa. Quando eu pensei em sonhar – disse a si mesmo,
irônico –, pensei em sonhar algo bonitinho e fofinho. Ou algo que me levasse
às pistas de onde a princesa Blair está. E não sendo devorado!
O Guardião de Diamante se pôs de pé e, fazendo um rápido desjejum,
voltou a seu destino: o castelo imperial do Império de Cristal.
Ele preparou o cavalo alado que o Imperador Crystan lhe dera para a
viagem, e, dando mais uma olhadinha para o lugar em que passara a noite,
montou no animal e seguiu voando para as terras da Zona Central.
Ele passara a última noite numa caverna nas mediações entre o Império
de Diamante e o Império de Cristal. Ele decidira voar por um tempo a mais,
no dia anterior, para evitar chegar próximo à caverna em que passara grandes
apuros, na Mata Rusken. Um arrepio lhe percorreu a espinha com a
lembrança. Como estava com certo trauma de fantasmas, decidiu não arriscar
a se encontrar com eles novamente.
Endrich não imaginava que poderia ficar tão adiantado voando em um
cavalo alado, como era o caso. Tudo bem que há algumas luas, no outono, ele
voara numa fênix para salvar seu povoado – o que não durou mais do que
alguns minutos, graças ao poder mágico daquele belo pássaro. Mas há uma
grande diferença entre as fênix e os cavalos, por isso Endrich já estava
achando que a viagem progredira bastante. No ritmo em que estava, chegaria
ao castelo imperial antes do meio-dia.
––––
Quando pousou o cavalo alado próximo aos estábulos, Endrich achou que
desabaria de cansaço e dor nas pernas e costas. Como o previsto, ele chegara
ao Povoado Imperial Zackiel antes do meio-dia, e agora só pensava em
descansar.
– Bom garoto – disse ele ao cavalo. – Você deve descansar agora, deve
estar quase desmaiando pelo esforço que fez.
O cavalo respondeu com um relinchado meio melancólico. Seu pelo
espumava de suor e suas asas deviam estar tão doloridas quanto às pernas de
Endrich.
Endrich pediu ao senhor de olhos esbugalhados que estava cuidando dos
estábulos, um homem alto e magro, para que tratasse do animal como se
fosse do imperador local. Ele explicou que aquele alazão era do Imperador
Crystan e que deveria ser tratado muito bem. O homem ainda um pouco
surpreso com o pouso repentino, assentiu.
Estando tudo em ordem, o Guardião seguiu para o castelo imperial. No
meio do caminho percebeu que vários olhos estavam colados nele, curiosos
com sua chegada num cavalo voador. Ele apenas sorria e acenava. Algumas
sentinelas foram em sua direção para detê-lo, mas pararam aonde estavam,
assim que perceberam de tratar do Guardião Imperial de Diamante.
Quando chegou ao castelo, foi recepcionado por Mikaell em sua pequena
sala.
– Olá, Guardião, como… – Mikaell fez uma pausa para espirrar e tossir –
Desculpe. Como você está?
Pelo visto, Mikaell ainda não melhorou de sua doença, ou então ele
pegou outra.
– Eu estou bem, Mikaell, e você? – A resposta seria um tanto óbvia.
O secretário fez uma expressão cética ao visitante.
– Estou bem, tirando… – o secretário teve um acesso de espirros, e logo
se voltou a Endrich. – Certo, tirando essa doença maldita, que não sara, estou
em perfeito estado.
Mikaell fez uma pausa para assuar o nariz.
– Mas o que o trás aqui? – o indagou.
Endrich deu uma olhadinha em volta, preocupado.
– Eu gostaria de conversar com Raffy. É um assunto muito sério. De
extrema urgência – respondeu ele.
Raffy Di Akren era o Guardião de Cristal. Ele se tornara amigo de
Endrich há pouco tempo, no outono passado, quando Endrich descobriu sobre
sua verdadeira origem e passado.
– Hum… Infelizmente você terá de aguardar mais um pouco – responde
o rapaz, a voz fanhosa. – Ele saiu em uma busca, que também merece atenção
extrema.
– Certo. Mas o que aconteceu?
– Não sou apropriado para lhe revelar o assunto, mas você deve ser de
confiança… O príncipe Gabrian sumiu. Ele não foi encontrado em parte
alguma do castelo e do Povoado Zackiel. Agora foi liderada por Raffy uma
busca para tentar encontrar o herdeiro do trono.
Endrich ficou pasmo. Será que era coincidência a princesa Blair e o
príncipe Gabrian terem sumido ao mesmo tempo? Será que alguém queria ver
o mundo em guerra? Algo de muito errado estava acontecendo.
– E Raffy volta ainda hoje? – quis saber Endrich.
– É para voltar – confirmou Mikaell. – O grupo de busca saiu anteontem
e ainda não retornou. Decerto estarão até o anoitecer.
Endrich assentiu. Sua cabeça mergulhou num mar de pensamentos. Dois
sumiços aconteceram na mesma época. Duas viagens de busca; tanto ele
quanto Raffy estavam em busca dos herdeiros de seus imperadores.
– Sr. Ragrson? – Endrich estava tão absorto em seus pensamentos, que
nem viu quando Mikaell o chamou. Sendo assim, o secretário teve de repetir:
– Sr. Ragrson? Está me ouvindo?
– Ah, sim, desculpe-me. Eu estava distraído, pensando – respondeu
Endrich, um pouco encabulado.
– Percebe-se. – Mikaell teve um ataque de tosse, mas logo se recompôs
com a chegada do Imperador Zackiel.
– Ah, Mikaell, assim você não poderá trabalhar – disse o Imperador,
solene.
Darian Zackiel possuía olhos que pareciam arder em chamas. Como da
primeira vez que Endrich o vira, o Imperador vestia uma capa cinza por cima
de um colete e usava uma fina coroa de prata com pequenas pedras de cristal.
– Meu senhor, eu devo trabalhar – respondeu Mikaell, após fazer uma
mesura ao monarca. – Não posso lhe… – o secretário espirrou novamente.
Zackiel olhou para Endrich, cético e admirado, pelo desempenho de
Mikaell. O Guardião fez um movimento de cabeça ao Imperador e sorriu,
concordando com ele.
– Sr. Ragrson, como estás? Fiquei sabendo que você se tornara o
Guardião de Diamante oficialmente – interpolou Zackiel, curioso.
Endrich assentiu.
– É verdade. Mesmo por que, caso contrário, eu nem aqui estaria.
O Imperador concordou. Os lábios levemente curvados.
– Bem, mas isso não ocorreu e agora deves estar todo atarefado. Bem…
você está com fome, não é? Então me siga – falou ele a Endrich. – E você vá
tomar uns chazinhos, senão daqui a pouco receberei cartas e documentos
contaminados – concluiu virando-se para Mikaell.
Endrich achou aquilo um pouco duro demais da parte do Imperador,
incomodando-o. Porém, nada poderia fazer em contradição. O secretário, de
bom grado, assentiu, retornando aos seus fazeres enquanto o Imperador e o
Guardião seguiam para o salão do refeitório.
––––
O Imperador Zackiel deixou Endrich almoçando sozinho no refeitório do
castelo, enquanto fora cuidar de seus negócios políticos.
Endrich percebeu o quão frio o monarca conseguia ser. Como ele pode se
interessar com política numa hora dessas? – ponderou o Guardião. – Ei, se
ele não percebeu ainda, seu filho está desaparecido, ao que parece, há três
dias! Certo, ele chegara à conclusão de que não gostava do Sr. Zackiel, nem
um pouco. A dureza daquele homem era no mínimo irritante.
Endrich tentava não pensar tanto nos desaparecimentos, mas sua mente o
deixava inquieto. Esperava que estivesse tudo bem com Blair Crystan, senão
achava que Asriel enlouqueceria.
Após a refeição do meio-dia, o rapaz se dirigiu para o povoado que
cercava o castelo imperial. O Povoado Imperial Zackiel se mantinha através
da venda e consumo de animais, como porcos, vacas, bois e cavalos para
montaria; ao contrário do Povoado Imperial Crystan, que vivia basicamente
de plantações e vendas de produtos, entre estes arcos e flechas.
Enquanto caminhava pelo mercado, sem querer, esbarrou-se em uma
mulher pouco mais velha que ele. Ela tinha olhos azuis e cabelo ruivo,
estranhamente familiar.
– Oh, desculpe-me – disse Endrich.
– Olha por onde anda… Ah, perdão – respondeu ela, com uma rápida
mudança de humor. – Você está bem?
– Ah, sim, estou. E você?
– Claro!
Endrich ia seguir seu caminho sem destino, quando a moça o chama de
volta.
– Senhor?
O Guardião se vira, achando a abordagem dela um tanto respeitosa para
com ele, um simples Mensageiro – e importante Guardião, diga-se de
passagem.
– Sim? – pergunta ele.
– Então? Você tem alguma coisa para fazer agora? – quis saber ela.
Achou estranho a mulher lhe perguntar isso. Mesmo por que os dois
nunca haviam se visto antes. Mas, educadamente, respondeu-lhe a questão:
– Ah, não. Não tenho nada em mente para essa tarde, por enquanto.
A mulher assentiu. Endrich tinha a sensação de conhecê-la de algum
lugar…
– Você se importa de seguir comigo? É que estou sozinha, meus pais
viajaram.
Endrich deu de ombros. Acho que vai ser bom ter alguém para
conversar. Sendo assim, os dois caminharam sem um rumo certo. Só
esperava que ela não fosse de uma daquelas famílias em que uma simples
troca de palavras fosse o gatilho para um compromisso. Não achava isso
certo.
– Então, como você se chama? – perguntou Endrich.
– Ah, sim, meu nome é Sheron MacWyes, prazer. E você, como se
chama?
– Endrich Ragrson, Mensageiro Imperial da Zona Leste e Guardião
Imperial de Diamante.
Sheron fez uma expressão de surpresa.
– Você é um Guardião Imperial? Uau… Que demais!
Endrich sorriu pela forma que ela falou. Só faltou ela sair saltitando pelas
ruas. Apesar de ser uma mulher com seus vinte anos, aparentemente, seu
espírito era o de uma garota de quinze ou dezesseis anos.
– É, mas quando eu fiquei sabendo que eu era um descendente de
Guardião, odiei. Não queria me tornar um de forma alguma – ele contou.
– Mas por quê? – indagou-o, com uma voz forte e doce ao mesmo tempo.
Endrich hesitou. Nunca mais pensara muito nisso. Mas havia de
responder a mulher.
– Eu não sei ao certo. Acho que tinha medo de me tornar imortal, apesar
de que eu posso morrer a qualquer momento.
– Então você é sempre jovem?
– Sim. – Ele sorriu. Era incomum encontrar moças que se interessavam
sobre tal coisa. Deveria ser como sua amiga Luany, que não gosta muito de
ficar falando sobre roupas, costuras e tecelagem.
A tarde seguiu rapidamente. Sheron MacWyes contara a Endrich que
morava com seus pais, ali mesmo, no Povoado Imperial Zackiel. Mas que
eles, naquele dia, haviam saído para comprar alguns animais num reino
vizinho.
Ao fim da tarde, eles se encontravam sentados à beira do lago Miragem,
um pouco afastados do castelo imperial e do mercado. Ali perto havia mais
casas de camponeses, que não deixavam de trabalhar de forma alguma,
encaminhando animais para chiqueiros e estábulos, antes que anoitecesse.
Endrich vislumbrava o lago Miragem. No reflexo das águas ele pôde
distinguir a face de Luany, sorrindo para ele. Ele se assustou. O que é isso?
Sheron vendo seu estado, pergunta:
– O que foi?
– Nada, acho que estou sonhando acordado – respondeu o Guardião, sem
graça.
– Você viu a face de alguém nas águas do Miragem, certo?
– É… Como você sabe?
– Bem, dizem que esse lago é mágico. Por isso o nome Miragem, por que
ele revela o rosto da pessoa que você sente um grande carinho e que mais tem
medo de perder. – Sheron também vislumbrava a água límpida e azulada do
lago. Parecia estar vendo alguém também.
– Hm – murmurou Endrich, sem saber ao certo se aquilo que vira fazia
sentido com o que Sheron lhe falara.
– Bom, é o que dizem – concluiu ela sorrindo.
A Estrela de Fogo, o sol, estava se pondo, e a lua Cahim estava dando o
ar de sua graça, acompanhada por pequenos pontos de luz, as primeiras
estrelas do firmamento.
– Endrich foi muito bom ter conversado com você, mas tenho que ir
embora – disse Sheron, levantando-se de um pulo.
– Espera, mas já? – Endrich gostaria de ficar um pouco mais
conversando com ela. Contar sua última aventura.
– Infelizmente, tenho que ir.
– Mas mal conversamos.
Ela sorri. Sheron então se vai em direção das casas camponesas, porém,
volve para Endrich com um último aviso:
– Não se preocupe. Isso não será um adeus.
Cinco
A Rebelião em Etty Mallol
Assim que Sheron foi embora, Endrich fitou um pouco mais o Miragem e
logo voltou para o castelo imperial, onde tentaria encontrar Raffy. Porém, ao
chegar ao castelo, o amigo ainda não havia retornado de sua busca.
Rapidamente a angustia lhe tomou conta.
Mikaell, percebendo que o Guardião de Diamante estava inquieto, levou-
o para um quarto onde poderia descansar, já que ainda não tivera a
oportunidade naquela tarde. Quando Endrich deitou-se na cama, vários
pensamentos e lembranças de casa lhe tomaram a mente. De certo modo era
ruim ficar relembrando o lar, mas por outro era reconfortante memorar os
bons momentos.
– Ai, ai, ai… Endrich, Endrich, o que você vai fazer de sua vida? –
perguntou a si mesmo.
– Você pode me acompanhar. – Raffy entrou no quarto.
– Oh, Raffy! Que bom vê-lo.
– Também é bom em lhe ver – respondeu Raffy, dando um abraço em
Endrich.
Endrich não havia percebido quanto tempo havia passado desde que
deitara. Assustou-se com a ideia de ter se perdido entre as horas. Contudo, ele
percebeu que o Guardião de Cristal estava com uma aparência horrível.
Provavelmente ele não dormira quase nada; a busca deve ter sido bem
pesada.
– Estou sabendo o que aconteceu ao príncipe Gabrian – comentou
Endrich.
O Guardião de Cristal assentiu.
– Bem, não consegui encontrá-lo, mas ainda o encontrarei. Fiz essa
promessa ao Imperador, e devo cumpri-la.
– Verdade. Também tenho uma promessa a cumprir, mas acho que
precisarei de sua ajuda.
– O que houve?
Endrich se sentou na cama e contou tudo a Raffy, desde o
desaparecimento da princesa Blair ao mistério do broche, que fora encontrado
no local onde o pátio central ficara destruído. Ele relatou o que descobriu
sobre a Ilha Elementar, e que concluiu ser o único lugar para onde Blair
poderia ter sido levada.
– Você acha que essa ilha, realmente, existe? – indagou Raffy.
– Olhe Raffy, ultimamente eu não duvido de mais nada – ponderou
Endrich. – Se algum tempo atrás eu duvidava de magia e fantasmas, hoje…
Rá, eu não duvido mais.
Raffy assentiu e sorriu.
– Então, o que você acha que devemos fazer?
––––
O Imperador Darian Zackiel estava saindo de sua sala para seus aposentos, na
ala nobre do castelo, quando foi abordado por Raffy e Endrich.
– Senhor, nós precisamos conversar – disse Raffy, fazendo uma leve
reverência.
– Mas agora? Isso é hora de vir me chamar? – reclamou Zackiel. – Vocês
deviam ir dormir. Principalmente você Raffy, que terá de sair amanhã,
novamente, para ir à busca de Gabrian.
Endrich percebeu Raffy enrubescer. Milagrosamente, ele parecia bravo
com alguma coisa. Se fosse com o Imperador ele estaria totalmente de
acordo; aquele homem merecia umas boas bofetadas.
– Mas é sobre isso que viemos conversar – respondeu o Guardião de
Cristal.
O Imperador suspirou, pondo uma mão na testa. Com um aceno da outra,
ele mandou Raffy e Endrich entrarem em sua sala. Seguiu-os de perto.
– É bom que seja importante – retrucou Darian, sentando-se em seu
pequeno trono, atrás de uma mesa de carvalho com desenhos filamentosos
em ouro.
A sala, Endrich percebeu, era tão grande quanto à sala do Imperador
Crystan, porém não possuía o mesmo aroma agradável. Ali o cheiro parecia
mais de óleo amadeirado, dando um toque rústico ao ambiente. E nas janelas
no fundo da sala, ao contrário do tema religioso do Imperador Asriel, havia
um tema mais centrado a lutas e revoltas.
– Bem, senhor – começou Raffy –, eu não consegui nenhum tipo de pista
para encontrar Gabrian, mas Endrich tem uma ideia e uma pista que pode nos
levar a encontrar tanto o príncipe quanto a princesa Blair, que também
desapareceu do Império de Diamante.
– Sim – concluiu Endrich. – O raptor deixou isso no local por onde,
provavelmente, ele saiu. Trata-se de um broche. – Endrich entregou o objeto
metálico para o Imperador, que o analisou atentamente. – Pelo o que pude
concluir, fazendo uma pequena pesquisa, esse objeto está ligado a Ilha
Elementar, uma antiga terra amaldiçoada.
O Imperador Darian ficou pasmo, voltando seus olhos profundos para
Endrich. Arrastando o broche de volta para ele, argumentou:
– Bom, isso é muito interessante, mas essa ilha não existe. É apenas uma
lenda. – Por um momento pareceu não confiar nas próprias palavras.
– Eu não diria isso, senhor – retrucou Raffy. Ele estava um pouco calado,
mas sua expressão demonstrava certa angustia e atenção. Devia estar
preocupado com alguma coisa.
– Senhor, eu também não acreditava nessas coisas sobrenaturais – disse
Endrich. – Mas quando passei a fazer parte delas, eu aprendi a conviver e a
aceitá-las.
Zackiel pareceu pensativo. Além disso, nada mais aparecia. Nada,
nenhum tipo de expressão. Ele era um homem muito cético e gélido,
percebeu Endrich. Só agora notara o quanto ele havia mudado desde a
primeira vez que o vira – ou então, na ocasião, o Imperador estava apenas
escondendo quem realmente era. Porém, passado algum tempo, o Imperador
solta todo o ar dos pulmões num único sopro. Parecia profundamente
preocupado. Estaria demonstrando algum sentimento?
Endrich falou:
– Senhor, eu só desejo-lhe que permita a Raffy seguir comigo nessa
trajetória, até as águas do Império de Jade. Caso não encontrarmos a ilha,
voltaremos logo em seguida e daremos prosseguimento às buscas pelo
príncipe e princesa.
Darian cofiou a barba castanha. Seu rosto esboçou algo parecido com um
leve sorriso.
– Está bem, eu autorizo Raffy a ir com você – permitiu Zackiel. – E caso
encontrem meu filho, quero que o tragam imediatamente, mas, caso contrário,
deixem a ilha e voltem o mais rápido que conseguirem.
Endrich e Raffy assentiram.
– Ah, senhor – indagou Raffy –, teria como mandar um barco ainda essa
noite para o Império de Jade?
O Imperador ajeitou sua coroa de prata sobre os cabelos castanhos. Seus
olhos dourados pareciam faiscar.
– Eu não sei ao certo, mas, aparentemente, há um barco pesqueiro que
sairá ao amanhecer. Se assim quiser, podem partir imediatamente –
respondeu ele. – Mas seria mais sensato se vocês perguntassem a Mikaell em
que reino será a partida. Agora, desculpem-me, mas tenho que ir dormir.
Amanhã há muito que fazer, ao contrário de vocês dois.
Sendo assim, Zackiel acompanhou os Guardiões até a porta, seguindo
logo depois para seus aposentos.
Enquanto Endrich e Raffy seguiam para a salinha de Mikaell, torcendo
para que ele ainda estivesse acordado, Endrich reclamara:
– Como assim não temos nada para fazer? Se ele não percebeu, nós é
que vamos procurar pelo seu filho, enquanto ele fica sentado em seu trono de
ouro e riquezas! – Endrich estava tão indignado quanto um mercador que tem
suas frutas roubadas por outro comerciante.
– Acalme-se, Endrich – pediu Raffy. – Entenda meu senhor, ele é assim
mesmo. – Mas Raffy falava mais para si. Também estava um tanto indignado.
Quando chegaram ao escritório de Mikaell, os dois deram graças por ele
ainda estar trabalhando. Eles perguntaram quando e onde sairia à próxima
embarcação para o Império de Jade, e, olhando em um livro de anotações, o
secretário lhes reponde:
– Bem, há um barco pesqueiro saindo do Reino Portuga, ao amanhecer.
Mas para quê vocês querem saber? – perguntou após um acesso de tosse.
– É que nós estamos partindo para lá nesse exato momento – contou
Raffy. – Temos uma pista de onde pode estar o príncipe.
– Ótimo! Mas como… – Mikaell espirrou. – Como vocês irão chegar até
lá?
Raffy perdeu a cor do rosto. Como ele não pensara nisso? Se fossem a pé
chegariam apenas no outro dia, senão mais. Nem mesmo de cavalo daria
tempo. Mas Endrich tinha a solução de seus problemas.
– Eu sei como – revelou o Guardião de Diamante com um sorriso de
triunfo.
––––
– Por que você não falou isso antes? – indagou Raffy, enquanto deslizava a
mão através do pelo negro do cavalo alado.
– Desculpe, mas as coisas estão acontecendo rápidas demais – respondeu
Endrich. Ele pôs as rédeas no animal e, selando-o, seguiu para fora do
estábulo.
O senhor que cuidava do local não deu a mínima por tirá-lo dali, e, dando
de ombros, seguiu para um canto onde recostou a cadeira na parede e
começou a roncar.
– Você está pronto? – indagou Endrich ao Guardião de Cristal.
– Com toda a certeza.
Montados no cavalo, Endrich instigou o animal a seguir voo pelos ares.
––––
[2]
Quando eles chegaram ao Reino de Portuga , de madrugada, na costa sudeste
do Império de Cristal, o céu reluzia como uma cortina salpicada de estrelas.
O ar gélido, que seguia pelo Império de Diamante e parte do Império de
Cristal, se desfez, dando lugar a um ar mais aprazível e morno.
Devia ser duas da manhã, mas, educadamente, foram recepcionados
pelas sentinelas que guardavam a estrada principal que entrava no reino. As
sentinelas se impressionaram com o cavalo alado e, apreensivos, deixaram
Endrich e Raffy entrarem na cidade que cercava o castelo.
Rapidamente os dois foram dirigidos ao castelo real, podendo deixar o
cavalo nos estábulos por quanto tempo quisessem. O secretário real, que se
chamava Amael, ainda estava resolvendo alguns problemas quanto às
correspondências em sua sala. Mesmo assim, ele recebeu muito bem aos
Guardiões, apesar das olheiras que contornavam os olhos.
Os Guardiões pediram informações a respeito da embarcação que sairia
ao amanhecer, e Amael confirmou que o barco pesqueiro partiria para o
Império de Jade, fazendo uma pequena parada em Etty Mallol, uma pequena
ilha ainda em águas do Império de Cristal.
– Se vocês quiserem estar revitalizados ao amanhecer, eu sugeria que os
dois dormissem um pouco. É bom para manter as forças… – Amael bocejou.
– Eu sugeria que você também fosse dormir – questionou Raffy. – É bom
para manter as forças – caçoou, e o secretário retribuiu com uma careta.
Logo em seguida, ao fechar um livro de anotações e escrever uma
autorização de embarque, Amael conduziu os Guardiões para um quarto de
hóspedes, onde possuía duas camas. E ali, deitando um em cada cama,
dormiram rapidamente.
––––
O barco pesqueiro já estava quase partindo, quando Endrich e Raffy
despontaram no cais do Porto Alexis. O dia estava lindo, o sol radiava no
horizonte.
– Da próxima vez sejam mais pontuais – censurou o barqueiro pegando o
documento assinado por Amael; um homem alto, magro e devia ter uns
cinquenta anos. A barba cinzenta, por fazer, lhe dava uma aparência ainda
mais velha.
– Desculpe-nos, senhor – respondeu Raffy, aparentemente
desconcertado. – Acho que dormimos um pouco mais do que devíamos.
– Tudo bem. E, ah, meu nome é Tairos. Acman Tairos. Mas podem me
chamar apenas de Tairos. – O velho sorriu, mostrando seus dentes
amarelados.
Os Guardiões assentiram e adentraram no barco, sentindo um leve cheiro
de peixe podre. Era um barco pesqueiro de porte médio, e por isso era raro
quando a proa e popa estavam sob condições extremamente higiênicas.
Endrich sentiu seu estômago enojar ao exalar o cheiro, mas tentou não se
incomodar com isso. Já Raffy quase não segurou o que continha em
estômago, tendo que ficar o tempo todo na parede a estibordo, olhando e
sentindo a maresia.
E assim o tempo foi passando, enquanto o barco seguia para o alto-mar.
Endrich ainda conseguia vislumbrar algumas montanhas nas terras do
Império de Cristal, e ficou se perguntando de onde seriam.
– Aquelas cadeias montanhosas vão desde o Reino Portuga até próximo
ao Povoado Imperial Zackiel – comentou Raffy, captando os pensamentos de
Endrich. – São muito conhecidas pelo grande pico que duas delas
demonstram. – Raffy apontou para duas montanhas mais ao norte, que se
elevavam a uma grande altura. – Essas são as Montanhas Gêmeas.
Endrich admirava seus altos picos enquanto seguiam para Etty Mallol.
Três dias se passaram desde que Endrich e Raffy haviam embarcado, e
agora a embarcação já estava bem próxima da ilha onde o Sr. Tairos iria
atracar para deixar uma carga de peixe.
Enquanto a nau não chegava à ilha, Raffy, que já estava mais
acostumado ao mau cheiro do peixe, relatou à Endrich um pouco sobre a
história de Etty Mallol.
– Antigamente a ilha era um grande porto de comerciantes, aonde vários
produtos vindos de todos os Impérios passavam por aqui. Mas hoje em dia
esta está, bem dizendo, abandonada. Há ainda famílias pobres, que moram aí
por não terem condições para viajar e arrumar uma moradia nas terras do
continente. – Raffy, indo para bombordo, apontou uma faixa amarela de terra
no lado norte da ilha, onde havia algumas moradas velhas e antigas. – Bem,
eu ouvi dizer que nessas casas moram contrabandistas e rebeldes, exilados
dos continentes.
– Hum… Odeio contrabandistas – comentou Endrich. – Mas por que
alguns são exilados?
– Os exilados dos continentes são alguns contrabandistas e outros
assassinos e ladrões, que tiveram como castigo viver as próprias custas nessa
ilha – explicou Raffy.
Endrich assentiu.
– Mas não há perigo de eles roubarem ou matarem as pessoas “boas”, do
lado onde é feito os comércios? Já que eles moram na mesma ilha.
– Bem, na verdade não. Existe uma gigantesca muralha entre a pequena
floresta, dividindo a ilha em dois lados.
– Ah, entendi.
Não muito tempo depois, a embarcação saiu das águas do Mar do Sul e
adentrou no Mar d’Oeste, ainda no Império de Cristal. Logo estavam dando a
volta na ilha pelo lado leste, para chegar ao porto, ao sul. Endrich e Raffy
estavam loucos para descer e tocar os pés em terra firme.
––––
– Vocês podem ficar tranquilos, certo? – avisou o Sr. Tairos. – Ficaremos
para fazer a refeição do meio-dia, e só então continuaremos viajem pelas
águas do Mar d’Oeste.
Os Guardiões assentiram e correram para a areia fofa da beira do mar e
ali se deitaram, sentindo o cheiro salgado da maresia adentrar em suas
narinas.
– Achei que nunca mais eu iria sair daquela embarcação – resmungou
Raffy. – Minhas roupas ficaram com o cheiro do peixe grudado nelas.
Endrich riu, mas parou logo percebendo que suas roupas também
estavam fedendo.
– Hum… Credo, esse negócio cheira mesmo mau.
Os dois, cada um com sua bolsa, seguiram para um chalé, onde servia
como bar. Ali, trocaram suas roupas mal cheirosas por outras novas. No
mesmo chalé, eles fizeram uma refeição; estavam com os estômagos vazios
desde a noite passada. Depois de se fartarem, seguiram para a praia, onde
caminharam por um longo tempo sem compromisso.
– Você acha que conseguiremos salvar os herdeiros? – indagou Endrich,
fitando o mar.
– Assim espero. O Imperador Zackiel está contando com minha ajuda e
não posso decepcioná-lo. Senão é capaz de eu ter a cabeça arrancada – riu
Raffy. Porém, o Guardião de Diamante tinha quase certeza de que ele estava
falando sério.
Endrich chutou um marisco grande e de casca branca com algumas
manchas amareladas. Sua cabeça trabalhava a mil, até que seus pensamentos
se voltaram para Luany. Ah, como ele gostaria que ela estivesse ali com ele,
ou que ele estivesse em casa com ela.
– Sei no que você está pensando, Endrich – interveio Raffy –, mas não se
preocupe. Nós não vamos demorar a encontrá-los.
– Não sei, não, Raffy. Há alguns dias, enquanto eu estava indo para o
Povoado Zackiel tive um breve sonho com uma mulher, de olhos azuis e
cabelos ruivos. E advinha, eu a conheci no povoado.
– Mas você sabe que seus sonhos lhe mostram imagens do futuro.
– Sim, eu sei – insistiu Endrich. – Mas há algo de errado. – Endrich
contou sobre o sonho que teve com Sheron MacWyes e de como a conheceu
no povoado.
Raffy ouviu tudo atentamente, mas não tinha certeza se havia algo de
errado naquilo.
– Não estou encontrando o “erro” em seu sonho.
Endrich voltou o olhar da areia molhada para o outro Guardião.
– Você não entendeu Raffy? – ponderou o Guardião de Diamante. – O
sonho se passa em uma espécie de salão e não no povoado. Sei que ela ainda
fará alguma diferença em nossa busca. Posso sentir. – Algo em seu interior se
remexia, deixando-o perdido.
– Se você diz…
Enquanto retornavam para a vila formada no litoral, Endrich sentiu o ar
pesar, tornar-se estático. Olhou para o céu e viu que nuvens carregadas se
aproximavam rapidamente. Já havia percebido que o fenômeno estava
acontecendo cada vez mais que se aproximavam do Mar d’Oeste. Agora em
suas águas, as coisas pareciam piores.
Quando ele pensou ter um pouco mais de descanso, chegam à vila e se
deparam com casas sendo saqueadas e outras, em chamas. Pessoas correm
para todos os lados, comerciantes tentando salvar suas parcas mercadorias,
enquanto homens de barba por fazer e maltrapilhos destruíam tudo o que
viam pela frente.
Endrich e Raffy se entreolharam e sem delongas correram o máximo que
podiam até alcançar um homem que lutava com um contrabandista, na
tentativa de se proteger. Sem pensar duas vezes, o Guardião de Diamante
estaca e dispara uma flecha contra o bandido, acertando-o nas costas. O
maltrapilho cai, sangue empapando sua vestimenta.
– Você está bem? – perguntou Raffy ao homem.
– Aham… – respondeu ele, olhando para o corpo sem vida do
contrabandista.
– Ótimo. Agora vá, saia daqui. Proteja-se. Será melhor para você. E leve
o máximo de pessoas que puder consigo.
Os dois Guardiões trocaram rápidas palavras, e Endrich seguiu para o
chalé, enquanto Raffy foi ajudar os comerciantes, que estavam sendo
derrotados rapidamente.
Quando Endrich entrou no bar, o tumulto estava formado. Não se sabia
quem era bandido e quem era os moradores locais. Até o Guardião avistar um
homem feio e barbudo segurando uma adaga com a lâmina desenhada; era
[3]
uma sereia – o símbolo dos contrabandistas . Sem muito tempo, Endrich
encaixa uma flecha na corda do Arco de Diamante, puxando-a até ao lado da
orelha direita. Com a corda bem tencionada e a mira pronta, ele soltou a seta,
que voou em direção do homem numa velocidade incalculável. Instantes
depois o malfeitor estava caído no chão.
Ao perceber o parceiro caído, vários outros homens magricelas e
desdentados olharam em direção de Endrich. Oh-oh! Acho que me ferrei.
Antes que dois deles se aproximassem muito, o Guardião de Diamante já
estava com duas flechas prontas para o disparo. Em pouquíssimos segundos
os dois estavam derrubados, cada um com uma flecha alojada no peito.
Vários se apavoraram, mas alguns partiram para cima dele com suas
adagas empunhadas. Dessa vez Endrich não conseguiu se defender apenas
com as flechas, tendo de lutar corpo-a-corpo contra muitos deles.
Quando já estava quase sem fôlego, com os pés cercados de corpos, um
destemido rapaz, de mais ou menos sua idade, correu em sua direção. Mas o
rapaz não teve muito que fazer. Endrich desviou do bandido e, voltando-se
para ele, deu uma forte pancada com a haste do arco fazendo o rebelde
desmoronar no chão.
– Vocês estão bem? – perguntou Endrich ao dono e aos trabalhadores do
chalé, que agora ficara parcialmente destruído.
– Sim… – assentiu o velho dono, aparentemente assustado.
Com um movimento de cabeça, Endrich deu as costas e seguiu para o
comércio. E ao chegar à rua percebeu que o estrago havia sido ainda maior.
Raffy se dirigiu até ele pulando alguns corpos sem vida. Em volta, alguns
gemiam e se contorciam de dor, perfurados ou sem algum membro.
– Bem, acho que não era realmente isso que eu estava pensando em
fazer, mas… – Raffy olhou para Endrich, que estava com o rosto e as roupas
manchadas de sangue.
– Nossa, e eu achando que a minha luta havia sido feia – comentou
Endrich. Olhando em volta, os vários corpos estirados na rua.
Quase todas as barracas do comércio haviam sido destruídas, e inúmeras
casas estavam incendiadas. Contudo, os rebeldes que não estavam
gravemente feridos escaparam: alguns conseguiram fugir, roubando barcos
pesqueiros; enquanto outros retornaram para o lado exilado da ilha.
– Raffy! Endrich! – chamou o Sr. Tairos. – Como vocês estão? Eu vi o
que Raffy fez. Foi incrível! – O velho parecia bem empolgado com a luta.
Endrich fitou os vários rostos angustiados que os admiravam. Alguns
estavam tristes por terem perdidos suas casas e suas tendas de vendas. Mas
outros tentavam se contentar pelos contrabandistas terem caído. Agora o
perigo estava minimizado, mesmo não imaginando como eles haviam
transposto a grande barreira que os exilavam.
– Eu acho melhor nós todos partirmos daqui – falou o Sr. Tairos. – Não
há muito que fazer agora. Já recebi meu pagamento pelo descarregamento do
peixe, então já estamos livres novamente.
Raffy ia protestar, mas não tinha o que argumentar e por isso se calou.
Endrich olhou cético para o barqueiro, mas se segurou para não falar o que
não devia.
Em pouco tempo a embarcação estava de volta ao mar. E em poucos dias
chegaria ao Império de Jade – destino principal dos dois Guardiões Imperiais.
Raffy voltou a se escorar na amurada, fitando o mar e sentindo a maresia,
para não ficar enjoado. Já Endrich se deteve na proa, após trocar mais uma
vez de roupa, onde ficou sentado até o anoitecer, pensando em tudo que já
acontecera em sua vida, e no que ainda poderia vir a acontecer. Estava
completamente inseguro.
Será que conseguiremos salvar o príncipe e a princesa? Será que eles
estão bem? Espero que toda essa nossa viagem não seja em vão.
E assim, saindo do Império de Cristal, eles adentraram ainda mais no
Mar d’Oeste; agora nas águas do Império de Jade.
Seis
Novo Prazo
A noite estava quase chegando e Blair estava prestes a desfalecer, quando seu
raptor se aproximou. Ele a cutucou e a puxou para cima, deixando-a de pé.
Ela gemeu, abrindo os olhos na medida do possível.
– Vamos garota, resista – exclamou ele, pegando em sua cintura.
– Pra você é fácil, não precisa ficar preso por correntes – intimou o
garoto preso ao poste, do outro lado do trono. O príncipe Gabrian sustentara
uma expressão como a de seu pai: fria e cética.
O homem de cabelos castanho-ruivos deixou a princesa de lado e se
aproximou do garoto. Em seus olhos havia raiva.
– Você ousa me desafiar? – gritou ele. – Pois eu devia lhe matar neste
instante. Espere! É o que vou fazer agora. – O homem empunhou uma espada
média de lâmina prata, incrivelmente polida.
Gabrian estremeceu, bufou de raiva e fechou os olhos, virando o rosto
para o lado. Não queria ver a espada descendo até seu corpo.
Quando o homem preparou a lâmina para baixá-la, uma voz rouca e
afiada ecoou a suas costas. Rapidamente, ele se virou, vendo seu parceiro da
longa capa negra, com quem montara o plano.
– Espere! – disse o homem. – Devemos esperar mais alguns dias.
– Mas por quê? Eles não possuem mais utilidade. Seus Guardiões não
apareceram – teimou o homem armado.
O demônio da capa negra deu um passo à frente e logo sumiu em
fumaça, materializando-se em frente ao raptor. Sua expressão era sombria,
com olhos tão negros como breu.
– Teremos de esperar mais um pouco, os Guardiões estão a vir. Porém a
embarcação de que estão utilizando é muito lenta. E na ilha que pararam
houve uma rebelião, o que nos atrasa um pouco mais. Além disso, se
matarmos os dois jovens poderemos perder uma grande chance. – O homem
sorriu, mostrando suas presas pontudas e brilhantes. – Por tanto, espero que
você cumpra esse pedido: não os mates. Espere por mais alguns dias.
O raptor praguejou sua má-sorte; ou, no caso, a boa sorte para a princesa
e o príncipe, que continuariam vivos por mais alguns dias.
– Mas devo mantê-los por mais quantos dias? – sibilou com os olhos em
brasa. – Se eles continuarem vivos ou não, os Guardiões virão até aqui de um
jeito ou de outro.
O da capa negra pensou por um instante.
– Não é tão simples, os anjos podem avisá-los. Espere até que eles o
achem. Caso isso não aconteça, eu farei com que façam isso. Mas suponho de
que não será necessário. Eles são espertos. – Virou-se para a lua Nahim, que
reinava ali. – Não podemos simplesmente matá-los. Blair ainda tem coisas a
cumprir. E Gabrian, bem, ainda estou vendo se será tão importante assim.
– Está bem. Não acredito que ainda terei de cuidar desses fedelhos –
reclamou guardando a espada.
O demônio deu as costas para o raptor e, novamente, transformando-se
em fumaça, foi embora, deixando-o com os jovens.
––––
– Você acha que eles estavam falando de Endrich e Raffy? – indagou Blair a
Gabrian, ainda fraca, após seu raptor seguir para buscar algo que comer.
– Eu não sei, mas acho que sim. Por que senão quem iria se arriscar até
essa ilha pra nos buscar? Hão de serem os Guardiões Imperiais – respondeu o
príncipe, tentando arrumar a franja de cor caramelo, sem sucesso.
Blair se ajeitou em seu lugar. Suas pernas, costas, braços, tudo doía. Ela
nunca havia se sentindo tão mau como naquele momento. Gostaria tanto de
poder se deliciar em uma banheira com água morna, comer um bom
banquete… Então ela se lembrou de uma coisa que o homem de preto falara
sobre seu destino. O que isso queria dizer? Não tinha certeza, e duvidava de
que aquele ser asqueroso lhe contaria. Suspirou resignada. O melhor mesmo é
deixar a vida seguir em frente, ver onde irá parar.
– Só espero que esses homens não os matem – proferiu a princesa.
Gabrian assentiu. Ele, apesar de estar tão debilitado quanto Blair, não
demonstrava fraqueza; ao contrário, mostrava força, no intuito de dar
estabilidade à princesa. O príncipe tinha de permanecer em pé até a chegada
dos Guardiões, caso contrário não saberia se ela aguentaria sozinha.
– Mas pelo o que conheço deles – concluiu ele com um sorriso
esperançoso –, irão chegar a tempo de nos tirar daqui.
Sete
Princesa de Jade
Raffy pousou Marinny no chão de pedra. O templo por dentro era muito
maior do que parecia ser por fora. Suas paredes eram erguidas com grandes
pedras – que por dentro tinham um toque alaranjado –, onde se encontravam
várias pinturas antigas. A maioria delas se referia aos mesmos personagens –
duas mulheres e dois homens.
– Nós precisamos de água – disse Raffy, sentando ao lado da Guardiã
desmaiada.
– Mas meu cantil está seco, sem uma gota. Não me lembrei de enchê-lo
no navio – respondeu Endrich, torcendo o semblante.
Ele olhava para as paredes do templo com atenção. Via cenas de
congratulações, ao mesmo tempo em que via imagens de guerra e destruição.
– Eu vou ver se encontro alguma coisa – incitou Endrich.
– Encontrar o quê? Aqui só tem paredes de pedra e areia – replicou
Raffy, mostrando a fina camada de poeira que encobria o chão também de
pedra.
– Você, zombando de mim? Nã-nã-nã… Eu vou ver se encontro alguém
– explicou o Guardião de Diamante. – Sei lá, vai que alguém mora aqui?
– Está bem – acedeu Raffy. – Vá, mas tome cuidado. E eu duvido de que
alguém more aqui… E se morar deve ser deprimente.
Endrich se levantou e seguiu por um corredor. Ele não acreditara que
Raffy estivesse falando como Marinny. Será que a personalidade de Marinny
está passando para Raffy? – perguntou-se o Guardião. Ah, decerto não;
credo, ele deve estar tão zombeteiro por causa da pressão que está sofrendo
imposta pelo juramento que fez ao Imperador Zackiel. Ele o entendia. No
entanto, algo que não pensava sobre ele decidiu permear sua mente…
Chacoalhou a cabeça, guardando isso num canto inóspito. Não queria ficar
com dúvidas em relação ao amigo novamente.
O corredor pelo qual Endrich caminhava, era largo e longo. Mais
pinturas apareciam pelas paredes, e ele ficou atônito ao perceber que podia
vê-las claramente, sem o auxílio de alguma tocha ou lampião. Além de o
Arco lançar uma pálida luz pérola, algum tipo de iluminação constante
atravessava o teto alto do templo, dando a ele a possibilidade de enxergar
sem dificuldade.
O Guardião de Diamante procurava por qualquer pessoa – não sendo,
claro, uma cobra gigantesca de duas cabeças com enormes dentes
pontiagudos, querendo lhe usar como refeição.
Seguindo, Endrich desembocou numa espécie de salão. O teto era mais
alto que o do corredor, porém, o que o impressionou não foi isso, mas sim o
rio que atravessava o meio do salão. No caso, havia sido aberta uma espécie
de vala, abobadada, onde a água corria livre e ligeiramente, atravessando uma
abertura na parede. Além dela não havia luz alguma e ele se perguntou como
aquilo seria possível.
Mesmo as dúvidas lhe rondando, Endrich se agachou na margem do rio e
encheu seu cantil – revestido de couro de boi. Percebeu o quão a água era
cristalina, não havia nenhum tipo de impureza, e um leve formigamento
cruzou sua mão. Estando o recipiente transbordando, o Guardião voltou pelo
mesmo corredor para perto de seus amigos. Antes de desembocar no
corredor, parou abruptamente.
Analisava um daqueles desenhos com maior interesse, e percebeu que ali
havia uma história maior do que poderia imaginar. Cinco pessoas recebiam
de cinco anjos, armas que brilhavam em tom de luz laranja esbranquiçado.
Suas mãos estavam estendidas, de costas para Endrich e de frente para os
angelicais. A história dos Guardiões.
Seus olhos espreitaram o local a sua volta. Não havia ninguém ali perto.
A voz novamente? Devo estar ficando maluco, isso sim! Chacoalhou a
cabeça e resolveu que já era hora de se juntar novamente a seus amigos.
Contudo, ao chegar ao hall, não acreditou em seus próprios olhos.
Raffy, que estava com a cabeça de Marinny apoiada em seu colo, sentado
no chão, estava sendo ameaçado por uma mulher de cabelos ruivos, que
segurava um longo tridente de gelo, com as pontas tão afiadas quanto as
lâminas de suas flechas.
– Ei! – gritou Endrich.
Ele congelou quando a mulher se virou para ele. Várias coisas passaram
pela sua cabeça. O que ela está fazendo aqui? Como ela chegou aqui?
– Endrich? – espantou-se Sheron MacWyes.
– Vocês se conhecem? – exclamou Raffy, perdido.
Endrich assentiu relutante.
– O que você está fazendo aqui, Sheron?
– Eu que te pergunto Guardião.
Hesitante, ele explicou que estava na missão de resgate à princesa Blair
Crystan; que a única pista que conseguiram levou-os aquele lugar.
– A princesa não está aqui! – estourou Sheron.
Endrich hesitou. Como ela poderia ter tanta certeza? O que ela estava
escondendo?
– Você precisa ir. Não pode ficar aqui, é muito perigoso. Vá embora! –
Sheron baixou sua arma de gelo.
– Não, Sheron. – Endrich se lembrou de seu sonho há alguns dias, onde
estava num ambiente igual aquele e a mulher lhe olhava da mesma forma
como no sonho. Agora a visão fazia sentido! Ele sentiu uma pontada de
medo, mas não deixou isso transparecer.
– Você não entende Endrich – suplicou Sheron.
– Eu não estou entendendo mais nada! – Raffy parecia desesperado, com
Marinny em seus braços murmurando algumas palavras sem sentido.
– Nós precisamos conversar – interveio Endrich.
Sheron se sentou num dos andares que levava a um altar. Ela parecia
aflita. Seu longo tridente magicamente se desfez em água; logo absorvida
pelo solo. Enquanto isso, Raffy pôs um pedaço de pano umedecido na testa
de Marinny, após Endrich lhe entregar o cantil.
– O que você está fazendo aqui? Como chegou aqui? – indagou Endrich
a Sheron.
A mulher pareceu hesitar, mas respondeu, calmamente:
– Eu moro aqui, Endrich. Eu sou dessas terras amaldiçoadas.
– Como assim? – perguntou ele, incrédulo.
– Eu… eu sou um dos Soldados Elementares. Sou Sheron MacWyes,
Soldada Elementar da Água.
Os dois Guardiões cientes arregalaram os olhos.
– Hmmm… – murmurou Marinny, desacordada.
Endrich se ajeitou.
– Você está me dizendo que…
– Que eu sou uma amaldiçoada – concluiu Sheron, secamente.
– Conte-me mais – pediu o Guardião de Cristal.
A Soldada Elementar negou com a cabeça.
– Quem sabe em outro momento. – Ela voltou os olhos para Marinny. –
O que ela tem?
– Bateu a cabeça e as costas contra uma árvore, depois de tentar lutar
com uma cobre de duas cabeças – contou o Guardião de Diamante.
– Ouvi dizer que os Soldados Elementares têm habilidades especiais, até
mais poderosas que as dos Guardiões Imperiais – comentou Raffy, admirando
a elementar. – E se você é água, suponho que pode usar os poderes curativos
desse elemento, assim como projetar um tridente de gelo!
Sheron assentiu. Relutantemente, aproximou-se de Marinny e, abrindo o
cantil, fez a água expelir para fora do recipiente, dirigindo-se para o rosto da
Guardiã de Jade. O líquido seguiu por uma das faces até a testa e nuca, onde
estava machucada. Em poucos segundos, a jovem, resmungando, abriu os
olhos, tomando foco. Ela respirou profundamente. Parecia melhor.
– Obrigada… – murmurou ela a Sheron, que sorriu alegremente.
– Nossa! – exclamou Raffy, surpreso. O rosto iluminado em um sorriso.
– Você devia ter sido uma ótima medicastra.
Sheron enrubesceu.
Enquanto Marinny se recuperava, Endrich, impaciente, fez uma pergunta
que estava o incomodando muito.
– De onde surgiu esse lugar?
A mulher de olhos azuis se virou para ele.
– O templo? Como vou dizer… Você tinha dito que Marinny lutara
contra uma cobra de duas cabeças, certo?
Endrich assentiu, incluindo sua parte na luta com o animal também.
– Certo. Shait é o nome da serpente. Ela protege, ou protegia… o Templo
dos Mundos, que é onde estamos. Quando ela é derrotada por um
desconhecido, o templo se revela.
– E desconhecido, você se refere a mim e meus amigos?
– Desconhecido é todo aquele que não reside na ilha – explicou Sheron.
– Como nós, Soldados e ex-moradores, moramos e moravam aqui, não
precisávamos lutar contra a imensa cobra. Ela era até bem carinhosa com nós.
Raffy deixou o queixo cair.
– Aquilo era carinhosa?
A Soldada riu.
– Mas eu já ouvira falar dela – comentou Raffy –, da cobra. Eu li, certa
vez, narrada por um xamã, que dizia existir tal animal de duas cabeças,
protetor de um portal que interligava os mundos. Uma espécie de passagem.
Eu só não imaginava que poderia ficar aqui na Ilha Elementar.
Sheron assentiu.
– Shait é mais do que uma guardiã de portais, é também do
conhecimento. Se vocês adentrarem os corredores do Templo, desvendarão
suas mais profundas raízes, e se tornarão donas de uma sabedoria gigantesca,
como o próprio Rio Styx, onde você pegou a água, Endrich. Mas, sobre os
portais, é apenas um conto, uma lenda. Eu sei disso por que toda vez que
renascemos com a ilha, moramos aqui. E vocês podem ter certeza de que eu
nunca vi nada do tipo.
– O Templo dos Mundos – continuou a Soldada – foi construído por
nosso anfitrião, nosso pai. Mas hoje ele está morto; na verdade há séculos. –
Sheron parecia um pouco emocionada. – Ele construiu isso para nós…
Um frio percorreu a espinha de Endrich. Ele sabia o que era sentir a
perda de um ente querido. Quando seu pai de criação, Ondrich Ragrson, foi
assassinado, ele sentiu como se retirassem parte de sua alma. E agora
imaginava que Sheron sentia a mesma coisa, apenas fitando o olhar triste da
mulher.
Subitamente, a Soldada Elementar mudou sua expressão de tristeza para
seriedade.
– Vocês precisam ir embora. Não vão querer entrar num conflito, certo?
– Que conflito? – perguntou Endrich.
– Um que jamais será esquecido, que poderá mudar o rumo de nossas
vidas, caso ocorra.
– Mas, Sheron… – O Guardião foi interrompido pela Soldada, que
levantou a mão em sinal de silêncio.
Raffy se empertigou.
– O que aconteceu? – sussurrou ele.
– É melhor vocês se esconderem. Está vindo alguém – comunicou ela. –
Rápido! Vão!
Sem mais delongas, os três Guardiões se arrastaram para trás de
gigantescos pilares de pedras arredondados. Tanto Endrich quanto Raffy,
ficaram pensando em como ela sabia que alguém estava se aproximando.
Sheron voltou a se sentar num andar das escadarias. Sua expressão não
era muito contente. Foi quando, de repente, um homem alto entrou no
Templo dos Mundos, e se dirigiu até ela.
Onze
Um Pouco Sobre a Verdade
O homem que se dirigiu a Sheron era alto e esguio. Seu cabelo castanho-
ruivo parecia liberar ondas de calor. E Endrich, em certo momento, achou
que ele teria uma combustão espontânea.
– Você está seguindo o plano? – perguntou o homem sem rodeios.
– Sim, Sheldon, eu estou seguindo o plano. Quantas vezes eu tenho de
lhe falar? – respondeu Sheron, amorosamente. Ela tentava controlar a voz
para não soar nervosa.
Sheldon deu uma olhadela na direção onde os Guardiões estavam
escondidos. Endrich se empertigou. Um gelo percorreu sua espinha. Será que
o homem lhes vira ali?
– Precisamos dar um jeito nesses Guardiões Imperiais. – Sheldon cuspiu
as últimas palavras. – Eu os vi chegando à praia nessa manhã. Dois rapazes e
uma garota.
Como assim “dar um jeito nesses Guardiões”? – pensou Endrich, aflito.
– O que vocês acham que ele quis dizer com isso? – cochichou Raffy.
– Eu não sei. Mas sei que, se ele fizer algo contra mim… Rá! Eu acabo
com ele – sibilou Marinny, em um murmúrio quase inaudível.
Endrich estava muito preocupado com a princesa Blair, e sabia que, para
salvá-la, era necessário que ele não fosse morto. Por isso pediu para que
Raffy e Marinny ficassem em silêncio para que pudessem escutar o resto da
conversa. Precisava descobrir mais sobre aquele homem.
– Então, Sheldon, qual é o próximo passo? – quis saber Sheron, olhando
de soslaio em direção à coluna em que eles se escondiam.
– A princesa e o príncipe já estão sobre nosso domínio. Eu mesmo os
trouxe para cá. Agora é só esperar os Guardiões nos alcançarem e dar um
jeito de pegarem a Espada – lembrou Sheldon.
– Você tem certeza de que eles poderão pegá-la para nós?
– Tenho sim. – Sheldon parecia muito confiante. – Se o arqueiro
conseguiu derrotar Trevys, praticamente sozinho, conseguirá encontrar a
Espada.
Sheron assentiu com um sorriso nervoso.
– Espero que você esteja certo.
– Eu sempre estou certo.
Com isso, Sheron foi envolvida pelos braços de Sheldon e beijada nos
lábios.
––––
Sem hesitar, Endrich sai de seu esconderijo no exato momento em que
Sheldon pôs os pés pra fora do templo. Ele estava enrubescido de raiva e
indignação. Pesadamente, ele caminhou até a Soldada Elementar, que, de pé,
o olhava apreensiva.
– Você está nos enganando! – explodiu o Guardião de Diamante. – Esse
tempo todo, só esteve fazendo a gente acreditar em você! Desde o começo,
quando você me conheceu no Império de Cristal. Tudo já era uma farsa!
– Não, espere – interveio Sheron. – Eu posso explicar.
– Então é bom começar!
Sheron hesitou. Endrich percebeu que por mais que seus olhos
transparecessem segurança e coragem, no fundo, ela estava um pouco
assustada. Ele só não sabia se era por sua causa, ou se era por outra coisa.
Tinha medo que fosse por causa dele.
– Vamos, explique – insistiu o Guardião.
– Certo. Queremos que vocês recuperem uma arma muito valiosa para
nós. A Espada Elemental uma…
– Eu sei sobre a espada. Conte-me o porquê vocês a querem.
Sheron hesitou novamente. Suas sobrancelhas se uniram. Ele parecia
indignada e com raiva. Endrich não saberia dizer o que ela estava sentindo
naquele momento.
– Certo – suspirou. – Tentaremos fazer uma oferenda aos deuses.
Entregaremos a Espada em troca de nossa liberdade. O poder de andar sobre
a terra dos humanos sem que morrêssemos.
Endrich sentiu um aperto no peito. Imaginou o quão seria horrível
renascer e morrer a cada setecentos anos. Ele não gostaria de passar por algo
desse tipo. Afinal, os motivos de Sheron não pareciam tão maléficos,
tampouco totalmente benevolentes.
– Bem, se estou certo – interrompeu Raffy, caminhando até Sheron –,
caso vocês entreguem a Espada, nosso mundo estará perdido. Grandes
catástrofes ocorrerão, e toda a vida em Onyx vai se perder.
– Mas é um preço a se pagar – respondeu Sheron, seca.
Mas o que adiantaria ter a vida retomada se em alguns dias ela
morresse? – pensou Endrich, pasmo.
– O problema é que já está acontecendo mudanças no clima de Onyx –
continuou a Soldada. – Aqui, nessa parte do Império de Jade, que era para ser
um verão de céu azul, está se transformando em um céu de tempestades.
– Verdade – concordou Endrich, lembrando-se da viagem até ali.
Marinny, já recuperada, seguiu até Sheron e falou disposta:
– Certo. Nós vamos pegar essa tal de Espada Elemental. Agora, se vamos
deixar vocês nos matarem, eu não sei. Isso é outra história. Se ela está
perdida, e por causa disso que o clima está mudando, nós a encontraremos e a
colocaremos em seu lugar.
Endrich franziu a testa. Nunca vira Marinny tão disposta – mesmo por
que nunca havia saído com ela numa missão tão grande. Acho que ela bateu a
cabeça com muita força.
––––
Os quatro seguiram por uma trilha entre a mata, na direção norte da ilha, local
onde, supostamente, Sheldon estaria fazendo seus planejamentos. Enquanto
caminhava, o grupo ouviu o som de arbustos se mexendo e de gravetos sendo
partidos. Endrich estava tão preocupado e distraído, que nem deu atenção a
isso. Deveria ser apenas algum animal…
Após o ataque de disposição em Marinny, decidiram seguir ao encontro
do Soldado Elementar do Fogo – como Sheron descreveu Sheldon Brand.
Marinny havia desconfiado muito do jeito de Sheldon, por isso impôs aos
companheiros para que seguissem seu rastro até ele, onde poderiam
“conversar”.
– Sheldon não vai gostar nada disso – comentou Sheron.
Marinny revirou os olhos.
– Ah, por favor, ele que aguente. Vamos ver se esse homem é tão
resistente.
– Sheron, conte-me um pouco mais a respeito de Sheldon – pediu Raffy,
evitando um galho com a mão. – Eu só li algumas coisas a respeito de vocês,
mas não o suficiente para saber a respeito de suas personalidades.
Sheron hesitou. Endrich percebeu que a Soldada tinha medo de revelar a
respeito dele. Era como se ela quisesse proteger um bem precioso.
– Certo – ela começou a dizer. – Sheldon sempre foi o líder dos Soldados
Elementares, sempre muito autoritário. Mas ao mesmo tempo, ele é carinhoso
e dócil comigo. Acho que vocês puderam notar lá no Templo.
– Isso ficou bem claro para mim – concordou Marinny.
– Porém, com o tempo, principalmente depois que fomos amaldiçoados,
Sheldon começou a ficar paranoico com a possibilidade de voltarmos a ter
vidas normais – continuou ela. – Mas seria impossível, pois não sabíamos
onde a Espada Elemental estava escondida. – Sheron parecia prestes a chorar.
– Então, pouco antes da ilha morrer da última vez, há setecentos anos, um ser
maligno, Trevys, um anjo caído, esteve a sua procura e lhe indicou onde
encontrar a Espada que há tanto tempo ele procurava.
Endrich tremeu a menção do nome Trevys. Então, finalmente entrou na
conversa:
– E você sabe onde a espada está?
Sheron balançou a cabeça negativamente.
– Apenas Sheldon sabe onde procurá-la, mas ele me disse ser muito
perigoso ir à busca dela. Por isso, em forma de vingança, ele quer que você
vá encontrá-la.
– Vingança? Não estou entendendo. – Endrich ficou meio perdido na
história.
– Eu não sei muita coisa. Mas sei quem poderia lhe revelar um pouco
mais sobre a verdade.
O Guardião assentiu com a cabeça, concordando.
– Não acredito que nós não vamos ao encalço de Sheldon – protestou
Marinny. – Argh! Eu queria tanto dar uns bons tabefes nele.
Endrich revirou os olhos. Definitivamente, ela não fora com o jeito dele.
Sheron não pareceu muito feliz com o comentário da Guardiã. Por sorte
deixou isso de lado e, fungando, acenou por onde deviam seguir. Eles
viraram na direção oeste. Agora, segundo ela, eles estavam indo para o
Condado da Terra, onde o Soldado da Terra, o único com as respostas, estava
perecendo.
––––
Depois de um longo tempo de caminhada, o grupo despontou num pequeno
condado onde havia chalés e casas em ruínas e tudo estava em total silêncio.
Endrich ficou apreensivo, mas não deu atenção ao seu possível medo.
– Onde mora o Soldado da Terra? – ele indagou.
– Lá – respondeu Sheron, apontando para uma montanha além do
pequeno condado.
Em pouco tempo eles alcançaram a boca de uma caverna no meio da
montanha. O grupo estava muito cansado, mas a vista privilegiada que
tinham lá de cima compensava o esforço. A um bom passo de distância,
Endrich pôde avistar o Templo dos Mundos, sua coloração dourada reluzindo
fracamente a luz do sol, e mais ao sul pôde distinguir uma clareira em meio a
uma densa floresta. Havia alguma coisa nessa parte que deixou Endrich um
pouco alarmado.
O grupo entrou na caverna.
Quando Endrich viu um homem sentado sobre as pernas no meio da
caverna, sentiu uma imensa tristeza lhe tomar o corpo. O Soldado da Terra
possuía um olhar triste, sem rumo. Estava usando um manto sacerdotal
marrom sobre uma calça e uma simples camisa.
– Sheron? – espantou-se o Soldado, erguendo o rosto moreno para a
mulher.
– Dylan está tudo bem? – indagou Sheron, com um olhar preocupado.
Aproximando-se do amigo, agachou-se, pousou a mão em seu ombro.
Dylan desviou o olhar para os três Guardiões. Seus olhos castanho-
escuros não tinham sentimentos, e sua expressão era um tanto doentia. Sua
pele lembrava café com leite.
– Quem são eles? – quis saber ele, voltando o olhar a Soldada da Água.
– São os Guardiões Imperiais – apresentou Sheron. – Eles vieram buscar
os príncipes raptados por Sheldon.
Dylan assentiu. Havia nele algo que incomodava Endrich. Sheron o
apresentou:
– Ah, Guardiões, esse é Dylan Dunlok, o Soldado Elementar da Terra.
Endrich, Raffy e Marinny o cumprimentaram com um aceno de cabeça.
Dylan também os cumprimentou, um pouco relutante.
– O que vocês querem? – perguntou o Soldado, um tanto severo.
– Endrich, o Guardião de Diamante, precisa de sua ajuda. Ele quer saber
um pouco mais a respeito da vingança que Sheldon está tramando contra ele
– interpolou Sheron.
Dylan se pôs de pé, lentamente. Dirigiu-se até uma pedra, próxima a
entrada da caverna, e nela se sentou. O Soldado parecia absorto em seus
pensamentos. Endrich reparou que ele, de certa forma, parecia-se com Raffy
num aspecto: gostava de se sentar num canto e pensar em histórias para
contar aos outros. Porém, o Guardião não era tão moreno quanto Dylan e nem
tão vago.
– O que eu posso dizer – começou Dylan – é que Sheldon está se
envolvendo com demônios e anjos caídos. É isso o que eu sei.
Endrich não estava satisfeito. Ele olhou para Marinny, que estacou ao
seu lado. Ela parecia tão desconfiada quanto ele.
– Sei que você tem algo mais a dizer – disparou ela com um olhar
perscrutador.
O Soldado da Terra olhou de um lado a outro, procurando uma forma de
escapar deles. Mas era impossível.
– Está bem – ele retrucou, fitando os Guardiões. – Sheldon, pouco depois
que renasceu com a ilha, assim como todos nós Soldados Elementares,
encontrou-se com um demônio muito poderoso – continuou Dylan. – Este
disse a ele que o novo Guardião de Diamante havia sido encontrado. O
demônio afirmou a Sheldon que esse Guardião possuía muitas habilidades e
que, quase sem a ajuda dos outros, foi capaz de derrotar Trevys, um dos
serafins caídos mais poderosos.
Marinny olhou para Endrich um pouco consternada e cética. Endrich não
podia fazer nada a respeito do que Dylan estava contando sobre eles.
– E sobre a vingança, eu não sei nada a respeito. Isso é verdade – conclui
Dylan.
Marinny, ainda intrigada com sua história, aproximou-se do Soldado, que
estranhou a garota. Seus olhos pareciam duas bolas de jades, prontas para lhe
invadirem a alma.
– Sei que você esconde mais alguma coisa – disse Marinny num misto de
afeto e raiva.
– Como assim… – Dylan não concluiu a frase, pois Marinny tocou nele e
seus olhos se arregalaram.
Endrich, sobressaltado, não entendeu o que a Guardiã estava fazendo.
Ele olhou para Raffy, que estava com a expressão inalterada.
– O que ela está fazendo? – perguntou o Guardião de Diamante.
– Ela está usando de suas habilidades – respondeu o outro.
Fitando Marinny, tentou imaginar o que ela estava fazendo. Até então,
ele não sabia quais eram os poderes dela.
Subitamente a garota largou o braço de Dylan. O Soldado da Terra
voltou ao normal, e Marinny se voltou para Endrich e Sheron, com olhos que
indicavam suplica.
– O que você fez? – indagou Dylan, incrédulo. Arfava.
– Agora sei tudo o que você sabe – respondeu a Guardiã de Jade,
secando o suor que brotou em sua tez. Sua expressão se tornara por um
momento mais calmo e sereno.
Endrich não tirava os olhos dela. E, percebendo a indagação em seus
olhos, Marinny explica a Endrich que, ao tocar em Dylan, ela foi capaz de
captar todas as lembranças e sentimentos que ele já vivera.
– Sério? – Endrich estava boquiaberto.
– Sim, novato – confirmou Marinny, acenando com a cabeça. Não
parecia preocupada em lhe dar uma resposta cínica.
Sheron olhou para Dylan, que estava escorado na pedra que até pouco
estava sentado. O rosto dele mostrava um tipo misturado de expressões:
indignação, seriedade, medo. Tudo estava mesclado numa máscara.
– Você não tinha o direito de fazer isso comigo – protestou Dylan.
– Mas se eu não fizesse – retrucou Marinny, tranquila –, eu não teria
descoberto mais coisas a respeito de Sheldon.
– Como assim? – interveio Sheron.
Endrich viu nos olhos da Soldada da Água uma curiosidade aflorar.
Marinny se empertigou. Ela fechou os olhos em busca de uma das
lembranças de Dylan. As caretas que ela acabou fazendo seriam até
engraçadas, se não fosse pelo momento tumultuoso.
– Como vocês sabem, foi Sheldon quem raptou a princesa Blair e o
príncipe Gabrian. Ele quer usá-los para atrair Endrich e Raffy para uma
armadilha. Endrich será usado para encontrar a Espada Elemental, mas sobra
Raffy… não encontro nada nas lembranças de Dylan.
– É por que não há o que encontrar – replicou o Soldado da Terra. –
Sobre a armadilha que está sendo preparada para Raffy eu não sei de nada.
Raffy estremeceu ao lado de Endrich.
Marinny revirou os olhos. Aparentemente sua calma estava se esvaindo.
– Cale a boca – vociferou a garota. – Deixa-me ver… Sheldon não quer
apenas viver nas terras mundanas. Ele quer poder e mais poder. Quer ser um
dos futuros dominadores de Onyx ao lado de um poderoso ser. O líder de
uma ordem de seres devastadores, capaz de destruir o Universo!
Endrich sentiu um gelo percorrer a espinha e se alojar no coração.
– Ele quer o quê? – indignou-se Sheron.
Marinny voltou os olhos a Soldada.
– Ah, claro…
– Não! – berrou Dylan. – Não termine de falar!
– Conte-me. Fale tudo! – insistiu Sheron. Seu corpo tremia, o punho
fechado.
Marinny pareceu um pouco confusa. Mas, somando as circunstâncias em
que eles se encontravam, ela decidiu revelar a Soldada da Água outra coisa
que descobrira.
– Sheldon… ele não está sendo fiel com você. Ele está te traindo. O
Soldado está te usando apenas como um objeto. Ele não te ama como
imagina. Desculpe…
– Ele o quê? – berrou Sheron. Sua voz ecoou por toda a caverna. – Por
quê?
Dylan parecia desconsolado.
– Você era um peão, apenas mais uma peça no tabuleiro do jogo que
criou. Agora que ele sabe quem é Endrich graças a sua visita no Povoado
Zackiel, você é completamente descartável – concluiu a Guardiã.
O ar pareceu seco, difícil de respirar. Endrich percebeu que Sheron
perdera o chão e isso estava deixando seus poderes fora de controle. Ela
estava boquiaberta. Não conseguia entender mais nada. Parecia prestes a
explodir.
– Ele verá do que merece! – Sendo assim, a Soldada saiu correndo,
desesperada.
– Você viu o que fez? – disse Dylan a Marinny. – Você não devia…
– Você não tem que ficar me dizendo o que devo ou não fazer – estourou
Marinny. – Eu sei muito bem o que faço.
– Pois não parece.
Por uma fração de segundos, a Guardiã de Jade pareceu se culpar pelo o
que havia dito. Logo ela balançou a cabeça, limpando sua mente de tais
pensamentos. Fizera aquilo pelo bem deles – e de Sheron.
Endrich olhou para Raffy e Marinny, e, acenando para o Soldado
Elementar, eles correram ao encalço de Sheron.
Em poucos minutos eles alcançaram a Soldada. Ela havia descido para o
condado, onde estava sentada sobre um banco qualquer chorando e tremendo.
– Por que ele fez isso comigo? – perguntou ela mais a si mesma.
– Não fique assim – tentou consolar Raffy. – Pode ser que Marinny
esteja errada.
– Não, eu não estou errada – retrucou a Guardiã. – Eu sei o que vi. A não
ser que as lembranças dele estivessem erradas. Mas isso eu acho um pouco
difícil. Sheldon o visitou há alguns dias.
Raffy não sabia mais o que fazer.
Endrich que até então estava em silêncio, olhando para a floresta por
aonde chegaram ao Condado da Terra, suspirou profundamente. Algo estava
o incomodando.
– Há algo de errado aqui – ele comentou.
– Às vezes acho que você também tem as habilidades de Tannael – disse
Raffy, lembrando-se do Guardião de Esmeralda.
Endrich caminhou em direção à floresta, mas antes de chagar perto o
suficiente, uma casa ao seu lado explodiu em chamas. Ele quase caiu por
causa do susto e da movimentação do ar. De repente todas as outras casas,
que seguiam lado a lado e em paralelo, romperam-se em chamas. O fogo se
deliciava delas. Logo a floresta a frente do Guardião de Diamante também
explodiu e ele correu, juntando-se aos seus amigos novamente.
Em questão de segundos, o grupo estava rodeado por chamas.
Doze
Brincando com Fogo
Endrich tinha a sensação de estar dentro de uma fornalha – não que ele já
estivesse numa. O calor que os assolava parecia fazer seu corpo derreter igual
a gelo. Olhando para os lados, encontrou os olhos assustados de Raffy e os de
raiva de Marinny.
Mas o Guardião de Diamante pôde perceber algo que Marinny não
queria demonstrar: assim como Raffy, ela estava passando mal, causado pelo
excesso de calor a que eles estavam sendo expostos. Porém Sheron não
parecia nem um pouco mau, e Endrich também não. Estava disposto a
descobrir do que se tratava aquilo. Era como se sua força de vontade o
protegesse.
Ele podia ver nos olhos da Soldada da Água que ela sabia de onde
vinham todas aquelas chamas, e quem a causara. Ela olhava firme para frente,
parecendo disposta a atravessar aquela imensa parede de fogo.
– O que é isso? – perguntou Endrich, um pouco ofegante.
– Sheldon – respondeu Sheron, pouco mais que um sussurro. Suas
lágrimas haviam secado. Isso respondia muita coisa. Endrich concluiu que
toda aquela chama estava sendo produzida pelo Soldado do Fogo.
Endrich volveu para Raffy e Marinny. Os dois já estavam se apoiando
nos joelhos para não desabarem de uma vez. E, concluindo, o Guardião de
Diamante percebeu que seria o próximo a desfalecer assim como os amigos.
Não teria forças para aguentar muito mais. Começava a sentir o corpo secar
como fruta ao sol.
– Sheron? – Ele olhou para a mulher. Ela havia fechado os olhos; estava
se concentrando em algo.
Endrich olhou para as chamas e seu coração quase parou. Percebeu que a
parede de fogo lambia algumas árvores sem dó, produzindo o ruído de
madeira estalando e que se aproximava rapidamente. Em questão de minutos
os alcançaria, e com certeza o estrago não seria pequeno.
Contudo, logo pôde ouvir o que parecia o barulho de ondas marinhas, e,
subitamente, uma explosão de água rompe entre a floresta, atingindo as
labaredas. Para Endrich era assustador ver tanta água andando entre o fogo
como se possuísse vida própria. Olhando para a Soldada da Água, tão
absolvida e séria, ele deduziu que a massa líquida estava sendo manipulada
por ela. Quanto poder!
– Rápido! Vocês precisam correr! – gritou Sheron, acima do barulho da
água.
Lentamente a temperatura parecia baixar no ambiente, e não demorou pra
que Endrich puxasse Raffy e Marinny pelos braços. Enquanto se
aproximavam da floresta, Endrich sentiu o cheiro da maresia. Era água do
mar. Como Sheron conseguiu trazer a água do mar até nós? – perguntou-se o
Guardião.
Porém, quando os três estavam quase chegando à entrada da mata, a
parede de chamas se reergueu, impedindo a passagem do grupo. Eles se
voltaram para Sheron, que parecia atônita e muito cansada – suor escorria por
seu semblante.
– Não há como passar! – exclamou Marinny, recuperando-se, ainda com
pouco fôlego.
Endrich não sabia mais o que fazer. Será que agora seria só parar e
esperar a morte chegar? Não, devia haver alguma forma deles se salvarem.
Ele só não imaginava como, já que o fogo antes apagado retornara a vida
num passe de mágica.
– Sheldon! – esgoelou-se a Soldada da Água. – Sheldon, eu sei que você
está aqui, desgraça!
Endrich até achou que a Soldada não iria se aguentar e entraria chamas à
dentro. Mas em vez disso, ela permaneceu estacada em seu lugar, com a
expressão sólida. Parecia uma máscara de ódio e desprezo. Ela estava
transformando seu cansaço em pura raiva.
De repente, a muralha de fogo se rompe, surgindo à silhueta de um
homem. Ele era alto, forte e bem vestido. Seus cabelos castanho-
avermelhados se fundiam ao fogo de intenso vermelho.
– Olá, minha querida – disse Sheldon Brand, desdenhoso.
Endrich deu uma olhada para os dois Guardiões, que pareciam suar até
os ossos – assim como ele, percebeu. Voltando-se para Sheron, teve a
impressão de que ela iria se jogar contra Sheldon de unhas e dentes. Este não
parava de fitá-la com um sorriso nos lábios. Não sabia se era de falsidade ou
pura diversão. O calor o estava deixando lento.
Sheldon se aproximou de braços estendidos.
– Você me traiu! – cuspiu Sheron, dando um passo para trás.
– Não… Eu só não confiei totalmente em você – respondeu Sheldon,
calmamente. – Você é muito emotiva, eu não poderia confiar totalmente
meus ideais. Se abrisse a boca, meus planos estariam perdidos!
Não suportando mais, Sheron se jogou contra o Soldado; não aguentava
mais olhar para seu rosto. Ela soqueou seu peito, mas foi como se suas forças
estivessem sumindo, e, quando estava sucumbindo, Sheldon agarrou seus
pulsos e a jogou contra o chão.
– Você é desprezível – xingou ele, a voz controlada.
Raffy, quase não aguentando o peso do próprio corpo, dirigiu-se até
Sheron e a ajudou a ficar de pé. Ela estava pálida, com as mãos trêmulas, os
cabelos grudando no rosto suado.
Endrich olhou em volta, e viu que toda a água salgada havia sumido.
Provavelmente voltara para o mar.
– Com licença, mas isso não se faz com uma donzela – falou Raffy a
Sheldon.
– Cale a boca, verme – depreciou o Soldado. – Não é por que você é um
Guardião Imperial que acha que pode impor algum tipo de autoridade. Nós,
Soldados Elementares, viemos primeiro do que vocês, e temos todo o direito
de mandar neste mundo.
Raffy se calou instantaneamente com a autoridade agressiva imposta na
voz de Sheldon.
– Ei, vamos com calma – interveio Endrich, a respiração pesada. – Deve
haver uma explicação para tudo que está acontecendo.
– Claro que há – respondeu Sheldon, com escárnio.
– Então explique – intrometeu-se a Soldada da Água. – Eu quero ouvir
tudo o que você tem a falar. Sei que mentiu!
Sheldon não desfez seu sorriso irônico. Porém, uma sombra de dúvida
atravessou seu rosto, fazendo-o hesitar. O que estaria passando em sua
mente? Será que Raffy consegue ouvir o que ele pensa? – ponderou o
Guardião de Diamante.
Após um minuto de puro silêncio, Sheron o quebra, sibilando:
– Endrich, saia da minha frente – ordenou. – Já que ele não quer falar, eu
irei tirar a verdade dele.
Endrich só percebeu que estava no meio do caminho quando ela falou.
Aproveitou isso e não permitiu que Sheron passasse; ele estava com medo de
que Sheldon fizesse mais alguma coisa contra ela. Sheron enrubesceu de
raiva. Ela bufava.
O Soldado desfez seu falso sorriso. Sua expressão ficou sombria; seus
olhos voltados para Endrich. O Guardião de Diamante percebeu que não
havia sentimento algum ali. Parecia frio e calculista.
Subitamente, uma visão veio aos olhos de Endrich. Diferente de tudo que
já vira. Não havia luz, nem sons, nem pessoas. Não existia ar. Estava
banhado pela escuridão.
Quando seus sentidos voltaram ao normal, Endrich sentiu uma grande
mão tomar-lhe o pescoço. Sheldon estava com uma das mãos lhe sufocando.
O Guardião arregalou os olhos, enquanto era erguido do chão. Como alguém
podia ser tão forte? O homem estudava-o atenciosamente, enquanto Raffy se
armava.
– Você não ouviu o que ela disse? – perguntou Sheldon, referindo-se ao
que Sheron havia ordenado a Endrich. – É para você sair da frente.
Endrich tentou se desvencilhar, mas estava numa situação difícil.
Sheldon era muito forte, e ele não conseguia alcançar as flechas em sua
aljava. O Guardião se debateu, mas de nada adiantava. Deu uma olhadela de
canto para Raffy, que já estava empunhando o Sabre em forma de espada.
– Nem tente – disse Sheldon. – Ou esse seu amiguinho Guardião irá virar
churrasco.
Raffy hesitou. Ele não poderia se arriscar, caso contrário poderia levar
Endrich à morte. Mas Marinny, ao contrário dele, não titubeou um momento
se quer.
– Ei! – exclamou ela, atingindo Sheldon na nuca com o cabo de sua
lança, levando-o ao chão, consigo Endrich, que se estapeou enquanto era
esmagado contra o solo.
Endrich achou que iria morrer esgoelado, mas, quando menos esperou,
uma força invisível tomou conta de seu corpo, fazendo-o se levantar.
Sheldon, que a todo custo tentava segurá-lo, não deteve a nova força, e
acabou tendo sua mão solta do pescoço dele. Sua expressão era de
incredulidade.
– Você se acha tão forte assim? – resmungou Sheldon, ficando de pé e
agarrando Endrich novamente. Agora ainda mais forte.
– Eu posso não ser mais forte, mas com certeza mais esperto.
Endrich se lembrou de um momento em sua vida, que acontecera há
pouco tempo, quando ele se dirigia para o Império de Cristal para salvar seu
mundo das garras de Trevys. A cena lhe veio à cabeça como uma facada
momentânea. Fantasmas, uma intensa luz… Raffy!
– Raffy! – gritou Endrich. – Sheldon precisa de luz!
No exato momento Raffy entendeu o que Endrich quis lhe dizer.
– Sheldon, essa é pra você! – berrou o Guardião de Cristal. – Lys
Beskyttelse! – De repente, após ele girar a espada uma vez no ar, uma imensa
faixa de luz esbranquiçada se dirigiu ao encontro do Soldado, acertando-o em
cheio.
Endrich, que ainda estava sob os poderes do Soldado do Fogo, se soltou
assim que o poder se expandiu, ofuscando seus olhos momentaneamente.
Quando a luz cessou, Endrich se viu sentado no chão com as vistas
ardendo e o pescoço ardendo. Ele nunca se sentira tão mal em uma única vez.
Sua cabeça rodopiava, mas aos poucos voltou à consciência normal.
– Você está bem? – perguntou Raffy, agachado ao seu lado.
– Ah, sim. Obrigado.
Ele se pôs de pé, olhando para onde Sheldon estava há alguns momentos.
Sorte que ele se foi embora – pensou ele, não encontrando o Soldado em
parte alguma. Apesar do positivismo, não compreendia como sumira tão
rapidamente. Endrich então percebeu que Raffy vasculhava o local. O que ele
tanto olhava?
– O que você está procurando, Raffy?
O Guardião de Cristal não respondeu no momento.
– Marinny… Ela sumiu! – exclamou por fim.
– Como assim? – Endrich estava incrédulo. Levantou-se de um salto.
Olhando em volta percebeu ser verdade. Estava tão atônito que não sentira
sua falta.
– Marinny sumiu. Marinny!
Sentiu o coração congelar.
– Sheldon deve tê-la levado – explicou Sheron, pondo-se de pé. –
Perdoe-me. Tudo isso é por minha causa.
Endrich viu quando uma lágrima escorreu pela face da mulher. Ela
parecia, mesmo, muito machucada pela traição de Sheldon. E pior: sentia-se
culpada por algo que não tinha total culpa. Afinal, ela fora manipulada pelo
Soldado.
– Não fique assim, Sheron – falou Raffy, tentando acalmar mais a si do
que a Soldada. – Nós vamos dar um jeito de enfrentar Sheldon, derrotá-lo e
salvar o príncipe e a princesa. Certo, Endrich?
O Guardião de Diamante não respondeu de imediato. Ele fitava Raffy,
pensando se apenas eles três seriam capazes de derrotar alguém tão forte
quanto Sheldon. O Guardião de Cristal deveria ter captado seus pensamentos,
pois, por um momento, pareceu tão incerto quanto ele.
– É, acho que iremos conseguir derrotá-lo – respondeu Endrich,
finalmente, sem muita convicção.
Sheron secou as lágrimas.
– Sim, acho que podemos derrotá-lo – confirmou com tom vingativo. –
Só precisaremos de mais ajuda. Está na hora de vocês conhecerem Poliana
Winster, a Soldada do Ar.
Treze
O Confronto de Marinny
Antes que Endrich continuasse até o Templo dos Mundos, Dylan o chamou
para dar algumas dicas. O Soldado mencionara qual porta deveria tomar para
encontrar o portal principal, o qual apostava onde poderia se encontrar a
Espada. Ele assentiu e rapidamente seguiu para a construção.
Agora, o Guardião de Diamante estava na entrada da pirâmide
escalonada. Subitamente, a ilha inteira tremeu. Não tenho muito tempo –
lembrou-se Endrich. Dylan também mencionara para ser rápido; a ilha iria
submergir ao pôr do sol. Olhando para a Estrela de Fogo, o Guardião
concluiu que teria apenas metade de uma tarde para encontrar a Espada.
Endrich seguiu por um corredor estreito – muito mais do que aquele que
seguira ao chegar ao Templo dos Mundos na primeira vez. Nas paredes ao
seu redor, o Guardião podia ver mais um pedacinho da história contada há
centenas e milhares de anos, quando a Ilha Elementar era um lugar tranquilo.
Endrich não conseguia entender muita coisa, mas ele distinguiu os quatro
Soldados Elementares com seus povos, em cada canto da ilha, vivendo em
harmonia. Quem sabe um dia eles voltem a viver como antes – pensou.
Mas nem tudo volta a ser como nos tempos de outrora. O passado é
passado, e não pode ser modificado. Esse pensamento ecoou por sua mente
por um bom tempo.
Endrich chega ao lugar que Dylan lhe dissera. Estava no final do
corredor, e ali não havia mais nada a não ser pelo o que parecia ser uma
grande porta de pedra. No meio da rocha havia um desenho representando os
quatro elementos da ilha: fogo, água, terra e ar. O Guardião olhou em volta
da porta, procurando por alguma inscrição em outra língua, que poderia ser a
forma de abrir a porta. Mas não havia nada.
O Guardião deu as costas para o portal. Estaria tudo acabado? Não, não
poderia estar. Mas como abriria algo mágico que nem inscrições mágicas
possuíam? Endrich vasculhou a cabeça em busca de mais alguma informação
que Dylan tenha lhe dado.
– Ao chegar à porta apenas diga o nome dos quatro condados da ilha –
dissera Dylan. – Pense na Espada e diga uma frase.
– Mas que frase? – perguntara Endrich.
– Você saberá na hora. Agora corra!
Pensando intensamente na Espada, e sem muita certeza, Endrich
arriscou:
– Fogo, água, terra, ar! – falara no antigo idioma.
Nada acontecera. Qual seria a frase que Dylan mencionara? Forçou a
mente.
– Entre o nascimento e a morte, abra-te para um novo mundo.
De imediato nada aconteceu. O Guardião começou a perder as
esperanças, quando, de repente, a rocha se partiu. O desenho gravado na
rocha se dividiu em quatro. Toda a área da porta a sua frente estalou, e ruiu; o
resto da parede foi tragado por uma luz que vinha do outro lado. Por reflexo,
Endrich protegeu os olhos, e, quando a luz repentina tornou-se fraca, abriu os
olhos e pôde ver uma bela paisagem.
Do outro lado da porta, havia um campo verde, cercado de árvores.
Parecia um lugar desértico, inabitado. Então, um pouco relutante, o Guardião
atravessou a divisão entre o seu mundo e o outro. Pousou no que parecia ser
um penhasco. Estava ensolarado, e Endrich pôde sentir o calor lhe envolver.
Olhou em volta. Será mesmo que a Espada está a… – Quando Endrich ia
concluir seu pensamento, interrompeu-se ao avistar o que procurava. Ele
sorriu. A Espada Elemental estava fixada numa larga rocha pontuda, na beira
do precipício. Começou a correr até ela, quando um grande rugido tomou
conta do ambiente. Era tão alto e assustador, que ele achou que seus ouvidos
explodiriam. O Guardião correu os olhos de um lado para o outro, e
novamente se pôde ouvir o rugido. Endrich olhou para trás, arrependendo-se
logo depois. Não sabia dizer se era um animal ou um monstro. Nunca vira
nada parecido na vida.
O ser de característica reptiliana rugiu novamente. Endrich se encolheu,
não deu um passo sequer. Fitou a fera, que devia ser umas três vezes maior
que ele. Seus olhos eram amarelados com duas fendas negras cortando-os ao
meio, possuía duas grandes fileiras de dentes, mas seus braços eram curtos;
sendo insuficiente para alcançar alguém ou qualquer outra coisa no chão.
Porém, para Endrich, somente os dentes pontiagudos já eram mais que
suficientes para lhe destroçar.
O Guardião deu um passo atrás. Ele não podia sentir medo, mas não teve
tanta certeza logo depois que quebrou um galho sob seus pés. O animal lhe
olhou com olhos famintos e investiu com a mandíbula arregaçada. Sem muito
que fazer, Endrich se joga para a direita, rolando alguns passos. A fera deu
uma bocada no ar vazio.
Sacou uma flecha de sua aljava. Usar as setas seria sua única esperança
caso quisesse retardar o ser gigante ou até mesmo matá-lo. Sem hesitar, o
arco com suas hastes abertas, tencionou a corda ao máximo, a flecha no
lugar. O animal investiu contra ele novamente. O Guardião a liberou,
deixando a seta de ponta larga voar em direção à cabeça da fera.
Endrich rolou para a direita novamente quando o réptil passou correndo
por ele. Ainda estava de pé com a flecha cravada entre seus olhos. O ser
guinchava de dor e ódio. Ele sacou outra flecha e, vendo a transformação da
mesma, por meio do poder do Arco, retesou a corda e disparou a nova seta,
ao mesmo tempo em que o animal deu os primeiros passos.
A flecha se alojou no coração da fera. Endrich se aproximou do réptil
tombado, que deu um último suspiro e se calou.
Caminhou até a Espada fincada na rocha e, contando com muita força,
retirou a lâmina encravada. Percebeu, à luz do sol, que a lâmina não possuía
uma única cor, mas sim um misto de tons, imitando um arco-íris. Além disso,
possuía garras que saltavam da base da lâmina. Era uma arma de guerra. Por
um momento, gostaria de descobrir a história daquela relíquia.
A única coisa que Endrich devia fazer naquele instante, era voltar até o
altar e entregar a Espada Elemental a Sheldon e ao demônio. Ao mesmo
tempo sabia que não devia fazer isso, pois poderia acarretar na destruição de
toda Onyx! Porém, era a única forma de salvar as vidas de Luany, Blair,
Gabrian e Marinny. Valeria a pena sacrificar o mundo para salvar a vida
daqueles que mais ama?
Sem mais delongas, Endrich voltou pelo caminho que seguira até a
Espada, e, respirando fundo, atravessou o portal que o levaria a seu mundo.
Na cabeça, um conflito se formara: afinal, não estaria fazendo o mesmo que
Sheldon?
––––
Enquanto isso, Raffy e Sheron fitavam Sheldon, que empunhava a faca que o
demônio usara para ameaçar Luany contra o pescoço de Marinny. Esta gritou
para Raffy lhe tirar dali, mas o Guardião nada pôde fazer, a não ser ter a
incrível sensação de formigamento nos braços após ou vir sua voz. Dylan
fitava Marinny com olhos curiosos, procurando uma solução.
– Como você imaginou que eu descobrira sobre seu plano? – perguntou a
Guardiã de Jade a Sheldon, tentando soar tranquila.
Sheldon riu irônico.
– Simples – respondeu ele –, já ouvisse algo chamado seguir? É… eu os
segui quando foram ao Condado da Terra em busca de Dylan. Seu amigo
Endrich, que neste momento deve estar ganhando uma bela surpresa do meu
parceiro demônio, que foi matá-lo, ouviu algo na mata enquanto eu os seguia.
Mas pelo visto não dissera nada.
Um rápido silêncio reinou no ar.
– Bois bem – continuou o Soldado –, enquanto você absorvia as
informações da mente de Dylan aquele… FILHO DA MÃE… – gritou em
direção ao Soldado da Terra – eu estava lá o tempo todo, observando-os
enquanto você contava tudo. Eu estive pensando em matar Dylan, mas mudei
de ideia e resolvi te raptar para torturar um pouco e ameaçar ainda mais
nossos queridos amigos Endrich e Raffy.
Marinny revirou os olhos. A vontade dela era de socar a cara do infame,
até que ele expelisse sangue. Entretanto, não imaginava como poderiam
afetar o Guardião de Cristal. Ou sei?
– Mas você é muito ruim mesmo – comentou Marinny. – Como é que
você foi capaz de trair seus amigos, sua família!
– Eu não tenho família! – berrou Sheldon, mostrando sua ira. – Podemos
ter sidos gerados pelas mesmas pessoas, mas a Natureza nos fez opostos uns
aos outros. Além do mais, perdi minha “família” assim que meu pai nos
expulsou de casa.
Se ele tocar um dedo nela, juro que o mato – a mente de Raffy disparava.
– Precisamos fazer alguma coisa – cochichou aos Soldados da Água e da
Terra. – Temos que tirá-lo de perto dos herdeiros e de Marinny.
– É. Mas não se esqueça de… Luany? É, Luany. Caso contrário, Endrich
não o perdoará – respondeu Sheron.
Raffy assentiu, sentindo mais uma vez o impulso de deixar qualquer
coisa relacionada ao Guardião de Diamante para trás. Mexeu a cabeça. De
onde vêm esses pensamentos?! De repente, escuta algo mais em sua mente.
Parecia ser uma voz, meio falhada. Era um novo pensamento. Olhou para
Dylan, que assentiu com a cabeça. O Guardião ouviu o pensamento:
Você pode chamar a atenção dele – disse Dylan. Chame-o e eu cuido do
resto. Vou tentar afastá-lo dos detentos, enquanto você corre e tira a
princesa e o príncipe das correntes. Entendido?
Assentiu levemente.
– Ei, Sheldon! – chamou Raffy. – Oh, idiota! – O Guardião não gostava
muito de xingar as pessoas, por achar desrespeitoso demais, porém a situação
exigia um pouco mais de ignorância. Ele percebeu que Sheldon ficou
perigosamente irado, mas quando se é um Guardião o perigo anda junto dele.
O Soldado do Fogo desvia a atenção de Marinny e se volta para Raffy,
bufando. Neste instante, Dylan aproveitou o momento e atacou.
A terra tremeu tanto, que Sheldon se viu caído no chão ao lado de Luany,
que gritou de medo. O tremor não cessou enquanto o altar não rachou ao
meio, afastando Sheldon de Luany. A camponesa até se sentiu mais tranquila,
todavia a situação permaneceu praticamente a mesma; o Soldado do Fogo
estava ao lado de Marinny, preparando-se para se colocar de pé.
O Guardião de Cristal foi rápido e se impeliu contra Sheldon, após subir
o lance de escadas rapidamente. O Soldado rolou para o lado, quase caindo
junto dele no fosso recém-aberto. Pondo-se de pé, revigorado, ergueu o
infame e o jogou aos pés da Guardiã de Jade.
Desembainha o Sabre de Cristal, transformando-a numa lâmina longa,
com um simples movimento giratório. Sheron subiu o altar, aproximando-se
a passadas lentas. Por onde passava, a umidade do ar se erguia em gotículas
de água que giravam no ar. Seu olhar era ameaçador – queimava mais que o
de Sheldon. O Soldado do Fogo se pôs de pé, sorrindo para ela; e a Soldada
retribuiu o sorriso.
– Você vai morrer! – falou Sheldon, ameaçador.
– Eu sei. E em setecentos anos vou renascer de novo – respondeu
Sheron, seca. O orvalho se adensou a sua volta, transformando-se em
pequenas partículas congeladas.
Sheldon grunhiu. E avançou contra a Soldada da Água.
Instintivamente, Sheron se esquivou do ataque, girando para o lado.
Encontrou-se ombro a ombro com Raffy, e, ao Soldado do Fogo se voltar
contra ela novamente, puxou o Sabre de suas mãos e a penetrou no atacante,
atravessando-o completamente. A Soldada olhou a ponta vermelha da lâmina
se projetando do outro lado do corpo do homem; nem ela conseguia crer no
que fizera. Mas era necessário; ela precisava. Agora se sentiria vingada e
totalmente livre.
– Você e Marinny ainda sofrerão – resfolegou o Soldado, rindo. Sangue
escorria entre lábios. – Ele não se esqueceu de sua promessa. Além disso,
Marinny não conseguirá manter seu segredo por muito mais tempo.
Assustado, engoliu em seco. Como Sheldon poderia saber de tudo isso?
Sheron pisou em seu peito e puxou a lâmina. Sheldon arfa uma última
vez, o pavor o abraça, então desaba sem vida. A Soldada analisou o corpo por
um momento. Suspirou ruidosamente. Estava acabado. Ao menos pelos
próximos setecentos anos.
– Desculpe por isso – disse ela, trêmula, entregando a espada a Raffy.
– Tudo bem – assentiu ele um tanto irônico. – Só terei que limpar o
sangue de um cara que tentou nos queimar vivos e que era um mentiroso
desgraçado, nada mais.
Sheron se permitiu rir um pouco. Finalmente poderia esbanjar de um
sorriso alegre.
Raffy arrebentou as correntes que prendiam Marinny com sua arma. O
primeiro ato da jovem foi lhe abraçar. Permitiu que poucas lágrimas
escorressem contra o peito largo do rapaz.
– Obrigada! – exclamou ela. – Eu achei que iria morrer!
– Shh, agora está tudo bem – apaziguou.
– Ei! Tirem-me daqui! – exigiu Luany. Sentia que iria perder os punhos
caso ficasse mais um pouco naquele estado.
Dylan se aproximou dela e, sem precisar de força, arrebentou as
correntes que a prendiam utilizando as mãos nuas. Agora a camponesa se
sentia parcialmente aliviada. Parcialmente…
– Cadê o Endrich? – quis saber ela em desespero.
– Neste momento já deve estar com a Espada Elemental em mãos. Posso
sentir suas vibrações – respondeu Dylan, taciturno.
– Eu também – concordou Sheron.
Após Raffy quebrar as correntes que prendiam a princesa Blair e o
príncipe Gabrian, que estavam exaustos, precisando ser carregados pelos
Soldados, o grupo desceu do altar e entrou na mata. Seguiam para a clareira
central da ilha.
– Você acha que Endrich ainda está vivo? – indagou Blair a Luany,
preocupada.
– Eu espero que sim – respondeu ela, com o coração apertado. – Eu
espero que sim.
––––
Endrich arrastava a Espada Elemental pelo corredor que o levaria ao hall de
entrada do templo. Sentia-se extremamente cansado… E com razão. Afinal,
lutara com Sheldon e uma fera de outro mundo do dobro de seu tamanho. A
Espada era pesada, o que não ajudava, e por isso mal conseguia sustentá-la no
ar.
Devo ou não devo entregar a Espada? Já estava ficando louco – de novo.
Ao chegar ao hall de entrada, seus pensamentos foram afastados
rapidamente. Ele parou abruptamente. O coração bateu mais rápido, o frio lhe
percorreu a espinha, como se dedos congelados tamborilassem em cada uma
de suas vértebras.
– Quem diria? Você conseguiu mesmo pegar a Espada – disse o
demônio, que quase matara Marinny.
– É isso aqui que você quer? – Endrich ergueu a ponta da lâmina, logo a
deixando bater no chão novamente.
O demônio assentiu.
– Claro. E você fez tudo certinho.
– Como vou saber se meus amigos estão libertos? Porque só irei lhe
entregar a Espada caso eles estejam todos bem.
A capa negra do demônio oscilou como se tivesse vida própria. Ele
sorriu. Por um ínfimo momento, aquilo o lembrou de Trevys. Retorquiu o
pensamento. Não entraria em desespero agora; recusava-se a passar por isso.
– Você não está em condições de exigir nada, lembra? Mas não se
preocupe. Seus amigos estão ótimos, já que mataram o imprestável do
Sheldon.
Endrich se retesou. Seria verdade o que o homem de negro falara? Não
tinha certeza, mas não poderia perder mais tempo. Olhou para o sol através
da entrada do templo. A Estrela de Fogo estava quase morrendo, e não teria
mais chances de tentar qualquer coisa caso a ilha afundasse com ele nela.
– Bem – continuou o demônio em tom altivo –, admiro sua coragem e
sua boa educação. Você é obediente, pelo que vejo, e serviu a mim, que sou
superior, com total disciplina. Tal como gosto!
Endrich se anojou das palavras do ser.
– Mas agora, seja obediente mais uma vez e me entregue a Espada.
Então seria apenas isso? Se entregasse a arma para o demônio Onyx se
perderia. Caso não o fizesse, seus amigos ficariam em perigo. Não sabia o
que mais daquela ilha. Entretanto, hesitando por um momento, o Guardião
negou com a cabeça.
– Não vou lhe entregar nada – decidiu.
– Como assim! – vociferou o demônio, os dentes amostra. Eram todos
pontiagudos e amarelados. – Você acha que pode se igualar a mim? – As
mãos dele se torceram, transformando-se em garras. Os olhos negros se
tornaram injetados de vermelho. As veias de seu pescoço saltaram, pulsando
intensamente.
– Não estou me igualando a ninguém – respondeu Endrich, recobrando o
vigor. – Mas apenas não permitirei que meu mundo seja destruído por um
demônio.
Quando respondeu, a voz do demônio havia se transformado num misto
de duas vozes roucas e turbulentas.
– Primeiro: não sou um demônio qualquer, sou Maligno, o braço direito
do próprio Treva. Segundo: você acha que tudo isto é para mim? Eu sou
apenas um soldado leal, que está seguindo ordens superiores, meu caro
Guardião. Não pense que existem apenas anjos e demônios vivendo por entre
os mundos e suas dimensões. Você não tem noção do poder superior
existente sobre sua cabeça e em seu próprio coração. Espere até o dia em que
os deuses se rebelarem! – Pausou e concluiu: – Seu destino neste momento
foi encontrar a Espada, meu caro, e se, por algum motivo do Universo, não o
fizesse, teria eu de matar os herdeiros. Um sacrifício humano seria o
suficiente para me ligar a arma dos anjos e logo teria poder para abrir uma
passagem entre Onyx e o Reino dos Mortos. Interessante, não?
Endrich fechou a expressão, mas seu interior era uma mistura de raiva,
medo e apreensão. Não sabia se acreditava no demônio ou se simplesmente
ignorava cada palavra que ele dissera. Porém, não conseguia simplesmente
desacreditar naquilo. A recordação do primeiro sonho com Hamiro veio à
tona, reforçando a ideia: “pode ter certeza de que você passará por grandes
provações. Afinal, Treva está se fortalecendo e pretende retornar”. Ele não
teve tempo para absorver tudo, porque o demônio o atacou.
Voar contra uma parede não estava nos planos de Endrich. Mas o ser das
trevas fora tão rápido, que ele mal teve tempo para respirar. O Guardião se
encontrava pressionado contra a parede de pedra maciça por um demônio, os
pulmões afetados, sem ar.
– Você não conseguirá me matar! – exclamou Endrich, os olhos fixos
nos de Maligno.
– Por que você acha isso? – perguntou o demônio. Ele cravou as unhas
da mão esquerda entre o ombro direito e o pescoço do Guardião. O gritou
ecoou por todo o salão. – Você se acha especial para não morrer, hein? Eu
não sei por que tanto interesse dele por você, mas… – O demônio suspirou. –
Não posso lhe matar sem saber de uma coisa.
Endrich cuspiu xingamentos por causa da dor que sentia. As garras de
Maligno pareciam lhe queimar não só a pele, mas também a alma. Ele
respirou fundo, tentando esquecer a dor. Pensar em algo bom era uma
escapatória, mas nada chegava a sua mente.
– Na verdade – continuou o inimigo –, eu tenho uma proposta para lhe
fazer. Diferente do que estavas achando, isso não é um tipo de vingança. Não
gostaria de sentir a ira dele. Meu mestre o quer como aliado. Quem sabe se
você se juntasse a ele… Meu senhor iria adorar ter sua companhia, e você
poderia ser muito poderoso, ter riquezas inimagináveis, ser mais que o
Magno! – riu. – Então, o que achas?
Endrich pensou. Ele não gostara nada da proposta, e ao mesmo tempo
gostara. Riquezas inimagináveis? Tentou se imaginar ao lado de Luany, seu
grande amor. Ter uma vida inteira ao seu lado, sem maiores preocupações, e
a custo de quê? Não! Nem fazia ideia de quem se tratava o senhor do
demônio (ou fazia?); não podia se aliar as forças das trevas. Tinha que
resistir!
– Então? – repetiu o demônio. As garras estavam mais fundas na carne
de Endrich, fazendo-o se contorcer de dor.
O Guardião respondeu entredentes:
– Eu quero que você vá para o Reino dos Mortos, e que nunca mais saia
de lá. Jamais me aliarei a seres da sua raça. Vocês são maus e cruéis. Vocês
não deviam existir!
O demônio sorriu. Parecia se divertir com a situação.
– Na verdade existimos justamente por causa dos humanos. Somos os
restos de suas vidas desgraçadas, suas injúrias e pecados. Somos a sobra, o
que não se aproveita de uma pessoa. Acima de tudo, nós somos as almas
corrompidas. – Por fim, concluiu com um riso: – Bem, aceitarei sua resposta
como um não. Ótimo, agora posso lhe matar!
Vinte
O Poder da Espada
– Entenda uma coisa, Raffy – disse Endrich –, eu estou com uma louca
vontade de matar este pássaro. – Ele se referia ao papagaio do capitão
Vorion, dono do Princesa de Jade. O animal acabara de deixar seus dejetos
no ombro do Guardião, que bufava de raiva. Desde que o grupo havia saído
da Ilha Elementar, o papagaio estava lhe incomodando.
Raffy riu.
– Endrich, isto é uma demonstração de carinho – respondeu ele.
Endrich parou de limpar o ombro; olhou incrédulo para o parceiro.
– Demonstração de carinho? Se isso é demonstração de carinho… Olhe,
eu não quero nem ver quando ele estiver de mal comigo.
Após dois dias de navegação, o Princesa de Jade atracou nas terras do
Império de Jade, onde Marinny desembarcou. Estando ainda muito debilitada
por causa da luta com o demônio, a Guardiã iria ser acompanhada até o
Povoado Imperial Ennel por um dos tripulantes do navio, onde poderia se
tratar e recuperar.
– Você ficará bem? – indagou Raffy, tocando seu rosto.
– Ah, claro, né! – respondeu Marinny, bruscamente. Porém,
levianamente, estava se entregando ao toque do Guardião de Cristal. Havia
algo nos dois que deixava Endrich inquieto.
– Certo, só fiz-lhe uma pergunta. – Ele se aproximou e beijou sua fronte.
Ela avermelhou. – Espero lhe ver em pouco tempo.
Marinny assentiu um pouco desconcertada – percebera Endrich. Certo,
aparentemente ela está gamada por ele. Seria essa a resposta de sua
inquietação? Poderia ser por isso que tentavam atingir Raffy de alguma forma
na ilha? A Guardiã se despediu dele e seguiu seu caminho.
– Você acha? – perguntou Raffy, captando os pensamentos do amigo.
Ele fitava Marinny se afastar.
– Não duvido.
– Acho que não – retrucou Raffy, inseguro. – Bem, isso não tem grande
importância…
– Eu acho que tem sim – replicou Endrich, sorridente.
De repente Marinny se virou para os Guardiões.
– Ei, novato, se cuida! – gritou ela.
– Pode deixar comigo! – respondeu Endrich, esboçando um leve sorriso.
Pela primeira vez, percebia que talvez pudesse criar um vínculo de
amizade com a Guardiã de Jade. Talvez.
Assim, logo após o navio ser carregado de provisões, o Sr. Vorion deu
partida no Princesa de Jade novamente. Agora seguindo rumo às terras do
centro e do leste.
––––
O navio fez uma parada no Império de Cristal, onde Raffy e o príncipe
Gabrian desembarcaram. O Guardião parecia tão feliz quanto o herdeiro por
estarem em casa.
– Obrigado, Endrich, por ter salvado o príncipe Gabrian – agradeceu
Raffy.
– Eu? Eu não fiz nada, pelo que sei quem salvou Gabrian foi você e não
eu – respondeu Endrich. – Eu somente impedi que o demônio tomasse posse
da Espada.
– E isso não é a mesma coisa que salvar o príncipe?
Endrich negou com a cabeça dizendo um “Não” bem longo.
– Como não? – disse Raffy. – Primeiro, se você não tivesse retomado a
Espada Elemental, provavelmente, neste instante, estaríamos todos mortos;
incluindo o príncipe e a princesa. Então, isso não é a mesma coisa que tê-lo
salvado?
Endrich apenas chacoalhou a cabeça de um lado para o outro.
– Raffy. – Endrich mudou de assunto, ficando tenso. Puxou-o para mais
perto. – Seria possível o Senhor das Trevas retornar?
O Guardião de Cristal pareceu assustado.
– Por que a pergunta? Aqueles fantasmas, no Condado do Ar, lhe
assustaram?
Endrich assentiu.
– É, pode-se dizer que sim. Eu só quero saber o que, ou quem, é. Como
seria sua volta.
– Bem, agora não tenho muito que lhe dizer, pois estou sem meus livros,
e não sei muita coisa a seu respeito. Ninguém sabe. Mas o que posso lhe
adiantar é que, se ele existir, é toda a matéria obscura existente no Universo,
desde sentimentos ruins aos próprios demônios – explicou Raffy. –
Antigamente se dizia que tal ser era o motivo para a existência de demônios e
anjos caídos. Mas não se sabe ao certo. Porém, se ele realmente existir, é
melhor torcermos para que jamais tente se reerguer!
Endrich assentiu. Tentaria saber mais a respeito desse ser, entretanto
pediu a Raffy que também pesquisasse. Afinal, ele era o melhor nisso. O
Guardião de Cristal concordou.
Os dois se despediram trocando um aperto de mãos e um abraço. Endrich
apertou a mão do príncipe Gabrian e fez uma leve mesura. Este lhe agradeceu
profundamente, dizendo que esperaria lhe encontrar outra vez para poderem
desfrutar de algumas taças de vinho. O Guardião de Diamante riu, assentindo.
E, voltando ao navio e para o lado da princesa Blair e de Luany, novamente
partiram.
––––
– Terra à vista! – gritou um observador do cesto da gávea.
– É o Império de Diamante! Estamos em casa! – exclamou a princesa
Blair. Ela ainda usava o mesmo vestido de quando fora raptada (que agora
estava sujo e esfarrapado). Pela primeira vez, em tempos, ela iria se sentir
muito bem sob os cuidados da mãe superprotetora.
Luany também estava ansiosa, e não via mais o tempo passar para
encontrar seus pais. Queria abraçá-los.
– Estamos chegando! – avisou o Sr. Vorion.
Em questão de algumas horas, perto do meio-dia, Endrich, Luany e Blair
estavam novamente pisando em terra firme. Haviam desembarcado em terras
de um reino pouco movimentado, e que disponibilizara cavalaria real, junto
de uma pequena tropa de cavaleiros, que os acompanhariam até o Povoado
Imperial Crystan. Despediram-se do capitão e dos tripulantes do Princesa de
Jade, que logo ao anoitecer deu meia-volta e partiu para seus domínios.
O caminho até às terras do Povoado Imperial fora tranquila, não havendo
nenhum imprevisto, nem ataque, e, em poucos dias, o grupo chegou aos
portões principais do Povoado Imperial. As sentinelas que guardavam a
Grande Muralha os receberam com congratulações, batendo palmas e
venerando o Guardião e a princesa. No fim, até Luany recebeu atenção, o que
realmente não estava em seus planos.
Enquanto seguiam pela estrada que levaria ao castelo, Blair, usando de
seus poderes de princesa, ordenou a Endrich:
– Vá para casa. Você e Luany também precisam de descanso. Você foi
bravo e corajoso. Cumpriu com seu dever como Guardião, Endrich. Agora
leve nossa amiga para casa, ela necessita de repouso. No fim, ela foi uma das
que mais sofreram.
– Mas princesa, seu pai… – Endrich foi interrompido.
– Meu pai irá gostar de saber que você salvou o mundo mais uma vez,
Endrich. E acho que não há mal em você ter uma noite de descanso, longe de
problemas. – A princesa sorriu.
Endrich assentiu.
– Obrigado, princesa.
– Obrigada – disse Luany. Que assim como Endrich, fez uma mesura a
Blair.
De uma coisa ela tinha certeza: Blair não era mais aquela garotinha com
quem brincava. A princesa estava amadurecendo e em pouco se tornaria uma
mulher de respeito.
––––
No dia seguinte, Endrich Ragrson fora convocado a participar de uma
premiação honrosa no Salão do Trono, pelo Imperador Asriel Crystan – este
que estava mais que sorridente pelo retorno da filha. Ao contrário de antes,
não estava se afundando em mágoas e tristezas. Endrich fora premiado com
uma medalha de ouro e diamante pela sua honra, coragem e bravura.
– Nós, Imperador e Imperatriz Crystan, como pais e monarcas, estamos
muito felizes e agradecidos pela sua força e resistência, e por trazer sã e salva
nossa filha, a princesa e herdeira do trono de Diamante de volta as suas terras
– dissera Asriel, sorridente. – Sei que isso não é o suficiente para mostrar
nossa gratidão e por ter enfrentado tantos perigos, mas imagino que os anjos
encontrarão uma forma certa de premiá-lo.
Ninguém no salão objetou, nem mesmo se prontificou em concordar. De
alguma forma, todos sentiram a atmosfera que os cercava se tornando
diferente, mais densa.
A premiação acontecera após o meio-dia, e todos os trabalhadores
haviam sido dispensados para assistir ao discurso do Imperador Crystan.
Logo depois um banquete fora servido aos nobres no palácio e um festival em
comemoração, montado nas mediações do castelo para os camponeses.
Endrich foi dispensado por alguns dias, e naquela tarde, ele e Luany
seguiram para as colinas além do castelo imperial. Era um lugar calmo, onde
soprava um vento um tanto gélido de inverno, mas ótimo para passar o tempo
conversando com um amigo. De onde estavam, podiam ver as pessoas
bebendo, rindo e se divertindo.
– É verdade que o mundo iria ser destruído caso você não encontrasse a
espada mágica? – indagou Luany, de súbito. De repente o ar não era mais de
alegria.
– A Espada Elemental?
– Ah, não sei, é uma espada mágica. Deve ser.
Endrich riu.
– Sim, infelizmente o mundo seria destruído caso eu não encontrasse a
Espada Elemental – enfatizou.
– Nossa, era uma grande responsabilidade então…
Endrich assentiu.
– Grande até demais.
Ele olhava para o céu que começava a se tornar noturno. A lua Cahim
brilhando intensamente. Vestia um casaco de pele, assim como Luany, que os
protegia das baixas temperaturas do momento.
– Meu casamento foi adiado – comentou Luany.
– Foi? – arqueou uma sobrancelha.
– Aham. Meu pai diz que eu preciso descansar a mente, pois o que eu
vivi pode ser traumatizante.
– Traumatizante?
– É. Não sei o que houve com o Sr. MacAran. Meu pai deve ter achado
que eu ia ficar louca por ter sido acorrentada e ameaçada de morte por um
demônio que segurava uma faca rente a meu pescoço – disse em tom
sarcástico.
Endrich riu. Como ela conseguia levar as coisas na brincadeira?
– Este seria um bom motivo para ficar traumatizada, não seria? –
perguntou ele.
Luany pensou e assentiu. Levou a mão ao pescoço, onde um curativo
havia sido feito por Raffy assim que embarcaram no navio há alguns dias.
– Seria, mas sou forte o suficiente para aguentar esse tipo de coisa –
disse olhado para o alto. – Gosto tanto das luas – mencionou ao avistar
Cahim se erguendo no céu. – Sinto-me como se fosse ligada a elas.
– Hm, elas são lindas mesmo – concordou o Guardião.
Ela se voltou para ele e perguntou curiosa:
– Endrich, você acha mesmo que Maligno teria me matado se você não
tivesse feito o que ele pediu?
Surpreendeu-se.
– Eu realmente não sei. Entretanto, há uma coisa que ele falou sobre
você que me deixa preocupado.
– Também estou – suspira. – Bem, ao menos para alguma coisa pareço
servir.
Endrich fez uma careta.
– Não fale assim. Se você é importante para as trevas, provavelmente não
é de uma boa forma.
Ela meneia a cabeça e se ajeita.
Após um momento de silêncio, Luany tornou a falar:
– É… – suspirou. – Há uma coisa infeliz em tudo isso, Endrich.
– E o que é?
– Estarei me casando na próxima primavera.
Endrich sentiu o frio lhe tomar posse. Mais uma vez o assunto
casamento. Será que não teria como adiá-lo? Sentiu-se novamente como se
fosse perder algo precioso; o que era verdade: sua melhor amiga. O Guardião
tinha um medo horrível de deixar Luany, e isto o atormentava. Ele não queria
admitir, mas estava apaixonado por ela.
– Você irá usar aquele mesmo vestido de noiva? – quis saber Endrich,
tentando não soar trêmulo.
– O que você me viu usando? Sim! Foi muito caro para conseguir, e não
quero desperdiçá-lo. Afinal, ele é lindo também.
– Está certo – engoliu em seco.
– Não se preocupe com isso agora, Endrich – pediu ela. – Eu nunca vou
deixá-lo. Você me prometeu a mesma coisa, lembra? Até o dia que tiver de
acontecer, estarei “livre” para lhe acompanhar – e então se inclinou e o
beijou. Algo simples e ao mesmo tempo tão implosivo.
Endrich não estava tão feliz como gostaria de estar. Sabia que perderia
Luany na primavera, e não era apenas isso que o desconcertava. Ainda existia
o mistério sobre o Senhor das Trevas; estaria mesmo retornando? Também
queria descobrir de quem era a voz que falava em sua mente; aquela que lhe
dava conselhos em momentos de dificuldade. E o porquê tinha sonhos com
seu pai de sangue, Hamiro Ragrson, que nunca conhecera; por que agora?
O Guardião Imperial tinha esperança de responder a todas as suas
questões. E correria atrás das respostas. Sim, tentaria desvendar tudo de
estranho que estava acontecendo ao seu redor.
E em sua vida.
Olhou para Luany e pensou num destino sem futuro. A camponesa sorriu
para ele, que retribuiu. Ela se aninhou, abraçando-o calorosamente; o
Guardião depositou-lhe um beijo no alto da cabeça. Aquele momento tão
íntimo e exclusivo deles jamais deixaria sua memória.
Enquanto fitava o castelo e o povoado, flocos de neve bailavam no céu,
caindo sobre eles.
Epílogo
Cinzas
Nestor Krísllan,
Desejo sua presença imediata nas colinas além do castelo.
O assunto é sério.
Senhora da Noite.
Suspirou com a ideia de não retornar para casa. Seu trabalho do dia já
havia findado e, o que mais queria no momento, era descansar.
A última camada de neve do inverno chegava aos joelhos de Nestor,
quase impedindo que o mesmo prosseguisse. Suas passadas eram lentas e
desgastantes. O secretário chegou a pensar em desistir. Mas se alguém
deixara um aviso em sua mesa, por que estaria brincando?
Estava sem fôlego quando chegou à colina. Não havia ninguém ali.
Inspirou o ar gélido e sentou-se, precisava recuperar o ar dos pulmões antes
de ir embora.
Engraçado essa colina não ter um nome – pensou de repente.
E era verdade. As colinas além do castelo não foram batizadas, e Nestor
achava aquilo um tanto estranho, já que era um lugar onde as pessoas do
Povoado Imperial Crystan costumavam ir para conversar ou brincar. Aquele
era o lugar do povo.
Sacudiu a cabeça e se levantou pronto para partir.
– Onde você pensa que vai?
O secretário se virou num salto, assustado. O coração a mil.
– O que…? Mas… de onde você surgiu? – indagou à mulher que se
materializara ao seu lado.
Ela era alta e robusta. Tinha expressão séria, como a de um guerreiro.
Estava vestida com uma capa negra que lhe chegava aos pés, encobrindo toda
a extensão de seu corpo. Nestor percebeu a cicatriz que descia da testa, no
canto esquerdo, e descia até o canto inferior direito em seu rosto.
Será que é alguma guerreira da tropa do Imperador Crystan? – pensou.
Sabia o quanto as mulheres de batalha eram pouco vistas.
– Ahn, no que posso ajudá-la, moça – perguntou ele.
Ela o olhou de soslaio por um momento, logo o analisando de cima a
baixo. Corou, sentindo-se avaliado como um soldado para a guerra iminente.
– Eu gostaria de falar com Nestor Krísllan. – Surpreendentemente, sua
voz era calma e doce, o que não combinava em nada com sua expressão.
– Ahn… Eu sou Nestor Krísllan. Recebi este pergaminho – disse ele,
entregando-lhe o papel enrolado.
Ela avaliou o pergaminho por um momento. Falou:
– Ah, sim. Então é você mesmo! – Voltou a enrolar o papel e o devolveu.
– Eu sou Nyx, prazer em conhecê-lo Nestor.
A mulher esticou a mão e ele a apertou, havendo uma espécie de
consentimento desconhecido entre eles.
– Bem, meu caro Krísllan, eu fiquei sabendo que esse Povoado anda bem
movimentado. É verdade?
Nestor a fitou perscrutador, franzindo a testa.
– É que algumas luas atrás a princesa fora raptada, certo? – explicou
Nyx. – E teve aquele incidente com Trevys também.
– Ah, sim! – concordou. – Mas agora está tudo em ordem. As coisas por
aqui estão se encaminhando para o lugar certo.
– Hum, entendo.
– Por que as perguntas? Você não é daqui, certo? Quer se alistar em
nossas tropas?
Ela sorriu, achando aquilo engraçado.
– Não, meu querido Nestor. – Nyx olhou para o céu, sorrindo. Já estava
anoitecendo e as luas estavam começando a brilhar. – É que, se as coisas
estão boas, vão passar a ficar terríveis. Esse Povoado será dizimado em
alguns dias.
Franziu o cenho. Do que aquela mulher estaria falando?
– O que você quer dizer com isso? – perguntou finalmente.
– Estou falando que nós vamos tomar este Povoado e o resto do Império,
meu querido. E em algumas luas tomaremos o restante do mundo. O que
acha?
Nestor, pasmado, exclamou:
– O que eu acho? Acho que você está completamente maluca! Não tá
falando coisa com coisa. Eu vou-me embora!
Quando deu as costas para Nyx, esta lhe segurou o braço firmemente. O
secretário sentiu a dor atravessar seus ossos, achou que a mulher fosse
quebrar seu braço por inteiro.
– O que está fazendo?! – gritou ele. Sua voz ecoando por toda a extensão
das colinas.
– Cale a boca, garoto! – bradou Nyx. – E agora olhe para mim!
Não resistiu à sua voz de comando. Ele se voltou para a mulher, ficando
ereto, fixando seus olhos nos dela. Nyx olhava fundo em sua alma,
hipnotizando-o. Era exatamente o que queria.
– Quando você quiser, querido – disse, olhando para o lado.
Atravessando um portal no ar, um garoto pálido e de olhos negros – que
mais parecia uma sombra viva – caminhou até ela, fazendo uma pequena
mesura.
– Como vai, senhora? – sua voz rasgava o gelo que era transportado no
ar.
– Bem, meu querido – respondeu a mulher. – Agora, se quiseres fazer as
honras…
O garoto assentiu e, sem hesitar, caminhou até Nestor, ainda imóvel, os
olhos vidrados. O demônio não parou, até tocar o secretário. Foi tudo muito
rápido. A única coisa que se pôde ver foi um leve tremeluzir na imagem de
Nestor enquanto era possuído.
Flácido, o corpo desabou na neve.
Nyx piscou, os lábios curvados.
– Agora só esperar Noméa se acostumar ao corpo humano. – Ela se
abaixou e falou no ouvido do secretário caído: – Boa sorte, meu querido.
A Senhora da Noite se distanciou e gesticulando abriu uma brecha a sua
frente. Observou o lugar uma última vez, já preparando mentalmente o
próximo passo. Satisfeita, atravessou o portal.
––––
Abriu os olhos. Estavam negros como uma noite sem estrelas.
Levantou-se, ainda se acostumando com seu novo corpo. Era estranho se
apossar de um corpo humano, ainda mais para um ser ainda novo que nunca
fizera tal coisa. Contudo, sabia o quanto aquilo que faria seria importante. O
demônio olhou para o Povoado Crystan. Deu um passo, acostumando-se ao
corpo. Seria fácil se adaptar.
Era hora de dar início aos planos de sua senhora.
O Autor
Obras:
Pesadelo Infernal
Conto de terror publicado na antologia Contos Medonhos, lançada pela
Multifoco Editora em dezembro de 2012.
O Último de Nós
O Último de Nós é um conto sobre o começo de um fim. O protagonista e
narrador é Clon Lion, o último sobrevivente do planeta Terra após catástrofes
naturais e criadas pelo próprio Homem. Perguntando-se como tudo
aconteceu, busca por respostas na maior corporação do mundo: Rubro Net.
Seu destino, Europa.
Diante de memórias perdidas, Clon terá revelações sobre o seu passado
que o levarão a um arrebatador xeque-mate.
http://goo.gl/SgjEEd
Fênix – A morte não é o fim de tudo
Um pacto. Esse foi o estopim para que a vida de quatro jovens mudasse
radicalmente. Os quatro amigos fizeram um juramento de sangue e agora
forças ocultas os perseguirão até que chegue o fim de suas vidas.
Porém, ainda há uma saída: devem seguir a luz e encontrar um homem
que se diz mago. Mas para que cheguem até ele, precisarão enfrentar dúvidas,
perdas e a própria morte.
Uma história diferente, recheada de mistério, dor e amor, com um final
inesperado.
Livro publicado exclusivamente no site Wattpad.
http://Fb.com/LivroFenix
[1]
O Templo do Universo se localiza no Reino das Montanhas, a leste do Povoado Imperial, onde todo
o povoado é cercado por uma cadeia de montanhas. É um local seguro contra ataques e extremamente
calmo.
[2]
É um dos reinos que ocupa grande área litorânea, sendo o maior deles. Sua principal fonte de renda
se dá pelo comércio de pescados – estes que são comercializados principalmente nos Impérios de Rubi
e Esmeralda.
[3]
Segundo a história, o símbolo foi adotado há cerca de 50 anos, quando o maior contrabandista já
relatado diz ter se encontrado com uma belíssima sereia, com a qual teve três filhos – chamados de Pais
do Contrabando –, que continuaram e aumentaram o grupo de contrabandistas – estes que atuam até
hoje em toda Onyx.
Table of Contents
Prólogo Rapto
Um Uma Lenda
Dois O Cavalo Alado
Três Presa por Correntes
Quatro Sheron MacWyes
Cinco A Rebelião em Etty Mallol
Seis Novo Prazo
Sete Princesa de Jade
Oito A Ilha Elementar
Nove Cobra
Dez Templo dos Mundos
Onze Um Pouco Sobre a Verdade
Doze Brincando com Fogo
Treze O Confronto de Marinny
Quatorze Lago de Gelo
Quinze A História dos Guardiões
Dezesseis O Condado Fantasma
Dezessete Revelações
Dezoito Sem Escolha
Dezenove A Proposta
Vinte O Poder da Espada
Vinte e Um Uma Profecia
Vinte e Dois De Volta Para Casa
Epílogo Cinzas