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A Espada Elemental

CRÔNICAS DE ONYX
Livro 2

Elton Moraes

Edição Digital
2014
Copyright © 2014 by Elton Moraes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização do autor.

Diagramação e capa
Elton Moraes

Imagem da capa
Dmitrijs Bindemanis – sob licença do site Shutterstock
Para Thallya Sheron, prima que ajudou a criar os Soldados.
E para Laísa Raupp, que deu vida à princesa Blair.
Porém, quanto ao valor e aos brios d’alma,
Invencíveis nós somos; dentro em breve
Recobraremos o vigor antigo,
Inda que extinta jaz a nossa glória.
Paraíso Perdido (John Milton)
Prólogo
Rapto

Haveria algo mais chato do que ficar sentada ouvindo uma velha falando e
lhe impondo ordens? A princesa Blair Crystan não sabia, mas daria tudo para
sair dali. Ela estava na sala das refeições, usava um vestido azul rendado nas
mangas longas e da cintura para baixo, com sua professora de etiqueta, a Sra.
Dambern. Esta tentava lhe ensinar sobre como se comportar durante as
refeições do dia, mas a princesa odiava isso e mal prestava atenção.
Blair não se sentia inteiramente uma princesa. Ela era muito moleca e
adorava quando, ao contrário de sua mãe, seu pai, o Imperador Asriel
Crystan, deixava-a sair para correr e brincar com as crianças camponesas do
Povoado Imperial Crystan. Ela queria se divertir. Se pudesse passaria o dia
todo correndo e se divertindo com as outras crianças. Mas isso era uma coisa
que sua mãe, a Imperatriz Kassandry Crystan, não permitia. Esta queria que
sua filha fosse uma verdadeira dama e se tornasse uma imperatriz de respeito.
E para isso, também, teria de casar.
Contudo, casamento não estava nos planos da herdeira do Império de
Diamante. Mesmo com seus dezesseis anos, a idade média de se casar. Ao
contrário de muitas garotas de sua idade, filhas de nobres, que já estavam se
casando, repudiava a ideia. Uma vez sua mãe quis lhe forçar a um casamento
com o príncipe Danniel Gwey, para formar alianças com o Império de Rubi.
Mas a princesa foi teimosa e não se casou. Como consequência, ficou de
castigo por vários dias, trancafiada nos interiores do castelo, sem ao menos
poder respirar o ar límpido da natureza.
Quando Blair achou que começaria a cochilar em cima da mesa,
enquanto a Sra. Dambern explicava como se manter numa posição ereta e
elegante, seus olhos verdes enxergaram um homem alto e corpulento que
atravessou a entrada do salão, sem ao menos bater.
– Mas o que é isso? – protestou a professora, interrompendo-se. – Eu
pedi para que não nos incomodasse. Por favor, meu caro homem, queira se
retirar. – Os olhos castanhos da velha senhora demonstravam um incrível
poder de persuasão.
O homem se parecia com uma das sentinelas do castelo, mas Blair não o
reconheceu. Apesar do olhar da professora, ele não se intimidou e lançou um
olhar fulminante em resposta. A velha pareceu se amedrontar.
– Desculpe-me, Sra. Dambern, mas o Sr. Crystan está esperando a
princesa neste exato momento no pátio central do castelo. – O olhar do
homem encontrou os verdes olhos da princesa. Pareciam brasas prontas para
queimarem.
Quando a Sra. Dambern abriu a boca para protestar, viu que Blair já
estava ao lado da sentinela, esperando segui-lo até seu pai.
– Está bem – disse a professora, revirando os olhos e percebendo que não
adiantaria em nada dizer algo contra aquele ato. – Você está dispensada, mas
só por hoje. Volte amanhã, pois teremos que recompensar o tempo perdido.
A princesa Blair assentiu, e seguiu o homem. A garota percebeu que
nunca vira aquela sentinela antes. Ele possuía cabelos castanho-ruivos e seus
olhos, com um tom avermelhado, pareciam que se incendiariam a qualquer
momento. Ele era um pouco diferente demais dos moradores do povoado.
Deu de ombros, por fim, devia ser mais um contratado de outro reino ou
império.
Quando eles chegaram ao pátio central – um espaço gramado encoberto
no meio do castelo imperial –, Blair estranhou, pois não havia ninguém ali,
exceto por ela e a sentinela.
– Ué, onde andas meu pai? – indagou a garota.
– Resolvendo uns probleminhas, e eu, outros. – Com isso o homem
agarrou a princesa por trás, passando seu braço pelo pescoço, conseguindo,
assim, imobilizá-la.
O ataque súbito a surpreendeu e arregalou os olhos, sem compreender o
que acontecia.
– Soco… – tentou gritar, mas era inútil. O homem, com uma mão livre,
pegou uma mistura de ervas no bolso e ateou fogo, produzido pela própria
palma. Transformadas em cinzas, forçou a garota aspirá-las. Ao inalar as
cinzas mornas, a princesa perdeu a consciência nos braços do desconhecido.
Estando ela desacordada, o homem pôs a garota nos ombros e esperou
alguns segundos. Logo em seguida, ouviu-se um forte assovio de vento, e,
subitamente, parte da cobertura em vidro do pátio desmoronou ao seu redor,
despistando-o magicamente. Uma forte rajada tomou conta do lugar,
cercando-os. Mas antes de ser carregado pelo vento, soltou uma pequena
placa metálica no chão. Era um broche. E logo em seguida, segurando
fortemente Blair, teve seu corpo erguido no ar e, lentamente, é carregado para
fora dali pelo vento.

Um
Uma Lenda

O vento brando e gélido do início do inverno não incomodava a Endrich


Ragrson. Porém, da sua capa já não podia dizer o mesmo que, enquanto
atravessava a ponte sobre o Rio Coronal, que dá acesso ao castelo imperial,
não parava de se remexer. Aquilo o estava irritando. Ele voltava do Reino
Oureal, levando um pergaminho-resposta de fita azul escura ao Imperador
Crystan.
Em relação ao Rei e a Rainha Oureal, eles estavam bem. Há algumas luas
eles haviam sido capturados por Trevys, o serafim caído, e tinham sido
levados para uma caverna próxima ao Reino de Ágata. Mas agora já estavam
recuperando o tempo perdido. Apesar de a rainha ter alguns surtos de histeria
às vezes.
Mesmo aparentemente contente, o Guardião se sentia sufocado pelas
próprias angústias e deveres. Há alguns dias tivera um dos poucos sonhos
sobre o futuro que o deixara inquieto. Nele estava Luany MacAran,
majestosa, brilhando a luz da lua. Entretanto havia uma sombra se erguendo
atrás dela, algo que parecia ruim, tenebroso. Endrich não gostara daquilo.
Balançou a cabeça, afastando tais pensamentos.
Como sempre, ao chegar ao castelo, Endrich foi recepcionado por Nestor
Krísllan, secretário do Imperador e noivo de sua melhor amiga. Porém,
diferente das outras vezes, o rapaz estava muito nervoso e preocupado, mal
conseguindo falar.
– O que aconteceu, Nestor? – quis saber Endrich, percebendo o estado do
secretário.
– A princesa… A princesa Blair sumiu – respondeu ele.
– Como assim?
– Inicialmente, acharam que ela estava brincando com as crianças
camponesas, como ela gosta de fazer. Mas… – Nestor engasgou. – Ao falar
com o a Sra. Dambern, ela nos disse que a princesa havia seguido uma
sentinela para o pátio central, onde, supostamente, o Imperador estaria lhe
esperando.
– Quando eu acompanhei vosso Imperador ao pátio – continuou Nestor
–, foi encontrado muito estrago. Parte do teto que encobria o lugar havia sido
levado a baixo. Só não consigo imaginar como isso tem a ver com o seu
desaparecimento.
Endrich ouvira atentamente. Mas será que estão planejando algum tipo
de guerra novamente? – perguntou-se. As coisas estavam tão boas desde que
Trevys voltara para seu exílio no Reino dos Mortos. O que será que
aconteceu?
– Endrich? – chamou uma voz forte e conhecida.
– Senhor?
O Imperador Crystan se aproximou do Mensageiro. Asriel parecia muito
cansado, como se não houvesse dormido a noite toda. Ele estava usando sua
capa azul escura e uma fina coroa de ouro com pedras de diamante. Seus
olhos verdes tinham sombras de olheiras. Demonstravam preocupação.
Com um aceno de cabeça, Endrich o seguiu até a Sala do Imperador.
Mas, para chegar até lá, foi necessário atravessar pelo pátio central, onde
Endrich viu a destruição. Grande parte do teto de vidro que antes encobria o
pátio havia cedido e estava amontoado pelo chão, formando o equivalente a
um círculo. O Mensageiro ficou imaginando o que poderia ter causado aquela
destruição.
Contudo, em meio aos destroços do teto, estava um homem magricela,
com os braços estendidos ao céu, clamando por algo que Endrich não
conseguiu entender. Ele parecia concentrado no que fazia. Logo, percebeu se
tratar de Bridian, o grão-sacerdote do império, que vivia no Templo do
[1]
Universo . Ele deve estar fazendo uma prece aos deuses para que tragam a
princesa – concluiu meio cético.
– O que você acha que pode ter causado isso? – perguntou Crystan,
parando em frente aos destroços.
– Eu não imagino senhor. Também tento entender o que aconteceu.
Procuro por uma solução em minha mente. – Endrich se sentia um pouco mal
pelo sequestro de Blair, mas não havia o que fazer. Bufou. A raiva lhe
invadia por não ter sonhado nada que pudesse ter lhe adiantado sobre o rapto.
Ultimamente seus sonhos futurísticos estavam mais fracos. E isso, de
certo modo, estava lhe incomodando, já que há algumas luas, pouco antes de
lutar contra Trevys, fora a época em que ele mais teve visões. E agora nada.
O Imperador Crystan voltou para o caminho, pesaroso, e logo depois
entrou na Sala do Imperador. Sentando-se em seu pequeno trono, Endrich
pôde perceber o quão velho estava ficando. Sua aparência estava
descaracterizando seu espírito jovial – apesar de estar com seus quarenta
anos, não mais que isso. Provavelmente casado pelas preocupações e listas de
deveres a cumprir.
Asriel contou um pouco sobre o que acontecera a Blair, mesmo que
Endrich já soubesse. E logo lhe pediu:
– Preciso que você descubra quem fez isso com minha filha. E quero que
você acabe com ele. Esse escroto deve pagar! – O sangue subiu para sua
cabeça.
Endrich nunca vira o Imperador com tanta mágoa e raiva, mas não o
culpou por isso. Ele tinha todo o dever de ficar assim.
– Senhor, como eu poderei encontrar essa pessoa? Há algum tipo de pista
ou algo parecido?
O Imperador retirou do bolso de seu colete, que vestia por baixo da capa,
um objeto metálico e pequeno. Era dourado e possuía quatro desenhos, que
pareciam ser voltados aos quatro elementos naturais: água, terra, ar e fogo. O
objeto se tratava de um broche. Crystan empurrou-o por cima da mesa.
– Será que isso serve como pista? – interpolou o Imperador.
Endrich o fitou por um momento, curioso. Pegou o objeto nas mãos e o
analisou. Ele não se lembrava de onde, mas já havia visto algo parecido com
aqueles desenhos.
– Eu tentarei fazer de tudo para descobrir mais a respeito desse objeto, e
encontrar o raptor da princesa Blair.
Crystan assentiu com o esboço de um sorriso melancólico.
– Só não peço para um bibliotecário fazer a pesquisa – explicou o
Imperador –, porque eu tenho medo ao que isso pode se referir, e não quero
que os segredos do Império sejam revelados.
– Eu lhe entendo, senhor. – Afinal, apenas os cinco Guardiões Imperiais
e os cinco Imperadores sabem todos os segredos de Onyx. Ou quase todos…
– lembrou-se que pouco sabia ainda sobre os mistérios de seu mundo.
– Agora vá, e tente descobrir o máximo possível. E se algo descobrir
venha até mim e me fale. Agora, mais do que nunca, preciso de sua ajuda,
Endrich.
O Guardião sentiu o peso nas costas aumentar. Aquela seria uma grande
missão. Caso ele não encontrasse algo parecido com aquilo e que não lhe
desse nenhum tipo de dica… Era melhor nem pensar nisso.
O também Mensageiro Imperial se pôs de pé, e, com uma mesura,
retirou-se da sala. Voltaria para casa e faria sua pesquisa. Era um caso
urgente de vida ou morte.
––––
– Aconteceu o quê com a princesa? – indagou Luany, pasmada.
Endrich só chegara à casa dos MacAran e contara para a amiga o que
acontecera no castelo imperial. Luany ficou boquiaberta ao ouvir o relato de
Endrich. Muito mais que isso, ficou preocupada. Conhecia a princesa há
alguns anos, desde que a ajudara a se levantar e limpar o vestido após cair de
um cavalo. Desde então se tornaram amigas, porém, ao chegar a
adolescência, a vida pomposa e corriqueira de Blair, o contraposto de Luany,
além de sua mãe, afastaram-nas uma da outra. A camponesa ficou pensando a
mesma coisa que o amigo: Será que alguém quer travar algum tipo de
guerra?
– E o que vai ser feito agora? – indagou Luany.
– Bem, terei de descobrir algo sobre o raptor e de onde é. Isso não vai ser
fácil. Mas terei de tentar.
– Mas, Endrich, como você fará isso? Terá de ir atrás dessa pessoa, seja
ela quem for?
– Sim, é bem provável que eu tenha que ir, sim – responde o Mensageiro.
– Espero que eu não demore a encontrar mais pistas a respeito dessa pessoa.
O imperador está muito preocupado.
Luany estava segurando o broche nas mãos. Endrich havia lhe entregado
para que desse uma olhada e para ter certeza de que nunca tivesse visto em
algum livro. A garota virava o objeto de um lado para o outro, também tendo
a impressão de que já vira aquilo antes.
– Endrich! Eu já vi isso – exclamou ela, despertando a atenção do amigo.
– Onde?
– Em um de seus livros. Acho que em um contando as histórias de Onyx.
O… – tentava se lembrar, mas sua memória lhe falhara.
Agora Endrich se lembrava de onde ele vira aqueles mesmos símbolos
desenhados no broche. Ele sabia do que Luany estava falando. Era um livro
que continha muitos contos antigos.
– Arquivos de Onyx! – completou Endrich. – É esse o nome do livro.
Dando um salto, Endrich e Luany seguiram para o quarto dele, onde se
sentaram na cama, rodeados de livros antigos e alguns novos. Por se tornar
um Guardião Imperial há pouco tempo, ele ainda havia de aprender muito
sobre o mundo em que morava – e os livros de registros era a forma mais
fácil e rápida de se ter conhecimento. Por isso, sem mais rodeios, foi em
busca do livro que teria suas respostas.
Porém, esse era justamente o livro que Endrich não estava encontrando.
Ele olhou em tudo quanto era canto de seu quarto, mas não o achou. Logo o
desespero lhe invadiu. Além de ser um livro que conta sobre tudo de Onyx,
era um livro antigo e de pouquíssimas cópias, tornando-se uma raridade.
Apenas os Guardiões Imperiais possuíam uma.
Ele passou quase toda a sua tarde em busca desse livro, mas não o
encontrou. Quando já estava perdendo as esperanças, Luany o encontrou em
meio às coisas de sua irmãzinha, Luna, a pequena arteira. Devolveu-o ao
amigo.
Endrich folheou o livro em busca de uma lenda. Até que, no meio dele,
encontrou algo parecido com as gravuras do broche. Ele pegou o objeto
metálico e pôs perto do desenho do livro. As formas ilustradas eram iguais:
uma lavareda representando o fogo, uma gota, a água; algumas linhas
curvilíneas representavam o ar, e uma montanha, a terra. Finalmente ele havia
encontrado.
– À Luzyos – abençoou Endrich, erguendo rapidamente as mãos.
– Veja. É aqui que começa – disse Luany, apontando para o título do
texto: A LENDA DA ILHA ELEMENTAR.
Endrich passou os olhos por cima do texto e começou a ler:

Há milênios um povo chamado de elementais, viveu em uma


ilha no Mar d’Oeste, no Império de Jade.
Dizem às lendas que a Ilha Elementar é o berço da
civilização onyxiana. Nela, teriam nascidos os cinco primeiros
imperadores, conhecidos de Os Cinco Grandes, estes
abençoados pelos anjos. Essa terra fora palco de inúmeras
batalhas entre espíritos celestiais, demoníacos e os próprios
habitantes locais. Sendo assim, centenas de anos após a morte
de grande parte de sua população, a ínsula fora amaldiçoada
por uma das manifestações do próprio deus das trevas.
Toda a ilha foi submersa por uma enorme onda, que levou
toda a extensão de terras para o fundo do mar. Após sua
primeira submersão, ela renasceu novamente ao completar
setecentos anos. Porém, o esconjuro afetou não apenas a Ilha
Elementar, mas também os cinco Soldados Elementares –
pessoas que tinham o dever de proteger a ilha, utilizando suas
habilidades sobre os elementos da Natureza. Desde então,
quando a ilha ressurge, suas vidas voltam esperando pelo dia
em que despertarão e sua maldição terá sido quebrada por
aquele o qual foi destinado o futuro de Onyx.

Endrich terminou de ler e ficou atônito. Se ele lesse isso algumas luas
atrás, com toda a certeza não acreditaria em nenhuma palavra daquelas. Mas
desde que sua vida começou a mudar, passou a crer em qualquer coisa que
pareça impossível de acreditar.
– Se isso for mesmo verdade, então… – Luany se interrompeu. Nem
mesmo ela estava acreditando que àquilo poderia ser verdade. Era muita coisa
para sua cabeça.
Endrich marcou a página que se tratava da Ilha Elementar com uma pena
de ganso, que repousava em meio aos seus livros. Ele gostaria de mostrar ao
Imperador.
– E o que você fará gora? – interrogou a garota.
Endrich olhou para a lua Cahim através do vidro da janela. Seu brilho
esverdeado iluminava as noites escuras e geladas do inverno.
– Hoje não há mais nada que eu possa fazer – respondeu o Mensageiro e
Guardião. – Mas, ao amanhecer, irei avisar o Imperador o que descobri e com
certeza irei ao resgate da princesa Blair.
Luany assentiu. Estava com medo de deixar o amigo partir, assim, indo
atrás de perigo. Ela sabia que Endrich já correra muitos perigos, mas nunca
imaginava que ele poderia estar passando por dificuldades. E agora era
diferente, ela sabia que o Guardião estava indo atrás de algo que poderia ser
mortal, por isso se sentia tão preocupada. Deixe de ser egoísta, Luany! –
pensava. Isso não é egoísmo… é, é…
– O que foi Luany? – indagou Endrich, tirando-a de seus devaneios.
– Oh, nada. Eu só… estou preocupada – suspirou.
– Entendo. Não precisa ficar assim. Eu ficarei bem – prometeu. Mas nem
mesmo ele tinha essa certeza. E para quebrar aquele clima tenso entre os dois,
Endrich muda totalmente de assunto. – Bom, já está na hora de irmos deitar.
Preciso descansar, amanhã será um longo dia. E por favor, não conte nada
sobre a ilha a ninguém. Certo?
Luany assentiu, resmungando sobre Endrich não confiar nela e logo
dando uma risadinha irônica. Ela se inclinou e, após dar um beijo no rosto do
amigo, saiu do quarto fechando a porta logo ao passar. O rosto do rapaz
formigava. Era uma sensação tão boa!
Suspirou. Endrich não queria deixar Luany para trás mais uma vez. Mas
ele sabia que tinha de seguir para um lugar onde nunca ouvira falar e muito
menos chegara perto. Nem ao menos tinha a certeza de que tal lugar existia!
E se realmente existisse, poderia ser muito perigoso. Não arriscaria a vida
dela.
Por fim, guardou os livros e pôs o Arco de Diamante ao lado da cama,
em cima de uma mesinha. Tocando-o, como uma forma de pedir para que
tenha uma boa noite de sono, ele se deita e dorme.
Seria mais uma noite sem sonhos.
Dois
O Cavalo Alado

Mal amanhecera e Endrich já estava de pé, disposto a ir conversar com o


Imperador Crystan. Precisava contar o que descobrira. Mas antes pudesse
seguir, Luany o interceptou na sala e o fez seguir para a cozinha Não sairia
enquanto não comece alguma coisa.
– Se você for fazer algum tipo de viagem – disse Luany, um pouco
sonolenta – me avise. Não quero ficar me preocupando com seus sumiços
repentinos.
Endrich estava sentando em frente a ela, mastigando um pão com queijo.
Ele a fitava com olhos brilhantes. Por que a vida tem de ser tão cruel com
nós, meros mortais? – pensou ele.
– Endrich? Oi…
– Ah, desculpe-me Luany. Eu estava absorto em meus pensamentos –
respondeu sem jeito. Precisava distrair a mente com outras coisas. – Mas,
respondendo a sua questão, pode deixar que eu lhe aviso caso viaje. O que é
bem provável.
– É bom mesmo – retrucou a garota, com um tom irônico, assentindo por
fim.
O Guardião apenas sacudiu a cabeça, com um leve sorriso no rosto. Nos
últimos tempos ele andava muito mais sorridente. Antes ele possuía motivos
para não o fazer, mas agora sua vida parecia estar tomando um rumo
diferente, melhor. Apesar de ainda não ter desvendando o sonho que tivera
com seu pai, ao fim do outono. E isso o incomodava. Muito mais do que não
ter sonhos.
– Bom, preciso ir – falou Endrich, terminando sua refeição. – Tenho que
noticiar o Imperador e ver o que faremos. Se vou viajar ou o quê.
Luany assentiu, mas no fundo não queria que o amigo ficasse se
arriscando tanto.
– Então está bem. Não se esqueça de me avisar – reforçou a garota. – Eu
estarei por casa, então será fácil me encontrar.
Endrich assentiu com a cabeça, e, dando um beijo afetuoso na fronte de
Luany, pegou o Arco de Diamante, que deixara pendurado em uma cadeira.
Então seguiu para o castelo imperial.

Endrich foi rapidamente recebido por Nestor, que o levou diretamente ao


encontro do Imperador Crystan.
– Com licença, senhor – disse o secretário, entrando na sala. – Endrich
chegou.
Crystan fez um movimento com as mãos, indicando para que mandasse o
Mensageiro e Guardião entrar. Não sendo mais necessária sua ajuda, Nestor
se retirou do aposento com uma leve mesura, voltando para a sua salinha,
perto da entrada do castelo.
– Sente-se, Endrich – convidou o Imperador. Hoje ele estava diferente do
dia anterior. Parecia um pouco mais renovado, usava vestimentas mais
simples, sem a sua capa: uma camisa verde musgo e um colete de couro. –
Então, encontraste algo? – Foi logo indagando, ansioso.
Endrich revirou sua bolsa ao lado do corpo. De dentro retirou o livro
Arquivos de Onyx, e abriu na página marcada com a pena. Mostrou para o
Imperador.
– A única pista que consegui com aquele broche – explicou Endrich –,
foi sobre uma antiga lenda, a respeito de uma ilha que renasce e morre a cada
700 anos. Não sei se é o suficiente, mas é o que eu consegui.
– Entendo – comentou Crystan, enquanto lia alguns trechos do livro. – E
por que você acha que tem relação com o desaparecimento de Blair?
Endrich foi pego de surpresa. Não tinha exata certeza do que iria falar.
Mas, sem se dar por vencido, tenta explicar para seu senhor a ideia que
acabou lhe surgindo:
– Bom, eu não tenho muitas pistas, a não ser pelo broche. Mas, se é que
isso seja possível – analisou o Mensageiro, coçando a lateral do rosto –, acho
que pode haver relação com algum dos Soldados Elementares, que, segundo a
história, também foram amaldiçoados.
Crystan franziu o cenho enquanto pensava na possibilidade. Seria
possível isso acontecer? Não havia muita lógica nisso.
– Não estou lhe entendendo muito bem, Endrich – questionou o
Imperador. – Você está querendo dizer que um dos Soldados renascidos
estivera aqui na noite anterior, em busca da minha querida filha?
– É a conclusão em que eu cheguei senhor. – Endrich não estava muito
seguro sobre sua tese. – Caso contrário, o que se pode dizer?
O Imperador Crystan parecia meio confuso. Endrich tentava entender seu
senhor; devia ser muito difícil ter a filha levada por Soldados mortos-vivos.
Ele mesmo mal conseguia crer nas próprias palavras.
– Bem, se não há outra explicação – acedeu Crystan –, eu estarei de
acordo com seu argumento. Porém, quero que você faça uma coisa. Como
você se tornara o Guardião de Diamante, tem o dever de acatar as minhas
ordens. E mais do que nunca, preciso que você as siga.
– Sim, senhor – respondeu Endrich, já prevendo o que Asriel pediria.
– Então, preciso que você faça a viagem para a Ilha Elementar e resgate a
minha preciosa filha. Não vejo o momento de poder tocá-la novamente, ver
que ela está bem – devaneou Crystan, deixando uma lágrima escorrer.
Endrich sentiu um aperto no coração. Não parecia mais ser Asriel
Crystan, um homem forte e monarca de um vasto império, em sua frente. O
Imperador estava triste, abatido, pelo rapto de sua filha. E assim
permaneceria enquanto Endrich não a encontrasse, sabia disso.
– Senhor, tenha certeza que eu encontrarei a princesa Blair – prometeu o
Guardião. – E usarei de todas as minhas forças para que isso aconteça. Não
voltarei enquanto ela não estiver comigo, sob minha proteção.
Um leve sorriso transpareceu na face do Imperador. Endrich mergulhara,
mesmo sem querer, o monarca em um lago de esperança. E se não cumprisse
com sua promessa, poderia, além de perder a confiança de Crystan,
mergulhá-lo num poço sem fundo, de largas tristezas e maus sentimentos.
Endrich tentava nem pensar no que o Imperador faria caso sua filha não fosse
trazida de volta. O peso sobre seus ombros se tornara maior do que
imaginava.
– Agora, Guardião, você deve voltar para casa e se arrumar. Leve tudo
que acha que for necessário, e esteja de volta logo após o meio-dia. Irei
liberar para você um dos meus cavalos mais velozes e especiais –
confidenciou Crystan.
– Um da Tropa Especial? – indagou Endrich.
O Imperador assentiu.
– Agora, vá. Quero você bem disposto para a enorme jornada.
Com uma leve mesura, Endrich se retirou do aposento e seguiu para a
casa dos MacAran. Ele estava muito curioso para ver que tipo de cavalo
poderia ser. Por mais que não tivesse tempo para ficar com os animais, era
um amante dos cavalos, e toda vez que possuía um curto tempo, ele ia até o
estábulo para ajudar o senhor Hammer, um velho baixinho e rechonchudo,
com os olhos afundados no rosto. Endrich tinha essa divida com o tratador.
Há algum tempo ele abandonara seu cavalo favorito para poder seguir para a
Dimensão da Luz, onde descobriu um pouco sobre suas origens. Por sorte –
ou por Luzyos – o animal voltara para o Povoado Crystan.
Antes de chegar à casa da amiga Luany, Endrich passou na tenda do Sr.
Krísllan, onde comprou um larên – fruta típica do verão, mas que ainda havia
em pouquíssimas unidades para a venda.
– Muito trabalho, senhor Guardião de Diamante? – perguntou Natan,
filho do dono da barraca.
– Ah, até que nos últimos dias está bem folgado meu trabalho. Ao
contrário do início do meu novo serviço – respondeu Endrich ao garoto. Ele
era o irmão mais novo de Nestor e era um ótimo rapaz. Era tão trabalhador
quanto o resto da família.
– E a princesa Blair? Como será que ela está?
– Pretendo descobrir isso em poucos dias. – Como as notícias se
espalham rápido!
Natan, aparentemente, não entendera o que Endrich quisera lhe dizer. Por
isso ficou com uma expressão de dúvida. E o Mensageiro se submeteu a
explicar.
– É que eu pretendo ir à busca da princesa, ainda nessa tarde.
– Mas é perigoso, certo?
– Sim, mas eu me arrisco toda vez que saio para ir entregar as
correspondências para o Imperador. E dessa vez será por uma boa causa.
Natan assentiu. E, após o garoto desejar-lhe boa-sorte, Endrich volta ao
seu caminho principal.
––––
Quando atravessou a porta de casa, trancou a respiração ao se deparar com
uma belíssima visão. Luany trajava um longo vestido branco-perolado. Este
era rendado e possuía desenhos majestosos que se estendiam pelo busto,
pelas mangas três quartos e chegava à saia, que cobria seus pés descalços. Ela
parecia uma verdadeira princesa. Melhor, parecia uma deusa.
– Uau… – suspirou o rapaz, fazendo-a se assustar.
– Ai, Endrich, que susto! – retrucou a garota, pondo a mão sobre o peito.
– Você quer me matar do coração?
– Desculpe, eu… – Endrich estava sem palavras para explicar qualquer
coisa que lhe viesse à mente. A beleza da amiga era tão estonteante, que
Endrich não conseguia suprir a realidade de que era mesmo Luany dentro
daquele vestido.
Uma senhora, que estava acertando as medidas do vestido, olhou para
Endrich com um olhar fulminante, algo parecido com “saia daqui, é proibido
olhar para a noiva”. Mas Endrich não se deu por vencido e se aproximou da
jovem, pegando uma das mãos dela entre as suas.
– Você está linda, Luany – sorriu. – Nem parece que faz tão pouco tempo
em que éramos mais novos e costumávamos correr e brincar nas colinas.
Luany enrubesceu. Era difícil deixá-la sem fala, e aquela foi uma das
ocasiões. Sua cabeça dava mil voltas. Não, eu não posso – disse a si mesma.
Será que estou sentindo algo por… Endrich? Não! Remexeu-se e a senhora
deu uma alfinetada em sua cintura. Ela deu um pulinho, mas logo se
aquietou. A senhora só faltava lhe bater com aquele olhar selvagem.
– Endrich, eu… Ai cheira um casco de cavalo! – respondeu ela, sem
encontrar o que dizer. Mas Endrich não deixou de rir pelo seu jeito
dissimulado. Ela desviou o olhar, mas também não aguentou e riu.
Pelo os dois, ficariam ali rindo o restante do dia. Mas Endrich se lembrou
de sua missão, e Luany não se esquecera de que devia terminar as medidas de
seu vestido; o mesmo que usaria para se casar com Nestor Krísllan. Revirou
os olhos com a lembrança. Por que mesmo se casaria com o secretário? Ah,
claro, lembrou-se: Nestor estava interessado nela desde muitos anos e
prometeu trabalhar e juntar uma pequena riqueza para realizar o casório com
ela. Como seu pai concordava com a ideia de que ela já estava na idade de se
casar, nada melhor que fosse com alguém que gostava dela e que lhe daria
uma boa vida. Luany não pensava assim.
Endrich, por fim, contou a ela e sua mãe, a senhora Amélia MacAran –
que estava ali próxima – que iria viajar em busca da princesa Blair. Ele
afirmou para Luany, que estava indo para a tal ilha que eles pesquisaram no
dia anterior.
– Sério?! – deixou escapar Luany.
– Sim – confidenciou Endrich. – Irei logo após o meio-dia e pretendo
demorar a voltar. É só um aviso, certo? Espero estar de volta em poucos dias,
mas tenho um mau pressentimento do que está por vir.
E era verdade. Há pouco, logo que saiu do castelo imperial, Endrich
começou a sentir um aperto no peito. Ele já sentira isso antes. Esse aperto
significava que algo de ruim estava para acontecer, e que, provavelmente,
seria revelado em seus sonhos. Como já acontecera antes. Esperava que assim
fosse.
– Com licença – disse Endrich. – Vou arrumar minhas coisas.
Luany assentiu, enquanto Amélia e a senhora de olhos fulminantes
tagarelavam sobre o quanto ela estava linda.
Quando entrou no quarto, Endrich tinha a sensação de que ficaria um
bom tempo sem ver seu lar. Ele não gostava daquela sensação, mas não podia
fazer nada. Suspirou resignado.
Dando um descanso para o braço esquerdo, Endrich retirou o Arco de
Diamante, pousando-o em cima da cama. Também retirou o leve peso da
aljava da cintura. Pousando a bolsa na cama, o Mensageiro pegou um casaco
e algumas camisas do guarda-roupa. Sem se esquecer de umas duas calças.
Apesar de que, provavelmente, no Império de Jade não estivesse fazendo frio
como no Império de Diamante, ele decidiu levar consigo um gibão e sua capa
com capuz.
Naquela época, como era inverno no Império de Diamante e na metade
leste do Império de Cristal era outono, era verão no lado oeste do Império de
Cristal e primavera no Império de Jade. Os únicos dois Impérios que não
possuíam verão de verdade eram o Império de Rubi e o Império de
Esmeralda, que ficavam nos polos extremos do mundo.
Estando pronto para partir, Endrich se dirige para a cozinha, onde Luany
já está despida do vestido de casamento e usando um dos seus vestidos
surrados. Ela estava ajudando a mãe no preparo da mesa para a refeição do
meio-dia.
– Você já está pronto? – quis saber Luany.
– Ah, sim. Só estou esperando a comida – replicou o Guardião.
– Por Luzyos. Esse rapaz precisa aprender a fazer alguma coisa da vida.
– Você não reclame, porque sou o Guardião de Diamante, viu?
– Cheira – respondeu a garota com seu típico “pedido” para se calar. –
Grande coisa ser um Guardião. Aposto que eu seria uma grande Guardiã.
Muito melhor que você.
Endrich sacudiu a cabeça. Preferiu não retrucar, caso contrário a
discussão iria longe.
– Vocês dois, parem de discutir – interferiu a mãe de Luany,
calmamente. – A refeição está pronta. Vamos?
Luany estranhou. Seu pai ainda não havia chegado.
– E o papai?
– Ah, ele não vai vir almoçar hoje. Ele tem muita coisa para resolver –
respondeu a Sra. MacAran. – Acho que as sementes de inverno não chegaram
ainda.
A jovem assentiu. Voltou-se para Endrich e sorriu. O Guardião
mergulhou num vácuo de pensamentos, seus olhos presos em sua beleza. O
bater de palmas de Amélia o retirou dos devaneios. Voltou a respirar.
Então, com a comida na mesa, eles três almoçaram.
––––
Endrich já estava se aproximando do castelo, quando avistou o Imperador
Crystan saindo pelo portal principal do mesmo. Ele trajava a mesma
vestimenta da manhã e sua fina coroa pendia em sua cabeça. Os olhos
ansiosos estavam cabisbaixos.
O Guardião seguiu até seu senhor e, juntos, seguiram para os estábulos.
– Então Endrich, pronto para ver o cavalo da Tropa Especial? – indagou
Crystan, pouco animado.
– Óbvio. Estou muito entusiasmado e curioso – respondeu o rapaz. – Mas
o que há de tão especial nesse animal?
– Você verá – concluiu o Imperador.
O estábulo ficava afastado do meio comercial, próximo às plantações do
palácio. Era todo construído em grossas tábuas do mais puro carvalho.
Crystan e Endrich atravessaram a grande porta e seguiram, até se depararem
com o Sr. Hammer, que estava tratando de um dos cavalos de um camponês.
Ao ver a figura do monarca, o trabalhador fez uma mesura e, com um aceno
do Imperador, ele os seguiu.
A cocheira era dividida em vários quartos, cerca de cinco em cada lado,
onde os animais possuíam espaço suficiente para dormir e descansar. Mas
Endrich não estava preocupado com isso agora.
– Senhor, nós chegamos – anunciou o Sr. Hammer.
– Endrich prepara-se – disse Crystan.
O Mensageiro se empertigou, e, respirando fundo, ele acompanhou o
Imperador e o Sr. Hammer para dentro da área do tal cavalo especial. Porém,
quando viu o animal, todo o ar de seus pulmões saiu em um único suspiro.
Era inacreditável aos seus olhos. Definitivamente, ele passara a acreditar em
tudo que lhe contassem.
Não era um simples cavalo das Tropas Especiais, como Endrich
imaginara, mas sim era um belo alazão dotados de asas. Asas! Ele mal
conseguia falar. Por isso o Imperador fizera questão de fazer tanto mistério.
– Incrível! – exclamou Endrich, por fim. – Isso… isso…
– Isso é um cavalo alado. Uma rara espécie de equino, encontrado
somente nas Ilhas Metruskas. E você sabe sobre as muitas lendas que
envolvem aquela colônia de ilhas, não sabe?
Endrich sabia pouca coisa a respeito das Ilhas Metruskas, mas pelo que
entendia, aquele era um lugar infestado de assombrações e, também, morada
das bruxas – das quais nunca mais gostaria de ver. Sim, ele já vira uma, certa
vez, e desejava não encontrar outra tão logo. Nem por isso deixou de se
maravilhar por aquele cavalo. Porém não podia se esquecer de sua missão.
– Você vai voar até o Império de Cristal e pedirá a ajuda de Raffy, certo
– ordenou Crystan. – Ele deve saber muita coisa a respeito da Ilha Elementar,
e isso poderá lhe ajudar pela busca de minha filha.
Endrich assentiu. Ele tinha de ajudar, e era isso que iria fazer.
– Está certo, senhor.
O Sr. Hammer deu uma rápida aula à Endrich de como “cavalgar” num
cavalo alado. Estando bem preparado, o Mensageiro acompanhou o
Imperador até o campo, onde montou no lombo do animal.
– Espero que ele saiba voar muito bem – brincou Endrich. O animal
resfolegou em resposta.
– Ah, sim, ele é bem treinado – confirmou Crystan. – Agora vá e, por
favor, traga minha filha de volta. Sua voz estava embargada.
O Guardião viu a súplica nos olhos verdes do Imperador e assentiu,
apertando a mão do monarca. Incitando o cavalo alado, cavalgou para o céu
aberto. Lá de cima, ele conseguia ver parte das fronteiras do Povoado
Imperial Crystan. Só esperava que ninguém o visse, mas não foi bem isso que
aconteceu. Várias pessoas pararam de fazer o que estavam fazendo para ver o
cavalo voador. Sem dar muita importância, Endrich e o cavalo continuaram
seu trajeto.
Agora o rapaz tinha uma verdadeira missão como Guardião Imperial. E
havia de cumpri-la por completo, trazendo de volta a filha do Imperador
Crystan – a princesa Blair, herdeira do trono do Império de Diamante.
Três
Presa por Correntes

Ela despertou do que parecia ser um pesadelo. Sua cabeça doía. Suas pernas
doíam. Seus pulsos doíam. Foi quando percebeu que quase todos os seus
membros estavam presos por correntes.
Seus pulsos e tornozelos haviam sido fortemente apertados por largas
correntes de ferro negro, um tipo de metal originário da Zona Oeste e Central:
aço-minério.
Tentou gritar, mas estava quase sem voz; devia ser por causa do longo
tempo que ficou submetida à friagem, ou algo do tipo. Mas não estava frio
ali. O ambiente estava morno e iluminado – da forma que ela preferia.
Blair, que até então estava jogada no chão, levantou-se com um pouco de
dificuldade; as correntes que lhe prendia os braços e pernas estavam fixadas
em um poste. Ela olhou em volta. A princesa nunca vira um lugar daqueles
antes em sua vida de preparações e viagens com a Imperatriz, mas já estava
se acostumando com ele. Estava numa espécie de altar, a poucos metros do
chão de terra gramada. Logo a frente se estendia uma vasta floresta, onde ela
pôde distinguir uma forma de pedra em meio ao verde que não fazia parte de
seu tempo atual. Algo que se parecia com um templo antigo.
– Gostando da paisagem? – ironizou um homem alto e de cabelos
castanho-ruivos. Era seu raptor.
– O que… você quer? – conseguiu perguntar a princesa. Ela tremia de
medo e mal conseguia sentir as mãos, que já estava formigando pelo longo
tempo presas.
– Eu? Bem, não sou apenas eu, mas ele também quer. Ele quer ainda
muito mais que eu. Mas isso não vem ao caso agora – respondeu.
Blair piscou. Há cinco dias estava sem se alimentar direito e sem uma
boa água. Naquele massacrado momento, a princesa desejaria estar presa
dentro do castelo, sob a custódia de sua mãe, a estar presa àquela indesejável
situação.
– Eu… quero ir… embora! – exclamou ela. – Seu nojento!
– Como é? – O homem de olhos flamejantes deu um tabefe no rosto da
princesa, fazendo-a cair novamente. Aquilo estava se tornando rotineiro. Ele
precisava parar de fazer isso, mas não conseguia se controlar. Ou você para
de enfrentá-lo, ou terá o rosto transformado em uma bola, de tão inchado
que ficará – criticou-se.
O raptor se agachou. Pôs a mão no queixo da garota e puxou seu rosto
magrinho para próximo do dele. Beijando as duas faces da princesa, o
homem se afastou. Pensamento ardilosos pareciam percorrer sua mente. Dava
para perceber em seu olhar que ela o desprezava.
– Está bem, então – disse ele –, irei lhe trazer um pouco de água e
algumas frutas e raízes para você comer. Isso deve ser o suficiente para
passar uns dois dias.
– Mas e Gabrian? – a princesa indagou.
Ele deu de ombros. Assim, retirou-se, deixando a garota novamente.
A princesa Blair olhou para o lado, onde havia um trono, que seu raptor
costumava sentar nos fins de tarde, e, além dele, viu a figura distorcida de um
garoto de mais ou menos a sua idade. Estava desacordado. Sabia que se
tratava de Gabrian Zackiel, filho do Imperador de Cristal. O que ele está
fazendo aqui? Porém, também não tinha ideia de o porquê de estar ali.
Blair olhou para o horizonte, a Estrela de Fogo estava prestes a morrer ao
oeste. Ela não conseguia pensar em nada para escapar, então torcia para que
alguém viesse ao seu encontro para que lhe tirasse dali o quanto antes. Estava
desesperada.
E, enquanto vislumbrava os raios de sol sobre sua pele clara, fantasiou
em sua mente a chegada de uma tropa de guerreiros armados para lhes
salvarem.
––––
O raptor seguiu para um templo antigo, em meio à densa floresta. Ali, outro
homem estaria lhe esperando.
Quando o raptor entrou no templo, lá estava ele, vestindo um casaco,
sobretudo preto, que chegava perto dos pés.
– Então, tudo está saindo como o planejado? – perguntou o de preto.
– Ah, sim. A princesa e o príncipe já estão aqui.
– Ótimo, caso eles não venham em até sete dias, assassine-os, mas não
permita que suas almas escapem de suas mãos. Caso o plano não saia como
planejado, precisaremos utilizar de outras formas de conseguir a Espada, e
suas almas serão uma boa fonte de poder para isso acontecer.
O raptor assentiu.
– Pode deixar comigo, senhor. Mas tenho certeza de que eles irão
aparecer.
– Mas caso os Guardiões não apareçam, você sabe o que fazer. – O
homem de reto deu um passo a trás e se dissipou numa fumaça negra.
Agora sozinho, o raptor precisava concluir mais uma parte do plano. Por
isso seguiu para o pequeno Condado da Terra.
Quatro
Sheron MacWyes

Fazia cinco dias que Endrich saíra em viagem quando, em uma noite fria e
estrelada, sua mente o levou a um lugar que ele nunca imaginara antes.

Ele estava numa espécie de salão ou coisa parecida. Era alto e caberiam
uns cinco dele um sobre o outro. As paredes eram feitas de blocos de pedra
amarelada, com traços e desenhos de pessoas e de uma ilha em alto mar.
Naquele salão estava uma mulher de cabelos ruivos e olhos tão azuis
quanto o mar. Sua expressão não era muito animadora, apesar de esboçar
um leve sorriso.
– Quem é você? – pergunta Endrich, aproximando-se da mulher.
Ela não respondeu. Logo as imagens foram se dissipando. O sonho
estava mudando, dando origem a novas formas e imagens. Quando a imagem
se fixou, Endrich levou um grande susto. À sua frente havia uma gigantesca
cobra. Não dava para se ver muito dela, mas pelos seus olhos amarelos, o
Guardião pôde sentir um grande medo.
E no simples passo que o rapaz deu para trás, o imenso réptil se jogou
contra ele de boca aberta, e então tudo escureceu.
––––
Despertou com um pulo. Ele secou a testa, que pingava em suor, com a
manga de sua camisa. Quando eu pensei em sonhar – disse a si mesmo,
irônico –, pensei em sonhar algo bonitinho e fofinho. Ou algo que me levasse
às pistas de onde a princesa Blair está. E não sendo devorado!
O Guardião de Diamante se pôs de pé e, fazendo um rápido desjejum,
voltou a seu destino: o castelo imperial do Império de Cristal.
Ele preparou o cavalo alado que o Imperador Crystan lhe dera para a
viagem, e, dando mais uma olhadinha para o lugar em que passara a noite,
montou no animal e seguiu voando para as terras da Zona Central.
Ele passara a última noite numa caverna nas mediações entre o Império
de Diamante e o Império de Cristal. Ele decidira voar por um tempo a mais,
no dia anterior, para evitar chegar próximo à caverna em que passara grandes
apuros, na Mata Rusken. Um arrepio lhe percorreu a espinha com a
lembrança. Como estava com certo trauma de fantasmas, decidiu não arriscar
a se encontrar com eles novamente.
Endrich não imaginava que poderia ficar tão adiantado voando em um
cavalo alado, como era o caso. Tudo bem que há algumas luas, no outono, ele
voara numa fênix para salvar seu povoado – o que não durou mais do que
alguns minutos, graças ao poder mágico daquele belo pássaro. Mas há uma
grande diferença entre as fênix e os cavalos, por isso Endrich já estava
achando que a viagem progredira bastante. No ritmo em que estava, chegaria
ao castelo imperial antes do meio-dia.
––––
Quando pousou o cavalo alado próximo aos estábulos, Endrich achou que
desabaria de cansaço e dor nas pernas e costas. Como o previsto, ele chegara
ao Povoado Imperial Zackiel antes do meio-dia, e agora só pensava em
descansar.
– Bom garoto – disse ele ao cavalo. – Você deve descansar agora, deve
estar quase desmaiando pelo esforço que fez.
O cavalo respondeu com um relinchado meio melancólico. Seu pelo
espumava de suor e suas asas deviam estar tão doloridas quanto às pernas de
Endrich.
Endrich pediu ao senhor de olhos esbugalhados que estava cuidando dos
estábulos, um homem alto e magro, para que tratasse do animal como se
fosse do imperador local. Ele explicou que aquele alazão era do Imperador
Crystan e que deveria ser tratado muito bem. O homem ainda um pouco
surpreso com o pouso repentino, assentiu.
Estando tudo em ordem, o Guardião seguiu para o castelo imperial. No
meio do caminho percebeu que vários olhos estavam colados nele, curiosos
com sua chegada num cavalo voador. Ele apenas sorria e acenava. Algumas
sentinelas foram em sua direção para detê-lo, mas pararam aonde estavam,
assim que perceberam de tratar do Guardião Imperial de Diamante.
Quando chegou ao castelo, foi recepcionado por Mikaell em sua pequena
sala.
– Olá, Guardião, como… – Mikaell fez uma pausa para espirrar e tossir –
Desculpe. Como você está?
Pelo visto, Mikaell ainda não melhorou de sua doença, ou então ele
pegou outra.
– Eu estou bem, Mikaell, e você? – A resposta seria um tanto óbvia.
O secretário fez uma expressão cética ao visitante.
– Estou bem, tirando… – o secretário teve um acesso de espirros, e logo
se voltou a Endrich. – Certo, tirando essa doença maldita, que não sara, estou
em perfeito estado.
Mikaell fez uma pausa para assuar o nariz.
– Mas o que o trás aqui? – o indagou.
Endrich deu uma olhadinha em volta, preocupado.
– Eu gostaria de conversar com Raffy. É um assunto muito sério. De
extrema urgência – respondeu ele.
Raffy Di Akren era o Guardião de Cristal. Ele se tornara amigo de
Endrich há pouco tempo, no outono passado, quando Endrich descobriu sobre
sua verdadeira origem e passado.
– Hum… Infelizmente você terá de aguardar mais um pouco – responde
o rapaz, a voz fanhosa. – Ele saiu em uma busca, que também merece atenção
extrema.
– Certo. Mas o que aconteceu?
– Não sou apropriado para lhe revelar o assunto, mas você deve ser de
confiança… O príncipe Gabrian sumiu. Ele não foi encontrado em parte
alguma do castelo e do Povoado Zackiel. Agora foi liderada por Raffy uma
busca para tentar encontrar o herdeiro do trono.
Endrich ficou pasmo. Será que era coincidência a princesa Blair e o
príncipe Gabrian terem sumido ao mesmo tempo? Será que alguém queria ver
o mundo em guerra? Algo de muito errado estava acontecendo.
– E Raffy volta ainda hoje? – quis saber Endrich.
– É para voltar – confirmou Mikaell. – O grupo de busca saiu anteontem
e ainda não retornou. Decerto estarão até o anoitecer.
Endrich assentiu. Sua cabeça mergulhou num mar de pensamentos. Dois
sumiços aconteceram na mesma época. Duas viagens de busca; tanto ele
quanto Raffy estavam em busca dos herdeiros de seus imperadores.
– Sr. Ragrson? – Endrich estava tão absorto em seus pensamentos, que
nem viu quando Mikaell o chamou. Sendo assim, o secretário teve de repetir:
– Sr. Ragrson? Está me ouvindo?
– Ah, sim, desculpe-me. Eu estava distraído, pensando – respondeu
Endrich, um pouco encabulado.
– Percebe-se. – Mikaell teve um ataque de tosse, mas logo se recompôs
com a chegada do Imperador Zackiel.
– Ah, Mikaell, assim você não poderá trabalhar – disse o Imperador,
solene.
Darian Zackiel possuía olhos que pareciam arder em chamas. Como da
primeira vez que Endrich o vira, o Imperador vestia uma capa cinza por cima
de um colete e usava uma fina coroa de prata com pequenas pedras de cristal.
– Meu senhor, eu devo trabalhar – respondeu Mikaell, após fazer uma
mesura ao monarca. – Não posso lhe… – o secretário espirrou novamente.
Zackiel olhou para Endrich, cético e admirado, pelo desempenho de
Mikaell. O Guardião fez um movimento de cabeça ao Imperador e sorriu,
concordando com ele.
– Sr. Ragrson, como estás? Fiquei sabendo que você se tornara o
Guardião de Diamante oficialmente – interpolou Zackiel, curioso.
Endrich assentiu.
– É verdade. Mesmo por que, caso contrário, eu nem aqui estaria.
O Imperador concordou. Os lábios levemente curvados.
– Bem, mas isso não ocorreu e agora deves estar todo atarefado. Bem…
você está com fome, não é? Então me siga – falou ele a Endrich. – E você vá
tomar uns chazinhos, senão daqui a pouco receberei cartas e documentos
contaminados – concluiu virando-se para Mikaell.
Endrich achou aquilo um pouco duro demais da parte do Imperador,
incomodando-o. Porém, nada poderia fazer em contradição. O secretário, de
bom grado, assentiu, retornando aos seus fazeres enquanto o Imperador e o
Guardião seguiam para o salão do refeitório.
––––
O Imperador Zackiel deixou Endrich almoçando sozinho no refeitório do
castelo, enquanto fora cuidar de seus negócios políticos.
Endrich percebeu o quão frio o monarca conseguia ser. Como ele pode se
interessar com política numa hora dessas? – ponderou o Guardião. – Ei, se
ele não percebeu ainda, seu filho está desaparecido, ao que parece, há três
dias! Certo, ele chegara à conclusão de que não gostava do Sr. Zackiel, nem
um pouco. A dureza daquele homem era no mínimo irritante.
Endrich tentava não pensar tanto nos desaparecimentos, mas sua mente o
deixava inquieto. Esperava que estivesse tudo bem com Blair Crystan, senão
achava que Asriel enlouqueceria.
Após a refeição do meio-dia, o rapaz se dirigiu para o povoado que
cercava o castelo imperial. O Povoado Imperial Zackiel se mantinha através
da venda e consumo de animais, como porcos, vacas, bois e cavalos para
montaria; ao contrário do Povoado Imperial Crystan, que vivia basicamente
de plantações e vendas de produtos, entre estes arcos e flechas.
Enquanto caminhava pelo mercado, sem querer, esbarrou-se em uma
mulher pouco mais velha que ele. Ela tinha olhos azuis e cabelo ruivo,
estranhamente familiar.
– Oh, desculpe-me – disse Endrich.
– Olha por onde anda… Ah, perdão – respondeu ela, com uma rápida
mudança de humor. – Você está bem?
– Ah, sim, estou. E você?
– Claro!
Endrich ia seguir seu caminho sem destino, quando a moça o chama de
volta.
– Senhor?
O Guardião se vira, achando a abordagem dela um tanto respeitosa para
com ele, um simples Mensageiro – e importante Guardião, diga-se de
passagem.
– Sim? – pergunta ele.
– Então? Você tem alguma coisa para fazer agora? – quis saber ela.
Achou estranho a mulher lhe perguntar isso. Mesmo por que os dois
nunca haviam se visto antes. Mas, educadamente, respondeu-lhe a questão:
– Ah, não. Não tenho nada em mente para essa tarde, por enquanto.
A mulher assentiu. Endrich tinha a sensação de conhecê-la de algum
lugar…
– Você se importa de seguir comigo? É que estou sozinha, meus pais
viajaram.
Endrich deu de ombros. Acho que vai ser bom ter alguém para
conversar. Sendo assim, os dois caminharam sem um rumo certo. Só
esperava que ela não fosse de uma daquelas famílias em que uma simples
troca de palavras fosse o gatilho para um compromisso. Não achava isso
certo.
– Então, como você se chama? – perguntou Endrich.
– Ah, sim, meu nome é Sheron MacWyes, prazer. E você, como se
chama?
– Endrich Ragrson, Mensageiro Imperial da Zona Leste e Guardião
Imperial de Diamante.
Sheron fez uma expressão de surpresa.
– Você é um Guardião Imperial? Uau… Que demais!
Endrich sorriu pela forma que ela falou. Só faltou ela sair saltitando pelas
ruas. Apesar de ser uma mulher com seus vinte anos, aparentemente, seu
espírito era o de uma garota de quinze ou dezesseis anos.
– É, mas quando eu fiquei sabendo que eu era um descendente de
Guardião, odiei. Não queria me tornar um de forma alguma – ele contou.
– Mas por quê? – indagou-o, com uma voz forte e doce ao mesmo tempo.
Endrich hesitou. Nunca mais pensara muito nisso. Mas havia de
responder a mulher.
– Eu não sei ao certo. Acho que tinha medo de me tornar imortal, apesar
de que eu posso morrer a qualquer momento.
– Então você é sempre jovem?
– Sim. – Ele sorriu. Era incomum encontrar moças que se interessavam
sobre tal coisa. Deveria ser como sua amiga Luany, que não gosta muito de
ficar falando sobre roupas, costuras e tecelagem.
A tarde seguiu rapidamente. Sheron MacWyes contara a Endrich que
morava com seus pais, ali mesmo, no Povoado Imperial Zackiel. Mas que
eles, naquele dia, haviam saído para comprar alguns animais num reino
vizinho.
Ao fim da tarde, eles se encontravam sentados à beira do lago Miragem,
um pouco afastados do castelo imperial e do mercado. Ali perto havia mais
casas de camponeses, que não deixavam de trabalhar de forma alguma,
encaminhando animais para chiqueiros e estábulos, antes que anoitecesse.
Endrich vislumbrava o lago Miragem. No reflexo das águas ele pôde
distinguir a face de Luany, sorrindo para ele. Ele se assustou. O que é isso?
Sheron vendo seu estado, pergunta:
– O que foi?
– Nada, acho que estou sonhando acordado – respondeu o Guardião, sem
graça.
– Você viu a face de alguém nas águas do Miragem, certo?
– É… Como você sabe?
– Bem, dizem que esse lago é mágico. Por isso o nome Miragem, por que
ele revela o rosto da pessoa que você sente um grande carinho e que mais tem
medo de perder. – Sheron também vislumbrava a água límpida e azulada do
lago. Parecia estar vendo alguém também.
– Hm – murmurou Endrich, sem saber ao certo se aquilo que vira fazia
sentido com o que Sheron lhe falara.
– Bom, é o que dizem – concluiu ela sorrindo.
A Estrela de Fogo, o sol, estava se pondo, e a lua Cahim estava dando o
ar de sua graça, acompanhada por pequenos pontos de luz, as primeiras
estrelas do firmamento.
– Endrich foi muito bom ter conversado com você, mas tenho que ir
embora – disse Sheron, levantando-se de um pulo.
– Espera, mas já? – Endrich gostaria de ficar um pouco mais
conversando com ela. Contar sua última aventura.
– Infelizmente, tenho que ir.
– Mas mal conversamos.
Ela sorri. Sheron então se vai em direção das casas camponesas, porém,
volve para Endrich com um último aviso:
– Não se preocupe. Isso não será um adeus.
Cinco
A Rebelião em Etty Mallol

Assim que Sheron foi embora, Endrich fitou um pouco mais o Miragem e
logo voltou para o castelo imperial, onde tentaria encontrar Raffy. Porém, ao
chegar ao castelo, o amigo ainda não havia retornado de sua busca.
Rapidamente a angustia lhe tomou conta.
Mikaell, percebendo que o Guardião de Diamante estava inquieto, levou-
o para um quarto onde poderia descansar, já que ainda não tivera a
oportunidade naquela tarde. Quando Endrich deitou-se na cama, vários
pensamentos e lembranças de casa lhe tomaram a mente. De certo modo era
ruim ficar relembrando o lar, mas por outro era reconfortante memorar os
bons momentos.
– Ai, ai, ai… Endrich, Endrich, o que você vai fazer de sua vida? –
perguntou a si mesmo.
– Você pode me acompanhar. – Raffy entrou no quarto.
– Oh, Raffy! Que bom vê-lo.
– Também é bom em lhe ver – respondeu Raffy, dando um abraço em
Endrich.
Endrich não havia percebido quanto tempo havia passado desde que
deitara. Assustou-se com a ideia de ter se perdido entre as horas. Contudo, ele
percebeu que o Guardião de Cristal estava com uma aparência horrível.
Provavelmente ele não dormira quase nada; a busca deve ter sido bem
pesada.
– Estou sabendo o que aconteceu ao príncipe Gabrian – comentou
Endrich.
O Guardião de Cristal assentiu.
– Bem, não consegui encontrá-lo, mas ainda o encontrarei. Fiz essa
promessa ao Imperador, e devo cumpri-la.
– Verdade. Também tenho uma promessa a cumprir, mas acho que
precisarei de sua ajuda.
– O que houve?
Endrich se sentou na cama e contou tudo a Raffy, desde o
desaparecimento da princesa Blair ao mistério do broche, que fora encontrado
no local onde o pátio central ficara destruído. Ele relatou o que descobriu
sobre a Ilha Elementar, e que concluiu ser o único lugar para onde Blair
poderia ter sido levada.
– Você acha que essa ilha, realmente, existe? – indagou Raffy.
– Olhe Raffy, ultimamente eu não duvido de mais nada – ponderou
Endrich. – Se algum tempo atrás eu duvidava de magia e fantasmas, hoje…
Rá, eu não duvido mais.
Raffy assentiu e sorriu.
– Então, o que você acha que devemos fazer?
––––
O Imperador Darian Zackiel estava saindo de sua sala para seus aposentos, na
ala nobre do castelo, quando foi abordado por Raffy e Endrich.
– Senhor, nós precisamos conversar – disse Raffy, fazendo uma leve
reverência.
– Mas agora? Isso é hora de vir me chamar? – reclamou Zackiel. – Vocês
deviam ir dormir. Principalmente você Raffy, que terá de sair amanhã,
novamente, para ir à busca de Gabrian.
Endrich percebeu Raffy enrubescer. Milagrosamente, ele parecia bravo
com alguma coisa. Se fosse com o Imperador ele estaria totalmente de
acordo; aquele homem merecia umas boas bofetadas.
– Mas é sobre isso que viemos conversar – respondeu o Guardião de
Cristal.
O Imperador suspirou, pondo uma mão na testa. Com um aceno da outra,
ele mandou Raffy e Endrich entrarem em sua sala. Seguiu-os de perto.
– É bom que seja importante – retrucou Darian, sentando-se em seu
pequeno trono, atrás de uma mesa de carvalho com desenhos filamentosos
em ouro.
A sala, Endrich percebeu, era tão grande quanto à sala do Imperador
Crystan, porém não possuía o mesmo aroma agradável. Ali o cheiro parecia
mais de óleo amadeirado, dando um toque rústico ao ambiente. E nas janelas
no fundo da sala, ao contrário do tema religioso do Imperador Asriel, havia
um tema mais centrado a lutas e revoltas.
– Bem, senhor – começou Raffy –, eu não consegui nenhum tipo de pista
para encontrar Gabrian, mas Endrich tem uma ideia e uma pista que pode nos
levar a encontrar tanto o príncipe quanto a princesa Blair, que também
desapareceu do Império de Diamante.
– Sim – concluiu Endrich. – O raptor deixou isso no local por onde,
provavelmente, ele saiu. Trata-se de um broche. – Endrich entregou o objeto
metálico para o Imperador, que o analisou atentamente. – Pelo o que pude
concluir, fazendo uma pequena pesquisa, esse objeto está ligado a Ilha
Elementar, uma antiga terra amaldiçoada.
O Imperador Darian ficou pasmo, voltando seus olhos profundos para
Endrich. Arrastando o broche de volta para ele, argumentou:
– Bom, isso é muito interessante, mas essa ilha não existe. É apenas uma
lenda. – Por um momento pareceu não confiar nas próprias palavras.
– Eu não diria isso, senhor – retrucou Raffy. Ele estava um pouco calado,
mas sua expressão demonstrava certa angustia e atenção. Devia estar
preocupado com alguma coisa.
– Senhor, eu também não acreditava nessas coisas sobrenaturais – disse
Endrich. – Mas quando passei a fazer parte delas, eu aprendi a conviver e a
aceitá-las.
Zackiel pareceu pensativo. Além disso, nada mais aparecia. Nada,
nenhum tipo de expressão. Ele era um homem muito cético e gélido,
percebeu Endrich. Só agora notara o quanto ele havia mudado desde a
primeira vez que o vira – ou então, na ocasião, o Imperador estava apenas
escondendo quem realmente era. Porém, passado algum tempo, o Imperador
solta todo o ar dos pulmões num único sopro. Parecia profundamente
preocupado. Estaria demonstrando algum sentimento?
Endrich falou:
– Senhor, eu só desejo-lhe que permita a Raffy seguir comigo nessa
trajetória, até as águas do Império de Jade. Caso não encontrarmos a ilha,
voltaremos logo em seguida e daremos prosseguimento às buscas pelo
príncipe e princesa.
Darian cofiou a barba castanha. Seu rosto esboçou algo parecido com um
leve sorriso.
– Está bem, eu autorizo Raffy a ir com você – permitiu Zackiel. – E caso
encontrem meu filho, quero que o tragam imediatamente, mas, caso contrário,
deixem a ilha e voltem o mais rápido que conseguirem.
Endrich e Raffy assentiram.
– Ah, senhor – indagou Raffy –, teria como mandar um barco ainda essa
noite para o Império de Jade?
O Imperador ajeitou sua coroa de prata sobre os cabelos castanhos. Seus
olhos dourados pareciam faiscar.
– Eu não sei ao certo, mas, aparentemente, há um barco pesqueiro que
sairá ao amanhecer. Se assim quiser, podem partir imediatamente –
respondeu ele. – Mas seria mais sensato se vocês perguntassem a Mikaell em
que reino será a partida. Agora, desculpem-me, mas tenho que ir dormir.
Amanhã há muito que fazer, ao contrário de vocês dois.
Sendo assim, Zackiel acompanhou os Guardiões até a porta, seguindo
logo depois para seus aposentos.
Enquanto Endrich e Raffy seguiam para a salinha de Mikaell, torcendo
para que ele ainda estivesse acordado, Endrich reclamara:
– Como assim não temos nada para fazer? Se ele não percebeu, nós é
que vamos procurar pelo seu filho, enquanto ele fica sentado em seu trono de
ouro e riquezas! – Endrich estava tão indignado quanto um mercador que tem
suas frutas roubadas por outro comerciante.
– Acalme-se, Endrich – pediu Raffy. – Entenda meu senhor, ele é assim
mesmo. – Mas Raffy falava mais para si. Também estava um tanto indignado.
Quando chegaram ao escritório de Mikaell, os dois deram graças por ele
ainda estar trabalhando. Eles perguntaram quando e onde sairia à próxima
embarcação para o Império de Jade, e, olhando em um livro de anotações, o
secretário lhes reponde:
– Bem, há um barco pesqueiro saindo do Reino Portuga, ao amanhecer.
Mas para quê vocês querem saber? – perguntou após um acesso de tosse.
– É que nós estamos partindo para lá nesse exato momento – contou
Raffy. – Temos uma pista de onde pode estar o príncipe.
– Ótimo! Mas como… – Mikaell espirrou. – Como vocês irão chegar até
lá?
Raffy perdeu a cor do rosto. Como ele não pensara nisso? Se fossem a pé
chegariam apenas no outro dia, senão mais. Nem mesmo de cavalo daria
tempo. Mas Endrich tinha a solução de seus problemas.
– Eu sei como – revelou o Guardião de Diamante com um sorriso de
triunfo.
––––
– Por que você não falou isso antes? – indagou Raffy, enquanto deslizava a
mão através do pelo negro do cavalo alado.
– Desculpe, mas as coisas estão acontecendo rápidas demais – respondeu
Endrich. Ele pôs as rédeas no animal e, selando-o, seguiu para fora do
estábulo.
O senhor que cuidava do local não deu a mínima por tirá-lo dali, e, dando
de ombros, seguiu para um canto onde recostou a cadeira na parede e
começou a roncar.
– Você está pronto? – indagou Endrich ao Guardião de Cristal.
– Com toda a certeza.
Montados no cavalo, Endrich instigou o animal a seguir voo pelos ares.
––––
[2]
Quando eles chegaram ao Reino de Portuga , de madrugada, na costa sudeste
do Império de Cristal, o céu reluzia como uma cortina salpicada de estrelas.
O ar gélido, que seguia pelo Império de Diamante e parte do Império de
Cristal, se desfez, dando lugar a um ar mais aprazível e morno.
Devia ser duas da manhã, mas, educadamente, foram recepcionados
pelas sentinelas que guardavam a estrada principal que entrava no reino. As
sentinelas se impressionaram com o cavalo alado e, apreensivos, deixaram
Endrich e Raffy entrarem na cidade que cercava o castelo.
Rapidamente os dois foram dirigidos ao castelo real, podendo deixar o
cavalo nos estábulos por quanto tempo quisessem. O secretário real, que se
chamava Amael, ainda estava resolvendo alguns problemas quanto às
correspondências em sua sala. Mesmo assim, ele recebeu muito bem aos
Guardiões, apesar das olheiras que contornavam os olhos.
Os Guardiões pediram informações a respeito da embarcação que sairia
ao amanhecer, e Amael confirmou que o barco pesqueiro partiria para o
Império de Jade, fazendo uma pequena parada em Etty Mallol, uma pequena
ilha ainda em águas do Império de Cristal.
– Se vocês quiserem estar revitalizados ao amanhecer, eu sugeria que os
dois dormissem um pouco. É bom para manter as forças… – Amael bocejou.
– Eu sugeria que você também fosse dormir – questionou Raffy. – É bom
para manter as forças – caçoou, e o secretário retribuiu com uma careta.
Logo em seguida, ao fechar um livro de anotações e escrever uma
autorização de embarque, Amael conduziu os Guardiões para um quarto de
hóspedes, onde possuía duas camas. E ali, deitando um em cada cama,
dormiram rapidamente.
––––
O barco pesqueiro já estava quase partindo, quando Endrich e Raffy
despontaram no cais do Porto Alexis. O dia estava lindo, o sol radiava no
horizonte.
– Da próxima vez sejam mais pontuais – censurou o barqueiro pegando o
documento assinado por Amael; um homem alto, magro e devia ter uns
cinquenta anos. A barba cinzenta, por fazer, lhe dava uma aparência ainda
mais velha.
– Desculpe-nos, senhor – respondeu Raffy, aparentemente
desconcertado. – Acho que dormimos um pouco mais do que devíamos.
– Tudo bem. E, ah, meu nome é Tairos. Acman Tairos. Mas podem me
chamar apenas de Tairos. – O velho sorriu, mostrando seus dentes
amarelados.
Os Guardiões assentiram e adentraram no barco, sentindo um leve cheiro
de peixe podre. Era um barco pesqueiro de porte médio, e por isso era raro
quando a proa e popa estavam sob condições extremamente higiênicas.
Endrich sentiu seu estômago enojar ao exalar o cheiro, mas tentou não se
incomodar com isso. Já Raffy quase não segurou o que continha em
estômago, tendo que ficar o tempo todo na parede a estibordo, olhando e
sentindo a maresia.
E assim o tempo foi passando, enquanto o barco seguia para o alto-mar.
Endrich ainda conseguia vislumbrar algumas montanhas nas terras do
Império de Cristal, e ficou se perguntando de onde seriam.
– Aquelas cadeias montanhosas vão desde o Reino Portuga até próximo
ao Povoado Imperial Zackiel – comentou Raffy, captando os pensamentos de
Endrich. – São muito conhecidas pelo grande pico que duas delas
demonstram. – Raffy apontou para duas montanhas mais ao norte, que se
elevavam a uma grande altura. – Essas são as Montanhas Gêmeas.
Endrich admirava seus altos picos enquanto seguiam para Etty Mallol.
Três dias se passaram desde que Endrich e Raffy haviam embarcado, e
agora a embarcação já estava bem próxima da ilha onde o Sr. Tairos iria
atracar para deixar uma carga de peixe.
Enquanto a nau não chegava à ilha, Raffy, que já estava mais
acostumado ao mau cheiro do peixe, relatou à Endrich um pouco sobre a
história de Etty Mallol.
– Antigamente a ilha era um grande porto de comerciantes, aonde vários
produtos vindos de todos os Impérios passavam por aqui. Mas hoje em dia
esta está, bem dizendo, abandonada. Há ainda famílias pobres, que moram aí
por não terem condições para viajar e arrumar uma moradia nas terras do
continente. – Raffy, indo para bombordo, apontou uma faixa amarela de terra
no lado norte da ilha, onde havia algumas moradas velhas e antigas. – Bem,
eu ouvi dizer que nessas casas moram contrabandistas e rebeldes, exilados
dos continentes.
– Hum… Odeio contrabandistas – comentou Endrich. – Mas por que
alguns são exilados?
– Os exilados dos continentes são alguns contrabandistas e outros
assassinos e ladrões, que tiveram como castigo viver as próprias custas nessa
ilha – explicou Raffy.
Endrich assentiu.
– Mas não há perigo de eles roubarem ou matarem as pessoas “boas”, do
lado onde é feito os comércios? Já que eles moram na mesma ilha.
– Bem, na verdade não. Existe uma gigantesca muralha entre a pequena
floresta, dividindo a ilha em dois lados.
– Ah, entendi.
Não muito tempo depois, a embarcação saiu das águas do Mar do Sul e
adentrou no Mar d’Oeste, ainda no Império de Cristal. Logo estavam dando a
volta na ilha pelo lado leste, para chegar ao porto, ao sul. Endrich e Raffy
estavam loucos para descer e tocar os pés em terra firme.
––––
– Vocês podem ficar tranquilos, certo? – avisou o Sr. Tairos. – Ficaremos
para fazer a refeição do meio-dia, e só então continuaremos viajem pelas
águas do Mar d’Oeste.
Os Guardiões assentiram e correram para a areia fofa da beira do mar e
ali se deitaram, sentindo o cheiro salgado da maresia adentrar em suas
narinas.
– Achei que nunca mais eu iria sair daquela embarcação – resmungou
Raffy. – Minhas roupas ficaram com o cheiro do peixe grudado nelas.
Endrich riu, mas parou logo percebendo que suas roupas também
estavam fedendo.
– Hum… Credo, esse negócio cheira mesmo mau.
Os dois, cada um com sua bolsa, seguiram para um chalé, onde servia
como bar. Ali, trocaram suas roupas mal cheirosas por outras novas. No
mesmo chalé, eles fizeram uma refeição; estavam com os estômagos vazios
desde a noite passada. Depois de se fartarem, seguiram para a praia, onde
caminharam por um longo tempo sem compromisso.
– Você acha que conseguiremos salvar os herdeiros? – indagou Endrich,
fitando o mar.
– Assim espero. O Imperador Zackiel está contando com minha ajuda e
não posso decepcioná-lo. Senão é capaz de eu ter a cabeça arrancada – riu
Raffy. Porém, o Guardião de Diamante tinha quase certeza de que ele estava
falando sério.
Endrich chutou um marisco grande e de casca branca com algumas
manchas amareladas. Sua cabeça trabalhava a mil, até que seus pensamentos
se voltaram para Luany. Ah, como ele gostaria que ela estivesse ali com ele,
ou que ele estivesse em casa com ela.
– Sei no que você está pensando, Endrich – interveio Raffy –, mas não se
preocupe. Nós não vamos demorar a encontrá-los.
– Não sei, não, Raffy. Há alguns dias, enquanto eu estava indo para o
Povoado Zackiel tive um breve sonho com uma mulher, de olhos azuis e
cabelos ruivos. E advinha, eu a conheci no povoado.
– Mas você sabe que seus sonhos lhe mostram imagens do futuro.
– Sim, eu sei – insistiu Endrich. – Mas há algo de errado. – Endrich
contou sobre o sonho que teve com Sheron MacWyes e de como a conheceu
no povoado.
Raffy ouviu tudo atentamente, mas não tinha certeza se havia algo de
errado naquilo.
– Não estou encontrando o “erro” em seu sonho.
Endrich voltou o olhar da areia molhada para o outro Guardião.
– Você não entendeu Raffy? – ponderou o Guardião de Diamante. – O
sonho se passa em uma espécie de salão e não no povoado. Sei que ela ainda
fará alguma diferença em nossa busca. Posso sentir. – Algo em seu interior se
remexia, deixando-o perdido.
– Se você diz…
Enquanto retornavam para a vila formada no litoral, Endrich sentiu o ar
pesar, tornar-se estático. Olhou para o céu e viu que nuvens carregadas se
aproximavam rapidamente. Já havia percebido que o fenômeno estava
acontecendo cada vez mais que se aproximavam do Mar d’Oeste. Agora em
suas águas, as coisas pareciam piores.
Quando ele pensou ter um pouco mais de descanso, chegam à vila e se
deparam com casas sendo saqueadas e outras, em chamas. Pessoas correm
para todos os lados, comerciantes tentando salvar suas parcas mercadorias,
enquanto homens de barba por fazer e maltrapilhos destruíam tudo o que
viam pela frente.
Endrich e Raffy se entreolharam e sem delongas correram o máximo que
podiam até alcançar um homem que lutava com um contrabandista, na
tentativa de se proteger. Sem pensar duas vezes, o Guardião de Diamante
estaca e dispara uma flecha contra o bandido, acertando-o nas costas. O
maltrapilho cai, sangue empapando sua vestimenta.
– Você está bem? – perguntou Raffy ao homem.
– Aham… – respondeu ele, olhando para o corpo sem vida do
contrabandista.
– Ótimo. Agora vá, saia daqui. Proteja-se. Será melhor para você. E leve
o máximo de pessoas que puder consigo.
Os dois Guardiões trocaram rápidas palavras, e Endrich seguiu para o
chalé, enquanto Raffy foi ajudar os comerciantes, que estavam sendo
derrotados rapidamente.
Quando Endrich entrou no bar, o tumulto estava formado. Não se sabia
quem era bandido e quem era os moradores locais. Até o Guardião avistar um
homem feio e barbudo segurando uma adaga com a lâmina desenhada; era
[3]
uma sereia – o símbolo dos contrabandistas . Sem muito tempo, Endrich
encaixa uma flecha na corda do Arco de Diamante, puxando-a até ao lado da
orelha direita. Com a corda bem tencionada e a mira pronta, ele soltou a seta,
que voou em direção do homem numa velocidade incalculável. Instantes
depois o malfeitor estava caído no chão.
Ao perceber o parceiro caído, vários outros homens magricelas e
desdentados olharam em direção de Endrich. Oh-oh! Acho que me ferrei.
Antes que dois deles se aproximassem muito, o Guardião de Diamante já
estava com duas flechas prontas para o disparo. Em pouquíssimos segundos
os dois estavam derrubados, cada um com uma flecha alojada no peito.
Vários se apavoraram, mas alguns partiram para cima dele com suas
adagas empunhadas. Dessa vez Endrich não conseguiu se defender apenas
com as flechas, tendo de lutar corpo-a-corpo contra muitos deles.
Quando já estava quase sem fôlego, com os pés cercados de corpos, um
destemido rapaz, de mais ou menos sua idade, correu em sua direção. Mas o
rapaz não teve muito que fazer. Endrich desviou do bandido e, voltando-se
para ele, deu uma forte pancada com a haste do arco fazendo o rebelde
desmoronar no chão.
– Vocês estão bem? – perguntou Endrich ao dono e aos trabalhadores do
chalé, que agora ficara parcialmente destruído.
– Sim… – assentiu o velho dono, aparentemente assustado.
Com um movimento de cabeça, Endrich deu as costas e seguiu para o
comércio. E ao chegar à rua percebeu que o estrago havia sido ainda maior.
Raffy se dirigiu até ele pulando alguns corpos sem vida. Em volta, alguns
gemiam e se contorciam de dor, perfurados ou sem algum membro.
– Bem, acho que não era realmente isso que eu estava pensando em
fazer, mas… – Raffy olhou para Endrich, que estava com o rosto e as roupas
manchadas de sangue.
– Nossa, e eu achando que a minha luta havia sido feia – comentou
Endrich. Olhando em volta, os vários corpos estirados na rua.
Quase todas as barracas do comércio haviam sido destruídas, e inúmeras
casas estavam incendiadas. Contudo, os rebeldes que não estavam
gravemente feridos escaparam: alguns conseguiram fugir, roubando barcos
pesqueiros; enquanto outros retornaram para o lado exilado da ilha.
– Raffy! Endrich! – chamou o Sr. Tairos. – Como vocês estão? Eu vi o
que Raffy fez. Foi incrível! – O velho parecia bem empolgado com a luta.
Endrich fitou os vários rostos angustiados que os admiravam. Alguns
estavam tristes por terem perdidos suas casas e suas tendas de vendas. Mas
outros tentavam se contentar pelos contrabandistas terem caído. Agora o
perigo estava minimizado, mesmo não imaginando como eles haviam
transposto a grande barreira que os exilavam.
– Eu acho melhor nós todos partirmos daqui – falou o Sr. Tairos. – Não
há muito que fazer agora. Já recebi meu pagamento pelo descarregamento do
peixe, então já estamos livres novamente.
Raffy ia protestar, mas não tinha o que argumentar e por isso se calou.
Endrich olhou cético para o barqueiro, mas se segurou para não falar o que
não devia.
Em pouco tempo a embarcação estava de volta ao mar. E em poucos dias
chegaria ao Império de Jade – destino principal dos dois Guardiões Imperiais.
Raffy voltou a se escorar na amurada, fitando o mar e sentindo a maresia,
para não ficar enjoado. Já Endrich se deteve na proa, após trocar mais uma
vez de roupa, onde ficou sentado até o anoitecer, pensando em tudo que já
acontecera em sua vida, e no que ainda poderia vir a acontecer. Estava
completamente inseguro.
Será que conseguiremos salvar o príncipe e a princesa? Será que eles
estão bem? Espero que toda essa nossa viagem não seja em vão.
E assim, saindo do Império de Cristal, eles adentraram ainda mais no
Mar d’Oeste; agora nas águas do Império de Jade.
Seis
Novo Prazo

A noite estava quase chegando e Blair estava prestes a desfalecer, quando seu
raptor se aproximou. Ele a cutucou e a puxou para cima, deixando-a de pé.
Ela gemeu, abrindo os olhos na medida do possível.
– Vamos garota, resista – exclamou ele, pegando em sua cintura.
– Pra você é fácil, não precisa ficar preso por correntes – intimou o
garoto preso ao poste, do outro lado do trono. O príncipe Gabrian sustentara
uma expressão como a de seu pai: fria e cética.
O homem de cabelos castanho-ruivos deixou a princesa de lado e se
aproximou do garoto. Em seus olhos havia raiva.
– Você ousa me desafiar? – gritou ele. – Pois eu devia lhe matar neste
instante. Espere! É o que vou fazer agora. – O homem empunhou uma espada
média de lâmina prata, incrivelmente polida.
Gabrian estremeceu, bufou de raiva e fechou os olhos, virando o rosto
para o lado. Não queria ver a espada descendo até seu corpo.
Quando o homem preparou a lâmina para baixá-la, uma voz rouca e
afiada ecoou a suas costas. Rapidamente, ele se virou, vendo seu parceiro da
longa capa negra, com quem montara o plano.
– Espere! – disse o homem. – Devemos esperar mais alguns dias.
– Mas por quê? Eles não possuem mais utilidade. Seus Guardiões não
apareceram – teimou o homem armado.
O demônio da capa negra deu um passo à frente e logo sumiu em
fumaça, materializando-se em frente ao raptor. Sua expressão era sombria,
com olhos tão negros como breu.
– Teremos de esperar mais um pouco, os Guardiões estão a vir. Porém a
embarcação de que estão utilizando é muito lenta. E na ilha que pararam
houve uma rebelião, o que nos atrasa um pouco mais. Além disso, se
matarmos os dois jovens poderemos perder uma grande chance. – O homem
sorriu, mostrando suas presas pontudas e brilhantes. – Por tanto, espero que
você cumpra esse pedido: não os mates. Espere por mais alguns dias.
O raptor praguejou sua má-sorte; ou, no caso, a boa sorte para a princesa
e o príncipe, que continuariam vivos por mais alguns dias.
– Mas devo mantê-los por mais quantos dias? – sibilou com os olhos em
brasa. – Se eles continuarem vivos ou não, os Guardiões virão até aqui de um
jeito ou de outro.
O da capa negra pensou por um instante.
– Não é tão simples, os anjos podem avisá-los. Espere até que eles o
achem. Caso isso não aconteça, eu farei com que façam isso. Mas suponho de
que não será necessário. Eles são espertos. – Virou-se para a lua Nahim, que
reinava ali. – Não podemos simplesmente matá-los. Blair ainda tem coisas a
cumprir. E Gabrian, bem, ainda estou vendo se será tão importante assim.
– Está bem. Não acredito que ainda terei de cuidar desses fedelhos –
reclamou guardando a espada.
O demônio deu as costas para o raptor e, novamente, transformando-se
em fumaça, foi embora, deixando-o com os jovens.
––––
– Você acha que eles estavam falando de Endrich e Raffy? – indagou Blair a
Gabrian, ainda fraca, após seu raptor seguir para buscar algo que comer.
– Eu não sei, mas acho que sim. Por que senão quem iria se arriscar até
essa ilha pra nos buscar? Hão de serem os Guardiões Imperiais – respondeu o
príncipe, tentando arrumar a franja de cor caramelo, sem sucesso.
Blair se ajeitou em seu lugar. Suas pernas, costas, braços, tudo doía. Ela
nunca havia se sentindo tão mau como naquele momento. Gostaria tanto de
poder se deliciar em uma banheira com água morna, comer um bom
banquete… Então ela se lembrou de uma coisa que o homem de preto falara
sobre seu destino. O que isso queria dizer? Não tinha certeza, e duvidava de
que aquele ser asqueroso lhe contaria. Suspirou resignada. O melhor mesmo é
deixar a vida seguir em frente, ver onde irá parar.
– Só espero que esses homens não os matem – proferiu a princesa.
Gabrian assentiu. Ele, apesar de estar tão debilitado quanto Blair, não
demonstrava fraqueza; ao contrário, mostrava força, no intuito de dar
estabilidade à princesa. O príncipe tinha de permanecer em pé até a chegada
dos Guardiões, caso contrário não saberia se ela aguentaria sozinha.
– Mas pelo o que conheço deles – concluiu ele com um sorriso
esperançoso –, irão chegar a tempo de nos tirar daqui.
Sete
Princesa de Jade

Passaram-se quatro dias após a saída de Etty Mallol, e Endrich se sentia


cansado de correr de um lado para outro no barco pesqueiro, ajudando como
podia. Raffy, no entanto, não fazia muito já que não aguentava mais o cheiro
repugnante da embarcação e quase não tinha mais estômago de tanto que
vomitara.
Naquela última tarde de navegação, a embarcação foi pega por uma
terrível tempestade, que quase os tirou de rota. A ventania apareceu de
repente, vindo do sul, quase os arremessando contra uma gigantesca rocha
que se encontrava em alto-mar. De onde surgiu isso? – perguntou-se o
Guardião de Diamante. Mas com a agilidade do Sr. Tairos, o barco retornou à
rota certa, levando-a para a costa do continente. Finalmente chegaram aos
domínios continentais do Império de Jade.
O mais estranho foi que, quando a embarcação chegou ao Porto dos
Tubarões – no Reino de Orion –, não demorou pra que longos raios do sol
atravessassem as nuvens, dissipando-as por completo. O céu estava
novamente azul.
Endrich respirou o ar da maresia misturado ao fedor de peixe. Fez uma
careta. Ao menos a atmosfera não estava carregada como antes. Porém, antes
que ele pusesse o pé fora do barco, Raffy atravessou-o correndo, como se
estivesse prestes a ganhar um filho – mas óbvio que isso era impossível.
Vendo que o Guardião de Cristal não estava muito bem, Endrich seguiu até
ele, aparando-o.
– Eu vou ficar bem – afirmou Raffy, após quase colocar seu estômago
pra fora.
– Não sei não. Você já estava ficando verde – exclamou Endrich. – É
melhor você se tratar, pelo menos até amanhã, para depois seguirmos viagem
até o castelo imperial.
Raffy balançou a cabeça negativamente.
– Não! Nós temos que seguir e ajudar aos herdeiros. Vamos, o castelo
não fica muito longe daqui. Só precisaremos de cavalos.
– Ah, nisso eu posso lhes ajudar – interveio o capitão Tairos. – Conheço
um criador de animais que está me devendo. Posso arrumar dois cavalos para
vocês.
Endrich assentiu.
– Isso seria de muita ajuda – falou ele. – Obrigado.
Enquanto Raffy estava sentado no banco de uma tenda, tomando uma
mistura de ervas compradas e preparada por ele mesmo, o Sr. Tairos voltou
com dois cavalos grandes e aparentemente fortes. Um era cinza malhado e o
outro, todo marrom.
– Bem, isso é o que posso arranjar a vocês. E, claro, vocês não precisam
me pagar, aceite isso como presente para a busca do príncipe Gabrian – disse
o velho capitão.
– Obrigado, Sr. Tairos. Que Luzyos o ilumine – abençoou o Guardião de
Cristal, um tanto pálido.
O capitão da embarcação fez uma leve mesura e se retirou com um
sorriso no rosto. Voltou para seus negócios.
– Bem, agora já estou me sentindo melhor – afirmou Raffy devolvendo o
copo da mercadora e a agradecendo. – Teremos uma viagem tranquila.
– Ótimo, precisaremos de toda ajuda possível. – Endrich e Raffy,
enquanto navegavam, concordaram em passar pelo castelo imperial para
pedir ajuda a Marinny Bellaire, a Guardiã de Jade. Isso se eles conseguissem
fazer aquela mula – segundo Endrich – os ajudarem.
Despediram-se da mulher que os atendera com as ervas e, montando em
seus novos animais, seguiram pela rua de saída de Orion. Enquanto Raffy
discorria sobre o caminho que pegariam, alguém se atravessou na frente do
cavalo de Endrich, que estacou de súbito, quase levando o montador ao chão.
– Que isso! – gritou Endrich, pendurado na sela do cavalo. – Você está
maluco?
A pessoa vestia uma capa verde-escura e, erguendo a cabeça, deixando
cachos negros despontarem sobre os ombros, lhe lançou um olhar fulminante,
que dava a impressão de atravessar-lhe a alma. Ele conhecia alguém com
aqueles poderosos olhos verdes.
– Marinny? – chamou Raffy, descendo de seu animal. – Você por aqui?
– Maluca é sua avó! – reclamou Marinny a Endrich, ignorando Raffy. –
Você que foi burro em quase cair, pois um Guardião de verdade tem força em
seu corpo suficiente para se controlar em cima de sua cavalgaria.
– Ei! Minha avó não é maluca! – replicou Endrich. – E desculpe-me se
não sou um cavaleiro de verdade, duro e seco como um pedaço de pedra,
igual você, Marinny!
Ela se voltou para Raffy, desculpando-se a ele por tê-lo ignorado para
discutir com o idiota de Endrich. Este tentava não estapeá-la.
– Ah, e só uma coisa: não, eu não estou por aqui, Raffy, e sim nos picos
gelados do Império de Esmeralda – caçoou ela, em tom sarcástico. – É óbvio
que estou aqui, rapaz.
Raffy não acreditara no que ouvira. Como Marinny não deixava passar
uma coisinha sequer? Nem parecia mais a Marinny que conhecera anos
atrás…
– Mas então, o que vocês querem aqui? – indagou a Guardiã,
rispidamente.
Endrich pigarreou.
– Viemos em busca da princesa Blair e do príncipe Gabrian, os herdeiros
dos Impérios de Diamante e Cristal, respectivamente – explicou ele,
agradecendo por ela não tê-lo deixado conversando sozinho, como noutrora.
– E por que vocês acham que eles estão aqui no Império de Jade? – quis
saber a garota, impaciente.
– Temos uma única dica – respondeu Raffy, e Endrich entregou a
Marinny o broche dos quatro elementos.
Ela o avaliou em todos os lados.
– O que significa isso? É algum tipo de brincadeira? – parecia cética
quanto a possibilidade.
– Não! – interveio Endrich. – Não há brincadeira. Você conhece esse
objeto?
Marinny respirou fundo, acalmando-se. Por um momento ele achou que
o olhar dela mudara para algo como sereno e puro.
– Já vi essa imagem antes – disse ela, referindo-se as imagens gravadas
no objeto, retomando o tom sério. – São os quatro elementos da Natureza.
Mas esse broche é raríssimo! Onde vocês conseguiram?
Endrich explicou rapidamente sobre o desaparecimento de Blair, e como
seu imperador havia encontrado o broche.
– Interessante – ponderou a garota. – Mas você não possui um broche,
não é, Raffy?
– Não, não possuo – respondeu o Guardião de Cristal. – Acho que quem
raptou a princesa, já imaginava que Endrich iria pedir minha ajuda. E como,
provavelmente, o mesmo raptou o príncipe Gabrian, concluiu que eu seguiria
viagem junto dele. O porquê, não imagino.
Marinny mergulhou em pensamentos.
Endrich só esperava que a garota não estivesse pensando em como lhe
xingar melhor. Ele não imaginava o porquê aquela garota gostava tanto de se
impor contra ele. Se não fizessem parte do mesmo grupo de Guardiões,
provavelmente seriam arqui-inimigos. Todavia, havia algo nela que o
incomodava. Por vezes era como se tivesse uma dupla personalidade.
– Respondendo a resposta do iniciante – falou Marinny, apontando para
Endrich –, eu já vi esses desenhos antes. Fazem parte da Ilha Elementar. Uma
antiga ilha lendária que fora amaldiçoada?
Raffy assentiu.
– Pois bem – continuou a Guardiã –, se estou certa, devemos começar a
ficar preocupados, pois uma ilha surgiu ao norte do continente.
Endrich gelou, despertando seus pensamentos para seu propósito. Será
que mais uma lenda seria verdadeira? Bem, se não fosse, ele estaria ali por
nada. Mas caso essa ínsula da qual Marinny comentara fosse a Ilha
Elementar, toda sua viagem até ali não teria sido em vão. Sem entender, um
aperto no peito se fez sentir.
– Nós precisamos de sua ajuda, Marinny – pediu Raffy. – Acompanhe-
nos, por favor?
Endrich percebeu Marinny hesitar. Sua expressão não era muito
agradável, mas também indecifrável. O Guardião não conseguia imaginar o
que se passava pela cabeça dela. Na verdade jamais conseguiria descobrir
quem realmente ela era, pensou.
– E então? – insistiu Raffy.
– Está bem, irei com vocês – respondeu ela, resignada. – Só preciso que
esperem alguns minutos.
Sem rodeios, Marinny dá as costas para os dois.
––––
Enquanto Endrich e Raffy foram devolver os animais ao Sr. Tairos, que ainda
fazia seus negócios, Marinny se encaminhou até ao castelo real, onde pediria
ao rei permissão para seu mensageiro partir, enviando uma correspondência a
Imperatriz Ennel – a grande monarca do Império de Jade.
Relutante, o rei autorizou que a Guardiã de Jade enviasse uma
correspondência por meio de seu mensageiro. E ela, com pouquíssimo senso
de humor, deixou avisado ao jovem que se porventura ele abrisse a carta,
quando retornasse de sua missão, iria arrancar-lhe os olhos fora – isso se não
arrancasse algo ainda pior. O mensageiro arregalou os olhos e assentiu. De
forma alguma se arriscaria a fazer algo do tipo.
Quando retornou para o Porto dos Tubarões, onde Endrich e Raffy já
estavam lhe esperando, Marinny ria da expressão que o mensageiro fizera ao
ela ameaça-lo.
– Você não fez isso, fez? – indagou Raffy, após Marinny lhes contar.
– Claro que fiz. E se ele abrir a carta eu arrancarei mesmo os olhos dele –
ela confirmou.
Uau! Com essa não se brinca – pensou Endrich.
Raffy o fitou e assentiu com a cabeça. Provavelmente ele captara seus
pensamentos. Endrich revirou os olhos. Pelo que bem lembrava, já pedira
para o amigo não ouvir sua mente.
– Ah, tenho uma boa notícia – revelou Marinny.
– E do que se trata? – questionou Raffy.
– O Rei Orion me falou que uma embarcação especial seria preparada
para nós. É um navio de verdade e não um barquinho de pesca – zombou
Marinny.
Endrich fez que não ouviu e desviou o olhar para a costa. Uma nau
estava se aproximando, vindo do sul. Era enorme, percebeu. Caberia, no
mínimo, uma tropa inteira de soldados.
– Ah, que bom. Acaba de chegar nossa carona! – exclamou Marinny. Ela
andou até o cais, onde a embarcação atracou, esperando pelos seus
passageiros. – Então, vocês não veem?
Endrich foi o primeiro a caminhar em direção ao cais. O navio era muito
grande, nem seria necessária algo daquele porte, segundo Endrich. Mas
apesar disso, era muito bonito; todo seu casco reluzia ao toque dos raios de
sol.
Raffy subiu a bordo, seguindo Endrich. Logo um homem com uma barba
grisalha por fazer se aproximou deles. Ele mancava – tinha uma perna de pau,
e isso deixou o Guardião de Diamante curioso.
– Sejam bem-vindos ao Princesa de Jade, marujos – cumprimentou o
homem. – Sou o capitão Vorion, e serei seu guia pelas águas do Mar d’Oeste.
– Obrigado, senhor – agradeceu Raffy sorrindo e lhe apertando a mão.
Após todos os cumprimentos, os Guardiões guardaram suas bolsas nas
cabines destinadas a cada um deles. O capitão deu uma ordem a seus
marinheiros, e logo depois, com as velas içadas, o navio começou a sair do
lugar. Do extremo leste do Império de Jade, agora iam rumo ao norte, às
terras misteriosas da Ilha Elementar, a bordo do Princesa de Jade.
Oito
A Ilha Elementar

Espero que consigamos encontrar a princesa e o príncipe são e salvos. Caso


contrário, irei falhar em minha missão. Os pensamentos de Endrich o
deixavam inquieto.
Havia se passado dois dias desde que embarcaram no Princesa de Jade.
Apesar de a ilha não estar localizada muito longe da costa norte do Império
de Jade, a embarcação teve de fazer uma parada obrigatória para a
manutenção de um dos três mastros que se partira com a queda de um raio.
Ultimamente, percebeu Endrich, o tempo estava ficando perigoso para a
navegação; mesmo ali estando na primavera, tempestades assolavam o
ambiente sem dó. Era estranho pensar que o clima piorara enquanto se
aproximavam da ínsula.
Endrich e Raffy ajudaram no concerto do mastro e da colocação de uma
nova vela, tão branca quanto às nuvens. Enquanto isso, Marinny revelou seus
dotes culinários, pondo-se a preparar as refeições do dia.
Após o concerto do mastro e da vela, o capitão Vorion voltou a guiar o
navio, cantarolando uma antiga canção, em rumo a Ilha Elementar. Ele devia
ter entre cinquenta e sessenta anos, mas seu espírito era de um homem de
vinte e cinco anos. Sua barba era longa e branca, assim como seu cabelo. No
ombro esquerdo carregava um tagarela papagaio verde, que adorava dar
ideias loucas e cantar sobre o amor e revolução.
Certa vez o pássaro incomodou tanto que, se Endrich pudesse, iria tocá-
lo no mar. Mas acalmando-se, apenas o ignorou, ficando na popa, onde
gostara de ficar para escutar o som do mar ribombando no casco do navio.
Ali conseguia pôr a mente em ordem.
Um dia antes de a embarcação ancorar próxima a ilha, Marinny, com seu
jeito pouco carinhoso, aproximou-se do Guardião de Diamante e lhe
perguntou:
– No que você está pensando, novato?
Endrich, que olhava para a paisagem a sua frente onde despontava a ilha,
voltou-se para a garota, surpreso, e lentamente respondeu:
– Estou pensando se a princesa e o príncipe estão bem. Se nós iremos
conseguir salvá-los. Se vai dar tudo certo.
– Ah que tanto se – retrucou Marinny, revirando os olhos. – Você precisa
deixar um pouco os pensamentos de lado e fazer acontecer, é necessário agir!
Olhe, eu não sou a pessoa mais otimista do mundo, mas também não se pode
ser muito pessimista, sabia, novato? O negativismo traz as trevas e com ela,
nossa destruição.
Endrich assentiu, fitando as poucas sardas que insistiam em aparecer em
seu rosto.
– Sim, concordo com você. Só acho, às vezes, que não estou pronto para
tudo isso. Para tantos compromissos. – Ele virou o rosto para o mar e,
fitando-o, disse friamente: – Eu nunca deveria ter aceitado ser o Guardião de
Diamante. Eu não sirvo pra isso. Acho que teria sido melhor se eu morresse.
Subitamente, a Guardiã de Jade o puxou pela gola de sua camisa
arremangada e o olhou fixa e profundamente nos olhos. Seu olhar verde
parecia um abismo de sabedoria. Parecia impossível que o olhar de uma
pessoa pudesse ser tão intenso.
– Aqui, novato, não fale uma coisa dessas jamais! Estais ouvindo? Você
pode ter tido uma vida difícil, mas não chega aos pés da minha. Certo?
Endrich se assustou com a atitude da garota. O que havia levado ela
aquilo? E como assim a vida dele não chegava aos pés da dela? Agora, mais
do que assustado, estava curioso; queria saber.
– Eu só mencionei o que estou sentindo! – protestou. Logo indagou sem
rodeios: – Mas o que aconteceu em sua vida para deixá-la assim?
Marinny hesitou, aliviando a pegada em sua roupa.
– Ah! Isso não vem ao caso agora. Você devia pensar muito antes de
ficar dizendo essas bobagens. – Ela soltou Endrich, sem tirar o olhar do dele.
– Não é por que você é um pouco idiota que tem que dizer essas coisas sobre
ter morrido. Você ainda tem muita coisa pela frente e precisa enfrentá-las de
frente, de peito erguido.
Endrich sentiu o coração parar por um momento. O olhar que Marinny
lhe mandava reforçava a angustia que passou a sentir. Será que o que a garota
lhe dizia era verdade? Há algum tempo ele teve um sonho com seu pai de
sangue – Hamiro Ragrson – que lhe disse ter muitas aventuras pela frente. E
Marinny, agora vindo com esse papo de que ele ainda teria muita coisa para
enfrentar de peito erguido. Será que tudo isso tinha mesmo a ver com ele?
Sua cabeça rodopiava. Não sabia mais o que era certo. Estava com medo.
De repente Raffy se aproxima, cortando suas divagações.
– Vocês dois conversando? – disse ele, sorrindo. – Esse mundo está
perdido.
– Mas você entendeu o que eu quis dizer, não é? – falou Marinny a
Endrich, ignorando Raffy por um momento.
O Guardião de Diamante assentiu com a cabeça. Ele começou a aceitar
tudo o que Marinny lhe dissera. Entretanto, imaginava que tipo de habilidade
ela teria, já que falou tanto do futuro. Teria a mesma que ele? Quase
improvável. E isso não vinha ao caso agora.
– Raffy, coisas estranhas às vezes acontecem – disse Endrich, em
resposta ao comentário do Guardião de Cristal.
Os três riram – até mesmo Marinny, mesmo que fracamente. Olhando
com maior atenção agora, o Guardião de Diamante percebera que Marinny
ficava um tanto encabulada na presença de Raffy. Não tinha certeza, mas lhe
parecia que o mesmo acontecera no ciclo passado, quando conheceu todos os
Guardiões Imperiais, no Povoado Zackiel. Seria possível que Marinny
Bellaire estivesse gostado do Guardião de Cristal?
Sentindo a brisa do mar, Endrich deu de ombros, deixando a ideia se
diluir. Gostaria de voltar atrás de todas as suas escolhas – algo que se tornara
impossível. Mas, balançando a cabeça, e, desfazendo seus pensamentos,
perguntou a Raffy o que ele sabia a respeito da Ilha Elementar.
Raffy explanou sobre, mas tudo se resumia ao que Endrich já havia
estudado. Entretanto, o Guardião de Cristal lhe revelou algo que, até então,
não possuía conhecimento:
– Nessa ilha, dizem os antigos, há uma espada mágica e muito poderosa.
Essa possui o poder sobre os quatro elementos naturais; sendo eles: água, ar,
terra e fogo.
– Mas o que essa espada tem de tão especial? – indagou Marinny,
parecendo um pouco confusa.
– Bem, dizem que ela foi forjada por um anjo. Feita totalmente de aço-
celestial.
Marinny estremeceu com a menção “anjo”.
Em seus estudos, Endrich aprendeu que o aço-celestial fora criado a
partir das estrelas, através de anjos. Eles utilizavam tal aço como material
para a criação de armamentos celestes. Porém, quando essas armas e esse tipo
de ferro caíram sobre as terras s humanas, foram utilizados contra seus
próprios criadores, varrendo-os dos mundos. Afinal, o aço-celestial é o único
capaz de matar um anjo. Por fim, após anos, as armas celestiais foram
arrancadas de Onyx e nunca mais foram vistas – com exceção das armas
imperiais.
– Mas, Raffy, se essa espada foi feita de aço-celestial, ela pode matar
anjos. Mas qual seria sua função sobre o nosso mundo? – quis saber Endrich.
Raffy pareceu estar vasculhando a resposta em sua mente. Então
respondeu:
– Bem, segundo meus estudos, algumas armas feitas por anjos forjadores
tinham poderes elementares. Sendo que a maior delas foi a Espada Elemental.
Que, numa incrível batalha entre anjos e demônios, se perdeu em nosso
mundo, dando vida a ele.
Endrich tentava absorver aquilo tudo o mais rápido que conseguia.
Então, segundo Raffy, aquele era o poder que dera vida a seu mundo. Era
incrivelmente arrepiante saber que tal arma teria tanta energia.
– Então foi, realmente, esse o poder que nos originou? – comentou
Marinny estupefata.
– Não! – apressou-se em dizer Raffy. – Essa é uma das lendas que
envolvem a vida de nosso mundo. Mas existem muitas outras. Não creio que
isso seja verdade. Por outro lado se for mesmo essa a verdadeira lenda, a
espada somente deu vida ao mundo e não a nós humanos. Mas isso é outra
história.
Enquanto o navio seguia em seu ritmo balançado, Raffy contou-lhes um
pouco mais a respeito das terras misteriosas da Ilha Elementar.
– Bem, vocês sabem que a ilha fora amaldiçoada, mas sabem por que os
Soldados foram juntos? – Vendo Endrich e Marinny balançar a cabeça,
negativamente, Raffy prossegue: – Diz à lenda que após os Soldados
Elementares recusarem a oferta de um ser demoníaco, este tentou de todas as
formas pegar a Espada Elemental para si, mas um dos quatro Soldados,
sacrificando-se em nome de suas terras, ganhou um combate mortal,
expulsando o demônio da ilha. Porém, para não sair totalmente derrotado,
esse ser maligno lançou a maldição sobre a ilha: E de setecentos em
setecentos anos, que a ilha renasça e pouco tempo depois se desfaça.
– E logo depois a ilha afundou – concluiu Endrich. – Sendo que a
maldição se apegara a eles também.
Raffy assentiu, tristemente.
Bem, acho que teremos de lutar com mortos-vivos – pensou o Guardião
de Diamante. E isso não está me animando muito.
Aquela noite foi longa aos Guardiões, que esperavam ansiosamente para
chegar à ilha amaldiçoada. Endrich, então, nem sequer fechou os olhos para
dormir. Ficou olhando a chama bruxuleante de a lamparina diminuir.
E assim seguiu a noite, morna e longa.
––––
Endrich foi o primeiro a se jogar na areia fofa da praia. Os Guardiões recém-
chegaram à Ilha Elementar. Ele respirava profundamente, sentindo a maresia
e a brisa do mar.
O capitão Vorion ancorou há uma boa distância da praia, onde não
poderia encalhar – caso a maré baixasse. Sendo assim, Endrich, Raffy e
Marinny tiveram de chegar à ilha por um barco a remo, tendo como
consequência os braços doloridos dos Guardiões de Cristal e Diamante,
causados pelas fortes ondas. Marinny disse que acima de tudo era uma dama
e que não remaria nem que Endrich estivesse se afogando. Quanto amor.
Endrich se colocou de pé, limpando-se da fina areia que ficara em sua
roupa. Apesar de ter sido ótima a sensação de ter se jogado na areia macia,
foi incrivelmente capaz de se sujar até mesmo por dentro da calça.
– Será que o capitão vai tentar ir embora sem nós? – perguntou Marinny.
Raffy lhe lançou um olhar incrédulo.
– Se depois que você falou como uma mãe-mandona e disse que lhe
cassaria até no Reino dos Mortos caso ele se atrevesse a sair sem nós, e ele
ainda tiver coragem… Olhe, esse homem merecerá uma medalha por ser o
primeiro a lhe desafiar de tal maneira.
Endrich riu, concordando com Raffy; e Marinny lhe deu um cutucão com
o cotovelo, mandando ele se calar.
– Bem, acho que podemos seguir – disse o Guardião de Cristal, após o
momento de raiva de Marinny.
Em poucos minutos, os três Guardiões estavam adentrando pela mata
fechada, onde poucos raios de sol conseguiam atravessar a copa das árvores.
Depois de algum tempo, a ilha inteira tremeu. Os três se assustaram.
– O que foi isso? – disse Marinny.
– Raffy? – Endrich olhou para o Guardião de Cristal.
– Terremoto não é. Só pode ser a maldição, lembram? Não temos muito
tempo. Se não formos rápidos, iremos afundar com essas terras, e, tenham
certeza, não iremos sobreviver.
Essa foi uma notícia que Endrich não gostou muito. Agora mesmo ele se
sentia quase incapaz de fazer qualquer coisa em prol de ajudar alguém.
O tremor não levou mais do que pouquíssimos instantes e, com isso,
voltaram a sua caminhada. Tentariam encontrar alguma pista que os
pudessem levar até o príncipe e a princesa.
Com o Sabre de Cristal em forma de espada longa, Raffy abria caminho
entre a densa vegetação; enquanto Marinny, com sua Lança de Jade
empunhada firmemente, olhava atentamente em busca de algum perigo,
cobrindo a retaguarda.
– Oh, novato – começou a Guardiã de Jade –, você não vai preparar seu
arco, não? E se aparecer algum perigo de repente? Você estará ferrado, pois
eu não lhe ajudarei.
Endrich revirou os olhos e preparou o Arco de Diamante – abrindo e
alongando suas hastes magicamente – e posicionou uma flecha em sua corda,
tencionando-a levemente. Ele balançou a cabeça, tentando afastar uma voz
que o alarmava desde que entrara na floresta. Por isso esquecera sua arma.
Cuidado! – disparava sua mente.
Depois de seguir por mais alguns minutos, por fim, Raffy corta o último
galho que os separa de uma clareira e de algo que eles nunca pensariam em
ver na vida.
Nove
Cobra

Quando os três deram um passo à frente, ouve-se uma movimentação brusca


vindo das árvores mais a frente. Inesperadamente, uma gigantesca cobra
rasteja para o meio do círculo, saindo do paredão de árvores que dava forma a
clareira. Os Guardiões recuaram, fitando o estranho animal.
A cobra era tão grande que Endrich não saberia compará-la a alguma
outra coisa. Porém, não era só isso que preocupava aos Guardiões Imperiais,
mas sim o fato dela ter duas cabeças, ao invés de uma. Cada cabeça possuía
uma bocarra com duas fileiras de dentes enormes e pontiagudos. Suas
escamas verdes azuladas cintilavam aos raios do sol, e seus olhos amarelos
estavam fixos nos jovens.
– Estamos ferrados – cochichou Marinny. – Será que podemos fazer a
volta, por favor?!
Endrich percebeu que o tom de voz da garota estava um pouco
sobressaltado, quase estrangulado, e que seu corpo tremia. Ou isso era
extrema raiva ou era medo. O Guardião ficou um pouco pensativo em relação
a ela: Será que Marinny está fugindo de uma luta?
– Não consigo! – Marinny estava trêmula. Então desabou no chão,
tapando os olhos com as mãos. – Não, não!
Endrich e Raffy se agacharam ao lado dela.
– O que houve? – indagou Endrich, enquanto tentava ver a cobra com
sua visão periférica.
Marinny estava apavorada. Quando ergueu a cabeça, seus olhos
mostravam um medo jamais visto por Endrich. Uma máscara de horror se
formou no rosto da jovem. Essa não é a Marinny que eu conheço.
– C-cobra! – Foi só o que a garota conseguiu dizer.
Endrich se voltou para Raffy, que já estava de pé, olhando para algum
lugar. Como não percebera sua movimentação?
– Raffy? Raffy?! – Endrich se pôs de pé e se juntou ao amigo. Ele olhava
fixo para um único ponto. Era como se estivesse enfeitiçado…
Quando se virou para o lado em que Raffy não parava de olhar, Endrich
teve um enorme susto. A cobra de duas cabeças havia percorrido quase todo
o espaço que a separava dos Guardiões, e agora ela estava há alguns metros
de distância. Os olhos fixos nos de seu amigo.
– Raffy! – Endrich gritava, enquanto chacoalhava o amigo. Mas de nada
adiantava. O Guardião estava sendo hipnotizado pela cobra.
Hipnotizado? Os olhos!
Uma das cabeças estava bem próxima ao Guardião de Cristal, com seus
enormes dentes a mostra e com a língua bifurcada transpondo os lábios,
balançando-a e produzindo um chiado ensurdecedor: Sshhh!
Endrich tentou, de todas as formas, retirá-lo daquele estranho transe, mas
ele não acordava. Ela deve estar se preparando para dar o bote – pensou, ao
perceber que a cobra estava se esgueirando para mais perto. Não tinha mais
tempo, e o medo o atingiu intensamente.
Sem pensar direito, Endrich, que já estava com uma flecha presa ao arco,
tencionou a corda o máximo que pôde, trazendo-a para perto da orelha e,
mirando-a como conseguia, soltou a corda, fazendo a flecha se transmutar no
ar. A seta acertou entre as duas cabeças da cobra, onde seu corpo se bifurcava
nos pescoços.
Com um imenso grito de dor e raiva, o animal parou de seguir,
escancarando as bocas. Por sorte o alvo não era mais Raffy. Entretanto, se
tornara Endrich.
Percebendo que a imensa cobra não ficara nada satisfeita com seu feito,
empurra Raffy para perto de Marinny, que ainda estava encolhida no chão
com os olhos arregalados. O Guardião de Diamante correu, dando a volta na
cobra pelo seu lado esquerdo. As duas cabeças tentaram-no abocanhar, mas,
sendo rápido e habilidoso, Endrich consegue se esquivar a tempo dos
enormes dentes do animal.
Estando a uma boa distância da cobra, ele pôs duas flechas tencionadas
no arco e, quando o animal se virou de súbito, ele se obrigou a soltar as setas,
que voaram retas, transformando-se no ar. As duas cabeças se esquivaram
rapidamente, abaixando-se.
A cobra o fitou dentro dos olhos. Os olhos! – lembrou-se ele. Só pode ser
os olhos que a fazem hipnotizar suas presas. Endrich desvia o olhar da cobra,
e ela começa a se rastejar em sua direção. Ele tentava não fitar o grande
animal, mas como batalhar contra algo que ele não deveria olhar?
O Guardião começou a andar para trás, enquanto a cobra começou a
seguir mais rápido em sua direção. Endrich estava desesperado. Pelo o que
percebera, o animal era muito mais esperto do que ele imaginara. Pegando
uma flecha em sua aljava, presa a suas costas, Endrich tenciona novamente a
seta na corda. Quando se preparou para atirá-la, uma pedra surge em seu
caminho e ele tropeça, desabando no chão. O ar foge de seus pulmões.
As duas cabeças da cobra estavam prestes a lhe fazer de refeição,
partindo-o ao meio, quando pararam inesperadamente. Endrich estranhou, e,
arriscando-se a olhar melhor, percebeu que as cabeças não estavam mais
voltadas para ele, mas sim para um ponto atrás dela. Por entre as cabeças do
animal, o Guardião pôde distinguir Marinny, defronte para o animal,
enfrentando o próprio medo.
– Marinny, saia daí! – gritou ele.
– Não! Eu vou enfrentá-lo! – respondeu ela, tremendo.
Marinny começou a correr contra a cobra, que iniciou seu trajeto em
direção a ela. Empunhando firmemente a Lança de Jade nas duas mãos, a
Guardiã se lançou contra o animal, dando um imenso salto na altura de suas
cabeças. Todavia, ela não terminou o movimento. A cobra fora mais rápida e,
ao perceber a aproximação de Marinny, usou sua longa calda como arma,
atingindo-a em cheio, fazendo-a ricochetear contra uma árvore e cair.
Endrich se apavorou e tentou se aproximar da garota, mas fora barrado
pelo réptil, que lhe lançou um novo olhar, ainda mais penetrante. Ele se
sentiu como se estivesse solto no ar, voando, sentindo a leve brisa do mar. De
repente ouviu-se uma voz ecoar em seus ouvidos: Hipnose… hipnose… Não
queria ouvi-la. Queria saber de onde surgiam aqueles pensamentos que o
ajudavam, mas não agora… Então a sensação de estar voando se despedaçou
como vidro atingido por uma pedra e Endrich pôde distinguir as fileiras de
dentes bem próximas a seu rosto, prestes a abocanhá-lo.
Só houve tempo de o Guardião se jogar para a direita, quando a cobra
baixou as duas cabeças ao mesmo tempo em sua direção. O animal bateu com
os focinhos no chão, abrindo um buraco na terra. Mais do que nunca,
percebeu Endrich, ela estava furiosa, podendo comer outro animal igual a ela
de tanta raiva que exalava. As línguas vibravam no ar numa dança macabra.
Suas cabeças se ergueram rapidamente, arrancando um punhado de
gramíneas do solo, virando-se para Endrich, que estava pondo uma flecha no
Arco.
– Isso é para você! – gritou ele, enquanto a flecha se modificava ainda
em suas mãos.
Endrich disparou a flecha, que penetrou no olho direito de uma das
cabeças. Rápido e furiosamente, o Guardião pegou mais duas flechas e mal as
mirando soltou-as em direção as bocas abertas da cobra gigante. A precisão e
a velocidade em que as setas voaram contra o animal foram tanta, que
acertaram as gargantas da cobra, atravessando-as. Logo depois o animal
estava caído no chão, sem vida, os olhos perdendo a tonalidade amarelada.
Exausto, o Guardião de Diamante correu até Raffy, que já havia voltado
ao seu estado normal, por mais que parecesse confuso.
– Você está bem? – indagou Endrich.
Raffy assentiu, uma mão na cabeça.
– Estou. Nossa, a sensação de liberdade era tão boa, Endrich – ele
comentou.
– É. Eu também senti essa mesma sensação. Era deliciosamente
assustadora.
– Mas então como você saiu do transe?
– Nem eu sei. – Endrich ficou um pouco confuso, mas sabia a resposta.
– E Marinny? – perguntou Raffy, preocupado.
Os dois seguiram até a garota, que ainda permanecia inconsciente,
deitada no chão.
– Nós precisamos tirá-la daqui – disse Endrich.
Raffy assentiu, e de repente olhou para onde a cobra estava caída.
Endrich viu que o amigo estava vidrado. A cobra de novo não – pensou.
Logo virou-se para onde ele tanto vislumbrava; foi quando seu queixo caiu.
Além da cobra e da vegetação verde que cobria o terreno, uma
construção de pedra amarelada e maciça se erguia imponente, formando uma
espécie de pirâmide escalonada.
– Isso não estava aqui. – Infelizmente Endrich tinha que concordar. –
Deve ser algum tipo de templo antigo – comentou Raffy.
– Aham… Eu pensei a mesma coisa – respondeu Endrich. – Então, o que
vamos fazer?
– Não temos alternativa. Podemos encontrar algumas respostas aqui, não
acha?
Assentiu. De alguma forma, O Guardião de Diamante sentia que ali era
onde realmente iniciaria sua jornada.
Dez
Templo dos Mundos

Raffy pousou Marinny no chão de pedra. O templo por dentro era muito
maior do que parecia ser por fora. Suas paredes eram erguidas com grandes
pedras – que por dentro tinham um toque alaranjado –, onde se encontravam
várias pinturas antigas. A maioria delas se referia aos mesmos personagens –
duas mulheres e dois homens.
– Nós precisamos de água – disse Raffy, sentando ao lado da Guardiã
desmaiada.
– Mas meu cantil está seco, sem uma gota. Não me lembrei de enchê-lo
no navio – respondeu Endrich, torcendo o semblante.
Ele olhava para as paredes do templo com atenção. Via cenas de
congratulações, ao mesmo tempo em que via imagens de guerra e destruição.
– Eu vou ver se encontro alguma coisa – incitou Endrich.
– Encontrar o quê? Aqui só tem paredes de pedra e areia – replicou
Raffy, mostrando a fina camada de poeira que encobria o chão também de
pedra.
– Você, zombando de mim? Nã-nã-nã… Eu vou ver se encontro alguém
– explicou o Guardião de Diamante. – Sei lá, vai que alguém mora aqui?
– Está bem – acedeu Raffy. – Vá, mas tome cuidado. E eu duvido de que
alguém more aqui… E se morar deve ser deprimente.
Endrich se levantou e seguiu por um corredor. Ele não acreditara que
Raffy estivesse falando como Marinny. Será que a personalidade de Marinny
está passando para Raffy? – perguntou-se o Guardião. Ah, decerto não;
credo, ele deve estar tão zombeteiro por causa da pressão que está sofrendo
imposta pelo juramento que fez ao Imperador Zackiel. Ele o entendia. No
entanto, algo que não pensava sobre ele decidiu permear sua mente…
Chacoalhou a cabeça, guardando isso num canto inóspito. Não queria ficar
com dúvidas em relação ao amigo novamente.
O corredor pelo qual Endrich caminhava, era largo e longo. Mais
pinturas apareciam pelas paredes, e ele ficou atônito ao perceber que podia
vê-las claramente, sem o auxílio de alguma tocha ou lampião. Além de o
Arco lançar uma pálida luz pérola, algum tipo de iluminação constante
atravessava o teto alto do templo, dando a ele a possibilidade de enxergar
sem dificuldade.
O Guardião de Diamante procurava por qualquer pessoa – não sendo,
claro, uma cobra gigantesca de duas cabeças com enormes dentes
pontiagudos, querendo lhe usar como refeição.
Seguindo, Endrich desembocou numa espécie de salão. O teto era mais
alto que o do corredor, porém, o que o impressionou não foi isso, mas sim o
rio que atravessava o meio do salão. No caso, havia sido aberta uma espécie
de vala, abobadada, onde a água corria livre e ligeiramente, atravessando uma
abertura na parede. Além dela não havia luz alguma e ele se perguntou como
aquilo seria possível.
Mesmo as dúvidas lhe rondando, Endrich se agachou na margem do rio e
encheu seu cantil – revestido de couro de boi. Percebeu o quão a água era
cristalina, não havia nenhum tipo de impureza, e um leve formigamento
cruzou sua mão. Estando o recipiente transbordando, o Guardião voltou pelo
mesmo corredor para perto de seus amigos. Antes de desembocar no
corredor, parou abruptamente.
Analisava um daqueles desenhos com maior interesse, e percebeu que ali
havia uma história maior do que poderia imaginar. Cinco pessoas recebiam
de cinco anjos, armas que brilhavam em tom de luz laranja esbranquiçado.
Suas mãos estavam estendidas, de costas para Endrich e de frente para os
angelicais. A história dos Guardiões.
Seus olhos espreitaram o local a sua volta. Não havia ninguém ali perto.
A voz novamente? Devo estar ficando maluco, isso sim! Chacoalhou a
cabeça e resolveu que já era hora de se juntar novamente a seus amigos.
Contudo, ao chegar ao hall, não acreditou em seus próprios olhos.
Raffy, que estava com a cabeça de Marinny apoiada em seu colo, sentado
no chão, estava sendo ameaçado por uma mulher de cabelos ruivos, que
segurava um longo tridente de gelo, com as pontas tão afiadas quanto as
lâminas de suas flechas.
– Ei! – gritou Endrich.
Ele congelou quando a mulher se virou para ele. Várias coisas passaram
pela sua cabeça. O que ela está fazendo aqui? Como ela chegou aqui?
– Endrich? – espantou-se Sheron MacWyes.
– Vocês se conhecem? – exclamou Raffy, perdido.
Endrich assentiu relutante.
– O que você está fazendo aqui, Sheron?
– Eu que te pergunto Guardião.
Hesitante, ele explicou que estava na missão de resgate à princesa Blair
Crystan; que a única pista que conseguiram levou-os aquele lugar.
– A princesa não está aqui! – estourou Sheron.
Endrich hesitou. Como ela poderia ter tanta certeza? O que ela estava
escondendo?
– Você precisa ir. Não pode ficar aqui, é muito perigoso. Vá embora! –
Sheron baixou sua arma de gelo.
– Não, Sheron. – Endrich se lembrou de seu sonho há alguns dias, onde
estava num ambiente igual aquele e a mulher lhe olhava da mesma forma
como no sonho. Agora a visão fazia sentido! Ele sentiu uma pontada de
medo, mas não deixou isso transparecer.
– Você não entende Endrich – suplicou Sheron.
– Eu não estou entendendo mais nada! – Raffy parecia desesperado, com
Marinny em seus braços murmurando algumas palavras sem sentido.
– Nós precisamos conversar – interveio Endrich.
Sheron se sentou num dos andares que levava a um altar. Ela parecia
aflita. Seu longo tridente magicamente se desfez em água; logo absorvida
pelo solo. Enquanto isso, Raffy pôs um pedaço de pano umedecido na testa
de Marinny, após Endrich lhe entregar o cantil.
– O que você está fazendo aqui? Como chegou aqui? – indagou Endrich
a Sheron.
A mulher pareceu hesitar, mas respondeu, calmamente:
– Eu moro aqui, Endrich. Eu sou dessas terras amaldiçoadas.
– Como assim? – perguntou ele, incrédulo.
– Eu… eu sou um dos Soldados Elementares. Sou Sheron MacWyes,
Soldada Elementar da Água.
Os dois Guardiões cientes arregalaram os olhos.
– Hmmm… – murmurou Marinny, desacordada.
Endrich se ajeitou.
– Você está me dizendo que…
– Que eu sou uma amaldiçoada – concluiu Sheron, secamente.
– Conte-me mais – pediu o Guardião de Cristal.
A Soldada Elementar negou com a cabeça.
– Quem sabe em outro momento. – Ela voltou os olhos para Marinny. –
O que ela tem?
– Bateu a cabeça e as costas contra uma árvore, depois de tentar lutar
com uma cobre de duas cabeças – contou o Guardião de Diamante.
– Ouvi dizer que os Soldados Elementares têm habilidades especiais, até
mais poderosas que as dos Guardiões Imperiais – comentou Raffy, admirando
a elementar. – E se você é água, suponho que pode usar os poderes curativos
desse elemento, assim como projetar um tridente de gelo!
Sheron assentiu. Relutantemente, aproximou-se de Marinny e, abrindo o
cantil, fez a água expelir para fora do recipiente, dirigindo-se para o rosto da
Guardiã de Jade. O líquido seguiu por uma das faces até a testa e nuca, onde
estava machucada. Em poucos segundos, a jovem, resmungando, abriu os
olhos, tomando foco. Ela respirou profundamente. Parecia melhor.
– Obrigada… – murmurou ela a Sheron, que sorriu alegremente.
– Nossa! – exclamou Raffy, surpreso. O rosto iluminado em um sorriso.
– Você devia ter sido uma ótima medicastra.
Sheron enrubesceu.
Enquanto Marinny se recuperava, Endrich, impaciente, fez uma pergunta
que estava o incomodando muito.
– De onde surgiu esse lugar?
A mulher de olhos azuis se virou para ele.
– O templo? Como vou dizer… Você tinha dito que Marinny lutara
contra uma cobra de duas cabeças, certo?
Endrich assentiu, incluindo sua parte na luta com o animal também.
– Certo. Shait é o nome da serpente. Ela protege, ou protegia… o Templo
dos Mundos, que é onde estamos. Quando ela é derrotada por um
desconhecido, o templo se revela.
– E desconhecido, você se refere a mim e meus amigos?
– Desconhecido é todo aquele que não reside na ilha – explicou Sheron.
– Como nós, Soldados e ex-moradores, moramos e moravam aqui, não
precisávamos lutar contra a imensa cobra. Ela era até bem carinhosa com nós.
Raffy deixou o queixo cair.
– Aquilo era carinhosa?
A Soldada riu.
– Mas eu já ouvira falar dela – comentou Raffy –, da cobra. Eu li, certa
vez, narrada por um xamã, que dizia existir tal animal de duas cabeças,
protetor de um portal que interligava os mundos. Uma espécie de passagem.
Eu só não imaginava que poderia ficar aqui na Ilha Elementar.
Sheron assentiu.
– Shait é mais do que uma guardiã de portais, é também do
conhecimento. Se vocês adentrarem os corredores do Templo, desvendarão
suas mais profundas raízes, e se tornarão donas de uma sabedoria gigantesca,
como o próprio Rio Styx, onde você pegou a água, Endrich. Mas, sobre os
portais, é apenas um conto, uma lenda. Eu sei disso por que toda vez que
renascemos com a ilha, moramos aqui. E vocês podem ter certeza de que eu
nunca vi nada do tipo.
– O Templo dos Mundos – continuou a Soldada – foi construído por
nosso anfitrião, nosso pai. Mas hoje ele está morto; na verdade há séculos. –
Sheron parecia um pouco emocionada. – Ele construiu isso para nós…
Um frio percorreu a espinha de Endrich. Ele sabia o que era sentir a
perda de um ente querido. Quando seu pai de criação, Ondrich Ragrson, foi
assassinado, ele sentiu como se retirassem parte de sua alma. E agora
imaginava que Sheron sentia a mesma coisa, apenas fitando o olhar triste da
mulher.
Subitamente, a Soldada Elementar mudou sua expressão de tristeza para
seriedade.
– Vocês precisam ir embora. Não vão querer entrar num conflito, certo?
– Que conflito? – perguntou Endrich.
– Um que jamais será esquecido, que poderá mudar o rumo de nossas
vidas, caso ocorra.
– Mas, Sheron… – O Guardião foi interrompido pela Soldada, que
levantou a mão em sinal de silêncio.
Raffy se empertigou.
– O que aconteceu? – sussurrou ele.
– É melhor vocês se esconderem. Está vindo alguém – comunicou ela. –
Rápido! Vão!
Sem mais delongas, os três Guardiões se arrastaram para trás de
gigantescos pilares de pedras arredondados. Tanto Endrich quanto Raffy,
ficaram pensando em como ela sabia que alguém estava se aproximando.
Sheron voltou a se sentar num andar das escadarias. Sua expressão não
era muito contente. Foi quando, de repente, um homem alto entrou no
Templo dos Mundos, e se dirigiu até ela.
Onze
Um Pouco Sobre a Verdade

O homem que se dirigiu a Sheron era alto e esguio. Seu cabelo castanho-
ruivo parecia liberar ondas de calor. E Endrich, em certo momento, achou
que ele teria uma combustão espontânea.
– Você está seguindo o plano? – perguntou o homem sem rodeios.
– Sim, Sheldon, eu estou seguindo o plano. Quantas vezes eu tenho de
lhe falar? – respondeu Sheron, amorosamente. Ela tentava controlar a voz
para não soar nervosa.
Sheldon deu uma olhadela na direção onde os Guardiões estavam
escondidos. Endrich se empertigou. Um gelo percorreu sua espinha. Será que
o homem lhes vira ali?
– Precisamos dar um jeito nesses Guardiões Imperiais. – Sheldon cuspiu
as últimas palavras. – Eu os vi chegando à praia nessa manhã. Dois rapazes e
uma garota.
Como assim “dar um jeito nesses Guardiões”? – pensou Endrich, aflito.
– O que vocês acham que ele quis dizer com isso? – cochichou Raffy.
– Eu não sei. Mas sei que, se ele fizer algo contra mim… Rá! Eu acabo
com ele – sibilou Marinny, em um murmúrio quase inaudível.
Endrich estava muito preocupado com a princesa Blair, e sabia que, para
salvá-la, era necessário que ele não fosse morto. Por isso pediu para que
Raffy e Marinny ficassem em silêncio para que pudessem escutar o resto da
conversa. Precisava descobrir mais sobre aquele homem.
– Então, Sheldon, qual é o próximo passo? – quis saber Sheron, olhando
de soslaio em direção à coluna em que eles se escondiam.
– A princesa e o príncipe já estão sobre nosso domínio. Eu mesmo os
trouxe para cá. Agora é só esperar os Guardiões nos alcançarem e dar um
jeito de pegarem a Espada – lembrou Sheldon.
– Você tem certeza de que eles poderão pegá-la para nós?
– Tenho sim. – Sheldon parecia muito confiante. – Se o arqueiro
conseguiu derrotar Trevys, praticamente sozinho, conseguirá encontrar a
Espada.
Sheron assentiu com um sorriso nervoso.
– Espero que você esteja certo.
– Eu sempre estou certo.
Com isso, Sheron foi envolvida pelos braços de Sheldon e beijada nos
lábios.
––––
Sem hesitar, Endrich sai de seu esconderijo no exato momento em que
Sheldon pôs os pés pra fora do templo. Ele estava enrubescido de raiva e
indignação. Pesadamente, ele caminhou até a Soldada Elementar, que, de pé,
o olhava apreensiva.
– Você está nos enganando! – explodiu o Guardião de Diamante. – Esse
tempo todo, só esteve fazendo a gente acreditar em você! Desde o começo,
quando você me conheceu no Império de Cristal. Tudo já era uma farsa!
– Não, espere – interveio Sheron. – Eu posso explicar.
– Então é bom começar!
Sheron hesitou. Endrich percebeu que por mais que seus olhos
transparecessem segurança e coragem, no fundo, ela estava um pouco
assustada. Ele só não sabia se era por sua causa, ou se era por outra coisa.
Tinha medo que fosse por causa dele.
– Vamos, explique – insistiu o Guardião.
– Certo. Queremos que vocês recuperem uma arma muito valiosa para
nós. A Espada Elemental uma…
– Eu sei sobre a espada. Conte-me o porquê vocês a querem.
Sheron hesitou novamente. Suas sobrancelhas se uniram. Ele parecia
indignada e com raiva. Endrich não saberia dizer o que ela estava sentindo
naquele momento.
– Certo – suspirou. – Tentaremos fazer uma oferenda aos deuses.
Entregaremos a Espada em troca de nossa liberdade. O poder de andar sobre
a terra dos humanos sem que morrêssemos.
Endrich sentiu um aperto no peito. Imaginou o quão seria horrível
renascer e morrer a cada setecentos anos. Ele não gostaria de passar por algo
desse tipo. Afinal, os motivos de Sheron não pareciam tão maléficos,
tampouco totalmente benevolentes.
– Bem, se estou certo – interrompeu Raffy, caminhando até Sheron –,
caso vocês entreguem a Espada, nosso mundo estará perdido. Grandes
catástrofes ocorrerão, e toda a vida em Onyx vai se perder.
– Mas é um preço a se pagar – respondeu Sheron, seca.
Mas o que adiantaria ter a vida retomada se em alguns dias ela
morresse? – pensou Endrich, pasmo.
– O problema é que já está acontecendo mudanças no clima de Onyx –
continuou a Soldada. – Aqui, nessa parte do Império de Jade, que era para ser
um verão de céu azul, está se transformando em um céu de tempestades.
– Verdade – concordou Endrich, lembrando-se da viagem até ali.
Marinny, já recuperada, seguiu até Sheron e falou disposta:
– Certo. Nós vamos pegar essa tal de Espada Elemental. Agora, se vamos
deixar vocês nos matarem, eu não sei. Isso é outra história. Se ela está
perdida, e por causa disso que o clima está mudando, nós a encontraremos e a
colocaremos em seu lugar.
Endrich franziu a testa. Nunca vira Marinny tão disposta – mesmo por
que nunca havia saído com ela numa missão tão grande. Acho que ela bateu a
cabeça com muita força.
––––
Os quatro seguiram por uma trilha entre a mata, na direção norte da ilha, local
onde, supostamente, Sheldon estaria fazendo seus planejamentos. Enquanto
caminhava, o grupo ouviu o som de arbustos se mexendo e de gravetos sendo
partidos. Endrich estava tão preocupado e distraído, que nem deu atenção a
isso. Deveria ser apenas algum animal…
Após o ataque de disposição em Marinny, decidiram seguir ao encontro
do Soldado Elementar do Fogo – como Sheron descreveu Sheldon Brand.
Marinny havia desconfiado muito do jeito de Sheldon, por isso impôs aos
companheiros para que seguissem seu rastro até ele, onde poderiam
“conversar”.
– Sheldon não vai gostar nada disso – comentou Sheron.
Marinny revirou os olhos.
– Ah, por favor, ele que aguente. Vamos ver se esse homem é tão
resistente.
– Sheron, conte-me um pouco mais a respeito de Sheldon – pediu Raffy,
evitando um galho com a mão. – Eu só li algumas coisas a respeito de vocês,
mas não o suficiente para saber a respeito de suas personalidades.
Sheron hesitou. Endrich percebeu que a Soldada tinha medo de revelar a
respeito dele. Era como se ela quisesse proteger um bem precioso.
– Certo – ela começou a dizer. – Sheldon sempre foi o líder dos Soldados
Elementares, sempre muito autoritário. Mas ao mesmo tempo, ele é carinhoso
e dócil comigo. Acho que vocês puderam notar lá no Templo.
– Isso ficou bem claro para mim – concordou Marinny.
– Porém, com o tempo, principalmente depois que fomos amaldiçoados,
Sheldon começou a ficar paranoico com a possibilidade de voltarmos a ter
vidas normais – continuou ela. – Mas seria impossível, pois não sabíamos
onde a Espada Elemental estava escondida. – Sheron parecia prestes a chorar.
– Então, pouco antes da ilha morrer da última vez, há setecentos anos, um ser
maligno, Trevys, um anjo caído, esteve a sua procura e lhe indicou onde
encontrar a Espada que há tanto tempo ele procurava.
Endrich tremeu a menção do nome Trevys. Então, finalmente entrou na
conversa:
– E você sabe onde a espada está?
Sheron balançou a cabeça negativamente.
– Apenas Sheldon sabe onde procurá-la, mas ele me disse ser muito
perigoso ir à busca dela. Por isso, em forma de vingança, ele quer que você
vá encontrá-la.
– Vingança? Não estou entendendo. – Endrich ficou meio perdido na
história.
– Eu não sei muita coisa. Mas sei quem poderia lhe revelar um pouco
mais sobre a verdade.
O Guardião assentiu com a cabeça, concordando.
– Não acredito que nós não vamos ao encalço de Sheldon – protestou
Marinny. – Argh! Eu queria tanto dar uns bons tabefes nele.
Endrich revirou os olhos. Definitivamente, ela não fora com o jeito dele.
Sheron não pareceu muito feliz com o comentário da Guardiã. Por sorte
deixou isso de lado e, fungando, acenou por onde deviam seguir. Eles
viraram na direção oeste. Agora, segundo ela, eles estavam indo para o
Condado da Terra, onde o Soldado da Terra, o único com as respostas, estava
perecendo.
––––
Depois de um longo tempo de caminhada, o grupo despontou num pequeno
condado onde havia chalés e casas em ruínas e tudo estava em total silêncio.
Endrich ficou apreensivo, mas não deu atenção ao seu possível medo.
– Onde mora o Soldado da Terra? – ele indagou.
– Lá – respondeu Sheron, apontando para uma montanha além do
pequeno condado.
Em pouco tempo eles alcançaram a boca de uma caverna no meio da
montanha. O grupo estava muito cansado, mas a vista privilegiada que
tinham lá de cima compensava o esforço. A um bom passo de distância,
Endrich pôde avistar o Templo dos Mundos, sua coloração dourada reluzindo
fracamente a luz do sol, e mais ao sul pôde distinguir uma clareira em meio a
uma densa floresta. Havia alguma coisa nessa parte que deixou Endrich um
pouco alarmado.
O grupo entrou na caverna.
Quando Endrich viu um homem sentado sobre as pernas no meio da
caverna, sentiu uma imensa tristeza lhe tomar o corpo. O Soldado da Terra
possuía um olhar triste, sem rumo. Estava usando um manto sacerdotal
marrom sobre uma calça e uma simples camisa.
– Sheron? – espantou-se o Soldado, erguendo o rosto moreno para a
mulher.
– Dylan está tudo bem? – indagou Sheron, com um olhar preocupado.
Aproximando-se do amigo, agachou-se, pousou a mão em seu ombro.
Dylan desviou o olhar para os três Guardiões. Seus olhos castanho-
escuros não tinham sentimentos, e sua expressão era um tanto doentia. Sua
pele lembrava café com leite.
– Quem são eles? – quis saber ele, voltando o olhar a Soldada da Água.
– São os Guardiões Imperiais – apresentou Sheron. – Eles vieram buscar
os príncipes raptados por Sheldon.
Dylan assentiu. Havia nele algo que incomodava Endrich. Sheron o
apresentou:
– Ah, Guardiões, esse é Dylan Dunlok, o Soldado Elementar da Terra.
Endrich, Raffy e Marinny o cumprimentaram com um aceno de cabeça.
Dylan também os cumprimentou, um pouco relutante.
– O que vocês querem? – perguntou o Soldado, um tanto severo.
– Endrich, o Guardião de Diamante, precisa de sua ajuda. Ele quer saber
um pouco mais a respeito da vingança que Sheldon está tramando contra ele
– interpolou Sheron.
Dylan se pôs de pé, lentamente. Dirigiu-se até uma pedra, próxima a
entrada da caverna, e nela se sentou. O Soldado parecia absorto em seus
pensamentos. Endrich reparou que ele, de certa forma, parecia-se com Raffy
num aspecto: gostava de se sentar num canto e pensar em histórias para
contar aos outros. Porém, o Guardião não era tão moreno quanto Dylan e nem
tão vago.
– O que eu posso dizer – começou Dylan – é que Sheldon está se
envolvendo com demônios e anjos caídos. É isso o que eu sei.
Endrich não estava satisfeito. Ele olhou para Marinny, que estacou ao
seu lado. Ela parecia tão desconfiada quanto ele.
– Sei que você tem algo mais a dizer – disparou ela com um olhar
perscrutador.
O Soldado da Terra olhou de um lado a outro, procurando uma forma de
escapar deles. Mas era impossível.
– Está bem – ele retrucou, fitando os Guardiões. – Sheldon, pouco depois
que renasceu com a ilha, assim como todos nós Soldados Elementares,
encontrou-se com um demônio muito poderoso – continuou Dylan. – Este
disse a ele que o novo Guardião de Diamante havia sido encontrado. O
demônio afirmou a Sheldon que esse Guardião possuía muitas habilidades e
que, quase sem a ajuda dos outros, foi capaz de derrotar Trevys, um dos
serafins caídos mais poderosos.
Marinny olhou para Endrich um pouco consternada e cética. Endrich não
podia fazer nada a respeito do que Dylan estava contando sobre eles.
– E sobre a vingança, eu não sei nada a respeito. Isso é verdade – conclui
Dylan.
Marinny, ainda intrigada com sua história, aproximou-se do Soldado, que
estranhou a garota. Seus olhos pareciam duas bolas de jades, prontas para lhe
invadirem a alma.
– Sei que você esconde mais alguma coisa – disse Marinny num misto de
afeto e raiva.
– Como assim… – Dylan não concluiu a frase, pois Marinny tocou nele e
seus olhos se arregalaram.
Endrich, sobressaltado, não entendeu o que a Guardiã estava fazendo.
Ele olhou para Raffy, que estava com a expressão inalterada.
– O que ela está fazendo? – perguntou o Guardião de Diamante.
– Ela está usando de suas habilidades – respondeu o outro.
Fitando Marinny, tentou imaginar o que ela estava fazendo. Até então,
ele não sabia quais eram os poderes dela.
Subitamente a garota largou o braço de Dylan. O Soldado da Terra
voltou ao normal, e Marinny se voltou para Endrich e Sheron, com olhos que
indicavam suplica.
– O que você fez? – indagou Dylan, incrédulo. Arfava.
– Agora sei tudo o que você sabe – respondeu a Guardiã de Jade,
secando o suor que brotou em sua tez. Sua expressão se tornara por um
momento mais calmo e sereno.
Endrich não tirava os olhos dela. E, percebendo a indagação em seus
olhos, Marinny explica a Endrich que, ao tocar em Dylan, ela foi capaz de
captar todas as lembranças e sentimentos que ele já vivera.
– Sério? – Endrich estava boquiaberto.
– Sim, novato – confirmou Marinny, acenando com a cabeça. Não
parecia preocupada em lhe dar uma resposta cínica.
Sheron olhou para Dylan, que estava escorado na pedra que até pouco
estava sentado. O rosto dele mostrava um tipo misturado de expressões:
indignação, seriedade, medo. Tudo estava mesclado numa máscara.
– Você não tinha o direito de fazer isso comigo – protestou Dylan.
– Mas se eu não fizesse – retrucou Marinny, tranquila –, eu não teria
descoberto mais coisas a respeito de Sheldon.
– Como assim? – interveio Sheron.
Endrich viu nos olhos da Soldada da Água uma curiosidade aflorar.
Marinny se empertigou. Ela fechou os olhos em busca de uma das
lembranças de Dylan. As caretas que ela acabou fazendo seriam até
engraçadas, se não fosse pelo momento tumultuoso.
– Como vocês sabem, foi Sheldon quem raptou a princesa Blair e o
príncipe Gabrian. Ele quer usá-los para atrair Endrich e Raffy para uma
armadilha. Endrich será usado para encontrar a Espada Elemental, mas sobra
Raffy… não encontro nada nas lembranças de Dylan.
– É por que não há o que encontrar – replicou o Soldado da Terra. –
Sobre a armadilha que está sendo preparada para Raffy eu não sei de nada.
Raffy estremeceu ao lado de Endrich.
Marinny revirou os olhos. Aparentemente sua calma estava se esvaindo.
– Cale a boca – vociferou a garota. – Deixa-me ver… Sheldon não quer
apenas viver nas terras mundanas. Ele quer poder e mais poder. Quer ser um
dos futuros dominadores de Onyx ao lado de um poderoso ser. O líder de
uma ordem de seres devastadores, capaz de destruir o Universo!
Endrich sentiu um gelo percorrer a espinha e se alojar no coração.
– Ele quer o quê? – indignou-se Sheron.
Marinny voltou os olhos a Soldada.
– Ah, claro…
– Não! – berrou Dylan. – Não termine de falar!
– Conte-me. Fale tudo! – insistiu Sheron. Seu corpo tremia, o punho
fechado.
Marinny pareceu um pouco confusa. Mas, somando as circunstâncias em
que eles se encontravam, ela decidiu revelar a Soldada da Água outra coisa
que descobrira.
– Sheldon… ele não está sendo fiel com você. Ele está te traindo. O
Soldado está te usando apenas como um objeto. Ele não te ama como
imagina. Desculpe…
– Ele o quê? – berrou Sheron. Sua voz ecoou por toda a caverna. – Por
quê?
Dylan parecia desconsolado.
– Você era um peão, apenas mais uma peça no tabuleiro do jogo que
criou. Agora que ele sabe quem é Endrich graças a sua visita no Povoado
Zackiel, você é completamente descartável – concluiu a Guardiã.
O ar pareceu seco, difícil de respirar. Endrich percebeu que Sheron
perdera o chão e isso estava deixando seus poderes fora de controle. Ela
estava boquiaberta. Não conseguia entender mais nada. Parecia prestes a
explodir.
– Ele verá do que merece! – Sendo assim, a Soldada saiu correndo,
desesperada.
– Você viu o que fez? – disse Dylan a Marinny. – Você não devia…
– Você não tem que ficar me dizendo o que devo ou não fazer – estourou
Marinny. – Eu sei muito bem o que faço.
– Pois não parece.
Por uma fração de segundos, a Guardiã de Jade pareceu se culpar pelo o
que havia dito. Logo ela balançou a cabeça, limpando sua mente de tais
pensamentos. Fizera aquilo pelo bem deles – e de Sheron.
Endrich olhou para Raffy e Marinny, e, acenando para o Soldado
Elementar, eles correram ao encalço de Sheron.
Em poucos minutos eles alcançaram a Soldada. Ela havia descido para o
condado, onde estava sentada sobre um banco qualquer chorando e tremendo.
– Por que ele fez isso comigo? – perguntou ela mais a si mesma.
– Não fique assim – tentou consolar Raffy. – Pode ser que Marinny
esteja errada.
– Não, eu não estou errada – retrucou a Guardiã. – Eu sei o que vi. A não
ser que as lembranças dele estivessem erradas. Mas isso eu acho um pouco
difícil. Sheldon o visitou há alguns dias.
Raffy não sabia mais o que fazer.
Endrich que até então estava em silêncio, olhando para a floresta por
aonde chegaram ao Condado da Terra, suspirou profundamente. Algo estava
o incomodando.
– Há algo de errado aqui – ele comentou.
– Às vezes acho que você também tem as habilidades de Tannael – disse
Raffy, lembrando-se do Guardião de Esmeralda.
Endrich caminhou em direção à floresta, mas antes de chagar perto o
suficiente, uma casa ao seu lado explodiu em chamas. Ele quase caiu por
causa do susto e da movimentação do ar. De repente todas as outras casas,
que seguiam lado a lado e em paralelo, romperam-se em chamas. O fogo se
deliciava delas. Logo a floresta a frente do Guardião de Diamante também
explodiu e ele correu, juntando-se aos seus amigos novamente.
Em questão de segundos, o grupo estava rodeado por chamas.
Doze
Brincando com Fogo

Endrich tinha a sensação de estar dentro de uma fornalha – não que ele já
estivesse numa. O calor que os assolava parecia fazer seu corpo derreter igual
a gelo. Olhando para os lados, encontrou os olhos assustados de Raffy e os de
raiva de Marinny.
Mas o Guardião de Diamante pôde perceber algo que Marinny não
queria demonstrar: assim como Raffy, ela estava passando mal, causado pelo
excesso de calor a que eles estavam sendo expostos. Porém Sheron não
parecia nem um pouco mau, e Endrich também não. Estava disposto a
descobrir do que se tratava aquilo. Era como se sua força de vontade o
protegesse.
Ele podia ver nos olhos da Soldada da Água que ela sabia de onde
vinham todas aquelas chamas, e quem a causara. Ela olhava firme para frente,
parecendo disposta a atravessar aquela imensa parede de fogo.
– O que é isso? – perguntou Endrich, um pouco ofegante.
– Sheldon – respondeu Sheron, pouco mais que um sussurro. Suas
lágrimas haviam secado. Isso respondia muita coisa. Endrich concluiu que
toda aquela chama estava sendo produzida pelo Soldado do Fogo.
Endrich volveu para Raffy e Marinny. Os dois já estavam se apoiando
nos joelhos para não desabarem de uma vez. E, concluindo, o Guardião de
Diamante percebeu que seria o próximo a desfalecer assim como os amigos.
Não teria forças para aguentar muito mais. Começava a sentir o corpo secar
como fruta ao sol.
– Sheron? – Ele olhou para a mulher. Ela havia fechado os olhos; estava
se concentrando em algo.
Endrich olhou para as chamas e seu coração quase parou. Percebeu que a
parede de fogo lambia algumas árvores sem dó, produzindo o ruído de
madeira estalando e que se aproximava rapidamente. Em questão de minutos
os alcançaria, e com certeza o estrago não seria pequeno.
Contudo, logo pôde ouvir o que parecia o barulho de ondas marinhas, e,
subitamente, uma explosão de água rompe entre a floresta, atingindo as
labaredas. Para Endrich era assustador ver tanta água andando entre o fogo
como se possuísse vida própria. Olhando para a Soldada da Água, tão
absolvida e séria, ele deduziu que a massa líquida estava sendo manipulada
por ela. Quanto poder!
– Rápido! Vocês precisam correr! – gritou Sheron, acima do barulho da
água.
Lentamente a temperatura parecia baixar no ambiente, e não demorou pra
que Endrich puxasse Raffy e Marinny pelos braços. Enquanto se
aproximavam da floresta, Endrich sentiu o cheiro da maresia. Era água do
mar. Como Sheron conseguiu trazer a água do mar até nós? – perguntou-se o
Guardião.
Porém, quando os três estavam quase chegando à entrada da mata, a
parede de chamas se reergueu, impedindo a passagem do grupo. Eles se
voltaram para Sheron, que parecia atônita e muito cansada – suor escorria por
seu semblante.
– Não há como passar! – exclamou Marinny, recuperando-se, ainda com
pouco fôlego.
Endrich não sabia mais o que fazer. Será que agora seria só parar e
esperar a morte chegar? Não, devia haver alguma forma deles se salvarem.
Ele só não imaginava como, já que o fogo antes apagado retornara a vida
num passe de mágica.
– Sheldon! – esgoelou-se a Soldada da Água. – Sheldon, eu sei que você
está aqui, desgraça!
Endrich até achou que a Soldada não iria se aguentar e entraria chamas à
dentro. Mas em vez disso, ela permaneceu estacada em seu lugar, com a
expressão sólida. Parecia uma máscara de ódio e desprezo. Ela estava
transformando seu cansaço em pura raiva.
De repente, a muralha de fogo se rompe, surgindo à silhueta de um
homem. Ele era alto, forte e bem vestido. Seus cabelos castanho-
avermelhados se fundiam ao fogo de intenso vermelho.
– Olá, minha querida – disse Sheldon Brand, desdenhoso.
Endrich deu uma olhada para os dois Guardiões, que pareciam suar até
os ossos – assim como ele, percebeu. Voltando-se para Sheron, teve a
impressão de que ela iria se jogar contra Sheldon de unhas e dentes. Este não
parava de fitá-la com um sorriso nos lábios. Não sabia se era de falsidade ou
pura diversão. O calor o estava deixando lento.
Sheldon se aproximou de braços estendidos.
– Você me traiu! – cuspiu Sheron, dando um passo para trás.
– Não… Eu só não confiei totalmente em você – respondeu Sheldon,
calmamente. – Você é muito emotiva, eu não poderia confiar totalmente
meus ideais. Se abrisse a boca, meus planos estariam perdidos!
Não suportando mais, Sheron se jogou contra o Soldado; não aguentava
mais olhar para seu rosto. Ela soqueou seu peito, mas foi como se suas forças
estivessem sumindo, e, quando estava sucumbindo, Sheldon agarrou seus
pulsos e a jogou contra o chão.
– Você é desprezível – xingou ele, a voz controlada.
Raffy, quase não aguentando o peso do próprio corpo, dirigiu-se até
Sheron e a ajudou a ficar de pé. Ela estava pálida, com as mãos trêmulas, os
cabelos grudando no rosto suado.
Endrich olhou em volta, e viu que toda a água salgada havia sumido.
Provavelmente voltara para o mar.
– Com licença, mas isso não se faz com uma donzela – falou Raffy a
Sheldon.
– Cale a boca, verme – depreciou o Soldado. – Não é por que você é um
Guardião Imperial que acha que pode impor algum tipo de autoridade. Nós,
Soldados Elementares, viemos primeiro do que vocês, e temos todo o direito
de mandar neste mundo.
Raffy se calou instantaneamente com a autoridade agressiva imposta na
voz de Sheldon.
– Ei, vamos com calma – interveio Endrich, a respiração pesada. – Deve
haver uma explicação para tudo que está acontecendo.
– Claro que há – respondeu Sheldon, com escárnio.
– Então explique – intrometeu-se a Soldada da Água. – Eu quero ouvir
tudo o que você tem a falar. Sei que mentiu!
Sheldon não desfez seu sorriso irônico. Porém, uma sombra de dúvida
atravessou seu rosto, fazendo-o hesitar. O que estaria passando em sua
mente? Será que Raffy consegue ouvir o que ele pensa? – ponderou o
Guardião de Diamante.
Após um minuto de puro silêncio, Sheron o quebra, sibilando:
– Endrich, saia da minha frente – ordenou. – Já que ele não quer falar, eu
irei tirar a verdade dele.
Endrich só percebeu que estava no meio do caminho quando ela falou.
Aproveitou isso e não permitiu que Sheron passasse; ele estava com medo de
que Sheldon fizesse mais alguma coisa contra ela. Sheron enrubesceu de
raiva. Ela bufava.
O Soldado desfez seu falso sorriso. Sua expressão ficou sombria; seus
olhos voltados para Endrich. O Guardião de Diamante percebeu que não
havia sentimento algum ali. Parecia frio e calculista.
Subitamente, uma visão veio aos olhos de Endrich. Diferente de tudo que
já vira. Não havia luz, nem sons, nem pessoas. Não existia ar. Estava
banhado pela escuridão.
Quando seus sentidos voltaram ao normal, Endrich sentiu uma grande
mão tomar-lhe o pescoço. Sheldon estava com uma das mãos lhe sufocando.
O Guardião arregalou os olhos, enquanto era erguido do chão. Como alguém
podia ser tão forte? O homem estudava-o atenciosamente, enquanto Raffy se
armava.
– Você não ouviu o que ela disse? – perguntou Sheldon, referindo-se ao
que Sheron havia ordenado a Endrich. – É para você sair da frente.
Endrich tentou se desvencilhar, mas estava numa situação difícil.
Sheldon era muito forte, e ele não conseguia alcançar as flechas em sua
aljava. O Guardião se debateu, mas de nada adiantava. Deu uma olhadela de
canto para Raffy, que já estava empunhando o Sabre em forma de espada.
– Nem tente – disse Sheldon. – Ou esse seu amiguinho Guardião irá virar
churrasco.
Raffy hesitou. Ele não poderia se arriscar, caso contrário poderia levar
Endrich à morte. Mas Marinny, ao contrário dele, não titubeou um momento
se quer.
– Ei! – exclamou ela, atingindo Sheldon na nuca com o cabo de sua
lança, levando-o ao chão, consigo Endrich, que se estapeou enquanto era
esmagado contra o solo.
Endrich achou que iria morrer esgoelado, mas, quando menos esperou,
uma força invisível tomou conta de seu corpo, fazendo-o se levantar.
Sheldon, que a todo custo tentava segurá-lo, não deteve a nova força, e
acabou tendo sua mão solta do pescoço dele. Sua expressão era de
incredulidade.
– Você se acha tão forte assim? – resmungou Sheldon, ficando de pé e
agarrando Endrich novamente. Agora ainda mais forte.
– Eu posso não ser mais forte, mas com certeza mais esperto.
Endrich se lembrou de um momento em sua vida, que acontecera há
pouco tempo, quando ele se dirigia para o Império de Cristal para salvar seu
mundo das garras de Trevys. A cena lhe veio à cabeça como uma facada
momentânea. Fantasmas, uma intensa luz… Raffy!
– Raffy! – gritou Endrich. – Sheldon precisa de luz!
No exato momento Raffy entendeu o que Endrich quis lhe dizer.
– Sheldon, essa é pra você! – berrou o Guardião de Cristal. – Lys
Beskyttelse! – De repente, após ele girar a espada uma vez no ar, uma imensa
faixa de luz esbranquiçada se dirigiu ao encontro do Soldado, acertando-o em
cheio.
Endrich, que ainda estava sob os poderes do Soldado do Fogo, se soltou
assim que o poder se expandiu, ofuscando seus olhos momentaneamente.
Quando a luz cessou, Endrich se viu sentado no chão com as vistas
ardendo e o pescoço ardendo. Ele nunca se sentira tão mal em uma única vez.
Sua cabeça rodopiava, mas aos poucos voltou à consciência normal.
– Você está bem? – perguntou Raffy, agachado ao seu lado.
– Ah, sim. Obrigado.
Ele se pôs de pé, olhando para onde Sheldon estava há alguns momentos.
Sorte que ele se foi embora – pensou ele, não encontrando o Soldado em
parte alguma. Apesar do positivismo, não compreendia como sumira tão
rapidamente. Endrich então percebeu que Raffy vasculhava o local. O que ele
tanto olhava?
– O que você está procurando, Raffy?
O Guardião de Cristal não respondeu no momento.
– Marinny… Ela sumiu! – exclamou por fim.
– Como assim? – Endrich estava incrédulo. Levantou-se de um salto.
Olhando em volta percebeu ser verdade. Estava tão atônito que não sentira
sua falta.
– Marinny sumiu. Marinny!
Sentiu o coração congelar.
– Sheldon deve tê-la levado – explicou Sheron, pondo-se de pé. –
Perdoe-me. Tudo isso é por minha causa.
Endrich viu quando uma lágrima escorreu pela face da mulher. Ela
parecia, mesmo, muito machucada pela traição de Sheldon. E pior: sentia-se
culpada por algo que não tinha total culpa. Afinal, ela fora manipulada pelo
Soldado.
– Não fique assim, Sheron – falou Raffy, tentando acalmar mais a si do
que a Soldada. – Nós vamos dar um jeito de enfrentar Sheldon, derrotá-lo e
salvar o príncipe e a princesa. Certo, Endrich?
O Guardião de Diamante não respondeu de imediato. Ele fitava Raffy,
pensando se apenas eles três seriam capazes de derrotar alguém tão forte
quanto Sheldon. O Guardião de Cristal deveria ter captado seus pensamentos,
pois, por um momento, pareceu tão incerto quanto ele.
– É, acho que iremos conseguir derrotá-lo – respondeu Endrich,
finalmente, sem muita convicção.
Sheron secou as lágrimas.
– Sim, acho que podemos derrotá-lo – confirmou com tom vingativo. –
Só precisaremos de mais ajuda. Está na hora de vocês conhecerem Poliana
Winster, a Soldada do Ar.
Treze
O Confronto de Marinny

Marinny acordou. Até então ela estava desmaiada, perdida em seu


subconsciente, onde tinha belos sonhos. Ela se encontrava acorrentada a uma
coluna de madeira. Olhando para as correntes, pôde distinguir o tipo de metal
usado: aço-minério.
– Onde estou? – perguntou-se.
– Está numa ilha. Mas não sei em que Império exatamente – respondeu
uma voz doce e fina.
– Ah, eu sei que estou numa ilha… – Marinny se calou ao olhar para o
lado. Quem respondera era uma bela garota de vestido azul. – Você é Blair,
filha do Imperador Crystan?
A garota assentiu.
– E aquele é Gabrian, filho do Imperador Zackiel – apresentou Blair,
indicando com a cabeça o rapaz mais adiante, do outro lado de um trono.
Marinny enrubesceu.
– Desculpe-me por ser tão grosseira. É de minha natureza, sabe? – Algo
por trás dessa simpatia pinicava em seu interior.
Blair sorriu, assentindo com a cabeça.
– Você é uma Guardiã Imperial? – quis saber Gabrian.
Marinny olhou incrédula para o rapaz.
– Claro que sou. Sou Marinny Bellaire, Guardiã Imperial de Jade. Você
não está me achando com cara de Soldada Elementar, né?
– Soldada quem?
A Guardiã revirou os olhos e contou ao príncipe e à princesa a respeito
dos Soldados Elementares e sobre a ilha, que não duraria muito tempo. Os
herdeiros se apavoraram com a história, mas tentaram não esboçar tal reação.
Marinny imaginou que eles já haviam sofrido um bocado estando presos ali –
consequentemente, já estavam fortalecidos.
– Mas me contem – perguntou Marinny, após a história estar clara para
os jovens – como eu cheguei até aqui.
Os herdeiros se entreolharam, decidindo quem iria começar a contar.
– Nosso raptor lhe trouxe para cá – começou Blair. – Ele lhe carregou
nos ombros, e depois, lhe jogou violentamente, e você bateu com a cabeça no
chão.
Marinny levou a mão à cabeça procurando por algum machucado e,
realmente, ali estava, um inchaço se formara no alto de sua cabeça.
– Ele reclamou que você era muito pesada e que só era um encosto –
continuou Gabrian. – Ele disse também, que tinha uma surpresa muito
especial para você. E que jamais iria esquecer. Mas não mencionou o que
poderia ser.
A Guardiã fez de conta que não ouvira essa última parte do relato. Sentia
uma forte dor, não só na cabeça, mas em todo o corpo também. Ela precisava
achar um modo de sair dali e tirar o príncipe e a princesa. E rápido! Está na
hora de ser calculista, Marinny.
– Aquele Sheldon, ele me paga! – exclamou ela.
– Quem? – indagou Blair.
A Guardiã de Jade pareceu surpresa.
– Quem? Sheldon… Foi ele quem raptou vocês dois – ela respondeu.
Blair se ajeitou em seu lugar. Marinny reparou que os pulsos da princesa
estavam arroxeados, causa da fricção constante com as algemas apertadas.
Ela queria se soltar dali e ajudar a herdeira, mas mal conseguia se mover.
Também se encontrava em um estado nada prazeroso.
– E conte-me – pediu a Guardiã –, Sheldon falou algo mais sobre o que
ela irá fazer comigo?
Gabrian se apressou em dizer:
– Não. Se bem que, na verdade, ele não contou nada a nós, e sim eu e
Blair que ouvimos o raptor resmungar isso pra você, enquanto estava
dormindo.
– Eu não estava dormindo, estava desmaiada – retrucou Marinny.
A Guardiã olhou em direção a floresta. Ela conseguiu distinguir uma
clareira em meio à mata, onde havia uma construção de pedra. Era o Templo
dos Mundos. A pirâmide escalonada ficava quase que totalmente escondida
pelas árvores do lugar em que estava. Ela só não saberia dizer se o príncipe e
a princesa também poderiam avistá-la.
– Olhando para a construção de pedra? – perguntou Blair, quebrando o
silêncio.
Marinny voltou os olhos para a princesa.
– Você consegue ver o Templo?
– Sim – respondeu a princesa. – Claro que podemos. Apesar de que
muitas vezes ele some dos nossos olhares.
A Guardiã pareceu confusa.
– É que muitas vezes a pirâmide se torna invisível, como se nunca
estivesse ali – explicou Gabrian.
Marinny olhou para a construção novamente. Será que era porque
Endrich matara Shait, a cobra que protegia o Templo dos Mundos, que os
herdeiros passaram a vê-lo diretamente? Se fora mesmo o pai de Sheron que
o construiu, deve ter incutido muita magia durante o processo para torná-lo
uma fortificação invisível.
– E há quanto tempo vocês a veem? – quis saber ela.
– Desde que chegamos neste lugar – respondeu Blair.
O tempo passou e logo o sol se pôs, dando espaço para a noite nublada.
O céu estava pouco estrelado, mas a brisa do mar que os alcançavam era
agradável. As folhas das árvores farfalhavam numa canção leve e suave.
Marinny estava impaciente, sem dizer que seus braços doíam. Ela queria
sair dali, poder ajudar o príncipe e a princesa, mas como, se nem ela
conseguia se ajudar? Ela se contorceu. Suas costas estavam começando a
doer também. Sua cabeça estava trabalhando a mil por hora, buscando uma
forma de se soltar e resgatar os herdeiros. Por Luzyos, preciso fazer alguma
coisa!
– Você parece tensa, Marinny – comentou Blair, carinhosamente.
Demorou para responder.
– É. Estou pensando em uma forma de nos tirar daqui, mas não está nada
fácil pensar com essas algemas. Isso está deixando meu braço roxo.
– Isso é normal. – Gabrian deu um sorriso irônico. – Já estamos há tanto
tempo aqui, que nem sentimos mais os braços doendo.
As luas pairavam sobre a cabeça dos três acorrentados; sendo que Nahim
é que mais brilhava naquela parte do mundo, o seu tom alaranjado banhando
a noite. A Guardiã se lembrou das chamas de Sheldon e chacoalhou a cabeça,
lançando sua imagem para um canto inóspito da mente.
– Como você chegou aqui, Gabrian? – indagou Marinny.
– Eu estava na aula de esgrima, quando uma “sentinela” me chamou. Até
então eu não sabia que se tratava desse tal de Sheldon, e o segui. Ele disse
que meu pai queria falar comigo. No entanto, ele me carregou para trás do
castelo e, quando percebi que estava sendo enganado, já era tarde demais. Ele
me sedou com uma mistura de ervas. Quando abri os olhos, estava aqui,
amarrado.
Marinny assentiu. Blair comentou que ele havia feito o mesmo com ela,
porém, ainda dentro das mediações do castelo, no pátio central. Realmente,
ele não tem escrúpulos – ponderou a Guardiã.
Quando menos se esperou, um homem alto e corpulento surge, subindo a
escadaria que dava ao altar onde os acorrentados estavam. Era Sheldon, com
seu sorriso irônico e o olhar profundo e sem sentimentos.
– Ora, ora… Achei que você não iria acordar tão cedo – comentou o
homem.
– Você é um idiota! – cuspiu Marinny. – Solte-me agora mesmo, ou…
– Ou o quê? – Sheldon segurou o queixo da Guardiã e elevou seu rosto. –
Você vai me matar? Eu duvido muito. Você não passa de uma simples garota
com algumas centenas de anos, mas que não deixou de ser uma jovem
birrenta, abusada e fraca.
Marinny enrubesceu de raiva. Não sou tão velha a ponto de ter uma
centena de anos! A vontade dela era de se lançar de unhas e dentes contra o
Soldado, mas as correntes a impediam de fazer qualquer movimento brusco.
– Pelo menos não sou tão desprezível quanto você – replicou Marinny. –
Não sou eu que quero ser um dos líderes do mundo e acabar com os
Guardiões. Não sou eu que estou fazendo pactos com criaturas horrendas,
como demônios.
Sheldon, furioso, deu um tabefe no rosto de Marinny. Ela o olhou com
raiva e, sem pensar muito, cuspiu em seu rosto. Seria capaz de matá-lo caso
conseguisse escapar.
– Isso não vai me afetar – resmungou Sheldon, limpando a face com as
costas da mão. – Agora você verá o que é bom!
O Soldado se pôs de pé. Soltando a corrente do poste, mas sem libertar a
Guardiã das algemas, Sheldon deu um puxão em Marinny que seria capaz de
arrancar os ossos do braço, caso ela não fosse uma Guardiã.
Consumida pela dor e relutante, Marinny ficou de pé. Ela começou a
seguir Sheldon, que praticamente a arrastava pelos degraus abaixo. Quando
chegaram ao gramado seus braços estavam tão doloridos que ela mal os
sentia.
– Entre no círculo – ordenou Sheldon, empurrando Marinny.
A Guardiã se viu dentro de um imenso círculo desenhado na terra.
Aparentemente o desenho havia sido feito com alguma lâmina, demarcando o
solo. Ao redor do grande círculo, havia tochas acesas, iluminando a noite;
esta que se tornava fria a cada instante.
– O que você pensa que está fazendo? – exclamou Marinny.
– Que tal um duelo? – respondeu Sheldon com outra pergunta.
– Entre mim e você? – riu debochada.
Sheldon jogou a cabeça para trás e a seguiu rindo.
– Como se eu quisesse duelar com você, sua imprestável!
Marinny bufou de ódio. Ela gostaria de torcer o pescoço daquele Soldado
infame.
– Bem, tome isso. Vai lhe ajudar, se é que isso é possível. – Sheldon
lançou um cabo de tamanho médio. Era a Lança de Jade de Marinny.
Até aquele momento, a Guardiã não reparara que estava sem sua arma
mágica e detestou não ter prestado a devida atenção a sua relíquia. Aquela
arma era uma extensão de seu corpo.
A Lança caiu próximo aos pés da garota. Mas como ela iria pegar se suas
mãos estavam algemadas? Ela não conseguiu pensar nisso, pois, logo que a
arma atingiu o chão, o círculo desenhado no solo entrou em combustão,
formando uma parede de fogo envolta dela. Marinny levou um grande susto
no momento, mas logo se regozijou ao ver que, magicamente, as algemas se
soltaram de seus pulsos, esfarelando-se enquanto caíam no solo.
Porém, no minuto seguinte o ar tremeluziu a sua frente. Pensou se tratar
da aparição de um fantasma, mas se corrigiu ao ver que uma fumaça negra
surgida no vácuo tomara forma física. Era um demônio, concluiu ela.
– Você deve ser Marinny, certo? – perguntou o demônio. Ele vestia uma
capa negra que chegava perto de seus pés. Ele não era tão alto quanto
Sheldon, mas era tão forte quanto, e possuía um olhar negro, vazio e
assustador.
Marinny assentiu.
– Quem é você? E o que querem comigo?
O homem jogou o peso de um pé para o outro.
– Você sabe demais, garota – informou ele. – Se você não tivesse tocado
em Dylan, quem sabe, você não teria de estar passando por tudo isso. Mas,
como você não consegue se segurar, agora terá de passar por este desafio. –
Fez uma pausa e concluiu: – E, ah, pode me chamar de Maligno.
Marinny praguejou sua própria personalidade e desejou não ter aceitado
ir naquela missão junto de Endrich e Raffy. Ela preferia estar lutando com
mil guerreiros a ter de lutar contra um demônio. Mas uma parte dela dizia que
agora já era tarde. Precisaria passar por aquilo.
– E o que eu ganho caso vença essa disputa? – quis saber a Guardiã.
– Você ganha liberdade – respondeu o demônio.
– E os herdeiros também.
O demônio de capa preta negou com a cabeça.
– O príncipe e a princesa continuarão sobre nosso domínio. Apenas você
estará liberta. Caso vença.
Marinny sentiu um leve medo percorrer seu corpo. E se caso não
vencesse, o que lhe aconteceria? Porém, a Guardiã não teve tempo para
perguntar essa questão, pois Maligno investiu contra ela em um ataque
súbito.
Vendo que o tempo de conversa encerrara, catou sua lança do chão o
mais rápido que pôde, e, esquivando-se para a direita, evitou levar um forte
soco, que foi capaz de fazer a terra tremer quando atingiu o solo. Ela ficou
impressionada com a força do impacto.
Agora vejo que a briga é séria – pensou ela.
Rapidamente, sem hesitar, a Guardiã contra-ataca, aumentando o cabo de
sua Lança magicamente e a investindo contra a lateral do demônio. A lâmina
perfura a carne e atinge um osso de Maligno. Ele guincha, mas, virando-se
para Marinny, demonstra um sorriso irônico como se ele não sentisse dor.
O demônio retirou a lâmina de seu corpo, e Marinny pôde perceber, de
relance, que ele não sangrava. Como aquilo era possível? A Guardiã sentiu o
medo lhe atingir as mãos. Ela precisava reagir. Mas antes que pudesse fazer
qualquer coisa, o demônio, segurando o cabo da Lança, bateu com a base da
mesma em suas costelas, fazendo-a cair gemendo de dor.
Sua forma humana devia sangrar! – pensou rapidamente.
Percebendo que a Guardiã não havia libertado a Lança, o demônio deu
um puxão, assim a garota voou para o lado, escorregando as mãos de sua
arma. Estando apoderado da arma imperial, o demônio se dirigiu a passos
lentos em direção de Marinny, enquanto esta se levantava pesarosamente.
– Você vai me matar? – perguntou a garota, com uma das mãos sobre a
costela fraturada.
Maligno balançou a cabeça, pensativo.
– Acho que ainda não. Pretendo brincar um pouquinho mais com você.
Sendo assim, Marinny foi usada como um brinquedo para a diversão do
demônio. Ela foi arrastada, jogada e arremessada. Nunca havia passado por
uma situação, nem mesmo parecida, como aquela. Pela primeira vez Marinny
estava perdendo uma luta. E o pior de tudo: ela estava sem sua arma – a coisa
mais valiosa que ainda podia manter.
Num certo momento, a Guardiã relembrou de uma parte de sua vida, há
pouco mais de trinta anos, quando jurou pelo Acordo dos Serafins. Neste
ínterim, ela mal conseguia relembrar o que fora de melhor, quando deu a luz
a uma criança. Seu filho que há muito morrera, quando ainda era jovem. Até
então, aquele havia sido seu único herdeiro, e caso morresse naquela luta, sua
linhagem como Guardiã seria perdida. Contudo isso não importava naquele
momento. As emoções e recordações que transbordavam em dor e tristeza a
tomavam de uma forma avassaladora, destruindo os cacos que tentavam
resistir. Lute, Marinny! – sua voz interior gritava. Todavia não sabia quanto
mais aguentaria. O confronto não era apenas externo, mas também em seu
âmago.
Marinny, jogada no chão, reuniu todas as suas forças e lentamente pôs-se
de pé, respirando profundamente. Todo seu corpo estava latejando, porém
isso não a fez desistir de um último ataque. Ela olhou para o demônio, que
não parava de fitá-la, incrédulo.
– Você ainda se atreve a resistir? – perguntou ele. Em passos lentos,
aproximou-se da Guardiã. – Caso você continue, você irá morrer. E suponho
que não seja isso que você queira, certo? Ou que ela queira.
Marinny recebeu o choque arregalando os olhos. Como ele poderia saber
de seu maior segredo? Assentiu, baixando a cabeça. Em seu interior, sabia
que não poderia desistir, por isso, sem hesitar, se lançou contra Maligno,
agarrando-se a ele e a Lança de Jade. O demônio deu um passo para trás, sem
acreditar no que estava acontecendo.
– Não sou tão fácil de derrotar – afirmou Marinny, rangendo os dentes. A
dor atravessando seu peito.
– O quê? – O demônio parecia incrédulo com toda àquela situação. –
Você não pode…
– Isto é pra você – ela interrompeu. – Lys Beskyttelse!
A Lança reluziu fortemente nas mãos do demônio e da Guardiã,
liberando uma grande rajada ofuscante. Maligno foi arremessado para trás,
assim como Marinny, que caiu com toda a força contra o chão, fazendo-a
perder o ar dos pulmões. A Lança pairava, fincada no solo, entre os dois
duelistas.
Quando recuperou o fôlego, pôs-se de pé. Apesar de quase não suportar o
peso do próprio corpo, ela se sentia mais forte pelo júbilo de ter ganhado a
disputa. Agora ela poderia seguir livre e encontrar seus companheiros. A
Guardiã se aproximou e pegou sua arma mágica. Fitou o corpo inerte do
demônio, que logo se desfez em fumaça negra. Estava acabado.
Quando se virou para a princesa e o príncipe acorrentados, sorrindo,
Marinny foi pega de surpresa. Sendo atingida com toda a força na cabeça,
apagou instantaneamente.
Quatorze
Lago de Gelo

Às margens do Lago de Gelo, no Império de Esmeralda, ele achava que o sol


não queria tocar o horizonte. O vento gélido e seco cobria todo e qualquer
lugar naquelas terras conhecidas como Reino de Magnólia.
Tannael Esmainn, Guardião Imperial de Esmeralda, olhou apreensivo
para o outro lado do Lago tentando avistar o que o inimigo estava
preparando. Não conseguia ver nitidamente, mas podia pressentir cada
movimento que eles faziam. Não era nem de longe uma habilidade parecida
com a de Endrich, de ver o futuro, porém Tannael conseguia sentir cada coisa
que lhe rondava, os sentidos apurados muito mais que os normais, muito
além de um Guardião qualquer; além disso, podia encontrar uma pessoa seja
lá onde estivesse no mundo.
Contudo, naqueles minutos em que estava prostrado atrás de uma
trincheira de gelo, ele não pôde sentir nenhuma alma conhecida… E,
definitivamente, nenhuma alma viva perambulando do outro lado.
– Como eles podem caminhar e fazer tudo, se não possuem uma alma? –
indagou Atos, ao seu lado.
Atos era um homem alto e largo como uma árvore. Seu rosto de feições
duras dava-lhe um ar de arrogante e perigoso – o que para Tannael não
deixava de ser verdade. Em compensação, Atos era um grande guerreiro,
tendo participado de grandes guarnições e infantarias pelos seus longos e
duros 40 anos. E mesmo tendo sofrido perdas e ganhado guerras e batalhas,
ele era alguém que nunca perdia a vontade de aprender; e acima de tudo, a fé
– o que lhe guiava em momentos difíceis, como este.
– Eles não precisam de uma alma como a nossa para fazer o que fazem –
respondeu Tannael, sério.
– Então como estão vivos? – Atos insistiu.
– É por que são espíritos malignos, demônios numa forma humanizada.
O guerreiro pareceu ficar chocado. Ele olhou para o céu, sinal de que
buscava algo na memória.
– Você não diz daqueles mesmos demônios que ouvimos falar de
antigamente, certo? Ou dos que Perília, a Profetiza, tanto diz?
O Guardião de Esmeralda se voltou para Atos. Ele estava cansado, afinal
a noite anterior havia sido de intensa batalha, perderam muitos homens.
Agora com aproximação do anoitecer, Tannael tinha receio de que os
demônios atacassem novamente.
– Sim, Atos, esses mesmo que Perília tanto menciona – suspirou ele,
exasperado.
Perília era uma grande sacerdotisa e profetiza do templo do deus das
previsões, no Povoado Imperial Faqualey. Segundo suas visões, o Império de
Esmeralda estaria prestes a entrar numa guerra que envolveria todo o mundo
de Onyx. Parte da profecia estava se cumprindo, pois Esmeralda já estava
numa situação pesarosa.
Com os constantes ataques de demônios na região, todas as pessoas que
conseguiram permanecer vivas no Reino de Magnólia decidiram partir o
quanto antes para outros reinos, onde o perigo não era tão iminente. Ali no
extremo oeste do Império, Tannael tinha a sensação de que o Povoado
Imperial é que poderia sofrer grandes consequências; mas não tinha como
saber disso neste momento.
Enquanto analisava o que os demônios faziam, tentando captar algum
indício de que atacariam, Tannael lembrou vagamente de como fora a batalha
na noite anterior…
Seguia contra demônios e mais demônios. Sua perna ferida no outono de
Diamante, na luta contra Trevys, vez ou outra fraquejava. Mas não se deixava
abater por isso. Eles pareciam não ter mais fim; era como se, a cada um que
matasse, surgissem dois. Era assustador. Tannael gostaria que seus amigos
Guardiões estivessem em sua companhia, assim seriam fortes o suficiente
para derrotarem de vez aqueles seres malignos.
Enquanto corria abrindo caminho com o Escudo de Esmeralda
empunhado, Atos puxava uma ordem de guerreiros atrás de si, arrebentando
com todos os demônios que atravessavam sua frente. Vez ou outra o
Guardião olhava pra trás para ter a certeza de que seus homens ainda estavam
vivos. E graças aos deuses, sim, eles ainda estavam vivos – ao menos uma
boa parte. Nem mesmo as garras asquerosas daquelas bestas os deteriam
facilmente.
Enquanto corria e cortava membros com a borda do Escudo, Tannael
tinha a vaga sensação de que nada mais seria normal após aquele dia. Por que
demônios estavam atacando em tão larga escala? Algo estava terrivelmente
errado, e ele gostaria de saber. Mas nem mesmo Perília, que era tão adorada,
conseguira adivinhar, e não seria ele que conseguiria.
Quando deram por si, metade das tropas demoníacas havia desabado,
assim como um terço das tropas de Tannael, e a outra parte se afastara para o
outro lado do Lago. No fim das contas, valera o esforço. Uma morte em
batalha é considerada honrosa – diziam os soldados.
Minha pessoa só espera que isso acabe o quanto antes – pensou,
enquanto limpava seu escudo, após a batalha. Precisais descobrir o que está
havendo!
Um sobressalto levou Tannael de volta para o presente. O que havia sido
aquilo? Ele tinha sentido uma movimentação estranha entre os demônios,
como se eles estivessem se preparando para…
– Atos… chame-vos os homens e mande-os se prepararem – ordenou o
Guardião, rapidamente. – Os demônios hão de iniciar um novo ataque.
––––
Não demorou em a batalha reiniciar. Porém, desta vez, ela ocorria sobre o
Lago de Gelo – como o nome já diz: um extenso lago com uma grossa
camada de gelo lhe cobrindo a superfície. É quase inquebrável. Quase…
Tannael, desta vez, permaneceu na linha de defesa, logo atrás das cinco
primeiras fileiras de ataque. O massacre seria grande dessa vez. Demônios
eram rasgados e mutilados, ao mesmo tempo em que o mesmo acontecia aos
guerreiros impacientes que tentavam cortar e estocar aqueles seres grotescos
de dentes e unhas longas e pontiagudas. O que no fim resultava em suas
mortes. O gelo se transformara em sangue.
O Guardião tinha uma simples explicação para o porquê de tanta
impaciência: eles estavam cansados e angustiados da noite anterior. Eles não
tinham nem ganhado nem perdido, o que os deixavam preocupados. Tannael
podia compreender o que sentiam. Mesmo por que já passara por isso
algumas vezes. A frustração podia levar qualquer um a loucura.
A batalha continuou, e o Guardião de Esmeralda ainda tentava
compreender se tudo o que acontecia era por causa do que Perília lhe falara
tantas vezes antes: Mesmo que vossa pessoa tente sozinho, nunca conseguirá
ganhar a guerra contra as Trevas. Mesmo que passe por batalhas
independentes, o dia em que precisarás se unir aos outros chegará. A voz da
mulher retumbava em seus ouvidos, deixando-o pirado. Percebeu que não
podia perder de forma alguma, então saiu da linha de defesa e se engalfinhou
por entre as linhas de ataque. Daria fim naquilo.
Um demônio esviscerou um de seus soldados e partiu ao seu encontro.
Nunca vira seres tão diabólicos como agora. Quando enfrentara o primeiro,
séculos atrás, possuía uma forma humana, podia se passar por qualquer
pessoa. Mas estes não se pareciam nem um pouco com mundanos. Sua
aparência grotesca o incomodava, e isso era a combustão principal para levá-
los a cabo; não sentiria o peso de matar alguém a sua semelhança. Ergueu o
braço esquerdo na altura da cabeça, protegendo-a com o Escudo das garras
que lhe cortariam o rosto. Esquivou o corpo para a esquerda e, brandindo o
braço de fora para dentro em um arco lateral, atingiu o ser com a borda da
arma imperial, arrancando-lhe um grunhido. Sangue negro se lançava da
abertura.
Tannael flexionou as pernas, esperando o demônio revidar, quando
pressentiu a movimentação de um segundo as suas costas. Girou sobre os
calcanhares na tentativa de acertá-lo com a borda também, mas foi impedido
por garras largas e negras que seguraram o Escudo de Esmeralda. Surpreso,
puxou o braço rapidamente após um pensamento, soltando a arma de seu
braço no instante em que o enorme demônio se curvava para lhe abocanhar a
cabeça. Caiu no chão, a respiração entrecortada.
Com a arma nas mãos, a besta se aproximava a passada rápidas. Os
lábios tortos pareciam dizer que ria de sua cara. Franziu o cenho e, com um
impulso, ficou de pé novamente. Pressentindo a aproximação do primeiro,
retesou o corpo esperando o impacto que viria a seguir. Quando o demônio se
aproximou, saltou e pisou em sua cabeça, lançando-a para baixo e em direção
do segundo. Assim que os dois se trombaram, o Guardião correu de encontro
ao Escudo, ainda em posse do ser maior, e o agarrou assim que se jogou no
ar. Enquanto girava sobre a cabeça do demônio, arrancou a arma de sua mão.
Pousou com um joelho no chão, girou e cortou o monstro no meio das costas
com a borda; a coluna fora destruída e sangue jorrava enquanto desabava e
esmagava o primeiro demônio.
Respirou pesadamente e sem demora seguiu para a linha de encontro. Ao
máximo que pôde, conseguiu separar as duas formações de batalha – os
humanos e os demônios – com a ajuda mágica de seu escudo. Os demônios
rugiam ferozmente, ensandecidos por mais sangue e carne humana. Sem
temê-los, Tannael se posicionou sobre o Lago de Gelo; tinha uma ideia louca
e genial.
– Vós quereis nosso Império, nosso mundo! – gritou para os demônios. –
Mas vós jamais os tereis, pois minha pessoa os impedirás de qualquer coisa
que tentem contra nós!
E com isso gritou “Lys Beskttelse”, concentrando uma energia
esverdeada em sua arma, bateu com a borda do Escudo contra a camada de
gelo sob seus pés, lançando uma onda descomunal para o ar e ao longo do
lago. Toda a superfície trincou. O silêncio caiu sobre o ar rapidamente. Os
demônios gritaram de indignação e tentaram contra-atacar. Vendo o perigo
iminente, Atos começou a carregar alguns homens para o campo de batalha
novamente, mas foram impedidos pelo Guardião, que, ao perceber a
movimentação dos demônios, recuperou seu escudo e deu alguns passos para
trás rapidamente.
Antes que os demônios pudessem sequer chegar a cinco passos de
Tannael, o gelo sob seus pés cedeu, espatifando, rachando e rasgando como
um raio corta o céu, até se desfazer quase que por completo. Os demônios
haviam sumido.
– Espero que esteja suficientemente gelado lá embaixo para que nunca
mais voltem a nos incomodar – comentou Atos.
– Estes podem ser que não verás mais, mas podes ter certeza de que
ainda há de vir mais por aí – objetou Tannael, pouco contente.
Naquele momento, instantaneamente, aos olhos de todos os presentes, o
gelo que havia se desintegrado voltou a se juntar, congelando-se novamente.
A força do vento aumentou, e logo havia neve caindo do céu. Os pinheiros ali
perto envergavam um pouco, e os homens já não conseguiam se manter de pé
por muito tempo.
– Temos que sair daqui! – bradou Atos, confuso com a mudança drástica
do clima.
Enquanto corria com seus homens para o acampamento há algumas
centenas de metros dali, Tannael tinha a vaga sensação de que aquela
tempestade repentina não devia estar acontecendo com tanta intensidade. Foi
quando recordou de outra coisa que Perília havia lhe ditado: Cuidado, pois
Onyx sofrerá com a natureza. Os elementares estão se reerguendo e a
Espada é a única coisa capaz de cessar as catástrofes.
Ele forçou a mente e sentiu a aura de cada Guardião. Três deles estavam
em alto-mar, no que parecia ser uma ilha… Se for o que estou pensando,
espero que Marinny e os outros Guardiões consigam dar um jeito nisso sem
minha ajuda – ponderou, enquanto se lembrava da lenda da Ilha Elementar.
Quinze
A História dos Guardiões

Os Guardiões Imperiais e a Soldada da Água decidiram passar a noite numa


caverna subterrânea, antes de seguirem para o encontro de Poliana Winster, a
Soldada do Ar. Endrich só esperava que essa Soldada não fosse parecida com
seu colega Dylan: excluída do mundo e sempre desanimada e doentia. Ou
pior, como Sheldon: fria e calculista.
Depois de procurarem um bom tempo por raízes e frutas comestíveis, os
companheiros se dirigiram a caverna, próximo ao Condado da Água – parte
da ilha em que Sheron fora havia muito tempo protetora e onde, segundo ela,
seus poderes se intensificavam. Se longe de seu espaço, Sheron já fora capaz
de mover a água do mar para dentro da ilha, imagina o que ela pode fazer
em suas terras? – devaneou Endrich.
– Então a ilha é separada por condados? – comentou Raffy, engolindo
um pedaço de raiz.
Sheron assentiu.
– Sim, como a ilha é pequena para abrigar um reino, ela foi dividida em
quatro condados, onde Sheldon, Dylan, Poliana e eu tínhamos de cuidar de
cada um onde se encontram as matrizes de nossa natureza elementar. Essas
nos escolheram… E isso só até a ilha ser amaldiçoada e todos os habitantes
desta terra morrerem; exceto por nós, Soldados – explicou a mulher, a luz
bruxuleante da fogueira tornando sua expressão ainda mais tensa.
Endrich fez toda a refeição da noite em silêncio. Seus pensamentos
estavam o deixando perturbado. E se algo acontecer à princesa Blair? O que
eu direi ao Imperador Crystan? Depois do que enfrentara até ali, descobrir
que não era páreo para Sheldon o deixava enlouquecido.
– Não se incomode com tais pensamentos – interveio Raffy, após captar
suas ideias. – Eu sei que é assombroso, mas…
– Raffy, por que você faz isso? – replicou Endrich. – Você sabe que não
gosto quando fica captando meus pensamentos. Já lhe pedi mais de uma vez
que não faça isso!
– Desculpe-me.
Endrich se levantou. Caminhou, subindo pelo leve declive até a boca da
caverna, onde pôde admirar as poucas estrelas que teimavam em aparecer
entre uma nuvem e outra. Muitas vezes ele pensava se não fora uma decisão
errada aceitar o Acordo dos Serafins. Mas logo outros pensamentos lhe
invadiam a cabeça, dizendo-lhe que, se ele não tivesse aceitado esse cargo
como Guardião Imperial, quem teria se arriscado para encontrar a princesa
Blair, e, há algum tempo atrás, ter se arriscado para salvar seu mundo das
garras de Trevys? Ele sabia: tinha de continuar seu caminho e mostrar mais
coragem do que estava demonstrando. Onde está toda aquela garra que eu
tinha quando nem imaginava que era um Guardião? – ele lembrou. Por um
momento a ideia do terror causado pelo serafim caído ainda permear seu
corpo atravessou sua mente. Estaria ainda sofrendo as consequências das
trevas?
– Não foi a melhor refeição que já fiz, mas acho que estava boa. Já comi
de coisas piores – arriscou Raffy, enquanto Endrich passava por ele.
– Perdoe-me se não consegui encontrar mais nada para comermos –
pediu Sheron. – É muito ruim encontrar algo de boa qualidade nesta ilha após
ser inundada. Não imagino o porquê tudo ficou tão escasso para nós.
Sem ao menos dar boa-noite, Endrich se aninhou num canto da caverna,
tapando-se com sua capa para se proteger de insetos e outros pequenos
animais. Imagens da princesa Blair perambulavam por sua mente, deixando-o
meio confuso. Ele sentiu um arrepio pela espinha, e começou a imaginar do
que se tratava.
Por isso, sem mais delongas, fechou os olhos a espera do sono.
E sonhou…
––––
Endrich estava em frente a um altar, onde havia um trono feito de pedra
com adornos em folhas de carvalho e outros. Sentado sobre ele, estava
Sheldon, com seu olhar arrogante e sorriso irônico. Seus olhos nem sequer
piscavam.
O Guardião se viu numa luta, em meio a um campo aberto, cercado por
árvores. Havia uma mulher cercada por uma espessa névoa e que, com
movimentos dos braços, fazia o ar se mover ao seu redor, formando
correntes de vento. Essas que atingiram Sheron e Raffy. A mulher só poderia
ser Poliana Winster, a Soldada do Ar!
Enquanto isso, Endrich, percebendo um leve farfalhar próximo de onde
os Guardiões tinham caído, um homem, entre as árvores, gesticulava
rapidamente. Logo, a terra treme e a mulher que estava controlando o ar se
vai ao chão. Ela pragueja e se põe de pé. Mas, com o homem ainda
gesticulando, um pedaço se terra se desloca do solo, atingindo Poliana, que
volta a beijar a terra e a grama fofa.
De repente, como um lampejo, tudo se torna escuro, e, em questão de
segundos, novas imagens começam a tomar conta. Logo, Endrich se encontra
num lugar claro e, ao seu lado, estava um homem alto, muito parecido com
ele. Era Hamiro Ragrson, seu pai de sangue.
Hamiro falava:
– Você deve tomar o rumo que seu coração mandar. Não importa o que
os outros vão dizer. Você tem suas próprias escolhas.
– Não estou lhe entendendo, pai – interveio Endrich, olhando nos olhos
claros de Hamiro.
– Eles tentarão lhe enganar. Mas não permita que isso aconteça. Você
pode ser mais forte. Sei que as dúvidas e a insegurança, nem sempre são
escolhas, mas você é forte!
– Mas, pai, eu não sei mais se sou capaz de lutar. Minhas forças, minha
coragem estão se esvaindo cada vez mais! Sinto que não devia ter aceitado o
Acordo.
Hamiro sorriu fracamente. Olhou para o horizonte de luz. Parecia
preocupado.
– Não permita… – A voz de seu pai foi se afastando. – Ele quer te
enganar…
Endrich não queria que aquele momento acabasse.
– Pai! Hamiro! Ele quem? – indagou. Todavia, conseguia imaginar do
que se tratava. Um rápido lampejo carregou sua mente para o primeiro
sonho com seu pai. Seria possível? – Treva está se reerguendo, foi o que
disse. Esse ele que tanto ouço, trata-se do Senhor das Trevas?
O horizonte se tornou mais brilhante, consumindo tudo que tocava. Em
meio à luz havia escuridão, como um buraco negro. Trevas entre a luz? Por
fim, Endrich apenas conseguiu ouvir seu pai dizer:
– Nos encontraremos mais tarde, filho…
E, de repente, o brilho se intensificou, abraçando-o para o interior do
vácuo de escuridão.
––––
Seus olhos se abriram, estava trêmulo e suava. Secou a testa com a manga da
camisa e se levantou. Tomou um gole de água do seu cantil e se dirigiu à
saída da furna. Sentou-se na grama, escorado a uma árvore, e ficou olhando
para o céu. Diferentemente de mais cedo, as estrelas haviam sumido por
completo. A abóbada celeste estava completamente encoberta por nuvens
negras. Não são simples nuvens de tempestade.
– Não consegue dormir? – a voz feminina o despertou dos devaneios.
Voltou-se para Sheron.
– Não. Acabei de ter um sonho. Acho que uma visão… Estou
preocupado, e há tantas coisas para responder…
– Entendo.
Endrich suspira. Enquanto troca um ligeiro olhar com a Soldada,
lembrou-se de uma pintura que encontrara no Templo dos Mundos e resolveu
questionar:
– Encontrei um desenho do Templo. Cinco pessoas recebendo armas que
brilhavam. É a História dos Guardiões, não é? Li algo que diz que a
civilização de Onyx surgiu daqui. Isso tudo é verdade?
A Soldada anuiu.
– Fui eu quem fez aquelas gravuras. Faz tanto tempo…
– Você poderia me contar a história?
Assentiu e começou:
– Os Guardiões Imperiais surgiram há milênios, não tem uma datação
específica, mas foram os cinco filhos do grande sacerdote de Elementar.
Elyanor fundou a Ilha Elementar e a dividiu em condados. A magia que
existia aqui era tão forte que o tornou um grão-sacerdote, um poderoso
homem. O primeiro, aliás. Logo depois, quatro crianças especiais nasceram
destinadas a serem os Soldados Elementares.
– Esses são vocês?
– Sim. Somo imortais como os Guardiões – respondeu. Inspirou e
continuou: – Elyanor se empenhou em nos treinar e desenvolver nossos
poderes. Anos se passaram, e junto de Jeíne, teve cinco filhos. Quando
adultos, os cinco decidiram sair da ilha e desbravar as terras que se estendiam
por Onyx. Diemon fundou o Império de Diamante; Crinton, o Império de
Cristal; Esméliun fundou o Império de Esmeralda; Runni, o Império de Rubi;
e Jadyon, formou o Império de Jade. Antes de sair, porém, seu pai os
abençoou com uma incrível habilidade: a imortalidade.
Endrich estava interessado. Ficou em silêncio enquanto a Soldada
narrava.
– Os cinco filhos de Elyon se tornaram grandes pessoas e seus atos de
bondade e perseverança se espalhavam por todos os cantos de Onyx. Até os
mais obscuros – fez uma pausa, inquieta. Retomou: – Com o
desenvolvimento se instalando em Onyx, as trevas começaram a surgir com
maior intensidade e os anjos se viram prensados a fazer alguma coisa. Deram
então aos cinco imperadores as armas imperiais, moldadas pelas pedras
sagradas de cada império, e uma habilidade específica, o que os torna tão
especiais. A partir daí as gerações seguintes dos grandes monarcas também
conservaram seus poderes, principalmente após suas mortes, tomando assim
o lugar do Guardião anterior. Por fim, tornaram-se os principais protetores de
Onyx.
– Impressionante – comentou Endrich, estupefato. – Eu não imaginava o
quanto a História dos Guardiões era tão rica e impressionante. Primeiramente
pelo fato de terem nascidos nesta ilha – sorriu. – Espere, se eles eram os
primeiros imperadores de Onyx, significa que, de alguma forma, Raffy, eu e
os outros temos sangue imperial?
Sheron concordou.
– Será que sou parente do Imperador Asriel? –
Não – a resposta surgiu imediatamente.
Remexeu-se no lugar e fitou Sheron com curiosidade.
— Mas Sheron, de onde surgiram os poderes dos Soldados?
— Quando a Espada Elemental atingiu esta ilha, ela se carregou de
energia elementar, foi o que a fortaleceu de magia e espalhou vida por Onyx,
que antes disso era um mundo qualquer no Universo. Foi isso que
transformou Elyanor num poderoso bruxo e sacerdote após ser originado da
união entre água e terra, os moldadores da emoção e da razão,
respectivamente. A natureza escolheu, por fim, seus quatro filhos para que a
protegessem do mal.
Endrich assentiu e sorriu. Estava tão interessado na história que se
esquecera completamente do tempo. Os dois conversaram por mais alguns
minutos e então voltaram para a caverna. O Guardião se deitou em seu canto,
cobriu-se com sua capa escura e tornou a dormir, sem entender o porquê de
estar com um sorriso nos lábios.
Dezesseis
O Condado Fantasma

Quando Endrich despertou, os raios do sol já estavam adentrando na caverna.


Sua cabeça e costas doíam levemente – nada muito grave. Depois de uma
leve refeição à base de frutas e água cristalina, seguiam em direção ao
Condado do Ar pela mata fechada, mesmo após os protestos do arqueiro em
relação ao sonho. “Ficará tudo bem”, assegurou a Soldada. O grupo se dirigia
para o lado sul da ilha.
Segundo Sheron, o Condado do Ar era a parte da ilha em que Poliana
protegia a centenas de anos. Contou que esse fora um dos melhores, uma vez
foi grande produtor de matéria-prima para os outros condados.
Quando chegaram do outro lado da floresta, o grupo encontrou um
condado em ruínas. Aquele havia se tornado uma vila fantasma. Endrich não
gostou muito da ideia. Só esperava que nenhum outro espectro tentasse tomar
seu corpo; a primeira experiência já valera por um bom tempo.
– Mas onde é que a Soldada do Ar vive? – quis saber Endrich.
– Ela mora no Morro dos Uivos – respondeu Sheron, apontando para
uma elevação que se estendia ao longo do Condado.
Em pouco tempo eles alcançaram o pé do morro e iniciaram a subida.
Enquanto subiam, um vento forte começou a soprar, quase impossibilitando
os companheiros de continuarem. Sheron explicou que isso era normal, pois
em cada casa dos Soldados há uma proteção mágica relacionada com seus
poderes.
Após a tortuosa escalada, Endrich avista a casa onde, supostamente,
morava Poliana. Mas, ao se aproximar da moradia, não percebeu nenhum tipo
de movimentação. Quando entraram na residência, após bater na porta e
ninguém atender, o Guardião teve a certeza de que não havia ninguém ali.
– Onde está essa mulher? – perguntou-se Sheron, vasculhando a pequena
casa.
– Não acredito que viemos até aqui, enfrentando todo aquele vento
mágico, para ter que voltar tudo novamente e sem Poliana – resmungou
Raffy, cansado e estressado.
Endrich entendia Raffy, sentia-se tão cansado quanto ele. Sua respiração
ainda estava um pouco ofegante.
– Bom, acho melhor voltarmos – disse Endrich. – Vamos pedir ajuda a
Dylan, quem sabe ele nos ajude?
– Não sei se ele vai querer cooperar – respondeu Sheron, enquanto
fechava a porta da casa de Poliana atrás de si. – Ele anda muito estranho nos
últimos anos.
– Você quis dizer milênios, certo? – corrigiu Raffy.
Sheron lhe lançou um olhar de esguelha.
Enquanto desciam pelo mesmo caminho do morro, Endrich sentiu um
aperto no peito e um frio na espinha que pareciam congelar seu coração. Já
havia sentido algo parecido, mas não se lembrava no momento. Porém,
quando desceram todo o declive até o Condado do Ar, descobriu o porquê
estava daquele jeito. O Guardião agarrou o Arco de Diamante enquanto
gelava até os ossos.
––––
O Condado não estava mais silencioso, calmo e tranquilo, mas sim,
turbulento, invadido por sussurros; o que fez o coração de Endrich saltitar no
peito. Toda a região da vila estava tomada por uma espessa névoa
acinzentada que se contorcia em sua direção.
– Fantasmas – murmurou Endrich, de olhos arregalados.
– São alguns espíritos inquietos – comentou Sheron, dando de ombros. –
Porém, eu nunca vi tantos juntos.
O rapaz tentava não demonstrar medo, mas, em seu íntimo, sabia que
estava quase tendo um ataque histérico. Será que esses fantasmas são os
mesmos que enfrentei na Mata Rusken? Essa pergunta vagava por sua mente
tentando encontrar uma resposta. Olhava para aquela forma espectral que
começava a tomar corpo. De alguma forma, sabia que aqueles espíritos não
eram simples fantasmas.
Espíritos vingativos – disse uma voz na mente do Guardião. Tome
cuidado com eles, esses abantesmas são mais poderosos.
– Espíritos vingativos? – perguntou Endrich a ninguém em especial.
– Do que você… – Raffy se interrompeu ao perceber que o exército
recém-formado de espectros estava se aproximando rapidamente.
Endrich deu uma rápida olhada para Sheron, que parecia atônita, sem
acreditar em seus próprios olhos. Ela devolveu o olhar ao Guardião.
– Eles estão avançando? – Ela não acreditava naquilo. – Mas são apenas
espíritos de pessoas que já viveram aqui nesta ilha, como podem avançar
desta maneira, tão decididos?
– Eles querem vingança. – Endrich deu um passo atrás. Os fantasmas
estavam tão perto que ele já podia sentir o frio do qual emanavam invadir seu
corpo e tornar seus músculos em gelo.
O Guardião de Diamante distinguiu a forma de três guerreiros vestidos
com armaduras completas. Esses eram espíritos mais fortes, emanavam uma
fraca luz dourada a sua volta.
– Endrich Ragrson, você será destruído – disse um dos fantasmas
guerreiros, com a voz parecendo uma faca que rasgava seus ouvidos.
Agora o medo se espalhara por todo seu corpo, e ele não sabia mais se
conseguiria resistir. Espera! Eu tenho de ser forte. Tenho que enfrentar meus
medos. Preciso enfrentar esses espíritos. Preciso!
– Você irá definhar no Labirinto das Almas, onde nunca, jamais,
encontrará a salvação de sua alma – continuou o fantasma. – Seu espírito
será sucumbido aos prazeres do Senhor das Trevas. Ele irá lhe escravizar! –
O fantasma lançou a cabeça para trás e soltou o que parecia ser uma
gargalhada.
Raffy se aproximou de Endrich e, sério, sussurrou:
– Temos de exorcizá-los. Só assim para irem para o Reino dos Mortos.
Endrich se recuperou. As palavras do Guardião de Cristal havia lhe dado
mais ânimo. Sim, existia uma forma de derrotar os fantasmas. Ele não se
lembrara antes porque o medo o tomara de tal forma, que fizera sua cabeça
parar de funcionar momentaneamente. O medo é uma queda que nos leva à
escuridão.
– Você se lembra das palavras? – indagou Raffy.
– Sim – acedeu Endrich, franzindo a testa.
Segurando fortemente o Arco de Diamante, suas hastes alinhadas no
tamanho máximo, preso a seu braço, Endrich sacou duas flechas da aljava.
Enquanto isso, os fantasmas começaram a avançar em direção ao grupo. O
Guardião de Diamante posicionou as flechas firmemente ao arco.
– Se vocês estão pensando em algo – disse Sheron –, então é bom fazer
logo.
Raffy desembainhou o Sabre de Cristal e, girando-o no ar, transformou-o
numa espada longa. A lâmina refletiu a luz do sol, e logo estava produzindo o
próprio brilho. O Guardião de Cristal olhou para Endrich, e, assentindo, os
dois correram na direção dos fantasmas. Endrich resolveu ignorar o tremor
das pernas.
Use todo seu poder – a voz na mente de Endrich disparava. Diga as
palavras com vontade!
Quando estavam em meio aos fantasmas, o medo corroendo a mente de
Endrich, ele e Raffy gritaram juntos:
– Lys Beskyttelse!
No mesmo instante os dois estacaram em meio ao aglomero de espectros.
As setas de Endrich foram disparadas, indo em direção a uma imensa tropa
de fantasmas. A lâmina de Raffy disparou uma rajada de luz contra os três
fantasmas guerreiros. Nada mais foi visível senão uma explosão de luz
perolada com fachos dourados, que tomou conta de todo o Condado.
Em meio à expansão de luz, Sheron teve de fechar os olhos e esperar que
tudo voltasse ao normal. Até mesmo Endrich e Raffy fecharam os olhos por
um momento. Entretanto, o Guardião de Diamante não sentia a necessidade
de fazê-lo. Era imune ao poder.
Aos poucos a luz se esvaiu e todos puderam enxergar. O Condado estava
livre. Não havia mais avantesmas. Agora, havia apenas silêncio. E o silêncio
era o grito dos mortos.
––––
Quando os Guardiões Imperiais e Sheron estavam de volta à caverna onde
passaram a noite, no Condado da Água, já estava entardecendo. O grupo
levara um pouco mais de tempo para chegar, pois passou em alguns lugares
da mata aonde conseguiram provisões para passar aquela noite.
– Eu não entendo – comentou Sheron. – Onde está Poliana?
– Ela devia estar… caçando? – sugeriu Raffy.
– Na verdade, não – respondeu uma voz rouca e calma, aproximando-se
dos companheiros. Era Dylan. – Eu sei o que eles estão tramando, e o que
aconteceu a Marinny.
De onde ele surgiu? – indagou-se Endrich. Dylan não parecia tão
decaído como da primeira vez que o vira.
– Espere, você falou “eles”? – indagou Sheron. – Isso quer dizer que
Poliana também está participando dessa traição?!
O Soldado da Terra assentiu e olhou de canto para a Soldada indignada.
Então meu sonho está correto – pensou o Guardião de Diamante.
– Não é só isso. Sheldon começou com essa história de conquistar o
mundo após concordar em fazer um pacto com um demônio, que desconheço
o nome.
Percebeu que Sheron estava desmoronando. Ele queria poder fazer
alguma coisa para ajudá-la, mas não conseguia pensar em nada.
– Bem, nós precisamos detê-lo – comentou, sem ter plena certeza do que
dizia.
– Não é tão simples assim – respondeu o Soldado da Terra. – Seria mais
fácil se já estivéssemos com a Espada Elemental em mãos. Assim
poderíamos derrotar o demônio e fazer com que Sheldon deixasse esse plano
maluco de querer ser um dos donos do mundo.
– Eu quero saber por que Sheldon está fazendo isso comigo! – Os olhos
de Sheron se encheram de lágrimas. Endrich sabia que ela era uma mulher
forte, mas, pelo visto, amava Sheldon e se entristecia com seus atos infames.
Para piorar, não era só isso. A Soldada era instável, já percebera. Em um
momento queria destroçar o Soldado do Fogo e em outro, chorava por ele.
Raffy se aproximou de Dylan. Uma expressão de pensamento transcorreu
por suas faces. Parecia que o Guardião estava tentando captar os pensamentos
do Soldado, mas não demonstrou isso, pois logo perguntou algo de extremo
valor a ele:
– O que exatamente esse demônio quer?
Dylan hesitou, mas, pacientemente, assentiu e explicou o que sabia:
– Com a Espada Elemental, o demônio pactuante com Sheldon, poderá
rasgar o véu natural que separa a Dimensão da Luz, um lugar sagrado e
proibido a seres malignos, e devastar toda a ordem de anjos ainda existentes.
E o pior: tendo a relíquia em mãos, poderá forçar os humanos a escravidão,
sendo que terá o controle sobre os quatro elementos que regem a natureza.
Suponho ainda que possa utilizar de tal arma para abrir passagem ao Senhor
das Trevas.
– Porém – continuou o Soldado –, não poderíamos destruí-la caso a
encontrarmos. Pois, se isso acontecer, Onyx entraria em colapso e se
autodestruiria, isso porque os elementos da Natureza estariam livres no
mundo, sem rédea alguma. Seria um prato cheio para as trevas.
Endrich e Raffy assentiram com a cabeça. O Guardião de Diamante já
não tinha mais ideia do que poderiam fazer para salvar os herdeiros e o
mundo – novamente. Sentiu os joelhos fraquejarem. “Suponho ainda que
possa utilizar de tal arma para abrir passagem ao Senhor das Trevas”. Isto fez
com tivesse certeza do que seu pai já havia lhe avisado em sonho. Estava
cada dia mais próximo do penhasco e ainda não compreendia como e por que
fora parar no meio de tudo aquilo.
– Mas e Marinny, o que aconteceu a ela? – quis saber Raffy, preocupado.
– Ah, sim, Marinny? Ela está… digamos… meio má – respondeu Dylan.
Raffy expressou indagação.
– Má? Má em que sentido?
– Ela apanhou feio do demônio pactuante. – Dylan se empertigou. –
Parece que ela foi desafiada em um duelo e perdeu. Mas está bem, no sentido
de estar viva; e má, no sentido de estar machucada.
Endrich sentiu um aperto no peito. E pôde distinguir, pela expressão de
Raffy, que ele sentia a mesma coisa. Não, espere. Conseguia sentir que algo
muito além de raiva ou dor povoava a mente do amigo. Uma energia
irreconhecível emanava de seu corpo. Um sentimento intenso, antigo e
violento saltava por seus poros.
– E o que nós podemos fazer? – perguntou o Guardião de Cristal.
– Eu não sei. Só sei que… – Dylan se interrompeu com o soar de um
barulho de terra sendo remexida.
– O que foi isso? – quis saber Endrich, perguntando mais a si do que aos
companheiros.
Dylan apontou para um dos cantos da caverna.
– Nós já vamos descobrir.
Dezessete
Revelações

Um buraco estava se abrindo na parede de pedra. Parte da rocha se


desprendeu, dando passagem para o que parecia ser um focinho. Logo,
redondos olhos ligeiros despontaram, vasculhando tudo a sua volta. Endrich,
assim como todos que estava na caverna, assustou-se ao ver o animal. Era
uma espécie de roedor, com uma imensa cara e longos bigodes brancos.
– Vocês foram ficar justo numa caverna de roedores – retrucou Dylan,
numa expressão inflexível.
– Há séculos eu não via tal ser – replicou Sheron. – Achei que estivessem
extintos por causa da maldição!
– Ele deve ter renascido conosco desta vez ou alguém o ressuscitou!
Endrich deu um passo atrás, pegando uma flecha na aljava. Era uma
flecha curta, com penas de ganso em sua extremidade. A ponta era de ferro,
possuindo três lados.
– Ei, se vocês não perceberam, há um rato gigante na nossa frente –
vociferou nervoso, enquanto procurava encaixar a seta na corda. Mas fazer
isso estava custando tempo demais. Suas mãos tremiam, percebeu.
O roedor farejou o ar, e, instantes depois, lançou-se contra os Guardiões
e Soldados, saindo do buraco que produzira na parede. Raffy e Sheron se
jogaram para a esquerda e Dylan para a direita. Porém, Endrich, sem sorte,
caiu para trás, ficando na reta do animal. Por que me desconcentrei enquanto
posicionava a flecha?
O Guardião de Diamante sentiu seu coração parar. Será que tudo estaria
acabado? Ele se arrastou, recuando de encontro à parede; ficou sem saída. O
rato estava em cima dele, com a boca entreaberta, e Endrich pôde sentir um
leve bafo desagradável escapar por entre os dentes amarelados do animal.
– Use o arco, Endrich! – gritou Raffy, empunhando o Sabre de Cristal.
Endrich não respondeu. Olhou para a mão direita e viu que ainda
segurava a flecha que pegara na aljava. A ponta de três lados era feita de aço-
minério e seu corpo, de teixo. Empunhando a seta, e sem pensar duas vezes, o
Guardião a penetra no queixo do gigantesco animal. O roedor guinchou,
fazendo a terra estremecer, virando-se em seguida para Dylan, que até então
estava de encontro à parede oposta a em que Endrich se encontrava.
Enquanto sangrava, o rato revelou olhos negros de fúria para o Soldado
da Terra. Agora quem estava em perigo era Dylan, e se não se prontificasse a
sair dali o mais rápido possível, poderia ser tarde demais.
– Dylan, saia daí! – berrou Endrich, no instante em que o roedor se
lançou contra o Soldado.
Mas Dylan não se moveu.
O Guardião de Diamante, sem entender muito que acontecera, jogou-se
para o lado no instante momento em que uma pedra se desprendeu do teto da
caverna. O que foi isso? – perguntou-se. E, quando a nuvem de poeira se
dissipou, ele distinguiu o enorme roedor debaixo da gigantesca pedra que se
soltara. O Guardião olhou para Dylan, que estava com as mãos esticadas para
frente, sem entender nada.
– O que aconteceu? – indagou Raffy, pondo-se de pé. Tanto ele quanto
Sheron tinham indo ao chão no instante em que o rato fora preso.
– Fui eu – respondeu o Soldado.
Endrich pôde ver as expressões dos outros dois. Ele estava boquiaberto e
ela, sorridente.
O homem passou pela lateral do rato, evitando tocá-lo.
– Vamos, é melhor sairmos daqui – ordenou Dylan. – Não sei se essa
pedra vai segurar o roedor por muito tempo – afirmou, vendo o animal dar
sinais de reação.
––––
Após um tempo de caminhada, o grupo havia chegado à frente do Templo
dos Mundos. Tanto os Guardiões quanto os Soldados estavam tão cansados,
que desejavam se jogar numa cama macia. Mas, não tendo nada parecido, o
chão de grama fofa fora mais que suficiente.
– Mais que nunca, nós precisamos fazer alguma coisa para deter Sheldon
– comentou Raffy, após um tempo de silêncio.
Endrich fitou o amigo por um tempo. Por que ele não conseguia crer
piamente em suas palavras? Sabia que ele nutria algum tipo de sentimento
poderoso por Marinny, mas sua expressão não parecia transmitir tudo aquilo
que dizia.
– Mas o quê? – interveio Sheron. – Nem mesmo um plano nós temos. Se
bem que eu tentaria amassar a cara de Sheldon da mesma forma. – A mulher
cuspiu o nome do Soldado.
O Guardião de Diamante permaneceu em silêncio. Tentava esquecer, ao
menos por um momento, o quanto estava perdido. Às vezes só queria
esquecer tudo de mal que o rondava e viver tranquilamente. Uma vida normal
ao lado de Luany seria pedir demais? Contudo essa não é a vida de um
protetor de Onyx. Bufou. Por vezes a escolha que fizera o deixava irritado e
em dúvida, por outra achava que acertara na decisão. Resolveu que o melhor
seria chacoalhar a cabeça e tentar esquecer tudo isso de uma vez. Ou então
não seguiria em frente. Preciso aceitar os fatos e ser feliz da forma que me
for possível.
– Ah, há uma coisa que eu não contei – interveio Dylan. Ele parecia um
pouco perturbado. – Sheron, sabe o portal, no Templo dos Mundos, por onde
atravessamos para ir a outros lugares de Onyx?
– Não! – gritou Sheron, num som abafado.
– Que história é essa de portal? – Endrich despertou de seus devaneios,
voltando-se para Sheron, incrédulo. – Você me disse que não havia nenhum
portal.
A mulher se pôs de pé, insegura.
– Eu, eu… não quis lhe envolver nisso…
– Você não contou a eles? – indagou o Soldado da Terra, sentando-se. –
Achei que você estivesse ajudando eles.
Sheron assentiu. Raffy assim como Endrich, que estava enrubescendo de
raiva, pôs-se de pé.
– O que é tudo isso? – quis saber o Guardião de Cristal. – Por que mentiu
pra nós?
A Soldada da Água hesitou.
– Isso foi antes de eu saber que Sheldon estava me traindo. – Sheron
estava nervosa, mas ficou séria e dócil ao mesmo tempo. – Ele havia pedido
pra eu não contar a vocês.
Endrich ficou mais confuso.
– Hein? Como assim não contar a nós?
Dylan também pareceu perdido. Sheron contou relutante, que, quando
participava do plano de Sheldon, tinha o dever de se tornar amiga dos
Guardiões e levá-los até o Soldado do Fogo, onde Endrich devia ser intimado
a procurar a Espada Elemental. A Soldada revelou que, para ter certeza de
que Endrich estaria indo para a ilha amaldiçoada, ela devia usar uns dos
portais mágicos do Templo dos Mundos que a levou ao Império de Cristal,
onde fez certa amizade com o Guardião de Diamante, enquanto aguardava a
chegada de Raffy.
Endrich estava atônito. Por que ela escondera isso, se decidira ajudar os
Guardiões em sua missão?
– Você mentiu! E eu detesto isso – exclamou ele, não sabendo ao certo o
que sentia.
Sheron apenas baixou a cabeça.
Endrich se virou para Dylan.
– Você disse algo sobre os portais. O que têm eles? – perguntou.
O Soldado da Terra suspirou.
– Está bem, você quer mesmo saber?
O Guardião de Diamante assentiu.
– Certo. Os portais são cortes entre mundos e no tempo-espaço, que nos
permite viajar não só dentro de Onyx, como para qualquer outro lugar.
Entretanto, nós Soldados, só conseguimos sair por alguns poucos minutos. E
pelo que vi, quando atravessei a floresta hoje cedo, perto do Templo, Poliana
estava seguindo para próximo da entrada. Segui-a. Esperei um bom tempo, e,
quando estava me preparando para seguir meu caminho, ela saiu da
construção carregando uma garota pelo cotovelo. – Dylan tomou fôlego. – Ao
que pude ver a jovem era pouco mais baixa que você, Endrich, tinha olhos
verdes e cabelos loiro-escuros. E falava mais que uma gralha.
Endrich ouviu todo o relato atentamente, mas, quando chegou à parte
final, sentiu como se seu coração fosse sair pela boca. Não pode ser – pensou,
o desespero tomando conta.
– O que foi Endrich? – indagou Raffy, após captar os pensamentos
aflitos e ver a expressão de Endrich.
O Guardião de Diamante estava assustado. Ele nunca quis botá-la em
perigo, mas também nunca imaginara que tudo aquilo fosse acontecer. Por
que a envolveriam nisso?!
– Acho que sei quem é a nova raptada – afirmou ele, a voz pouco mais
de um sussurro.
– Quem poderia ser? – indagou Dylan, aparentemente preocupado com a
expressão que surgira na face do Guardião.
Endrich não queria dizer o nome dela, não queria acreditar na
possiblidade. Porém, se as características eram idênticas, então só poderia ser
uma pessoa. Um bom tempo depois, ele respondeu:
– Luany.
––––
O choque da realidade ainda vibrava por seu corpo. Como a missão chegara
aquele ponto? Endrich percebera que não poderia mais pôr em risco as
pessoas que amava. Duas eram suficientes para deixá-lo desprevenido; uma
havia morrido: seu querido professor Stuarck, e isso por ter enfrentado
Trevys. Não queria de forma alguma que Luany tivesse o mesmo fim.
Levantou-se, pesaroso, e se dirigiu até a mulher, que soluçava encostada
em uma árvore. Parecia derrotada.
– Desculpe-me – pediu ele, calorosamente. – Sei que fui rude, mas
preciso de sua ajuda neste instante, mais do que qualquer coisa.
Sheron o fitou com olhos vagos. Parecia hesitante. Endrich não saberia
dizer, mas logo em seguida ela assentiu. Demonstrava se sentir culpada.
– O que posso fazer? – perguntou ela, a voz meio engasgada, mas com o
olhar determinado.
– Onde Sheldon está?
– Deve estar próximo ao condado que ele protegia, onde seus poderes
são mais fortes. O Condado do Fogo, na parte norte da ilha.
– Leve-nos até lá, por favor – suplicou o Guardião de Diamante.
Sheron consentiu, secando as lágrimas. Endrich esboçou um sorriso.
– Você vem com nós? – indagou Endrich a Dylan.
O Soldado pensou. Respondeu:
– Não. Minha cabeça ainda está um pouco confusa com tudo que
aconteceu. E tenho medo que as coisas possam se repetir.
– Se repetir? Como…?
– Esqueça isso. Tudo bem?
Endrich, preocupado, assentiu e se distanciou.
– Você tem certeza? – insistiu Sheron. Vendo a afirmação de Dylan, a
Soldada continuou: – Certo. Então, tome cuidado meu amigo.
– Você também, Sheron – lembrou Dylan. – Sei que você quer vingança,
mas não a deixe tomar conta de seu corpo e espírito. Ela pode ser pior que
uma faca atravessando o próprio coração. Não seja má. E não se iguale a
Sheldon. Mostre que está no controle das próprias emoções – sorriu. –
Elyanor sempre lhe dizia: “Volátil como a água é, às vezes torna-se
necessário o congelamento para apaziguá-la”.
A Soldada assentiu.
– Jamais serei igual a ele.
Dylan anuiu e esboçou um leve sorriso.
Sendo assim, após um rápido abraço entre os Soldados, Endrich e Raffy
seguiram Sheron pela mata em direção ao Condado do Fogo. O Guardião de
Cristal utilizava seu sabre para abrir caminho onde os galhos e cipós eram
mais densos pelo caminho. Muitas vezes deixando um galho escapar e
ricochetar no rosto de Endrich, que seguia em seu encalço, fazendo-o
reclamar por um bom tempo. No fim das contas, acabava com um riso
entredentes.
O Guardião de Diamante tinha esperança de conseguir resgatar a
princesa Blair e o príncipe Gabrian junto de Raffy, principalmente agora que
ficara com o coração entalado na garganta. Luany também fora carregada
para a ilha, e isso era mais do que motivo para tentar qualquer coisa que a
tirasse de lá. Por mais que não tivessem um plano, ele tinha que vencer
Sheldon. Mesmo que isso, no fim, resumisse-se em grandes consequências
para ele.
Dezoito
Sem Escolha

A camponesa olhava atentamente a mulher que havia lhe raptado. Estava


escondida atrás do altar, junto de um homem alto e corpulento, que Blair
informou ser seu raptor. Sheldon era o nome dele. Ela estava acima da cabeça
dos Soldados Elementares, por isso conseguia os ver tão claramente.
Luany havia sido acorrentada por Poliana, como entendera Sheldon
pronunciar; quem a conduziu até ali. A jovem não gostara nada, mas não
havia o que fazer. Estava ao lado da princesa Blair Crystan, do príncipe
Gabrian Zackiel e de Marinny Bellaire, que, pelos hematomas espalhados
pelo rosto e braços e a boca inchada, concluiu ter sido espancada.
Suspirou, repetindo mais uma vez em mente o que acontecera. Estava
pegando água num poço para sua mãe, que naquele momento devia estar
tendo um ataque do coração por sua filha ainda não ter dado notícias. Luany
se lembrava de pouca coisa, mas o que ainda lhe vinha à memória era o
momento em que ela atravessou uma porta no meio do nada, próxima do Rio
Coronal, ao ser puxada pela Soldada. Ela só queria entender como aquilo
poderia ser possível – e de onde aquela mulher teria vindo.
Já havia passado do meio-dia e Luany estava com fome. Sentia que seu
estômago iria derreter a qualquer momento. Desde que chegara naquela
manhã, ela não havia posto nada na boca, nem mesmo um pouco de água –
que, lembrando isso, a fez ficar com mais sede.
Endrich! – pensou. Como eu queria que ele estivesse aqui comigo. Será
que é para esse lugar que ele viajou? Ao menos ela torcia que sim. Ou não.
Pensar em vê-lo duelando com os raptores não seria nem um pouco
agradável.
A jovem, naquele momento, gostaria de estar em segurança, sob a
proteção de seu melhor amigo e Guardião de Diamante. Nada mais lhe vinha
à mente, senão a imagem do rapaz. Ela queria estar ao seu lado. Precisava
dele naquele exato momento. Apenas ele. Como fazia falta! Nunca achou que
seus sentimentos mais íntimos explodiriam em um momento como aquele.
Deu! Estou me afundando em pensamentos indevidos! Mas sabia que era
inevitável.
Foi quando, ao olhar para a floresta a sua frente, percebeu um farfalhar
estranho. Galhos e folhas se moviam lentamente, revelando um rosto
feminino. Luany nunca vira a dona daqueles cabelos ruivos, mas, quando um
dos companheiros da mulher se revelou, a garota sentiu seu coração bater
mais rápido. Suspirou ruidosamente. Sua vontade era correr até ele e gritar
seu nome, mas se conteve em apenas murmurar:
– Endrich! – Agora, Luany sentia sua esperança lhe tomar a alma e o
corpo, revitalizando-a.
Quando Marinny ouviu, levantou a cabeça rapidamente, avistando o
grupo. Sheron e Endrich saíram do meio das árvores, e logo atrás veio Raffy.
Ela se sentiu preencher por dentro; uma curiosa felicidade. Instantaneamente,
o Guardião de Diamante avistou os herdeiros, a Guardiã e a amiga no altar.
Todos estavam acorrentados. Ele deu uma espiada em todas as direções em
busca de Sheldon, mas parecia não haver ninguém ali. Começou a se
aproximar, cauteloso.
– Não! – gritou Luany, ao perceber que Sheldon se esgueirava pela
lateral do altar. Foi quando, subitamente, uma parede de fogo se elevou entre
Endrich e os acorrentados.
– Não, seu novato idiota! – gritou Marinny, com o que lhe restava de
força. – Será que você não sabe que tem de tomar cuidado… porque pode
haver alguma armadilha?
Endrich se afastou rapidamente para não ser queimado. Ele viu o quão
machucada Marinny estava, e admirou a força que ela ainda possuía para
gritar com tanta ênfase apenas para lhe xingar. Preocupado, Raffy se
aproximou do Guardião de Diamante perguntando se ele estava bem.
Endrich assentiu.
– Sim, estou – respondeu ele. – Mas se Sheldon acha que isso será o
suficiente para me deter, então ele está muito enganado.
Após muito tempo, Endrich sentiu sua coragem renovada e uma raiva
que há muito não sentia. Não poderia mais ser fraco e inseguro como nos
últimos dias. Precisava enfrentar seus medos e, principalmente, o infame
Sheldon.
A parede de fogo se rompeu ao meio, de onde surgiu o Soldado do Fogo,
com a expressão fria de sempre. Porém, dessa vez, seus olhos brilhavam tão
intensamente, que, ponderou Endrich, poderiam iluminar boa parte do
mundo. Com seu sorriso irônico, Sheldon se aproximou.
– Ora, ora… Então vocês viveram e vieram. Achei que não iriam
sobreviver aos desafios da ilha para me encontrar – disse ele.
– Solte Luany e os outros! – exigiu o Guardião de Diamante, sem
demora.
– Ah, então é Luany o nome dela… Prazer em conhecê-la, Luany –
cumprimentou o Soldado do Fogo, voltando-se para a jovem enquanto a
parede de fogo se extinguia. Em resposta, a camponesa revelou uma carranca
para Sheldon, mostrando a língua. Ele deu de ombros e se virou para Sheron.
– Então você também veio me visitar!
Sheron enrubesceu de raiva.
– Visitar? Eu vim para lhe matar, seu desgraçado! – explodiu ela. –
Mentiroso covarde!
– Covarde mesmo – interveio Marinny, um pouco ofegante. – Olhe o que
ele fez a mim!
Raffy se enraiveceu. Deu um passo a frente.
– Não acredito que você fez isso com ela! Por quê?!
Sheldon trocou o peso de um pé para outro, tranquilo. Deu de ombros
novamente, e, calmamente, respondeu:
– Primeiro: não fui eu quem fez àquilo a ela; e sim um grande amigo. E
segundo: ela merecia, pois agora sabe demais sobre nosso plano. E isso é
imperdoável.
– Assim como sei que você vendeu sua alma para um demônio! –
exclamou a Guardiã de Jade, não suportando mais tudo aquilo.
– Isso é mesmo verdade? – quis saber Sheron, nervosa.
Ela ainda tinha dúvidas sobre isso.
– Isso não é de sua conta! – vociferou o homem.
Endrich, não aguentando mais o Soldado do Fogo, entra na conversa,
explodindo:
– Não me importa se você vendeu ou não sua alma, mas, se quiser sair
impune, então também terá de nos espancar e até mesmo matar, pois sabemos
todo o seu plano! E mais: podes ter certeza de que nós não iremos ajudá-lo!
Sheldon sorriu sarcasticamente. Endrich passou a odiar quando ele fazia
isso; mostrava o quão ruim ele era.
– Ah, é? Você que pensa idiota!
O ar pareceu carregado de calor e por um peso que desconcentrava a
todos. Então, subitamente, um fio de fogo é lançado contra Endrich, que se
jogou para o lado, tentando fugir o quanto antes das chamas. Logo o
Guardião se pôs de pé, vendo que parte de sua capa e de seu colete estavam
em chamas.
––––
Antes isso, Luany observava Sheldon e Endrich em uma rixa que para ela não
fazia muito sentido. Entretanto, se parasse para pensar, apenas por terem
raptá-la, Endrich lutaria contra todas as tropas de soldados e guerreiros do
mundo para salvá-la. Modéstia parte, ela tinha certeza disso.
– O que Endrich quis dizer quando falou que não iria ajudar Sheldon? –
perguntou Luany a Marinny. Ela ouvira toda a conversa entre os Soldados e
Guardiões, e sabia que a Guardiã de Jade teria a resposta na ponta da língua.
– O que isso quer dizer? Bem, é por que Sheldon quer que Endrich se
arrisque para ir atrás de uma espada mágica, que está perdida nos confins de
sabe-se lá onde… – A Guardiã se ajeitou, resmungando. – E, óbvio, Endrich
não vai fazer isso… pelo menos é no que acredito.
– Mas por que a tal espada está perdida? E por que tanto interesse nela?
– Sheldon quer usar a Espada para dominar o mundo e destruir a nós,
Guardiões Imperiais. Ele se acha superior porque os Soldados Elementares
nasceram primeiro que os Guardiões, em um tempo anterior ao qual anjos
vagavam pela terra. E tudo isso não é bom…
Luany franziu o semblante. A Guardiã sabia das coisas, concluiu ela, e
gostaria de saber como ela poderia ter tantas informações sobre o plano do
Soldado do Fogo.
Ah, meu querido Endrich, onde fomos nos meter?
Estava com medo do que poderia acontecer a seu amigo. Quando ela
ouviu Sheldon com seu sarcasmo:
– Ah, é? Você que pensa idiota!
E logo depois um chicote de fogo estava em cima de Endrich. Luany
sentiu um gelo tomar-lhe o corpo, enquanto ele se jogava para o lado. Ela não
sabia como, mas tinha certeza de que a luta começaria de verdade naquele
momento.
––––
Raffy e Sheron correram até Endrich para ajudá-lo, enquanto tentava se livrar
da capa em chamas e do colete chamuscado. Porém, de súbito, foram
interrompidos por uma forte rajada de vento. O Guardião de Diamante pôde
ver pelo canto do olho que o outro Guardião e a Soldada foram jogados de
volta para o lugar de onde tinham saído próximo às árvores. Subitamente,
uma mulher pousa no chão. Endrich ficou atônito. De onde ela teria vindo? A
mulher era alta, magra, cabelos louro-claros e olhos de cor cinza. Sua
expressão parecia a de uma criança pronta para fazer alguma coisa maldosa.
– Poliana?! – exclamou Sheron, pondo-se de pé, ainda que o ar a sua
volta parecesse pesar uma tonelada.
– Olá, amiga. – Poliana tinha a voz calma e serena. Não parecia ser mau,
mas o sarcasmo em sua voz a revelou. Sem dúvidas, ela estava ao lado do
Soldado do Fogo.
– Como você pôde se juntar a Sheldon?
Poliana sorriu.
– Bem, seus planos são bons. Após derrotarmos vocês e sairmos desta
ilha, mataremos os outros Guardiões Imperiais e, junto do Senhor das Trevas,
dominaremos o mundo! – Ela gargalhou feliz, enquanto Sheron estava tão
pasma, que mal conseguia se mexer. – Além, é claro, de Sheldon ser um
ótimo companheiro.
A Soldada da Água piscou. Ouvira bem?
– Espere aí, você está dizendo que Sheldon e…
– Sheldon e eu tivemos um lindo caso – completou a outra Soldada. –
Ora, Sheron, convenhamos, o fogo e a água nunca se dão bem. Apesar das
chamas serem o combustível dos sentimentos, uma parte das emoções
humanas criadas pela água, todos nós sabemos que vocês dois não teriam
futuro. Ele quer crescer, conquistar; você quer se autopreservar e controlar,
além de manter a paz e o amor no mundo – revirou os olhos.
Seus olhos queimavam, lágrimas insistiam em escorrer. Não se permitiria
a humilhação em frente à inimiga.
– Eu deveria usar o ar para apagar suas memórias, talvez assim sofresse
menos – continuou Poliana. – Contudo, não o farei, pois quero sentir sua ira
com tudo isso. Vê-la sofrer por algo há muito perdido será um prato cheio
para mim.
Trincou os dentes. Segurava-se para não cometer uma loucura.
– Mas então, como vocês pretendem dominar o mundo? – mudou de
assunto.
– Endrich é a resposta. Ele irá buscar a Espada – concluiu a Soldada do
Ar com um sorriso cínico. – Agora eu fico pensando: como serão meus filhos
com Sheldon?
Fora a gota d’água que Sheron precisava para sentir como se houvesse
um mar inteiro em seu interior, prestes a transbordar, intimando-a atacar.
Perguntava-se por que a Soldada do Ar, que uma vez fora uma grande amiga
sua, estava se voltando para o lado mau. Será que ela poderia estar sobre
algum encantamento? Ou ela também tinha vendido sua alma? Sheron ainda
estava chocada com tudo aquilo.
Como se lesse sua mente, Poliana ri e retoma:
– Você devia ver sua cara, está ótima! Nunca fui sua amiga de verdade,
Sheron. Podemos ser todos irmãos por parte de Elyanor e Jeíne, a única
mulher que respeitei, mas somos totalmente o oposto uma da outra. É como o
ar e a água: tão próximos um necessitando do outro, mas tão distintos! Bem,
chega de enrolação, está na hora de vocês morrerem! – disse calmamente.
Movendo os braços de um lado para o outro, formou-se um cone de nuvens
de vento que em pouco atingiu o chão.
Endrich olhou do braço, que ardia com uma queimadura, para o céu.
Nunca presenciara algo parecido com um tornado. O incrível era que a
Soldada não tinha sua localização alterada; ela estava com os pés firmes no
chão, ao contrário de Raffy e Sheron, que em pouco tempo estavam sendo
arrastados para dentro do cone de vento. O Guardião de Diamante não sofria
quase nada com a ondulação do vento, que pouco o atingia. Nesse ínterim,
Sheldon aproveitou para atacar.
Sem tempo para sacar uma flecha de sua aljava, Endrich usa o arco para
atingir Sheldon, com as hastes abertas. O Soldado desvia do ataque e,
incendiando suas mãos, saca uma espada média de lâmina prata, que a utiliza
para investir contra o Guardião. Endrich utiliza o encaixe que o Arco possuía
para se prender ao braço, como um bracelete, para defender os golpes da
espada flamejante. Entretanto, mesmo defendendo os ataques poderosos,
Sheldon impele contra ele, que se vê contra o chão, há alguns passos de
distância. Tenho que continuar lutando! Endrich se pôs de pé e contra-atacou
o Soldado do Fogo, pondo uma flecha rapidamente no arco e disparando.
Enquanto isso, Sheron e Raffy estavam passando por dificuldades.
Poliana parecia feliz pelo fato de estar controlando um tornado contra o
Guardião de Cristal e sua “amiga”. O vento estava tão forte que os dois não
tinham certeza se conseguiram permanecer com os pés junto ao chão – eles
estavam constantemente sendo arrastados para o cone de vento.
Raffy, empunhando o Sabre de Cristal já na forma de espada longa,
investiu contra a Soldada do Ar. Ele não estava mais aturando aquela mulher.
Mas, com um rápido movimento dos braços, Poliana fez o ar a sua volta se
mover, atingindo o Guardião de Cristal em cheio. Raffy foi lançado contra
uma árvore e logo começou a ser carregado pelo forte vento novamente.
Sheron se aproximou a passadas largas e rápidas, impedindo que o Guardião
fosse sugado pelo tornado, segurando-o pela gola da camisa. A Soldada da
Água estava quase sendo levada junto, quando pegou a espada na mão de
Raffy e a ficou na terra seca.
– Raffy, Raffy! – chamou Sheron. O Guardião de Cristal abriu os olhos,
fazendo uma careta de dor. – Você está bem? – indagou-o.
– Sim… Eu acho – respondeu Raffy, quase sem ar.
– Ótimo, pois precisamos continuar lutando.
Sheron, usando de toda sua força, tenta fixar os pés no chão, mas o vento
está se tornando cada vez mais forte, tentando tragar ela e Raffy para seu
interior. Sem ter muitas escolhas, ela se concentrou o máximo que pôde.
Água… Água venha até mim! – pensava ela. De repente havia chuva caindo.
Não, não era chuva. Tinha algo de estranho acontecendo. Poliana só foi
perceber que havia algo de errado quando uma coluna de água salgada estava
se movendo em sua direção.
– O quê? – disse ela, incrédula.
Endrich viu quando a água começou a circundá-los. Ele nunca vira algo
parecido, a não ser quando Sheron controlou uma massa de água para apagar
a parede de fogo que os ameaçava no Condado do Ar. Mas agora era
diferente. Parecia que aquele círculo de água possuía vida própria, era algo
fantástico e assustador ao mesmo tempo.
Distraído pelo poder elementar da água, o Guardião de Diamante se viu
caído mais uma vez, a lâmina de Sheldon quase lhe ceifando a vida. Agora, a
ponta da espada estava mirada contra sua garganta. Ele não tinha certeza se o
Soldado do Fogo iria lhe matar ou lhe manter vivo, já que tanto queria que
fosse à busca da Espada Elemental. Porém, o Guardião já estava achando que
a segunda alternativa seria a mais válida naquele momento.
Endrich deu uma olhadela para Luany. Apreensiva, ela assistia a cena em
que ele estava submetido. Começou a recordar dos bons momentos que tivera
com a jovem camponesa. Seus belos olhos-verdes e seu cabelo loiro-escuro.
Ele tinha tanta coisa para dizer a ela, mas não conseguia libertar as palavras.
Por que tudo há de ser assim? – perguntou-se. Tão complicado!
Ele desviou o olhar da jovem para a mata logo as suas costas. Não queria
estar olhando em seus olhos quando a lâmina descesse contra sua garganta.
Contudo, viu algo se mover entre as árvores. Seria mais algum dos animais
medonhos que habitavam a ilha? Não. Havia mãos humanas, pelo que
Endrich pôde perceber, saindo entre os galhos das árvores. Logo os galhos
deram passagem a um rosto familiar.
Um sorriso passou a moldar seus lábios.
––––
Pouco tempo após Endrich, Raffy e Sheron terem partido, Dylan resolveu
voltar para sua caverna. Mas um sentimento de culpa lhe tomou conta. Ele
não sabia o porquê, mas isso estava lhe corroendo por dentro.
O Soldado da Terra decidiu continuar seguindo para o Condado da Terra,
quando percebeu que não poderia deixar sua amiga e seus novos parceiros
seguirem sozinhos para uma luta. Ele parou. Devia voltar. Mas por quê? Não
tinha certeza, mas concluiu que, se não fizesse algo naquele instante, nunca
mais poderia fazer algo bom a favor de Onyx novamente, caso Sheldon
vencesse a batalha.
Dylan deu meia-volta e seguiu por onde o grupo havia ido, em direção ao
Condado do Fogo. Sheldon devia ser contido, e ele deveria ajudar os
Guardiões nessa conquista. Será que mais uma vez deveria… Não, ele não
pensaria nisso por enquanto.
Enquanto se movia, recordou dos tempos de outrora, quando a ilha não
era amaldiçoada e ele possuía sua família e era responsável pelo Condado da
Terra. Família… Fora criado com seus irmãos e pouco viu da vida senão o
dever de manter a ilha intacta. E agora? Ele não poderia trazer de volta tudo o
que perdera, contudo, poderia concertar os erros causados no passado. Aquele
seria o momento em que a autoconfiança, que há tempos perdera, tomaria
conta de seu corpo e lhe permitiria ajudar a salvar um mundo em que ainda
fazia parte, mesmo mal podendo andar sobre ele.
Mundos. Claro, ele já visitara outros mundos. Ele só não se lembrava
como era caminhar sobre terras distantes e desconhecidas. Ele já fora a um
lugar onde existiam coisas inimagináveis para ele, onde estes objetos não
funcionariam em Onyx.
O Soldado sabia que o tempo estava acabando. Em pouco tempo, ao
anoitecer daquele mesmo dia, a ilha seria tragada pela água, onde iria
permanecer por mais setecentos anos. E seriam longos, recordou-se. Só em
imaginar que teria de renascer novamente, retomar as lembranças que a
pouco ficariam submersas, deixava Dylan num estado de incerteza. Incerto
sobre seu futuro. Incerto sobre as coisas que estavam acontecendo ao redor da
ilha e ele não poder ter conhecimento. Um exemplo: a civilização evolui,
enquanto eles ficavam presos, mortos, a uma incalculável distância abaixo
das águas salgadas. Aquilo era, no mínimo, injusto – e era tudo culpa sua.
Pensativo, Dylan estacou. Há poucos passos ele estaria no meio da
batalha. Sentira o ar gelar à medida que se aproximava do altar onde eram
mantidos os acorrentados. O farfalhar das árvores tocava uma melodia
hedionda. Respirando fundo, o Soldado espiou, por entre galhos, a luta
acirrada que estava acontecendo.
Raffy e Sheron estavam impossibilitados de lutar por causa da
manipulação do ar que Poliana estava impondo. Já Endrich estava caído de
costas no chão, com uma ponta de espada a meio palmo de distância de sua
garganta. Caso ele não fizesse alguma coisa, e rápido, não tinha certeza de
que os amigos sairiam vivos dali.
Amigos é uma palavra forte. Mas pela primeira vez sabia o que era ter
um vínculo de amizade. Porque se sentia dessa forma? Nem mesmo ele
saberia explicar; era como se o destino lhe guiasse por esse caminho.
Sem pensar, o Soldado da Terra afasta os galhos e, murmurando uma
série de palavras no idioma dos deuses, ergue as mãos na altura do peito.
Subitamente a terra começou a tremer. A ilha inteira vibrava junto, ele podia
sentir. Dylan tinha a sensação de que ele e a ínsula eram apenas um; um
completava ao outro. A terra é a maior ligação com a vida.
O solo rachou próximo aos pés de Poliana, e logo ela estava jogada ao
chão. O vento parou de súbito. O mesmo aconteceu com Sheldon, que caiu
logo que a terra o afastou de Endrich. Sua espada derrapou para o fosso
aberto entre eles.
A terra parou de tremer. E, encorajado e com ar de esperança, Dylan saiu
de seu esconderijo.
––––
Endrich não imaginava o que fez Dylan seguir até ele e seus amigos, mas
agradecido com a chegada do Soldado da Terra. Todavia, a luta ainda não
havia acabado e Sheldon e Poliana estavam se pondo de pé novamente.
– O que você está fazendo aqui?! – exclamou Sheldon, raivoso.
– Oi, pra você também, Sheldon – respondeu Dylan, inalterável.
– Ah, seu filho da mãe… – Poliana correu em direção a Dylan, enquanto
murmurava palavras no idioma antigo.
Endrich se armou com uma flecha para disparar contra a Soldada do Ar,
quando, inesperadamente, Poliana é acertada em cheio por uma tromba
d’água que a arremessa contra as escadas do altar. A única coisa que se pôde
ouvir da mulher foi um guincho de dor e fúria, logo abafado pela água que a
afogou. Agora, seu corpo jazia sem vida, quebrado contra os degraus.
– O quê?! – Sheldon ficou atônito e apavorado ao mesmo tempo, olhava
para Sheron. Ele não acreditava que estava começando a perder. – Vocês
acham que ainda podem me vencer?
Endrich, com a flecha preparada no Arco de Diamante, assentiu
firmemente. Raffy empunhou o Sabre de Cristal, desenterrando-a da terra
seca. A lâmina brilhava aos raios do sol.
– Se eu fosse você, iria correndo encontrar a Espada – disse uma voz
rouca e surreal, que fez o corpo de Endrich tremer. – Escute-me e ela não
morrerá.
O Guardião se voltou para o altar e sentiu seu coração parar. O tempo
parecia ter congelado; nada mais importava. Seus olhos arregalados traíam a
coragem e determinação que encontrara há algumas horas.
Parado ao lado de Luany estava um homem usando um longo casaco
preto, empunhando uma faca de lâmina curvada e rajada de alaranjado. O
curvado externo, onde a faca aparentava ser mais longa, estava pressionada
contra o pescoço da jovem camponesa. Ela, com o queixo erguido, tinha
lágrimas escorrendo pelo rosto, marcando-o entre uma fina camada de poeira.
– Solte-a – exigiu Endrich, trêmulo, na tentativa de reaver suas forças. –
Deixe-a em paz. Ela é só uma amiga, que não tem nada haver com isso.
Solte-a!
Os olhos de Endrich começaram a arder. Não conhecia aquele ser, mas
tinha certeza de que era um demônio. Subitamente uma rápida imagem lhe
vem à cabeça. Era o homem de preto. Este segurava uma espada longa; uma
espada de guerra, concluiu. Só poderia ser a Espada Elemental. Era mais uma
das visões incertas do Guardião, que o deixava confuso. Ele devia fazer algo.
Coçou os olhos e a vista retornou ao normal.
– Caro Endrich… Você não está em posição de exigir nada – respondeu
o homem. – Luany poderá ser muito importante para nosso futuro plano; ela é
mais especial do que você imagina. Tem um dom divino.
– Não importa. Apenas a deixe ir! – exclamou o Guardião, contudo, não
estava tão certo sobre não querer saber do que o demônio falava.
– Quem sabe um dia vocês descubram, não? – Um sorriso medonho se
formou em seu rosto pálido, como se ouvisse sua angústia. – Agora você irá
fazer o que eu lhe mandar e ponto final. Caso contrário… – Ele pressionou
um pouco mais a faca contra o pescoço de Luany. Ela gemeu. Um fio de
sangue escorreu por sua pele rosada.
Endrich estava ficando sem opções. Deveria fazer aquilo que o demônio
lhe pedisse. Seus olhos faiscaram de raiva.
– O que você quer? – perguntou ele, impaciente.
– Simples. Você vai buscar a Espada Elemental, ou sua amiga morre
junto dos herdeiros e desta aí. – O demônio dá um chute na perna de
Marinny, que rosna em resposta.
Endrich fitou a princesa e o príncipe por um momento, eles aparentavam
estar com medo, queriam sair dali. Lembrou-se de sua promessa para com o
Imperador Crystan. Não poderia falhar. Ele teria que correr todos os riscos
para salvar Blair, e, se morrer fosse um deles, também o faria. Agora não
importava mais nada, apenas a salvação dos herdeiros e da amiga Luany.
– Você não pode… – murmurou Raffy, estupefato, enquanto Endrich se
virava para a floresta.
Ele chacoalhou a cabeça.
– Eu devo – disse por fim.
Sem escolha, Endrich troca um último olhar em desespero com Luany, e
segue para o Templo dos Mundos.
Pela primeira vez desde o Acordo dos Serafins compreendeu realmente o
que é ser um Guardião Imperial. Acima de qualquer coisa: nunca quebrar
uma promessa.
Dezenove
A Proposta

Antes que Endrich continuasse até o Templo dos Mundos, Dylan o chamou
para dar algumas dicas. O Soldado mencionara qual porta deveria tomar para
encontrar o portal principal, o qual apostava onde poderia se encontrar a
Espada. Ele assentiu e rapidamente seguiu para a construção.
Agora, o Guardião de Diamante estava na entrada da pirâmide
escalonada. Subitamente, a ilha inteira tremeu. Não tenho muito tempo –
lembrou-se Endrich. Dylan também mencionara para ser rápido; a ilha iria
submergir ao pôr do sol. Olhando para a Estrela de Fogo, o Guardião
concluiu que teria apenas metade de uma tarde para encontrar a Espada.
Endrich seguiu por um corredor estreito – muito mais do que aquele que
seguira ao chegar ao Templo dos Mundos na primeira vez. Nas paredes ao
seu redor, o Guardião podia ver mais um pedacinho da história contada há
centenas e milhares de anos, quando a Ilha Elementar era um lugar tranquilo.
Endrich não conseguia entender muita coisa, mas ele distinguiu os quatro
Soldados Elementares com seus povos, em cada canto da ilha, vivendo em
harmonia. Quem sabe um dia eles voltem a viver como antes – pensou.
Mas nem tudo volta a ser como nos tempos de outrora. O passado é
passado, e não pode ser modificado. Esse pensamento ecoou por sua mente
por um bom tempo.
Endrich chega ao lugar que Dylan lhe dissera. Estava no final do
corredor, e ali não havia mais nada a não ser pelo o que parecia ser uma
grande porta de pedra. No meio da rocha havia um desenho representando os
quatro elementos da ilha: fogo, água, terra e ar. O Guardião olhou em volta
da porta, procurando por alguma inscrição em outra língua, que poderia ser a
forma de abrir a porta. Mas não havia nada.
O Guardião deu as costas para o portal. Estaria tudo acabado? Não, não
poderia estar. Mas como abriria algo mágico que nem inscrições mágicas
possuíam? Endrich vasculhou a cabeça em busca de mais alguma informação
que Dylan tenha lhe dado.
– Ao chegar à porta apenas diga o nome dos quatro condados da ilha –
dissera Dylan. – Pense na Espada e diga uma frase.
– Mas que frase? – perguntara Endrich.
– Você saberá na hora. Agora corra!
Pensando intensamente na Espada, e sem muita certeza, Endrich
arriscou:
– Fogo, água, terra, ar! – falara no antigo idioma.
Nada acontecera. Qual seria a frase que Dylan mencionara? Forçou a
mente.
– Entre o nascimento e a morte, abra-te para um novo mundo.
De imediato nada aconteceu. O Guardião começou a perder as
esperanças, quando, de repente, a rocha se partiu. O desenho gravado na
rocha se dividiu em quatro. Toda a área da porta a sua frente estalou, e ruiu; o
resto da parede foi tragado por uma luz que vinha do outro lado. Por reflexo,
Endrich protegeu os olhos, e, quando a luz repentina tornou-se fraca, abriu os
olhos e pôde ver uma bela paisagem.
Do outro lado da porta, havia um campo verde, cercado de árvores.
Parecia um lugar desértico, inabitado. Então, um pouco relutante, o Guardião
atravessou a divisão entre o seu mundo e o outro. Pousou no que parecia ser
um penhasco. Estava ensolarado, e Endrich pôde sentir o calor lhe envolver.
Olhou em volta. Será mesmo que a Espada está a… – Quando Endrich ia
concluir seu pensamento, interrompeu-se ao avistar o que procurava. Ele
sorriu. A Espada Elemental estava fixada numa larga rocha pontuda, na beira
do precipício. Começou a correr até ela, quando um grande rugido tomou
conta do ambiente. Era tão alto e assustador, que ele achou que seus ouvidos
explodiriam. O Guardião correu os olhos de um lado para o outro, e
novamente se pôde ouvir o rugido. Endrich olhou para trás, arrependendo-se
logo depois. Não sabia dizer se era um animal ou um monstro. Nunca vira
nada parecido na vida.
O ser de característica reptiliana rugiu novamente. Endrich se encolheu,
não deu um passo sequer. Fitou a fera, que devia ser umas três vezes maior
que ele. Seus olhos eram amarelados com duas fendas negras cortando-os ao
meio, possuía duas grandes fileiras de dentes, mas seus braços eram curtos;
sendo insuficiente para alcançar alguém ou qualquer outra coisa no chão.
Porém, para Endrich, somente os dentes pontiagudos já eram mais que
suficientes para lhe destroçar.
O Guardião deu um passo atrás. Ele não podia sentir medo, mas não teve
tanta certeza logo depois que quebrou um galho sob seus pés. O animal lhe
olhou com olhos famintos e investiu com a mandíbula arregaçada. Sem muito
que fazer, Endrich se joga para a direita, rolando alguns passos. A fera deu
uma bocada no ar vazio.
Sacou uma flecha de sua aljava. Usar as setas seria sua única esperança
caso quisesse retardar o ser gigante ou até mesmo matá-lo. Sem hesitar, o
arco com suas hastes abertas, tencionou a corda ao máximo, a flecha no
lugar. O animal investiu contra ele novamente. O Guardião a liberou,
deixando a seta de ponta larga voar em direção à cabeça da fera.
Endrich rolou para a direita novamente quando o réptil passou correndo
por ele. Ainda estava de pé com a flecha cravada entre seus olhos. O ser
guinchava de dor e ódio. Ele sacou outra flecha e, vendo a transformação da
mesma, por meio do poder do Arco, retesou a corda e disparou a nova seta,
ao mesmo tempo em que o animal deu os primeiros passos.
A flecha se alojou no coração da fera. Endrich se aproximou do réptil
tombado, que deu um último suspiro e se calou.
Caminhou até a Espada fincada na rocha e, contando com muita força,
retirou a lâmina encravada. Percebeu, à luz do sol, que a lâmina não possuía
uma única cor, mas sim um misto de tons, imitando um arco-íris. Além disso,
possuía garras que saltavam da base da lâmina. Era uma arma de guerra. Por
um momento, gostaria de descobrir a história daquela relíquia.
A única coisa que Endrich devia fazer naquele instante, era voltar até o
altar e entregar a Espada Elemental a Sheldon e ao demônio. Ao mesmo
tempo sabia que não devia fazer isso, pois poderia acarretar na destruição de
toda Onyx! Porém, era a única forma de salvar as vidas de Luany, Blair,
Gabrian e Marinny. Valeria a pena sacrificar o mundo para salvar a vida
daqueles que mais ama?
Sem mais delongas, Endrich voltou pelo caminho que seguira até a
Espada, e, respirando fundo, atravessou o portal que o levaria a seu mundo.
Na cabeça, um conflito se formara: afinal, não estaria fazendo o mesmo que
Sheldon?
––––
Enquanto isso, Raffy e Sheron fitavam Sheldon, que empunhava a faca que o
demônio usara para ameaçar Luany contra o pescoço de Marinny. Esta gritou
para Raffy lhe tirar dali, mas o Guardião nada pôde fazer, a não ser ter a
incrível sensação de formigamento nos braços após ou vir sua voz. Dylan
fitava Marinny com olhos curiosos, procurando uma solução.
– Como você imaginou que eu descobrira sobre seu plano? – perguntou a
Guardiã de Jade a Sheldon, tentando soar tranquila.
Sheldon riu irônico.
– Simples – respondeu ele –, já ouvisse algo chamado seguir? É… eu os
segui quando foram ao Condado da Terra em busca de Dylan. Seu amigo
Endrich, que neste momento deve estar ganhando uma bela surpresa do meu
parceiro demônio, que foi matá-lo, ouviu algo na mata enquanto eu os seguia.
Mas pelo visto não dissera nada.
Um rápido silêncio reinou no ar.
– Bois bem – continuou o Soldado –, enquanto você absorvia as
informações da mente de Dylan aquele… FILHO DA MÃE… – gritou em
direção ao Soldado da Terra – eu estava lá o tempo todo, observando-os
enquanto você contava tudo. Eu estive pensando em matar Dylan, mas mudei
de ideia e resolvi te raptar para torturar um pouco e ameaçar ainda mais
nossos queridos amigos Endrich e Raffy.
Marinny revirou os olhos. A vontade dela era de socar a cara do infame,
até que ele expelisse sangue. Entretanto, não imaginava como poderiam
afetar o Guardião de Cristal. Ou sei?
– Mas você é muito ruim mesmo – comentou Marinny. – Como é que
você foi capaz de trair seus amigos, sua família!
– Eu não tenho família! – berrou Sheldon, mostrando sua ira. – Podemos
ter sidos gerados pelas mesmas pessoas, mas a Natureza nos fez opostos uns
aos outros. Além do mais, perdi minha “família” assim que meu pai nos
expulsou de casa.
Se ele tocar um dedo nela, juro que o mato – a mente de Raffy disparava.
– Precisamos fazer alguma coisa – cochichou aos Soldados da Água e da
Terra. – Temos que tirá-lo de perto dos herdeiros e de Marinny.
– É. Mas não se esqueça de… Luany? É, Luany. Caso contrário, Endrich
não o perdoará – respondeu Sheron.
Raffy assentiu, sentindo mais uma vez o impulso de deixar qualquer
coisa relacionada ao Guardião de Diamante para trás. Mexeu a cabeça. De
onde vêm esses pensamentos?! De repente, escuta algo mais em sua mente.
Parecia ser uma voz, meio falhada. Era um novo pensamento. Olhou para
Dylan, que assentiu com a cabeça. O Guardião ouviu o pensamento:
Você pode chamar a atenção dele – disse Dylan. Chame-o e eu cuido do
resto. Vou tentar afastá-lo dos detentos, enquanto você corre e tira a
princesa e o príncipe das correntes. Entendido?
Assentiu levemente.
– Ei, Sheldon! – chamou Raffy. – Oh, idiota! – O Guardião não gostava
muito de xingar as pessoas, por achar desrespeitoso demais, porém a situação
exigia um pouco mais de ignorância. Ele percebeu que Sheldon ficou
perigosamente irado, mas quando se é um Guardião o perigo anda junto dele.
O Soldado do Fogo desvia a atenção de Marinny e se volta para Raffy,
bufando. Neste instante, Dylan aproveitou o momento e atacou.
A terra tremeu tanto, que Sheldon se viu caído no chão ao lado de Luany,
que gritou de medo. O tremor não cessou enquanto o altar não rachou ao
meio, afastando Sheldon de Luany. A camponesa até se sentiu mais tranquila,
todavia a situação permaneceu praticamente a mesma; o Soldado do Fogo
estava ao lado de Marinny, preparando-se para se colocar de pé.
O Guardião de Cristal foi rápido e se impeliu contra Sheldon, após subir
o lance de escadas rapidamente. O Soldado rolou para o lado, quase caindo
junto dele no fosso recém-aberto. Pondo-se de pé, revigorado, ergueu o
infame e o jogou aos pés da Guardiã de Jade.
Desembainha o Sabre de Cristal, transformando-a numa lâmina longa,
com um simples movimento giratório. Sheron subiu o altar, aproximando-se
a passadas lentas. Por onde passava, a umidade do ar se erguia em gotículas
de água que giravam no ar. Seu olhar era ameaçador – queimava mais que o
de Sheldon. O Soldado do Fogo se pôs de pé, sorrindo para ela; e a Soldada
retribuiu o sorriso.
– Você vai morrer! – falou Sheldon, ameaçador.
– Eu sei. E em setecentos anos vou renascer de novo – respondeu
Sheron, seca. O orvalho se adensou a sua volta, transformando-se em
pequenas partículas congeladas.
Sheldon grunhiu. E avançou contra a Soldada da Água.
Instintivamente, Sheron se esquivou do ataque, girando para o lado.
Encontrou-se ombro a ombro com Raffy, e, ao Soldado do Fogo se voltar
contra ela novamente, puxou o Sabre de suas mãos e a penetrou no atacante,
atravessando-o completamente. A Soldada olhou a ponta vermelha da lâmina
se projetando do outro lado do corpo do homem; nem ela conseguia crer no
que fizera. Mas era necessário; ela precisava. Agora se sentiria vingada e
totalmente livre.
– Você e Marinny ainda sofrerão – resfolegou o Soldado, rindo. Sangue
escorria entre lábios. – Ele não se esqueceu de sua promessa. Além disso,
Marinny não conseguirá manter seu segredo por muito mais tempo.
Assustado, engoliu em seco. Como Sheldon poderia saber de tudo isso?
Sheron pisou em seu peito e puxou a lâmina. Sheldon arfa uma última
vez, o pavor o abraça, então desaba sem vida. A Soldada analisou o corpo por
um momento. Suspirou ruidosamente. Estava acabado. Ao menos pelos
próximos setecentos anos.
– Desculpe por isso – disse ela, trêmula, entregando a espada a Raffy.
– Tudo bem – assentiu ele um tanto irônico. – Só terei que limpar o
sangue de um cara que tentou nos queimar vivos e que era um mentiroso
desgraçado, nada mais.
Sheron se permitiu rir um pouco. Finalmente poderia esbanjar de um
sorriso alegre.
Raffy arrebentou as correntes que prendiam Marinny com sua arma. O
primeiro ato da jovem foi lhe abraçar. Permitiu que poucas lágrimas
escorressem contra o peito largo do rapaz.
– Obrigada! – exclamou ela. – Eu achei que iria morrer!
– Shh, agora está tudo bem – apaziguou.
– Ei! Tirem-me daqui! – exigiu Luany. Sentia que iria perder os punhos
caso ficasse mais um pouco naquele estado.
Dylan se aproximou dela e, sem precisar de força, arrebentou as
correntes que a prendiam utilizando as mãos nuas. Agora a camponesa se
sentia parcialmente aliviada. Parcialmente…
– Cadê o Endrich? – quis saber ela em desespero.
– Neste momento já deve estar com a Espada Elemental em mãos. Posso
sentir suas vibrações – respondeu Dylan, taciturno.
– Eu também – concordou Sheron.
Após Raffy quebrar as correntes que prendiam a princesa Blair e o
príncipe Gabrian, que estavam exaustos, precisando ser carregados pelos
Soldados, o grupo desceu do altar e entrou na mata. Seguiam para a clareira
central da ilha.
– Você acha que Endrich ainda está vivo? – indagou Blair a Luany,
preocupada.
– Eu espero que sim – respondeu ela, com o coração apertado. – Eu
espero que sim.
––––
Endrich arrastava a Espada Elemental pelo corredor que o levaria ao hall de
entrada do templo. Sentia-se extremamente cansado… E com razão. Afinal,
lutara com Sheldon e uma fera de outro mundo do dobro de seu tamanho. A
Espada era pesada, o que não ajudava, e por isso mal conseguia sustentá-la no
ar.
Devo ou não devo entregar a Espada? Já estava ficando louco – de novo.
Ao chegar ao hall de entrada, seus pensamentos foram afastados
rapidamente. Ele parou abruptamente. O coração bateu mais rápido, o frio lhe
percorreu a espinha, como se dedos congelados tamborilassem em cada uma
de suas vértebras.
– Quem diria? Você conseguiu mesmo pegar a Espada – disse o
demônio, que quase matara Marinny.
– É isso aqui que você quer? – Endrich ergueu a ponta da lâmina, logo a
deixando bater no chão novamente.
O demônio assentiu.
– Claro. E você fez tudo certinho.
– Como vou saber se meus amigos estão libertos? Porque só irei lhe
entregar a Espada caso eles estejam todos bem.
A capa negra do demônio oscilou como se tivesse vida própria. Ele
sorriu. Por um ínfimo momento, aquilo o lembrou de Trevys. Retorquiu o
pensamento. Não entraria em desespero agora; recusava-se a passar por isso.
– Você não está em condições de exigir nada, lembra? Mas não se
preocupe. Seus amigos estão ótimos, já que mataram o imprestável do
Sheldon.
Endrich se retesou. Seria verdade o que o homem de negro falara? Não
tinha certeza, mas não poderia perder mais tempo. Olhou para o sol através
da entrada do templo. A Estrela de Fogo estava quase morrendo, e não teria
mais chances de tentar qualquer coisa caso a ilha afundasse com ele nela.
– Bem – continuou o demônio em tom altivo –, admiro sua coragem e
sua boa educação. Você é obediente, pelo que vejo, e serviu a mim, que sou
superior, com total disciplina. Tal como gosto!
Endrich se anojou das palavras do ser.
– Mas agora, seja obediente mais uma vez e me entregue a Espada.
Então seria apenas isso? Se entregasse a arma para o demônio Onyx se
perderia. Caso não o fizesse, seus amigos ficariam em perigo. Não sabia o
que mais daquela ilha. Entretanto, hesitando por um momento, o Guardião
negou com a cabeça.
– Não vou lhe entregar nada – decidiu.
– Como assim! – vociferou o demônio, os dentes amostra. Eram todos
pontiagudos e amarelados. – Você acha que pode se igualar a mim? – As
mãos dele se torceram, transformando-se em garras. Os olhos negros se
tornaram injetados de vermelho. As veias de seu pescoço saltaram, pulsando
intensamente.
– Não estou me igualando a ninguém – respondeu Endrich, recobrando o
vigor. – Mas apenas não permitirei que meu mundo seja destruído por um
demônio.
Quando respondeu, a voz do demônio havia se transformado num misto
de duas vozes roucas e turbulentas.
– Primeiro: não sou um demônio qualquer, sou Maligno, o braço direito
do próprio Treva. Segundo: você acha que tudo isto é para mim? Eu sou
apenas um soldado leal, que está seguindo ordens superiores, meu caro
Guardião. Não pense que existem apenas anjos e demônios vivendo por entre
os mundos e suas dimensões. Você não tem noção do poder superior
existente sobre sua cabeça e em seu próprio coração. Espere até o dia em que
os deuses se rebelarem! – Pausou e concluiu: – Seu destino neste momento
foi encontrar a Espada, meu caro, e se, por algum motivo do Universo, não o
fizesse, teria eu de matar os herdeiros. Um sacrifício humano seria o
suficiente para me ligar a arma dos anjos e logo teria poder para abrir uma
passagem entre Onyx e o Reino dos Mortos. Interessante, não?
Endrich fechou a expressão, mas seu interior era uma mistura de raiva,
medo e apreensão. Não sabia se acreditava no demônio ou se simplesmente
ignorava cada palavra que ele dissera. Porém, não conseguia simplesmente
desacreditar naquilo. A recordação do primeiro sonho com Hamiro veio à
tona, reforçando a ideia: “pode ter certeza de que você passará por grandes
provações. Afinal, Treva está se fortalecendo e pretende retornar”. Ele não
teve tempo para absorver tudo, porque o demônio o atacou.
Voar contra uma parede não estava nos planos de Endrich. Mas o ser das
trevas fora tão rápido, que ele mal teve tempo para respirar. O Guardião se
encontrava pressionado contra a parede de pedra maciça por um demônio, os
pulmões afetados, sem ar.
– Você não conseguirá me matar! – exclamou Endrich, os olhos fixos
nos de Maligno.
– Por que você acha isso? – perguntou o demônio. Ele cravou as unhas
da mão esquerda entre o ombro direito e o pescoço do Guardião. O gritou
ecoou por todo o salão. – Você se acha especial para não morrer, hein? Eu
não sei por que tanto interesse dele por você, mas… – O demônio suspirou. –
Não posso lhe matar sem saber de uma coisa.
Endrich cuspiu xingamentos por causa da dor que sentia. As garras de
Maligno pareciam lhe queimar não só a pele, mas também a alma. Ele
respirou fundo, tentando esquecer a dor. Pensar em algo bom era uma
escapatória, mas nada chegava a sua mente.
– Na verdade – continuou o inimigo –, eu tenho uma proposta para lhe
fazer. Diferente do que estavas achando, isso não é um tipo de vingança. Não
gostaria de sentir a ira dele. Meu mestre o quer como aliado. Quem sabe se
você se juntasse a ele… Meu senhor iria adorar ter sua companhia, e você
poderia ser muito poderoso, ter riquezas inimagináveis, ser mais que o
Magno! – riu. – Então, o que achas?
Endrich pensou. Ele não gostara nada da proposta, e ao mesmo tempo
gostara. Riquezas inimagináveis? Tentou se imaginar ao lado de Luany, seu
grande amor. Ter uma vida inteira ao seu lado, sem maiores preocupações, e
a custo de quê? Não! Nem fazia ideia de quem se tratava o senhor do
demônio (ou fazia?); não podia se aliar as forças das trevas. Tinha que
resistir!
– Então? – repetiu o demônio. As garras estavam mais fundas na carne
de Endrich, fazendo-o se contorcer de dor.
O Guardião respondeu entredentes:
– Eu quero que você vá para o Reino dos Mortos, e que nunca mais saia
de lá. Jamais me aliarei a seres da sua raça. Vocês são maus e cruéis. Vocês
não deviam existir!
O demônio sorriu. Parecia se divertir com a situação.
– Na verdade existimos justamente por causa dos humanos. Somos os
restos de suas vidas desgraçadas, suas injúrias e pecados. Somos a sobra, o
que não se aproveita de uma pessoa. Acima de tudo, nós somos as almas
corrompidas. – Por fim, concluiu com um riso: – Bem, aceitarei sua resposta
como um não. Ótimo, agora posso lhe matar!
Vinte
O Poder da Espada

A ilha tremeu. O sol estava se pondo.


Endrich sabia que não tinha mais tempo. Mas como salvar os amigos se
nem a si mesmo conseguia salvar? Toda a esperança e coragem que ele
conseguira reunir para derrotar o mal e salvar os herdeiros estavam se
esvaindo. Falando a si mesmo ele prometeu que, se saísse daquela ilha vivo,
de missão cumprida, nunca mais sentiria medo. Em silêncio ele rezou a
Luzyos.
O demônio estava prestes a penetrar suas garras afiadas no peito de
Endrich e lhe roubar a vida, quando a terra tremeu ainda mais forte. As
paredes abalaram, nuvens de poeira se ergueram. O Guardião imaginava que
o Templo dos Mundos não se despedaçaria, no entanto, parecia que isso iria
acontecer a qualquer momento.
– O que…? – começou o demônio, lembrando-se em seguida: – Ah,
droga, a ilha está começando a submergir. É a maldição.
O momento seria aquele.
Utilizando toda a sua força – ou o que restara dela –, empurrou o
demônio, suas garras deixando um rastro de dor no ombro, que cambaleou
para trás. O Guardião saca rapidamente uma flecha da aljava e, ao passo de
Maligno se aproximar, penetra a seta no peito dele sem o Arco. Nada
aconteceu. O demônio sorriu, mostrando seus horríveis dentes. Um misto de
espanto e surpresa, em fingimento, transpassou a face de Endrich, que logo
sorriu. Seus olhos verdes-acinzentados viram a dúvida no rosto pálido do
demônio.
– Isso é para você aprender a nunca mexer com um Guardião Imperial –
cuspiu Endrich. – Lys Beskyttelse!
Maligno olhou para o peito e arregalou os olhos ao ver a luz se
projetando da seta. De repente uma explosão de luz tomou o ambiente e o
demônio é arremessado para próximo à entrada do templo.
Endrich esfregou o ombro dolorido que sangrava torrencialmente, mas
aliviado por não ter mais que sentir aquela queimação causada pelas garras.
Ele fita o demônio em sua forma humanizada, sem as garras e olhos
vermelhos. Apenas parecia um homem de casaco preto malvado e cruel.
Em nenhum momento o Guardião largara a Espada Elemental, e agora
percebia o quanto estava esquentando, como se pedisse por seu posto.
Endrich não sabia o que fazer a seguir. Sentia-se cansado e desanimado.
– Ha-ha-ha – riu o demônio, subitamente, levantando-se. – Achou que
isso seria o suficiente para me matar? – A surpresa o atingiu como a lâmina
de um machado. – Engano seu. Sua parceira Marinny também pensou a
mesma coisa, o que foi um erro, e você fez o mesmo.
Maligno limpou a poeira do casaco e seguiu em direção a Endrich,
caminhando lentamente, com um sorriso estampado no rosto. Há poucos
passos do Guardião ele parou e se arremessou contra ele numa velocidade
incrível. Mas rapidamente foi impedido ao tentar matá-lo com suas garras.
Endrich viu a ponta da lâmina transpassada no corpo do demônio. Este
olhou incrédulo para a Espada Elemental e depois para ele. A raiva do
Guardião se amalgamara a dor e ao medo, descarregando uma coragem
repentina, sem freios. Subitamente um vento brando soprou dentro do templo
e a lâmina da Espada entrou em chamas. O demônio gritou.
– NÃÃÃO!
O Guardião puxou a arma do corpo do ser das trevas, que gritava
freneticamente enquanto queimava rapidamente. Ele cambaleou pelo salão
ensandecido, e logo estava caído no chão de pedra, transformando-se em um
monte de cinzas velozmente. Por fim, um último guincho de fúria se fez
ouvir, penetrando fundo nos ouvidos de Endrich.
Está tudo acabado – pensou ele, suspirando.
A Espada tombada a seu lado, recordou-se de que ainda não havia
colocado ponto final nesta missão. Correu ao encontro dos amigos. A única
coisa que sua mente gritava era: Luany!
––––
Quando os viu, Endrich correu pela vegetação baixa, chegando até eles aos
tropeços. O Guardião de Diamante abraçou Luany. Ela estava viva, e isso era
o que importava.
– Você está ferido! Mas que bom que sobreviveu – falou ela aos prantos.
– Estive com tanto medo de que você fosse morto.
– Eu estou bem – respondeu Endrich. – Não pense que é tão fácil me
matar. Jamais irei lhe abandonar. Podem tentar qualquer coisa, mas nunca
irão nos separar.
Luany sorriu, aliviada. Ela beijou suavemente o rosto do amigo.
Quando se afastou, a princesa Blair o agarrou no ímpeto, um abraço
apertado, desesperado. Ela agradeceu – inúmeras vezes. Lágrimas escorriam
por seus olhos.
– Está tudo bem – assegurou Endrich.
Sorrisos estampavam as faces dos outros presentes. Mas a alegria não
duraria muito mais.
Novamente a ilha tremeu por completo. No horizonte a oeste o sol estava
se pondo. Aparentemente, uma gigantesca tempestade se formava ao sul e ao
norte. O tempo se esgotara.
– Pegue – disse Endrich, entregando a Espada Elemental a Sheron. – É
de vocês por direito. E também é a única coisa que manterá nosso mundo
vivo e longe de catástrofes. Quero que você e Dylan corram o mais rápido
possível até o altar da Espada e a fixem lá. Entendido?
Sheron assentiu. Ele não tinha certeza de onde surgira aquele
conhecimento sobre o altar, mas a mulher não pareceu notar.
– Obrigada por tudo – disse ela.
– Obrigado, e desculpe por algumas coisas – falou Dylan, os olhos
baixos.
Endrich acenou com a cabeça afirmativamente.
– Só uma coisinha – interveio Marinny, voltando-se para o Soldado da
Terra. – Desculpe por ter usado minhas habilidades em você, Dylan, mas foi
o suficiente para me mostrar a realidade de algumas coisas não explicadas. E
agora sei o que você fez por toda essa ilha, e me sinto honrada em ter lhe
conhecido.
Dylan corou um pouco. Não sabia o que dizer exatamente, por isso
agradeceu a Guardiã pela ajuda que também dera para a ínsula, e acrescentou:
– Quando fiz aquilo, foi para proteger meu povo e meus amigos, mas me
sinto culpado pela maldição. Afinal, se não fosse por mim, se tivesse
entregado a Espada para as Trevas, jamais estaríamos na situação na qual nos
encontramos hoje.
– Não se crucifique por isso, Soldado – replicou ela. – Sei que quando se
sacrificou foi com o ideal de manter a todos em paz. E foi a coisa mais leal da
qual eu vi. Além disso, se não o fizesse, com certeza estaríamos todos mortos
neste momento.
Logo, dizendo um último adeus, os Guardiões Imperiais, os herdeiros e a
camponesa, correram em direção à praia por entre a floresta fechada. Endrich
estava guiando o grupo pelo mesmo caminho que fizeram ao chegar à Ilha
Elementar, que agora era atacada por fortes ondas e terremotos.
No caminho, Luany tropeçou e caiu, por conta do longo vestido que
usava, mas Endrich a ajudou a ficar de pé, puxando-a pelo braço. Lado a lado
eles continuaram seu trajeto até a beira-mar, próximo ao Condado da Água,
ao leste. Ficou aliviado ao ver que o barco a remo que ele, Raffy e Marinny
tinham utilizado para chegar até a praia ainda estava ali, esperando-os, apesar
da maresia já estar quase alcançando as árvores. Olhou para o mar e avistou o
navio Princesa de Jade.
Os Guardiões de Diamante e Cristal carregaram o barco a remo até certa
profundidade, enquanto os outros já estavam a bordo. O mar estava ficando
cada vez mais tumultuoso e furioso. As ondas começavam a inundar a praia e
tomar conta da ilha. E acima deles, no céu, uma imensa tempestade começava
a se formar.
Só espero que Sheron e Dylan consigam pôr a Espada Elemental em seu
altar – pensou Endrich, enquanto pulava no barco e começava a remar.
––––
Sheron MacWyes e Dylan Dunlok subiam os enormes degraus o mais rápido
que podiam. Tanto um quanto o outro já estava sem fôlego.
Sheron deu uma espiada para baixo; a água estava inundando a ilha e já
chegava ao Templo dos Mundos. Bem que ela gostaria de ter acesso ao altar
da Espada Elemental pelo interior do templo, mas isso era irrealizável.
– Sheron há como você impedir que a água nos alcance antes de
chegarmos ao altar? – indagou Dylan, ofegante.
Sheron negou com a cabeça.
– Se eu fizesse isso, não aguentaria dar mais um passo – respondeu ela.
Sentia seus poderes morrendo por causa da maldição.
Dylan não sentia mais medo de morrer, algo que se tornara comum a ele.
Apesar das formas horríveis em que ele era apresentado a morte.
Compreendia que mais uma vez seria afogado pela água, mas que seu corpo
iria permanecer intacto, mantido numa espécie de casulo mágico, que o
protegeria da pressão aquática.
Apesar de ser o sonho mais estranho que uma pessoa poderia ter, o seu e
de Sheron era poder conhecer o Reino dos Mortos – um lugar que ele jamais
visitara mesmo depois de perder a vida tantas vezes. E quantas foram essas
vezes? Umas cinco? Talvez. Não lembrava com exatidão.
Os Soldados chegaram à entrada do altar. Sheron se apressou em fixar a
lâmina em seu pedestal, travando-a no chão maciço. A arma multicolorida
estava totalmente enterrada na rocha, e apenas seu cabo estava à mostra, as
garras servindo como um engate. O punho brilhou numa luz dourada intensa,
apagando-se logo em seguida.
Ao longe, avistaram as nuvens de tempestade retrocedendo e se
dissipando. O mundo retornaria ao seu normal, estando a salvo de catástrofes
sobrenaturais. Esperavam que para sempre.
Os dois Soldados Elementares se aproximaram da entrada e ficaram
olhando a água do mar tomar conta das terras, enquanto eram assoladas por
um terremoto e afundavam. Além da ínsula, eles puderam avistar um barco a
remo seguindo até um grande navio que o esperava.
– Adeus novos amigos – disse Sheron, enquanto uma lágrima escorria
por sua face.
– Será que iremos vê-los novamente? – perguntou Dylan, um tanto cético
da própria ideia.
– Eu acredito que sim. – Ela secou o rosto. – Mas enquanto isso…
A ilha começou a fundar mais rápido. O mar tomou conta de toda a terra
amaldiçoada. A última coisa que Sheron e Dylan puderam ver fora a explosão
de água contra a sala do altar da Espada Elemental, enquanto um último
pensamento, já tantas vezes repetido por Elyanor, discorria em suas mentes:
A vida é uma incógnita não resolvida.
Vinte e Um
Uma Profecia

Nada como um belo dia de folga – pensara Tannael, antes de receber um


pergaminho.
Alguns dias haviam se passado desde a batalha contra os demônios no
Lago de Gelo, o que deixou não só a ele, como também os guerreiros,
assustado. Ponderou por horas se ele não estaria retornando. Não, não poderia
ser, pensava. Ele estava muito bem preso e selado. Mas com a aproximação
dos demônios… O Guardião interrompeu o pensamento aí; já não tinha
certeza de nada.
Logo depois que retornaram da batalha ele havia instruindo várias
sentinelas a permanecerem de olhos bem abertos para o caso de algum
possível ataque. Esperava que isso não acontecesse. Mas sempre é bom estar
preparado para alguma eventualidade.
Com sua chegada, teve-se início o Conselho do Império com os
monarcas de cada reino, junto do Imperador, onde fora debatido o que estava
acontecendo e quais medidas deveriam ser tomadas pelo Império para que
não houvesse mais graves danos. Então, após a cansativa reunião, Tannael só
pensava em descansar.
Porém, quando entrou em seu quarto, encontrou sobre sua cama um
pergaminho com uma fita branca-perolada – era um pergaminho do anjo
guardião Luzyos, protetor de Onyx. O Guardião fez uma careta de desgosto e
abriu a correspondência. Quando as palavras surgiram sob seus olhos, ele leu
calmamente. No pergaminho, Luzyos relatava que uma força de vários
homens estava sendo ministrada novamente em direção do Império de
Diamante. Mas que o assunto principal não era esse. O anjo queria se
encontrar com ele, e providenciou para que levasse consigo a profetiza
Perília.
Resignado, Tannael guardou seus pertences, lavou-se e foi ao encontro
de Perília.
––––
– Não. Não quero ir! – falou a mulher.
Tannael Esmainn mal entrara em sua tenda e a profetiza já estava
respondendo a pergunta que formulara em mente. Ele hesitou ao vê-la
sentada sobre os pés, de olhos fechados, murmurando algumas palavras que o
Guardião não conseguia entender.
Perília abriu os olhos, parando de murmurar. Seu olhar leitoso fitava
vagamente o espaço a sua frente, diretamente em direção a Tannael, que
sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Mesmo sabendo que a mulher era
cega, às vezes tinha certeza de que ela podia enxergar até mais do que ele
mesmo. E, de alguma forma tinha certeza, pois ela enxergava a verdade das
coisas.
– Perília, vós poderias, pelos deuses, acompanhar minha pessoa até o
Vale Antigo para falareis com Luzyos? – pediu Tannael.
– Não – respondeu ela. – Já disse que não quero ir.
Apesar de ser basicamente um esqueleto ambulante, Perília possuía uma
forma altiva de se arrumar e tratar os outros. Ela sempre usava aquele vestido
vermelho-vivo, com argolas e correntes pendendo de suas orelhas e seu
pescoço, além de pulseiras caríssimas que adornavam seus pulsos magricelos.
Os cabelos com mechas brancas, trançados até a altura da cintura, não
diminuíam a aparência de uma saudosa majestade.
– Por favor, profetiza, em nome dos deuses! Acompanhe minha pessoa
ao encontro de Luzyos – insistiu Tannael, dando um passo à frente.
– Não precisa se aproximar mais – cortou a mulher. – Do que se trata o
assunto?
Por um momento o Guardião pareceu inquieto. Achava que Perília seria
capaz de desvendar os segredos mais ocultos, até mesmo o assunto de um
pergaminho enviado por um anjo.
– Não me olhe com essa cara de bobalhão, Tannael – disse a mulher. –
Não sei de tudo que acontece no mundo, certo? Os pergaminhos divinos,
como são chamados esses que os Guardiões Imperiais recebem, são
protegidos magicamente para que nós, simples profetas, não possamos
desvendar o que está escrito.
Simples profeta? Tu és a profetiza de maior importância, até mesmo
para toda Onyx! – pensou Tannael. Pigarreou.
– Sendo assim… Ahn, o anjo guardião quer se encontrar com tua e
minha pessoa, e parece a mim que o assunto é importante. Tu seguirás
comigo?
Perília pensou no assunto. Bufando logo em seguida.
– Bem, se o assunto parece importante, por que não? Mas espero que seja
rápido.
––––
O Vale Antigo não passava de uma depressão rochosa a beira de uma cadeia
de montanhas cobertas de neve. Algumas coníferas se estendiam para além
do vale, formando uma pequena floresta na base das montanhas mais
distantes. O Vale Antigo tinha esse nome há séculos, quando se deu a batalha
entre humanos e anjos, que aconteceu na sua maior parte ali no Império de
Esmeralda. Marcas do passado ainda se fixavam no lugar. Alguns fantasmas
que mais pareciam sombras de suas próprias vidas vagavam de um lado a
outro. Sempre repetiam os mesmos golpes, as mesmas reações.
Tannael e Perília esperavam sentados num banco de madeira projetado
sob um pinheiro, sem dar importância aos espectros. Por sorte parara de
nevar rigorosamente, não tendo o risco de eles serem atingido por uma
cascata de neve escorregada dos galhos da árvore.
A mulher já estava perdendo a paciência, e Tannael tentava de todas as
formas fazê-la se acalmar. Mas no fim, até ele estava ficando impaciente. Ao
menos até o momento em que uma brecha de luz se abriu no ar à sua frente.
Tanto ele quanto a profetisa ficaram de pé abruptamente, assustados.
Quando a luz minguou, um homem alto e bonito estava de pé, fitando o
Guardião e Perília com olhos azuis-céu. Seu manto branco parecia ter vida
própria, movendo-se no ar parado em volta dele.
– Luzyos – murmurou Perília.
– Como vai Perília? Tannael? – cumprimentou o anjo. Sua forma
humana lançava uma aura majestosa e de intensa pureza. O Guardião podia
sentir como se estivesse flutuando em meio às nuvens.
Ele e Perília fizeram uma leve reverência ao anjo, que ergueu as mãos
num ato de “deixe isso para lá”.
– Vós pareceis mais forte do que a última vez que te vi – comentou
Tannael.
Luzyos assentiu calmamente.
– Ah, sim, Tannael. Depois que meu irmão Trevys deixou este mundo
novamente, minhas forças se renovaram ao máximo.
– Hum… Entendo.
– Bom, mas não estamos aqui para falar de Trevys, certo? – O anjo fitou
a profetiza por um momento, que sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha.
– A trouxe como vós ordenou. E agora? – quis saber o Guardião de
Esmeralda.
– Antes, saiba que a Espada Elemental foi recuperada e entregue ao seu
lugar certo. O mundo não sofrerá mais com catástrofes. Endrich e Raffy já
resgataram os príncipes Gabrian e Blair, e já retornam para casa.
– Os príncipes haviam sido raptados? Pelos deuses! – assustou-se
Tannael. – Ao menos este mundo não sofrerá mais.
O anjo assentiu.
– Não tenho certeza, Guardião. Isso tudo está me parecendo um jogo das
Trevas para voltar a este mundo.
– Vós achais mesmo, Luzyos?
– De nada duvido, Tannael. Esses ataques malignos estão se tornando
cada vez mais constantes. O caos está se adensando por todo o Universo.
Nenhum mundo está a salvo.
Perília ouvia tudo com atenção, mas ainda não entendia o que estava
fazendo ali, então resolveu perguntar:
– E onde eu entro nessa história?
Por um momento Tannael quase se esquecera da mulher ao seu lado.
Então se voltou a Luzyos, esperando a resposta do anjo.
– Ah, sim, bem… Aparentemente você será mais importante do que
imaginávamos, Perília. Você tem um papel fundamental a cumprir.
– Mas já estou velha, não tenho mais o que fazer além de profetizar!
– E é justamente isso que você fará – respondeu Luzyos, seriamente. –
Você é dona de uma profecia que há anos está incomodando os deuses e os
anjos. Você foi capaz de adivinhar o retorno de um onyxiano há muito
perdido. Você sabe o que quero dizer.
Perília pareceu estar congelada por um momento. Não piscava. Mal
respirava. Alguma coisa a abalara por dentro, disso Tannael tinha certeza. O
que ele não sabia, nem tinha certeza, era do que Luzyos falara. Uma
profecia? Sobre um onyxiano perdido? Ele nunca ouvira falar de tal coisa.
– Perília, você sabe o quão tudo isso poderá mudar nosso mundo,
futuramente. Você pode ver – continuou Luzyos. – E também sabe que a vida
desse jovem perdido está entrelaçada a vida de um dos nossos Guardiões
Imperiais.
Um jovem perdido com a vida ligada a de um Guardião? Isso tudo me
pareces estranho… – pensava Tannael. Queria descobrir quem é esse jovem
perdido, e como, quando e por que ele apareceria e teria a vida entrelaçada a
de um Guardião Imperial. Nada daquilo fazia o menor sentido ao Guardião de
Esmeralda.
– Não pergunte sobre o que estamos falando – interpolou Perília,
voltando-se a Tannael.
– Como…? Ah! Esqueças.
– Cada coisa há seu tempo.
Luzyos concordou com a cabeça.
– Sei no que você está pensando, Sr. Esmainn, mas cada coisa precisa de
seu tempo certo. Não podemos romper essa barreira e desvendar um segredo
sem ser ao menos revelado.
– Hã? Como vos irei desvendar um segredo após que sejas revelado? –
questionou Tannael. – Se estiver revelado, não há mais o que dizer.
– Errado, meu querido Guardião. Entenda uma profecia como uma
espécie de “segredo revelado”. Ela lhe revela o que irá acontecer, na forma de
pistas, mas sempre há alguma coisa que você não sabe. Sempre haverá
alguma coisa por trás desses versos.
Tannael ficou um pouco confuso, mas logo sua mente clareou. Ele estava
entendendo o que queria dizer.
– Mas… Afinal, quem ser este perdido? – perguntou ele.
– Ninguém sabe – interpolou a profetiza. – Nem mesmo eu, que o vejo
em meus sonhos, sou capaz de dizer.
– Certo… – murmurou o rapaz, insatisfeito.
– Espero que vocês encontrem o caminho certo a percorrer – disse
Luzyos, distanciando-se. – Verei vocês em breve novamente.
– Luzyos, espere – pediu Tannael, dando um passo em frente. – Esses
demônios, minha pessoa deves se preocupar mais?
– Por enquanto não, Guardião. Mas fique esperto.
Antes que Luzyos fosse embora, porém, voltou-se ao Guardião e
perguntou:
– Tannael, você já ouviu falar em algo chamado “padrões que se
repetem”?
– Padrões que se repetem? – Tannael ponderou. – Não, nada desse tipo…
O que queres dizer?
Luzyos hesitou em contar, mas o fez:
– Então você deve se preocupar com isso. O que aconteceu uma vez,
poderá se repetir – isso é um padrão que se repete.
– Como assim?
– Não só as ações das Trevas que se reerguem cada vez mais, como suas
consequências se repetirão. E isso inclui um de vocês, Guardiões.
Tannael não tinha certeza de que tinha entendido alguma coisa, mas não
ousou perguntar.
Assim sendo, uma brecha de luz se abriu atrás do anjo e ele desapareceu
engolido pelo fulgor.
O Guardião olhou para Perília, apreensivo. Ela seria capaz de lhe contar
sobre a profecia? Provavelmente não. Mas decidiu que não pensaria nisso por
um tempo.
– Então, nós vamos embora ou vamos ficar parados aqui, olhando para o
nada? – zombeteou a mulher.
– Nossas pessoas irão embora – respondeu o Guardião, pegando no braço
da profetiza para guia-la de volta ao castelo imperial.
Enquanto seguiam, a noite tomou o céu, estrelas pontilhavam o
firmamento. Antes que chegassem a seu destino, ainda puderam contemplar
fachos de luz multicolorida. Tannael jamais esqueceria o poder calmante
daquela aurora austral.
Vinte e Dois
De Volta Para Casa

– Entenda uma coisa, Raffy – disse Endrich –, eu estou com uma louca
vontade de matar este pássaro. – Ele se referia ao papagaio do capitão
Vorion, dono do Princesa de Jade. O animal acabara de deixar seus dejetos
no ombro do Guardião, que bufava de raiva. Desde que o grupo havia saído
da Ilha Elementar, o papagaio estava lhe incomodando.
Raffy riu.
– Endrich, isto é uma demonstração de carinho – respondeu ele.
Endrich parou de limpar o ombro; olhou incrédulo para o parceiro.
– Demonstração de carinho? Se isso é demonstração de carinho… Olhe,
eu não quero nem ver quando ele estiver de mal comigo.
Após dois dias de navegação, o Princesa de Jade atracou nas terras do
Império de Jade, onde Marinny desembarcou. Estando ainda muito debilitada
por causa da luta com o demônio, a Guardiã iria ser acompanhada até o
Povoado Imperial Ennel por um dos tripulantes do navio, onde poderia se
tratar e recuperar.
– Você ficará bem? – indagou Raffy, tocando seu rosto.
– Ah, claro, né! – respondeu Marinny, bruscamente. Porém,
levianamente, estava se entregando ao toque do Guardião de Cristal. Havia
algo nos dois que deixava Endrich inquieto.
– Certo, só fiz-lhe uma pergunta. – Ele se aproximou e beijou sua fronte.
Ela avermelhou. – Espero lhe ver em pouco tempo.
Marinny assentiu um pouco desconcertada – percebera Endrich. Certo,
aparentemente ela está gamada por ele. Seria essa a resposta de sua
inquietação? Poderia ser por isso que tentavam atingir Raffy de alguma forma
na ilha? A Guardiã se despediu dele e seguiu seu caminho.
– Você acha? – perguntou Raffy, captando os pensamentos do amigo.
Ele fitava Marinny se afastar.
– Não duvido.
– Acho que não – retrucou Raffy, inseguro. – Bem, isso não tem grande
importância…
– Eu acho que tem sim – replicou Endrich, sorridente.
De repente Marinny se virou para os Guardiões.
– Ei, novato, se cuida! – gritou ela.
– Pode deixar comigo! – respondeu Endrich, esboçando um leve sorriso.
Pela primeira vez, percebia que talvez pudesse criar um vínculo de
amizade com a Guardiã de Jade. Talvez.
Assim, logo após o navio ser carregado de provisões, o Sr. Vorion deu
partida no Princesa de Jade novamente. Agora seguindo rumo às terras do
centro e do leste.
––––
O navio fez uma parada no Império de Cristal, onde Raffy e o príncipe
Gabrian desembarcaram. O Guardião parecia tão feliz quanto o herdeiro por
estarem em casa.
– Obrigado, Endrich, por ter salvado o príncipe Gabrian – agradeceu
Raffy.
– Eu? Eu não fiz nada, pelo que sei quem salvou Gabrian foi você e não
eu – respondeu Endrich. – Eu somente impedi que o demônio tomasse posse
da Espada.
– E isso não é a mesma coisa que salvar o príncipe?
Endrich negou com a cabeça dizendo um “Não” bem longo.
– Como não? – disse Raffy. – Primeiro, se você não tivesse retomado a
Espada Elemental, provavelmente, neste instante, estaríamos todos mortos;
incluindo o príncipe e a princesa. Então, isso não é a mesma coisa que tê-lo
salvado?
Endrich apenas chacoalhou a cabeça de um lado para o outro.
– Raffy. – Endrich mudou de assunto, ficando tenso. Puxou-o para mais
perto. – Seria possível o Senhor das Trevas retornar?
O Guardião de Cristal pareceu assustado.
– Por que a pergunta? Aqueles fantasmas, no Condado do Ar, lhe
assustaram?
Endrich assentiu.
– É, pode-se dizer que sim. Eu só quero saber o que, ou quem, é. Como
seria sua volta.
– Bem, agora não tenho muito que lhe dizer, pois estou sem meus livros,
e não sei muita coisa a seu respeito. Ninguém sabe. Mas o que posso lhe
adiantar é que, se ele existir, é toda a matéria obscura existente no Universo,
desde sentimentos ruins aos próprios demônios – explicou Raffy. –
Antigamente se dizia que tal ser era o motivo para a existência de demônios e
anjos caídos. Mas não se sabe ao certo. Porém, se ele realmente existir, é
melhor torcermos para que jamais tente se reerguer!
Endrich assentiu. Tentaria saber mais a respeito desse ser, entretanto
pediu a Raffy que também pesquisasse. Afinal, ele era o melhor nisso. O
Guardião de Cristal concordou.
Os dois se despediram trocando um aperto de mãos e um abraço. Endrich
apertou a mão do príncipe Gabrian e fez uma leve mesura. Este lhe agradeceu
profundamente, dizendo que esperaria lhe encontrar outra vez para poderem
desfrutar de algumas taças de vinho. O Guardião de Diamante riu, assentindo.
E, voltando ao navio e para o lado da princesa Blair e de Luany, novamente
partiram.
––––
– Terra à vista! – gritou um observador do cesto da gávea.
– É o Império de Diamante! Estamos em casa! – exclamou a princesa
Blair. Ela ainda usava o mesmo vestido de quando fora raptada (que agora
estava sujo e esfarrapado). Pela primeira vez, em tempos, ela iria se sentir
muito bem sob os cuidados da mãe superprotetora.
Luany também estava ansiosa, e não via mais o tempo passar para
encontrar seus pais. Queria abraçá-los.
– Estamos chegando! – avisou o Sr. Vorion.
Em questão de algumas horas, perto do meio-dia, Endrich, Luany e Blair
estavam novamente pisando em terra firme. Haviam desembarcado em terras
de um reino pouco movimentado, e que disponibilizara cavalaria real, junto
de uma pequena tropa de cavaleiros, que os acompanhariam até o Povoado
Imperial Crystan. Despediram-se do capitão e dos tripulantes do Princesa de
Jade, que logo ao anoitecer deu meia-volta e partiu para seus domínios.
O caminho até às terras do Povoado Imperial fora tranquila, não havendo
nenhum imprevisto, nem ataque, e, em poucos dias, o grupo chegou aos
portões principais do Povoado Imperial. As sentinelas que guardavam a
Grande Muralha os receberam com congratulações, batendo palmas e
venerando o Guardião e a princesa. No fim, até Luany recebeu atenção, o que
realmente não estava em seus planos.
Enquanto seguiam pela estrada que levaria ao castelo, Blair, usando de
seus poderes de princesa, ordenou a Endrich:
– Vá para casa. Você e Luany também precisam de descanso. Você foi
bravo e corajoso. Cumpriu com seu dever como Guardião, Endrich. Agora
leve nossa amiga para casa, ela necessita de repouso. No fim, ela foi uma das
que mais sofreram.
– Mas princesa, seu pai… – Endrich foi interrompido.
– Meu pai irá gostar de saber que você salvou o mundo mais uma vez,
Endrich. E acho que não há mal em você ter uma noite de descanso, longe de
problemas. – A princesa sorriu.
Endrich assentiu.
– Obrigado, princesa.
– Obrigada – disse Luany. Que assim como Endrich, fez uma mesura a
Blair.
De uma coisa ela tinha certeza: Blair não era mais aquela garotinha com
quem brincava. A princesa estava amadurecendo e em pouco se tornaria uma
mulher de respeito.
––––
No dia seguinte, Endrich Ragrson fora convocado a participar de uma
premiação honrosa no Salão do Trono, pelo Imperador Asriel Crystan – este
que estava mais que sorridente pelo retorno da filha. Ao contrário de antes,
não estava se afundando em mágoas e tristezas. Endrich fora premiado com
uma medalha de ouro e diamante pela sua honra, coragem e bravura.
– Nós, Imperador e Imperatriz Crystan, como pais e monarcas, estamos
muito felizes e agradecidos pela sua força e resistência, e por trazer sã e salva
nossa filha, a princesa e herdeira do trono de Diamante de volta as suas terras
– dissera Asriel, sorridente. – Sei que isso não é o suficiente para mostrar
nossa gratidão e por ter enfrentado tantos perigos, mas imagino que os anjos
encontrarão uma forma certa de premiá-lo.
Ninguém no salão objetou, nem mesmo se prontificou em concordar. De
alguma forma, todos sentiram a atmosfera que os cercava se tornando
diferente, mais densa.
A premiação acontecera após o meio-dia, e todos os trabalhadores
haviam sido dispensados para assistir ao discurso do Imperador Crystan.
Logo depois um banquete fora servido aos nobres no palácio e um festival em
comemoração, montado nas mediações do castelo para os camponeses.
Endrich foi dispensado por alguns dias, e naquela tarde, ele e Luany
seguiram para as colinas além do castelo imperial. Era um lugar calmo, onde
soprava um vento um tanto gélido de inverno, mas ótimo para passar o tempo
conversando com um amigo. De onde estavam, podiam ver as pessoas
bebendo, rindo e se divertindo.
– É verdade que o mundo iria ser destruído caso você não encontrasse a
espada mágica? – indagou Luany, de súbito. De repente o ar não era mais de
alegria.
– A Espada Elemental?
– Ah, não sei, é uma espada mágica. Deve ser.
Endrich riu.
– Sim, infelizmente o mundo seria destruído caso eu não encontrasse a
Espada Elemental – enfatizou.
– Nossa, era uma grande responsabilidade então…
Endrich assentiu.
– Grande até demais.
Ele olhava para o céu que começava a se tornar noturno. A lua Cahim
brilhando intensamente. Vestia um casaco de pele, assim como Luany, que os
protegia das baixas temperaturas do momento.
– Meu casamento foi adiado – comentou Luany.
– Foi? – arqueou uma sobrancelha.
– Aham. Meu pai diz que eu preciso descansar a mente, pois o que eu
vivi pode ser traumatizante.
– Traumatizante?
– É. Não sei o que houve com o Sr. MacAran. Meu pai deve ter achado
que eu ia ficar louca por ter sido acorrentada e ameaçada de morte por um
demônio que segurava uma faca rente a meu pescoço – disse em tom
sarcástico.
Endrich riu. Como ela conseguia levar as coisas na brincadeira?
– Este seria um bom motivo para ficar traumatizada, não seria? –
perguntou ele.
Luany pensou e assentiu. Levou a mão ao pescoço, onde um curativo
havia sido feito por Raffy assim que embarcaram no navio há alguns dias.
– Seria, mas sou forte o suficiente para aguentar esse tipo de coisa –
disse olhado para o alto. – Gosto tanto das luas – mencionou ao avistar
Cahim se erguendo no céu. – Sinto-me como se fosse ligada a elas.
– Hm, elas são lindas mesmo – concordou o Guardião.
Ela se voltou para ele e perguntou curiosa:
– Endrich, você acha mesmo que Maligno teria me matado se você não
tivesse feito o que ele pediu?
Surpreendeu-se.
– Eu realmente não sei. Entretanto, há uma coisa que ele falou sobre
você que me deixa preocupado.
– Também estou – suspira. – Bem, ao menos para alguma coisa pareço
servir.
Endrich fez uma careta.
– Não fale assim. Se você é importante para as trevas, provavelmente não
é de uma boa forma.
Ela meneia a cabeça e se ajeita.
Após um momento de silêncio, Luany tornou a falar:
– É… – suspirou. – Há uma coisa infeliz em tudo isso, Endrich.
– E o que é?
– Estarei me casando na próxima primavera.
Endrich sentiu o frio lhe tomar posse. Mais uma vez o assunto
casamento. Será que não teria como adiá-lo? Sentiu-se novamente como se
fosse perder algo precioso; o que era verdade: sua melhor amiga. O Guardião
tinha um medo horrível de deixar Luany, e isto o atormentava. Ele não queria
admitir, mas estava apaixonado por ela.
– Você irá usar aquele mesmo vestido de noiva? – quis saber Endrich,
tentando não soar trêmulo.
– O que você me viu usando? Sim! Foi muito caro para conseguir, e não
quero desperdiçá-lo. Afinal, ele é lindo também.
– Está certo – engoliu em seco.
– Não se preocupe com isso agora, Endrich – pediu ela. – Eu nunca vou
deixá-lo. Você me prometeu a mesma coisa, lembra? Até o dia que tiver de
acontecer, estarei “livre” para lhe acompanhar – e então se inclinou e o
beijou. Algo simples e ao mesmo tempo tão implosivo.
Endrich não estava tão feliz como gostaria de estar. Sabia que perderia
Luany na primavera, e não era apenas isso que o desconcertava. Ainda existia
o mistério sobre o Senhor das Trevas; estaria mesmo retornando? Também
queria descobrir de quem era a voz que falava em sua mente; aquela que lhe
dava conselhos em momentos de dificuldade. E o porquê tinha sonhos com
seu pai de sangue, Hamiro Ragrson, que nunca conhecera; por que agora?
O Guardião Imperial tinha esperança de responder a todas as suas
questões. E correria atrás das respostas. Sim, tentaria desvendar tudo de
estranho que estava acontecendo ao seu redor.
E em sua vida.
Olhou para Luany e pensou num destino sem futuro. A camponesa sorriu
para ele, que retribuiu. Ela se aninhou, abraçando-o calorosamente; o
Guardião depositou-lhe um beijo no alto da cabeça. Aquele momento tão
íntimo e exclusivo deles jamais deixaria sua memória.
Enquanto fitava o castelo e o povoado, flocos de neve bailavam no céu,
caindo sobre eles.
Epílogo
Cinzas

Endrich estava na muralha do Povoado Imperial Crystan, olhando para o


horizonte oeste a sua frente. O Arco de Diamante em punho. As flechas na
aljava. Nada de anormal aparentemente.
– Como você está meu filho? – pergunta Hamiro Ragrson ao seu lado.
– Oh… Eu estou bem, pai. Eu acho. – Endrich se virou para ele.
– O que tanto lhe incomoda?
O Guardião não respondeu de imediato. Seus olhos verde-acinzentados
brilharam.
– São tantas questões a responder, pai, que fica até difícil dizer qual
delas mais me incomoda.
Hamiro assentiu com a cabeça.
– Acalme-se, Endrich, tudo será respondido em questão de tempo.
– Eu tenho medo, pai. Sei que não devia sentir medo, mas…
– Não se esqueça de sua promessa.
Endrich não se esquecera.
– Mas e se eu não conseguir cumprir o que prometi?
– Você irá conseguir Endrich, confio em você. Você é um Guardião
Imperial, mas isso não lhe impede de ficar com medo em certos momentos. É
como eu lhe disse: dúvidas e insegurança nem sempre são alternativas. –
Hamiro suspirou. – Estou muito orgulhoso de você, meu filho, e acredito que
seu verdadeiro pai, Ondrich, aquele quem te criou, também está muito
orgulhoso.
Ondrich. Aquele nome veio à cabeça de Endrich como uma explosão.
Um tio que o criara até os treze anos, quando foi assassinado. Acreditou a
sua vida toda que aquele homem fora seu verdadeiro pai. Entretanto, nem
tudo na vida é necessariamente verdade.
– Hamiro, você tem notícias de Ondrich? – quis saber Endrich.
Hamiro hesitou.
– Não sei o que aconteceu a ele. Imagino que tenha encontrado sua mãe
no outro lado, num bom lugar no Reino dos Mortos. Quem sabe tenham
reencarnado.
– Minha mãe…
– Sim, Katerinna, que também deve estar satisfeita e orgulhosa com seus
dons e feitos.
– Onde suas cinzas estão enterradas, Hamiro?
– Estão no cemitério do Povoado Crystan.
Endrich assentiu.
Hamiro trocou o peso de um pé para outro.
– Agora me escute, Endrich. Há um grande mau se aproximando. Ele
está renascendo das cinzas, e procura vingança para seu mestre. Não sei se
você e seus amigos Guardiões poderão ser páreos para seus poderes.
– Seria o Senhor das Trevas?
– Não. Este que você tocou o nome é ainda pior. Não lhe dê importância,
pelo menos por enquanto.
Endrich ficou confuso.
– Como assim? Hamiro, eu não entendo tudo que está acontecendo. Nem
sei como consigo me comunicar com você. Às vezes penso que isto é apenas
um sonho.
– Não! Isso não é apenas um sonho – explicou Hamiro, rapidamente. –
Apenas me escute. Tome cuidado com as trevas. O Mal é mais poderoso que
você imagina, e pode levar aqueles que você ama, apagando-os de sua vida
como se não existissem.
– Mas…
– Cuide-se meu filho – interrompeu. – E nunca deixe de acreditar em
mim.
Uma sombra tomou o rosto de seu pai. Alguma coisa de diferente estava
acontecendo. Logo todo o corpo de Hamiro havia se apagado, sendo sugado
pelas trevas. Endrich queria gritar, contudo sentiu sufocar. Seus olhos se
arregalaram. O que está acontecendo! – bradou mentalmente.
Então, subitamente, o horizonte se expandiu na forma de uma explosão
de luz, consumindo tudo a sua volta. Antes que pudesse entender qualquer
coisa, foi engolido pelo brilho.
O sonho havia acabado.
Agradecimentos

Primeiramente quero agradecer a todos os que me apoiaram na produção de


Crônicas de Onyx.
Aos resenhistas do primeiro livro com suas opiniões e críticas, que me
foram importantes para a concretização deste volume.
Meu muito obrigado a Amanda Caroline, uma das primeiras a resenhar O
Guardião Imperial e que, por sua imensa curiosidade, aceitou de cara se
tornar a leitora beta de A Espada Elemental. Obrigado por seus surtos e
dicas!
À Lígia Fumaneri, colega de faculdade e que também é uma das
primeiras a ler esta nova aventura. Valeu!
E também aos amigos virtuais, que acompanharam a produção do livro.
Amo todos vocês!
Uma espiada em
O Cavaleiro da Morte
Livro 3 da série Crônicas de Onyx
Prólogo
Possessão

Quando Nestor Krísllan leu o conteúdo do pergaminho, achou que poderia


ser algum tipo de brincadeira. Porém, a escrita era clara e direta, passando
a impressão de algo importante:

Nestor Krísllan,
Desejo sua presença imediata nas colinas além do castelo.
O assunto é sério.

Senhora da Noite.

Suspirou com a ideia de não retornar para casa. Seu trabalho do dia já
havia findado e, o que mais queria no momento, era descansar.
A última camada de neve do inverno chegava aos joelhos de Nestor,
quase impedindo que o mesmo prosseguisse. Suas passadas eram lentas e
desgastantes. O secretário chegou a pensar em desistir. Mas se alguém
deixara um aviso em sua mesa, por que estaria brincando?
Estava sem fôlego quando chegou à colina. Não havia ninguém ali.
Inspirou o ar gélido e sentou-se, precisava recuperar o ar dos pulmões antes
de ir embora.
Engraçado essa colina não ter um nome – pensou de repente.
E era verdade. As colinas além do castelo não foram batizadas, e Nestor
achava aquilo um tanto estranho, já que era um lugar onde as pessoas do
Povoado Imperial Crystan costumavam ir para conversar ou brincar. Aquele
era o lugar do povo.
Sacudiu a cabeça e se levantou pronto para partir.
– Onde você pensa que vai?
O secretário se virou num salto, assustado. O coração a mil.
– O que…? Mas… de onde você surgiu? – indagou à mulher que se
materializara ao seu lado.
Ela era alta e robusta. Tinha expressão séria, como a de um guerreiro.
Estava vestida com uma capa negra que lhe chegava aos pés, encobrindo toda
a extensão de seu corpo. Nestor percebeu a cicatriz que descia da testa, no
canto esquerdo, e descia até o canto inferior direito em seu rosto.
Será que é alguma guerreira da tropa do Imperador Crystan? – pensou.
Sabia o quanto as mulheres de batalha eram pouco vistas.
– Ahn, no que posso ajudá-la, moça – perguntou ele.
Ela o olhou de soslaio por um momento, logo o analisando de cima a
baixo. Corou, sentindo-se avaliado como um soldado para a guerra iminente.
– Eu gostaria de falar com Nestor Krísllan. – Surpreendentemente, sua
voz era calma e doce, o que não combinava em nada com sua expressão.
– Ahn… Eu sou Nestor Krísllan. Recebi este pergaminho – disse ele,
entregando-lhe o papel enrolado.
Ela avaliou o pergaminho por um momento. Falou:
– Ah, sim. Então é você mesmo! – Voltou a enrolar o papel e o devolveu.
– Eu sou Nyx, prazer em conhecê-lo Nestor.
A mulher esticou a mão e ele a apertou, havendo uma espécie de
consentimento desconhecido entre eles.
– Bem, meu caro Krísllan, eu fiquei sabendo que esse Povoado anda bem
movimentado. É verdade?
Nestor a fitou perscrutador, franzindo a testa.
– É que algumas luas atrás a princesa fora raptada, certo? – explicou
Nyx. – E teve aquele incidente com Trevys também.
– Ah, sim! – concordou. – Mas agora está tudo em ordem. As coisas por
aqui estão se encaminhando para o lugar certo.
– Hum, entendo.
– Por que as perguntas? Você não é daqui, certo? Quer se alistar em
nossas tropas?
Ela sorriu, achando aquilo engraçado.
– Não, meu querido Nestor. – Nyx olhou para o céu, sorrindo. Já estava
anoitecendo e as luas estavam começando a brilhar. – É que, se as coisas
estão boas, vão passar a ficar terríveis. Esse Povoado será dizimado em
alguns dias.
Franziu o cenho. Do que aquela mulher estaria falando?
– O que você quer dizer com isso? – perguntou finalmente.
– Estou falando que nós vamos tomar este Povoado e o resto do Império,
meu querido. E em algumas luas tomaremos o restante do mundo. O que
acha?
Nestor, pasmado, exclamou:
– O que eu acho? Acho que você está completamente maluca! Não tá
falando coisa com coisa. Eu vou-me embora!
Quando deu as costas para Nyx, esta lhe segurou o braço firmemente. O
secretário sentiu a dor atravessar seus ossos, achou que a mulher fosse
quebrar seu braço por inteiro.
– O que está fazendo?! – gritou ele. Sua voz ecoando por toda a extensão
das colinas.
– Cale a boca, garoto! – bradou Nyx. – E agora olhe para mim!
Não resistiu à sua voz de comando. Ele se voltou para a mulher, ficando
ereto, fixando seus olhos nos dela. Nyx olhava fundo em sua alma,
hipnotizando-o. Era exatamente o que queria.
– Quando você quiser, querido – disse, olhando para o lado.
Atravessando um portal no ar, um garoto pálido e de olhos negros – que
mais parecia uma sombra viva – caminhou até ela, fazendo uma pequena
mesura.
– Como vai, senhora? – sua voz rasgava o gelo que era transportado no
ar.
– Bem, meu querido – respondeu a mulher. – Agora, se quiseres fazer as
honras…
O garoto assentiu e, sem hesitar, caminhou até Nestor, ainda imóvel, os
olhos vidrados. O demônio não parou, até tocar o secretário. Foi tudo muito
rápido. A única coisa que se pôde ver foi um leve tremeluzir na imagem de
Nestor enquanto era possuído.
Flácido, o corpo desabou na neve.
Nyx piscou, os lábios curvados.
– Agora só esperar Noméa se acostumar ao corpo humano. – Ela se
abaixou e falou no ouvido do secretário caído: – Boa sorte, meu querido.
A Senhora da Noite se distanciou e gesticulando abriu uma brecha a sua
frente. Observou o lugar uma última vez, já preparando mentalmente o
próximo passo. Satisfeita, atravessou o portal.
––––
Abriu os olhos. Estavam negros como uma noite sem estrelas.
Levantou-se, ainda se acostumando com seu novo corpo. Era estranho se
apossar de um corpo humano, ainda mais para um ser ainda novo que nunca
fizera tal coisa. Contudo, sabia o quanto aquilo que faria seria importante. O
demônio olhou para o Povoado Crystan. Deu um passo, acostumando-se ao
corpo. Seria fácil se adaptar.
Era hora de dar início aos planos de sua senhora.
O Autor

Elton Moraes nasceu em março de 1996, em Santa Catarina. Atualmente


cursa Comunicação Institucional na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR) de Curitiba. Possui cinco livros concluídos, sendo quatro da
série Crônicas de Onyx e o primeiro de uma nova série, que retrata a lenda
arturiana por uma nova perspectiva.
Saiba mais em: http://elton-moraes.blogspot.com

Obras:
Pesadelo Infernal
Conto de terror publicado na antologia Contos Medonhos, lançada pela
Multifoco Editora em dezembro de 2012.

Do Oitavo Andar à Autópsia


Mayara acaba de se separar de seu namorado. Uma mulher que quer
atenção e busca de todas as formas manter Thiago, seu amado, sob sua vista
amorosa. No entanto, com o fim do relacionamento, só há uma alternativa:
jogar-se do oitavo andar.
Será ela capaz de sacrificar sua vida por causa de uma amor mal
correspondido?
Conto baseado na música de Clarice Falcão.
http://goo.gl/tvusxx

O Último de Nós
O Último de Nós é um conto sobre o começo de um fim. O protagonista e
narrador é Clon Lion, o último sobrevivente do planeta Terra após catástrofes
naturais e criadas pelo próprio Homem. Perguntando-se como tudo
aconteceu, busca por respostas na maior corporação do mundo: Rubro Net.
Seu destino, Europa.
Diante de memórias perdidas, Clon terá revelações sobre o seu passado
que o levarão a um arrebatador xeque-mate.
http://goo.gl/SgjEEd
Fênix – A morte não é o fim de tudo
Um pacto. Esse foi o estopim para que a vida de quatro jovens mudasse
radicalmente. Os quatro amigos fizeram um juramento de sangue e agora
forças ocultas os perseguirão até que chegue o fim de suas vidas.
Porém, ainda há uma saída: devem seguir a luz e encontrar um homem
que se diz mago. Mas para que cheguem até ele, precisarão enfrentar dúvidas,
perdas e a própria morte.
Uma história diferente, recheada de mistério, dor e amor, com um final
inesperado.
Livro publicado exclusivamente no site Wattpad.
http://Fb.com/LivroFenix

[1]
O Templo do Universo se localiza no Reino das Montanhas, a leste do Povoado Imperial, onde todo
o povoado é cercado por uma cadeia de montanhas. É um local seguro contra ataques e extremamente
calmo.
[2]
É um dos reinos que ocupa grande área litorânea, sendo o maior deles. Sua principal fonte de renda
se dá pelo comércio de pescados – estes que são comercializados principalmente nos Impérios de Rubi
e Esmeralda.
[3]
Segundo a história, o símbolo foi adotado há cerca de 50 anos, quando o maior contrabandista já
relatado diz ter se encontrado com uma belíssima sereia, com a qual teve três filhos – chamados de Pais
do Contrabando –, que continuaram e aumentaram o grupo de contrabandistas – estes que atuam até
hoje em toda Onyx.
Table of Contents
Prólogo Rapto
Um Uma Lenda
Dois O Cavalo Alado
Três Presa por Correntes
Quatro Sheron MacWyes
Cinco A Rebelião em Etty Mallol
Seis Novo Prazo
Sete Princesa de Jade
Oito A Ilha Elementar
Nove Cobra
Dez Templo dos Mundos
Onze Um Pouco Sobre a Verdade
Doze Brincando com Fogo
Treze O Confronto de Marinny
Quatorze Lago de Gelo
Quinze A História dos Guardiões
Dezesseis O Condado Fantasma
Dezessete Revelações
Dezoito Sem Escolha
Dezenove A Proposta
Vinte O Poder da Espada
Vinte e Um Uma Profecia
Vinte e Dois De Volta Para Casa
Epílogo Cinzas

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