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Enid Blyton
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Índice
1
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o
acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de
conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em
nosso grupo.
CAPÍTULO I
ACABARAM AS AULAS
Quando Ana se sentou à mesa para o pequeno almoço pegou numa carta que lhe
era dirigida.
- Olha para isto - disse ela à prima Maria José que estava sentada a seu lado. -
Uma carta do paizinho! Ainda ontem recebi uma da mãe e outra dele!...
Ela não deixava ninguém tratá-la por Maria José e, agora, mesmo as professoras
lhe chamavam Zé. Realmente parecia um rapaz, com o seu cabelo muito curto e
encaracolado e as suas maneiras arrapazadas. Zé olhava ansiosamente para a prima,
enquanto esta lia a carta.
- Ó Zé, não podemos ir a casa nas férias! - exclamou Ana, com lágrimas nos
olhos. - A mãezinha apanhou escarlatina e o pai tem de ficar a tratá-la. Não nos podem
ter em casa, por causa do contágio. Não é horrível?
- Oh, estou cheia de pena - disse a Zé. E estava tão desapontada por ela própria
como pela prima, pois a mãe de Ana tinha convidado a Zé e o seu cão Tim para
passarem as férias do Natal.
Tinham-lhe prometido muitas coisas que nunca vira - os fantoches, o circo e uma
grande festa com uma linda árvore de Natal! Agora, nada disso poderia ter.
- Que irão dizer os dois rapazes? - disse Ana, pensando em Júlio e David, seus
irmãos. - Eles também não poderão ir a casa, com certeza.
- Então, que vão vocês fazer durante as férias? - perguntou Zé. - Querem vir
comigo para o Casal Kirrin? Tenho a certeza de que a minha mãe vai gostar de os ter ali
outra vez. Nós divertimo-nos tanto quando vocês lá passaram as férias grandes!
- Espera um bocadinho; deixa-me acabar a carta para ver o que diz o pai -
interrompeu Ana, voltando a desdobrar o papel.
Ana leu mais algumas linhas e depois soltou uma exclamação tão viva que Zé e as
outras raparigas esperavam impacientemente que ela se explicasse.
- Zé! Nós vamos outra vez para tua casa mas, oh novidade, novidade, novidade!
teremos um preceptor durante as férias; em parte para olhar por nós, de modo que a tua
mãe não terá que se incomodar muito connosco, e também porque o Júlio e o David
estiveram duas vezes com gripe durante este período e ficaram atrasados nos estudos.
- Que férias detestáveis vão ser, se tivermos um preceptor a correr atrás de nós
durante todo o tempo! - exclamou Ana, muito triste. - Espero ter umas notas bastante
boas, pois os exames correram-me bem, mas não vai ser nada divertido para mim se
vocês tiverem lições durante as férias. Claro que sempre poderei ir com o Tim dar uns
passeios, suponho. Ele não terá lições!...
- Eu digo-te que sim - afirmou Zé, por não suportar a ideia de ver o seu querido Tim
sair todas as manhãs com Ana, enquanto ela ficaria a estudar com Júlio e David.
- O Tim não pode ter lições, não sejas pateta, Zé - disse Ana.
- Mas pode deitar-se aos meus pés, enquanto eu estudo - respondeu Zé. - Há-de
ser uma grande ajuda senti-lo ali. Mas por amor de Deus come o teu pão, Ana. Já todas
acabámos. A campainha deve estar a tocar e ainda te levantas sem teres tomado o café.
- Estou satisfeita por a mãezinha não estar muito mal - disse Ana, apressando-se a
acabar a leitura da carta. - O pai diz que escreveu ao Júlio e ao David e também ao teu
pai pedindo-lhe para arranjar um preceptor. Que raiva! Isto é um despropósito, não é? Eu
gostava tanto de ir outra vez para o Casal Kirrin e de ver a ilha Kirrin, apesar de não haver
lá fantoches, nem circos, nem festas!
- De novo para Kirrin! - disse Ana. - Vamos, querido Tim, senta-te aqui, entre mim e
a Zé.
- Tenho a certeza que terás umas belas notas, Tim - disse Zé abraçando-o. -
Vamos de novo para casa. Estás contente?
Pôs-se em pé, abanando a cauda, mas logo se ouviu um grito da miúda que
estava atrás.
- Zé! Obriga o Tim a estar quieto. Quer tirar-me o chapéu com a cauda.
- Gostava que os meus irmãos também viessem hoje - suspirou Ana. - Se assim
acontecesse, podíamos ir todos juntos para Kirrin. Seria bem divertido!
Mas Júlio e David saíram do colégio apenas no dia seguinte e só então se foram
juntar às pequenas. Ana tinha muitas saudades dos irmãos. Um período escolar inteiro
era muito tempo para estarem longe uns dos outros. Todos os três tinham passado o
Verão com a prima Zé e tiveram juntos umas aventuras extraordinárias naquela
pequenina ilha, perto da costa. Ali ficava um velho castelo onde os pequenos descobriram
toda a espécie de coisas maravilhosas.
- Vai ser óptimo atravessar outra vez para a ilha Kirrin - disse Ana, enquanto
avançava.
- Que pena! - disse Ana, desapontada. - Estava a pensar em arranjar ali mais
aventuras. - É impossível haver aventuras no Inverno, em Kirrin - disse Zé. - É muitíssimo
frio, e quando neva, algumas vezes ficamos completamente bloqueados e nem mesmo
podemos ir à cidade porque o vento que sopra do mar levanta muito alto os flocos de
neve.
- Bem, para dizer a verdade, tem pouca graça! - disse Zé. - É um terrível
aborrecimento; não há nada que fazer senão sentarmo-nos em casa todo o dia ou ir lá
fora com uma pá cavar a neve da entrada para desimpedir o caminho.
- Olá, querida Zé! Olá, Ana! - disse a boa senhora, abraçando-as. - Tenho pena da
tua mãe, Ana, mas ela está muito melhorzinha.
- Ainda bem! - exclamou Ana. - É muito amável por nos querer aqui outra vez, tia
Clara. Vamos fazer o possível por nos portarmos bem! Como está o tio Alberto? Ele não
se importará de nos ter cá em casa, agora no Inverno? Nós não poderemos sair e deixá-lo
em paz tantas vezes como o fazíamos no Verão!
- Olha, o teu tio continua a trabalhar muito no seu livro - disse a tia Clara. - Como
sabes, está a descrever uma teoria secreta, uma idéia secreta que vem toda no livro. Ele
diz que uma vez tudo explicado e acabado o livro, vai levá-lo a uma grande autoridade no
assunto, e então a sua descoberta há-de ser aproveitada para o bem do país.
- Não posso dizer-te, minha patetinha - respondeu a tia, rindo. - Mesmo eu não o
sei: Vamos para casa. Aqui paradas apanhamos frio. O Tim está muito gordo e com bom
aspecto.
- Nem calcula, mãe, gostou imenso do colégio. Uma vez mordeu os chinelos velhos
da cozinheira...
- Meu Deus, filha, está-me a parecer que o colégio vai recusar o Tim no próximo
período - disse a mãe da Zé, consternada. - Ao menos foi bem castigado? Espero que
sim.
- Não, mãe, não foi - respondeu Zé, fazendo-se vermelha. - Bem vê, nós somos
responsáveis pelos nossos cãezinhos. Se o Tim fizesse uma coisa mal, seria eu a
castigada, por não o ter fechado bem, ou coisa assim.
- Então deves ter recebido muitos castigos - disse-lhe a mãe, enquanto pela
estrada, coberta de neve, guiava a “charrette” puxada por um pônei. - Penso que foi uma
belíssima idéia! Ia piscando um olho e sorrindo enquanto falava. - Parece-me que vou
aproveitar a idéia e castigar-te cada vez que o Tim se portar mal!
Entraram em casa.
O tio Alberto saiu do escritório que ficava no outro lado da casa. Ana achou que ele
parecia mais alto e mais moreno do que nunca. - E mais assustador! - disse ela para
consigo. O tio Alberto podia ser muito inteligente, mas Ana preferia uma pessoa mais
alegre e animada, como seu pai. Ana beijou o tio delicadamente e viu Zé fazer o mesmo.
- Bem - disse o tio Alberto para Ana -, o teu pai encarregou-me de arranjar um
preceptor para vocês. Pelo menos para os dois rapazes. Terão de se portar muito bem
com o preceptor, já os aviso!
O tio tinha querido falar de brincadeira, mas tanto Ana como Zé não conseguiram
rir-se. As pessoas com quem era preciso portarem-se muito bem eram em geral muito
insípidas e aborrecidas. Ambas se sentiram satisfeitas quando o pai da Zé voltou para o
seu escritório.
- Que pena! - disse Ana, delicadamente, ainda que em segredo pensasse outra
coisa. Não seria nada divertido ver o tio Alberto a jogar aos provérbios e brincadeiras
semelhantes. - Tia Clara, tenho tanta vontade de ver o Júlio e o David! Tia Clara, no
colégio ninguém chama à Zé, Maria José, nem mesmo as professoras. Eu tinha
esperanças que chamassem, só para ver o que aconteceria quando ela se recusasse a
responder! Zé, tu gostaste do colégio, não gostaste?
- Muito - respondeu Zé. - Pensava que era detestável ter de ficar com todas as
outras, mas, no fim, é divertido. Ouça mãe, tenho medo que não ache as minhas notas
muito boas. Havia tantas coisas em que eu era cábula por nunca as ter aprendido!
- Eu explicarei isso ao teu pai, se ele ficar aborrecido. Agora vão-se arranjar para
jantar. Com certeza estão cheias de fome.
- Estou contente por não passar as férias sozinha - disse Zé. - Tim, onde te
meteste?
- Foi cheirar tudo à volta da casa, para ter a certeza de que é a sua própria casa! -
disse Ana, com uma gargalhada. - Ele quer saber se a cozinha, a casa de banho e o seu
cesto têm o mesmo cheiro. Deve ser tão bom para ele vir de férias, como para nós!
Ana tinha razão. Tim estava radiante por ter voltado. Corria à volta da tia Clara,
tropeçando-lhe nas pernas, encantado, por tornar a vê-la. Correu para a cozinha mas
depressa voltou, pois encontrava ali uma pessoa desconhecida - Joana, a cozinheira -
uma criatura gorda e corada que o olhou com desconfiança.
- Podes entrar na cozinha, uma vez por dia, para jantares - disse Joana. - E mais
nada. Não quero ver as salsichas, a carne e os frangos a desaparecerem. Bem sei como
são os cães!
Tim correu da casa de jantar para a sala e ficou satisfeito por encontrar o mesmo
velho cheiro. Pôs o focinho na porta do escritório onde trabalhava o pai da Zé e cheirou
com cautela. Não quis entrar. Tim partilhava com as crianças daquele medo especial pelo
tio Alberto. Correu novamente para o quarto das pequenas. Onde estava o seu cesto? Ah,
ali estava, perto da janela. Óptimo! Aquilo significava que ele dormiria mais uma vez no
quarto das meninas! Deitou-se, todo enroscado, e começou a abanar a cauda.
CAPÍTULO II
- Júlio! David! - gritava Ana. Tim começou a ladrar, aos pulos. Estavam todos
excitados.
- Ó Júlio! Estou encantada por vos ver outra vez! - exclamou Ana, abraçando os
irmãos. Tim continuava a saltar em volta das crianças, mostrando que estava muito
satisfeito.
Os três irmãos e o cão continuavam juntos, a vozear todos ao mesmo tempo,
enquanto um moço de fretes tirava a bagagem do comboio. Ana reparou, então, que
faltava a Zé. Olhou em redor, procurando-a. Não conseguiu vê-la.
- Deve ter voltado para a “charrette” - disse Ana - Digam ao moço para levar as
vossas malas para lá. Vamos! Temos de encontrar a Zé.
- Continuas com o mesmo mau génio, muito bem! - disse David, dando à pequena
uma amigável palmada nas costas. - Ó Zé, é mesmo bom voltar a ver-te. Ainda te lembras
das nossas maravilhosas aventuras, no Verão?
- Vocês têm muita sorte por poderem levar o Tim para o colégio - disse David,
fazendo festas ao cão. - No nosso colégio não é permitido. É uma pena para aqueles que
gostam de animais.
- O Tomás levou um rato branco - contou Júlio. - Um dia fugiu e logo foi passar
pelos pés do Director. Nem calculas o sarilho que se seguiu.
- E o Hugo juntava caracóis - disse David. - Vocês sabem que os caracóis dormem
durante todo o Inverno, mas o Hugo guardou a caixa num lugar muito quente e os
caracóis começaram a deslizar, saíram da caixa e subiram ás paredes. Haviam de ver
como nós rimos quando o professor de geografia mandou o Henrique apontar o Cabo
Branco, no mapa, e mesmo naquele ponto estava um caracol!
Todos riram novamente. Era tão bom voltarem a juntar-se uma vez mais! Tinham
quase a mesma idade - Júlio tinha doze anos, Zé e David tinham ambos onze, e Ana
fizera dez. Estavam em férias e aproximava-se o dia de Natal. Não admira que eles
estivessem tão contentes e rissem por tudo, mesmo pela graça mais insignificante.
- Ainda bem que a mãe está melhor, não acham? - disse David, enquanto o pónei
ia caminhando num trote apressado. - Devo confessar que fiquei um pouco desapontado
por não ir a casa - eu queria ir ver a fita da “Gata Borralheira” e queria ir ao Circo - mas
também é bom voltarmos ao Casal Kirrin. Gostava que conseguíssemos arranjar
mais algumas aventuras divertidas. Mas não tenho muitas esperanças, desta vez.
- Há um grande contra durante estas férias - disse Júlio. - É o preceptor. Ouvi dizer
que vamos ter um, porque David e eu faltámos a muitas aulas durante este período e no
fim do ano teremos uma raposa.
- Tens razão - disse Ana. - Estou a pensar como será o preceptor. Espero que
goste de jogos e brincadeiras. O tio Alberto vai hoje escolher um.
Júlio e David fizeram uma careta. Eles tinham a certeza de que um preceptor
escolhido pelo tio Alberto devia ser tudo menos uma pessoa camarada e divertida. A ideia
do tio Alberto sobre um preceptor, seria uma pessoa severa, ríspida e aborrecida. Não
importava! Ele só iria por um dia ou dois. E talvez fosse divertido. Os rapazes resolveram
ser optimistas e depressa voltou a boa disposição. Só Tim não se preocupava com
preceptores! Feliz Tim!
- Foi falar com duas ou três pessoas que responderam ao anúncio que pedia um
preceptor - explicou ela. - Não deve tardar.
- Mãe, eu não tenho que dar lições nas férias, pois não? - perguntou a Zé. Ainda
não lhe tinham dito nada sobre o assunto e ela ardia por saber.
- Tens, sim, Zé - respondeu a mãe. - O pai esteve a ver as tuas notas e ainda que
não sejam muito más e nós também não esperássemos que fossem uma maravilha,
mostram que continuas atrasada em algumas disciplinas. Umas explicações vão ajudar-te
muito.
- Ó mãe! Se o preceptor disser que eu não posso ter o Tim no quarto de estudo
não quero dar lições durante as férias! - disse a Zé, zangada.
A mãe riu.
- Bem, bem, aqui temos nós outra vez a Zé com o seu mau génio! - disse ela. -
Vocês dois, pequenos, vão lavar as mãos e pentear-se. Parece que fizeram colecção de
fuligem durante a viagem. Mas que sujos!...
As crianças e Tim subiram as escadas. Era tão divertido serem cinco outra vez!
Contavam sempre Tim como sendo um deles. O cão acompanhava-os para toda a parte e
na verdade parecia perceber todas as palavras que os pequenos diziam.
- Gostava de saber que espécie de preceptor escolherá o tio Alberto - disse David
enquanto esfregava as unhas. - Se ao menos escolhesse uma pessoa simpática, que
soubesse como as lições nas férias são aborrecidas e tentasse amenizá-las com umas
anedotas! Penso que teremos de trabalhar todas as manhãs:
- Despacha-te! Quero ir lanchar - disse Júlio. - Vem para baixo David. Depressa
teremos notícias sobre o preceptor.
- Arranjou um preceptor, tio Alberto? - perguntou Ana, que via estarem todos
mortos por sabê-lo.
- Ah, sim, arranjei - respondeu o tio. Ele sentou-se enquanto a tia Clara lhe servia
uma chávena de chá. - Falei com três interessados, e quase tinha escolhido o último,
quando um outro rapaz apareceu, todo apressado. Disse que acabava de ver o anúncio e
esperava que não fosse demasiado tarde.
- Escolhi - disse o tio. - Parece uma pessoa muito inteligente; até sabia coisas a
meu respeito e sobre o meu trabalho! E tinha umas belíssimas cartas de recomendação.
- Acho que as crianças não precisam saber todos esses pormenores - murmurou a
tia Clara. - Em resumo, disseste-lhe para vir?
- Claro que sim! - respondeu o tio Alberto. - Ele é um bom bocado mais velho do
que os outros - eram todos bastante novos - e parece muito sensato e inteligente. Estou
convencido que vais gostar dele, Clara. Acho que vou ter prazer de conversar com ele,
algumas vezes, ao serão.
As crianças não puderam deixar de sentir que o novo preceptor era um tanto
alarmante. O tio riu-se para aquelas carinhas tristes.
- Vocês vão gostar do senhor Roland - afirmou ele. - Sabe muito bem lidar com
crianças, sabe ser severo e fazer com que fiquem um pouco mais instruídas no fim das
férias.
- Eu disse-lhe que vocês iriam esperá-lo. E tomem atenção vocês quatro -, nada de
disparates! Têm de fazer o que o Sr. Roland lhes mandar e têm de trabalhar muito porque
o vosso pai vai pagar-lhe um bom ordenado. Eu pagarei um terço, pois quero que ele
ensine um pouco a Zé - por isso, Zé, tens de te portar à altura.
- Vou tentar - disse Zé. - Se ele for simpático, não terá razão de queixa.
- Vais portar-te o melhor possível, seja ele simpático ou não - afirmou o pai,
franzindo as sobrancelhas. - Ele chegará no comboio das dez e meia. Façam favor de lá
estar a tempo.
- Espero que ele não seja demasiado severo - disse David, nessa noite, enquanto
os cinco ficaram sozinhos por um ou dois minutos.
Zé quase gritou.
- Gostar do Tim! Claro que vai gostar do Tim! Porque não havia de gostar do Tim?
- Bem, o teu pai no último Verão não gostava muito do Tim - disse David. - Eu não
percebo como é que alguém pode não gostar deste cão, mas há pessoas que não gostam
de cães, bem sabes, Zé!
- Se o Sr. Roland não gostar do Tim, não farei nada para ele - afirmou Zé. - Nem
uma simples coisa!
- Voltou-lhe outra vez o mau génio! - disse David, com uma gargalhada.
- Palavra, vai haver tempestade se o Sr. Roland se atrever a não gostar do nosso
Tim!
CAPÍTULO III
O NOVO PRECEPTOR
Na manhã seguinte o sol brilhava, dissipando a neblina que se fizera sentir durante
dois dias, e via-se a ilha Kirrin à entrada da baía do mesmo nome. As crianças olharam,
avidamente, para o castelo em ruínas.
- Eu gostava de voltar ao castelo - disse David. - O mar parece muito calmo, Zé.
- É muito bravo junto da ilha - respondeu a Zé. - Sempre assim acontece nesta
altura do ano. Sei que a mãe não nos deixará ir.
Partiram todos, aos solavancos. A ilha Kirrin desapareceu atrás de uma colina
enquanto eles viravam para o interior, em direcção à estação.
- Todas estas terras aqui à volta pertenceram à tua família? - perguntou Júlio.
- Sim, todas elas - respondeu a Zé. - Agora só possuímos a ilha Kirrin, a nossa
casa e aquela quinta além - a Quinta Kirrin.
Ela apontou com o chicote. As crianças viram uma boa casa, já antiga, na encosta
de um vale bastante afastado.
- Um velho caseiro já de idade e a mulher - disse Zé. - Eram muito simpáticos para
mim, quando eu era mais pequena. Podemos lá ir um dia, se vocês quiserem. A mãe diz
que eles no Verão recebem pessoas que ali passam as férias a troco de umas libras.
Os quatro pequenos e o cão olharam para o comboio que saía do túnel e se dirigia
para a estação. O pónei continuava a trotar.
Não saiu muita gente. Desceu uma mulher com uma cesta. Um rapaz novo saltou
atrás, assobiando - era o filho do padeiro da vila. Um sujeito idoso desceu com
dificuldade. O preceptor não podia ser nenhum deles!
- Deve ser aquele o Sr. Roland - disse Júlio a David. - Vamos perguntar-lhe. Não
há aqui mais ninguém que possa ser o preceptor.
- Muito bem - disse o Sr. Roland: Os seus olhos azuis e brilhantes observaram os
rapazes dos pés à cabeça.
- As duas raparigas também aqui estão? perguntou o Sr. Roland, caminhando pela
gare, com o bagageiro atrás com as malas.
- Zé e Ana - repetiu o Sr. Roland, intrigado. - Julgava que eram dois rapazes e
duas raparigas. Não sabia que havia um terceiro rapaz.
- A Zé não pensa assim - disse Júlio. - Ela não responde quando alguém lhe
chama Maria José. Talvez seja melhor o senhor tratá-la por Zé!
- Um cão? - disse ele. - Não sabia que havia um cão na casa. O vosso tio não me
falou no cão.
- Não - foi a resposta em tom seco do Sr. Roland. - Mas eu espero que o vosso cão
não me aborreça muito. Olá, Olá, aqui estão as pequenitas! Como passam?
A Zé não ficou muito satisfeita por lhes chamarem “pequenitas”. Por um lado,
detestava ser tratada como uma criança; por outro lado, sempre tentara ser tomada por
um rapaz. Ela apertou a mão do Sr. Roland e não disse uma palavra. Ana sorriu para ele
e o Sr. Roland achou que ela era a mais simpática das duas.
- Tim! Aperta a mão ao Sr. Roland! - ordenou Júlio a Tim. Esta era uma das
melhores graças de Tim. Ele conseguia erguer a pata direita de uma maneira muito
delicada. O Sr. Roland olhou para baixo, para o grande cão e Tim fitou-o.
- Tim! Que te aconteceu? - gritou David. Tim baixou as orelhas e não se mexeu.
- Não gosta de si - disse a Zé, olhando o Sr. Roland. - É muito esquisito. Ele
geralmente gosta das pessoas. Mas talvez o senhor não goste de cães.
- Não, realmente não gosto - disse o Sr. Roland. - Quando era rapaz fui uma vez
muito mordido e depois disso nunca mais pude gostar de cães. Mas espero vir a agradar
ao teu Tim, mais cedo ou mais tarde.
Subiram todos para a “charrette”. Ficavam bastante apertados. Tim olhava para os
tornozelos do Sr. Roland como se gostasse bastante de mordê-los. Ana ria-se.
- Tim está a portar-se de uma maneira indecente! - disse ela. - É uma grande coisa
que o Sr. Roland não tenha vindo para o ensinar! Ela riu-se para o preceptor, e este
também sorriu, mostrando uma dentadura muito branca. Os seus olhos tinham um azul
tão brilhante como os da Zé.
Só a Zé não abria a boca. Estava sentida por o preceptor não gostar do Tim e ela
não conseguia gostar de ninguém que não simpatizasse com o seu cão logo à primeira.
Ela pensava, também, que era muito estranho o Tim não ter querido estender a pata ao
preceptor.
- É um cão inteligente - pensava ela. - Bem sabe que o Sr. Roland não gosta dele e
por isso não quer cumprimentá-lo. Eu não te censuro, querido Tim! Eu também não aperto
a mão a ninguém que não goste de mim!
Foram logo mostrar o quarto ao Sr. Roland à chegada a casa. A tia Clara desceu
depois e falou com as crianças.
- Parece muito simpático e alegre; é engraçado ver um homem tão novo com
aquela barba.
- Novo!? - exclamou Júlio. - Eu acho-o muitíssimo velho! Deve ter pelo menos
quarenta anos!
- Parece-te assim tão velho? - perguntou ela. - Bem, velho ou não, tenho a certeza
que vai ser muito simpático para vocês.
- Tia Clara, não começaremos as lições antes do Natal, pois não? - perguntou
Júlio, com ansiedade.
- Claro que sim! - disse a tia. - Ainda falta quase uma semana para o dia de Natal;
vocês não supõem que nós dissemos ao Sr. Roland para vir aqui e não fazer nada até ao
fim das férias, pois não?
As crianças lastimaram-se.
- Bem, vocês podem fazer tudo isso às tardes - disse a tia. - Só darão lições de
manhã. Três horas por dia não vos vão matar com trabalho!
O novo preceptor desceu nessa altura e a tia Clara levou-o ao escritório do tio
Alberto, que apareceu daí a pouco, mostrando-se muito satisfeito.
- O Sr. Roland vai ser uma boa companhia para o teu tio - disse ela a Júlio. - Acho
que se dão muito bem: O Sr. Roland parece bastante interessado no trabalho de teu tio.
- Esperemos que ele passe a maior parte do tempo com o pai! - disse a Zé, em voz
baixa.
- Vamos dar uma volta? - sugeriu David. - Está um dia tão bonito! Esta manhã não
teremos lições, pois não, tia Clara?
- Claro que não - respondeu a tia. - Começarão amanhã. Vão passear; não
teremos muitas vezes dias de sol como este.
- Vamos até à Quinta Kirrin - sugeriu Júlio. - Parece um lugar tão bonito! Mostra-
nos o caminho, Zé.
- A direito! - disse a Zé. Ela assobiou e Tim logo apareceu aos pulos. Partiram os
cinco seguindo pela estrada e depois por um atalho que ia dar à quinta do vale distante.
Era óptimo andar a pé num dia de sol, em Dezembro. Os sapatos dos pequenos
ressoavam no caminho gelado e as patas do Tim faziam Tc, Tc, enquanto ele corria para
cima e para baixo, cheio de alegria por estar novamente com os seus quatro amigos.
- Querem lá ver que é o menino Zé! - disse o velho com um sorriso. A Zé também
se riu. Ela adorava ser tratada por menino em vez de menina.
- Estes são os meus primos - gritou a Zé. E, voltando-se para eles: - Ele é muito
surdo, é preciso gritar para ouvir.
- Eu sou Júlio - disse este, aos berros, e os outros gritaram também os seus
nomes. O caseiro parecia satisfeito.
- Entrem e vão falar à Maria - disse ele. - Ela vai ficar encantada por os ver a todos.
Nós conhecemos a menina Zé desde pequenina e também conhecemos a mãe, quando
ela era um bebé.
- Tão velho como a minha língua e um pouco mais velho do que os meus dentes! -
gracejou ele. - Agora vamos para dentro.
Todos entraram na cozinha, espaçosa e bem aquecida, onde estava uma velhinha,
tão atarefada como uma abelha, mexendo-se de um lado para o outro. Ficou tão
satisfeita como o seu marido ao ver as quatro crianças.
- Há meses que não a vejo, menina Zé. Ouvi dizer que foi para um colégio - disse a
velhinha.
- Fui sim - respondeu Zé. - Mas agora estou em casa a passar as férias. Importa-se
que eu solte o Tim? Espero que ele se porte bem, se os seus cães assim o fizerem.
- Pode soltá-lo - disse a Sra. Maria. - Vai divertir-se no pátio com o Be e o Ri. E
agora que querem tomar? Leite quente? Cacau? Café? E tenho algum pão caseiro que
cozi ontem. Vão prová-lo.
- Cá a minha mulher esteve muito ocupada durante esta semana, fazendo toda a
espécie de doces e pastéis - disse o caseiro enquanto a mulher ia à despensa. - Este
Natal vamos ter companhia.
- Ah, vão? - disse Zé, surpreendida, pois sabia que o velho casal nunca tivera
filhos. - Quem está para chegar? Alguém que eu conheça?
- Vão pintar quadros? - perguntou Júlio, que também queria ser artista. - Estou a
pensar se poderei vir falar com eles, qualquer dia. Eu também tenho jeito para pintar.
Poderão dar-me alguns conselhos.
- Pode vir sempre que quiser - disse a velhinha enquanto fazia cacau num grande
jarro. Colocou sobre a mesa um prato com os mais deliciosos pãezinhos e as crianças
serviram-se com apetite.
- Tenho a impressão de que os dois artistas se vão sentir bastante sós, aqui nos
confins do mundo, durante o Natal - disse a Zé.
- Eles disseram que não conhecem vivalma - respondeu a caseira. - Mas, sabe, os
artistas são muito originais. Já cá tenho recebido alguns. Eles parece que gostam de
vaguear por aí, sempre sozinhos. Farei tudo para que se sintam felizes.
- Hão-de sentir-se, com todas as guloseimas que fizeste para eles - disse o bom
marido. - Bem, tenho de sair para tomar conta no rebanho. Divirtam-se, meninos! Voltem
mais vezes a visitar-nos.
Saiu. A mulher cavaqueava com as crianças enquanto andava de um lado para o
outro, na espaçosa cozinha. Tim sentou-se num tapete que estava perto do lume. Mas, de
repente, viu um gato malhado de amarelo esgueirando-se ao longo da parede, com o pêlo
todo eriçado, cheio de medo do cão desconhecido.
Tim soltou um latido, deliciado, e correu na direcção do gato. Mas este sumiu-se da
cozinha, saltando para a entrada cujas paredes eram todas apaineladas. Tim continuava
a persegui-lo, não fazendo caso nenhum das ordens severas que a Zé gritava.
O gato tentou subir para um grande relógio, de caixa alta, encostado à parede.
Com latidos alegres, Tim tentou imitá-lo. Arremessou-se a um dos painéis de madeira
polida e então aconteceu uma coisa extraordinária! O painel desapareceu e surgiu um
buraco muito escuro na velha parede. A Zé, que tinha seguido Tim, deu um enorme grito
de surpresa.
Capítulo IV
- O Tim saltou atrás do gato, não conseguiu apanhá-lo e caiu com toda a força
contra um painel da parede - explicou Zé. - E o painel desandou e, olhem, apareceu um
buraco.
- Sabia, sim - respondeu ela. - Esta casa está cheia de coisas engraçadas como
esta. Tenho de ter cuidado quando limpo esse painel, pois se esfregar com muita força na
parte de cima, desliza sempre para trás.
- Que está atrás do painel? - perguntou Júlio. O buraco dava passagem a uma
pessoa, mas quando meteu a cabeça lá dentro só viu escuridão.
A parede propriamente dita ficava uns vinte centímetros atrás do painel e era feita
de pedra.
- Tragam uma vela, arranjem uma vela pediu Ana, nervosa. - Não tem uma
lanterna, pois não Sra. Maria?
Ele olhou durante bastante tempo mas parecia que nada tinha grande interesse.
Passou a vela a David e depois cada uma das crianças espreitou sucessivamente. A Sra.
Maria voltara para a cozinha. Já estava habituada ao painel que deslizava!
- Ela disse que esta casa estava cheia de coisas esquisitas, como esta - disse Ana.
- Que mais coisas haverá, fazem alguma ideia? Vamos perguntar-lhe.
As crianças correram para a pedra que ela apontara. Tinha uma argola de ferro e
facilmente a levantaram. Por baixo ficava uma cavidade, onde caberia uma caixa
pequena. Naquela ocasião estava vazia, mas mesmo assim parecia excitante.
- Aqui está! - gritou ela. Premiu a mola mas os seus dedos pequeninos não eram
suficientemente fortes para fazerem trabalhar o mecanismo do fundo falso. Júlio teve de a
ajudar.
Ouviu-se um estalido, e então viram o fundo falso do armário resvalar para o lado.
Ficou à vista um grande espaço, que poderia abrigar um homem de estatura média.
- Eu vou entrar e vocês fecham-me por fora - disse David. - Será bem divertido!
- Parece-me que não, menino Zé - disse a Sra. Maria. - O quarto onde está o
armário é um dos que vão ser ocupados pelos dois senhores.
- Acho que não vale a pena - respondeu a caseira. - Só os meninos, por serem
pequenos, ficam entusiasmados com coisas como essas. Os dois senhores não ligarão
importância:
- Também eu - concordou David. - Posso ir mais uma vez ver o painel da entrada,
Sra. Maria? Eu levo a vela.
David nunca soube explicar por que razão lhe apeteceu de súbito dar mais uma
olhadela ao painel. Foi apenas uma ideia que lhe passou pela cabeça. Os outros não se
incomodaram a acompanhá-lo, pois, realmente, não havia mais nada para ver atrás do
painel, excepto a parede de pedra. David pegou na vela e dirigiu-se para a entrada.
Carregou na parte superior do painel e este deslizou para trás. Colocou a vela lá dentro e
olhou com atenção. Não havia nada digno de nota.
David tirou a cabeça e começou a apalpar ao longo da parede o mais longe que
conseguia. Estava para retirar a mão quando os seus dedos encontraram uma cavidade
na parede de pedra.
A pedra rolou para fora! David ficou tão surpreendido que a deixou resvalar,
acabando por cair em frente do painel, com grande estrondo! O barulho despertou a
atenção dos outros, que apareceram logo.
- Não - respondeu David com a face toda vermelha de excitação. - Vou contar-lhes:
- Pus a minha mão aqui, e encontrei um buraco numa das pedras da parede onde estava
uma espécie de puxador. Fiz força e a pedra saiu do seu lugar. Fiquei tão admirado que a
deixei resvalar e cair. Foi esse barulho que vocês ouviram!
- Não, Júlio - respondeu David. - Isto é a minha descoberta. Espera até que eu veja
se encontro alguma coisa no buraco. É difícil lá chegar!
Os outros esperavam com impaciência. Júlio mal se continha. David estendeu o
braço o mais possível e introduziu a mão no espaço que ficava atrás da pedra que se
deslocara. Os seus dedos apalparam qualquer coisa que parecia um livro. Com cautela,
agarrou-o.
- Acho que é um livro de receitas - disse Ana enquanto o seu olhar inteligente lia
algumas palavras em caligrafia a tinta castanha, e quase sumida. - Vamos levá-lo à Sra.
Maria.
As crianças foram mostrar o livro à velhota. Ela riu-se das suas caras radiantes.
Pegou no livro e olhou-o sem curiosidade.
- Sim - disse ela. - É um livro de receitas, e nada mais. Vejam o nome aqui na capa
- Alice Sandeus. Deve ter sido da minha bisavó. Eu sei que ela era famosa pelas suas
receitas e mezinhas. Diziam que podia curar qualquer doença de pessoa ou animal, fosse
ela qual fosse.
- É pena ser tão difícil ler a sua letra - disse Júlio, penalizado. - Além disso, o livro
está a cair aos bocados. Deve ser muitíssimo antigo.
- Achas que haverá mais alguma coisa nesse esconderijo? - perguntou Ana. - Júlio,
vai tu procurar porque o teu braço é mais comprido do que o de David.
- Parece-me que não há mais nada - disse David. - É um espaço muito pequeno.
Só existem alguns centímetros atrás da pedra que caiu.
Todos voltaram para a entrada. Júlio meteu o braço no painel aberto e mexeu-o ao
longo da parede até ao lugar onde caíra a pedra. Introduziu a mão e os seus dedos
compridos começaram à procura de mais alguma coisa que pudesse ali estar. E havia
mais qualquer coisa! Uma coisa macia e delgada que parecia cabedal. Avidamente os
dedos do rapazinho apertaram o tal objecto trazendo-o para fora, cheio de cuidado, com
um certo receio que caísse aos bocados, de velho.
- Encontrei uma coisa! - disse ele, com os olhos a brilhar, radiante. - Olhem! - o que
é isto?
- Não é um mapa - disse Júlio. - Parece uma espécie de código, ou qualquer coisa
assim. Gostaria de saber o que significa. Queira Deus que consigamos decifrá-lo. Deve
ser, talvez, um segredo.
- Este livro é uma maravilha! - disse ela. - Eu mal posso ler a caligrafia, mas
descobri aqui uma receita para o reumatismo. Vou eu própria experimentá-la. Ora oiçam...
- Olhe! Que será isto? Sabe? Encontrámo-lo numa espécie de bolsa de tabaco,
naquele esconderijo atrás do painel.
- Não, isto não tem nenhum sentido para mim. E o que é isso aí? Parece uma
bolsa de tabaco. O meu João havia de gostar; a dele está tão velha que já não presta
para nada. Essa também está usada, mas ainda pode servir.
- Também quer este bocado de pano, Sra. Maria?- perguntou Júlio, ansioso. O
pequeno estava a pensar em levá-lo para casa e estudá-lo bem. Tinha a certeza de que
havia qualquer segredo ali escondido, e não suportava a ideia de entregar o trapo à Sra.
Maria.
- Pode levá-lo, se quiser, menino Júlio - disse a Sra. Maria com uma gargalhada. -
Guardo o livro de receitas para mim e a bolsa para o meu João. Os meninos podem ficar
com o farrapo velho, ainda que não perceba para que lhes vai servir. Ali vem o meu João!
- Olha, João, está aqui uma bolsa de tabaco para ti! Os meninos encontraram-na
atrás do painel que se abre.
- É bastante esquisita - disse ele. - Mas bem melhor do que a minha. Olhem, meus
meninos, eu não quero apressá-los, mas já é uma hora e farão melhor em regressar, pois
deve ser quase a hora do almoço.
- Meu Deus! - exclamou Júlio. - Vamos chegar atrasados! Adeus, Sr. Sanders.
Adeus, Sra. Maria. Muitíssimo obrigado pelos pãezinhos e pelo farrapo velho. Nós vamos
fazer o possível por descobrir o que significa e depois dizemos-lhe. Apressem-se! Onde
está o Tim? Vamos, Tim, que estamos atrasados!
- Gostava de saber o que diz este trapo velho! - dizia Júlio, ofegante. - Espero
descobrir. Tenho a certeza que é qualquer mistério!
- Não! - disse a Zé. - Vamos guardar segredo! - Se a Ana começar a dizer alguma
coisa, pisem-na por baixo da mesa, como nós fazíamos no Verão passado - disse Júlio,
rindo-se. A pequena Ana encontrava sempre dificuldade em guardar um segredo e muitas
vezes tinham de lhe dar beliscões ou pisadelas quando ela começava a dizer alguma
coisa.
- Não direi uma palavra - afirmava Ana, indignada. - E não se atrevam a pisar-me.
Isso só me faz chorar e depois os tios querem saber o motivo.
- Nós vamos arranjar, depois do almoço, uma brincadeira bem divertida, com este
pedaço de pano - disse Júlio. - Aposto que descobriremos o que ele diz, se pensarmos
um bocado.
- Cá estamos - disse Zé. - Olá, mãe! Vamos num minuto lavar as mãos! Passámos
uma manhã estupenda!
CAPÍTULO V
UM PASSEIO DESAGRADÁVEL
- Vocês sabem, eu acho que estas palavras são em latim - disse Júlio, tentando lê-
las. - Mas eu não posso perceber bem. E mesmo se o conseguisse não saberia o que
querem dizer. Desejava conhecer alguém que soubesse latim.
- Julgo que sim - disse a Zé. Mas ninguém se atrevia a perguntar ao tio Alberto. Ele
poria logo de parte o misterioso trapo. Esquecê-lo-ia e talvez até o queimasse. Os
cientistas eram pessoas tão especiais!
- E que lhes parece o Sr. Roland? - sugeriu David. - Ele é professor. Deve saber
muito latim.
- Caminho secreto! - exclamou Ana, com os olhos a brilhar. - Oh, eu espero que
seja isso. Caminho secreto! Que divertido! Que espécie de caminho secreto poderá ser,
Júlio?
- Como hei-de saber, minha pateta? Eu nem mesmo sei se as palavras querem
realmente dizer caminho secreto.
- Mas se significam isso o trapo deve dar instruções para encontrar o caminho
secreto, seja ele qual for - disse David. - Ó Júlio, não é desesperador nós não
conseguirmos ler? Experimenta, experimenta mais uma vez. Tu sabes mais latim do que
eu.
- É tão difícil ler estas letras antigas - lamentou Júlio, tentando de novo.
Ouviram passos nas escadas e abriu-se a porta. Ali estava o Sr. Roland.
- Olá, Olá - disse ele. - Andava à vossa procura. Que dizem a um passeio pelo
campo?
- É - começou Ana, e logo principiaram todos a falar ao mesmo tempo, com medo
que a Ana fosse trair o segredo.
- Tim, Tim, onde estás? - A Zé deu um assobio. Tim saltou debaixo da cama. A
Ana estava vermelha, adivinhando o motivo pelo qual os outros a tinham interrompido tão
depressa.
- Idiota - disse Júlio, quase em segredo. - Bebé. Graças a Deus o Sr. Roland não
se referiu mais ao pedaço de pano que vira nas mãos de Júlio. Ele agora observava Tim.
- Claro que sim! - afirmou ela. - Nós nunca, nunca vamos a sítio nenhum sem
levarmos o Tim. O Sr. Roland desceu, enquanto as crianças foram buscar os casacos. A
Zé estava furiosa. Só a ideia de deixar Tim punha-a mal disposta. - Tu ias quase dizendo
o nosso segredo, palerma! - disse David a Ana.
- Deixa-me ser eu a decidir isso - atalhou Júlio. - Por agora não te atrevas a dizer
uma só palavra sobre o assunto.
Saíram todos e Tim também. O Sr. Roland não precisava preocupar-se com o cão,
pois Tim nunca se aproximava dele. Realmente era muito extraordinário. Conservava-se
sempre longe do preceptor (mesmo quando este lhe falava), fingindo ignorá-lo.
- Ele não costumava ser assim - observou David. - Até é um cão muito sociável.
- Bem, como temos de viver na mesma casa devo tentar torná-lo meu amigo -
disse o preceptor. - Tim, vem cá! Tenho aqui no bolso um biscoito para ti!
Tim levantou as orelhas à palavra biscoito mas nem mesmo olhou para o Sr.
Roland. Foi ter com a Zé. Ela fez-lhe festas.
- Quando ele não gosta de alguém, nem um biscoito nem um osso conseguem
aproximá-lo - disse ela.
- É um cão muito esquisito, não é? - disse ele. - Um rafeiro medonho! Prefiro cães
de raça.
A Zé ficou escarlate.
- Ele não é um cão esquisito! - gritou ela. - Pelo menos não é tão esquisito como...
É o melhor cão do mundo!
- Parece-me que está a ser um pouco indelicada - disse o Sr. Roland, secamente. -
Eu não permito que os meus alunos sejam mal-educados, Maria José.
Chamando-lhe Maria José o professor fez com que a pequena ficasse ainda mais
furiosa. Ela deixou-se ficar para trás, com o Tim, parecendo tão soturna como um dia de
trovoada. Os outros sentiam-se pouco à vontade. Eles conheciam o génio da Zé e sabiam
como ela se podia tornar intratável. Mas esperavam que ela não fosse tão pateta que
pensasse em estragar as férias com as suas birras.
O Sr. Roland não deu mais atenção à Zé. Não falava com ela mas caminhava à
frente com os outros, fazendo os possíveis por diverti-los. Na verdade, sabia tornar-se
muito engraçado e os rapazes fartavam-se de rir. Ele pegou na mão de Ana e a pequenita
saltitava ao seu lado, apreciando o passeio.Júlio teve pena da Zé. Não era agradável ser
posta de parte e ele sabia como a Zé detestava isso. Pensou se deveria dizer qualquer
frase para a desculpar. Talvez facilitasse as coisas.
- Sr. Roland - começou ele. - Não poderia tratar a minha prima pelo nome que ela
gosta: Zé?... Ela detesta que lhe chamem Maria José. E é muito amiga do Tim. Não
suporta que alguém diga coisas desagradáveis a respeito do cão.
- Não precisas de vir comigo - disse a pequena. - Vai ter com o teu amigo, o Sr.
Roland.
- Não sou palerma - disse a Zé, num tom sacudido. - Eu oiço todos a rir e a brincar
com ele. Podes seguir para te rires ainda mais. Eu fico com o Tim.
- Zé, lembra-te que são férias de Natal pediu David. - Vamos ser todos amigos.
Anda, não estragues as férias!
- Não posso gostar de ninguém que não goste do Tim - foi a única resposta da
obstinada Zé. - Olha, apesar de tudo, o Sr. Roland ofereceu-lhe um biscoito - lembrou o
rapaz, tentando fazer as pazes a todo o custo.
- Zé! promete que vais ser mais simpática até acabarem as férias! Não estragues o
Natal, por amor de Deus! Vamos, Zé!
- Então vem connosco - pediu David. Assim, a Zé juntou-se ao grupo e tentou não
parecer muito mal-humorada. O Sr. Roland adivinhou que David estivera falando com a
Zé e por isso começou a dirigir-se também à pequena. Não conseguiu fazê-la rir, mas
pelo menos ela foi respondendo com mais delicadeza.
- Não, não - respondeu imediatamente o Sr. Roland. - Ouvi falar e pensei que seria
ali.
Ela olhou para os outros, pensando se eles se importariam que dissesse alguma
coisa sobre o que tinham visto naquela manhã.
Júlio pensou por um momento. Afinal não tinha importância falar-lhe acerca da
pedra da cozinha e do fundo falso do armário. A Sra. Maria di-lo-ia a qualquer pessoa.
Também poderia falar no painel da entrada e dizer que tinham encontrado ali um velho
livro de receitas. Não precisaria de contar nada a respeito do pedaço de pano. Assim,
descreveram ao preceptor tudo quanto tinham visto na casa da quinta, mas não disseram
nada sobre o trapo e as suas estranhas inscrições. O Sr. Roland ouviu-os com o maior
interesse.
- Isso é muito curioso - disse ele. - Muito interessante, na verdade. Vocês dizem
que o velho casal vive ali completamente só?
- Estão à espera de dois hóspedes para passarem lá o Natal - informou David -,
dois artistas. Júlio pensou que poderemos lá ir conversar com eles. Sabe? Ele tem muito
jeito para pintar.
- Ah, sim? - disse o Sr. Roland. - Então hás-de mostrar-me alguns dos teus
desenhos. Mas acho que não deves ir aborrecer os artistas da quinta. Podem não gostar.
Esta observação não agradou a Júlio; resolveu imediatamente que iria falar com os
dois artistas logo que tivesse oportunidade! Afinal o passeio seria bastante agradável se a
Zé não continuasse calada e se o Tim não teimasse tanto em não se aproximar do
preceptor.
- Agora vamos para casa - disse o Sr. Roland, tentando não parecer aborrecido
com o Tim. - Chegaremos mesmo à hora do lanche.
CAPÍTULO VI
Mas não adiantaram nada. Nenhum deles conseguia perceber o sentido daquelas
frases! Caminho Secreto! Que poderia significar? Seriam realmente instruções para
encontrar um caminho secreto? E onde estaria o caminho e porque seria secreto? Era um
desespero não conseguir responder a estas perguntas!
- Na verdade acho que temos de perguntar a alguém, logo que seja possível -
disse Júlio, com um suspiro. - Não posso suportar este mistério por muito mais tempo.
Cada vez penso mais nele! - Júlio chegara a sonhar com o farrapo!
Naquela manhã, antes de começarem as lições, ele pensou se o Sr. Roland iria dar
latim. Se assim fosse, poderia perguntar o significado da expressão “Via Oculta”. O Sr.
Roland vira as notas dos pequenos e apontara as disciplinas em que eles pareciam mais
fracos. Uma era latim e a outra francês. Tanto David como a Zé tinham notas bastante
baixas em matemática; ambos precisariam de explicações nesta disciplina. O ponto fraco
de Júlio era a geometria. Ana não precisava de lições.
- Mas se tu quiseres vir connosco, eu dou-te um desenho para fazeres - disse o Sr.
Roland, com os seus olhos azuis sorrindo para a pequenita. Ele gostava de Ana. Ela não
era teimosa e irritável como a Zé.
- Oh, quero, quero! - disse Ana, satisfeita. - Gostava de pintar qualquer coisa.
Posso pintar umas papoulas vermelhas e uns malmequeres, da minha imaginação, não
acha Sr. Roland?
- Onde está o Tim? - perguntou Júlio em voz baixa, enquanto esperavam pelo
professor.
- De baixo da mesa - respondeu a Zé, com ar de desafio. - Estou certa que ele há-
de ficar quieto. Nenhum de vocês diga nada. Vai aqui ficar sempre. Não quero dar lições
sem o Tim.
- Eu não vejo por que razão não há-de ficar connosco - disse David. - Ele é tão
sossegado! Chiu!... lá vem o Sr. Roland.
- Primeiro quero passar um volver de olhos nos vossos cadernos diários - disse ele.
- E quero ver o que fizeram neste período. Primeiro tu, Júlio.
- Pareces cansada, Maria José - disse o Sr. Roland. - Terão um pequeno intervalo
às onze horas.
Zé franziu as sobrancelhas. Continuava a não gostar de ser tratada por Maria José.
Colocou, com cautela, o seu pé sobre Tim, para o avisar que não fizesse mais ruídos.
Mas Tim mordeu-lhe o pé. Daí a momentos, quando a aula estava o mais sossegada
possível, Tim teve uma enorme vontade de se coçar. Levantou-se. - Sentou-se outra vez,
deu uma rosnadela e principiou a coçar-se com fúria. Os pequenos começaram todos ao
mesmo tempo a fazer barulho para abafar os ruídos do Tim. A Zé batia com os pés no
chão. Júlio começou a tossir e deixou cair um livro. David desengonçava a mesa e falava
com o Sr. Roland.
- Oh, Deus, esta soma é tão difícil; olhe que é mesmo! Já a fiz, já apaguei, já
comecei de novo e não quer dar certa!
- A que propósito vem todo este barulho? perguntou o Sr. Roland, surpreendido. -
Pára de bater com os pés, Maria José.
Para sua enorme surpresa os pés tocaram em qualquer coisa macia e quente e foi
então que Tim o mordeu no tornozelo! Levantou o pé, com um grito de dor. As crianças
fitavam-no, assustadas. Ele curvou-se e olhou para baixo da mesa.
- Ela não responde quando lhe chamam Maria José - lembrou Júlio ao preceptor. -
Há-de responder-me, chame eu o que chamar - afirmou o Sr. Roland em voz rouca e
zangada. - Não quero que este cão aqui esteja. Se não o levares lá para fora
imediatamente, vou falar com o teu pai.
A Zé olhou-o. Ela sabia muito bem que se não levasse o Tim e se o Sr. Roland
fosse dizer ao pai, ele ordenaria que o cão fosse viver no canil do jardim e isso seria
horrível! Não havia mais nada que fazer, senão obedecer. Com a cara vermelha, as
sobrancelhas tão franzidas que quase lhe escondiam os olhos, levantou-se e dirigiu-se a
Tim.
- Não é preciso ser mal educada, Maria José! - disse o sr. Roland, cada vez mais
zangado. Os outros observavam a Zé. Admiravam-se como ela se atrevia a dizer coisas
daquelas. Quando estava zangada parecia não se importar de nada nem de ninguém!
- Volta logo que tenhas posto o cão lá fora - ordenou o Sr. Roland.
A Zé saiu com mau modo, mas voltou poucos minutos depois. Sentia-se apanhada.
O seu pai fizera-se grande amigo do Sr. Roland e sabia bem como a filha era difícil de
levar. Se ela, Zé, se portasse tão mal quanto lhe apetecia, seria Tim que sofreria, pois
certamente não o deixariam entrar em casa. Assim, apenas por Tim, Zé obedecera
ao preceptor, mas, desde aquele momento, ela ainda antipatizou mais com ele, com toda
a força do seu pequenino coração.
- Anda cá, meu velho! - disse-lhe ela. - Que vergonha porem-te fora da aula!
Porque mordeste o Sr. Roland? Realmente não sei o que te faça!
- Zé, não deves brincar com o Sr. Roland - aconselhou Júlio. - Só consegues
arranjar sarilhos. Ele é inflexível. Não transigirá com nenhum de nós. Mas acho que será
um bom camarada, se nós nos portarmos como ele quer.
- Então sejam vocês amigos dele - respondeu a Zé, com ar trocista. - Eu cá não
sou. Quando não gosto de uma pessoa, não gosto mesmo - e eu não gosto dele.
- Em grande parte é por isso, mas também porque ele me irrita; não posso olhar
para ele - afirmou Zé. - Não gosto da sua boca.
- Mas tu não a podes ver - disse Júlio. - Está coberta com a barba e o bigode.
- Mas às vezes já tenho visto os lábios - afirmou Zé, obstinada. - São finos e cruéis.
Reparem. Desagradam-me pessoas com lábios finos. São sempre desconfiadas e
rancorosas. E também não gosto do seu olhar frio. Vocês podem adorá-lo como
quiserem. Eu não consigo.
- Nós não vamos adorá-lo - disse ele. - Vamos apenas ser delicados. Tu podias
fazer o mesmo, Zé.
Mas uma vez que a Zé tomava uma resolução sobre qualquer coisa, nada a
alterava. Ficou radiante ao saber que naquela tarde iriam todos no autocarro fazer as
compras do Natal sem o Sr. Roland! Ele ficaria assistindo a uma experiência que o tio
Alberto lhe ia mostrar.
- Vou com vocês até à cidade, para comprarem o que quiserem - disse a tia Clara,
às crianças. - Depois vamos lanchar a uma pastelaria e apanhamos de volta o autocarro
das sete horas.
- Acho que devíamos comprar qualquer coisa para o Sr. Roland, não lhes parece? -
lembrou Júlio. - Vou comprar-lhe um maço de cigarros.
- Que engraçado, comprar um presente para o Sr. Roland! - disse a Zé, com
desdém.
- Porque não, Zé? - perguntou a mãe, cheia de surpresa. - Olha, querida, espero
que sejas delicada para ele e não comeces a detestar o pobre homem. Eu não quero que
ele vá fazer queixa de ti ao teu pai.
- Que vais comprar para o Tim, Zé? - perguntou Júlio, para mudar depressa de
assunto.
- O maior osso que houver no talho - respondeu a Zé. - E vocês que vão comprar-
lhe?
- Adivinho que se o Tim tivesse dinheiro compraria um presente para cada um de
nós - disse Ana, alisando o pêlo do cão. - É o melhor cão do mundo!
A Zé, ouvindo isto, teve de perdoar à Ana; esqueceu que ela queria comprar um
presente para o Sr. Roland. Ficou outra vez bem disposta e recomeçou a planear o que
deveria comprar para cada um. Lancharam muito bem e tomaram o autocarro de
regresso. A tia Clara, logo que chegou, foi ver se a criada dera o lanche aos dois homens.
Quando voltou do escritório parecia radiante.
- Na verdade, nunca vi o tio Alberto tão entretido - disse ela. - Dá-se às mil
maravilhas com o vosso preceptor! Esteve a mostrar ao sr. Roland uma quantidade de
experiências. É tão bom para o tio ter alguém com quem possa conversar sobre aquelas
coisas!
Nessa noite o sr. Roland foi jogar com as crianças. Tim estava presente e o
preceptor tentou de novo travar amizade com o cão, mas este fez de conta que não
percebia.
- Tão teimoso como a dona! - disse o preceptor, com uma gargalhada, olhando Zé.
Esta estava observando Tim, bastante satisfeita por o cão não ligar importância ao Sr.
Roland.
A pequena fitou o preceptor com antipatia e não respondeu. Nessa noite, quando
os dois irmãos se estavam a despir, Júlio perguntou a David qual era a sua opinião sobre
o Sr. Roland.
- Não sei bem - respondeu o irmão. - Tem muitas coisas de que eu gosto, mas, não
sei porquê, de repente ponho-me a não gostar nada dele. Não simpatizo com os seus
olhos. E a Zé tem razão sobre os seus lábios; eles são tão finos que mal se vêem.
- Bem sei, mas para que nos serve um segredo, se não o conseguimos descobrir
só por nós? - disse Júlio. - Vou dizer-te o que podemos fazer: pedimos-lhe para nos
explicar só as palavras e não lhe mostraremos o pano.
- Mas há palavras que não conseguimos ler - disse David. - Por isso, pouco
adiantamos. Temos de lhe mostrar o trapo e dizer-lhe onde o encontrámos.
No dia seguinte houve lições outra vez, das nove e meia ao meio-dia e meia hora.
A Zé apareceu sem o Tim. Agora que o cão mordera o Sr. Roland, este tinha todo o
direito de recusar a presença do Tim durante as lições. Mas a Zé, apesar de tudo, parecia
furiosa.
Na lição de latim, Júlio teve oportunidade de perguntar o que tanto desejava saber.
- Por favor, Sr. Roland - disse o pequeno. - Pode dizer-me o que significa “Via
Occulta”?
CAPÍTULO VII
Nos dois dias que se seguiram os pequenos não tiveram muito tempo para pensar
no caminho secreto, pois o Natal aproximava-se e havia muito que fazer. Eram os cartões
de Boas-Festas para desenhar, pintar e mandar aos amigos; era a decoração da casa,
etc. Foram com o Sr. Roland buscar azevinho e chegaram a casa carregados.
- O Sr. Roland subiu à árvore para apanhar tudo isto - disse Ana. - Trepa tão bem
como um macaco!
Todos riram, excepto a Zé. Ela nunca se ria de nada que dissesse respeito ao
preceptor. Deixaram os fardos na entrada e foram lavar as mãos. Era nessa noite que se
devia enfeitar a casa.
Havia ali tantos tubos de ensaio e instrumentos esquisitos que as crianças olhavam
para aquilo tudo, maravilhadas, quando entravam no escritório, o que acontecia
raramente.
- Não, não quero que estraguem nada no meu escritório - disse o tio Alberto,
imediatamente.
- Ó tio, para que servem todas essas coisas engraçadas do seu escritório? -
perguntou Ana, olhando em volta com os olhos muito abertos.
- É difícil perceberes - disse o tio. - Todas essas coisas engraçadas, como tu lhes
chamas, ajudam-me nas minhas experiências e eu anoto no meu livro o que elas me
mostram; com tudo o que aprendo espero descobrir uma fórmula secreta que será de
grande utilidade, quando estiver concluída.
- O tio quer descobrir uma fórmula secreta e nós queremos descobrir um caminho
secreto - disse Ana, completamente esquecida de que não devia falar sobre o assunto.
Júlio estava ao pé da porta e começou a fazer sinais à irmã. Por sorte o tio Alberto
deixara de prestar atenção à conversa da pequenita. Júlio fê-la sair do quarto.
- Olha Ana, a única maneira de te fazer guardar um segredo é coser-te a boca com
agulha e linha! - disse Júlio.
- Vou esta tarde à cidade - disse o preceptor - e trago-lhes os enfeites que forem
precisos. Vai ser divertido enfeitar a árvore de Natal e colocá-la na entrada; e depois
acendemos as velas. Quem quer vir comigo buscar as velas e os enfeites?
- Eu! - gritaram três crianças. Mas uma não disse nada. Era a Zé. Nem mesmo
para comprar os enfeites ela queria acompanhar o Sr. Roland. Até ali ela nunca tivera
uma árvore de Natal e estava com imensa vontade de ver aquela pronta - mas para a Zé
tudo estava estragado, só por ser o Sr. Roland quem ia comprar os enfeites que haveriam
de tornar um simples pinheiro numa árvore maravilhosa.
Já estava agora na entrada, com velas coloridas presas aos ramos e toda coberta
com enfeites alegres e luzidios. Por todos os lados se viam suspensos fios prateados, e
Ana espalhara bocadinhos de algodão branco a imitar neve. Realmente estava um
encanto!
- Que linda! - exclamou o tio Alberto quando passou pela entrada e viu o Sr. Roland
pendurando os últimos ornamentos. - Agora reparo - olhem para a bonequinha lá no alto.
A quem está destinada? Será para a menina mais ajuizada?
Ana, muito em segredo, esperava que o Sr. Roland lhe desse a boneca. Tinha a
certeza que não seria para a Zé e de qualquer maneira esta não a aceitaria. Era uma
boneca tão bonita! Parecia uma fada, com o seu vestido de gaze e asas prateadas.
- Sabem, nunca julguei que um cão conseguisse mostrar-se tão aborrecido - disse
Júlio observando Tim. - Faz umas caretas parecidas com os ares de mau génio da Zé.
- Riam-se à vontade - murmurou a Zé, despeitada. - Eu acho que vocês são bem
antipáticos comigo. E tenho a certeza de que não estou enganada a respeito do Sr.
Roland. Tenho um segundo sentido que não me deixa simpatizar com ele e o Tim sente o
mesmo.
- Oh, está claro, gatos é diferente - interrompeu a Zé. - Mas se uma pessoa não
gosta de cães, especialmente dum cão como o nosso, então é porque não deve ser muito
boa.
- Não vale a pena discutir contigo - concluiu Júlio. - Uma vez que resolves uma
coisa, não mudas de opinião nem por um decreto!
A Zé saiu do quarto, num ímpeto de mau génio. Os outros achavam que ela se
estava a portar de uma maneira insensata.
- Estou muito surpreendida - disse a Ana. - Ela era tão simpática no colégio. Agora
anda esquisita, tal como no princípio do Verão passado.
- Eu acho que o Sr. Roland foi muito amável por fazer os enfeites para a árvore de
Natal - disse David. - Às vezes continuo a não gostar dele, mas acho-o camarada. Que
pensariam vocês se resolvesse pedir-lhe para nos explicar as inscrições do pedaço de
pano? Pela minha parte não me importo de partilhar o nosso segredo com o Sr. Roland.
- Eu acho óptimo - respondeu logo Ana, que estava toda ocupada a pintar um lindo
cartão de Boas-Festas para o preceptor. - Ele é inteligentíssimo. Estou certa de que nos
vai dizer qual é o caminho secreto. Vamos perguntar-lhe?
- Está bem - disse Júlio. - Vamos mostrar-lhe o pedaço de pano. Hoje é véspera de
Natal. Ele há-de ficar sozinho connosco na sala de estar, pois a tia Clara vai para o
escritório do tio embrulhar presentes para todos nós.
Assim, nessa noite, antes de o Sr. Roland vir ter com eles, Júlio trouxe o pedaço
de pano e desenrolou-o em cima da mesa a Zé olhou-o, admirada.
- Cuidado, que o Sr. Roland está a chegar - avisou ela. - É melhor guardares isso
depressa.
- Nós vamos perguntar-lhe se nos pode dizer o significado das palavras latinas -
explicou o Júlio.
- Não! Não! – gritou a Zé. - Pedir-lhe para compartilhar o nosso segredo! Como
podem fazer isso?!
- Olha, nós queremos saber qual é o segredo, não queremos? - perguntou Júlio. -
Não precisamos de lhe contar onde arranjámos o trapo nem coisa alguma a seu respeito;
apenas queremos saber o que significam as indicações. Não é partilhar o segredo com
ele - é só pedir-lhe para pensar um bocadinho e ajudar-nos.
- Nunca julguei que vocês fossem pedir a ele - disse a Zé. - Quererá saber tudo
acerca do caso, vão ver! Ele é muitíssimo bisbilhoteiro.
- Que queres dizer com isso? - perguntou Júlio, surpreendido. - Não o acho nada
bisbilhoteiro.
- Bem sabes como ele está interessado no trabalho do teu pai - disse Júlio. - É
natural que queira observar tudo. Olha que o teu pai também gosta dele. Tu só procuras
arranjar coisas contra o Sr. Roland.
- Senhor Roland - começou Júlio. - Pode ajudar-nos numa coisa? Nós encontrámos
um pedaço de pano velho, com umas inscrições muito estranhas. As palavras parecem
uma espécie de latim e não conseguimos decifrá-las.
- A nossa doce Maria José não parece estar muito acolhedora esta noite - notou o
Sr. Roland, desenroland o trapo.
- Ah, agora percebo porque queriam traduzir essas palavras latinas, noutro dia, as
que significavam “Passagem Secreta”; estão escritas aqui, na parte superior.
- Ora bem - disse, por fim, o preceptor. - O que eu consigo descobrir é isto: um
quarto virado a leste; oito painéis de madeira, com uma abertura em qualquer parte, que
será encontrada no painel marcado; um chão de pedra - sim, acho que é isso mesmo -
um chão de pedra e um armário. Tudo isto parece muito estranho e curioso. Onde
arranjaram este pano?
- Parece que sim - concordou o Sr. Roland examinando outra vez o trapo. - Onde
disseram que encontraram isto?
- Julgava que pudessem contar-me - disse o preceptor, fixando David com os seus
olhos azuis e brilhantes. - Podem ter confiança em mim. Vocês nem fazem ideia de
quantos segredos extraordinários eu sei!
- Bem, realmente eu não vejo razão para não dizermos onde descobrimos isto, Sr.
Roland. Encontrámo-lo na Quinta Kirrin, dentro de uma bolsa de tabaco, muito velha.
Suponho que o caminho secreto deve começar na quinta, em qualquer parte!
- Muito obrigado, Sr. Roland - disse ele mais uma vez. - O senhor resolveu-nos
uma parte do mistério, mas deixe-nos descobrir sozinhos o que falta! Seremos nós a
procurar a entrada do caminho secreto, depois do Natal, logo que pudermos ir até à
Quinta Kirrin.
- Eu irei com vocês - insistiu o Sr. Roland. - Talvez possa auxiliá-los um pouco. Ou
seja, se vocês não se importarem que eu entre neste curioso segredo.
- O senhor ajudou-nos tanto, descobrindo o significado das palavras! - disse Júlio.
- Pode vir connosco, se quiser.
- Que divertido vai ser, apalpar os painéis, esperando que apareça uma entrada
escura e misteriosa! - Dizendo isto o preceptor retirou-se.
- Acho que a Zé não irá - murmurou David a Júlio. - Não devias ter convidado o Sr.
Roland para vir connosco, Júlio. Assim a Zé não quererá entrar na brincadeira e tu bem
sabes como ela vai ficar furiosa.
CAPÍTULO VIII
O DIA DE NATAL
- Que linda boneca com olhos que abrem e fecham! Vou chamar-lhe Branca de
Neve. Parece-se com a Branca de Neve!
- Ó tia Clara, que livro formidável sobre aviões. - Tim! Olha o que te deu o Júlio -
uma coleira com pregos dourados todos à volta. Vais ficar elegantíssimo! Tens de
agradecer-lhe, Tim!
- Quem te deu esse livro sobre cães, Zé? - perguntou Júlio, pois não se lembrava
de ter visto o livro no meio dos presentes da Zé.
O Júlio ficou admirado por a Zé ter aceitado o livro. Mas a rapariguinha, embora
teimosa e irritável tinha resolvido não estragar o dia de Natal com as suas birras. Assim,
quando os outros agradeceram ao preceptor os presentes que lhes dera, ela
também juntou os seus agradecimentos, ainda que o fizesse numa voz um pouco fraca e
inexpressiva.
A Zé era a única que não dera um presente ao preceptor. O Sr. Roland agradeceu
aos outros três, com muita simpatia, parecendo verdadeiramente satisfeito. Ele garantiu à
Ana que o seu cartão de boas-festas era o mais bonito que recebera; a pequena ficou
muito contente.
- Tenho de confessar que estou encantado por passar o Natal convosco! - disse o
Sr. Roland quando se sentaram à mesa de jantar. - Posso ajudá-lo a trinchar o peru, Sr.
doutor? Eu tenho uma certa habilidade.
Foi na verdade um dia de Natal muito alegre! Não houve lições, claro está. As
crianças comeram quantidades enormes de guloseimas e chupavam rebuçados e
bombons a toda a hora. A árvore de Natal estava linda, com as velas todas acesas, a luz
a tremer na escuridão da entrada, e os enfeites a brilharem. O Tim olhava-a muito quieto,
extasiado.
- Ele gosta tanto da árvore como nós - afirmoua Zé. E realmente, naquele dia, o
Tim divertiu-se tanto como qualquer das crianças.
- Não tarda nada estou a dormir - bocejou a Ana. - Ó Zé, foi muito divertido, não
foi? Gostei imenso da árvore de Natal.
- Foi óptimo! - disse a Zé, saltando para a cama. - Vem aí a mãe desejar-nos boa
noite. Para o cesto, Tim.
Tim pulou para o cesto, perto da janela. Encontrava-se sempre ali quando a mãe
da Zé vinha dar as boas-noites às pequenitas, mas logo que ela descia as escadas, o cão
saltava dum pulo só para a cama da Zé. Ali dormia, todo enroscado sobre os pés dela.
- Não achas que o Tim devia dormir lá em baixo, esta noite? - sugeriu a tia Clara. -
A Joana disse-me que ele comeu tanto que naturalmente vai ficar doente.
- Eu já devia calcular que não servia de nada dizer-te isto. Adormeçam depressa,
meninas; já é tarde e vocês estão muito cansadas.
A tia Clara foi ao quarto dos rapazes para também lhes desejar boa noite.
Encontrou-os quase a dormir.
Duas horas mais tarde todos se foram deitar. A casa estava silenciosa e escura a
Zé e a Ana dormiam muito sossegadamente nas suas caminhas. O Tim também dormia
aos pés da dona.
Ana não acordara. Tim continuava a rosnar. A Zé levantou-se e pôs-lhe uma das
mãos na coleira, para o fazer calar. Ela calculava que se o cão acordasse o pai, este
ficaria zangado. Como a Zé se levantasse, Tim parou de rosnar. A pequena não sabia
que fazer. Não servia de nada acordar Ana. A pequenita ficaria assustada. Porque estaria
o Tim a rosnar? Nunca o fazia durante a noite!
- Talvez seja melhor eu ir ver se tudo está bem – pensou a Zé. Ela não era nada
medrosa e a ideia de andar pela casa silenciosa, às escuras, não a alterou; além de tudo
ela tinha o Tim! Quem teria medo ao lado do Tim?! Vestiu o roupão. - Talvez tenha
resvalado um pau da lenha de algum dos fogões e esteja a queimar o tapete - pensou ela,
procurando encontrar um cheiro a queimado, enquanto descia as escadas. - Talvez o Tim
tenha sentido o cheiro e nos queira avisar!
Sempre com a mão na coleira do Tim, para o prevenir que estivesse calado, a Zé
passou, pé ante pé, da entrada para a sala de estar. O lume estava completamente
apagado. Na cozinha também tudo estava em ordem; mas ali as patas do Tim
começaram a fazer barulho, pois as unhas arranhavam o oleado. Ouviu-se então um
ligeiro ruído vindo do outro lado da casa. O Tim rosnou muito alto e o pêlo eriçou-se. A Zé
ficou imóvel. Seriam ladrões?
- Ah, és tu, Zé! Chama o teu cão! - pediu o Sr. Roland em voz baixa, furioso. -
Queres acordar toda a gente?
- Que está o senhor fazendo por aqui, com uma lanterna? - perguntoua Zé.
- Ouvi um barulho e quis ver o que era - explicou o Sr. Roland, sentando-se e
tentando livrar-se do cão. - Por amor de Deus, chama esta fera!
- Porque não acendeu a luz? – perguntou a Zé, não fazendo menção de afastar o
Tim. Ela estava gozando aquela cena, vendo o Sr. Roland zangado e amedrontado.
- Não consegui encontrar o interruptor. Como podes ver está num sítio pouco à
mão - disse o preceptor. Era verdade. O Sr. Roland tentou de novo desembaraçar-se do
Tim e o cão pôs-se a ladrar.
- Vais acordar todos! - disse o preceptor, zangado. - Não queria alarmar ninguém.
Pensei que pudesse vir sozinho, pois julguei tratar-se dum ladrão. Mas ali vem o teu pai!
Apareceu o pai da Zé, trazendo uma grande tenaz. Ficou imóvel de surpresa,
quando viu o Sr. Roland no meio do chão e o Tim sobre ele.
- Que vem a ser isto? - perguntou admirado. O Sr. Roland tentou levantar-se mas
Tim não consentiu. O pai da Zé chamou o cão com severidade.
O Tim olhou para A Zé, pois queria saber se a sua dona concordava com a ordem
do pai. A pequena ficou calada. Por isso, Tim fez de conta que não percebia e agarrou um
tornozelo do Sr. Roland.
- Este cão é maluco - disse o Sr. Roland, estendido no chão. - Já uma vez me
mordeu e agora está a tentar fazer o mesmo.
- Então! Quer vir já aqui, senhor Tim? - gritou o tio Alberto. - Zé, este cão é ultra
desobediente. Chama-o imediatamente.
- Vem cá, Tim - disse a Zé a meia voz. O cão dirigiu-se logo para ela, com os pêlos
do pescoço ainda eriçados. Rosnava devagar, como quem diz: - Tenha cautela, Sr.
Roland, tenha cautela!
- Ouvi barulho e desci com a minha lanterna para ver o que era - explicou ele ao
pai da Zé. - Julguei que viesse do seu escritório e sabendo que guardava aqui o seu
valioso livro e todo o material, pensei que talvez algum ladrão andasse por aí. Tinha
acabado de entrar quando este cão apareceu não sei de onde e me atirou ao chão. A Zé
também chegou mas não quis chamar o cão.
- Se assim é, o Tim vai viver lá para fora, no canil - resolveu o tio Alberto. - Não o
quero dentro de casa. Será um castigo para ele e também para ti, Zé. Não quero que te
portes desta maneira. O Sr. Roland tem sido muitíssimo simpático para todos vocês.
- Não quero que o Tim fique lá fora - disse a Zé, furiosa. - Está um tempo tão frio
que, com certeza, vai matá-lo.
- Não peço! - disse a Zé. E, tomada por um acesso de mau génio, saiu do escritório
num rompante, subindo as escadas a correr.
- Deixe-a ir - disse o Sr. Roland. - É uma criança muito difícil de sujeitar e resolveu
não gostar de mim, é fácil de perceber. Mas eu ficarei muito contente se este cão não
estiver cá em casa. Tenho a certeza que a Maria José há-de incitá-lo contra mim, se
puder!
- Lamento tudo isto - disse o pai da Zé. - Gostaria de saber que espécie de barulho
ouviu. Espero que fosse um pau de lenha que resvalou. Agora que hei-de fazer a este
impertinente cão? O melhor é levá-lo lá para fora.
- Deixe-o aqui esta noite - disse o Sr. Roland. - Estou a ouvir barulho lá em cima;
os outros também devem ter acordado! O melhor é não tomar mais nenhuma resolução
por agora.
- Ó Zé, és mesmo idiota! - exclamou David. - Porque não havia o Sr. Roland de ir lá
abaixo, se ouviu barulho?! Tu também foste! Agora não podemos ter em casa o querido
Tim, durante este Inverno tão frio!
A Ana começou a chorar. Ela não gostava de saber que o preceptor, de quem era
tão amiga, tinha sido agarrado por Tim, e também detestava que o Tim fosse castigado.
- Não sejas bebé - disse a Zé. - Eu não estou a chorar e trata-se do meu cão!
CAPÍTULO IX
- Ó Zé, tudo isto é muito aborrecido - disse David. - Seria bem melhor se tu não te
irritasses por qualquer coisa. Assim só consegues meteres-te em sarilhos e coitado do
pobre Tim!
O Sr. Roland fazia de conta que não dava por ela. Os outros pequenos, sempre
que era possível, incluíam a prima nas suas conversas e projectos, mas ela permanecia
calada e desinteressada.
- Zé! Hoje vamos à Quinta Kirrin - anunciou David. - Queres vir? Vamos tentar
descobrir a entrada para o caminho secreto.
Os pequenos haviam contado à Zé o que o Sr. Roland lhes dissera sobre o pedaço
de pano. Andavam todos entusiasmadíssimos e só o dia de Natal os fez esquecer, por
momentos, aquelas frases misteriosas.
- Claro que também vou! - disse a Zé, parecendo muito mais satisfeita. - O Tim
também pode ir.
Mas quando a pequena percebeu que o Sr. Roland também ia, mudou logo de
ideias. Por coisa nenhuma acompanharia o preceptor! Não, ela iria sozinha passear com
o Tim.
- Mas, Zé, pensa que divertido vai ser; todos à procura do caminho secreto - disse
Júlio, segurando-lhe no braço. A Zé sacudiu-o.
- Eu não vou com o Sr. Roland - disse ela, teimosa. Os primos sabiam que não era
possível dissuadi-la.
- Vou sozinha com o Tim - continuou a Zé. - Vocês irão com o vosso querido Sr.
Roland!
Partiu com o Tim, saindo silenciosa pelo jardim. Os outros ficaram a olhá-la. Era
uma pena! A Zé cada vez ia fazendo uma vida mais à parte; mas como poderiam eles
impedir que assim fosse?
- Bem, pequenos, estão prontos? - perguntou o Sr. Roland. - Vocês vão à frente e
mais tarde encontramo-nos na quinta. Quero ir primeiro à vila, comprar uma coisa.
Assim, os três irmãos saíram sozinhos, lamentando que a Zé não estivesse com
eles. Ainda a procuraram, mas já não conseguiram encontrá-la. Os velhos Sandeus
ficaram satisfeitos quando viram as três crianças e levaram-nas para a cozinha, dando-
lhes leite quente e biscoitos.
- Então vieram procurar mais esconderijos? - perguntou o Sr. Sandeus com uma
gargalhada.
- Muito bem - disse Júlio, com uma certa pena de não poder experimentar outra
vez o fundo falso do armário. - Os artistas estão aqui, Sra. Maria? Gostava de falar com
eles sobre pintura. Eu também espero vir a ser artista, um dia mais tarde.
- Meu Deus, isso é verdade?! - exclamou a Sra. Maria. - Para mim sempre foi um
mistério como é que uma pessoa consegue ganhar dinheiro pintando quadros.
- Os artistas não procuram ganhar dinheiro mas apenas o prazer de pintar -
explicou Júlio, sentenciosamente.
Isto ainda intrigou mais a Sra. Maria; começou a menear a cabeça e a rir.
- Há gente engraçada! - concluiu ela. - Ora bem, podem ir procurar o que quiserem.
Mas o menino Júlio não pode falar com os dois artistas porque eles saíram.
- Sabe que lado da casa dá para leste, Sr. Sandeus? - perguntou Júlio.
- A cozinha está virada ao norte - disse o Sr. Sandeus. - Por isso, o leste deve ficar
daquele lado. - Apontou para a direita.
- Pateta! Porque as paredes são de pedra, e nós queremos umas com painéis -
disse Júlio. - Usa a tua cabecinha, Ana!
- Olhem - notou David. - Tanto o quarto mais pequeno como a sala têm paredes
apaineladas. Temos de procurar nos dois.
- Deve haver qualquer razão para desenharem nas indicações oito quadrados de
painéis - disse Júlio, consultando o pedaço de pano mais uma vez. - Será boa ideia
vermos onde é que existe uma parede só com oito quadrados.
- Olá! - disse ele. O Sr. Sandeus disse-me que vocês são descobridores de
tesouros, ou qualquer coisa assim.
- Não é bem isso - respondeu Júlio, com delicadeza. Olhou para o homem e viu um
outro atrás daquele, com olhos encovados e uma grande boca. - Suponho que os
senhores são os dois artistas, não é verdade?
- Somos sim - disse o homem mais alto, entrando no quarto. - Agora expliquem-me
o que procuram.
Júlio não tinha grande vontade de lhe dizer, mas era difícil mudar de assunto.
- Bem, nós estamos apenas a ver se encontramos aqui um painel que se mova -
disse ele por fim. - Sabem que há um na entrada. Divertimo-nos andando à procura de
outro.
Ana sabia muito bem como se deve apresentar uma pessoa. Vira muitas vezes a
mãe fazer o mesmo.
- Dão-me licença que lhes apresente o Sr. Roland? - disse ela dirigindo-se aos dois
artistas. Depois voltou-se para o preceptor e disse o nome dos dois artistas, enquanto
estes apertavam a mão do Sr. Roland.
- Parece-me que sim - disse o Sr. Roland. - Cheguei aqui mais tarde do que
esperava. Temos de partir dentro de cinco minutos. Só quero dar-lhes uma ajuda para ver
se conseguimos descobrir esse segredo misterioso.
Mas por mais que apalpassem as paredes dos dois quartos, nada encontravam.
Era um desapontamento!
- Algum petisco para o nosso almoço, Sra. Maria? - perguntou o Sr. Wilson.
-Palavra que a considero uma cozinheira maravilhosa!
- Ó Sra. Maria, então já sabia alguma coisa a esse respeito? - perguntou Júlio. -
Onde é?
- Não sei, meu filho; o segredo perdeu-se há muito tempo - disse a velhinha. -
Lembro-me de minha avó contar uma história, quando eu era mais pequena do que
qualquer de vocês. Mas eu não estava interessada em coisas desse género. Só gostava
de vacas, galinhas e ovelhas.
- Ó Sra. Maria, tente lembrar-se de alguma coisa - pediu o David. - Para que houve
um caminho secreto?
- Supunha-se que fosse uma passagem escondida, ligando a Quinta Kirrin com
qualquer outro lugar - explicou a Sra. Maria. - Não sei onde fica, garanto-lhes. Usavam-no
noutros tempos, quando as pessoas se queriam esconder dos inimigos.
Era uma pena que a Sra. Maria soubesse tão pouco! As crianças despediram-se e
saíram com o preceptor, sentindo que fora uma manhã perdida. A Zé já se encontrava em
casa quando eles chegaram. Estava um pouco mais corada e recebeu os primos com
entusiasmo.
- Não temos nada para contar - disse David, bastante aborrecido. - Há três quartos
virados a leste, todos com chão de pedra, mas só dois têm painéis de madeira;
apalpámos toda a parede à volta destes dois, mas não encontrámos nada.
- Conhecemos os dois artistas - contou Ana. - Um era alto e magro, com óculos e
um nariz comprido. O outro era mais novo e tinha uma boca enorme.
- Vi-os esta manhã - disse a Zé. - Deviam ser eles. Estavam a falar com o Sr.
Roland e não me viram.
- Não pode ser - disse a Ana, imediatamente. - O Sr. Roland não os conhecia. Fui
eu quem os apresentou.
- Tenho a certeza que ouvi o Sr. Roland chamar Wilson a um deles - disse a Zé,
intrigada. - Ele já devia conhecê-los...
- Não podiam ser os pintores - repetiu Ana. - Eles não conheciam o Sr. Roland. O
Sr. Smith perguntou-nos se ele era um amigo nosso.
- Tenho a certeza de que não estou enganada - disse a Zé, cheia de teimosia. - Se
o Sr. Roland disse que não conhecia os pintores, estava a mentir.
- Tu andas sempre a arranjar coisas horríveis contra ele! - gritou Ana, indignada.
- Foi uma pena não termos encontrado o caminho secreto, não foi? - disse o Sr.
Roland. - E além disso fomos bastante insensatos por termos procurado na sala de
visitas. As paredes aí não são muito antigas. Devem ter sido arranjadas há poucos anos.
- Então não vale a pena lá procurar outra vez - disse Júlio, desapontado. - E tenho
quase a certeza que também não há nada no outro quarto, pois vimos tudo com imenso
cuidado. Não é uma decepção?
- Também acho - disse o Sr. Roland. - Então, Júlio, que tal achaste os dois
artistas? Tive muito prazer em conhecê-los; parecem boas pessoas e gostaria de os
conhecer melhor.
A Zé observava o preceptor. Seria possível dizer mentiras com uma voz tão
verdadeira? A rapariguinha estava intrigada. Continuava convencida de que vira os
artistas com o preceptor. Porque pretenderia ele não os conhecer? Ela devia estar
enganada. Mas de qualquer maneira resolveu procurar a verdade, a todo o custo.
CAPÍTULO X
Na manhã seguinte houve outra vez lições - e sem Tim debaixo da mesa! A Zé
tinha imensa vontade de dizer que não queria trabalhar, mas que ganharia com isso? No
fim de contas os mais velhos tinham a força. Só inventavam castigos. Não se importava
por ela, mas não suportava a ideia de ver o Tim compartilhar o castigo. Por isso pálida e
aborrecida a rapariguinha sentou-se também à mesa de trabalho. Ana estava satisfeita
por também dar lições - na verdade ela gostava sempre de fazer qualquer coisa que
agradasse ao Sr. Roland, pois ele dera-lhe a boneca parecida com uma fada, que estivera
no cimo da árvore de Natal. Ana achava-a a mais linda que vira até então.
Zé repelira a boneca com mau modo, quando Ana a mostrara. Ela não gostava de
bonecas, e ainda menos daquela, escolhida pelo Sr. Roland e oferecida à Ana! Mas Ana
adorava-a; e resolvera dar lições com os outros e trabalhar o mais possível.
A Zé fazia o menos que podia, mas de maneira a não ser censurada. O Sr. Roland
não lhe dispensava grande atenção, nem a ela nem ao seu trabalho. Só elogiava os
outros e explicava com paciência qualquer coisa que não percebessem.
- Ó Zé! É horrível ouvir o pobre Tim a ganir, cheio de frio. E tenho a impressão que
o ouvi tossir. Deixa-me falar com o Sr. Roland a respeito do cão. Tu deves sentir-te
tristíssima por saberes que o Tim está lá fora.
- Também acho que o ouvi tossir - disse a Zé, parecendo muito preocupada. -
Espero que não se constipe. E naturalmente está a pensar que fui eu quem o mandou
para ali; deve achar-me muito má!
A pequena voltou a cara, com medo de que lhe vissem as lágrimas nos olhos.
Gabava-se sempre que nunca chorava, mas era muito difícil reprimir as lágrimas,
pensando que o Tim estava no canil a apanhar frio! David tomou-lhe o braço.
- Ouve, Zé, tu detestas o Sr. Roland e eu suponho que não o consegues evitar.
Mas nenhum de nós suporta que o Tim esteja lá fora, sozinho, e hoje deve nevar, o que
para ele ainda será pior. Conseguirás portar-te hoje lindamente? Esquece-te que não
gostas do preceptor, e quando o tio Alberto lhe perguntar qual foi hoje o teu procedimento,
o Sr. Roland há-de dizer-lhe a verdade. Então nós três unimo-nos e pedimos ao Sr.
Roland para consentir que o Tim volte para casa. Combinado?
O Tim tossiu mais uma vez, no canil do pátio, e a Zé sentiu um arrepio. E se ele
apanhasse aquela doença terrível chamada pneumonia e ela sem poder tratá-lo? Morreria
de desgosto! Voltou-se para Júlio e David.
- Está bem - disse ela. - Detesto o preceptor, mas ainda gosto mais do Tim de que
odeio o preceptor; pelo Tim vou tornar-me boa, agradável e trabalhadora. Então vocês
podem pedir para o Tim voltar.
- Boa pequena! - exclamou Júlio. - Atenção, que ele aí vem; faz todos os possíveis,
Zé!
- Muito bem feito, Maria José! Estou a ver que tomaste juízo!
- Muito obrigado, Sr. Roland - disse a Zé sorrindo outra vez, um sorriso bastante
fugidio, mas de toda a maneira era um sorriso!
À mesa do jantar a Zé procurou ser o mais simpática possível com o Sr. Roland -
passou-lhe o sal, ofereceu-lhe mais pão, levantava-se para lhe encher o copo quando se
esvaziava! Os outros olhavam-na com admiração. A Zé tinha grande domínio. Devia ser
muito difícil tratar o Sr. Roland como se ele fosse um grande amigo, quando realmente
o detestava tanto! O preceptor parecia muito satisfeito e inclinado a corresponder à
amabilidade da Zé.
Contou-lhe uma história engraçada e ofereceu-se para lhe emprestar um livro
sobre um cão. A mãe da Zé estava encantada por ver a filha tão mudada. Tudo parecia
mais animado naquela noite.
- Zé, sai daqui antes que o teu pai venha aí perguntar ao Sr. Roland como te
portaste hoje - disse Júlio. - Assim, quando o Sr. Roland lhe disser que tu foste exemplar,
nós todos pedimos-lhe para deixar vir o Tim para casa. Será mais fácil se não estiveres
presente.
- Está bem – concordou a Zé. Ela suspirava que acabasse aquele dia. Era muito
difícil pretender ser amiga quando não o era.
Nunca, nunca o conseguiria se não fosse para bem do Tim! Quando ouviu o pai
aproximar-se, a Zé desapareceu da sala. Ele entrou e dirigiu-se ao Sr. Roland.
- Muito bem, na verdade - respondeu o Sr. Roland. - O Júlio ficou a saber uma
coisa que não compreendia. David sabia a lição de latim. A Ana fez um ditado em francês
sem nenhum erro.
- Era de quem eu queria falar - disse o Sr. Roland olhando à volta para ver se ela
estava presente. - Trabalhou melhor do que qualquer dos outros! Estou muito satisfeito
com ela. Conseguiu ser delicada e simpática. Tenho a impressão de que está a tentar
seguir um novo caminho.
- A Zé foi um anjo - disse Júlio, com calor. - Tio Alberto, não calcula como ela se
portou! E bem sabe que anda tristíssima.
- Por causa do Tim - explicou Júlio. - Ele está lá fora ao frio, bem vê. E apanhou
uma enorme constipação.
- Ó tio Alberto, por favor, deixe o pobre Tim voltar cá para dentro! - pediu a Ana.
- Deixe, por favor! - disse David. - Não só por causa da Zé mas também por nós.
Não podemos ouvi-lo ganir lá fora. E a Zé merece um prémio - hoje portou-se
maravilhosamente!
- Bem - começou o tio Alberto, olhando indeciso para aquelas três carinhas tão
ansiosas. - Olhem, não sei o que diga. Se a Zé começou a portar-se bem e o tempo se
tornou mais frio... bem...
Olhou para o Sr. Roland, esperando que este dissesse alguma coisa em favor do
Tim. Mas o preceptor ficou calado, parecendo aborrecido.
- Eu acho que o senhor deve manter o que disse e o cão deve continuar lá fora -
respondeu o preceptor. - A Zé precisa de um pulso firme. Não deve alterar a sua decisão.
Não há motivo para ceder, só porque ela se portou bem apenas um dia.
Os três pequenos fixaram o Sr. Roland, com surpresa e desânimo. Nunca lhes
passara pela cabeça que o professor não transigisse!
O preceptor desviou o olhar. Apertou os lábios rodeados pela barba espessa e por
fim olhou na direcção do tio Alberto.
- Escutem, meninos - disse o tio Alberto. - Talvez seja melhor ver como é que a Zé
se porta durante uma semana inteira, pois só um dia não chega.
- Uma semana será melhor prova - apoiou o preceptor. - Se a Maria José se portar
bem durante uma semana inteira, falaremos então no cão. Mas por enquanto acho melhor
conservá-lo lá fora.
- Fica combinado - disse o tio Alberto saindo da sala. Parou e voltou-se para trás. -
Venha até ao meu escritório, Sr. Roland - disse ele. - Tenho umas coisas interessantes
para lhe mostrar, sobre a minha fórmula.
- Tenho muita pena - disse ele. - Mas acho que se o Tim os tivesse mordido e
deitado ao chão, não estariam tão interessados em tê-lo aqui.
Saiu do quarto. As crianças hesitavam no que haviam de dizer à Zé. Ela chegou
um momento depois, com uma expressão radiante. Quando viu as caras contristadas dos
primos, mudou imediatamente.
Correu para fora da sala. Ouviram-na passar pela entrada e fechar a porta da rua,
com estrondo.
- Até aposto que foi ter com o Tim. Pobre Zé! Agora vai portar-se pior do que
nunca!
A Zé não conseguiu dormir nessa noite. Atirou-se para cima da cama, procurando
escutar o Tim. Primeiro ouviu-o ganir. Depois tossir.
Ela sabia que estava frio. Mudara a palha do canil e virara a abertura, abrigando-a
do vento norte, mas, assim mesmo, ele devia sentir imenso frio naquela noite rigorosa,
depois de estar habituado, havia tanto tempo, a dormir na cama da dona! O Tim começou
a tossir tanto, que a Zé não conseguiu conservar-se mais tempo na cama. Ela reconheceu
que devia ir ver o que ele tinha.
O Tim seguiu-a. Levou-o para a cozinha mas ali fazia muito frio, pois o fogão
estava apagado. Foi ver nos outros compartimentos. Ainda havia um bom lume no
escritório do pai. Levou O Tim para lá. Tinha com ela o frasquinho de óleo que tirara do
armário da casa de banho. Colocou-o perto do lume, para o aquecer. Depois esfregou o
peito peludo do cão, esperando que lhe fizesse bem.
A luz da chama reflectia-se nos instrumentos esquisitos e nos tubos de vidro que
estavam ali à volta, em prateleiras. A pequenita quase adormeceu. O cão também fechou
os olhos e adormeceu, quente, sossegado e feliz. A Zé apoiou a cabeça sobre o pescoço
do Tim. Acordou quando o relógio do escritório batia as seis! O quarto agora estava frio e
ela tremia.
- Oh, céus! Seis horas! - A cozinheira em breve estaria levantada! Não podia
encontrá-los ali!
- Ó Tim querido! Acorda! Tens de voltar para o teu canil - sussurrava a Zé. - Tenho
a certeza que a tua constipação está melhor, pois não tossiste nem uma vez desde que
vieste para dentro. Levanta-te e não faças barulho! Chi!
- Cala-te - disse a Zé. - Eu ontem à noite fui buscar o Tim. Deitei-o em frente do
lume do escritório e esfreguei-o com óleo. Agora não te atrevas a dizer uma palavra!
Promete!
A Ana prometeu. Pensar que a Zé se atrevera a sair durante a noite! Que rapariga
extraordinária era ela.
CAPÍTULO XI
OS PAPÉIS ROUBADOS
- Zé, hoje não te portes mal - pediu O Júlio, depois do pequeno almoço. - Não pode
trazer nenhuma vantagem, nem a ti nem ao Tim.
- Supões que me vou portar bem, sabendo perfeitamente que o Sr. Roland nunca
consentirá que o Tim volte para casa? - disse a Zé.
- Olha que eles pediram uma semana; não podes experimentar só por
uma semana? - perguntou David.
- Não. No fim de oito dias o Sr. Roland dirá para eu experimentar mais oito dias -
disse a Zé. - Ele detesta o pobre Tim. E a mim também. Não me admira nada, pois ele
bem sabe que se eu quiser sou mesmo má. Mas ele escusava de embirrar com o Tim.
- Ó Zé, vais estragar as férias se fores tão pateta que queiras arranjar ainda mais
sarilhos, disse Ana.
- Não se preocupem comigo - disse a Zé, num tom bastante reforçado. - Vou sair
com o Tim. E não tenciono vir dar lição.
- Não há “deves” - respondeua Zé. - Apenas, não quero vir. Não estudarei com o
Sr. Roland até que ele deixe o Tim voltar cá para dentro.
- Mas tu sabes que ele nunca consentirá nisso; vais apanhar uma sova ou qualquer
castigo no género - disse David.
Saiu da sala atirando com a porta. Os outros estavam perplexos. Que fazer com
uma pessoa como a Zé? Conseguia-se sempre levá-la, com bondade e com brandura,
mas se tinha de enfrentar alguém que não gostava dela, ou de quem ela não gostava,
portava-se como um cavalo assustado que se quer pôr em liberdade. O Sr. Roland
chegou à sala de estar, com os livros na mão. Sorriu aos três pequenos.
Ninguém respondeu.
- Não sabem onde ela está? - perguntou o Sr. Roland, surpreendido. Começou a
observar o Júlio.
- Não sei, Sr. Roland - disse Júlio, com verdade. - Não tenho ideia onde ela possa
estar. - Bem, talvez chegue daqui a alguns minutos - disse o preceptor. - Naturalmente foi
dar de comer ao cão.
- A Maria José vai arrepender-se por chegar atrasada! Vai ver se a encontras, Ana.
- Terei de contar isto ao vosso tio Alberto - disse o preceptor. - Nunca lidei com
uma criança tão rebelde. Parece que faz todos os possíveis para ser castigada.
- Não disse nada - respondeu o Sr. Roland com secura. - Julgo que ela ficou
aborrecida por nós não termos transigido acerca do Tim, a noite passada, e esta é a sua
maneira de se vingar.
- Que rapariga insubordinada - disse o pai da Zé, zangado. - Eu não percebo este
procedimento. Clara! Vem cá! Sabes que a Zé não veio dar lições?
- Não veio dar lições?! - repetiu a tia Clara. - Que extraordinário! Então onde está
ela?
- Julgo que não precisa preocupar-se; deve ter saído com o Tim, num acesso de
mau génio. O que tem muito mais importância, minha senhora, é que, segundo parece,
alguém estragou o trabalho de seu marido; só espero não ter sido a Zé, embora julgue
que ela seria capaz de se vingar por o pai não ter consentido que o cão voltasse para
casa.
- Garanto que não foi a Zé! - exclamou David, zangado por alguém se atrever a
pensar que a prima pudesse fazer tal coisa.
- Nunca, tenho a certeza - disse Ana, defendendo a prima, ainda que no fundo
tivesse agora uma horrível dúvida. Afinal a Zé estivera no escritório na noite anterior!
- Alberto, estou convencida que a Zé nem mesmo pensaria em fazer tal - disse a
tia Clara. - Encontrarás essas folhas noutro sítio qualquer e quanto aos tubos quebrados,
talvez fosse o vento que levantasse a cortina e esta batesse neles. Quando viste essas
folhas pela última vez?
- A noite passada - disse o tio Alberto. - Voltei a lê-las e verifiquei as contas, para
ter a certeza de que estavam certas. Aquelas páginas contêm a parte principal da minha
fórmula! Se vão parar às mãos de outra pessoa, ela poderá usar o meu segredo. Seria um
golpe terrível para mim! Tenho de saber o que lhes aconteceu!
- Encontrei isto no teu escritório, Alberto - disse a tia Clara mostrando o frasco que
tinha na mão. - Levaste-o para lá? Encontrei-o no guarda-fato.
- Óleo canforado! - disse ele. - Claro que não o levei. Para que serviria?
- Então quem o levaria? - perguntou a tia Clara, intrigada. - Nenhum dos pequenos
está constipado e de qualquer maneira não pensariam no óleo canforado nem o levariam
para o escritório! É muito extraordinário!
- Ana! Tu sabes qualquer coisa sobre o óleo! - disse ele, de súbito. - Que sabes tu?
Deixaste-o ali?
- Não, Sr. Roland - disse Ana. - Eu não estive no escritório. Já disse que não
estive.
Todos observaram a Ana. Ela não se mexia. Era simplesmente horrível! Não podia
denunciar a Zé. Não podia! Cerrou os lábios e não respondeu.
Ana continuava calada. Os dois rapazes observaram-na, adivinhando que havia ali
qualquer coisa a respeito da Zé. Eles não sabiam que na noite anterior a Zé fora buscar o
Tim.
- Querida Ana - disse a tia com ternura. - Diz-nos se sabes alguma coisa. Podes
ajudar-nos a compreender o que aconteceu aos papéis do teu tio. Olha que são muito
importantes.
A Ana continuava sem dizer palavra. Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Júlio
fez-lhe uma festa.
- Não torturem a minha irmã. Não vêem que ela está aflita?
- Deixemos a Zé falar por si própria quando resolver voltar para casa - disse o Sr.
Roland. - Estou convencido que ela sabe como o frasco foi ali parar; e se foi ela que lá o
deixou é porque esteve no escritório - e foi a única pessoa que lá esteve.
Os rapazes nem por um instante podiam pensar que a Zé fosse capaz de estragar
os papéis do pai. Mas a Ana não estava bem certa e isso a afligia muito. Soluçava nos
braços de Júlio.
- Não sei se o Sr. Roland pensa sair connosco - disse Júlio em voz baixa. - Temos
de nos escapar primeiro, para ver se encontramos a Zé e a pomos ao corrente do que se
passa.
Os três irmãos vestiram os abafos e saíram, sem barulho, pelo jardim. Então
desataram a correr para que o Sr. Roland nem mesmo visse que direcção levavam. A
meio caminho avistaram a Zé.
- Ali está ela e o Tim também! - exclamou o Júlio. - Zé! Zé! Depressa, temos uma
coisa para te contar!
CAPÍTULO XII
A ZÉ EM APUROS
- Nem calculas! Alguém tirou as três folhas mais importantes do livro do teu pai! -
contou Júlio, ofegante. - E quebraram os tubos de ensaio onde ele fizera uma
experiência. O Sr. Roland pensa que tu tens qualquer coisa a ver com o caso.
- O estúpido! - disse a Zé, com os seus olhos azuis cheios de rancor. - Como se eu
fosse capaz de fazer uma coisa dessas! Mas porque pensou ele que fui eu?
- Não contaste aos rapazes como é que levei o Tim para dentro de casa? -
perguntou a Zé. - Não tem nada de especial; ouvi o pobre Tim a tossir; agasalhei-me,
desci as escadas e levei-o para o escritório, onde o lume estava aceso. A mãe tem um
frasco de óleo para esfregar o peito quando estamos constipados e eu pensei que
também devia fazer bem ao Tim. Fui buscar o óleo e esfreguei-o com cuidado e
ambos adormecemos perto do lume até às seis da manhã. Estava cheia de sono quando
me levantei e por isso esqueci-me do frasco. Ora aqui têm a história.
- E tu não tiraste nenhumas folhas do livro do tio, nem quebraste os tubos, pois
não? - perguntou a Ana.
- Claro que não, pateta! - exclamou a Zé, indignada. - Como te atreves a fazer-me
essa pergunta? Deves estar doida!
- Não imagino quem poderia levar as folhas - disse Júlio. - Talvez o teu pai ainda
as encontre. Naturalmente pô-las num lugar seguro e depois esqueceu-se. E os tubos de
ensaio podiam quebrar-se facilmente sem ninguém lhes tocar. Alguns parecem-me bem
frágeis.
- Agora vou ver-me em apuros por ter levado o Tim para o escritório - disse a Zé.
- E por teres faltado às lições desta manhã - acrescentou David. - Foste muito
palerma, Zé. Não conheço ninguém como tu, para se meter em complicações.
- Não acham que o melhor é ficarmos cá fora mais um bocado, até que estejam
todos mais calmos? - lembrou Ana.
- Não! - disse a Zé. - Se me vão ralhar, que seja já! Não tenho medo!
Começou a avançar em direcção a casa, seguida por Tim, como sempre. Os outros
também a seguiram. Todos se sentiam aflitos. Chegaram ao jardim. O Sr. Roland viu-os
da janela e foi abrir-lhes a porta. Mirou a Zé, de relance.
- O teu pai quer falar-te, no escritório - disse o preceptor. Depois voltou-se para os
outros, parecendo aborrecido. - Porque saíram antes de mim? Tencionava ir com vocês.
- Sim? Desculpe - respondeu Júlio com delicadeza, não olhando para o Sr. Roland.
- Fomos só dar uma pequena volta.
- O que tu precisas é de uma boa sova! exclamou o Sr. Roland. - Se eu fosse o teu
pai era o que fazia.
- Mas felizmente não é o meu pai - respondeu a Zé. Dirigiu-se à porta do escritório
e abriu-a. Não estava lá ninguém.
- Virá num minuto - disse o Sr. Roland. - Entra e espera; e vocês vão arranjar-se
para o almoço.
- Que estiveste a fazer? - perguntou o pai. - Sabes que vocês estão proibidos de
entrar aqui.
- Bem sei - disse a Zé. - Mas o Tim apanhou uma enorme constipação e eu não
suportava ouvi-lo tossir. Por isso fui ao pátio, por volta da uma hora, e trouxe-o para
dentro. Este era o único quarto que estava aquecido; sentei-me aqui e esfreguei o peito
do Tim com o óleo que a mãe usa quando estamos constipados.
- Esfregar o peito de um cão com óleo canforado! - exclamou o pai, com espanto. -
Que ideia louca! Como se isso lhe pudesse fazer algum bem!
- Zé, aconteceu uma coisa muito séria - disse o pai, gravemente. - Quebraram-se
alguns dos meus tubos de ensaio, onde eu fizera experiências importantes, e pior do que
isso, desapareceram três folhas do meu livro. Dá-me a tua palavra de honra que não
sabes nada sobre isto.
- Não sei nada - disse a Zé, fitando o pai bem de frente. Os olhos dela brilhavam,
muito claros e azuis, enquanto o contemplava fixamente.
Ele teve a certeza absoluta de que a filha estava a falar verdade. Mas sendo assim,
onde estariam aquelas folhas?
- Zé, na noite passada, quando me fui deitar, eram onze horas e tudo estava em
ordem - disse ele. - Tinha relido aquelas páginas e mais uma vez as verificara. Esta
manhã tinham desaparecido.
- Então devem ter sido levadas entre as onze e a uma - disse a Zé. - Eu estive aqui
desde a uma hora até às seis.
- Mas quem poderia levá-las? - disse o pai. - Suponho que a janela estava
trancada. E ninguém, a não ser eu, sabia que aquelas três folhas eram as mais
importantes. É muito extraordinário!
- Não quero dar mais lições com o Sr. Roland - disse a Zé. - Detesto-o.
- Zé! Não quero ouvir-te falar assim! Queres que mande embora o Tim, para
sempre?
- Não - disse a Zé, sentindo os joelhos a tremer. - E não acho bonito forçar-me a
fazer uma coisa, ameaçando-me com a perda do Tim. Se fizer isso, eu fujo!
Não havia lágrimas nos olhos da Zé. Sentou-se muito direita, numa cadeira,
encarando o pai, sem medo. Que rapariga difícil! O pai suspirou e lembrou-se que
também ele, quando era criança, fora considerado insuportável.
Talvez a Zé saísse a ele. Ela conseguia ser tão boa e meiga mas agora estava
perfeitamente impossível e o pai não sabia que lhe fazer. Pensou que o melhor seria ter
uma conversa com a mulher. Levantou-se e dirigiu-se para a porta.
- Não fale sobre mim ao Sr. Roland, não? - pediu a Zé, pois estava certa que o
preceptor lembraria enormes castigos para ela e para o Tim. - ó pai, se o Tim tivesse
ficado em casa, na noite passada, dormindo como de costume no meu quarto, ele teria
sentido a pessoa que roubou o seu segredo; teria ladrado e acordado todos!
O pai não respondeu mas sabia que a Zé tinha razão. O Tim não deixaria ninguém
entrar no escritório. Era estranho que ele não tivesse ladrado, lá fora, no caso de alguém
se ter aproximado e entrado pela janela do escritório. Mas como era do outro lado
da casa, talvez ele não tivesse ouvido. O pai fechou a porta atrás de si. A Zé continuou
sentada na mesma cadeira, olhando para a chaminé do fogão, onde um relógio batia os
segundos. Sentia-se muito desanimada. Tudo corria mal!
Sentou-se outra vez, examinando os oito painéis, e tentou lembrar-se qual deles
estava marcado com uma cruz nas instruções. Sem dúvida, era num quarto da Quinta
Kirrin e não ali em casa que o caminho secreto devia começar. Mas supondo que era
naquela casa! As instruções tinham sido encontradas na quinta, mas isso não queria dizer
que o caminho tivesse de começar ali, embora fosse essa a opinião da Sra. Maria. A Zé
sentia-se entusiasmada.
Levantou-se para tentar ao acaso, mas nesse momento o pai entrou. Vinha muito
sério e preocupado.
- Estive a falar com a tua mãe - disse ele. - Ela concorda que tu foste muito
desobediente e indelicada. Não podemos perdoar tal maneira de proceder. Vais ter um
castigo.
- Não tem nada, garanto que não tem! - exclamou a Zé. - Oh, ele vai sentir-se tão
triste se não me puder ver durante três dias inteiros!
- Não tenho mais nada a acrescentar - disse o pai. - Vai imediatamente para a
cama e, sobretudo, pensa naquilo que te disse. Nestas férias estou muito descontente
contigo. Julgava que o exemplo dos teus primos te encorajasse a portares-te melhor. Mas
afinal estás pior do que nunca.
- Ó menina, é uma pena estar aqui na cama - disse ela, impressionada. - Agora vai
ter muito juízo e depressa irá lá para baixo!
- Olhem! Está a nevar - disse ela, sentando-se. - Pensei que isto ia acontecer, logo
que vi hoje de manhã o céu cor de chumbo. E está a nevar imenso. À noite deve haver
uma camada bem espessa. Pobre Tim! Espero que o Júlio tenha o cuidado de limpar a
neve do canil.
Enquanto estava na cama, a Zé tinha imenso tempo para pensar. A Joana entrou e
levou o tabuleiro. Mais ninguém veio vê-la. Sentia-se sozinha e abandonada. Pensou nas
folhas desaparecidas. Seria o Sr. Roland quem as tirou? Ele andava muito interessado no
trabalho do pai e parecia perceber do assunto. O ladrão devia ser alguém que soubesse
quais eram as páginas importantes. Certamente o Tim ladraria se um ladrão se
aproximasse da casa, ainda que o escritório ficasse do outro lado. O Tim tinha tão bom
ouvido!
- Julgo que deve ter sido alguém cá de dentro - dizia a Zé para consigo. - Não foi
nenhum de nós, crianças, isso é mais que certo e também não foi a mãe nem a Joana.
Assim, resta só o Sr. Roland. E eu encontrei-o no escritório na outra noite, quando Tim
me acordou a rosnar.
- Acho que o Sr. Roland quis conservar o Tim fora de casa, porque queria ir outra
vez passar uma revista ao escritório e tinha medo que o cão ladrasse - pensou ela. - Ele
insistiu tanto para que o Tim ficasse lá fora, mesmo quando todos os outros pediram que
ele voltasse para dentro! Eu acredito, realmente acredito, que o Sr. Roland foi o ladrão!
A pequena sentia-se muito nervosa. Seria possível que o preceptor tivesse
roubado os papéis e quebrado os tais tubos importantes? Como ela desejava que os
outros pequenos fossem vê-la, para trocar impressões com eles!
Capítulo XIII
Os três primos da Zé ficaram com muita pena dela. Mas o tio Alberto proibira-os
de subirem as escadas e irem vê-la.
- Talvez um pouco de tempo para meditar, sozinha, lhe faça bem - explicara o tio.
- Pobre Zé - disse Júlio. - É uma pena! Olhem lá para fora; está a nevar!
- Tenho de ir ver como está o canil do Tim - resolveu Júlio. - Não quero que o
desgraçado fique bloqueado pela neve. Acham que ele saberá de que é feita a neve?
O Tim, realmente, estava muito intrigado por ver tudo coberto com uma camada
branca. Deitara-se no canil, com os seus grandes olhos castanhos seguindo os flocos que
caíam no chão. Estava intrigado e infeliz. Porque viveria agora ali, ao frio? Porque não
viria a Zé? Já não gostava dele? Aquele cão enorme sentia-se desgostoso,
tão desgostoso como a sua dona!
Ficou satisfeito por ver o Júlio. Saltou para o pequeno e lambeu-lhe a cara.
- Meu bom Tim! - disse Júlio. - Sentes-te bem? Deixa-me varrer esta neve e virar
um bocadinho a tua casa, para que os flocos não possam chegar aí dentro. Assim, assim
está melhor. Não, não vamos passear, agora não.
- Júlio! O Sr. Roland vai passear sozinho. A tia está a repousar e o tio Alberto está
no escritório. Não podemos ir lá acima ver a Zé?
- Bem sei - continuou David. - Mas não me importo de me arriscar, só para que a
Zé se sinta um pouco mais contente. Deve ser horrível estar no quarto sozinha, sabendo
que durante dias não poderá ver o Tim.
- Oiçam, deixem-me subir, eu sou o mais velho - disse Júlio. - Vocês dois ficam cá
em baixo, a conversar na sala. Assim o tio Alberto ficará convencido de que estamos os
três. Eu vou até lá acima e verei a Zé por uns instantes.
- Está bem - disse David. - Dá-lhe saudades nossas e diz-lhe que nós trataremos
do Tim.
O Júlio subiu as escadas, sem ruído. Abriu a porta do quarto da Zé e viu a prima
sentada na cama.
- Acho que o Sr. Roland foi o ladrão! - disse ela. - Eu não digo isto por detestá-lo,
Júlio, acredita que não é por isso. Para mais eu vi-o uma vez no escritório a examinar
tudo, e outra vez apanhei-o ali, no meio da noite. Ele deve ter ouvido falar no trabalho do
meu pai e veio cá para casa só com a ideia de roubar a tal fórmula. Foi uma sorte, para
ele, nós precisarmos dum preceptor. Tenho a certeza que ele roubou as folhas, e estou
certa que ele quer o Tim lá fora para fazer o roubo sem o Tim dar sinal.
- Ó Zé, não concordo - disse Júlio, que realmente não podia conceber que o autor
do roubo tivesse sido o Sr. Roland. - Parece-me tudo isso muito extraordinário e
inacreditável.
- Sem dúvida! - concordou a Zé. - Quem me dera que ele saísse! Ia fazer uma
busca no quarto dele!
- Tu não fazes ideia das coisas que eu posso fazer, se quiser - disse a Zé,
apertando os lábios com firmeza. - Ouve, que barulho é este?
Era uma porta a bater. Júlio aproximou-se da janela, com cuidado, e investigou. A
neve parara de cair, e o Sr. Roland aproveitara para sair.
- Óptimo. Posso então fazer uma busca no quarto dele, se tu ficares à janela e me
avisares quando ele voltar - disse a Zé atirando para os pés a roupa da cama.
- Não, Zé, não - pediu o Júlio. - É muito feio, pavoroso, fazer uma busca no quarto
duma pessoa. E, por outro lado, suponho que deve ter levado as folhas com ele.
Naturalmente até vai entregá-las a alguém!
- Não tinha pensado nisso - disse a Zé, olhando Júlio, com os olhos muito abertos.
- Não é um aborrecimento? Naturalmente tens razão. Ele conhece aqueles dois artistas
da Quinta Kirrin, por exemplo. Eles também devem fazer parte da quadrilha.
- Ó Zé, não sejas palerma - exclamou Júlio. - Tu estás a inventar uma montanha de
coisas, falando em quadrilhas e Deus sabe em que mais. Até se podia supor que
estávamos a viver uma grande aventura!
- Claro que sim - disse o rapaz, sem hesitar. - Persegue o Sr. Roland - explicou a
Zé. - Não deixes que ele te descubra. Há uma capa de borracha branca no armário da
entrada. Veste-a e dificilmente te verão através da neve. Segue-o e repara se ele vai
encontrar-se com alguém e se lhe dá alguma coisa parecida com as folhas do livro
do meu pai. Sabes como são as folhas onde ele escreve. São muito grandes.
- Está bem. Mas se eu for, promete-me que não fazes nenhuma busca no quarto
dele. Não seria nada bonito.
- Concordo, se seguires o Sr. Roland. Estou convencida de que ele vai entregar o
que roubou aos outros da quadrilha. E até aposto que os outros são os dois artistas da
Quinta Kirrin, que ele pretendia não conhecer.
- Verás que estás completamente enganada - disse Júlio, dirigindo-se para a porta.
- E estou convencido que já não consigo seguir o Sr. Roland. Ele partiu há cinco minutos!
- Consegues, sim, pateta; seguirás as suas pegadas na neve - disse a Zé. - E olha,
Júlio, esqueci-me de te contar mais uma coisa importante. Mas agora não há tempo.
Conto-te depois, quando voltares, se conseguires vir outra vez cá acima. É sobre o
caminho secreto.
- Verdade? - disse Júlio, encantado. Fora grande desilusão toda aquela história ter
ficado em nada. - Está bem, eu tentarei voltar cá acima. Se não vier é porque não
consegui escapar-me. Então espera até à hora de nos deitarmos.
Fechou a porta sem ruído. Desceu com cuidado, entrou na sala de estar e
segredou aos irmãos que ia no encalço do preceptor.
- Depois digo-vos o motivo - disse ele. Vestiu a capa de borracha branca e saiu
pelo jardim. A neve começara de novo a cair mas não era em tão grande quantidade que
apagasse as marcas dos sapatos do Sr. Roland. O pequeno seguiu-as com rapidez. O
céu estava carregado, adivinhando muito mais neve. Júlio apressou-se, pois tinha medo
que desaparecessem os sinais do preceptor. A certa altura apareceu mais uma fila de
pegadas. Júlio ficou desorientado, quando de súbito ouviu vozes. Parou. Havia um
arbusto do lado esquerdo e as vozes vinham dali. O pequeno aproximou-se. Reconheceu
a voz do preceptor, falando baixo. Não conseguia perceber o que dizia.
- Com quem estaria a falar - pensou o pequeno. Então dirigiu-se para mais perto do
arbusto. Notou um espaço no meio da ramagem. Júlio pensou que poderia esconder-se
ali, ainda que fosse bastante arriscado, e então espreitar para o outro lado. Assim fez,
cheio de precauções. Apartou os ramos, muito devagar, e, com enorme espanto, viu o Sr.
Roland a falar com os dois artistas da quinta - o Sr. Smith e o Sr. Wilson! A Zé sempre
tinha razão! O preceptor tinha ido encontrá-los - e enquanto Júlio os observava, o Sr.
Roland entregou ao Sr. Smith umas folhas de papel.
- Parecem exactamente as folhas do livro do tio Alberto - disse Júlio para consigo. -
Isto é estranhíssimo! Começa, na verdade, a parecer-me uma quadrilha - e o Sr. Roland é
o chefe!
O Sr. Smith meteu os papéis no bolso do sobretudo. Os homens disseram mais
algumas palavras, que Júlio não conseguiu compreender, e depois partiram. Os artistas
foram em direcção à Quinta Kirrin e o Sr. Roland dirigiu-se para casa. Júlio, escondido no
meio do arbusto, fazia votos por que o Sr. Roland não se voltasse e não o
descobrisse. Felizmente tudo correu bem. A neve agora caía com mais
abundância. Também começava a escurecer e Júlio apressou-se a sair dali, com medo de
se perder.
O Sr. Roland não estava menos ansioso do que o pequeno por chegar a casa. Ele
quase correu até chegar ao portão. Júlio viu-o entrar. Deixou passar algum tempo, foi
fazer uma festa ao Tim e depois dirigiu-se para a entrada. Tirou a capa de borracha,
mudou de sapatos e chegou à sala de estar, antes de o Sr. Roland ter voltado do quarto.
- Que aconteceu? - perguntaram David e Ana, vendo que Júlio estava num estado
de grande excitação. Mas ele não pôde contar-lhes nada, pois nesse momento a Joana
entrava com o chá.
Com grande desespero de Júlio, não conseguiu dizer nem uma palavra aos irmãos,
pois estavam sempre presentes os pais da Zé. Nem conseguiu escapar-se até ao quarto
da Zé. Ele mal podia conter-se, mas não havia outro remédio.
A tia foi à porta da frente e olhou para fora. A neve formava sobre o degrau da
entrada uma camada já bastante alta.
- Está a nevar cada vez mais - disse a tia quando fechou a porta... - Se continuar
assim, ficaremos completamente bloqueados pela neve, como aconteceu há dois anos!
Nessa altura não pudemos sair durante cinco dias. Nem o leiteiro, nem o padeiro
conseguiram cá chegar. Por sorte temos bastante leite condensado e posso cozer o pão
no nosso forno. Pobres pequenos; amanhã não poderão sair; a neve deve atingir uma
altura enorme!
- Oh, ainda será pior do que aqui! - disse a tia Clara. - Mas não se devem importar,
não lhes faltam mantimentos. Ficarão presos tanto tempo como nós.
O Júlio pensou por que razão o Sr. Roland fizera aquela pergunta. Teria medo que
os seus amigos não pudessem mandar os papéis pelo correio ou levá-los para qualquer
parte, de camioneta ou de automóvel? O rapaz tinha a certeza que era este o motivo da
pergunta. Como ele desejava falar sobre estas coisas com os outros!
- Estou cansado! - disse ele, por volta das nove horas. - Vamos para a cama.
Ana e David olharam-no, admirados. Normalmente, como ele era o mais velho, era
o último a deitar-se. Hoje pedia para ir! Júlio fez um sinal aos irmãos, e estes logo o
compreenderam. David começou a bocejar e Ana fez outro tanto. A tia pôs de lado a
costura, dizendo-lhes:
- Pobre Tim! Aqui sozinho, no meio da neve - disse Júlio. Fez festas ao cão e ele
ganiu. Estava a pedir para acompanhar o pequeno.
- Quem me dera poder levar-te! - continuou Júlio. - Não te importes, Tim. Virei ver-
te amanhã.
Voltou para dentro. Os pequenos deram as boas-noites aos tios e ao Sr. Roland e
subiram as escadas.
- Porque o seguiu ele? - perguntou David, que estava morrendo por saber.
Júlio contou-lhes tudo, tão rapidamente quanto podia - tudo o que a Zé suspeitava -
e o que ele próprio observara. Quando a Zé soube que Júlio vira o preceptor entregar aos
artistas uns papéis, os seus olhos brilharam, muito abertos.
- Ai o ladrão! Devem ser as folhas perdidas. E pensar que o meu pai tem sido tão
amigo dele! Oh! Que podemos fazer? Aqueles homens vão levar os papéis o mais
depressa possível e o segredo em que o pai trabalha há anos vai ser usado por outra
pessoa, por outro país, possivelmente!
- Eles não podem levar os papéis - disse Júlio. - Não fazes ideia da quantidade de
neve que está a cair. Ficaremos aqui presos por alguns dias, se este nevão continuar; e o
mesmo acontecerá na Quinta Kirrin. Se quiserem esconder os papéis têm de o fazer na
casa da quinta. Se nós pudéssemos lá ir fazer uma busca - Mas não podemos - disse
David. - É mais que certo. Ficávamos enterrados na neve até ao nariz! - As quatro
crianças entreolharam-se, sem esperanças. David e Ana quase não conseguiam acreditar
que o alegre Sr. Roland fosse um ladrão, talvez um espião, tentando roubar a um cientista
um segredo valioso.
- Troçaria de nós e iria direito contar ao Sr. Roland - disse a Zé. - Isso punha-o de
sobreaviso e ele não deve saber que nós desconfiamos.
- Chi! Vem aí a tia Clara! - murmurou David. Os rapazes fugiram para o quarto
deles e deitaram-se num segundo. Ana também deu um salto para a sua caminha. Tudo
era paz e tranquilidade quando a tia entrou nos quartos dos pequenos.
- É verdade! - exclamou a Zé. - Pode ser que eu não tenha razão nenhuma, mas
no escritório há oito painéis de madeira sobre a chaminé do fogão e o chão é de pedra; e
o quarto está virado a leste! Curioso, não é? Exactamente o que dizem as instruções.
- Não sejas palerma, David - disse Júlio. - Ir ao escritório enquanto lá está o tio
Alberto?! Eu preferia encontrar vinte leões a dar de caras com o tio! Especialmente
depois do que aconteceu!
- Cala-te, idiota! - disse Júlio, dando-lhe um soco. - Queres que venham todos cá
acima?
- Tal como eu tinha dito - interrompeu a Zé. - Oiçam: podemos esperar pela meia-
noite e então escapamo-nos até ao escritório, enquanto todos estiverem a dormir, e
podemos tentar a nossa sorte. Pode ser que a minha ideia não tenha nenhum
fundamento, mas temos de nos certificar. Não acredito que consiga adormecer antes de
ter apalpado os painéis a ver se acontece alguma coisa.
- Eu também não posso dormir nem um segundo - disse David. - Escutem: não vos
parece que vem aí alguém? O melhor é voltarmos para o nosso quarto. Vamos, Júlio!
Reunimo-nos aqui à meia-noite e então vamos pôr em prática a ideia da Zé.
Os dois rapazes saíram. Nenhum deles conseguiu, sequer, passar pelo sono. Nem
a Zé. Ela continuava acordada, pensando e tornando a pensar em tudo o que acontecera
durante aquelas férias.
- É como uma adivinha - pensou ela. - Ao princípio não conseguia perceber uma
porção de coisas, mas agora ajustam-se uns factos aos outros e começam a formar a
solução completa.
- A cruz fica no meio do segundo painel, na fila de cima - disse Júlio em voz baixa.
- Vou carregar ali. Reparem todos.
- Não quero fazer muito barulho - disse Júlio apalpando todo o painel para ver se
havia alguna saliência que pudesse indicar uma mola escondida ou uma alavanca.
Então, sob as suas mãos, o painel deslizou para trás, tal como fizera o da Quinta
Kirrin! As crianças fixaram o espaço deixado a descoberto e estremeceram, maravilhadas
- Não é suficientemente grande para lá caber uma pessoa - disse a Zé. - Não
pode ser a entrada do caminho secreto.
Júlio tirou uma pilha eléctrica da algibeira do roupão. Colocou-a dentro da abertura
e soltou uma exclamação abafada.
- Há aqui uma espécie de puxador ligado a um arame muito forte. Vou puxá-lo a
ver o que acontece.
Puxou, mas não tinha força suficiente para o mover, pois parecia atarraxado à
parede. David começou a ajudar o irmão, puxando ao mesmo tempo.
- Júlio! Está alguma coisa a mexer-se por baixo do tapete! - disse ela,
amedrontada. - Eu senti! Debaixo do tapete, depressa!
O puxador já não vinha mais para fora. Os rapazes largaram-no e olharam para
baixo. À direita do fogão, debaixo do tapete, alguma coisa se movera. Não havia dúvida.
O tapete fazia um fole em vez de estar esticado.
- Deslocou-se uma pedra do chão - explicou Júlio, com a voz a tremer, muito
excitado. - Este puxador faz trabalhar uma alavanca que está ligada a este arame.
Depressa, enrolem o tapete.
Com as mãos a tremer, os pequenos afastaram o tapete, e então ficaram atónitos
perante uma coisa muito estranha!
Uma grande pedra do chão, deslizara para dentro, puxada por qualquer processo
pelo arame ligado ao puxador escondido atrás do painel! No lugar onde a pedra estivera,
havia agora uma grande cavidade escura.
- Olhem para isto! - disse a Zé, muito emocionada. - A entrada para o caminho
secreto!! - Aqui está ela, por fim! - exclamou Júlio. - Vamos entrar! - sugeriu David.
- Não! - disse Ana, tremendo com a ideia de desaparecer naquele buraco tão
escuro.
- Agora não - disse David. - Está muito frio e muito escuro. Não me agrada seguir
pelo caminho secreto, à meia-noite. Não me importo de saltar lá dentro, só para ver como
é, mas hoje não devemos ir mais longe.
- Ele tenciona ir logo de manhã cavar a neve que se juntou na porta da entrada -
lembrou a Zé. - Nessa altura podemos escapar-nos até ao escritório.
- Está bem - concordou Júlio, que era um apaixonado por explorações. - Mas peço-
vos por tudo que ao menos me deixem dar uma olhadela, para ver se há realmente uma
passagem ali em baixo. Por enquanto, a única coisa que vemos é um buraco!
Ele tremia. Ali em baixo estava frio e húmido. - Dá-me a tua mão, David - disse
Júlio. Em breve estava novamente fora do buraco, no escritório aquecido.
- Amanhã tentaremos levar o Tim connosco - disse a Zé. - Mas oiçam uma coisa -
como vamos agora fechar a abertura?
- Não podemos deixar o tapete enfolado sobre o buraco - disse David. - E não
devemos deixar o painel aberto!
- Vamos ver se conseguimos pôr a pedra no seu lugar - disse Júlio.
Pôs-se em pontas dos pés e introduziu a mão no painel. Tocou numa espécie de
maçaneta bem presa na pedra. Carregou com força. Imediatamente o puxador deslizou
para trás, levado pelo arame. Ao mesmo tempo, a pedra que desaparecera no chão
voltou ao nível das outras, fazendo um ligeiro ruído.
- É o Sr. Roland - murmurou David. - Vamos depressa para cima, antes que ele
desça. Fecharam a luz e abriram devagar a porta do escritório. Subiram, pé ante pé, tão
silenciosos como índios, com os corações a baterem tanto que quase tinham medo que
ouvissem as suas pancadas!
- Ouvi... sim... ouvi bastante barulho - disse Júlio, não faltando à verdade. - Mas
deve ser neve a deslizar no telhado, caindo com estrondo no chão. Não lhe parece?
- Não sei, disse o Sr. Roland, com bastantes dúvidas. - Vamos lá abaixo ver.
Desceram, mas claro que não havia nada de anormal. Júlio estava satisfeito por
terem conseguido fechar o painel e terem feito a pedra voltar ao seu lugar. O Sr. Roland
era a última pessoa a quem ele queria contar o segredo. Foram para cima e Júlio entrou
no quarto.
- Não - respondeu o irmão. - Vamo-nos calar. O Sr. Roland está acordado e eu não
quero que ele desconfie de nada.
- Pobre Tim! Vou buscá-lo para dentro. Não me importo com o que possam dizer!
Não o quero ver sepultado na neve!
Ela vestiu-se e correu ao canil. A neve enterrava-a até aos joelhos. Mas o Tim não
estava ali! Ouviu-se ladrar na direcção da cozinha. A cozinheira, Joana, bateu na vidraça
da janela.
- Ele está bem! Não podia pensar que o Tim apanhasse este nevão e por isso fui
buscá-lo, pobrezinho! A sua mãezinha diz que ele pode estar na cozinha, mas a menina
não tem licença para aqui vir.
- Que bom, o Tim não está ao frio! - disse a Zé com alegria. - Mil vezes obrigada.
Foste muito boa, Joana!
Voltou para dentro e contou aos outros. Ficaram todos muito contentes.
- Tenho uma notícia para te dar - disse David. - O Sr. Roland ficou na cama, muito
constipado, por isso hoje não há lições. Viva!
- Viva! Que boa notícia! - exclamou a Zé, ruidosamente. - o Tim está na cozinha e o
Sr. Roland na cama! Sinto-me encantada!
- Assim podemos explorar o caminho secreto - disse Júlio. - Esta manhã a tia Clara
vai fazer uma compota, com a Joana. O tio vai varrer a neve. E eu vou lembrar que
podíamos estudar sozinhos, na sala de estar. Depois, quando não houver perigo, vamos
explorar o caminho secreto!
- Bem, eu pensei que gostariam de vir ajudar-me a tirar a neve - disse o tio Alberto.
- Mas talvez seja melhor irem trabalhar.
- Tim! - exclamou a Zé, correndo para ele. Pôs-lhe os braços à volta do pescoço e
abraçou-o com ternura.
- Pois parece-me um ano! - disse a Zé. - Olhem, lá está o meu pai a cavar a neve,
como doido. Não acham que podemos ir agora ao escritório? Não nos devem procurar tão
cedo.
Deixaram a sala de estar e foram para o escritório. Júlio depressa fez funcionar o
mecanismo. A Zé tirou o tapete. O caminho secreto estava aberto!
Saltou para o buraco. David seguiu-o, depois Ana e depois a Zé. Júlio mandou-os
para o começo da passagem. Olhou para cima. Talvez fosse melhor colocar o tapete
sobre o buraco, no caso de alguém entrar no quarto. Instantes depois tudo estava
arranjado. Então o Tim foi juntar-se aos outros, no começo da passagem. Iam finalmente
explorar o caminho secreto.
CAPÍTULO XV
O Tim também saltara para o buraco, ao mesmo tempo que a Zé. Agora corria à
frente dos pequenos, intrigado por eles quererem explorar um lugar tão escuro e frio.
Tanto Júlio como David tinham lanternas de algibeira, que iluminavam o caminho.
Não se via nada de especial. O caminho secreto, sob a velha casa, era estreito e
baixo. Por isso, os pequenos avançavam numa só fila, e conservavam-se muito curvados.
Foi um grande alívio quando a passagem se tornou um pouco mais larga e o tecto um
pouco mais alto. Era muito fatigante caminharem sempre inclinados.
- Fazes alguma ideia do ponto onde vai dar o caminho secreto? - perguntou David
ao irmão. - Quero dizer, vai em direcção ao mar ou em sentido contrário?
- Acho que não se dirige para o mar - disse Júlio, que tinha um bom sentido de
orientação. - Segundo creio vai dar ao vale. Espero que não tenha saída.
Continuaram a avançar. O caminho secreto era em linha recta, salvo uma curva, a
tornear uma rocha.
- Não acham muito escuro e frio? - disse Ana, arrepiada. - Estou arrependida por
não ter trazido um casaco. Quantos quilómetros devemos ter andado, Júlio?
- Nem um, pateta! - disse Júlio. - Atenção, reparem, o tecto da passagem desabou
um bocado.
À luz das suas lanternas viram que tinha caído um pouco de terra batida e arenosa
que formava o tecto. Júlio bateu com o pé no montículo que se formara no caminho.
- Não tem importância - disse ele. - Podemos atravessar, pois é movediço como a
areia. Pouco depois, à força de pontapés, a terra desabada já não impedia o caminho.
Continuaram a expedição. Um pouco depois, Júlio, empunhando a lanterna, notou que o
caminho se tornava muito mais espaçoso.
- Isto aqui foi alargado para fazer uma espécie de pequeno quarto - disse a Zé. -
Olhem, há aqui um banco, talhado na pedra. Creio que é um lugar de descanso.
A Zé tinha razão. Era muito fatigante avançar naquela passagem tão estreita,
durante tanto tempo. Aquele pequeno espaço com o seu banco de pedra, constituía um
lugar muito agradável.
As quatro crianças, excitadas, mas com frio, sentaram-se no banco muito juntas e
gozaram um descanso bem-vindo. O Tim colocou a cabeça nos joelhos da Zé, encantado
por estar novamente com ela.
- Agora continuamos - disse Júlio, passados alguns minutos. Estou a ficar cheio de
frio. Não imagino onde irá ter esta passagem!
Júlio, não achas que pode sair na casa da Quinta Kirrin? - perguntou a Zé,
repentinamente. - Tu sabes o que disse a Sra. Maria, que havia uma passagem secreta,
dirigindo-se da casa da quinta para qualquer outro lugar. Pode ser que assim seja, e que
se dirija ao Casal Kirrin!
- Ó Zé, creio que tens razão! - disse Júlio. - As duas casas pertencem à tua família,
há imensos anos. Noutros tempos havia muitas passagens secretas ligando duas casas;
por isso é natural que aconteça aqui isso mesmo. Porque não pensei nisso há mais
tempo?
- Oiçam! - interrompeu Ana, numa voz excitadíssima. - Oiçam! Também tive uma
ideia!
- Bem, se aqueles dois artistas levaram os papéis do tio, nós podemos apanhá-los
antes de os homens os mandarem pelo correio ou levá-los daqui - explicou Ana, tão
animada com a sua ideia que até atrapalhava as palavras. - Eles estão presos na casa da
quinta por causa da neve, tal como nós estamos no Casal Kirrin.
- Vamos - disse Júlio, dando a mão à irmã. - Isto é palpitante! Se a Zé tem razão e
este caminho secreto vai dar à casa da quinta, faremos uma busca no quarto dos artistas
e havemos de encontrar os papéis.
- Tu disseste que fazer uma busca no quarto duma pessoa era uma coisa muito
feia - comentou a Zé.
- Nessa altura eu não sabia o que sei agora, - respondeu Júlio. - Vamos fazer isso
pelo teu pai; e talvez também pelo nosso país, se a fórmula secreta tiver o valor que
dizem. Agora devemos agir com todo o cuidado, pois temos de enfrentar inimigos
perigosos.
- Suponho que sim - disse Júlio. - Mas não te preocupes. Tens o David, o Tim e eu
para te proteger.
- Também a posso proteger - disse a Zé, indignada. - Sou tão valente como um
rapaz!
- Vamos - pediu Júlio com impaciência. - Desejo imenso chegar ao fim desta
passagem.
Seguiram de novo, Ana atrás de Júlio e David atrás da Zé. O Tim ia e vinha de um
lado para o outro; ele achava que era uma maneira muito especial de passar a manhã!
Depois de terem caminhado bastante, Júlio parou de repente.
- Que aconteceu? - perguntou David, que seguia em último lugar. - Espero que não
seja outro bocado do tecto desabado.
- Agora vamos subir por esta parede - disse Júlio. - Avançaremos por aquele
quadrado escuro, subindo sempre, e só Deus sabe onde iremos dar! Vocês esperam aqui.
Eu vou lá acima e depois volto para lhes contar como é.
Depois, chegou a uma plataforma onde se pôs de pé. Tirou a lanterna dos dentes e
examinou em redor. Havia uma parede de pedra dos dois lados e em cima. O buraco
negro por onde tinha vindo, abria-se a seus pés. Júlio deu meia volta e fez a luz incidir à
sua frente; teve um movimento de surpresa.
Daquele lado não havia parede de pedra, mas sim uma grande porta de madeira
escura. Tinha um puxador, cerca da altura da cintura de Júlio. O pequeno fê-lo girar, com
os dedos a tremer. Que iria encontrar?
A porta abriu-se para fora, sobre a plataforma, e era difícil abri-la completamente
sem cair no buraco. Júlio puxou-a para si aos poucos, com cuidado, esperando ir
encontrar-se num quarto. Mas a sua mão apalpou mais madeira, em frente da porta!
Novamente fez incidir a luz da sua lanterna e viu o que parecia ser uma nova porta.
Sob a pressão dos seus dedos, esta moveu-se para o lado, deslizando silenciosamente! E
então Júlio percebeu onde estava!
- Estava no armário da casa da quinta, naquele que tem o fundo falso! - pensou
ele. - O caminho secreto vem dar aqui atrás. Que bem imaginado! Quem havia de dizer,
quando aqui brincámos com o fundo falso que esta era a entrada do caminho secreto!
O armário estava agora cheio de fatos pertencentes aos artistas. Júlio parou, à
escuta. Não havia barulho no quarto. Poderia fazer uma rápida pesquisa e ver se os
papéis perdidos se encontravam ali. Mas lembrou-se dos outros quatro, esperando por
ele, ao frio.
Era melhor ir contar-lhes o que acontecera. Podiam vir todos fazer a busca.
Recuou até ao espaço atrás do fundo falso, este voltou a mover-se e Júlio encontrou-se
novamente na plataforma estreita, com a porta de carvalho completamente aberta. Não
se incomodou a fechá-la. Começou a descer pela parede, fazendo por encontrar com os
pés as placas de ferro. Lá foi descendo, segurando-se com os pés e as mãos, a lanterna
entre os dentes.
- Subi o mais que pude até chegar a uma grande porta de madeira - contou Júlio. -
Havia um puxador, dei-lhe uma volta e a porta abriu-se. Então vi outra porta à minha
frente, pelo menos eu pensava que era outra porta, pois não sabia que era o fundo
falso daquele armário. Foi muito simples fazê-lo deslizar; entrei e encontrei-me no meio
dos fatos pendurados. Depois apressei-me a vir-lhes contar.
- Proponho o seguinte: - vamos todos até lá e fazemos uma busca nos dois
quartos. O quarto a seguir ao do armário também pertence aos homens.
- Óptimo! - disse David, entusiasmado com a ideia de tal aventura. - Vamos então;
tu vais à frente, Júlio, depois a Ana, depois a Zé e depois eu.
- E que fazemos ao Tim? - perguntou a Zé. - Ele não consegue subir, palerma -
disse Júlio. - é um cão maravilhoso, mas bem sabes que não pode subir esta parede.
Temos de o deixar aqui em baixo.
- Mas não podemos carregar com ele lá para cima - disse David. - Tu não te
importas de aqui ficar por um bocadinho, pois não, meu velho?
Tentou saltar para a plataforma, mas não o conseguiu. Tentou novamente, sem
resultado; começou a ganir. A Zé debruçou-se na plataforma, falando em voz baixa.
O Tim deixou de ganir. Ali ficou à espera dos pequenos. Aquela aventura estava a
tornar-se cada vez mais extraordinária! Todos tinham chegado à plataforma estreita. A
porta de madeira continuava aberta. Júlio dirigiu-lhe a luz da lanterna e os outros puderam
ver o fundo falso do armário. Júlio fê-lo deslizar para o lado, em silêncio. A luz mostrou-
lhes vários fatos e sobretudos. Os pequenos ficaram muito quietos, a escutar. Não vinha
do quarto o mais pequeno barulho.
- Repara, Júlio, há uma porta que liga os dois quartos - disse a Zé. - Dois de nós
deviam procurar ali e os outros dois aqui; podemos fechar à chave as portas que dão para
o corredor e assim ninguém nos apanhará.
- Boa ideia! - exclamou Júlio, que tinha um certo receio que chegasse alguém dum
momento para o outro e os apanhasse a fazer a busca.
- Eu vou com a Ana para o quarto ao lado, e tu e o David procuram aqui. Fecha à
chave a porta que dá para o corredor, David; eu farei o mesmo no outro quarto. Deixemos
aberta a porta de comunicação e assim poderemos ir falando uns com os outros, em voz
baixa.
O segundo quarto era muito parecido com o primeiro. Também não havia ali
ninguém. Depois de se fecharem à chave, sentiram-se mais seguros.
Ana começou a trabalhar e Júlio também. Principiou nas gavetas da cómoda, que
ele pensava ser um bom sítio para esconder qualquer coisa. As mãos das crianças
tremiam, enquanto procuravam os papéis perdidos. Era tão excitante!
- Esconderam bem os papéis! Só espero que não os tenham com eles, nas
algibeiras ou coisa parecida!
- Volta a procurar em toda a parte! - ordenou Júlio. - Procura nas almofadas, para
ver se estão metidos nas fronhas.
Júlio e Ana também continuavam a procurar activamente. Não havia lugar onde
não tivessem investigado. Até tinham voltado os quadros para ver se os papéis teriam
sido pregados atrás de algum deles. Mas nada! Era um amargo desapontamento!
- Atenção! - disse David, vindo do outro quarto. - Estou a ouvir vozes! Escutem!
CAPÍTULO XVI
AS CRIANÇAS DESCOBERTAS
Tinham ido todos, pé ante pé, para o quarto do armário e ali estavam muito
quietos, à escuta.
- Não, não, nós... - começou a Zé, quando ouviram a maçaneta da porta a mexer.
Quem ali estava, tentando entrar, não podia abrir a porta. Ouviram uma praga e depois a
voz do Sr. Wilson.
- Smith! A minha porta parece que emperrou. Importas-te que eu entre pelo teu
quarto e vá ver o que aconteceu a esta fechadura?
- Claro que não me importo! - respondeu a voz do Sr. Smith. Ouviram o som de
passos dirigindo-se para a outra porta. Depois ouviram o puxador a girar e a abanar.
- Mas que é isto? - exclamou o Sr. Wilson, desesperado. - Esta também não se
quer abrir! Estarão as portas fechadas à chave?
- Parece que sim! - disse o Sr. Smith. Houve uma pausa. Depois os pequenos
ouviram distintamente algumas palavras proferidas em voz baixa.
- Ó Sra. Maria! - ouviram o Sr. Wilson chamar. - Por acaso fechou à chave as
portas dos nossos quartos? Não conseguimos abri-las.
- Coitada de mim! - disse a voz da Sra. Maria, das escadas. - Eu vou lá ver.
Garanto-lhes que não fechei à chave porta nenhuma!
- Acha possível que esteja alguém nos nossos quartos? - perguntou o Sr. Wilson à
Sra. Maria. Ela riu-se.
- Quem está aí? Deixem-nos entrar ou depois arrependem-se! Que fazem aí?
Era exactamente o que os dois homens tencionavam fazer! Com medo que alguém
estivesse misteriosamente no quarto, tentando encontrar os papéis roubados, eles
tornaram-se quase loucos e começaram a forçar a porta com toda a violência. A porta
abanava e estalava.
- Depressa, vamos embora! - disse Júlio. - Não devemos deixar os homens saber
como entrámos aqui, para ainda podermos cá vir outra vez, fazer nova busca. Ana, Zé,
David, voltem depressa para o armário! Eu vou à frente e ajudo-os a descer.
Chegou à plataforma e depois desceu pelas placas de ferro, com a lanterna entre
os dentes, como de costume.
- Vem agora tu, Ana! - chamou ele. - Tu vens a seguir, David, e dás a mão à Ana,
se ela precisar. A Zé é muito ágil, pode descer facilmente sem ajuda.
Ana descia muito devagar. Estava nervosa, um pouco amedrontada, e com tanto
medo de cair que mal se atrevia a descer pelas placas de ferro.
Com os dedos a tremer, a pequena meteu a mão naquele bolso. Agarrou um maço
de folhas de papel! Estava muito escuro ali dentro do armário e ela não podia ver se eram
ou não aquelas que procurava. Meteu-as na parte da frente da sua camisola de malha,
pois não tinha algibeiras. Depois, murmurou para David:
- Já posso descer?
A Zé saiu do meio das roupas, recuando para o espaço que ficava entre o fundo
falso e a porta de madeira. Não teve tempo de fazer deslizar o fundo, que ainda estava
escondido na parede. Deu alguns passos até à plataforma, começou a descer pela
parede e tentou fechar a porta de madeira que ficava agora acima da sua cabeça. Não
teve força para a fechar completamente, mas esperava estar agora a salvo!
Os homens dirigiram-se para o armário procurando alguém que pudesse ali estar
escondido. Wilson deu um grito.
Nessa altura, os três irmãos, que já tinham descido a parede, esperavam a Zé com
impaciência. A pobre pequena quis descer tão depressa que prendeu a saia numa das
saliências de ferro e teve de parar, numa posição muito arriscada, tentando desprendê-la.
Pôs a cabeça para trás e soltou um latido tão triste que assustou os pequenos.
Ana estava apavorada e começou a chorar. O Tim ladrava cada vez mais. Quando
começava a ladrar era difícil fazê-lo calar.
Foram abrir a porta do armário. Naquele momento o Tim deu um latido ainda mais
triste e Wilson alarmou-se. Entrou e examinou o fundo. A porta de madeira moveu-se sob
a sua mão e ele abriu-a.
O Tim continuava a ladrar, de uma maneira triste que fazia estremecer. Smith
acendeu a lanterna, iluminando o fundo do armário.
A Sra. Maria, que assistira a tudo, cheia de surpresa e indignação por lhe terem
arrombado a porta, chegou-se ao armário. - Oh, céus! - disse ela. - Eu sabia que este
armário tinha um fundo falso, mas não supunha que houvesse outra porta aqui atrás! Isto
deve ser a entrada para o tal caminho secreto que antigamente usavam.
- Sei lá! - disse a Sra. Maria. - Nunca me interessei muito por estas coisas.
- Foi por aqui que desapareceu o ladrão. Não pode estar longe. Vamos persegui-lo.
Temos de nos apoderar dos papéis.
Começaram a descer pela parede, desejando saber onde estavam. Agora não
havia nenhum barulho. Com certeza o ladrão fugira!
A Zé conseguira descer, finalmente. O Tim ficara radiante. Ela fez-lhe uma festa no
focinho.
- Que pateta! - disse ela. - Certamente fizeste com que descobrissem o nosso
segredo! Depressa, Júlio, vamos depressa que os homens virão perseguir-nos. Devem ter
ouvido o Tim a ladrar.
- Vamos, Ana - disse ele. - Tens de correr o mais depressa que puderes!
Despacha-te! Tu, David, fica com a Zé.
Todos quatro se apressaram pela passagem estreita e escura. Que grande
percurso tinham de fazer até chegar a casa! Se ao menos a passagem não fosse tão
comprida! Os pequenos sentiam-se cansadíssimos, enquanto corriam, aos tropeções.
CAPÍTULO XVII
VALENTE Tim!
A pobre Ana tinha grande dificuldade em avançar depressa. Puxada por Júlio e
empurrada por David, quase se desequilibrou duas ou três vezes. Respirava com
dificuldade, muito cansada.
- Deixem-me descansar - pediu ela. Não havia tempo a perder, pois os dois
homens continuavam a persegui-los. Chegaram ao lugar que era mais espaçoso, onde
estava o banco de pedra, e a Ana bem desejou sentar-se um pouco. Mas os rapazes
continuavam a apressá-la.
- Minha querida, faz um esforço. Não podes ficar aqui! - disse Júlio, com pena da
irmã, mas sabendo que seriam apanhados se ela cedesse. - Anda o mais depressa que
puderes.
Era impossível. Ana não podia agora andar depressa. Gritava com dores no pé e ia
coxeando, tão devagar que David quase caía sobre ela. David olhou para trás e viu que a
luz da lanterna dos homens cada vez estava mais próxima.
- Que fazer?
- Vou ficar aqui com o Tim, e não deixarei os ladrões avançarem - resolveu a Zé,
num instante. - Leva estes papéis, David. Julgo serem aqueles que nós queremos, mas
não tenho a certeza, pois ainda não os vi à luz. Encontrei-os na algibeira de um
sobretudo, no armário.
- Aposto que não trazem - disse a Zé. - Vai-te embora, David! Os homens estarão
aqui num momento. Ali vem a luz da lanterna deles!
- É uma rapariga fantástica! - exclamou Júlio. - Não tem medo de nada! E não
deixará os homens avançarem, vais ver.
- Agora, Tim! - segredou-lhe ela. - Ladra o mais alto que fores capaz! Agora!
O Tim, à ordem da Zé, abriu a sua grande bocarra e começou a ladrar. E como
ladrava! Num som fortíssimo, os latidos ecoavam por toda aquela passagem, estreita e
escura. Os dois homens, que vinham correndo, já quase ao pé da rocha, pararam.
- Avancemos.
O Tim ladrou mais, puxando a corrente. Ansiava por se atirar aos homens. A luz da
lanterna deles incidiu sobre a pedra. A Zé soltou o Tim, e o cão enorme contornou a
pedra, cheio de impetuosidade, ao encontro dos seus inimigos.
Estes viram o Tim aparecer de repente. À luz da lanterna era uma figura
assustadora! Para começar, era um canzarrão enorme, e agora, que estava enraivecido,
tinha o pêlo todo eriçado, parecendo, por isso, ainda maior. Os seus dentes, muito
aguçados, luziam com a luz. Os homens não apreciaram nada aquela aparição.
- Se derem mais um passo, mando o meu cão atacá-los - gritou a Zé. - Espera,
Tim, espera! Pára aí, até eu te dar sinal.
O cão parou, mesmo em frente dos dois homens, ladrando com estridência.
Parecia um animal feroz. Os homens olharam-no, pouco seguros. Um dos artistas deu
um passo; a Zé percebeu. Imediatamente gritou:
- E também há-de magoar-te a ti! - disse a Zé, saindo detrás da pedra e gozando o
espectáculo. - Tim, vem cá!
O Tim largou o homem, olhando para a sua dona, como quem diz:
Os homens voltaram as costas e seguiram por onde tinham vindo. Nenhum deles
queria enfrentar novamente o Tim. A Zé esperou até não ver mais a luz da lanterna; então
inclinou-se, fazendo festas ao Tim.
- Meu valente Tim! - disse ela. - Gosto muito de ti, querido! Vamos! Apressemo-
nos, para nos juntarmos aos outros. Estes dois homens devem vir explorar a passagem,
durante a noite. Que surpresa vão ter quando chegarem à saída final!
Via-se uma luz viva, brilhando sobre a abertura, e o tapete composto, arranjado por
Júlio com tanto cuidado, estava agora novamente afastado. Os pequenos olharam para
cima, cheios de surpresa.
Ali estava o tio Alberto e também a tia Clara! Quando viram os pequenos olhando
para eles, pelo buraco, ficaram tão atónitos que quase caíram também naquela abertura!!
- Júlio! Ana! Que diabo estão vocês a fazer aí em baixo? - gritou o tio Alberto.
Estendeu a mão e ajudou cada um deles a sair. Finalmente, os quatro pequenos e o Tim
estavam outra vez no escritório. O calor que vinha do fogão confortava-os!
- Rapazes, que quer dizer isto? - perguntou a tia Clara. Ela estava pálida e
contrariada. - Vim ao escritório limpar o pó e quando passei por este sítio o tapete
pareceu-me ceder. Quando o levantei, apareceu esta abertura e também reparei num
buraco sobre o fogão! Depois descobri que todos vocês tinham desaparecido e fui chamar
o vosso tio. Que aconteceu, e onde vai dar esta abertura?
O pai agarrou-as como se valessem mais do que cem vezes o seu peso em ouro.
- Sim, sim! São as folhas! Todas três! Graças a Deus! Levei quatro anos a
aperfeiçoá-las e contêm o coração da minha fórmula secreta! Zé, onde as encontraste?
- É uma história muito comprida - disse a Zé. - Conta tu, Júlio. Eu sinto-me
cansada. Júlio começou a contar a história. Não omitiu nada. Contou como a Zé
encontrara o Sr. Roland a examinar tudo no escritório, como ela tinha ficado com a
certeza que o Sr. Roland não queria o cão em casa, por dar sinal das suas acções
durante a noite; como a Zé o vira falar com os dois artistas, ainda que ele dissesse não os
conhecer. Enquanto a história prosseguia, o tio Alberto e a tia Clara tornavam-se cada
vez mais admirados. Nem podiam acreditar! Mas como prova real, ali estavam os papéis.
Era extraordinário! O tio Alberto apertava os papéis contra si, como se fosse uma
jóia preciosa. Não queria largá-los, nem por um momento. A Zé contou como o Tim os
ajudara contra os dois homens.
- Está a ver, apesar de o pai ter feito com que o pobre Tim vivesse ao frio, longe de
nós, foi realmente ele quem nos salvou, a nós e aos seus papéis - disse ela, fincando no
pai os seus luzidios olhos azuis.
O pai estava atrapalhado. Sentia-se muito culpado por ter castigado a Zé e o Tim.
Tinham tido razão sobre o Sr. Roland, e ele enganara-se.
- Coitadinha da Zé! - disse o tio Alberto. - Pobre Tim! Lamento imenso o que fiz.
A Zé não gostava de afligir ninguém que reconhecesse os seus erros. Sorriu para o
pai.
- Não tem importância - disse ela. - Mas não acha que se eu fui castigada sem
motivo o Sr. Roland também deve ser castigado com a maior severidade? Bem o merece!
- Não é possível - afirmou a Zé. - Estamos bloqueados pela neve. O pai podia
telefonar á polícia e combinar com eles virem até aqui, logo que a neve o permita. E eu
penso que os dois outros homens tentarão explorar a passagem secreta, o mais depressa
possível, para levarem outra vez os papéis. Não acha que podemos apanhá-los
quando eles aqui chegarem?
- Muito bem! - disse o tio Alberto, embora a tia Clara fizesse cara de quem não
queria mais acontecimentos extraordinários! - Agora escutem: - parecem todos gelados e
também devem estar com fome, pois já é hora do almoço. Vão para a sala de estar e
sentem-se perto do fogão. A Joana vai tirar a sopa. Depois falaremos no que havemos
de fazer.
Claro que ninguém chamou o Sr. Roland. Ele continuava deitado e tossia de vez
em quando. A Zé subira as escadas e fechara à chave o quarto do preceptor, com muito
cuidado para ele não dar por isso. Depois do almoço todos se sentiram mais quentes e
reconfortados.
- Vou telefonar à polícia - disse o tio Alberto. - E esta noite vamos deixar o Tim
dentro do escritório para fazer um bom acolhimento aos artistas... se eles cá vierem!
O Sr. Roland estava intrigado. Não podia perceber como desaparecera a chave.
Ele não adivinhava o que todos sabiam agora a seu respeito. O tio Alberto riu-se quando
a Zé lhe contou o que se passara.
Ao meio da noite, o Tim acordou toda a gente, ladrando como doido. O tio Alberto e
os pequenos apressaram-se a descer as escadas, seguidos pela tia Clara e pela Joana.
Encontraram um lindo espectáculo!
- Boa-noite Sr. Wilson. Boa-noite Sr. Smith - disse a Zé, cheia de cortesia. - Vêm
visitar o nosso preceptor Sr. Roland?
- Então é aqui que ele vive? - disse, admirado, Wilson. - Eras tu que estavas hoje
na passagem?
- Era sim, eu e os meus primos - disse a Zé. - Vieram procurar os papéis que
roubaram ao meu pai?
- Tio Alberto, devemos levar estes homens ao Sr. Roland? - perguntou Júlio,
fazendo um sinal à Zé. - Mesmo no meio da noite, estou convencido que vão ficar
contentes de se verem de novo.
- Está bem - concordou o tio, percebendo logo o que pensava fazer o sobrinho. -
Leva-os lá acima. Tim, tu também os acompanhas.
- Um lindo grupinho de prisioneiros - disse ele. - Vamos deixar o Tim junto à porta,
para os guardar. É impossível sair pela janela e de qualquer maneira estamos
bloqueados pela neve.
Voltaram todos para a cama, mas, depois de tantas aventuras, os pequenos não
conseguiam adormecer. A Ana e a Zé cochichavam uma com a outra; David e Júlio
faziam o mesmo. Havia tanto em que falar!
No dia seguinte houve uma surpresa para todos! Chegou a polícia! A neve não os
detivera e com o auxílio de esquis tinham conseguido chegar até ali, para prender os três
ladrões.
- Não poderemos levar os homens antes que a neve se derreta - disse o polícia-
chefe, ao dono da casa. - Mas vamos pôr-lhes algemas para não tentarem outras
tropelias. Conservem a porta fechada e o cão de guarda. Não haverá novidade.
Trouxemos alimentos para dois ou três dias.
A neve derreteu-se dois dias mais tarde e os polícias levaram o Sr. Roland e os
outros dois. Os pequenos viram-nos sair.
- Nestas férias não haverá mais lições! - disse Ana, com alegria.
- Ela tem mau génio, não tem? - disse David dando de repente um abraço à prima.
- Mas eu gosto muito dela mesmo quando fica zangada; não gostas Júlio? Ó Zé, já
tivemos contigo aventuras maravilhosas! Estou a pensar se ainda teremos mais!
FIM
Data da Digitalização
Publicado em 1978
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Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o
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