Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DE ARQUELAU
DEARQUELAU
2 . Tesouros do livreiro 39
3. O ninho de Filomena 63
4. A tribuna... 87
6. O Commentarium 129
8. A bandeja.. 173
9. Dilectissimus 193
Capítulo 1
cária, Maria Eugenia, era quem garantia a outra grande atração do Calilei:
cuidava, como ninguém, dos tesouros da nossa biblioteca. Era uma figu
ra sinuosa, severa, mal-humorada, de idade incerta entre os quarenta e os
cinqüenta. Costumava olhar para Tulio Renzi de um modo indefinido,
um misto de censura e interesse. Ele não suportava o andar saltitante dela
e a fulminava com os olhos cada vez que eh passava, ondulante, entre as
velhas estantes. A risada dela teria sido, segundo cálculo de Anna,
na formatura do liceu. Mas ela pelos "seus" livros um cuidado e um
afeto que lhe asseguravam o respeito de todos nós.
Maria Eugenia colaborava, quase como co-autora, em boa parte do
q ue brotava gênios" do para iluminar os povos, ou para me
lhorar o saldo bancário do s editores. Ou, ainda, para leitura de candida
tos ao mestrado, mesmo porque, em muitos casos, os orientadores éra
mos nós mesmos.
Ela tinha dado nomes às salas da biblioteca quando o GaliLei estava
corso Mantegna: sala norte, sala meridional, sala oriental e salão tra
pezóide. Poderia chamá-Ias A, B, C e D; mas isso seria simples demais,
muito natural. Ela tinha uma visão cartográfica do mundo e da vida. Ape
sar disso, ou por isso, era, talvez, a melhor bibliotecária deste planeta; pelo
menos para atender a interesses tão estranhos e confusos como os nossos.
Naquele ano de 1968 não havia nada de computadores e coisas pa
recidas no GaLilei. A memória geográfica de Maria Eugenia funcionava
como excelente hard disk, com rapidez mais do que suficiente para as
nossas necessidades de informação. Para a desimportância tecnológica de
nossos estudos era dispensável qualquer arsenal de megabytes.
A biblioteca era, para nós, como um santuário, onde as palavras anti
gas, os velhos manuscritos, os exemplares de séculos passados eram guar
dados quase como amores proibidos. Os livros eram nossos confidentes,
interlocutores afáveis. Mas arredios e surdos a quem não se aviasse ao en
contro com humildade. Íamos biblioteca como quem vai consultar um
oráculo ou um profeta; e a postura grave, quase hierática, de Maria Eu
genia garantia a sacralidade desses encontros .
Ela nos vigiava como uma mestra de noviças, ávida de pilhar-nos
em pecados como acariciar um pergaminho, comentar a beleza de uma
maiúscula miniata ou a imponência de um amifonário do século XII. Ela
detestava especialmente os arroubos de Beatrice que, dtante das pranchas
8
de Vesalio, procurava quem estivesse por peno para demonstrar que, se
bem examinadas, elas teriam levado mais cedo à descoberta da função
central medula espinhal. Nessas ocasiões Eugenia assumia feliz
sua função disciplinar: pigarreava ostensivamente e passava a alinhar mi
límetricamente os livros da estante mais próxima. Até que o asmo
de Beatrice se aplacasse ou seu prazer fosse interrompido e ficasse solí
tário. Pelo menos era essa a interpretação, psicanalítica, de Mauro. Ele
tinha gastado dez anos de juventude tratando de histerias no "Paolo Pini"
e agora tinha voltado paz intra-uterina, na calma do Galilei. Estudava
a psiquiatria dos séculos XVIII e XIX.
T tínhamos uma certa aversão por roteiros de leitu raso um
sabia muito bem onde queria aportar com seus estudos mas nenhum se
atrelava a rotas precisas ou exclusivas.
Por isso era freqüent e que nossos cursos se cruzassem. Em certos
momentos, por exemplo, Anna e Mauro navegavam lado a lado, ela no
rumo da história do teatro dramático e ele no da psiquiatria do settecento.
O meu percurso na rota da idéia de loucura podia emparelhar-se ao
de Lorenzo, cujo tumo era o da medicina greco-romana, ou cruzar o ca
minho de Anna, dirigido para o teatro trágico.
Esses cruzamentos de rotas criavam algumas dificuldades nas re
servas de livros. Quando mais de um pesquisador estava à procura do
mesmo livro, Maria Eugenia convocava solenemente os interessados e so
licitava que indicassem fontes alternativas, disponíveis no seu impecável
arquivo. E até sugeria textos adicionais, que supunha servirem aos inte
ressados, para que um deles desistisse da reserva. Feito isso, ela decreta
va O prazo de leitura para o agraciado e voltava, certa do dever cumprido,
para a sua lustrosa Olivetti. O que ela adorava mesmo era sua decisão
salomônica quando aparecia um terceiro candidato ao mesmo texto. Esse
era, invariavelmente, o favor ecido. Mas recebia uma recomendação sole
ne para devolver pontualmente a obra, pois não o direito de preju
dicar as pesquisas "importantíssimas" de seus colegas. O plural era acen
tuado para que a culpa do privilegiado fosse mais abominável se atrasas
se a devolução. Obviamente, não havia qualquer disputa ou intransigência
nossa em tais ocasiões: mas era preciso que o ritual se cumprisse, ainda
que cada um fizesse ingenuamente seu pedido de reserva mesmo sem es
pecificar qualquer data para receber o texto.
9
Bastava haver dois pedidos simultâneos e o nomos soberano seguia
o seu curso.
Para desconsolo de Eugenia, essas ocasiões só ocorriam quan
do pesquisadores novatos ou de fora pediam reserva. Nós, os veteranos,
combinávamos quem retiraria cada livro e o passaria aos demais, sem com
plicações. Mas, em qualquer momento, a bibliotecária sabia com quem de
veria estar, por quanto tempo, cada uma das trinta mil obras do acervo.
Em corso Mantegna, quase não havia espaço para leitura ou para
conversar sobre os textos: a biblioteca se reduzia às quatro salas batizadas
por Maria Eugenia, expostas ao tremendo barulho da rua, principalmen
nas horas do Então se somava o cortejo de ônibus circulares 96 e
97 ao vaivém dos carros oficiais da Amministrazione ProvinciaLe que ser
viam aos altos burocratas da Provincia di MiLano. Na nova sede do Ga
LiLei, a quietude era, como Mauro, intra- uterina e a biblioteca fora
esplendidamente instalada num lugar ideal, num refeitório de monges do
trecento. Todo o Insti tuto, aliás, estava acomodado entre os muros vene
randos do que fora uma pequena abadia do século XIII. Obra de algum
pioneiro de Cluny ou Chiaraval1e, aninhada entre duas colinas, junto ao
cascalho da cstradinha que vai de Nerviano a Garbatula, em plena cam
panha Lombarda. Na construção original, a fachada era quase encostada
ao atual "Canale Villoresi" e voltada para Sant'Ilario. A abadia fora res
taurada com bo m gosto e bom senso, preservando-se carinhosamente tu
do o que de antigo houvesse, nas estruturas, no revestimento das paredes,
nos restos de afrescos. Assim, a atmosfera de meditação ou, por q ue não?,
de intrigas ou disputas teológicas sobreviveu. Graças às estreitas relações
de Lanebbia com a cúpula da "Dcmocrazia Cristiana", nacional, provin
cial e municipal. Foi ele quem conseguiu as desapropriações, verbas, doa
ções e, principalmente, a criação da Fondazione que nos mantinha.
Pagando pouco, bom repetir, com dinheiro repassado do que seria o im
posto de renda de algumas editoras. É o que explicava Luciana aos visi
tantes que vez por outra chegavam ao Instituto, em termos bem diversos
e com recursos de persuasão que me faltam.
Na verdade, o dottor Lanebbia possuía, além de todo o rosto de
XII e metade da estatura dele, uma enorme habilidade em administrar di
nheiro, que conseguia das mais variadas fomes. Tulio achava que também
isso era herdado de Pio XII.
10
Ninguém sabia, nem pretendia saber, por que ou como Lanebbia e
seus associados se interessavam por um bando de maníacos como nós,
gente estranha, supostamente inteligente, quc passava horas lendo ou dis
cutindo inutilidades. Gente, dizia-se, que brilharia no corpo docente de
qualquer Universidadc; especialistas que qualquer editora contrataria por
somas astronômicas (certos astros não são muito grandes) . Era um enig
ma também para nós. Mas, lamentações à parte, sabíamos de nossa
petência, também astronômica (alguns astros são bastante grandes) para
com contratos, chefes, prazos e, sobretudo, reivindicações salariais
Tínhamos, além disso, algumas doenças comuns todo o grupo, ou quase
todo: a bibliomania mais crônica que se possa imaginar, uma paixão neu
rótico-delinqüeneial por textos antigos, que nos levava freqüentemente a
visitas subservientes a párocos, conventos, igrejas e colégios. Procuráva
mos criar relacionamentos que facilitassem o acesso a qualquer velharia
escrita. Que poderia estar esperando por nós, por que não?, desde séculos,
ou décadas. Conhecíamos armários, sótãos, porões e cofres de sacristias,
bibliotecas, batistérios ou cenáculos, bem melhor do que seus proprie
tários ou curadores. E tínhamos achado preciosidades que muitos cole
cionadores cobiçariam. Descobrir esses esconderijos era uma espécie de
hobby nosso nos fins de semana, quando saíamos, quase sempre no
2HP de Bruno Salvadori, atrás de boa comida, bons vinhos e velhos
escritos. Abelardo, Isabella e Anna quase nunca participavam dessas ex
pedições. Nem Mauro Adami. Os três primeiros porque eram casados
(ou coisa parecida); e Mauro porque tinha suas noivas a ocupá-lo em tem
po integral.
Outra doença era de tipo alérgico: uma aguda aversão por qualquer
discipl.ina de estudo. Mas, à parte essas moléstias, não mordíamos
ninguém, éramos todos membros de algum partido, quase sempre de es
querda, pagávamos multas como qualq'u er cidadão decente. Tínhamos
nossa inevitável e fecunda dose de narcisismo e escovávamos os dentes
regularmente.
Virtude, talvez única, era a seriedade com que cada um de nós pro
curava conhecer seu assunto de indagação, uma virtude que mais era um
pecado; para nós, estudar era pura paixão. E não havia lugar melhor para
dar livre curso a essa paixão do que uma medieval e seu claustro
cheio de paz e de memórias.
Vista de cima, ou na planta gravada no pavimento da igreja, a abadia
a forma aproximada de uma letra I-I maiúscula.
As duas hastes paralelas eram ligadas por um amplo vestíbulo (Ma
ria Eugenia chamava "transepto"), que dava acesso às quatro pontas do
H. As duas de cima abraçavam um claustro pequeno e sombrio que lem
brava o das Agostinianas em Roma, embora mais rústico e um pou
co malar.
Pensar nas verdades e dú vidas de outras épocas, caminhando lenta
mente pelo claustro, era, mais que uma reflexão, um exercício espiritual,
que me trazia muita paz. Cada lado quase un s metros de com
primemo na linha das paredes. Havia sete arcos, em cada um, sustentados
por pares de colunas de granito. Tinham formas variadas, nas bases, nos
fustes e, principalmente, nas figuras esculpidas nos capitéis. As figuras da
águia, do touro, do leão e do anjo ficavam nos quatro cantos do claustro,
nos capitéis das colunas externas. Nos outros havia lobos, falcões, cães,
frutas , anjos, candelabros, espigas de trigo, livros, Hores, santos etc. Lo
renzo tinha fotografado todos eles para estudar futuramente.
As salas dos veteranos fi cavam entre a coluna da águia e a do touro,
no lado direito do claustro. No lado oposto ficavam as colunas do e
do anjo e, atrás delas, a parede da igreja, que subia muito acima do teto
do claustro.
Tinha lápides com imagens e inscrições bastante desgasta
das. Eram figuras monásticas acompanhadas de símbolos, nomes e tÍtu
los. As mais recentes, posteriores ao quattrocento, exibiam brasões de
armas, muitos deles com a cruz abacial ou com o báculo voltado para
dentro, como convém aos abades.
Essas lápides ficavam à altura de um homem. Abaixo delas, toda a
da parede era tomada por bancos de pedra, sete em cada lado,
um diante de cada arco. Tínhamos nossos bancos preferidos. O de Anna
era junto coluna do candelabro. Tulio tinha o do lobo . O dela era pró
ximo a uma das cerejeiras e o de Tulio permitia contemplar, por cima do
muro divisório da abadia, a estradinha que sobe a colina na direção de
Sant'Ilario.
Mauro tinha dito que escolha de Anna indicava introversão e a de
Tulio revelava extroversão. Ninguém levou a sério o "diagnóstico", nem
o próprio Mauro. O consenso era que todos nós, exceto Beatrice, éramos
12
introvertidos. Sem prejuízo de outras características menos inócuas, dis
tribuídas, sem distinção, tal como o bom senso cartesiano, entre todos.
Entre os dois pés do H ficava um jardim, sem nada de especial, além
de três enormes castanheiras muito antigas, que Lanebbia gostava de cha
mar, com duvidoso gosto, "as testemunhas da história".
Num canto do claustro, bem na extremidade direita do H, ficava a
minha sala, próxima à de LorenZ0 e Tulio. Ali eu me sentia, às vezes, um
monge, às vezes um hóspede, às vezes, infelizmente, um pesquisador do
século xx (mal pago, é bom lembrar).
13
Nós oscilávamos entre o engajamento político, ou acadêmico, e a
sedução do conhecimento desinteressado, que já então era chamado, nas
assembléias de via Festa dei Perdono, alienação acadêmica, intelectualis
mo burguês. Ou, mais cruamente, fascismo. Apesar de tais encômios, na
tranqüilidade da abadia, estávamos atentos para os problemas sociais e
comprometidos, sem faixas e cornetas, com o progresso político do país.
Ademais, a maioria de nós já tinha sua história de lutas, desilusões e frus
trações políticas, amorosas etc.
Havíamos aprendido também que o prestígio acadêmico é quase
sempre produto de oportunidades mais que do mérito e, por isso, não
havia diferenças, no Galilei, entre quem já escrevera um best seller ou ti
nha ensinado em Harvard ou Oxford e quem ainda estava preparando seu
doutorado ou seu primeiro artigo individual.
Esse era o caso de Anna, por exemplo, que aos 33 anos de idade ti
nha já 15 de pesquisas sobre literatura e teatro grego. Lia grego corren
temente e, curiosamente, no latim era, segundo ela mesma, um desastre.
Tinha publicado apenas duas monografias, indispensáveis para quem qui
sesse entender Homero ou a poesia grega mais antiga. Escondia seu sa
ber como uma colegial esconde o primeiro soneto, mas era, como dizia
Tulio, um vulcão de conhecimento, pronto para soterrar qualquer inter
locutor desavisado. Mas Anna tinha medo de apresentar-se a um dou
toramento, mesmo sabendo que, em muitas teses, suas monografias eram
citadas na bibliografia básica. Ela era um vulcão, também em outros sen
tidos, talvez mais importantes, como pude perceber mais tarde.
Mauro Adami também era um dos mais jovens, 34 anos, 10 deles de
psiquiatria, noivados e pesquisas sobre a teoria da sedução em Freud, após
longos estágios em Londres e Berlim. Publicara apenas um livro, versão
de sua tese sobre Adler e a luta política, antes de entrar no Galilei.
Já Tulio era um especialista mais amadurecido, que começara em
Messina, com De Franco, uma rigorosa carreira em neuropsiquiatria in
fantil. Passara à behavior therapy e, por fim, a estudos sobre o conceito
de deficiência mental. Era professor associado em Bologna e deveria ter,
como eu, uns 40 anos. Tinha uma sensibilidade incomum para perceber
quando algum de nós estava preocupado ou deprimido. Costumava di
zer, com toda a seriedade, que nos entendia porque tinha muita experiên
cia em lidar com crianças psicóticas. Era autor de vários livros, alguns
14
para estudantes, outros para médicos, e todos, a seu ver, para enfurecer a
ex-esposa, que não recebia direitos sobre eles, como pretendera por oca
sião do divórcio, em 1962.
Beatrice Bonomi, a mais tranqüila e entusiasta do grupo, tinha uma
beleza toscana. Traços leves, tons claros, cabelos soltos e o olhar doce e
alegre das graças de Botticelli; estudara com Moruzzi em Pisa, Margaria
em Milão e estagiara por alguns meses com Anokhin em Moscou. Ali en
controu um físico holandês pelo qual ficou eternamente apaixonada (por
uma semana e meia). Depois disso, oscilava entre seus dois amores: a his
tória do movimento muscular, ou comportamento motor, como definia
Lorenzo, e o projeto de ter uma filha bailarina.
Lorenzo Crivelli Duci também era dos mais maduros e devia ter,
naquele tempo, uns 45 anos. Impressionava por sua erudição em histó
ria etrusca, uma atitude bastante cética diante de quase tudo o que não
fosse afresco do século XIII ou história da medicina. Seus trabalhos mais
citados eram sobre a influência da medicina árabe na cultura médica da
Europa. Conhecia quase todos os párocos, igrejas, restos de mosteiros e
coisas análogas em toda a Lombardia. Odiava freiras.
Finalmente, eu, Emilio Donatelli, vêneto de Cordignano, bacharel
em Filosofia, uma cátedra de Psicologia, muitos artigos publicados, um
livro sobre a ansiedade, sucesso de crítica e fracasso de bilheteria (como
o autor). Míope, em vários sentidos.
Essas eram as "drammatis personae" principais. Havia outros pes
quisadores que trabalhavam nas salas do pavimento superior, exatamen
te sobre as nossas. Eram menores, antigas celas monásticas, menos úmi
das que as nossas. Tinham mais restos arqueológicos nas paredes e for
ros. Mas as nossas se abriam diretamente para as arcadas do claustro. E
para as cerejeiras que o cobriam de sombra no verão e de folhas no ou
tono. Nossas salas eram antigos aposentos de serviço: cozinha, despen
sa, oficinas ou lavanderia dos antigos monges. Por isso, as paredes e te
tos não apresentavam qualquer relíquia. Apenas a sala de Lorenzo e Tulio
possuía uma espécie de forno ou lareira tosca de granito e dois suportes
de ferro para lamparinas em uma das paredes.
Na lado oposto do claustro, na'outra ponta do H ficava a igreja do
mosteiro. Tinha duas vezes a altura do claustro e era uma das riquezas do
Galilei. A outra era o refeitório, com grandes fragmentos de afrescos do
15
16
i Siena.
Eu também possuía meus troféus, menos adoráveis que os de Isa
bella, mas seguramente menos sem graça que os de Abelardo. Eu tinha
I um De Anima em papel pergaminho, de 1502, com anotações em italiano
arcaico, que era a inveja de Mauro; um "Édipo-Rei", em latim, de 1598,
com gravuras, que Anna cobiçava; as Opera Omnia de Bellini e de Bagli
vi, nas edições originais, que fascinavam Lorenzo e, finalmente, uma edi
ção anânima do Malleus Maleficarum, com anotações em algum código
desconhecido, que era a inveja de todos: os "da cozinha" e os "pombos".
Nossa vida intramuros não tinha complicações maiores, mas "lá fora,
no mundo", como dizia monasticamente Mauro, é que se decidia, além
do nosso pagamento, o destino que se dava aos nossos escritos. Muitas
vezes os textos eram submetidos pelas editoras a consultores que jamais
tinham vivido um modo de trabalhar como o nosso, no Catilei. Estavam
lutando ferro e fogo" por posições de relevo, lucro ou prestígio aca
dêmico naquela espécie de guerra que é a desgraça ou a graça da vida
universitária. Nós éramos, sejamos francos, desertores.
Nada contra qualquer consultor ou referee, pois com freqüência,
maior que a desejada, nós também éramos consultores. Mas, de costu
me, procurávamos não impor, nem mesmo sugerir, desenvolvimentos al
ternativos do tema ou mudanças que obrigariam o autor a renunciar ao
seu enfoque pessoal do assunto.
Por isso não gostei, e meu ego muito menos, quando recebi o parecer
de um consultor sobre um trabalho (mal-acabado, é verdade) que man
dei a uma revista. Ele escreveu um parecer sério, muito competente e tra
balhoso. Dissecou o texto, mais do que eu desejava, falhas de
bibliografia que a seu ver eram elementares. O pior é que o parecer fala
va, com uma cortesia que beirava a piedade, em "fontes que realçariam o
ponto de vista" ou "tornariam mais nítida a linha de pensamento do au
tor". E sugeria tantas mudanças e acréscimos no meu texto que o trans
formariam num artigo que não era o meu.
Não conto isso para falar do parecer que, repito, era competente
e sério. Mas por outras razões.
Meu plano de pesquisa para o Galilei era um desenvolvimento do
artigo e por isso resolvi engavetar o manuscrito (para gáudio dos arqueó
logos do século XXIII) e discutir o texto e o meu plano, com Lorenzo e
Anna. Eu não podia prever que essa discussão mudaria, além do meu pla
no, tantas outras coisas.
No caminho para Sant'Ilario há um amontoado de casas, quase um
paese, Santa Chiara. Além da gente tranqüila e da igreja, bastante "melho
rada" por algum pároco empreendedor, o que nos atraía ali era o Mena
rost, uma velha trattoria de aldeia, honesta e tranqüila. Na cozinha, quan
do havia clientes, trabalhava a dona da casa, chamada Lisa; o marido, Giu
lio, servia as quatro mesas, lavava os copos, contava histórias e colecio
nava fotos de jogadores da Internazionale. Tinham um excelente Barbera
e um ótimo Pinot Grigio, de San Vendemiano, perto de Castelfranco. A
comida era deliciosa, à moda da campanha pavese. Quem descobriu o
Menarost foi Lorenzo. Era um lugar precioso, ainda sem turistas, moto
cicletas e executivos. Uma toca ideal para conversar em paz, com boa
comida e vinho honesto. Fugimos para lá, Anna, Lorenzo e eu, por vol
ta de onze e meia, antes que os outros se juntassem a nós, para podermos
conversar com calma, sem muita gente à mesa.
"Bom dia, Giulio", saudou Lorenzo, que já era de casa, "trouxe dois
amigos para conhecerem os bucatini e o alla Santa Chiara."
"Bom dia professor, mas hoje temos fagianella e penne all'arrab
biata", disse Giulio meio constrangido.
18
"Por enquanto, traga um Pinot gelado para os meus amigos e um
Barbera para mim."
Achei meio estranha a certeza dele de que Anna gostaria do Pinot. Te
riam estado ali outras vezes? Por que não pediu o Pinot também para ele?
Giulio resolveu a minha dúvida: "Meno male, professor, que o se
nhor não esqueceu; a próxima remessa do Pinot vai chegar só no sábado.
Tenho exatamente duas garrafas para os seus amigos: uma para o dottore
e uma para a signorina".
"Signora", corrigiu Lorenzo, com certa frieza.
Giulio trouxe pão e um salame caseiro, do inverno anterior. Ago
ra, em junho, estava plenamente stagionato, com o perfume e a umidade
ideais e um preciso toque de alho que o distinguia de qualquer outro.
Era um dia luminoso e quente. No quintal da trattoria cantavam al
guns pássaros e um galo rouco.
"Gostei do teu artigo, mas o consultor tem razão em alguns pontos
do parecer", disparou Lorenzo, sem preliminares.
"Pode-se não ter razão mas ter razões", disse Anna, abrindo, obvia
mente, um debate. "Eu também gostei, mas não tanto da forma como das
idéias. Qualquer um vê que você juntou sem muita calma trechos de al
gum texto mais amplo. Isso eliminou nexos entre as partes, que só são
óbvios para você ou quem é do ramo."
"Eu também reconheço que o consultor tem razão, Lorenzo; mas, co
mo diz Anna, tenho razões para ter escrito o texto assim. É claro que al
gumas partes ficaram meio desligadas e ele ficou difícil e pouco fluente..."
Lorenzo levantou a mão pedindo uma pausa enquanto engolia uma
fatia de salame e depois explicou: "Você escreveu para ser entendido, não
para registrar idéias no papel. O consultor mostrou que nem ele, sem al
gum esforço, entendia o texto e que as passagens entre os vários tópicos
eram, portanto, pouco claras. Mas, já disse, gostei do artigo".
"Das idéias do artigo", corrigiu Anna, implacável.
"Não só. Há páginas muito bem escritas, citações cruciais, riqueza
de informação, interpretações bastante originais de alguns textos... "
"E, em vista de todos esses méritos, a Real Academia de Ciências de
Estocolmo...", começou Anna, solene.
"Decidiu outorgar a você e ao consultor o prêmio Nobel, ex aequo,
de história da ciência", emendou Lorenzo, enquanto enchia os copos.
19
"Mas insisto, e agora falo sério: o artigo tem muita coisa boa mas eu tam
bém não aprovaria a redação que você deu."
"Nem eu. É que eu não suportava mais ver aquele monte de páginas
que deveria ser o meu 'Antes de Freud', encalhado no quarto capítulo.
Por isso, antes de jogar tudo fora, juntei as informações mais interessan
tes em trinta páginas, no máximo, como exigia a revista. E deu nisso: al
guns elogios e sugestões inaceitáveis. "
"E por que você não modifica?", foi a pergunta distraída de Anna.
"Apenas porque o consultor, além de apontar com precisão os de
feitos de forma, quer outras coisas."
"Os homens estão sempre querendo outras coisas", disse Anna,
meio desligada, num tom vago que podia ser tanto queixa como insinua
ção. Ensaiou um sorriso enquanto levava o copo à boca. Juro que invejei
aquele copo. Procurei seu olhar, mas ela fitava, meio triste, os reflexos da
janela no seu Pinot. Desejei que lembrasse os vitrais de Gala Placidia.
Mais que tudo, desejei que Lorenzo evaporasse.
"Primeiro, não sabemos se 'o consultor' é mesmo um homem; se
gundo, vocês, mulheres, detestam homens que não querem alguma outra
coisa; terceiro, se você quer falar de outro assunto, é só dizer. Mas nós es
tamos discutindo o artigo de Emilio e o parecer." Foi o que disse
renzo, firme mas suavemente, antes de um imenso gole de Barbera. Não
era agressão, mas uma observação fria, desencorajante. Aprendi, mais tar
de, que era o tom usual dele quando se falava de amor, desejo ou "outras
. ".
COlsas
A observação me deixou meio chocado. Mas a reação de Anna foi
glacial, desconcertante: "Emilio, sirva mais Pinot para mim. Eu não tenho
culpa se, para vocês, 'alguma coisa' significa algo diverso. Eu, como mu
lher, prefiro que os homens queiram 'outras coisas', como diz Lorenzo;
mas gostaria mais se, além dessas, eles apreciassem também algumas 'ou
tras coisas"'.
"Resposta brilhante e esperta. Típica reação de mulher", disse Lo
renzo, rindo. "É como cair sentada no meio da Galleria e aproveitar o
tombo para levantar-se mostrando as coxas e sair rebolando para os tu
ristas do Biffi."
"Observação brilhante e objetiva. Típica reação de homem", retru
cou Anna com ironia. "Ê como não entender um conferencista e sair ao
20
fim da exposição dizendo que ele é estrábico ou sorri demais. Ou usa uma
gravata horrorosa." E num gesto gracioso, tocou o copo de Lorenzo com
o seu: "Saúde!".
"Touché, você está em forma", brindou ele. E prosseguiu:
"A sedução feminina, essa magia que atrai e ameaça o homem, como
as coxas ou o rebolado de uma mulher na Galleria, é o que as malucas
feministas pretendem destruir, justamente em nome da valorização da
mulher. Será que não sabem, já que colocam as coisas em termos de po
der, o enorme poder de um belo par de pernas ou de um rebolado natu
ral, elegante?", perguntou Lorenzo.
Eu esperei o contra-ataque de Anna. Que não houve. Ela respondeu
tranqüila como se tivesse preparado a resposta: "Elas se sentem culpadas
pela sedução. E querem abolir o que lhes traz a culpa e o conflito. Sabem
que não seduzem um parceiro do amor, mas alguém que, seduzido, se
torne um defensor, protetor ou troféu. Que signifique segurança, status,
afirmação pessoal. E se culpam por isso. É que já não são capazes, como
na adolescência, de seduzir por amor e para amar. Elas sabem muito bem
o poder das ancas ou das coxas. Mas já não conseguem exercê-lo sem cul
pa. E projetam sua culpa sobre o macho por excitar-se com suas graças e
formas. Elas detestam, mas desejam ser objetos de desejo, e de prazer.
Mas esse Pinot já rendeu demais. Falemos do artigo".
Não me interessava discutir feministas ou coxas, naquela hora, em
bora a segunda opção tivesse sua graça. Principalmente porque as pala
vras de Anna insinuavam uma sensualidade incendiária. Tulio já a tinha
definido como um vulcão. E quando se envolvia numa discussão lembra
va, não sei por que, uma pantera. Aqueles olhos grandes e severos ganha
vam um brilho quase selvagem. O rosto moreno e magro me lembrava
Nefertiti, pela fronte, os lábios e as faces quase angulosas. Nessa manhã,
com um vestido amarelo e curto que descobria generosamente as coxas
bronzeadas, desinibida, graças ao Pinot, ela estava irresistível. Mas havia
os perigos do vulcão. E era preciso decidir sobre o parecer: estávamos ali
para isso, como Lorenzo tinha lembrado. Minha vontade era ouvir An
na, não importava o que dissesse. Por um segundo, delirei pensando em
agarrá-la e vê-la entregar-se feliz ao meu abraço; mas despertei, dizendo:
"O meu artigo pretendia apenas descrever a gênese e as transfor
mações da idéia de loucura na Grécia antiga. Sem querer relacionar as
21
conotações desse período com as de qualquer outro. Isso está até no tí
tulo do artigo. Mas o consultor acha que devo ligar Psyche, a do mito, às
idéias correntes como psiquismo ou aparelho psíquico, na acepção de
Freud. Tudo isso porque o artigo começa com o mito de Psyche, para
apresentar a idéia vaga de erro e reparação na mitologia grega. Eu
vi que a intervenção arbitrária dos deuses, além de 'explicar' o normal e
o aberrante, excluía a idéia de culpa pessoal. Então não havia o remorso
ou o arrependimento. E, desse modo, o que hoje seriam conflitos, frus
trações, desejos ou impulsos era vivido como um jogo caprichoso dos
deuses. A tal vida psíquica não existia, era impossível».
Eu procurei um olhar de aprovação de Lorenzo. Ele tentava conter
o riso pousando a mão no meu ombro, como a desculpar-se. Quando
parou, tomou mais um gole do Barbera e explicou-se: "Desculpa, Emi
lio, mas, por um momento, imaginei a cara de Maria Eugenia ao saber que
as atividades 'extracurriculares' de Luciana são o mero jogo dos deuses;
que ela pode pintar e bordar sem qualquer culpa ou risco de castigo".
"Nesse caso, ela tocaria fogo no Olimpo", completou Anna.
Eu estava para fazer a minha piada, mas Anna continuou, séria. "Se
compreendo bem, o consultor pretende que você, partindo das mesmas
fontes, entenda Homero ou Hesíodo de maneira oposta ao seu modo de
ver." Ela me olhava, com certa dúvida nos olhos e na voz.
"Nada menos. E não só isso: ele quer que eu escreva um absurdo,
que aceite uma impostura 'histórica': traçar o nexo entre a palavra Psyche
e o conceito de 'psíquico'; esse nexo é artificial. Aquilo que, para os gre
gos, corresponde ao espírito ou à vida mental e afetiva não é a Psyche, mas
o 'thymos', uma espécie de alma de serviço, que morre com o corpo do
homem, enquanto a sua Psyche sobrevive depois dele."
"The evil that men do lives alter them", citou Anna.
"Então, uma psicologia que derivasse linearmente de Psyche seria
uma parapsicologia ou um espiritismo", arriscou Lorenzo.
"Psyche é Psyche e Alan Kardec é seu disse apontan
do para mim. "E você deveria ser uma espécie de teólogo ou guru da no
va doutrina."
"A coisa está ficando séria", disse Lorenzo, acenando para Giulio.
"Mais salame? Este ano ele ficou bom mesmo. Trago já. E... para
apurar as idéias, mais uma garrafa do Pinot Grigio. Só me restam oito."
22
tas vezes uma questão de história. O que aceito, e você não disse, é que a
elaboração deliberadamente abusiva de teorias ou vocábulos científicos
não promove o saber, mesmo quando acarreta tentativas bem-sucedidas
de aplicação, clínica ou outra."
"Eu digo mais, Lorenzo: essas audácias são fatos de história da ciên
cia mas não de história do saber", declarei.
"Devo concluir que a trajetória do saber transcende as artimanhas de
autopromoção, as rivalidades ou as alianças mais ou menos 'mafiosas' en
tre pesquisadores ou 'panelas' de cientistas. É isso?", perguntou Lorenzo.
"É. E também que uma história do conhecimento seria possível sem
referência a qualquer nome ou centro de pesquisas, o que dificilmente se
conseguiria numa história da fisiologia, por exemplo. Nesta deveriam
entrar os desvios, as dissidências, as improvisações e até as fraudes. O co
nhecimento fisiológico, por seu lado, teria uma linha de evolução trans
cendente a todas essas condições episódicas, até pessoais", foi o que me
ocorreu como resposta.
"Precisamos definir melhor as coisas. Anna, já que temos mais Pinot,
passa-me essa garrafa. Podemos definir a história da ciência como o es
tudo crítico do processo de produção do saber científico e a história do co
nhecimento como o estudo do produto desse processo: o saber resultan
te. Assim fica mais claro: há duas trajetórias diversas, uma terrestre, cheia
de desvios, becos sem saída e atoleiros e outra como uma rota aérea; sem
mata-burros, bloqueios e engarrafamentos. Então a progressão obedece
a regras diversas em cada uma das rotas... "
"Na rota terrestre cada passo determina inexoravelmente o percur
so imediatamente seguinte, gerando uma progressão nem sempre econô
mica. Na rota aérea são os parâmetros gerais do vôo que determinam o
percurso e o ritmo da progressão", interrompeu Anna. Para alívio de Lo
renzo que mantinha o copo entre a mesa e a boca, sem decidir se bebia
ou continuava sua analogia.
Giulio vinha trazendo a segunda bandeja de salame, mas antes que
chegasse, alguém apareceu numa das janelas e gritou em dialeto milanês:
"Ste me cünte, interista malmustus?". Era um homem risonho, de cara re
donda, com um boné vermelho e preto. Um milanista fanático que esten
dia aos olhos furiosos de Giulio a manchete escandalosa do Tuttosport:
"Rivera, diabólico, esmaga a Inter". A reação de Giulio foi explosiva. Fi
24
cou vermelho, quase roxo e destampou sua fúria numa espécie de ladai
nha: "Eu quero que você, o Gianni Rivera, a Madonna, o Arcanjo Gabriel
e o Paolo VI vão todos se...".
Então, olhou para Anna, passou de vermelho a amarelo e tampou o
verbo decisivo com a mão. Baixou os olhos, como um escolar apanhado
em flagrante, e desculpou-se: "Signora carissima, esse padeiro me provoca
desde o domingo, só porque aquele raquítico do Rivera marcou dois gols
contra a Inter. Os milanistas são mal-educados. Mas no próximo domin
go ele vai enfiar aquele jornal... Me desculpe, signora, quase digo outra
bobagem".
Anna aliviou o constrangimento dele: "eu também sou interista,
Giulio. Esse tal de Rivera não chega aos pés do nosso Sandrino... ".
Giulio deixou o salame e afastou-se encabulado.
Retomei a conversa antes que mudasse o assunto: "Mas então você
e Anna entendem a ciência como as atividades dos cientistas. Por exem
plo, experimentos, debates, relatórios etc. E não como o produto formal
mente organizado dessas atividades. É uma concepção discutível, mas cla
ra. Então a história das idéias pode referir-se às idéias científicas, filosó
ficas, literárias etc."
Já recomposto, com a cara novamente rosada e tranqüila, Giulio vi
nha trazendo a massa. Tinha um sorriso orgulhoso sob o bigode grisalho.
Pousou solenemente na mesa a enorme tigela fumegante: "Vejam que al
caparras! Sintam o aroma! Afagianella vai demorar um pouco. O 'gra
na' está uma delícia, ralado agora. Bom apetite, signora", disse sorrindo
para Anna e olhando de viés para Lorenzo, que lhe havia corrigido o uso
de signorina.
Enquanto Giulio servia os pratos, a conversa prosseguia meio de
sordenada, como acontece quando se misturam vinhos, salames, história
das idéias, coxas, feministas e Gianni Rivera. "Acho que é uma questão
de definição, mas não são especialidades que se excluem mutuamente.
Emilio, passa-me o 'grana', por favor. Eu acho que há um outro nível de
evolução do saber. É o saber codificado, registrado para sempre em uma
certa linguagem. É o produto puro e final de variadas trajetórias, terres
tres ou aéreas, para usar a sua analogia. É o saber que está encerrado e vivo
nas bibliotecas e nas gravações, nas fórmulas e equações, nas pranchas de
Vesalio ou nos antifonários de Isabella."
25
"O mundo número três de Popper, por acaso?", indagou Anna, en
quanto servia mais 'penne' no seu prato e no meu. "Eu acho que nós três
vivemos nele e, de minha parte, não pretendo emigrar."
"Esse sim é um saber desencarnado, louvado seja Alan Kardec, ver
dadeiramente transcendente ao processo que o produziu", completei.
"E é por isso", emendou Lorenzo, "que as palavras conservam sig
nificados de outros tempos mesmo que tenham novas conotações no pre
sente".
"Mas histeria hoje nada tem de uterino a não ser a etimologia", in
terveio Anna.
"Tem e não tem, depende do texto que você ler; mas seguramente
não existe mais nada do conceito antigo nos textos de hoje. O nexo en
tre as duas acepções não é, digamos, genético, no sentido de que esta con
cepção deriva daquela, numa linhagem que mantivesse, de uma geração
a outra, algo substancial e permanente como genes ou cromossomos."
"Mas o consultor acha que psiquismo deriva geneticamente de Psy
che e erotismo descende de Eros", ajuntou Anna, tirando o guardanapo
dos lábios. E continuou: "O diabo é que a idéia de evolução ou gênese é
meio vaga. Há o significado de formação ou evolução, há o de transmis
são hereditária e, ainda, o de filiação ou descendência. Em outros termos,
se o Pinat me concede, eu diria que o nosso consultor confunde gênese,
genética e genealogia".
Lorenzo, que estava espetando as 'penne' restantes na tigela, franziu
a testa e olhou para o teto, por alguns segundos. Depois levantou os bra
ços como a interromper o trânsito e disse: "Lindo, Anna! Gênese, gené
tica e genealogia do conhecimento! Escreve isto, Emilio: vai ser o nosso
best seller".
A frase de Anna era mesmo inspirada.
"O parecer me pede uma análise 'genética' da idéia de psiquismo.
Supõe que o material genético da poesia épica sobrevive, talvez com al
gumas alterações menores, até no Projeto de Freud, como uma molécula
de DNA. E pensa, quem sabe, que o DNA da melancolia hipocrática se
transmitiu às várias subespécies de melancolia até às do século XIX. Mas
o que nós fazemos no Galilei não é genética da ciência ou do saber.
Nós fazemos genealogias, estabelecemos linhas de descendência ou fi
liação das idéias, mas sabemos muito bem que as linhagens que traçamos
26
29
"Ii pane, signor Giulio", gritou da calçada um garoto, "dove lo las
cio?", justamente quando Giulio tomava fôlego para continuar a frase.
"Miséria! No lugar de sempre, ou será que a loucura daquele mila
nista é contagiosa? Você é o único inteligente daquela padaria. Deixe o
pão lá na cozinha em cima da mesa grande, e depois tome um refrigeran
te ali no balcão dos copos."
Depois de um suspiro, Giulio prosseguiu: "Eu estava dizendo que
a função do conhaque e do Marsala é a de introduzir aromas e sabores que
combinam especialmente com o perfume e o gosto natural do faisão. Mas
como às vezes o Marsala pode adoçar demais a carne, o conhaque ofere
ce menos riscos e dá um sabor mais seco. Um aroma mais alcoólico do
que licoroso. Foi assim que a receita do avô de Lisa foi se aperfeiçoando
nas mãos da mãe dela. O que Lisa aprendeu era temperar com pouco pre
sunto e preferivelmente com conhaque, além das ervas habituais...".
"Mas então quem é genial nesta história?", Lorenzo parecia impa
ciente.
"A história de uma receita não é simples, professore. Mas eu lhe mos
trarei que genial mesmo é a receita de Lisa, primeiro explicando como ela
nasceu e depois com a demonstração prática, no prato, ou melhor, na
boca", respondeu Giulio, bem-humorado.
"Pelo jeito, Lisa fez uma revolução na história da receita", arrisquei.
"É isso mesmo, ou quase isso, dottore."
Lorenzo lançou-me um olhar de fingida comiseração. A ele Giulio
havia chamado professore. Mas a cara de superioridade se desmanchou
logo depois, quando Giulio continuou, olhando para mim: "Vejo que o
senhor me entende melhor. Ninguém pensa em colocar anchovas ou azei
tonas pretas num faisão. Por quê? Porque quando se trata de faisão es
sa idéia é absurda, mas ela é perfeita para um prato de fusilii alia pri
mavera. É como se tivéssemos famílias de idéias, algumas puxam ao pai,
outras a alguma avó. Elas vão mudando, mas conservam algumas qua
lidades que são a marca da família, por assim dizer. A irmã de Lisa, So
fia, mudou a receita do faisão, usando nata em lugar do presunto. O efei
to é ótimo: suaviza o sabor, como fazia o presunto cru; e evita o gosto
de frito que ele pode pegar. É u"ma evolução da receita, mas não uma
revolução" .
"Mas é uma invenção dela", disse Lorenzo.
30
"Não. Entre os cozinheiros há muitas experiências que são comuns.
Por isso não é difícil que eles mudem seus métodos de maneira parecida
ou até igual. Claro que Sofia não copiou ninguém, mas o uso da nata é
normal, por exemplo, no faisão Delia ou no faisão alla California. Que
nome mais idiota para um faisão! Se é por causa do limão poderia cha
mar-se alla brianzola, pois toda velha villa da Brianza tem limões exce
lentes. Mesmo os cultivados nos vasos de terracotta. O problema da nata
é que ela pode 'talhar' ou azedar, quando se usa limão; como no caso do
alla California."
"O uso da nata pode dar algum produto meio bastardo, na família
de receitas, Giulio?", perguntou Lorenzo.
"É isso mesmo, professore." Lorenzo lançou-me de novo aquele
olhar de prima donna. Mas Giulio prosseguiu, imperturbado: "Certas
mudanças corrompem a receita tradicional, mesmo quando fazem sucesso
e começam a produzir imitações e inovações. Outras até aperfeiçoam, por
assim dizer, a raça das receitas e se tornam especialidades dentro da fa
mília, digamos... ".
"Obrigado pelo refrigerante", agradeceu o garoto da padaria, num
sorriso suado, com o cesto vazio sobre o ombro.
"Por nada, meu filho. Diga àquele milanista maluco que no domin
go ele vai engolir o Tuttosport."
O garoto, de uns 11 anos, caminhou para a porta e, quando se sen
tiu inobservado, voltou-se e fincou um olhar quase antropófago nas be
las pernas de Anna.
"Uma coisa importante na vida, e também na cozinha, é perguntar
por que as maneiras de fazer as coisas são assim e não de outro jeito. Isso
é a raiz de qualquer descoberta culinária", disse Giulio, espantado com a
solenidade da última frase.
"Quero dizer", atenuou sem muito jeito, "que não se deve empregar
um certo tempero ou modo de cozer só porque se aprendeu assim. Um
tempero ou combinação de temperos é usado porque produz certos efei
tos bem precisos. Mas o mesmo efeito pode resultar de outros condimen
tos e isso pode trazer vantagens que o modo tradicional não permitia".
"Giulio, espera um pouco", falou Lorenzo, "um tempero é uma er
va, louro, por exemplo. E o efeito dela é, digamos, um certo perfume...".
"Não. Talvez sim, explico", continuou o nosso oste, "um tempero
31
é um sabor ou aroma que pode ser dado por uma erva ou um conhaque,
por exemplo; mas muitas vezes ele é o resultado de combinações delica
das de diferentes ervas ou outros ingredientes... ".
Anna acompanhava meio atordoada a erudição culinária de Giulio,
mas parecia estar gravando as afirmações que descreviam o que seria uma
evolução do "saber culinário", foi o que senti. E senti também que ela
me atraía muito, mesmo que não soubesse o que era faisão Delia ou Klu
zero Ela estava ouvindo Giulio como uma criança ouviria um astronau
ta. Que mulher! Eu também pensava em aromas e louros, coroando os
cabelos soltos de Anna, quando Giulio me pegou em flagrante: "non
dottore?".
Eu senti o que sente um estudante que adormeceu na aula. E, como
tal, franzi a testa fingindo uma dúvida inteligente.
Mas a pergunta era puramente retórica; ele nem viu a minha reação
e continuou com uma frase inquestionável: "Se eu dou as mesmas ervas
a Sofia e a Lisa: cada uma fará um tempero diferente, tutto suo. De outro
lado, um mesmo tempero pode resultar até de diferentes ingredientes ou
misturas deles".
Lorenzo definiu as coisas: "Então temos ingredientes e temperos. Os
temperos são produtos dos ingredientes e um mesmo produto pode re
sultar de diferentes misturas de ingredientes".
"Bravo, professore! Lisa é capaz de produzir o sabor que ela quiser,
com as mais diversas combinações de ervas, licores, vinhos e especiarias.
Foi assim que ela produziu sua receita genial."
Ele fez uma pausa antes da peroração, mas nenhum de nós disse na
da. Talvez para abreviar a discussão, talvez por achar que o silêncio se im
punha como pré-clímax do discurso.
"Lisa descobriu que uma mistura de vinho branco forte e seco, não
muito maduro, combinado com alecrim, tem o aroma dos grandes desti
lados alpinos, e o sabor dos conhaques mais secos: isso significa uma sé
rie de vantagens. Exclui-se o conhaque, e com ele o risco de fundo amar
go. Elimina-se o Marsala e, com ele, o sabor licoroso ou adocicado e a cor
mais escura da carne e do molho. O faisão ganha uma leve cor dourada,
puxando mais ao ouro que ao cobre: Mais ainda, ela descobriu que o fai
são fica muito mais macio e úmido se, antes de ir ao fogo, passar uma
noite nessa mistura de vinho branco, tipo Malvasia, com alecrim. Mas há
32
um detalhe sobre o alecrim: tem que ser colocado principalmente sob a
pele do faisão. Após algumas horas de repouso, o faisão desprende um
perfume delicado e alcoólico, como se os aromas do vinho e do alecrim
se fundissem num perfume novo."
"E o presunto?", perguntei.
"Bravo", falou Giulio, "mas não esqueça: o que interessa não é tan
to o ingrediente como o 'tempero', o efeito dele. O presunto ou a nata
servem para suavizar o sabor final; se o primeiro não tosta e a segunda não
azeda com os outros ingredientes. Lisa resolveu isso também: cebola ra
lada, refogada lentamente em manteiga fresca misturada ao Malvasia, der
ramado pouco a pouco. A cebola fica perolada, perde o sabor ácido, gra
ças à manteiga, e o gosto adocicado, por causa do Malvasia. O faisão ga
nha toda a suavidade sem que a cebola se imponha: ela desaparece num
sabor novo que une, delicadamente, o gosto dela ao da manteiga, ao do
Malvasia, ao aroma do alecrim, 'cortado' pelo vinho".
"E stou com agua na b " conf essou A nna. "E spero que essa Ja
oca,
gianella chegue logo. Quanto demora, Giulio?"
"Só alguns minutos. É um preparo lento, para cozê-la muito bem
por dentro, sem ressecar por fora. O sugo de cebola ralada, manteiga e
Malvasia precisa ser recolhido e derramado muitas vezes sobre a carne.
Daqui a pouco ela chegará, dourada de leve e com o perfume que só Lisa
sabe criar."
"Desculpe, Giulio. Eu entendo que Lisa criou uma receita nova e
deliciosa. Mas qual é a diferença entre novidade e genialidade de uma
receita?"
Giulio esperava a pergunta. Respondeu categórico e quase compla
cente ante a nossa incompetência: "Uma receita é genial quando tem três
qualidades. Ela deve ser original, uma solução superior para obter um cer
to prato, e deve produzir novas receitas ou aplicações a outros pratos. A
de Lisa é genial por tudo isso: é completamente nova, resolve melhor os
problemas do preparo do faisão, como sabor, umidade, cor, aroma e, em
terceiro lugar, já ficou um estilo, uma marca dos pratos de Lisa. Ela já me
lhorou ou criou, depois disso, várias receitas para frango, pombo, peru e
até certos pratos de vitela".
"É claro que os peixes e as lulas não ganharam nada", provocou
Lorenzo.
33
"Óbvio. Como eu disse antes, trata-se de outros tipos de carne, que
aceitam outras famílias de receitas. Outras concepções", concluiu Giulio,
"não é assim que se diz?".
Anna, pelo jeito, queria juntar munição. "Então, uma idéia é genial,
quando é original, quando é uma solução superior às que existem e quan
do gera outras idéias novas. É isso, Giulio?"
"Nada mais e nada menos, sígnora." Ela relaxou-se na cadeira com
um sornso.
"Pelos ares que sopram da cozinha eu diria que a fagíanella deve
estar pronta. Os senhores poderão verificar que não exagerei quando
disse que a receita de Lisa é genial. E digo mais: ela, Lisa, é um gênio da
culinária..."
falava, de costas para a cozinha, Giulio não viu a aproxi
mação da mulher.
Nenhum de nós a tinha visto antes. Mas só podia ser ela, pelo an
dar desenvolto, de quem se sente em casa, e pelo avental, gracioso e sim
ples, de cozinheira. Lorenzo estava, literalmente, de boca aberta; Anna
observava o corpo dela, sinuoso e firme, da cabeça aos chinelos leves, de
couro branco e meio salto. Eu, juro, estava meio atordoado: era uma
mulher belíssima, com um corpo que lembrava os melhores anos de Ri
ta Hayworth, e o porte de uma Grace Kelly. Os cabelos, presos num
coque, estavam envoltos por um foulard azul-marinho, que combinava
perfeitamente com a blusa branca, moderadamente transparente, e com
a saia também azul"-marinho, justa, nos limites (às vezes inoportunos) do
bom gosto.
Tinha um rosto suave e olhar recatado. Beliscou afetuosamente a
barriga de Giulio. "Vamos, seu boa-vida. Ajuda-me com as travessas.
Com licença, senhores."
Deu-nos um sorriso cortês, rodopiou na ponta de um pé e saiu para
a cozinha com um gingado sóbrio e fatal. Giulio contemplou aquele an
dar sensual. Seu olhar misturava, como num bom tempero, orgulho, afeto
e desejo. Lisa voltou-se e surpreendeu o olhar de cobiça. Deu-lhe uma
piscada, empinou o nariz e entrou na cozinha.
"Se me permitem, vou ajudá-la", disse ele, e a seguiu.
"Que mulher!", foi o comentário óbvio, mas incontível, de Lorenzo.
Anna estava séria, como se algo a tivesse magoado. Tinha uma sombra de
34
amargura no olhar. Na falta de outra frase, comentei: "Bonita, não?». A
resposta foi: "Bonita, genial e amada. É de dar inveja a qualquer mulher".
"Menos a você, é claro", tentei ser galante.
"Antes fosse", respondeu ela, sem qualquer vibração, e me encheu
de ternura. Contive o ímpeto de abraçá-la. Mais uma vez desejei que Lo
renzo evaporasse, mas ele estava -ali, perfeitamente sólido, olhando atra
vés do seu Barbera para a janela mais próxima. Eu sabia que ele estava
digerindo, além do salame, a "teoria» da genialidade, de Giulio. Depois
levantou-se, começou a caminhar lentamente entre as mesas e dirigiu-se
a Anna: "Ela é bonita, genial, amada e sem medo de seduzir".,
Anna ouviu atenta, esboçou um sorriso de mas rendeu-se
ao inesperado da frase. Estava agora diante de um adversário mais difí
cil: ela mesma. Era inútil enfrentar o assunto retomando a discussão an
terior sobre as feministas, para ganhar tempo. Se ela invejava Lisa por ser
amada, devia talvez procurar a razão dessa vantagem no emprego, sem
culpa, das armas da sedução. E então, ela teria de explicar a si mesma o
seu "adeus às armas". Ou a sua "culpa" ao seduzir.
Ela reconheceu: " Agora, segundo o script, só me resta levantar-me
mostrando as coxas e sair rebolando para os turistas do Biffi". Fingiu uma
desolada resignação.
"É uma rendição?"
"Cretino!", disse ela rindo, enquanto Lorenzo, por trás da cadeira,
lhe afagava os cabelos. O sorriso dele tinha muito de paternal. Graças a
Deus.
"Signori, ecco la fagianella!" Giulio vinha imponente, trazendo uma
enorme travessa de louça esmaltada. Mais atrás, com certa majestade mas
recatada, Lisa trazia uma grande bandeja de alças, com as terrinas dos
contorni. Naquele momento um turbilhão de idéias me passou pela cabe
ça. Coisas como: a beleza do que é simples, a majestade da figura femini
na, a superioridade das coisas genuínas, verdadeiras, a duvidosa validade
do saber acadêmico, a alienação do intelectual, as "Bucólicas" de Virgilio,
as delícias de uma mulher apaixonada, a nave central de Westminster,
como seria uma noite com Lisa, como Giulio era feliz ... E se Anna dei
xasse o marido? .. Estacionei gostosamente nessa última idéia.
Não há adjetivos dignos dos pratos que Giulio e Lisa dispunham
sobre a mesa. Eram dois faisões inteiros, dourados, sobre o molho de vi
35
37
po de trigo maduro, ao sol da manhã. Essa cor suave, quase transparen
te que'fica no sugo e na pele do faisão. Essa cor de...".
Não sei se algum de nós, fora Lisa, achou um nome acertado en
quanto ela refletia. Mas qualquer um esperaria a escolha dela.
"Talvez", hesitou ela, "a cor justa, ou o nome certo seja... faisão...
'Alabastro'".
Anna sorriu, fechou os olhos e murmurou: "Tinha que ser".
Capítulo 2
Tesouros do livreiro
39
-
40
que, mesmo nesse século, a doutrina psiquiátrica abrange somente uma
porção reduzida da psicopatologia."
"Claro. Mas, por falar em loucos e loucura, não esqueçamos Emilio."
"Obrigado." Retribuí a fineza: "Como se vê, o problema de vocês
não é associar idéias. Mas sim ter idéias".
"Algumas nós temos", disse Tulio rindo.
"O risco é exatamente esse:'
"Um
"Vamos. Será o meu segundo."
Quando retomamos a caminhada pelo claustro uma brisa fresca tre
mulava as folhas das cerejeiras. Era tudo o que eu precisava depois de tan
to Pinot. Explicaram-me o porquê da conversa. Mauro tinha achado tex
tos inéditos sobre rituais ou práticas psicoterápicas antigas e não sabia se
elas constituíam uma psiquiatria ou não. O problema era bonito. Quase
lamentei ter bebido tanto no almoço. Quase.
Tulio disse: "O critério que me parece justo seria considerar psi
quiátrico o saber sobre a loucura, e suas variantes, com propósito de cura,
independentemente de sua validade enquanto conhecimento. O feiticei
ro zulu, Aristeu da Capadócia, Galeno, os exorcistas medievais, os mes
meristas, Pinel, Esquirol e Kraepelin se equivalem; escreveram ou fizeram
psiquiatria. Se alguns deles criaram doutrinas delirantes e métodos irra
cionais de terapia é secundário. Você concorda, Mauro?".
"Parece um bom critério. O problema é que alguns dessa lista não
escreveram os fundamentos doutrinários de seus métodos. Nesses ca
sos a psiquiatria seria a pura praxis terapêutica. Outros escreveram coi
sas malucas com a presunção de fundamentar a eficácia ilusória de suas
técnicas... "
"Mas cada um tinha o propósito terapêutico, curativo. O que varia
entre eles é apenas o grau de fundamentação racional explícita do méto
do. A importância do diagnóstico, a fundamentação objetiva das técnicas,
isso varia. Mas são questões secundárias, para quem pretende determinar
a genealogia das idéias psiquiátricas."
Anotei, em algum canto do córtex, a palavra "genealogia".
Mauro concordou, com um gestó de cabeça, hesitou um pouco, e
quase murmurando, explicou a hesitação: "Uma coisa que me intriga é
que o feiticeiro, o exorcista medieval, o mesmerista e, regredindo no tem
41
o médico humorista da escola hipocrática, todos eles professam ou
até proclamam doutrinas que têm muito de delírio, paranóia ou alucina
ção. Até aí teríamos o desvario, ou a maluquice como fundamento da
. . ".
pSlcoterapla...
"Psicoterapia homeopática", brincou Tulio.
"Acontece", continuou Mauro, "que a reação do paciente nada tem
a ver com a racionalidade do método ou com a maluquice da teoria em
que se baseia. Não é uma questão desprezível, quando se confrontam es
colas ou doutrinas em psiquiatria".
Eu nunca tinha pensado nisso, pelo menos nesses termos, mas as
implicações eram muitas. Comecei a pensar em uma delas, quando Tulio
complicou o problema. "Há outra coisa estranha, Mauro: o resultado do
tratamento do feiticeiro, ou do exorcista é, muitas vezes, a catarse, para
alguns, sinônimo de cura ou, pelo menos, de início dela. Mas a catarse é
justamente um estado ou forma de loucura, pelo menos segundo Platão,
quando discorre sobre a loucura resultante de práticas rituais ou 'mis
téricas' como as da oreibasia dionisíaca, a dança da montanha."
Mauro, então, disse alguma coisa que não teve continuidade e que
Tulio mal ouviu ou ignorou, mas me intrigou, mais tarde.
"Platão podia dizer o que quisesse. Fazer uma Apologia de Sócrates,
só depois da auto-execução, por que não antes?, ou aproveitar o texto de
'As Bacantes' de Eurípides para fazer literatura. Tanto é literatura que ele
fala também de uma loucura poética, como se o poeta fosse possuído pe
las musas, tal como um oráculo. O tratamento dado à loucura em 'As
Bacantes' é muito mais complexo do que insinua qualquer exercício li
terário de Platão sobre essa tragédia. Claro, a idéia da dança da monta
nha não é propriedade de Eurípides, fazia parte da cultura ática. Mas acho
que o fato de Platão dizer isso ou aquilo não é argumento nenhum. Mais,
o Sócrates que ele nos passou é o Sócrates segundo Platão, como todos
sabem."
"E então?", indagou Tulio.
"E então, o racionalismo socrático nas mãos de um especialista da
comunicação ofuscou outras concepções do homem, cultivadas mesmo
nos tempos de Sócrates. As idéias de Sófocles e de Eurípides, por exem
plo, eram muito mais abrangentes do que parecem no contexto estrito de
uma peça teatral. O genial Platão sabia disso, suponho."
42
"Você não está pretendendo que Platão aderisse com igual entusias
mo às lições socráticas e aos monólogos de Fedra ou de Medéia, ou aos
juízos de Jasão sobre as mulheres?", sugeriu Tulio.
"Isso é, ou foi, problema dele. O nosso é que, graças ao critério dele,
o pensamento de Eurípides, por exemplo, não foi integrado ao corpus
doutrinário tradicional da filosofia. Eurípides precisou 'reencarnar' no
século XVII com o nome de Blaise Pascal, já sem muita inspiração dramá
tica, mas ainda patético. "
"Depois que o racionalismo se tornara a forma mentis hegemónica
na filosofia", emendou Tulio.
"Conversem meia hora com Anna e vocês entenderão melhor o que
eu digo. Na verdade, conheço muito pouco do assunto. Agora eu gosta
ria de retomar a questão da... 'psicoterapia homeopática', se vocês não se
aborrecem." Mauro nos consultava com o olhar.
Devo ter dito que o tema me interessava muito, ou coisa parecida,
porque a conversa prosseguiu. Mas nesse ponto eu já estava quase em ór
bita. Explico. A manhã no Menarost tinha sido muito intensa para mim:
a discussão sobre o parecer do consultor, a questão da oposição entre uma
"genética" e uma "genealogia" do conhecimento, a atração por Anna, a
aula de Giulio sobre genialidade, tudo isso, mais o vinho. Agora, a vaga
suspeita de uma distorção astronómica no fluxo do saber, por obra das
preferências "acadêmicas" de Platão e, como xeque-mate, a informação
luminosa de que Anna era a saída para todas essas perplexidades. Eram
muitas idéias e, sobretudo, muitos caminhos. Eu me senti meio perdido,
quase em perigo. Lembrei, sabe-se lá por quê, as menininhas loiras à beira
do precipício, mas sem anjo por perto. Anna, depois do Menarost, podia
entrar em meu pensamento sob as mais variadas figuras. Mas, como anjo,
não dava. Mesmo.
Mauro estava dizendo algo sobre Agave, em "As Bacantes", que não
se tratava propriamente de uma catarse, mas de uma alucinação ou tran
se. Se o feiticeiro ou o mesmerista provocam transes ou alucinações, não
quer dizer que tenham induzido qualquer catarse.
Eu já não acompanhava mais nada do que discutiam, mas tentava
manter-me atento. Por sorte, no outro lado do claustro, vindo da coluna
da águia, apareceu Beatrice, quase saltitante, com seu sorriso leve, meio
infantil, sacudindo no ar uma folha que deveria conter, a julgar pelo entu
43
siasmo dela, alguns megatons de novidade. "Vocês viram Lorenzo? Pre
ciso lhe mostrar uma coisa. Vocês querem ver?"
Era a deixa para diversas piadas de mau gosto. Que não foram ditas.
Primeiro, porque todos nós adorávamos Beatrice, sua espontaneidade,
sua inteligência. Segundo, porque Tulio e Mauro estavam naquela hora
submersos em rituais, feitiçarias e outras coisas, presumivelmente cheias
de fumaça, e eu procurava agarrar-me a qualquer coisa que não exigisse
meus pobres neurônios. E me fizesse reentrar na atmosfera terrestre.
Por isso, creio, fui o primeiro ou o único a responder, com efusão:
"Claro, menina, mostre para nós. Juramos manter segredo."
Tulio, que sempre acompanhava tudo, perguntou: "Desta vez tam
bém é sobre algum precursor de um conceito?".
"De uma técnica... que permitiu um método."
"Que século?"
"Não digo."
"Então não sei."
"Nem eu", dissemos Mauro e eu, tão sincronizados que quase es
cutamos "nem nós". Beatrice pigarreou, jogou os loiros cabelos para trás
e hesitou, diante do silêncio que se fez. Talvez arrependida por criar tanta
expectativa, ela falou, em tom de confidência: "Lorenzo insiste em que
todo o behaviorismo não teria surgido sem o trabalho de Ivan Petrovich
sobre a secreção salivar no cão. Até aí é fácil concordar. Mas ele acrescenta
que tudo isso, que hoje acabou em scientific management das pessoas, só
aconteceu porque Glinsky descobriu a técnica de abrir fístulas salivares,
e sem a qual Pavlov não teria podido estudar in vivo a digestão nos ma
míferos. Para Lorenzo, a 'grande invenção' foi a técnica cirúrgica de fi
xar cânulas em glândulas ou outros órgãos internos. E tudo isso se deve
à idéia pioneira de Glinsky, segundo ele. Eu procurei algum precursor da
técnica e achei. Não para contradizer Lorenzo...".
"Então para quê?", indagou Mauro, em tom meio seco. Pensei que
estava irritado porque Beatrice de algum modo cortara a discussão dele
sobre rituais ou mesmeristas. Ou porque achasse petulante a pretensão
de contradizer Lorenzo em assuntos médico-biológicos. Beatrice enco
lheu-se um pouco, mas sustentou o desafio.
"Para ilustrar uma idéia que você não esperou que eu contasse.
Quando se diz que na ciência não há gênios, faz-se referência à inexorá
44
45
Resolvi não informar mais sobre Giulio, por puro egoísmo: eu não
queria que o Menarost se tornasse ponto de encontro obrigatório do pes
soal do Galilei, desejava que ele ficasse um refúgio, segredo de poucos.
Talvez porque, depois das emoções da manhã, a trattoria de Giulio se tor
nara para mim um lugar muito especial, muito pessoal. Mas nenhum dos
três perguntou detalhes sobre o autor da definição, felizmente.
Beatrice continuou seu percurso saltitante, Tulio e Mauro retoma
ram o assunto da "psiquiatria primitiva", mas agora o problema era o da
genialidade da idéia de "o inconsciente".
"A loucura teria sua origem na repressão, para o inconsciente, das
imagens, desejos, lembranças que de algum modo sejam uma ameaça de
sofrimento. Está certo isso, Emilio?", perguntou-me Mauro.
"Penso que sim, mas isso só vale para Freud."
"E antes dele?"
"Antes de Freud houve a concepção organicista do século XIX, o
hipnotismo, o mesmerismo, o demonismo cristão, como métodos tera
pêuticos; mas as doutrinas psicopatológicas são muito mais antigas, como
disse Tulio. Teríamos que regredir ao 'organicismo metafísico' de Plater
e sucessores, ao greco-romano, à tragédia grega e à poesia
épica de Homero."
"Tudo isso à espera do gênio de Sigmund?", provocou Tulio.
A resposta foi de Mauro: "Cada um dos pioneiros dessas concepções
inovou, resolveu de modo eficaz problemas teóricos ou práticos e gerou
desdobramentos futuros. Portanto, pela definição de Emilio, foram ou
tros tantos gênios. Mas tudo isso enquanto a teoria da loucura era pré
científica. Na ciência, como diz Anna, não há gênios. Há uma progressão
determinante no devir das idéias, condicionada pela realidade objetiva e
pelas regras da lógica".
"Se entendo bem", disse Tulio,"as idéias geniais só surgiriam na fi
losofia, na literatura ou nas artes. Mas nesses campos não há, a rigor, pro
gresso. Apenas transformações".
"As coisas não se excluem. Shakespeare, por exemplo, pode ser co
roado como um gênio, mesmo que seu estilo ou sua técnica não represen
tem progresso na arte de escrever dramas e comédias. Vivaldi é um gênio,
tanto como Beethoven ou Mozart, e nem por isso se pode falar em pro
gresso na arte de compor música."
"Ergo... quanto maior a margem de subjetividade num dado ramo
do saber, maior a probabilidade de inovações geniais. Será isso?"
Tulio nos interrogava com o olhar, espantado com a solenidade ca
tegórica de sua conclusão.
Os três sabíamos que, afinal de contas, a questão da genialidade é
totalmente inútil, na análise da evolução do conhecimento. Mas esse tipo
de discussão nos divertia.
Eram já seis e meia da tarde, o que, no verão da Lombardia, ainda
não é o começo da noite, mas é hora de fechar gavetas, arquivos, portas,
tratos, dúvidas... e debates.
Do alto da sacada dos "pombos", Bruno chamou-me, com um ges
to, à sua sala e entrou. Não havia gritado meu nome porque no Galilei
se havia estabelecido, ninguém sabia como, uma norma: quando alguém
conversava ou lia, ou simplesmente meditava no claustro, não devia ser
perturbado. Era um acordo tácito, ao qual só Beatrice não aderira e nem
era obrigada a ajustar-se. Uma Beatrice disciplinada seria uma contra
dição. Um absurdo.
Meus dois colegas suspenderam a conversa. Tulio tinha que jantar
com um editor, e Mauro ia visitar uma de suas noivas. Por um segundo
me pareceu que cada um invejava o outro.
N a sala de Bruno estavam Beatrice, Lorenzo, Isabella e Anna. Pelas
caras, estavam esperando quórum para combinar alguma coisa. Quando
vi Anna, meu interesse por qualquer programa ficou pendente, condicio
nado à opção dela.
Bruno costumava reunir a turma quando projetava suas"expedições
arqueográficas" nas aldeias da região. Mas reunia sempre os "avulsos",
porque os demais ficavam com a família nos fins de semana, quando as
viagens aconteciam. Desta vez, faltava Tulio, um "avulso", e estavam pre
sentes duas mulheres casadas. A idéia de uma viagem com Anna me fas
cinou. E o fascínio acabou quase imediatamente, quando ela perguntou
a Bruno: "E então, para onde vocês vão desta vez?". Esse "vocês" caiu so
bre mim como uma cachoeira gelada. "Vamos ver minha tia", respondeu,
bem-humorado.
"Minha tia toca piano. E a tua, Isabella?" .
"Costura para fora. Quem mais tem uma tia?"
"Serve uma tia do pré-primário?", perguntei.
47
"Silêncio", pediu Anna, com ar severo. "Nenhuma tia é como a de
Bruno: ele me disse que ela é amiga de um vigário, Dom Attilio."
"A minha é amiga do leiteiro", disse Beatrice.
"A minha conhecia um cônego", informou Isabella, "e meus primos
nasceram na sacristia...".
Bruno esperou, rindo, que se fizesse alguma calma.
"Agradeço as manifestações de júbilo e respeito dedicadas à minha
tia Margherita, e passo a expor o plano de viagem. Desta vez Tulio não
vai. Tem uma conferência no sábado em Florença. Anna não vai porque
fica com o filho e o marido. Em compensação, Isabella vai conosco por
que o marido dela vai comprar vinhos nas colinas de Padova."
"E se ele fosse comprar melancias ela não iria, I presume", disse
Beatrice.
"Após as sábias considerações de Beatrice, prosseguirei, se os senho
res me consentem", continuou Bruno, inalterado.
Pegou uma velha gravura que mostrava uma espécie de palácio, de
arquitetura pouco definida, cercado de árvores e campos ondulados, com
cavalos, carroças e camponeses. Uma suntuosa propriedade rural de al
gum nobre de outros tempos. "Esta villa fica no Piemonte, depois de
Alessandria, entre Canale e Poirino, 70 quilômetros de Asti, pela estrada
de San Damiano d'Asti. A gravura é do século XVI. Esse torreão que se
vê à direita foi reduzido a pó pelos simpáticos rapazes de Eisenhower, em
44 ou 45. A villa pertence a uma família antiqüíssima que juntou uma li
nhagem de Pinerolo e uma de Asti, há vários séculos. A atual herdeira é
uma velha dama, alguns a chamam condessa, que confiou a guarda do que
resta da mansão a Dom Attilio, pároco de Madonna della Spina... "
"E então, você, que é meio sobrinho desse Dom Attilio, agora é um
conde, herdeiro da propriedade", inferiu maliciosamente Beatrice.
"Como assim?", perguntou Lorenzo com mais malícia ainda.
"Não, infelizmente. Sou apenas sobrinho da tia Margherita. Dom
Attilio, por sua vez, é sobrinho, o mais novo, da condessa e velho amigo
de minha tia. Eles e uma irmã de Dom Attilio, já falecida, cresceram jun
tos em meio a vinhas, nevascas e bombardeios. Na infância chegaram a
brincar na velha villa nas férias, quando os condes ainda iam para lá, por
volta de 1910."
"Sei", disse Anna, "vocês percorrem meio Piemonte, tomam a bên
ção de Dom Attilio, um chá com a tia Margherita e retornam cheios de
poeira e de Barolo à velha Lombardia. É um programa fantástico".
"Claro que antes de voltar ouviremos os dois a lamentarem reuma
tismos e a lembrarem sua infância em Madonna della Spina, no começo
do século", foi o comentário de Lorenzo.
"É mais ou menos isso." Bruno estava acostumado a ouvir tais gen
tilezas, sempre que programava alguma expedição. Enrolou cuidadosa
mente a gravura e prosseguiu: "A villa não está em Madonna della Spina,
mas um pouco além. Pelas histórias que ouvi de minha tia no mês passa
do ainda existe muito a explorar na mansão. Foi fechada há uns 13 anos
e só mora lá, no plano térreo, uma família de camponeses. Qualquer vi
sita depende da permissão e das chaves de Dom Attilio. Eu penso que se
chegarmos lá na tarde do sábado, poderemos pegar as chaves para dar
uma olhada rápida na mansão e planejar uma exploração mais demorada
para o domingo. Precisamos da confiança de Dom Attilio e, para isso, do
apoio de minha tia Margherita."
"Devo ir de minissaia?", perguntou Beatrice.
"É uma viagem meio doida, Bruno. E se chegamos lá e o padre não
está, ou não gosta da minissaia de Beatrice, ou simplesmente acha que
somos da Superintendência das Belas Artes, fica com medo de desapro
priação e nos manda passear? Ir daqui até lá sem saber para quê, é meio
maluco, não?", era a dúvida de Isabella.
Bruno respondeu bem-humorado, mas firme: "Vai quem quer. A re
gião é linda e vale o passeio. Na pior das hipóteses respiramos ar de mon
tanha, bebemos o melhor espumante do país e dormimos num hotelzinho
simples, antigo castelo de caça dos Savoia, depois de um jantar com pre
sunto de javali acompanhado de Barolo ou de Barbera do melhor que há".
Os olhos de Anna brilhavam, mas eu sabia que ela não iria. De todo
modo, registrei seu interesse por montanha ou espumante ou um hotel
zinho simples, cheio de histórias, pelo Barolo ou por tudo isso. No fun
do do meu pensamento, a suspeita de que, mais que tudo, ela queria via
jar, fugir. "Wishful thinking", segredou meu superego. Passei a pensar em
mim. Eu gostaria de passar o fim de semana com Anna ou, pelo menos,
perto dela. Mas ficar na minha toca de via Caravaggio, num fim de se
mana ensolarado, imaginando Anna com o marido, era uma alternativa
inaceitável.
49
"Eu vou de qualquer modo", declarei. Anna pareceu não gostar da
minha escolha "wishful thinking", advertiu, desta vez, meu ego. "Deixa
de fantasias. Ela é mulher de outro, quer ficar com ele e só não te manda
ao diabo porque até agora você não tentou nada. Toda mulher adora ser
desejada por um segundo homem, gozar a fantasia do adultério, sem os
riscos do adultério real. Na verdade, ela se diverte com as tuas insinua
ções e olhares de cobiça ou de afeto." Achei meu ego um tanto radical e
injusto: tudo isso poderia até ser verdade, no caso de muitas mulheres,
mas Anna era diferente: verdadeira, leal, incapaz de se divertir com o sen
timento alheio. "Wishful thinking", intrometeu-se meu instinto de sobre
vivência, a porção mais arcaica do meu ido Começou então uma inopor
tuna altercação entre ele e o ego.
Para terminar a disputa, agarrei-me à realidade e disse, para todo o
grupo: "Eu decidi que vou, de qualquer modo".
"Você já disse isso", falou Anna com uma expressão de espanto e,
talvez, de enfado. Meu id era mais esperto do que eu.
Os outros começaram a perguntar detalhes sobre o percurso, o ho
tel, as chances de achar tia Margherita e o padre. Bruno explicou que na
última visita à tia havia contado que trabalhava na Fondazione Galilei e
nela fazia pesquisas sobre obras antigas.
A tia lembrou, então, que seu amigo pároco não sabia o que fazer
com a mansão secular da família. Esperava que alguma fundação a res
taurasse. Nem ele, nem a família tinha condições de recuperá-la. Mas não
queria que ela terminasse sua história como abrigo de ovelhas ou celeiro
dos camponeses da região. Como tinha sido, em parte, nos anos cinqüen
ta. Não era apenas amor pela casa. Era respeito pelos antepassados que ali
tinham vivido combates, invasões, heroísmos e também amores. Mas, so
bretudo, acontecimentos pessoais de nobreza, de alegria ou de tragédia
que a tradição familiar havia guardado em muitas décadas. Agora, apenas
memórias confusas, contraditórias e fragmentadas era o que restava. O
pároco pretendia escrever uma história da villa. Mas desde os anos qua
renta não havia escrito nada. Antes da guerra, talvez.
"Agora é que eu quero ir, de qualquer jeito", disse Lorenzo.
"Sem Lorenzo, a Lombardia fica insuportável", caçoou Isabella,
"não me resta outra alternativa. Vamos decifrar essa villa".
Beatrice manteve o tom dramático: "A história não me perdoará se
50
Isabella e Lorenzo forem atacados por algum fantasma sem a minha pro
teção. Por isso, saibam todos que eu vou para o Piemonte. Mas preciso
de carona se o mecânico não aprontar o meu jipe".
Nossa partida foi marcada para as oito da manhã do sábado diante
da casa de Lorenzo, em via Piacenza. Antes de dispersar o grupo, Bruno
sugeriu um encontro na entrada de Milão, num tal Anjo Azul que ele e
Tulio tinham encontrado, dias antes.
Não havia, no Anjo Azul, qualquer vestígio de Marlene Dietrich. O
anjo azul, porém, estava lá, na parede do fundo, sobre um pedestal de ma
deira. Era uma horrível estátua de gesso pintado, de olhos esbugalhados,
com uma boca de boneca e asas curtas, brancas e encardidas. Tinha uma
túnica que no passado tinha sido azul. Conforme o porteiro explicou a
Beatrice, fora encontrado numa escavação de galerias pluviais em Bérga
mo, num terreno do proprietário do bar. Era um bergamasco chamado
Alberto, com os cabelos tingidos de uma cor indefinida, que excluía ape
nas o verde e o roxo, conforme análise de Anna e Beatrice. Por volta de
onze da noite as três mulheres se foram, com Lorenzo. Bruno e eu fica
mos mais uma hora ou quase isso, o tempo suficiente para umas três cer
vejas e para que ele me contasse algumas curiosidades sobre a villa do
Piemonte.
Tinha sido a casa de verão de grandes senhores, de bispos e prince
sas, cenário de concertos, peças teatrais, glórias, pecados e crimes. Tudo
isso Bruno tinha ouvido na região ao visitar a tia, tempos atrás. Mas não
sabia o que era certo, o que era lenda, nem quando andaram por lá prínci
pes, bispos ou artistas. Eram coisas que" os antigos contavam", no dizer
de tia Margherita. Ele queria encontrar vestígios, indícios ou provas desse
passado tumultuado. E sabia que esse projeto nos entusiasmava a todos.
Mas, é claro, o interesse nosso e dele era o de achar escritos: livros, cartas,
o que fosse. Como eu já disse, nós éramos bibliomaníacos irrecuperáveis.
Numa certa hora, não sei bem quando, Bruno levou-me para casa.
Lembro-me de ter agradecido a gentileza e de ter recordado, por um áti
mo, o anjo da guarda que protege os indefesos, mesmo quando não são
menininhas loiras à beira do precipício.
Antes de dormir decretei que Anna erá uma mulher esplêndida, pes
quisadora brilhante, mulher de outro, indiferente às minhas insinuações
e olhares. Mais: ela apenas se envaidecia com meu interesse por ela. Toda
mulher gosta de ser desejada e cortejada. Sentenciei que era um creti
no, e dei ganho de causa ao meu instinto de sobrevivência que me afasta
va da cratera do vulcão. Na manhã seguinte ela me veria totalmente mu
dado. Afável, cortês, mas impessoal e distante.
Dormi miseravelmente.
Por culpa da cerveja ou do turbilhão de idéias e emoções do dia, tive
sonhos agitados que não recordo bem. Sei que Anna aparecia em mui
tos episódios, sempre com o marido, ou interessada em Tulio ou Bruno,
Mauro, Lorenzo. Só faltava que aparecesse agarrada a Lanebbia ou a al
gum turista mexicano. Mas aparecia também Beatrice que caminhava pela
Galleria, sorrindo para mim, rebolando como Marilyn Monroe e levan
tava a saia mostrando-me as coxas. Depois rodopiava e entrava na cozi
nha do Menarost sob o olhar excitado de Giulio. No melhor momento
do sonho eu estava abraçando Lisa pelas costas. Ela se contorcia mansa
mente comprimindo minhas mãos sobre seus seios, sorrindo deliciada.
Foi então que vi Anna chegando à cozinha, espantada e baixando triste
mente o olhar, desiludida comigo. Enquanto ela se afastava quase morri
de tristeza e acordei, com muita sede e muita vontade de rever Lisa. Ela
tinha a mansidão das papoulas ingênuas e espontâneas no meio do tri
gal. Algo bastante diverso de uma cratera incandescente e voraz. Lem
brei a decisão. Com Anna, gentileza, afabilidade, mas com distância e
impessoalidade.
Cheguei ao Galilei, atrasado, por volta das nove e meia da manhã,
com armadura completa e mais, lança, escudo, espada, arco, maça ferra
da e viseira abaixada. Invulnerável. Mesmo a feitiçarias e armas traiçoei
ras, como blusas transparentes, saias curtas, coxas bronzeadas ou sorri
sos sedutores.
No claustro, Tulio e Beatrice me sorriram e continuaram uma con
versa sobre idiotia e bócio endémico no Piemonte. Mauro me saudou
com efusão, mostrando um velho código criminal que tinha trazido para
Abelardo.
Minha sala estava acolhedora, inundada por uma luz suave que re
fletia o brilho da ramaria das cerejeiras tremulando em pleno sol. Tran
quei a porta, para gozar em paz aquela luz. Uma paz que vinha também
das decisões libertadoras tomadas na véspera.
Agora ficava claro o meu projeto. Não devolveria o manuscrito, nem
responderia ao consultor da revista. Quanto à pesquisa, depois das con
versas no M enarost, havia um rumo definido. Não há uma genética da
idéia de loucura. Descrever-lhe a evolução ou gênese era traçar a genea
logia das várias concepções e levar em conta a possibilidade de saltos evo
lutivos, por obra de algum gênio. Mas depois da conversa etílica com Bru
no sobre as destruições e reconstruções da villa do Piemonte, ficava evi
dente que o fluxo das idéias também está exposto a guerras, bloqueios e
desastres. O que eu deveria procurar não era sequer uma genealogia, ou
não era apenas isso. Eu tinha que reconstruir uma trajetória. O fluxo ge
nealógico das idéias não escapa dos apetites, dos jogos de poder, da bar
bárie, do que é casual, acidental ou, numa palavra, evento. Com toda a
fatalidade que isso implica.
Em certo sentido, toda história de uma idéia é a história de uma tra
gédia: a da inexorável tirania do evento sobre os sonhos e projetos do ho
mem. Senti que o velho Eurípides, de algum lugar no tempo, me sorria.
53
Depois de Asti, grande demais para o nosso gosto, paramos em San
Giulio. Pelas informações de Lorenzo, ali existiu, por volta de 1460, um
importante torchio, onde se imprimiam livros profanos e médicos. Antes
que a fúria anti-herética de Inocêncio VIll desencadeasse as barbaridades
do arquidiácono Alberto de Capitanei e de vários bispos piemonteses,
ávidos de resgatar, em igual medida, as almas e o ouro de pagãos, cátaros,
albigenses ou maniqueus de qualquer sorte. Havia belos afrescos da es
cola Senense no batistério dos beneditinos. De importante, além disso, só
o diálogo de Beatrice com o monge da portaria, sobre o bustiê dela, que
afrontava ostensivamente a gravidade do batistério.
desculpe, senhora. Não é permitido ingressar no recinto sa
grado em trajes... como direi? .. a senhora é inteligente e pode compreen
der que... vestida desse modo..."
"Que há de mal, monsenhor (sic)? Há muitas santas que foram mães,
amamentaram... O próprio Jesus Cristo deve ter mamado muitas vezes...
E naquele tempo não havia nem lingerie, nem sutiã, Deus fez Eva bem
mais dotada do que eu, pelo menos, segundo Michelangelo, e permitia
que ela passeasse, nua em pêlo, na sua chácara, ou jardim, não é mesmo,
monsenhor? "
O monge sorria, diante da espontaneidade dos argumentos, mas ar
queava as sobrancelhas num de mansa e definitiva resistência. Pa
recia estar treinado para as mais diversas contestações de turistas francesas
ou suecas à sua ingrata função de barrar o ingresso de minissaias, trans
parências e outras peças de desvestuário. Fixava Beatrice com sorridente
firmeza, calado. Apenas apontava os dizeres da placa: "Em respeito à casa
de Deus, lugar de recolhimento e piedade, o Reverendíssimo Abade or
dena ao irmão ostiário etc...".
Beatrice leu a ordem, olhou resignada para o monge e não se conte
ve: "Vocês são muito espertos, monsenhor abade (sic). Se eu entro, você
vai levar um sabão, por minha culpa. E então sou obrigada a ficar de fora.
Mas se o motivo é respeito a Deus, ele me enxerga, pelo menos, quando
tomo banho. E então, eu não posso entrar, por respeito às beatas que gos
tariam de andar soltas... como direi? .. provocantes. Mas eu não quero
seduzir ninguém e qualquer um vê -que Deus foi generoso comigo mas
não sou nenhuma Lollobrigida".
O porteiro não conteve o riso. Lorenzo, rindo também, tomou-a
54
pelo braço, saudou o monge, que balançava a cabeça, talvez a perguntar
se se Beatrice não tinha razão... quanto às beatas. Enquanto se afastavam
ela voltou-se, jogou-lhe um beijo: "Pelo menos ficamos amigos, não é,
monsenhor?" .
O episódio foi nosso assunto nos quilõmetros seguintes, até Cisterna
d'Asti, depois de San Damiano. Ali, no meio de um labirinto de estreitas
ruas, no vicolo del Priore, Isabella e eu achamos algo importante. Uma
oficina de encadernação, que ostentava alguns velhos livros com as lom
badas dilaceradas, outros com as capas em farrapos, sobre uma mesa. So
bre eles havia uma placa de cartão: "Restaurações de livros antigos e ma
nuscritos". Noutra mesa uma fila de esplêndidas encadernações em cou
ro de diferentes cores, vincos dourados, gravações a ferro, fechos de bron
ze trabalhado em baixo-relevo, alguns com monogramas de porcelana
esmaltada. Eram missais, antifonários, herbários, bestiários, bíblias, as
"Bucólicas" de Virgilio, textos de Plotino, Ovidio, Sófocles... Tudo o que
poderia encantar qualquer um do nosso grupo. Isabella começou a con
versa, perguntando sobre um fascículo desconjuntado, com várias man
chas, e que devia ser parte de um livro maior.
"É de um antifonário?"
"É um prazer atendê-la, senhorita... ou senhora. Meu nome é Val
desi, Aurelio Valdesi. Percebo que entende do assunto."
"Sou diletante; o senhor é um profissionaL."
"É de um antifonário do século XVI. Mais precisamente, do início do
cinquecento, e refere-se à liturgia do advento... "
"Última semana do advento", ajuntou Isabella.
"Como sabe, senhorita?"
"Pelas palavras. São a continuação do Rorate coeli desuper."
... et nubes pluant justum", acrescentou Aurelio, num tom de cor
tês desafio.
"Isto deve estar na página anterior, que falta. A seqüência é esta
aqui", ela apontou para o glorioso fascículo. "A primeira palavra está
apagada, mas a seqüência é aperiatur terra et germinet salvatorem."
O encadernador sorria satisfeito. Havia encontrado um interlocu
tor capaz de valorizar o seu ofício e o seu conhecimento. "A senhora me
rece conhecer o que eu tenho neste armário. Algumas peças vêm passando
de uma geração a outra da família, desde o quattrocento. Antes de se fi
55
57
"Deve ser difícil obter essas preciosidades, não é, senhor?"
"Hoje em dia, sim. Mas antigamente não havia antiquários, nem a
Superintendência de Belas Artes. Isto significa que não se dava grande
valor a livros antigos e que eles passavam facilmente de um dono a ou
tro. Mas a maioria das pessoas não sabia ler e, por isso, os livros facilmen
te se perdiam ou eram esquecidos em sótãos, porões, vãos de escada, ve
lhos armários. Mas nós, os encadernadores, há séculos, protegemos, sal
vamos e resgatamos essas maravilhas, das garras de ratos, gatos, inqui
sidores, moralistas, censores, fabricantes de papel, viúvas sovinas... "
"Os livros eram feitos para poucos", disse Isabella, um tanto inopor
tuna, interrompendo a série de vilões que Aurelio enumerava.
"A senhora sabe quem foi, na história da humanidade, o primeiro
que formou uma biblioteca individual? Foi Eurípides, o autor desse tex
to que a senhora acaba de ver."
"Alguns homens, porém, amaram os livros e os confiaram, quando
feridos, aos cuidados e ao carinho dos encadernadores e restauradores,
como os seus antepassados e o senhor mesmo."
Registrei apenas o sentimentalismo estratégico da palavra "feridos",
em vez de "estragados", "rasgados", "estraçalhados"... Eu jamais alcan
çarei a malícia feminina. Ela transformava o encadernador numa espécie
de médico incompreendido. E Aurelio estava francamente emocionado
com o histórico heroísmo do seu ofício. Então ela preparou o bote.
"Por exemplo, esse 'bispo vermelho'. Deve ter sido um amante dos
livros ou, até mesmo, um escritor..."
"Qualquer restaurador ou editor do Piemonte sabe disso, senhora.
Esse 'bispo vermelho' era um grande amante das artes e da filosofia. Já
meu avô dizia que os livros mais antigos do Piemonte eram os da villa do
'bispo vermelho'. Dizem os antigos que ele tinha uma espécie de teatro,
onde havia concertos e representações dramáticas; que ali chegavam violi
nistas, poetas, filósofos e sábios de todo tipo..."
Então ele pareceu perceber, achei, as intenções de minha amiga:
"Todas as vilas d nte e também do Vale d'Aosta já foram
vasculhadas lquários e Superintendência, cara senhora. Tudo
indica que a villa do bispo era região de Casale, provavelmente em
Madonna della Spina. Há uma grande villa lá. Mas essa também já deve
ter sido saqueada, através dos tempos."
Aurelio tinha, evidentemente, uma visão histórica do seu ofício.
Um aliado ideal, pensei, para um bando de fanáticos pela história do
conhecimento. Antes que me esqueça: o Galilei tem um nome oficial:
"Istituto Galileo Galilei per la Storia della Conoscenza". Isso não nos tor
na mais suportáveis, mas explica nossa avidez por textos antigos. E até le
gitima nossa cobiça.
O encadernador percebeu que Isabella ficara meio chocada com a
resposta. Ela fazia uma cara de desilusão. Mas essa expressão, pensei, era
parte de sua tática. Um gesto quase espontâneo, gratuito, de quem adianta
um peão no tabuleiro. A resposta foi a desejada: Aurelio sentiu-se in
delicado e... obrigado a reconquistar a admiração dela e o sorriso que se
apagara.
"Sou amigo de inúmeros restauradores e colecionadores em todo o
Monferrato, doutora. A senhora conhecerá verdadeiros tesouros de arte
gráfica e as mais fascinantes histórias sobre livros antigos. É só me avisar
com alguma antecedência, para que eu combine as visitas aos meus cole
gas. Venha quando quiser. Eu tenho grande prazer de conversar sobre
essas maravilhas e não suporto os que amam os livros pelo dinheiro que
valem e não pelos tesouros que guardam. Esses ficam na minha oficina
apenas o tempo de ouvir que estou fechando para almoço ou para ir ao
correio. Espero que a senhora me honre com novas visitas."
Dito isso mim, com um olhar que tentava ser de corte
sia mas er e indisfarçável misericórdia: "O senhor também será sempre
59
"Como você sabe?"
"Eu não quis espantar o nosso amigo Aurelio... "
"Teu amigo Aurelio."
"Está bem. Meu amigo Aurelio. Não quis assustá-lo. Aquele peda
ço do Rorate coeli foi escrito bem antes do século xv. Pode-se ver pelo
traçado dos podatus e dos porrectus.
"São notações musicais, suponho."
"São. Como qualquer virga, quilisma, salicus, pressus ou climacus,
meu caro latinista. Quem manda você me esnobar quando eu tropeço na
tradução dos meus salmos e orationes?"
Eu me senti humilhado, mas não deprimido. A depressão veio logo
em seguida.
"Seu latim vai ter que mostrar serviço logo, logo, meu caro. Ou você
acha que nossa querida Anna vai deixar essa tragédia e seus escólios mofa
rem por muito tempo naquele armário? Nem que precise penhorar o anel
de esmeralda, ela vai agarrar esse livro mais cedo do que você pensa."
Claro que fiquei meio deprimido. A idéia de um longo trabalho ao
lado de Anna me atraía e me assustava, como já disse. Mas deixar que ela
recorresse a algum outro, era um pensamento insuportável.
Mais. Eu adoro Eurípides; e aqueles escólios me enfeitiçavam. Mas
havia Anna na história. Outro fascínio incontrolável. Como ceder a esse
fascínio sem mergulhar de cabeça no magma incandescente do vulcão?
Tive pena de mim. E não sei por que artes do diabo, me surpreendi sor
rindo como um idiota, satisfeito, ao pensar na felicidade de Anna quan
do soubesse do nosso achado. Percebi então que meu caso não tinha cura.
E, nesse momento, eu ri de mim mesmo.
"Lá estão os três. Nem nos esperaram para o espumante. Que mal
educados!", reclamou Isabella, apertando o passo.
Ela explodia de vontade de contar a descoberta. E contou, mas o
foco central do relato não eram os livros do armário e sim os conhecimen
tos e promessas de Aurelio. Bruno estava espantado, olhos arregalados.
Lorenzo perguntou sobre a família do encadernador.
UE essa tragédia, dá para copiar?", indagou Beatrice, limpando os
óculos de sol no guardanapo.
"É uma questão de arte", respondeu Isabella.
"Ou artes, talvez diabólicas... ", emendou Bruno.
60
"Artes femininas", sugeriu Lorenzo com certo desagrado.
"Não sei quanto vocês conhecem os encadernadores e os piemon
teses, mas temo que o seu amigo Aurelio já tenha resistido a muitas des
sas artes. De todo modo, não podemos perder essa mina. Precisamos or
ganizar isso", ponderou Bruno.
"Isso pode ser até mais importante do que parece", disse Lorenzo.
"Por quê? Só por causa das promessas do encadernador?", pergun
tou Beatrice, de dentro da taça de espumante, olhando para Lorenzo.
"Por causa de uma certa incompatibilidade entre a profissão dele e
o nome de família. Mas isso é especulação minha e agora seria um assun
to chato."
"Temos que decidir sobre o almoço", disse Bruno, "são 12:10. Te
mos ainda uns 15 quilômetros até Casale. Proponho seguir viagem, sem
parar em Monta, desta vez, e chegar à casa de minha tia antes das 13:00.
Se tivermos sorte, poderemos dar uma olhada na villa ainda hoje, e ama
nhã fazer uma exploração mais demorada."
"Não é muito corrido, tudo isso?", quis saber Isabella.
"Meu receio é que tia Margherita e Dom Attilio queiram fazer a sesta
e com isso obrigar-nos a umas duas horas de espera. "
Beatrice fingiu-se chocada: "Credo! Eles dormem juntos?".
"Simultaneamente, talvez, e distantes três quadras um do outro. Se
pegarmos as chaves logo, podemos almoçar em paz e lá pelas três e meia
fazer uma primeira visita à villa. Se bem conheço minha tia ela já deve ter
pegado as chaves, mas isso não nos desobriga de uma visitinha, amanhã,
a Dom Attilio, seja para ver como podemos ajudá-lo na preservação do
edifício, seja para saber mais sobre essa história."
"Eu pago a conta. Vamos indo", decidiu Lorenzo, "estou com fome".
Bebi, de um gole, a minha taça de espumante e, como um bom sol
dado, entrei em forma.
Tudo correu conforme os planos de Bruno. Por volta de quatro ho
ras, após um estupendo vitel tonné e várias garrafas de um Barbaresco
dionisíaco, lá estávamos nós, de olhos esbugalhados diante da villa do
"bispo vermelho".
61
Capítulo 3
o ninho de Filomena
o que tínhamos diante dos olhos era bem diverso da gravura que
Bruno exibira no Galilei. As árvores que circundavam a mansão só exis
tiam no desenho: fruto, talvez, da imaginação do artista. O edifício esta
va no centro de um amplo pátio de lajes de granito, que se estendia, em
ligeiro declive, a partir de cada parede do prédio.
A villa era um bloco imponente, com dois andares muito altos. A fa
chada era branca e longuíssima. As paredes laterais, bem mais curtas, ter
minavam em cúspides muito agudas.
"Renascimento", arriscou Beatrice, interrogando Lorenzo com os
olhos.
"Cinquecento, talvez, por causa das molduras das janelas. O que
você acha, Emilio?", perguntou-me ele. Eu tinha estudado um pouco de
história da arquitetura, anos antes; por isso, arrisquei: "Pelo estilo da
cornija maior e pelos medalhões entre as janelas da fachada, diria que é
do quattrocento ou do início do cinquecento". E esbanjei conhecimen
to: "Refiro-me apenas à fachada. O telhado é, obviamente, mais recen
te". Isabella me fitava meio incrédula, mas se conteve. Bruno conhecia
menos que eu, por isso me olhava com certa admiração.
A fachada era majestosa. Tinha duas fileiras de enormes janelas pro
tegidas por grades de ferro batido com desenhos florais sóbrios. Tinham
um traçado simples, quase de um românico tardio.
"São quinze janelas em cima e doze embaixo, seis em cada lado do
pórtico", contou Beatrice. O pórtico, de fato, ocupava, na parte inferior
da fachada, o espaço das três janelas centrais. Os batentes e o arco supe
rior eram de granito cinza-claro como o pátio. Eram esculpidos com bom
gosto e sustentavam um frontispício com dois brasões de família, talvez,
corroídos pelo tempo. Como, de resto, todas as peças esculpidas: as mol
duras das janelas, os medalhões e as cariátides que sustentavam a trave
mestra. De uma ponta à outra, a fachada deveria ter uns sessenta metros,
o mesmo comprimento da parede dos fundos. O telhado tinha apenas
duas águas, uma pendendo sobre a cornija superior da fachada e a outra
sobre a face posterior do edifício. Formavam uma cumeeira muito agu
da, que da frente da villa não se podia perceber claramente.
Bruno, sempre atento às coisas práticas, fez uma observação im
portante:
"Com um pátio de pedra dessa extensão, sem árvores por perto, com
uma cumeeira a mais de cinco metros do forro, exposto aos ventos du
rante todo o ano, esse casarão deve ser ideal para o reumatismo de minha
tia Margherita. Pode até ser uma casa fria, mas deve ser muito seca."
"Aonde você quer chegar?", perguntou Isabella, vislumbrando se
gundas intenções.
"Não sei muito bem. Mas é sabido que os ambientes secos conser
vam melhor algumas coisas... Como múmias, por exemplo."
"Que idéia mais idiota", respondeu ela, "não tenho a mínima von
tade de encontrar qualquer parente de Tut-Ank-Amon, nem algum an
tepassado desse Dom Attilio".
"Você esqueceu outra coisa, Bruno: essa mansão recebe todo o sol
do ano, em uma ou outra parede. Veja: agora, por exemplo, o sol está ba
tendo em quase todas as janelas de cima, e no teto; e já são quase cinco
horas. Quer dizer que a fachada tomou sol durante boa parte do dia. Des
se modo as múmias não têm motivo para queixas", comentou Lorenzo.
Do canto direito da casa surgiu um menino loiro, magro, de olhos
brilhantes e curiosos. Chegou sorrindo com desenvoltura, trazendo um
pequeno cesto de vime. Mediu Beatrice de alto a baixo, parando o olhar
sobre o bustiê dela por alguns segundos e lhe abriu um sorriso de irres
trita amizade.
"A senhora quer comprar ovos?", perguntou-lhe.
Ela sorriu com a sinceridade que Deus lhe deu e começou uma con
versa.
"Depende. Ovos de quê?"
"De minha galinha. Ela se chama Filomena e mora lá em cima, den
tro da tribuna."
"Que história é essa de tribuna e de galinha morando nela? Mas an
tes me diga qual é o seu nome.
"Eu me chamo Rinaldo e meu irmão é Amadeu. Filomena mora lá
em cima desde que meu avô acabou com os ratos."
"O que é que os ratos vinham fazer aqui, Rinaldo?"
"Senhora, meu avô guardava as espigas de milho no chão do teatro.
Há um teatro lá em cima, no canto direito. A senhora não sabia disso? É
uma sala toda pintada, com um palco e uma tribuna. É um teatro, ora.
Agora o milho fica aqui embaixo, porque dava muito trabalho levar tudo
lá para cima."
Ela nos consultou cúm o olhar e fez uma proposta ao menino: "Eu
compro até duas dúzias de ovos, mas você nos mostra onde mora a Fi
lomena. Está bem?"
"Só com as chaves de Dom Attilio. Nem meu avô tem todas as cha
ves. E ele é muito ciumento de tudo o que existe nesta casa. Diz que até
o bisavô do seu bisavô já morava aqui e que sua família sempre viveu aqui,
épocas de glória e fartura e tempos de sofrimento e miséria. É assim que
ele fala. Ele gosta muito desta casa e sabe tudo o que aconteceu por aqui,
desde o tempo do bispo vermelho."
"E a história do milho e dos ratos?", indagou Isabella, visivelmente
encantada com o desembaraço de Rinaldo.
"As espigas atraíam os ratos. Meu avô colocou uns pratos com vene
no e eles morreram ou foram embora. Agora as espigas ficam aqui embai
xo, no pátio, quando há sol, e depois ficam lá atrás, onde era o canil de
antigamente. É tudo aberto, sem paredes, e os ratos não têm como se es
conder dos gatos. Lá em cima é tudo bem fechado e é mais fácil se escon
der. E deve ser mais quente, porque não venta. Embaixo da tribuna é ain
da mais quentinho, porque é tudo de madeira grossa. A Filomena ocupou
o ninho que era dos ratos. Vocês vão ver quando forem lá para cima."
"Como é que você sabe que nós queremos ver tudo isso?", interro
gou Isabella.
"Pelo peixeiro, o senhor Angélo. Ele é muito amigo de Dom Attilio
e na quinta-feira trouxe mariscos para minha mãe. Foi ele que contou da
visita de vocês."
"E o que mais o senhor Angelo disse de nós?"
"Que vocês são pesquisadores de Milão, amigos da senhora Mar
gherita, muito amiga de meu avô. Minha mãe gosta dela, porque ela nos
ajudou muito quando meu pai morreu. Cada duas semanas eu levo ovos
para ela."
"E será que seu avô nos deixa entrar?"
"Vocês trouxeram as chaves de Dom Attilio?"
"São estas, não?", disse Bruno, mostrando-lhe as que recebera de tia
Margherita.
"Estas servem para este portão grande do pórtico. As do teatro e as
da capela são guardadas por meu avô. A única pessoa que entra lá sem as
chaves sou eu."
"Por quê?", indagou Beatrice.
"A senhora não vê? Eu sou muito magro e consigo passar entre as
barras de ferro dos portões. Meu irmão Amadeu me inveja por isso. Ele
é muito gordo para passar. Uma vez ficou preso neste portão e foi difícil
para minha mãe tirá-lo daí. Você também não passa", acrescentou, com
um sorriso maroto, percorrendo com os olhos o corpo bem-feito de Bea
trice. "Vou chamar o vovô para conhecer vocês. Mas você compra os ovos
depois. Não é?"
"Claro", responderam Beatrice e Isabella ao mesmo tempo.
Estávamos todos encantados com Rinaldo. Até Lorenzo, que não
era dado a grandes efusões afetivas, estava sorrindo, quando o garoto se
foi, levando o cesto de vime.
Atrás do grande portão de barras verticais, não havia propriamente
um vestíbulo ou salão. Era uma galeria que atravessava todo o edifício e
terminava em outro portão de grades; a saída dos fundos. Mas, a meia
distância entre os dois portões, subiam dois lances de escadas, um para a
esquerda, outro para a direita. Embaixo de cada escada podia-se ver o
início de um corredor que devia dividir o andar térreo em duas alas de
igual largura. As escadas, como percebemos depois, conduziam a um átrio
superior do qual saíam outros dois corredores que dividiam ao meio o
andar de cima, de uma ponta a outra do prédio.
O avô de nosso amigo Rinaldo vinha chegando com um porte sole
ne, sorridente. Era uma bela figura. Cabelos brancos abundantes, pele
muito bronzeada. Tinha um olhar seguro e um sorriso que traduzia in
66
r ----
teligência e bondade. Devia ter uns 70 anos, de vida plena, trabalhosa, mas
serena. Pelo menos foi a impressão que deu, a mim e a Bruno, que até co
mentou, em voz baixa, para Isabella: "Quando eu envelhecer, quero ser
um velho assim". E ela, também em voz baixa, respondeu-lhe, cáustica:
"Não se preocupe, você não vai ter esse problema".
"Senhoras", disse o velho com uma elegante mesura, "espero que
tenham feito boa viagem e que esta visita lhes agrade. Cavalheiros, sejam
bem-vindos, muito boa tarde para todos".
Ele não parecia um zelador ou guardião daquele palácio. Insinuava
uma ligaçãoafetiva, mais que de trabalho, com a villa. Devia ter muito
que contar sobre ela.
Rinaldo chegou, trazendo as chaves do avô e o cesto de vime. En
quanto o velho nos saudava, tomou da mão de Bruno, com um sorriso de
cumplicidade, as chaves de Dom Attilio e pôs-se a abrir o enorme portão
de ferro. O velho disse chamar-se Alessandro e, sem mais cerimônias, con
vidou-nos a entrar.
"Aconselho os senhores a visitar antes as duas extremidades do pa
vimento superior, enquanto a luz do sol está forte. Há restos de afrescos
bem conservados tanto na capela, no fim do corredor esquerdo, como na
sala do palco, que chamamos teatro, que está no extremo oposto. Deixo
os com Rinaldo, mas estarei à sua disposição lá em casa. Dona Margherita
disse que os senhores, possivelmente, ficariam em Madonna della Spina
por mais um dia."
"Ciao, nonno!", saudou Rinaldo, quase mandando o velho para ca
sa. Estava ansioso para mostrar-nos a mansão e, principalmente, Filome
na com seu ninho, usurpado aos ratos.
O interior do casarão surpreendia pela limpeza e pela claridade. As
paredes eram brancas e ao longo dos corredores a maior parte das portas
estava aberta, deixando entrar toda a luz que atravessava as enormes ja
nelas da fachada e da parede dos fundos. Era um ambiente de luz, sere
no, quase conventual. Lembrava a abadia do nosso Galilei. Não pelos as
pectos visuais ou arquitetônicos, que em nada se assemelhavam, mas pela
atmosfera carregada de memórias, de história, de vozes caladas.
Rinaldo nos conduziu pelo corredor da esquerda que terminava num
portão de ferro, mais leve que o do pórtico, mas igualmente severo e an
tigo. Atrás dele, uma porta de madeira com dobradiças enormes, de bron
ze escurecido. Estava trancada apenas por um ferrolho. Rinaldo enfiou
se por entre as barras do portão com um sorriso de triunfo, dizendo que
era mais fácil abri-lo pelo lado de dentro. Escancarou-o e, antes de abrir
a porta, voltou-se para Beatrice, sua predileta, e disse com orgulho:
nossa capela está bem velha, mas é muito bonita. Meu avô diz que as pin
turas são muito antigas. Ele gosta muito delas e dos vitrais. Você vai ver
que coisa linda!". Dito isso, abriu vagarosamente as duas folhas da porta
e postou-se ao lado, quase perfilado, atento às nossas reações.
Era um espaço amplo, mais largo que comprido. O sol entrava triun
fante pelas três janelas da fachada, à nossa esquerda, e a luz azulada do
poente chegava mansa à nossa direita, pelas outras três janelas, abertas
para o vale. O piso, de lajes claras, devia ter uns doze metros entre urna
parede e outra, mas era dividido em três faixas, por balaustradas de fer
ro batido e pequenos pilares de mármore. Tratava-se, pelo jeito, de urna
nave central e duas naves laterais, corno convém a qualquer igreja que se
preze. Muito mais quando se trata da capela de um bispo. Era surpreen
dente o estado de conservação do local. Havia balaústres danificados ou
vidros quebrados nas janelas, danos de certa gravidade em alguns afrescos.
Era um tanto esquisito que após quinhentos ou seiscentos anos a capela
e a vi/la, corno um todo, estivessem tão conservadas.
Isabella, com os dedos entrelaçados diante da boca, contemplava o teta
de vigas expostas e a parede do fundo, do que seria a abside. O altar, de
extrema simplicidade, era um bloco vertical, quase urna coluna, de mármore
claro, talvez um encimado por urna laje, despojada, retangular.
Lorenzo estava entre o altar e a parede do fundo, quase em transe
(foi o que me pareceu, embora ele seja, definitivamente, um homem des
te mundo), a contemplar o vitral da esquerda. Havia dois, na abside. Eram
retangulares, com mais de dois metros de altura e quase um e meio de lar
gura. Beatrice olhava o da direita. Não só. Ela examinava atentamente
cada peça dele, observando-a de diferentes ângulos e até apalpando-as,
corno a examinar a espessura de cada urna.
Bruno sentara-se no chão, com as pernas cruzadas, à maneira de um
guru. Estava encantado e percorria tudo com um olhar sorridente.
O que eu senti foi um misto de respeito e de certa compaixão pelos
homens que nos haviam deixado sua arte, fruto de esforço e talvez de
sofrimentos.
68
..
71
Beatrice foi até a tribuna, enquanto Bruno, extasiado, contemplava
o teta com um sorriso de beatitude. Aquele teta, sozinho, compensava
a nossa viagem. Não só. Bastaria ele para justificar semanas de permanên
cia na aldeia ou várias viagens de Milão ao Piemonte. E havia mais: pra
ticamente só nós, do Galilei, fora os moradores do local, conhecíamos,
agora, a villa do "bispo vermelho".
Rinaldo estava ajoelhado no piso da tribuna, de tábuas grossas e lar
gas. Era retangular, com os cantos recortados. Os lados se apoiavam so
bre uma base de mármore esverdeado. Deveria ter uns setenta centíme
tros de altura e era vazia na parte central. No piso faltava uma das tábuas
e pela abertura podia-se ver um ovo de bom tamanho, pousado num lei
to macio, de palhas e fragmentos encardidos de papel.
"Que ninho confortável! A Filomena tem bom gosto, hein, Rinal
do?", comentou Beatrice, também ajoelhada sobre o piso.
"Foi ela que descobriu esse ninho."
"Não foi você que fez?"
"Eu não. Foram os ratos. Eu não contei que a Filomena ocupou o
ninho dos ratos quando eles foram embora?"
"Ah, sim; agora me lembro", respondeu Beatrice.
Bruno também se aproximara do ninho e olhava atentamente para
dentro, como se procurasse alguma coisa miúda.
"Procurando agulha no palheiro?", perguntou Beatrice.
"Olhe bem esses papéis", disse ele com uma seriedade que destoava
da pergunta.
"Santo céu!", murmurou ela, lançando a Bruno e a mim um olhar meio
assustado. Deixei, por um átimo, os afrescos das paredes, para olhar o ninho.
"Você tem certeza de que foram os ratos que cataram esses papéis e
essas palhas?" Era Bruno quem interrogava o menino.
"Claro que tenho. Meu avô só me deixou andar por aqui depois que
a Filomena veio morar embaixo da tribuna. Ele me proibiu de mexer nes
sas palhas e papéis porque os ratos trazem doenças. Mas, por que vocês
estão tão preocupados com isso? Já faz muito tempo que os ratos não
aparecem por aqui. Eu acho que não há mais perigo em mexer nisso aí.
Só não mexo porque meu avô proibiu e ele sabe muitas coisas."
"Não é isso", expliquei, "nós só estamos estranhando que os ratos
tenham encontrado esses papéis todos por aqui".
72
"Isso é fácil de explicar. Quando meu nonno vinha debulhar milho
aqui, nos dias frios, ele trazia umas folhas de jornal para acender um bra
seiro ali no canto, dentro de um tacho. Os ratos podem ter roubado al
guns pedaços de jornal quando meu nonno ia dormir. "
"Que ratos mais espertos!", exclamou Beatrice, vendo que o sorriso
de Rinaldo se apagara, diante de tantas perguntas sobre ridículos frag
mentos de jornal. "Será que a Filomena sabe ler esses papéis?"
O menino sorriu de novo: "Ela não, mas eu sei. Você quer ver?".
Enfiou a mão no ninho e retirou um punhado de papéis, que depôs so
bre o piso.
"Por favor, Rinaldo, deixe os papéis assim como você tirou do ni
nho", pediu Bruno, contendo a agitação. "Não os espalhe. Quero ver
quais estão por cima e quais estão mais embaixo."
"Como fazem os arqueólogos, não é?"
"É isso mesmo. Você vai mostrar à Beatrice que sabe ler e vai nos
ajudar, como um arqueólogo. Que tal?"
"Está bem, o que devo fazer?"
"Vamos primeiro separar os papéis da camada de cima e você vai lê
los para Beatrice. O que você não souber será lido por ela ou por Emilio.
Eu vou anotando quais são os papéis de cada camada."
A idéia de Bruno era boa, mas havia papéis demais. Era importante
que o garoto não suspeitasse do que aqueles papéis podiam significar. Mas
seria maçante até para ele prolongar muito aquele jogo. De todo modo,
começamos. Beatrice passou ao menino um pedaço de jornal com algu
mas letras de tamanho grande. Rinaldo, com voz forte e segura, começou
a ler, mas logo o devolveu: "Está tudo cortado, eu quero um que tenha
as palavras inteiras".
Ele tinha razão. O texto era muito truncado.
73
«Perdão, Rinaldo", desculpou-se Beatrice, «vamos procurar um tre
cho melhor".
por enquanto, só na camada de cima", advertiu o menino,
procurando a aprovação de Bruno, que veio imediatamente, em forma de
sornso.
Beatrice pegou outro retalho, quase triangular, e o passou direta
mente a Bruno, após mostrá-lo ao menino. «Veja, Rinaldo, este também
está muito incompleto." E estava mesmo.
ões meteorológicas n
nhã de ontem a NASA anunci
que deverá conduzir at
dois astronautas que dev
quisas sobre as nuvens
laneta. Os dois no
chirra e Stafford
módulo de co
m órbita lun
voltas que
jeto Gemin
quista d
tecn
"Olhe, este tem várias linhas inteiras", disse eu, estendendo a Ri
naldo um retalho de forma quase quadrada. E não resisti à tentação.
«Teu avô deve ser comunista, como eu. Não é, Rinaldo?"
"Claro que sim, só que ele está meio de briga com o partido desde a
eleição do prefeito."
Aqueles pedaços de papel eram, obviamente, do L'Unità. Eu sabia,
não só pelo jargão antiimperialista já monótono, mas, sobretudo, pelo
estilo inconfundível do cronista Fortebraccio, cujo nome aparecia, mu
tilado, no retalho que entreguei ao garoto:
74
mpenetrant
excidiis urbem mi
bibat et Sarrano
s alius defossoque
attonitus rostris hu
geminatus enim p
dent perfusi sa
s et dulcia I
mquaerunt s e lac
erram dimov aratro
c patria rvosque
nta boum eritosq
aut pomis exubere
aut Cerealis m
eret sulcos at
territur Sic
laeti red
ponitf
aptic
dul
75
Durante a leitura trôpega de Bruno, Beatrice mordia o lábio, tensa,
como quem procura uma velha lembrança. Por fim, disparou:
licas'... Salústio... abelhas... como é mesmo? É outro. Catulo?".
"Quase", respondi. "Tente de novo."
"Eu sei", disse Bruno. "Sulcos e arados é coisa de Virgilio."
E era mesmo. Só que não se tratava das "Bucólicas". Era um trecho
do Livro II das" Geórgicas".
"Traduza para mim", pediu Rinaldo a Beatrice. Ela, meio sem jeito,
passou-me o fragmento, com as pontas dos dedos: "Emilio, você é o nos
so latinista".
Era a mesma frase de Isabella, quando tínhamos achado o manuscri
to das Bacchae. Num relâmpago, a lembrança de Anna inundou-me a
mente. Eu estava tão empolgado com o fragmento de Virgilio e a invasão
de Anna fora tão inesperada que me perturbou e, de certo modo, me ma
goou. Não sei quanto tempo durou essa sensação. Mas percebi que Rinal
do me olhava como se olha uma girafa.
Afastei Anna de meu pensamento e tentei lembrar a forma original
dos versos mutilados. Eu tinha traduzido Virgilio no colégio, embora mi
nha tradução não ameaçasse nem de longe a glória ou o ganha-pão de
Salvatore Quasimodo. Aos poucos, lembrei o texto do colégio:
77
tinha formulado. Eu, de fato, queria voltar àquela villa, àquela tribuna,
aos fragmentos de Virgílio... provavelmente na semana seguinte. Às ve
zes acho que Freud devia ser mulher. Eu tinha que responder algo.
"Por que não?"
Ela ficou meio sem jeito.
Bruno alisava com carinho um outro fragmento, pequeno, e me de
safiou: "E este, Emilio, que texto é?".
o ••
"Emilio, corno dizia alguém que disse isso, você tem muitas cordas
no seu arco." O elogio era de Beatrice.
Eu não entendia bem o que estava acontecendo. Mas senti, naquela
hora, o que haviam sentido os músicos e poetas que haviam ocupado a
tribuna em séculos passados. E, talvez, Beatrice e Bruno tivessem revi
vido, mesmo que em tom menor, algo da emoção do bispo vermelho e
79
80
81
82
"Uma coisa é certa", resumiu Beatrice a sensação de todos, "temos
que voltar aqui amanhã, com mais calma...".
"E temos que ouvir o velho Alessandro", lembrei. O velho me im
pressionara, à primeira vista, como alguém que sabia muito e talvez esti
vesse esperando os ouvidos certos para sua história.
"É mesmo. Ele disse que nos esperaria após a visita à villa", lembrou
Beatrice. Sorriu conformada: "Precisamos também pegar os ovos... ".
"Ou, pelo menos, pagá-los", sugeriu Lorenzo.
A luz azulada das janelas agora se transformava numa mistura de ro
sa e alaranjado. O sol pousava mansamente sobre um mar de colinas in
candescentes. Bruno fechou as janelas e saímos para o corredor. Ao fundo,
no interior da capela uma claridade rosada entrava pelas janelas da fachada.
"Vou fechar a capela...", disse Lorenzo. "É preciso avisar Rinaldo
para trancar as portas." Isabella passou-lhe à frente: "Espera um pouco,
Lorenzo, quero ver uma coisa".
Fomos juntos, ela, Lorenzo e eu. A luz rasante da tarde, entrando
pelos vitrais da abside, espalhava uma profusão de cores no piso e na parte
mais baixa da parede da esquerda. Era uma mosaico de formas geomé
tricas coloridas, irregulares, deitadas sobre o chão de mármore. Ninguém
disse nada. Era beleza demais para os nossos adjetivos. Lorenzo levou a
mão à boca, talvez reprimindo uma expressão muito efusiva. Isabella,
muito atenta, percorria com o olhar as manchas coloridas. Como quem
procura peças de um quebra-cabeças. Não sei bem que cara eu fazia, mas
lembro que me senti dentro do arco-íris.
"Procurando hexágonos?", disse Lorenzo, dessa vez com alguma
insegurança na voz, ao ouvido de Isabella.
"Não. Procuro formas, configurações... ou talvez nada disso. Não
sei. Estou entre o prazer da beleza e a tentação do enigma. Mas há algu
ma coisa nesses vitrais que tem a ver com o teatro. Talvez formas, talvez
cores, talvez cores que compõem figuras. O que sei é que depois de ver
o teatro, ou o teto dele, lembrei-me de ter visto algo importante nos vi
trais. Mas não sei o que é. E não me olhe assim, como enfermeiro de ma
nicômio, Emilio!"
Eu devia rir, penso. Mas alguma coisa me impedia. Eu sabia que Isa
bella estava muito tensa, mas eu estava meio desligado do que ouvia,
mergulhado num vórtice de cores.
Lorenzo ficou a observar-nos, com um sorriso cético, quase de des
consolo. Depois disse: "A melhor maneira de compor uma flor com pe
ças regulares e não circulares é juntar seis hexágonos. É claro que ficará
um hexágono vazio no meio... ».
"Rinaldo vem vindo para fechar as portas", avisou Bruno, lá do cor
redor.
"Desde que se queira compor uma flor...", respondeu Isabella.
Rinaldo vinha subindo a escada, com sua robusta Filomena embaixo
do braço, sorridente, ele e talvez até a galinha. "Ela já passeou e já comeu.
Agora é hora de ir dormir. "
"Mas eu tirei os papéis do ninho, Rinaldo. Precisamos colocar ou
tros no lugar, não é?", perguntou Bruno.
"Tem muita palha esparramada embaixo da tribuna. Eu acho que se
a gente amontoar toda ela, vai ficar mais macio do que antes. Se não fi
car, nós vamos buscar papéis lá com o meu nonno. Ele está esperando
vocês. Não é lindo o nosso teatro? Eu falei pra vocês que era muito bo
nito." Dito isso, sumiu na penumbra tênue do fim do corredor.
"Nós esperamos você. Não sabemos onde mora o nonno", foi o que
alguém disse, bem alto. Eu fui atrás do menino para ajudá-lo a refazer o
ninho e fechar as portas todas. Filomena acomodou-se sem maiores ca
prichos, trancamos tudo e fomos descendo. Os outros já estavam no pá
tio, contemplando o que restava de luz no horizonte.
"E a Filomena?", perguntou Beatrice.
"Acho que já está dormindo. Vocês têm uma cesta ou sacola para
levar os ovos? Eu não sei se tenho todos os que vocês pediram. Mas se não
tiver, meu irmão deve ter. Ele tem três galinhas."
Lorenzo aproveitou a deixa: "Ouça, Rinaldo. Eu estive pensando
que não conseguirei comer todos os ovos que pedi, antes que alguns fi
quem muito velhos. Se você concorda, eu pago todos já, mas levo só al
guns, desta vez. Os outros você me entregará mais tarde, se eu precisar".
"Ótimo. Assim eu consigo atender mais pessoas."
"Eu acho que todos nós, fora Beatrice, estamos na mesma situação
de Lorenzo. Podemos fazer a mesma coisa, Rinaldo. Nós pagamos tudo
já e você entrega os ovos quando'der certo. Que tal?" Bruno estava pro
pondo um bom negócio. O menino olhou hesitante para Beatrice. Ela
captou a intenção de Bruno.
"Ah, não, Rinaldo! Eu não. Não abro mão dos ovos que encomen
dei. Eu gosto de omeletes e elas consomem dúzias deles, você sabe. Por
isso, eu levo até alguns a mais, se não fizerem falta."
"Que maravilha!", disse o menino, agitando os punhos. "Enquanto
vocês com o nonno, eu apronto tudo." Estava radiante: ganha
ria o dinheiro, atenderia aos pedidos e, acima de tudo, agradaria a Beatri
ce. Ela mostrara, na frente de todos nós, que dependia do trabalho dele
para fazer omeletes. Jamais alguém viu Beatrice comer, ou fazer, omeletes.
"Vamos ver meu nonno", convidou Rinaldo, puxando Beatrice pela
mão. Ela olhou para trás, para Bruno, com olhos que prometiam um ajus
te de contas. Ele sorria, feliz.
Capítulo 4
A tribuna
88
90
"Parece inevitável. "
"Certas coisas são claras nessa história."
"Por exemplo...?"
"Era um homem culto, talentoso, rico, de gostos refinados, em
preendedor... "
"Tudo isso se depreende do fato de ter construído a vi/la", disse eu.
"Sim, mas há outras coisas, menos óbvias, como passarei a expor. Ele
era também um nobre, pois o irmão era um marquês. Deveria ser um con
de ou algo parecido. Mas era também um bispo...
"Quase óbvio, não é, Emilio'?"
"Trivial. O professor Lorenzo não está em sua melhor forma."
"Escutem bem, seus mal-educados", prosseguiu Lorenzo: "Quem
pertencia à nobreza e ao clero, nos meados do século xv, tinha poder..."
"E daí?"
"Daí que devia cuidar-se. Seu poder, como o de qualquer bispo ou
visconde, podia ser ameaça ao poder de outros clérigos ou nobres. T 0
do poder não aliado é, potencialmente, um inimigo..."
"Ele está melhorando, Emilio."
Lorenzo prosseguiu: "Ora, um homem criativo, cultor do belo,
amante do teatro antigo e de livros é, sem dúvida, um homem de paixões,
sem a frieza, o cálculo e a maleabilidade essenciais ao jogo do poder. Se
ele vivesse hoje e não fosse rico, seria um incompetente político como
nós. E estaria conosco no Galilei, com pouco dinheiro, comendo bem e
bebendo melhor ainda. E correndo atrás de livros antigos...".
"E então, você presume que ele brigou com a Igreja ou com a no
breza?", perguntei.
"Não presumo. Tenho certeza. Ele desagradou um dos dois grupos,
ou os dois. A ordem não importa: quem tinha inimigos na nobreza os te
ria, por conseqüência, no clero. E vice-versa. "
"Donde vem essa certeza toda?", perguntou Bruno.
"Um homem com tal poder no clero, membro da nobreza no Pie
monte do século xv, com um prestígio que atraía espectadores para seu
teatro particular, perdido nessa montanha, à margem de uma estrada in
significante, teria seu nome preservado, mesmo a despeito de seus inimi
gos. Se até o seu nome se perdeu, é porque ele foi proscrito, pela nobre
za e pelo clero."
91
"Por que os dois", indaguei?
"Porque se qualquer um dos dois grupos tivesse ficado a seu lado,
pelo menos seu nome sobreviveria. Nas genealogias ou nos registros ecle
siásticos, certamente deveria constar. Ou perduraria nas obras que criou,
nos lugares que beneficiou ou visitou... "
"Mas o nome dele ainda sobrevive", disse Bruno.
"Não. Sobrevive um simulacro de seu nome."
"Quer dizer que alguém decidiu que ele deveria ser esquecido", con
cluí, sem muita segurança.
"Precisamente isso."
"Mesmo depois de morto?".. quis saber Bruno.
"Principalmente, depois de morto."
Lorenzo dirigia com tranqüilidade pela estradinha sinuosa que des
ce entre bosques de pinheiros, até Madonna della Spina, e já podíamos
avistar, muito abaixo, as primeiras luzes da aldeia.
"Eu tenho outra teoria... ", ensaiei.
"Somos como a coleta do Natal dos pobres, Emilio: aceitamos qual
quer coisa", animou-me Bruno.
"A meuyer, o bispo criou a mansão, ficou querido pelo povo, era
rico de fa.nu1ia, e nobre, mas sem poder e alheio às intrigas do clero ou da
nobreza. Tinha interesses e prazeres mais altos."
. "E por que virou fantasma, se era tão... superior?"
"Porque morreu de morte injusta. Foi uma espécie de mártir de
qualquer coisa: fé, ou da arte, ou do amor. Isso explica por que da
vam o nome dele às crianças e porque, sequioso de justiça, ainda não
adormeceu no sono eterno, mas anda por aí, lá pelas bandas do moinho.
Vai mais devagar, Lorenzo. E troque esses amortecedores logo que pu
der. Esta coisa acaba com as vértebras de qualquer um."
"Numa coisa concordamos", disse Lorenzo, "a identidade dele e sua
história não teriam sumido tão completamente, se não por decisão ofi
cial ou, melhor, por um ato de poder. E se meu carro te incomoda, lem
bre-se que o transporte é grátis".
"Não sei se concordamos: um fim trágico bastaria para criar a figu
ra de mártir e o fantasma, com seu·caráter de tabu, de inefável, talvez de
ameaça..."
"Querem ouvir a minha teoria?", perguntou Bruno.
"Não!!!", respondemos nós dois ao mesmo tempo.
"Dado o enorme interesse, passo a expô-la: para mim, o bispo pode
ter sido apenas um hóspede ilustre que transitou por aqui, distribuiu, bên
çãos às velhinhas, sorrisos e afagos às criancinhas, batizou bebês de ri
cos e de pobres, celebrou missas e crismas na capela, assistiu, talvez com
remorso, a algum concerto no teatro da villa, foi sustentado pelo irmão,
o marquês, nos últimos anos e morreu in odore sanctitatis, depois de pro
meter que mesmo após a morte estaria com os camponeses dos arredo
res. Daí, a existência de alguns moleques chamados Lutercio, Lutecio,
Lutezio e, por que não?, Lutero. Daí, a história do fantasma do bispo no
vale do moinho. Como vocês podem ver, uma teoria elegante, parcimo
niosa e razoável. Genial, até. Espero haver atendido ao sequioso interesse
de vocês."
Lorenzo resolveu caçoar: "Eu gostei. Talvez Emilio não tenha alcan
çado a dimensão transcendente e o refinamento semântico que compõem,
a igual título, a esplêndida peça explanatória, a um tempo só, nomotética,
crítica e estética...".
"Deixa de brincadeiras, Lorenzo. O que você acha?"
"Então, falando sério: pode ser que você tenha razão, Bruno. Não
acha, Emilio?"
"Acho, mas o que me intrigou foi a lembrança de Lutero. Já imagi
nou como a 'teoria da proscrição' fica plausível depois disso?"
"Teríamos que mudar algumas datas, não muita coisa, apenas algu
mas décadas e o nosso bispo vermelho seria um herege luterano de pri
meira água. Um prato feito, para o apetite de qualquer inquisidor dispos
to a fazer carreira rápida. Mas a teoria de Bruno, afora isso, deixa o nos
so bispo muito sem graça. Isso nos obriga a procurar o talento, o bom
gosto, a paixão pela arte, tudo isso que nos cativou nesta tarde, em outra
pessoa..."
Bruno inquietou-se. Se sua teoria fosse verdadeira, teríamos de cor
rer atrás da história de um marquês mau-caráter, valentão, cercado de
cachorros ferozes e matador de inofensivas corças e javalis. Era preciso
salvar a imagem ideal de nosso bispo vermelho. "E se a villa fosse obra
de algum artista, contratado pelo'marquês ou pelo bispo?", foi o que con
seguiu, como saída.
Beatrice e Isabella, que haviam partido à nossa frente, estavam es
93
perando por nós, na entrada da aldeia. Isabella, apenas nos viu, pergun
tou: "Não houve um tal de 'padre vermelho' na história italiana?".
"Sim. Foi um rapaz que gostava de violino, tinha os cabelos aver
melhados e era um clérigo, chamado Antonio Vivaldi. Por isso, era cha
mado prete rosso, padre vermelho. Alguma outra questão, senhora?", res
pondeu-lhe Bruno.
"E para enriquecer sua cultura, saiba que tivemos também um cer
to conde vermelho. E foi por estas bandas do Piemonte. Chamou-se
Amadeu VII e ganhou o apelido por gostar de usar roupas vermelhas, até
em torneios de cavalaria. Temos respostas para todas as questões, minha
senhora", acrescentei.
Lorenzo completou: "Mas percebam, caras senhoras, antes de se
entregarem a suas deduções, que um padre pode virar bispo, mas um con
de vestido de vermelho jamais tocará violino como Vivaldi e, além do
mais, Vivaldi não tinha cavalo".
"E o conte rosso não sabia rezar missas."
"Cretinos!", foi tudo o que recebemos por nossos generosos ensi
namentos.
94
95
Depois do café da manhã, por volta das dez horas, colocamos nos
sas sacolas no carro de Lorenzo, Bruno pagou o hotel e voltamos para a
villa. Lorenzo resolveu dormir até mais tarde e deixamos o jipe de Bea
trice para ele e Isabella, que também ficou dormindo.
Beatrice estava muito atraente, com uma camiseta de seda azul-ce
leste, muito leve, que se colava às curvas dos seios com charme e sen
sualidade. Ela devia estar com um sutiã muito fino ou sem nada sob a
camiseta.
Chegando à vil/a, Bruno foi procurar as chaves com Alessandro e
voltou com Rinaldo, que se achegou com um sorriso feliz, trazendo sua
cestinha de ovos.
Quando entramos, Bruno e Beatrice foram para a capela e eu fui com
Rinaldo para o teatro. Abrimos todas as janelas e enchemos de luz a ra
maria verde do teto, que se derramava pelas paredes, acima das janelas.
Lá estava a tribuna! Majestosa, um esplendor de escultura em ma
deira. A balaustrada, que na véspera tínhamos visto às pressas, agora exi
bia toda a sua glória: cada balaústre era diferente dos outros. Cada um
ostentava, numa espécie de capitel, baixos-relevos em que figuravam ins
trumentos musicais de todos os tipos. Filomena não estava em seu ninho
porque, como me explicou Rinaldo, costumava sair à cata de minhocas
"antes que o dia esquentasse.
O dossel era, por si só, um tesouro. Era uma espécie de pirâmide de
madeira, não muito aguda e de base retangular, um pouco maior do que
o piso da tribuna. Mas entre a base dessa pirâmide e o forro do dossel
havia um espaço de meio metro de altura. Escondido por um friso de
madeira esculpida que ocupava os dois lados e a frente do dosseI. Mos
trava um grupo coral de esplêndidas figuras juvenis que lembrava, inevi
tavelmente, a cantoria de Donatello, em Florença.
O forro era formado por apenas"duas largas tábuas e em cada uma
estavam fixados dois grandes medalhões de moldura hexagonal, obra de
um mestre.
Mostravam figuras alegóricas, que encobriam partes das molduras,
projetando-se para fora dos hexágonos.
Na frente, à direita, era o braço de Erato com uma lira na mão, que
se atirava para fora do hexágono. À esquerda, um jovem poeta coroado
de louros alçava o braço para fora da moldura, num gesto gracioso de elo
qüência. Próximo à parede, no lado direito, era a trombeta heróica de Clio
que se projetava para o ângulo mais próximo. No lado esquerdo, era o
braço peludo de um fauno sorridente, que se esticava para o canto, levan
tando uma flauta campestre.
As quatro figuras pareciam compor uma cena única. Talvez porque
os elementos mais salientes de cada uma se projetavam simetricamente
para os quatro cantos do dosse!.
Enquanto eu contemplava os medalhões, Rinaldo sumiu, provavel
mente à procura de sua galinha, já que a outra predileta, Beatrice, vinha
chegando sem ele, precedida por um perfume delicado, talvez Mitsouko.
Sem cerimônias ela subiu os degraus da tribuna e começou: "Lasciate agni
speranza a vai che entrate... "
"Basta, por favor", pedi-lhe, "e me ajude a resolver um problema".
"Apelando para gente que não sabe nem quem era o conde verme
lho, doutor?"
"Sim. Preciso de alguém capaz de pensar como um rato..."
"Seu bobo, confesse que você está precisando de um pouco de intui
ção. Acertei?"
"Você promete guardar um segredo?"
"Claro. Nem que eu tenha de passar sobre o teu cadáver."
"Obrigado. Na noite passada estive pensando sobre os fragmentos
de Virgilio e posso afirmar que o livro das 'Geórgicas' ainda está nesta
villa.» E contei-lhe todo o meu raciocínio.
"De fato", concluiu ela, "temos que ver as coisas como um rato ve
ria. Bem... um rato pode correr, pular, subir em paredes ásperas, andar
sobre cordas, trepar em armários... Fareja muito bem, gosta de queijo, faz
ninhos com palhas e papéis e vai catar essas coisas nos arredores... Ou,
sobre o forro das casas, no meio das vigas, ou nos armários".
"Forro, não: Alessandro saberia. Vigas, também não, porque nin
guém guarda livros sobre vigas. Armários, não existem por aqui, há al
guns séculos..."
97
"Exceto na casa de Rinaldo, no andar de baixo, Emilio."
"Mas então Alessandro saberia e nos teria dito."
"Por que deveria dizer?"
Percebi que meu raciocínio fazia água. Mas, se o velho tivesse o li
vro, nenhum rato chegaria perto dele. E então, onde, diabos, poderia es
tar o livro, se só os ratos sabiam dele? O fio de Ariadne começava na tri
buna: se não, onde? E deveria terminar em algum ponto onde só ratos
podiam chegar. Certamente não em manilhas ou chaminés, pois ninguém
guardaria livros aí...
"Emilio, tive uma idéia... "
"Parabéns, é uma grata novidade...
"Esse tal Lutercio ou Lutecio deve ter sido um sujeito meio incom
preendido. Gostava muito de livros e, talvez, tenha até escrito alguma
. "
COlsa•••
"E daí?"
"Daí, deve ter construído algum esconderijo para guardar seus escri
tos ou também outras coisas que os bobocas da família não aceitariam..."
"Nesse caso, o raciocínio more rattorum ainda prevalece, só que não
devemos procurar esse Virgilio em lugares normais para guardar um li
vro. É isso?"
"Elementar. "
"Não ajuda muito."
"Como-não? Se eu estiver certa o esconderijo pode estar nesta sala..."
"Ou... nesta tribuna!», quase gritei. E só não lhe dei um abraço, por
que ela estava além da balaustrada e eu no chão, no lado de fora. Ela mor
deu os lábios, emocionada, e, para minha surpresa, não começou a apal
par histericamente cada milímetro da tribuna. Desceu, veio até onde eu
estava, deu-me um beijo delicioso na face, "você é um gênio!", sentou
se no chão como um buda e começou a olhar a tribuna fixamente. Pare
cia um inquisidor a olhar um herege antes de lhe arrancar a mais ampla
confissão.
Comecei a examinar a tribuna. Uma fresta muito estreita entre a pa
rede e o dossel deixava ver que ele era sustentado por duas robustas vi
gas, fincadas na parede, e que se prolongavam para dentro dele, no espa
ço que ficava entre a base da pirâmide e as duas tábuas do forro, adorna
das pelos medalhões. Ficavam escondidas pelo friso da cantoria.
E então, as duas grandes cantoneiras entalhadas, que pareciam sus
tentar o conjunto do dossel, eram falsas; tinham apenas uma função es
tética. Como as duas colunas quadradas que fingiam apoiá-las, coladas à
parede, partindo do piso da tribuna. Bati nelas com uma chave: eram ocas.
Beatrice, que me observava, chegou antes de mim, devo confessar, a
uma conclusão importante: "O caminho dos ratos pode ser por ali, Emilio."
"E, nesse caso, as 'Geórgicas' podem estar aqui em cima... ", emen
dei excitado.
"Isso não sabemos", replicou o meu grilo falante, ainda sentado co
mo um buda. Depois levantou-se e subiu os degraus da tribuna para olhar
melhor o forro dela. "Que figuras lindas", disse, acariciando com as mãos
os medalhões.
Eu estava no lado de fora, apoiado na balaustrada, completamente
fascinado por outras belezas: enquanto ela mantinha os braços erguidos,·
a camiseta aderia aos seios empinados, a dois palmos do meu rosto, real
çando as formas harmoniosas e as saliências túrgidas dos mamilos...
"Que pena, esse poeta aqui está meio solto. E essa musa também.
Parece que estão meio desparafusados."
Eu não conseguia desviar os olhos daqueles seios, que tremulavam
enquanto ela tentava fixar os medalhões. "Tente alguma coisa, deve ha
ver um jeito", foi a frase que me ocorreu.
"Estas figuras giram; se tiverem algum parafuso no centro, pode ser
que..."
Um estalo forte dentro do dosseI quebrou o meu encantamento.
Beatrice assustou-se: "Meu Deus, quebrei alguma coisa!".
Algo se tinha soltado no forro da tribuna, mas não eram os meda
lhões: era a tábua de trás, com o fauno e Clio, que se destacara da ante
rior, ficando uns três dedos mais alta. Como uma tampa de alçapão, des
trancada depois de alguns séculos, talvez.
Nenhum de nós conseguia dizer nada, Beatrice apontava para o vão
entreaberto, engasgada, pálida. Eu senti a garganta seca e apertada e, mais
que tudo, senti medo. Um medo vago, quase infantil, medo de castigo,
talvez. Ao mesmo tempo, voltou-me à mente uma idéia da tarde anterior;
a de que alguém, do passado dessa tinha esperado por nós, para nos
entregar seus segredos.
Passaram segundos intermináveis antes que nossos olhares se en
99
100
"Dois?", perguntei eu, sincero e direto.
"E daí?", perguntou ela, maliciosa e indireta. Quase mergulhei de
novo na minha deprimente auto-análise, mas o que Bruno dizia me inte
ressava maiS.
"Explique isso, Bruno."
"Examinei os fragmentos das 'Geórgicas', ontem à noite. Se tivessem
sido catados antes do 'rapa', teriam muitas partes descoradas, estariam
desgastados e mais amarelados. E, sobretudo, não estariam misturados a
notícias do L 'Vnità. Então o livro deveria estar na casa de Rinaldo ou
noutro lugar por aqui, há uns dois anos atrás. Convenhamos que a mãe
de Rinaldo ou o velho Alessandro não tolerariam ratos passeando por
seus armários e comendo seus livros impunemente. De acordo?"
"Claro, prossiga", disse eu.
"Vá lá!", concedeu Beatrice.
"Pois bem. Acabo de examinar todos os aposentos deste palácio,
menos a casa de Alessandro e o teatro. Em nenhum deles se pode escon
der um livro. Restam duas possibilidades: o sótão da villa e o teatro..."
"Em qual você aposta?"
"Excluí o sótão, porque Rinaldo me contou que lá não há nada.
Dom Attilio, duas vezes por ano, manda alguns homens retirarem os ni
nhos que os pombos fazem no forro e nos beirais. Os ninhos criam pio
lhos, mau cheiro e entopem as calhas. Os homens também varrem todo
o forro, uma vez por ano, na Semana Santa. Resta o teatro, com dois es
conderijos possíveis: um, sob o palco, no meio do vigamento. Já olhei lá
ontem e não há nada. O outro, muito mais apropriado, pode ser a tribuna,
em dois pontos: algum cantinho da base, onde fica o ninho, e nesse caso
Rinaldo já teria achado o livro, ou o dossel, ou 'telhadinho' da tribuna.
Acho que o nosso Virgilio está lá. O que vocês acham desta idéia?"
Era um raciocínio brilhante. O que me impressionou mais era, po
rém, a generosidade dele em nos contar tudo aquilo, dividindo conosco
a chance de encontrar o livro. Senti vergonha pelo impulso egoísta de es
conder dele o nosso achado. Na verdade, penso, eu pretendia partilhar
tudo, com todos, mas depois de consumada a conquista do tesouro.
"Parabéns, Bruno." Dei-lhe um abraço. Beatrice também o abraçou,
demoradamente. Parecia haver alguma umidade nos olhos dela. E entrei
de novo em auto-análise: "É isso que às vezes as torna odiosas. Quando
101
você está seguro de que são criaturas perigosas, desleais, elas choram e aí
está você, outra vez, pronto a se partir em quatro, só para vê-las sorrin
do, disposto a trocar sua paz por um olhar malicioso, correndo atrás do
primeiro rabo de saia que aparece, principalmente se for uma saia cur
tinha, amarela". Percebi que não havia salvação para mim.
"Bruno, parece incrível. Mas, por um raciocínio pouco diferente, nós
chegamos à mesma conclusão. E, que ninguém nos ouça, Beatrice e eu
temos certeza de que não só as <Geórgicas', mas também outros livros,
uma penca deles, estão lá. "
"Verdade? Vocês já espiaram? Lá na tribuna?"
"Sim, senhor. Lá no <telhadinho'. Tivemos uma sorte dos diabos."
Contei a história dos medalhões e do estalo que abrira o alçapão do
dossel.
Beatrice chegou com uma sacola de pano, dobrada: "Vamos lá, Mon
sieur Poirot e Inspetor Maigret".
"Sim, Miss Marple", respondeu Bruno. ,
Apenas tínhamos entrado, ouvimos a buzina irreverente do jipe, que
trazia Lorenzo, com cara de ressaca, e Isabella. Ela disse que iria ver a tor
rente e ele chegou-se a nós com a mão levantada, como orador que
pede atenção.
"Meus caros, aqueles fragmentos de Virgílio, acompanhados de dois
Barbera, são a melhor receita para um bom sono e para um pensamento
produtivo..."
"Xi!, mais uma teoria sobre a localização das 'Geórgicas'..." A pro
vocação era de Bruno.
"Sim, meu querido. E, diante do séu entusiasmo, vou direto ao as
sunto. O livro das <Geórgicas' está na tribuna."
senhor poderia ser mais explícito?", indagou Beatrice.
"Quando os antepassados da condessa carregaram o que restava de
livros, móveis etc., por aqui, um único lugar, dentre os que podiam con
ter o livro, não foi tocado. Esse lugar é a tribuna. E, como os fragmentos
foram colhidos há poucos anos, muito depois da <operação limpeza', o
livro ainda está por aqui, na tribuna. Por exclusão. Elementar, meus jo
vens colegas. "
"Como você pode afirmar que não tocaram na tribuna?", eu quis
saber.
102
"Explico. Ontem, vocês andaram fuçando aqui e ali, no teatro, en
quanto Isabella e eu, pesquisadores sérios, examinávamos sistematica
mente paredes, afrescos, janelas e pavimento da capela. No teatro, talvez
viciados, fizemos o mesmo..."
"Fala logo!", disse Beatrice.
"Como eu ia dizendo, olhamos o aposento mais que os objetos que
continha. Em volta da tribuna, muito próximos dela, há, no chão, vestí
gios abundantes de paredes que foram removidas e que se prolongavam
até o teto, onde há outras marcas, menos claras porque as paredes apenas
o tocavam, sem enfiar-se nele. Portanto a tribuna esteve, literalmente,
emparedada..."
"Ela pode ter sido construída depois da remoção das paredes!", ar
riscou Bruno.
"Não. Porque as paredes feriram a pintura da roseira silvestre e da
parreira. A pintura precedeu ao emparedamento. E a tribuna precedeu à
pintura, porque o tronco da videira contorna o piso dela, sobe desvian
do da cantoneira e depois se dobra por cima do dossel, antes de se abrir
naquela apoteose de ramos e folhas. "
"Como você sabe que as paredes foram retiradas depois do 'rapa'?"
"Porque ontem ajudei Alessandro a recolher as taças que vocês, al
coólatras, esvaziaram, e pude fazer-lhe uma pergunta indiscreta, longe
de vocês todos: 'Senhor Alessandro, quem descobriu a tribuna?'. Ele me
fitou com um olhar perfurante, sorriu e respondeu: 'o senhor é muito
perspicaz. Foi meu pai, na véspera de meu casamento. A chaminé do fo
gão grande entupiu, muito acima da coifa. A cozinha ficou cheia de fu
maça e cheiro dos assados. Todos pensavam, ele também, que aquelas pa
redes no teatro escondiam as duas chaminés, a do fogão e a da lareira.
Tentando chegar a elas, fez um buraco numa das paredes. Em vez da cha
miné entupida achou a tribuna. As chaminés, após saírem das coifas, su
biam até o telhado por outro caminho. Por dentro da parede da fachada'."
Lorenzo inclinou-se, como um concertista diante da platéia.
"Brilhante!", aplaudiu Bruno. "Só que tanto eu, como Emilio e Bea
trice chegamos à mesma conclusão, por caminhos diversos."
Contamos então a ele os raciocínios de cada um e a história do al
çapão. Isabella chegou de seu passeio no vale, distraída, fora do mundo.
Lorenzo, à queima-roupa, disparou uma pergunta direta.
10 3
"Isabella, na sua opinião, onde está o livro das 'Geórgicas'?"
"Provavelmente, na tribuna do teatro."
"Mas isso é mero palpite, não?"
"Não. É uma inferência... indutiva. Imagine que você é um pianista
fanático, tem um piano seu, para você e seus amigos, está em sua casa e
faz nela o que bem entende. Qual o lugar mais cômodo para guardar as
partituras que você está estudando, ou as suas preferidas? Sob a tampa do
teclado ou dentro do piano. Não é?"
E, alheia à nossa perplexidade, ela acrescentou mansamente: li
vro deve estar onde o Virgilio era declamado! É tão simples".
Na subida da escada, Beatrice, que ia na frente, abraçada por Lo
renzo, parou de repente e desafiou: "Depois da experiência de hoje, quem
se habilita a escrever algo como Teoria da Descoberta?".
"Depende. Vale falar de estratégias, de. intuição, ou você quer uma
lógica da descoberta?" A dúvida era de Lorenzo.
"Aceito os dois enfoques. Você escreve?"
"Deus me livre. Perguntei só por curiosidade."
"Eu aceito escrever, em co-autoria, se cada um conseguir explicar,
em termos epistemológicos, como chegou à descoberta do Virgilio na
tribuna. "
"Não é má idéia, Bruno. Podemos planejar isso qualquer noite des
sas, lá no Anjo Azul. Mas agora vamos ver esses benditos livros", propôs
Isabella, puxando-o pela manga.
No teatro, cada um teve sua chance de subir à tribuna, levantar um
pouco mais a tampa do alçapão, olhar para os livros, fazer uma cara des
lumbrada e descer limpando a poeira das mãos como pudesse.
Então subimos, eu e Beatrice. Ela segurava a sacola e tinha que ficar
bem perto da parede para não pisar no buraco do piso; o espaço era pou
co. A tampa do alçapão era basculante como se tivesse dobradiças junto
à parede, escondidas por uma cornija entalhada. Pesava mais do que eu
esperava. Com a mão direita, levantei-a bem alto e, com a esquerda, meio
trêmula, peguei um livro, o único que estava deitado, aberto. Era fino e
pequeno, com capa de cartão muito danificada. Fechei-o e passei às mãos,
também trêmulas, de Beatrice.
ele! O nosso Virgilio!", anunciou ela, agitada.
Depois foi um livro grande, não muito grosso, com capa esfolada, de
104
couro cru, e páginas de papel de trapo, muito liso. Na capa, um título lon
go, em letras tipo códice: Commentanum... etc. Eu não estava muito in
teressado em títulos ou letras, naquela hora.
O terceiro era um belo exemplar, com capa de couro claro e duro,
era volumoso e tinha números romanos na lombada. Quando o passei a
Beatrice, alguns fascículos se desprenderam da capa. No ímpeto de se
gurá-los ela perdeu o equilíbrio e pisou em falso.
Instintivamente, estendi os braços para segurá-la... E a tampa en
tão desceu com todo seu peso. Houve um estalo seco. O alçapão estava
trancado.
Nem ela nem eu sabíamos quais manobras nos medalhões tinham
destrancado aquela maldita tampa. Tentamos vários modos de movê-los
e diversas combinações de movimentos. Tentamos girar até o medalhão
de Clio, que não se moveu. O do fauno revelou-se capaz de algum mo
vimento giratório, mas muito menor que o dos outros e um tanto excên
trico. Nada conseguiu reabrir o alçapão.
Beatrice sentou-se com os outros, no tablado do palco, esfregando
o tornozelo. "Torci o pé, miséria."
"É a maldição do faraó", disse Bruno.
"Conseguimos muito mais que o esperado", ponderou Lorenzo,
apontando os livros. "Se Isabella fizer um esboço do dossel com os me
dalhões, podemos estudar algum 'Abre-te Sésamo' e voltar aqui, com
mais tempo."
"Só que a desenhista está ocupada, no momento, em copiar os he
xágonos do teto." Era Isabella quem reclamava: "Faço o desenho, mas
com uma condição: um dos livros, de minha escolha, vai ficar comigo nas
próximas semanas. Vocês decidem sobre os outros dois. Concordam?".
"Temos alternativa?"
"Não."
Bruno resumiu o sentimento geral: "Sanguessuga!".
"Acontece que eu mereço. Fui eu que ganhei os livros..."
"O quê?"
"Ganhei, sim. Alessandro no passeio ao vale, para
mostrar as lápides e os restos do velho· moinho. Contei-lhe sobre os frag
mentos de Virgilio, e sobre a nossa esperança de achar o livro em algum
canto da villa. Nossa conversa foi mais ou menos assim:
'Eu não acredito que exista algum livro antigo num raio de pelo me
nos três quilômetros, mas se a senhora ou seus amigos acharem algum,
poderão levá-lo, depois de assinar um compromisso.'
'Como assim?'
'É o que decidiu Dom Attilio, há uns oito anos, quando eu e meu
genro, que faleceu, refizemos a pintura da villa. Achamos um pequeno
cilindro de chumbo, com tampa rosqueada. Dentro havia duas folhas com
desenhos, algumas anotações e um compasso. Dom Attilio não quis acei
tar o nosso achado. Disse que detesta antiquários, que entre a casa dele
e a da condessa já tem antiguidades para fazer um museu. Pediu apenas
que os objetos pudessem ser vistos por qualquer pessoa, e fossem doa
dos oficialmente a alguma instituição pública...'
'E onde estão agora?'
'Na sede da mais importante instituição pública de Madonna della
Spina. Dom Attilio não excluiu nenhuma...'
'Mas onde estão?'
'Na sede do Partido Comunista Italiano, expostos a qualquer cida
dão e não trancados em alguma coleção particular. Se algum dos seus co
legas ou a senhora acharem algum livro, assinarão um compromisso de
doá-lo a uma instituição pública que o deixe acessível a qualquer pessoa,
e poderão levá-lo... De acordo?'
'Sem dúvida, que maravilha', disse eu. Ele então balançou a cabeça,
como quem desiste de converter um impenitente e me deu um sorriso
de... psiquiatra."
Lorenzo sorria de uma orelha a outra. Tomou a mão dela, ergueu-a
o mais que pôde e exclamou: "Viva Isabella, a grande benfeitora do Ga
li/ei, a mais importante instituição pública da Lombardia! Por esses livros
nós assinamos até confissão de terrorismo".
Enquanto ele falava, Beatrice estava noutro mundo, numa espécie de
nirvana, a julgar pelo sorriso. Tinha nas mãos, entreaberto, o livro mais
grosso, com capa de couro branco, que tomara de Lorenzo, e balançava
a cabeça, como se não acreditasse no que via.
Bruno se apoderara do livro menor, o Virgilio, e tentava encaixar,
nas páginas rasgadas, os fragmemós das "Geórgicas", que guardara na
carteira. Ele também estava alheio ao resto do mundo.
"Vocês dois aí", disse Isabella, "não se esqueçam de que a primeira
106
escolha é minha. É inútil vocês se apaixonarem por esses livros. A dor da
separaçao val ser malOr....
"Quem achou os livros merece mais. Mas Isabella nos livrou do re
morso: vamos saborear esses textos, sem culpa, e sem medo de ir para o
inferno. Só há um problema: não só o Virgílio, mas os outros dois tam
bém estão em latim. Ergo...", falou Lorenzo, apontando para mim.
"Sem dúvida", concordou Beatrice, voltando do espaço. "Isso aqui...
meu Deus do céu... é um tesouro... " Ela gaguejava, emocionada: "É um
<Hipólito'! Manuscrito... com escólios!".
Isabella achegou-se a ela quase num salto. Espiou o livro e arrega
lou os olhos: "Santo céu!, Emílio, você se lembra do volume das Bacchae?
Era gêmeo deste! A mesma encadernação, os escólios, as letras... É incrí
vel. O encadernador tinha razão... ".
Eu não sabia o que dizer. Mas tinha uma certeza: algum dia eu pe
garia tudo o que tinha ficado no alçapão. Quanto aos três livros, eu pre
via que iam me trazer problemas. Claro que eu queria mergulhar nesse
<Hipólito', de cabeça. Eu adoro Eurípides. Mas tragédia grega, no Galilei,
significava Anna. Devo ter feito alguma cara desconsolada, porque Isa
bella me passou a mão nos cabelos, perguntando: ceo que aconteceu?".
ceNão sei. Gostaria de saber o que ainda vai acontecer."
"Fique tranqüílo", disse ela em voz baixa, de costas para os outros,
"no papel que devo entregar a Alessandro vai constar só o Virgilio. Você
trate de sair daqui com os outros dois. Eles também vão ser declarados e
registrados, mas só mais tarde. Quando esvaziarmos o dosseI. Se eu dis
ser que achamos os três ele vai logo pensar num ninho de livros, e pode
rá chegar à tribuna antes de nós. Correto?".
ceDe acordo", respondi. Minha cara me traiu, como sempre. Isabella
me olhou firme nos olhos e emendou: ceÉ evidente que você e Anna vão
ter que se entender...". Eu gelei. A frase podia estar envenenada. Enquan
to eu procurava inutilmente alguma resposta ela continuou: "Tragédia é
com ela, latim é com você. Vocês formam uma bela dupla, sabe?".
"Podemos formar um trio", falei, surpreendido com meu desem
baraço.
"Três é demais", foi a resposta dela. ce Além disso, minha especiali
dade é canto gregoriano. Tragédias, não." Até hoje, muitos anos depois,
ainda não entendi essas frases de Isabella.
Lorenzo, que se tinha aproximado de uma janela, anunciou: "Ri
naldo e o nonno vêm subindo a estrada, de bicicleta. Isabella, você assina
o papel? Precisamos voltar a Milão antes da noite. Vocês não acham?".
Bruno, pragmático, lembrou: "Antes disso, Isabella precisa desenhar
o teto da tribuna e nós temos que visitar Dom Attilio. Para facilitar as
coisas... no futuro".
"Mais nada, senhor?"
"Sim. Temos que cumprimentar Alessandro e sua família. E uma
coisa importante: comprar os ovos. Enquanto fechamos as janelas, Emi
lio pode levar os dois volumes para o carro."
Desci, guardei a sacola de Beatrice no carro de Lorenzo e juntei-me
ao grupo. Na visita, Alessandro pareceu não acreditar que tínhamos acha
do o Virgílio ali, na vil/a. Depois sorriu, satisfeito, folheou o livro e fez a
pergunta indesejada: "Onde o acharam?". Eu, como de costume, me senti
perdido. Beatrice, não. Sorriu para Alessandro e desafiou: "Vamos ver se
o senhor consegue adivinhar? Tem um minuto".
"Ou na capela, ou no teatro. Não há outras alternativas", disse o
velho prontamente. "Falta saber em qual dos dois. Mas prefiro não arris
car. De todo modo, fico contente com esse achado. Talvez, assim, vocês
voltem, para procurar outros. Essa casa é grande demais. E é muito bo
nita, não acham? Espero que consigam ajudar Dom Attilio a salvá-la."
Lorenzo disse que tínhamos contatos com muita gente no ramo edi
torial e de investimentos culturais e que, embora não se pudesse prometer
nada, íamos procurar um modo de salvar a mansão. E era o que todos
pensávamos, tenho certeza. Bruno acrescentou que íamos visitar Dom
Attilio, antes de retornar a Milão.
Beatrice e Isabella compraram umas três dúzias de ovos. Pagaram a
Rinaldo pela produção de meio ano ou mais, de Filomena e suas colegas.
Em compensação, ganharam beijos e abraços.
"Voltem logo!", disse Alessandro, quando partimos.
108
Capítulo 5
o Cavaleiro da Paixão
109
Embarquei no carro de Lorenzo, com Isabella. Bruno ficou no jipe
de Beatrice. Paramos para o almoço, logo na saída da aldeia. Serviram
um excelente sampré alla piemunteisa, com um Barbaresco 64, divino.
Informaram-me que, em Milão, eu poderia deliciar-me com o "Hipóli
to" e mais tarde com o Virgilio, que ficaria com Isabella, "por direito de
usurpação". Até ali, tudo bem. Mas o terceiro livro tinha que ser tradu
zido, pois era totalmente inédito e "você é o nosso latinista". Em com
pensação eu seria o primeiro, depois de vários séculos, a ler, em pri
meiríssima mão, o Commentarium. Isabella contou-me o resto do títu
lo: de tragicis Euripidis operibus. Então senti que o sangue me subia ao
rosto. Não era vergonha o que eu sentia: uma mistura de desejo e de te
mor. Pudor, talvez.
Era um desafio fascinante, mas era também uma ameaça. Ela disse
em seguida: "No latim, você é o nosso campeão, mas para entender as
complicações de Eurípides, você poderá contar com Anna. Ela vai ado
rar isso, tenho certeza". Eu nem olhei para ela. Qualquer reação seria um
passo em falso. Voltei para dentro de mim e para o meu divã pessoal. Meu
id dizia: "Não perca essa chance. Já pensou o que será uma noite com
Anna, depois de traduzir juntos, por exemplo, os devaneios de Fedra?".
Meu superego, de seu lado, murmurava: "Vai bancar o idiota de novo?
O que Anna quer é usar você para seu trabalho, e nada mais. E, prova
velmente, Isabella acha isso muito certo". Meu ego, cansado, cheio de in
certezas, dessa vez foi hábil, embora pouco original: "Seja o que Deus
quiser. Agora quero saborear este sampré e este Barbaresco", foi tudo o
que conseguiu dizer, mas bastou para sossegar os outros dois. Na sobre
mesa, quando chegou a Ambra d'oro, já estava feliz com a idéia de de
cifrar o Commentarium, ao lado de Anna, por que não? Uma mulher
como ela, não se encontra todo dia. Mesmo que tudo ficasse no plano da
amizade, seria uma delícia conviver com o brilho e a graça dela. Não sei
se por causa do vinho, quando me larguei, ou me largaram no banco tra
seiro do carro, pareceu-me ver, sentado na calçada, meu superego arran
cando os cabelos. Decidi ser duro com ele: "É. Seja o que Deus quiser!".
"O quê?", perguntou Lorenzo.
"Nada. É isso mesmo. Seja o qúe Deus quiser."
Acordaram-me depois de Novara, para um café. Eram quase sete da
noite. Íamos chegar a Milão, pelas oito e quarenta, boa para levar
no
Isabella ao marido e depois dar uma chegada no Anjo Azul. Foi o que
propus.
quê? E eu? Por que não posso encher a cara, se me der na cuca,
no Anjo Azulou onde eu bem entender?", foi a reação dela.
«Emilio", aconselhou-me Lorenzo, «veja com que graça as mulhe
res falam hoje em dia. Isto se chama emancipação feminina. Elas ficam
adoráveis, não? E você, porco machista, pensando que ela poderia estar
com saudade do marido. Perceba, meu caro: quanto esse tipo de cuidado
com o sentimento dos outros é pura opressão machista...".
«Disfarçada de solicitude paternalista", emendei.
«Basta!!!, seus chatos."
essa leveza, Emilio. Coronemus nos rosis antequam mar
cescant."
"Às vezes chego a pensar que vocês são misóginos."
aliás, se dizia do nosso grande Eurípides, aqui presente",
disse eu, mostrando a sacola de Beatrice.
"Depende. Pode até ser verdade", explicou Lorenzo: "Pode-se ado
rar as mulheres e odiar freiras, ou feministas. Não chega nem a ser uma
questão de princípio, é questão de bom-gosto e de inteligência, minha
cara".
"Na verdade nós adoramos as mulheres, desde que sejam belas, in
teligentes e... inseguras. Seria isso uma prova de nossa misoginia? Eu, por
exemplo, acho esplêndida a figura feminina de Medéia, certamente uma
mulher detestável. Sou misógino? A Fedra do 'Hipólito' me desperta
compaixão, quase ternura. Mas é de uma perfídia covarde."
«Afinal, por que todo esse debate idiota? Vou beber cerveja com
vocês e basta. Adoro homens gentis e não terei na vida muitas oportuni
dades como esta, de ser cumulada de tantas amabilidades. Vocês são tão
afáveis. Estou com saudade de meu marido, sim, meus caros. Mas quero
aproveitar meu domingo até o fim. Agora continuem com esse assunto,
que está muito interessante. É preciso ser um gênio para perceber que
Medéia fascina figura dramática, mas repugna enquanto psicopa
ta assassina. Também é preciso ser genial para distinguir entre freiras e
mulheres normais. Vocês estão de parabéns. Faço questão de ficar com
vocês no Anjo Azul, principalmente para enriquecer minha pobre cabe
ça feminina."
III
"Há outro tipo de mulheres que nós detestamos", disse Lorenzo, "as
irânicas. Mas, como você foi sincera ao reconhecer nossa genialidade,
podemos discutir a possibilidade de você beber conosco. Que você acha,
Emilio?".
"Não sei... o risco 'é ela habituar-se. "
"Então a levamos só por esta vez."
"Quanta bondade! Não sei como agradecer. Ah, antes que me esque
ça, Bruno combinou que iremos nos encontrar sob as colunas de San Lo
renzo. Quem chegar primeiro, espera."
Quando chegaram, Bruno queria beber em via Magolfa, na espelun
ca "do grego", mas Beatrice o convenceu de que lá havia muita gente nos
domingos. Fomos para o Anjo Azul, nós cinco ciosamente apertados
ao meu peito, o "Hipólito" e o Commentarium, na sacola de Beatrice. O
Virgilio estava seqüestrado, na bolsa de Isabella. Por volta da quinta ca
neca de cerveja, Bruno lembrou as frases de tia Margherita: "Ele foi per
seguido por outros bispos porque não concordava com... injustiças con
tra os protestantes daquele tempo". E emendou: "Provavelmente ela usou
'protestantes', em sentido amplo. Se não, até que daria para transformar
o nosso caro Lutercio em um Lutero, um Lutero Lorenzo e os ou
tros começaram a discutir o assunto.
Minhas idéias estavam enroscadas em outros enigmas. Além dessa
história, de tia Margherita, havia outras coisas, que eu tinha que ordenar.
Por exemplo: embora parecesse plausível, não tínhamos prova da existên
cia de Lutercio, nem de que ele construíra a mansão, ou escondera os li
vros. Seria ele o autor do Commentarium? Por que a tribuna tinha sido
emparedada? Quem a murou sabia que guardava livros? De que modo
um volume gêmeo do "Hipólito" tinha ido parar nas mãos do encader
nador ou livreiro de Cisterna d'Asti? Como é que Aurelio Valdesi sabia
que as Bacchae eram da casa do bispo vermelho? Qual o truque para abrir
de novo o teto da tribuna? Por que a biblioteca, com o presumido retra
to de Lutereio e seu irmão brutamontes, ficava trancada?
Concluímos, depois de várias pizzas e muitas cervejas, que os indí
cios da existência de Lutercio eram tantos e tão plausíveis que havia mais
risco de erro em negá-la, do que em admiti-la. Para isso, contribuíam ar
gumentos de história da Igreja, do clero, do Piemonte e também induções
nossas, a partir das informações colhidas in loco. Poderia até não ser um
II2
bispo. Mas alguém, tomado por bispo, chamado Lutercio, ou coisa pa
recida, havia marcado a história da villa e da cultura popular da região.
Mais, era um personagem ligado a encadernadores e livreiros. Alguém
querido pelo povo da aldeia e, provavelmente, proscrito pelos poderosos,
como pessoa, como fama e como nome. Por outro lado, todo o mistério
talvez não resistisse a algumas consultas a documentos antigos na cúria
diocesana, nos registros cartoriais ou a livros de história.
Bruno lembrou o monumental Ordens Monásticas Medievais, de
Dom Benoit des Pres, o famoso historiador beneditino, e O Episcopado
Lombardo, de Ludovico Graus. Lorenzo sugeriu um livro de Rosanna
N ole, sobre afrescos do renascimento na Itália do norte, que ele tinha
estudado para um trabalho sobre Masolino. Disse que era uma arquiteta
genial.
Havia também a pista do irmão de Lutercio, o marquês caçador.
Afinal, um marquês deve constar de algum registro genealógico. Havia
dezenas de obras sobre a nobreza do Piemonte e do Vale d'Aosta a se
rem consultadas. Mesmo que o tal Filipe ou Filiberto não pertencesse a
qualquer Casa Real, algum estudioso ou bajulador teria registrado a sua
passagem sobre o planeta. Mesmo como simples matador de cervos ou
de hereges. Mais ainda, a própria villa deveria figurar em algum texto
sobre edifícios antigos da região, ou no livro de Rosanna Nole.
De todo modo, concluímos, a proscrição de Lutercio fora eficaz
num tempo de crendices, de analfabetos e medo do inferno, mas não re
sistiria a uma investigação histórica. O bispo vermelho não tinha desa
parecido: apenas se escondera à espera da "revanche". A conversa sobre
os "protestantes de tia Margherita" ia de vento em popa. Beatrice e Bru
no estayam empolgados:
"Em nenhuma região da Itália houve mais movimentos heréticos do
que no Piemonte. Por ali andaram cátaros, albigenses, bogomilos e mil
outros grupos, desde o século XII, pelo menos".
"E o Santo Ofício deve ter registrado tudo sobre eles. Nomes, cren
ças, amigos e protetores. Nesse caso nosso bispo estaria devidamente fi
chado em algum calhamaço do Santo Ofício, ou da 'De propaganda Fi
de', com todos os seus desvios ideológicos."
"Quem sabe, até com particularidades sobre seus afetos e eventuais
paixões. A gestapo dominicana não dormia em serviço", emendou ela.
113
114
o que dizer, além de um "oi, tudo bem?". Odiei aquele ar de felicidade,
após um fim de semana com o marido.
"Parabéns, Emilio. Fiquei sabendo de suas proezas no Piemonte. Pa
rece que houve caça grossa..."
"É. "
"Você me deixa dar uma olhada nos livros?"
"Ainda não abri."
"Por quê? Modéstia?"
"Estão ali, na sacola de Beatrice."
"Que é que você tem? Está zangado comigo?"
"Claro que não."
"Você prefere vê-los sozinho, não é?"
"Não. Estou cansado. Só isso."
"Cansado ou chateado? Não quero incomodar... "
"Pode ver os livros. Mas, por favor, não os tire da mesa."
"Eu sei. Para não perder eventuais marcas ou papéis colocados en
tre as páginas, não é?"
"Parabéns. Vê-se que você é do ramo."
Eu queria dizer que estava louco de saudade e de ciúme, que a achava
maravilhosa, que estava feliz de poder trabalhar com ela naqueles textos.
E só conseguia ser tosco ou grosseiro. Como um bloco de granito. Foi
então que ela me derreteu.
"Enquanto vocês se divertiam no Piemonte eu tive um fim de semana
chatíssimo. Mas hoje quando Beatrice me contou sobre o seu achado fi
quei feliz, muito feliz, não sei bem por quê. Talvez até porque esses livros
trazem algum desafio pessoal importante para mim. Só lamento que se
jam em latim..."
Antes que meu superego se intrometesse, surpreendi-me a dizer, já
arrependido de ter começado a frase:
"Podemos trabalhar juntos, se você...".
"Verdade? Você aceitaria? Que maravilha!"
Meu coração galopava. Então ela me agarrou as mãos e me deu um
beijo generoso e quente na face. Devo ter feito uma cara de espanto, por
que ela, ainda segurando minhas mãos, me olhou firme nos olhos: "Você
me acha tão assustadora?".
Era um convite? Uma piada? Uma armadilha? Qualquer coisa que
eu dissesse daria errado. Mas eu tinha que dizer. Revistei freneticamente
meu arsenal de frases sedutoras, imponentes ou sábias e consegui for
mularuma:
"É".
Ela riu, maravilhosa, e eu continuei paralisado. Percebi que, num
duelo de seduções com Anna, eu estaria liquidado de saída. Torci para que
entrasse alguém na sala, para me tirar daquela situação quase ridícula de
incapacidade total. Avançar era imprudência e fugir seria pior. Por sor
te, Luciana gritou lá da secretaria: "O café está pronto!". Anna, com um
sorriso astuto, não perdeu a chance de tentar mais um ponto: "Dizem que
cafeína é excitante". Era demais. Respondi, sem pensar: "Luciana tam
bém". E me senti vingado. Nem olhei a cara dela. Eu sabia que ela estava
de nariz empinado, com um sorriso pernóstico. Lembrei a frase de Lo
renzo no Menarost: "É como cair sentada no meio da Galleria, levantar
se exibindo as coxas e sair rebolando para os turistas do Biffi". E ela, en
tão, me pareceu pequena.
Junto ao café, todos falavam dos manuscritos e do convite a Tulio,
em pleno domingo de verão, para assumir a cátedra de Psicopatologia, no
Instituto de Psicologia. Haviam conseguido, finalmente, aposentar Ma
tilde Rossini, uma figura acadêmica melancólica, que subira na Univer
sidade com métodos pouco ortodoxos, um discurso que os estudantes
dos primeiros anos admiravam e que Lorenzo definia como de "esquer
da palaciana". Tulio dizia que ela tinha estreado como revolucionária ao
morder Cleópatra. Beatrice acrescentou que, no dia do Apocalipse, Ma
tilde Rossini acharia o modo de conseguir do Padre Eterno um convite
de primeira fila para a apoteose final.
Tulio pediu para ver o Commentarium. A opinião dele interessava
muito porque ele não participara de qualquer conversa nossa sobre Lu
tercio ou nossas teorias a respeito do livro. Anna ficou na secretaria, nu
ma conversa com Beatrice. Isabella nos acompanhou, com olhos de so
no. Tulio não quis abrir o livro, disse que era meu direito, o "jus captus".
Levantei cuidadosamente a capa de couro esfolado. Minha mão tremia e
eu senti um vazio no estômago. Isabella mordia o lábio, de olhos arrega
lados. Tulio sorria vagamente, um sorrisd de esfinge. Havia um curtís
simo prólogo, sem título, que revelava muito do homem que o escrevera:
n6
PLANcruS PETRI ABAELARDI UBI DECESSUS EST OICATUM
legi EQUlTl DJALECTlCAE: cui soli patuit scibile quid
quid erat, propter ejus de ratione humana scientia.
Ita dicam de Euripide summo magistro de homi
num natura, cui soli patuit scibile quidquid erat de
humanis affectionibus, ei qui sicut veritatem simi
liter ac tenaciter tametsi alia perquisivit et protexit
tamquam eques affectus quidam.
"E o que faz o Planctus nessa história?" quis saber ela, perplexa.
"Você não tem obrigação de saber isso. Mas é coisa do meu ramo.
117
quase sempre recurvado em caracol. Esse texto é típico das primeiras dé
cadas do século. É uma letra usual nos manuscritos novelli e em alguns
recensiores." Tulio aproveitou a chance de aprender mais e, acho, de tes
tar a competência dela.
"E o que é letra uncial?"
"É apenas uma indicação de tamanho. Equivale a uma polegada. O
grego uncial derivou na escrita merovíngia, por volta do século IX. É a
letra dos vetustissimi, códices em minúscula. Pois havia também a escrita
uncial capital em códices escritos até o século XI. Como você vê, passei
no seu exame, meu caro professor."
Elogiei o brilho dela: "Parabéns, menina. Vou precisar de você quan
do enfrentar a tradução. E para acertar o feeling do autor, em muitos pon
tos vou precisar também de você, Tulio".
"Tudo bem. Mas agora traduza isso para nós."
A tradução do prólogo não era difícil. Mas a grandeza do pensa
mento não se traduzia facilmente. Planctus era um particípio passado e
não um substantivo, ao contrário do que Isabella suspeitara. Tentei uma
primeira versão:
"Por enquanto não sei o que significa, Tulio. Mas ainda vou saber.
Não se pode deixar esquecido alguém que em oito linhas diz tanto e de
modo tão bonito. Nem que fosse só por essa idéia de dar a Eurípides o
título de Cavaleiro da Paixão. "
Tulio me ouviu, como se esperasse outras idéias. Coçou a testa e fe
chou os olhos por alguns segundos. Depois começou a andar de um lado
118
para outro e, por fim, perguntou: "Vocês sabem se esse L foi algum au
tor proibido, proscrito?".
quê?"
"Porque ele anda em companhias perigosas. Petrus Abaelardus e
Eurípides não são modelos de bom comportamento nem de respeito às
autoridades..."
"Isso eu sei. Mas, por que você presume que ele teria sido um autor
proscrito?"
"Já disse, porque anda em más companhias. Claro que Abelardo e
Eurípides devem ter sido pessoas fascinante·s. Isso, para nós que amamos
a contestação e a crítica. Mas eles falaram para outros ouvintes e escreve
ram para outros leitores. E pagaram o preço de serem lúcidos e rebeldes
em tempos de cegueira e conformismo. Nós só não vamos para a foguei
ra ou para o exílio os tempos são outros e alguém lucra com o
nosso trabalho. Mas Eurípides e Abelardo, bem como esse seu amigo L,
viveram noutras épocas... "
"Por isso você supõe que... "
"Tenho certeza, Emilio."
"Como?"
"Simples. As más companhias são apenas um indício. Mas esse livro
não tem qualquer aprovação eclesiástica e o autor esconde seu nome. Isso
tudo, nos meados do século xv, é coisa de excomungado ou de alguém
caído em desgraça perante o poder eclesiástico. Um dogma é sempre o
produto e o sustentáculo de um sistema de poder autoritário. É por isso
que os bispos e príncipes sempre se entenderam. Tanto que o papa é um
monarca. Mas mesmo que não fosse, sempre haveria 'reis católicos' ou
coisa parecida, prontos a desterrar, eliminar ou calar hereges, contesta
dores, infiéis, em defesa da 'ordem pública e social' ou dos 'bons costu
mes', sem que o clero precisasse macular suas mãos... "
"Sócrates que o diga", lembrou Isabella.
"E Anaxágoras. E Eurípides que, como Abelardo, Giordano Bruno
e tantos outros, decidiram rationibus veritatem investigare et in omnibus
non opinionem hominum, sed rationis sequi ducatum, como dizia Abelar
do", acrescentei, surpreso por ter recordado a citação. Eu tinha lido não
sei onde, no fim do colegial, e gostava dessa profissão de antidogmatismo.
Talvez o prólogo do Commentarium me tivesse inspirado. Isabella con
II9
120
"Não. Mas não baguncem a conversa porque estamos resolvendo
grandes problemas de psicologia", foi a resposta meio jocosa e meio sé
ria de Tulio. A conversa era inútil, como todos sabíamos. Mas, pelo jei
to, Isabella havia tocado em questões importantes para ele.
Isabella virou o jogo: "Anna, você amaria genuinamente, como diz
Emilio, um homem como Eurípides?".
"Amaria, perdidamente. Mas tenho certeza de que eu não lhe bas
taria..."
"Quanta mo estia...
" ..; porque eu teria milhares de coisas a descobrir e a amar nele. Mas
tenho a impressão de que em meia hora ele esgotaria meu arsenal de atra
tivos. Seria um investimento a fundo perdido. Como toda paixão que se
preze, aliás."
"E o que te leva a essa paixão por um homem do século V antes de
"É óbvio que essa paixão é por uma imagem dele. Uma imagem que
foi se formando nesses anos todos de leituras sobre ele e seus escritos...
Mas penso que essa não é a hora para contar o que penso dele. "
Resolvi ser gentil com ela. Ela estava sendo sincera e modesta, achei.
E contei que tínhamos tido uma "aula" de Tulio sobre Abelardo, e outra
de Isabella sobre escritas antigas. Agora era a vez dela. "Precisa projetor
de diapositivos?"
"Não, obrigada. Espero ser breve e não ser chata. A imagem que te
nho de Eurípides é a de um homem muito à frente de seu tempo e, si
multaneamente, a marca desse tempo. Ele foi a maior estrela do iluminis
mo grego e tinha tudo para sê-lo. Era filho de Mnesárquides, ateniense
dos Ptolemaides, e de Clito, também de alta linhagem, segundo estudos
recentes. Nasceu, provavelmente, no dia da vitória helênica de Salamina
sobre a frota persa, na própria ilha em que ocorreu a batalha. Qual mu
lher não se apaixonaria por um homem talentoso e iluminado a quem o
próprio oráculo de Apolo profetizara um futuro de glória e aplausos, um
homem com educação atlética, amigo íntimo de Protágoras, que estuda
ra física com o grande Anaxágoras e retórica com Pródico, admirado por
Sócrates e por Alcebíades..."
"É verdade que ele foi aluno de Sócrates?", quis saber Beatrice.
"Não. Na verdade, eram amigos e se admiravam mutuamente. O que
121
se sabe é que em assuntos éticos são muito parecidos, tanto que alguns au
tores acham que Sócrates, embora mais novo, teria ensinado ética a Eu
rípides. Diógenes Laércio afirma, porém, que foi graças a Eurípides que
Sócrates teve acesso ao que diziam os textos de Heráclito custodiados no
templo de Diana. E isso tem sentido porque, segundo Diodorus Siculus,
Eurípides visitava o templo assiduamente, para ler Heráclito. Tanto, que
sabia os textos de memória..."
"Uma educação esmerada, uma inteligência excepcional, um alto sen
so crítico: a receita completa para o sucesso e para a infelicidade", concluiu
Tulio com um sorriso estranho, como se pedisse para ser desmentido.
Mas Anna confirmou: "É por isso que eu disse que ele estava à frente
de seu tempo. Quem poderia, além dele, reunir tantas condições para bri
lhar e para enxergar os erros, a injustiça, a hipocrisia dos costumes, os
embustes da religião, a mesquinhez dos sucessos fáceis ou do discurso de
magógico? Você acertou, Tulio. Ele tinha tudo para brilhar e para ser
odiado, invejado, incompreendido...".
"E proscrito", acrescentou Isabella.
"Claro", concordou Anna. "Mas antes de afastar-se ele marcou seu
século e a nossa cultura para sempre. De fato, nenhum de seus mestres tão
ilustres reunia à sabedoria e à elevação ética tanta criatividade, tanta sen
sibilidade e, mais que isso, tanto respeito e interesse pelas paixões dos
homens. Resumindo, ele juntava ao saber a sabedoria e, à sabedoria, a pai
xão. Qual mulher pode não amar um homem assim?"
Os olhos dela tinham um brilho intenso e havia em suas mãos e nos
lábios uma tensão contida, quase um tremor. Anna estava realmente vi
vendo cada palavra que dizia. Ela amava, de fato, Eurípides e conhecia
muito bem esse homem irresistível, fadado a brilhar e sofrer. Esse filósofo
cuja riqueza de pensamento e cuja penetrante sensibilidade não cabiam na
forma árida dos tratados ou mesmo dos diálogos. Ele precisava da poe
sia. E talvez a poesia precisasse dele. Eu via Anna apaixonada por esse
homem e não sentia qualquer sombra de ciúme. Eu estava gostando do
amor dela por Eurípides. Era uma sensação estranha. Uma pergunta de
Tulio me distraiu.
"Anna, como é a história do filósofo trágico?"
"É erro de um historiador do século XVI que traduziu com excessi
va liberdade um epíteto dado a Eurípides por Clemente de Alexandria,
122
Skenés Philósophos que, literalmente, quer dizer Filósofo do Teatro, da
Cena. De fato, ele era um filósofo, ligado ao grupo dos sofistas, era um
dos Sophoi. E o próprio Apolo de Delfos, consultado sobre a Sophias de
Eurípides, comparada à de Sófocles, respondeu que, se este era um sábio,
Eurípides era muito mais: Sophóteros Eurípides. Esse é o Eurípides que
eu amo."
"Só por isso?", disse Tulio sorrindo.
"Há mais motivos. O charme dele não pára aí. Foi admirado pelo
próprio Sófocles, e pelos poetas da corte de Augusto, por Horácio e Vir
gilio. Foi o grande conselheiro de Arquelau da Macedonia. Aristóteles
chamou-o 'o maior dos poetas trágicos', para desgosto do fã-clube de
Sófocles e dos adeptos do humor fácil de Aristófanes. Após a derrota ate
niense na Sicília, é fato histórico, muitos soldados escaparam da morte
porque sabiam declamar ou cantar versos de Eurípides, tal era o gosto dos
vencedores pela poesia do mais trágico dos trágicos. Sabem quem foi um
dos bons tradutores de Eurípides? Erasmo de Rotterdam! Mais dois fãs:
Cícero, o grande Cícero, preparou-se para a morte lendo os versos de
Eurípides. E Goethe se perguntou se é possível que algum dia, em algum
país, surja outro poeta grande como Eurípides."
Beatrice então não respeitou a situação minha e de Tulio diante da
concorrência: "Já não se fazem homens como naqueles tempos". Não sei
o que Tulio sentia, mas eu estava humilhado, oprimido. Mais uma vez a
malícia feminina me paralisava. Quase beijei Anna quando ela respondeu
mansamente: "Mas eu descrevi a imagem do Eurípides que eu amo. Não
era isso o que vocês queriam?".
Isabella aproveitou a deixa: "Nessa imagem, qual o traço que, para
você, define Eurípides? Numa palavra".
Anna pensou, não mais que um segundo, e respondeu quase com
pudor: "Paixão".
Eu, então, me achei pequeno. Tulio quis saber mais: "Existe alguma
verdadeira paixão que não seja por uma imagem, Anna?".
Ela percebeu a armadilha: "Agora você quer saber sobre mim e não
sobre Eurípides".
"Pergunto em tese."
"Respondo em tese. Não. A paixão acontece apesar dos fatos. Um
homem como Eurípides tinha tudo para ser angustiado, contraditório,
12 3
instável e volúvel. Tudo isso a paixão ignora, não vê. Deve ter sido um ho
mem difícil de entender, nas suas reações aos eventos banais ou impor
tantes do quotidiano. Um amante complicado, talvez intolerante, talvez
egoísta. Seguramente altivo e exigente e, salvo em momentos raros, dis
tante, inacessível, no íntimo de seus sentimentos e mesmo de suas idéias
maIS. caras... "
"Dizem que uma mulher verdadeiramente apaixonada é uma espé
cie de camicase. É verdade?", perguntou Tulio.
"Ou, que o amor é cego", ajuntei eu.
"Não há paixão sem um pouco de cegueira, de insensatez, sem...
sonho."
"E então como fica o nosso Eurípides?"
"Adorável, maravilhoso. E, talvez, mais adorável por ser contraditó
rio, inquieto, intolerante, até amargo."
"As mulheres de Atenas talvez pensassem de outro modo."
Beatrice arrematou a conversa: "Azar delas. Anna, dê uma olhada
nesse trecho do nosso Commentanum. Se você acha que a marca de Eurí
pides, como homem, é a paixão, você tem um concorrente respeitável".
Anna contemplou enternecida o prólogo de Lutercio. emocionante."
Deu-me um olhar quase suplicante: "Não consigo ler isso",
Enquanto eu traduzia, ela cruzou os dedos, muito tensa, e, quando
concluí com o "Cavaleiro da Paixão", agarrou-se com força ao meu bra
ço. "Que lindo! Isso é comovente. Quem escreveu isso entendeu Eurí
pides. E além disso, amou-o. Quem é, Emilio?"
"É o que pretendemos descobrir. Por enquanto, chama-se Lutercio
ou L."
"Se isso é do século xv, é uma preciosidade. É o século das primei
ras edições pnnceps de Eurípides. Como esse L parece entender do as
sunto, é fundamental saber que obras ele teria consultado. Depois de 1503
há várias edições das tragédias, mas tudo gira em torno da edição de AI
do Manucio. Ele editou, em grego, dezoito tragédias. Esse Lutercio, se
escreveu antes da edição de Manucio, pode apontar fontes até hoje des
conhecidas. Principalmente porque, nos séculos XIV e XV, qualquer tex
to crítico sobre Eurípides era praticamente impossível, dadas as difi
culdades de reprodução dos textos. Vocês têm alguma data segura de
referência? "
124
Isabella adiantou-se: "Este livro foi escrito nas primeiras décadas do
quattrocento. Tenho quase certeza. Há outra coisa, que não sei se ajuda:
Lorenzo acha que os afrescos da capela são de algum discípulo de Ma
solino ou até do próprio mestre 'de Florentia'. Como se sabe, ele pintou
os afrescos de Castiglione Olona em 1432 e o batistério do cardeal Bran
da em 1435. Mas ninguém garante que Masolino aproveitou essa via
gem ao norte para decorar a villa do nosso Lutercio. É apenas mais uma
indicação".
Beatrice apoiou: "É mesmo. Lorenzo diz que há uns amarelos carac
terísticos da escola de Masolino, além da enorme semelhança entre a Ma
donna daquela Natività da capela e a Annunziata de Castiglione. Tam
bém aquelas patas do carneiro vistas em transparência na água do regato
lembram o Batismo de Castiglione. São indicações, como diz Isabella.
Mas seguramente são aspectos típicos dos afrescos do norte no começo
do quattrocento. Isso, segundo Lorenzo".
"Mas isso ajuda a datar a villa, não o livro", arrisquei.
"O livro é da mesma época, primeiras décadas do quattrocento, co
mo mostra o tipo de escrita e como acabei de dizer." Isabella me olhou
quase irritada.
"Então falta ligar essa tal villa ao livro e ambos a L." Tulio falava
mais para si mesmo, mas queria ser ouvido. "Porém já sabemos que este
livro retrata a opinião de um homem do século xv sobre Eurípides. Isso
não lhes basta? Tudo indica que não. Logo, o que vocês querem é iden
tificar esse L. Está bem. Por quê? Porque, segundo o que me disse Bru
no, vocês enfiaram na cabeça que ele construiu a tal villa, colecionava li
vros, tinha provavelmente contatos com livreiros, escreveu esse Com
mentarium e sumiu do mapa, por ter caído em desgraça, sabe-se lá por
quê. É isso?"
"E porque nós estamos apaixonados por esse L que, tudo indica, te
ria sido, além de tudo, um bispo contestador, ou mesmo herético." An
na nem percebeu que tinha assumido como sua a paixão nossa pela figu
ra de Lutercio.
Tulio franziu a testa, resignado. Anna notou o gesto: "O que há,
Tulio?".
"Nada. O que eu teria a dizer é meio sem graça. Não quero estra
gar a festa... Quando vocês falam desse Lutercio eu vejo nele uma ree
dição de Abelardo e de Eurípides, até documentada nesse texto aí. É o
mesmo apego à verdade, a mesma defesa da liberdade intelectual e a mes
ma passionalidade. Quando Lutercio escreve isso, ele demonstra sua pai
xão por seus inspiradores. Mas revela também o ideal que o atrai. Mostra
a imagem ideal de si mesmo. Vocês estão fazendo o mesmo. Anna disse
que sua paixão é pela imagem de Eurípides, mas quando ela o idealiza ela
se identifica com ele. E nisso ela projeta a imagem desejada de si mesma.
Assim, cada um de nós se apaixona por alguém que espelha o que gosta
ria de ser. E vocês, gostosamente, se identificam com esse tal Lutercio..."
"Isso é um elogio."
"·Pode até ser. Só que eu falei em imagem desejada de si mesmo",
respondeu ele rindo. E prosseguiu: "Acontece que Lutercio tem outra
qualidade em comum com seus dois modelos mais antigos. Ele, Abelardo
e Eurípides são grandes sedutores".
Eu senti uma onda fria nas vértebras. Como deve sentir uma lebre
ao latido dos cães de caça. Tulio prosseguiu implacável. "Vocês foram
seduzidos. Isso começa como um desafio gratuito e depois vira uma pro
cura obsessiva. Como acontece com amantes apaixonados. Vocês dois
não vão ter paz enquanto..."
Eu gelei. Não só as mulheres, mas até ele podia ler meus pensamen
tos mais secretos. Achei que ele teria a fineza de não mencionar meus sen
timentos por Anna. Mas esperei o golpe.
" ... não penetrarem na alma desse bispo vermelho. É a sedução dele
que fascinou vocês. É claro que eu também estou encantado por esse fan
tasma genial. Mas conheço o custo dessas paixões. Por isso, prefiro tocar
minhas velhas pesquisas. Se puder dar algum palpite, contem comigo.
Esse Commentanum é uma jóia raríssima, mas está fora do meu projeto.
Acho que é um grande achado para os estudos de Anna e talvez para o
projeto de Emilio, se Dom Lutercio tratar de Orestes, Medéia, Fedra e
outros malucos famosos. Conselhos agora adiantam. Vocês foram
aprisionados pela sedução de Lutercio. "
Beatrice, que acompanhava tudo com olhos marotos, fechou o cer
co: "Talvez porque, segundo a teoria de Tulio, vocês gostem de seduzir.
Cuidado, Anna!".
"Cuidado, Emilio!", rebateu Tulio já fora da sala, antes de uma gar
galhada.
126
Eu queria ver a reação de Anna. Mas nem tentei olhar para ela. O
gelo das vértebras tinha sumido. Agora meu rosto estava em brasa. Mal
ditos reflexos! . .
127
Capítulo 6
o Commentarium
12 9
studia. A expressão era, depois de Francesco Petrarca, uma alusão aos es
tudos dos clássicos latinos e gregos. Era como uma senha entre os adep
tos da eloquentia, por oposição à dialética e à metafísica. Quase um lema
dos arautos de um novo saber, numa cultura cansada de buscar o verda
deiro e o correto e que ensaiava a busca e o cultivo do belo. O amor à
polêmica, ao silogismo começava a ceder ao gosto da cor, das formas, da
poesia, da prosa, da oratória e do teatro. E os exemplares mais puros de
toda essa beleza eram as relíquias das épocas pagãs. N ostra studia era uma
expressão heterodoxa e libertária. Indicava que o livro era, provavelmen
te, posterior à polêmica entre Salutati e um obscurantista tão dominica
no que se chamava Dominici. Pregava a proibição das traduções dos clás
sicos gregos e latinos porque eram a semente de uma nova cultura pagã.
Nisso, ele não estava muito errado, convenhamos. Se a primeira tradução
italiana de um texto grego surgiu em 1403 ou pouco antes, como se sabe,
o velho Dominici deve ter iniciado sua cruzada alguns anos depois, quan
do Salutati resolveu defender a difusão das obras antigas. E então, Lu
tercio teria escrito o Commentarium ao redor de 1410. Eu achei brilhan
te essa descoberta. Quando contei a Isabella, o comentário dela não foi
muito efusivo:
"Óbvio. Basta ver o tipo de escrita. É das primeiras décadas do sé
culo."
"Sim, mas posterior a 1403."
"Se isso é importante para você, concordo. Mas a expressão nostra
studia pode ter entrado no texto sem qualquer significado especial... Afi
nal, quem sabe latim é você. "
Resolvi avançar na tradução e adiar minha carreira de detetive. Tra
balhei duro até as duas da tarde, quando Beatrice me convidou para um
lanche em Sant'Ilario. Era uma típica osteria, com os costumeiros devo
tos do baralho e uma relampejante juke-box. Beatrice enfiou a moeda de
cinqüenta liras e escolheu, como de costume, F-4. Era Sergio Endrigo:
gente che ama mille cose... Ela adorava essa canção. Eu também gostava,
mas tinha fome. Ali serviam um delicioso speck com pão preto e mantei
ga caseira. Tinham uma mostarda escura deliciosa e um honestíssimo Bar
dolino. Outra preciosidade era o presunto de javali, cortado em fatias
finíssimas, acompanhado de pão de banha. Havia também a tentação de
um queijo fontina de Brusson. Enquanto devorávamos o speck, Beatrice
13 0
me contou que ela, Isabella e Lorenzo tinham falado a Lanebbia sobre a
villa de Dom Attílio. Tinham antes feito a entrega oficial do Virgílio à
biblioteca do Galilei e Lanebbia se entusiasmara com a perspectiva de
enriquecê-la com novos tesouros. Lorenzo tinha aproveitado a oportu
nidade para falar da villa e dos apertos de Dom Attilio. Isabella, ao en
tregar o livro, disse ter ouvido que alguns políticos pretendiam fazer do
casarão uma "Casa do Escritor" ou coisa parecida. Era pura invenção
dela, mas bastava para enciumar Lanebbia e colocá-lo em campo. Sem
mais rodeios ele perguntou a Lorenzo quem era o prefeito do lugar e qual
o partido dele.
"Quer dizer, Beatrice, que vamos enfrentar aquele alçapão mais ce
do do que se esperava, não?"
"Fico louca de raiva quando penso naquele maldito buraco do piso
que me entortou o pé. Pelo menos, eu devia ter observado os movimen
tos que fiz naqueles medalhões. Mas quem ia pensar que eles podiam
destrancar o alçapão? Se pelo menos você estivesse olhando o que eu fa
zia poderíamos agora reconstruir a seqüência. Mas a culpa foi minha,
nao.
Eu não podia contar que a culpada era aquela blusa azul colada aos
seios dela, a dois palmos dos meus olhos, enquanto ela tentava ajustar os
medalhões do baldaquim. Que o culpado era eu. Ou, menos precisa
mente, a "natureza das coisas". Ela poderia até sentir-se lisonjeada se eu
contasse. Ou não? Mudei de assunto.
"Quem ficou com o desenho dos medalhões?"
"Isabella. Bruno esteve na nossa sala para dar uma olhada nele, hoje
cedo. Fez alguns esboços de engrenagens e saiu com um olhar maluco di
zendo que ia consultar um restaurador de móveis antigos. Ele tem pres
sa de descobrir algum jeito de abrir o alçapão, até a próxima semana. Quer
voltar à villa no sábado, se der."
"Tomara que ele ache algum truque. Eu não tenho jeito, nem tem
po para isso. E quero progredir na tradução do Commentarium. Acho
que ela vai atrasar minha pesquisa, mas eu me conheço: não vou conse
guir fazer coisa alguma enquanto não souber quem é esse nosso bispo in
conformista. Começarei descobrindo o que ele pensa. É um passo."
"Lorenzo acha que o retrato do bispo na biblioteca da villa pode
revelar muito sobre ele. Também quer voltar lá na próxima semana."
13 1
"Vamos cercar o problema por todos os lados. Qualquer pista pode
. "
servIr.
"Se não para identificar Lutercio, pelo menos para você se divertir."
"E você não?"
"É um assunto muito distante do meu trabalho. A menos que encon
trássemos algum texto de fisiologia naquela bendita tribuna. ,.
"Se não acharmos, eu te dou um 'Ramón y Cajal', novinho em fo
lha, com capa plastificada. ,.
Adoro a tua sutileza."
"Vou pedir mais um speck. Você quer?"
"Não. Vou pagar a conta. ,.
"Então pede um café e aperta o B-2."
Beatrice pagou a despesa no balcão e acionou a juke-box. Enquanto
Giorgio Gaber mastigava as sílabas de Soltanto per giocco, eu mastiguei
o meu speck e saímos.
No Galilei, um café da garrafa térmica de Luciana, que estava mui
to atraente num vestido branco esvoaçante. Luciana, bem entendido. A
garrafa era meio gorda e sem graça como todas as garrafas térmicas. Ima
ginei por um instante como seria uma garrafa térmica escolhida por An
na. Seria pequena, esbelta, com flores vermelhas sobre fundo dourado ou
branco. Foi o que me passou pela cabeça enquanto meus olhos passea
vam distraídos e felizes pelas curvas graciosas de Luciana.
"Como vai a tradução?", perguntou ela, como se perguntasse as ho
ras a quem está roubando frutas.
"Vai indo." Que mais eu poderia dizer?
Se eu traduzisse umas duas ou três páginas teria um: motivo convin
cente para convidar Anna para discutir a tradução em algum barzinho na
entrada de Milão. Tranquei-me na sala e comecei na terceira página. Iní
cio de um capítulo. De falsis in Euripidem. Por volta das seis eu tinha al-.
gumas páginas densas em primeira redação:
13 2
virtudes, os outros os acusam, se não de cometer delitos, de serem peri
gosos. E de fato alguns homens foram perigosos. Mas, curiosamente, o
que os admiradores vêem como sinal de esperança ou promessa de bem,
os outros, principalmente os que não conseguem entender suas idéias,
vêem como prenúncio de males ou perigo para o povo e a cidade. Ou,
pelo menos, como ameaça às formas costumeiras de viver e de julgar.
Quando um grande homem, além de sua grandeza, oferece aos que o cer
cam as suas críticas, muitos começam não só a procurar razões para de
sautorizar (lacere nihili) sua palavra, mas também a procurar vícios ou
erros que o tornem pelo menos igualmente condenável. E se esse homem,
por amor à verdade e ao que é justo, muda seu julgamento, seguindo
honestamente a sua razão, ele pode parecer contraditório (signifer con
tradietionis), mas é a vida que é contraditória. Eurípides foi tudo isso: bri
lhante nas idéias, crítico e honesto em seu pensamento, pronto a mudá
lo quando a verdade assim exigiu. Desse modo, atraiu a hostilidade dos
menos brilhantes, dos pusilânimes e dos prepotentes da força ou da pa
lavra. Porque seu pensamento era maior que o de seu tempo, porque pro
curou apontar o erro e a mentira, porque fugiu da adulação aos podero
sos e das idéias que a eles convinham, foi incompreendido, caluniado,
hostilizado. Ele percebeu a iminente decadência da polis. Mas não como
um Jeremias, encerrado na dor e no lamento. Ele era um digno represen
tante da força moral e da grandeza de espírito de homens superiores, co
mo o grande Anaxágoras, Protágoras e Sócrates. Como eles, Eurípides foi
fiel à verdade e à inteligência. E foi, por isso, vítima de falsidades, que a
alguns interessa que não sejam discutidas. É mais fácil acusar alguém de
heresia do que meditar com humildade as próprias crenças e procurar
quanto há de temor na conservação delas e quanto existe de honesta pro
cura da verdade. E quando se condena alguém por divergir da crença de
quem julga, cabe perguntar quanto a condenação tem de amor à verdade
e quanto carrega de amor ao poder de julgar ou de defesa da própria glória
e autoridade.
"Eurípides incomodava aos que se entrincheiravam atrás das velhas
crenças por medo de enxergar o novo homem que estava nascendo das
ruínas da polis. Um homem que pergunta, que discute a moral, os deu
ses, as explicações tradicionais, o mito. Um homem que percebe sua dis
tância da perfeição divina, reconhece e vive suas paixões e enxerga a fra
133
134
ras ameaças aos que encontravam segurança no mito, na tradição ou nas
normas morais. A tragédia, além de mostrar os dilemas dos heróis, pas
sou a expor as dúvidas, as contradições e as incoerências dos homens. Os
personagens passaram a provocar controvérsia e ressentimento. Se ao po
vo de Atenas eles agradavam como retratos extremos da humanidade, a
alguns mais eminentes pareciam um perigo para a moralidade estabele
cida, que Sófocles deixava intocada, e para a religiosidade, que Ésquilo
enaltecera.
"Entre os descontentes, o mais virulento foi, sem dúvida, Aristó
fanes. A liberdade do pensamento e a criatividade dramática (mentis li
bertas ac efficiendi facultas) de Eurípides eram inaceitáveis para um poe
ta ávido de glória, devotado ao passado e resistente a qualquer contesta
ção das crenças e gostos tradicionais da sociedade ateniense. Não poden
do demolir a obra tentou destruir o autor. Mesmo que para isso devesse
recorrer ao insulto, à exploração de infortúnios pessoais, à interpretação
tendenciosa, à acusação falsa, à distorção de opiniões e de palavras, à ex
ploração demagógica do gosto popular, à irrisão. No seu esforço indig
no de denegrir a obra e a memória de Eurípides faltou a Aristófanes um
mínimo de grandeza de ânimo. Uma elevação de sentimentos e de pen
samento que Sófocles, o grande rival de Eurípides, soube manter. Das
acusações que Aristófanes propagou, três foram especialmente indignas:
a de misoginia, a de impiedade e a de promover a decadência dos costu
mes e do gosto literário.
"Quanto à acusação de misoginia, basta lembrar a nobreza e eleva
ção moral que adorna muitas das figuras femininas de Eurípides, como
-Helena, Alceste, Polixena e Laodaméia. Na verdade, a mulher que Eurí
pides retrata, e que o fascina, é diversa da que Aristófanes conhece, mera
seguidora de normas e destinos, estrangeira no mundo da paixão, inerte
no intelecto. Simples cumpridora de destinos.
"A mulher, de certo modo, assume na tragédia de Eurípides o lugar
dos antigos heróis (init veteris herois quoniam eventa hominum...), por
que a grande aventura humana já não consiste no desafio ao destino ou
aos deuses, ou no morrer por sua pátria... "
135
Anna quer ficar com o 'Hipólito' por uns tempos. Você precisa
dele?"
"Não. Mas por que essa afobação?"
"Nada. Ela deu uma olhada nele e achou uma anotação meio estra
nha, talvez um escólio. Menciona um tal Brunus."
"Ah, vocês o tiraram daqui? Eu nem percebi. Pelo amor de Deus, só
o abram em cima de alguma mesa. E se acharem alguma coisa entre as
páginas, alguma marca, ou retalho de papel, não o retirem, nem só para
ler o que Se não, podemos perder informações importantes."
"Professor, eu mexo com antifonários manuscritos! Esqueceu is
soo
"Desculpe. É puro ciúme."
"Do livro?" O sorriso que ela me deu era uma combinação perfeita
de malícia e ingenuidade. Mais ou menos como um bombom recheado
de cianureto. Eu me achei infantil. E ela, não sei se por generosidade ou
por sadismo, manteve o sorriso e acrescentou: "No seu caso eu também
teria ciúmes". Depois, como se tivesse falado sobre a cor das paredes, pe
gou meu rascunho. "Posso dar uma olhada nessa tradução?"
"Ainda não peguei o jeito. Depois de algumas páginas, dá para ser
menos literal. Preciso traduzir ao pé da letra, mesmo empregando formas
atuais de expressão." Ela folheou a tradução enquanto eu tentava conti
nuar meu trabalho. Mas ela interrompeu, de novo.
"Esse homem é genial, não?"
"Sei lá. Cuidei de cada frase em separado. Só depois é que leio o que
escrevi na primeira versão. Ainda não li o que saiu. "
"Parece haver algo de autobiográfico nessas linhas. Tanta veemên
cia na defesa da liberdade de pensamento e na crítica à moralidade hipó
crita, a meu ver, mostra que esse Lutercio deve ter sofrido um bocado.
Mas há umas coisas intrigantes, nessas páginas..."
"O tom feminista?"
"Também. Mas eu penso nessa alusão à leviandade nas acusações de
heresia, na idéia de que tanto o mártir como o homicida são movidos pela
paixão, ou a insinuação de que a racionalidade é produto do sonho de
uma vida sem arrependimento e impotência... "
"E daí?"
"Ele estava à frente de seu tempo, como diz Anna. Era um ilumi
nista. Nada menos, minha cara."
"Quem? Eurípides?"
"Claro."
"Mas nós estamos falando do Commentarium."
"Céus, identifiquei Lutercio a Eurípides..."
"Ele é que se identificou", disse ela.
"De todo modo, ele tem idéias avançadas, concordo."
" Avançadas e reveladoras. Afinal, você quer descobrir quem ele é,
através do que ele diz, não é?"
"Com esse método, corro o risco de acabar achando Pascal, Nietz
sche ou até Freud, minha querida... "
"Mas você já conseguiu alguns traços do homem que procura. Quem
foi essa Laodaméia? Eu nunca ouvi esse nome."
"Nem eu. Melhor perguntar a Anna."
"Meu latim não vai muito além do ora pro nobis, Emílio. Mas acho
que o pensamento de Lutercio é tão moderno que o vocabulário dele pa
rece não bastar."
"Você está vendo o meu vocabulário, Isabella."
"Mas, se a tradução sua é literal, como você diz, parece que faltam
ao nosso amigo alguns adjetivos. Por exemplo, Aristófanes pode ser cha
mado, sem tantos floreios, de reacionário, oportunista, arrivista, tradi
cionalista. E Eurípides pode ser apresentado como inconformista, revo
lucionário, libertário, inovador, progressista, laico, desmistificador, desi
ludido, introvertido, anarquista, sei lá o que mais. Para não trair o texto
você acaba traindo o pensamento de Lutercio. Se ele estivesse falando
para nós usaria os termos que expressam hoje o que então se dizia de
outro modo. "
"Sim, minha cara. Mas o risco de distorcer o pensamento começa
pela escolha das palavras. De todo modo, na medida em que vou enten
dendo o que Lutercio pensa, passo a pensar as mesmas coisas, com pala
vras nossas. Mas isso deve resultar do meu pensamento e não do meu vo
cabulário. Claro?"
"Faz sentido. Ficarei esperando'que você e ele se entendam... "
"Mais algumas páginas e você já notará mudanças."
"Mas não mude muito. Está ótimo o que você fez. Eu nunca tradu
137
zi nada do latim. Talvez esteja querendo que Lutercio diga as coisas que
eu penso... "
"Voilà!"
"Posso levar essas páginas para Anna?"
"Mas antes de saírem, devolvam tudo. O 'Hipólito' e a minha tra
dução."
Voltei ao texto.
139
Quase toda a luz do dia tinha sumido da minha janela, mais cedo do
que o esperado. Meu relógio marcava sete e dez, hora de tomar o rumo de
Milão. Tranquei o Commentarium na última gaveta do arquivo, cumpri
mentei o vigia, puxei a pesada porta da saída, que se trancou por dentro, e
fui buscar a minha velha Lancia-Flavia, embaixo da castanheira mais grossa.
De trás do carro veio uma pergunta: "Você me dá uma carona? T 0
dos já foram e eu sobrei. Esqueci da vida, com aquele 'Hipólito' e nem avi
sei Beatrice que eu iria com ela". Anna falava hesitante, insegura. Eu po
dia esperar tudo para encerrar aquele dia. Menos uma viagem até Milão
com ela. Curiosamente, não senti qualquer alegria. Eu estava magoado.
Também não senti pena dela.
"Claro, é uma honra", consegui dizer, espantado com minha capa
cidade de conter, tanto um desaforo como o ímpeto de convidá-la para
um drinque na entrada de Milão.
Até o trecho final da Comasina falamos sobre o 'Hipólito' e Lu
tercio, que ela achava precursor de grandes analistas de Eurípides, como
Paduano, Ferrari e Faggi. A estrada estava tranqüila. Ela também, recli
nada placidamente ao meu lado. Aquelas coxas bronzeadas que me ti
nham fascinado no Menarost estavam ali, ao alcance de minha mão, en
voltas na sombra da noite que caía. A luz tênue e azulada do painel, eram
um convite à carícia. Talvez ela aceitasse. Não seria um truque dela a his
tória de perder a carona de Beatrice, só para ficar comigo? Por que ela não
mencionou qualquer pressa de chegar a Milão? Senti no peito um calor
que subia para o rosto como uma labareda. Eu estava bancando o trou
xa: ela tinha montado toda a situação para ficarmos a sós em plena noite.
E ali estava eu, como um escolar bisonho, olhando as pernas da profes
sora. A paixão selvagem e explosiva de Medéia: eis o que eu tinha ao meu
lado. Mas talvez houvesse também a lucidez de Medéia, pronta a impe
dir qualquer concessão. Mas eu nunca me perdoaria por perder uma tal
143
chance. Nem ela me perdoaria. Não havia saída: o vulcão ali estava fume
gando de desejo, pronto a devorar meu corpo e minha alma. Eu não ti
nha outra saída. Procurei um lance que a obrigasse a abrir o jogo: "Pos
so fazer o que estou pensando?".
"Só respondo se me disser o que é."
Lá estava eu, de novo, na defensiva..A frase que me veio foi: "Estou
louco de vontade de te agarrar e te cobrir de carícias", mas o que saiu foi:
"Estou querendo uma boa cerveja num bar tranqüílo. Você tem tempo
para um traguinho?". "Covarde!", disse meu ego.
"Claro. Acho ótimo. Ufa! Pensei que você queria me agarrar. Pode
mos parar em Affori. Há um jardinzinho delicioso no La Strega. Vamos
lá?" Ela estava feliz com a idéia. Meu id rangia os dentes, meu ego disse
que era melhor assim, essas coisas não se podem precipitar. Anna, uma
mulher refinada, não aceitaria qualquer indelicadeza. Uma conversa ele
gante, a dois, era mais adequada como primeiro encontro. Afinal eu ha
via sonhado aquele drinque com ela. Meu super-ego batia palmas.
Anna pediu um Carpano, o primeiro de muitos que pediríamos, no
La Strega, em tempos seguintes. Mas quis um gole da minha cerveja.
"Não vejo um bar há muito tempo."
"Eu conheço vários. Você pode compensar o atraso se quiser. "
"Veremos. Vamos ter muito que conversar, Emílio. Esse Lutercio é
uma avalanche de achados e indícios."
"Mas podemos conversar também sobre você. Acho um assunto
mais fascinante." Fiquei surpreso com minha audácia.
"Obrigada. Mas não teria muita novidade para mim, não é?"
"Talvez haja coisas que você ainda não viu."
"Nem tudo é visível..."
"Que profundidade!"
"Cretino! "
"Talvez seja melhor assim. Se você se visse melhor, ficaria insupor
tável. "
"De tanta decepção?"
"De vaidade, minha cara."
"Você joga bem. Já tentou... "
"Montecarlo? Ainda não."
"Não. Hollywood, Cinecittà... "
144
"Mastroianni me boicota. "
"Não seria a crítica?"
"Você é linda."
"Mastroianni também."
"Mas ele..."
"Quero mais um Carpano."
a.
vida passa: Coronemus nos rosis..."
vermute melhora com a idade."
"Prosaico, não?"
"A musa que me inspira é você. "
Ela riu. Riu com gosto, feliz. A nossa esgrima verbal estava diverti
da. Mais pelo que escondia. Mas era um modo delicioso de cada um se
revelar. Ou de revelar seu talento. Eu também estava feliz. Havia estabe
lecido um modo novo de me relacionar com ela. Um jogo que lhe agra
dava. Havia em mim uma sensação de alívio. Aí estávamos Anna e eu,
descontraídos, confiantes e, mais que tudo, trocando afeto e admiração
recíproca. Ainda que, por pudor ou medo, cada um se escondesse atrás
das palavras. Eu queria que o tempo parasse. E me lembrei, fugazmente,
de Protesilaus, de Laodaméia, de Eurípides, do Coronemus, do Carpe
diem, de Lutercio. Era tudo tão entrelaçado, tudo tão combinado, tão
parte da vida, da minha vida, de mim. E de Anua. Pedi o Carpano. Ela es
gotou a dose anterior e perguntou:
"Qual das musas eu seria?"
"A mais linda das nove. Que tal Melpômene?"
"Quantas você lembra além dessa?"
"Nenhuma. E você?"
"Poleuclitaumerateca."
"Que é isso?"
"As sílabas iniciais das musas. Pol de Polímnia, Eu de Euterpe, de
pois vêm Clio, Talia, Urania, Melpômene, Erato, Terpsícore e Calíope."
"Parabéns. Estou humilhado. Com essa memória, você pode recitar
. o Gloria in Excelsis do anjo, no teatrinho de Natal."
"Quanto latim! Estou humilhada."
"Pouco original."
"Um brinde?"
145
"À mulher mais atraente do Galilei!"
"À Luciana, então!"
"Vaidade ferida?"
"Apenas memória."
"Começo a entender a alma de Medéia."
Ela não conteve uma gargalhada. Depois emendou: "Se a teoria de
Tulio funciona, haverá sérios riscos...".
"Por quê?", perguntei, esperando que ela comentasse a alusão à se
dução recíproca que poderia haver entre nós dois. Pois nossa fascinação
por dois grandes sedutores do passado projetaria nosso prazer de sedu
zir. Mas ela disse outra coisa, menos perigosa, mais neutra.
"Tulio diz que cada um se apaixona por personagens que são ima
gens idealizadas de si mesmo. Isso, levado às últimas conseqüências, sig
nifica que uma pessoa pode se apaixonar por Jesus Cristo, por exemplo,
e se identificar tanto com ele que começa a falar e agir como ele. E então
começa a provocar nas pessoas, mutatis mutandis, as mesmas reações que
Cristo provocava. Com isso, pode sentir-se mais identificada ainda, e pas
sa a estimular a mesma hostilidade dos poderosos, por exemplo... "
Interrompi: "E assim se chega ao martírio, um martírio... projetivo.
E o risco então seria... ".
Ela bebeu um denso gole do vermute. Levou a mão à boca para não
derramá-lo enquanto mal continha o riso. Limpou os lábios e disse: "Quem
é fanático por Joana d'Are, nesse caso, deveria morar perto do Corpo de
Bombeiros".
"Ou carregar um extintor na mochila."
Ela emendou: "E uma mulher que admira demais a Medéia, deveria
fazer laqueadura de trompas".
"Tulio vai adorar nossas contribuições. Mas sem levar a teoria para
essas deduções catastróficas, acho que você, como seu ídolo Eurípides, é
muito sedutora." Pensei que tinha sido um belo lance. Não era. Ela ajei
tou os cabelos e me olhou nos olhos, desafiadora.
"Minhas coxas nem sabem quem foi Eurípides, meu caro. E, ao que
parece, elas parecem ter exercido certa sedução, alguns quilômetros atrás.
Não acha?"
"Nunca reparei..."
"Seu cínico!"
"... que elas não conheciam Eurípides."
Ela riu de novo e depois de mais um gole reconheceu: "Você ganhou,
mas não vale, porque mentiu".
"Quero outra cerveja."
"Agora, falando sério, eu acho que esse Lutercio está envolvente,
quase demais ...
Commentanum ele mostra uma Medéia que eu não conhecia",
disse eu, me parece que ele se identifica por inteiro com um Eurípides
feminista. Bem entendido, um feminista... filosófico".
"Trata-se de um feminista que mostra toda a perversidade de que é
capaz uma mulher. Um feminista quase misógino, meu caro. Esse é Eu
rípides. Um turbilhão de contradições. E ao lembrar Medéia, quando eu
fingi ciúme de Luciana, você, inspirado por Lutercio, demonstrou per
ceber algo que muitos não notaram na Medéia. A fúria sanguinária re
sulta da frustração sexual devida_à traição amorosa de Jasão, e da humi
lhação que isso lhe causa. Mas ela prepara o homicídio antegozando o so
frimento e a morte da rival. E é nisso e na destruição dos filhos que ela é
monstruosa. É na criação de uma mulher capaz de tanta crueldade por
causa da vaidade ferida que Eurípides mostra uma face negativa da mu
lher. Mas Aristófanes e seus adeptos foram procurar a misoginia onde não
há. Na exibição pública de uma mulher enlouquecida pela perda de seu
homem, pela falta de seu macho."
"Lutercio diz que ela é a primeira personagem feminina que não es
conde seu desejo sexual..."
é mesmo. Mas nela o desejo se mistura com orgulho ferido, avil
tamento social, desamparo em país estranho... "
a Fedra do 'Hipólito'?", perguntei.
"Essa sim, deveria chocar os puritanos. Ela é movida apenas pelo seu
apetite sexual. Ao contrário da Medéia, ela abre mão de sua respeitabilida
de e mesmo de sua segurança, para conquistar as carícias proibidas de Hi
pólito. Enquanto tipo passional ela é puro desejo, sensual, carnal mesmo. "
"Era preciso ter coragem para mostrar isso no teatro. "
"Mais. Era preciso ser muito fiel a si mesmo. Muita honestidade in
telectual. "
"Acho que ele não se sentiria muito bem como assistente de Matilde
Rossini."
147
"Os revolucionários de 'Festa del Perdono' o expulsariam da Uni
versidade. "
"Por quê? Eles pregam o amor livre! Talvez Fedra pudesse ser a mu
sa deles."
"Não, Emilio. Para esses revolucionários marca Marlboro, Eurípides
seria um burguês reacionário: ele não abre mão da paixão. Que para eles
pode ser coisa de moralistas interessados em regular o prazer, patrulhar
o sexo. Não, Emilio. Eurípides não abre mão da verdade das paixões. O
amor deve ter uma dimensão de verdade dele é a paixão. Nesse
sentido, para ele, o amor verdadeiro não é livre. É instrumento da pai
xão. Esses guerrilheiros de cervejaria deveriam ter a honestidade de di
zer 'coito livre', sem giros de frase. "
"Gostei. Você é maravilhosa."
"É a admiração de três canecas de cerveja por três doses de Carpa
no. Acho que já é hora de ir para casa. Você me leva?"
"Tenho escolha?"
"Eu não tenho. Gostei do seu convite e da nossa conversa." Ela sor
riu e pegou a bolsa. Paguei a conta e saímos.
Eu estava leve, em paz, feliz de tê-la a meu lado, alegre também. E
me cumprimentei por não tê-la agarrado. Mas alguma coisa pouco clara,
inconsciente, me avisava que eu tinha entrado por caminho perigoso.
Como quem margeia a cratera de um vulcão. De outro lado, alguma força
me atraía para o magma fervente. Ela pendurou-se docemente em meu
braço enquanto íamos para o carro. "Qual é o nosso rumo?", perguntou.
"Você decide. "
o verso fatal
149
153
154
apegam ao dogma para assegurar seu poder. Acho uma base pobre. O
resto, de certo modo, já sabíamos, graças às histórias ouvidas no Piemon
te e aos trechos que Emílio traduziu do Commentarium."
Devo ter feito uma cara desolada. Ela pareceu arrependida por ha
ver demolido nossas especulações. Desculpou-se mais uma vez e me deu
uma piscadinha sorridente, como a dizer "não me leve a mal, eu não gosto
de te ver triste e não quis te magoar". Foi o que pensei.
Bruno, que não tinha maiores envolvimentos, reconheceu candi
damente a pouca novidade do nosso summing up e jogou sobre ele a pá
de cal: "Nós precisamos de datas e de fatos. Temos só hipóteses. Os fa
tos estão lá, na villa. Mais precisamente na capela, no teatro, na biblio
teca e, sobretudo, naquele amaldiçoado alçapão da tribuna. Se ele tinha
um mecanismo secreto de abertura e se a tribuna foi emparedada com
tudo o que guardava, lá deve haver algo mais do que uns inócuos textos
poéticos".
Anna interveio, a meu favor: "Nós temos o Commentarium, Bruno.
Ele é depoimento pessoal de Lutercio".
"De Lutercio?"
"De quem o escreveu. "
"Ainda temos que achar o que liga o bispo ao texto."
"Ora, o discurso dele é de alguém que se envolveu na repressão das
heresias, conhece os ardis das acusações, professa sua fé em Cristo, mais
de uma vez. Mas duvida da honestidade dos acusadores de hereges, tal
vez inquisidores. Ademais é um homem avesso ao poder ou, pelo menos,
aos que se apegam ao poder."
"Afinal, Anna, o que você quer dizer?"
"Que alguém que o povo e nossos amigos piemonteses chamam Lu
tercio ou bispo vermelho escreveu o Commentarium, guardou-o no dos
sel: Portanto era o dono da tribuna. Os pintores do teatro respeitaram a
tribuna e ajustaram o desenho da ramaria aos contornos dela. Então,
quem comandou a decoração do teatro era o dono da tribuna. Como as
pinturas do teatro e as da capela são da mesma época e do mesmo estilo,
o dono do teatro mandou pintar também a capela. Com isso sabemos que
a pessoa que decidiu os temas que 'figurariam nela e no teatro é a mesma
que escreveu o Commentarium..."
"Mais devagar, Anna", pediu Bruno. O raciocínio dela parecia sóli
155
..
157
...
o que me aconselhou o prezado Bruno, que a tradução correta das pa
lavras eisomai gegeuménos é: como já testemunhei ou já verifiquei, em
vez de: como já experimentei ou já apreciei". Ela me agarrou o braço,
frenética:
"Ele traduziu o 'Hipólito', Emilio!"
"E o tal prezado Bruno foi consultado ou opinou sponte sua sobre
a tradução desse verso. "
"Você sabe o que.temos nas mãos, meu querido?"
Eu podia até avaliar a importância da novidade. Mas quando ela me
chamou de 'meu querido', perdi a bússola. Por alguns segundos. "Cla
ro, Anna! Temos provavelmente. a primeira tradução do 'f:Iipólito' pa
ra o latim. E só nós, somente nós dois, sabemos disso. "
Os olhos faiscavam. Ela me abraçou, trêmula, frágil, irresistível.
Apertei-a ao meu peito com toda ternura e toquei o céu com as mãos
quando percebi que ela prolongava o abraço além do que duraria uma
simples efusão amigável, pela descoberta. Quando o abraço se desfez ela
baixou olhos, ruborizada. Era a confissão que me faltava. Resolvi ali
viar-lhe o constrangimento: "Você tem alguma idéia sobre esse prezado
Bruno?".
"Ainda não. Precisamos de alguém versado em literatura italiana da
época. Eu tenho um amigo diplomado em letras clássicas, mas agora ele
está em Amsterdam tentando derrubar o Westmoreland na Indochina. "
Então me lembrei de Gabriella. Tinha sido minha namorada na Uni
versidade. Quando eu me formei em Filosofia, ela se formou em Letras
Clássicas. Entramos juntos para o Partido Comunista quando De Gaulle
retirou a França da OTAN. Depois passamos os dois para o PSIUP en
quanto ele durou. Quando acabou, voltamos ao velho PCI, de Longo e
Berlinguer. Gabriella era a combinação mais perfeita, que conheci, de sua
vidade e firmeza. Era uma militante corajosa, disciplinada e, ao mesmo
tempo, terna e alegre; coisa pouco freqüente nos partidos de esquerda de
então. Ela enfrentava com lucidez e serenidade problemas ideológicos,
políticos, táticos e, além disso, os bandos do MSI, sempre prontos para
uma tocaia em San Babila e no Corso. Gabriella era uma das mais belas
da Universidade e, seguramente, a mais"bem-humorada. Confessou-me,
uma vez, que quando a vida lhe era ingrata ela se vingava agradando-se
de algum modo, com a compra de alguma coisa muito pessoal. Por exem
pIo, um sutiã ou uma calcinha. Quando o partido perdeu mais uma elei
ção parlamentar na Sicilia, encontrei-a após a apuração, em corso di Por
ta Romana, diante de uma loja de lingerie.
"Emilio, que bom que você me encontrou. Quero me vingar dos si
cilianos e da De. Me ajude a escolher uma calcinha nova, que combine
comigo."
"O teste será in vivo?"
"Ela apontou a vitrine: "Não. ln vitro!".
Nem sei bem por que nosso caso terminou. Depois ela se ligou a um
arquiteto de Como, do qual se separou em 65 ou 66. Talvez o número
telefônico dela ainda fosse o mesmo que eu tinha. Resolvi consultá-la so
bre o tal Brunus, mas não quis que Anna soubesse.
"Podemos escrever a esse seu amigo de Amsterdam. Se não, achare
mos alguém na Universidade..."
"Houve um tal Aurispa que contrabandeou um punhado de manus
critos gregos para a Itália... Desculpem, eu não queria interromper", fa
lou Bruno voltando do fundo do claustro.
"Mas não era teu xará. Chamava-se Giovanni e não Brunus", pon
derou Anna.
"Mas além do meu homônimo, Lutercio deveria conhecer uma pen
ca de literatos ou coisas parecidas. Mesmo dentro do clero devia existir
gente versada em alguns textos clássicos, inócuos o suficiente para não
porem em risco a fé e a pele de seus leitores." Bruno falava sem interrom
per sua caminhada pelo claustro: "Ainda descubro esse fornecedor de
Lutercio".
Anna fechou o 'Hipólito' e o abraçou com um sorriso triunfante:
"Temos aqui a primeira tradução latina de uma tragédia de Eurípides.
Nada menos que isso. Tenho certeza de que no Commentarium você ain
da vai encontrar a prova disso".
"Ou, em outros termos: Emilio, a conversa está ótima, mas você tem
que tocar aquela tradução..."
Ela sorriu com malícia: "Vejo que você começa a me entender... ".
"O Commentarium é bem mais fácil. "
"Seu chato!" Ela girou sobre a ponta do pé e, já de costas, comple
tou: "As coisas fáceis não têm graça".
Voltei ao texto de Lutercio com um calorzinho diferente dentro do
159
peito e abaixo das orelhas. No meu rosto estava pendurado, tenho certe
za, um sorriso de criança que ganha sua primeira bicicleta. Quase beijei
o Commentarium. Afinal, era ele que me ligava a Anna. Eu estava feliz,
o que quer que isso signifique.
Lutercio prosseguia o ataque à acusação de impiedade:
160
Porque a novidade suscita perguntas, curiosidade e dúvidas sobre o que
é costumeiro (affert interrogationes, conoscendi studium atque dubia de
consuetudine)...".
o latim nesse ponto não era dos mais elegantes. Mas a atualidade das
reflexões de Lutercio já não me surpreendia. Embora fosse muito lúcida
a idéia de que o novo era a verdadeira causa da hostilidade dos que deti
. nham o controle das crenças e das idéias. Ali podia estar implícita uma
(ou mais uma) contestação ao dogma. Mas, sobretudo, o trecho mal es
condia a indignação de Lutercio com a hipocrisia dos acusadores. A con
fissão anterior de que havia cometido erros de acusação, na sua juventu
de, permitia pensar que o seu critério do que fosse verdade era, no míni
mo, tumultuado. Mas o juízo negativo sobre os que acusam inocentes
para assegurar o próprio domínio das idéias alheias era cristalino, segu
ro, sólido. Talvez produto de amargas reflexões, das quais o nosso que
rido bispo vermelho havia renascido mais forte, mais veemente. "For
mação reativa", pensei. Por que não, mera evolução de um homem bri
lhante e fiel a si mesmo? Como tudo indicava, na nossa investigação,
apaixonada, mas cuidadosa, sobre ele. E se fosse uma "formação reativa"?
Seria apenas mais uma indicação de que ele fora, nos tempos da mocida
de, mais ingênuo, quanto à má-fé de inquisidores e outros poderosos, ou
teria sido ele mesmo, clérigo brilhante, um dos que, talvez cheio de zelo,
se teria dedicado a combater heresias e hereges, como autêntico depo
sitário da verdade? Pensei então que alguns episódios da história, até
decisivos, poderiam ser produtos de alguma "formação reativa" de quem
estivesse em condições de decidir ou de influir sobre as idéias e senti
mentos das pessoas. Os convertidos famosos, como Paulo, Agostinho,
Francisco de Assis, Lutero, Huss, Jerónimo de Praga e tantos outros ti
nham mudado decisivamente a cultura de seus povos, se não de suas épo
cas. Mas, talvez, tudo isso tivesse na sua origem alguma "formação rea
tiva" que explicaria toda a tenacidade e até a obstinação com que con
duziram suas idéias e seus seguidores. É claro que essas idéias tinham
algum poder intrínseco de atrair os adeptos, e que o confronto que eles
fizessem entre elas e as doutrinas opostas deveria levá-los a mudar suas
crenças. Independentemente de o que elas significassem no mundo emo
cional dos líderes. Talvez até fossem sínteses geniais que se impunham
161
por seu próprio conteúdo lógico ou doutrinário. Mas sempre poderia
haver algum episódio original de "formação reativa". Mas como expli
car a influência, por vezes secular, de homens como Eurípides, Platão,
Aristóteles, Sêneca, Descartes? Nenhum deles era um convertido, "pre
cisando" afirmar certas idéias. E então me senti confortado em pensar que
meus venerados Eurípides e Lutercio, eu já não conseguia separá-los,
eram na verdade autores incompreendidos de sínteses geniais sobre a
cultura em que floresceram.
O trecho deixava pensar que talvez houvesse mais sinceridade ou
honestidade entre os hereges. Mas era preciso não extrapolar: o texto era
sobre falsidades a respeito de Eurípides:
162
pregação do Evangelho. Lembrei que também Francisco tinha um ape
lido francês, François. Valdo era Pierre, Pierre Valde. Valde! Va1de, que
em latim significa demais. Lembrei a capela de Lutercio: o afresco do
mártir! Eu tinha errado a tradução. A frase acima da figura do santo era
"VAE TlBI VALDE QUARE DERELINQUISTl FIDEM TUAM". A tradução que fiz
para Beatrice era"Ai de ti porque muito transcuraste a tua fé". Mas po
dia ser: "Ai de ti, Va1do, porque abandonaste a tua fé".
Então, o santo do afresco não era um padre linha-dura qualquer: era
o grande combatente contra os valdenses, o mártir da luta contra as idéias
de Valdo. Pedro de Verona, o grande inquisidor do Piemonte. E o afresco
era uma homenagem dos anos juvenis de Lutercio! Agora era quase cer
to: nosso querido bispo vermelho tinha sido um admirador da inquisi
ção ou, brilhante como era, até um inquisidor. Ainda que não fosse um
dos Cães do Senhor ou Domini Canes como os dominicanos por vezes
se designavam. Enquanto bispo, ele podia facilmente ser um inquisidor,
mesmo que os fanáticos de Domingo de Gusmàn não quisessem. Agora
fazia mais sentido o arrependimento dos erros da juventude, na defesa
da fé. E ganhava motivos a insistente denúncia de parcialidade e má-fé
nas acusações aos hereges.
E a veemência de Lutercio prosseguia:
166
168
"Você e Lorenzo vão comigo", informou Bruno. "Hoje vamos al
moçar no Piemonte." Lorenzo já estava no banco de trás do Citroen.
Com aquelas pernas enormes, parecia uJIla girafa dentro de um balde.
Uma girafa impaciente: "Vamos logo, Bruno! Por que você não compra
uma Maseratti?".
"Porque gasto tudo em gasolina. Meus amigos só andam de carona
no meu carro para economizarem gasolina e os carros deles."
"Um amigo é mais importante do que um tesouro. Você nunéa leu
isso?"
"É frase de algum filósofo de pizzaria, que andava de carona?"
"Você precisa estudar mais. Anda lendo pouco", disse Lorenzo, em
tom professoral.
"Prometo emendar-me."
"Nós temos que voltar àquela villa logo que der. Você telefonou
para sua tia ou para Dom Attilio?"
"Já. Mas você deveria encaminhar as coisas com Lanebbia. Não foi
isso o que combinamos? Nós devemos uma resposta a Dom Attilio."
"E quem te disse que eu não fiz isso? Olhe que eu desço de seu car
ro e você vai sofrer a minha ausência. A propósito, Emilio, não é elegante
pegar carona nesta coisa sem conversar com o dono do carro. "
"Mas não é permitido falar com o motorista", respondi.
"Isso se aplica a veículos perigosamente velozes, como trólebus, bon
des e ônibus. No presente caso a proibição não se aplica", explicou. "Aqui,
se você não fala o motorista dorme."
Bruno ria, com gosto. Mais adiante a estrada margeava uma torren
te barulhenta, que escorria alegre em direção oposta à nossa. Em certos
pontos havia meninos pescando. Tentando pescar.
"E saiba", prosseguiu Lorenzo, tenho uma carta de Lanebbia
para Dom Attilio. O nosso ilustre pagador quer saber se o vigário permite
o envio de um arquiteto à villa, para examinar e medir os aposentos...".
"Esse desgraçado pode se meter a explorar a tribuna, Lorenzo", dis
se eu.
isso, meu caro, eu disse a Lanebbia que Dom Attilio é muito
desconfiado e que a visita do arquiteto deve ser acompanhada por um ou
dois de nós. "
todo o vigário vai adorar a notícia."
"Graças à minha habilidade diplomática, aliás notória, a visita do
arquiteto será marcada por nós, de acordo com Dom Attilio."
"Desta vez você fez alguma coisa", provocou Bruno.
Lorenzo suspirou condescendente: "Veja quanta incompreensão,
meu caro Emilio! A propósito de incompreendidos, Beatrice me contou
dos teus achados no manuscrito e da tal nota sobre Brunus, no 'Hipó
lito'".
Bruno insultou um par de cavalos que caminhava perigosamente à
margem da estrada e dirigiu-se a Lorenzo. "Ainda descubro quem é esse
meu xara. "
"É simples. Pergunte a Maria Eugenia."
"Ela diz que o melhor dicionário histórico sobre personagens famo
sos é o de Bayle, de 1730. Nós o temos no Galilei, mas ainda não tive tem
po de ver. E que a melhor livraria sobre história das heresias ou religiões
é a Claudiana, da Igreja valdense, em via Sforza."
"É curioso", disse eu, "porque os valdenses eram queimadores de
livros, no passado",
Lorenzo pôs-me a mão no ombro, esperando apenas que eu termi
nasse a frase, para dizer: "Eis por que eu estranhei o nome daquele enca
dernador de Cisterna d'Asti... Como se chamava ele?".
"Aurelio Valdesi."
"É esse. O sobrenome vem claramente da seita de Petrus Valdus,"
"Valdus, que no vocativo é Valde", completei. Contei a eles meu
erro ao traduzir a frase do mártir na capela da villa.
"Veja só, Bruno. Até os gênios se enganam. Mas se o nosso Lutercio
resolveu homenagear o inquisidor com aquele afresco, ele também de
veria ser meio linha-dura, com os pobres hereges, valdenses ou outros.
Você não acha, Emilio? No Piemonte eles nasciam como praga..."
"Foi, e se arrependeu. Isso está claro no Commentarium." Passei a
explicar a "conversão" de Lutercio a partir dos "erros da juventude".
"Para mim ele poderia até ter sido um inquisidor por algum tempo, en
quanto bispo, já que não era dominicano... "
Bruno olhou-me surpreso. "Como você sabe?"
"Tenho dois indícios. Primeiro, ele pensa e escreve como um críti
co de qualquer dogmatismo. É incapaz daquela submissão militar dos
dominicanos. Não tem aquela fidelidade canina, dos Domini Canes, à
hierarquia clerical. Segundo, ele esteve em Paris, baluarte da inteligência
franciscana..."
Bruno tinha reduzido muito a velocidade do carro e procurava algo
no retrovisor: "Onde se meteram aquelas duas?".
"Anna e Beatrice saíram no Land-Rover antes de nós, se é sobre elas
que você pergunta", explicou Lorenzo. "Elas estão meio esquisitas des
de que achamos os livros. Beatrice acha que nossa mina mais rica vai ser
o encadernador de Cisterna d'Asti. Isabella está em órbita desde que viu
aquele pedaço de antifonário e Anna só terá paz quando botar a mão na
quele volume das Bacchae..."
"E você acha que a mina é o afresco da biblioteca, que os pintores
antigos et coetera, et coetera, et coetera..." Bruno falava num tom de des
crença e enfado.
"Vejo, com prazer, seu entusiasmo pela minha tese. Mas é isso mes
mo, Bruno. Vocês verão, quando visitarmos a biblioteca, que os pinto
res antigos, et et coetera, et coetera..."
"E a minha tradução?", perguntei. "Afinal, até agora, além de hipó
teses, o que temos é um perfil bastante definido do bispo vermelho. Te
mos evidências de que ele foi um dos nossos primeiros helenistas, o pri
meiro a traduzir Eurípides para o latim, tinha acesso aos primeiros ma
nuscritos trazidos de Bizâncio, era um eclesiástico importante, bibliófilo,
simpático às heresias ou aos hereges... Tudo isso, graças ao meu trabalho.
Temos que seguir todas as pistas: Aurelio Valdesi, o afresco e os textos."
Lorenzo estranhou: "Os textos? Não é só o Commentarium?".
"Há também o 'Hipólito', que tem aquela nota sobre Brunus e, pro
vavelmente, outros indícios das ligações de Lutercio com a fauna curio
sa de literatos, helenistas, contrabandistas e ladrões de manuscritos. Deve
ter sido uma gente fascinante. O diabo é que Anna não sabe latim. Se sou
besse já teríamos mais dados. »
"Ela está apaixonada, Emilio. Está dividida..." Meu sangue conge
lou. Ele prosseguiu: "... entre Eurípides e Lutercio". Minha sensação foi
de alívio e de perda. Lorenzo emendou: "Pois para quem ama a tragédia
grega, a figura de Eurípides é fascinante. Mas a de um bispo genial e pros
crito, que partilha com ela o mesmo amor por Eurípides e a intimidade
com os originais gregos das tragédias, algumas já perdidas, deve ter uma
sedução irresistível".
Bruno pigarreou ostensivamente e alfinetou: "Convém notar que
essa 'teoria da sedução' de Eurípides e Lutercio, formulada há já algum
tempo, por Tulio, foi objeto de discussão em oportunidade anterior, na
qual, infelizmente, não pudemos contar com o brilho de suas contribui
ções. Sem mais, para o momento, envio-lhe cordiais saudações. Bruno
Salvadori, secretário". Olhou de viés para Lorenzo e buzinou para algu
mas garotas que pedalavam no jardim de um casarão velho.
"Precisamos ensinar bons modos a esse rapaz", reagiu Lorenzo.
"Que argumentação! Você anda lendo demais, Lorenzo."
"Você ganhou. Eu pago os aperitivos. Mas mande trocar os amor
tecedores desta coisa. E, ademais, eu não posso perder meu tempo em dis
cussões românticas sobre sedução. O que quero dizer é que Anna anda
meio esquisita, desde que achamos esses livros. Vocês ficaram todos meio
malucos. Ninguém mais toca sua pesquisa. Só Tulio construiu em tem
po sua arca e se salvou."
"Então você se inclui entre os malucos?"
"Não há como ignorar esse imbróglio de Lutercio", respondeu Lo
renzo. "Por isso eu quero voltar à villa logo que puder. Quero saber
quem foi esse bispo e poder voltar aos meus livros de medicina antiga. "
"E eu, aos meus textos sobre alquimia", suspirou Bruno.
Também minha pesquisa sobre a idéia de loucura tinha que esperar.
Os meus problemas eram dois: Lutercio e Anna. Enquanto não resolvesse
o de Lutercio eu não poderia retornar aos meus livros. Quanto a voltar à
paz, havia pouca esperança. Se não conquistasse o amor de Anna eu não
teria descanso. Se o conseguisse, menos ainda. Mas o vulcão me atraía. Na
pesquisa sobre Lutercio, eu estava aprendendo algo sobre história do co
nhecimento. A nossa investigação, embora desordenada, era fecunda e até
segura. Ela não seguia um método. Seguia uma paixão. E pensei então que
a objetividade talvez seja o melhor caminho para descobrir e explicar con
ceitos ou doutrinas. Mas quando se trata de descobrir e entender figuras
do passado, pessoas, uma certa dose de paixão ilumina detalhes que a me
ra racionalidade não enxerga.
"Chegamos", disse Bruno, "lá estão as duas". Anna nos acenava,
sorridente. Gostei de vê-la feliz. Beauice retocava o penteado no retrovi
sor externo, muito inclinada, de costas para nós. Bruno deu-lhe um as
sobio malicioso e ela, sem se voltar, gritou: "Cretino!".
Capítulo 8
A bandeja
173
Risotto nero é feito com lulas, cortadas em quadrados muito pequenos,
postas a refogar em óleo muito fino, sobre meia cebola ralada e dourada
lentamente. Quando as lulas começam a amarelar, juntam-se três beter
rabas bem picadas, que devem ferver em seu próprio líquido, por uns
trinta minutos... ".
"Mas então demora... ", começou a perguntar Beatrice.
"Não, senhora. Tudo isso já está feito desde as onze da manhã. O
resto do preparo é que depende da escolha dos senhores. Consiste em
juntar o arroz, e toda a tinta das lulas, que foi retirada antes de cortá
las. Quando o arroz absorve todo o líquido, adiciona-se água aos pou
cos até ficar ai dente. Coloca-se uma colher de manteiga e meia de salsi
nha picada."
"E a Anatra?", quis saber Bruno, muito compenetrado.
Francesco olhou-o com admiração: "O senhor certamente tem bom
gosto. Não é fácil encontrar um pato bem preparado. Mas os nossos são
criados aqui mesmo e preparados por minha mulher, que é uma artista
nessas coisas. O pato é lavado na véspera, com vinagre, e fervido ligeira
mente antes de ser temperado com sal e pimenta negra. Faz-se então um
refogado com três colheres de azeite e presunto gordo picado fino. Jun
ta-se logo um punhado de cenoura ralada, outro de aipo fresco picado e
meia cebola moída. Nesse refogado coloca-se o pato, derramando sobre
ele o suco que se forma na caçarola, até dourar por inteiro. A seguir, jun
ta-se água quente, aos poucos, até o cozimento completo...".
Lorenzo deglutia cada palavra de Francesco e Beatrice revirava os
olhos, lábios entreabertos, quase babando. "O senhor tem algum aperi
tivo da casa?", perguntou. A resposta foi pronta: "Patrizia, cinco aperiti
vos aqui, minha cara."
A moça veio prontamente, ondulante, mas discreta: "Temos dois ti
pos, um negroni com angustura preparada por nós ou, então, suco de
pêssego, com vermute branco e um pouco de gim". Lorenzo, que estava
na cabeceira da mesa, começou a consulta à sua esquerda, interrogando
Beatrice e Anna. Depois passou à direita, com Bruno e eu. Todos esco
lheram o segundo. Patrizia retirou-se sorridente enquanto Francesco sus
surrava ao meu ouvido: "É uma invenção delat".
Anna, sentada à minha frente, me dirigia olhares fugazes, mas com
certa ternura. Patrizia chegou com cinco taças em forma de tulipas sobre
174
uma bandeja hexagonal. Anna fixou-a encantada. Tinha duas grandes al
ças de prata com esplêndida decoração liherty. "Que maravilha esta ban
deja!", disse. "Está na família há mais de cem anos", respondeu Patrizia,
orgulhosa. "Deve ser de ágata ou jade, não sei." Anna olhou-me fundo
nos olhos, como nunca me olhara antes. Quando Patrizia se foi, ela es
perou que a conversa recomeçasse e então me segredou rapidamente: "É
alabastro". Comprimiu os lábios, quase tímida e me sorriu. Um sorriso
de... amor, pensei. Eu tinha deixado metade de mim junto ao Commen
tarium e não conseguia ligar-me à conversa. Não que estivesse concen
trado em outro assunto. Eu, simplesmente, não conseguia ligar-me ao que
se dizia ao redor. Mesmo sem perder nada do que se falava.
Francesco aproximou-se, a um aceno de Lorenzo. "Querem saber
sobre o Vitello garofanato, não é? Já explico: são postas grossas que des
cansam em vinho branco seco, por seis horas. Depois são adornadas com
fatias grossas de toucinho e sob elas colocam-se alguns cravos, não mais
de quatro por quilo de carne. A seguir, a carne, amarrada, deve ser refo
gada em manteiga com meia cebola em fatias e duas colheres de óleo fi
no. Quando estiver dourada em todos os lados, acrescenta-se um copo de
água e se deixa ferver muito lentamente, até completar o cozimento."
"Risotto nero para todos, eu suponho", disse Lorenzo. "Quem quer
Vitello? Beatrice e Anna. Ninguém mais? Então, pato para Bruno, Emilio
e também para mim. "
"E um pouco mais desse Gattinara", pediu Beatrice.
O aperitivo de Patrizia era uma perfeita harmonia de sabores e aro
mas. Quando Francesco terminou sua explicação cada um já tinha es
gotado sua dose. Enquanto o pai foi buscar mais garrafas do Gattinara,
Patrizia chegou para recolher as taças, com a bandeja de alabastro. Foi
então que olhei para as alças. Cada uma tinha sete hexágonos, alguns com
figuras em baixo-relevo e outros vazios, ligando uma figura a outra. Nu
ma das alças os hexágonos vazios eram quatro e as figuras eram três. Na
outra, quatro hexágonos tinham figuras e os demais não.
Bruno observou as figuras e começou a pensar alto, como costuma
va: "No teto do teatro temos nove hexágonos com letras e um vazio no
meio deles. Aqui temos sete com figuras ...".
"Mas no teto da tribuna temos quatro com figuras e nesta alça tam
bém há quatro com figuras. Mas aqui são todas figuras femininas, mes
mo na outra alça", observou Lorenzo. "Lá temos um fauno, um poeta,
e duas musas. Uma é Erato, por causa da trombeta, e outra, com a lira, é
Clio. "
"Aqui temos sete figuras femininas que poderiam ser musas", opi
nei. "O número de musas variou muito, na antiguidade. Em Sícion eram
três, representando as três cordas da lira primitiva. A origem dessa ban
deja, ou melhor, dessa decoração, deve ser siciliana..."
"Por quê?" A pergunta de Anna era mais desafio que curiosidade.
"Porque em Lesbos e na Sicília as musas eram sete. Como essa ban
deja dificilmente seria lésbica, deve vir da Sicília. Ou, quem esculpiu as
alças tinha influências da cultura grega na Oikélia, a nossa ensolarada ilha
do sul."
"Muito obrigada."
"Disponha. Na Atenas antiga as musas eram oito, como gostavam
os pitagóricos..."
"Senhores, eis o Risotto nero. Minha mulher disse que hoje está ex
cepcional. Bom apetite", disse Francesco. Era mesmo um prato muito
especial. O suficiente para que eu perdesse qualquer audiência. Lá pelo
meio de seu Risotto, Lorenzo lembrou que o número das musas, final
mente, ficou nove.
"Os nove hexágonos do teatro! Policleutame...", tentei lembrar.
"Não", corrigiu-me Anna. "Ê Poleuclitaumerateca. Disponha."
Peguei a caneta de Bruno e escrevi num guardanapo de papel as ini
ciais de cada musa: P, E, C, T, U, M, E, T, C. Eram as letras dos hexágonos.
Três vogais, E, E, U, e seis consoantes, incluindo dois T e dois c. Anun
ciei minha descoberta. "Os hexágonos do teatro trazem as iniciais das
nove musas."
Bruno ficou imóvel, com o garfo na boca. "Bravo!", disse Anna
apertando minha mão. Beatrice e Bruno brindaram-me com o vinho. Lo
renzo lamentou: "Eu devia ter percebido isso. Afinal, num teatro como
aquele, as musas deviam ter um lugar de honra. Parabéns, Emilio". Bru
no não perdoou: "Você anda lendo pouco, Lorenzo".
"Na próxima viagem, precisamos evitar esses pombos mal-educa
dos, Emilio."
"Mas ele é o amigo de Dom Attilio", lembrei.
"Oh, céus! Quanta coisa temos que suportar para iluminar a huma-
nidade", conformou-se Lorenzo. E sorriu para Bruno: "Você ganhou, seu
pombo miserável".
"Além de tudo, você precisa de carona", lembrou Anna.
"Isso já é conspiração. Só por causa de alguns hexágonos... Eu ain
da vou achar a carteira de identidade desse Lutercio e desfilar com ela na
Galleria. "
"Cuidado com os turistas do Biffi. Não vá cair sentado diante deles",
recomendou ela.
Lorenzo encolheu os ombros, resignado, e levantou '0 copo num
brinde. "Vocês ganharam... Por enquanto."
Bettina chegou trazendo os pratos de Vitello. Logo após, com certo
garbo, Francesco trouxe os patos. Vinham acompanhados de purê de la
ranjas e arroz branco. A vitela vinha com saladas de almeirão e de chicó
ria vermelha, além de batatas ao forno, num sutil aroma de alecrim.
Beatrice encheu todos os copos e despediu-se: "Nos próximos qua
renta minutos estarei impedida de cuidar de qualquer assunto. Até mais
tarde".
"Digam que eu viajei", pediu Bruno. "Bom apetite!"
Quando todos terminaram, ninguém tinha condições para qualquer
coisa mais séria. Nossos neurônios estavam "fora do ar". Após uma sa
lada de frutas campestres com maraschino e sorvetes de amoras, Lorenzo
pediu licores. Bettina trouxe um carrinho com umas dez garrafas colori
das. Havia vários licores de frutas, feitos pela família, e uns quatro tipos
de amaro. Entre eles, o meu preferido, Braulio. Enchi um cálice grande,
dei graças a Deus por ter nascido, por não ter que dirigir o carro e por ter
Anna tão perto de mim. Tive vontade de dançar.
Por sugestão de Anna, começamos a caminhar pelo campo seguin
do o regato. Bruno na frente, depois Lorenzo com Beatrice e mais atrás
Anna e eu.
"Gostei de sua descoberta", disse-me ela.
"Eu gostei da bandeja."
"É. Parece que essa história está marcada por alabastros."
"Não devem ser nada de mau agouro, espero", respondi.
"Para mim até hoje só trouxeram prazer. Espero que continue assim."
"Então, vou procurar um fornecedor atacadista. Pronta entrega, a
domicílio. Seu endereço, por favor."
177
"Assim não tem graça, Emilio. É o alabastro que deve cruzar o nosso
caminho."
"Este nosso é retórico?"
"Como você quiser."
"Gostaria que não fosse."
"O alabastro encanta, mas é frágil, meu caro."
"Deveria preferir uma bandeja de granito, só por isso?"
"Não", disse ela, segurando-me a mão, "eu também prefiro o alabas
tro. Mas é preciso estar pronto para o sofrimento quando ele se partir."
"Viver é correr riscos, segundo disse Zaratustra. Ou De Gaulle."
Lorenzo, Beatrice e Bruno tinham-se embrenhado numa plantação
de pessegueiros, na parte mais baixa da encosta.
"Esqueceram de nós", disse Anna. Tomei-lhe o rosto nas mãos e o
acariciei com ternura, quase tremendo. Ela dependurou-se em minha nu
ca e, com um sorriso que nunca esquecerei, aproximou lentamente os lá
bios entreabertos à minha boca, num beijo quente, úmido, carregado de
desejo. Beijei-a então, como jamais beijei alguém. Era desejo e era amor.
O desejo mais ardente e o amor mais terno. Senti então que eu mergulha
va, feliz, num vórtice de lava... Ficamos abraçados, longamente, sem di
zer nada. Não era preciso. Depois ela me beijou de novo e disse: "Minha
vida é complicada, Emilio...".
"Mais tarde falaremos disso. Podemos voltar ao La Strega para um
Carpano."
"Vou adorar. Mas, amanhã. Hoje já tive libações e emoções demais."
"De acordo." Fomos procurar os amigos. Eu me sentia mais pode
roso do que Alexandre, Julio César e Napoleão juntos e, sobretudo, mui
to mais feliz que eles.
Subíamos a encosta, de volta, ouvindo Beatrice explicar a Bruno co
mo ela fazia sorvetes de pêssego. De repente, quatro cães enormes avan
çaram em nossa direção. Rosnavam como feras, aterradores, prontos a
fazer em pedaços quem se aproximasse. Anna agarrou-se a mim e Beatrice
escondeu-se atrás de Bruno, que procurava, aos gritos, espantá-los. Lo
renzo levou as mãos à à maneira de um megafone e assobiou. Um
assobio agudíssimo e muito longo. Os se desorientaram e pararam
no meio do caminho, rosnando, ameaçadores, prontos para o ataque. Lo
renzo começou então um "discurso aos cães", aos berros e em
8
tom autoritário. Depois foi baixando o tom de ameaça até chegar a fra
ses tranqüilas e lentas. Fez uma pausa e com a autoridade de um doma
dor ordenou-lhes que fossem embora, com gestos enérgicos e voz extre
mamente firme. Os cães, um a um, tomaram o rumo da Trattoria. Menos
um, o maior deles, que se sentou no caminho lançando-nos olhares fero
zes. Lorenzo tomou um pedaço de pau e caminhou resoluto na direção
do animal, aos gritos. O cão levantou-se e afastou-se rapidamente.
A primeira a falar, passado o susto, foi Beatrice, muito pálida. "Lo
renzo, onde você aprendeu tudo isso? Você nos salvou." Eu abraçava
Anna, que estava lívida e tremia. A primeira coisa que conseguiu dizer foi:
"Obrigada, Lorenzo. Eu tenho pavor de cães". Lorenzo subiu em um
tronco e resolveu imitar o Brancaleone de Gassman, sucesso mais recen
te do cinema. Ainda brandindo o pedaço de pau como uma espada arre
medou a fala grotesca: " Ecco, miei fidi, miei prodi, che lo duce vostro non
conosce timore né fremito dinnanzi a cotante ferocissime belve. Alte le
insegne! Fronteggiamo nemici, belve et perigli. lnnanzi! Ad Aurocastro,
lo castello nostro!". Bruno entrou no jogo, e entoou a marcha do filme:
"Branca, branca, branca!". Beatrice engrossou o coro.
Lorenzo então cruzou os braços, agora muito sério, e perguntou em
tom severo, olhando para os dois: "Vocês não têm vergonha de se diver
tirem de modo tão infantil?". Ele mesmo respondeu: "Eu não!", e desa
tou a rir. Incrível: Lorenzo ria, sonoramente. Milagre de Baco. Deu um
beliscão afetuoso na bochecha de Beatrice: "ln vino veritas, minha que
rida". Enlaçou-lhe a cintura com o braço e ordenou a marcha para os car
ros: "Ad macchinas!".
Durante a caminhada, Anna quis saber como ele aprendera a domi
nar os cães daquele modo.
"Primeiro, um pouco de teoria", começou ele. "Vocês devem saber
que a fauna montanhesa do Piemonte é a mais rica do mundo em varie
dade de espécies. Nestas montanhas encontram-se os mais diversos tipos
de veados e caprinos selvagens, incluindo o mais nobre deles, a camurça.
Por isso, os grandes senhores desta terra, quase sempre nobres, tornaram
se grandes amantes da caça e peritos nessa arte. Daí, a prática da caça e o
domínio de seus métodos tornaram-se um costume da nobreza. Daqui e
do resto da Europa. Um dos duques da casa de Savoia assinou um trata
do que dividia ao meio toda uma cadeia de montanhas, seguindo a linha
179
de divisão das águas. Metade das terras ficaram no Piemonte e a outra
metade passou para a França. Mas o tratado prescreve que em toda a ex
tensão da cadeia, a crista mais alta, em ambos os lados permanecia pro
priedade particular do duque e sua reserva pessoal de caça... "
"E daí?", perguntou Beatrice.
"Daí, o Piemonte se tornou um enorme viveiro de cães de caça de
todos os tipos. Alguns são extremamente ferozes com animais e pessoas
que não conhecem. Ao longo dos anos essa agressividade foi apurada ge
neticamente e algumas espécies se tornaram muito perigosas."
"Como você aprendeu tudo isso?", interroguei.
"Enquanto outros correm atrás de hexágonos", respondeu olhando
me de viés, "eu, nas horas vagas, também sou caçador, há vários anos.
Melhor: fui caçador até o ano passado e aprendi a lidar com alguns cães
de caça. Mas o que vocês viram hoje foi, em boa parte, efeito do Gattinara
mais que da minha experiência anterior...".
"Sem modéstia! Você foi decidido e controlado", reconheceu Anna.
"Muitas decisões são como sementes. Só germinam se regadas... a
vinho, minha cara."
"Um dia decido trocar a suspensão do carro", provocou Bruno.
"Mas é uma semente que ainda não foi regada o suficiente." Lorenzo pe
gou-lhe o braço: "Vamos embora, seu beberrão. As suas sementes são
impermeáveis".
"As sementes têm algo de trágico...", murmurou Beatrice.
Anna olhou-a curiosa: "O quê?".
"Noutra hora eu te explico."
Resolvemos tomar um café antes da viagem, na Trattoria. Frances
co desculpou-se pelo incidente com os cães. Eram de um freguês e haviam
escapado de seu furgão. "Espero que tenham gostado do almoço e da nos
sa casa."
"Gostamos muito e vamos voltar", falou por nós Beatrice.
Lorenzo embarcou no jipe. Eu parti com Bruno. Gostaria de estar
com Anna, mas algumas horas de separação nos permitiriam absorver
toda a intensidade e a beleza do que tínhamos vivido. Eu estava pronto
para enfrentar qualquer assunto, com interesse e generosidade. Bruno
preferiu planejar a nova visita à villa. Deveríamos dividir o grupo, segun
do ele. Era melhor que, enquanto alguns explorassem a vil/a, outros fos
180
r
"
ISI
"Parece simples", observei.
"Parece. Há várias complicações que eu não contei. Uma roda pode
ter apenas função de transmissão entre outra roda e o ferrolho. Em alguns
casos, rodas com movimento excêntrico servem para engatar pinos de
transmissão, para bloquear movimentos ou para liberar o deslocamento
de uma trava. "
"Agora me perdi."
"Eu também vou tatear no escuro. Mas penso em algumas seqüên
cias de movimentos. Um erro nosso foi não registrar as seqüências que
tentamos. "
Enquanto Bruno me explicava ferrolhos e cremalheiras, dirigia de
vagar. O suficiente para que o jipe nos ultrapassasse. Beatrice avisou que,
nos esperaria na entrada de Sant'Ilario. Anna acenou sorridente e Lo
renzo, no banco de trás, nos olhou com o mais olímpico desprezo. Bru
no respondeu com uma buzinada rouca.
Quando chegamos a Sant'Ilario eram já quatro e meia, muito tarde
para voltar ao Galilei. Paramos na taverna da juke-box. Anna comprou
umas fichas e escolheu Il cielo in una stanza, de Gino Paoli. Uma canção
apaixonada, perfeita para a interpretação intensa de Mina. Enquanto to
mávamos refrigerantes, Bruno expôs seu plano para nossa investigação.
Beatrice e Anna acharam ótima a idéia de irem visitar o livreiro Aurelio
e, como Lorenzo já tinha a carta de Lannebbia para Dom Attilio, podía
mos retornar à villa logo, no sábado de manhã. Para voltar no mesmo dia,
porque Bruno tinha compromissos no domingo cedo. Beatrice encarre
gou-se de combinar a viagem com Isabella. Depois de duas canções com
Ornella Vanoni, estávamos conversando sobre as músicas de Modugno.
Lorenzo olhava para o teto, esfregando preguiçosamente a barriga e fa
lava, para si mesmo, talvez: "Esse livreiro esconde muita coisa, pelo jei
to. Aquele volume das Bacchae saiu da villa. Como? Quando? Ele diz
que, há séculos, sua família lida com livros. Antigos, especialmente. É o
que ele contou a Isabella e Emilio. Lá pelo século catorze ou quinze, al
gum valdense deixou de queimar livros e passou a cuidar deles. Devia ser
um homem brilhante, seguro de sua decisão, contestador. Uma espécie de
ovelha negra, um herege dentro da heresia. Sua atitude de salvar livros em
vez de queimá-los foi respeitada. Portanto, devia ser um homem superior,
influente. Tanto que toda a raça dele passou a cuidar de livros sem repre
sálias, ao que parece. Na villa morava Lutercio, outra ovelha negra, con
testador, também 'herege', do ângulo da ortodoxia católica. O antigo li
vreiro tinha família e transmitiu sua atitude, transformada em profissão,
aos descendentes. Lutercio era bispo, não tinha a quem deixar sua paixão
pelas letras e seus livros. Como os dois eram críticos de suas religiões,
eram reciprocamente simpáticos... ".
Bruno continuou o pensamento: " ... e, então, os dois livre-pensado
res se juntaram e foram felizes para sempre... ".
"Não!", disse Lorenzo. "Começaram a competir para ver quem con
seguia livros mais raros, mais preciosos, mais antigos. E começaram a tro
car livros. Dois Catulli carmina, em excelente estado, por uma Ciropedia
com escólios. Dois Diodoro Siculo por um Tito Livio..."
"E então?", perguntou Anna.
"Então... não sabemos qual dos dois ganhou."
"Não brinque, Lorenzo", disse ela.
"Então falo sério. Esse livreiro deve ter as pistas de algumas tonela
das de livros antigos, guardados pelos avós dele. Talvez, porque eram in
teligentes, soubessem que o método católico de defesa da doutrina era
mais eficaz: era mais seguro queimar os autores e os leitores do que quei
mar os livros. Os valdenses não tinham cobertura política para fazer a
mesma coisa. Mas os mais cultos percebiam que tocar fogo nos livros não
convertia ninguém e só servia para destruir tesouros de conhecimento e
de sabedoria. Só que, no caso deles, a posse dos livros os tornava alvo de
dois inimigos: a ortodoxia valdense e a inquisição católica... "
Todos, menos Bruno, tinham sentado novamente enquanto Lorenzo
falava. Bruno pediu mais um café. Beatrice, que ainda tinha uma ficha,
foi à juke-box e apertou o botão F-4, C'e gente che ama mille cose, de
Sergio Endrigo.
"Os inquisidores que vinham para essas bandas eram os mais impla
cáveis e sanguinários. Como aquele do afresco na capela de Lutercio, nin
guém menos do que o cruel Pedro de Verona, como Emilio descobriu.
Por isso, os valdenses tinham que esconder muito bem os livros que pos
suíam e os depósitos que conheciam. É natural que tivessem algum regis
tro, secreto, dessas fontes ... "
Beatrice entendeu a seu modo: "Quer dizer que devemos dopar o li
vreiro, revistar todas as gavetas, armários e porões que houver por lá. Sim
pIes. Basta chegar lá com um colar de granadas, algumas bazucas... e um
pé-de-cabra na mão".
"Mais forte do que a fé que remove montanhas, minha cara, é a ma
lícia feminina. Ela já derrubou reis e imperadores e... arromba qualquer
cofre." Eu lembrei como Aurelio Valdesi tinha sucumbido miseravelmen
te às graças de Isabella e como se oferecera para indicar-lhe verdadeiras
minas de códices, incunábulos e outras preciosidades. Ele tinha citado a
villa do bispo vermelho como uma dessas minas, no passado. A idéia de
Lorenzo sobre um antigo valdense dissidente, bibliófilo e amigo dos her
deiros da villa ou, talvez, do próprio Lutercio não me pareceu tão malu
ca. Enquanto Lorenzo falava, Bruno, muito atento, estava às voltas com
um canto de unha no polegar esquerdo. Anna estava junto a uma janela
olhando para as colinas, mas, eu sabia, estava acompanhando cada sílaba
do que se falava. De repente, voltou-se para nós, como se continuasse a
fala de Lorenzo.
"Esse encadernador, ou livreiro, ou restaurador é um apaixonado
por livros. Sabemos que ele guarda alguns tesouros. Mas todo colecio
nador que se preze, embora ciumento, não resiste à tentação de mostrar
seus troféus a quem os valorize adequadamente, mais ainda se for um
possível rival na 'corrida ao ouro'. Ele já demonstrou isso a Isabella e
Emilio. Por outro lado, pode ser que ele não tenha razões religiosas para
esconder livros proibidos ou perigosos. O sobrenome dele não implica,
necessariamente, uma filiação à doutrina valdense..."
"Sim", disse Bruno. "Não implica uma adesão dele. Mas, provavel
mente significa que seus antepassados eram valdenses. E valdenses mili
tantes e respeitados, já que eram designados publicamente como tais, sem
serem apedrejados. "
"E então?"
"E então, como ele mesmo disse a Emilio e Isabella, Aurelio Valdesi
sabe de um acervo precioso acumulado por seus antepassados e talvez
resista à tentação de exibi-lo."
Lorenzo interrompeu: "O que eu disse é que ele pode ter registros
desses livros dos antepassados. E que seria importante descobrir esses re
gistros. Claro que os próprios livros interessam mais; mas uma lista de
les já seria um presente dos deuses".
Os deuses naquele dia tinham sido particularmente benignos, pen
sei. Marte espantara os cães pela voz de Lorenzo, Baco nos tinha alegra
do o almoço, Minerva me inspirara a solução do enigma dos hexágonos
e Afrodite plantara a paixão no coração de Anna e no meu. As musas ha
viam inspirado Sergio Endrigo, Omella Vanoni e Gino Paoli. Apenas
Diana tinha sido deselegante ao soltar aqueles cães terríveis contra nós.
"Acho que devemos pegar a estrada", disse Bruno. "De Sant'Ilario
a Milão temos ainda mais de uma hora. Vamos, Emílio." Enquanto Lo
renzo e Bruno pagavam a conta, Anna agarrou-me o braço. "Estou mui
to feliz. Você me deve um Carpano amanhã à noite. Sonhe comigo."
Quando estávamos já chegando a Affori, Bruno propôs uma visita
ao Anjo Azul, para uma cerveja. Depois daquela despedida de Anna eu
estava disponível até para empurrar locomotivas. Estava pronto para bal
des de cerveja. Afinal, toda a cerveja do mundo existia apenas para fes
tejar o amor e alegrar os que se amam.
No Anjo Azul, uma surpresa. Nossa mesa estava ocupada. Por Mau
ro e Abelardo. Antes de qualquer cumprimento Abelardo nos apontou
como um promotor indica o réu: "Eis aí os folgados! Enquanto vocês se
enchem de vinho e colesterol, nós temos que salvar a honra do Instituto".
"Que foi?", perguntei. Mauro deu um suspiro de preceptor resigna
do: "Vocês devem fazer alguma penitência. Um Barolo 64 para Abelardo
e um & Chandon para mim. Nós merecemos".
Bruno e eu não entendíamos o jogo. "De acordo", aceitou Bruno.
"Mas podem explicar melhor?"
Mauro explicou: "Lanebbia trouxe quatro editores para uma visita.
Queriam conhecer os pesquisadores e, principalmente, os nossos troféus
bibliográficos. Dois deles queriam saber sobre a villa do Piemonte e so
bre o manuscrito do século XVI, sobre... Sófocles! Para eles é tudo a mes
ma coisa. Percebemos que vocês tinham sumido. Abelardo soube, de Lu
ciana, que tinham ido almoçar no Piemonte. Então começamos uma ope
ração de despistamento. Quase como a do desembarque na Normandia.
Abelardo levou-os para a biblioteca e, diante de Maria Eugenia, disse qua
tro ou cinco besteiras sobre o nosso acervo. Ela mordeu a isca. Pigarreou,
daquele jeito moralista, pediu licença para 'alguns reparos' e destampou
uma exposição exaustiva sobre õs códices, os incunábulos e os in folio da
biblioteca. Levou-os aos textos expondo tudo o que havia de glorioso por
lá. Eu, enquanto isso, procurei desesperadamente os livros da villa nas
salas de vocês. Fiz sinal a Abelardo de que não tinha achado nada. Ele vol
tou à biblioteca e disparou mais algumas preciosidades... ".
"Eu só disse que tínhamos alguns incunábulos do século... XVII! Ma
ria Eugenia empalideceu. Fez um discurso sobre incunábulos e usos in
devidos desse nome. Depois olhou para o teto em busca de inspiração. E
achou: 'Estes afrescos são do século XVI. OS da igreja são mais antigos e
mais conservados. Se tiverem a bondade de me acompanhar...'"
"Vale o Barolo e o M oet & Chandon, mas... "
"Espera!", disse Mauro. "Enquanto Abelardo des-controlava a si
tuação na biblioteca, Lanebbia, menos interessado nos afrescos, foi per
guntar a Luciana sobre vocês. Ela bancou o jogo: 'Estiveram aqui até mais
tarde hoje. Sei que Beatrice e Anna iriam pesquisar na Ambrosiana e o
professor Emilio tinha um encontro na Universidade...'. 'E os outros?',
quis saber o chefe. Ela disse que Lorenzo e Bruno tinham saído com dese
nhos da villa falando em visitar um certo pároco a respeito dela... En
tão ele se tranqüilizou: 'Precisamos mesmo conversar com esse
"Vocês merecem os prêmios. Luciana, também..."
Abelardo respondeu: "Ela disse que também vai cobrar. Mas será
generosa porque se divertiu bastante com toda essa bagunça. Principal
mente pela fúria de Maria Eugenia com a confusão dos incunábulos".
"Vocês perderam um almoço divino, uma gargalhada de Lorenzo e
uma Oratio in canes diabolicos", informei.
Bruno acrescentou: "Perderam também uma estupenda bandeja de
alabastro e o melhor Gattinara deste planeta".
Alberto chegou com um sorriso franco e cinco canecas de cerveja.
Empunhou uma delas e brindou conosco: "Às duas coisas boas da vida!".
Abelardo brincou: "Clientes beberrões e impostos baixos?" Ele respon
deu pronto: "Não, doutor, o melhor da vida é amar e ser amado". Pen
sei em Anna e secretamente brindei a ela. Lembrei aqueles lábios, aque
le beijo...
"Como vai a tradução, Emilio?" Abelardo apagou meu sonho.
Expliquei os achados e, mais ainda, as idéias surgidas durante a tra
dução. Um Lutercio quase herege, mas apegado a uma fé sincera, hones
ta. Falamos dos planos de Bruno para"uma próxima visita à villa e dos
presumíveis tesouros que o livreiro de Cisterna d'Asti guardaria com o
manuscrito das Bacchae.
186
"Lorenzo diz que as Bacchae saíram da vil/a. Como?", perguntou
Bruno, mais para si mesmo, e continuou: "Ou saíram antes da morte de
Lutercio, ou depois. Em todo caso, ou foram entregues a um antigo Val
desi, ou ele tirou o livro de lá".
Eu tinha visto o livro. A encadernação era idêntica à do 'Hipólito',
o mesmo material, a mesma forma, a mesma lombada. Se o 'Hipólito' fi
cou lá e os volumes eram gêmeos, quem guardou um, entregou o outro
para um antigo Valdesi. Era uma hipótese. O dono do livro, Lutercio, não
o deixaria em mãos do velho livreiro, senão por boas razões. Menos ain
da aceitaria que lhe roubassem o volume. As hipóteses mais prováveis
eram a de que Lutercio entregara o livro ou a de que o volume teria sido
retirado após a morte dele. Nesse caso, o livro saíra da vil/a, mas não da
tribuna, pois os outros livros foram deixados lá, no dosse!. Havia algum
sentido na idéia de Lorenzo sobre algum tipo de amizade entre Lutercio
e algum antepassado de Aurelio Valdesi. Mas se o livro não ficou no dos
sel, não estava lá quando Lutercio morreu. Se não, teria ficado na tribu
na emparedada. Então, saiu da vil/a quando o bispo estava vivo e, por
tanto, foi entregue a algum patriarca dos Valdesi. Por Lutercio ou com o
consentimento dele. Gostei de meu raciocínio.
"Por que o bispo entregaria um volume tão precioso, até perigoso,
quem sabe, justamente a um valdense..."
Abelardo interrompeu a pergunta de Bruno: "Justamente por isso!
Porque o livro era precioso e perigoso. Onde os diligentes sequazes de
Bernardo Gui iriam procurar um manuscrito das Bacchae? Seguramen
te, não na casa de um valdense".
Mauro percebeu uma falha no raciocínio: "Então, por que os outros
livros ficaram na tribuna? Não eram também perigosos?".
"Talvez não tanto", respondi. Eu conhecia bem "As Bacantes", por
que gostava dessa tragédia. A não ser pela exibição do poder arrasador de
Dionísio, um deus pagão, eu não via nada que pudesse significar perigo
à fé ou aos "bons costumes". Porém, antes de dizer isso a Mauro, perce
bi quanto minha percepção estava longe dos tempos duros de Lutercio.
Tempos de arbítrio e de crueldade. Tempos de perseguição a tudo o que
pudesse pôr em risco a submissão acrítica e devota das mentes. Havia
mais um motivo para ocultar o manuscrito: os Domini canes, insuflados
pela pregação de Dominici, estavam prontos a denunciar por heresia
quem, através dos textos clássicos, contribuía para a criação de um "novo
paganismo". A tradução das Bacchae implicava um risco duplo: o texto
latino e o original grego. A posse deles, no caso de um bispo importante,
já era arriscada. Mais ainda se ele já não desfrutasse das boas graças da
hierarquia clerical. O que parecia bastante provável, segundo os indícios
do Commentarium.
"Por quê?", insistiu Mauro.
"Porque essa é a única tragédia de Eurípides em que um deus entra
em cena e argumenta em favor dos ritos pagãos. Ritos que o casto Hipó
lito considerara lúbricos e que Penteu acha obscenos, ainda que o mensa
geiro informe que as mulheres celebrando os ritos sobrieda
de, numa natureza bucólica, idílica. Um clero devasso e hipócrita poderia
até fechar um olho, ou os dois, para eventuais obscenidades em qualquer
texto, desde que a obra de Deus (leia-se: o poder e a riqueza do clero) não
sofresse contestação. Mas não perdoaria o triunfo final de Dionísio sobre
a rigidez moralista de Penteu, nem os argumentos do deus e seus adeptos
em favor de uma vida de prazeres, despreocupada, anárquica. O texto me
xia com valores graves, o poder do rei, a sensualidade da mulher, o sentido
da moralidade, a distinção entre sacro e profano, o conceito de pecado..."
Abelardo mudou o rumo da conversa: "Depois de tudo isso, qual é
a importância de saber como o livro foi parar nas mãos do livreiro?". Bru
no respondeu, prontamente, como se esperasse a pergunta. "Para saber se
o velho livreiro valdense foi um amigo ou cúmplice de Lutercio. Se isso
se confirmar, Aurelio Valdesi, sabendo ou não, guarda escritos ou do
cumentos que podem causar vários terremotos."
"Pelo menos no Calilei", observou Mauro, resignado. "Quer dizer
que Abelardo e eu teremos que driblar Lanebbia ainda por muitas vezes..."
"Tomara que não. Afinal o prazo de minha pesquisa está correndo."
Foi o que eu pensei e Bruno falou.
Alberto veio com mais canecas, uma bandeja grande, cheia de fatias
de salame, presunto cru, copa e outras glórias da criação humana, e com
um conselho: "Caudeamus igitur, senhores, antes que cheguem os turcos".
"Sem dúvida, uma preocupação bizantina", comentou Abelardo.
A conversa então mudou de"rumo. Passamos a discutir, com a luci
dez duvidosa que a cerveja costuma trazer, a importância dos manuscri
tos bizantinos para a cultura da Europa. Mauro lembrou a importância
188
Dilectissimus magister
193
o texto transpirava indignação e desprezo pela hipocrisia dos que
procuram destruir a verdade quando ela "os manifesta". Mas agora apa
reciam palavras muito expressivas. Até fiz questão de traduzir ao pé da
letra a forma latina. Falava-se em subterfúgios de argumentação, ardis da
dialética, e esperteza silogística. Lutercio, obviamente, já não escrevia
contra Aristófanes e adeptos. Nem em defesa de Eurípides. Escrevia em
defesa dos perseguidos por amarem a verdade. Eurípides era apenas um
deles. Os outros eram tão "hereges" ou suspeitos de heresia como, talvez,
ele mesmo. De outro modo não se explicava o ataque direto aos ardis da
dialética e da silogística. Procurei alguém para mostrar o texto. Achei
Abelardo e Mauro, no banco do lobo. Eles leram sem pressa.
Abelardo falou primeiro: "Isso lembra o Directorium Inquisitorum
de Emérico. Um receituário de arapucas que os inquisitores deveriam ar
mar para obter a 'confissão' de bruxaria ou de heresia... ".
Mauro interrompeu: "Mas isso se aplica a um certo tipo de inquisi
dores, como Torquemada, hábeis em distorcer perguntas e respostas até
obter as palavras que comprometem o réu. O texto ataca também um ou
tro tipo. O que explora o fanatismo e os temores dos circunstantes e dos
juízes, de modo a suscitar a desconfiança e a aversão diante do acusado".
"Como quem?", desafiou Abelardo.
"Como o autor da Practica Inquisitionis, por exemplo." O tom de
Mauro era o mais pernóstico possível.
"Deixa de pose, fala logo."
"O grande acusador dos valdenses, Bernardo Gui. Não tinha a meta
de da habilidade dialética ou retórica de um Pedro d'Ailly, mas era igual
mente fanático e implacável. E igualmente rancoroso."
"Esse Lutercio", continuou Abelardo, "deve ter comprado uma gran
de briga com os antiqui ou reales. E, pelo jeito, saiu perdendo. Esse texto
é de um nominalis, ou um ockhamista. Ele está muito longe das transcen
dências platônicas".
Lorenzo chegou com vários papéis enrolados, alguns bastante ve
lhos. Entrou na conversa: "Nesta marcha, você ainda vai descobrir quem
foi Lutercio, antes de chegarmos ao retrato dele na biblioteca".
"Por que vocês só fazem essas viagens nos fins de semana?", pergun
tou Abelardo. "Só para nos excluir?"
"Precisamente", brincou Lorenzo. "Gente casada perde o faro. Mas
194
se vocês quiserem ir, algum dos dois tem que me levar. Não agüento mais
o carro de Bruno. "
"Por que não vamos no seu carro?"
"Podemos, mas não quero dirigir. Não quero que a viagem vire tra
balho. Quem vai guiando?" Nem Mauro nem Abelardo tinham condições
de viajar naquele fim de semana, como de costume.
Lorenzo leu o trecho de Lutercio. Sorriu e opinou: "Como eu já dis
se desde o primeiro dia, ele teve encrencas dentro da Igreja. Não dá para
ser, impunemente, um bispo livre-pensador no Piemonte do século xv.
Ainda mais conciliando tudo isso com uma genuína fé cristã e com o com
bate às hipocrisias e abusos do clero. A menos que... a menos que... ele fosse
muito poderoso ou tivesse grandes protetores... Não sei. Tudo isso é pura
especulação. Talvez não tenha acontecido nada disso. Na verdade, o que
temos é um indício de arrependimento por excessivos rigores da juventu
de, na defesa da fé. Não é isso, Emilio?".
"É isso mesmo. E o que é essa papelada enrolada?"
"Várias reproduções. A gravura da villa que Bruno nos mostrou,
frontispícios de dois textos de Fabrizio, um de Fallopio, gravuras de um
Borelli. E uma lista de nomes que Isabella encontrou. Ela examinou oito
enciclopédias, dois registros da cúria de Monferrato sobre seus bispos e
dioceses nos séculos XIV e XV. Consultou também o famoso calhamaço
do beneditino Benoit des e o Dictionnaire de Bayle que, por sinal,
tem um verbete sobre Eurípides. Ela examinou também alguns textos
desentocados por Maria Eugenia..."
"E o que ela achou?", perguntou Abelardo.
Lorenzo estendeu uma folha. "O resultado é pouco encorajador.
Olhem só. Temos dois bispos com o nome de Lupércio, um em Siena e
outro em Cortona. Nenhum no Piemonte. Quatro ilustres com o nome
de Lutecio, sendo um abade cisterciense de Ferrara, dois médicos, pai e
filho, de Pisa e um fabricante de violinos em Novara. Mais, três Lupércio,
um deles abade beneditino, em Alessandria, um sacerdote morto em odor
de santidade, e um general a serviço do duque de Savoia. Ainda temos um
senhor com nome de Lutezio; foi escritor e poeta em Casale, nas barbas
do nosso bispo. O nome Lutercio·existe. Ela achou dois: um era arqui
teto, romano; o outro era organista em Turim e compositor de um Ré
quiem e outras músicas sacras. "
195
"Conclusão?", perguntei.
"Conclusão: o nome que o povo dá ao nosso Lutercio é falso ou al
gum Lutercio existiu, mas foi riscado da história ou... ele é uma ficção, um
fantasma. Mas alguém fez aquela villa, escondeu aqueles livros e escreveu
o Commentarium. Ficamos na mesma. Porém, agora sabemos que o no
me do bispo é falso."
Abelardo emendou: "Ou foi riscado da história, como você disse. De
todo modo, foi alguém que tinha contas a cobrar de acusadores injustos,
provavelmente inquisidores de seu tempo".
Voltei à minha sala seguro de não estar distorcendo as idéias do ma
nuscrito. Tanto Abelardo como Mauro também percebiam nele um de
sabafo contra os acusadores levianos, de má-fé, inquisidores ou não. O
capítulo chegara a um parágrafo final, de resumo, usual em ensaios ou
tratados para fins didáticos. Afinal, o Commentarium visava servir para
os nostra studia.
197
200
"Como vai a tradução?", completei.
pareceria novidade: ,
201
"Apesar das grandes inovações temáticas e poéticas que introduziu
na arte da tragédia, Eurípides foi, entre os grandes trágicos, o mais fiel à
forma artística da antiga liturgia dionisíaca (Dionysiorum ritus veterum
figurae fidelior) e nisso superou o próprio Ésquilo".
202
podia abrir mão da surpresa do enredo (nodz) para cativar o interesse do
público. É que, graças à informação prévia sobre a trama, as dificuldades
de entender desapareciam. O espectador ficava, então, inteiramente ex
posto ao jogo patético dos ódios, amores, e desesperos. Pronto para so
frer o impacto do horror e o da ternura. A ternura de Alceste, Polixena
ou Laodaméia e o horror do infanticídio de Medéia ou da cruel vingança
de Hécuba. Mas, para o gosto ático, nenhum episódio ocorre à margem
de alguma ordem maior, superior (extra superiorem quempiam ordinem).
E a tragédia não pode concluir-se com a mera sensação de horror, ódio
ou tristeza. É preciso que, de algum modo, os conflitos se harmonizem,
que o destino ulterior dos personagens não fique incerto. É preciso que
os mistérios se elucidem. Esse retorno à ordem e ao equilíbrio é a katas
trophé. A paz inicial se restabelece pelo discurso de alguma divindade,
quase sempre um deus ex machina. Toda a comoção patética (concitatio
miserationum) cede lugar à serenidade. A refinada sensibilidade de Eurí
pides não podia aceitar que o final de uma peça fosse uma sensação de
ódio ou de medo. Seria um desfecho esteticamente inaceitável. A teofania
ou o deus ex machina é um artifício para transportar o espectador, após
o impacto patético das emoções mais cruas, de volta ao plano das idéias.
É uma volta à racionalidade, ao plano das coisas sublimes (ad sublimia)..."
203
"Sim. Mas é um termo ritual, litúrgico."
"Então o senhor não quer a tradução do tenno e sim o significado
dele para a época. É isso?"
"É", resolvi encurtar. Eu queria apenas saber a tradução correta e fiel
do termo. Mais por curiosidade, porque Lutercio tinha mantido a forma
grega.
"Sétima estante. Prateleiras 1 a 9, Grécia-Religião, Grécia-Ritos. Há
alguma coisa sobre história da liturgia, na oitava, última prateleira. A En
ciclopédia das Religiões está na estante 12."
Já nos dicionários havia informação suficiente: o hierofante dirigia
se aos crentes antes de uma cerimônia importante e, além de explicar o ri
tual que se iria cumprir, tentava criar uma atmosfera emotiva adequada
às exigências da divindade que seria cultuada ou, então, ao mistério que
seria celebrado. Esse discurso prévio tinha, assim, uma função dúplice: in
formar e motivar. A comparação de Lutercio, com o prólogo, era perfei
ta. E a mesma analogia aparecia também na Britannica, no verbete sobre
Eurípides.
Quando passei pela mesa de Maria Eugenia, ela não se conteve. "Pro
fessor Emilio, desculpe minha ousadia. Quem é esse personagem pie
montês do século XV que escondia livros numa villa? Era um arquiteto?"
"Ainda não descobrimos... "
"O senhor sabe que nós temos três grandes volumes com frontispí
cios de obras editadas no fim do século xv e no XVI? São maravilhosos.
Há anos que ninguém os consulta. Talvez possam servir à sua pesquisa."
"Muito obrigado. Podem ser muito importantes. Mas, por enquan
to, tenho que traduzir um manuscrito..."
"Aquele que se refere a um Brunus? O 'Hipólito'?"
"Não. É outro... Mas, escute, já havia edições com frontispícios no
começo do século XV?"
"Claro que não. Os incunábulos não tinham frontispícios nem por
tadas. O primeiro livro com frontispício foi o Calendarium, de 1476,
editado em Veneza." O tom era de censura tolerante. O resto da frase,
não falado, era algo como: "É tão elementar, professor! Meu Deus, quan
ta ignorância!". A culpa era de Abelardo, com seus "incunábulos do sé
culo XVII". Prometi consultar os frontispícios em breve e voltei ao Com
mentarium.
204
Lutercio explicava a função do coro na obra de Eurípides.
20 5
tanto do desígnio providencial dos deuses como do domínio coerente
da razão".
206
"É seu."
"Mas eu...
"Pague-me quando estiver com dinheiro. Nós estamos sempre por
aqui, não é? Enrico, traga-me outro copo de Barbera, por conta do pro
fessor, e arranje uma sacola para ele levar o abajur."
"Sim senhor, sargento!", respondeu Enrico. Depois virou-se para
mim, de modo a que Lucio escutasse: "Deveriam mandá-lo ao Vietnã pa
ra comandar os marines". O antiquário deu uma gargalhada: "Você não
tem sorte. Eles não me querem. Eu sou comunista!".
Agradeci a confiança de Lucio e saí abraçando a sacola. Eu me sen
tia feliz. Em casa, liguei para o velho número de Gabriella, em Como.
Não tinha mudado.
"Que surpresa maravilhosa, Emilio! Você me ligando depois de tan
to tempo... Está em alguma cadeia?" Ela riu.
"Se não me engano, o tempo que você ficou sem me ligar é exata
mente o mesmo, meu anjo. Não estou preso."
"Não me diga que agora é um democristiano carregado de filhos..."
"E você? Suponho que tenha entrado para o Opus Dei depois de
casar com um empresário neofascista. Continuo solteiro, comunista, e
estou precisando de..."
"Dinheiro, não! Ainda não achei o empresário e fui recusada no
Opus Dei. Preciso de um favor seu. Foi bom você me ligar..."
"Mas sou eu que preciso de um favor."
"Estou louca para ver a Carla Fracci e o John Gilpin no Scala. Que
ro que você me reserve o ingresso e algum hotel... "
"Hotel?"
cc A menos que você tenha um quarto decente para me oferecer..."
208
olhos: "À vida". Aproximou a taça aos lábios e antes de tocá-los lançou
me um beijo cheio de ternura. Imaginei-a deitada em minha cama. Meus
hormônios estavam desembestados.
"À beleza", respondi.
"E no Commentarium, alguma novidade?"
"Duas. Uma alusão a um 'muito amado mestre Emmanuel' e o ar
gumento do Protesilaus."
"O quê? Jura?" Ela engoliu de uma vez o gole de vermute e engas
gou. Depois, com os olhos úmidos, sorriu e continuou. "Desculpe, Emi
lio. Você achou o argumento do Protesilaus? No Commentarium? Isso
é um tesouro: os vestígios mais antigos dessa tragédia, pelo que sei, são
algumas referências de Barnes, o grande biógrafo de Eurípides, em 1694.
Se Lutercio sabia o argumento, provavelmente leu o Protesilaus! Isso é
maravilhoso!" Ela mal continha o entusiasmo. "Não isso por aí,
Emilio. Isso é importante demais. Precisamos checar bem o assunto. Mas
sinto que temos nas mãos mais alguns megatons. Você é maravilhoso!"
"Depois não me diga que isso é produto de tantas taças de Carpano.
Você não bebeu nem um terço da dose."
"Você é maravilhoso. Digo de novo, completamente sóbria. Mas não
reclame se daqui a algumas doses eu falar tudo ao contrário." Ela ria, já
totalmente à vontade.
"Muda-se o provérbio: ln sobrietate veritas", sugeri.
"Tulio tem razão. Lutercio nos seduziu. Você não acha meio maluco
esse nosso envolvimento na história de um suposto bispo que não conhe
cemos?"
"Eu quero apenas descobrir o autor do Commentarium. Existe um
livro, existe um autor, que escreve coisas brilhantes. Eu quero saber quem
foi ele. Não vejo nada de maluco nisso."
"Desculpe, Emilio. Para você bastaria saber que o autor foi Fulano
de Tal, nascido em tal lugar em tal data? Não. O que nós queremos é saber
o que aconteceu com o bispo vermelho ou Lutercio, Lutecio... Nós que
remos esclarecer os motivos da proscrição de que foi vítima. Queremos
fazer justiça. A mesma justiça que Eurípides só teve depois de morto... "
"Você tem razão", reconheci.
"O que nos seduz em Eurípides e em Lutercio é o amor deles à ver
dade. E a tragédia pessoal de cada um."
209
"Segundo a teoria de Tulio cada um se apaixona pela imagem idea
lizada de si mesmo. Então tanto você como eu estamos destinados ao
amor pela verdade e à tragédia pessoal... Não gosto da segunda parte."
Não era mesmo um pensamento confortável.
"Não há como fugir, meu caro. Em compensação estamos em boa
companhia. A tragédia de Eurípides e de Lutercio não impediu que eles
se divertissem um bocado, nem que amassem, e tirassem o sossego de
oportunistas e hipócritas em geral. Quero mais um Carpano."
"E eu, mais uma cerveja." Pedi as bebidas. "Então vamos aprovei
tar o tempo para tirar o sossego do mundo."
Ela brindou outra vez, com a nova taça de vermute: "Coronemus nos
."
roszs .
Ergui minha caneca e mantive o tom: "Antequam marcescant".
"Onde você aprendeu latim?"
"No 'Carducci', como centenas de outros. Só que eu gostava da ma
téria. Queria ler Cícero, Virgilio, Catulo..."
"Você deve favores a Lutercio e seus amigos dos nostra studia. Ao
que tudo indica, eles desencavaram e conservaram pencas de manuscri
tos, gregos e latinos, muitos trazidos de Bizâncio, como já sabemos... "
"O latim de Lutercio é bem melhor que o da Escolástica. Tem algo
de Cícero, de Tito Livio..."
"Eu sei dizer ora pro nobis, ipsis verbis..."
"E cave canem", acrescentei.
"Não. Isso não, Emilio." A expressão dela mudou. O sorriso sumiu.
Ela empalideceu.
"Desculpe. O que foi?"
Ela respirou fundo e tomou-me a mão. "Você não tem culpa", dis
se tentando sorrir. "É uma história velha, de minha infância... Eu passeava
com meu pai pelos lados de piazza Giulio Cesare diante daqueles edifí
cios com grades belíssimas de ferro batido. Na entrada de um deles ha
via um letreiro no piso de mosaico e dizia exatamente cave canem. Meu
pai explicou o que significava. Para mim, havia uma certa magia naque
las palavras estranhas a respeito de cães. Ele continuou andando e eu me
ajoelhei para tocar as letras do mosaico de mármore. Quando levantei a
cabeça, um cão enorme estava rosnando a um palmo de meu rosto. Quase
desmaiei de susto. Um garoto do prédio expulsou o animal aos berros.
210
Desde então tenho pavor de cães e já tenho dado muitos vexames pela
vida... Fobia, professor." Ela tentava sorrir. Apertei-lhe fortemente as
mãos e procurei mudar o assunto.
"Scotós, do grego, escuridão, sombra. Fobos, do grego, medo, temor.
Por acaso você sabia que um sujeito anunciou a descoberta de uma subs
tância ou molécula, sei lá, chamada Scotofobina?"
"Come-se crua?"
"Ele diz que é a substância responsável pelo medo de escuro! O tra
balho foi publicado há pouco tempo. Beatrice tinha uma cópia. Quando
mostrou a Lorenzo ele perguntou se a tal Scotofobina precisava ser guar
dada longe da luz. Ela respondeu que um bom antagonista da Scotofobina
seria algum extrato de vagalumes que poderia chamar-se 'Vagalumina'.
Ele propôs 'Lamparina'."
Anna sorriu, mais calma, e bebeu um gole generoso do seu Carpano.
"Scotofobina! Isso é tudo o que você sabe de grego?", perguntou.
"É. A propósito, o tal Emmanuel foi citado no manuscrito a respei
to de nomes gregos. Segundo a citação, ele prefere que se traduza o nome
de Protesilau como Protesilaus e não Protesilas...
"Então ele sabia grego. Se Lutercio lhe dá o título de mestre muito
amado, o Doutor Emmanuel foi um amigo dele e um professor de grego
do século xv, no norte da Itália. Eu deveria já ter percebido isso. É ób
vio.» Ela estava, de novo, em forma. Ficava mais linda quando deixava
suas idéias fluírem soltas. Senti vontade de chutar a traseira daquele cão
atrevido da piazza Giulio Cesare.
"Não, minha cara. Não é tão óbvio. Emmanuel pode ter sido um
professor de música ou de latim... e pode ter sido mestre de outros, não
de Lutercio. Mais ainda, pode ter sido mestre, mesmo de Lutercio, mas
não no norte da Itália. Lutercio esteve até em Paris, você sabe."
"Quero comer alguma coisa."
"Podemos jantar..."
"Hoje não.» Ela falou com desgosto. "Preciso jantar em casa... Te
mos que ficar nos aperitivos por algum tempo. Tenha um pouco de pa
ciência. Preciso acertar minhas idéias. Então poderemos sair pela noite
adentro, sem pressas ou complicações... Quero estar de cabeça fria."
"Vou pedir presunto cru e algum queijo. Que tal?"
"6timo. Mas é difícil que alguém chame 'amado mestre' a quem
211
não foi seu professor. Além disso, ninguém salienta a autoridade de al
guém como mestre, fora do assunto em que ele é respeitado. Temos,
portanto, um mestre de grego, de Lutercio."
"E por que no norte da Itália?"
Ela sorriu, empinou o queixo fingindo arrogância e respondeu:
"Porque é mais cômodo para quem mora no Piemonte. Não é um bom
argumento?".
"Deplorável", falei.
"É mesmo. Culpa do vermute."
"São os riscos de ficar só nos aperitivos."
Ela fingiu não perceber o segundo sentido da frase. Armou um sor
riso cândido e disse: "Você acabou de pedir presunto e queijo. Isso já dá
para acalmar o apetite... Até chegar a hora do seu jantar".
"Nosso jantar. O diabo é que essas coisas só aumentam minha fome."
"Jejum não é meu forte, também."
"Brindemos à nossa fome, então", sugeri.
"Ao amor!... Acho que é esse o nome artístico dela."
212
Capitulo 10
a afresco e 0 catalogo
t
. De repente, eu estava revivendo minha infancia: Dom Attilio ini
ciara 0 Rorate Coeli Desuper, Eu me senti crianca, na vespera de Natal.
Lorenzo tinha-se sentado no degrau de urn altar e sorria deliciado com
aquela surpreendente acolhida musical. Tia Margherita, menos encanta
da, discutia em voz baixa com Bruno. j
Nao sei se Dom Attilio nos viu ou se ela the fez algum sinal. A rmisi
ca parou e ele desceu do coro. Discretissimo, convidou-nos a sair por uma
portinha lateral. Fora, cumprimentou-nos enos conduziu por urn jardim
cheio de rosas ate sua casa. Ele lembrava 0 velho Alessandro, solene, bron
zeado, com abundantes cabelos brancos. Mas Dom Attilio inspirava mais
serenidade, mais paz. A casa era, como havia dito Alessandro, meio mu
seu. Havia desde pe~as etruscas ate urn Guido Reni e urn presumivel Man
tegna. Alern de uma inoportuna colecao de armas de fogo muito antigas.
"Mosquetes", sugeri.
"Devem ser colubrinas", arriscou Lorenzo.
"Nem uma coisa e nem outra.", disse 0 nosso anfitriao. "Sao oito
arcabuzes, que estao na familia ha seculos. Sucessores das colubrinas e
precursores dos mosquetes. Vejam que todos eles tern, no lado direito da
coronha, uma chapa de ferro com 0 disparador e 0 aproximador da me
cha, esta pe~a em forma de s. Chamou-se chave de serpente. Antes, no
tempo da colubrina, era necessario empregar as duas maos para acender
a mecha e aproxima-la da polvora, Com essa invencao da chave de ser
pente, apenas a mao esquerda acendia a polvora e a direita mantinha a
arma em condicoes de ataque."
"Quem foi 0 grande inventor dessa tal chave?", interrogou a tia de
Bruno, com uma expressao de desprezo.
"Urn espanhol interessado na eficacia mortifera das armas, no seculo
xv. Mais que isso nao sei."
Alem dos arcabuzes havia tambem na sala, Deus que me perdoe, urn
orgao eletronico, Alemao, claro. 0 paroco percebeu minha estranheza.
"Sabem, eu nao posso colocar aqui dentro urn orgao de flautas. Esse
ai...", disse com urn misto de desprezo e de resignacao, "serve para trei
nar urn pouco".
"0 senhor toea muito bern", disse Lorenzo, que enfrentava urn pia
no, nas horas vagas, sem dar vexames.
"Eu gostaria de tocar num orgao de flautas, com os foles movidos
21 4
por alavancas. Aquelas que os coroinhas disputavam a cotoveladas nas
miss as solenes. Eu conheci urn deles em Villa del Conte, perto de Campo
sampiero, no Veneto."
A frase de Dom Attilio parecia encomendada para me impressionar.
Eu tinha urn tio gue morava, precisamente, em Villa del Conte, urn amon
to ado de quarenta casas, no maximo, cercado de vinhas, principalmente
de uvas Fragola e Merlot. Num natal longinquo eu tinha assistido, com
minha mae, a Missa do Galo, naquela igrejinha, ao som daquele orgao.
Resolvi nao contar a coincidencia, para nao desviar 0 assunto.
Bruno expos ao paroco nossa admiracao pelas belezas da villa e nos
so interesse em assegurar a conservacao dela. Falou sobre 0 Virgilio e
mostrou a carta elegante de Lanebbia agradecendo a doacao do livro ao
Galilei. 0 paroco sorriu satisfeito e aconselhou: "E melhor voces levarem
essa carta ao Alessandro. Se eu conheco bern aquele velho, ele vai cobrar
isso de voces". Voltou-se para Lorenzo e disparou:
"0 que 0 senhor acha de Lutercio, 0 nosso bispo vermelho?"
"Urna figura curiosa, brilhante, se eque existiu", foi a resposta cauta
de Lorenzo. 0 paroco sustentou 0 poquer.
"0 que 0 senhor acha?"
"Acho que existiu."
"Todo 0 povo de Madonna della Spina acha 0 mesmo. Eu penso que
ele existiu. Ouvi dezenas de historias sobre ele, de meus avos e de meus
tios, Principalmente da condessa minha tia, que na juventude tentou de
cifrar 0 misterio do desaparecimento de Lutercio. Sao historias sobre urn
homem brilhante, inconformista, injusticado e cuja morte esteve sempre
envolta em misterio, em todas as historias que ouvi, E como se urn po
der supremo houvesse decidido que ele deveria ser esquecido."
"Quer dizer que ele existiu mesmo", disse eu, sem muito brilho, re
conheco,
"Claro", disse Dom Attilio. "A propria villa e uma prova disso."
Levou a mao a boca como quem tenta conter 0 que disse. Lorenzo, en
tao, foi habil, como sempre:
"0 senhor parece muito seguro disso, Dom Attilio".
o paroco percebeu que tinha de mostrar as cartas. "Claro. Eu tenho
urn retrato dele com 0 projeto da villa", respondeu, com 0 sorriso de
quem tern quatro ases na mao.
21 5
"Como?", espantou-se tia Margherita.
"E urn retrato grande, quase do tamanho de uma parede, Esta la na
mansao. Voce ja cacoou da cara do irrnao dele muitas vezes, Margherita.
Lembra-se?"
"Ah!, 0 afresco da biblioteca. 0 irrnao dele tern cara de mau. A de
Lutercio e mais amigavel."
"Ele era mesmo urn bispo?", perguntou Bruno ao paroco,
"Do ponto de vista sacramental, sim. "
Ninguern quis expor sua ignorancia "sacramental", mas Dom Atti
lio percebeu nossa incompetencia e acrescentou: "Na sagracao episcopal,
urn sacerdote se torna bispo para sempre. E quase urn carater, uma mar
ca eterna, nao importa 0 que ele possa ser dentro da igreja ou fora dela.
o povo prefere cultua-Io como bispo. Deixemos as coisas assim".
As palavras dele mostravam a preocupacao de proteger a imagem de
bispo do nosso caro Lutercio, T alvez porque tivesse sido urn bispo pou
co convencional, "avancado", quem sabe, liberal demais.
"0 afresco mostra alguma coisa... estranha?", arriscou Bruno.
A resposta foi pronta. "Mostra Lutercio, em trajes civis da epoca, em
seu escritorio, 0 irmao dele e a esposa deste. U rna bela jovem, voces vao
ver. Afinal, voces vieram para ver 0 afresco, nao e?"
Bruno, como sempre, respondeu lealmente: "0 senhor sabe que nos
gostamos demais de antiguidades e que essa villa nos fascinou. Pela sua
beleza e pelo rnisterio do bispo vermelho. Mas nos nao esquecemos urn
certo compromisso moral de ajudar 0 seu esforco para a conservacao dig
na da mansao e estamos tentando obter no nosso Instituto alguma inicia
tiva nesse sentido. Trouxemos mais uma carta do nosso diretor para 0
senhor, sobre esse assunto".
Lorenzo entregou a carta e Dom Attilio pediu licenca para le-la. Ao
fim, sortiu satisfeito, agradeceu enos pediu para comunicar a Lanebbia
o seu acordo com a vistoria da villa pelo arquiteto.
Bruno continuou as explicacoes,
" Alern disso, 0 senhor sabe, somos apaixonados por livros antigos
e gostariamos de procurar urn pouco mais na villa. Se achamos 0 Virgilio,
podemos encontrar algum outro. Mas e verdade: estamos muito curio
sos para ver 0 afresco. Lorenzo acha que pode haver nele rnuitas indica
~6es que facilitem a identificacao do bispo..."
216
"E tent varias, presume", respondeu 0 paroco. "Mas agora me di
gam quais perspectivas voces veem de salvar a villa?"
Lorenzo contou ao paroco que a carta de Lanebbia significava que
o nosso Diretor Executivo nao descansaria ate achar urn modo de colo
car a mansao em sua 6rbita de influencias. Dom Attilio gostou. E mudou
de assunto.
"Quero pedir-lhes urn favor. Nao contem a estranhos 0 que virem
na sala da biblioteca. Nao sei bern por que eimportante essa discricao. Ha
seculos que minha familia protege ciosamente aquela sala. Talvez porque
ela guarde 0 iinico retrato de dois antepassados, talvez porque haja no
retrato algo que nao convem mostrar a estranhos. Eu nao vi nada errado.
Mas mantenho a tradicao da familia. As vezes penso que esse sigilo aten
de ao desejo de alguem ja falecido..."
"A condessa me disse, quando ainda raciocinava direito, que os 'tios'
queriam ficar em paz", interrompeu tia Margherita.
Bruno quis estar seguro: "0 senhor permite que discutamos 0 afres ,I
co com nossos colegas do Institute?". f
!
"Se eles estivessem aqui iriam ver tudo com voces, nao e? 56 pe~o I f}'
Ii,
que nao fotografem nada. Margherita, pegue na cozinha aquele garrafao H
IiiI
empalhado. Vamos tomar uma vemaccia sarda. Voces vao ver como su q
pera qualquer brandy ou jerez. Recebo urn garrafao na Pascoa e outro no
Natal." 11
I~
21 7
"E cantamos grandes arias, tambern...", respondeu a tia, sorrindo.
Voltamos acasa da tia para pegar as chaves. Ela entregou as da villa
ao sobrinho e a da biblioteca a Lorenzo: "0 senhor gosta muito de afres
cos. Vai gostar do nosso...".
Na subida, de volta amansao, tentamos explicar como ela descobrira
o interesse de Lorenzo por afrescos. Bruno nao the contara nada. Algo me
dizia que Dom Attilio, a tia e Alessandro sabiam sobre nos e nossos pla
nos muito mais do que deixavam perceber. Tive uma sensacao vaga e in
comoda de inseguranca, De que alguern me observava e esperava apenas
algum erro nosso para punir a nossa... hybris. Delirio persecutorior Tal
vez paranoia ou fase depressiva de uma psicose maniaco-depressiva... Co
mecei a enfileirar os diagnosticos possfveis. Tao imprecisos quanto nurne
rosos. E entao lembrei "fobia", Anna e seu horror aos caes, Pensei no so
frimento dela e senti pena. Consolei-me imaginando que ela estaria feliz
com Isabella e Beatrice no caminho de Cisterna d'Asti. Meus companhei
ros discutiam sobre modos de abrir 0 alcapao da tribuna. Eu estava diri
gindo 0 carro e tinha que observar a estrada, mas conseguia acompanhar a
discussao deles. Lorenzo insistia sobre urn "rnetodo dedutivo": procurar
alguma pista, alguma mensagem cifrada, talvez nos proprios medalhoes,
algum codigo com 0 segredo para abrir 0 dossel. Bruno defendia uma abor
dagem mais "ernpfrica": variar sistematicamente as seqiiencias de mano
bras nos medalhoes ate achar a combinacao certa. Ele mostrava a Lorenzo
uma lista de combinacoes "rnutuamente exclusivas" que pretendia testar.
No alto da colina havia uma leve brisa. Alessandro empurrava urn
carrinho de mao, carregado de espigas secas de milho e sumiu arras do
ediffcio, sem nos ver. Quando parei 0 carro na entrada da propriedade,
dois meninos aproximaram-se correndo. Urn era bern gordo; 0 outro era
Rinaldo, que nao nos tinha reconhecido. Faltava a sua amiga Beatrice.
Bruno chamou-o pelo nome e Lorenzo perguntou como ia a Filomena.
Entao ele nos deu aquele sorriso luminoso da visita anterior. Perguntou
sobre "a doutora" que fazia omeletes. Bruno desceu do carro e explicou
tudo. Rinaldo apresentou-nos seu irrnao Amadeu, lamentou a falta da
"doutora" e perguntou se iamos levar ovos para ela.
"Sem diivida! Urn dos motivos de nossa volta aqui e comprar algu
mas diizias de ovos para ela. Ela nao pode vir hoje, mas mandou urn bei
jo para voce. Logo que puder, ela vai voltar aqui para ver voces e com
218
prar ovos. Gostariamos tambern de olhar de novo a villa e conhecer 0
afresco da biblioteca. Mas antes queremos cumprimentar seu avo Ales
sandro e sua mae. "
Amadeu escancarou 0 portae e entrei com 0 carro ate 0 patio de gra
nito.
Rinaldo espiou pelas janelas do carro. "Faltou tambern aquela dou
tora que foi ver a torrente, Meu avo esta levando milho para 0 antigo ca
nil. Ele gosta de voces."
"Vamos encontra-lo?", sugeriu Lorenzo.
"Entao vamos por aqui", exclamou Amadeu apontando 0 canto es
querdo da fachada. "0 canil era la arras. Agora e so deposito de milho.
Mas antigamente era 0 canil do marques. Ele era urn grande cacador. 0
nonno disse que ele era urn homem que estava sempre em guerras, que era
urn homem temido por todos. Eu acho que nao gostaria de conhece-lo..."
Atras do ediffcio, Alessandro vinha de volta empurrando 0 carrinho
vazio. Largou-o de urn golpe quando nos viu.
"Oh, quanto prazer! Enfim os senhores voltaram. Sejam bem-vin
dos. Que boas novas nos trazem?"
Lorenzo respondeu. Falou do interesse nosso e de Lanebbia pelo
destino da mansao e entregou solenemente a Alessandro a carta do Isti
tuto Galileo Galilei agradecendo a doacao do Virgilio e assegurando que
o livro estaria adisposicao de qualquer cidadao, na biblioteca do Institu
to, tombado como Virgiliana, seculo xv, Piemonte, 43529 Ms. Luciana ti
nha caprichado na redacao da carta. 0 velho leu atentamente, sorriu sa
tisfeito, e perguntou a Lorenzo:
"E agora? Sera que ainda encontrarao alguma coisa? Desejo-lhes boa
sorte. Vieram para ver 0 afresco, suponho".
"Ao que parece, 0 senhor conhece bern nossos pensamentos", foi 0
elogio de Lorenzo. Alessandro riu, enquanto dobrava cuidadosamente a
carta do Galilei.
"Nao, senhores. Nao conheco seus pensamentos, embora possa ima
ginar os fascinios que esta villa pode ter para quem pesquisa as coisas do
passado. E que eu conheco essa chave da biblioteca na sua mao ..." Riu de
novo, gostosamente, e perguntou: "Como vai Dom Attilio?".
Lorenzo contou nossa conversa com 0 padre e 0 conteiido da carta
em que Lanebbia manifestava seu interesse na reativacao da villa, para
21 9
sediar atividades culturais ou de pesquisa hist6rica, conforme as carac
teristicas arquitetonicas permitissem.
"Isto eauspicioso! E uma 6tima noticia. Mas nao quero tomar-Ihes
mais tempo. Espero que ao meio-dia, mais ou menos, os senhores venham
tomar urn calice comigo." Prometi que desceriamos para 0 aperitivo.
"Entao vamos subir!" Rinaldo estava entusiasmado com a nova
oportunidade de mostrar-nos as belezas da villa. E de mostrar, a Ama
deu, que era urn velho amigo nosso. Quem nao estava entusiasmado era
Bruno. Enquanto os garotos corriam escada acima, ele desabafou: "Como
eque you trabalhar na tribuna com esses dois capetas em volta? Achem
urn jeito de mante-los com voces". Prometemos fazer 0 possivel, Dei-Ihe
uma sugestao: se os meninos fossem perturbar, ele poderia convida-los
para algum trabalho tedioso... copiar detalhes do teto, por exernplo.
Amadeu foi abrir a capela e Rinaldo escancarou 0 teatro. A ramaria
do teto estava ainda mais bela e mais ... serena, mais acolhedora que na pri
meira visita, La estavam os nove hexagonos com as iniciais das musas.
Senti de novo, que alguern, Lutercio, por que nao ele?, tinha algo a contar.
A descoberta dos nomes das musas teria sido uma senha... urn teste de mi
nha sensibilidade para entender alguma mensagem mais importante. Adi
reita, em toda a majestade, a tribuna guardava seus misterios, Como num
deja vu, Rinaldo ajoelhou-se no piso dela a observar 0 ninho de Filome
na. Levantou-se limpando a poeira das rnaos na camisa e disse com auto
ridade: "Deve estar cacando minhocas". Bruno, parado na entrada, olhava
para 0 dossel, como urn toureiro estuda urn miiira. Lorenzo tinha ido aca
pela. Pouco depois apareceu agitado, sacudindo os braces: "Achei, achei!".
"Diga logo, Arquimedes!", pedi.
"Achei as 'configuracoes' que Isabella tinha visto e nao sabia dizer
o que eram... Lembra-se? Venha ver."
Na capela apontou para os dois vitrais da abside: "Olhe as pe~as
azuis no da esquerda e as amarelas no da direita".
"As formas das pe~as e os tons de azul e de amarelo sao muito varia
dos." Foi 0 que notei aprimeira vista.
"Nao, Olhe a disposicao das pecas."
"Quem entende de vitrais e Isabella, nao eu. Mas, me sacrifico: no
vitral da esquerda formam algo como urn gama maiiisculo, No da direi
ta, urn... A, sem a travessa, ou urn lambda, tambern maiiisculo. Ou, se voce
220
quiser, esbocos de urn esquadro e de urn compasso, como veria urn macon
fanatico. Voce tern razao, Sao duas ... configuracoes. E dai?"
"Dai, nada. Mas seria casual essa disposicao? Se nao, 0 que signifi
cam estas figuras? Na liturgia crista, nao dizem nada, pelo que sei. Tal
vez a disposicao tenha sido puramente casual enos estamos ficando ma
lucos. Enxergando coisas demais. Deve ser coincidencia, acaso. Vamos
ver esse bendito afresco." Estendeu a chave para Rinaldo, que partiu, aos
saltos, para abrir a biblioteca. 0 que tinha sido a biblioteca. Deixou a
porta entreaberta e escancarou as janelas ruidosas. Amadeu ficou na ca
pela olhando os vitrais. Deveria estar pensando que os famosos amigos
de seu irrnao nao eram lei muito certos da cuca. Bruno disse que iria es
tudar a tribuna e depois veria 0 afresco da biblioteca.
Era uma sala retangular, urn pouco menor que 0 teatro. A porta fi
cava bern no meio da parede mais longa interna. A outra tinha tres jane
las que se abriam para 0 declive nos fundos da mansao. 0 afresco ocupava
quase toda a parede aesquerda da entrada. Senti algo estranho, quase urn
calafrio. La estava, finalmente, Lutercio, aesquerda dos outros. Era facil
reconhece-lo: 0 irrnao estava de armadura, a direita, com cara de quem
jamais acharia gra~a em livros. Entre os dois irmaos, uma figura delicada
e nobre de mulher jovem, com urn esboco de sorriso. Lorenzo encostou
se na parede, ao lado da porta, tenso, completamente absorto na contem
placao do quadro. Os meninos estavam calados, mas inquietos. Achei
uma solucao: sugeri que fossem brincar no carro, mas sem tocar a buzi
na, para... economizar a bateria. Lorenzo deu-me uma piscada de apro
vacao, Os meninos desceram correndo.
Sentamo-nos no chao, junto aparede oposta ado afresco, a uns sete
metros dele. As janelas lancavam toda a luz da manha sobre a pinrura.
Uma profusao de cores e detalhes. 0 artista demonstrava uma preocupa
~ao quase obsessiva em ser fiel a realidade ate nos minimos pormenores.
Nem tentarei descrever agora 0 que senti diante da imagem de Lutercio.
Era prazer, surpresa, urn certo temor, uma vontade de fazer perguntas e
de dizer-Ihe que chegara a hora de contar-nos seus segredos. Estavarnos
prontos para executar a sua revanche. Ele tinha urn rosto sereno, mas se
rio. Mostrava uns 40 anos, barba e cabelos pretos, nao muito longos e
com poucos fios brancos. Era urn belo homem. Olhos escuros e brilhan
tes. Estava em "trajes civis", como dissera Dom Attilio. Camisa branca
221
de gola rendada muito alta e uma casaca negra sobre calca cinzenta, jus
ta, como se usava entao, A casaca tambem era justa, dos ombros acintura
e descia ate os joelhos. Lembrava 0 estilo redingote. Tinha lapelas retas e
largas que desciam ate abarra, com bordados discretissimos de cor bordo,
que 0 artista retratara com toda mimicia. Era, sem diivida, uma roupa ele
gantissima. Ele segurava com a direita urn compasso, apoiado sobre urn
pergaminho muito grande, que se desenrolava para fora da mesa e se es
tendia para baixo, em primeiro plano, exibindo 0 desenho minucioso da
fachada da villa. No canto dele via-se nitidamente a torre que seria des
truida, em 1945, pelos norte-americanos. Nao havia como duvidar: Lu
tercio tinha desenhado a villa. Na mao esquerda, proxima ao peito, tinha
urn volume em pele de carneiro com 0 titulo ainda legivel: Ciropedia.
Lorenzo tinha agora uma expressao de vitoria, Ele tinha acertado a
previsao: 0 afresco era uma riqueza de detalhes, ate minusculos como u
tulos de livros. Comecei a ordenar minhas observacoes. 0 irmao mais ve
lho que, segundo Alessandro, deveria chamar-se Filipe ou Filiberto, olha
va, com olhar opaco, para 0 lado oposto ao dos outros personagens. Os
tentava uma armadura luzidia, urn punhal pouco amistoso na cintura; na
mao direita segurava, pelo cano, urn arcabuz novinho em folha. Devia ser
novo mesmo, porque a coronha nao se apoiava no chao, mas em cima da
bota. Eu ja sabia distingui-lo de urn mosquete: bastava observar a chave
de serpente. Com a outra mao, Filipe segurava, pela corrente, urn do de
caca mal-encarado. Lembrei 0 problema de Anna e me prometi que iria
ajuda-la a livrar-se de seu terror de des. O.do afresco era assustador.
Combinava com a armadura e com 0 olhar frio e duro de seu dono. Ao
lado do marques, a esposa, muito bela, tinha urn vestido leve, rosado, de
mangas longas e largas. Era uma figura esguia, suave, com urn leve sorri
so, inteligente. Segurava com a mao esquerda urn pequeno livro junto a
coxa e apoiava delicadamente a direita sobre 0 peito. Os cabelos estavam
presos sob uma especie de tiara recamada com fios prateados.
"Veja bern esse chapeu na cadeira", disse Lorenzo. Havia, de fato,
urn chapeu, sobre uma cadeira forrada de verde, em primeiro plano, bern
no canto esquerdo do quadro. Descrevi 0 que via: "E urn tipico chapeu
de bispo: preto, com friso vermelho em toda a volta, copa arredondada,
aba larga e reta e esses pingentes suspensos por cordoes tambem verme
lhos, tecidos com alguns fios de ouro. 0 dono era mesmo urn bispo".
222
"Nao, E agora sabemos porque ficou conhecido, pela gente simples,
como bispo verrnelho." Lorenzo falava com seguran~a: "Ele nao tinha
o rosto avermelhado nem cabelos ruivos. Foi por causa da cor da roupa.
Fora de casa ele andava de veste talar...".
"Que, sendo de urn bispo, era cor de vinho, avermelhada..."
"Nao, Emilio. 56 mais recentemente os bispos adotaram essa cor de
sorvete de amoras. Antes era roxo, cor de violeta, de quaresma. Lutercio
usava verrnelho-piirpura. Ele era urn cardeal..."
"0 que?"
"Temos a prova! 0 mimero de borlas penduradas no capelo, que os
leigos como voce chamam chapeu. Os pingentes chamam-se borlas. Os
bispos usam dez e os cardeais quinze em cada lado do capelo, dispostas
~ ".))
em CInCO ruveis,
"Entao Lutercio era urn homem da alta hierarquia eclesiastica, urn
homem da curia, talvez, De todo modo, era alguern com aliados podero
sos na Santa Se, Isso pode explicar muita coisa..."
"Ha mais, Emilio. Esses fios dourados que voce bern observou nao
sao urn mero enfeite. Indicam que a nomeacao para 0 cardinalato foi pa
trocinada por algum principe de grande prestigio junto ao papa. Os car
deais 'de carreira' nao usam os fios dourados."
"Onde voce aprendeu essas coisas?"
"Fiz urn curso, em Brera, sobre trajes na pintura medieval. Uma coi
sa divertidissima. Mas 0 que importa e que nosso Lutercio agora foi pro
movido a cardeal. Isso ja explica 0 apelido dele. Mas vai esclarecer tam
bern algumas atitudes dele e principalmente as ideias que voce tern esca
vado no Commentarium."
"Talvez isso explique como Sua Eminencia conseguia seus manus
critos. A proposito, urn deles e essa Ciropedia na mao dele. "
"Deve ser algum tratado pedag6gico da epoca", sugeriu Lorenzo.
"Isso e 0 que dizem os leigos", revidei, "porque os entendidos sa
bern que e uma obra de Xenofonte. E como esta com titulo latino, e a tra
ducao manuscrita, do manuscrito grego. E obvio".
"Touche! Voce ja olhou esses livros sobre a mesa?"
"Claro. Foi uma das primeiras coisas que eu notei." Eram sete, en
cadernados em pele de carneiro, enfileirados em pe. Quatro tinham fri
sos transversais, salientes, e vestigios de mimeros romanos, na lombada.
223
No quinto, podia-se ler, bern nitido, 0 titulo: Hippolytus! Era 0 nosso ma
nuscrito ou urn muito irnprovavel gemeo dele. T alvez os outros contives
l
sem mais tragedias de Euripides. Sobre a ponta do pergaminho com 0 de
senho da villa, como a impedir que se enrolasse de novo, estava apoiado
urn grande livro, aberto na pagina de rosto. U rna pena de ganso estava
deitada sobre ele, como se 0 autor a tivesse des cansado sobre 0 texto, com
o cuidado de deixar a ponta fora do livro, a titulo me fez correr urn frio
pelos braces: Commentarium etc. Era 0 texto que eu estava traduzindo!
Olhei para os olhos de Lutercio. Pareceu que ele sorria. Lorenzo nem
percebeu 0 que acontecia comigo. Estava contando os livros, todos gran
des, das duas estantes que figuravam no fundo da cena. Entre elas apare
ciam dois quadros com retratos em meio corpo, de urn homem e de uma
bela jovem, nobre. Tinham nomes, bastante apagados. a do homem era
algo como JF POSSIO ou IF POSSIO ou, ainda, IE POCSIO. a que parecia urn P
poderia tambem ser urn F. a nome da jovem estava mais legivel, EUFENIA
ou EUGENIA, dificilmente EUFEMIA. Pelos traces do rosto, podia ser a pro
pria esposa do irmao de Lutercio ou uma irma dela, muito parecida. Ti
nha sobre 0 peito, pendendo de urn cordao dourado, urn medalhao de
fundo vermelho, com tres torres prateadas, duas em cima e uma embai
xo, no meio. au, como diria Maria Eugenia, nossa assessora de heraldi
ca, duas em chefe e uma em ponta.
Lorenzo terminou a contagem. "Sao pelo menos seiscentos e qua
renta livros, fora os da mesa. Nessa base, a sala deveria conter pelo me
nos tres ou quatro mil obras. Urn belo acervo. Ja imaginou ter em casa
uma est ante dessas, completa?"
"Eu gostaria de ter esta", respondi, apontando ada direita. Alguns
livros dela tinham titulos grandes nas lombadas: ANAXAGORAS, ZENO, DE
ORATORE, PHYSICA ... Tambem algumas prateleiras tinham marcas. Peque
nas placas com abreviacoes como TH, AM, L, P, PH. Poderiam significar
areas do saber, THeologia ou THeatro, AstronoMia ou Ars Medica, Letras,
Poesia, PHilosofia ou PHysica. Pensei que a lista das silabas poderia com
por algo como urn catalogo dos livros. Lorenzo tinha deixado 0 fundo
da sala, sem que eu percebesse, e estava observando 0 canto direito infe
rior do afresco. Era urn exame atento e bern de perto. De urn pesquisa
dor cuidadoso... e miope. Quando me voltei para contar-Ihe a ideia do
catalogo, so achei a parede do fundo. E nela, talvez confirmando a mi
224
nha ideia, estava urn esquema de silabas e letras que bern poderia ser 0
resumo do acervo. Eram duas colunas de simbolos, pintados sobre uma
imitacao de marrnore, que desciam ate ao alcance da mao. Ao entrar na
biblioteca, 0 conjunto me lembrara 0 famoso calendario do mosteiro dos
"Santi Quattro" em Roma. Agora tinha toda a cara de urn catalogo. Co
piei, como pude, as duas colunas. As letras mediam uns quinze centime
tros de altura. Como se ve no meu desenho, alguns sinais na parte final
da coluna direita estao riscados. No original esses riscos correspondem
a sulcos profundos na parede, produzidos por instrumento agudo. Tal
vez a baioneta de algum soldado de outros tempos. Lorenzo achou que
tudo poderia ser obra de algum pedreiro descuidad~. Mas concordou
com 0 significado eventual dos sfrnbolos. T ambem segundo ele, repre
sentariam areas do saber ou as estantes. Provavelmente, estantes, porque
havia repeticoes das mesmas letras, ou grupos de letras, seguidos de mi
meros romanos, como mostra 0 desenho. Nele estao reproduzidos tam
bern outros sinais e os circulos e retangulos que contornam algumas le
tras ou siglas.
225
"0 artista tinha senso de humor", disse Lorenzo sem se voltar, "pois
incluiu na cena alguns instrumentos de seu trabalho, pinceis e dois fras
cos de tinta", De fato, no canto da cena aparecia a ponta de urn banco de
madeira com os pinceis e os frascos. Como em toda a faixa inferior, nes
se canto 0 afresco estava mais danificado. Embora os objetos estivessem
perfeitamente reconheciveis, em varies pontos a camada de pintura tinha
se destacado. Passei a procurar outros detalhes. E achei urn, importantis
simo. 0 ultimo livro da estante direita estava virado, com a lombada no
fundo e a abertura na frente, Do meio das paginas saia parte de urn bilhe
teo Seguramente 0 pintor era alguem muito amigo da casa, para se permi
tir tais gracejos no quadro. Cheguei mais perto e consegui ler as duas pa
lavras do bilhete. Nada menos que 0 autografo do pintor ou, melhor, da
pintora: EUGENIA PINXIT. Exultei.
Lorenzo quase enfiou 0 nariz no bilhete e confirmou 0 achado: "A
pintora era da familia. Pode ter sido a propria mulher desse grandalhao
Filipe ou uma parente dela. Nesse caso, irma ou prima, porque a serne
lhanca entre a Eugenia do medalhao e a mulher do primeiro plano emui
to grande".
"Se guardavam urn retrato dela na casa, nao deveria ser a mulher de
Filipe, mas alguern estimado e distante, ausente, como 0 homem do ou
tro retrato. U rna irma dela, que, numa das temporadas na villa, resolveu
divertir-se pintando os parentes. Parece muito improvavel e pouco razoa
vel que a mulher de Filipe fosse a dama com 0 livro, a jovem do retrato
e, ainda, a pintora de tudo isso." Meu raciocfnio era solido e sensato. A
Eugenia pintora retratando a Eugenia com 0 livro, diante da Eugenia do
medalhao, era algo extremamente improvavel,
"Portanto", concluiu Lorenzo, "a Eugenia pintora era irma, talvez
prima, da mulher de Filipe ou Filiberto e era de uma linhagem que usava
essas tres torres, como emblema de familia. Quallinhagem? Nossa biblio
tecaria pode responder em urn minuto, De concreto, temos que a cunha
da de Lutercio tinha uma irma ou, com pouca probabilidade, uma prima,
chamada Eugenia. E 0 primeiro nome seguro em toda essa hist6ria. Era
uma pintora experiente, em bora jovem. Mas nao foi a autora dos afrescos
da capela e do teatro. Os traces, 0 estilo, as cores e a tecnica de pintura
sao diversos, sao de outra mao".
"56 isso?"
226
"Temos urn nome. Falta uma data", respondeu. Pelos trajes dos per
sonagens, tipos de encadernacoes e outros indicios podia-se afirmar que
a cena fora pintada no seculo xv, primeira metade. Mas isso servia pou
co e nao era novidade. Os titulos dos livros podiam dizer muito sobre
datas a quem entendesse de hist6ria da literatura. Nao era 0 nosso caso.
Olhei a fachada majestosa da villa no pergaminho e procurei sentir 0 or
gulho de Lutercio ao posar como autor dela. 0 orgulho com que os gran
des arquitetos e escultores gravam seus nomes no granite ou no marmo
re dos monumentos. A fachada poderia conter 0 nome do cardeal! Co
mecei a esquadrinhar cada milimetro do desenho. Nem vestigios de no
me em todo 0 frontispicio, nos frontoes, na arquitrave ou nas bases das
colunas. Achei algumas letras nos suportes das cariatides que sustenta
yam a arquitrave e 0 friso. Havia uma em cada canto da fachada e uma a
cada tres janelas. Seis, no total. Na base da primeira era urn N ou M, pou
co legivel; nas seguintes as letras eram C, D, X, leV. Juntando tudo, dava
NCDXIV ou, mais provavelmente, MCDXIV. Mil quatrocentos e catorze!
Mostrei a Lorenzo. Ele sacudiu os punhos no ar, exultante: "Bravo, Emi
lio! Temos uma data!".
Mas havia ainda muito que descobrir. A data podia nao ser ada cons
trucao, mas era a do desenho e permitia afirmar varias coisas. Primeiro,
que Lutercio projetara a mansao naquele ana ou para ser erguida naque
Ie ano. Segundo, que entre 1414 e 0 mornento do afresco havia passado
pelo menos 0 tempo da construcao da fachada. Por isso, alguns compo
nentes dele, como as pessoas, a cena, os trajes, eram necessariamente pos
teriores aquela data. Ja os livros e outros objetos, como os retratos na
parede, podiam ser mais velhos. Menos os pinceis e 0 bilhete de Eugenia.
Mas 0 tempo decorrido desde 1414 nao era muito, pois ninguern posaria
com a planta da villa, muito tempo depois da construcao dela. Isso per
mitia suspeitar que 0 afresco poderia ser de 1417, aproximadamente.
Bruno tinha ouvido a comernoracao de Lorenzo. Chegou desanima
do: "Pelo barulho, parece que voces estao conseguindo alguma coisa. Eu
continuo de maos vazias, mas ainda acho 0 truque daquele alcapao. Que
afresco enorme! Ocupa quase toda a parede! Entao esse e 0 nosso ilustre
bispo?". A pergunta era para mim.
"Cardeal! Basta ver 0 capelo ai sobre essa cadeira meio descamada,
o dos bispos tern.so dez borlas. Este tern quinze. As vestes talares dos
227
bispos eram roxas. Ados cardeais eram vermelhas, cor de purpura. Por
isso, 0 povo 0 chamava bispo vermelho. Obvio, nao?"
"Quanta esnobacaol Aposto que voce aprendeu tudo isso hoje."
"De mim, eclaro", emendou Lorenzo. Contamos todos os detalhes
que haviamos achado. Bruno sentou-se no chao, a uns quatro metros do
quadro, formando com as maos uma especie de bin6culo e comecou a
esquadrinhar a pintura de alto a baixo, comecando da direita. Quando viu
o livro com 0 bilhete de Eugenia estranhou: "Normalmente os pintores
assinavam Fulano, pinxit, mil e tanto. Esse deveria ter uma data. Espaco
havia no bilhete. au a data se apagou, ou a pintora nao datou 0 quadro,
ou a data esta em outro canto. A prop6sito, aqueles livros la em cima, no
canto esquerdo tambem trazem marcas nas lombadas". Nem eu nem Lo
renzo conseguiamos ler nada nos tais volumes. Bruno trouxe do patio
uma pequena escada de abrir e empoleirou-se nela. "Datas nao ha, mas
talvez os titulos interessem."
"Quais sao?"
"Sao quatro livros grandes. Da esquerda para a direita: DECR.IN
NOCENTII PP VII, DOC.GREGORII PP XII, DECR.ALEXANDRI PP V, e EPIST.IO
HANNIS PP XXIII. a ultimo e 0 mais grosso de todos."
"Urn cardeal que se preze coleciona documentos papais. Nada de
especial, nao acham?", perguntou Lorenzo.
«No Galilei", respondi, "falta alguem que estude hist6ria da Igreja.
Nao sabemos nada sobre esses papas. Podemos, porern, afirmar que 0
afresco eposterior a ascensao desses senhores ao trono papal."
"Pouco brilhante."
"Concordo." Lorenzo tinha razao, Eu estava meio atordoado com
tudo 0 que via naquele afresco. Ia precisar de algum tempo para combi
nar todos o~ indicios numa hipotese consistente sobre a identidade de
Lutercio. a nascimento de uma hip6tese, diria Tulio, e fruto de muitas
experiencias, nem sempre dirigidas para a explicacao de urn problema.
Com base na mesma literatura e na me sma logica, 0 pesquisador mais ma
duro formula hip6teses que 0 novato sequer imagina. S6 que 0 aciimulo
de experiencias precisa, de algum modo, ser ordenado, segundo... segun
do uma hip6tese? Era urn raciocinio circular. Mas minhas ideias, naque
le momento, nao podiam compor mais do que circulos, vertiginosos e fu
gazes'. Eu sentia, vagamente, que todos os indicios do afresco confirma
228
yam nossas ideias sobre Lutercio, mas 0 fato de nao contradizerem nos
sas hipoteses nao era a resposta desejada.
"Depois ponham essa escada lei embaixo, sob 0 portico. Eu volto a
tribuna, mas a coisa vai mal. Jei testei todas as combinacoes de movimen
tos, dois a dois, com os medalhoes da frente, variando 0 sentido do mo
vimento, quantidade de deslocamento e sequencia dos movimentos. Ago
ra yOU tentar as mesmas combinacoes, incluindo urn dos medalhoes do
fundo."
"Quando Beatrice abriu 0 alcapao ela estava girando os medalhoes
da frente, se nao me engano."
"Sim, Mas ela pode ter girado, antes dis so, urn dos outros dois, 0 do
fauno ou 0 de Clio, ou os dois. E nao se sabe quanto girou, nem a dire
\rao do movimento, nem a sequencia em que foram movidos."
"Vou rezar pelo seu exito", prometeu Lorenzo, com 0 calor e a con
viccao de urn obelisco.
"Uma fe como esta e capaz de derreter a tribuna", respondeu Bru
no, jei no corredor.
A fe de Lorenzo era, de fato, escassa. Bruno retornou apos uns vin
te minutos, desanimado, perguntando: "Emilio, voce nao lembra pelo
menos a posicao dos braces de Beatrice, quando 0 alcapao se abriu?".
"Ela estava de costas para 0 fundo da tribuna e bern proxima da ba
laustrada. Talvez urn pouco voltada para a direcao da porta do teatro."
"Entao podemos supor que ela estava movendo 0 medalhao do fau
no, e urn dos da frente, ou que 0 tinha tocado antes de girar os dois da
frente, Erato e 0 poeta. Ela estava de costas para 0 medalhao de Clio. Vou
ten tar de novo." Voltou para 0 teatro rabiscando coisas num papel. Nem
tive tempo de the dizer que eu nao tinha muita certeza sobre a posicao de
Beatrice. Nem sequerouviu a promessa de Lorenzo: "Continuarei mi
nhas oracoes pelo seu exito".
Pouco depois os meninos chegaram correndo, esbaforidos. Amadeu
estranhou: "Ainda nao cansaram de ver esse quadro? Eu acho mais bo
nitas as pinturas da capela e do teatro". Lorenzo respondeu que tinha
mos dividido os trabalhos e Bruno se encarregara de estudos dificeis no
teatro e nao deviamos perturba-lo, que nos jei estavamos meio cansados
e que a ideia de contemplar as outras belezas da mansao era muito oporru
na. Saiu com os meninos, sorrindo!, juro, no rumo da capela. Fiquei so,
229
diante do afresco, e percebi que eu me tinha comportado diante dele co
mo urn mero pesquisador aprocura de evidencias, objetivas, obviamen
teo Mas talvez alguma coisa que urn investigador objetivo nao enxergas
se podia estar a vista de urn observador empatico, sempre detestei essa
palavra.
a que eu sentia, de imediato, era ternura pela mulher do marques
brutamontes, que parecia mais interessado em seu detestavel do de caca,
do que na meiguice dela. Senti urn certo desconforto: por urn atimo ela
me pareceu eterea, feita de nevoa, Lutercio agora continuava sereno, sim,
mas de uma serenidade sofrida, como... anestesiado. a unico que pare
cia estar plantado no solo e no tempo era 0 marques, com sua figura acre,
temivel, Lorenzo havia dito que os pintores da epoca, ao retratar pessoas,
procuravam cerca-las de tudo 0 que pudesse representar a importancia,
os gostos e 0 oficio delas. Mas a alusao aautoria da villa parecia forcada,
A biblioteca e, portanto, a mesa de trabalho, os livros, penas e manuscri
tos deviam ser, forcosamente, posteriores ao projeto da villa, que aparecia
em primeiro plano. au entao, Eugenia, a pintora, tinha deliberadamente
ignorado qualquer cronologia, em favor da ostentacao cabal dos rneritos
dos personagens. E tinha favorecido ostensivamente a Lutercio, talvez
porque na biblioteca se concentrassem seus recursos de trabalho e seus ...
trofeus. T arnbem 0 detalhe da pena deitada sobre a portada do Commen
tarium aludia claramente aautoria de Lutercio, mas a pena era superflua,
aleg6rica, pois 0 volume aparecia ja pronto, encadernado. Era tambem
forcada a presen~a daquele do horrivel, numa biblioteca, embora 0 mar
ques parecesse bern 0 tipo capaz de se envaidecer com delicadezas como
o arcabuz, a armadura e aquela fera. a punhal podia ate passaro Era pra
ticamente urn complemento da indumentaria masculina da epoca. A urn
primeiro olhar, Filipe parecia urn Henrique VIII, mais magro e carran
cudo, Seguramente, nenhum pintor 0 escolheria para modelo de Joao
Evangelista, numa pieta. a jeito era mais para Gestas, Caifaz ou Hero
des. A artista certamente mostrara urn pouco, ou ate muito, de sua visao
pessoal dos personagens e seus modos de vida. Mas 0 ambiente, os obje
tos e 0 cenario do fundo com as estantes e livros eram suficientemente
neutros para serem reais. Esse apego arealidade ficava patente no deta
a
lhe dos frascos de tinta e dos pinceis, afresco era, portanto, urn retrato
fiel da biblioteca de urn homem do quattrocento, amante dos classicos,
23°
231
Lorenzo devia ter batido antes de entrar.
"Primeiro,o aperitivo com Alessandro", lembrou Bruno. Os meni
nos enfiaram-se escada abaixo.
Alessandro, muito afavel, estava sentado no longo degrau arras da
casa, que conhecfamos da visita anterior. Sugeriu, sem conviccao, que a
sala de jantar seria mais confortavel. Bruno disse que gostarfamos de con
versar diante do vale. 0 velho e os meninos trouxeram queijos, salame e
urn Grignolino na temperatura ideal.
Alessandro introduziu 0 assunto. "Espero que 0 afresco tenha ser
vido ainvestigacao dos senhores." Nao me pareceu neutra a palavra "in
vestigacao", Noutras ocasioes ele havia dito "pesquisas". No mfnimo, ele
devia ter farejado que, alern de cacar livros, estavamos indagando sobre
a historia de Lutercio. Alias, ate os tres patetas podiam perceber isso.
"Ninguem ate hoje escreveu sobre 0 bispo vermelho?" A pergunta
foi de Lorenzo.
"Nao, que eu saiba. Dom Attilio ensaiou uma tentativa de escrever
uma historia da villa. Mas faz mais de vinte anos. Se ao menos tivesse
sobrado algo do acervo da biblioteca haveria mais pistas sobre 0 bispo, 0
marques e a esposa dele. A velha condessa costumava referir-se ao 'quar
teto da biblioteca', acrescentando que era formado por duas irrnas e dois
irmaos, Ela nunca lembrou 0 homem do retrato, ao fundo."
"Nos notamos que a mulher com 0 livro e a do quadro ao fundo sao
muito sernelhantes", emendei.
"A do quadro era uma artista, pintora, segundo Dom Attilio. A con
dessa dizia que ela nao morava na villa, apenas passava algumas tempo
radas, em visita airma. Meu avo contava que se chamava Eugenia, era ale
rna ou austriaca e herdou a villa, quando a irma morreu. Falava tambern
de urn outro grande afresco dela, em Asti, num convento."
Lorenzo arregalou os olhos: "0 senhor tern ideia de qual seria es
se convento?".
"Infelizmente, nao. Se soubesse, eu ja teria ido ate la."
A pergunta de Bruno foi sutil: "0 senhor gosta tanto assim de
afrescos?".
A resposta comecou com urn sorriso que era de hesitacao e, de
pois, de rendicao: "Gosto. Mas acho que nao acharia 0 que fosse pro
curar la", Ninguern falou, ate que 0 velho continuasse: "Eu tarnbern
23 2
tentei desvendar 0 misterio de Lutercio, muitos anos atras, Mas sou urn
amador. Os senhores.sao pesquisadores. Tern mais chance de conseguir
a explicacao, Percebo que ha muitos indfcios por aqui, mas para inter
preta-los e preciso cultura maior que a minha. Desejo, sinceramente,
que tenham exito", 0 sorriso agora parecia de alfvio. Ele chamou Ri
naldo e pediu mais uma garrafa de vinho, Comentamos os indicios do
afresco. Excetuados os nomes de livros e 0 medalhao no peito de Euge
nia, os detalhes que Alessandro registrara eram praticamente os mesmos,
Quando a nova garrafa estava chegando ao fim, Lorenzo anunciou que
pretendiamos almocar na aldeia e, depois, voltar abiblioteca para fazer
anotacoes.
"S6 espero que me contem a solucao do misterio, na proxima visi
tao Hoje you com minha filha e os meninos ate Alba e voltaremos anoi
teo Por favor, tranquem bern os portoes e entreguem as chaves Mara
gherita, Arnanha eu as pegarei lao "
o velho segurou 0 brace de Bruno e the sorriu: "Aquela sua tia sem
pre se divertiu em me arranjar problemas. Levem meu abraco a ela e a
Dom Attilio. Voltem sempre. Mesmo depois da descoberta".
Rinaldo percebeu as despedidas e chegou apressado: "E os ovos?".
Bruno, heroicamente, comprou algumas diizias enos despedimos.
Por decreto de Lorenzo e omissao de Bruno, guiei mais uns doze
quilometros, montanha acima ate Cellarengo, aprocura de uma "tratto
ria acolhedora, comida local de tipo caseiro, pouca gente, uma boa costata
ai Jerri e uma pieeata alia rucola e algumas garrafas de Barolo safra 64,
Franco Fiorina ou Opera Pia". Essas eram as exigencias dos passageiros.
Achamos tudo isso, menos a eostata, num pequeno local com 0 nome es
pirituoso de Sacristia. Nao conversamos muito durante 0 alrnoco. Esta
vamos com fome e intranquilos. Havia de zenas de ideias a serem formu
ladas, organizadas. E havia a incerteza de Bruno sobre sua estrategia pa
ra abrir 0 alcapao,
"Essa viagem dos meninos a Alba caiu do ceu", disse ele, agora mais
livre para suas manobras na tribuna.
"Deus existe e gosta dos pesquisadores series, meu rapaz." Lorenzo
falava com solenidade.
"Sim, Reverendo."
"Eminencia, pelo menos!"
233
"Quinze borlas! Nao e f.kil. E mais que urn ministerio. Nosso ami
go Lutercio que 0 diga. E ha mais: urn punhado de cartas do papa, joao
XXIII. 0 antigo, nao 0 Roncalli."
"0 chapeu de cardeal esta na cadeira do afresco", exclamou Lo
renzo, "mas de on de voce tirou essa ideia da correspondencia papal?".
Interrompi: "Nao se diz chapeu. E capelo".
"Quem subiu na escada paraver fui eu", disse Bruno. "Os outros
livros referentes aos papas comecam por DOC ou DECR. 0 ultimo comeca
por EPIST."
"As epistolas sao tambern documentos pontificios, DOC", reagiu Lo
renzo, buscando meu apoio, com os olhos.
"Bruno tern razao." Meu latim me credenciava a intervir. "DOC nao
significa documentos, no sentido nosso. Quer dizer Documentum, ensi
namento, magisterio, No caso, enciclicas, bulas, ou algum motu proprio,
referente a materia doutrinaria, DECR significa Decretais, ordens, normas
de procedimento. EPIST refere-se a cartas, no sentido coloquial. Voce anda
muito afastado da igreja, Lorenzo. Cuide mais de sua alma. 0 nosso car
deal tinha cartas do papa, sim senhor."
"Muito bern: urn cardeal recebe cartas do papa. E dai?"
"E urn punhado de cartas, pelo jeito: 0 volume era bern grosso. Sem
datil6grafos e taquigrafos, Sua Santidade deveria apreciar muito 0 cardeal
do Piemonte, ou do Monferrato para mandar-lhe tantas cartas. Nem Fan
fani ou Maritain devem ter recebido tanta correspondencia dos iiltimos
papas. 0 prestigio de Lutercio entre os homens da Santa Se devia ser
grande, na epoca do afresco."
"Nao, Bruno. Esse prestigio estava em decadencia. " Lorenzo regis
trou 0 nosso espanto e emendou: "A correspondencia estava encerrada.
Se nao, 0 volume com as cartas estaria mais ao alcance da mao. Mas es
tava no angulo mais afastado, da prateleira mais alta. Esquecido".
"Isso e mera suposicao!", disse eu.
"Como a das cartas do papa a Lutercio. Por duas razoes, pelo me
nos. 0 titulo da lombada po de ser invencao da pintora, e as cartas podem
ter sido enviadas a diferentes destinatarios e reunidas por Lutercio num
volume s6." Lorenzo sorria, satisfeito com seu novo lance.
Bruno engoliu quase meio copo do Barolo e enfrentou a jogada: "E
entao, teriamos urn cardeal a pedir aos seus amigos as cartas recebidas
234
do papa, para fazer urna colecao, Sua hipotese, pelo jeito, e urn tanto...
audaciosa".
"Bern, podiam ser obras-primas de literatura. Voces nao acharn is
so plausivel?"
"Nao."
"Nem eu. Voces ganhararn."
235
Capitulo 11
237
"Bruno quer voltar cedo para MiLio. Precisamos anotar 0 que acha
mos no afresco. Registrei tudo 0 que vi e 0 que voces apontaram, mas e
melhor conferir."
"Copiei 0 tal catalogo, da parede do fundo e anotei algumas coisas",
respondi. "Mas, vamos la."
Tinhamos feito urn born trabalho. Tudo 0 que poderia interessar ja
estava anotado. Quase tudo. Lorenzo foi ate 0 afresco e apontou algumas
areas em que as cores eram rnais claras. Vistas do meio da sala compu
nham uma especie de xadrez de losangos ou quadrados mais claros, que
se estendia, como urn tecido transparente, sobre 0 bra~o de Lutercio e os
objetos da sua mesa.
"Agora olhe la do fundo, Emilio. Voce vai ver que essa Eugenia era
brilhante. E pena que 0 tempo atenuou os contrastes. Ela pintou a pro
je~ao da vidra~a sobre a mesa e sobre 0 bra~o do cardeal. Ela pintou a luz!
A luz que entrava por uma janela a direita e que nao aparece no quadro:'
As areas mais luminosas ja nao se destacavam tanto, apos seculos, mas eu
agora via perfeitamente a imagem da vidra~a projetada.
"Ela era fascinada por esse efeito da luz, veja, Emilio", Lorenzo fa
lava entusiasmado, "alem das sombras dos frascos de tinta ela tambem
retratou a luz que os atravessava".
Bruno chegou pouco depois, resignado: "Nada, por hoje. Contudo,
eliminei mais da metade das combina~6es possiveis. Precisamos fechar a
villa e pegar a estrada. Chegaremos as oito, mais ou menos".
"Para que tanta pressa?", perguntei.
"Esqueci de dizer: combinei com as nossas musas que nos encontra
riamos hoje no Anjo Azul. Precisamos saber 0 que conseguiram do livrei
ro." Urn encontro com Anna, ainda naquela noite. Era urn presente dos
deuses. Meu sorriso deve ter-me traido.
"Pela sua cara, voce esta otimista, Emilio." A frase de Lorenzo me
pareceu gelada. /
Gastamos ainda uma hora, ou quase isso, ol¥ando 0 teto do teatro,
a tribuna e a capela. Depois trancamos tudo, ~pulosamente.Fizemos
urn giro em torno da mansao, para verif~r se tudo estava em ordem.
Num canto do deposito de milho, 0 antito canil, estavam ~icicletas
de crian~a. Cada uma tinha urn pequeno caixote de made(t-a com~ga
geiro, com a identifica~ao, pouco discreta, do proprietari~. Rinaldo pin
tara seu nome em vermelho-vivo, mas tinha calculado mal os espa~os: as
ultimas quatro letras se amontoavam, sufocadas, onde deviam caber duas.
Amadeu tinha sido mais previdente. Seu nome come~ava bern mais a es
querda. So que agora sobrava espa~o e faltavam letras. Ele tinha calcula
do mal a tinta. Depois de urn robusto A, vinha urn M, que come~ava cheio
de esperan~a, e definhava na ultima perna, anemica, por falta de tinta. De
todo modo, era 0 que bastava: para marcar a bicicleta de Amadeu. Algu
mas palavras tern letras demais.
Tia Margherita estava diante da casa, regando 0 jardim. Convidou
nos a entrar e Bruno explicou nosso compromisso de encontrar "as pes
quisadoras" em :~filao, motivo pelo qual tfnhamos que recusar 0 convite.
Ela perguntou sobre Beatrice e Isabella, disse que entregaria as chaves da
biblioteca aDorn Attilio e deu a Bruno urn beijo cheio de afeto. A Loren
zo perguntou: "0 senhor gostou do afresco?". Para mim a frase foi: "Es
pero que osenhor tenha achado 0 que queria saber".
"Nos voltaremos em menos de urn meso Urn beijao, tia!", foi a des
pedida de Bruno antes de ligar 0 motor do carro. Lorenzo ficou no ban
co da frente e eu me esparramei no d tras, com nossas anota~6es, os es
quemas de Bruno, duas caixas de sapa 0 cheias de ovos, uma echarpe ver
melha com listas e flores brancas e, a' da, alguns grampos de cabelo.
"Linda esta echarpe!", instigu .
"E de uma amiga... devo lev para a lavanderia."
"as grampos tambem?"
Lorenzo riu. "Seria pior se voce encontrasse algum cachimbo... urn
cinturao de sargento ou uma boina de marinheiro. Eu acho que em uma
semana teremos a solu~ao de todo 0 mis' io de Lutercio."
"Ja estive pensando...", come~o runo.
"E sobreviveu ao esfor~o, com se ve", provocou Lorenzo. Bruno
ignorou a frase.
" ... que se soubermos como ele chegou a todos esses manuscritos ra
ros e malvistos pela linha-dura do clero, saberemos quem ele era e co
mo, depois de ter sido urn bispo, provavelmente urn inquisidor, foi ele
vado a cardeal. E quando isso for esclarecido poderemos explicar por que
ele, seu nome e sua historia foram proscritos. "
"Deus te ajude!", disse Lorenzo, glacial.
"Que voce acha, Emilio?"
239
"E urn born caminho. Mas todas essas duvidas formam urn domino.
Uma resposta salida a qualquer delas derrubara as demais ou, pelo me
nos, algumas outras. Manuscritos, afresco, teatro, capela, cardinalato, em
paredamento da tribuna, insinua~oes de Aurelio Valdesi, 0 marques es
quisito, encrencas com a linha-dura da inquisi~ao, cita~oes de Brunus e
Emmanuel, sumi~o apos a morte, talvez antes dela, a mo~a do medalhao
com as tres torres, a inexistencia de urn Lutercio nos registros consulta
dos, Eugenia, a pintora... tudo isso forma urn novelo so."
"Voce esqueceu de enumerar a echarpe e os grampos", lembrou
Lorenzo.
Bruno levantou a mao: "Urn misterio por vez, por favor".
"Nao, Bruno!", exclamei. "Este nos deciframos ja. Vejamos. A
echarpe e de seda natural, muito cara. A etiqueta e Les Pins, francesa ou
de Monte Carlo. Tern urn certo perfume, que nao e urn aroma de uso pes
soal. Parece mais 0 cheiro de algum produto caro para evitar mofo nas
gavetas de roupas. A echarpe foi tirada da gaveta para ser usada na oca
siao do... episodio. Logo, nao foi urn presente de Lorenzo, por ocasiao
do citado... episodio. A mo~a veio da praia, direto para 0 local dos fatos,
pois aqui no chao ha urn bilhete de trem, Genova-Milao. Mas ela nao e
de Genova. La ninguem bota antimofo em roupa, pelo menos nesta es
ta~ao. So se a casa fica muito tempo fechada. Uma casa de praia, prova
z n t e em Portofino. Ela mora em Mila:o. Pois sabe que a qualquer mo
/ mento pode pegar sua echarpe. Tanto assim, que a deixou no carro de
' Lorenzo sem mais problemas. Foi a uma festa chique apos a chegada a
/ Milao, pois soltou os cabelos que tinha ajeitado com os grampos ate a
hora de exibi-Ios. Isso porque uma dama refinada como ela nao e 0 tipo
de perder grampos em evolu~oes mais audazes no banco do carro, embo
ra 0 indiciado seja urn homem capaz das maiores torpezas e baixarias."
"Basta! Que monte de asneiras!", protestou Lorenzo.
Bruno podia ver 0 rosto dele e delatou: "Ele esta contendo 0 riso.
Mas quailCl-Q voce falou da casa na praia ele ficou tenso e mordeu 0 labio.
Prossiga, E~ilio. Vamos esclarecer 0 caso dessa pobre mulher, antes de
entregar 0 a~queroso elemento apolicia ou ao pai dela".
"Umadama refinada, com ample decote. Os ombros estavam des
cobertos. Daf a echarpe. E estavam bronzeados, pois queria exibi-Ios.
Ninguem mostra ombros com a pele descascando. Era urn bronzeado
24°
lento, produto de varios dias na praia, portanto. Nao teve muito tempo
livre antes de partir. Por isso veio com os cabelos presos e os soltou no
carro, derrubando alguns grampos. Ou, ao partir, tentou demonstrar que
a viagem seria de trabalho. Se nao, iria antes ao cabeleireiro. Se precisou
dissimular, 0 encontro em Milao era... irregular, ilkito."
"Credo, que coisa mais feia, Lorenzo." Bruno parecia escandaliza
do. Lorenzo nao conseguiu mais conter uma gargalhada. "Vou te dar urn
trofeu de acuidade de observa.;ao, rapidez de raciocinio, sutileza de ana
lise e absoluta falta de pontari~. 0 bilhete deve ter uns tres meses e fui
eu que usei. Os grampos sao de outra... ocasiao. A echarpe e de uma vizi
nha, graciosa, por sinal, a quem eu dei carona outro dia."
Bruno me"advertiu: "!'fao acredite. Todo delinqiiente psicopata nega
as acusa.;oes e apresenta vexlsoes fantasiosas sobre 0 crime. Principalmen
,
te os mamacos . ";
sexualS
Eram sete e cinco quando me deixaram no bar de via Vetere, esqui
na da minha rua. Urn cafe bern forte, e urn born chuveiro. Era todo 0 meu
programa antes de ir ao Anjo Azul. E foi cumprido a risca. Ainda sobrou
tempo para limpar 0 abajur de alabastro, apertar 0 velho soquete, que ain
da podia servir por muito tempo, e colocar nele a lampada do armarinho
do banheiro. Ficou lindo. Naquela noite eu iria adormecer a luz do ala
bastro. Urn requinte que, somando tudo, eu ate merecia, apos urn dia em
que eu tinha sido ate brilhante, por que nao? Anna certamente iria gos
tar da historia do abajur. 0 alabastro tinha "cruzado 0 meu caminho",
como devia ser.
Cheguei as oito e cinco. N a nossa mesa, Alberto parecia ter esque
cido os demais c1ientes. Brandia uma enorme caneca de cerveja, meio agi
tado e comentava com Abelardo os inconvenientes da "invasao" de tu
ristas alemaes em Caorle, onde tinha passado ferias. "Ja explico", disse
Abelardo, apenas me viu chegar. Ele tinha notado meu espanto pela pre
sen.;a dele no bar em pleno domingo. "Deixei minha mulher e as crian
.;as em Punta Ala. Estarei solto por uma semana. Mas ja estou com sau
dade." Alberto fez uma cara de desilusao diante de tanta fraqueza: "E
preciso resistir. Beba para esquecer". Virou-se para mim: "Voce tambem
deve ter alguma coisa para esquecer. Se nao, beba para lembrar 0 que po
de ter sido. Vou buscar mais tres canecas para nos".
Pouco depois chegaram Bruno, uma bandeja com queijos e pao, Lo
renzo, quatro canecas de cerveja, nessa ordem. Alberto foi atender a ou
tras mesas e Abelardo teve que contar, de novo, que havia deixado a fami
lia em Punta Ala. Bruno comentou as belezas dessa praia e acrescentou,
friamente: "Nao sei 0 que e que fascina tanto Lorenzo lei em Portofino".
"Mulheres decotadas, talvez", sugeri.
"Eu nao gosto de Portofino. Mas, para me ver livre de vo~
capaz de mudar para lei hoje, seus chatos."
"Nao entendo essa rea«;ao dele", disse Abelardo com malicia. "AI
guem pode me explicar?"
Lorenzo olhou-o desconsolado: "Tu quoque?". Enquanto Bruno
explicava a historia da echarpe, chegaram, animadissimas, Beatrice, Isa
bella e Anna. Ela estava linda e parecia feliz. Sentou-se ao meu lado e be
beu urn goIe da minha caneca.
"Cuidado com os segredos!", lembrou Abelardo. Ela disparou uma
resposta que me congelou: "Logo, logo, nao hayed mais segredos entre
nos dois".
Lorenzo quase saltou: "0 que?".
"Elementar, meus caros. Se continuarmos a beber na mesma cane
ca, logo you saber os segredos dele e ele os meus. Nao haverei mais se
gredos. "
Beatrice acomodou-se entre Abelardo e Bruno, diante de mim e de
Anna. Lorenzo e Isabella ocupavam as pontas da mesa. Beatrice ensaiou
urn brinde, mas hesitou: "Quando cada urn tiver sua caneca...".
" ... todos serao irmaos, nao hayed mais guerra, nem peste...", con
tinuou Lorenzo.
"Bern, se me interromperem, nao conto 0 que aconteceu em Cister
na d'Asti. Comportem-se, portanto." Anna tinha-se pendurado no meu
bra«;o e eu sentia 0 calor do corpo dela.
"Pois bern. Descobrimos coisas do arco da velha."
"Convem come«;ar contando a recep«;ao de Valdesi a Isabella." Era
a sugestao de Anna.
"Nao. a mais importante sao os livros que... "
Abelardo, que jei devia estar pela quinta caneca~ botou ordem na
conversa: "Primeiro Beatrice, depois Isabella e, para a sintese final, An
na. Comece, Beatrice. E limite-se a responder as minhas perguntas".
"Sim, meritissimo."
"Como foi a chegada de voces?"
"Isabella foi na frente, sozinha, nos ficamos na esquina, a uns qua
renta metros. Ele a reconheceu e perguntou se tinha vindo para ver 0 anti
fonario. Tinha achado mais alguns peda~os dele, que 'estavam aespera de
alguem capaz de aprecia-Ios'. Ficou feliz com a visita, e perguntou se esta
va de passagem como na viagem anterior. Isabella explicou que viera com
duas colegas, doidas por livros antigos, que nao queriam incomoda-Io... "
"Incomodar a quem?" Abelardo mal seguia a narra~ao.
"Incomodar ao encadernador, Aurelio Valdesi, ora."
"Obrigado. Pode continuar."
"Ele quase ficou magoado e fez questao de nos conduzir pessoal
mente ate a oficina ou loja. Ficamos embasbacadas com tanta coisa pre
ciosa. Isabella explicou que Anna era a mais interessada em conhecer as
Bacchae, pois era especialista em teatro antigo. Ele explicou que 0 volu
me provinha da villa do bispo vermelho. Eu entao abri 0 jogo: contei que
eramos muito amigas dos parentes atuais do bispo e que tinhamos livre
transito na villa. Disse, ate, que tinhamos achado 0 Virgilio e esperava
mos achar mais livros por lao Ele entao percebeu que nao eramos piratas
e que nao tinhamos qualquer interesse comercial em livros antigos. An
na, entao, tirou da sacola 0 'Hipolito': '0 senhor poderia dizer algo so
bre este livro?'. Aurelio Valdesi ficou branco, visivelmente comovido.
Tomou 0 livro com carinho, abriu a capa e acariciou-a lentamente na face
interna, de olhos fechados, como se estivesse lendo em braile. Depois fez
o mesmo com a parte interna da contracapa. Estava tenso, tremulo e des
culpou-se: 'Queiram perdoar. As senhoras talvez nao imaginam a signi
fica~ao e a idade desse volume. Ele foi encadernado pelo pioneiro da arte
livreira no Piemonte, 0 patriarca da minha familia, Marcello Valdesi, no
seculo xv'. Isabella perguntou se 0 patriarca tinha sido urn valdense, e ele
respondeu que nao sabia. 'Segundo a tradi~ao da familia, ele foi amigo de
alguns valdenses convertidos e por isso era chamado Marcello dei Val
desi, dos valdenses. Ao longo dos seculos, 0 sobrenome foi transforma
do em Valdesi, apenas. Mas nao e impossivel que ele tenha sido urn val
dense influente. Ou que, depois dele, a familia tivesse aderido ao credo
de Valdo'. Foi isso 0 que ele disse, nao e, meninas?"
"Exatamente", confirmou Anna. Beatrice assentiu com um.gesto de
cabe~a.
243
"Pode prosseguir seu depoimento, senhorita. Mas antes precisamos
pedir mais cerveja." Abelardo estava realmente saboreando seu retorno
a boemia. Alberto trouxe cerveja, salame e queijos. Beatrice continuou:
"Perguntei como ele podia afirmar que 0 patriarca tinha sido 0 en
cadernador do livro. 'Ja yOU mostrar-Ihes como posso saber. Agora gos
taria que vissem algumas maravilhas do tempo do velho Marcello Val
desi. Ele viveu entre 1370 e 1450 mais ou menos. Vejam 0 que temos neste
armario.' Era urn tesouro. Dois salterios com iluminuras, uns quatro ma
nuscritos gregos de Hipocrates, dois Galeno, os Sermones de Bernardus,
De natura deorum de Cicero... havia tambern Anaxagoras, Plotino... 0
que mais? Me ajudem, voces duas".
Anna lembrou as Questiones octo de Guilherme de Ockham. Isa
bella mencionou a Historia Calamitatum de Petrus Abaelardus e disse
que tinha anotado uns trinta titulos importantes, mas esquecera 0 papel
em casa. "0 armario tinha mais livros que da outra vez, Emilio. Desta
vez ele mostrou tambem outros armarios. Aquela casa esta repleta de
tesouros. "
"Prossiga, Beatrice!", sentenciou Abelardo.
"Obrigado. Lembrei mais dois: Ad Lucilium, de Seneca, e Trialogus
de Wielef..."
"0 que? Voce tern certeza?", a pergunta era de Bruno. "Isso e he
resia da grossa."
"Calma! Urn valdense do seculo xv, maluco por livros, deveria guar
dar coisas desse genero, apesar dos riscos. Tanto os cataros, como os al
bigenses, os valdenses e, mais tarde, os adeptos de Wielef e de Huss ti
nham muitas teses em comum. Principalmente a denuncia da hipocrisia
e ambi~ao do clero e a contesta~ao da autoridade papal. Uma das acusa
~6es que se fez a Jeronimo de Praga foi a de ter difundido pelas bandas
checas e eslavas as ideias do Trialogus, que ele levou de Oxford a Pra
ga." Lorenzo falou com seguran~a. Como se tivesse estudado 0 assunto.
"E que eu liguei imediatamente 0 livro a Lutercio. Freud explica.
Desculpe a interrup~ao, Beatrice."
"Nao se incomode. Voce vera logo que 0 nosso bispo era ligadissi
mo ao velho patriarca dos Valdesi." Ela ainda nao sabia que Lutercio era
urn cardeal. Nem valia a pena mudar a conversa a essa altura. "Pergun
tei como a familia tinha acumulado tantos livros preciosos. Ele respon
244
deu, mais ou menos, isso: 'Naqueles tempos poucos liam. Fora 0 clero e
algumas outras classes, a popula~ao era analfabeta. 0 clero, em grande
parte, fabricava seus proprios livros. Fora dos conventos e das casas dos
nobres, urn livro era uma inutilidade e urn risco. Ou a inquisi~ao e sua
rede capilar de delatores ou os intolerantes das varias seitas hereticas es
tavam prontos a castigar 0 crime de ter livros. Alem disso, os livros sa
cros eram ilegfveis e os profanos, alem de indecifraveis, eram proibidos.
Alguns poucos, fora do clero, Iiam e gostavam de conhecer, de saber; por
isso, colecionavam 0 que pudessem, ja que as ediroes eram rarfssimas. Mas
quem tinha uma boa cole~ao de livros, tinha ao seu redor 0 que havia de
melhor na inteligencia e no saber. Era isso que movia e ainda move a ra~a
dos Valdesi'. "
Abelardo estava mais lucido do que parecia: "Tudo .isso para dizer
que voces tres representam a inteligencia e 0 saber, para esse tallivreiro.
Parabens!".
Beatrice sorriu e continuou. "Perguntei qual a atitude dos Valdesi de
hoje diante do chamado bispo vermelho que, como mostrava a encader
na~ao do 'Hipolito', tinha sido fregues e talvez amigo de Marcello Val
desi. A resposta foi tao pronta que parecia preparada. 'A senhora pode
avaliar que 0 meu antepassado e 0 bispo daquela villa eram das poucas
pessoas que liam, e gostavam de livros, na regiao. So isso bastaria para
aproxima-Ios. Eu sempre me perguntei por que 0 bispo nao mandava en
cadernar os livros e seus escritos em uma cidade mais proxima de seu pa
lacio, por exemplo, em Casale, em Canale, ou em qualquer mosteiro de
sua diocese. Ha duas respostas. Vma menos provavel: ele preferia a qua
lidade do trabalho de Marcello Valdesi, ainda que em qualquer mosteiro
pudesse encontrar grandes artesaos na especialidade. Outra, mais prova
vel: 0 bispo confiava na discri~ao do encadernador. Tanto, que the con
fiava obras consideradas pagas e ate hereticas, segundo 0 criterio da Igreja
catolica da epoca. 0 encadernador era, de certo modo, urn cumplice. Mas
obispo sabia 0 que se guardava nesta casa e, desse modo, ele tambem era
urn cumplice do encadernador. E a unica explica~ao que me satisfaz. Co
mo prova, basta imaginar 0 que se guardava no tal palacio ou villa e 0 que
ainda se esconde nesta casa. Temos aqui varios livros que pertenceram ao
bispo. Basta procura-Ios.' Foi mais ou menos isso 0 que ele disse. Nao c,
Anna?"
245
"0 teu relato esta perfeito. Conta agora a hist6ria das contracapas..."
"Nao!" Abelardo, inflexivel, mantinha a ordem: "Agora e voce, An
na. Conte 0 que ocorreu e nada mais que 0 ocorrido". Ela acatou 0 man
dado, embora, conforme a jurisprudencia do pr6prio Abelardo, antes da
sexta caneca, fosse a vez de Isabella.
"Segundo 0 discurso de Aurelio, haveria provas da amizade ou
'cumplicidade' entre Lutercio e Marcello Valdesi. Eu apenas perguntei
o que the dava tanta certeza do relacionamento entre os dois. Ele abriu
o 'Hip6Iito' sobre a mesa, pediu licenr;a para pegar minha mao e fez com
que as pontas dos dedos deslizassem levemente sobre 0 papel colado na
face interna do couro da capa. Eu sentia apenas algumas ondular;oes que
podiam ser irregularidades do couro. Depois fez 0 mesmo com a contra
capa. Eu senti ali tambem as ondular;oes, mas agora parecia que os ex
cessos de barbante das costuras tinham sido colados, sob 0 papel, no aves
so da contracapa. Entao, 0 livreiro acendeu uma lanterna de pilhas, dei
tada sobre a contracapa, de modo a que qualquer relevo, mesmo mili
metrico, projetasse uma sombra. 0 resultado foi que eu percebi alguns
ziguezagues, sob 0 papel. Entao ele nos mostrou a marca do patriarca:
'You revelar agora urn segredo secular da familia. Em outras epocas, is
so poria em risco a vida dos meus antepassados. Hoje os tempos sao ou
tros. As senhoras amam a alma dos livros. Mas nao conhecem bern 0
corpo deles. Uma encadernar;ao eurn trabalho como outros. Mas pode
ser uma obra de arte, como e 0 caso de muitos exemplares que podem
ver nesta oficina. Marcello Valdesi era urn artista. E, como tal, deixava
sua marca em cada obra digna de seu nome. Urn livro euma pilha de ca
dernos ou fascfculos de paginas dobradas. Nas dobras ha furos e neles
passam fios de barbante que entao sao amarrados. Se os n6s forem da
dos sempre na mesma posir;ao dos fascfculos, formarao uma fileira ver
tical quando os cadernos forem empilhados. Cada fileira formara urn vin
co saliente na lombada, quando 0 couro encobrir as costuras. Para pren
der melhor a pilha de cadernos as capas, pode-se colar a elas as sobras dos
fios, principalmente do primeiro e ultimo fascfculos, e depois cobri-Ias,
colando sobre elas a primeira e a ultima pagina do livro. E isso 0 que lhes
mostrei neste volume. .o velho Marcello Valdesi deixava seu nome na
contracapa. 0 fio de cima formava urn M e 0 de baixo, urn v. Agora apal
pem de novo e sentirao as duas iniciais do patriarca. Naqueles tempos era
arriscado escrever 0 proprio nome num livro. Nao so os encadernadores,
mas tambem os proprietarios, e ate os autores preferiam esconde-Ios'."
"E entao? Dava mesmo para sentir as letras?", quis saber Lorenzo.
"Para mim, foi mais ficil reconhecer 0 tra~ado com a lanterna. Isa
bella e Beatrice perceberam facilmente com os dedos. Agora, segurem
se: 0 velho Marcello registrava os nomes dos proprietarios dos livros,
com 0 mesmo sistema. Tra~ava as iniciais deles, agora no avesso da capa.
Segurem-se mais firme: Aurelio diz que todos os livros do bispo verme
lho encadernados pelo patriarca sempre foram reconhecidos pelos seus
antepassados pelas letras L e M, no avesso da capa. 0 L em cima e 0 M
embaixo..."
"Espera urn pouco, Anna! Como e mesmo?", perguntei.
"Eu disse para voces se segurarem. Nos tres confrontamos as Bac
chae e 0 'Hipolito' e confirmamos 0 que Aurelio disse. Nosso Lutercio
tern urn M no sobrenome. Como era nobre, ao que tudo indica, 0 M po
deria indicar seu feudo ou territorio, Monforte, Moncalieri, Magenta ou
Monferrato, por exemplo. Teriamos, entao, que procurar urn certo Dom
Lutercio de... Monferrato, por que nao?"
A informa~ao sobre as marcas tinha deixado todos perplexos. Bru
no foi 0 primeiro a sair do espanto: "E muito dificil que 0 livreiro esteja
enganado quanto as marcas. As duas tragedias gregas indicam urn re
lacionamento ou mesmo alguma cumplicidade entre Lutercio e 0 velho
Valdesi do seculo xv. Mas a prova disso deve ser procurada na tribuna.
La estao livros que nao foram tocados desde 0 quattrocento. Se urn de
les tiver as marcas L e M na face interna da capa, e as do antigo livreiro
no avesso da contracapa, nao havera mais duvidas". A prova seria solida
pois Aurelio Valdesi nada sabia do dossel. 0 cardeal e 0 livreiro eram
amigos. Mais que isso. Aliados numa luta contra a prepotencia e 0 obs
curantismo. Eram cumplices, como tinha dito Anna. Entao...
Isabella antecipou a minha conclusao. uSe havia uma cumplicidade
deles dois numa atividade arriscada e explosiva como lidar com livros, a
confian~a mutua devia ser total. "
"E disso resulta 0 que?", perguntou Abelardo.
"Resulta que.quando a estrela de Lutercio na hierarquia catolica co
me\=ou a se apagar, ele tinha urn born lugar para enfurnar as obras mais
perigosas. 0 porao do velho Marcello."
247
Lorenzo esfriou a conversa: "Non sequitur. Aurelio Valdesi s6 mos
trou urn livro dele com as marcas dos dois her6is. 0 outro saiu da tribu
na. 0 que sabemos e que, provavelmente, Marcello era 0 encadernador
e 0 livreiro de Lutercio. Mesmo que 0 dossel esconda outros livros com
as marcas dos dois, nao saberemos nada mais que isso".
Beatrice corrigiu a conclusao. "Nao teremos provas da tal cumpli
cidade. Mas se voce pensar na situa<;ao dos dois, fica mais plausivel admi
tir a cumplicidade, do que nega-Ia. A hip6tese da oculta<;ao dos livros e
mero corolario."
"Se 0 corolario for verdadeiro a premissa pode, mesmo assim, ser
falsa. Mesmo que achemos pencas de livros de Lutercio nos armarios de
Aurelio, a cumplicidade nao se confirmaria. Os livros podem ter ido pa
rar la depois da morte do bispo. Como voce diz, e muito plausivel que en
tre os dois houvesse muita confian<;a. Ambos lidavam com coisas proi
bidas e cada urn podia facilmente delatar 0 outro... "
Dei 0 meu palpite. "Mesmo que os livros tivessem chegado la de
pois da morte de Lutercio, a decisao de manda-los para la, a muitos qui
lometros de distancia, denota uma preferencia especial pela oficina dos
Valdesi. Pelo tempo da morte de Lutercio as coisas estavam ate mais pre
tas em materia de ca<;a as letras." Tinha sentido a minha ideia. Segundo
Valdesi, os livros ainda estavam em sua oficina. Por que? Ou para serem
apenas guardados ali, ou como propriedade do patriarca, amante de li
vros antigos. Mas eles s6 ficaram antigos depois de urn certo tempo. Ate
entao, eram apenas perigosos, imiteis, sem compradores e, de certo mo
do, sem dono. Nao era absurda a ideia de Isabella: os livros de Lutercio
ou, pelo menos, muitos deles tinham sido confiados a guarda dos Valde
si. Por ele mesmo, ou por alguem que cuidou dos livros depois da mor
te do cardeal. '
"Nao interrompam 0 depoimento de Anna", foi a ordem, judicial,
de Abelardo, com espuma de cerveja no bigode.
"Temos outra surpresa", continuou Anna, depois de urn sorriso ma
rota para Isabella e Beatrice, "aquele volume das Bacchae vai fazer urn
terremoto na hist6ria da literatura. Segurem-se de n~vo".
"Entao precisamos encher as canecas. Se ficarem vazias nao,adianta
segurar nelas." Abelardo estava esquecendo a compostura de magistra
do. Alberto trouxe mais uma rodada de cerveja, e Anna continuou.
"De todas as tragedias de Euripides, 'As Bacantes' e a que apresen
ta a maior lacuna, a partir do Nerso 1329. Nao se sabe ao certo quantos
versos faltam, mas sao muitos, pois 0 conteudo do enredo muda muito
entre esse verso e 0 1330, que come~a truncado, no meio de uma Frase. No
seculo III, Apsines ainda conhecia a parte faltante, na qual Agave recolhia
os peda~os do filho morto, com urn lamento a cada parte do corpo re
composta. Dali por diante todos os manuscritos sao mutilados apos 0
verso 1329, ate 0 seculo XII, quando come~am a apresentar enxertos de
fragmentos de uma tragedia bizantina do seculo XI, sobre a paixao do Sal
vador do Mundo, conhecida como Christus Patiens. Atribuida a Grego
rio de Nazianzos. Pois bern: 0 exemplar de Aurelio Valdesi contem ou
tros versos no lugar da lacuna. Nao entendi bern, pois nao sei muito la
tim, mas conhe~o 0 Christus Patiens..."
"Explica isso, Anna." Era Lorenzo que pedia, enquanto Bruno fa
zia uma cara desconfiada.
"Ha urn escolio ou nota mais recente na margem, que eu copiei." Ti
rou da bolsa a anota~ao: "Secundum graecum codicem msm. Emmanuelis
Chrys. E a segunda referencia que achamos a urn Emmanuel. Aqui ele
seria 0 dono de urn manuscrito grego sem a lacuna ou com urn novo en
xerto para ela. Imaginem 0 furor que isso pode fazer por ai".
Nos quatro, que nao tinhamos visitado 0 livreiro, estavamos apaler
mados. Eram surpresas muito grandes, acumuladas. Tudo precisava ser
entendido com mais calma. Abelardo, iluminado menos por Minerva e
mais por Bacco, prolatou sua melhor senten~a:
"Nao da para engolir tanta coisa sem comida. Suspendo a sessao pa
ra irmos jantar. Isabella falara depois. 0 que voces acham?". Anna aplau
diu, Isabella disse que nao tinha nada de novo para contar e que estava
com fome. Fomos jantar em Brera, no 17. Tivemos que levar tambern 0
carro de Abelardo. Isabella se encarregou disso. Bruno e Lorenzo em
barcaram no Land Rover de Beatrice, e Anna resolveu ir comigo. Antes
de entrar no carro, come~ou a procurar alguma coisa na bolsa. Por fim
entrou.
"Achou?"
"Eu nao estava procurando coisa alguma. So queria que eles par
tissem antes de nos." Ela aproximou 0 rosto, com os olhos fechados, os
labios entreabertos. E entao, pude acaricia-Ia com toda a ternura deste
249
254
esse Chrys, com y, poderia remeter ao Christus. Mas, para azar nosso, 0
y podia ser urn erro ortografico de algum copista menos erudito.
A resposta estava na caixa de correspondencia. Quando desci para
comprar 0 jornal do domingo, 0 zelador entregou-me uma carta pesada,
de Gabriella. Explicava que nao poderia vir a Milao para ver a Carla Frac
ci e lamentava protelar nosso encontro. Precisava aproveitar uma opor
tunidade preciosa: uma revista feminina the oferecia viagem, hotel, in
gressos e dinheiro para escrever sobre os espetaculos no teatro grego de
Taormina. "Vou lembrar de nos dois, cada vez que as chamas do Etna
brilharem na escuridao, por tras daquelas colunas do proscenio. Prepare
o nosso Moet & Chandon." E anexava as informa~oes prometidas, sobre
Brunus e Emmanuel, pedindo desculpas pela reda~ao apressada.
255
(nada mal, hein?), foi 'secretario apostolico' de quatro papas, inclusive
Joao XXIII, a quem acompanhou, tambem, ao Concilio de Constan~a.
Mesmo apos a deposi~ao de Joao em pleno Concflio, Bruni voltou aSanta
Se e continuou urn dos homens fortes do papado. Isso mostra a habili
dade e 0 poder de que dispunha. Esse Brunus tern todas as credenciais
para fazer sugestoes ao teu amigo bispo, sobre equivalentes latinos de ter
mos gregos. Alem de haver traduzido muitos textos gregos ele podia opi
nar sobre aquela tradu~ao do 'Hipolito', porque conhecia a obra de Eu
ripides. Num guia de estudos que escreveu, em 1422, para a filha de Carlo
Malatesta, 0 casca-grossa de Mantova, que jogou a estatua de Virgilio no
Mincio, ele sugere que a jovem leia a Alcestis, como exemplo de conduta
feminina. Bruni, Chrysoloras, Filelfo e Poggio eram os donos do maior
acervo de manuscritos classicos, gregos e romanos. Principalmente Filelfo
(que acabou sendo genro de Emmanuel) e Poggio, 0 maior colecionador
de codices, de todo 0 grupo. 0 nome inteiro era Gianfrancesco (ou 10
hannes Franciscus) Poggio Bracciolini. Encaixa-se no mesmo padrao pri
vilegiado de seus amigos: 'secretario apostolico' de Bonifacio IX, de Joao
XXIII e, muito mais tarde, de Eugenio IV, bern depois da deposi~ao de
Joao, ao qual tambem acompanhou em Constan~a. Foi, mais tarde, chan
celer da Republica de Floren~a. Note! 0 papa a quem acompanhara e
apoiava foi deposto e ele continuou atuando nas articula~oes do Conci
lio, que resultaram na elei~ao do insipido Martinho V (Bruni, 0 Aretino,
outra raposa da curia romana, ja tinha deixado Constan~a). Numa pau
sa do Concilio, Poggio voltou ao suI e, na viagem, valendo-se de suas
varias prerrogativas como homem da Santa Se, fez uma 'limpeza' nas bi
bliotecas dos mosteiros que encontrou pelo caminho, confiscando ma
nuscritos de Amiano, Petronio, Nonio, Tacito, Plauto, Lucrecio, Mani
lio. E outros, que ele mesmo traduziu para 0 italiano, como Diodoro Si
culo, Platao, Homero e Xenofonte. Veja que 0 seu bispo tinha os ami
gos mais interessantes e mais poderosos da epoca. Pelo menos, os mais
cultos e donos do maior numero de fontes literarias. Poder maior que 0
deles so 0 da Inquisi~ao, pela qual passaram incolumes, ja que tinham
excelente rela~oes junto ao papado e no meio da nobreza, romana e £10
rentina. A erudi~ao, 0 bom-gosto, 0 faro politico e a esperteza de Poggio
estao retratados nas suas numerosas cartas. Ha varias edi~oes do seu
'Epistolario'. Eu consultei varias para a minha tese e tenho duas. Algu
mas incluem cartas, bilhetes ou algum post scriptum que outras omitem.
Numa das minhas ha algo que pode te interessar. E urn bilhete, nao as
sinado, dirigido a Leonardo Bruni. Alguns editores 0 consideram urn
pos-escrito a famosa carta de 23 de maio de 1416, escrita em Constan~a
e endere~ada a Bruni, na qual elogia a argumenta~ao de Jeronimo de Praga
antes de ir para a fogueira. A carta diz: 'Nunca vi urn homem tao eloqiien
te, tao parecido com os oradores da antiguidade, como esse Jeronimo.
Seus inimigos the apresentaram toda uma serie de acusa~oes para demons
trar que era herege, mas ele se defendeu, com tanta gra~a, discri~ao e in
teligencia, que me faltam palavras para descrever-te... Seu nome e digno
de gloria imortal...'. Ao que parece, urn esteta, como Poggio, estava mais
interessado na elegancia da defesa do que na injusti~a do processo. Mas
veja 0 que diz 0 tal pos-escrito: 'Igual inteligencia e nao menor coragem
mostrou 0 nosso amigo cardeal do Monferrato, ao contestar os argumen
tos de urn debatedor astuto como Pierre d'Ailly, unica voz a contestar 0
homem mais famoso do Concflio. Nosso jovem cardeal tambem devia
estar fascinado pela agudeza e 0 brilho de Jeronimo, como eu. Ele mos
trou saber as artes do 'Martelo dos Hereges', mas nao .lhe conhece a vai
dade e 0 poder...'. Sorte do seu tradutor, que era apenas urn bispo e nao
o cardeal do Monferrato. Pierre d'Ailly nao sabia perder. Qualquer con
testa~ao a ele era crime de lesa-ortodoxia, quase de lesa-divindade. Cla
ro: ele era 0 chanceler da U niversidade de Paris, 0 ideologo maximo da
repressao as dissidencias, a grande vedete da retorica teologica e, por fim,
tao linha-dura que, em pleno Concflio, empolgado por sua prepotente
'vitoria' sobre Jeronimo, quis racionalizar 0 massacre e afagou seu ego,
escrevendo em frances (ja que em latim poucos 0 admirariam) 0 seu nar
cisista Traite de La Puissance Ecclesiastique. Depois apareceu como Trac
tatus de Potestate Ecclesiastica. Seu discfpulo predileto, Jean Gerson, tam
bern participou das acusa~oes a Jeronimo, segundo os documentos do
Concflio. Se 0 seu bispo tradutor menciona Bruni e Emmanuel Chryso
loras como amigos dele, quase fatal mente tera sido tambem amigo de
Poggio Bracciolini. Eles formavam urn grupo muito coeso. Espero ter
respondido as suas perguntas. Se precisar mais alguma coisa, e so avisar.
Partirei para Taormina na quarta-feira e volto no fim do meso Deixe 0
Moet no gelo. Mesmo porque nao ha muita chance de eu achar urn em
presario neofascista no teatro de Taormina. Quanto ganha urn ca~ador
257
de bispos vermelhos? Urn beijao. Ligarei de Taormina. Ciao! Gabriella.
Pavia, 27 de julho. "
259
"Nao vai ser tao diffcil. Hei uma coisa que Isabella ia contar no An
260
jo Azul, mas esqueceu. Aurelio Valdesi the disse que gostaria que alguem
aproveitasse os tesouros que guarda, mas nao aceitaria separar-se dos li
vros. Diz que seria desonesto abandonar 0 que foi guardado com tanto
esfor~o, tanto amor e ate com risco de cair nas maos dos inquisidores.
Seus dois filhos nao tern qualquer interesse pelo acervo e ele gostaria de
entregar os livros a alguma institui~ao que cuidasse bern deles e que os as
sumisse na fun~ao de encadernador. Isabella contou que ele quase chorou
ao contar sua preocupa~ao com 0 destino dos livros ap6s sua morte..."
"Voce quer que eu conven~a Lanebbia a... "
"Boa ideia! Eu nao tinha pensado nisso."
"Cinica, mentirosa e... caloteira."
"Concordo com os dois primeiros elogios, mas, caloteira, por que?"
"Voce nao pagou a minha tradu~ao."
Ela riu, deliciosa, cheia de malicia. "Esta bern, you pagar. Mas pre
ciso de urn Cointreau e de luz de alabastro."
Quando eu vinha da cozinha com 0 licor ela estava sem 0 vestido,
deslumbrante, irresistivel, na contraluz do abajur: ceo vestido eu consegui
tirar sozinha. Para as outras pe~as preciso de ajuda. Posso pagar por ela
tambem". Atirou-se contra 0 meu peito, quente, perfumada. Deu-me 0
beijo mais sensual que ja senti e, com os labios ainda colados aos meus,
falou para dentro de minha boca: CCSeu usurario".
261
Capitulo 12
Crepusculo
266
268
vez fosse 0 incidente com Anna que me turvava a alegria do achado. As
quatro, Luciana apareceu no claustro, chamando para 0 cafe.
"Gostou da tradu~ao?", perguntou com malfcia. Eu nao entendi a
pergunta e ela viu isso no meu rosto: "Sim senhor, quem traduziu aque
la biografia dessa tal Eugenia fui eu". Depois achegou-se ao meu ouvido.
"au 0 senhor acha que Maria Eugenia traduz alemao?" Bruno aliviou
meu constrangimento: "Ou~a, Emilio!", e come~ou a ler uma folha de pa
pel, "Filipe de Monferrato tinha urn irmao mais novo, chamado Ludovi
cus, Ludovico ou Luis. Nasceu em 1380, ana do nascimento de Poggio
Bracciolini. Foi sagrado bispo em 1411 e criado cardeal no fim de 1413,
porque 0 papa, por sugestao de Poggio e de Bruni, desejava te-Io consi
go no Concilio de Constan~a, por seus conhecimentos e sua habilidade
como argumentador."
"Que maravilha! Pode ser a nossa resposta. Voce matou a charada!"
Ele merecia 0 elogio. Pelo seu pr6prio caminho, mais uma vez, chegara a
solu~ao. Com uma vamagem sobre a minha. A resposta dele tinha base
hist6rica, nao era simples dedu~ao.
"Onde voce achou tudo isso?"
"Em varias obras. Primeiro achei Philipe, que morreu logo depois de
Luis, caindo num precipicio durante uma ca~ada acamur~a. Depois achei
Luis, unico irmao de Philipe, e entao procurei dados biograficos. S6 achei
no 'Graus', que se limita a biografia religiosa de personalidades clericais.
Mas agora e facil, basta procurar em M onferrato ou em Luis e teremos a
hist6ria completa do cardeal."
"A nao ser que... 0 orgulho ferido de Pierre d'Ailly houvesse apa
gada ate os registros oficiais da vida de Lutercio, perdao, de Lu Tertius."
Pelo tom da fala, Isabella tinha cartas na manga.
"Como voce soube disso?", interroguei. S6 eu tinha lido a carta de
Gabriella.
"Simples. Lorenzo contou, no Anjo Azul, que Lutercio era urn car
deal. Ora, quem fosse cardeal no perlodo 1414-1418 fatalmente iria ao
Condlio de Constan~a. Principalmente sendo amigo de Chrys610ras, ho
mem de confian~a de Joao XXIII. Portamo, fui olhar documentos do Con
dlio, na edi~ao latina de Franciscus Palacky, de 1869, e algumas outras
obras. Nosso cardeal tomou 0 barco errado. a seu papa foi deposto e ele
endossou alguns argumentos de Jeronimo de Praga. au, mdhor, que po
resolveu aproveitar a marginalizar;ao para libertar-se das restrir;oes que
antes devia respeitar, so porque estava naquele jogo".
"Explique, melhor", pedi.
"Nada de mais. Eu quis dizer que enquanto ele estava interessado na
carreira eclesiastica era obrigado a muita coisa chata e a privar-se de mui
tos prazeres. Vma vez liquidada a carreira, ele resolveu recuperar 0 tem
po perdido e viver mais feliz."
Isabella comentou: "Tern sentido. Vma 'conversao' desse tipo com
binaria com as ideias dele e agradaria plenamente aos novos donos da
Igreja e da ortodoxia. Por que voce pensa assim, Luciana?".
"E 0 que eu teria feito. "
Estava evidente que eramos intelectuais demais, esquecidos da pai
xao! Enquanto enquadravamos 0 cardeal num curso meramente logico de
rear;oes e iniciativas, Luciana enxergava 0 homem que venerava Euripides
como 0 "Cavaleiro da Paixao". Afinal, 0 que 0 levara a enfrentar d'Ailly
teria sido menos a logica do que a paixao. A indignar;ao diante da impos
tura e da injustir;a. Isso estava claro nas alusoes do Commentarium aos
inquisidores.
Dei carona a Isabella, na volta a Milao. Estava ansioso para falar com
Anna, mas ela ligou antes, logo que entrei em casa. Estava bern, decidida
a enfrentar urn tratamento, falaram-lhe de Wolpe. 0 joelho estava enfai
xado e uma luxar;ao no brar;o direito tornava muito inoportuna qualquer
nova avaliar;ao do abajur. Contei-lhe a avalanche de novidades sobre Lu
tercio, agora Luis III de Monferrato, e seus azares em Constanr;a. Ela vi
brou com as informar;oes sobre Emmanuel. Apenas porque 0 conhecia,
ate entao, so pelo sobrenome, Chrysoloras. Aurelio, 0 livreiro, deveria
ter, em algum porao, 0 texto grego das Bacchae. Botar a mao no manus
crito seria entrar para a historia da literatura universal. Gostaria de uma
visita minha, mas nao era elegante eu entrar la, na ausencia do marido.
Depois, fez uma sugestao tentadora. "Com essa historia de Lutercio eu
ja juntei material para dois anos de bolsa, pelo menos. Tenho meia duzia
de novidades explosivas e textos absolutamente ineditos, que renderao va
rios artigos, talvez livros. Mas bern pouco de tudo isso vai servir para a
sua historia da Psicopatologia ou da loucura. Por que voce nao muda seu
projeto de pesquisa? Afinal, foi voce que descobriu quase tudo, nesta his
toria do cardeal. Podemos discutir isso amanha no Galilei."
"Primeiro quero terminar a tradu~ao do Commentarium. Faltam
poucos pareigrafos."
"Agora sabemos quem foi Lutercio. Basta consultar algumas fontes
sobre Monferrato, Piemonte, Clero ou Cardeais para termos toda a his
t6ria do cardeal. "
"Nao e tao facil. Pelo jeito as fontes serao escassas. 0 que Bruno,
Beatrice, eu e Maria Eugenia conseguimos ate agora confirma a teoria da
proscri~ao. Ap6s 0 Concilio, Lutercio desapareceu. Por ostracismo ou
por desencanto, ou pelos dois motivos."
"Mas, afora a dor de cotovelo de Pierre d'Ailly, 0 que poderia ris
car da' hist6ria urn homem como de?"
"Primeiro, a hist6ria e escrita por quem tern poder sobre a informa
~ao; papado e nobreza, no caso. Segundo, Lutercio deve ter sido uma pes
soa refinada, dedicada a assuntos de interesse restrito a alguns privilegia
dos. Nada popular, ate marginal. Terceiro, urn inconformista pleno, em
tempo integral, critico devastador da hipocrisia..."
"Urn sujeito incomodo..."
"Profundamente. Exceto para quem tivesse a mesma Iisura, 0 mes
mo apego averdade. 0 mesmo gosto refinado. "
"A Macedonia dele foi a villa. E isso ?"
"Exato. S6 que em vez das Bacchae, ele escreveu 0 Commentarium,
a tradu~ao do 'Hip61ito' e das Bacchae..."
"Hei uma coisa a esclarecer, Emilio. Ele deve ter escrito outras coisas.
Urn homem apaixonado pela verdade, como ele, nao deixaria em brancas
nuvens a hist6ria de Jeronimo. Pelo que sua amiga conta do p6s-escrito
de Poggio, d'Ailly nao 0 perdoaria. Mas isso significa apenas que ele perde
ria apoio no papado. Porem lei continuavam Bruni e 0 mesmo Poggio..."
"Nao, Anna. Jei estive pensando nisso. Nao era tao simples. 0 car
deal podia ser acusado de heresia, por ter, de algum modo, admitido al
guns argumentos de Jeronimo. Acusei-lo, significava enfrentar alguem
muito mais forte que 0 lugar-tenente de Joao Huss. Nao acusei-lo, man
tendo-o em suspei~ao, era 0 modo de cercear sua influencia, sem expor
se asua poderosa argumenta~ao. U rna proscri~ao ... branca."
"Mas isso e maquiavelico, e de uma astlicia perversa..."
"E 0 que se poderia esperar da Inquisi~ao, transformada em geren
te do papado, minha cara? Poggio farejou os novos tempos."
"Entao restava ao cardeal escrever, denunciar tudo isso. Se ele com
prou a briga de Euripides, a de Jeronimo de Praga, talvez ados valden
ses, com mais razao compraria a briga dele mesmo. Sabia que nao podia
expor-se muito, mas nao ia deixar tudo de gra~a."
"0 que ele poderia fazer?"
"Ja disse: escrever! Ele deve ter escrito alguma coisa sobre 0 que
ocorreu em Constan~a. N6s nao sabemos 0 que se esconde na oficina de
Aurelio Valdesi, nem 0 que ficou trancado no dossel da tribuna. 0 pr6
prio Aurelio disse que ha muita coisa do bispo vermelho, nos armarios
dele."
"0 problema e abrir aquele dossel, Anna. E poder revirar os baus de
Valdesi. E preciso tempo e sorte..."
"Bruno acabara acertando 0 truque da tribuna. Quanto ao livrei
ro, basta uma boa conversa com Lanebbia, mostrando a importancia
hist6rica do acervo de Valdesi. Ter urn antifonario daqueles no Galilei
ja paga 0 salario dele como encadernador. Lanebbia vai perceber isso na
hora. "
"E voce, finalmente, deita a mao, para valer, nas Bacchae, e isso?"
"Isso me interessa, claro! Mas agora estou pensando em achar algu
rna coisa escrita por Lutercio contra a farra de Constan~a."
"Voce quer dizer [arsa. "
"Farsa e farra, mesmo. S6 de criadagem e escoltas militares dos ecle
siasticos e principes, estavam la quase dezoito mil pessoas, incluidos ar
tistas errantes e prostitutas. Imagine, s6' os flautistas eram, espera urn pou
co... Pelo menos, mil e quatrocentos! Curiosamente, os cardeais eram s6
vinte e nove... "
"Onde voce viu tudo isso?"
"Numa Hist6ria da Inquisifao, editada em Moscou, daquelas edi
~oes feias. Estou com ela aqui na mesa. "
"Nao ter apoio unanime, num total de apenas vinte e nove, certa
mente nao alisava 0 ego de Pierre d'Ailly. Principalmente se a voz des
toante fosse de urn cardeal novato e adepto do papa destronado!"
"Vinte e oito. Pierre d'Ailly tambem era urn dos vinte e nove."
uSe voce estiver certa, aquela tribuna e aqueles armarios do livreiro
podem sacudir 0 planeta, pelo jeito. "
"Meu sexto sentido nao deixa duvidas, meu bern."
273
Contei-lhe, entao, que Lorenzo estava em Asti, procurando os afres
cos de Eugenia de Hamburgo. Ela achou que seria imitil para esclarecer
o caso do cardeal.
274
275
virias preciosidades. A mais interessante e uma pequena Cronaca, cele
brando os cento e cinqiienta anos do mosteiro, em 1467! Publicaram al
gumas reprodu~6es fotograficas e uma transcri~ao literal, cuidada por es
sa Irma Veronica, que me deu uma copia. 0 texto e muito singelo e en
volve diretamente 0 nosso cardeal. E mais saboroso na forma original,
mas you ler tentando adaptar a linguagem atual. Depois, quem quiser,
pode copiar 0 original."
A leitura foi entremeada de cita~6es do texto antigo:
" ... lo quale lascio, in scritto testamento, lo sUD palagio con terre e
possedimenti asua cunhada, Donna Victoria de Monteferrato, e Ii scritti
e libri suoi per messer Marcello di Cisterna in Asti. Quis Deus Sapien
tissimo que, tendo a herdeira, ela tambem, encontrado a morte com 0
mesmo citado cardeal, toda a heran~a passasse a nobilissima irma dela,
Eugenia, eletta per grandi opere nel piano d'Iddio nostro Signore, a qual
dividiu toda a colheita e os alimentos entre os servos do palacio e das ter
ras e os dispensou de seu servi~o. E entao, come se fossegli mandato da
Dio, seguito l'esempio di Santo Francesco e se recolheu em medita~ao e
penitencia por quarenta dias, assistida por sua fiel camareira Lucilia, con
il marito di essa Bernardo Muratore ch'e l'era mesmo pedreiro e era tam
bern serralheiro, a fim de merecer a revela~ao dos pIanos do Senhor. E il
Signore l'illumino e, enviados os livros e iseritti a detto messer Marcello,
e dopo che'l mastro Bernardo Muratore esegui i lavori occorrenti di ri
parazione fabrile e di muratura, foram 0 palacio e as terras vendidos aos
primos dela, para que todo 0 dinheiro conseguido fosse donato, in suf
fraggio delle due povere anime, per La costruzione di questo monisterio di
Santa Chiara. Quando ficou pronto, por bondade de Deus, conheceu a
vida e 0 exemplo de Santo Francisco, nosso pai, e foi chamada avida de
religiao, a nobilissima benfeitora do mosteiro, Nobile Donna Eugenia di
Germania, onde recebeu 0 bendito habito de Santa Clara, col nome di Sor
Maria Eudossia della Passione, che beatamente porto con virtude.
"Passaram-se dois anos e tambem chamou 0 Senhor para a religiao
a fiel serva Lucilia depois que ficou viuva, quando mestre Bernardo, tendo
terminado muitos trabalhos de ferro e depedra para 0 mosteiro, entre
gou la sua beata anima al Signore I ddio. E tendo a Irma nossa Maria
Eudoxia completado a constru~ao do mosteiro, pintou nele 0 cenaculo
e a igreja onde mestre Bernardo tinha fixado os vitrais, desenhados por
ela para a gloria do Divino Sacramento. Essendo La pia Sor Maria Eudossia
badessa di questo monisterio per quasi diciotto anni, chamou-a Deus para
a perpetua alegria com Santa Clara Beata Nossa Mae. E il popolo e la
comunitade del monisterio per due giorni onorarono la gloriosa badessa
e 0 seu Santo corpo foi sepultado na mesma igreja que ela decorou, no
ana de mil e quatrocentos e cinqiienta e oito. E dopo la sua morte, la
badessa che dirige piamente il monasterio e la Reverenda Sor Maria Ce
cilia di Santa Maria degli Angeli, la quale mando ch'io, sor Maria Glice
ria della Nativita, serivessi codeste notizie. A laude di Cristo e onore di
Santa Chiara. Amen".
Lorenzo dobrou 0 papel e baixou os olhos. Estava comovido, como
todos os demais. Havia sofrimento e muita luta por tnis das frases singe
las do documento. Era uma prova concreta, da epoca, a ligar Lutercio a
villa, a abadessa e ao livreiro. Todas as nossas inferencias tinham agora
uma base documental. Mas nao era esse 0 impacto que nos deixara mu
dos diante do documento. Era a tragedia de Lutercio, de Victoria e tam
bern de Eugenia. Havia algo estranho na referencia a morte do cardeal e
da cunhada. 0 tom era totalmente outro quando se mencionavam as mor
tes da abadessa e do mestre Bernardo, 0 muratore. Aquelas eram referi
das como simples eventos, acidentes, sem qualquer palavra de piedade ou
respeito, enquanto ada abadessa e a do pedreiro eram registradas com ex
press6es de venera~ao e afeto.
Beatrice foi a primeira a falar. "Nao ha mais duvida, agora. A cro
nica dessa freira mostra a total proscri~ao de Lutercio. A morte dele e
noticiada com frieza, como a de qualquer infiel, de qualquer pecador pu
blico ou herege."
"0 que me impressiona e que, segundo este documento, ele e Vic
toria morreram juntos, de morte 'tristfssima'. E como ele deixou todos
seus bens a ela, a coisa toma urn rumo meio suspeito... " Isabella parecia
esperar que alguem completasse seu pensamento. Foi 0 que Lorenzo fez.
"Eu pensei dois dias nesse texto. Ha uma certa rejei~ao ao cardeal e
a cunhada. Eles sao considerados almas infelizes, povere anime."
Bruno discordou. "Sem duvida, a morte do pedreiro e ada abades
sa sao noticiadas com venera~ao e afeto. Mas eram dois personagens li
gados as origens duras do mosteiro, aos quais a comunidade devia grati
dao e louvor. As duas outras mortes sao de 'pessoas estranhas', referidas
como povere anime, numa expressao que poderia ser de compaixao, em
bora uma compaixao distante, protocolar, quase. De todo modo, a refe
rencia a uma morte sofrida de Lutercio e da cunhada, Iigada a essa frieza
do establishment religioso, e inquietante."
"0 que Isabella quer dizer", sugeriu Beatrice, "nao ebern isso. Pode
ser que a hipotese de Luciana seja verdadeira: depois de Constan~a, Lu
tercio procurou viver mais feliz e, fora Eugenia, a unica pessoa capaz de
entende-Io naquele palacio era Victoria. Pelo que voces contam, 0 tal Fi
lipe brutamontes nao era homem de sutilezas intelectuais e afetivas... ".
"Isso ja efofoca pura", cortou Bruno, "pois a morte triste e conjun
ta pode ter sido urn acidente qualquer, incendio, desabamento, sei la. 0
que poderia parecer suspeito eo testamento iscritto deixando os bens pa
ra elan.
"Ele nao tinha a quem deixar!" Lorenzo quase gritou. Depois hesi
tou: "Talvez para 0 irmao".
"Mas 0 irmao seria 0 herdeiro natural. 0 cardeal nao quis que 0 ir
mao herdasse a villa e as terras. 0 testamento era, portanto, contra 0 ir
mao." Falei com seguran~a. Parecia logica a minha ideia.
Abelardo, jurista, nao tinha tanta certeza. "Depende de como 0 car
deal adquiriu a posse das propriedades. Em alguns casos elas eram lega
das aos descendentes com clausulas restritivas quanto a transmissao ul
terior de todas ou de parte delas. E possivel que a cunhada fosse a lega
taria possivel, ja que ele nao tinha sucessores, ao que se sabe. Em outros
termos, pode ser que voces estejam fazendo pura fofoca."
Lorenzo continuou: "Mas algumas coisas sao certas. Temos urn do
cumento escrito, sobre a identidade do cardeal. E temos tambem uma boa
prova de outra coisa: Marcello Valdesi herdou toda a biblioteca. Foi essa
decisao da abadessa, de mandar os livros ao patriarca, que me obrigou a
ir ate aoficina de Aurelio Valdesi, dificil de achar, por sinal".
"Como voce se apresentou?", perguntei.
"Como amigo de Isabella, pesquisador do mesmo instituto, interes
sado em descobrir 0 bispo vermelho, ou cardeal do Monferrato. "
"E a rea~ao dele?"
"Cortes e desconfiada. Testou minhas informa~oes com varias per
guntas sobre livros, sobre Isabella, Beatrice e Anna. Perguntou se eu re
conheceria urn livro encadernado por Marcello Valdesi. Era 0 teste cru
cial. Eu nao lembrava se as iniciais do encadernador ficavam encobertas
no verso da capa ou da contracapa e confessei a minha duvida. Ele se des
culpou por me ter 'investigado' e so entao perguntou 0 que eu queria.
Mostrei essa c6pia da cronica de Irma Maria Gliceria. A mao dele tremia
durante a leitura. No final come~ou a chorar. Logo se controlou e pediu
desculpas, explicando que, como ele, seu pai, seu avo e outros antepas
sados haviam cumprido urn compromisso secular, sem saber por que fora
assumido: guardar cuidadosamente os livros que tivessem, no verso da
capa, as letras L e M. Implorou que the desse uma c6pia da cronica, que
era a resposta a seculos de duvidas, prova de urn grande afeto que tantas
279
280
"E se tudo aquilo viesse parar no Galilei?" Bruno olhava para 0 alto,
sonhando.
"Domine exaudi nos!", rezou Beatrice.
"Amen!", respondeu Lorenzo, de maos postas.
Isabella insinuou algo: "A tal Soror Veronica foi com a tua cara, pe
10 jeito, Lorenzo."
"Enciumada? E compreensivel."
"PreSUn'1aO e agua benta... "
"Eu e que gostei dela. Ela entende de pintura, conhece historia da
arte e me explicou os detalhes dos afrescos da abadessa, Soror Maria Eu
doxia. Que nome mais sem gra'1a. Eugenia era melhor. Mas tinha que ser
outra pessoa depois dos votos, 'renascida para a vida espiritual', como
explicou a Irma Veronica, enquanto olhavamos 0 afresco do cenaculo. E
bern grande, como 0 da villa, e mostra 0 almo'1o de Santa Clara com Sao
Francisco. Vma cena singela, com poucos elementos, porque 0 almo'1o foi
no campo, com os alimentos no chao. Mas 0 estilo de Eugenia se impoe:
amarelos fortes na paisagem, 0 brilho dos olhares, 0 respeito quase ob
sessivo pelos detalhes: pode-se ver cada cruzamento dos ramos de vime,
no cesto dos paes, por exemplo. E a mesma paixao pelas proje'1oes da luz.
Na falta de qualquer vidra'1a, ela aproveitou 0 reflexo da luz numa jarra
de vidro e inventou urn lago com a agua encrespada espelhando 0 sol. A
simplicidade e 0 despojamento do episodio foram tratados com fina sen
sibilidade. Os afrescos da igreja tambem sao muito bonitos, embora a luz
fosse pouca para aprecia-los devidamente. Mas 0 fascinio pelas proje'1oes
da luz solar estao presentes, tanto na cena da ben'1ao dos paes por Santa
Clara, em que 0 sol projeta sobre a toalha os reflexos da bandeja metali
ca, como na da visita de Sao Francisco a Roma, em que as cores de urn
vitral se derramam sobre a capa do papa... "
"Pelo que diz a cronica, ela desenhou tambem vitrais. Voce os viu?"
A pergunta era de Isabella.
"Sim. Sao dois, na parede do coro. Muitos vidros foram substitui
dos, e claro. Mas, segundo a Irma Veronica, a estrutura metalica principal
pode ser ainda a de Bernardo Muratore. Ela acha que as pe'1as de vidro
mais proximas das paredes podem ser originais, montadas por ele!"
"E as figuras?"
"Nao ha figuras, propriamente. Sao pe'1as de vidro, quase todas de
cores suaves, que nao representam nada. 'E claro que a abadessa podia de
senhar imagens ou cenas belissimas neles', disse Irma Veronica, 'mas urn
vitral nao e urn quadro. Para a abadessa eles eram transparencias colori
das e nada mais. 0 olhar nao deve prender-se asuperficie dos vidros, mas
acompanhar a luz que os atravessa. Por isso, nao ha imagens nos vidros.'"
"Genial!", falei.
"Quem? A abadessa ou a Irma Veronica?"
"Ambas."
Luciana chegou aporta com urn recado de Lanebbia. Deviamos es
colher quem acompanharia 0 arquiteto na vistoria a villa, agora pala
cio, do cardeal e marcar 0 dia da visita, antes do sabado. Restavam-nos
tres dias.
"Eu vou", falou Bruno, "porque pretendo tentar, de novo, abrir
aquele desgra~ado al~apao. No meio da semana e mais tranqiiilo para
mexer nos medalh6es. Alessandro trabalha e os meninos devem estar fora
da villa. Basta que alguem despiste 0 arquiteto".
"Eu prometi a Irma Veronica urn desenho do rosto de Eugenia",
explicou Lorenzo, "do tempo da juventude, antes da tragedia da fami
lia. Se alguem me der carona eu YOU. Ouviu bern, Bruno?".
"Posso dirigir, mas vamos no teu carro."
"Quanta mesquinharia, meu Deus! Podemos levar Abelardo para
cuidar do arquiteto."
"Finalmente", disse Abelardo, "vou ver esse bendito palacio do car
deal. Quem sabe ainda da para impugnar aquele testamento e ficar com
a villa". Beatrice nao poderia viajar durante a semana. Isabella estava in
teressada em ir, se a volta fosse no mesmo dia. Eu estava em duvida. Pre
cisava ordenar minha ideias antes de decidir.
Varias coisas turvavam meus pensamentos e meu entusiasmo. Eu
queria ficar so, entender 0 que me inquietava. Enquanto discutiam a data
da viagem, enfiei-me na paz da minha sala. Alem de certa tristeza pela
morte sofrida de Lutercio e da meiga Victoria, havia a sensa~ao de algu
rna iminente desgra~a, talvez porque Anna nao tinha chegado ainda ou
porque aquele terror de caes ja tinha posto em risco a vida dela. Eu sen
tia tambem urn certo arrependimento, ou culpa, pela descoberta de epi
sodios penosos da vida de Lutercio, de Victoria e da propria abadessa.
Algo me impelia, agora, a esclarecer a morte deles. Afinal, abandonar a
causa a essa altura seria inadmissivel. Era como se nos houvessem con
fiado a missao de falar por eles, denunciar a maldade que os tinha viti
mado. Nada estava claro dentro de mim. Mas na cronaca do mosteiro ou
na conversa da freira havia algo que me empurrava para a villa. Alguma
coisa estava incoerente no texto da cronica. Mas, 0 que?
Lorenzo bateu a porta e entrou. "Emilio, esqueci de contar uma
.
COlsa. "
"Qual?"
"Entre os livros de Lutercio que Aurelio Valdesi me mostrou ha
via tres exemplares de uma mesma obra. Uma bomba, meu carol Trazem
na folha de rosto 0 nome do autor, a data de 'publica~ao' e, obvio, 0 ti
tulo da obra. Adivinhe tudo isso. "
"Sei lao 0 autor e 0 proprio Lutercio..."
"Sim. Mais especificamente, e LV III. E a data?"
"Vou chutar: posterior ao Concflio, portanto 1419 ou 1420."
"E 1420,0 ano da morte de Pierre d'Ailly. 0 titulo voce nao pode
imaginar. E Tractatus de Perversitate Ecclesiastical"
Lembrei 0 Tractatus de Potestate Ecclesiastica, que d'Ailly escreve
ra em meio a euforia doutrinaria de Constan~a. 0 nome insinuava uma
parodia.
"De uma olhada." 0 livro desfilava varias perversitates ou aberra
~6es eclesiasticas, em pouco mais de sessenta paginas e, fiel ao sentido
amplo do termo latino, dissecava desvarios, exorbitancias e fanatismos.
Nao restava duvida, era a desforra de Lutercio. Parte dela, pelo menos.
Nao contive urn sorriso de satisfa~ao.
"Lindo, nao?", perguntou Lorenzo.
"Pelo jeito e uma bordoada. Voce jura que 0 livreiro Ihe emprestou
isso? Estou estranhando essa generosidade toda."
"Ele ficou meu amigo, ja disse. Prometi levar a Lanebbia uma pro
posta dele. A Fondazione Galilei ficaria com todo 0 acervo dele em tro
ca de algum dinheiro e certos compromissos. Valdesi quer urn emprego
como restaurador e a posse dos livros ate sua morte, mesmo que eles se
jam incorporados logo ao nosso Instituto. Ja imaginou que orgia de tex
tos? Lanebbia me disse que vai estudar 0 assunto com os editores ama
nha. So iremos a villa na sexta-feira, ja com a resposta da Funda~ao. Os
editores, estou certo, nao vao perder essa oportunidade."
"Parabens, tomara que voce consiga. Posso levar esse Tractatus ate
amanha?"
"Nao. Estou dando uma olhada. Primeiro voce precisa terminar a
tradll(;ao do Commentarium. A publica~ao dela vai ser nosso trunfo pa
ra melhorar 0 pagamento. Pelo jeito faltam poucas paginas, nao e?"
Ele tinha razao, faltavam so as ultimas paginas. Desde a carta de Ga
briella, a torrente de descobertas me tinha desviado da tradu~ao. Resolvi
concentrar-me nela, tambem para esquecer a preocupa~ao com Anna e as
outras inquieta~6es. 0 texto nao tinha mais 0 charme do misterio. 0 in
teresse agora era mais pelas ideias do cardeal. A apresenta~ao brilhante das
inova~6es teatrais de Euripides completava-se com uma galeria de gran
des figuras: Medeia, Orestes, Fedra, Hipolito, Ifigenia e Dionisio. A cada
uma eram dedicadas umas vinte linhas, nas quais Lutercio sublinhava a
criatividade de Euripides. As duas ultimas paginas eram uma especie de
epilogo, cuja inten~ao didatica nao disfar~ava a paixao por Euripides.
o texto exibia, mais uma vez, uma interpreta~ao aguda, quase mo
derna, do pensamento de Euripides, agora referente as ultimas pe~as,
principalmente as Bacchae. Mas mostrava urn Lutercio amargo, embora
resignado, que se projetava, indisfan;avelmente, na imagem que fazia do
poeta. As ultimas frases transpiravam desencanto e certo ceticismo. A alu
sao· a perda das cren-ras podia indicar urn sofrido abandono da fe, bas
tante provavel depois de seus azares na vida eclesiastica, e, mais ainda,
ap6s 0 Tractatus de Perversitate. E nesse tom quase melanc6lico 0 Com
mentarium chegara ao paragrafo final:
Morte e transfigura~~o
288
MPECTETCU
PECTETCUM
ECTETCUMP
CTETCUMPE
TETCUMPEC
ETCUMPECT
TCUMPECTE
CUMPECTET
UMPECTETC
293
bra~o, e urn dicionario, com 0 outro. "Achamos alguma coisa, Emilio!
Existe 0 verbo PECTERE, pentear, desfiar, cardar. Entao,pectet tern algum
significado, e uma forma verbal."
"De acordo", respondi, "pode ser a terceira pessoa do futuro sim
ples". ,
"Jura? Entao a penultima seqiiencia tern sentido! Olhe aqui: CUM
PECTET! Traduza."
294
"Teoricamente, as cordas podem ser tocadas pela parte mais salien
te dos outros medalhoes: a flauta do fauno, a trombeta de Clio ou a mao
do poeta."
"Ficamos na mesma." Bruno estava disposto a resistir. Abelardo
tambem: "Nao. Dedilhar, s6 com os dedos!".
Bruno aceitou: "Entao se trata de pegar 0 bra~o do poeta e a lira de
Erato e puxar urn contra 0 outro. Simples, a primeira vista. 0 medalhao
de Erato gira sem limites nos dois sentidos. 0 do poeta s6 gira meia vol
ta, em sentido anti-honirio, isto e, para longe da lira. E s6 quando com
pleta esse movimento desbloqueia 0 medalhao do fauno... ".
"Que, pelo jeito, e superfluo...", arriscou Abelardo.
"Vma dedu~ao enganosa", rebateu Bruno satisfeito, "pois as provas
empiricas mostram que 0 fauno gira s6 urn quarto de volta, em qualquer
sentido.Mas pelo jeito ele faz girar alguma pe~a interna em movimento
excentrico. Qualquer pe~a rotat6ria excentrica, ao girar sobre seu eixo,
desocupa urn certo espa~o e ocupa outro".
"E dai?", perguntei.
"Elementar, meu caro Emilio. Dai, desbloqueia ou bloqueia movi
mentos de outras pe~as nesses espa~os."
"Ergo?", disse Abelardo. Bruno percebeu a armadilha: esse Ergo im
plicava uma dedu~ao. Esquivou-se com elegancia.
"Ora, meu caro. Ergo, precisamos verificar quais movimentos sao
impedidos ou liberados pelas varias posi~oes do fauno. Vma hip6tese
plausivel e a de que quando ele gira para a esquerda libera 0 giro anti
horario completo do poeta ou 0 giro horario dele. Em qualquer caso, a
mao do poeta se aproximaria da lira. Isso, se 0 deslocamento do fauno nao
impedir a rota~ao de Erato, que levaria a lira ate a mao do poeta. Num
sistema de engrenagem e cremalheiras..."
"Basta, Bruno. Nao entendo mais nada." A confissao de Abelardo
era Slllcera.
"E a distancia entre dedu~ao e metodo."
"Entre dedu~ao e tecnica. Parece mais correto", sugeri. Bruno re
sistiu: "Ja que voce quer precisao, digamos: entre dedu~ao e hip6tese".
Abelardo nao estava gostando: "E 0 al~apao? Vai ter que esperar 0
casamento de Popper e Kuhn? Bruno, voce nao acha que essa ideia de fa
zer 0 poeta tocar a lira de Erato pode resolver 0 enigma?".
295
"Nao custa tentar." Decididamente, Bruno tinha pouca fe. Ou ape
nas resistia aideia de abandonar seus esquemas. Eu tambem hesitava em
aceitar que as letras dos hexagonos fossem algo mais que as iniciais das
musas. Mas 0 CUM PECTET de Abelardo era urn belo achado. Bruno sabe
ria transformar a teoria em uma boa hipotese e saberia ajustar a ela seu
arsenal de esquemas, ferrolhos, cremalheiras e engrenagens. Mas, era so
outra hipotese. Resolvida a questao da identidade de Lutercio, 0 enigma
do al~apao era 0 novo desafio. Mas agora havia urgencia. Talvez 0 CUM
PECTET fosse apenas uma coincidencia e, entao seria melhor prosseguir
com 0 "ensaio e erro" sistematico de Bruno. Aceitei minha incompetencia
como arrombador e voltei a secretaria. Lorenzo tinha chegado, apenas
para pegar uns papeis com Luciana.
"Parabens, Lorenzo! Belo trabalho."
"Obrigado. Mas 0 merito e de todos nos e do Concilio Vaticano
Segundo. Agora nao tenho tempo para te explicar: tenho mais uma reu
niao com 0 "cidadao Kane".
"Quem e?", interrogou Anna.
"0 chefe todo-poderoso da Associa~ao Nacional de Editores, ex-di
retor de Tulio em Pavia, 0 versatil G. Aurimonte. Nao se assemelha a
Orson Welles. Parece mais urn duende com os cabelos de Ben Gurion.
Ele fala olhando para 0 horizonte, com urn sorriso desagradavel a cada
duas frases. Mas e 0 homem que controla a Associa~ao e a Funda~ao que
nos paga. Antes que me esque~a: precisamos chegar avilla na sexta-fei
ra, depois de amanha, cedo. Antes que 0 arquiteto chegue lao Precisamos
combinar isso com Bruno."
Fomos encontrar Bruno. Estava cercado de desenhos. Eram meca
nismos de alavancas, rodas dentadas e cremalheiras de todos os tipos. Fi
cou combiriado que iriamos em dois carros. Eu levaria Lorenzo direta
mente a Madonna della Spina. Bruno com Abelardo iriam, antes, aos te
souros de Valdesi. Levariam Isabella, a mais amiga do livreiro, encarre
gada de comunicar-lhe 0 interesse da Funda~ao na aquisi~ao do acervo,
e de devolver as Bacchae em troca do nosso "Hipolito". Anna nao iria;
teria uma sessao de psicoterapia na sexta. Mas ja tinha telefonado a Au
relio Valdesi explicando 0 "engano". 0 ponto de encontro seria diante da
igreja de Dom Attilio, no bar da pracinha. Lorenzo precisava visitar 0
vigario para explicar os pIanos e cautelas da Funda~ao para a preserva~ao
da villa. Quem chegasse primeiro esperaria os demais. 0 arquiteto tam
bern nos encontraria la, pois nao sabia como chegar a mansao.
Na sexta-feira, por volta de oito horas, Lorenzo veio buscar-me e me
intimou a dirigir 0 carro. A echarpe de seda nao estava mais no banco tra
seiro. Antes de partirmos, ele passou-me urn bilhete de Beatrice:
"Emilio, voce, que elatinista, pode dizer se esta certo 0 meu palpi
teo Uma das seqiiencias de Abelardo pode ter sentido. E esta: ET CUM PECf.
Pode ser entendido como: E COM A PECTIS ou entao, COMO COM A PECTIS
(ou LIRA). Se isso estiver certo, pode ser que num certo momento, algum
outro medalhao precisa repetir 0 movimento de Erato com a lira. Nao
tenho certeza se ET pode significar DO MESMO MODO QUE. Se voce achar
oportuno, diga isso a Bruno. You cobrar royalties. Beijos pra voces dois,
Beatrice".
Quanto ao latim, Beatrice estava certa. 0 palpite nao era mais plau
sivel que 0 de Abelardo. Tinhamos, entao, duas seqiiencias com signifi
cado: 0 codigo para abrir 0 al~apao era QUANDO DEDlLHAR OU IGUALMEN
TE COM A LIRA. Ou nenhum dos dois. Ate sair da cidade concentrei-me na
dire~ao; mas logo que entramos na Comasina nao me contive: "Lorenzo,
estou achando esquisita essa mare de generosidade da Funda~ao. De urn
dia para outro resolvem restaurar 0 palacio de Lutercio e, ainda, adqui
rir 0 acervo preciosissimo de Valdesi. Ou Lanebbia esta apaixonado ou
Aurimonte assaltou algum banco".
"E tudo muito complicado, mas muito simples."
"Benza Deus! Quanta logical"
"Espera. You explicar. E uma trama complexa, mas ficou tudo cla
ro depois de uma conversa com Tulio, ontem, no Se%ne. Liquidamos
urn malvasia de tres anos. Divino. Tulio contou a jogada de Aurimonte
e Lanebbia. Olhe a estrada, em vez de olhar para mimI Aurimonte pas
sou da dire~ao da Faculdade a presidente da associa~ao dos editores em
apenas tres anos! Como? Ficou socio da <Lumem Gentium', dividindo 0
capital com outro socio. Sabe quem e?"
«Claro que nao."
"0 sobrinho predileto do cardeal Settimiani! Ele mesmo! 0 todo
poderoso senhor do Santo Oficio, ate dois anos atras. Urn dos homens
297
299
que a vida do velho nao sofreria qualquer altera~ao, exceto uma: passa
ria a ter urn salario da Fondazione Galilei, para cuidar da capela, do tea
tro e da biblioteca. A familia continuaria la, sem qualquer perturba~ao.
A cara do paroco era urn enorme sorriso. Ao fim da conversa deu-nos as
chaves da mansao enos desejou sorte.
Bruno e os outros chegaram pouco depois das doze e 0 arquiteto
logo em seguida. Era jovem, serio, aparentemente humilde. Desculpou
se por ser 0 ultimo a chegar. Abelardo the fez duas perguntas sobre Bru
nelleschi e ganhou a simpatia dele. Ele tinha pressa de voltar a Milao, gra
~as a Deus. Isabella ponderou que se fossemos almo~ar sobraria pouco
tempo para a villa. Pedimos pao, presunto e urn maravilhoso grignolino.
Antes das duas ja estavamos no portao da mansao. Alessandro nos rece
beu com surpresa. Disse que tinha muito trabalho naquela tarde e descul
pou-se por nao acompanhar-nos na visita. 0 ingresso do ediffcio estava
aberto, porque ele tinha engraxado as dobradi~as do portao.
Enquanto Abelardo entrava hesitante com 0 arquiteto, Lorenzo
chamou-me de lado: "Emilio, acompanha Alessandro e conta-lhe as boas
novas. Eu quero deixar claro a esse arquiteto que a capela, 0 teatro, a bi
blioteca e os aposentos de Alessandro sao intocaveis, por imposi~ao de
Dom Attilio".
"E a tribuna tambem!", acrescentou Bruno, enquanto ajeitava urnas
folhas na sua prancheta. "Veja se esse sujeito libera logo 0 teatro. Preci
so trabalhar em paz."
"Esta bern", disse Lorenzo, entrando no ediffcio. Eu fui atras do
velho. Isabella tambem tomou 0 rumo da casa dele.
"Voce nao vai ver a villa?", perguntei. "Nao quer assistir ao Abre
te Sesamo?" A resposta foi estranha: "5ei que voces vao conseguir, mas
nao you lao 0 que eu procuro deve estar la embaixo, perto da torrente.
Boa sorte".
"Quanto misterio! A voce tambem."
Alessandro ficou feliz com as noticias. Perguntou se viria muita gen
te a mansao. Expliquei que nao. Mesmo 0 museu so interessaria a pouca
gente. Comoveu-se ao saber que no contrato da Funda~ao a capela, 0 tea
tro e a biblioteca ficariam confiados a guarda pessoal dele.
"Sao anos que espero por essas notfeias, fico-lhe muito grato. De
cora~ao."
300
"Nos e que the agradecemos", respondi. Saudei a mae de Rinaldo,
que regava plantas atnis da casa, e fui encontrar os outros.
a arquiteto estava encantado com 0 teto do teatro e Bruno soltava
chamas pelas ventas andando pelo corredor. Lorenzo nao se cansava de
apontar detalhes preciosos nas pinturas e Abelardo come~ou a discutir
vagamente sobre os hexagonos do teto e sua rela~ao com sfmbolos herme
ticos presentes na pintura de Botticelli e na cupula de Floren~a, de Bru
nelleschi. Eu nao sabia onde ele tinha achado todas essas conexoes. Nem
ele, provavelmente. Bruno olhava-o do corredor, com olhos de raios, in
dignado com a falta de pressa. Pelo jeito, eles queriam que 0 arquiteto se
fartasse de informa~oes sobre 0 teatro para que nao voltasse a ele, mais
tarde. Cada vez que tentava cortar a conversa alegando que precisava vis
toriar 0 resto do palacio, Lorenzo mostrava mais algum pormenor das
pinturas. Quando se encaminhavam para a tribuna, Abelardo se anteci
pou. Espiou, pelo buraco do piso, 0 ninho de Filomena e afastou-se com
urn gesto de horror: "Ratos! Enormes! Que nojo! Credo!".
a arquiteto estacou. "Bern, esta pe~a nao e relevante para 0 meu re
latorio. Mas e uma beleza, sem duvida. Preciso vistoriar as outras salas.
Com licen~a."
"Por aqui, por favor", pediu Lorenzo, apontando a porta, falso e
cortes. Bruno fulminou-o com 0 olhar, quando passaram por ele. Lo
renzo, imperturbavel, determinou: "Bruno, voce e os outros continuem
suas observa~oes, mas, antes, procurem uma tabua para tampar aquele
buraco na tribuna. Pelas duvidas tranquem esta porta. Se esses ratos es
caparem, nao sairao do teatro. Diga a Alessandro para colocar veneno
amanha mesmo".
"Pois nao." A cara de Bruno prometia tempestades.
"Ufa! Pronto, Bruno. A barra esta livre. Ainda bern que voces me
contaram que aqui moravam ratos", Abelardo apontava 0 ninho de Filo
mena, "mas deviam ter-me dito que eles poem ovos deste tamanho".
Bruno teve que rir. Apoiou a prancheta sobre a balaustrada da tri
buna e come~ou a estudar, metodicamente, os movimentos de cada me
dalhao. Abelardo trancou a porta e sentou-se no chao, encostado nela.
Passei a Bruno 0 bilhete de Beatrice. Leu e suspirou: "E meio vago.
Podemos tentar tambem isso. Mas primeiro quero ver se este medalhao de
Clio e mesmo fixo ou se fica bloqueado pelos outros." Era fixo. Mas isso
301
nao era irrelevante: "Clio nao se move e sua trombeta aponta para 0 an
gulo mais proximo, na base do dossel, ou forro da tribuna, se quiserem".
"E isso quer dizer 0 que?", perguntou Abelardo, irreverente, Ii da
porta.
"Que a posi~ao normal, de partida, dos medalhoes e esta: cada urn
apontando com a parte mais saliente para 0 angulo mais proximo. Entao
Erato fica de costas para 0 fauno, numa diagonal. N a outra, 0 poeta vira
as costas para Clio. " Eu e Abelardo ficamos quietos. Que mais podiamos
fazer? Bruno tentou virias combina~oes de movimentos, sem resultado,
seguindo escrupulosamente as anota~oes de sua prancheta. Apos meia
hora, ou quase isso, virou-se para Abelardo: "Vamos tentar 0 seu palpi
teo Qual emesmo?".
"Que os dedos do poeta devem dedilhar as cordas da lira."
"Vamos Ii. Dirijo a lira de Erato para 0 centro do dossel. 0 poeta
gira para a esquerda e seu bra~o fica bloqueado na perpendicular do bra
~o de Erato. Movendo 0 fauno para a direita, 0 poeta se solta e, girado
para a direita, chega a tocar a lira. E nada acontece. Volta tudo ao princi
pio. A lira vai para 0 centro. Libero 0 poeta, girando 0 fauno, desta vez
para a esquerda. 0 poeta agora pode girar livremente. Algum pino de blo
queio, do fauno, libera uma cremalheira Iigada ao eixo do poeta. Inverto
o giro do poeta. Agora vai para a esquerda. Fica bloqueado a meio cami
nho... 0 que disse Beatrice, Emilio?"
"Algo como DO MESMO MODO QUE COM A LIRA?"
"Entao, agora coloco 0 bra~o do poeta voltado para 0 angulo inicial
da lira de Erato. E nada acontece..."
"Mas ele tern que tocar a lira", interrompeu, imprudente, Abelardo.
"Miseria! Nao me amole. Eu sei! A lira vai para 0 meio. 0 fauno
desbloqueia 0 poeta, se girado para a direita. Assim, 0 poeta toca a lira.
E nada mais se move." Bruno enxugou a testa. Depois prosseguiu: "A
menos que... a menos que, quando 0 poeta toca a lira, giro 0 bra~o dele
para a posi~ao inicial da lira. Entao giro 0 fauno para a esquerda. Veja
mos... Agora 0 bra~o do poeta volta tranqiiilo para 0 centro do dossel e
vai tocar... as cordas da lira. Agora!"
. Houve urn estalo forte. 0 al~apao se abriu! Bruno levantou os pu
nhos fechados, como urn lutador: "Conseguimos!". 0 plural erapura
bondade dele. Baixou os bra~os. "Agora ecom voces. Eu trouxe uma sa
302
cola grande." Pegou a jaqueta de Lorenzo, que estava sobre a balaustra
da e enfiou-a na brecha aberta no dossel: "Desta vez nao queremos sur
presas. Antes que eu me esque~a: Emilio, escreva as opera~6es ai na mi
nha prancheta: Urn: Erato, anti-hodrio, meia volta. Dois: poeta, anti
honirio, ate lira. Tres: poeta, honirio, ate posi~ao inicial de Erato. Qua
tro: fauno, anti-honirio, urn quarto de volta. Cinco: poeta, honirio, ate
lira". Era 0 nosso Epheta. Podia nao ser a formula, mas era uma formula.
Abelardo estava imovel, olhando para 0 teto, siderado. Eu senti, de
novo, aquela mistura de excita~ao e culpa. Sentia-me urn profanador de
intimidades, urn violador de segredos. Ao mesmo tempo, sentia-me es
colhido para partilhar 0 que houvesse naquele dossel. Bruno nao me deu
tempo para outras... vivencias existenciais: "Vamos, Emilio. Voce conhe
ce a toca. Vamos recolher tudo, antes que chegue algum chato".
Subi meio tremulo os degraus e espiei pela brecha. A jaqueta de Lo
renzo levantava bern a tampa e a luz entrava quase diretamente ate os li
vros. Era uma fileira de quinze ou vinte volumes, alguns com a marca
LVIII na lombada. Abelardo voltara de seu transe e estava apoiado na ba
laustrada, esperando urn convite para olhar 0 tesouro.
"De uma olhada no que estava por tnis daquela lira."
"Ceus! Que maravilha!"
"Agora des~a e va ajeitando cada urn na sacola de Bruno. Mas com
cuidado, para nao soltar as capas e nao perder algum papel que pode ha
ver entre as folhas."
"Va com calma, Emilio. Eu cuido da porta", falou Bruno.
Nao era hora para deleites, mas alguns volumes tinham titulos fas
cinantes. Eu ia recolhendo, com mao tremula, tesouros como urn De Ani
ma, de Aristoteles, 0 Compendium Metaphysices de Avicennas, Divisio
nes de Boecio, Historia Calamitatum de Abelardus, Summa Logicae de
Ockham. Dois outros livros eram particularmente importantes no caso
de Lutercio: duas tradu~6es de Leonardo Bruni, 0 Aretino: a Politica de
Aristoteles e 0 Gorgias de Platao. Eram mais uma prova da rela~ao entre
Bruni e Lutercio. Havia ainda De Ideis, de Wielef, Paradoxa de Cicero e
a Isagoge de Porfirio. Abelardo ajeitava os volumes na sacola como se fos
sem pe~as de cristal.
"Abram, seus egoistas!" Era Lorenzo for~ando a porta. Abelardo
abriu. "Estamos livres do arquiteto. Abelardo, parabens pelo truque. 0
30 3
arquiteto parece ter pavor de ratos. Nao pisani tao cedo nesta villa. Dei
xem-me ver essa mma. . "
306
duvidas, ele era considerado urn apostata. Motivo suficiente para priva
10 de sepultura religiosa. Este bilhete acrescenta outro motivo: 0 adulte
rio, igualmente infamante. As lapides, ao lado do moinho, nada esclare
cern. Mas alguem deve te-los sepultado, 0 que restou deles, em algum lu
gar, nas proximidades".
"Eugenia, sem duvida." A frase saltou de minha boca.
"Pobre Eugenia", falou Abelardo, "obrigada a enfrentar, alem des
sa desgra~a, 0 risco de acusa~ao de heresia, por sepultar urn cardeal apos
tata e a propria irma, reus de adulterio".
Agora estava claro: 0 perfodo de recolhitnento com os dois criados
fidelfssimos, depois de afastar os demais, tinha servido tambern para isso:
para sepultar clandestinamente os pobres amantes. Bernardo Muratore
tinha sido, mais uma vez, 0 executor e cumplice das decisoes dolorosas
de Eugenia. Era diffcil acreditar que ela nao houvesse deixado qualquer
marca das sepulturas. Mesmo naquela situa~ao de risco, seria diffcil en
tregar os restos de pessoas amadas ao esquecimento absoluto. Alguma
lapide, alguma inscri~ao deveria ficar para perpetuar a memoria da irma
e de Lutercio. Algo digno de urn espfrito refinado, de uma artista das
cores, apaixonada pelos matizes, os reflexos, as proje~oes de luz, as trans
parencias... Os vitrais da abside! A ideia me veio como urn grito.
"Os vitrais, Isabella!"
Ela ja tinha safdo. Para a capela. Fui para lao Bruno e Abelardo me se
guiram. A luz da tarde, forte e oblfqua, atravessava os vitrais e desenha
va no piso dois tapetes de manchas coloridas. As posi~oes das cores nos
vitrais ficavam invertidas na proje~ao. 0 gama de pe~as azuis deitava-se
no marmore na forma de urn perfeito Leo lambda se reclinava como urn
majestoso V de manchas amarelas. Isabella estava ajoelhada junto ao V.
Afagou-o e murmurou: "Repousa em paz, minha querida". Depois aca
riciou as manchas azuis do L na outra laje e beijou-a: "Agora, descansa.
Nos continuaremos a tua luta".
Post scriptum