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Isaias Pessotti

AQUELES CÃES MALDITOS

DE ARQUELAU

AQUELES CÃES MALDITOS

DEARQUELAU

I. O Instituto Galilei e os faisões... 7

2 . Tesouros do livreiro 39

3. O ninho de Filomena 63

4. A tribuna... 87

O Cava leiro da Paixão 109

6. O Commentarium 129

7. O verso fatal 149

8. A bandeja.. 173

9. Dilectissimus 193

IO. O afresco e o catálogo 213

II. Velhas marcas e a carta de Gabriella 23 7

12. Crepúsculo 263

13. Morte e transfiguração 287

Post scriptum 309

Capítulo 1

o Instituto Galilei e os faisões

Qualquer pesquisador sabe que, para obter financiamentos, é pre­


ciso que seu trab alho conduza a "avanços tecnológicos de vanguarda"
ou "resultados relevantes para a realidade nacional na área em apreço".
Como se verá, o nosso trabalho, diante desses critérios, era de fulguran­
te inu tilidad e.
Quando comecei minha pesquisa no Instituto Caldei, eu estava in­
teressado na evolução da idéia de loucura na antiguidade grega. Sabia que
ao cabo de meus estudos o mundo e a "realidade nacional área em
apreço" permaneceriam intocados; mas achava que depois de alguns anos
de fulgores acadêmicos no exterior e um punhado de publicações em re­
vistas respeitáveis, a pátria, glorificada, premiaria meus triunfos co m algo
mais do que louros. Errado.
O Instituto Caldei pagava mal. Mas grandes seduções.
A primeira delas era a total ausência de hi erarquia entre os pesqui­
sadores: não havia assisrentes, mesrres, douto res, ou catedráticos. Cada
um era a única auwridade so bre seu trabalho. Existia, é claro, uma subor­
dinação administrativa, que no Caldei era simples: havia um diretor exe­
cutivo, com cara de Pio XII, que resolvia tudo. Desde que o chamassem
dattare, ou melhor, dactar Lanebbia. Era um homem realizado: afinal ,
assinava cheques, contratos, ofícios e, suprema glória, autorizava as li ­
cenças, por demais freqüeme s, de Luciana, a secretária. Ela juntava à efi­
ciência no trabalho uma presumível competência fora dele. Era o que
murmurava a bibliotecária, também competente, no trabalho, mas dispen­
sada de demonsrrações adicionais após o expediente. Porém, a bibliote­

cária, Maria Eugenia, era quem garantia a outra grande atração do Calilei:
cuidava, como ninguém, dos tesouros da nossa biblioteca. Era uma figu­
ra sinuosa, severa, mal-humorada, de idade incerta entre os quarenta e os
cinqüenta. Costumava olhar para Tulio Renzi de um modo indefinido,
um misto de censura e interesse. Ele não suportava o andar saltitante dela
e a fulminava com os olhos cada vez que eh passava, ondulante, entre as
velhas estantes. A risada dela teria sido, segundo cálculo de Anna,
na formatura do liceu. Mas ela pelos "seus" livros um cuidado e um
afeto que lhe asseguravam o respeito de todos nós.
Maria Eugenia colaborava, quase como co-autora, em boa parte do
q ue brotava gênios" do para iluminar os povos, ou para me­
lhorar o saldo bancário do s editores. Ou, ainda, para leitura de candida­
tos ao mestrado, mesmo porque, em muitos casos, os orientadores éra­
mos nós mesmos.
Ela tinha dado nomes às salas da biblioteca quando o GaliLei estava
corso Mantegna: sala norte, sala meridional, sala oriental e salão tra­
pezóide. Poderia chamá-Ias A, B, C e D; mas isso seria simples demais,
muito natural. Ela tinha uma visão cartográfica do mundo e da vida. Ape­
sar disso, ou por isso, era, talvez, a melhor bibliotecária deste planeta; pelo
menos para atender a interesses tão estranhos e confusos como os nossos.
Naquele ano de 1968 não havia nada de computadores e coisas pa­
recidas no GaLilei. A memória geográfica de Maria Eugenia funcionava
como excelente hard disk, com rapidez mais do que suficiente para as
nossas necessidades de informação. Para a desimportância tecnológica de
nossos estudos era dispensável qualquer arsenal de megabytes.
A biblioteca era, para nós, como um santuário, onde as palavras anti­
gas, os velhos manuscritos, os exemplares de séculos passados eram guar­
dados quase como amores proibidos. Os livros eram nossos confidentes,
interlocutores afáveis. Mas arredios e surdos a quem não se aviasse ao en­
contro com humildade. Íamos biblioteca como quem vai consultar um
oráculo ou um profeta; e a postura grave, quase hierática, de Maria Eu­
genia garantia a sacralidade desses encontros .
Ela nos vigiava como uma mestra de noviças, ávida de pilhar-nos
em pecados como acariciar um pergaminho, comentar a beleza de uma
maiúscula miniata ou a imponência de um amifonário do século XII. Ela
detestava especialmente os arroubos de Beatrice que, dtante das pranchas

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de Vesalio, procurava quem estivesse por peno para demonstrar que, se
bem examinadas, elas teriam levado mais cedo à descoberta da função
central medula espinhal. Nessas ocasiões Eugenia assumia feliz
sua função disciplinar: pigarreava ostensivamente e passava a alinhar mi­
límetricamente os livros da estante mais próxima. Até que o asmo
de Beatrice se aplacasse ou seu prazer fosse interrompido e ficasse solí­
tário. Pelo menos era essa a interpretação, psicanalítica, de Mauro. Ele
tinha gastado dez anos de juventude tratando de histerias no "Paolo Pini"
e agora tinha voltado paz intra-uterina, na calma do Galilei. Estudava
a psiquiatria dos séculos XVIII e XIX.
T tínhamos uma certa aversão por roteiros de leitu raso um
sabia muito bem onde queria aportar com seus estudos mas nenhum se
atrelava a rotas precisas ou exclusivas.
Por isso era freqüent e que nossos cursos se cruzassem. Em certos
momentos, por exemplo, Anna e Mauro navegavam lado a lado, ela no
rumo da história do teatro dramático e ele no da psiquiatria do settecento.
O meu percurso na rota da idéia de loucura podia emparelhar-se ao
de Lorenzo, cujo tumo era o da medicina greco-romana, ou cruzar o ca­
minho de Anna, dirigido para o teatro trágico.
Esses cruzamentos de rotas criavam algumas dificuldades nas re­
servas de livros. Quando mais de um pesquisador estava à procura do
mesmo livro, Maria Eugenia convocava solenemente os interessados e so­
licitava que indicassem fontes alternativas, disponíveis no seu impecável
arquivo. E até sugeria textos adicionais, que supunha servirem aos inte­
ressados, para que um deles desistisse da reserva. Feito isso, ela decreta­
va O prazo de leitura para o agraciado e voltava, certa do dever cumprido,
para a sua lustrosa Olivetti. O que ela adorava mesmo era sua decisão
salomônica quando aparecia um terceiro candidato ao mesmo texto. Esse
era, invariavelmente, o favor ecido. Mas recebia uma recomendação sole­
ne para devolver pontualmente a obra, pois não o direito de preju­
dicar as pesquisas "importantíssimas" de seus colegas. O plural era acen­
tuado para que a culpa do privilegiado fosse mais abominável se atrasas ­
se a devolução. Obviamente, não havia qualquer disputa ou intransigência
nossa em tais ocasiões: mas era preciso que o ritual se cumprisse, ainda
que cada um fizesse ingenuamente seu pedido de reserva mesmo sem es­
pecificar qualquer data para receber o texto.

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Bastava haver dois pedidos simultâneos e o nomos soberano seguia
o seu curso.
Para desconsolo de Eugenia, essas ocasiões só ocorriam quan­
do pesquisadores novatos ou de fora pediam reserva. Nós, os veteranos,
combinávamos quem retiraria cada livro e o passaria aos demais, sem com­
plicações. Mas, em qualquer momento, a bibliotecária sabia com quem de­
veria estar, por quanto tempo, cada uma das trinta mil obras do acervo.
Em corso Mantegna, quase não havia espaço para leitura ou para
conversar sobre os textos: a biblioteca se reduzia às quatro salas batizadas
por Maria Eugenia, expostas ao tremendo barulho da rua, principalmen­
nas horas do Então se somava o cortejo de ônibus circulares 96 e
97 ao vaivém dos carros oficiais da Amministrazione ProvinciaLe que ser­
viam aos altos burocratas da Provincia di MiLano. Na nova sede do Ga­
LiLei, a quietude era, como Mauro, intra- uterina e a biblioteca fora
esplendidamente instalada num lugar ideal, num refeitório de monges do
trecento. Todo o Insti tuto, aliás, estava acomodado entre os muros vene­
randos do que fora uma pequena abadia do século XIII. Obra de algum
pioneiro de Cluny ou Chiaraval1e, aninhada entre duas colinas, junto ao
cascalho da cstradinha que vai de Nerviano a Garbatula, em plena cam­
panha Lombarda. Na construção original, a fachada era quase encostada
ao atual "Canale Villoresi" e voltada para Sant'Ilario. A abadia fora res­
taurada com bo m gosto e bom senso, preservando-se carinhosamente tu­
do o que de antigo houvesse, nas estruturas, no revestimento das paredes,
nos restos de afrescos. Assim, a atmosfera de meditação ou, por q ue não?,
de intrigas ou disputas teológicas sobreviveu. Graças às estreitas relações
de Lanebbia com a cúpula da "Dcmocrazia Cristiana", nacional, provin­
cial e municipal. Foi ele quem conseguiu as desapropriações, verbas, doa­
ções e, principalmente, a criação da Fondazione que nos mantinha.
Pagando pouco, bom repetir, com dinheiro repassado do que seria o im­
posto de renda de algumas editoras. É o que explicava Luciana aos visi­
tantes que vez por outra chegavam ao Instituto, em termos bem diversos
e com recursos de persuasão que me faltam.
Na verdade, o dottor Lanebbia possuía, além de todo o rosto de
XII e metade da estatura dele, uma enorme habilidade em administrar di­
nheiro, que conseguia das mais variadas fomes. Tulio achava que também
isso era herdado de Pio XII.

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Ninguém sabia, nem pretendia saber, por que ou como Lanebbia e
seus associados se interessavam por um bando de maníacos como nós,
gente estranha, supostamente inteligente, quc passava horas lendo ou dis­
cutindo inutilidades. Gente, dizia-se, que brilharia no corpo docente de
qualquer Universidadc; especialistas que qualquer editora contrataria por
somas astronômicas (certos astros não são muito grandes) . Era um enig­
ma também para nós. Mas, lamentações à parte, sabíamos de nossa ­
petência, também astronômica (alguns astros são bastante grandes) para
com contratos, chefes, prazos e, sobretudo, reivindicações salariais
Tínhamos, além disso, algumas doenças comuns todo o grupo, ou quase
todo: a bibliomania mais crônica que se possa imaginar, uma paixão neu­
rótico-delinqüeneial por textos antigos, que nos levava freqüentemente a
visitas subservientes a párocos, conventos, igrejas e colégios. Procuráva­
mos criar relacionamentos que facilitassem o acesso a qualquer velharia
escrita. Que poderia estar esperando por nós, por que não?, desde séculos,
ou décadas. Conhecíamos armários, sótãos, porões e cofres de sacristias,
bibliotecas, batistérios ou cenáculos, bem melhor do que seus proprie­
tários ou curadores. E tínhamos achado preciosidades que muitos cole­
cionadores cobiçariam. Descobrir esses esconderijos era uma espécie de
hobby nosso nos fins de semana, quando saíamos, quase sempre no
2HP de Bruno Salvadori, atrás de boa comida, bons vinhos e velhos
escritos. Abelardo, Isabella e Anna quase nunca participavam dessas ex­
pedições. Nem Mauro Adami. Os três primeiros porque eram casados
(ou coisa parecida); e Mauro porque tinha suas noivas a ocupá-lo em tem­
po integral.
Outra doença era de tipo alérgico: uma aguda aversão por qualquer
discipl.ina de estudo. Mas, à parte essas moléstias, não mordíamos
ninguém, éramos todos membros de algum partido, quase sempre de es­
querda, pagávamos multas como qualq'u er cidadão decente. Tínhamos
nossa inevitável e fecunda dose de narcisismo e escovávamos os dentes
regularmente.
Virtude, talvez única, era a seriedade com que cada um de nós pro ­
curava conhecer seu assunto de indagação, uma virtude que mais era um
pecado; para nós, estudar era pura paixão. E não havia lugar melhor para
dar livre curso a essa paixão do que uma medieval e seu claustro
cheio de paz e de memórias.
Vista de cima, ou na planta gravada no pavimento da igreja, a abadia
a forma aproximada de uma letra I-I maiúscula.
As duas hastes paralelas eram ligadas por um amplo vestíbulo (Ma­
ria Eugenia chamava "transepto"), que dava acesso às quatro pontas do
H. As duas de cima abraçavam um claustro pequeno e sombrio que lem­
brava o das Agostinianas em Roma, embora mais rústico e um pou­
co malar.
Pensar nas verdades e dú vidas de outras épocas, caminhando lenta­
mente pelo claustro, era, mais que uma reflexão, um exercício espiritual,
que me trazia muita paz. Cada lado quase un s metros de com­
primemo na linha das paredes. Havia sete arcos, em cada um, sustentados
por pares de colunas de granito. Tinham formas variadas, nas bases, nos
fustes e, principalmente, nas figuras esculpidas nos capitéis. As figuras da
águia, do touro, do leão e do anjo ficavam nos quatro cantos do claustro,
nos capitéis das colunas externas. Nos outros havia lobos, falcões, cães,
frutas , anjos, candelabros, espigas de trigo, livros, Hores, santos etc. Lo­
renzo tinha fotografado todos eles para estudar futuramente.
As salas dos veteranos fi cavam entre a coluna da águia e a do touro,
no lado direito do claustro. No lado oposto ficavam as colunas do e
do anjo e, atrás delas, a parede da igreja, que subia muito acima do teto
do claustro.
Tinha lápides com imagens e inscrições bastante desgasta­
das. Eram figuras monásticas acompanhadas de símbolos, nomes e tÍtu­
los. As mais recentes, posteriores ao quattrocento, exibiam brasões de
armas, muitos deles com a cruz abacial ou com o báculo voltado para
dentro, como convém aos abades.
Essas lápides ficavam à altura de um homem. Abaixo delas, toda a
da parede era tomada por bancos de pedra, sete em cada lado,
um diante de cada arco. Tínhamos nossos bancos preferidos. O de Anna
era junto coluna do candelabro. Tulio tinha o do lobo . O dela era pró­
ximo a uma das cerejeiras e o de Tulio permitia contemplar, por cima do
muro divisório da abadia, a estradinha que sobe a colina na direção de
Sant'Ilario.
Mauro tinha dito que escolha de Anna indicava introversão e a de
Tulio revelava extroversão. Ninguém levou a sério o "diagnóstico", nem
o próprio Mauro. O consenso era que todos nós, exceto Beatrice, éramos

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introvertidos. Sem prejuízo de outras características menos inócuas, dis­
tribuídas, sem distinção, tal como o bom senso cartesiano, entre todos.
Entre os dois pés do H ficava um jardim, sem nada de especial, além
de três enormes castanheiras muito antigas, que Lanebbia gostava de cha­
mar, com duvidoso gosto, "as testemunhas da história".
Num canto do claustro, bem na extremidade direita do H, ficava a
minha sala, próxima à de LorenZ0 e Tulio. Ali eu me sentia, às vezes, um
monge, às vezes um hóspede, às vezes, infelizmente, um pesquisador do
século xx (mal pago, é bom lembrar).

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Nós oscilávamos entre o engajamento político, ou acadêmico, e a
sedução do conhecimento desinteressado, que já então era chamado, nas
assembléias de via Festa dei Perdono, alienação acadêmica, intelectualis­
mo burguês. Ou, mais cruamente, fascismo. Apesar de tais encômios, na
tranqüilidade da abadia, estávamos atentos para os problemas sociais e
comprometidos, sem faixas e cornetas, com o progresso político do país.
Ademais, a maioria de nós já tinha sua história de lutas, desilusões e frus­
trações políticas, amorosas etc.
Havíamos aprendido também que o prestígio acadêmico é quase
sempre produto de oportunidades mais que do mérito e, por isso, não
havia diferenças, no Galilei, entre quem já escrevera um best seller ou ti­
nha ensinado em Harvard ou Oxford e quem ainda estava preparando seu
doutorado ou seu primeiro artigo individual.
Esse era o caso de Anna, por exemplo, que aos 33 anos de idade ti­
nha já 15 de pesquisas sobre literatura e teatro grego. Lia grego corren­
temente e, curiosamente, no latim era, segundo ela mesma, um desastre.
Tinha publicado apenas duas monografias, indispensáveis para quem qui­
sesse entender Homero ou a poesia grega mais antiga. Escondia seu sa­
ber como uma colegial esconde o primeiro soneto, mas era, como dizia
Tulio, um vulcão de conhecimento, pronto para soterrar qualquer inter­
locutor desavisado. Mas Anna tinha medo de apresentar-se a um dou­
toramento, mesmo sabendo que, em muitas teses, suas monografias eram
citadas na bibliografia básica. Ela era um vulcão, também em outros sen­
tidos, talvez mais importantes, como pude perceber mais tarde.
Mauro Adami também era um dos mais jovens, 34 anos, 10 deles de
psiquiatria, noivados e pesquisas sobre a teoria da sedução em Freud, após
longos estágios em Londres e Berlim. Publicara apenas um livro, versão
de sua tese sobre Adler e a luta política, antes de entrar no Galilei.
Já Tulio era um especialista mais amadurecido, que começara em
Messina, com De Franco, uma rigorosa carreira em neuropsiquiatria in­
fantil. Passara à behavior therapy e, por fim, a estudos sobre o conceito
de deficiência mental. Era professor associado em Bologna e deveria ter,
como eu, uns 40 anos. Tinha uma sensibilidade incomum para perceber
quando algum de nós estava preocupado ou deprimido. Costumava di­
zer, com toda a seriedade, que nos entendia porque tinha muita experiên­
cia em lidar com crianças psicóticas. Era autor de vários livros, alguns

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para estudantes, outros para médicos, e todos, a seu ver, para enfurecer a
ex-esposa, que não recebia direitos sobre eles, como pretendera por oca­
sião do divórcio, em 1962.
Beatrice Bonomi, a mais tranqüila e entusiasta do grupo, tinha uma
beleza toscana. Traços leves, tons claros, cabelos soltos e o olhar doce e
alegre das graças de Botticelli; estudara com Moruzzi em Pisa, Margaria
em Milão e estagiara por alguns meses com Anokhin em Moscou. Ali en­
controu um físico holandês pelo qual ficou eternamente apaixonada (por
uma semana e meia). Depois disso, oscilava entre seus dois amores: a his­
tória do movimento muscular, ou comportamento motor, como definia
Lorenzo, e o projeto de ter uma filha bailarina.
Lorenzo Crivelli Duci também era dos mais maduros e devia ter,
naquele tempo, uns 45 anos. Impressionava por sua erudição em histó­
ria etrusca, uma atitude bastante cética diante de quase tudo o que não
fosse afresco do século XIII ou história da medicina. Seus trabalhos mais
citados eram sobre a influência da medicina árabe na cultura médica da
Europa. Conhecia quase todos os párocos, igrejas, restos de mosteiros e
coisas análogas em toda a Lombardia. Odiava freiras.
Finalmente, eu, Emilio Donatelli, vêneto de Cordignano, bacharel
em Filosofia, uma cátedra de Psicologia, muitos artigos publicados, um
livro sobre a ansiedade, sucesso de crítica e fracasso de bilheteria (como
o autor). Míope, em vários sentidos.
Essas eram as "drammatis personae" principais. Havia outros pes­
quisadores que trabalhavam nas salas do pavimento superior, exatamen­
te sobre as nossas. Eram menores, antigas celas monásticas, menos úmi­
das que as nossas. Tinham mais restos arqueológicos nas paredes e for­
ros. Mas as nossas se abriam diretamente para as arcadas do claustro. E
para as cerejeiras que o cobriam de sombra no verão e de folhas no ou­
tono. Nossas salas eram antigos aposentos de serviço: cozinha, despen­
sa, oficinas ou lavanderia dos antigos monges. Por isso, as paredes e te­
tos não apresentavam qualquer relíquia. Apenas a sala de Lorenzo e Tulio
possuía uma espécie de forno ou lareira tosca de granito e dois suportes
de ferro para lamparinas em uma das paredes.
Na lado oposto do claustro, na'outra ponta do H ficava a igreja do
mosteiro. Tinha duas vezes a altura do claustro e era uma das riquezas do
Galilei. A outra era o refeitório, com grandes fragmentos de afrescos do

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trecento e um forro, abaulado, tinha pinturas mais recentes. Ali, onde


mais poderia ser?, se instalara a nossa biblioteca. A luz vinha de sete ja­
nelas na parede externa e três pequenos vitrais antigos na interna. Dois
deles tinham placas de alabastro que lembravam as do mausoléu de Gala
Placidia. Foi Anna quem lembrou a semelhança. Ela ficava meio tensa
quando falava do mausoléu. Mais tarde entendi que a figura de Gala lhe
despertava uma certa compaixão. E nisso éramos iguais. Num passeio a
Ravenna com Mauro e uma de suas noivas, em 64, a beleza do mausoléu
me tinha comovido profundamente. Sonhei com ele e a figura de Gala por
várias noites consecutivas. Nunca mais voltei lá. Para não quebrar o en­
canto que me tomou, naquela manhã de agosto.
Foi um prazer intenso descobrir que Anna e eu tínhamos um obje­
to comum de afeto. Só quem já sentiu esse prazer pode entender a doce
cumplicidade que nasce, sem palavras, quando se partilha secretamente
um afeto intenso e íntimo. Havia também uma vaga sensação de pecado
que nos ligava, num triângulo apaixonado, a Gala Placidia, nosso amor
comum.
Eu já tinha sentido essa paixão instantânea e envolvente. Foi quan­
do estava ouvindo, com uma amiga, o "adagio assai" da Heróica, que não
consigo ouvir sem me comover. Ela mostrou-me seu braço arrepiado, e
fechou os olhos enquanto mordia o lábio, entregue a um prazer intenso.
Como o que eu sentia. Aquele momento foi, de algum modo, um encon­
tro amoroso.
"São identidades órfãs que se encontram", diria Mauro.
Era muito mais que isso. O "adagio assai" se tornara uma espécie de
código para um mergulho conjunto no prazer. Assim como a contem­
plação dos alabastros com Anna era uma entrega deliberada de nós dois
a um prazer comum, só nosso. Ou, pelo menos, eu queria que fosse as­
sim. Era um prazer intenso, que dispensava qualquer palavra.
Uma vez conversei por alto, sobre essas afinidades, com Tulio, que
me parecia capaz de entender esses estranhos vínculos.
"Não sei se te entendo", disse ele, meio cético e meio irânico, "mas
se é como compreendi, você está falando da única forma verdadeira de
amor". E explicou: "nenhum amor sobrevive à palavra". Sorriu hesitante
e completou: "mas nenhum poder prescinde dela". E já depois de voltar­
me as costas ajuntou: "não estou muito seguro disso, mas é uma bela fra­

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se". E era. Convidar-me para olhar os vitrais de alabastro era um gesto


de adultério de Anna, como tinha sido uma deliciosa infidelidade de Leo­
nora, ligar o disco da Heróica diante do marido, após um jantar em Peru­
gia, anos atrás, enquanto me olhava no fundo dos olhos, silenciosamente.
Deixemos porém essas formas intelectuais de "libido", por ora.
Nas salas de cima trabalhavam os "pombos" como os batizara Lo­
renzo. Porque no inverno ficavam tomando sol quase sobre o telhado do
claustro, numa sacada comprida que servia às quatro salas superiores. Tí­
nhamos mais cantata com três pombos, Bruno Salvadori, Abelardo Pas­
quali e Isabella Pierini.
Bruno estudava a história da alquimia. Abelardo, direito antigo, e
Isabella, para inveja de todos nós, bibliomaníacos, estudava história do
canto gregoriano. Vivia cercada de missais, antifonários, saltérios de vá­
rios séculos. Mais ricos e mais belos do que qualquer Opera Omnia de
Galeno ou Borelli. Sem mencionar os abomináveis códigos penais do sé­
culo XVIII, que Abelardo tinha desencavado numa prefeitura perto de

i Siena.
Eu também possuía meus troféus, menos adoráveis que os de Isa­
bella, mas seguramente menos sem graça que os de Abelardo. Eu tinha
I um De Anima em papel pergaminho, de 1502, com anotações em italiano
arcaico, que era a inveja de Mauro; um "Édipo-Rei", em latim, de 1598,
com gravuras, que Anna cobiçava; as Opera Omnia de Bellini e de Bagli­
vi, nas edições originais, que fascinavam Lorenzo e, finalmente, uma edi­
ção anânima do Malleus Maleficarum, com anotações em algum código
desconhecido, que era a inveja de todos: os "da cozinha" e os "pombos".
Nossa vida intramuros não tinha complicações maiores, mas "lá fora,
no mundo", como dizia monasticamente Mauro, é que se decidia, além
do nosso pagamento, o destino que se dava aos nossos escritos. Muitas
vezes os textos eram submetidos pelas editoras a consultores que jamais
tinham vivido um modo de trabalhar como o nosso, no Catilei. Estavam
lutando ferro e fogo" por posições de relevo, lucro ou prestígio aca­
dêmico naquela espécie de guerra que é a desgraça ou a graça da vida
universitária. Nós éramos, sejamos francos, desertores.
Nada contra qualquer consultor ou referee, pois com freqüência,
maior que a desejada, nós também éramos consultores. Mas, de costu­
me, procurávamos não impor, nem mesmo sugerir, desenvolvimentos al­
ternativos do tema ou mudanças que obrigariam o autor a renunciar ao
seu enfoque pessoal do assunto.
Por isso não gostei, e meu ego muito menos, quando recebi o parecer
de um consultor sobre um trabalho (mal-acabado, é verdade) que man­
dei a uma revista. Ele escreveu um parecer sério, muito competente e tra­
balhoso. Dissecou o texto, mais do que eu desejava, falhas de
bibliografia que a seu ver eram elementares. O pior é que o parecer fala­
va, com uma cortesia que beirava a piedade, em "fontes que realçariam o
ponto de vista" ou "tornariam mais nítida a linha de pensamento do au­
tor". E sugeria tantas mudanças e acréscimos no meu texto que o trans­
formariam num artigo que não era o meu.
Não conto isso para falar do parecer que, repito, era competente
e sério. Mas por outras razões.
Meu plano de pesquisa para o Galilei era um desenvolvimento do
artigo e por isso resolvi engavetar o manuscrito (para gáudio dos arqueó­
logos do século XXIII) e discutir o texto e o meu plano, com Lorenzo e
Anna. Eu não podia prever que essa discussão mudaria, além do meu pla­
no, tantas outras coisas.
No caminho para Sant'Ilario há um amontoado de casas, quase um
paese, Santa Chiara. Além da gente tranqüila e da igreja, bastante "melho­
rada" por algum pároco empreendedor, o que nos atraía ali era o Mena­
rost, uma velha trattoria de aldeia, honesta e tranqüila. Na cozinha, quan­
do havia clientes, trabalhava a dona da casa, chamada Lisa; o marido, Giu­
lio, servia as quatro mesas, lavava os copos, contava histórias e colecio­
nava fotos de jogadores da Internazionale. Tinham um excelente Barbera
e um ótimo Pinot Grigio, de San Vendemiano, perto de Castelfranco. A
comida era deliciosa, à moda da campanha pavese. Quem descobriu o
Menarost foi Lorenzo. Era um lugar precioso, ainda sem turistas, moto­
cicletas e executivos. Uma toca ideal para conversar em paz, com boa
comida e vinho honesto. Fugimos para lá, Anna, Lorenzo e eu, por vol­
ta de onze e meia, antes que os outros se juntassem a nós, para podermos
conversar com calma, sem muita gente à mesa.
"Bom dia, Giulio", saudou Lorenzo, que já era de casa, "trouxe dois
amigos para conhecerem os bucatini e o alla Santa Chiara."
"Bom dia professor, mas hoje temos fagianella e penne all'arrab­
biata", disse Giulio meio constrangido.

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"Por enquanto, traga um Pinot gelado para os meus amigos e um
Barbera para mim."
Achei meio estranha a certeza dele de que Anna gostaria do Pinot. Te­
riam estado ali outras vezes? Por que não pediu o Pinot também para ele?
Giulio resolveu a minha dúvida: "Meno male, professor, que o se­
nhor não esqueceu; a próxima remessa do Pinot vai chegar só no sábado.
Tenho exatamente duas garrafas para os seus amigos: uma para o dottore
e uma para a signorina".
"Signora", corrigiu Lorenzo, com certa frieza.
Giulio trouxe pão e um salame caseiro, do inverno anterior. Ago­
ra, em junho, estava plenamente stagionato, com o perfume e a umidade
ideais e um preciso toque de alho que o distinguia de qualquer outro.
Era um dia luminoso e quente. No quintal da trattoria cantavam al­
guns pássaros e um galo rouco.
"Gostei do teu artigo, mas o consultor tem razão em alguns pontos
do parecer", disparou Lorenzo, sem preliminares.
"Pode-se não ter razão mas ter razões", disse Anna, abrindo, obvia­
mente, um debate. "Eu também gostei, mas não tanto da forma como das
idéias. Qualquer um vê que você juntou sem muita calma trechos de al­
gum texto mais amplo. Isso eliminou nexos entre as partes, que só são
óbvios para você ou quem é do ramo."
"Eu também reconheço que o consultor tem razão, Lorenzo; mas, co­
mo diz Anna, tenho razões para ter escrito o texto assim. É claro que al­
gumas partes ficaram meio desligadas e ele ficou difícil e pouco fluente..."
Lorenzo levantou a mão pedindo uma pausa enquanto engolia uma
fatia de salame e depois explicou: "Você escreveu para ser entendido, não
para registrar idéias no papel. O consultor mostrou que nem ele, sem al­
gum esforço, entendia o texto e que as passagens entre os vários tópicos
eram, portanto, pouco claras. Mas, já disse, gostei do artigo".
"Das idéias do artigo", corrigiu Anna, implacável.
"Não só. Há páginas muito bem escritas, citações cruciais, riqueza
de informação, interpretações bastante originais de alguns textos... "
"E, em vista de todos esses méritos, a Real Academia de Ciências de
Estocolmo...", começou Anna, solene.
"Decidiu outorgar a você e ao consultor o prêmio Nobel, ex aequo,
de história da ciência", emendou Lorenzo, enquanto enchia os copos.

19
"Mas insisto, e agora falo sério: o artigo tem muita coisa boa mas eu tam­
bém não aprovaria a redação que você deu."
"Nem eu. É que eu não suportava mais ver aquele monte de páginas
que deveria ser o meu 'Antes de Freud', encalhado no quarto capítulo.
Por isso, antes de jogar tudo fora, juntei as informações mais interessan­
tes em trinta páginas, no máximo, como exigia a revista. E deu nisso: al­
guns elogios e sugestões inaceitáveis. "
"E por que você não modifica?", foi a pergunta distraída de Anna.
"Apenas porque o consultor, além de apontar com precisão os de­
feitos de forma, quer outras coisas."
"Os homens estão sempre querendo outras coisas", disse Anna,
meio desligada, num tom vago que podia ser tanto queixa como insinua­
ção. Ensaiou um sorriso enquanto levava o copo à boca. Juro que invejei
aquele copo. Procurei seu olhar, mas ela fitava, meio triste, os reflexos da
janela no seu Pinot. Desejei que lembrasse os vitrais de Gala Placidia.
Mais que tudo, desejei que Lorenzo evaporasse.
"Primeiro, não sabemos se 'o consultor' é mesmo um homem; se­
gundo, vocês, mulheres, detestam homens que não querem alguma outra
coisa; terceiro, se você quer falar de outro assunto, é só dizer. Mas nós es­
tamos discutindo o artigo de Emilio e o parecer." Foi o que disse
renzo, firme mas suavemente, antes de um imenso gole de Barbera. Não
era agressão, mas uma observação fria, desencorajante. Aprendi, mais tar­
de, que era o tom usual dele quando se falava de amor, desejo ou "outras
. ".
COlsas
A observação me deixou meio chocado. Mas a reação de Anna foi
glacial, desconcertante: "Emilio, sirva mais Pinot para mim. Eu não tenho
culpa se, para vocês, 'alguma coisa' significa algo diverso. Eu, como mu­
lher, prefiro que os homens queiram 'outras coisas', como diz Lorenzo;
mas gostaria mais se, além dessas, eles apreciassem também algumas 'ou­
tras coisas"'.
"Resposta brilhante e esperta. Típica reação de mulher", disse Lo­
renzo, rindo. "É como cair sentada no meio da Galleria e aproveitar o
tombo para levantar-se mostrando as coxas e sair rebolando para os tu­
ristas do Biffi."
"Observação brilhante e objetiva. Típica reação de homem", retru­
cou Anna com ironia. "Ê como não entender um conferencista e sair ao

20
fim da exposição dizendo que ele é estrábico ou sorri demais. Ou usa uma
gravata horrorosa." E num gesto gracioso, tocou o copo de Lorenzo com
o seu: "Saúde!".
"Touché, você está em forma", brindou ele. E prosseguiu:
"A sedução feminina, essa magia que atrai e ameaça o homem, como
as coxas ou o rebolado de uma mulher na Galleria, é o que as malucas
feministas pretendem destruir, justamente em nome da valorização da
mulher. Será que não sabem, já que colocam as coisas em termos de po­
der, o enorme poder de um belo par de pernas ou de um rebolado natu­
ral, elegante?", perguntou Lorenzo.
Eu esperei o contra-ataque de Anna. Que não houve. Ela respondeu
tranqüila como se tivesse preparado a resposta: "Elas se sentem culpadas
pela sedução. E querem abolir o que lhes traz a culpa e o conflito. Sabem
que não seduzem um parceiro do amor, mas alguém que, seduzido, se
torne um defensor, protetor ou troféu. Que signifique segurança, status,
afirmação pessoal. E se culpam por isso. É que já não são capazes, como
na adolescência, de seduzir por amor e para amar. Elas sabem muito bem
o poder das ancas ou das coxas. Mas já não conseguem exercê-lo sem cul­
pa. E projetam sua culpa sobre o macho por excitar-se com suas graças e
formas. Elas detestam, mas desejam ser objetos de desejo, e de prazer.
Mas esse Pinot já rendeu demais. Falemos do artigo".
Não me interessava discutir feministas ou coxas, naquela hora, em­
bora a segunda opção tivesse sua graça. Principalmente porque as pala­
vras de Anna insinuavam uma sensualidade incendiária. Tulio já a tinha
definido como um vulcão. E quando se envolvia numa discussão lembra­
va, não sei por que, uma pantera. Aqueles olhos grandes e severos ganha­
vam um brilho quase selvagem. O rosto moreno e magro me lembrava
Nefertiti, pela fronte, os lábios e as faces quase angulosas. Nessa manhã,
com um vestido amarelo e curto que descobria generosamente as coxas
bronzeadas, desinibida, graças ao Pinot, ela estava irresistível. Mas havia
os perigos do vulcão. E era preciso decidir sobre o parecer: estávamos ali
para isso, como Lorenzo tinha lembrado. Minha vontade era ouvir An­
na, não importava o que dissesse. Por um segundo, delirei pensando em
agarrá-la e vê-la entregar-se feliz ao meu abraço; mas despertei, dizendo:
"O meu artigo pretendia apenas descrever a gênese e as transfor­
mações da idéia de loucura na Grécia antiga. Sem querer relacionar as

21
conotações desse período com as de qualquer outro. Isso está até no tí­
tulo do artigo. Mas o consultor acha que devo ligar Psyche, a do mito, às
idéias correntes como psiquismo ou aparelho psíquico, na acepção de
Freud. Tudo isso porque o artigo começa com o mito de Psyche, para
apresentar a idéia vaga de erro e reparação na mitologia grega. Eu
vi que a intervenção arbitrária dos deuses, além de 'explicar' o normal e
o aberrante, excluía a idéia de culpa pessoal. Então não havia o remorso
ou o arrependimento. E, desse modo, o que hoje seriam conflitos, frus­
trações, desejos ou impulsos era vivido como um jogo caprichoso dos
deuses. A tal vida psíquica não existia, era impossível».
Eu procurei um olhar de aprovação de Lorenzo. Ele tentava conter
o riso pousando a mão no meu ombro, como a desculpar-se. Quando
parou, tomou mais um gole do Barbera e explicou-se: "Desculpa, Emi­
lio, mas, por um momento, imaginei a cara de Maria Eugenia ao saber que
as atividades 'extracurriculares' de Luciana são o mero jogo dos deuses;
que ela pode pintar e bordar sem qualquer culpa ou risco de castigo".
"Nesse caso, ela tocaria fogo no Olimpo", completou Anna.
Eu estava para fazer a minha piada, mas Anna continuou, séria. "Se
compreendo bem, o consultor pretende que você, partindo das mesmas
fontes, entenda Homero ou Hesíodo de maneira oposta ao seu modo de
ver." Ela me olhava, com certa dúvida nos olhos e na voz.
"Nada menos. E não só isso: ele quer que eu escreva um absurdo,
que aceite uma impostura 'histórica': traçar o nexo entre a palavra Psyche
e o conceito de 'psíquico'; esse nexo é artificial. Aquilo que, para os gre­
gos, corresponde ao espírito ou à vida mental e afetiva não é a Psyche, mas
o 'thymos', uma espécie de alma de serviço, que morre com o corpo do
homem, enquanto a sua Psyche sobrevive depois dele."
"The evil that men do lives alter them", citou Anna.
"Então, uma psicologia que derivasse linearmente de Psyche seria
uma parapsicologia ou um espiritismo", arriscou Lorenzo.
"Psyche é Psyche e Alan Kardec é seu disse apontan­
do para mim. "E você deveria ser uma espécie de teólogo ou guru da no­
va doutrina."
"A coisa está ficando séria", disse Lorenzo, acenando para Giulio.
"Mais salame? Este ano ele ficou bom mesmo. Trago já. E... para
apurar as idéias, mais uma garrafa do Pinot Grigio. Só me restam oito."

22
tas vezes uma questão de história. O que aceito, e você não disse, é que a
elaboração deliberadamente abusiva de teorias ou vocábulos científicos
não promove o saber, mesmo quando acarreta tentativas bem-sucedidas
de aplicação, clínica ou outra."
"Eu digo mais, Lorenzo: essas audácias são fatos de história da ciên­
cia mas não de história do saber", declarei.
"Devo concluir que a trajetória do saber transcende as artimanhas de
autopromoção, as rivalidades ou as alianças mais ou menos 'mafiosas' en­
tre pesquisadores ou 'panelas' de cientistas. É isso?", perguntou Lorenzo.
"É. E também que uma história do conhecimento seria possível sem
referência a qualquer nome ou centro de pesquisas, o que dificilmente se
conseguiria numa história da fisiologia, por exemplo. Nesta deveriam
entrar os desvios, as dissidências, as improvisações e até as fraudes. O co­
nhecimento fisiológico, por seu lado, teria uma linha de evolução trans­
cendente a todas essas condições episódicas, até pessoais", foi o que me
ocorreu como resposta.
"Precisamos definir melhor as coisas. Anna, já que temos mais Pinot,
passa-me essa garrafa. Podemos definir a história da ciência como o es­
tudo crítico do processo de produção do saber científico e a história do co­
nhecimento como o estudo do produto desse processo: o saber resultan­
te. Assim fica mais claro: há duas trajetórias diversas, uma terrestre, cheia
de desvios, becos sem saída e atoleiros e outra como uma rota aérea; sem
mata-burros, bloqueios e engarrafamentos. Então a progressão obedece
a regras diversas em cada uma das rotas... "
"Na rota terrestre cada passo determina inexoravelmente o percur­
so imediatamente seguinte, gerando uma progressão nem sempre econô­
mica. Na rota aérea são os parâmetros gerais do vôo que determinam o
percurso e o ritmo da progressão", interrompeu Anna. Para alívio de Lo­
renzo que mantinha o copo entre a mesa e a boca, sem decidir se bebia
ou continuava sua analogia.
Giulio vinha trazendo a segunda bandeja de salame, mas antes que
chegasse, alguém apareceu numa das janelas e gritou em dialeto milanês:
"Ste me cünte, interista malmustus?". Era um homem risonho, de cara re­
donda, com um boné vermelho e preto. Um milanista fanático que esten­
dia aos olhos furiosos de Giulio a manchete escandalosa do Tuttosport:
"Rivera, diabólico, esmaga a Inter". A reação de Giulio foi explosiva. Fi­

24
cou vermelho, quase roxo e destampou sua fúria numa espécie de ladai­
nha: "Eu quero que você, o Gianni Rivera, a Madonna, o Arcanjo Gabriel
e o Paolo VI vão todos se...".
Então, olhou para Anna, passou de vermelho a amarelo e tampou o
verbo decisivo com a mão. Baixou os olhos, como um escolar apanhado
em flagrante, e desculpou-se: "Signora carissima, esse padeiro me provoca
desde o domingo, só porque aquele raquítico do Rivera marcou dois gols
contra a Inter. Os milanistas são mal-educados. Mas no próximo domin­
go ele vai enfiar aquele jornal... Me desculpe, signora, quase digo outra
bobagem".
Anna aliviou o constrangimento dele: "eu também sou interista,
Giulio. Esse tal de Rivera não chega aos pés do nosso Sandrino... ".
Giulio deixou o salame e afastou-se encabulado.
Retomei a conversa antes que mudasse o assunto: "Mas então você
e Anna entendem a ciência como as atividades dos cientistas. Por exem­
plo, experimentos, debates, relatórios etc. E não como o produto formal­
mente organizado dessas atividades. É uma concepção discutível, mas cla­
ra. Então a história das idéias pode referir-se às idéias científicas, filosó­
ficas, literárias etc."
Já recomposto, com a cara novamente rosada e tranqüila, Giulio vi­
nha trazendo a massa. Tinha um sorriso orgulhoso sob o bigode grisalho.
Pousou solenemente na mesa a enorme tigela fumegante: "Vejam que al­
caparras! Sintam o aroma! Afagianella vai demorar um pouco. O 'gra­
na' está uma delícia, ralado agora. Bom apetite, signora", disse sorrindo
para Anna e olhando de viés para Lorenzo, que lhe havia corrigido o uso
de signorina.
Enquanto Giulio servia os pratos, a conversa prosseguia meio de­
sordenada, como acontece quando se misturam vinhos, salames, história
das idéias, coxas, feministas e Gianni Rivera. "Acho que é uma questão
de definição, mas não são especialidades que se excluem mutuamente.
Emilio, passa-me o 'grana', por favor. Eu acho que há um outro nível de
evolução do saber. É o saber codificado, registrado para sempre em uma
certa linguagem. É o produto puro e final de variadas trajetórias, terres­
tres ou aéreas, para usar a sua analogia. É o saber que está encerrado e vivo
nas bibliotecas e nas gravações, nas fórmulas e equações, nas pranchas de
Vesalio ou nos antifonários de Isabella."

25
"O mundo número três de Popper, por acaso?", indagou Anna, en­
quanto servia mais 'penne' no seu prato e no meu. "Eu acho que nós três
vivemos nele e, de minha parte, não pretendo emigrar."
"Esse sim é um saber desencarnado, louvado seja Alan Kardec, ver­
dadeiramente transcendente ao processo que o produziu", completei.
"E é por isso", emendou Lorenzo, "que as palavras conservam sig­
nificados de outros tempos mesmo que tenham novas conotações no pre­
sente".
"Mas histeria hoje nada tem de uterino a não ser a etimologia", in­
terveio Anna.
"Tem e não tem, depende do texto que você ler; mas seguramente
não existe mais nada do conceito antigo nos textos de hoje. O nexo en­
tre as duas acepções não é, digamos, genético, no sentido de que esta con­
cepção deriva daquela, numa linhagem que mantivesse, de uma geração­
a outra, algo substancial e permanente como genes ou cromossomos."
"Mas o consultor acha que psiquismo deriva geneticamente de Psy­
che e erotismo descende de Eros", ajuntou Anna, tirando o guardanapo
dos lábios. E continuou: "O diabo é que a idéia de evolução ou gênese é
meio vaga. Há o significado de formação ou evolução, há o de transmis­
são hereditária e, ainda, o de filiação ou descendência. Em outros termos,
se o Pinat me concede, eu diria que o nosso consultor confunde gênese,
genética e genealogia".
Lorenzo, que estava espetando as 'penne' restantes na tigela, franziu
a testa e olhou para o teto, por alguns segundos. Depois levantou os bra­
ços como a interromper o trânsito e disse: "Lindo, Anna! Gênese, gené­
tica e genealogia do conhecimento! Escreve isto, Emilio: vai ser o nosso
best seller".
A frase de Anna era mesmo inspirada.
"O parecer me pede uma análise 'genética' da idéia de psiquismo.
Supõe que o material genético da poesia épica sobrevive, talvez com al­
gumas alterações menores, até no Projeto de Freud, como uma molécula
de DNA. E pensa, quem sabe, que o DNA da melancolia hipocrática se
transmitiu às várias subespécies de melancolia até às do século XIX. Mas
o que nós fazemos no Galilei não é genética da ciência ou do saber.
Nós fazemos genealogias, estabelecemos linhas de descendência ou fi­
liação das idéias, mas sabemos muito bem que as linhagens que traçamos

26

são repletas de produtos híbridos, bastardos, tarados, ao lado de exem­


plares geneticamente mais puros. Genes dominantes passam a recessivos,
graças a cruzamentos adulterinos ou a situações promíscuas. Como em
qualquer Casa Real da Europa."
"A gênese do conhecimento seria então", inferiu Lorenzo, "o pro­
duto conjunto de uma genética e de uma genealogia?".
Anna riscava o guardanapo com o cabo do garfo traçando esquemas
invisíveis. Levantou o garfo como se fosse uma batuta e retrucou: "Isso
não é a gênese, é a história da gênese ou da evolução das idéias, produ­
to de uma análise genética e de uma pesquisa genealógica ou arqueológi­
ca. A gênese mesma das idéias é o processo histórico real da transmissão
e elaboração do conhecimento, de uma pessoa a outra, de uma época à
seguinte".
"Noutro tipo de conhecimento, que pode ser filosófico ou literário,
por exemplo, há alguma coisa a mais: além da genética e da genealogia
existe a contribuição decisiva de alguns indivíduos. Eles não são, como na
ciência, escolhidos pelo processo evolutivo do conhecimento. São ho­
mens que instituem ou geram estirpes novas de idéias e de formas. Ou gê­
neros novos, por isso são ditos geniais."
"E então, mudamos o título do best seller para: Gênese, Genética,
Genealogia e Genialidade do conhecimento", disse eu, sem muita convic­
ção. Apenas terminei a frase, pensei que talvez Anna se tivesse magoado.
Mas eu tinha falado com seriedade: das palavras dela resultava que a evo­
lução do saber em qualquer área é o produto de conteúdos intrínsecos e
quase permanentes das idéias, cruzamentos eugênicos ou bastardos com
outras idéias e mutações ou recombinações introduzidas por elementos
capazes de originar espécies ou subespécies novas.
"É um lindo título, mas muito longo", comentou ela. Mais para de­
monstrar que não se tinha ofendido, pensei eu, errado. Ela apoiou as pal­
mas das mãos na beirada da mesa e, olhando para as unhas, continuou:
"Não me interessam jogos de palavras; eu penso que não há gênios na
evolução da ciência, como já comentamos. Mas acho, também, que na fi­
losofia, como nas letras e artes, todo progresso é, em última análise, pro­
duto de algum gênio".
Lorenzo estava olhando para a cozinha, mas ouvia com atenção a
conversa. Cruzou os braços sobre a mesa e murmurou, quase para si mes­
mo: "Ou então, nessas áreas, a rigor, não há progresso, apenas transfor­
mações... ". Era mais umapergunta do que uma afirmação.
Giulio aproximou-se: "Perdoem a interrupção. Lisa quer saber o que
a signora e os senhores preferem para acompanhar a fagianella. Temos
polenta branca, batatas ao forno, ou creme de maçãs silvestres".
Eram três alternativas irresistíveis. Ficamos sem resposta, Lorenzo
roendo unhas, Anna de boca aberta e eu, acho, com uma cara deslum­
brada. Como uma criança entrando no circo. A expressão era de Bruno
Salvadori.
"Entendi", falou Giulio sorrindo, "querem provar os três. Fizeram
uma boa escolha; eu adoro gente decidida. Os senhores provarão hoje um
prato afagianella Lisa".
"Então é algo especial", comentou Anna.
"Não, signora. É algo genial."
alguma diferença, Giulio?", provocou Lorenzo.
"Há, professor. Explico já. Esperem um momento, que devo infor­
mar a Lisa sobre os acompanhamentos."
Era uma coincidência curiosa que também ele estivesse interessado
numa definição de "genialidade", por razões suas, é verdade. Mas pare­
cia, até, que tinha acompanhado a nossa conversa. Estávamos curiosos
para testar, na história de uma receita de faisão, nossas idéias de genéti­
ca, genealogia e genialidade como determinantes do conhecimento. E ha­
via mais: teríamos a versão espontânea, não acadêmica, da questão. Um
discurso isento dos vieses bibliográficos.
Giulio veio com seu copo e uma garrafa gelada de Pinot.
"Agora ficaram só sete, ou seis?", perguntou Lorenzo, apontando
para o vinho.
"Não sei contar direito." Giulio bebeu um gole e começou: "Vou
explicar por que a receita de Lisa é genial. O pai dela era camareiro em
Montecarlo, por volta de 1900, num dos grandes hotéis de lá. Gostava de
cozinhar e aprendeu com um grande chef algumas receitas, entre elas uma
de faisão. Há alguns temperos que são indispensáveis, quase exigidos pelo
tipo de carne do faisão, como acontece também com outras carnes: cada
uma tem a sua natureza. O que serve preparo de um faisão, pode ser
totalmerne absurdo quando se fala de codornas ou galinhas d'Angola. E,
é claro, mais ainda quando se trata de peixes ou mariscos. Por isso todo
bom cozinheiro jamais pensa em tomates quando prepara um faisão e não
admite nem a idéia de champignon quando tempera lulas, por exemplo".
"São regras fixas?", eu quis saber.
"Você quer dizer que a natureza da carne exige certos temperos e
que é difícil até pensar em preparos muito diferentes, que não se ajustam
ao tipo de carne. É isso?" Foi a pergunta de Anna, evidentemente para
alguma argumentação futura.
Giulio não estava para sutilezas polêmicas. Alisou o bigode com as
costas da mão e franziu a testa. Queria mostrar que a receita de Lisa era ge­
nial. E queria conversar com gente que, pensava ele, saberia apreciar ta­
lento de Lisa na cozinha e a erudição dele em assuntos culinários. A res­
posta que deu a Anna foi breve e definitiva: "Eu digo que um faisão é um
faisão, um peixe é um peixe. Que não adianta impor a uma certa carne sabo­
res que ela não aceita. A lula recusa até a idéia de champignon ou aspargo".
Anna sorriu, mais ou menos como um criminalista quando uma tes­
temunha reforça sua causa.
Giulio bebeu mais um gole do Pinot e prosseguiu: "Penso ,que a se­
nhora me entendeu perfeitamente. Não há uma receita famosa de faisão
que inclua tomates. De outro lado, as boas receitas clássicas não dispen­
sam o presunto cru, por exemplo, o conhaque ou o Marsala. Basta pen­
sar no faisão da Epifania ou no Gaieri. Ainda podemos lembrar o faisão
em salmis, ou o Kluzer, o faisão assado da Brianza ou o acebolado, que é
freqüente aqui na Lombardia. São boas receitas, mas às vezes são perigo­
sas porque o presunto não pode, absolutamente, ficar com gosto de frito
e o conhaque, se não for de boa qualidade, pode dar um fundo amargo
ao sugo que se forma no fundo da caçarola. A função do conhaque e do
Marsala é a de cortar o sabor eventualmente acre das partes mais escuras
do faisão, que é uma carne 'selvagem'. O presunto cru 'assegura uma cer­
ta umidade às partes carnudas, como o peito, que durante cozimento fa­
cilmente se resseca. Claro, o presunto dá também um sabor todo seu, por
demais seu: sabor de presunto cru. É claro que se pode comer um faisão
temperado só com sal e mais nada. Mas nesse caso o sabor da carne fica
empobrecido. O faisão exige aromas que realcem seu sabor próprio sem
competir com ele. É o que acontece, exemplo, se colocarmos mais do
que cem gramas de presunto para um faisão normal. Essa é a função do
Marsala ou do conhaque... ".

29
"Ii pane, signor Giulio", gritou da calçada um garoto, "dove lo las­
cio?", justamente quando Giulio tomava fôlego para continuar a frase.
"Miséria! No lugar de sempre, ou será que a loucura daquele mila­
nista é contagiosa? Você é o único inteligente daquela padaria. Deixe o
pão lá na cozinha em cima da mesa grande, e depois tome um refrigeran­
te ali no balcão dos copos."
Depois de um suspiro, Giulio prosseguiu: "Eu estava dizendo que
a função do conhaque e do Marsala é a de introduzir aromas e sabores que
combinam especialmente com o perfume e o gosto natural do faisão. Mas
como às vezes o Marsala pode adoçar demais a carne, o conhaque ofere­
ce menos riscos e dá um sabor mais seco. Um aroma mais alcoólico do
que licoroso. Foi assim que a receita do avô de Lisa foi se aperfeiçoando
nas mãos da mãe dela. O que Lisa aprendeu era temperar com pouco pre­
sunto e preferivelmente com conhaque, além das ervas habituais...".
"Mas então quem é genial nesta história?", Lorenzo parecia impa­
ciente.
"A história de uma receita não é simples, professore. Mas eu lhe mos­
trarei que genial mesmo é a receita de Lisa, primeiro explicando como ela
nasceu e depois com a demonstração prática, no prato, ou melhor, na
boca", respondeu Giulio, bem-humorado.
"Pelo jeito, Lisa fez uma revolução na história da receita", arrisquei.
"É isso mesmo, ou quase isso, dottore."
Lorenzo lançou-me um olhar de fingida comiseração. A ele Giulio
havia chamado professore. Mas a cara de superioridade se desmanchou
logo depois, quando Giulio continuou, olhando para mim: "Vejo que o
senhor me entende melhor. Ninguém pensa em colocar anchovas ou azei­
tonas pretas num faisão. Por quê? Porque quando se trata de faisão es­
sa idéia é absurda, mas ela é perfeita para um prato de fusilii alia pri­
mavera. É como se tivéssemos famílias de idéias, algumas puxam ao pai,
outras a alguma avó. Elas vão mudando, mas conservam algumas qua­
lidades que são a marca da família, por assim dizer. A irmã de Lisa, So­
fia, mudou a receita do faisão, usando nata em lugar do presunto. O efei­
to é ótimo: suaviza o sabor, como fazia o presunto cru; e evita o gosto
de frito que ele pode pegar. É u"ma evolução da receita, mas não uma
revolução" .
"Mas é uma invenção dela", disse Lorenzo.

30
"Não. Entre os cozinheiros há muitas experiências que são comuns.
Por isso não é difícil que eles mudem seus métodos de maneira parecida
ou até igual. Claro que Sofia não copiou ninguém, mas o uso da nata é
normal, por exemplo, no faisão Delia ou no faisão alla California. Que
nome mais idiota para um faisão! Se é por causa do limão poderia cha­
mar-se alla brianzola, pois toda velha villa da Brianza tem limões exce­
lentes. Mesmo os cultivados nos vasos de terracotta. O problema da nata
é que ela pode 'talhar' ou azedar, quando se usa limão; como no caso do
alla California."
"O uso da nata pode dar algum produto meio bastardo, na família
de receitas, Giulio?", perguntou Lorenzo.
"É isso mesmo, professore." Lorenzo lançou-me de novo aquele
olhar de prima donna. Mas Giulio prosseguiu, imperturbado: "Certas
mudanças corrompem a receita tradicional, mesmo quando fazem sucesso
e começam a produzir imitações e inovações. Outras até aperfeiçoam, por
assim dizer, a raça das receitas e se tornam especialidades dentro da fa­
mília, digamos... ".
"Obrigado pelo refrigerante", agradeceu o garoto da padaria, num
sorriso suado, com o cesto vazio sobre o ombro.
"Por nada, meu filho. Diga àquele milanista maluco que no domin­
go ele vai engolir o Tuttosport."
O garoto, de uns 11 anos, caminhou para a porta e, quando se sen­
tiu inobservado, voltou-se e fincou um olhar quase antropófago nas be­
las pernas de Anna.
"Uma coisa importante na vida, e também na cozinha, é perguntar
por que as maneiras de fazer as coisas são assim e não de outro jeito. Isso
é a raiz de qualquer descoberta culinária", disse Giulio, espantado com a
solenidade da última frase.
"Quero dizer", atenuou sem muito jeito, "que não se deve empregar
um certo tempero ou modo de cozer só porque se aprendeu assim. Um
tempero ou combinação de temperos é usado porque produz certos efei­
tos bem precisos. Mas o mesmo efeito pode resultar de outros condimen­
tos e isso pode trazer vantagens que o modo tradicional não permitia".
"Giulio, espera um pouco", falou Lorenzo, "um tempero é uma er­
va, louro, por exemplo. E o efeito dela é, digamos, um certo perfume...".
"Não. Talvez sim, explico", continuou o nosso oste, "um tempero

31
é um sabor ou aroma que pode ser dado por uma erva ou um conhaque,
por exemplo; mas muitas vezes ele é o resultado de combinações delica­
das de diferentes ervas ou outros ingredientes... ".
Anna acompanhava meio atordoada a erudição culinária de Giulio,
mas parecia estar gravando as afirmações que descreviam o que seria uma
evolução do "saber culinário", foi o que senti. E senti também que ela
me atraía muito, mesmo que não soubesse o que era faisão Delia ou Klu­
zero Ela estava ouvindo Giulio como uma criança ouviria um astronau­
ta. Que mulher! Eu também pensava em aromas e louros, coroando os
cabelos soltos de Anna, quando Giulio me pegou em flagrante: "non
dottore?".
Eu senti o que sente um estudante que adormeceu na aula. E, como
tal, franzi a testa fingindo uma dúvida inteligente.
Mas a pergunta era puramente retórica; ele nem viu a minha reação
e continuou com uma frase inquestionável: "Se eu dou as mesmas ervas
a Sofia e a Lisa: cada uma fará um tempero diferente, tutto suo. De outro
lado, um mesmo tempero pode resultar até de diferentes ingredientes ou
misturas deles".
Lorenzo definiu as coisas: "Então temos ingredientes e temperos. Os
temperos são produtos dos ingredientes e um mesmo produto pode re­
sultar de diferentes misturas de ingredientes".
"Bravo, professore! Lisa é capaz de produzir o sabor que ela quiser,
com as mais diversas combinações de ervas, licores, vinhos e especiarias.
Foi assim que ela produziu sua receita genial."
Ele fez uma pausa antes da peroração, mas nenhum de nós disse na­
da. Talvez para abreviar a discussão, talvez por achar que o silêncio se im­
punha como pré-clímax do discurso.
"Lisa descobriu que uma mistura de vinho branco forte e seco, não
muito maduro, combinado com alecrim, tem o aroma dos grandes desti­
lados alpinos, e o sabor dos conhaques mais secos: isso significa uma sé­
rie de vantagens. Exclui-se o conhaque, e com ele o risco de fundo amar­
go. Elimina-se o Marsala e, com ele, o sabor licoroso ou adocicado e a cor
mais escura da carne e do molho. O faisão ganha uma leve cor dourada,
puxando mais ao ouro que ao cobre: Mais ainda, ela descobriu que o fai­
são fica muito mais macio e úmido se, antes de ir ao fogo, passar uma
noite nessa mistura de vinho branco, tipo Malvasia, com alecrim. Mas há

32
um detalhe sobre o alecrim: tem que ser colocado principalmente sob a
pele do faisão. Após algumas horas de repouso, o faisão desprende um
perfume delicado e alcoólico, como se os aromas do vinho e do alecrim
se fundissem num perfume novo."
"E o presunto?", perguntei.
"Bravo", falou Giulio, "mas não esqueça: o que interessa não é tan­
to o ingrediente como o 'tempero', o efeito dele. O presunto ou a nata
servem para suavizar o sabor final; se o primeiro não tosta e a segunda não
azeda com os outros ingredientes. Lisa resolveu isso também: cebola ra­
lada, refogada lentamente em manteiga fresca misturada ao Malvasia, der­
ramado pouco a pouco. A cebola fica perolada, perde o sabor ácido, gra­
ças à manteiga, e o gosto adocicado, por causa do Malvasia. O faisão ga­
nha toda a suavidade sem que a cebola se imponha: ela desaparece num
sabor novo que une, delicadamente, o gosto dela ao da manteiga, ao do
Malvasia, ao aroma do alecrim, 'cortado' pelo vinho".
"E stou com agua na b " conf essou A nna. "E spero que essa Ja­
oca,
gianella chegue logo. Quanto demora, Giulio?"
"Só alguns minutos. É um preparo lento, para cozê-la muito bem
por dentro, sem ressecar por fora. O sugo de cebola ralada, manteiga e
Malvasia precisa ser recolhido e derramado muitas vezes sobre a carne.
Daqui a pouco ela chegará, dourada de leve e com o perfume que só Lisa
sabe criar."
"Desculpe, Giulio. Eu entendo que Lisa criou uma receita nova e
deliciosa. Mas qual é a diferença entre novidade e genialidade de uma
receita?"
Giulio esperava a pergunta. Respondeu categórico e quase compla­
cente ante a nossa incompetência: "Uma receita é genial quando tem três
qualidades. Ela deve ser original, uma solução superior para obter um cer­
to prato, e deve produzir novas receitas ou aplicações a outros pratos. A
de Lisa é genial por tudo isso: é completamente nova, resolve melhor os
problemas do preparo do faisão, como sabor, umidade, cor, aroma e, em
terceiro lugar, já ficou um estilo, uma marca dos pratos de Lisa. Ela já me­
lhorou ou criou, depois disso, várias receitas para frango, pombo, peru e
até certos pratos de vitela".
"É claro que os peixes e as lulas não ganharam nada", provocou
Lorenzo.

33
"Óbvio. Como eu disse antes, trata-se de outros tipos de carne, que
aceitam outras famílias de receitas. Outras concepções", concluiu Giulio,
"não é assim que se diz?".
Anna, pelo jeito, queria juntar munição. "Então, uma idéia é genial,
quando é original, quando é uma solução superior às que existem e quan­
do gera outras idéias novas. É isso, Giulio?"
"Nada mais e nada menos, sígnora." Ela relaxou-se na cadeira com
um sornso.
"Pelos ares que sopram da cozinha eu diria que a fagíanella deve
estar pronta. Os senhores poderão verificar que não exagerei quando
disse que a receita de Lisa é genial. E digo mais: ela, Lisa, é um gênio da
culinária..."
falava, de costas para a cozinha, Giulio não viu a aproxi­
mação da mulher.
Nenhum de nós a tinha visto antes. Mas só podia ser ela, pelo an­
dar desenvolto, de quem se sente em casa, e pelo avental, gracioso e sim­
ples, de cozinheira. Lorenzo estava, literalmente, de boca aberta; Anna
observava o corpo dela, sinuoso e firme, da cabeça aos chinelos leves, de
couro branco e meio salto. Eu, juro, estava meio atordoado: era uma
mulher belíssima, com um corpo que lembrava os melhores anos de Ri­
ta Hayworth, e o porte de uma Grace Kelly. Os cabelos, presos num
coque, estavam envoltos por um foulard azul-marinho, que combinava
perfeitamente com a blusa branca, moderadamente transparente, e com
a saia também azul"-marinho, justa, nos limites (às vezes inoportunos) do
bom gosto.
Tinha um rosto suave e olhar recatado. Beliscou afetuosamente a
barriga de Giulio. "Vamos, seu boa-vida. Ajuda-me com as travessas.
Com licença, senhores."
Deu-nos um sorriso cortês, rodopiou na ponta de um pé e saiu para
a cozinha com um gingado sóbrio e fatal. Giulio contemplou aquele an­
dar sensual. Seu olhar misturava, como num bom tempero, orgulho, afeto
e desejo. Lisa voltou-se e surpreendeu o olhar de cobiça. Deu-lhe uma
piscada, empinou o nariz e entrou na cozinha.
"Se me permitem, vou ajudá-la", disse ele, e a seguiu.
"Que mulher!", foi o comentário óbvio, mas incontível, de Lorenzo.
Anna estava séria, como se algo a tivesse magoado. Tinha uma sombra de

34
amargura no olhar. Na falta de outra frase, comentei: "Bonita, não?». A
resposta foi: "Bonita, genial e amada. É de dar inveja a qualquer mulher".
"Menos a você, é claro", tentei ser galante.
"Antes fosse", respondeu ela, sem qualquer vibração, e me encheu
de ternura. Contive o ímpeto de abraçá-la. Mais uma vez desejei que Lo­
renzo evaporasse, mas ele estava -ali, perfeitamente sólido, olhando atra­
vés do seu Barbera para a janela mais próxima. Eu sabia que ele estava
digerindo, além do salame, a "teoria» da genialidade, de Giulio. Depois
levantou-se, começou a caminhar lentamente entre as mesas e dirigiu-se
a Anna: "Ela é bonita, genial, amada e sem medo de seduzir".,
Anna ouviu atenta, esboçou um sorriso de mas rendeu-se
ao inesperado da frase. Estava agora diante de um adversário mais difí­
cil: ela mesma. Era inútil enfrentar o assunto retomando a discussão an­
terior sobre as feministas, para ganhar tempo. Se ela invejava Lisa por ser
amada, devia talvez procurar a razão dessa vantagem no emprego, sem
culpa, das armas da sedução. E então, ela teria de explicar a si mesma o
seu "adeus às armas". Ou a sua "culpa" ao seduzir.
Ela reconheceu: " Agora, segundo o script, só me resta levantar-me
mostrando as coxas e sair rebolando para os turistas do Biffi". Fingiu uma
desolada resignação.
"É uma rendição?"
"Cretino!", disse ela rindo, enquanto Lorenzo, por trás da cadeira,
lhe afagava os cabelos. O sorriso dele tinha muito de paternal. Graças a
Deus.
"Signori, ecco la fagianella!" Giulio vinha imponente, trazendo uma
enorme travessa de louça esmaltada. Mais atrás, com certa majestade mas
recatada, Lisa trazia uma grande bandeja de alças, com as terrinas dos
contorni. Naquele momento um turbilhão de idéias me passou pela cabe­
ça. Coisas como: a beleza do que é simples, a majestade da figura femini­
na, a superioridade das coisas genuínas, verdadeiras, a duvidosa validade
do saber acadêmico, a alienação do intelectual, as "Bucólicas" de Virgilio,
as delícias de uma mulher apaixonada, a nave central de Westminster,
como seria uma noite com Lisa, como Giulio era feliz ... E se Anna dei­
xasse o marido? .. Estacionei gostosamente nessa última idéia.
Não há adjetivos dignos dos pratos que Giulio e Lisa dispunham
sobre a mesa. Eram dois faisões inteiros, dourados, sobre o molho de vi­

35

nho branco, manteiga e cebola ralada, com o perfume suave e contido


do alecrim fresco. Como Giulio tinha descrito. Mas havia um toque de
graça não esperado, sobre um dos faisões. Lisa explicou, encabulada,
que era uma "pequena homenagem" ao nosso bom gosto e que, temen­
do não agradar, deixara um dos faisões sem novidades. Eram rodelas
aderentes à pele dourada do faisão, de uma cor alaranjada puxando ao
coral, transparentes. Pensei, sacrilegamente, que podiam ser fatias gran­
des de cenouras.
"Adivinhem o que é", desafiou Giulio.
"Sem provar?"
"Só com o olfato... e os olhos."
A primeira idéia que me ocorreu foi Condillac, mas não era uma boa
resposta.
Tentamos vários palpites: cenoura, ameixa, melão, presunto e outras
menos plausíveis.
"São damascos", revelou Lisa.
"Uma nova receita?", perguntei.
"Não. É só um... ornamento", respondeu com uma timidez seduto­
ra. Desejou-nos bom apetite, rodopiou de novo e saiu para a cozinha com
um balanço excitante das formas generosas.
Já deve haver muita coisa escrita sobre as relações íntimas entre os
prazeres do leito e os da mesa. Nunca, antes desse dia em Santa Chiara,
eu tinha sentido quanto pode existir de excitação erótica, epidérmica, num
almoço com alguém. O ambiente, quase de refúgio ou ninho, a ternura
por Anna, a sensualidade de Lisa, o brilho dourado dos faisões, a festa de
aromas e sabores delicados, sublimes... Tudo compunha um clima de frui­
ção e de entrega. Havia algo de orgasmo naquele prazer múltiplo que aca­
riciava a boca, a língua, a garganta, o estômago, os olhos, o nariz, tudo ao
mesmo tempo. Tudo envolvido na magia da sensualidade explosiva de
Anna e das formas exuberantes de Lisa.
E havia também a sensação visceral, ventral de calor e de gozo. Ha­
via a carne, sucos, odores acres atenuados, e os damascos, mornos, rosa­
dos e úmidos como mucosas excitadas. Eu ouvia deliciado os suspiros
mansos, quase, gemidos, de Anna, a cada bocado, lambendo os lábios, de
olhos fechados, para colher, em cada bocado, o sabor e o prazer de de­
glutir. Ela estava toda entregue ao prazer.
Percebi naquele momento tudo o que há de fágico no amor. Toda a
atávica oralidade do sexo, o sentido do morder, do beijar, e do lamber.
a instinto primário e primitivo de absorver, sugar e engolir o objeto de
desejo, de prazer. E enquanto me entregava a esses delírios que o faisão
de Lisa me inspirava, tive vontade de abraçar Anna, agora com doçura,
sem o ímpeto do desejo, quase como se abraça a mulher amada, depois
do amor.
Mas ela, alheia às minhas vibrações e meu transe, mastigava prosai­
camente seu faisão, com o creme de maçãs selvagens. Que, como notou
Lorenzo, não devia acompanhar o faisão coberto pelos damascos. Claro,
pensava eu, depois da aula de Giulio. Mas com a polenta branca ou com
as batatas, os dois faisões combinavam esplendidamente. Foi o que decla­
rou Lorenzo, dando um fim prematuro ao meu transe erótico. Ele engo­
lia lentamente cada bocado, e quase revirava os olhos, de tanto gosto. a
Barbera agora desprendia todo o seu sabor. Achei ótimo que Lorenzo se
dedicasse ao seu exclusivo prazer pessoal e não entrasse em delírios eró­
ticos iguais ao meu.
Estávamos entregues irremediavelmente ao pecado da gula. Sem
lembrar sequer da "teoria da genialidade" de Giulio e, muito menos, do
parecer do consultor sobre o meu artigo. Não havia o que fazer. Minhas
idéias tinham sido imoladas no altar de Lisa, em sacrifício aos deuses da
gula, envoltas no perfume do alecrim, dos damascos, do Malvasia...
Com toda discrição, Giulio se achegou, quando julgou que havíamos
terminado. Só por cerimônia, perguntou se a comida havia agradado. E,
não por cerimônia, Anna quis saber o nome da receita: ela não fazia coi­
sa alguma por cerimônia.
"Na verdade, não sei, signora. Lisa não a batizou."
Lorenzo sugeriu que chamasse Lisa para o batismo, que era preciso
contar urbi et orbi o nome da obra de arte.
"Verei", disse ele, levando as travessas, com um sorriso de promessa.
Voltou pouco depois com Lisa, que esfregava as mãos no avental,
mais para escondê-las do que para enxugá-las. Não parecia tímida; ape­
nas discreta, cautelosa. Lorenzo repetiu sua proposta e ela aceitou, tran­
qüilamente. Eu olhava para Anna temendo que sentisse inveja, de novo.
"a que eu mais aprecio nesse faisão é a cor", disse Lisa, "e por isso
gostaria de salientar esse tom leve de amarelo dourado. Lembra um cam­

37
po de trigo maduro, ao sol da manhã. Essa cor suave, quase transparen­
te que'fica no sugo e na pele do faisão. Essa cor de...".
Não sei se algum de nós, fora Lisa, achou um nome acertado en­
quanto ela refletia. Mas qualquer um esperaria a escolha dela.
"Talvez", hesitou ela, "a cor justa, ou o nome certo seja... faisão...
'Alabastro'".
Anna sorriu, fechou os olhos e murmurou: "Tinha que ser".
Capítulo 2

Tesouros do livreiro

Voltamos para o Galilei no fiat de Lorenzo, cheios de idéias, de vi­


nho e de interrogações. A manhã tinha sido intensa, em vários sentidos.
Depois da gula, estávamos caindo, sem qualquer resistência, no pecado,
também capital, da preguiça.
Uma vez, em Milão, Tulio me havia proposto, depois de algumas
doses no Scofone, algumas reflexões suas, do momento. Dizia que na mo­
ral grega do século v, o "pecado" maior ou capital era um só: a hybris, a
presunção de superar a contingência humana ou de igualar-se aos deu­
ses. Mas não se vetava o prazer, já que os deuses também se divertiam.
Quando inventaram um deus mal-humorado, vingativo, incompetente
para o prazer, foi preciso estragar a festa e "taxar" o prazer. E, assim, as
delícias da mesa e da cama viraram pecado: só porque deus não tem con­
dições de desfrutá-las. Mas o fulcro da "teoria" de Tulio era a descober­
ta de um erro teológico: por que proibir a preguiça se esse deus, desde
que fez o mundo, muito mal acabado, por sinal, não faz outra coisa se­
não descansar?
Contei isso na viagem de volta e obtive duas interpretações sobre
esse erro. Lorenzo o atribuiu a algum lobby dos anjos, que de todo o pes­
soal celeste são os únicos que trabalham: seguram menininhas loiras para
não caírem no precipício quando perseguem borboletas, e se encarregam
da correspondência, conduzindo mensagens, algumas importantes, como
se sabe. Anna, mais fiel às idéias de "Festa del Perdono", achou que tudo
não passava de intriga de algum cardeal Agnel1i, no concílio de Trento,
antevendo o absurdo do repouso semanal remunerado.

39
-

Os poucos quilômetros de caminho não nos permitiram maiores


contribuições para uma "história do pecado", que alguém deve escrever,
algum dia.
No Galilei, Mauro estava discutindo com Tulio sobre concepções
antigas da psicopatologia. A conversa me interessava muito, tanto pelo
assunto como pelo brilho dos dois, que eu já tinha admirado em outras
ocasiões. Para espantar a preguiça, fui tomar um café, da garrafa térmica
de Luciana, na secretaria. Ela, Luciana, não a garrafa, estava linda, num
vestido prêt-à-porter alaranjado. Linda, e gentil como sempre. Às vezes
eu pensava que as insinuações de Maria Eugenia sobre algumas ativida­
des de Lueiana eram pura maldade. Certamente a bibliotecária, mesmo
sinuosa como era, jamais rechearia aquele vestido com a mesma graça e
com iguais formas. E, ainda sob os eflúvios do Menarost, lembrei uma
brincadeira de Tulio, na semana anterior. Anna, Mauro, eu e Isabella es­
távamos chegando de uma lanchonete em Sant'Ilario. Tulio estava no seu
banco, o do lobo, muito sério, e, quando nos viu chegando, disse: "Não
tenho ainda plena certeza, mas gastei mais de uma hora na biblioteca nesta
manhã para confirmar minha suspeita. Agora quase posso afirmar algo
que vocês dificilmente admitirão porque, presumo, abalará opiniões já
estabelecidas".
"O que é?", perguntaram vários, ao mesmo tempo.
"Como eu disse, não tenho certeza: mas acho que Maria Eugenia
está sem sutiã."

Na sala de Tulio, Mauro empurrou-me uma cadeira, sem interrom­


per o que dizia: " ... mas não é fácil definir o que seria o saber psiquiátri­
co, cuja trajetória se possa acompanhar ao longo do tempo. Basta pen­
sar nos rituais primitivos com função de cura ou no exorcismo pagão ou
cristão... ".
"Para mim, psiquiatria é uma especialidade técnica, terapêutica e não
uma área do saber teórico. Antes que houvesse psiquiatria e mesmo mé­
dicos já havia uma rica psicopatologia. Nem é preciso voltar até Homero.
Você tem retratos esplêndidos de psicopatas em tragédias de Sófocles e
em Eurípides. Essa psicopatologia que depois se torna parte do conheci­
mento médico deveria ser, a meu ver, uma parte importante no seu estu­
do. Conheço muito pouco sobre a psiquiatria do século XVIII, mas acho

40
que, mesmo nesse século, a doutrina psiquiátrica abrange somente uma
porção reduzida da psicopatologia."
"Claro. Mas, por falar em loucos e loucura, não esqueçamos Emilio."
"Obrigado." Retribuí a fineza: "Como se vê, o problema de vocês
não é associar idéias. Mas sim ter idéias".
"Algumas nós temos", disse Tulio rindo.
"O risco é exatamente esse:'
"Um
"Vamos. Será o meu segundo."
Quando retomamos a caminhada pelo claustro uma brisa fresca tre­
mulava as folhas das cerejeiras. Era tudo o que eu precisava depois de tan­
to Pinot. Explicaram-me o porquê da conversa. Mauro tinha achado tex­
tos inéditos sobre rituais ou práticas psicoterápicas antigas e não sabia se
elas constituíam uma psiquiatria ou não. O problema era bonito. Quase
lamentei ter bebido tanto no almoço. Quase.
Tulio disse: "O critério que me parece justo seria considerar psi­
quiátrico o saber sobre a loucura, e suas variantes, com propósito de cura,
independentemente de sua validade enquanto conhecimento. O feiticei­
ro zulu, Aristeu da Capadócia, Galeno, os exorcistas medievais, os mes­
meristas, Pinel, Esquirol e Kraepelin se equivalem; escreveram ou fizeram
psiquiatria. Se alguns deles criaram doutrinas delirantes e métodos irra­
cionais de terapia é secundário. Você concorda, Mauro?".
"Parece um bom critério. O problema é que alguns dessa lista não
escreveram os fundamentos doutrinários de seus métodos. Nesses ca­
sos a psiquiatria seria a pura praxis terapêutica. Outros escreveram coi­
sas malucas com a presunção de fundamentar a eficácia ilusória de suas
técnicas... "
"Mas cada um tinha o propósito terapêutico, curativo. O que varia
entre eles é apenas o grau de fundamentação racional explícita do méto­
do. A importância do diagnóstico, a fundamentação objetiva das técnicas,
isso varia. Mas são questões secundárias, para quem pretende determinar
a genealogia das idéias psiquiátricas."
Anotei, em algum canto do córtex, a palavra "genealogia".
Mauro concordou, com um gestó de cabeça, hesitou um pouco, e
quase murmurando, explicou a hesitação: "Uma coisa que me intriga é
que o feiticeiro, o exorcista medieval, o mesmerista e, regredindo no tem­

41
o médico humorista da escola hipocrática, todos eles professam ou
até proclamam doutrinas que têm muito de delírio, paranóia ou alucina­
ção. Até aí teríamos o desvario, ou a maluquice como fundamento da
. . ".
pSlcoterapla...
"Psicoterapia homeopática", brincou Tulio.
"Acontece", continuou Mauro, "que a reação do paciente nada tem
a ver com a racionalidade do método ou com a maluquice da teoria em
que se baseia. Não é uma questão desprezível, quando se confrontam es­
colas ou doutrinas em psiquiatria".
Eu nunca tinha pensado nisso, pelo menos nesses termos, mas as
implicações eram muitas. Comecei a pensar em uma delas, quando Tulio
complicou o problema. "Há outra coisa estranha, Mauro: o resultado do
tratamento do feiticeiro, ou do exorcista é, muitas vezes, a catarse, para
alguns, sinônimo de cura ou, pelo menos, de início dela. Mas a catarse é
justamente um estado ou forma de loucura, pelo menos segundo Platão,
quando discorre sobre a loucura resultante de práticas rituais ou 'mis­
téricas' como as da oreibasia dionisíaca, a dança da montanha."
Mauro, então, disse alguma coisa que não teve continuidade e que
Tulio mal ouviu ou ignorou, mas me intrigou, mais tarde.
"Platão podia dizer o que quisesse. Fazer uma Apologia de Sócrates,
só depois da auto-execução, por que não antes?, ou aproveitar o texto de
'As Bacantes' de Eurípides para fazer literatura. Tanto é literatura que ele
fala também de uma loucura poética, como se o poeta fosse possuído pe­
las musas, tal como um oráculo. O tratamento dado à loucura em 'As
Bacantes' é muito mais complexo do que insinua qualquer exercício li­
terário de Platão sobre essa tragédia. Claro, a idéia da dança da monta­
nha não é propriedade de Eurípides, fazia parte da cultura ática. Mas acho
que o fato de Platão dizer isso ou aquilo não é argumento nenhum. Mais,
o Sócrates que ele nos passou é o Sócrates segundo Platão, como todos
sabem."
"E então?", indagou Tulio.
"E então, o racionalismo socrático nas mãos de um especialista da
comunicação ofuscou outras concepções do homem, cultivadas mesmo
nos tempos de Sócrates. As idéias de Sófocles e de Eurípides, por exem­
plo, eram muito mais abrangentes do que parecem no contexto estrito de
uma peça teatral. O genial Platão sabia disso, suponho."

42
"Você não está pretendendo que Platão aderisse com igual entusias­
mo às lições socráticas e aos monólogos de Fedra ou de Medéia, ou aos
juízos de Jasão sobre as mulheres?", sugeriu Tulio.
"Isso é, ou foi, problema dele. O nosso é que, graças ao critério dele,
o pensamento de Eurípides, por exemplo, não foi integrado ao corpus
doutrinário tradicional da filosofia. Eurípides precisou 'reencarnar' no
século XVII com o nome de Blaise Pascal, já sem muita inspiração dramá­
tica, mas ainda patético. "
"Depois que o racionalismo se tornara a forma mentis hegemónica
na filosofia", emendou Tulio.
"Conversem meia hora com Anna e vocês entenderão melhor o que
eu digo. Na verdade, conheço muito pouco do assunto. Agora eu gosta­
ria de retomar a questão da... 'psicoterapia homeopática', se vocês não se
aborrecem." Mauro nos consultava com o olhar.
Devo ter dito que o tema me interessava muito, ou coisa parecida,
porque a conversa prosseguiu. Mas nesse ponto eu já estava quase em ór­
bita. Explico. A manhã no Menarost tinha sido muito intensa para mim:
a discussão sobre o parecer do consultor, a questão da oposição entre uma
"genética" e uma "genealogia" do conhecimento, a atração por Anna, a
aula de Giulio sobre genialidade, tudo isso, mais o vinho. Agora, a vaga
suspeita de uma distorção astronómica no fluxo do saber, por obra das
preferências "acadêmicas" de Platão e, como xeque-mate, a informação
luminosa de que Anna era a saída para todas essas perplexidades. Eram
muitas idéias e, sobretudo, muitos caminhos. Eu me senti meio perdido,
quase em perigo. Lembrei, sabe-se lá por quê, as menininhas loiras à beira
do precipício, mas sem anjo por perto. Anna, depois do Menarost, podia
entrar em meu pensamento sob as mais variadas figuras. Mas, como anjo,
não dava. Mesmo.
Mauro estava dizendo algo sobre Agave, em "As Bacantes", que não
se tratava propriamente de uma catarse, mas de uma alucinação ou tran­
se. Se o feiticeiro ou o mesmerista provocam transes ou alucinações, não
quer dizer que tenham induzido qualquer catarse.
Eu já não acompanhava mais nada do que discutiam, mas tentava
manter-me atento. Por sorte, no outro lado do claustro, vindo da coluna
da águia, apareceu Beatrice, quase saltitante, com seu sorriso leve, meio
infantil, sacudindo no ar uma folha que deveria conter, a julgar pelo entu­

43
siasmo dela, alguns megatons de novidade. "Vocês viram Lorenzo? Pre­
ciso lhe mostrar uma coisa. Vocês querem ver?"
Era a deixa para diversas piadas de mau gosto. Que não foram ditas.
Primeiro, porque todos nós adorávamos Beatrice, sua espontaneidade,
sua inteligência. Segundo, porque Tulio e Mauro estavam naquela hora
submersos em rituais, feitiçarias e outras coisas, presumivelmente cheias
de fumaça, e eu procurava agarrar-me a qualquer coisa que não exigisse
meus pobres neurônios. E me fizesse reentrar na atmosfera terrestre.
Por isso, creio, fui o primeiro ou o único a responder, com efusão:
"Claro, menina, mostre para nós. Juramos manter segredo."
Tulio, que sempre acompanhava tudo, perguntou: "Desta vez tam­
bém é sobre algum precursor de um conceito?".
"De uma técnica... que permitiu um método."
"Que século?"
"Não digo."
"Então não sei."
"Nem eu", dissemos Mauro e eu, tão sincronizados que quase es­
cutamos "nem nós". Beatrice pigarreou, jogou os loiros cabelos para trás
e hesitou, diante do silêncio que se fez. Talvez arrependida por criar tanta
expectativa, ela falou, em tom de confidência: "Lorenzo insiste em que
todo o behaviorismo não teria surgido sem o trabalho de Ivan Petrovich
sobre a secreção salivar no cão. Até aí é fácil concordar. Mas ele acrescenta
que tudo isso, que hoje acabou em scientific management das pessoas, só
aconteceu porque Glinsky descobriu a técnica de abrir fístulas salivares,
e sem a qual Pavlov não teria podido estudar in vivo a digestão nos ma­
míferos. Para Lorenzo, a 'grande invenção' foi a técnica cirúrgica de fi­
xar cânulas em glândulas ou outros órgãos internos. E tudo isso se deve
à idéia pioneira de Glinsky, segundo ele. Eu procurei algum precursor da
técnica e achei. Não para contradizer Lorenzo...".
"Então para quê?", indagou Mauro, em tom meio seco. Pensei que
estava irritado porque Beatrice de algum modo cortara a discussão dele
sobre rituais ou mesmeristas. Ou porque achasse petulante a pretensão
de contradizer Lorenzo em assuntos médico-biológicos. Beatrice enco­
lheu-se um pouco, mas sustentou o desafio.
"Para ilustrar uma idéia que você não esperou que eu contasse.
Quando se diz que na ciência não há gênios, faz-se referência à inexorá­

44

vel progressão do conhecimento, quando balizado pela lógica de um la­


do e pela realidade objetiva, de outro. Há quem diga que esse determi­
nismo do saber pode aplicar-se aos conceitos da teoria, como às hipóte­
ses e dados que elas geram. Mas não à criação de técnicas novas de expe­
rimentação. Então Glinsky seria um gênio e Pavlov não."
"Mas isso é importante?"
"Claro, Tulio. Houve um experimento sobre digestão, quase um sé­
culo antes de Pavlov e no qual se implantou no pâncreas de um cão ínte­
gro uma cânula crânica, pela qual se colhia a secreção numa garrafinha
amarrada à barriga do animal. "
"Só acredito vendo", foi a reação de Mauro.
"Vendo o quê? O cachorro? Olhe aqui." E Beatrice, já mais solta,
estendeu-lhe a cópia de um desenho a bico-de-pena. "É o vira-lata sim­
pático de Reignier De Graaf."
"Isso prova..:', começou Tulio.
"Que se as descobertas técnicas per se assegurassem o progresso da
ciência, Pavlov poderia continuar sua carreira clerical em Riazan, que o
reflexo condicionado surgiria sem tanto esforço dele, e várias décadas
antes. Eu acho, Mauro, que uma técnica empurra a ciência, melhorando
o método, apenas quando concebida a partir de uma hipótese, em fun­
ção de uma teoria... "
Eu tinha, finalmente, retornado à terra, achei. Resolvi entrar na con­
versa, para encerrá-la: "Então, se entendi direito, não há mesmo cientis­
tas geniais".
"O que é a genialidade?", perguntaram.
"Simples. Uma idéia é genial quando é original, quando é uma so­
lução metodológica ou explanatória superior às existentes e quando dá
origem a novas linhas de pensamento ou novas aplicações."
"Uma boa definição...", disse Tulio, com aprovação sorridente de
Beatrice, "... que, suponho, não foi inventada agora... ".
"Não."
"Quem é o autor?"
"Giulio di Santa Chiara."
"Um cientista?"
"Penso que não, porque a definição tem algo de genial", opinou
Mauro sorrindo.

45
Resolvi não informar mais sobre Giulio, por puro egoísmo: eu não
queria que o Menarost se tornasse ponto de encontro obrigatório do pes­
soal do Galilei, desejava que ele ficasse um refúgio, segredo de poucos.
Talvez porque, depois das emoções da manhã, a trattoria de Giulio se tor­
nara para mim um lugar muito especial, muito pessoal. Mas nenhum dos
três perguntou detalhes sobre o autor da definição, felizmente.
Beatrice continuou seu percurso saltitante, Tulio e Mauro retoma­
ram o assunto da "psiquiatria primitiva", mas agora o problema era o da
genialidade da idéia de "o inconsciente".
"A loucura teria sua origem na repressão, para o inconsciente, das
imagens, desejos, lembranças que de algum modo sejam uma ameaça de
sofrimento. Está certo isso, Emilio?", perguntou-me Mauro.
"Penso que sim, mas isso só vale para Freud."
"E antes dele?"
"Antes de Freud houve a concepção organicista do século XIX, o
hipnotismo, o mesmerismo, o demonismo cristão, como métodos tera­
pêuticos; mas as doutrinas psicopatológicas são muito mais antigas, como
disse Tulio. Teríamos que regredir ao 'organicismo metafísico' de Plater
e sucessores, ao greco-romano, à tragédia grega e à poesia
épica de Homero."
"Tudo isso à espera do gênio de Sigmund?", provocou Tulio.
A resposta foi de Mauro: "Cada um dos pioneiros dessas concepções
inovou, resolveu de modo eficaz problemas teóricos ou práticos e gerou
desdobramentos futuros. Portanto, pela definição de Emilio, foram ou­
tros tantos gênios. Mas tudo isso enquanto a teoria da loucura era pré­
científica. Na ciência, como diz Anna, não há gênios. Há uma progressão
determinante no devir das idéias, condicionada pela realidade objetiva e
pelas regras da lógica".
"Se entendo bem", disse Tulio,"as idéias geniais só surgiriam na fi­
losofia, na literatura ou nas artes. Mas nesses campos não há, a rigor, pro­
gresso. Apenas transformações".
"As coisas não se excluem. Shakespeare, por exemplo, pode ser co­
roado como um gênio, mesmo que seu estilo ou sua técnica não represen­
tem progresso na arte de escrever dramas e comédias. Vivaldi é um gênio,
tanto como Beethoven ou Mozart, e nem por isso se pode falar em pro­
gresso na arte de compor música."
"Ergo... quanto maior a margem de subjetividade num dado ramo
do saber, maior a probabilidade de inovações geniais. Será isso?"
Tulio nos interrogava com o olhar, espantado com a solenidade ca­
tegórica de sua conclusão.
Os três sabíamos que, afinal de contas, a questão da genialidade é
totalmente inútil, na análise da evolução do conhecimento. Mas esse tipo
de discussão nos divertia.
Eram já seis e meia da tarde, o que, no verão da Lombardia, ainda
não é o começo da noite, mas é hora de fechar gavetas, arquivos, portas,
tratos, dúvidas... e debates.
Do alto da sacada dos "pombos", Bruno chamou-me, com um ges­
to, à sua sala e entrou. Não havia gritado meu nome porque no Galilei
se havia estabelecido, ninguém sabia como, uma norma: quando alguém
conversava ou lia, ou simplesmente meditava no claustro, não devia ser
perturbado. Era um acordo tácito, ao qual só Beatrice não aderira e nem
era obrigada a ajustar-se. Uma Beatrice disciplinada seria uma contra­
dição. Um absurdo.
Meus dois colegas suspenderam a conversa. Tulio tinha que jantar
com um editor, e Mauro ia visitar uma de suas noivas. Por um segundo
me pareceu que cada um invejava o outro.
N a sala de Bruno estavam Beatrice, Lorenzo, Isabella e Anna. Pelas
caras, estavam esperando quórum para combinar alguma coisa. Quando
vi Anna, meu interesse por qualquer programa ficou pendente, condicio­
nado à opção dela.
Bruno costumava reunir a turma quando projetava suas"expedições
arqueográficas" nas aldeias da região. Mas reunia sempre os "avulsos",
porque os demais ficavam com a família nos fins de semana, quando as
viagens aconteciam. Desta vez, faltava Tulio, um "avulso", e estavam pre­
sentes duas mulheres casadas. A idéia de uma viagem com Anna me fas­
cinou. E o fascínio acabou quase imediatamente, quando ela perguntou
a Bruno: "E então, para onde vocês vão desta vez?". Esse "vocês" caiu so­
bre mim como uma cachoeira gelada. "Vamos ver minha tia", respondeu,
bem-humorado.
"Minha tia toca piano. E a tua, Isabella?" .
"Costura para fora. Quem mais tem uma tia?"
"Serve uma tia do pré-primário?", perguntei.

47
"Silêncio", pediu Anna, com ar severo. "Nenhuma tia é como a de
Bruno: ele me disse que ela é amiga de um vigário, Dom Attilio."
"A minha é amiga do leiteiro", disse Beatrice.
"A minha conhecia um cônego", informou Isabella, "e meus primos
nasceram na sacristia...".
Bruno esperou, rindo, que se fizesse alguma calma.
"Agradeço as manifestações de júbilo e respeito dedicadas à minha
tia Margherita, e passo a expor o plano de viagem. Desta vez Tulio não
vai. Tem uma conferência no sábado em Florença. Anna não vai porque
fica com o filho e o marido. Em compensação, Isabella vai conosco por­
que o marido dela vai comprar vinhos nas colinas de Padova."
"E se ele fosse comprar melancias ela não iria, I presume", disse
Beatrice.
"Após as sábias considerações de Beatrice, prosseguirei, se os senho­
res me consentem", continuou Bruno, inalterado.
Pegou uma velha gravura que mostrava uma espécie de palácio, de
arquitetura pouco definida, cercado de árvores e campos ondulados, com
cavalos, carroças e camponeses. Uma suntuosa propriedade rural de al­
gum nobre de outros tempos. "Esta villa fica no Piemonte, depois de
Alessandria, entre Canale e Poirino, 70 quilômetros de Asti, pela estrada
de San Damiano d'Asti. A gravura é do século XVI. Esse torreão que se
vê à direita foi reduzido a pó pelos simpáticos rapazes de Eisenhower, em
44 ou 45. A villa pertence a uma família antiqüíssima que juntou uma li­
nhagem de Pinerolo e uma de Asti, há vários séculos. A atual herdeira é
uma velha dama, alguns a chamam condessa, que confiou a guarda do que
resta da mansão a Dom Attilio, pároco de Madonna della Spina... "
"E então, você, que é meio sobrinho desse Dom Attilio, agora é um
conde, herdeiro da propriedade", inferiu maliciosamente Beatrice.
"Como assim?", perguntou Lorenzo com mais malícia ainda.
"Não, infelizmente. Sou apenas sobrinho da tia Margherita. Dom
Attilio, por sua vez, é sobrinho, o mais novo, da condessa e velho amigo
de minha tia. Eles e uma irmã de Dom Attilio, já falecida, cresceram jun­
tos em meio a vinhas, nevascas e bombardeios. Na infância chegaram a
brincar na velha villa nas férias, quando os condes ainda iam para lá, por
volta de 1910."
"Sei", disse Anna, "vocês percorrem meio Piemonte, tomam a bên­
ção de Dom Attilio, um chá com a tia Margherita e retornam cheios de
poeira e de Barolo à velha Lombardia. É um programa fantástico".
"Claro que antes de voltar ouviremos os dois a lamentarem reuma­
tismos e a lembrarem sua infância em Madonna della Spina, no começo
do século", foi o comentário de Lorenzo.
"É mais ou menos isso." Bruno estava acostumado a ouvir tais gen­
tilezas, sempre que programava alguma expedição. Enrolou cuidadosa­
mente a gravura e prosseguiu: "A villa não está em Madonna della Spina,
mas um pouco além. Pelas histórias que ouvi de minha tia no mês passa­
do ainda existe muito a explorar na mansão. Foi fechada há uns 13 anos
e só mora lá, no plano térreo, uma família de camponeses. Qualquer vi­
sita depende da permissão e das chaves de Dom Attilio. Eu penso que se
chegarmos lá na tarde do sábado, poderemos pegar as chaves para dar
uma olhada rápida na mansão e planejar uma exploração mais demorada
para o domingo. Precisamos da confiança de Dom Attilio e, para isso, do
apoio de minha tia Margherita."
"Devo ir de minissaia?", perguntou Beatrice.
"É uma viagem meio doida, Bruno. E se chegamos lá e o padre não
está, ou não gosta da minissaia de Beatrice, ou simplesmente acha que
somos da Superintendência das Belas Artes, fica com medo de desapro­
priação e nos manda passear? Ir daqui até lá sem saber para quê, é meio
maluco, não?", era a dúvida de Isabella.
Bruno respondeu bem-humorado, mas firme: "Vai quem quer. A re­
gião é linda e vale o passeio. Na pior das hipóteses respiramos ar de mon­
tanha, bebemos o melhor espumante do país e dormimos num hotelzinho
simples, antigo castelo de caça dos Savoia, depois de um jantar com pre­
sunto de javali acompanhado de Barolo ou de Barbera do melhor que há".
Os olhos de Anna brilhavam, mas eu sabia que ela não iria. De todo
modo, registrei seu interesse por montanha ou espumante ou um hotel­
zinho simples, cheio de histórias, pelo Barolo ou por tudo isso. No fun­
do do meu pensamento, a suspeita de que, mais que tudo, ela queria via­
jar, fugir. "Wishful thinking", segredou meu superego. Passei a pensar em
mim. Eu gostaria de passar o fim de semana com Anna ou, pelo menos,
perto dela. Mas ficar na minha toca de via Caravaggio, num fim de se­
mana ensolarado, imaginando Anna com o marido, era uma alternativa
inaceitável.

49
"Eu vou de qualquer modo", declarei. Anna pareceu não gostar da
minha escolha "wishful thinking", advertiu, desta vez, meu ego. "Deixa
de fantasias. Ela é mulher de outro, quer ficar com ele e só não te manda
ao diabo porque até agora você não tentou nada. Toda mulher adora ser
desejada por um segundo homem, gozar a fantasia do adultério, sem os
riscos do adultério real. Na verdade, ela se diverte com as tuas insinua­
ções e olhares de cobiça ou de afeto." Achei meu ego um tanto radical e
injusto: tudo isso poderia até ser verdade, no caso de muitas mulheres,
mas Anna era diferente: verdadeira, leal, incapaz de se divertir com o sen­
timento alheio. "Wishful thinking", intrometeu-se meu instinto de sobre­
vivência, a porção mais arcaica do meu ido Começou então uma inopor­
tuna altercação entre ele e o ego.
Para terminar a disputa, agarrei-me à realidade e disse, para todo o
grupo: "Eu decidi que vou, de qualquer modo".
"Você já disse isso", falou Anna com uma expressão de espanto e,
talvez, de enfado. Meu id era mais esperto do que eu.
Os outros começaram a perguntar detalhes sobre o percurso, o ho­
tel, as chances de achar tia Margherita e o padre. Bruno explicou que na
última visita à tia havia contado que trabalhava na Fondazione Galilei e
nela fazia pesquisas sobre obras antigas.
A tia lembrou, então, que seu amigo pároco não sabia o que fazer
com a mansão secular da família. Esperava que alguma fundação a res­
taurasse. Nem ele, nem a família tinha condições de recuperá-la. Mas não
queria que ela terminasse sua história como abrigo de ovelhas ou celeiro
dos camponeses da região. Como tinha sido, em parte, nos anos cinqüen­
ta. Não era apenas amor pela casa. Era respeito pelos antepassados que ali
tinham vivido combates, invasões, heroísmos e também amores. Mas, so­
bretudo, acontecimentos pessoais de nobreza, de alegria ou de tragédia
que a tradição familiar havia guardado em muitas décadas. Agora, apenas
memórias confusas, contraditórias e fragmentadas era o que restava. O
pároco pretendia escrever uma história da villa. Mas desde os anos qua­
renta não havia escrito nada. Antes da guerra, talvez.
"Agora é que eu quero ir, de qualquer jeito", disse Lorenzo.
"Sem Lorenzo, a Lombardia fica insuportável", caçoou Isabella,
"não me resta outra alternativa. Vamos decifrar essa villa".
Beatrice manteve o tom dramático: "A história não me perdoará se

50

Isabella e Lorenzo forem atacados por algum fantasma sem a minha pro­
teção. Por isso, saibam todos que eu vou para o Piemonte. Mas preciso
de carona se o mecânico não aprontar o meu jipe".
Nossa partida foi marcada para as oito da manhã do sábado diante
da casa de Lorenzo, em via Piacenza. Antes de dispersar o grupo, Bruno
sugeriu um encontro na entrada de Milão, num tal Anjo Azul que ele e
Tulio tinham encontrado, dias antes.
Não havia, no Anjo Azul, qualquer vestígio de Marlene Dietrich. O
anjo azul, porém, estava lá, na parede do fundo, sobre um pedestal de ma­
deira. Era uma horrível estátua de gesso pintado, de olhos esbugalhados,
com uma boca de boneca e asas curtas, brancas e encardidas. Tinha uma
túnica que no passado tinha sido azul. Conforme o porteiro explicou a
Beatrice, fora encontrado numa escavação de galerias pluviais em Bérga­
mo, num terreno do proprietário do bar. Era um bergamasco chamado
Alberto, com os cabelos tingidos de uma cor indefinida, que excluía ape­
nas o verde e o roxo, conforme análise de Anna e Beatrice. Por volta de
onze da noite as três mulheres se foram, com Lorenzo. Bruno e eu fica­
mos mais uma hora ou quase isso, o tempo suficiente para umas três cer­
vejas e para que ele me contasse algumas curiosidades sobre a villa do
Piemonte.
Tinha sido a casa de verão de grandes senhores, de bispos e prince­
sas, cenário de concertos, peças teatrais, glórias, pecados e crimes. Tudo
isso Bruno tinha ouvido na região ao visitar a tia, tempos atrás. Mas não
sabia o que era certo, o que era lenda, nem quando andaram por lá prínci­
pes, bispos ou artistas. Eram coisas que" os antigos contavam", no dizer
de tia Margherita. Ele queria encontrar vestígios, indícios ou provas desse
passado tumultuado. E sabia que esse projeto nos entusiasmava a todos.
Mas, é claro, o interesse nosso e dele era o de achar escritos: livros, cartas,
o que fosse. Como eu já disse, nós éramos bibliomaníacos irrecuperáveis.
Numa certa hora, não sei bem quando, Bruno levou-me para casa.
Lembro-me de ter agradecido a gentileza e de ter recordado, por um áti­
mo, o anjo da guarda que protege os indefesos, mesmo quando não são
menininhas loiras à beira do precipício.
Antes de dormir decretei que Anna erá uma mulher esplêndida, pes­
quisadora brilhante, mulher de outro, indiferente às minhas insinuações
e olhares. Mais: ela apenas se envaidecia com meu interesse por ela. Toda
mulher gosta de ser desejada e cortejada. Sentenciei que era um creti­
no, e dei ganho de causa ao meu instinto de sobrevivência que me afasta­
va da cratera do vulcão. Na manhã seguinte ela me veria totalmente mu­
dado. Afável, cortês, mas impessoal e distante.
Dormi miseravelmente.
Por culpa da cerveja ou do turbilhão de idéias e emoções do dia, tive
sonhos agitados que não recordo bem. Sei que Anna aparecia em mui­
tos episódios, sempre com o marido, ou interessada em Tulio ou Bruno,
Mauro, Lorenzo. Só faltava que aparecesse agarrada a Lanebbia ou a al­
gum turista mexicano. Mas aparecia também Beatrice que caminhava pela
Galleria, sorrindo para mim, rebolando como Marilyn Monroe e levan­
tava a saia mostrando-me as coxas. Depois rodopiava e entrava na cozi­
nha do Menarost sob o olhar excitado de Giulio. No melhor momento
do sonho eu estava abraçando Lisa pelas costas. Ela se contorcia mansa­
mente comprimindo minhas mãos sobre seus seios, sorrindo deliciada.
Foi então que vi Anna chegando à cozinha, espantada e baixando triste­
mente o olhar, desiludida comigo. Enquanto ela se afastava quase morri
de tristeza e acordei, com muita sede e muita vontade de rever Lisa. Ela
tinha a mansidão das papoulas ingênuas e espontâneas no meio do tri­
gal. Algo bastante diverso de uma cratera incandescente e voraz. Lem­
brei a decisão. Com Anna, gentileza, afabilidade, mas com distância e
impessoalidade.
Cheguei ao Galilei, atrasado, por volta das nove e meia da manhã,
com armadura completa e mais, lança, escudo, espada, arco, maça ferra­
da e viseira abaixada. Invulnerável. Mesmo a feitiçarias e armas traiçoei­
ras, como blusas transparentes, saias curtas, coxas bronzeadas ou sorri­
sos sedutores.
No claustro, Tulio e Beatrice me sorriram e continuaram uma con­
versa sobre idiotia e bócio endémico no Piemonte. Mauro me saudou
com efusão, mostrando um velho código criminal que tinha trazido para
Abelardo.
Minha sala estava acolhedora, inundada por uma luz suave que re­
fletia o brilho da ramaria das cerejeiras tremulando em pleno sol. Tran­
quei a porta, para gozar em paz aquela luz. Uma paz que vinha também
das decisões libertadoras tomadas na véspera.
Agora ficava claro o meu projeto. Não devolveria o manuscrito, nem
responderia ao consultor da revista. Quanto à pesquisa, depois das con­
versas no M enarost, havia um rumo definido. Não há uma genética da
idéia de loucura. Descrever-lhe a evolução ou gênese era traçar a genea­
logia das várias concepções e levar em conta a possibilidade de saltos evo­
lutivos, por obra de algum gênio. Mas depois da conversa etílica com Bru­
no sobre as destruições e reconstruções da villa do Piemonte, ficava evi­
dente que o fluxo das idéias também está exposto a guerras, bloqueios e
desastres. O que eu deveria procurar não era sequer uma genealogia, ou
não era apenas isso. Eu tinha que reconstruir uma trajetória. O fluxo ge­
nealógico das idéias não escapa dos apetites, dos jogos de poder, da bar­
bárie, do que é casual, acidental ou, numa palavra, evento. Com toda a
fatalidade que isso implica.
Em certo sentido, toda história de uma idéia é a história de uma tra­
gédia: a da inexorável tirania do evento sobre os sonhos e projetos do ho­
mem. Senti que o velho Eurípides, de algum lugar no tempo, me sorria.

No sábado, partimos cedo para o Piemonte. Lorenzo, Isabella e Bru­


no em um carro, eu e Beatrice no Land Rover dela. O trajeto de duzen­
tos quilômetros deveria ser percorrido sem pressa, para apreciarmos a
beleza da região e para chegarmos ao destino quase na hora do almoço,
famintos como merece a culinária piemontesa. Havia outra razão: visitar
pequenas cidades do caminho, à procura de indícios ou informações so­
bre textos antigos.
Depois de Alessandria, a primeira visita, a Poggio. Uma igreja renas­
centista "aperfeiçoada", com um órgão de foles manuais abandonado no
canto do coro em homenagem a uma coisa eletrônica de dois teclados. Na
sacristia, Beatrice achou, sobre um armário poeirento, quatro velhos mis­
sais. O Concílio Vaticano II havia aposentado em cada igreja missais, ky­
riales, saltérios venerandos, sempre encadernados em couro, com títulos
dourados, fitas cheias de brocados, que marcavam, segundo as cores, as
fases do ano litúrgico. Roxo no advento e na quaresma, verde no "tem­
po comum", vermelho em Pentecostes. Alguns podiam ter mais de cem
anos. Isabella folheou rapidamente um deles, enquanto Lorenzo consul­
tava o pároco, muito magro, a respeito vitrais da igreja. Decidiu que
um dia seria dona daqueles livros, nem que tivesse de pagar a reforma da
motocicleta, também antiga, de Dom Michele.

53
Depois de Asti, grande demais para o nosso gosto, paramos em San
Giulio. Pelas informações de Lorenzo, ali existiu, por volta de 1460, um
importante torchio, onde se imprimiam livros profanos e médicos. Antes
que a fúria anti-herética de Inocêncio VIll desencadeasse as barbaridades
do arquidiácono Alberto de Capitanei e de vários bispos piemonteses,
ávidos de resgatar, em igual medida, as almas e o ouro de pagãos, cátaros,
albigenses ou maniqueus de qualquer sorte. Havia belos afrescos da es­
cola Senense no batistério dos beneditinos. De importante, além disso, só
o diálogo de Beatrice com o monge da portaria, sobre o bustiê dela, que
afrontava ostensivamente a gravidade do batistério.
desculpe, senhora. Não é permitido ingressar no recinto sa­
grado em trajes... como direi? .. a senhora é inteligente e pode compreen­
der que... vestida desse modo..."
"Que há de mal, monsenhor (sic)? Há muitas santas que foram mães,
amamentaram... O próprio Jesus Cristo deve ter mamado muitas vezes...
E naquele tempo não havia nem lingerie, nem sutiã, Deus fez Eva bem
mais dotada do que eu, pelo menos, segundo Michelangelo, e permitia
que ela passeasse, nua em pêlo, na sua chácara, ou jardim, não é mesmo,
monsenhor? "
O monge sorria, diante da espontaneidade dos argumentos, mas ar­
queava as sobrancelhas num de mansa e definitiva resistência. Pa­
recia estar treinado para as mais diversas contestações de turistas francesas
ou suecas à sua ingrata função de barrar o ingresso de minissaias, trans­
parências e outras peças de desvestuário. Fixava Beatrice com sorridente
firmeza, calado. Apenas apontava os dizeres da placa: "Em respeito à casa
de Deus, lugar de recolhimento e piedade, o Reverendíssimo Abade or­
dena ao irmão ostiário etc...".
Beatrice leu a ordem, olhou resignada para o monge e não se conte­
ve: "Vocês são muito espertos, monsenhor abade (sic). Se eu entro, você
vai levar um sabão, por minha culpa. E então sou obrigada a ficar de fora.
Mas se o motivo é respeito a Deus, ele me enxerga, pelo menos, quando
tomo banho. E então, eu não posso entrar, por respeito às beatas que gos­
tariam de andar soltas... como direi? .. provocantes. Mas eu não quero
seduzir ninguém e qualquer um vê -que Deus foi generoso comigo mas
não sou nenhuma Lollobrigida".
O porteiro não conteve o riso. Lorenzo, rindo também, tomou-a

54
pelo braço, saudou o monge, que balançava a cabeça, talvez a perguntar­
se se Beatrice não tinha razão... quanto às beatas. Enquanto se afastavam
ela voltou-se, jogou-lhe um beijo: "Pelo menos ficamos amigos, não é,
monsenhor?" .
O episódio foi nosso assunto nos quilõmetros seguintes, até Cisterna
d'Asti, depois de San Damiano. Ali, no meio de um labirinto de estreitas
ruas, no vicolo del Priore, Isabella e eu achamos algo importante. Uma
oficina de encadernação, que ostentava alguns velhos livros com as lom­
badas dilaceradas, outros com as capas em farrapos, sobre uma mesa. So­
bre eles havia uma placa de cartão: "Restaurações de livros antigos e ma­
nuscritos". Noutra mesa uma fila de esplêndidas encadernações em cou­
ro de diferentes cores, vincos dourados, gravações a ferro, fechos de bron­
ze trabalhado em baixo-relevo, alguns com monogramas de porcelana
esmaltada. Eram missais, antifonários, herbários, bestiários, bíblias, as
"Bucólicas" de Virgilio, textos de Plotino, Ovidio, Sófocles... Tudo o que
poderia encantar qualquer um do nosso grupo. Isabella começou a con­
versa, perguntando sobre um fascículo desconjuntado, com várias man­
chas, e que devia ser parte de um livro maior.
"É de um antifonário?"
"É um prazer atendê-la, senhorita... ou senhora. Meu nome é Val­
desi, Aurelio Valdesi. Percebo que entende do assunto."
"Sou diletante; o senhor é um profissionaL."
"É de um antifonário do século XVI. Mais precisamente, do início do
cinquecento, e refere-se à liturgia do advento... "
"Última semana do advento", ajuntou Isabella.
"Como sabe, senhorita?"
"Pelas palavras. São a continuação do Rorate coeli desuper."
... et nubes pluant justum", acrescentou Aurelio, num tom de cor­
tês desafio.
"Isto deve estar na página anterior, que falta. A seqüência é esta
aqui", ela apontou para o glorioso fascículo. "A primeira palavra está
apagada, mas a seqüência é aperiatur terra et germinet salvatorem."
O encadernador sorria satisfeito. Havia encontrado um interlocu­
tor capaz de valorizar o seu ofício e o seu conhecimento. "A senhora me­
rece conhecer o que eu tenho neste armário. Algumas peças vêm passando
de uma geração a outra da família, desde o quattrocento. Antes de se fi­

55

xarem aqui, meus antepassados eram copistas e encadernadores em Tu­


rim. Um deles trabalhava para a nobreza, até mesmo para alguns duques
da casa de Savoia, a mais antiga Casa Real da Europa, como a senhora
sabe."
Dito isto, abriu um grande armário abarrotado de códices, rolos, in
folio, incunábulos, breviários, manuscritos em pergaminho, missais, li­
vros de cirurgia com estupendas gravuras, cartas geográficas, antifonários
enormes em pergaminho, com as antífonas manuscritas entre pautas de
canto gregoriano; um paraíso para os olhos de Isabella.
Eu estava totalmente esquecido pelos dois. O encadernador, feliz
por mostrar o tesouro da família, relíquias seculares, finalmente a alguém
digno dessa honra. Isabella parecia enfeitiçada diante.daquela festa de mi­
niaturas, gravuras e pergaminhos, extasiada em meio a tantas pautas re­
pletas de ciivis, torculus, podatus e outras notas do canto gregoriano, que
eu não conheço.
Aurelio apontou alguns volumes sem capa: "Estes são do século XIV,
canções, hinos religiosos e astronomia". Passou a Isabella um volume não
muito grosso, encadernado em couro branco.
"Este é difícil de ler", disse com certa solenidade. "Sei duas coisas
importantes sobre ele: que saiu, há mais de trezentos anos, da do bis­
po vermelho, lá pelos lados de Casale, e que é uma peça de teatro grego,
então proibida pela Igreja. Como tantas outras obras. Tem muitas cita­
ções gregas e está repleto de escólios em latim, nas margens."
"Latim é com Emilio", disse Isabella, olhando, finalmente, para
mim. "E teatro grego é com nossa amiga Anna." Aurelio pareceu não
gostar da presença desses dois intrusos no seu mundo privilegiado de có­
dices e pergaminhos. Para mim a frase dela foi como um raio em manhã
de sol. Enquanto eles olhavamos velhos livros, eu sentia uma certa pena
de Anna por não estar ali, apreciando os tesouros do livreiro. Era algo
muito vago e nem mesmo a imagem ou o nome dela me ocorria; eu tam­
bém estava emocionado diante dos velhos textos. Mas tinha passado toda
a manhã sem lembrar de Anna, seus olhos, os cabelos soltos, as curvas
sensuais... Agora, de um golpe, Isabella me atirava de volta ao desejo, ao
conflito, à insegurança. Eu pressenti, átimo, que o vulcão se escan­
carava, de novo; ninguém impediria Isabella de contar a Anna a desco­
berta de uma tragédia grega, escrita em latim, com escólios manuscritos
em profusão, prontos para serem degustados ao lado de um solícito tra­
dutor. Que seria eu, obviamente. Era a esperança de muitas horas, tal­
vez noturnas, junto a Anna e, ao mesmo tempo, a ameaça de momentos
de sofrimento ou frustração.
Como um autômato, tomei o livro das mãos de Isabella. A portada,
um tanto manchada, era como uma sentença: já na segunda-feira, Isabella
me empurraria para dentro do vulcão. O autor era Eurípides e o título era
Bacchae. Eu já me tinha comovido intensamente diante das "Bacantes",
que acho a obra mais amarga do mais trágico dos trágicos. Agora estava
condenado a reviver aquela tristeza, linha por linha, na orla da cratera.
Tive compaixão de mim. Pedir clemência a Isabella seria expor minha in­
competência diante da atração de Anna. Restava uma saída: Aurelio ja­
mais permitiria que o volume deixasse aquela sala. E foi mais ou menos
o que ele declarou a Isabella.
Foi então que eu me convenci da fraqueza dos homens e, mais uma
vez, da infinita malícia das mulheres. Ela fez uma vozinha de tristeza, um
olhar de criança abandonada no meio da nevasca, um biquinho de mágoa
e desilusão. Aurelio vacilou. Eu torcia para que resistisse, mas ela então
lhe agarrou ternamente o braço e disse suplicante: "Mas o senhor me dei­
xará examiná-lo outras vezes, não é?". As pálpebras de Aurelio baixaram
mansamente num gesto de rendição. "Covarde!", pensei. Como devem
pensar os condenados. Eu sabia: ela e Anna acabariam levando o livro
para o Galilei, mais cedo ou mais tarde.
"Eu estudo a história do canto gregoriano e me interesso particular­
mente por antifonários e kyriales. Também missais, desde que tenham
algum 'prefácio', 'gloria' ou graduale musicado." Isabella estava criando
uma imagem de seriedade e competência que escancarasse, para ela, os
armários de Aurelio Valdesi e, para mim, a goela do Etna. Resignei-me.
"Tenho ainda outras coisas que talvez lhe interessem", emendou o
encadernador, enfeitiçado pelo charme dela e totalmente alheio à minha
existência. Resignei-me, de novo. Queria perguntar algumas coisas. Sen­
tia-me um intruso. Mas não me conteria para sempre. Cedo ou tarde eu
teria que saber de onde vinham as maravilhas daquele armário. Tinham
passado de pai para filho, por séculos, como nos disse Aurelio. Mas não
brotaram do nada ou de alguma fórmula aiquímica, pensei. E, enquanto
eu pensava, Isabella começou a ofensiva.

57
"Deve ser difícil obter essas preciosidades, não é, senhor?"
"Hoje em dia, sim. Mas antigamente não havia antiquários, nem a
Superintendência de Belas Artes. Isto significa que não se dava grande
valor a livros antigos e que eles passavam facilmente de um dono a ou­
tro. Mas a maioria das pessoas não sabia ler e, por isso, os livros facilmen­
te se perdiam ou eram esquecidos em sótãos, porões, vãos de escada, ve­
lhos armários. Mas nós, os encadernadores, há séculos, protegemos, sal­
vamos e resgatamos essas maravilhas, das garras de ratos, gatos, inqui­
sidores, moralistas, censores, fabricantes de papel, viúvas sovinas... "
"Os livros eram feitos para poucos", disse Isabella, um tanto inopor­
tuna, interrompendo a série de vilões que Aurelio enumerava.
"A senhora sabe quem foi, na história da humanidade, o primeiro
que formou uma biblioteca individual? Foi Eurípides, o autor desse tex­
to que a senhora acaba de ver."
"Alguns homens, porém, amaram os livros e os confiaram, quando
feridos, aos cuidados e ao carinho dos encadernadores e restauradores,
como os seus antepassados e o senhor mesmo."
Registrei apenas o sentimentalismo estratégico da palavra "feridos",
em vez de "estragados", "rasgados", "estraçalhados"... Eu jamais alcan­
çarei a malícia feminina. Ela transformava o encadernador numa espécie
de médico incompreendido. E Aurelio estava francamente emocionado
com o histórico heroísmo do seu ofício. Então ela preparou o bote.
"Por exemplo, esse 'bispo vermelho'. Deve ter sido um amante dos
livros ou, até mesmo, um escritor..."
"Qualquer restaurador ou editor do Piemonte sabe disso, senhora.
Esse 'bispo vermelho' era um grande amante das artes e da filosofia. Já
meu avô dizia que os livros mais antigos do Piemonte eram os da villa do
'bispo vermelho'. Dizem os antigos que ele tinha uma espécie de teatro,
onde havia concertos e representações dramáticas; que ali chegavam violi­
nistas, poetas, filósofos e sábios de todo tipo..."
Então ele pareceu perceber, achei, as intenções de minha amiga:
"Todas as vilas d nte e também do Vale d'Aosta já foram
vasculhadas lquários e Superintendência, cara senhora. Tudo
indica que a villa do bispo era região de Casale, provavelmente em
Madonna della Spina. Há uma grande villa lá. Mas essa também já deve
ter sido saqueada, através dos tempos."
Aurelio tinha, evidentemente, uma visão histórica do seu ofício.
Um aliado ideal, pensei, para um bando de fanáticos pela história do
conhecimento. Antes que me esqueça: o Galilei tem um nome oficial:
"Istituto Galileo Galilei per la Storia della Conoscenza". Isso não nos tor­
na mais suportáveis, mas explica nossa avidez por textos antigos. E até le­
gitima nossa cobiça.
O encadernador percebeu que Isabella ficara meio chocada com a
resposta. Ela fazia uma cara de desilusão. Mas essa expressão, pensei, era
parte de sua tática. Um gesto quase espontâneo, gratuito, de quem adianta
um peão no tabuleiro. A resposta foi a desejada: Aurelio sentiu-se in­
delicado e... obrigado a reconquistar a admiração dela e o sorriso que se
apagara.
"Sou amigo de inúmeros restauradores e colecionadores em todo o
Monferrato, doutora. A senhora conhecerá verdadeiros tesouros de arte
gráfica e as mais fascinantes histórias sobre livros antigos. É só me avisar
com alguma antecedência, para que eu combine as visitas aos meus cole­
gas. Venha quando quiser. Eu tenho grande prazer de conversar sobre
essas maravilhas e não suporto os que amam os livros pelo dinheiro que
valem e não pelos tesouros que guardam. Esses ficam na minha oficina
apenas o tempo de ouvir que estou fechando para almoço ou para ir ao
correio. Espero que a senhora me honre com novas visitas."
Dito isso mim, com um olhar que tentava ser de corte­
sia mas er e indisfarçável misericórdia: "O senhor também será sempre

Deu-nos dois cartões com endereço e telefone e, enquanto nos des­


pedíamos, trancou o armário, despiu o horrível guarda-pó preto, sorriu
satisfeito para Isabella e fechou a porta às nossas costas.
"Que tal, Emilio? Achamos uma mina de textos únicos."
"Um tesouro. Mas o melhor de tudo é aquela tragédia, do 'bispo
vermelho'. Além de ser manuscrita e das citações gregas, há os escólios
que, pelo aspecto, devem ser do quattrocento. Nunca vi coisa mais linda,
Isabella." Procurei a reação no rosto dela.
"Muito obrigada. Não me acho tão linda assim. Porém, se o elogio
é para as Bacchae, concordo plenamente. Daquele armário, as peças que
me servem não são tão preciosas. Mas aquele antifonário, tão maltratado,
é bem mais antigo."

59
"Como você sabe?"
"Eu não quis espantar o nosso amigo Aurelio... "
"Teu amigo Aurelio."
"Está bem. Meu amigo Aurelio. Não quis assustá-lo. Aquele peda­
ço do Rorate coeli foi escrito bem antes do século xv. Pode-se ver pelo
traçado dos podatus e dos porrectus.
"São notações musicais, suponho."
"São. Como qualquer virga, quilisma, salicus, pressus ou climacus,
meu caro latinista. Quem manda você me esnobar quando eu tropeço na
tradução dos meus salmos e orationes?"
Eu me senti humilhado, mas não deprimido. A depressão veio logo
em seguida.
"Seu latim vai ter que mostrar serviço logo, logo, meu caro. Ou você
acha que nossa querida Anna vai deixar essa tragédia e seus escólios mofa­
rem por muito tempo naquele armário? Nem que precise penhorar o anel
de esmeralda, ela vai agarrar esse livro mais cedo do que você pensa."
Claro que fiquei meio deprimido. A idéia de um longo trabalho ao
lado de Anna me atraía e me assustava, como já disse. Mas deixar que ela
recorresse a algum outro, era um pensamento insuportável.
Mais. Eu adoro Eurípides; e aqueles escólios me enfeitiçavam. Mas
havia Anna na história. Outro fascínio incontrolável. Como ceder a esse
fascínio sem mergulhar de cabeça no magma incandescente do vulcão?
Tive pena de mim. E não sei por que artes do diabo, me surpreendi sor­
rindo como um idiota, satisfeito, ao pensar na felicidade de Anna quan­
do soubesse do nosso achado. Percebi então que meu caso não tinha cura.
E, nesse momento, eu ri de mim mesmo.
"Lá estão os três. Nem nos esperaram para o espumante. Que mal­
educados!", reclamou Isabella, apertando o passo.
Ela explodia de vontade de contar a descoberta. E contou, mas o
foco central do relato não eram os livros do armário e sim os conhecimen­
tos e promessas de Aurelio. Bruno estava espantado, olhos arregalados.
Lorenzo perguntou sobre a família do encadernador.
UE essa tragédia, dá para copiar?", indagou Beatrice, limpando os
óculos de sol no guardanapo.
"É uma questão de arte", respondeu Isabella.
"Ou artes, talvez diabólicas... ", emendou Bruno.

60
"Artes femininas", sugeriu Lorenzo com certo desagrado.
"Não sei quanto vocês conhecem os encadernadores e os piemon­
teses, mas temo que o seu amigo Aurelio já tenha resistido a muitas des­
sas artes. De todo modo, não podemos perder essa mina. Precisamos or­
ganizar isso", ponderou Bruno.
"Isso pode ser até mais importante do que parece", disse Lorenzo.
"Por quê? Só por causa das promessas do encadernador?", pergun­
tou Beatrice, de dentro da taça de espumante, olhando para Lorenzo.
"Por causa de uma certa incompatibilidade entre a profissão dele e
o nome de família. Mas isso é especulação minha e agora seria um assun­
to chato."
"Temos que decidir sobre o almoço", disse Bruno, "são 12:10. Te­
mos ainda uns 15 quilômetros até Casale. Proponho seguir viagem, sem
parar em Monta, desta vez, e chegar à casa de minha tia antes das 13:00.
Se tivermos sorte, poderemos dar uma olhada na villa ainda hoje, e ama­
nhã fazer uma exploração mais demorada."
"Não é muito corrido, tudo isso?", quis saber Isabella.
"Meu receio é que tia Margherita e Dom Attilio queiram fazer a sesta
e com isso obrigar-nos a umas duas horas de espera. "
Beatrice fingiu-se chocada: "Credo! Eles dormem juntos?".
"Simultaneamente, talvez, e distantes três quadras um do outro. Se
pegarmos as chaves logo, podemos almoçar em paz e lá pelas três e meia
fazer uma primeira visita à villa. Se bem conheço minha tia ela já deve ter
pegado as chaves, mas isso não nos desobriga de uma visitinha, amanhã,
a Dom Attilio, seja para ver como podemos ajudá-lo na preservação do
edifício, seja para saber mais sobre essa história."
"Eu pago a conta. Vamos indo", decidiu Lorenzo, "estou com fome".
Bebi, de um gole, a minha taça de espumante e, como um bom sol­
dado, entrei em forma.
Tudo correu conforme os planos de Bruno. Por volta de quatro ho­
ras, após um estupendo vitel tonné e várias garrafas de um Barbaresco
dionisíaco, lá estávamos nós, de olhos esbugalhados diante da villa do
"bispo vermelho".

61
Capítulo 3

o ninho de Filomena

o que tínhamos diante dos olhos era bem diverso da gravura que
Bruno exibira no Galilei. As árvores que circundavam a mansão só exis­
tiam no desenho: fruto, talvez, da imaginação do artista. O edifício esta­
va no centro de um amplo pátio de lajes de granito, que se estendia, em
ligeiro declive, a partir de cada parede do prédio.
A villa era um bloco imponente, com dois andares muito altos. A fa­
chada era branca e longuíssima. As paredes laterais, bem mais curtas, ter­
minavam em cúspides muito agudas.
"Renascimento", arriscou Beatrice, interrogando Lorenzo com os
olhos.
"Cinquecento, talvez, por causa das molduras das janelas. O que
você acha, Emilio?", perguntou-me ele. Eu tinha estudado um pouco de
história da arquitetura, anos antes; por isso, arrisquei: "Pelo estilo da
cornija maior e pelos medalhões entre as janelas da fachada, diria que é
do quattrocento ou do início do cinquecento". E esbanjei conhecimen­
to: "Refiro-me apenas à fachada. O telhado é, obviamente, mais recen­
te". Isabella me fitava meio incrédula, mas se conteve. Bruno conhecia
menos que eu, por isso me olhava com certa admiração.
A fachada era majestosa. Tinha duas fileiras de enormes janelas pro­
tegidas por grades de ferro batido com desenhos florais sóbrios. Tinham
um traçado simples, quase de um românico tardio.
"São quinze janelas em cima e doze embaixo, seis em cada lado do
pórtico", contou Beatrice. O pórtico, de fato, ocupava, na parte inferior
da fachada, o espaço das três janelas centrais. Os batentes e o arco supe­
rior eram de granito cinza-claro como o pátio. Eram esculpidos com bom
gosto e sustentavam um frontispício com dois brasões de família, talvez,
corroídos pelo tempo. Como, de resto, todas as peças esculpidas: as mol­
duras das janelas, os medalhões e as cariátides que sustentavam a trave
mestra. De uma ponta à outra, a fachada deveria ter uns sessenta metros,
o mesmo comprimento da parede dos fundos. O telhado tinha apenas
duas águas, uma pendendo sobre a cornija superior da fachada e a outra
sobre a face posterior do edifício. Formavam uma cumeeira muito agu­
da, que da frente da villa não se podia perceber claramente.
Bruno, sempre atento às coisas práticas, fez uma observação im­
portante:
"Com um pátio de pedra dessa extensão, sem árvores por perto, com
uma cumeeira a mais de cinco metros do forro, exposto aos ventos du­
rante todo o ano, esse casarão deve ser ideal para o reumatismo de minha
tia Margherita. Pode até ser uma casa fria, mas deve ser muito seca."
"Aonde você quer chegar?", perguntou Isabella, vislumbrando se­
gundas intenções.
"Não sei muito bem. Mas é sabido que os ambientes secos conser­
vam melhor algumas coisas... Como múmias, por exemplo."
"Que idéia mais idiota", respondeu ela, "não tenho a mínima von­
tade de encontrar qualquer parente de Tut-Ank-Amon, nem algum an­
tepassado desse Dom Attilio".
"Você esqueceu outra coisa, Bruno: essa mansão recebe todo o sol
do ano, em uma ou outra parede. Veja: agora, por exemplo, o sol está ba­
tendo em quase todas as janelas de cima, e no teto; e já são quase cinco
horas. Quer dizer que a fachada tomou sol durante boa parte do dia. Des­
se modo as múmias não têm motivo para queixas", comentou Lorenzo.
Do canto direito da casa surgiu um menino loiro, magro, de olhos
brilhantes e curiosos. Chegou sorrindo com desenvoltura, trazendo um
pequeno cesto de vime. Mediu Beatrice de alto a baixo, parando o olhar
sobre o bustiê dela por alguns segundos e lhe abriu um sorriso de irres­
trita amizade.
"A senhora quer comprar ovos?", perguntou-lhe.
Ela sorriu com a sinceridade que Deus lhe deu e começou uma con­
versa.
"Depende. Ovos de quê?"
"De minha galinha. Ela se chama Filomena e mora lá em cima, den­
tro da tribuna."
"Que história é essa de tribuna e de galinha morando nela? Mas an­
tes me diga qual é o seu nome.
"Eu me chamo Rinaldo e meu irmão é Amadeu. Filomena mora lá
em cima desde que meu avô acabou com os ratos."
"O que é que os ratos vinham fazer aqui, Rinaldo?"
"Senhora, meu avô guardava as espigas de milho no chão do teatro.
Há um teatro lá em cima, no canto direito. A senhora não sabia disso? É
uma sala toda pintada, com um palco e uma tribuna. É um teatro, ora.
Agora o milho fica aqui embaixo, porque dava muito trabalho levar tudo
lá para cima."
Ela nos consultou cúm o olhar e fez uma proposta ao menino: "Eu
compro até duas dúzias de ovos, mas você nos mostra onde mora a Fi­
lomena. Está bem?"
"Só com as chaves de Dom Attilio. Nem meu avô tem todas as cha­
ves. E ele é muito ciumento de tudo o que existe nesta casa. Diz que até
o bisavô do seu bisavô já morava aqui e que sua família sempre viveu aqui,
épocas de glória e fartura e tempos de sofrimento e miséria. É assim que
ele fala. Ele gosta muito desta casa e sabe tudo o que aconteceu por aqui,
desde o tempo do bispo vermelho."
"E a história do milho e dos ratos?", indagou Isabella, visivelmente
encantada com o desembaraço de Rinaldo.
"As espigas atraíam os ratos. Meu avô colocou uns pratos com vene­
no e eles morreram ou foram embora. Agora as espigas ficam aqui embai­
xo, no pátio, quando há sol, e depois ficam lá atrás, onde era o canil de
antigamente. É tudo aberto, sem paredes, e os ratos não têm como se es­
conder dos gatos. Lá em cima é tudo bem fechado e é mais fácil se escon­
der. E deve ser mais quente, porque não venta. Embaixo da tribuna é ain­
da mais quentinho, porque é tudo de madeira grossa. A Filomena ocupou
o ninho que era dos ratos. Vocês vão ver quando forem lá para cima."
"Como é que você sabe que nós queremos ver tudo isso?", interro­
gou Isabella.
"Pelo peixeiro, o senhor Angélo. Ele é muito amigo de Dom Attilio
e na quinta-feira trouxe mariscos para minha mãe. Foi ele que contou da
visita de vocês."
"E o que mais o senhor Angelo disse de nós?"
"Que vocês são pesquisadores de Milão, amigos da senhora Mar­
gherita, muito amiga de meu avô. Minha mãe gosta dela, porque ela nos
ajudou muito quando meu pai morreu. Cada duas semanas eu levo ovos
para ela."
"E será que seu avô nos deixa entrar?"
"Vocês trouxeram as chaves de Dom Attilio?"
"São estas, não?", disse Bruno, mostrando-lhe as que recebera de tia
Margherita.
"Estas servem para este portão grande do pórtico. As do teatro e as
da capela são guardadas por meu avô. A única pessoa que entra lá sem as
chaves sou eu."
"Por quê?", indagou Beatrice.
"A senhora não vê? Eu sou muito magro e consigo passar entre as
barras de ferro dos portões. Meu irmão Amadeu me inveja por isso. Ele
é muito gordo para passar. Uma vez ficou preso neste portão e foi difícil
para minha mãe tirá-lo daí. Você também não passa", acrescentou, com
um sorriso maroto, percorrendo com os olhos o corpo bem-feito de Bea­
trice. "Vou chamar o vovô para conhecer vocês. Mas você compra os ovos
depois. Não é?"
"Claro", responderam Beatrice e Isabella ao mesmo tempo.
Estávamos todos encantados com Rinaldo. Até Lorenzo, que não
era dado a grandes efusões afetivas, estava sorrindo, quando o garoto se
foi, levando o cesto de vime.
Atrás do grande portão de barras verticais, não havia propriamente
um vestíbulo ou salão. Era uma galeria que atravessava todo o edifício e
terminava em outro portão de grades; a saída dos fundos. Mas, a meia
distância entre os dois portões, subiam dois lances de escadas, um para a
esquerda, outro para a direita. Embaixo de cada escada podia-se ver o
início de um corredor que devia dividir o andar térreo em duas alas de
igual largura. As escadas, como percebemos depois, conduziam a um átrio
superior do qual saíam outros dois corredores que dividiam ao meio o
andar de cima, de uma ponta a outra do prédio.
O avô de nosso amigo Rinaldo vinha chegando com um porte sole­
ne, sorridente. Era uma bela figura. Cabelos brancos abundantes, pele
muito bronzeada. Tinha um olhar seguro e um sorriso que traduzia in­

66

r ----­
teligência e bondade. Devia ter uns 70 anos, de vida plena, trabalhosa, mas
serena. Pelo menos foi a impressão que deu, a mim e a Bruno, que até co­
mentou, em voz baixa, para Isabella: "Quando eu envelhecer, quero ser
um velho assim". E ela, também em voz baixa, respondeu-lhe, cáustica:
"Não se preocupe, você não vai ter esse problema".
"Senhoras", disse o velho com uma elegante mesura, "espero que
tenham feito boa viagem e que esta visita lhes agrade. Cavalheiros, sejam
bem-vindos, muito boa tarde para todos".
Ele não parecia um zelador ou guardião daquele palácio. Insinuava
uma ligaçãoafetiva, mais que de trabalho, com a villa. Devia ter muito
que contar sobre ela.
Rinaldo chegou, trazendo as chaves do avô e o cesto de vime. En­
quanto o velho nos saudava, tomou da mão de Bruno, com um sorriso de
cumplicidade, as chaves de Dom Attilio e pôs-se a abrir o enorme portão
de ferro. O velho disse chamar-se Alessandro e, sem mais cerimônias, con­
vidou-nos a entrar.
"Aconselho os senhores a visitar antes as duas extremidades do pa­
vimento superior, enquanto a luz do sol está forte. Há restos de afrescos
bem conservados tanto na capela, no fim do corredor esquerdo, como na
sala do palco, que chamamos teatro, que está no extremo oposto. Deixo­
os com Rinaldo, mas estarei à sua disposição lá em casa. Dona Margherita
disse que os senhores, possivelmente, ficariam em Madonna della Spina
por mais um dia."
"Ciao, nonno!", saudou Rinaldo, quase mandando o velho para ca­
sa. Estava ansioso para mostrar-nos a mansão e, principalmente, Filome­
na com seu ninho, usurpado aos ratos.
O interior do casarão surpreendia pela limpeza e pela claridade. As
paredes eram brancas e ao longo dos corredores a maior parte das portas
estava aberta, deixando entrar toda a luz que atravessava as enormes ja­
nelas da fachada e da parede dos fundos. Era um ambiente de luz, sere­
no, quase conventual. Lembrava a abadia do nosso Galilei. Não pelos as­
pectos visuais ou arquitetônicos, que em nada se assemelhavam, mas pela
atmosfera carregada de memórias, de história, de vozes caladas.
Rinaldo nos conduziu pelo corredor da esquerda que terminava num
portão de ferro, mais leve que o do pórtico, mas igualmente severo e an­
tigo. Atrás dele, uma porta de madeira com dobradiças enormes, de bron­
ze escurecido. Estava trancada apenas por um ferrolho. Rinaldo enfiou­
se por entre as barras do portão com um sorriso de triunfo, dizendo que
era mais fácil abri-lo pelo lado de dentro. Escancarou-o e, antes de abrir
a porta, voltou-se para Beatrice, sua predileta, e disse com orgulho:
nossa capela está bem velha, mas é muito bonita. Meu avô diz que as pin­
turas são muito antigas. Ele gosta muito delas e dos vitrais. Você vai ver
que coisa linda!". Dito isso, abriu vagarosamente as duas folhas da porta
e postou-se ao lado, quase perfilado, atento às nossas reações.
Era um espaço amplo, mais largo que comprido. O sol entrava triun­
fante pelas três janelas da fachada, à nossa esquerda, e a luz azulada do
poente chegava mansa à nossa direita, pelas outras três janelas, abertas
para o vale. O piso, de lajes claras, devia ter uns doze metros entre urna
parede e outra, mas era dividido em três faixas, por balaustradas de fer­
ro batido e pequenos pilares de mármore. Tratava-se, pelo jeito, de urna
nave central e duas naves laterais, corno convém a qualquer igreja que se
preze. Muito mais quando se trata da capela de um bispo. Era surpreen­
dente o estado de conservação do local. Havia balaústres danificados ou
vidros quebrados nas janelas, danos de certa gravidade em alguns afrescos.
Era um tanto esquisito que após quinhentos ou seiscentos anos a capela
e a vi/la, corno um todo, estivessem tão conservadas.
Isabella, com os dedos entrelaçados diante da boca, contemplava o teta
de vigas expostas e a parede do fundo, do que seria a abside. O altar, de
extrema simplicidade, era um bloco vertical, quase urna coluna, de mármore
claro, talvez um encimado por urna laje, despojada, retangular.
Lorenzo estava entre o altar e a parede do fundo, quase em transe
(foi o que me pareceu, embora ele seja, definitivamente, um homem des­
te mundo), a contemplar o vitral da esquerda. Havia dois, na abside. Eram
retangulares, com mais de dois metros de altura e quase um e meio de lar­
gura. Beatrice olhava o da direita. Não só. Ela examinava atentamente
cada peça dele, observando-a de diferentes ângulos e até apalpando-as,
corno a examinar a espessura de cada urna.
Bruno sentara-se no chão, com as pernas cruzadas, à maneira de um
guru. Estava encantado e percorria tudo com um olhar sorridente.
O que eu senti foi um misto de respeito e de certa compaixão pelos
homens que nos haviam deixado sua arte, fruto de esforço e talvez de
sofrimentos.

68

..

Havia mais, que agora percebo mais claramente, depois de tantos


anos. Eu senti que tudo aquilo estava esperando por nós, quem sabe, por
mim. Que alguém, calado por séculos, tinha algo a dizer-me, a mim, ou
a nós cinco do Galilei.
"Como soubemos dessa villa só agora?", perguntava Bruno, balan­
çando a cabeça, mais para si mesmo do que para nós.
Nessas situações eu costumava não fixar-me em qualquer detalhe, e
deixar-me invadir pela emoção mais espontânea que um quadro, uma ca­
tedral ou uma capela me despertasse. E nessa tarde a emoção que eu sen­
tia era intensa.
Mas, com o prazer, tomara conta de mim uma comoção que era qua­
se tristeza. Olhei para as janelas da direita, que davam para a parte poste­
rior do edifício. Pensei no marceneiro que fizera aqueles caixilhos, verda­
deira obra de arte. Imaginei o trabalho de vidraçaria que aquela mansão ti­
nha exigido. E, forçosamente, comecei a pensar no homem que projetara
toda a obra. Que motivos tivera? Que sonhos teria ao construí-la? Quem
teria sido esse misterioso "bispo vermelho"? Provavelmente, uma busca nos
arquivos da cúria diocesana de Casale poderia esclarecer a identidade des­
se homem. Mas não era bem a sua carteira de identidade o que eu queria
naquele momento. Era a sua visão do mundo, da vida, da arte. Ou, talvez,
nada disso. Era a paixão que o teria movido a edificar esse palácio. Como
um refúgio, como uma academia ou, quem sabe, como um ninho de amor?
Algo me dizia que as respostas estavam guardadas naquele casarão.
Isabella despertou-me do devaneio: "Emilio, qual é a tradução dis­
to aqui?". Ela apontava uma inscrição num afresco à esquerda da abside.
Era uma figura sacerdotal, em trajes litúrgicos, segurando uma palma nu­
ma das mãos e um livro grande na outra. A frase ficava pouco acima da
cabeça do personagem e dizia:

VAE TIBI VALDE QUARE TUAM DERELINQUISTI FIDEM

A tradução era simples: "Ai de ti porque muito transcuraste a tua


fé". Uma frase que qualquer clérigo linha-dura diria aos simples mortais
que perdessem a missa ou não comungassem na Páscoa. Isabella olhou­
me desconfiada, porque eu traduzi sem demora ou porque a ordem das
palavras era muito diversa na inscrição latina. Pareceu sossegar quando
lhe ditei a tradução literal, na ordem da frase original: "Ai, de ti, muito,
porque, tua, transcuraste, fé".
"Deve ter sido um padre chato, como o monge que não me deixou
visitar aquele batistério, só por causa do meu bustiê", foi o comentário
ressentido de Beatrice.
"Chato ou não, alguém não gostava deste padre, Beatrice", confor­
tou-a Bruno, que se aproximara da pintura e apontava a palma na mão
direita do personagem.
"Ah, ele foi um mártir. Que santo é?", indagou ela.
"Não sei. Perguntaremos ao velho Alessandro, hoje ou amanhã. Não
sei o que vocês pensam, mas eu amanhã quero ver tudo isso com calma
e ouvir o que o nonno sabe sobre toda esta mansão. "
"Eu quero voltar amanhã, mas pretendo dormir um bocado", disse
Lorenzo, apoiado prontamente pelas duas mulheres.
Rinaldo acompanhava tudo. Talvez para nos mostrar logo sua gali­
nha Filomena, entrou, respeitosamente, na conversa, sugerindo à sua pre­
ferida, Beatrice: "A senhora não quer dar uma olhada no teatro para ver
se há alguma coisa interessante pra olhar com mais calma amanhã? O tea­
tro tem mais pinturas do que a capela, tem o palco, tem a tribuna com o
telhadinho dela, como se chama?, aquela coisa que tem também em cima
dos tronos dos reis e do papa?".
"Aquilo, se é o que eu penso, tem nomes esquisitos, Rinaldo. Cha­
ma-se dossel, ou baldaquim ou, ainda, coifa, ou telhadinho, porque não?",
respondeu-lhe Beatrice com carinho.
"Então, vamos para lá?"
"Espera um pouco, Rinaldo. Precisamos ver o que os outros prefe­
rem.
"Eu hoje fico por aqui. Esta capela merece no mínimo uma sema­
na", adiantou-se Lorenzo.
"Eu também", disse Isabella meio vagamente, agora absorta na con­
templação dos afrescos da abside.
"Vocês também ficam?", perguntou Beatrice, olhando para Bruno e
para mIm.
Eu não sabia bem o que queria. Ou sabia. Eu queria, em verdade,
ficar no mínimo uma semana na capela e outra no teatro. Mas a curiosi­
dade era muita. Eu queria ver tudo, o quanto antes e poder demorar-me,
depois, no que me interessasse mais. Foi isso, mais ou menos, o que Bru­
no respondeu. E eu também.
"Então, vamos", comandou Beatrice, para euforia de Rinaldo.
O garoto puxava-a pela mão, tagarelando, ao longo do corredor do
outro lado. Aí também, mais um portão de ferro, mais uma porta de ma­
deira. Era a entrada do teatro, exatamente oposta à da capela. Era inevi­
tável, nesse momento, a imagem de um bispo, à frente de seu tempo, he­
sitando entre a capela e o teatro. Ou a conciliar, numa síntese genial, dog­
ma e invenção, coerção e liberdade, prazer e norma, ou outras dicotomias
do gênero. Uma figura trágica, na mais pura acepção do termo. Ah, meu
velho e querido Eurípides!
Bruno devia estar pensando coisa parecida. Enquanto caminhava
lentamente para o teatro, voltou-se várias vezes na direção da capela, ba­
lançando a cabeça num gesto de inconformidade.
Ajudado por Beatrice, Rinaldo abriu o portão de ferro e empurrou
a pesada porta de madeira meio desengonçada. Havia uma densa pe­
numbra lá dentro. O garoto entrou quase correndo e escancarou duas
imensas janelas da parede direita.
O que a capela tinha de calma e despojamento o teatro ostentava de
exuberância, de cores e imagens. Abaixo das janelas corria uma fileira de
guirlandas generosas, com frutas e flores enredadas em ramos de cipres­
te e louro. O vermelho ainda vivo das maçãs e o amarelo dos limões con­
trastavam com o branco, já cansado, de dálias e jasmins.
No fundo elevava-se, à altura de um metro, um pavimento de pran­
chas enormes de castanheira apoiado sobre uma harmoniosa estrutura de
vigas, escoras e cantoneiras de madeira. Deveria ter uns oito metros de
largura por quatro de profundidade. Tomava quase toda a largura do tea­
tro. Ao fundo, uma gigantesca janela retangular estava coberta por uma
cortina grossa, descorada.
A direita, antes do palco, erguia-se, majestosa, a tribuna. Era uma
obra esplêndida de marcenaria e escultura, fixada na parede, que dividia
ao meio a fila de quatro janelas.
"Ali mora a Filomena!", disse Rinaldo, apontando a base da tribu­
na. "Venham ver. Acho que ela está botando ovo."
Filomena, descortês, não esperou a visita. Assustada, enfiou-se porta
afora cacarejando impropérios pelo corredor.

71
Beatrice foi até a tribuna, enquanto Bruno, extasiado, contemplava
o teta com um sorriso de beatitude. Aquele teta, sozinho, compensava
a nossa viagem. Não só. Bastaria ele para justificar semanas de permanên­
cia na aldeia ou várias viagens de Milão ao Piemonte. E havia mais: pra­
ticamente só nós, do Galilei, fora os moradores do local, conhecíamos,
agora, a villa do "bispo vermelho".
Rinaldo estava ajoelhado no piso da tribuna, de tábuas grossas e lar­
gas. Era retangular, com os cantos recortados. Os lados se apoiavam so­
bre uma base de mármore esverdeado. Deveria ter uns setenta centíme­
tros de altura e era vazia na parte central. No piso faltava uma das tábuas
e pela abertura podia-se ver um ovo de bom tamanho, pousado num lei­
to macio, de palhas e fragmentos encardidos de papel.
"Que ninho confortável! A Filomena tem bom gosto, hein, Rinal­
do?", comentou Beatrice, também ajoelhada sobre o piso.
"Foi ela que descobriu esse ninho."
"Não foi você que fez?"
"Eu não. Foram os ratos. Eu não contei que a Filomena ocupou o
ninho dos ratos quando eles foram embora?"
"Ah, sim; agora me lembro", respondeu Beatrice.
Bruno também se aproximara do ninho e olhava atentamente para
dentro, como se procurasse alguma coisa miúda.
"Procurando agulha no palheiro?", perguntou Beatrice.
"Olhe bem esses papéis", disse ele com uma seriedade que destoava
da pergunta.
"Santo céu!", murmurou ela, lançando a Bruno e a mim um olhar meio
assustado. Deixei, por um átimo, os afrescos das paredes, para olhar o ninho.
"Você tem certeza de que foram os ratos que cataram esses papéis e
essas palhas?" Era Bruno quem interrogava o menino.
"Claro que tenho. Meu avô só me deixou andar por aqui depois que
a Filomena veio morar embaixo da tribuna. Ele me proibiu de mexer nes­
sas palhas e papéis porque os ratos trazem doenças. Mas, por que vocês
estão tão preocupados com isso? Já faz muito tempo que os ratos não
aparecem por aqui. Eu acho que não há mais perigo em mexer nisso aí.
Só não mexo porque meu avô proibiu e ele sabe muitas coisas."
"Não é isso", expliquei, "nós só estamos estranhando que os ratos
tenham encontrado esses papéis todos por aqui".

72
"Isso é fácil de explicar. Quando meu nonno vinha debulhar milho
aqui, nos dias frios, ele trazia umas folhas de jornal para acender um bra­
seiro ali no canto, dentro de um tacho. Os ratos podem ter roubado al­
guns pedaços de jornal quando meu nonno ia dormir. "
"Que ratos mais espertos!", exclamou Beatrice, vendo que o sorriso
de Rinaldo se apagara, diante de tantas perguntas sobre ridículos frag­
mentos de jornal. "Será que a Filomena sabe ler esses papéis?"
O menino sorriu de novo: "Ela não, mas eu sei. Você quer ver?".
Enfiou a mão no ninho e retirou um punhado de papéis, que depôs so­
bre o piso.
"Por favor, Rinaldo, deixe os papéis assim como você tirou do ni­
nho", pediu Bruno, contendo a agitação. "Não os espalhe. Quero ver
quais estão por cima e quais estão mais embaixo."
"Como fazem os arqueólogos, não é?"
"É isso mesmo. Você vai mostrar à Beatrice que sabe ler e vai nos
ajudar, como um arqueólogo. Que tal?"
"Está bem, o que devo fazer?"
"Vamos primeiro separar os papéis da camada de cima e você vai lê­
los para Beatrice. O que você não souber será lido por ela ou por Emilio.
Eu vou anotando quais são os papéis de cada camada."
A idéia de Bruno era boa, mas havia papéis demais. Era importante
que o garoto não suspeitasse do que aqueles papéis podiam significar. Mas
seria maçante até para ele prolongar muito aquele jogo. De todo modo,
começamos. Beatrice passou ao menino um pedaço de jornal com algu­
mas letras de tamanho grande. Rinaldo, com voz forte e segura, começou
a ler, mas logo o devolveu: "Está tudo cortado, eu quero um que tenha
as palavras inteiras".
Ele tinha razão. O texto era muito truncado.

NUNCIAMENTO DE LONGO NO SEGUNDO ENCONTR


ntervenção esclarecedora sobre as
ogo de forças econômicas q
sente conjuntura. A lndochi
barbaridades das forç
róico vietn
istas do gov

73
«Perdão, Rinaldo", desculpou-se Beatrice, «vamos procurar um tre­
cho melhor".
por enquanto, só na camada de cima", advertiu o menino,
procurando a aprovação de Bruno, que veio imediatamente, em forma de
sornso.
Beatrice pegou outro retalho, quase triangular, e o passou direta­
mente a Bruno, após mostrá-lo ao menino. «Veja, Rinaldo, este também
está muito incompleto." E estava mesmo.

ões meteorológicas n
nhã de ontem a NASA anunci
que deverá conduzir at
dois astronautas que dev
quisas sobre as nuvens
laneta. Os dois no
chirra e Stafford
módulo de co
m órbita lun
voltas que
jeto Gemin
quista d
tecn

"Olhe, este tem várias linhas inteiras", disse eu, estendendo a Ri­
naldo um retalho de forma quase quadrada. E não resisti à tentação.
«Teu avô deve ser comunista, como eu. Não é, Rinaldo?"
"Claro que sim, só que ele está meio de briga com o partido desde a
eleição do prefeito."
Aqueles pedaços de papel eram, obviamente, do L'Unità. Eu sabia,
não só pelo jargão antiimperialista já monótono, mas, sobretudo, pelo
estilo inconfundível do cronista Fortebraccio, cujo nome aparecia, mu­
tilado, no retalho que entreguei ao garoto:

que deixam transp


depois de toda essa orquestração
enta não se poderia coisa mais
dos falsa. O sucesso de uma missão
to espacial não se mede pelo número
m de órbitas ou pelo tempo em dias

74

cial no espaço mas, sim, pelo número


sta de votos dos delegados presentes
ono na convenção dos Republicanos
aI Boa viagem aos astronautas. Deus
rem salve a América.
rtebraccio

Rinaldo leu com certa fluência, encalhou na palavra orquestração,


perdeu o fôlego nas últimas linhas, mas foi festejado por todos e ganhou
um beijo sonoro de Beatrice.
Bruno tinha entre os dedos, delicadamente, um outro retalho. Era
um fragmento de papel de trapo, com alguns séculos de idade. Um pou­
co amarrotado, ostentando gloriosamente várias linhas matluscritas. Não
era novidade para nós a descoberta de velhos textos, mesmo manuscritos.
Mas estávamos ali, os três, como astronautas que achassem o código de
Hammurabi ou uma inscrição etrusca em plena face da lua. Aquele frag­
mento nos ligava, talvez, ao próprio bispo vermelho. pensei. Rinaldo
olhava intrigado para a cara de Beatrice e para a minha, quase a se pergun­
tar se não estaria perdendo seu tempo um bando de loucos.
Bruno aproximou O retalho e começou a ler:

mpenetrant
excidiis urbem mi
bibat et Sarrano
s alius defossoque
attonitus rostris hu
geminatus enim p
dent perfusi sa
s et dulcia I
mquaerunt s e lac
erram dimov aratro
c patria rvosque
nta boum eritosq
aut pomis exubere
aut Cerealis m
eret sulcos at
territur Sic
laeti red
ponitf
aptic
dul

75
Durante a leitura trôpega de Bruno, Beatrice mordia o lábio, tensa,
como quem procura uma velha lembrança. Por fim, disparou:
licas'... Salústio... abelhas... como é mesmo? É outro. Catulo?".
"Quase", respondi. "Tente de novo."
"Eu sei", disse Bruno. "Sulcos e arados é coisa de Virgilio."
E era mesmo. Só que não se tratava das "Bucólicas". Era um trecho
do Livro II das" Geórgicas".
"Traduza para mim", pediu Rinaldo a Beatrice. Ela, meio sem jeito,
passou-me o fragmento, com as pontas dos dedos: "Emilio, você é o nos­
so latinista".
Era a mesma frase de Isabella, quando tínhamos achado o manuscri­
to das Bacchae. Num relâmpago, a lembrança de Anna inundou-me a
mente. Eu estava tão empolgado com o fragmento de Virgilio e a invasão
de Anna fora tão inesperada que me perturbou e, de certo modo, me ma­
goou. Não sei quanto tempo durou essa sensação. Mas percebi que Rinal­
do me olhava como se olha uma girafa.
Afastei Anna de meu pensamento e tentei lembrar a forma original
dos versos mutilados. Eu tinha traduzido Virgilio no colégio, embora mi­
nha tradução não ameaçasse nem de longe a glória ou o ganha-pão de
Salvatore Quasimodo. Aos poucos, lembrei o texto do colégio:

Há os que penetram mares ignotos

E a ferro invadem as cortes dos potentes

Outros abatem cidades e demolem lares

Apenas por beber em preciosa taça

E adormecer em púrpura de Tiro.

Outro esconde ávido as riquezas

Deitado sobre o ouro que enterrou

Há quem se exalta ao escutar aplausos

E os manchados com sangue dos irmãos

Que trocam a doce casa pelo exílio.

O camponês, porém, com seu arado

Sustenta sua casa e seus filhinhos

E nutre seus bois e seus novilhos.

As estações impedem o descanso

Transbordam de fruto as estações

Trazendo cordeiros e filhotes

O peso da colheita afunda os sulcos

E verga as vigas do paiol...

"Isso é lindo", exclamou Beatrice. "Você é bom mesmo, não?"


"Virgilio é que era ótimo", provocou Bruno, tocando-me carinho­
samente o ombro.
Rinaldo, pela cara que fazia, devia estar duvidando de sua vocação
para a arqueologia, pelo menos a que estávamos praticando ali, em volta
do ninho de Filomena, a recitar poesia latina. Esperou um olhar de Bea­
trice, sorriu para ela, como a pedir licença, pegou o ovo e explicou que
precisava dar comida à galinha. Já no começo do corredor voltou-se pa­
ra garantir seus negócios: "Quantos ovos vocês vão querer?".
"Duas ou três dúzias", pediu Beatrice.
"Duas para mim", disse Bruno.
Eu viveria muito bem num mundo sem ovos e sem galinhas, mas não
podia deixar por menos. "Quero duas dúzias hoje e mais três na semana
que vem."
Rinaldo deu um salto, com os braços levantados, gritando" oba!, que
beleza!", e sumiu no corredor.
"Freud explica, meu caro Emilio. Você se traiu." A acusação sorri­
dente era de Beatrice.
"Não entendo."
"Simples. Você pretende voltar aqui na próxima semana!"
Eu jamais me conformei com a facilidade que as mulheres têm de me
entender e, portanto, de me deixar desarmado, bestificado. Alguma vez
cheguei a pensar que essa vulnerabilidade poderia até ter o seu charme.
Uma grande amiga, dos meus anos acadêmicos, adorava os filmes com
Montgomery Clift ou com Dirk Bogarde porque se enternecia ao vê-los
tão demanding protection. Depois eu percebi que eles eram tão desejados
porque não estavam na mesma classe ou na mesma mesa da lanchonete:
eram inacessíveis e, mais que isso, enquanto imagens, jamais poderiam
pretender nada além do que ela, segundo o seu prazer mais egoísta, resol­
vesse conceder. Eram objetos de afeto que podiam ser descartados, sem
qualquer remorso. Mas eu era obrigado a render-me diante da esperteza
de Beatrice, mesmo porque ela apontava uma decisão minha que eu não

77

tinha formulado. Eu, de fato, queria voltar àquela villa, àquela tribuna,
aos fragmentos de Virgílio... provavelmente na semana seguinte. Às ve­
zes acho que Freud devia ser mulher. Eu tinha que responder algo.
"Por que não?"
Ela ficou meio sem jeito.
Bruno alisava com carinho um outro fragmento, pequeno, e me de­
safiou: "E este, Emilio, que texto é?".

lare, sed alter


viçtus habet longeque ignotis exulat oris.
multa gemens ignominiam plagasque superbi
ctoris, tum quos amisit inultos amores

Resolvi sustentar o desafio: "Claro que é outro trecho das 'Geór­


gicas', não sei se é do livro II ou do III. E digo mais: Não lembro os ver­
sos do colégio, mas vou traduzir isso em verso".
Beatrice desceu da tribuna e indicou-me num gesto solene os três
degraus e a balaustrada: "Por aqui, Emilio. Por aqui subiam os poetas e
os solistas, a convite do bispo vermelho. Sobe e declama".
Algo me dizia que as palavras dela não eram um novo desafio. Ela,
mulher, talvez tivesse percebido que aquele teatro e, ainda mais, aquela
tribuna tinham algo de sagrado, de mágico. E eu, não sei bem por quais
virtudes, subi, penso até que com certa naturalidade, os degraus que se­
paravam o mágico e o real. Tomei o fragmento que Bruno me estendia e,
após uns momentos de reflexão, declamei, mais ou menos, o seguinte:

... o outro, derrotado, se desgarra

e em praias longínquas se desterra

gemendo os ferimentos recebidos

do vencedor soberbo e a vergonha

do amor que foi perdido e não vingado.

Eu tinha feito alguns sonetos, horríveis, na adolescência e mesmo


depois dela, quando me apaixonava perdidamente pelas esposas dos ami­
gos. Mas não esperava de mim mesmo qualquer estro poético nas circuns­
tâncias presentes. Percebi que eu tinha dito alguma coisa aceitável, quan­
tinha formulado. Eu, de fato, queria voltar àquela vil/a, àquela tribuna,
aos fragmentos de Virgilio... provavelmente na semana seguinte. Às ve­
zes acho que Freud devia ser mulher. Eu tinha que responder algo.
"Por que não?"
Ela ficou meio sem jeito.
Bruno alisava com carinho um outro fragmento, pequeno, e me de­
safiou: "E este, Emilio, que texto é?".

lare, sed alter


victus habet longeque ignotis exulat oris.
multa gemens ignominiam plagasque superbi
ctoris, tum quos amisit inultos amores

Resolvi sustentar o desafio: "Claro que é outro trecho das 'Geór­


gicas', não sei se é do livro II ou do III. E digo mais: Não lembro os ver­
sos do colégio, mas vou traduzir isso em verso".
Beatrice desceu da tribuna e indicou-me num gesto solene os três
degraus e a balaustrada: "Por aqui, Emilio. Por aqui subiam os poetas e
os solistas, a convite do bispo vermelho. Sobe e declama".
Algo me dizia que as palavras dela não eram um novo desafio. Ela,
mulher, talvez tivesse percebido que aquele teatro e, ainda mais, aquela
tribuna tinham algo de sagrado, de mágico. E eu, não sei bem por quais
virtudes, subi, penso até que com certa naturalidade, os degraus que se­
paravam o mágico e o real. Tomei o fragmento que Bruno me estendia e,
após uns momentos de reflexão, declamei, mais ou menos, o seguinte:

o outro, derrotado, se desgarra

o ••

e em praias longínquas se desterra

gemendo os ferimentos recebidos

do vencedor soberbo e a vergonha

do amor que foi perdido e não vingado.

Eu tinha feito alguns sonetos, horríveis, na adolescência e mesmo


depois dela, quando me apaixonava perdidamente pelas esposas dos ami­
gos. Mas não esperava de mim mesmo qualquer estro poético nas circuns­
tâncias presentes. Percebi que eu tinha dito alguma coisa aceitável, quan­
do Beatrice, com olhos de festa, agarrou-me num abraço comovido, fi­
tando-me as pupilas: "Maravilhoso, Emílio! O bispo ficaria feliz se esti­
vesse aqui".
Bruno estendeu-me a mão, capitulando: "Eu não conhecia esse seu
dote".
"Nem eu", respondi.
"Não desça ainda da tribuna. Ternos mais um fragmento que, a essa
altura, acho que é mais um pedaço das 'Geórgicas'."
Passou-me o papel que, dessa vez, trazia versos inteiros:

At vero Zephyris cum laeta vocantibus aestas

insalus utrumque gregem atque in pascua mittes,

Luciferi primo cum sidere frigida rura

carpamus, dum mane novom, dum grarnina canent,

et ros in tenera pecori gratissimus herba.

inde ubi quarta sitim coeli collegerit hora

Tentei entrar na mente ensolarada de Virgilio e, não sei se por remi­


niscências do colégio, ou por inspiração de alguma musa dos desespera­
dos, deitei para a platéia reduzida, mas seleta, que me ouvia os versos que
me vinham à cabeça:

E quando Zéfiro ao verão convoca

volta o rebanho aos pastos e arvoredos.

Percorre os prados frescos visitados

pela primeira estrela de Lucífero

e colhe a manhã nova enquanto o arbusto

reveste-se de branco e o orvalho

se deita sobre a relva, desejado.

"Emilio, corno dizia alguém que disse isso, você tem muitas cordas
no seu arco." O elogio era de Beatrice.
Eu não entendia bem o que estava acontecendo. Mas senti, naquela
hora, o que haviam sentido os músicos e poetas que haviam ocupado a
tribuna em séculos passados. E, talvez, Beatrice e Bruno tivessem revi­
vido, mesmo que em tom menor, algo da emoção do bispo vermelho e

79

seus convivas em outras tardes, outras eras. "Precisamos organizar um


concerto aqui", foi o que pensei, mas não disse. Era preciso, antes de qual­
quer ousadia, sentir com humildade e apaixonadamente o que a tribuna,
o palco e os afrescos tinham a dizer-nos. Atraídos quase magneticamen­
te pelos fragmentos das "Geórgicas", havíamos fugido do nosso arrou­
bo inicial diante dos afrescos e do palco.
Beatrice, talvez por telepatia, estava sentindo a mesma coisa. De­
pois de um suspiro de satisfação pediu a Bruno: "São já seis e meia. Você
não quer cuidar desses achados enquanto nós uma olhada nas
pinturas?".
Ele já estava ordenando cuidadosamente os fragmentos de Virgilio
e do L'Unità selecionados pelos ratos cultos e comunistas que tinham
habitado a tribuna antes de Filomena. Fulminou Beatrice com um olhar
oblíquo e acatou: "Sim, madame".
O teto ostentava uma esplendorosa ramaria de roseiras silvestres que
se enredava numa videira exuberante. Os troncos tortuosos das roseiras
subiam dos espaços entre as janelas da esquerda, e o da videira nascia jun­
to à base da tribuna, à direita. Era uma profusão festiva de folhas de to­
dos os verdes possíveis e de ramos que cobriam quase o teto inteiro. Ape­
nas a secura daquela sala poderia explicar por que tantos traços e mati­
zes tinham ainda tanta vida depois de séculos.
"Virgiliano, não?", perguntava Beatrice traçando com a mão um ar­
co amplo que apontava todo o teto.
"O nosso bispo, ao que tudo indica, era dessas pessoas que sabem
combinar o refinamento e a singeleza, o intenso e o belo ou a paixão e a
doçura..."
Beatrice interrompeu a empolgação retórica de Bruno: "Pra mim
esse homem deve ter sido uma avis rara, que precisou, ou quis, construir
um mundo seu, à sua imagem e semelhança, talvez num gesto de recusa
da miséria cultural que o cercava...".
"Ou, quem sabe, porque devia fugir e aqui construiu o seu refúgio.
Não me perguntem de que ele estaria fugindo... " Agora era Bruno quem
interrompia a inspiração dela.
Eles estavam, na verdade, instigand0-se um ao outro, à procura de
alguma pista sobre a identidade desse bispo intrigante, refinado, bucólico,
virgiliano, ou o que fosse. Estávamos diante da obra de uma mente pri­

80

vilegiada, solitária, provavelmente perseguida. Mas na cabeça de cada um


de nós alguma coisa trabalhava, com a persistência de um caruncho. Ca­
da um estava protelando seu encontro com uma pergunta: "Onde está
esse exemplar das 'Geórgicas' que, eventualmente, nos conduziria ao en­
contro desse bispo vermelho que contemplou essa ramaria de roseira sil­
vestre, ouviu poemas e cantatas dessa tribuna e trouxe a esse palco as fa­
las trágicas de Ésquilo ou de Sófocles...". Olhei para o teto.
No meio dele havia uma figura regular cujo centro era um hexágo­
no vazio. Cada lado dele era também o lado de outro hexágono adjacen­
te, e, assim, o centro vazio era cercado por seis hexágonos iguais, justa­
postos. Era uma espécie de flor de seis pétalas hexagonais, de cor clara,
tendendo ao ocre. Havia, em cada pétala, uma letra, tipo códice: CMP C
TT. Nenhuma vogal. Mas havia três hexágonos azulados, acoplados à fi­
gura floral, um a cada duas pétalas, formando, com elas, algo como um
triângulo de hexágonos.

Nos hexágonos azulados as letras eram brancas, três vogais, E U E ou


E E U, ou ainda, dependendo do ponto de partida, UE E.
"São iniciais ou componentes de palavras!", foi a estréia de Beatrice
como detetive.
"Brilhante. Uma letra é uma inicial ou é parte de alguma palavra.
Que sutileza!", foi o comentário sarcástico de Lorenzo ainda no corre­
dor, chegando da capela.
"A letra A, caro professor, pode não ser inicial de nada e não ser par­
te de qualquer palavra. Exemplo: item A. O nosso problema aqui é que

81

temos muitos mistérios, muita beleza, muitos sinais, símbolos, alegorias,


tudo carregado de memórias e significados que não entendemos. Parece
até que alguém nos quis desafiar..."
"Vocês também estão querendo saber quem é o bispo vermelho, não
é? No meio de toda essa riqueza de arte e de lembranças ele nos impede
de fruir a beleza das coisas porque em cada afresco, em cada vitral, em
cada janela, porta ou coluna está a paixão dele e enquanto não desvendar­
mos seus impulsos, seus gostos refinados e a paixão que o moveu a criar
esse tesouro artes não poderemos mergulhar nas belezas desta villa.
Não é como sentir um Botticelli na galeria Uffizi ou entregar-se à apo­
teose de Giotto na igreja dos Scrovegni. Isabella e eu, lá na capela, com
toda a mística daqueles afrescos e vitrais e, sobretudo, daquela luz, per­
cebemos que a beleza de tudo aquilo nos seduz mas não se entrega ao
nosso prazer. Tudo é prazer pela metade. É como se devêssemos encon­
trar uma razão que nos abra as portas da fruição plena dessa beleza toda.
Não é preciso achar razão alguma para entregar-se à maravilha de um
Piero della Francesca e inebriar-se com as figuras de um Fra Angelico.
Mas aqui, ou encontramos e entendemos esse bispo ou não gozaremos
essas maravilhas. É claro que se trata de algum homem extraordinário, ilu­
minado. Se não, não dedicariã tantos talentos a este casarão perdido nas
montanhas. Um grande homem, uma grande paixão. É isso o que estamos
procurando. É isso que nos desafia em cada palmo desta villa ..."
"E sobretudo neste teatro", emendou Beatrice, meio reticente, meio
provocativa.
Isabella também vinha chegando, com um olhar distante, de quem
refletia gostosamente sobre alguma coisa, provavelmente algum detalhe
da capela. Foi entrando, mansa, no teatro e quando olhou para o teto
abriu a boca num suspiro de espanto, murmurando: "Que maravilha!".
Era, talvez, a frase mais expressiva diante daquele poema de folhas ver­
des, e também a mais óbvia. Todos a olharam mas ninguém, nem mes­
mo Lorenzo, ousou caçoar de tanta obviedade. Ela percebeu a banalida­
de da frase e pôs-se a rir.
Bruno disse, mais para si mesmo, "Temos palavras, muitas palavras,
além de vitrais e afrescos, há palavras neste teto, nestes fragmentos que
os ratos juntaram, temos as palavras de Rinaldo, as de Alessandro, que
ainda não ouvimos, as de tia Margherita, as de Dom Attilio... ".

82
"Uma coisa é certa", resumiu Beatrice a sensação de todos, "temos
que voltar aqui amanhã, com mais calma...".
"E temos que ouvir o velho Alessandro", lembrei. O velho me im­
pressionara, à primeira vista, como alguém que sabia muito e talvez esti­
vesse esperando os ouvidos certos para sua história.
"É mesmo. Ele disse que nos esperaria após a visita à villa", lembrou
Beatrice. Sorriu conformada: "Precisamos também pegar os ovos... ".
"Ou, pelo menos, pagá-los", sugeriu Lorenzo.
A luz azulada das janelas agora se transformava numa mistura de ro­
sa e alaranjado. O sol pousava mansamente sobre um mar de colinas in­
candescentes. Bruno fechou as janelas e saímos para o corredor. Ao fundo,
no interior da capela uma claridade rosada entrava pelas janelas da fachada.
"Vou fechar a capela...", disse Lorenzo. "É preciso avisar Rinaldo
para trancar as portas." Isabella passou-lhe à frente: "Espera um pouco,
Lorenzo, quero ver uma coisa".
Fomos juntos, ela, Lorenzo e eu. A luz rasante da tarde, entrando
pelos vitrais da abside, espalhava uma profusão de cores no piso e na parte
mais baixa da parede da esquerda. Era uma mosaico de formas geomé­
tricas coloridas, irregulares, deitadas sobre o chão de mármore. Ninguém
disse nada. Era beleza demais para os nossos adjetivos. Lorenzo levou a
mão à boca, talvez reprimindo uma expressão muito efusiva. Isabella,
muito atenta, percorria com o olhar as manchas coloridas. Como quem
procura peças de um quebra-cabeças. Não sei bem que cara eu fazia, mas
lembro que me senti dentro do arco-íris.
"Procurando hexágonos?", disse Lorenzo, dessa vez com alguma
insegurança na voz, ao ouvido de Isabella.
"Não. Procuro formas, configurações... ou talvez nada disso. Não
sei. Estou entre o prazer da beleza e a tentação do enigma. Mas há algu­
ma coisa nesses vitrais que tem a ver com o teatro. Talvez formas, talvez
cores, talvez cores que compõem figuras. O que sei é que depois de ver
o teatro, ou o teto dele, lembrei-me de ter visto algo importante nos vi­
trais. Mas não sei o que é. E não me olhe assim, como enfermeiro de ma­
nicômio, Emilio!"
Eu devia rir, penso. Mas alguma coisa me impedia. Eu sabia que Isa­
bella estava muito tensa, mas eu estava meio desligado do que ouvia,
mergulhado num vórtice de cores.
Lorenzo ficou a observar-nos, com um sorriso cético, quase de des­
consolo. Depois disse: "A melhor maneira de compor uma flor com pe­
ças regulares e não circulares é juntar seis hexágonos. É claro que ficará
um hexágono vazio no meio... ».
"Rinaldo vem vindo para fechar as portas", avisou Bruno, lá do cor­
redor.
"Desde que se queira compor uma flor...", respondeu Isabella.
Rinaldo vinha subindo a escada, com sua robusta Filomena embaixo
do braço, sorridente, ele e talvez até a galinha. "Ela já passeou e já comeu.
Agora é hora de ir dormir. "
"Mas eu tirei os papéis do ninho, Rinaldo. Precisamos colocar ou­
tros no lugar, não é?", perguntou Bruno.
"Tem muita palha esparramada embaixo da tribuna. Eu acho que se
a gente amontoar toda ela, vai ficar mais macio do que antes. Se não fi­
car, nós vamos buscar papéis lá com o meu nonno. Ele está esperando
vocês. Não é lindo o nosso teatro? Eu falei pra vocês que era muito bo­
nito." Dito isso, sumiu na penumbra tênue do fim do corredor.
"Nós esperamos você. Não sabemos onde mora o nonno", foi o que
alguém disse, bem alto. Eu fui atrás do menino para ajudá-lo a refazer o
ninho e fechar as portas todas. Filomena acomodou-se sem maiores ca­
prichos, trancamos tudo e fomos descendo. Os outros já estavam no pá­
tio, contemplando o que restava de luz no horizonte.
"E a Filomena?", perguntou Beatrice.
"Acho que já está dormindo. Vocês têm uma cesta ou sacola para
levar os ovos? Eu não sei se tenho todos os que vocês pediram. Mas se não
tiver, meu irmão deve ter. Ele tem três galinhas."
Lorenzo aproveitou a deixa: "Ouça, Rinaldo. Eu estive pensando
que não conseguirei comer todos os ovos que pedi, antes que alguns fi­
quem muito velhos. Se você concorda, eu pago todos já, mas levo só al­
guns, desta vez. Os outros você me entregará mais tarde, se eu precisar".
"Ótimo. Assim eu consigo atender mais pessoas."
"Eu acho que todos nós, fora Beatrice, estamos na mesma situação
de Lorenzo. Podemos fazer a mesma coisa, Rinaldo. Nós pagamos tudo
já e você entrega os ovos quando'der certo. Que tal?" Bruno estava pro­
pondo um bom negócio. O menino olhou hesitante para Beatrice. Ela
captou a intenção de Bruno.
"Ah, não, Rinaldo! Eu não. Não abro mão dos ovos que encomen­
dei. Eu gosto de omeletes e elas consomem dúzias deles, você sabe. Por
isso, eu levo até alguns a mais, se não fizerem falta."
"Que maravilha!", disse o menino, agitando os punhos. "Enquanto
vocês com o nonno, eu apronto tudo." Estava radiante: ganha­
ria o dinheiro, atenderia aos pedidos e, acima de tudo, agradaria a Beatri­
ce. Ela mostrara, na frente de todos nós, que dependia do trabalho dele
para fazer omeletes. Jamais alguém viu Beatrice comer, ou fazer, omeletes.
"Vamos ver meu nonno", convidou Rinaldo, puxando Beatrice pela
mão. Ela olhou para trás, para Bruno, com olhos que prometiam um ajus­
te de contas. Ele sorria, feliz.
Capítulo 4

A tribuna

Seguimos Rinaldo, rodeando o edifício até a parede dos fundos. Ali


o pátio é um pouco mais inclinado e termina num degrau de meio metro
de altura, que se estende ao longo de toda a villa, a uns trinta metros da
parede. Sentado no degrau, o velho Alessandro contemplava o fim do dia.
Era uma posição privilegiada. As árvores mais próximas estavam a mais
de oitenta metros e muito abaixo do nível do pátio, pois a partir do de­
grau o terreno era um declive muito íngreme, rico de pinheiros de várias
espécies, que se projetava para um vale sombrio. Lá de baixo subia o ru­
mor de uma torrente.
"Amanhã vocês poderão ir até lá embaixo. É muito bonito...", disse
o velho diante de nossa curiosidade, "... e em outros tempos, muito an­
tigos, lá existiu um parque ou um moinho d'água, ou as duas coisas. Há
ainda vestígios de construções e algumas lápides, funerárias ou come­
morativas. Afinal, os túmulos também comemoram ou rememoram al­
guma coisa...".
Já sumira toda a luz do dia. Nós nos sentamos ao lado de Ales­
sandro, cansados, suados, mas, sobretudo, curiosos. Já nessas primeiras
ele nos tinha fisgado. Não era preciso fazer perguntas. Ele parecia
ter prazer de contar sua história. Rinaldo trouxe duas garrafas de vinho
espumante, enquanto a mãe, muito discreta, chegou com uma mesinha
baixa e uma travessa de queijos. Saudou-nos com um melodioso" buona
sera, signori", voltou pouco com as taças e sumiu no interior da
casa com um andar ondulante e gracioso. Imediatamente me veio à mente
a figura exuberante de Lisa, do Menarost e, com ela, a lembrança de An­
na em seu vestido curto e amarelo, a degustar o faisão "Alabastro". Era
um misto de desejo e desagrado que tomava conta de mim: ela me atraía,
em todos os sentidos que o verbo pode ter, e me perturbava, também. Até
por me distrair da história do velho Alessandro. Num átimo lembrei
minha decisão de me afastar dela ou, pelo menos, de abandonar qualquer
intenção de conquistá-la e resolvi mergulhar na conversa do velho.
"Eu nasci aqui", continuava ele, "e meus avós também. Eu e a con­
dessa, tia de Dom Attilio, nascemos no mesmo mês, de 1895; o pai dela
e o meu também nasceram no mesmo mês, em 1852. O avô dela contava
histórias tristes sobre esta villa, ouvidas... da avó dele, vejam só. A con­
dessa escreveu alguma coisa sobre essas histórias, mas isso foi há mais de
vinte anos. Acho que já não sobra mais nada hoje. Ela já não diz coisa
com coisa, desde que ficou doente. Eram lembranças da infância dela, de
quando tinha uns 10 anos de idade e o bisavô tinha mais de 80. A avó,
que era muito culta, nasceu em 1830, um ano depois de meu avô. Em al­
gumas histórias dela aparecia esse bispo vermelho, mas sempre de modo
. vago, como se ele fosse um nome a ser piedosamente esquecido. Em ou­
tras era apresentado como homem de talentos e poderes...".
"Nonno, conta do irmão dele, o marquês", gritou Rinaldo de den­
tro da casa.
"É verdade. Falava-se que ele tinha um irmão, valente, violento e
apaixonado por caçadas e cães de caça. Há um afresco lá em cima, que os
senhores vão ver em outra ocasião, pois só Dom Attilio tem as chaves da
biblioteca..."
"Biblioteca?", perguntaram ávidos Bruno e Beatrice.
"Sim, houve uma biblioteca aqui. Ficou só a sala, com um grande
afresco e uma espécie de catálogo, creio eu, numa das paredes. Os livros
sumiram há séculos e parece que alguns estariam ainda em mãos da con­
dessa. Mas ela, provavelmente, nem se lembra deles. É uma pena que tan­
ta coisa se tenha perdido..."
O velho falava com certa tristeza. E nós não sabíamos se convinha
mudar de assunto. Isabella me olhava interrogativa, Beatrice e Bruno es­
tavam digerindo cada palavra de Alessandro e Lorenzo olhava para o céu,
frio como uma estátua. Mas eu sabia que ele estava analisando cada fra­
se do velho. E Alessandro, triste ou não, queria contar sua história so­
bre a villa. Parecia querer confiar a nós a missão de reconstruir o passa­

88

do de esplendor da mansão que, de algum modo, fora a razão de vida de


seus avós e dele mesmo. Ele suspirou, deu a Beatrice um sorriso triste, e
prosseguIU.
"Esse afresco da biblioteca, segundo uma tradição que passa de uma
geração a outra, na família da condessa, retrata os dois irmãos. A avó dela
teria mencionado os nomes do marquês e do bispo, quando a condessa
era criança. Dom Attilio diz que, segundo ela, o marquês teria sido Fili­
pe ouFiliberto e o nosso bispo vermelho 'perdeu o nome'. Mas
os camponeses, desde que eu era criança, o chamavam Lutecio ou Luter­
cio ou, ainda, Lutezio..."
"E hoje, ainda o chamam..."
"Sim, senhora", disse o velho, adivinhando a pergunta de Isabella,
"ainda hoje, não só na aldeia, mas em todas as colinas vizinhas, fala-se no
bispo Lutercio ou bispo Lutezio. Quando eu era criança, a figura do bis­
po era, ao mesmo tempo, venerada e temida: muitos meninos recebiam o
nome de Lutercio ou Lutecio e, ao mesmo tempo, eram aconselhados a
não se embrenharem no bosque do moinho, lá no fundo do vale. Porque
por lá perambulava o fantasma do bispo vermelho ou o de uma mulher
loira. Eu e meus amigos acreditávamos nesses fantasmas até a adolescên­
cia... Quando descobrimos que o vale era um paraíso para levar nossas na­
moradinhas. E então éramos nós a dizer aos irmãos menores que por lá
havia fantasmas. Mas até hoje não falta, nos arredores, gente que jura ter
visto lá embaixo o fantasma do bispo... ".
"E o bispo é venerado ainda hoje, apesar de seu fantasma?", quis
saber Beatrice.
"Ainda é, mas cada vez menos. Ele deve ter incomodado gente im­
portante, em seu tempo. A avó da condessa dizia que esta villa carregava
alguma condenação ou maldição, desde a morte do bispo. E Dom Attilio
uma vez disse que a capela foi desconsagrada desde tempos muito remo­
tos. O curioso é que tanto a capela como o teatro foram isolados pelos
portões de ferro ao mesmo tempo. Basta olhar os portões. Eles são idên­
ticos. Não sei se os senhores repararam nisso. É como se, após a morte
do bispo, quisessem anular a sua obra. É claro que isso foi providencial
para conservar esses dois tesouros da villa. O tiro saiu pela culatra: gra­
ças aos portões, os afrescos e mármores da capela e do teatro estão prati­
camente intactos, como os senhores viram... "
"E as guerras?", quis saber Bruno.
"A sorte da villa é que essa estrada não tem qualquer importância
estratégica. Ela morre, uns três quilômetros mais adiante, no meio de um
pinheiral. Em 45, alguns soldados alemães, em retirada, se entrinchei­
raram numa torre, ou torreão, que havia no canto direito da fachada. Fi­
caram lá por um dia, enquanto os norte-americanos cercavam a villa com
peças de artilharia pesada. A torre era mais um mirante do que uma for­
taleza; tinha várias janelas pequenas. Os alemães colocaram lanternas per­
to das janelas e, à noite, elas ficaram iluminadas. Os americanos atacaram
de surpresa na madrugada e, em meia hora, reduziram a torre a entulho.
Mas os alemães já tinham ido embora ao cair da noite. Assim, graças à sua
desimportância estratégica e à sua maldição a vi/la se conservou, com seus
tesouros de arte. Deve ter guardado muitas preciosidades que se perde­
ram. Tudo o que podia ser carregado já não estava aqui desde o tempo de
meu avô. Móveis, lampadários, estátuas e livros, por exemplo, jamais fô­
ram vistos por aqui, há quase um século, pelo menos. Parece que alguns
livros ficaram com os descendentes da família. E não eram muitos, pelo
que se sabe. Hoje talvez haja algum com a condessa."
"O senhor viu esses livros?", perguntou Bruno.
"Soube de alguns, há muito tempo, quando não tinha qualquer in­
teresse por livros. Na ocasião meu pai explicou que haviam achado uns
poucos, raríssimos. Disse que eram textos latinos, manuscritos. Entre eles
havia algo sobre teatro. Tanto que meu pai então perguntou ao pai da
condessa quem poderiam ser os freqüentadores do teatro da villa, mas
não lembro qual foi a resposta."
De uma das janelas, Rinaldo gritou seu buona notte a nós todos e um
afetuoso "sogni d'oro, nonno!". Faltava pouco para as dez da noite e tí­
nhamos ainda que voltar a Madonna della Spina, para jantar e dormir,
conforme Isabella explicou ao velho Alessandro.
"Amanhã terei pouco tempo livre, mas se os senhores quiserem vol­
tar, serão muito bem-vindos", disse ele, enquanto recolhia as taças, aju­
dado por Lorenzo.
Isabella ocupou meu lugar no jipe de Beatrice e eu voltei com Lo­
renzo e Bruno.
"Tudo indica que o jantar de hoje será uma espécie de simpósio so­
bre nosso amigo Lutercio", começou Lorenzo, voltando-se para Bruno.

90
"Parece inevitável. "
"Certas coisas são claras nessa história."
"Por exemplo...?"
"Era um homem culto, talentoso, rico, de gostos refinados, em­
preendedor... "
"Tudo isso se depreende do fato de ter construído a vi/la", disse eu.
"Sim, mas há outras coisas, menos óbvias, como passarei a expor. Ele
era também um nobre, pois o irmão era um marquês. Deveria ser um con­
de ou algo parecido. Mas era também um bispo...
"Quase óbvio, não é, Emilio'?"
"Trivial. O professor Lorenzo não está em sua melhor forma."
"Escutem bem, seus mal-educados", prosseguiu Lorenzo: "Quem
pertencia à nobreza e ao clero, nos meados do século xv, tinha poder..."
"E daí?"
"Daí que devia cuidar-se. Seu poder, como o de qualquer bispo ou
visconde, podia ser ameaça ao poder de outros clérigos ou nobres. T 0­
do poder não aliado é, potencialmente, um inimigo..."
"Ele está melhorando, Emilio."
Lorenzo prosseguiu: "Ora, um homem criativo, cultor do belo,
amante do teatro antigo e de livros é, sem dúvida, um homem de paixões,
sem a frieza, o cálculo e a maleabilidade essenciais ao jogo do poder. Se
ele vivesse hoje e não fosse rico, seria um incompetente político como
nós. E estaria conosco no Galilei, com pouco dinheiro, comendo bem e
bebendo melhor ainda. E correndo atrás de livros antigos...".
"E então, você presume que ele brigou com a Igreja ou com a no­
breza?", perguntei.
"Não presumo. Tenho certeza. Ele desagradou um dos dois grupos,
ou os dois. A ordem não importa: quem tinha inimigos na nobreza os te­
ria, por conseqüência, no clero. E vice-versa. "
"Donde vem essa certeza toda?", perguntou Bruno.
"Um homem com tal poder no clero, membro da nobreza no Pie­
monte do século xv, com um prestígio que atraía espectadores para seu
teatro particular, perdido nessa montanha, à margem de uma estrada in­
significante, teria seu nome preservado, mesmo a despeito de seus inimi­
gos. Se até o seu nome se perdeu, é porque ele foi proscrito, pela nobre­
za e pelo clero."

91
"Por que os dois", indaguei?
"Porque se qualquer um dos dois grupos tivesse ficado a seu lado,
pelo menos seu nome sobreviveria. Nas genealogias ou nos registros ecle­
siásticos, certamente deveria constar. Ou perduraria nas obras que criou,
nos lugares que beneficiou ou visitou... "
"Mas o nome dele ainda sobrevive", disse Bruno.
"Não. Sobrevive um simulacro de seu nome."
"Quer dizer que alguém decidiu que ele deveria ser esquecido", con­
cluí, sem muita segurança.
"Precisamente isso."
"Mesmo depois de morto?".. quis saber Bruno.
"Principalmente, depois de morto."
Lorenzo dirigia com tranqüilidade pela estradinha sinuosa que des­
ce entre bosques de pinheiros, até Madonna della Spina, e já podíamos
avistar, muito abaixo, as primeiras luzes da aldeia.
"Eu tenho outra teoria... ", ensaiei.
"Somos como a coleta do Natal dos pobres, Emilio: aceitamos qual­
quer coisa", animou-me Bruno.
"A meuyer, o bispo criou a mansão, ficou querido pelo povo, era
rico de fa.nu1ia, e nobre, mas sem poder e alheio às intrigas do clero ou da
nobreza. Tinha interesses e prazeres mais altos."
. "E por que virou fantasma, se era tão... superior?"
"Porque morreu de morte injusta. Foi uma espécie de mártir de
qualquer coisa: fé, ou da arte, ou do amor. Isso explica por que da­
vam o nome dele às crianças e porque, sequioso de justiça, ainda não
adormeceu no sono eterno, mas anda por aí, lá pelas bandas do moinho.
Vai mais devagar, Lorenzo. E troque esses amortecedores logo que pu­
der. Esta coisa acaba com as vértebras de qualquer um."
"Numa coisa concordamos", disse Lorenzo, "a identidade dele e sua
história não teriam sumido tão completamente, se não por decisão ofi­
cial ou, melhor, por um ato de poder. E se meu carro te incomoda, lem­
bre-se que o transporte é grátis".
"Não sei se concordamos: um fim trágico bastaria para criar a figu­
ra de mártir e o fantasma, com seu·caráter de tabu, de inefável, talvez de
ameaça..."
"Querem ouvir a minha teoria?", perguntou Bruno.
"Não!!!", respondemos nós dois ao mesmo tempo.
"Dado o enorme interesse, passo a expô-la: para mim, o bispo pode
ter sido apenas um hóspede ilustre que transitou por aqui, distribuiu, bên­
çãos às velhinhas, sorrisos e afagos às criancinhas, batizou bebês de ri­
cos e de pobres, celebrou missas e crismas na capela, assistiu, talvez com
remorso, a algum concerto no teatro da villa, foi sustentado pelo irmão,
o marquês, nos últimos anos e morreu in odore sanctitatis, depois de pro­
meter que mesmo após a morte estaria com os camponeses dos arredo­
res. Daí, a existência de alguns moleques chamados Lutercio, Lutecio,
Lutezio e, por que não?, Lutero. Daí, a história do fantasma do bispo no
vale do moinho. Como vocês podem ver, uma teoria elegante, parcimo­
niosa e razoável. Genial, até. Espero haver atendido ao sequioso interesse
de vocês."
Lorenzo resolveu caçoar: "Eu gostei. Talvez Emilio não tenha alcan­
çado a dimensão transcendente e o refinamento semântico que compõem,
a igual título, a esplêndida peça explanatória, a um tempo só, nomotética,
crítica e estética...".
"Deixa de brincadeiras, Lorenzo. O que você acha?"
"Então, falando sério: pode ser que você tenha razão, Bruno. Não
acha, Emilio?"
"Acho, mas o que me intrigou foi a lembrança de Lutero. Já imagi­
nou como a 'teoria da proscrição' fica plausível depois disso?"
"Teríamos que mudar algumas datas, não muita coisa, apenas algu­
mas décadas e o nosso bispo vermelho seria um herege luterano de pri­
meira água. Um prato feito, para o apetite de qualquer inquisidor dispos­
to a fazer carreira rápida. Mas a teoria de Bruno, afora isso, deixa o nos­
so bispo muito sem graça. Isso nos obriga a procurar o talento, o bom
gosto, a paixão pela arte, tudo isso que nos cativou nesta tarde, em outra
pessoa..."
Bruno inquietou-se. Se sua teoria fosse verdadeira, teríamos de cor­
rer atrás da história de um marquês mau-caráter, valentão, cercado de
cachorros ferozes e matador de inofensivas corças e javalis. Era preciso
salvar a imagem ideal de nosso bispo vermelho. "E se a villa fosse obra
de algum artista, contratado pelo'marquês ou pelo bispo?", foi o que con­
seguiu, como saída.
Beatrice e Isabella, que haviam partido à nossa frente, estavam es­

93
perando por nós, na entrada da aldeia. Isabella, apenas nos viu, pergun­
tou: "Não houve um tal de 'padre vermelho' na história italiana?".
"Sim. Foi um rapaz que gostava de violino, tinha os cabelos aver­
melhados e era um clérigo, chamado Antonio Vivaldi. Por isso, era cha­
mado prete rosso, padre vermelho. Alguma outra questão, senhora?", res­
pondeu-lhe Bruno.
"E para enriquecer sua cultura, saiba que tivemos também um cer­
to conde vermelho. E foi por estas bandas do Piemonte. Chamou-se
Amadeu VII e ganhou o apelido por gostar de usar roupas vermelhas, até
em torneios de cavalaria. Temos respostas para todas as questões, minha
senhora", acrescentei.
Lorenzo completou: "Mas percebam, caras senhoras, antes de se
entregarem a suas deduções, que um padre pode virar bispo, mas um con­
de vestido de vermelho jamais tocará violino como Vivaldi e, além do
mais, Vivaldi não tinha cavalo".
"E o conte rosso não sabia rezar missas."
"Cretinos!", foi tudo o que recebemos por nossos generosos ensi­
namentos.

Depois de tanta conversa sobre fantasmas e nobres decidimos que o


jantar deveria ser principesco e fantástico. E assim foi. Bruno pediu um
magnífico Gattinara; eu, um Grignolino, e Lorenzo, mestre no assunto,
escolheu o Barbera. As damas escolheram os aperitivos e o espumante
para a sobremesa. Mas o Gattinara de Bruno era decididamente o melhor,
e foi com várias garrafas dele que embalamos nossos sonhos daquela noi­
te. Pelo menos Bruno e eu.
Sonhos confusos e agitados. Numa fase deles, Anna estava na tribu­
na do teatro, declamando um trecho das "Bacantes" em latim, vestida
com uma túnica amarela, leve e muito curta. Lorenzo a olhava dum jeito
que não me agradava. Felizmente, ele desviou o olhar para os hexágonos
do teto e assim ficou por muito tempo, até dizer, em tom professoral:
"São iniciais!". Noutra parte do meu sonho, Anna e Beatrice passeavam
pelo vale do moinho entre lápides mortuárias. Numa delas estava senta­
da uma jovem loira, com um sorriso triste e porte gracioso. Parecia uma
escultura de névoa. Depois disso, ou antes disso, Lorenzo e o bispo ca­
minhavam pelo corredor, em direção à capela. O bispo levava, enrolados,

94

esboços da villa e Lorenzo carregava a galinha de Rinaldo. Eu, num da­


do momento, achei o livro das "Geórgicas", sob o ninho de Filomena.
Nesse instante, acordei. Como se alguém me tivesse chamado para
alguma coisa, para retomar um trabalho interrompido. Surpreendi-me a
procurar na memória a data em que Tulio tinha ido dar um curso nos Es­
tados Unidos, muitos meses atrás. Poucas semanas antes da partida dele,
Luciana estava preparando a papelada para a Universidade americana.
Tulio notou, num envelope, um pequeno erro da secretária.
"Luciana, não confundamos uma viagem à América com uma via­
gem ao espaço."
"Por quê? Enderecei alguma coisa a Júpiter?"
"Não. É que esse tal de Stafford pode ter ficado importante, mas
ainda não é nome de Universidade."
"Verdade? Não escrevi Stanford? É culpa dessa maldita televisão
que me enche a cabeça dia e noite com o vôo daqueles dois idiotas nessa
tal... cápsula Gemini 6. Em vez de cápsula, podiam ter embarcado num
supositório."
"Não se preocupe. Seria pior se você tivesse escrito Universidade de
Schirra."
"Me manda um postal de lá, Tulio!"
"Com Papai-Noel e renas?"
"Não, pelo amor de Deus. O deles deve ter um trenó cheio de coca­
cola."
Nessa conversa dos dois, que eu tinha ouvido, estava o início de um
raciocínio que me tirou o sono por várias horas. Se os ratos se foram da
villa há cerca de dois anos; se Tulio foi para Stanford em dezembro do
ano passado; se os fragmentos do L 'Vnità ficaram intactos desde que os
ratos os puseram lá, pois Alessandro proibiu que fossem tocados; se al­
guns fragmentos das "Geórgicas" estavam no mesmo nível'ou acima do
noticiário sobre a Gemini 6 e outros, ficavam um pouco abaixo... Então
os trechos de Virgilio foram encontrados, pelos ratos, pouco antes da via­
gem de Tulio ou talvez no final de 1965. E, então, a destruição das "Geór­
gicas" foi interrompida quando o velho Alessandro exterminou os ratos.
Portanto... O volume das "Geórgicas"... ainda está na villa! Mas... onde?
Onde? Seguramente em algum canto que Alessandro não enxergou, que
Rinaldo não descobriu e que os ratos podiam atingir, partindo do piso da

95

tribuna... A tribuna! Era lá que começava o "fio de Ariadne" ou, pelo


menos, o fio da meada.
Então dormi, feliz como um camponês das "Geórgicas" na véspera
da colheita.

Depois do café da manhã, por volta das dez horas, colocamos nos­
sas sacolas no carro de Lorenzo, Bruno pagou o hotel e voltamos para a
villa. Lorenzo resolveu dormir até mais tarde e deixamos o jipe de Bea­
trice para ele e Isabella, que também ficou dormindo.
Beatrice estava muito atraente, com uma camiseta de seda azul-ce­
leste, muito leve, que se colava às curvas dos seios com charme e sen­
sualidade. Ela devia estar com um sutiã muito fino ou sem nada sob a
camiseta.
Chegando à vil/a, Bruno foi procurar as chaves com Alessandro e
voltou com Rinaldo, que se achegou com um sorriso feliz, trazendo sua
cestinha de ovos.
Quando entramos, Bruno e Beatrice foram para a capela e eu fui com
Rinaldo para o teatro. Abrimos todas as janelas e enchemos de luz a ra­
maria verde do teto, que se derramava pelas paredes, acima das janelas.
Lá estava a tribuna! Majestosa, um esplendor de escultura em ma­
deira. A balaustrada, que na véspera tínhamos visto às pressas, agora exi­
bia toda a sua glória: cada balaústre era diferente dos outros. Cada um
ostentava, numa espécie de capitel, baixos-relevos em que figuravam ins­
trumentos musicais de todos os tipos. Filomena não estava em seu ninho
porque, como me explicou Rinaldo, costumava sair à cata de minhocas
"antes que o dia esquentasse.
O dossel era, por si só, um tesouro. Era uma espécie de pirâmide de
madeira, não muito aguda e de base retangular, um pouco maior do que
o piso da tribuna. Mas entre a base dessa pirâmide e o forro do dossel
havia um espaço de meio metro de altura. Escondido por um friso de
madeira esculpida que ocupava os dois lados e a frente do dosseI. Mos­
trava um grupo coral de esplêndidas figuras juvenis que lembrava, inevi­
tavelmente, a cantoria de Donatello, em Florença.
O forro era formado por apenas"duas largas tábuas e em cada uma
estavam fixados dois grandes medalhões de moldura hexagonal, obra de
um mestre.
Mostravam figuras alegóricas, que encobriam partes das molduras,
projetando-se para fora dos hexágonos.
Na frente, à direita, era o braço de Erato com uma lira na mão, que
se atirava para fora do hexágono. À esquerda, um jovem poeta coroado
de louros alçava o braço para fora da moldura, num gesto gracioso de elo­
qüência. Próximo à parede, no lado direito, era a trombeta heróica de Clio
que se projetava para o ângulo mais próximo. No lado esquerdo, era o
braço peludo de um fauno sorridente, que se esticava para o canto, levan­
tando uma flauta campestre.
As quatro figuras pareciam compor uma cena única. Talvez porque
os elementos mais salientes de cada uma se projetavam simetricamente
para os quatro cantos do dosse!.
Enquanto eu contemplava os medalhões, Rinaldo sumiu, provavel­
mente à procura de sua galinha, já que a outra predileta, Beatrice, vinha
chegando sem ele, precedida por um perfume delicado, talvez Mitsouko.
Sem cerimônias ela subiu os degraus da tribuna e começou: "Lasciate agni
speranza a vai che entrate... "
"Basta, por favor", pedi-lhe, "e me ajude a resolver um problema".
"Apelando para gente que não sabe nem quem era o conde verme­
lho, doutor?"
"Sim. Preciso de alguém capaz de pensar como um rato..."
"Seu bobo, confesse que você está precisando de um pouco de intui­
ção. Acertei?"
"Você promete guardar um segredo?"
"Claro. Nem que eu tenha de passar sobre o teu cadáver."
"Obrigado. Na noite passada estive pensando sobre os fragmentos
de Virgilio e posso afirmar que o livro das 'Geórgicas' ainda está nesta
villa.» E contei-lhe todo o meu raciocínio.
"De fato", concluiu ela, "temos que ver as coisas como um rato ve­
ria. Bem... um rato pode correr, pular, subir em paredes ásperas, andar
sobre cordas, trepar em armários... Fareja muito bem, gosta de queijo, faz
ninhos com palhas e papéis e vai catar essas coisas nos arredores... Ou,
sobre o forro das casas, no meio das vigas, ou nos armários".
"Forro, não: Alessandro saberia. Vigas, também não, porque nin­
guém guarda livros sobre vigas. Armários, não existem por aqui, há al­
guns séculos..."

97
"Exceto na casa de Rinaldo, no andar de baixo, Emilio."
"Mas então Alessandro saberia e nos teria dito."
"Por que deveria dizer?"
Percebi que meu raciocínio fazia água. Mas, se o velho tivesse o li­
vro, nenhum rato chegaria perto dele. E então, onde, diabos, poderia es­
tar o livro, se só os ratos sabiam dele? O fio de Ariadne começava na tri­
buna: se não, onde? E deveria terminar em algum ponto onde só ratos
podiam chegar. Certamente não em manilhas ou chaminés, pois ninguém
guardaria livros aí...
"Emilio, tive uma idéia... "
"Parabéns, é uma grata novidade...
"Esse tal Lutercio ou Lutecio deve ter sido um sujeito meio incom­
preendido. Gostava muito de livros e, talvez, tenha até escrito alguma
. "
COlsa•••
"E daí?"
"Daí, deve ter construído algum esconderijo para guardar seus escri­
tos ou também outras coisas que os bobocas da família não aceitariam..."
"Nesse caso, o raciocínio more rattorum ainda prevalece, só que não
devemos procurar esse Virgilio em lugares normais para guardar um li­
vro. É isso?"
"Elementar. "
"Não ajuda muito."
"Como-não? Se eu estiver certa o esconderijo pode estar nesta sala..."
"Ou... nesta tribuna!», quase gritei. E só não lhe dei um abraço, por­
que ela estava além da balaustrada e eu no chão, no lado de fora. Ela mor­
deu os lábios, emocionada, e, para minha surpresa, não começou a apal­
par histericamente cada milímetro da tribuna. Desceu, veio até onde eu
estava, deu-me um beijo delicioso na face, "você é um gênio!", sentou­
se no chão como um buda e começou a olhar a tribuna fixamente. Pare­
cia um inquisidor a olhar um herege antes de lhe arrancar a mais ampla
confissão.
Comecei a examinar a tribuna. Uma fresta muito estreita entre a pa­
rede e o dossel deixava ver que ele era sustentado por duas robustas vi­
gas, fincadas na parede, e que se prolongavam para dentro dele, no espa­
ço que ficava entre a base da pirâmide e as duas tábuas do forro, adorna­
das pelos medalhões. Ficavam escondidas pelo friso da cantoria.
E então, as duas grandes cantoneiras entalhadas, que pareciam sus­
tentar o conjunto do dossel, eram falsas; tinham apenas uma função es­
tética. Como as duas colunas quadradas que fingiam apoiá-las, coladas à
parede, partindo do piso da tribuna. Bati nelas com uma chave: eram ocas.
Beatrice, que me observava, chegou antes de mim, devo confessar, a
uma conclusão importante: "O caminho dos ratos pode ser por ali, Emilio."
"E, nesse caso, as 'Geórgicas' podem estar aqui em cima... ", emen­
dei excitado.
"Isso não sabemos", replicou o meu grilo falante, ainda sentado co­
mo um buda. Depois levantou-se e subiu os degraus da tribuna para olhar
melhor o forro dela. "Que figuras lindas", disse, acariciando com as mãos
os medalhões.
Eu estava no lado de fora, apoiado na balaustrada, completamente
fascinado por outras belezas: enquanto ela mantinha os braços erguidos,·
a camiseta aderia aos seios empinados, a dois palmos do meu rosto, real­
çando as formas harmoniosas e as saliências túrgidas dos mamilos...
"Que pena, esse poeta aqui está meio solto. E essa musa também.
Parece que estão meio desparafusados."
Eu não conseguia desviar os olhos daqueles seios, que tremulavam
enquanto ela tentava fixar os medalhões. "Tente alguma coisa, deve ha­
ver um jeito", foi a frase que me ocorreu.
"Estas figuras giram; se tiverem algum parafuso no centro, pode ser
que..."
Um estalo forte dentro do dosseI quebrou o meu encantamento.
Beatrice assustou-se: "Meu Deus, quebrei alguma coisa!".
Algo se tinha soltado no forro da tribuna, mas não eram os meda­
lhões: era a tábua de trás, com o fauno e Clio, que se destacara da ante­
rior, ficando uns três dedos mais alta. Como uma tampa de alçapão, des­
trancada depois de alguns séculos, talvez.
Nenhum de nós conseguia dizer nada, Beatrice apontava para o vão
entreaberto, engasgada, pálida. Eu senti a garganta seca e apertada e, mais
que tudo, senti medo. Um medo vago, quase infantil, medo de castigo,
talvez. Ao mesmo tempo, voltou-me à mente uma idéia da tarde anterior;
a de que alguém, do passado dessa tinha esperado por nós, para nos
entregar seus segredos.
Passaram segundos intermináveis antes que nossos olhares se en­

99

contrassem, selando um pacto de cumplicidade. Estávamos atravessando


limites proibidos. Aquela tábua, habitada por Clio e pelo fauno, era uma
porta para o mistério, talvez o pecado. Tomei fôlego, subi à tribuna e
empurrei a tábua para cima, com a mão insegura, confesso. Beatrice es­
tava ao meu lado, ofegante, erguendo-se nas pontas dos pés.
Quando a luz entrou pela fresta ampla, ela não conteve um grito:
"Livros, Emilio, livros!".
Eram uns vinte ou mais volumes, grossos e finos, encadernados, sem
capas, com capas de madeira, de couro, de pele de carneiro. Estávamos rin­
do excitados como duas crianças, alheios a tudo o mais que nos cercava.
Foi Beatrice quem primeiro saiu do êxtase. Tinha que ser. Retomou
seu autocontrole, agarrou meu braço até que eu também descesse à Ter­
ra e sussurrou: "Baixe essa tampa bem devagar para que ela não se tran­
que de novo. Vamos descer daqui e ordenar as idéias".
Eu obedeci, logicamente como uma criança arrancada de seu deva­
neio. Com raiva.
"Precisamos ter calma, Emilio. Para retirar esses livros, temos que
preparar-nos..,"
"Vamos pegá-los já. Por que não?"
"Então me diga: vamos levá-los embaixo do braço?, no bolso?"
em razão. Vamos pegar uma sacola no carro. "
manter longe as 'pessoas estranhas ao serviço', não acha?"
Eu nem tinha pensado nisso. Mas ela me fez pensar, nisso e em ou­
tras coisas. Comecei a refletir: por isso que as mulheres fazem de mim
o que bem entendem: eu me apaixono por pessoas, pinturas, palavras, li­
vros ou qualquer outra coisa e demoro demais a me desapaixonar. Elas
vestem e despem suas paixões com a maior facilidade e de um minuto a ou­
tro. E tem mais: elas saem da paixão seguras e rebolantes, eu deixo pedaços
de mim em cada paixão que termina e saio dela desorientado e inseguro co­
mo um bêbado. Decididamente, preciso esquecer Anna. Mas como? Nem
sei se estou apaixonado por ela. De todo modo, ela me afastará quando
chegar o momento e me mostrará o caminho de casa, depois do pileque" .
Saímos para o pátio.
Bruno nos alcançou, chegando da capela, com cara de quem tirou
dez com louvor: "Escutem. Se excluirmos a casa de Rinaldo, só restam
dois lugares em que se pode guardar um livro, nesta villa."

100
"Dois?", perguntei eu, sincero e direto.
"E daí?", perguntou ela, maliciosa e indireta. Quase mergulhei de
novo na minha deprimente auto-análise, mas o que Bruno dizia me inte­
ressava maiS.
"Explique isso, Bruno."
"Examinei os fragmentos das 'Geórgicas', ontem à noite. Se tivessem
sido catados antes do 'rapa', teriam muitas partes descoradas, estariam
desgastados e mais amarelados. E, sobretudo, não estariam misturados a
notícias do L 'Vnità. Então o livro deveria estar na casa de Rinaldo ou
noutro lugar por aqui, há uns dois anos atrás. Convenhamos que a mãe
de Rinaldo ou o velho Alessandro não tolerariam ratos passeando por
seus armários e comendo seus livros impunemente. De acordo?"
"Claro, prossiga", disse eu.
"Vá lá!", concedeu Beatrice.
"Pois bem. Acabo de examinar todos os aposentos deste palácio,
menos a casa de Alessandro e o teatro. Em nenhum deles se pode escon­
der um livro. Restam duas possibilidades: o sótão da villa e o teatro..."
"Em qual você aposta?"
"Excluí o sótão, porque Rinaldo me contou que lá não há nada.
Dom Attilio, duas vezes por ano, manda alguns homens retirarem os ni­
nhos que os pombos fazem no forro e nos beirais. Os ninhos criam pio­
lhos, mau cheiro e entopem as calhas. Os homens também varrem todo
o forro, uma vez por ano, na Semana Santa. Resta o teatro, com dois es­
conderijos possíveis: um, sob o palco, no meio do vigamento. Já olhei lá
ontem e não há nada. O outro, muito mais apropriado, pode ser a tribuna,
em dois pontos: algum cantinho da base, onde fica o ninho, e nesse caso
Rinaldo já teria achado o livro, ou o dossel, ou 'telhadinho' da tribuna.
Acho que o nosso Virgilio está lá. O que vocês acham desta idéia?"
Era um raciocínio brilhante. O que me impressionou mais era, po­
rém, a generosidade dele em nos contar tudo aquilo, dividindo conosco
a chance de encontrar o livro. Senti vergonha pelo impulso egoísta de es­
conder dele o nosso achado. Na verdade, penso, eu pretendia partilhar
tudo, com todos, mas depois de consumada a conquista do tesouro.
"Parabéns, Bruno." Dei-lhe um abraço. Beatrice também o abraçou,
demoradamente. Parecia haver alguma umidade nos olhos dela. E entrei
de novo em auto-análise: "É isso que às vezes as torna odiosas. Quando

101
você está seguro de que são criaturas perigosas, desleais, elas choram e aí
está você, outra vez, pronto a se partir em quatro, só para vê-las sorrin­
do, disposto a trocar sua paz por um olhar malicioso, correndo atrás do
primeiro rabo de saia que aparece, principalmente se for uma saia cur­
tinha, amarela". Percebi que não havia salvação para mim.
"Bruno, parece incrível. Mas, por um raciocínio pouco diferente, nós
chegamos à mesma conclusão. E, que ninguém nos ouça, Beatrice e eu
temos certeza de que não só as <Geórgicas', mas também outros livros,
uma penca deles, estão lá. "
"Verdade? Vocês já espiaram? Lá na tribuna?"
"Sim, senhor. Lá no <telhadinho'. Tivemos uma sorte dos diabos."
Contei a história dos medalhões e do estalo que abrira o alçapão do
dossel.
Beatrice chegou com uma sacola de pano, dobrada: "Vamos lá, Mon­
sieur Poirot e Inspetor Maigret".
"Sim, Miss Marple", respondeu Bruno. ,
Apenas tínhamos entrado, ouvimos a buzina irreverente do jipe, que
trazia Lorenzo, com cara de ressaca, e Isabella. Ela disse que iria ver a tor­
rente e ele chegou-se a nós com a mão levantada, como orador que
pede atenção.
"Meus caros, aqueles fragmentos de Virgílio, acompanhados de dois
Barbera, são a melhor receita para um bom sono e para um pensamento
produtivo..."
"Xi!, mais uma teoria sobre a localização das 'Geórgicas'..." A pro­
vocação era de Bruno.
"Sim, meu querido. E, diante do séu entusiasmo, vou direto ao as­
sunto. O livro das <Geórgicas' está na tribuna."
senhor poderia ser mais explícito?", indagou Beatrice.
"Quando os antepassados da condessa carregaram o que restava de
livros, móveis etc., por aqui, um único lugar, dentre os que podiam con­
ter o livro, não foi tocado. Esse lugar é a tribuna. E, como os fragmentos
foram colhidos há poucos anos, muito depois da <operação limpeza', o
livro ainda está por aqui, na tribuna. Por exclusão. Elementar, meus jo­
vens colegas. "
"Como você pode afirmar que não tocaram na tribuna?", eu quis
saber.

102
"Explico. Ontem, vocês andaram fuçando aqui e ali, no teatro, en­
quanto Isabella e eu, pesquisadores sérios, examinávamos sistematica­
mente paredes, afrescos, janelas e pavimento da capela. No teatro, talvez
viciados, fizemos o mesmo..."
"Fala logo!", disse Beatrice.
"Como eu ia dizendo, olhamos o aposento mais que os objetos que
continha. Em volta da tribuna, muito próximos dela, há, no chão, vestí­
gios abundantes de paredes que foram removidas e que se prolongavam
até o teto, onde há outras marcas, menos claras porque as paredes apenas
o tocavam, sem enfiar-se nele. Portanto a tribuna esteve, literalmente,
emparedada..."
"Ela pode ter sido construída depois da remoção das paredes!", ar­
riscou Bruno.
"Não. Porque as paredes feriram a pintura da roseira silvestre e da
parreira. A pintura precedeu ao emparedamento. E a tribuna precedeu à
pintura, porque o tronco da videira contorna o piso dela, sobe desvian­
do da cantoneira e depois se dobra por cima do dossel, antes de se abrir
naquela apoteose de ramos e folhas. "
"Como você sabe que as paredes foram retiradas depois do 'rapa'?"
"Porque ontem ajudei Alessandro a recolher as taças que vocês, al­
coólatras, esvaziaram, e pude fazer-lhe uma pergunta indiscreta, longe
de vocês todos: 'Senhor Alessandro, quem descobriu a tribuna?'. Ele me
fitou com um olhar perfurante, sorriu e respondeu: 'o senhor é muito
perspicaz. Foi meu pai, na véspera de meu casamento. A chaminé do fo­
gão grande entupiu, muito acima da coifa. A cozinha ficou cheia de fu­
maça e cheiro dos assados. Todos pensavam, ele também, que aquelas pa­
redes no teatro escondiam as duas chaminés, a do fogão e a da lareira.
Tentando chegar a elas, fez um buraco numa das paredes. Em vez da cha­
miné entupida achou a tribuna. As chaminés, após saírem das coifas, su­
biam até o telhado por outro caminho. Por dentro da parede da fachada'."
Lorenzo inclinou-se, como um concertista diante da platéia.
"Brilhante!", aplaudiu Bruno. "Só que tanto eu, como Emilio e Bea­
trice chegamos à mesma conclusão, por caminhos diversos."
Contamos então a ele os raciocínios de cada um e a história do al­
çapão. Isabella chegou de seu passeio no vale, distraída, fora do mundo.
Lorenzo, à queima-roupa, disparou uma pergunta direta.

10 3
"Isabella, na sua opinião, onde está o livro das 'Geórgicas'?"
"Provavelmente, na tribuna do teatro."
"Mas isso é mero palpite, não?"
"Não. É uma inferência... indutiva. Imagine que você é um pianista
fanático, tem um piano seu, para você e seus amigos, está em sua casa e
faz nela o que bem entende. Qual o lugar mais cômodo para guardar as
partituras que você está estudando, ou as suas preferidas? Sob a tampa do
teclado ou dentro do piano. Não é?"
E, alheia à nossa perplexidade, ela acrescentou mansamente: li­
vro deve estar onde o Virgilio era declamado! É tão simples".
Na subida da escada, Beatrice, que ia na frente, abraçada por Lo­
renzo, parou de repente e desafiou: "Depois da experiência de hoje, quem
se habilita a escrever algo como Teoria da Descoberta?".
"Depende. Vale falar de estratégias, de. intuição, ou você quer uma
lógica da descoberta?" A dúvida era de Lorenzo.
"Aceito os dois enfoques. Você escreve?"
"Deus me livre. Perguntei só por curiosidade."
"Eu aceito escrever, em co-autoria, se cada um conseguir explicar,
em termos epistemológicos, como chegou à descoberta do Virgilio na
tribuna. "
"Não é má idéia, Bruno. Podemos planejar isso qualquer noite des­
sas, lá no Anjo Azul. Mas agora vamos ver esses benditos livros", propôs
Isabella, puxando-o pela manga.
No teatro, cada um teve sua chance de subir à tribuna, levantar um
pouco mais a tampa do alçapão, olhar para os livros, fazer uma cara des­
lumbrada e descer limpando a poeira das mãos como pudesse.
Então subimos, eu e Beatrice. Ela segurava a sacola e tinha que ficar
bem perto da parede para não pisar no buraco do piso; o espaço era pou­
co. A tampa do alçapão era basculante como se tivesse dobradiças junto
à parede, escondidas por uma cornija entalhada. Pesava mais do que eu
esperava. Com a mão direita, levantei-a bem alto e, com a esquerda, meio
trêmula, peguei um livro, o único que estava deitado, aberto. Era fino e
pequeno, com capa de cartão muito danificada. Fechei-o e passei às mãos,
também trêmulas, de Beatrice.
ele! O nosso Virgilio!", anunciou ela, agitada.
Depois foi um livro grande, não muito grosso, com capa esfolada, de

104
couro cru, e páginas de papel de trapo, muito liso. Na capa, um título lon­
go, em letras tipo códice: Commentanum... etc. Eu não estava muito in­
teressado em títulos ou letras, naquela hora.
O terceiro era um belo exemplar, com capa de couro claro e duro,
era volumoso e tinha números romanos na lombada. Quando o passei a
Beatrice, alguns fascículos se desprenderam da capa. No ímpeto de se­
gurá-los ela perdeu o equilíbrio e pisou em falso.
Instintivamente, estendi os braços para segurá-la... E a tampa en­
tão desceu com todo seu peso. Houve um estalo seco. O alçapão estava
trancado.
Nem ela nem eu sabíamos quais manobras nos medalhões tinham
destrancado aquela maldita tampa. Tentamos vários modos de movê-los
e diversas combinações de movimentos. Tentamos girar até o medalhão
de Clio, que não se moveu. O do fauno revelou-se capaz de algum mo­
vimento giratório, mas muito menor que o dos outros e um tanto excên­
trico. Nada conseguiu reabrir o alçapão.
Beatrice sentou-se com os outros, no tablado do palco, esfregando
o tornozelo. "Torci o pé, miséria."
"É a maldição do faraó", disse Bruno.
"Conseguimos muito mais que o esperado", ponderou Lorenzo,
apontando os livros. "Se Isabella fizer um esboço do dossel com os me­
dalhões, podemos estudar algum 'Abre-te Sésamo' e voltar aqui, com
mais tempo."
"Só que a desenhista está ocupada, no momento, em copiar os he­
xágonos do teto." Era Isabella quem reclamava: "Faço o desenho, mas
com uma condição: um dos livros, de minha escolha, vai ficar comigo nas
próximas semanas. Vocês decidem sobre os outros dois. Concordam?".
"Temos alternativa?"
"Não."
Bruno resumiu o sentimento geral: "Sanguessuga!".
"Acontece que eu mereço. Fui eu que ganhei os livros..."
"O quê?"
"Ganhei, sim. Alessandro no passeio ao vale, para
mostrar as lápides e os restos do velho· moinho. Contei-lhe sobre os frag­
mentos de Virgilio, e sobre a nossa esperança de achar o livro em algum
canto da villa. Nossa conversa foi mais ou menos assim:
'Eu não acredito que exista algum livro antigo num raio de pelo me­
nos três quilômetros, mas se a senhora ou seus amigos acharem algum,
poderão levá-lo, depois de assinar um compromisso.'
'Como assim?'
'É o que decidiu Dom Attilio, há uns oito anos, quando eu e meu
genro, que faleceu, refizemos a pintura da villa. Achamos um pequeno
cilindro de chumbo, com tampa rosqueada. Dentro havia duas folhas com
desenhos, algumas anotações e um compasso. Dom Attilio não quis acei­
tar o nosso achado. Disse que detesta antiquários, que entre a casa dele
e a da condessa já tem antiguidades para fazer um museu. Pediu apenas
que os objetos pudessem ser vistos por qualquer pessoa, e fossem doa­
dos oficialmente a alguma instituição pública...'
'E onde estão agora?'
'Na sede da mais importante instituição pública de Madonna della
Spina. Dom Attilio não excluiu nenhuma...'
'Mas onde estão?'
'Na sede do Partido Comunista Italiano, expostos a qualquer cida­
dão e não trancados em alguma coleção particular. Se algum dos seus co­
legas ou a senhora acharem algum livro, assinarão um compromisso de
doá-lo a uma instituição pública que o deixe acessível a qualquer pessoa,
e poderão levá-lo... De acordo?'
'Sem dúvida, que maravilha', disse eu. Ele então balançou a cabeça,
como quem desiste de converter um impenitente e me deu um sorriso
de... psiquiatra."
Lorenzo sorria de uma orelha a outra. Tomou a mão dela, ergueu-a
o mais que pôde e exclamou: "Viva Isabella, a grande benfeitora do Ga­
li/ei, a mais importante instituição pública da Lombardia! Por esses livros
nós assinamos até confissão de terrorismo".
Enquanto ele falava, Beatrice estava noutro mundo, numa espécie de
nirvana, a julgar pelo sorriso. Tinha nas mãos, entreaberto, o livro mais
grosso, com capa de couro branco, que tomara de Lorenzo, e balançava
a cabeça, como se não acreditasse no que via.
Bruno se apoderara do livro menor, o Virgilio, e tentava encaixar,
nas páginas rasgadas, os fragmemós das "Geórgicas", que guardara na
carteira. Ele também estava alheio ao resto do mundo.
"Vocês dois aí", disse Isabella, "não se esqueçam de que a primeira

106
escolha é minha. É inútil vocês se apaixonarem por esses livros. A dor da
separaçao val ser malOr....
"Quem achou os livros merece mais. Mas Isabella nos livrou do re­
morso: vamos saborear esses textos, sem culpa, e sem medo de ir para o
inferno. Só há um problema: não só o Virgílio, mas os outros dois tam­
bém estão em latim. Ergo...", falou Lorenzo, apontando para mim.
"Sem dúvida", concordou Beatrice, voltando do espaço. "Isso aqui...
meu Deus do céu... é um tesouro... " Ela gaguejava, emocionada: "É um
<Hipólito'! Manuscrito... com escólios!".
Isabella achegou-se a ela quase num salto. Espiou o livro e arrega­
lou os olhos: "Santo céu!, Emílio, você se lembra do volume das Bacchae?
Era gêmeo deste! A mesma encadernação, os escólios, as letras... É incrí­
vel. O encadernador tinha razão... ".
Eu não sabia o que dizer. Mas tinha uma certeza: algum dia eu pe­
garia tudo o que tinha ficado no alçapão. Quanto aos três livros, eu pre­
via que iam me trazer problemas. Claro que eu queria mergulhar nesse
<Hipólito', de cabeça. Eu adoro Eurípides. Mas tragédia grega, no Galilei,
significava Anna. Devo ter feito alguma cara desconsolada, porque Isa­
bella me passou a mão nos cabelos, perguntando: ceo que aconteceu?".
ceNão sei. Gostaria de saber o que ainda vai acontecer."
"Fique tranqüílo", disse ela em voz baixa, de costas para os outros,
"no papel que devo entregar a Alessandro vai constar só o Virgilio. Você
trate de sair daqui com os outros dois. Eles também vão ser declarados e
registrados, mas só mais tarde. Quando esvaziarmos o dosseI. Se eu dis­
ser que achamos os três ele vai logo pensar num ninho de livros, e pode­
rá chegar à tribuna antes de nós. Correto?".
ceDe acordo", respondi. Minha cara me traiu, como sempre. Isabella
me olhou firme nos olhos e emendou: ceÉ evidente que você e Anna vão
ter que se entender...". Eu gelei. A frase podia estar envenenada. Enquan­
to eu procurava inutilmente alguma resposta ela continuou: "Tragédia é
com ela, latim é com você. Vocês formam uma bela dupla, sabe?".
"Podemos formar um trio", falei, surpreendido com meu desem­
baraço.
"Três é demais", foi a resposta dela. ce Além disso, minha especiali­
dade é canto gregoriano. Tragédias, não." Até hoje, muitos anos depois,
ainda não entendi essas frases de Isabella.
Lorenzo, que se tinha aproximado de uma janela, anunciou: "Ri­
naldo e o nonno vêm subindo a estrada, de bicicleta. Isabella, você assina
o papel? Precisamos voltar a Milão antes da noite. Vocês não acham?".
Bruno, pragmático, lembrou: "Antes disso, Isabella precisa desenhar
o teto da tribuna e nós temos que visitar Dom Attilio. Para facilitar as
coisas... no futuro".
"Mais nada, senhor?"
"Sim. Temos que cumprimentar Alessandro e sua família. E uma
coisa importante: comprar os ovos. Enquanto fechamos as janelas, Emi­
lio pode levar os dois volumes para o carro."
Desci, guardei a sacola de Beatrice no carro de Lorenzo e juntei-me
ao grupo. Na visita, Alessandro pareceu não acreditar que tínhamos acha­
do o Virgílio ali, na vil/a. Depois sorriu, satisfeito, folheou o livro e fez a
pergunta indesejada: "Onde o acharam?". Eu, como de costume, me senti
perdido. Beatrice, não. Sorriu para Alessandro e desafiou: "Vamos ver se
o senhor consegue adivinhar? Tem um minuto".
"Ou na capela, ou no teatro. Não há outras alternativas", disse o
velho prontamente. "Falta saber em qual dos dois. Mas prefiro não arris­
car. De todo modo, fico contente com esse achado. Talvez, assim, vocês
voltem, para procurar outros. Essa casa é grande demais. E é muito bo­
nita, não acham? Espero que consigam ajudar Dom Attilio a salvá-la."
Lorenzo disse que tínhamos contatos com muita gente no ramo edi­
torial e de investimentos culturais e que, embora não se pudesse prometer
nada, íamos procurar um modo de salvar a mansão. E era o que todos
pensávamos, tenho certeza. Bruno acrescentou que íamos visitar Dom
Attilio, antes de retornar a Milão.
Beatrice e Isabella compraram umas três dúzias de ovos. Pagaram a
Rinaldo pela produção de meio ano ou mais, de Filomena e suas colegas.
Em compensação, ganharam beijos e abraços.
"Voltem logo!", disse Alessandro, quando partimos.

"Mais cedo do que o senhor espera", respondi.

108
Capítulo 5

o Cavaleiro da Paixão

Em Madonna della Spina. tia Margherita. uma velhinha miúda e ágil.


[ofereceu-nos o seu delicioso licor de peras. uma obra de arte. Depois con­
tou que Dom Attilio tinha ido almoçar com parentes. retornaria somen­
te no cair da noite e lamentava não ter podido encontrar-nos. mas espe­
rava muito o nosso apoio para garantir a conservação da villa. Bruno ex­
plicou nossa disposição e nossas possibilidades. Que nós também gosta­
ríamos de conversar com Dom Attilio, mas tínhamos que viajar até Mi­
lão por isso, a conversa ficava transferida para nossa próxima visita.
Quando estávamos saindo. ela perguntou a Bruno: "Vocês gostaram
da vil/a? O bispo vermelho existiu mesmo, sabem? Meu avô falava de
uma história muito antiga, na qual se dizia que o bispo foi perseguido por
outros bispos, porque não concordava com as injustiças que eles come­
tiam, principalmente contra os protestantes daquele tempo. Agora, com
esse Concílio Vaticano, ele teria apoio até do papa, mas naqueles tempos
era difícil ir contra o poder da Igreja".
"Mas ele também era da Igreja. tia..."
"Era sim. Mas nem todos os padres ou bispos pensavam do mesmo
jeito. E nem todos concordavam com tudo o que o Papa ordenava. Al­
guns eram mais conservadores. Esses sempre tinham mais apoio de Ro­
ma. Sabe, a Igreja é uma coisa, a Cúria Romana é outra."
"Tia, essas idéias não incomodam Dom Attilio?"
"Não. Ele às vezes é mais anticlerical do que o meu amigo Ales­
sandro, que vocês devem ter conhecido lá em cima. Agora é melhor vocês
pegarem a estrada. Hoje é domingo e ela vai estar cheia. Boa viagem e
voltem logo. "

109
Embarquei no carro de Lorenzo, com Isabella. Bruno ficou no jipe
de Beatrice. Paramos para o almoço, logo na saída da aldeia. Serviram
um excelente sampré alla piemunteisa, com um Barbaresco 64, divino.
Informaram-me que, em Milão, eu poderia deliciar-me com o "Hipóli­
to" e mais tarde com o Virgilio, que ficaria com Isabella, "por direito de
usurpação". Até ali, tudo bem. Mas o terceiro livro tinha que ser tradu­
zido, pois era totalmente inédito e "você é o nosso latinista". Em com­
pensação eu seria o primeiro, depois de vários séculos, a ler, em pri­
meiríssima mão, o Commentarium. Isabella contou-me o resto do títu­
lo: de tragicis Euripidis operibus. Então senti que o sangue me subia ao
rosto. Não era vergonha o que eu sentia: uma mistura de desejo e de te­
mor. Pudor, talvez.
Era um desafio fascinante, mas era também uma ameaça. Ela disse
em seguida: "No latim, você é o nosso campeão, mas para entender as
complicações de Eurípides, você poderá contar com Anna. Ela vai ado­
rar isso, tenho certeza". Eu nem olhei para ela. Qualquer reação seria um
passo em falso. Voltei para dentro de mim e para o meu divã pessoal. Meu
id dizia: "Não perca essa chance. Já pensou o que será uma noite com
Anna, depois de traduzir juntos, por exemplo, os devaneios de Fedra?".
Meu superego, de seu lado, murmurava: "Vai bancar o idiota de novo?
O que Anna quer é usar você para seu trabalho, e nada mais. E, prova­
velmente, Isabella acha isso muito certo". Meu ego, cansado, cheio de in­
certezas, dessa vez foi hábil, embora pouco original: "Seja o que Deus
quiser. Agora quero saborear este sampré e este Barbaresco", foi tudo o
que conseguiu dizer, mas bastou para sossegar os outros dois. Na sobre­
mesa, quando chegou a Ambra d'oro, já estava feliz com a idéia de de­
cifrar o Commentarium, ao lado de Anna, por que não? Uma mulher
como ela, não se encontra todo dia. Mesmo que tudo ficasse no plano da
amizade, seria uma delícia conviver com o brilho e a graça dela. Não sei
se por causa do vinho, quando me larguei, ou me largaram no banco tra­
seiro do carro, pareceu-me ver, sentado na calçada, meu superego arran­
cando os cabelos. Decidi ser duro com ele: "É. Seja o que Deus quiser!".
"O quê?", perguntou Lorenzo.
"Nada. É isso mesmo. Seja o qúe Deus quiser."
Acordaram-me depois de Novara, para um café. Eram quase sete da
noite. Íamos chegar a Milão, pelas oito e quarenta, boa para levar

no
Isabella ao marido e depois dar uma chegada no Anjo Azul. Foi o que
propus.
quê? E eu? Por que não posso encher a cara, se me der na cuca,
no Anjo Azulou onde eu bem entender?", foi a reação dela.
«Emilio", aconselhou-me Lorenzo, «veja com que graça as mulhe­
res falam hoje em dia. Isto se chama emancipação feminina. Elas ficam
adoráveis, não? E você, porco machista, pensando que ela poderia estar
com saudade do marido. Perceba, meu caro: quanto esse tipo de cuidado
com o sentimento dos outros é pura opressão machista...".
«Disfarçada de solicitude paternalista", emendei.
«Basta!!!, seus chatos."
essa leveza, Emilio. Coronemus nos rosis antequam mar­
cescant."
"Às vezes chego a pensar que vocês são misóginos."
aliás, se dizia do nosso grande Eurípides, aqui presente",
disse eu, mostrando a sacola de Beatrice.
"Depende. Pode até ser verdade", explicou Lorenzo: "Pode-se ado­
rar as mulheres e odiar freiras, ou feministas. Não chega nem a ser uma
questão de princípio, é questão de bom-gosto e de inteligência, minha
cara".
"Na verdade nós adoramos as mulheres, desde que sejam belas, in­
teligentes e... inseguras. Seria isso uma prova de nossa misoginia? Eu, por
exemplo, acho esplêndida a figura feminina de Medéia, certamente uma
mulher detestável. Sou misógino? A Fedra do 'Hipólito' me desperta
compaixão, quase ternura. Mas é de uma perfídia covarde."
«Afinal, por que todo esse debate idiota? Vou beber cerveja com
vocês e basta. Adoro homens gentis e não terei na vida muitas oportuni­
dades como esta, de ser cumulada de tantas amabilidades. Vocês são tão
afáveis. Estou com saudade de meu marido, sim, meus caros. Mas quero
aproveitar meu domingo até o fim. Agora continuem com esse assunto,
que está muito interessante. É preciso ser um gênio para perceber que
Medéia fascina figura dramática, mas repugna enquanto psicopa­
ta assassina. Também é preciso ser genial para distinguir entre freiras e
mulheres normais. Vocês estão de parabéns. Faço questão de ficar com
vocês no Anjo Azul, principalmente para enriquecer minha pobre cabe­
ça feminina."

III
"Há outro tipo de mulheres que nós detestamos", disse Lorenzo, "as
irânicas. Mas, como você foi sincera ao reconhecer nossa genialidade,
podemos discutir a possibilidade de você beber conosco. Que você acha,
Emilio?".
"Não sei... o risco 'é ela habituar-se. "
"Então a levamos só por esta vez."
"Quanta bondade! Não sei como agradecer. Ah, antes que me esque­
ça, Bruno combinou que iremos nos encontrar sob as colunas de San Lo­
renzo. Quem chegar primeiro, espera."
Quando chegaram, Bruno queria beber em via Magolfa, na espelun­
ca "do grego", mas Beatrice o convenceu de que lá havia muita gente nos
domingos. Fomos para o Anjo Azul, nós cinco ciosamente apertados
ao meu peito, o "Hipólito" e o Commentarium, na sacola de Beatrice. O
Virgilio estava seqüestrado, na bolsa de Isabella. Por volta da quinta ca­
neca de cerveja, Bruno lembrou as frases de tia Margherita: "Ele foi per­
seguido por outros bispos porque não concordava com... injustiças con­
tra os protestantes daquele tempo". E emendou: "Provavelmente ela usou
'protestantes', em sentido amplo. Se não, até que daria para transformar
o nosso caro Lutercio em um Lutero, um Lutero Lorenzo e os ou­
tros começaram a discutir o assunto.
Minhas idéias estavam enroscadas em outros enigmas. Além dessa
história, de tia Margherita, havia outras coisas, que eu tinha que ordenar.
Por exemplo: embora parecesse plausível, não tínhamos prova da existên­
cia de Lutercio, nem de que ele construíra a mansão, ou escondera os li­
vros. Seria ele o autor do Commentarium? Por que a tribuna tinha sido
emparedada? Quem a murou sabia que guardava livros? De que modo
um volume gêmeo do "Hipólito" tinha ido parar nas mãos do encader­
nador ou livreiro de Cisterna d'Asti? Como é que Aurelio Valdesi sabia
que as Bacchae eram da casa do bispo vermelho? Qual o truque para abrir
de novo o teto da tribuna? Por que a biblioteca, com o presumido retra­
to de Lutereio e seu irmão brutamontes, ficava trancada?
Concluímos, depois de várias pizzas e muitas cervejas, que os indí­
cios da existência de Lutercio eram tantos e tão plausíveis que havia mais
risco de erro em negá-la, do que em admiti-la. Para isso, contribuíam ar­
gumentos de história da Igreja, do clero, do Piemonte e também induções
nossas, a partir das informações colhidas in loco. Poderia até não ser um

II2
bispo. Mas alguém, tomado por bispo, chamado Lutercio, ou coisa pa­
recida, havia marcado a história da villa e da cultura popular da região.
Mais, era um personagem ligado a encadernadores e livreiros. Alguém
querido pelo povo da aldeia e, provavelmente, proscrito pelos poderosos,
como pessoa, como fama e como nome. Por outro lado, todo o mistério
talvez não resistisse a algumas consultas a documentos antigos na cúria
diocesana, nos registros cartoriais ou a livros de história.
Bruno lembrou o monumental Ordens Monásticas Medievais, de
Dom Benoit des Pres, o famoso historiador beneditino, e O Episcopado
Lombardo, de Ludovico Graus. Lorenzo sugeriu um livro de Rosanna
N ole, sobre afrescos do renascimento na Itália do norte, que ele tinha
estudado para um trabalho sobre Masolino. Disse que era uma arquiteta
genial.
Havia também a pista do irmão de Lutercio, o marquês caçador.
Afinal, um marquês deve constar de algum registro genealógico. Havia
dezenas de obras sobre a nobreza do Piemonte e do Vale d'Aosta a se­
rem consultadas. Mesmo que o tal Filipe ou Filiberto não pertencesse a
qualquer Casa Real, algum estudioso ou bajulador teria registrado a sua
passagem sobre o planeta. Mesmo como simples matador de cervos ou
de hereges. Mais ainda, a própria villa deveria figurar em algum texto
sobre edifícios antigos da região, ou no livro de Rosanna Nole.
De todo modo, concluímos, a proscrição de Lutercio fora eficaz
num tempo de crendices, de analfabetos e medo do inferno, mas não re­
sistiria a uma investigação histórica. O bispo vermelho não tinha desa­
parecido: apenas se escondera à espera da "revanche". A conversa sobre
os "protestantes de tia Margherita" ia de vento em popa. Beatrice e Bru­
no estayam empolgados:
"Em nenhuma região da Itália houve mais movimentos heréticos do
que no Piemonte. Por ali andaram cátaros, albigenses, bogomilos e mil
outros grupos, desde o século XII, pelo menos".
"E o Santo Ofício deve ter registrado tudo sobre eles. Nomes, cren­
ças, amigos e protetores. Nesse caso nosso bispo estaria devidamente fi­
chado em algum calhamaço do Santo Ofício, ou da 'De propaganda Fi­
de', com todos os seus desvios ideológicos."
"Quem sabe, até com particularidades sobre seus afetos e eventuais
paixões. A gestapo dominicana não dormia em serviço", emendou ela.

113

"Nesse caso, pode haver alguma pista do bispo em obras sobre os


hereges, na região de Casale", completou Bruno.
Lorenzo entrou na conversa: "Eu tenho um palpite. Acho que o tal
retrato da biblioteca pode conter informações decisivas. Os pintores do
século xv gostavam de retratar, com os personagens, muitos objetos e
indícios de seu status, funções, privilégios e gostos. Claro que uma bus­
ca em documentos e livros pode revelar muita coisa. Mas se tivermos
sorte, o tal retrato pode encurtar o caminho. Bruno, você precisa ajeitar
. "
ISSO.
"De acordo", respondeu Bruno. "É só escolher a data. Mas desta vez
precisamos levar alguma notícia para Dom Attilio, sobre a villa. Vamos
combinar tudo na minha sala, amanhã ou depois. Penso que Lanebbia e
seus amigos podem ajudar Dom Attilio."
"Tudo bem. Mas hoje não tenho idéia nenhuma, sobre nada", disse
Isabella bocejando. "Quem me dá uma carona?"
Bruno levou as duas mulheres, e Lorenzo me deixou na esquina de
casa. Não sei o que fiz depois de entrar no quarto. Lembro apenas que
fui acordado às sete da manhã por um repicar histérico de sinos e tive
vontade de esganar o sacristão de Sant'Eustorgio. Mas a manhã estava lin­
da, imprópria para projetos desse tipo. Olhei, meio dormindo, para o
Commentarium e o "Hipólito", na mesa da saleta. Pareceu que eles sor­
riam, um sorriso solidário. Como se soubessem que naquele dia luminoso
estávamos entrando por caminhos incertos. Senti uma certa culpa por tê­
los arrancado de sua paz secular. Por ter, de algum modo, violado a inti­
midade de quem, naquela tribuna, tinha escondido sonhos ou segredos.
Os dois, na sua quietude, mostravam uma resignação tranqüila ao seu
destino. Pareciam irradiar aquela grandeza trágica dos heróis de Eurí­
pides. Quem sabe, pensei, tanto eles como seus companheiros tivessem
esperado por nós, desde séculos. Eram mensageiros que Lutercio nos
mandara como confidentes. Essas idéias tinham muito de racionalização
ou coisa parecida. Mas eu queria, sinceramente, desvendar a história do
bispo vermelho. Todos nós queríamos. Tudo o que sabíamos apontava
para uma injustiça a ser reparada.
No Galilei, apenas me acomodoei em minha sala, chegou Anna. Ela
estava esplêndida. Bronzeada, alegre, com uma blusa branca muito leve
e uma minissaia fatal, vermelha. Não sei que cara fiz ao vê-la. Fiquei sem

114
o que dizer, além de um "oi, tudo bem?". Odiei aquele ar de felicidade,
após um fim de semana com o marido.
"Parabéns, Emilio. Fiquei sabendo de suas proezas no Piemonte. Pa­
rece que houve caça grossa..."
"É. "
"Você me deixa dar uma olhada nos livros?"
"Ainda não abri."
"Por quê? Modéstia?"
"Estão ali, na sacola de Beatrice."
"Que é que você tem? Está zangado comigo?"
"Claro que não."
"Você prefere vê-los sozinho, não é?"
"Não. Estou cansado. Só isso."
"Cansado ou chateado? Não quero incomodar... "
"Pode ver os livros. Mas, por favor, não os tire da mesa."
"Eu sei. Para não perder eventuais marcas ou papéis colocados en­
tre as páginas, não é?"
"Parabéns. Vê-se que você é do ramo."
Eu queria dizer que estava louco de saudade e de ciúme, que a achava
maravilhosa, que estava feliz de poder trabalhar com ela naqueles textos.
E só conseguia ser tosco ou grosseiro. Como um bloco de granito. Foi
então que ela me derreteu.
"Enquanto vocês se divertiam no Piemonte eu tive um fim de semana
chatíssimo. Mas hoje quando Beatrice me contou sobre o seu achado fi­
quei feliz, muito feliz, não sei bem por quê. Talvez até porque esses livros
trazem algum desafio pessoal importante para mim. Só lamento que se­
jam em latim..."
Antes que meu superego se intrometesse, surpreendi-me a dizer, já
arrependido de ter começado a frase:
"Podemos trabalhar juntos, se você...".
"Verdade? Você aceitaria? Que maravilha!"
Meu coração galopava. Então ela me agarrou as mãos e me deu um
beijo generoso e quente na face. Devo ter feito uma cara de espanto, por­
que ela, ainda segurando minhas mãos, me olhou firme nos olhos: "Você
me acha tão assustadora?".
Era um convite? Uma piada? Uma armadilha? Qualquer coisa que
eu dissesse daria errado. Mas eu tinha que dizer. Revistei freneticamente
meu arsenal de frases sedutoras, imponentes ou sábias e consegui for­
mularuma:
"É".
Ela riu, maravilhosa, e eu continuei paralisado. Percebi que, num
duelo de seduções com Anna, eu estaria liquidado de saída. Torci para que
entrasse alguém na sala, para me tirar daquela situação quase ridícula de
incapacidade total. Avançar era imprudência e fugir seria pior. Por sor­
te, Luciana gritou lá da secretaria: "O café está pronto!". Anna, com um
sorriso astuto, não perdeu a chance de tentar mais um ponto: "Dizem que
cafeína é excitante". Era demais. Respondi, sem pensar: "Luciana tam­
bém". E me senti vingado. Nem olhei a cara dela. Eu sabia que ela estava
de nariz empinado, com um sorriso pernóstico. Lembrei a frase de Lo­
renzo no Menarost: "É como cair sentada no meio da Galleria, levantar­
se exibindo as coxas e sair rebolando para os turistas do Biffi". E ela, en­
tão, me pareceu pequena.
Junto ao café, todos falavam dos manuscritos e do convite a Tulio,
em pleno domingo de verão, para assumir a cátedra de Psicopatologia, no
Instituto de Psicologia. Haviam conseguido, finalmente, aposentar Ma­
tilde Rossini, uma figura acadêmica melancólica, que subira na Univer­
sidade com métodos pouco ortodoxos, um discurso que os estudantes
dos primeiros anos admiravam e que Lorenzo definia como de "esquer­
da palaciana". Tulio dizia que ela tinha estreado como revolucionária ao
morder Cleópatra. Beatrice acrescentou que, no dia do Apocalipse, Ma­
tilde Rossini acharia o modo de conseguir do Padre Eterno um convite
de primeira fila para a apoteose final.
Tulio pediu para ver o Commentarium. A opinião dele interessava
muito porque ele não participara de qualquer conversa nossa sobre Lu­
tercio ou nossas teorias a respeito do livro. Anna ficou na secretaria, nu­
ma conversa com Beatrice. Isabella nos acompanhou, com olhos de so­
no. Tulio não quis abrir o livro, disse que era meu direito, o "jus captus".
Levantei cuidadosamente a capa de couro esfolado. Minha mão tremia e
eu senti um vazio no estômago. Isabella mordia o lábio, de olhos arrega­
lados. Tulio sorria vagamente, um sorrisd de esfinge. Havia um curtís­
simo prólogo, sem título, que revelava muito do homem que o escrevera:

n6
PLANcruS PETRI ABAELARDI UBI DECESSUS EST OICATUM
legi EQUlTl DJALECTlCAE: cui soli patuit scibile quid­
quid erat, propter ejus de ratione humana scientia.
Ita dicam de Euripide summo magistro de homi­
num natura, cui soli patuit scibile quidquid erat de
humanis affectionibus, ei qui sicut veritatem simi­
liter ac tenaciter tametsi alia perquisivit et protexit
tamquam eques affectus quidam.

"Planctus Petri Abaelardi? É impossível! Então esse livro foi escri­


to bem depois do século xv, quando a villa já estava abandonada, muito
depois da morte de Lutercio." Isabella estava agitada: "Porque a villa é
da metade do século xv, no máximo".
"Calma, querida. Eu sou fraquíssimo em latim, mas conheço essa
frase grifada, cui soli... etc. É um elogio hiperbólico, belíssimo, um gesto
de amor... "
"Diga, de uma vez, Tulio."

"É do epitáfio que Heloisa escreveu para o túmulo de Abelardo. "

"E o que faz o Planctus nessa história?" quis saber ela, perplexa.

"O que tem de especial esse Planctus?"

"Você não tem obrigação de saber isso. Mas é coisa do meu ramo.

Existe no Vaticano um manuscrito que contém seis peças musicais tristes,


ou "lamentos", atribuídos a Abelardo. Chama-se Planctus Petri Abae­
lardi e as músicas são escritas em neumas, mas sem pauta."
"Obrigado pela lição de história", agradeceu Tulio, "eu nem sabia
que Abelardo, além de tudo, era músico. "
."0 que me espantou foi ver o título do Planctus, que só se desco­
briu muito mais tarde, escrito em letra humanistica. A mesma dos mis­
sais do século xv, primeira metade... Mas é muito absurdo que a inscri­
ção se refira ao manuscrito..."
Tulio confessou: "Agora preciso de outra lição. O que a escrita
humanística tem a ver nessa história?". Eu, mais uma vez, era leigo no
assunto.
"A letra típica do século XIV era· a cursiva minúscula. Nos meados
do século XV predominava a escrita humanistica, como esta: a primeira
linha toda em maiúsculas, a inicial miniata, ou adornada e o g minúsculo

117

quase sempre recurvado em caracol. Esse texto é típico das primeiras dé­
cadas do século. É uma letra usual nos manuscritos novelli e em alguns
recensiores." Tulio aproveitou a chance de aprender mais e, acho, de tes­
tar a competência dela.
"E o que é letra uncial?"
"É apenas uma indicação de tamanho. Equivale a uma polegada. O
grego uncial derivou na escrita merovíngia, por volta do século IX. É a
letra dos vetustissimi, códices em minúscula. Pois havia também a escrita
uncial capital em códices escritos até o século XI. Como você vê, passei
no seu exame, meu caro professor."
Elogiei o brilho dela: "Parabéns, menina. Vou precisar de você quan­
do enfrentar a tradução. E para acertar o feeling do autor, em muitos pon­
tos vou precisar também de você, Tulio".
"Tudo bem. Mas agora traduza isso para nós."
A tradução do prólogo não era difícil. Mas a grandeza do pensa­
mento não se traduzia facilmente. Planctus era um particípio passado e
não um substantivo, ao contrário do que Isabella suspeitara. Tentei uma
primeira versão:

ONDE SE CHOROU A MORTE DE PEDRO ABELARDO LI, dedicada ao CAVA­


LEIRO DA DIALÉTICA (a frase:), para quem tornou-se claro como o sol

todo o (universo do) sabível, por causa de seu conhecimento sobre a


razão humana. Direi o mesmo de Eurípides, o supremo mestre da na­
tureza dos homens, para quem se fez claro como o soL todo o saber so­
bre as paixões humanas, a eLe que, nelas, também procurou tenazmen­
te a verdade, ainda que por outros caminhos, como se fosse um cava­
Leiro da paixão.

"É genial, Emilio. Preciso escrever isso", disse Isabella.

"Você esqueceu de traduzir o L."

"Por enquanto não sei o que significa, Tulio. Mas ainda vou saber.

Não se pode deixar esquecido alguém que em oito linhas diz tanto e de
modo tão bonito. Nem que fosse só por essa idéia de dar a Eurípides o
título de Cavaleiro da Paixão. "
Tulio me ouviu, como se esperasse outras idéias. Coçou a testa e fe­
chou os olhos por alguns segundos. Depois começou a andar de um lado

118

para outro e, por fim, perguntou: "Vocês sabem se esse L foi algum au­
tor proibido, proscrito?".
quê?"
"Porque ele anda em companhias perigosas. Petrus Abaelardus e
Eurípides não são modelos de bom comportamento nem de respeito às
autoridades..."
"Isso eu sei. Mas, por que você presume que ele teria sido um autor
proscrito?"
"Já disse, porque anda em más companhias. Claro que Abelardo e
Eurípides devem ter sido pessoas fascinante·s. Isso, para nós que amamos
a contestação e a crítica. Mas eles falaram para outros ouvintes e escreve­
ram para outros leitores. E pagaram o preço de serem lúcidos e rebeldes
em tempos de cegueira e conformismo. Nós só não vamos para a foguei­
ra ou para o exílio os tempos são outros e alguém lucra com o
nosso trabalho. Mas Eurípides e Abelardo, bem como esse seu amigo L,
viveram noutras épocas... "
"Por isso você supõe que... "
"Tenho certeza, Emilio."
"Como?"
"Simples. As más companhias são apenas um indício. Mas esse livro
não tem qualquer aprovação eclesiástica e o autor esconde seu nome. Isso
tudo, nos meados do século xv, é coisa de excomungado ou de alguém
caído em desgraça perante o poder eclesiástico. Um dogma é sempre o
produto e o sustentáculo de um sistema de poder autoritário. É por isso
que os bispos e príncipes sempre se entenderam. Tanto que o papa é um
monarca. Mas mesmo que não fosse, sempre haveria 'reis católicos' ou
coisa parecida, prontos a desterrar, eliminar ou calar hereges, contesta­
dores, infiéis, em defesa da 'ordem pública e social' ou dos 'bons costu­
mes', sem que o clero precisasse macular suas mãos... "
"Sócrates que o diga", lembrou Isabella.
"E Anaxágoras. E Eurípides que, como Abelardo, Giordano Bruno
e tantos outros, decidiram rationibus veritatem investigare et in omnibus
non opinionem hominum, sed rationis sequi ducatum, como dizia Abelar­
do", acrescentei, surpreso por ter recordado a citação. Eu tinha lido não
sei onde, no fim do colegial, e gostava dessa profissão de antidogmatismo.
Talvez o prólogo do Commentarium me tivesse inspirado. Isabella con­

II9

templava o livro, muito séria. Ela estava emocionada. Eu também. De


novo pensei que Lutercio tinha algo a nos contar, alguma coisa a ser vin­
gada. As palavras de Tulio sobre o sacrifício dos contestadores de outras
eras apontavam nosso vínculo, quase nosso compromisso, com a causa
deles. E então pensei em seus sofrimentos diante da incompreensão, da
mediocridade e da mesquinharia. Talvez até tivessem sofrido, pelo amor
à verdade, o desamor das pessoas. Isabella balançava a cabeça com um
sorriso triste e depois disse: "Eu sinto uma certa ternura por esses ho­
mens, além, é claro, de uma enorme admiração. Fico pensando se as mu­
lheres que eles amaram souberam colher a grandeza desse amor. Talvez
um amor atormentado, contraditório... ".
"Um amor tempestuoso, talvez. É isso que você quer dizer?", per­
guntou Tulio, com uma pitada de ironia.
"Sei lá! Quero dizer que deve ser difícil amar um homem como Eu­
rípides, por exemplo. Eu me sentiria apaixonada e certa de que nem mi­
nhas graças, nem meu afeto bastariam para mantê-lo preso a mim. Que
eu jamais seria um objeto de amor mas apenas uma forma de amor."
"Que em você, ele não amaria uma mulher, mas uma metamorfose
do amor?", sugeriu Tulio.
"Mais ou menos isso. De modo, trocando em miúdo, convi­
ver com um homem assim seria muito excitante, mas inseguro. Haveria
momentos de ternura sublime e momentos de humilhação e vilania..."
"E com os outros mortais não é assim?"
"O que muda é a escala, meu caro. Todos têm altos e baixos, como
as colinas e vales da Toscana. Mas eu penso nos Dolomitas, no Himalaia."
"Tudo isso veio à sua cabeça só por causa do prólogo de nosso ami­
go L?"
"Sem dúvida. Mais que por causa desse estupendo título de
Cavaleiro da Paixão. Aí vai ousadia literária, mas vai também pura pai­
xão de quem escreveu."
Resolvi entrar na conversa: que é que faz alguém se apaixonar,
genuinamente, por uma figura do passado, à distância de séculos?".
"Podemos entrar?" A pergunta era de Anna, que vinha chegando
com Beatrice. .
a entraram.
"Devemos sair?"

120
"Não. Mas não baguncem a conversa porque estamos resolvendo
grandes problemas de psicologia", foi a resposta meio jocosa e meio sé­
ria de Tulio. A conversa era inútil, como todos sabíamos. Mas, pelo jei­
to, Isabella havia tocado em questões importantes para ele.
Isabella virou o jogo: "Anna, você amaria genuinamente, como diz
Emilio, um homem como Eurípides?".
"Amaria, perdidamente. Mas tenho certeza de que eu não lhe bas­
taria..."
"Quanta mo estia...
" ..; porque eu teria milhares de coisas a descobrir e a amar nele. Mas
tenho a impressão de que em meia hora ele esgotaria meu arsenal de atra­
tivos. Seria um investimento a fundo perdido. Como toda paixão que se
preze, aliás."
"E o que te leva a essa paixão por um homem do século V antes de

"É óbvio que essa paixão é por uma imagem dele. Uma imagem que
foi se formando nesses anos todos de leituras sobre ele e seus escritos...
Mas penso que essa não é a hora para contar o que penso dele. "
Resolvi ser gentil com ela. Ela estava sendo sincera e modesta, achei.
E contei que tínhamos tido uma "aula" de Tulio sobre Abelardo, e outra
de Isabella sobre escritas antigas. Agora era a vez dela. "Precisa projetor
de diapositivos?"
"Não, obrigada. Espero ser breve e não ser chata. A imagem que te­
nho de Eurípides é a de um homem muito à frente de seu tempo e, si­
multaneamente, a marca desse tempo. Ele foi a maior estrela do iluminis­
mo grego e tinha tudo para sê-lo. Era filho de Mnesárquides, ateniense
dos Ptolemaides, e de Clito, também de alta linhagem, segundo estudos
recentes. Nasceu, provavelmente, no dia da vitória helênica de Salamina
sobre a frota persa, na própria ilha em que ocorreu a batalha. Qual mu­
lher não se apaixonaria por um homem talentoso e iluminado a quem o
próprio oráculo de Apolo profetizara um futuro de glória e aplausos, um
homem com educação atlética, amigo íntimo de Protágoras, que estuda­
ra física com o grande Anaxágoras e retórica com Pródico, admirado por
Sócrates e por Alcebíades..."
"É verdade que ele foi aluno de Sócrates?", quis saber Beatrice.
"Não. Na verdade, eram amigos e se admiravam mutuamente. O que

121
se sabe é que em assuntos éticos são muito parecidos, tanto que alguns au­
tores acham que Sócrates, embora mais novo, teria ensinado ética a Eu­
rípides. Diógenes Laércio afirma, porém, que foi graças a Eurípides que
Sócrates teve acesso ao que diziam os textos de Heráclito custodiados no
templo de Diana. E isso tem sentido porque, segundo Diodorus Siculus,
Eurípides visitava o templo assiduamente, para ler Heráclito. Tanto, que
sabia os textos de memória..."
"Uma educação esmerada, uma inteligência excepcional, um alto sen­
so crítico: a receita completa para o sucesso e para a infelicidade", concluiu
Tulio com um sorriso estranho, como se pedisse para ser desmentido.
Mas Anna confirmou: "É por isso que eu disse que ele estava à frente
de seu tempo. Quem poderia, além dele, reunir tantas condições para bri­
lhar e para enxergar os erros, a injustiça, a hipocrisia dos costumes, os
embustes da religião, a mesquinhez dos sucessos fáceis ou do discurso de­
magógico? Você acertou, Tulio. Ele tinha tudo para brilhar e para ser
odiado, invejado, incompreendido...".
"E proscrito", acrescentou Isabella.
"Claro", concordou Anna. "Mas antes de afastar-se ele marcou seu
século e a nossa cultura para sempre. De fato, nenhum de seus mestres tão
ilustres reunia à sabedoria e à elevação ética tanta criatividade, tanta sen­
sibilidade e, mais que isso, tanto respeito e interesse pelas paixões dos
homens. Resumindo, ele juntava ao saber a sabedoria e, à sabedoria, a pai­
xão. Qual mulher pode não amar um homem assim?"
Os olhos dela tinham um brilho intenso e havia em suas mãos e nos
lábios uma tensão contida, quase um tremor. Anna estava realmente vi­
vendo cada palavra que dizia. Ela amava, de fato, Eurípides e conhecia
muito bem esse homem irresistível, fadado a brilhar e sofrer. Esse filósofo
cuja riqueza de pensamento e cuja penetrante sensibilidade não cabiam na
forma árida dos tratados ou mesmo dos diálogos. Ele precisava da poe­
sia. E talvez a poesia precisasse dele. Eu via Anna apaixonada por esse
homem e não sentia qualquer sombra de ciúme. Eu estava gostando do
amor dela por Eurípides. Era uma sensação estranha. Uma pergunta de
Tulio me distraiu.
"Anna, como é a história do filósofo trágico?"
"É erro de um historiador do século XVI que traduziu com excessi­
va liberdade um epíteto dado a Eurípides por Clemente de Alexandria,

122
Skenés Philósophos que, literalmente, quer dizer Filósofo do Teatro, da
Cena. De fato, ele era um filósofo, ligado ao grupo dos sofistas, era um
dos Sophoi. E o próprio Apolo de Delfos, consultado sobre a Sophias de
Eurípides, comparada à de Sófocles, respondeu que, se este era um sábio,
Eurípides era muito mais: Sophóteros Eurípides. Esse é o Eurípides que
eu amo."
"Só por isso?", disse Tulio sorrindo.
"Há mais motivos. O charme dele não pára aí. Foi admirado pelo
próprio Sófocles, e pelos poetas da corte de Augusto, por Horácio e Vir­
gilio. Foi o grande conselheiro de Arquelau da Macedonia. Aristóteles
chamou-o 'o maior dos poetas trágicos', para desgosto do fã-clube de
Sófocles e dos adeptos do humor fácil de Aristófanes. Após a derrota ate­
niense na Sicília, é fato histórico, muitos soldados escaparam da morte
porque sabiam declamar ou cantar versos de Eurípides, tal era o gosto dos
vencedores pela poesia do mais trágico dos trágicos. Sabem quem foi um
dos bons tradutores de Eurípides? Erasmo de Rotterdam! Mais dois fãs:
Cícero, o grande Cícero, preparou-se para a morte lendo os versos de
Eurípides. E Goethe se perguntou se é possível que algum dia, em algum
país, surja outro poeta grande como Eurípides."
Beatrice então não respeitou a situação minha e de Tulio diante da
concorrência: "Já não se fazem homens como naqueles tempos". Não sei
o que Tulio sentia, mas eu estava humilhado, oprimido. Mais uma vez a
malícia feminina me paralisava. Quase beijei Anna quando ela respondeu
mansamente: "Mas eu descrevi a imagem do Eurípides que eu amo. Não
era isso o que vocês queriam?".
Isabella aproveitou a deixa: "Nessa imagem, qual o traço que, para
você, define Eurípides? Numa palavra".
Anna pensou, não mais que um segundo, e respondeu quase com
pudor: "Paixão".
Eu, então, me achei pequeno. Tulio quis saber mais: "Existe alguma
verdadeira paixão que não seja por uma imagem, Anna?".
Ela percebeu a armadilha: "Agora você quer saber sobre mim e não
sobre Eurípides".
"Pergunto em tese."
"Respondo em tese. Não. A paixão acontece apesar dos fatos. Um
homem como Eurípides tinha tudo para ser angustiado, contraditório,

12 3
instável e volúvel. Tudo isso a paixão ignora, não vê. Deve ter sido um ho­
mem difícil de entender, nas suas reações aos eventos banais ou impor­
tantes do quotidiano. Um amante complicado, talvez intolerante, talvez
egoísta. Seguramente altivo e exigente e, salvo em momentos raros, dis­
tante, inacessível, no íntimo de seus sentimentos e mesmo de suas idéias
maIS. caras... "
"Dizem que uma mulher verdadeiramente apaixonada é uma espé­
cie de camicase. É verdade?", perguntou Tulio.
"Ou, que o amor é cego", ajuntei eu.
"Não há paixão sem um pouco de cegueira, de insensatez, sem...
sonho."
"E então como fica o nosso Eurípides?"
"Adorável, maravilhoso. E, talvez, mais adorável por ser contraditó­
rio, inquieto, intolerante, até amargo."
"As mulheres de Atenas talvez pensassem de outro modo."
Beatrice arrematou a conversa: "Azar delas. Anna, dê uma olhada
nesse trecho do nosso Commentanum. Se você acha que a marca de Eurí­
pides, como homem, é a paixão, você tem um concorrente respeitável".
Anna contemplou enternecida o prólogo de Lutercio. emocionante."
Deu-me um olhar quase suplicante: "Não consigo ler isso",
Enquanto eu traduzia, ela cruzou os dedos, muito tensa, e, quando
concluí com o "Cavaleiro da Paixão", agarrou-se com força ao meu bra­
ço. "Que lindo! Isso é comovente. Quem escreveu isso entendeu Eurí­
pides. E além disso, amou-o. Quem é, Emilio?"
"É o que pretendemos descobrir. Por enquanto, chama-se Lutercio
ou L."
"Se isso é do século xv, é uma preciosidade. É o século das primei­
ras edições pnnceps de Eurípides. Como esse L parece entender do as­
sunto, é fundamental saber que obras ele teria consultado. Depois de 1503
há várias edições das tragédias, mas tudo gira em torno da edição de AI­
do Manucio. Ele editou, em grego, dezoito tragédias. Esse Lutercio, se
escreveu antes da edição de Manucio, pode apontar fontes até hoje des­
conhecidas. Principalmente porque, nos séculos XIV e XV, qualquer tex­
to crítico sobre Eurípides era praticamente impossível, dadas as difi­
culdades de reprodução dos textos. Vocês têm alguma data segura de
referência? "

124
Isabella adiantou-se: "Este livro foi escrito nas primeiras décadas do
quattrocento. Tenho quase certeza. Há outra coisa, que não sei se ajuda:
Lorenzo acha que os afrescos da capela são de algum discípulo de Ma­
solino ou até do próprio mestre 'de Florentia'. Como se sabe, ele pintou
os afrescos de Castiglione Olona em 1432 e o batistério do cardeal Bran­
da em 1435. Mas ninguém garante que Masolino aproveitou essa via­
gem ao norte para decorar a villa do nosso Lutercio. É apenas mais uma
indicação".
Beatrice apoiou: "É mesmo. Lorenzo diz que há uns amarelos carac­
terísticos da escola de Masolino, além da enorme semelhança entre a Ma­
donna daquela Natività da capela e a Annunziata de Castiglione. Tam­
bém aquelas patas do carneiro vistas em transparência na água do regato
lembram o Batismo de Castiglione. São indicações, como diz Isabella.
Mas seguramente são aspectos típicos dos afrescos do norte no começo
do quattrocento. Isso, segundo Lorenzo".
"Mas isso ajuda a datar a villa, não o livro", arrisquei.
"O livro é da mesma época, primeiras décadas do quattrocento, co­
mo mostra o tipo de escrita e como acabei de dizer." Isabella me olhou
quase irritada.
"Então falta ligar essa tal villa ao livro e ambos a L." Tulio falava
mais para si mesmo, mas queria ser ouvido. "Porém já sabemos que este
livro retrata a opinião de um homem do século xv sobre Eurípides. Isso
não lhes basta? Tudo indica que não. Logo, o que vocês querem é iden­
tificar esse L. Está bem. Por quê? Porque, segundo o que me disse Bru­
no, vocês enfiaram na cabeça que ele construiu a tal villa, colecionava li­
vros, tinha provavelmente contatos com livreiros, escreveu esse Com­
mentarium e sumiu do mapa, por ter caído em desgraça, sabe-se lá por
quê. É isso?"
"E porque nós estamos apaixonados por esse L que, tudo indica, te­
ria sido, além de tudo, um bispo contestador, ou mesmo herético." An­
na nem percebeu que tinha assumido como sua a paixão nossa pela figu­
ra de Lutercio.
Tulio franziu a testa, resignado. Anna notou o gesto: "O que há,
Tulio?".
"Nada. O que eu teria a dizer é meio sem graça. Não quero estra­
gar a festa... Quando vocês falam desse Lutercio eu vejo nele uma ree­
dição de Abelardo e de Eurípides, até documentada nesse texto aí. É o
mesmo apego à verdade, a mesma defesa da liberdade intelectual e a mes­
ma passionalidade. Quando Lutercio escreve isso, ele demonstra sua pai­
xão por seus inspiradores. Mas revela também o ideal que o atrai. Mostra
a imagem ideal de si mesmo. Vocês estão fazendo o mesmo. Anna disse
que sua paixão é pela imagem de Eurípides, mas quando ela o idealiza ela
se identifica com ele. E nisso ela projeta a imagem desejada de si mesma.
Assim, cada um de nós se apaixona por alguém que espelha o que gosta­
ria de ser. E vocês, gostosamente, se identificam com esse tal Lutercio..."
"Isso é um elogio."
"·Pode até ser. Só que eu falei em imagem desejada de si mesmo",
respondeu ele rindo. E prosseguiu: "Acontece que Lutercio tem outra
qualidade em comum com seus dois modelos mais antigos. Ele, Abelardo
e Eurípides são grandes sedutores".
Eu senti uma onda fria nas vértebras. Como deve sentir uma lebre
ao latido dos cães de caça. Tulio prosseguiu implacável. "Vocês foram
seduzidos. Isso começa como um desafio gratuito e depois vira uma pro­
cura obsessiva. Como acontece com amantes apaixonados. Vocês dois
não vão ter paz enquanto..."
Eu gelei. Não só as mulheres, mas até ele podia ler meus pensamen­
tos mais secretos. Achei que ele teria a fineza de não mencionar meus sen­
timentos por Anna. Mas esperei o golpe.
" ... não penetrarem na alma desse bispo vermelho. É a sedução dele
que fascinou vocês. É claro que eu também estou encantado por esse fan­
tasma genial. Mas conheço o custo dessas paixões. Por isso, prefiro tocar
minhas velhas pesquisas. Se puder dar algum palpite, contem comigo.
Esse Commentanum é uma jóia raríssima, mas está fora do meu projeto.
Acho que é um grande achado para os estudos de Anna e talvez para o
projeto de Emilio, se Dom Lutercio tratar de Orestes, Medéia, Fedra e
outros malucos famosos. Conselhos agora adiantam. Vocês foram
aprisionados pela sedução de Lutercio. "
Beatrice, que acompanhava tudo com olhos marotos, fechou o cer­
co: "Talvez porque, segundo a teoria de Tulio, vocês gostem de seduzir.
Cuidado, Anna!".
"Cuidado, Emilio!", rebateu Tulio já fora da sala, antes de uma gar­
galhada.

126
Eu queria ver a reação de Anna. Mas nem tentei olhar para ela. O
gelo das vértebras tinha sumido. Agora meu rosto estava em brasa. Mal­
ditos reflexos! . .

127
Capítulo 6

o Commentarium

Apesar das cautelas de Tulio, comecei a tradução ainda naquela


manhã. Era um prazer voltar ao velho latim dos anos juvenis. Ao conví­
vio privilegiado e elegante de Cícero, Virgilio, Horácio, Ovidio, Sêneca.
Fazia tempo que não me empenhava em alguma tradução de maior fô­
lego. Precisava desenferrujar gerúndios, gerundivos e, sobretudo, meus
verbos irregulares. Mas era questão de warming up, como diziam os
behavioristas.
Eu sabia que, ao fim, chegaria a uma tradução decente. Confiava na
. formação recebida no "Carducci" e no meu entusiasmo diante da em­
preitada. Havia motivos. Eu era o primeiro leitor, em vários séculos, de
um texto absolutamente inédito, único e, mais que tudo, obra de um au­
tor genial, cujo nome era um mistério e que me fascinava. Mais ainda, o
texto versava sobre Eurípides, que sempre considerei uma das maiores
figuras do gênero humano. Além disso, havia Arma. Dependendo do meu
latim, torcendo por meu sucesso, obrigada a reconhecer alguma qualida­
de em mim. O Commentarium criava uma gostosa intimidade que me li­
gava a Eurípides e a Trabalhar na tradução era como contemplar os
vitrais de alabastro da biblioteca ao lado dela. O deve ter
alguma dimensão erótica.
Eu estava curioso pelas idéias de L, que podia ser Lutecio ou Lu­
tereio, sobre Eurípides. Talvez, mais interessado em achar, antes dos ou­
tros, alguma pista, uma data, uma alusão a qualquer episódio histórico.
Qualquer indício que permitisse identificar o nosso misterioso"sedutor".
Achei alguma coisa já na segunda página. Pouca coisa. Lutercio ex­
plicava que o Commentarium se destinava a leitores dedicados aos nostra

12 9
studia. A expressão era, depois de Francesco Petrarca, uma alusão aos es­
tudos dos clássicos latinos e gregos. Era como uma senha entre os adep­
tos da eloquentia, por oposição à dialética e à metafísica. Quase um lema
dos arautos de um novo saber, numa cultura cansada de buscar o verda­
deiro e o correto e que ensaiava a busca e o cultivo do belo. O amor à
polêmica, ao silogismo começava a ceder ao gosto da cor, das formas, da
poesia, da prosa, da oratória e do teatro. E os exemplares mais puros de
toda essa beleza eram as relíquias das épocas pagãs. N ostra studia era uma
expressão heterodoxa e libertária. Indicava que o livro era, provavelmen­
te, posterior à polêmica entre Salutati e um obscurantista tão dominica­
no que se chamava Dominici. Pregava a proibição das traduções dos clás­
sicos gregos e latinos porque eram a semente de uma nova cultura pagã.
Nisso, ele não estava muito errado, convenhamos. Se a primeira tradução
italiana de um texto grego surgiu em 1403 ou pouco antes, como se sabe,
o velho Dominici deve ter iniciado sua cruzada alguns anos depois, quan­
do Salutati resolveu defender a difusão das obras antigas. E então, Lu­
tercio teria escrito o Commentarium ao redor de 1410. Eu achei brilhan­
te essa descoberta. Quando contei a Isabella, o comentário dela não foi
muito efusivo:
"Óbvio. Basta ver o tipo de escrita. É das primeiras décadas do sé­
culo."
"Sim, mas posterior a 1403."
"Se isso é importante para você, concordo. Mas a expressão nostra
studia pode ter entrado no texto sem qualquer significado especial... Afi­
nal, quem sabe latim é você. "
Resolvi avançar na tradução e adiar minha carreira de detetive. Tra­
balhei duro até as duas da tarde, quando Beatrice me convidou para um
lanche em Sant'Ilario. Era uma típica osteria, com os costumeiros devo­
tos do baralho e uma relampejante juke-box. Beatrice enfiou a moeda de
cinqüenta liras e escolheu, como de costume, F-4. Era Sergio Endrigo:
gente che ama mille cose... Ela adorava essa canção. Eu também gostava,
mas tinha fome. Ali serviam um delicioso speck com pão preto e mantei­
ga caseira. Tinham uma mostarda escura deliciosa e um honestíssimo Bar­
dolino. Outra preciosidade era o presunto de javali, cortado em fatias
finíssimas, acompanhado de pão de banha. Havia também a tentação de
um queijo fontina de Brusson. Enquanto devorávamos o speck, Beatrice

13 0
me contou que ela, Isabella e Lorenzo tinham falado a Lanebbia sobre a
villa de Dom Attílio. Tinham antes feito a entrega oficial do Virgílio à
biblioteca do Galilei e Lanebbia se entusiasmara com a perspectiva de
enriquecê-la com novos tesouros. Lorenzo tinha aproveitado a oportu­
nidade para falar da villa e dos apertos de Dom Attilio. Isabella, ao en­
tregar o livro, disse ter ouvido que alguns políticos pretendiam fazer do
casarão uma "Casa do Escritor" ou coisa parecida. Era pura invenção
dela, mas bastava para enciumar Lanebbia e colocá-lo em campo. Sem
mais rodeios ele perguntou a Lorenzo quem era o prefeito do lugar e qual
o partido dele.
"Quer dizer, Beatrice, que vamos enfrentar aquele alçapão mais ce­
do do que se esperava, não?"
"Fico louca de raiva quando penso naquele maldito buraco do piso
que me entortou o pé. Pelo menos, eu devia ter observado os movimen­
tos que fiz naqueles medalhões. Mas quem ia pensar que eles podiam
destrancar o alçapão? Se pelo menos você estivesse olhando o que eu fa­
zia poderíamos agora reconstruir a seqüência. Mas a culpa foi minha,
nao.
Eu não podia contar que a culpada era aquela blusa azul colada aos
seios dela, a dois palmos dos meus olhos, enquanto ela tentava ajustar os
medalhões do baldaquim. Que o culpado era eu. Ou, menos precisa­
mente, a "natureza das coisas". Ela poderia até sentir-se lisonjeada se eu
contasse. Ou não? Mudei de assunto.
"Quem ficou com o desenho dos medalhões?"
"Isabella. Bruno esteve na nossa sala para dar uma olhada nele, hoje
cedo. Fez alguns esboços de engrenagens e saiu com um olhar maluco di­
zendo que ia consultar um restaurador de móveis antigos. Ele tem pres­
sa de descobrir algum jeito de abrir o alçapão, até a próxima semana. Quer
voltar à villa no sábado, se der."
"Tomara que ele ache algum truque. Eu não tenho jeito, nem tem­
po para isso. E quero progredir na tradução do Commentarium. Acho
que ela vai atrasar minha pesquisa, mas eu me conheço: não vou conse­
guir fazer coisa alguma enquanto não souber quem é esse nosso bispo in­
conformista. Começarei descobrindo o que ele pensa. É um passo."
"Lorenzo acha que o retrato do bispo na biblioteca da villa pode
revelar muito sobre ele. Também quer voltar lá na próxima semana."

13 1
"Vamos cercar o problema por todos os lados. Qualquer pista pode
. "
servIr.
"Se não para identificar Lutercio, pelo menos para você se divertir."
"E você não?"
"É um assunto muito distante do meu trabalho. A menos que encon­
trássemos algum texto de fisiologia naquela bendita tribuna. ,.
"Se não acharmos, eu te dou um 'Ramón y Cajal', novinho em fo­
lha, com capa plastificada. ,.
Adoro a tua sutileza."
"Vou pedir mais um speck. Você quer?"
"Não. Vou pagar a conta. ,.
"Então pede um café e aperta o B-2."
Beatrice pagou a despesa no balcão e acionou a juke-box. Enquanto
Giorgio Gaber mastigava as sílabas de Soltanto per giocco, eu mastiguei
o meu speck e saímos.
No Galilei, um café da garrafa térmica de Luciana, que estava mui­
to atraente num vestido branco esvoaçante. Luciana, bem entendido. A
garrafa era meio gorda e sem graça como todas as garrafas térmicas. Ima­
ginei por um instante como seria uma garrafa térmica escolhida por An­
na. Seria pequena, esbelta, com flores vermelhas sobre fundo dourado ou
branco. Foi o que me passou pela cabeça enquanto meus olhos passea­
vam distraídos e felizes pelas curvas graciosas de Luciana.
"Como vai a tradução?", perguntou ela, como se perguntasse as ho­
ras a quem está roubando frutas.
"Vai indo." Que mais eu poderia dizer?
Se eu traduzisse umas duas ou três páginas teria um: motivo convin­
cente para convidar Anna para discutir a tradução em algum barzinho na
entrada de Milão. Tranquei-me na sala e comecei na terceira página. Iní­
cio de um capítulo. De falsis in Euripidem. Por volta das seis eu tinha al-.
gumas páginas densas em primeira redação:

"Falsidades sobre Eurípides. Os grandes homens, aqueles que são


maiores que as idéias de seu tempo, são quase sempre malcompreendidos
pelos seus contemporâneos. A simpleS grandeza de seus feitos ou suas
idéias já basta para dividir as opiniões, mesmo que eles não tenham criti­
cado as crenças e costumes de seu tempo. Os que os amam contam suas

13 2
virtudes, os outros os acusam, se não de cometer delitos, de serem peri­
gosos. E de fato alguns homens foram perigosos. Mas, curiosamente, o
que os admiradores vêem como sinal de esperança ou promessa de bem,
os outros, principalmente os que não conseguem entender suas idéias,
vêem como prenúncio de males ou perigo para o povo e a cidade. Ou,
pelo menos, como ameaça às formas costumeiras de viver e de julgar.
Quando um grande homem, além de sua grandeza, oferece aos que o cer­
cam as suas críticas, muitos começam não só a procurar razões para de­
sautorizar (lacere nihili) sua palavra, mas também a procurar vícios ou
erros que o tornem pelo menos igualmente condenável. E se esse homem,
por amor à verdade e ao que é justo, muda seu julgamento, seguindo
honestamente a sua razão, ele pode parecer contraditório (signifer con­
tradietionis), mas é a vida que é contraditória. Eurípides foi tudo isso: bri­
lhante nas idéias, crítico e honesto em seu pensamento, pronto a mudá­
lo quando a verdade assim exigiu. Desse modo, atraiu a hostilidade dos
menos brilhantes, dos pusilânimes e dos prepotentes da força ou da pa­
lavra. Porque seu pensamento era maior que o de seu tempo, porque pro­
curou apontar o erro e a mentira, porque fugiu da adulação aos podero­
sos e das idéias que a eles convinham, foi incompreendido, caluniado,
hostilizado. Ele percebeu a iminente decadência da polis. Mas não como
um Jeremias, encerrado na dor e no lamento. Ele era um digno represen­
tante da força moral e da grandeza de espírito de homens superiores, co­
mo o grande Anaxágoras, Protágoras e Sócrates. Como eles, Eurípides foi
fiel à verdade e à inteligência. E foi, por isso, vítima de falsidades, que a
alguns interessa que não sejam discutidas. É mais fácil acusar alguém de
heresia do que meditar com humildade as próprias crenças e procurar
quanto há de temor na conservação delas e quanto existe de honesta pro­
cura da verdade. E quando se condena alguém por divergir da crença de
quem julga, cabe perguntar quanto a condenação tem de amor à verdade
e quanto carrega de amor ao poder de julgar ou de defesa da própria glória
e autoridade.
"Eurípides incomodava aos que se entrincheiravam atrás das velhas
crenças por medo de enxergar o novo homem que estava nascendo das
ruínas da polis. Um homem que pergunta, que discute a moral, os deu­
ses, as explicações tradicionais, o mito. Um homem que percebe sua dis­
tância da perfeição divina, reconhece e vive suas paixões e enxerga a fra­

133

queza de suas decisões ante a força do desejo. Despojado da solenidade


autocontrolada (sollemniter verecundus) que lhe dera Sófocles e da ele­
vação hierática que recebera de Ésquilo, o homem de Eurípides ama, te­
me, sofre, engana, morre por suas crenças, luta por seus desejos, inveja e
mata, invoca os deuses que nega. A essência desse novo homem, que de­
verá reconstruir a ética, e projetar uma sociedade de homens, não de fi­
lhos de deuses, é a contradição (natura esse novo homini discrepantia). Ele
escreveu para uma humanidade que estava nascendo e, talvez por isso,
provocou o ódio e o ressentimento dos que temiam a crise das velhas ver­
dades, a denúncia de uma concepção hipócrita da natureza humana e das
normas moraIS.
"Um autor que desnudasse a irracionalidade do homem (ratione ca­
rentem hominem), por trás do sonho desesperado (desperatae de vita ra­
tionabile cogitationis) de uma racionalidade capaz de afastar o arrependi­
mento, a dúvida e a impotência diante do eterno e da paixão, seria ama­
do por poucos. Apenas dos que fossem donos dessa mesma coragem mo­
ral. Não só, mas de igual agudeza intelectual e sensibilidade para entender
a paixão (sensus captus affectuum). Eis por que Eurípides mereceu o tí­
tulo de Cavaleiro da Paixão. Ele viveu todos os problemas de seu tempo,
com mente aberta e uma curiosidade insaciável pela grandeza frágil da
alma humana, para além dos discursos e das hierarquias sociais. Acima das
diferenças entre escravos e senhores, reis e mendigos, homens e mulhe­
res. Ele sabia, como poucos, os engodos do discurso e a precariedade das
normas, preocupado mais com a significação dos afetos (affectuum sen­
tentia) do que com a importância dos cargos e dos feitos políticos ou mi­
litares. Foi um homem apaixonado pelas paixões, talvez até mais do que
pelas pessoas, uma vez que despojadas da paixão perdiam para ele qual­
quer fascínio. Por isso, soube, como ninguém, retratar toda a riqueza e o
poder gerador e mortífero da paixão. A paixão que faz os heróis, os már­
tires, os tiranos, os homicidas e que está por trás da religiosidade, do amor
à pátria, da devoção ao cônjuge, da rigidez moral e da moralidade (pieta­
tem erga Deum atque morum praecepta). Eurípides enxergou, além dos
discursos e dos atos, a verpadeira natureza dos homens. Para ele a nor­
ma social ou moral é apenas um frágil a conter torrentes de desejo,
de ódio ou de inveja.
"E foi essa força das paixões que fez de seus personagens verdadei­

134
ras ameaças aos que encontravam segurança no mito, na tradição ou nas
normas morais. A tragédia, além de mostrar os dilemas dos heróis, pas­
sou a expor as dúvidas, as contradições e as incoerências dos homens. Os
personagens passaram a provocar controvérsia e ressentimento. Se ao po­
vo de Atenas eles agradavam como retratos extremos da humanidade, a
alguns mais eminentes pareciam um perigo para a moralidade estabele­
cida, que Sófocles deixava intocada, e para a religiosidade, que Ésquilo
enaltecera.
"Entre os descontentes, o mais virulento foi, sem dúvida, Aristó­
fanes. A liberdade do pensamento e a criatividade dramática (mentis li­
bertas ac efficiendi facultas) de Eurípides eram inaceitáveis para um poe­
ta ávido de glória, devotado ao passado e resistente a qualquer contesta­
ção das crenças e gostos tradicionais da sociedade ateniense. Não poden­
do demolir a obra tentou destruir o autor. Mesmo que para isso devesse
recorrer ao insulto, à exploração de infortúnios pessoais, à interpretação
tendenciosa, à acusação falsa, à distorção de opiniões e de palavras, à ex­
ploração demagógica do gosto popular, à irrisão. No seu esforço indig­
no de denegrir a obra e a memória de Eurípides faltou a Aristófanes um
mínimo de grandeza de ânimo. Uma elevação de sentimentos e de pen­
samento que Sófocles, o grande rival de Eurípides, soube manter. Das
acusações que Aristófanes propagou, três foram especialmente indignas:
a de misoginia, a de impiedade e a de promover a decadência dos costu­
mes e do gosto literário.
"Quanto à acusação de misoginia, basta lembrar a nobreza e eleva­
ção moral que adorna muitas das figuras femininas de Eurípides, como
-Helena, Alceste, Polixena e Laodaméia. Na verdade, a mulher que Eurí­
pides retrata, e que o fascina, é diversa da que Aristófanes conhece, mera
seguidora de normas e destinos, estrangeira no mundo da paixão, inerte
no intelecto. Simples cumpridora de destinos.
"A mulher, de certo modo, assume na tragédia de Eurípides o lugar
dos antigos heróis (init veteris herois quoniam eventa hominum...), por­
que a grande aventura humana já não consiste no desafio ao destino ou
aos deuses, ou no morrer por sua pátria... "

Interrompi a tradução. Alguém estava batendo em minha porta. Era


Isabella, meio esbaforida.

135
Anna quer ficar com o 'Hipólito' por uns tempos. Você precisa
dele?"
"Não. Mas por que essa afobação?"
"Nada. Ela deu uma olhada nele e achou uma anotação meio estra­
nha, talvez um escólio. Menciona um tal Brunus."
"Ah, vocês o tiraram daqui? Eu nem percebi. Pelo amor de Deus, só
o abram em cima de alguma mesa. E se acharem alguma coisa entre as
páginas, alguma marca, ou retalho de papel, não o retirem, nem só para
ler o que Se não, podemos perder informações importantes."
"Professor, eu mexo com antifonários manuscritos! Esqueceu is­
soo
"Desculpe. É puro ciúme."
"Do livro?" O sorriso que ela me deu era uma combinação perfeita
de malícia e ingenuidade. Mais ou menos como um bombom recheado
de cianureto. Eu me achei infantil. E ela, não sei se por generosidade ou
por sadismo, manteve o sorriso e acrescentou: "No seu caso eu também
teria ciúmes". Depois, como se tivesse falado sobre a cor das paredes, pe­
gou meu rascunho. "Posso dar uma olhada nessa tradução?"
"Ainda não peguei o jeito. Depois de algumas páginas, dá para ser
menos literal. Preciso traduzir ao pé da letra, mesmo empregando formas
atuais de expressão." Ela folheou a tradução enquanto eu tentava conti­
nuar meu trabalho. Mas ela interrompeu, de novo.
"Esse homem é genial, não?"
"Sei lá. Cuidei de cada frase em separado. Só depois é que leio o que
escrevi na primeira versão. Ainda não li o que saiu. "
"Parece haver algo de autobiográfico nessas linhas. Tanta veemên­
cia na defesa da liberdade de pensamento e na crítica à moralidade hipó­
crita, a meu ver, mostra que esse Lutercio deve ter sofrido um bocado.
Mas há umas coisas intrigantes, nessas páginas..."
"O tom feminista?"
"Também. Mas eu penso nessa alusão à leviandade nas acusações de
heresia, na idéia de que tanto o mártir como o homicida são movidos pela
paixão, ou a insinuação de que a racionalidade é produto do sonho de
uma vida sem arrependimento e impotência... "
"E daí?"

"É tudo muito moderno."

"Ele estava à frente de seu tempo, como diz Anna. Era um ilumi­
nista. Nada menos, minha cara."
"Quem? Eurípides?"
"Claro."
"Mas nós estamos falando do Commentarium."
"Céus, identifiquei Lutercio a Eurípides..."
"Ele é que se identificou", disse ela.
"De todo modo, ele tem idéias avançadas, concordo."
" Avançadas e reveladoras. Afinal, você quer descobrir quem ele é,
através do que ele diz, não é?"
"Com esse método, corro o risco de acabar achando Pascal, Nietz­
sche ou até Freud, minha querida... "
"Mas você já conseguiu alguns traços do homem que procura. Quem
foi essa Laodaméia? Eu nunca ouvi esse nome."
"Nem eu. Melhor perguntar a Anna."
"Meu latim não vai muito além do ora pro nobis, Emílio. Mas acho
que o pensamento de Lutercio é tão moderno que o vocabulário dele pa­
rece não bastar."
"Você está vendo o meu vocabulário, Isabella."
"Mas, se a tradução sua é literal, como você diz, parece que faltam
ao nosso amigo alguns adjetivos. Por exemplo, Aristófanes pode ser cha­
mado, sem tantos floreios, de reacionário, oportunista, arrivista, tradi­
cionalista. E Eurípides pode ser apresentado como inconformista, revo­
lucionário, libertário, inovador, progressista, laico, desmistificador, desi­
ludido, introvertido, anarquista, sei lá o que mais. Para não trair o texto
você acaba traindo o pensamento de Lutercio. Se ele estivesse falando
para nós usaria os termos que expressam hoje o que então se dizia de
outro modo. "
"Sim, minha cara. Mas o risco de distorcer o pensamento começa
pela escolha das palavras. De todo modo, na medida em que vou enten­
dendo o que Lutercio pensa, passo a pensar as mesmas coisas, com pala­
vras nossas. Mas isso deve resultar do meu pensamento e não do meu vo­
cabulário. Claro?"
"Faz sentido. Ficarei esperando'que você e ele se entendam... "
"Mais algumas páginas e você já notará mudanças."
"Mas não mude muito. Está ótimo o que você fez. Eu nunca tradu­

137
zi nada do latim. Talvez esteja querendo que Lutercio diga as coisas que
eu penso... "
"Voilà!"
"Posso levar essas páginas para Anna?"
"Mas antes de saírem, devolvam tudo. O 'Hipólito' e a minha tra­
dução."
Voltei ao texto.

... mas na impossível fuga da condição humana. A inevitável mar­


ca do humano: a contradição, a irremediável convivência entre a grande­
za e a fragilidade, entre a abnegação e a mesquinhez, a coragem e a covar­
dia. Entre o projeto e o acidente. Entre o conhecer e o poder. A sabedo­
ria e a paixão. Eis a grande e sublime tragédia humana.
"Essa condição conflítiva explode com toda sua força (anceps fortu­
na magnopere erumpit) nas grandes figuras femininas de Eurípides. É
através delas que o grande trágico expressa o que a visão superficial de
Aristófanes não podia ou não queria enxergar: o crepúsculo da polis, que
se desenhava no horizonte, quando os velhos ideais já não resistiam e,
pouco a pouco, germinavam, penosamente, tendências irracionalistas na
cultura átÍca (adversus rationalem directionem intelligentiae mundi ac
morium). É natural que, quando o ideal tradicional de homem desmoro­
nava, o olhar agudo de Eurípides procurasse na mulher, confinada a uma
condição subalterna, pela moral e pelos costumes, a expressão mais pura
da crise entre o nomos e o pathos, já que ela não tinha por que sentir-se
desorientada pela decadência de um modo de vida no qual o seu papel era
o da submissão. E aparecia, na crise, como a forma acabada da condição
humana real, com seus direitos, entre eles o direito febril à paixão (aes­
tuans facultas amandi). Mas a mulher que Aristófanes defende não tem
direito à paixão. E misógino seria então Eurípides? Seria porque Fedra se
mata de ciúme? Porque Medéia assassina seus filhos por vingança? Ou
seria misógino porque Alceste caminha para a morte em lugar de seu ama­
do? Ou porque, como ela, Ifigênia marcha para o sacrifício para não per­
der o amor de Aquiles e por desejo de glória? Ou porque Polixena se dis­
põe a morrer por uma questão de honra?
fale por nós o grande Sófocles que, perguntado se achava que
Eurípides hostilizava as mulheres, respondeu: 'Sim, em algumas tragédias,
mas fora delas ele é afetuosíssimo com elas' (ln tragoediis quidem, at in
cubili esse illarum amantissimum), como refere Ateneu, livro XIII, p. 557.
Stobeu, no Sermone de intemperantia, refere a mesma coisa. E se o mes­
mo Aulus Gellius (que nos informa que em certo tempo Eurípides, con­
forme a legislação ateniense, convivia com duas mulheres) no seu livro xv
insinua que o grande trágico pouco as amava na vida real, a notícia de
Areteu mostra que Sófocles considerava Eurípides um ardente amante.
Também segundo Suidas, Nicodemos de Aretusa teria motivos para sus­
peitar das relações efusivas entre sua esposa e o grande poeta da Medéia,
até mesmo na noite em que Eurípides deixou este mundo.
"No seu ímpeto de difamar Eurípides, Aristófanes não percebe que
sua Thesmophoriazusis está repleta de insultos às mulheres, jamais escri­
tos por Eurípides. Só nessa comédia ele insulta as mulheres mais vezes
que Eurípides em todas as suas tragédias. E se recorde que nelas, esses
insultos são falas de personagens desesperados. Assim, acusando Eurí­
pides, Aristófanes o absolve; e querendo agradar e defender as mulheres
ele as ofende mais que ninguém (atque ita Euripidem accusando absolvit,
mulieres autem excusando laudandoque maxime denigrat).
"Embora Aristóteles tenha escrito que Eurípides representa os ho­
mens como na verdade eles são, essa frase é de Sófocles e com ela, tam­
bém ele, em poucas palavras ofende a mulher. Mais que toda a obra de
Eurípides: a frase de Sófocles diz: 'Eu represento as mulheres como eras
deveriam ser, mas Eurípides as mostra como realmente elas são'. Ora, se
em algumas tragédias deste a mulher é pérfida e enganadora, Sófocles afir­
ma que as mulheres são realmente assim. No capítulo xxv da Poética,
Aristóteles encobre a frase misógina de Sófocles, ao escrever a sua: 'Autós
efé poiêin...'."

Não consegui ler as demais palavras da frase grega da Poética. Se a


escrita manuscrita latina já não era fácil, imagine-se a grega, em letra hu­
manistica, como nos ensinara Isabella. Ainda bem que não era a escrita
merovíngia que, li não sei onde, é praticamente indecifrável.
No parágrafo seguinte, estranhei algumas coisas. O texto era: Quan­
quam idem cum res ferret haud minus honorificis foeminas testimoniis
ornaverit, plurimas Heroinas ob virtutem eximias fabulis suis populo
exibendo ut ostendimus plus semel, ut in Troad. verso 651, Menalip. verso

139

54 et Protesilaus, verso 5 etc, mansit tamem affixum Poaetae vocabulum,


quia plus mordent paucae offensiunculae, quam multa beneficia. A tra­
dução poderia ser: "Embora, na verdade, ele tenha enaltecido não pou­
cas vezes as mulheres, com expressões honrosas, mostrando ao povo di­
versas heroínas, excelsas na virtude, como temos mostrado, mais de uma
vez, nos versos 651, das 'Troianas', 54, da Menalippe e nos versos 5 e se­
guintes, do Protesilaus, a fama (de misógino) ficou pregada ao Poeta,
porque mais sobrevivem algumas pequenas faltas do que os grandes
benefícios".
Havia a menção de duas tragédias perdidas e consultadas por Luter­
cio, com citações de versos, a alusão a outros escritos dele sobre a acusa­
ção de misoginia, a palavra H eroinas, diversa das duas grafias usuais, H e­
roides e Heroines, e uma clara antecipação do The evil that men do lives
after them... Parei o trabalho e levei a última página à sala de Anna.
Ela ficou, literalmente, perplexa, em choque, balançando a cabeça
como quem rejeita uma idéia. Depois, disse: "Santo céu, Emílio, esse Lu­
tercio é muito maior do que parece. E esse livro tem uma importância bi­
bliográfica inestimável... ".
Eu entendia vagamente que ele tinha lido textos de Eurípides que se
tinham perdido. Anna prosseguiu:
"... pois é, seguramente, um dos últimos vestígios do Protesilaus e,
óbvio, da Menalippe. Mais, aponta coisas quase inacreditáveis: ou se lia
grego na Itália, no fim do século XIV e começo do XV, ou, então, já cir­
culava uma tradução latina de Eurípides em pleno Piemonte. Ou... Lu­
tercio traduziu Eurípides!".
"Você está pensando o mesmo que eu?", perguntei.
"Não pode ser. Seria sorte demais... Você quer dizer que o nosso
'Hipólito' foi traduzido por Lutercio, do grego? Meu Deus! Não pode
ser verdade. Seria a primeira tradução conhecida, de Eurípides, em latim.
Coisa de fazer inveja até a Petrarca, meu querido!"
Ela estava radiante e eu me sentia feliz por isso. Procurei alguma
entonação especial no "meu querido", mas era o que os gramáticos cha­
mam de expletivo. Bem que eu merecia alguma expressão de afeto, achei.
Mas ela só tinha olhos, neurônios e coração para Lutercio, naquela hora.
Pensei em apontar a expressão precursora do The evit... de Shakespeare,
mas hesitei. Ela pareceu não notar isso. Fincou a unha do indicador no
Protesilaus e resmungou: "Eu deveria ter percebido isso antes. Emilio,
você assistiu Our Town, de Thornton Wilder?".
"Sim e gostei demais. Achei patética, sublime a idéia de ressuscitar
por um dia a heroína, sedenta de viver, e mostrar a fruição intensa da vida
transformando-se em angústia quando se avizinha a hora de voltar para
a morte... Pelo menos foi o que eu senti quando vi a peça."
"Pois saiba que a primeira peça teatral com esse tema foi esta: o Pro­
tesilaus, de Eurípides, e que se perdeu... E agora sabemos que Lutercio a
possuía ou tinha acesso a ela, no começo do século XV."
"E quem foi essa Laodaméia?"
"Laodaméia ou Laudamia foi a viúva apaixonada e inconsolável de
Protesilaus, e cujas súplicas desesperadas convenceram os deuses a res­
suscitá-lo por três horas."
"Já não se fazem mulheres como antigamente." Era minha vez de
ganhar.
"Talvez porque não há mais amantes que valham a pena, como Pro­
tesilaus. A propósito, tudo indica que Eurípides sabia como agradar as
mulheres, não te parece?"
"É." Não adiantava eu dizer qualquer outra coisa. Percebi, de novo,
aquele gelo na espinha. A conversa tomava um rumo perigoso: o melhor
era esperar que Anna abrisse seu jogo. A frase podia ser uma insinuação
tentadora. Mas também podia ser um comentário inocente, sem qualquer
intenção oculta. Maldita ambigüidade! Se Eurípides em algum momento
tinha sido um misógino tinha toda a razão, pensei. E perdi qualquer co­
ragem de convidá-la para conversar no barzinho de Milão. Que ficasse
com seus amores platônicos, que dormisse com Protesilaus, Eurípides, e
com Lutercio, juntos, se assim lhe agradasse. Peguei minhas folhas: "Vou
continuar a tradução".
Eu sabia que minha reação era inadequada, imatura. Mas não achei
outra saída. Ela me olhou espantada. Tentou dizer alguma coisa, mas não
disse. Balançou a cabeça com uma sombra de tristeza, ou seria compai­
xão?, e depois de um suspiro, me despachou: "Então, bom trabalho!".
Para minha surpresa, senti que a tradução do Commentarium me
atraía por si mesma. Servisse ou não·ao trabalho de Anna. Era uma sen­
sação de alívio. E de perda. Quase pedi desculpas a Eurípides e Lutercio
por tê-los envolvido em encrencas alheias.
o texto versava agora sobre Medéia:
"Mesmo na figura de Medéia, a mais dramática expressão da paixão
descontrolada, Eurípides traça o perfil de uma mulher 'superior ao comum
de seu tempo. Medéia é a primeira personagem feminina a assumir expli­
citamente o desejo do prazer e o direito ao afeto conjugal. Seria isso uma
manifestação de misoginia? E o tema do desejo negado, como mola da
vingança, percorre toda a tragédia, como um fio condutor, e não como si­
tuação particular ou como fala secundária da heroína. Tem o mesmo sen­
tido o discurso dela às mulheres de Corinto. Para Aristófanes, talvez a
confissão pública do desejo fosse uma indignidade a macular a figura fe­
minina (indignitas mulieris majestatem inquinans). É na acusação dele que
se encontra quase uma prova de que Eurípides apresenta ao povo de Ate­
nas um novo padrão de mulher, oposto ao perfil submisso e renunciatário
que agradava a esse poeta sequioso de voltar aos tempos de Ésquilo. E é
nessa negação, à mulher, do direito ao desejo e à paixão, travestida de
defesa da honra feminina e até da graça da mulher, que se esconde uma
visão misógina, que a quer confinada no lar, passiva, submissa e impedida
de qualquer autonomia intelectual (... dominatrix judicationis suarumque
cogitationum). Medéia é a primeira mulher a exercer essa autonomia e a
defendê-la ante as mulheres do coro. Seria isso, em Eurípides, mostra de
ódio às mulheres? E se note que Medéia é a primeira mulher a criticar, no
teatro grego, a organização injusta da polis, que veda às mulheres até a
atividade intelectual, literária e artística. Outra mostra de misoginia?
"Nos versos 253 e seguintes ela apela à solidariedade feminina, mes­
mo sublinhando sua condição de estrangeira e o desamparo que a distin­
gue das mulheres da polis, mas lembrando a comum situação de submis­
são que as iguala. E é assim que Medéia, as mulheres do coro e a ama
põem em discussão, solidárias, toda a cultura (normas ac mores) preceden­
te e aparecem como defensoras de uma cultura nova, movidas pelo conhe­
cimento de sua condição essencialmente feminina. Certamente essas mu­
lheres capazes de criticar e argumentar e, o que é mais inusitado, dispos­
tas a rejeitar toda uma ordem social (civium modus vivendi) tradicional,
não representam a imagem ideal de mulher, para Aristófanes e seus segui­
dores. Seria tudo isso um sinal de desprezo pelas capacidades da mulher?
Não de Eurípides, certamente.
"Mas ao lado desse inusitado padrão de mulher, o que parece fas­
cinar Eurípides é a intensidade da paixão na mulher e talvez até mais que
isso, a sua facilidade de passar do extremo descontrole passional ao dis­
curso mais rigoroso e lúcido. Os monólogos de Medéia são exemplos bri­
lhantes de uma extrema autonomia intelectual (suis utens legibus ad exis­
timandum) e de rigor de raciocínio."

Quase toda a luz do dia tinha sumido da minha janela, mais cedo do
que o esperado. Meu relógio marcava sete e dez, hora de tomar o rumo de
Milão. Tranquei o Commentarium na última gaveta do arquivo, cumpri­
mentei o vigia, puxei a pesada porta da saída, que se trancou por dentro, e
fui buscar a minha velha Lancia-Flavia, embaixo da castanheira mais grossa.
De trás do carro veio uma pergunta: "Você me dá uma carona? T 0­
dos já foram e eu sobrei. Esqueci da vida, com aquele 'Hipólito' e nem avi­
sei Beatrice que eu iria com ela". Anna falava hesitante, insegura. Eu po­
dia esperar tudo para encerrar aquele dia. Menos uma viagem até Milão
com ela. Curiosamente, não senti qualquer alegria. Eu estava magoado.
Também não senti pena dela.
"Claro, é uma honra", consegui dizer, espantado com minha capa­
cidade de conter, tanto um desaforo como o ímpeto de convidá-la para
um drinque na entrada de Milão.
Até o trecho final da Comasina falamos sobre o 'Hipólito' e Lu­
tercio, que ela achava precursor de grandes analistas de Eurípides, como
Paduano, Ferrari e Faggi. A estrada estava tranqüila. Ela também, recli­
nada placidamente ao meu lado. Aquelas coxas bronzeadas que me ti­
nham fascinado no Menarost estavam ali, ao alcance de minha mão, en­
voltas na sombra da noite que caía. A luz tênue e azulada do painel, eram
um convite à carícia. Talvez ela aceitasse. Não seria um truque dela a his­
tória de perder a carona de Beatrice, só para ficar comigo? Por que ela não
mencionou qualquer pressa de chegar a Milão? Senti no peito um calor
que subia para o rosto como uma labareda. Eu estava bancando o trou­
xa: ela tinha montado toda a situação para ficarmos a sós em plena noite.
E ali estava eu, como um escolar bisonho, olhando as pernas da profes­
sora. A paixão selvagem e explosiva de Medéia: eis o que eu tinha ao meu
lado. Mas talvez houvesse também a lucidez de Medéia, pronta a impe­
dir qualquer concessão. Mas eu nunca me perdoaria por perder uma tal

143
chance. Nem ela me perdoaria. Não havia saída: o vulcão ali estava fume­
gando de desejo, pronto a devorar meu corpo e minha alma. Eu não ti­
nha outra saída. Procurei um lance que a obrigasse a abrir o jogo: "Pos­
so fazer o que estou pensando?".
"Só respondo se me disser o que é."
Lá estava eu, de novo, na defensiva..A frase que me veio foi: "Estou
louco de vontade de te agarrar e te cobrir de carícias", mas o que saiu foi:
"Estou querendo uma boa cerveja num bar tranqüílo. Você tem tempo
para um traguinho?". "Covarde!", disse meu ego.
"Claro. Acho ótimo. Ufa! Pensei que você queria me agarrar. Pode­
mos parar em Affori. Há um jardinzinho delicioso no La Strega. Vamos
lá?" Ela estava feliz com a idéia. Meu id rangia os dentes, meu ego disse
que era melhor assim, essas coisas não se podem precipitar. Anna, uma
mulher refinada, não aceitaria qualquer indelicadeza. Uma conversa ele­
gante, a dois, era mais adequada como primeiro encontro. Afinal eu ha­
via sonhado aquele drinque com ela. Meu super-ego batia palmas.
Anna pediu um Carpano, o primeiro de muitos que pediríamos, no
La Strega, em tempos seguintes. Mas quis um gole da minha cerveja.
"Não vejo um bar há muito tempo."
"Eu conheço vários. Você pode compensar o atraso se quiser. "
"Veremos. Vamos ter muito que conversar, Emílio. Esse Lutercio é
uma avalanche de achados e indícios."
"Mas podemos conversar também sobre você. Acho um assunto
mais fascinante." Fiquei surpreso com minha audácia.
"Obrigada. Mas não teria muita novidade para mim, não é?"
"Talvez haja coisas que você ainda não viu."
"Nem tudo é visível..."
"Que profundidade!"
"Cretino! "
"Talvez seja melhor assim. Se você se visse melhor, ficaria insupor­
tável. "
"De tanta decepção?"
"De vaidade, minha cara."
"Você joga bem. Já tentou... "
"Montecarlo? Ainda não."
"Não. Hollywood, Cinecittà... "

144
"Mastroianni me boicota. "
"Não seria a crítica?"
"Você é linda."
"Mastroianni também."
"Mas ele..."
"Quero mais um Carpano."
a.
vida passa: Coronemus nos rosis..."
vermute melhora com a idade."
"Prosaico, não?"
"A musa que me inspira é você. "
Ela riu. Riu com gosto, feliz. A nossa esgrima verbal estava diverti­
da. Mais pelo que escondia. Mas era um modo delicioso de cada um se
revelar. Ou de revelar seu talento. Eu também estava feliz. Havia estabe­
lecido um modo novo de me relacionar com ela. Um jogo que lhe agra­
dava. Havia em mim uma sensação de alívio. Aí estávamos Anna e eu,
descontraídos, confiantes e, mais que tudo, trocando afeto e admiração
recíproca. Ainda que, por pudor ou medo, cada um se escondesse atrás
das palavras. Eu queria que o tempo parasse. E me lembrei, fugazmente,
de Protesilaus, de Laodaméia, de Eurípides, do Coronemus, do Carpe
diem, de Lutercio. Era tudo tão entrelaçado, tudo tão combinado, tão
parte da vida, da minha vida, de mim. E de Anua. Pedi o Carpano. Ela es­
gotou a dose anterior e perguntou:
"Qual das musas eu seria?"
"A mais linda das nove. Que tal Melpômene?"
"Quantas você lembra além dessa?"
"Nenhuma. E você?"
"Poleuclitaumerateca."
"Que é isso?"
"As sílabas iniciais das musas. Pol de Polímnia, Eu de Euterpe, de­
pois vêm Clio, Talia, Urania, Melpômene, Erato, Terpsícore e Calíope."
"Parabéns. Estou humilhado. Com essa memória, você pode recitar
. o Gloria in Excelsis do anjo, no teatrinho de Natal."
"Quanto latim! Estou humilhada."
"Pouco original."
"Um brinde?"

145
"À mulher mais atraente do Galilei!"
"À Luciana, então!"
"Vaidade ferida?"
"Apenas memória."
"Começo a entender a alma de Medéia."
Ela não conteve uma gargalhada. Depois emendou: "Se a teoria de
Tulio funciona, haverá sérios riscos...".
"Por quê?", perguntei, esperando que ela comentasse a alusão à se­
dução recíproca que poderia haver entre nós dois. Pois nossa fascinação
por dois grandes sedutores do passado projetaria nosso prazer de sedu­
zir. Mas ela disse outra coisa, menos perigosa, mais neutra.
"Tulio diz que cada um se apaixona por personagens que são ima­
gens idealizadas de si mesmo. Isso, levado às últimas conseqüências, sig­
nifica que uma pessoa pode se apaixonar por Jesus Cristo, por exemplo,
e se identificar tanto com ele que começa a falar e agir como ele. E então
começa a provocar nas pessoas, mutatis mutandis, as mesmas reações que
Cristo provocava. Com isso, pode sentir-se mais identificada ainda, e pas­
sa a estimular a mesma hostilidade dos poderosos, por exemplo... "
Interrompi: "E assim se chega ao martírio, um martírio... projetivo.
E o risco então seria... ".
Ela bebeu um denso gole do vermute. Levou a mão à boca para não
derramá-lo enquanto mal continha o riso. Limpou os lábios e disse: "Quem
é fanático por Joana d'Are, nesse caso, deveria morar perto do Corpo de
Bombeiros".
"Ou carregar um extintor na mochila."
Ela emendou: "E uma mulher que admira demais a Medéia, deveria
fazer laqueadura de trompas".
"Tulio vai adorar nossas contribuições. Mas sem levar a teoria para
essas deduções catastróficas, acho que você, como seu ídolo Eurípides, é
muito sedutora." Pensei que tinha sido um belo lance. Não era. Ela ajei­
tou os cabelos e me olhou nos olhos, desafiadora.
"Minhas coxas nem sabem quem foi Eurípides, meu caro. E, ao que
parece, elas parecem ter exercido certa sedução, alguns quilômetros atrás.
Não acha?"
"Nunca reparei..."
"Seu cínico!"
"... que elas não conheciam Eurípides."
Ela riu de novo e depois de mais um gole reconheceu: "Você ganhou,
mas não vale, porque mentiu".
"Quero outra cerveja."
"Agora, falando sério, eu acho que esse Lutercio está envolvente,
quase demais ...
Commentanum ele mostra uma Medéia que eu não conhecia",
disse eu, me parece que ele se identifica por inteiro com um Eurípides
feminista. Bem entendido, um feminista... filosófico".
"Trata-se de um feminista que mostra toda a perversidade de que é
capaz uma mulher. Um feminista quase misógino, meu caro. Esse é Eu­
rípides. Um turbilhão de contradições. E ao lembrar Medéia, quando eu
fingi ciúme de Luciana, você, inspirado por Lutercio, demonstrou per­
ceber algo que muitos não notaram na Medéia. A fúria sanguinária re­
sulta da frustração sexual devida_à traição amorosa de Jasão, e da humi­
lhação que isso lhe causa. Mas ela prepara o homicídio antegozando o so­
frimento e a morte da rival. E é nisso e na destruição dos filhos que ela é
monstruosa. É na criação de uma mulher capaz de tanta crueldade por
causa da vaidade ferida que Eurípides mostra uma face negativa da mu­
lher. Mas Aristófanes e seus adeptos foram procurar a misoginia onde não
há. Na exibição pública de uma mulher enlouquecida pela perda de seu
homem, pela falta de seu macho."
"Lutercio diz que ela é a primeira personagem feminina que não es­
conde seu desejo sexual..."
é mesmo. Mas nela o desejo se mistura com orgulho ferido, avil­
tamento social, desamparo em país estranho... "
a Fedra do 'Hipólito'?", perguntei.
"Essa sim, deveria chocar os puritanos. Ela é movida apenas pelo seu
apetite sexual. Ao contrário da Medéia, ela abre mão de sua respeitabilida­
de e mesmo de sua segurança, para conquistar as carícias proibidas de Hi­
pólito. Enquanto tipo passional ela é puro desejo, sensual, carnal mesmo. "
"Era preciso ter coragem para mostrar isso no teatro. "
"Mais. Era preciso ser muito fiel a si mesmo. Muita honestidade in­
telectual. "
"Acho que ele não se sentiria muito bem como assistente de Matilde
Rossini."

147
"Os revolucionários de 'Festa del Perdono' o expulsariam da Uni­
versidade. "
"Por quê? Eles pregam o amor livre! Talvez Fedra pudesse ser a mu­
sa deles."
"Não, Emilio. Para esses revolucionários marca Marlboro, Eurípides
seria um burguês reacionário: ele não abre mão da paixão. Que para eles
pode ser coisa de moralistas interessados em regular o prazer, patrulhar
o sexo. Não, Emilio. Eurípides não abre mão da verdade das paixões. O
amor deve ter uma dimensão de verdade dele é a paixão. Nesse
sentido, para ele, o amor verdadeiro não é livre. É instrumento da pai­
xão. Esses guerrilheiros de cervejaria deveriam ter a honestidade de di­
zer 'coito livre', sem giros de frase. "
"Gostei. Você é maravilhosa."
"É a admiração de três canecas de cerveja por três doses de Carpa­
no. Acho que já é hora de ir para casa. Você me leva?"
"Tenho escolha?"
"Eu não tenho. Gostei do seu convite e da nossa conversa." Ela sor­
riu e pegou a bolsa. Paguei a conta e saímos.
Eu estava leve, em paz, feliz de tê-la a meu lado, alegre também. E
me cumprimentei por não tê-la agarrado. Mas alguma coisa pouco clara,
inconsciente, me avisava que eu tinha entrado por caminho perigoso.
Como quem margeia a cratera de um vulcão. De outro lado, alguma força
me atraía para o magma fervente. Ela pendurou-se docemente em meu
braço enquanto íamos para o carro. "Qual é o nosso rumo?", perguntou.
"Você decide. "

"Por enquanto, pretendo ir para casa. As galáxias podem esperar."

"Acho que sim."

Ela morava perto de Lorenzo, em Porta Romana. Abriu a porta do


edifício e, enquanto entrava, voltou-se para mim com um sorriso terno e
me jogou um beijo. Eu dirigi a velha Lancia até minha casa, entre nuvens
rosadas, guirlandas, violinos e cantos de rouxinóis. E adormeci embala­
do por acordes de harpas. Decididamente, eu amava Anna.
Fui acordado pelos sinos histéricos de Sant'Eustorgio. Decidida­
mente, eu odiava aquele sacristão.
Capítulo 7

o verso fatal

No Galilei, encontrei Lorenzo e Abelardo sentados no banco de Tu­


lio, o do lobo. Falavam sobre o discurso de posse dele na cátedra de Psi­
copatologia. Ele havia dito que os deficientes mentais, principalmente os
idiotas, tinham sido, no passado, vítimas da arrogância dos médicos e do
descaso dos legisladores. Os dois concordavam com o discurso, mas ten­
tavam explicar o descaso e a arrogância. Lorenzo dizia que o próprio or­
ganicismo da medicina dos séculos XVIII e XIX era uma negação autori­
tária, olímpica, da importância das emoções e das funções mentais. Uma
espécie de legitimação ideológica para uma atitude prepotente, de poder.
Abelardo lembrava que era de 1325 a primeira legislação sobre direitos
dos deficientes mentais. A praerogativa regis, de Eduardo II, assegurava
que o rei cuidaria das necessidades dos deficientes, em troca de bens de
família, deles, requisitados como pagamento de tais cuidados. Curiosa­
mente, no caso dos loucos esses cuidados eram gratuitos.
Numa pausa da conversa, Lorenzo contou a Abelardo nossos acha­
dos no Piemonte. Abelardo encheu-se de orgulho de seu nome, quando
citei a referência ao "Cavaleiro da Dialética" no prólogo do Commenta­
rium. E fez uma observação intrigante: "Se esse bispo esteve em Paris,
lendo o epitáfio que Heloisa escreveu para o meu xará, é possível que ele
tivesse vínculos com a famosa Escola Franciscana da Universidade de
Paris."
"E daí?", inquiriu Lorenzo.
"Daí, ele pode ter sido um dos nominales, aqueles seguidores de
Guilherme de Ockham, que tiravam o sossego dos teólogos com suas
'doutrinas sofísticas', no dizer de Clemente VI. Foi estudando a teologia

149

com Staupitz e N athin, dois nominalistas, que Lutero se preparou para


balançar o coreto. Ora, esses dois tinham sido fervorosos Ockhamistas,
instruídos por Biel, por volta de 1480, se não me engano."
"Emilio, você que está lendo as idéias de Lutercio, acha que ele po­
deria ser um nominalista, um dos nominales? Ou, então, alguém seme­
lhante a uma bomba-relógio, do tipo Martinho Lutero?"
"Se o relativismo em matéria de conhecimento e de moral é coisa de
nominalista, ele é um nominalista militante. Candidato sério aos ódios
dos teólogos. E quando vocês lerem a minha tradução vão ver que ele é,
sem dúvida, um 'sofista', se com isso Clemente VI queria referir-se, de
algum modo, ao livre exercício da razão. Ele esteve em Paris e tinha liga­
ções com o clero, não sei se com os Franciscanos que, na época, domina­
vam a Universidade. Seguramente nada tinha de dominicano. Mas havia
estudos nominalistas sem repressão aqui na Itália, em Pádua, apesar da
marca averroísta da Universidade. O Senado da República Sereníssima
esvaziara, em todo o território vêneto, o poder da inquisição. Pádua era
uma Universidade laica."
"E a de Paris estava nas mãos da Igreja. Um dos chanceleres mais
famosos dela, curiosamente um homem com idéias nominalistas, era o
cardeal d'Ailly, que foi legado papal em Avignon, no começo do século
xv. Li isso num artigo sobre cardeais famosos, na época da eleição do
Paulo VI." Foi o que disse Abelardo.
"Pádua era uma universidade laica", falou Lorenzo, "porque o Es­
tado veneziano era laico. Aliás, as descobertas brilhantes de Fabrizio, Fal­
lopio, Vesalio e Morgagni tinham que acontecer ali. Onde, graças ao do­
mínio da Sereníssima, havia ampla liberdade de investigação."
"Será que esse Lutercio era mesmo um bispo?", perguntou Abelar­
do, mais para si mesmo que para nós.
"O Commentanum por enquanto não esclarece nada sobre isso.
Mas os indícios são vários."
"Provas circunstanciais podem até instruir sentenças judiciárias, mas
não instituem fatos ou verdades", contestou ele, mais forense do que o
necessário. "Vocês precisam de uma prova material."
"Eu tenho um palpite", respondeu Lorenzo, "o retrato da bibliote­
ca. Se ele era um bispo, haverá indícios claros disso. Os pintores adora­
vam circundar o personagem retratado com os símbolos de seus poderes,
funções, gostos e realizações. Lá deve haver respostas importantes para
nossas dúvidas". Lorenzo falava com a segurança de conhecedor de afres­
cos medievais e do renascimento.
"Quando você pretende ver o retrato?", eu quis saber.
"Depende de Bruno. Ele é quem pode combinar a nova visita. Acho
que desta vez precisamos gastar algum tempo com Dom Attilio e com a
tia de Bruno."
Luciana, do canto do claustro, chamou Abelardo ao telefone. E a
conversa terminou.
O novo trecho do Commentarium era sobre a segunda acusação a
Eurípides: De adducta impietate Euripidis. Comecei a traduzir, na espe­
rança de que Lutercio nesse trecho se revelasse mais que no caso da "mi­
soginia". Ele já havia dito que tanto a heresia como o martírio são pro­
dutos da paixão e que a própria atribuição de heresia pode obedecer a mo­
tivos passionais. Era coisa de esconder a sete chaves, naqueles tempos.
Mas o fato de tê-la escrito indicava uma postura de contestação e, talvez,
alguma segurança de não ser alcançado pela fúria anti-herética da hie­
rarquia eclesiástica. Ou, ainda, que o texto se destinava a um público res­
trito. E o trecho não me decepcionou, desde o início:

"Quando Cleon acusou Anaxágoras de impiedade, os adversários de


Péricles, que era um de seus discípulos, encontraram um pretexto para
desmoralizar seu rival político, mostrado ao povo como amigo e segui­
dor de um propagador de heresia. Péricles teria dito em defesa de seu
mestre, 'Não encontrei nesse homem crime algum', exatamente o que
disse Pilatos quando Cristo, nosso mestre, foi acusado de heresia. Se a
doutrina de Cristo foi considerada herética, pelos que professavam a fé
anterior, embora a nova fosse verdadeira, não é de espantar que Anaxá­
goras fosse acusado de heresia por pregar que o sol não era Apolo, filho
de Júpiter, mas um globo de rocha incandescente. Desse modo, fica cla­
ro que a acusação de heresia ou de impiedade pode resultar de conflitos
entre interesses de poder. E, o que é mais grave, meros interesses de po­
der podem condenar um inocente. O avanço do saber humano mostra
que Anaxágoras estava certo. Pode-se até pensar que nosso Mestre Divi­
no, em sua infinita sabedoria, não consideraria como heréticas todas as
doutrinas que seus seguidores condenam como tais.
"A verdade de uma doutrina pode não ser compreendida pelos ho-
mens que a ouvem, principalmente quando ela abala as crenças em que se I
alicerça seu poder. Tal como aconteceu com a pregação de nosso Salva-I
dor, que os néscios de então acusaram de heresia. Anaxágoras foi conde­
nado, não se sabe se à morte ou ao banimento, por seu amor à verdade. E
foi essa a lição suprema que deixou a seus discípulos, entre eles Eurípides.
"Também o grande trágico de Alceste, de Helena e de Orestes foi
denunciado por impiedade, por sua devoção à verdade da natureza dos
homens, não a dos astros, que seu mestre defendera. Eurípides foi fiel à
verdade da fraqueza, da contradição, da impecieição humana. O acusador
foi Higiaenon e a acusação foi a de defender o perjúrio.
"O verso 612 do 'Hipólito' foi o motivo. Nele, Hipólito diz: 'Mi­
nha língua jurou, mas não minha mente' (Lingua iuravit, mens vero ma­
net iniurata). De nada vale que Hipólito perca a vida para não violar o
juramento. O exemplo de lealdade não foi considerado pelos acusadores.
Agarraram-se a um verso e esqueceram toda a peça trágica. Mais ainda:
o verso introduz uma lição de moral. Pois apesar de induzido a jurar sem
saber exatamente sobre o quê, Hipólito se torna a grande vítima, inocente,
da tragédia. Toda a sua virtude e pureza não contam; nem mesmo sua
imolação pelo respeito a um juramento que conscientemente não prestou.
Nada disso os acusadores enxergaram. Nem mesmo o artifício poético
que marca Hipólito como vítima de um destino irónico e de uma vingan­
ça imerecida. Só viram o verso 612. Mas não o entenderam ou não qui­
seram entendê-lo. Hipólito nesse verso denuncia a trama ardilosa e injusta
que o condena. Viram nisso a apologia do perjúrio. Assim o verso que
condena Hipólito passa a condenar Eurípides. O verso genial e fatídico
(ingeniosus ac [atalis versus) foi o alvo da prepotência dos ineptos. Tal­
vez incomodados pela genialidade dele mais que pelo perigo moral que
quiseram atribuir-lhe. Não se sabe quem teria sido esse Higiaenon. Mas
muitos outros encontraram naquele verso uma arma para desmoralizar
Eurípides. À frente deles, obviamente, Aristófanes (praecurrens, patet,
Aristophanes).
"As palavras são usadas pelos acusadores com a intenção que eles lhe
deram. Não com a intenção do autor. Desse modo pode-se ver a malda­
de e a heresia onde existem ápenas palavras, cujas intenções podem ser
retas e piedosas. Eu aprendi, com os erros da juventude... "
Parei a tradução. Lutercio tinha passado do tom literário, destaca­
do embora veemente, a uma confissão pessoal:

"... que quando se pretende defender a correta doutrina da fé, pode­


se estar defendendo apenas a doutrina cujo respeito garante a nossa segu­
rança e o nosso poder. Assim se fez com Anaxágoras e com Eurípides. E
o próprio Nosso Senhor foi acusado de ímpio e difusor de maus hábitos
por aqueles cujo poder se identificava com a religião mosaica. Eram sa­
cerdotes de uma fé a condenar um herege...".

o trecho era expressivo demais. A relatividade dos significados e a


neutralidade das palavras como tais revelavam uma nítida tendência no­
minalista. E a alusão ao relativismo da verdade era inadmissível num es­
crito de um bispo. Pelo menos, de um bispo apegado à ortodoxia. Ou,
então, essa ortodoxia teria ficado para trás, na época dos erros juvenis.
Que erros seriam esses? Erros na defesa da fé, como dizia o texto. Co­
mecei a pensar nos hereges do Piemonte, pois ali, mais que em outras
regiões, eles tinham tirado o sossego de bispos e inquisidores. Haviam
até matado um inquisidor cruel, obviamente canonizado como mártir, na
primeira oportunidade. Chamou-se Pedro de Verona. Ele subiu aos al­
tares enquanto os valdenses que perseguia desceram aos vales do Pie­
monte e ali se entrincheiraram, queimaram livros aos montes e hoje têm
uma linda igreja em Milão. (A trinta metros de via Laghetto, onde se
entrincheiraram os novos purificadores do saber, em pleno 1968. Esses
não queimavam livros, como os valdenses, nem fritavam hereges, como
os inquisidores. Preferiam queimar tabaco, incenso, outras ervas e algu­
mas reputações de opositores.) O novo trecho de Lutercio iluminava
muitas passagens do texto precedente. Agora ficava explicada a sua fir­
meza na defesa de Eurípides como símbolo da inteligência injustiçada.
Como vítima, exemplar, da prepotência dos que se agarram ao dogma
para dominar.
Parei o trabalho para discutir o novo achado com alguém. Bruno
estava perambulando pelo claustro. Contei-lhe a novidade, ele concordou
com a minha teoria, mas ponderou que tínhamos muitas pistas, pouco
nítidas, e que era bom fazer um balanço delas. Para"arrumar a gaveta".
Sentamo-nos no banco do candelabro e começamos a anotar os achados:

153

1. Houve, na vil/a, um "bispo vermelho".


2. Era brilhante, amava artes, tinha livros, muito bom gosto.
3. Teria escondido alguns livros na tribuna.
4. Os livros achados são de clássicos latinos e gregos, textos mal-vis­
tos pelo papado e seus paladinos.
5. Tinha acesso a manuscritos raros e possivelmente lia grego, por­
que citava tragédias ainda não traduzidas.
6. Pode ter sido um tradutor de Eurípides.
7. Grande admirador de Eurípides, do qual refere várias obras. Leu
vários autores a respeito de Eurípides.
8. No que está com Anna, há uma referência a um Brunus.
9. Fez construir a villa de acordo com seu estilo de vida. Pode até ter
sido o arquiteto, brilhante como era.
10. Tem uma visão relativista do que é heresia e em muitas frases
aparece como um dissidente da ortodoxia dogmática da igreja. Mais pa­
recido com os nominales do que com os antiqui.
11. Escreveu o Commentarium. A redação é posterior a 1403.
12. Lamenta erros juvenis na defesa da fé. Isso pode ser pensamen­
to de um eclesiástico maduro, que teria sido excessivamente intransigen­
te na juventude. Agora, na maturidade, indignado com a hipocrisia dos
que acusam outros de heresia.
13. Critica o uso da ortodoxia para preservação de poderes.
14. Alguém emparedou a tribuna com livros e talvez outros papéis
dentro dela.
15. Esteve em admirou Abelardo e se "identifica" com ele e
mais ainda com Eurípides.
16. Parece-se demais com Eurípides.

Enquanto escrevíamos a lista, alguém vindo de trás tocou docemente


meu ombro. Era Anna. Tinha um sorriso repousado. "Oi, vejo que vo­
cês não descansam. Grandes progressos?"
Bruno leu nossa lista de achados.
"Desculpem-me. Mas não vejo muita novidade, exceto a hipótese de
ele ter sido um acusador arrependido. E notem que as evidências disso são
bastante precárias: a alusão a erros na defesa da fé e o ataque aos que se

154

apegam ao dogma para assegurar seu poder. Acho uma base pobre. O
resto, de certo modo, já sabíamos, graças às histórias ouvidas no Piemon­
te e aos trechos que Emílio traduziu do Commentarium."
Devo ter feito uma cara desolada. Ela pareceu arrependida por ha­
ver demolido nossas especulações. Desculpou-se mais uma vez e me deu
uma piscadinha sorridente, como a dizer "não me leve a mal, eu não gosto
de te ver triste e não quis te magoar". Foi o que pensei.
Bruno, que não tinha maiores envolvimentos, reconheceu candi­
damente a pouca novidade do nosso summing up e jogou sobre ele a pá
de cal: "Nós precisamos de datas e de fatos. Temos só hipóteses. Os fa­
tos estão lá, na villa. Mais precisamente na capela, no teatro, na biblio­
teca e, sobretudo, naquele amaldiçoado alçapão da tribuna. Se ele tinha
um mecanismo secreto de abertura e se a tribuna foi emparedada com
tudo o que guardava, lá deve haver algo mais do que uns inócuos textos
poéticos".
Anna interveio, a meu favor: "Nós temos o Commentarium, Bruno.
Ele é depoimento pessoal de Lutercio".
"De Lutercio?"
"De quem o escreveu. "
"Ainda temos que achar o que liga o bispo ao texto."
"Ora, o discurso dele é de alguém que se envolveu na repressão das
heresias, conhece os ardis das acusações, professa sua fé em Cristo, mais
de uma vez. Mas duvida da honestidade dos acusadores de hereges, tal­
vez inquisidores. Ademais é um homem avesso ao poder ou, pelo menos,
aos que se apegam ao poder."
"Afinal, Anna, o que você quer dizer?"
"Que alguém que o povo e nossos amigos piemonteses chamam Lu­
tercio ou bispo vermelho escreveu o Commentarium, guardou-o no dos­
sel: Portanto era o dono da tribuna. Os pintores do teatro respeitaram a
tribuna e ajustaram o desenho da ramaria aos contornos dela. Então,
quem comandou a decoração do teatro era o dono da tribuna. Como as
pinturas do teatro e as da capela são da mesma época e do mesmo estilo,
o dono do teatro mandou pintar também a capela. Com isso sabemos que
a pessoa que decidiu os temas que 'figurariam nela e no teatro é a mesma
que escreveu o Commentarium..."
"Mais devagar, Anna", pediu Bruno. O raciocínio dela parecia sóli­

155

do. Se a elogiasse, ela ficaria constrangida. Bruno não se rendeu ainda:


"Falta mostrar que o autor do livro e da capela e suas pinturas era o bis­
po, um bispo".
"Está bem. Já estive pensando nisso. As idéias do Commentarium e
a decoração da capela são obras de alguém com sólida formação religiosa,
familiarizado com os ardis dos inquisidores, fiel à figura de Cristo. Um
religioso conhecedor da hierarquia eclesiástica, com autoridade para es­
crever um texto tão perigoso. No mínimo, um bispo.»
"Provavelmente, um bispo", corrigi.
"Possivelmente, um bispo", disse Bruno.
Tudo parecia muito claro. Menos uma coisa: como ela sabia as idéias
do livro sobre acusações de heresia? Engatilhei a pergunta. Mas não foi
necessária.
"Enquanto vocês discutiam aqui no claustro eu olhei a tradução na
sua mesa, Emilio. Está linda. »
"Há duas coisas que não se encaixam, minha cara. As citações de tre­
chos de tragédias perdidas e a menção a um tal Brunus na margem do
'Hipólito'.
"Não tenho a mínima idéia», disse ela.
Bruno começou timidamente um raciocínio em voz alta: "Mas se ele
fosse um bispo importante, com o talento e brilho que tinha, teria ami­
gos importantes nos ambientes literários da época. Por esses tempos che­
gavam muitos manuscritos à Itália. Bizâncio já sentia a pressão militar dos
turcos, anos antes da queda, e procurava estreitar alianças comerciais com
a Europa. O norte da Itália, através de Veneza e Pádua, era o roteiro prin­
cipal das iniciativas diplomáticas bizantinas. Outro alvo era a Toscana,
que florescia como centro artístico e econômico...».
"E daí? O que isso tem a ver com as tragédias perdidas de Eurípi­
des?», perguntei.
"Não sei. Estava pensando alto. Procurei uma explicação que
se duas coisas: a mágoa, ou indignação de Lutercio em relação aos anti­
heréticos desonestos, e a posse ou leitura das tragédias perdidas. No lado
oriental do antigo império proliferavam estudos dos clássicos gregos e
heresias. Muita gente ia para lá estudar filosofia e outras coisas. Ora, os
clássicos estavam em manuscritos gregos, alguns em latim, talvez. Muita
coisa foi trazida, mesmo que não estivesse na moda por aqui..."

..

"Isso já se sabe, desculpe", interrompeu Anna, tensa, franzindo a


testa. "Aonde você quer chegar?"
"Quero achar nomes de gente importante que trouxe manuscritos
do Oriente e ver se entre eles existe alguém que se ligue a Lutercio..."
"Boa sorte, meu caro. Naquele tempo não havia registros alfande­
gários nem listas de passageiros... "
"Eu sei, Anna", disse ele com humildade. "Mas você esquece que
esses estudos eram coisa reservada a alguns poucos, provavelmente ricos
ou protegidos. Era uma glória que não passaria sem registro. Mais uma
coisa: esses privilegiados deveriam voltar para cá lendo grego. E então
deveria haver algum intercâmbio de textos entre eles."
"O que diz a tal anotação sobre o xará de Bruno?", perguntei a
Anna.
"Ainda não te contei?"
"Não. Só Beatrice me falou dela. Disse que vocês iam à Ambrosia­
na, fazer consultas sobre isso."
"Vou buscar o livro."
Quando ela voltou com o 'Hipólito', Bruno já estava andando pelo
claustro, falando sozinho ou, como é menos comprometedor, pensando
em voz alta. Ela me olhou meio constrangida, e sentou-se no banco do
candelabro com o livro sobre os joelhos. "Não queria te incomodar, Emi­
lio. Essa anotação pode ser banal."
Olhando-me daquele jeito ela parecia tímida; e isso me fascinava. Eu
também a temia. Melhor: temia a minha fraqueza diante dela. Agora, que
a via também fraca, sentia uma atração imensa por ela. Ela percebeu tudo:
"Por que você não se senta ao meu lado? Quer ficar mais alto?" Não
havia dúvida: era ela quem conduzia o nosso caso ou o que havia entre
nós. Meu rosto pegava fogo. Felizmente ela estava olhando para o livro.
Sentei-me ao lado dela, a perguntar-me por que na noite anterior eu es­
tava tão à vontade e agora me sentia tão vulnerável.
"Achei. Leia aqui embaixo."
A nota estava em letra cursiva, mais veloz que a do texto. Mas era,
seguramente, da mesma mão: "ln v. 663 mihi videtur, sicut admonuit me
dillectus Brunus versionem verborum eisomai gegeuménos esse certam:
antea fidem feci, aut antea probabi proantea expertus sum vel antea
gustavi". Traduzi para Anna: "No verso 663 parece-me, de acordo com

157
...
o que me aconselhou o prezado Bruno, que a tradução correta das pa­
lavras eisomai gegeuménos é: como já testemunhei ou já verifiquei, em
vez de: como já experimentei ou já apreciei". Ela me agarrou o braço,
frenética:
"Ele traduziu o 'Hipólito', Emilio!"
"E o tal prezado Bruno foi consultado ou opinou sponte sua sobre
a tradução desse verso. "
"Você sabe o que.temos nas mãos, meu querido?"
Eu podia até avaliar a importância da novidade. Mas quando ela me
chamou de 'meu querido', perdi a bússola. Por alguns segundos. "Cla­
ro, Anna! Temos provavelmente. a primeira tradução do 'f:Iipólito' pa­
ra o latim. E só nós, somente nós dois, sabemos disso. "
Os olhos faiscavam. Ela me abraçou, trêmula, frágil, irresistível.
Apertei-a ao meu peito com toda ternura e toquei o céu com as mãos
quando percebi que ela prolongava o abraço além do que duraria uma
simples efusão amigável, pela descoberta. Quando o abraço se desfez ela
baixou olhos, ruborizada. Era a confissão que me faltava. Resolvi ali­
viar-lhe o constrangimento: "Você tem alguma idéia sobre esse prezado
Bruno?".
"Ainda não. Precisamos de alguém versado em literatura italiana da
época. Eu tenho um amigo diplomado em letras clássicas, mas agora ele
está em Amsterdam tentando derrubar o Westmoreland na Indochina. "
Então me lembrei de Gabriella. Tinha sido minha namorada na Uni­
versidade. Quando eu me formei em Filosofia, ela se formou em Letras
Clássicas. Entramos juntos para o Partido Comunista quando De Gaulle
retirou a França da OTAN. Depois passamos os dois para o PSIUP en­
quanto ele durou. Quando acabou, voltamos ao velho PCI, de Longo e
Berlinguer. Gabriella era a combinação mais perfeita, que conheci, de sua­
vidade e firmeza. Era uma militante corajosa, disciplinada e, ao mesmo
tempo, terna e alegre; coisa pouco freqüente nos partidos de esquerda de
então. Ela enfrentava com lucidez e serenidade problemas ideológicos,
políticos, táticos e, além disso, os bandos do MSI, sempre prontos para
uma tocaia em San Babila e no Corso. Gabriella era uma das mais belas
da Universidade e, seguramente, a mais"bem-humorada. Confessou-me,
uma vez, que quando a vida lhe era ingrata ela se vingava agradando-se
de algum modo, com a compra de alguma coisa muito pessoal. Por exem­
pIo, um sutiã ou uma calcinha. Quando o partido perdeu mais uma elei­
ção parlamentar na Sicilia, encontrei-a após a apuração, em corso di Por­
ta Romana, diante de uma loja de lingerie.
"Emilio, que bom que você me encontrou. Quero me vingar dos si­
cilianos e da De. Me ajude a escolher uma calcinha nova, que combine
comigo."
"O teste será in vivo?"
"Ela apontou a vitrine: "Não. ln vitro!".
Nem sei bem por que nosso caso terminou. Depois ela se ligou a um
arquiteto de Como, do qual se separou em 65 ou 66. Talvez o número
telefônico dela ainda fosse o mesmo que eu tinha. Resolvi consultá-la so­
bre o tal Brunus, mas não quis que Anna soubesse.
"Podemos escrever a esse seu amigo de Amsterdam. Se não, achare­
mos alguém na Universidade..."
"Houve um tal Aurispa que contrabandeou um punhado de manus­
critos gregos para a Itália... Desculpem, eu não queria interromper", fa­
lou Bruno voltando do fundo do claustro.
"Mas não era teu xará. Chamava-se Giovanni e não Brunus", pon­
derou Anna.
"Mas além do meu homônimo, Lutercio deveria conhecer uma pen­
ca de literatos ou coisas parecidas. Mesmo dentro do clero devia existir
gente versada em alguns textos clássicos, inócuos o suficiente para não
porem em risco a fé e a pele de seus leitores." Bruno falava sem interrom­
per sua caminhada pelo claustro: "Ainda descubro esse fornecedor de
Lutercio".
Anna fechou o 'Hipólito' e o abraçou com um sorriso triunfante:
"Temos aqui a primeira tradução latina de uma tragédia de Eurípides.
Nada menos que isso. Tenho certeza de que no Commentarium você ain­
da vai encontrar a prova disso".
"Ou, em outros termos: Emilio, a conversa está ótima, mas você tem
que tocar aquela tradução..."
Ela sorriu com malícia: "Vejo que você começa a me entender... ".
"O Commentarium é bem mais fácil. "
"Seu chato!" Ela girou sobre a ponta do pé e, já de costas, comple­
tou: "As coisas fáceis não têm graça".
Voltei ao texto de Lutercio com um calorzinho diferente dentro do

159

peito e abaixo das orelhas. No meu rosto estava pendurado, tenho certe­
za, um sorriso de criança que ganha sua primeira bicicleta. Quase beijei
o Commentarium. Afinal, era ele que me ligava a Anna. Eu estava feliz,
o que quer que isso signifique.
Lutercio prosseguia o ataque à acusação de impiedade:

"... seguramente não em nome da verdade, mas em defesa de seu po­


der sobre as mentes e os costumes. Nem sempre a acusação de impieda­
de, como a de heresia, visa a destruir ou contestar o significado de uma
doutrina ou de um verso, como o 612 do 'Hipólito', ou os dois primei­
ros da 'Menalippa'. O que se defende não é o significado das velhas dou­
trinas, mas a existência delas. A acusação de heresia muitas vezes não
combate o erro, combate o novo. E Eurípides tinha tanto de inovador,
quando seu acusador Aristófanes tinha de tradicionalista (morem a
ribus traditum servaturus). Mas há uma verdade mais simples. O grande
trágico dispensava, e talvez até lhe desagradasse, a popularidade, enquanto
seu rival a perseguia com tenacidade, quase com sofreguidão. Para este,
manter as formas e as aparências que agradavam ao povo era mais impor­
tante do que a substância das palavras e dos versos. Ele mesmo reconhe­
ce em 'As Rãs' que o 'Hipólito' termina com o castigo do mal e com o
prêmio supremo à virtude perseguida. Seu medo é o de que 'certos exem­
plos e certos discursos se tornem contagiosos'. Eis a prova de que a im­
piedade não é apontada no significado das palavras, mas na inovação e se­
dução que podem trazer. Os dois primeiros versos da 'Menalippa' atraí­
ram para Eurípides outra acusação de impiedade e até de ateísmo, embo­
ra a tragédia fosse considerada uma peça magnificamente bem escrita. A
forma original era: 'Oh Júpiter, que de ti não conheço mais que o nome'.
A substituição exigida foi: 'Oh Júpiter, como este nome convém à tua
divindade!'. Mas qualquer pessoa sincera e de bom ânimo pode perceber
que a forma original não nega a divindade de Júpiter, apenas confessa
humildemente a limitação do conhecimento diante de Júpiter. A
segunda forma passa ao longe dessa humildade diante de um deus cujo
nome se enaltece ou se venera. Mas nela se usa a palavra divindade. Não
era pois a significação dos versos que se condenava, mas a ousadia de re­
ferir-se a um deus sem proclamar-lhe a divindade. Mais uma vez, o que
se combate com essas acusações não é a doutrina. É a novidade. Por quê?

160
Porque a novidade suscita perguntas, curiosidade e dúvidas sobre o que
é costumeiro (affert interrogationes, conoscendi studium atque dubia de
consuetudine)...".

o latim nesse ponto não era dos mais elegantes. Mas a atualidade das
reflexões de Lutercio já não me surpreendia. Embora fosse muito lúcida
a idéia de que o novo era a verdadeira causa da hostilidade dos que deti­
. nham o controle das crenças e das idéias. Ali podia estar implícita uma
(ou mais uma) contestação ao dogma. Mas, sobretudo, o trecho mal es­
condia a indignação de Lutercio com a hipocrisia dos acusadores. A con­
fissão anterior de que havia cometido erros de acusação, na sua juventu­
de, permitia pensar que o seu critério do que fosse verdade era, no míni­
mo, tumultuado. Mas o juízo negativo sobre os que acusam inocentes
para assegurar o próprio domínio das idéias alheias era cristalino, segu­
ro, sólido. Talvez produto de amargas reflexões, das quais o nosso que­
rido bispo vermelho havia renascido mais forte, mais veemente. "For­
mação reativa", pensei. Por que não, mera evolução de um homem bri­
lhante e fiel a si mesmo? Como tudo indicava, na nossa investigação,
apaixonada, mas cuidadosa, sobre ele. E se fosse uma "formação reativa"?
Seria apenas mais uma indicação de que ele fora, nos tempos da mocida­
de, mais ingênuo, quanto à má-fé de inquisidores e outros poderosos, ou
teria sido ele mesmo, clérigo brilhante, um dos que, talvez cheio de zelo,
se teria dedicado a combater heresias e hereges, como autêntico depo­
sitário da verdade? Pensei então que alguns episódios da história, até
decisivos, poderiam ser produtos de alguma "formação reativa" de quem
estivesse em condições de decidir ou de influir sobre as idéias e senti­
mentos das pessoas. Os convertidos famosos, como Paulo, Agostinho,
Francisco de Assis, Lutero, Huss, Jerónimo de Praga e tantos outros ti­
nham mudado decisivamente a cultura de seus povos, se não de suas épo­
cas. Mas, talvez, tudo isso tivesse na sua origem alguma "formação rea­
tiva" que explicaria toda a tenacidade e até a obstinação com que con­
duziram suas idéias e seus seguidores. É claro que essas idéias tinham
algum poder intrínseco de atrair os adeptos, e que o confronto que eles
fizessem entre elas e as doutrinas opostas deveria levá-los a mudar suas
crenças. Independentemente de o que elas significassem no mundo emo­
cional dos líderes. Talvez até fossem sínteses geniais que se impunham

161
por seu próprio conteúdo lógico ou doutrinário. Mas sempre poderia
haver algum episódio original de "formação reativa". Mas como expli­
car a influência, por vezes secular, de homens como Eurípides, Platão,
Aristóteles, Sêneca, Descartes? Nenhum deles era um convertido, "pre­
cisando" afirmar certas idéias. E então me senti confortado em pensar que
meus venerados Eurípides e Lutercio, eu já não conseguia separá-los,
eram na verdade autores incompreendidos de sínteses geniais sobre a
cultura em que floresceram.
O trecho deixava pensar que talvez houvesse mais sinceridade ou
honestidade entre os hereges. Mas era preciso não extrapolar: o texto era
sobre falsidades a respeito de Eurípides:

"Esse apego ao passado, à tradição, às verdades costumeiras, entre os


pagãos era filho do temor de que os antepassados viessem a sofrer ou a
vingar-se quando os descendentes não seguissem os ensinamentos que
deixaram, as crenças que respeitaram, ou os ,conselhos que haviam dado.
Assim, o conhecimento dos antigos não poderia ser discutido; muito me­
nos, contestado. Eis o que diz Plutarco no Amatorio, p. 756: Pareces to­
car uma questão grave e perigosa, ou melhor dizendo, remoer um assun­
to que jamais se deve tocar, como a nossa opinião e a nossa crença sobre
os Deuses, quando nos pedes uma prova ou razão para elas. Pois a antiga
fé e a crença que recebemos de nossos antepassados, neste país, devem bas- .
tar-nos e não se pode dizer ou imaginar qualquer prova mais suficiente e
evidente. Sendo assim essa tradição o fundamento e a base comum de
qualquer religião, se a firmeza e a crença que passa de mão em mão é aba­
lada ou alterada em um só ponto, ela se torna duvidosa e suspeita em to­
dos os outros... Plutarco dá como exemplo do perigo de se contestar al­
guma crença dos pagãos o caso de Eurípides, que precisou refazer... os
versos iniciais... da 'Menalippa '... ".

Fiz uma pausa na tradução, e comecei a pensar na coragem dos he­


reges e no poder renovador de suas contestações aos dogmas. Passei a vê­
los como a forma mais pura de líderes do progresso. Comecei a lembrar
alguns deles. Giordano Bruno, Savonarola, Arnaldo de Brescia, e outros
menos acadêmicos como Dolcino e Valdo ou Valdus, o mercador de
Lyon que, antes de Francisco de Assis, vendeu seus bens e se dedicou à

162
pregação do Evangelho. Lembrei que também Francisco tinha um ape­
lido francês, François. Valdo era Pierre, Pierre Valde. Valde! Va1de, que
em latim significa demais. Lembrei a capela de Lutercio: o afresco do
mártir! Eu tinha errado a tradução. A frase acima da figura do santo era
"VAE TlBI VALDE QUARE DERELINQUISTl FIDEM TUAM". A tradução que fiz
para Beatrice era"Ai de ti porque muito transcuraste a tua fé". Mas po­
dia ser: "Ai de ti, Va1do, porque abandonaste a tua fé".
Então, o santo do afresco não era um padre linha-dura qualquer: era
o grande combatente contra os valdenses, o mártir da luta contra as idéias
de Valdo. Pedro de Verona, o grande inquisidor do Piemonte. E o afresco
era uma homenagem dos anos juvenis de Lutercio! Agora era quase cer­
to: nosso querido bispo vermelho tinha sido um admirador da inquisi­
ção ou, brilhante como era, até um inquisidor. Ainda que não fosse um
dos Cães do Senhor ou Domini Canes como os dominicanos por vezes
se designavam. Enquanto bispo, ele podia facilmente ser um inquisidor,
mesmo que os fanáticos de Domingo de Gusmàn não quisessem. Agora
fazia mais sentido o arrependimento dos erros da juventude, na defesa
da fé. E ganhava motivos a insistente denúncia de parcialidade e má-fé
nas acusações aos hereges.
E a veemência de Lutercio prosseguia:

" ... A malignidade de Aristófanes contra Eurípides chega ao ponto


forjar nas Thesmophorias a declaração de uma viúva, vendedora de
ramalhetes votivos destinados ao culto dos deuses, de que perdera seus
compradores, como conseqüência dos versos ímpios de Eurípides, que
haviam convencido ao povo de que os deuses não existem. Como em ou­
tras ocasiões, no ímpeto de denegrir Eurípides, Aristófanes acaba por re­
conhecer-lhe o tremendo poder sobre o pensamento do povo e deixa cla­
ro que o motivo de seus ataques é justamente o perigo de que as idéias
novas, do grande trágico, mudassem o modo de pensar, as crenças popu­
lares. Além disso, o próprio Aristófanes não demonstra qualquer respeito
pelos deuses, a julgar pelo retrato que faz de Baco em 'As Rãs'. Admiti­
da a natureza divina, pode-se dizer dos deuses quase tudo, à mente do
povo de Atenas e mesmo à de Aristófanes, deveria parecer muito claro
que entre os deuses gregos eram freqüentes o adultério, as aberrações se­
xuais, a mentira, o engodo, a vingança, o rancor, o incesto e a injustiça.
Como diz Clemente de Alexandria, referindo-se a uma passagem de Eu­
rípides, se os deuses gregos fossem intimados a prestar contas de seus
adultérios, Júpiter e Netuno teriam que providenciar a evacuação de seus
templos em cumprimento da sentença. Que deuses são esses que Aris­
tófanes defende? Esse Júpiter adúltero, vingativo e injusto, que Higiaenon
vê desrespeitado por versos elegantes como: Oh Júpiter, de quem não
conheço mais que o nome? A acusação de ateísmo se funda também na fala
de Sísifo, que chega a negar os deuses. Mas esse personagem, tal como se
apresenta, deve raciocinar como um ateu e suas palavras são as de um
personagem, não as do poeta. Tomar aquelas por essas foi o erro de Plu­
tarco (e o de Clemente de Alexandria). espantoso que homens dessa im­
portância insinuem que tais idéias, ditas pela personagem de Sísifo, sejam
tomadas como de Eurípides, mesmo porque não houve ninguém mais
respeitoso da fé, do que o nosso poeta, como se pode verificar em inúme­
ras passagens de sua obra. E ao personagem de Sísifo convém perfeita­
mente falar como um ímpio (Miror autem plurimum quid tanto viro per­
suaserit hac vafre dicta ab Euripide sub Sisyphi persona, et poetae ipsius
esse sensus, cum nemo unquam extitit nostro poeta pientior, ut ex innu­
meris ejus loeis colligi potest et Sisyphi characterem maxime decuit impie
loquz). Por acaso a Afrodite de 'As Troianas' é mesmo uma deusa ou é um
nome que Helena dá à sua luxúria sem freios? Ou se deveria acreditar que
três deusas, Atená, Afrodite e Hera convocassem Páris para decidir qual
delas era a mais bela? Agamêmnon viu nisso 'uma fábula que se conta
entre os gregos', nada mais. É claro que nem Aristófanes nem seus pro­
tetores acreditariam em tal fábula. Mas a frase de um personagem de Eu­
rípides tornava-se prova de ateísmo, não de Agamêmnom que a pronun­
cia, mas de Eurípides. O autor de 'Alceste' e de 'Ifigênia' não foi um ateu.
Jamais atacou ou desprezou o sentimento religioso. Mas não podia acei­
tar uma mitologia que perdera toda religiosidade. Que se transformara
num conjunto de fábulas, muitas imorais, sobre tais deuses. Ele tem da re­
ligião um conceito muito mais profundo e mais sério que seus acusado­
res (alte et graviter existimat). A crença funda-se na justiça. Como diz o
verso 800 de 'Hécuba': por esta lei moral que somos levados a acredi­
tar nos deuses e a erguer em nossa vida um muro entre o justo e o que é
injusto'. Era mais fácil acusar Eurípides que corrigir a injustiça que ele
apontava freqüentemente. Aristófanes sabia disso".
Percebi que nesse trecho o Commentarium me ensinava muito so­
bre Eurípides e sobre as idéias de Lutercio. Mas, afora a referência aos
"erros da juventude", às tragédias perdidas e aos nostra studia, a colhei­
ta de pistas sobre o bispo era bastante escassa. O texto permitia situá-lo
num fluxo de idéias características dos melhores espíritos do que seria o
Renascimento italiano. Uma só anotação do 'Hipólito', porém, tinha sido
mais esclarecedora sobre Lutercio. Permitia deduzir que ele traduzira a
tragédia e que fora amigo de algum ilustre Brunus, entendedor de grego
e de Eurípides. Mas eu devia continuar. As idéias do Commentarium
pouco a pouco formavam um perfil nítido, que além de me interessar por
si mesmo, poderia servir mais tarde para decifrar a identidade de Luter­
cio. Por exemplo, eu havia entendido o afresco do mártir na capela gra­
ças ao texto do Commentanum.
Mas alguma pista mais clara só poderia aparecer em alguma refe­
rência a pessoas, episódios ou datas. Voltei ao texto. Tratava agora da ter­
ceira acusação. A de corromper os costumes e o gosto literário.

"(De accusatione quod corrumperet mores et litterarum elegantiam).


No verso 1080 de 'As Rãs', Aristófanes exerce, mais uma vez, o papel de
porta-voz (signifer) do espírito conservador (animi servationis), e derrama
sobre Eurípides toda a indignação sua e dos poderosos de Atenas. Mais
uma vez, o que os inquieta é o novo. E nesse caso a cólera de Aristófanes
se exacerba contra a criatividade poética e teatral do poeta de Helena. Ja­
mais lhe pareceu suportável o talento de Eurípides (nunquam ferendus).
"Quanto aos costumes, não se encontra em toda a obra de Eurípi­
des tanta obscenidade e tanto despudor como nos versos 1335, 1376 e
1493 de 'As Vespas'. Um homem que defende a respeitabilidade dos deu­
ses deveria ser mais respeitoso diante de um deles, Baco. Não deveria
apresentá-lo tão preocupado com traseiros e com funções intestinais. É
que a Aristófanes é permitido ridicularizar os deuses à vontade, como faz
também em 'As Rãs'. E com que versos! Como o 545, onde se desce ao
fundo do mau gosto (maxime invenustus), como idéia e como forma. É
este o homem que vê na obra de Eurípides um perigo aos bons costumes!
Talvez por pura servidão ao gosto ·popular. E, pois, por mera busca do
favor do povo (quaerens gratiam apud plebem). No verso 280 se diz que
'Héracles é mentiroso'. Isso, em Eurípides, seria impiedade. No verso 205
se desrespeitam os heróis de Salamina. Isso, em Eurípides, atentaria con­
tra os costumes. No verso 48 se faz um pesado gracejo sobre Clístenes e
seus hábitos. Isso, em Eurípides, seria uma imoralidade. Toda a figura
ridícula de Baco, com suas freqüentes frases de péssimo gosto, porque é
obra de Aristófanes não corrompe o gosto literário, mesmo com sua in­
sistência em funções intestinais e anais, como nos versos 6, 10,21,29,237,
295,421,479. O verso 95, que talvez parecesse (ut ei videretur) a Aris­
tófanes um modelo de gosto refinado e de defesa dos bons costumes, fala
, . ,
em unnar nas musas.
"De fato não se acha nos versos de Eurípides tamanho 'respeito aos
costumes e ao bom gosto literário' se o que se entende por 'respeito e bom
gosto' é o que nos oferece seu acusador. Mais uma vez, o perigo que ele
pressente na obra do grande trágico é o da verdade.
"Pois a acusação inculpa Eurípides por ter levado ao palco episódios
e discursos em que se revela toda a força das paixões humanas, o amor, o
ciúme, o desejo, a vingança, o incesto, o adultério e a loucura. Não era a
figura de um rei coberto de farrapos que ameaçava os bons costumes; nem
a expressão desesperada do desejo (desperata libidinis elocutio), de Me­
déia ou de Fedra, que ofendia a moral. Era a manifestação dessas paixões
reais e cotidianas dos homens e mulheres de Atenas, que se temia e que
se devia impedir. Defender os costumes seria, então, calar sobre as
paixões e as emoções humanas e condenar quem as confessasse. O amor
e o ódio deveriam ser banidos do discurso e da poesia (carminibus atque
orationibus excludendos), mesmo que na vida fosse impossível desterrá­
los. Podia-se aceitar que um personagem atribuísse a Afrodite sua paixão
por alguém ou que responsabilizasse Hécate por seu desejo de vingança.
Os deuses podiam amar e vingar-se. Os homens não. Ainda que homens
e mulheres amassem e matassem. Não é seguro, obviamente, o fundamen­
to lógico das acusações que estamos discutindo. Trata-se de acusações
dirigidas pela paixão. E talvez por isso Eurípides as tenha compreendi­
do. Mesmo que lhe causassem amargura.
"Não poucos têm reprovado o modo de vida do grande autor de
'Hipólito', por ser um homem amargo, solitário e pouco afeito à convi­
vência com as pessoas. Se entre os poetas· de seu tempo as idéias que ti­
nha sobre a vida e os homens não eram aceitas, é possível que entre os
cidadãos comuns de Atenas encontrasse dificuldade ainda maior para

166

expressá-las e defendê-las. Na caverna de Salamina ele encontrava a paz


e fugia tanto da hipocrisia dos homens quanto da tristeza da incom­
preensão. Ali, talvez, escrevia para leitores de outros tempos ou nações.
O da verdade, como disse nosso Salvador, traz sofrimento e in­
compreensão. E como dizia o grande Agostinho, os homens amam a ver­
dade quando ela se manifesta, mas não quando ela os manifesta. Então,
a verdade fica incômoda e quem a proclama se torna objeto de ódio e de
abjeção... ".

Beatrice tinha chegado atrás de mim e lia a última página enquanto


eu a terminava.
"Emilio, eu gostaria de conhecer esse homem."
"Eurípides ou Lutercio?"
"Os dois. Um reflete o outro."
"Cada um se apaixona pela imagem idealizada de si mesmo, segun­
do Tulio."
"É isso que torna alguém sedutor, não é?"
"Segundo a teoria, sim."
"Então, Emilio, nosso amigo Lutercio se enxerga em Eurípides e
vocês se identificam com ele."
"E você gostaria de conhecer os dois."
"Eles dois. Você e Anna eu já conheço."
"Mas há mais gente interessada em Lutercio."
"Sim, meu caro. Bruno, Isabella e Lorenzo estão interessados em
conhecê-lo. Mas eu gostaria de poder amá-lo."
"Ele é tão charmoso assim?"
"Talvez seja charme. Mas o que me atrai é, mais que tudo, essa in­
dignação, essa amargura, essa fidelidade a si mesmo. A frase está um pou­
co solene. Mas eu gostaria de colher, como uma ouvinte devotada e cari­
nhosa, tudo o que Eurípides ou Lutercio quiseram dizer e não disseram.
Porque quem lhes estava ao lado não os amava ou não tinha paixão su­
ficiente para entendê-los."
"Paixão para entender! Veja só, meu anjo. O milagre de Lutercio. A
paixão já não é um obstáculo ao conhecimento. É o caminho para ele."
"Sei lá, Emilio. Eu vim aqui para dizer que Anna, Lorenzo, Bruno
e eu vamos almoçar num lugar que Bruno descobriu. Você quer ir?"
"Vou. Mas quero refletir um pouco sobre esse trecho que te impres­
sionou tanto. Passo na tua sala dentro de meia hora."
Ela saiu e eu voltei ao texto da tradução.
Mais uma vez o nosso querido bispo vermelho revelava seu amor à
verdade, sua aversão à hipocrisia e, a quem soubesse ler-lhe as entrelinhas,
sua amargura diante do poder da hipocrisia. Ou da hipocrisia do poder,
quem sabe. Era o discurso de quem conhece o poder e seus ardis, mas o
despreza por ser injusto e, fundamentalmente, retrógrado, além de cruel.
Eram pensamentos de quem conhece a força das idéias e as motivações do
poder diante delas, quando elas o contestam. Ou quando são apenas al-
ternativas às que lhe servem de justificativa. Quando são, apenas, novas.
Ficava claro, ao menos para mim, que Lutercio era alguém caído em des­
graça, no âmbito dos que perseguem idéias heréticas, imorais, perigosas
ou, numa palavra, novas.
Entre o Lutercio que homenageava Pedro de Verona, o terror dos
valdenses, no afresco luminoso da capela e o Lutercio amargo e duro do
Commentarium, algum acontecimento decisivo havia posto à prova as
virtudes de nosso querido bispo e, sobretudo, seu amor à verdade. E me
lembrei de Eurípides, incompreendido e recolhido à paz de uma caverna
a escrever para outros tempos. Voltou-me de repente a idéia, quase aluci­
nante, de que Lutercio tinha pensado em mim, em nós, Anna, Lorenzo,
Bruno e todos do Galilei, quando escrevia o Commentarium. Ele estava,
de certo modo, circulando entre nós. Mais, ele estava dentro de mim e de
Anna, ocupando irresistivelmente nosso pensamento, nossos sentimen­
tos, nossa paixão. A "teoria da sedução", de Tulio, não era simples brin­
cadeira de intelectual. Mas eu me sentia tão diferente de Lutercio, que por
mais que idealizasse minha imagem, ela nada tinha dele ou de Eurípides.
Percebi que eu estava voltando ao divã e decidi reagir. Eu tinha que fin­
car os pés na realidade. Lembrei meu projeto de pesquisa sobre a evolu­
ção da idéia de loucura, Lanebbia, Anna, a discussão no Menarost, a "teo­
ria" da genialidade, de Giulio...
"Vamos, Emilio!" Era Bruno que me chamava da entrada da sala.
"Desculpe, eu não sabia que você estava em outro planeta."
"Vamos lá." Levantei-me com a sensação de ter deixado uma parte
de mim a interrogar o bispo vermelho. Ou a escutá-lo. Não pude saber
se o fantasma de mim mesmo era o que deixou a sala ou o que ficou lá.

168
"Você e Lorenzo vão comigo", informou Bruno. "Hoje vamos al­
moçar no Piemonte." Lorenzo já estava no banco de trás do Citroen.
Com aquelas pernas enormes, parecia uJIla girafa dentro de um balde.
Uma girafa impaciente: "Vamos logo, Bruno! Por que você não compra
uma Maseratti?".
"Porque gasto tudo em gasolina. Meus amigos só andam de carona
no meu carro para economizarem gasolina e os carros deles."
"Um amigo é mais importante do que um tesouro. Você nunéa leu
isso?"
"É frase de algum filósofo de pizzaria, que andava de carona?"
"Você precisa estudar mais. Anda lendo pouco", disse Lorenzo, em
tom professoral.
"Prometo emendar-me."
"Nós temos que voltar àquela villa logo que der. Você telefonou
para sua tia ou para Dom Attilio?"
"Já. Mas você deveria encaminhar as coisas com Lanebbia. Não foi
isso o que combinamos? Nós devemos uma resposta a Dom Attilio."
"E quem te disse que eu não fiz isso? Olhe que eu desço de seu car­
ro e você vai sofrer a minha ausência. A propósito, Emilio, não é elegante
pegar carona nesta coisa sem conversar com o dono do carro. "
"Mas não é permitido falar com o motorista", respondi.
"Isso se aplica a veículos perigosamente velozes, como trólebus, bon­
des e ônibus. No presente caso a proibição não se aplica", explicou. "Aqui,
se você não fala o motorista dorme."
Bruno ria, com gosto. Mais adiante a estrada margeava uma torren­
te barulhenta, que escorria alegre em direção oposta à nossa. Em certos
pontos havia meninos pescando. Tentando pescar.
"E saiba", prosseguiu Lorenzo, tenho uma carta de Lanebbia
para Dom Attilio. O nosso ilustre pagador quer saber se o vigário permite
o envio de um arquiteto à villa, para examinar e medir os aposentos...".
"Esse desgraçado pode se meter a explorar a tribuna, Lorenzo", dis­
se eu.
isso, meu caro, eu disse a Lanebbia que Dom Attilio é muito
desconfiado e que a visita do arquiteto deve ser acompanhada por um ou
dois de nós. "
todo o vigário vai adorar a notícia."
"Graças à minha habilidade diplomática, aliás notória, a visita do
arquiteto será marcada por nós, de acordo com Dom Attilio."
"Desta vez você fez alguma coisa", provocou Bruno.
Lorenzo suspirou condescendente: "Veja quanta incompreensão,
meu caro Emilio! A propósito de incompreendidos, Beatrice me contou
dos teus achados no manuscrito e da tal nota sobre Brunus, no 'Hipó­
lito'".
Bruno insultou um par de cavalos que caminhava perigosamente à
margem da estrada e dirigiu-se a Lorenzo. "Ainda descubro quem é esse
meu xara. "
"É simples. Pergunte a Maria Eugenia."
"Ela diz que o melhor dicionário histórico sobre personagens famo­
sos é o de Bayle, de 1730. Nós o temos no Galilei, mas ainda não tive tem­
po de ver. E que a melhor livraria sobre história das heresias ou religiões
é a Claudiana, da Igreja valdense, em via Sforza."
"É curioso", disse eu, "porque os valdenses eram queimadores de
livros, no passado",
Lorenzo pôs-me a mão no ombro, esperando apenas que eu termi­
nasse a frase, para dizer: "Eis por que eu estranhei o nome daquele enca­
dernador de Cisterna d'Asti... Como se chamava ele?".
"Aurelio Valdesi."
"É esse. O sobrenome vem claramente da seita de Petrus Valdus,"
"Valdus, que no vocativo é Valde", completei. Contei a eles meu
erro ao traduzir a frase do mártir na capela da villa.
"Veja só, Bruno. Até os gênios se enganam. Mas se o nosso Lutercio
resolveu homenagear o inquisidor com aquele afresco, ele também de­
veria ser meio linha-dura, com os pobres hereges, valdenses ou outros.
Você não acha, Emilio? No Piemonte eles nasciam como praga..."
"Foi, e se arrependeu. Isso está claro no Commentarium." Passei a
explicar a "conversão" de Lutercio a partir dos "erros da juventude".
"Para mim ele poderia até ter sido um inquisidor por algum tempo, en­
quanto bispo, já que não era dominicano... "
Bruno olhou-me surpreso. "Como você sabe?"
"Tenho dois indícios. Primeiro, ele pensa e escreve como um críti­
co de qualquer dogmatismo. É incapaz daquela submissão militar dos
dominicanos. Não tem aquela fidelidade canina, dos Domini Canes, à
hierarquia clerical. Segundo, ele esteve em Paris, baluarte da inteligência
franciscana..."
Bruno tinha reduzido muito a velocidade do carro e procurava algo
no retrovisor: "Onde se meteram aquelas duas?".
"Anna e Beatrice saíram no Land-Rover antes de nós, se é sobre elas
que você pergunta", explicou Lorenzo. "Elas estão meio esquisitas des­
de que achamos os livros. Beatrice acha que nossa mina mais rica vai ser
o encadernador de Cisterna d'Asti. Isabella está em órbita desde que viu
aquele pedaço de antifonário e Anna só terá paz quando botar a mão na­
quele volume das Bacchae..."
"E você acha que a mina é o afresco da biblioteca, que os pintores
antigos et coetera, et coetera, et coetera..." Bruno falava num tom de des­
crença e enfado.
"Vejo, com prazer, seu entusiasmo pela minha tese. Mas é isso mes­
mo, Bruno. Vocês verão, quando visitarmos a biblioteca, que os pinto­
res antigos, et et coetera, et coetera..."
"E a minha tradução?", perguntei. "Afinal, até agora, além de hipó­
teses, o que temos é um perfil bastante definido do bispo vermelho. Te­
mos evidências de que ele foi um dos nossos primeiros helenistas, o pri­
meiro a traduzir Eurípides para o latim, tinha acesso aos primeiros ma­
nuscritos trazidos de Bizâncio, era um eclesiástico importante, bibliófilo,
simpático às heresias ou aos hereges... Tudo isso, graças ao meu trabalho.
Temos que seguir todas as pistas: Aurelio Valdesi, o afresco e os textos."
Lorenzo estranhou: "Os textos? Não é só o Commentarium?".
"Há também o 'Hipólito', que tem aquela nota sobre Brunus e, pro­
vavelmente, outros indícios das ligações de Lutercio com a fauna curio­
sa de literatos, helenistas, contrabandistas e ladrões de manuscritos. Deve
ter sido uma gente fascinante. O diabo é que Anna não sabe latim. Se sou­
besse já teríamos mais dados. »
"Ela está apaixonada, Emilio. Está dividida..." Meu sangue conge­
lou. Ele prosseguiu: "... entre Eurípides e Lutercio". Minha sensação foi
de alívio e de perda. Lorenzo emendou: "Pois para quem ama a tragédia
grega, a figura de Eurípides é fascinante. Mas a de um bispo genial e pros­
crito, que partilha com ela o mesmo amor por Eurípides e a intimidade
com os originais gregos das tragédias, algumas já perdidas, deve ter uma
sedução irresistível".
Bruno pigarreou ostensivamente e alfinetou: "Convém notar que
essa 'teoria da sedução' de Eurípides e Lutercio, formulada há já algum
tempo, por Tulio, foi objeto de discussão em oportunidade anterior, na
qual, infelizmente, não pudemos contar com o brilho de suas contribui­
ções. Sem mais, para o momento, envio-lhe cordiais saudações. Bruno
Salvadori, secretário". Olhou de viés para Lorenzo e buzinou para algu­
mas garotas que pedalavam no jardim de um casarão velho.
"Precisamos ensinar bons modos a esse rapaz", reagiu Lorenzo.
"Que argumentação! Você anda lendo demais, Lorenzo."
"Você ganhou. Eu pago os aperitivos. Mas mande trocar os amor­
tecedores desta coisa. E, ademais, eu não posso perder meu tempo em dis­
cussões românticas sobre sedução. O que quero dizer é que Anna anda
meio esquisita, desde que achamos esses livros. Vocês ficaram todos meio
malucos. Ninguém mais toca sua pesquisa. Só Tulio construiu em tem­
po sua arca e se salvou."
"Então você se inclui entre os malucos?"
"Não há como ignorar esse imbróglio de Lutercio", respondeu Lo­
renzo. "Por isso eu quero voltar à villa logo que puder. Quero saber
quem foi esse bispo e poder voltar aos meus livros de medicina antiga. "
"E eu, aos meus textos sobre alquimia", suspirou Bruno.
Também minha pesquisa sobre a idéia de loucura tinha que esperar.
Os meus problemas eram dois: Lutercio e Anna. Enquanto não resolvesse
o de Lutercio eu não poderia retornar aos meus livros. Quanto a voltar à
paz, havia pouca esperança. Se não conquistasse o amor de Anna eu não
teria descanso. Se o conseguisse, menos ainda. Mas o vulcão me atraía. Na
pesquisa sobre Lutercio, eu estava aprendendo algo sobre história do co­
nhecimento. A nossa investigação, embora desordenada, era fecunda e até
segura. Ela não seguia um método. Seguia uma paixão. E pensei então que
a objetividade talvez seja o melhor caminho para descobrir e explicar con­
ceitos ou doutrinas. Mas quando se trata de descobrir e entender figuras
do passado, pessoas, uma certa dose de paixão ilumina detalhes que a me­
ra racionalidade não enxerga.
"Chegamos", disse Bruno, "lá estão as duas". Anna nos acenava,
sorridente. Gostei de vê-la feliz. Beauice retocava o penteado no retrovi­
sor externo, muito inclinada, de costas para nós. Bruno deu-lhe um as­
sobio malicioso e ela, sem se voltar, gritou: "Cretino!".
Capítulo 8

A bandeja

o lugar não era propriamente um restaurante. Era uma casa velha


e grande, de dois andares, com carroças e mulas na frente. Um casal de
camponeses e suas duas filhas moças haviam transformado três salas do
casarão em uma espécie de taverna onde serviam, além de excelentes vi­
nhos do Oltrepo, alguns pratos. Bruno explicou que eram pratos casei­
ros, preparados com carnes e outros produtos da casa. Apenas entramos,
uma das moças convidou-nos a ver a horta em que cultivavam verduras
e temperos e a criação de porcos, frangos, patos e peixes. Só Lorenzo,
Beatrice e Anna foram até lá. Bruno escolheu uma mesa de seis lugares,
junto à janela que dava para um regato, nos fundos da sala. O dono, gor­
do e loiro, chegou com um enorme sorriso e duas anânimas garrafas ver­
des, destampadas.
"Provem, senhores. É o melhor Gattinara que se pode beber em to­
da Itália." Era, de fato, um trabalho de mestre; robusto, macio, brilhan­
te, cor rubi. Como mandam os manuais. O dono esperou nosso julga­
mento e sorriu triunfante: vinho é Gattinara. Eu sou Francesco, a fi­
lha mais morena é Patrizia e a outra é Bettina. Estamos à sua disposição".
Um cartão grande, amarelado, escrito em primorosa letra feminina
era o cardápio da Trattoria deI Picchio. Lorenzo entregou-o a Anna. Ela
passou aqueles lindos olhos de alto a baixo, e pediu ajuda.
"Gente, são umas coisas meio diferentes: Risotto nero colle seppie,
Anatra seIvatica in umido, Vitello garofanato ..."
Francesco percebeu a estranheza dela, e nossa, e achegou-se solíci­
to: "Os senhores gostariam que lhes explicasse o que temos para hoje? O

173
Risotto nero é feito com lulas, cortadas em quadrados muito pequenos,
postas a refogar em óleo muito fino, sobre meia cebola ralada e dourada
lentamente. Quando as lulas começam a amarelar, juntam-se três beter­
rabas bem picadas, que devem ferver em seu próprio líquido, por uns
trinta minutos... ".
"Mas então demora... ", começou a perguntar Beatrice.
"Não, senhora. Tudo isso já está feito desde as onze da manhã. O
resto do preparo é que depende da escolha dos senhores. Consiste em
juntar o arroz, e toda a tinta das lulas, que foi retirada antes de cortá­
las. Quando o arroz absorve todo o líquido, adiciona-se água aos pou­
cos até ficar ai dente. Coloca-se uma colher de manteiga e meia de salsi­
nha picada."
"E a Anatra?", quis saber Bruno, muito compenetrado.
Francesco olhou-o com admiração: "O senhor certamente tem bom
gosto. Não é fácil encontrar um pato bem preparado. Mas os nossos são
criados aqui mesmo e preparados por minha mulher, que é uma artista
nessas coisas. O pato é lavado na véspera, com vinagre, e fervido ligeira­
mente antes de ser temperado com sal e pimenta negra. Faz-se então um
refogado com três colheres de azeite e presunto gordo picado fino. Jun­
ta-se logo um punhado de cenoura ralada, outro de aipo fresco picado e
meia cebola moída. Nesse refogado coloca-se o pato, derramando sobre
ele o suco que se forma na caçarola, até dourar por inteiro. A seguir, jun­
ta-se água quente, aos poucos, até o cozimento completo...".
Lorenzo deglutia cada palavra de Francesco e Beatrice revirava os
olhos, lábios entreabertos, quase babando. "O senhor tem algum aperi­
tivo da casa?", perguntou. A resposta foi pronta: "Patrizia, cinco aperiti­
vos aqui, minha cara."
A moça veio prontamente, ondulante, mas discreta: "Temos dois ti­
pos, um negroni com angustura preparada por nós ou, então, suco de
pêssego, com vermute branco e um pouco de gim". Lorenzo, que estava
na cabeceira da mesa, começou a consulta à sua esquerda, interrogando
Beatrice e Anna. Depois passou à direita, com Bruno e eu. Todos esco­
lheram o segundo. Patrizia retirou-se sorridente enquanto Francesco sus­
surrava ao meu ouvido: "É uma invenção delat".
Anna, sentada à minha frente, me dirigia olhares fugazes, mas com
certa ternura. Patrizia chegou com cinco taças em forma de tulipas sobre

174

uma bandeja hexagonal. Anna fixou-a encantada. Tinha duas grandes al­
ças de prata com esplêndida decoração liherty. "Que maravilha esta ban­
deja!", disse. "Está na família há mais de cem anos", respondeu Patrizia,
orgulhosa. "Deve ser de ágata ou jade, não sei." Anna olhou-me fundo
nos olhos, como nunca me olhara antes. Quando Patrizia se foi, ela es­
perou que a conversa recomeçasse e então me segredou rapidamente: "É
alabastro". Comprimiu os lábios, quase tímida e me sorriu. Um sorriso
de... amor, pensei. Eu tinha deixado metade de mim junto ao Commen­
tarium e não conseguia ligar-me à conversa. Não que estivesse concen­
trado em outro assunto. Eu, simplesmente, não conseguia ligar-me ao que
se dizia ao redor. Mesmo sem perder nada do que se falava.
Francesco aproximou-se, a um aceno de Lorenzo. "Querem saber
sobre o Vitello garofanato, não é? Já explico: são postas grossas que des­
cansam em vinho branco seco, por seis horas. Depois são adornadas com
fatias grossas de toucinho e sob elas colocam-se alguns cravos, não mais
de quatro por quilo de carne. A seguir, a carne, amarrada, deve ser refo­
gada em manteiga com meia cebola em fatias e duas colheres de óleo fi­
no. Quando estiver dourada em todos os lados, acrescenta-se um copo de
água e se deixa ferver muito lentamente, até completar o cozimento."
"Risotto nero para todos, eu suponho", disse Lorenzo. "Quem quer
Vitello? Beatrice e Anna. Ninguém mais? Então, pato para Bruno, Emilio
e também para mim. "
"E um pouco mais desse Gattinara", pediu Beatrice.
O aperitivo de Patrizia era uma perfeita harmonia de sabores e aro­
mas. Quando Francesco terminou sua explicação cada um já tinha es­
gotado sua dose. Enquanto o pai foi buscar mais garrafas do Gattinara,
Patrizia chegou para recolher as taças, com a bandeja de alabastro. Foi
então que olhei para as alças. Cada uma tinha sete hexágonos, alguns com
figuras em baixo-relevo e outros vazios, ligando uma figura a outra. Nu­
ma das alças os hexágonos vazios eram quatro e as figuras eram três. Na
outra, quatro hexágonos tinham figuras e os demais não.
Bruno observou as figuras e começou a pensar alto, como costuma­
va: "No teto do teatro temos nove hexágonos com letras e um vazio no
meio deles. Aqui temos sete com figuras ...".
"Mas no teto da tribuna temos quatro com figuras e nesta alça tam­
bém há quatro com figuras. Mas aqui são todas figuras femininas, mes­
mo na outra alça", observou Lorenzo. "Lá temos um fauno, um poeta,
e duas musas. Uma é Erato, por causa da trombeta, e outra, com a lira, é
Clio. "
"Aqui temos sete figuras femininas que poderiam ser musas", opi­
nei. "O número de musas variou muito, na antiguidade. Em Sícion eram
três, representando as três cordas da lira primitiva. A origem dessa ban­
deja, ou melhor, dessa decoração, deve ser siciliana..."
"Por quê?" A pergunta de Anna era mais desafio que curiosidade.
"Porque em Lesbos e na Sicília as musas eram sete. Como essa ban­
deja dificilmente seria lésbica, deve vir da Sicília. Ou, quem esculpiu as
alças tinha influências da cultura grega na Oikélia, a nossa ensolarada ilha
do sul."
"Muito obrigada."
"Disponha. Na Atenas antiga as musas eram oito, como gostavam
os pitagóricos..."
"Senhores, eis o Risotto nero. Minha mulher disse que hoje está ex­
cepcional. Bom apetite", disse Francesco. Era mesmo um prato muito
especial. O suficiente para que eu perdesse qualquer audiência. Lá pelo
meio de seu Risotto, Lorenzo lembrou que o número das musas, final­
mente, ficou nove.
"Os nove hexágonos do teatro! Policleutame...", tentei lembrar.
"Não", corrigiu-me Anna. "Ê Poleuclitaumerateca. Disponha."
Peguei a caneta de Bruno e escrevi num guardanapo de papel as ini­
ciais de cada musa: P, E, C, T, U, M, E, T, C. Eram as letras dos hexágonos.
Três vogais, E, E, U, e seis consoantes, incluindo dois T e dois c. Anun­
ciei minha descoberta. "Os hexágonos do teatro trazem as iniciais das
nove musas."
Bruno ficou imóvel, com o garfo na boca. "Bravo!", disse Anna
apertando minha mão. Beatrice e Bruno brindaram-me com o vinho. Lo­
renzo lamentou: "Eu devia ter percebido isso. Afinal, num teatro como
aquele, as musas deviam ter um lugar de honra. Parabéns, Emilio". Bru­
no não perdoou: "Você anda lendo pouco, Lorenzo".
"Na próxima viagem, precisamos evitar esses pombos mal-educa­
dos, Emilio."
"Mas ele é o amigo de Dom Attilio", lembrei.
"Oh, céus! Quanta coisa temos que suportar para iluminar a huma-
nidade", conformou-se Lorenzo. E sorriu para Bruno: "Você ganhou, seu
pombo miserável".
"Além de tudo, você precisa de carona", lembrou Anna.
"Isso já é conspiração. Só por causa de alguns hexágonos... Eu ain­
da vou achar a carteira de identidade desse Lutercio e desfilar com ela na
Galleria. "
"Cuidado com os turistas do Biffi. Não vá cair sentado diante deles",
recomendou ela.
Lorenzo encolheu os ombros, resignado, e levantou '0 copo num
brinde. "Vocês ganharam... Por enquanto."
Bettina chegou trazendo os pratos de Vitello. Logo após, com certo
garbo, Francesco trouxe os patos. Vinham acompanhados de purê de la­
ranjas e arroz branco. A vitela vinha com saladas de almeirão e de chicó­
ria vermelha, além de batatas ao forno, num sutil aroma de alecrim.
Beatrice encheu todos os copos e despediu-se: "Nos próximos qua­
renta minutos estarei impedida de cuidar de qualquer assunto. Até mais
tarde".
"Digam que eu viajei", pediu Bruno. "Bom apetite!"
Quando todos terminaram, ninguém tinha condições para qualquer
coisa mais séria. Nossos neurônios estavam "fora do ar". Após uma sa­
lada de frutas campestres com maraschino e sorvetes de amoras, Lorenzo
pediu licores. Bettina trouxe um carrinho com umas dez garrafas colori­
das. Havia vários licores de frutas, feitos pela família, e uns quatro tipos
de amaro. Entre eles, o meu preferido, Braulio. Enchi um cálice grande,
dei graças a Deus por ter nascido, por não ter que dirigir o carro e por ter
Anna tão perto de mim. Tive vontade de dançar.
Por sugestão de Anna, começamos a caminhar pelo campo seguin­
do o regato. Bruno na frente, depois Lorenzo com Beatrice e mais atrás
Anna e eu.
"Gostei de sua descoberta", disse-me ela.
"Eu gostei da bandeja."
"É. Parece que essa história está marcada por alabastros."
"Não devem ser nada de mau agouro, espero", respondi.
"Para mim até hoje só trouxeram prazer. Espero que continue assim."
"Então, vou procurar um fornecedor atacadista. Pronta entrega, a
domicílio. Seu endereço, por favor."

177
"Assim não tem graça, Emilio. É o alabastro que deve cruzar o nosso
caminho."
"Este nosso é retórico?"
"Como você quiser."
"Gostaria que não fosse."
"O alabastro encanta, mas é frágil, meu caro."
"Deveria preferir uma bandeja de granito, só por isso?"
"Não", disse ela, segurando-me a mão, "eu também prefiro o alabas­
tro. Mas é preciso estar pronto para o sofrimento quando ele se partir."
"Viver é correr riscos, segundo disse Zaratustra. Ou De Gaulle."
Lorenzo, Beatrice e Bruno tinham-se embrenhado numa plantação
de pessegueiros, na parte mais baixa da encosta.
"Esqueceram de nós", disse Anna. Tomei-lhe o rosto nas mãos e o
acariciei com ternura, quase tremendo. Ela dependurou-se em minha nu­
ca e, com um sorriso que nunca esquecerei, aproximou lentamente os lá­
bios entreabertos à minha boca, num beijo quente, úmido, carregado de
desejo. Beijei-a então, como jamais beijei alguém. Era desejo e era amor.
O desejo mais ardente e o amor mais terno. Senti então que eu mergulha­
va, feliz, num vórtice de lava... Ficamos abraçados, longamente, sem di­
zer nada. Não era preciso. Depois ela me beijou de novo e disse: "Minha
vida é complicada, Emilio...".
"Mais tarde falaremos disso. Podemos voltar ao La Strega para um
Carpano."
"Vou adorar. Mas, amanhã. Hoje já tive libações e emoções demais."
"De acordo." Fomos procurar os amigos. Eu me sentia mais pode­
roso do que Alexandre, Julio César e Napoleão juntos e, sobretudo, mui­
to mais feliz que eles.
Subíamos a encosta, de volta, ouvindo Beatrice explicar a Bruno co­
mo ela fazia sorvetes de pêssego. De repente, quatro cães enormes avan­
çaram em nossa direção. Rosnavam como feras, aterradores, prontos a
fazer em pedaços quem se aproximasse. Anna agarrou-se a mim e Beatrice
escondeu-se atrás de Bruno, que procurava, aos gritos, espantá-los. Lo­
renzo levou as mãos à à maneira de um megafone e assobiou. Um
assobio agudíssimo e muito longo. Os se desorientaram e pararam
no meio do caminho, rosnando, ameaçadores, prontos para o ataque. Lo­
renzo começou então um "discurso aos cães", aos berros e em

8
tom autoritário. Depois foi baixando o tom de ameaça até chegar a fra­
ses tranqüilas e lentas. Fez uma pausa e com a autoridade de um doma­
dor ordenou-lhes que fossem embora, com gestos enérgicos e voz extre­
mamente firme. Os cães, um a um, tomaram o rumo da Trattoria. Menos
um, o maior deles, que se sentou no caminho lançando-nos olhares fero­
zes. Lorenzo tomou um pedaço de pau e caminhou resoluto na direção
do animal, aos gritos. O cão levantou-se e afastou-se rapidamente.
A primeira a falar, passado o susto, foi Beatrice, muito pálida. "Lo­
renzo, onde você aprendeu tudo isso? Você nos salvou." Eu abraçava
Anna, que estava lívida e tremia. A primeira coisa que conseguiu dizer foi:
"Obrigada, Lorenzo. Eu tenho pavor de cães". Lorenzo subiu em um
tronco e resolveu imitar o Brancaleone de Gassman, sucesso mais recen­
te do cinema. Ainda brandindo o pedaço de pau como uma espada arre­
medou a fala grotesca: " Ecco, miei fidi, miei prodi, che lo duce vostro non
conosce timore né fremito dinnanzi a cotante ferocissime belve. Alte le
insegne! Fronteggiamo nemici, belve et perigli. lnnanzi! Ad Aurocastro,
lo castello nostro!". Bruno entrou no jogo, e entoou a marcha do filme:
"Branca, branca, branca!". Beatrice engrossou o coro.
Lorenzo então cruzou os braços, agora muito sério, e perguntou em
tom severo, olhando para os dois: "Vocês não têm vergonha de se diver­
tirem de modo tão infantil?". Ele mesmo respondeu: "Eu não!", e desa­
tou a rir. Incrível: Lorenzo ria, sonoramente. Milagre de Baco. Deu um
beliscão afetuoso na bochecha de Beatrice: "ln vino veritas, minha que­
rida". Enlaçou-lhe a cintura com o braço e ordenou a marcha para os car­
ros: "Ad macchinas!".
Durante a caminhada, Anna quis saber como ele aprendera a domi­
nar os cães daquele modo.
"Primeiro, um pouco de teoria", começou ele. "Vocês devem saber
que a fauna montanhesa do Piemonte é a mais rica do mundo em varie­
dade de espécies. Nestas montanhas encontram-se os mais diversos tipos
de veados e caprinos selvagens, incluindo o mais nobre deles, a camurça.
Por isso, os grandes senhores desta terra, quase sempre nobres, tornaram­
se grandes amantes da caça e peritos nessa arte. Daí, a prática da caça e o
domínio de seus métodos tornaram-se um costume da nobreza. Daqui e
do resto da Europa. Um dos duques da casa de Savoia assinou um trata­
do que dividia ao meio toda uma cadeia de montanhas, seguindo a linha

179
de divisão das águas. Metade das terras ficaram no Piemonte e a outra
metade passou para a França. Mas o tratado prescreve que em toda a ex­
tensão da cadeia, a crista mais alta, em ambos os lados permanecia pro­
priedade particular do duque e sua reserva pessoal de caça... "
"E daí?", perguntou Beatrice.
"Daí, o Piemonte se tornou um enorme viveiro de cães de caça de
todos os tipos. Alguns são extremamente ferozes com animais e pessoas
que não conhecem. Ao longo dos anos essa agressividade foi apurada ge­
neticamente e algumas espécies se tornaram muito perigosas."
"Como você aprendeu tudo isso?", interroguei.
"Enquanto outros correm atrás de hexágonos", respondeu olhando­
me de viés, "eu, nas horas vagas, também sou caçador, há vários anos.
Melhor: fui caçador até o ano passado e aprendi a lidar com alguns cães
de caça. Mas o que vocês viram hoje foi, em boa parte, efeito do Gattinara
mais que da minha experiência anterior...".
"Sem modéstia! Você foi decidido e controlado", reconheceu Anna.
"Muitas decisões são como sementes. Só germinam se regadas... a
vinho, minha cara."
"Um dia decido trocar a suspensão do carro", provocou Bruno.
"Mas é uma semente que ainda não foi regada o suficiente." Lorenzo pe­
gou-lhe o braço: "Vamos embora, seu beberrão. As suas sementes são
impermeáveis".
"As sementes têm algo de trágico...", murmurou Beatrice.
Anna olhou-a curiosa: "O quê?".
"Noutra hora eu te explico."
Resolvemos tomar um café antes da viagem, na Trattoria. Frances­
co desculpou-se pelo incidente com os cães. Eram de um freguês e haviam
escapado de seu furgão. "Espero que tenham gostado do almoço e da nos­
sa casa."
"Gostamos muito e vamos voltar", falou por nós Beatrice.
Lorenzo embarcou no jipe. Eu parti com Bruno. Gostaria de estar
com Anna, mas algumas horas de separação nos permitiriam absorver
toda a intensidade e a beleza do que tínhamos vivido. Eu estava pronto
para enfrentar qualquer assunto, com interesse e generosidade. Bruno
preferiu planejar a nova visita à villa. Deveríamos dividir o grupo, segun­
do ele. Era melhor que, enquanto alguns explorassem a vil/a, outros fos­

180
r

"

sem visitar o livreiro ou encadernador em Cisterna d'Asti. O melhor se­


ria que Beatrice levasse Isabella e Anna para lá e nós fôssemos tentar a
sorte em Madonna della Spina. Ele tinha suas razões. Isabella tinha fica­
do amiga de Aurelio Valdesi, Anna precisava dar uma olhada nas Bacchae
e tentar ficar com ele por uns tempos. Beatrice era importante para "fa­
rejar" novas pistas e porque alguém deveria manter a cabeça fria e o sen­
so prático quando as outras duas estivessem deslumbradas com os tesou­
ros de Aurelio. Isabella estava maluca com a idéia de conseguir aquele
pedaço de antifonário e não teria condições de negociar com o livreiro.
Anna, quando visse o volume das Bacchae, não enxergaria mais nada.
Bruno era o nosso estrategista, afinal. E tinha sentido o que dizia. Eu
apenas tinha dificuldade de aceitar que Anna não fosse conosco, conhecer
a vil/a. Mas a presença dela na oficina de Aurelio Valdesi era vital. Numa
olhada ela podia descobrir muita coisa naquele volume. Na vil/a, segun­
do Bruno, deveríamos estar prontos para anotar e desenhar tudo o que
houvesse naquela biblioteca. Lorenzo era um bom desenhista e entendia
profundamente de afrescos. Eu deveria encarregar-me de eventuais ins­
crições e símbolos, além de procurar vestígios de relações de Lutercio
com literatos, pensadores e outras pessoas da época.
"E você?", perguntei.
"Eu quero achar o truque para abrir o alçapão da tribuna."
"Algum plano?"
"Hipóteses, apenas."
" Secretas? "
"De modo algum. Andei bisbilhotando segredos de móveis antigos
em oficinas de restauradores. Há dois dispositivos mais usados: pinos re­
tráteis e ferrolhos corrediços. Os ferrolhos funcionam por comando de
alavancas, chaves ou rodas. No dossel há um sistema de ferrolhos com
molas, que são movidos pela rotação dos medalhões. Ora, uma rotação
só empurra uma trava se, num ponto do giro, algum pino, fixo na roda,
toca uma saliência da trava ou algum orifício no corpo dela. Ou, então, a
roda move uma cremalheira que é a própria trava. Pode haver duas ou
mais travas combinadas. Então, pelo menos duas rodas devem girar para
movê-las. Nesse caso, só em um momento preciso das duas rotações, as
duas cremalheiras retiram os respectivos ferrolhos... " Bruno falava com
fluência, como se eu fosse especialista em arrombamentos.

ISI
"Parece simples", observei.
"Parece. Há várias complicações que eu não contei. Uma roda pode
ter apenas função de transmissão entre outra roda e o ferrolho. Em alguns
casos, rodas com movimento excêntrico servem para engatar pinos de
transmissão, para bloquear movimentos ou para liberar o deslocamento
de uma trava. "
"Agora me perdi."
"Eu também vou tatear no escuro. Mas penso em algumas seqüên­
cias de movimentos. Um erro nosso foi não registrar as seqüências que
tentamos. "
Enquanto Bruno me explicava ferrolhos e cremalheiras, dirigia de­
vagar. O suficiente para que o jipe nos ultrapassasse. Beatrice avisou que,
nos esperaria na entrada de Sant'Ilario. Anna acenou sorridente e Lo­
renzo, no banco de trás, nos olhou com o mais olímpico desprezo. Bru­
no respondeu com uma buzinada rouca.
Quando chegamos a Sant'Ilario eram já quatro e meia, muito tarde
para voltar ao Galilei. Paramos na taverna da juke-box. Anna comprou
umas fichas e escolheu Il cielo in una stanza, de Gino Paoli. Uma canção
apaixonada, perfeita para a interpretação intensa de Mina. Enquanto to­
mávamos refrigerantes, Bruno expôs seu plano para nossa investigação.
Beatrice e Anna acharam ótima a idéia de irem visitar o livreiro Aurelio
e, como Lorenzo já tinha a carta de Lannebbia para Dom Attilio, podía­
mos retornar à villa logo, no sábado de manhã. Para voltar no mesmo dia,
porque Bruno tinha compromissos no domingo cedo. Beatrice encarre­
gou-se de combinar a viagem com Isabella. Depois de duas canções com
Ornella Vanoni, estávamos conversando sobre as músicas de Modugno.
Lorenzo olhava para o teto, esfregando preguiçosamente a barriga e fa­
lava, para si mesmo, talvez: "Esse livreiro esconde muita coisa, pelo jei­
to. Aquele volume das Bacchae saiu da villa. Como? Quando? Ele diz
que, há séculos, sua família lida com livros. Antigos, especialmente. É o
que ele contou a Isabella e Emilio. Lá pelo século catorze ou quinze, al­
gum valdense deixou de queimar livros e passou a cuidar deles. Devia ser
um homem brilhante, seguro de sua decisão, contestador. Uma espécie de
ovelha negra, um herege dentro da heresia. Sua atitude de salvar livros em
vez de queimá-los foi respeitada. Portanto, devia ser um homem superior,
influente. Tanto que toda a raça dele passou a cuidar de livros sem repre­
sálias, ao que parece. Na villa morava Lutercio, outra ovelha negra, con­
testador, também 'herege', do ângulo da ortodoxia católica. O antigo li­
vreiro tinha família e transmitiu sua atitude, transformada em profissão,
aos descendentes. Lutercio era bispo, não tinha a quem deixar sua paixão
pelas letras e seus livros. Como os dois eram críticos de suas religiões,
eram reciprocamente simpáticos... ".
Bruno continuou o pensamento: " ... e, então, os dois livre-pensado­
res se juntaram e foram felizes para sempre... ".
"Não!", disse Lorenzo. "Começaram a competir para ver quem con­
seguia livros mais raros, mais preciosos, mais antigos. E começaram a tro­
car livros. Dois Catulli carmina, em excelente estado, por uma Ciropedia
com escólios. Dois Diodoro Siculo por um Tito Livio..."
"E então?", perguntou Anna.
"Então... não sabemos qual dos dois ganhou."
"Não brinque, Lorenzo", disse ela.
"Então falo sério. Esse livreiro deve ter as pistas de algumas tonela­
das de livros antigos, guardados pelos avós dele. Talvez, porque eram in­
teligentes, soubessem que o método católico de defesa da doutrina era
mais eficaz: era mais seguro queimar os autores e os leitores do que quei­
mar os livros. Os valdenses não tinham cobertura política para fazer a
mesma coisa. Mas os mais cultos percebiam que tocar fogo nos livros não
convertia ninguém e só servia para destruir tesouros de conhecimento e
de sabedoria. Só que, no caso deles, a posse dos livros os tornava alvo de
dois inimigos: a ortodoxia valdense e a inquisição católica... "
Todos, menos Bruno, tinham sentado novamente enquanto Lorenzo
falava. Bruno pediu mais um café. Beatrice, que ainda tinha uma ficha,
foi à juke-box e apertou o botão F-4, C'e gente che ama mille cose, de
Sergio Endrigo.
"Os inquisidores que vinham para essas bandas eram os mais impla­
cáveis e sanguinários. Como aquele do afresco na capela de Lutercio, nin­
guém menos do que o cruel Pedro de Verona, como Emilio descobriu.
Por isso, os valdenses tinham que esconder muito bem os livros que pos­
suíam e os depósitos que conheciam. É natural que tivessem algum regis­
tro, secreto, dessas fontes ... "
Beatrice entendeu a seu modo: "Quer dizer que devemos dopar o li­
vreiro, revistar todas as gavetas, armários e porões que houver por lá. Sim­
pIes. Basta chegar lá com um colar de granadas, algumas bazucas... e um
pé-de-cabra na mão".
"Mais forte do que a fé que remove montanhas, minha cara, é a ma­
lícia feminina. Ela já derrubou reis e imperadores e... arromba qualquer
cofre." Eu lembrei como Aurelio Valdesi tinha sucumbido miseravelmen­
te às graças de Isabella e como se oferecera para indicar-lhe verdadeiras
minas de códices, incunábulos e outras preciosidades. Ele tinha citado a
villa do bispo vermelho como uma dessas minas, no passado. A idéia de
Lorenzo sobre um antigo valdense dissidente, bibliófilo e amigo dos her­
deiros da villa ou, talvez, do próprio Lutercio não me pareceu tão malu­
ca. Enquanto Lorenzo falava, Bruno, muito atento, estava às voltas com
um canto de unha no polegar esquerdo. Anna estava junto a uma janela
olhando para as colinas, mas, eu sabia, estava acompanhando cada sílaba
do que se falava. De repente, voltou-se para nós, como se continuasse a
fala de Lorenzo.
"Esse encadernador, ou livreiro, ou restaurador é um apaixonado
por livros. Sabemos que ele guarda alguns tesouros. Mas todo colecio­
nador que se preze, embora ciumento, não resiste à tentação de mostrar
seus troféus a quem os valorize adequadamente, mais ainda se for um
possível rival na 'corrida ao ouro'. Ele já demonstrou isso a Isabella e
Emilio. Por outro lado, pode ser que ele não tenha razões religiosas para
esconder livros proibidos ou perigosos. O sobrenome dele não implica,
necessariamente, uma filiação à doutrina valdense..."
"Sim", disse Bruno. "Não implica uma adesão dele. Mas, provavel­
mente significa que seus antepassados eram valdenses. E valdenses mili­
tantes e respeitados, já que eram designados publicamente como tais, sem
serem apedrejados. "
"E então?"
"E então, como ele mesmo disse a Emilio e Isabella, Aurelio Valdesi
sabe de um acervo precioso acumulado por seus antepassados e talvez
resista à tentação de exibi-lo."
Lorenzo interrompeu: "O que eu disse é que ele pode ter registros
desses livros dos antepassados. E que seria importante descobrir esses re­
gistros. Claro que os próprios livros interessam mais; mas uma lista de­
les já seria um presente dos deuses".
Os deuses naquele dia tinham sido particularmente benignos, pen­
sei. Marte espantara os cães pela voz de Lorenzo, Baco nos tinha alegra­
do o almoço, Minerva me inspirara a solução do enigma dos hexágonos
e Afrodite plantara a paixão no coração de Anna e no meu. As musas ha­
viam inspirado Sergio Endrigo, Omella Vanoni e Gino Paoli. Apenas
Diana tinha sido deselegante ao soltar aqueles cães terríveis contra nós.
"Acho que devemos pegar a estrada", disse Bruno. "De Sant'Ilario
a Milão temos ainda mais de uma hora. Vamos, Emílio." Enquanto Lo­
renzo e Bruno pagavam a conta, Anna agarrou-me o braço. "Estou mui­
to feliz. Você me deve um Carpano amanhã à noite. Sonhe comigo."
Quando estávamos já chegando a Affori, Bruno propôs uma visita
ao Anjo Azul, para uma cerveja. Depois daquela despedida de Anna eu
estava disponível até para empurrar locomotivas. Estava pronto para bal­
des de cerveja. Afinal, toda a cerveja do mundo existia apenas para fes­
tejar o amor e alegrar os que se amam.
No Anjo Azul, uma surpresa. Nossa mesa estava ocupada. Por Mau­
ro e Abelardo. Antes de qualquer cumprimento Abelardo nos apontou
como um promotor indica o réu: "Eis aí os folgados! Enquanto vocês se
enchem de vinho e colesterol, nós temos que salvar a honra do Instituto".
"Que foi?", perguntei. Mauro deu um suspiro de preceptor resigna­
do: "Vocês devem fazer alguma penitência. Um Barolo 64 para Abelardo
e um & Chandon para mim. Nós merecemos".
Bruno e eu não entendíamos o jogo. "De acordo", aceitou Bruno.
"Mas podem explicar melhor?"
Mauro explicou: "Lanebbia trouxe quatro editores para uma visita.
Queriam conhecer os pesquisadores e, principalmente, os nossos troféus
bibliográficos. Dois deles queriam saber sobre a villa do Piemonte e so­
bre o manuscrito do século XVI, sobre... Sófocles! Para eles é tudo a mes­
ma coisa. Percebemos que vocês tinham sumido. Abelardo soube, de Lu­
ciana, que tinham ido almoçar no Piemonte. Então começamos uma ope­
ração de despistamento. Quase como a do desembarque na Normandia.
Abelardo levou-os para a biblioteca e, diante de Maria Eugenia, disse qua­
tro ou cinco besteiras sobre o nosso acervo. Ela mordeu a isca. Pigarreou,
daquele jeito moralista, pediu licença para 'alguns reparos' e destampou
uma exposição exaustiva sobre õs códices, os incunábulos e os in folio da
biblioteca. Levou-os aos textos expondo tudo o que havia de glorioso por
lá. Eu, enquanto isso, procurei desesperadamente os livros da villa nas
salas de vocês. Fiz sinal a Abelardo de que não tinha achado nada. Ele vol­
tou à biblioteca e disparou mais algumas preciosidades... ".
"Eu só disse que tínhamos alguns incunábulos do século... XVII! Ma­
ria Eugenia empalideceu. Fez um discurso sobre incunábulos e usos in­
devidos desse nome. Depois olhou para o teto em busca de inspiração. E
achou: 'Estes afrescos são do século XVI. OS da igreja são mais antigos e
mais conservados. Se tiverem a bondade de me acompanhar...'"
"Vale o Barolo e o M oet & Chandon, mas... "
"Espera!", disse Mauro. "Enquanto Abelardo des-controlava a si­
tuação na biblioteca, Lanebbia, menos interessado nos afrescos, foi per­
guntar a Luciana sobre vocês. Ela bancou o jogo: 'Estiveram aqui até mais
tarde hoje. Sei que Beatrice e Anna iriam pesquisar na Ambrosiana e o
professor Emilio tinha um encontro na Universidade...'. 'E os outros?',
quis saber o chefe. Ela disse que Lorenzo e Bruno tinham saído com dese­
nhos da villa falando em visitar um certo pároco a respeito dela... En­
tão ele se tranqüilizou: 'Precisamos mesmo conversar com esse
"Vocês merecem os prêmios. Luciana, também..."
Abelardo respondeu: "Ela disse que também vai cobrar. Mas será
generosa porque se divertiu bastante com toda essa bagunça. Principal­
mente pela fúria de Maria Eugenia com a confusão dos incunábulos".
"Vocês perderam um almoço divino, uma gargalhada de Lorenzo e
uma Oratio in canes diabolicos", informei.
Bruno acrescentou: "Perderam também uma estupenda bandeja de
alabastro e o melhor Gattinara deste planeta".
Alberto chegou com um sorriso franco e cinco canecas de cerveja.
Empunhou uma delas e brindou conosco: "Às duas coisas boas da vida!".
Abelardo brincou: "Clientes beberrões e impostos baixos?" Ele respon­
deu pronto: "Não, doutor, o melhor da vida é amar e ser amado". Pen­
sei em Anna e secretamente brindei a ela. Lembrei aqueles lábios, aque­
le beijo...
"Como vai a tradução, Emilio?" Abelardo apagou meu sonho.
Expliquei os achados e, mais ainda, as idéias surgidas durante a tra­
dução. Um Lutercio quase herege, mas apegado a uma fé sincera, hones­
ta. Falamos dos planos de Bruno para"uma próxima visita à villa e dos
presumíveis tesouros que o livreiro de Cisterna d'Asti guardaria com o
manuscrito das Bacchae.

186
"Lorenzo diz que as Bacchae saíram da vil/a. Como?", perguntou
Bruno, mais para si mesmo, e continuou: "Ou saíram antes da morte de
Lutercio, ou depois. Em todo caso, ou foram entregues a um antigo Val­
desi, ou ele tirou o livro de lá".
Eu tinha visto o livro. A encadernação era idêntica à do 'Hipólito',
o mesmo material, a mesma forma, a mesma lombada. Se o 'Hipólito' fi­
cou lá e os volumes eram gêmeos, quem guardou um, entregou o outro
para um antigo Valdesi. Era uma hipótese. O dono do livro, Lutercio, não
o deixaria em mãos do velho livreiro, senão por boas razões. Menos ain­
da aceitaria que lhe roubassem o volume. As hipóteses mais prováveis
eram a de que Lutercio entregara o livro ou a de que o volume teria sido
retirado após a morte dele. Nesse caso, o livro saíra da vil/a, mas não da
tribuna, pois os outros livros foram deixados lá, no dosse!. Havia algum
sentido na idéia de Lorenzo sobre algum tipo de amizade entre Lutercio
e algum antepassado de Aurelio Valdesi. Mas se o livro não ficou no dos­
sel, não estava lá quando Lutercio morreu. Se não, teria ficado na tribu­
na emparedada. Então, saiu da vil/a quando o bispo estava vivo e, por­
tanto, foi entregue a algum patriarca dos Valdesi. Por Lutercio ou com o
consentimento dele. Gostei de meu raciocínio.
"Por que o bispo entregaria um volume tão precioso, até perigoso,
quem sabe, justamente a um valdense..."
Abelardo interrompeu a pergunta de Bruno: "Justamente por isso!
Porque o livro era precioso e perigoso. Onde os diligentes sequazes de
Bernardo Gui iriam procurar um manuscrito das Bacchae? Seguramen­
te, não na casa de um valdense".
Mauro percebeu uma falha no raciocínio: "Então, por que os outros
livros ficaram na tribuna? Não eram também perigosos?".
"Talvez não tanto", respondi. Eu conhecia bem "As Bacantes", por­
que gostava dessa tragédia. A não ser pela exibição do poder arrasador de
Dionísio, um deus pagão, eu não via nada que pudesse significar perigo
à fé ou aos "bons costumes". Porém, antes de dizer isso a Mauro, perce­
bi quanto minha percepção estava longe dos tempos duros de Lutercio.
Tempos de arbítrio e de crueldade. Tempos de perseguição a tudo o que
pudesse pôr em risco a submissão acrítica e devota das mentes. Havia
mais um motivo para ocultar o manuscrito: os Domini canes, insuflados
pela pregação de Dominici, estavam prontos a denunciar por heresia
quem, através dos textos clássicos, contribuía para a criação de um "novo
paganismo". A tradução das Bacchae implicava um risco duplo: o texto
latino e o original grego. A posse deles, no caso de um bispo importante,
já era arriscada. Mais ainda se ele já não desfrutasse das boas graças da
hierarquia clerical. O que parecia bastante provável, segundo os indícios
do Commentarium.
"Por quê?", insistiu Mauro.
"Porque essa é a única tragédia de Eurípides em que um deus entra
em cena e argumenta em favor dos ritos pagãos. Ritos que o casto Hipó­
lito considerara lúbricos e que Penteu acha obscenos, ainda que o mensa­
geiro informe que as mulheres celebrando os ritos sobrieda­
de, numa natureza bucólica, idílica. Um clero devasso e hipócrita poderia
até fechar um olho, ou os dois, para eventuais obscenidades em qualquer
texto, desde que a obra de Deus (leia-se: o poder e a riqueza do clero) não
sofresse contestação. Mas não perdoaria o triunfo final de Dionísio sobre
a rigidez moralista de Penteu, nem os argumentos do deus e seus adeptos
em favor de uma vida de prazeres, despreocupada, anárquica. O texto me­
xia com valores graves, o poder do rei, a sensualidade da mulher, o sentido
da moralidade, a distinção entre sacro e profano, o conceito de pecado..."
Abelardo mudou o rumo da conversa: "Depois de tudo isso, qual é
a importância de saber como o livro foi parar nas mãos do livreiro?". Bru­
no respondeu, prontamente, como se esperasse a pergunta. "Para saber se
o velho livreiro valdense foi um amigo ou cúmplice de Lutercio. Se isso
se confirmar, Aurelio Valdesi, sabendo ou não, guarda escritos ou do­
cumentos que podem causar vários terremotos."
"Pelo menos no Calilei", observou Mauro, resignado. "Quer dizer
que Abelardo e eu teremos que driblar Lanebbia ainda por muitas vezes..."
"Tomara que não. Afinal o prazo de minha pesquisa está correndo."
Foi o que eu pensei e Bruno falou.
Alberto veio com mais canecas, uma bandeja grande, cheia de fatias
de salame, presunto cru, copa e outras glórias da criação humana, e com
um conselho: "Caudeamus igitur, senhores, antes que cheguem os turcos".
"Sem dúvida, uma preocupação bizantina", comentou Abelardo.
A conversa então mudou de"rumo. Passamos a discutir, com a luci­
dez duvidosa que a cerveja costuma trazer, a importância dos manuscri­
tos bizantinos para a cultura da Europa. Mauro lembrou a importância

188

da disputa entre os nobres de Florença e os papas dos séculos XIV e XV


na cata aos manuscritos do Oriente. Diversos secretários e legados papais,
bem como vários embaixadores de Florença, eram exímios farejadores e
contrabandistas de manuscritos. Alguns se valiam da investidura papal
para saquear mosteiros e bibliotecas. Em compensação, temos hoje a Bi­
blioteca Vaticana. Mais museu que biblioteca, segundo Abelardo.
"O curioso", observou Bruno, "é que os papas colecionavam ma­
nuscritos dos clássicos e o clero pregava contra a tradução e a leitura de­
les, condenando os recalcitrantes como hereges. É que o clero quando lia,
lia Platão e Aristóteles, expurgados. Fora isso, os textos bíblicos, adapta­
dos por Jerônimo, e as obras da Patrística Antiga. Tudo como Filosofia,
Teologia ou Sagrada Escritura. Jamais como literatura, poesia ou teatro.
Foi assim que nosso querido Eurípides foi proscrito pela segunda vez."
"E a primeira?", interrogou Mauro.
"A primeira foi, segundo Anna, quando Platão, que forçosamente
conhecia o vigoroso pensamento de Eurípides, decidiu que suas tragédias
não eram Filosofia. O 'currículo' da Academia e do Liceu só incluía uma
filosofia racionalista de origem socrática. Uma visão ordenada e racional
do homem e do mundo. Baniu qualquer pensamento irracionalista, qual­
quer valorização das paixões e da emoção, marcadas como a parte vil do
homem, fontes de erro no conhecimento e de imperfeição ética."
"Sartre não passaria na seleção", concluí.
"O que se recusou foi o pensamento filosófico de Eurípides ou a for­
ma teatral de sua obra? Se fosse a forma literária, os Diálogos de Platão
também ficariam no limbo." A observação era de Mauro.
"Platão e Aristóteles jamais admitiriam, como Filosofia, textos em
que a hegemonia da razão e o valor da racionalidade são constantemente
objeto de dúvida, de contestação e até de ironia. Eles não podiam negar
o tremendo peso da paixão, na vida humana. Mas não podiam tolerar que
a paixão fosse proposta como a razão, sim, a razão da vida humana, em
muitos momentos." Era o que eu de fato pensava. Por isso, prossegui.
"Os textos de Platão, como os Aristóteles, têm uma preocupação dou­
trinária. Partem de uma concepção do conhecimento, da moral ou das
plantas e astros, assumida como certa, corteta, verdadeira e que se trans­
mite com argumentação, analogias ou diálogos. Mas professam uma dou­
trina, a boa doutrina sobre os mais diversos problemas da filosofia. E são
justamente essas verdades que Eurípides, na sua ilimitada honestidade
intelectual, não consegue abraçar. E por isso, jamais escreveria um trata­
do, um texto doutrinário."
"Gostei. Prossiga, Emilio!", encorajou-me Bruno, lá pela quarta ou
quinta caneca. O assunto me tinha preocupado desde a conversa com An­
na e Lorenzo no Menarost. Continuei, encorajado por minha indignação
com a proscrição de Eurípides, pela lembrança, já quase vaga, de que An­
na me amava e pelos fluidos superiores que a cevada deve conter: "O ra­
cionalismo de Sócrates desclassificou a paixão e o sentimento, transfor­
mando-os em pouco mais do que uma mochila de pedras a ser carregada
na subida íngreme da perfeição noética, voi/à, e ética. Nada de contradi­
ções. O mundo é ordenado e a vida também. Então a filosofia deve ser
exposta sem paradoxos, sem contradições, sem incoerências. Ora, tudo
isso era o que Eurípides não podia aceitar. Ele apontava justamente a in­
consistência entre as idéias e a natureza das coisas, o paradoxo da gran­
deza impotente do ser humano, a convivência desordenada entre a gene­
rosidade e a mesquinharia. E a beleza da racionalidade ao lado da reali­
dade inexorável do irracional, do acaso, do evento. Uma vez proscrita a
paixão, nem a Academia, nem o Liceu, podiam enxergar, nas tragédias de
Eurípides, algo mais que um duvidoso divertimento...".
Abelardo concluiu, forense: "Então, os delitos de Eurípides foram
dois. Uma concepção realista da vida e, por conseguinte, consciente da
irracionalidade que rege as decisões supremas dos homens e, em segun­
do lugar, uma forma não canôniça de exposição de suas idéias".
"Ele sabia que entre as coisas e as palavras há abismos e que a ver­
dade é uma questão de discurso. Ainda mais. Ele sabia que a racionalidade
é um sonho", concluí, com aquela segurança categórica que não se acha
facilmente fora das cervejarias. Gostei de minha fala e, coisa rara, por um
momento gostei de mim mesmo. Que Freud me perdoe, mas o melhor
método para fortalecer o ego ainda é a sensação de ser amado. Percebi
que, por uns tempos, eu poderia guardar meu divã no porão.
Alberto aproximou-se meio sem jeito: "Senhores, me desculpem, eu
tenho que fechar a casa. Noutro dia acertamos a conta". Saímos logo de­
pois. Na porta ele se despediu sorridente: "É preciso não esquecer que
Post jucundam juventutem nos habebit humus. Boa-noite e bons sonhos".
Se alguém não precisava desses votos era eu.
Adormeci feliz, sentindo ainda os beijos de Anna, e nem sei quan­
tas horas dormi. Sei que fui despertado pelo costumeiro repicar de sinos.
Eles me acordavam para mais um dia, ao lado de Anna. Parecia que fes­
tejavam o nosso amor. Afinal, o sacristão de Sant'Eustorgio podia até ser
um bom sujeito.
Capítulo 9

Dilectissimus magister

No Galilei, Tulio estava tomando um café, na secretaria. Luciana me


cumprimentou rindo: "Como foi sua visita à Universidade ontem? Can­
sativa?". Tulio estranhou, quase ofendido: "Você foi lá e não me pro­
curou?". Ela explicou a operação despistamento, executada na véspera.
Ele fingiu-se escandalizado: "Que horror! Pesquisadores que trocam o
dever por um prato de lentilhas!". "Não eram lentilhas. Era Risotto nero
con le seppie, Anatra selvatica e Vitello ai garofani." Ele lambeu os lábios
e manteve o tom severo, professoral: "Por outro lado, não é legítimo, nem
patriótico, vetar linhas de pesquisa pouco ortodoxas ou proibir que al­
guém se dedique a investigar a cultura nacional, em seus vários aspectos,
como a culinária, por exemplo".
Na minha sala esperava-me aquela luz trêmula de prata esverdeada
que vinha da copa das cerejeiras refletindo o sol. Mergulhei cheio de von­
tade na tradução do manuscrito. Gostaria que Anna demorasse um pouco
a chegar. Queria algum indício novo sobre Lutercio. Faltavam pou­
cas linhas para terminar o capítulo sobre as "Falsidades a respeito de
Eurípides".

" ... e os que a proclamam são apontados como propagadores do erro,


instrumentos do mal e até como inimigos da verdade e corruptores dos
costumes. Nunca faltam para isso acusadores veementes, hábeis nos sub­
terfúgios da argumentação e nos ardis da dialética (argumentationis diver­
ticula et dialecticas sollertias). Nem faltam os que, menos habilidosos no
domínio da silogística (syllogismi calliditas), procuram despertar contra
os acusados a suspeita de serem movidos por objetivos vis ou imorais... "

193
o texto transpirava indignação e desprezo pela hipocrisia dos que
procuram destruir a verdade quando ela "os manifesta". Mas agora apa­
reciam palavras muito expressivas. Até fiz questão de traduzir ao pé da
letra a forma latina. Falava-se em subterfúgios de argumentação, ardis da
dialética, e esperteza silogística. Lutercio, obviamente, já não escrevia
contra Aristófanes e adeptos. Nem em defesa de Eurípides. Escrevia em
defesa dos perseguidos por amarem a verdade. Eurípides era apenas um
deles. Os outros eram tão "hereges" ou suspeitos de heresia como, talvez,
ele mesmo. De outro modo não se explicava o ataque direto aos ardis da
dialética e da silogística. Procurei alguém para mostrar o texto. Achei
Abelardo e Mauro, no banco do lobo. Eles leram sem pressa.
Abelardo falou primeiro: "Isso lembra o Directorium Inquisitorum
de Emérico. Um receituário de arapucas que os inquisitores deveriam ar­
mar para obter a 'confissão' de bruxaria ou de heresia... ".
Mauro interrompeu: "Mas isso se aplica a um certo tipo de inquisi­
dores, como Torquemada, hábeis em distorcer perguntas e respostas até
obter as palavras que comprometem o réu. O texto ataca também um ou­
tro tipo. O que explora o fanatismo e os temores dos circunstantes e dos
juízes, de modo a suscitar a desconfiança e a aversão diante do acusado".
"Como quem?", desafiou Abelardo.
"Como o autor da Practica Inquisitionis, por exemplo." O tom de
Mauro era o mais pernóstico possível.
"Deixa de pose, fala logo."
"O grande acusador dos valdenses, Bernardo Gui. Não tinha a meta­
de da habilidade dialética ou retórica de um Pedro d'Ailly, mas era igual­
mente fanático e implacável. E igualmente rancoroso."
"Esse Lutercio", continuou Abelardo, "deve ter comprado uma gran­
de briga com os antiqui ou reales. E, pelo jeito, saiu perdendo. Esse texto
é de um nominalis, ou um ockhamista. Ele está muito longe das transcen­
dências platônicas".
Lorenzo chegou com vários papéis enrolados, alguns bastante ve­
lhos. Entrou na conversa: "Nesta marcha, você ainda vai descobrir quem
foi Lutercio, antes de chegarmos ao retrato dele na biblioteca".
"Por que vocês só fazem essas viagens nos fins de semana?", pergun­
tou Abelardo. "Só para nos excluir?"
"Precisamente", brincou Lorenzo. "Gente casada perde o faro. Mas

194
se vocês quiserem ir, algum dos dois tem que me levar. Não agüento mais
o carro de Bruno. "
"Por que não vamos no seu carro?"
"Podemos, mas não quero dirigir. Não quero que a viagem vire tra­
balho. Quem vai guiando?" Nem Mauro nem Abelardo tinham condições
de viajar naquele fim de semana, como de costume.
Lorenzo leu o trecho de Lutercio. Sorriu e opinou: "Como eu já dis­
se desde o primeiro dia, ele teve encrencas dentro da Igreja. Não dá para
ser, impunemente, um bispo livre-pensador no Piemonte do século xv.
Ainda mais conciliando tudo isso com uma genuína fé cristã e com o com­
bate às hipocrisias e abusos do clero. A menos que... a menos que... ele fosse
muito poderoso ou tivesse grandes protetores... Não sei. Tudo isso é pura
especulação. Talvez não tenha acontecido nada disso. Na verdade, o que
temos é um indício de arrependimento por excessivos rigores da juventu­
de, na defesa da fé. Não é isso, Emilio?".
"É isso mesmo. E o que é essa papelada enrolada?"
"Várias reproduções. A gravura da villa que Bruno nos mostrou,
frontispícios de dois textos de Fabrizio, um de Fallopio, gravuras de um
Borelli. E uma lista de nomes que Isabella encontrou. Ela examinou oito
enciclopédias, dois registros da cúria de Monferrato sobre seus bispos e
dioceses nos séculos XIV e XV. Consultou também o famoso calhamaço
do beneditino Benoit des e o Dictionnaire de Bayle que, por sinal,
tem um verbete sobre Eurípides. Ela examinou também alguns textos
desentocados por Maria Eugenia..."
"E o que ela achou?", perguntou Abelardo.
Lorenzo estendeu uma folha. "O resultado é pouco encorajador.
Olhem só. Temos dois bispos com o nome de Lupércio, um em Siena e
outro em Cortona. Nenhum no Piemonte. Quatro ilustres com o nome
de Lutecio, sendo um abade cisterciense de Ferrara, dois médicos, pai e
filho, de Pisa e um fabricante de violinos em Novara. Mais, três Lupércio,
um deles abade beneditino, em Alessandria, um sacerdote morto em odor
de santidade, e um general a serviço do duque de Savoia. Ainda temos um
senhor com nome de Lutezio; foi escritor e poeta em Casale, nas barbas
do nosso bispo. O nome Lutercio·existe. Ela achou dois: um era arqui­
teto, romano; o outro era organista em Turim e compositor de um Ré­
quiem e outras músicas sacras. "

195
"Conclusão?", perguntei.
"Conclusão: o nome que o povo dá ao nosso Lutercio é falso ou al­
gum Lutercio existiu, mas foi riscado da história ou... ele é uma ficção, um
fantasma. Mas alguém fez aquela villa, escondeu aqueles livros e escreveu
o Commentarium. Ficamos na mesma. Porém, agora sabemos que o no­
me do bispo é falso."
Abelardo emendou: "Ou foi riscado da história, como você disse. De
todo modo, foi alguém que tinha contas a cobrar de acusadores injustos,
provavelmente inquisidores de seu tempo".
Voltei à minha sala seguro de não estar distorcendo as idéias do ma­
nuscrito. Tanto Abelardo como Mauro também percebiam nele um de­
sabafo contra os acusadores levianos, de má-fé, inquisidores ou não. O
capítulo chegara a um parágrafo final, de resumo, usual em ensaios ou
tratados para fins didáticos. Afinal, o Commentarium visava servir para
os nostra studia.

"Consideramos rapidamente, nesta primeira parte, a falsidade de al­


gumas acusações feitas ao grande poeta da 'Medéia' e do 'Hipólito'. Pu-
demos ver que tais acusações tiveram origem em pessoas que se sentiram
ameaçadas em seu poder sobre as idéias do povo ou em sua vaidade. Par­
tiram daqueles que não podiam suportar que se apresentasse sem más­
caras a verdadeira natureza dos homens e das paixões que os movem até
nas decisões mais sublimes ou mesquinhas (excelsiores aut minuta decre­
ta). Daqueles que preferiam acreditar ou que o povo acreditasse em deu­
ses devassos, injustos, ciumentos e vingativos, em vez de confessar a ver­
dade. Que os deuses eram símbolos (imagines) de suas paixões, nobres
como o amor ou baixas como a inveja e a vingança. Pudemos notar que
muitas vezes quem acusa, pretende, mais do que combater o erro ou de­
fender a verdade, defender seu poder, sua tranqüilidade, ou seu prestí­
gio (servandos eorum dominatum, quietem sive auctoritatem). Os que
pensam adiante de seu tempo (praecurrentes tempora sua) estão conde­
nados a sofrer as acusações e a perseguição daqueles que percebem amea­
çado o prestígio (auctoritas) que têm diante dos outros ou, talvez, ape­
nas diante de si mesmos (coram semetipsis)."

Era um bom resumo, do ponto de vista didático, embora muito po­


bre como auto-retrato do autor. Esse não era o objetivo do texto, obvia­
mente. Mas alguns traços do bispo tinham aparecido muito claramente ao
longo de De falsis in Euripidem. O êxito de Lutercio, porém, era maior.
Ele tinha aumentado em cada um de nós a admiração e o afeto por Eu­
rípides e sua obra. Quem lesse a tradução, passaria a partilhar sua profun­
da e afetuosa admiração pelo grande trágico injustiçado. Eu, particular­
mente, jamais tinha sentido tão vivamente o sofrimento e o valor de Eu­
rípides. E, nas entrelinhas do Commentarium, o sofrimento e o valor de
Lutercio. O final do parágrafo era, mais que um protesto, uma queixa. A
queixa de um homem brilhante contra a sina fatal de quem supera a me­
diocridade dos demais. E era, ao mesmo tempo, um gesto superior de
condescendência ante o melancólico destino dos medíocres: defender com
a agressão um prestígio ou um valor que sabem já não possuir. Lutercio
era verdadeiramente sedutor, como dizia Tulio. Achei genial a alusão aos
que defendem um prestígio que só eles mesmos reconhecem. Havia ali
quilos de ironia e de grandeza.
Virei-me para a entrada da sala. Alguém estava chegando. Era An­
na. Entrou e fechou mansamente a porta. Fez-me uma carícia no rosto.
Tentei dizer algo, mas ela selou meus lábios com o dedo. Depois abra­
çou-me longamente e me beijou calada e excitada. Eu também fervia de
desejo. Ela falou primeiro. "Você sonhou comigo? Acordei várias vezes
pensando em você." Eu tentava recuperar o controle de mim mesmo e
achar as palavras que expressassem minha felicidade ao ouvir aquilo.
Antes que eu abrisse a boca ela segurou meus ombros, olhou-me nos
olhos, sorriu balançando a cabeça e disse: "Eu aprecio muitas coisas em
você. Mas o que mais me atrai é essa sua falta de jeito para lidar comigo.
Essa sua pureza e inabilidade como conquistador. Eu não resisti a essa
cara insegura, quase assustada, que você faz diante de qualquer êxito ou
qualquer vitória...".
"É que... "
"Não diga nada agora, meu querido. Teremos muito tempo pela
frente. Agora preciso ir, antes que alguém nos encontre fechados aqui.
Afinal, nem todo mundo compreende que uma mulher casada... "
.. venha consultar velhos manuscritos nesta sala." Ela saiu rindo,
leve, quase saltitante. Eu flutuava, meio atordoado, mas feliz.
O novo capítulo do Commentanum era sobre os temas das obras de

197

Eurípides. Começava pela lista delas, das que sobreviveram a guerras,


bárbaros e incêndios: Cyclops, Rhesus, Alcestis, M edea, Hippolytus, An­
dromache, Hecuba, Heraclidae, Supplices, Heracles, Ion, Menalippe, Pro­
tesilaus, Troades, Iphigenia in Tauris, Helena, Andromeda, Electra, Phoe­
nissae, Orestes, Iphigenia in Aulis, Bacchae. Mesmo sem ser um espe­
cialista, pude perceber que o Rhesus não era excluído como apócrifo, e
que constavam duas tragédias consideradas perdidas, desde o século XVI,
pelo menos. Pensei nos livros que teria colecionado Lutercio e na como­
vente biblioteca de Eurípides, primeiro homem a ter um acervo pessoal
de textos (coisa que motivou chacotas de Aristófanes, o que dá a medida
de sua estatura como pensador). Pensei também no velho valdense que
iniciara a tradição livreira dos Valdesi. Os três se assemelhavam. Como
eram semelhantes, na sua fúria devastadora, os bárbaros, os guerreiros e
os inquisidores. Semeadores, cheios de esperança, de um lado. Incendiá­
rios, cheios de ódio, atiçando fogueiras, do outro.
A lista das peças acendia uma tênue esperança: talvez no alçapão da
villa ou num porão de Aurelio Valdesi estivesse o único exemplar sobre­
vivente da Menalippe ou do Protesilaus. Seria a descoberta do século. Al­
go tão importante, para nós do Galilei, como os rolos do Mar Morto.
Gastei o resto da manhã a traduzir os temas das tragédias e do Cy­
clops, o único drama satírico que nos chegou inteiro. Havia poucos atra­
tivos nessa parte. Os resumos dos temas eram praticamente explicações
dos "argumentos" tradicionais, como os de Dicearco ou de Aristófanes
Gramático. Mas para algumas tragédias o resumo parecia ser de Luter­
cio. O das Supplices tinha sido ampliado. Algumas peças eram mencio­
nadas sem os "argumentos". Eram Iphigenia in Aulis, Electra e Iphigenia
in Tauris. O mais interessante eram os "argumentos" das tragédias perdi­
das. Eram preciosíssimos: os únicos resumos escritos, de alguém que as
tinha lido. Sobre a M enalippe o texto era muito curto, praticamente um
sumário do mito que a tinha inspirado. Mas salientava a dignidade da rai­
nha das amazonas, irmã da belíssima Antíope, ao ver-se obrigada por Hé­
racles, seu captor, a entregar-lhe arco, flechas e talabartes. "Nessa hora",
dizia o Commentarium, "Menalippa aparece como uma das grandes fi­
guras femininas de Eurípides". E mencionava o verso 54 e seguintes co­
mo os mais expressivos a esse respeito. O "argumento" do Protesilaus era
mais completo:
"Protesilas ou Protesilaus, filho de Hiclo, recém-casado com Lao­
daméia, a bela filha de Acasto, prepara-se para marchar sobre Tróia. Um
amigo lhe avisa que correrá grande perigo. Pois um oráculo dissera que
o primeiro dos invasores que pisasse na praia morreria. Sua esposa su­
plica-lhe que não vá. Protesilaus diz-lhe que sua vontade seria ficar ao
lado dela, mas os deuses e sua honra exigem que conduza seus homens
ao ataque. O marido parte e chega a Tróia. Visto que nenhum de seus
quarenta companheiros se dispunha a ser o primeiro a descer à praia,
Protesilaus avançou e foi morto por Heitor. Ao saber da morte, a espo­
sa suplica aos deuses que restituam a vida ao seu amado, apenas para que
possa encontrá-lo mais uma vez. Os deuses concedem a Protesilaus o
retorno à vida e aos braços da esposa, apenas por três horas. Terminado
esse tempo o marido deve retornar à morte. Laodaméia, apaixonada pelo
marido, decide morrer com ele. Despede-se das pessoas que ama e das
belezas do mundo e corajosamente se entrega à morte. O assunto não foi
tratado pelos outros dois grandes trágicos. O prólogo é dito pelo amigo
de Protesilaus e exalta a coragem e o amor conjugal premiados pelos deu­
ses. Primeira apresentação anterior a 414 a.c., conforme Eliano."

Seguia-se uma nota, separada do corpo do "argumento": Clarissimus


ac dilectissimus magister Emmanuel potius habet Protesilaus quam Pro­
tesilas cum dispares personae mythicae sinto Literalmente, a tradução se­
ria simples: "O ilustríssimo e muito querido mestre Emmanuel prefere
Protesilaus a Protesilas, mesmo porque são personagens míticas diversas".
A nota continha duas coisas interessantes: a menção de um mestre, ilus­
tre e querido, Emmanuel e o uso elegantíssimo de cum, no sentido de
"mesmo porque", em lugar de etiamsi, tametsi ou quamvis. A constru­
ção era típica de Tito Livio, cuja obra nos chegou nos mais belos manus­
critos. Pensei em contar isso para Anna, no almoço. Mas ela chegou à
minha sala antes disso, dizendo que voltava a Milão com Beatrice para
irem juntas a algumas livrarias. Que me encontraria no La Strega às oito
da noite, "para o nosso aperitivo". Deu-me um beijo e disse: "Não tenha­
mos pressa meu caro. Os aperitivos são deliciosos e, em certos casos, in­
dispensáveis". A frase dela tinha vários sentidos, mas o sorriso maroto
que me deu tinha um só. Eu não devia esperar muita efusão dela nesse
segundo encontro.
Às duas da tarde, fui com Tulio e Abelardo ao bar mais próximo.
Tinha excelentes saladas e pratos frios. Pedimos uma Caprese para cada
um. Abelardo quis uma cerveja Amstel e Tulio pediu um Orvieto para nós
dois. Tulio contou que dois alunos tinham interrompido uma aula para
criticar seu curso. Eram ex-estagiários de Matilde Rossini, seduzidos pelo
discurso populista atrás do qual ela e tantos outros escondiam a carência
fatal de uma formação crítica e metodológica sólida. Um deles reclama­
va que o curso era muito autoritário, pois não permitia que os alunos ex­
pressassem seus pontos de vista sobre as teorias e conceitos expostos nas
aulas. Tulio respondeu que, dali por diante, em cada aula, pelo menos a
metade do tempo seria dedicada à exposição dos alunos sobre Psicopa­
tologia e que, se sobrasse tempo e algum aluno depois disso, ele teria pra­
zer em expor suas idéias. O outro aluno achou que a Psicopatologia de­
via ser estudada de acordo com o "método dialético, como era anterior- ,
mente". Tulio parou a aula, pediu desculpas por não conhecer profunda­
mente esse método e convidou o aluno a expor aos colegas e a ele mesmo
o "método dialético". O jovem respondeu que o convite era mais uma
prova de autoritarismo. Tulio então pediu-lhe que convidasse quem qui­
sesse, para expor, numa das aulas seguintes, a Psicopatologia "segundo o
método dialético". Podia ser a professora Matilde Rossini ou até o pro­
fessor Barry Ghells. Ela o citava com freqüência, como o grande ideólogo
de algo como uma Action research marxista centrada na promoção dos
desprivilegiados, ou coisa parecida.
Tulio contou tudo isso sem qualquer irritação com os alunos, "os me­
ninos", como os chamava carinhosamente. E acrescentou que uma aluna
reclamara desse tratamento. Pois ele continha duas odiosas discrimina­
ções. Primeiro, que os alunos não eram crianças e, segundo, que "meninos"
excluía as alunas do sexo feminino. Enquanto temperava a sua salada, Tu­
lio, rindo, explicou sua dificuldade: "Se eu a tratar como 'senhora', não vai
dar certo, porque não é casada. 'Senhorita' é um termo burguês intolerável.
Depois de vinte e dois anos de Partido Comunista e dezesseis de ensino
universitário, eu, ingênuo, pensava que para ser um bom professor é impor­
tante saber o assunto que se ensina e ensiná-lo com seriedade e clareza...".
"São as glórias da cátedra", arriscoú Abelardo, esperando trovões.
"Felizes são vocês, burgueses folgados, que têm tempo até para pro­
curar bispos do quattrocento. A propósito, Emilio..."

200
"Como vai a tradução?", completei.

Ele me deu um olhar indefinido, mas suficiente para aumentar meu

ritmo cardíaco: "Não, o prefixo é outro".


"In-dução, De-dução, Re-dução... "
"Se-dução, Emílio."
"Vai bem, obrigado." Resolvi manter a ambigüidade. Contei sobre os
"argumentos" e sobre a prova de que Lutereio tinha lido o Protesilaus.
Abelardo percebeu logo o que isso significava: "O livro pode estar na tri­
buna que vocês acharam na villa,". Tulio arregalou os olhos: "Céus, isso ,'i
pode ser uma bomba". I
"São coisas a que estão sujeitos os que caem nas malhas da se-du­ I
- " ,provoquei..
çao
Ele sorriu. "Tomara que vocês consigam. Anna deve estar eufórica." I
I
"Ela ainda não sabe." I
"Vocês já conseguiram material para várias publicações de impacto... ;I
Mas só vão acreditar nelas se vocês puderem identificar Lutercio e... con­ . I.

vencer editores e consultores de que não estão especulando. Essa gente é


esquisita." Lembrei fugazmente do referee que tinha barrado meu artigo.
Depois recordei a conversa no Menarost, o faisão" Alabastro", o vestido
amarelo de Anna, as coxas dela... E devo ter feito uma cara de beatitude, '

porque Abelardo puxou-me pela manga: "Oh, doutor! Cabe mais um .


nessa nuvem?".
"É estafa", caçoou Tulio. "Os pesquisadores são sacrificados pela
exploração do capital e do Estado burguês. Mas enquanto intelectuais I
orgânicos são cúmplices do sistema de produção, como diz... "
"... Barry Ghells!", completei.
"Muito dialético. Gostei!", aplaudiu Abelardo batendo palmas.

De volta ao Galilei, retomei a tradução. O texto mostrava um sub­ II


título: "Sobre a forma das peças de Eurípides" (De figura Euripidis fabu­
larum). Lutereio agora esquecia sua paixão pelas idéias e pela figura hu­ tI
mana de Eurípides. O trecho era uma síntese dos méritos formais das tra­
~
gédias enquanto peças de teatro. Uma exaltação da elegância e correção
da poesia do grande trágico. Lutercio salientava algo que muito mais tarde I
I
,

pareceria novidade: ,

201
"Apesar das grandes inovações temáticas e poéticas que introduziu
na arte da tragédia, Eurípides foi, entre os grandes trágicos, o mais fiel à
forma artística da antiga liturgia dionisíaca (Dionysiorum ritus veterum
figurae fidelior) e nisso superou o próprio Ésquilo".

o parágrafo seguinte era mais curioso. Mostrava que o criador do


"Hipólito", apesar de seu apaixonado apego à natureza dos homens e seu
interesse pela vida cotidiana, era o mais exigente dos trágicos quanto às
regras formais da composição poética e o mais avesso ao uso de expres­
sões coloquiais, ou de versos truncados.

"Sófocles se afasta da linguagem formal ou convencional, mas seus


personagens e temas são convencionais e distantes da natureza dos ho­
mens. Eurípides não abre mão de colocar em cena personagens e assun­
tos não convencionais, mas quanto à forma não admite qualquer libera­
lidade na linguagem ou na composição (... pervicax ad in scenam immiten­
das non institutas personas et argumenta cum pertinaciter eiceret inculte
dicendi genera ...)."

Em Eurípides, mais um paradoxo não era de espantar. Mas o trecho


mostrava a agudeza de Lutercio. Para um latinista, mostrava mais: o uso
de pervicax era uma sofisticação, herdada de Tito Livio, como a conjun­
ção cum, outra vez empregada com elegância, em vez de equivalentes mais
costumeiras. Também no refinamento da linguagem Eurípedes e Luter­
cio se identificavam.

"Na montagem (constructio) das peças, as maiores inovações de Eu­


rípides foram: o Prólogo, a Teofania final e a nova função do coro. Essas
qualidades (facies) serão expostas resumidamente a seguir. O prólogo co­
meça na penumbra que antecede a aurora com a fala de uma figura soli­
tária que lembra de perto a prorrhesis de um hierofante abrindo um ritual
sagrado. Ele praticamente antecipa a trama (subtemen) da peça. Mas em
nada o interesse do público fica esvaziado, porque o enredo se desenvolve
cheio de efeitos inesperados, num crescendo patético (augescens commo­
tio) até a cena final que restitui a calma. A mesma atmosfera de dignidade
e serenidade criada no início, pelo prólogo. Somente um grande artista

202
podia abrir mão da surpresa do enredo (nodz) para cativar o interesse do
público. É que, graças à informação prévia sobre a trama, as dificuldades
de entender desapareciam. O espectador ficava, então, inteiramente ex­
posto ao jogo patético dos ódios, amores, e desesperos. Pronto para so­
frer o impacto do horror e o da ternura. A ternura de Alceste, Polixena
ou Laodaméia e o horror do infanticídio de Medéia ou da cruel vingança
de Hécuba. Mas, para o gosto ático, nenhum episódio ocorre à margem
de alguma ordem maior, superior (extra superiorem quempiam ordinem).
E a tragédia não pode concluir-se com a mera sensação de horror, ódio
ou tristeza. É preciso que, de algum modo, os conflitos se harmonizem,
que o destino ulterior dos personagens não fique incerto. É preciso que
os mistérios se elucidem. Esse retorno à ordem e ao equilíbrio é a katas­
trophé. A paz inicial se restabelece pelo discurso de alguma divindade,
quase sempre um deus ex machina. Toda a comoção patética (concitatio
miserationum) cede lugar à serenidade. A refinada sensibilidade de Eurí­
pides não podia aceitar que o final de uma peça fosse uma sensação de
ódio ou de medo. Seria um desfecho esteticamente inaceitável. A teofania
ou o deus ex machina é um artifício para transportar o espectador, após
o impacto patético das emoções mais cruas, de volta ao plano das idéias.
É uma volta à racionalidade, ao plano das coisas sublimes (ad sublimia)..."

Pensei em "racionalização" e em "sublimação". E era isso que Lu­


tercio dizia. Eram empregadas na tragédia como um autêntico mecanismo
de defesa. Não para proteger algum ego, obviamente. Mas com função
puramente estética, contra o mau gosto. Talvez não fosse absurdo pen­
sar que toda sublimação é, antes de tudo, uma opção de bom-gosto. Pen­
sei numa interpretação estética da Psicanálise? Tema excelente para um
simpósio no Anjo Azul.
A tradução tinha ficado difícil. Eu estava afinado com um Lutercio
crítico de idéias, agonístico e irânico. Agora ele fazia crítica literária, ou
algo parecido. As idéias eram outras e a forma também. Era mais didáti­
ca, menos retórica. Eu precisava afinar a tradução em outro tom. Ques­
tão de tempo. Decidi ver melhor o que era prorrhesis.
Na biblioteca, Maria Eugenia estava quase sorridente. Não, jamais:
era eu que estava feliz.
"Isso está em qualquer bom dicionário de grego, professor."

203
"Sim. Mas é um termo ritual, litúrgico."
"Então o senhor não quer a tradução do tenno e sim o significado
dele para a época. É isso?"
"É", resolvi encurtar. Eu queria apenas saber a tradução correta e fiel
do termo. Mais por curiosidade, porque Lutercio tinha mantido a forma
grega.
"Sétima estante. Prateleiras 1 a 9, Grécia-Religião, Grécia-Ritos. Há
alguma coisa sobre história da liturgia, na oitava, última prateleira. A En­
ciclopédia das Religiões está na estante 12."
Já nos dicionários havia informação suficiente: o hierofante dirigia­
se aos crentes antes de uma cerimônia importante e, além de explicar o ri­
tual que se iria cumprir, tentava criar uma atmosfera emotiva adequada
às exigências da divindade que seria cultuada ou, então, ao mistério que
seria celebrado. Esse discurso prévio tinha, assim, uma função dúplice: in­
formar e motivar. A comparação de Lutercio, com o prólogo, era perfei­
ta. E a mesma analogia aparecia também na Britannica, no verbete sobre
Eurípides.
Quando passei pela mesa de Maria Eugenia, ela não se conteve. "Pro­
fessor Emilio, desculpe minha ousadia. Quem é esse personagem pie­
montês do século XV que escondia livros numa villa? Era um arquiteto?"
"Ainda não descobrimos... "
"O senhor sabe que nós temos três grandes volumes com frontispí­
cios de obras editadas no fim do século xv e no XVI? São maravilhosos.
Há anos que ninguém os consulta. Talvez possam servir à sua pesquisa."
"Muito obrigado. Podem ser muito importantes. Mas, por enquan­
to, tenho que traduzir um manuscrito..."
"Aquele que se refere a um Brunus? O 'Hipólito'?"
"Não. É outro... Mas, escute, já havia edições com frontispícios no
começo do século XV?"
"Claro que não. Os incunábulos não tinham frontispícios nem por­
tadas. O primeiro livro com frontispício foi o Calendarium, de 1476,
editado em Veneza." O tom era de censura tolerante. O resto da frase,
não falado, era algo como: "É tão elementar, professor! Meu Deus, quan­
ta ignorância!". A culpa era de Abelardo, com seus "incunábulos do sé­
culo XVII". Prometi consultar os frontispícios em breve e voltei ao Com­
mentarium.

204
Lutercio explicava a função do coro na obra de Eurípides.

"... O coro tinha nas obras de Ésquilo uma importante participação


na ação dramática. Sófocles reduziu muito essa participação em impor­
tância e em duração, porque o coro é, muitas vezes, um elemento estra­
nho ao drama dos personagens e quase antidramático. Mas o talento de
Eurípides percebeu nele uma força dramática peculiar que os personagens
singulares não tinham. O coro se torna, no seu canto e nos seus gestos, a
expressão de emoções eternas da humanidade em momentos extremos
(humanitatis commotiones perennes in momenta temporis última), dian­
te do evento trágico. O coro é como um espectador que manifesta a emo­
ção do horror, da angústia e do amor, mas não é a emoção de alguém. É
a emoção da humanidade. Por isso ele é quase sempre excluído da ação
dramática, ele não é um ator a mais. Ele sente a peça como um especta­
dor transcendente às emoções pessoais de cada espectador (praecellens
uniuscujusque commotiones). É como se o coro fosse humano e sobre-hu­
mano, ao mesmo tempo. Eurípides o emprega freqüentemente nos inter­
valos da ação dramática, como a expressão do patos mais elevado e puro
que a peça quer produzir. Mas em alguns episódios o coro assume (in se
accipit) o desejo do espectador singular e reage ao drama com o sentimen­
to do homem comum, como na Medéia, quando tenta desesperado lan­
çar-se contra a porta trancada para evitar o infanticídio. »

O texto prosseguia expondo inovações menos importantes no tea­


tro de Eurípides, como a introdução dos mensageiros a preparar o públi­
co para algum clímax patético. Depois versava sobre os personagens mais
fortes e sobre a natureza contraditória desses heróis, capazes de grandes
gestos, mas sujeitos a fraquejar em momentos de risco. Lutercio discutia
o impacto de tais não-heróis (perversi rerum auctores) no gosto tradicio­
nal de Atenas. Um trecho me pareceu particularmente belo e definitivo,
perfeita síntese de Eurípides:

"São personagens submetidos à tensão das incertezas e dos arre­


pendimentos, muitas vezes incapazes de exercer um comando firme e
duradouro (solidam atque diutinam ditionem) sobre a realidade e sobre
si mesmos, que retratam uma concepção des-heróica da vida, que escapa

20 5
tanto do desígnio providencial dos deuses como do domínio coerente
da razão".

Apesar da beleza do texto, parecia que, dali em diante, o Commen­


tarium não ofereceria muitos indícios sobre seu autor. No último trecho
traduzido, eu tinha escavado pouca coisa: as às tragédias per­
didas, o "argumento" do Protesílaus, algumas marcas de influência de
Tito Livio (talvez meras coincidências), e a alusão a um Mestre Emma­
nuel, muito amado, que entendia de nomes gregos antigos. Era pouco,
mas podia ser muito. Anna gostaria de especular sobre essas pistas. Não
seria difícil saber quem eram Brunus e Emmanuel. Bastava consultar al­
gumas boas enciclopédias. Mas para entender os eventuais vínculos en­
tre eles e Lutercio precisávamos de algum conhecedor de história da li­
teratura (era uma pena que no Galíleí não houvesse alguém dessa área).
Alguém como Gabriella. Decidi telefonar-lhe, de casa. Já era mais de seis
horas e eu tinha que chegar cedo a Milão.
E cheguei. Às sete e quinze já estava no bar da vía Caravaggío, quase
embaixo de meu apartamento. Enrico preparou meu negroní, com mui­
to gim, como de costume. Numa das três mesinhas jogavam cartas dois
empregados do correio. Na outra Lucio, o antiquário da esquina de vía
De Amícís lia o Tuttosport. Na cadeira ao lado estava um belo abajur de
estilo líberty. Tinha um pedestal de bronze e o quebra-luz feito de pla­
cas finíssimas de ágata muito clara.
"Veja que beleza, professor!", exclamou Lucio ao notar meu interes­
se pela peça. "Venha ver de perto. Comprei hoje de um verdureiro do
Mercado Comunal. Falta polir o pedestal e trocar o soquete. Depois disso
valerá, no mínimo, cinqüenta mil liras. " Era mesmo uma peça esplêndida.
"Essas placas são de ágata?", perguntei.
"Não, professor. Isso é alabastro. Se fosse ágata valeria a metade.
Bem se vê que o senhor não é do ramo." Lembrei a frase de Anna: "É o
alabastro que deve cruzar nosso caminho". Aquele abajur tinha que ser
meu.
"O senhor vai vendê-lo?", perguntei, com a sensação de ter feito
uma pergunta idiota.
"É o meu ofício, professor."
"Eu quero comprá-lo."

206
"É seu."
"Mas eu...
"Pague-me quando estiver com dinheiro. Nós estamos sempre por
aqui, não é? Enrico, traga-me outro copo de Barbera, por conta do pro­
fessor, e arranje uma sacola para ele levar o abajur."
"Sim senhor, sargento!", respondeu Enrico. Depois virou-se para
mim, de modo a que Lucio escutasse: "Deveriam mandá-lo ao Vietnã pa­
ra comandar os marines". O antiquário deu uma gargalhada: "Você não
tem sorte. Eles não me querem. Eu sou comunista!".
Agradeci a confiança de Lucio e saí abraçando a sacola. Eu me sen­
tia feliz. Em casa, liguei para o velho número de Gabriella, em Como.
Não tinha mudado.
"Que surpresa maravilhosa, Emilio! Você me ligando depois de tan­
to tempo... Está em alguma cadeia?" Ela riu.
"Se não me engano, o tempo que você ficou sem me ligar é exata­
mente o mesmo, meu anjo. Não estou preso."
"Não me diga que agora é um democristiano carregado de filhos..."
"E você? Suponho que tenha entrado para o Opus Dei depois de
casar com um empresário neofascista. Continuo solteiro, comunista, e
estou precisando de..."
"Dinheiro, não! Ainda não achei o empresário e fui recusada no
Opus Dei. Preciso de um favor seu. Foi bom você me ligar..."
"Mas sou eu que preciso de um favor."
"Estou louca para ver a Carla Fracci e o John Gilpin no Scala. Que­
ro que você me reserve o ingresso e algum hotel... "
"Hotel?"
cc A menos que você tenha um quarto decente para me oferecer..."

"Com & Chandon?"


"Exatamente. É para o dia 20. E o que você está precisando?"
Contei-lhe, por alto, a história do Commentarium do nosso bispo ver­
melho do Monferrato e as referências a Brunus e ao Mestre Emmanuel.
"Acho que sei alguma coisa sobre esse período. Os nomes não me
são estranhos. Mas preciso ler umas coisinhas para te dar uma resposta
completa e segura. Levo tudo escrito no dia 20. Se conseguir responder.
Ando meio longe do Renascimento..."
"Eu nasci bem depois dele. Espero que você me conte como foi."
"Agora estudo os iluministas. São uns malucos adoráveis. Vamos
conversar horas sobre eles quando eu for a Milão. Veja se não se enche
de compromissos. Um beijão, meu querido. Você verá que desde o sé­
culo xv até agora eu não mudei muito."
"Me avise a hora de chegada. Vou buscá-la na Estação Central. Um
grande beijo."
Fiquei feliz com o reencontro de minha querida Gabriella e com a es­
perança de discutir com ela nossos achados sobre Lutercio. A idéia de tê­
la em meu apartamento também me alegrava e excitava. Mas isso me trou­
xe uma sensação de culpa quando pensei em Anna. Naquela hora ela de­
via estar quase pronta para encontrar-me, cheia de paixão, no La Strega.
Cheguei adiantado, às dez para as oito, para que ela não ficasse es­
perando. Imaginei a chegada dela. Vestido justo, azul-marinho ou bran­
co, saltos altos, os cabelos negros presos num coque aristocrático, colar
de pérolas. Ela chegou às oito e quinze. Cabelos soltos, jeans, uma blusa
vermelha de seda e sandálias de couro cru. Estava radiante, linda, com um
sorriso feliz. Ofereceu a face para um beijo e me segredou: "Isso aqui
pode ser território minado, não?". Sentou-se à minha frente e espiou dis­
cretamente todos os cantos da sala.
"Terminou a operação de varredura? Desde que cheguei não vi si­
nais de tropas inimigas por aqui."
"Mas é 'zona de alerta'. Todo cuidado é pouco. Desculpe. Gostaria
de demonstrar mais segurança, mas estou morrendo de medo de ser sur­
preendida aqui com você. Não tenho muito jeito..."
"Dois do Galilei encontram-se para um drinque após
uma jornada estafante de trabalho. É o que todos vão pensar. Isso se sou­
berem quem são os dois. Por acaso, um deles é um homem, meio 'inábil'
e ela é uma linda mulher, também inábil, ao que parece..."
"Nem tive tempo de me embonecar. Meu filho teve uma festinha de
aniversário na escola, que durou até as sete... Mas isso não é assunto para
agora, não? Como foi hoje no Instituto? Pede o meu Carpano, por favor."
"O garçom está avisado para trazer o Carpano e uma Tuborg gran­
de, quando você chegasse. O almoço foi divertido, com Tulio e Abelardo.
Isabella andou investigando o nome de- Lutercio. Achou dois, que não se
encaixam na nossa história. "
O garçom trouxe as bebidas. Anna levantou a taça olhando-me nos

208
olhos: "À vida". Aproximou a taça aos lábios e antes de tocá-los lançou­
me um beijo cheio de ternura. Imaginei-a deitada em minha cama. Meus
hormônios estavam desembestados.
"À beleza", respondi.
"E no Commentarium, alguma novidade?"
"Duas. Uma alusão a um 'muito amado mestre Emmanuel' e o ar­
gumento do Protesilaus."
"O quê? Jura?" Ela engoliu de uma vez o gole de vermute e engas­
gou. Depois, com os olhos úmidos, sorriu e continuou. "Desculpe, Emi­
lio. Você achou o argumento do Protesilaus? No Commentarium? Isso
é um tesouro: os vestígios mais antigos dessa tragédia, pelo que sei, são
algumas referências de Barnes, o grande biógrafo de Eurípides, em 1694.
Se Lutercio sabia o argumento, provavelmente leu o Protesilaus! Isso é
maravilhoso!" Ela mal continha o entusiasmo. "Não isso por aí,
Emilio. Isso é importante demais. Precisamos checar bem o assunto. Mas
sinto que temos nas mãos mais alguns megatons. Você é maravilhoso!"
"Depois não me diga que isso é produto de tantas taças de Carpano.
Você não bebeu nem um terço da dose."
"Você é maravilhoso. Digo de novo, completamente sóbria. Mas não
reclame se daqui a algumas doses eu falar tudo ao contrário." Ela ria, já
totalmente à vontade.
"Muda-se o provérbio: ln sobrietate veritas", sugeri.
"Tulio tem razão. Lutercio nos seduziu. Você não acha meio maluco
esse nosso envolvimento na história de um suposto bispo que não conhe­
cemos?"
"Eu quero apenas descobrir o autor do Commentarium. Existe um
livro, existe um autor, que escreve coisas brilhantes. Eu quero saber quem
foi ele. Não vejo nada de maluco nisso."
"Desculpe, Emilio. Para você bastaria saber que o autor foi Fulano
de Tal, nascido em tal lugar em tal data? Não. O que nós queremos é saber
o que aconteceu com o bispo vermelho ou Lutercio, Lutecio... Nós que­
remos esclarecer os motivos da proscrição de que foi vítima. Queremos
fazer justiça. A mesma justiça que Eurípides só teve depois de morto... "
"Você tem razão", reconheci.
"O que nos seduz em Eurípides e em Lutercio é o amor deles à ver­
dade. E a tragédia pessoal de cada um."

209
"Segundo a teoria de Tulio cada um se apaixona pela imagem idea­
lizada de si mesmo. Então tanto você como eu estamos destinados ao
amor pela verdade e à tragédia pessoal... Não gosto da segunda parte."
Não era mesmo um pensamento confortável.
"Não há como fugir, meu caro. Em compensação estamos em boa
companhia. A tragédia de Eurípides e de Lutercio não impediu que eles
se divertissem um bocado, nem que amassem, e tirassem o sossego de
oportunistas e hipócritas em geral. Quero mais um Carpano."
"E eu, mais uma cerveja." Pedi as bebidas. "Então vamos aprovei­
tar o tempo para tirar o sossego do mundo."
Ela brindou outra vez, com a nova taça de vermute: "Coronemus nos
."
roszs .
Ergui minha caneca e mantive o tom: "Antequam marcescant".
"Onde você aprendeu latim?"
"No 'Carducci', como centenas de outros. Só que eu gostava da ma­
téria. Queria ler Cícero, Virgilio, Catulo..."
"Você deve favores a Lutercio e seus amigos dos nostra studia. Ao
que tudo indica, eles desencavaram e conservaram pencas de manuscri­
tos, gregos e latinos, muitos trazidos de Bizâncio, como já sabemos... "
"O latim de Lutercio é bem melhor que o da Escolástica. Tem algo
de Cícero, de Tito Livio..."
"Eu sei dizer ora pro nobis, ipsis verbis..."
"E cave canem", acrescentei.
"Não. Isso não, Emilio." A expressão dela mudou. O sorriso sumiu.
Ela empalideceu.
"Desculpe. O que foi?"
Ela respirou fundo e tomou-me a mão. "Você não tem culpa", dis­
se tentando sorrir. "É uma história velha, de minha infância... Eu passeava
com meu pai pelos lados de piazza Giulio Cesare diante daqueles edifí­
cios com grades belíssimas de ferro batido. Na entrada de um deles ha­
via um letreiro no piso de mosaico e dizia exatamente cave canem. Meu
pai explicou o que significava. Para mim, havia uma certa magia naque­
las palavras estranhas a respeito de cães. Ele continuou andando e eu me
ajoelhei para tocar as letras do mosaico de mármore. Quando levantei a
cabeça, um cão enorme estava rosnando a um palmo de meu rosto. Quase
desmaiei de susto. Um garoto do prédio expulsou o animal aos berros.

210
Desde então tenho pavor de cães e já tenho dado muitos vexames pela
vida... Fobia, professor." Ela tentava sorrir. Apertei-lhe fortemente as
mãos e procurei mudar o assunto.
"Scotós, do grego, escuridão, sombra. Fobos, do grego, medo, temor.
Por acaso você sabia que um sujeito anunciou a descoberta de uma subs­
tância ou molécula, sei lá, chamada Scotofobina?"
"Come-se crua?"
"Ele diz que é a substância responsável pelo medo de escuro! O tra­
balho foi publicado há pouco tempo. Beatrice tinha uma cópia. Quando
mostrou a Lorenzo ele perguntou se a tal Scotofobina precisava ser guar­
dada longe da luz. Ela respondeu que um bom antagonista da Scotofobina
seria algum extrato de vagalumes que poderia chamar-se 'Vagalumina'.
Ele propôs 'Lamparina'."
Anna sorriu, mais calma, e bebeu um gole generoso do seu Carpano.
"Scotofobina! Isso é tudo o que você sabe de grego?", perguntou.
"É. A propósito, o tal Emmanuel foi citado no manuscrito a respei­
to de nomes gregos. Segundo a citação, ele prefere que se traduza o nome
de Protesilau como Protesilaus e não Protesilas...
"Então ele sabia grego. Se Lutercio lhe dá o título de mestre muito
amado, o Doutor Emmanuel foi um amigo dele e um professor de grego
do século xv, no norte da Itália. Eu deveria já ter percebido isso. É ób­
vio.» Ela estava, de novo, em forma. Ficava mais linda quando deixava
suas idéias fluírem soltas. Senti vontade de chutar a traseira daquele cão
atrevido da piazza Giulio Cesare.
"Não, minha cara. Não é tão óbvio. Emmanuel pode ter sido um
professor de música ou de latim... e pode ter sido mestre de outros, não
de Lutercio. Mais ainda, pode ter sido mestre, mesmo de Lutercio, mas
não no norte da Itália. Lutercio esteve até em Paris, você sabe."
"Quero comer alguma coisa."
"Podemos jantar..."
"Hoje não.» Ela falou com desgosto. "Preciso jantar em casa... Te­
mos que ficar nos aperitivos por algum tempo. Tenha um pouco de pa­
ciência. Preciso acertar minhas idéias. Então poderemos sair pela noite
adentro, sem pressas ou complicações... Quero estar de cabeça fria."
"Vou pedir presunto cru e algum queijo. Que tal?"
"6timo. Mas é difícil que alguém chame 'amado mestre' a quem

211
não foi seu professor. Além disso, ninguém salienta a autoridade de al­
guém como mestre, fora do assunto em que ele é respeitado. Temos,
portanto, um mestre de grego, de Lutercio."
"E por que no norte da Itália?"
Ela sorriu, empinou o queixo fingindo arrogância e respondeu:
"Porque é mais cômodo para quem mora no Piemonte. Não é um bom
argumento?".
"Deplorável", falei.
"É mesmo. Culpa do vermute."
"São os riscos de ficar só nos aperitivos."
Ela fingiu não perceber o segundo sentido da frase. Armou um sor­
riso cândido e disse: "Você acabou de pedir presunto e queijo. Isso já dá
para acalmar o apetite... Até chegar a hora do seu jantar".
"Nosso jantar. O diabo é que essas coisas só aumentam minha fome."
"Jejum não é meu forte, também."
"Brindemos à nossa fome, então", sugeri.
"Ao amor!... Acho que é esse o nome artístico dela."

212
Capitulo 10

a afresco e 0 catalogo

Na sexta-feira, Bruno reuniu 0 grupo em sua sala, Ficou decidido


que Beatrice conduziria Isabella e Anna ate os armarios de Aurelio Val­
desi. Levariam 0 "Hipolito" como prova de que eramos do ramo e tinha­
mos nossos vinculos com 0 bispo vermelho. Eu, Lorenzoe Bruno iria­
mos para a villa, no carro de Lorenzo. Dirigido por mim ou por Bruno.
No sabado, as nove e meia, chegamos a casa de tia Margherita, que
nos levou ate Dom Attilio. No caminho, contou que 0 velho Alessandro
teria prazer de nos rever, perguntou sobre Beatrice e Isabella, quis saber
o que tinhamos feito com 0 livro latino achado na villa, disse que para vi­
sitar a biblioteca era melhor falar com Dom Attilio. Bruno respondeu a
todas as perguntas. Lorenzo, mais gentil que de costume, ofereceu 0 bra­
co para que ela se apoiasse ao atravessar as vielas da aldeia e ao subir a es­
cadaria da igreja. Dom Attilio estava la, numa paz de fazer inveja.
Estava tocando urn velho harmonic, com foles de pedal. Nao mos­
trava 0 virtuosismo de urn Helmut Walcha, mas as variacoes harmoni­
cas que ele sobrepunha ao tema do Veni Creator Spiritus eram delicio­
sas. Paramos, nos tres e a tia de Bruno, para ouvir a rmisica. Logo mais,
sem que percebessernos a passagem, ele estava compondo urn soberbo ar­
ranjo sobre a melodia gregoriana do Magnificat. A rmisica ecoava pela ,
nave da igreja e me trazia lernbrancas de outros tempos. Quando tam­
bern em Milao nao era diffcil achar algum velho paroco a tocar urn har­
monic. Havia urn na igreja de Affori, perto do parque Litta, no infcio dos
anos sessenta. Eu ia la para ouvi-lo, depois da reuniao do Partido, nos sa­
I
bados de manha, A sede era em via Astesani, encostada na pracinha da
igreja. Ainda esta la.
II
!
21 3
I
"

t
. De repente, eu estava revivendo minha infancia: Dom Attilio ini­
ciara 0 Rorate Coeli Desuper, Eu me senti crianca, na vespera de Natal.
Lorenzo tinha-se sentado no degrau de urn altar e sorria deliciado com
aquela surpreendente acolhida musical. Tia Margherita, menos encanta­
da, discutia em voz baixa com Bruno. j

Nao sei se Dom Attilio nos viu ou se ela the fez algum sinal. A rmisi­
ca parou e ele desceu do coro. Discretissimo, convidou-nos a sair por uma
portinha lateral. Fora, cumprimentou-nos enos conduziu por urn jardim
cheio de rosas ate sua casa. Ele lembrava 0 velho Alessandro, solene, bron­
zeado, com abundantes cabelos brancos. Mas Dom Attilio inspirava mais
serenidade, mais paz. A casa era, como havia dito Alessandro, meio mu­
seu. Havia desde pe~as etruscas ate urn Guido Reni e urn presumivel Man­
tegna. Alern de uma inoportuna colecao de armas de fogo muito antigas.
"Mosquetes", sugeri.
"Devem ser colubrinas", arriscou Lorenzo.
"Nem uma coisa e nem outra.", disse 0 nosso anfitriao. "Sao oito
arcabuzes, que estao na familia ha seculos. Sucessores das colubrinas e
precursores dos mosquetes. Vejam que todos eles tern, no lado direito da
coronha, uma chapa de ferro com 0 disparador e 0 aproximador da me­
cha, esta pe~a em forma de s. Chamou-se chave de serpente. Antes, no
tempo da colubrina, era necessario empregar as duas maos para acender
a mecha e aproxima-la da polvora, Com essa invencao da chave de ser­
pente, apenas a mao esquerda acendia a polvora e a direita mantinha a
arma em condicoes de ataque."
"Quem foi 0 grande inventor dessa tal chave?", interrogou a tia de
Bruno, com uma expressao de desprezo.
"Urn espanhol interessado na eficacia mortifera das armas, no seculo
xv. Mais que isso nao sei."
Alem dos arcabuzes havia tambem na sala, Deus que me perdoe, urn
orgao eletronico, Alemao, claro. 0 paroco percebeu minha estranheza.
"Sabem, eu nao posso colocar aqui dentro urn orgao de flautas. Esse
ai...", disse com urn misto de desprezo e de resignacao, "serve para trei­
nar urn pouco".
"0 senhor toea muito bern", disse Lorenzo, que enfrentava urn pia­
no, nas horas vagas, sem dar vexames.
"Eu gostaria de tocar num orgao de flautas, com os foles movidos

21 4
por alavancas. Aquelas que os coroinhas disputavam a cotoveladas nas
miss as solenes. Eu conheci urn deles em Villa del Conte, perto de Campo­
sampiero, no Veneto."
A frase de Dom Attilio parecia encomendada para me impressionar.
Eu tinha urn tio gue morava, precisamente, em Villa del Conte, urn amon­
to ado de quarenta casas, no maximo, cercado de vinhas, principalmente
de uvas Fragola e Merlot. Num natal longinquo eu tinha assistido, com
minha mae, a Missa do Galo, naquela igrejinha, ao som daquele orgao.
Resolvi nao contar a coincidencia, para nao desviar 0 assunto.
Bruno expos ao paroco nossa admiracao pelas belezas da villa e nos­
so interesse em assegurar a conservacao dela. Falou sobre 0 Virgilio e
mostrou a carta elegante de Lanebbia agradecendo a doacao do livro ao
Galilei. 0 paroco sorriu satisfeito e aconselhou: "E melhor voces levarem
essa carta ao Alessandro. Se eu conheco bern aquele velho, ele vai cobrar
isso de voces". Voltou-se para Lorenzo e disparou:
"0 que 0 senhor acha de Lutercio, 0 nosso bispo vermelho?"
"Urna figura curiosa, brilhante, se eque existiu", foi a resposta cauta
de Lorenzo. 0 paroco sustentou 0 poquer.
"0 que 0 senhor acha?"
"Acho que existiu."
"Todo 0 povo de Madonna della Spina acha 0 mesmo. Eu penso que
ele existiu. Ouvi dezenas de historias sobre ele, de meus avos e de meus
tios, Principalmente da condessa minha tia, que na juventude tentou de­
cifrar 0 misterio do desaparecimento de Lutercio. Sao historias sobre urn
homem brilhante, inconformista, injusticado e cuja morte esteve sempre
envolta em misterio, em todas as historias que ouvi, E como se urn po­
der supremo houvesse decidido que ele deveria ser esquecido."
"Quer dizer que ele existiu mesmo", disse eu, sem muito brilho, re­
conheco,
"Claro", disse Dom Attilio. "A propria villa e uma prova disso."
Levou a mao a boca como quem tenta conter 0 que disse. Lorenzo, en­
tao, foi habil, como sempre:
"0 senhor parece muito seguro disso, Dom Attilio".
o paroco percebeu que tinha de mostrar as cartas. "Claro. Eu tenho
urn retrato dele com 0 projeto da villa", respondeu, com 0 sorriso de
quem tern quatro ases na mao.

21 5
"Como?", espantou-se tia Margherita.
"E urn retrato grande, quase do tamanho de uma parede, Esta la na
mansao. Voce ja cacoou da cara do irrnao dele muitas vezes, Margherita.
Lembra-se?"
"Ah!, 0 afresco da biblioteca. 0 irrnao dele tern cara de mau. A de
Lutercio e mais amigavel."
"Ele era mesmo urn bispo?", perguntou Bruno ao paroco,
"Do ponto de vista sacramental, sim. "
Ninguern quis expor sua ignorancia "sacramental", mas Dom Atti­
lio percebeu nossa incompetencia e acrescentou: "Na sagracao episcopal,
urn sacerdote se torna bispo para sempre. E quase urn carater, uma mar­
ca eterna, nao importa 0 que ele possa ser dentro da igreja ou fora dela.
o povo prefere cultua-Io como bispo. Deixemos as coisas assim".
As palavras dele mostravam a preocupacao de proteger a imagem de
bispo do nosso caro Lutercio, T alvez porque tivesse sido urn bispo pou­
co convencional, "avancado", quem sabe, liberal demais.
"0 afresco mostra alguma coisa... estranha?", arriscou Bruno.
A resposta foi pronta. "Mostra Lutercio, em trajes civis da epoca, em
seu escritorio, 0 irmao dele e a esposa deste. U rna bela jovem, voces vao
ver. Afinal, voces vieram para ver 0 afresco, nao e?"
Bruno, como sempre, respondeu lealmente: "0 senhor sabe que nos
gostamos demais de antiguidades e que essa villa nos fascinou. Pela sua
beleza e pelo rnisterio do bispo vermelho. Mas nos nao esquecemos urn
certo compromisso moral de ajudar 0 seu esforco para a conservacao dig­
na da mansao e estamos tentando obter no nosso Instituto alguma inicia­
tiva nesse sentido. Trouxemos mais uma carta do nosso diretor para 0
senhor, sobre esse assunto".
Lorenzo entregou a carta e Dom Attilio pediu licenca para le-la. Ao
fim, sortiu satisfeito, agradeceu enos pediu para comunicar a Lanebbia
o seu acordo com a vistoria da villa pelo arquiteto.
Bruno continuou as explicacoes,
" Alern disso, 0 senhor sabe, somos apaixonados por livros antigos
e gostariamos de procurar urn pouco mais na villa. Se achamos 0 Virgilio,
podemos encontrar algum outro. Mas e verdade: estamos muito curio­
sos para ver 0 afresco. Lorenzo acha que pode haver nele rnuitas indica­
~6es que facilitem a identificacao do bispo..."

216
"E tent varias, presume", respondeu 0 paroco. "Mas agora me di­
gam quais perspectivas voces veem de salvar a villa?"
Lorenzo contou ao paroco que a carta de Lanebbia significava que
o nosso Diretor Executivo nao descansaria ate achar urn modo de colo­
car a mansao em sua 6rbita de influencias. Dom Attilio gostou. E mudou
de assunto.
"Quero pedir-lhes urn favor. Nao contem a estranhos 0 que virem
na sala da biblioteca. Nao sei bern por que eimportante essa discricao. Ha
seculos que minha familia protege ciosamente aquela sala. Talvez porque
ela guarde 0 iinico retrato de dois antepassados, talvez porque haja no
retrato algo que nao convem mostrar a estranhos. Eu nao vi nada errado.
Mas mantenho a tradicao da familia. As vezes penso que esse sigilo aten­
de ao desejo de alguem ja falecido..."
"A condessa me disse, quando ainda raciocinava direito, que os 'tios'
queriam ficar em paz", interrompeu tia Margherita.
Bruno quis estar seguro: "0 senhor permite que discutamos 0 afres­ ,I
co com nossos colegas do Institute?". f
!
"Se eles estivessem aqui iriam ver tudo com voces, nao e? 56 pe~o I f}'
Ii,
que nao fotografem nada. Margherita, pegue na cozinha aquele garrafao H
IiiI
empalhado. Vamos tomar uma vemaccia sarda. Voces vao ver como su­ q
pera qualquer brandy ou jerez. Recebo urn garrafao na Pascoa e outro no
Natal." 11

I~

Era, de fato, uma delicia. Tomamos varies calices, enquanto Dom


Attilio contava sobre suas ferias na villa, quando era crianca. Depois dis­
cutiu com a tia de Bruno sobre os arranjos da igreja para 0 domingo se­
guinte. Desculpou-se por deixar-nos fora da conversa e levantou-se, ·rI,
"Margherita lhes dara as chaves. Eu preciso sair. Desejo-lhes boa vi­ Ii
\i
sita aos meus 'tios', Digam ao senhor Lanebbia que estou a disposicao H
L
dele para conversarmos sobre a villa. Eu nao tenho telefone, mas voces Ii
ji
podem ligar para 0 de Margherita, que me dara 0 recado." Virou-se para 1!I
a tia com uma queixa sorridente, indicando-nos com 0 olhar: "Voce e
estas mas companhias...".
Deu urn puxao de orelhas amistoso em Bruno. "Voce continua sen­ L
do aquele garoto curioso e honesto. Desejo que a visita avilla seja pro­ j:
veitosa. Cuidem bern daquela tribuna. Ja fizemos nela grandes discursos. I
Nao e, Margherita?" I:

21 7
"E cantamos grandes arias, tambern...", respondeu a tia, sorrindo.
Voltamos acasa da tia para pegar as chaves. Ela entregou as da villa
ao sobrinho e a da biblioteca a Lorenzo: "0 senhor gosta muito de afres­
cos. Vai gostar do nosso...".
Na subida, de volta amansao, tentamos explicar como ela descobrira
o interesse de Lorenzo por afrescos. Bruno nao the contara nada. Algo me
dizia que Dom Attilio, a tia e Alessandro sabiam sobre nos e nossos pla­
nos muito mais do que deixavam perceber. Tive uma sensacao vaga e in­
comoda de inseguranca, De que alguern me observava e esperava apenas
algum erro nosso para punir a nossa... hybris. Delirio persecutorior Tal­
vez paranoia ou fase depressiva de uma psicose maniaco-depressiva... Co­
mecei a enfileirar os diagnosticos possfveis. Tao imprecisos quanto nurne­
rosos. E entao lembrei "fobia", Anna e seu horror aos caes, Pensei no so­
frimento dela e senti pena. Consolei-me imaginando que ela estaria feliz
com Isabella e Beatrice no caminho de Cisterna d'Asti. Meus companhei­
ros discutiam sobre modos de abrir 0 alcapao da tribuna. Eu estava diri­
gindo 0 carro e tinha que observar a estrada, mas conseguia acompanhar a
discussao deles. Lorenzo insistia sobre urn "rnetodo dedutivo": procurar
alguma pista, alguma mensagem cifrada, talvez nos proprios medalhoes,
algum codigo com 0 segredo para abrir 0 dossel. Bruno defendia uma abor­
dagem mais "ernpfrica": variar sistematicamente as seqiiencias de mano­
bras nos medalhoes ate achar a combinacao certa. Ele mostrava a Lorenzo
uma lista de combinacoes "rnutuamente exclusivas" que pretendia testar.
No alto da colina havia uma leve brisa. Alessandro empurrava urn
carrinho de mao, carregado de espigas secas de milho e sumiu arras do
ediffcio, sem nos ver. Quando parei 0 carro na entrada da propriedade,
dois meninos aproximaram-se correndo. Urn era bern gordo; 0 outro era
Rinaldo, que nao nos tinha reconhecido. Faltava a sua amiga Beatrice.
Bruno chamou-o pelo nome e Lorenzo perguntou como ia a Filomena.
Entao ele nos deu aquele sorriso luminoso da visita anterior. Perguntou
sobre "a doutora" que fazia omeletes. Bruno desceu do carro e explicou
tudo. Rinaldo apresentou-nos seu irrnao Amadeu, lamentou a falta da
"doutora" e perguntou se iamos levar ovos para ela.
"Sem diivida! Urn dos motivos de nossa volta aqui e comprar algu­
mas diizias de ovos para ela. Ela nao pode vir hoje, mas mandou urn bei­
jo para voce. Logo que puder, ela vai voltar aqui para ver voces e com­

218
prar ovos. Gostariamos tambern de olhar de novo a villa e conhecer 0
afresco da biblioteca. Mas antes queremos cumprimentar seu avo Ales­
sandro e sua mae. "
Amadeu escancarou 0 portae e entrei com 0 carro ate 0 patio de gra­
nito.
Rinaldo espiou pelas janelas do carro. "Faltou tambern aquela dou­
tora que foi ver a torrente, Meu avo esta levando milho para 0 antigo ca­
nil. Ele gosta de voces."
"Vamos encontra-lo?", sugeriu Lorenzo.
"Entao vamos por aqui", exclamou Amadeu apontando 0 canto es­
querdo da fachada. "0 canil era la arras. Agora e so deposito de milho.
Mas antigamente era 0 canil do marques. Ele era urn grande cacador. 0
nonno disse que ele era urn homem que estava sempre em guerras, que era
urn homem temido por todos. Eu acho que nao gostaria de conhece-lo..."
Atras do ediffcio, Alessandro vinha de volta empurrando 0 carrinho
vazio. Largou-o de urn golpe quando nos viu.
"Oh, quanto prazer! Enfim os senhores voltaram. Sejam bem-vin­
dos. Que boas novas nos trazem?"
Lorenzo respondeu. Falou do interesse nosso e de Lanebbia pelo
destino da mansao e entregou solenemente a Alessandro a carta do Isti­
tuto Galileo Galilei agradecendo a doacao do Virgilio e assegurando que
o livro estaria adisposicao de qualquer cidadao, na biblioteca do Institu­
to, tombado como Virgiliana, seculo xv, Piemonte, 43529 Ms. Luciana ti­
nha caprichado na redacao da carta. 0 velho leu atentamente, sorriu sa­
tisfeito, e perguntou a Lorenzo:
"E agora? Sera que ainda encontrarao alguma coisa? Desejo-lhes boa
sorte. Vieram para ver 0 afresco, suponho".
"Ao que parece, 0 senhor conhece bern nossos pensamentos", foi 0
elogio de Lorenzo. Alessandro riu, enquanto dobrava cuidadosamente a
carta do Galilei.
"Nao, senhores. Nao conheco seus pensamentos, embora possa ima­
ginar os fascinios que esta villa pode ter para quem pesquisa as coisas do
passado. E que eu conheco essa chave da biblioteca na sua mao ..." Riu de
novo, gostosamente, e perguntou: "Como vai Dom Attilio?".
Lorenzo contou nossa conversa com 0 padre e 0 conteiido da carta
em que Lanebbia manifestava seu interesse na reativacao da villa, para

21 9
sediar atividades culturais ou de pesquisa hist6rica, conforme as carac­
teristicas arquitetonicas permitissem.
"Isto eauspicioso! E uma 6tima noticia. Mas nao quero tomar-Ihes
mais tempo. Espero que ao meio-dia, mais ou menos, os senhores venham
tomar urn calice comigo." Prometi que desceriamos para 0 aperitivo.
"Entao vamos subir!" Rinaldo estava entusiasmado com a nova
oportunidade de mostrar-nos as belezas da villa. E de mostrar, a Ama­
deu, que era urn velho amigo nosso. Quem nao estava entusiasmado era
Bruno. Enquanto os garotos corriam escada acima, ele desabafou: "Como
eque you trabalhar na tribuna com esses dois capetas em volta? Achem
urn jeito de mante-los com voces". Prometemos fazer 0 possivel, Dei-Ihe
uma sugestao: se os meninos fossem perturbar, ele poderia convida-los
para algum trabalho tedioso... copiar detalhes do teto, por exernplo.
Amadeu foi abrir a capela e Rinaldo escancarou 0 teatro. A ramaria
do teto estava ainda mais bela e mais ... serena, mais acolhedora que na pri­
meira visita, La estavam os nove hexagonos com as iniciais das musas.
Senti de novo, que alguern, Lutercio, por que nao ele?, tinha algo a contar.
A descoberta dos nomes das musas teria sido uma senha... urn teste de mi­
nha sensibilidade para entender alguma mensagem mais importante. Adi­
reita, em toda a majestade, a tribuna guardava seus misterios, Como num
deja vu, Rinaldo ajoelhou-se no piso dela a observar 0 ninho de Filome­
na. Levantou-se limpando a poeira das rnaos na camisa e disse com auto­
ridade: "Deve estar cacando minhocas". Bruno, parado na entrada, olhava
para 0 dossel, como urn toureiro estuda urn miiira. Lorenzo tinha ido aca­
pela. Pouco depois apareceu agitado, sacudindo os braces: "Achei, achei!".
"Diga logo, Arquimedes!", pedi.
"Achei as 'configuracoes' que Isabella tinha visto e nao sabia dizer
o que eram... Lembra-se? Venha ver."
Na capela apontou para os dois vitrais da abside: "Olhe as pe~as
azuis no da esquerda e as amarelas no da direita".
"As formas das pe~as e os tons de azul e de amarelo sao muito varia­
dos." Foi 0 que notei aprimeira vista.
"Nao, Olhe a disposicao das pecas."
"Quem entende de vitrais e Isabella, nao eu. Mas, me sacrifico: no
vitral da esquerda formam algo como urn gama maiiisculo, No da direi­
ta, urn... A, sem a travessa, ou urn lambda, tambern maiiisculo. Ou, se voce

220
quiser, esbocos de urn esquadro e de urn compasso, como veria urn macon
fanatico. Voce tern razao, Sao duas ... configuracoes. E dai?"
"Dai, nada. Mas seria casual essa disposicao? Se nao, 0 que signifi­
cam estas figuras? Na liturgia crista, nao dizem nada, pelo que sei. Tal­
vez a disposicao tenha sido puramente casual enos estamos ficando ma­
lucos. Enxergando coisas demais. Deve ser coincidencia, acaso. Vamos
ver esse bendito afresco." Estendeu a chave para Rinaldo, que partiu, aos
saltos, para abrir a biblioteca. 0 que tinha sido a biblioteca. Deixou a
porta entreaberta e escancarou as janelas ruidosas. Amadeu ficou na ca­
pela olhando os vitrais. Deveria estar pensando que os famosos amigos
de seu irrnao nao eram lei muito certos da cuca. Bruno disse que iria es­
tudar a tribuna e depois veria 0 afresco da biblioteca.
Era uma sala retangular, urn pouco menor que 0 teatro. A porta fi­
cava bern no meio da parede mais longa interna. A outra tinha tres jane­
las que se abriam para 0 declive nos fundos da mansao. 0 afresco ocupava
quase toda a parede aesquerda da entrada. Senti algo estranho, quase urn
calafrio. La estava, finalmente, Lutercio, aesquerda dos outros. Era facil
reconhece-lo: 0 irrnao estava de armadura, a direita, com cara de quem
jamais acharia gra~a em livros. Entre os dois irmaos, uma figura delicada
e nobre de mulher jovem, com urn esboco de sorriso. Lorenzo encostou­
se na parede, ao lado da porta, tenso, completamente absorto na contem­
placao do quadro. Os meninos estavam calados, mas inquietos. Achei
uma solucao: sugeri que fossem brincar no carro, mas sem tocar a buzi­
na, para... economizar a bateria. Lorenzo deu-me uma piscada de apro­
vacao, Os meninos desceram correndo.
Sentamo-nos no chao, junto aparede oposta ado afresco, a uns sete
metros dele. As janelas lancavam toda a luz da manha sobre a pinrura.
Uma profusao de cores e detalhes. 0 artista demonstrava uma preocupa­
~ao quase obsessiva em ser fiel a realidade ate nos minimos pormenores.
Nem tentarei descrever agora 0 que senti diante da imagem de Lutercio.
Era prazer, surpresa, urn certo temor, uma vontade de fazer perguntas e
de dizer-Ihe que chegara a hora de contar-nos seus segredos. Estavarnos
prontos para executar a sua revanche. Ele tinha urn rosto sereno, mas se­
rio. Mostrava uns 40 anos, barba e cabelos pretos, nao muito longos e
com poucos fios brancos. Era urn belo homem. Olhos escuros e brilhan­
tes. Estava em "trajes civis", como dissera Dom Attilio. Camisa branca

221
de gola rendada muito alta e uma casaca negra sobre calca cinzenta, jus­
ta, como se usava entao, A casaca tambem era justa, dos ombros acintura
e descia ate os joelhos. Lembrava 0 estilo redingote. Tinha lapelas retas e
largas que desciam ate abarra, com bordados discretissimos de cor bordo,
que 0 artista retratara com toda mimicia. Era, sem diivida, uma roupa ele­
gantissima. Ele segurava com a direita urn compasso, apoiado sobre urn
pergaminho muito grande, que se desenrolava para fora da mesa e se es­
tendia para baixo, em primeiro plano, exibindo 0 desenho minucioso da
fachada da villa. No canto dele via-se nitidamente a torre que seria des­
truida, em 1945, pelos norte-americanos. Nao havia como duvidar: Lu­
tercio tinha desenhado a villa. Na mao esquerda, proxima ao peito, tinha
urn volume em pele de carneiro com 0 titulo ainda legivel: Ciropedia.
Lorenzo tinha agora uma expressao de vitoria, Ele tinha acertado a
previsao: 0 afresco era uma riqueza de detalhes, ate minusculos como u­
tulos de livros. Comecei a ordenar minhas observacoes. 0 irmao mais ve­
lho que, segundo Alessandro, deveria chamar-se Filipe ou Filiberto, olha­
va, com olhar opaco, para 0 lado oposto ao dos outros personagens. Os­
tentava uma armadura luzidia, urn punhal pouco amistoso na cintura; na
mao direita segurava, pelo cano, urn arcabuz novinho em folha. Devia ser
novo mesmo, porque a coronha nao se apoiava no chao, mas em cima da
bota. Eu ja sabia distingui-lo de urn mosquete: bastava observar a chave
de serpente. Com a outra mao, Filipe segurava, pela corrente, urn do de
caca mal-encarado. Lembrei 0 problema de Anna e me prometi que iria
ajuda-la a livrar-se de seu terror de des. O.do afresco era assustador.
Combinava com a armadura e com 0 olhar frio e duro de seu dono. Ao
lado do marques, a esposa, muito bela, tinha urn vestido leve, rosado, de
mangas longas e largas. Era uma figura esguia, suave, com urn leve sorri­
so, inteligente. Segurava com a mao esquerda urn pequeno livro junto a
coxa e apoiava delicadamente a direita sobre 0 peito. Os cabelos estavam
presos sob uma especie de tiara recamada com fios prateados.
"Veja bern esse chapeu na cadeira", disse Lorenzo. Havia, de fato,
urn chapeu, sobre uma cadeira forrada de verde, em primeiro plano, bern
no canto esquerdo do quadro. Descrevi 0 que via: "E urn tipico chapeu
de bispo: preto, com friso vermelho em toda a volta, copa arredondada,
aba larga e reta e esses pingentes suspensos por cordoes tambem verme­
lhos, tecidos com alguns fios de ouro. 0 dono era mesmo urn bispo".

222
"Nao, E agora sabemos porque ficou conhecido, pela gente simples,
como bispo verrnelho." Lorenzo falava com seguran~a: "Ele nao tinha
o rosto avermelhado nem cabelos ruivos. Foi por causa da cor da roupa.
Fora de casa ele andava de veste talar...".
"Que, sendo de urn bispo, era cor de vinho, avermelhada..."
"Nao, Emilio. 56 mais recentemente os bispos adotaram essa cor de
sorvete de amoras. Antes era roxo, cor de violeta, de quaresma. Lutercio
usava verrnelho-piirpura. Ele era urn cardeal..."
"0 que?"
"Temos a prova! 0 mimero de borlas penduradas no capelo, que os
leigos como voce chamam chapeu. Os pingentes chamam-se borlas. Os
bispos usam dez e os cardeais quinze em cada lado do capelo, dispostas
~ ".))
em CInCO ruveis,
"Entao Lutercio era urn homem da alta hierarquia eclesiastica, urn
homem da curia, talvez, De todo modo, era alguern com aliados podero­
sos na Santa Se, Isso pode explicar muita coisa..."
"Ha mais, Emilio. Esses fios dourados que voce bern observou nao
sao urn mero enfeite. Indicam que a nomeacao para 0 cardinalato foi pa­
trocinada por algum principe de grande prestigio junto ao papa. Os car­
deais 'de carreira' nao usam os fios dourados."
"Onde voce aprendeu essas coisas?"
"Fiz urn curso, em Brera, sobre trajes na pintura medieval. Uma coi­
sa divertidissima. Mas 0 que importa e que nosso Lutercio agora foi pro­
movido a cardeal. Isso ja explica 0 apelido dele. Mas vai esclarecer tam­
bern algumas atitudes dele e principalmente as ideias que voce tern esca­
vado no Commentarium."
"Talvez isso explique como Sua Eminencia conseguia seus manus­
critos. A proposito, urn deles e essa Ciropedia na mao dele. "
"Deve ser algum tratado pedag6gico da epoca", sugeriu Lorenzo.
"Isso e 0 que dizem os leigos", revidei, "porque os entendidos sa­
bern que e uma obra de Xenofonte. E como esta com titulo latino, e a tra­
ducao manuscrita, do manuscrito grego. E obvio".
"Touche! Voce ja olhou esses livros sobre a mesa?"
"Claro. Foi uma das primeiras coisas que eu notei." Eram sete, en­
cadernados em pele de carneiro, enfileirados em pe. Quatro tinham fri­
sos transversais, salientes, e vestigios de mimeros romanos, na lombada.

223
No quinto, podia-se ler, bern nitido, 0 titulo: Hippolytus! Era 0 nosso ma­
nuscrito ou urn muito irnprovavel gemeo dele. T alvez os outros contives­
l
sem mais tragedias de Euripides. Sobre a ponta do pergaminho com 0 de­
senho da villa, como a impedir que se enrolasse de novo, estava apoiado
urn grande livro, aberto na pagina de rosto. U rna pena de ganso estava
deitada sobre ele, como se 0 autor a tivesse des cansado sobre 0 texto, com
o cuidado de deixar a ponta fora do livro, a titulo me fez correr urn frio
pelos braces: Commentarium etc. Era 0 texto que eu estava traduzindo!
Olhei para os olhos de Lutercio. Pareceu que ele sorria. Lorenzo nem
percebeu 0 que acontecia comigo. Estava contando os livros, todos gran­
des, das duas estantes que figuravam no fundo da cena. Entre elas apare­
ciam dois quadros com retratos em meio corpo, de urn homem e de uma
bela jovem, nobre. Tinham nomes, bastante apagados. a do homem era
algo como JF POSSIO ou IF POSSIO ou, ainda, IE POCSIO. a que parecia urn P
poderia tambem ser urn F. a nome da jovem estava mais legivel, EUFENIA
ou EUGENIA, dificilmente EUFEMIA. Pelos traces do rosto, podia ser a pro­
pria esposa do irmao de Lutercio ou uma irma dela, muito parecida. Ti­
nha sobre 0 peito, pendendo de urn cordao dourado, urn medalhao de
fundo vermelho, com tres torres prateadas, duas em cima e uma embai­
xo, no meio. au, como diria Maria Eugenia, nossa assessora de heraldi­
ca, duas em chefe e uma em ponta.
Lorenzo terminou a contagem. "Sao pelo menos seiscentos e qua­
renta livros, fora os da mesa. Nessa base, a sala deveria conter pelo me­
nos tres ou quatro mil obras. Urn belo acervo. Ja imaginou ter em casa
uma est ante dessas, completa?"
"Eu gostaria de ter esta", respondi, apontando ada direita. Alguns
livros dela tinham titulos grandes nas lombadas: ANAXAGORAS, ZENO, DE
ORATORE, PHYSICA ... Tambem algumas prateleiras tinham marcas. Peque­
nas placas com abreviacoes como TH, AM, L, P, PH. Poderiam significar
areas do saber, THeologia ou THeatro, AstronoMia ou Ars Medica, Letras,
Poesia, PHilosofia ou PHysica. Pensei que a lista das silabas poderia com­
por algo como urn catalogo dos livros. Lorenzo tinha deixado 0 fundo
da sala, sem que eu percebesse, e estava observando 0 canto direito infe­
rior do afresco. Era urn exame atento e bern de perto. De urn pesquisa­
dor cuidadoso... e miope. Quando me voltei para contar-Ihe a ideia do
catalogo, so achei a parede do fundo. E nela, talvez confirmando a mi­

224
nha ideia, estava urn esquema de silabas e letras que bern poderia ser 0
resumo do acervo. Eram duas colunas de simbolos, pintados sobre uma
imitacao de marrnore, que desciam ate ao alcance da mao. Ao entrar na
biblioteca, 0 conjunto me lembrara 0 famoso calendario do mosteiro dos
"Santi Quattro" em Roma. Agora tinha toda a cara de urn catalogo. Co­
piei, como pude, as duas colunas. As letras mediam uns quinze centime­
tros de altura. Como se ve no meu desenho, alguns sinais na parte final
da coluna direita estao riscados. No original esses riscos correspondem
a sulcos profundos na parede, produzidos por instrumento agudo. Tal­
vez a baioneta de algum soldado de outros tempos. Lorenzo achou que
tudo poderia ser obra de algum pedreiro descuidad~. Mas concordou
com 0 significado eventual dos sfrnbolos. T ambem segundo ele, repre­
sentariam areas do saber ou as estantes. Provavelmente, estantes, porque
havia repeticoes das mesmas letras, ou grupos de letras, seguidos de mi­
meros romanos, como mostra 0 desenho. Nele estao reproduzidos tam­
bern outros sinais e os circulos e retangulos que contornam algumas le­
tras ou siglas.

225
"0 artista tinha senso de humor", disse Lorenzo sem se voltar, "pois
incluiu na cena alguns instrumentos de seu trabalho, pinceis e dois fras­
cos de tinta", De fato, no canto da cena aparecia a ponta de urn banco de
madeira com os pinceis e os frascos. Como em toda a faixa inferior, nes­
se canto 0 afresco estava mais danificado. Embora os objetos estivessem
perfeitamente reconheciveis, em varies pontos a camada de pintura tinha
se destacado. Passei a procurar outros detalhes. E achei urn, importantis­
simo. 0 ultimo livro da estante direita estava virado, com a lombada no
fundo e a abertura na frente, Do meio das paginas saia parte de urn bilhe­
teo Seguramente 0 pintor era alguem muito amigo da casa, para se permi­
tir tais gracejos no quadro. Cheguei mais perto e consegui ler as duas pa­
lavras do bilhete. Nada menos que 0 autografo do pintor ou, melhor, da
pintora: EUGENIA PINXIT. Exultei.
Lorenzo quase enfiou 0 nariz no bilhete e confirmou 0 achado: "A
pintora era da familia. Pode ter sido a propria mulher desse grandalhao
Filipe ou uma parente dela. Nesse caso, irma ou prima, porque a serne­
lhanca entre a Eugenia do medalhao e a mulher do primeiro plano emui­
to grande".
"Se guardavam urn retrato dela na casa, nao deveria ser a mulher de
Filipe, mas alguern estimado e distante, ausente, como 0 homem do ou­
tro retrato. U rna irma dela, que, numa das temporadas na villa, resolveu
divertir-se pintando os parentes. Parece muito improvavel e pouco razoa­
vel que a mulher de Filipe fosse a dama com 0 livro, a jovem do retrato
e, ainda, a pintora de tudo isso." Meu raciocfnio era solido e sensato. A
Eugenia pintora retratando a Eugenia com 0 livro, diante da Eugenia do
medalhao, era algo extremamente improvavel,
"Portanto", concluiu Lorenzo, "a Eugenia pintora era irma, talvez
prima, da mulher de Filipe ou Filiberto e era de uma linhagem que usava
essas tres torres, como emblema de familia. Quallinhagem? Nossa biblio­
tecaria pode responder em urn minuto, De concreto, temos que a cunha­
da de Lutercio tinha uma irma ou, com pouca probabilidade, uma prima,
chamada Eugenia. E 0 primeiro nome seguro em toda essa hist6ria. Era
uma pintora experiente, em bora jovem. Mas nao foi a autora dos afrescos
da capela e do teatro. Os traces, 0 estilo, as cores e a tecnica de pintura
sao diversos, sao de outra mao".
"56 isso?"

226
"Temos urn nome. Falta uma data", respondeu. Pelos trajes dos per­
sonagens, tipos de encadernacoes e outros indicios podia-se afirmar que
a cena fora pintada no seculo xv, primeira metade. Mas isso servia pou­
co e nao era novidade. Os titulos dos livros podiam dizer muito sobre
datas a quem entendesse de hist6ria da literatura. Nao era 0 nosso caso.
Olhei a fachada majestosa da villa no pergaminho e procurei sentir 0 or­
gulho de Lutercio ao posar como autor dela. 0 orgulho com que os gran­
des arquitetos e escultores gravam seus nomes no granite ou no marmo­
re dos monumentos. A fachada poderia conter 0 nome do cardeal! Co­
mecei a esquadrinhar cada milimetro do desenho. Nem vestigios de no­
me em todo 0 frontispicio, nos frontoes, na arquitrave ou nas bases das
colunas. Achei algumas letras nos suportes das cariatides que sustenta­
yam a arquitrave e 0 friso. Havia uma em cada canto da fachada e uma a
cada tres janelas. Seis, no total. Na base da primeira era urn N ou M, pou­
co legivel; nas seguintes as letras eram C, D, X, leV. Juntando tudo, dava
NCDXIV ou, mais provavelmente, MCDXIV. Mil quatrocentos e catorze!
Mostrei a Lorenzo. Ele sacudiu os punhos no ar, exultante: "Bravo, Emi­
lio! Temos uma data!".
Mas havia ainda muito que descobrir. A data podia nao ser ada cons­
trucao, mas era a do desenho e permitia afirmar varias coisas. Primeiro,
que Lutercio projetara a mansao naquele ana ou para ser erguida naque­
Ie ano. Segundo, que entre 1414 e 0 mornento do afresco havia passado
pelo menos 0 tempo da construcao da fachada. Por isso, alguns compo­
nentes dele, como as pessoas, a cena, os trajes, eram necessariamente pos­
teriores aquela data. Ja os livros e outros objetos, como os retratos na
parede, podiam ser mais velhos. Menos os pinceis e 0 bilhete de Eugenia.
Mas 0 tempo decorrido desde 1414 nao era muito, pois ninguern posaria
com a planta da villa, muito tempo depois da construcao dela. Isso per­
mitia suspeitar que 0 afresco poderia ser de 1417, aproximadamente.
Bruno tinha ouvido a comernoracao de Lorenzo. Chegou desanima­
do: "Pelo barulho, parece que voces estao conseguindo alguma coisa. Eu
continuo de maos vazias, mas ainda acho 0 truque daquele alcapao. Que
afresco enorme! Ocupa quase toda a parede! Entao esse e 0 nosso ilustre
bispo?". A pergunta era para mim.
"Cardeal! Basta ver 0 capelo ai sobre essa cadeira meio descamada,
o dos bispos tern.so dez borlas. Este tern quinze. As vestes talares dos

227
bispos eram roxas. Ados cardeais eram vermelhas, cor de purpura. Por
isso, 0 povo 0 chamava bispo vermelho. Obvio, nao?"
"Quanta esnobacaol Aposto que voce aprendeu tudo isso hoje."
"De mim, eclaro", emendou Lorenzo. Contamos todos os detalhes
que haviamos achado. Bruno sentou-se no chao, a uns quatro metros do
quadro, formando com as maos uma especie de bin6culo e comecou a
esquadrinhar a pintura de alto a baixo, comecando da direita. Quando viu
o livro com 0 bilhete de Eugenia estranhou: "Normalmente os pintores
assinavam Fulano, pinxit, mil e tanto. Esse deveria ter uma data. Espaco
havia no bilhete. au a data se apagou, ou a pintora nao datou 0 quadro,
ou a data esta em outro canto. A prop6sito, aqueles livros la em cima, no
canto esquerdo tambem trazem marcas nas lombadas". Nem eu nem Lo­
renzo conseguiamos ler nada nos tais volumes. Bruno trouxe do patio
uma pequena escada de abrir e empoleirou-se nela. "Datas nao ha, mas
talvez os titulos interessem."
"Quais sao?"
"Sao quatro livros grandes. Da esquerda para a direita: DECR.IN­
NOCENTII PP VII, DOC.GREGORII PP XII, DECR.ALEXANDRI PP V, e EPIST.IO­
HANNIS PP XXIII. a ultimo e 0 mais grosso de todos."
"Urn cardeal que se preze coleciona documentos papais. Nada de
especial, nao acham?", perguntou Lorenzo.
«No Galilei", respondi, "falta alguem que estude hist6ria da Igreja.
Nao sabemos nada sobre esses papas. Podemos, porern, afirmar que 0
afresco eposterior a ascensao desses senhores ao trono papal."
"Pouco brilhante."
"Concordo." Lorenzo tinha razao, Eu estava meio atordoado com
tudo 0 que via naquele afresco. Ia precisar de algum tempo para combi­
nar todos o~ indicios numa hipotese consistente sobre a identidade de
Lutercio. a nascimento de uma hip6tese, diria Tulio, e fruto de muitas
experiencias, nem sempre dirigidas para a explicacao de urn problema.
Com base na mesma literatura e na me sma logica, 0 pesquisador mais ma­
duro formula hip6teses que 0 novato sequer imagina. S6 que 0 aciimulo
de experiencias precisa, de algum modo, ser ordenado, segundo... segun­
do uma hip6tese? Era urn raciocinio circular. Mas minhas ideias, naque­
le momento, nao podiam compor mais do que circulos, vertiginosos e fu­
gazes'. Eu sentia, vagamente, que todos os indicios do afresco confirma­

228
yam nossas ideias sobre Lutercio, mas 0 fato de nao contradizerem nos­
sas hipoteses nao era a resposta desejada.
"Depois ponham essa escada lei embaixo, sob 0 portico. Eu volto a
tribuna, mas a coisa vai mal. Jei testei todas as combinacoes de movimen­
tos, dois a dois, com os medalhoes da frente, variando 0 sentido do mo­
vimento, quantidade de deslocamento e sequencia dos movimentos. Ago­
ra yOU tentar as mesmas combinacoes, incluindo urn dos medalhoes do
fundo."
"Quando Beatrice abriu 0 alcapao ela estava girando os medalhoes
da frente, se nao me engano."
"Sim, Mas ela pode ter girado, antes dis so, urn dos outros dois, 0 do
fauno ou 0 de Clio, ou os dois. E nao se sabe quanto girou, nem a dire­
\rao do movimento, nem a sequencia em que foram movidos."
"Vou rezar pelo seu exito", prometeu Lorenzo, com 0 calor e a con­
viccao de urn obelisco.
"Uma fe como esta e capaz de derreter a tribuna", respondeu Bru­
no, jei no corredor.
A fe de Lorenzo era, de fato, escassa. Bruno retornou apos uns vin­
te minutos, desanimado, perguntando: "Emilio, voce nao lembra pelo
menos a posicao dos braces de Beatrice, quando 0 alcapao se abriu?".
"Ela estava de costas para 0 fundo da tribuna e bern proxima da ba­
laustrada. Talvez urn pouco voltada para a direcao da porta do teatro."
"Entao podemos supor que ela estava movendo 0 medalhao do fau­
no, e urn dos da frente, ou que 0 tinha tocado antes de girar os dois da
frente, Erato e 0 poeta. Ela estava de costas para 0 medalhao de Clio. Vou
ten tar de novo." Voltou para 0 teatro rabiscando coisas num papel. Nem
tive tempo de the dizer que eu nao tinha muita certeza sobre a posicao de
Beatrice. Nem sequerouviu a promessa de Lorenzo: "Continuarei mi­
nhas oracoes pelo seu exito".
Pouco depois os meninos chegaram correndo, esbaforidos. Amadeu
estranhou: "Ainda nao cansaram de ver esse quadro? Eu acho mais bo­
nitas as pinturas da capela e do teatro". Lorenzo respondeu que tinha­
mos dividido os trabalhos e Bruno se encarregara de estudos dificeis no
teatro e nao deviamos perturba-lo, que nos jei estavamos meio cansados
e que a ideia de contemplar as outras belezas da mansao era muito oporru­
na. Saiu com os meninos, sorrindo!, juro, no rumo da capela. Fiquei so,

229
diante do afresco, e percebi que eu me tinha comportado diante dele co­
mo urn mero pesquisador aprocura de evidencias, objetivas, obviamen­
teo Mas talvez alguma coisa que urn investigador objetivo nao enxergas­
se podia estar a vista de urn observador empatico, sempre detestei essa
palavra.
a que eu sentia, de imediato, era ternura pela mulher do marques
brutamontes, que parecia mais interessado em seu detestavel do de caca,
do que na meiguice dela. Senti urn certo desconforto: por urn atimo ela
me pareceu eterea, feita de nevoa, Lutercio agora continuava sereno, sim,
mas de uma serenidade sofrida, como... anestesiado. a unico que pare­
cia estar plantado no solo e no tempo era 0 marques, com sua figura acre,
temivel, Lorenzo havia dito que os pintores da epoca, ao retratar pessoas,
procuravam cerca-las de tudo 0 que pudesse representar a importancia,
os gostos e 0 oficio delas. Mas a alusao aautoria da villa parecia forcada,
A biblioteca e, portanto, a mesa de trabalho, os livros, penas e manuscri­
tos deviam ser, forcosamente, posteriores ao projeto da villa, que aparecia
em primeiro plano. au entao, Eugenia, a pintora, tinha deliberadamente
ignorado qualquer cronologia, em favor da ostentacao cabal dos rneritos
dos personagens. E tinha favorecido ostensivamente a Lutercio, talvez
porque na biblioteca se concentrassem seus recursos de trabalho e seus ...
trofeus. T arnbem 0 detalhe da pena deitada sobre a portada do Commen­
tarium aludia claramente aautoria de Lutercio, mas a pena era superflua,
aleg6rica, pois 0 volume aparecia ja pronto, encadernado. Era tambem
forcada a presen~a daquele do horrivel, numa biblioteca, embora 0 mar­
ques parecesse bern 0 tipo capaz de se envaidecer com delicadezas como
o arcabuz, a armadura e aquela fera. a punhal podia ate passaro Era pra­
ticamente urn complemento da indumentaria masculina da epoca. A urn
primeiro olhar, Filipe parecia urn Henrique VIII, mais magro e carran­
cudo, Seguramente, nenhum pintor 0 escolheria para modelo de Joao
Evangelista, numa pieta. a jeito era mais para Gestas, Caifaz ou Hero­
des. A artista certamente mostrara urn pouco, ou ate muito, de sua visao
pessoal dos personagens e seus modos de vida. Mas 0 ambiente, os obje­
tos e 0 cenario do fundo com as estantes e livros eram suficientemente
neutros para serem reais. Esse apego arealidade ficava patente no deta­
a
lhe dos frascos de tinta e dos pinceis, afresco era, portanto, urn retrato
fiel da biblioteca de urn homem do quattrocento, amante dos classicos,

23°

cultor apaixonado de Euripides, cercado de beleza e born gosto (exceto


pela evidente rudeza do irrnao e seus adornos). Mas eu percebia uma certa
amargura naquela serenidade de Lutercio. Era estranho, tambem, que na
biblioteca de urn cardeal houvesse tao pouca coisa a lembrar a Igreja, ou
o cristianismo. S6 0 capelo, e nao chapeu, com quinze borlas, e nao pin­
gentes, sicut docuit Lorenzo, e os volumes com nomes de papas. Faltava
algo mais devoto, como urn breviario na mao de Lutercio, em vez da Ci­
ropedia. Talvez as outras paredes, nao retratadas, ostentassem urn crucifi­
xo, alguma Madonna ou outras provas de religiosidade. A dama do qua­
dro retratado ao fundo era a nossa melhor pista, pensei. Era, provavel­
mente, nobre. 0 porte e 0 rnedalhao insinuavam isso. Uma condessa ou
marquesa de... Borgonha, ou 0 que fosse, deveria constar na hist6ria da
estirpe, com data de nascimento, nome da irma e do marido dela, Filipe
(ou Filiberto) de ... Pavia ou de Bergamo, por exemplo. Depois seria facil
descobrir 0 nome do irmao dele que conheciamos por Lutercio...
Eu percebia que essa cadeia de ideias era uma divagacao, rnais que
urn raciocinio. Mas nao era urn absurdo. Afinal, 0 que e urn absurdo, se
nao uma possibilidade mal definida? Eu teria que enfrentar a solenidade
de Maria Eugenia se quisesse saber 0 que significava 0 medalhao de Dona
Eugenia. Nesse caso, nem Gabriella podia ajudar. Outra pista para iden­
tificar Lutercio era procurar, agora, nao mais urn bispo, mas urn cardeal.
o mimero de possibilidades se reduzia muito. Deveria haver, num pu­
nhado de livros, listas de cardeais do Pie monte ou do Monferrato. Mas
Isabella jei tinha descartado a existencia de qualquer Lutercio, cardeal ou
nao, com 0 perfil do bispo vermelho. Seria urn cardeal com outro nome,
irrnao de urn tal Filipe ou Filiberto, ou coisa parecida. Ou urn cardeal
cunhado de Fulana, irma de Eugenia de ... Borgonha, ou 0 que nossa bi­
bliotecaria decretasse sobre 0 medalhao,
Senti urn calafrio: 0 tal medalhao podia ser apenas urn ornamento.
Mesmo que coincidisse com 0 brasao de alguma familia. Passei a enten­
der melhor 0 que e urn absurdo. E 0 que e sentir-se desamparado. Pen­
sei em Anna. E deslizei gostosamente para dentro desse pensamento.
Imaginei Anna em meus braces, com aqueles labios quentes e umidos.
Senti que...
"Emilio, eu estou cansado e Bruno tambern, Por que nao vamos
almocar?"

231
Lorenzo devia ter batido antes de entrar.
"Primeiro,o aperitivo com Alessandro", lembrou Bruno. Os meni­
nos enfiaram-se escada abaixo.
Alessandro, muito afavel, estava sentado no longo degrau arras da
casa, que conhecfamos da visita anterior. Sugeriu, sem conviccao, que a
sala de jantar seria mais confortavel. Bruno disse que gostarfamos de con­
versar diante do vale. 0 velho e os meninos trouxeram queijos, salame e
urn Grignolino na temperatura ideal.
Alessandro introduziu 0 assunto. "Espero que 0 afresco tenha ser­
vido ainvestigacao dos senhores." Nao me pareceu neutra a palavra "in­
vestigacao", Noutras ocasioes ele havia dito "pesquisas". No mfnimo, ele
devia ter farejado que, alern de cacar livros, estavamos indagando sobre
a historia de Lutercio. Alias, ate os tres patetas podiam perceber isso.
"Ninguem ate hoje escreveu sobre 0 bispo vermelho?" A pergunta
foi de Lorenzo.
"Nao, que eu saiba. Dom Attilio ensaiou uma tentativa de escrever
uma historia da villa. Mas faz mais de vinte anos. Se ao menos tivesse
sobrado algo do acervo da biblioteca haveria mais pistas sobre 0 bispo, 0
marques e a esposa dele. A velha condessa costumava referir-se ao 'quar­
teto da biblioteca', acrescentando que era formado por duas irrnas e dois
irmaos, Ela nunca lembrou 0 homem do retrato, ao fundo."
"Nos notamos que a mulher com 0 livro e a do quadro ao fundo sao
muito sernelhantes", emendei.
"A do quadro era uma artista, pintora, segundo Dom Attilio. A con­
dessa dizia que ela nao morava na villa, apenas passava algumas tempo­
radas, em visita airma. Meu avo contava que se chamava Eugenia, era ale­
rna ou austriaca e herdou a villa, quando a irma morreu. Falava tambern
de urn outro grande afresco dela, em Asti, num convento."
Lorenzo arregalou os olhos: "0 senhor tern ideia de qual seria es­
se convento?".
"Infelizmente, nao. Se soubesse, eu ja teria ido ate la."
A pergunta de Bruno foi sutil: "0 senhor gosta tanto assim de
afrescos?".
A resposta comecou com urn sorriso que era de hesitacao e, de­
pois, de rendicao: "Gosto. Mas acho que nao acharia 0 que fosse pro­
curar la", Ninguern falou, ate que 0 velho continuasse: "Eu tarnbern

23 2
tentei desvendar 0 misterio de Lutercio, muitos anos atras, Mas sou urn
amador. Os senhores.sao pesquisadores. Tern mais chance de conseguir
a explicacao, Percebo que ha muitos indfcios por aqui, mas para inter­
preta-los e preciso cultura maior que a minha. Desejo, sinceramente,
que tenham exito", 0 sorriso agora parecia de alfvio. Ele chamou Ri­
naldo e pediu mais uma garrafa de vinho, Comentamos os indicios do
afresco. Excetuados os nomes de livros e 0 medalhao no peito de Euge­
nia, os detalhes que Alessandro registrara eram praticamente os mesmos,
Quando a nova garrafa estava chegando ao fim, Lorenzo anunciou que
pretendiamos almocar na aldeia e, depois, voltar abiblioteca para fazer
anotacoes.
"S6 espero que me contem a solucao do misterio, na proxima visi­
tao Hoje you com minha filha e os meninos ate Alba e voltaremos anoi­
teo Por favor, tranquem bern os portoes e entreguem as chaves Mar­a
gherita, Arnanha eu as pegarei lao "
o velho segurou 0 brace de Bruno e the sorriu: "Aquela sua tia sem­
pre se divertiu em me arranjar problemas. Levem meu abraco a ela e a
Dom Attilio. Voltem sempre. Mesmo depois da descoberta".
Rinaldo percebeu as despedidas e chegou apressado: "E os ovos?".
Bruno, heroicamente, comprou algumas diizias enos despedimos.
Por decreto de Lorenzo e omissao de Bruno, guiei mais uns doze
quilometros, montanha acima ate Cellarengo, aprocura de uma "tratto­
ria acolhedora, comida local de tipo caseiro, pouca gente, uma boa costata
ai Jerri e uma pieeata alia rucola e algumas garrafas de Barolo safra 64,
Franco Fiorina ou Opera Pia". Essas eram as exigencias dos passageiros.
Achamos tudo isso, menos a eostata, num pequeno local com 0 nome es­
pirituoso de Sacristia. Nao conversamos muito durante 0 alrnoco. Esta­
vamos com fome e intranquilos. Havia de zenas de ideias a serem formu­
ladas, organizadas. E havia a incerteza de Bruno sobre sua estrategia pa­
ra abrir 0 alcapao,
"Essa viagem dos meninos a Alba caiu do ceu", disse ele, agora mais
livre para suas manobras na tribuna.
"Deus existe e gosta dos pesquisadores series, meu rapaz." Lorenzo
falava com solenidade.
"Sim, Reverendo."
"Eminencia, pelo menos!"

233
"Quinze borlas! Nao e f.kil. E mais que urn ministerio. Nosso ami­
go Lutercio que 0 diga. E ha mais: urn punhado de cartas do papa, joao
XXIII. 0 antigo, nao 0 Roncalli."
"0 chapeu de cardeal esta na cadeira do afresco", exclamou Lo­
renzo, "mas de on de voce tirou essa ideia da correspondencia papal?".
Interrompi: "Nao se diz chapeu. E capelo".
"Quem subiu na escada paraver fui eu", disse Bruno. "Os outros
livros referentes aos papas comecam por DOC ou DECR. 0 ultimo comeca
por EPIST."
"As epistolas sao tambern documentos pontificios, DOC", reagiu Lo­
renzo, buscando meu apoio, com os olhos.
"Bruno tern razao." Meu latim me credenciava a intervir. "DOC nao
significa documentos, no sentido nosso. Quer dizer Documentum, ensi­
namento, magisterio, No caso, enciclicas, bulas, ou algum motu proprio,
referente a materia doutrinaria, DECR significa Decretais, ordens, normas
de procedimento. EPIST refere-se a cartas, no sentido coloquial. Voce anda
muito afastado da igreja, Lorenzo. Cuide mais de sua alma. 0 nosso car­
deal tinha cartas do papa, sim senhor."
"Muito bern: urn cardeal recebe cartas do papa. E dai?"
"E urn punhado de cartas, pelo jeito: 0 volume era bern grosso. Sem
datil6grafos e taquigrafos, Sua Santidade deveria apreciar muito 0 cardeal
do Piemonte, ou do Monferrato para mandar-lhe tantas cartas. Nem Fan­
fani ou Maritain devem ter recebido tanta correspondencia dos iiltimos
papas. 0 prestigio de Lutercio entre os homens da Santa Se devia ser
grande, na epoca do afresco."
"Nao, Bruno. Esse prestigio estava em decadencia. " Lorenzo regis­
trou 0 nosso espanto e emendou: "A correspondencia estava encerrada.
Se nao, 0 volume com as cartas estaria mais ao alcance da mao. Mas es­
tava no angulo mais afastado, da prateleira mais alta. Esquecido".
"Isso e mera suposicao!", disse eu.
"Como a das cartas do papa a Lutercio. Por duas razoes, pelo me­
nos. 0 titulo da lombada po de ser invencao da pintora, e as cartas podem
ter sido enviadas a diferentes destinatarios e reunidas por Lutercio num
volume s6." Lorenzo sorria, satisfeito com seu novo lance.
Bruno engoliu quase meio copo do Barolo e enfrentou a jogada: "E
entao, teriamos urn cardeal a pedir aos seus amigos as cartas recebidas

234
do papa, para fazer urna colecao, Sua hipotese, pelo jeito, e urn tanto...
audaciosa".
"Bern, podiam ser obras-primas de literatura. Voces nao acharn is­
so plausivel?"
"Nao."
"Nem eu. Voces ganhararn."

235

Capitulo 11

Velhas marcas e a carta de Gabriella

Sem a presen~a dos meninos e de Alessandro tinhamos inteira liber­


dade de explorar 0 teatro, a tribuna, a biblioteca e a capela. Mas a ausen­
cia deles dava avilla urn clima de estranha gravidade. Eu me senti quase
urn invasor. Tinha a sensa~ao da primeira visita. De que alguma mensa­
gem importante estava a nossa espera, desde seculos. Lorenzo e Bruno
foram investigar a tribuna. Preferi embriagar-me sozinho com as belezas
da capela. Aquelas figuras nos vitrais dificilmente seriam urn capricho do
acaso. Notei que 0 filete de chumbo que contornava as pe~as do gama e
do lambda, ou... esbo~os de esquadro e compasso, nao era igual ao das
outras pe~as do vitral. Parecia mais grosso. Pensei em chamar Lorenzo
para confirmar a diferen~a, mas, nao sei por que, preferi calar. Talvez eu
estivesse "vendo coisas". As figuras deviam ter algum significado. Qual?
Nem procurei muito. Tinhamos ja tantos indicios desconexos que a des­
coberta de mais algum ja nao trazia prazer. Apenas complicava 0 nosso
labirinto. Eram apenas mais pe~as, eventuais, de urn mosaico cuja figura
nao sabiamosqual deveria ser. Pedro de Verona estava la, com sua pal­
ma de martir, conquistada como a quarta estrela de urn general: a pre~o
de espalhar morte e sofrimento. Assim como os generais, os inquisidores
passam, pensei. Tanto 6dio, tanta dor, tanta tortura, tantas fogueiras e, de­
pois de tudo, os valdenses vao bern, obrigado, desfrutando as belezas dos
livros amaldi~oados. Ate Lutercio, devoto do martir na juventude, tinha
percebido quanta perversidade podia esconder-se atras do zelo de tantos
inquisidores...
Lorenzo chegou acapela: "Meditando?".
"Divagando. "

237
"Bruno quer voltar cedo para MiLio. Precisamos anotar 0 que acha­
mos no afresco. Registrei tudo 0 que vi e 0 que voces apontaram, mas e
melhor conferir."
"Copiei 0 tal catalogo, da parede do fundo e anotei algumas coisas",
respondi. "Mas, vamos la."
Tinhamos feito urn born trabalho. Tudo 0 que poderia interessar ja
estava anotado. Quase tudo. Lorenzo foi ate 0 afresco e apontou algumas
areas em que as cores eram rnais claras. Vistas do meio da sala compu­
nham uma especie de xadrez de losangos ou quadrados mais claros, que
se estendia, como urn tecido transparente, sobre 0 bra~o de Lutercio e os
objetos da sua mesa.
"Agora olhe la do fundo, Emilio. Voce vai ver que essa Eugenia era
brilhante. E pena que 0 tempo atenuou os contrastes. Ela pintou a pro­
je~ao da vidra~a sobre a mesa e sobre 0 bra~o do cardeal. Ela pintou a luz!
A luz que entrava por uma janela a direita e que nao aparece no quadro:'
As areas mais luminosas ja nao se destacavam tanto, apos seculos, mas eu
agora via perfeitamente a imagem da vidra~a projetada.
"Ela era fascinada por esse efeito da luz, veja, Emilio", Lorenzo fa­
lava entusiasmado, "alem das sombras dos frascos de tinta ela tambem
retratou a luz que os atravessava".
Bruno chegou pouco depois, resignado: "Nada, por hoje. Contudo,
eliminei mais da metade das combina~6es possiveis. Precisamos fechar a
villa e pegar a estrada. Chegaremos as oito, mais ou menos".
"Para que tanta pressa?", perguntei.
"Esqueci de dizer: combinei com as nossas musas que nos encontra­
riamos hoje no Anjo Azul. Precisamos saber 0 que conseguiram do livrei­
ro." Urn encontro com Anna, ainda naquela noite. Era urn presente dos
deuses. Meu sorriso deve ter-me traido.
"Pela sua cara, voce esta otimista, Emilio." A frase de Lorenzo me
pareceu gelada. /
Gastamos ainda uma hora, ou quase isso, ol¥ando 0 teto do teatro,
a tribuna e a capela. Depois trancamos tudo, ~pulosamente.Fizemos
urn giro em torno da mansao, para verif~r se tudo estava em ordem.
Num canto do deposito de milho, 0 antito canil, estavam ~icicletas
de crian~a. Cada uma tinha urn pequeno caixote de made(t-a com~ga­
geiro, com a identifica~ao, pouco discreta, do proprietari~. Rinaldo pin­
tara seu nome em vermelho-vivo, mas tinha calculado mal os espa~os: as
ultimas quatro letras se amontoavam, sufocadas, onde deviam caber duas.
Amadeu tinha sido mais previdente. Seu nome come~ava bern mais a es­
querda. So que agora sobrava espa~o e faltavam letras. Ele tinha calcula­
do mal a tinta. Depois de urn robusto A, vinha urn M, que come~ava cheio
de esperan~a, e definhava na ultima perna, anemica, por falta de tinta. De
todo modo, era 0 que bastava: para marcar a bicicleta de Amadeu. Algu­
mas palavras tern letras demais.
Tia Margherita estava diante da casa, regando 0 jardim. Convidou­
nos a entrar e Bruno explicou nosso compromisso de encontrar "as pes­
quisadoras" em :~filao, motivo pelo qual tfnhamos que recusar 0 convite.
Ela perguntou sobre Beatrice e Isabella, disse que entregaria as chaves da
biblioteca aDorn Attilio e deu a Bruno urn beijo cheio de afeto. A Loren­
zo perguntou: "0 senhor gostou do afresco?". Para mim a frase foi: "Es­
pero que osenhor tenha achado 0 que queria saber".
"Nos voltaremos em menos de urn meso Urn beijao, tia!", foi a des­
pedida de Bruno antes de ligar 0 motor do carro. Lorenzo ficou no ban­
co da frente e eu me esparramei no d tras, com nossas anota~6es, os es­
quemas de Bruno, duas caixas de sapa 0 cheias de ovos, uma echarpe ver­
melha com listas e flores brancas e, a' da, alguns grampos de cabelo.
"Linda esta echarpe!", instigu .
"E de uma amiga... devo lev para a lavanderia."
"as grampos tambem?"
Lorenzo riu. "Seria pior se voce encontrasse algum cachimbo... urn
cinturao de sargento ou uma boina de marinheiro. Eu acho que em uma
semana teremos a solu~ao de todo 0 mis' io de Lutercio."
"Ja estive pensando...", come~o runo.
"E sobreviveu ao esfor~o, com se ve", provocou Lorenzo. Bruno
ignorou a frase.
" ... que se soubermos como ele chegou a todos esses manuscritos ra­
ros e malvistos pela linha-dura do clero, saberemos quem ele era e co­
mo, depois de ter sido urn bispo, provavelmente urn inquisidor, foi ele­
vado a cardeal. E quando isso for esclarecido poderemos explicar por que
ele, seu nome e sua historia foram proscritos. "
"Deus te ajude!", disse Lorenzo, glacial.
"Que voce acha, Emilio?"

239
"E urn born caminho. Mas todas essas duvidas formam urn domino.
Uma resposta salida a qualquer delas derrubara as demais ou, pelo me­
nos, algumas outras. Manuscritos, afresco, teatro, capela, cardinalato, em­
paredamento da tribuna, insinua~oes de Aurelio Valdesi, 0 marques es­
quisito, encrencas com a linha-dura da inquisi~ao, cita~oes de Brunus e
Emmanuel, sumi~o apos a morte, talvez antes dela, a mo~a do medalhao
com as tres torres, a inexistencia de urn Lutercio nos registros consulta­
dos, Eugenia, a pintora... tudo isso forma urn novelo so."
"Voce esqueceu de enumerar a echarpe e os grampos", lembrou
Lorenzo.
Bruno levantou a mao: "Urn misterio por vez, por favor".
"Nao, Bruno!", exclamei. "Este nos deciframos ja. Vejamos. A
echarpe e de seda natural, muito cara. A etiqueta e Les Pins, francesa ou
de Monte Carlo. Tern urn certo perfume, que nao e urn aroma de uso pes­
soal. Parece mais 0 cheiro de algum produto caro para evitar mofo nas
gavetas de roupas. A echarpe foi tirada da gaveta para ser usada na oca­
siao do... episodio. Logo, nao foi urn presente de Lorenzo, por ocasiao
do citado... episodio. A mo~a veio da praia, direto para 0 local dos fatos,
pois aqui no chao ha urn bilhete de trem, Genova-Milao. Mas ela nao e
de Genova. La ninguem bota antimofo em roupa, pelo menos nesta es­
ta~ao. So se a casa fica muito tempo fechada. Uma casa de praia, prova­
z n t e em Portofino. Ela mora em Mila:o. Pois sabe que a qualquer mo­
/ mento pode pegar sua echarpe. Tanto assim, que a deixou no carro de
' Lorenzo sem mais problemas. Foi a uma festa chique apos a chegada a
/ Milao, pois soltou os cabelos que tinha ajeitado com os grampos ate a
hora de exibi-Ios. Isso porque uma dama refinada como ela nao e 0 tipo
de perder grampos em evolu~oes mais audazes no banco do carro, embo­
ra 0 indiciado seja urn homem capaz das maiores torpezas e baixarias."
"Basta! Que monte de asneiras!", protestou Lorenzo.
Bruno podia ver 0 rosto dele e delatou: "Ele esta contendo 0 riso.
Mas quailCl-Q voce falou da casa na praia ele ficou tenso e mordeu 0 labio.
Prossiga, E~ilio. Vamos esclarecer 0 caso dessa pobre mulher, antes de
entregar 0 a~queroso elemento apolicia ou ao pai dela".
"Umadama refinada, com ample decote. Os ombros estavam des­
cobertos. Daf a echarpe. E estavam bronzeados, pois queria exibi-Ios.
Ninguem mostra ombros com a pele descascando. Era urn bronzeado

24°

lento, produto de varios dias na praia, portanto. Nao teve muito tempo
livre antes de partir. Por isso veio com os cabelos presos e os soltou no
carro, derrubando alguns grampos. Ou, ao partir, tentou demonstrar que
a viagem seria de trabalho. Se nao, iria antes ao cabeleireiro. Se precisou
dissimular, 0 encontro em Milao era... irregular, ilkito."
"Credo, que coisa mais feia, Lorenzo." Bruno parecia escandaliza­
do. Lorenzo nao conseguiu mais conter uma gargalhada. "Vou te dar urn
trofeu de acuidade de observa.;ao, rapidez de raciocinio, sutileza de ana­
lise e absoluta falta de pontari~. 0 bilhete deve ter uns tres meses e fui
eu que usei. Os grampos sao de outra... ocasiao. A echarpe e de uma vizi­
nha, graciosa, por sinal, a quem eu dei carona outro dia."
Bruno me"advertiu: "!'fao acredite. Todo delinqiiente psicopata nega
as acusa.;oes e apresenta vexlsoes fantasiosas sobre 0 crime. Principalmen­
,
te os mamacos . ";
sexualS
Eram sete e cinco quando me deixaram no bar de via Vetere, esqui­
na da minha rua. Urn cafe bern forte, e urn born chuveiro. Era todo 0 meu
programa antes de ir ao Anjo Azul. E foi cumprido a risca. Ainda sobrou
tempo para limpar 0 abajur de alabastro, apertar 0 velho soquete, que ain­
da podia servir por muito tempo, e colocar nele a lampada do armarinho
do banheiro. Ficou lindo. Naquela noite eu iria adormecer a luz do ala­
bastro. Urn requinte que, somando tudo, eu ate merecia, apos urn dia em
que eu tinha sido ate brilhante, por que nao? Anna certamente iria gos­
tar da historia do abajur. 0 alabastro tinha "cruzado 0 meu caminho",
como devia ser.
Cheguei as oito e cinco. N a nossa mesa, Alberto parecia ter esque­
cido os demais c1ientes. Brandia uma enorme caneca de cerveja, meio agi­
tado e comentava com Abelardo os inconvenientes da "invasao" de tu­
ristas alemaes em Caorle, onde tinha passado ferias. "Ja explico", disse
Abelardo, apenas me viu chegar. Ele tinha notado meu espanto pela pre­
sen.;a dele no bar em pleno domingo. "Deixei minha mulher e as crian­
.;as em Punta Ala. Estarei solto por uma semana. Mas ja estou com sau­
dade." Alberto fez uma cara de desilusao diante de tanta fraqueza: "E
preciso resistir. Beba para esquecer". Virou-se para mim: "Voce tambem
deve ter alguma coisa para esquecer. Se nao, beba para lembrar 0 que po­
de ter sido. Vou buscar mais tres canecas para nos".
Pouco depois chegaram Bruno, uma bandeja com queijos e pao, Lo­
renzo, quatro canecas de cerveja, nessa ordem. Alberto foi atender a ou­
tras mesas e Abelardo teve que contar, de novo, que havia deixado a fami­
lia em Punta Ala. Bruno comentou as belezas dessa praia e acrescentou,
friamente: "Nao sei 0 que e que fascina tanto Lorenzo lei em Portofino".
"Mulheres decotadas, talvez", sugeri.
"Eu nao gosto de Portofino. Mas, para me ver livre de vo~­
capaz de mudar para lei hoje, seus chatos."
"Nao entendo essa rea«;ao dele", disse Abelardo com malicia. "AI­
guem pode me explicar?"
Lorenzo olhou-o desconsolado: "Tu quoque?". Enquanto Bruno
explicava a historia da echarpe, chegaram, animadissimas, Beatrice, Isa­
bella e Anna. Ela estava linda e parecia feliz. Sentou-se ao meu lado e be­
beu urn goIe da minha caneca.
"Cuidado com os segredos!", lembrou Abelardo. Ela disparou uma
resposta que me congelou: "Logo, logo, nao hayed mais segredos entre
nos dois".
Lorenzo quase saltou: "0 que?".
"Elementar, meus caros. Se continuarmos a beber na mesma cane­
ca, logo you saber os segredos dele e ele os meus. Nao haverei mais se­
gredos. "
Beatrice acomodou-se entre Abelardo e Bruno, diante de mim e de
Anna. Lorenzo e Isabella ocupavam as pontas da mesa. Beatrice ensaiou
urn brinde, mas hesitou: "Quando cada urn tiver sua caneca...".
" ... todos serao irmaos, nao hayed mais guerra, nem peste...", con­
tinuou Lorenzo.
"Bern, se me interromperem, nao conto 0 que aconteceu em Cister­
na d'Asti. Comportem-se, portanto." Anna tinha-se pendurado no meu
bra«;o e eu sentia 0 calor do corpo dela.
"Pois bern. Descobrimos coisas do arco da velha."
"Convem come«;ar contando a recep«;ao de Valdesi a Isabella." Era
a sugestao de Anna.
"Nao. a mais importante sao os livros que... "
Abelardo, que jei devia estar pela quinta caneca~ botou ordem na
conversa: "Primeiro Beatrice, depois Isabella e, para a sintese final, An­
na. Comece, Beatrice. E limite-se a responder as minhas perguntas".
"Sim, meritissimo."
"Como foi a chegada de voces?"
"Isabella foi na frente, sozinha, nos ficamos na esquina, a uns qua­
renta metros. Ele a reconheceu e perguntou se tinha vindo para ver 0 anti­
fonario. Tinha achado mais alguns peda~os dele, que 'estavam aespera de
alguem capaz de aprecia-Ios'. Ficou feliz com a visita, e perguntou se esta­
va de passagem como na viagem anterior. Isabella explicou que viera com
duas colegas, doidas por livros antigos, que nao queriam incomoda-Io... "
"Incomodar a quem?" Abelardo mal seguia a narra~ao.
"Incomodar ao encadernador, Aurelio Valdesi, ora."
"Obrigado. Pode continuar."
"Ele quase ficou magoado e fez questao de nos conduzir pessoal­
mente ate a oficina ou loja. Ficamos embasbacadas com tanta coisa pre­
ciosa. Isabella explicou que Anna era a mais interessada em conhecer as
Bacchae, pois era especialista em teatro antigo. Ele explicou que 0 volu­
me provinha da villa do bispo vermelho. Eu entao abri 0 jogo: contei que
eramos muito amigas dos parentes atuais do bispo e que tinhamos livre
transito na villa. Disse, ate, que tinhamos achado 0 Virgilio e esperava­
mos achar mais livros por lao Ele entao percebeu que nao eramos piratas
e que nao tinhamos qualquer interesse comercial em livros antigos. An­
na, entao, tirou da sacola 0 'Hipolito': '0 senhor poderia dizer algo so­
bre este livro?'. Aurelio Valdesi ficou branco, visivelmente comovido.
Tomou 0 livro com carinho, abriu a capa e acariciou-a lentamente na face
interna, de olhos fechados, como se estivesse lendo em braile. Depois fez
o mesmo com a parte interna da contracapa. Estava tenso, tremulo e des­
culpou-se: 'Queiram perdoar. As senhoras talvez nao imaginam a signi­
fica~ao e a idade desse volume. Ele foi encadernado pelo pioneiro da arte
livreira no Piemonte, 0 patriarca da minha familia, Marcello Valdesi, no
seculo xv'. Isabella perguntou se 0 patriarca tinha sido urn valdense, e ele
respondeu que nao sabia. 'Segundo a tradi~ao da familia, ele foi amigo de
alguns valdenses convertidos e por isso era chamado Marcello dei Val­
desi, dos valdenses. Ao longo dos seculos, 0 sobrenome foi transforma­
do em Valdesi, apenas. Mas nao e impossivel que ele tenha sido urn val­
dense influente. Ou que, depois dele, a familia tivesse aderido ao credo
de Valdo'. Foi isso 0 que ele disse, nao e, meninas?"
"Exatamente", confirmou Anna. Beatrice assentiu com um.gesto de
cabe~a.

243
"Pode prosseguir seu depoimento, senhorita. Mas antes precisamos
pedir mais cerveja." Abelardo estava realmente saboreando seu retorno
a boemia. Alberto trouxe cerveja, salame e queijos. Beatrice continuou:
"Perguntei como ele podia afirmar que 0 patriarca tinha sido 0 en­
cadernador do livro. 'Ja yOU mostrar-Ihes como posso saber. Agora gos­
taria que vissem algumas maravilhas do tempo do velho Marcello Val­
desi. Ele viveu entre 1370 e 1450 mais ou menos. Vejam 0 que temos neste
armario.' Era urn tesouro. Dois salterios com iluminuras, uns quatro ma­
nuscritos gregos de Hipocrates, dois Galeno, os Sermones de Bernardus,
De natura deorum de Cicero... havia tambern Anaxagoras, Plotino... 0
que mais? Me ajudem, voces duas".
Anna lembrou as Questiones octo de Guilherme de Ockham. Isa­
bella mencionou a Historia Calamitatum de Petrus Abaelardus e disse
que tinha anotado uns trinta titulos importantes, mas esquecera 0 papel
em casa. "0 armario tinha mais livros que da outra vez, Emilio. Desta
vez ele mostrou tambem outros armarios. Aquela casa esta repleta de
tesouros. "
"Prossiga, Beatrice!", sentenciou Abelardo.
"Obrigado. Lembrei mais dois: Ad Lucilium, de Seneca, e Trialogus
de Wielef..."
"0 que? Voce tern certeza?", a pergunta era de Bruno. "Isso e he­
resia da grossa."
"Calma! Urn valdense do seculo xv, maluco por livros, deveria guar­
dar coisas desse genero, apesar dos riscos. Tanto os cataros, como os al­
bigenses, os valdenses e, mais tarde, os adeptos de Wielef e de Huss ti­
nham muitas teses em comum. Principalmente a denuncia da hipocrisia
e ambi~ao do clero e a contesta~ao da autoridade papal. Uma das acusa­
~6es que se fez a Jeronimo de Praga foi a de ter difundido pelas bandas
checas e eslavas as ideias do Trialogus, que ele levou de Oxford a Pra­
ga." Lorenzo falou com seguran~a. Como se tivesse estudado 0 assunto.
"E que eu liguei imediatamente 0 livro a Lutercio. Freud explica.
Desculpe a interrup~ao, Beatrice."
"Nao se incomode. Voce vera logo que 0 nosso bispo era ligadissi­
mo ao velho patriarca dos Valdesi." Ela ainda nao sabia que Lutercio era
urn cardeal. Nem valia a pena mudar a conversa a essa altura. "Pergun­
tei como a familia tinha acumulado tantos livros preciosos. Ele respon­

244

deu, mais ou menos, isso: 'Naqueles tempos poucos liam. Fora 0 clero e
algumas outras classes, a popula~ao era analfabeta. 0 clero, em grande
parte, fabricava seus proprios livros. Fora dos conventos e das casas dos
nobres, urn livro era uma inutilidade e urn risco. Ou a inquisi~ao e sua
rede capilar de delatores ou os intolerantes das varias seitas hereticas es­
tavam prontos a castigar 0 crime de ter livros. Alem disso, os livros sa­
cros eram ilegfveis e os profanos, alem de indecifraveis, eram proibidos.
Alguns poucos, fora do clero, Iiam e gostavam de conhecer, de saber; por
isso, colecionavam 0 que pudessem, ja que as ediroes eram rarfssimas. Mas
quem tinha uma boa cole~ao de livros, tinha ao seu redor 0 que havia de
melhor na inteligencia e no saber. Era isso que movia e ainda move a ra~a
dos Valdesi'. "
Abelardo estava mais lucido do que parecia: "Tudo .isso para dizer
que voces tres representam a inteligencia e 0 saber, para esse tallivreiro.
Parabens!".
Beatrice sorriu e continuou. "Perguntei qual a atitude dos Valdesi de
hoje diante do chamado bispo vermelho que, como mostrava a encader­
na~ao do 'Hipolito', tinha sido fregues e talvez amigo de Marcello Val­
desi. A resposta foi tao pronta que parecia preparada. 'A senhora pode
avaliar que 0 meu antepassado e 0 bispo daquela villa eram das poucas
pessoas que liam, e gostavam de livros, na regiao. So isso bastaria para
aproxima-Ios. Eu sempre me perguntei por que 0 bispo nao mandava en­
cadernar os livros e seus escritos em uma cidade mais proxima de seu pa­
lacio, por exemplo, em Casale, em Canale, ou em qualquer mosteiro de
sua diocese. Ha duas respostas. Vma menos provavel: ele preferia a qua­
lidade do trabalho de Marcello Valdesi, ainda que em qualquer mosteiro
pudesse encontrar grandes artesaos na especialidade. Outra, mais prova­
vel: 0 bispo confiava na discri~ao do encadernador. Tanto, que the con­
fiava obras consideradas pagas e ate hereticas, segundo 0 criterio da Igreja
catolica da epoca. 0 encadernador era, de certo modo, urn cumplice. Mas
obispo sabia 0 que se guardava nesta casa e, desse modo, ele tambem era
urn cumplice do encadernador. E a unica explica~ao que me satisfaz. Co­
mo prova, basta imaginar 0 que se guardava no tal palacio ou villa e 0 que
ainda se esconde nesta casa. Temos aqui varios livros que pertenceram ao
bispo. Basta procura-Ios.' Foi mais ou menos isso 0 que ele disse. Nao c,
Anna?"

245
"0 teu relato esta perfeito. Conta agora a hist6ria das contracapas..."
"Nao!" Abelardo, inflexivel, mantinha a ordem: "Agora e voce, An­
na. Conte 0 que ocorreu e nada mais que 0 ocorrido". Ela acatou 0 man­
dado, embora, conforme a jurisprudencia do pr6prio Abelardo, antes da
sexta caneca, fosse a vez de Isabella.
"Segundo 0 discurso de Aurelio, haveria provas da amizade ou
'cumplicidade' entre Lutercio e Marcello Valdesi. Eu apenas perguntei
o que the dava tanta certeza do relacionamento entre os dois. Ele abriu
o 'Hip6Iito' sobre a mesa, pediu licenr;a para pegar minha mao e fez com
que as pontas dos dedos deslizassem levemente sobre 0 papel colado na
face interna do couro da capa. Eu sentia apenas algumas ondular;oes que
podiam ser irregularidades do couro. Depois fez 0 mesmo com a contra­
capa. Eu senti ali tambem as ondular;oes, mas agora parecia que os ex­
cessos de barbante das costuras tinham sido colados, sob 0 papel, no aves­
so da contracapa. Entao, 0 livreiro acendeu uma lanterna de pilhas, dei­
tada sobre a contracapa, de modo a que qualquer relevo, mesmo mili­
metrico, projetasse uma sombra. 0 resultado foi que eu percebi alguns
ziguezagues, sob 0 papel. Entao ele nos mostrou a marca do patriarca:
'You revelar agora urn segredo secular da familia. Em outras epocas, is­
so poria em risco a vida dos meus antepassados. Hoje os tempos sao ou­
tros. As senhoras amam a alma dos livros. Mas nao conhecem bern 0
corpo deles. Uma encadernar;ao eurn trabalho como outros. Mas pode
ser uma obra de arte, como e 0 caso de muitos exemplares que podem
ver nesta oficina. Marcello Valdesi era urn artista. E, como tal, deixava
sua marca em cada obra digna de seu nome. Urn livro euma pilha de ca­
dernos ou fascfculos de paginas dobradas. Nas dobras ha furos e neles
passam fios de barbante que entao sao amarrados. Se os n6s forem da­
dos sempre na mesma posir;ao dos fascfculos, formarao uma fileira ver­
tical quando os cadernos forem empilhados. Cada fileira formara urn vin­
co saliente na lombada, quando 0 couro encobrir as costuras. Para pren­
der melhor a pilha de cadernos as capas, pode-se colar a elas as sobras dos
fios, principalmente do primeiro e ultimo fascfculos, e depois cobri-Ias,
colando sobre elas a primeira e a ultima pagina do livro. E isso 0 que lhes
mostrei neste volume. .o velho Marcello Valdesi deixava seu nome na
contracapa. 0 fio de cima formava urn M e 0 de baixo, urn v. Agora apal­
pem de novo e sentirao as duas iniciais do patriarca. Naqueles tempos era
arriscado escrever 0 proprio nome num livro. Nao so os encadernadores,
mas tambem os proprietarios, e ate os autores preferiam esconde-Ios'."
"E entao? Dava mesmo para sentir as letras?", quis saber Lorenzo.
"Para mim, foi mais ficil reconhecer 0 tra~ado com a lanterna. Isa­
bella e Beatrice perceberam facilmente com os dedos. Agora, segurem­
se: 0 velho Marcello registrava os nomes dos proprietarios dos livros,
com 0 mesmo sistema. Tra~ava as iniciais deles, agora no avesso da capa.
Segurem-se mais firme: Aurelio diz que todos os livros do bispo verme­
lho encadernados pelo patriarca sempre foram reconhecidos pelos seus
antepassados pelas letras L e M, no avesso da capa. 0 L em cima e 0 M
embaixo..."
"Espera urn pouco, Anna! Como e mesmo?", perguntei.
"Eu disse para voces se segurarem. Nos tres confrontamos as Bac­
chae e 0 'Hipolito' e confirmamos 0 que Aurelio disse. Nosso Lutercio
tern urn M no sobrenome. Como era nobre, ao que tudo indica, 0 M po­
deria indicar seu feudo ou territorio, Monforte, Moncalieri, Magenta ou
Monferrato, por exemplo. Teriamos, entao, que procurar urn certo Dom
Lutercio de... Monferrato, por que nao?"
A informa~ao sobre as marcas tinha deixado todos perplexos. Bru­
no foi 0 primeiro a sair do espanto: "E muito dificil que 0 livreiro esteja
enganado quanto as marcas. As duas tragedias gregas indicam urn re­
lacionamento ou mesmo alguma cumplicidade entre Lutercio e 0 velho
Valdesi do seculo xv. Mas a prova disso deve ser procurada na tribuna.
La estao livros que nao foram tocados desde 0 quattrocento. Se urn de­
les tiver as marcas L e M na face interna da capa, e as do antigo livreiro
no avesso da contracapa, nao havera mais duvidas". A prova seria solida
pois Aurelio Valdesi nada sabia do dossel. 0 cardeal e 0 livreiro eram
amigos. Mais que isso. Aliados numa luta contra a prepotencia e 0 obs­
curantismo. Eram cumplices, como tinha dito Anna. Entao...
Isabella antecipou a minha conclusao. uSe havia uma cumplicidade
deles dois numa atividade arriscada e explosiva como lidar com livros, a
confian~a mutua devia ser total. "
"E disso resulta 0 que?", perguntou Abelardo.
"Resulta que.quando a estrela de Lutercio na hierarquia catolica co­
me\=ou a se apagar, ele tinha urn born lugar para enfurnar as obras mais
perigosas. 0 porao do velho Marcello."

247
Lorenzo esfriou a conversa: "Non sequitur. Aurelio Valdesi s6 mos­
trou urn livro dele com as marcas dos dois her6is. 0 outro saiu da tribu­
na. 0 que sabemos e que, provavelmente, Marcello era 0 encadernador
e 0 livreiro de Lutercio. Mesmo que 0 dossel esconda outros livros com
as marcas dos dois, nao saberemos nada mais que isso".
Beatrice corrigiu a conclusao. "Nao teremos provas da tal cumpli­
cidade. Mas se voce pensar na situa<;ao dos dois, fica mais plausivel admi­
tir a cumplicidade, do que nega-Ia. A hip6tese da oculta<;ao dos livros e
mero corolario."
"Se 0 corolario for verdadeiro a premissa pode, mesmo assim, ser
falsa. Mesmo que achemos pencas de livros de Lutercio nos armarios de
Aurelio, a cumplicidade nao se confirmaria. Os livros podem ter ido pa­
rar la depois da morte do bispo. Como voce diz, e muito plausivel que en­
tre os dois houvesse muita confian<;a. Ambos lidavam com coisas proi­
bidas e cada urn podia facilmente delatar 0 outro... "
Dei 0 meu palpite. "Mesmo que os livros tivessem chegado la de­
pois da morte de Lutercio, a decisao de manda-los para la, a muitos qui­
lometros de distancia, denota uma preferencia especial pela oficina dos
Valdesi. Pelo tempo da morte de Lutercio as coisas estavam ate mais pre­
tas em materia de ca<;a as letras." Tinha sentido a minha ideia. Segundo
Valdesi, os livros ainda estavam em sua oficina. Por que? Ou para serem
apenas guardados ali, ou como propriedade do patriarca, amante de li­
vros antigos. Mas eles s6 ficaram antigos depois de urn certo tempo. Ate
entao, eram apenas perigosos, imiteis, sem compradores e, de certo mo­
do, sem dono. Nao era absurda a ideia de Isabella: os livros de Lutercio
ou, pelo menos, muitos deles tinham sido confiados a guarda dos Valde­
si. Por ele mesmo, ou por alguem que cuidou dos livros depois da mor­
te do cardeal. '
"Nao interrompam 0 depoimento de Anna", foi a ordem, judicial,
de Abelardo, com espuma de cerveja no bigode.
"Temos outra surpresa", continuou Anna, depois de urn sorriso ma­
rota para Isabella e Beatrice, "aquele volume das Bacchae vai fazer urn
terremoto na hist6ria da literatura. Segurem-se de n~vo".
"Entao precisamos encher as canecas. Se ficarem vazias nao,adianta
segurar nelas." Abelardo estava esquecendo a compostura de magistra­
do. Alberto trouxe mais uma rodada de cerveja, e Anna continuou.
"De todas as tragedias de Euripides, 'As Bacantes' e a que apresen­
ta a maior lacuna, a partir do Nerso 1329. Nao se sabe ao certo quantos
versos faltam, mas sao muitos, pois 0 conteudo do enredo muda muito
entre esse verso e 0 1330, que come~a truncado, no meio de uma Frase. No
seculo III, Apsines ainda conhecia a parte faltante, na qual Agave recolhia
os peda~os do filho morto, com urn lamento a cada parte do corpo re­
composta. Dali por diante todos os manuscritos sao mutilados apos 0
verso 1329, ate 0 seculo XII, quando come~am a apresentar enxertos de
fragmentos de uma tragedia bizantina do seculo XI, sobre a paixao do Sal­
vador do Mundo, conhecida como Christus Patiens. Atribuida a Grego­
rio de Nazianzos. Pois bern: 0 exemplar de Aurelio Valdesi contem ou­
tros versos no lugar da lacuna. Nao entendi bern, pois nao sei muito la­
tim, mas conhe~o 0 Christus Patiens..."
"Explica isso, Anna." Era Lorenzo que pedia, enquanto Bruno fa­
zia uma cara desconfiada.
"Ha urn escolio ou nota mais recente na margem, que eu copiei." Ti­
rou da bolsa a anota~ao: "Secundum graecum codicem msm. Emmanuelis
Chrys. E a segunda referencia que achamos a urn Emmanuel. Aqui ele
seria 0 dono de urn manuscrito grego sem a lacuna ou com urn novo en­
xerto para ela. Imaginem 0 furor que isso pode fazer por ai".
Nos quatro, que nao tinhamos visitado 0 livreiro, estavamos apaler­
mados. Eram surpresas muito grandes, acumuladas. Tudo precisava ser
entendido com mais calma. Abelardo, iluminado menos por Minerva e
mais por Bacco, prolatou sua melhor senten~a:
"Nao da para engolir tanta coisa sem comida. Suspendo a sessao pa­
ra irmos jantar. Isabella falara depois. 0 que voces acham?". Anna aplau­
diu, Isabella disse que nao tinha nada de novo para contar e que estava
com fome. Fomos jantar em Brera, no 17. Tivemos que levar tambern 0
carro de Abelardo. Isabella se encarregou disso. Bruno e Lorenzo em­
barcaram no Land Rover de Beatrice, e Anna resolveu ir comigo. Antes
de entrar no carro, come~ou a procurar alguma coisa na bolsa. Por fim
entrou.
"Achou?"
"Eu nao estava procurando coisa alguma. So queria que eles par­
tissem antes de nos." Ela aproximou 0 rosto, com os olhos fechados, os
labios entreabertos. E entao, pude acaricia-Ia com toda a ternura deste

249

mundo e sentir queimar dentro do meu peito e em cada centimetro de mi­


nha pele uma excita~ao envolvepte, como se meu corpo estivesse a derre­
ter-se ao calor incandescente de... urn vuldo. Depois de urn beijo fervente
ela tomou folego e disse: "Senti falta de voce, Emilio. Teria sido tao born
se voce estivesse lei para... ".
Resolvi ironizar. "Para traduzir aquela nota das Bacchae, suponho."
"Claro. Para que mais voce serviria?"
"Eu tambem senti muita saudade de voce."
"Preciso te contar uma coisa, meu querido."
"Boa?"
"E urn segredissimo! Eu peguei 0 volume das Bacchae e deixei 0 nos­
so 'Hipolito' no lugar dele. "
"Mas, como? Santo ceu... "
"Nao se preocupe. Tenho 0 telefone de Aurelio. Amanha ligarei para
explicar 0 equivoco e combinar a devolu~ao. Vai ser surpresa tambem
para ele. Os volumes sao praticamente identicos. Ate 0 numero na lom­
bada e 0 mesmo nos dois: 58. Em numeros romanos, claro. Achei estra­
nho isso." Lembrei 0 "catalogo" na parede da biblioteca, com abrevia~5es
e numeros romanos.
"Provavelmente 0 numero 58 indica uma estante ou uma classe de
assuntos. Poderia significar tragedias ou Euripides. Mas nao podemos
perder aquele 'Hipolito'. E agora vamos encontrar a turma."
"Vamos. Se nao, podera haver comentarios. E obvio que yOU bus­
car de volta 0 nosso livro. Nao consegui resistir a tenta~ao de examinar
as Bacchae e copiar os versos que preenchem a lacuna. Gostaria de saber
onde esse tal Emmanuel achou 0 manuscrito na integra. Ou com urn en­
xerto ainda inedito... E mirabolante a ideia!"
"Qual?"
"Ah, sim. Ja imaginou 0 cataclisma que haveria se fosse publicada a
tradu~ao de urn manuscrito das Bacchae anterior ao ana 1200? Ainda sem
a lacuna apos 0 verso 1329? E curioso que 'As Bacantes' seja a unica tra­
gedia que falta nos manuscritos mais antigos, como 0 palimpsesto H, de
Jerusalem, 0 Marcianus ou 0 Parisinus. Os primeiros manuscritos conhe­
cidos, em que ela aparece, ja mutilada, sao de 1310, aproximadamente."
A ideia era mirabolante mesmo.
Na chegada ao restaurante, Anna avisou-me que ninguem mais sa­
bia da troca dos livros e que as Bacchae estavam numa sacola no jipe de
Beatrice. Ninguem comentou 0 nosso atraso, mesmo porque Isabella ti­
nha acabado de chegar, escoltando Abelardo. Os dois rindo a solta. Anna
explicou candidamente a Beatrice que era melhor eu ficar com "0 livro",
para dar uma olhada na manha seguinte. Pediu as chaves do jipe e trans­
ferimos a sacola para 0 meu carro.
o spaghetti caracteristico do 17 era fininho, com creme de leite,
cubinhos mimisculos de presunto, azeite, pimenta vermelha fresca, pica­
da bern miuda, e urn leve toque de paprica. Lorenzo, como de costume,
pediu duas por~6es.
Isabella perguntou sobre nossa visita a villa. Bruno contou seus fra­
cassos na tribuna. Lorenzo descreveu em pormenores e com brilho 0
afresco da biblioteca e as provas que ligavam Lutercio a constru~ao da
villa e ao Commentarium. Deixou para mim a tarefa de comentar os li­
vros que figuravam no afresco e 0 capelo que fazia de Lutercio urn car­
deal. A "promo~ao" do nosso amigo foi saudada por todos, principal­
mente por Abelardo, que passou a chama-lo "purpurado", depois disso.
Uma das gra~as do 17 era 0 Osso Buco com pure. A gremolata era
de casca de limao siciliano, amolecida em manteiga fresca, com urn toque
sutilissimo de vernaccia. A carne vinha sobre uma camada cremosa que
harmonizava com perfei~ao os sabores refogados da cenoura, da cebola
e do aipo. Uma obra de arte. Foi a escolha de todos. Apos a sobremesa,
Beatrice se incumbiu de consultar Maria Eugenia sobre 0 medalhao da
Eugenia do afresco. Abelardo aconselhou: "Nao fale de incunabulos com
ela. Ela nao gosta", e desatou a rir. Lorenzo bocejou, sem qualquer reca­
to, e pediu a conta. "Precisamos de uma conversa sobria para ordenar
todos esses dados."
"5egunda-feira, as onze, na minha sala. Que tal?"
"Aprovado por unanimidade. Vamos dormir." Foi 0 veredicto de
Abelardo, que encerrou a conversa: "0 tribunal esta em recesso. Minha
toga por urn pijama!".
Bruno e Anna decidiram ir comigo. Diante do predio dele, em via
Moscova, ofereceu-nos urn cafe e saimos. Eu estava feliz. Anna come~ou
a conversa.
"Ca estamos nos, Emilio. 50S. Como e gostoso amar alguem! Fazia
tempo que eu nao sentia isso."
"Eu gostaria que tudo tivesse come~ado antes."
«Cheguei tarde?"
"Nao. Mas perdemos ja algum tempo..."
"Ha muito mais pela frente. "
"Vamos viver 0 momento e torcer para que seja eterno."
"Carpe Diem! Viu como eu sei latim?"
"Entao seu tradutor esta dispensado."
"Nao, meu caro. Ou voce pensa que meus beijos sao de gra~a. E
tudo investimento."
"Entao e melhor voce investir mais urn pouco." Parei 0 carro nu­
rna rua tranqiiila e ela se atirou sobre mim, quente, vib~ante e generosa.
"Precisamos ir", disse algum tempo depois. "Acho que ja garanti algu­
mas paginas das Bacchae."
«So algumas linhas, por enquanto."
«Nao vejo a hora de entender aqueles versos."
"Hoje nao da. Posso dar uma espiada e te contar por alto 0 que eles
dizem. Assim voce dorme melhor." \
Chegamos ao meu predio e ela me entregou 0 livro: "Da pra voce
dar uma olhada?"
"Hoje?"
"Se voce puder... "
"Voce sobe comigo ou..."
"Nao fica bern, para uma senhora. Espero no carro. Mas nao de­
more."
Subi rapidamente, nem fechei a porta, de tanta pressa. Nao queria
deixa-Ia esperando. Abri com todo cuidado aquele tesouro e comecei a
procurar 0 verso 1330, virando as paginas com toda a delicadeza. De
repente, .um susto. A porta se trancou ruidosamente as minhas costas.
Olhei para tras e la estava Anna. Com urn olhar irresistivel de menina tra­
vessa colhida em falta. E, ao mesmo tempo, urn olhar de vitoria, de quem
superou uma barreira. Levantei-me para abra~ei-Ia e ela se lan~ou nos
meus bra~os ainda ofegante: "Nao fica bern, para uma senhora, ficar so­
zinha num carro lei embaixo, a esta hora da noite. Voce nao acha, meu
querido?".
"Claro. Que maravilha! Eu achei que voce... com a sua situa~ao
familiar... "
"Minha Csitua~ao familiar' esta em Rapallo ate 0 outro domingo.
Estou s6."
"Pobrezinha. Posso fazer alguma coisa?"
"Quero urn Cointreau, ou algo parecido."
"Cointreau eu tenho." Eu queria mostrar seguran~a, naturalidade,
mas minha mao tremia miseravelmente quando servi 0 licor no caIice dela.
Ela fingiu nao notar. Devia estar envaidecida pelo estrago que causara nos
meus reflexos. Alguns deles. Outros, principalmente glandulares, estavam
em estado de gra~a. Peguei urn copo de Lambrusco para mim e tentei ler
os versos. Ela chegou-se por tras de mim e me abra~ou docemente, incli­
nada sobre meu ombro. "Concentre-se em seu trabalho! Eu ja paguei por
ele, lembra-se?" Deu-me urn beijo na nuca e colocou fora de combate
qualquer sinapse mais comportada. Mesmo assim, procurei entender al­
guma coisa do manuscrito. Ela come~ou a andar mansamente pela sala,
que era tambem meu quarto, e chegou ao abajur.
"Que lindo, Emilio. E alabastro, nao e?" Contei como 0 tinha com­
prado, como ele tinha "atravessado meu caminho". Ela 0 acariciou, sor­
rindo, e 0 acendeu. Foi ate a parede, apagou a luz do teto e me chamou.
"Veja que luz suave nessas placas de alabastro. Nao da para aprecia-Ia
sem apagar a outra. Cada coisa deve ser apreciada nas condi~oes mais
adequadas. Urn quadro deve ser visto em plena luz, de uma certa dis­
tancia e com os olhos na altura dele. Uma cupula deve ser vista de. bai­
xo. A melhor posi~ao para apreciar urn abajur de cabeceira e... deitado a
luz dele."
Fixei os olhos dela. "Voce precisa julgar sem distor~oes."
"Vai amarrotar minha roupa. "
"Pode-se evitar isso, nao?"
"Mas estou com a mao ocupada com esse calice. 56 se voce me aju­
dar... " Ela pas 0 ecilice ao lado do abajur, desabotoou lentamente a blu­
sa, tomou minhas maos e levou-as aos seios. Fechei os olhos para sen­
tir melhor 0 calor palpitante deles. Ela come~ou a beijar meu pesco~o e
meu peito enquanto desabotoava minha camisa. Sentei-me na cama e ela
empurrou-me docemente, deitou-se sobre mim, ro~ando meu rosto com
os sews...
o halito quente dela, 0 calor daqueles tibios, as coxas em brasa,· os
humores ferventes, tudo se abria para tragar meu corpo e derreter minha
mente numa fusao sublime, de puro prazer, de eternidade. Enos derra­
mamos urn no outro.
Quando os sinos de SanfEustorgio nos despertaram, as sete da ma­
nha, a primeira coisa que ela disse foi "Era assim que eu queria: a luz do
alabastro". Parecia que os sinos festejavam nossa primeira noite. Simpa­
tico, aquele sacristao. Embora urn tanto indiscreto.
"Mas uma s6 observa~ao nao basta para apreciar esse abajur. Para
uma correta avalia~ao, pr~cisamos examina-lo outras vezes, nao acha?"
Ela fingiu refletir: "Deixe-me ver... pode ser... a noite, se voce quiser."
"Precisamos esperar tanto?"
"Antes nao da. Tenho alguns compromissos para hoje. Agora pre­
ciso trocar de roupa em casa e refazer minha cara. Eu ligarei a tarde. Es­
perar pela festa faz parte dela."
No domingo traduzi os quarenta e dois versos seguintes ao 1329,
para presentea-la quando chegasse, anoite. De urn modo geral, eles eram
lamentos de Agave e de Cadmo, a cada parte que conseguiam juntar do
corpo dilacerado de Penteu. Mas ela chorava os momentos perdidos de
convivencia com 0 filho, recordando ora uma aperto de mao, ora os pri­
meiros passos das pernas vacilantes de Penteu crian~a, ou 0 ombro vigo­
roso do filho, que the serviria de amparo. As lamenta~6es de Cadmo se
alternavam com as de Agave como num contraponto e tinham urn senti­
do diverso. Ele nao se culpava, como ela, mas invariavelmente deplorava
a trai~ao de sua fe, por urn deus cruel e vingativo, que prometia serenida­
de e paz e s6 trouxera tristeza, dor e morte. Num dos versos, Cadmo per­
guntava quanta dor seria ainda necessaria para saciat urn deus tao cruel.
Noutro, 0 velho lamentava sua ingenuidade em crer nas promessas de urn
deus. Com tais versos no lugar da lacuna, Euripides poderia ser, nao ape­
nas lido, mas ate recomendado pelos que temiam, na difusao dos classi­
cos, a volta das divindades pagas. Decididamente, as Bacchae s6 poderiam
ter sido escritas durante 0 exilio na Macedonia. E s6 ap6s a morte dele
podiam aparecer no palco.
Pelo jeito, 0 manuscrito de Emmanuel correspondia as informa~6es
do reitor Apsines, do seculo III. Anna iria exultar com 0 achado. Ainda
que fosse urn enxerto, 0 trecho parecia diverso da tradicional interpola~ao
do Christus Patiens. Vma das duvidas era 0 fim da nota junto ao verso
1330. Ela aludia ao manuscrito grego de Emmanuel Chrys. Dificilmente

254
esse Chrys, com y, poderia remeter ao Christus. Mas, para azar nosso, 0
y podia ser urn erro ortografico de algum copista menos erudito.
A resposta estava na caixa de correspondencia. Quando desci para
comprar 0 jornal do domingo, 0 zelador entregou-me uma carta pesada,
de Gabriella. Explicava que nao poderia vir a Milao para ver a Carla Frac­
ci e lamentava protelar nosso encontro. Precisava aproveitar uma opor­
tunidade preciosa: uma revista feminina the oferecia viagem, hotel, in­
gressos e dinheiro para escrever sobre os espetaculos no teatro grego de
Taormina. "Vou lembrar de nos dois, cada vez que as chamas do Etna
brilharem na escuridao, por tras daquelas colunas do proscenio. Prepare
o nosso Moet & Chandon." E anexava as informa~oes prometidas, sobre
Brunus e Emmanuel, pedindo desculpas pela reda~ao apressada.

"Come~arei por Emmanuel, de sobrenome Chrysoloras, as vezes


abreviado como Chrys ou Ch. Ele, for~osamente, podia opinar sobre a
tradu~ao do teu bispo, pois foi urn eminente professor de grego. Alias,
o primeiro da Italia, em Floren~a, de 1396 ate 1402. Depois ensinou em
Veneza, Pavia e Milao, onde 0 teu bispo poderia freqiientar as aulas dele.
Era urn homem brilhante, cultissimo e de grande influencia politica. Tan­
to, que veio a Italia como embaixador de Bizancio para negociar acor­
dos com 0 governo de Floren~a. Depois, fez carreira na Italia e acabou
sendo embaixador do papa Joao XXIII e encarregado de discutir com 0
imperador Sigismundo a sede do Concilio de Constan~a. Acompanhou
o papa ao Concilio, e morreu la, em 1415. Traduziu Homero e Platao.
Foi sucedido em Floren~a, no ensino de grego, por urn discipulo, Gua­
rini. Escreveu muitas cartas aos homens mais brilhantes de seu tempo,
quase todos seus ex-alunos de grego (deixou uma gramatica chamada
Erotemata, que foi usada por Erasmo para ensinar grego em Cambridge).
Os discipulos dele foram a vanguarda do renascimento italiano. Veja s6
que cole~ao de gigantes: Filelfo, Guarini, Poggio e Bruni, que voce tal­
vez tenha procurado como prenome, porque a versao latina Brunus e am­
bigua. Esse Brunus, tambem conhecedor de grego, amigo do teu bispo,
nao e urn Bruno. E urn Bruni, Leonardo Bruni d'Arezzo, 0 Aretino!!! 0
primeiro a traduzir urn texto grego. De Basilio, 0 grande. Bruni, como
seu mestre Emmanuel, era homem de grande influencia cultural (qual­
quer urn sabe) e politica. Tanto que, embora 'licencioso' e 'libertino'

255
(nada mal, hein?), foi 'secretario apostolico' de quatro papas, inclusive
Joao XXIII, a quem acompanhou, tambem, ao Concilio de Constan~a.
Mesmo apos a deposi~ao de Joao em pleno Concflio, Bruni voltou aSanta
Se e continuou urn dos homens fortes do papado. Isso mostra a habili­
dade e 0 poder de que dispunha. Esse Brunus tern todas as credenciais
para fazer sugestoes ao teu amigo bispo, sobre equivalentes latinos de ter­
mos gregos. Alem de haver traduzido muitos textos gregos ele podia opi­
nar sobre aquela tradu~ao do 'Hipolito', porque conhecia a obra de Eu­
ripides. Num guia de estudos que escreveu, em 1422, para a filha de Carlo
Malatesta, 0 casca-grossa de Mantova, que jogou a estatua de Virgilio no
Mincio, ele sugere que a jovem leia a Alcestis, como exemplo de conduta
feminina. Bruni, Chrysoloras, Filelfo e Poggio eram os donos do maior
acervo de manuscritos classicos, gregos e romanos. Principalmente Filelfo
(que acabou sendo genro de Emmanuel) e Poggio, 0 maior colecionador
de codices, de todo 0 grupo. 0 nome inteiro era Gianfrancesco (ou 10­
hannes Franciscus) Poggio Bracciolini. Encaixa-se no mesmo padrao pri­
vilegiado de seus amigos: 'secretario apostolico' de Bonifacio IX, de Joao
XXIII e, muito mais tarde, de Eugenio IV, bern depois da deposi~ao de
Joao, ao qual tambem acompanhou em Constan~a. Foi, mais tarde, chan­
celer da Republica de Floren~a. Note! 0 papa a quem acompanhara e
apoiava foi deposto e ele continuou atuando nas articula~oes do Conci­
lio, que resultaram na elei~ao do insipido Martinho V (Bruni, 0 Aretino,
outra raposa da curia romana, ja tinha deixado Constan~a). Numa pau­
sa do Concilio, Poggio voltou ao suI e, na viagem, valendo-se de suas
varias prerrogativas como homem da Santa Se, fez uma 'limpeza' nas bi­
bliotecas dos mosteiros que encontrou pelo caminho, confiscando ma­
nuscritos de Amiano, Petronio, Nonio, Tacito, Plauto, Lucrecio, Mani­
lio. E outros, que ele mesmo traduziu para 0 italiano, como Diodoro Si­
culo, Platao, Homero e Xenofonte. Veja que 0 seu bispo tinha os ami­
gos mais interessantes e mais poderosos da epoca. Pelo menos, os mais
cultos e donos do maior numero de fontes literarias. Poder maior que 0
deles so 0 da Inquisi~ao, pela qual passaram incolumes, ja que tinham
excelente rela~oes junto ao papado e no meio da nobreza, romana e £10­
rentina. A erudi~ao, 0 bom-gosto, 0 faro politico e a esperteza de Poggio
estao retratados nas suas numerosas cartas. Ha varias edi~oes do seu
'Epistolario'. Eu consultei varias para a minha tese e tenho duas. Algu­
mas incluem cartas, bilhetes ou algum post scriptum que outras omitem.
Numa das minhas ha algo que pode te interessar. E urn bilhete, nao as­
sinado, dirigido a Leonardo Bruni. Alguns editores 0 consideram urn
pos-escrito a famosa carta de 23 de maio de 1416, escrita em Constan~a
e endere~ada a Bruni, na qual elogia a argumenta~ao de Jeronimo de Praga
antes de ir para a fogueira. A carta diz: 'Nunca vi urn homem tao eloqiien­
te, tao parecido com os oradores da antiguidade, como esse Jeronimo.
Seus inimigos the apresentaram toda uma serie de acusa~oes para demons­
trar que era herege, mas ele se defendeu, com tanta gra~a, discri~ao e in­
teligencia, que me faltam palavras para descrever-te... Seu nome e digno
de gloria imortal...'. Ao que parece, urn esteta, como Poggio, estava mais
interessado na elegancia da defesa do que na injusti~a do processo. Mas
veja 0 que diz 0 tal pos-escrito: 'Igual inteligencia e nao menor coragem
mostrou 0 nosso amigo cardeal do Monferrato, ao contestar os argumen­
tos de urn debatedor astuto como Pierre d'Ailly, unica voz a contestar 0
homem mais famoso do Concflio. Nosso jovem cardeal tambem devia
estar fascinado pela agudeza e 0 brilho de Jeronimo, como eu. Ele mos­
trou saber as artes do 'Martelo dos Hereges', mas nao .lhe conhece a vai­
dade e 0 poder...'. Sorte do seu tradutor, que era apenas urn bispo e nao
o cardeal do Monferrato. Pierre d'Ailly nao sabia perder. Qualquer con­
testa~ao a ele era crime de lesa-ortodoxia, quase de lesa-divindade. Cla­
ro: ele era 0 chanceler da U niversidade de Paris, 0 ideologo maximo da
repressao as dissidencias, a grande vedete da retorica teologica e, por fim,
tao linha-dura que, em pleno Concflio, empolgado por sua prepotente
'vitoria' sobre Jeronimo, quis racionalizar 0 massacre e afagou seu ego,
escrevendo em frances (ja que em latim poucos 0 admirariam) 0 seu nar­
cisista Traite de La Puissance Ecclesiastique. Depois apareceu como Trac­
tatus de Potestate Ecclesiastica. Seu discfpulo predileto, Jean Gerson, tam­
bern participou das acusa~oes a Jeronimo, segundo os documentos do
Concflio. Se 0 seu bispo tradutor menciona Bruni e Emmanuel Chryso­
loras como amigos dele, quase fatal mente tera sido tambem amigo de
Poggio Bracciolini. Eles formavam urn grupo muito coeso. Espero ter
respondido as suas perguntas. Se precisar mais alguma coisa, e so avisar.
Partirei para Taormina na quarta-feira e volto no fim do meso Deixe 0
Moet no gelo. Mesmo porque nao ha muita chance de eu achar urn em­
presario neofascista no teatro de Taormina. Quanto ganha urn ca~ador

257
de bispos vermelhos? Urn beijao. Ligarei de Taormina. Ciao! Gabriella.
Pavia, 27 de julho. "

Gabriella merecia uma caixa inteira de Moet & Chandon. As infor­


ma~oes dela, praticamente, desvendavam 0 misterio de Lutercio. E nao
eram especula~oes. Ela conhecia historia da literatura e tinha escrito uma
tese sobre 0 renascimento litenirio. Agora a nossa investiga~ao sobre Lu­
tercio pisava terreno firme. E, a bern da verdade, confirmava quase tudo
o que havfamos deduzido, de outros dados, indfeios, hipoteses, palpites
etc. Afinal, as notas no 'Hipolito' e nas Bacchae eram provas, escritas, de
que Lutercio fora aluno de Emmanuel, amigo de Bruni e de que ambos,
em diferentes momentos, haviam opinado sobre a tradu~ao das tragedias.
Ficava claro, tambem, que as Fontes manuscritas do nosso cardeal eram
genufnas, de primeira linha. E que seu trabalho como tradutor tinha 0
apoio dos dois grandes helenistas da Itilia. Lutercio agora me aparecia
como urn membro reconhecido e respeitado da vanguarda renascentista.
Nao so. "0 nosso amigo cardeal do Monferrato" tinha levantado sua voz
e sua inteligencia contra a arrogancia do "Martelo dos Hereges". Ele ti­
nha ousado! Poggio, a velha raposa, podia ate lamentar a "imprudencia"
do jovem cardeal do Monferrato, mas fora obrigado areconhecer-Ihe a
coragem e 0 brilho. Sua percep~ao estetica, quase cfnica, do discurso de
Jeronimo de Praga e da contesta~ao de Lutercio a Pierre d'Ailly, nao lhe
impediu de perceber 0 risco em que tinha incorrido Lutercio. Daf, a pres­
sa de comunicar tudo a Leonardo Bruni, ji de novo encastelado no po­
der, em Roma, apos 0 desastre de Joao XXlIl, deposto pelo Concflio que
ele mesmo convocara: Tinha sido uma especie de "golpe de Estado", que
deu pano pra manga nas decadas seguintes, porque 0 Concflio, hereti­
camente, sobrepunha a sua autoridade a do papa. Mas a observa~ao de
Poggio tinha algo de paternal, de protetivo em rela~ao a "ousadia" do
jovem cardeal, pelo qual confessava sua admira~ao ... Devia ser urn gran­
de amigo. Era isso! Era essa a razao da homenagem! 0 homem do qua­
dro no afresco da villa! Nao era POSSIO, nem POCSIO, era POGGIO! Num
lugar de honra, da casa. 0 retrato de urn grande amigo ou de alguem me­
recedor de muito respeito ou gratidao. Agora, tambem ficava mais plau­
sfvel a ideia de Lorenzo sobre a interrup~ao da correspondencia entre 0
cardeal e 0 papa Joao XXlIl.
Decididamente, a identidade do nosso cardeal estava ao alcance da
mao: como a bibliografia italiana sobre Poggio, Bruni e seus amigos e
muito rica e como 0 numero dos cardeais do Monferrato e infimo, 0 nos­
so encontro com Lutercio parecia iminente. Gabriella mal poderia cal­
cular 0 terremoto que tinha causado nas minhas ideias. Como 0 pensa­
mento dos valdenses no seculo XIV era muito parecido ao de Huss e Jero­
nimo, a amizade entre 0 cardeal e 0 livreiro Valdesi parecia agora muito
natural: a atitude do cardeal no Concilio, em favor de Jeronimo, nao po­
dia deixar de receber a simpatia -dos valdenses da regiao.
A amargura e a ironia de algumas partes do Commentarium seriam,
entao, posteriores ao Concilio. Marcas de uma epoca em que, desiludido
das ortodoxias, 0 humanista, fiel a verdade e a si mesmo, se havia reco­
lhido acompanhia dos seus modelos de pensamento e de conduta inte­
lectual. A paixao por Euripides nao deveria surpreender ninguem, nessa
altura. E os trechos que pareciam alusivos aos inquisidores agora surgiam
como claras denuncias da cavilosidade de suas argumenta~oes. Prepoten­
tes e narcisistas, como os via Gabriella.
A carta de Poggio era de 1416. A data no projeto da fachada da villa
era 1414, necessariamente precedente aconstru~ao do edificio e, pois, ao
afresco da biblioteca. Quando Eugenia 0 pintou, tinha passado todo 0
tempo da constru~ao da mansao, no minimo uns tres anos, 0 que daria
uma data como 1417 ou 1418, pelo menos. Portanto a imagem de Luter­
cio era posterior ao incidente com Pierre d'Ailly e a deposi~ao do papa.
Como Joao XXIII era sustentado e assessorado por Bruni, Chrys610ras e
Poggio, todos amigos de Lutercio, e visto que Lutercio era muito jovem
no pontificado anterior, eu podia concluir que a eleva~ao ao cardinalato
fora decidida por Joao XXIII. Provavelmente por sugestao e arranjos de
Poggio. Essa ideia explicava 0 honroso retrato do "secretario apost6lico"
na parede da biblioteca e a preocupa~ao dele, no p6s-escrito, com a ou­
sadia do "nosso jovem cardeal", seu pupilo, provavelmente. As pe~as do
quebra-cabe~ascome~avam a ajustar-se, em progressao geometrica: cada
pe~a colocada abria encaixes para varias outras. Ate a cole~ao de volumes
com documentos pontificios, figurados no afresco, ganhava mais sentido:
os papas nomeados nas lombadas eram os que tinham recebido os servi­
~os de Bruni, antes do melanc6lico desfecho de Constan~a. No afresco,
o volume com as cartas de Joao XXIII ja estava encerrado e transcurado,

259

segundo a especula~ao de Lorenzo. E nao havia nenhum destinado a do­


cumentos do novo papa, Martinho v. Nem poderia haver, pois alem de
apoiar 0 pontffice deposto, Lutercio contestara 0 grande vencedor do
Concflio,o "tutor" ideologico do novo papa, e cuja obsessao anti-here­
tica the valia, jei entao, 0 tftulo de "Martelo dos Hereges". A preocupa­
~ao de Poggio tinha sentido.
o afresco era da fase de crepusculo da estrela de Lutercio. Se 0 Com­
mentarium, com as farpas do cardeal contra os inquisidores, jei figurava
na pintura, era logico supor que fora escrito apos seu gesto de hybris dian­
te de Pierre d'Ailly. So Eurfpides, no exflio da Macedonia, entenderia ple­
namente 0 que se passava na mente de Lutercio. A paixao agora ficava
clara. A identifica~ao tambem. Ou ambas eram faces da mesma coisa, se­
gundo a teoria de Tulio.
U rna coisa que me intriga em toda esta historia e 0 fato de ninguem
ter reconstrufdo, antes de nos, a biografia desse jovem cardeal, brilhante
segundo todos os criterios, que circulou pelos ambientes mais admirados
de seu tempo, privou das amizades mais influentes e que, de repente, de­
sapareceu da face da terra, dos registros, das cronicas. Ate que urn ban­
do de malucos, como nos, resolvesse escavar toda a historia. Quantos
outros homens brilhantes e de valor terao sido tragados, se nao pelas cha­
mas, pelo silencio? Proscritos. Condenados a nao significar.
Mas nos farejeivamos significados em qualquer coisa, imagem, pa­
lavra. Nosso divertimento, agora vejo bern, era encontrar significados
para os objetos e palavras que a nossa busca tinha posto aluz. Cada de­
talhe da capela, do teatro, do afresco, das conversas de Alessandro, Dom
Attilio ou Valdesi tinham que compor urn mosaico, uma historia coerente
e verdadeira. Mas havia tambem, inutil negar, a paixao pela figura de Lu­
tercio e pela sua revanche. Buscavamos a verdade, mas querfamos a jus­
ti~a. Talvez elas tambem sejam aspectos de uma mesma coisa.
A noite, Anna exultou, parecia uma crian~a diante do presente mais
sonhado, quando the dei a tradu~ao dos versos.
"Nao e 0 Christus, Emilio! Tenho certeza! Ganhamos na loteria!
Mesmo que seja urn enxerto, e completamente inedito. Onde, diabos, po­
deria estar 0 original grego que a nota de Lutercio menciona?"
"Alguem tern que revirar os baus daquele livreiro."

"Nao vai ser tao diffcil. Hei uma coisa que Isabella ia contar no An­

260
jo Azul, mas esqueceu. Aurelio Valdesi the disse que gostaria que alguem
aproveitasse os tesouros que guarda, mas nao aceitaria separar-se dos li­
vros. Diz que seria desonesto abandonar 0 que foi guardado com tanto
esfor~o, tanto amor e ate com risco de cair nas maos dos inquisidores.
Seus dois filhos nao tern qualquer interesse pelo acervo e ele gostaria de
entregar os livros a alguma institui~ao que cuidasse bern deles e que os as­
sumisse na fun~ao de encadernador. Isabella contou que ele quase chorou
ao contar sua preocupa~ao com 0 destino dos livros ap6s sua morte..."
"Voce quer que eu conven~a Lanebbia a... "
"Boa ideia! Eu nao tinha pensado nisso."
"Cinica, mentirosa e... caloteira."
"Concordo com os dois primeiros elogios, mas, caloteira, por que?"
"Voce nao pagou a minha tradu~ao."
Ela riu, deliciosa, cheia de malicia. "Esta bern, you pagar. Mas pre­
ciso de urn Cointreau e de luz de alabastro."
Quando eu vinha da cozinha com 0 licor ela estava sem 0 vestido,
deslumbrante, irresistivel, na contraluz do abajur: ceo vestido eu consegui
tirar sozinha. Para as outras pe~as preciso de ajuda. Posso pagar por ela
tambem". Atirou-se contra 0 meu peito, quente, perfumada. Deu-me 0
beijo mais sensual que ja senti e, com os labios ainda colados aos meus,
falou para dentro de minha boca: CCSeu usurario".

261
Capitulo 12

Crepusculo

Na segunda-feira acordei feliz, como nunca tinha sido, e cheguei an­


tes dela ao Instituto, disposto a avan~ar na tradu~ao da ultima parte do
Commentarium. Bruno chegou logo depois a minha sala: "Estive na bi­
blioteca. Tenho boas novas. Achei uma biografia do Brunus. Nao e urn
. nome, mas urn sobrenome: Bruni. 0 nosso homem chamava-se Leonar­
do Bruni, ninguem menos que 0 Aretino. E tern mais: 0 Bayle diz que ele
estudou grego com urn antigo embaixador de Bizancio radicado na Tos­
cana, chamado... Emmanuel Chrys610ras! Agora, basta ver qual a rela~ao
que havia entre Lutercio e os dois. Enfim, temos dados hist6ricos".
Eu tive que fingir surpresa. Nao podia magoa-Io. Afinal, ele conse­
guira os dados sem nenhuma Gabriella, ou outro especialista no ramo.
"Eu acho que Lutercio e Poggio eram muito ligados", disse ele quase
pedindo umapergunta.
"Eu acho que a eternidade e lilas, porque coaxa em re maior." Pare­
cia que ele disparava a esmo.
"Nao estou chutando, Emilio. Tenho uma boa prova: Urn cardeal,
na hora do retrato que vai imortaliza-Io, com os objetos importantes de
sua vida, toma nas maos algo de urn valor altissimo, sublime. Lutercio
tomou 0 volume da Ciropedia. A tradu~ao primorosa que Poggio fez, da
obra classica de Xenofonte."
o achado era brilhante. Eu estava tentando encaixar mais essa pe~a
do mosaico, quando entrou Beatrice agitando uma folha de papel: "Sen­
tem-se e segurem-se! Lorenzo me contou que Maria Eugenia nao tern
duvidas sobre 0 medalhao de Eugenia. Trata-se de uma das mais nobres
linhagens da Alemanha. A elegante dama do afresco era a condessa Eu­
genia de Hamburgo! Nossa bibliotecaria empolgou-se com a questao e
desencavou dados biogd.ficos da mo~a. Voces me pagam 0 almo~o?".
"Nos escolhemos os pratos", acautelou-se Bruno.
"Va la! Depois voces devem agradecer a Maria Eugenia. Ela con­
sultou urn monte de livros. Luciana traduziu."
"Vamos logo!", pediu Bruno.
"Entao ou~am:

'Eugenia, condessa de Hamburgo, segunda filha de Frederico I, du­


que de Brandeburgo (muito culto e grande aliado de Sigismundo no com­
bate aos hussitas na Hungria) e de Elsa da Baviera, a mais bela dama de
seu tempo. Eugenia adquiriu cedo de seu pai 0 amor pelo estudo e pelas
viagens. Da mae, herdou 0 gosto pela beleza e pela arte, principalmente
a poesia e a pintura. Eugenia nasceu em 1389, segunda filha de Frederico,
dois anos apos sua irma Victoria, primogenita da familia, marquesa do
Monferrato, e urn ana antes de Frederico, unico filho homem da familia
e que mais tarde se tornou 0 duque de Brandeburgo, apos a morte de
Victoria. Eugenia estudou musica e pintura com os melhores mestres de
Hamburgo. Quatro pinturas suas, da juventude, ainda adornam 0 tran­
septo e a nave esquerda da igreja de Sao Tiago (St. Jakobskirche), na par­
te mais antiga de Hamburgo. Viveu no norte da Italia por alguns anos
junto a sua irma Victoria, esposa de Filipe, marques do Monferrato. Apos
a morte da irma, entrou. para a vida religiosa, no mosteiro das clarissas,
em Asti, Italia, Reino do Piemonte. Ali morreu, em 1458, como abades­
sa da ordem. Deixou quatro grandes afrescos no cenaculo e na igreja do
mosteiro, onde esta sepultada. Escreveu algumas poesias religiosas, mu­
sicadas posteriormente, por Adamo de Fulda, em gregoriano mensurato,
em 1470...'."

Beatrice dobrou a folha num gesto solene. Abanou-se com ela,


olhando-nos sobre 0 ombro: "Agora, meus rapazes, basta procurar os pa­
rentes da marquesa Victoria de Monferrato ou de seu marido de maus
bofes. Voces encontrarao logo nosso caro Lutercio. Cardeal, segundo me
explicou Lorenzo".
"Onde esta ele?", perguntei.
Bruno admirou-se. "Nao sabe? 0 nosso fritador de freiras zarpou
esta manha de Milao para Asti. Ele me telefonou ontem a noite para le­
va-Io aesta~ao. Vai procurar 0 mosteiro das clarissas... "
"Desilusao amorosa?", perguntei.
"Ele nao vai ficar bern, com aqueles veus na cabe~a, coitadinho. 0
habito vai ficar pelas canelas." Beatrice parecia consternada. Bruno riu a
vontade e explicou: "Ele quer estudar os afrescos da monja, nossa amiga
Eugenia de Hamburgo, abadessa da Ordem. Disse que somente urn gran­
de desgosto poderia enfiar num mosteiro uma mulher como aquela. Na
verdade, ele deve estar louco para ver os afrescos".
Eu estava meio perdido entre tantas novidades. Havia a carta de
Gabriella, os achados de Bruno, a biografia de Eugenia. Eram elemen­
tos historicos, concretos. Mais algumas consultas e teriamos 0 nome ver­
dadeiro de Lutercio, como irmao de Filipe ou cunhado de Victoria de
Brandeburgo ou, ainda, amigo de Eugenia enquanto condessa ou ja como
abadessa em Asti. Outro recurso, tambem facil, seria procurar os ami­
gos e companheiros de Chrysoloras ou Bruni, ou Poggio. Qualquer des­
sas rotas nos levaria ao verdadeiro nome. Depois seria facil reconstruir
os motivos da proscri~ao.
Beatrice e Bruno sairam para 0 claustro, abra~ados e falantes. Eu fi­
quei a olhar minhas anota~6es sobre 0 afresco e a reprodu~ao do "cata­
logo" da biblioteca. As novas informa~6es confirmavam, ponto por pon­
to, nossas dedu~oes a partir da pintura, mas em nada esclareciam aquelas
duas colunas de siglas e mimeros romanos.
E entao, deu-se... 0 evento. Isabella chegou pouco depois do meio­
dia, muito tensa, e fechou a porta de minha sala: "Nao se preocupe, Emi­
lio. Agora esta tudo bern...".
"Que aconteceu?"
"Anna esta bern e pediu para voce ligar para ela anoite... Houve urn
pequeno incidente."
«Conte logo!"
«Hoje cedo resolvemos vir de trem ao Galilei. Na saida do metro, dois
caes enormes se atacaram a dentadas. Rolando pelo chao, quase sobre os
pes dela. Instintivamente, ela saltou para a rua e... foi derrubada por uma
motocicleta. 0 rapaz fez 0 possivel para desviar, mas ela se lan~ou bern na
frente dele. Nada de grave, por sorte, porque ele vinha devagar. So uns ar­
ranhoes eo susto. Amanha ela vern trabalhar. Devemos ser discretos, mas
esse problema dela ja esta ficando perigoso, nao acha?"
Eu s6 pensava em Anna e no sofrimento dela. "Sim, precisamos fa­
zer alguma coisa", respondi.
"Ela quer se tratar. Precisamos s6 encoraja-la. E isso tern que ser lo­
go. Ja imaginou se tivesse sido urn carro, urn caminhao? Deus me livre!
Fale com ela. Ela respeita 0 que voce diz."
"Mas ela esta... animada?"
"Nao fique apavorado! Ela s6 esta meio deprimida vendo-se tao vul­
neravel, insegura... em perigo, sei la..."
Minha vontade era voar para Milao, para 0 lado de Anna. Fingi al­
guma frieza, e agradeci a Isabella: "Obrigado pela confian~a. Agora voce
tambem precisa relaxar, menina".
"Eu?" Ela jogou-me urn beijo e saiu.
Era inutil precipitar as coisas. Eu ligaria para Anna logo ao chegar
em Milao. Pensei em caminhar pelo claustro, mas nao queria encontrar
ninguem. Sal, de carro, pela estrada de Sant'llario. Queria esquecer 0 in­
cidente, gozar os lances finais do "caso Lutercio". Mas tudo se turvava.
Com,o se aquela manha ensolarada fosse varrida, de repente, pelos ven­
tos cinzentos de novembro. Anna corria perigo, era inutil fugir dessa ver­
dade. Ela precisava de tratamento imediato, antes de algum acidente mais
grave. Eu ajudaria. Talvez devesse falar com Mauro. Melhor, nao. Tudo
devia ser feito sem envolver nossos amigos... Quanta ironia! Anna, genial,
linda, brilhante, posta em perigo por uma briga idiota de dois estupidos
vira-latas...
Parei diante do primeiro bar de Sant'llario. Escolhi a mesinha do
fundo, sob uma pergola de glicfnias. Deram-me urn Barbera honestlssimo
e urn prato de copa fatiada, produtos da casa. Fiquei olhando para a en­
costa que descia mansamente afrente do bar ate se perder a uns duzen­
tos metros, num vinhedo ressecado. Urn garoto de uns treze anos vinha
pedalando pela margem da estrada. Na garupa da bicicleta trazia garrafas
vazias dentro de uma cesta de vime. Lembrei, no mesmo instante, as bi­
cicletas de Rinaldo e Amadeu com seus bagageiros de caixotes. Sorri, pen­
sando na de Amadeu com 0 nome abreviado por falta de tinta. Mas a mar­
ca AM bastava. AM era Amadeu, e basta. AM era... AMADEU!!! Quase saltei
da cadeira. 0 "catalogo"! Tinha varias siglas AM, com numeros romanos!

266

Elas nao indicavam AstronoMia, nem Ars Medica: significavam AMADEU!


Varios Amadeus sucessivos, de I a VII ou VIII, eu nao recordava ao certo.
Era uma dinastia, uma familia, uma more genealogical Existem Amadeus
em penca no Piemonte. Mas uma sucessao de tantos Amadeus so podia
existir numa familia. Savoia! Sim, Savoia. Senti urn certo frio na barriga.
"Filipe de Monferrato" dizia a carta de Gabriella e a biografia de Eugenia
de Hamburgo. Mas diferentes ramos da Casa de Savoia tinham domina­
do 0 Monferrato em diferentes epocas.
Voltei rapido para 0 Galilei. Eu contaria a Anna tambem essa des­
coberta. Ela iria vibrar com todas as novidades e esqueceria aqueles exe­
criveis cachorros. Peguei 0 "catalogo" e fui direto aBritannica, para en­
curtar a busca. Verbete SAVOY, pigina 25, quadro genealogico da Casa
de Savoia. Coloquei ao lado a minha copia das siglas. Li estava! HU era
Humberto Biancamano fundador da Casa. Depois vinham, abaixo do
nome de Humberto, AM e OT-AD indicando seus dois filhos, Amadeu e
Otton, casado com Adelaide, herdeira de Turim. Seguiam-se PI, AM, BE­
H, indicando os irmaos Pedro I, Amadeu e Berta, casada com 0 impera­
dor Henrique (Quarto). Esse mesmo Amadeu aparece, a seguir, como
AMII; Amadeu Segundo, seguido de HU, urn novo Humberto, que passa
a reger os destinos da estirpe, como HUll, Humberto Segundo. Conti­
nuando a minha lista, iam aparecendo outros soberanos da Casa, na linha
de sucessao. Virios TH, significando Thomas, e nao THeologia como ha­
viamos pensado Lorenzo e eu. Mas, a partir de Thomas Segundo, THII,
o meu desenho representa a linha genealogica masculina, sem privilegiar
o ramo hegemonico. Decerto, essa hegemonia nao era reconhecida, en­
tao. Vern a descendencia de Amadeu IV, que comec;a por Amadeu V, e de­
pois a de seu irmao, Thomas III, pai de PH, indicando nao PHilosophia,
mas Philippus, e diversos AM, com numeros crescentes, ate chegar a urn
AM com uma cruz seguida de FV. Tratava-se, conforme a Britannica, de
Amadeu VIII, filho de Amadeu VII, e que foi 0 primeiro duque de Savoia,
depois eleito papa, por isso a cruz, com 0 nome de Felix v. Desse ponto
em diante registra-se a linhagem do filho de PH, comec;ando por I, de Ia­
cobus, Tiago, primo dos dois filhos do papa e que teria conquistado ou
herdado 0 Monferrato. Procurei "Monferrato» no Index N obilitatis do
Instituto de Herildica, e Ii estava a continuac;ao do ramo, que a Britanni­
ca omitia. De Iacobus (Tiago ou James) descendiam AM (mais urn Ama­
deu), e urn LV, que regeria 0 ramo como LVII, Ludovicus II. Na abrevia­
Irao latina, LVe nao LU. Abaixo desse nome, a minha lista tinha PH-V, que
era 0 marques, Filipe de Monferrato (muito distante de qualquer PHilo­
sophia ou PHysica), casado com Victoria. Abaixo de Filipe, porque nas­
cido depois, a minha copia e tambem 0 Index apresemavam LVIII. Mais
precisamente, LV III para nao significar 0 mimero 58 romano, e sim LV­
DOVICUS TERTIUS, na abreviatura latina, LV TERTIUS. Que 0 povo da aldeia
adolrara, como LU TERZIO!!! Ou Lutercib. Entao, os mimeros romanos nas
lombadas das tragedias eram apenas 0 nome do dono, LV III.

"Elementar, meu carD Emilio!", disse a mim mesmo. Esmaguei a


minha lista, num aperto de mao a Lutercio: "Muito prazer, Eminencia!".
Eu encontrara 0 cardeal.
Fiquei meio atordoado. Sentia uma certa alegria e urn grande vazio.
o desafio parecia vencido, 0 entusiasmo esgotado. Era a sensalrao empol­
game e melancolica da descoberta. Agora, nao havia saida: 0 cardeal nos
confiara a sua revanche. Nos conheciamos sua luta pela justilra. Seria co­
vardia nao revelar a truculencia que the destruira sonhos e afetos. Tal­

268
vez fosse 0 incidente com Anna que me turvava a alegria do achado. As
quatro, Luciana apareceu no claustro, chamando para 0 cafe.
"Gostou da tradu~ao?", perguntou com malfcia. Eu nao entendi a
pergunta e ela viu isso no meu rosto: "Sim senhor, quem traduziu aque­
la biografia dessa tal Eugenia fui eu". Depois achegou-se ao meu ouvido.
"au 0 senhor acha que Maria Eugenia traduz alemao?" Bruno aliviou
meu constrangimento: "Ou~a, Emilio!", e come~ou a ler uma folha de pa­
pel, "Filipe de Monferrato tinha urn irmao mais novo, chamado Ludovi­
cus, Ludovico ou Luis. Nasceu em 1380, ana do nascimento de Poggio
Bracciolini. Foi sagrado bispo em 1411 e criado cardeal no fim de 1413,
porque 0 papa, por sugestao de Poggio e de Bruni, desejava te-Io consi­
go no Concilio de Constan~a, por seus conhecimentos e sua habilidade
como argumentador."
"Que maravilha! Pode ser a nossa resposta. Voce matou a charada!"
Ele merecia 0 elogio. Pelo seu pr6prio caminho, mais uma vez, chegara a
solu~ao. Com uma vamagem sobre a minha. A resposta dele tinha base
hist6rica, nao era simples dedu~ao.
"Onde voce achou tudo isso?"
"Em varias obras. Primeiro achei Philipe, que morreu logo depois de
Luis, caindo num precipicio durante uma ca~ada acamur~a. Depois achei
Luis, unico irmao de Philipe, e entao procurei dados biograficos. S6 achei
no 'Graus', que se limita a biografia religiosa de personalidades clericais.
Mas agora e facil, basta procurar em M onferrato ou em Luis e teremos a
hist6ria completa do cardeal."
"A nao ser que... 0 orgulho ferido de Pierre d'Ailly houvesse apa­
gada ate os registros oficiais da vida de Lutercio, perdao, de Lu Tertius."
Pelo tom da fala, Isabella tinha cartas na manga.
"Como voce soube disso?", interroguei. S6 eu tinha lido a carta de
Gabriella.
"Simples. Lorenzo contou, no Anjo Azul, que Lutercio era urn car­
deal. Ora, quem fosse cardeal no perlodo 1414-1418 fatalmente iria ao
Condlio de Constan~a. Principalmente sendo amigo de Chrys610ras, ho­
mem de confian~a de Joao XXIII. Portamo, fui olhar documentos do Con­
dlio, na edi~ao latina de Franciscus Palacky, de 1869, e algumas outras
obras. Nosso cardeal tomou 0 barco errado. a seu papa foi deposto e ele
endossou alguns argumentos de Jeronimo de Praga. au, mdhor, que po­
resolveu aproveitar a marginalizar;ao para libertar-se das restrir;oes que
antes devia respeitar, so porque estava naquele jogo".
"Explique, melhor", pedi.
"Nada de mais. Eu quis dizer que enquanto ele estava interessado na
carreira eclesiastica era obrigado a muita coisa chata e a privar-se de mui­
tos prazeres. Vma vez liquidada a carreira, ele resolveu recuperar 0 tem­
po perdido e viver mais feliz."
Isabella comentou: "Tern sentido. Vma 'conversao' desse tipo com­
binaria com as ideias dele e agradaria plenamente aos novos donos da
Igreja e da ortodoxia. Por que voce pensa assim, Luciana?".
"E 0 que eu teria feito. "
Estava evidente que eramos intelectuais demais, esquecidos da pai­
xao! Enquanto enquadravamos 0 cardeal num curso meramente logico de
rear;oes e iniciativas, Luciana enxergava 0 homem que venerava Euripides
como 0 "Cavaleiro da Paixao". Afinal, 0 que 0 levara a enfrentar d'Ailly
teria sido menos a logica do que a paixao. A indignar;ao diante da impos­
tura e da injustir;a. Isso estava claro nas alusoes do Commentarium aos
inquisidores.
Dei carona a Isabella, na volta a Milao. Estava ansioso para falar com
Anna, mas ela ligou antes, logo que entrei em casa. Estava bern, decidida
a enfrentar urn tratamento, falaram-lhe de Wolpe. 0 joelho estava enfai­
xado e uma luxar;ao no brar;o direito tornava muito inoportuna qualquer
nova avaliar;ao do abajur. Contei-lhe a avalanche de novidades sobre Lu­
tercio, agora Luis III de Monferrato, e seus azares em Constanr;a. Ela vi­
brou com as informar;oes sobre Emmanuel. Apenas porque 0 conhecia,
ate entao, so pelo sobrenome, Chrysoloras. Aurelio, 0 livreiro, deveria
ter, em algum porao, 0 texto grego das Bacchae. Botar a mao no manus­
crito seria entrar para a historia da literatura universal. Gostaria de uma
visita minha, mas nao era elegante eu entrar la, na ausencia do marido.
Depois, fez uma sugestao tentadora. "Com essa historia de Lutercio eu
ja juntei material para dois anos de bolsa, pelo menos. Tenho meia duzia
de novidades explosivas e textos absolutamente ineditos, que renderao va­
rios artigos, talvez livros. Mas bern pouco de tudo isso vai servir para a
sua historia da Psicopatologia ou da loucura. Por que voce nao muda seu
projeto de pesquisa? Afinal, foi voce que descobriu quase tudo, nesta his­
toria do cardeal. Podemos discutir isso amanha no Galilei."
"Primeiro quero terminar a tradu~ao do Commentarium. Faltam
poucos pareigrafos."
"Agora sabemos quem foi Lutercio. Basta consultar algumas fontes
sobre Monferrato, Piemonte, Clero ou Cardeais para termos toda a his­
t6ria do cardeal. "
"Nao e tao facil. Pelo jeito as fontes serao escassas. 0 que Bruno,
Beatrice, eu e Maria Eugenia conseguimos ate agora confirma a teoria da
proscri~ao. Ap6s 0 Concilio, Lutercio desapareceu. Por ostracismo ou
por desencanto, ou pelos dois motivos."
"Mas, afora a dor de cotovelo de Pierre d'Ailly, 0 que poderia ris­
car da' hist6ria urn homem como de?"
"Primeiro, a hist6ria e escrita por quem tern poder sobre a informa­
~ao; papado e nobreza, no caso. Segundo, Lutercio deve ter sido uma pes­
soa refinada, dedicada a assuntos de interesse restrito a alguns privilegia­
dos. Nada popular, ate marginal. Terceiro, urn inconformista pleno, em
tempo integral, critico devastador da hipocrisia..."
"Urn sujeito incomodo..."
"Profundamente. Exceto para quem tivesse a mesma Iisura, 0 mes­
mo apego averdade. 0 mesmo gosto refinado. "
"A Macedonia dele foi a villa. E isso ?"
"Exato. S6 que em vez das Bacchae, ele escreveu 0 Commentarium,
a tradu~ao do 'Hip61ito' e das Bacchae..."
"Hei uma coisa a esclarecer, Emilio. Ele deve ter escrito outras coisas.
Urn homem apaixonado pela verdade, como ele, nao deixaria em brancas
nuvens a hist6ria de Jeronimo. Pelo que sua amiga conta do p6s-escrito
de Poggio, d'Ailly nao 0 perdoaria. Mas isso significa apenas que ele perde­
ria apoio no papado. Porem lei continuavam Bruni e 0 mesmo Poggio..."
"Nao, Anna. Jei estive pensando nisso. Nao era tao simples. 0 car­
deal podia ser acusado de heresia, por ter, de algum modo, admitido al­
guns argumentos de Jeronimo. Acusei-lo, significava enfrentar alguem
muito mais forte que 0 lugar-tenente de Joao Huss. Nao acusei-lo, man­
tendo-o em suspei~ao, era 0 modo de cercear sua influencia, sem expor­
se asua poderosa argumenta~ao. U rna proscri~ao ... branca."
"Mas isso e maquiavelico, e de uma astlicia perversa..."
"E 0 que se poderia esperar da Inquisi~ao, transformada em geren­
te do papado, minha cara? Poggio farejou os novos tempos."
"Entao restava ao cardeal escrever, denunciar tudo isso. Se ele com­
prou a briga de Euripides, a de Jeronimo de Praga, talvez ados valden­
ses, com mais razao compraria a briga dele mesmo. Sabia que nao podia
expor-se muito, mas nao ia deixar tudo de gra~a."
"0 que ele poderia fazer?"
"Ja disse: escrever! Ele deve ter escrito alguma coisa sobre 0 que
ocorreu em Constan~a. N6s nao sabemos 0 que se esconde na oficina de
Aurelio Valdesi, nem 0 que ficou trancado no dossel da tribuna. 0 pr6­
prio Aurelio disse que ha muita coisa do bispo vermelho, nos armarios
dele."
"0 problema e abrir aquele dossel, Anna. E poder revirar os baus de
Valdesi. E preciso tempo e sorte..."
"Bruno acabara acertando 0 truque da tribuna. Quanto ao livrei­
ro, basta uma boa conversa com Lanebbia, mostrando a importancia
hist6rica do acervo de Valdesi. Ter urn antifonario daqueles no Galilei
ja paga 0 salario dele como encadernador. Lanebbia vai perceber isso na
hora. "
"E voce, finalmente, deita a mao, para valer, nas Bacchae, e isso?"
"Isso me interessa, claro! Mas agora estou pensando em achar algu­
rna coisa escrita por Lutercio contra a farra de Constan~a."
"Voce quer dizer [arsa. "
"Farsa e farra, mesmo. S6 de criadagem e escoltas militares dos ecle­
siasticos e principes, estavam la quase dezoito mil pessoas, incluidos ar­
tistas errantes e prostitutas. Imagine, s6' os flautistas eram, espera urn pou­
co... Pelo menos, mil e quatrocentos! Curiosamente, os cardeais eram s6
vinte e nove... "
"Onde voce viu tudo isso?"
"Numa Hist6ria da Inquisifao, editada em Moscou, daquelas edi­
~oes feias. Estou com ela aqui na mesa. "
"Nao ter apoio unanime, num total de apenas vinte e nove, certa­
mente nao alisava 0 ego de Pierre d'Ailly. Principalmente se a voz des­
toante fosse de urn cardeal novato e adepto do papa destronado!"
"Vinte e oito. Pierre d'Ailly tambem era urn dos vinte e nove."
uSe voce estiver certa, aquela tribuna e aqueles armarios do livreiro
podem sacudir 0 planeta, pelo jeito. "
"Meu sexto sentido nao deixa duvidas, meu bern."

273
Contei-lhe, entao, que Lorenzo estava em Asti, procurando os afres­
cos de Eugenia de Hamburgo. Ela achou que seria imitil para esclarecer
o caso do cardeal.

Lorenzo s6 apareceu no Galilei dois dias depois, na hora do cafe.


Deu urn beijo sonoro na face de Luciana, porque naquela manha "estava
parecida com a Sibila Delfica", pendurou-se no ombro de Abelardo e re­
sumiu sua expedi~ao a Asti: "Meus caros, fui, vi e venci!".
"Sabemos, por enquanto, que voce foi", disse Beatrice.
"Mulher de pouca fe! Vi coisas espetaculares."
"No mosteiro?", indaguei.
"No mosteiro e na casa de Aurelio Valdesi."
"Voce foi lo1?"
"A abadessa quis assim."
"Nao enfeita. Conta logo."
"Valendo uma noite de cervejas no Anjo Azul. Esta bern?"
"E extorsao, mas eu pago." Abelardo aceitou.
"Entao, na minha sala, daqui a pouco." Fomos para 101 Abelardo,
Bruno, Beatrice e eu. Pouco depois, chegou Isabella, quando Lorenzo jo1
estava come~ando a narrativa.
"Em Asti hci dois conventos de freiras. Urn mais antigo, das bene­
ditinas e outro, do seculo XIX, das agostinianas. Passei pelos dois, por­
que ninguem por la sabe dessas distin~oes especfficas dentro do genero
das freiras. a das beneditinas e muito bonito. 56 vi a igreja e algumas sa­
las anexas, a sacristia e urn atrio muito alto, parecido com 0 de Ansper­
to. Nao me deixaram entrar no claustro. a das agostinianas e mais ale­
gre, mas a igreja nao tern muita gra~a. 56 depois do almo~o botei 0 pe
no das clarissas, que nao e urn convento, mas urn mosteiro. E esplendi­
do! Eu nao gosto de freiras, mas elas foram gentilfssimas comigo. Vejam
s6: as tres ordens regulares femininas mais importantes da Igreja me re­
ceberam com 0 maximo de simpatia, respeito e ate, no caso das clarissas,
born humor!"
"Voce precisa rever seu 6dio de freiras. Mas dai a se encantar com
elas, e urn salto..."
"Calma, Beatrice. Eu s6 disse que elas foram gentis, nao me chama­
ram ateu sem-vergonha ou devasso impenitente. Nao as detesto como pes­

274

soas, mas como uma institui~ao de mau gosto. Eu as respeito apesar de


elas terem feito uma escolha desastrada. Alias, como eu, aqui a desperdi­
~ar meu saber com gente como voces. "
"Ele nos ama", falou ela, "a seu modo: aos coices!".
"Deixem-me contar. Expliquei a monja da portaria que eu gostava
de historia da arte e estava interessado em conhecer os afrescos do mos­
teiro. '0 senhor estuda afrescos?' Expliquei que estava fazendo uma pes­
quisa e que Dom Attilio, de Madonna della Spina, me recomendara uma
visita ao mosteiro."
"Madonna della Spina? 0 senhor esteve la?"
"Sim, em visita ao antigo palacio ou villa do cardeal do Monferrato."
"Aquele palacio entrou na historia do nosso mosteiro..."
Isabella levantou a mao: "Nos ja sabemos que Eugenia se tornou
abadessa das clarissas, Lorenzo."
"Ja? Como? Assim nao vale!"
"Trajetorias diversas...", disse eu.
"Eu quero saber como voce descobriu isso." Bruno queria confirmar
alguma coisa.
"Simples. A monja contou que as primeiras clarissas de Asti viviam
ao lado de uma capela, cedida pelo bispo local, no come~o do trecento. 0
mosteiro mesmo foi erguido muito mais tarde, com dinheiro doado por
ninguem menos que a condessa Eugenia, de Madonna della Spina. E sa­
bern donde veio 0 dinheiro?"
"Espera, Lorenzo. Como e que a freira sabe tudo isso?"
"Vamos por partes. No ana passado 0 mosteiro completou seiscen­
tos e cinqiienta anos. Foi fundado em 1317. Como parte das comemo­
ra~6es, imprimiu-se urn livrinho com a historia dele. Foi urn trabalho de
pesquisa de uma das monjas, Irma Veronica, que sabe latim, frances e ale­
mao. Ela mesma veio explicar-me os afrescos, chamada pela monja da
portaria."
"Bonita?", Abelardo falou e fechou os olhos a espera da explosao.
Lorenzo respirou fundo e conseguiu compor no rosto uma mistura hor­
rivel de desprezo e solicitude ao responder.
"Uma pessoa belfssima, uma linda mulher e, mais que tudo, inteli­
gente, incapaz de perguntar idiotices como... Deixa pra la! Na pesquisa,
ela consultou os arquivos da Casa Mater da Ordem, em Assisi, e achou

275
virias preciosidades. A mais interessante e uma pequena Cronaca, cele­
brando os cento e cinqiienta anos do mosteiro, em 1467! Publicaram al­
gumas reprodu~6es fotograficas e uma transcri~ao literal, cuidada por es­
sa Irma Veronica, que me deu uma copia. 0 texto e muito singelo e en­
volve diretamente 0 nosso cardeal. E mais saboroso na forma original,
mas you ler tentando adaptar a linguagem atual. Depois, quem quiser,
pode copiar 0 original."
A leitura foi entremeada de cita~6es do texto antigo:

"Agradou a Deus misericordioso que esta comunitade di figlie di


Santo Francesco, do hibito de Santa Clara Virgem de Assis, fundada no
ana de 1317, junto aigreja de Santa Anna, pudesse ver completados cen­
to e cinqiienta anos ao servi~o de Deus e della caritade.
As inescrutiveis vias da Sabedoria de Deus fizeram que nell'autun­
no del'anno del Signore di 1430 fosse colhido por morte tristissima..."

Lorenzo parou a leitura: "Prestem aten~ao agora. E urn documento


autentico, da epoca, de contemporaneos do nosso cardeal, mencionando
o nome verdadeiro dele:
"... venisse colto da morte tristissima il Signor Cardinale Ludovico
Terzo di Monteferrato..."

Ele estranhou 0 pouco entusiasmo de todos. "Voces nao estao per­


cebendo? Ludovico, abreviado, e LU. Terzo transformou-se, na linguagem
do povo, em TERCIO. Portanto, 0 nosso Lutercio e 0 Cardinale Ludovico
Terzo!"
Isabella explicou que por diversos caminhos tinhamos ji chegado a
isso, enquanto ele estivera em Asti. "Mas hi coisas que ninguem sabia por
aqui ate agora: a data da morte do cardeal, 0 fato de ela ter sido tristissi­
rna e alguma liga~ao entre ela e 0 mosteiro das clarissas. Alem disso, e a
primeira vez que 0 nome dele aparece escrito, por inteiro."
"Tenho mais dados", disse ele, retomando a leitura:

" ... lo quale lascio, in scritto testamento, lo sUD palagio con terre e
possedimenti asua cunhada, Donna Victoria de Monteferrato, e Ii scritti
e libri suoi per messer Marcello di Cisterna in Asti. Quis Deus Sapien­
tissimo que, tendo a herdeira, ela tambem, encontrado a morte com 0
mesmo citado cardeal, toda a heran~a passasse a nobilissima irma dela,
Eugenia, eletta per grandi opere nel piano d'Iddio nostro Signore, a qual
dividiu toda a colheita e os alimentos entre os servos do palacio e das ter­
ras e os dispensou de seu servi~o. E entao, come se fossegli mandato da
Dio, seguito l'esempio di Santo Francesco e se recolheu em medita~ao e
penitencia por quarenta dias, assistida por sua fiel camareira Lucilia, con
il marito di essa Bernardo Muratore ch'e l'era mesmo pedreiro e era tam­
bern serralheiro, a fim de merecer a revela~ao dos pIanos do Senhor. E il
Signore l'illumino e, enviados os livros e iseritti a detto messer Marcello,
e dopo che'l mastro Bernardo Muratore esegui i lavori occorrenti di ri­
parazione fabrile e di muratura, foram 0 palacio e as terras vendidos aos
primos dela, para que todo 0 dinheiro conseguido fosse donato, in suf­
fraggio delle due povere anime, per La costruzione di questo monisterio di
Santa Chiara. Quando ficou pronto, por bondade de Deus, conheceu a
vida e 0 exemplo de Santo Francisco, nosso pai, e foi chamada avida de
religiao, a nobilissima benfeitora do mosteiro, Nobile Donna Eugenia di
Germania, onde recebeu 0 bendito habito de Santa Clara, col nome di Sor
Maria Eudossia della Passione, che beatamente porto con virtude.
"Passaram-se dois anos e tambem chamou 0 Senhor para a religiao
a fiel serva Lucilia depois que ficou viuva, quando mestre Bernardo, tendo
terminado muitos trabalhos de ferro e depedra para 0 mosteiro, entre­
gou la sua beata anima al Signore I ddio. E tendo a Irma nossa Maria
Eudoxia completado a constru~ao do mosteiro, pintou nele 0 cenaculo
e a igreja onde mestre Bernardo tinha fixado os vitrais, desenhados por
ela para a gloria do Divino Sacramento. Essendo La pia Sor Maria Eudossia
badessa di questo monisterio per quasi diciotto anni, chamou-a Deus para
a perpetua alegria com Santa Clara Beata Nossa Mae. E il popolo e la
comunitade del monisterio per due giorni onorarono la gloriosa badessa
e 0 seu Santo corpo foi sepultado na mesma igreja que ela decorou, no
ana de mil e quatrocentos e cinqiienta e oito. E dopo la sua morte, la
badessa che dirige piamente il monasterio e la Reverenda Sor Maria Ce­
cilia di Santa Maria degli Angeli, la quale mando ch'io, sor Maria Glice­
ria della Nativita, serivessi codeste notizie. A laude di Cristo e onore di
Santa Chiara. Amen".
Lorenzo dobrou 0 papel e baixou os olhos. Estava comovido, como
todos os demais. Havia sofrimento e muita luta por tnis das frases singe­
las do documento. Era uma prova concreta, da epoca, a ligar Lutercio a
villa, a abadessa e ao livreiro. Todas as nossas inferencias tinham agora
uma base documental. Mas nao era esse 0 impacto que nos deixara mu­
dos diante do documento. Era a tragedia de Lutercio, de Victoria e tam­
bern de Eugenia. Havia algo estranho na referencia a morte do cardeal e
da cunhada. 0 tom era totalmente outro quando se mencionavam as mor­
tes da abadessa e do mestre Bernardo, 0 muratore. Aquelas eram referi­
das como simples eventos, acidentes, sem qualquer palavra de piedade ou
respeito, enquanto ada abadessa e a do pedreiro eram registradas com ex­
press6es de venera~ao e afeto.
Beatrice foi a primeira a falar. "Nao ha mais duvida, agora. A cro­
nica dessa freira mostra a total proscri~ao de Lutercio. A morte dele e
noticiada com frieza, como a de qualquer infiel, de qualquer pecador pu­
blico ou herege."
"0 que me impressiona e que, segundo este documento, ele e Vic­
toria morreram juntos, de morte 'tristfssima'. E como ele deixou todos
seus bens a ela, a coisa toma urn rumo meio suspeito... " Isabella parecia
esperar que alguem completasse seu pensamento. Foi 0 que Lorenzo fez.
"Eu pensei dois dias nesse texto. Ha uma certa rejei~ao ao cardeal e
a cunhada. Eles sao considerados almas infelizes, povere anime."
Bruno discordou. "Sem duvida, a morte do pedreiro e ada abades­
sa sao noticiadas com venera~ao e afeto. Mas eram dois personagens li­
gados as origens duras do mosteiro, aos quais a comunidade devia grati­
dao e louvor. As duas outras mortes sao de 'pessoas estranhas', referidas
como povere anime, numa expressao que poderia ser de compaixao, em­
bora uma compaixao distante, protocolar, quase. De todo modo, a refe­
rencia a uma morte sofrida de Lutercio e da cunhada, Iigada a essa frieza
do establishment religioso, e inquietante."
"0 que Isabella quer dizer", sugeriu Beatrice, "nao ebern isso. Pode
ser que a hipotese de Luciana seja verdadeira: depois de Constan~a, Lu­
tercio procurou viver mais feliz e, fora Eugenia, a unica pessoa capaz de
entende-Io naquele palacio era Victoria. Pelo que voces contam, 0 tal Fi­
lipe brutamontes nao era homem de sutilezas intelectuais e afetivas... ".
"Isso ja efofoca pura", cortou Bruno, "pois a morte triste e conjun­
ta pode ter sido urn acidente qualquer, incendio, desabamento, sei la. 0
que poderia parecer suspeito eo testamento iscritto deixando os bens pa­
ra elan.
"Ele nao tinha a quem deixar!" Lorenzo quase gritou. Depois hesi­
tou: "Talvez para 0 irmao".
"Mas 0 irmao seria 0 herdeiro natural. 0 cardeal nao quis que 0 ir­
mao herdasse a villa e as terras. 0 testamento era, portanto, contra 0 ir­
mao." Falei com seguran~a. Parecia logica a minha ideia.
Abelardo, jurista, nao tinha tanta certeza. "Depende de como 0 car­
deal adquiriu a posse das propriedades. Em alguns casos elas eram lega­
das aos descendentes com clausulas restritivas quanto a transmissao ul­
terior de todas ou de parte delas. E possivel que a cunhada fosse a lega­
taria possivel, ja que ele nao tinha sucessores, ao que se sabe. Em outros
termos, pode ser que voces estejam fazendo pura fofoca."
Lorenzo continuou: "Mas algumas coisas sao certas. Temos urn do­
cumento escrito, sobre a identidade do cardeal. E temos tambem uma boa
prova de outra coisa: Marcello Valdesi herdou toda a biblioteca. Foi essa
decisao da abadessa, de mandar os livros ao patriarca, que me obrigou a
ir ate aoficina de Aurelio Valdesi, dificil de achar, por sinal".
"Como voce se apresentou?", perguntei.
"Como amigo de Isabella, pesquisador do mesmo instituto, interes­
sado em descobrir 0 bispo vermelho, ou cardeal do Monferrato. "
"E a rea~ao dele?"
"Cortes e desconfiada. Testou minhas informa~oes com varias per­
guntas sobre livros, sobre Isabella, Beatrice e Anna. Perguntou se eu re­
conheceria urn livro encadernado por Marcello Valdesi. Era 0 teste cru­
cial. Eu nao lembrava se as iniciais do encadernador ficavam encobertas
no verso da capa ou da contracapa e confessei a minha duvida. Ele se des­
culpou por me ter 'investigado' e so entao perguntou 0 que eu queria.
Mostrei essa c6pia da cronica de Irma Maria Gliceria. A mao dele tremia
durante a leitura. No final come~ou a chorar. Logo se controlou e pediu
desculpas, explicando que, como ele, seu pai, seu avo e outros antepas­
sados haviam cumprido urn compromisso secular, sem saber por que fora
assumido: guardar cuidadosamente os livros que tivessem, no verso da
capa, as letras L e M. Implorou que the desse uma c6pia da cronica, que
era a resposta a seculos de duvidas, prova de urn grande afeto que tantas

279

gera~6es dos Valdesi tinham honrado, com risco e sacrificio. Expliquei


como sabia que 0 bispo vermelho e 0 cardeal Luis ou Ludovico III eram
a mesma pessoa e perguntei onde estavam os livros. Ele quis saber se 0
cardeal havia protegido algum herege. Respondi que isso era praticamen­
te certo. Ele abriu urn sorriso de aHvio: 'Agora tudo esta claro'. Puxou
uma cortina, no fundo da sala, acendeu a luz e me apontou uma escada
fngreme de dois lances que descia ao piso inferior: 'Queira acompanhar­
me'. Descemos a uma sala grande, talvez maior que a de cima. Ele apon­
tou para a direita: 'Nestes quatro armarios estao praticamente todos os
livros do bispo vermelho, perdao, do cardeal, encadernados por Marcello
Valdesi. Naquele do canto guardamos os que eram do cardeal, mas foram
encadernados por outros. Alguns poucos volumes estao na sala de cima.
o senhor vai notar que muitos sao marcados pelo numero cinqiienta e
oito em algarismos romanos. Nao sei 0 que significa essa marca.'''
"E voce sabia, Lorenzo?", indaguei.
"Nao."
"Enquanto voce corria atras de freiras, n6s descobrimos: e a abre­
via~ao latina de Ludovicus Tertius, a primeira sflaba do nome, LV e 0 nu­
mere romano III, que pode ser lida tambem como LV TERTIUS."
"Brilhante, Emilio! Eu disse a ele que nao sabia. Estava apalermado
diante dos livros e pedi licen~a para examina-Ios em outra ocasiao. Ele
concordou, com uma condi~ao. Queria uma c6pia da cronica, com 0 ca­
rimbo do mosteiro. Disse que era urn documento e queria emoldura-Ia."
"Voce prometeu?"
"Nao!"
"Ah, nao! Por" que voce fez isso?"
"Porque decidimos ir buscar a c6pia em Asti, no mesmo dia. Ele foi
guiando, claro. 0 carro dele tern bons amortecedores." Olhou de vies
para Bruno.
"As monjas deram a c6pia carimbada?"
"Sim. Expliquei a Irma Veronica que para 0 arquivo do meu insti­
tuto era importante 0 carimbo. Ela nos deu duas c6pias carimbadas e as­
sinadas por ela. U rna ficou com Aurelio e a outra e esta. Agora terminei.
Voces estao babando por aqueles quatro armarios de Cisterna d'Asti. Sai­
bam que logo voltaremos la, com carta branca para olhar tudo. Olivrei­
. nosso. "
ro agora e, urn amIgo

280
"E se tudo aquilo viesse parar no Galilei?" Bruno olhava para 0 alto,
sonhando.
"Domine exaudi nos!", rezou Beatrice.
"Amen!", respondeu Lorenzo, de maos postas.
Isabella insinuou algo: "A tal Soror Veronica foi com a tua cara, pe­
10 jeito, Lorenzo."
"Enciumada? E compreensivel."
"PreSUn'1aO e agua benta... "
"Eu e que gostei dela. Ela entende de pintura, conhece historia da
arte e me explicou os detalhes dos afrescos da abadessa, Soror Maria Eu­
doxia. Que nome mais sem gra'1a. Eugenia era melhor. Mas tinha que ser
outra pessoa depois dos votos, 'renascida para a vida espiritual', como
explicou a Irma Veronica, enquanto olhavamos 0 afresco do cenaculo. E
bern grande, como 0 da villa, e mostra 0 almo'1o de Santa Clara com Sao
Francisco. Vma cena singela, com poucos elementos, porque 0 almo'1o foi
no campo, com os alimentos no chao. Mas 0 estilo de Eugenia se impoe:
amarelos fortes na paisagem, 0 brilho dos olhares, 0 respeito quase ob­
sessivo pelos detalhes: pode-se ver cada cruzamento dos ramos de vime,
no cesto dos paes, por exemplo. E a mesma paixao pelas proje'1oes da luz.
Na falta de qualquer vidra'1a, ela aproveitou 0 reflexo da luz numa jarra
de vidro e inventou urn lago com a agua encrespada espelhando 0 sol. A
simplicidade e 0 despojamento do episodio foram tratados com fina sen­
sibilidade. Os afrescos da igreja tambem sao muito bonitos, embora a luz
fosse pouca para aprecia-los devidamente. Mas 0 fascinio pelas proje'1oes
da luz solar estao presentes, tanto na cena da ben'1ao dos paes por Santa
Clara, em que 0 sol projeta sobre a toalha os reflexos da bandeja metali­
ca, como na da visita de Sao Francisco a Roma, em que as cores de urn
vitral se derramam sobre a capa do papa... "
"Pelo que diz a cronica, ela desenhou tambem vitrais. Voce os viu?"
A pergunta era de Isabella.
"Sim. Sao dois, na parede do coro. Muitos vidros foram substitui­
dos, e claro. Mas, segundo a Irma Veronica, a estrutura metalica principal
pode ser ainda a de Bernardo Muratore. Ela acha que as pe'1as de vidro
mais proximas das paredes podem ser originais, montadas por ele!"
"E as figuras?"
"Nao ha figuras, propriamente. Sao pe'1as de vidro, quase todas de
cores suaves, que nao representam nada. 'E claro que a abadessa podia de­
senhar imagens ou cenas belissimas neles', disse Irma Veronica, 'mas urn
vitral nao e urn quadro. Para a abadessa eles eram transparencias colori­
das e nada mais. 0 olhar nao deve prender-se asuperficie dos vidros, mas
acompanhar a luz que os atravessa. Por isso, nao ha imagens nos vidros.'"
"Genial!", falei.
"Quem? A abadessa ou a Irma Veronica?"
"Ambas."
Luciana chegou aporta com urn recado de Lanebbia. Deviamos es­
colher quem acompanharia 0 arquiteto na vistoria a villa, agora pala­
cio, do cardeal e marcar 0 dia da visita, antes do sabado. Restavam-nos
tres dias.
"Eu vou", falou Bruno, "porque pretendo tentar, de novo, abrir
aquele desgra~ado al~apao. No meio da semana e mais tranqiiilo para
mexer nos medalh6es. Alessandro trabalha e os meninos devem estar fora
da villa. Basta que alguem despiste 0 arquiteto".
"Eu prometi a Irma Veronica urn desenho do rosto de Eugenia",
explicou Lorenzo, "do tempo da juventude, antes da tragedia da fami­
lia. Se alguem me der carona eu YOU. Ouviu bern, Bruno?".
"Posso dirigir, mas vamos no teu carro."
"Quanta mesquinharia, meu Deus! Podemos levar Abelardo para
cuidar do arquiteto."
"Finalmente", disse Abelardo, "vou ver esse bendito palacio do car­
deal. Quem sabe ainda da para impugnar aquele testamento e ficar com
a villa". Beatrice nao poderia viajar durante a semana. Isabella estava in­
teressada em ir, se a volta fosse no mesmo dia. Eu estava em duvida. Pre­
cisava ordenar minha ideias antes de decidir.
Varias coisas turvavam meus pensamentos e meu entusiasmo. Eu
queria ficar so, entender 0 que me inquietava. Enquanto discutiam a data
da viagem, enfiei-me na paz da minha sala. Alem de certa tristeza pela
morte sofrida de Lutercio e da meiga Victoria, havia a sensa~ao de algu­
rna iminente desgra~a, talvez porque Anna nao tinha chegado ainda ou
porque aquele terror de caes ja tinha posto em risco a vida dela. Eu sen­
tia tambem urn certo arrependimento, ou culpa, pela descoberta de epi­
sodios penosos da vida de Lutercio, de Victoria e da propria abadessa.
Algo me impelia, agora, a esclarecer a morte deles. Afinal, abandonar a
causa a essa altura seria inadmissivel. Era como se nos houvessem con­
fiado a missao de falar por eles, denunciar a maldade que os tinha viti­
mado. Nada estava claro dentro de mim. Mas na cronaca do mosteiro ou
na conversa da freira havia algo que me empurrava para a villa. Alguma
coisa estava incoerente no texto da cronica. Mas, 0 que?
Lorenzo bateu a porta e entrou. "Emilio, esqueci de contar uma
.
COlsa. "
"Qual?"
"Entre os livros de Lutercio que Aurelio Valdesi me mostrou ha­
via tres exemplares de uma mesma obra. Uma bomba, meu carol Trazem
na folha de rosto 0 nome do autor, a data de 'publica~ao' e, obvio, 0 ti­
tulo da obra. Adivinhe tudo isso. "
"Sei lao 0 autor e 0 proprio Lutercio..."
"Sim. Mais especificamente, e LV III. E a data?"
"Vou chutar: posterior ao Concflio, portanto 1419 ou 1420."
"E 1420,0 ano da morte de Pierre d'Ailly. 0 titulo voce nao pode
imaginar. E Tractatus de Perversitate Ecclesiastical"
Lembrei 0 Tractatus de Potestate Ecclesiastica, que d'Ailly escreve­
ra em meio a euforia doutrinaria de Constan~a. 0 nome insinuava uma
parodia.
"De uma olhada." 0 livro desfilava varias perversitates ou aberra­
~6es eclesiasticas, em pouco mais de sessenta paginas e, fiel ao sentido
amplo do termo latino, dissecava desvarios, exorbitancias e fanatismos.
Nao restava duvida, era a desforra de Lutercio. Parte dela, pelo menos.
Nao contive urn sorriso de satisfa~ao.
"Lindo, nao?", perguntou Lorenzo.
"Pelo jeito e uma bordoada. Voce jura que 0 livreiro Ihe emprestou
isso? Estou estranhando essa generosidade toda."
"Ele ficou meu amigo, ja disse. Prometi levar a Lanebbia uma pro­
posta dele. A Fondazione Galilei ficaria com todo 0 acervo dele em tro­
ca de algum dinheiro e certos compromissos. Valdesi quer urn emprego
como restaurador e a posse dos livros ate sua morte, mesmo que eles se­
jam incorporados logo ao nosso Instituto. Ja imaginou que orgia de tex­
tos? Lanebbia me disse que vai estudar 0 assunto com os editores ama­
nha. So iremos a villa na sexta-feira, ja com a resposta da Funda~ao. Os
editores, estou certo, nao vao perder essa oportunidade."
"Parabens, tomara que voce consiga. Posso levar esse Tractatus ate
amanha?"
"Nao. Estou dando uma olhada. Primeiro voce precisa terminar a
tradll(;ao do Commentarium. A publica~ao dela vai ser nosso trunfo pa­
ra melhorar 0 pagamento. Pelo jeito faltam poucas paginas, nao e?"
Ele tinha razao, faltavam so as ultimas paginas. Desde a carta de Ga­
briella, a torrente de descobertas me tinha desviado da tradu~ao. Resolvi
concentrar-me nela, tambem para esquecer a preocupa~ao com Anna e as
outras inquieta~6es. 0 texto nao tinha mais 0 charme do misterio. 0 in­
teresse agora era mais pelas ideias do cardeal. A apresenta~ao brilhante das
inova~6es teatrais de Euripides completava-se com uma galeria de gran­
des figuras: Medeia, Orestes, Fedra, Hipolito, Ifigenia e Dionisio. A cada
uma eram dedicadas umas vinte linhas, nas quais Lutercio sublinhava a
criatividade de Euripides. As duas ultimas paginas eram uma especie de
epilogo, cuja inten~ao didatica nao disfar~ava a paixao por Euripides.

"Com tal dominio da arte teatral e da linguagem poetica, Euripides


sabia despertar, nos espectadores, nao so as emo~6es, mas tambem as
ideias que queria (peritus commotiones aeque ac sententias incendendi). E
entao exercia uma poderosa influencia (plurimum valebat) no pensamen­
to dos atenienses. Certamente, a Aristofanes tudo isso parecia urn perigo.
E era, para a fama dele e 0 poder de seus amigos. Nao para 0 povo de Ate­
nas e os que percebiam nos herois de Euripides 0 reflexo do fim de uma
epoca e 0 nascimento de uma nova sociedade (rerum auctores alicujus
terminum temporis indicebant atque ortum novae cujusdam societatis).
"As sucessivas acusa~6es, as agress6es caluniosas e incompreens6es
acabaram por amargura-Io tanto que apesar de amar entranhadamente seu
povo e a cidade, ele decidiu, ja velho, exilar-se na Macedonia, convida­
do pelo rei Arquelau, alguem que sabia ver nele, alem do artista subli­
me, 0 sabio cujo amor pela justi~a e cujo saber poderia iluminar as de­
cis6es de urn soberano. A Macedonia soube tributar a Euripides as hon­
ras que Atenas the negara. Arquelau elevou.,o a conselheiro seu e hon­
rou-o com sua confian~a, ao ponto de quere-Io ao seu lado, ate em suas
viagens de ca~a, e the deu meios para escrever suas pe~as com a liberda­
de e a tranqiiilidade que seu genio merecia (quies ingenio tanto decens).
Sao desse periodo de serenidade as duas ultimas tragedias que ele nos dei­
xou: Iphigenia in Au/is e Bacchae. Nelas 0 grande poeta liberta sua ima­
gina~ao, seu pensamento e sua palavra. Sao duas obras de' urn espirito fi­
nalmente livre de qualquer necessidade de superar incompreensoes, que
enfrenta, principalmente nas Bacchae, com amargura, mas sem medo
(amare tametsi impavide) a verdadeira tragedia de cada homem: a mor­
. te dos seus sonhos, suas cren~as e suas esperan~as (somniorum, fidei ac
spei interitus)."

o texto exibia, mais uma vez, uma interpreta~ao aguda, quase mo­
derna, do pensamento de Euripides, agora referente as ultimas pe~as,
principalmente as Bacchae. Mas mostrava urn Lutercio amargo, embora
resignado, que se projetava, indisfan;avelmente, na imagem que fazia do
poeta. As ultimas frases transpiravam desencanto e certo ceticismo. A alu­
sao· a perda das cren-ras podia indicar urn sofrido abandono da fe, bas­
tante provavel depois de seus azares na vida eclesiastica, e, mais ainda,
ap6s 0 Tractatus de Perversitate. E nesse tom quase melanc6lico 0 Com­
mentarium chegara ao paragrafo final:

"Quando esse homem superior ao seu tempo (tempori praestans),


ap6s tanta incompreensao e falsidade, insultado no seu nome e escarne­
cido em seu amor pela verdade e a justi~a, cansado .de amarguras renun­
ciou ate ao convivio de seu povo, as causas que amara, para escapar do
sofrimento no refugio ultimo de seus sonhos e afetos, nao tinha ainda
concluido seu destino infortunado. Ainda the faltava enfrentar a ultima
estupidez da fatalidade. Ainda 0 esperavam, para dilacerar seus sonhos
e seu corpo, aqueles des malditos de Arquelau."

A beleza do paragrafo estava tanto nas frases como na elegancia com


que reprimia a indigna~ao, em respeito a liturgia do discurso ftinebre. Ele
nao era mais uma informa-rao ao leitor. Era urn culto a Euripides, a su­
blimar a crueza estlipida de sua morte.
Capftulo 13

Morte e transfigura~~o

A tradu~ao estava conclufda. Estranhamente, isso nao me alegrava.


Comecei a caminhar pelo claustro, esperando que Anna chegasse ainda
antes do almo~o. No outro lado, junto as lapides da igreja, Abelardo con­
versava com Bruno apontando alguma coisa num papel. Quando passei
por la, ele me chamou.
"Emilio, voce nao acha meio desesperado esse plano de Bruno? Ele
quer abrir 0 al~apao da villa testando todas as combina~oes matemati­
camente possfveis entre os varios movimentos dos quatro medalhoes. 0
numero de combina~oes e grande demais e pode ser que nenhum deles
seja 0 certo."
"lsso nao!", reagiu Bruno. "Eu considerei todos os fatores relevan­
tes: ordem, dire~ao do movimemo, graus de deslocamemo do medalhao,
seqiiencia dos medalhoes..."
"Basta que 0 medalhao do poeta, por exemplo, precise ser girado
meia volta para a esquerda e depois duas voltas para a direita, que todo 0
esquema fica inutil."
"Claro que 0 meu esquema nao e perfeito", reconheceu Bruno, "mes­
mo porque os fatores que eu combinei sao os mais plausfveis. Mas sao
tambem os mais provaveis".
"Como voce sabe?", Abelardo insistiu.
"Entre urn empirismo primitivo e uma dedu~ao silogfstica hci a hip6­
tese, nao e, Emilio? Se eu fosse testar todas as combina~oes possfveis, se­
gundo a matematica, poderia passar a vida tentando abrir 0 al~apao. 0
meu esquema exclui uma infinidade de combina~oes que seriam possfveis
apenas segundo a matematica. As que eu considero sao as que respeitam
alguns princfpios..."
"Algumas premissas!", sublinhou, malicioso, Abelardo.
"Sei la. Os metodos do quattrocento para trancar uma porta ou urn
cofre implicam ferrolhos, cremalheiras, rodas dentadas, alavancas ou pe­
~as de movimento girat6rio excentrico. As minhas combina~6es levam em
conta esses princfpios. Elas sao deduzidas deles. "
"Ah! Esta melhorando."
"Aonde voce quer chegar, Abelardo?", perguntei.
"Ha dois metodos para descobrir 0 truque do al~apao. Urn, indu­
tivo, pode ser urn procedimento primitivo de ensaio e erro, com abando­
no das tentativas erradas ou urn planejamento a partir de hip6teses con­
firmadas em situa~6es analogas, que e 0 de Bruno."
"E 0 outro?"
"0 outro e aplicar uma f6rmula, uma lei conhecida."
"Oh, e simples", falou Bruno. "E s6 voce me dizer a f6rmula,e eu
jogo fora todos os meus esquemas. Nao seria algo como Abre-te Sesa­
mo?" Abelardo ignorou a ironia, sorriu e manteve a posi~ao.
!<Essa e para abrir cavernas. A f6rmula que nos serve deve estar em
algum lugar da tribuna ou do teatro. 0 cardeal poderia partilhar 0 segre­
do com alguem de sua confian~a, como 0 livreiro valdense ou alguem do
palacio, Eugenia, por exemplo. Mas, depois das confus6es eclesiasticas, e
possivel que ele tivesse deixado alguma pista, urn c6digo para que, em
sua ausencia, algum confidente pudesse chegar aos textos ou documentos
guardados na tribuna. Afinal, Lutercio, como seu grupo dos nostra studia,
devia ter adeptos. Principalmente depois de sua atitude pr6-Jeronimo,
contra d'Ailly."
"Tudo muito bonito, ate sensato. Acontece que ja vasculhamos a tri­
buna e 0 teatro e nao achamos qualquer Abracadabra. S6 temos as figu­
ras dos medalh6es", Bruno apontou 0 papel na mao de Abelardo, "e es­
ses hexagonos do teto com as letras inscritas. Sao iniciais das nove mu­
sas, como descobriu Emilio".
"Claro que nao encontraremos algo como 'Instru~6es para descobrir
meus segredos'. Lutercio era inteligente, de gosto refinado, erudito. Essa
e uma premissa menor, do tipo Socrates e homem. A outra premissa e que
toda pessoa desse tipo pretende de seu interlocutor ou confidente as mes­

288

mas qualidades. Como Todo homem emortal. Segue-se que Lutercio s6


aceita escancarar seu cofre a quem diante dele demonstre aquelas quali­
dades. Pura dedu~ao, nada de empirismo cego."
"Espera, Abelardo!", interrompi 0 dialogo deles. "Repita a conclu­
sao do silogismo."
"Lutercio s6 escancara 0 cofre a quem, querendo abri-lo..."
"Nao foi isso..."
"A quem, diante dele..."
"Diante do que?"
"Sei lao Diante do enigma, do al~apao, dos medalhoes. Eu nunca vi
essa tribuna, como posso saber?"
"Talvez falte a ele algum empirismo", insinuou Bruno, olhando pa­
ra mim. "Mas quando alguem esta diante do enigma, tentando abrir 0 al­
~apao, deve estar olhando para os medalhoes, tentando gira-los combi­
nadamente. Para isso, precisa estar de costas para a parede, pois os livros
estao na parte da frente. Emilio, procure lembrar, 0 que estava diante de
voce, de seus olhos, quando 0 al~apao se abriu?"
Eu nao podia dizer a verdade: na ocasiao eu estava de costas para 0
teatro e meu olhar passeava pelos seios firmes e tremulos de Beatrice. Ela
sim, estava na posi~ao de abrir 0 forro e pegar os livros. Imaginei 0 que
ela tinha diante dos olhos: os medalhoes e 0 teto, talvez os hexagonos. Foi
o que respondi.
"Entao", emendou Abelardo, "devemos estar neSSQ posi~ao e pro­
curar nos medalhoes e no teto algum c6digo para abrir 0 al~apao. Ima­
gens, palavras, sfmbolos...".
Bruno, cetico, foi elegante: "Alem desse desenho dos hexagonos,
posso dar-lhe urn esbo~o das figuras dos medalhoes. Assim, antes da pro­
va empfrica, la na villa, voce pode exercitar suas inferencias dedutivas.
Mas nao espere demais. Qualquer c6digo, de acordo com a sua premissa
maior, deve ser inteligente, de gosto refinado, e erudito".
A resposta de Abelardo foi imediata: "Voce duvida do talento de
Lutercio ou do meu?".
"Duvido apenas de sua teoria."
"Nao e uma teoria. E urn metodo."
"Nem uma coisa, nem outra. No maximo, uma hip6tese", sugeriu
Bruno.
"De acordo. So que eu nao sei mexer naqueles medalhoes. Se tiver­
mos sorte podemos chegar a uma formula, urn codigo. Abrir 0 cofre e
outra questao."
"Quer dizer que a dedu~ao acaba dando com os burros n'agua se nao
recorrer a algum conhecimento... empirico.~
"Talvez isso", reconheceu Abelardo. "0 que voce acha, Emilio?"
Pensei urn pouco antes de dar minha opiniao, bastante vaga. Mas era ho­
nesta: "Urna boa teoria do conhecimento pode nao ser uma boa teoria
da solu~ao de problemas. E vice-versa".
"E entao", emendou Bruno, "a concep~ao da ciencia ou do conhe­
cimento como solu~ao de enigmas e ambigua".
"Essencialmente ambigua!", acentuou Abelardo, pendurado no meu
ombro. "Vamos la, Bruno. Vamos estudar os esbo~os dos medalhoes. Vo­
ces terao que dividir tambem comigo as glorias do caso Lutercio."
Continuei minha caminhada. Os dois estavam certos. E eu tambem,
por incrivel que seja. Aquele fim tragico de Euripides me inquietava. Mas
eu pensava em Anna. Resolvi voltar a Milao e procura-Ia. Urn born pre­
texto era levar-Ihe 0 final da tradu~ao. Enquanto fechava minha sala
percebi que, na verdade, lembrar 0 fim de Euripides a quem tern pavor de
des era uma pessima ideia... Era isso. Era isso que me inquietava. Os des,
que haviam matado Euripides, agora amea~avam Anna. Voltei a Milao e
lhe telefonei. Nao fora ao Galilei por medo de encontrar des no cami­
nho para 0 metro. Mas tinha marcado entrevista com urn psiquiatra.
Queria que a acompanhasse ao consultorio na manha seguinte. "Mas ho­
je vamos sair e festejar meu joelho que esta quase curado. Voce me leva
ao La Strega?"
"Claro que levo. Mas 0 joelho nao precisa de repouso?"
"Carpe noctem, meu caro. No proximo domingo retorno meu papel
de esposa exemplar e mae ansiosa; Quero que voce me conte as novida­
des sobre 0 cardeal."
Durante os aperitivos no La Strega, contei-Ihe os achados de Lo­
renzo em Asti e na oficina do livreiro. Ela gostou da discussao entre Bru­
no e Abelardo e do projeto "dedutivista" do ultimo. Achou plausivel que
Lutercio houvesse deixado alguma pista sobre 0 truque do al~apao.
"Abelardo acha que a 'formula' esta nos medalhoes ou nos hexago­
nos do teto."
"Como eram mesmo?" Estendeu-me urn guardanapo de papel e uma
caneta fina, prateada. Desenhei os hexagonos com as letras inscritas. Era
facillembrci-Ias: as vogais E, E e U ficavam nos vertices do "triangulo de
hexagonos". Partindo de urn dos E, obtinha-se, em qualquer lado, a se­
quencia ETC. As duas outras consoantes eram P eM.
"Segundo sua descoberta, estas letras sao iniciais das musas."
"Podem ser iniciais das musas ou de outra coisa. Pintadas no teto
de urn teatro, certamente nao indicam os escaloes dos anjos ou tipos de
pizzas."
"Mas por que as vogais estao nos vertices? Podiam estar juntas em
urn dos lados. Ha alguma ordem nessas letras."
"Sim. Podem estar ordenadas segundo algum criterio. Talvez a hie­
rarquia de importancia das musas, titulos de pe~as teatrais, nomes de poe­
tas ou, simplesmente, acaso."
"Isso ja esta virando trabalho. Sao as musas e basta. Vou querer frut­
ti di mare. E voce?"
"Tambem. Voce escolhe. De vinho, urn verdicchio ou urn tocay.
Abelardo pode ter razao: as letras seriam iniciais das musas, por acaso.
A fun~ao delas pode ser outra."
"Nao ha nenhum S ou A. Logo, nao e Sesamo, e muito menos Abra­
cadabra. Quero mais urn Carpano, meu querido. Se eu beber demais, vo­
ce me poe na cama?" 0 olhar que ela me deu era incandescente. Senti urn
calor que nascia na nuca e descia pelos ombros e 0 peito, cintura abaixo.
Ela percebeu minha vibra~ao e sorriu.
"Eu nem sei onde fica a sua cama."
"Eu nao falei da minha, seu bobo."
"Ainda temos que jantar e hoje e preciso dormir cedo. Amanha va­
mos ao medico. 0 tempo e pouco."
"Voce tern razao, meu caro. Ou suprimimos 0 medico, ou suprimi­
mos a cama, ou suprimimos 0 jantar."
"Ou jantamos na cama e convidamos 0 medico."
"Ele nao cabe. E gordo e ja deve ter jantado."
"Entao jantamos e vamos para a cama sem ele", sugeri.
"Genial. Eu nao tinha pensado nisso."
"Mentirosa."
Na manha seguinte, os sinos de Sant'Eustorgio nos despertaram com
urn repique alegre, quase festivo. Gentil aquele sacristao. Apos a visita ao
psiquiatra, chegamos ao Galilei pouco antes do almo~o. Bruno e Abe­
lardo trabalhavam freneticamente num banco do claustro, sobre alguns
papeis cheios de esbo~os de engrenagens, anota~oes numeradas e palavras
latinas.
Abelardo exultou quando cheguei: "Emilio, 0 que significa, em la-
;l"
tIm, PECT••
o

"Nada. au, talvez, abrevia~ao de algum nome, falta urn final."


"E ETCUM?"
"Nada, tambem. ET e a preposi~ao E, como todos sabem, e CUM signi­
fica COM, QUANDO e, raramente, AINDA QUE."
Beatrice tinha-se achegado e ouvira as perguntas. "Nao sei muito
latim nem grego, mas PECTIS era urn tipo de lira que Platao detestava. a
que nao surpreende, depois que ele baniu da Republica a musica e a poe­
sia. Com isso, nao so Euripides, mas tambem a pectis foi proscrita. E sa­
bern por que? Porque suas sete cordas eram afinadas em timbre agudo
para acompanhar cantos eroticos. a mo~o achava que 0 repertorio usual
para pectis era sensual demais. "
"Isso tudo nao interessa agora", reclamou Bruno.
Abelardo nao foi tao dnistico: "Beatrice, quantas cordas tern a lira
de Erato, no dossel?"
"Sete, tenho certeza."
"Entao 0 PECT dos hexagonos pode indicar a lira de Erato, no me­
dalhao!"
Resolvi intervir: "PECT pode tambem ser abrevia~ao de PECTEN que e
PENTE, ou de PECTUS, que significa PElTO e nada disso esta nos medalhoes".
Abelardo nao se rendeu: "Bern, isso e uma tentativa de achar urn sentido
nas letras do teto, a partir deste E. Se partirmos dos outros hexagonos,
sempre da esquerda para a direita, teremos seqiiencias sem sentido". Es­
tendeu uma folha sobre as demais e explicou: "Essas sao todas as seqiien­
cias, partindo de cada hexagono. A primeira delas come~a com a inicial
de Melpomene, a musa da tragedia. Minha homenagem a Euripides".

MPECTETCU

PECTETCUM

ECTETCUMP

CTETCUMPE
TETCUMPEC
ETCUMPECT
TCUMPECTE
CUMPECTET
UMPECTETC

"Como se ve, nenhuma das seqiiencias tern jeito de Abracadabra."


A frase de Bruno tinha urn tom de vitoria. De fato, 0 enfoque "deduti­
vista" de Abelardo adernava. As engrenagens pareciam rnais confiaveis.
Deixei-os com Beatrice e fui a secretaria encontrar Anna que tinha
parado la ao chegar. Ela e Luciana comentavam agitadas a novidade do
dia: Lanebbia tinha chamado Lorenzo pela manha para dizer que a Fon­
dazione decidira comprar todo 0 acervo de Aurelio Valdesi e mais: ia as­
sumir a manuten~ao da villa do cardeal, provavelmente para instalar la,
sob orienta~ao do Galilei, a Casa do Livro. Luciana explicou que seria urn
misto de museu, escola de restaura~ao de manuscritos e centro de pes­
quisa sobre historia do livro. Eram duas grandes vit6rias da diplomacia
de Lorenzo. Teriamos os tesouros de Valdesi e a villa voltaria a viver.
Mas algumas coisas dela deviam ser intocaveis: os aposentos da familia
de Alessandro, a capela, a biblioteca e 0 teatro, com a tribuna. A tribu­
na! "Meu Deus!", pensei, "precisamos abrir 0 al~apao antes que apare~am
por la os engenheiros, restauradores, editores... ". Era urgente que Abe­
lardo e Bruno achassem 0 Abre-te Sesamo, 0 Abracadabra ou 0 Epheta.
Pensei nas engrenagens e ferrolhos de Bruno e nas seqiiencias de letras
construidas por Abe1ardo.
S6 dois monossilabos tinham sentido em latim, ET e CUM. 0 resto
nao servia: PECT era, no maximo, uma abrevia~ao desencaixada, talvez de
PECTIS. Lembrei a discussao dos dois. Vma fieira de termos me veio alem­
bran~a: empirismo primitivo, dedu~ao, principios, hip6teses, paradigmas,
sinais, simbolos, codigos... estilos. 0 estilo de Lutercio! Vma f6rmula
criada por ele teria as marcas do seu estilo. 0 Commentarium mostrava
preferencias por termos de Virgilio e constru~6es sintaticas tipicas de
Cicero ou de Tito Livio, como 0 uso de cum como adverbio, em lugar
de tametsi. Vma das seqiiencias de Abelardo come~ava com CUM!
Fui atras dele. Ele vinha da biblioteca abra~ando Bruno, com urn

293
bra~o, e urn dicionario, com 0 outro. "Achamos alguma coisa, Emilio!
Existe 0 verbo PECTERE, pentear, desfiar, cardar. Entao,pectet tern algum
significado, e uma forma verbal."
"De acordo", respondi, "pode ser a terceira pessoa do futuro sim­
ples". ,
"Jura? Entao a penultima seqiiencia tern sentido! Olhe aqui: CUM
PECTET! Traduza."

"Literalmente, e QUANDO PENTEARA OU QUANDO CARDAR. S6 que Vir­


gilio e Ovidio empregam PECTERE com 0 sentido de afinar, tocar as cor­
das com 0 plectro ou, por extensao, dedilhar as cordas da harpa ou da lira.
A frase tern algum sentido. Algo como: QUANDO (ele ou ela) DEDILHAR.
Ou PENTEAR."
"Achamos! Entao achamos, Bruno! Achamos, Emilio!"
"Calma, meu caro." Bruno franziu a testa, cetico. "Achamos duas
palavras. "
"Nao, Bruno. Os medalhoes giram, nao e? Urn deles tern uma lira,
nao e? Alguma coisa tern que tocar aquelas cordas! Alguma coisa tern
que dedilhar as cordas! Champagne para todos no Anjo Azul!"
"Viva a dedu~ao", ironizou Bruno, "e abaixo a analise empirica:
uma vez que algo deve dedilhar as cordas da lira ou da pectis, como a cha­
ma Beatrice, falta voces deduzirem as manobras que devo executar nos
medalhoes".

294
"Teoricamente, as cordas podem ser tocadas pela parte mais salien­
te dos outros medalhoes: a flauta do fauno, a trombeta de Clio ou a mao
do poeta."
"Ficamos na mesma." Bruno estava disposto a resistir. Abelardo
tambem: "Nao. Dedilhar, s6 com os dedos!".
Bruno aceitou: "Entao se trata de pegar 0 bra~o do poeta e a lira de
Erato e puxar urn contra 0 outro. Simples, a primeira vista. 0 medalhao
de Erato gira sem limites nos dois sentidos. 0 do poeta s6 gira meia vol­
ta, em sentido anti-honirio, isto e, para longe da lira. E s6 quando com­
pleta esse movimento desbloqueia 0 medalhao do fauno... ".
"Que, pelo jeito, e superfluo...", arriscou Abelardo.
"Vma dedu~ao enganosa", rebateu Bruno satisfeito, "pois as provas
empiricas mostram que 0 fauno gira s6 urn quarto de volta, em qualquer
sentido.Mas pelo jeito ele faz girar alguma pe~a interna em movimento
excentrico. Qualquer pe~a rotat6ria excentrica, ao girar sobre seu eixo,
desocupa urn certo espa~o e ocupa outro".
"E dai?", perguntei.
"Elementar, meu caro Emilio. Dai, desbloqueia ou bloqueia movi­
mentos de outras pe~as nesses espa~os."
"Ergo?", disse Abelardo. Bruno percebeu a armadilha: esse Ergo im­
plicava uma dedu~ao. Esquivou-se com elegancia.
"Ora, meu caro. Ergo, precisamos verificar quais movimentos sao
impedidos ou liberados pelas varias posi~oes do fauno. Vma hip6tese
plausivel e a de que quando ele gira para a esquerda libera 0 giro anti­
horario completo do poeta ou 0 giro horario dele. Em qualquer caso, a
mao do poeta se aproximaria da lira. Isso, se 0 deslocamento do fauno nao
impedir a rota~ao de Erato, que levaria a lira ate a mao do poeta. Num
sistema de engrenagem e cremalheiras..."
"Basta, Bruno. Nao entendo mais nada." A confissao de Abelardo
era Slllcera.
"E a distancia entre dedu~ao e metodo."
"Entre dedu~ao e tecnica. Parece mais correto", sugeri. Bruno re­
sistiu: "Ja que voce quer precisao, digamos: entre dedu~ao e hip6tese".
Abelardo nao estava gostando: "E 0 al~apao? Vai ter que esperar 0
casamento de Popper e Kuhn? Bruno, voce nao acha que essa ideia de fa­
zer 0 poeta tocar a lira de Erato pode resolver 0 enigma?".

295
"Nao custa tentar." Decididamente, Bruno tinha pouca fe. Ou ape­
nas resistia aideia de abandonar seus esquemas. Eu tambem hesitava em
aceitar que as letras dos hexagonos fossem algo mais que as iniciais das
musas. Mas 0 CUM PECTET de Abelardo era urn belo achado. Bruno sabe­
ria transformar a teoria em uma boa hipotese e saberia ajustar a ela seu
arsenal de esquemas, ferrolhos, cremalheiras e engrenagens. Mas, era so
outra hipotese. Resolvida a questao da identidade de Lutercio, 0 enigma
do al~apao era 0 novo desafio. Mas agora havia urgencia. Talvez 0 CUM
PECTET fosse apenas uma coincidencia e, entao seria melhor prosseguir
com 0 "ensaio e erro" sistematico de Bruno. Aceitei minha incompetencia
como arrombador e voltei a secretaria. Lorenzo tinha chegado, apenas
para pegar uns papeis com Luciana.
"Parabens, Lorenzo! Belo trabalho."
"Obrigado. Mas 0 merito e de todos nos e do Concilio Vaticano
Segundo. Agora nao tenho tempo para te explicar: tenho mais uma reu­
niao com 0 "cidadao Kane".
"Quem e?", interrogou Anna.
"0 chefe todo-poderoso da Associa~ao Nacional de Editores, ex-di­
retor de Tulio em Pavia, 0 versatil G. Aurimonte. Nao se assemelha a
Orson Welles. Parece mais urn duende com os cabelos de Ben Gurion.
Ele fala olhando para 0 horizonte, com urn sorriso desagradavel a cada
duas frases. Mas e 0 homem que controla a Associa~ao e a Funda~ao que
nos paga. Antes que me esque~a: precisamos chegar avilla na sexta-fei­
ra, depois de amanha, cedo. Antes que 0 arquiteto chegue lao Precisamos
combinar isso com Bruno."
Fomos encontrar Bruno. Estava cercado de desenhos. Eram meca­
nismos de alavancas, rodas dentadas e cremalheiras de todos os tipos. Fi­
cou combiriado que iriamos em dois carros. Eu levaria Lorenzo direta­
mente a Madonna della Spina. Bruno com Abelardo iriam, antes, aos te­
souros de Valdesi. Levariam Isabella, a mais amiga do livreiro, encarre­
gada de comunicar-lhe 0 interesse da Funda~ao na aquisi~ao do acervo,
e de devolver as Bacchae em troca do nosso "Hipolito". Anna nao iria;
teria uma sessao de psicoterapia na sexta. Mas ja tinha telefonado a Au­
relio Valdesi explicando 0 "engano". 0 ponto de encontro seria diante da
igreja de Dom Attilio, no bar da pracinha. Lorenzo precisava visitar 0
vigario para explicar os pIanos e cautelas da Funda~ao para a preserva~ao
da villa. Quem chegasse primeiro esperaria os demais. 0 arquiteto tam­
bern nos encontraria la, pois nao sabia como chegar a mansao.
Na sexta-feira, por volta de oito horas, Lorenzo veio buscar-me e me
intimou a dirigir 0 carro. A echarpe de seda nao estava mais no banco tra­
seiro. Antes de partirmos, ele passou-me urn bilhete de Beatrice:

"Emilio, voce, que elatinista, pode dizer se esta certo 0 meu palpi­
teo Uma das seqiiencias de Abelardo pode ter sentido. E esta: ET CUM PECf.
Pode ser entendido como: E COM A PECTIS ou entao, COMO COM A PECTIS
(ou LIRA). Se isso estiver certo, pode ser que num certo momento, algum
outro medalhao precisa repetir 0 movimento de Erato com a lira. Nao
tenho certeza se ET pode significar DO MESMO MODO QUE. Se voce achar
oportuno, diga isso a Bruno. You cobrar royalties. Beijos pra voces dois,
Beatrice".

Quanto ao latim, Beatrice estava certa. 0 palpite nao era mais plau­
sivel que 0 de Abelardo. Tinhamos, entao, duas seqiiencias com signifi­
cado: 0 codigo para abrir 0 al~apao era QUANDO DEDlLHAR OU IGUALMEN­
TE COM A LIRA. Ou nenhum dos dois. Ate sair da cidade concentrei-me na
dire~ao; mas logo que entramos na Comasina nao me contive: "Lorenzo,
estou achando esquisita essa mare de generosidade da Funda~ao. De urn
dia para outro resolvem restaurar 0 palacio de Lutercio e, ainda, adqui­
rir 0 acervo preciosissimo de Valdesi. Ou Lanebbia esta apaixonado ou
Aurimonte assaltou algum banco".
"E tudo muito complicado, mas muito simples."
"Benza Deus! Quanta logical"
"Espera. You explicar. E uma trama complexa, mas ficou tudo cla­
ro depois de uma conversa com Tulio, ontem, no Se%ne. Liquidamos
urn malvasia de tres anos. Divino. Tulio contou a jogada de Aurimonte
e Lanebbia. Olhe a estrada, em vez de olhar para mimI Aurimonte pas­
sou da dire~ao da Faculdade a presidente da associa~ao dos editores em
apenas tres anos! Como? Ficou socio da <Lumem Gentium', dividindo 0
capital com outro socio. Sabe quem e?"
«Claro que nao."
"0 sobrinho predileto do cardeal Settimiani! Ele mesmo! 0 todo­
poderoso senhor do Santo Oficio, ate dois anos atras. Urn dos homens

297

mais poderosos da Igreja e seguramente 0 mais conservador da Santa Se.


a 'gendarme da fe', como se intitulou. Como socio do sobrinho, Auri­
monte conseguiu que Settimiani pressionasse a maquina da Democracia
Crista para que ele e seu fidelissimo Lanebbia chegassem, pouco a pou­
co, a controlar a associa~ao dos editores. A DC precisa do Vaticano, para
que 0 clero assegure a fidelidade do eleitorado. a cardeal precisa dos edi­
tores, que sao hoje 0 'bra~o secular' da Igreja, no controle ideologico,
depois que 0 Concuio obrigou Paulo VI a liquidar 0 Index. Assim, a as­
socia~ao dos editores ganhou importancia politica e eleitoral. Lanebbia e
Aurimonte perceberam isso e se aproveitaram para estreitar vfnculos com
o cardeal, leia-se Curia Romana, e com a DC..."
"Mas tudo isso nao explica a generosidade da Funda~ao."
"Ainda nao terminei, Emilio. Agora Aurimonte quer ser ministro da
Cultura, com 0 apoio de Settimiani, que pressiona a DC, majoritaria na
Associa~ao Nacional de Editores, que controla a difusao de ideias, de
acordo com 0 que recomenda 0 'gendarme da fe'. A Fondazione Gali/eo
Galilei e instrumento dos editores, e esta na mao de Lanebbia, que quer
ser 0 secretario provincial da Educa~ao. Esta claro, agora? A cria~ao da
Casa do Livro da aos dois um trunfo para pleitear 0 apoio de Settimiani
e da DC."
"A Casa do Livro, sim. Mas a compra do acervo de Valdesi nao con­
quista votos ou apoios", ponderei.
"Mas conquista a gratidao de Settimiani."
"Como?"
"E af que entra 0 Concuio. Quando expliquei a Lanebbia que 0 acer­
vo era importante para 0 Galilei ele quase nem ligou. Quando falei da co­
nexao dos livros com 0 Concflio de Constan~a, ele quis detalhes. Quan­
do referi a rela~ao entre Lutercio e 0 processo contra Jeronimo de Pra­
ga, Lanebbia agitou-se, procurou disfar~ar, pediu tempo para pensar. Eu
percebi que ele queria aqueles livros, mas ia consultar alguem, ou usar a
oponunidade para obter algum ganho. Tulio me explicou 0 motivo: Set­
timiani nao admite discutir os abusos da Inquisi~ao, e nao digeriu a Iiqui­
da~ao do "seu" Santo affcio. Agora os cardeais da Holanda e os tchecos
querem a reabilita~ao de Huss e de Jeronimo. E demais para ele, 0 ulti­
mo inquisidor."
"E daf?"
"Dai, 0 dinheiro para comprar os livros de Valdesi surgiu do dia para
a noite, nao se sabe de onde. Por isso, e gra~as ao Concilio que metere­
mos a mao naqueles tesouros. Como se ve, e tudo muito complicado, mas
muito simples."
"Em resumo... "
"Em resumo, Aurimonte e Lanebbia querem influencia polftica,
Settimiani quer 0 controle ideologico, a DC quer ganhar elei~oes na Lom­
bardia. Cada urn depende dos outros dois. A nenhum deles convem que
se difunda agora algo como 0 Tractatus de Lutercio ou livros analogos.
E melhor ter tudo trancado no Galilei. A nossa sorte e que alguns cardeais
resolveram exumar, justamente agora, 0 caso Huss-Jeronimo. Qualquer
obra do seculo xv pode ser urn perigo para a ala reacionaria do Conci­
lio. Settimiani sabe disso."
"Isso quer dizer que... "
"Que voce tern mais uma tradu~ao pela frente. Essa e mais diverti­
da. Assim que 0 acervo de Valdesi passar para 0 Galilei, nos soltamos a
tradu~ao, antes que Lanebbia baixe normas a respeito."
"Leva algum tempo, Lorenzo."
"Mas 0 livro e pequeno. Tulio ja tern urn editor esperando a tradu­
~ao. Ele tern contas a ajustar com Aurimonte. "
"Tulio ou 0 editor?"
"Ambos."
"E se eu nao traduzir?"
"Voce perde uma chance historica, unica e ultima: tirar 0 sono do
'ultimo inquisidor'. Depois de Settimiani nao hayed outro." Eu pensei
imediatamente em Lutercio, Jeronimo e tantos outros. A publica~ao do
Tractatus seria urn modo de vinga-los. Pena que Pierre d'Ailly nao esti­
vesse vivo, para receber uma copia.
"Come~o amanha, se voce me passar 0 livro." Lorenzo abriu a pas­
ta: "Esta aqui. Fique com ele, como lembran~a de Lutercio. Quando 0
acervo vier para 0 Galilei teremos mais dois exemplares. Eu tratarei de
'ganhar' urn. Nos merecemos, afinal."
Paramos em San Damiano d'Asti, para ver uns afrescos na antiga
prefeitura e, as onze e quarenta, ja estavamos tomando a vernaccia de
Dom Attilio. Ele exultou com as noticias sobre a restaura~ao da villa e
lembrou que Alessandro morava la desde que nascera. Lorenzo contou

299

que a vida do velho nao sofreria qualquer altera~ao, exceto uma: passa­
ria a ter urn salario da Fondazione Galilei, para cuidar da capela, do tea­
tro e da biblioteca. A familia continuaria la, sem qualquer perturba~ao.
A cara do paroco era urn enorme sorriso. Ao fim da conversa deu-nos as
chaves da mansao enos desejou sorte.
Bruno e os outros chegaram pouco depois das doze e 0 arquiteto
logo em seguida. Era jovem, serio, aparentemente humilde. Desculpou­
se por ser 0 ultimo a chegar. Abelardo the fez duas perguntas sobre Bru­
nelleschi e ganhou a simpatia dele. Ele tinha pressa de voltar a Milao, gra­
~as a Deus. Isabella ponderou que se fossemos almo~ar sobraria pouco
tempo para a villa. Pedimos pao, presunto e urn maravilhoso grignolino.
Antes das duas ja estavamos no portao da mansao. Alessandro nos rece­
beu com surpresa. Disse que tinha muito trabalho naquela tarde e descul­
pou-se por nao acompanhar-nos na visita. 0 ingresso do ediffcio estava
aberto, porque ele tinha engraxado as dobradi~as do portao.
Enquanto Abelardo entrava hesitante com 0 arquiteto, Lorenzo
chamou-me de lado: "Emilio, acompanha Alessandro e conta-lhe as boas
novas. Eu quero deixar claro a esse arquiteto que a capela, 0 teatro, a bi­
blioteca e os aposentos de Alessandro sao intocaveis, por imposi~ao de
Dom Attilio".
"E a tribuna tambem!", acrescentou Bruno, enquanto ajeitava urnas
folhas na sua prancheta. "Veja se esse sujeito libera logo 0 teatro. Preci­
so trabalhar em paz."
"Esta bern", disse Lorenzo, entrando no ediffcio. Eu fui atras do
velho. Isabella tambem tomou 0 rumo da casa dele.
"Voce nao vai ver a villa?", perguntei. "Nao quer assistir ao Abre­
te Sesamo?" A resposta foi estranha: "5ei que voces vao conseguir, mas
nao you lao 0 que eu procuro deve estar la embaixo, perto da torrente.
Boa sorte".
"Quanto misterio! A voce tambem."
Alessandro ficou feliz com as noticias. Perguntou se viria muita gen­
te a mansao. Expliquei que nao. Mesmo 0 museu so interessaria a pouca
gente. Comoveu-se ao saber que no contrato da Funda~ao a capela, 0 tea­
tro e a biblioteca ficariam confiados a guarda pessoal dele.
"Sao anos que espero por essas notfeias, fico-lhe muito grato. De
cora~ao."

300
"Nos e que the agradecemos", respondi. Saudei a mae de Rinaldo,
que regava plantas atnis da casa, e fui encontrar os outros.
a arquiteto estava encantado com 0 teto do teatro e Bruno soltava
chamas pelas ventas andando pelo corredor. Lorenzo nao se cansava de
apontar detalhes preciosos nas pinturas e Abelardo come~ou a discutir
vagamente sobre os hexagonos do teto e sua rela~ao com sfmbolos herme­
ticos presentes na pintura de Botticelli e na cupula de Floren~a, de Bru­
nelleschi. Eu nao sabia onde ele tinha achado todas essas conexoes. Nem
ele, provavelmente. Bruno olhava-o do corredor, com olhos de raios, in­
dignado com a falta de pressa. Pelo jeito, eles queriam que 0 arquiteto se
fartasse de informa~oes sobre 0 teatro para que nao voltasse a ele, mais
tarde. Cada vez que tentava cortar a conversa alegando que precisava vis­
toriar 0 resto do palacio, Lorenzo mostrava mais algum pormenor das
pinturas. Quando se encaminhavam para a tribuna, Abelardo se anteci­
pou. Espiou, pelo buraco do piso, 0 ninho de Filomena e afastou-se com
urn gesto de horror: "Ratos! Enormes! Que nojo! Credo!".
a arquiteto estacou. "Bern, esta pe~a nao e relevante para 0 meu re­
latorio. Mas e uma beleza, sem duvida. Preciso vistoriar as outras salas.
Com licen~a."
"Por aqui, por favor", pediu Lorenzo, apontando a porta, falso e
cortes. Bruno fulminou-o com 0 olhar, quando passaram por ele. Lo­
renzo, imperturbavel, determinou: "Bruno, voce e os outros continuem
suas observa~oes, mas, antes, procurem uma tabua para tampar aquele
buraco na tribuna. Pelas duvidas tranquem esta porta. Se esses ratos es­
caparem, nao sairao do teatro. Diga a Alessandro para colocar veneno
amanha mesmo".
"Pois nao." A cara de Bruno prometia tempestades.
"Ufa! Pronto, Bruno. A barra esta livre. Ainda bern que voces me
contaram que aqui moravam ratos", Abelardo apontava 0 ninho de Filo­
mena, "mas deviam ter-me dito que eles poem ovos deste tamanho".
Bruno teve que rir. Apoiou a prancheta sobre a balaustrada da tri­
buna e come~ou a estudar, metodicamente, os movimentos de cada me­
dalhao. Abelardo trancou a porta e sentou-se no chao, encostado nela.
Passei a Bruno 0 bilhete de Beatrice. Leu e suspirou: "E meio vago.
Podemos tentar tambem isso. Mas primeiro quero ver se este medalhao de
Clio e mesmo fixo ou se fica bloqueado pelos outros." Era fixo. Mas isso

301
nao era irrelevante: "Clio nao se move e sua trombeta aponta para 0 an­
gulo mais proximo, na base do dossel, ou forro da tribuna, se quiserem".
"E isso quer dizer 0 que?", perguntou Abelardo, irreverente, Ii da
porta.
"Que a posi~ao normal, de partida, dos medalhoes e esta: cada urn
apontando com a parte mais saliente para 0 angulo mais proximo. Entao
Erato fica de costas para 0 fauno, numa diagonal. N a outra, 0 poeta vira
as costas para Clio. " Eu e Abelardo ficamos quietos. Que mais podiamos
fazer? Bruno tentou virias combina~oes de movimentos, sem resultado,
seguindo escrupulosamente as anota~oes de sua prancheta. Apos meia
hora, ou quase isso, virou-se para Abelardo: "Vamos tentar 0 seu palpi­
teo Qual emesmo?".
"Que os dedos do poeta devem dedilhar as cordas da lira."
"Vamos Ii. Dirijo a lira de Erato para 0 centro do dossel. 0 poeta
gira para a esquerda e seu bra~o fica bloqueado na perpendicular do bra­
~o de Erato. Movendo 0 fauno para a direita, 0 poeta se solta e, girado
para a direita, chega a tocar a lira. E nada acontece. Volta tudo ao princi­
pio. A lira vai para 0 centro. Libero 0 poeta, girando 0 fauno, desta vez
para a esquerda. 0 poeta agora pode girar livremente. Algum pino de blo­
queio, do fauno, libera uma cremalheira Iigada ao eixo do poeta. Inverto
o giro do poeta. Agora vai para a esquerda. Fica bloqueado a meio cami­
nho... 0 que disse Beatrice, Emilio?"
"Algo como DO MESMO MODO QUE COM A LIRA?"
"Entao, agora coloco 0 bra~o do poeta voltado para 0 angulo inicial
da lira de Erato. E nada acontece..."
"Mas ele tern que tocar a lira", interrompeu, imprudente, Abelardo.
"Miseria! Nao me amole. Eu sei! A lira vai para 0 meio. 0 fauno
desbloqueia 0 poeta, se girado para a direita. Assim, 0 poeta toca a lira.
E nada mais se move." Bruno enxugou a testa. Depois prosseguiu: "A
menos que... a menos que, quando 0 poeta toca a lira, giro 0 bra~o dele
para a posi~ao inicial da lira. Entao giro 0 fauno para a esquerda. Veja­
mos... Agora 0 bra~o do poeta volta tranqiiilo para 0 centro do dossel e
vai tocar... as cordas da lira. Agora!"
. Houve urn estalo forte. 0 al~apao se abriu! Bruno levantou os pu­
nhos fechados, como urn lutador: "Conseguimos!". 0 plural erapura
bondade dele. Baixou os bra~os. "Agora ecom voces. Eu trouxe uma sa­

302
cola grande." Pegou a jaqueta de Lorenzo, que estava sobre a balaustra­
da e enfiou-a na brecha aberta no dossel: "Desta vez nao queremos sur­
presas. Antes que eu me esque~a: Emilio, escreva as opera~6es ai na mi­
nha prancheta: Urn: Erato, anti-hodrio, meia volta. Dois: poeta, anti­
honirio, ate lira. Tres: poeta, honirio, ate posi~ao inicial de Erato. Qua­
tro: fauno, anti-honirio, urn quarto de volta. Cinco: poeta, honirio, ate
lira". Era 0 nosso Epheta. Podia nao ser a formula, mas era uma formula.
Abelardo estava imovel, olhando para 0 teto, siderado. Eu senti, de
novo, aquela mistura de excita~ao e culpa. Sentia-me urn profanador de
intimidades, urn violador de segredos. Ao mesmo tempo, sentia-me es­
colhido para partilhar 0 que houvesse naquele dossel. Bruno nao me deu
tempo para outras... vivencias existenciais: "Vamos, Emilio. Voce conhe­
ce a toca. Vamos recolher tudo, antes que chegue algum chato".
Subi meio tremulo os degraus e espiei pela brecha. A jaqueta de Lo­
renzo levantava bern a tampa e a luz entrava quase diretamente ate os li­
vros. Era uma fileira de quinze ou vinte volumes, alguns com a marca
LVIII na lombada. Abelardo voltara de seu transe e estava apoiado na ba­
laustrada, esperando urn convite para olhar 0 tesouro.
"De uma olhada no que estava por tnis daquela lira."
"Ceus! Que maravilha!"
"Agora des~a e va ajeitando cada urn na sacola de Bruno. Mas com
cuidado, para nao soltar as capas e nao perder algum papel que pode ha­
ver entre as folhas."
"Va com calma, Emilio. Eu cuido da porta", falou Bruno.
Nao era hora para deleites, mas alguns volumes tinham titulos fas­
cinantes. Eu ia recolhendo, com mao tremula, tesouros como urn De Ani­
ma, de Aristoteles, 0 Compendium Metaphysices de Avicennas, Divisio­
nes de Boecio, Historia Calamitatum de Abelardus, Summa Logicae de
Ockham. Dois outros livros eram particularmente importantes no caso
de Lutercio: duas tradu~6es de Leonardo Bruni, 0 Aretino: a Politica de
Aristoteles e 0 Gorgias de Platao. Eram mais uma prova da rela~ao entre
Bruni e Lutercio. Havia ainda De Ideis, de Wielef, Paradoxa de Cicero e
a Isagoge de Porfirio. Abelardo ajeitava os volumes na sacola como se fos­
sem pe~as de cristal.
"Abram, seus egoistas!" Era Lorenzo for~ando a porta. Abelardo
abriu. "Estamos livres do arquiteto. Abelardo, parabens pelo truque. 0

30 3
arquiteto parece ter pavor de ratos. Nao pisani tao cedo nesta villa. Dei­
xem-me ver essa mma. . "

"Ja esta quase tudo na sacola", expliquei. "De uma olhada."


"Posso terminar 0 trabalho? Quero ter a honra de achar alguma coi­
sa por aqui. Vejamos. Aqui esta 0 Paschale Carmen de Sedulio, 0 De Ge­
neratione de Aristote1es e uma especie de estojo de madeira em forma de
livro. A tampa imita a capa de urn volume. Abra Emilio. Com cuidado!"
Eu senti medo. Abri com de1icadeza. Dentro havia urn bilhete do­
brado ao meio. Era escrito em italiano, com letra arredondada e bern cla­
ra. Letra de mulher, pensei. Algo me dizia que havia tristeza naquele pa­
pel. Pedi a Abe1ardo que 0 lesse. Ele ,ajeitou os oculos e come~ou a ler
com voz firme, mas baixou 0 tom, logo nas primeiras linhas:

"Meu amado, estamos em perigo. Quando chegares de Asti esta noi­


te, procura Eugenia. Ela te explicara tudo. Philipe descobriu tudo sobre
nos. Hoje, na biblioteca, estava enlouquecido, amea~ou-me com 0 pu­
nhal e atacou ate os nossos nomes na parede. Eugenia soube, de sua ca­
mareira, que aque1e ataque dos des de Philipe nao foi urn acaso. Nossa
sorte foi que 0 marido de1a passou por la enos salvou. Aqueles des ja
mataram duas pessoas, inimigas de Philipe. Ele jurou vingar-se de nos
dois. Eu te suplico, nao vas encontrar-me junto ao moinho amanha. Lo­
go que chegares procura Eugenia, pelo amor de Deus. Ela sabe de tudo
e te dira 0 que fazer. Destroi este bilhete assim que 0 leres. Tens todo 0
meu amor. Victoria."

As maos de Abe1ardo tremiam, quando e1e dobrou <'> bilhete e 0 re­


colocou no estojo. Fechou docemente a tampa e, sem dar-se conta, aca­
riciou-a, comovido.
Lorenzo desceu da tribuna e sentou-se num degrau, sem dizer nada.
Bruno olhava para 0 chao, co~ando 0 queixo. Eu estava chocado. A con­
clusao era dolorosa.
"Nao, nao e possive!!", disse alguem.
Na minha mente se formou, muito clara, a frase final do Commen­
tarium: "... aque1es des malditos de Arquelau".
"Ele nao leu 0 bilhete! Ele foi encontra-Ia no vale, la embaixo, e os
des de Filipe os mataram. Meu Deus!" Lorenzo estava revoltado. "0
recado esta ai. Se ele tivesse lido, teria destruido 0 bilhete. Ele nao leu. E
caminhou para a morte esperando encontrar... 0 amor."
"Imagine 0 desespero de Eugenia, que poderia salva-los, se Lutercio
a tivesse procurado", comentou Bruno, desconsolado.
Entao, era isso 0 que a cronica das clarissas chamava "morte tris­
tissima" de Lutercio e de Vict6ria. Dilacerados pelos des! Como Euri­
pides. Agora parecia mais plausivel que Eugenia tivesse demitido todos
os servos, menos a fiel camareira e seu marido pedreiro, os unicos con­
fiaveis. A contradi~ao da cronica ficava clara, agora. S6 a idealiza~ao da
cronista, Soror Gliceria, entenderia 0 recolhimento de Eugenia como urn
retiro espiritual para imitar Sao Francisco. A conversao dela aos ideais
franciscanos ocorrera bern mais tarde, segundo a pr6pria cronica. Fora
posterior a constru~ao do mosteiro. Ela dispensou os criados e se tran­
cou com a fidelissima Lucilia e 0 marido desta, Bernardo, nao para me­
ditar e pedir luzes ao ceu, mas para organizar 0 abandono da villa, con­
vertida em fonte de tristeza. Bernardo, ferreiro e pedreiro, deve ter leva­
do semanas para forjar os portoes de ferro que guardariam 0 teatro e a
capela. E para emparedar a tribuna. Eugenia sabia que ela guardava se­
gredos: 0 bilhete de Victoria nao deixava duvidas. Mas ela nao sabia 0
modo de abrir 0 al~apao. S6 os dois amantes 0 conheciam. Entao, s6 lhe
restou urn recurso, para proteger os segredos dos que amara: emparedar
a tribuna. Segundo a cronica de Soror Gliceria, 0 recolhimento de Eu­
genia no palacio fora de quarenta dias. Era mais uma idealiza~ao, litur­
gica. 0 periodo devia ter sido maior, 0 necessario para desmontar tudo,
mandar libri e scritti a Messer Marcello, construir os portoes de ferro e os
de madeira, na capela e no teatro, emparedar a tribuna, encaminhar a ven­
da da mansao etc. Ali estava outra incoerencia das notizie de Soror Ma­
ria Gliceria. Agora as ideias se encaixavam. Senti urn certo alivio. Mas al­
guma coisa ainda estava obscura.
Lorenzo voltara ao al~apao, "Vejam s6, outra obra de Ockham, Cen­
tiloquium Theologicum". Passou mais tres volumes a Abelardo. "Veja­
mos... Acho que nao ha mais nada. Venham ver. Eu preciso ir abibliote­
ca: tenho que desenhar 0 rosto de Eugenia, para Soror Veronica. Vou lem­
brar os tempos em que retratava velhotas americanas em piazza N avona."
Bruno foi ate 0 dossel, olhou tudo, compenetrado, tateou em cada
canto. "Recolhemos tudo. Posso fechar?"
Nao houve obje~6es. Ele retirou a jaqueta de Lorenzo e deixou a
tampa cairo Pensei que iria testar seu "metodo" de abertura. Mas, nao.
Nao havia motivo. Pensei na fugacidade das descobertas, do saber. As
descobertas envelhecem, os metodos nao. 0 CUM PECTET, segredo de Lu­
tercio e Victoria, perdera 0 sentido, mas 0 mecanismo do al~apao sobre­
vivia. Provavelmente, obra do mestre ferreiro, Bernardo Muratore. Foi
impossivel nao pensar na tristeza dele ao ter que emparedar sua cria~ao.
Mas ele pode mostrar seu talento, apos deixar a villa. No mosteiro, dizia
a cronica, Bernardo deixara "muitos trabalhos de ferro e de pedra" e "ti­
nha fixado (jissato) os vitrais". Os vitrais. Havia algo inexplicado neles.
o verbo "fixar" podia significar "instalar", "afirmar" ou "montar". Ber­
nardo era 0 fabbro, incumbido de tudo isso. Alem da instala~ao, ele teria
executado a montagem dos vitrais, seguindo desenhos da abadessa. Isso
tambem estava claro na cronica. Nosso caro Bernardo entendia tambern
de vitrais. Lembrei os dois da capela! As pe~as do gama e do lambda eram
contornadas por filetes de chumbo mais grossos. Eram posti~as, entao!
Postas ali, quando os vitrais ja estavam colocados nas janelas da abside!
Trabalho de especialista. Provavelmente dele mesmo. Ele tinha modifica­
do os vitrais. Caprichos artisticos de Eugenia, nos tempos felizes da villa?
Isabella me daria a resposta. Ela chegou suada, voltando do vale do
moinho. Quando viu a sacola, abra~ou Bruno. "Parabens. Eu sabia que
voce conseguiria." Ele mencionou alguns dos livros e contou 0 conteu­
do triste do bilhete. Ela se comoveu: "E isso! Entao, e isso".
"Enquanto nos sofremos, torrando adrenalina e Bruno queimando
neuronios, voce passeia, lepida, pelos bosques", foi a queixa de Abelardo,
tentando alegra-la.
"Nao. Eu estava trabalhando... investigando."
"Borboletas, suponho", provocou Lorenzo.
Ela the deu urn sorriso triste e explicou, meio contrariada: "Como
aquela cronica do mosteiro de Asti falava de 'morte tristissima'.do car­
deal, e de Victoria, fui pesquisar e achei urn texto do seicento sobre varios
cardeais do norte. Sobre 0 nosso Luis III, pelo que eu lembro, diz que,
apos 0 Concilio, 'afastou-se da reta doutrina de Pedro e, antes de voltar
ao seio misericordioso da Santa Igreja, encontrou a morte, atacado por
animais ferozes junto atorrente de Santa Maria della Spina'. Fui procurar
vestigios da sepultura dele, ao longo da torrente. Pois, 0 texto nao deixa

306
duvidas, ele era considerado urn apostata. Motivo suficiente para priva­
10 de sepultura religiosa. Este bilhete acrescenta outro motivo: 0 adulte­
rio, igualmente infamante. As lapides, ao lado do moinho, nada esclare­
cern. Mas alguem deve te-los sepultado, 0 que restou deles, em algum lu­
gar, nas proximidades".
"Eugenia, sem duvida." A frase saltou de minha boca.
"Pobre Eugenia", falou Abelardo, "obrigada a enfrentar, alem des­
sa desgra~a, 0 risco de acusa~ao de heresia, por sepultar urn cardeal apos­
tata e a propria irma, reus de adulterio".
Agora estava claro: 0 perfodo de recolhitnento com os dois criados
fidelfssimos, depois de afastar os demais, tinha servido tambern para isso:
para sepultar clandestinamente os pobres amantes. Bernardo Muratore
tinha sido, mais uma vez, 0 executor e cumplice das decisoes dolorosas
de Eugenia. Era diffcil acreditar que ela nao houvesse deixado qualquer
marca das sepulturas. Mesmo naquela situa~ao de risco, seria diffcil en­
tregar os restos de pessoas amadas ao esquecimento absoluto. Alguma
lapide, alguma inscri~ao deveria ficar para perpetuar a memoria da irma
e de Lutercio. Algo digno de urn espfrito refinado, de uma artista das
cores, apaixonada pelos matizes, os reflexos, as proje~oes de luz, as trans­
parencias... Os vitrais da abside! A ideia me veio como urn grito.
"Os vitrais, Isabella!"
Ela ja tinha safdo. Para a capela. Fui para lao Bruno e Abelardo me se­
guiram. A luz da tarde, forte e oblfqua, atravessava os vitrais e desenha­
va no piso dois tapetes de manchas coloridas. As posi~oes das cores nos
vitrais ficavam invertidas na proje~ao. 0 gama de pe~as azuis deitava-se
no marmore na forma de urn perfeito Leo lambda se reclinava como urn
majestoso V de manchas amarelas. Isabella estava ajoelhada junto ao V.
Afagou-o e murmurou: "Repousa em paz, minha querida". Depois aca­
riciou as manchas azuis do L na outra laje e beijou-a: "Agora, descansa.
Nos continuaremos a tua luta".
Post scriptum

A tradu~ao do Tractatus, elaborada em quinze dias, foi publicada


menos de urn mes mais tarde, com 0 titulo de TRATADO DA PERVERSIDADE
ECLESIASTICA. Foi distribuida em todo 0 pais, principalmente em Roma,
nas livrarias que circundam 0 Vaticano, durante 0 Concilio ecumenico.
Como tradutor figurava urn obscuro Pietro d'Aillisio. Milao, Anjo Azul,
agosto de 1989. E. D.
SOBRE 0 AUTOR

Recebeu solida formar;ao humanistica dos frades capuchinhos, em Piraci­


caba (SP), onde aprendeu "muito latim, disciplina intelectual, gosto pelos clas­
sicos, amor pelos livros e treino em analise logica da linguagem".
Em 1955, formou-se em filosofia pela USP, na Maria Antonia. Foi aluno
de Cruz Costa, com quem aprendeu, "entre outras coisas, 0 gosto pela historia
das ideias"; de Livio Teixeira, que the ensinou "0 apego aos textos originais, as
fontes primarias da filosofia"; de Gilles Gaston Granger, que "lhe despertou 0
interesse pela epistemologia e pela teoria do conhecimento"; de Claude Lefort,
de quem adquiriu "a consciencia da relatividade historica do conhecimento".
Trabalhou com Fernando de Azevedo, por quatro anos, no antigo Centro
Regional de Pesquisas Educacionais de Sao Paulo, ate 1960, quando passou a
ensinar psicologia na Faculdade de Filosofia de Rio Claro (SP).
Posteriormente, enquanto pesquisava na Italia, foi convidado a lecionar na
Universidade de Milao, e nao pode aceitar 0 convite, porque fora contratado, "a
revelia", para ensinar na recem-criada U niversidade de Brasilia.
Apos 0 cerco militar a universidade, voltou a Italia,onde passou longos
periodos de pesquisa e ensino, principalmente nas Universidades de Milao e Pa­
dua, nos anos 60.
Desde 1967leciona psicologia na Faculdade de Medicina de Ribeirao Pre­
to, USP. Realizou numerosos estudos experimentais sobre aprendizagem, pu­
blicados em revistas consagradas e em dois livros editados na Itilia, Introdu­
zione alio studio del comportamento operante (Ed. 11 Mulino, Bolonha) e L 'ap­
prendimento animale (Ed. Aldo Martello, Milao).
Nos anos 80, dedicou-se a estudos de epistemologia e historia da psico­
logia, pesquisando a trajetoria de conceitos fundamentais desta disciplina. Des­
ses estudos resultaram seus principais livros: Pre-hist6ria do condicionamento,
Ansiedade, Deficiencia mental: da supersti~ao aciencia, Pavlov, e outros. Hi al­
guns anos vern realizando pesquisas sobre a evolur;ao do conceito de loucura.
Delas resultam os ensaios A loucura e as epocas (1994), 0 seculo dos manicomios
(1996) e Os nomes da loucura (1999), lanr;ados pela Editora 34.
Como atividade paralela, "mas nao secundiria", estreou na literatura com
Aqueles caes malditos de Arquelau (1993), que conquistou 0 Premio Jabuti na
categoria Romance, e 0 Premio "Livro do Ano" na categoria Ficr;ao, ambos
outorgados pela Camara Brasileira do Livro em 1994. Ainda como romancis­
ta, lanr;ou 0 manuscrito de Mediavilia (1995) e A lua da verdade (1997), todos
pela Editora 34.

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