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UMA NOVA ALVORADA

PRÓLOGO

Em Belmonte, as noites eram longas e arrastadas, e esta em específico se estendia demorando


mais a dar lugar ao amanhecer. O que não era bom nem ruim, já que de qualquer forma, quando o
primeiro raio de sol marcasse oito da manhã, ele teria que levantar e cumprir seu dever.
Não queria ir. De maneira nenhuma.
Revirou novamente na cama, não que adiantasse. Nenhuma posição era confortável quando se
está em guerra consigo. Era sua mente. Divagou a madrugada inteira entre cenas futuras desenhadas
pela sua ansiedade sofrendo de antecipação e de frio.
O Império de Aestena era gelado. A neve cobria o chão com um grosso manto em mais da
metade do ano, durante esse tempo as pesadas nevascas tornavam raro o momento em que os
habitantes saiam de casa e viviam em conforto com recursos de sobra. Nos demais meses, a neve
derretia e a atmosfera fria era um companheiro fiel e o prazer de ter o sol como amante era uma
sorte para poucos estados do continente.
A província inteira se preparava para a festa, o Dia do Chamado. Todos os homens de vinte
anos chegaram a idade limite, com exceção de filhos únicos, todos eram convocados a se apresentar e
realizar os exames para formalizar o ingresso ou a dispensa. A última opção não lhe cabia, os órfãos
eram obrigados a servir. Perdeu os pais e a irmã mais nova em um ataque de vampiros seis anos atrás,
uma época que os arredores de Belmonte não passavam de uma floresta densa habitada por
vampiros morcegos, uma espécie de vampiros deformada e irracional. Os ataques eram rotineiros,
tornando-se impossível viver nas vilas próximas da floresta, e na décima terceira noite de um inverno
rigoroso, enquanto o filho mais velho da família trabalhava pescando do outro lado do estado, a
pequena vila em que morava foi brutalmente atacada e morta. Na luz alaranjada sumindo no
horizonte marcando a hora de voltar para casa, seus pais e a irmã mais nova completavam a conta de
mortos cobertos com pano branco em uma pilha do que restou de corpos. O cheiro de carne
humana e sangue queimando na fogueira impregnou seu olfato por meses. O massacre levou a
Fraternidade a caçar pela floresta, limpando a região numa contenda por sete dias e posteriormente

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a construir um portão de cedro e prata reforçado com demais minérios de mais de três metros no
caminho principal das criaturas.
Ter uma mente ocupada por pensamentos nebulosos de luto e solidão, só levava a um fim
naquele lugar, e antes que ele pudesse entrar em um limbo de tristeza e deixar essa terra e os poucos
afetos que a vida lhe preservou, Sullivan Windrunner estudou os anos seguintes para ser selecionado
para a divisão dos Exploradores. Qualquer área era melhor que os Caçadores. A divisão de
Exploradores era responsável por estudar as criaturas, encontrar fraquezas, forças, planejar armas e
até estratégias ofensivas. Sullivan queria estudar para compreender sobre quem tanto lutava contra e
por quê. Queria entendê-las, se defender em caso de ataques somente, e não caçar como se fossem
presas inferiores, pelo contrário, o mundo é das criaturas antes mesmo de ser dos homens. Ao que
parece, tudo que a humanidade toca, desmorona.
A Fraternidade Tremerai era uma das três melhores fraternidades de caçadores de todo o
Império de Aesthena, dotada de cavaleiros de elite, melhores armas de fogos e uniformes de
primeira qualidade. Não era à toa que ostentava o símbolo da Orquídea Negra, condecorada pela
realeza apenas as Fraternidades mais nobres. Na mesma linha que os membros da fraternidade eram
privilegiados pela nobreza, eram desafortunados em governança. O comandante de Tremerai era
um carrasco.
Extremamente severo e bruto em seus treinamentos e no modo de comandar, ainda havia outra
peculiaridade única em Tremerai, a cerimônia de formatura. Enquanto todas as fraternidades
festejavam, jantavam e dormiam ganhando um dia de folga, a sobremesa ali era um trote. Os
formandos do ano deveriam sair em uma caçada para trazer aos veteranos uma prova da lealdade à
causa, a cabeça de uma criatura morta. A ideia central dos caçadores por anos foi honrosa, isso
Sullivan compreendia, porém, a honra se perdeu no momento em que a causa em prol da defesa
virou uma caçada a criaturas que viviam em paz nos confins das florestas.
Quando o fraco feixe de luz solar adentrou a janela, o garoto abriu os olhos cansados. Entre
cochilos e espasmos, acordando de um pesadelo e entrando em outro, foi como Sullivan passou a

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última noite em sua cama. A brisa fria entrava pela janela e o céu cinza escuro dizia que era muito
cedo. A total contragosto, ele se levantou para responder o chamado.
Pelas ruas, caçadores recebiam cumprimentos, acenos, gritos de boa sorte, olhares de admiração
e olhares de desejo. A vida boa nas dependências das Fraternidades era invejável, isso ninguém podia
negar, vivendo em Tremerai, uma das mais pobres do Império, já era suficiente para a realidade de
Belmonte. O dinheiro, a boa comida, conforto e camas quentes valiam o esforço. Sullivan tentava
pensar por esse lado sempre que os contras e a possibilidade de não ser um explorador vinham à sua
mente.
Do outro lado da rua, um caçador trajado em seu uniforme compartilhava do mesmo
pensamento, e por isso eram tão amigos. Aquiles Lamar, encostado no portão da Fraternidade,
esperava por Sullivan na companhia de seu pai. Aquiles era uma cópia perfeita e jovem do Sr.
Lamar, o rosto arredondado com o queixo marcado e a barba rala, os lábios grossos e os dentes
largos faziam reluzir ainda mais seu sorriso, olhos da cor de âmbar, o cabelo sempre cortado baixo e
crespo.
Seu pai segurava na única mão a alça da mochila de viagem do filho, um velho caçador
aposentado por invalidez, teve a mão direita amputada e cego do olho direito, ataque de lobisomem.
Uma mão mecânica para alguém como eles, era absurdamente cara e não podia ser paga nem com
um ano de trabalho sem nenhum gasto.
Ali próximo, outras famílias abraçavam garotos uniformizados com manto marrom e outros
civis. Era o dia do chamado e também era o dia em que a divisão de exploração sairia pelos portões
sem previsão de volta.
O caçador limpou as mãos na calça ao avistar Sullivan caminhando em sua direção, os olhos
assustados como um filhote perdido.
— Conseguiu dormir? — Aquiles perguntou com um sorriso solidário e o abraçou apertado.
— Mal fechei os olhos. — respondeu.
— Você vai se acostumar.

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— E se eu não passar? — desfez o abraço apenas para receber outro mais apertado ainda do pai
de Aquiles.
— Garanto que vai. Você é bom rapaz, já te vimos em ação. Só precisa ganhar peso. Muito peso!
— o velho gargalhou e Sullivan riu sem graça, recebendo tapas fortes nas costas como consolo.
Antes que Sullivan pudesse agradecer pelas tentativas de consolo, o sino soou três vezes seguidas
e o enorme portão rangeu alto e começou lentamente a abrir. Lamar puxou o amigo em um abraço
forte e segurou seu rosto, como sempre fazia.
— Quando perceber, o tempo vai ter passado voando. Prometo.
— Se cuida, vou estar te esperando — Sullivan disse de volta engolindo a vontade de chorar.
Aquiles bagunçou seus cabelos e deu um passo para trás batendo continência.
As despedidas espalharam por toda a praça, famílias e casais. Pouco a pouco jovens com suas
mochilas ou trouxas de roupas nas costas, formavam filas e entravam sumindo pelos portões da
fraternidade. Aquiles aguardou até não ter mais a visão do amigo e então respirou relaxando os
ombros, sentiu a mão de seu pai afagar suas costas e se virou para abraçá-lo.
— Volte para a casa — o velho pediu.
— Pode deixar. Até logo, pai.
Uma dúzia de mantos marrons se agruparam próximo ao portão de saída de Belmonte. Era
hora de ir.
Dentro dos portões de Tremerai, garotos — e pouquíssimas garotas carregavam mochilas,
trouxas de roupa e armas, caminhavam em direção à grande mansão, o lugar onde iriam
compartilhar quartos por tempo indeterminado. Sullivan encarou suas mãos vazias, não tinha nada
além de uma mochila pequena com dois livros, um caderno de desenho, um punhal tão simplório
que não chegaria a ferir uma criatura e poucas trocas de roupa. Perto dali, alguns veteranos
treinavam combate, habilmente acertavam alvos com flechas, machados ou facas, lutavam corpo a
corpo ou com espadas. Todos exibiam uma força física notável, e até do lado dos recrutas, Sullivan
se sentia o mais magro e franzino. Sentia vergonha de estar ali, diante da destreza e agressividade
com que lutavam, ele não precisaria de mais de um soco para apagar.
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Em frente a escadaria que levava à entrada, filas desalinhadas se formavam, os jovens
cochichavam uns com os outros. No topo da escada, a farda de alto escalão se destacou junto às
insígnias no peito dele. A farda era preta, o colete de couro, abotoaduras douradas e o manto vinho
balançava com o vento amarrado aos ombros. Jasper Lorde Hellscream, o comandante da
Fraternidade, um homem robusto e atlético com uma cabeleira embaraçada, escura e longa, barba
espessa e uma expressão intensa e falsamente carismática. O caçador mais velho de Belmonte,
cinquenta anos de experiência, o número de criaturas ceifadas pela sua mão nunca foi contabilizado
corretamente, mas era possível observar na sua aparência detalhes que contavam seu histórico, como
dezena de tranças de diversas cores, simbolizando cada cor uma espécie de criatura morta. Em
evidência, uma trança branca no meio das cores vermelhas, a cor de kitsune. O único que conseguiu
esse feito.
O olhar sombrio amparado por uma dose de diversão cintilava para os novatos. Era isso que
Sullivan sempre pensava ao vê-lo. Em qualquer situação, Lorde Hellscream está se divertindo. Ele
sorriu e curvou levemente a cabeça, acenando com o braço no alto.
— Saudações, novatos. Hoje, um novo caminho se inicia na vida de vocês. Treinarão com os
melhores do Império, protegerão as fronteiras e a população, comerão e beberão do melhor, se
assim passarem nos testes. Logo mais, vocês saberão do cronograma, por enquanto, quero apenas
que se instalem e conheçam as dependências, peçam ajuda aos seus veteranos se precisarem. Desejo a
todos uma ótima estadia. Agora a casa é de vocês também.
Ele até parecia simpático com esse discurso.
Em meio a uma salva de palmas, as filas voltaram a se dispersar, novatos encontraram veteranos
conhecidos, outros conversavam entre si e caminhavam subindo a escadaria para se acomodar.
Sullivan permaneceu parado, em pé no meio do pátio, sem ter ninguém à sua espera. Uma hora ou
outra ele teria que interagir com outras pessoas, trabalhar em grupo, manter o coleguismo e boa
vizinhança, tudo o que odiava.
Sendo um dos últimos, subiu a escadaria com a cabeça erguida admirando a estrutura do local,
não podia dizer que era feia. Tremerai era um extenso e alto casarão com um pátio maior ainda,
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janelas compridas que abriam para fora, vitrais coloridos na parte de cima onde em dias de sol um
lindo desenho refletia no chão. As paredes eram toda cor de tijolo vermelho, as portas com detalhes
pretos e madeira lisa reluzindo o banho de verniz, com prata entalhada em desenhos de orquídeas,
espadas, arcos, e também nas maçanetas. Prata nunca era demais, beleza e segurança.
Abriu um leve sorriso brilhando os olhos em admiração, mas não durou muito tempo. Algo
acertou sua cabeça com força, o impacto esbarrou seu corpo contra a pessoa mais próxima,
derrubando os dois no chão.
— Mas que porra! — xingou apertando a palma da mão onde sentia a dor, bem próximo da
orelha.
— Você é azarado, cara! — o outro jovem sentado no chão observava Sullivan enquanto
limpava os braços — Te acertaram com uma bola de couro, você vai ficar com um hematoma.
No chão, Sullivan olhou para os lados buscando a direção de quem o acertou. A bola do
tamanho da palma de sua mão rolou pelos degraus e parou no pé de um veterano que apanhou o
objeto, atrás dele mais uns quatro garotos o acompanhavam.
Alan Wade. Infelizmente era um rosto familiar, dois anos mais velho. Sullivan sempre foi alvo
dele e sua implicância, caçoava do garoto por ser mais reservado e focado nos estudos, sempre tão
magro e com os ossos aparentes, pobre, péssimo em esportes, ter os dentes tortos, ser mimado pelos
professores pela sua dedicação aos estudos… Ele nunca parou com o comportamento em todos os
anos, por que seria diferente agora? Não seria, apenas as circunstâncias seriam diferentes, e como
sempre contra ao Windrunner.
No peito de Alan, a insígnia dos caçadores de elite reluzia imponente, uma orquídea dourada,
ele era da equipe privativa do Lorde Hellscream. Com certeza sairia impune de qualquer reclamação
que o Windrunner pensasse em dizer. Seu uniforme marcava o dorso e os braços fortes, ele era só
alguns centímetros mais alto que Sullivan, mas a largura de seus ombros o deixava maior. O cabelo
pouco abaixo da orelha, jogado para o lado, loiro quase branco, no rosto fino um sorriso esnobe e
nenhum sinal de barba ou manchas de adolescência. “Ricos eram privilegiados até nisso?” Pensou o
recruta.
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— Sullivan Windrrrunneeer, — ele sibilou daquela forma sempre puxando a sílaba final. Alan
achava qualquer pretexto para tentar tirar sarro e tentar uma piada — Até que enfim chegou a sua
vez. A bola pegou em você? — perguntou buscando o olhar de Sullivan. Ele se esforçava para não
chorar de dor ali na frente de todo mundo.
— Pegou de raspão — mentiu. Se apoiou na parede e levantou ajeitando a mochila nas costas.
— Cuidado por onde anda aqui no pátio sempre estão lançando alguma coisa. Atirando, sabe
como é.
— Engraçado, pegou bem em mim com tanta gente — o encarou.
— Minha mira é boa — Alan beijou a bola de couro e sorriu — Bem, boa sorte por aí, põe um
gelo nessa cabeça — deu dois tapinhas no ombro de Sullivan e saiu com seu grupo rindo.
Respirar fundo latejou a cabeça de Sullivan por inteiro. O garoto ao seu lado se levantou e
espreguiçou, e soltando o corpo balançando os braços, estralou o pescoço e apontou para o rosto
dele.
— O que é? — Sullivan questionou bravo.
— Seu nariz. Tá sangrando — o garoto riu — Que primeiro dia, hein. Vou te mostrar onde fica
a enfermaria. Eu sou Ian. Pode me chamar só de Ian — estendeu a mão.
Encarando a mão do garoto, Sullivan notou uma pulseira com um pingente de ouro branco de
duas espadas costurado ao couro. Ele não era um novato, era um caçador formado. Seus olhos
subiram até o rosto do veterano e se espantaram ao ver duas tranças enroladas com detalhes em azul
atrás da orelha dele. A cor dos orcs.
— Sullivan Windrunner — apertou a mão dele
Pelo sorriso largo de Ian, Sullivan havia feito sua primeira amizade em Tremerai.
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Faltavam dez dias para todos os recrutas completarem seu primeiro mês na fraternidade. E
Sullivan já não aguentava mais.

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A primeira fase do treinamento era chamada de Cova dos Leões. Da primeira fase da lua em
que se iniciava até passar todas as fases e retornar a primeira, os calouros passavam por teste de
resistência ao frio e fome, privação de sono e de graça recebiam golpes em várias de corpo para,
como dizia o diretor-treinador da fraternidade, Oscar Mendes, ir criando calos; junto a isso havia os
treinos repetitivos de força e agilidade. Sullivan não aguentava mais pegar peso, apanhar e passar
frio. Homens e mulheres todos juntos, mesmo quando precisavam ficar com suas roupas debaixo,
sendo testados diariamente por dois anos, sem desistência.
Ele definitivamente achava que iria morrer antes de completar dois anos. Era o único dos
recrutas a estar perdendo peso e não ganhando. Os relatórios do seu corpo eram vergonhosos, se
sentia péssimo sempre que precisava passar por uma inspeção na frente do Lorde e do diretor.
Nos circuitos de treinamento, ele sempre caia. E Alan não perdia uma chance de rir da cara
dele. Aliás, não poderia mais chamar Alan pelo primeiro nome, recrutas devem se portar a veteranos
somente pelo sobrenome. Então agora ele era…
— Wade — O garoto alto parou de rir e limpou a boca com as costas da mão — O Lorde está
chamando você na sala dele.
— E você é o novo secretário dele agora? Pelo menos em um lugar você sobe de posição —
Wade se levantou e passou por Sullivan batendo seu ombro no dele.
— Vai se foder.
Óbvio que Sullivan não disse isso, apenas sussurrou quando Wade já estava longe. Sentou no
banco em frente a Ian, era hora do jantar, mas ele não tinha fome. Depois de mastigar e engolir, Ian
pousou o garfo no prato e encarou Sullivan.
— Você deveria dizer isso em voz alta, acho que em algum momento vocês vão ter que resolver
isso.
— Só geraria uma briga no meio do pátio e eu apanharia na frente de todo mundo, sempre
assim. Não acho que funciona.
— Olha, eu não me envolvo porque você me pediu isso — Ian frisou — , mas sabe que não te
deixaria apanhar, né?
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Do outro lado da mesa, Sullivan assentiu em silêncio.
— E vê se come, Sullivan. Não te vejo colocar nada no estômago desde ontem.
Naquela noite, um dos tubos de metal feito para guardar desenhos sumiu do quarto que
Sullivan dividia com Ian. A entrega do trabalho seria dali três luas e mesmo depois de quase pôr o
quarto de ponta cabeça, o caçador não encontrou em nenhum lugar. E realmente não estava ali, um
objeto daquele reluzindo cor dourada era fácil de notar. Se lembrava de ter usado a última vez no
pátio enquanto se concentrava em progredir no seu primeiro desenho de mapa.
Saiu à noite com um lampião dando voltas no pátio, por todo o pátio, até nos estábulos. Foi na
poça de lama que encontrou seus trabalhos e desenhos jogados, sujos e rasgados, intacto apenas o
tubo metálico. Respirou fundo buscando controle, fechou as mãos em punho e imaginando a única
pessoa que poderia ter feito isso. Deixou o lampião no chão e apanhou o objeto nas mãos, se
agarrando à possibilidade de seu trabalho principal estar a salvo preso nos grampos de trilho. E
estava, desenrolando aos poucos, notou a folha amarelada e seus traços feitos a lápis se formando,
mas bem no meio a folha rasgava faltando o restante.
Sullivan enrolou o papel de volta e largou o tubo no chão. Deu meia volta e chutou um balde
vazio aleatório próximo aos fenos. Queria gritar, desejou mais uma vez que aquele alistamento não
fosse obrigatório para ter a chance de desistir. Seu corpo inflamou todo de ódio, ele podia aguentar
outras provocações, mas qualquer ato que interrompesse suas notas era sinônimo de notas baixas e
isso era sinônimo de mais um mês de Cova dos Leões, mais um ano servindo em Tremerai. Ele
podia solicitar transferência, mesmo que significasse ficar longe das únicas pessoas que restaram para
ele, os amigos. Pensaria numa situação depois, agora sua única vontade era entrar de volta no
casarão e acabar com a raça de Alan Wade.
Com as mãos cheias de lama e papel, apanhou o tubo colocando a alça atravessada no tronco e
caminhou pisando forte de volta para o casarão. O peso da porta batendo na parede ao abrir
abruptamente não mudou em nada o ambiente do refeitório. O falatório alto e gargalhadas entre os
mais de duzentos jovens ali dentro era estrondoso, então ninguém reparou em Sullivan atravessando
o salão indo até a mesa do grupo de elite. Quando notaram, já era tarde demais, antes de qualquer
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piada sair da boca de algum deles, o monte de lama e papel na mão direita de Sullivan socou a cara
de Alan Wade.
Tentando evitar a queda iminente, Wade agarrou a toalha de mesa, mas acabou caindo de costas
no chão. Seu prato de comida despencou caindo em seu colo e sujando todo o uniforme de molho
de carne. Um coro de risos e gritaria tomou o pátio, todos adoravam brigas.
— O que você tá fazendo, seu filho da puta? — Wade se levantou partindo para cima de
Sullivan.
A troca de socos pela primeira vez estava de igual para igual, isso animou quem assistia. Sullivan
tinha canalizado toda a sua raiva em força e mirava em acertar qualquer parte do corpo de Wade,
mas num deslize caiu no chão com o corpo de veterano sobre si e uma sequência de socos atingiu
seu rosto até ele ficar tonto.
Uma voz grossa e alta em evidência dispersou a multidão. Algumas mãos puxavam Wade para
um lado e outras puxavam Sullivan o levantando, mesmo desnorteado ele reconheceu que seus
braços eram pegos por Ian. No meio da dupla, o treinador Mendes apareceu gritando ordens de
dispersão e mandando ambos para diretoria.
Quando as batidas na porta interromperam seu descanso, Hellscream esperou alguns segundos
sentado na poltrona reclinada ouvindo o toca discos cantarolar a música até o final e então levantou.
Mendes, acompanhado de Dario, o saudou com uma continência e sem esperar contou
apressadamente o motivo de estar ali.
— Você não pode cuidar de brigas sozinho, Mendes? — esfregou a barba.
— Me desculpe Lorde, mas creio que o senhor deveria falar com eles. Estamos falando de Wade
e Windrunner.
Parte dele continuava sem o menor interesse e a outra precisava ver em que estado o garoto
franzino deixou seu pupilo. O pensamento lhe causou um riso, esse parecia o momento ideal para
sua proposta.
De um lado da sala, sentado no banco de madeira, Wade mordia as cutículas dos dedos em
silêncio e cheio de raiva, metade do seu cabelo loiro estava suja de lama, tinha molho na sua
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sobrancelha e na mão esquerda segurava um saco de gelo no nariz. Do outro lado, Sullivan
mantinha o gelo pressionando o supercílio e encarava a janela com a mente longe, só pensava no
tempo gasto nos seus trabalhos desperdiçados.
Pelas janelas da diretoria, de canto de olho, Sullivan viu três mantos cor de vinho andando
ritmados em direção à porta da sala. O garoto engoliu seco ajeitando a postura, a costela latejando
pelo movimento.
— Porra — xingou esperando o abrir da porta.
— É sua culpa sua — Wade comentou e no mesmo segundo a porta abriu.
Dario Torres entrou primeiro, se abaixando para passar pela porta. Ele era o quarto caçador de
elite, um cara de dois metros de altura, gordo que poderia esmagar uma cabeça com as mãos se
quisesse. E esse era o motivo dele ser o guarda-costas. Sr. Mendes entrou depois, coçando a cabeça,
indo até as janelas e fechando as cortinas. Por último, fechando a porta, Lorde Hellscream
preencheu o espaço com a sua presença como se fosse o maior ali dentro.
As pernas de Wade passaram a balançar com mais ansiedade na presença do Lorde, enquanto
Sullivan só mantinha o olhar na parede, sentindo pela sua visão periférica que o Lorde olhava
fixamente para ele.
— O que diz o código de conduta sobre relações entre os membros de uma fraternidade? — ele
perguntou encostando na mesa de madeira. O silêncio dos dois o fez sorrir — Vamos. Digam em
bom som para eu escutar.
— Conviver, respeitar e proteger os membros da fraternidade — repetiram em um coro nada
sincronizado.
— Ótimo. Jovens e suas brincadeiras idiotas não devem passar de brincadeiras, eu não quero
nenhuma luta fora de treino e combate, estamos entendidos?
O silêncio deles significava concordância. Hellscream estendeu a mão e esperou que o diretor
entregasse a ele o pequeno relatório que fizeram naquelas poucas horas de intervalo entre a briga e a
conversa. O Lorde leu com tédio, tinha mais o que fazer do que resolver desavenças de crianças.

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— Sullivan Windrunner, sem provas concretas além do seu histórico com Alan Wade, você não
tem nada que te impeça de receber uma punição por agressão — ele dobrou o relatório e devolveu
ao diretor Mendes. Wade sorriu vitorioso.
O novato esperava não ter nada a seu favor, ele sabia que não tinha provas, mas valeu a pena ver
Wade caído no chão com lama fétida e comida sujando sua cara. Valeu a pena ver seu olho roxo e
nariz arrebentado porque Wade também tinha uma marca causada por ele agora.
— Alan Wade, sorte sua não ter nenhuma prova contra você ou eu não pensaria duas vezes em
te deixar limpando esterco e rebaixar sua insígnia, você entendeu bem?
— Sim, comandante — Sua voz saiu trêmula.
— Ótimo, pra enfermaria.
Ambos se levantaram no mesmo instante indo em direção à porta, quando Hellscream
interrompeu novamente.
— Você fica recruta.
Ótimo… Ele não escaparia tão fácil. Esperou ver mais um sorriso debochado, mas pelo
contrário Wade saiu da sala bufando como um touro, Sr. Mendes o acompanhou num ritmo mais
calmo, se despedindo e Dario saiu esperando novas ordens.
— Hoje você mostrou um desempenho que não vejo nos treinos. Não vejo você batendo em
ninguém dessa forma no ringue, muito menos participando de nenhuma prova com a mesma
determinação em quebrar os dentes do Wade — disse e posicionou a cadeira na frente do recruta
sentando de pernas cruzadas — O que acontece?
— Eu só cansei de nunca revidar — respondeu prontamente o que ensaiou dizer.
— Certo, isso eu vi. Quero saber por que você não se dedica como caçador. E quero a verdade.
Isso Sullivan não queria responder.
Como diria ao comandante da fraternidade que não queria ser um caçador e que tudo aquilo
era um suicídio em massa e a melhor estratégia seria se defender? Ele não podia dizer tudo isso sem
ouvir um sermão ou levar um bofete na cara, mas podia dizer meia verdade.
— Nunca quis ser um — respondeu baixo.
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Hellscream ficou em silêncio, sem tirar os olhos dele. Sullivan mantinha o olhar baixo para não
ter que encarar a imensidão escura que eram os olhos do Lorde.
— E o que você quer ser, Windrunner?
— Não sei… Qualquer outra coisa. Um civil.
O Lorde riu soprado. Sullivan tinha plena consciência que no seu caso aquilo era impossível.
Usar dos órfãos era o meio mais eficaz atualmente de evitar uma superlotação de pobres e sem tetos
nas ruas.
— Explorador — respondeu.
— Explorador? Por quê?
— Bem, eu… Gosto de desenhar e é talvez a única coisa que sei fazer direito, posso contribuir
com isso, aprimorar os desenhos das criaturas, mapas, quero…sair dos portões. Quero provas de que
a defesa é melhor do que atacar. É a minha teoria.
Nada disso era verdade, também nem totalmente mentira. Mas o que ele realmente queria era
estudar o suficiente para provar que nem todas as criaturas atacam por conta própria, elas são
racionais. Queria dizer que seus pais morreram naquele ataque enorme após um vampiro ser morto
e exposto na praça, era a primeira vez que traziam um vampiro na forma mais humana que os olhos
conheciam e isso causou uma revolta nos vampiros. Eles vieram jantar em Belmonte dias depois.
— Não concordo com o que você pensa — comentou o Lorde sincero e então se levantou
passando a caminhar pela sala — Sullivan, é preciso ter preparação para ser um explorador tanto
quanto para ser caçador. Você sai dos portões com mais frequência do que um caçador, você chega
perto de criaturas, estuda, coloca a mão nelas, precisa entender como elas são e agem. Sabe, tem uma
coisa que eu gosto em você… Raiva.
O novato só percebeu como ele estava perto quando a mão calejada e cheia de anéis apertou seu
ombro e deslizou a palma da mão pelo meio das suas costas até a sua lombar.
— Você está canalizando do jeito errado — parou na frente dele e esticou a ponta do dedo para
tocar a sobrancelha cortada precisando de pontos. Sullivan esperou um toque rude, mas pelo
contrário foi delicado — Não vejo perfil para você ser um explorador.
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— Mas eu posso ser — respondeu de prontidão.
— Me prova.
O Lorde encarou os olhos cinza do garoto profundamente. Estavam muito próximos e a aura
de Hellscream exalava algo além de intimidar.
— Vou te observar de perto e daqui a dois anos conversamos disso. Vá limpar esse rosto — ele
limpou com o polegar o sangue da testa dele com delicadeza — Tá dispensado por enquanto,
garoto.
Por enquanto.
Essa palavra dançou sapateado na sua mente o resto do dia. Assim como as suas questões de
vida, elas já faziam presença naturalmente, mas hoje gritavam. O que ele poderia fazer? Ser
propositalmente um péssimo caçador e ser dispensado, voltar a sociedade e continuar na vida
miserável, trabalhando para fazendeiros e ferreiros que pagam pouco, tendo mais dias de passar
fome e frio do que o inverso. Ou permanecer ali dentro, a extremo contragosto, querendo ou não,
ele tinha conforto, comida farta e boa. Precisava escolher o que menos pior e reagir.
No fundo, não era nenhuma escolha, não tinha liberdade nenhuma e por isso, Sullivan torceria
para morrer na primeira missão que fosse fora dos portões.

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CAPÍTULO 1: COMBATE FINAL

O calendário lunar marcava o fim da época de nevasca, o que consequentemente também


significava que já faziam dois anos desde o primeiro dia de Sullivan Windrunner e centenas de
novatos ingressarem na Fraternidade Tremerai. Dois anos suportando Wade e companhia. O
segundo ano seria decisivo, as provas teóricas não existiam mais, era hora de vivenciar tudo o que
estudaram, todas as histórias que ouviram. A cada ciclo lunar os recrutas saem pelos portões para
lutar contra criaturas propositalmente colocadas ali, em sua maioria orcs, eram os mais fáceis de
capturar e usar nos treinos. Era em uma dessas missões exteriores que Sullivan esperava morrer.
Como esperado, nada do que ele quis saiu como planejado, isso se quer chegou perto de
acontecer. Encarando o estrado da cama, ele acordou por mais um dia, se levantou tomando
cuidado para não bater a cabeça no beliche como era frequente e pegando a toalha pendurada na
porta, saiu em direção ao vestiário.
A claridade da manhã entrava pelas janelas da mansão. Pelos corredores, vários garotos
conversavam, trocavam de roupa, outros aguardavam na fila da inspeção mensal. Demorou um bom
tempo no banho só pensando, o dia seria longo, era o último dia de treinamento, exames finais
teóricos e práticos e a decisão de qual seria sua repartição de agora em diante seriam comunicados
hoje. E hoje também encerrava todos os treinamentos particulares com o comandante Hellscream.
A briga com Wade no pátio acabou sendo um divisor de águas. Sullivan tomou a decisão de se
esforçar para continuar no exército por sobrevivência e o Lorde viu nele algo que Sullivan odiava
ouvir. Potencial. Potencial para se tornar um dos melhores caçadores e ser o sexto membro de sua
equipe. Essa ideia assombrou todas as noites do garoto, já não bastava decidir servir pela
comodidade, ainda seria como caçador de elite e ao lado de Lorde Hellscream. Isso já era demais.
Durante os anos, Hellscream provou ainda mais nos treinos particulares sua fama em ser
exigente e bruto. O corpo do recruta chegou a limites que ele não sabia que tinha, o que foi
doloroso, mas também surpreendente e até animador. Não podia negar que a satisfação de concluir

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os testes não mexiam com sua auto estima. Ainda mais quando era elogiado e apoiado pelo Lorde, a
cara de ódio de Wade era impagável.
A convivência com Wade era uma perda de sanidade mental. Junto dos gêmeos gigantes Dario e
Romeo, e Timóteo, eram quatro na sua cola quando Hellscream não estava olhando. E quatro
contra um, não havia treino que o deixasse ágil assim em pouco tempo. Mas tinha alguém.
Ciera Nabei, a única garota do grupo, a segunda caçadora de elite de Tremerai e membro da
artilharia de exploração. Linda. Seu cabelo trançado rasteiro azul escuro era inconfundível,
ressaltando na pele cor marrom frio. Muitos calouros pensavam que a cor era por causa dos orcs,
mas era só estética. E ela gostava que pensassem assim.
Ela ensinou tudo o que podia e sabia sobre a divisão de exploradores, mapas e sobrevivência na
floresta. Viraram amigos rapidamente e tinham muito em comum, como odiar Alan Wade.
Esses dois anos, Sullivan treinou o dobro da maioria dos recrutas e ficou visível a mudança no
seu físico. Ao subir pela última vez como recruta naquela jornada na balança do enfermeiro, se
surpreendeu com mais um quilo ganho. De frente para o espelho, algum lugar na memória de
Sullivan recordava o quão pálido, magro e raquítico ele chegou ali. Seu rosto era de uma serenidade
invejável apesar de tudo, a pele exibia suaves marcas de noites mal dormidas, seu rosto não era
marcado como a maioria dos garotos da sua idade, porém hoje dois anos depois, ele aparentava estar
mais másculo. É o que sua mãe diria.
O maxilar levemente arredondado, o nariz grande e as sobrancelhas cheias e compridas eram
características adquiridas de seu pai e os olhos acinzentados, não eram de fato dessa cor, e sim
porque eram vazios e opacos, sua característica materna. A verdadeira cor era castanho com um
singelo tom de verde, mas o caçador nunca reparou nisso.
O enfermeiro vestido de azul claro cutucou seu ombro trazendo sua atenção de volta ao
presente e esticou a fita métrica.
— Pra que isso? — Foi virado de costas a contra gosto.
— Está anotado na sua ficha que você precisa de uniformes novos — o homem explicou.

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— Já desfiz a barra da calça — respondeu escutando o som da caneta escrevendo na ficha presa a
prancheta.
— Você cresceu seis centímetros, isso não basta, e não precisa fazer isso aqui, pode requisitar
novo uniforme quando precisar, mas esse, na verdade, é para a cerimônia.
Ele esqueceu desses dois fatos.
O primeiro, podia requisitar roupas, podia requisitar tudo que precisasse, não era mais pobre
ainda que o jeito de pensar não saísse dele. Contanto que continuasse a servir ao estado, ele teria de
tudo. E o segundo, era noite do trote de formatura.
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Há quem odiava as tarefas que envolvessem o estábulo, o cheiro de bosta de cavalo não era nada
agradável, mas Sullivan preferia ser escolhido para lavar os animais. O local afastado era perfeito para
trocar conversas que não podiam ser ditas no refeitório.
— Ele vai te chamar pra equipe de elite — Ian afirmou escovando um dos animais.
— Com certeza, vai. E olha, a última vez que ele investiu em alguém assim, foi em mim — Ciera
jogou as tranças de lado com um sorriso presunçoso no rosto — Tenho propriedade para afirmar.
— Eu não entendo. Por que você não tá lá? — Sullivan se virou para Ian — Você é muito
melhor que eu, muito melhor que o Wade, ele sabe disso!
— Não discuto o que o Hellscream usa de critério e sinceramente — Ian riu — eu prefiro não
ser escolhido, mas se me permite opinar, Hellscream prefere que eu fique com os outros e os proteja,
justamente por ser bom no que faço. Pensa por esse lado, é bom pra vocês. Merecem os privilégios
que um caçador de elite tem, mas… é fato que ninguém merece ser subordinado direto e pessoal do
Lorde.
— Posso te assegurar que tem dias que não são tão ruins, ele só… cobra mais de quem tá na
equipe dele, temos que ser perfeitos. Fazemos caçadas semanais, é cansativo, mas no final do dia… —
Ciera suspirou — eu tenho um quarto só pra mim, comida e água quente e para pessoas que vêem
de onde a gente vem, principalmente para alguém como eu, isso vale muito.
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Sullivan concordou em silêncio e jogou a escova dentro do balde, ia expor sobre como era
injusto quando o chão começou a tremer. Os baldes e ferraduras no alto balançaram, mas não
caíram, tudo ali era feito para permanecer intacto a abertura dos portões.
Do lado de fora de Tremerai, o grande portão que separava Belmonte da Floresta do Pavor
abriu. Pelo menos dez cavalos passaram por ele trotando trazendo os caçadores de mantos marrons
de volta. Era o grupo de exploração. Sullivan largou tudo no estábulo e correu até o pátio, afoito.
Seis olhos procuravam no meio dos mantos marrons seu melhor amigo. Trazendo pela rédea um
cavalo todo sujo de lama e sangue nos cascos e patas, Aquiles Lamar caminhava na direção do
estábulo.
— Aquiles! — chamou com um sorriso enorme no rosto. Esquecendo-se totalmente das
formalidades.
Correu até o amigo que o recebeu de braços abertos se abraçando com força, ele estava de volta.
Há meses não se viam, Sullivan chegou a pensar que ele se fora, sair dos portões podia ser um eterno
adeus. Aquiles o soltou puxando seu pescoço para prender debaixo do braço, com muito esforço
pela diferença de altura, e bagunçou seus cabelos.
— Desde quando você tem liberdade para me chamar de Aquiles? — brincou entre
gargalhadas e soltou o amigo dando tapinhas em seus ombros — Você tá enorme, Sulli.
— Falar assim só me lembra o quão velho você é. Espera. — O sorriso em seu rosto murchou ao
focar os olhos no rosto do amigo.
Aquiles pigarreou e coçou onde uma agora existia uma cicatriz enorme. Três grandes riscos um
pouco inchados e roxos atravessavam seu rosto vindo do pescoço até o meio da testa, deixando um
deles atravessando bem a sobrancelha, outro desviava para a cabeça deixando uma falha em seu
couro cabeludo. Sullivan segurou o rosto de Aquiles nas mãos, preocupado.
— O que aconteceu com você? Você tá bem? Quando isso aconteceu?
— Ei, calma. Eu tô bem — segurou as mãos do amigo com carinho — Só cheguei perto demais
de um carnívoro. — O novato não se convenceu nem um pouco dessa resposta, sua expressão ficou
mais confusa. — Estava desenhando algumas coisas quando um deles parou perto do rio, de noite.
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Tentei chegar mais perto pra anotar alguns detalhes, eles são… lindos e feios ao mesmo tempo,
sabia? — Aquiles riu e Sullivan balançou a cabeça negativamente — Juro. Mas fiz barulho e ele
tentou me atacar.
— Como afastou ele?
— Usei os sprays de verbena — ele tirou um recipiente metálico com tons de verde que ambos
conheciam bem de onde vinha — Isso é mágico! O Lorde deveria aderir como armamento,
precisava ver como ele saiu correndo.
— Você podia ter morrido.
— É para isso que servem os exploradores — Aquiles deu de ombros e riu, mas sua piada não
fez efeito nenhum no seu melhor amigo — Tô aqui ainda, relaxa. Como seu veterano, posso
ordenar que leve o Coari para a cela dele, dê água e me conta tudo o que aconteceu nos últimos
meses.
Segurando a rédea do cavalo na mão, Sullivan assentiu sorrindo um pouco. Aquiles voltou para
casa, isso bastava por ora e agradecia aos céus pela dádiva. Voltaram aos estábulos, o explorador já era
amigo de Ciera desde seu início em Tremerai, ela foi recruta com ele e por isso podiam deixar
formalidades de lado. Ian entrou um ano depois, Sullivan os apresentou pelos sobrenomes, seria
Lamar e Ironwood por agora, e por pouco tempo.
Após uma tarde inteira de trabalho no estábulo e cuidando dos cavalos que chegaram da
exploração, seus estômagos roncavam de fome. Ciera muito furtiva como um gato, roubou pães de
milho do armário próprio para o grupo de elite e levou para os amigos experimentarem, aquilo com
manteiga era uma delícia. Mal terminaram de comer quando ouviram o treinador Mendes
caminhar pelo pátio balançando os sinos de mão. Era hora dos exames finais práticos.
Hoje, como última modalidade da semana, seria o combate corpo a corpo. Com sua mudança
física drástica, ele sabia que sua luta seria em uma categoria maior de peso, só esperava não cair com
ninguém do mesmo porte que Dario ou algum dos veteranos. Sempre perdia nas lutas corpo a
corpo, continuava meio desajeitado, mas pagar esse mico contra um veterano era sempre pior.

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Nos arredores da ala de treinamento, havia um ringue central e outros menores para treino. O
espaço de pedras e tijolos foi enfeitado com fitas verdes e douradas, orquídeas negras carimbadas nos
tijolos e alguns vasos das verdadeiras flores espalhados pelo recinto. Estava lotado. Tremerai inteira
coube naquele espaço. No ringue central, uma dupla de garotos sem camisa já se atracavam, o
novato com um pedaço de tecido verde no braço e o veterano com uma cor vermelha. Ganhar a luta
era importante para a pontuação das notas e direitos de escolha, Sullivan precisava ganhar para
poder escolher ser um explorador.
Sair dezenas de vezes dos portões em seus treinamentos com os novatos e o grupo de elite, ver
criaturas e o perigo de perto não diminuiu sua vontade de ser explorador, pelo contrário, o mundo
lá fora continuava sendo mais interessante e intrigante do que Belmonte. Ele queria conhecer outros
estados, outras camadas da floresta. E viajar a lazer e compras não era nada acessível para pobres
como ele, diferente da nobreza de Belmonte, dos mercadantes, pobres só viajavam em caso de
doenças.
O som do baque contra o chão chamou sua atenção para a roda, o novato estava imobilizado
no meio de uma chave de braço pelo veterano, iniciaram uma contagem de três segundos e no fim,
ele perdeu. O quadro de pontos exibia a diferença de dez lutas em favor dos veteranos.
A responsabilidade e sua própria expectativa pesaram em seu ombro, Sullivan recuou
caminhando rente a parede do espaço até sentar no banco de descanso, respirava fundo procurando
se concentrar e terminar de enfaixar seus dedos e as mãos. Sentiu uma batida firme em seu ombro
nu e os anéis na sua pele, o Lorde Hellscream abriu um sorriso largo e amarelo afagando os ombros
do novato.
— Pronto para hoje, meu garoto prodígio?
É. Ele chamava Sullivan assim.
— Eu me lembro da minha formatura — continuou nostálgico, sem dar tempo de Sullivan
responder — Trouxe uma vampira para a fraternidade, segurando a cabeça com as minhas mãos
sujas daquele líquido preto nojento, aquilo fede muito.

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O assunto super agradável deixou o novato sem ter o que dizer encarando a faixa branca nos
dedos.
— E então, — o Lorde continuou — ainda quer ser explorador?
— Sim, senhor. — respondeu rapidamente.
— Claro que quer — Seu tom era de total desdém — Não vejo você como um explorador. Os
garotos mais delicados e as garotas que preferem os estudos, você… — ele segurou os ombros de
Sullivan para ficarem frente a frente — Você mudou muito, Windrunner. Seu físico, suas notas, não
é mais aquele garotinho raquítico que chegou aqui. Seu peso dobrou, sua força… Seria perfeito tê-lo
ao meu lado na equipe de caçadores.
— Eu agradeço, mas com todo respeito não acho que aguento a convivência permanente com a
sua equipe.
Ele falou sério, mas o Lorde explodiu numa gargalhada exagerada.
— Foque na Ciera. Você gostou dela, eu vi — Sullivan abriu a boca para protestar e o Lorde
continuou — Quero você na minha equipe. Wade e você são melhores para mim juntos do que
separados.
A respiração de Sullivan empacou na garganta. Ninguém dizia não ao Lorde, ele não aceitava
um não. Era um manipulador de mão-cheia, o Windrunner sabia disso.
Tê-lo ao seu lado… Wade sabe disso? Era o que de fato queria perguntar, mas acenou com a
cabeça positivamente.
— Lorde Hellscream…
— Windrunner!
Uma terceira voz interrompeu a conversa. Era Clint, um dos veteranos da administração, ele era
alto, pele marrom e cabelo raspado, ótimo atirador. Ele era um dos outros garotos que Sullivan se
perguntava porque não eles no seu lugar.
— Desculpe, senhor, não sabia que…
— Tudo bem, Clint — Hellscream sorriu forçado e voltou a olhar para Sullivan — Pense no
que eu disse.
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Deixando os garotos a sós, Sullivan finalmente relaxou. Apoiou as mãos nos joelhos respirando
fundo. Estava certo desde o início, Ian e Nabei também estavam. Ele não conseguiria escapar de não
entrar para o grupo de elite como caçador.
— Você tá legal, cara?
— Tô. Já é minha vez? — virou o rosto para olhá-lo e Clint assentiu.
— Toma, põe bastante — seu tom saiu como um aviso e estendeu mais faixas para enrolar nas
mãos.
— Quem é a minha dupla?
Os poucos segundos de silêncio não foram nada reconfortantes. Sullivan se preparou para tudo,
menos para aquela resposta.
— Sua dupla é o Alan Wade.
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A gritaria dos novatos e veteranos em volta do ringue era ensurdecedora. No meio do ringue,
uma das garotas da administração levantava a placa com o nome dos participantes “Sullivan
Windrunner e Alan Wade”. Sentado no banco na ponta do ringue, Sullivan tinha os ombros
massageados por Ian. Daquele lado, ele conseguia ver na multidão Aquiles e Ciera procurando por
ele com os olhos.
— Você vai se sair bem! Vai lá e dá o seu melhor — o amigo encorajava.
Sem diminuir a amizade de Ian, mas Sullivan queria que Aquiles estivesse ali também, fazendo
piadas e o mantendo para cima. Não podia reclamar, ao menos Aquiles estaria assistindo, o cansaço
da viagem o deixou esgotado, amigo precisava dormir, mas escolheu ficar.
Do outro lado do ringue, Alan Wade conversava com seus amigos apoiado nas cordas, sem
qualquer preocupação visível, ele provavelmente já tinha feito aquilo centenas de vezes, e como
sempre ia acabar com a raça de Sullivan como fez ao longo desses anos. Ele também vai com certeza
dizer dezenas de piadinhas durante a luta…

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— Sua cabeça não para de pensar um segundo? — a voz de Ian interrompeu a enxurrada de
pensamentos — Windrunner — ele o chamou, mas o garoto continuou fitando o outro lado do
ringue.
— Ei, Sullivan — segurou o rosto dele para se olharem — vai ficar tudo bem, tá? Pensando
racionalmente, se você ganhar, vai poder escolher ser explorador, se perder, o Hellscream vai ver o
quão ruim você é e não vai te escolher — Sullivan riu de nervoso e limpou o suor da testa — Viu?
Você só tem a ganhar no final.
— Eu só não queria perder justo para o Wade.
Por isso justamente não queria lutar contra ele, seria pessoal, mais vergonhoso se perdesse.
— Cara, só entra nesse ringue, para de pensar. Foda-se o babaca do Alan e as piadas sem graça
dele. A gente sabe que a posição que ele tem não é por mérito, ele não é tudo isso e o Hellscream
sabe. Vai lá e mostra pro restante de veteranos que andam com ele a verdade. Você consegue acabar
com ele, pensa no dia do pátio.
Maldito dia divisor de águas, foi o que a mente de Sullivan pensou.
A garota passou novamente com a placa com os nomes dos lutadores e o tempo restante para o
início da luta, um minuto. Ian estendeu o protetor para Sullivan colocar na boca e se afastou. Era
hora. A plateia gritava muito mais o nome de Wade, não era nada incentivador. No meio, Wade
sorria antes de encaixar o protetor na boca, pelo menos um bom machucado Sullivan queria deixar
naquela cara pálida em nome dos anos de perturbação.
O sino soou segundos depois. Wade foi quem investiu primeiro, rápido e forte, vários socos
seguidos levando Sullivan a recuar e se proteger. Sua defesa era boa, mas isso não impedia Wade de
vir pra cima dele como um touro enfurecido, e sentir suas costas contra as cordas foi o suficiente
para o treinador afastá-los. 1 a 0.
Limpou o rosto e voltou para o meio do ringue, esperou um momento que a guarda do
oponente ficasse aberta e acertou um soco bem na lateral, na costela, e quando Wade se inclinou
pela dor, Sullivan acertou um soco em seu rosto, derrubando-o de uma vez.
1 a 1.
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A plateia vibrou, surpresa. O Windrunner recuou para que Alan levantasse, esperando. Em sua
boca ele sentia o gosto da ferrugem se acumulando, a vontade de cuspir o sangue. Cambaleando, o
oponente se levantou, Wade investiu contra ele outra vez, acertando seu rosto, o segundo golpe
Sullivan bloqueou e usou o joelho para acertar o peito dele. As costas de Wade bateram contra as
cordas do ringue e isso foi suficiente para que o novato não desperdiçasse tempo em aplicar uma
sequência de golpes, não queria prolongar a luta, queria apenas derrubar Wade logo. Mais algumas
trocas de socos sem deixar ele se defender e uma rasteira o deixaram no chão, mas Sullivan se ergueu
com extrema agilidade, encaixando seu joelho no tronco de Wade seus golpes sangravam a pele do
garoto. O treinador o puxou, 2 a 1.
Levou os braços para cima em comemoração, podia ver o sorriso vitorioso no rosto de Nabei e
Aquiles, eles gritavam e vibravam com a plateia, do banco dos treinadores os gritos encorajadores de
Ian ecoavam em evidência. Parte da multidão estava quase toda a seu favor, o jogo virou. Sullivan
acenou vitorioso para a plateia e encontrou os olhos de Hellscream atentos a luta, a ele.
O treinador Mendes soou o apito e iniciaram a contagem. Precisava de três contagens no chão.
Seria um alívio para Sullivan ganhar aquela luta, não só pela sua posição como formando, mas
por sentir que havia derrubado um de seus traumas e enterraria tudo o que Wade já fez e disse a ele,
mas na segunda contagem, ele levantou. Levantou diferente, como se estivesse renovado, como se a
poucos segundos os golpes no seu rosto não tivessem deixado sua visão turva e baqueada.
Segundo round.
Sullivan não viu quando Wade se recuperou e o chute acertou a boca do seu estômago, apenas
caiu nas cordas. A joelhada pegou bem no seu queixo e seu protetor de mandíbula voou longe. A
sequência de golpes que seguiram, não foi nada empolgante de assistir, cada soco vinha
acompanhado de uma memória de como ele foi e era fraco, cada xingamento, todos os dias que
sentiu um lixo. A plateia animada foi se calando aos poucos, o apito de atenção foi soprado diversas
vezes, mas Wade não parava. Romeo e o treinador retiraram Alan de cima de Sullivan Windrunner
o arrastando para fora do ringue, Ian passou por debaixo das cordas preocupado, acomodando a
cabeça do amigo em seu colo enquanto os paramédicos de plantão entravam no ringue. Como um
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cão raivoso, Wade ainda queria continuar o que já teve fim. No chão o seu oponente estava
desacordado.
1 a 0 do segundo round.

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CAPÍTULO 2: A INSÍGNIA DOS CAÇADORES

Aquiles não saiu da enfermaria desde a entrada de Sullivan no local. As mãos dele continuavam
enfaixadas, agora com curativos e pomadas nas feridas em suas juntas, precisou de dois pontos no
queixo; o inchaço nos dois olhos estava grave, o esquerdo a enfermeira acabava de cobrir com
algodão e gaze, um tampão temporário por conta do supercílio aberto.
— Ele vai acordar não é? — perguntou a enfermeira. A mulher balançou a cabeça
positivamente e cortou o pedaço da fita, finalizando o tampão — Acha que vai desinchar até a noite
de formatura?
Ela enfim olhou para o explorador, notando sua ansiedade.
— Possivelmente, o gelo deve ajudar. E você deveria descansar. — Suas palavras saíram com um
tom automático, sem deixar abertura para mais perguntas, saiu pela cortina bege e fechou a porta.
Sozinho na enfermaria, Aquiles afagou o braço de Sullivan. “Foi só uma surra, você já foi
atacado por um lobisomem” ele conseguia ouvir o amigo dizendo isso. E de fato, a frase foi solta
fora da sua cabeça, virando-se para a porta novamente viu Ciera passar pela cortina e puxar uma
cadeira para sentar.
— Você mal dormiu, Aquiles — ela advertiu.
— Posso dormir depois que ele acordar.
— Você não sabe quando vai ser e para quem acabou de voltar de uma expedição, você deveria
dormir em uma cama e não na poltrona da enfermaria.
Ela tinha razão, sabia que tinha. Sua cabeça latejava de cansaço, as casquinhas da sua ferida no
rosto coçavam e...
— Você precisa de um banho — ela murmurou enrolando uma das tranças no indicador.
— Tá — ele se levantou. Sabia que ela ia soltar argumentos a cada cinco minutos até ele sair dali
— Você vai ficar até fechar, não vai?
— Eu ficaria até ele acordar se pudesse — garantiu. O explorador coçou o couro cabeludo
afastando a cadeira para passar, afagou o ombro da caçadora, saindo do espaço.
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Ciera fechou os olhos com força e soltou o ar dos pulmões. Pouco abaixo do seu ombro, no
primeiro bolso do colete, Hellscream deixou o elixir curativo para ser infundida no soro do
Windrunner. Aquiles podia apenas perguntar para o que era aquilo e nada mais, mas desde que
aquele vidro foi deixado na sua responsabilidade, não se sentia confortável.
Um elixir para acelerar o processo curativo, foi o que Lorde Hellscream disse. A caçadora viu
muitas vezes Wade e Dario aplicarem aquilo na veia, pensou nas primeiras vezes que fosse heroína
ou morfina, era um tabu entre as fraternidades considerando que eram liberadas pela nobreza. Ao
saber da ciência de Hellscream sobre o uso, descartou a possibilidade, ele poderia ser um
comandante bruto e sádico, mas mataria um dos caçadores se soubesse de algum uso de drogas e
trapaças do tipo. Exceto se o elixir for um tipo de droga legalizado por ele no grupo de elite...
Aceleração de cura para Sullivan estar cem por cento no dia da cerimônia, fazia sentido.
A garota tirou o vidro do bolso e o observou na palma da mão enluvada pelo couro marrom,
era de vidro com as extremidades douradas e o líquido esverdeado e brilhante. Ciera retirou a tampa
de silicone e uma agulha grossa se revelou. Mordeu o lábio imaginando a dor da espessura e
levantou da cadeira indo até o soro. Ela sabia administrar, teve meses de aprendizado na ala da
saúde.
— Eu espero que te ajuda — Ciera sussurrou ao garoto como se ele estivesse acordado.
— Cinco minutos.
A voz da enfermeira causou um pulo de susto na caçadora. O frasco deslizou dos seus dedos
para o colchão e rolou espatifando no chão, abaixo da maca. O som do estilhaço gelou a espinha da
garota. Ciera se virou e a enfermeira esperava segurando a cortina.
— Está tudo bem? — a mulher questionou olhando por debaixo da maca a sua frente o que
poderia ter caído.
— Sim! Está, eu… Achei ter ouvido ele me chamar — explicou rápido demais. Acelerada
demais. Seus batimentos cardíacos saltavam do corpo enquanto dava a volta na maca e se ajoelhava
— Só vou pegar minha pulseira que caiu.

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O frasco se partiu no meio, o chão escuro camuflou o líquido tornando-o apenas uma meleca
levemente brilhosa no chão de ardósia. Ciera apanhou o vestígio dos vidros e tampou a agulha,
limpando com a manga da blusa rapidamente o líquido. Os restos do vidro foram para no bolso da
sua calça e a enfermeira trancou a porta assim que ela saiu.
No pátio, debaixo da luz da lua, Ciera agarrou a raiz das tranças puxando os próprios cabelos,
frustrada por sua audição ter trapaceado com ela.
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No escuro da noite , o fogo crepitava na frente da praça, gritos e choros de perda ecoavam um som
horrendo subindo ao céu junto a fumaça densa. Entre as labaredas dançando sob a pira de corpos, ele
viu o corpo pequeno com um vestido azul queimando, e vomitou nos próprios pés. O garoto nunca
contou a ninguém.

Sullivan sempre tinha o mesmo pesadelo.


Sua têmpora latejava e a visão do seu olho esquerdo enxergava apenas um borrão branco. Com
o direito, conseguiu saber pela luz amarela e os sons das vozes conversando que estava na enfermaria.
Ao tentar se levantar, uma mão segurou seu tronco.
— Vai com calma aí. Você não pode se levantar, Sulli — A voz de Aquiles advertiu de modo
cuidado e o deitou novamente, ele sorriu para o amigo segurando firme sua mão — Como tá se
sentindo?
— Péssimo. Eu perdi — Sullivan pousou a mão no olho direito tateando o tampão.
— Você lutou muito bem. Foi ótimo! Wade tomou duas punições por ter te batido mesmo
depois de você desmaiar no final.
Que humilhação, pensou.
— É, e ainda sim sai como ganhador… Agora que perdi, tenho mais ou menos chances de entrar
para os exploradores?

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— Mais, tomara que o Hellscream tenha visto seu desempenho e pensando o quão rápido você
morreria em uma caçada — Aquiles riu alto. Sullivan não resistiu em rir também.
— Babaca. O que aconteceu com meu olho? — perguntou sentindo a gaze na ponta dos dedos.
— Foi um golpe que abriu o supercílio. Você está enxergando normal, mas tem um hematoma
enorme e precisa usar o tampão alguns dias.
— Eu posso levantar daqui? E a formatura?
— Você fica quieto aí, a formatura é hoje a noite e você…
— Hoje! — respirou fundo — Por quanto tempo eu fiquei apagado?
— A noite inteira até agora a tarde. Ele sempre dá um dia de descanso, você passou o seu na
enfermaria.
Perda de tempo, se não tivesse perdido do jeito horroroso que foi usaria seu tempo para treinar.
Lorde não o achava pronto para ser um explorador e ele não se achava pronto para nada. O que os
outros membros de Tremerai estavam pensando dele agora? Era melhor não saber, provavelmente
estava sendo motivo de piada como sempre acontecia nos combates corpo a corpo.
— O Lorde disse que você só vai pra cerimônia se estiver cem por cento — se afastou enquanto
as pernas do amigo passavam para o lado descendo da maca.
— Tô ótimo. Quero sair daqui.
Aquiles não contrariou, o conhecia bem e nada do que falasse iria fazê-lo mudar de ideia.
Ajudou Sullivan a se vestir e refazer os curativos, após uma dose de analgésico recomendada pela
médica, seguiram para o pátio.
Do lado de fora, Ian esperava pelos dois. Todos os novatos espalhados pelo pátio trabalhavam
em suas funções aguardando serem chamados. No centro, Hellscream organizava as canetas
tinteiros, carimbos de cera, fichas de entrada e insígnias para cada grupo: explorador, administração
e caçador.
As oficializações demoravam um dia inteiro. Os três garotos e Ciera Nabei dobravam os
uniformes e organizavam por tamanho enquanto conversavam aleatoriamente. Sullivan falava
pouco, suas mãos formigavam e a cabeça latejava de dor e ansiedade, vez ou outra espreitava o Lorde
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e seus atos, o comandante tratava cada novato de um jeito, indo de dócil a neutro ou rude em
poucos segundos. Até dez segundos atrás, apenas um novato, uma das garotas, foi designado para a
equipe de exploração.
Chamados pelo sobrenome, a letra “W” chegou após as quatro da tarde. Seu nome ressoou no
pátio silencioso, Sullivan Windrunner largou os uniformes na mesa e se dirigiu ao centro do pátio,
atrás dele os amigos sussurravam boa sorte. Mesmo de frente para a mesa organizadora e seu
comandante, seu nervosismo não o deixava notar o desdém no olhar de Hellscream para sua ficha de
inscrição.
— Você pensou no que conversamos, Windrunner?
— Sim, senhor.
— E…? — suspirou entediado, entrelaçando os dedos sob a mesa e examinado com o olhar os
machucados ainda visíveis do garoto.
— Eu continuo decidindo seguir meu desejo de ser um explorador, senhor.
— Isso eu já sei. Quero saber o porquê.
— Por quê? — Sullivan apertou as mãos atrás do corpo tentando conter a irritação crescente ao
falar do assunto — Porque eu acredito que o estudo nos faz enxergar melhor as criaturas e se
preparar para elas, sem precisar atacá-las.
— E isso é o melhor para a população? Se defender. É o que você acha?
— Sim. Sim, senhor. Caçá-las só as tornam mais agressivas aos humanos e vingativas.
— Ah, é? — Hellscream riu cruzando os braços fingindo interesse — Com base em que você
diz isso, Sullivan?
— Base? — mordeu a bochecha por dentro para não expressar demais o aborrecimento —
Minha base são as grandes coincidências que acontecem, ataques após caçadas acontecendo por
espécies resistentes, ataques aleatórios por morcegos, é uma hipótese. — respirou fundo, falhando
totalmente em não demonstrar sua emoção. As palavras escapavam totalmente ríspidas e aceleradas,
seu tom de voz engrossando e alto. Era tarde para reverter. — É assim que se elabora um projeto de
pesquisa, caso não saiba, com uma hipótese. Quero entender se a invasão de novatos no Alaska há
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anos atrás tem ligação com o ataque em massa de morcegos. O que, inclusive, matou toda a minha
família, Lorde Hellscream. Só por isso.
Um tapa foi desferido em seu rosto, tão forte que sua perna fraquejou para trás, o garoto não
sabia se o que encheu sua boca foi saliva ou sangue, nem sequer reparou quando o Lorde se
levantou. Ele foi ofensivo, não era preciso ser nenhum gênio observador para saber que contrair
Hellscream o mínimo que fosse resultaria numa punição. As mãos geladas e cheias de anéis
seguraram o rosto do garoto, virando delicadamente para olhar Sullivan nos olhos.
— Se recomponha. Não ouse me desacatar, moleque — advertiu afagando onde esbofeteou.
O ódio queimava as entranhas de Sullivan.
— O que você está dizendo é baseado em um trauma. Você não tem provas de que essas
criaturas são racionais — inspirou profundo e exagerado, como se a conversa causasse exaustão, e o
puxou pela nuca abraçando seus ombros e afagando seu cabelo. — Você tem muito o que aprender,
Windrunner.
Hellscream podia tocar a ira de Sullivan naquele abraço falso de tão palpável.
O corpo rígido sem retribuir e os punhos cerrados apoiados na madeira da mesa entre eles. Os
pensamentos na cabeça do novato rodavam em torno de atos de agressão e palavras de amaldiçoar,
um banho de sangue no pátio se ele pudesse agir conforme sua vontade. O comandante deu dois
tapinhas no ombro dele e o soltou, a mesma mão que esbofeteou o rosto jovem, alcançou a caneta e
assinou a ficha de Sullivan.
— Não vai aprender o que precisa enfiado em livros, filho. Você está como caçador, na minha
equipe.
As palavras esperadas atingiram seu peito como um golpe de faca seguido de tantos outros, um
nó se formou em sua garganta. Sendo puxado pela gola, Sullivan se apoiou na mesa novamente
enquanto o Lorde fincava em seu peito, duas espadas atravessadas, a insígnia dos caçadores.
Sem dizer nada, apenas curvou o corpo como um subordinado exemplar e saiu dali a passos
largos e rápidos. Seguiu de cabeça erguida, mirado pelos olhares dos outros diretamente para o
estábulo onde seus amigos ficaram, esperando.
32
— Que porra foi aquela? — Ciera foi a primeira a falar.
Sullivan entrou no estábulo ainda em silêncio e esmurrou a madeira de um dos portões. Socos e
chutes de ódio descontados no portão enquanto os amigos pediam que ele parasse. Os cavalos
relinchavam pelo barulho até que Aquiles foi o único a ter coragem de se aproximar da fúria que
atirava objetos no chão e nas paredes, abraçando-o por trás, contendo seus braços. Ian e Ciera
vieram em seguida, um abraço em grupo enquanto as lágrimas de Sullivan molhavam seu uniforme
de couro.

33
CAPÍTULO 3: O TROTE DE FORMATURA

A luz amarelada da lua no céu iluminava o pátio junto a várias fogueiras altas. À frente de uma
delas, Aquiles e Ciera viravam os espetinhos de carne para não queimar, Ian em silêncio
embaralhava as cartas habilidosamente nas mãos enquanto Sullivan cabisbaixo, aguardava o início
do jogo. Sua cabeça baixa olhava para algo em específico, a insígnia. Parecia tão errado, ele nunca se
imaginou com as espada cruzadas cravada no peito, sonhava com a bússola dos exploradores.
— Ei. — Ciera se aproximou com um espetinho de carne de boi entregando a ele, mas foi
recusado, o que ativou seu modo repreensivo — Você tem que comer! Anda! Daqui a pouco você
vai estar saindo pro trote, sua primeira caçada e não comeu nada o dia inteiro!
— Quem sabe eu saio e morro pra um orc —pegou o espeto por obrigação — Não é difícil, já
viram como eu sou bom com combate?
— Credo, Sullivan… — Ian balançou os ombros com calafrio. Aquiles tomou o baralho do colo
dele e cortou, dispondo na mesa.
— Não diz isso. Você é um dos melhores, Sulli. Perder para o Wade não quer dizer nada. Aliás,
foi bem estranho.
— Foi. Ele estava praticamente finalizado no chão. Às vezes eu acho que ele toma algum
suplemento — Ian reforçou a fala de Aquiles. Os dois olharam para Ciera esperando que ela
complementasse com algo.
— N-não olhem pra mim, não sei nada sobre isso.
Mesmo sem vontade, Sullivan mordeu um pedaço da carne, olhou as cartas que recebeu
enquanto repassava a luta em sua mente. Faltavam poucos minutos para o início do trote, os anos
correram diante dos seus olhos e o sentimento de ser um novato ainda era forte.
— Não me sinto pronto pra entrar em conflito com uma criatura, nem sair para uma caçada
sozinho — desabafou.
— A gente nunca tá pronto, isso eu te garanto — Ciera lançou a primeira carta do jogo.

34
Após três rodadas conseguindo distrair a mente e rindo com o grupo, o sino soou marcando o
início dos preparativos para as caçadas. Os novatos deveriam se dirigir ao alojamento, se vestir
adequadamente e pegar armamentos e os veteranos, com exceção a equipe do Lorde, voltavam para
dentro da mansão e não podiam sair até o amanhecer. Ninguém podia ajudar ou dar orientação, os
novatos ficam por conta própria.
No vestiário dentro de seu armário individual, Sullivan trocou suas roupas simples pelo
uniforme base, até trazer a prova, ninguém tinha uma cor definida. O básico era uma calça preta
justa de linho com proteção reforçada na coxa e no joelho, uma camisa de gola alta marrom, a malha
de aço e colete de couro endurecido que cobria o tronco por completo, e por cima uma grossa
manga comprida de lã. No outro armário, sua armadura esperava, única peça que não mudava. O
brilho claro da lua reluzia contra o escuro do aço misturado a kevlar1, além deste as pernas e as
ombreiras eram feitas de metal laminado. Sullivan respirou fundo e parte por parte vestiu o que
seria dali em diante, seu traje mais usado.
Ainda faltava o mais importante.
Nos fundos do estoque, ainda depois dos estábulos, ficava o arsenal, abastecido com os mais
variados tipos de armas brancas, armas de fogo e demais equipamentos. Além de algumas invenções
extravagantes de Gael Gaspar, o estagiário da Srta. Amelia Jones, a armeira-chefe da Fraternidade.
Um garoto mais velho que Sullivan, mas inocente como uma criança, seu cabelo liso era curto e
uma pequena franja caia em sua testa, seu rosto redondo e sério estava sujo de graxa e arranhado. Ele
vestia um macacão verde com dezenas de bolsos lotados de ferramentas por cima de uma cacharrel
duas vezes maior que ele. Gaspar trabalhava concentrado curvado sob a mesa com uma chave de
fenda numa mão e a outra ajudando o zoom dos seus goggles.
Sullivan deu duas batidas no balcão e não foram suficientes para tirar o jovem do transe. De trás
da cortina, Amélia Jones saiu suja de graxa no rosto, uma mulher alta da pele cor de oliva e cabelo
crespo alto e volumoso.

1
Kevlar é uma fibra sintética extremamente resistente e leve, conhecida por suas propriedades de alta resistência à tração e à abrasão.
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— Se você está esperando atendimento do Gaspar, vai mofar aí — a mulher riu apoiando o
braço no balcão — O que deseja, novato?
— Noite de formatura — Jones fez uma careta — Eu preciso de armas e se Gael, digo Gaspar,
tiver algumas invenções novas, eu gostaria de ver.
— Você é um dos poucos malucos com interesse em usar os cacarecos dele.
— São boas invenções, eu acredito que ele tem potencial além de…
— Sei, sei — Jones interrompeu o comentário do caçador e abriu a porta do balcão — Entra aí.
Passando por debaixo do balcão, Sullivan entrou na loja observando as estantes e as armas
amostra antes de chegar na mesa em que Gaspar trabalhava, apoiou as mãos no ombro do amigo
olhando por cima da cabeça dele, os olhos castanhos nem se moveram com a chegada do amigo, a
testa franzida indicava o quão concentrado o garoto estava. Na mesa uma placa enorme, que à
primeira vista parecia metal, era cortada com uma esmerilhadeira pequena faiscando. Gaspar
desligou a máquina e deitou a cabeça para trás, olhando Sullivan de ponta cabeça. O óculos deixava
seus olhos enormes e desfocados na visão do caçador.
— Você nem me viu chegando — Sullivan resmungou.
— Eu vi, só não quis atender — deu de ombros e acabou por levar um peteleco na testa — Aí!
— Deixe a Jones saber que você não atende seus clientes direito — soltou os ombros dele
apoiando o quadril na mesa.
— Você não é cliente, é meu amigo. E ganha tudo de graça!
— Não é de graça, os cidadãos pagam impostos por isso.
— Pagam caríssimo pra vocês usarem aqueles tranqueiras antiquadas sem nenhum estilo e
frágeis — Gaspar estalou a língua e tirou os óculos para enxergar direito.
— Hmmm, é. Então, parece que Hellscream continua negando seus projetos — Sullivan puxou
a cadeira sentando do lado oposto ao amigo.
— Sim. Nada do que eu faço é bom o suficiente para ele investir. Amelia disse para eu esquecer.
O problema não são as minhas invenções e sim ele ser mesquinho e miserável. — o estagiário

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reclinou a cadeira emburrado — Como a fraternidade vive tão quebrada com tanto investimento
vindo da nobreza?
— Eu sei menos dessa resposta do que você — Sullivan segurou nas mãos um dos protótipos de
relógio que datas específicas, como já acontecia em outros lugares do Império de Aestena. O
caçador via de perto como a Fraternidade conseguia ser tão precária e tão requintada ao mesmo
tempo — Ele investe só no que convém a ele.
— Ah, dane-se… — Gaspar deu de ombros — Noite de formatura?
— Infelizmente, sim — Na presença do amigo, o caçador até esqueceu disso.
— Sinto muito, Sullivan. Eu sei o quanto você quer ser explorador.
— De qualquer forma, eu teria que participar da noite de formatura, Gael.
— Mas é diferente, muito. A formatura dos caçadores é bem mais… — coçou o couro cabeludo
procurando palavras — ela é mais…
— Sangrenta, é. Não tem outra palavra — depositou o relógio de volta na mesa. Outro “sinto
muito” foi ouvido pelo mais baixo ao seu lado — Tudo bem. Pelo menos eu tenho vocês para me
ouvir.
O amigo sorriu sabendo se tratar dele e dos outros amigos de Sullivan, agora eram seus também.
— Que coisa mais fofa e… gay.
— Igual a mim.
— Igual a você — disseram juntos. — Ah! Que droga, Sulli! Você não me deixou fazer a piada!
— Palhaço — riu soprado — Eu preciso de armas, o que tem pra mim?
Os olhos do estagiário brilharam de entusiasmo; apresentar as armas forjadas ali era seu
passatempo favorito. Gaspar se apressou, animado, seguindo para os fundos da loja com o amigo o
seguindo. O armazém era amplo e com teto baixo, coberto por telhas de barro e com ventilação
limitada, dependendo de dois grandes ventiladores quadrados de ferro. Nas paredes, diversas armas
em exposição protegidas por um vidro temperado espesso. A oficina irradiava cores douradas,
verdes e prateadas, e tons de vermelho vibrante e roxo destacando-se nos armamentos, todas com
acabamento impecável e meticulosamente trabalhadas a mão. Sullivan admirava profundamente o
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trabalho de seu amigo, valorizando a atenção e cuidado com o funcionamento de todas as armas,
como também o esforço em torná-las esteticamente atrativas.
Na parede esquerda, observou a variedade de armas de fogos, das mais comuns até as mais caras
ou usadas apenas por especialistas. A Ouro 9mm é a pistola mais comum nas fraternidades, outras
como a Circular 7mm, eram armas usadas em ataques, não em rondas ou caças de rotina, seu poder
de fogo podia arrancar um membro ou até a cabeça de um wendigo e um vampiro-morcego, já em
lobisomens e orcs por exemplo, com podia ferir. Com exceção destas, todas as outras armas eram
invenções do Gaspar. Vermelho e dourado, eram sua identidade registrada, o modo como ele
demarcava que aquelas invenções eram dele antes de serem do Império.
Mais a frente, as armas brancas encaixadas na parede chamaram a atenção do caçador, desde
adagas, espadas longas, lâminas curtas, punhais, canivetes, tudo. A parede contrária, invenções
mirabolantes tomavam conta da atenção de qualquer um, nada do que caçadores de Tremerai
estavam acostumados, Sullivan nem mesmo ameaçou tocá-las sem a permissão do aprendiz.
— Nossa, sempre que eu entro aqui fico impressionado — elogiou o amigo.
Na mesa do centro, Gaspar estendia uma malha fina para expor os objetos em cima com
cuidado para não arranhar, por mais que Sullivan sempre dissesse a ele que de uma forma ou outra
quem compra as armas sempre as estraga, Gaspar prefere não saber dessa parte.
— Lindas, né? Uma pena serem usadas para coisas ruins. Vem cá — chamou o amigo puxando
o banco de madeira alto e se sentando, esperando o caçador fazer o mesmo do outro lado da mesa,
continuou.
— Você já conhece o básico, a Ouro 9mm, Prata 44… Então vou te mostrar coisas novas,
aquelas que o Conselho das Fraternidades não gosta. Essa é a minha versão da Circular, uma
Circular Giratória 12mm. Ela suporta quatro balas como a antiga, mas a pressão do vapor sustenta
o impacto dos tiros de 12mm — Sullivan abriu a boca espantado enquanto Gael desmontava a arma
sem balas continuando a explicação — então, você pode atirar quatro vezes, — o estagiário atirou
para o nada com a arma descarregada — abrir para carregar e… — uma fumaça de vapor morno
expeliu da arma — o vapor sai e está pronta pra outra. Outro diferencial, fiz adepta para balas de
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prata pura, lobisomens, sabe? Eles são muito rápidos. É leve, pequena, cabe no seu bolso da frente
do casaco. Essa foi a única invenção minha aprovada pelo conselho, queridinha do Hellscream…
— Já não quero essa — Sullivan murmurou ainda com os olhos vidrados na arma giratória.
— Eu passei a odiar também. Ele mudou várias coisas no projeto, nem parece a arma bonita que
fiz, mas continuando. Rifle JG-38, longo alcance, calibre .38, você pode destravar o apoio dela aqui
e deitar no chão pra ficar melhor.
— Então, ela é mais usada parada?
— Essa versão sim. Hellscream queria algo em que pudessem ficar de tocaia escondidos e mirar
com precisão, vê? — ele mostrou a precisão da mira — Você coloca aqui e puf.
— Cadê a sua versão?
Sorrindo bem-humorado, o estagiário deixou a arma de lado e alcançou outra menor de cor
dourada com desenhos de orquídea entalhados.
— Essa. É a mesma, porém você pode encaixar uma mira e ter mais precisão — ele acoplou
outra parte da arma — e retirar para usar normalmente. E se você apertar aqui… — mais uma lufada
de vapor preencheu a mesa — e recarregar, ela atira duas balas de uma vez.
— É bem mais bonita e pode usar de duas maneiras, eu gostei. Você tem outra de calibre 38?
— Olha, você vai pra noite de formatura, não caçar lobisomens, maaas…
Sullivan deu de ombros rindo. Era melhor prevenir, não?
— Tenho essa. Alt9, calibre 38mm, fácil de recarregar, e se você precisar de um corpo a corpo,
— Apertando um botão azul do lado esquerdo da arma, uma faca de ponta fina e afiada saiu do
cano da arma — isso fica encaixado aqui, não consegui fazer tão grande, mas dá pra dar uma
coronhada, não acha?
— Vou levar essa. Quero algo para matar logo, não quero precisar refazer o teste…
— Frio. Mas entendo. Faria o mesmo — apertou novamente o botão voltando a faca para
dentro da arma e limpou um pouco antes de entregar a Sullivan com um estojo de dez balas —
Armas brancas — estalou a língua se lembrando delas — primordial.

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Deixando Sullivan na mesa em companhia das armas, Gaspar se levantou indo até as armas
brancas e escolhendo as mais comuns e organizando na mesa. Uma adaga de cabo personalizado
chamou a atenção do caçador, segurou ela nas mãos e apertou a ponta com o indicador, era uma
arma bem bonita, o cabo curto trabalhado com o desenho de orquídeas nas cores dourado e prata,
escolheu duas do mesmo modelo. Também pegou um soco-inglês e uma balestra dupla, lançava
duas flechas por tiro.
Seu amigo continuava a explicar sobre as armas brancas e de fogo, mas Sullivan já havia
entendido sobre elas, ele queria as outras coisas… Aquelas que só ele podia saber e que Srta. Jones
preferia manter distância.
— E então? — perguntou guardando as armas escolhidas nos bolsos do colete e na mochila.
— Então o quê? — Gaspar não entendeu.
— Eu sei que você quer me mostrar suas invenções, Gaspar.
— Posso mesmo é? — um meio sorriso travesso apareceu no rosto do estagiário.
— Sabe que po-
— Tá bom! — o interrompeu bruscamente, levantando animado até o outro lado do arsenal.
A parede oposta também era protegida por uma caixa de vidro, a chave dos cadeados ficava
junto do estagiário, pendurada em seu pescoço. Enquanto Gaspar abria as duas partes do vidro,
Sullivan se contentou apenas em apreciar as invenções com os olhos, ele mal sabia o que eram.
Dezenas de invenções diversas, desde armas de fogo até armas brancas, todas mais aprimoradas e
potentes do que as versões originais.
— Tá, vamos lá! Amelia me disse pra mostrar invenções só quando alguém pedir, quiser ouvir,
igual você. Ela chama isso de hiperfoco — o garoto parou a frente do arsenal e retirou um goggles
todo dourado com um cinto para prender atrás da cabeça e orelhas e focinho imitando um animal
— e eu chamo de assunto favorito! Fiz essa máscara noturna, tem orelhinhas e essa aparência
porque Lamar me contou que as criaturas enxergam no escuro, então tentei imitar uma raposa.
Você deve estar se perguntando onde eu consegui as lentes.

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Sullivan riu. Primeiro, porque, na verdade, não estava se perguntando nada. Segundo,
Hellscream mataria Gaspar se descobrisse que o aprendiz está usando criaturas que ele detesta como
uma forma de personalização e design em suas invenções.
— Eu peguei os óculos que a fraternidade jogou no lixão e tirei as lentes, mesmo quebrada deu
pra remendar e fazer novas. Também quero fazer mais com a visão de calor e com as três funções:
zoom, noturna e calor, mais a frente só.
Ao lado das máscaras havia um baú de madeira grande, Sullivan chegou mais perto quando o
amigo andou até lá e abriu a tampa do objeto com a chave em seu pescoço.
— Aqui ficam as minhas bombas. Gás lacrimogêneo, sonífero, boas para orcs e kitsune, só deixa
eles molengas e entorpecidos, não mata. As vermelhas são bombas de verbena, para vampiros. As
verdes, bombas de acônito, para lobisomens. Ambas em doses não letais, mas o suficiente para eles
dormirem por uns dias.
— Espera, espera. Você colocou as ervas aí dentro e fez bombas?!
O caçador não podia acreditar que esse tipo de arma era recusado pela Fraternidade.
— Passei dois anos estudando como as granadas de mãos funcionam para enfim sintetizar as
ervas, agrupei junto de vapor quente e pólvora. Como só precisamos do vapor, fiz a cápsula de
metal, e em duas partes, assim ela abre no meio solta o gás e não estilhaça pedaços.
— E o Lorde não apresentou ao Conselho? — o caçador segurou uma na mão. Para sua
surpresa, era extremamente leve, fácil de carregar.
— Não, ele prefere letais. — respondeu curto. Nada mais importava a Gaspar em seu momento
de glória apresentando suas armas — Fiz esse óculos também, é de zoom, tem orelhinhas…
— Não sabia que você gostava tanto assim das criaturas.
A porta do arsenal abriu bruscamente, assustando os dois jovens entretidos. Um homem alto,
musculoso e careca entrou por ela com um machado na mão. Andrei Jones é a cópia de Amelia, sem
cabelo e enorme, o irmão dois anos mais novo. Sullivan reparou nas tranças com tiras vermelhas e
verde na raiz próximo a nuca dele. Andrei possuía quase o mesmo número de tranças que Dario. Há
anos atrás foi considerado o melhor caçador da Fraternidade e ainda hoje treinava alguns alunos,
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mas depois de ter a perna esquerda arrancada por um vampiro-morcego e andar com uma perna de
pau, nunca mais serviu como caçador. Seu braço direito balançava o machado enquanto o ombro
sustentava uma cesta com lenhas.
— Quando comerem algum amigo de vocês, vamos ver se vão continuar colocando orelhinhas
em óculos.
A boca de Sullivan se abriu como sempre para protestar, mas a mão do amigo em seu ombro o
impediu. Realmente, olhar para alguém que teve a perna arrancada e defender criaturas não era uma
boa ideia.
— Já contei como eu perdi a perna? — Andrei jogou a pilha de lenha dentro do forno e bateu a
porta de metal apertando o grande botão vermelho. Muito vapor quente começou a sair pelo ladrão
e os fornos que fundiam mentais voltaram a trabalhar com mais potência.
— E lá vamos nós… — Gael suspirou e voltou sua atenção a máscara.
— Eu já era caçador há cinco anos, era minha missão oficial para entrar na equipe de elite… —
ele se sentou em um banco de madeira se apoiando na perna de pau, a voz tomando um ar
dramático. Sullivan quis rir por um momento, já escutou aquela história mais de vinte vezes — Do
outro lado da campina lá no Alaska na parte de cima, no Distrito Solar, nosso grupo comia sentado
na grama quando duas asas enormes sobrevoaram as nossas cabeças. Foi tudo muito rápido, eu
derrubei meu pote de sopa! — ele balançou a cabeça negativamente — Acho que as coisas sentiram
o cheiro do veado recém-abatido, ou talvez elas só quisessem brincar com a gente. Mesmo atirando,
elas voavam em cima das nossas cabeças e… quando eu percebi, uma delas fincou a asa na minha
perna e me puxou. Rasgou todo o meu ‘coro da coxa até a canela. O sangue espirrava e eu pensei
que fosse morrer, e então… elas começaram a me abocanhar, precisa ver como elas mastigam rápido.
Eu apaguei depois de gritar tanto e sentir dor. Quando acordei, meu grupo tinha explodido uma
delas e as outras correram. E não tinha sobrado nada da minha perna pra contar a história… Então é
isso, continuem colocando orelhinhas, rabos e olhos brilhantes nessas coisas, até acabarem como eu!
— Você foi para lá fazer o quê? — Sullivan perguntou.

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— Pra lá onde? No Alaska? — Andrei riu se levantando — O que um caçador faz, caçar!
Limpar o continente.
— Hm…
A língua de Sullivan coçava na boca para responder algo contrário e iniciar um debate, mas não
valia a pena gastar a saliva com Andrei, era um homem onde a força era só o que importava e bem,
ele ficou sem uma perna.
— Já acabou? — Gaspar perguntou ao mais velho e ganhou um dedo do meio em resposta — E
fecha a porta quando sair.
Andrei murmurava xingamentos a criaturas e como eles dois iriam se arrepender disso no
futuro. Olhando o pedaço de pau enorme no lugar de uma perna, por um segundo Sullivan
ponderou os argumentos dele. Mas só um segundo.
— Tenho uma última coisa pra mostrar — Gaspar estalou os dedos na frente do rosto dele
chamando sua atenção novamente — Achei no lixão.
— Você ficou maluco! — Sullivan sussurrou espantado — Foi até o lixão sozinho?!
— Xii, fui e tô inteiro, ainda era de dia, relaxa Sullivan. Foca nisso! — O sorriso dele ganhava o
rosto inteiro, era impossível para Gaspar entender a problemática que era sair sozinho dos portões
de Belmonte. O lixão era no Alaska, entre o Distrito dos Morcegos e o Solar, lugar nada seguro.
De dentro de outra caixa, Gaspar mostrou algo que à primeira vista parecia uma boneca. Tinha
pequenos braços e pernas arredondados, o corpo era oval do tamanho de um abacate e a cabeça
maior que o corpo, também oval, lembrava um dirigível com dois círculos. Gaspar apertou um
pequeno botão no topo da cabeça daquele objeto e os olhos de Sullivan congelaram encarando as
duas luzes azuis acesas. Eram as íris de um pequeno robô.
O objeto se moveu sozinho, os bracinhos e pernas como se estivesse se espreguiçando, um som
robótico e até fofo saiu por algum lugar daquele ser. Seu nariz era a cabeça de um parafuso e não
havia nenhuma evidência de boca.
— O-onde… Por-por que você trouxe isso pra cá?! — incrédulo, o caçador questionou
levantando do banco.
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— Queria saber como funciona, só.
— Dizem que eles são perigosos! Você sabe o que dizem sobre a tecnologia de Valindra!! E se
tiver um dono, sei lá.
— Sullivan, — Gaspar estalou a língua e deu de ombros — e daí? O dono dele jogou no lixo e
eu peguei. Não tem nada de mais, eu só queria saber como ele funcionava e bem, já pensou eu
tenho um ajudante agora? Seria muito legal!
— Você é um ajudante, Gael. — O caçador voltou a se aproximar e cutucou levemente a cabeça
do objeto.
— Um dia quero ter minha própria ferraria e ele vai ser meu ajudante — sorriu e acariciou a
cabeça do robozinho, mais sons fofos eram emitidos da criatura. Sullivan não podia acreditar.
— Depois você me mostra mais dessa coisa, eu tenho que ir.
— Eu chamei de Aeri. Gostou?
Sullivan sorriu notando mais uma vez o hiperfoco no assunto favorito do amigo. Se aproximou
e gentilmente o puxou para um abraço apertado.
— Até mais tarde.
— Hm… Aeri-1485, robôs sempre têm nomes com números, sabia? — As mãos do amigo
seguraram o abraço com mais força. — Quero você aqui amanhã.
— Torce por mim.
— Sempre.
Como se o tempo soubesse o quão devagar Sullivan queria que ele passasse, ao sair da oficina o
breu no céu marcava o horário, tornando-a ainda mais sombria. Voltou para a mansão e apanhou
sua mochila, tateou os bolsos do colete para checar se não esqueceu nenhuma arma e correu para se
juntar ao restante dos formandos.
No último lugar da fila, puxando seu cavalo Corvo pela rédea, Sullivan checava mentalmente se
realmente juntou tudo o que precisava, e notou ter esquecido fósforos para a lamparina. Ele era
assim mesmo, sempre esquecendo algo. Próximo ao portão da cidade, Ian, Aquiles e Ciera
esperavam preocupados e sorrindo de modo acolhedor.
44
— Tenha cuidado, lembra que é melhor repetir o trote do que morrer — Ian deu um soquinho
em seu ombro.
— Pegou tudo? Você esquece as coisas com frequência e protege as costelas e a cabeça, lembra
de contar as balas e… — o tom de voz quase paternal de Aquiles fez o caçador sorrir sincero e
abraçá-lo forte.
— Obrigado, Aquiles — o soltou e abraçou Ciera que já esperava de braços abertos e um
sorriso enorme no rosto.
— Nos vemos amanhã, Sulli. Você sabe que consegue.
Ele sabia? Não, mas concordou com a cabeça e soltou o abraço. Ciera saiu de um lado e ele do
outro, ambos montando em seus cavalos para destinos diferentes.
Os portões da cidade abriram, o grande muro tremendo com o som das estacas saindo do chão
e revelando o chão de terra do outro lado. Em volta do muro, a cerca viva de coroa-de-cristo
chacoalhou derrubando alguns flocos de neve no chão. Sullivan suspirou temendo nevar enquanto
estivesse fora.
A linha de frente era formada pelo grupo de elite, Alan Wade e ao lado esquerdo dele, Dario e
Romeu, Ciera Nabei no direito com Timóteo ao seu lado. O grupo era responsável por entrar em
ação caso os novatos precisassem de auxílio emergencial ou se a situação saísse do controle. Os
formandos vinham logo atrás, em ordem aleatória. Alguns riam, gritavam e comemoravam, outros
tremiam de medo ou ansiedade. Sullivan era o último na formação, não sabia descrever ao certo
como se sentia naquele momento, sua mão agarrava forte a rédea de seu cavalo e seu coração batia
forte, um misto de medo e adrenalina. Sua mente era um silêncio de imagens de todas às vezes que
perdeu em um treino ou caiu, que travou ao ver um wendigo, e foram muitas.
Ao passar pelo portão, no último segundo, Sullivan olhou por cima do ombro a enorme
estrutura de ferro se fechar e em seguida o apito soprado por Wade foi ouvido.
Era hora da caça.

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CAPÍTULO 4: A TOCA DA RAPOSA

A imensa Floresta do Pavor se expandia por todo o império até o litoral de Kanzaki, seu nome
transmitia o temor e a apreensão do desconhecido que pairava naquelas terras, sabia-se pelos relatos
da presença de diversas criaturas, vampiros e lobisomens, orcs e wendigos, não somente ataques
comuns e sangrentos, alucinações e perdas de memórias eram os mais frequentes. Poucos sabiam
explicar o que viam lá, a floresta era um enigma.
Era lá que encontravam criaturas perfeitas para primeiras caçadas, no início do perímetro.
A cerimônia duraria uma noite, o prazo para encontrar e matar uma criatura era até o sol nascer
por completo. Os formandos podiam sair da formação quando quisessem adentrar na floresta, e do
grupo Sullivan era o único a não ter entrado na floresta ainda.
— Tudo isso é medo, Windrunner? — a voz debochada e em tom cômico de Wade chegou aos
ouvidos do novato. Sullivan respirou fundo.
— Não achei um local ideal — murmurou uma desculpa qualquer.
— Jura? Caramba se apressa, estamos chegando no final da zona de segurança. — O grupo de
veteranos riu alto e apressou a caminhada dos cavalos.
O caçador teve a impressão de não passar nem metade do caminho, olhou os cavalos dos
veteranos a uma distância considerável de si e desacelerou esperando por Ciera para pedir conselhos,
mas não vinha ninguém atrás, ela não estava ali, resmungou com o vento e puxou as rédeas parando
seu cavalo, adiar o início da caçada era pior, cada minuto seguinte o deixava mais perto do
amanhecer e longe de terminar a prova. Chutou o lado do cavalo e adentrou na floresta sem pensar
muito.
O caminho no chão era úmido e um pouco lamacento, não pior do que o modo como os
galhos se apertavam uns nos outros, dificultando a locomoção, quase como se formassem garras,
impedindo a entrada. Sullivan sabia ler os sinais da natureza, aprendeu com sua mãe, e este era um
aviso claro de manter distância, do porquê a floresta carregava esse nome. Ao sair do emaranhado de

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galhos, se viu dentro do coração dela, livre. As árvores de troncos finos, outras grossas e largas raízes
e as copas lá em cima, o piar de corvos, pássaros, o som do vento falando.
O som de um tiro assustou Sullivan e o cavalo, para alguns a caçada já havia começado. Foi
perto o suficiente para o caçador temer o que poderia estar pelos arredores para usarem uma arma
de fogo logo de primeira. O cavalo voltou a se agitar raspando as patas e relinchando, Corvo não era
um cavalo de caça, era apenas o cavalo que Sullivan escolheu acompanhá-lo na noite de hoje e agora
o novato via que devia escolher os animais por habilidades e não por pelagem bonita.
— Calma, calma… — afagou a crina do animal — Quer saber? Por que você não volta e me
espera na pista? — desceu da sela, ajeitando a mochila nas costas e tirando seu cantil do cinto do
cavalo. Assobiou na forma que o animal foi adestrado para seguir caminho de volta.
Fez uma respiração profunda, liberando o ar suavemente pelos lábios, enquanto observava o
vapor deixar seu corpo sumindo na meia luz da mata. Silêncio. Nenhum sinal de tiros, pássaros ou
mesmo do vento. Mantendo seu corpo imóvel, com os olhos percorreu as árvores e arbustos à sua
frente, a sensação de não estar sozinho arrepiou seu corpo. Precisava agir, era sua obrigação afinal.
Com determinação, retirou a balestra das costas e a segurou firme com as duas mãos, olhando pela
mira em direção ao arbusto suspeito.
Sua concentração no arbusto anulou sua visão periférica, não detectando o movimento vindo
de seu lado direito. Gritos estridentes irromperam o espaço no exato momento em que um wendigo
surgiu ali, segurando um braço em sua boca. O sangue escorria no pescoço esquelético sem pele e
carne da criatura, suas pernas eram maiores que seu corpo corcunda e os braços finos arrastavam no
chão, na face sem olhos centenas de dentes seguravam o braço partido com uma luva na mão, um
caçador. O dedo pressionado no gatilho tremeu, Sullivan não sabia se atirava ou não, e aquele era
um momento inoportuno para indecisões.
A criatura rosnou e correu em sua direção. Ele atirou duas flechas, uma passou reto e a outra
atingiu o braço decepado atravessando a cabeça do wendigo, não surtindo nenhum efeito. O braço
da criatura atingiu o caçador e o arremessou no ar, era como um chute na boca do estômago, a vista

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de Sullivan era um borrão confuso até se chocar contra um tronco de árvore e desabar no chão.
Ótimo primeiro contato… Tossiu e apertou o tronco na tentativa de amenizar a dor.
Indiferente ao caçador, o wendigo continuou a correr para dentro da floresta. Outras vozes
romperam o espaço, novatos. Sullivan reconheceu a voz de alguns deles, gritando para matar o
wendigo, gritando para ajudar Gate, gritando pela equipe dos veteranos. Deitou-se de bruços e
ignorando a dor se arrastou para dentro de uma raiz enorme da árvore mais próxima, escondendo
metade do corpo. Passou os joelhos para dentro e bateu sua cabeça em alguém, ergueu a cabeça
devagar sem saber o que esperar, e apenas se aliviou ao ver uma longa trança azul.
Ciera encostou o indicador na boca pedindo silêncio e voltou a olhar para frente. Dois
veteranos chegaram a cavalo, Romeu carregava na cela um jovem desacordado e Dario mirando com
um rifle.38 na direção do wendigo, atirou. Um grito pavoroso ecoou nas árvores.
— Alguém vai ganhar uma trança nova, uuul — Romeu assoviou e esticou a mão para Dario
cumprimentar.
— Vou nada, não vai dar tempo de pegar a cabeça — Dario recusou o toque na mão — Anda,
vamos levar o garoto para enfermaria. Se é que ele tá vivo…
Os cavalos seguiram para a direção da estrada e o silêncio vazio voltou de repente.
Sullivan examinou a postura de Ciera Nabei, a máscara de visão de calor com orelhas era
familiar, arma na mão, mochila com tubo de desenhos…
— Nabei… O que você…
— Você nem me viu aqui — sussurrou sem olhar para ele — Você tá legal?
— Com medo — respondeu tão sincero que se assustou. Se ajeitou dentro da raiz da árvore e
espreguiçou — Dolorido também. Alguém morreu? Um novato?
— Talvez.
— Isso é normal? — se espantou.
— Infelizmente, não. Ninguém contava com um wendigo desse tamanho aqui hoje, acontece.
— Não deveria usar invenções do Gaspar em caçada — rebateu baixo — Por que está com um
tubo de desenhos? Não devia estar ajudando sua equipe?
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— É, mas não vou. Preciso fazer outras coisas e você — ela finalmente o olhou, o óculos na testa
— Te explico depois. Toma, — ela tirou do bolso uma das granadas de Gaspar e colocou na mão
dele — Se cuida, por favor.
Sua mente trabalhou em respostas agradáveis para lhe dar, mas assimilar tudo aquilo, encarar
Ciera e notar um lápis preso a sua orelha, elaborou outra resposta.
— Você está fazendo um mapa da Floresta do Pavor?
O silêncio era a resposta. Ciera passou a mão pelas tranças, tirou o lápis da orelha e guardou na
mochila.
— Isso é se arriscar demais! Por quê?! — insistiu Sullivan.
— Na verdade, eu pretendo fazer um mapa demarcando como eu chego em Kanzaki…
Luasadena em específico.
A tranquilidade que Ciera tentou passar na resposta não deu nada certo. Sullivan arregalou os
olhos, desacreditado.
— O que você quer em Luasadena?! Fica a dias de viagem daqui e dizem que só lobisomens
moram lá.
— Não temos certeza! As pessoas dizem muita coisa, e eu não quero mais ficar aqui em
Belmonte, em Tremerai… — ela respirou — Não quero mais ser exploradora, nem caçar. Quero…
viver tranquilamente, Sullivan.
Não era novidade que alguns cidadãos planejavam sair de Belmonte. A frustração com a
qualidade de vida, com as inúmeras vidas levadas pela Fraternidade, paz não era algo encontrado por
aqui. Existem dezenas de Fraternidades pelo Império, mas viver em Belmonte sempre foi mais
precário.
— Achei que você estava se escondendo do wendigo… — Sullivan riu baixo e Ciera
acompanhou.
— Algumas coisas se tornam menos assustadoras quando se convive com Lorde Hellscream.
Não tenho interesse em saber o que ele faria se descobrisse que escapo toda a caçada para tentar

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fugir. — Antes que Sullivan pudesse responder, a caçadora se ajoelhou e verificou a área em volta,
estava limpa finalmente. — Vou continuar daqui…
— Aonde vai? — a interrompeu.
— Continuar mapeando a área. E você nunca me viu — ela apontou a adaga para ele. Sullivan
revirou os olhos e cutucou a ponta afiada da adaga com o indicador.
— Quero você de volta amanhã cedo. Toma cuidado.
Ciera sorriu satisfeita com a resposta e guardou a adaga, cobriu as tranças com o capuz e saiu da
raiz sorrateira para o lado que o wendigo havia corrido. Sullivan a achava corajosa, e louca, por
mapear a Floresta do Pavor no breu. Ele não entendeu como mapear um lugar sem luz poderia ser
eficaz, mas não refletiu essa questão por muito tempo. Tinha uma cerimônia para finalizar.
Aproveitando a deixa de Ciera, Sullivan voltou correndo para a estrada e assobiou chamando
pelo seu cavalo, iria evitar a caça naquela região e seguir mais próximo de Belmonte. Apenas desejava
não fracassar nesta noite. Assobiou outra vez e mais outra, sem sinal do cavalo. Correu pela estrada,
voltando em direção a Tremerai, quando um dos cavalos rompeu à sua frente. Era Wade, seguido
por Dario e Timóteo.
— Já está considerando voltar, Windrunner? Está cedo! A caçada nem começou. — ele riu e os
amigos riram juntos.
— Você soube que um wendigo arrancou um braço de alguém?
A expressão de Wade revelou que claramente ele não sabia do ocorrido. Seu sorriso morreu nos
cantos da boca por alguns segundos e o rosto virou bruscamente para encarar Dario, que apenas
deu de ombros.
— Hm. Caçadas são assim mesmo, sabe como é. Não tem como ficar de olho em todos os
novatos — estalou a língua.
Era como ouvir Hellscream falando.
— Wade… — Timóteo um dos amigos se pronunciou, mas o punho do caçador erguido o
calou.

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— Enfim, Sullivan você tem uma caçada para continuar. Vou monitorar você por precaução,
não queremos mais nenhuma morte, não é?
— Ai… Só me faltava essa… — murmurando e pisando irritado, Sullivan rumou de volta para a
floresta, Dario e Timóteo seguiram caminho enquanto Wade o mandava esperar. Não tendo
sucesso, o veterano colocou o cavalo na frente do caçador e pulou da sela, visivelmente alterado.
Mesmo não querendo confusão, Sullivan continuou sustentando o olhar dele com a mesma
firmeza.
— Não dê as costas para mim, Windrunner.
— Ah, é. E você é meu comandante agora ou o quê? — Sullivan riu. Não se importava com o
perigo que corria sozinho no meio da mata com Wade, não era pior que um wendigo — Você não
se importa com os novatos, foda-se não é? Parou pra pensar que poderia ser um dos seus amigos!
— Meus amigos estavam comigo — deu de ombros.
— Você é um péssimo líder… — Sullivan revirou os olhos e deu um passo para o lado, mas foi
impedido pelo braço de Wade.
— Só porque o Lorde tá confiante em você seu nariz já empinou? — provocou.
— Não fode, Wade — empurrou o braço dele voltando a caminhar. — Eu não dou a mínima
para o que ele acha de mim. Não pedi nada disso.
O modo como Sullivan era indiferente a todo o tratamento do Lorde deixava Wade incrédulo.
— Você tem o que muitos desejam, Sullivan — o alcançou. Seu olhar era um aviso misturado
com raiva — A atenção do Lorde, seu investimento em você e quer desperdiçar tudo isso se
escondendo atrás de livros e conhecimento?
O caçador parou de andar encostando as costas numa árvore, Sullivan fitou o veterano de cima
a baixo, procurando algo na sua postura que Wade não dizia em palavras.
— Não estou te entendendo. Você fica bravo achando que quero seu lugar e com uma
síndrome ciumenta com o Lorde Hellscream e de repente me encoraja a seguir o treinamento?

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— Para. Espera, de onde você tirou isso?! — As bochechas pálidas de Wade atingiram uma
coloração vermelha — Não tenho ciúmes de nada, nem dele e piorou de você! Eu não gosto de
homem igual você e ele, tá?
— Vai começar, Wade. — Quase fincou as unhas no rosto quando sentiu o tampão no olho e
afastou a mão — Feri seu ego macho?
— E segundo, — Wade fingiu não ouvir — Não é bem te encorajar, mas entenda como um
conselho. Você quer vingar seus pais, eu sei, quer vingar sua irmãzinha. Acredite, ficar do lado do
Lorde vai te dar armas e habilidades suficientes para isso.
Não era nada disso que Sullivan esperava ouvir.
Aquele calor familiar pelo seu corpo voltou a borbulhar, a raiva adormecida despertou, as
palavras de Wade mexendo com sua emoção.
A ideia de obter poder e vingança sutilmente surgia em sua mente como uma erva daninha,
despertando emoções conflitantes. Não era a primeira vez que pensava sobre isso, questionando
suas próprias convicções, o caminho que seguia e o que fazer no futuro. Viu de perto como o
privilégio de ser da equipe de elite abria portas e não fechava nenhuma, mas ele não era assim.
Nunca buscou uma vingança cega pela sua família, não tinha esse ímpeto, focou nos estudos como
uma forma de ninguém viver o que ele sentiu na pele, ou que menos pessoas vivessem o mesmo.
Sabia bem do seu lado agressivo, daquela aura nos seus ombros, não era ingênuo, apenas sabia que
existiam havia vampiros demais no mundo para simplesmente sair matando todos.
— Pensa no que sua família ia querer — Wade continuou.
— Não posso pensar no que meus pais querem porque eles estão mortos, Wade. Mortos! —
Sua voz se elevou. A raiva emergia sorrateira e incontrolável, como na entrega das insígnias.
— Sim, mortos! E você está aqui, fraco, vivendo como um caçador medíocre que quer estudar e
pesquisar quando você pode ir à caçada, salvar inúmeros pais e irmãs! Limpar o Império! — Wade se
aproximou — Sullivan, você não ganha nada explorando o Império, exploradores se defendem e
estudam, você precisa ficar do lado de quem ataca.

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— O que você quer de mim, porra? Por que tá me dizendo essas coisas? — exaltado, Sullivan
usou as palmas das mãos para empurrar Wade. Anos atrás, aquele empurrão se quer surtiria efeito,
mas hoje Wade tropeçou e se apoiou no tronco da árvore para não cair. Surpreso, endireitou o
corpo e limpou os ombros.
— O Lorde quer você ao lado dele, só estou tentando te mostrar.
— Eu não quero que você me mostre nada! Prefiro morrer do que ser um capacho como você é
do Hellscream.
A única resposta de Wade foi acertar um soco em Sullivan.
Ele não era um capacho! E não deixaria que falasse assim dele. Ele era o melhor caçador, o
melhor de Tremerai e o melhor para o Lorde.
Sullivan não esperava pelo soco, se desequilibrou nos próprios pés e agarrou nos galhos
evitando a queda. A palma da mão ardeu, mas suas juntas arderam muito mais devolvendo o soco.
Aquele não era lugar para brigas, mas nenhum dos jovens com nervos à flor da pele ligou para
aquilo no momento. E do mesmo jeito que a discussão começou do nada, se intensificou para uma
troca de socos entre os dois caçadores.
Wade era muito mais forte. Isto Sullivan já sabia, aprendeu das piores formas, não estava
recuperado da última. Seus socos queimavam seus músculos, impedia sua respiração de circular
como deveria, e o deixava cada vez mais debilitado e tonto. Precisava afastá-lo, ou derrubá-lo de vez,
não terminaria a cerimônia nesse ritmo. Ao revidar, Sullivan socou o estômago do veterano com
tanta força que Wade cuspiu sangue no chão lamacento.
— Já chega! — Sullivan limpou o canto da boca — Tenho que terminar isso.
O olhar que sustentava o rosto de Alan Wade ao erguer o tronco, era o mesmo da luta de boxe.
— Alan… Chega — deu um passo para trás. Não havia ninguém ali para separá-los desta vez.
Considerou correr, mas as mãos de Wade lhe agarraram pela camisa, erguendo no alto e
chocando o corpo contra o tronco grosso da árvore. O ar esvaiu do seu peito, a visão turva do único
olho via um borrão e a ânsia de vômito subiu até seu esôfago.
“Não acredito que vou morrer de um jeito tão idiota…” pensou entre um golpe e outro.
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Seu corpo foi arrastado pela lama enquanto seus pés chutavam a terra tentando se soltar. Wade
levou a sério mais essa luta do que dentro do ringue. Sullivan chamou diversas vezes o seu nome
implorando para ser solto.
— Com uma coisa eu posso te ajudar, Sullivan. Você disse que prefere morrer. — Alan Wade
gargalhou pondo o mais fraco de pé na sua frente, segurando a cabeça dele com as duas mãos como
se fosse esmagá-la.
E ele iria.
Talvez fosse.
E talvez tivesse feito, se a voz de Dario não surgisse ao fundo procurando por eles.
— Alan… para — Sullivan sussurrou.
— Boa sorte em continuar a caçada, Sullivan Windrunner — Sangue escorreu dos lábios de
Wade ao sorri e largar o corpo no chão.
Era previsível seu corpo desabar sob o solo lamacento, assistir seu fiel agressor retornar
despreocupadamente ao seu círculo de amigos, como se nada tivesse ocorrido.
Imprevisível era o segundo seguinte, a falta do solo sólido. O vazio.
O corpo de Windrunner despencou como se o tempo estivesse desacelerado. Os braços se
estenderam instintivamente, tentando encontrar um ponto de apoio, mas a lama escorregadia não
oferecia nenhum suporte. A adrenalina e o desespero gritavam em seus batimentos desesperados à
medida que perdia o equilíbrio, deslizando e rolando no lamaçal com cheiro de mato, chuva e
carniça. A visão não passava de borrões da floresta escura girando ao seu redor e o estômago do
caçador embrulhava mais, torcendo, preparando-se para o momento em que parado expulsaria todo
vômito.
E de repente, parou, acertando a costela com força contra uma pedra cheia de musgo. Sullivan
ouviu todo seu sistema digestório funcionar, o jorro veio com força com gosto da carne servida mais
cedo e sangue, nojento. Tendo a certeza de que nada mais sairia de sua boca, limpou com as costas
da mão a boca suja e voltou a se deitar próximo à pedra.

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Por um momento, permaneceu deitado, tentando entender em que estado estava, quase-morto
ou vivo, sentindo-se pesado, sujo, além do literal, e dolorido da surra.
Agora, a floresta falava. Ele ouvia de novo corvos, tiros ao longe e o vento. Pelo breu do céu, o
amanhecer estava longe, seu prazo final distante de acabar. Que noite… Se sobrevivesse, seus amigos
iriam acreditar na sua quase morte ocasionada por Wade? Ser dado como desaparecido e voltar de
manhã não parecia má ideia. O que aconteceria? Levaria uma punição, uma surra? Mais? Seria
expulso? Bem, na verdade, expulsão não seria de fato ruim.
Tempo passou até ele entender que seu estado era vivo. Sem deixar de usar a pedra como apoio,
sentou encostando as costas na pedra e inspirou e expirou várias vezes tentando afastar o pânico
crescente. Sozinho no escuro e possivelmente cercado de criaturas invisíveis aos seus olhos.
Algo suave e relaxante se misturava no ar, uma nota sutilmente doce. Com cuidado, o caçador
apoiou-se na pedra e levantou à sua frente, um emaranhado de copas de árvores obstruía sua visão.
Contrariando o próprio conselho a Ciera, alcançou no fundo da mochila os óculos que Gaspar fez
para enxergar no escuro, ajustou o zoom para distância normal e tocou nas folhas verdes e ovaladas
de textura áspera. As flores em cacho eram pequenas de cor rosa pálido.
Andou para o lado, contornando a árvore e firmando os pés no terreno inclinado. Lá embaixo,
o caçador sentiu a necessidade de tirar os óculos e esfregar os olhos para ter certeza do que estava
vendo.
Era uma pequena casa com o teto coberto por musgo, folhagens secas e flores rosadas iguais à da
árvore. Aproveitando a oportunidade, Sullivan arrancou um pequeno maço de flores e guardou na
mochila, queria levar para Aquiles estudar depois, a madeira também, mas não ia ter tempo para
arrancar um pedaço considerável agora. Com cautela, se abaixou e deslizou sentado pelo mato em
direção à casa.
Observou com curiosidade, tentando entender o que era aquilo — uma casa de orcs pequenos?
Ele tocou uma raiz de árvore e percebeu que não estava fixada no chão e sim colocada ali
intencionalmente, como uma camuflagem. Arrastou derrubando no chão e ficou mais confuso
ainda ao ver uma portinha redonda. Deu dois passos para trás passando os dedos nos cabelos.
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— Não… Vamos voltar — disse em voz alta para si.
Deveria subir novamente aquele barranco e voltar para Belmonte sem nada nas mãos ou
continuar a procura na floresta até o nascer do sol. Queria se convencer de não seguir com aquela
curiosidade, mas seu lado explorador era muito mais forte. Além disso, ele precisava de uma
criatura. Se ali houvesse orcs menores, ele teria o que precisava, trabalho feito.
Parado diante da porta minúscula, ele balançava a perna ansioso, o esforço e o risco valiam a
pena a descoberta. Com cuidado retirou a pistola de Ouro 9mm do coldre e se abaixou,
engatilhando para a entrada.
A porta era de madeira bruta, sem nem ao menos ser lixada e sem maçaneta. Com a ponta da
arma, o caçador empurrou a porta e para sua surpresa, ela abriu sem nenhuma dificuldade. Era leve,
tão leve, e pequena a ponto de Sullivan ter que passar numa posição de quatro apoios. A entrada
aumentava em largura conforme o caçador seguia, era longa e escura, a visão noturna captava o que
parecia lenha e frutas caídas na passagem. Sullivan sentiu algo passar correndo do seu lado, se virou
bruscamente a tempo de ver um vulto sumindo no canto do óculos. Não se moveu ou respirou
brusco, com medo.
Ao avistar o primeiro feixe de luz, Sullivan desacelerou não querendo espantar sua possível caça,
destravou a arma e a manteve próximo do corpo, mas ao chegar numa altura onde conseguia ficar de
pé, seu queixo caiu.
O espaço era bem iluminado, uma lareira grande ao canto da parede com uma passagem de ar
por cima crepitava espalhando uma luz dourada pelo ambiente emanando uma sensação de calor e
aconchego. Não havia outra passagem de ar visível e ainda assim, não era abafado ou sufocante. O
aroma característico do maço de plantas que Sullivan guardou em seu bolso impregnava o ar,
envolvendo-o com notas amenas e reconfortantes.
Manteve a arma engatilhada, o vulto ainda iria aparecer, havia bagunça, lareira recente… Mas a
solidão, o calor, aconchego, cuidado e o cheiro de alimentos, estes misturados a um som alto de
ruídos secos, tornavam aquela casa tão humana. Maternal. A sensação lhe encheu os olhos de
lágrimas involuntariamente, nunca mais sentiu isso após ficar sem sua mãe.
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Um som estranho cortou suas emoções, voltando ao estado de alerta, Sullivan girou o corpo
para os lados, tentando identificar a origem do som, até que seus olhos se fixaram em algo peculiar.
Um chumaço de pelos saía de um cesto de palha, balançando para um lado e para o outro. Não
poderia ser um gato, era peludo demais para um gato, também não era um cachorro.
Sorrateiramente com as sobrancelhas franzidas, se aproximou do cesto esticando a mão para com a
ponta da arma empurrar a tampa do cesto.
Duas criaturinhas emitiram um gritinho fino ao ver a arma de fogo apontada para elas,
tremendo e se escondendo com as patas cobrindo as cabeças em busca de proteção. Sullivan piscou
algumas vezes antes de devagar travar a arma e guardar, numa mistura de incredulidade e emoção,
riu de nervoso. Sua emoção era palpável, aquela visão diante dele era uma verdadeira dádiva, capaz
de tocá-lo profundamente como um admirador de uma raça tão rara. Diante do caçador, dois
filhotes de kitsune se escondiam no cesto de palha.
O primeiro, aquele quem o rabo escapava para fora do cesto, era branco com as patas pretas, era
menor comparado ao outro filhote, o maior tentava cobrir a si e ao outro com as longas patas
alaranjadas em um degradê que acabava no final da cauda com um vermelho ardente. O caçador
estendeu a mão para eles e mais gritinhos de choro foram ouvidos.
— Calma, calma… — disse baixo — Eu não vou machucar vocês, prometo.
Sua voz e palavras não surtiram nenhum efeito nos filhotes, eles apenas se encolheram e
tremeram mais.
— Meu deus, são kitsunes… Eu… Não acredito nisso! — o caçador riu novamente
ajoelhando-se na frente do cesto — Sempre soube que eram lindas, mas é totalmente diferente dos
livros… Oi, pequenos.
No fundo, não eram nada pequenos. A kitsune laranja devia ter noventa centímetros de
comprimento e a outra metade disso. Os tremores do filhote de cor branca diminuíram, devagar o
pequeno saiu de debaixo da proteção do irmão e encarou Sullivan com curiosidade.
— Você é muito fofo — Sullivan queria explodir de felicidade, abraçar aquelas coisinhas, mas se
continha — Deve ser o mais novo, é menor, eu acho.
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O filhote alaranjado olhou diretamente para o caçador pela primeira vez, esticando o pescoço e
cheirando o ar com a ponta do focinho úmido. No momento em que o mais velho se mexeu, outra
cauda vermelha surgiu no cesto, movendo-se lentamente com a outra. Um brilho diferente reluziu
no olhar do caçador, não era só um filhote de kitsune, era uma kitsune de duas caudas!
Se afastando devagar para não causar alarde nos filhotes, sentou no chão e retirou da sua
mochila de caça um caderninho sem pautas contendo muitos de seus desenhos. Com um pedaço de
giz, abriu uma página limpa e começou a rascunhar o que via, tentando ao máximo transmitir
detalhes com fidelidade do que de fato era uma kitsune. Todos aqueles desenhos dos livros da
fraternidade podiam ser esquecidos, elas não eram enormes, parrudas, cheias de dentes e garras e de
uma única cor. Eram vibrantes, elegantes e fortes. Os olhos dos irmãos diferiam, enquanto a kitsune
branca sustentava um castanho chocolate vivo e palpável, o irmão alaranjado tinha heterocromia,
seu olho esquerdo era um tom de chocolate avermelhado e o direito era cintilante azul, claro quase
branco. O caçador anotou para pesquisar se era uma característica ou possível patologia.
Seus dedos trabalhavam rapidamente para captar os traços mais importantes, os detalhes
podiam ser adicionados amanhã cedo, ainda frescos na mente. A raposa branca era a mais curiosa, já
não estava no cesto e sim sentada de frente com o caçador, o rabo balançando e os olhos fixos no
desenho dele.
— Você gostou? — ele virou o caderno mostrando para os dois filhotes. O branquinho emitiu
um som diferente, uma exclamação. Enquanto o outro permanecia sério e encarando Sullivan com
olhar desconfiado, mostrando os dentes de vez em quando — Acho que seu irmão não gostou
muito, mas você gostou.
O pequeno contato causou confiança no caçador e novamente tentou aproximar a mão da
pelagem deles, e dessa vez conseguiu. O filhote branquinho deixava Sullivan acariciar o topo de sua
cabeça entre as orelhas enquanto encarava o desenho intrigado.
— Que macio… Parece um algodão, eu acho — o caçador afastou a mão e anotou no caderno.

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A raposa alaranjada pulou do cesto segurando um pedaço de tecido na boca e passou a cheirar o
ar, rodeando Sullivan até encostar em seu bolso, onde deixou o tecido e se sentou sem tirar os olhos
do caçador.
— Pra mim? Obrigado, eu estou mesmo com frio. — riu de si conversando com criaturas.
Ainda corria risco de a qualquer momento uma abocanhar sua cabeça.
Uma patinha pequena encostou em seu peito, onde ficava sua insígnia de caçador. A pata
branquinha apertava o objeto com insistência.
— Você quer minha insígnia? Ah, eu queria poder te dar, mas não posso. É muito caro e eu
teria que pagar do meu bolso. — Sullivan tirou delicadamente a patinha da raposa, mas em seguida
ela colocou a outra — Vocês moram aqui sozinhos?
A raposa realmente não queria saber de qualquer outra coisa, apenas daquele objeto brilhante e
dourado que o caçador ostentava. O caçador terminou seu desenho e fechou o caderno se
levantando, mas as duas raposinhas o seguraram pela manga puxando pela boca.
— Olha, eu realmente não posso ficar. Eu nem deveria estar aqui e… — olhou para os dentes
segurando sua manga, eram bem afiados para dois filhotes — E vai que vocês querem me comer!
Puxou tecido devagar dos dentes de cada uma e dobrou a manga da camisa.
— Agora, eu vou embora, tá? E não vou contar pra…
Um som de choro tomou o cômodo. Choro fino e contínuo como um filhote de cachorro faz.
— Não, não, não, não chorem! — pediu assustado. Não era bom cuidando de crianças,
quando sua irmã chorava ele devolvia a sua mãe e nada mais. Imagine animais que não entendem
sua língua — Não, não, olha… — tirou um giz do bolso — Querem esse?
A resposta foi mais choro e mais alto.
— Droga, eu não posso dar isso. E se… um dia eu voltar e… brincar com vocês! E aí? — Os
filhotes pararam de chorar e fungaram — Pode ser?
Eles sentaram no chão e o som de choro se tornou o que parecia um riso, era um riso! Como
hienas. Pelo jeito deu certo. Até mesmo suas caudas balançavam.
— Isso é um sinal bom, né? Então, bem… Tô saindo, valeu.
59
Os filhotes riam, riam muito, entretidos com outra coisa, sequer se importavam com a presença
do caçador. Foi um alívio poder sair vivo com uma experiência e descoberta tão mágica, guardou o
giz e o caderno e estendeu a mão para afagar uma última vez os filhotes quando notou que ambos
olhavam com extremo encanto algo atrás dele.
O alívio se foi. O lugar se encheu com a presença tão marcante que nenhum instinto de caçador
pressentiria isso. Sullivan engoliu seco, seus músculos tensionando e o medo se alastrando pelos seus
poros, não estava mais sozinho e tampouco queria olhar para trás, mas havia somente uma porta,
por ali entrou, por ali deveria sair.
Dois anos de treinamentos em Tremerai ou qualquer Fraternidade não preparavam um caçador
para isto. O truque mais antigo da humanidade. A beleza de uma mulher.
Muitas sensações tomaram o corpo do caçador, medo, admiração, atração e pavor eram algumas
delas. Sullivan esqueceu até como respirava, como se movia, apenas paralisou vidrado naquela
figura. Madeixas escuras negras como o céu lá fora caíam em ondas até metade do corpo da mulher,
seus olhos negros eram alongados e ferinos, o nariz fino e o rosto oval, duas orelhas pontudas se
moviam no topo da cabeça dela. O corpo era coberto por um grande robe preto com detalhes
costurados em vermelho e mesmo com o robe, era notável que ela estava nua por baixo. Alguns
passos em sua direção e a mulher estava quase cara a cara com o Windrunner, quando ele viu…
Quatro grandes caudas saíam por debaixo do robe, quatro longas, peludas e fortes caudas.
Hipnotizado por ver de perto uma kitsune de quatro caudas, não notou as mãos dela ao lado do
corpo, suas unhas eram garras grossas e negras, e seus lábios puxavam para o lado, o que não era um
sorriso, e sim um rosnado.
O caçador jamais imaginou que uma kitsune adulta fosse daquela forma. Imaginava apenas
uma raposa enorme como nos livros, uma híbrida talvez, híbrida kitsune, mas nada, nada do que
imaginou era assim.
— Eu… Não fiz nada. Não fiz nada com eles… — sussurrou quase inaudível. Ele ainda sentia
medo, não somente medo, era uma sensação horrível de explicar.

60
Atrás dele, as raposinhas ainda riam. Ele preferia elas assim do que chorando, rir dele era bem
melhor! Mostrava que estavam bem.
Céus, eu to fodido… Era só o que ele pensava.
Então uma língua que Sullivan nunca ouviu saiu dos lábios da mulher e ela encostou a unha no
seu queixo, erguendo-o, examinando. O caçador engoliu seco, não resistiu, não moveu nenhum
músculo. A mão livre da kitsune descia pelo seu tronco tateando seus bolsos do colete, sentindo
todos os seus armamentos, munição, cada lâmina escondida, a ponta dos dedos tocou seu cinto e o
bolso da calça, apertando sua coxa. A essa altura não era só medo que ele sentia, mas uma estranha…
atração.
Passou para a lombar, subindo as costas, tocou a balestra e raspou as unhas no pescoço do
caçador, pegando nos dedos a corrente do colar com os registros de caçador deslizando até seu peito,
e então tocou com o indicador a insígnia dos caçadores de Tremerai. E mais uma vez, ela disse algo
em outra língua olhando nos olhos dele.
— Não te entendo… — sussurrou o caçador.
— Você — Sullivan engoliu seco ao ouvi-la falar na sua língua. A ponta da unha em seu queixo
raspou sua pele abrindo um corte fino. — Você caçador.
— So-sou. Eu não machuquei eles.
Deu um passo para trás e depois outro, se distanciando da kitsune. A mulher não se mexeu, seus
olhos focaram nos dois filhotes balançando as caudas para ela. Realmente, eles estavam bem,
ótimos.
E isso não bastava.
— Não vou contar pra ninguém — Sullivan avisou contornando a sala devagar até estar
próximo da porta, olhou para baixo notando as caudas barrando a sua saída. Sua mão alcançou
lentamente a adaga no bolso direito se preparando para o pior porque sentia que ele vinha.
— Você vai me deixar passar.
— Hantā wa shin'yō dekimasen.2

2
Tirei do google tradutor, não sei se tá certo, vai ter tradutor profissional pra isso, mas. “Caçadores não são confiáveis”, em japonês.
61
Três caudas se moveram na sua direção, ao mesmo tempo, duas delas enrolaram sua perna, a
terceira Sullivan atingiu com a ponta da adaga, enquanto a quarta cauda abraçava os dois filhotes os
devolvendo de volta para o cesto.
O caçador ouviu o grunhido de dor da kitsune e as caudas o soltaram, deixando-as em pé atrás
das costas dela, na mão direita, a mulher procurou algo dentro da manga de seu robe e sacudiu;
aquilo Sullivan nem precisava entender língua nenhuma para saber o que era, um leque de lâminas
afiadas abriu cobrindo metade do rosto dela.
Num gesto desesperado, o caçador jogou o manto que lhe foi dado na cabeça da kitsune e a
chutou no tronco com força suficiente para ela cair. O mais depressa que pode se arrastou pela
portinhola e correu morro acima, deslizando na lama, se agarrando no chão e em raízes para subir,
nas suas costas a kitsune cuspia palavras de forma tão rude que com certeza eram xingamentos.
Acabou escorregando e caindo de cara no chão, sujando todo o seu tronco e rosto, o esforço era
em vão. Pulou na terra firme para ter mais chances de escapar, procurando nos bolsos a arma de
fogo, quando de repente um grito de dor irrompeu a garganta de Sullivan, caindo no chão. Uma
lâmina voou da mão da kitsune, penetrando profundamente em sua panturrilha, onde um fio
estava atado à sua ponta, estendendo-se até o leque mantido pela mulher.
— Não, espera…! — balançou as mãos em negação, implorando.
Os olhos da kitsune não carregavam nenhum resquício de pena e compaixão, e isso, o
Windrunner provou da pior maneira com um puxão arrancando um pedaço do seu músculo. Um
grito de dor maior ainda ecoou na floresta.

A dor e o cheiro de sangue vivo trouxeram a Sullivan a clareza de que hoje ele precisava ser um
caçador.
Agora.
Alçando sua 9mm no bolso, Sullivan atirou para frente, duas vezes. O som do tiro assustou a
kitsune, suas caudas ficaram eretas e arrepiadas como gato. Outros dois tiros em direção a copa das

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árvores fizeram-a se encolher e cobrir as orelhas, tempo suficiente para se levantar e correr
mancando.
Não conseguia pôr o pé no chão e a dor era tamanha, trotava para sobreviver procurando
algum lugar que pudesse se esconder por ora, não encontrando nada além de mato e galhos batendo
em seu rosto. Arrancou o tampão do olho e ajustou a máscara de visão noturna no rosto, o olho
esquerdo ainda comprometido aos poucos se acostumava a se guiar pela fraca luz da lua, já que a
lanterna se perdeu em algum momento.
O som de rosnados e passos pisando nas folhas chegavam cada vez mais perto. Mudou a rota
novamente tentando subir para a estrada e escapar daquela lama, se agarrou às raízes das árvores e
parou escondendo-se atrás de uma delas. Tateou o bolso novamente e encontrou uma das bombas
de gás que Gaspar deu a ele, era de verbena, Sullivan duvidava que verbena causasse um dano crítico
numa kitsune, talvez a atrasasse. Colocou o capuz e desfez o nó da máscara de gás amarrada no
colete encaixando no rosto, em pé, ativou o pino da bomba lançando antes de mais uma lâmina
passar raspando na sua direção e cravar na árvore.
O vapor colorido artificialmente de magenta tomou o ar, o cheiro forte causou um acesso de
tosse na kitsune. Protegido pela máscara, o caçador continuou a subir o barranco até sentir o
concreto de um paralelepípedo na ponta dos dedos, era a estrada que levava a Tremerai.
Aliviado retirou a máscara respirando o ar puro e assobiou chamando o cavalo, gritou pelos
colegas, por Ciera, Dario e até Wade. E nada. Virou para o outro lado e viu na beira da estrada seu
cavalo, Corvo estirado e morto, andou até o animal e analisou com pena o estado do corpo, o dorso
aberto com as tripas expostas, marcas de mordidas e arranhões profundos.
— Wendigo… — deduziu e se apoiou nos joelhos, exausto.
O impacto do objeto perfurante nas costas próximo do ombro, derrubou seu corpo para frente
e suas mãos se apoiaram no chão sujo de carne, e mais sangue escorreu de sua boca, uma dose grossa
e considerável.
Àquela altura, o Windrunner estava certo de que iria morrer.

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Ferido da surra, ferido pela kitsune, sem cavalo… Sozinho. Frente a frente, os alvos se
encaravam, a mãe-kitsune apoiada numa das mãos no chão e a outra segurava o leque, sua posição
era muito similar a um gato pronto para o bote. A pouca força que restava, usaria para lutar.
O líquido morno escorreu pelas costas do caçador ao arrancar a lâmina e liberar o sangue. A
corda na ponta estava intacta, Sullivan enrolou as duas mãos na corda elástica e puxou com toda a
força, sem dar chance da kitsune resistir, tomando o leque da criatura. O objeto prateado caiu aos
seus pés ensanguentado, o caçador o pegou e atirou lançando dentro da mata fechada.
Com o dente, Sullivan puxou o fecho da luva de couro da mão direita e tirou a peça jogando no
chão. Uma mão fechada em punho e a mão direita puxando a adaga do bolso da calça, ele se pôs em
postura de luta.
— Sem leques agora — cuspiu mais sangue. Se olharam em silêncio por alguns segundos,
ofegantes. Queria saber o que passava na mente dela.
A mulher alongou as garras retráteis e encarou Sullivan, andando para o lado, ele seguiu pelo
oposto, apertando mais a adaga na mão.
— Você vai ser vista se continuar na estrada — Tentou argumentar. — Juro que não vou expor
você e seus filhotes!
Ao que parece, citar os filhotes foi pior.
A kitsune investiu como se fossem dois socos com as mãos abertas em garras, o caçador se
protegeu com os braços e acertou um chute na coxa dela desequilibrando-a, com ela sob um joelho,
acertou a cauda que tentou atacá-lo pelo lado rasgando um pedaço com a adaga e desviou da outra
se abaixando.
Em um segundo, ela já estava de pé novamente, acertando as garras na costela humana,
marcando seu colete de Kevlar como se não fosse nada. Tirando proveito da investida, Sullivan a
puxou pelo cotovelo e fincou a adaga de prata em seu ombro.
O grito da kitsune foi mais fino do que os anteriores, o golpe realmente a feriu, suas caudas se
contraíram nas costas dela de tanta dor. O caçador não podia perder agora. Andou empurrando-a
na direção de um tronco de árvore usando do impacto para forçar mais a adaga no machucado, e
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outro som de dor rompeu a garganta dela, Sullivan estava tão perto da kitsune agora que seu ouvido
doeu ao ouvir o som. Tão perto, ele podia apenas rasgar o ombro até o pescoço e cortar a cabeça
fora. Mas ele ainda queimava de raiva.
Agarrando a gola do robe, lançou a criatura no chão de pedras ficando por cima do seu tronco,
a kitsune estava tão desesperada que não lutava mais, apenas tentava afastar as mãos do caçador de
cima dela. A mão esquerda do caçador segurou os pulsos dela acima da cabeça e direita empurrou
mais o cabo da arma até tocar a pele amarelada e o sangue tingir o colo nu agora exposto.
Os olhos dela marejaram encarando o agressor, uma lágrima escorreu no canto do olho e as
mãos deitaram do lado do corpo, esperando o golpe final. Sullivan arfava afoito, trêmulo e
enfurecido, aquela mínima fração de troca de olhares, o deixou péssimo.
Sua mente trouxe diante de seus olhos os dois filhotes esperando a mãe em casa, sendo
obedientes de ficarem escondidos, de não saírem, como ele fazia com sua irmã. Até que ele abriu a
porta, ele chegou.
Não conseguia. Ele não podia.
A mão livre da kitsune empurrou o pescoço de Sullivan, a pele do caçador sentiu as garras, mas
ela não o enforcava e sim empurrava para o lado. Foi quando ao mexer as pernas, o caçador notou
certa protuberância embaixo de si. Sem ter tempo de olhar o que estava acontecendo, a cauda da
kitsune envolveu seu tronco e o lançou violentamente do outro lado da estrada, contra a árvore. O
impacto fez suas costas colidirem com o chão e uma dor aguda irradiou pelo seu corpo. Algo
quebrou dentro dele.
Desconcertado e preocupado com a gravidade da lesão, passou as mãos na costela e sentiu a
própria adaga, a kitsune usou da outra cauda para tirar a lâmina de seu ombro e ferir Sullivan bem
abaixo do pulmão. Os olhos cinza do caçador fitaram a raposa se levantando com dificuldade, em
um estado de torpor, frio e dor era tudo o que sentia.
A última coisa que viu, foi a kitsune abraçando o próprio corpo, especificamente a barriga, e
correr para dentro da floresta.

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Um floco de neve caiu no rosto do caçador e depois, o frio e o breu da noite, engoliram o
Windrunner.

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