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10.02.2007
C ontinuando sua jornada rumo ao norte, Lawrence e Holo
param na vila de Tereo na esperança de encontrarem uma abadia
local, onde poderiam descobrir mais informações sobre o destino
do antigo lar de Holo, Yoitsu. No entanto, logo após sua chegada
eles são pegos em uma disputa local entre Tereo e a cidade vizinha
de Enberch, o que poderia custar a Lawrence e Holo suas
fortunas e vidas! Com a ajuda da Sábia Loba, será que Lawrence
será capaz de conceber um plano para salvar uma cidade inteira
da ruína — e a sua pele e a de sua companheira no processo?
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
“NÓS PRECISAMOS
ENCONTRAR UM
CERTO MONASTÉRIO —
A ABADIA DIENDRAN,
SOB OS CUIDADOS DA
ABADESSA LOUIS
LANA SCHTINGHILT.”
O ALDEÃO
SEGURANDO O
CAJADO DEU UM
PASSO A FRENTE.
LAWRENCE
PERCEBEU E
PAROU.
“Não posso deixar de pensar que sou eu quem sai perdendo nesse
acordo.”
O céu estava ficando ligeiramente mais claro e os últimos vestígios
da noite ainda acariciavam seu rosto, como se estivessem relutantes em
sumir.
Normalmente, depois de ser despertado pelo frio, ele ficava
observando o céu empalidecido por um tempo, sem vontade de sair
dos cobertores — mas hoje, sua companheira peluda estava,
obviamente, de péssimo humor.
“Olha, eu já disse que sinto muito.”
“Oh, sim, se for sobre quem está errado e deve se desculpar,
certamente é você. Eu te ajudo a afastar o frio da melhor maneira que
posso, e ainda sou generosa o suficiente para não te cobrar o favor.”
O jovem enterrado debaixo dos cobertores, com o rosto exposto
e olhando para o céu, era Kraft Lawrence. Ele virou a cabeça para a
esquerda.
Lawrence tinha se iniciado como mercador quando tinha dezoito
anos — faz sete anos — e ele tinha uma boa dose de confiança em sua
capacidade de enrolar na conversa até o cliente mais exigente.
Mas mesmo este mercador experiente se viu sem palavras quando
confrontado por sua companheira, que estava à sua direita,
direcionando a ele um fluxo descontente de palavras combinadas com
um olhar agudo.
A garota com os olhos vermelho rubi e cabelos castanhos se
chamava Holo.
Era um nome raro, mas não era a única coisa rara sobre ela.
Afinal, ela tinha um par aguçado de orelhas de lobo no topo da
cabeça, e uma esplêndida cauda lupina que brotava de sua cintura.
“E mais! Há coisas que se podem e que não se podem fazer, certo?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 11 ⊱
mercado uma semana antes. O garoto na frente dele era magro, mas
tinha uma robustez fruto do trabalho físico. Ele tinha a estatura de
Lawrence.
CAPÍTULO I ⊰ 24 ⊱
mercado uma semana antes. O garoto na frente dele era magro, mas
tinha uma robustez fruto do trabalho físico. Ele tinha a estatura de
Lawrence, com o cabelo preto e olhos que eram comuns em terras do
norte. Ele parecia forte o suficiente para que Lawrence o imaginasse
empunhando uma canga1. Seu cabelo negro estava polvilhado com
farinha.
Perguntar para este garoto cheio de farinha, que tinha acabado de
sair de uma roda d'água, quem ele era, seria como ir à tenda de um
padeiro cheia de pão e perguntar o que estava à venda.
“Ha, bem, como você pode ver, eu sou um moleiro. Então, de
onde você veio? Você não parece que é de Enberch.”
Lawrence achou o despreocupado sorriso do garoto um pouco
infantil.
Ele interiormente adivinhou que o garoto era seis ou sete anos
mais jovem e, de repente, foi cauteloso para Holo não pôr os olhos em
outro jovem infeliz — criando mais uma bagunça para Lawrence
limpar.
“Como você pode imaginar, eu tenho uma pergunta para você,”
disse Lawrence. “Quanto tempo vai demorar para chegar na cidade de
Tereo?”
“A cidade... de Tereo?” repetiu o jovem, atordoado por um
momento. Ele, então, sorriu e continuou. “Se Tereo é uma cidade,
então Enberch é a capital real. Eu não sei o que o traz aqui, mas Tereo
é uma pequena aldeia. Basta olhar para este moinho lamentável!”
Lawrence estava vagamente surpreso com as palavras do rapaz até
que se lembrou que, assim como Holo, Diana (quem deu a informação
sobre a cidade) tinha centenas de anos de idade. No seu tempo, Tereo
poderia muito bem ter sido a maior e mais movimentada cidade da
região. Declínio não era raro.
1
Canga: peça de madeira que une a junta de bois. Colocada sobre a nuca,
prendendo os bois pelo pescoço.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 25 ⊱
Levando em conta que ele não parecia ter com Lawrence e Holo
qualquer má vontade em particular, Lawrence decidiu não questionar
ainda mais.
“Entendo. Bem, seremos cautelosos. Certamente não vamos ser
expulsos assim que chegarmos.”
“Bem... não, eu não acho que serão.”
“Meus agradecimentos. Vou manter o seu conselho em mente.
Suponho que caso ela não esteja vestida como uma freira — ninguém
se importaria, certo?”
O jovem pareceu relaxar. “Isso seria uma bênção, sim.” Sua
desconfiança de Lawrence parecia ter virado súplica. “Mas que negócio
você tem com a igreja?”
“Precisamos de direções.”
“Direções?” O jovem coçou o rosto, duvidoso. “Então... então
você não veio para fazer negócios. Você é um mercador, certo?”
“Sim, e você é um moleiro, não é?”
O menino sorriu como se o seu nariz coçasse, então caiu,
derrotado. “E eu estava esperando que pudesse ser de alguma utilidade
para você no negócio.”
“Eu vou te chamar, se necessário. Agora, podemos passar?”
O jovem parecia ainda ter algo a dizer, mas foi incapaz de juntar
as palavras, ele acenou com a cabeça e cedeu.
O olhar que lançou para Lawrence era profundamente
implorante.
Ficou claro que ele não estava pedindo uma taxa sobre a
informação.
Lawrence afrouxou o aperto nas rédeas e estendeu a mão para o
jovem. Ele olhou diretamente nos olhos do garoto, falando claramente
e de maneira uniforme. “Meu nome é Kraft Lawrence. Como você se
chama?”
CAPÍTULO I ⊰ 28 ⊱
“Eles dizem que os moleiros na roda d'água tem seis dedos e que
o sexto cresce a partir da palma da mão — com o intuito de roubar
farinha. Além disso, a maioria das rodas d'água são de propriedade do
senhorio local, que aplica um imposto sobre todos os que moem seus
grãos lá. Mas o senhorio não pode vigiar o moinho durante todo o dia,
então quem você acha que recolhe impostos em seu lugar? “
“Eu suponho que seja o moleiro.”
Lawrence balançou a cabeça e continuou. “Sim, e ninguém ficaria
feliz com o pagamento de impostos. Mas é necessário. Então, quem
você acha que carrega o peso de seu ressentimento?”
Ela pode não ser humana, mas o entendimento de Holo do mundo
humano era profundo.
Ela sabia a resposta imediatamente.
“Ah, eu entendi. Portanto, a razão que ele estava abanando a cauda
com tal vigor para você, em vez de para mim, era —”
“Mesmo assim,” disse Lawrence com um suspiro e um aceno de
cabeça. À frente deles, as casas da vila de Tereo finalmente vindo à
tona. “Ele adoraria deixar esta cidade.”
O trabalho no moinho era um trabalho importante que tinha que
ser feito.
Mas aqueles que faziam a ingrata tarefa muitas vezes eram
ressentidos.
Quanto mais minuciosamente o grão fosse moído, melhor o
aumento do pão feito a partir dele.
No entanto, quanto mais fina a moagem, menor seria o volume da
farinha resultante.
Fazer um bom trabalho e ainda assim receber o ressentimento
daqueles que se beneficiaram dele — Lawrence já tinha ouvido a
história em outro lugar. Holo olhou para frente, como se estivesse
arrependida de ter perguntado isso.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 31 ⊱
Mas era verdade que ela estava no comando da igreja? Parecia algo
perigoso demais para ser uma brincadeira.
Talvez Elsa era filha do Padre Franz, se não pelo sangue, então por
adoção.
“O que vamos fazer?” Perguntou Lawrence.
A resposta de Holo foi rápida. “Em todo caso, não podemos forçar
nosso caminho para dentro. Vamos encontrar uma pousada.”
Ainda sendo o objeto de muitos olhares curiosos, os dois se
recolocaram na carroça.
apenas de passagem, mas parece que vamos ficar aqui por um tempo,
é melhor eu ver o ancião da aldeia. Ele também pode saber onde o
mosteiro está.”
“...Entendo.”
“Certo. Então pode ficar dormindo aqui.”
Holo puxou o cobertor sobre sua boca e assentiu.
“Mas duvido que eu vá encontrar uma lembrancinha para você.”
“...Não me importo.” Os olhos de Holo se abriram um pouco, e
ela acrescentou em uma voz doce e suave, parecendo que poderia cair
no sono a qualquer momento, “Desde que você volte...”
Ele sabia que era uma armadilha, mas mesmo assim não foi capaz
de esconder seu alvoroço.
As orelhas de Holo se mexeram alegremente.
Ela podia não receber uma lembrancinha, mas conseguiu ver o
rosto de um tolo.
“Eu já ganhei a minha lembrancinha. Boa noite.”
Holo se aconchegou debaixo do cobertor. “Durma bem,”
Lawrence respondeu por como uma forma de rendição.
“E não há sequer uma tenda para ser encontrada. Será que ainda
vamos conseguir jantar?” Holo falou preocupada enquanto olhava para
Lawrence, que estava assentado sobre a moldura da janela.
“Nós vamos ficar bem se formos para a taberna. Não é como se a
cidade nunca tivesse visto viajantes.”
“Hm. Vamos nos apressar, então.”
“Eu acabei de acordar — oh, tudo bem. Tudo bem!” Lawrence
deu de ombros para o olhar que recebeu de Holo, então notou algo
enquanto ficava de pé. “O que é isso?”
Uma figura sombria e solitária atravessou o escuro da praça da
cidade deserta.
Enquanto ele estreitava os olhos, Lawrence percebeu que era
Evan, o moleiro.
“Oh?”
“—!” Lawrence quase gritou de surpresa quando Holo apareceu
em seus pés. “Não apareça desse jeito!”
“Nossa, como você é sensível. Tanto faz — o que você viu?”
Qualquer um ficaria assustado se alguém aparecesse diante deles
sem o menor indício de roupas farfalhando, mas Lawrence não iria
discutir sobre todos os gracejos de Holo. “Nada de importante,” ele
disse. “Eu só queria saber onde ele estava indo.”
“Parece que está indo para a igreja.”
Moleiros tinham que ser mais honesto do que qualquer outro
profissional.
Em Ruvinheigen, Norah, a pastora provavelmente ficava
assistindo aos cultos tão assiduamente como sempre, mesmo que essa
mesma Igreja impusesse restrições difíceis a seu trabalho.
Evan devia ir para esses cultos com a mesma frequência.
“Muito suspeito.” disse Holo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 47 ⊱
“De fato, estudar. Para ver nós somos vistos por outras pessoas.”
Os dedos de Lawrence bateram desajeitadamente no jarro,
derrubando-o. Ele tentou recuperá-lo, mas não conseguiu.
“Me escuta. Não concorda que é preciso uma perspectiva externa
para compreender verdadeiramente a situação? Está me ouvindo?”
Lawrence sabia que Holo estava rindo baixinho e, ainda sem se
virar, ele podia adivinhar a expressão dela.
Felizmente, não havia muita água no jarro, por isso não foi um
desastre — embora a provocação que ele tinha que suportar já fosse
desastre o suficiente.
“Então é assim que eu pareço para os outros quando estou com
você...,” disse Holo, ponderando, sua voz séria.
Lawrence tampou os ouvidos em um esforço para não se importar
e começou a limpar a água que tinha derramado.
Ele não sabia do que deveria ter raiva.
Ele nem sabia por que estava tão irritado.
Talvez fosse pelo fato de estar tão obviamente perturbado.
Holo deu uma risadinha. “Bem, pelo menos eu sei que certamente
somos páreo para eles.”
Lawrence não podia adivinhar que tipo de armadilha ele poderia
cair se respondesse.
Ele colocou o jarro em seu lugar depois de terminar o pouco que
tinha com um gole.
Ele desejou que a água fosse um forte vinho.
“Agora,” Holo disse brevemente.
Lawrence sabia que se a ignorasse, isso só traria a fúria dela.
Se travassem uma luta, ele certamente perderia.
Ele suspirou e se virou para Holo, derrotado.
CAPÍTULO I ⊰ 50 ⊱
Ele deu acenos vagos e olhou para Holo que, apesar do grande
clamor de sua bebedeira ter sido o centro das atenções um momento
atrás, olhou para ele.
O espírito diante dos olhos dele também não deveria ser
subestimado.
“Um espírito de boa colheita, hein? Como mercador viajante, ouvi
essas coisas. Este Lorde Truyeo é um espírito de lobo?”
“Um lobo? Ridículo! Como se o espírito de tal demônio
protegesse uma vila!”
Foi uma forte reprimenda. Lawrence pensou que poderia usar isso
para provocar Holo mais tarde.
“Ah, então ele é —”
“Uma cobra, mercador! Lorde Truyeo é uma cobra!”
Se alguém fosse descuidado, tanto presas envenenadas quanto uma
carroça velha poderiam ser igualmente problemáticas, então Lawrence
não via muita diferença entre cobras e lobos. Mas os espíritos das
serpentes eram bastante comuns aqui nas terras do norte.
No entanto, a Igreja tinha a cobra como sua inimiga jurada. Foi
escrito nas escrituras que era uma cobra que causara a queda do
homem.
“Eu ouvi lendas de espíritos de cobra,” disse Lawrence. “Uma vez
ela desceu das montanhas para o mar e o caminho deixado para trás se
tornou um grande rio.”
“Oh, vamos, você não pode comparar Lorde Truyeo com essas
coisas! Eles dizem que ele é tão longo que o tempo em sua cabeça é
diferente do que está em sua cauda e que ele devora a lua no café da
manhã e o sol no jantar.”
“Sim, isso mesmo!” veio uma cacofonia de vozes.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 59 ⊱
Ele bebeu de uma vez e ficou de pé. “Vou voltar para a estalagem antes
que ela faça algum alarde. Pelo menos ela ainda não se casou com
ninguém.”
“Ha! Ela pode tirar isso de mim, nada de bom vem de uma mulher
bebendo!”
Todos os homens riram furtivamente com o comentário sincero
de Iima. Parecia haver várias histórias sobre o assunto.
“Vou me lembrar disso,” disse Lawrence, deixando algumas
moedas de prata sobre a mesa.
Tinha custado dez trenni servir a todos na taverna, o que ele fez
para se encaixar rapidamente.
Ninguém queria um amigo gastador demais, mas um viajante
generoso era bem-vindo em todo o mundo.
Uma vez que Lawrence capturou Holo — que estava esparramada
sobre uma mesa, aparentemente embebedada em seu estupor — ele
saiu do bar, acompanhado com uma mistura de provocação amigável e
agradecimento.
Era uma felicidade infeliz que a taverna e a estalagem dessem para
a praça da cidade.
Apesar do corpo esguio de Holo, sendo um espírito lobo ela podia
comer e beber quantidades enormes — o peso extra que Lawrence
agora sentia. Levantá-la custou um esforço.
Claro, isso só era necessário se ela realmente tivesse desmaiado de
bêbada.
“Você comeu e bebeu demais.”
Lawrence colocou o braço em volta do pescoço, apoiando-a pelo
lado. Assim que ele falou, ela pareceu apoiar um pouco do seu peso
sozinha, aliviando seu fardo.
Holo arrotou. “Não era meu trabalho comer e beber, mal dando
espaço para conversas?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 63 ⊱
Ela estava de costas para ele olhando para baixo, como se estivesse
ocupada com alguma tarefa.
“Ho—”
Ele parou no meio do nome dela — a cauda de repente balançou
de um jeito que ele nunca tinha visto antes.
“O-o que há de errado?” ele conseguiu falar.
As orelhas de Holo se ergueram e, por fim, ela se virou
lentamente.
O sol ainda não havia se levantado completamente e o ar estava
azulado. Os sopros brancos de sua respiração eram visíveis enquanto
ela olhava por cima do ombro.
Lágrimas brotaram de seus olhos, e em sua mão havia uma
pequena fruta redonda da qual uma mordida tinha acabado de ser dada.
“...Ah, você comeu?” Lawrence perguntou, meio sorrindo.
Holo lambeu os lábios e assentiu. “O... o que é isso...?”
“A mulher do estalajadeiro trouxe depois que voltamos para a
estalagem na noite passada. Aparentemente é bom para a ressaca.”
Evidentemente, alguns dos frutos permaneciam em sua boca.
Holo fechou os olhos e forçou-se a engolir, então cheirou e enxugou
os cantos dos olhos. “Comer isso me arrastaria de volta à sobriedade
mesmo depois de cem anos bebendo!”
“Certamente você precisava dessa ajuda.”
Holo franziu a testa e jogou o que sobrou da fruta em Lawrence,
depois cuidou de sua cauda ainda afofada. “Não é como se eu estivesse
de ressaca todas as manhãs.”
“E graças a Deus por isso. Está frio de novo hoje, devo dizer.”
Lawrence olhou para a fruta que Holo jogara nele. Metade já tinha
ido embora. Para ter comido metade da massa do fruto amargo em
uma única mordida sem saber o que esperar — não era de admirar que
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 69 ⊱
“A pé, né? Para onde você está indo?” O homem perguntou. Era
uma pergunta razoável.
“Eu estava pensando em moer o trigo.”
“Oh, o moinho, eh? Cuidado para não ser enganado!”
Provavelmente era uma piada comum quando se ia moer o trigo.
Lawrence sorriu em resposta e continuou para o moinho.
Um mercador dificilmente era de confiança, exceto para outro
mercador. No entanto, havia ocupações que estavam em uma situação
ainda pior.
Embora o próprio Lawrence não tivesse dúvidas sobre o Deus da
Igreja, que afirmava que todos os ofícios e ocupações eram iguais,
lembrou-se de que o povo de Tereo não tinha nenhum amor pelos
servos daquele Deus.
O mundo simplesmente não era como se desejava. Estava cheio
de dificuldades.
Com a colheita terminada, os campos de trigo pelos quais ele
passava enquanto percorria o caminho entre a colina e o riacho estavam
bastante desolados, mas logo a casa do moinho apareceu.
Evan pareceu ouvir os passos do mercador quando se aproximou
e abriu a cabeça para fora da entrada. “Ah, mestre Lawrence!”
Ele parecia alegre como sempre, embora ser chamado de “mestre”
depois de ter conhecido o rapaz apenas um dia antes, irritou Lawrence.
Lawrence levantou o saco de trigo e falou. “Você tem um pilão
livre no momento?”
“Eh? Eu tenho, mas… você já está indo embora?”
Lawrence entregou o saco para Evan, balançando a cabeça.
Era razoável supor que, se um viajante estava moendo trigo, ele
estava se preparando para sair.
“Não, eu vou ficar em Tereo por um tempo ainda,” disse
Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 75 ⊱
“Sim, é verdade. Houve uma grande colheita este ano, então não
é minha culpa que demorei tanto tempo para moer, mas eles reclamam
comigo constantemente!”
Lawrence não pôde deixar de imaginar Evan ficando acordado a
noite toda, cuidando do pilão.
Mas Evan riu da lembrança, aparentemente feliz, depois
continuou. “Então, você mudou de ideia desde ontem? Está planejando
fazer negócios de trigo em Tereo?”
“Hm? Bem, dependendo das circunstâncias...”
“Eu aconselho você a desistir,” disse Evan categoricamente.
“Os mercadores são particularmente ruins em desistir.”
“Ha, falou como um verdadeiro mercador! Mas você só precisa ir
até o ancião para entender. Foi decidido que a aldeia deve vender todo
o seu grão para Enberch.” Enquanto falava, Evan verificava o progresso
do pilão, cuidadosamente escovando a farinha no prato de pedra com
uma escova de pelo de javali.
“Ah, então Tereo é parte do feudo de Enberch?” Se isso for
verdade, isso tornaria ainda mais difícil explicar a vida preguiçosa dos
aldeões.
Sem surpresa, Evan olhou para cima e falou com orgulho. “Somos
iguais a eles. Eles compram nosso trigo; nós compramos outras coisas
deles. Além disso, quando compramos vinho ou roupas da Enberch,
não pagamos impostos. Impressionante, não é?”
Quando passou por Enberch, Lawrence viu que era uma cidade
de relativamente grande.
O termo pobre poderia ser muito duro para Tereo, mas a vila
certamente não parecia capaz de confrontar Enberch.
Era impressionante, então, que uma vila tão pequena conduzisse
o comércio com termos tão favoráveis.
CAPÍTULO II ⊰ 78 ⊱
“Ah sim. De fato, serão três ryuut. Mas, como não tem ninguém
aqui, se você guardar segredo, você não precisa...”
“Não, eu vou pagar. Um moleiro tem que ser honesto, não acha?”
Evan segurava um recipiente de medição com a farinha de trigo
recém moída. Ele sorriu impotente e aceitou as três moedas de prata
enegrecidas que Lawrence ofereceu. “Certifique-se de peneirar bem
antes de fazer pão com ela,” disse ele.
“Eu irei. Aliás —,” começou Lawrence. Evan já havia começado a
cuidar do pilão agora que seu trabalho estava terminado. “Os serviços
da igreja aqui sempre começam tão cedo?”
Lawrence esperava surpresa de Evan, mas o garoto estava apenas
curioso quando se virou. “Hm?” Ele então pareceu entender a
implicação por trás da pergunta e sorriu. “Não, dificilmente. Não é
ruim no verão, mas tenho certeza que você concordará que está muito
frio para dormir no moinho no inverno. Eu durmo na igreja.”
Lawrence já esperava isso, então foi fácil para ele figir um natural
“Ah, entendo.” Ele continuou. “Mesmo assim, você parece ser bem
próximo da senhorita Elsa.”
“Hm? Ah, bem, ha-ha-ha...”
Se você misturar orgulho, felicidade e constrangimento, adicionar
um pouco de água e amassar até ficar macio, você vai ter algo como a
expressão de Evan naquele momento.
Tal receita certamente cresceria bem quando assada no fogo do
ciúme.
“Quando visitamos a igreja ontem para pedir instruções, fomos
tratados com certo desdém. Ela simplesmente não escutava nada do
que eu dizia. Ainda esta manhã, ela parecia tão gentil como a Santa
Madre. É uma surpresa.”
Evan riu nervosamente. “Bem, Elsa é bastante mal-humorada para
alguém tão tímida quanto ela. Sua timidez a faz ela parecer um rato
selvagem quando conhece alguém. Se ela realmente quiser seguir os
CAPÍTULO II ⊰ 80 ⊱
passos do padre Franz, terá que parar.” Ele desligou a roda d'água do
pilão e habilmente recolocou o cordame na roda d'água.
Seus movimentos suaves e competentes combinados com as
palavras que falou fizeram Evan parecer mais velho do que realmente
era.
“Mas ainda assim,” ele continuou, “já faz algum tempo desde que
ela esteve tão animada. Eu suponho que você chegou na hora errada.
Na noite de ontem, ela estava muito feliz. Ainda assim... é estranho.
Por que ela não mencionou que você tinha visitado? Aquela garota
geralmente me diz até quantos espirros ela teve naquele dia.”
Enquanto Lawrence sabia que Evan estava apenas conversando,
ele realmente não tinha interesse no assunto. Mas se quisesse se
aproximar de Elsa, ele precisava de Evan.
“Certamente é porque no final, eu também sou um homem,” disse
ele.
Evan ficou em silêncio por um momento, depois desatou a rir.
Finalmente ele falou: “Então ela estava preocupada que eu teria a ideia
errada! Aquela garota boba!”
Lawrence olhou para Evan e percebeu que ele tinha muito a
aprender com o rapaz, apesar de sua idade mais jovem.
Problemas desse tipo eram até mais complicados do que negócios.
“Mas o que a deixaria tão alegre depois de ficar tão irritada?”
O rosto de Evan ficou sombrio. “Por que você pergunta?”
“O humor da minha própria companheira muda com mais
frequência do que o clima da montanha,” disse Lawrence com um
encolher de ombros.
Evan fez uma pausa, se lembrando de Holo. Ele finalmente
pareceu aceitar a declaração de Lawrence.
Ele deu um sorriso simpático. “Deve ser bastante difícil.”
“Certamente é.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 81 ⊱
Lawrence admitiu para si mesmo que era possível que Elsa dissesse
a verdade sobre a natureza de Holo aos aldeões, a fim de induzi-los à
ação, dizendo que ela era uma serva do mal que veio trazer calamidade
à aldeia.
Mas quanto à questão de saber se ela tinha algo a ganhar com tal
ação, a resposta era um óbvio “não.”
Embora Elsa tivesse desmaiado ao ver as orelhas de Holo, desde
que acordara, não tinha medo nem aversão a Holo.
Na verdade, ela provavelmente concentrou sua aversão em
Lawrence.
Sendo esse o caso, o próximo problema eram as pessoas ao redor
de Elsa — Sem, o ancião da aldeia, e Evan. Se eles soubessem da
natureza de Holo, não havia como prever o que aconteceria.
Havia um número considerável de livros para ler no porão. Holo
e Lawrence precisariam de algum tempo para passar por todos eles.
Se pudesse, ele queria deixar Holo ler até se dar por satisfeita
enquanto ele assumia a responsabilidade de mantê-la segura durante o
processo.
Embora ela o acusasse de ser paranoico, ele achava que não
suspeitava o suficiente.
Mas não havia garantia de que tomar essa ou aquela ação não
despertaria uma cobra adormecida, por assim dizer.
Ele voltou para a igreja, pensando que, de qualquer forma, eles
precisavam inventar algum tipo de desculpa para passarem tempo lá.
Ele encontrou Elsa lendo cartas em uma mesa, que parecia grande
demais para ela, na sala de estar, que era tão dolorosamente simples
quanto o quarto dela. Ela não parecia ter informado secretamente os
aldeões e estavam apenas esperando pelo retorno dele para saltar na
armadilha.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 117 ⊱
Não importa quão pesado seja o fardo, ele poderia ser carregado
desde que fosse colocado firmemente em suas costas. No entanto,
bastava um pequeno distúrbio para que o fardo inteiro caísse aos
pedaços.
Assim que Elsa começou a falar, suas palavras se tornaram rápidas,
como se ela não pudesse detê-las mesmo se quisesse.
“É porque falta minha fé? Não sei. Eu não tenho coragem de
repreender vocês dois, escrituras e água benta na mão. Se isso é uma
coisa boa ou ruim — não, o que é, eu não...”
“Minha companheira...” interveio Lawrence, antes que Elsa
pudesse se engasgar com suas próprias palavras. “Minha companheira,
embora sua verdadeira forma seja um lobo gigante, não deseja ser
chamada de deus nem adorada como um.”
Elsa ouviu silenciosamente, desesperadamente, como uma alma
perdida esperando por salvação.
“Eu sou, como você vê, nada mais que um mercador de
nascimento comum. Eu conheço pouco dos ensinamentos de Deus.
Não posso lhe dizer o que é certo e o que é errado,” disse Lawrence,
consciente de que Holo provavelmente estava escutando a conversa.
“Mas não acredito que o padre Franz estivesse enganado.”
“Por que... por que você acredita nisso?”
Lawrence assentiu pensativo, tomando um momento para formar
sua opinião.
Era possível que ele estivesse totalmente errado. De fato, essa
possibilidade poderia ser a maior.
Mas ele sentia uma estranha certeza de que entendia o ponto de
vista do padre Franz.
Quando ele estava prestes a falar novamente, Lawrence foi
interrompido pelo som de uma batida na porta da igreja.
“…Deve ser Sem, o ancião. Imagino que ele esteja aqui para
perguntar sobre você e sua companheira.” Ela parecia ser capaz de
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 121 ⊱
dizer quem estava na porta com o som da batida; talvez isso tenha
vindo da necessidade de saber se o barulho era de alguém da Enberch.
Enxugando as lágrimas dos cantos dos olhos, levantou-se e olhou
para o interior da igreja. “Se você não puder confiar em mim, pode
sair por uma passagem perto do fogão perto do corredor. Se você
confia em mim—”
“Eu confio em você. Não sei se posso confiar em Sem.”
Elsa não balançou a cabeça nem assentiu. “Então, por favor, fique
na parte de trás da igreja,” ela falou. “Vou explicar que tenho
perguntado sobre as notícias das igrejas de outras terras. Não é
realmente uma mentira...”
“Compreendo. Ficarei feliz em compartilhar minhas
experiências,” respondeu Lawrence com um sorriso. Ele estava prestes
a fazer o que lhe foi dito e se esconder na parte de trás da igreja quando
percebeu que Elsa havia retornado a sua habitual rigidez.
Ele se perguntou naquele momento se ela o trairia. A resposta que
veio foi não, ela não iria.
Embora Lawrence não acreditasse em Deus, confiava naqueles
que o faziam.
Ele decidiu que não se importava com essas ironias.
Lawrence desceu o corredor mal iluminado. Por fim, ele viu o
brilho turvo da luz de velas vindo de um canto.
Não havia como Holo não ter ouvido sua conversa com Elsa, de
modo que se preparou para qualquer expressão que o aguardasse ao
virar a esquina.
Holo estava sentada de pernas cruzadas com um livro aberto no
colo. Ela levantou o rosto para ele, descontentamento escrito por toda
parte.
“Eu sou tão malicioso assim?”
CAPÍTULO III ⊰ 122 ⊱
Seu estado parecia estar empurrando-o para dizer algo que ele
normalmente não gostaria de dizer.
“Eu estava com inveja, mas não do relacionamento deles em si.”
Holo abraçou o joelho dela.
Lawrence continuou. “Eu deveria ter feito você desistir de
procurar este lugar.”
Ela olhou para ele, atordoada.
“Esses dois provavelmente vão morar juntos na igreja. A força e a
inteligência de Elsa farão com que ela passe pelo perigo e, embora eu
me sinta mal dizendo isso, Evan nunca será um mercador. Mas... e
quanto a nós?”
Lawrence pensou ter ouvido uma voz baixa, talvez o som de Holo
inalando.
“Eu obtive lucro em Kumersun. Você aprendeu mais sobre a sua
terra natal. E você provavelmente aprenderá ainda mais aqui e eu estou
ajudando você. É claro,” ali ele falou um pouco mais alto, percebendo
que Holo queria interromper — “claro, estou te ajudando porque
quero. Mas…”
Aquilo em que ele conseguira evitar pensar agora o confrontava.
Tendo chegado a este ponto, seria uma mentira dizer que a
situação era impossível de explicar.
Mas fazer isso os distanciaria mais do que soltar a mão de Holo ou
não confiar nela.
Não importa quão habilmente se evadisse, a hora sempre chegava.
“No entanto... o que você vai fazer depois que chegarmos na sua
terra natal?”
A sombra de Holo na parede se tornou maior, talvez por causa da
cauda embaixo de sua túnica subindo de repente.
Mas a própria Holo pareceu encolher.
CAPÍTULO III ⊰ 140 ⊱
“Eu sou Holo, a Sábia Loba,” ela murmurou, olhando para a vela
bruxuleante. “Eu sou a Sábia Loba de Yoitsu.”
Holo apoiou o queixo no joelho, depois se levantou devagar.
Sua cauda ficou inerte, como se fosse mera decoração.
Ela olhou primeiro para a vela colocada no chão, depois para
Lawrence.
“Eu sou Holo, a Sábia Loba de Yoitsu,” disse ela, como se a
sentença fosse um encantamento. Com um passo rápido, ela parou ao
lado dele e se sentou imediatamente.
Antes que Lawrence tivesse chance de dizer qualquer coisa, ela
estava deitada no colo dele.
“Você tem alguma queixa?” A impudência normal de Holo era
inegavelmente divina.
Mas dessa vez era totalmente diferente.
“Nenhuma,” disse Lawrence.
Nem as lágrimas nem a raiva nem o riso pareciam se ajustar a essa
delicada situação, que se enchia de tensão.
A vela queimava silenciosamente.
Lawrence descansou casualmente a mão no ombro de Holo
enquanto ela estava deitada em seu colo.
“Eu vou dormir um pouco. Você vai ler no meu lugar?
O rosto dela estava oculto pelos cabelos e Lawrence não conseguia
ver.
Mas ele sentiu quando os dentes dela travaram em seu dedo
indicador.
“Eu vou,” ele falou.
Era como um teste de coragem — não era muito diferente de ver
quão perto alguém conseguia levar a ponta de uma faca até o olho de
um gatinho.
CAPÍTULO III ⊰ 142 ⊱
Ele esperava que ela fizesse, caso contrário ela não teria vindo
imediatamente para baixo.
“Mais do que eu gostaria.”
Uma aldeia como Tereo era pequena demais para que um vigia
viesse avisar de um ataque mercenário.
Provavelmente tinha algo a ver com Enberch.
Mas a crise já não passou?
Elsa trotou até a janela e espiou pela fresta, como ela sem dúvida
fizera muitas vezes no passado.
Sem surpresa, o cavalo parecia ter parado em frente à casa do
ancião da vila.
“Eu só sei o que consegui juntar, mas, julgando pelos papéis em
sua mesa, Enberch não deveria ser capaz de atacar, deveriam?” disse
Lawrence.
“Os olhos de um mercador são realmente afiados. Mas sim. Eu
também acredito nisso. Contudo —”
“Se você vai me dizer que a situação seria diferente se eu tivesse
te traído, eu deveria amarrá-la imediatamente.”
Não intimidada, Elsa olhou para Lawrence.
Ela logo desviou o olhar.
“De qualquer forma, sou um viajante. Se as coisas vão mal, minha
posição se torna muito perigosa. Há dezenas de contos de mercadores
que se envolveram em problemas locais e perderam tudo.”
“Enquanto eu estiver aqui, não vou permitir que nada assim
aconteça. Mas por favor, vá e feche a adega. Se houver problemas com
Enberch, o ancião certamente virá para cá.
“E por que razão estamos aqui tão tarde da noite?”
CAPÍTULO III ⊰ 148 ⊱
Para uma aldeia agrícola que criava trigo, sua aparição era uma
calamidade tão ruim quanto a seca ou a inundação.
O que era verdadeiramente assustador sobre o trigo não era o
sofrimento e a morte que causava.
O que o tornava tão terrível era que quando o Fogo do Inferno de
Ridelius fosse descoberto na colheita de um ano, nenhum grão poderia
ser comido.
“E ninguém da nossa vila foi envenenado?” Perguntou Sem.
“Eu não sei, ancião. A velha Jean está doente na cama, mas é
apenas um resfriado,” disse um aldeão.
“O novo trigo foi usado apenas para assar pão para o festival da
colheita, certo? Então, pelo menos, sabemos que o trigo que moemos
antes disso é seguro.”
A grande rocha plana na praça da aldeia parecia ser o lugar onde
os aldeões se reuniam para discutir assuntos importantes.
O fogo ficou vermelho enquanto os aldeões com cara de sono
esfregavam seus olhos e observavam os líderes expressarem várias
opiniões.
“Hakim disse que um sapateiro comeu pão feito de trigo que ele
comprou de Riendott e morreu. Seus membros ficaram roxos e ele
sofreu muito. O Conselho de Enberch logo descobriu que era feito
com o trigo da nossa aldeia. Hakim voltou para Tereo imediatamente,
então ele não sabe o que aconteceu depois disso, mas podemos
adivinhar. O senhor feudal, duque Badon, enviará um mensageiro para
garantir o retorno do trigo. Podemos esperar um enviado oficial de
Enberch ao amanhecer, sem dúvida.”
“Retornar o trigo... Isso significa...”
Ao ouvir o murmúrio do estalajadeiro, todos reunidos no círculo
ficaram em silêncio.
Foi Iima quem finalmente falou. Ela era uma das poucas mulheres
que se juntaram ao encontro na pedra.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 153 ⊱
“De fato, não é. Uma vez que o trigo venenoso é misturado com
o trigo real, toda a colheita é perdida. A colheita deste ano foi ótima
— mas ano passado não foi.”
Uma vez que o trigo fosse semeado e colhido, conseguir o triplo
a quantidade semeada era aceitável. Quadruplicar a quantidade era
uma excelente colheita. Uma vez que o grão para semear no próximo
ano havia sido perdido, a quantidade reservada no caso de uma safra
ruim era limitada.
Era possível que os aldeões já tivessem comido a reserva do ano
passado, tendo contado com a boa colheita deste ano.
De qualquer forma, o suprimento de comida da aldeia estava em
apuros.
E eles não tinham dinheiro para comprar trigo novo.
“O que devemos fazer? A pobreza é suportável, mas não a fome!”
“De fato. No entanto, eu...” Sem continuou a falar, ele foi
interrompido quando um homem ao lado do estalajadeiro se levantou
de repente e apontou para Lawrence e Holo.
“Foram eles que misturaram trigo venenoso com a colheita! Eu
perguntei a ele, e ele admitiu ter trago trigo! Ele está aqui para arruinar
nossa colheita e depois nos forçar a comprar o trigo dele!”
Lawrence imaginou que isso aconteceria.
Ele também sabia que Sem não havia trago ele e Holo para a praça
por maldade.
O ancião sabia que havia uma boa possibilidade de que, se
Lawrence e Holo estivessem ausentes, os aldeãos pegassem as armas
na mão e os procurassem com desconfiança e dúvida em seus corações.
“D-deve ser isto! Ele foi até Evan sozinho para moer seu trigo!
Não, Evan está com ele e estão tentando destruir a aldeia!”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 155 ⊱
Se Sem tivesse sido seu inimigo, então Lawrence não teria escolha
a não ser pedir a ajuda de Holo.
Enquanto os aldeões se dispersavam, Sem se aproximou de Elsa,
com seu bastão na mão. “Elsa, eu sei que isso é difícil, mas, por favor,
aguente.”
Elsa assentiu silenciosamente. Sem se virou para Iima em seguida.
“Iima, por favor, vá com Elsa para a igreja. Os mais raivosos
podem tentar entrar.”
“Você pode contar comigo,” disse Iima.
Lawrence imediatamente entendeu as relações de poder dentro
da aldeia.
Mas onde isso colocava ele e Holo?
“Sr. Lawrence,” Sem finalmente disse, se virando para encará-lo.
“Como os outros aldeões, tenho minhas dúvidas sobre você. O tempo
é muito coincidente. No entanto, espero que você não me ache tão
tolo que eu imediatamente pularia para uma conclusão.
“Se eu estivesse no seu lugar, ancião, eu diria a mesma coisa,”
respondeu Lawrence.
Sua velhice fazia sua testa enrugar constantemente, mas ele
parecia um pouco aliviado. “Tanto para sua própria segurança quanto
para evitar que as suspeitas crescessem ainda mais, infelizmente terei
de pedir que você venha a minha casa.”
Holo e Lawrence tiveram a sorte de não terem sido amarrados
sem nenhuma explicação. Se eles tivessem resistido, parecia a
Lawrence que um derramamento de sangue teria acontecido.
Ele assentiu cooperativamente e caminhou em direção à casa de
Sem, seguindo este e os aldeões.
CAPÍTULO IV ⊰ 158 ⊱
Mas parecia que ele não tinha paciência para rodeios com questões
sutis que fariam a verdade vir à tona.
Ele respirou fundo, ofegante, seus olhos implorando. “Você não
veio aqui sob as ordens de Enberch? Se você veio, quanto — quanto
pagaram a você?”
“Nós viemos pelo caminho de Enberch, mas foi apenas uma parada
em nossas viagens. É por nossos próprios objetivos que procuramos a
Abadia de Diendran.”
“Chega de mentiras!” Sem gritou rouco, se inclinando para a
frente, sua expressão quase monstruosa à luz das velas.
“Não temos nada a ver com a disputa entre Enberch e Tereo. Eu só
entendi o problema reunindo o que ouvi em sua taverna, coisas que
aprendi falando com Evan e Senhorita Elsa, e pela minha própria
experiência,” disse Lawrence.
Sem temia a possibilidade de que Lawrence e Holo fossem espiões
de Enberch.
O problema do trigo venenoso não se centrava na heresia e na
Igreja — era sobre dinheiro.
Dependendo das negociações, a aldeia não estava necessariamente
condenada.
Mas se a Igreja se envolvesse, não seria tão simples.
“V-você... você realmente não é de Enberch?” Sem
provavelmente estava ciente de que nenhuma resposta que eles dessem
o convenceria completamente.
Mas ele tinha que perguntar, e Lawrence só podia responder de
uma maneira.
“Nós realmente não somos.”
Sem olhou para baixo, seu rosto era uma máscara de sofrimento,
como se ele tivesse engolido um pedaço de ferro em brasa. Mesmo
sentado, ele teve que apoiar seu corpo com sua bengala.
CAPÍTULO IV ⊰ 166 ⊱
seja tão descuidado que o misture com trigo com pureza suficiente para
matar um homem.”
Lawrence concordou. “Então se conclui que alguém fez isso
intencionalmente,” disse ele.
“Os aldeões culparão o viajante, já que os forasteiros são sempre
suspeitos,” disse Sem.
“E depois disso, Evan, o moleiro.”
Sem assentiu e depois assentiu novamente. “Falei com Elsa há
pouco, e ela acredita que Enberch seja responsável. Eu sou patético.
Eu acreditava que, desde que pudéssemos plantar trigo e vendê-lo
facilmente, teríamos paz. Não pensei em mais nada.”
“Quando o mensageiro de Enberch chegar, ficará claro se isso tudo
é obra deles ou não. Se possível, eu gostaria de falar com Elsa antes
disso,” disse Lawrence.
Todos os conselhos que Lawrence tinha dado a Sem foram
simplesmente uma preparação para essa frase.
“Entendido.” Sem se levantou e abriu a porta, dando ao aldeão
algumas breves instruções. Ele então se virou para Lawrence. “Este
homem vai levá-lo até ela.”
Sem se agarrou à sua bengala enquanto se afastava para Lawrence
e Holo passarem.
“Embaraçosamente… isso custou um bocado nesse meu corpo
antigo. Por favor, me diga o que você planejou depois.”
O aldeão apressadamente empurrou a cadeira em que estava
sentado. Sem se sentou, aparentando dor em suas feições.
Embora fosse conveniente que Sem não os estivesse seguindo para
a igreja, ele também era o único que poderia proteger Holo e
Lawrence da ira dos aldeões.
Lawrence certamente esperava que tudo isso fosse resolvido
pacificamente.
CAPÍTULO IV ⊰ 172 ⊱
apenas por causa do legado de meu pai. É tudo o que posso fazer para
convencê-los a continuar esse apoio. Se eu pedir mais, corro o risco de
perder o que tenho,” disse Elsa.
“...Sem dúvida.” Lawrence pigarreou. “Então, Senhorita Elsa —
o que você acha que acontecerá conosco agora?”
Um clérigo típico lhe diria que, enquanto confiasse na graça de
Deus, não havia necessidade de se preocupar, que Deus conhecia a
verdade.
Um sorriso dançou nos cantos da boca de Elsa. “Você está me
perguntando?” Ela falou em voz baixa.
“Aqueles que melhor podem me dizer como a peça de Enberch vai
acabar são você e Iima.”
“Assim como vocês duas, não concorda?”
Elsa claramente não queria falar isso.
Sobre a questão de que tipo de pedidos o mensageiro de Enberch
traria e quem seria levado de volta a Enberch em troca do trigo,
Lawrence e Elsa tinham uma única opinião.
Lawrence assentiu, depois olhou para Holo ao lado dele.
Sob o capuz, ela parecia sonolenta.
Ela estava bem ciente do que seu papel seria em breve, então ela
parecia estar dizendo: “Deixe-me descansar até lá.”
Lawrence de repente olhou para Elsa. “Estamos planejando
escapar,” disse ele casualmente.
Elsa ficou imóvel. No máximo, o rosto dela mostrava desprezo,
como se estivesse lidando com uma criança particularmente densa e
lenta. “Acredito que o tempo para a fuga passou há muito tempo.”
“Você acha que Enberch já tem a estrada sob vigilância?”
“Isso é bem possível. Se eles de fato planejaram tudo isso, então
também precisariam de vocês dois.”
CAPÍTULO IV ⊰ 178 ⊱
Deixando Holo com a leitura, ele não disse mais nada, nem olhou
para trás. Holo respirou fundo como se já tivesse esquecido sua
presença.
No momento seguinte, ele ouviu uma virada de página decidida.
Enquanto caminhava pelo corredor escuro, Lawrence bateu na
cabeça com o punho fechado, tentando pensar em outra coisa.
Elsa não desistira de tentar restaurar a posição da aldeia. Se o
conhecimento e experiência que Lawrence possuía pudesse ser de
alguma ajuda, ele emprestaria.
Além disso, no fundo de sua mente, ele estava procurando as
palavras que precisaria para persuadir Evan a fugir com ele se o pior
acontecesse.
“Oh, Sr. Lawrence, você não vai ficar com ela?” Veio a pergunta
surpresa de Evan quando Lawrence voltou para o quarto.
Percebendo a mudança de humor, Elsa retirou casualmente a mão
de Evan, enxugando os cantos dos olhos. Holo nunca foi doce assim.
“Ah, se for melhor eu estar em outro lugar, eu posso me retirar.”
Elsa limpou a garganta e Evan ficou branco.
Lawrence se perguntou se ele também ficava assim, mas não tinha
o luxo de tais preocupações inúteis no momento.
Sem dúvida, Elsa também preferiria estar ao lado de Evan, sem
precisar se preocupar com nada.
Ela logo recuperou sua expressão neutra.
“Bem, então, como meu conhecimento e experiência podem
ajudá-la?”
“Eu ouvi do Élder Sem antes que, se todo o trigo for devolvido,
teremos apenas setenta limar.”
O limar era uma moeda de ouro equivalente a vinte moedas de
prata, o que significava que a dívida chegaria a cerca de mil e
quatrocentos trenni.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 183 ⊱
uma mentira recebe toda a confiança?” Falou Elsa, com a palma da mão
contra a testa.
Essas coisas aconteciam nos negócios o tempo todo.
Lawrence tinha visto inúmeras de brigas em que a parte que atirou
a primeira pedra acabou ganhando.
Era comum dizer que, embora Deus revele a forma da justiça, Ele
a põe à prova.
O sentimento de impotência de Elsa era compreensível.
“O nosso destino não nos levará a lugar algum,” disse Lawrence.
Elsa assentiu com a cabeça ainda descansando nas mãos. Ela olhou
para cima e falou. “Verdade. Eu não posso chorar agora, meu pai...
Padre Franz, ele iria... iria...”
“Elsa!”
Suas pernas pareciam perder toda a sua força e ela estava prestes a
desmoronar, mas Evan conseguiu pegá-la um pouco antes.
Ela parecia exausta, com os olhos semicerrados e sem foco. Ela
tinha a mão pressionada na cabeça por causa da tontura — anemia,
talvez.
“Eu vou buscar Iima,” disse Lawrence.
Evan assentiu, depois deitou Elsa gentilmente, empurrando a
cadeira para o lado.
Elsa desmaiou antes, quando Lawrence e Holo revelaram a
verdade da existência de Holo.
Essa líder de uma igreja que ninguém frequentava — ela não era
tão diferente de um deus sem adoradores.
Sem dízimos nem ofertas, ela só tinha um pobre moleiro como
companhia.
Não importava como os dois dividissem seu pão escasso, isso ainda
seria um sofrimento intolerável, Lawrence poderia ver.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 185 ⊱
Era um chute.
Lawrence encolheu os ombros e deu um aceno vago.
Iima riu com vontade. “Ha! Essas coisas realmente acontecem, eu
me pergunto.”
“Sem dúvida, o duque que te encontrou se sentiu da mesma
maneira.”
Iima sorriu, então tocou sua bochecha pensativamente. “Eu
certamente ouvi essas histórias em minhas viagens, mas e pensar... eu
acho que você está falando de sua companheira?”
O chute foi certeiro.
“Eu não posso exatamente mentir em uma igreja.”
“Certamente. Bem, eu sou apenas a dona da taverna e posso estar
bêbada o ano todo. Tudo o que desejo é que esta aldeia seja boa. Sinto
muito por te atrasar.”
Lawrence sacudiu a cabeça. “De modo nenhum.”
Iima sorriu. “Eu ouvi dizer que para capturar uma fada da sorte
em uma garrafa, você precisa usar licor feito de néctar. É o licor que
também me atraiu para esta aldeia.”
“Vou me certificar de usar o vinho da próxima vez que estiver com
problemas,” disse Lawrence com um sorriso ao se virar e voltar para a
escuridão.
Indo em direção à parte de trás do santuário onde esperava
encontrar Holo, ele contornou a segunda esquina apenas para dar de
cara com a parede.”
Ou foi o que ele pensou — mas o que estava diante dele era um
livro grosso e pesado.
“Idiota. Como se eu fosse ceder a uma simples bebida.”
Lawrence pegou o livro, esfregando o nariz. Ele deu uma olhada
para Holo.
CAPÍTULO IV ⊰ 190 ⊱
como gostariam? Se você for fugir, decida logo. Seria melhor fugir no
escuro da noite.”
“Elsa e eu sabemos do nosso destino se ficarmos aqui. Precisamos
ter certeza do que faremos, mas, nesse caso, acho que a discrição muito
importante.”
“Uma ideia ruim é pior do que nada,” disse ela com um bocejo, de
pé. “Ainda assim, se chegar a esse ponto, você vai tomar um grande
prejuízo.”
“Não tenho o que fazer. Não é como se pudéssemos levar o trigo
conosco.”
“Mesmo assim, você não parece muito chateado com isso.”
“Não?” Perguntou Lawrence, acariciando o queixo. Não era a
primeira vez que ele era pego nesse tipo de disputa. Às vezes, as perdas
eram inevitáveis.
Era verdade que seu lucro em Kumersun havia excedido e muito
as suas expectativas, mas mesmo assim, Lawrence ainda se surpreendia
com a própria calma.
E em todo caso, a vida de um viajante era algo barato para uma
aldeia isolada. Saber que sua própria vida não estava realmente em
perigo já era lucro suficiente.
“Ainda assim, mesmo com as coisas como estão, há algumas coisas
caras que provavelmente podemos salvar,” disse Lawrence.
“A pimenta, certo?”
Qualquer mercador teria pensado a mesma coisa. Pimenta e
outras especiarias eram caras porque eram escassas. No entanto, se eles
não conseguissem estocar nada, não havia sentido em falar sobre
transportá-lo.
Algo ocorreu a Lawrence enquanto pensava sobre isso. “Há um
produto caro e ainda mais leve do que as especiarias que podemos
trazer conosco.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 195 ⊱
“Oh?”
“É a confiança.”
Holo deu a Lawrence um olhar raro de admiração, depois sorriu
maliciosamente. “Vou esperar para vender a confiança que você
deposita em mim até que ela fique um pouco mais valiosa.”
“Você tem alguma ideia do quanto eu me tornei paranoico desde
que sou provocado tão impiedosamente por você?”
Holo riu, depois passou o braço ao redor de Lawrence. “Eu
suponho que terei que fazer as pazes com você.”
“Este é exatamente o tipo de coisa que aprendi a desconfiar.”
Holo não se movia; ela estreitou os olhos. “Mentiras só vão
diminuir o valor da sua confiança.”
Ela nunca jogou justo.
“Mesmo assim, você nunca me culpou por esse problema em que
estamos, e por isso sou muito grata.”
“Hã?”
“Se eu não tivesse insistido em vir aqui, você não estaria sofrendo
esse prejuízo.”
Então ela estava jogando assim agora, Lawrence refletiu.
No entanto, esses provavelmente eram seus verdadeiros
sentimentos.
“Bem, o que você acha de moderar sua alimentação e bebida por
um tempo para compensar a perda, hm?”
Holo gemeu. “Você certamente está menos contido.”
“Fique à vontade para tomar as rédeas e —” começou Lawrence,
enquanto colocava a folha de pergaminho de volta entre as páginas do
livro. Seus olhos se encontraram.
CAPÍTULO IV ⊰ 196 ⊱
Uma vez que soube que havia uma passagem para fora do porão,
esse foi o primeiro lugar que Lawrence olhou. Depois de bater algumas
vezes na parede, ficou claro que além dela havia um espaço oco. Ele
chutou, provocando rachaduras na argamassa entre as pedras e
eventualmente a quebrando.
Além da parede havia um túnel perfeitamente redondo — tão
redondo que era sinistro.
Era menos uma passagem e mais de uma caverna ou algo do tipo.
“Vamos?” disse Lawrence.
Sob o olhar vigilante da Santa Madre, Evan e Elsa assentiram.
Iima provavelmente ainda estava acima deles na porta da igreja,
impedindo os aldeões de fazer qualquer coisa imprudente.
Lawrence respirou fundo e, com a vela na mão, entrou no túnel.
Holo seguiu imediatamente atrás dele, com Elsa e Evan na retaguarda.
Ainda havia muitos livros não lidos no porão. Em um deles podia
muito bem ter contos sobre os antigos companheiros de Holo.
E, do ponto de vista estritamente mercantil, os volumes
magnificamente encadernados valiam uma fortuna.
Lawrence queria muito trazer um para aumentar seus fundos de
viagem, mas não teve coragem de tentar trazer um livro repleto de
histórias pagãs ao longo de uma viagem dessas.
Em caso de problemas, um livro era silencioso e inútil, ao passo
que a estranha garota com orelhas e cauda conseguia reunir eloquência
que nenhum mercador poderia igualar.
E então Lawrence foi mais a fundo no túnel.
Seu corpo foi imediatamente cercado por um frio estranho. O
túnel não era alto o suficiente para ficar em pé; ele teve que abaixar a
cabeça ligeiramente para passar. Era estreito o suficiente para que
pudesse tocar os dois lados simultaneamente com as mãos estendidas.
Felizmente, o ar não parecia velho ou mofado.
CAPÍTULO V ⊰ 204 ⊱
“Eu também não acho que o Ancião vai incitar os aldeões a pegar
em armas,” disse Elsa.
“Não que os aldeões tivessem coragem suficiente para fazer isso
de qualquer forma,” acrescentou Evan. Sua crítica não foi imprecisa.
Dado tudo isso, o melhor momento para Lawrence e companhia
aparecer era claro.
“Então devemos entrar depois que Sem se curvar às exigências de
Enberch,” disse Elsa.
“O milagre vai acontecer como eu acabei de explicar,” disse
Lawrence.
Elsa assentiu, olhando para Evan. “Evan, você vai ficar bem?”
Ela se referiu à tarefa que havia ficado com ele.
Mais do que qualquer outra pessoa, sua vida estava em risco.
E mais do que qualquer outro, ele tinha que confiar em Holo.
Ele olhou para Holo. “Ora, não é nada — se eu tivesse que comer
o trigo envenenado, você tem que me matar antes que eu morra do
veneno.” Os dedos dele tremeram um pouco.
Sem dúvidas ele disse isso para parecer forte diante de Elsa, mas
Holo não o culpou.
“Eu vou engolir você em uma única mordida. Não vai doer nem um pouco,”
ela respondeu alegremente.
“Então, uma vez que tenhamos produzido esse milagre,
deixaremos os negócios para você, senhor Lawrence,” disse Elsa.
“Obviamente, esperamos que eles simplesmente levem o trigo de
volta ao local, mas sim, eu vou lidar com isso.”
Elsa assentiu e juntou as mãos. “Que a bênção de Deus vá
conosco.”
Holo então falou baixinho.
“Eles chegaram.”
o total, dezesseis carroças puxadas por cavalos entraram
em Tereo, cada uma carregando três ou quatro grandes
sacos de estopa.
Havia vinte e três lanceiros, juntamente com homens
equipados com escudos e manoplas que se pareciam muito com
soldados de infantaria que acompanhavam cavaleiros.
Havia quatro clérigos a pé perto de um vagão. Era impossível
saber quantos estavam dentro de sua carruagem coberta, embora Elsa
dissesse que provavelmente continha o Bispo Van e seu assistente.
Também viajando com a procissão estava um homem
rechonchudo que parecia ser um mercador. “Ah,” Lawrence
murmurou para si mesmo ao reconhecê-lo.
CAPÍTULO VI ⊰ 234 ⊱
“Elsa, porque —”
“Sinto muito, Sra. Iima.”
Iima se virou para Lawrence, sem entender o rosto.
Antes que Lawrence pudesse responder, o Bispo Van falou de
onde estava na pedra. “Deus, o que temos aqui? Ninguém menos que
a senhorita Elsa, a sucessora do padre Franz!”
“Já faz algum tempo, Bispo Van,” disse Elsa.
“Eu fui levada a acreditar que você tinha escapado de Tereo. O
peso do seu pecado foi demais para a sua consciência?”
“Deus sempre perdoa.”
O Bispo Van pareceu momentaneamente intimidado pela resposta
firme de Elsa, mas ele se recompôs rapidamente e sussurrou algo no
ouvido do padre que estava ao lado dele.
O padre limpou a garganta, depois pegou uma folha de
pergaminho e, segurando-a, leu em voz alta.
“Nós, a Igreja Enberch de São Rio, acreditamos e declaramos que
a aldeia de Tereo orou a divindades pagãs e, além disso, acrescentou o
licor de Khepas ao seu trigo para prejudicar os fiéis da única fé
verdadeira. Enquanto os fiéis da única fé verdadeira sofrem e morrem,
nem um único cidadão de Tereo adoeceu. Como eles comem do
mesmo trigo, isso não pode ser mais que uma prova de que a aldeia é
protegida pelas divindades do mal que eles adoram.”
Quando o padre terminou seu pronunciamento, o Bispo Van
continuou. “Como estipulado no contrato assinado com o Padre Franz,
primeiro devolveremos este trigo. Além disso, restabeleceremos uma
igreja santa e justa. Quanto ao falso servo de Deus, que usa a pele de
um cordeiro, mas por baixo é uma serpente mentirosa, ela enfrentará
o julgamento do Nosso Senhor.”
Quando ele terminou, os soldados com escudos desembainharam
as espadas e as apontaram para Lawrence e companhia.
CAPÍTULO VI ⊰ 240 ⊱
Mas Elsa não deu nem um passo atrás. “Isso não será necessário,”
disse ela friamente. “É verdade que minha fé às vezes foi mal colocada.
Mas o Deus todo-poderoso me mostrou o verdadeiro caminho. Eu
conheci um dos seus divinos mensageiros!”
O Bispo Van estremeceu, depois olhou para o padre ao seu lado,
com a testa franzida.
O padre disse algo para ele em voz baixa e breve.
Van levantou uma mão. “O fato de você afirmar tão facilmente ter
encontrado um mensageiro divino é meramente prova de sua heresia!
Se eu estiver errado, traga a prova diante de mim!”
O peixe mordeu a isca.
Elsa olhou primeiro para Evan, depois para Holo.
O moleiro e a garota lupina assentiram.
“Se você tiver dúvidas, vamos te mostrar!”
Evan e Holo dirigiram-se diretamente para os vagões cheios de
trigo, mas, quando se aproximaram, os lanceiros prepararam-se para
afastá-los.
Van deu um riso irônico. “Deixe-os passar!” Ele disse.
Evan segurou na mão um grão de trigo que ele havia recebido de
Holo.
Elsa observou os dois irem e se dirigiu para a pedra de reunião,
ignorando os protestos de Iima.
“A adoração de Truyeo, o deus serpente, é realmente um erro,”
disse ela.
Os aldeões que estavam no topo da pedra de reunião olharam para
Elsa como se ela os tivesse forçado a engolir uma pedra.
“No entanto, esse erro não é em si fundamental.”
Ela subiu os degraus que levavam à pedra, passou direto pelo Bispo
Van e se ajoelhou diante do totem de Truyeo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 241 ⊱
“Por favor, abençoe este cálice. Depois de ter feito isso, Evan, o
moleiro, provará a verdade dos ensinamentos de Deus.”
O Bispo Van fez o que lhe foi pedido, pegando o cálice e falando
apressadamente. “O que exatamente você pretende fazer com isso?”
“Até os pobres podem ser batizados em Deus. Eu quero que você,
Bispo Van, purifique este cálice.”
Van ficou impressionado e incapaz de protestar. Ele deu ao padre
assistente um olhar de angústia. O padre, por sua vez, ordenou que os
outros clérigos buscassem um pouco de água.
Eles logo retornaram carregando água, que a entregaram à Van.
Qualquer água derramada por um clérigo da Igreja se tornava
santa e pura.
O cálice, agora cheio de água benta, brilhava nas mãos do Bispo
Van.
“Leve a água agora para o moleiro,” disse Elsa. Ela se absteve de
fazer isso sozinha, para ter certeza de que ele não encontraria nenhuma
falha.
Desta forma, a pretensa justiça do clero seria transferida para Evan
no próprio ato de lhe dar a água.
“Observe de perto,” disse Elsa.
Ela se virou para Evan e assentiu. Ele acenou de volta com
firmeza.
Evan pegou uma pequena faca e subiu em cima de cada um dos
vagões, abrindo um saco de estope em cada, tirando um pouco de
farinha do saco e colocando-o no cálice.
Era óbvio para todos o que ele planejava fazer.
Todos os olhos estavam no jovem moedor de trigo. Os aldeões
nervosos engolindo em seco eram quase audíveis.
CAPÍTULO VI ⊰ 244 ⊱
Para provar que isso não era um falso milagre criado por um
demônio, o bispo teria que produzir um verdadeiro milagre de Deus.
“Bispo Van.”
Elsa pegou o cálice de Evan e o estendeu para Van.
Riendott caiu para trás.
Van estava congelado, incapaz de se mover.
Ele não podia aceitar o cálice diante dele.
“M-muito bem. Isto é um milagre. Um verdadeiro milagre.”
“E a igreja desta vila?” Veio a rápida demanda de Elsa.
Van não tinha nem as palavras nem o milagre que ele precisava
para responder. “É... legítima,” ele rosnou. “Uma igreja legítima.”
“Vou pedir que você escreva isso,” disse Elsa.
Ela finalmente mostrou um sorriso quando se dirigiu ao Ancião e
aos aldeões e, reverentemente, segurou o totem de Truyeo.
O Bispo Van não podia reclamar nem exigir que os aldeões
parassem de adorar a Truyeo, uma condição que eles acolheram de
bom grado.
Elsa se apresentou de maneira admirável.
Embora, sob a fina camada de coragem que a deixara confrontar
o Bispo Van sem hesitar, a incerteza e o medo certamente rodopiavam
dentro dela.
Ela respirou profundamente, limpou os cantos dos olhos, e
inclinou a cabeça, as mãos entrelaçadas em oração.
Embora fosse impossível saber se ela estava orando a Deus ou ao
padre Franz, qualquer um teria elogiado suas ações.
Holo veio correndo para o lado de Lawrence. Ele a observava
como um espectador.
CAPÍTULO VI ⊰ 246 ⊱
Então Lawrence não exigiu uma parte dos lucros. Em vez disso,
ele pediu aos aldeões que comprassem o trigo que carregava em sua
carroça com umas moedas extras incluídas como pedido de desculpas.
Se o pessoal da Tereo planejava transformar os biscoitos em uma
especialidade local, eles tinham muito trabalho duro pela frente.
Mas a delícia dos biscoitos pelo menos era garantida.
Afinal, nos três dias desde o fim da disputa, Holo não havia comido
mais nada.
Qualquer um que comesse os biscoitos pela primeira vez, seu
sabor e textura poderiam ser viciantes.
“Bem, então, é hora de ir,” disse Lawrence.
Holo estava alegremente espalhando migalhas por todas as páginas
de um dos livros do padre Franz. Ela olhou para cima, irritada com o
aviso que Lawrence lhe dera.
Elsa estava do lado de fora da igreja, rezando intensamente sobre
a carroça de Lawrence por uma viagem segura, enquanto o Ancião e
os aldeões decidiram por conta própria rezar para Truyeo para que os
negócios de Lawrence prosperassem.
A atitude dos aldeões em relação à igreja havia mudado. Alguns
até começaram a frequentar cultos por gratidão.
Sem dúvida, no futuro, Tereo adoraria dois deuses.
Holo se levantou da cadeira em que estava sentada, pegando um
biscoito de uma montanha na mesa e o segurou entre os dentes.
“Você sabe que temos pilhas dessas coisas na carroça. Foi a mesma
coisa quando você comprou mais maçãs do que poderíamos comer,
você não terá nada além de biscoitos nas refeições,” advertiu
Lawrence.
Holo deu uma mordida no biscoito com um ruído alto, olhando
para Lawrence irritada. “Uh, quem foi, imagino, que separou o trigo
EPÍLOGO ⊰ 258 ⊱
bom do mal e criou esse milagre? Se eu não estivesse lá, você teria sido
jogado nu em um caldeirão e fervido vivo.”
Doía em Lawrence ouvir isso, mas Holo estava comendo biscoitos
a um ritmo absurdo — até mesmo os aldeões, que sentiam que lhe
deviam um grande favor, ficaram aturdidos em silêncio ao vê-la
devorar as guloseimas.
Ele sentiu que poderia alertá-la um pouco sem correr o risco de
retribuição.
“Mmph,” continuou Holo. “Certamente demos de cara com a
catástrofe desta vez.”
Foi uma mudança forçada de assunto, mas ela não estava errada.
“Bem, pelo menos nós conseguimos um lucro no final.”
“É só com isso que você se importa?” Holo riu, suas bochechas
cheias de biscoito. “De minha parte, não posso dizer que minhas
expectativas foram correspondidas, mas fiz bem o suficiente. Eu
suponho que o esforço valeu a pena.”
Ela olhou para o livro que registrava os contos do Urso Caçador
da Lua — que ela agora lera três vezes — e suspirou. “Então, para
onde vamos a seguir?”
“Lenos. Há uma lenda em que você aparece pessoalmente.”
“Mm. Suponho que seria um incômodo ficar preso na neve porque
nós demoramos demais. É melhor seguirmos em frente.”
Lawrence sabia que o verdadeiro desejo de Holo era se dirigir para
o norte o mais rápido possível, mas quando considerou a jornada que
estava por vir, não era de admirar que a ideia de descansar em uma vila
repentinamente confortável fosse atraente.
Ele ficou um pouco surpreso por ela estar pronta para ir depois de
apenas três dias.
“Vamos?” Ela disse.
“Certamente.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 259 ⊱
— Isuna Hasekura
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 266 ⊱
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 269 ⊱
OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/
Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.