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PUBLICADO

10.02.2007
C ontinuando sua jornada rumo ao norte, Lawrence e Holo
param na vila de Tereo na esperança de encontrarem uma abadia
local, onde poderiam descobrir mais informações sobre o destino
do antigo lar de Holo, Yoitsu. No entanto, logo após sua chegada
eles são pegos em uma disputa local entre Tereo e a cidade vizinha
de Enberch, o que poderia custar a Lawrence e Holo suas
fortunas e vidas! Com a ajuda da Sábia Loba, será que Lawrence
será capaz de conceber um plano para salvar uma cidade inteira
da ruína — e a sua pele e a de sua companheira no processo?
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
“NÓS PRECISAMOS
ENCONTRAR UM
CERTO MONASTÉRIO —
A ABADIA DIENDRAN,
SOB OS CUIDADOS DA
ABADESSA LOUIS
LANA SCHTINGHILT.”

“EU NÃO CONHEÇO ESSE LUGAR.”


— ELSA SCHTINGHEIM
A GAROTA QUE ADMINISTRA A IGREJA
SPICE & WOLF VOL I ⊰6⊱

“ENTÃO... O QUE VOCÊ VAI FAZER QUANDO


ALCANÇARMOS A SUA TERRA NATAL?”

“EU NÃO SEI.”


“POR ACASO... ACONTECEU
ALGUMA COISA?”

O ALDEÃO
SEGURANDO O
CAJADO DEU UM
PASSO A FRENTE.
LAWRENCE
PERCEBEU E
PAROU.

“NÓS PODEMOS SER INCONVENIENTES


PARA VOCÊS POR UM TEMPO . POR
FAVOR ENTENDAM.”
— SEM, O ANCIÃO DA VILA DE TEREO
CAPÍTULO I ............................................................... 9
CAPÍTULO II ............................................................ 51
CAPÍTULO III ........................................................... 96
CAPÍTULO IV .........................................................151
CAPÍTULO V ..........................................................202
CAPÍTULO VI .........................................................233
EPÍLOGO ................................................................255
POSFÁCIO ..............................................................262
EXTRAS ..................................................................264
s seis dias de viagem no inverno tinham cobrado seu
preço.
Embora tenha sido sorte não haver neve na estrada, ainda
fazia muito frio.
Os cobertores que tinha comprado estavam mais próximos de
placas semi-macias do que de roupas de cama de fato. Qualquer coisa
que pudesse plausivelmente afastar o frio foi colocada sob esses
cobertores.
A coisa mais quente de todas, naturalmente, seria outra criatura
de corpo quente, de preferência uma com pelo.
Se tal criatura pudesse falar, bom — isso seria um problema.
CAPÍTULO I ⊰ 10 ⊱

“Não posso deixar de pensar que sou eu quem sai perdendo nesse
acordo.”
O céu estava ficando ligeiramente mais claro e os últimos vestígios
da noite ainda acariciavam seu rosto, como se estivessem relutantes em
sumir.
Normalmente, depois de ser despertado pelo frio, ele ficava
observando o céu empalidecido por um tempo, sem vontade de sair
dos cobertores — mas hoje, sua companheira peluda estava,
obviamente, de péssimo humor.
“Olha, eu já disse que sinto muito.”
“Oh, sim, se for sobre quem está errado e deve se desculpar,
certamente é você. Eu te ajudo a afastar o frio da melhor maneira que
posso, e ainda sou generosa o suficiente para não te cobrar o favor.”
O jovem enterrado debaixo dos cobertores, com o rosto exposto
e olhando para o céu, era Kraft Lawrence. Ele virou a cabeça para a
esquerda.
Lawrence tinha se iniciado como mercador quando tinha dezoito
anos — faz sete anos — e ele tinha uma boa dose de confiança em sua
capacidade de enrolar na conversa até o cliente mais exigente.
Mas mesmo este mercador experiente se viu sem palavras quando
confrontado por sua companheira, que estava à sua direita,
direcionando a ele um fluxo descontente de palavras combinadas com
um olhar agudo.
A garota com os olhos vermelho rubi e cabelos castanhos se
chamava Holo.
Era um nome raro, mas não era a única coisa rara sobre ela.
Afinal, ela tinha um par aguçado de orelhas de lobo no topo da
cabeça, e uma esplêndida cauda lupina que brotava de sua cintura.
“E mais! Há coisas que se podem e que não se podem fazer, certo?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 11 ⊱

Holo provavelmente não ficaria irritada a este ponto se Lawrence


tivesse feito algo tão facilmente compreensível como assediá-la
enquanto ela dormia, com ele entorpecido pelo sono.
Ela simplesmente o zombaria sem piedade até que ele mal
conseguisse ficar de pé, depois soltaria uma gargalhada e ficaria por
isso.
Mas não — o motivo pelo qual Lawrence suportava este fluxo
incessante de recriminação era porque ele tinha feito algo
imperdoável.
O que ele fez dessa vez? Devido ao frio, ele inconscientemente
enrolou seus pés na cauda peluda de Holo. E o pior, quando se virou
em seu sono, ele arrancou um pouco do pelo.
Holo, a autointitulada sábia loba, a garota que às vezes era
chamada de deusa (embora ela odiasse) soltou um profundo grito
feminino — só a dor já deve ter sido insulto suficiente.
No entanto, Lawrence se sentiu um pouco magoado com o seu
tratamento posterior. Afinal, ele estava dormindo.
Apesar do fato de que, mesmo agora, Holo continuava a atacá-lo,
no instante em que seus pés se enrolaram no pelo dela e ele pisou em
sua cauda, ela o socou com força, duas vezes, na cara.
Certamente isso foi castigo suficiente, ele pensava.
“Já é ruim o suficiente vocês humanos pisarem tão facilmente em
cima dos pés dos outros quando estão totalmente acordados. E agora
quando estão dormindo! Esta cauda é meu orgulho! A única prova que
eu sou eu!”
Embora a cauda que Lawrence pisou estivesse ilesa, um pouco de
pelo se soltou.
Mais do que qualquer dor, era a desmoralização que enfurecia
Holo.
Pior, antes de se virar, seus pés parecem ter amassado uma parte
do pelo da cauda enquanto dormiam.
CAPÍTULO I ⊰ 12 ⊱

Depois de olhar atordoada para sua cauda por um momento, Holo


confrontou Lawrence, que percebeu que a situação estava ficando feia
e tentou fugir para debaixo dos cobertores, e começou a agredi-lo
verbalmente.
Quando irritadas, a maioria das pessoas seriam frias e cruéis ou
exigiriam um duelo de algum tipo. Porém o método de Holo para
repreender era muito mais eficaz.
Estava bastante quente debaixo dos cobertores com Holo; faltava
pouco para o amanhecer e o corpo de Lawrence sentia o peso de
muitos dias de viagem de inverno.
Dificilmente surpreenderia se ele começasse a cochilar diante do
abuso implacável.
Se o rosto de Lawrence mostrasse até mesmo um traço de
sonolência, sem dúvida ele nunca chegaria ao final disso.
Era como uma tortura.
Holo seria uma excelente xerife.
“Honestamente...”
O interrogatório não cessou até Holo se esgotar e voltar a
cochilar.

Lawrence estava bem consciente de que a ira de Holo era algo a


ser temido, e que a raiva dela poderia assumir muitas formas. Ele não
tinha nenhum desejo especial de descobrir mais uma face dessa ira, mas
era o que tinha acontecido — e tendo feito isso, começou a mover a
carroça.
Desgastada por seu próprio discurso, Holo roubou os cobertores
por completo e se enrolou como uma lagarta, contra o frio.
Mas ela não estava na parte de trás da carroça. Em vez disso, estava
deitada de lado no banco do motorista, com a cabeça apoiada no colo
de Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 13 ⊱

Certamente parecia adequadamente mansa e adorável, mas dado


o tempo...Não, a profundidade de seu cálculo era assustadora.
Se ela mostrasse seus dentes, isso daria a Lawrence uma desculpa
para lutar contra ela. Se ela o ignorasse, ele poderia tê-la ignorado.
Mas colocar sua cabeça no colo do mercador agravou ainda mais a
posição dele.
Ele não conseguia ficar com raiva; ele não poderia ignorá-la. E se
ela fosse implorar para comer alguma coisa, ele seria incapaz de
recusar. Suas ações, afinal, deixavam claro que ela tinha se acalmado.
Embora o sol já tivesse subido, expulsando o frio do ar da manhã,
o suspiro que saiu da boca de Lawrence foi pesado.
Apesar da advertência que fez a si mesmo de que precisaria ser
mais cuidadoso com cauda de Holo, era difícil resistir a tal calor
quando se acampava no inverno.
Se houvesse um deus para perguntar, ele teria orado: “O que devo
fazer?”
Mas, a muda viagem da manhã chegou ao fim de forma súbita e
inesperada.
Como os dois não tinham passado por ninguém até agora naquele
dia, Lawrence assumiu que ainda tinham um longo caminho a
percorrer. Mas assim que eles chegaram ao topo de uma pequena
colina, uma cidade surgiu no seu campo de visão.
Ele nunca esteve nesta região antes e não tinha qualquer noção da
disposição do terreno.
Ficava um pouco ao leste da região central de Ploania, uma vasta
nação que era o lar de ambos: pagãos e fiéis da igreja. Lawrence não
tinha certeza sobre a importância militar da área, mas sabia que para
um mercador como ele era de pouco interesse.
A única razão pela qual ele estava aqui era a garota diabólica que
dormia em seu colo.
CAPÍTULO I ⊰ 14 ⊱

Ele a estava guiando de volta à sua terra natal, Yoitsu.


Por causa dos séculos que se passaram desde que ela tinha deixado
sua terra natal, suas memórias e os detalhes sobre o lugar estavam
borrados e fracos. Muita coisa mudou no mundo durante esse tempo,
e Holo estava ansiosa para aprender até mesmo os rumores mais
ínfimos sobre sua terra natal — ainda mais agora que ela havia
aprendido sobre a lenda sobre a destruição de Yoitsu.
Seis dias antes, na cidade de Kumersun, eles tinham conhecido
Diana, uma cronista que colecionava histórias. Diana lhes tinha
contado sobre um monge que se especializou em contos de deuses
pagãos.
O monge em questão vivia em um mosteiro remoto, e só o
sacerdote da Igreja na cidade de Tereo sabia sua localização.
O caminho para Tereo não era muito conhecido, por isso os dois
se dirigiam primeiro para outra cidade, Enberch, para pedir
indicações.
Era nessa cidade que finalmente tinham chegado.
“Quero comer pão doce.” Quando eles se aproximaram dos
portões da cidade, Holo se agitou e acordou, e estas eram as primeiras
palavras saídas de sua boca. “E por pão doce, eu quero dizer — você
sabe. Pão de trigo.”
O que ela pediu não era barato, mas Lawrence não tinha o direito
de negar.
Ele não sabia o que era vendido na região, então trouxe trigo
consigo — trigo que ele comprou do seu amigo Mark, o vendedor de
trigo, para quem devia um faor. Mas enquanto Lawrence e Holo
viajavam, ele escolhia pão amargo de centeio para que comessem.
Sua decisão miserável o transformou em alvo de grandes
reclamações por parte de Holo.
Ele não podia deixar de pensar negativamente sobre a quantidade
absurda de pão que Holo iria exigir.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 15 ⊱

“Em todo caso, primeiro precisamos vender nossas mercadorias.”


“Suponho que permitirei isso.”
Na verdade, foi Holo que implorou para que Lawrence a
permitisse viajar junto com ele, apesar de se sentir como seu criado a
maior parte do tempo.
Ela pareceu notar sua irritação. “Ah, mas minha adorável cauda foi
esmagada pelos seus pés. Nada mais justo do que eu te esmagar um
pouco de volta,” ela disse de forma maldosa, acariciando sua cauda sob
o manto.
Ele esperava que Holo continuasse reclamando por algum tempo,
mas parece que ela havia dito o que tinha para dizer.
Lawrence suspirou por dentro, aliviado, e virou a carroça em
direção ao moinho.
Embora Enberch fosse remota, ela parecia ser o centro de
comércio da região e era bastante movimentada.
Lawrence e Holo apenas tinham se aproximado da cidade por uma
direção menos movimentada.
Por toda a praça da cidade haviam carroças carregadas com grãos,
frutos e animais que vieram de aldeias vizinhas. Compradores e
vendedores negociavam no local.
Havia uma grande igreja que dava para a praça, as suas portas
escancaradas para acomodar o comércio movimentado. Através da
porta, passava um fluxo constante de pessoas da cidade que vinham
rezar ou participar da missa.
Enberch era o tipo de cidade rural que você poderia encontrar em
qualquer lugar do mundo.
Quando questionado nos portões da cidade, Lawrence se
informou que o maior moleiro na cidade era da Companhia Riendott.
CAPÍTULO I ⊰ 16 ⊱

Apesar de não ser algo tão diferente de uma loja de moleiro, a


palavra companhia foi acrescentada. Para Lawrence isso era
terrivelmente caipira.
No entanto, para além do extremo norte da praça, do lado direito
da estrada reta, lá estava ela, a Companhia Riendott — com uma
grande vitrine e grande depósito de carregamento. O mercador
entendeu por que este negócio queria manter sua reputação.
Ele tinha comprado grãos no valor de cerca de trezentas moedas
trenni em Kumersun.
Cerca de metade disso havia sido cuidadosamente peneirado e
moído em farinha. O restante havia sido simplesmente debulhado.
Quanto mais ao norte, mais difícil era cultivar o trigo — assim, o
preço subia.
Se um mercador tivesse o azar de encontrar alguns dias de chuva
em sua viagem, o trigo iria apodrecer rapidamente — e em todo caso,
era muito caro para as pessoas que viviam no Norte pagar por algo
assim, logo, encontrar compradores poderia ser difícil.
Lawrence levava essencialmente trigo, basicamente porque,
como mercador, ele odiava viajar com a carroça vazia.
Também porque, tendo feito um grande lucro em Kumersun, ele
decidiu se derviar do caminho da prudência.
Em todo caso, uma cidade do tamanho de Enberch deveria ter
alguns nobres Igreja ricos o suficiente para comprar trigo, então
Lawrence esperava que a Companhia Riendott estivesse disposta a
comprar.
“Ho, isso é trigo?”
Foi o próprio Riendott que surgiu para cumprimentar Lawrence,
provavelmente porque sua carroça estava carregada com trigo.
Riendott era um homem redondo, dando mais a impressão de um
açougueiro do que de um moleiro, e seu rosto parecia um pouco
preocupado.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 17 ⊱

“De fato. Metade como farinha e a outra metade em grãos. Tenho


um certificado da qualidade dele.”
“Entendo. Suponho que se bem amassado e cozido daria um bom
pão — mas como você pode ver, nós tivemos uma grande colheita de
centeio este ano. Simplesmente não temos recursos para lidar com
trigo.”
A doca de carregamento da companhia estava, de fato, cheia de
sacos de centeio, e na parede ao lado deles, cartazes foram pregados
com os destinos de entrega rabiscados em giz.
“Da minha parte, o trigo realmente rende um bom lucro. Nós
gostaríamos de comprar de você, dada a oportunidade, mas temos
nenhum recurso sobrando em mãos...”
O proprietário estava certamente pensando que centeio — que
era lucro garantido — era mais importante para ele do que o trigo,
que poderia ou não ser fácil de vender, dependendo dos caprichos dos
clientes ricos.
As relações interpessoais eram importantes no mundo dos
negócios. Isto era duplamente verdade em áreas remotas como
Enberch. O moleiro não podia pagar um único mercador viajante e
interromper o seu negócio com agricultores que trariam centeio ano
após ano.
“Percebo que você é um mercador viajante — você veio para criar
uma nova rota de comércio?”
“Não, este é apenas um negócio paralelo.”
“Entendo. Posso perguntar seu destino?”
“Estou indo para Lenos, mas há um lugar próximo que eu gostaria
de visitar primeiro.”
Riendott piscou surpreso.
Embora Lenos ainda estivesse mais ao norte, ele tinha certeza de
que o mestre de uma companhia de comércio — mesmo uma como
esta — a conheceria, pelo menos pela sua reputação.
CAPÍTULO I ⊰ 18 ⊱

“Meu Deus, você está indo muito longe... bastante longe, de


fato.”
Era óbvio que Riendott assumiu que Enberch era a única cidade
da região que valeria o tempo de um mercador.
“Sim, embora eu pretenda parar em Tereo primeiro.”
A surpresa de Riendott era óbvia. “Por Deus, o que te levaria até
lá?”
“Tenho negócios com a Igreja de lá. Ah, e deixando o comércio
de lado, você por acaso sabe o caminho?”
O olhar de Riendott parou por um momento, como se tivesse sido
perguntado o preço da primeira mercadoria que ele já tinha vendido.
“A estrada que leva até lá não tem bifurcações, portanto você não
precisa se preocupar em se perder no caminho. Eu diria que é cerca de
metade de um dia de viagem de carroça. Mas a estrada é ruim.”
Talvez tenha realmente sido uma pergunta estranha de se fazer.
Quem sabe não houvesse nada digno de nota em Lenos.
Riendott hesitou por um momento, olhando para a carroça de
Lawrence. “Você vai passar por Enberch na volta?”
“Infelizmente não, estarei tomando um caminho diferente.”
Sem dúvidas, o moleiro estava pensando em comprar a crédito se
Lawrence voltasse por de Enberch.
Mas, não — Lawrence não tinha planos para adicionar essa região
na sua rota regular.
“Entendo, bem... infelizmente, temo que teremos que ficar por
aqui, então.” Disse Riendott, o rosto marcado com o pesar que
provavelmente, era pelo menos meio falso.
Comprar trigo caro de um viajante de passagem era uma aposta
arriscada.
A farinha de trigo poderia facilmente ter sido misturada com
farinha de outros grãos, ou poderia simplesmente parecer de boa
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 19 ⊱

qualidade, só mostrando suas verdadeiras cores quando fosse


cozinhada.
Se o moleiro pudesse comprar a crédito e adiar o pagamento por
um tempo, então mesmo que a qualidade fosse ruim, ele poderia
enganar alguns nobres rurais e fazer eles comprarem o trigo.
Mas Lawrence não tinha necessidade de vender seu trigo
imediatamente.
Agora não era a hora. Ele apertou a mão de Riendott e preparou
para se despedir.
“Acho que é verdade — a forma mais rápida de vender o trigo não
é como a farinha, mas como pão,” disse Lawrence.
A qualidade do pão pode ser facilmente determinada com uma
única mordida. O sabor era muito mais eficaz do que uma história
sobre um saco de farinha de supostamente alta qualidade.
“Ha-ha-ha. Todos nós mercadores pensamos assim. É um ponto
sensível com os padeiros da cidade!” Declarou Riendott.
“Ah, então os padeiros aqui são difíceis, não é?”
“Sim, e como. Se alguém além dos padeiros começar a vender
pão, eles virão correndo brandindo seus rolos!”
Mercadores compram e vendem, e os padeiros assam — essa
divisão do trabalho pode ser encontrada em qualquer lugar do mundo.
Era uma realidade, no entanto, que se um mercador assumisse
todo o processo, desde a compra de trigo até a panificação, os lucros
seriam substanciais.
Da forma comum, o processo entre a colheita de trigo e a venda
do pão era longo e envolvia muitas pessoas diferentes.
“Bem, então — que Deus viaje conosco,” disse Lawrence.
“De fato. Espero ansioso pelos futuros negócios.”
Lawrence deu a Riendott um sorriso e um aceno de cabeça, e
então ele e Holo deixaram a loja para trás.
CAPÍTULO I ⊰ 20 ⊱

Embora Lawrence estivesse levemente desapontado por não


vender o trigo, ele estava mais preocupado com o silêncio sinistro de
Holo.
“Você não disse nada desta vez,” ele falou casualmente.
A resposta de Holo foi rápida. “Aquele moleiro disse que é cerca
de meio dia de viagem daqui para Tereo, não é?”
“Huh? Ah, sim, ele disse.”
“Então, se sairmos agora, podemos chegar lá pelo cair da noite,”
disse Holo, atestando estranhamente.
Lawrence se afastou com o tom de sua voz. “Eu estava pensando
que seria bom descansar. Você está cansada, não é?”
“Se você precisa descansar, podemos fazê-lo em Tereo. Se
estamos indo, eu prefiro ir logo.”
Lawrence finalmente percebeu a razão para seu tom
extraordinariamente obstinado.
Embora ela raramente falasse sobre isso, Holo claramente queria
conhecer este monge que colecionava contos de deuses pagãos o mais
rápido possível.
Holo era teimosa e podia ser estranhamente orgulhosa.
Ela julgava que estava abaixo da sua dignidade ficar pedindo
constantemente para Lawrence se apressar.
Mas com seu destino tão perto, as brasas que ardiam em seu peito
se tornavam chamas ardentes.
Sem dúvidas, ela estava cansada. No entanto, o fato de que ela
pediu provava o quão desesperada era sua necessidade por
conhecimento.
“Tudo bem, então. Mas vamos ter uma refeição quente primeiro?
Certamente você não vai se importar com isso.”
Holo pareceu atordoada com a afirmação de Lawrence. “Você
precisa perguntar?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 21 ⊱

Lawrence sorriu — no mesmo instante em que o estômago de


Holo roncou.

Justamente quando parecia que as colinas suaves nunca iriam


acabar, a paisagem mudou — parecia que Deus tinha tomado mais
cuidado ao moldar esse terreno.
A geografia ondulante era como a massa de pão, se dobrando
descuidadamente sobre si mesma. Um rio corria pelo vale entre os
montes, e aqui haviam florestas exuberantes.
A carroça, na qual a dupla andava, rangia enquanto se arrastava ao
longo da estrada, seguindo o rio.
Lawrence olhou para Holo, se perguntando se deveria tê-la
forçado a descansar enquanto estavam em Enberch.
Entre o anoitecer e o amanhecer, o frio do inverno dificultava o
sono profundo. Um deles ficava sempre desperto, em seguida dormia,
e depois era acordado mais uma vez. Embora a verdadeira forma de
Holo fosse a de um lobo gigante, enquanto estava como uma donzela,
sua constituição parecia se adequar à forma.
A longa viagem certamente foi difícil para ela.
Ela se encostou em Lawrence, dormindo, parecendo
completamente exausta.
Ele considerou pedir alojamento no mosteiro.
Era possível que as acomodações fossem simples, algo que Holo
poderia reclamar — enquanto Lawrence considerava o assunto, ele
notou que o rio estava começando a se alargar.
O rio se enrolava ao redor de um declive à frente, então ele não
podia ver para onde levava. A bacia certamente iria aumentar, e a
correnteza iria enfraquecer.
E então, um certo som inconfundível chegou aos seus ouvidos.
Lawrence compreendeu imediatamente o que estava por vir.
CAPÍTULO I ⊰ 22 ⊱

As orelhas de lobo aguçadas de Holo também se mexeram. Ela


esfregou o sono dos seus olhos e olhou adiante, sob o capuz.
Tereo estava perto.
Exatamente onde o fluxo do rio desacelerava até dar uma parada,
formando um pequeno lago, estavam situados uma pequena roda
d'água e um moinho.
“Se há uma roda d'água aqui, devemos estar perto.”
Em locais onde a água era limitada, as pessoas a armazenavam em
um local elevado e depois usariam a diferença de altura para alimentar
a roda d'água.
Devido à falta de água, o método funcionava apenas por algum
tempo — e com a colheita finalizada, o momento em que uma fila de
moradores esperariam para moer seus grãos na roda d'água já havia
passado.
Neste momento, a roda d'água à beira do rio escuro simplesmente
estava ali, desamparada.
Assim que Lawrence se aproximou o suficiente do moinho a ponto
de que poderia começar a diferenciar os grãos da madeira, uma sombra
saltou para fora.
Surpreso, Lawrence puxou as rédeas. Seu cavalo soltou um
relincho descontente, balançando a cabeça de um lado para o outro.
Quem surgiu era um jovem. Suas mangas estavam arregaçadas,
apesar do tempo frio, e seus braços estavam brancos com farinha.
“Whoa — whoa! Diga, você é um viajante?” perguntou o jovem,
dando a volta na frente da carroça antes que Lawrence pudesse ou
expressar sua irritação ou continuar ao longo do seu caminho.
“...Suponho que você colocar dessa forma, sim, sou um viajante.
E você?”
Embora ele fosse um garoto, o jovem não poderia ser mais
diferente de Amati, o rapaz contra quem Lawrence tinha brigado no
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 23 ⊱

mercado uma semana antes. O garoto na frente dele era magro, mas
tinha uma robustez fruto do trabalho físico. Ele tinha a estatura de
Lawrence.
CAPÍTULO I ⊰ 24 ⊱

mercado uma semana antes. O garoto na frente dele era magro, mas
tinha uma robustez fruto do trabalho físico. Ele tinha a estatura de
Lawrence, com o cabelo preto e olhos que eram comuns em terras do
norte. Ele parecia forte o suficiente para que Lawrence o imaginasse
empunhando uma canga1. Seu cabelo negro estava polvilhado com
farinha.
Perguntar para este garoto cheio de farinha, que tinha acabado de
sair de uma roda d'água, quem ele era, seria como ir à tenda de um
padeiro cheia de pão e perguntar o que estava à venda.
“Ha, bem, como você pode ver, eu sou um moleiro. Então, de
onde você veio? Você não parece que é de Enberch.”
Lawrence achou o despreocupado sorriso do garoto um pouco
infantil.
Ele interiormente adivinhou que o garoto era seis ou sete anos
mais jovem e, de repente, foi cauteloso para Holo não pôr os olhos em
outro jovem infeliz — criando mais uma bagunça para Lawrence
limpar.
“Como você pode imaginar, eu tenho uma pergunta para você,”
disse Lawrence. “Quanto tempo vai demorar para chegar na cidade de
Tereo?”
“A cidade... de Tereo?” repetiu o jovem, atordoado por um
momento. Ele, então, sorriu e continuou. “Se Tereo é uma cidade,
então Enberch é a capital real. Eu não sei o que o traz aqui, mas Tereo
é uma pequena aldeia. Basta olhar para este moinho lamentável!”
Lawrence estava vagamente surpreso com as palavras do rapaz até
que se lembrou que, assim como Holo, Diana (quem deu a informação
sobre a cidade) tinha centenas de anos de idade. No seu tempo, Tereo
poderia muito bem ter sido a maior e mais movimentada cidade da
região. Declínio não era raro.

1
Canga: peça de madeira que une a junta de bois. Colocada sobre a nuca,
prendendo os bois pelo pescoço.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 25 ⊱

Lawrence acenou e refez sua pergunta. “Então, o quão longe é?”


“É logo adiante. Naturalmente, não é como se houvesse um
grande muro que circunde o lugar — você pode até mesmo dizer que
você já está em Tereo.”
“Entendo. Bem, obrigado,” Lawrence disse brevemente, supondo
que deixasse, o rapaz continuaria falando.
Lawrence sacudiu as rédeas e começou a mover a carroça ao redor
do garoto, que ficou nervoso e se moveu rapidamente para bloquear o
caminho da carroça. “E-ei, não tenha tanta pressa, hum, senhor
viajante?”
Com os braços do jovem bloqueando o caminho, não havia como
Lawrence passar.
Teria sido fácil o suficiente forçar seu caminho, mas se o rapaz se
ferisse, ele certamente não daria uma boa primeira impressão para o
povo de Tereo.
Lawrence suspirou. “O que você quer, então?”
“Ah, er — bem... Ah! Sua companheira... ela é bastante bonita!”
Holo, com a cabeça coberta pelo capuz que usava, suprimiu uma
risada, embora sua cauda abanando mostrasse seu divertimento.
Lawrence pôde sentir o calafrio ocasional de superioridade graças
à sua encantadora companheira, mas ultimamente suas preocupações
sobre os problemas que ela aparentemente atraia superavam esses
breves lampejos de prazer.
“Ela é uma freira em peregrinação. Isso é tudo? Apenas um
cobrador de impostos pode bloquear o caminho de um mercador,
senhor.”
“U-uma freira?” A surpresa do jovem com a palavra inesperada era
óbvia.
Dada a grande igreja no centro da Enberch, parecia improvável
que a pequena aldeia de Tereo fosse inteiramente pagã.
CAPÍTULO I ⊰ 26 ⊱

Mesmo nas regiões do norte de Ploania, uma aldeia pagã precisaria


de defesas consideráveis para resistir contra uma fortaleza vizinha
como Enberch.
Certamente havia uma igreja em Tereo — então por que o jovem
se surpreendeu?
Enquanto Lawrence pensava sobre isso, o jovem percebeu seu
estado contemplativo.
Parecia que ele estava mais preocupado com Lawrence do que
com Holo.
“Entendido, viajante. Não vou mais impedi-lo. Mas ouça as
minhas palavras — é melhor você não levar uma freira para Tereo.”
“Oh?”
Para Lawrence não parecia que o rapaz estava brincando.
Só para ter certeza, ele cutucou Holo debaixo dos cobertores para
ela avaliar a veracidade das palavras dele. Ela assentiu com a cabeça
rapidamente, confirmando sua avaliação.
“Por que isso? Viemos tratar de negócios com a Igreja em Tereo.
Certamente, se há uma igreja, não há nenhuma razão para uma freira
não entrar na aldeia. Ou não há —”
“N-não, certamente há uma igreja. Mas a razão... é um conflito,
entende? Com o pessoal desagradável da Igreja em Enberch.” A
expressão do jovem era aguçada, como de um mercenário recém-
formado.
A força inesperada do olhar do jovem deixou Lawrence
momentaneamente surpreso, mas depois se lembrou que o moço era
apenas um moleiro.
“Então, isso é o que se passa. Como posso explicar? Se uma freira
aparecesse agora, as coisas poderiam ficar complicadas. É por isso que
eu prefiro que você não vá.” Pondo de parte da sua hostilidade, o
jovem agora tinha uma repentina imagem de boa índole e
preocupação, mas ainda assim, havia algo estranho com ele.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 27 ⊱

Levando em conta que ele não parecia ter com Lawrence e Holo
qualquer má vontade em particular, Lawrence decidiu não questionar
ainda mais.
“Entendo. Bem, seremos cautelosos. Certamente não vamos ser
expulsos assim que chegarmos.”
“Bem... não, eu não acho que serão.”
“Meus agradecimentos. Vou manter o seu conselho em mente.
Suponho que caso ela não esteja vestida como uma freira — ninguém
se importaria, certo?”
O jovem pareceu relaxar. “Isso seria uma bênção, sim.” Sua
desconfiança de Lawrence parecia ter virado súplica. “Mas que negócio
você tem com a igreja?”
“Precisamos de direções.”
“Direções?” O jovem coçou o rosto, duvidoso. “Então... então
você não veio para fazer negócios. Você é um mercador, certo?”
“Sim, e você é um moleiro, não é?”
O menino sorriu como se o seu nariz coçasse, então caiu,
derrotado. “E eu estava esperando que pudesse ser de alguma utilidade
para você no negócio.”
“Eu vou te chamar, se necessário. Agora, podemos passar?”
O jovem parecia ainda ter algo a dizer, mas foi incapaz de juntar
as palavras, ele acenou com a cabeça e cedeu.
O olhar que lançou para Lawrence era profundamente
implorante.
Ficou claro que ele não estava pedindo uma taxa sobre a
informação.
Lawrence afrouxou o aperto nas rédeas e estendeu a mão para o
jovem. Ele olhou diretamente nos olhos do garoto, falando claramente
e de maneira uniforme. “Meu nome é Kraft Lawrence. Como você se
chama?”
CAPÍTULO I ⊰ 28 ⊱

Em um instante, o rosto do rapaz floresceu em um sorriso. “Evan!


Eu... eu sou Gyoam Evan.”
“Evan, então. Entendido. Vou me lembrar disso.”
“Por favor — por favor!” O jovem moleiro gritou com a voz alta
o suficiente para fazer um cavalo, que se assustava facilmente, entrar
em pânico, agarrando a mão de Lawrence com força. “Passe por aqui
quando você retornar, se puder,” ele acrescentou, afastou-se da
carroça e voltou para a entrada da pequena roda d'água.
Ele ficou ali na frente da roda d'água de madeira preta, o rosto
embranquecido com farinha, parecendo distintamente solitário
enquanto observava a carroça de Lawrence e Holo.
Então — assim como Lawrence imaginava — Holo virou para
olhar por cima do ombro, acenando com a mão timidamente para o
jovem. Ele começou como se estivesse surpreso, depois devolveu o
aceno grandiosamente com as duas mãos, com um sorriso enorme no
rosto.
Ele parecia menos com um rapaz acenando para uma bela donzela
e mais com um garoto feliz por ter encontrado um amigo.
O caminho à frente virava para a direita, colocando o moinho de
Evan fora de vista.
Holo se virou para a frente.
“Hmph. O garoto parecia olhar para você mais do que para mim,”
ela anunciou, descontente.
Lawrence sorriu por um momento, então suspirou e respondeu:
“Bem, ele é um moleiro. Não é uma vida fácil.”
Holo olhou para Lawrence duvidosamente, com a cabeça
inclinada.
Deve ter havido uma razão por trás do desejo do rapaz de apertar
a mão de Lawrence, o mercador, em vez de Holo, a donzela.
Mas era um motivo agradável? Certamente, a resposta era não.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 29 ⊱

“Não é muito diferente de ser um pastor. Ambos são trabalhos


necessários, mas as pessoas que labutam neles são vistas com desprezo
em cidades e aldeias.”
Naturalmente, dependendo da região, isto não era sempre o caso.
Mas Lawrence tinha certeza de que o povo de Tereo não levava este
moinho em muita consideração.
“Por exemplo,” continuou Lawrence “pense no trigo que está na
bolsa em seu pescoço.”
Holo, de fato, usava uma pequena bolsa em volta do pescoço —
apesar de estar escondida sob camadas de roupas no momento — que
continha o trigo onde a essência dela ficava.
“Se você moesse essa quantidade de trigo, quanta de farinha você
acha que daria?”
Holo olhou para seu peito.
Ela podia controlar a qualidade e a quantidade da colheita, mas
mesmo ela parecia não estar totalmente segura sobre o quanto de
farinha viria de um punhado de grãos.
“Suponha que você tenha grãos em grande quantidade,” disse
Lawrence, colocando as rédeas para baixo por um momento e
traçando o esboço de um pequeno monte na mão. “Se você o moer,
provavelmente ficaria com isso em farinha,” ele continuou, fazendo
um círculo muito menor com o dedo indicador e o polegar.
Uma vez moído num moinho, o volume de trigo tornava-se
surpreendentemente pequeno.
Então, o que um fazendeiro pensaria, trabalhando dia a dia para
aumentar a sua cultura, orando sempre ao deus da colheita, apenas para
ver seus meses de chão e trabalho em uma pequena e deprimente
quantidade de trigo?
Holo soltou um pequeno som em compreensão após Lawrence
fazer a pergunta.
CAPÍTULO I ⊰ 30 ⊱

“Eles dizem que os moleiros na roda d'água tem seis dedos e que
o sexto cresce a partir da palma da mão — com o intuito de roubar
farinha. Além disso, a maioria das rodas d'água são de propriedade do
senhorio local, que aplica um imposto sobre todos os que moem seus
grãos lá. Mas o senhorio não pode vigiar o moinho durante todo o dia,
então quem você acha que recolhe impostos em seu lugar? “
“Eu suponho que seja o moleiro.”
Lawrence balançou a cabeça e continuou. “Sim, e ninguém ficaria
feliz com o pagamento de impostos. Mas é necessário. Então, quem
você acha que carrega o peso de seu ressentimento?”
Ela pode não ser humana, mas o entendimento de Holo do mundo
humano era profundo.
Ela sabia a resposta imediatamente.
“Ah, eu entendi. Portanto, a razão que ele estava abanando a cauda
com tal vigor para você, em vez de para mim, era —”
“Mesmo assim,” disse Lawrence com um suspiro e um aceno de
cabeça. À frente deles, as casas da vila de Tereo finalmente vindo à
tona. “Ele adoraria deixar esta cidade.”
O trabalho no moinho era um trabalho importante que tinha que
ser feito.
Mas aqueles que faziam a ingrata tarefa muitas vezes eram
ressentidos.
Quanto mais minuciosamente o grão fosse moído, melhor o
aumento do pão feito a partir dele.
No entanto, quanto mais fina a moagem, menor seria o volume da
farinha resultante.
Fazer um bom trabalho e ainda assim receber o ressentimento
daqueles que se beneficiaram dele — Lawrence já tinha ouvido a
história em outro lugar. Holo olhou para frente, como se estivesse
arrependida de ter perguntado isso.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 31 ⊱

“Mas é uma tarefa necessária, e há aqueles que apreciam,” disse


Lawrence. Ele acariciou suavemente a cabeça de Holo antes de tomar
as rédeas novamente. Holo assentiu levemente sob seu toque.

Embora Evan tivesse chamado de uma pequena aldeia, Tereo não


era tão ruim quanto Lawrence acreditava.
A única diferença real entre uma cidade e uma aldeia era a
presença de um muro.
Havia uma abundância de “cidades” com paredes pouco mais do
que uma cerca de madeira frágil, assim, para uma suposta aldeia, Tereo
era bastante grande.
Como em outras aldeias, os seus edifícios não eram colocados em
conjunto (eles foram erguidos de forma mais dispersa), mas havia uma
arquitetura em paredes de pedra no que parecia ser o coração de
Tereo. As ruas, embora não pavimentadas, eram limpas e sem buracos.
A igreja era grande o suficiente para ser visível a uma distância
razoável, tinha uma torre adequada e um sino.
De fato, para que fosse chamada de ‘cidade’, tudo que faltava para
Tereo era um muro.
Atendendo ao aviso do Evan, Holo cobriu a cabeça com o casaco
de Lawrence, apertando-o com uma corda em volta do pescoço como
se esperasse uma chuva. Ela evitou sua típica roupa de garota de
cidade, pois esta era um pouco elegante e poderia atrair a atenção.
Holo já se destacava o suficiente por si só.
Uma vez que ela tinha acabado de se arrumar, Lawrence dirigiu a
carroça em direção aos edifícios da vila.
Não ter um muro significava que não havia um portão, o que, por
sua vez, garantia que os viajantes que passassem pela aldeia não seriam
tributados.
Não havia ninguém para parar a carroça quando entrasse na
cidade. Um homem ocupado empacotando feixes de trigo encarou
CAPÍTULO I ⊰ 32 ⊱

Lawrence e Holo abertamente; Lawrence acenou com a cabeça em


resposta.
A aldeia era empoeirada, as ruas esburacadas e estreitas. Edifícios
tanto de pedra, quanto de madeira, eram largos e tinham telhados
baixos. Muitas das casas tinham jardins — uma visão rara em cidades
maiores.
Aqui e ali, ao longo da estrada, haviam montes de palha, um sinal
de que a colheita fo concluída recentemente. Feixes de lenha os
intercalavam.
Os pedestres eram poucos; parecia que eles estavam em
desvantagem perante os porcos e as galinhas que vagavam em alguns
lugares.
A única semelhança da aldeia com outros locais era o costume de
encarar — ao avistar os viajantes, cada morador encarava Lawrence e
Holo.
Neste sentido, Tereo era exatamente como uma pequena aldeia.
Lawrence sentiu seu status de forasteiro pesar profundamente, de
uma forma que não tinha sentido em muitos anos.
Ele cresceu em uma vila pobre. Ele estava bem consciente de que
tais lugares ofereciam pouco em termos de diversão e que um viajante
era a distração perfeita.
Lawrence pensou sobre isso enquanto guiava. Eles finalmente
chegaram a uma grande praça com um grande bloco de pedra colocada
no centro.
Parecia ser o centro da aldeia, já que era rodeada por vários
edifícios.
Com base nos sinais de ferro forjado que pendiam dos beirais dos
edifícios, parecia haver uma taberna, uma hospedaria e uma padaria,
junto com o que parecia ser uma oficina de tecelão de lã. Um edifício
com uma entrada maior dava para a rua, certamente uma área comum,
onde o trigo colhido poderia ser trilhado e peneirado.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 33 ⊱

Outros edifícios pareciam ser as casas das famílias mais velhas,


mais influentes da aldeia — e claro, havia também a igreja.
Havia, sem surpresa, um bom número de pessoas — crianças
brincando na praça e adultos em pé conversando. Lawrence e Holo se
encontraram mais uma vez sendo o interesse de olhares curiosos.
“É uma pedra bem grande aquela ali. Pra que é utilizada?” Holo
perguntou casualmente, despreocupada com o olhar dos aldeões.
“Provavelmente para uso cerimonial em algum festival, ou para a
dança, ou talvez para a realização de reuniões, eu suponho.”
A pedra em questão tinha uma superfície lisa, plana e ia até a
cintura de Lawrence aproximadamente.
Uma escada de madeira se inclinava contra ela, o que sugeria que
a pedra não tinha sido colocada aqui como um mero ponto de
referência.
A única maneira de saber com certeza seria perguntando para
algum aldeão, mas Holo apenas balançou a cabeça vagamente e se
recostou contra o banco da carroça.
Lawrence orientou a carroça ao redor da pedra e em direção à
igreja.
Apesar do bombardeio constante de olhares curiosos, ficou claro
que este não era um vilarejo isolado de montanha.
A carroça parou na frente da igreja. Nesse momento os moradores
pareciam supor que o casal tinha vindo orar por uma viagem segura, e
o nível de interesse diminuiu.
“Parece que eles estão quase decepcionados,” murmurou
Lawrence para Holo, uma vez que parou a carroça e desceu. Holo
sorriu conspiratoriamente.
A igreja era uma construção grande de pedra, a sua grande porta
de madeira era enquadrada em ferro.
CAPÍTULO I ⊰ 34 ⊱

Ela parecia ter resistido muitos anos. Os cantos dos blocos de


pedra que compunham o edifício estavam desgastados pelo tempo,
embora a argola de ferro afixada na porta da igreja parecia
estranhamente não utilizada.
Era estranho que a porta estivesse fechada. Não era um claustro,
nem parecia haver um serviço em andamento. As portas de uma igreja
normalmente estariam abertas.
Se ele tivesse que dizer de forma direta, Lawrence teria imaginado
que a igreja não era amada pela aldeia.
Mas não havia nenhum tempo para conjecturas. Lawrence agarrou
o batente e bateu várias vezes.
Klang, klang — o som seco ecoou estranhamente através da praça.
Não houve resposta por alguns instantes, então, quando Lawrence
estava começando a se perguntar se havia alguém, a porta rangeu alto,
abrindo apenas uma fresta.
“Quem é?” Uma voz de garota, não muito amigável, se fez audível
através da fenda.
“Peço desculpas por chamar sem aviso prévio. Eu sou Lawrence,
um mercador viajante,” disse Lawrence com um sorriso atraente. A
garota do outro lado da porta estreitou os olhos, desconfiada.
“Um... mercador?”
“Isso mesmo. Eu venho de Kumersun.”
Igrejas tão cautelosas em suas entradas eram raras.
“...E ela?” O olhar da moça se virou para Holo.
“Circunstâncias a levaram a viajar comigo,” disse Lawrence de
forma simples.
A garota olhou de Lawrence para Holo antes de suspirar
suavemente e, em seguida, abrir a porta lentamente.
Enquanto a grande porta se abria, Lawrence ficou surpreso ao ver
que a garota usava um longo manto de sacerdote.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 35 ⊱

“Qual é o seu negócio aqui?” Ela perguntou.


Embora Lawrence estava confiante de que tinha escondido sua
surpresa, a garota tinha uma expressão severa que combinava com seu
tom. Seu cabelo castanho escuro estava amarrado com força, e seus
olhos cor de mel brilhavam em desafio.
Deixando a atitude dela de lado, esta foi a primeira vez que
Lawrence foi questionado sobre qual era seu negócio em uma igreja.
“Ah, sim — eu gostaria de falar com o padre, se isso for possível.”
Normalmente era impossível para mulheres servirem ao
sacerdócio da Igreja. A organização era totalmente patriarcal.
Essa tinha sido a suposição de Lawrence quando fez a pergunta,
mas as sobrancelhas da garota apenas franziram mais profundamente
com suas palavras.
Ela olhou deliberadamente seu próprio manto antes de responder:
“Embora eu não seja uma sacerdotisa por completo, eu sou responsável
por esta igreja. Meu nome é Elsa Schtingheim.”
Uma mulher no comando de uma igreja — e uma bastante jovem.
Lawrence ficaria menos surpreso se descobrisse que o
proprietário de alguma empresa grande e bem-sucedida fosse uma
mulher — e isso já seria bastante surpreendente.
Elsa parecia estar acostumada com esta reação. Mais uma vez ela
calmamente repetiu a pergunta: “Qual é o seu negócio aqui?”
“Ah, er, gostaríamos de pedir direções...”
“Direções?”
“Sim. Precisamos encontrar um determinado mosteiro —
Mosteiro Diendran, sob os cuidados do abade Louis Lana Schtinghilt.”
Quando Lawrence disse em voz alta, a semelhança entre o nome
do abade e de Elsa o ocorreu. A surpresa de Elsa ficou imediatamente
clara.
CAPÍTULO I ⊰ 36 ⊱

Mas antes que Lawrence pudesse sequer perguntar o que estava


errado, ela afastou o olhar de surpresa em seu rosto. “Eu não conheço
esse lugar,” ela falou.
As palavras de Elsa foram educadas o suficiente, mas seu
semblante grave revelou seus verdadeiros sentimentos. Ela começou a
fechar a porta sem esperar pela resposta de Lawrence.
No entanto, que tipo de mercador ele seria se deixasse uma porta
ser fechada na sua cara?
Lawrence rapidamente enfiou o pé na fenda antes que ela pudesse
fechar, sorrindo. “Ouvi dizer que há um padre aqui com o nome de
Franz.”
Elsa olhou amargamente para baixo, para o pé de Lawrence antes
de olhar tristemente em seus olhos. “Padre Franz faleceu no verão.”
“O qu —?”
Ela aproveitou a sua surpresa para continuar. “Você está satisfeito?
Eu não sei sobre o mosteiro que você procura e estou muito ocupada.”
Lawrence sentiu que se persistisse ela poderia gritar por socorro
e ele estaria em apuros.
Ele retirou seu pé. Elsa deu um último suspiro irritada, em
seguida, fechou a porta.
“...”
“Ela certamente te odeia.”
“Talvez seja porque eu não deixei o dízimo.” Lawrence deu de
ombros e olhou para Holo. “É verdade que o padre Franz está morto?”
“Ela não parecia estar mentindo. No entanto —”
“Ela estava mentindo quando disse que não sabia do mosteiro.”
Lawrence poderia estar vendado e ainda teria visto através daquela
mentira tão óbvia quanto a surpresa de Elsa ao ouvir sobre o mosteiro
mencionado.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 37 ⊱

Mas era verdade que ela estava no comando da igreja? Parecia algo
perigoso demais para ser uma brincadeira.
Talvez Elsa era filha do Padre Franz, se não pelo sangue, então por
adoção.
“O que vamos fazer?” Perguntou Lawrence.
A resposta de Holo foi rápida. “Em todo caso, não podemos forçar
nosso caminho para dentro. Vamos encontrar uma pousada.”
Ainda sendo o objeto de muitos olhares curiosos, os dois se
recolocaram na carroça.

“Ooh... Faz tanto tempo...” disse Holo, se jogando na cama e se


esticando.
“Certamente é melhor do que dormir na carroça, mas só um aviso
— pode ter insetos.”
Esta cama não era de lã ou algodão esticado sobre uma moldura
de madeira, mas tinha um denso colchão feito de palha. Era bem
provável que houvesse insetos hibernando dentro da palha, esperando
a época de reprodução no verão.
Ele sabia que não faria diferença ela ser cautelosa ou não. Os
insetos amavam a cauda felpuda dela.
“E isso importa? Eu já estou sendo seguida pelo maior inseto de
todos.”
Holo sorriu maliciosamente, com o queixo apoiado nas mãos.
Lawrence suspirou. Era verdade — ela também atraia esse tipo de
inseto.
“Esta é uma aldeia muito pequena. Tente não causar confusão,”
disse Lawrence.
“Isso vai depender inteiramente da sua atitude.” Depois de zombar
desagradavelmente de Lawrence, Holo rolou na cama, a cauda
farfalhava, e deu grande bocejo. “Estou cansada. Posso dormir?”
CAPÍTULO I ⊰ 38 ⊱

“E se eu disser não?” Lawrence perguntou com uma risada.


Holo olhou por cima do ombro e estreitou os olhos
sugestivamente. “Eu iria cochilar ao seu lado.”
Humilhantemente, Lawrence considerou a possibilidade e não a
achou completamente desagradável. Ele tossiu, evitando seu olhar —
o que deixou bem claro que ela viu através dele — e decidiu evitar um
confronto. “Bem, eu suponho que você realmente esteja cansada, não
é? Se descansar agora antes de entrar em colapso por exaustão, seria
um benefício para o seu companheiro de viagem.”
“Hmph. Sendo assim, eu vou descansar.”
Holo abandonou seu ataque e fechou os olhos.
Sua cauda também parou de balançar. Lawrence sentia que ele
poderia ouvi-la roncar a qualquer momento.
“Mas primeiro tire esse seu capuz e manto, e também o meu
casaco que você jogou de lado. Deixe-os dobrados e coloque um
cobertor sobre o colchão. Honestamente.” Lawrence não podia deixar
de pensar nas princesas mimadas que apareciam em peças de teatro.
Holo não fez mais do que mover a cabeça para a reclamação de
Lawrence.
“Se as roupas não estiverem dobradas até a hora que eu voltar,
você não vai ter um bom jantar.”
Era como se estivesse repreendendo uma criança desobediente.
Holo desempenhou o papel enquanto erguia os olhos rapidamente.
“Você é muito gentil para realmente fazer isso.”
“...Você vai se dar mal algum dia.”
“Oh, sim, se você conseguir fazer algo sobre isso. Pouco importa
— você vai a algum lugar?”
Os olhos de Holo estavam começando a ficar turvos mesmo
enquanto falava. Lawrence não conseguiu deixar de caminhar até ela e
a cobrir com um cobertor. “Eu não me incomodaria se estivéssemos
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 39 ⊱

apenas de passagem, mas parece que vamos ficar aqui por um tempo,
é melhor eu ver o ancião da aldeia. Ele também pode saber onde o
mosteiro está.”
“...Entendo.”
“Certo. Então pode ficar dormindo aqui.”
Holo puxou o cobertor sobre sua boca e assentiu.
“Mas duvido que eu vá encontrar uma lembrancinha para você.”
“...Não me importo.” Os olhos de Holo se abriram um pouco, e
ela acrescentou em uma voz doce e suave, parecendo que poderia cair
no sono a qualquer momento, “Desde que você volte...”
Ele sabia que era uma armadilha, mas mesmo assim não foi capaz
de esconder seu alvoroço.
As orelhas de Holo se mexeram alegremente.
Ela podia não receber uma lembrancinha, mas conseguiu ver o
rosto de um tolo.
“Eu já ganhei a minha lembrancinha. Boa noite.”
Holo se aconchegou debaixo do cobertor. “Durma bem,”
Lawrence respondeu por como uma forma de rendição.

Lawrence descarregou um pouco de trigo de sua carroça dentro


de um saco de tamanho moderado e perguntou ao estalajadeiro onde
ficava a casa do ancião da vila, e então deixou a pousada.
As crianças do local pareciam muito preocupadas com o viajante
que veio à sua aldeia no auge do inverno. Porém, assim que Lawrence
abriu a porta da pousada, eles se dispersaram.
O estalajadeiro disse que as festas realizadas na primavera e no
outono, para o plantio e colheita, respectivamente, atraiam algumas
pessoas de fora da aldeia, mas desde que Tereo estava bem fora do
caminho, os visitantes geralmente eram raros. No momento,
Lawrence e Holo eram os únicos hóspedes da pousada.
CAPÍTULO I ⊰ 40 ⊱

A casa do ancião da aldeia de Tereo era o edifício mais grandioso


de frente para a praça. Suas fundações e piso térreo eram feitos de
pedra, enquanto o segundo e terceiro andares do imponente edifício
eram de madeira.
A porta da frente tinha o tipo de estrutura de ferro que Lawrence
esperava ver em uma porta da igreja, e foi finamente trabalhado com
desenhos sutis.
O batente da porta tinha a forma de um lagarto ou cobra, o que
aparentava um certo mau gosto.
Provavelmente venerava uma divindade local de algum tipo.
Divindades com formato de cobra e sapo eram surpreendentemente
comuns.
“Com licença, tem alguém em casa?” Lawrence disse enquanto
batia o batente. Depois de um tempo, a porta se abriu e uma mulher
de meia-idade apareceu, com o avental e as mãos cobertas com uma
camada de farinha. “Olá — quem é o senhor?”
“Peço desculpas pela intromissão. Meu nome é Kraft Lawrence.
Sou um mercador viajante. Eu tenho—”
“Oh, Deus. Ancião! Aquele de quem todo mundo está falando —
ele está aqui!”
Embora Lawrence tivesse sido pego de surpresa por ter sido
cortado de forma tão abrupta, a mulher parecia não se importar
enquanto se virava e gritava “Ancião!” novamente e caminhava para
dentro da casa.
Tendo sido tão claramente ignorado, Lawrence limpou a garganta
para se afirmar.
Por fim, a mulher voltou, escoltando até a porta um homem
pequeno e idoso carregando um bastão.
“Veja, aqui está ele!”
“Srt. Kemp, você está sendo rude com nosso convidado.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 41 ⊱

Lawrence ouviu toda a conversa, mas não era tão mesquinho a


ponto de ficar irritado.
E de qualquer forma, uma mulher alegre da aldeia poderia ser uma
poderosa aliada ao fazer negócios.
Lawrence sorriu brilhantemente para os dois.
“Por favor, perdoe nossas maneiras terríveis. Eu sou Sem, o ancião
da aldeia de Tereo.” disse o velho.
“Estou muito grato em conhecê-lo. Eu sou Lawrence, um
mercador viajante.”
“Bem, agora, Srt. Kemp, volte para dentro e fique com os
outros... Meu Deus, as minhas desculpas, senhor. Um visitante que
aparece no final da temporada deixa a língua de todas as esposas
inquietas.”
“Eu espero que os rumores sejam bons.”
Sem sorriu. “Venha, entre,” ele convidou, trazendo Lawrence
para dentro da casa.
Um hall guiava direto da entrada. Lawrence podia ouvir risos a
partir de uma grande sala mais distante para dentro da casa.
Enquanto caminhava, o pó da farinha fazia cócegas em seu nariz.
Sem dúvida, as mulheres estavam conversando e rindo enquanto
amassavam a farinha de trigo recém-moída em massa de pão.
Era algo comum na zona rural.
“Se você for para a sala interior vai acabar branco de farinha! Me
siga,” disse Sem, abrindo a porta para um quarto grande. Ele fez um
gesto para Lawrence entrar primeiro, depois ele o seguiu.
Lawrence ficou imediatamente atordoado.
Uma cobra gigante estava enrolada em cima da prateleira contra a
parede da sala.
“Ha-ha-ha, fique calmo. Ela não está viva.”
CAPÍTULO I ⊰ 42 ⊱

Lawrence olhou novamente. Era verdade; as escamas pretas e


brilhantes estavam secas e o corpo fora amassado. A pele tinha sido
seca, recheada e costurada.
Ele se lembrou da serpente em forma de batente na porta. Talvez
a aldeia adorasse uma divindade serpente.
Por sugestão de Sem, Lawrence se sentou, pensando que teria que
perguntar a Holo sobre isso mais tarde.
“Então, qual é o negócio que o traz à nossa humilde aldeia?”
“Ah, sim. Primeiro, como vamos ficar na sua aldeia eu gostaria de
oferecer os meus cumprimentos. Aqui está uma amostra do trigo que
tenho estocado,” ofereceu Lawrence, mostrando o saco de trigo que
encheu para a ocasião. Sem piscou rapidamente.
“Meu Deus gracioso! Mercadores viajantes nos dias de hoje
começam a falar de negócios desde a primeira palavra que sai de sua
boca.”
Este comentário foi um pouco desagradável para Lawrence ouvir,
apesar deque isso o descrevia perfeitamente — até recentemente.
“E qual seria o seu outro objetivo aqui?” perguntou Sem.
“Ah, bem. Estamos à procura de um mosteiro e estávamos
esperando que você poderia saber a sua localização.”
“Um mosteiro?”
“Sim. Nós perguntamos na igreja primeiro, mas, infelizmente,
eles não sabem.” Lawrence tinha uma expressão incomodada, embora
seus olhos penetrantes de mercador continuassem a observar Sem
cuidadosamente em busca de qualquer reação.
Ele viu o olhar de deriva de Sem por apenas um momento.
“Entendo... Infelizmente eu também não ouvi falar de nenhum
mosteiro na região. De onde veio essa informação?”
O instinto de Lawrence o dizia que Sem sabia.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 43 ⊱

Mas se ele mentisse sobre a sua fonte de informação isso poderia


ser problemático mais tarde. Ele decidiu ser honesto.
“Em Kumersun. Uma cronista me disse.”
O bigode de Sem contraiu.
Lawrence tinha certeza que ele estava escondendo algo.
Não — não só isso, Lawrence pensou.
Sem e Elsa não apenas sabiam onde o mosteiro ficava, eles sabiam
o que poderia ser encontrado lá.
Diana havia contaado sobre um monge — um monge que se
especializou na coleta de contos de deuses pagãos.
Se Sem e Elsa sabiam sobre isso, eles poderiam estar fingindo
ignorância para não se envolverem.
Em todo caso, o padre Franz — o homem que Diana indicou a
Lawrence para perguntar sobre este mosteiro — já tinha ido para o
céu.
Era surpreendente que aqueles que ele deixou para trás queriam
enterrar o assunto.
“A cronista em Kumersun me disse que se eu falasse com o padre
Franz, ele seria capaz de me dizer onde é esse mosteiro.”
“Ah, entendo... Infelizmente, neste verão, o padre Franz...”
“Sim, eu soube.”
“Sua perda foi difícil. Ele dedicou muitos anos do seu trabalho para
a aldeia.” A expressão triste de Sem não parecia ser um ato, mas
também não vinha do respeito pela Igreja.
Algo parecia errado.
“E agora a senhorita Elsa tomou o seu lugar?”
“Mesmo assim. Ela é muito jovem — sem dúvida você ficou
surpreso.”
CAPÍTULO I ⊰ 44 ⊱

“Surpreso, de fato. Então —”


Lawrence estava prestes a continuar quando houve uma batida na
porta, e uma voz gritou: “Ancião!”
As perguntas que Lawrence queria perguntar pararam em sua
garganta, mas não haveria nenhum ganho com a pressa, ele decidiu.
“Parece que você tem outro visitante. Acho melhor me retirar.
Estou preocupado com minha companheira.”
“Oh, Deus. Estou muito arrependido. Não consegui ser útil em
nada.”
As batidas continuaram por um tempo até que a Sra. Kemp foi
atender a porta.
“Espero que as notícias sejam boas,” Lawrence ouviu o murmúrio
de Sem quando um homem vestindo roupas de viagem, com o rosto
vermelho e suado, apesar do frio, entrou na sala rapidamente,
passando por Lawrence em seu caminho para Sem.
“Ancião, eu trouxe isso!”
Sem deu um olhar de desculpas para Lawrence, e com um sorriso,
Lawrence saiu da casa do ancião.
Ele sentiu que tinha feito uma boa apresentação de si mesmo como
um mercador viajante.
Deve ser um pouco mais fácil ficar na aldeia agora, Lawrence pensou.
Mas o que o homem tinha levado para Sem?
Ao deixar a casa do ancião, ele imediatamente viu um cavalo cujo
corpo estava bastante quente. Ele não tinha sido amarrado em um
poste, mas simplesmente deixado lá. Um grupo de crianças olhava para
o animal à distância.
Baseado no rumo do cavalo, Lawrence podia dizer que tinha sido
montado a uma certa distância; o homem também tinha vestes de
viajem.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 45 ⊱

Por um momento, ele se perguntou o que faria um aldeão ir em


uma viagem dessas, mas depois se lembrou que não tinha vindo aqui
fazer negócios.
Sua primeira prioridade era fazer Elsa ou Sem lhe dizerem a
localização do mosteiro.
Então, como fazer isso?
Lawrence permaneceu imerso em seus pensamentos enquanto
voltava para a pousada. Holo estava esparramada tão confortavelmente
na cama que Lawrence não pode evitar e se deitou ao lado dela para
tirar uma soneca, mas caiu em sono profundo.
Quando ele acordou, o quarto estava escuro.
“Eu teria um jantar ruim a menos se as roupas estivessem
dobradas, não?”
Ele abriu os olhos e se sentou, percebendo que agora estava
coberto por um cobertor que não se lembrava de ter usado.
“Você é muito gentil para realmente fazer isso,” disse ele,
repetindo a fala anterior de Holo para ela através de um bocejo.
Holo riu enquanto limpava sua cauda.
“Parece que eu dormi por algum tempo... não está com fome?”
perguntou Lawrence.
“Mesmo se eu estivesse, certamente você sabe que sou muito
amável para acordá-lo do sono.”
“E você não teve a oportunidade de pegar algumas moedas da
minha bolsa?”
Holo apenas sorriu com seu jeito peculiar, arreganhando os dentes
afiados.
Lawrence levantou e abriu a janela de madeira, olhando para fora
enquanto esticava as dobras do pescoço.
“A noite cai cedo aqui. Não é tão tarde, mas a praça está deserta.”
CAPÍTULO I ⊰ 46 ⊱

“E não há sequer uma tenda para ser encontrada. Será que ainda
vamos conseguir jantar?” Holo falou preocupada enquanto olhava para
Lawrence, que estava assentado sobre a moldura da janela.
“Nós vamos ficar bem se formos para a taberna. Não é como se a
cidade nunca tivesse visto viajantes.”
“Hm. Vamos nos apressar, então.”
“Eu acabei de acordar — oh, tudo bem. Tudo bem!” Lawrence
deu de ombros para o olhar que recebeu de Holo, então notou algo
enquanto ficava de pé. “O que é isso?”
Uma figura sombria e solitária atravessou o escuro da praça da
cidade deserta.
Enquanto ele estreitava os olhos, Lawrence percebeu que era
Evan, o moleiro.
“Oh?”
“—!” Lawrence quase gritou de surpresa quando Holo apareceu
em seus pés. “Não apareça desse jeito!”
“Nossa, como você é sensível. Tanto faz — o que você viu?”
Qualquer um ficaria assustado se alguém aparecesse diante deles
sem o menor indício de roupas farfalhando, mas Lawrence não iria
discutir sobre todos os gracejos de Holo. “Nada de importante,” ele
disse. “Eu só queria saber onde ele estava indo.”
“Parece que está indo para a igreja.”
Moleiros tinham que ser mais honesto do que qualquer outro
profissional.
Em Ruvinheigen, Norah, a pastora provavelmente ficava
assistindo aos cultos tão assiduamente como sempre, mesmo que essa
mesma Igreja impusesse restrições difíceis a seu trabalho.
Evan devia ir para esses cultos com a mesma frequência.
“Muito suspeito.” disse Holo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 47 ⊱

“Nós que somos os suspeitos.”


Enquanto Lawrence e Holo conversavam, Evan bateu de leve na
porta da igreja. Suas batidas tinha um ritmo estranho, como se fosse
um sinal secreto para comunicar a sua identidade.
Havia uma qualidade furtiva aos seus movimentos, que só pareceu
estranho até Lawrence lembrar da vocação de Evan.
E não parecia que a Igreja também era bem vista na aldeia.
Lawrence se afastou da janela com um suspiro de decepção
quando Holo o puxou pela manga.
“O quê?”
Em resposta à sua pergunta, Holo apenas apontou o dedo para fora
da janela.
Supondo que ela estava apontando para a igreja, Lawrence olhou
para o prédio.
Ele ficou surpreso com o que viu lá.
“Oh ho, então é assim que as coisas são,” murmurou Holo se
divertindo, sua cauda balançava como se varresse o chão.
Lawrence estava hipnotizado por um momento com o que viu,
mas logo voltou a si e fechou a janela.
Holo olhou imediatamente para ele, irritada.
“Só os deuses podem espionar a vida dos outros,” disse.
“... Humpf.” Holo não disse mais nada, só olhando com desagrado
a janela agora fechada.
Quando Evan tinha batido na porta da igreja, a única pessoa que
poderia responder era, obviamente, Elsa.
Assim que ela saiu, Evan lhe deu um abraço bem apertado, como
se ela fosse muito preciosa para ele.
Dada a forma de Elsa quando ela se inclinou para Evan, era difícil
entender o abraço como uma mera saudação entre amigos.
CAPÍTULO I ⊰ 48 ⊱

“Então você não está interessado?” Holo perguntou.


“Talvez, se eles estivessem secretamente falando de negócios.”
“Eles podem muito bem-estar. Meus ouvidos aguçados de loba
poderiam ouvir — o que me diz?”
Holo estreitou os olhos e deu um sorriso torto que mostrava uma
única presa.
“E pensar que você estaria interessada nesse absurdo,” disse
Lawrence com um suspiro longo.
Holo estreitou os olhos ainda mais. “O que há de errado em estar
interessada?” ela resmungou.
“Bem, certamente não é algo a ser elogiado.”
Pressionar os ouvidos contra a parede por horas a fim de ouvir
segredos de negócios de alguém era um truque de novato — na
verdade, era o paradigma da astúcia mercantil. Mas espionar amantes
— era uma grosseria.
“Hmph. Não é como se eu estivesse motivada por uma curiosidade
vulgar.” Afirmou Holo, cruzando os braços. Ela inclinou a cabeça e
fechou os olhos, como se tentasse se lembrar de algo.
Lawrence estava genuinamente interessado em ouvir o que, além
de curiosidade, poderia ser sua motivação.
Ela ficou assim por um tempo, e então finalmente falou. “Se eu
preciso te dar uma razão, acho que seria um estudo.”
“Estudo?” Foi uma resposta tão comum que Lawrence não podia
deixar de se sentir decepcionado.
O que Holo possivelmente precisaria estudar?
Será que ela tem projetos para trapacear o monarca de um reino?
Ele considerou brevemente, exigindo exceções fiscais deste rei
hipotético. Seu plano deveria ter sucesso antes de deixar de lado essa
ideia ridícula. Ele estendeu a mão para o jarro de água para tomar uma
bebida, e Holo continuou.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 49 ⊱

“De fato, estudar. Para ver nós somos vistos por outras pessoas.”
Os dedos de Lawrence bateram desajeitadamente no jarro,
derrubando-o. Ele tentou recuperá-lo, mas não conseguiu.
“Me escuta. Não concorda que é preciso uma perspectiva externa
para compreender verdadeiramente a situação? Está me ouvindo?”
Lawrence sabia que Holo estava rindo baixinho e, ainda sem se
virar, ele podia adivinhar a expressão dela.
Felizmente, não havia muita água no jarro, por isso não foi um
desastre — embora a provocação que ele tinha que suportar já fosse
desastre o suficiente.
“Então é assim que eu pareço para os outros quando estou com
você...,” disse Holo, ponderando, sua voz séria.
Lawrence tampou os ouvidos em um esforço para não se importar
e começou a limpar a água que tinha derramado.
Ele não sabia do que deveria ter raiva.
Ele nem sabia por que estava tão irritado.
Talvez fosse pelo fato de estar tão obviamente perturbado.
Holo deu uma risadinha. “Bem, pelo menos eu sei que certamente
somos páreo para eles.”
Lawrence não podia adivinhar que tipo de armadilha ele poderia
cair se respondesse.
Ele colocou o jarro em seu lugar depois de terminar o pouco que
tinha com um gole.
Ele desejou que a água fosse um forte vinho.
“Agora,” Holo disse brevemente.
Lawrence sabia que se a ignorasse, isso só traria a fúria dela.
Se travassem uma luta, ele certamente perderia.
Ele suspirou e se virou para Holo, derrotado.
CAPÍTULO I ⊰ 50 ⊱

“Estou com fome,” ela disse com um sorriso.


Ela estava sempre um passo — ou dois — na frente dele.
ah, é assim que se bebe!”
Cercada por um alegre tumulto na taverna, Holo —
agora vestida com roupas de uma garota da cidade —
colocava sua grande caneca rústica sobre a mesa.
Uma barba de espuma branca contornava seus lábios, e ela
mantinha a mão na asa da caneca como se dissesse: “Outra rodada!”
Um após o outro, os fregueses animados do bar acrescentaram o
conteúdo de suas canecas à caneca de Holo, e logo a dela estava cheia
novamente.
Embora ninguém soubesse quem eram os dois misteriosos
viajantes que chegaram à sua cidade, os dois foram generosos ao tratar
os clientes da taverna com bebidas e também bebiam as suas muito
bem — sua conduta seria bem recebida em qualquer vila.
CAPÍTULO II ⊰ 52 ⊱

Um dos dois era uma moça linda. Eles dificilmente não se


deixariam impressionar.
“Venha! Você não pode se considerar um homem se perder para
sua linda companheira!”
A bebedeira de Holo garantia que Lawrence fosse convidado a
beber também, mas, ao contrário de Holo, ele procurava informações.
Não podia se dar ao luxo de se deixar levar por um estupor.
Ele bebeu apenas o suficiente para não estragar o clima festivo,
comendo o que foi trago e, gradualmente, conversando com os
moradores.
“Ah, isso é um bom ale, de fato. Existe algum segredo para a sua
preparação?”
“Ha-ha-ha, aí está! É Iima Ranel, a senhora desta taverna. Ela é
famosa por aqui — seus braços são tão fortes quanto três homens e ela
tem o apetite de cinco!”
“Não diga aos viajantes essas mentiras! Sim, aqui está, carne de
carneiro frita com alho.”
A mulher em questão, Iima, bateu com uma borda de uma placa
de madeira levemente contra a cabeça do homem, depois pousou a
comida com eficiência sobre a mesa.
Com o cabelo ruivo encaracolado amarrado para trás e as mangas
arregaçadas para expor seus braços de aparência poderosa, uma olhada
na estrutura robusta de Iima tornava fácil de entender por que alguns
diziam que ela tinha a força de três homens.
A resposta do homem, no entanto, não ajudou a responder à
pergunta de Lawrence. “Ai, droga! E aqui eu estava prestes a cantar
seus louvores!”
“Então o que você disse agora não foi um elogio? Então você teve
o que mereceu!”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 53 ⊱
CAPÍTULO II ⊰ 54 ⊱

Todos na mesa riram. Um homem diferente continuou com a


conversa. “A dona aqui costumava viajar com um jarro de cerveja por
cima do ombro!”
“Ha-ha, certamente que não,” disse Lawrence.
“Ha! Ninguém acredita na história quando a ouvem pela primeira
vez. Mas é verdade, não é?”
Iima, que agora servia os clientes bêbados de outra mesa, virou-se
para a pergunta. “Certamente que sim,” ela respondeu.
Uma vez que ela terminou de servir a outra mesa, voltou para
aquela em que Lawrence se sentava. “Eu era mais jovem e mais bonita
na época. Eu nasci a oeste daqui em uma cidade ao longo da costa. Mas
é o destino de tais cidades serem arrastadas pelo mar, e um dia um
enorme navio parou no porto e logo a cidade foi engolida pelas ondas.”
Lawrence logo percebeu que ela estava falando sobre piratas.
“Então me misturei com a multidão enquanto corria, e em algum
momento, percebi que estava carregando uma jarra de cerveja e um
saco de cevada,” lembra Iima, o rosto melancólico enquanto olhava ao
longe. Ela dava um pequeno sorriso, mas deve ter sido difícil na época.
Um homem na mesa de Lawrence jogou uma caneca. “Aqui, uma
para você também, Iima.”
“Ah, obrigada. De qualquer forma, uma garota sozinha não
conseguiria encontrar trabalho em uma cidade estranha nem rezando,
e havia rumores de piratas atingindo cidades a três montanhas de
distância. Então eu usei a água do rio junto com o meu jarro de cerveja
e cevada, e comecei a fazer cerveja. E quem iria beber aquela bebida
se não um duque que passava com seus homens vindo de longe para
verificar a resistência contra os piratas.”
Iima foi interrompida por aplausos. Ela aproveitou a oportunidade
para terminar sua cerveja em um único grande gole.
“Ah, na verdade, nunca fiquei tão envergonhada quanto naquele
dia! Logo o duque descobrindo que aquela jovem garota de cabelos
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 55 ⊱

emaranhados e cara suja estava tomando cerveja na floresta — por que,


quando perguntei sobre isso depois, ele me disse que achava que eu era
uma dríade! Acho que ele tinha um olho afiado para essas coisas.”
Novamente aplausos subiram, desta vez de outro lugar. Lawrence
olhou e parecia que Holo ganhava outro concurso de bebidas.
“Mas então, você não vai acreditar — o duque disse que minha
cerveja estava deliciosa! Ele disse que, como a cidade para a qual eles
estavam indo tinha sido saqueada por piratas, ele e seus homens seriam
incapazes de tomar uma bebida decente por lá, então ele me pediu para
viajar com sua companhia e preparar cerveja para eles!”
“De fato, a jovem donzela ambiciosa, Iima Ranel, achou que as
coisas finalmente estavam dando certo.”
“Mas voilá! O duque já tinha uma linda consorte!”
“Ah, está bem, pensei — de qualquer forma minha beleza seria
desperdiçada com um nobre tão caseiro. Embora eu tivesse desejado
um casaco de pele negra de marta.”
“Então você se tornou a cervejaria pessoal dele?” perguntou
Lawrence — mas tão logo ele fez a pergunta, percebeu que não
poderia ter sido o caso.
Se ela fosse a cervejaria pessoal de um nobre, dificilmente se
dignaria a administrar uma taverna na aldeia de Tereo.
“Ha-ha, não, isso seria impossível. Na época, eu não conhecia os
caminhos do mundo, certamente era o meu sonho — mas não. Mas,
como agradecimento por viajar com o duque e seus homens, pude
jantar em sua mansão absurdamente grande, e recebi permissão
especial para vender cerveja com o nome do duque, e isso foi
suficiente.”
“Então é aí que começa a história da rara donzela que vende
cerveja — chame de ‘O Conto da Cervejaria da Donzela’.”
Iima bateu na mesa uma vez com o punho, dando o impulso para
todos que estavam sentados.
CAPÍTULO II ⊰ 56 ⊱

“Foi assim que vim a vagar pela terra, fabricando e vendendo,


vendendo e fabricando cerveja — muitas coisas aconteceram, mas na
maior parte, a estrada era fácil. Mas então cometi um único erro—"
“Sim, Iima visitou Tereo e a tragédia se seguiu!” gritou alguém
com um timing dramático perfeito.
Parecia a Lawrence que a história de Iima provavelmente contava
a todos os viajantes que passavam pela aldeia.
“Eu nunca bebi a cerveja que eu fiz, entenda,” continuou Iima,
“porque eu queria vender cada gota. Eu nunca experimentado, mas
quando cheguei a esta vila, tomei pela primeira vez, me apaixonei por
ela e, no meu estado de embriaguez, tropecei nos braços do meu
honrado marido!”
Lawrence riu ao imaginar o sorriso triste que devia estar no rosto
do marido naquele momento enquanto trabalhava na cozinha da
taverna. Quanto ao resto da audiência, eles fingiram lágrimas.
“E então eu me tornei a esposa do guardião da taverna. Mas esta
aldeia é boa — aproveite o tempo e divirta-se,” terminou Iima com
um sorriso agradável, depois deixou a mesa.
Lawrence a observou ir embora com um sorriso inocente no
rosto.
“Ah, mas esta é uma boa taverna. Duvido que você encontre o
mesmo em Endima,” ele falou.
Endima, capital do reino de Ploania, era a maior cidade da região
norte do reino — maior até que a cidade da igreja de Ruvinheigen.
Dizer que algo não podia ser encontrado em Endima era uma
maneira comum de exaltar as virtudes das cidades menores e vilarejos
de Ploania.
“Sim, você está certo! Você pode ser apenas um vendedor
ambulante, amigo, mas você está atento à qualidade.”
Todo mundo gostava de ouvir sua cidade natal sendo elogiada.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 57 ⊱

Os homens ao redor da mesa sorriram e beberam de suas canecas


em uníssono.
Agora é minha chance, Lawrence pensou.
“De fato!” Ele disse. “E a cerveja também é boa. Realmente esta
vila deve desfrutar das bênçãos de Deus,” ele continuou, mudando
casualmente o fluxo da conversa.
No entanto, suas palavras ficaram suspensas como uma gota de
óleo na água.
“Ah, desculpem a minha grosseria,” acrescentou.
Ele ouvira incontáveis contos de outros mercadores que haviam
falado o que não deviam enquanto bebiam vinho em alguma cidade
pagã.
O próprio Lawrence havia cometido tais erros — e a reação que
ele via agora não era diferente de suas experiências anteriores.
“Ah, não, não é culpa sua, viajante,” disse um dos homens, como
se para aliviar a atmosfera tensa. “Há uma grande igreja aqui, afinal de
contas.” Os outros assentiram.
“A nossa é uma aldeia remota,” acrescentou outro, “então as coisas
são um pouco mais complicadas por aqui. E é verdade que devemos
muito ao falecido padre Franz. Mas ainda...”
“Sim, mas ainda assim! Venha o que vier, não devemos
desobedecer ao Lorde Truyeo.”
“Lorde Truyeo?”
“Ah, o senhor Truyeo é o espírito guardião desta aldeia. Ele nos
traz boas colheitas, ajuda nossos filhos a crescerem fortes e saudáveis,
e mantém longe os espíritos malignos. É dele que vem o nome de
Tereo.”
“Ah, entendo,” Lawrence murmurou para si mesmo. Isso sem
dúvida explicava a grande cobra no quarto da casa de Sem.
CAPÍTULO II ⊰ 58 ⊱

Ele deu acenos vagos e olhou para Holo que, apesar do grande
clamor de sua bebedeira ter sido o centro das atenções um momento
atrás, olhou para ele.
O espírito diante dos olhos dele também não deveria ser
subestimado.
“Um espírito de boa colheita, hein? Como mercador viajante, ouvi
essas coisas. Este Lorde Truyeo é um espírito de lobo?”
“Um lobo? Ridículo! Como se o espírito de tal demônio
protegesse uma vila!”
Foi uma forte reprimenda. Lawrence pensou que poderia usar isso
para provocar Holo mais tarde.
“Ah, então ele é —”
“Uma cobra, mercador! Lorde Truyeo é uma cobra!”
Se alguém fosse descuidado, tanto presas envenenadas quanto uma
carroça velha poderiam ser igualmente problemáticas, então Lawrence
não via muita diferença entre cobras e lobos. Mas os espíritos das
serpentes eram bastante comuns aqui nas terras do norte.
No entanto, a Igreja tinha a cobra como sua inimiga jurada. Foi
escrito nas escrituras que era uma cobra que causara a queda do
homem.
“Eu ouvi lendas de espíritos de cobra,” disse Lawrence. “Uma vez
ela desceu das montanhas para o mar e o caminho deixado para trás se
tornou um grande rio.”
“Oh, vamos, você não pode comparar Lorde Truyeo com essas
coisas! Eles dizem que ele é tão longo que o tempo em sua cabeça é
diferente do que está em sua cauda e que ele devora a lua no café da
manhã e o sol no jantar.”
“Sim, isso mesmo!” veio uma cacofonia de vozes.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 59 ⊱

“Além disso, Lorde Truyeo não se parece em nada com aqueles


velhos contos de fadas. Afinal, há uma caverna que ele cavou para
hibernar não muito longe da vila.”
“Um buraco?”
“Sim. Encontramos cavernas por toda parte, mas esta é uma
caverna que morcegos e lobos não se atrevem a se aproximar. Há uma
história de um viajante que uma vez entrou para provar sua coragem
— ele nunca retornou. Há uma maldição sobre quem entra — tem
sido assim por muito tempo. Até o padre Franz nos disse para nunca
entrarmos. Se você quiser ver, não é mais do que uma curta caminhada
daqui.”
Lawrence fingiu horror enquanto balançava a cabeça, mas agora
percebia por que a igreja da cidade não era usada.
De fato, era um milagre que a igreja não tivesse sido destruída.
Mas depois de pensar por um momento, Lawrence percebeu a
razão pela qual a igreja ainda estava de pé.
A cidade de Enberch não estava tão distante.
“Você passou por Enberch antes de chegar aqui, não foi?”
Enquanto Lawrence se perguntava como abordar o assunto, um
aldeão fez isso por ele.
“Então você viu a igreja gigante de lá. Um homem chamado Dom
Van está no comando e toda geração de bispos são uma ameaça
enlouquecedora,” continuou o aldeão.
“Enberch já foi muito menor que Tereo, a história conta,” disse
outro. “Eles também foram protegidos por Lorde Truyeo até que um
dia os missionários da Igreja vieram, e toda a aldeia se converteu sem
pensar duas vezes. Uma catedral surgiu rapidamente, mais pessoas
vieram, uma estrada foi colocada, e logo virou uma grande cidade.
Então eles começaram a fazer exigências de Tereo…”
“Sim,” continuou um terceiro. “E claro, eles queriam que nos
convertêssemos também. Mas graças aos esforços das pessoas daqui
CAPÍTULO II ⊰ 60 ⊱

duas gerações atrás, eles conseguiram adiar a conversão deixando uma


igreja ser construída. Mas não há comparação entre sua grande cidade
e nossa pequena aldeia. Eles nos deixam continuar nossa devoção a
Truyeo, mas em troca nós pagamos impostos pesados. Pergunte a
qualquer um dos nossos avós; eles vão reclamar disso o dia todo.”
Havia inúmeras histórias sobre acordos como esse sendo feitos nas
linhas de frente do trabalho missionário.
“Então, foi cerca de trinta ou quarenta anos atrás que o padre
Franz chegou,” disse um aldeão.
Lawrence estava começando a entender a situação da aldeia cada
vez mais. “Entendo,” disse ele. “Mas soube que uma jovem senhora
chamada Elsa agora é responsável pela igreja.”
“Ah, sim, de fato ela é...”
Graças à cerveja, as línguas estavam soltas por toda parte.
Lawrence decidiu que conseguiria respostas para todas as suas
perguntas de uma só vez.
“Quando paramos para orar por viagens seguras, fiquei bastante
surpreso ao ver uma garota tão jovem usando vestes sacerdotais. Devo
assumir que há circunstâncias especiais em torno dela?”
“É estranho, não é?” Concordou um aldeão. “Faz mais de dez anos
que o padre Franz aceitou a senhorita Elsa. Ela é uma boa menina, mas
como padre? Certamente não.”
“Se a responsabilidade se tornar pesada demais para ela, não seria
possível chamar um padre de Enberch?” perguntou Lawrence.
“Ah, sobre isso...” disse um homem, que olhou nervosamente
para o sujeito ao lado dele, que por sua vez olhou para o vizinho.
No final, o olhar percorreu toda a mesa antes de o primeiro
homem falar de novo.
“Você é um mercador de uma terra distante, não é?”
“Er, sim.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 61 ⊱

“Bem, então, talvez — bem, você conhece algum homem


poderoso na Igreja?”
Lawrence não entendeu imediatamente por que o homem estava
perguntando, mas teve a sensação de que, se soubesse, o homem teria
contado tudo.
O homem continuou. “Alguém que realmente pudesse falar com
o pessoal em Enberch—”
“Hey!” Iima apareceu um momento antes. Ela bateu levemente na
cabeça do homem. “O que você está dizendo para nosso convidado?
Você quer uma surra do ancião?”
Lawrence quase riu do homem castigado, que parecia um menino
sendo repreendido por sua mãe, mas quando viu o olhar de Iima se
mover para ele, ele rapidamente reprimiu seu sorriso.
“Sinto muito — deve parecer que estamos escondendo alguma
coisa. Mas mesmo um viajante — não, especialmente um viajante —
pode entender que toda aldeia tem seus próprios problemas.”
As palavras de Iima carregavam peso, dado seu passado gasto
viajando de aldeia em aldeia com um jarro de cerveja em suas costas.
E em todo caso, Lawrence viu a verdade no que ela disse.
“Quando os viajantes chegam, gostaríamos que eles comessem
nossa comida e bebessem nosso vinho, e quando eles visitassem outra
região, falassem sobre o quão agradável a vila era. É assim que eu vejo
de qualquer maneira.”
“Eu concordo totalmente,” disse Lawrence.
Iima sorriu e deu um tapa nas costas dos homens da vila. “E agora
seus marmanjos, o último trabalho de vocês é beber e se divertir!” Ela
falou, mas de repente seu olhar foi para outro lugar. Ela então olhou
para Lawrence e sorriu se desculpando. “Eu gostaria de poder dizer o
mesmo para você, mas parece que sua companheira já teve o bastante.”
“Ela não bebe nada faz algum tempo; me atrevo a dizer que ela
exagerou um pouco. Não havia muita cerveja na caneca de Lawrence.
CAPÍTULO II ⊰ 62 ⊱

Ele bebeu de uma vez e ficou de pé. “Vou voltar para a estalagem antes
que ela faça algum alarde. Pelo menos ela ainda não se casou com
ninguém.”
“Ha! Ela pode tirar isso de mim, nada de bom vem de uma mulher
bebendo!”
Todos os homens riram furtivamente com o comentário sincero
de Iima. Parecia haver várias histórias sobre o assunto.
“Vou me lembrar disso,” disse Lawrence, deixando algumas
moedas de prata sobre a mesa.
Tinha custado dez trenni servir a todos na taverna, o que ele fez
para se encaixar rapidamente.
Ninguém queria um amigo gastador demais, mas um viajante
generoso era bem-vindo em todo o mundo.
Uma vez que Lawrence capturou Holo — que estava esparramada
sobre uma mesa, aparentemente embebedada em seu estupor — ele
saiu do bar, acompanhado com uma mistura de provocação amigável e
agradecimento.
Era uma felicidade infeliz que a taverna e a estalagem dessem para
a praça da cidade.
Apesar do corpo esguio de Holo, sendo um espírito lobo ela podia
comer e beber quantidades enormes — o peso extra que Lawrence
agora sentia. Levantá-la custou um esforço.
Claro, isso só era necessário se ela realmente tivesse desmaiado de
bêbada.
“Você comeu e bebeu demais.”
Lawrence colocou o braço em volta do pescoço, apoiando-a pelo
lado. Assim que ele falou, ela pareceu apoiar um pouco do seu peso
sozinha, aliviando seu fardo.
Holo arrotou. “Não era meu trabalho comer e beber, mal dando
espaço para conversas?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 63 ⊱

“Claro, estou ciente disso. Mas você continuou pedindo as coisas


mais caras.”
Embora os olhos de Holo fossem mais penetrantes que os dele,
Lawrence mal podia deixar de notar a comida e a bebida que Holo
pedia para a própria mesa.
“Ah, você é um homem mesquinho. Ah, mas chega disso —
preciso me deitar. É difícil respirar!”
Lawrence deu um breve suspiro — parecia que os passos instáveis
de Holo não eram um ato, afinal — mas ele próprio bebera um pouco
e queria se sentar.
A praça da vila de Tereo, mal iluminada pelas lâmpadas
penduradas em alguns dos edifícios que a encaravam, estava deserta.
Embora já tivesse passado algum tempo desde o pôr-do-sol, as
formas pelas quais essa vila diferia de uma cidade maior eram claras.
Quando chegaram à estalagem e abriram a porta, a sala da frente
estava iluminada apenas por uma única vela apologética. O mestre não
estava lá — o que não era de surpreender, já que ele estava bebendo
alegremente na mesma mesa que Holo.
Percebendo o retorno de seus convidados, a esposa do mestre
saiu, dando uma olhada no triste estado de Holo e sorrindo com
simpatia.
Lawrence pediu um pouco de água e subiu as escadas rangentes
até o segundo andar.
A pousada parecia ter apenas quatro cômodos no total, e no
momento, Lawrence e Holo eram os únicos hóspedes.
Apesar disso, aparentemente um bom número de pessoas veio
para os festivais de semeadura e colheita de outono.
A única decoração na estalagem era o brasão de tecido bordado
pendurado no corredor, deixado para trás por um cavaleiro que
evidentemente havia passado há muito tempo.
CAPÍTULO II ⊰ 64 ⊱

Se Lawrence se lembrava corretamente, a crista — agora


iluminada por um raio de luar que entrava pela janela aberta — era o
símbolo de um grupo mercenário famoso nas terras do norte de
Ploania por matar santos da Igreja.
Lawrence não sabia se o estalajadeiro ignorava isso ou se exibia a
crista por causa de suas conotações.
Olhando para o brasão, ficou claro para Lawrence como era a
relação entre a Igreja e a vila de Tereo.
“Ei, estamos quase lá. Não adormeça ainda!” Enquanto subiam as
escadas, os pés de Holo ficavam cada vez menos seguros e, quando
chegaram à porta do quarto, ela parecia estar no limite.
Eles entraram, Lawrence supôs que ela estaria de ressaca de novo
amanhã, e ele sentiu mais simpatia do que aborrecimento em relação à
companheira enquanto a deitava na cama.
A janela do quarto estava fechada, mas algumas lascas de luar
encontravam caminho através das rachaduras. Lawrence abriu a janela
danificada e expirou a agitação do dia, trocando-a pelo ar solenemente
frio do inverno.
Pouco depois, houve uma batida na porta. Ele se virou para ver a
esposa do estalajadeiro entrar, trazendo água e algumas frutas que ele
não conseguiu identificar imediatamente.
Ele perguntou e ela explicou que era bom para a ressaca —
embora, infelizmente, o mais necessitado da cura já tivesse caído no
sono. Não faria sentido recusar sua gentileza, então ele aceitou a fruta
com gratidão.
Os frutos eram duros e redondos. Dois se encaixam na palma da
mão. Quando Lawrence mordeu um, a acidez era tão intensa que fazia
suas têmporas doerem.
As frutas certamente pareciam eficazes. Dava até para fazer
negócio com elas. Ele fez uma anotação mental para o dia seguinte, se
houvesse tempo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 65 ⊱

Lawrence pensou na noite barulhenta na taverna.


A velocidade com que Holo se misturava ao clima da taverna era
genuinamente impressionante.
Claro, ele explicou o objetivo para ela antes do tempo, bem como
a parte que ele queria que ela jogasse.
Quando um par de viajantes parava numa taverna, geralmente eles
precisavam suportar perguntas intermináveis dos clientes ou ficar
completamente fora da conversa.
Evitar isso custava dinheiro.
Não havia uma maneira fácil de obter moedas em uma aldeia com
pouco comércio como essa — mas, a menos que estivesse
completamente isolada, Tereo não conseguiria sobreviver sem pelo
menos algum dinheiro.
Esta foi a principal razão pela qual os viajantes foram tão bem-
vindos. Sem dinheiro, não teriam motivo para entreter pessoas cujos
antecedentes fossem completamente desconhecidos.
Em seguida, os viajantes tiveram que comer e beber com vontade.
Eles não tinham como saber a qualidade da comida e bebida que a
taverna da aldeia tinha a oferecer. Na pior das hipóteses, um viajante
poderia ser envenenado e, mesmo que não morresse imediatamente,
poderia ser despido e deixado nas montanhas.
O que significava que comer e beber indicavam confiança na
aldeia.
Era importante ter cuidado, mas uma coisa interessante sobre o
mundo é esta: as pessoas tendem a não ser insensíveis se sentem que
são confiáveis.
Lawrence tinha aprendido essas coisas quando abriu novas rotas
comerciais, mas a habilidade de Holo em se encaixar na atmosfera da
taverna era ainda melhor do que a dele — e foi graças a ela que ele
conseguiu respostas para perguntas difíceis com muito mais facilidade
do que havia antecipado.
CAPÍTULO II ⊰ 66 ⊱

Embora Iima tenha interrompido sua última pergunta, a visita


ainda foi boa. Se fosse uma visita de negócios, Lawrence estaria
disposto a dar uma moeda a Holo como agradecimento.
Dito isto, não foi muito divertido vê-la realizar a tarefa tão
facilmente quando ele se dava perfeitamente bem sozinho até este
ponto.
Com a idade vinha a experiência, ele supôs.
E mesmo assim.
Lawrence fechou a janela e mergulhou em contemplação
enquanto se deitava na cama.
Se Holo entendesse os caminhos dos negócios, seria claramente o
nascimento de uma mercadora de incrível proeza. Com alguém que
podia penetrar tão habilmente nos círculos sociais, Lawrence não
podia deixar de sonhar com as novas rotas comerciais que poderia
abrir. Holo certamente poderia se tornar um profissional assim.
O sonho de Lawrence era ter uma loja em uma cidade em algum
lugar. Para a loja prosperar, era claro para ele que duas pessoas
trabalhando seriam melhores que uma, e três ainda melhor que duas.
Era natural que ele pensasse em como a presença de Holo seria
reconfortante.
A terra natal de Holo em Yoitsu não ficava longe e sua localização
não era mais um mistério.
Mesmo que não conseguissem descobrir a localização da abadia e
mesmo se não encontrassem mais pistas, ainda assim provavelmente
encontrariam Yoitsu quando o verão chegasse.
O que o Holo planejava fazer depois disso?
Embora fosse apenas um contrato verbal, ele prometera
acompanhá-la até sua terra natal.
Lawrence olhou para o teto e suspirou.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 67 ⊱

Ele sabia muito bem que a despedida era parte integrante da


viagem.
Mas não era apenas do talento de Holo que ele sentiria falta.
Quando pensava em suas disputas verbais constantes, a noção de que
isso terminaria com suas viagens fazia seu peito doer.
Tendo chegado a esse ponto do pensamento, Lawrence fechou os
olhos e sorriu consigo mesmo na escuridão.
Nada de bom viria de um mercador pensando em assuntos
externos.
Essa foi outra lição que ele aprendeu em seus sete anos de
experiência na estrada.
O que ele precisava se preocupar era com o conteúdo de sua bolsa
de moedas.
O que ele deveria estar pensando era em como controlar a gula
constante de Holo.
Os pensamentos perseguiram um ao outro na mente de Lawrence
até que ele finalmente começou a sentir sono.
Nada de bom viria disso.
Nada de bom.

Os cobertores esfarrapados do quarto pareciam ter sido cozidos


em uma panela, depois secados ao sol. Eles eram completamente
inúteis contra o frio da manhã.
Lawrence foi despertado por seu próprio espirro. Um novo dia
havia começado.
A essa hora, o pouco calor retido no cobertor realmente valia dez
mil peças de ouro — não que ele fosse compensado por isso.
Longe disso — o calor era como uma criança do diabo enviada
para consumir seu tempo. Lawrence se levantou e olhou ao lado dele
na cama. Holo já estava acordada.
CAPÍTULO II ⊰ 68 ⊱

Ela estava de costas para ele olhando para baixo, como se estivesse
ocupada com alguma tarefa.
“Ho—”
Ele parou no meio do nome dela — a cauda de repente balançou
de um jeito que ele nunca tinha visto antes.
“O-o que há de errado?” ele conseguiu falar.
As orelhas de Holo se ergueram e, por fim, ela se virou
lentamente.
O sol ainda não havia se levantado completamente e o ar estava
azulado. Os sopros brancos de sua respiração eram visíveis enquanto
ela olhava por cima do ombro.
Lágrimas brotaram de seus olhos, e em sua mão havia uma
pequena fruta redonda da qual uma mordida tinha acabado de ser dada.
“...Ah, você comeu?” Lawrence perguntou, meio sorrindo.
Holo lambeu os lábios e assentiu. “O... o que é isso...?”
“A mulher do estalajadeiro trouxe depois que voltamos para a
estalagem na noite passada. Aparentemente é bom para a ressaca.”
Evidentemente, alguns dos frutos permaneciam em sua boca.
Holo fechou os olhos e forçou-se a engolir, então cheirou e enxugou
os cantos dos olhos. “Comer isso me arrastaria de volta à sobriedade
mesmo depois de cem anos bebendo!”
“Certamente você precisava dessa ajuda.”
Holo franziu a testa e jogou o que sobrou da fruta em Lawrence,
depois cuidou de sua cauda ainda afofada. “Não é como se eu estivesse
de ressaca todas as manhãs.”
“E graças a Deus por isso. Está frio de novo hoje, devo dizer.”
Lawrence olhou para a fruta que Holo jogara nele. Metade já tinha
ido embora. Para ter comido metade da massa do fruto amargo em
uma única mordida sem saber o que esperar — não era de admirar que
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 69 ⊱

ela tivesse um choque com o gosto. Embora fosse impressionante que


ela não tivesse gritado, talvez porque ela foi incapaz de fazê-lo.
“Eu não me importo com um pouco de frio, mas ninguém na
aldeia está acordado.”
“Certamente alguém está acordado... mas eu acho que lojas só
abrirão mais tarde.”
Lawrence se levantou da cama e abriu a frágil janela, que parecia
pouco útil contra uma brisa. Ele olhou para fora; não havia nada além
de nuvens de neblina matinal na praça da aldeia.
Lawrence estava acostumado a ver mercadores disputando espaço
nos mercados da cidade. O contraste parecia bastante solitário.
“Eu certamente prefiro um lugar mais animado,” disse Holo.
“Nisso eu não vou discordar.” Lawrence fechou a janela e olhou
por cima do ombro para ver Holo se enterrando embaixo dos
cobertores para voltar a dormir.
“Sabe, as pessoas dizem que os deuses nos fizeram para dormir
apenas uma vez por dia.”
“Oh? Bem, eu sou uma loba,” disse Holo com um bocejo. “Não há
nada a fazer se ninguém está acordado. Se for para ficar com frio e com
fome, prefiro estar dormindo.”
“Bem, estamos aqui na estação errada. Mas mesmo assim, é
estranho.”
“Oh?”
“Ah, não é nada com o que você precise se preocupar. Eu
simplesmente não consigo entender as fontes de renda das pessoas
daqui.”
Holo inicialmente havia tirado a cabeça das cobertas com
interesse, mas com essas palavras ela imediatamente recuou para
dentro delas.
CAPÍTULO II ⊰ 70 ⊱

Lawrence riu ligeiramente da atitude, e não tendo nada melhor


para fazer, ele pensou no problema.
Embora fosse verdade que esta era uma estação parada para os
agricultores, as aldeias prósperas o suficiente para cessar o trabalho
inteiramente durante o inverno eram poucas e raras entre si.
E com base no que Lawrence ouviu na taverna, eles tinham que
pagar impostos para a cidade de Enberch.
No entanto, os aldeões não pareciam estar envolvidos em
qualquer trabalho.
A aldeia ainda estava muito quieta, como Holo havia dito.
Empregos paralelos para aldeias agrícolas como esta eram coisas
como fiação e tecelagem de lã ou fazer cestas e sacos de palha. Esse
trabalho não era lucrativo, a menos que o volume fosse alto, então as
pessoas geralmente estavam ocupadas com o trabalho assim que o sol
nascia. Se os impostos tinham que ser pagos, eles precisavam trabalhar
muito mais.
O que era ainda mais estranho era o excelente ale e a comida na
taverna na noite anterior.
Na verdade, a aldeia de Tereo parecia, de alguma forma, ter
dinheiro.
Enquanto o faro de Holo para comida de qualidade era
incomparável, o olfato de Lawrence estava em sintonia com o
dinheiro.
Se ele pudesse aprender algo sobre o fluxo de moedas nesta vila,
ele poderia fazer algum negócio por aqui, ele pensou consigo.
De qualquer forma, não havia outros mercadores aqui, o que por
si só era uma situação que Lawrence gostava.
Ele não pôde deixar de sorrir para si mesmo. Aqui ele estava em
uma jornada que não tinha nada a ver com negócios, mas mesmo assim
sua mente continuava trabalhando.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 71 ⊱

Só então, do lado de fora da janela, veio o som de uma porta se


abrindo.
O som se destacou claramente na manhã tranquila. Lawrence
olhou através de uma fresta na janela. Era o próprio Evan.
Mas ele não estava entrando na igreja como antes — ele estava
saindo.
De sua mão pendia um fardo de algum tipo, talvez uma refeição.
Como antes, Evan olhou em volta com cuidado e saiu da igreja.
Depois que ele se afastou um pouco, se virou e acenou para Elsa.
Quando Lawrence olhou para Elsa, ele a viu sorrir e acenar de volta
em resposta — ela não poderia estar mais diferente de quando lidara
com Lawrence.
Lawrence se sentiu um pouco invejoso.
Ele assistiu Evan recuar ao longe.
Entendo, ele pensou consigo mesmo, finalmente percebendo por
que Evan estava zangado com a disputa entre a igreja que Elsa
administrava e aquela em Enberch.
Mas Lawrence era um mercador; sua visão não era tão estreita a
ponto de considerar o que ele havia visto como nada mais do que uma
cena divertida.
O que seus olhos capturaram era nada menos que uma
compreensão do que as pessoas deveriam ganhar.
“Eu sei para onde estamos indo hoje.”
“Hmm?” Holo tirou a cabeça debaixo dos cobertores, olhando
para Lawrence com curiosidade.
“É a sua terra natal que estamos procurando e, no entanto, por
que eu estou trabalhando tanto?”
Holo não respondeu imediatamente, em vez disso sacudiu as
orelhas rapidamente enquanto espirrava e esfregava o nariz. “É porque
eu sou muito importante, não?”
CAPÍTULO II ⊰ 72 ⊱

Lawrence só podia suspirar com a resposta desavergonhada dela.


“Mataria você me poupar dessa conversa de vez em quando?”
“Você é um mercador.”
“Grandes lucros exigem grandes compras. Nada se ganha de
compras pequenas.”
“Hmph. E quanto à sua pequena coragem, hein?”
Foi um bom retorno; Lawrence não tinha resposta.
Lawrence fechou os olhos, com isso Holo riu e continuou. “É mais
difícil para você se mover quando estou com você, não é? Esta é uma
pequena aldeia, e os olhos nos seguem onde quer que a gente vá.”
Lawrence só conseguiu falar um “oh.”
“Se eu pudesse agir, eu faria — mas tudo o que eu faria seria ir até
aquela garota insolente na igreja e arrancar sua garganta. Por favor, vá
e encontre a localização da abadia. Posso parecer preguiçosa, mas não
quero nada além de ir até lá e ouvir o que o monge tem a dizer.”
“Entendido,” disse Lawrence para acalmar as chamas das emoções
de Holo, que queimavam como um feixe de palha.
Embora às vezes ela fosse completamente transparente com seus
sentimentos, outras vezes ela escondia suas paixões sob um véu de
apatia.
Ela era uma companheira problemática, mas, mesmo assim, suas
palavras eram certeiras. Era porque ela era importante para Lawrence
que ele fazia tudo isso.
“Estarei de volta ao meio-dia, o mais tardar,” disse Lawrence.
“Traga-me um presente,” veio a voz abafada de Holo debaixo dos
cobertores. A única resposta de Lawrence foi seu habitual sorriso
triste.

Ele desceu as escadas e cumprimentou o estalajadeiro pálido


enquanto caminhava ao lado do balcão, depois se dirigiu para o
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 73 ⊱

estábulo, tirando um saco de trigo da carroça antes de ir para o lado de


fora.
Mesmo sem trabalho agrícola, as pessoas começaram a acordar
quando o sol já estava alto. Aqui e ali, aldeões cuidavam de suas hortas
ou cuidavam de seus porcos ou galinhas.
Enquanto ontem ele tinha sido recebido apenas com desconfiança,
algumas pessoas agora olhavam para Lawrence com sorrisos. A noite
de folia pareceu surtir algum efeito.
Alguns não conseguiram sorrir, devido à ressaca.
Mas, de qualquer forma, parecia que ele havia sido mais ou menos
aceito como viajante, o que era um alívio.
Um maior reconhecimento tornava mais difícil se mover.
A impressão de Holo estava correta. Enquanto Lawrence ficava
impressionado com o seu entendimento, ele também sentia uma
pontada de ciúmes.
Seu destino, enquanto refletia sobre tais pensamentos, era
naturalmente o moinho de água de Evan, onde planejava perguntar
sobre Elsa.
Lawrence não era Holo. Como tal, ele não tinha intenção de
tentar descobrir a natureza do relacionamento de Evan e Elsa.
Mas, para conquistar Elsa, solitária e reclusa, seria mais rápido
Lawrence falar com Evan, que parecia ter uma melhor compreensão
de suas circunstâncias.
Enquanto percorria o caminho pelo qual havia conduzido sua
carroça no dia anterior, Lawrence acenou com a cabeça para um
homem que estava arrancando ervas daninhas de um campo do lado de
fora da vila.
Lawrence não tinha nenhuma lembrança do homem, mas
aparentemente ele esteve no bar ontem à noite pois ele sorriu e
retornou a saudação.
CAPÍTULO II ⊰ 74 ⊱

“A pé, né? Para onde você está indo?” O homem perguntou. Era
uma pergunta razoável.
“Eu estava pensando em moer o trigo.”
“Oh, o moinho, eh? Cuidado para não ser enganado!”
Provavelmente era uma piada comum quando se ia moer o trigo.
Lawrence sorriu em resposta e continuou para o moinho.
Um mercador dificilmente era de confiança, exceto para outro
mercador. No entanto, havia ocupações que estavam em uma situação
ainda pior.
Embora o próprio Lawrence não tivesse dúvidas sobre o Deus da
Igreja, que afirmava que todos os ofícios e ocupações eram iguais,
lembrou-se de que o povo de Tereo não tinha nenhum amor pelos
servos daquele Deus.
O mundo simplesmente não era como se desejava. Estava cheio
de dificuldades.
Com a colheita terminada, os campos de trigo pelos quais ele
passava enquanto percorria o caminho entre a colina e o riacho estavam
bastante desolados, mas logo a casa do moinho apareceu.
Evan pareceu ouvir os passos do mercador quando se aproximou
e abriu a cabeça para fora da entrada. “Ah, mestre Lawrence!”
Ele parecia alegre como sempre, embora ser chamado de “mestre”
depois de ter conhecido o rapaz apenas um dia antes, irritou Lawrence.
Lawrence levantou o saco de trigo e falou. “Você tem um pilão
livre no momento?”
“Eh? Eu tenho, mas… você já está indo embora?”
Lawrence entregou o saco para Evan, balançando a cabeça.
Era razoável supor que, se um viajante estava moendo trigo, ele
estava se preparando para sair.
“Não, eu vou ficar em Tereo por um tempo ainda,” disse
Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 75 ⊱

“Ah, que bom! Apenas espere um momento, então. Vou moer


isso em uma farinha extremamente leve, você vai ver.”
Ocorreu a Lawrence que Evan poderia estar tentando acalmá-lo
para ganhar uma chance de deixar a vila. Evan pareceu dar um pequeno
suspiro de alívio quando voltou para o moinho.
Lawrence o seguiu e ficou imediatamente surpreso.
Apesar de seu exterior sombrio, o interior do moinho era limpo
e bem mantido com três grandes pedras de moer.
“Que belo moinho,” disse Lawrence.
“Não é? Pode não parecer muito do lado de fora, mas trituro todo
o trigo de Tereo,” disse Evan orgulhosamente enquanto conectava o
eixo que girava a roda do pilão com o poço que vinha da roda d'água.
Ele então estendeu uma vara pela janela, desfazendo a corda que
impedia a roda d'água de girar.
Imediatamente a roda ganhou vida, movendo a pedra com um som
profundo e estrondoso.
Verificando que tudo estava se movendo como deveria, Evan
jogou o trigo de Lawrence em um buraco no topo do pilão.
Agora tudo o que tinham que fazer era esperar a farinha acumular
na placa embaixo da pedra.
“Eu não vejo trigo faz um tempo. Nós vamos pesar mais tarde,
mas meu palpite é que a taxa será talvez de três ryut,” disse Evan.
“Isso é muito barato.”
“Barato? E aqui eu estava preocupado que você achasse muito
caro.”
Em lugares com altos impostos, Lawrence não ficaria surpreso se
o valor de Evan fosse triplicado.
Mas talvez três ryuts parecessem altos para alguém não
familiarizado com o mercado.
CAPÍTULO II ⊰ 76 ⊱

“Os aldeões são muito tensos quando se trata de moagem. Mas se


eu não coletar na íntegra, sou eu que vou ter que suportar a ira do
ancião.”
Lawrence riu. “Isso é verdade em qualquer lugar.”
“Você também já foi moleiro alguma vez?”
“Não, mas uma vez trabalhei como cobrador de impostos. Era
pelo imposto do açougueiro na carne. Coisas como quanto de imposto
eles deviam por abater um porco, entende.”
“Huh, então é assim que é feito, hein?”
“Limpar carne e ossos contamina o rio e cria muito lixo, por isso
é tributado para pagar a limpeza — mas é claro que ninguém quer
pagar.”
Os direitos de tributação foram leiloados para o maior lance pelos
funcionários da cidade. A oferta ia diretamente para os cofres da
cidade, e o vencedor poderia então cobrar os impostos à vontade.
Quanto mais impostos se arrecada, maior o lucro — mas se o cobrador
de impostos não for bem-sucedido, ele se arrisca a uma grande perda.
Lawrence fizera isso duas vezes quando estava começando como
mercador.
O esforço que a coleta acarretava e o dinheiro que produzia eram
totalmente desproporcionais, ele descobriu.
“No final, eu teria que chorar e implorar para que as pessoas
pagassem. Foi horrível,” disse ele.
Evan riu. “Eu entendo perfeitamente!”
Lawrence sabia que essa história de dificuldades compartilhadas
avançaria um bocado na conquista da confiança de Evan.
Agora, ele pensou consigo mesmo enquanto ria com Evan.
“Por acaso, você disse que todo o grão de Tereo é moído aqui?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 77 ⊱

“Sim, é verdade. Houve uma grande colheita este ano, então não
é minha culpa que demorei tanto tempo para moer, mas eles reclamam
comigo constantemente!”
Lawrence não pôde deixar de imaginar Evan ficando acordado a
noite toda, cuidando do pilão.
Mas Evan riu da lembrança, aparentemente feliz, depois
continuou. “Então, você mudou de ideia desde ontem? Está planejando
fazer negócios de trigo em Tereo?”
“Hm? Bem, dependendo das circunstâncias...”
“Eu aconselho você a desistir,” disse Evan categoricamente.
“Os mercadores são particularmente ruins em desistir.”
“Ha, falou como um verdadeiro mercador! Mas você só precisa ir
até o ancião para entender. Foi decidido que a aldeia deve vender todo
o seu grão para Enberch.” Enquanto falava, Evan verificava o progresso
do pilão, cuidadosamente escovando a farinha no prato de pedra com
uma escova de pelo de javali.
“Ah, então Tereo é parte do feudo de Enberch?” Se isso for
verdade, isso tornaria ainda mais difícil explicar a vida preguiçosa dos
aldeões.
Sem surpresa, Evan olhou para cima e falou com orgulho. “Somos
iguais a eles. Eles compram nosso trigo; nós compramos outras coisas
deles. Além disso, quando compramos vinho ou roupas da Enberch,
não pagamos impostos. Impressionante, não é?”
Quando passou por Enberch, Lawrence viu que era uma cidade
de relativamente grande.
O termo pobre poderia ser muito duro para Tereo, mas a vila
certamente não parecia capaz de confrontar Enberch.
Era impressionante, então, que uma vila tão pequena conduzisse
o comércio com termos tão favoráveis.
CAPÍTULO II ⊰ 78 ⊱

“O que eu ouvi na taverna era que Enberch cobrava impostos


pesados sobre a Tereo.”
Evan riu. “Isso é história antiga. Quer saber por quê?” Ele cruzou
os braços como uma criança arrogante. Era mais engraçado do que
irritante.
“Eu adoraria,” disse Lawrence, abrindo as palmas das mãos em
convite.
Evan de repente desdobrou os braços e abaixou a cabeça. “Uh,
desculpe. Eu também não sei,” ele disse timidamente. “M-mas mesmo
assim—” ele se apressou a acrescentar. “Eu sei quem foi responsável
por fazer as coisas dessa maneira!”
Naquele instante, Lawrence sentiu algo que não sentia há muito
tempo — o prazer de estar um passo à frente do outro. “Padre Franz,
não foi?”
“Ah! Er — como você sabia?”
“Chame isso de intuição do mercador.”
Holo sem dúvida teria sorrido desagradavelmente para ele se ela
estivesse lá, mas às vezes Lawrence queria se divertir um pouco. Desde
que conheceu Holo, ele sempre foi o destinatário de sua provocação.
Fazia algum tempo desde que ele teve a oportunidade de ser o
distribuidor.
“I-incrível. Você é um homem a ser levado em conta, senhor
Lawrence.”
“Lisonja não vai te levar a lugar nenhum. Meu trigo está pronto?”
“Oh, er — sim. Um momento.”
Lawrence sorriu levemente com a pressa de Evan, depois suspirou
para si mesmo.
Pode ser perigoso ficar em Tereo por muito tempo.
Ele tinha visto de vez em quando lugares como esta vila e a vizinha
Enberch.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 79 ⊱

“Ah sim. De fato, serão três ryuut. Mas, como não tem ninguém
aqui, se você guardar segredo, você não precisa...”
“Não, eu vou pagar. Um moleiro tem que ser honesto, não acha?”
Evan segurava um recipiente de medição com a farinha de trigo
recém moída. Ele sorriu impotente e aceitou as três moedas de prata
enegrecidas que Lawrence ofereceu. “Certifique-se de peneirar bem
antes de fazer pão com ela,” disse ele.
“Eu irei. Aliás —,” começou Lawrence. Evan já havia começado a
cuidar do pilão agora que seu trabalho estava terminado. “Os serviços
da igreja aqui sempre começam tão cedo?”
Lawrence esperava surpresa de Evan, mas o garoto estava apenas
curioso quando se virou. “Hm?” Ele então pareceu entender a
implicação por trás da pergunta e sorriu. “Não, dificilmente. Não é
ruim no verão, mas tenho certeza que você concordará que está muito
frio para dormir no moinho no inverno. Eu durmo na igreja.”
Lawrence já esperava isso, então foi fácil para ele figir um natural
“Ah, entendo.” Ele continuou. “Mesmo assim, você parece ser bem
próximo da senhorita Elsa.”
“Hm? Ah, bem, ha-ha-ha...”
Se você misturar orgulho, felicidade e constrangimento, adicionar
um pouco de água e amassar até ficar macio, você vai ter algo como a
expressão de Evan naquele momento.
Tal receita certamente cresceria bem quando assada no fogo do
ciúme.
“Quando visitamos a igreja ontem para pedir instruções, fomos
tratados com certo desdém. Ela simplesmente não escutava nada do
que eu dizia. Ainda esta manhã, ela parecia tão gentil como a Santa
Madre. É uma surpresa.”
Evan riu nervosamente. “Bem, Elsa é bastante mal-humorada para
alguém tão tímida quanto ela. Sua timidez a faz ela parecer um rato
selvagem quando conhece alguém. Se ela realmente quiser seguir os
CAPÍTULO II ⊰ 80 ⊱

passos do padre Franz, terá que parar.” Ele desligou a roda d'água do
pilão e habilmente recolocou o cordame na roda d'água.
Seus movimentos suaves e competentes combinados com as
palavras que falou fizeram Evan parecer mais velho do que realmente
era.
“Mas ainda assim,” ele continuou, “já faz algum tempo desde que
ela esteve tão animada. Eu suponho que você chegou na hora errada.
Na noite de ontem, ela estava muito feliz. Ainda assim... é estranho.
Por que ela não mencionou que você tinha visitado? Aquela garota
geralmente me diz até quantos espirros ela teve naquele dia.”
Enquanto Lawrence sabia que Evan estava apenas conversando,
ele realmente não tinha interesse no assunto. Mas se quisesse se
aproximar de Elsa, ele precisava de Evan.
“Certamente é porque no final, eu também sou um homem,” disse
ele.
Evan ficou em silêncio por um momento, depois desatou a rir.
Finalmente ele falou: “Então ela estava preocupada que eu teria a ideia
errada! Aquela garota boba!”
Lawrence olhou para Evan e percebeu que ele tinha muito a
aprender com o rapaz, apesar de sua idade mais jovem.
Problemas desse tipo eram até mais complicados do que negócios.
“Mas o que a deixaria tão alegre depois de ficar tão irritada?”
O rosto de Evan ficou sombrio. “Por que você pergunta?”
“O humor da minha própria companheira muda com mais
frequência do que o clima da montanha,” disse Lawrence com um
encolher de ombros.
Evan fez uma pausa, se lembrando de Holo. Ele finalmente
pareceu aceitar a declaração de Lawrence.
Ele deu um sorriso simpático. “Deve ser bastante difícil.”
“Certamente é.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 81 ⊱

“Infelizmente eu não sei o quanto posso explicar. É simplesmente


que, no caso de Elsa, um problema persistente terminou.”
“O que significa?”
“Bem,” Evan começou, mas depois se cortou. “Me disseram para
não falar sobre isso com pessoas de fora da vila. Se você realmente
precisa saber, talvez possa perguntar ao ancião...”
“Ah, não, se você não pode falar sobre isso, tudo bem.”
Lawrence se retirou com facilidade, mas é claro que havia uma
razão para isso também.
Ele já havia reunido informações mais do que suficiente.
Mas Evan agora parecia preocupado por ter de alguma forma
prejudicado Lawrence. Seu rosto ficou repentinamente apreensivo.
Ele procurou algo para dizer. “Ah, mas — posso dizer que se você for
agora, ela provavelmente vai falar com você. Ela realmente não é uma
pessoa má!”
Dado que até o ancião da aldeia fingiu ignorar a abadia, Lawrence
duvidava que o problema fosse tão simples. Mas seria uma boa
oportunidade para ir falar com Elsa mais uma vez.
De qualquer forma, ele agora tinha um plano.
Supondo que suas previsões estivessem corretas, ele funcionaria.
“Bem, então,” disse ele. “Suponho que eu vá falar com ela
novamente.”
“Acho que você deveria.”
Decidindo que não havia mais nada a ser ganho aqui, Lawrence
disse, “Bom, estou indo agora,” e se virou para sair.
“U-um, senhor Lawrence!” Evan falou apressadamente.
“Hm?”
“É... é difícil ser um mercador viajante?”
No fundo dos olhos inquietos de Evan havia uma determinação.
CAPÍTULO II ⊰ 82 ⊱

Lawrence não conseguia zombar do garoto. “Não há emprego no


mundo que não seja difícil. Mas… sim, está sendo uma boa vida.”
Lawrence admitiu para si mesmo que era bom de uma maneira
completamente diferente desde que conhecera Holo.
“Entendo... eu acho que você está certo. Bem, obrigado!”
Embora ser um moleiro exigisse honestidade, havia uma diferença
entre a honestidade e a falta de arte.
Se Evan se tornasse um mercador, provavelmente seria bastante
popular, mas, na verdade, obter lucro exigiria muito trabalho,
Lawrence sabia.
Naturalmente ele não disse nada disso, simplesmente levantando
o saco de couro de farinha moída como agradecimento ao sair do
moinho.
Ele subiu o caminho que corria pelo riacho, imerso em
pensamentos.
Evan alegou que Elsa lhe contava até o número de espirros que ela
deu em um dia. A declaração deixara uma impressão estranhamente
profunda em Lawrence.
Ele podia imaginar Holo relatando o número de suspiros que ela
respirava em um dia para transmitir suas inúmeras dificuldades e
ressentimentos.
Qual era a diferença?
Então, novamente, uma calma e adorável Holo seria muito
estranho. Como ela mesma não estava presente, Lawrence não pôde
deixar de rir da ideia.

Ao voltar para a praça da aldeia, Lawrence viu algumas barracas


abertas — não o suficiente para ser propriamente chamado de
mercado, mas havia mais do que alguns aldeões reunidos.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 83 ⊱

No entanto, parecia que a reunião era menos sobre a compra de


coisas e mais sobre fazer conversa fiada. Não havia a atmosfera tensa
que vinha das pessoas se esforçando para comprar o mais barato
possível e vendendo tão caro quanto podiam.
Segundo Evan, Enberch comprava todo o trigo de Tereo a um
preço fixo, e o povo de Tereo podia comprar os produtos de Enberch
sem impostos.
Era difícil acreditar, mas se isso fosse verdade, explicaria as vidas
vagarosas que os cidadãos de Tereo pareciam levar.
As aldeias eram muitas vezes subordinadas a cidades vizinhas, os
próprios aldeões ficavam presos pela necessidade de trabalhar todos os
dias simplesmente para comprar vinho, comida, roupas e o gado
necessário para a vida cotidiana, mas que eles eram incapazes de
produzir.
Tal vila venderia suas colheitas a uma cidade e usaria o dinheiro
para comprar o que os aldeões precisassem.
Mas, para comprar os vários bens trazidos para a cidade,
precisavam de moedas. A única maneira de levantar dinheiro era
vender o trigo para os mercadores da cidade, convertendo-o em
dinheiro e depois usar os fundos para comprar bens desses mesmos
mercadores.
A questão era que, enquanto os aldeões precisavam de dinheiro,
os mercadores da cidade não necessariamente precisavam do trigo da
aldeia.
O desequilíbrio de poder significava que a cidade poderia forçar
os aldeões a vender mais barato e, em seguida, aumentar os preços de
seus próprios bens com coisas como tarifas.
Quanto mais terrível a situação financeira de uma aldeia, mais
facilmente uma cidade poderia tirar vantagem disso.
Eventualmente, os aldeões seriam forçados a pedir dinheiro
emprestado, e sem esperança de pagar, eles se tornariam escravos,
forçados a enviar todos os seus produtos para a cidade.
CAPÍTULO II ⊰ 84 ⊱

Para um mercador viajante como Lawrence, essas cidades escravas


representavam excelentes oportunidades. A moeda exercia um poder
terrível em tais lugares, e todos os tipos de mercadorias podiam ser
compradas por preços absurdamente baixos.
Mas, naturalmente, uma vez que uma aldeia tivesse garantido uma
fonte de renda, seria capaz de resistir novamente à influência da
cidade, colocando a cidade em uma posição ruim. Nesse ponto, os
argumentos se tornariam constantes, se repetindo indefinidamente
sobre esse ou aquele privilégio — mesmo assim, Tereo parecia estar
livre de qualquer conflito.
Embora ele não soubesse como Tereo evitava tal situação,
Lawrence tinha uma noção dos problemas e riscos que enfrentava
como resultado.
Depois de comprar alguns figos secos em uma barraca com um
mestre que parecia pensar que ter a loja aberta era o suficiente,
Lawrence voltou para a pousada.
Quando chegou lá, Holo estava dormindo na cama, totalmente
livre das preocupações do mundo. Lawrence riu silenciosamente.
Ela abriu os olhos enquanto Lawrence se aproximava. Uma vez
que seu rosto finalmente saiu de debaixo dos cobertores, a primeira
palavra que saiu de sua boca foi “comida.”
Como não tinha certeza de quanto tempo levariam para ir tão
longe, Lawrence tinha sido extremamente econômico com suas
provisões enquanto viajavam. Ele decidiu que deveriam terminar o que
já tinham.
“Tinha tudo isso de queijo sobrando? Eu só me contive porque
você disse que não duraria,” disse Holo.
“Quem disse que você pode comer tudo isso? Metade disso é
meu.”
Assim que ele pegou o queijo e cortou ao meio com uma faca,
Holo olhou para ele, seu rancor era óbvio. “Você não teve um bom
lucro na última cidade?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 85 ⊱

“Eu não expliquei a você que já usamos tudo?”


Na verdade, ele pagou suas obrigações restantes de uma vez em
Kumersun e em uma cidade vizinha.
Ele fez isso parcialmente como uma precaução para o caso de sua
busca por Yoitsu levar muito tempo — o que poderia levá-lo a perder
o prazo de pagamento — e também porque carregar muito dinheiro
era simplesmente imprudente.
Ainda sobrou algum dinheiro depois disso, o que ele deixou com
uma empresa comercial. O poder de uma empresa estava em suas
reservas de caixa. Claro, Lawrence estava ganhando juros nesse
negócio, mas Holo não precisava saber disso.
“Você só precisa me dizer uma vez — eu entendo isso. O que
quero dizer é que você ganhou dinheiro, mas eu não recebi nada.”
Doeu em Lawrence ouvir isso.
O negócio em Kumersun ficou fora de controle por causa do mal-
entendido de Lawrence, mas Holo não recebeu nada por seu trabalho.
No entanto, se ele mostrasse fraqueza agora, o aperto do lobo só
iria apertar.
“Como você pode dizer algo tão sem vergonha depois de comer e
beber tanto?”
“Nesse caso, faremos uma comparação cuidadosa da quantidade
de dinheiro que você ganhou e do quanto eu gastei?”
Atingiu onde doía, Lawrence desviou o olhar.
“Você fez uma boa quantia com as pedras que eu comprei daquela
mulher-pássaro. Para não mencionar—”
“Certo, certo!”
Com seus ouvidos capazes de discernir qualquer mentira, Holo
era pior do que qualquer coletor de impostos.
Se Lawrence se esforçasse mais, só aprofundaria a ferida.
CAPÍTULO II ⊰ 86 ⊱

Ele desistiu, empurrando todo o queijo para Holo.


Ela riu. “Oh, obrigado.”
“De nada.”
Certamente, era raro agradecer e ainda permanecer tão
aborrecido quanto Lawrence.
“Ah, como estão indo as suas investigações?”, Perguntou Holo.
“Mais ou menos.”
“Mais ou menos? Então você encontrou metade das instruções que
precisamos?”
Lawrence sorriu. O que ele disse poderia ser interpretado dessa
maneira, tinha que admitir. Ele pensou por um momento e depois
respondeu: “Se eu tivesse ido à igreja, eu poderia ter sido ignorado
como ontem. Então fui ver Evan no moinho.”
“Ah, indo atrás da pessoa cujo relacionamento com a garota não é
simples. É mais sensato do que eu esperava de você.”
“...É.” Lawrence pigarreou e chegou ao ponto. “Você desistiria de
ir para a abadia?”
Holo congelou. “...E o motivo seria?”
“Há algo estranho nesta aldeia. Parece perigoso para mim.”
Holo estava sem expressão. Ela mastigou um pedaço de pão de
centeio no qual havia espalhado um pouco de queijo. “Então você não
está disposto a se arriscar ao perigo para procurar a minha terra natal?”
Então é assim que vai ser, Lawrence pensou, cerrando o queixo.
“Isso não é — espere, você está fazendo isso de propósito.”
“Hmph.” Holo mastigou o pedaço de pão rapidamente,
engolindo-o em um piscar de olhos.
Era difícil saber quantas palavras ela havia engolido junto com o
pão, mas seu rosto deixava seu descontentamento claro o suficiente.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 87 ⊱

Lawrence essencialmente entendeu seu desejo de chegar à abadia


e fazer suas perguntas o mais rápido que pudesse, mas talvez esses
desejos fossem mais fortes do que ele imaginava.
Mas a pouca informação que tinha reunido na vila, juntamente
com a experiência que ele tinha acumulado como um mercador que
tinha visto muitas outras cidades e vilas, levou-o a acreditar que seria
perigoso continuar procurando a localização da abadia, enquanto
estivesse em Tereo.
Até porque —
“Se eu estiver certo, acho que a abadia que estamos procurando é
a igreja de Tereo.”
Não houve mudança na expressão de Holo, a não ser pelos tufos
de suas orelhas ficarem de pé.
“Vou falar o meu raciocínio ponto por ponto. Você está pronta?”
Holo tocou um tufo da orelha e assentiu levemente.
“Primeiro, Elsa obviamente sabe onde a abadia está, mas finge
ignorância. Se ela está escondendo essa informação, isso significa que,
por qualquer motivo, ela não pode falar sobre assuntos da Igreja. Além
disso, quando fui até a casa do ancião ontem fazendo a mesma
pergunta, ele também pareceu saber — e também fingiu que não.
Holo fechou os olhos e assentiu.
“Em seguida, de todos os edifícios da aldeia, apenas a casa do
ancião é maior que a igreja. No entanto, se você lembrar das conversas
na taverna de ontem, verá que a Igreja não tem muito respeito aqui.
Os aldeões adoram o espírito de cobra local que os protegeu por eras
— não o Deus da Igreja.”
“Mesmo assim,” disse Holo, “eles não falaram do padre Franz
como alguém que fez bem para a vila?”
“Sim. O ancião disse a mesma coisa. Então fica claro que o padre
Franz fez algo para beneficiar a vila — mas não foi salvá-los pregando
a palavra de Deus, o que significa que ele fez algo que os beneficiou
CAPÍTULO II ⊰ 88 ⊱

materialmente. E descobri o que foi há pouco tempo, conversando


com Evan.”
Holo estava cutucando um pedaço de pão com o dedo. Ela
inclinou a cabeça.
“Essencialmente, ele criou um contrato entre Tereo e Enberch
que é desproporcionalmente favorável para a Tereo. É por isso que
todos na aldeia podem ficar tão ociosos agora que a colheita do trigo
acabou. Eles não têm preocupações financeiras. E não foi outro senão
o padre Franz que fez de suas vidas o que elas são negociando um
contrato incrivelmente favorável com Enberch.”
“Mm.”
“Então a disputa entre Tereo e a Igreja em Enberch, que Evan
mencionou quando estávamos entrando pela primeira vez na cidade,
deve ser sobre isso. Geralmente, as disputas internas da Igreja
acontecem sobre quem assumirá os cargos vagos do sacerdócio ou dos
bispos, problemas com a doação de terras ou discussões sobre a
doutrina religiosa. A princípio, presumi que o problema estava em Elsa
— por ser tão jovem e uma mulher — encarregar-se da igreja. Mas
mesmo que seja essa a razão, a verdadeira causa é outra coisa.”
Elsa desejava, acima de tudo, herdar a posição do padre Franz.
Um homem em roupas de viagem aparecera na casa do ancião,
enquanto Lawrence estava visitando, e Evan disse que os problemas de
Elsa tinham sido resolvidos no dia anterior.
Baseado no mapa das relações que Lawrence conhecia muito bem,
ele chegou a entender a situação rapidamente.
“Enberch iria querer destruir a relação que existe atualmente
entre ela e Tereo. Não sei como ou quando o padre Franz conseguiu
executar o contrato, mas tenho certeza de que Enberch o quer tão
morto quanto o padre Franz está agora. O caminho mais rápido seria
pela força das armas, mas infelizmente Tereo também tem uma igreja.
Podemos supor que a razão pela qual Enberch não recorreu à força há
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 89 ⊱

muito tempo é porque a igreja de Tereo tem adeptos. Então o que


fazer? Eles precisam que a igreja da aldeia desapareça.”
O mensageiro que chegara à casa do presbítero no dia anterior
poderia ter trazido um documento de alguma igreja distante que
reconhecesse Elsa como a sucessora do padre Franz ou uma carta de
algum nobre com apoio promissor.
De qualquer forma, ficou claro que algo havia garantido a posição
de Elsa.
“Os aldeões daqui não escondem que adoram um espírito pagão.
Se fosse para ser reconhecido como uma aldeia pagã propriamente
dita, Enberch teria a desculpa de que precisa para atacar.”
“Se fosse tão simples como saber como chegar à abadia, não
haveria necessidade de mentir sobre isso,” disse Holo. “Mas se a abadia
está na aldeia, eles devem escondê-la.”
Lawrence assentiu e fez sua sugestão novamente. “Então não
podemos abandonar isso? Dada a situação, a existência da abadia seria
uma desculpa perfeita para Enberch atacar, o que significa que o povo
de Tereo continuará a escondê-la de nós. E se, como suspeito, a abadia
for a igreja, então o monge que procuramos é o Padre Franz. Seu
conhecimento dos antigos contos pagãos pode ter sido enterrado com
ele. Não faz sentido provocar problemas quando não há nada a ganhar
com isso.”
Além disso, Lawrence e Holo não tinham como provar que não
estavam ligados a Enberch.
A maioria dos teólogos não estava disposta a aceitar a declaração
“Eu não sou um demônio” como prova de que um deles não era, de
fato, um demônio.
“Além disso, isso envolve espíritos pagãos. Se isso der errado,
poderíamos ser rotulados como hereges e estaríamos com sérios
problemas.”
Holo suspirou, coçando a base de suas orelhas. Parecia que ela
estava tendo dificuldade em alcançar o lugar que coçava.
CAPÍTULO II ⊰ 90 ⊱

Ela pareceu entender que a situação que enfrentavam era grave,


mas não estava disposta a desistir tão facilmente.
Lawrence limpou a garganta e tentou novamente. “Eu entendo
que você quer coletar informações sobre sua terra natal, mas acho que
há um perigo aqui que devemos evitar. No que diz respeito à
localização de Yoitsu, as informações que coletamos em Kumersun
devem ser mais do que suficientes. E não é como se você tivesse
perdido sua memória. Nós não teremos que ir muito longe para...”
“Escute, você —” Holo o interrompeu de repente, então fechou
a boca como se tivesse esquecido o que dizer.
“Holo, me ouça.”
Ouvindo Lawrence chamar seu nome, o lábio de Holo se torceu
ligeiramente.
“Então, para que eu não entenda errado, quero que você me conte
claramente o que você espera aprender com esses contos pagãos?”
Holo desviou o olhar.
Lawrence não queria que suas perguntas soassem como um
interrogatório, então modulou cuidadosamente seu tom enquanto
falava. “Você quer saber mais sobre o espírito do urso que... er,
destruiu sua terra natal?”
Ainda olhando de soslaio, Holo não respondeu.
“Ou é... algo a ver com seus amigos?”
Essas eram as únicas possibilidades que Lawrence conseguia
pensar.
Para Holo ser tão teimosa, tinha que ser uma dessas duas coisas.
Talvez fosse as duas.
“E se for, o que você faria?” os olhos de Holo estavam penetrantes
e frios.
Eles não eram os olhos da orgulhosa loba perseguindo sua presa.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 91 ⊱

Eles eram os olhos de um animal encurralado que atacaria todos


os que ousassem se aproximar.
Lawrence escolheu suas palavras com cuidado. Elas vieram com
uma velocidade surpreendente.
“Dependendo das circunstâncias, existem alguns riscos que vou
correr.”
Em outras palavras, o ganho potencial teria que equilibrar o risco.
Se Holo realmente precisava de informações sobre o odiado
espírito do urso que destruiu sua terra natal ou sobre o destino de seus
velhos amigos, Lawrence estaria disposto a ajudar.
Apesar de sua aparência jovem, Holo não era criança, e Lawrence
esperava poder avaliar suas próprias emoções e tomar decisões lógicas.
Se ela o fizesse e ainda pedisse a ajuda de Lawrence, ele estava
preparado para respeitar sua decisão e assumir os riscos que ela pedia.
De repente, Holo relaxou os ombros tensos e descruzou as
pernas. “Tudo bem, então.” Ela continuou. “Está bem. Você não
precisa se preparar para um surto da minha parte.”
Claro, Lawrence sabia que não devia aceitar as palavras de Holo
pelo seu valor aparente.
“Ouça — eu gostaria de dar um tapa na cara da garota insolente e
fazê-la me contar tudo, dado o que você disse. Além disso, eu
simplesmente gostaria de saber tudo o que eu puder sobre Yoitsu.
Você também não gostaria de ouvir falar de sua terra natal?”
Lawrence assentiu concordando. Holo retornou seu aceno,
parecendo satisfeita.
“No entanto, acho que a ideia de você arriscar ao perigo por minha
causa é um pouco preocupante. Nós temos uma noção justa de onde
Yoitsu fica, não é?”
“Ah sim.”
“Então, não precisamos nos arriscar por isso.”
CAPÍTULO II ⊰ 92 ⊱

Apesar da declaração de Holo, Lawrence permaneceu


desconfortável.
Enquanto tinha sido ele quem sugeriu abandonar as investigações,
ele estava disposto a apoiar sua decisão.
Ouvi-la concordar tão prontamente, ele se perguntou se ela estava
mentindo.
Ele não disse nada enquanto pensava sobre isso. Holo se sentou na
beira da cama, colocando os pés no chão.
“Por que você acha que eu não falo da minha cidade natal para
você?” ela perguntou.
Lawrence não pôde deixar de demonstrar surpresa com a
pergunta.
Holo sorriu fracamente, embora não parecesse que ela estivesse
zombando dele. “De vez em quando eu me lembro de coisas sobre
minha cidade natal, coisas que eu gostaria de me gabar. Memórias eu
gostaria de te contar. Mas eu não conto porque você é sempre tão
atencioso — como você está sendo agora. Eu sei que reclamar de você
ser muito gentil é o auge do egoísmo. Mas é um pouco difícil para
mim.” Enquanto falava, ela arrancou pelo de sua cauda.
“Honestamente, se você fosse simplesmente um homem mais
perspicaz, eu não teria que dizer coisas tão embaraçosas.”
“Me... me desculpe.”
Holo riu. “Ainda assim, ser um pouco afetuoso é um dos seus raros
pontos positivos... É um pouco assustador para mim.”
Ela se levantou da cama, dando as costas para Lawrence.
Sua cauda, grossa como uma pele de inverno, balançou para frente
e para trás em silêncio. Ela se abraçou, abraçou os ombros e depois
olhou para Lawrence. “Aqui estou, sozinha e indefesa, mas você não
pula para me devorar. Sinceramente, você é um macho assustador.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 93 ⊱

Lawrence deu de ombros sob o olhar de Holo, o que parecia


desafiá-lo. “É preciso ter cuidado. Algumas frutas são mais azedas do
que parecem.”
Os braços de Holo caíram para os lados, e ela se virou para encarar
Lawrence, sorrindo. “Ah, é verdade, elas podem ser
insuportavelmente azedas. Mas,” ela disse, lentamente se aproximando
dele, seu sorriso inabalável, “você está dizendo que eu não sou doce?”
O que seria doce em alguém que faz coisas assim? Lawrence pensou
consigo mesmo. Ele assentiu imediatamente, como se dissesse: “Sim,
é exatamente o que estou dizendo.”
“Oh, ho, você tem audácia.” Holo sorriu.
“Algumas coisas precisam ser amargas para serem saborosas —
cerveja, por exemplo,” acrescentou Lawrence rapidamente.
Os olhos de Holo se arregalaram em aparente surpresa antes que
ela rapidamente os fechasse, como se tivesse deslizado e cometido um
erro. Sua cauda balançou quando ela disse: “Hmph. As crianças não
devem beber bebidas alcoólicas.”
“Oh, na verdade, não podemos deixar que eles fiquem de ressaca.”
Holo amuou intencionalmente e bateu com o punho no peito de
Lawrence.
Deixando a mão lá, ela baixou o olhar.
Parecia que de alguma forma eles estavam em algum tipo de
brincadeira tola.
Lawrence pegou a mão dela gentilmente. “Você realmente vai
desistir disso?” ele perguntou lentamente.
Qualquer um com uma mente tão esperta quanto a de Holo já
teria separado rapidamente o que era razoável do que não era.
Mas assim como os espíritos não podiam ser compreendidos
apenas pela razão, as emoções não eram facilmente controladas.
Passaram-se vários momentos antes de Holo responder.
CAPÍTULO II ⊰ 94 ⊱

“Me perguntando dessa maneira... não é justo,” ela disse baixinho,


segurando a camisa de Lawrence. “Se eu puder aprender alguma coisa
sobre Yoitsu, meus amigos ou aquele terrível espírito de urso, então
eu quero saber. O que aprendemos com a mulher-pássaro em
Kumersun está longe de ser suficiente. Era como sentir sede ainda
tendo apenas algumas gotas de água saciar,” Holo murmurou
fracamente.
Sendo muito cuidadoso agora que ele tinha entendido a verdadeira
natureza dessa conversa, Lawrence respondeu: “O que você quer
fazer?”
Holo acenou com a cabeça uma vez. “Posso... pedir isso a você?”
Suas palavras deram a sensação de que, se ele fosse abraçá-la, seu
corpo seria suave e flexível.
Lawrence respirou fundo e respondeu: “Deixe comigo.”
Holo ainda estava olhando para baixo. Sua cauda abanou uma
única vez.
Embora ele não tivesse certeza do quanto de seu estado atual era
genuíno, ainda era o suficiente para fazê-lo pensar que o risco valeria
o ganho potencial. Ele não pôde deixar de se perguntar se estava
bêbado.
De repente, Holo olhou para cima e revelou um sorriso
destemido. “Na verdade, eu tenho uma ideia.”
“Oh? Diga.”
“Bem, sobre isso...”
Holo expôs seu plano; era simples e claro. Lawrence suspirou
suavemente. “Você está falando sério?”
“Não vamos chegar a nenhum lugar sendo cautelosos. E agora a
pouco não perguntei se poderia pedir isso a você? Não perguntei se
você se arriscaria por mim?”
“Mesmo —”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 95 ⊱

Holo sorriu, mostrando suas presas ligeiramente. “‘Deixe


comigo’, você disse. Isso me fez muito feliz.”
Os contratos escritos eram compostos com descrições detalhadas,
de modo que não havia espaço para interpretação.
Mas os contratos verbais eram perigosos porque não só poderia
haver discussões sobre o que havia sido ou não dito, mas também era
difícil dizer se alguém deixara espaço para interpretação.
Sem mencionar que o oponente de Lawrence aqui era uma
centenária e autoproclamada sábia loba.
Ele tinha baixado a guarda o tempo todo acreditando que tinha a
iniciativa.
“Eu tenho que tomar suas rédeas de vez em quando, afinal,” disse
Holo, alegremente.
Ele só tinha respondido tão galantemente porque parecia que ela
estava dependendo dele.
Lawrence se sentiu patético por ter sonhado que tal situação
existia.
“Claro, se não der certo, vou deixar as coisas com você. Então...”
ela disse, pegando a mão dele com suavidade. “Agora eu só quero pegar
sua mão.”
Lawrence cedeu.
Ele não poderia ter afastado a mão dela mesmo que quisesse.
“Então está certo! Vamos comer e avançar!”
A resposta de Lawrence foi breve, mas bastante clara.
a verdade, se o padre Franz também fosse Louis Lana
Schtinghilt, o abade que Lawrence e Holo procuravam,
havia uma grande possibilidade de que os volumes e
documentos contendo histórias dos deuses pagãos ainda
estivessem na igreja.
Naturalmente, se a situação fosse como Lawrence supunha, era
provável que Elsa não corresse o menor risco e não revelasse nada
sobre a abadia.
Mas quanto mais importante alguma coisa fosse, mais provável
seria que tivesse sido gravado, e quanto mais alguém trabalhasse em
algo, mais difícil seria simplesmente queimar esse trabalho.
Certamente a documentação dos deuses pagãos permanecia
dentro da igreja.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 97 ⊱

O problema estava em chegar a esse trabalho.


“Com licença, tem alguém aí?” Assim como no dia anterior,
Lawrence e Holo chamaram pela porta da frente da igreja.
No entanto, ao contrário do dia anterior, eles não haviam chegado
despreparados.
“...O que desejam?”
Fazia apenas um dia, então Lawrence não sabia se Elsa estaria
disposta a abrir a porta, mas pelo menos isso não parecia ser um
problema.
Ontem ela estava palpavelmente irritada. Hoje seu rosto estava
escuro e nublado com o desgosto.
Vendo o quanto Elsa parecia odiá-los, Lawrence se viu
paradoxalmente gostando dela.
Lawrence deu um sorriso fácil. “Minhas desculpas por ontem. Eu
ouvi do Sr. Evan que você está enfrentando uma situação difícil.”
Ela pareceu se animar com a menção do nome de Evan, olhando
pela porta ligeiramente aberta para Lawrence, depois para Holo,
depois para a carroça pronta para viagem atrás deles antes de voltar a
olhar para Lawrence.
Ele notou que o descontentamento em seu rosto diminuíra.
“...Suponho que você veio perguntar sobre a abadia de novo?”
“Não, não. Eu já perguntei ao ancião, que também disse que não
sabia nada sobre disso. É possível que a informação que recebi em
Kumersun estivesse errada. A fonte era um pouco excêntrica, verdade
seja dita.”
“Entendo.”
Embora Elsa possa ter pensado que ela havia conseguido enganá-
los, os olhos de um comerciante eram mais aguçados do que isso.
CAPÍTULO III ⊰ 98 ⊱

“Portanto, embora seja um pouco mais cedo do que esperávamos,


seguiremos para a próxima cidade. Sendo assim, viemos orar por
viagens seguras.”
“...Se esse é o caso...” Embora ela ainda parecesse ter suspeitas,
Elsa lentamente abriu a porta. “Entre,” ela disse, convidando-os.
A porta se fechou com um baque quando Holo seguiu Lawrence
para dentro da igreja. Ambos estavam vestidos com roupas de viagem,
com Lawrence até carregando uma mochila por cima do ombro.
Tendo entrado na igreja pela frente, eles se encontravam em um
corredor que se estendia da esquerda para a direita. Do outro lado do
corredor havia outra porta. A construção de uma igreja era a mesma,
não importava para onde alguém viajasse, o que significava que a porta
diretamente à frente deles era o santuário. À esquerda estariam os
escritórios sacerdotais ou a sala de estudo com o dormitório à direita.
Elsa puxou a batina e deu a volta nos dois, abrindo a porta do
santuário. “Por aqui, por favor.”
Ao entrar, Holo e Lawrence descobriram que o santuário tinha
considerável grandeza.
Na frente havia um altar e uma imagem da Santa Madre com a luz
brilhando das janelas instaladas no nível do segundo andar.
O teto alto e a falta de cadeiras aumentavam a sensação de espaço.
As pedras do chão estavam bem unidas. Até mesmo o mercador
mais ganancioso teria dificuldade em soltá-las para vender.
O chão que levava da porta do santuário até o altar estava
ligeiramente descolorido dos pés que o haviam percorrido tantas
vezes.
Lawrence seguiu Elsa quando eles entraram e viu que o chão em
frente ao altar estava um pouco desgastado.
“Padre Franz —” começou Lawrence.
“Hm?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 99 ⊱

“Ele deve ter sido um homem de grande fé.”


Elsa ficou momentaneamente surpresa, mas então percebeu para
onde Lawrence estava olhando.
“Ah… sim, você está certo. Eu ... eu nunca teria notado até você
apontar.”
Este foi o primeiro sorriso de Elsa que Lawrence já vira e, embora
fosse pequeno, tinha uma ternura que parecia combinar com uma
garota da Igreja.
Lawrence deu ainda mais valor, considerando quão severa ela
tinha sido no primeiro encontro.
O fato de que ele logo faria aquele sorriso desaparecer o enchia de
arrependimento, como se estivesse extinguindo uma chama que tinha
sido difícil de acender.
“Então vamos orar. Você está preparado?”
“Ah, antes de começarmos,” disse Lawrence, largando a mochila,
tirando o casaco e dando um passo em direção a Elsa. “Eu devo fazer
minha confissão.”
O pedido inesperado fez Elsa dar uma pausa, mas depois de um
momento, ela respondeu: “Er, bem, nesse caso, há outra sala —”
“Não, eu vou fazer aqui, diante de Deus.”
Lawrence estava inflexível quando se aproximou de Elsa, e ela não
se acovardou, apenas assentiu. “Muito bem,” ela disse com uma leve
inclinação de cabeça, exatamente como um sacerdote devoto.
Parecia que o desejo de Elsa de herdar a posição do padre Franz
não era apenas para o benefício da aldeia.
Ela viu Holo se retirar em silêncio para a parte de trás do santuário
e, em seguida, juntando as mãos e inclinando a cabeça, recitou uma
oração.
Quando levantou o rosto novamente, ela era uma serva fiel de
Deus.
CAPÍTULO III ⊰ 100 ⊱

“Confesse seus pecados, pois Deus está sempre perdoando aqueles


que são honestos.”
Lawrence respirou fundo. Ele estava tão propenso a zombar de
Deus quanto a orar, mas aqui no meio do santuário, ele não podia
deixar de sentir uma certa apreensão.
Ele exalou devagar, depois se ajoelhou no chão. “Eu disse uma
mentira.”
“Que tipo de mentira?”
“Eu tenho enganado para meu próprio ganho.”
“Você confessou seu pecado diante de Deus. Agora você tem
coragem de dizer a verdade?”
Lawrence levantou a cabeça. “Eu tenho.”
“Embora Deus saiba de tudo, ele ainda deseja ouvir você falar suas
transgressões. Não tenha medo. Deus é sempre misericordioso com
aqueles de boa fé.”
Lawrence fechou os olhos. “Eu menti hoje.”
“De que maneira?”
“Eu enganei alguém usando uma falsa pretensão.”
Elsa parou por um momento, depois falou. “Por que razão?”
“Havia algo que eu precisava saber e, para aprender, menti para
me aproximar da fonte desse conhecimento.”
“…Para quem você mentiu…?”
Lawrence olhou para cima e respondeu: “Para você, senhorita
Elsa.”
Ela estava obviamente atordoada.
“Agora confessei minha mentira diante de Deus e contei a
verdade.” Lawrence ficou de pé. Ele era uma cabeça mais alto que Elsa.
Estou procurando a abadia de Diendran e vim perguntar-lhe sua
localização.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 101 ⊱

Elsa mordeu o lábio. Embora seus olhos estivessem cheios de


ódio, ela não tinha a determinação do primeiro encontro entre eles, a
força para afastar qualquer pedido.
Havia uma razão pela qual Lawrence entregou sua confissão aqui.
Ele tinha que prender Elsa, cuja fé era claramente profunda, aqui
— diante de Deus.
“Não,” corrigiu-se Lawrence. “Eu menti novamente. Eu não vim
aqui para perguntar a localização.”
A confusão se espalhou pelo rosto de Elsa como óleo sobre a água.
“Eu vim para perguntar se esta é a Abadia Diendran.”
“...!”
Elsa recuou, mas a depressão causada pelos anos de devoção do
padre Franz fez com que ela tropeçasse.
Ela ficou diante de Deus.
Aqui, de todos os lugares, ela não podia mentir.
“Miss Elsa, esta é a abadia de Diendran, e o padre Franz também
era Louis Lana Schtinghilt. Não é verdade?”
À beira das lágrimas, Elsa desviou o olhar, como se acreditasse
infantilmente que, desde que não sacudisse a cabeça, sua resposta não
era mentirosa.
Mas a reação dela foi tão boa quanto uma confirmação.
“Senhorita Elsa, simplesmente desejamos saber o conteúdo dos
contos pagãos que o padre Franz colecionava. Não é para negócios e
certamente não tem nada a ver com Enberch.”
Elsa deu um pequeno suspiro, depois fechou a boca para não
deixar escapar nada.
“Estou errado em pensar que a razão pela qual você deseja manter
o fato de que esta é a Abadia Diendran em segredo é porque os
registros coletados pelo Padre Franz estão aqui?”
CAPÍTULO III ⊰ 102 ⊱

Uma gota de suor escorria lentamente da testa de Elsa.


Era tão boa quanto uma confissão.
Lawrence fechou o punho casualmente, sinalizando para Holo.
“O que te preocupa, senhorita Elsa, é Enberch descobrir sobre as
atividades do Padre Franz, correto? Tudo o que queremos é ver seus
escritos. Queremos vê-los tanto que estamos dispostos a empregar
esses métodos duvidosos.”
Elsa abriu a boca quase involuntariamente. “Quem... quem é
você?”
Lawrence não respondeu imediatamente, simplesmente olhando
para Elsa.
Elsa, que planejava suportar os fardos da igreja com seu pequeno
corpo, olhou para ele incerta.
E então —
“Quem somos nós? Essa é uma questão para a qual é difícil dar
uma resposta satisfatória,” interveio Holo.
Elsa de repente olhou para Holo, como se tivesse percebido que
ela estava presente.
“Há uma razão, no entanto, por que nós — não, porque eu estou
forçando esta situação.”
“...Qual... qual a razão?”, Elsa balbuciou a voz quando parecia
prestes a desatar a chorar.
Holo assentiu. “Esta razão.”
Provar que não eram lacaios enviados de Enberch era tão difícil
quanto tentar provar que não eram demônios.
Mas, assim como um anjo pode mostrar suas asas para provar que,
pelo menos, não era um demônio, havia uma maneira de Holo e
Lawrence provarem que quem quer que fossem, não eram de Enberch.
Holo tirou o capuz, revelando suas orelhas e cauda.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 103 ⊱

“Elas são bem reais. Você se importaria de tocá-las?”


A cabeça de Elsa se inclinou para frente. Por um momento,
Lawrence pensou que ela estava balançando a cabeça, as mãos
agarradas ao coração.
“Ugh—”
Mas então com um gemido estranho, Elsa desmaiou.

Depois de colocar Elsa na cama, Lawrence suspirou.


Ele achava que ser moderadamente ameaçador seria eficaz, mas
evidentemente eles tinham ido longe demais.
Elsa desmaiou, mas provavelmente acordaria em breve.
Lawrence vagava os olhos pelo quarto.
Embora a Igreja certamente exaltasse as virtudes da frugalidade,
este quarto estava tão vazio que Lawrence se perguntou se Elsa
realmente vivia nele.
Virando à direita ao entrar na igreja havia a uma sala de estar com
uma lareira. No canto mais distante da sala havia um corredor paralelo
ao santuário, que levava a uma escada para o segundo andar.
A cama ficava no segundo andar, e Lawrence a carregou pela
escada e a deitou na cama. Os únicos outros objetos no quarto eram
uma escrivaninha e uma cadeira, um livro aberto de escritura e
interpretação bíblica e algumas cartas. A única decoração era um laço
de palha trançada em uma parede.
Havia dois quartos no segundo andar; o outro quarto parecia ser
usado para armazenamento.
Embora ele não estivesse bisbilhotando intencionalmente,
Lawrence percebeu de imediato que a sala não continha nenhum dos
escritos do padre Franz.
O depósito continha vários itens usados pela igreja durante o ano
todo — tecidos com bordados cerimoniais, castiçais, espadas e
CAPÍTULO III ⊰ 104 ⊱

escudos. Estavam todos cobertos de poeira, como se não tivessem sido


usados há muito tempo.
Lawrence fechou a porta do depósito. Ele ouviu o som de passos
leves subindo as escadas, e quando se virou para olhar, viu que era
Holo.
Sem dúvida, ela andou pelo corredor que circundava o santuário,
fazendo uma rápida verificação do interior da igreja.
O vago descontentamento em seu rosto provavelmente não por
causa do estado de Elsa, mas sim porque ela não conseguiu encontrar
nenhum dos escritos do padre Franz.
“Suponho que será mais rápido perguntar. Se eles estiverem
escondidos, nunca os encontraremos,” ela admitiu.
“Você não pode farejá-los?” Lawrence falou sem pensar, mas Holo
apenas sorriu para ele, e ele rapidamente acrescentou: “Desculpe!”
“Então, ela ainda está dormindo? Eu não esperava que ela fosse tão
frágil.”
“Eu não sei se é isso. Estou começando a me perguntar se as
circunstâncias dela são mais difíceis do que eu imaginava.”
Ele sabia que não deveria, mas Lawrence não pôde deixar de ler
as cartas que estavam em sua mesa. Uma vez que ele terminou, ele
tinha uma compreensão muito melhor das coisas que Elsa tinha feito
para evitar a intervenção de Enberch.
Ela apelou para outras igrejas que Tereo seguiu a fé ortodoxa
assim como Enberch, e buscou o apoio de um senhor feudal próximo
para impedir que Enberch atacasse.
Mas, olhando para a resposta do lorde, Lawrence notou que ele
parecia dar mais apoio por causa do padre Franz do que por qualquer
confiança que Elsa tivesse ganhado sozinha.
Também haviam cartas de grandes dioceses das quais até
Lawrence ouvira falar.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 105 ⊱

No geral, tudo era como Lawrence havia pensado.


Não era difícil imaginar os dias em que Elsa teria esperado
freneticamente a chegada da carta. Até mesmo Lawrence, um
estranho, poderia imaginar a terrível ansiedade que ela deve ter
sentido.
No entanto, ele teve que supor que sua maior dificuldade estava
em outro lugar completamente diferente.
Os artefatos cobertos de poeira no depósito contavam uma
história muito clara.
Embora ela estivesse impedindo Enberch — com a ajuda do
ancião — parecia duvidoso que qualquer um dos moradores sentisse
alguma gratidão.
Era certamente verdade que eles viam a igreja com certo desdém.
“…Mm.”
Enquanto Lawrence estava pensando nisso, ele ouviu um som
vindo da cama.
Parecia que Elsa estava acordada.
Lawrence levantou a mão para parar Holo, que parecia pronta
para atacar como um lobo que ouviu os passos de uma lebre. Ele
limpou a garganta suavemente. “Você está bem?” ele perguntou.
Elsa não se levantou, mas simplesmente abriu os olhos devagar.
Sua expressão era complicada, como se não tivesse certeza se deveria
se sentir surpresa, assustada ou zangada. Ela parecia se contentar com
um olhar vagamente perturbado.
Ela acenou com a cabeça ligeiramente. “Você não vai me
amarrar?”
Elas eram palavras ousadas.
“Se você fosse chamar alguém, eu estaria preparado para isso. Eu
tenho corda na minha mochila.”
“E se eu gritasse agora?”
CAPÍTULO III ⊰ 106 ⊱

Elsa desviou o olhar de Lawrence para Holo — Holo, cujo desejo


de saber a localização dos antigos contos os trouxe para cá.
“Isso não beneficiaria nem a você nem a nós,” disse Lawrence.
Elsa olhou para Lawrence, fechando os olhos. Ele notou seus
longos cílios.
Apesar de sua rigidez, ela ainda era uma jovem mulher.
“O que eu vi...” ela começou, tentando se sentar. Lawrence
estendeu a mão para ajudá-la, mas ela recusou. “Estou bem.”
Ela olhou para Holo sem malícia e sem medo, como se olhasse
para nuvens pesadas que finalmente começavam a chover. “O que eu
vi não foi um sonho, foi?”
“Seria melhor para nós se você pensasse dessa forma,” disse Holo.
“Dizem que os demônios enganam os humanos através dos
sonhos.”
Embora ele pudesse dizer que Holo não estava totalmente séria,
Lawrence não tinha tanta certeza sobre Elsa.
Ele olhou para Holo; sua expressão irritada sugeria que ela estava
sendo parcialmente sincera.
A tensão entre as duas tinha mais a ver com personalidades
conflitantes, Lawrence adivinhou, do que com o fato de que uma era
um membro devoto da Igreja, enquanto a outra era um espírito da
colheita.
“Quando alcançarmos nosso objetivo, desapareceremos como um
sonho e não a perturbaremos mais. Vou perguntar novamente: você
nos mostrará os escritos do padre Franz?” Lawrence perguntou,
interrompendo as duas.
“Eu… eu ainda não posso ter certeza de que você não foi enviado
por Enberch. Mas se esse não é realmente o caso... qual é o seu
objetivo?”
Lawrence não tinha certeza se deveria responder a essa pergunta.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 107 ⊱

Ele olhou para Holo, que assentiu devagar.


“Eu gostaria de voltar para minha casa,” ela falou.
“Sua casa...?”
“Mas os anos se passaram desde que eu estive lá. Esqueci o
caminho e não sei se meus velhos amigos estão bem. De fato, não posso
nem ter certeza de que ela ainda existe,” explicou Holo. “O que você
faria se soubesse que pode haver alguém que conhecesse alguma coisa
da sua terra natal?”
Mesmo alguém que passou a vida inteira na mesma aldeia gostaria
de saber como essa aldeia era vista pelos outros.
Isso era ainda mais verdadeiro para as pessoas que haviam deixado
suas casas.
Elsa ficou em silêncio por algum tempo e Holo não a pressionou.
Seus olhos abatidos deixavam claro que ela estava imersa em
pensamentos.
Apesar de sua juventude, era óbvio que ela não era uma donzela
que vivia a vida sem pensar, colhendo flores e cantando canções.
Quando Lawrence alegou querer confessar seus pecados, ele pôde
dizer que sua solenidade não era fingimento.
Embora ela possa ter desmaiado ao ver a natureza desumana de
Holo, Lawrence sentiu que ela era esperta o suficiente para tomar a
melhor decisão, dada a situação.
Elsa colocou a mão no peito e recitou uma oração, depois ergueu
os olhos. “Eu sou uma serva de Deus,” ela falou, continuando antes que
Lawrence ou Holo pudessem interromper. “Mas, ao mesmo tempo,
sou a sucessora do padre Franz.” Ela saiu da cama, alisando as rugas da
batina e limpando a garganta. “Eu não acredito que você tenha sido
possuído por um demônio, porque o padre Franz sempre disse que tal
coisa não existia.”
CAPÍTULO III ⊰ 108 ⊱

Lawrence ficou mais do que um pouco surpreso com a declaração


de Elsa, mas a expressão de Holo parecia dizer que, enquanto ela
pudesse ver os escritos, estava tudo bem.
Por fim, Holo pareceu perceber a disposição de Elsa em ceder e,
embora seu rosto permanecesse sério, a ponta da cauda balançou
inquieta.
“Por favor, venham comigo. Eu vou mostrar.”
Por um momento Lawrence se perguntou se ela só disse isso para
escapar, mas Holo seguiu sem questionar, então evidentemente não
havia necessidade de se preocupar.
Assim que chegaram à sala de estar no primeiro andar, Elsa tocou
levemente a parede de tijolos ao lado da lareira com os dedos.
Então, chegando a uma pedra em particular, ela lentamente a
libertou.
Tendo puxado para fora como uma gaveta, Elsa virou o tijolo e
uma pequena chave de ouro caiu em sua mão.
Olhando por trás, sua forma era exatamente a de uma garota
rígida.
Ela acendeu uma vela e a colocou em um suporte, depois se virou
para Lawrence e Holo.
“Vamos,” ela disse calmamente, depois caminhou pelo corredor
que continuava mais ao fundo da igreja.

A igreja era maior do que Lawrence imaginava.


Ao contrário do santuário, limpo e bem usado graças à oração
constante, o estado do corredor dificilmente poderia ser elogiado.
Os candelabros nas paredes estavam cobertos de teias de aranha,
e pequenos pedaços de pedra que haviam caído das paredes rangiam
constantemente sob os pés.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 109 ⊱

“Aqui estamos,” disse Elsa, parando. A direção que ela apontou


provavelmente ficava diretamente atrás do santuário.
Ali, em um pedestal, havia uma estátua da Santa Madre, quase do
tamanho de uma criança pequena. A Santa Madre unia as mãos em
oração e encarava a entrada da igreja.
O espaço atrás do santuário era o lugar mais sagrado da igreja.
Restos ou ossos sagrados — as chamadas “relíquias sagradas” — e
outros itens importantes para a Igreja eram armazenados aqui.
Era o lugar comumente usado pela a Igreja para guardar coisas
preciosas, sendo assim, usá-lo para armazenar escritos sobre histórias
pagãs exigia bastante coragem.
“Que Deus nos perdoe,” murmurou Elsa. Ela pegou a chave de
latão na mão e a inseriu em um pequeno buraco na base da estátua.
O minúsculo buraco da fechadura não era fácil de detectar na
escuridão. Elsa virou a chave com alguma força, e de dentro da estátua
veio o som distinto de algo que destrancava.
“Em seu testamento, o padre Franz dizia que a estátua poderia ser
removida do pedestal… mas nunca a vi abrir.”
“Entendo,” disse Lawrence com um aceno de cabeça.
Assim que ele se aproximou da estátua, Elsa recuou, com
preocupação em seus olhos.
Tomando posse da estátua, Lawrence ergueu-a com força, mas ela
se levantou com uma facilidade inesperada.
Evidentemente era oca.
“Oof! ...Pronto.” Lawrence colocou a estátua ao lado da parede,
tomando cuidado para que ela não caísse.
Elsa olhou para o espaço deixado pela estátua, hesitando por um
momento, mas sob o olhar insistente de Holo, ela se aproximou
novamente.
CAPÍTULO III ⊰ 110 ⊱

Ela girou a chave na direção oposta e a removeu, desta vez


inserindo-a em um pequeno buraco no chão a certa distância do
pedestal, girando-a duas vezes no sentido horário.
“Pronto... nós já devemos ser capazes de levantar o pedestal de
pedra do chão,” disse Elsa, ainda agachada. Holo olhou para Lawrence.
Oferecer qualquer oposição agora traria sua ira sobre ele, então
ele suspirou e se preparou. No entanto, naquele momento ele
vislumbrou uma expressão desconfortável.
Ela já havia feito uma expressão semelhante antes, só para depois
provocar Lawrence, dizendo: “Então, você gosta de me ver assim?”
então ele não podia ter certeza se ela estava ou não realmente
preocupada, mas a possibilidade era suficiente para fazê-lo ter o vigor
renovado.
“Parece que o único lugar para segurar… é o pedestal. Algo
assim—”
Sem saber exatamente como abrir o chão, Lawrence o examinou,
depois plantou os pés e segurou o pedestal. Dada a maneira como eram
as juntas das pedras do chão, parecia que a pedra mais próxima da
entrada da igreja se levantaria.
“Hng!” Lawrence se preparou e puxou para cima. Houve um ruído
desagradável, como areia numa pedra de moinho — mas o pedestal se
ergueu, junto com as pedras do chão.
Mantendo sua posição, ele mudou sua pegada e levantou com toda
a força.
O chão de pedra contra pedra e o metal enferrujado estalaram
quando o chão se ergueu, revelando um porão escuro.
Não parecia ser muito profundo; ao pé das escadas de pedra havia
algo que parecia uma estante de livros.
“Vamos entrar?”
“...Eu vou primeiro,” disse Elsa.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 111 ⊱
CAPÍTULO III ⊰ 112 ⊱

Parecia que, pelo menos, Elsa não tinha intenção de deixar


Lawrence e Holo entrarem primeiro e depois fechar a porta atrás
deles.
E em todo caso, tendo chegado até aqui, não havia sentido em
hesitar.
“Entendido. O ar parece um pouco abafado, por isso tenha
cuidado,” disse Lawrence.
Elsa assentiu e, segurando a vela em uma mão, desceu com
cuidado os degraus íngremes.
Dois ou três passos depois do ponto onde a cabeça dela estava logo
abaixo do chão, Elsa parou para colocar a vela em uma cavidade
entalhada na parede. Ela então prosseguiu.
Lawrence temia que ela planejasse atear fogo no conteúdo da sala,
mas aparentemente ele poderia relaxar quanto a isso.
“Você parece ainda mais desconfiado do que eu,” disse Holo,
talvez tendo notado sua preocupação.
Elsa voltou em breve.
Em suas mãos, ela carregava uma carta selada junto com um
pacote de pergaminho.
Ela estava meio que rastejando de volta pelos degraus, então
Lawrence estendeu a mão para ajudá-la.
“…Obrigado. Peço desculpas pela espera.”
“De modo algum. Isto são...?” Perguntou Lawrence.
“Cartas,” respondeu Elsa brevemente. “Os livros lá dentro são o
que você procura, eu acredito.”
“Podemos levá-los para lê-los?” perguntou Lawrence.
“Eu pediria para você lê-los dentro da igreja.” Era uma resposta
razoável.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 113 ⊱

“Então entrarei,” disse Holo, descendo rapidamente as escadas e


entrando no porão. Ela logo desapareceu de vista.
Embora ele não tivesse seguido Holo, não foi porque ainda
suspeitava de Elsa.
“Eu sei que é tarde para dizer isso, mas sei que forçamos você a
isso. Agradeço e peço desculpas,” ele disse para Elsa, que olhou
vagamente para a entrada do porão.
“Sim, você realmente me forçou,” disse Elsa.
Lawrence não tinha palavras diante do olhar dela.
“Ainda assim... ainda assim, acho que o padre Franz teria ficado
satisfeito.”
“Eh?”
“Ele gostava de dizer: ‘As histórias que eu coleciono não são meros
contos de fadas.’” O aperto de Elsa na carta que ela segurava se
estreitou.
Aquelas cartas provavelmente foram deixadas para trás pelo
falecido padre.
“Esta também é minha primeira vez entrando neste porão. Eu não
esperava que houvesse tantos livros. Se você pretende ler todos eles,
talvez queira fazer uma nova reserva na pousada.”
Em sua declaração, Lawrence de repente se lembrou de que ele e
Holo tinham usado roupas de viagem para enganá-la.
Eles também tinham, é claro, liquidado a conta com a pousada.
“Ah, mas você pode chamar alguém enquanto isso,” disse
Lawrence.
Ele não estava brincando, mas Elsa, em todo caso, parecia não
estar satisfeita. “Eu sirvo esta igreja. É minha intenção abraçar a
verdadeira fé. Eu nunca faria essa armadilha,” ela disse, alisando o
cabelo firmemente amarrado e lançando um olhar severo para
Lawrence, ainda mais afiado do que os que ele recebeu quando a
CAPÍTULO III ⊰ 114 ⊱

conheceu pela primeira vez. “Mesmo no santuário, não falei nenhuma


mentira.”
Era verdade que o silêncio dela não constituía mentira.
No entanto, apesar de sua determinação e da força de seu olhar,
sua insistência infantil nesse ponto lembrava Lawrence de uma certa
pessoa que ele conhecia.
Então ele apenas assentiu e concordou. “Fui eu quem armou uma
armadilha. No entanto, se eu não tivesse feito isso, você nunca teria
concordado com o meu pedido.”
“Devo me lembrar de nunca baixar a guarda diante de um
mercador,” Elsa falou com um suspiro.
Holo subiu cambaleando de volta pelas escadas, carregando um
volume pesado com ela. “Ei —”
Lawrence correu para ajudar Holo, que parecia incapaz de
suportar o peso do livro e parecia que iria tombar para trás. Ele agarrou
seus braços, ajudando-a a apoiar o livro.
O magnífico tomo foi encadernado em couro e reforçado nos
cantos com ferro.
“Uau. Isso certamente não é algo que deva simplesmente ser
carregado por aí. Posso lê-lo aqui?” Perguntou Holo.
“Eu não me importo, mas por favor, apague a vela quando
terminar. Esta igreja não é rica, afinal de contas.”
“Hmph”, disse Holo, olhando para Lawrence.
Como nenhum dos aldeões comparecia aos serviços, não havia
dízimo.
Era fácil supor que Elsa falava não por malícia ou por rancor, mas
simplesmente porque essa era a verdade.
Lawrence abriu sua bolsa de moedas, pegando algum dinheiro —
seu agradecimento por ter sua confissão ouvida e por tê-la incomodado
tanto.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 115 ⊱

“Ouvi dizer que, se um mercador deseja subir para o reino dos


céus, ele deve aliviar sua bolsa de moedas,” ele falou.
“...”
Ele ofereceu três moedas de prata.
Elas seriam suficientes para comprar uma sala cheia de velas.
“Que a bênção de Deus esteja em você,” disse Elsa, pegando as
moedas, depois dando a volta e indo embora.
Lawrence imaginou que, se estava disposta a aceitar as moedas,
não deveria considerá-las contaminadas.
“Então, o que você acha? Você consegue ler sozinha?” ele
perguntou a Holo.
“Eu posso. Não tenho problemas quanto a isso. E devo isso à
minha conduta exemplar.”
Ela tinha audácia para fazer piadas assim em uma igreja.
“E qual é o deus que abençoa as pessoas de acordo com sua
conduta?”
“Se você quer saber, é melhor me dar uma oferenda.”
Lawrence tinha certeza de que, caso se virasse e olhasse a estátua
da Santa Madre encostada na parede, um sorriso amargo estaria em seu
rosto.

Assim que voltaram para a estalagem e garantiram seu quarto


novamente — depois de suportar algumas provocações do
estalajadeiro risonho — Lawrence pensou no que faria em seguida.
Eles conseguiram que Elsa revelasse seu segredo e revlasse os
livros do padre Franz. Por enquanto, tudo estava bem.
Embora Holo tivesse revelado seus ouvidos e cauda, enquanto
Enberch continuasse a esperar por uma chance de atacar, Elsa não
podia revelar a verdade.
CAPÍTULO III ⊰ 116 ⊱

Lawrence admitiu para si mesmo que era possível que Elsa dissesse
a verdade sobre a natureza de Holo aos aldeões, a fim de induzi-los à
ação, dizendo que ela era uma serva do mal que veio trazer calamidade
à aldeia.
Mas quanto à questão de saber se ela tinha algo a ganhar com tal
ação, a resposta era um óbvio “não.”
Embora Elsa tivesse desmaiado ao ver as orelhas de Holo, desde
que acordara, não tinha medo nem aversão a Holo.
Na verdade, ela provavelmente concentrou sua aversão em
Lawrence.
Sendo esse o caso, o próximo problema eram as pessoas ao redor
de Elsa — Sem, o ancião da aldeia, e Evan. Se eles soubessem da
natureza de Holo, não havia como prever o que aconteceria.
Havia um número considerável de livros para ler no porão. Holo
e Lawrence precisariam de algum tempo para passar por todos eles.
Se pudesse, ele queria deixar Holo ler até se dar por satisfeita
enquanto ele assumia a responsabilidade de mantê-la segura durante o
processo.
Embora ela o acusasse de ser paranoico, ele achava que não
suspeitava o suficiente.
Mas não havia garantia de que tomar essa ou aquela ação não
despertaria uma cobra adormecida, por assim dizer.
Ele voltou para a igreja, pensando que, de qualquer forma, eles
precisavam inventar algum tipo de desculpa para passarem tempo lá.
Ele encontrou Elsa lendo cartas em uma mesa, que parecia grande
demais para ela, na sala de estar, que era tão dolorosamente simples
quanto o quarto dela. Ela não parecia ter informado secretamente os
aldeões e estavam apenas esperando pelo retorno dele para saltar na
armadilha.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 117 ⊱

Quando ele bateu na porta da frente da igreja, não houve resposta,


então tomou a liberdade de entrar. Houve pouca reação dela quando
ele entrou na sala de estar.
Elsa apenas olhou para Lawrence, sem dizer nada.
Ele não podia simplesmente passar por ela para a parte de trás da
igreja sem dizer nada.
“Tem certeza de que não quer ficar de olho em nós? Podemos
roubar os livros, sabe,” ele disse brincando.
“Se planejasse fazer isso, não haveria razão para não me amarrar,”
ela disparou de volta.
Evidentemente, Holo não era a única garota durona do mundo.
“E se você fosse de Enberch, já estaria correndo de volta para a
cidade em um cavalo.”
“Ah, mas isso é realmente verdade? Não dá para dizer que você
não atearia fogo aos livros no porão. Se os livros virassem cinzas dentro
do tempo necessário para chegar a Enberch e voltar, não haveria
provas.”
A conversa era tanto conversa fiada quanto provocação.
Elsa suspirou e olhou para Lawrence. “Desde que você não planeje
provocar uma calamidade na aldeia, não tenho a menor intenção de
criar uma confusão. Embora seja verdade que sua companheira não
deveria estar em uma igreja, eu...”
Ela parou, fechando os olhos como se não quisesse ver uma
pergunta que não tinha resposta.
“Tudo o que desejamos fazer é aprender mais sobre as terras do
norte. Sua suspeita é completamente compreensível.”
“Não,” disse Elsa, sua voz inesperadamente firme.
Tendo feito isso, ela pareceu perceber que não havia preparado as
palavras que seguiriam essa negação.
CAPÍTULO III ⊰ 118 ⊱

Foi só depois de dar um profundo suspiro que ela foi capaz de


continuar. “Não… se a questão for se eu sinto suspeitas, admito que
sim. Se fosse possível, gostaria de poder consultar alguém. Mas… meu
problema é maior…”
“Você quer saber se minha companheira é realmente o que ela diz
ser?”
O rosto de Elsa congelou como se ela tivesse engolido uma agulha.
“Há isso também, sim...”
Ela olhou para baixo, a única característica remanescente de sua
natureza firme sendo sua espinha reta.
Ela parecia incapaz de continuar.
Lawrence então perguntou: “E o que mais?”
Elsa não respondeu.
O meio de subsistência de Lawrence era negociar com as pessoas.
Quando uma pessoa se retirava, ele sabia quando insistir e quando
esperar que essa pessoa se abrisse novamente.
Este era, sem dúvida, o primeiro caso.
“Não posso aceitar sua confissão, mas posso lhe dar alguns
conselhos. Contudo…”
Elsa olhou para ele como se estivesse dentro de uma caverna
profunda.
“...Contudo, você só será capaz de obter respostas sinceras sobre
coisas de fora dos negócios,” concluiu Lawrence com um sorriso. Ele
sentiu que, só por um momento, Elsa também sorriu.
“Não,” ela disse, “a pergunta que tenho é melhor que seja feita
para uma pessoa como você. Posso perguntar então?”
Ao pedir um favor, é muito difícil evitar que pareça servil e
também preservar sua dignidade sem parecer arrogante.
No entanto, Elsa conseguiu.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 119 ⊱

Ela era a imagem do clero.


“Não posso garantir que a resposta que eu dê seja satisfatória.”
Elsa assentiu e falou devagar, como se tivesse certeza de cada
palavra que dissesse. “Se… se as histórias coletadas nos livros no porão
não forem falsas…”
“Sim…?”
“Isso significa que o Deus em que acreditamos é falso?”
“...”
Era uma pergunta simples, mas extremamente séria ao mesmo
tempo.
O Deus da Igreja era onipotente e onisciente; não havia ninguém
além dele.
Sua existência era incompatível com os muitos deuses da tradição
pagã.
“Meu pai — quero dizer, padre Franz — reuniu muitos contos
dos deuses pagãos das terras do norte. Ele foi suspeito de heresia mais
do que algumas vezes, mas era um bom padre que nunca faltou com
suas orações diárias. Se a sua companheira realmente é um espírito
pagão, isso significa que o Deus em que acreditamos é uma mentira. E
o padre nunca duvidou de Deus, nem mesmo em seu leito de morte.”
Se assim fosse, suas trágicas preocupações não eram difíceis de
entender.
Parecia que o pai adotivo que ela amava e respeitava não havia
falado com ela sobre muitas coisas.
Talvez ele tivesse pensado que elas não eram relevantes para Elsa,
que tais assuntos não diziam respeito a ela — ou talvez ele quisesse que
ela refletisse sozinha. Não havia como saber.
Mas para Elsa, que não tinha ninguém com quem pudesse discutir
suas preocupações, eles eram um fardo pesado.
CAPÍTULO III ⊰ 120 ⊱

Não importa quão pesado seja o fardo, ele poderia ser carregado
desde que fosse colocado firmemente em suas costas. No entanto,
bastava um pequeno distúrbio para que o fardo inteiro caísse aos
pedaços.
Assim que Elsa começou a falar, suas palavras se tornaram rápidas,
como se ela não pudesse detê-las mesmo se quisesse.
“É porque falta minha fé? Não sei. Eu não tenho coragem de
repreender vocês dois, escrituras e água benta na mão. Se isso é uma
coisa boa ou ruim — não, o que é, eu não...”
“Minha companheira...” interveio Lawrence, antes que Elsa
pudesse se engasgar com suas próprias palavras. “Minha companheira,
embora sua verdadeira forma seja um lobo gigante, não deseja ser
chamada de deus nem adorada como um.”
Elsa ouviu silenciosamente, desesperadamente, como uma alma
perdida esperando por salvação.
“Eu sou, como você vê, nada mais que um mercador de
nascimento comum. Eu conheço pouco dos ensinamentos de Deus.
Não posso lhe dizer o que é certo e o que é errado,” disse Lawrence,
consciente de que Holo provavelmente estava escutando a conversa.
“Mas não acredito que o padre Franz estivesse enganado.”
“Por que... por que você acredita nisso?”
Lawrence assentiu pensativo, tomando um momento para formar
sua opinião.
Era possível que ele estivesse totalmente errado. De fato, essa
possibilidade poderia ser a maior.
Mas ele sentia uma estranha certeza de que entendia o ponto de
vista do padre Franz.
Quando ele estava prestes a falar novamente, Lawrence foi
interrompido pelo som de uma batida na porta da igreja.
“…Deve ser Sem, o ancião. Imagino que ele esteja aqui para
perguntar sobre você e sua companheira.” Ela parecia ser capaz de
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 121 ⊱

dizer quem estava na porta com o som da batida; talvez isso tenha
vindo da necessidade de saber se o barulho era de alguém da Enberch.
Enxugando as lágrimas dos cantos dos olhos, levantou-se e olhou
para o interior da igreja. “Se você não puder confiar em mim, pode
sair por uma passagem perto do fogão perto do corredor. Se você
confia em mim—”
“Eu confio em você. Não sei se posso confiar em Sem.”
Elsa não balançou a cabeça nem assentiu. “Então, por favor, fique
na parte de trás da igreja,” ela falou. “Vou explicar que tenho
perguntado sobre as notícias das igrejas de outras terras. Não é
realmente uma mentira...”
“Compreendo. Ficarei feliz em compartilhar minhas
experiências,” respondeu Lawrence com um sorriso. Ele estava prestes
a fazer o que lhe foi dito e se esconder na parte de trás da igreja quando
percebeu que Elsa havia retornado a sua habitual rigidez.
Ele se perguntou naquele momento se ela o trairia. A resposta que
veio foi não, ela não iria.
Embora Lawrence não acreditasse em Deus, confiava naqueles
que o faziam.
Ele decidiu que não se importava com essas ironias.
Lawrence desceu o corredor mal iluminado. Por fim, ele viu o
brilho turvo da luz de velas vindo de um canto.
Não havia como Holo não ter ouvido sua conversa com Elsa, de
modo que se preparou para qualquer expressão que o aguardasse ao
virar a esquina.
Holo estava sentada de pernas cruzadas com um livro aberto no
colo. Ela levantou o rosto para ele, descontentamento escrito por toda
parte.
“Eu sou tão malicioso assim?”
CAPÍTULO III ⊰ 122 ⊱

“...Você está inventando motivo para ofensa,” disse Lawrence,


encolhendo os ombros.
Holo fungou. “Sua apreensão era clara como o dia; Eu pude ouvir
nos seus passos.”
“Os mercadores só leem mentes, não pés.”
“...Que horror,” Holo se pronunciou sobre a piada de Lawrence.
“Mesmo assim, você foi muito atencioso com a garota.”
Lawrence esperava e não esperava que esse assunto surgisse.
Ele não respondeu imediatamente, em vez disso sentou-se ao lado
de Holo, tomando cuidado para não pisar na cauda dela. Ele pegou um
dos livros grossos que estavam lá. “Os mercadores devem ser sempre
atenciosos com seus clientes. Mas isso não é importante. Você pode
ouvir a conversa do ancião com Elsa?”
Quando alguém pedia conselhos, era importante manter a
confiança.
Mas o descontentamento de Holo com a mudança de assunto
estava escrito em seu rosto, e ela simplesmente olhou para o livro que
estava lendo.
Lawrence perguntou a si mesmo quem tinha sido, em
Ruvinheigen, que disse que se você tem algo a dizer, vá e diga.
Ele queria muito falar isso para Holo, mas ele mal podia imaginar
a bronca que ela daria se fizesse isso.
No entanto, Holo não era uma garota completamente irracional.
Antes de se encurralar completamente, ela cedeu. “Ela está agindo
mais ou menos como disse que faria. Esse sujeito Sem, ou seja qual for
o nome dele, parece ter acabado de inspecionar... Ele está saindo
agora.”
“Se o ancião entendesse a nossa situação, isso seria muito mais
simples.”
“Você não pode convencê-lo?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 123 ⊱

Por um momento, Lawrence pensou que Holo estava zombando


dele; percebendo isso, ela olhou para ele.
“Você me superestima.”
“Você não quer que eu confie em você?” Holo perguntou com uma
expressão séria.
Lawrence riu com tristeza. “Como sempre, o tempo é um
problema. Se nos demorarmos muito aqui, pode nevar.”
“E o que tem de errado com isso?”
Ela parecia estar perguntando a sério, então sua resposta também
foi séria. “Se ficássemos cobertos de neve em algum lugar, seria melhor
uma grande vila ou uma pequena?”
“Ah, entendo. Mesmo assim, temos uma verdadeira montanha de
livros para conferir. Não há como dizer quanto tempo vai nos levar.”
“É verdade, mas precisamos apenas encontrar histórias que sejam
relevantes para você. Se lermos rapidamente, nós dois juntos
poderemos fazer um trabalho mais rápido.”
“Hmm.” Holo acenou com a cabeça, sorrindo como se de alguma
forma estivesse satisfeita.
“O que foi?”
Assim que ele perguntou, o sorriso dela desapareceu.
“Esta não é a hora de me perguntar isso,” ela disse com um suspiro
resignado. “Eu não sei se você é realmente lerdo ou... ah, deixa para
lá.”
Vendo Holo deixando ele de lado, Lawrence pensou sobre o que
havia dito.
Poderia ser? Ele se perguntou.
Ela ficou satisfeita em ouvir “nós dois juntos”?
“É tarde demais para você dizer isso agora. Eu apenas ficaria
brava.”
CAPÍTULO III ⊰ 124 ⊱

Lawrence tomou isso como aviso justo e fechou a boca.


Holo folheou algumas páginas, suspirando.
Lentamente ela deixou seu corpo se encostar ao dele. “Eu não
disse uma vez que estava cansada de ficar sozinha?” Ela o lembrou de
maneira reprovadora.
O pensamento incomodou Lawrence. “Desculpa.”
“Hmm.” Holo fungou, em seguida, estendeu a mão e começou a
massagear o ombro esquerdo.
Vendo isso, Lawrence teve que sorrir.
Ela olhou para ele com um rosto que dizia: “Você não vai ajudar?”
Lawrence obedientemente levou a mão até os ombros dela.
Holo suspirou satisfeito, sua cauda roçando suavemente no chão.
Mesmo meio ano atrás, teria parecido impossível para Lawrence
que ele passasse o tempo em silêncio com alguém assim.
Ela estava cansada de ficar sozinha.
Lawrence sentia exatamente o mesmo.
Imediatamente depois que o pensamento passou por sua mente,
Lawrence ouviu o som inconfundível de passos na pedra. Ele tentou
apressadamente tirar a mão do ombro de Holo quando a mão dela
agarrou a dele com uma força estranha.
“O ancião foi embora, mas sobre o que você...” disse Elsa quando
ela estava virando a esquina. Lawrence conseguiu retirar a mão e
colocar um rosto de mercador mais neutro, mas Holo continuou a se
inclinar contra ele do mesmo jeito.
Seu corpo tremeu um pouco, como se estivesse reprimindo o riso.
À primeira vista, provavelmente parecia que ela estava dormindo, com
o rosto pressionado contra o ombro dele.
Elsa viu isso em silêncio, depois assentiu como se tivesse chegado
a algum tipo de conclusão. “Bem, então voltarei mais tarde.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 125 ⊱

Embora sua voz estivesse mais dura do que nunca, sua


consideração era evidente pela maneira como ela se retirou.
Uma vez que o som de seus passos desapareceu em silêncio
enquanto ela se afastava, Holo se sentou e riu.
“Olha, você,” disse Lawrence, mas seu tom acusatório foi
ignorado.
Ela riu e riu, eventualmente tendo que limpar uma lágrima do
canto do olho, então sorriu maliciosamente para Lawrence. “É tão
humilhante para você ser visto segurando meu ombro?”
Lawrence sabia que não importava como ele respondesse, estaria
caindo em uma armadilha.
Ele perdera no momento em que concordara tão alegremente em
massagear seus ombros.
“Embora eu admita,” começou Holo, seu sorriso desagradável
desaparecendo enquanto ela descansava a cabeça contra Lawrence
novamente, “que eu queria me exibir um pouco.”
Lawrence reprimiu a vontade de se afastar dela.
“Eu odiaria que você fosse tirado de mim,” ela disse.
Como um homem, ele não podia deixar de se sentir feliz em ouvir
isso.
Mas ele dificilmente poderia esquecer que era Holo, a
autointitulada Sábia Loba, que disse isso.
Ele suspirou. “Você quer dizer que odiaria que seu brinquedo
favorito fosse tirado de você.”
Holo sorriu para ele. “Se é assim que pensa, você vai brincar
comigo?”
Lawrence só pôde suspirar.
CAPÍTULO III ⊰ 126 ⊱

A vela no suporte havia perdido a forma, e a pilha de livros que


eles haviam lido crescera o suficiente para se apoiar quando a igreja
recebeu outro visitante.
Holo levantou a cabeça, as orelhas eretas.
“Quem é esse?” Perguntou Lawrence.
Holo riu alegremente, não oferecendo uma resposta séria — o
que significava que provavelmente era Evan.
Lawrence não teve que adivinhar por que Holo estava rindo.
“Está ficando tarde... está escuro agora.”
Ele se levantou e se esticou, sua coluna se estalando.
Ele havia sido sugado para a leitura. Os contos eram interessantes
por si só, mesmo sem a motivação de ler pelo bem de Holo.
“Também estou com fome.”
“Bastante. Vamos descansar um pouco?” Lawrence deixou seu
corpo rígido relaxar enquanto pegava a vela. “Não vamos deixar Evan
ver sua verdadeira natureza. Quanto menos pessoas souberem do
segredo, melhor.”
“Mm. Embora essa garota provavelmente dirá para ele mesmo
assim.”
“Não sei... eu acho que não.”
Elsa não parecia para Lawrence com o tipo de garota que deixaria
facilmente um segredo escapar. Apesar da afirmação de Evan de que
ela contava para ele quantos espirros ela deu em um dia, ela não
mencionou a primeira visita de Lawrence e Holo à igreja para ele.
“Oh não?” veio a resposta cética de Holo. “Aquela garota parece
incomodada com alguma coisa. Dependendo do que ela decidir, quem
pode dizer o que ela fará?”
“Ah, as perguntas dela sobre Deus. Suponho que seja verdade
agora que você mencionou.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 127 ⊱

Na época, Lawrence não encontrou uma chance de dar a Elsa sua


resposta.
Mas enquanto pensava nisso, ele se perguntou se não era melhor
assim.
“Aliás, o que você estava planejando dizer a ela?” Holo perguntou.
“Bem, eu poderia estar completamente enganado.”
“Eu dificilmente esperaria uma resposta perfeita de você.”
Era uma coisa desagradável de dizer, mas ouvi-la falar tão sem
rodeios tornou mais fácil para Lawrence responder. “Do jeito que eu
vejo, o padre Franz colecionou contos dos deuses pagãos para provar
a existência de seu próprio deus.”
“Oh ho.”
“Orando todos os dias, dia após dia, mas sem nunca ver uma
sugestão sequer de um deus — qualquer um começaria a duvidar, você
não acha?”
Holo — de quem já tinham duvidado — assentiu, aborrecida com
a lembrança.
“Mas se ele, então, começasse a olhar ao redor, ele teria visto que
havia muitos, muitos outros deuses que as pessoas adoram. Esse deus
existe? E quanto a esse outro? É natural que ele tenha começado a se
perguntar. Se ele pudesse provar a existência dos deuses adorados
pelos outros, isso significaria que seu próprio Deus também existia.”
É claro que essa maneira de pensar era uma completa heresia para
a Igreja.
Pouco depois de Lawrence conhecer Holo pela primeira vez, os
dois se abrigaram da chuva em uma igreja. Holo tinha algum
conhecimento das crenças da Igreja e tinha sido capaz de conversar
facilmente com os crentes de lá — então isso também deveria ter
ocorrido com ela.
CAPÍTULO III ⊰ 128 ⊱

“Sim, mas o Deus da Igreja é um ser supremo, não é? Não há


outros deuses antes dele, e ele criou o mundo — as pessoas
simplesmente vivem nele — não é isso que eles pregam?”
“É. E é por isso que acredito que isso é uma abadia, não uma
igreja.”
A expressão cada vez mais irritada de Holo era, sem dúvida,
porque ela não seguia a lógica de Lawrence.
“Você sabe a diferença entre uma abadia e uma igreja?”
Holo não era tão vaidosa a ponto de fingir conhecimento quando
ela era ignorante. Ela balançou a cabeça.
“Uma abadia é um lugar de oração. Uma igreja é um lugar para
ensinar sobre Deus. Seus objetivos são totalmente diferentes. As
abadias são construídas em regiões remotas sem pensar em guiar as
pessoas pelo caminho correto. A razão pela qual os monges podem
passar a vida inteira dentro de uma delas é que simplesmente não há
motivo para sair.”
“Hm”
“Então, o que você acha que seria a primeira coisa que um monge
faria se ele começasse a duvidar da existência de Deus?”
O olhar de Holo se desviou.
Os peixes em sua mente certamente estavam nadando mais ao
longe, através do mar de conhecimento e sabedoria.
“De fato, ele procuraria averiguar a existência do Deus que ele
adorava, o que significa que nosso tratamento depende ainda mais do
que aquela garota decidir fazer,” disse Holo.
“Estou feliz por não ter dito nada disso durante o dia. Elsa não é
freira — é membro do clero.
Holo assentiu brevemente, olhando para a pilha de livros.
Eles ainda não haviam visto nem a metade dos volumes no porão.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 129 ⊱

Embora não necessariamente tivessem que olhar todos os livros,


eles ainda não haviam encontrado as histórias que Holo procurava.
Se houvesse um índice em que pudessem procurar por deuses de
uma determinada região, isso teria acelerado consideravelmente as
coisas, mas, do jeito que era, eles não tinham escolha senão procurar
página por página nas crônicas.
“Bem, em todo caso, tudo o que podemos fazer é procurar nos
livros o mais rápido que pudermos. Ainda existe o problema com o
Enberch, afinal de contas.”
“Mm. É verdade, mas,” o olhar de Holo se virou para o corredor
que levava à sala onde Elsa e Evan estavam, “primeiro vamos comer.”
Um momento depois, eles puderam ouvir os passos de Evan
quando ele veio convidá-los para jantar.

“Agradecemos a Deus por nos abençoar com pão neste dia.”


Depois de fazer a prece tradicional, os quatro desfrutaram de uma
refeição bastante luxuosa — devido, explicou Elsa, à generosa doação
de Lawrence.
No entanto, o luxo em uma igreja significava pão suficiente para
todos, alguns acompanhamentos e um pouco de vinho.
Na mesa havia pão de centeio junto com alguns peixes que Evan
pegara no rio e alguns ovos cozidos. Baseado na experiência de
Lawrence, para uma igreja com cofres que não eram profundos e
regras que não eram brandas, era uma festa e tanto.
Sem dúvida Holo estava insatisfeita com a falta de carne vermelha,
mas felizmente havia outros acompanhamentos para ela.
“Venha, não seja tão bagunceiro. Pegue um pedaço de pão e então
coma-o — corrigiu Elsa, lamentando toda vez que Evan se
embaraçava. Apenas um momento atrás Elsa tinha sido incapaz de
assistir Evan se atrapalhando para descascar um ovo cozido e o ajudou
com isso.
CAPÍTULO III ⊰ 130 ⊱
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 131 ⊱

Holo observava com certo arrependimento, talvez porque ela já


tivesse comido seu próprio ovo. Lawrence percebeu que era mais ou
menos isso.
“Tudo bem, tudo bem!” Disse Evan. “De qualquer forma, senhor
Lawrence, como você estava dizendo...” Evan reclamava menos por
estar irritado e mais por não querer ficar mal na frente de Lawrence e
Holo.
Embora Holo fosse boa em disfarçar enquanto comia, ela estava
claramente sorrindo.
Apenas Elsa parecia estar seriamente preocupada com o desleixo
de Evan; ela suspirou.
“Er, vamos ver, onde eu estava?” disse Lawrence.
“O navio tinha deixado o porto e passado do cabo onde rochas se
escondiam sob as ondas.”
“Ah sim, claro. Aquele porto em particular era perigoso até você
chegar ao mar aberto. Todo mercador a bordo estava encolhido,
rezando por suas vidas.”
Lawrence contava sobre uma vez que havia transportado carga de
navio. Evan sabia pouco do oceano e estava muito interessado.
“Uma vez que soubemos que passamos do cabo com segurança,
descobrimos que haviam navios ao nosso redor.”
“Mesmo que fosse o mar?”
“Bem, é natural que haja navios no mar,” disse Lawrence, rindo
apesar disso.
Elsa deu um longo suspiro.
Evan era o único entre eles a nunca ter visto o oceano, então sua
posição era um pouco desfavorável.
Mas Lawrence entendeu o que Evan queria dizer e continuou.
“Era uma vista maravilhosa. O mar estava cheio de embarcações, todas
puxando grandes montanhas de peixe.”
CAPÍTULO III ⊰ 132 ⊱

“Eles... eles não ficariam sem peixe para pegar depois?”


Holo lançou a Lawrence um olhar de extremo ceticismo, como se
dissesse: “Mesmo que ele esteja mentindo, ninguém pode ser tão
ignorante.”
“Qualquer um que tenha visto o mar durante a temporada falaria
sobre os rios negros de peixes que correm pela água.”
Os cardumes de arenque eram uma visão magnífica. Dizia-se que
uma vara afiada jogada aleatoriamente na água voltaria com três peixes.
Era lamentável que, sem Evan ver com seus próprios olhos, não
havia como Lawrence transmitir-lhe a verdade ou a escala do mar.
“Uau… não consigo imaginar, mas acho que o mundo lá fora é um
lugar grande.”
“Mas a coisa mais surpreendente no navio era a comida,”
continuou Lawrence.
“Oh?” Holo agora era a mais interessada.
“Sim, já que haviam mercadores de tantas regiões diferentes.
Havia um homem de um lugar chamado Ebgod, que fica perto de um
lago salgado. Seu pão era incrivelmente salgado.”
Todos olharam para o pão no meio da mesa.
“Eu entendo porque fazem pão doce, mas o pão dele tinha gosto
de sal em pó. Não chegou a agradar o meu paladar.”
“Sal, eh? Ele deve ser um homem rico para colocar sal em pão!”
disse Evan, impressionado.
Tereo não tinha acesso ao mar e, se não houvesse uma fonte
próxima de sal-gema, este seria um item de luxo.
“Sim, mas Ebgod tem um lago salgado. Imagine um rio salgado
atravessando a cidade e todos os campos, até onde a vista alcança, se
transformavam em sal. Há muito sal em todos os lugares que as pessoas
apreciam pão salgado.”
“Ainda assim, pão salgado!” disse Evan com o rosto enojado.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 133 ⊱

“Havia outras coisas estranhas no navio também — como pão


achatado assado no fundo de uma tigela.”
O valor de um pão estava em ascensão — ou, pelo menos, alguém
acostumado a assar pão em um forno pensaria assim.
“Ha, certamente não.”
Lawrence ficou satisfeito ao ouvir a resposta que ele esperava.
“Ah, mas se você fizer pão de aveia, então ele ficará plano e nivelado,
não é?”
“Bem, suponho que sim...” disse Evan.
“Então você não comeria pão sem fermento?”
Lawrence estava se referindo ao pão que não havia sido abençoado
pelos espíritos do pão, mas que já havia sido assado logo após amassar.
Era improvável que Evan nunca tivesse comido, mas
provavelmente não gostara muito.
“Enquanto um dificilmente poderia chamar o pão de aveia
delicioso, mesmo como bajulação, o pão tigela era muito saboroso,
particularmente coberto com feijão ou similares.”
“Incrível,” disse Evan, impressionado, seus olhos fitando algum
lugar distante imaginado.
Em contrapartida, Elsa arrancara um pedaço de pão de centeio e
parecia compará-lo ao pão achatado de sua imaginação.
Os dois eram muito divertidos.
“De qualquer forma, o mundo é um lugar vasto com muito para
se ver,” disse Lawrence, encerrando as coisas. Ao lado dele, Holo tinha
acabado de comer e parecia estar ficando inquieta. “Meus sinceros
agradecimentos a você por preparar tal festa para nós,” acrescentou.
“De modo algum. É graças a sua generosa doação. Isso é o mínimo
que eu poderia fazer,” disse Elsa.
Se ela nos desse pelo menos um sorriso ao dizer isso, Lawrence pensou
tristemente.
CAPÍTULO III ⊰ 134 ⊱

No entanto, parecia que ela não se sentira forçada a fazer o jantar,


o que lhe dava algum alívio.
“Então, mais tarde...”
“Se você quiser ler os livros à noite também, não me importo. Sei
que o seu objetivo é o Norte, e se começar a nevar, dificultará sua
situação.”
A conversa fluía rápido com a Elsa. Lawrence ficou agradecido.
“Bem, então, Sr. Lawrence — você terá que me contar mais
histórias depois!” disse Evan.
“Ele já disse que estava com pressa. E hoje você tem que praticar
a escrita,” disse Elsa.
Evan abaixou a cabeça, olhando para Lawrence com uma
expressão de dor que implorava por ajuda.
Esse breve instante fez a relação de Elsa e Evan cristalina.
“Quando a oportunidade surgir, eu contarei. E vamos aproveitar
da hospitalidade da sua igreja um pouco mais, obrigado.”
“Sim, fique à vontade.”
Lawrence e Holo se levantaram, agradecendo pelo jantar uma
última vez antes de sair da sala de estar.
Ele notou Elsa dando a Holo um olhar casual, mas Holo fingiu não
ver.
“Ah, sim.” Lawrence virou quando eles estavam saindo pela porta
e olhou para Elsa. “Sobre a pergunta que você me fez antes.”
“Vou pensar por conta própria,” disse ela. “‘Pense antes de
perguntar,’ era o padre Franz costumava dizer.”
Elsa não era a garota tímida e assustada que tinha sido no início do
dia, mas mostrava a coragem que ela precisaria para sustentar a igreja
sozinha.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 135 ⊱

“Compreendo. Se você quiser ouvir os pensamentos de outra


pessoa, por favor, pergunte.”
“Eu irei, obrigado.”
Evan, incapaz de acompanhar a conversa, olhou para frente e para
a trás, entre Lawrence e Elsa, até que uma fala desta última chamou
sua atenção para outros assuntos.
Apesar de suas queixas, Evan parecia estar gostando de sua
conversa com Elsa quando começaram a limpar a mesa de jantar.
Embora Evan parecesse se irritar com as constantes correções de
Elsa, ele às vezes pegava a mão dela ou dizia o nome dela, e os dois
compartilhavam um sorriso discreto.
Era o tipo de interação que Lawrence deliberadamente evitava
prestar atenção enquanto mercador.
Não, ele até zombou deles.
Ele segurou o candelabro com a vela acesa e olhou para a forma
de Holo na frente do corredor, iluminada pela luz bruxuleante da vela.
Eventualmente Holo virou a esquina e ela ficou fora de sua vista.
Lawrence então pensou.
Ele percorreu as estradas escuras, mesquinho até com suas velas,
juntando moedas de ouro enquanto viajava.
Mesmo que ele se desesperasse o suficiente para que começasse a
desejar poder falar com seu cavalo, ele ainda não tirava os olhos do
caminho para aquelas moedas de ouro. Olhando para trás, este
comportamento parecia verdadeiramente estranho.
Ele continuou sua lenta caminhada pelo corredor, confiando na
pequena vela para iluminar seu caminho.
Quando ele virou a esquina, viu Holo, já lendo um livro.
De repente ela falou. “E o que aconteceu com você?”
“Hm?”
CAPÍTULO III ⊰ 136 ⊱

“Essa sua expressão — por acaso um buraco de repente se abriu


em sua bolsa de moedas?” Ela perguntou com uma risada.
Lawrence colocou a mão na bochecha. Fora das negociações
comerciais, ele estava completamente alheio às expressões que seu
rosto fazia.
“Eu estava fazendo uma careta?”
“Mm.”
“Oh. Espere... oh.”
Os ombros de Holo tremiam de alegria. “Talvez o vinho tenha
surtido efeito?”
Lawrence refletiu sobre isso; sua cabeça de fato parecia meio
confusa.
Não, ele sabia exatamente o que o fazia ter um humor tão
estranho.
Ele simplesmente não sabia para onde isso o levava.
“Esses dois certamente se dão bem,” ele disse, sem dizer nada em
particular com isso.
Ele realmente não pensou em nada ao fazer a declaração.
Mas no momento em que disse isso, Holo fez uma expressão que
ele iria lembrar por muito tempo.
Seus olhos estavam arregalados e redondos.
“O que está errado?” perguntou Lawrence — agora ele era o
surpreso.
Mas Holo apenas olhou, evidentemente atordoada demais para
expressar algo mais que um gemido inarticulado. Eventualmente, ela
voltou para si, mas apenas olhou para o vazio, uma expressão de
profunda angústia em seu rosto.
“...Eu realmente disse algo tão estranho?” perguntou Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 137 ⊱

Holo não respondeu, os dedos inquietos revirando os cantos das


páginas do livro.
Sua expressão estava perturbada, mas se ela estava atordoada,
zangada ou perdida, era difícil dizer. Apenas de olhar para ela, o
próprio Lawrence estava ficando chateado.
“Er — bem — olha, você,” ela começou.
Finalmente, ela olhou para ele. Algo em seus olhos parecia ter
desistido de alguma coisa.
Ela parecia tão profundamente aflita que Lawrence não ousou
perguntar o que estava errado de novo. Se ele fizesse, ela
provavelmente desmoronaria ali mesmo.
O que era pior, quando ela continuou a falar, ele não entendeu o
que ela estava dizendo.
“Eu, er... na maior parte, eu... eu conheço bem meus pontos
positivos e os negativos também.”
“Ah, oh.”
“Mas… er… talvez seja estranho dizer isso, mas… tendo vivido
muitos anos, posso rir da maioria das coisas. Claro que às vezes não
posso. Você deveria saber disso muito bem... sim?”
De alguma forma, Holo parecia ter sido forçado a tomar uma
decisão difícil. Lawrence recuou um pouco e assentiu.
Holo largou o livro que segurava, sentada de pernas cruzadas e
segurando os tornozelos, a cabeça baixa. Ela parecia realmente em
apuros, evitando olhar para Lawrence como se isso fosse cegá-la.
Ao vê-la à beira das lágrimas, Lawrence não pôde deixar de sentir
profunda preocupação. Então ela falou.
“Venha,”
Lawrence assentiu.
“Eu... eu gostaria que você não soasse tão invejoso quando fala
deles,” ela disse.
CAPÍTULO III ⊰ 138 ⊱

Lawrence ficou parado, atordoado, como se tivesse andado por


uma rua movimentada apenas para espirrar e descobrir que todos ao
seu redor subitamente desapareceram.
“Eu também... não, eu entendo. Eu entendo, mas eu não queria
dizer isso… visto de fora, nós também devemos parecer bastante
tolos.”
Os tolos — as implicações do termo afundaram pesadamente nos
ouvidos de Lawrence.
Era uma sensação aterrorizante, não muito diferente de ter
concluído um grande negócio apenas para descobrir que os cálculos
haviam sido realizados na moeda errada.
Seu relacionamento era algo que tinha que ser considerado, mas
considera-lo era algo aterrorizante.
Holo pigarreou forçadamente, coçando o chão ruidosamente com
as unhas. “Eu mesma não… não sei porque é tão embaraçoso. Não, eu
deveria estar com raiva — os dois certamente se dão bem — você
disse com inveja, então o que eu sou?”
“Não,” disse Lawrence, interrompendo-a.
Holo olhou para ele como uma criança irritada olhando para um
adulto.
“Não, eu entendo,” continuou ele. “Eu acho.”
O rosto de Holo se tornou visivelmente mais sombrio com o
modo como sua voz ficou rouca ao final de sua declaração.
“Não, eu entendo. Eu sei. Eu sempre soube. Eu só não queria
colocar isso em palavras.”
Holo começou a se levantar, agora de joelhos, em vez de cruzar
as pernas. Seu olhar era menos duvidoso e mais um aviso — ela parecia
estar dizendo que não deixaria a traição passar.
Ela poderia atacar Lawrence, se ele falasse desajeitadamente.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 139 ⊱

Seu estado parecia estar empurrando-o para dizer algo que ele
normalmente não gostaria de dizer.
“Eu estava com inveja, mas não do relacionamento deles em si.”
Holo abraçou o joelho dela.
Lawrence continuou. “Eu deveria ter feito você desistir de
procurar este lugar.”
Ela olhou para ele, atordoada.
“Esses dois provavelmente vão morar juntos na igreja. A força e a
inteligência de Elsa farão com que ela passe pelo perigo e, embora eu
me sinta mal dizendo isso, Evan nunca será um mercador. Mas... e
quanto a nós?”
Lawrence pensou ter ouvido uma voz baixa, talvez o som de Holo
inalando.
“Eu obtive lucro em Kumersun. Você aprendeu mais sobre a sua
terra natal. E você provavelmente aprenderá ainda mais aqui e eu estou
ajudando você. É claro,” ali ele falou um pouco mais alto, percebendo
que Holo queria interromper — “claro, estou te ajudando porque
quero. Mas…”
Aquilo em que ele conseguira evitar pensar agora o confrontava.
Tendo chegado a este ponto, seria uma mentira dizer que a
situação era impossível de explicar.
Mas fazer isso os distanciaria mais do que soltar a mão de Holo ou
não confiar nela.
Não importa quão habilmente se evadisse, a hora sempre chegava.
“No entanto... o que você vai fazer depois que chegarmos na sua
terra natal?”
A sombra de Holo na parede se tornou maior, talvez por causa da
cauda embaixo de sua túnica subindo de repente.
Mas a própria Holo pareceu encolher.
CAPÍTULO III ⊰ 140 ⊱

“Eu não sei,” veio a voz dela, também pequena.


Lawrence fez a pergunta que ele não queria perguntar.
Ele não queria perguntar porque temia a resposta.
“Tenho certeza de que você não ficará satisfeita em simplesmente
ver sua terra natal.”
Voltando para casa depois de tantos séculos — as palavras que há
muito tempo já não são suficientes para descrever.
Lawrence não precisava perguntar o que aconteceria quando
chegassem lá.
Ele estava cheio de arrependimento.
Se ele não tivesse feito a pergunta, a distância entre eles também
poderia ter crescido.
E mesmo assim, ele desejou não ter perguntado.
Se ao menos Holo olhasse para ele claramente e dissesse: “Lá nós
vamos nos despedir.”
Vê-la tão perturbada o fez se sentir desamparado.
“Não, esqueça. Sinto muito. Não faz sentido especular,” disse ele.
Isso tudo era pura especulação.
Os próprios sentimentos de Lawrence estavam em conflito.
Embora se separar de Holo trouxesse a dor da perda, ele sentiu
que seria capaz de desistir dela.
Quando sofria uma perda nos negócios, passava alguns dias
sentindo como se fosse o fim do mundo, apenas para voltar a trabalhar
para ganhar dinheiro de novo como se nada tivesse acontecido.
Mas quando apenas pensar racionalmente sobre a possibilidade em
si o enchia de tristeza, então o que fazer?
Ele não sabia.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 141 ⊱

“Eu sou Holo, a Sábia Loba,” ela murmurou, olhando para a vela
bruxuleante. “Eu sou a Sábia Loba de Yoitsu.”
Holo apoiou o queixo no joelho, depois se levantou devagar.
Sua cauda ficou inerte, como se fosse mera decoração.
Ela olhou primeiro para a vela colocada no chão, depois para
Lawrence.
“Eu sou Holo, a Sábia Loba de Yoitsu,” disse ela, como se a
sentença fosse um encantamento. Com um passo rápido, ela parou ao
lado dele e se sentou imediatamente.
Antes que Lawrence tivesse chance de dizer qualquer coisa, ela
estava deitada no colo dele.
“Você tem alguma queixa?” A impudência normal de Holo era
inegavelmente divina.
Mas dessa vez era totalmente diferente.
“Nenhuma,” disse Lawrence.
Nem as lágrimas nem a raiva nem o riso pareciam se ajustar a essa
delicada situação, que se enchia de tensão.
A vela queimava silenciosamente.
Lawrence descansou casualmente a mão no ombro de Holo
enquanto ela estava deitada em seu colo.
“Eu vou dormir um pouco. Você vai ler no meu lugar?
O rosto dela estava oculto pelos cabelos e Lawrence não conseguia
ver.
Mas ele sentiu quando os dentes dela travaram em seu dedo
indicador.
“Eu vou,” ele falou.
Era como um teste de coragem — não era muito diferente de ver
quão perto alguém conseguia levar a ponta de uma faca até o olho de
um gatinho.
CAPÍTULO III ⊰ 142 ⊱

Um pouco de sangue brotou de onde seu dedo havia sido


mordido.
Ele suspeitava que Holo ficaria realmente zangada, a menos que
ele realmente fizesse alguma leitura.
O único som era o das páginas virando.
A forma como ela se esquivou do problema foi muito brusca, mas
ela salvou a si mesma e a Lawrence.
Ela realmente era uma loba sábia.
Sobre isso, Lawrence não tinha dúvidas.

Se a igreja fosse um monastério, teria chegado a hora das orações


matinais agradecendo a Deus por criar um novo dia.
Claro, era cedo demais para o culto matutino.
Os únicos sons eram das páginas viradas e da respiração suave de
Holo.
Lawrence não pôde deixar de se sentir impressionado com o fato
de que ela havia adormecido. Ao mesmo tempo, ele ficou um pouco
aliviado por ela.
Ela havia forçado — tão bruscamente — o fim da conversa,
exigindo que Lawrence não dissesse nem perguntasse mais nada.
Embora ela não tivesse respondido à pergunta de Lawrence, suas
ações sozinhas foram suficientes.
Afinal, eles deixaram uma coisa bem clara: Holo não queria
enfrentar o problema mais do que Lawrence.
Se ela tivesse mudado de assunto quando a verdadeira resposta à
sua pergunta estava dentro dela, Lawrence provavelmente ficaria com
raiva. Mas, como nenhum dos dois tinha essa resposta, ficou grato por
ela ter terminado a conversa à força.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 143 ⊱

No mínimo, isso significava que ela não precisava encontrar uma


resposta naquele momento.
Suas viagens ainda não haviam terminado e ainda não haviam
chegado a Yoitsu.
Afinal, raramente a dívida era paga integralmente antes do
vencimento.
Enquanto pensava nessas coisas, Lawrence largou o livro que
estava lendo e pegou outro volume.
O padre Franz evidentemente era um sujeito inteligente. Dentro
dos livros, até mesmo a linhagem dos vários deuses havia sido
cuidadosamente organizada, e uma olhada no título de cada capítulo
dava uma ideia razoável de seu conteúdo. Isso facilitava a leitura dos
livros. Lawrence estremeceu ao pensar em quão difícil seria essa tarefa
se o padre Franz tivesse simplesmente coletado contos aleatoriamente
enquanto os ouvia.
No entanto, enquanto folheava as páginas de livro após livro,
Lawrence percebeu uma coisa.
Além dos contos normais e comuns de cobras, rãs e peixes, havia
muitas histórias de deuses das montanhas, lagos e árvores. Da mesma
forma, havia contos de deuses de trovão e chuva, sol, lua e estrelas.
Mas histórias de espíritos de pássaros e de animais eram poucas.
Na cidade pagã de Kumersun, Diana contou muitos contos que
diziam respeito ao espírito do urso que destruiu Yoitsu. E perto da
cidade-igreja de Ruvinheigen, o próprio Lawrence havia sentido a
presença inconfundível de um deus-lobo não diferente de Holo.
E a própria Diana era um espírito de pássaro maior que qualquer
humano.
Dado tudo isso, os livros deveriam estar cheios de lendas de
animais. No entanto, Lawrence não encontrou nenhuma.
Os livros que eles trouxeram do porão simplesmente não
continham tais histórias?
CAPÍTULO III ⊰ 144 ⊱

Naquele momento, o olhar de Lawrence caiu em uma frase escrita


em um pedaço de pergaminho que estava no livro que ele acabara de
abrir.
“Não é meu desejo considerar a história do espírito do urso neste
livro com qualquer tipo de tratamento especial.”
Até agora, todos os livros que Lawrence examinara eram
simplesmente relatos dos contos que o padre Franz ouvira, escritos em
linguagem tão seca quanto qualquer contrato comercial. Tendo
subitamente encontrado essa frase em que ele sentiu que podia ouvir a
própria voz do padre Franz, ficou momentaneamente atordoado.
“Com relação às histórias nos outros livros — há muitas que
diferem em tempo e lugar, mas que, no entanto, acredito que se
referem ao mesmo espírito. No entanto, esse espírito em particular é
o único cujas histórias eu organizei de forma tão completa.”
Lawrence hesitou, tentando decidir se ia acordar Holo.
Ele foi incapaz de desviar o olhar da página amarelada. A caligrafia
do padre Franz era boa, mas, ao mesmo tempo, parecia de algum
modo animada.
“O Papa está ciente disso? Se estou correto, então o Deus que
adoramos triunfou sem luta. Se isso é prova de sua onipotência, como
eu poderia permanecer calmo?”
Parecia que ele podia ouvir a escrita decisiva do padre Franz.
A passagem concluía: “Eu não quero deixar que o preconceito
atrapalhe minha visão de todos os contos. No entanto, não posso
deixar de me perguntar se os próprios pagãos das terras do norte não
perceberam a importância do Urso Caçador de Lua. Não, talvez o fato
de eu estar escrevendo isso signifique que eu já estou sendo parcial. Ao
reunir esses livros, senti fortemente a existência desses espíritos. Se
possível, espero que alguém julgue não com a mente estreita de um
adorador de nosso Deus, mas sim com o coração aberto daqueles cujo
amor a Deus é como um zéfiro em um campo aberto. É por isso que
me arrisquei a deixar este livro entre todos os outros.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 145 ⊱

Assim que Lawrence virou o pedaço de pergaminho, a história do


livro começou, muito parecida com qualquer outro livro que ele havia
lido.
Deveria deixar que Holo a lesse primeiro? Ou ele deveria fingir
que não viu?
O pensamento passou por sua mente por um momento, mas já
era tarde demais para isso — e, de qualquer forma, seria uma espécie
de traição.
Ele decidiu acordar Holo.
Fechou o livro e ouviu um som estranho.
Plip, plip, plip-plip veio o som pequeno e seco.
“...Chuva?”
Mas assim que ele disse isso, percebeu que as gotas de chuva eram
muito grandes. Eventualmente, ele percebeu que o som era de cascos
galopantes.
Diziam que o som de um cavalo galopando à noite atrairia uma
multidão de demônios.
Quando viajando a cavalo à noite, ninguém poderia deixá-lo
correr.
O seguidor da igreja e o pagão acreditavam nisso igualmente.
Mas seu verdadeiro significado era o senso comum — um cavalo
galopante à noite nunca trazia boas notícias.
“Hey, acorde.” Lawrence fechou o livro e bateu no ombro de
Holo, ouvindo atentamente.
A julgar pelo som dos cascos, havia um único cavalo, que entrou
na praça da aldeia e parou abruptamente.
“Mmph... o que é isso?”
“Eu tenho duas coisas para lhe dizer.”
“Certamente nenhuma das duas é uma boa notícia.”
CAPÍTULO III ⊰ 146 ⊱

“Primeiro, encontrei o livro com histórias do Urso Caçador de


Lua.”
Os olhos de Holo se arregalaram em um instante, e ela olhou para
o livro perto do lado de Lawrence.
Mas ela não era do tipo que tinha toda a sua atenção roubada por
uma única coisa.
Suas orelhas de lobo se moveram espertamente, e ela olhou de
volta para a parede atrás deles. “Aconteceu alguma coisa?”
“Isso parece muito provável. Não há nada menos bem-vindo do
que o som do galope de um cavalo à noite.”
Lawrence pegou o livro e entregou a Holo.
Ela pegou, mas ele não soltou.
“Eu não sei o que você planeja fazer ao ler isto, mas quaisquer que
sejam seus pensamentos, eu gostaria que você me falasse sobre eles.”
Holo não olhou para cima, mas olhou para o livro de maneira
uniforme. “Hmph”, ela respondeu. “Eu suponho que você poderia
facilmente ter escondido este livro. Muito bem. Eu prometo.”
Lawrence assentiu enquanto se levantava. “Eu vou dar uma olhada
lá fora,” ele disse, indo embora.
Naturalmente, a igreja estava escura e silenciosa, embora não tão
escura que os olhos de Lawrence fossem inúteis.
Uma vez que ele chegou na sala de estar, havia um pouco de luz
da lua se infiltrando através das fendas da janela, o que melhorava a
visibilidade.
Ele podia ver bem o suficiente para ser capaz de identificar
instantaneamente a figura que estava descendo as escadas como Elsa.
“Eu ouvi o som de um cavalo galopando,” ela falou.
“Alguma noção do que está acontecendo?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 147 ⊱

Ele esperava que ela fizesse, caso contrário ela não teria vindo
imediatamente para baixo.
“Mais do que eu gostaria.”
Uma aldeia como Tereo era pequena demais para que um vigia
viesse avisar de um ataque mercenário.
Provavelmente tinha algo a ver com Enberch.
Mas a crise já não passou?
Elsa trotou até a janela e espiou pela fresta, como ela sem dúvida
fizera muitas vezes no passado.
Sem surpresa, o cavalo parecia ter parado em frente à casa do
ancião da vila.
“Eu só sei o que consegui juntar, mas, julgando pelos papéis em
sua mesa, Enberch não deveria ser capaz de atacar, deveriam?” disse
Lawrence.
“Os olhos de um mercador são realmente afiados. Mas sim. Eu
também acredito nisso. Contudo —”
“Se você vai me dizer que a situação seria diferente se eu tivesse
te traído, eu deveria amarrá-la imediatamente.”
Não intimidada, Elsa olhou para Lawrence.
Ela logo desviou o olhar.
“De qualquer forma, sou um viajante. Se as coisas vão mal, minha
posição se torna muito perigosa. Há dezenas de contos de mercadores
que se envolveram em problemas locais e perderam tudo.”
“Enquanto eu estiver aqui, não vou permitir que nada assim
aconteça. Mas por favor, vá e feche a adega. Se houver problemas com
Enberch, o ancião certamente virá para cá.
“E por que razão estamos aqui tão tarde da noite?”
CAPÍTULO III ⊰ 148 ⊱

A esperteza de Elsa era diferente da de Holo. De alguma forma,


Lawrence sentia uma afinidade com a garota. “...Trazer um cobertor
para o santuário.”
“Entendido. Minha companheira é uma freira, afinal. Então, tudo
certo?”
Embora Lawrence quisesse apenas confirmar sua história, Elsa não
respondeu.
Pois se ela tivesse, ela estaria dizendo uma mentira.
Ela era completamente do clero.
“O ancião Sem saiu,” disse Elsa.
“Entendido.” Lawrence se virou e foi para Holo.
Em tempos assim, os ouvidos atentos de Holo eram bastante úteis.
Ela já havia devolvido a maioria dos livros ao porão e colocado
suas vestes novamente.
“Leve aquele livro com você. Vamos escondê-lo atrás do altar,”
disse Lawrence.
Holo acenou com a cabeça, entregando os livros restantes um por
um a Lawrence, que descera a meio caminho da escada até o porão.
“Isso deve ser tudo,” ela falou.
“Então pegue o corredor em frente à sala de estar. Se você
continuar ao virar da esquina, deve chegar na entrada atrás do altar. Vá
para lá com o livro —”
Holo fugiu sem esperar para ouvir o final da frase.
Lawrence saiu do porão, substituindo o pedestal e colocando a
estátua da Santa Madre em cima dela.
Ficou nervoso por um momento, incapaz de encontrar o buraco
da fechadura no chão, mas conseguiu localizá-lo e, depois de trancar a
chave de latão que Elsa lhe dera, recolheu o cobertor e foi atrás de
Holo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 149 ⊱

A construção da igreja era muito semelhante em qualquer parte


do mundo.
Assim como ele esperava, a entrada estava lá, de portas abertas.
Ele correu pelo caminho estreito que ele sabia que deveria levar
ao altar, protegendo a chama da vela com a mão. Logo sua visão se
expandiu.
Algumas lascas de luar passavam por uma janela no segundo andar,
o suficiente para que Lawrence sentisse que não precisava da vela.
Do outro lado das portas que davam para o altar, ele podia ouvir
vozes baixas.
Ele gesticulou com os olhos para Holo — depressa!
Poderia ser problemático explicar a chave se fosse encontrada com
eles, então ele também a escondeu atrás do altar.
Sentaram-se no único entalhe do andar, o lugar onde o padre
Franz provavelmente fizera suas preces por tantos anos.
Lawrence extinguiu a vela e envolveu e Holo no cobertor.
Fazia algum tempo desde que ele agiu tão como um ladrão.
Há muito tempo, em uma cidade portuária, ele havia entrado no
prédio de uma empresa comercial com um amigo para espiar o livro
de pedidos da empresa.
Na época, ele ainda não havia aprendido como julgar quais
mercadorias estavam em demanda. Pensando na situação agora,
Lawrence percebeu que era um risco terrível, embora ainda muito
menor do que o que ele estava fazendo naquele exato momento.
Afinal, nada que estivesse fazendo em Tereo tornaria sua bolsa de
moedas mais pesada.
A porta se abriu e a voz de Sem encheu a sala. “Mesmo assim,
como o ancião da vila, eu—”
Lawrence respirou fundo e olhou para cima, atordoado como se
tivesse acabado de acordar do sono.
CAPÍTULO III ⊰ 150 ⊱

“Minhas desculpas por perturbar o seu tempo sagrado na igreja,”


disse Sem.
Atrás dele estavam Elsa e outro aldeão empunhando uma vara de
madeira.
“Alguma coisa... aconteceu?” perguntou Lawrence.
“Espero que, como alguém que viajou muito, você entenda.
Podemos causar algum inconveniente por algum tempo. Por favor,
tenha paciência conosco.”
O aldeão empunhando a vara deu um passo à frente. Lawrence
notou isso e ficou de pé.
“Sou um mercador que pertence à Guilda de Comércio de
Rowen. Muitas pessoas na casa da guilda em Kumersun sabem que
cheguei a essa aldeia.”
O aldeão olhou de volta para Sem, surpreso.
Se surgisse algum problema com uma guilda de comércio, uma
vila do tamanho de Tereo não poderia esperar escapar ilesa.
Em termos de força financeira, uma guilda mercantil era como
uma nação.
“É claro, ancião Sem, desde que você esteja tomando as medidas
apropriadas como representante da aldeia, então, como viajante,
certamente irei cumpri-las.”
“…Compreendo. Mas a razão pela qual eu apareço diante de você
e de sua companheira não é por malícia, eu te garanto.”
“O que aconteceu?”
O som de mais passos era audível; Evan provavelmente acordou.
Sem olhou na direção dos passos e depois para trás. Ele falou
devagar.
“Alguém em Enberch comeu o trigo desta aldeia e morreu.”
primeira coisa que veio à cabeça de Lawrence foi um trigo
venenoso conhecido como Fogo do Inferno de Ridelius.
Se comido, apodrecia os membros da vítima por dentro,
e ele ou ela morreria gritando em agonia. Mesmo uma
pequena quantidade causaria terríveis alucinações e forçaria uma
mulher grávida a abortar.
Acreditava-se que o trigo provinha de demônios que
acrescentavam trigo preto falso a espigas normais de trigo e, se passasse
despercebido durante a colheita e fosse moído em farinha, seria
impossível encontrá-lo.
Ninguém saberia que o trigo era venenoso até que alguém o
comesse e desenvolvesse sintomas.
CAPÍTULO IV ⊰ 152 ⊱

Para uma aldeia agrícola que criava trigo, sua aparição era uma
calamidade tão ruim quanto a seca ou a inundação.
O que era verdadeiramente assustador sobre o trigo não era o
sofrimento e a morte que causava.
O que o tornava tão terrível era que quando o Fogo do Inferno de
Ridelius fosse descoberto na colheita de um ano, nenhum grão poderia
ser comido.
“E ninguém da nossa vila foi envenenado?” Perguntou Sem.
“Eu não sei, ancião. A velha Jean está doente na cama, mas é
apenas um resfriado,” disse um aldeão.
“O novo trigo foi usado apenas para assar pão para o festival da
colheita, certo? Então, pelo menos, sabemos que o trigo que moemos
antes disso é seguro.”
A grande rocha plana na praça da aldeia parecia ser o lugar onde
os aldeões se reuniam para discutir assuntos importantes.
O fogo ficou vermelho enquanto os aldeões com cara de sono
esfregavam seus olhos e observavam os líderes expressarem várias
opiniões.
“Hakim disse que um sapateiro comeu pão feito de trigo que ele
comprou de Riendott e morreu. Seus membros ficaram roxos e ele
sofreu muito. O Conselho de Enberch logo descobriu que era feito
com o trigo da nossa aldeia. Hakim voltou para Tereo imediatamente,
então ele não sabe o que aconteceu depois disso, mas podemos
adivinhar. O senhor feudal, duque Badon, enviará um mensageiro para
garantir o retorno do trigo. Podemos esperar um enviado oficial de
Enberch ao amanhecer, sem dúvida.”
“Retornar o trigo... Isso significa...”
Ao ouvir o murmúrio do estalajadeiro, todos reunidos no círculo
ficaram em silêncio.
Foi Iima quem finalmente falou. Ela era uma das poucas mulheres
que se juntaram ao encontro na pedra.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 153 ⊱

“Isso significa que teremos que devolver o dinheiro. Não é


verdade, ancião?”
“…Sim.”
Os aldeões empalideceram com o pronunciamento, segurando
suas cabeças.
O dinheiro usado era dinheiro perdido.
E a maioria dos moradores não parecia estar poupando
cuidadosamente seus ganhos.
Havia alguns, porém, que não agitavam a cabeça com medo — o
ancião Sem, a dona do bar, Iima, e Elsa, junto com o homem que
entregara a carta a Sem durante a primeira visita de Lawrence. Além
de Lawrence e Holo, claro.
Não era por essas pessoas terem poupança ou serem
especialmente corajosas, mas porque todas eram capazes de pensar
racionalmente sobre o problema.
Visto de fora, era um cenário simples de entender.
Esta crise do trigo foi uma armação dirigida por Enberch.
“Ancião, o que faremos? Usamos o dinheiro para comprar porcos
e galinhas e consertar nossas foices e arados!”
“Isso não custou todo o dinheiro. A colheita deste ano foi
abundante, por isso nossa taverna preparou boa comida e bebida. Se o
meu dinheiro foi para essas compras, isso significa que o seu também
foi,” disse Iima.
Todos os que haviam bebido demais na noite anterior agora
inevitavelmente batiam a cabeça em pesar.
As palavras de Iima apenas aprofundaram deu arrependimento.
Ela se virou para Sem. “Mas, Ancião — esse não é o único problema,
não é?” Iima, a mulher que tinha puxado um barril sobre as costas,
vendendo sua cerveja enquanto viajava, de fato era uma figura
imponente.
CAPÍTULO IV ⊰ 154 ⊱

“De fato, não é. Uma vez que o trigo venenoso é misturado com
o trigo real, toda a colheita é perdida. A colheita deste ano foi ótima
— mas ano passado não foi.”
Uma vez que o trigo fosse semeado e colhido, conseguir o triplo
a quantidade semeada era aceitável. Quadruplicar a quantidade era
uma excelente colheita. Uma vez que o grão para semear no próximo
ano havia sido perdido, a quantidade reservada no caso de uma safra
ruim era limitada.
Era possível que os aldeões já tivessem comido a reserva do ano
passado, tendo contado com a boa colheita deste ano.
De qualquer forma, o suprimento de comida da aldeia estava em
apuros.
E eles não tinham dinheiro para comprar trigo novo.
“O que devemos fazer? A pobreza é suportável, mas não a fome!”
“De fato. No entanto, eu...” Sem continuou a falar, ele foi
interrompido quando um homem ao lado do estalajadeiro se levantou
de repente e apontou para Lawrence e Holo.
“Foram eles que misturaram trigo venenoso com a colheita! Eu
perguntei a ele, e ele admitiu ter trago trigo! Ele está aqui para arruinar
nossa colheita e depois nos forçar a comprar o trigo dele!”
Lawrence imaginou que isso aconteceria.
Ele também sabia que Sem não havia trago ele e Holo para a praça
por maldade.
O ancião sabia que havia uma boa possibilidade de que, se
Lawrence e Holo estivessem ausentes, os aldeãos pegassem as armas
na mão e os procurassem com desconfiança e dúvida em seus corações.
“D-deve ser isto! Ele foi até Evan sozinho para moer seu trigo!
Não, Evan está com ele e estão tentando destruir a aldeia!”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 155 ⊱

“Sim, o Evan! Para onde foi essa escória de moleiro mentiroso?


Vamos amarrá-los juntos e fazê-los nos dizer qual trigo eles
envenenaram!”
Os aldeões se levantaram um após o outro, prontos para atacar
Lawrence.
De repente, Elsa deu um passo à frente e falou. “Por favor,
esperem.”
“Não é hora de as mulheres interromperem. Saiam!”
“Dá licença!?” Iima agora estava ao lado de Elsa; ela era três vezes
maior que a garota. Os homens se encolheram, seus espíritos um
pouco intimidados.
O ancião limpou a garganta como se quisesse resolver as coisas
por um momento. “Evan está na igreja. Podemos atribuir a culpa mais
tarde. O que é importante agora é o trigo que pode ser devolvido e o
dinheiro que eles certamente exigirão.”
“Não podemos pagar com dinheiro que não temos! Teremos que
pedir que esperem até o próximo...”
“Se ao menos fosse tão simples.”
Os homens ficaram atordoados com as palavras de Sem. “Ancião,
o que... o que você quer dizer?”
“Enberch certamente usará isso como uma oportunidade para
restaurar o antigo acordo,” disse ele.
“Certamente não…”
Os rostos dos homens mais velhos no meio da reunião estavam
cheios de amargura.
“O que você está dizendo, ancião? Enberch não está autorizado a
fazer nada com esta aldeia! O padre Franz já fez isso!”
Lawrence não sabia se Sem não havia explicado a natureza do
relacionamento de Enberch com a aldeia ou se os homens
simplesmente não queriam entender, mas ele logo descobriu.
CAPÍTULO IV ⊰ 156 ⊱

“De qualquer forma, nunca deveríamos ter permitido que Elsa


herdasse a posição do padre Franz! Enberch nunca respeitará isso!”
“Isso mesmo! Ela passa o dia todo naquela igreja, nunca sai para
trabalhar nos campos — embora ela coma sua fatia de pão, com
certeza. Todos sabem que foi graças às bênçãos de Lorde Truyeo que
a colheita foi tão boa este ano. Como poderia uma garota da igreja...”
“Chega!” disse Sem.
Incerteza só acendia as chamas do descontentamento.
Ela queimava nos lugares mais secos e inflamáveis, depois se
espalhava a partir daí.
Era fácil para Lawrence imaginar o quão séria Elsa trabalhou para
preservar o legado do padre Franz.
Tendo cooperado com ela, Sem também entendia.
Mas estava claro na palavra dos moradores o quanto eles
respeitavam a garota.
Lawrence notou os punhos cerrados de Elsa e seu rosto
inexpressivo.
“O que faremos, ancião?” alguém perguntou.
“De qualquer forma, cada um de nós deve verificar quanto
dinheiro da colheita ainda temos, bem como quantas provisões nós
guardamos para o inverno. Até que o mensageiro Enberch chegue, não
sabemos o que exigirão. Eles podem chegar assim que amanhecer.
Devemos esperar até lá — cada um de vocês vá agora e verifique o que
eu pedi.”
Embora os suspiros dos homens fossem pesados e insatisfeitos,
eles relutantemente ficaram de pé.
Os olhares que Lawrence e Elsa suportaram quando os homens
deixaram o local da reunião estavam cheios de ressentimento.
Embora os aldeões não fossem razoáveis, era uma sorte que Sem
parecesse ser seu aliado.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 157 ⊱

Se Sem tivesse sido seu inimigo, então Lawrence não teria escolha
a não ser pedir a ajuda de Holo.
Enquanto os aldeões se dispersavam, Sem se aproximou de Elsa,
com seu bastão na mão. “Elsa, eu sei que isso é difícil, mas, por favor,
aguente.”
Elsa assentiu silenciosamente. Sem se virou para Iima em seguida.
“Iima, por favor, vá com Elsa para a igreja. Os mais raivosos
podem tentar entrar.”
“Você pode contar comigo,” disse Iima.
Lawrence imediatamente entendeu as relações de poder dentro
da aldeia.
Mas onde isso colocava ele e Holo?
“Sr. Lawrence,” Sem finalmente disse, se virando para encará-lo.
“Como os outros aldeões, tenho minhas dúvidas sobre você. O tempo
é muito coincidente. No entanto, espero que você não me ache tão
tolo que eu imediatamente pularia para uma conclusão.
“Se eu estivesse no seu lugar, ancião, eu diria a mesma coisa,”
respondeu Lawrence.
Sua velhice fazia sua testa enrugar constantemente, mas ele
parecia um pouco aliviado. “Tanto para sua própria segurança quanto
para evitar que as suspeitas crescessem ainda mais, infelizmente terei
de pedir que você venha a minha casa.”
Holo e Lawrence tiveram a sorte de não terem sido amarrados
sem nenhuma explicação. Se eles tivessem resistido, parecia a
Lawrence que um derramamento de sangue teria acontecido.
Ele assentiu cooperativamente e caminhou em direção à casa de
Sem, seguindo este e os aldeões.
CAPÍTULO IV ⊰ 158 ⊱

“Sabe, tem uma cela trancada em algum lugar daquela aldeia,”


dizia o rumor, quando as línguas de todos estavam suficientemente
soltas pelo vinho.
Aconteceu depois que o mercador em questão bebeu demais e
contou todas as suas histórias sobre lucro.
Uma vez que ele soube que havia mais dinheiro a ser ganho, ele
foi alegremente junto com os aldeões para a casa do ancião, apenas para
ser trancado em uma cela para nunca mais escapar.
Desde que nenhum dos aldeões falasse sobre o evento, ninguém
jamais saberia o que aconteceu com o mercador.
Seus pertences foram todos vendidos e o próprio mercador foi
oferecido como sacrifício por uma boa colheita.
Estranhamente, rumores como esses pareciam ser mais comuns
em aldeias mais ricas.
Felizmente, não parecia o tipo de coisa que provavelmente
aconteceria em Tereo.
O quarto em que Lawrence e Holo foram postos era bastante
comum. Estava bem ao lado daquele em que Lawrence e Sem haviam
falado quando o mercador chegou na aldeia.
A porta não tinha trinco e parecia que, se Holo e Lawrence
precisassem forçar a saída, não seria impossível.
Se eles tivessem que criar um plano, este lugar seria tão bom
quanto qualquer outro.
“O que você acha?” perguntou Lawrence.
Os dois se sentaram frente a frente em bancos separados por uma
mesa baixa no centro da sala. Ele falou suavemente para não ser ouvido
pelo guarda que, sem dúvidas, estava do lado de fora.
“Eu deveria ter desistido de procurar o livro e saído da aldeia com
você,” veio a resposta resmungada de Holo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 159 ⊱

No entanto, seu rosto não parecia tão culpado nem demonstrava


muito arrependimento.
Ela se concentrou seu olhar em um ponto, sua mente trabalhando
furiosamente.
“Não está claro se aquilo realmente mudaria alguma coisa.
Digamos que depois nós fôssemos perguntar sobre a localização da
abadia para partimos no mesmo dia. Isso teria sido o dia antes de
ontem. Então a notícia do trigo envenenado de Enberch chegaria à
aldeia hoje. Obviamente, eles assumiriam que alguém mal-
intencionado misturou o trigo venenoso com o bom. E quem você acha
que eles culpam? Nós,” disse Lawrence.
“Não existem outros grupos formados por um mercador tolo e
uma linda donzela. Eles logo nos pegariam a cavalo,” acrescentou
Holo.
Lawrence estremeceu com as palavras amargas de Holo, mas
obviamente, cair em prantos e auto recriminação não era exatamente
o estilo de Holo.
“Assim que pisamos nesta aldeia, era inevitável que fossemos
suspeitos de envenenar o trigo. Demônios trazendo calamidade
sempre vêm de fora, afinal.”
“E não há nada que possamos dizer para provar nossa inocência.”
Lawrence assentiu.
Se foi um demônio ou uma pessoa com más intenções que
envenenou o trigo era irrelevante — quando a calamidade acontecia,
as pessoas precisavam de algo para culpar.
Não era como se os demônios foram responsáveis pelas desgraças,
mas sim que quando algo de ruim acontecia, era possível culpar os
demônios.
“As circunstâncias são perfeitas demais. Quanto mais penso nisso,
mais me convenço de que este é um movimento de Enberch para
ganhar o controle de Tereo. Todos na região devem estar cientes da
CAPÍTULO IV ⊰ 160 ⊱

disputa tributária entre os dois. Se o trigo de Tereo de repente


aparecer envenenado, Enberch será o suspeito óbvio. Tereo tem
pessoas que a apoiam e elas certamente não ficarão caladas. Portanto
Enberch precisa de alguém para culpar. Então, como acabamos de
aparecer, isso lhes deu a oportunidade perfeita para executar o plano
deles.”
Se tudo isso fosse verdade, Lawrence tinha uma boa noção do que
os aguardava.
“Então, quando eles negociarem com a aldeia, eles vão oferecer a
condição de pagamento a prazo, desde que os aldeões encontrem o
responsável.”
Assim, Enberch seria capaz de convencer seus vizinhos de que isso
não era obra deles e enfim ter Tereo sob seu controle, enquanto
Lawrence e Holo evaporavam sob as mãos do carrasco.
“Enberch não vai querer ter problemas com nossa guilda de
comércio, então eles certamente não farão um julgamento para
determinar nossa culpa. Vão simplesmente nos declarar culpados e nos
executar, prometendo diminuir a dívida da Tereo enquanto os aldeões
ficarem quietos sobre quem éramos e de onde viemos, e a questão
ficaria por aí.”
Holo suspirou e mordeu a unha do polegar. “E você está contente
com isso?”
“Claro que não.” Lawrence riu e encolheu os ombros, mas ele
entendia que não sabia o que deveriam fazer para se livrar da situação.
“Se corrermos, eles certamente pensarão que fomos nós que
envenenamos o trigo e, se o seu rosto for marcado em todos os lugares,
não dá para fazer negócios,” disse Holo.
“Sim, seria o fim da minha vida como mercador.”
Então o que fazer?
Holo pareceu pensar algo de repente e falou. “Hm. Ah, você não
poderia procurar ajuda com a guilda da qual você é membro?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 161 ⊱

“Ajuda, huh. Se eu pudesse fazer isso, eu... ah. Hm.” Lawrence


bateu em sua própria cabeça. Holo olhou para ele incerto.
“Espere — já temos você aqui,” ele finalmente falou.
“O que você quer dizer?”
“Algo bom. Se eu estivesse nas suas costas, poderíamos fugir para
outra cidade mais rápido do que a cavalo?”
“Certamente.”
“A distância não é tão grande e, em todo caso, a única coisa mais
rápida que um cavalo é um navio. A rede que Enberch teria que jogar
para nos pegar só poderia se estender na velocidade que um cavalo
pode correr. Isso significa—”
Holo fungou levemente pelo nariz. Era difícil saber se era um
pequeno suspiro ou uma resposta.
“Eu estava pensando que se eu estivesse viajando com você na
carroça, nunca poderíamos entrar em contato com uma casa da guilda
antes que eles nos pegassem. Mas se conseguirmos chegar lá, podemos
obter alguma medida de proteção. Se as notícias de um membro da
guilda usando trigo envenenado para fazer negócios surgirem, seria um
desastre — então eles farão o que puderem para acabar com isso.”
“Se as pessoas que tentam nos prender pensarem da mesma forma,
elas poderiam desistir da perseguição assim que percebessem que
escapamos.”
“Contudo —”
O prazer de Lawrence em ver uma saída da situação foi de curta
duração; logo ele viu a conclusão inevitável.
“Mas depois disso, quem seria acusado de ser o culpado?” Ele
perguntou.
Não havia necessidade de perguntar. Seria obviamente a pessoa
que todos os aldeões sabiam que era um mentiroso, aquele de quem
CAPÍTULO IV ⊰ 162 ⊱

sempre suspeitaram e cuja ocupação lhe proporcionava a oportunidade


perfeita de envenenar o trigo: Evan, o moleiro.
Holo foi rápida em entender o que Lawrence estava querendo
dizer.
Ela ficou irritada. “Tudo bem então, eu também deixo ele ir nas
minhas costas. Ele quer ver o mundo lá fora de qualquer forma, certo?
Eu não vou recusar. Se a garota estiver em perigo, eu levo ela também.
Você é absurdamente gentil, afinal de contas — sinceramente, o
problema que eu passo por sua causa...” ela falou, como se já tivesse
desistido de protestar.
Com Lawrence e Evan longe, Enberch não teria ninguém para
apontar como o culpado.
Não apenas isso, mas com os dois desaparecidos, Enberch teria
que reivindicar às cidades vizinhas que Evan era o criminoso e que ele
fugira porque era culpado. Não haveria necessidade de ir atrás de
Lawrence, já que isso arriscava problemas com sua guilda.
“O problema, porém, é que você terá que revelar sua verdadeira
forma,” disse Lawrence.
Holo deu um sorriso incrédulo, irritada por ter sido subestimada.
“Eu não sou tão ranzinza a ponto de me preocupar com isso. É verdade,
no entanto… Ser temido magoa meu frágil coração.”
Havia uma acusação nos olhos de Holo, talvez lembrando do medo
de Lawrence quando ele a viu pela primeira vez em forma de lobo nos
esgotos de Pazzio.
Mas ela logo mordeu o lábio inferior maliciosamente, mostrando
um pouco suas presas, e disse “Ou você simplesmente deseja ser a
única pessoa que conhece o meu segredo?”
Sem palavras, Lawrence pigarreou.
Holo riu roucamente. “Se é isso que deseja fazer, não me
importo.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 163 ⊱

Era inevitável. Ele não conseguia pensar em outra maneira de sair


da situação. “É a pior solução, é claro, mas as chances de que isso
aconteça são muito altas. Seria uma pena deixar para trás o cavalo, a
carroça e a carga, mas não há nada a fazer senão aceitar a perda.”
“Eu suponho que não me importo de ser sua nova carroça.”
Foi uma brincadeira inteligente.
“Oh? Eu gostaria de ver um cavalo que segura suas próprias
rédeas.”
Assim que Holo mostrou seu sorriso imbatível, veio uma batida
na porta.

A porta se abriu para revelar Sem.


A crise que a aldeia enfrentava parecia um fardo pesado demais
para seu corpo envelhecido.
Embora provavelmente fosse um efeito da luz vinda das velas que
pendiam do teto, ele parecia estar ainda mais abatido.
“Posso falar com você?” ele perguntou.
Não parecia provável que ele tivesse ouvido a conversa de
Lawrence com Holo.
Afinal, Holo não teria baixado a guarda e falado houvesse essa
possibilidade.
“Sim, estávamos apenas esperando para falar com você,” disse
Lawrence.
“Bem, se me der licença,” disse Sem, se segurando em sua bengala
e entrando na sala. Um aldeão estava atrás dele, vigiando a porta.
Talvez por não estar acostumado com a perspectiva de violência,
o aldeão estava obviamente nervoso.
CAPÍTULO IV ⊰ 164 ⊱

“Por favor, feche a porta,” disse Sem. Os olhos do aldeão se


arregalaram em surpresa, mas ele fez como foi dito de má vontade e
fechou a porta.
Era óbvio que ele acreditava que Lawrence e Holo eram culpados.
“Bem, então,” disse Sem, colocando a vela que trazia consigo na
mesa. “Quem exatamente vocês são dois?”
Ele certamente foi direto ao ponto.
Lawrence mostrou o sorriso de mercador. “Nós não somos
ninguém relevante, devo dizer. Eu já te disse quem eu sou.”
“Sim, você realmente me disse quem você é. Embora ainda não
tenha confirmado isso, acredito em você.”
O olhar de Sem mudou de Lawrence para Holo.
Holo olhou para baixo silenciosamente, a cabeça coberta pelo
capuz.
Quase parecia que ela estava dormindo.
“Você estava perguntando sobre a Abadia de Diendran. Que
negócios você teria por lá?”
Sem admitiu que a abadia existia. Isso era um progresso.
Quando Lawrence tinha originalmente perguntado sobre o
paradeiro da abadia, Sem fingira não saber nada sobre.
O que ele queria agora era averiguar se Lawrence e Holo eram de
Enberch.
Mas o que ele faria depois de adquirir esse conhecimento?
“Uma pessoa que conheci em Kumersun me contou sobre o abade
da Abadia de Diendran. Para ser preciso, ela não disse a mim, mas sim
para minha companheira.”
O maior temor de Sem que Lawrence e Holo fossem enviados de
Enberch.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 165 ⊱

Mas parecia que ele não tinha paciência para rodeios com questões
sutis que fariam a verdade vir à tona.
Ele respirou fundo, ofegante, seus olhos implorando. “Você não
veio aqui sob as ordens de Enberch? Se você veio, quanto — quanto
pagaram a você?”
“Nós viemos pelo caminho de Enberch, mas foi apenas uma parada
em nossas viagens. É por nossos próprios objetivos que procuramos a
Abadia de Diendran.”
“Chega de mentiras!” Sem gritou rouco, se inclinando para a
frente, sua expressão quase monstruosa à luz das velas.
“Não temos nada a ver com a disputa entre Enberch e Tereo. Eu só
entendi o problema reunindo o que ouvi em sua taverna, coisas que
aprendi falando com Evan e Senhorita Elsa, e pela minha própria
experiência,” disse Lawrence.
Sem temia a possibilidade de que Lawrence e Holo fossem espiões
de Enberch.
O problema do trigo venenoso não se centrava na heresia e na
Igreja — era sobre dinheiro.
Dependendo das negociações, a aldeia não estava necessariamente
condenada.
Mas se a Igreja se envolvesse, não seria tão simples.
“V-você... você realmente não é de Enberch?” Sem
provavelmente estava ciente de que nenhuma resposta que eles dessem
o convenceria completamente.
Mas ele tinha que perguntar, e Lawrence só podia responder de
uma maneira.
“Nós realmente não somos.”
Sem olhou para baixo, seu rosto era uma máscara de sofrimento,
como se ele tivesse engolido um pedaço de ferro em brasa. Mesmo
sentado, ele teve que apoiar seu corpo com sua bengala.
CAPÍTULO IV ⊰ 166 ⊱

Ele levantou a cabeça devagar. “Se isso é verdade...”


Sem dúvida, até agora Sem conhecia a situação financeira dos
aldeões.
Lawrence pensou no assunto e ficou imediatamente claro que, se
todo o trigo fosse devolvido, a aldeia cairia em ruínas.
Isso significava que o lucro que vinha uma vez a cada semestre —
talvez apenas uma vez por ano — desapareceria em um instante.
“Se isso for verdade... você poderia nos emprestar sua sabedoria...
e seu dinheiro?”
Holo se mexeu um pouco.
Ela deve ter se lembrado de Lawrence pedindo empréstimos em
Ruvinheigen.
Ele foi pego em uma armadilha e teve que correr freneticamente
pedindo dinheiro emprestado.
Na época, ele se sentia como um homem que estava se afogando,
tentando respirar mesmo que isso significasse inalar água.
Mas Lawrence era um mercador.
“Eu posso te emprestar minha sabedoria. Contudo —”
“Eu não pediria a você para entregar de graça,” disse Sem.
Lawrence encontrou os olhos atentos de Sem.
Ele não imaginava que Tereo tivesse muito a lhe oferecer como
compensação.
Havia apenas algumas possibilidades.
“Em troca, garantirei sua segurança,” disse Sem.
Tereo poderia ser uma pequena aldeia, mas era uma comunidade
e Sem era seu líder.
Em uma vila pobre, a moeda de um mercador era poderosa.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 167 ⊱

Mas contra as foices e enxadas de aldeões enfurecidos, um


mercador estava desamparado.
“Isso é uma ameaça?”
“A razão pela qual eu simplesmente te prendi no local foi porque
você veio primeiro a mim com o trigo,” disse Sem.
Ele era bastante hábil.
Lawrence não achava que argumentar melhoraria sua situação.
Além disso, ele já havia conferido com Holo; ele conhecia seu
curso de ação. Cooperar com o Sem facilitaria tudo.
“Eu suponho que não tenho escolha a não ser concordar.”
“...”
“No entanto” — Lawrence se endireitou e olhou Sem nos olhos
— “se eu conseguir mudar a situação, pedirei uma compensação
apropriada.”
Lawrence não estava implorando por sua vida nem pedindo para
ser deixado com uma pequena porção de seu próprio dinheiro, mas
fazendo exigências de remuneração. Sem pareceu momentaneamente
atordoado, mas logo voltou a si.
Talvez ele pensasse que a autoconfiança de Lawrence era
justificada.
Ou talvez ele simplesmente quisesse acreditar nisso.
Mas a verdade é que Lawrence mentiu para ganhar a confiança de
Sem.
Ele queria se afastar dessa aldeia o mais pacificamente possível.
Assim, o melhor curso de ação era esperar que o mensageiro de
Enberch chegasse, e então Lawrence veria por si mesmo qual seria o
destino de Tereo.
Assumindo que Enberch desejasse tomar o controle de Tereo tão
facilmente quanto possível, era improvável que o povo da cidade
CAPÍTULO IV ⊰ 168 ⊱

investigasse se o trigo envenenado ocorrera naturalmente ou se era


resultado de um crime.
Eles provavelmente deixariam o mistério sem solução.
“Muito bem. Conte-me todos os detalhes “, disse Lawrence para
Sem. Talvez por algum milagre eles pudessem mudar a situação.
Quanto mais Lawrence ouvia a história de Sem, pior ficava.
O contrato que o padre Franz havia negociado com Enberch era
diferente de qualquer coisa de que Lawrence já tivesse ouvido falar,
começando com a estipulação de que a Tereo poderia simplesmente
nomear seu preço de venda e quantia ao vender trigo para a Enberch.
Mas, olhando os livros que o padre Franz reunira na adega da
igreja, era fácil imaginar que ele tivesse simpatizantes poderosos em
algum lugar.
Encadernado em couro e reforçado nos quatro cantos com ferro,
cada volume teria custado uma fortuna.
Com base nas cartas que Lawrence espiara na mesa de Elsa, o
padre Franz conhecera pessoalmente o duque de uma região
fronteiriça próxima, bem como o bispo de um bispado muito grande.
Embora ele fosse suspeito de heresia uma ou outra vez, o padre
Franz tinha sido capaz de viver seus dias pacificamente, sem dúvida por
causa de suas conexões poderosas. Como as cordas que são tecidas
juntas para criar uma rede, os laços entre as pessoas poderiam ser uma
fonte de grande força.
Sem alegou não saber como o padre Franz havia imposto o
contrato em Enberch, o que provavelmente era verdade.
Ele especulou que o padre Franz havia aprendido algo prejudicial
sobre o duque Badon, o governante de Enberch, o que parecia
provável.
O padre Franz certamente foi um homem notável.
No entanto, não era hora de perder o fôlego cantando os louvores
do falecido.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 169 ⊱

Se Lawrence pudesse encontrar uma maneira de resolver o


problema da aldeia, seria um bom negócio para ele, então ele queria
pensar seriamente no assunto.
A extravagância com que os aldeões desperdiçaram o legado do
padre Franz era nada menos que trágica.
Mesmo que Lawrence entregasse todo o seu ouro e prata em
nome da aldeia, o dinheiro faria pouca diferença.
Ficou claro que, se todo o trigo fosse devolvido, a aldeia estaria
arruinada.
Mas nada viria de tais pensamentos. Lawrence ofereceu a única
possibilidade que ele poderia pensar.
“Corretamente falando, Enberch vai querer comprar trigo da
colheita do próximo ano para compensar o que resta por agora.”
“…Que significa?”
“Isso significa que eles vão definir um preço agora para a compra
de todo o trigo de seus campos no próximo ano.”
Sem sequer compreendia a ideia da colheita verde — era óbvio
por quanto tempo a aldeia ficara livre de preocupações.
“Se isso for possível, então conseguiríamos adiar a dívida, pelo —

“Mas quem compra tem a vantagem. Como eles estão pagando
por algo que ainda não existe, só é favorável para eles se receberem
um desconto significativo. E uma vez que o preço for acordado, não
importa o tamanho da colheita, você ainda deve vender tudo a esse
preço.”
“M-mas isso é um absurdo.”
“Portanto, mesmo que a safra do ano que vem seja tão abundante
quanto a deste ano, sua renda cairá e você terá que vender
especulativamente trigo no ano seguinte para compensar a diferença,
o que significa que a renda do seu terceiro ano será ainda menor. Eles
CAPÍTULO IV ⊰ 170 ⊱

podem até aproveitar sua fraqueza para cancelar o negócio em caso de


uma safra ruim. Tenho certeza de que você entende o que aconteceria
depois disso.”
Era por essa razão que os aldeões normalmente passavam muito
tempo em trabalhos paralelos durante o inverno.
Eles tinham que economizar dinheiro para impedir que outros
roubassem suas terras.
“Eu sempre pensei que tudo estaria bem, desde que evitássemos a
tributação... É por isso que me esforcei tanto para guardar o que o
padre Franz nos deixou.”
“Você não estava enganado. No entanto, os aldeões não
entenderam quão grande era o presente do legado do Padre Franz.”
“Entendo... sei que é tarde demais para essa conversa, mas quando
o padre Franz chegou, ele pediu para ficar na igreja em troca de
melhorar suas relações com Enberch. Embora tivéssemos uma igreja
em nossa aldeia, não poderíamos abandonar nossa fé no antigo
guardião da terra, Lorde Truyeo. O padre Franz alegou não se
importar com isso e nunca se envolveu em nenhum proselitismo. Ele
simplesmente morava na igreja.”
“Os aldeões provavelmente pensaram no padre Franz como uma
bênção enviada a eles pelo lorde Truyeo.”
“Eu não posso acreditar que chegou a isso,” Sem finalmente falou.
“Ancião, certamente você viu o potencial para isso acontecer, não
é?” Lawrence perguntou sem rodeios.
O rosto de Sem ficou em branco e ele fechou os olhos, suspirando.
“Suponho que sim… eu vi. Mas e pensar que o licor de Khepas iria
aparecer ...
“O licor de Khepas?”
“Ah, sim, é o que chamamos de trigo venenoso. É feito de centeio,
e todos nós sabemos disso — não posso imaginar que alguém da aldeia
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 171 ⊱

seja tão descuidado que o misture com trigo com pureza suficiente para
matar um homem.”
Lawrence concordou. “Então se conclui que alguém fez isso
intencionalmente,” disse ele.
“Os aldeões culparão o viajante, já que os forasteiros são sempre
suspeitos,” disse Sem.
“E depois disso, Evan, o moleiro.”
Sem assentiu e depois assentiu novamente. “Falei com Elsa há
pouco, e ela acredita que Enberch seja responsável. Eu sou patético.
Eu acreditava que, desde que pudéssemos plantar trigo e vendê-lo
facilmente, teríamos paz. Não pensei em mais nada.”
“Quando o mensageiro de Enberch chegar, ficará claro se isso tudo
é obra deles ou não. Se possível, eu gostaria de falar com Elsa antes
disso,” disse Lawrence.
Todos os conselhos que Lawrence tinha dado a Sem foram
simplesmente uma preparação para essa frase.
“Entendido.” Sem se levantou e abriu a porta, dando ao aldeão
algumas breves instruções. Ele então se virou para Lawrence. “Este
homem vai levá-lo até ela.”
Sem se agarrou à sua bengala enquanto se afastava para Lawrence
e Holo passarem.
“Embaraçosamente… isso custou um bocado nesse meu corpo
antigo. Por favor, me diga o que você planejou depois.”
O aldeão apressadamente empurrou a cadeira em que estava
sentado. Sem se sentou, aparentando dor em suas feições.
Embora fosse conveniente que Sem não os estivesse seguindo para
a igreja, ele também era o único que poderia proteger Holo e
Lawrence da ira dos aldeões.
Lawrence certamente esperava que tudo isso fosse resolvido
pacificamente.
CAPÍTULO IV ⊰ 172 ⊱

Ele se sentiria mal se Sem desmoronasse agora, então se despediu


do homem com algumas palavras gentis antes de sair de sua casa.
O fogo na praça da aldeia ainda ardia intensamente com pequenos
grupos de aldeões reunidos aqui e ali conversando.
Assim que Lawrence e Holo saíram da casa do ancião, os olhos de
todos os aldeões caíram sobre eles.
“Bem, isso certamente é desagradável,” murmurou Holo.
Se o aldeão que os levasse à Igreja fosse traí-los, Lawrence e Holo
quase certamente seriam espancados e enforcados pela multidão
enfurecida.
Era uma situação incrivelmente delicada.
Embora a igreja estivesse a uma curta distância, agora ela parecia
muito longe.
“Iima, o ancião nos enviou.” Eles finalmente chegaram à igreja,
quando o aldeão bateu na porta e se anunciou em voz alta.
Sem dúvida, a voz alta também era para avisar aos aldeões vizinhos
que ele estava levando os dois viajantes pelas ordens do ancião.
O que um aldeão temia acima de tudo era ser isolado por seus
iguais.
Logo a porta da igreja se abriu e Iima convidou Lawrence e Holo
para dentro. O aldeão que era seu acompanhante parecia visivelmente
aliviado, com os ombros caídos.
Os olhares cheios de ódio que Lawrence e Holo suportaram
estavam tingidos de vermelho pela luz do fogo, mas agora a porta
fechada da igreja os bloqueava.
Era uma porta magnífica, mas Lawrence não tinha certeza de
como ela pararia algo além de olhares odiosos.
“Então o ancião te enviou? O que foi?” Embora ela os tivesse
deixado entrar na igreja, Iima bloqueou o caminho deles, não deixando
que fossem mais adentro.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 173 ⊱

“Eu preciso falar com a senhorita Elsa.”


“Com Elsa?” perguntou Iima, com os olhos estreitos em suspeita.
“Sem garantiu a minha segurança em troca da minha sabedoria e
moeda. Mas para tornar a sabedoria e a moeda tão eficazes quanto
possível, preciso de informações precisas. Acredito que a senhorita
Elsa tenha uma melhor compreensão da situação do que Sem.”
Lawrence esperava que Iima, que vivera e viajara sozinha, tivesse
alguma simpatia por ele e por Holo e pela situação irracional em que
agora se encontravam.
Sem deixar claro se correspondia essa esperança, ela gesticulou
com o queixo na direção da sala de estar. “Ela está lá; siga-me,” disse
Iima, dirigindo-se para o interior da igreja.
Holo ainda estava olhando para o santuário.
Se Lawrence não estivesse lá, ela já teria forçado a entrada na
igreja em uma vez que tivesse o livro entre seus dentes, Holo teria
escapado para o horizonte.
À esquerda do santuário estavam os escritórios de estudos
sacerdotais.
Luz de velas brilhava ao virar a esquina no final do corredor, e
quando o grupo o dobrou, eles encontraram Evan.
Ele estava parado diante da porta da sala, com o machado na mão.
Não foi difícil adivinhar por que ele estava lá.
Quando notou Lawrence e Holo, ele ficou surpreso a princípio,
antes que seu rosto tomasse uma expressão mais complicada.
Havia duas pessoas na aldeia que eram suspeitas de envenenar o
trigo. Evan, é claro, sabia que não era ele, então isso o deixava apenas
uma pessoa para suspeitar. Ele era, no entanto, uma das poucas pessoas
que podia acompanhar o caminho que todo o trigo da aldeia tomava.
Talvez ele soubesse que não havia chance de Lawrence envenená-
lo.
CAPÍTULO IV ⊰ 174 ⊱

“Elsa está aqui, correto?”


“Ah, sim, mas —”
“O ancião já deu permissão. Elsa! Elsa!” Disse Iima quando ela
passou por Evan.
A lâmina do machado que Evan segurava estava enferrujada, e o
cabo parecia ter sido comido pelos cupins.
Lawrence podia entender o que faria Evan pegar uma arma dessas
e ficar na frente da porta daquele jeito.
Afinal, o próprio Lawrence ficou na frente de Holo, exausto e
espancado, para protegê-la nos esgotos sob Pazzio.
“O que foi?” Perguntou Elsa.
“Você tem convidados.”
“Hã? Oh —”
“Viemos falar com você,” disse Lawrence.
A expressão de Elsa era de certa forma ainda mais neutra do que
quando visitaram a igreja anteriormente. “Muito bem, venham —”
Iima levantou a voz. “Elsa.”
Elsa estava prestes a se retirar para o quarto quando se virou na
voz de Iima.
“Está tudo bem mesmo?” Iima perguntou.
Sem dúvida ela estava se referindo a Lawrence e Holo.
Lawrence não estava confiante em sua habilidade para ganhar de
Iima em uma briga. Ele ponderou enquanto ela deu a ele um olhar
intimidador.
Evan engoliu em seco e olhou.
“Não podemos depender deles, mas podemos confiar neles,” disse
Elsa. “Afinal, eles pelo menos sabem rezar.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 175 ⊱

Este era o tipo de sarcasmo que Holo gostava. Lawrence notou


que a própria Elsa deu um leve sorriso.
Sob o capuz, a expressão de Holo sugeria que ela não tinha tempo
para lidar com pessoas sem importância — mas o que realmente a
irritava era sem dúvida que ela queria retrucar, mas não podia.
“Bem. Evan, garoto — você deve protege-la, ouviu?” ordenou
Iima, batendo no ombro de Evan e voltando pelo corredor.
Era um bom sinal Iima não ter insistido em ser incluída na
conversa.
Enquanto ela estivesse por perto, Evan e Elsa se sentiriam seguros.
“Peço desculpas pela interrupção,” disse Lawrence, entrando na
sala com Holo atrás dele.
Evan, com o machado na mão, estava prestes a segui-los, mas Elsa
o deteve. “Você espera lá fora.”
“O que? Por quê?”
“Por favor.”
A relutância de Evan era compreensível. Ele assentiu com
relutância depois que Elsa pediu novamente, mas ainda parecia
insatisfeito.
Lawrence desamarrou a bolsa de moedas que estava fixada em sua
cintura e a estendeu para Evan. “Qualquer mercador choraria se
perdesse sua bolsa de moedas. Estou deixando isso com você. Pense
nisso como prova de que pode confiar em mim.”
A bolsa de moedas continha apenas seu dinheiro, por isso não era
muito para Lawrence, mas Evan segurou a bolsa como se estivesse
fumegante, olhando de um lado para o outro, entre a bolsa e o rosto
de Lawrence, seu rosto à beira de lágrimas.
“Vou deixá-la sob seus cuidados,” finalizou Lawrence.
Evan assentiu e deu um passo para trás.
Elsa fechou a porta e voltou a olhar para o quarto.
CAPÍTULO IV ⊰ 176 ⊱

“Uma excelente atuação. Se Enberch fosse tão habilidosa quanto


você, não teríamos outra opção a não ser nos render,” ela disse com
um suspiro.
“Você duvida de nós?”
“Se você fosse de Enberch, então seriam os anciões da Igreja vindo
para a aldeia, não uma carroça cheia de trigo.”
Elsa se afastou da porta e se sentou em uma cadeira, gesticulando
com desprezo para que Lawrence e Holo fizessem o mesmo. Ela
massageava as têmporas, como se sofresse de uma terrível dor de
cabeça.
Ela continuou. “Além disso, é ainda mais difícil acreditar que você
veio aqui para envenenar o trigo do que acreditar que você veio em
busca de heresias.”
“Com isso você quer dizer...?”
“Hmph. Enquanto o Ancião ainda duvida de você, tudo isso...
tudo isso é claramente obra de Enberch. Mas eu nunca imaginei que
chegaria a isso.”
“Padre Franz faleceu no verão passado, correto? É difícil ter trigo
venenoso pronto em apenas seis meses. Onde quer que você vá, o Fogo
do Inferno de Ridelius — quer dizer, o licor de Khepas — é escondido
e descartado assim que aparece,” disse Lawrence.
Se Enberch tivesse preparado o trigo venenoso há muito tempo e
nunca colocado o plano em ação, provavelmente era porque não havia
viajantes convenientemente fora de época para pôr a culpa em Tereo
até agora.
Pensando nisso racionalmente, os habitantes da cidade
provavelmente também temiam o padre Franz.
Da mesma forma, no entanto, eles sem dúvida decidiram que
poderiam agir com segurança contra Elsa.
“O estado financeiro da aldeia é desolador. Eu gostaria muito de
pedir a ajuda dos meus apoiadores, mas todos eles estão me apoiando
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 177 ⊱

apenas por causa do legado de meu pai. É tudo o que posso fazer para
convencê-los a continuar esse apoio. Se eu pedir mais, corro o risco de
perder o que tenho,” disse Elsa.
“...Sem dúvida.” Lawrence pigarreou. “Então, Senhorita Elsa —
o que você acha que acontecerá conosco agora?”
Um clérigo típico lhe diria que, enquanto confiasse na graça de
Deus, não havia necessidade de se preocupar, que Deus conhecia a
verdade.
Um sorriso dançou nos cantos da boca de Elsa. “Você está me
perguntando?” Ela falou em voz baixa.
“Aqueles que melhor podem me dizer como a peça de Enberch vai
acabar são você e Iima.”
“Assim como vocês duas, não concorda?”
Elsa claramente não queria falar isso.
Sobre a questão de que tipo de pedidos o mensageiro de Enberch
traria e quem seria levado de volta a Enberch em troca do trigo,
Lawrence e Elsa tinham uma única opinião.
Lawrence assentiu, depois olhou para Holo ao lado dele.
Sob o capuz, ela parecia sonolenta.
Ela estava bem ciente do que seu papel seria em breve, então ela
parecia estar dizendo: “Deixe-me descansar até lá.”
Lawrence de repente olhou para Elsa. “Estamos planejando
escapar,” disse ele casualmente.
Elsa ficou imóvel. No máximo, o rosto dela mostrava desprezo,
como se estivesse lidando com uma criança particularmente densa e
lenta. “Acredito que o tempo para a fuga passou há muito tempo.”
“Você acha que Enberch já tem a estrada sob vigilância?”
“Isso é bem possível. Se eles de fato planejaram tudo isso, então
também precisariam de vocês dois.”
CAPÍTULO IV ⊰ 178 ⊱

A opinião de Elsa reforçava a de Lawrence — o que significava


que o mesmo problema incomodava os dois.
“A suspeita da aldeia é destinada a você e Evan. Será difícil se
defender. No entanto, se você correr, será o mesmo que admitir sua
culpa,” disse Lawrence.
Se Elsa fosse um pouco mais velha e fosse um homem, ela teria
sido capaz de herdar facilmente o grande legado do padre Franz,
pensou Lawrence.
“Independentemente disso, mesmo que vocês dois conseguissem
fugir a cavalo, talvez nem conseguissem passar pelos aldeões.”
“Se minha companheira fosse apenas a donzela que ela parece ser,
isso seria verdade.”
Lawrence teve a sensação de que as orelhas de Holo se
contorceram, talvez devido a sua irritação com o olhar de Elsa.
“Falando em termos de resultados, podemos escapar. Podemos
fugir quando quisermos,” ele falou.
“Então... por que você não fugiu?”
Lawrence assentiu. “Primeiro, ainda não lemos todos os livros da
adega. Além disso, se corrermos, quem você acha que seria o próximo
na fila a receber a ira dos aldeões?”
Elsa apenas engoliu em seco.
Sua mente rápida e lógica já a levara a essa conclusão, e ela já
parecia estar preparada para enfrentá-la.
“Eu não sei como planeja escapar, mas você tem confiança de que
pode levar Evan com você?”
“Não só ele, mas você também.”
Pela primeira vez, Elsa sorriu. “Ridículo,” pareceu dizer. “Eu não
vou impedir nem encorajar sua fuga. Como aldeã, não posso permitir
que você fuja já que ainda é o maior suspeito. Mas, como seguidora da
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 179 ⊱

Igreja, não posso permitir que seja injustamente condenado e rezaria


pelo seu sucesso.”
Ela deve ter pensado que Lawrence estava encurralado e falando
besteira — justificando o seu modo estranhamente descuidado.
“De qualquer forma, com relação ao seu primeiro ponto, não
tenho motivos para te recusar a esta hora tardia. Eu gostaria de deixar
você terminar de ler os livros…” ela continuou.
“Neste momento, há apenas um único volume que gostaríamos de
ver.”
Holo se mexeu e disse: “Está atrás do altar. Eu gostaria de ler
apenas esse livro... dada a situação. Não vou pedir mais.”
Elsa fechou os olhos lentamente, parecendo chegar a uma decisão.
Ela pode ter decidido conceder um favor a pessoas que achava que em
breve estariam mortas.
Ela se levantou e abriu a porta.
“Wh-whoa!”
“Espionar é passível de punição,” disse Elsa.
“Er, não, eu não queria...”
“Francamente. De qualquer maneira, já não importa mais. Há um
livro escondido atrás do altar. Vá buscá-lo, por favor.”
A discussão que acabara de acontecer não foi barulhenta, então
Lawrence não tinha certeza se Evan tinha ouvido.
Evan hesitou por um momento, mas logo correu pelo corredor.
Elsa o observou ir e pareceu murmurar algo baixinho, mas
Lawrence não conseguiu entender o que era.
Pode ter sido “Se pudéssemos escapar,” mas antes que ele pudesse
perguntar a Holo, Elsa se virou para encará-lo.
CAPÍTULO IV ⊰ 180 ⊱

“Eu não tentarei te impedir de escapar. No entanto” — ela era a


nobre clériga — “até que fuja, você nos emprestaria sua sabedoria?
Não há ninguém nesta aldeia que conheça bem a arte da moeda.”
Naturalmente, Lawrence assentiu. “Eu vou, embora não possa
garantir que você vai achar minhas respostas satisfatórias.”
Elsa piscou surpresa, depois sorriu da mesma forma que sorria
com Evan. “Parece que vocês mercadores gostam muito dessa frase.”
“Somos muito cuidadosos,” disse Lawrence, quando Holo pisou
no pé.
“Eu trouxe o livro.”
Evan deve ter encontrado o livro com facilidade. Ele retornou
mais rápido do que Lawrence esperava.
“Mas… esse não é um dos livros de lendas pagãs? Por que você
precisa disso?” perguntou Evan.
Holo foi até ele e pegou — não, arrancou — o livro dele.
O conteúdo do livro era algo tão importante que o padre Franz
cuidara de registrá-los com imparcialidade. Holo não tinha tempo para
as perguntas de Evan.
Lawrence respondeu por ela. “Quando se envelhece, os contos
antigos ficam mais interessantes.”
“Huh?” Grunhiu Evan sem entender.
Holo passou direto por ele e entrou no corredor.
Era óbvio que ela não queria ler o livro enquanto outros olhavam.
Lawrence mandou que Elsa acendesse uma vela para ele, depois a
colocou num candelabro e seguiu Holo.
Quando chegou na parte de trás do santuário, encontrou Holo
agachada, segurando os joelhos como uma criança repreendida.
“Não importa quão bons sejam os seus olhos, você não pode ler
no escuro.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 181 ⊱

Ela abraçou o livro, tremendo levemente.


Apenas quando Lawrence se perguntou se ela estava chorando, ela
olhou para cima lentamente. Seu rosto não mostrava sinais de
fraqueza.
“Escuta aqui,” ela começou. “Se eu destruir este livro com raiva,
você vai fazer resolver a situação?”
Ela não estava brincando. Isso era muito mais a cara de Holo do
que qualquer lágrima.
Lawrence suspirou e encolheu os ombros. “Eu não me importo de
pagar por isso, mas não rasgue as páginas para secar seus olhos.” Ele
sentiu que era uma frase bastante boa.
Holo sorriu, mostrando suas presas quando ela olhou para cima.
“Você felizmente compraria minhas lágrimas a um preço alto. Seria
uma pena não chorar.”
“Existem muitas pérolas falsificadas no mundo. Eu odiaria
comprar uma farsa.”
Era a brincadeira habitual deles.
Ambos riram do absurdo que isso era.
“Você vai me deixar sozinha por um tempo para eu ler?” Ela
perguntou.
“Vou. Mas me conte o que achou quando terminar.”
Se possível, Lawrence queria estar ao lado dela enquanto lia.
Dizer isso, no entanto, provocaria sua raiva.
Se preocupar com alguém era o mesmo que não confiar nele.
Holo era uma orgulhosa loba. Lawrence tinha pleno
conhecimento de que tratá-la como uma donzela delicada e chorosa
traria represálias furiosas.
Ele se preocuparia com ela quando ela o convidasse a fazê-lo.
CAPÍTULO IV ⊰ 182 ⊱

Deixando Holo com a leitura, ele não disse mais nada, nem olhou
para trás. Holo respirou fundo como se já tivesse esquecido sua
presença.
No momento seguinte, ele ouviu uma virada de página decidida.
Enquanto caminhava pelo corredor escuro, Lawrence bateu na
cabeça com o punho fechado, tentando pensar em outra coisa.
Elsa não desistira de tentar restaurar a posição da aldeia. Se o
conhecimento e experiência que Lawrence possuía pudesse ser de
alguma ajuda, ele emprestaria.
Além disso, no fundo de sua mente, ele estava procurando as
palavras que precisaria para persuadir Evan a fugir com ele se o pior
acontecesse.
“Oh, Sr. Lawrence, você não vai ficar com ela?” Veio a pergunta
surpresa de Evan quando Lawrence voltou para o quarto.
Percebendo a mudança de humor, Elsa retirou casualmente a mão
de Evan, enxugando os cantos dos olhos. Holo nunca foi doce assim.
“Ah, se for melhor eu estar em outro lugar, eu posso me retirar.”
Elsa limpou a garganta e Evan ficou branco.
Lawrence se perguntou se ele também ficava assim, mas não tinha
o luxo de tais preocupações inúteis no momento.
Sem dúvida, Elsa também preferiria estar ao lado de Evan, sem
precisar se preocupar com nada.
Ela logo recuperou sua expressão neutra.
“Bem, então, como meu conhecimento e experiência podem
ajudá-la?”
“Eu ouvi do Élder Sem antes que, se todo o trigo for devolvido,
teremos apenas setenta limar.”
O limar era uma moeda de ouro equivalente a vinte moedas de
prata, o que significava que a dívida chegaria a cerca de mil e
quatrocentos trenni.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 183 ⊱

Isso equivalia, provavelmente, à quantia que a cidade gastara para


consertar as ferramentas, arrumando provisões para o inverno e
comprando comida, bebida e luxos. Estimando generosamente a
população de Tereo em cem famílias, que chegavam a quatorze moedas
de prata para cada uma. A terra da aldeia não era particularmente
grande — quatorze peças de prata eram uma estimativa muito alta.
“Mesmo se eles coletarem tudo o que possuo, seria como espalhar
água em uma pedra quente. Se Enberch for o comprador, eles vão
reduzir o preço o máximo possível. Todo o trigo da minha carroça mal
daria duzentos na melhor das hipóteses,” disse Lawrence.
“Isso não é tudo. Não podemos simplesmente comer o grão que
foi armazenado no celeiro, então vamos precisar de fundos para
comprar mais para comer…” disse Elsa.
“Não poderíamos testar o trigo devolvido como veneno,
alimentando pequenas quantidades com, digamos, cachorros?”
Perguntou Evan.
No pior dos casos, essa seria sua única opção.
Mas os aldeões seriam capazes de sobreviver principalmente de
pão de trigo possivelmente envenenado até a colheita do ano seguinte?
Improvável.
“O licor de Khepas é invisível, e mesmo se você pegasse um
punhado de trigo seguro de um saco, o trigo diretamente abaixo dele
poderia muito bem-estar envenenado.”
Mesmo supondo que Holo pudesse contar o trigo envenenado de
forma segura, eles nunca seriam capazes de fazer os aldeões confiarem
nela.
Eles podiam colher farinha ao acaso e fazer um pedaço de pão, mas
o próximo pão poderia ser mortal.
“Não é difícil ver que tudo isso é obra de Enberch. E, no entanto,
não podemos expô-los — por quê? Por que a primeira pessoa a contar
CAPÍTULO IV ⊰ 184 ⊱

uma mentira recebe toda a confiança?” Falou Elsa, com a palma da mão
contra a testa.
Essas coisas aconteciam nos negócios o tempo todo.
Lawrence tinha visto inúmeras de brigas em que a parte que atirou
a primeira pedra acabou ganhando.
Era comum dizer que, embora Deus revele a forma da justiça, Ele
a põe à prova.
O sentimento de impotência de Elsa era compreensível.
“O nosso destino não nos levará a lugar algum,” disse Lawrence.
Elsa assentiu com a cabeça ainda descansando nas mãos. Ela olhou
para cima e falou. “Verdade. Eu não posso chorar agora, meu pai...
Padre Franz, ele iria... iria...”
“Elsa!”
Suas pernas pareciam perder toda a sua força e ela estava prestes a
desmoronar, mas Evan conseguiu pegá-la um pouco antes.
Ela parecia exausta, com os olhos semicerrados e sem foco. Ela
tinha a mão pressionada na cabeça por causa da tontura — anemia,
talvez.
“Eu vou buscar Iima,” disse Lawrence.
Evan assentiu, depois deitou Elsa gentilmente, empurrando a
cadeira para o lado.
Elsa desmaiou antes, quando Lawrence e Holo revelaram a
verdade da existência de Holo.
Essa líder de uma igreja que ninguém frequentava — ela não era
tão diferente de um deus sem adoradores.
Sem dízimos nem ofertas, ela só tinha um pobre moleiro como
companhia.
Não importava como os dois dividissem seu pão escasso, isso ainda
seria um sofrimento intolerável, Lawrence poderia ver.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 185 ⊱

Ele foi até a entrada do santuário onde encontrou Iima plantada


em uma cadeira. Ela levantou assim que viu Lawrence.
“Senhorita Elsa desmaiou.”
“De novo? Anemia, certo? Ela se foça demais, aquela garota.”
Iima passou por Lawrence e voltou em breve carregando Elsa em
seus braços, indo para a sala de estar.
Atrás deles veio Evan, segurando uma vela em uma mão, sua
expressão conturbada.
“Ei, senhor Lawrence?”
“Hm?”
“O que... o que vai ser de nós?” perguntou Evan, enquanto olhava
fixamente para a sala de estar. Ele parecia uma pessoa diferente do
Evan de alguns momentos atrás.
O colapso de Elsa havia claramente o abalado.
Não, não era isso, Lawrence se corrigiu.
Evan não se permitia ter um olhar incerto diante de Elsa.
Até mesmo a robusta Elsa procurou se tranquilizar com Evan
assim que Lawrence não estava mais por perto.
E como aquele cuja segurança era procurada, Evan não podia se
deixar parecer fraco.
Mas isso não significava que ele mesmo não tivesse medo.
“Elsa continua dizendo não é verdade, mas os aldeões — todos
suspeitam de você e eu, não é?”
Evan não olhou para Lawrence.
“Isso mesmo”, disse Lawrence, olhando vagamente.
Evan respirou fundo. “Eu sabia…”
Seu rosto parecia quase aliviado.
CAPÍTULO IV ⊰ 186 ⊱

Para Lawrence parecia uma expressão de derrota, mas de repente


Evan continuou. “Ainda assim,” disse ele, olhando para cima. “O que
você disse antes é verdade?”
“Qual parte?”
“Eu não quis escutar, mas... a parte sobre ser capaz de escapar.”
“Aí sim. Sim, podemos escapar.”
Evan olhou rapidamente para a sala e depois para Lawrence. “Com
Elsa também?”
“Sim.”
Evan estava acostumado a ser objeto de suspeita, mas não estava
acostumado a suspeitar; ele parecia desconfortável.
Estava claro que sob as chamas de sua dúvida estava o desejo de
acreditar.
“Se minha companheira e eu escaparmos sozinhos, a culpa cairá
sobre você e Elsa. Portanto, é meu desejo egoísta que, se houver uma
fuga, vocês dois viessem comigo.”
“Isso não é nada egoísta! Eu não quero morrer aqui. Eu não quero
deixar Elsa morrer aqui. Se você nos ajudar, eu quero fugir. Mesmo
Elsa, tenho certeza de que ela... Evan olhou para baixo, enxugando os
cantos dos olhos antes de continuar. “Tenho certeza que ela quer sair
desta vila. Os aldeões afirmam ter uma grande dívida com o padre
Franz, mas nunca demonstram gratidão. Eles nunca escutaram seus
ensinamentos, e mesmo quando ofereciam enormes sacrifícios ao
velho deus da aldeia, eles não davam nem um pedaço de pão para a
igreja. Se não fosse pelo Ancião Sem e a Sra. Iima, teríamos morrido
de fome há muito tempo.”
As palavras de Evan eram pesadas e não premeditadas.
Parecia que ele tinha muito mais a dizer e sua boca se abriu como
se fosse falar. Seus pensamentos não conseguiam acompanhar, e não
havia palavras.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 187 ⊱

Foi Iima emergindo da sala de estar que interrompeu. “O mundo


lá fora também não é bom,” disse ela, com as mãos nos quadris e uma
expressão cansada no rosto. “Mas é muito melhor que este lugar. Não
sei quantas vezes tentei contar a ela.”
“Você tem alguma experiência com a vida de viajante, não é?”
perguntou Lawrence.
“Claro. Você ouviu meus contos na taverna, não ouviu? Eu não
acho que uma pessoa precisa ficar na mesma cidade ou vila toda a sua
vida. A atitude dos aldeões mudou assim que a saúde do padre Franz
falhou, mas aquela garota é tão teimosa. Ela teria gostaria de partir há
muito tempo Evan, mesmo sem você dizer a ela.”
Evan se virou, mas se por vergonha ou raiva, era difícil dizer.
“Mas o que está acontecendo agora… é um desastre para a vila.
Estou tão assustada com o nosso futuro quanto qualquer outra pessoa.
Mas tenho que admitir que seria uma boa chance para essa igreja
desajustada finalmente se livrar de Tereo.”
Dizer que a igreja iria “se livrar” de Tereo era uma forma otimista
de pensar. Não havia como evitar o fato de que Elsa e Evan estavam
sendo expulsos. Lawrence esperava que Holo não estivesse escutando
essa conversa.
No entanto, ele não achava que fazia sentido para Elsa e Evan
ficarem só para morrerem juntos.
“Então, se você... er...” começou Iima.
“Lawrence. Kraft Lawrence.”
“Ah, sim, senhor Lawrence. Se você tiver alguma maneira de
escapar com eles, acho que deveria. Não — eu quero que você faça
isso. Este lugar é minha casa, afinal. Eu não quero que ele ganhe a
reputação de que mata pessoas inocentes. Seria muito triste.”
O trigo da aldeia havia sido envenenado e seria devolvido.
Quantas pessoas se preocupariam com a reputação em tal crise?
“Eu suponho que precisaremos persuadir Elsa.”
CAPÍTULO IV ⊰ 188 ⊱

Iima concordou com a declaração de Evan.


As pessoas deixam suas cidades por muitos motivos. Alguns,
como Lawrence, cortaram todos os laços enquanto outros o
abandonaram por necessidade. Outros ainda — por exemplo, Iima —
tiveram suas casas destruídas.
Holo partiu para viajar por um tempo e acabou não voltando para
casa por séculos, durante os quais Yoitsu foi destruída.
Às vezes as coisas ocorriam como se desejava; outras vezes não.
Por que o mundo sempre foi assim?
Talvez fosse porque estava em uma igreja que os pensamentos de
Lawrence se desviavam para lugares tão pouco comuns.
“Espero que todos fiquem calados até que o mensageiro de
Enberch chegue. Seria melhor fazer seus preparativos e partir antes
dele chegar se você for fugir,” disse Iima.
Sem havia dito que o mensageiro provavelmente chegaria por
volta do amanhecer.
Eles tinham algum tempo até então.
Evan assentiu e correu para a sala de estar.
Lawrence estava prestes a dar uma olhada em Holo quando Iima
o deteve.
“Com toda essa conversa sobre fuga, como exatamente você
planeja fugir?” Ela perguntou.
Era uma pergunta perfeitamente razoável.
Sua resposta, no entanto, não foi nada.
“Se alguém pode entrar em uma floresta e encontrar uma donzela
que faz uma deliciosa cerveja, então certamente existem outros seres
igualmente misteriosos no mundo?”
Iima ficou surpresa por um momento, depois sorriu
duvidosamente. “Não me diga que você conheceu uma fada.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 189 ⊱

Era um chute.
Lawrence encolheu os ombros e deu um aceno vago.
Iima riu com vontade. “Ha! Essas coisas realmente acontecem, eu
me pergunto.”
“Sem dúvida, o duque que te encontrou se sentiu da mesma
maneira.”
Iima sorriu, então tocou sua bochecha pensativamente. “Eu
certamente ouvi essas histórias em minhas viagens, mas e pensar... eu
acho que você está falando de sua companheira?”
O chute foi certeiro.
“Eu não posso exatamente mentir em uma igreja.”
“Certamente. Bem, eu sou apenas a dona da taverna e posso estar
bêbada o ano todo. Tudo o que desejo é que esta aldeia seja boa. Sinto
muito por te atrasar.”
Lawrence sacudiu a cabeça. “De modo nenhum.”
Iima sorriu. “Eu ouvi dizer que para capturar uma fada da sorte
em uma garrafa, você precisa usar licor feito de néctar. É o licor que
também me atraiu para esta aldeia.”
“Vou me certificar de usar o vinho da próxima vez que estiver com
problemas,” disse Lawrence com um sorriso ao se virar e voltar para a
escuridão.
Indo em direção à parte de trás do santuário onde esperava
encontrar Holo, ele contornou a segunda esquina apenas para dar de
cara com a parede.”
Ou foi o que ele pensou — mas o que estava diante dele era um
livro grosso e pesado.
“Idiota. Como se eu fosse ceder a uma simples bebida.”
Lawrence pegou o livro, esfregando o nariz. Ele deu uma olhada
para Holo.
CAPÍTULO IV ⊰ 190 ⊱

Ela não parecia ter chorado.


Este fato o aliviou.
“Então você terminou de conversar?”
“Mais ou menos.”
“Mm. Bem, da minha parte eu alcancei meu objetivo. Tudo o que
preciso fazer agora é mantê-lo seguro.”
Lawrence olhou para o livro. Holo notou seu olhar. “Mais ou
menos, eu diria,” disse ela.
“Mais ou menos?”
“Metade de mim gostaria de não ter lido, e a outra metade está
feliz por eu ter lido.”
Não era uma resposta muito clara. Gesticulou com o queixo para
o livro, como se dissesse a Lawrence para ver por si mesmo, depois se
sentou ao lado da vela e pegou sua cauda.
A folha de pergaminho presa entre as páginas do livro
provavelmente marcava a seção que tratava de Yoitsu.
Lawrence, no entanto, começou no começo.
O livro era organizado como uma narrativa que começou com as
origens do espírito do urso e continuou nas muitas histórias sobre o
espírito de várias regiões.
Estava escrito no livro que o espírito do urso era verdadeiramente
gigantesco, digno do epíteto “caçador lunar”. Dizia-se que ele era tão
vasto que até a montanha mais alta não passava de uma almofada para
que o espírito do urso se deitasse.
O animal de pele branca tinha uma disposição selvagem e dizia-se
que era um precursor da morte. Matou sem piedade todos os que se
opuseram. O espírito do urso viajava de região para região, desafiando
qualquer ser que fosse adorado como um deus. Depois de matar,
devorou toda a comida da região e seguiu em frente. Os contos do
livro eram todos assim.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 191 ⊱

Além da seção marcada pela folha de pergaminho, as histórias


eram muito parecidas.
Entre eles, o conto mais longo dizia respeito à batalha do espírito
do urso contra a serpente do mar de Teuperovan, uma criatura tão
vasta que um continente e inúmeras ilhas eram carregadas em suas
costas. Houve até uma canção escrita sobre o grande conflito, cujas
letras continham uma referência a uma ilha na região de Radoon, que
havia sido criada quando a terra caiu das costas da serpente no decorrer
da batalha. A luta entre o urso e a serpente tinha sido feroz, e muitas
páginas foram dedicadas a registrar sua extensão.
Os outros contos, embora não fossem tão épicos, ainda eram
espetaculares, e todos serviam para confirmar tanto a selvageria
invencível do urso quanto o número de espíritos menores que ele
derrubara.
Era fácil entender por que o padre Franz queria julgar as histórias
sem preconceitos.
Se essas histórias fossem acreditadas, isso significaria que os
espíritos nesta área já haviam sido devastados antes que a Igreja se
mudasse do sul.
Depois que Lawrence leu a seção que tratava de Yoitsu, seus
sentimentos fiacaram bastante complicados.
Embora Yoitsu fosse de fato mencionada, parecia que os espíritos
da região haviam enfiado o rabo entre as pernas e corrido, e a própria
Yoitsu se despedaçara em menos tempo do que uma fruta leva para
cair do galho de uma árvore para o chão. Isso foi tudo o que tinha sido
escrito. Se alguém estivesse folheando rapidamente as páginas, essa
seção seria fácil de perder.
Os espíritos da região eram sem dúvida velhos amigos de Holo.
Se eles tivessem realmente fugido, isso significava que estavam a salvo,
mas também os fazia parecer inevitavelmente patéticos.
Agora, Lawrence sabia o que Holo queria dizer, meio que
desejando que não o tivesse lido e meio feliz por ter lido.
CAPÍTULO IV ⊰ 192 ⊱

A história de Yoitsu não tinha sido muito interessante — era


apenas uma breve e desinteressante seção. Holo não poderia ter
gostado.
Tudo o que disse, o fato de que Yoitsu não havia sido destruída
depois de uma luta amarga e desesperada, era uma boa sorte dentro de
uma situação ruim. Se tudo isso fosse verdade, talvez os espíritos que
conheciam o nome Yoitsu tivessem acabado de se mudar para outro
lugar.
Assim como Holo não conseguiu estar genuinamente feliz com
essa notícia, Lawrence não sabia o que dizer a ela. Se seus
companheiros estavam vivos, era porque eram covardes.
Ele fechou o livro e olhou furtivamente para as costas de Holo.
O tempo em que o mundo girava em torno dos deuses passara.
Até a Igreja, com toda a sua grande influência no Sul, sentia os efeitos.
Mas havia muitos deuses que nunca tiveram uma influência
particularmente forte, mesmo no passado distante.
Diante dessa verdade — de que o mundo dos deuses não era tão
diferente do dos humanos — a forma de Holo parecia menor do que
o normal.
Ela tinha sido até mesmo desprezada em sua própria aldeia.
Lawrence sentiu como se entendesse a fonte de sua solidão.
Ela não era diferente de uma pessoa — de certa forma, ela era a
jovem que parecia ser. Assim como ocorreu a ele —
“Talvez seja apenas a minha imaginação, mas sinto que alguém está
olhando para mim de uma maneira verdadeiramente enfurecedora.”
Holo se virou e deu a Lawrence um olhar avassalador.
O monarca de um pequeno país ainda era um monarca.
“Não, não, eu não sou… Não, suponho que sou. Sinto muito. Não
fique com tanta raiva.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 193 ⊱

Normalmente Holo teria se afastado. Lawrence não teve escolha


senão repensar sob seu olhar fulminante.
Ele estava correto sobre ela.
“Hmph. Estou satisfeita em saber que meus amigos estão seguros.
Isso é tudo que importa.”
Sem dúvida, ela queria acrescentar “Então, não me pergunte mais
nada,” mas seu orgulho de loba sábia não a deixava fazer um pedido tão
lamentável.
Lawrence não pôde deixar de se divertir um pouco com seu modo
infantil.
Ele tossiu para esconder o sorriso que inevitavelmente subiu aos
lábios, depois falou. “Isso é realmente uma boa notícia, mas ainda não
temos mais informações sobre a localização de Yoitsu.”
Ele folheou as páginas mais uma vez.
Embora as informações sobre a própria Yoitsu fossem escassas,
parecia que todos os contos do espírito do urso eram muito antigos, a
maioria deles ocorrendo em cidades ou vilarejos de que Lawrence
nunca tinha ouvido falar e em nações com nomes desconhecidos.
Ele tinha ouvido algumas das histórias antes — notavelmente, a
história da serpente marinha — e, embora soubesse da região de
Radoon, não havia nada que o ajudasse a diminuir o paradeiro de
Yoitsu.
No entanto, de todas as histórias de destruição em massa
provocadas pelo espírito do urso, era estranho que Lawrence tivesse
ouvido falar justo de Yoitsu.
Era inútil considerar, mas Lawrence não podia deixar de pensar
nisso.
“O mundo não gira como se deseja,” ele falou, fechando o livro.
Holo mastigou a ponta da cauda. “Certamente.” Ela suspirou.
“Então, e sobre aqueles que moram nessa vila cujas vidas não estão indo
CAPÍTULO IV ⊰ 194 ⊱

como gostariam? Se você for fugir, decida logo. Seria melhor fugir no
escuro da noite.”
“Elsa e eu sabemos do nosso destino se ficarmos aqui. Precisamos
ter certeza do que faremos, mas, nesse caso, acho que a discrição muito
importante.”
“Uma ideia ruim é pior do que nada,” disse ela com um bocejo, de
pé. “Ainda assim, se chegar a esse ponto, você vai tomar um grande
prejuízo.”
“Não tenho o que fazer. Não é como se pudéssemos levar o trigo
conosco.”
“Mesmo assim, você não parece muito chateado com isso.”
“Não?” Perguntou Lawrence, acariciando o queixo. Não era a
primeira vez que ele era pego nesse tipo de disputa. Às vezes, as perdas
eram inevitáveis.
Era verdade que seu lucro em Kumersun havia excedido e muito
as suas expectativas, mas mesmo assim, Lawrence ainda se surpreendia
com a própria calma.
E em todo caso, a vida de um viajante era algo barato para uma
aldeia isolada. Saber que sua própria vida não estava realmente em
perigo já era lucro suficiente.
“Ainda assim, mesmo com as coisas como estão, há algumas coisas
caras que provavelmente podemos salvar,” disse Lawrence.
“A pimenta, certo?”
Qualquer mercador teria pensado a mesma coisa. Pimenta e
outras especiarias eram caras porque eram escassas. No entanto, se eles
não conseguissem estocar nada, não havia sentido em falar sobre
transportá-lo.
Algo ocorreu a Lawrence enquanto pensava sobre isso. “Há um
produto caro e ainda mais leve do que as especiarias que podemos
trazer conosco.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 195 ⊱

“Oh?”
“É a confiança.”
Holo deu a Lawrence um olhar raro de admiração, depois sorriu
maliciosamente. “Vou esperar para vender a confiança que você
deposita em mim até que ela fique um pouco mais valiosa.”
“Você tem alguma ideia do quanto eu me tornei paranoico desde
que sou provocado tão impiedosamente por você?”
Holo riu, depois passou o braço ao redor de Lawrence. “Eu
suponho que terei que fazer as pazes com você.”
“Este é exatamente o tipo de coisa que aprendi a desconfiar.”
Holo não se movia; ela estreitou os olhos. “Mentiras só vão
diminuir o valor da sua confiança.”
Ela nunca jogou justo.
“Mesmo assim, você nunca me culpou por esse problema em que
estamos, e por isso sou muito grata.”
“Hã?”
“Se eu não tivesse insistido em vir aqui, você não estaria sofrendo
esse prejuízo.”
Então ela estava jogando assim agora, Lawrence refletiu.
No entanto, esses provavelmente eram seus verdadeiros
sentimentos.
“Bem, o que você acha de moderar sua alimentação e bebida por
um tempo para compensar a perda, hm?”
Holo gemeu. “Você certamente está menos contido.”
“Fique à vontade para tomar as rédeas e —” começou Lawrence,
enquanto colocava a folha de pergaminho de volta entre as páginas do
livro. Seus olhos se encontraram.
CAPÍTULO IV ⊰ 196 ⊱

A estátua da Santa Madre olhou para os dois, a cabeça inclinada


como se estivesse perdida com a conversa tola que se desenrolava
abaixo dela.
O som que agora ecoava pelo santuário ruidoso o bastante para
que Lawrence o ouvisse certamente não era uma bênção da Santa
Madre. Alguém estava batendo na porta da igreja.
“Eu tenho um mau pressentimento sobre isso,” disse Lawrence.
“Pressentimentos ruins geralmente estão corretos,” disse Holo,
soltando o braço de Lawrence. Os dois correram pelo corredor.
Lawrence ouviu o som da batida de novo, junto com Iima gritando
algo em resposta.
Era óbvio para ambos que os aldeões exigiam que Iima entregasse
Lawrence e Holo.
“Não, por aqui não!” Disse Iima. “Para a parte de trás da igreja —
vá!”
“Mas —”
“Eles estão tagarelando sobre se te entregarem para Enberch,
Enberch vai perdoar tudo isso! Eles nunca planejaram lidar com isso
eles mesmos. Até o trigo cresce da terra por conta própria — eles
ficam felizes em colhê-lo, desde que seja conveniente. Contanto que
as coisas sejam fáceis, eles farão de tudo para continuar assim!”
Enquanto Iima falava, havia mais pancadas fortes na porta.
Era uma igreja em uma área pagã e, como tal, tinha um pesado
ferrolho de madeira na porta.
Parecia improvável que os aldeões conseguissem atravessar a porta
principal, mas havia uma frágil janela de madeira na sala de estar. Se
eles ficassem sérios, poderiam facilmente quebrá-la e entrar na igreja.
Agora era uma luta contra o tempo.
Nesse momento, Evan apareceu com Elsa no encalço.
“Vou convencê-los a —” Elsa começou.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 197 ⊱

“Não seja ridícula,” disse Iima.


“Mas—!”
Iima deu uma pancada forte na porta, depois se virou para Elsa.
“Você sair para enfrentá-los seria como jogar combustível no fogo.
Você acha que fez um bom trabalho tentando esconder, mas todo
mundo sabe que você e Evan são próximos. Na pior das hipóteses, eles
chamariam você de herege só para poder entregá-lo a Enberch.”
Iima tinha uma boa noção da situação.
Lawrence podia facilmente imaginar isso. Forçada a escolher entre
Elsa e a vila, até mesmo Sem, que tinha sido o último raio de esperança
de Elsa e Evan, provavelmente ficaria do lado da vila.
Ninguém queria jogar fora sua vida, sua posição, seu nome e sua
casa.
“Ouça bem, agora. Você não pode ficar aqui. Olhe para esses dois
viajantes estranhos e você entenderá — o mundo é vasto. Os aldeões
não podem compreender isso. Você deve pelo menos tentar começar
sua nova vida com companheiros nos quais possa confiar,” disse Iima.
Havia muita coisa que Elsa e Evan tinham que abandonar, mas
havia muito que ganhariam.
Elsa se virou para olhar para Evan e depois os dois baixaram os
olhos.
Lawrence entendeu isso e percebeu que os dois não precisavam
trocar nenhuma palavra para transmitir seus pensamentos no
momento. Só então, Holo puxou sua manga.
Embora nunca tenha dito isso, ela deve ter desistido de muitas
coisas ao deixar a aldeia que habitou por tantos séculos.
“Não importa a jornada, quando você chegar a uma bifurcação na
estrada, deve decidir em um instante qual caminho seguir,” disse Holo.
“Você está certa,” concordou Lawrence.
Elsa fechou os olhos e agarrou abertamente a mão de Evan.
CAPÍTULO IV ⊰ 198 ⊱
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 199 ⊱

Ela abriu os olhos. “Eu quero fugir.”


Iima olhou para Lawrence, que olhou para Holo.
“Deixe comigo,” disse Holo. “Eu tenho uma condição,” ela
continuou, puxando o capuz e ignorando a surpresa de Iima e Evan.
“Pense em tudo o que acontece a partir de agora até o amanhecer como
um sonho.”
Quando se tratava de determinação, talvez as mulheres fossem
melhores que os homens.
Elsa assentiu, e só depois de vê-la concordar, Evan também
assentiu.
“O que eu sou senão uma fada que produz cerveja na floresta?
Bêbados não se lembram de nada,” disse Iima.
Holo sorriu. “Então deixe tudo isso para mim. Agora, se o bando
lá fora tiver lanças, posso passar por elas facilmente, mas elas podem
te incomodar.
“A igreja tem uma porta dos fundos?” perguntou Lawrence.
Por um momento, Elsa começou a sacudir a cabeça, mas parou.
“Talvez — padre Franz me falou sobre o porão apenas uma vez, mas
quando o fez, ele disse que havia uma passagem subterrânea acessível
por trás.”
Se a construção de igrejas era a mesma em todo o mundo, então
também eram as ações das pessoas dentro delas.
Qualquer igreja com tantos inimigos quanto esta teria passagens
secretas para escapar — era um fato bem conhecido entre o tipo de
pessoas que precisavam saber.
“Bem, vamos usá-la,” disse Lawrence.
Elsa assentiu e olhou para Iima.
“As coisas devem ficar bem por um pouco mais. Eles ainda não
decidiram exatamente o que querem fazer lá fora.”
CAPÍTULO IV ⊰ 200 ⊱

Era verdade — quando Iima bateu na porta por dentro, a algazarra


pareceu ter se acalmado.
“Vamos descer para o porão, então,” disse Lawrence.
“Estamos confiando em você,” disse Elsa, com um tom firme,
embora a incerteza estivesse clara em suas feições.
Qualquer um sentiria medo ao ouvir repentinamente que
precisavam deixar a cidade natal para sempre, a menos que passassem
seus dias sonhando em fazer exatamente isso.
“Para você vai ser fácil,” disse Iima. “Pelo menos você pode se
preparar um pouco antes de sair.” A cidade natal de Iima fora arrasada
por piratas e ela teve que fugir para salvar sua vida.
“De fato,” concordou Holo. “Não é como se a sua casa fosse
desaparecer amanhã. Fique feliz que ainda exista.”
“Oh, ho, a Senhorita Fada perdeu sua casa também?”
“Não me misture com essas criaturas fracas.”
O conhecimento do sofrimento dos outros não diminuia o
sofrimento de alguém, afinal de contas.
No entanto, poderia ser usado como um pouco de encorajamento.
Elsa recuperou sua determinação. “Vamos nos preparar de
maneira correta,” disse ela.
“Você tem dinheiro para viajar?” Iima perguntou.
“Evan,” disse Lawrence. Evan se lembrou da bolsa de moedas que
Lawrence lhe confiou e entregou para Lawrence. “Isso deve ser o
suficiente para nós quatro, desde que comamos frutos,” disse
Lawrence.
“Muito bom. Certo, agora vão!”
Com as palavras de Iima, todos entraram em ação.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 201 ⊱

Ela era a imagem de uma mulher heroica, Lawrence pensou


enquanto corria. Assim que chegaram à estátua da Santa Madre, Holo
falou como se tivesse lido os pensamentos de Lawrence.
“Nem eu consigo igualar a presença dela.”
Lawrence abriu a boca para falar, depois pensou melhor.
Isso, obviamente, não passou despercebido.
“Não se preocupe — esta é a única forma que posso assumir,”
disse ela com uma risada.
Lawrence deu uma risada, parcialmente envergonhado, e
respondeu, “É uma pena. Eu prefiro um corpo mais robusto.”
Holo inclinou a cabeça e sorriu, depois deu um leve soco no rosto
de Lawrence. “Só abra o porão.”
Lawrence decidiu não pensar muito sobre o que enfurecera Holo,
para que isso não trouxesse ainda mais fúria.
awrence estava preocupado que Elsa e Evan tivessem
dificuldade em juntar suas coisas rapidamente, mas
provavelmente graças ao desejo de longa data que Evan
tinha de deixar o lugar, eles estavam prontos em pouco
tempo.
Os suprimentos que eles haviam preparado não continham nada
desnecessário, exceto talvez por um livro de escrituras desgastado.
Eles estavam aprovados.
“A saída?”
“Eu encontrei,” disse Lawrence. “Está bloqueada por uma
parede.”
Em frente ao pé da escada que levava ao porão, havia uma seção
de parede nua onde não havia estantes de livros.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 203 ⊱

Uma vez que soube que havia uma passagem para fora do porão,
esse foi o primeiro lugar que Lawrence olhou. Depois de bater algumas
vezes na parede, ficou claro que além dela havia um espaço oco. Ele
chutou, provocando rachaduras na argamassa entre as pedras e
eventualmente a quebrando.
Além da parede havia um túnel perfeitamente redondo — tão
redondo que era sinistro.
Era menos uma passagem e mais de uma caverna ou algo do tipo.
“Vamos?” disse Lawrence.
Sob o olhar vigilante da Santa Madre, Evan e Elsa assentiram.
Iima provavelmente ainda estava acima deles na porta da igreja,
impedindo os aldeões de fazer qualquer coisa imprudente.
Lawrence respirou fundo e, com a vela na mão, entrou no túnel.
Holo seguiu imediatamente atrás dele, com Elsa e Evan na retaguarda.
Ainda havia muitos livros não lidos no porão. Em um deles podia
muito bem ter contos sobre os antigos companheiros de Holo.
E, do ponto de vista estritamente mercantil, os volumes
magnificamente encadernados valiam uma fortuna.
Lawrence queria muito trazer um para aumentar seus fundos de
viagem, mas não teve coragem de tentar trazer um livro repleto de
histórias pagãs ao longo de uma viagem dessas.
Em caso de problemas, um livro era silencioso e inútil, ao passo
que a estranha garota com orelhas e cauda conseguia reunir eloquência
que nenhum mercador poderia igualar.
E então Lawrence foi mais a fundo no túnel.
Seu corpo foi imediatamente cercado por um frio estranho. O
túnel não era alto o suficiente para ficar em pé; ele teve que abaixar a
cabeça ligeiramente para passar. Era estreito o suficiente para que
pudesse tocar os dois lados simultaneamente com as mãos estendidas.
Felizmente, o ar não parecia velho ou mofado.
CAPÍTULO V ⊰ 204 ⊱

Com a vela na mão, Lawrence viu que o túnel era tão


estranhamente circular que parecia ser formado com grandes pedras
aqui e ali que, deliberadamente e de forma limpa, foram esculpidas na
forma adequada.
E, no entanto, o túnel não era reto; virava para lá e para cá.
Se os construtores não pretendiam que o túnel fosse
perfeitamente reto, então por que se dar ao trabalho de dividi-lo
deliberadamente nessas proporções? Não fazia sentido para Lawrence.
A passagem também tinha um cheiro cremoso e animalesco, que
transmitia uma sensação de mal-estar totalmente diferente dos odores
que preenchiam os esgotos de Pazzio.
Lawrence segurou a vela na mão direita e a mão de Holo na
esquerda. Ele podia sentir um ligeiro nervosismo vindo dela.
Todos ficaram em silêncio enquanto caminhavam.
Eles decidiram que Iima fecharia a entrada do porão depois de um
tempo, mas Lawrence agora se via preocupado se ela o abriria para eles
caso o túnel não tivesse saída.
Eles prosseguiram, no entanto, destemidos. A passagem não tinha
bifurcações, apesar de sua natureza sinuosa.
Se uma bifurcação aparecesse no caminho, Lawrence sabia que
provavelmente iria sucumbir à pressão e falar.
Silenciosamente, eles andaram ao longo da passagem. Era difícil
saber quanto tempo tinha passado, mas eventualmente detectaram
fragmentos de ar fresco em meio ao cheiro fétido do túnel.
“Estamos perto,” murmurou Holo, o que provocou um óbvio
suspiro de alívio de Evan.
Tomando cuidado para não deixar a vela cair, Lawrence acelerou
o passo.
Impulsionado pela insuportável estranheza do túnel, ele viu a luz
da lua no espaço de tempo de três respirações.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 205 ⊱

Árvores cresciam em torno da outra entrada do túnel, o que fez


Lawrence presumir que estava escondido entre penhascos. Mas não —
quando ele se aproximou, logo viu que não era o caso.
A entrada era larga, parecendo quase engolir o luar.
Ele havia assumido que a entrada estaria situada em um local
escondido, discreto, mas havia algo que era distintamente semelhante
a um altar.
Ao se aproximar para dar uma olhada melhor, Lawrence viu que
uma pedra larga e chata havia sido colocada cuidadosamente sobre
quatro pedras quadradas. Sobre a pedra plana havia algumas frutas
secas e trigo.
Certamente não, Lawrence murmurou para si mesmo.
Holo também pareceu notar e olhou para Lawrence.
Um momento depois, a voz de Elsa falou: “I-isto é—”
“Ha! Ah, isso é ótimo," disse Evan, rindo.
O túnel que saía da igreja parecia passar por uma colina nos
arredores da aldeia, emergindo do lado oposto.
Se seguissem a suave inclinação para baixo, haveria uma abertura
de floresta com pasto, de onde poderia ser visto o débil reflexo do luar
no riacho.
Quando todos os quatro saíram do túnel e se certificaram de que
não havia aldeões por perto, eles olharam para o buraco.
“Sr. Lawrence, você sabe o que é esse buraco?” perguntou Elsa.
“Na verdade, não.”
“É a toca que o Lorde Truyeo usou quando veio do extremo norte
para hibernar há muito, muito tempo.”
Lawrence já tinha adivinhado mais ou menos isso ao ver o altar
com as oferendas, mas seu rosto ainda mostrava surpresa quando suas
suspeitas foram confirmadas.
CAPÍTULO V ⊰ 206 ⊱

“Todos os anos, para o plantio e colheita, os aldeões vêm aqui para


fazer orações e comemorar. Nós geralmente não participamos, mas…
por que a passagem da igreja levaria até aqui?”
“Eu não sei porque, mas certamente é inteligente. Os aldeões
nunca se atreveriam a entrar,” disse Lawrence.
Ainda assim, havia coisas sobre o túnel que eram estranhas.
Se o padre Franz o tivesse escavado, era impossível imaginar que
os aldeões não o tivessem notado e, de qualquer forma, os aldeões
estavam adorando Truyeo muito antes de a igreja ser construída.
Lawrence olhou para Holo enquanto pensava e viu que ela estava
olhando vagamente para a entrada da caverna.
De repente, ele entendeu — a estranha torção do túnel, as pedras
perfeitamente esculpidas aqui e ali, e a completa falta de qualquer
morcego, apesar da perfeição da caverna.
E havia aquele cheiro cru e fétido.
Percebendo o olhar de Lawrence, Holo sorriu, depois se virou
para olhar a lua que pairava no céu noturno.
“Venha, ficar aqui é como pedir que nos encontrem! Vamos
primeiro descer até o riacho,” disse ela.
Não houve argumentos.
Elsa e Evan trotaram pela grama seca da encosta quando Lawrence
soprou a vela e deu uma última olhada na área.
“Isso é mesmo uma toca?” Ele não ousou fazer a pergunta na frente
de Elsa e Evan.
“Havia uma grande cobra aqui. Mas a quanto tempo atrás, até eu
não sei dizer.”
Pode até não ter sido Truyeo.
Pode ter sido pura coincidência que a adega da igreja tenha
cruzado com o caminho da caverna. Corretamente falando, o porão
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 207 ⊱

havia sido construído no meio do covil, que provavelmente continuava


passando pelo porão na direção oposta.
Lawrence não sabia se havia ou não uma cobra gigante enrolada
em algum lugar mais profundo.
Holo olhou para a entrada de alguma forma triste e carinhosa
enquanto falava. “Foi um acaso ele fazer uma toca aqui, e ainda assim
as pessoas continuamente vêm para adorar. Duvido que alguma vez
tenha conseguido tirar uma soneca adequada.”
“Esse não é o tipo de coisa que um mercador que
supersticiosamente segue os caminhos dos santos quer ouvir.”
Holo sorriu e encolheu os ombros. “Não é minha culpa que os
humanos sejam criaturas esquisitas que precisam encontrar algo para
adorar.” Seu sorriso se tornou malicioso. “Você não deseja me adorar?”
Lawrence sabia que ela odiava ser adorada e temida como um
deus, então ela claramente não estava sendo séria.
No entanto, ele não tinha resposta pronta.
Afinal, quando ela estava de mau humor, ele oferecia sacrifícios
para acalmá-la.
Lawrence suspirou e desviou o olhar; Holo riu.
De repente, ele sentiu a mão dela. “Vamos,” disse ela, puxando-o
enquanto corria pela encosta.
Ele olhou para o rosto dela de perfil. Ela parecia menos satisfeita
com a provocação dele e mais aliviada com alguma coisa.
Talvez ver o covil de Truyeo, a quem todos os aldeões adoravam,
a lembrasse do seu próprio passado e da vila que uma vez habitou.
Foi certamente por vergonha de ter ficado sentimental que Holo
acabou provocando Lawrence.
Ela continuou a correr sob o luar.
Além de fingir não notar, havia pouco que Lawrence pudesse fazer
para ajudá-la com essas pontadas de fraqueza.
CAPÍTULO V ⊰ 208 ⊱

Isso o fez se sentir completamente inútil, e mesmo assim Holo


ainda estava disposta a pegar sua mão.
Talvez essa fosse a distância perfeita para manter, ele pensou —
com apenas um pouco de solidão.
Tais eram os pensamentos que ocupavam sua mente enquanto
desciam a face da colina para alcançar a dupla que já havia alcançado a
margem do rio à sua frente.
“Então, como escapamos?” perguntou Evan.
Lawrence entregou a pergunta para Holo.
“Nós precisamos primeiro ir para Enberch.”
“Hã?”
“Já estivemos lá uma vez antes. Vamos precisar de alguma noção
da configuração da terra se quisermos escapar sem sermos detectados.”
Evan assentiu, como se dissesse: “Ah, entendo.”
Mas Holo ainda parecia vagamente descontente quando ela chutou
pedrinhas ao redor da margem do riacho. Ela suspirou. “Deixe-me
dizer uma coisa,” disse ela, enfrentando Evan e Elsa, que ainda estavam
de mãos dadas. “Se você se encolher de medo, eu vou devorar vocês
dois.”
Lawrence lutou contra o desejo de salientar que essa declaração
em si já era suficientemente ameaçadora. Holo provavelmente estava
ciente disso.
Ela era como uma criança que sabia que suas exigências eram
irracionais, mas não podia deixar de fazê-las de qualquer maneira.
Os dois assentiram, obviamente surpresos com os modos de
Holo. Holo olhou para o lado, parecendo um pouco embaraçada.
“Vocês dois! Virem-se e olhem para o outro lado! E você—”
“Certo,” disse Lawrence.
Holo puxou o capuz para trás e tirou a capa. Ela entregou suas
roupas para Lawrence, peça por peça, enquanto removia cada item.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 209 ⊱

Apenas observá-la foi o suficiente para fazer Lawrence sentir frio.


Evan olhou por cima do ombro, aparentemente incapaz de resistir a
espreitar ao súbito som de roupas.
Holo não teve que agarrá-lo porque Elsa fez isso por ela.
Lawrence simpatizou com Evan.
“Francamente, por que a forma humana é tão fraca contra o frio?”
Holo reclamou.
“Estou com frio só de olhar para você,” disse Lawrence.
“Hmph.”
Tirou os sapatos e os jogou para Lawrence, depois removeu a
bolsa contendo grãos de trigo pendurados no pescoço.
Lá estavam eles em meio às árvores de galhos mal iluminados pela
lua.
O riacho refletia o luar como um espelho.
Diante daquele riacho havia uma garota estranha com orelhas de
lobo e uma cauda fofa que parecia ser a única parte quente de seu
corpo.
Era realmente a visão de um sonho antes do amanhecer.
Uma névoa escapava da boca de Holo. De repente ela olhou para
Lawrence.
“Você quer ser elogiada agora?” Ele perguntou com um encolher
de ombros.
Holo deu-lhe um sorriso derrotado em troca.
Lawrence virou as costas para ela, desviando o olhar.
Lá embaixo do luar cintilante, a donzela se tornou um lobo.
Este mundo não pertence somente à Igreja.
A prova disso estava mais perto do que a margem oposta do riacho
murmurante.
CAPÍTULO V ⊰ 210 ⊱

“Meu pelo é realmente o melhor.”


Lawrence se virou e olhou para a fonte da voz baixa e estrondosa
e foi recebido por um par de olhos vermelhos que brilhavam de volta
para ele, brilhantes como a lua.
“Se você quiser vendê-lo, basta dizer,” disse Lawrence.
Holo enrolou os lábios para trás, revelando uma fileira de dentes
afiados.
Ele a conhecia bem o suficiente para entender que isso era um
sorriso.
Agora tudo o que restou foi o teste de Elsa e Evan. Holo pareceu
suspirar, olhando suas formas, as costas ainda voltadas na escuridão.
“Hmph. Bem, eu não posso dizer que minhas expectativas eram altas.
Venham, subam em cima de mim. Será incômodo se formos descobertos.”
Um pássaro perseguido por um cachorro não tem forças nem para
voar, e apesar das palavras de Holo, Elsa e Evan estavam exatamente
assim.
Só quando Lawrence deu a volta para ficar na frente de Elsa e Evan
e gesticulou com o queixo que eles conseguiram se virar.
Até mesmo Lawrence tinha ficado aterrorizado quase perdendo a
capacidade de ficar de pé quando viu a verdadeira forma de Holo pela
primeira vez.
Em sua mente, ele aplaudiu o casal por não desmaiarem.
“Isso não é nada além de um sonho, lembram?” Ele disse, olhando
particularmente para Elsa.
Eles não gritaram nem tentaram fugir, apenas olharam para
Lawrence por um momento antes de encarar Holo novamente.
“Então o padre Franz não estava mentindo,” murmurou Evan, que
provocou um longo sorriso com presas em Holo.
“Vamos, vamos em frente,” disse Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 211 ⊱

Holo soltou um grande e cansado suspiro, depois se abaixou.


Lawrence, Elsa e Evan subiram em suas costas, cada um segurando
sua pele rígida e eriçada.
“Se você cair, eu vou pegá-lo com a minha boca. Esteja preparado.”
Evidentemente este era o aviso padrão de Holo quando levava
humanos nas costas.
Elsa e Evan levaram o aviso a sério, apertando ainda mais o pelo,
o que fez Holo rir.
“Agora vamos.”
Ela correu, ela era um lobo em cada detalhe.

Andar nas costas de Holo era como mergulhar em água gelada.


Seus pés eram terrivelmente rápidos. Ela traçou um amplo círculo
ao redor da vila, depois foi para Enberch, chegando quase
imediatamente no ponto em que ela e Lawrence pegaram a estrada
para Tereo com a carroça.
Elsa e Evan estavam sentindo algo muito além do mero terror.
Embora estremecessem incontrolavelmente, eles mesmos não
tinham noção se isso era por causa do frio ou do medo.
O caminho ao longo do qual Holo corria dificilmente poderia ser
chamado de caminho; seus passageiros eram pressionados contra suas
costas em um instante, apenas para quase serem arremessados no
próximo. Eles não puderam relaxar nem por um momento.
Lawrence se agarrou ao pelo de Holo com todas as suas forças,
rezando para que Elsa e Evan não fossem jogados para trás.
Era difícil saber quanto tempo tinha passado, mas depois de um
período que parecia ser tanto uma eternidade esmagadora quanto um
breve cochilo, a corrida de Holo diminuiu até parar, e ela se agachou
novamente.
CAPÍTULO V ⊰ 212 ⊱

Ninguém perguntou se eles haviam sido vistos.


Holo era inquestionavelmente a menos cansada de todos, apesar
de carregar três pessoas nas costas.
O corpo de Lawrence estava rígido e apertado, e ele não
conseguia nem afrouxar o aperto de suas mãos no pelo de Holo —
ainda assim ele podia ouvir a cauda dela roçando o chão gramado.
Ela não ordenou que seus passageiros saíssem.
Holo, sem dúvida, entendeu que mal conseguiam se mexer.
Ela sabia que, se continuasse a correr, um de seus três passageiros
certamente teria desistido e caído.
“...Até onde chegamos?” Lawrence levou algum tempo para
reunir forças e fazer uma pergunta.
“A meio caminho.”
“Então é uma pausa ou...” começou Lawrence, quando atrás dele
a exausta Elsa e Evan pareciam se contorcer com a alternativa.
Holo também notou a reação deles.
“Nossa fuga seria em vão se você morresse no caminho. Chegamos longe o
suficiente para que um cavalo demorasse um pouco para nos alcançar. Nós
vamos descansar um pouco.”
A notícia de sua fuga de Tereo só podia viajar tão rápido quanto
um cavalo pudesse galopar.
Eles podiam se dar ao luxo de descansar até lá.
Nas palavras de Holo, Lawrence sentiu o cansaço pressionando-o.
“Não durmam em cima de mim. Desçam.”
Ela parecia descontente, então Lawrence e Evan conseguiram de
alguma forma descer — mas Elsa estava em seu limite e teve que ser
retirada das costas de Holo.
Lawrence queria acender uma fogueira para se aquecer, mas Holo
havia parado em um pequeno trecho de floresta entre as colinas ao
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 213 ⊱

longo do caminho que ligava Enberch e Tereo — contanto que eles


ficassem quietos, eles não seriam descobertos. Acender um fogo, no
entanto, os tornariam muito mais fáceis de detectar.
De qualquer forma, o problema do calor foi rapidamente
resolvido.
Afinal, eles estavam bem ao lado de uma bola de pelo gigante.
“De repente me sinto como uma mãe.”
A voz profunda de Holo retumbou no estômago de Lawrence
quando ele se inclinou contra ela.
Elsa e Evan se enrolaram em um cobertor que trouxeram da
igreja, se aconchegando contra Holo, e Holo enrolou sua grande cauda
em volta dos três.
O pelo dela era tão quente que Lawrence nem se lembrava do
triste sorriso que deu com as palavras dela, tão depressa adormecera.

Embora os mercadores possam dormir quase em qualquer


circunstância, Lawrence não dormiu exatamente bem.
Holo se mexeu um pouco e ele acordou.
O céu havia clareado; a névoa da manhã estava fina.
Lawrence ficou de pé, com cuidado para não acordar Elsa e Evan,
que ainda dormiam ao lado dele. Seu corpo se sentiu mais leve quando
ele lentamente se esticou.
Ele deu a si mesmo um último e grande alongamento, braços
erguidos, depois relaxou com um suspiro.
Sua mente estava ocupada com o que eles ainda tinham que fazer.
Não importava para qual cidade ele e Holo decidissem ir, eles não
seriam capazes de simplesmente largar Elsa e Evan. Tudo o que
poderiam era retornar brevemente a Kumersun, explicar a situação à
corporação comercial e obter sua proteção — depois, usar as conexões
da guilda para negociar com Enberch e Tereo.
CAPÍTULO V ⊰ 214 ⊱

Em seguida, ele recuperaria o dinheiro que havia depositado na


guilda e seguiria para Lenos.
Isso era mais ou menos o que fariam.
Ele notou que Holo estava olhando para ele.
Mesmo deitada como estava, sua forma era enorme, embora ele
já não a considerasse tão aterrorizante quanto misteriosa.
Holo olhou para ele por algum tempo, como se ela fosse um
boneco bem elaborado, construído como uma brincadeira por algum
deus. Eventualmente ela desviou o olhar.
“O que foi?”
Lawrence se aproximou dela, com os pés roçando nas folhas secas.
Ela deu a ele um olhar cansado, então gesticulou com o queixo.
Como ela claramente não estava pedindo para coçar se pescoço,
Holo deveria estar apontando para alguma coisa, Lawrence assumiu.
Logo após a colina, ficava a estrada que ligava Enberch e Tereo.
Ele logo entendeu.
“Então é seguro olhar, hein?”
Holo não respondeu, em vez disso bocejou imensamente e apoiou
a cabeça nas patas dianteiras. Suas orelhas giraram duas vezes, três
vezes.
Lawrence tomou suas ações como uma afirmação, mas ainda foi
até a colina com seu corpo baixo e passos leves.
Era óbvio quem estaria subindo o caminho a esta hora.
Ele se aproximou do pico da colina, mantendo a cabeça ainda mais
baixa enquanto cuidadosamente olhava o caminho.
Em seu primeiro olhar rápido, ele não viu ninguém, mas quando
olhou mais longe, Lawrence pôde ouvir uma confusão silenciosa de
ruídos vindos da direção de Enberch.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 215 ⊱

Logo depois de ouvir o som, ele avistou sua fonte na névoa da


manhã.
Era a caravana devolvendo o trigo de Tereo.
O que significava que o mensageiro de Enberch já havia chegado a
Tereo e, dependendo das especificidades da mensagem, os aldeões já
teriam entrado na igreja em busca de Lawrence e companhia.
Ele se perguntou se Iima, tendo ajudado sua fuga, estaria segura.
Sua posição dentro da aldeia era forte, então ela provavelmente
estaria bem — mas ele ainda se preocupava um pouco com a segurança
dela.
Mas isso era irrelevante — nenhum deles poderia retornar a
Tereo.
Só então, ele ouviu o farfalhar de passos atrás dele. Ele olhou para
trás.
Era Evan.
“Como ela está?” Lawrence perguntou.
Evan assentiu — evidentemente, Elsa estava bem. Ele então se
agachou ao lado de Lawrence, olhando ao longe. “Eles são de
Enberch?”
“Devem ser.”
“Huh.” Evan tinha uma expressão complicada, como se ambos
ansiassem por uma arma com a qual assaltar a procissão, e ficou feliz
por não ter essa arma.
Lawrence olhou de Evan para Holo atrás deles.
Holo ainda estava deitada com Elsa encostada nela.
Elsa parecia acordada, mas olhava indiferente para o ar.
“Elsa está realmente bem?” Lawrence perguntou.
Afinal, ela desmaiara de anemia, depois passou a noite em
movimento.
CAPÍTULO V ⊰ 216 ⊱

Enquanto considerava o que havia pela frente, a condição de Elsa


pesava na mente de Lawrence.
“Difícil dizer,” disse Evan. “Sua pele está bem o suficiente, mas ela
parece estar pensando em algo.”
“Pensando?” Evan assentiu.
Se isso era tudo que Evan podia dizer, então Elsa não deveria ter
dito a ele o que estava em sua mente. Tendo sido forçada a sair de
repente de casa, não era de se surpreender que ela estivesse aturdida e
contemplativa.
Evan se virou e olhou para Elsa. Lawrence viu sua expressão —
parecia um cão fiel que não queria nada além de correr para o lado
dela.
Mas Evan parecia entender que era melhor deixá-la sozinha por
um tempo.
Evan forçou seu olhar de volta para a caravana de Enberch, que
agora estava um pouco mais perto.
“É um grupo considerável”, disse ele.
“Eles provavelmente estão devolvendo todo o trigo comprado de
Tereo. E aquelas longas varas que os homens ao redor das carroças
estão segurando — certamente são lanças.”
Os lanceiros eram meramente caso a caravana encontrasse
resistência dos aldeões, mas eles davam à procissão um ar imponente
e sinistro.
“Diga, senhor Lawrence ...”
“Mm?”
“Não poderíamos pedir a sua... hum... a deusa que nos trouxe até
aqui?”
Embora Evan baixasse a voz, Holo certamente ouviu isso.
Ela fingiu não ter ouvido.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 217 ⊱

“Pedir o que?” Lawrence pressionou.


“Para... matar todos eles.”
Quando todo o resto falhar, peça aos deuses — os humanos
sempre foram assim.
E seus pedidos eram muitas vezes absurdos.
“Suponha que ela concordasse com tal pedido. Certamente seria
feito. Mas então Enberch simplesmente enviaria um exército para
Tereo. E não podemos lutar contra todos os exércitos que eles possam
enviar.”
Evan assentiu, como se soubesse qual seria a resposta. “Eu
suponho.”
A caravana chegara bem perto agora.
O par se agachou e olhou.
“Então, o que faremos a seguir?”
“Estou planejando ir até uma cidade chamada Kumersun primeiro.
Se conseguirmos chegar lá, nossas vidas não estarão mais em perigo.
Depois disso, bem, vamos descobrir quando chegarmos lá.”
“Entendo…”
“Você deveria pensar sobre o que quer fazer. Temos um vínculo,
você e eu — farei o que puder para ajudar,” disse Lawrence.
Evan fechou os olhos e sorriu. “Obrigado.”
A caravana que levava consigo a ruína de Tereo, percorreu
ruidosamente o caminho, perturbando a paz matinal.
Incluía talvez quinze carroças com cerca de vinte lanceiros para
vigiar a caravana.
No entanto, o que mais chamou a atenção de Lawrence foi um
grupo na parte de trás da procissão, que estava vestido de maneira um
pouco diferente do resto.
CAPÍTULO V ⊰ 218 ⊱

O cavalo carregando o último carro tinha viseiras e abas de sela


que indicavam um membro de alto escalão do clero, e era cercado por
quatro homens carregando escudos com vários clérigos de baixo
escalão em roupas de viagem seguindo atrás a pé.
“Então é assim,” Lawrence murmurou.
O Fogo do Inferno de Ridelius havia sido misturado com a colheita
de trigo de Tereo, e um cidadão de Enberch morrera por disso.
Mas se trigo venenoso não estivesse lá desde o começo, não
haveriam mortes semelhantes em Tereo.
Enberch ia usar isso para sua vantagem.
Eles alegariam que a ausência de vítimas de envenenamento em
Tereo era a prova de que a vila estava sendo protegida por espíritos
malignos e que todos os aldeões eram culpados de heresia.
“Vamos voltar,” disse Lawrence.
Evan assentiu sem palavras, parecendo ter percebido algo por si
mesmo.
Lawrence desceu a colina e voltou para Holo. Elsa lançou um
olhar interrogativo, que ele fingiu não notar.
O que quer que ela pudesse perguntar, a resposta seria que a
posição de Tereo era desesperadora.
“Vamos um pouco mais longe, depois tomar o café da manhã,”
disse Lawrence.
Elsa baixou o olhar, como se tivesse percebido alguma coisa.
Ela não disse nada, mas ficou de pé, o que levou Holo a se levantar
também.
Evan e Lawrence dividiram a bagagem, e os quatro começaram a
andar com Holo na liderança.
As folhas secas rangiam sob os pés.
O primeiro a parar de andar foi Evan, seguido por Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 219 ⊱

Holo deu mais alguns passos e parou, olhando para trás.


“Elsa?” Perguntou Evan.
Elsa ficou parada ali, com o corpo embrulhado num cobertor.
Ela olhou para o chão.
Evan trocou olhares com Lawrence, depois assentiu e começou a
se aproximar de Elsa.
Naquele exato momento, Elsa falou.
“Holo...” Ela não estava se dirigindo a Evan. “Você é... realmente
uma deusa?”
Holo não disse nada inicialmente, apenas balançando a cauda uma
vez. Ela então se virou para encarar Elsa. “Eu sou Holo, a Sábia Loba de
Yoitsu. Há muito tempo fui chamada de deusa,” disse Holo, sentando-se e
olhando diretamente para Elsa.
A resposta surpreendeu Lawrence.
Ainda mais surpreendente foi a expressão de Holo enquanto ela
olhava para Elsa; era muito séria, mas não indelicada.
“Eu moro dentro do trigo e posso virar tanto lobo quanto humano. Os
humanos me adoram como o deus da colheita abundante, e eu sou capaz de
responder às suas orações.”
Holo parecia ter entendido alguma coisa.
Elsa apertou o cobertor que a envolvia em volta do corpo por cima
do ombro. Holo tinha discernido os pensamentos que estavam no
âmago da garota, escondidos sob os braços cruzados e o cobertor.
Holo deve ter visto a preocupação da garota, ou ela nunca teria se
chamado de deus.
“Colheita abundante? Isso... Então Truyeo é —?”
“A resposta para essa pergunta já está dentro de você.” Holo mostrou os
dentes, talvez algo como um sorriso triste.
CAPÍTULO V ⊰ 220 ⊱

Elsa abaixou a cabeça em um ligeiro aceno de cabeça. “Truyeo é


Truyeo. Você é você.”
Holo meio riu e meio suspirou, e as folhas secas a seus pés
dançaram no ar.
Seus olhos cor de âmbar estavam cheios de uma gentileza que
Lawrence nunca tinha visto.
Se deuses existiam, certamente eles eram algo assim, com olhos
que inspiravam reverência, mas não medo.
Elsa olhou para cima.
“…Se isso for verdade, então—”
“A pergunta que você faria...” disse Holo, sua cauda roçando
barulhentamente as folhas.
Elsa engoliu suas palavras, mas ainda olhou para Holo.
“...não deve ser pedido a mim,” Holo terminou.
Instantaneamente o rosto de Elsa se retorceu, uma lágrima rolou
pela bochecha direita.
Evan tomou isso como um sinal. Ele correu para o lado dela e a
abraçou.
Elsa fungou algumas vezes, acenando com a cabeça como se
quisesse mostrar que ela estava, de fato, bem. Ela suspirou, a
respiração escapando de sua boca.
“Eu sou a sucessora do padre Franz. Isso eu posso dizer com
certeza.”
“Oh, pode?”
Elsa sorriu para a pergunta puramente retórica de Holo.
Era um sorriso novo, o resultado de jogar de lado um fardo
pesado.
Talvez ela tivesse percebido o verdadeiro objetivo do padre Franz
ao coletar histórias dos deuses pagãos.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 221 ⊱

Não — ela provavelmente sabia há muito tempo, desde quando o


padre Franz lhe contara sobre sua adega secreta.
Ela simplesmente se recusou a entender.
Era exatamente como Iima dissera.
O mundo era vasto, mas as mentes dos aldeões eram estreitas.
Elsa percebeu essa vastidão. Suas próximas palavras vieram
naturalmente.
“Estou voltando para a vila.”
“O qu—” veio a resposta estrangulada de Evan.
Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Elsa desembrulhou
o cobertor que usava e enfiou nas mãos dele.
“Eu sinto muito, Sr. Lawrence.”
Enquanto ele não tinha certeza do que exatamente ela estava se
desculpando, parecia uma declaração apropriada.
Lawrence assentiu, sem dizer nada.
A aceitação de Evan, no entanto, seria mais difícil.
“Qual é o ponto em voltar para a vila? Mesmo se você fizer isso,
já é tarde demais para...”
“E ainda assim eu devo.”
“Por quê?!”
Evan deu um passo na direção dela, mas Elsa não se mexeu. “Eu
sou responsável pela igreja. Não posso abandonar os aldeões.”
Evan cambaleou como se tivesse sido fisicamente atingido. Ele
cambaleou para trás.
“Evan — seja um bom mercador, tudo bem?”
Elsa finalmente o empurrou para longe, depois correu na direção
da vila.
CAPÍTULO V ⊰ 222 ⊱

Correndo no ritmo de uma mulher e descansando, ela


provavelmente alcançaria Tereo à noite.
Embora ele não quisesse pensar sobre isso, Lawrence sabia muito
bem o que a esperava quando ela chegasse lá.
“Sr. L-Lawrence.” Evan parecia arrasado e à beira das lágrimas.
Lawrence ficou surpreso com as palavras de Elsa. “Parece que ela
quer que você seja um bom mercador.”
“…!” O rosto de Evan se contorceu em fúria; ele parecia pronto
para avançar contra Lawrence.
No entanto, Lawrence continuou friamente. “Um mercador deve
ser capaz de pesar logicamente o ganho contra perda. Você pode fazer
isso?”
Evan parecia uma criança vendo uma ilusão de ótica pela primeira
vez. Ele parou de andar.
“Não importa o quão decidida ela possa estar, não importa o quão
firme seja sua resolução, isso não significa que ela nunca esteja incerta.”
Lawrence encolheu os ombros e continuou. “Mercadores devem pesar
o ganho contra perda. Você quer ser um mercador, não é?”
Evan cerrou os dentes, fechando os olhos e apertando os punhos.
Ele jogou os suprimentos que levava de lado, depois se virou e
correu.
Lawrence sentiu Holo se aproximando por trás. Ele virou. “Então,
o que vamos,” ele começou, mas não conseguiu terminar.
Seu corpo foi derrubado no chão tão facilmente quanto uma
árvore ressequida pela enorme pata de Holo.
“Eu estava errada?”
A pata de Holo pressionou contra o peito de Lawrence, duas de
suas garras fazendo ruídos enquanto perfuravam a terra ao lado da
cabeça de Lawrence.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 223 ⊱

“Eu estava errada?” Ela perguntou novamente, seus olhos


queimando em vermelho, seus dentes arreganhados e próximos.
Lawrence sentiu se afundar no solo macio.
Se ela colocasse um pouco mais de peso, esmagaria sua caixa
torácica.
Ainda assim, ele conseguiu forçar algumas palavras. “Quem...
quem pode julgar uma coisa dessas?”
Holo sacudiu sua grande cabeça. “Eu não posso. Ainda assim, eu...
eu...”
“Se você lutar pela sua casa, mesmo contra o impossível...”
Lawrence colocou a mão na pata de Holo. “...Pelo menos você não
terá arrependimentos.”
Lawrence sentiu Holo se arrepiar.
Ele ia ser esmagado.
Assim que o medo estava prestes a superar o pensamento racional,
a forma de Holo desapareceu.
Se alguém dissesse a Lawrence que ele estava sonhando, ele teria
acreditado na pessoa.
A pequena mão de Holo agarrou seu pescoço suavemente, seu
corpo leve sobre o dele.
“Minhas garras podem esmagar pedregulhos. Eu posso derrotar
qualquer número de humanos.”
“Eu sei bem disso.”
“Ninguém em Yoitsu me supera. Nenhum humano, lobo, veado
ou javali.”
“E um urso?” Lawrence não se referia a um urso comum.
“Eu poderia ter me igualado o Urso Caçador de Lua?” Não foi a
tristeza que a impediu de chorar, mas a raiva.
Lawrence não poupou seus sentimentos. “Certamente não.”
CAPÍTULO V ⊰ 224 ⊱

Naquele momento, Holo ergueu a mão direita, que


anteriormente continha a garganta de Lawrence. “Pelo menos teria
sido uma grande batalha. Pelo menos a história de Yoitsu poderia ter
chegado a três páginas nos livros do padre Franz.”
Sua mão caiu fracamente contra o peito de Lawrence.
“Eu não sei se isso é verdade. Ainda assim, tudo isso é hipotético.
Estou errado?” Disse Lawrence.
“...Não,” disse Holo, batendo no peito de leve novamente.
“Se pouco depois de deixar Yoitsu você soubesse que o Urso
Caçador da Lua estava chegando, não tenho dúvidas de que teria
corrido de volta. Mas isso não foi o que aconteceu. Não sabemos
quanto tempo se passou entre quando você foi embora e o desastre
chegar a Yoitsu, mas de qualquer forma, aconteceu enquanto você não
podia saber disso.”
Holo tinha visto os pensamentos de Elsa.
Ela deveria abandonar sua vila? ela deveria lutar apesar de ser
inútil, apesar de não haver chance de vitória? Essa foi a escolha que Elsa
enfrentou.
Holo nunca tivera essa escolha — no momento em que soube do
destino de sua aldeia, tudo já estava terminado.
O que Holo teria sentido vendo Elsa assim?
Ela teria desejado que Elsa escolhesse o caminho do menor
arrependimento.
Mas ao fazê-lo, Elsa fez com que Holo visse com perfeita clareza
o caminho que ela mesma nunca conseguira alcançar.
“Não posso abandonar os aldeões,” dissera Elsa — mas para Holo,
essas palavras atravessaram o tempo e o espaço, acusando-a.
Foi então que Lawrence a alcançou. “O fato de não estar chorando
mostra que você mesmo entende como é tolo se sentir assim.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 225 ⊱
CAPÍTULO V ⊰ 226 ⊱

“Eu—!” Holo mostrou os dentes afiados, os olhos vermelhos de


raiva.
Mas Lawrence estava despreocupado enquanto deixava Holo
sentada em seu peito. Ele afastou um pouco do musgo que restou de
quando ela o empurrou.
“Eu sei disso,” ela terminou.
Lawrence suspirou e se apoiou nos cotovelos.
Ainda em cima dele, Holo desviou o olhar como uma criança
repreendida.
Ela deslizou rigidamente para um lado, movendo as pernas para
sentar na perna direita de Lawrence, finalmente oferecendo sua mão.
Lawrence pegou-a e se sentou, puxando o corpo de onde estava
meio afundado na terra macia. Ele suspirou, mostrando fadiga em seu
rosto.
“Que desculpa você daria a Elsa e Evan se eles voltassem?”
A ainda despida Holo se afastou de Lawrence. “O que você quer
dizer com que desculpa?”
“Por me matar.”
Holo deu um raro olhar de genuíno constrangimento, depois
franziu o nariz. “Se eu fosse uma mulher humana, você não teria
motivos para reclamar se eu te matar.”
“Eu não teria capacidade de reclamar, estaria morto.”
Holo parecia tão fria que Lawrence queria segurá-la simplesmente
para aquecê-la. Ela olhou para o rosto dele e esperou que ele
continuasse.
“O que você deseja fazer?” Ele perguntou.
“Isso é o que eu deveria perguntar a você.”
A rápida resposta de Holo pegou-o de surpresa. Ele olhou para o
céu.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 227 ⊱

Mesmo agora, Holo ainda era Holo.


Ela sempre estaria pegando as rédeas.
Lawrence abraçou-a. “Apenas espere,” ele disse como
recompensa por aquela rédea sempre presente.
Ela se mexeu levemente em seu abraço. “Não podemos fazer algo
por eles?” ela perguntou, obviamente referindo-se a Elsa, Evan e a vila
de Tereo. “Yoitsu não pode mais ser salva, mas esta vila ainda pode.”
“Sou um simples mercador viajante.”
A cauda de Holo balançou audivelmente. “Eu não sou uma simples
loba.”
Ela estava oferecendo sua cooperação completa.
No entanto, mesmo com isso, o que poderia ser feito?
Ela não podia simplesmente matar todas as pessoas de quem não
gostava.
“O problema é o trigo venenoso, certo? Se estiver misturado com
o trigo bom, ainda posso dizer a diferença.”
“Eu pensei nisso. Eu não acho que isso possa nos ajudar.
“Então não há como fazê-los acreditar.”
“Com exceção de um milagre, eu acho que não.” Lawrence fez
uma pausa, então disse de novo, “Exceto por um milagre...”
“O que foi?”
Os olhos de Lawrence se moviam para lá e para cá, tentando
conectar os pensamentos que ocupavam sua mente.
Ele havia considerado que Holo seria capaz de distinguir o veneno
do trigo do bom. O que o impediu foi como convencer os outros da
pureza do trigo — ou da falta dele.
Em algum lugar, ele ouvira falar de uma história semelhante.
Mas onde?
CAPÍTULO V ⊰ 228 ⊱

Ele folheou suas memórias rapidamente.


O que finalmente surgiu foi uma imagem de Elsa e sua igreja.
“Isso mesmo… um milagre…”
“Mm.”
“Qual você acha que é o melhor caminho para a Igreja aumentar
seus seguidores?”
Holo fez uma careta como se tivesse sido ridicularizada.
“Produzindo um milagre?”
“Exatamente. Mas o fruto de um milagre é sempre metade da
semente. Eles não são o que parecem.”
Agora era Holo cujo olhar corria de um lado para o outro
enquanto ela perseguia seus próprios pensamentos frenéticos.
“Então seria preciso ser algo que os olhos possam ver...” ela falou
pensativa. “De fato. Ei — me dê meu trigo.”
Lawrence apontou para as malas que ele havia largado quando
Holo o empurrou.
“Então, estenda a mão e o pegue para mim.” Evidentemente, ela
não tinha intenção de sair do seu colo.
Percebendo que as brincadeiras seriam inúteis, Lawrence se
contorceu como lhe disseram, estendendo a mão e agarrando o saco
em questão, depois puxando-o para mais perto para extrair a bolsa de
trigo de dentro — a bolsa de trigo em que Holo morava.
“Aqui,” disse Lawrence.
“Mm. Agora observe de perto.”
Ela pegou um grão de trigo da bolsa e, colocando-o na palma da
mão, respirou fundo.
O momento seguinte —
“O qu—!”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 229 ⊱

Diante dos olhos de Lawrence, o grão estremeceu


minuciosamente, depois estalou, enviando um broto verde para cima,
que se estendeu até um galho branco, que se afastou para o céu, com
as folhas verdes se expandindo para fora.
Logo, uma nova espiga de trigo apareceu, cedendo à medida que
amadurecia e o talo de trigo uma vez verde se tornava marrom
dourado.
O processo demorou apenas um instante.
“Isso é o que eu posso fazer, e não posso fazer vários ao mesmo
tempo. E também —” Holo segurava o talo de trigo que ela cultivou,
fazendo cócegas no nariz de Lawrence com o topo da espiga de trigo
— “como você pode ver, esse milagre também tem sementes dentro
dele.”
“Se eu fosse rir, dificilmente pareceria natural.”
Holo franziu a testa e enfiou o talo em Lawrence. “Bem? Isso é
tudo que posso fazer que é visível aos olhos. Bem, isso e assumir minha
forma de lobo.”
“Não, isso será o suficiente,” disse Lawrence. Ele pegou o trigo da
mão de Holo e continuou. “Tudo o que resta é ver se Elsa vai aceitar
esse truque. Além disso —”
“Tem mais?”
Lawrence assentiu. “Mesmo assim...” ele murmurou, balançando
a cabeça. “Será hora de mostrar minha habilidade como mercador.”
Mesmo mostrando, sem sombra de dúvida, qual do trigo
devolvido por Enberch era venenoso e o que era seguro não livraria
instantaneamente a Tereo do perigo que enfrentava.
Pela estimativa de Sem, os fundos que deviam à Tereo chegariam
a cerca de setenta limar. Sem abordar esse déficit, os aldeões ainda
poderiam ser devorados por Enberch.
Mesmo que Enberch tivesse envenenado o trigo para tomar o
controle de Tereo, mesmo que o povo da cidade reconhecesse o
CAPÍTULO V ⊰ 230 ⊱

milagre de Holo, e mesmo que aceitassem seu julgamento sobre o trigo


e o venenoso, ainda assim não comprariam o trigo que devolveram.
Isso significava que o trigo ainda precisaria ser transformado em
dinheiro de alguma forma.
Se chegasse a esse ponto, isso caía dentro do alcance de um
mercador.
E Lawrence era um mercador.
“Certo. Vamos voltar,” disse Lawrence.
“Hmph. E aqui estou eu sentada, congelando minha cauda.”
Holo se levantou, bloqueando a visão de Lawrence com um rápido
movimento de sua cauda — e naquele instante ela voltou a ser um
lobo.
“Você parece desapontado,” disse ela com um sorriso de dentes
expostos.
Lawrence encolheu os ombros. “Você parece feliz.”
Eles alcançaram Elsa e Evan muito rapidamente.
Era meio dia quando o grupo chegou a Tereo.

Elsa foi inesperadamente rápida em aceitar a proposta de


Lawrence.
Talvez ela tivesse entendido que sem um plano, sua determinação
sozinha não seria suficiente para salvar a aldeia.
Mesmo um dia antes, ela teria sido incapaz de tomar tal decisão.
“Eu ainda acredito em meu Deus — o Deus que é supremo entre
os deuses e criador de tudo,” ela disse com firmeza, diante da forma
de lobo de Holo — uma forma que ela tinha visto pela primeira vez
apenas algumas horas antes.
Ela não demonstrou medo diante de um ser que poderia engoli-la
em uma mordida ou rasgá-la em pedaços com uma onda de sua pata.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 231 ⊱

Holo olhou para Elsa sem palavras, mostrando suas fileiras de


dentes afiados.
Evan engoliu em seco e olhou, mas Holo conhecia o mundo bem
o suficiente para entender que ela não estava no auge.
Ela logo fechou suas mandíbulas terríveis e se virou indignada.
“Agora precisamos determinar como mostraremos isso aos
aldeões.”
“Você tem alguma ideia?”
Eles estavam reunidos no pico de uma colina perto de Tereo,
perto do moinho de Evan. Holo ficou de vigia.
“Não importa o produto, comprá-lo na fonte produz o maior
ganho,” disse Lawrence.
“Então, uma vez que a aldeia tenha sido encurralada...?”
Perguntou Evan.
Lawrence assentiu.
Evan continuou. “Com base no que vimos esta manhã, parece que
o Bispo Van também veio.”
“Bispo Van, eh?”
A chegada do bispo significava que Enberch planejava encurralar
Tereo tanto financeiramente quanto religiosamente, mas também
significava que poderia haver uma oportunidade de reverter a situação
— uma situação que no início da manhã parecia totalmente sem
esperança.
Na verdade, era ainda melhor se o líder da Igreja de Enberch
estivesse presente.
Ninguém era mais qualificado para testemunhar um milagre do
que o Bispo Van, afinal de contas.
“O grupo de Enberch trouxe lanceiros com eles — eles não terão
paciência com quaisquer objeções de Tereo. Eu duvido muito que as
negociações aconteçam de maneira civilizada,” disse Lawrence.
CAPÍTULO V ⊰ 232 ⊱

“Eu também não acho que o Ancião vai incitar os aldeões a pegar
em armas,” disse Elsa.
“Não que os aldeões tivessem coragem suficiente para fazer isso
de qualquer forma,” acrescentou Evan. Sua crítica não foi imprecisa.
Dado tudo isso, o melhor momento para Lawrence e companhia
aparecer era claro.
“Então devemos entrar depois que Sem se curvar às exigências de
Enberch,” disse Elsa.
“O milagre vai acontecer como eu acabei de explicar,” disse
Lawrence.
Elsa assentiu, olhando para Evan. “Evan, você vai ficar bem?”
Ela se referiu à tarefa que havia ficado com ele.
Mais do que qualquer outra pessoa, sua vida estava em risco.
E mais do que qualquer outro, ele tinha que confiar em Holo.
Ele olhou para Holo. “Ora, não é nada — se eu tivesse que comer
o trigo envenenado, você tem que me matar antes que eu morra do
veneno.” Os dedos dele tremeram um pouco.
Sem dúvidas ele disse isso para parecer forte diante de Elsa, mas
Holo não o culpou.
“Eu vou engolir você em uma única mordida. Não vai doer nem um pouco,”
ela respondeu alegremente.
“Então, uma vez que tenhamos produzido esse milagre,
deixaremos os negócios para você, senhor Lawrence,” disse Elsa.
“Obviamente, esperamos que eles simplesmente levem o trigo de
volta ao local, mas sim, eu vou lidar com isso.”
Elsa assentiu e juntou as mãos. “Que a bênção de Deus vá
conosco.”
Holo então falou baixinho.
“Eles chegaram.”
o total, dezesseis carroças puxadas por cavalos entraram
em Tereo, cada uma carregando três ou quatro grandes
sacos de estopa.
Havia vinte e três lanceiros, juntamente com homens
equipados com escudos e manoplas que se pareciam muito com
soldados de infantaria que acompanhavam cavaleiros.
Havia quatro clérigos a pé perto de um vagão. Era impossível
saber quantos estavam dentro de sua carruagem coberta, embora Elsa
dissesse que provavelmente continha o Bispo Van e seu assistente.
Também viajando com a procissão estava um homem
rechonchudo que parecia ser um mercador. “Ah,” Lawrence
murmurou para si mesmo ao reconhecê-lo.
CAPÍTULO VI ⊰ 234 ⊱

Riendott foi o mais bem-sucedido comerciante de farinha em


Enberch. Não foi uma surpresa ele ser o comprador do trigo de Tereo.
Se assim fosse, então era fácil apontar para Tereo como a fonte do trigo
quando alguém morresse depois de comer pão.
Se Riendott era realmente o homem no centro desse plano, ele
havia propositalmente evitado comprar o trigo de Lawrence quando
Lawrence passou por Enberch.
Na verdade, esse poderia ter sido o momento exato em que
Riendott decidira colocar seu plano em ação.
A escuridão estava um passo à frente e ninguém poderia dizer
onde a malícia humana poderia estar escondida.
Lawrence suspirou devagar.
Ele ficou deitado no alto da colina, observando os procedimentos.
Holo reassumiu sua forma humana e rapidamente colocou as roupas de
volta.
Então os quatro percorreram o longo caminho ao redor da vila até
a cova de Truyeo.
Embora fosse possível que Iima tivesse trancado a porta do porão,
também era possível que ela simplesmente a tivesse fechado,
deixando-a destrancada.
Eles estavam apostando no último.
“É isso que você quis dizer com as bênçãos de Deus?” Perguntou
Holo.
Eles venceram a aposta.
“Tem alguém lá dentro?”
“Não. Está deserta,” disse Holo.
Desde que Elsa e Evan haviam escapado, os aldeões não tinham
mais negócios com a igreja, que estava vazia.
Lawrence se encostou no pedestal. A estátua da Santa Madre
tombou e caiu no chão com um baque. O som lhe deu medo, mas foi
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 235 ⊱

seguido apenas pelo silêncio. Ele deu um empurrão firme ao pedestal.


Evan escorregou pela abertura que se abriu e levantou a porta
devidamente pelo lado de fora.
“Certo, agora... Sim, vamos precisar de uma foice e um cálice,”
disse Lawrence.
Essas eram as ferramentas necessárias para o plano que o grupo
estava prestes a executar.
Agora fora do porão, Elsa deu um aceno rápido e correu com Evan
a reboque.
Lawrence deu a Holo, que permaneceu no porão, um pequeno
sorriso. “Se tudo correr bem, você terá todo o tempo que quiser para
ler.”
Holo pareceu desistir e finalmente subiu os degraus do porão.
“Então... como está lá fora?”
“Felizmente a janela não está quebrada. Nós poderemos ver
claramente.”
Assim que Lawrence e companhia saíram, Iima encontrou uma
oportunidade para abrir a porta da frente.
A barra que estava travada na porta bem fechada agora se apoiava
contra a parede, intacta.
Lawrence espreitou por uma fresta da janela e viu que a procissão
já chegara à praça da aldeia, onde um homem vestido de clérigo de alta
patente — com certeza o Bispo Van — e Riendott, o comerciante de
farinha, confrontavam o Ancião.
“Sr. Lawrence,” disse Elsa. Ela e Evan se aproximaram por trás o
mais silenciosamente que podiam.
Eles trouxeram um cálice que, mesmo nos seus melhores dias, não
era feito de prata pura, junto com uma foice enferrujada.
Mas, para demonstrar um milagre, quanto mais antigos e
delicados os instrumentos, melhor.
CAPÍTULO VI ⊰ 236 ⊱

“Muito bom. Agora apenas esperamos pelo momento certo.”


Elsa e Evan nervosamente engoliram em seco e assentiram.
Lawrence não conseguia ouvir o que os homens estavam dizendo,
mas, considerando os gestos frenéticos de Sem, parecia que ele estava
desesperadamente tentando explicar alguma coisa para o Bispo Van.
Sem ocasionalmente apontava para a igreja, fazendo com que
todos reunidos na praça olhassem em sua direção, o que Lawrence
achou desesperador.
Mas ninguém se aproximou da igreja já que eles pareciam assumir
que estava ela completamente vazia.
O Bispo Van respondeu a Sem calmamente, ocasionalmente
parando para consultar o idoso padre assistente ao seu lado.
Parecia que ele considerava que os sentimentos do Ancião e dos
aldeões ali reunidos não eram mais importantes do que as asas de uma
mosca que zumbia em torno de sua cabeça.
Quando o Bispo Van pegou algumas folhas de pergaminho, Sem
ficou aturdido em silêncio.
“Você pode ouvir o que eles estão dizendo?” Lawrence perguntou
a Holo.
“Eles estão exigindo dinheiro,” foi a resposta.
Nesse momento, um grande clamor surgiu — Lawrence viu um
lanceiro subjugando um aldeão que havia acusado o processo.
Vendo isso, vários outros aldeões atacaram, embora o resultado
não tenha sido diferente.
Embora as roupas não fossem uniformes e parecessem pouco mais
do que uma milícia improvisada, os lanceiros pareciam ter alguma
disciplina. Eles formavam um círculo irregular, de prontidão com
lanças na mão.
“Mm. Sem parou de resistir. Ele está começando a ceder.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 237 ⊱

Se ele entregasse um centímetro, o Bispo Van e Riendott


tomariam uma milha.
O Bispo Van iria encurralar Sem até que nada pudesse ajudá-lo.
“Quem é aquele?”
Outro aldeão se juntou à discussão. Ele trocou algumas palavras
com Riendott, então logo ficou furioso e teve que ser contido por Sem.
Evan respondeu à pergunta de Lawrence. “Esse é o padeiro. Ele é
o que mais fala mal de mim.”
Riendott, assim como o Bispo Van, tirou uma folha de
pergaminho do bolso e a segurou com orgulho, fazendo os aldeões se
calarem.
Ele parecia muito feliz por tê-los silenciado.
“Acho que o padre Franz era simplesmente bom demais,” disse
Lawrence vagamente, o que provocou um leve aceno de cabeça de
Elsa.
Finalmente Sem caiu de joelhos na pedra. Os aldeões que estavam
olhando para o Bispo Van agora correram para ajudá-lo.
Observando isso, Lawrence ouviu um punho sendo cerrado.
Quando ele olhou, viu que era Elsa.
Embora seu rosto estivesse calmo, seus sentimentos eram
evidentes.
Nenhum aldeão jamais estendeu a mão para ajudá-la.
“Eles estão acabados. Uma decisão final foi dada,” disse Holo
repentinamente. Lawrence soube imediatamente o que ela queria
dizer.
De repente, Sem e os outros aldeões olharam para o prédio em
frente à igreja — a casa de Sem.
Lawrence só precisava olhar para as costas deles para saber o que
estavam pensando.
CAPÍTULO VI ⊰ 238 ⊱

Em seguida, dois guardas subiram no alto da grande pedra de


reunião.
Nas mãos, eles seguravam o ídolo de Truyeo que Lawrence tinha
visto na casa de Sem.
“Se você apenas queimar essa abominação e abraçar a verdadeira
fé, tudo será resolvido. Se não, Tereo será culpado de heresia,” disse
Holo — sem dúvida repetindo as palavras do Bispo Van.
Sem e o resto dos aldeões olharam para a igreja, como se
pudessem ouvi-la falar.
“Humanos — sempre dependendo dos outros em momentos de
necessidade,” disse Holo com um suspiro, recuando da janela. “Ainda
assim, eu também dependi de humanos na minha época. Devemos?”
O rosto de Evan deixou claro que ele mal conseguia tolerar o
egoísmo dos aldeões.
Mas ele engoliu a raiva e olhou para Elsa.
Elsa ficou de pé rapidamente. “Como serva da justiça, não posso
abandonar a aldeia,” ela falou brevemente.
Lawrence assentiu. “Vamos lá.”
Com isso, os quatro abriram a porta da frente da igreja.

Aparentemente, era sim possível se fazer silêncio.


Foi o que Lawrence pensou sobre essa situação em particular.
Ele nunca esqueceria o olhar implacável que Sem lhe deu quando
estava diante do totem de pele de cobra recheado de Truyeo.
“Elsa!” Foi Iima quem quebrou o silêncio.
Iima não estava de pé na pedra da reunião — talvez porque tivesse
ajudado Elsa — mas, em vez disso, observava os procedimentos com
o restante dos aldeões. Despreocupada com os olhares questionadores,
ela correu em direção às pessoas que tentou proteger.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 239 ⊱

“Elsa, porque —”
“Sinto muito, Sra. Iima.”
Iima se virou para Lawrence, sem entender o rosto.
Antes que Lawrence pudesse responder, o Bispo Van falou de
onde estava na pedra. “Deus, o que temos aqui? Ninguém menos que
a senhorita Elsa, a sucessora do padre Franz!”
“Já faz algum tempo, Bispo Van,” disse Elsa.
“Eu fui levada a acreditar que você tinha escapado de Tereo. O
peso do seu pecado foi demais para a sua consciência?”
“Deus sempre perdoa.”
O Bispo Van pareceu momentaneamente intimidado pela resposta
firme de Elsa, mas ele se recompôs rapidamente e sussurrou algo no
ouvido do padre que estava ao lado dele.
O padre limpou a garganta, depois pegou uma folha de
pergaminho e, segurando-a, leu em voz alta.
“Nós, a Igreja Enberch de São Rio, acreditamos e declaramos que
a aldeia de Tereo orou a divindades pagãs e, além disso, acrescentou o
licor de Khepas ao seu trigo para prejudicar os fiéis da única fé
verdadeira. Enquanto os fiéis da única fé verdadeira sofrem e morrem,
nem um único cidadão de Tereo adoeceu. Como eles comem do
mesmo trigo, isso não pode ser mais que uma prova de que a aldeia é
protegida pelas divindades do mal que eles adoram.”
Quando o padre terminou seu pronunciamento, o Bispo Van
continuou. “Como estipulado no contrato assinado com o Padre Franz,
primeiro devolveremos este trigo. Além disso, restabeleceremos uma
igreja santa e justa. Quanto ao falso servo de Deus, que usa a pele de
um cordeiro, mas por baixo é uma serpente mentirosa, ela enfrentará
o julgamento do Nosso Senhor.”
Quando ele terminou, os soldados com escudos desembainharam
as espadas e as apontaram para Lawrence e companhia.
CAPÍTULO VI ⊰ 240 ⊱

Mas Elsa não deu nem um passo atrás. “Isso não será necessário,”
disse ela friamente. “É verdade que minha fé às vezes foi mal colocada.
Mas o Deus todo-poderoso me mostrou o verdadeiro caminho. Eu
conheci um dos seus divinos mensageiros!”
O Bispo Van estremeceu, depois olhou para o padre ao seu lado,
com a testa franzida.
O padre disse algo para ele em voz baixa e breve.
Van levantou uma mão. “O fato de você afirmar tão facilmente ter
encontrado um mensageiro divino é meramente prova de sua heresia!
Se eu estiver errado, traga a prova diante de mim!”
O peixe mordeu a isca.
Elsa olhou primeiro para Evan, depois para Holo.
O moleiro e a garota lupina assentiram.
“Se você tiver dúvidas, vamos te mostrar!”
Evan e Holo dirigiram-se diretamente para os vagões cheios de
trigo, mas, quando se aproximaram, os lanceiros prepararam-se para
afastá-los.
Van deu um riso irônico. “Deixe-os passar!” Ele disse.
Evan segurou na mão um grão de trigo que ele havia recebido de
Holo.
Elsa observou os dois irem e se dirigiu para a pedra de reunião,
ignorando os protestos de Iima.
“A adoração de Truyeo, o deus serpente, é realmente um erro,”
disse ela.
Os aldeões que estavam no topo da pedra de reunião olharam para
Elsa como se ela os tivesse forçado a engolir uma pedra.
“No entanto, esse erro não é em si fundamental.”
Ela subiu os degraus que levavam à pedra, passou direto pelo Bispo
Van e se ajoelhou diante do totem de Truyeo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 241 ⊱

Na igreja, ela não estava disposta a mentir mesmo depois de ter


sido preso por Lawrence e Holo.
Ela ainda era aquela garota, uma clériga dos pés à cabeça.
Então, por que ela não denunciou o totem da cobra como um falso
ídolo, e por que ela estava ajoelhada diante dele?
“Acredito que Truyeo em si é um dos milagres de Deus.”
Os olhos de Sem se arregalaram e os aldeões ficaram visivelmente
perturbados.
As palavras de Elsa não negavam nem reconheciam Truyeo.
Mas Van sorriu. “As palavras dos homens não acompanham a
verdade. Você pode provar que suas palavras não foram sussurradas
em seus ouvidos por um demônio?” Ele zombou.
“O mensageiro divino prometeu revelar um sinal que guiará os
cordeiros rebeldes de volta ao caminho verdadeiro.”
Holo e Evan olharam para Elsa. Era o sinal de que suas preparações
foram feitas.
Embora soubesse que tudo estava bem, Lawrence estava
consciente do próprio nervosismo.
Elsa também deve ter sentido a pressão esmagadora de todos
aqueles olhares — dos aldeões e do Bispo Van.
Mas sua voz ainda era clara e forte.
Ela havia herdado os ensinamentos do padre Franz e confiado no
poder sobrenatural de Holo, que lhe deu uma nova fé na justiça do
Deus que criou o mundo.
“Hmph, você pretende exibir o poder de Deus...” começou Van,
mas sua voz foi abafada pelos gritos de medo e surpresa que surgiram
das pessoas que rodeavam os vagões.
“O-o trigo, está —!”
A multidão gritou mais alto.
CAPÍTULO VI ⊰ 242 ⊱

De dentro dos sacos de trigo nos vagões, as espigas de trigo


começaram a brotar e a crescer em direção ao céu.
Sem e o resto olhavam, seus rostos tão inexpressivos quanto
bonecas malfeitas, e Van ficou atordoado pelo milagre diante dele.
Enquanto os talos de trigo continuavam a crescer, os gritos do
povo ecoavam por toda a praça, às vezes soando quase desanimados.
“É Deus! Deus criou um milagre!” Os gritos se espalharam como
fogo e, no final, até mesmo o clérigo se curvou.
Apenas o Bispo Van permaneceu imóvel enquanto observava a
visão.
Outro grito surgiu quando um dos caules verdes de trigo
amadureceu.
Do trigo que brotou nos dezesseis vagões, apenas um trigo de
carroça era diferente. Em vez de amadurecer, ela murchava e se
transformava em pó.
Todos que viram sabiam exatamente o que isso significava.
A atenção de todos estava concentrada inteiramente no trigo,
exceto Lawrence.
Ele olhou para o rosto pálido de Riendott e para o Bispo Van.
Os responsáveis por envenenar o trigo dificilmente poderiam rir
desse milagre.
“Deus nos mostrou o caminho correto,” disse Elsa, focando o
olhar da multidão em si mesma.
“Isso... não pode ser... é um absurdo...!”
“Bispo Van,” disse Elsa, fria e racional. “Eu gostaria que você
confirmasse que este não é o trabalho de um demônio.”
“C-como—”
“Use isso,” disse Elsa, pegando um cálice de metal sem brilho e
entregando-o para Van.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 243 ⊱

“Por favor, abençoe este cálice. Depois de ter feito isso, Evan, o
moleiro, provará a verdade dos ensinamentos de Deus.”
O Bispo Van fez o que lhe foi pedido, pegando o cálice e falando
apressadamente. “O que exatamente você pretende fazer com isso?”
“Até os pobres podem ser batizados em Deus. Eu quero que você,
Bispo Van, purifique este cálice.”
Van ficou impressionado e incapaz de protestar. Ele deu ao padre
assistente um olhar de angústia. O padre, por sua vez, ordenou que os
outros clérigos buscassem um pouco de água.
Eles logo retornaram carregando água, que a entregaram à Van.
Qualquer água derramada por um clérigo da Igreja se tornava
santa e pura.
O cálice, agora cheio de água benta, brilhava nas mãos do Bispo
Van.
“Leve a água agora para o moleiro,” disse Elsa. Ela se absteve de
fazer isso sozinha, para ter certeza de que ele não encontraria nenhuma
falha.
Desta forma, a pretensa justiça do clero seria transferida para Evan
no próprio ato de lhe dar a água.
“Observe de perto,” disse Elsa.
Ela se virou para Evan e assentiu. Ele acenou de volta com
firmeza.
Evan pegou uma pequena faca e subiu em cima de cada um dos
vagões, abrindo um saco de estope em cada, tirando um pouco de
farinha do saco e colocando-o no cálice.
Era óbvio para todos o que ele planejava fazer.
Todos os olhos estavam no jovem moedor de trigo. Os aldeões
nervosos engolindo em seco eram quase audíveis.
CAPÍTULO VI ⊰ 244 ⊱

Depois de tirar farinha de quinze das dezesseis carroças, Evan


pegou o copo, agora cheio de uma mistura de farinha e água, e
levantou-o bem alto.
Como se puxados por cordas, os olhos dos clérigos seguiam o
cálice. Eles murmuraram algo — talvez suas últimas orações a Deus.
Evan abaixou lentamente o cálice, espiando seu conteúdo.
Ele tinha visto a verdadeira forma de Holo e sabia que ela não era
um ser comum. Ele tinha visto hastes de trigo completar o crescimento
de um ano em apenas alguns momentos.
Evan olhou de repente para longe do cálice.
Seu olhar caiu sobre ninguém menos que Elsa.
No instante seguinte, ele bebeu o conteúdo do cálice em um
grande gole.
“Esta é a verdade do milagre que o mensageiro de Deus nos
revelou.”
Evan pulou e empurrou o cálice de volta para as mãos dos clérigos,
a farinha ainda grudada nos cantos da boca. O clero então derramou
água fresca para purificar o cálice novamente.
Em seguida, Evan subiu no primeiro vagão de onde não havia
tomado farinha e retirou uma pequena quantidade de um dos sacos de
estope, colocando-o no cálice.
Elsa se virou para o Bispo, que agora tremia. “Se este é um falso
milagre, então certamente você será capaz de demonstrar um
verdadeiro.”
Se alguém mentiu e alegou que o trigo era envenenado, a única
maneira de provar se era ou não seria comendo todo o trigo.
No entanto, isso era em termos puramente lógicos, e os milagres
iam além do alcance da lógica.
Apenas um milagre poderia se opor a outro milagre.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 245 ⊱

Para provar que isso não era um falso milagre criado por um
demônio, o bispo teria que produzir um verdadeiro milagre de Deus.
“Bispo Van.”
Elsa pegou o cálice de Evan e o estendeu para Van.
Riendott caiu para trás.
Van estava congelado, incapaz de se mover.
Ele não podia aceitar o cálice diante dele.
“M-muito bem. Isto é um milagre. Um verdadeiro milagre.”
“E a igreja desta vila?” Veio a rápida demanda de Elsa.
Van não tinha nem as palavras nem o milagre que ele precisava
para responder. “É... legítima,” ele rosnou. “Uma igreja legítima.”
“Vou pedir que você escreva isso,” disse Elsa.
Ela finalmente mostrou um sorriso quando se dirigiu ao Ancião e
aos aldeões e, reverentemente, segurou o totem de Truyeo.
O Bispo Van não podia reclamar nem exigir que os aldeões
parassem de adorar a Truyeo, uma condição que eles acolheram de
bom grado.
Elsa se apresentou de maneira admirável.
Embora, sob a fina camada de coragem que a deixara confrontar
o Bispo Van sem hesitar, a incerteza e o medo certamente rodopiavam
dentro dela.
Ela respirou profundamente, limpou os cantos dos olhos, e
inclinou a cabeça, as mãos entrelaçadas em oração.
Embora fosse impossível saber se ela estava orando a Deus ou ao
padre Franz, qualquer um teria elogiado suas ações.
Holo veio correndo para o lado de Lawrence. Ele a observava
como um espectador.
CAPÍTULO VI ⊰ 246 ⊱

“O que você me diz? Impressionante, não?” perguntou Holo


orgulhosamente, contrastando com Elsa, que permanecia humilde
apesar de ter entregado uma surpresa ao Bispo Van.
Mas suas diferenças correspondiam exatamente às diferenças
entre Lawrence e Evan.
Evan empurrou o cálice para as mãos de um dos clérigos antes de
correr para Elsa e abraçá-la com força.
O olhar de Lawrence, junto com os aldeões, foi atraído pela visão.
Holo sentiu seu descontentamento.
“Você parece ter bastante inveja.”
Lawrence viu o desafio no sorriso de Holo quando ela disse isso.
Com medo, ele só podia dar de ombros. “Sim, muita inveja.”
Holo pareceu surpresa com a resposta inesperada.
“Invejo porque eu estava nos bastidores o tempo todo. Elsa e Evan
estavam no palco. Você montou a armadilha.”
Esta foi uma distração eficiente.
Holo suspirou, seu rosto decepcionado. “Ainda assim, a questão
da moeda ainda não foi resolvida. Esse trabalho é seu, não é?”
“Sim. Apesar…”
Lawrence pensou sobre a situação.
As mesas estavam viradas.
O rato conseguira morder o gato. Ele poderia muito bem tentar
sair com um pouco de carne, Lawrence pensou.
Como a cena mudou antes dos seus olhos acompanharem.
Em sua mente, Lawrence elaborou um plano que jamais ousaria
tentar em outra cidade. Isso o fez se sentir um pouco sádico.
“De fato. Acho que vale a pena tentar,” ele falou para si mesmo,
inconscientemente acariciando a barba. Ele ficou ciente do olhar de
Holo.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 247 ⊱

Ela estava olhando para ele, claramente surpresa.


Era raro vê-la genuinamente surpresa. “O que há de errado?” Ele
perguntou.
“Heh... você tem certeza de que não é um lobo?”
A declaração estava tão desconectada de qualquer outra coisa que
ele não podia deixar de parecer estupefato. “Hã?”
Holo riu, mostrando suas presas. “Esse rosto pode ser melhor para
você.”
“...”
Lawrence preferiu parar por aí, preocupado que se continuasse
iria cair em mais uma das armadilhas de Holo. Holo não pressionou o
assunto, evidentemente satisfeita com apenas um pouco de
provocação.
De qualquer forma, a brincadeira habitual deles teria que esperar.
Ainda havia negócios para cuidar e vingança para se fazer.
O Bispo Van e o resto do povo de Enberch estavam descendo da
pedra de reunião, dirigindo-se à casa de Sem para redigir alguns
documentos. Lawrence correu até eles.
“Eles podem ir com Sem resolver questões religiosas, mas você,
Sr. Riendott — você tem assuntos de moeda para tratar,” ele disse.
Riendott parecia um criminoso que não conseguiu escapar da
captura.
O Bispo Van não conhecia Lawrence e estava prestes a exigir saber
quem ele era quando Sem, depois de escutar um breve e sussurrado
comentário de Elsa, falou suavemente com ele.
Um surpreso “ah” foi tudo que o Bispo falou.
Da mesma forma, os aldeões viam Lawrence com suspeita até
ouvirem a explicação de Sem. Suas expressões de surpresa eram
diferentes das de Van, mas acabaram acenando de má vontade.
CAPÍTULO VI ⊰ 248 ⊱

Holo sussurrou no ouvido de Lawrence, “Parece que ele está


disposto a deixar tudo para você.”
Lawrence deixou de ser suspeito de ser o vilão que envenenara o
trigo da vila para o homem responsável por negociar em nome da
mesma.
Permanecendo ali na pedra da reunião, Riendott parecia
dolorosamente consciente do fato de ter usado Lawrence. Ele parecia
estar prestes a chorar.
A pedra ainda estava cercada de aldeões, e até mesmo o pessoal
de Enberch discutia o milagre em tom animado.
Nesse ambiente, as negociações seriam simples.
“Bem, então, Sr. Riendott.”
“Er, sim!” Veio sua resposta rouca. Era difícil dizer se ele estava
deliberadamente tentando provocar simpatia ou não.
Pela maneira como Holo tossiu e olhou para o homem, suas ações
foram provavelmente um ato.
“A Senhorita Elsa e o Ancião da vila me pediram para conduzir
todas as negociações financeiras. Primeiro eu pergunto se todos os
aldeões daqui podem aceitar esses termos.”
“Se o ancião da vila disse isso, não vejo que tenhamos uma
escolha,” disse um aldeão.
O padeiro se aproximou, coçando a cabeça. “Nós sempre
deixamos tudo a ver com moedas para o mais velho.”
Lawrence assentiu. “Então é isso. Vou começar com a maior
demanda. Eu gostaria que você mantivesse o trigo.”
Riendott cuspiu “Isso é absurdo! Eu não poderia!”
“Por quê?”
“A reputação do trigo! Afinal, um homem morreu! A reputação
da minha loja foi danificada!”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 249 ⊱

Considerando tudo o que aconteceu, a história de uma morte


provavelmente também era uma mentira.
Lawrence olhou para Holo. Seus olhos perguntavam o que ele
queria fazer. Sim, o homem morto era uma mentira com toda certeza.
Mas não havia nada a ser ganho em expor. Isso poderia até ser
fatal.
“Além disso — além disso!” Continuou Riendott. “Está escrito no
contrato com o padre Franz que qualquer trigo misturado com o licor
de Khepas seria devolvido!”
Esta era uma afirmação que ele obviamente faria, e os aldeões
dificilmente poderiam discutir este ponto.
Mesmo que suspeitassem que o próprio Riendott tivesse plantado
o veneno no trigo, eles não poderiam provar nada.
“Muito bem, então. Suponha que aceitemos o trigo devolvido.
Qual seria o preço?”
Riendott respirou fundo ao ouvir a concessão de Lawrence, como
se finalmente estivesse quebrando a superfície depois de ter ficado
preso debaixo d'água.
“D-duzentos lim—”
“Isso é um absurdo!” Gritou o padeiro, agarrando Riendott pelo
colarinho. “Esse é o preço que você nos pagou originalmente, seu
desgraçado!”
Era verdade — Riendott já devia ter vendido pelo menos parte do
trigo, então dificilmente poderia exigir a mesma quantia de volta.
Além disso, se essa fosse a quantia que a aldeia realmente devia,
as pessoas ainda precisariam de mais setenta limar.
Lawrence não pôde deixar de admirar o nervo absoluto de
Riendott, citando o preço mais alto possível, mesmo nessas
circunstâncias.
“B-bem, então... C-cento e noventa—”
CAPÍTULO VI ⊰ 250 ⊱

O padeiro apertou ainda mais, mas Lawrence o deteve.


Sua intenção não era, no entanto, salvar Riendott.
“Sr. Riendott, se outro milagre acontecesse, isso seria bastante
desvantajoso para você, não seria?”
Os aldeões não entenderam o verdadeiro significado por trás
dessas palavras, mas graças a Holo vendo através da mentira de
Riendott, Lawrence sabia o que mais preocupava o homem.
O que ele mais temia era que a mentira de Enberch fosse exposta.
O rosto de Riendott parecia o de um porco se afogando. “C-
cento... e... sessenta...”
Em trennis de prata, isso chegava a uma concessão de oitocentas
peças.
O padeiro afrouxou o aperto.
Lawrence observou Riendott tossir; este era provavelmente o
limite de quanto o homem poderia conceder.
Pressionar ainda mais serviria apenas para criar mais
ressentimento.
Afinal, o contrato entre Tereo e Enberch tinha sido anormal para
começo de conversa.
“Nesse caso, vamos liquidar a devolução nessa quantia. Todos os
presentes darão este testemunho.”
Cada aldeão assentiu e Riendott finalmente olhou para cima.
Agora vinha o cerne da questão.
Embora Lawrence tivesse obtido uma concessão significativa,
ainda não era uma quantia que a aldeia pudesse pagar. Para evitar que
toda essa farsa se repetisse, era preciso estabelecer um contrato mais
adequado.
“Aliás, Sr. Riendott,” disse Lawrence.
“S-sim?”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 251 ⊱

“Com relação a este trigo devolvido, presumo que não seria


possível persuadi-lo a recomprá-lo.”
Riendott imediatamente sacudiu a cabeça. Ele arruinaria seus
negócios em tal transação.
“Entendido. No entanto, de acordo com o Ancião, a aldeia não
tem dinheiro suficiente para recomprar o trigo. Mesmo com cento e
sessenta limar, ainda não há o suficiente.
Os aldeões levantaram suas vozes surpresos.
Evidentemente, o mais velho havia escondido essa verdade deles
para evitar pânico.
“Portanto, tenho uma proposta para você,” continuou Lawrence
antes que os moradores pudessem atacar Riendott.
“O-o que você...?”
“É uma coisa simples. Eu pediria que você convencesse o Bispo a
permitir que a aldeia vendesse trigo com o nome dele.”
Riendott pensou muito, obviamente tentando ver o que Lawrence
esperava ganhar em tal acordo.
Porém, Lawrence estava confiante de que ele não descobriria.
“S-se você pretende vender para outro negociante de trigo... é
melhor desistir—"
“Por quê?!” gritou o padeiro, fazendo com que Riendott recuasse
de medo brevemente. Seu olhar deixou claro que isso não era algo sob
seu controle.
“Tem sido uma boa colheita este ano… Há um excedente de
centeio. Não importa onde você olhe, nenhuma cidade pode comprar
a quantia que esta vila está procurando vender. Para preservar a
confiança, já compramos tudo o que podíamos...”
Apesar de seu suposto envenenamento ser uma mentira, o trigo
agora tinha uma história. Os mercadores evitariam se pudessem.
CAPÍTULO VI ⊰ 252 ⊱

“Não, mesmo que seja verdade, não importa,” disse Lawrence.


“Então, você vai nos fazer esse favor?”
Riendott olhou para Lawrence suplicantemente, depois assentiu
devagar.
Ele parecia imediatamente implorar pela graça de Deus e orar para
que um milagre não ocorresse. Foi uma visão estranha.
“S-suponho que isso seria aceitável...”
“Mais uma coisa.”
“O qu—”
“É possível que o pessoal de Enberch tente causar problemas com
o negócio que estou planejando. Eu pediria que você fosse nosso aliado
em tal caso.”
A boca de Riendott se abriu. “Ah, com certeza você não planeja
fazer pão!”
“Quase, mas não. Os padeiros nunca permitiriam uma coisa
dessas, não é?”
Riendott conseguiu acenar apesar do queixo carnudo.
Mesmo assim, era verdade que o plano de Lawrence estava muito
próximo dos negócios de um padeiro.
“Além disso, em relação ao pagamento, ele terá que esperar até
que o negócio esteja indo bem,” disse Lawrence.
“O que você está—”
“Eu certamente não vou forçar nada sobre você. Vou até
acrescentar uma condição que você pode achar atraente.” Lawrence
olhou para os aldeões reunidos e depois para Riendott. “O que você
diria sobre dissolver o contrato do padre Franz — o contrato que exige
que Enberch compre incondicionalmente o trigo de Tereo?”
Os aldeões instantaneamente levantaram suas vozes em protesto.
“Ei, você não pode fazer isso só porque está negociando por nós!” Disse
um deles.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 253 ⊱
CAPÍTULO VI ⊰ 254 ⊱

“Ah, mas enquanto esta condição persistir, será uma fonte de


ressentimento por parte de Enberch, não é assim?”
Era uma pergunta difícil de responder, mas Riendott, o maior
mercador de trigo de Enberch, finalmente assentiu.
“Este nunca foi um contrato normal para começar. Normalmente,
uma vila tem um cidadão que é bom em lidar com o dinheiro e se
encarregar dessas coisas — isso é negócio,” disse Lawrence.
Riendott assentiu enfaticamente, mas logo recuou ante os olhares
furiosos que recebeu.
“O que você diz, Sr. Riendott? Vai concordar?”
“Ei! Você não pode simplesmente...!” Vieram os protestos, mas
Lawrence não recuou.
Ele estava confiante de que seria capaz de obter um grande lucro
aqui.
“Se o sr. Riendott e o Bispo Van estiverem do nosso lado, posso
lhe contar uma maneira de criar uma empresa que proporcionará
lucros maravilhosos,” disse Lawrence com um sorriso.
Sua confiança desarmou os aldeões, que recuaram.
“Que tipo de negócio...?” Perguntou um deles.
Lawrence aproveitou o momento de superioridade e depois
explicou. “Acho que já devo contar. Você precisará cooperar com o
padeiro.”
Um pouco surpreso, o padeiro assentiu.
“Então pode preparar alguns ovos e manteiga? E mel, se tiver.”
Todos os presentes pareciam ao mesmo tempo surpresos e
confusos.
Holo foi a única que falou. “Parece que algo bastante saboroso virá
disso tudo.”
epois de terminar de arrumar as malas de viagem e voltar
para os aposentos da igreja, Lawrence ouviu um som
estridente.
O som, como passos em cima de um caminho de
cascalho, era provavelmente Holo comendo.
Ele não sabia quantas vezes havia dito para ela para não comer
enquanto lia, mas ela nunca escutou.
Elsa também repreendia Evan quando ela o pegava comendo e
largando migalhas por toda parte, sacudindo a cabeça com um suspiro.
Ocasionalmente, durante esses momentos, os olhos de Elsa e
Lawrence se encontravam, e eles compartilhavam um sorriso sofrido.
Fazia três dias que o conflito entre Enberch e Tereo terminou.
EPÍLOGO ⊰ 256 ⊱

Dado o resultado, o acordo que Lawrence fez foi um grande


sucesso.
Tereo acabou devendo a Enberch trinta e sete limar — mais de
setecentos trenni. No entanto, com o acordo que Lawrence havia feito
com Riendott, a Tereo não só pagaria a dívida, como também ganharia
dinheiro com Riendott.
Lawrence usara o trigo da aldeia e a ajuda do padeiro para fazer
biscoitos.
Eles não eram muito diferentes do pão sem fermento, que era
feito com farinha e água, mas sem o fermento que fazia o pão regular
crescer. Adicionando manteiga e ovos a esta mistura de pão sem
fermento, no entanto, criou algo surpreendentemente delicioso.
Biscoitos eram comuns no Sul, mas, por algum motivo, Lawrence
nunca os vira no Norte.
Tendo descoberto durante um jantar com Elsa e Evan que eles não
estavam familiarizados com os diferentes tipos de pão do mundo,
Lawrence estava convencido de que os aldeões não sabiam dos
biscoitos — e ele estava certo.
Os biscoitos não se pareciam com pão. Enquanto a guilda do
padeiro proibia estritamente que outras empresas assassem e
vendessem pão, os demais produtos alimentícios ficavam fora do
escopo de sua regra.
Embora a guilda do padeiro com certeza protestasse, contanto que
os aldeões tivessem o apoio de Riendott e do Bispo Van, eles
continuariam tendo um relacionamento mutuamente benéfico.
Os biscoitos sendo um produto raro e delicioso, venderiam bem
em Enberch. Eles venderam tão bem que parecia que o suposto
excedente de trigo de centeio seria insuficiente para a demanda.
No entanto, negócios desse tipo podiam ser copiados com
facilidade, de modo que só no começo os grandes lucros viriam com
relativa facilidade.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 257 ⊱

Então Lawrence não exigiu uma parte dos lucros. Em vez disso,
ele pediu aos aldeões que comprassem o trigo que carregava em sua
carroça com umas moedas extras incluídas como pedido de desculpas.
Se o pessoal da Tereo planejava transformar os biscoitos em uma
especialidade local, eles tinham muito trabalho duro pela frente.
Mas a delícia dos biscoitos pelo menos era garantida.
Afinal, nos três dias desde o fim da disputa, Holo não havia comido
mais nada.
Qualquer um que comesse os biscoitos pela primeira vez, seu
sabor e textura poderiam ser viciantes.
“Bem, então, é hora de ir,” disse Lawrence.
Holo estava alegremente espalhando migalhas por todas as páginas
de um dos livros do padre Franz. Ela olhou para cima, irritada com o
aviso que Lawrence lhe dera.
Elsa estava do lado de fora da igreja, rezando intensamente sobre
a carroça de Lawrence por uma viagem segura, enquanto o Ancião e
os aldeões decidiram por conta própria rezar para Truyeo para que os
negócios de Lawrence prosperassem.
A atitude dos aldeões em relação à igreja havia mudado. Alguns
até começaram a frequentar cultos por gratidão.
Sem dúvida, no futuro, Tereo adoraria dois deuses.
Holo se levantou da cadeira em que estava sentada, pegando um
biscoito de uma montanha na mesa e o segurou entre os dentes.
“Você sabe que temos pilhas dessas coisas na carroça. Foi a mesma
coisa quando você comprou mais maçãs do que poderíamos comer,
você não terá nada além de biscoitos nas refeições,” advertiu
Lawrence.
Holo deu uma mordida no biscoito com um ruído alto, olhando
para Lawrence irritada. “Uh, quem foi, imagino, que separou o trigo
EPÍLOGO ⊰ 258 ⊱

bom do mal e criou esse milagre? Se eu não estivesse lá, você teria sido
jogado nu em um caldeirão e fervido vivo.”
Doía em Lawrence ouvir isso, mas Holo estava comendo biscoitos
a um ritmo absurdo — até mesmo os aldeões, que sentiam que lhe
deviam um grande favor, ficaram aturdidos em silêncio ao vê-la
devorar as guloseimas.
Ele sentiu que poderia alertá-la um pouco sem correr o risco de
retribuição.
“Mmph,” continuou Holo. “Certamente demos de cara com a
catástrofe desta vez.”
Foi uma mudança forçada de assunto, mas ela não estava errada.
“Bem, pelo menos nós conseguimos um lucro no final.”
“É só com isso que você se importa?” Holo riu, suas bochechas
cheias de biscoito. “De minha parte, não posso dizer que minhas
expectativas foram correspondidas, mas fiz bem o suficiente. Eu
suponho que o esforço valeu a pena.”
Ela olhou para o livro que registrava os contos do Urso Caçador
da Lua — que ela agora lera três vezes — e suspirou. “Então, para
onde vamos a seguir?”
“Lenos. Há uma lenda em que você aparece pessoalmente.”
“Mm. Suponho que seria um incômodo ficar preso na neve porque
nós demoramos demais. É melhor seguirmos em frente.”
Lawrence sabia que o verdadeiro desejo de Holo era se dirigir para
o norte o mais rápido possível, mas quando considerou a jornada que
estava por vir, não era de admirar que a ideia de descansar em uma vila
repentinamente confortável fosse atraente.
Ele ficou um pouco surpreso por ela estar pronta para ir depois de
apenas três dias.
“Vamos?” Ela disse.
“Certamente.”
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 259 ⊱

Assim que Lawrence e Holo saíram da igreja, os aldeões se


reuniram para se despedirem.
Lamentações como “Desculpe, nós duvidamos de você,” já haviam
sido feitas há um bom tempo.
Tudo o que restava eram felicitações por uma viagem segura.
“Que a bênção de Deus vá com você,” disse Elsa, com um sorriso
gentil no rosto.
Isso era o suficiente para fazer um homem feliz — o que Lawrence
era apesar do pontapé que recebeu de Holo.
“Sr. Lawrence,” disse Evan, segurando a mão de Elsa. “Obrigado
por me ensinar tanto. Eu vou trabalhar duro aqui.”
Foi a suspeita constante dos aldeões que fizeram Evan querer
deixar a aldeia para se tornar um mercador.
Porém, as coisas mudaram agora, e Evan escolheu ficar na vila e
assumir a responsabilidade por futuras negociações com Enberch.
As mãos de Elsa e Evan estavam entrelaçadas. Sua decisão de ficar
obviamente fora a correta, como qualquer um poderia dizer.
“Um viajante não deixa arrependimentos para trás em uma vila,
mas sim boas lembranças. Adeus!”
Lawrence segurou as rédeas e o cavalo começou a andar.
Envolta na luz fraca do inverno, a carroça saiu da pequena vila de
Tereo.
Elsa, Evan e Sem, todos acenaram de onde estavam na frente da
igreja, e até mesmo Lawrence olhou para trás duas vezes para acenar.
Mas suas formas logo se encolheram e desapareceram.
As viagens de Lawrence com o Holo começaram de novo.
Seu destino era Lenos.
De lá, eles iriam para o nordeste.
EPÍLOGO ⊰ 260 ⊱

Seria apenas por volta do final da primavera para o início do verão,


pensou Lawrence, que finalmente chegariam a Yoitsu.
Enquanto Lawrence pensava nisso, Holo imediatamente pegou
um saco de biscoitos e comeu.
A atmosfera solene e contemplativa que veio com a viagem
recém-iniciada foi destruída pelo esmagamento de biscoitos.
“Hm?” Holo olhou interrogativamente, sua boca cheia de
biscoitos, e Lawrence decidiu que seu rosto branco tinha seus próprios
encantos.
O sorriso que ele teve ao ver seu rosto inocente logo evaporou.
“Verão,” ele murmurou para si mesmo.
Imediatamente depois, ele notou algo se aproximando de seu
rosto. Ele olhou para descobrir que era um biscoito. “Não olhe para
mim com tanto desejo,” disse ela amargamente.
“Eu já tive o suficiente, obrigado,” disse Lawrence.
Holo não se arrependeu. “Seu rosto diz o contrário.” Ela
empurrou o biscoito para ele novamente.
Lawrence desistiu e aceitou, dando uma mordida.
Uma quantidade particularmente grande de mel foi adicionada aos
biscoitos que a aldeia tinha dado a Holo, então eles eram muito doces.
Essas coisas não eram ruins de vez em quando, ele meditou.
No entanto, Holo ainda olhava para ele, de alguma forma
insatisfeita.
“O quê?”
“Nada,” disse Holo, olhando para frente e dando outra mordida
em seu biscoito.
Ela obviamente queria dizer alguma coisa — mas o quê?
Lawrence pensou sobre isso, e algo veio à mente.
Ah, mas isso — isso era injusto demais.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 261 ⊱

Ela queria que ele falasse — era uma armadilha.


E, no entanto, se ele não caísse na armadilha, ela com certeza
ficaria com raiva.
Não havia nada a ser feito.
Lawrence tomou sua decisão, colocou o último pedaço de biscoito
em sua boca e falou.
“Ei.”
“Mm?”
Holo se virou para ele, a imagem da inocência.
Sua cauda balançou esperançosa sob suas vestes.
Lawrence acompanhou essa farsa ridícula.
“Sei de alguns negócios que podem dar muito dinheiro,” disse ele.
“Oh?”
“Mas vai nos tirar do nosso caminho, no entanto.”
Holo fez uma cara exageradamente irritada e suspirou.
No entanto, ela não pediu por mais detalhes, simplesmente
sorrindo de uma forma vagamente resignada. “Suponho que isso não
possa ser evitado. Eu irei acompanhá-lo.”
Holo não queria que a jornada terminasse.
Lawrence acreditava nisso — e era precisamente por não querer
que acabasse que ela tomava essa atitude.
No entanto, ela nunca admitido isso.
Que garota sem charme.
“Então, me fale sobre esse negócio,” ela disse com um sorriso.
Lawrence mastigou seu último pedaço de biscoito e agradeceu a
qualquer deus que tivesse lhe concedido essa sensação agridoce.
lá! Já faz um bom tempo. Eu sou Isuna Hasekura, e este é
o quarto volume.
Além disso, isso faz um ano completo desde que
Spice e Wolf foi lançado. O tempo certamente voa.
Parece que foi outro dia que eu estava indo para a décima segunda
festa do Prêmio Novel da Dengeki, vestido de terno e
desesperadamente nervoso — e recentemente eu assisti ao décimo
terceiro.
Na verdade, o tempo passou tão rápido que eu não tive tempo de
limpar meu terno e acabei indo com qualquer roupa. Essa é a razão
pela qual lá no mar de ternos e gravatas estava eu, vagando em meus
jeans sujos. A carne assada estava excelente.
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 263 ⊱

Falando nisso, a festa de fim de ano da Dengeki Publishing está


chegando em algumas semanas, e eu não posso esperar para ver que
coisas deliciosas elas servirão. Eu realmente quero trazer algumas
Tupperware para levar as sobras para casa comigo, mas faz apenas um
ano desde a minha estreia, e estou pensando se é o tipo de coisa que eu
não deveria fazer até ser um veterano mais estabelecido.
É tão bonito na minha mente: eu vou crescer uma barba, fumar
um cachimbo, e agitar minha bengala ao redor como se eu fosse o dono
do corredor, indo para a mesa de sushi e levando ela para casa comigo.
Parte de mim diz que a minha ideia de um autor veterano está um
pouco errada, mas decidi não me preocupar com isso. Ah sim, não
posso esquecer de trazer um pouco de gengibre em conserva de volta
com o sushi. Eu seria um fracasso como um cavalheiro de outra forma.
Agora que preenchi algum espaço, alguns agradecimentos são
devidos.
Para Juu Ayakura-sensei, cujas ilustrações mais uma vez acabaram
como eu as imaginei, meus sinceros agradecimentos. Quando eu estava
olhando para os rascunhos, havia um personagem que ficou
praticamente igual ao que eu havia imaginada, e eu tive que rir.
Meus sinceros agradecimentos também ao meu estimado editor,
Koetsu-sama, por checar cuidadosamente meus manuscritos instáveis.
Se me obrigassem a fazer esse trabalho, eu provavelmente desistiria no
meio do caminho. Muito obrigado.
E a todos vocês que agora seguram este livro em suas mãos, meus
mais profundos agradecimentos. Espero que você também aproveite o
próximo volume.
Te vejo lá.

— Isuna Hasekura
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 266 ⊱
SPICE & WOLF VOL IV ⊰ 269 ⊱
OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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