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PUBLICADO

10.08.2007
C hegando na cidade de Lenos, Lawrence e Holo resolvem
descansar de suas viagens ao Norte — mas um verdadeiro
homem de negócios nunca descansa! Não demora muito até que
a oportunidade de lucro se apresenta à Lawrence, uma que
poderia realizar seu sonho de possuir seu próprio
estabelecimento. Mas como sempre, a promessa de grandes
recompensas é acompanhada de grandes riscos — e os riscos são
sempre maiores quando alguém planeja usar uma sábia loba como
garantia! Quando Lawrence e Holo sentem os laços que os
mantém juntos se tornarem frágeis, seria a hora da dupla seguir
caminhos separados?
SPICE & WOLF VOL I ⊰4⊱
IMEDIATAMENTE APÓS
ISSO, FOI HOLO QUE,
IMPRESSIONADA,
MURMUROU UM “HUH”
BAIXINHO. LAWRENCE
ESTAVA AINDA MAIS
IMPRESSIONADO E NÃO
CONSEGUIA SE
EXPRESSAR EM
PALAVRAS.

“OH, QUE REAÇÃO


MARAVILHOSA! MELTA,
OLHE; ELES ESTÃO
IMPRESSIONADOS!”

A FREIRA CHAMADA
MELTA SORRIU
ABERTAMENTE. UM
SORRISO SIMILAR A UM
SINO, COM SUA VOZ
JOVEM E FORTE QUE
ECOAVA PELA SALA.
“AROLD MURMUROU.
SPICE & WOLF VOL I ⊰6⊱
“ESTIVE PENSANDO, JÁ ESTÁ
NA HORA DE FAZER UMA
PEREGRINAÇÃO.”

UMA VIAGEM COMO ESSA


NÃO SERIA MUITO
DIFERENTE DE PROCURAR
POR UM LUGAR PARA
ENTERRAR SEUS VELHOS
OSSOS.

“ENTÃO É ASSIM,” EVE FALOU,


ATRAINDO O OLHAR DE LAWRENCE
PARA ELA. “QUER ME FAZER UM
EMPRÉSTIMO EM MOEDAS?”
— EVE BOLAN, A MERCADORA NA ESTALAGEM
— AROLD ECKLUND, O ESTALAJADEIRO
HOLO MAIS UMA VEZ SE APOIOU NO SEU
PEITO, COMPLETAMENTE QUIETA

“SERÁ QUE NOSSA VIAGEM


PODE NÃO ACABAR AQUI?”
ELA MURMUROU.
PRÓLOGO ..................................................................9
CAPÍTULO I .............................................................12
CAPÍTULO II ............................................................51
CAPÍTULO III ........................................................ 144
CAPÍTULO IV........................................................ 225
EPÍLOGO ............................................................... 262
EXTRAS ................................................................. 273
ra uma viagem tranquila.
Não havia conversa — apenas o barulho da carroça.
Eles acordavam, se agitavam na carroça e comiam —
só isso.
Kraft Lawrence estava sentado no banco de condução, segurando
as rédeas. Era seu sétimo ano como mercador viajante desde que
começou quando tinha dezoito anos.
A solidão era a companheira constante do mercador viajante, que
muitas vezes se via conversando com seu cavalo. Houve um tempo em
que esses episódios eram frequentes. Nos últimos tempos, suas viagens
tranquilas continuavam, e ele não falava nada digno de nota.
No entanto, se perguntado se ele estava se sentindo solitário, a
resposta de Lawrence teria sido negativa, o que era indubitavelmente
PRÓLOGO ⊰ 10 ⊱

graças a sua companheira, que estava sentado ao lado dele no banco de


condução.
Embora agora ela tivesse um cobertor tão bem enrolado que era
difícil dizer se era garoto ou garota, a beleza de seu corpo
enlouqueceria qualquer um, e seus longos cabelos castanhos, finos o
suficiente para serem o orgulho da filha de qualquer nobre, mantinham
facilmente a atenção dos transeuntes.
Se ela ficasse quieta e fosse educada, certamente poderia se
arranjar em qualquer lugar sem ter um pingo de vergonha — mas havia
uma razão pela qual as coisas não eram tão simples para a companheira
de Lawrence.
Afinal, ela tinha as orelhas e a cauda de uma fera que a marcavam
como uma malfeitora.
O nome de sua companheira era Holo.
Sua verdadeira forma era a de um lobo gigante tão grande que
podia engolir um humano de uma só vez. Ela era a deusa loba da
colheita, que morava dentro do trigo.
“...”
Por um momento, Lawrence se perguntou se Holo havia dito
alguma coisa, mas talvez ela simplesmente tivesse aberto os olhos. Suas
razões para fazê-lo eram geralmente óbvias.
Ela havia mexido sua cauda instantes atrás, em seguida seriam suas
orelhas. Com uma mão enluvada, Lawrence segurou o capuz de Holo,
puxando-o levemente da cabeça.
Através da mão enluvada, ele podia senti-la deslizar as orelhas de
lobo sob o capuz para uma posição mais confortável. O movimento de
contração continuou por um momento, depois parou. Após
um período de pequenos ajustes, ela parecia satisfeita. Isso lembrava a
Lawrence uma nobre meticulosa organizando uma flor em um vaso até
que estivesse satisfeita. Holo suspirou suavemente, depois esfregou
sua cabeça levemente contra Lawrence.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 11 ⊱

Talvez fosse sua maneira de expressar seu agradecimento.


Lawrence voltou seu olhar para a estrada, e a viagem
tranquila continuou.
Eles já eram capazes de se entender.
Mesmo sem palavras, suas viagens não eram mais solitárias.
azia uma semana desde os incidentes na aldeia de
Tereo, onde quase foram executados como criminosos.
Lawrence e Holo agora iam para Lenos, uma cidade onde
contos sobre façanhas passadas de Holo ainda existem.
Lenos era uma cidade grande para as terras do norte, conhecida
por suas madeiras e peles.
Ela recebia a sua quota de visitantes, então Lawrence e Holo
passaram por muitos outros mercadores que iam e vinham pela estrada
que levava para a cidade. O próprio Lawrence já a havia visitado muitas
vezes no passado, embora desta vez não viesse a negócios.
Em vez disso, ele procurava informações sobre o antigo lar de
sua companheira.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 13 ⊱

Assim, sua carroça não possuía nenhum dos produtos comerciais


que normalmente a enchiam.
Lawrence havia planejado vender algumas das pilhas de biscoitos
que os aldeões de Tereo haviam lhe dado como agradecimento,
mas todos foram devorados pela loba que agora dormia ao seu lado. Se
fosse saboroso, ela devoraria tudo que estivesse na sua frente, e ficaria
irritada quando não houvesse mais o que comer.
Ela comeu, bebeu e dormiu em proporções verdadeiramente
impressionantes.
Lawrence teve que admitir, porém, que entre o frio e o tédio, ele
também adormeceria, se não tivesse que segurar as rédeas. Em todo
caso, a sua capacidade de dormir a noite toda depois cochilar o dia
inteiro era assombrosa. Mais de uma vez ele se perguntou se ela ficava
acordada de madrugada para passear despercebida e uivar para a lua.
Eles viajaram assim, sem problemas, por uma semana antes
da chuva chegar.
De alguma forma, Holo conseguiu prever a chegada do mau
tempo com dois dias de antecedência. De toda forma, talvez por causa
disso ou talvez por causa da chuva... ela se mexeu embaixo do
cobertor e deu a Lawrence um olhar calado e ressentido.
Lawrence se virou. Por mais acusador que fosse o olhar dela,
não era como se ele pudesse fazer algo sobre a chuva.
Estava caindo constantemente desde o meio-dia — não em
grandes gotas, mas em chuviscos finos e enevoados — o que era
suportável até o momento, mas, devido ao frio, não era diferente de
ser borrifado com lascas de gelo.
As mãos de Lawrence ficaram imediatamente dormentes e,
quando ele estava começando a ponderar a possibilidade de se
esconder na carroça, algum deus evidentemente notou seu bom
comportamento.
Holo também notou e levantou a cabeça debaixo do cobertor.
CAPÍTULO I ⊰ 14 ⊱

Ela bocejou enormemente. “...Neste ritmo, parece que nós


vamos passar sem sermos congelados.”
“É fácil para você dizer empacotadas em que cobertor enquanto
eu tremo aqui, com as rédeas na mão.”
“Hmph. Meu coração é frio. Ele precisa se manter aquecido,”
ela disse com um sorriso.
Lawrence se viu incapaz de ficar com raiva.
À frente deles, na estrada, estava o seu destino,
uma sombra escura que pairava no cenário pálido.
“Lá está. Como um pedaço de arroz queimado flutuando no
ensopado,” disse Holo, com o estômago vazio fazendo um barulho
ridículo. Evidentemente, mesmo essa descontente loba sábia não
esperava que seu estômago roncasse em um momento tão
inoportuno. Depois de ficar um momento atordoada, ela sorriu
docemente, tendo esquecido completamente sua provocação.
Lenos era uma grande cidade portuária construído ao lado do
largo e vagaroso rio Roam, o que significava que, se podiam ver a
cidade, o rio deveria estar igualmente visível. No momento, porém, a
vista estava turva com a névoa. Se o tempo estivesse aberto, eles sem
dúvida teriam visto os muitos barcos que atravessavam a superfície do
rio.
Ao entrar na cidade, ficou claro que havia muitos barcos
ancorados, além do tráfego constante no rio. As queridas barracas de
comida de Holo eram abundantes, assim como as bebidas fortes.
Se a neve do inverno que se aproximava atrasasse seu
progresso, eles pelo menos se assegurariam de aproveitar seu tempo
aqui.
No entanto, Lawrence tinha uma preocupação.
“Preciso falar uma coisa, só para garantir que você vai entender.”
“Mm?”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 15 ⊱

“Eu sei que você visitou este lugar há muito tempo, mas você pode
ter esquecido, então vou repetir: Lenos é uma cidade que se sustenta
de madeira e peles.”
“Sim.”
Era um pouco tarde para estar falando sobre isso, mas
o tratamento dele para com ela dependia de deixar claro este ponto.
“Você ficará com raiva se algumas dessas peles forem peles de
lobo?”
A expressão de Holo era irritantemente ambígua quando ela
puxou o cobertor, desembrulhando o cachecol de pele de raposa que
ela usava.
Foi um presente de Amati, o jovem que a cortejara na cidade de
Kumersun.
Não havia nada de intrinsecamente errado com ela usá-lo, e o
cachecol foi claramente muito útil no tempo frio, então Lawrence
tinha se mantido em silêncio. Vê-lo agora, no entanto, o fez
ficar desconfortável.
Certamente ciente disso, Holo usava o cachecol de modo que
parecesse mais aconchegante, mas agora o retirou e apontou a cabeça
da raposa para Lawrence. “Eu comi ratos, e fui comida por lobos!” Ela
chiou, mudando sua voz em tom de zombaria, o que ele supôs ser uma
raposa.
Lawrence suspirou.
Ele enfrentava Holo, a Sávia Loba.
“Hmph,” continuou Holo. “Existe a caça e o caçador. Além disso,
vocês humanos fazem coisas muito piores. Vocês não compram e
vendem seus semelhantes?”
“Isso é verdade. O comércio de escravos é necessário e muito
lucrativo.”
CAPÍTULO I ⊰ 16 ⊱

“Assim como você pode aceitar isso como costume do seu mundo,
podemos manter a calma em relação aos que são caçados. Além disso,
e se a posição fosse trocada?” Holo estreitou seus olhos castanho-
avermelhados.
Lawrence se lembrou da discussão que teve com Holo pouco
depois de se conhecerem — quando ela dissera que a esperteza de um
lobo vinha de devorar humanos.
Até Lawrence achava que, se um viajante entrava no território dos
lobos e não conseguia escapar, a culpa era do
viajante. Uma coisa era temer os lobos, mas odiá-los por isso era um
erro, ele pensava.
Isso era óbvio para Lawrence.
“Mesmo assim, suponho que ver seus companheiros caçados
diante dos próprios olhos não seja algo fácil,” disse Holo.
Lawrence concordou com a cabeça.
Holo continuou. “E você foi legal o suficiente para ficar
perturbado quando fui caçada por outro homem,” ela falou
timidamente, seu humor agora estava totalmente diferente do estado
em que estava há alguns momentos atrás.
“Ah, sim, certamente,” disse Lawrence por alto, voltando o olhar
para o cavalo à sua frente.
“De onde vem esse afeto indiferente?”
“Bem...” começou Lawrence, com os olhos fixos firmemente à
frente. “É embaraçoso.”
É totalmente embaraçoso admitir, pensou Lawrence consigo mesmo.
Mas para a loba que estava sentada ao lado dele, isso era uma
iguaria, então ele dificilmente poderia fazer algo para evitar.
Holo riu com força, a névoa branca de sua respiração era
visível. “Embaraçoso, hein?”
“Completamente.”
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As conversas tendiam a desaparecer naturalmente na fria


monotonia da longa jornada. Embora conhecer as disposições um do
outro, assim como eles conheciam, significava que as conversas
silenciosas pudessem acalmar a mente de Lawrence, eles ainda não
dispensavam uma conversa real como essa. Os dois riram um do
outro. O cavalo sacudiu o rabo, como se dissesse “Chega!” o que
apenas provocou outra leva de risadas de seus passageiros.
Holo enrolou o cachecol de pele de raposa em volta do pescoço
enquanto ria, e Lawrence voltava o olhar para o panorama de Lenos
que agora ficava mais nítido.
Poderia ter o dobro do tamanho da cidade pagã de
Kumersun. Cercadas por muros construídos talvez um século antes, as
casas dentro dos muros haviam preenchido a área cercada há muito
tempo. Sem mais espaço para construir para fora, os edifícios se
tornaram mais concentrados — e mais altos, sempre mais altos.
A cena que agora se alargava diante de Lawrence fazia parecer por
um momento como se a cidade finalmente estivesse transbordando
suas próprias paredes. Dezenas de tendas acompanhavam a estrada de
ambos os lados enquanto se dirigiam para Lenos através da chuva.
“É assim que eles chamam de fronte do portão da cidade?” Holo
perguntou.
“Esse tipo de coisa acontece nas igrejas, especialmente quando a
igreja fica no meio do nada. Seria estranho, no entanto, estar
constantemente levantando uma loja fora dos muros da cidade.”
Para uma cidade prosperar, ela precisava coletar impostos e, para
coletar esses impostos, precisava fazer as pessoas passarem por seus
portões.
É claro que havia cidades apertadas que mantinham seus
mercados fora da cidade, mas mesmo estas eram envoltas
por cercas temporárias.
“Hmm. Essas pessoas não parecem estar fazendo comércio.”
CAPÍTULO I ⊰ 18 ⊱

Assim que Holo disse isso, eles se aproximaram das tendas e


puderam ver que as pessoas debaixo delas usavam roupas de viagem e
estavam ocupadas cozinhando ou conversando. E embora todos
usassem roupas de viagem, os estilos eram diferentes. Alguns pareciam
vir mais do Norte, enquanto outros eram do Oeste ou do Sul. Em
contagem rápida, parecia haver cerca de vinte tendas, cada uma
abrigando talvez três ou quatro pessoas.
O único ponto em comum era que todos pareciam ser mercadores
especializados em alguma mercadoria. Aproximadamente
metade deles pareciam transportar grandes cargas, com alguns
vagões carregando até barris gigantes.
Os rostos de todos dos mercadores estavam marcados pela poeira
e fadiga da viagem, e um traço ocasional de irritação aparecia em seus
olhos.
Lawrence se perguntou se havia algum tipo de golpe em Lenos,
mas isso não fazia sentido, pois apenas algumas das pessoas reunidas ali
pareciam estar alojadas em tendas. Ttambém haviam agricultores com
burros a reboque e mercadores carregando cargas nas costas, todos
indo em direção a Lenos, para sair da chuva ou para ir para qualquer
outro destino.
Tanto quanto Lawrence poderia notar, a cidade parecia mais ou
menos a mesma de sempre.
“Mais um problema, talvez?” Holo murmurou, enfatizando o “mais
um” e sorrindo sob o capuz.
Lawrence olhou para Holo pelo canto do olho, como
se perguntasse: “E exatamente de quem foi a culpa?” Mas ela
simplesmente lançou o mesmo olhar para ele.
“Pode ser verdade que, desde que me conheceu, você sofreu
alguns arranhões, mas dificilmente pode-se afirmar que eles foram
diretamente minha culpa.”
“Eu—”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 19 ⊱

“Eu vou aceitar a primeira ocorrência — bem, parte dela pode ter
sido causada por mim, mas sua verdadeira causa foi sua avareza, que
foi totalmente a culpada do próximo desastre. E nosso último
problema foi meramente o azar. Estou errada?”
Holo era extremamente precisa.
Lawrence acariciou sua barba, que estava mais longa, devido à sua
relutância em fazer a barba sem água quente, mas mesmo assim não
cedeu e concordou com ela. “Suponho que eu compreenda o que você
está dizendo...”
“Mm.”
“Mas simplesmente não posso concordar. É verdade que você não
foi necessariamente o gatilho dos nossos problemas, mas...”
Lawrence não conseguia concordar com a avaliação de Holo.
Ele queria dizer que a culpa era dela.
Enquanto seu resmungo diminuía, Holo o olhou como se ela não
pudesse acreditar no que eles estavam conversando. “Eu posso ver
claramente que você não quer concordar comigo, mesmo que
dificilmente eu seja a principal causa de todos esses problemas.”
Lawrence franziu as sobrancelhas, imaginando que truques ela
estava tramando. Ela notou isso e riu.
Holo continuou. “É porque você sempre me usa como base para
suas ações — portanto, você sempre sente que estou te arrastando para
isso ou aquilo.”
A sobrancelha esquerda de Lawrence se contraiu
involuntariamente.
Ela estava certa.
Mas admitir isso significava que a loba havia ganhado.
Em outras palavras—
“Heh. Sempre teimoso,” disse Holo, sua voz tão irritante quanto
a névoa gelada que caía do céu.
CAPÍTULO I ⊰ 20 ⊱

Seu sorriso era tão puro, inconstante e frio como se ela estivesse
prestes a fugir para sempre.
Ele teve que captura-la.
Desafiando toda a razão, o sorriso de Holo o fez querer gritar.
No momento seguinte, seu pequeno corpo estaria em seus braços.
Parecia a coisa mais natural do mundo.
“Mmph.”
O desejo não durou mais que quatro passos do cavalo.
Lawrence conseguiu manter a calma enquanto guiava a carroça na
fila do posto de controle para a cidade.
O motivo de sua contenção era simples.
Havia uma multidão de pessoas ao seu redor.
Enquanto traçavam suas rotas mercantis, os mercadores
adoravam fofocar, mesmo sobre seus iguais. Se Lawrence fosse
visto flertando abertamente com sua companheira, sem dúvida a
história se espalharia.
Holo olhou para o lado, parecendo entediada.
Sem dúvida, ela estava entediada.
Apesar de Lawrence sempre ter prestado atenção no sorriso
de todas as mulheres, ele agora podia acompanhar as
menores mudanças de expressão no rosto de Holo. Além de seu tédio,
também houve um lampejo de inquietação.
Ele viu isso e notou algo. Havia duas motivações básicas para suas
ações.
Uma era Holo.
A outra eram os negócios.
Holo temia a solidão ainda mais do que Lawrence. Sem dúvida, às
vezes ela ficava assustada com a ideia de ser comparada contra os
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 21 ⊱

negócios. No final, apenas os deuses poderiam saber para que lado a


balança iria cair no final — ou se ela poderia se igualar.
E o fim da jornada não estava longe.
Ela se atreveria a causar problemas justamente quando Lawrence
tivesse que agir como um mercador, apenas para testar qual caminho
ele escolheria, forçando a questão para saber se ela era mais importante
do que o saldo em seu livro de contabilidade?
Não que ela fosse tão insignificante a ponto de justificar esse tipo
de preocupação, Lawrence se viu pensando.
A carroça avançou na fila lentamente, e uma grande nuvem de
névoa branca surgiu debaixo do capuz de Holo, enquanto ela o olhava
irritada.
“Um ensopado seria bom,” disse ela.
Sem dúvida, ela estava falando sobre o jantar. Evidentemente, a
hora das brincadeiras havia passado.
“Sim, com esse frio. Dependendo do preço, eu compraria um
ensopado com farinha grossa.”
“Ho, ho! Às vezes, o cheiro doce do leite é melhor que o do vinho
mais caro.”
Ao vê-la assim, o rosto meio embrulhado no cachecol de pele de
raposa enquanto ela assentia com prazer, o fez se esquecer dos últimos
dias de comentários irritados que ele havia sofrido.
Às vezes, era bom pedir algo cheio de ingredientes
saborosos. “Um ensopado feito com os legumes da estação
seria especialmente bom,” disse Lawrence.
“Legumes? Você não entende o sabor da deliciosa carne cozida
flutuando no caldo cremoso?”
Apesar de ter passado séculos nos campos de trigo, os gostos de
Holo eram mais aristocráticos do que os dos nobres.
CAPÍTULO I ⊰ 22 ⊱

Ali, diante das muralhas de Lenos, Lawrence fez um último


contra-ataque. Ele se arrependeu de tê-la mimado.
“Dizem que os alimentos mais caros podem ser ruins para a língua
e para a vista.”
“Oh? E quão ruim para o meu coração você acha que foi
passar tantos séculos sem provar nada?” Holo olhou bruscamente.
Ela estava completamente imóvel, seus olhos castanho-
avermelhados brilhando como jóias polidas.
Diante destas brilhantes pedras preciosas, a única coisa a fazer era
cair de joelhos.
Mas Lawrence era um mercador, não uma nobre louca por
jóias. Se o preço não fosse justo, havia apenas uma coisa a
dizer, mesmo diante da gema mais preciosa.
“Talvez depois de consultar minha bolsa de moedas.”
Holo desviou o olhar como uma criança teimosa.
Mesmo depois dessa troca, Lawrence sabia que era provável
que acabassem comendo um ensopado de carne. Sem dúvida, Holo
também estava confiante nisso.
E ainda assim eles brincavam de discutir.
Lawrence balançou as rédeas e empurrou a carroça para a frente.
Ao passarem pelo posto, Lawrence olhou para a parede de pedra,
que estava coberta de musgo banhado pela chuva.
Ele olhou para baixo brevemente, mas não para esconder suas
mercadorias do imposto de importação. Não, ele queria apenas
esconder o sorriso que se espalhava sob a barba.

Talvez fosse por causa da chuva fria de inverno que havia


tão poucas pessoas nas ruas da cidade.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 23 ⊱

Os poucos que estavam eram em sua grande maioria crianças, a


névoa de suas respirações se arrastava atrás deles enquanto corriam
para lá e para cá com as mãos apertadas nos peitos — sem dúvida
alguma com recados para os lojistas e artesãos da cidade. As formas
fantasmagóricas com seus pacotes de trapos certamente estavam
fazendo o mesmo trabalho.
As barracas que davam para a rua estavam praticamente vazias
enquanto a névoa clara pingava de seus beirais. Sem mercadores para
expulsá-los, alguns mendigos se reuniam sob um punhado de
barracas. Era a imagem de um dia chuvoso.
Mas o fato de que do lado de fora da entrada das muralhas da
cidade havia tendas alinhadas, com mercadores fazendo o jantar
embaixo delas, significava que algo estava acontecendo.
Lawrence segurava na mão a placa de madeira que recebera
no posto de controle, que comprova sua condição de mercador
estrangeiro, e ouviu vagamente Holo manifestar seu
descontentamento.
“Não é como se eu a colocasse no auge da criação, mas não é como
se fosse impossível chegar lá, é uma questão de mérito relativo, não? O
que você me diz?”
“Oh, de fato.”
“Se formos falar do que é inerentemente superior e do que excede
suas origens humildes para se tornar grandioso, eu acho que este
último é mais digno de respeito. Estou errada?”
“…De modo algum.”
Talvez fosse o cansaço da longa jornada. A raiva de Holo não era
a raiva completa como normalmente ocorria. Ela expressava seu
descontentamento como um resmungo baixo e constante.
Em sua mente, Lawrence amaldiçoava o guarda barulhento cujas
palavras descuidadas causaram isso — mas então ele percebeu que, se
respondesse Holo de forma superficial, ela direcionaria sua raiva para
ele.
CAPÍTULO I ⊰ 24 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 25 ⊱

“Sim, bem, se a escolha é entre um nobre sem fama, sem carisma,


sem bens, sem nada mais que sua linhagem, e um plebeu sagaz que
acumulou riqueza e fama, então certamente é ele a quem eu respeito,”
concordou Lawrence.
Normalmente, essa superficialidade só pioraria o humor de Holo,
mas no momento parecia ser o suficiente.
Ela deu um aceno exagerado, meio torto, depois fungou como um
touro bravo.
No posto de controle, eles foram submetidos a uma revista
extremamente minuciosa, e o guarda tinha descoberto a cauda de
Holo.
É claro que Holo respondei indiferente, como sempre, e passou
com facilidade fingindo ser um acessório da saia, no que o guarda
pareceu acreditar, mas então ele disse o seguinte:
“Oh, é só uma pele de lobo barata.”
Sendo um guarda de uma cidade que era um centro comercial de
madeira e pele, ele sabia diferencias uma pele de lobo da de um cão ou
de uma raposa.
E ele não estava errado sobre seu valor. As peles de lobo eram
classificadas abaixo da de um cão. Não importa quão boa seja sua
qualidade, não importa o quanto ela faça um mercador de peles salivar,
é um fato simples que ela nunca valerá tanto quanto uma boa pele de
veado.
O problema surgiu quando o orgulho daquela loba não era tão
barato quanto a pele — e, nesse sentido, Holo era extremamente cara.
Isso explicava seu resmungo zangado e infantil. Lawrence se
sentiu tão mal por ela que queria acariciar sua cabeça para confortá-la.
Se eles ainda estivessem no meio da jornada, ele poderia
simplesmente segurar as rédeas e fazer comentários maliciosos, mas
agora ele apenas a olhava pelo canto do olho. Ele coçou o queixo com
CAPÍTULO I ⊰ 26 ⊱

o canto da placa de mercador estrangeiro, imaginando se alguma


comida a ajudaria a se sentir melhor.
Na verdade, Lawrence estava mais preocupado com o
significado dessa placa.
Parecia feita às pressas sem qualquer tipo de selo oficial.
Foi-lhe dito que se quisesse comprar mercadorias na aldeia,
ninguém venderia para ele, a menos que exibisse a placa.
Essa foi a única explicação que recebeu. Ele foi rapidamente
enxotado do posto de controle, através do qual uma fila de viajantes
passava como uma enguia se contorcendo por uma armadilha.
Era uma situação que nenhum mercador podia suportar.
Era a primeira vez que ele encontrava algo assim — não apenas
em Lenos, mas em qualquer cidade.
“Então,” disse Holo.
“Oh, uh, sim?” Um puxão em sua perna tirou Lawrence do
seu devaneio, e ele encontrou olhar afiado de Holo.
Por um momento, ele se perguntou se tinha deixado passar algo
que ela falou, mas antes que pudesse perguntar, Holo continuou.
“Já estamos perto da estalagem?”
Sem dúvida, ela estava com frio e com fome e não queria ficar na
carroça por mais tempo do que o necessário. “É logo depois
da esquina,” disse Lawrence. Ela deu um suspiro irritado com o fato
da estalagem não estar imediatamente à sua frente, afundando mais
profundamente sob seu capuz.
Ele precisaria ter muito cuidado com a quantidade de carne
no ensopado de hoje à noite. Lawrence pensou no assunto enquanto
guiava a carroça, e logo chegaram ao seu destino.
Era um prédio comum de quatro andares que, de alguma maneira,
não parecia tão elegante.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 27 ⊱

O primeiro andar, de frente para a rua, tinha uma porta


holandesa. A secção inferior podia ser aberta e virada lateralmente, se
tornando uma superfície para exibir produtos, e a secção superior
poderia funcionar como um toldo. Ambas estavam fechadas no
momento, fazendo o seu melhor para barrar o ar frio do inverno.
A expressão de Holo se tornou mais sombria. Talvez ela esperasse
ser levada para uma estalagem com uma fachada bem mantida.
Lawrence evitou lhe explicar que, mesmo que gastassem mais
dinheiro, isso não garantia uma estalagem mais confortável. Ele desceu
do banco de motorista para evitar seu olhar funesto e correu para a
porta da frente da estalagem, dando-lhe uma batida.
A estalagem não tinha nem um sinal na frente, por isso era
muito improvável que estivesse cheia, mas havia uma possibilidade real
de que o proprietário pudesse ter fechado por causa do tempo frio.
Então, quando Lawrence ouviu o barulho de alguém atrás
da porta, pouco antes de abrir uma fresta, ele sentiu um certo alívio.
“Você pretende ficar ou vender mercadorias?” exigiu
bruscamente um homem velho de barba branca pela porta
entreaberta.
“Ficar. Duas pessoas.”
O velho deu um rápido aceno de cabeça, depois se retirou
para dentro do prédio.
A porta foi deixada aberta, então aparentemente havia vagas.
Lawrence olhou de volta para a carroça. “O que você quer,
uma sala iluminada ou uma sala quente?” Ele perguntou.
A pergunta foi inesperada. Uma ruga apareceu na testa de
Holo. “O há além de uma sala quente?”
“Certo, eu levo o cavalo para os estábulos. Você entra e conversa
com o estalajadeiro — aquele senhor mais velho — e fala isso
para ele. Ele vai te mostrar um quarto.”
CAPÍTULO I ⊰ 28 ⊱

“Mm.”
Lawrence voltou para o banco do motorista e tomou as rédeas,
trocando de lugar com Holo, que desceu. O cavalo,
parecendo perceber que ele estava, finalmente, prestes a sair da
condução e do vento para um estábulo quente, sacudiu a cabeça como
que para apressá-lo. Com um movimento das rédeas, Lawrence pôs o
cavalo a andar, observando Holo entrar na estalagem com o canto do
olho.
Ele seria capaz de encontrar seu manto empoeirado no meio de
uma multidão de cem pessoas sem nenhum problema.
Afinal, não importa quantas mantas ela usasse, ele reconheceria os
movimentos de sua cauda em qualquer lugar.
Sorrindo para si mesmo, Lawrence guiou o cavalo para o
estábulo, onde havia dois mendigos fazendo o serviço de vigia. Eles
deram a Lawrence um olhar avaliador.
Os vigias nunca esqueciam um rosto, então naturalmente eles se
lembraram de Lawrence, e com um gesto de seus queixos, apontaram
para onde queriam que ele deixasse seu cavalo. Sem motivo
para recusar, Lawrence concordou. Ao fazer isso, ele notou que, ao
lado de seu espaço, havia um cavalo de montanha de cascos largos, que
lhe deu um olhar furioso por baixo de seus longos cabelos
desgrenhados. Sem dúvida, carregou peles para a cidade vindo das
terras do norte.
“Vocês dois se comportem,” disse Lawrence, batendo no flanco
do próprio cavalo enquanto descia da carroça, deixando os
dois mendigos com duas moedas de cobre antes de recolher seus
pertences e ir para a estalagem.
Esta estalagem em particular já havia sido um curtume
anteriormente. O primeiro andar tinha sido a oficina dos fabricantes
de braceletes de couro e, portanto, era bastante aberta, com poucas
paredes e um piso de pedra. Agora era usada para guardar coisas, e
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 29 ⊱

aqui e ali haviam mercadorias que vários comerciantes mantinham na


estalagem em estocagem prolongada.
Passando por pilhas de mercadorias mais altas que ele, Lawrence
chegou ao único local em ordem no primeiro andar — o quarto do
estalajadeiro.
Em uma mesa pequena, havia uma tigela de ferro em uma cinta
de três pernas. O estalajadeiro queimou carvão na tigela e bebeu vinho
quente o dia todo, sonhando acordado com terras longínquas. “No ano
que vem, vou para o sul fazer uma peregrinação,” ele costumava dizer.
O estalajadeiro notou Lawrence, olhando-o com aguçados olhos
azuis sob as sobrancelhas espessas. “Terceiro andar. Ao lado da janela.”
“Certo, terceiro andar — espere, do lado da janela?”
Embora os clientes de estalagens pudessem pagar
antecipadamente ou no final da sua estadia, o humor do estalajadeiro
melhorava com pagamento adiantado. Lawrence tinha, então,
colocado uma quantia moderadamente generosa em cima da mesa,
mas as palavras do estalajadeiro foram uma surpresa, fazendo-o virar.
“Lado da janela,” disse o estalajadeiro novamente em voz baixa,
fechando os olhos.
O velho não queria discutir o assunto.
Lawrence acenou com a cabeça. Oh, bem, ele pensou consigo
mesmo ao sair da sala.
Segurando os corrimãos manchados pela idade e uso, ele subiu as
escadas.
Assim como os alojamentos de qualquer outra oficina, no segundo
andar ficava uma sala de estar com lareira, uma cozinha, e o quarto do
mestre. Esse prédio era um pouco diferente, pois a lareira ficava no
centro da sala de estar, e os quartos no terceiro e quarto andares foram
construídos para obter o máximo de calor possível da chaminé que ia
até o topo da estalagem.
CAPÍTULO I ⊰ 30 ⊱

Além da arquitetura estranha, a manutenção necessária para


garantir que a fumaça não vazasse da chaminé para os quartos muitas
vezes era problemática. O mestre deste edifício, no entanto, escolheu
o conforto dos aprendizes que morariam no terceiro e quarto andares.
O atual estalajadeiro era um homem gentil, embora quieto. Seu
nome era Arold Ecklund, e ele tinha sido o artífice chefe do curtume.
Quando a noite caía, a estranha sala de estar no térreo se enchia
de conversas amigáveis enquanto os convidados traziam vários
vinhos. Agora, porém, tudo o que se podia ouvir era
o fogo silenciosamente crepitante.
Havia quatro quartos no terceiro andar.
Antigamente, quando o edifício tinha sido uma oficina, o quarto
andar foi usado por novos aprendizes e como armazenamento para o
que fosse preciso, portanto, os quartos do terceiro andar eram
maiores.
Mas nem todos esses quartos recebiam o benefício do calor da
chaminé. Apenas um dos quartos do terceiro andar enfrentou a rua, e
a fim de acomodar uma janela para deixar entrar a luz, ele sacrificou
acesso à chaminé.
Em outras palavras, ter uma janela significava sacrificar o calor.
Lawrence tinha certeza de que Holo havia dito que ela preferia
um quarto quente. Quando ele entrou seus aposentos, ele viu que ela
já tinha retirado e espalhado todas as suas roupas molhadas por toda
parte e estava encolhida sob as cobertas da sua cama.
Ele se perguntou se ela estava chorando pela indignidade de tudo
isso, mas, olhando para o jeito como ela estava deitada no cobertor,
ela parecia ter adormecido.
Ficar com raiva por tanto tempo deve tê-la cansado,
Lawrence supôs.
Ele recolheu as roupas descartadas, colocando-as
temporariamente sobre as costas de uma cadeira, e removeu sua
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 31 ⊱

própria roupa de viagem. Essa era a parte mais relaxante de qualquer


jornada — o momento em que podia remover suas roupas molhadas
em uma estalagem. Elas pareciam argila úmida enquanto ele as
descascava, ele as pôs de lado e trocou para suas roupas normais, que
ainda não tinham sido embebidas pela chuva.
Sua roupa padrão era bastante fria, mas ainda era melhor do que
ficar molhado.
Sem lareira, o quarto não seria mais quente do que um parque de
acampamento quando a noite caísse.
Um mero cobertor não seria suficiente para afastar o
frio. Ele percebeu isso ao juntar as roupas pesadas e molhadas de
Holo como um criado.
A cauda de Holo estava para fora do cobertor, que parecia como
se tivesse sido jogada sobre uma pilha de pão, queijo ou bacon.
Ela realmente não jogava limpo, pensou Lawrence.
Não era exatamente a mesma coisa que a filha de um nobre
exibindo seus cabelos longos e bonitos pela janela de seu quarto
para chamar a atenção de um cavaleiro que passava — mas, no
entanto, Lawrence se viu compelido a responder.
“Eu acho sua cauda adorável; é quente e tem um bom pelo.”
Um momento se passou e Holo puxou a cauda para baixo
do cobertor.
Lawrence só pôde dar um suspiro.
Holo dificilmente era o tipo de garota sensível cujos sentimentos
feridos podiam ser acalmados com um único elogio. Mesmo neste
exato momento, ela certamente ainda guardava um rancor ardente.
E, no entanto, conseguiu fazer com que Lawrence elogiasse sua
cauda.
CAPÍTULO I ⊰ 32 ⊱

Lawrence sorriu tristemente para si mesmo enquanto descia


as escadas, suspirando novamente. À sua maneira, Holo confiava
nele. Esse era o único motivo que ele precisava.
Poderia ser uma de suas armadilhas inteligentes, mas ser pego
nelas não era algo tão ruim.
Ele aproveitou o fato de que uma loba que lia mentes não
estava plantada ao lado dele para refletir sobre tais pensamentos ao
entrar na sala de estar, que abrigava a lareira.
Não havia ninguém lá. A sua única companhia eram os ecos
da lenha crepitante.
Os móveis eram escassos. Uma única cadeira era iluminada
pela luz bruxuleante do fogo. Só aquela cadeira não seria suficiente
para secar a trouxa de roupa que Lawrence segurava nos dois braços,
mas não estava preocupado.
Aqui e ali nas paredes da sala estavam pregos que tinham sido
martelados até a metade e suas cabeças serviam como ganchos. Uma
faixa de couro pendia de uma delas, longa o suficiente para ser
conectada a um gancho na parede oposta. Em dias de chuva, isso era
excelente para secar as roupas dos viajantes encharcados e, em dias
claros, era usada para secar legumes e carne, servindo de suprimento
para as pessoas que retomavam suas jornadas.
Lawrence ajeitou rapidamente a faixa e pendurou as roupas
molhadas nela.
As vestes eram mais numerosas do que ele imaginava, e
acabou tendo que usar toda a faixa.
“Contanto que ninguém venha secar suas roupas,” Lawrence
murmurou para si mesmo enquanto se sentou na única cadeira diante
da lareira.
No momento seguinte, ele ouviu o som rangente da escada.
“...”
Aparentemente, o rangido tinha realmente vindo do corredor.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 33 ⊱

Lawrence voltou seu olhar para o som e encontrou os olhos de


uma figura que subira as escadas e agora espiava a sala de estar.
Sua cabeça estava envolvida em um capuz, que também cobria a
maior parte do rosto, obscurecendo qualquer expressão que ele
pudesse ter, mas seu olhar era agudo e firme. Ele não era
especialmente alto, mas nem baixo, talvez, um pouco mais alto que
Holo.
Suas roupas de viagem eram pesadas e enquadravam sua
figura. A característica mais marcante do traje do sujeito eram
suas botas de couro com grossas correias que as prendiam
às panturrilhas. Elas eram a prova de um viajante que evitava andar a
cavalo usando seus próprios pés, e o aperto com o qual as
correias eram amarradas era evidência da severidade da estação.
Os olhos azuis pálidos que olhavam para Lawrence através da
brecha naquelas camadas pesadas de roupas eram puros e afiados — e
antipáticos.
Depois de dar a Lawrence um olhar longo e avaliador, a figura
continuou sem palavras pelas escadas.
Apesar de carregar uma carga pesada, seus passos eram quase
silenciosos.
O estrangeiro também parecia ter conseguido um quarto no
terceiro andar. Do alto, Lawrence ouviu uma porta abrir e depois
fechar.
Arold geralmente deixava seus hóspedes em paz, o que tornava
sua estalagem particularmente apreciada entre aqueles que não
estavam interessados em ser sociáveis. Mesmo entre os mercadores,
nem todos eram extrovertidos.
Lawrence usou esta estalagem quando estava em Lenos porque
o preço e as instalações eram boas e porque Arold tinha sido
um membro da Guilda Rowen de Comércio. Um tempo atrás, Arold
já foi um mercador de peles itinerante, mas se casara no curtume e
assumira o cargo de dono.
CAPÍTULO I ⊰ 34 ⊱

Como a cidade não tinha uma casa da guilda Rowen,


muitos membros usavam essa estalagem ao passar por ela.
A tendência de Arold de deixar seus convidados em paz era
especialmente conveniente agora com Holo de companhia.
Na realidade, a principal questão na mente de Lawrence era
conseguir o ensopado de carne que, com sorte, melhoraria o humor
de Holo. Se isso a faria se sentir melhor, uma tigela ou duas de
ensopado não era nada, mas o custo total de ficar nesta cidade poderia
disparar se ele baixasse a guarda.
O cansaço de sua longa jornada o dominou enquanto ponderava o
problema em frente a lareira, e logo cochilou.
Ele acordou uma vez quando Arold veio adicionar combustível ao
fogo, mas é claro que Arold não disse nada e, de fato, foi bastante
generoso no uso de lenha, levando Lawrence a decidir desfrutar da
cortesia do velho.
Lawrence acordou novamente depois que o sol se pôs, quando, à
exceção da luz do fogo, a escuridão na sala era tão densa que parecia
que alguém poderia facilmente tocá-la.
Percebendo que dormira demais, Lawrence se levantou, mas não
conseguiu voltar no tempo. Sem dúvida, a egoísta Holo já
acordara há muito tempo e estava de mau humor no quarto deles,
incapaz de sair até Lawrence voltar com suas roupas.
Lawrence suspirou e, depois de verificar se as roupas estavam
realmente secas, ele rapidamente as recolheu e voltou para
o quarto do terceiro andar.
Não será necessário dizer que Holo estava morrendo de fome.
O ensopado que Lawrence finalmente encomendou, na taberna
que ele escolheu aleatoriamente, era de fato de uma carne luxuosa.

Na manhã seguinte, Lawrence acordou com o tempo


ensolarado. Fios quentes de luz entravam pelas frestas da janela
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 35 ⊱

de madeira. Apesar do quarto não receber o benefício da lareira, o frio


da manhã não estava tão ruim quanto poderia ter sido, graças à luz do
sol ou ao mercador que se acostumou a congelar nas noites frias na
estrada.
De qualquer maneira, diante desse calor, Lawrence podia
entender por que Holo havia escolhido um quarto mais claro.
O sol da manhã certamente ganhava sua adoração.
Em uma rara mudança de eventos, Lawrence estava acordado
antes de Holo, cuja cabeça se projetava do cobertor em que ela
dormia. Normalmente ela dormia enrolada como uma loba de
verdade, então vê-la dormindo como a donzela que parecia ser era
novidade.
As poucas ocasiões anteriores em que Holo dormiu demais eram
todas resultado de ressaca, mas sua pele parecia saudável esta manhã.
Dada a expressão inocente em seu rosto exposto, Lawrence supôs
que ela queria simplesmente dormir até tarde.
“Bem, então,” ele murmurou.
Estava tudo bem olhar o rosto de Holo por um tempo, mas se a
sábia loba irritada o notasse, ele não escaparia de ouvir um bocado.
O que precisava fazer era se preparar para se aventurar
na cidade. Ele acariciou sua barba.
As barbas naturalmente mais longas eram comuns no norte do
país, mas a dele ainda estava um pouco longa demais, e
uma barba longa e indulgente não era atraente. Enquanto pegava uma
toalha e uma lâmina de suas coisas, se preparando para pegar
água quente com Arold, a loba de orelhas agudas na cama se mexeu,
aparentemente despertada pelo som.
Depois de ouvi-la soltar um gemido desagradável,
Lawrence percebeu o olhar dela em suas costas.
“Estou indo cuidar da minha pele,” disse Lawrence, colocando
a lâmina embainhada no queixo.
CAPÍTULO I ⊰ 36 ⊱

Holo bocejou, depois sorriu sem dizer nada, estreitando os


olhos. Ela parecia estar de bom humor.
“Afinal, precisamos garantir bons preços,” acrescentou Lawrence.
Holo escondeu a boca atrás do cobertor. “Tenho certeza de que
vale o resgate de um rei.”
Talvez fosse porque ela tinha acabado de acordar. Os olhos dela
eram gentis, apesar da sonolência.
Sem dúvida, ela estava pelo menos brincando com ele, mas não
pôde deixar de ficar um pouco satisfeito com suas palavras honestas e
diretas. Ele deu de ombros para esconder seu constrangimento.
Holo continuou. “Sim, um preço tão alto que ninguém o
compraria,” ela disse com um brilho de malícia nos olhos,
quando deitou de bruços. “Alguma oferta até agora?”
Ela certamente tinha talento para atrair as pessoas para uma
felicidade prematura, Lawrence pensou consigo mesmo.
Ele balançou a ponta da lâmina que segurava para sinalizar sua
rendição, então Holo riu, se aconchegando debaixo do cobertor e
rolando como se voltasse a dormir.
Lawrence suspirou.
Era frustrante e estranhamente divertido estar
constantemente brincando dessa forma.
Ele saiu da sala e desceu as escadas, com a mão no corrimão,
enquanto sorria tristemente para si mesmo.
Mas esse sorriso desapareceu quando ele notou alguém lá antes
dele.
“Bom dia,” disse Lawrence agradavelmente ao companheiro que
apareceu no pé da escada.
Era o mesmo estranho encapuzado que vislumbrou brevemente
enquanto secava suas roupas na noite anterior.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 37 ⊱

O estrangeiro usava o mesmo capuz, mas agora suas vestes


estavam um pouco mais folgadas e seus pés estavam calçados com
sandálias. Talvez tenha comprado uma massa para o café da manhã, ele
segurava um pacote levemente fumegante na mão direita.
“...Oi,” respondeu o estranho em um quase sussurro quando se
encontraram, olhando para Lawrence com os olhos azuis através da
abertura em seu capuz.
A voz era rouca, a voz de um viajante adaptado a areia seca e
terreno rochoso.
Apesar da insociabilidade do estrangeiro, Lawrence sentiu um
certo parentesco.
De toda forma, uma vez que sentiu o cheiro da torta de carne que
saía da embalagem do inquilino, ele sabia com certeza que Holo logo
estaria exigindo uma para si mesma.

“Então, o que faremos agora?” perguntou Holo com um pedaço


de carne grudado no canto da boca e uma torta de carne na mão.
“Bem, primeiro temos que recolher tantas histórias sobre você
quanto pudermos encontrar.”
“Mm. Histórias sobre mim e sobre o paradeiro de Yoitsu....”
Munch, Munch, Munch. Foram necessárias três mordidas para
acabar com os restos da torta de carne do tamanho de uma mão. Eles
foram engolidos e sumiram.
“Assim como em Kumersun, precisamos encontrar um cronista,”
disse Lawrence.
“Vou deixar isso com você. Você sabe melhor do que eu como
fazer isso... O quê? O que foi?”
Lawrence acenou com a mão levemente para o olhar interrogativo
de Holo, sorrindo. “Então, se eu sei como fazer isso, e o que
você sabe?” Ele retornou seu olhar vazio. “Há um ditado que
CAPÍTULO I ⊰ 38 ⊱

diz: ‘Aquele que sabe como fazer algo é o servo de quem sabe por que
isso deve ser feito.’”
“Mm. Entendo. E eu sei por que você trabalha com tanto
esmero.”
“Os homens antigos falaram verdade,” disse Lawrence, mordendo
sua própria torta.
Holo se sentou de pernas cruzadas na cama e continuou. “Se eu
sou seu mestre, então suponho que eu deveria te dar uma
recompensa.”
“Uma recompensa?”
“Sim. Tipo, hmm...” começou Holo com um sorriso que parecia
a Lawrence como se fosse feito de algo fascinante. “O que é que você
deseja?”
O quarto estava sedutoramente escuro, e Lawrence sentiria o
coração disparar se não fosse o pedaço de carne que ainda estava
grudado no canto da boca de Holo.
Lawrence terminou sua própria torta, em seguida, apontou para
o canto de sua própria boca. “Nada em particular,” ele falou para Holo.
“Hmph,” disse Holo, vagamente frustrada quando ela arrancou
o pedaço de carne da boca.
“Seria bom se você fosse um pouco mais agradável,”
acrescentou Lawrence.
A mão de Holo congelou e seu lábio tremeu. Ela sacudiu o
dedo, lançando o pedaço de comida no ar. “Então agora você me trata
como uma criança?”
“De modo algum. Crianças realmente fazer o que lhes foi
dito.” Lawrence pegou um jarro de água gelada, tomando um gole,
então parou. “De qualquer forma, primeiro suponho que
perguntaremos ao estalajadeiro daqui. Ele pode ser velho, mas ainda é
o dono de uma estalagem.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 39 ⊱

Lawrence se levantou e vestiu o casaco como forma de


preparação. Quanto a Holo, ela se arrastou para fora da cama.
“Você vem comigo, certo?” Perguntou Lawrence.
“Sim, mesmo se você me afastar,” disse Holo. Enquanto brincava,
ela rapidamente vestiu a saia, a túnica e a capa com tanta facilidade que
Lawrence ficou encantado. A loba girou teatralmente e falou. “Se eu
bater palmas agora, o feitiço que lancei sobre você pode ser quebrado!”
Então era isso que ela estava fazendo.
Lawrence decidiu acompanhar a brincadeira.
“Hã? O que estou fazendo aqui? Oh, isso mesmo, estou em
Lenos, a cidade de madeira e pele. Eu deveria estocar peles e ir para
a próxima cidade,” ele falou, gesticulando exageradamente. Ele já
tinha visto uma parcela de trupes teatrais itinerantes.
Holo colocou as mãos na barriga e riu como se estivesse assistindo
uma grande comédia.
Depois de rir por um momento, ela correu até Lawrence, cuja
mão estava na porta do quarto, pronta para abri-la. “Oh, ei, você é um
mercador viajante? Eu tenho um bom olho para julgar a qualidade das
peles,” ela falou.
Lawrence pegou a mão dela e então abriu a porta,
respondendo: “Oh ho! Você tem um olhar perspicaz, é verdade. Mas
você pode julgar a qualidade de uma pessoa?”
As escadas rangiam na quieta manhã da estalagem.
Quando chegaram ao segundo andar, Holo fixou seu olhar em
Lawrence. “Eu tenho um feitiço maligno lançado sobre mim.”
Lawrence esboçou um sorriso rápido, como se perguntasse onde
ela queria chegar. “Acho melhor não bater palmas, para evitar quebrá-
lo,” disse ele.
“Você já bateu palmas uma vez.”
“Então você está dizendo que o feitiço está desfeito?”
CAPÍTULO I ⊰ 40 ⊱

Não havia como dizer onde estava a armadilha nessa conversa.


Era assim que Holo o extorquia para comprar seus doces.
Ele pensou em como evitar essa eventualidade ao passarem pelo
segundo andar, onde viu um casal de viajantes que evidentemente
adormeceram enquanto conversavam em frente à lareira.
Enquanto eles continuavam no primeiro andar, um puxão
na mão de Lawrence o tirou de seus devaneios.
Para ser mais preciso, Holo, que estava segurando sua mão
o tempo todo, parou de descer as escadas.
Ela olhou para ele, sorrindo suavemente por baixo
do capuz. “Então, você me lançará outro feitiço para que eu não
acorde?”
Era uma peça diabólica.
Sem dúvida, Holo ficaria satisfeito se Lawrence não
pudesse responder.
Mas Lawrence queria sair ganhando de vez em quando, então ele
se virou e pegou a mão dela novamente.
Em todo o mundo, havia apenas uma razão pela qual um
homem pegaria a mão de uma mulher dessa maneira.
Ele embalou sua mão pálida gentilmente, depois a beijou
levemente.
“Isso vai funcionar, milady?” Ele perguntou, sua pronúncia
apropriadamente arcaica.
Se ele não tomasse cuidado, o sangue correria pelo rosto,
arruinando o efeito.
Mas ele manteve a compostura e olhou nos olhos de Holo, que
eram largos e redondos como discos voadores.
“Venha, vamos lá,” disse ele, um sorriso finalmente aparecendo
em seus lábios — um sorriso ao mesmo tempo de reconhecendo que
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 41 ⊱

ele havia feito algo ridículo e de vitória por ter conseguido ganhar de
Holo.
Ele puxou levemente a mão dela, e ela desceu os degraus como
um boneco de corda.
O rosto dela estava abatido, e ele não conseguia entender
claramente sua expressão, mas ela parecia estar irritada.
Lawrence riu interiormente. Restringir seu
constrangimento valera a pena. Ele sentiu uma onda de triunfo, mas
depois Holo tropeçou como se tivesse pisado em falso, e ele
correu para pegá-la.
Assim que ele começou a rir, se perguntando se ela estava
frustrada demais para ficar de pé, ela o abraçou com força e sussurrou
em seu ouvido: “Esse é um feitiço muito forte, garoto tolo.”
Sua voz estava irritada, caprichosa.
Se Lawrence fosse a pessoa que era quando se conheceram, sua
mente teria ficado em branco ou ele simplesmente retornaria o abraço
dela.
No entanto, ele não fez nada e simplesmente sorriu, o que pensou
que seria apenas mais frustrante para ela.
Lá na vila de Tereo, Lawrence havia começado a abrir uma caixa
que continha uma verdade desconfortável — a verdade de que
esses dias felizes com Holo poderiam estar chegando ao fim em
breve. Mas ele não queria abrir a caixa por conta própria. Holo
também tinha a mão sobre ela.
Mas, na época, nenhum deles queria confrontar seu conteúdo,
então, por enquanto, a caixa permanecia fechada.
No entanto, havia algumas coisas que ele entendia.
Holo não queria enfrentar o problema a menos que precisasse.
CAPÍTULO I ⊰ 42 ⊱

Embora ele agora pudesse manter a compostura enquanto ela se


agarrava e sussurrava em seu ouvido, ele nunca imaginaria que poderia
ser de grande ajuda para ela.
Sua franja contra a bochecha dele ainda era reta e suave e cheirava
doce, embora intocada por qualquer perfume. Ela era tão fina que nem
sequer se preocupava em começar a contar os fios.
Holo finalmente percebeu que Lawrence não mostrara nenhuma
reação. Ela se afastou e olhou para ele.
“Quando você vai ficar devidamente perturbado?” Ela perguntou.
“Mm, de fato. Quando você para de fazer essas coisas, suponho.”
Holo foi extremamente rápida.
Ela logo adivinhou o significado das palavras dele e ficou
frustrada. “Você se tornou bastante inteligente, não foi?”
“Hum, talvez,” disse Lawrence, quando Holo o soltou
completamente, deu um suspiro suave pelo nariz e começou a
descer as escadas.
Se ela queria ver Lawrence perturbado, teria que provocá-lo, mas
se o que realmente o perturbava era quando ela deixava de fazê-lo,
então seu único recurso era se comportar.
Lawrence se permitiu um pouco de satisfação em sua reviravolta
habilidosa enquanto seguia Holo pelas escadas, mas quando ela chegou
ao fim, ela se virou.
“Sim, você certamente pegou jeito com as palavras. Quem será
que está te ensinando, eu me pergunto?”
O que mais surpreendeu Lawrence foi o sorriso dela. Era
estranhamente bem-humorado e caloroso o suficiente para derreter
uma mão gelada.
Ele tinha certeza de que ela estava irritada com ele, então essa
mudança repentina o colocou em guarda enquanto estava diante dela.
“Não — foi um golpe de sorte, só isso.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 43 ⊱

“Golpe de sorte?” Holo riu. “Isso é ainda melhor.” Ela parecia tão
satisfeita que, se ela fosse um filhote, sua cauda estaria abanando
rapidamente.
Sem compreender, Lawrence olhou para Holo quando ela pegava
a mão esquerda dele, entrelaçando os dedos.
“Quando eu parar de fazer essas coisas, hein?” Ela murmurou
novamente, se aproximando graciosamente dele.
Quando ela parar de fazer essas coisas...?
Lawrence sentiu uma sensação estranha quando ouviu as palavras
novamente.
No momento em que ele percebeu o outro significado que elas
tinham, ele congelou.
Holo riu. “Qual é o problema?”
Seu alto astral claro como a neve colidiu com a viscosidade
pantanosa de sua inteligência.
Lawrence não conseguia olhar para ela.
Era quando ela não brincava com ele que ficava frustrado.
O que foi que eu disse, ele queria gritar.
Ora, era o mesmo que declarar abertamente que ele queria a
atenção dela acima de tudo!
“O que é isso? Sua circulação parece ter melhorado,” disse Holo.
De fato, Lawrence não conseguiu parar o rubor que subiu ao seu
rosto.
Ele cobriu os olhos com a mão livre, querendo pelo
menos demonstrar alguma vergonha de que ele não tinha percebido as
verdadeiras implicações do que estava dizendo.
Holo, no entanto, não tinha intenção de deixá-lo fazer
isso. “Deus, não há necessidade de ter vergonha de palavras tão doces
e infantis.”
CAPÍTULO I ⊰ 44 ⊱

Swish, swish veio o som de sua cauda.


Ganhar da sábia loba em um duelo de palavras era
verdadeiramente um sonho impossível.
Holo riu. “Você certamente é adorável.”
Através dos espaços entre os dedos, Lawrence avistou o rosto de
Holo — em concha entre as mãos dela, exibindo
um sorriso infinitamente malicioso.

Arold evidentemente estava ocupado com alguma coisa nos


estábulos, por sorte ele não tinha ouvido a conversa tola de Lawrence
com Holo.
Não havia dúvida de que Holo sabia disso enquanto brincava com
Lawrence.
“Um cronista?” Perguntou Arold.
“Sim. Ou alguém que conheça os velhos contos da cidade.
Arold se sentou na cadeira de costume e bebia um vinho quente
em um copo formado a partir de uma folha de metal de fina. Ele
levantou a sobrancelha esquerda em curiosidade. Estava claro que ele
nunca esperou ouvir esse tipo de pergunta de um hóspede.
Mas enquanto outros proprietários certamente começariam a
indagar sobre os motivos do hóspede, Arold não o fez. Ele
apenas acariciou sua barba branca por um momento antes de
responder.
“Há um homem chamado Rigolo que faz essas coisas... mas,
infelizmente, ele está no Conselho dos Cinquenta agora. Duvido
que receba visitas.”
“O Conselho dos Cinquenta?” Perguntou Lawrence.
Arold serviu vinho quente em duas xícaras de barro, oferecendo-
as a Lawrence e Holo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 45 ⊱

Assim como o nome sugeria, o Conselho dos Cinquenta era um


conselho de cinquenta membros — representantes dos mercadores,
mercadores e nobres da cidade. Cada um deles representava seu
próprio clã ou associação comercial e defendia os interesses dessa
organização em vigorosos debates. O resultado desses debates decidia
o destino da cidade, de modo que cada representante carregava um
fardo pesado de responsabilidade.
Houve um tempo em que rolavam disputas políticas significativas
em torno de assentos no conselho, mas uma grande praga alguns anos
atrás evidentemente deixou muitos assentos vazios.
“Você não viu o estado das coisas fora da cidade...?”
Perguntou Arold.
“Nós vimos. O acampamento dos mercadores, não é? Se isso está
relacionado ao Conselho dos Cinquenta, então há algum problema
na cidade?”
Holo colocou o vinho oferecido nos lábios, mas congelou pouco
depois.
Sem dúvida, sua cauda estava inchada no mesmo instante. Não
havia como prever a qualidade de uma bebida de uma nova região.
“São as peles, entende,” disse Arold.
“As peles?” Lawrence perguntou, subitamente animado. Um
calafrio percorreu sua espinha com a menção da palavra. Não era
por estar preocupado com Holo — longe disso. A palavra era tão
familiar para ele que sentiu uma reação visceral com a repentina
lembrança do que passara tanto tempo buscando — lucro.
Mas Arold continuou como se não tivesse ouvido a
pergunta. “Rigolo é o secretário do conselho,” disse
ele. Aparentemente, ele não queria discutir a reunião do conselho, e
Arold não era uma pessoa particularmente eloquente para começar. “E
você está procurando por pessoas que sabem contos antigos, então,”
ele terminou.
CAPÍTULO I ⊰ 46 ⊱

“Er, sim. Você conhece alguém?” Ele não podia deixar a


antecipação aparecer em seu rosto.
A autodisciplina de Lawrence parecia ter
funcionado. Os olhos azuis de Arold, quase enterrados nas rugas do
rosto, olharam para longe. “A avó de Bolta, o curtidor, era uma velha
sábia... mas morreu na praga há quatro anos.”
“E não há outros?”
“Outros? Mm... o velho do Latton Company, mas não, o calor do
verão do ano passado o deixaram...” Arold baixou seu copo com um
baque.
Lawrence notou Holo olhando para Arold, provavelmente por
causa do som que acabara de fazer.
“Suponho que a antiga sabedoria da cidade só exista na forma
escrita agora,” disse Arold, horrorizado ao perceber o fato enquanto
continuava olhando para algum lugar distante, acariciando sua barba.
Lawrence percebeu que, sob as vestes, o corpo de Holo
se contorcia de surpresa.
Não havia ninguém que tivesse conhecimento direto sobre. A
própria Holo era essa sabedoria esquecida.
Lawrence esqueceu imediatamente a emoção que sentira um
momento atrás e, sem palavras, colocou a mão nas costas de
Holo. “Então isso significa que não temos outro recurso senão ir até o
Sr. Rigolo e pedir que ele nos mostre as crônicas?”
“Suponho que sim… Os meses e anos destroem até a edifícios
de pedra, para não falar dos escritos dos homens. É
uma coisa terrível...” Arold balançou a cabeça, fechando os olhos e
ficando em silêncio.
O velho era recluso quando Lawrence o conheceu, e parecia que
a tendência só se aprofundava com o tempo.
Lawrence não pôde deixar de se perguntar se era o som cada vez
mais claro da aproximação da morte que provocava isso.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 47 ⊱

Decidindo que novas conversas só trariam problemas, Lawrence


terminou o vinho restante em um único gole e, convidando Holo a ir
na frente, ele saiu.
Em uma reviravolta repentina comparado ao dia anterior, a rua
estava movimentada e o sol que brilhava à esquerda de Lawrence
era reluzente o suficiente para deixá-lo brevemente tonto.
Ele ficou ali, ainda na calçada da rua e olhou para Holo.
Ela parecia desanimada.
“Vamos encontrar algo para comer?” Até Lawrence achou que essa
era a pior coisa que poderia ter dito, mas as coisas estavam tão difíceis
no momento que tudo estava revirado de ponta cabeça.
Sob o capuz, Holo deu um suspiro sofrido e sorriu. “Você deve
melhorar seu vocabulário,” ela falou, puxando a mão de Lawrence.
Aparentemente, ele não precisava se preocupar se ela começaria
algo aqui no meio da multidão.
No momento em que Lawrence foi puxado, a porta da estalagem
se abriu mais uma vez.
“...”
Foi o estranho de antes que apareceu.
O homem era a própria imagem de um viajante ocupado, mas
quando olhou para Lawrence e Holo, ele congelou, visivelmente
surpreso.
“...Perdão,” foi tudo o que ele disse em voz alta e rouca depois de
um momento, e depois imediatamente desapareceu na multidão.
Lawrence olhou para Holo só para ter certeza de que suas orelhas
e cauda não estavam visíveis. Ela inclinou a cabeça levemente.
“Pareceu um pouco surpreso em me ver,” disse Holo.
“Certamente ele não suspeita que você não é humana.”
CAPÍTULO I ⊰ 48 ⊱

“Não foi essa a sensação que ela me passou. Talvez ela tenha
apenas ficado surpresa com a minha beleza.”
“Certamente não,” respondeu Lawrence, sorrindo para Holo,
cujo peito estava estufado com orgulho exagerado. “Espere,”
acrescentou. “Ela?”
“Hmm?”
“Era uma mulher?”
O olhar de quem já havia viajado muito e a voz rouca da
estrangeira o fizeram assumir o contrário, mas Holo dificilmente
poderia estar errada sobre essas coisas.
Lawrence olhou na direção em que ela desapareceu e se perguntou
o que uma mercadora de viagens poderia estar vendendo quando
sentiu outro puxão em sua mão.
“O que exatamente faz você pensar que é aceitável ficar do meu
lado enquanto encara outra mulher assim?”
“Você precisa ser tão direta? Uma reclamação mais sutil
seria muito mais encantadora.”
“Você é tão idiota que nunca entenderia a menos que eu
falasse claramente,” respondeu Holo sem vacilar, com desprezo em
sua voz.
Dada a conversa anterior, era realmente triste Lawrence não
poder negar.
“Então, o que faremos a seguir?” perguntou Lawrence, pondo
fim à conversa tola. Eles precisavam planejar o dia.
“Será difícil se encontrar esse homem — qual era o nome dele?”
“Rigolo ou algo assim. Se ele é o secretário do conselho, pode
muito bem ser difícil, embora isso dependa exatamente do que
o conselho está fazendo...” disse Lawrence, coçando a barba recém-
feita.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 49 ⊱

Holo deu um passo à frente. “Está claro o suficiente na sua


cara que você está desesperado para saber do que se trata essa reunião.”
“Está?” perguntou Lawrence, acariciando a barba. A expressão de
Holo quando ela olhou por cima do ombro para ele era mesquinha.
“Então, vamos vagar pela cidade até que a reunião seja encerrada,
eu suponho.”
Lawrence sorriu. “Os poderes de observação da sábia loba
são realmente fortes. Estou morrendo de vontade de saber o que está
acontecendo com esta cidade. Não é só isso, eu...”
“Você quer transformar isso em lucro.”
Lawrence se atrapalhou. Holo inclinou a cabeça para ele e sorriu.
“Seja o que for, é sério o suficiente que eles distribuam essas placas
de madeira. Algo interessante deve estar acontecendo,” disse
Lawrence, tirando do bolso de trás a placa de registro de mercador
estrangeiro.
“Mesmo assim, me deixe dar um aviso,” disse Holo.
“Hmm?”
“Tente se conter.”
Era difícil rir das palavras de Holo, pois até agora haviam passado
por sequestros, perseguições em esgotos, enfrentado falências e, mais
recentemente, envolvidos em uma disputa gigante.
“Eu vou,” respondeu ele, e a sábia loba que estava tão adorável até
alguns instantes atrás, ficou subitamente zangada.
“Eu tenho minhas dúvidas,” ela falou.
Diante de sua repentina suspeita, Lawrence tinha apenas um
recurso.
Ele pegou a mão dela e usou toda a sua habilidade. “Então vamos
ver os pontos turísticos da cidade?”
CAPÍTULO I ⊰ 50 ⊱

O efeito de beijar a mão dela na escada um momento antes parecia


estar diminuindo. Ou era isso ou a situação apenas se inverteu.
Mesmo assim, Holo parecia lhe dar um olhar de
aprovação. Fungando, ela ficou ao lado de Lawrence. “Eu suponho que
sim.”
“Entendido, milady.”
Lawrence refletiu que, se ele mesmo, meio ano antes, pudesse vê-
lo agora, ficaria aterrorizado.
“Então, quais são os pontos turísticos? A cidade mudou tanto que,
na verdade, mal me lembro de ter vindo aqui.”
“Vamos para as docas. Ouvi dizer que os navios só se tornaram
muito importantes recentemente. Não deve ser tão grande quanto as
docas à beira-mar, mas acho que ainda se destacam.”
Ele segurou a mão de Holo com mais força e começou a andar.
Quem foi que disse que andar com alguém era lento e
incômodo? Enquanto caminhava com Holo ao lado dele, Lawrence
pensou nisso e sorriu.
em, suponho que as coisas sejam assim,” murmurou
Lawrence.
“Hmm?” Holo olhou para ele, seu rosto meio escondido
pelo copo do qual ela bebia.
“Nada. Não derrame isso.”
“Mmm.”
Holo bebeu seu copo da famosa cerveja forte de Lenos e
depois pegou um marisco ligeiramente carbonizado.
Os mexilhões que foram retirados do rio que passava por Lenos,
o Roam, eram do tamanho da mão de Holo. Uma iguaria famosa na
cidade era feita pegando a carne macia dos mexilhões, misturando-a
com migalhas de pão e servindo-a na concha. Servida com sementes de
CAPÍTULO II ⊰ 52 ⊱

mostarda, era difícil imaginar um acompanhamento mais refinado para


uma boa cerveja.
Holo soltou um grito de prazer ao ver as muitas barcas ancoradas
ao longo da curva do porto, mas seu coração logo foi roubado pelos
aromas deliciosos que pairavam sobre dos vendedores de alimentos,
que tinham suas barracas montadas para alimentar passageiros
famintos. Estivessem eles começando ou terminando suas viagens.
Eles se sentaram em uma mesa construída com caixas de madeira
velhas; na frente de Holo havia três porções de mexilhões, além das
duas cervejas que ela já havia drenado.
Lawrence suportou um olhar desagradável de Holo quando
pediu vinho quente, não muito diferente do que Arold bebia antes.
Com essa acidez, tudo o que ele precisava agora era tempo
de apreciar adequadamente o vinho.
“Ainda assim, à primeira vista, não parece haver
nenhum problema em particular com a cidade,” disse Lawrence.
Caixas do tamanho de um homem estavam sendo descarregadas
por grupos de mercadores, que imediatamente começaram a discutir
sobre o conteúdo, qualquer que fosse ele.
Um porto desse tamanho movimentava uma quantidade
impressionante de mercadorias. E mesmo sem o porto, ficava claro
desde a primeira vista que uma cidade como essa exigia uma
concentração maciça de materiais.
Não era apenas a comida necessária diariamente. Por exemplo,
a indústria madeireira precisava não apenas de madeira, mas também
de ferramentas — serras, cinzéis, pregos, martelos — portanto,
metalúrgicos viriam à cidade para reparar e manter essas
ferramentas. A embalagem e o transporte terrestre de madeira
precisavam de corda, couro e cavalos ou burros, além do cuidado
exigido pelos animais — a lista continuava sem parar.
Além disso, o simples fato da cidade ser um porto significava que
os construtores de navios e suas ferramentas eram um comércio ativo,
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 53 ⊱

assim como os próprios navios. Somente uma divindade onisciente


poderia esperar compreender as quantidades e variedades de bens
envolvidos.
Olhando para a avassaladora vivacidade e energia desta cidade
portuária diversa, quaisquer pequenos problemas sutis seriam
imediatamente perdidos na confusão.
Usando uma faca que havia pegado emprestado de Lawrence,
Holo habilmente pegou o molusco picado da concha e enfiou na boca,
examinando o ambiente ao ouvir as palavras de Lawrence. Ela então
tomou um gole de cerveja. “De longe, a floresta pode parecer calma,
mesmo quando duas matilhas de lobos estão em uma feroz batalha
por território dentro dela.”
“Mesmo com seus olhos e ouvidos, você não pode perceber isso
de longe?”
Holo não respondeu imediatamente, olhando para baixo com um
olhar exageradamente grave e contraindo os ouvidos sob o capuz.
Normalmente, Lawrence ficaria impaciente com Holo, que o
provocaria, mas hoje ele tinha seu vinho quente. Ele tomou um gole e
esperou a resposta dela.
“Está vendo aquilo ali?” Ela perguntou depois de um tempo,
apontando com a faca para um homem cercado por algum tipo de
vapor. O homem se encostou em um balde grande, da altura da
cintura, que havia sido cheio até a borda com rochas finamente
esmagadas. Ele era musculoso e não era difícil imaginá-lo como um
pirata.
Ele fez uma careta, e o objeto dessa carranca era
um mercador magro segurando um pacote do que poderia ser pele de
carneiro.
Lawrence assentiu em resposta à pergunta de Holo.
“O homem está com raiva,” disse ela com seriedade.
“Oh?”
CAPÍTULO II ⊰ 54 ⊱

“Parece que o imposto sobre a carga do navio foi muito alto e


ele não quer entregar as mercadorias pelo preço original. Algo sobre
o preço da cabeça?”
“Um imposto de reféns. Porque os navios que sobem o rio são
essencialmente reféns do proprietário dessa parte do rio.”
“Mm. De qualquer forma, a resposta do sujeito magro é a
seguinte: “A cidade está em crise porque os militares não realizaram
sua campanha no norte este ano.” Ele está dizendo que eles deveriam
ficar gratos por receber algum dinheiro.
Todo inverno, a Igreja financiava uma grande campanha
militar nas terras do norte, como uma maneira de mostrar seu poder,
mas havia uma sombra sobre o relacionamento entre a Igreja e a nação
de Ploania, pela qual sua campanha passava, de modo que
a incursão deste ano foi cancelada. Como consequência, Lawrence
havia sido levado à beira da falência.
Lawrence olhou para Holo um pouco surpreso. Ela continuou a
ouvir atentamente, a cabeça baixa e os olhos fechados.
Então Lawrence olhou para os dois homens. Mesmo a
essa distância, ele podia ver o mercador dar ao marinheiro o que
parecia ser sua palavra final sobre o assunto.
“‘Nesse caso, você e essas peles podem esperar o resultado da
reunião,’” disse Holo, abrindo os olhos.
Era exagero considerar que ele estava dependendo demais de
Holo? Lawrence se perguntou.
“Existem muitas conversas como esta. Eu diria... umas quatro. Os
impostos estão muito caros. Campanha do norte. Importações da
cidade — e assim por diante.” Holo raspou a carne de um molusco
enquanto falava. Quanto mais carne se acumulava na lâmina da faca,
mais sua atenção se voltava para ela.
No momento em que ela finalmente trouxe o monte de carne à
boca, a lâmina poderia o mundo inteiro para ela.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 55 ⊱

“Agora que você mencionou... acho que não há como uma


cidade que se apoia na distribuição de mercadorias não sentir os efeitos
de uma campanha cancelada no Norte. Foi assim que tive problemas
em Ruvinheigen. Mas qual é a relação entre isso e o acampamento de
mercadores fora da cidade?” Ponderou Lawrence.
Se as condições na cidade fossem anormais, surgiriam
oportunidades de negócios anormais.
Lawrence ficou perdido em pensamentos profundos, até que Holo
deu um arroto vulgar e bateu na mesa.
“Você quer pedir mais?”
A atenção de Lawrence foi totalmente capturada pela situação
em Lenos. Um rápido cálculo de custo-benefício deixou claro que se
ele conseguisse fazer Holo ficar quieta ou talvez até mesmo o ajudar
com suas suposições, comprar uma ou duas bebidas para ela era uma
pechincha.
Ele acenou para o lojista e fez outro pedido, quando Holo deu um
sorriso satisfeito, inclinando a cabeça.
“Eu ouso dizer que o vinho que você acabou de pedir foi por sua
própria vontade do que a minha.”
“Mm?”
“Minha bebida me deixa bêbada, mas a sua tem um efeito
completamente diferente.” Seu rosto satisfeito tinha um leve rubor.
Evidentemente, ela havia notado que, embora Lawrence
geralmente hesitasse e franzisse a testa, desta vez ele pediu outra
rodada para ela sem nenhum problema.
“Sim, mas é preciso dinheiro para comprar bebidas alcoólicas,
enquanto fica bêbado com as possibilidades de negócios diante de seus
olhos.”
“E você certamente está pensando que, se eu parar de uivar ou
me dignar a ajudá-lo, uma bebida ou duas seria um preço pequeno a
pagar, não é?”
CAPÍTULO II ⊰ 56 ⊱

Ela era uma gigante do tamanho de uma garota.


Lawrence resumiu seus pensamentos para Holo, que tinha um
pouco de espuma de cerveja no canto da boca.
“Ah, embora seja divertido vê-lo confundir as coisas, vou ficar
sentada aqui bebendo e olhando de lado,” disse Holo.
Quando o pedido de vinho e mexilhões quentes e
crepitantes chegou, Lawrence entregou algumas moedas ryut de cobre
desgastadas ao lojista, olhando fixamente para Holo. “Eu imagino que
devo olhar para você de vez em quando para garantir que não tenha
desaparecido?”
Ele passou o copo cheio de cerveja para Holo, que sorriu. “…Boa
ideia.”
Holo era uma aluna difícil de lidar, então Lawrence tomou isso
como um elogio. “Obrigado,” ele disse sabiamente.

Um pouco antes do meio dia, Lawrence acabou andando por


Lenos sozinho.
Holo se surpreendeu com o grau que o cansaço da viagem que
ainda persistia foi ampliado pelos efeitos do álcool. Ela conseguia se
levantar com facilidade, mas estava com tanto sono que não conseguia
fazer nada além disso.
Lawrence a levou de volta para a estalagem, lamentando e se
divertindo ao mesmo tempo.
Parte de Holo odiava a ideia de Lawrence se meter no que estava
acontecendo nesta cidade. Olhando para as experiências deles até
agora, Lawrence não podia realmente discordar dela, mas se olhasse
ainda mais para trás, para experiências anteriores ao seu tempo
com Holo, era ainda mais difícil ficar parado.
Assim, era bastante conveniente poder passear pela cidade como
quisesse.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 57 ⊱

Não que ele tivesse conhecidos particularmente próximos aqui.


Depois de um momento se debatendo, Lawrence finalmente
decidiu ir para uma taberna com a qual já havia feito negócios.
Era um estabelecimento com o nome estranho de A Besta e Rabo
de Peixe. Um grande letreiro de bronze em forma de roedor pendia
dos beirais. A criatura curiosa e inteligente que ele representava,
construía represas nos rios e tinha o corpo de um mamífero — exceto
por sua cauda larga e plana e pés traseiros como palmilhas, que faziam
com que a Igreja a declarasse como peixe.
Assim, apesar do delicioso e saboroso cheiro de carne que saía da
taberna, atraía um número significante de clérigos. Não importa
quanto “peixe” eles comessem, ninguém poderia criticá-los.
Embora a capacidade da taverna de servir essa carne rara a tornasse
popular à noite, a essa hora, ainda não era meio-dia, até A Besta e Rabo
de Peixe estava praticamente vazia. Não havia clientes, apenas
uma vendedora sentada em uma mesa no canto, costurando o avental.
“Vocês estão abertos?” Lawrence perguntou da entrada.
Um pedaço de linha presa no canto da boca, a garota ruiva
levantou o avental para examinar seu trabalho sorrindo. “Acabei de
consertar um buraco. Dá uma olhada?” disse a moça em resposta.
“Melhor não. Você sabe o que eles dizem, ‘olhos são como
punhais.’ Se eu olhar muito de perto, sou capaz de abrir novos
buracos.”
A garota guardou a agulha em uma caixa de costura, depois se
levantou e amarrou o avental recém-consertado, balançando a cabeça
com a piada. “Então, o motivo pelo qual meu avental está desbotado é
porque os clientes vivem olhando para ele e não para mim?”
Sem dúvida, a garota lidava com muitos clientes bêbados.
Mas, como mercador, Lawrence não podia simplesmente perder
esse pequeno duelo de inteligência.
CAPÍTULO II ⊰ 58 ⊱

“Tenho certeza de que eles estão apenas sendo atenciosos — eles


não desejam arruinar sua beleza abrindo uma nova narina em seu nariz,
afinal.”
“Oh? Que pena. Isso poderia me ajudar a
farejar clientes suspeitos um pouco mais facilmente,” disse a garota
tristemente ao terminar de apertar o avental.
Lawrence cedeu, derrotado. Ele tinha que dar crédito à garota.
Ela riu. “Acho que é verdade que os clientes de fora da
cidade realmente são diferentes. Então, o que deseja? Vinho? Uma
refeição?”
“Dois rabos de peixe. Embrulhados, por favor.”
Um olhar momentâneo de preocupação passou pelo rosto da
garota, provavelmente por causa dos sons de panelas que saíam
da cozinha.
Provavelmente estavam preparando os almoços para servir à
pressa para os trabalhadores que logo chegariam das docas.
“Não tenho pressa,” disse Lawrence.
“Talvez um pouco de vinho, então?”
Em outras palavras, ele estava disposto a esperar?
Lawrence sorriu com a perspicácia nos negócios da garota, depois
assentiu.
“Temos cevada e vinho de uva, além de pera.”
“Vinho de pera nesta época do ano?”
Vinho de frutas estragava rapidamente.
“Por alguma razão, nunca ficou ruim no armazenamento. Opa...”
disse a garota, cobrindo a boca com um gesto exagerado.
A taberna sempre estava lotada quando Lawrence a visitara antes,
então ele nunca teve uma conversa adequada com essa garota, mas
agora era fácil ver que a taberna devia muito do seu sucesso a ela.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 59 ⊱

“O de pera, então.”
“Já está saindo! Só um momento, por favor.” Ela desapareceu no
fundo da taverna, sua saia — que era de um vermelho escuro e cinza
que tornava impossível conhecer sua cor original — tremulando atrás
dela.
Uma garçonete inteligente e alegre como ela em uma cidade
portuária como essa poderia acabar como a esposa do segundo filho de
um mercador de sucesso, com muitos navios em seu nome.
Ou ela poderia tratar friamente qualquer homem rico
ou rapaz bonito que a viesse cortejar, e se apaixonar por
um mercador completamente normal que conhecesse na taverna.
Quando se tratava de saber para onde uma mercadoria
comprada deveria ser levada, Lawrence tinha alguma ideia, mas esse
tipo de coisa estava fora de sua área de especialização. Se ele
perguntasse a Holo, ela provavelmente poderia ter dito a verdade, mas
isso era frustrante de certa forma.
“Aqui está. O resto vai demorar um pouco, mas isso lhe dará a
chance de fazer qualquer pergunta que possa ter.”
Ela realmente era uma garota inteligente.
Se ele conseguisse fazer com que ela falasse com Holo, seria
uma conversa magnífica.
“Os mercadores que chegam aqui a essa hora do dia realmente têm
apenas uma coisa em mente. Se for algo que eu possa responder,
ficarei mais do que feliz,” disse a garota.
“Vou pagar primeiro.”
Lawrence largou duas moedas de cobre escuro antes de pegar o
copo de vinho de pera.
Nesta taberna, um cobre era suficiente para dois ou três copos.
O rosto da garota era a própria imagem de uma garçonete de
taverna. “E?”
CAPÍTULO II ⊰ 60 ⊱

“Ah, sim, bem, não é nada sério. A cidade parece um pouco


diferente do normal. Suponho que devo perguntar sobre o
acampamento de mercadores do lado de fora dos muros.”
Dada a generosidade da gorjeta, a garota provavelmente deveria
receber informações privilegiadas de uma das empresas
comerciais. Ela pareceu aliviada ao ouvir a pergunta de Lawrence.
“Oh, eles. Todos eles negociam peles ou produtos relacionados a
peles.”
“Peles?”
“Sim. Cerca de metade deles vieram de longe para comprar
peles. A outra metade trata dos materiais necessários para o curtume
e o tratamento de peles. Vejamos…”
“Cal e alume?”
Eles eram os materiais mais comuns necessários para o trabalho
de curtume. Estranhamente, excrementos de pombos também eram
utilizados. Se as peles fossem tingidas, seria necessário muito mais
bens.
“Isso mesmo.”
Lawrence lembrou das palavras de Arold.
Não havia dúvida de que a reunião do Conselho dos Cinquenta
tinha algo a ver com o comércio de peles.
“E você queria saber por que todos esses mercadores estão
acampados lá fora, certo? Bem, neste momento, todos os líderes da
cidade estão se reunindo para decidir se vendem ou não peles para
eles. No geral, compra e venda de peles é proibido. Então,
naturalmente, os artesãos não sabem se faz sentido comprar
algum material necessário para o curtume, é neste que estamos agora.”
Depois de ter sido questionada várias vezes, a
garota provavelmente estava acostumada a explicar o assunto. Mas se
fosse verdade, a situação era grave.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 61 ⊱

“Então, o que causou isso?” Perguntou Lawrence,


esquecendo completamente o vinho de pera.
“Essa coisa, você sabe, onde muitas pessoas vão no inverno.”
“A campanha do norte.”
“Certo, isso. Foi cancelado, então eles dizem que nenhuma
das pessoas que normalmente compram roupas de couro está vindo
esse ano. Normalmente, haveria muito mais pessoas nesta cidade nesta
época do ano.”
Quando as pessoas vinham, também traziam moedas. As peles do
norte eram especialmente populares no Sul, por isso serviam como
excelentes presentes.
Mas por que, então, havia uma reunião discutindo se deveria
proibir completamente o comércio de peles?
Os mercadores não estavam acampados em frente à cidade
para comprar peles? Mesmo sem o boom normal das vendas de roupas
de couro que vinha com a campanha do norte, eles não deveriam
vender para os compradores haviam chegado?
Ele precisava de mais informações.
“Entendo que as pessoas que geralmente compram roupas de
couro não estão por aí este ano, mas não deveriam vender para os
mercadores fora da cidade?” Perguntou Lawrence.
A garota olhou para o copo intocado de vinho de pera na mão de
Lawrence e com um sorriso gesticulou para ele beber.
Ela tinha um entendimento instintivo de como incitar um homem.
Se ele tentasse resistir, ela ficaria irritada ou flertaria com ele.
Ele humildemente colocou o copo nos lábios, com isso a
garota sorriu como se dissesse: Boa resposta. Cavaleiros e
mercenários, eles são livres para usarem suas moedas. Mas os
mercadores que chegavam à cidade eram tão avarentos quanto eles. Ela
brincou à toa com as duas moedas de cobre que Lawrence havia
CAPÍTULO II ⊰ 62 ⊱

entregado. “Me deram coisas, vestidos excessivamente babados como


os que a filha de um nobre usaria, vestidos muito caros. Mas…”
“Oh,” Lawrence murmurou. Quando ele estava bebendo
com Holo, sua cabeça estava embaçada pelo vinho. “Agora eu
entendo. Antes de transformar em roupas, as peles são
surpreendentemente baratas. Mas uma vez que elas são transformadas
em roupas, elas não vendem — o dinheiro que entra na cidade
diminui,” disse ele.
A garota sorria angelicamente como uma santa com um pedinte
suplicante diante dela, como se dissesse, “Muito bem.”
Com isso, Lawrence pôde ver a base da situação.
No entanto, antes que pudesse dar um passo atrás e confirmar
todos os detalhes, a garota de repente se inclinou sobre a mesa.
Segurando suavemente uma das moedas de cobre no peito, sua
expressão mudou. “Até agora, você podia ouvir isso de qualquer um
em qualquer taberna da cidade,” disse ela, suas palavras ficando um
pouco vulgares enquanto o olhava de baixo, com o queixo para
frente. Lawrence tentou olhá-la, mas sua postura naturalmente atraiu
seu olhar para suas esbeltas e bem torneadas clavículas.
A moça certamente entendia como pressionar um consumidor
embriagado.
Lawrence lembrou a si mesmo que isso era sobre negócios.
“Afinal, é preciso tratar adequadamente os clientes generosos,”
disse a garota. “Vamos manter o que estou prestes a dizer
entre nós dois, tudo bem?”
Lawrence assentiu, fingindo estar totalmente absorvido
pelas ações da garota.
“Há uma chance de oito ou nove a cada dez de que os
mercadores fora da cidade sejam proibidos de comprar peles, embora
eu tenha certeza de que os artesãos e os corretores de peles ficarão
zangados.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 63 ⊱

“Como você sabe disso?” Lawrence perguntou.


A garota apenas fechou a boca tentadoramente.
A intuição de Lawrence disse que a fonte de informação da garota
era sólida. Era provável que um membro do Conselho dos
Cinquenta também fosse patrono da taberna, mas ela, é claro, não
podia dizer isso.
Ela nem explicou esse fato, já que sua declaração não passara de
uma conversa consigo mesma, e era impossível avaliar sua veracidade.
De certa forma, ela poderia estar testando Lawrence, caso
contrário, dificilmente deixaria escapar informações tão vitais.
“Sou uma simples garçonete, então me importo pouco com o
preço das peles, mas mercadores como você gostam dessas coisas para
acompanhar sua cerveja, não é?”
“Sim, gostamos tanto que as vezes bebemos demais,”
disse Lawrence com seu melhor sorriso de mercador.
A garota sorriu levemente, seus olhos se fechando. “Uma boa
taberna envia todos os seus clientes para casa bêbados. Eu ficaria
satisfeita se você estivesse entre eles.”
“Bem, eu bebi meu vinho, então eu tenho certeza que vou sentir
isso em breve.”
A garota abriu os olhos.
O sorriso estava em seus lábios, mas não chegava em seus olhos.
Lawrence estava prestes a abrir a boca para falar, mas uma voz da
cozinha chamou a garota.
“Ah, parece que sua comida está pronta,” disse ela, se levantando
da cadeira e voltando a ser a garçonete que era quando
Lawrence entrou pela primeira vez na taberna. “A propósito, senhor,”
disse ela, olhando por cima do ombro antes de sair da mesa.
“Sim?”
“Você tem uma esposa?”
CAPÍTULO II ⊰ 64 ⊱

Lawrence ficou momentaneamente surpreso com


a pergunta inesperada, mas talvez graças a Holo constantemente
jogando armadilhas sobre ele, ele foi capaz de se recuperar e
responder. “As cordas da minha bolsa de moedas não estão
amarradas. No entanto... minhas rédeas estão firmemente seguras,”
ele respondeu.
A garota sorriu amplamente como se estivesse conversando com
um amigo. “Meu Deus, mas isso é frustrante. Tenho certeza de que ela
também é uma boa pessoa.”
Ela parecia ter algum orgulho em sua capacidade de persuadir
seus clientes bêbados.
E até Lawrence poderia ter sido atraído facilmente se ele não
conhecesse Holo — ou estivesse um pouco mais bêbado.
Mas se ele dissesse isso, seria como esfregar sal no orgulho
ferido da pobre garota.
“Se você tiver a chance, traga-a para a taverna,” disse ela.
“Sim,” disse Lawrence, e ele falava sério.
Uma conversa entre essa garota e Holo seria algo bom de se ver,
embora, como espectador, ele poderia ser sugado para algo terrível.
“Espere um momento, então. Eu vou pegar sua comida.”
“Muito obrigado.”
A garota voltou para a cozinha, a saia tremulando novamente atrás
dela.
Lawrence a observou partir enquanto levava o copo de vinho de
pera aos lábios.
Até outras pessoas sabiam, ele percebeu, que Holo era
muito importante para ele.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 65 ⊱

Segurando o pacote quente de carne de rabo de peixe embrulhado


em um pano, Lawrence desceu a larga avenida que corria ao longo das
docas para dar uma outra olhada nos barcos ancorados por lá.
Com as novas informações da garçonete, as barcaças realmente
pareciam um pouco diferentes.
Olhando atentamente, Lawrence pôde ver como haviam sido
usados tecidos de palha ou de cânhamo para cobrir as mercadorias
empilhadas no convés dos barcos, e muitos dos próprios barcos
estavam bem amarrados ao cais, como se não esperassem sair tão
cedo. Alguns deles, é claro, estavam apenas passando o inverno na
cidade, mas o número parecia um pouco alto para que essa fosse a
única explicação. Em um palpite, esses eram os barcos que carregavam
peles ou os materiais necessários para processá-las.
O volume de transações de peles em Lenos era grande o suficiente
para ser chamado de cidade da madeira e peles.
Sendo um mero mercador viajante, Lawrence não
conseguia estimar facilmente a quantidade total de peles
comercializadas na cidade, mas se um mercador comprasse um único
barril de peles de esquilo, que poderia chegar a 3.500, até 4.000
peles. O fato de tais barris estarem rolando constantemente pela
cidade o fez se sentir fraco.
Que tipo de impacto profundo o congelamento do comércio de
peles causaria na cidade?
Mas ele conseguia entender os esforços de Lenos para tentar
coletar o máximo de impostos possível, e o fato era que os mercadores
estrangeiros que compravam apenas peles cruas em vez de roupas
deixavam muitos artesãos da cidade para trás. Era de conhecimento
geral que em qualquer empresa, itens processados da matéria-prima
tinham margens de lucro muito melhores.
No entanto, com as campanhas do norte canceladas, a falta de
viajantes do sul significava que não havia absolutamente nenhuma
CAPÍTULO II ⊰ 66 ⊱

garantia de que haveria alguma maneira de transformar esses bens em


moedas.
Deixando de lado a qualidade das peles e a qualidade do curtume,
havia inúmeras cidades cujo artesanato era superior ao de Lenos. Pegar
as roupas que normalmente teriam saído das prateleiras como
lembranças e, em vez disso, pagar os custos de remessa envolvidos na
exportação para outra cidade, geraria uma dificuldade significativa.
Lawrence achava que, do ponto de vista da cidade, seria melhor
se decidissem seguir em frente e vender as peles para os mercadores
que esperavam, mesmo que tivessem que superar a resistência dos
artesãos para fazê-lo.
Pelo menos assim, eles poderiam conseguir lucro com as peles. A
razão pela qual tantos mercadores se reuniam em Lenos era por causa
das peles de alta qualidade que vinham para a cidade. Tais peles
exigiam um preço justo.
Mas a garçonete havia dito que o Conselho dos Cinquenta
havia proibido a compra de peles.
O que deixava apenas algumas possibilidades.
Para começar, era estranho que os mercadores estivessem
acampados fora da cidade.
Os mercadores alegremente levariam outra pessoa à ruína
se tivessem decidido que isso traria lucro, então era inimaginável que
um grande grupo deles simplesmente se reuniria esperando
pacientemente.
Havia claramente alguma outra autoridade em ação aqui.
Mas se era uma gigante guilda dos alfaiates com sede em
uma cidade famosa por seus produtos de alfaiataria do outro lado do
mar ocidental ou alguma empresa estonteante e massiva tentando
monopolizar o comércio de peles, Lawrence não sabia.
Fosse o que fosse, exercia um tremendo poder.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 67 ⊱

E as mentes que governavam Lenos sabiam


disso, concluiu Lawrence, enquanto passava pela entrada das docas e
se misturava na confusão.
Os mercadores de fora da cidade estavam sem dúvida negociando
suas partes.
“Você estará em uma situação difícil se não vender suas peles,”
eles diziam. “Vamos comprá-las para você? Embora isso por si só não
valha para sempre. E se viermos no próximo ano e no ano seguinte?”
Se Lenos aceitasse isso, ela não passaria de um lugar onde as peles
eram recolhidas e depois passadas adiante. E uma vez que
isso acontecesse, a consolidação do próprio pelo seria
eventualmente tomada por alguém de fora e removido da cidade.
No entanto, a razão pela qual as pessoas da cidade não
simplesmente afastavam os mercadores não era apenas por causa da
oposição dos artesãos.
Este problema não parava na cidade; envolvia a nobreza da terra à
qual a cidade também estava conectada. Quando um problema
econômico se tornava político, a quantidade de dinheiro necessária
para resolvê-lo aumentava em três, às vezes em quatro dígitos.
Esta era uma batalha entre titãs, onde as expectativas de
mercadores individuais eram totalmente insignificantes.
Lawrence coçou a barba.
“A quantidade de dinheiro envolvida deve ser incrível,” disse ele
para si mesmo. Ele não falava sozinho havia algum tempo, e a sensação
era boa, como tirar os sapatos que haviam sido usados por uma
semana.
Quanto maior a quantidade de dinheiro em jogo, maiores serão as
sobras.
E a alquimia de um mercador permitia que ele transformasse as
complicadas relações entre bens e pessoas em uma fonte
da qual jorraria dinheiro.
CAPÍTULO II ⊰ 68 ⊱

Ele imaginou uma folha de pergaminho amarelado em sua mente.


Nela, desenhava esboço após esboço da situação dos pelos,
e gradualmente a página se tornou um mapa do tesouro.
Então, onde estava o tesouro?
Quando ele fez a pergunta, lambendo os lábios,
a mão esquerda alcançou a porta do quarto da estalagem e a abriu.
“...”
Ele quase não se lembrava de quando voltara para a estalagem,
mas não foi por isso que ficou em silêncio.
Holo, talvez descansada depois de uma soneca, estava arrumando
a cauda, mas agora a escondia atrás das costas enquanto o observava.
“...Qual é o problema?” Perguntou Lawrence de repente, depois
de encarar um olhar propositadamente cauteloso de uma Holo agora
evidentemente sóbria.
“Não vou aceitar,” disse ela.
“Hã?”
“Não vou aceitar que minha cauda seja vendida,” disse Holo,
deixando um pouco de sua cauda aparecer por trás dela, como uma
donzela tímida espreitando por trás de uma árvore, antes que se
escondesse novamente.
Lawrence entendeu naturalmente.
Seu rosto havia sido consumido por seu eu mercantil.
“Eu não sou caçador,” ele sorriu e deu de ombros quando entrou
na sala, fechando a porta atrás de si e caminhando até a mesa.
“Ah não? Você parecia estar pronto para vender o que visse pela
frente.” O olhar de Holo caiu sobre o pacote que Lawrence segurava,
depois voltou ao seu rosto.
“Sim, bem, eu sou um mercador. Eu compro de uma pessoa para
vender para outra. É um princípio básico.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 69 ⊱

Todos os mercadores desejavam dinheiro, mas quando esqueciam


exatamente que tipo de mercador eram, esse desejo por
dinheiro corria solto. Quando isso acontecia, coisas como “confiança”
e “ética” não eram vistas em lugar algum.
Em seu lugar havia apenas avareza.
“Então não, eu não vou tirar sua cauda de você. Embora, quando
o verão chegar, se você decidir arrancar um pouco do seu pelo, eu
felizmente vou colecionar e vender depois,” disse Lawrence enquanto
se inclinava contra a mesa.
Ainda sentada na cama, Holo infantilmente deu a língua para ele
antes de pegar a cauda nas mãos novamente.
Por parte de Lawrence, ele não tinha interesse em ver a cauda de
Holo sem pelo.
“Hmph. Então, o que é isso?” Perguntou Holo, olhando para o
pacote que Lawrence segurava em uma mão enquanto mordiscava a
cauda.
“Isto? Isto é... de fato. Se você puder adivinhar apenas pelo
aroma, de que parte é e de qual animal é, eu comprarei a maioria das
suas comidas favoritas para o jantar.”
“Oh ho.” Os olhos de Holo brilharam.
“Eu acho que há um pouco de alho nele... mas você deve ficar
bem.”
Lawrence saiu da mesa e entregou o pacote a Holo, quando sua
expressão ficou imediatamente séria e ela cheirou a comida
embrulhada com cuidado, analisando como um lobo. Isso não era nem
um pouco raro por si só, mas seus modos eram tão encantadores que
Lawrence não pôde deixar de observar.
Holo pareceu notar seu olhar. De repente, ela olhou para ele,
carrancuda.
Ela não se importava de ficar nua na frente dele, mas
aparentemente esse era um olhar que ela não podia suportar.
CAPÍTULO II ⊰ 70 ⊱

Lawrence supôs que todos tivessem suas peculiaridades. Ele


obedientemente começou a se virar, mas depois parou.
“Tenho certeza que nenhuma loba sábia e orgulhosa estaria
pensando em dar uma olhada dentro do pacote enquanto minhas costas
estão viradas,” disse ele.
A expressão de Holo não mudou, mas a ponta de sua cauda deu
um repentino espasmo.
Evidentemente, ele acertou em cheio.
Ele tinha que ter cuidado; ela tinha sentidos além
dos humanos comuns.
Holo deu um suspiro teatral, depois se virou, a boca fazendo
um beicinho que Lawrence tinha certeza que tinha um toque de culpa.
“Então você já descobriu?”
“Paciência,” disse ela irritada, depois cheirou o pacote
novamente. Lawrence discretamente desviou os olhos.
No mesmo instante, o som de uma garota fungando suas lágrimas
ecoou desconfortavelmente pelo quarto.
Lawrence deliberadamente voltou sua atenção para o clamor
que entrava pela janela do quarto. O dia estava bom, então a luz do sol
também aparecia pela janela.
Estava realmente frio, mas ter um quarto com uma janela ainda
era uma coisa boa.
Uma sala quente e sem janelas faria Lawrence sentir como se
estivesse hibernando em um porão em algum lugar. O julgamento de
Holo tinha sido excelente.
“Agora sim.”
Ao som da voz dela, Lawrence voltou sua atenção para
Holo. “Você já descobriu?”
“Certamente.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 71 ⊱

Havia, é claro, inúmeros animais cuja carne era cozida e


servida. Era fácil o suficiente diferenciá-los de seu sabor e textura, mas
apenas pelo cheiro? Especialmente se fosse algo tão raro e estranho
como a carne da cauda de um roedor achatado. Mesmo que Holo
soubesse da existência de uma criatura assim, as chances dela ter
comido eram baixas.
Talvez fosse um pouco mesquinho, mas Lawrence
havia lhe oferecido a liberdade de comer o que ela quisesse no jantar
como recompensa.
“Então, qual é a resposta?” Ele perguntou, e Holo o encarou com
um rosto mais irritado do que a resposta positiva dela o levaria
a esperar.
“Devo dizer que parece um pouco injusto, dadas as condições que
você propôs.”
Lawrence encolheu os ombros. Parecia que ela realmente não
sabia a resposta, afinal.
“Você deveria ter dito isso logo,” disse ele.
“Suponho que sim...” Holo olhou vagamente para o chão como se
estivesse pensando em algo.
Tinha sido uma aposta simples, de modo que mesmo a inteligente
Holo não tinha espaço para manobrar com suas queixas típicas. Os
contratos mais simples sempre eram os mais fortes.
“Então, a resposta?” Lawrence perguntou novamente. De
repente, o rosto de Holo mostrou total derrota. Embora seja um
pensamento maldoso, ele não pôde deixar de sentir, mas queria ver
esse rosto com mais frequência.
Mas foi apenas por um momento; assim que esse pensamento
passou pela mente de Lawrence, a expressão de Holo mudou para uma
de triunfo.
“Eu não sei o nome da criatura, mas é uma cauda de roedor
grande, não é?”
CAPÍTULO II ⊰ 72 ⊱

Lawrence ficou sem palavras.


Ele ficou atordoado.
“Eu disse que parecia um pouco injusto,” disse Holo com
uma risadinha maliciosa quando ela começou a abrir o pacote.
“V-você sabia?”
“Se você tivesse me acusado de abrir o pacote e dar uma olhada,
eu estava pensando em pedir tanta comida para o jantar que
você desabaria em lágrimas, mas acho que vou demonstrar
misericórdia.”
A comida dentro do embrulho de tecido havia sido
cuidadosamente enrolada em tiras de casca de árvore e amarrada com
folhas finas; seria quase impossível espiar dentro sem mexer no
conteúdo.
E, de qualquer forma, olhar a refeição finalizada não tornava mais
fácil adivinhar a forma original. Holo deve estar de alguma
forma familiarizada com isso.
“Eu sou uma loba sábia, não se esqueça. Não há nada neste mundo
que eu não conheça,” ela disse, mostrando suas presas.
Era um exagero óbvio, mas sua convicção era tão forte que era
difícil contestar.
Quando ela desamarrou as folhas e removeu a casca da árvore, o
vapor subiu da comida. Holo estreitou os olhos de prazer, abanando o
rabo.
“Não está certo dizer que eu sabia,” disse Holo, imitando o tom
de Lawrence. A carne foi cortada em fatias pequenas e, como estava,
não havia realmente nenhuma maneira de discernir sua
origem. Holo pegou um dos pedaços, inclinou a cabeça para trás e
lentamente pôs o pedaço na boca aberta. Ela fechou a boca e os olhos
e mastigou delicadamente.
Devia estar delicioso.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 73 ⊱

No entanto, havia algo diferente em seus modos.


“Mmph... ah, sim,” disse Holo. Em vez da forma habitual e
apressada de devorar sua comida, o que dava a impressão de que
ela estava preocupada que tomariam sua comida a qualquer momento,
Holo comeu devagar, saboreando como se isso a fizesse se lembrar
de algo. “O mestre desta estalagem disse algo assim, não disse?” Ela
continuou, lambendo o óleo dos dedos e olhando para Lawrence. “Os
meses e os anos derrubam até edifícios de pedra.”
“Para não falar de lembranças,” concluiu Lawrence.
Holo assentiu, satisfeita. Ela então deu um pequeno suspiro e
olhou para a janela, apertando os olhos com o brilho. “Você sabe o que
fica mais tempo na memória?”
Outra pergunta estranha.
Era o nome de uma pessoa? Números? Imagens da terra natal?
Essas noções apareceram uma após a outra na mente de
Lawrence, mas a resposta de Holo foi completamente diferente.
“Esse aroma, sabe, ele dura mais tempo do que todo o resto.”
Lawrence inclinou a cabeça confuso.
“Esquecemos as coisas que vimos e ouvimos com tanta facilidade,
mas os aromas permanecem claros e distintos.” Holo olhou para a
comida e sorriu.
O sorriso dela parecia completamente desajustado
para Lawrence; era suave, quase nostálgico.
“Eu não tinha lembranças desta cidade,” continuou ela. “Para
ser sincera, isso foi um pouco preocupante.”
“Você não tinha certeza se realmente veio aqui?”
Holo assentiu e ela parecia inteiramente honesta.
Agora que ele pensava nisso, Lawrence sentiu como se finalmente
entendesse por que Holo esteve brincando constantemente.
CAPÍTULO II ⊰ 74 ⊱

“Mas esta comida — eu me lembro vividamente. É uma criatura


tão estranha, afinal, então mesmo no passado, ela era considerada
especial. Eles a colocavam presa no espeto e as assavam
magnificamente.”
Segurando a comida nas mãos como se fosse um gatinho dormindo
no colo, ela olhou para cima.
“Eu me perguntei o que era isso que você trouxe de volta, mas
quando cheirei, quase chorei com a lembrança — e esse foi o ponto de
virada.”
“Então você fez isso de propósito?”
Agora que ele pensava nisso, a ideia de Holo realmente fazer algo
tão superficial quanto espreitar o interior do pacote enquanto estava
de costas parecia um pouco estranha.
E quando ele desviou o olhar, talvez ela tivesse chorado um
pouco.
“Você está dizendo que eu sou do tipo que se aproveitaria a boa
vontade de outra pessoa?”
“Você se aproveita de mim o tempo todo,” retrucou Lawrence, e
ele viu Holo exibindo seu sorriso habitual.
“Então,” disse Holo, acenando para Lawrence.
Guardando um pouco de suspeita, ele se aproximou dela
cautelosamente até que ela agarrou sua manga e o puxou para perto.
“Também não esquecerei esse aroma.”
Ele esperava palavras nesse sentido.
Mas Lawrence descobriu que não rebater como de costume, pois
Holo havia enterrado o rosto no seu peito, ficando imóvel.
Ela não era uma mera companheira de viagem.
Ele podia olhar para as orelhas e a cauda dela e trabalhar sua
própria forma de entender seus movimentos.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 75 ⊱

“Nem eu,” ele respondeu, e com um suspiro suave, ele acariciou


a cabeça dela com a mão.
Holo esfregou os cantos dos olhos dela nas roupas dele e sorriu
sem jeito. “Você parece idiota quando diz isso. Também não
esquecerei essa parte.”
Lawrence deu um sorriso forçado. “Desculpa.”
Holo sorriu, esfregou o nariz, depois sorriu de novo — e voltou
ao seu antigo estado de espírito. “Então, parece que eu realmente
visitei esta cidade.”
“Então deve haver lendas suas por aqui.”
Ele não adicionou “em livros em algum lugar,” mas Holo
certamente notaria e apreciaria sua consideração.
Por outro lado, se ele não tomasse esse cuidado, seria impossível
evitar machucá-la.
“Então, quais são as notícias que você ouviu por aí?”
Perguntou Holo, como uma mãe pedindo ao filho para se gabar de
algum novo conhecimento que ele adquiriu.
Ela nunca ficava frágil por muito tempo.
“Desta vez vai ser muito empolgante,” começou Lawrence. Holo
ouviu atentamente enquanto comia a carne.

Por fim, eles tinham dois motivos para conhecer Rigolo, o


cronista da cidade e secretário do Conselho dos Cinquenta.
O primeiro era perguntar se restava alguma lenda de Holo e pedir
que mostrasse os registros onde essas lendas poderiam
ser encontradas. O segundo era descobrir os detalhes de como
a cidade chegou na situação que atualmente enfrentava.
A última razão era puramente resultado da doença ocupacional de
Lawrence e, dado o precedente estabelecido em suas viagens
até agora, Holo ouviu sua explicação, mas não ficou nada satisfeita.
CAPÍTULO II ⊰ 76 ⊱

De fato, se perguntassem para Lawrence se era realmente


necessário testar o perigo envolvido na alquimia financeira, que era
necessário para sugar dinheiro das fendas do conflito atual, a resposta
seria não — não era. Dado o lucro que ele conseguira obter na cidade
pagã de Kumersun, desde que continuasse quieto por mais algum
tempo, o dia em que seria capaz de abrir sua própria loja não
estava muito longe. Nesse caso, seria melhor usar seu tempo
moderadamente, carregando suas mercadorias e obtendo lucros
normalmente, em vez de arriscar o pescoço em perigosas
especulações. A longo prazo, passar o tempo na cidade calmamente e
com cuidado fazendo conexões comerciais seria muito melhor para
os lucros futuros de Lawrence.
Não sendo mercadora, Holo não usava termos como lucros
futuros, mas sua essência era a mesma: você não está com pouco dinheiro,
então relaxe.
Ficar simplesmente parado ali no quarto fazia frio, então,
enquanto conversavam, Holo se arrastou para a cama e,
eventualmente, começou a cochilar. Lawrence se sentou na cama
enquanto eles falavam, e Holo — sem nenhuma intenção particular —
segurou lentamente a mão dele com a sua.
Sentado na cama e passando o tempo conversando em silêncio,
Lawrence teve que admitir que Holo estava absolutamente
certa. O fato, porém, era que nenhum mercador ambulante era tão
relaxado para apenas passar o tempo em uma cidade, principalmente
enquanto estavam no meio de uma jornada.
Ele queria que ela entendesse isso, mas provavelmente era
impossível.
No entanto, talvez fosse bom que Lawrence não pudesse
fazer nada imediatamente.
Dada a situação em Lenos, nenhum dos membros do Conselho
dos Cinquenta, incluindo Rigolo, se encontraria casualmente com um
mercador estrangeiro.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 77 ⊱

Como o caso se concentrava no comércio de peles que era a alma


da cidade, se encontrar com um mercador de origem desconhecida
seria profundamente suspeito e equivalia ao suicídio social. Não,
Lawrence não seria capaz de ver um membro do conselho.
O que significava que, se ele quisesse entrar em contato com um,
precisaria de um mediador.
No entanto, quando Lawrence repensou se isso seria realmente
necessário, era difícil se convencer. E se ele forçasse a questão e
causasse uma má impressão, eles nunca veriam os registros de Holo.
Embora exteriormente Holo tenha pressionado Lawrence a se
segurar e não se envolver, no fundo de seu coração não restava dúvida
de que havia uma oportunidade de ver esses registros, ela queria
isso. Ele não podia arriscar nada que colocasse em risco sua capacidade
de fazer tal coisa. Enquanto ele repensava várias vezes, finalmente
percebeu o som da respiração de Holo enquanto ela dormia.
Quando estava com fome, comia e, quando estava
cansada, dormia.
Na verdade, ela era tão livre quanto qualquer animal, e aqueles
que passavam seus dias constantemente trabalhando para manter a
barriga cheia tinham sonhado com essa vida pelo menos uma vez.
Lawrence não pôde deixar de sentir um pouco de inveja da vida
que Holo considerava correta. Ele tirou a mão da dela
e roçou levemente a bochecha que parecia porcelana polida com a
parte de trás do dedo indicador. Depois de adormecer, nem um toque
a acordava. Ao toque de Lawrence, sua expressão se contraiu em
irritação, mas seus olhos permaneceram fechados enquanto ela
enterrava o rosto no cobertor.
Era um momento tranquilo e feliz. Nada acontecia, exceto
pela passagem do tempo, mas essa era uma das coisas que
Lawrence desejava quando conduzia sozinho a carroça. O mercador
sabia disso com quase certeza e, no fundo de seu coração, sentia
CAPÍTULO II ⊰ 78 ⊱

uma impaciência, um sentimento de que estava desperdiçando uma


chance.
Ele não pôde deixar de sentir que, se não estivesse ganhando
dinheiro ou coletando informações para seus negócios, estava sofrendo
um prejuízo que nunca seria capaz de recuperar.
O espírito do mercador é uma chama que nunca se
apaga, dissera seu mestre, mas essa chama poderia muito bem ser o
fogo do inferno, queimando sua carne.
Quando alguém estava sozinho, a chama fornecia calor, mas
acompanhado... ele sentiu que estava muito quente.
O sorriso de Holo era especialmente quente.
O mundo não era como desejava que fosse.
Lawrence se levantou da cama e andou pelo quarto.
Se ele não ia se envolver nos acontecimentos de Lenos, ele pelo
menos queria entender os detalhes por satisfação própria.
A melhor maneira de fazer isso seria se encontrar diretamente
com um membro do Conselho dos Cinquenta e, para obter
informações imparciais, uma testemunha que não representasse
nenhuma parte interessada seria ainda mais desejável.
Era o cronista e secretário Rigolo quem melhor se encaixava nessa
descrição.
Mas nenhum membro do conselho teria interesse em se
encontrar com alguém de fora.
O problema começava a parecer impossível.
Lawrence teria que adotar uma abordagem diferente, mas
no momento sua única fonte de informação era a garçonete. Expandir
seus contatos para incluir mais informações dos mercadores da
cidade envolveria um esforço significativo.
Certamente haviam várias pessoas usando diversas táticas para
coletar informações, e Lawrence sinceramente duvidava que seu
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 79 ⊱

próprio intelecto fosse suficiente para lhe dar alguma vantagem sobre
o resto. Quem sabe até que ponto o preço dessa informação poderia
subir, dado o escopo da demanda?
Se fosse uma cidade onde Lawrence tivesse algum conhecido, ele
poderia conseguir se aproximar da essência das coisas e fazer algo
acontecer. Se você quisesse mercadorias, o dinheiro poderia comprar
qualquer coisa, mas, para obter informações, você precisava de
confiança.
Diante dessa situação fascinante, Lawrence teria apenas que
assistir e esperar.
Se sentindo como um cachorro frustrado, andando de um lado
para o outro na sala, enquanto olhava um pedaço de carne que podia
ver através de uma pequena rachadura na parede, Lawrence
finalmente soltou um suspiro.
Ele sentiu como se estivesse se afastando cada vez mais
do mercador que desejava ser.
Pior ainda, a lógica e a prudência que ele deveria
ter desenvolvido há muito pareciam desaparecer. Era como se tivesse
regressado àquele período em que acabara de atingir a maioridade; sua
cabeça cheia de esquemas ridículos de enriquecimento rápido.
Seus pés estavam inquietos.
Ele repetiu o problema para si mesmo, olhando para Holo.
Seria porque essa loba atrevida estava constantemente passando
uma rasteira nele?
Parecia possível.
Ele gostava muito de conversar com Holo.
Por isso ele começou a negligenciar outras coisas.
“...”
Lawrence acariciou a barba, murmurando consigo mesmo que
transferir a culpa não seria uma má ideia.
CAPÍTULO II ⊰ 80 ⊱

Era uma oportunidade desperdiçada, mas o problema do pelo


teria que esperar.
O que significava que a próxima ação seria buscar informações que
os colocassem no caminho para Nyohhira, ainda mais ao norte de
Lenos.
Se tivessem sorte, a estrada ainda não estaria intransitável com a
neve e seguiriam adiante.
Informações sobre peles... podem ser coletadas depois disso,
Lawrence disse a si mesmo ao sair do quarto.

Lawrence desceu para o primeiro andar, onde havia


um som farfalhante vindo do canto da sala bagunçada.
Não havia segurança, mas parecia que um bom número
de mercadores ainda usava esse armazém.
A taxa não era muito alta, e alguns a usavam para armazenar
mercadorias quando o preço flutuava com a estação. Lawrence não
ficaria surpreso de saber que um contrabandista ou ladrão mantinha
itens lá também.
Embora tivesse ouvido o som de alguém mexendo com
mercadorias no armazém, a pessoa estava nas sombras, e
Lawrence não sabia dizer quem era. Mas Arold, o estalajadeiro, não
parecia pensar nem por um momento que um de seus hóspedes
estivesse abrindo a bagagem de outra pessoa. Ele apenas jogou um
pouco de água no fogo, que havia ficado um pouco forte demais.
“Uma estrada para o norte?”
Embora Arold tivesse reagido à pergunta de Lawrence sobre
cronistas naquela manhã como se uma criança tivesse feito uma
pergunta teológica difícil, ele parecia estar muito mais acostumado a
esse tipo de questionamento.
Ele assentiu levemente, como se dissesse: “Bem, nesse caso,”
então, sem prestar atenção ao fogo, ele limpou a garganta e falou.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 81 ⊱

“Não há muita neve este ano. Não sei para onde você está
indo, mas não acho que seja muito difícil.”
“Estou indo para Nyohhira.”
A sobrancelha esquerda de Arold se ergueu e os afiados olhos azuis
enterrados nas dobras profundas de suas pálpebras brilharam.
Por trás do sorriso de mercador, Lawrence se encolheu um pouco
e Arold continuou, limpando um pouco da cinza que havia subido
quando ele derramou água sobre as brasas um tempo atrás.
“Indo até um país pagão, hein? ...Bem, suponho mercadores sejam
assim, carregando sacolas de dinheiro por cima do ombro e partindo
para qualquer lugar.”
“Sim, e jogamos tudo fora em nossos leitos de
morte,” disse Lawrence, tentando aliviar as coisas com o devoto
Arold, mas o estalajadeiro apenas deu uma risada irônica.
“Então, por que se preocupar em lucrar? Ganhar apenas para jogar
tudo fora...”
Era algo que muitos mercadores se ponderavam.
Mas Lawrence ouvira uma resposta interessante para essa
pergunta. “Você não faz a mesma pergunta quando limpa um quarto,
faz?”
Se dinheiro era lixo, o lucro era a coleta de lixo.
Um mercador famoso de um país do sul havia se arrependido
no leito de morte, dizendo que coletar e jogar fora o dinheiro que
poluía o mundo que Deus havia dado ao homem era a virtude suprema.
O clero ouviu essas palavras e ficou emocionado, mas os
mercadores ocultaram seus sorrisos incertos por trás de seus copos de
vinho — porque quanto mais bem-sucedido se tornava, os ativos já
não eram coisas concretas e sim certificados e inscrições em livros de
contabilidade.
CAPÍTULO II ⊰ 82 ⊱

Assim, se essas anotações escritas no livro poluíam o mundo,


então os ensinamentos escritos de Deus não eram muito melhores. A
ironia de que essas escrituras também deveriam ser jogadas fora para
um mundo melhor — essa era a visão da maioria dos mercadores.
Lawrence se sentia da mesma forma. Ele se sentia mal por Holo,
mas ele preferia os negócios de um mercador bem-sucedido do que
rezar a deuses que nunca respondiam.
“Heh,” Arold riu. “É justo,” disse ele em um tom incomum e
divertido. Seu humor havia melhorado.
Ele parecia mais animado pela ironia por trás das palavras
de Lawrence do que pelas próprias palavras.
“Você vai embora em breve? Eu lembro que você me deu uma
boa quantidade de moedas para a sua estadia...”
“Não, pretendo esperar até que o Conselho dos Cinquenta
termine sua reunião.”
“…Entendo. Você queria ver Rigolo. Você perguntou sobre um
cronista esta manhã, pelo que me lembro. Essa é uma palavra que eu
não ouço há algum tempo. Quase ninguém olha para o passado hoje
em dia...” disse Arold, estreitando os olhos enquanto observava o
vazio.
Talvez o velho estivesse olhando para sua vida até agora.
Mas seu olhar logo voltou a Lawrence. “Bem, se você estiver indo
para o norte, seria melhor ir mais cedo. Seu cavalo deve ser capaz de
fazer parte do caminho, mas além disso... você vai precisar de cavalo
de montanha um trenó. Se estiver com pressa, é claro.”
“Havia um desses no estábulo, não havia?”
“Sim, seu mestre é um homem do norte. Acho que ele conhece o
caminho muito bem.”
“O nome dele?” Perguntou Lawrence.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 83 ⊱

Arold pareceu surpreso pela primeira vez. Era


estranhamente encantador. “Hã. Ele vem aqui há algum tempo,
mas nunca perguntei o nome dele. Ele também está mais gordo a cada
ano. Me lembro bem dele. Estranho... acho que essas coisas
acontecem...”
Que tipo de estalagem carecia de registro de hóspede?
“Ele é um mercador de peles do norte,” continuou Arold. “Ele
está andando por toda a cidade no momento... mas se eu o vir, vou
passar suas perguntas.”
“Eu ficaria muito grato.”
“Sim. Mas se você continuar esperando o Conselho dos Cinquenta
terminar, é provável que fique aqui até a primavera,” disse Arold,
colocando o copo de vinho quente nos lábios pela primeira vez.
Era a primeira vez que Lawrence via Arold tão eloquente. Ele
devia estar de excelente humor, Lawrence supôs.
“A reunião vai demorar tanto assim?” perguntou Lawrence,
pressionando por mais informações.
O rosto de Arold ficou ilegível e ele ficou em silêncio. Sem dúvida,
a melhor resposta se ele esperava viver os seus anos restantes em paz, pensou
Lawrence.
Lawrence estava prestes a agradecer como forma de terminar
a conversa, mas Arold falou, interrompendo-o.
“As vidas das pessoas têm altos e baixos, e as cidades em que vivem
também. Afinal, essas cidades são apenas grupos de pessoas.”
As palavras de um homem que se aposentara de uma vida ativa.
Mas Lawrence ainda era jovem. “É da natureza das pessoas resistir
ao destino, eu acho. Assim como buscamos perdão depois de cometer
um erro.”
Arold observou Lawrence em silêncio com seus olhos azuis.
Havia raiva em seu olhar, e desprezo.
CAPÍTULO II ⊰ 84 ⊱

Mas Lawrence gostava do velho quando ele ficava assim, então


ele se manteve firme.
Arold riu. “É difícil argumentar contra isso... Foi um prazer
conversar com você. Esta é sua terceira vez na estalagem, não é? Qual
o seu nome?”
Embora nunca tivesse perguntado o nome do mercador de peles
que há muito tempo usava sua estalagem, Arold agora perguntava a
Lawrence seu nome.
Ele não estava perguntando como estalajadeiro, mas como
artesão.
Quando um artesão perguntava o nome de um cliente, era
uma marca de confiança que eles completariam o pedido do
cliente, por mais difícil que fosse o pedido.
Evidentemente, esse velho chefe de curtume gostava de Lawrence
por algum motivo.
“Kraft Lawrence,” disse Lawrence, estendendo a mão.
“Kraft Lawrence, não é? Sou Arold Ecklund. Antigamente, eu
fazia um bom trabalho com pulseiras de couro, mas hoje em dia tudo
o que posso oferecer é uma noite tranquila.”
“Isso é mais do que suficiente,” disse Lawrence, para o que
Arold sorriu pela primeira vez, mostrando um dente quebrado.
Lawrence estava prestes a sair quando o olhar de Arold se voltou
para algo atrás de seu hóspede. Lawrence se virou para olhar e não
esperava ver a pessoa que estava lá.
Era o mercador que Holo havia afirmado anteriormente ser uma
mulher, ainda vestindo as mesmas roupas e carregando um saco de
estopa na mão esquerda. Ela deve ter sido quem Lawrence ouviu
mexendo no depósito.
“Você não me perguntou até minha quinta visita. E perguntou o
nome dele tão cedo, Sr. Arold?” Veio a voz rouca. Se Holo não tivesse
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 85 ⊱

dito o contrário, Lawrence ainda teria assumido que ela era um


homem, um aprendiz de mercador que estava começando.
“Isso é porque eu não falei com você até a quinta visita,”
disse Arold, olhando para Lawrence antes de continuar. “E é tão raro
você abrir sua boca. Você é tão sociável quanto eu, não é?”
“Talvez,” disse a mulher, e um sorriso apareceu sob
seu capuz. Lawrence notou que ela não tinha uma barba —
definitivamente era uma mulher.
“Você aí,” disse ela, olhando fixamente para Lawrence.
“Sim?”
“Nós deveríamos conversar. Você tem negócios com Rigolo?”
Se Lawrence fosse Holo, suas orelhas tremeriam.
“Sim,” respondeu ele, confiante o suficiente para que nem um
único fio de barba se mexesse.
Ao mencionar o nome de Rigolo, Arold se virou e pegou seu copo
de vinho. Esse era o efeito que um mercador tinha hoje em dia ao
mencionar o nome de um dos membros do Conselho dos Cinquenta.
“Vamos subir?”
A mulher apontou para cima. Lawrence não fez objeções e
assentiu.
“Vou aceitar isso aqui,” disse ela, pegando uma jarra atrás da
cadeira de Arold e depois subindo imediatamente as
escadas. Embora não fossem parentes, ela parecia conhecer Arold
muito bem — então qual era a conexão deles?
A mente de Lawrence estava cheia de perguntas, mas o rosto de
Arold havia retornado ao seu estado normal de não socializar.
Ele se despediu e seguiu a mulher escada acima.
CAPÍTULO II ⊰ 86 ⊱

Não havia ninguém no segundo andar, e a mulher imediatamente


dobrou os joelhos e se sentou de pernas cruzadas em frente à lareira. O
jeito dela era o de alguém acostumado a ficar sentado em lugares
apertados. Se Lawrence tivesse sido um cambista, ele a teria
considerado uma camarada nos negócios.
Ela certamente não era alguém que havia começado os
negócios ontem.
“Ah, eu sabia. Este vinho é bom demais para ser desperdiçado com
um copo quente,” disse ela depois de provar o conteúdo da jarra
que havia trazido.
Lawrence também se sentou, imaginando por que a mulher
de repente estava tão sociável, se seu comportamento era genuíno ou
se não era genuíno, qual seria seu objetivo.
Depois de tomar alguns goles da jarra de vinho, a mercadora a
jogou na direção de Lawrence. “Parece que você levantou a
guarda. Posso perguntar por quê?”
Enquanto seu capuz cobria o rosto, evitando que Lawrence visse
suas expressões, evidentemente ela podia ver o rosto dele
perfeitamente.
“Sou um mercador viajante que faz muitos negócios com pessoas
que nunca mais voltarei a ver. Suponho que seja um hábito,” disse ele,
tomando um gole do vinho oferecido. Era realmente bom.
A mercadora o olhou harmoniosamente por baixo do capuz.
Lawrence deu um sorriso dolorido e confessou: “As mercadoras
são raras. Se uma me chama para conversar, não posso deixar de
ficar de guarda.”
Ele percebeu que ela ficou momentaneamente perturbada com a
declaração dele.
“...Faz anos desde que alguém descobriu isso.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 87 ⊱

“Nos encontramos esta manhã em frente à estalagem. Minha


companheira tem os sentidos tão aguçados quanto os de uma fera,
entende?”
Ela era parcialmente uma fera, de fato, e se Holo não estivesse
lá, Lawrence nunca teria notado que o mercador era uma mulher.
“Não se deve subestimar a intuição de uma mulher. Embora eu
suponha que não sou de confiança para falar sobre isso.”
“Eu aprendo essa lição todos os dias.”
Lawrence não tinha certeza se ela sorria ou não, mas, de qualquer
forma, a mulher colocou a mão no pescoço e afrouxou a corda
que segurava o capuz; depois, com uma mão treinada, ela o retirou da
cabeça.
Ele a observou com um pouco mais de curiosidade do que de
educação. Que rosto ousado poderia surgir? Quando ele viu o rosto
dela, Lawrence não estava nem um pouco confiante de que tinha sido
capaz de esconder perfeitamente sua surpresa.
“Meu nome é Fleur Bolan. Mas Fleur não é muito
intimidador, então me conhecem por Eve.”
A mulher, Fleur — ou Eve — era jovem.
Mas ela não era tão jovem para que a juventude fosse sua única
virtude. Ela tinha idade suficiente para ser polida e refinada, tornando-
a ainda mais bonita. Suponho que Lawrence teria mais ou menos a sua
idade.
Os olhos dela não eram apenas azuis; eles pareciam forjados em
aço azul.
O cabelo dela era curto e loiro. Se ela sorrisse, pareceria um
garoto extraordinariamente bonito.
E quando ela não estava sorrindo, ela parecia um lobo — um
lobo que morderia seu dedo se tentasse tocá-lo.
“Eu sou Kraft Lawrence.”
CAPÍTULO II ⊰ 88 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 89 ⊱

“Kraft? Ou Lawrence?”
“Nos negócios, Lawrence.”
“Me chame de Eve. Não gosto muito de Bolan, e sei muito bem
como os homens me veem quando uso maquiagem e peruca, e também
não gosto desse tipo de elogio.”
Com sua iniciativa roubada, Lawrence ficou em silêncio por um
momento.
“Eu pretendia manter isso em segredo, se pudesse,” continuou ela.
Ela certamente se referia ao seu sexo.
Não querendo ser descoberta por mais ninguém, ela colocou
novamente o capuz na cabeça e o fixou com a faixa.
Em sua mente, Lawrence não podia deixar de imaginar uma faca
embrulhada em algodão.
“Eu realmente não sou uma pessoa particularmente reservada. Na
verdade, sou faladora e bastante cortês.”
Por alguma razão, Eve estava agora sendo aberta e tagarela, então
Lawrence acompanhou seu bate papo.
Ela era uma mulher, sim, mas dificilmente uma princesa a ser
protegida. Ele tinha poucas razões para ficar nervoso.
“Você é um sujeito interessante. Eu posso ver porque o velho
gosta de você,” disse Eve.
“Foi gentil da sua parte dizer isso. Mas troquei apenas poucas
palavras com você, então não tenho ideia de por que você estaria
interessada em mim.”
“Os mercadores não são conquistados tão facilmente, infelizmente
— então não foi só isso. Mas você não é tolo, você sabe disso. De
qualquer forma, a razão pela qual falei contigo é simples. Eu só queria
alguém com quem conversar.”
A julgar pelas feições no rosto sob o capuz, algo nela lembrava
Holo, apesar das maneiras um pouco rudes de Eve.
CAPÍTULO II ⊰ 90 ⊱

Se ele não tomasse cuidado, ela passaria a perna nele, assim como
Holo.
“E a razão pela qual você me escolheu para essa honra em
particular é...?”
“Uma razão seria o fato do velho Arold gostar de você. Ele tem
um bom olho para as pessoas. Outro motivo seria sua companheira,
aquela que viu através do meu disfarce.”
“Minha companheira?”
“Sim. Sua companheira. Uma garota, certo?”
Se ela tivesse chamado Holo de garoto, esta seria exatamente o
tipo de história que um nobre libertino adoraria.
Mas Lawrence entendeu o que Eve estava tentando dizer.
Se ele estivesse viajando com uma mulher, ele seria uma pessoa
segura para se conversar.
“Uma coisa é quando estou negociando, mas esconder o fato de
que sou mulher enquanto jogo conversa fora não é uma coisa fácil. Eu
sei que sou incomum. E não é como se eu não entendesse por que
alguém iria querer que eu tirasse o capuz,” disse Eve.
“Isso vai parecer um elogio, mas se você o tirar enquanto estiver
bebendo com alguns colegas mercadores, tenho certeza que eles
adorariam.”
Eve sorriu com um sorriso torto, e mesmo esse gesto era
impressionante. “Como disse, penso em com quem posso conversar
e, no final, geralmente é um velho ou uma mulher.”
As mercadoras eram mais raras que as fadas. Lawrence não
podia nem começar a imaginar suas preocupações do dia-a-dia.
“Você não vê mercadores viajando com mulheres com muita
frequência. Só o clero, ou talvez um estranho casal de artesãos ou
menestréis. Mas nenhum deles tem algo de interessante para me
contar.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 91 ⊱

Lawrence sorriu um pouco. “Bem, existem algumas


circunstâncias envolvendo minha companheira.”
“Eu não serei curiosa. Vocês dois parecem acostumados a viajar
e não parecem estar conectados por dinheiro, então achei que seria
seguro conversar com você. Isso é tudo.”
Eve terminou de falar e estendeu a mão para a jarra.
Não era educado ficar com uma jarra de vinho que estava
sendo passada ao invés de ficar com o copo, então Lawrence pediu
desculpas e a devolveu.
“De qualquer forma, esse é o resumo da situação, mas você não
pode simplesmente ir até alguém e dizer: ‘Ei, que tal uma
conversa?’ Foi por isso que mencionei o nome de Rigolo, mas isso não
foi só uma desculpa. Você quer vê-lo, certo?”
Eve olhou para Lawrence por baixo do capuz, mas ele não
conseguiu ler a expressão dela. Ela claramente era uma
excelente negociadora.
Isso dificilmente parecia conversa fiada para Lawrence. Ele
respondeu com cuidado. “Sim, assim que eu puder.”
“Posso perguntar o motivo?”
Lawrence não podia imaginar por que ela iria querer saber disso.
Pode ter sido apenas curiosidade, ou ela queria usar
esse conhecimento de alguma forma ou estava testando Lawrence com
base em sua resposta a essa pergunta.
Se Holo estivesse ali, ele teria uma vantagem, mas da forma como
estavam, parecia que ele estava sendo encurralado.
A situação era frustrante, mas ele teria que ficar na defensiva.
“Ouvi dizer que Rigolo é o cronista da cidade. Eu gostaria de pedir
para ver alguns dos velhos contos de Lenos.”
O assunto de peles era muito delicado para
abordar. Enquanto não pudesse ver a expressão de Eve, era perigoso
CAPÍTULO II ⊰ 92 ⊱

se expor. Ele não tinha nada com o que se esconder, então seria fácil
para ela ver se ele estava sendo muito cuidadoso.
No entanto, Eve parecia detectar uma certa verdade nas palavras
de Lawrence. “Esse sim é um motivo estranho. E aqui eu tinha certeza
de que você queria informações sobre o comércio de peles.”
“Bem, eu sou um mercador, então não passaria essas
informações se pudesse obtê-las. Mas é perigoso, e minha
companheira não deseja isso.” Lawrence não pôde deixar de sentir que
tentar qualquer truque na frente de Eve seria inútil.
“É verdade que o escritório do homem está repleto de
volumes passados ao longo das gerações. Seu sonho é poder passar seus
dias lendo-os, pelo que ouvi. Ele sempre fala sobre como queria
renunciar ao cargo de secretário do Conselho dos Cinquenta.”
“É sério?”
“Sim. Ele não é um sujeito muito sociável para começar, mas
sua posição significa que conhece todos os meandros do conselho,
então não há como as pessoas tentarem suborná-lo. Se você
simplesmente tentasse ir vê-lo agora, ele lhe encararia de maus olhos
e o mandaria embora do portão.”
Admiravelmente, Lawrence conseguiu falar um “entendo”
neutro, mas ele duvidava que Eve pensasse que ele era tão neutro
quanto tentava parecer.
Eve estava, afinal, sugerindo que seria capaz de
apresentar Lawrence a Rigolo.
“Bom. Então, se é nisso que você está interessado, eu tenho
bastante contato com a igreja aqui. Rigolo normalmente trabalha
como escriba para a igreja, entende? Eu o conheço há algum tempo.”
Lawrence não a questionou.
Se ele o fizesse, havia o perigo de revelar suas próprias
motivações, que ela seria capaz de ver isso facilmente.
Então ele falou a pura verdade.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 93 ⊱

“Certamente seria de grande ajuda para mim se você pudesse


providenciar para que eu visse esses registros,” disse Lawrence.
O canto da boca de Eve pode ter se curvado por apenas um
momento, mas talvez fosse apenas sua imaginação.
Ela parecia estar gostando de algo sobre essa conversa.
“Você não vai me perguntar o que eu ganho com isso?”
“Você não perguntou a ocupação da minha companheira, então eu
lhe farei a mesma cortesia.”
Essa conversa deixava Lawrence nervoso de uma maneira
completamente diferente de suas conversas com Holo.
E, no entanto, isso é divertido, ele pensou consigo mesmo, e foi por
isso que quando uma risada ecoou pela sala, ele não percebeu que não
era a dele por um momento.
“Heh-heh-heh. Excelente. Excelente mesmo! Por algumas vezes
esperei encontrar um jovem mercador com uma companheira, mas
estou realmente feliz por ter conversado com você, Lawrence! Não
sei se você é tão distinto quanto parece, mas certamente não é um
vendedor ambulante qualquer.”
“Estou honrado por seus elogios, mas peço que espere um pouco
antes de apertar minha mão.”
Eve sorriu.
O sorriso dela o lembrou tanto o de alguém que ele esperava ver
caninos afiados à mostra.
“Eu sei que você não é um idiota,” disse Eve. “Seu rosto foi ilegível
desde o início. Entendo por que o velho Arold gostou de você.”
Lawrence aceitou a bajulação. “Bem, então, em vez de perguntar
o que você ganha com isso, posso fazer uma pergunta diferente?”
Eve ainda sorria, mas Lawrence tinha certeza de que o sorriso dela
não alcançava seus olhos.
“E o que isso poderia ser?”
CAPÍTULO II ⊰ 94 ⊱

“Quanto vai custar a sua taxa de intermediária?” Lawrence


jogou uma pedrinha no poço escuro e sem fundo.
Quão profundo era? Havia água no fundo?
O som ecoou de volta para ele.
“Não pedirei moedas nem mercadorias.”
Lawrence imaginou se ela estava com sede, mas ela lhe ofereceu
o jarro enquanto continuava.
“Tudo o que peço é que você converse comigo.”
Um eco molhado havia retornado.
Lawrence livrou o rosto de qualquer emoção enquanto encarava
friamente Eve e sua declaração.
Eve riu e encolheu os ombros. “Voce é bom. Mas não, não é
mentira. É natural que você ache isso estranho, mas alguém com quem
eu possa conversar sem esconder o fato de que sou uma mulher — e
um mercador, para começar — vale mais do que um limar de ouro.”
“Mas menos que lumione?”
Sua reação a algumas provocações revelaria a profundidade de sua
personagem.
Eve parecia saber disso. Ela era uma mercadora. No final, o
dinheiro era o que mais importava — ela respondeu com um sorriso
uniforme.
Lawrence riu.
Com alguém assim para conversar, ele poderia facilmente
conversar a noite toda.
“Mas eu não sei como é sua companheira. Eu prefiro
minhas conversas sem interrupção. Uma companheira mal-humorada
estraga o vinho.”
Lawrence buscou em sua memória. Holo era do tipo que ficava
com ciúmes dessas coisas?
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 95 ⊱

Ele sentiu como se ela tivesse ficado um pouco irritada com


Norah, a pastora, mas não foi por causa de sua profissão?
“Eu não acho que isso será um problema.”
“Oh? Nada é mais misterioso do que o coração de uma
mulher. Eu mesma não entendo nem um pouco do que elas falam.”
Lawrence abriu a boca para falar, depois pensou melhor.
Eve riu. “Mesmo assim, ainda estou aqui para fazer negócios. Não
posso perder tempo, mas se nos dermos bem, ficaria feliz em conhecê-
lo. Eu posso parecer dura...”
“ — Mas você é realmente conversadora e sociável, certo?”
Ao contra-ataque de Lawrence, Eve riu, seus ombros tremendo
de prazer juvenil, apesar de sua voz baixa e rouca. “Ah, isso mesmo.”
Suas palavras eram casuais, mas tinham um tom de sinceridade.
Lawrence não fazia ideia de como uma mulher solteira iria trilhar
o caminho do mercador, mas qualquer mulher que pudesse nadar nos
redemoinhos de avareza que compunham o mundo mercantil era uma
força a ser considerada. Sem dúvidas ela evitava conversas casuais para
se defender.
Ele tomou um gole de vinho da jarra, depois se levantou e foi para
as escadas do terceiro andar. “Bem, desde que minha companheira não
tenha ciúmes,” disse ele.
“Essa é realmente uma condição terrível.”
Os dois mercadores sorriram em silêncio um para o outro.

A reunião do conselho terminaria pouco antes do anoitecer. Eve


tinha negócios a tratar e não podia acompanhar Lawrence e Holo, mas
falou antecipadamente com a família de Rigolo em nome deles.
Então, algum tempo depois do meio-dia, Lawrence e Holo
deixaram a estalagem.
CAPÍTULO II ⊰ 96 ⊱

A casa de Rigolo aparentemente ficava um pouco ao norte do


centro da cidade.
Esse distrito em particular parecia relativamente rico, dadas
as fundações de pedra e o térreo dos edifícios de lá, mas o ambiente
era, no entanto, pobre. Muitas casas foram ampliadas repetidamente
com carpintaria, e suas paredes se projetavam na rua, quase se
encontrando lá em cima.
A área parecia ter sido um bairro rico, mas declinara com o
tempo.
Enquanto as famílias que eram prósperas por gerações sabiam que
o dinheiro nem sempre trazia felicidade, os novos ricos eram
diferentes. Contanto que tivessem dinheiro, desejavam exibi-lo
expandindo suas casas.
Tudo continuava bem, mas essas expansões arruinaram a
atmosfera do bairro. Vira-latas e mendigos começavam a passear pelas
ruas sempre escuras.
Quando isso aconteceu, os verdadeiramente ricos se mudaram
para outro lugar, e o valor das casas na área caiu, e junto com ele
a qualidade do bairro. Antigamente eram os prestamistas e donos de
empresas de comércio intermediário que viviam aqui, mas agora a área
era povoada por artesãos aprendizes e donos de barracas de mercado.
“É uma rua bastante apertada,” disse Holo.
Talvez devido ao peso dos prédios de ambos os lados, a rua fosse
torta, aqui e ali faltavam paralelepípedos, talvez por terem sido
arrancados e vendidos por alguém que estava desesperado por
dinheiro. A água então se acumulava nos buracos deixados para trás,
contribuindo para a sensação de degradação geral, dando a impressão
de que a estreiteza da rua apenas aumentava.
Lawrence não podia andar lado a lado com Holo, e se
alguém viesse do outro lado, teria que se espremer contra a parede
para passar.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 97 ⊱

“Admito que é inconveniente,” disse Lawrence, “mas eu gosto


desse tipo de lugar desordenado.”
“Oh ho.”
“Você pode sentir como isso aconteceu com o passar dos anos
de mudança. Assim como uma ferramenta antiga que gradualmente
assume uma forma diferente ao longo do tempo, transformando-se em
algo único.”
Lawrence olhou para Holo, que andava atrás dele. Ela passou os
dedos pelas paredes enquanto seguia.
“Como um rio muda de forma?”
“...Lamento dizer que não entendi sua comparação.”
“Mm. Nesse caso... a forma como o coração muda. A alma, é
como o chamam?”
O exemplo de Holo se encaixava tanto com ele que Lawrence foi
um pouco lento para absorver. “Acho que sim,” ele finalmente
respondeu.
“Se pudéssemos retirá-lo e dar uma olhada, imagino que seria
assim. O coração fica arranhado, amassado e é reparado ao longo do
tempo e, com um olhar, você pode diferenciá-lo os outros.”
Enquanto Lawrence e Holo caminhavam, encontraram uma
das grandes poças que pontilhavam a rua. Lawrence atravessou
primeiro com um único salto, depois se virou e estendeu a mão para
Holo.
“Milady,” disse ele com cortesia. Holo ofereceu a mão
com exagerada magnanimidade em resposta, pulando sobre a poça
para pousar ao lado de Lawrence.
“E como seria sua alma, hein?” Ela perguntou.
“Mm?”
“Sem dúvida, estaria tingida com a minha cor.”
CAPÍTULO II ⊰ 98 ⊱

Lawrence não se encolheu diante dos olhos vermelhos que o


encaravam.
O efeito deles realmente estava desaparecendo.
Lawrence deu de ombros e voltou a andar. “Eu diria
que envenenada é uma palavra melhor que colorida.”
“Então é um veneno potente, de fato,” disse Holo por cima do
ombro, altiva, enquanto ela corria à frente. “Afinal, meu sorriso
ainda te derruba.”
“Então, de que cor é sua alma?” retrucou Lawrence, imóvel e
sempre impressionado com sua inteligência.
“De que cor?” repetiu Holo, depois olhou para a frente como se
estivesse pensando no assunto. Ela diminuiu a velocidade por um
momento e Lawrence a alcançou. A rua era muito estreita para ele
passar, então ele simplesmente olhou para ela.
Ela murmurou, aparentemente contando algo nos dedos. “Hmm,”
ela entoou. Ela então notou Lawrence olhando por cima do ombro e
inclinou a cabeça, virando-se um pouco para ele. “De muitas cores.”
“...Oh.”
Por um momento, Lawrence não compreendeu o significado
disso, mas entendeu que ela estava se referindo à história de seus
romances.
Holo tinha vivido por séculos, então era lógico que ela teria
experimentado o amor uma ou duas vezes. Dada sua inteligência, sem
dúvida alguns de seus parceiros eram humanos.
Com Holo bloqueando o caminho à frente, Lawrence empurrou
levemente as costas pequenas, incentivando-a a avançar.
Holo obedientemente começou a andar.
Eles geralmente andavam lado a lado, então Lawrence tinha
poucas oportunidades de vê-la de costas. Era algo estranhamente
novo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 99 ⊱

Visto por trás, ela era esbelta, as linhas de seu corpo eram
adoráveis, mesmo através das roupas grossas que usava. Seus passos
não eram longos nem rápidos demais; a palavra graciosa veio
à mente de Lawrence. Havia também algo solitário em sua forma, algo
suave a ser abraçado.
É isso que é se sentir protetor? Lawrence se perguntou com um
sorriso depreciativo, mas de repente ficou cheio de dúvidas.
Holo tinha contado em seus dedos, mas quantos homens
seguraram seus ombros esbeltos?
Ele se perguntou como seria a expressão dela. Ela
ficaria satisfeita? Ela estreitaria os olhos com timidez? Ou suas
orelhas tremeriam e sua cauda balançaria de um lado para o outro,
porque ela seria incapaz de esconder sua felicidade?
Eles deram as mãos, se envolvendo... Holo não era uma criança,
afinal de contas...
Quantos ela já teve? Lawrence pensou consigo mesmo.
“...”
Assim que o pensamento apareceu em sua mente, ele se apressou
a descartá-lo. Uma terrível chama surgiu das profundezas de seu
coração.
Seu peito latejava como se tivesse caído de um
penhasco. O choque era como tocar em carvão quente, achando que o
fogo já havia se apagado, apenas para se queimar gravemente.
Ela os contou nos dedos.
Era a coisa mais óbvia do mundo, mas quando ela assinalou cada
dedo em sua imaginação, algo nele entrou em colapso lá no fundo,
deixando apenas uma raiva ardente.
O sentimento era inconfundível.
Era o ciúme mais sombrio.
CAPÍTULO II ⊰ 100 ⊱

Lawrence estava irritado consigo mesmo. Era incrivelmente


egoísta da parte dele, mesmo que tivesse nascido na avareza que leva
alguém a assumir a ocupação de mercador.
Mas o amor ao dinheiro não era nada comparado a esse
sentimento.
Foi assim que, quando Holo se voltou para ele com a acusação em
seus olhos, isso teve um efeito mais profundo sobre ele do que o
sermão que qualquer clérigo jamais poderia ter.
“Então, você terminou suas suposições?”
“...Você vê tudo, não é?” Ele respondeu, cansado.
Seu coração estava tão pesado que o fazia querer sentar e
descansar.
Mas, surpreendentemente, Holo sorriu, mostrando seus caninos
afiados. “Eu também não sou muito melhor.”
“...”
“Você simplesmente parecia tão feliz, tão desesperadamente feliz,
por falar com alguém sem uma gota de charme —”
Naquele instante, o rosto de Holo estava zangado.
Ele já tinha visto seu rosto zangado várias vezes antes, mas este
tinha algo particularmente selvagem.
Ela é uma loba sábia, se lembrou Lawrence.
“Faria sentido se eu dissesse gostei como um mercador?”
Ele perguntou, tentando oferecer uma desculpa.
Holo parou, depois começou a andar novamente, uma vez que
Lawrence havia diminuído o espaço entre eles.
“Você quer que eu pergunte o que é mais importante — o
dinheiro ou eu?”
Essa frase estava entre as três principais coisas que um mercador
solitário sonhava em ouvir de uma mulher.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 101 ⊱

E era um problema que faria qualquer mercador rasgar seu


coração em frustração.
Lawrence levantou as duas mãos em derrota.
“Para ficar claro, a razão pela qual eu ficaria brava é exatamente o
que você está pensando. É uma noção totalmente egoísta e
infantil. Mas nós dois temos juízo; nós podemos falar sobre
isso. Portanto, não estou com raiva.”
“...”
Holo era uma loba sábia com muita experiência.
Lawrence não podia esperar lutar de igual para igual com ela.
Por um tempo, ele procurou em seu pequeno vocabulário por
alguma resposta adequada, mas não encontrou nada. “O que estou
pensando é que não é justo comigo.”
“De verdade?”
Mentiras eram inúteis contra Holo.
“De verdade.”
Ela não se virou com a resposta dele.
Ele não tinha certeza se tinha sido o caminho certo.
Holo continuou andando silenciosamente, graciosamente,
finalmente chegando a uma bifurcação na estrada. De acordo com as
instruções que haviam recebido de Eva, eles precisavam virar à direita.
Lawrence não se sentia bem com isso, mas já que Holo parou, ele
falou.
“Nós dobramos aqui.”
“Mm.” Holo se virou para encará-lo. “Então esta é a bifurcação
da estrada.”
Lawrence não perguntou qual estrada estava bifurcando.
CAPÍTULO II ⊰ 102 ⊱

Evidentemente essa era a primeira barreira. A sobrancelha direita


de Holo se moveu um pouco.
“Como você lida com seu ciúme egoísta?”
Ela agora estava fazendo perguntas que pareciam ter vindo de
algum clérigo da Igreja?
Externamente, a coisa certa a fazer era se livrar
desse sentimento sombrio e egoísta, mas, por dentro, Lawrence sabia
que ele não desapareceria tão facilmente.
Ele olhou de volta para Holo, com uma expressão amarga no
rosto.
Esta era Holo, a Sábia Loba. Ele não podia imaginar que ela o
encurralaria com perguntas como essa sem um bom motivo.
Em outras palavras, mesmo que quase todas as respostas fossem
erradas, havia uma que seria correta para Holo.
Mas como alcançá-la?
A mente de Lawrence disparou.
Holo havia dito poucos minutos atrás que ela era igual a ele.
Portanto, ele pensou, a resposta devia estar em como ele via
Holo.
O problema mais difícil para ele poderia ser a coisa mais fácil do
mundo para outra pessoa resolver.
Holo também estava tendo problemas para lidar com os ciúmes
dela.
E a própria Holo queria saber como resolvê-lo, não é?
Portanto, tudo o que Lawrence precisava fazer era considerar
o problema por fora, e a resposta viria naturalmente.
Ele abriu a boca para falar e viu Holo se firmar
em preparação. “Minha resposta é que não há como resolver isso.”
Era como uma única onda na superfície calma de um lago.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 103 ⊱

Ele jogou outra pedra no lago, tentando trazer a expressão de


volta ao rosto de Holo.
“E isso faz você se odiar.”
Nem enfrentar nem a rejeitar eram a resposta correta, ele pensou.
Se ele imaginasse que Holo era a ciumenta e não ele, era a coisa
mais natural do mundo, e era realmente muito bom ser o objeto dos
ciúmes.
Afinal, o ciúme nada mais era do que querer ter alguém só para
você, então como algo poderia ser mais lisonjeiro, desde que não fosse
excessivo?
Daí a resposta de Lawrence, mas Holo continuava sem expressão.
Lawrence não desviou o olhar. Ele tinha certeza de que essa era
a barreira final.
“Hmph. Então, nós agimos certo, não é?” Ela disse com um
sorriso, inclinando a cabeça. Com isso, Lawrence não pôde deixar de
dar um suspiro de alívio. “Mas,” ela acrescentou, rindo.
“O quê?”
“Ciúme e se odiar, não é?” disse Holo com um sorriso.
Isso parecia um tanto antinatural e, quando começou a andar pelo
caminho da direita, ele já estava atrás de Holo.
“Qual é o problema?” Ela perguntou, sorrindo por cima do
ombro.
Se Lawrence realmente tivesse conseguido produzir uma resposta
que a satisfizesse, Holo não deveria estar sorrindo assim. Ele esperava
um sorriso aliviado ou uma carranca.
Então, o que esse sorriso travesso significava?
Lawrence sentiu o rosto corar. Ele tinha ficado vermelho
tantas vezes naquele dia que estava começando a se preocupar.
CAPÍTULO II ⊰ 104 ⊱

Holo riu. “Você já descobriu?” Ela perguntou por cima do


ombro. “Você se angustiou com o problema, inverteu as posições em
sua cabeça e chegou à resposta. Estava claro como o dia em seu
rosto. Mas se você pensasse um pouco sobre isso, perceberia. Quando
alguém procura um conselho, a resposta que você acha correta é o que
você quer que ele seja. O que significa?”
De fato.
Holo não esperava que as palavras de Lawrence resolvessem
seus problemas.
Na verdade, ela esperava que ele revelasse seus próprios
sentimentos.
“Você fica com ciúmes e se agoniza com isso. É isso que você
espera de mim, para que possa desempenhar o papel e oferecer sua
mão em consolo? Devo agora cair em lágrimas encantadoras de
recriminação, me agarrando pateticamente à mão que você oferece tão
generosamente?”
“Urgh—”
Então era assim que era ter o coração exposto.
Ele se sentiu como uma donzela envergonhada, cobrindo o rosto
com as mãos.
A loba de presas afiadas deslizou suavemente para o lado dele.
E, no entanto, havia um certo consolo ao ver que Holo não tinha
feito isso simplesmente para seu bel-prazer.
Até Lawrence sabia disso.
Holo estava realmente com ciúmes de sua conversa agradável com
Eve, e essa conversa era uma espécie de brincadeira.
“Hmph. Venha, vamos lá,” disse Holo, talvez lendo a expressão
desprotegida de Lawrence. “Podemos deixar as coisas dessa forma,”
ela parecia estar dizendo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 105 ⊱

Certamente seu humor havia melhorado com tudo isso, e


ela provavelmente seria mais generosa sobre ele desfrutar da conversa
de mercador para mercador com Eve.
No entanto, Lawrence não pôde deixar de sentir que tinha sido
descuidado.
Ele havia permitido que seus desejos mais profundos ficassem à
mostra.
“Então,” disse Holo ao lado dele, seu tom completamente
casual. A atmosfera ainda era ruim, mas a rua havia se ampliado
o suficiente para os dois caminharem lado a lado. “Na verdade,
estou lhe perguntando isso simplesmente porque quero provocar
você, mas...”
Mesmo com um aviso como esse, Lawrence se sentia como uma
lebre esperando o massacre.
“Você quer saber quantos eu contei?”
Seu sorriso puro e inocente caiu sobre ele como
um cutelo gigante.
“Fui lembrado de quão pequeno e frágil meu coração é,” era tudo
o que Lawrence podia responder, mas isso parecia satisfazer Holo.
A satisfação sádica estava escrita em todo seu rosto quando ela se
agarrou ao braço dele. “Bem, eu tenho que colocar minhas garras
naquele seu coração frágil antes que ele congele.”
Lawrence olhou para ela, incapaz de formular qualquer tipo
de resposta.
Inacreditavelmente, seu rosto sorridente era como o de uma
garota vitoriosa, satisfeita com suas próprias travessuras.
Mas mesmo o pior pesadelo acabava.
Depois que encontraram a casa que Eve havia descrito
para Lawrence, com a placa de cobre verde cortada na forma de
uma galinha de três pernas, Holo abandonou sua perseguição.
CAPÍTULO II ⊰ 106 ⊱

“Bem, então,” disse Lawrence para quebrar o silêncio, seu


tom estranhamente leve após a conversa frustrante e embaraçosa que
o precedeu. “Me disseram que Rigolo é um homem difícil, então
tenhamos cuidado.”
Holo assentiu enquanto caminhava ao seu lado, ainda segurando o
braço dele. “Suponho que isso encerre nossa adorável troca
de ideias. Agora estamos de volta à realidade chata.”
Lawrence não fazia ideia de quão séria era
essa declaração murmurada. “Nesse caso, sinta-se livre para voltar
para a estalagem e dormir,” ele retrucou baixinho.
“Mm... isso pode ser legal. É claro que não seriam ovelhas que eu
contaria ao adormeçer...”
Holo ainda tinha vantagem quando se tratava de ser desagradável.
Mas agora que o assunto havia surgido, Lawrence se sentia
estranhamente encorajado. “Ah? Então, quantos foram?”
Ele não queria saber todos os detalhes, mas também seria
mentira dizer que ele estava totalmente desinteressado.
Afinal, ela havia levantado o assunto aleatoriamente, então a
resposta poderia muito bem ter sido zero.
Sugerir que uma parte dele não esperava que isso fosse
verdade também seria uma mentira.
Mas Holo não disse nada em resposta à pergunta. Sua expressão
estava em branco, e ela nem tremeu. Isso a fez parecer uma boneca
perfeita e intocada.
Quando ele percebeu que era um ato, Lawrence sabia que não
poderia vencer.
“Os homens são tolos, e eu sou seu rei,” ele finalmente
falou. Holo voltou à vida e parecia bastante satisfeita. Lawrence
aceitou a derrota, sorrindo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 107 ⊱

O frango de três pernas pendurada nos beirais da casa Rigolo foi


esculpida baseada na imagem do frango que há muito tempo previa as
inundações do rio Roam, que fluía por Lenos.
A Igreja afirmou que era uma mensageira de Deus, mas de acordo
com a história, o dilúvio havia sido previsto pela posição das estrelas,
lua e sol — em outras palavras, pelos registros astronômicos da época.
Desde então, o frango de três pernas se tornou um símbolo
de sabedoria.
Talvez a família Rigolo, que aparentemente servia como cronista
há séculos, esperava que os registros que mantinham um dia atuassem
como guias, apontando o caminho para o futuro.
Lawrence bateu na porta usando a aldrava de prata, pigarreando.
A recomendação de Eve já deveria ter chegado, mas mesmo Eve,
cujas habilidades de negociação eram consideráveis, alegava que
Rigolo era um osso duro de roer. Lawrence não pôde deixar de se
sentir nervoso.
Atrás dele, Holo havia se esquecido de continuar segurando sua
mão, mas a presença dela era embaraçosamente tranquilizadora.
Era possível que ele não tivesse sido dominado por Eve
anteriormente, precisamente porque conhecia Holo e foi a companhia
dela que o permitiu pensar dessa maneira. Antes de conhecer Holo,
a única pessoa com quem Lawrence podia contar era ele
mesmo. Ele estava cheio de um desejo ardente de vencer e
um medo terrível de perder.
Era melhor ou pior ter amigos com quem
contar? Enquanto Lawrence considerava essa pergunta, a porta se
abriu lentamente.
Aquele momento — o instante entre a abertura da porta e o ponto
em que ele podia ver o rosto da pessoa — era o mais estressante de
todos.
E quando a porta se abriu, um velho barbudo e envelhecido —
CAPÍTULO II ⊰ 108 ⊱

— não estava atrás dela.


“Posso perguntar quem está chamando?”
Lawrence ficou surpreso com a figura que abriu a porta, mas não
foi uma surpresa desagradável.
Ela não devia ter mais de vinte anos, a cabeça coberta até a
sobrancelha com o pano delicado de um simples hábito preto. Ela era
freira.
“Acredito que Eve Bolan explicou que estávamos vindo.”
“Ah, nós estávamos esperando você. Entre.”
Lawrence propositadamente evitou se apresentar, mas ou
essa freira era uma pessoa particularmente agradável ou Eve era uma
pessoa particularmente confiável.
Incapaz de saber qual era a verdade, Lawrence fez o que lhe
foi pedido, entrando na casa com Holo atrás dele.
“Fique à vontade para sentar e esperar aqui.”
Ao entrar na casa, eles imediatamente se viram em uma sala de
estar com um tapete desbotado no chão.
Nenhum dos móveis desbotados pela idade era particularmente
grande, e expressavam claramente o longo período de permanência do
dono da casa.
A primeira cronista que Lawrence conheceu foi Diana na cidade
pagã de Kumersun, por isso esperava que esse lugar fosse tão confuso
quanto o de Diana — mas não, era surpreendentemente arrumado.
Em vez de livros amontoados em todas as prateleiras,
havia brinquedos de pelúcia e bordados, junto com uma pequena
estátua da Santa Mãe que uma menina poderia carregar com
facilidade. Ao lado da estátua pendiam bulbos de alho e cebola. As
únicas coisas que sugeriam que essa casa pertencia a um cronista eram
canetas de pena, garrafas de tinta e um pequeno baú cheio de areia
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 109 ⊱

usado para secar páginas com tinta, junto com pergaminhos e maços
de papel escondidos em cantos discretos.
Holo olhou ao redor da sala, sua expressão de leve surpresa
sugeria que ela tinha expectativas semelhantes.
Em primeiro lugar, dificilmente se esperava ver uma freira, que
parecia pronta para sair em peregrinação, em uma casa como esta —
embora a estátua da Santa Mãe e o emblema do frango de três
pernas sugeriam uma casa tanto com segurança financeira
quanto fé profunda.
“Sinto muito por ter deixado vocês esperando,” disse a freira
quando ela voltou.
Depois de ouvir histórias sobre a má disposição de Rigolo por
parte de Eve, Lawrence estava preparado para ficar esperando por
causa dessa ou daquela falha imaginária, mas parecia que eles seriam
capazes de encontrá-lo com uma facilidade inesperada.
Liderados pela freira com seu sorriso suave e modos
acolhedores, Lawrence e Holo seguiram da sala de estar por um
corredor até uma sala mais para dentro da casa.
A própria Holo não parecia completamente diferente de uma
freira, mas o efeito gracioso de uma freira verdadeira vinha de uma
fonte diferente. É claro que, se Holo soubesse que ele estava pensando
nisso, ela lhe daria uma bronca, pensou Lawrence — e imediatamente
depois, ela pisou no pé dele.
Sem dúvida, ela simplesmente estava esperando por uma boa
oportunidade, mas Lawrence não pôde deixar de sentir como se ela
tivesse desfeito os botões do coração dele e espiado por dentro.
“Sr. Rigolo, estamos entrando.”
A freira bateu na porta como se abrisse delicadamente
rachaduras em um ovo. No entanto, não havia como dizer qual a cor
da gema.
CAPÍTULO II ⊰ 110 ⊱

Lawrence limpou sua mente e, quando a porta se abriu com


uma resposta abafada que veio de dentro, eles entraram na sala.
Imediatamente depois, foi Holo quem, impressionada, proferiu
um quieto “huh.”
Lawrence ficou ainda mais impressionado e não conseguiu falar
nada.
“Nossa, que reação deliciosa! Melta, olhe; eles estão
impressionados!”
A freira chamada Melta deu um sorriso claro e sinuoso para a voz
jovem e vigorosa que ecoou pela sala.
A sala do outro lado da porta realmente era tão bagunçada quanto
a de Diana.
No entanto, talvez isso possa ser chamado de desordem calculada,
pois além das pilhas de livros diretamente à frente deles, e o modelo
de pássaro de madeira pendurado no teto, tinha uma parede feita
de vidro do chão ao teto, através da qual a luz do sol inundava,
revelando um jardim verdejante além dela. Era como estar dentro de
uma caverna e olhando através de uma saída para outro mundo.
“Ha-ha-ha, impressionante, não é? Com esforço suficiente,
posso mantê-lo verde o ano todo,” disse um jovem de cabelos
castanhos com uma risada orgulhosa ao se revelar. Ele usava
uma camisa e calça de colarinho sob medida, sem sequer uma única
ruga, apropriada para qualquer nobre. “Fleur me falou de você —
disse que havia algumas pessoas com um pedido estranho para me
fazer.”
“...Er, sim... Lawrence, quero dizer, meu nome é
Kraft Lawrence,” disse Lawrence, finalmente recuperando a razão e
pegando a mão que Rigolo estendeu, embora não pudesse desviar os
olhos do magnífico jardim.
Era totalmente invisível de qualquer uma das ruas circundantes —
um perfeito jardim secreto.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 111 ⊱

A falta de originalidade apareceu em sua mente, e ele não


conseguiu se conter.
“Meu nome é Rigolo Dedly. Prazer em conhecê-lo.”
“O prazer é meu, tenho certeza.”
O olhar de Rigolo se voltou para Holo. “Ah, esta deve ser a
companheira...”
“Me chamo Holo.”
Holo além de não ser do tipo tímida, mas em um primeiro
encontro, ela sabia instantaneamente como agir para causar uma boa
impressão.
Longe de se irritar com sua apresentação arrogante, Rigolo bateu
palmas satisfeito, depois estendeu uma para ela em saudação.
“Bem então! Chega de apresentações, e eu já fiz você elogiar meu
jardim, então estou bastante satisfeito. Há algo que eu possa fazer por
você em agradecimento?
Alguns mercadores tinham personalidades aterrorizantes
escondidas por trás de fachadas agradáveis, e Lawrence ainda não tinha
certeza de que Rigolo não era assim.
Melta simplesmente sorriu pensativamente ao trazer pequenas
cadeiras para Lawrence e Holo se sentarem, então parecia Rigolo era
assim o tempo todo — supondo que Melta, que assentiu levemente
antes de sair da sala, não estivesse mentindo.
“Você pode ter ouvido isso de Eve Bolan, mas esperávamos que
pudesse nos mostrar histórias antigas de Lenos das quais você
tiver registros.”
“Oh ho, então é verdade. Fleur — er, não, suponho que ela seja
conhecida por Eve entre os mercadores. Ela é um pouco nervosa
demais. Uma vez que ela conhece alguém, ela vai te contar um monte
de coisas.”
CAPÍTULO II ⊰ 112 ⊱

Lawrence sorriu compreendendo. “Isso tem alguma coisa a ver


com o motivo de você não ser um eremita de rosto severo e barbudo?”
Rigolo riu. “Parece que ela está com a língua solta de
novo! Embora a parte do eremita não seja necessariamente
falsa. Ultimamente tenho feito tudo o que posso para não ver
ninguém. Um pouco antipático da minha parte.”
Quando seu tom de voz caiu um pouco, Lawrence vislumbrou
algo frio sob o sorriso de Rigolo.
Ele era o secretário do Conselho dos Cinquenta, um grupo
formado pelas pessoas mais famosas e reconhecidas da cidade. Não era
de se surpreender que fosse um pouco frio.
“Eu sou um mercador estrangeiro — está tudo bem para você
falar comigo?”
“Sim. O momento é excelente, talvez até seja a vontade de
Deus. Dê uma olhada nas minhas roupas; são como as roupas que uma
criança que guia uma procissão fúnebre usaria, não é? Acabei de vir da
reunião do conselho. Eles chegaram a uma decisão e
puderam terminar mais cedo.”
Se isso era verdade, então esse momento realmente era um
presente de Deus, mas Lawrence achou que era um pouco cedo para
o conselho chegar a uma conclusão.
Afinal, Arold havia dito que poderia se arrastar até a primavera.
Talvez alguém tenha forçado uma votação.
“Meu Deus, você realmente é o mercador que a jovem mal-
humorada disse que você era. Não baixou a guarda nem por um
segundo, não é?”
Mesmo que Rigolo tivesse visto através de seus pensamentos, ele
perceberia um mercador de terceira classe que havia ficado perturbado
e tentou escapar.
Além disso, Lawrence estava com Holo, que podia ler mentes.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 113 ⊱

Holo certamente seria capaz de dizer se Rigolo estava


tentando enganá-lo ou dizendo a verdade.
“Hmm?” Lawrence perguntou, fingindo ignorância, mas
o sorriso de Rigolo permaneceu firme.
“Quando passamos todo o nosso tempo usando truques, paramos
de entender as coisas. Assim como a parte de trás das costas é a frente.
Ele viu o truque e a fingida ignorância de Lawrence.
Lawrence estava bastante confiante de que Rigolo não
veria através do estratagema, mas os olhos sorridentes de Rigolo ainda
estavam atentos.
“Estou empregado como secretário do Conselho dos Cinquenta,
entende? Eu posso olhar para um grupo de pessoas e perceber as
mudanças nas suas expressões de relance. Mesmo que sua expressão
sozinha não me diga o suficiente, se eu considerar as expressões de sua
companheira, a verdade naturalmente vem a mim.”
Lawrence sorriu apesar disso. Havia pessoas no mundo — e nem
todos eles eram mercadores notórios.
Rigolo riu. “Ah, é apenas um truque de bar. Se eu quisesse te
enrolar, não mostraria minhas cartas assim. E mesmo que eu pudesse
discernir seus verdadeiros motivos, ainda não consigo transmitir
minhas próprias demandas. Eu seria um fracasso como mercador, não
seria?”
“…Infelizmente.”
“Eu também não tenho sucesso com as mulheres.”
Lawrence sorriu. Ele teve que admitir que a habilidade de Rigolo
com as palavras era pouco comercial.
Enquanto falava como um poeta de algum palácio, Rigolo tirou
uma chave de metal de dentro de uma gaveta na mesa da sala.
CAPÍTULO II ⊰ 114 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 115 ⊱

“Todos os livros antigos estão no porão.” Ele gesticulou levemente


com a chave, indicando que deveriam segui-lo, depois prosseguiu para
uma sala interior.
Antes de prosseguir, Lawrence olhou para Holo.
“A parte de trás das costas aparentemente é a frente,” disse
Lawrence.
“Ele estava até mesmo observando meu rosto...”
“Primeira vez que vi alguém fazer algo assim.”
Ele provavelmente desenvolvera a habilidade enquanto precisava
ouvir e transcrever todas as várias conversas conflitantes que
aconteciam ao longo de uma reunião do conselho.
Para entender quem disse o quê, entender suas expressões faciais
seria de suma importância.
“Mesmo assim, ele não parece mal-intencionado. Parece mais
com uma criança. Mas se você tivesse alguém assim ao seu lado, seria
capaz de passar seus dias sem nenhuma preocupação,” disse Holo com
um sorriso.
Dado quantas vezes Lawrence havia sido vítima de mal-entendidos
com Holo, aquele sorriso era particularmente doloroso de ver.
“Enquanto isso, você está cheia de malícia,” disse ele, sem esperar
pela resposta de Holo antes de seguir Rigolo.

O primeiro andar era construído em madeira, mas a adega abaixo


dela era feita inteiramente de pedra.
Mesmo na vila de Tereo, o porão era de pedra. Talvez fosse
natural querer manter tesouros escondidos em cofres de pedra.
Mas havia uma enorme diferença entre um porão construído para
esconder as coisas e outro construído para armazená-las.
CAPÍTULO II ⊰ 116 ⊱

O teto era alto o suficiente para Lawrence ter que levantar a mão
acima da cabeça para tocá-lo, e as estantes de livros que ladeavam as
paredes iam do chão ao teto.
Ainda mais impressionante, as prateleiras eram organizadas por
época e tópicos e tinham um sistema de numeração.
As amarras eram finas e frágeis — nem um pouco parecida com
os grossos volumes encadernados em couro de Tereo — mas o esforço
despendido na organização estava em outro nível.
“Os incêndios são comuns nesta cidade?” perguntou Lawrence.
“De tempos em tempos. Como você deve ter adivinhado, meus
ancestrais tinham o mesmo medo, e é por isso que eles construíram
este lugar.”
Embora ela não estivesse na sala ao lado do jardim, Melta parecia
ter ouvido a conversa e agora aparecia na entrada do porão segurando
um castiçal.
Holo permitiu que a freira a guiasse enquanto
procurava livros promissores.
A agradável luz cintilava por entre as sombras das estantes de
livros.
“A propósito,” começou Rigolo quando os dois homens foram
deixados por conta própria. “Sou do tipo curioso, então não posso
deixar de perguntar. Por que exatamente você está procurando essas
histórias antigas?”
Dado que Rigolo não havia perguntado sobre o relacionamento de
Holo com Lawrence, o seu ponto interesse estava claro.
“Ela está procurando sua origem.”
“A origem dela?” Repetiu Rigolo, a surpresa óbvia em
seu rosto. Seus poderes de discernimento poderiam muito bem ser
iguais ao de qualquer grande mercador, mas ele não tinha controle
sobre sua própria expressão.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 117 ⊱

“Por uma variedade de razões, eu a acompanho até sua terra


natal.”
Se ele omitisse alguns detalhes, bem, Rigolo poderia chegar a
qualquer conclusão que desejasse, o que permitiria que Lawrence
evitasse mentir enquanto mantinha a verdade à distância.
Rigolo parecia gostar disso. “Entendo... Então você está indo para
o norte?”
“Sim. Não sabemos a localização exata, então estamos
tentando identificá-la com base nas histórias que ela conhece.”
Rigolo assentiu, uma expressão séria no rosto.
Ele provavelmente concluiu que Holo havia sido capturada
no Norte e depois vendida como escrava no sul. Dizia-se que as
crianças das terras do norte eram mais duras e mais obedientes. Havia
também muitas histórias de nobreza cujos filhos haviam morrido ou
estavam precariamente doentes e em risco de serem herdados por
outros parentes e compravam essas crianças para adotá-las.
“Não é incomum as crianças do norte ficarem nesta cidade. Seria
melhor se ela pudesse voltar para sua casa,” disse Rigolo.
Lawrence assentiu concordando em silêncio.
Holo emergiu das estantes, segurando cinco volumes
que evidentemente continham alguma promessa.
“Você certamente é sedenta por conhecimento,” disse
Lawrence. Foi Melta, não Holo, quem respondeu com um sorriso.
“Foi tudo o que encontramos, então acho que seria melhor se você
os levasse por enquanto.”
“Entendo. Aqui, deixe-me levar alguns deles. Iremos pular
as refeições por três dias se os deixarmos cair.”
Rigolo riu quando Lawrence acabou carregando toda a pilha de
livros, e eles voltaram para o primeiro andar.
CAPÍTULO II ⊰ 118 ⊱

“Normalmente, eu pediria que você os lesse aqui,” disse Rigolo,


olhando para a pilha de livros que Melta havia encadernado em
um pacote conveniente. “Mas eu confio em Fleur, e Fleur confia em
você, então eu também devo. Mas não posso dizer o mesmo para os
outros...”
Sempre que mercadores estrangeiros estavam envolvidos, haviam
muitas razões para desconfiar.
“Eu certamente entendo,” disse Lawrence.
“Mas se você os derrubar, queimar, perder ou vender, são três
dias sem comida!”
Era uma piada, mas Lawrence não riu. Sendo capaz de calcular o
valor monetário de quase qualquer coisa, ele sabia muito bem que
esses livros não tinham preço.
Ele assentiu e pegou o embrulho. “Eu os protegerei
como protegeria minha carga mais preciosa, juro pela minha honra
como mercador.”
“Então,” disse Rigolo com um sorriso de garoto.
Lawrence imaginou se o coração de Eve era movido por
tais coisas.
“Apenas traga-os de volta quando terminar de ler. Se eu não
estiver aqui, Melta estará.”
“Entendido. Mais uma vez obrigado.”
Rigolo respondeu Lawrence com um sorriso, e a Holo com
um aceno alegre.
Tais gestos fizeram com que ele parecesse menos um mercador e
mais um poeta cortês.
Satisfeita, Holo retornou o cumprimento quando os dois saíram.
“É fácil acenar quando você não está carregando nada.” Lawrence
concluiu que um pouco de queixa era justificada. Carregando livros e
pedindo orientações, ele se tornou quase um servo recentemente.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 119 ⊱

“Sim, e você faria bem em se certificar de não ficar para


trás,” respondeu Holo, caminhando à frente de Lawrence.
Suas provocações eram frustrantes, mas, ao mesmo tempo,
Lawrence sabia que, a menos que eles estivessem se dando bem,
essas provocações seriam impossíveis.
O problema era que Holo exagerava.
“É possível lisonjear um porco em cima de uma árvore, mas
lisonjear um macho o deixa estragado,” disse Holo, selando qualquer
protesto da parte dele.
Não havia espaço para contestar, esse era o problema.
“Ah, sim, estou tão estragado que posso perder a paciência,”
disse Lawrence.
Encantada com a piada, Holo bateu palmas, rindo bem alto.

Depois de deixarem os livros na estalagem, Lawrence cumpriu


sua promessa de comprar para Holo o que ela quisesse para o jantar,
e tendo escolhido uma taberna aleatoriamente, Holo decidiu que
queria um leitão inteiro assado.
Tal prato era algo raro — um porco inteiro, atravessado por um
espeto, assava lentamente em fogo aberto, ocasionalmente regado com
óleo de nozes com alguma fruta.
Quando o leitão ficou marrom dourado, sua boca foi recheada
com ervas e foi servido em um prato gigante. Era costume que quem
cortasse a orelha direita do leitão teria boa sorte.
Normalmente, esse prato alimentaria cinco ou seis pessoas; era
geralmente pedido para celebrações de algum tipo e,
quando Lawrence fez seu pedido à garçonete, a surpresa dela era
óbvia. Um murmúrio de inveja foi ouvido entre os outros homens
da taberna quando o prato foi trazido.
CAPÍTULO II ⊰ 120 ⊱

E quando o mesmo prato foi colocado diretamente na frente


de Holo, as vozes se tornaram um suspiro de simpatia.
Não era incomum para Lawrence resistir a olhares invejosos por
causa de sua bela companheira, mas esses homens se apaziguaram
quando entenderam que sua existência era realmente cara.
Vendo que Holo não seria capaz de cortar o assado, Lawrence se
encarregou de fazê-lo, mas não tinha força de vontade para colocar
parte da carne em seu próprio prato, em vez disso, ele se contentou
com a pele crocante. O óleo de nozes perfumado era saboroso o
suficiente, mas Holo queria mais. O vinho combinava melhor com a
carne do que a cerveja, e era um preço justo.
Holo literalmente devorou a refeição, completamente
despreocupada quando seus cabelos castanhos escorregaram por baixo
do capuz, tornando-se ocasionalmente salpicado pelo óleo do
assado. Ela era a própria imagem de um lobo comendo sua presa.
No fim, ela levou pouco tempo para engolir o leitão.
Quando ela terminou de pegar a carne da última costela, uma
salva de palmas surgiu na taverna.
Mas Holo não prestou atenção ao barulho.
Ela lambeu os dedos oleosos, tomou um gole de vinho e deu um
grande arroto. Suas ações eram estranhamente nobres, e os clientes
bêbados da taberna suspiravam em admiração.
Ainda os ignorando, Holo sorriu docemente para Lawrence, que
estava sentado do outro lado da carcaça de leitão agora devastada.
Talvez ela estivesse agradecendo a refeição, mas, tendo reduzido
o leitão aos ossos, ela parecia ainda mais ansiosa para caçar.
Ou talvez sirva de ração de emergência para a próxima vez que ela
estiver com fome, Lawrence disse a si mesmo quando pensou na
dolorosa conta a ser paga, perdendo toda a esperança de escapar
das presas de Holo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 121 ⊱

Eles descansaram por um tempo e depois que Lawrence pagou a


conta — o equivalente a dez dias de suborno — eles deixaram a
taberna.
Talvez ser o centro do comércio de peles tenha causado a Lenos
um excesso de sebo. A estrada de volta para a estalagem estava
pontilhada com várias lâmpadas, que suavemente iluminavam o
caminho.
Em contraste com a agitação da luz do dia, as pessoas caminhavam
em pequenos grupos, falando em voz baixa, como se tentassem não
apagar as lâmpadas tremeluzentes.
Holo tinha um sorriso sonhador no rosto enquanto caminhava,
talvez graças à satisfação que veio com o assado.
Lawrence segurou a mão dela para impedir que se desviasse do
caminho.
“...”
“Hmm?” Lawrence entoou. Parecia que Holo estava prestes a
dizer algo, mas ela apenas balançou a cabeça.
“É uma noite agradável, só isso,” disse Holo, olhando vagamente
para o chão.
Lawrence, é claro, concordou. “Ainda assim, logo ficaríamos
podres se passássemos todas as noites assim.”
Uma semana de tal indulgência esvaziaria sua bolsa de moedas
e transformaria seu cérebro em mingau, sem dúvida.
Holo parecia concordar.
Ela riu baixinho.
“Afinal, é uma água salgada.”
“Hmm?”
“Uma doce água salgada...”
CAPÍTULO II ⊰ 122 ⊱

Ela estava bêbada ou estava tentando enganá-lo


novamente? Lawrence considerou uma resposta, mas o clima era
agradável demais para estragar com conversas grosseiras. Ele não disse
nada e, finalmente, chegaram à estalagem.
Não importa o quão bêbados estivessem, os habitantes da cidade
sempre podem encontrar o caminho de casa, contanto que possam
andar, mas é um pouco diferente para os viajantes. Não importa o
quão cansados estejam os pés, eles podem perseverar até chegarem à
estalagem.
Holo pareceu desmoronar assim que Lawrence abriu a porta da
entrada da estalagem.
Não, pensou Lawrence, ela provavelmente está apenas fingindo dormir.
“Meu deus. Em qualquer outra estalagem, você seria repreendida
pelo estalajadeiro,” veio a voz rouca de Eve. Ela e Arold estavam
amontoados em volta da lareira, a cabeça de Eve coberta como de
costume.
“Só na primeira noite. Depois disso, eles dariam umas boas
risadas, sem dúvida.”
“Ela bebe tanto assim?”
“Como você pode ver.”
Eve riu silenciosamente e tomou um gole de seu vinho.
Lawrence passou pelos dois, ficando ao lado de Holo para apoiá-
la, quando Arold — que estava reclinado em sua cadeira, de olhos
fechados e aparentemente dormindo — falou.
“Sobre aquele mercador de peles do norte. Eu falei com ele. Ele
disse que há pouca neve este ano, as condições para viajar estão boas.”
“Eu agradeço que tenha perguntado.”
“Se você quiser saber mais... eu esqueci de perguntar o nome dele
novamente.”
“Ele se chama Kolka Kuus,” ofereceu Eve.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 123 ⊱

Arold murmurou: “Ah, sim, esse era o nome dele.”


Lawrence gostaria de ficar mais tempo nesse ambiente
descontraído.
“Aquele camarada Kuus fica no quarto andar. Ele disse que estava
livre principalmente à noite, então, se quiser saber mais, vá em frente
e passe no quarto dele.”
Tudo estava indo muito bem.
Mas Holo puxou a manga como se fosse para apressá-lo, então
Lawrence agradeceu a Arold e se despediu, e os dois começaram
a subir as escadas. Assim que começou a subir, Lawrence teve um
vislumbre de Eve erguendo um copo de vinho para ele, como se
dissesse: “Volte logo.”
Passo a passo, eles subiram a escada, finalmente chegando
ao quarto e abrindo a porta.
Quantas vezes Lawrence trouxera Holo de volta para um quarto
como esse?
Antes de conhecer Holo, ele havia bebido e comemorado
inúmeras vezes, mas sempre voltava para seu quarto de estalagem,
onde o medo espreitava e afastava a embriaguez e a alegria dele.
Mas o medo não havia desaparecido.
Foi apenas substituído por um novo medo, pois ele se
perguntava quantas vezes ainda seria capaz de fazer isso com ela.
Embora ele soubesse que isso era impossível, não
havia como escapar do quanto ele queria contar a verdade a Holo —
que ele queria continuar viajando com ela para sempre. Ele agora
sentia que, independentemente de como isso acontecesse, estar com
ela era o seu desejo mais profundo.
Sorrindo tristemente para si mesmo, Lawrence virou o cobertor e
deixou Holo sentada na cama. Ele conseguiu notar que ela não estava
fingindo dormir.
CAPÍTULO II ⊰ 124 ⊱

Ele tirou a capa, o roupão, o casaco e a ajudou a tirar os sapatos e


a faixa — tudo com tanta habilidade que era quase triste. Ele então a
deitou na cama.
Ela dormia tão profundamente que ele não achou que ela notaria
se ele caísse sobre ela.
“...”
O vinho ajudava a criar essas ideias em sua mente, mas
de repente ele se lembrou da falta de vergonha de Holo. Ela realmente
não notaria, até o fim.
Não há nada tão fútil quanto isso, ele pensou, murchando mais
rápido do que uma bolha estourando.
“Você é horrível,” Lawrence murmurou para si mesmo,
culpando-a por seu próprio egoísmo, quando ela o surpreendeu se
mexendo, se ajeitando um pouco.
Holo abriu os olhos e gradualmente se concentrou nele.
“O que há de errado?” Lawrence perguntou, alarmado com
o pensamento repentino de que ela poderia estar se sentindo doente.
Mas esse não parecia ser o caso.
Por baixo do cobertor, Holo estendeu a mão.
Ele pegou sem pensar. O aperto dela era fraco.
“...”
“Hã?”
“...com medo,” disse Holo, fechando os olhos.
Ele se perguntou se ela estava tendo um pesadelo. Quando
ela abriu os olhos novamente, seu rosto estava tingido com um
constrangimento persistente, como se ela tivesse falado demais.
“Do que você poderia ter medo?” perguntou Lawrence num tom
alegre, e ele pensou ter visto um sorriso agradecido brilhando em seu
rosto por um momento. “Tudo está indo bem agora, não está? Nós
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 125 ⊱

temos os livros. Não nos envolvemos em nenhum problema. O


caminho para as terras do norte não está interditado. E” — ele
levantou a mão por um momento e depois a abaixou — “ainda temos
muitas provocações para trocar.”
Isso pareceu funcionar.
Holo sorriu, depois fechou os olhos novamente e suspirou
suavemente.
“Seu estúpido...”
Ela pegou sua mão e se enrolou no cobertor.
Só havia uma coisa de que Holo tinha medo.
Solidão.
Então era o fim da jornada que ela
temia? O próprio Lawrence temia isso, e se fosse esse o caso, talvez a
viagem deles fosse tranquila demais.
Mas, mesmo assim, isso não parecia se encaixar na expressão em
seu rosto agora.
Holo não abriu os olhos por algum tempo. Justo
quando Lawrence começou a se perguntar se ela estava dormindo, suas
orelhas tremeram como se estivesse antecipando algo, e
ela esticou um pouco o queixo. “...O que eu tenho medo, é...” ela
começou, depois abaixou a cabeça quando Lawrence estendeu a mão
para acariciá-la. “É disso que eu tenho medo.”
“Hã?”
“Você não entende?” Holo abriu os olhos e olhou para Lawrence.
Seus olhos brilhavam, não de desprezo ou raiva, mas de terror.
Fosse o que fosse, ela realmente temia.
Mas Lawrence não conseguia imaginar o que era aquilo. “Não. A
menos que... você tenha medo do fim de nossas viagens?” Lawrence
conseguiu perguntar, embora fosse preciso toda a sua força para fazê-
lo.
CAPÍTULO II ⊰ 126 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 127 ⊱

A expressão de Holo suavizou de alguma forma. “Disso


também... é assustador, sim. Estou me divertindo mais nesses dias do
que jamais estive. Mas há algo que eu temo ainda mais...”
De repente, ela parecia muito distante.
“Está tudo bem se você não entender. Não” — ela falou, puxando
a mão debaixo do cobertor e apertando a mão com a qual Lawrence
ainda acariciava sua cabeça — “mais do que isso, seria problemático se
você entendesse.”
Ela então riu de alguma coisa, cobrindo o rosto com as duas mãos.
Estranhamente, Lawrence não achou que isso fosse uma rejeição.
Parecia ser o contrário.
Holo se enrolou como uma bola embaixo do cobertor, parecendo
que desta vez realmente pretendia dormir.
— Mas então ela levantou a cabeça novamente, como se de
repente se lembrasse de algo. “Eu não me importo se você
descer, contanto que não faça nada para me deixar com ciúmes.”
Ou ela notou o gesto de Eve ou estava simplesmente atraindo-
o para uma armadilha.
Em ambos os casos, ela estava certa sobre os planos
dele. Lawrence bateu levemente na cabeça antes de
responder. “Aparentemente, tenho uma queda por garotas
ciumentas.”
Holo sorriu, mostrando suas presas. “Vou dormir agora,” ela
falou, depois mergulhou novamente sob o cobertor.
Lawrence ainda não sabia o que ela temia.
Mas ele queria aliviar esse medo, se pudesse.
Ele olhou para a palma da mão, a sensação de tocar a cabeça dela
ainda era palpável. Ele fechou a mão levemente, como se quisesse
evitar que a sensação desaparecesse.
CAPÍTULO II ⊰ 128 ⊱

Ele queria ficar mais tempo, mas precisava agradecer a Eve por
apresentá-lo a Rigolo.
Ela era uma mercadora que poderia muito bem sair da cidade
amanhã, dependendo das circunstâncias, e ele não queria que
Eve pensasse nele como o tipo de homem que se dedicaria a sua
companheira antes de expressar sua gratidão.
Afinal, o próprio Lawrence havia sido mercador por quase metade
de sua vida.
“Então eu vou estar lá embaixo,” ele murmurou com um tipo
de desculpa.
Ocorreu a Lawrence que o que ele havia dito à garçonete antes
era verdade — enquanto ele controlava as cordas de sua bolsa
de moedas, suas rédeas estavam firmemente
seguras. Frustrantemente, ele achava que esse fato era óbvio demais da
perspectiva de Holo.
“...”
Sim, tudo o que ele temia era o fim da jornada.
Mas o que Holo temia?
Lawrence estava perdido como um garotinho.

Lawrence viu três hóspedes bebendo no segundo andar. Um deles


parecia um mercador; os outros dois provavelmente eram artesãos
itinerantes. Se todos fossem mercadores, era improvável que
pudessem beber juntos tão silenciosamente, por isso Lawrence estava
confiante em seu palpite.
Ele chegou ao primeiro andar. Arold e Eve ainda estavam lá.
Era quase como se o tempo tivesse parado. Nada mudou desde
que ele subiu as escadas. Os dois não falavam e olhavam em direções
diferentes.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 129 ⊱

“Uma bruxa espirrou?” Lawrence perguntou. Era uma superstição


comum que o espirro de uma bruxa pudesse parar o tempo.
Arold apenas olhou na direção de Lawrence com
os olhos profundos.
Se Eve não tivesse rido, ele ficaria preocupado de ter feito algo
indevido.
“Sou mercadora, mas o velho não. É difícil conversar,” disse Eve.
Talvez porque não havia nada que servisse como
uma cadeira adequada, ela apontou para uma caixa de madeira vazia.
“Pude me encontrar com Rigolo graças a você. Ele certamente é
do tipo melancólico,” disse Lawrence, pegando o copo de vinho
que Arold lhe ofereceu. Se alguém falasse ao velho estoico que
sua amada filha havia retornado, ele provavelmente nem iria encontrá-
la.
Eve riu. “É mesmo, não é! Não há o que fazer com um homem
tão sombrio.”
“Mas eu invejo aquela técnica dele.”
“Então você percebeu?” Eve disse com um sorriso. “Ele gostou de
você. Se pudesse levá-lo nos negócios, ele seria capaz de despir
a maioria dos mercadores, não acha?”
“Infelizmente, ele não parecia atraído por isso.”
Rigolo era totalmente indiferente a essas coisas.
“Isso é porque ele tem tudo o que poderia querer naquele lugar
velho e degradado dele. Você viu o jardim, certo?”
“Foi incrível. Você quase nunca vê janelas de vidro tão grandes.”
O rosto de Eve estava inclinado para baixo, mas ela olhou um
pouco para cima e sorriu para a resposta propositadamente mercantil
de Lawrence. “Eu nunca seria capaz de lidar com uma vida
assim. Devo dizer que eu ficaria louca.”
CAPÍTULO II ⊰ 130 ⊱

Mesmo que Lawrence não tivesse sentimentos tão fortes sobre


isso, ele entendia o sentimento de Eve.
Os mercadores pensavam no lucro quase toda vez que
respirassem.
“Então, você ouviu sobre a reunião?” Os olhos de Eve espiaram
por baixo do capuz. Arold lançou um olhar abertamente desagradável
para ela. Ela desviou o olhar.
Lawrence exibia um sorriso, mas por baixo disso, seu rosto de
mercador estava pronto.
“Aparentemente ela acabou,” disse ele.
É claro que Eve não tinha como saber se isso era verdade ou
não; ela provavelmente duvidava da resposta dele.
Isso supondo que ela não tinha nenhuma outra fonte de
informação. Se ela tinha, essa nova revelação poderia lhe dizer todo
tipo de coisas.
“E o que foi decidido?” Ela perguntou.
“Infelizmente, não chegamos tão longe.”
Eve olhou atentamente para ele por baixo do capuz, como uma
criança olhando para uma ampulheta esperando que ela acabasse, mas
ela pareceu decidir que não importa o quanto encarasse isso não
revelaria mais informações.
Ela desviou o olhar, bebendo seu vinho.
Era hora de começar a ofensiva.
“Você ouviu alguma coisa, Eve?”
“Eu? Ha! Não, ele desconfia completamente de mim. Mesmo
assim, sobre eu acreditar ou não em você... hmm. Essas palavras
realmente saíram da boca dele?”
“Pode muito bem ser a verdade,” disse Lawrence.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 131 ⊱

Se uma conclusão tivesse realmente sido alcançada, poderia


haver outros que sabiam que conclusão era essa e cujos lábios seriam
mais soltos. Se a conclusão da reunião não fosse algo que beneficiasse
mercadores estrangeiros, ninguém seria prejudicado por isso.
Em primeiro lugar, as reuniões oficiais da cidade eram realizadas
com base no pressuposto de que seu conteúdo seria tornado público.
“No entanto, o que me preocupa...” começou Lawrence.
“Mm?” Eve cruzou os braços e olhou em sua direção.
“...é exatamente o motivo de você estar fazendo a conversa trilhar
esse caminho, Eve.”
Lawrence pensou que Arold poderia ter sorrido.
Numa conversa entre mercadores, os interesses e motivações dos
participantes eram obscuros, nebulosos.
“Você certamente vai direto ao ponto. Ou você fez mais do que
negociar dois cobres em algum lugar, ou não está fazendo uma
negociação adequada.”
Era difícil imaginar uma mulher com uma resolução tão firme.
Não, para ser mulher e mercadora, ela precisava ser assim.
“Eu sou como os outros,” disse Eve. “Quero saber como posso
transformar isso em um enorme ganho. Isso é tudo. O que mais
haveria?”
“Você pode estar tentando evitar uma grande perda.”
Lawrence se lembrou do incidente em Ruvinheigen.
Mesmo se alguém entendesse essa perda intelectualmente, era
impossível imaginar de verdade até que a experimentasse por si
mesmo.
“As pessoas têm dois olhos, mas não é tarefa fácil observar
duas coisas ao mesmo tempo. Embora, eu suponha, de uma certa
perspectiva, você está certo em tentar evitar uma perda.”
CAPÍTULO II ⊰ 132 ⊱

“Com o quê...?” perguntou Lawrence. Eve coçou a cabeça com a


pergunta.
Arold os observou sorrindo sob a barba espessa. Os dois eram
como companheiras de longa data.
“Eu negocio estátuas de pedra.”
“Da Santa Madre?”
A estátua na casa de Rigolo passou pela mente de Lawrence.
“Você viu aquela na casa de Rigolo? É de uma cidade
portuária chamada Kerube, no litoral ocidental. Eu as compro lá e as
vendo na igreja aqui. Esse é meu negócio. Como se trata apenas de
transportar e vender pedra, não há muito lucro, mas se elas fossem
abençoadas pela Igreja, seriam vendidas por muito mais. Os pagãos são
mais fortes nessa região; portanto, quando a campanha do norte
acontece, ela atrai multidões de pessoas que querem comprar
estátuas.”
Era a estranha alquimia da Igreja. Assim como em Kumersun,
onde a especulação e o entusiasmo elevaram o preço da pirita, a fé
poderia facilmente ser transformada em dinheiro.
Foi o suficiente para fazer Lawrence querer tentar.
“Infelizmente, não tenho esse lucro, mas em troca eu movimento
uma quantia respeitável. Mas tudo isso foi perdido com
o cancelamento da campanha do norte. Aprendi em primeira mão
que ninguém te derruba mais rápido que a Igreja.”
Era difícil imaginar uma tragédia maior do que carregar todos os
seus bens como estátuas pesadas.
Os custos de transporte aumentavam. Os locais para vender eram
limitados. Se ela tivesse conseguido crédito para aumentar sua
transação, seus negócios poderiam sufocar.
Lawrence não achava que um mercador da estatura de Eve
colocaria todo o seu patrimônio em um investimento como esse, então
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 133 ⊱

ela provavelmente não estava enfrentando uma ruína completa — mas


ainda era um golpe sério.
Dificilmente seria estranho se, em sua frustração, ela se voltasse
para a especulação.
“Ouvi que a influência da Igreja está diminuindo no Sul. Eu
estava pensando que era hora de parar de carregar minhas mercadorias
em um navio furado — imaginei que faria um último grande negócio,
e depois pararia com ele.”
Isso sugeria que ela não seria capaz de fazer uma pausa a menos
que pudesse fazer aquele último acordo.
“Então,” continuou Eve, “estávamos conversando sobre como se
eu conseguisse atingir o sucesso, seria melhor seguirmos para o sul.”
Lawrence não precisava perguntar com quem.
Ao lado dela, Arold murmurou, “Estive pensando que já era
hora de fazer uma peregrinação.”
Uma viagem como essa não seria muito diferente de procurar
um lugar para enterrar seus velhos ossos.
Arold vinha falando sobre uma peregrinação desde que Lawrence
chegara à estalagem, mas desta vez ele parecia sério.
“Então, é isso,” disse Eve, atraindo o olhar de Lawrence para
ela. “Quer me emprestar dinheiro?”
O súbito pedido não parecia estar relacionado a nada.
No entanto, Lawrence não estava particularmente surpreso. Ele
teve uma certa premonição de que algo assim estava por vir.
“Eu tenho algumas informações muito precisas sobre o conteúdo
da reunião do conselho,” disse Eve. “Posso fazer todos os arranjos. Eu
só preciso de dinheiro.”
Os olhos dela estavam fixos em Lawrence. Ela quase o encarava,
mas ele percebeu que aquilo era um ato.
CAPÍTULO II ⊰ 134 ⊱

“Se eu souber os detalhes do investimento e decidir que o lucro


vale o risco, seria um prazer.”
“É o comércio de peles. Você dobraria seu dinheiro.” Nenhum
mercador no mundo aceitaria uma explicação tão curta, mas Eve
parecia entender isso. Ela abaixou a voz e continuou calmamente. “O
Conselho dos Cinquenta vai permitir provisoriamente as vendas de
peles a mercadores.”
“Qual é a sua fonte?” Provavelmente era inútil perguntar — era
como tentar convencer uma garçonete a dizer sua verdadeira idade.
“A Igreja.”
“Mesmo que eles tenham virado as costas para você?” Lawrence
retrucou.
Eve deu de ombros, sorrindo. “Podemos nos separar em maus
termos, mas todo mundo sabe deixar alguns contatos simpáticos para
trás.”
Lawrence obviamente não podia confiar nela, mas ela também não
parecia estar mentindo. Era muito mais fácil acreditar nessa explicação
do que se ela tivesse acabado de afirmar ter ouvido de Rigolo. “Então,
qual é o problema?”
“A condição será que qualquer pessoa que compre peles terá que
fazê-lo usando dinheiro.”
À beira da possível monopolização do comércio de peles na
cidade, Lawrence tinha se perguntado qual decisão seria proferida,
mas a esperteza deste plano o fez falar sem pensar.
“Então, eles não estão dizendo que é proibido vender, mas ao
mesmo tempo, os mercadores de lugares distantes dificilmente
carregam moedas o suficiente.”
“Exatamente. Mas eles não podem exatamente retornar de mãos
vazias, então compram qualquer pele que puderem pagar com o
minúsculo dinheiro que têm em mãos.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 135 ⊱

Isso significava que, com dinheiro, seria possível comprar as belas


peles de Lenos e levá-las para outra cidade.
Mas algo incomodava Lawrence.
Agora que Eve tinha dito isso a ele, não havia nada
que o impedisse de cortá-la do acordo e seguir sozinho.
“Você parece estranhamente confortável falando sobre isso
comigo.”
“Se tudo o que você quer é ganhar um dinheirinho a mais, então,
por favor, faça esse negócio você mesmo.”
A expressão de Eve era ilegível sob seu capuz.
Ela estava apenas subestimando ele, ou havia alguma razão para
que esse acordo não pudesse funcionar com apenas uma pessoa?
Lawrence concluiu que não podia dizer nada descuidado
enquanto esperava ela continuar.
“Na realidade, você não tem tanto dinheiro, não é?”
“Eu não vou negar.”
“Então você não deve perder esta oportunidade. Você
nem conhecia Rigolo antes de eu te apresentar. Quem nesta cidade
estaria disposto a te emprestar dinheiro?”
Ela estava certa.
Mas Lawrence pensou em algo, e ele sentiu um calafrio nas costas.
Era possível que a razão pela qual Eve o abordou em
primeiro lugar fosse para avaliá-lo como investidor. Nesse caso,
havia uma enorme discrepância na quantidade de informações que eles
tinham.
Lawrence não sabia nada sobre ela.
“É verdade, mas eu poderia voltar para uma cidade diferente e
levantar o dinheiro lá. Mas não é isso que você espera que eu faça ao
me propor essa oportunidade?”
CAPÍTULO II ⊰ 136 ⊱

Ele não tinha uma grande quantia em dinheiro e não havia nenhum
lugar nesta cidade onde pudesse levantar a quantia, de modo que esse
era o único jeito.
Mas Eve balançou a cabeça lentamente. “Naturalmente, observei
você e sua companheira, a maneira como você pagou pela estalagem,
e imaginei que, se você aceitasse o negócio, você talvez conseguiria
levantar mil peças de prata trenni. Mas quando você finalmente estiver
com as moedas, as peles já estarão vendidas, esse é o meu palpite.”
A parte de trás das costas era a frente.
Quanto mais cuidadoso Lawrence tentava ser para ficar fora da
armadilha de Eve, mais enroscado ele sentia seus pés.
A decisão do conselho não era para impedir que todas as peles
fossem compradas?
À primeira vista, a ideia de limitar as compras de peles ao dinheiro
pareceu ser apenas um plano inteligente.
“Você realmente não acha que todos esses mercadores fora
da cidade estão lá fora sem um motivo, não é?”
“Alguém com muito dinheiro está usando-os para
obter lucros ainda maiores,” Lawrence de repente notou.
“Sim. Isso, amigo, é uma guerra comercial.”
“Uma guerra... comercial?”
Era um termo desconhecido e foi a primeira vez que
Lawrence ouvia falar, mas algo a respeito dele fez
seu coração mercantil tremer.
“Acho que você não passa muito tempo perto do mar. Entre em
qualquer taberna de uma cidade portuária e beba com os mercadores
de lá. Você vai ouvir falar das guerras comerciais, acredite em
mim. Não é algo que simplesmente acontece do nada. Somos
mercadores, não bandidos. O atacante deve fazer os preparativos com
antecedência.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 137 ⊱

Isso fazia sentido. Não havia mercador no mundo que não


inspecionasse cuidadosamente sua mercadoria.
“As probabilidades são de que os mercadores acampados fora da
cidade estejam calculando a decisão do conselho e fazendo seus
planos. Quantas pessoas com dinheiro você acha que existem nesta
cidade?”
Colocando essa pergunta do nada, não havia como ter certeza —
mas Lawrence era um mercador.
Uma estimativa aproximada, baseada no tamanho da cidade,
apareceu imediatamente em sua cabeça.
“O número de empresas comerciais vale a pena mencionar...
talvez vinte, de vários tamanhos. Lojas especializadas em um tipo
particular de bem... talvez duzentas ou trezentas. Talvez o mesmo
número de artesãos prósperos.”
“A grosso modo, sim. E, entre eles, a questão é quantos colocarão
seus próprios ganhos na frente dos da cidade.”
Lawrence não conseguiu responder a essa pergunta. Não porque
ele não tivesse informações sobre a cidade, mas porque as pessoas
sempre escondiam seus desejos egoístas, mesmo quando tentavam
satisfazê-los.
“De qualquer forma, se apenas uma dessas empresas de comércio
escolher a traição, ela conseguiria toda a pele. Se eles operassem
através de uma filial de outra cidade, seria fácil esconder o que estavam
fazendo.”
Os mercadores eram um grupo geralmente sociável e não trairiam
facilmente uma cidade em que operavam lucrativamente
por anos. Mas lucro suficiente faria com que a lealdade de qualquer
pessoa vacilasse.
“Claro,” continuou Eve, “duvido que uma grande empresa
comercial se tornasse traidora. Hoje em dia, tudo é gravado nos
registros contábeis, para que seja fácil ver o que eles fizeram. Se eles
CAPÍTULO II ⊰ 138 ⊱

secretamente emprestassem dinheiro a um mercador externo, isso


poderia ser descoberto.
Lawrence entendeu imediatamente. “Mesmo que eles tivessem
uma fonte de dinheiro oculta e não registrada, o conselho poderia
interromper isso com uma única ordem: ‘A fonte de todo o dinheiro
usado para comprar peles deve ser declarada.’”
Ele pensara que as placas de registro de mercadores
estrangeiros distribuídas nos portões da cidade deviam impedir que
estes fizessem armadilhas inesperadas, mas agora a prática
parecia muito mais significativa do que isso.
Lawrence pensou na inspeção estranhamente minuciosa que ele e
Holo haviam passado. Provavelmente fora para impedir os viajantes de
trazer grandes quantias de dinheiro para a cidade.
O conselho já havia chegado a sua decisão naquela época?
“Mas há muitas outras pessoas com dinheiro além das empresas
comerciais. Os chefes dos curtumes e as pessoas que comercializam os
materiais para o curtimento de peles têm motivos para serem
pessimistas quanto ao futuro do comércio de peles nesta
cidade. Eles vão procurar capital para entrar em novos negócios e
ficarão felizes em lidar com os mercadores que estão ameaçando a
cidade para aumentar esse capital. A política do
conselho provavelmente é a melhor escolha que eles têm, mas
dificilmente alguém realmente pensa que essa política vai impedir que
as peles sejam completamente compradas. Deixe-me dizer isso
novamente —”
A voz de Eve estava fria.
“— a pele desta cidade será completamente comprada.”
Ela estava sugerindo que eles fechassem essa lacuna e comprassem
eles mesmos?
Derrotar os mercadores que planejavam monopolizar o comércio
de peles de Lenos significava estar dentro e fora da cidade.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 139 ⊱

Eles devem ter entendido que, enquanto tentassem se infiltrar na


cidade, não apenas a decisão do conselho não seria tomada, mas as
medidas defensivas adotadas pela cidade seriam redobradas — então
eles acamparam fora da cidade.
Nesse caso, mesmo quando a decisão do conselho saiu, os
mercadores não entraram imediatamente na cidade. Eles só agiriam
após a proclamação pública, garantindo que ela não pudesse ser
revertida.
Não era impossível que Lawrence e Eve pudessem comprar as
peles.
“Você sabe que não há tempo para ir a outra cidade e pedir o
dinheiro emprestado, então não posso ajudá-la. Como você disse, não
tenho conexões aqui,” disse Lawrence.
Essa era a parte mais intrigante.
O que Eve estava planejando?
Olhos azuis espiaram por baixo do capuz.
“Ah, mas você tem um grande patrimônio.”
Lawrence rapidamente percorreu a lista do que tinha em mãos.
Nada que pudesse ser chamado de “grande patrimônio” veio à
mente.
De qualquer forma, se Eve sabia disso, tinha que ser
algo imediatamente óbvio.
A única coisa em que Lawrence conseguia pensar era em seu
cavalo.
Então algo mais lhe ocorreu. Ele olhou para Eve, incrédulo.
“Isso mesmo. Você tem sua companheira adorável.”
“...Isso é um absurdo.”
Lawrence foi completamente honesto.
CAPÍTULO II ⊰ 140 ⊱

Embora o que ele quis dizer não fosse que não pudesse
vender Holo, mas que vender Holo não poderia aumentar
a quantidade de dinheiro necessária.
Embora fosse verdade que Holo era de uma beleza
impressionante, isso não era algo que pudesse ser imediatamente
transformado em mil peças de prata. Se pudesse, garotas bonitas em
todos os lugares seriam constantemente sequestradas.
Era possível que Eve tivesse descoberto que Holo não era humana,
mas mesmo assim, isso não mudava a situação.
“Achei que você pensaria assim. Mas há uma razão pela qual eu
escolhi você.” Eve exibiu um sorriso fino por um motivo que
Lawrence desconhecia.
Talvez ela estivesse apenas muito confiante em si mesma, ou
talvez estivesse bêbada com seu próprio plano. Ou talvez —
Eve removeu seu capuz, expondo seu belo cabelo dourado curto
e seus olhos azuis. “Vamos reivindicar que ela é filha de um nobre
e vendê-la.”
“O qu—?”
“Acha que é impossível?” Eve sorriu, descobrindo
seu dente canino.
Era um sorriso de desprezo.
“Meu nome é Fleur Bolan. Formalmente, sou Fleur von
Eiterzentel Bolan, décima primeira herdeira do clã Bolan, que jura
lealdade ao reino de Winfiel. Somos nobres com títulos.”
Rir parecia impossível diante de uma piada tão ridícula.
Os olhos e ouvidos que eram as ferramentas mais importantes de
Lawrence disseram a ele que Eve não estava mentindo.
“É claro que somos nobres em decadência que têm problemas para
conseguir comida, mas o nome é grande, não é? Quando caímos tanto
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 141 ⊱

que não tínhamos dinheiro para nos alimentar, fui vendida a


um mercador que havia acabado de ficar rico.”
Esse era frequentemente o caminho pelo qual a nobreza em
decadência era forçada a tomar, e explicava seu sorriso amargo.
Apesar de terem se rebaixado, esses nobres orgulhosos
costumavam ter seus títulos e seus corpos comprados por mercadores
ricos.
Se isso fosse verdade, explicaria a estranha aparência de mercador
de Eve, cansada do mundo.
“Esse é o tipo de mulher que sou, por isso conheço um ou dois
lugares para vender uma garota com um nome nobre. O que você me
diz?”
Era um território comercial em que Lawrence nunca havia
entrado antes.
Uma vez que acumulasse alguma riqueza, a primeira coisa que um
mercador faria era enobrecer seu próprio nome. O proprietário
massivamente rico de uma empresa comercial de sucesso poderia ter
sido órfão de um coletor de lixo; essas coisas não eram raras. E,
aparentemente, havia títulos nobres que se podia comprar com
dinheiro suficiente.
Lawrence tinha ouvido falar de tais coisas, mas nunca tinha se
deparado com o fenômeno.
Mas aqui na frente dele estava Eve, que havia sido comprada
exatamente dessa maneira.
“Sua companheira pode passar facilmente como uma nobre. Eu sei
que sim,” ela disse com um sorriso.
Sua voz havia se tornado baixa e rouca depois de sofrer um
destino tão amaldiçoado, sem dúvidas.
“Naturalmente, vendê-la não é o objetivo. Como eu disse
antes, eles vão limitar as compras de peles com dinheiro, a fim de
evitar uma corrida no mercado de peles, mas as empresas de comércio
CAPÍTULO II ⊰ 142 ⊱

aqui não vão emprestar dinheiro a um mercador fora, certo? Mas há


mais de um tipo de empresa comercial. Se você puder dar a eles uma
razão boa o suficiente, eles lhe pedirão um empréstimo em troca de
um corte nos lucros, e por acaso eu conheço um desses. ‘Vender uma
donzela nobre’ é apenas uma pretensão, e a empresa comercial
entende isso. Eles só precisam dela como garantia caso nosso acordo
fracasse. É assim que posso oferecer a garantia.”
Lawrence ficou meio impressionado com a explicação
complicada, mas não havia como ele arremessar Holo na disputa. Era
muito perigoso. Mesmo deixando de lado a questão da própria
segurança dela, se as coisas corressem mal, não havia dúvida de que
sua vida como mercador terminaria.
“Eu — não, nós não estamos pedindo para você penhorar sua
preciosa companheira.”
“Nós?” Repetiu Lawrence, com dúvida em sua voz. Eve lançou um
olhar de soslaio para Arold, que ficou em silêncio o tempo todo.
“Estou indo fazer uma peregrinação,” disse Arold abruptamente.
O velho dizia isso toda vez que Lawrence ficava na estalagem.
Mas Eve havia dito “nós.” Isso significava que Eve havia se juntado
a Arold. O que significava que ele realmente estava indo em uma
peregrinação, e estava deixando Eve encarregada de seus bens e da
estalagem.
E as peregrinações podem durar anos, às vezes mais de
uma década. Para Arold fazer essa jornada em sua idade significava
que nunca mais colocaria os pés em Lenos.
O que significava —
“Essa pode ser minha última chance de fazer a jornada. Eu pensei
em fazer isso muitas vezes no passado e fui capaz de economizar algum
capital. Mas nunca fui capaz de juntar a coragem...”
O estômago de Lawrence doía com o suspense.
Arold deu um sorriso cansado e olhou para Eve.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 143 ⊱

Ele deve ter sido fortemente persuadido pela mulher.


Então, por baixo das pálpebras enrugadas, seus olhos azuis se
voltaram para Lawrence.
“Eu vou entregar esta estalagem.”
A respiração de Lawrence ficou presa na garganta.
“Afinal, todos os mercadores não sonham com a mesma coisa?”
Perguntou Eve, só agora sua voz parecia com a da nobre que ela uma
vez foi.
epois de dormir, Lawrence se viu um pouco mais calmo.
Embora ele já esperasse isso ao se arrastar para a cama, as
palavras de Eve e Arold não incentivavam o sono.
“Deixe-nos saber amanhã à noite se você topa ou não.”
As palavras ecoaram em sua cabeça inúmeras vezes.
Em troca de Holo, que eles alegariam ser a única filha do clã
Bolan, eles receberiam duas mil, talvez 2.500 peças de prata trenni,
com as quais comprariam peles para despacharem pelo rio Roam bem
à frente de qualquer outra pessoa.
Levando em conta que era a pele de alta qualidade de Lenos,
mesmo considerando as tarifas, Eve alegou que conseguiria triplicar o
investimento.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 145 ⊱

Apesar de achar que isso era muito otimista, Lawrence não


pôde deixar de fazer uma estimativa similar em sua cabeça.
Supondo que eles pudessem comprar duas mil peças de peles
em prata e triplicar seu dinheiro, isso resultaria em quatro mil peças
como lucro. Eve, junto com Arold, exigiam 80% disso. Haviam alguns
preparativos necessários, juntamente com as taxas de informação e o
prédio da estalagem que Arold estava colocando como garantia — que
seria entregue a Lawrence imediatamente.
Mas o prédio, por si só, valia talvez 1.500 pratas, então
imediatamente após protestar que 80% era muito, ele ficou
em silêncio.
Além do prédio em si, se tudo desse certo, Arold também passaria
os direitos de administração da estalagem para Lawrence.
Não havia mercador no mundo que não entendesse o valor disso.
Em uma estalagem, desde que a pessoa tivesse o prédio, ele
poderia abrir uma loja e prever uma fonte de renda estável — o que
significa que as estalagens existentes tinham um grande interesse em
resistir à abertura de novas e o faziam com veemência. Não havia como
dizer quanto custaria para alguém de fora comprar os direitos de
administração de uma estalagem.
E se Lawrence fosse abrir uma estalagem em Lenos, a cidade das
fontes termais, Nyohhira, não estava muito longe, e seria um bom
ponto de partida para procurar Yoitsu.
Diante de tudo isso, seria estranho se Lawrence pudesse manter a
calma e pensar racionalmente sobre a situação.
Mas algo nas explicações de Eve soavam boas demais. À
primeira vista, parecia que o plano funcionaria, mas Lawrence não
pôde deixar de pensar que algo era estranho.
Ele também se perguntava se a enorme quantidade de dinheiro o
estava fazendo pensar demais sobre a situação.
CAPÍTULO III ⊰ 146 ⊱

Ou talvez fosse o fato do plano depender de Lawrence levantar o


dinheiro e, para fazer isso, ele teria que vender Holo — mesmo que
fosse apenas temporário.
Holo se deixou capturar no lugar de Lawrence uma vez, lá na
cidade portuária de Pazzio.
Mas, naquela época, foi ela que propôs isso como o melhor curso
de ação.
Dessa vez, Lawrence venderia Holo para seu próprio ganho.
De repente, ele entendia por que a Igreja insultava e perseguia sua
ocupação.
Lá no escuro, Lawrence imaginava se ele estava
realmente disposto a deixar Holo fingir que ela era da nobreza.
Exatamente quando ele se seu sono profundo terminaria que a voz
de Holo o puxou dos sonhos.
“Venha.”
Lawrence abriu os olhos ao som da voz de Holo.
“...Ugh... é de manhã?”
Parecia que a noite sem fim tinha sido um
sonho. Quando Lawrence abriu os olhos, foi recebido pela luz que
entrava pela janela, junto com os sons de uma cidade já movimentada
com os negócios da manhã.
Evidentemente, em algum momento de seus cálculos mentais
agitados, ele conseguiu adormecer.
Ele olhou para Holo, que estava ao lado da cama e, quando
se sentou, Lawrence percebeu que estava coberto de um suor terrível.
Isso o fez pensar na primeira vez em que teve a oportunidade de
obter um lucro enorme, logo após partir sozinho. Ele acordou tão
ensopado de suor que teve medo de molhar a cama. E, claro, o lucro
acabou sendo uma farsa.
“O que você estava fazendo ontem à noite?” Holo pressionou.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 147 ⊱

Ela parecia vagamente descontente, mas não havia provocação


em sua voz. Talvez ela estivesse genuinamente preocupada com
ele. Lawrence esfregou o suor escorregadio na parte de trás do
pescoço. Se Holo começasse a suar assim, ele sabia que ficaria
preocupado com ela.
“Foi uma conversa muito... intensa.”
Depois que ele emergiu de debaixo do cobertor, o ar frio da
manhã pareceu congelar o suor assim que entrou em contato com seu
corpo.
Holo sentou na própria cama e jogou um pano para ele,
que Lawrence aceitou com gratidão antes de hesitar em usar.
“Eu, uh... eu aprecio o gesto.”
“Eu preciso deixar meu cheiro em você.”
Holo parecia ter usado o pano enquanto ajeitava seu pelo; afinal,
ele estava coberto de pelos.
Se ele tentasse se secar com isso, Lawrence duvidava que
desse certo.
“Estou preocupada com você,” disse Holo.
“Desculpa.”
Quando Lawrence estava preocupado, ela não o poupava de
provocações, mas aparentemente ela não podia suportar a situação
inversa.
“Como você deve ter adivinhado, estão falando sobre uma grande
oportunidade de negócios.”
“Aquela raposa?”
Lawrence teria associado Eve a um lobo, mas Holo, que era
uma loba de verdade, parecia ver Eve como uma raposa.
“Sim. Ou, mais apropriadamente, de Eva, aquela mulher
mercante, e Arold, o mestre desta estalagem.”
CAPÍTULO III ⊰ 148 ⊱

“Hnn.”
“Oh, é mesmo?” Parecia ser a resposta de Holo, embora estivesse
longe de estar indiferente.
Sua cauda estava levemente arrepiada.
“Tendo ouvido apenas o que eles tinham a dizer, ainda não
descobri tudo, e é claro, não lhes dei uma resposta. Mas…”
Holo alisou o pelo de sua cauda felpuda, respondendo com os
olhos estreitos, “Mas?”
“O lucro é —”
“Mais forte que eu?” Holo interrompeu.
Lawrence fechou a boca, começou a falar novamente e
depois parou.
Sem dúvida, Holo estava tentando dizer que antes que junto com
um grande lucro vinha um grande perigo.
Um cachorro que se queima na lareira nunca mais se aproximará.
Somente os humanos eram tolos o suficiente para se queimarem
tentando arrebatar uma castanha do fogo repetidas vezes.
Mas as castanhas assadas eram realmente doces, então Lawrence
alcançava as chamas ardentes.
“É enorme.”
Holo lentamente estreitou os olhos vermelhos. Ela parou de
cuidar da cauda e coçou barulhentamente a base das
orelhas. Mas, mesmo assim, Lawrence não podia desistir da proposta
de Eve. Ele pensou na primeira vez que discutiu com seu antigo
mestre.
“O lucro é esta estalagem em si — ou até mais.”
Holo não podia deixar de entender o que isso significava.
Lawrence antecipou isso, por isso falou de maneira simples e
clara.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 149 ⊱

Houve silêncio por um tempo.


Tudo o que o impedia de ser insuportável para Lawrence eram
os olhos vermelhos de Holo, que agora eram quase tão redondos
quanto a lua cheia.
“Isso seria... bem perto de realizar seu sonho, não seria?”
“Seria,” respondeu Lawrence sinceramente. O humor afiado de
Holo desapareceu como se nunca tivesse estado lá, e ela jogou a orelha
direita para trás por um momento.
“Então, o que há para se hesitar?” Ela finalmente falou. “Eu me
lembro que possuir uma loja é o seu sonho e, se é assim, não tenho
razões para impedi-lo.”
Holo pegou a cauda entre as mãos e começou a arrumar.
De alguma forma, ela parecia pasma com ele.
Incapaz de lidar com sua reação inesperada, Lawrence
ficou enraizado no mesmo local.
Ele se preparou para ela recusar categoricamente — ou se
ela tivesse pelo menos dito que o esquema era muito perigoso, isso
teria sido uma informação útil para determinar a verdade por trás das
palavras de Eve.
É claro que o acordo poderia ser a chance de uma vida, mas
se parecesse que o perigo superava o ganho, ele poderia deixar passar.
Ele sempre poderia ganhar dinheiro novamente.
Mas ele nunca encontraria outra Holo.
“O que te aflige? Você parece um cão negligenciado,” ela disse.
Lawrence estava acariciando reflexivamente sua barba, e
sentiu como se ela tivesse atingido o alvo.
“Você estava tão feliz sendo contestado por mim?”
A cauda de Holo era marrom, mas a parte de baixo era branca
como a neve.
CAPÍTULO III ⊰ 150 ⊱

Ela a penteava com os dedos, formando uma bola branca de pelo.


“Eu presumi que você recusaria, então eu poderia simplesmente
recusar a proposta,” disse Lawrence honestamente, e Holo deu um
sorriso exasperado com isso.
“Então você esperava que eu esclarecesse algumas coisas com
minha inteligência de sempre.”
“Em parte, sim.”
“E o resto?”
Não havia sentido em esconder o que sentia. Se ele o fizesse,
ela simplesmente os desenterraria e zombaria dele.
“Bem, você vinha fazendo essa cara irritada —” ele começou.
Holo riu secamente. “Seu tolo,” ela disse brevemente.
“— então eu fiquei me perguntando: por que a mudança
repentina? Você odiava a ideia de me envolver nos negócios daqui.”
“Hmph,” Holo fungou, mas a causa era poeira em seu nariz ou suas
palavras?
Provavelmente o último, ele decidiu, mas ela não parecia muito
chateada.
“Você realmente é... ah, não vale a pena dizer. Eu sei bem
como você é um tolo. E isso é um fardo para mim, ter que te dar
ordens o tempo todo.”
Você não pode estar falando sério, pensou Lawrence — e, talvez
sentindo isso, ela o lançou um olhar ameaçador, como se fosse
realmente rasgá-lo em pedaços.
“Honestamente...” continuou Holo. “No final, falei e agi apenas
pelo meu próprio interesse. Por exemplo, sinto que
simplesmente poder vagar por aí com você é a melhor coisa para
mim. Todas as vezes que eu agi como se estivesse te ensinando alguma
grande verdade do mundo, era apenas para continuar viajando com
você. Na verdade, foi cansativo.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 151 ⊱

Ela pegou a bola branca de pelo e soprou no ar, depois voltou a


atenção para a cauda.
Moderadamente emburrada -— sua expressão dizia
concretamente: “Isso é um absurdo.”
“Você deve pesar o perigo que arrisca contra o lucro que deseja
ganhar e agir se achar que vale a pena. Não era o seu sonho possuir
uma loja? Não quero atrapalhar isso.”
“Você não está atrapalhando —”
“E de qualquer maneira, se eu não tivesse aparecido, você seria
capaz de se envolver com o que quisesse, e se seu oponente tentasse
enganá-lo, você estaria pronto, esperando para ser mais esperto do que
ele e fazer um grande lucro. Você tinha espírito e imprudência para
fazer isso, não tinha? Você esqueceu?”
Com o estímulo de Holo, Lawrence sentiu uma lembrança antiga
retornar.
Lá na cidade portuária de Pazzio, ele certamente possuía esta
iniciativa. Ele estava desesperado por lucro, e faria coisas que ninguém
acreditaria para superar o perigo que havia.
Mas era difícil imaginar isso há apenas alguns meses atrás. Nem
meio ano se passou e, no entanto, parecia que essas coisas haviam
acontecido em um passado distante.
Holo se enrolou como uma bola no cobertor, de frente para
Lawrence, a cauda enrolada sob ela de tal maneira que chegava à ponta
do queixo. “Nada defende seu ninho como um macho humano.”
“Er —” foi tudo o que Lawrence conseguiu dizer com essa
declaração.
Ele só entendeu agora o que ela tinha falado. A fortaleza que havia
crescido dentro dele era defensiva, criada quando sentiu que ficaria
sozinho para sempre.
“Mas eu não posso te culpar por isso. Você... não, eu sempre achei
seu rosto charmoso quando estava com medo de mim.”
CAPÍTULO III ⊰ 152 ⊱

Essa última piada fez com que os sentimentos de Holo fossem


ainda mais expostos.
Claro, isso poderia ser parte de seu plano.
“Eu sempre fui muito egoísta em minha relação com você. Você
também pode ser egoísta comigo. E se você preferir me esquecer...
Lawrence estava prestes a dizer rapidamente que não queria
fazer isso, mas percebeu o que Holo estava tentando fazer e engoliu
suas palavras.
“Você pode virar as costas para mim. Até que eu acabe te
mordendo.”
Holo sorriu, mostrando suas presas.
Provavelmente não havia um mercador vivo que registrasse
suas dívidas e obrigações com o mesmo cuidado que Holo.
E Lawrence conhecia muitos mercadores que haviam
estabelecido lares e, embora fossem homens tenazes, no fim
haviam perdido.
Se ele próprio estava feliz por ser um mercador econômico e
viajante, que assim fosse.
Mas quando ele se perguntou se estava realmente feliz com
isso, Lawrence descobriu que não estava tão cansado a ponto de
responder afirmativamente.
Depois que ele levasse Holo até sua terra natal e voltasse para suas
viagens e negócios, não demoraria muito tempo para que pudesse
levantar a capital e abrir uma loja.
Mas, quando comparado com uma estalagem e com os direitos de
administração que a acompanham, esse sonho parecia
desesperadamente humilde. Com um prédio e os direitos, além de
ativos para gastar como quisesse, só pensar nas possibilidades era quase
assustador.
Ele poderia fazer isso? Lawrence percebeu que queria tentar.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 153 ⊱

“Mesmo assim, há coisas sobre o acordo que eles propuseram


que me fizeram hesitar.”
“Oh?” Holo olhou para cima, interessada.
Lawrence coçou a cabeça e reuniu suas forças. “Para aumentar a
quantia de dinheiro que eles precisam para o negócio, eles precisam te
usar.”
A expressão de Holo permaneceu neutra, como se dissesse:
“Continue.”
“Eles vão fingir que você é uma donzela nobre e colocá-la em
penhor em uma empresa comercial.”
Holo fungou assim que ouviu isso. “Não me diga que foi isso que
te fez suar ontem à noite.”
“...Você não está com raiva?”
“Eu só estou com raiva por você pensar que eu ficaria.”
Ele já ouviu essa fala antes.
No entanto, Lawrence não entendia o que ela estava dizendo.
“Você ainda não entende?”
Lawrence se sentia como o aprendiz de um jovem mercador, a
quem tinham feito uma pergunta simples, mas não conseguia
responder.
“Você é realmente inacreditável...” disse Holo. Não sou
sua parceira? Ou sou apenas uma donzela que você gosta de proteger?”
Quando era colocado dessa maneira, Lawrence finalmente foi
capaz de entender.
“Por acaso não tenho minhas próprias virtudes? Se eu puder ser
útil para o seu ofício, então eu me entrego alegremente!”
Definitivamente, era uma mentira, mas estava claro que, desde
que certas condições fossem cumpridas, Holo confiava em Lawrence
o suficiente para arriscar um perigo significativo.
CAPÍTULO III ⊰ 154 ⊱

Se Lawrence tinha falhado em reconhecer sua confiança... bem,


não era de admirar que ela estivesse com raiva.
Ele precisava confiar nela como a parceira que aceitaria
seus pedidos levemente irracionais, como uma sábia loba que o
impediria de enfrentar o desastre e, finalmente, respeitá-la como uma
pessoa de igual status.
Desde que ele não esquecesse essas coisas, Lawrence poderia
perguntar o que quisesse, e ela não se sentiria usada.
“Então, eu realmente preciso da sua cooperação,” disse ele.
“Hmph. Eu já te ajudei uma vez, mas isso foi para te agradecer por
ser gentil comigo. Desta vez, não há o que agradecer.”
Não era como um agradecimento nem como um favor dado ou
recebido.
Então o que era?
Não era dinheiro nem dívida.
Todos os relacionamentos de Lawrence até agora acabavam no
zero; a quantidade fornecida era igual à quantidade tomada. Se alguma
coisa era emprestada, ele esperava que ela retornasse e, se não fosse,
teria que pagar a dívida. Até os relacionamentos “amigáveis” eram
alterados de acordo com o crédito de transação.
Holo era diferente, um tipo inteiramente novo de
relacionamento.
Mas, assim que Lawrence percebeu qual era o termo mais
adequado, Holo lançou um olhar que dizia inconfundivelmente: “Pare
o que está pensando.”
“Então, há mais alguma coisa com a qual você está preocupado?”
Ela perguntou.
“Claro. Estou preocupado que possa ser uma armadilha.”
Holo riu. “Se o seu oponente tem um esquema, contrarie-
o. Quanto maior o esquema deles...”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 155 ⊱

Ela dissera a mesma coisa logo depois que se conheceram e


um jovem mercador misterioso tentou fazer um acordo com
Lawrence.
“Quanto maior o esquema, maior o lucro quando você o
atrapalha.”
Holo acariciou sua cauda e assentiu. “Eu sou Holo, a Sábia
Loba. Seria bom, de fato, se meu parceiro fosse um mercador
desprezível.”
Lawrence riu — eles já tiveram essa conversa antes.
O tempo passava e as pessoas mudavam.
Ele não sabia se isso era bom ou ruim.
Mas sabia que ter uma parceira para compartilhar isso o fazia feliz.
“Então,” disse Holo.
“Sim?”
E, de qualquer forma, pelo que parece o nome dela estava
profundamente gravado na alma dele.
Seus pensamentos eram totalmente claros para ele.
Lawrence sorriu. “Café da manhã, certo?”

A primeira coisa que eles precisavam fazer era estabelecer as


bases.
Se pudessem verificar se Eve era realmente uma vendedora de
estátuas, se sua fonte de pagamento era realmente a Igreja e se ela
realmente brigara com eles, isso lhes diria muito.
Holo ficou no quarto deles, dizendo que ia ler os livros que haviam
emprestado de Rigolo.
Quando ela lhe disse para vagar pela cidade como
quisesse, Lawrence se viu querendo agradecer. No entanto, isso
CAPÍTULO III ⊰ 156 ⊱

parecia bastante estranho, em vez disso, ele disse a ela: “Aprecie


seus livros e não chore muito.”
Deitada de bruços, folheando as páginas, sua única resposta foi
balançar a cauda com desdém. Suas orelhas mexeram
minuciosamente, provavelmente porque ele havia dito algo que ela
não queria ouvir.
O clima lá embaixo era um pouco estranho, dada a noite anterior,
mas Lawrence cumprimentou Arold rapidamente antes de sair.
Enquanto ele tivesse o ar fresco da manhã, a cidade enérgica e a
luz do sol quente, as coisas não poderiam ser tão ruins.
Lawrence começou a andar imediatamente.
Ele não tinha conhecidos nesta cidade, e sua única fonte de
informação era a garçonete da Besta e Rabo de Peixe. Como essa hora
do dia era particularmente movimentada para os vendedores e
açougueiros que precisavam comprar seus suprimentos, Lawrence
decidiu ir primeiro à igreja.
A cidade era de tamanho moderado e as ruas eram complicadas,
então Lawrence ainda não tinha visto a igreja, mas tinha a impressão
de que sua posição dentro da cidade era razoavelmente boa.
Quando se chegava nas proximidades de Lenos, os
pagãos não eram raros, e era comum o suficiente ter um como
vizinho.
Alguém poderia pensar que isso implicaria uma diminuição do
poder da Igreja, mas, pelo contrário, apenas elevava o moral dos
verdadeiros crentes.
Eles acreditavam que as dificuldades eram provações enviadas por
Deus, por isso fazia um certo sentido. O forte desejo de Arold de fazer
uma peregrinação ao sul provavelmente era bastante comum por aqui.
Os crentes mais fervorosos sempre podiam ser encontrados onde
o poder da Igreja era mais fraco.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 157 ⊱

Talvez porque, se não conseguissem suportar, a chama de sua fé


certamente seria extinta pelas tempestades do paganismo — ou talvez
essas tempestades fossem como a brisa de uma fogueira.
Nesse sentido, não havia razão para duvidar da importação de
estátuas de pedra por Eve. Certamente havia uma demanda por elas.
Mas isso não significava que não havia dúvida.
Lawrence comprou pão de centeio de um padeiro e perguntou
como chegar lá. Quando viu a igreja, imediatamente deu voz a suas
impressões.
“É como um cofre.”
Era menos uma igreja e mais um templo esculpido em pedra.
O design era familiar, mas a atmosfera em si era diferente. Ele
passou pelas portas e entrou na igreja onde um punhado de pessoas
realizava sua adoração matinal.
Pode-se dizer se uma igreja tem dinheiro olhando sua
entrada. Ninguém apreciava o interior de uma igreja que não tivesse
um senso de idade, de antiguidade, mas a entrada era diferente. Como
a entrada era desgastada e deformada pelas pessoas que passavam por
ela, uma igreja com dinheiro podia pagar pela manutenção
adequada. Era puramente uma demonstração de riqueza.
E a entrada desta igreja em particular, apesar de todas as
pessoas que passavam por ela, era composta por degraus de pedra
lindamente esculpidos.
Ficou claro que a igreja de Lenos tinha dinheiro.
Então — e as despesas deles?
Lawrence olhou em volta, procurando por pistas.
Entre a igreja e um grupo de três prédios menores, havia um beco
que dava para o interior do quarteirão. A uma curta distância, havia
um espaço onde a agitação da cidade e a luz do dia não alcançavam —
assim como os que moravam naquele espaço.
CAPÍTULO III ⊰ 158 ⊱

Enquanto Lawrence seguia pelo caminho, ninguém sequer olhou


para ele.
Seria necessário um grande encantamento para despertá-los
do sono.
“Que as bênçãos de Deus estejam com você,” disse Lawrence a
um deles.
Era difícil dizer se o homem estava morto ou apenas dormindo,
mas seus olhos agora se abriram. “Hnn!… Oh. Não está
dando esmolas, está?” Ele disse, sua voz uma mistura de antecipação
e decepção.
Lawrence olhou o homem da cabeça aos pés — ele
certamente não parecia ser um homem da Igreja.
Oferecendo um pouco do pão de centeio ainda quente para o
homem, Lawrence deu o seu melhor sorriso de mercador. “Sem
esmolas, eu receio. Eu gostaria de fazer algumas perguntas.”
O rosto do homem ficou vermelho ao ver o pão. Ele não parecia
ser um sujeito a reclamar. “Inferno, pergunte o que quiser.”
Ele devorou o pão de centeio com uma velocidade que
surpreendeu até Lawrence, que havia se acostumado com a glutona da
Holo, depois deu um sorriso cheio de dentes.
“É sobre a igreja,” disse Lawrence.
“O que você quer saber? Quantas amantes o padre tem? Quem foi
o pai da criança que a freira deu à luz há algum tempo?”
“Fascinantes, mas não. Estava imaginando quantos pães essa igreja
assa.”
Obviamente a igreja não era uma padaria. Ele estava
perguntando quanto pão a igreja distribuía aos
necessitados. Havia igrejas e abadias cujas finanças declinavam a ponto
de não realizarem esse trabalho, mas a maioria fazia em proporção
ao estado de seus cofres.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 159 ⊱

E, como resultado, os destinatários dessa caridade conheciam


naturalmente o estado da cozinha da igreja.
“Heh, já faz algum tempo desde que me perguntaram isso.”
“Oh?”
“Antes, mercadores como você vinha perguntar o tempo
todo. Você quer saber como a igreja daqui está, não é? Parece que não
está trazendo pessoas da maneira que costumava. Acho que Deus
precisa de mais propaganda.”
Havia um ditado nos negócios: “Olhe para os pés.”
Significava olhar para o seu oponente para entender não apenas suas
fraquezas, mas toda a sua situação.
E, nesse sentido, quem melhor para olhar para os pés do que os
mendigos que passavam os dias na rua, olhando para os pés de todos os
que passavam?
Ocasionalmente, esses mendigos eram expulsos em massa de
uma cidade porque os que estavam no poder tinham medo de quanto
conhecimento os mendigos tinham de seus cofres.
“Já estive em muitas cidades nesta área, mas a igreja aqui é a
melhor. Eles podem não distribuir grandes quantidades de pão ou
feijão, mas a qualidade é sempre boa. Apesar…”
“Apesar?” Repetiu Lawrence de volta para o homem.
O homem fechou a boca e coçou a bochecha.
Havia uma hierarquia entre os mendigos. Os que estavam
mais perto da entrada da igreja, onde era mais fácil pedir, tinham
informações mais completas.
Lawrence pegou duas moedas de cobre baratas e as entregou ao
mendigo.
O mendigo riu. “Apesar — de que o bispo espalha mais dinheiro
sobre a cidade do que pão entre os mendigos.”
“Como você sabe?”
CAPÍTULO III ⊰ 160 ⊱

“Oh, eu posso dizer. Quando uma carruagem esplêndida que tem


sua própria escolta para afastar mendigos como eu chega, eu posso
dizer. E é claro como o dia que tipo de jantar foi servido do lixo
que eles jogam fora. E olhando quantos homens arrogantes da cidade
vêm a esse jantar, posso dizer o quão importante o convidado
era. Impressionante, não é?”
As pessoas no poder não realizavam grandes jantares sem
motivação para fazê-lo. Como eles evidentemente tinham um negócio
baseado na compra de estátuas de Eve, em seguida, consagrando-as e
vendendo-as por muito mais dinheiro, esses jantares tinham que ter
natureza política — nada mais que um investimento.
Portanto, embora ainda não estivesse claro o que a Igreja estava
tentando alcançar, dada essa informação, Lawrence agora viu que ela
exercia poder dentro do Conselho dos Cinquenta.
E, no entanto, pensou Lawrence consigo mesmo, ao considerar o
mendigo.
Quando uma cidade era invadida em tempos de guerra, ele
percebia por que eram sempre os mendigos que eram postos à lança.
Cada um deles era como um espião.
“Você não poderia usar sua visão para elevar sua posição na
sociedade?” Perguntou Lawrence.
O homem sacudiu a cabeça. “Você não entende,
amigo? Deus disse: ‘Bem-aventurados os pobres,’ não
foi? Você sente algo quente e feliz em sua barriga só com um pedaço
de pão preto duro e duas moedas de cobre?” O homem olhou
fixamente para Lawrence. “Eu sei que eu faço.”
Nem todos os sábios se envolviam em casacos de couro.
Lawrence teve a sensação de que esse homem era uma
personificação melhor dos ensinamentos de Deus do que qualquer
pessoa da igreja onde ele rezava.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 161 ⊱

“De qualquer forma, eu não sei o que você está planejando,”


continuou o mendigo, “mas se você tentar lidar com esta igreja, eles
simplesmente o enforcarão. Eu só conheço um mercador que
trabalhou com eles por um longo tempo, e até ele acabou discutindo
com eles com aquela voz rouca.”
Lawrence soube imediatamente de quem o mendigo estava
falando.
“O negociante de estátuas?” Ele perguntou.
“Estátuas? Ah sim, acho que ele tinha algumas. Ele é seu amigo?”
“Algo assim. Então... ele negociou com mais alguma coisa?” Não
se falava em negócios paralelos, mas os mercadores frequentemente
empacotavam itens menores entre a carga principal.
Essa era a suspeita de Lawrence, mas a resposta do mendigo
fez seus olhos se arregalarem de surpresa.
“Eu tinha certeza de que ele era um mercador de sal. Não?”
Se lhe pedissem para nomear três mercadorias particularmente
pesadas para transportar, ele seria capaz de fazê-lo instantaneamente
— pedras para alvenaria, alume para roupas e sal como conservante de
alimentos.
Todos eles não eram adequados para funcionar como um negócio
lateral.
Animado, Lawrence pressionou o homem. “Por que você
acha isso?”
“Opa, calma aí, amigo. Ele é seu rival? Não quero me meter em
problemas só porque você me fez umas perguntas,” disse o homem, se
afastando e olhando duvidosamente para Lawrence.
“Desculpe,” disse Lawrence, voltando a si. “Ele não é um rival.
Ele é alguém com quem estou fechando um negócio.”
CAPÍTULO III ⊰ 162 ⊱

“...Ah, então você está querendo saber do passado dele, não


é? Bem, você parece gente boa. Acho que você não contaria
uma grande mentira. Claro, eu vou te contar.”
Lawrence, como qualquer mercador, não tinha certeza se
estava feliz por saber que parecia uma boa pessoa.
Por um lado, era bom que as pessoas baixassem a guarda ao redor
dele, mas também poderia impedir que o levassem a sério.
O mendigo gargalhou. “Ah, eu só quis dizer que tem
muitos mercadores que tentam usar a gente, mas a maioria deles pensa
que é melhor que nós. E menos ainda se admiram com
minhas palavras. Foi só isso que eu quis dizer.”
Lawrence ficou tão perturbado com isso que quase disse ao
mendigo que a bajulação não lhe daria outras moedas.
“Ah, mas de qualquer forma, é uma coisa simples,” disse o
mendigo. “Às vezes, quando aquele mercador visitava a igreja, o sal
caía entre as rachaduras de sua carga. Eu posso distinguir pelo cheiro
se o sal foi usado para embalar peixe ou carne — é uma boa companhia
para o licor. Mas, quando o sal é usado, o sabor fica ruim. Por isso eu
acho que ele era um mercador de sal.”
Quanto mais se movia para o interior, mais precioso o sal se
tornava.
Eve disse que trouxe estátuas de uma cidade que ficava de frente
para o mar ocidental.
Seria fácil embalar sal marinho nas mesmas caixas que levavam as
estátuas.
Ou ela poderia estar contrabandeando.
Se ela estivesse negociando com a igreja há muito tempo,
eles poderiam ter facilitado as inspeções de sua carga como uma
vantagem.
“Então é assim que as coisas são. Mais alguma coisa que você
queira saber?”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 163 ⊱

O mendigo não só o entregou informações úteis; mas sua forma


propensa e suja tinha uma estranha dignidade.
Mas Lawrence ouvira tudo o que precisava ouvir. “Você me deu
o segredo para viver uma vida feliz. Isso é mais do que suficiente.”
Parecia que realmente havia pepitas de ouro para serem
encontradas à beira da estrada.

Parecia que Eve havia realmente feito acordos com a Igreja.


E Lawrence agora sabia que o bispo estava espalhando
dinheiro pela cidade a fim de alcançar algum tipo de objetivo político.
Se fosse esse o caso, não era de estranhar que ela
estivesse preparada para se arriscar e ganhar algum dinheiro. Depois
que as estátuas fossem compradas e abençoadas a baixo custo, sua
venda era tão preciosa que tinha um charme próprio, sem dúvida.
Mas se fosse assim, algo estava estranho.
As transações de estátua eram uma fonte estável de renda — elas
seriam arruinadas com apenas um único empecilho? A Igreja
simplesmente não levava Eve a sério, ou eles criaram um sistema de
distribuição que os permitia adquirir as estátuas?
Eve simplesmente decidiu deixar a cidade para sempre, mas
ela parecia não ter abandonado completamente a possibilidade de que
o negócio pudesse ser reiniciado no ano seguinte, o que
Lawrence achou agradavelmente suspeito.
De acordo com o mendigo, Eve havia brigado com a igreja
tão ferozmente que sua voz exaltada podia ser ouvida do lado de fora
do prédio. No entanto, nada disso era suficiente para justificar uma
separação tão estressante. Às vezes, fazer negócios significava
acabar com ativos inúteis ou ter parceiros dando as costas para
você. Não era raro.
Naturalmente, essas coisas eram perturbadoras e, quanto mais
profunda a sua confiança, mais forte era o sentimento de traição. Mas
CAPÍTULO III ⊰ 164 ⊱

Eve não considerara Lawrence um mercador tão jovem que pensaria


que gritar mudaria a situação.
A Igreja sabia que Eve era da nobreza, embora da nobreza falida?
Ela dissera que havia uma empresa comercial na cidade que sabia
sobre sua origem nobre.
A Igreja possuía poder de coleta de informações
que envergonharia qualquer empresa de comércio — ela tinha que
saber.
Era incompreensível que o mesmo bispo que convidava a nobreza
de todo o mundo para jantares luxuosos descartasse Eve, que era da
mesma nobreza. Ela poderia ser útil para inúmeras coisas.
Ou sua utilidade havia desaparecido?
Foi por isso que ela se ofereceu para trazer Lawrence, um
mercador que acabara de conhecer, para um acordo no valor de
milhares de moedas de prata?
Era por desespero? Ou ela estava tentando se
recuperar? Não poderia ter sido apenas uma sugestão amigável. A
quantia era muito alta.
Ele estava pensando demais nas coisas para se perguntar se ela
tinha um motivo além do simples lucro?
Mas mesmo que ela estivesse tentando atrair Lawrence para uma
armadilha, havia apenas algumas opções.
Ela poderia fugir com as mercadorias assim que Lawrence tivesse
desembolsado o dinheiro, matá-lo no meio da exportação, ou
possivelmente fazer um acordo secreto com a firma comercial para
vender Holo, e depois fingir que nada havia acontecido.
No entanto, nada disso parecia provável.
O acordo que Eve havia proposto era inteiramente legal (exceto
por ela usar com Holo como uma parente de sua nobre casa), de modo
que o conteúdo seria declarado perante uma testemunha pública e
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 165 ⊱

Lawrence teria uma cópia. Se ele enviasse isso para uma empresa
comercial em alguma outra cidade, seu oponente seria incapaz de
fazer movimentos descuidados. Enquanto um terceiro tivesse um
registro cuidadoso de todas as ações de Lawrence, nenhum desses
planos seria fácil por em prática.
Além disso, Lawrence não esperava que Eve o subestimasse
tanto que acreditasse que esquemas tão simples funcionariam contra
ele.
Talvez ela realmente não estivesse planejando nada.
Todos os acordos estão em algum lugar entre a confiança e a
suspeita.
Ele estava longe de confiar nela, mas só seria capaz de investigar
por um tempo limitado antes que o acordo se tornasse impossível.
Ele teria que decidir.
Lawrence refletiu sobre o assunto enquanto seguia para a Besta e
Rabo de Peixe.
Se o Conselho dos Cinquenta chegasse a uma decisão, que agora
parecia um segredo aberto, ele esperava que houvessem novas
informações circulando.
Quando ele chegou à taverna, ela estava completamente
vazia; nenhuma pessoa era encontrada lá dentro. Andando pelo beco
que dava para a parte traseira do prédio, ele encontrou a garçonete
lavando uma grande bacia que parecia ter sido usada para guardar
vinho.
“Meu Deus, você chegou cedo,” disse ela.
“Devo assumir que é a água fria que fez seu rosto ficar assim.”
“Ah, sim, e é por isso que eu também posso estar com um pouco
de frio,” ela disse com um sorriso, largando o
pedaço de pano de cânhamo que estava usando para lavar a
bacia. “Quantos mercadores você acha que vieram falar comigo?”
CAPÍTULO III ⊰ 166 ⊱

Todos eles desesperados por lucro, sem dúvida.


Lawrence não sabia quantos mercadores dentro da cidade estavam
tentando reivindicar uma parte no comércio de peles, mas Eve
parecia acreditar que ela e Lawrence poderiam
lucrar. Ele se perguntou se isso era mesmo verdade. Esta era outra
coisa que o preocupava.
“Você não pode imaginar que sua beleza era o objetivo deles?”
Perguntou Lawrence.
A garçonete deu uma risadinha. “Sorrisos são de ouro, palavras
são de prata. Quantos grosseiros barulhentos você acha que
ofereceram moedas de cobre?”
Não poderia ter sido muitos, mas também não tão poucos.
“Admito que vim perguntar algumas coisas um tanto grosseiras.”
“Não tenho dúvida disso. Deva um favor a um mercador, e ele
sempre virá cobrar. Então, o que você quer saber?” Aparentemente,
ela largou o pano não para falar com Lawrence, mas para esvaziar a
bacia de água. Ela inclinou a bacia, que era grande o suficiente para
Holo se enroscar lá dentro quando estava deitada, e derramou seu
conteúdo no chão.
“É sobre o Conselho dos Cinquenta,” disse Lawrence
claramente. Se ele falasse tão sem rodeios, ele poderia levar um chute
no traseiro e não teria do que reclamar.
Mas a garçonete apenas deu de ombros e sorriu. “Ouvi dizer que
eles chegaram a uma conclusão. Eles dizem que vão permitir a venda
de peles, mas não a crédito.”
Era exatamente o que Eve havia dito.
No momento em que Lawrence considerou como avaliar essa
informação, a garota colocou os restos das uvas em um canto com o pé
e continuou. “Os clientes estavam me perguntando sobre isso ontem à
noite. Honestamente, um ou dois deles poderiam pelo menos me
trazer uma carta de amor.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 167 ⊱

Lawrence considerou esse novo dado enquanto respondia


habilmente: “Um contrato é a única carta de amor de um mercador.”
“Ah, é verdade que amar e ser amado não basta para encher a
barriga,” disse a garçonete. “Hmm,” ela acrescentou incerta, depois
sorriu abertamente, como se quisesse acrescentar: “Embora para uma
mulher, isso não é realmente verdade.”
Lawrence sorriu tristemente, mas sabia que, se quisesse
acompanhar o jogo dela, não seria melhor do que seus clientes
bêbados. “Embora, da minha parte, tudo o que preciso seja apenas um
olhar, e já estou satisfeito. Sinto que deveria agradecer pela refeição!”
A garçonete ficou atordoada por um momento e depois bateu na
mão de Lawrence brincando, que estava com as tarefas da
cozinha. “Senhor, você é injusto! Era isso que eu ia dizer!”
Lawrence riu, mas sua mente estava afiada e concentrada.
Pareceu-lhe estranho que desde a noite anterior tantos
mercadores tivessem vindo aqui para confirmar suas informações com
essa garota. Supondo que as informações vazaram para eles por meio
de um colega, não havia necessidade de ir conversar com a garçonete
de alguma taberna para confirmar a história.
E de que boca ela estava ouvindo as últimas notícias, afinal?
Talvez a maior parte de seu conhecimento pudesse ser inferida a
partir das informações que os mercadores inadvertidamente deixavam
escapar quando faziam suas perguntas.
“A maioria das pessoas que vieram fazer perguntas para você são
frequentes?”
“Hã? Frequentes?” A garota tirou água da toalha.
Lawrence se perguntou se suas mãos doíam, dada a água fria e
o clima frio. Ela franziu a testa e exalou, a respiração era
visível. “Eu diria que eles têm sido mais ou menos regulares. É que…”
“…É que?”
CAPÍTULO III ⊰ 168 ⊱

A garota olhou em volta furtivamente, depois abaixou a voz


e continuou. “É que muitos dos novos clientes foram
bastante descuidados. Você foi o único entre eles que fez perguntas
apropriadas.”
“Oh, agora eu entendo,” respondeu Lawrence com seu sorriso de
mercador.
“Eu não digo nada para eles quando eles são assim. Os mercadores
estrangeiros podem ter ouvidos afiados, mas também tem a língua
solta. Eles entram e dizem: ‘Então, eu ouvi dizer que a compra de
peles só será feita em dinheiro, isso é verdade?’ Isso é um absurdo!”
“Eles são um fracasso como mercadores,” disse Lawrence com
uma risada, mas internamente ele estava longe da calma.
Se todos os mercadores fossem tão tolos, os negócios seriam mais
fáceis do que imaginava.
E certamente não era o caso de que somente os mercadores
estrangeiros cometiam tais erros. É claro que os cidadãos de uma
cidade tendiam a acreditar que as pessoas que a chamavam de lar eram
as mais inteligentes e melhores, mas isso não passava de uma ilusão
amplamente difundida.”
Então, qual era o objetivo deles?
Talvez os mercadores estrangeiros estivessem falando tão
livremente da decisão do conselho como uma forma de mostrar que
tinham essas informações resultando em um esforço para perturbar e
intimidar os mercadores locais. Ou talvez tenha sido uma tática da
parte dos agiotas e cambistas elevar temporariamente o valor da
moeda, antecipando transações com dinheiro apenas em espécie.
Mas os mercadores estrangeiros não tinham nada a ganhar com a
divulgação de informações falsas; portanto, qualquer que seja seu
objetivo, o resultado da reunião sobre o qual Eve falou provavelmente
era verdadeiro.
Se o grupo de mercadores fora da cidade estivesse agindo por seus
próprios interesses pessoais, eles poderiam estar tentando criar uma
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 169 ⊱

confusão para afastar outras partes da verdade. Nesse caso, porém,


Lawrence esperava que houvesse mais de uma história sobre a decisão
do conselho em circulação.
Da mesma forma, as pessoas da cidade e as pessoas próximas a
elas conheceriam a verdade em primeira mão, por isso parecia
improvável que os mercadores estrangeiros estivessem tentando criar
uma perturbação dentro da cidade.
Eve disse que ouvira as notícias de fontes dentro da Igreja.
Se isso era verdade ou não, Lawrence poderia aprender algo aqui
que o ajudaria a adivinhar algo sobre isso.
“A propósito,” ele começou.
“Sim?”
“Gostaria de perguntar sobre a igreja daqui —” disse Lawrence.
“Uh, por favor, abaixe sua voz,” interrompeu a garota, seu
rosto repentinamente rígido, agarrando seu braço e empurrando-o
pela porta dos fundos da taverna.
Ela então olhou através da porta rachada para garantir que
ninguém os tivesse visto.
No momento em que Lawrence se perguntava o que estava
acontecendo, ela se virou para encará-lo. “Se você está perguntando
sobre a igreja, deve ter ouvido pelo menos um pouco.”
“Bem, eu suponho...”
“Siga o meu conselho, você não deve se envolver.”
A expressão da garçonete era tão séria ali no corredor apertado
nos fundos do bar vazio que ele sentiu a máscara do seu rosto de
mercador deslizar, mas Lawrence rapidamente se recuperou e
respondeu.
“Então há uma luta pelo poder, não é?”
CAPÍTULO III ⊰ 170 ⊱

Se a garota não tivesse capacidade de atuar para rivalizar com a


atuação de Holo, Lawrence saberia com certeza que ele havia sido
descoberto.
“Servimos pratos incomuns aqui, por isso somos um dos
lugares que atende aos jantares da igreja.”
Isso corroborava a história do mendigo, e essa era uma das poucas
lojas nas quais a igreja podia pedir qualquer prato de carne
que desejassem.
A garota coçou a cabeça, suspirando
desconfortavelmente. “Não conheço todos os detalhes, mas parece
que eles estão convidando figuras poderosas de todas as partes. Uma
vez ficamos acordados por duas noites diretas cozinhando para um
figurão da Igreja que vinha de longe.”
Uma pessoa do distante alto-escalão da Igreja.
Se era uma luta pelo poder, Lawrence sabia muito bem em
que isso implicava.
A conversa estava tomando um rumo estranho.
“Então eles estão solidificando sua base de poder,” disse
Lawrence.
“Sim. E eles foram muito cuidadosos com sua reputação, como se
fosse argila que ainda não secou. Eles doam generosamente aos
pobres, mas de onde vem o dinheiro deles, ninguém sabe. Portanto,
não há como dizer o que pode acontecer com quem fala alguma
coisa. Todo mundo sussurra uns com os outros como se caso os olhos
da Igreja caíssem sobre eles, eles não seriam capazes de permanecer na
cidade.”
“Se tudo isso é verdade, por que você está me contando?”
Perguntou Lawrence, um pouco intimidado pela seriedade da garota.
“Bem, eu não diria a ninguém.”
Assim como Lawrence usava a máscara de mercador, essa garota
certamente usava a máscara da garçonete.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 171 ⊱

Então, se a parte de trás das costas era a frente — que lado era
esse?
“Para futura referência, posso perguntar por que você está fazendo
uma exceção?”
“Bem, se eu tivesse que me aventurar a dizer...” ela respondeu
estranhamente tímida, seu rosto se aproximando. “Suponho que seria
porque você tem o cheiro de outra mulher em você.”
Incapaz de recuar por causa da parede atrás dele,
Lawrence começou a olhar para a garota, com o rosto
vacilante. “Então é o seu orgulho como garçonete?”
A garota riu. “Tem isso também, mas há algo em você que faz uma
garota com um pouco de confiança querer experimentar. Você passa
sempre por isso?”
Infelizmente, a experiência de Lawrence se limitava a ser rejeitado
pelas empregadas de estalagens.
Tudo o que ele pôde fazer foi balançar a cabeça.
“Bem, só há uma explicação. Você só conheceu recentemente a
garota ao seu lado.”
Ela não devia ser subestimada. Era isso que eles chamavam
de intuição feminina?
“É porque você parece uma pessoa muito gentil,” continuou a
garota. “Aposto que ninguém te lançou olhares pela sua aparência, mas
quando vemos que você está com outra garota, as mulheres ficam
curiosas. Se uma fera vê uma única ovelha sozinha, pode ficar com
preguiça de caçá-la, mas se um lobo está com essa ovelha, então
começamos a pensar: essa ovelha é realmente tão saborosa? E
cobiçamos isso por conta própria.”
Não havia muitos homens que gostariam de ser comparados a uma
ovelha, mas era triste que ele de fato tivesse uma loba ao seu lado.
Essa garota era realmente humana?
CAPÍTULO III ⊰ 172 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 173 ⊱

“É por isso que eu gostaria muito que você trouxesse sua


companheira para a taverna.”
Sem interesse em dinheiro ou status, talvez fosse esse tipo
de tempero que era perfeitamente adequado para adicionar um pouco
de sabor à sua vida.
Surpreendentemente, isso provavelmente era sua compensação
em troca de dizer a verdade.
“Você já me fez esse convite,” disse ele.
A garçonete deu um sorriso frustrado. “Oooh, essa compostura é
tão frustrante.”
“Eu sou uma ovelha, afinal. Somos criaturas antipáticas,”
disse Lawrence, colocando a mão na porta dos fundos. Ele então se
voltou para a garota. “Claro, eu não vou contar a ninguém essa
conversa.”
“Nem mesmo a sua companheira encantadora?”
Lawrence não pôde deixar de rir.
Ele se perguntou se esse tipo de garota era mais o tipo dele do que
uma frágil donzela.

“Então, você me contou tudo?”


“Sem deixar nada escapar.”
Lawrence havia retornado para encontrar Holo exatamente como
a deixara — lendo livros, a cauda balançando preguiçosamente. Ela
parou de repente.
“Parece que preciso ensinar a ela algumas coisas sobre
território.” Holo olhou para Lawrence, sua expressão levemente
satisfeita. “Mas parece que você está entendendo a verdade sobre
certas coisas.”
“Para que um cavalo de tração fique livre, apesar de suas rédeas,
ele deve antecipar a vontade de seu guia.”
CAPÍTULO III ⊰ 174 ⊱

Holo sorriu satisfeita “Então,” disse ela, se sentando. “O


que você acha de tudo isso?”
Parecia seguro acreditar que Eve realmente vendia estátuas para
a Igreja, que eles tiveram um desacordo e se separaram.
Além disso, a descrição de Eve do resultado da reunião do
conselho parecia ser precisa.
O que preocupava Lawrence era que, ao tentar obter o controle
da cidade, a Igreja tentava estabelecer uma catedral. As catedrais agiam
como centros de poder para a organização da Igreja e eram
estabelecidas com base nas recomendações de proprietários ou
clérigos influentes, mas geralmente os clérigos existentes nessas áreas
resistiam ao estabelecimento de catedrais porque representavam uma
nova estrutura de poder na região.
Obviamente, Lawrence ouvira dizer que tudo dependia
de dinheiro e conexões.
Se uma catedral fosse estabelecida aqui, o atual bispo da igreja
local passaria de um homem que fora nomeado bispo para alguém que
os nomeia. Ele teria o direito de cobrar uma certa quantia dos dízimos
dados às igrejas em toda a região e o direito de sancionar governantes
seculares na área.
A jurisdição religiosa única seria dele e, embora fosse um exemplo
extremo, ele poderia acusar todos os que discordavam dele de heresia,
tendo seus rivais queimados na fogueira. Dito isto, a maioria dos
interesses dos bispos residia em poder cobrar multas, e nenhuma
autoridade excederia a jurisdição da Igreja.
Antecipar tal situação deixara a garçonete com grande medo de
falar contra a Igreja.
Lawrence certamente podia entender por que, tendo se
separado da Igreja em termos ruins, Eve gostaria de deixar a cidade e
por que ela não seria capaz de falar casualmente sobre reiniciar
o acordo no próximo ano.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 175 ⊱

O que ele não conseguia entender era por que ela lutaria com
a Igreja em primeiro lugar. Da parte de Lawrence, ele teria comido
lama para evitar enfrentá-los. Teria valido a pena.
Pode não ser uma má ideia fazer uma aposta se isso significa
ser capaz de entender a situação.
Dado o poder da Igreja no Conselho dos Cinquenta, sem dúvida
a decisão do conselho foi tomada pelo bispo, e como essa decisão teria
sido tomada no melhor interesse da economia da cidade, o plano de
Eve se opunha à Igreja.
Lawrence ficou imaginando se era possível que sua vida estivesse
realmente em risco.
Se um mercador estrangeiro fosse morto ou desaparecesse depois
de fazer uma transação legítima, a suspeita cairia imediatamente sobre
a parte que lucrava com a morte desse mercador — que são
as figuras de autoridade da cidade. Lawrence era membro
da Guilda Comercial de Rowen, por isso, se ele deixasse isso claro, era
improvável que um bispo que tentava estabelecer uma catedral
adotasse uma ação tão drástica e violenta.
E a escala do acordo que Eve estava organizando, embora fosse
uma grande soma para um mercador solitário, não era particularmente
significativa no contexto do comércio de peles da cidade
inteira. Lawrence duvidava que ele atraísse o tipo errado de atenção
em um empreendimento tão pequeno, e certamente não se tornaria
uma questão de vida ou morte. É claro que, para algumas
pessoas, certamente vale a pena matar milhares de moedas de prata.
Lawrence explicou tudo isso a Holo.
A sábia loba escutou seriamente por um tempo, mas sua
postura ficou cada vez mais preguiçosa e, por fim, ela caiu de novo
na cama.
Lawrence, no entanto, não estava com raiva.
Ele não encontrou motivo para se opor ao comportamento dela.
CAPÍTULO III ⊰ 176 ⊱

“O que você acha?” Ele finalmente perguntou. Holo


bocejou, limpando os cantos dos olhos com a cauda.
“Não encontro nenhuma falha na sua explicação. Tudo faz mais ou
menos sentido.”
Lawrence estava prestes a perguntar se isso significava que ele
deveria prosseguir com o negócio ou não, mas se deteve.
Ele era o mercador; ele seria o único a decidir.
Holo riu. “Sou uma loba sábia, não uma deusa. Se você começar a
achar que sou um oráculo, vou desaparecer.”
“Antes de um grande negócio, sempre tenho vontade de pedir a
opinião de alguém.”
“Hah, mesmo que você já tenha tomado uma
decisão? Você mudaria de ideia se eu te implorasse em lágrimas?” Holo
sorriu.
Lawrence sabia como precisava responder. “Mesmo que eu tivesse
ignorado, você ainda estaria na estalagem. Vou concluir o negócio e
depois retornar. Isso é tudo que precisa ser feito.”
Holo riu rouca, coçando o pescoço como se as palavras de
Lawrence fossem difíceis de ouvir. “Sim, e quando você puder dizer
essas palavras sem corar, será um homem adequado.”
Lawrence havia se acostumado às piadas de Holo.
Ele encolheu os ombros. Isso não eram mais do que uma saudação
nesse ponto.
“Porém, devo dizer que você estava muito animado durante sua
explicação. Claro—” continuou Holo, cortando Lawrence “— não
estou dizendo que isso é uma coisa ruim. Os machos dão o seu melhor
quando perseguem suas presas.”
Agora era a vez de Lawrence coçar o nariz envergonhado, mas se
não encontrasse alguma resposta para Holo, ela certamente ficaria
brava.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 177 ⊱

Ele deu um suspiro deliberado, depois lembrou a si mesmo que


estava apenas acompanhando a piada. “Mas você só quer que eu preste
atenção em você de vez em quando, não é?”
“Basicamente sim,” disse Holo, sorrindo alegremente. “No
entanto, o que será de mim se o acordo fracassar?”
“Bem, você é uma garantia. Então, se não pudermos devolver o
dinheiro, você será vendida em algum lugar.”
“Oh, ho.” Holo estava deitada de bruços na cama, a cabeça apoiada
nos braços cruzados, a cauda e as pernas apontadas para cima e
acenando preguiçosamente no ar. “Então foi isso que te deu esses
pesadelos?”
“…Também.”
Se o acordo fracassasse e eles não pudessem pagar o que deviam,
Holo se tornaria propriedade da firma comercial.
No entanto, ela dificilmente ficaria sentada humildemente e se
deixaria vender.
Isso deu a Lawrence um pouco de alívio, mas ele não estava
tão otimista a ponto de pensar que, uma vez que ela mordesse as cordas
que a prendiam e escapassem, ela voltaria correndo para ele.
“Caso isso aconteça, terei que escolher alguém um pouco mais
inteligente como meu próximo parceiro,” disse Holo, seus olhos
vermelho âmbar se estreitando maliciosamente.
“De fato. Seria melhor deixar este idiota comendo poeira quando
você partisse,” Lawrence respondeu rapidamente às provocações de
Holo.
A sábia loba não parecia satisfeita. “Grandes palavras para o
pirralho que praticamente chorou quando eu quase fui embora.”
Lawrence fez uma careta como se tivesse engolido uma noz, com
casca e tudo.
Holo sorriu, satisfeita, o balançar de sua cauda era audível.
CAPÍTULO III ⊰ 178 ⊱

Foi depois que ela parou de se balançar e sua expressão mudar que
ela falou novamente. “Mas eu devo cooperar porque confio em você.”
O sorriso dela era genuíno.
Lawrence coçou o queixo e depois acariciou a
barba. “Naturalmente.”

Já era o crepúsculo.
O pôr do sol estava vermelho, aqui e ali brilhavam as primeiras
luzes da noite, como se fossem fragmentos remanescentes do sol que
desaparecia. À medida que o frio da noite se instalava, as
pessoas corriam para casa, com os rostos enterrados nos cachecóis
quentes.
Lawrence olhou a cidade por um momento; depois que o sol se
pôs completamente e as ruas da cidade se esvaziaram, ele fechou
a janela de madeira do quarto da estalagem. Holo continuou a ler
seus livros à luz de uma lâmpada de sebo.
Os livros pareciam ter sido organizados cronologicamente, e
Holo leu as crônicas mais recentes primeiro.
Considerando o que haviam aprendido na aldeia de
Pasloe, Lawrence achou que ela encontraria o que procurava mais
rapidamente se partisse dos registros mais antigos, mas ele suspeitava
que ela evitasse fazê-lo para preservar um pouco de compostura.
De qualquer forma, restavam apenas dois volumes; portanto, a
probabilidade de que ela logo encontraria o que procurava era muito
alta. Holo parecia estar muito preocupada com o que
aconteceria depois disso, e mesmo depois que a escuridão caiu, ela
disse que queria ler. Assim, Lawrence deu permissão para ler à luz das
lâmpadas, desde que tivesse o cuidado de manter a fuligem — e
principalmente a chama — afastadas das páginas.
Holo não usava suas vestes normais enquanto lia. Ela estava
completamente vestida, pronta para sair a qualquer momento.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 179 ⊱

Isso não era por causa do frio, mas porque eles logo negociariam
com Eve.
“Bem, então vamos?” Lawrence perguntou.
A hora da negociação não havia sido definida com precisão,
mas Lawrence estava razoavelmente certo, já que “à noite” era um
intervalo de comum acordo entre os mercadores. Uma vez que desceu
as escadas com Holo e esperou, foi difícil não se sentir como
um pequeno mercador excitado pela ideia de lucro.
Mas Eve estava atrasada — muito atrasada — o que era rude.
Talvez essa fosse sua ideia de um teste.
Ela não tinha dito para se encontrar ao pôr do sol porque os
mercadores preferiam escrever suas contas durante o dia, quando não
eram necessárias velas, e porque demoravam um certo tempo para
voltar à estalagem.
Então, presumivelmente, ela queria esperar até que a onda
de mercadores retornasse à estalagem e se acalmassem.
Se ele escutasse atentamente, Lawrence poderia dizer quais
ocupantes haviam retornado para quais quartos.
Pesando isso contra o número de quartos na estalagem, ele
esperava que Eve chegasse em breve.
“Vocês, mercadores, são realmente muito problemáticos,” disse
Holo, fechando o livro com um baque e sentando na cama, se
esticando.
Mesmo uma garota normal teria sido capaz de dizer que
Lawrence estava inquieto pensando na hora.
“Se eu devo agir mesmo em meu próprio quarto de estalagem,
quando devo relaxar?” Perguntou Lawrence, meio por brincadeira.
Holo saiu da cama, parecendo pensar em algo enquanto ajustava
os ouvidos e a cauda sob a capa. “Por algum tempo depois que nos
CAPÍTULO III ⊰ 180 ⊱

conhecemos... não, mesmo recentemente, você parecia sempre um


pouco inquieto ao meu redor.”
“É a primeira vez que viajo com uma garota. Leva tempo para se
acostumar.”
Também era a primeira vez que ele relaxava tanto na frente de
alguém.
Ele nunca se sentiu tão confortável com alguém antes.
“E, no entanto, quando acabamos de nos conhecer, suas narinas se
dilatavam só de andar comigo,” disse Holo.
“Sim, e sua cauda inchava se me visse com outra mulher.”
Lawrence revidou.
Holo olhou para ele como se dissesse: “Você tem muita coragem.”
Ela então disse: “Mas assim um homem gradualmente revelaria suas
verdadeiras cores e, eventualmente, se transformaria em alguém que
você nunca conseguiria imaginar.”
“Isso não é verdade para praticamente todo mundo depois de
conhece-lo melhor?”
“Idiota. Vocês, humanos, não têm um ditado que fala: ‘Não
alimente o peixe que você captura’?”
“Isso não se aplica aqui. Eu não peguei o peixe, ele se
esgueirou sozinho na minha carroça, não foi? Esqueça sobre dar
comida; eu deveria estar cobrando pelo transporte.”
Mas assim que ele falou, Lawrence se encolheu.
O olhar agudo de Holo era iluminado pela luz tremeluzente da
lâmpada. Ela não estava brincando.
Ele a tratara mal? Ou seu estado de inquietação estava sendo
ainda mais irritante do que ele imaginou? Talvez ela não tenha gostado
da sua resposta.
“Hmph... o que eu quis dizer foi, não esqueça sua intenção
original.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 181 ⊱

Lawrence não sabia o que havia desencadeado isso, mas


assentiu docilmente.
Holo podia ser estranhamente infantil às vezes, então talvez ela
estivesse irritada com o fato de Lawrence não ter se deixado perturbar,
mas sim ter contra-atacado.
Talvez percebendo sua própria culpa, ela recuou.
Lawrence deu um sorriso fino e cansado e suspirou.
“Há algo irritante nisso,” disse Holo.
“É sua imaginação... Não, talvez você esteja certa.”
Lawrence pigarreou e depois olhou para Holo. “Você pode ler
minha mente?” Ele fez a pergunta que havia feito a sério quando se
conheceram.
Holo sorriu e depois se aproximou. “Idiota.”
“Ai!”
Ela chutou a canela dele.
O sorriso de Holo permaneceu imperturbável enquanto ela
passava suavemente por Lawrence e colocava a mão na porta.
“Você vem?”
Lawrence engoliu o comentário que lhe veio à mente — que
Holo nunca o teria tratado assim quando se conheceram — e a seguiu
porta afora.
Ela lhe dissera para não esquecer sua intenção original, mas
isso era realmente impossível.
As palavras tinham um significado pesado. O tempo nunca
poderia voltar, e todo mundo sabia que não havia uma pessoa que
nunca mudava.
Lawrence sabia disso, então não havia dúvida de que Holo também
sabia.
CAPÍTULO III ⊰ 182 ⊱

“Claro, também é verdade que eu posso pegar sua mão facilmente


apenas porque estamos viajando há tanto tempo juntos. Mas” —
o rosto de Holo ficou subitamente triste — “os poetas não falam em
querer ficar eternamente como eram ao conhecer uma amante pela
primeira vez?”
Por apenas um momento Lawrence pensou que ela estava fazendo
sua provocação habitual.
Ele se surpreendeu com as palavras de Holo, com o quão
obviamente ela queria voltar no tempo, ao se tornar mais consciente
do fim da jornada.
Holo parecia estar sempre olhando para o futuro, mas isso não era
verdade.
E, no entanto, Lawrence ficou emocionado ao saber que não era
para os tempos felizes, séculos antes, quando ela chegara à sua aldeia,
que ela queria voltar, nem para o tempo antes disso, antes de começar
sua jornada.
Ela o segurava com a mão esquerda. Embora o envergonhasse, ele
entrelaçou seus dedos nos dela enquanto falava. “Você pode querer
voltando àquela época, mas da minha parte eu entraria em colapso com
o excesso de trabalho.”
Holo se aproximou dele enquanto desciam as escadas. “Não
se preocupe, pois eu estaria lá no seu leito de morte,” ela falou com
um sorriso malicioso, que Lawrence só conseguiu responder com um
sorriso cansado.
Foi a caminho do primeiro andar que Lawrence percebeu que
suas palavras não eram inteiramente uma piada.
Se Holo dissesse que a busca por sua terra natal poderia ser adiada,
Lawrence certamente morreria antes dela. Se a jornada de Holo não
terminasse, a jornada deles em dupla certamente terminaria.
De repente, Lawrence sentiu como se tivesse entendido os
motivos dela para não responder quando, em Tereo, perguntou quais
eram seus planos depois que eles chegassem à sua terra natal.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 183 ⊱

Tais pensamentos ocuparam sua mente quando chegaram ao


primeiro andar, e Holo soltou sua mão. Lawrence não era corajoso o
suficiente para se sentir confortável entrando em uma sala enquanto
segurava a mão de uma garota, mesmo que essa garota fosse Holo. Ao
mesmo tempo, porém, ele não queria ser o único a soltar. O fato dela
se sentir acomodada com seus sentimentos aquecia seu coração.
Era como se ela estivesse respondendo à pergunta do
que aconteceria quando chegassem à sua terra natal.
O sentimento o ajudou a reunir mais do que sua quantidade
habitual de seriedade quando cumprimentou Eve e Arold, que já
estavam lá. “Desculpe por faze-los esperar.”
“Bem, então, vamos começar?” Perguntou Eve com sua voz rouca.

“Então, o que você aprendeu com a sua investigação?” Eve


perguntou.
Não havia necessidade de apresentar o Holo.
O que era visível do seu rosto embaixo da capa, junto com sua
postura e seus movimentos na cadeira falavam muito.
A maneira um tanto utilitária de Eve não era irracional. Vender
Holo não era, afinal, seu objetivo final, mas sua pretensão era um
pouco avassaladora.
“Eu descobri que você realmente vendeu estátuas para a Igreja,
que vocês se separaram em termos ruins, e que as vendas de peles serão
restritas ao dinheiro,” disse Lawrence, observando Eve com atenção
dando sua resposta. Essa era uma tática de negociação fundamental.
Mas, nesse sentido, Eve era hábil o bastante para esconder o rosto,
para que os olhos de Lawrence não pudessem discernir muito, e ele
não esperava aprender nada. Era como se aquecer antes de um
exercício pesado.
“Com base na minha experiência e intuição como mercador,
acredito que o que você me disse é verdade, Eve.”
CAPÍTULO III ⊰ 184 ⊱

“Oh?” Veio sua voz desinteressada e rouca. Ela parecia estar bem
acostumada à negociações.
“Mas há uma coisa que me preocupa.”
“Qual seria?”
“O motivo de sua separação com a Igreja.”
Não havia nada mais inútil do que perguntar isso a ela,
mas Lawrence decidiu que tentaria comparar a resposta de Eve com a
informação que ele já havia reunido. Se não fosse consistente, ele
saberia que ela estava mentindo.
Holo, sentada ao lado dele, provavelmente também poderia dizer
se ela estava sendo honesta, mas confiar em Holo para fazer isso não
era diferente de tratá-la como um oráculo. Não, se a resposta de Eve
não concordasse com o que ele estava pensando, abandoná-la seria o
melhor caminho.
Afinal, eles estariam vendendo Holo com base no julgamento de
Lawrence, então a responsabilidade de fazer esse julgamento cabia
inteiramente a ele, ele pensou.
“O motivo da minha separação? Suponho que você gostaria de
saber sobre isso,” disse Eve, limpando a garganta.
Ele sabia que a mente dela estava acelerada.
Qualquer que seja o resultado indesejável de Lawrence se
retirar do acordo, provavelmente significaria o fracasso do plano.
Ela certamente estava tentando adivinhar o que ele tinha visto e
ouvido pela cidade hoje.
Se ela iria mentir, suas chances de combinar com qualquer
informação que Lawrence reuniu hoje eram quase nulas.
“O bispo da igreja aqui é uma relíquia dos velhos tempos,
um passado que ele não pode esquecer,” começou Eve. Ele é
ambicioso. Em sua juventude, ele veio para cá como missionário,
suportando dificuldades infernais, e o que o levou a superar isso foi seu
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 185 ⊱

objetivo de se tornar poderoso e influente. Ele quer estabelecer uma


catedral aqui. Em outras palavras, ele quer ser um arcebispo.”
“Um arcebispo...” A palavra era praticamente sinônimo de poder.
Eve assentiu e continuou. “Como eu disse antes, posso ter
caído em desgraça, mas sou da nobreza. Quando comecei a procurar
nessa área por boas oportunidades de negócios, ouvi falar de um
bispo obtendo lucros assombrosos. Era o bispo daqui. Na época, ele
estava usando uma empresa de comércio como fachada e o dízimo para
entrar no comércio de peles, mas no fim, ele simplesmente se trancou
em sua igreja para contar a dívidas. Ele estava ficando cada vez mais no
vermelho. Então, propus uma maneira de matar dois coelhos com uma
cajadada só.”
“Que seria o comércio de estátuas.”
“Exatamente. E eu não apenas lhe vendi estátuas. Eu sou da
nobreza do reino de Winfiel, afinal. Ainda posso falar com os que estão
no poder. Eu o coloquei em contato com o arcebispo lá, cuja base de
poder é inabalável.”
Lawrence se viu acenando com a cabeça internamente.
Se isso fosse verdade, então as estátuas provavelmente eram feitas
pelos mesmos pedreiros itinerantes que o arcebispo reunia para
manter sua catedral. Uma vez concluídos os reparos na intrincada
alvenaria de uma catedral, eles normalmente se mudavam para outra
cidade ou realizavam trabalhos esporádicos.
Mas mesmo assim, a quantidade de alguns tipos de trabalho é
limitada, o que pode ser uma fonte de atrito entre grupos de pedreiros
em uma área. E, ironicamente, eram os pedreiros itinerantes, que
passavam algum tempo aperfeiçoando suas habilidades, que eram de
longe os mais capazes, e eram os únicos que podiam lidar com a
manutenção nos intrincados trabalhos em pedra das catedrais.
Portanto, nas cidades que possuíam uma catedral, sempre que
exigiam reparos, os pedreiros locais se preocupavam em ter seus
negócios roubados e serem esquecidos.
CAPÍTULO III ⊰ 186 ⊱

Foi assim que os negócios de Eve, baseados em trabalhos em


pedra, ajudaram a aliviar essa preocupação.
Era uma ponte entre a catedral que queria contratar pedreiros
viajantes apenas quando eram necessários, a cidade e os próprios
pedreiros viajantes. Eve pôde então dizer ao arcebispo de lá que o
bispo de Lenos queria conhecê-lo e, finalmente, obter lucro movendo
estátuas de pedra de uma cidade para outra.
Era uma situação ideal; aquela em que todas as partes lucravam.
“Que bom que você entende. Isso facilitará a explicação. É como
você disse, a razão pela qual me contentava com as pequenas margens
da venda de estátuas era porque estava contando com o bispo aqui se
tornando arcebispo. Mas então —”
Lawrence não sabia dizer se o tom que apareceu na voz de Eve era
um ato ou resultado de sua raiva reprimida.
Mas até agora todos os fatos se encaixavam; A história de Eve era
muito plausível.
“À medida que o bispo se beneficiava de seu acordo comigo e
solidificava sua posição, as pessoas ao seu redor começaram a adivinhar
qual era seu objetivo, e o bispo começou a eliminar
obstáculos. O último caso foi apenas uma desculpa conveniente para
ele me eliminar. Ele me devia. Ele provavelmente pensou que quanto
mais tempo eu estivesse por perto, mais exigências desfavoráveis eu
faria para ele. E, claro, eu tinha planejado fazer exatamente isso. Era o
meu direito. Mas ele decidiu que preferia lidar com uma empresa
comercial já estabelecida, em vez de um único mercador tentando se
estabelecer. Até eu consigo entender o raciocínio, mas isso não
significa que concordo.”
Lawrence pensou consigo mesmo que a raiva ardia tão
visivelmente quanto qualquer chama.
“Então discutimos e nos separamos,” finalizou Eve.
Sentada ao lado de Lawrence, Holo estava tão quieta que era
fácil esquecer que ela estava lá.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 187 ⊱

Lawrence repassou a história de Eve novamente em sua cabeça.


Parecia ser totalmente consistente. Tão consistente, de fato,
que o deixou desconfiado.
Se era uma mentira, era boa o suficiente para que ele quase não se
importasse de trabalhar com ela.
“Entendo. Foi por isso que se tornou difícil transformar suas
estátuas em dinheiro e por que você não pode esperar pela campanha
do norte do próximo ano.”
O silêncio de Eve sob seu capuz contrastava fortemente com sua
eloquência anterior.
Lawrence respirou devagar e silenciosamente.
Ele fechou os olhos.
Se duvidasse mesmo dessa história consistente, qualquer outro
acordo também seria difícil.
Por outro lado, ele podia estar apenas se enganando.
Somente mercadores, constantemente tramando e sendo
traçados, tinham que se preocupar com essas coisas.
“Entendido,” disse ele, exalando o ar que estava segurando.
Ele notou que os ombros de Eve se moveram levemente.
Ele estava confiante de que isso não era um ato da parte dela.
Nenhum mercador era capaz de permanecer completamente
inexpressivo nesses momentos.
“Vamos discutir os detalhes do acordo,” ele terminou.
“…Sim, vamos.”
Lawrence teve a sensação de que, na sombra de seu capuz,
Eve sorriu.
Ela estendeu a mão.
Lawrence pegou; ela tremia levemente.
CAPÍTULO III ⊰ 188 ⊱

Posteriormente, Lawrence e Eve, com Holo acompanhando, se


aventuraram pela cidade.
A expedição deles não era para celebrar o contrato recém-
estabelecido. Os mercadores não comemoravam nada até que o lucro
estivesse em suas mãos.
Não havia como saber exatamente quando o Conselho dos
Cinquenta tornaria pública sua decisão e desencadearia a correria dos
mercadores que tentavam monopolizar o comércio de peles; portanto,
eles precisavam garantir o dinheiro necessário o mais rápido possível.
Então, na cidade, eles procuraram a companhia que lhes
emprestaria o dinheiro com Holo como garantia.
A empresa comercial se chamava Delink Company.
Embora estivesse convenientemente localizada perto do porto,
o prédio era pequeno e não tinha doca de carregamento.
A única coisa que a identificava como uma empresa comercial era
uma pequena bandeira pendurada discretamente na porta.
No entanto, a construção de pedra do prédio era tão boa que nem
um fio de cabelo podia deslizar por entre elas e, apesar de ter cinco
andares, não parecia se encostar aos prédios vizinhos.
Enquanto Lawrence examinava a bandeira mais de perto, que
estava mal iluminada pela luz tremeluzente de uma lamparina a óleo,
ele podia ver que era uma peça bordada da mais alta
qualidade. Colocado contra as pedras cinzentas da névoa, dava à
companhia a aparência de um pequeno gigante, não de uma recém-
formada.
Lawrence imaginou se a abordagem da empresa à publicidade era
diferente da de outras casas.
“Sou Luz Eringin, representante da Companhia Delink.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 189 ⊱

Os mercadores que lidavam com mercadorias diferentes


tinham costumes bastante variados.
Quatro homens da Companhia Delink saíram para
cumprimentar Lawrence e sua comitiva, cada um deles vestidos para
representar sua companhia, nenhum deles se destacando dos outros.
Lawrence ouvira dizer que grupos que lidavam com mercadorias
humanas sempre faziam com que várias pessoas julgassem a qualidade
de seus produtos. Esses quatro eram sem dúvida os gerentes da
empresa.
“Eu sou Kraft Lawrence.”
Lawrence apertou a mão de Eringin.
As mãos do homem eram estranhamente macias, e um sorriso
vago grudou em seu rosto, tornando impossível dizer o que ele estava
pensando.
Os mercadores de ovelhas tinham vozes altas como as de um
cachorro latindo. Então era esse o sorriso de um mercador de
escravos?
Holo apertou-lhe as mãos em seguida, e seus olhos enquanto os
observava eram reptilianos — como os de lagartos ou de cobras.
A Eve removeu seu capuz, mas não trocou nenhuma saudação.
Talvez essa empresa tivesse intermediado o negócio quando ela foi
vendida para aquele mercador que entrou na riqueza.
“Sente-se,” convidou Eringin, e todos se sentaram em cadeiras
cobertas de feltro de qualidade, recheadas com algodão. “Eu já ouvi os
detalhes do honorável chefe da casa de Bolan.”
“Então não vamos perder tempo com conversas vazias,” ele
parecia estar dizendo.
Lawrence não tinha intenção de negociar o
preço. Ele não sabia nada sobre o mercado de jovens nobres.
CAPÍTULO III ⊰ 190 ⊱

“Gostaria de perguntar só uma coisa,” disse Eringin. “Ouvi dizer


que você, Sr. Lawrence, é membro da Associação Comercial Rowen?”
Os três homens atrás de Eringin ficaram ali sem sequer
se contrair, olhando para Lawrence.
Embora nenhum deles tivesse uma expressão específica, eles
formavam uma aura que era completamente inquietante.
Até Lawrence, acostumado a assinar contratos, sentiu a pressão.
Talvez fosse uma técnica deles; tendo entrado em contato
com esta empresa, seria difícil mentir para eles.
“Sim,” respondeu Lawrence brevemente, e a aura opressiva
dos três homens desapareceu imediatamente.
Parecia que eles realmente estavam tentando arrancar a
verdade dele.
“Rowen, então. Acredito que lorde Goldens tenha lidado com
você várias vezes. Talvez tenha sido ele de quem eu ouvi que a sua é
uma guilda de olhos aguçados.”
Lawrence não pôde deixar de ficar inquieto com a menção de
uma das figuras centrais da guilda — mesmo sabendo que Eringin
o havia citado para fazer Lawrence pensar que a fuga seria impossível.
“Se você é membro de uma guilda, você é um homem a ser
considerado, e sua companheira é uma garota da nobreza. Agora, se
eu puder explicar o que nós quatro decidimos.”
Eve disse que queria 2.500 peças.
O sorriso de Eringin aumentou.
Em qualquer lugar do mundo, eram os que tinham dinheiro que
eram fortes.
“Duas mil peças de prata trenni.”
Era menos que o objetivo, mas com duas mil em sua conta, o
plano teria um sucesso incrível.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 191 ⊱

Lawrence se esforçava para não expressar o nervosismo em seu


corpo. Eve parecia estar fazendo o mesmo.
Ela forçou o rosto a ficar sem expressão.
“A Senhorita Eve propôs 2.500, mas não podemos negociar
essa quantia com mercadores individuais. Isso é para aquele... negócio
de peles que está circulando, não é? Em troca, renunciaremos à nossa
comissão padrão e lhe emprestaremos o valor total. Mas como não
temos tanta prata disponível no momento, a remessa será na forma de
sessenta lumiones de ouro.”
Uma única peça de ouro lumione valia aproximadamente
trinta trenni. Lawrence não tinha certeza dos detalhes do mercado de
Lenos, mas quando usado em troca de mercadorias com outras
moedas, o lumione possuía um poder singular.
Dependendo das circunstâncias, isso poderia reunir
significativamente mais peles do que os dois mil trenni conseguiria.
Mas o que surpreendeu Lawrence ainda mais era o fato de que
eles estavam dispostos a emprestar o montante fixo.
A mera posse de moedas de alto valor detinha valor. A moeda
de ouro ou prata era um ativo versátil que poderia ser derretido,
se necessário, e era muito superior aos registros de dinheiro em papel.
Quando alguém assinava o nome em papel e pedia dinheiro
emprestado, era comum pagar também uma taxa.
Mas não desta vez.
“Isso é generoso da sua parte,” murmurou Eve.
“É um investimento,” disse Eringin, aprofundando o
sorriso. “Você é uma pessoa inteligente. Você conseguiu tirar proveito
do estado e dos arranjos desta cidade. Há poucas dúvidas de que
você usará esse sucesso para alcançar posições ainda maiores, e
desejamos compartilhar essa boa sorte. E” — ele se virou para
Lawrence — “você é um homem de sorte. Foi apenas boa sorte que
nos levou a nos conhecermos. E você não está sendo dominado pela
CAPÍTULO III ⊰ 192 ⊱

empolgação com um negócio tão grande. Acreditamos que isso ocorra


porque você se acostumou à boa sorte. Nos nossos negócios, o
elemento da fortuna é muito importante. A menos que alguém esteja
acostumado a tanta fortuna, pode cometer erros. Nesse sentido,
confiamos em você.”
Mesmo enquanto Lawrence admirava o método de estimar valor
do homem, não lhe escapou que a única coisa que lhe era elogiada era
sua boa sorte.
Ele tentou decidir se ficaria satisfeito ou ofendido e de repente
teve a sensação de que, ao lado dele, Holo estava rindo às suas custas.
“Nosso trabalho não é diferente de explorar uma mina de
ouro. Para encontrar parceiros, não vamos deixar de investir
dinheiro.”
“Então, como devemos aceitar o dinheiro que silenciará
tantas línguas inquietas?”
Eringin sorriu com a pergunta de Eve e, pela primeira vez,
ele parecia sincero. “Você vai comprar peles da Companhia Arkieh,
correto? Você certamente tem um bom olho. Eu adoraria que nos
contasse o seu segredo.”
“Minha voz está um pouco rouca hoje em dia. É difícil falar,” disse
Eve.
Não parecia brincadeira. As palavras de Eve eram difíceis, e as
palavras de Eringin eram astutas e ameaçadoras, como uma cobra.
Foi uma conversa estranha, diferente das que Lawrence já havia
experimentado antes.
É claro que não havia necessidade das partes negociando se darem
particularmente bem, mas faltava cortesia humana básica entre essas
duas.
Contanto que ganhassem dinheiro, cada um não se importava
com o bem-estar do outro.
Era tão óbvio quanto o ar.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 193 ⊱

“A transação? Ela será da forma que preferir.”


“O que você quer fazer?” Eve perguntou, olhando para Lawrence
pela primeira vez.
Eles não haviam acertado com antecedência, então Lawrence disse
o que lhe veio à mente.
“É difícil dormir com moedas tão brilhantes iluminando a
escuridão.” Foi a presença de Holo ao lado dele que o ajudou a
se endireitar um pouco e administrar um leve sorriso.
Eringin fez uma cara de impressionado, depois sorriu, dando de
ombros. “Uma resposta memorável! À medida que se lida com
quantias cada vez maiores, o orgulho também aumenta. Essa liberdade
te torna altivo e sarcástico. Mas suas palavras, modestas, porém
incisivas — essa é a verdadeira liberdade. Todos devemos aprender
com o seu exemplo.”
Eringin lidava com quantidades terríveis de
dinheiro diariamente? Até a taxa de serviço em duas mil peças de
prata seria uma soma significativa, mas ele a renunciou
sem pensar duas vezes.
Quando um mercador surgia no mundo, era isso o que esperava?
“Bem, então, devemos enviá-lo pouco antes de você comprar sua
pele?”
Pensando no que Eve estava pensando, Lawrence não respondeu
imediatamente, a fim de lhe dar uma chance de falar se ela quisesse —
mas, no final das contas, ela não disse nada.
“Sim, por favor,” disse Lawrence.
“Muito bem.” Eringin estendeu a mão.
Lawrence aceitou. O aperto de mão era um pouco mais forte do
que o que o precedeu.
CAPÍTULO III ⊰ 194 ⊱

Em vez de se voltar para Holo, Eringin encarou Eve e ofereceu


sua mão, que Eve aceitou. Apesar das negociações duras, parecia que
ainda havia um pequeno indício de civilidade.
“Vamos orar por uma transação bem-sucedida,” disse Eringin,
fechando os olhos, embora não parecesse que ele acreditava em algum
tipo de deus.
Havia algo de divino naquele espírito, o espírito daquele
mercador que buscava lucro acima de tudo e atropelava qualquer deus
em seu caminho.

“Um homem desagradável,” declarou Eve quando eles deixaram a


casa comercial depois de terem assinado vários papéis.
Suas palavras estavam cheias de tanta emoção que Lawrence
achou isso um pouco incomum.
“Eu nunca o conheci antes. Isso me fez perceber o quão pequeno
sou como um mercador,” confessou Lawrence honestamente. Eve
olhou para ele além do capuz e ficou em silêncio por um tempo.
“...Você realmente acha isso?” Perguntou Eve.
“Sim. Eu luto para fazer algumas centenas de peças de prata,
mas agora vi um nível totalmente diferente.”
“E ainda assim você conseguiu ser firme com ele.”
“Oh, esse negócio sobre as moedas de ouro?”
Eve assentiu e começou a andar lentamente.
Lawrence pegou a mão de Holo e seguiu sua nova parceira. Holo
parecia ter entendido perfeitamente o papel que ela
deveria desempenhar e ficou obedientemente silenciosa o tempo
todo. Quando Lawrence pegou a mão dela, porém, ele notou que
estava quente.
Ela também não deve ter gostado do olhar de Eringin.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 195 ⊱

“Foi bastante refrescante ouvir tamanha inteligência,” disse


Eve. “Você deixou Eringin desequilibrado. Ele não subestimará
um mercador viajante novamente.”
“Estou honrado,” respondeu Lawrence. Ele ouviu a risada áspera
de Eve.
“Você tem certeza de que não é filho de uma rica casa mercante?”
“Há noites em que me sinto assim.”
“Eu desisto,” murmurou Eve, e pela primeira vez, os olhos sob
seu capuz não eram severos enquanto ela falava. “Você não está com
sede após esse discurso?”
Eles não haviam concluído o acordo inteiro, mas a primeira
barreira havia sido superada.
Lawrence não estava tão duro a ponto de discordar.
Mesmo depois do anoitecer, ainda haviam muitas barracas
vendendo bebidas perto das docas.
Lawrence pediu três copos de vinho e os três ficaram sentados em
caixas descartadas nas proximidades.
“Aqui, ao sucesso,” disse Eve, levantando sua xícara em um
brinde.
Os três simplesmente fingiram bater seus copos de madeira antes
de beberem o vinho.
“Suponho que seja um pouco tarde para perguntar isso...”
começou Eve.
“O que seria?”
“Onde você encontrou sua companheira?”
“O qu—?”
Lawrence não conseguiu esconder sua surpresa, mas não
porque tinha relaxado após negociações tensas.
CAPÍTULO III ⊰ 196 ⊱

Era simplesmente porque ele nunca esperava que Eve se


importasse com essas coisas.
“É estranho que eu pergunte?” Questionou Eve com um sorriso
triste. Felizmente, Holo apenas segurou seu copo com as duas mãos
e não disse nada. “Eu disse que não bisbilhotaria, mas estou curiosa.”
“Sim, bem... as pessoas costumam perguntar.”
“Então, onde você a encontrou? Não ficarei surpreso se
me disser que ela é filha de um senhorio rico, deposto em uma revolta
camponesa.”
Era o tipo de piada que só poderia ter vindo de Eve, sendo ela
própria uma nobre decaída, mas mesmo assim era
surpreendente. Lawrence ouviu um leve som de zumbido vindo das
costas de Holo, e sempre tão casualmente, ela pisou em seu pé.
“Evidentemente ela nasceu no norte. Ela viveu por um longo
tempo nos campos de trigo do sul.”
“Oh?”
“Eu tinha feito muitos negócios em uma cidade da região, então
parei em minhas viagens para ver um amigo, mas ela se esgueirou na
minha carroça.”
Pensando nisso, Lawrence percebeu que Holo estava aconchegada
entre as peles que ele estava carregando na época.
Talvez a cauda lhe desse algum tipo de conexão estranha com
o pelo.
“Ela disse que queria voltar para sua terra natal e, depois de várias
reviravoltas, acabei atuando como sua escolta.”
Era uma história simples de se relacionar. Não havia
mentiras. Holo assentiu e Eve tomou um gole de seu vinho.
“Parece um encontro sonhado por um bardo qualquer,” disse ela.
Lawrence teve que rir.
Afinal, era verdade.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 197 ⊱

E, no entanto, o que aconteceu depois disso era algo de valor


imensurável.
Era um absurdo, era delicioso, e Lawrence queria que continuasse
pelo resto de sua vida.
“São essas voltas e reviravoltas que me interessam,” disse
Eve. “Mas duvido que você diria isso a um padre.”
“Eu certamente não saberia dizer se um padre seria mais
apropriado.”
Era a verdade, e, no entanto, o que Lawrence quis dizer e o que
Eve assumiu eram duas coisas muito diferentes.
Eve riu alto, mas o porto não era tão silencioso a ponto de dar
a alguém motivo para se virar e olhar.
“Bem, você certamente a vestiu muito bem. Está claro o suficiente
que foi um encontro que você apreciou.”
“No momento em que baixei a guarda, ela mesma comprou.”
“Não duvido. Ela parece uma garota inteligente.”
Sem dúvida, a garota inteligente estava sorrindo para si mesma sob
o capuz.
“E vocês parecem se dar bem,” continuou Eve. “Embora
eu recomendo que vocês mantenham suas vozes um pouco mais baixas
na estalagem.”
A mão de Lawrence congelou pouco antes de levar o copo de
vinho aos lábios. Por um momento, ele se perguntou se ele e
Holo teriam sido ouvidos por outras pessoas na estalagem, mas então
percebeu que Eve estava tentando levá-lo a revelar algo.
Holo agora pisou em seu pé, como se lhe dissesse para não cair no
truque.
“É algo a ser valorizado. O dinheiro pode comprar companhia,
mas não a sua qualidade.”
CAPÍTULO III ⊰ 198 ⊱

O olhar de Lawrence se desviou para o que estava por baixo do


capuz de Eve.
Os olhos azuis dela o espiavam — de um azul raro e nobre.
“O rico mercador que me comprou era um homem terrível,” ela
falou, olhando para longe, espiando Holo antes que seus olhos se
desviassem para as docas. Foi seu sorriso de auto-depreciativo que
finalmente afastou o olhar de Lawrence. “Se eu alegasse não querer sua
simpatia, estaria mentindo, mas agora isso já é passado. E ele morreu
pouco tempo depois.”
“Entendo...”
“Sim. Você provavelmente já sabe, mas na minha terra natal,
o comércio de lã é próspero. Ele fez uma fortuna competindo com
rivais estrangeiros em ativos de lã e, justamente quando obteve ouro
suficiente para aumentar seu status, foi à falência quando o rei mudou
a política. O acordo valia muito, uma quantidade inacreditável
para nobres caídos como nós, que tinham problemas até para comprar
pão. Mas ele era um homem orgulhoso, mais orgulhoso que a nobreza;
portanto, quando sua ruína estava declarada, ele cortou sua própria
garganta. Essa era a única parte dele digna do nome Bolan.”
Eva não falou com raiva, nem tristeza, nem se divertia
sombriamente com o destino do seu novo mestre. Ela parecia
quase nostálgica.
Se isso fosse fingimento, Lawrence nunca mais seria capaz de
acreditar em ninguém.
“A cerimônia de casamento foi grandiosa. Meu mordomo chorou,
dizendo que este foi um dos casamentos mais grandiosos da história da
casa Bolan. Claro, para mim foi um funeral. Mas havia coisas
boas nisso. Eu não precisava me preocupar com como eu iria comer. E
eu não engravidei.”
Laços de sangue eram mais importantes para a nobreza do que
para qualquer outra pessoa.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 199 ⊱

As crianças não eram presentes de Deus, mas ferramentas


políticas.
“E ninguém me viu roubando dinheiro da bolsa dele, pouco
a pouco. Uma vez que ele faliu e toda a família foi confiscada, era o
suficiente para eu começar por conta própria como mercadora.”
Para ter riqueza suficiente para comprar uma família nobre, ele
realmente deve ter possuído uma grande casa comercial.
Para uma garota nobre como Eve escolher o caminho de
mercadora, ela deve ter tido a ajuda daqueles que estavam dentro da
empresa para poder organizar essas coisas.
“É meu sonho, entenda, construir algo maior que ele e a empresa
dele,” disse Eve claramente. “Foi apenas a sorte que permitiu que ele
me comprasse. Na verdade, não sou tão barata a ponto de ser
comprada por um mercador como ele, e quero provar isso. Infantil,
não?” Ela perguntou com a voz rouca e, quando sorriu, seu rosto
parecia muito jovem.
Quando eles apertaram as mãos concordando em fazer esse
acordo, a mão dela tremia.
Ninguém era perfeito. Neste mundo, todos tinham uma fraqueza.
“Ha, por favor, esqueça tudo isso. Às vezes, sinto que quero falar
sobre isso, sabe? Suponho que significa que ainda tenho caminho pela
frente,” disse Eve, drenando sua xícara de vinho e arrotando
silenciosamente. “Não, não é isso.”
Ela levantou a ponta do capuz. Lawrence pensou o que ela
pretendia.
“Eu estava com ciúmes de vocês dois,” disse Eve. Seus olhos azuis
se estreitaram e estavam brilhantes.
Lawrence se perguntou como responder e finalmente se refugiou
no copo de vinho.
Holo zombaria dele por isso, sem dúvida.
CAPÍTULO III ⊰ 200 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 201 ⊱

Eve riu. “Que absurdo. Devemos nos preocupar com o


lucro. Estou errada?”
Lawrence olhou para seu reflexo no vinho.
Assim como o de Eve, não era o rosto de um mercador.
“Você está certa,” disse ele, passando o vinho de volta. Ele
temia ouvir o que Holo teria a dizer sobre isso mais tarde, mas quando
Eve levantou a voz em uma risada curta e seca, os dois se levantaram e
retomaram suas expressões comerciais apropriadas.
“Nós faremos o acordo assim que o conselho anunciar
sua decisão. Mantenha Arold informado sobre sua localização.”
“Eu irei.”
Eve voltou a ser completamente o mercador áspero quando
estendeu a mão para ele. “Este acordo vai correr bem,” ela falou.
“É claro,” disse Lawrence, pegando a mão dela.

Lawrence lembrou-se da resposta de Holo, ao entrar em


Lenos, quando lhe dissera para não se zangar caso encontrassem pele
de lobo.
Ele não estava preocupado consigo mesmo, mas não podia estar
em paz com alguém que sabia que estava sendo caçado.
Isso também parecia se aplicar aos negócios.
Comprar uma criança para adotar em uma família ou comprar um
escravo para usar no trabalho... esse era um comércio necessário e não
algo a se questionar.
Mas, mesmo considerando brevemente a ideia de realmente
vender Holo, o coração de Lawrence ficava em desordem. Ele sentia
como se entendesse pela primeira vez a exigente denúncia da Igreja ao
tráfico de escravos.
Uma vez que eles voltaram para a estalagem, Eve permaneceu no
primeiro andar, dizendo que iria beber com Arold.
CAPÍTULO III ⊰ 202 ⊱

Holo foi a único envolvida nesse caso a cair exausta na cama, uma
expressão desgastada no rosto.
“Essa certamente foi uma maneira insuportável de passar o
tempo,” ela declarou.
Lawrence sorriu cansado enquanto acendia a lâmpada de sebo.
“Você estava tão mansa quanto um gatinho.”
“Bem, é com este ‘gatinho’ que você está conseguindo dinheiro
emprestado. Eu não tive escolha.”
Lawrence decidiu que podia confiar na história de Eve e, em troca,
Eve ajudou o acordo a prosseguir sem problemas. Enquanto nada
inesperado acontecesse, não era um otimismo cego acreditar que o
negócio de peles seria bem-sucedido e que suas bolsas de moedas logo
inchariam com dinheiro.
Ninguém riria dele por sentir prematuramente
aquele calor confuso em seu estômago, do qual o mendigo havia
falado.
Fazia muito tempo desde que sentira essa sensação.
Afinal, seu desejo de ser um mercador da cidade estava finalmente
começando a se materializar.
“Você foi uma grande ajuda,” disse Lawrence,
acariciando levemente o queixo. “Obrigado.”
Holo olhou para ele de uma maneira não muito amigável. Ela
sacudiu os ouvidos como se quisesse tirar a poeira deles, suspirou
resignada, depois rolou deitada com as costas para cima e abriu
um livro.
No entanto, na verdade, ela parecia um pouco tímida.
“Alguma coisa te preocupou?” Lawrence perguntou.
Holo tirou o roupão enquanto olhava o livro, uma tarefa em
que Lawrence a ajudou de bom humor. Ela não estava sendo difícil,
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 203 ⊱

então o palpite de que ela se sentia tímida com os agradecimentos


provavelmente não estava muito errado.
“Muitas coisas me incomodaram. Dizem que há um demônio que
canta uma canção de mau agouro enterrado na encruzilhada.”
“Eu ouvi essa.”
“Oh?” Seu cabelo caiu como óleo sobre a água depois de ter tirado
a capa. Ela o juntou.
“Existem músicos viajantes que carregam instrumentos e andam
de cidade em cidade, e às vezes são acusados de serem servos de um
demônio e acusados de trazer azar ou doença com eles. E o lugar onde
tocam é sempre a encruzilhada fora da cidade.”
“Oh ho.” A faixa de Holo, desfeita, escorregou em sua
cauda; Lawrence a tirou enquanto ela tentava libertá-la. Ela aninhou a
cauda como se estivesse agradecendo.
Quando ele brincou como se fosse tocá-la, ela se
desviou rapidamente.
“Depois que o músico demônio morre, eles desejam que
seu espírito assombre algum outro lugar. É por isso que as
encruzilhadas próximas às cidades são mantidas tão cuidadosamente
livres de pedras com buracos na estrada rapidamente preenchidos. Se
alguém tropeçar lá, diz-se que o demônio enterrado pode voltar à
vida.”
“Hmph. Os humanos acreditam em todo tipo de coisa,”
murmurou Holo, parecendo genuinamente impressionada, depois
voltou sua atenção para o livro.
“Os lobos não têm superstições?”
“...”
Holo ficou subitamente séria, fazendo Lawrence pensar se
ele acidentalmente pisara em sua cauda, mas ela parecia estar
simplesmente pensando. Depois de um tempo, ela olhou para ele.
CAPÍTULO III ⊰ 204 ⊱

“Agora que você mencionou, eu percebi que — não.”


“Bem, é bom que você não tenha nada que impeça as crianças
de fazer xixi à noite.”
Holo parecia atordoada por um momento, depois riu.
“Só para você saber, não estou falando de
mim,” acrescentou Lawrence.
“Heh.” Holo sorriu, sua cauda balançando.
Lawrence bateu levemente em sua cabeça e ela se afastou como se
estivesse fazendo cócegas.
Ele então casualmente colocou a mão na cabeça dela.
Ele tinha certeza de que sua mão seria afastada, mas Holo deixou
que ela ficasse ali, suas orelhas se movendo levemente. Através da mão
dele, Lawrence podia sentir o calor do corpo dela, apenas um pouco
mais quente do que o de uma criança.
O quarto estava tão quieto que ficava triste. Esses momentos eram
preciosos.
Então, como se ela estivesse finalmente preparada, Holo falou
abruptamente.
“Você nunca me perguntou se as palavras dela eram verdadeiras.”
Ela tinha que estar falando sobre Eve.
Lawrence removeu sua mão, sua única resposta foi um aceno de
cabeça.
Holo nem sequer olhou para ele. O gesto dele era tudo o que
ela precisava.
“Se você tivesse, eu teria provocado você, desprezado você, tirado
sarro de você. Então eu teria respondido e você me deveria.”
“Que arriscado,” disse Lawrence.
Holo sorriu alegremente.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 205 ⊱

Ela deixou a cabeça cair na cama e depois olhou para ele.


“Eu entendo por que você está tentando determinar tudo por
conta própria. Me vender faz você sentir um estranho senso
de responsabilidade, não é? Mas também sei que as pessoas não são
tão fortes. Se eles têm uma maneira de saber com certeza qual é a
verdade, eles querem usá-la. E ainda assim você não usou... por quê?”
Lawrence queria saber qual era a intenção de Holo em
perguntar isso, mas como tentativas desajeitadas de descobrir
acabariam mal, ele respondeu honestamente.
“Se eu não for mais capaz de diferenciar, você vai ficar com raiva.”
“...Você é tão honesto. Por que não tenta confiar mais em mim?”
Uma vez que começasse a confiar nela, a resistência em fazê-lo
certamente diminuiria.
As pessoas podem se acostumar com qualquer coisa. Era preciso a
autoconsciência de um santo para não se esquecer disso.
“Eu não sou tão inteligente,” disse Lawrence.
“Você pode se acostumar com qualquer coisa com a prática.” Os
cabelos que Lawrence tinha ordenado balançavam quando caíam
novamente. “Você gostaria de praticar?”
“Praticar confiar em você?” Lawrence retrucou
brincando. A cauda suavemente ondulada de Holo parou
gradualmente de se mover.
Ela fechou os olhos e os abriu lentamente. O sorriso dela
era gentil, como se perdoasse qualquer erro.
O rosto dela dizia que aceitaria qualquer maneira coma qual
Lawrence pensasse em confiar nela.
Se ela estava fazendo isso para provocá-lo, era realmente uma
piada cruel.
Quem o culparia por ser pego por algo assim?
Dessa forma, a mente de Lawrence ficou ainda mais fria.
CAPÍTULO III ⊰ 206 ⊱

Ele chegou ao ponto de considerar se isso realmente mostrava o


quanto ela estava irritada e se tudo isso era uma armadilha para tentar
fazê-lo sorrir.
Parecia que o principal objetivo de Holo era vê-lo assim.
Eventualmente, ele sorriu, com um toque de malícia.
“Você está me dizendo para não fazer uma armadilha tão
desagradável? Não estou com raiva,” disse Holo.
“Se você estiver, não são palavras que vão desfazer isso.”
“Bem, desta vez não há armadilha. Pratique confiar em mim o
quanto quiser.”
“...É isso que você diria, não é?”
Lawrence deu de ombros quando Holo riu, depois repousou a
cabeça nos braços enquanto terminava de rir.
“Sendo desmascarada por você — sou uma desgraça como loba.”
“Eventualmente, até eu aprendo.”
Holo não riu nem pareceu frustrada, mas havia um leve sorriso no
rosto quando apontou para o canto da cama.
“Sente-se,” ela parecia dizer. “Ah, mas seu coração ainda é tão
mole como sempre foi.”
Lawrence se sentou no canto da cama enquanto Holo se sentava e
continuava.
“Mesmo que eu te atrair para uma armadilha e rir até cansar,
mesmo que você fique com raiva, ainda não vai perder a paciência
comigo.”
Lawrence sorriu. “Bem, eu não de nada disso.” Então, é melhor você
se preparar no futuro, ele ia acrescentar, mas pensou melhor, porque
quando ele achou que Holo daria seu sorriso invencível e voltaria com
sua sagacidade habitual, ela parecia triste.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 207 ⊱

“Não você não vai. Eu sei,” ela murmurou, antes de fazer algo
completamente inesperado.
Ela se sentou e se inclinou para o lado de Lawrence, depois se
sentou de lado no colo dele. Feito isso, ela o abraçou sem hesitar.
O rosto dela pressionava o ombro esquerdo dele.
Ele não podia ver a expressão dela.
Apesar dessa exibição franca, Lawrence não achou que ela
estivesse planejando algo ruim.
“É verdade que as pessoas mudam com o tempo. Até pouco
tempo atrás, você ficaria assustado se eu fizesse esse tipo de coisa.”
Não importa o que Holo estivesse tentando fingir, suas orelhas e
cauda nunca mentiam.
Entre o som da cauda dela e o jeito que ela tocava a mão esquerda
dele, Lawrence percebeu que ela estava incerta.
Ele a agarrou levemente.
Naquele instante, Holo se encolheu e enrijeceu. Ele soltou
imediatamente.
Antes que pudesse se desculpar, a cabeça dela bateu com força
na lateral da dele. “Sem toques desajeitados!”
De tempos em tempos, Holo afirmava que ela o deixava tocar sua
cauda como uma espécie de recompensa, mas isso parecia ser
um ponto fraco dela.
Verificando que esse não era o objetivo de Lawrence, nem que ele
era motivado por simples travessuras.
Ele não conhecia a causa, mas, como Holo não parecia estar
completamente desanimada, ele se sentia um pouco aliviado.
“Tolo,” ela acrescentou, suspirando.
O silêncio prevaleceu.
CAPÍTULO III ⊰ 208 ⊱

O som intermitente da cauda de Holo se misturou com o som


silencioso do estalido da chama de sebo.
Enquanto Lawrence estava se perguntando se deveria dizer
alguma coisa, Holo falou.
“Eu realmente sou um fracasso como loba, fazendo você se
preocupar comigo.”
Ela deve ter percebido que ele estava prestes a falar.
Suas palavras pareciam a Lawrence como uma simples
reclamação, mas talvez fosse apenas sua imaginação.
“Honestamente, confiar em você é uma história completamente
diferente. Nós estávamos falando sobre você confiar em mim!”
Ela levantou a cabeça do ombro dele e se endireitou, seus olhos
agora um pouco mais altos que os de Lawrence.
Aqueles olhos castanho-avermelhados olhavam para ele, e seu
lábio se torcia em irritação. “Quando você vai ficar perturbado por
minha causa?”
“Eu poderia ficar, se me dissesse o que realmente está pensando.”
Imediatamente Holo se afastou, seu rosto contorcido como
se tivesse provado algo amargo.
No entanto, quando Lawrence deixou de parecer preocupado, ela
logo ficou triste. “Vamos, agora —,” ela disse calmamente.
“O quê?”
“Eu quero você confuso.”
“Tudo bem então,” Lawrence respondeu, e Holo mais uma vez
encostou no seu peito, completamente imóvel.
“Não podemos terminar nossas viagens aqui?” ela murmurou.
Se Lawrence quisesse explicar a outra pessoa a surpresa que sentiu
naquele momento, eles não conseguiria.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 209 ⊱

Ele ficou muito surpreso; essa era a única coisa que se passava em
sua mente.
Mas então o que ele sentiu foi raiva.
Essa era a única piada que ele nunca queria ouvir.
“Você acha que eu estou brincando?”
“Acho,” respondeu Lawrence instantaneamente, mas não porque
ele estava confiante.
Era exatamente o contrário. Ele agarrou os ombros de Holo e
a segurou de perto, de frente para ela.
Ela sorriu, mas não de uma maneira que Lawrence pudesse ficar
com raiva.
“Você realmente é muito charmoso.”
Lawrence murmurou baixinho que ela só poderia dizer essas
coisas se ela lhe fizesse cócegas no queixo e desse seu sorriso diabólico
ao fazê-lo.
“Estou bastante séria. Se eu dissesse isso em tom de brincadeira,
você ficaria realmente zangado.” Lawrence ainda segurava seus
ombros; ela cobriu as mãos dele com as suas e continuou. “Mas você
vai me perdoar, porque você é gentil.”
Os dedos de Holo eram esguios e suas unhas, embora
não fossem bem afiadas, tinham uma forma adorável.
E quando elas caíram nas costas das mãos dele, elas machucaram.
Mas mesmo arranhado, Lawrence não tirou as mãos dos ombros
dela. “Meu contrato com você... foi para acompanhá-la à sua terra
natal.”
“Estamos quase chegando.”
“Então por que aqui, agora —”
“Pessoas mudam. Situações mudam. E meu humor
também muda.”
CAPÍTULO III ⊰ 210 ⊱

Depois que Holo falou, ela deu um sorriso arrependido, e


Lawrence sabia que ela estava lamentando seu próprio rosto
arruinado.
Por apenas um momento, ele sentiu terror.
Seria algo que ela decidiria simplesmente por um capricho?
Holo riu. “Parece que existem campos ainda não cultivados. Mas
este não é o lugar para pisar com as botas.”
Era tarde demais para ela estar provocando Lawrence e
desfrutando de sua aparência visivelmente perturbada, mas, à medida
que ele se tornava cada vez mais resistente às piadas dela, seus métodos
compensavam se tornaram mais extremos.
Mas, exatamente como Holo havia dito, este era um lugar que ele
não queria que ela pisasse.
“Por que isso, de repente?” ele perguntou.
“É exatamente como a raposa disse.”
“…Eve?”
Holo assentiu e tirou as unhas das costas das mãos de Lawrence.
Um pouquinho de sangue brotou; Holo se desculpou com os
olhos e continuou. “O dinheiro pode comprar companheiros, mas...”
“...Mas não sua qualidade?”
“Sim, e então ela disse para valorizar seus encontros. Aquela
mera garota humana, estando tão certa... Holo colocou a mão de
Lawrence na sua bochecha. “Quero que nosso encontro seja algo
bom. Então acho melhor que nos separemos aqui.”
Lawrence não entendia o que ela estava dizendo.
Lá em Tereo, Holo havia evitado a pergunta sobre o que ela faria
ao chegar à sua terra natal.
Lawrence achava que isso era porque uma vez que chegassem lá,
sua jornada juntos terminaria.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 211 ⊱

Isso era natural, dada a natureza de sua promessa, e quando ele


conheceu Holo, Lawrence assumiu que era isso que
aconteceria. Certamente Holo se sentia da mesma maneira.
Mas a jornada tinha sido uma boa, e ele queria prolongá-la, mesmo
que por um dia.
Ele era inevitavelmente conduzido por esse desejo infantil.
E Holo não sentia o mesmo? No mínimo, Lawrence achava
que poderia olhar para trás em suas viagens e ter certeza disso.
Então, como terminar sua jornada aqui a partir da ideia de que
os relacionamentos precisavam ser valorizados?
Enquanto Lawrence olhava para ela com uma óbvia
perplexidade, Holo sorriu tristemente, ainda segurando a mão na
bochecha dela.
“Seu idiota. Você ainda não entende?”
Ela não estava brincando nem zangada. Holo olhou para ele como
ela olharia para uma criança particularmente difícil, sua frustração
tingida de carinho.
Ele removeu sua mão quando ela olhou para cima, abraçando-a
lentamente mais uma vez.
“Essa jornada foi realmente maravilhosa. Eu ri, chorei... Essa
velha loba astuta até mesmo gritou de raiva com nossas brigas. Eu
estive sozinha por tanto tempo, então esses dias têm sido
muito bons. Eu até desejei que eles continuassem para sempre.”
“Então —,” Lawrence começou a dizer, mas as palavras pararam
em sua garganta.
Era uma conversa que ele não poderia ter.
Afinal, Holo não era humana. A expectativa de vida deles era
muito diferente.
“Você é muito esperto, mas lhe falta muita
experiência. Como você é um mercador que trabalha em busca de
CAPÍTULO III ⊰ 212 ⊱

lucro, pensei que logo entenderia, mas... não estou dizendo isso
porque não quero ver você morrer. Eu já... já me acostumei com essa
ideia,” disse Holo suavemente como um vento de inverno soprando
sobre um campo marrom e seco.
“Se eu tivesse um pouco mais de autocontrole, poderia ter
suportado até minha terra natal. Eu tinha certeza disso quando
deixamos a última vila para trás, mas... você é simplesmente muito
gentil. Você aceita tudo o que faço e me dá tudo o que desejo. É
terrível suportar... simplesmente terrível.”
Lawrence não ficou nem um pouco feliz ao ouvir essas palavras
de Holo, que pareciam algo que alguém encontraria na última página
de algum conto cavalheiresco.
Ele ainda não entendia o que Holo estava dizendo, mas havia algo
que ele entendia.
Ele sabia que no final de todas as suas palavras viriam as
seguintes: “Então vamos nos separar aqui.”
“É simplesmente... tão assustador,” ela falou.
Sua cauda estava inchada para combinar com a crescente
incerteza.
Ela disse a mesma coisa depois de comer o porco assado —
que estava assustada.
Na época, ele não havia entendido, mas, considerando tudo
isso, só havia uma coisa que poderia assustá-la tanto.
Mas Lawrence não entendeu por que isso a assustava tanto.
Ela queria que ele entendesse isso.
Naquela noite, ela dissera que seria problemático se ele
entendesse, mas agora que a conversa chegara a esse ponto, ficou claro
que ela havia decidido que o oposto era verdade.
Holo era uma sábia loba. Ela não fazia coisas sem sentido
e raramente estava errada.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 213 ⊱

Então isso tinha que ser algo que ele pudesse entender com o que
foi dito até aqui.
A mente de Lawrence disparou.
Sua memória aguçada, que era um orgulho para Lawrence
como mercador, trabalhava para se lembrar de tudo.
As palavras de Eve. Holo de repente querendo ir embora. Algo
que, sendo um mercador, ele deve ser capaz de entender. E o medo de
Holo.
Nada disso parecia ter algo a ver um com o outro, e ele não tinha
a menor ideia de como eles se conectavam.
O fato de a jornada não ter sido brilhante e alegre não era motivo
suficiente para que ela continuasse?
Toda jornada chegava ao fim, mas Holo certamente não estava
tentando fugir desse fato inevitável. Ela deveria ter entendido isso o
tempo todo; Lawrence certamente entendia. Ele estava confiante de
que, no final apropriado da jornada, eles se separariam com sorrisos.
Tinha que haver algum significado para ela querer abandonar
a jornada no meio.
O meio da jornada. Esta oportunidade em particular. Porque ela
não aguentou até chegarem à sua terra natal...
Quando ele chegou tão longe, Lawrence começou a sentir que
estava encontrando as conexões.
Alegre. Viagem. Cronometragem. Mercador.
Ele congelou, ferido, incapaz de esconder o choque que sentia.
“Você entendeu?” ela perguntou exasperada, se retirando do colo
e ficando de pé em frente à Lawrence. “Na verdade, eu teria preferido
que você não entendesse, mas se eu deixasse continuar, perderia a
melhor chance. Você entende, o que quero dizer com isso?”
Lawrence assentiu.
Ele entendia tudo muito bem.
CAPÍTULO III ⊰ 214 ⊱

Não. Ele sabia disso vagamente o tempo todo. Ele simplesmente


não queria aceitar.
Holo se afastou de Lawrence sem parecer muito relutante, depois
se levantou da cama.
Observado com aqueles olhos castanho-avermelhados de Holo,
ele murmurou: “Nem mesmo você conhece uma história dessas?”
“História? Como assim...? Ah entendo. Você é bastante
esperto com suas palavras.”
De um modo geral, havia dois tipos de contos no mundo. Alguns
contos tinham finais felizes, enquanto outros tinham finais infelizes.
Na verdade, havia realmente quatro tipos, mas os dois
restantes eram difíceis demais para os humanos criarem, e os humanos
eram imperfeitos demais para entendê-los.
Se havia alguém que pudesse criar e ler essas histórias, isso seria
um deus, e era o que a Igreja prometia após a morte.
“Histórias em que vivem felizes para sempre,” disse Lawrence.
Holo caminhou sem palavras até o canto da sala, pegando a jarra
de vinho que estava ao lado de suas coisas. Quando ela olhou para trás,
ela sorriu. “Não existe tal coisa. Claro, gosto de falar com você. Gosto
tanto — tanto que só quero te devorar.”
Se Lawrence a tivesse ouvido dizer isso quando se conheceram, se
ele tivesse olhado nos olhos estreitos e vermelhos dela, não
havia dúvida de que ele teria medo.
E, no entanto, agora ele não sentia nenhuma preocupação em
particular.
Holo queria voltar a ser o que era quando se conheceram. Esse
fato perfurou seu coração.
“Mas não importa quão delicioso seja o deleite, não se pode
continuar comendo a mesma coisa para sempre, certo? Torna-se
cansativo, não é? E o pior de tudo, à medida que eu gosto mais e mais,
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 215 ⊱

vou começar a precisar de mais e mais estímulo, e depois? Você sabe,


o que está no fim da linha?”
Um tempo atrás Lawrence tremia só de segurar a mão dela, mas
agora Holo podia abraçá-lo sem incidentes, e ele beijava a mão dela
com a maior facilidade do mundo.
Quando foi além disso, Lawrence entendeu algo que o
aterrorizou.
Diante do longo tempo que se estendia à frente deles, não havia
muito que poderiam fazer.
Eles podiam trocar de mãos e trocar mercadorias, mas o
fim chegaria antes que percebessem.
Eles poderiam continuar subindo as escadas.
Mas não havia garantia de que essas escadas sempre existiriam.
“Eventualmente, não serei capaz de conseguir o que desejo, e toda
a conversa que já foi um prazer desaparecerá, sua alegria
permanecendo apenas na memória. E é então que vou pensar em
como foi divertido quando nos conhecemos.”
Seu olhar cruel parecia deliberado.
“Foi por isso que fiquei com medo. Assustada com a maneira
como isto acelerava o fim desse prazer. Do jeito como a sua” — Holo
tomou um gole do vinho da jarra — “gentileza fez isso,” ela terminou
como se estivesse se acusando.
Holo, a Sábia Loba.
Uma loba que viveu por séculos, que garantia a colheita do trigo e
que temia a solidão acima de tudo.
Havia um aspecto desse medo que era difícil de entender. O modo
como ela odiava ser respeitada e temida como uma deusa não podia ser
entendido simplesmente com a razão, Lawrence pensou.
CAPÍTULO III ⊰ 216 ⊱

É claro que, como ela viveu por tanto tempo, o número de


criaturas que viviam todo esse tempo era muito baixo, o que a tornava
particularmente suscetível à solidão.
Mas aqui e agora, Lawrence finalmente entendia a resposta, a
razão pela qual, apesar de viverem tanto quanto ela, Holo não
procurou criaturas semelhantes — não, ela não podia.
Holo havia dito que ela não era uma deusa.
E esse era o verdadeiro motivo.
Dizia-se que Deus havia criado um reino celestial onde nem a
velhice nem a doença existiam, onde a felicidade era eterna.
Mas Holo não podia fazer isso.
Assim como um humano, ela só poderia se acostumar com alguma
coisa, depois se cansar, passando as noites sombrias pensando: Ah, foi
tão divertido no começo.
Ela não podia ficar feliz para sempre.
E essa sábia loba, tendo vivido tanto tempo, sabia muito bem que
seu desejo simples e feminino nunca poderia se tornar realidade.
“Há muito que estou impressionado com a inteligência de vocês,
humanos, em dizerem: ‘Tudo está bem quando acaba bem’. Embora
eu possa pensar comigo mesma: ‘Sim, é verdade’, ainda me encontro
incapaz de tomar a decisão de terminar algo que me dá prazer. Não sei
o que aconteceria se você viesse comigo até a minha terra natal. É por
isso que desejo terminar nossas viagens aqui, para que possa ser algo
bom do início ao fim.”
Lawrence não tinha palavras. Ele pegou a jarra quando Holo
se aproximou e ofereceu.
Não havia nada de positivo em suas palavras, mas de alguma forma
ele ouviu uma nota de determinação em sua voz, talvez porque ela
estivesse perto de se tornar desafiadora.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 217 ⊱

“Você não está perto de alcançar seu sonho? Não é o momento


perfeito para encerrar este capítulo da sua história?”
“Suponho que... sim,” disse Lawrence. Foi por isso que ele não a
interrompeu.
“Além disso, eu estava pensando em lhe contar mais tarde e
surpreendê-lo.” Holo reprimiu uma risadinha, sentando-se ao lado de
Lawrence como se a conversa toda nunca tivesse acontecido. Ela se
virou e pegou o livro que estava ao lado da cama. “Eu estava no livro,”
disse ela com um sorriso estranhamente triste, que certamente se deve
a surpresa de Lawrence ao ouvir essas palavras.
Mesmo depois de não ter demonstrado nenhuma emoção
quando ela falou do sonho dele estar próximo.
“Havia todo tipo de coisa no passado, coisas que eu tinha
esquecido completamente até vê-las,” disse Holo, folheando as páginas
e virando o livro para Lawrence.
Como se dissesse “Leia.”
Lawrence trocou a jarra pelo livro, baixando os olhos para a
página.
Os contos, escritos em uma mão precisa e cerimonial, eram de
uma época em que as pessoas ainda viviam na ignorância e na
escuridão.
O nome da Igreja não passava de um mero boato de uma terra
longínqua.
E ali, exatamente como a cronista Diana na cidade pagã
de Kumersun havia dito, estava o nome de Holo.
“‘Cauda de trigo’, eles diziam. Palavras tão complicadas,” disse
Holo.
Lawrence sentiu que a frase não estava de todo errada, por isso
não disse nada.
CAPÍTULO III ⊰ 218 ⊱

“Parece que você bebe muito desde os tempos antigos,” disse ele,
resignado, ao ler a seção relevante e, longe de prejudicar seu humor,
Holo estufou o peito e fungou orgulhosamente.
“Lembro-me vividamente, mesmo agora. Havia uma bebedora
rival, uma garota um pouco mais nova que você, e não estávamos tão
bêbadas quanto cheias. E no final, isso era ainda mais heroico,
entenda...”
“Não, obrigado. Não quero mais ouvir nada,” disse
Lawrence, acenando para ela. Ele nem precisou pensar nisso
para saber como ela havia acabado com a disputa.
E, no entanto, embora houvesse de fato uma história de um
concurso de bebida, parecia mais uma saga heroica de Holo e a garota
com quem ela havia bebido do que qualquer outra coisa.
Talvez isso não fosse surpreendente.
Holo riu. “Ah, mas isso é nostálgico. E eu tinha esquecido
completamente até ler.”
“Bebendo, comendo, cantando, dançando. Tenho certeza de que
foi reescrito inúmeras vezes, mas a atmosfera divertida ainda
aparece. Certamente a maioria das lendas antigas eram comédias.”
“Sim. Era ótimo. Venha, levante-se.”
“...?”
Lawrence fez como lhe foi dito, levantando-se da cama.
Ele então largou o livro como Holo o instruiu.
Assim que ele se perguntou o que ela estava fazendo, Holo
caminhou em sua direção e pegou sua mão.
“Direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita —
consegue acompanhar, não é?”
Ele nem precisava pensar sobre isso.
Era a dança antiga que Holo dançava na história.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 219 ⊱

Mas quando ele ficou perto dela, Lawrence entendeu.


Era óbvio o que estava por baixo de seu exterior brilhante.
Holo disse que queria parar de viajar porque era divertido demais.
“No entanto, essa dança é ruim se você estiver bebendo. Seus
olhos vão começar a nadar antes que você perceba,” ela disse, olhando
para Lawrence e sorrindo, depois baixando o olhar para o
chão. “Então é direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita
— entendeu? Certo, aqui vamos nós!”
Lawrence nunca dançara uma dança adequada antes, embora Holo
o tivesse forçado a sair para as ruas na noite do festival de
Kumersun, onde dançaram a noite toda.
Com tanta prática, qualquer um seria decente.
Quando Holo gritou “Agora!” E pôs o pé para fora, Lawrence
a imitou.
Norah, a pastora, havia feito a dança dos pastores para provar sua
identidade. As danças estavam por toda parte. Havia inúmeras danças,
mas todas se pareciam.
Lawrence combinou seus passos com os dela na primeira
tentativa, o que surpreendeu visivelmente Holo.
“Hmph.”
Ela provavelmente estava ansiosa para tirar sarro de sua falta de
jeito, pensando que não seria tão fácil.
Passos, passos, passos... Eles moveram seus corpos de maneira
leve e fácil, e logo era Lawrence quem liderava Holo, com os pés mais
propensos a se enroscarem. Depois que uma pessoa entende que esse
tipo de coisa tem mais a ver com confiança do que com técnica, tudo
o que se precisa é audácia.
Mas a surpresa de Holo apenas embaçou seus movimentos por um
instante.
CAPÍTULO III ⊰ 220 ⊱
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 221 ⊱

Logo ela planava suavemente, ocasionalmente ficando


levemente confusa de uma maneira obviamente
deliberada. Lawrence se perguntou se ela estava tentando fazê-lo
pisar.
Ele não se enganaria com isso, é claro.
“Hnn-hmph.”
Pareciam dois bonecos cujas cordas estavam sendo controladas em
uníssono. Foi assim que os movimentos deles se aproximaram.
Direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita — os
movimentos eram simples, mas continuavam pelos passos da dança
na pequena sala sem parar nenhuma vez.
Foi somente quando Holo surpreendentemente pisou no pé de
Lawrence que a dança terminou.
“Opa...” foi tudo o que Lawrence teve tempo de dizer antes de,
felizmente, terminarem juntos na cama.
Suas mãos permaneceram juntas.
Lawrence suspeitava desagradavelmente que Holo tinha feito isso
de propósito, mas ela parecia atordoada, como se não tivesse ideia do
que acabara de acontecer.
Por fim, ela voltou a si mesma e encontrou os olhos de Lawrence.
“…O que nós estamos fazendo aqui?”
“Eu suspeito que seria melhor não perguntar.”
Holo abaixou a cabeça brincando e mostrou seus caninos.
Ela parecia genuinamente feliz.
Talvez fosse assim que ela encontrada a capacidade de continuar.
“A direção para minha terra natal também está escrita.”
Lawrence se lembrou do conteúdo do livro, um sorriso pairando
em seu rosto pela conversa tola deles, e assentiu.
CAPÍTULO III ⊰ 222 ⊱

No livro, estava escrito que Holoh, da Cauda de Trigo, vinha das


montanhas de Roef, a vinte dias de caminhada a pé, na direção do sono
e do nascimento.
O norte era o sono e o leste o nascimento. Dar significados a
direções como essa não era incomum.
E a parte mais decisiva do conto era a referência às montanhas de
Roef.
Lawrence conhecia o nome.
Era o nome de um afluente do rio Roam, que passava por Lenos.
Praticamente não haviam dúvidas de que dentro das montanhas de
Roef estavam as cabeceiras do rio Roef. Com tanta informação, Holo
poderia facilmente encontrar o caminho de casa, mesmo por conta
própria.
E Lawrence duvidava que suas expectativas estivessem erradas.
Seu único erro foi carregar aquele trigo na carroça naquele dia em
Pasloe.
“Então, você leu todos eles?” Lawrence perguntou rapidamente,
para que o silêncio não expusesse suas mentiras.
Quando Lawrence e Holo começaram a se sentar, suas mãos
unidas se separaram.
“Li sim. O mais velho conta a história do início desta cidade, da
pessoa que montou o primeiro pilar do primeiro edifício para
as pessoas morarem, embora não se soubesse se ele era realmente
uma pessoa.”
“Um amigo seu, então?”
“Talvez.” Holo riu da brincadeira. “Ainda assim,” ela falou, se
endireitando, “devemos devolver os livros antes de derramar vinho
sobre eles. Não é como se precisássemos copiá-los, e a maior
parte já estava na minha cabeça, para começar.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 223 ⊱

“De fato. E não há garantia de que você não caia no sono e babe
todas as páginas.”
“Eu não faço essas coisas.”
“Eu sei. Assim como você não ronca,” disse Lawrence com
um sorriso, levantando-se da cama — fingindo que, se não o fizesse,
estava sujeito a ser mordido.
“Você gostaria que eu te dissesse exatamente o que fala enquanto
dorme?” Holo perguntou, os olhos semicerrados.
O coração de Lawrence deu um salto com suas palavras.
Era tudo o que ele podia fazer para impedir que a tristeza que
sentia nessa troca aparecesse em seu rosto.
“Espero que seja algo assim: ‘Eu imploro, por favor, não coma
demais!’”
Havia também sonhos frequentes em que ele podia comer
a comida deliciosa que queria.
No entanto, desde que conheceu Holo, ele viu o pesadelo de
ter que pagar a conta de alguém que come assim se torna realidade
muitas vezes.
“Você está ganhando o suficiente para pagar por isso,” replicou
Holo, saindo da cama em frente a Lawrence.
Como se estivessem fingindo brigar.
“Claro, em retrospectiva. Se não tivéssemos ganho dinheiro em
Kumersun, você literalmente devoraria todos os meus bens.”
“Hmph. O ditado não diz: ‘Se você já comeu o veneno, pode
muito bem comer o prato inteiro?’ Se isso acontecesse, eu
também te devoraria.” Holo lambeu os lábios teatralmente, olhando
para Lawrence com fome nos olhos.
Ele sabia que isso era um ato há séculos.
Mas algo diferente estava por trás daquele olhar que ele agora
entendia dolorosamente bem.
CAPÍTULO III ⊰ 224 ⊱

Em algum lugar ao longo da linha, o vínculo entre eles havia se


quebrado. Era muito triste, mas não tão triste que ele não pudesse
suportar.
O mais triste era saber que um deus mesquinho era a causa.
“Eu vou apenas apostar. Então, depois que devolvermos o livro, o
que você quer comer?” perguntou Lawrence.
A cauda de Holo balançava enquanto ela sorria
desagradavelmente. “Vamos decidir isso quando chegarmos lá.”
Suas conversas, pelo menos, eram tão divertidas como
sempre foram.
o dia seguinte, Holo e Lawrence deixaram a estalagem
pouco depois do meio dia, dizendo a Arold que estavam
indo para a casa de Rigolo, mas que retornariam.
Parecia improvável que, durante o curto período de
tempo em que estariam fora, a decisão do conselho fosse tornada
pública, mas sempre havia uma chance. Arold assentiu em silêncio,
nunca tirando os olhos do fogo.
Eles se aventuraram na cidade, novamente caminhando por
suas ruas estreitas e apertadas.
Diferente da última vez, as poças eram escassas — assim como
a conversa.
CAPÍTULO VI ⊰ 226 ⊱

Holo perguntou repetidamente sobre os detalhes do acordo


que ela havia entendido há muito tempo, apenas para mostrar que
estava sendo atenciosa.
“Parece que tudo está indo bem, então,” ela finalmente disse.
Uma das poças onde Lawrence havia tão diligentemente estendido
sua mão a Holo para ajudá-la a atravessar já não existia. Mas neste
lugar, havia um buraco, talvez cavado por algum jovem travesso, e,
embora o nível da água estivesse mais baixo, ainda era uma poça.
Foi a única oportunidade que Lawrence teve de estender a
mão novamente, e Holo aceitou antes de atravessar o buraco.
“Sim, está tudo bem. Um pouco bem demais,” ele disse.
“Você já se encrencou muitas vezes no passado,” disse Holo,
provocando um sorriso de Lawrence.
Seu medo era principalmente por causa do tamanho do lucro que
o esperava do outro lado do negócio.
Ele não achava que Eve estava colocando uma armadilha e, de
qualquer forma, atrair alguém para uma situação tão inteligente não
era uma coisa tão simples de fazer.
Eles estavam pegando dinheiro emprestado, comprando
mercadorias e vendendo com lucro — isso era tudo.
Enquanto as negociações fossem bem-sucedidas, não havia com o
que se preocupar.
Se ela estivesse tentando forçá-lo a entrar em algum tipo de
armadilha, como roubar à força as mercadorias dele no meio do
caminho, ela não sugeriria um navio para transporte.
O rio era uma rota comercial mais importante do que a estrada,
e muitos navios o navegavam.
Seria quase impossível que um assalto fosse realizado sem que
alguém percebesse.
Realmente parecia não haver problemas.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 227 ⊱

“Quantos milhares meu corpo valeu, eu me pergunto?”


“Hum, cerca de dois mil.”
Mais apropriadamente, essa era a quantia do nome da casa de Eve,
não do corpo de Holo.
“Oh Ho. Quanto vinho isso compraria?”
“Uma quantidade inacreditável da melhor qualidade.”
“E você vai pegar esse dinheiro e lucrar com isso, certo?”
Holo estava exigindo sua parte, e Lawrence tinha toda a intenção
de dar a ela.
“Se tudo correr bem, eu vou te dar a bebida que quiser.”
Holo riu. “Então vou querer...” ela começou, mas depois fechou
a boca às pressas.
Após um momento de confusão, Lawrence percebeu o que ela ia
dizer.
Então vou querer o suficiente para ficar bêbada a vida toda.
Mas esse era um sonho impossível.
“Então vou querer... o suficiente para começar a vomitar antes
mesmo de ficar bêbada,” disse Holo, a Sábia Loba.
Lawrence, o mercador viajante dificilmente deixaria de
responder: “O quê? Você perdeu o concurso de bebida?”
“Sim... ainda assim, era o esperado. Pense nisso, tudo
bem? Minha oponente não era tão bonita quanto eu, mas ela ainda era
bonita o bastante — e despejou tanto vinho em suas entranhas,
fazendo seu rosto ficar vermelho e suas bochechas incharem. Depois
que eu, a sábia loba orgulhosa, vi que desgraça eu teria que me tornar,
não consegui parar o vômito.”
Sem dúvida, as duas haviam sido “uma desgraça,” mas a desculpa
vã de Holo era inegavelmente a cara dela. Lawrence teve que rir.
CAPÍTULO VI ⊰ 228 ⊱

Holo cruzou os braços e fez uma cara azeda. Havia uma inocência
travessa sobre ela.
Como seria divertida a conversa se não fosse apenas um ato.
“De qualquer forma, você parece gostar bastante de bebidas,
apesar de ter perdido,” disse Lawrence.
Ao que Holo respondeu: “Você sempre foi e sempre será um
tolo.”

Quando chegaram à casa de Rigolo, ele não estava lá.


Melta os recebeu no seu hábito de freira, como sempre.
“Você foi muito rápido para ler todos eles. Demoro quase um
mês para ler apenas uma pequena história,” disse ela.
Ela parecia falar não por humildade, mas por timidez, seu sorriso
carregando uma aura de bondade.
Lawrence não pôde deixar de notar isso, mas quando Melta
pegou a chave da mesa de Rigolo e as levou para dentro, Holo não o
chutou nem uma vez.
“Sr. Rigolo disse para lhe dizer que, se houvesse mais alguma coisa
que você precise, fique à vontade para pedir emprestado,” disse Melta,
usando a chave para abrir a porta dos arquivos e acender uma vela de
cera de abelha.
“Alguma coisa que você queira ler?” Lawrence perguntou a Holo,
que assentiu vagamente.
“Por favor, olhe em volta, então. Por mais valiosos que sejam
esses livros, parece um pouco triste deixá-los sem ler,” disse Melta.
“Muito obrigado,” disse Lawrence, sorrindo e abaixando a cabeça
por meio de um arco.
A personalidade de Melta parecia inteiramente genuína, em vez
de simplesmente ser um produto de sua ocupação.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 229 ⊱

“Devo dizer que os livros que você emprestou foram escritos


pelo avô do Sr. Rigolo e, como tal, usam a linguagem
moderna. Alguns dos livros mais antigos, no entanto, usam estilos de
escrita arcaicos e podem ser difíceis de ler.”
Holo assentiu com a declaração de Melta, depois pegou a vela de
cera dela e seguiu lentamente para os arquivos. Lawrence duvidava
que houvesse realmente algum livro que ela quisesse ler e supôs que
Holo só queria perder tempo.
Sua dança com ele na estalagem também deve ter sido algo que ela
antecipou de certa forma.
Mesmo tendo entendido tudo, isso era divertido, e ela pretendia
poder terminar a jornada com sorrisos.
Mas ele sabia que isso era impossível.
“Er—”
“Sim?” Melta estava observando a vela que Holo segurava,
mas agora se virou para Lawrence.
“Eu odeio ser presunçoso, mas você se importaria de me mostrar
o jardim do Sr. Rigolo?”
A escuridão dos arquivos fomentava pensamentos sombrios
na mente de Lawrence, e ele estava começando a se assustar.
Mas Melta não demonstrou mais que uma gota de
preocupação. “Tenho certeza de que as flores no jardim terão prazer
em vê-lo,” ela falou com um sorriso que brilhava como a vela de cera.
“Holo,” Lawrence chamou, e sua cabeça apareceu por trás de uma
das estantes de livros. “Seja cuidadosa com os livros.”
“Eu sei, eu sei.”
Melta riu agradavelmente. “Está tudo bem. O jeito do Sr.
Rigolo de lidar com eles é muito pior, garanto.
CAPÍTULO VI ⊰ 230 ⊱

Lawrence tinha mais ou menos a sensação de que isso era verdade


e, depois de avisar Holo, deixou Melta levá-lo para fora dos arquivos
e voltar para o térreo.
Ansiava por contemplar aquele jardim luminoso sem pensar em
nada em particular.
“Você gostaria de algo para beber?”
“Ah, er, não, não se preocupe.” Lawrence acenou com a gentil
oferta de Melta e ela fez uma pequena reverência antes de sair
silenciosamente da sala.
Se ele tivesse vindo a negócios, sua presença também
teria beneficiado seu anfitrião, e ele não se preocuparia em aceitar a
gentileza deles. Mas, da forma como era, Lawrence estava abusando
de suas boas graças e não queria aceitar mais do que precisava.
Um dos princípios centrais da Igreja era “dar tudo o que você é
capaz.”
“Ah, bem,” ele se aventurou a dizer, pondo um fim ao
pensamento.
Ele não queria pensar em nada.
Lawrence voltou os olhos para o jardim de Rigolo.
Ele ouvira dizer que fabricar vidro transparente era bastante
difícil. O preço à parte, a construção dessas enormes janelas deve
ter envolvido muitos problemas.
Do outro lado da parede, através de inúmeros pedaços de
vidro, todos juntos, havia um jardim que parecia ter dado ainda mais
trabalho.
Era assustador ver as plantas verdes, as flores brancas.
Rigolo se gabara de que, com algum esforço, ele poderia
preservar esse cenário nessa sala o ano todo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 231 ⊱

Se isso era verdade, Rigolo devia estar sentado nessa mesa,


nunca entediado com a cena que o cumprimentava toda vez que olhava
para o jardim.
Certamente Melta, que parecia cuidar de Rigolo, deveria
estar olhando exasperada pelas suas costas.
Isso deixou Lawrence com inveja. Ele sorriu tristemente para
sua própria loucura, depois olhou de volta para o escritório.
Ele transbordava de papéis e pergaminhos e parecia
bastante confuso à primeira vista, embora, com uma inspeção mais
detalhada, a sala se revelasse realmente arrumada. Em vez de chamá-
lo de casa ou local de trabalho, o termo ninho parecia mais apropriado,
dado seu estado disperso.
Lawrence se perguntou se era a proximidade de Eve com Rigolo
que o levou a ter uma de suas estátuas na sala.
Ou talvez ele tivesse ficado com uma das sobras.
Estava embalada com algodão em uma caixa de madeira, junto
com um pedaço de pergaminho enrolado que provavelmente era o
certificado de consagração da Igreja.
A estátua era do tamanho de ambas as mãos, com os dedos
estendidos.
Lawrence olhou atentamente, imaginando quanto
custava, quando notou algo estranho.
A superfície da estátua estava levemente desbotada.
“O que é isso?”
Para melhorar sua aparência, as estátuas eram às vezes esfregadas
com limão e outras vezes com tinta. Esta estátua da Santa Mãe era
branca, então certamente havia sido usada cal nela.
Mas em um lugar onde esse acabamento parecia ter
saído, Lawrence viu algo estranho.
Ele esfregou a estátua levemente, tentando limpá-la.
CAPÍTULO VI ⊰ 232 ⊱

“... Isso, não pode ser —”


“Algo está errado?” A voz repentina o trouxe de volta a si mesmo.
Ele se virou. Era Melta. “Oh, meu Deus... isso é
bastante embaraçoso. Eu apenas pensei que esta estátua da Santa Mãe
era tão bem feita que eu poderia fazê-la ouvir meus problemas.”
“Por Deus.” Os olhos de Melta se arregalaram um pouco e ela
sorriu. “Eu sou uma cordeira no rebanho da Igreja, então ficaria feliz
em ouvir suas preocupações.”
Evidentemente Melta não era uma freira obstinada.
“Eu vou me conter,” disse Lawrence.
Melta carregava uma bandeja de madeira lindamente esculpida
com uma xícara compacta de madeira e uma jarra de metal. “Esta é
uma bebida feita a partir de pão, embora eu não saiba se será adequado
para você.”
A bandeja e a xícara tinham linhas tão suaves e adoráveis que
Lawrence se perguntou se Melta as teria feito. “Kvass, não é?”
“Meu Deus, senhor mercador, você é bastante conhecedor,”
respondeu Melta, derramando um líquido marrom pálido na xícara.
“Não tem sido popular recentemente, então você não vê muito
hoje em dia.”
“Eu mesmo prefiro isso ao Sangue de Deus... ah, er — por favor,
esqueça que eu disse isso!”
Por “Sangue de Deus”, ela certamente quis dizer vinho de uva.
Para a tranquila Melta fazer uma piada, realmente foi encantador.
Lawrence assentiu e colocou o dedo indicador nos lábios.
Se fosse em Ruvinheigen, Kumersun ou Tereo, ele teria tratado
Melta de maneira um pouco diferente, temendo a vingança de Holo.
E, no entanto, se perguntado se ele estava realmente gostando
dessa conversa, Lawrence teria respondido negativamente.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 233 ⊱

Sua mente estava acelerada com o conhecimento que adquirira


da estátua da Santa Mãe.
“Aqui está,” disse Melta, oferecendo-lhe a bebida.
Sentindo como se o comportamento gentil de Melta fosse um
bálsamo para seu coração desgastado, Lawrence pegou a xícara.
“Presumo que o Sr. Rigolo esteja na reunião?”
“Sim. Esta manhã houve uma mensagem urgente e... oh, céus, me
desculpe, me disseram para não dizer nada sobre isso.”
Lawrence lançou seu melhor sorriso de mercador para Melta
se desculpando, balançando a cabeça. “De maneira alguma, e de
qualquer maneira eu não perguntaria sobre o assunto da reunião. Foi
uma má escolha de tópico. Eu queria perguntar sobre o vidro aqui, por
isso é lamentável não poder vê-lo novamente.”
“Oh, é assim…? Bem, este vidro foi recolhido peça por peça e
levou mais de três anos para coletar tudo.”
“Entendo. A paixão do Sr. Rigolo por seu jardim é realmente
clara,” disse Lawrence com uma surpresa deliberada em sua voz. Melta
sorriu brilhantemente, como se ela própria tivesse sido elogiada.
Eve disse que não entendia a falta de ambição de Rigolo e sua
paixão por seu jardim, mas com alguém tão compreensivo quanto
Melta ao seu lado, ele poderia se perder em sua vocação. Os dias de
Rigolo eram agradáveis, pensou Lawrence.
“Com tanta paixão, posso entender por que ele faria declarações
tão ousadas como dizer que quer deixar o cargo de secretário do
conselho.”
O sorriso de Melta foi perturbado quando ela assentiu. “Embora
seja o trabalho dele, ele fica olhando o jardim até o último momento
possível.”
“Eu diria que sim, mas o seccretário é um cargo importante.”
CAPÍTULO VI ⊰ 234 ⊱

“Deus diz que o trabalho é valioso. Mas às vezes sinto que um


desejo tão modesto como poder passar um tempo no
jardim também pode ser,” disse Melta, sorrindo.
Era um sonho decadente que nenhuma freira devota
poderia abraçar, mas talvez tenha sido o fato de Melta estar apaixonada
que a fazia pensar nisso como agradável.
Não importava o que Lawrence pensasse, ela parecia
estar dizendo que a felicidade de Rigolo era a felicidade dela.
Talvez fosse o sonho de Melta ficar ao lado de Rigolo o dia
todo enquanto observava seu jardim, corajosamente atendendo-o.
“Ah, mas desejos modestos são os mais difíceis de realizar.”
Ela riu. “Você pode estar certo.” Melta colocou a mão
na bochecha enquanto olhava para o jardim brilhante. “E os momentos
mais alegres são os que você deseja que durem para sempre.”
Aturdido, Lawrence olhou longa e duramente para Melta.
“Algo está errado?” Ela perguntou.
“Estou simplesmente comovido com suas palavras.”
“Você me lisonjeia.”
Ele estava falando sério, mas Melta considerou sua
sinceridade uma piada.
Lawrence queria que Holo ficasse. Ele queria que ela ficasse para
sempre, mas talvez ele devesse simplesmente valorizar o tempo que se
sentia assim. O pensamento perfurou seu peito.
Se eles estivessem realmente sempre juntos, se pudessem sempre
se ver novamente, talvez essa alegria fosse inevitavelmente destruída.
Não era uma verdade tão difícil.
Por ser tão simples, o sonho de Holo por um fim nisso era muito
difícil.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 235 ⊱

“No entanto, acredito que é uma sorte ter a possibilidade de


perseguir um sonho simples,” Lawrence conseguiu falar, incapaz de
esquecer sua própria realidade.
Logo Holo saiu dos arquivos, segurando a vela de cera.
Ela disse que a chama se apagou, mas isso certamente era uma
mentira.
Assim como Lawrence fugiu, Holo achou os cantos escuros
dos arquivos desagradáveis e escapou.
Lawrence sabia disso porque, assim que Holo entrou na sala
de frente para o jardim bem iluminado, ela o lançou um olhar amargo.
Sem dizer nada, ela ficou ao lado dele.
Lawrence olhou diretamente para ela e falou. “Você
encontrou bons livros?”
Holo balançou a cabeça. Os olhos dela perguntaram: “Você
encontrou?”
Holo ainda era Holo.
Ela podia facilmente detectar a menor mudança em seu
comportamento.
“Eu tive uma conversa muito útil,” disse Lawrence.
No instante seguinte, houve o som de batidas na porta.
Depois disso, veio o som da porta se abrindo.
Passos pesados e sem graça ecoaram pela casa, e então alguém
apareceu.
Melta ficou chocada, mas não ficou zangada ou perturbada com a
surpreendente intrusão, porque era alguém que ela conhecia bem.
Era Eve.
“Venha comigo,” disse Eve. “As coisas estão ruins.”
Ela estava respirando pesadamente.
CAPÍTULO VI ⊰ 236 ⊱

“É uma revolta armada.”

“Tranque suas portas e não as abra para alguém que você


não conhece,” disse Eve, e Melta assentiu, engolindo em seco como se
tivesse engolido uma pedra.
“S-sim!”
“Eu não me importo com o quão descontentes eles estão com a
decisão do conselho, duvido que eles venham à casa do secretário,
então você deve ficar bem,” disse Eve, dando um abraço leve em
Melta. “E, claro, Rigolo estará seguro.”
Melta assentiu pateticamente.
Ela estava muito mais preocupada com a segurança dele do que
com a sua.
“Certo, vamos lá.”
Eve dirigiu essas palavras para Lawrence e Holo, e Lawrence deu
um breve aceno de cabeça.
Holo ficou um pouco distante, desinteressada, mas
Lawrence percebeu que seus ouvidos estavam tremendo de um lado
para o outro sob o capuz. Ela provavelmente tinha uma boa ideia do
que estava acontecendo na área circundante.
“Então nós vamos embora.” Eve saiu pela porta, e Melta apertou
as mãos como se rezasse por sua segurança.
Eve, Lawrence e Holo caminharam por uma rua deserta a
um passo rápido que era quase um trote lento. “Você disse uma
‘revolta, mas quem são eles realmente?” Lawrence perguntou.
“Os artesãos de peles e as pessoas que lhes fornecem suas
ferramentas e mercadorias.”
A primeira coisa que Eve disse ao chegar à casa de Rigolo foi: “As
coisas estão ruins.”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 237 ⊱

O gatilho foi o conselho que tornou sua decisão pública antes do


previsto.
No momento em que o conselho tentava montar as placas de
madeira que mostravam a decisão na praça da cidade, os artesãos
e fornecedores correram para empunhar suas ferramentas no lugar de
armas, exigindo que o conselho revogasse sua decisão.
Embora para Lawrence a decisão parecesse uma decisão
astuta, ele podia imaginar que aqueles que encontrariam seus
negócios completamente acabados no dia seguinte dificilmente
poderiam engoli-la.
E Eve disse que a decisão do conselho foi baseada em uma previsão
ingênua.
Não era de surpreender que a incerteza e a
preocupação assumissem a forma de uma revolta violenta. Mesmo que
a indústria de peles da cidade sobrevivesse, as próprias pessoas da
cidade ficariam arruinadas, o que não fazia sentido.
As notícias da revolta chegaram rapidamente ao centro da
cidade, que agora estava aparentemente em completa desordem.
Lawrence ouviu os gritos distantes.
Ele olhou para Holo, que assentiu.
“A decisão do conselho não pode ser revogada, pode?” ele
perguntou.
Eve balançou a cabeça.
O Conselho dos Cinquenta era uma assembleia de pessoas
poderosas de todas as partes da cidade, e as decisões que eles tomavam
mostravam a determinação da cidade. Tais decisões tinham
preferência acima de todas as outras, e todos os que viviam em Lenos
tinham que cumpri-las.
Se um grupo cujos interesses se opusessem aos do conselho negava
essas decisões, havia o risco de danificar seriamente a autoridade do
conselho e dificultar o exercício da administração normal da cidade.
CAPÍTULO VI ⊰ 238 ⊱

Os artesãos de peles sem dúvida sabiam disso quando decidiram


se revoltar.
“O conselho precisa proteger sua credibilidade, para que a
decisão seja confirmada. Os mercadores estrangeiros já estão entrando
na cidade. Os artesãos estão desesperados para impedir que eles
façam isso, mas provavelmente é impossível.”
Eve atravessou o labirinto complicado de ruas sem nenhum
problema.
Ocasionalmente, eles passavam por outros com objetivos
semelhantes aos seus. Várias vezes eles viram mercadores correndo
pelos becos o mais rápido que podiam.
Lawrence estava preocupado se Holo conseguiria acompanhar,
mas ela parecia bem no momento. Ela segurou a mão de Lawrence,
procurando ficar perto.
“E o nosso acordo de peles?” perguntou Lawrence.
“A decisão do conselho foi exatamente o que minhas informações
disseram que seriam. Supondo que seja confirmado, o acordo ainda
está em andamento.”
Nesse caso, cada segundo contava.
“O que devemos fazer? Vamos aceitar o dinheiro depois e fazer a
compra de peles enquanto isso?”
“Não,” foi a resposta de Eve. “Não quero
complicações. Deveríamos ir com o dinheiro na mão. Você vai para a
Delink Company e pega a moeda.”
Eve caminhou pela rua, despreocupada com poças, e continuou
falando antes que Lawrence pudesse dizer qualquer
coisa. “Vou preparar um barco,” ela falou, parando de repente.
O trio saiu da rua estreita e sinuosa para encontrar as docas
diretamente na frente delas.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 239 ⊱

Multidões andavam de um lado para o outro, todas com


expressões sombrias.
Lawrence sabia que as multidões de mercadores estavam
correndo para conseguir peles, e um calafrio percorreu sua espinha.
Deve estar ainda pior na praça da cidade, pensou Lawrence, onde os
artesãos de peles enfrentavam os encarregados de defender as placas
que anunciavam a decisão do conselho.
“Estamos à frente de todos aqui. Nós não podemos agir com
pressa.” Eve se virou. “Vamos nos encontrar na
estalagem. Terminaremos o acordo quando tudo estiver em ordem.”
Seus olhos azuis estavam cheios de uma determinação inabalável.
Foi na frente dessas docas enquanto bebia vinho com Lawrence
que Eve havia dito que estava economizando dinheiro por causa de sua
vingança infantil.
Se isso era uma boa motivação ou não, não cabia a ele decidir.
Mas ele sabia uma coisa. Eve era uma mercadora motivada e
capaz.
“Entendido.”
Ele agarrou levemente a mão que lhe foi oferecida. Eve sorriu
levemente, então girou e desapareceu na multidão.
Eve certamente arranjaria um bom navio e garantiria uma rota
para as peles.
“Bem, então vamos?” perguntou Holo.
Ela não parecia preocupada nem apressada.
“Sim, vamos,” respondeu Lawrence rapidamente. Ele começou a
andar, mas parou.
Pode-se dizer que ele foi atravessado pelo olhar penetrante de
Holo.
“Você viu algo — não, viu e pensou em algo — então por que não
me disse o que era?” Holo perguntou.
CAPÍTULO VI ⊰ 240 ⊱

Lawrence sorriu; Holo já sabia de tudo.


“Você percebeu algo perigoso sobre esse acordo. Estou errada?”
Ele respondeu imediatamente; não havia sentido em escondê-
lo. “Não.”
“Então, por que ficou calado?”
“Você quer saber?”
Holo estendeu a mão para o peito de Lawrence, mas não
simplesmente porque ele respondeu sua pergunta com outra pergunta.
Lawrence pegou o dedo dela, o abaixou e soltou.
“Quanto ao perigo inerente a esse acordo, digamos que eu
tenha lhe contado. Isso se estende a mim e a você. Mas, considerando
as possibilidades, decidi que deveríamos buscar o lucro sem
nos preocupar com o risco. A quantidade que têm a ganhar vale o risco
da minha vida, e até mesmo arriscar você, você sempre pode escapar
com suas próprias habilidades. Claro—”
Holo ouviu, sem expressão.
“— se chegar nesse ponto, será difícil para nós nos
reunirmos,” disse Lawrence.
Holo ficou calada.
Lawrence continuou. “E se tivéssemos essa conversa, você diria
—”
“... Não jogue fora todo esse lucro apenas para se apegar a um
único fio de esperança,” finalizou Holo.
Lawrence deu de ombros, sorrindo.
Ele ficou em silêncio sobre sua descoberta, precisamente
porque não queria ver Holo dizer isso.
Se esse acordo fosse bem-sucedido, o sonho de Lawrence se
tornaria realidade. Ele voltava à cidade como um homem rico,
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 241 ⊱

Holo iria cumprimentá-lo e depois se separaria dele para sempre com


sorrisos e palavras de bênção.
Ou ele falharia, e Holo teria que escapar antes que ela fosse
vendida, ou pior, quando partisse para sua terra natal sozinha, com
determinação renovada. Se ele pudesse ser um pouco presunçoso, ela
poderia procurá-lo e garantir que ele estivesse bem, mas ela o deixaria,
e não havia nada que ele pudesse dizer para detê-la.
Em outras palavras —
“A única chance que tenho de continuar viajando com você é
abandonar completamente o acordo.”
Lawrence conteve as outras palavras que sentia — que, mesmo
que isso lhe custasse o sonho, ele não podia expor Holo ao perigo.
“Você acha que isso me faria feliz?” Holo perguntou.
“Sim,” respondeu Lawrence, sem nenhum constrangimento.
Sua bochecha levou um tapa no instante seguinte. “Nunca direi
que estou feliz. Eu nunca, nunca vou pedir desculpas.”
Holo deu um tapa nele com toda a força de sua mão pequena, o
que provavelmente machucou a mão dela mais do que o rosto dele.
O pensamento ocorreu a Lawrence quando ele olhou para a
expressão trêmula dela.
Com isso, todas as chances de um deles dizer ao outro que eles
queriam continuar a jornada estavam destruídas.
Era o que Holo desejava e o que Lawrence não desejava.
Ele havia lhe dado o que ela queria às custas de seus
próprios desejos.
Isso certamente estava próximo do auge do que poderia ser
chamado de bondade e, como tal, Holo temia.
Isso era uma vingança silenciosa por seu repentino
pronunciamento do fim da jornada.
CAPÍTULO VI ⊰ 242 ⊱

“Vou lembrar de você como um mercador frio e calculista,” disse


ela.
Com essas palavras, Lawrence finalmente conseguiu
sorrir. “Seria ruim para a minha reputação se você me considerasse um
tolo. Venha, vamos recuperar nossos fundos de guerra.”
Lawrence começou a andar com Holo seguindo uma curta
distância atrás dele.
O som do fungar que ele ouvia certamente não era por causa do
ar frio.
Talvez ela achasse injusto, mas Lawrence não era tão generoso a
ponto de permitir Holo deixá-lo sem exigir uma pequena vingança.
Mas a vingança era uma coisa vazia.
Quando eles chegaram à Companhia Delink, Holo havia voltado
ao normal.
A vingança gerava vingança.
Isso era por um bem maior.
“Não há Deus neste mundo,” murmurou Holo sem
rodeios. “Se seu Deus onisciente e onipotente realmente existe, como
ele poderia simplesmente observar o sofrimento?”
Lawrence parou para bater na porta. “Realmente,” ele respondeu
com um aceno de cabeça e só então bateu.
A Delink Company estava decorada como sempre, e dentro do
prédio estava silencioso, como se estivesse completamente
separado do clamor do lado de fora.
É claro que os mercadores estavam cientes do que estava
acontecendo na cidade e, ao verem o rosto de
Lawrence, arranjaram alegremente o dinheiro.
Seus sorrisos desagradáveis disfarçavam o que eles estavam
pensando, mas ele podia confiar na orgulhosa afirmação de que
garantiriam a segurança de sua companheira.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 243 ⊱

Não importa quão frio seja o coração do mercador, você pode


confiar nesse coração frio no que diz respeito ao tratamento cuidadoso
de suas mercadorias.
No entanto, quando chegou a hora de entregar o dinheiro, eles o
colocaram não nas mãos de Lawrence, mas nas de Holo.
Era a sabedoria do credor.
Ao receber o dinheiro das mãos de Holo, a garantia, sua compra
seria mais efetivamente marcada em sua mente. Também tinha o
objetivo de impedi-lo de dar um calote e, de qualquer forma,
isso reforçava seu desejo de obter lucro.
Holo olhou atentamente para a bolsa de moedas, que cabia
facilmente até nas mãos pequenas. Ela então olhou para Lawrence.
“Quando você lucrar, eu quero o melhor dos vinhos,” disse
Holo com um olhar azedo.
O suficiente para ficar bêbada para sempre.
O suficiente para que essa última lembrança dele permanecesse
em seu coração para sempre.
“É claro,” respondeu Lawrence, pegando as moedas.
“Nós também rezaremos por sua boa sorte,” disse
o mercador Delink.
Provavelmente ele havia interrompido para encerrar a
conversa. A experiência teria ensinado a ele que essas despedidas
poderiam se arrastar.
Mas Holo e Lawrence há muito haviam se despedido.
“Quando nos encontrarmos da próxima vez, serei um mercador
da cidade,” disse Lawrence grandiosamente.
Holo sorriu. “Eu não posso ter um mercador inútil como meu
companheiro.”
Lawrence não sabia que expressão assumir em resposta a essa
afirmação.
CAPÍTULO VI ⊰ 244 ⊱

Ele não sabia, mas quando saiu da loja e olhou para trás, Holo
estava na porta, os olhos abatidos.
Lawrence correu para a cidade, com o saco de sessenta moedas de
ouro na mão.
Ele não estava com disposição para andar.
Ele não sabia se essa era a escolha certa.
Ele simplesmente não sabia.
Mesmo que não houvesse outra escolha, ele ainda não sabia se ela
seria a certa.
Nada parecia estranho nisso. À sua frente havia um lucro
tão grande que ele nunca sonhou com isso.
No entanto, seu coração estava inquieto.
Lawrence segurou o ouro debaixo do braço e correu.

Quando ele chegou à estalagem, havia pessoas na porta discutindo


algo.
Sem nem se dar ao trabalho de ouvir, ele esperava que eles —
que talvez fossem hóspedes da estalagem e seus amigos, pensou
Lawrence — estivessem conversando sobre a revolta na cidade.
Lawrence foi para os estábulos, entrando pelo armazém.
Já havia dois cavalos e uma carroça lá. Naturalmente, um dos
cavalos e a carroça eram de Lawrence. Era uma excelente carroça com
um assento de motorista um pouco grande demais para uma pessoa só.
O que o fez franzir as sobrancelhas não foi o peso do ouro que ele
carregava. Foi o peso que se instalou em seu peito; estava
muito pesado. Lawrence se sacudiu e entrou no armazém.
Como sempre, uma variedade de mercadorias estava empilhada
tão alto quanto sua cabeça, com caminhos finalmente limpos entre
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 245 ⊱

pilhas de caixas. Nenhuma pessoa sabia todas as coisas que estavam


armazenadas lá. Era o lugar perfeito para esconder algo pequeno.
O pensamento ocorreu a Lawrence quando ele atravessou a sala
quando esbarrou em alguém fazendo exatamente isso.
“O-olá. Eu cansei de esperar,” Eve disse, agachada enquanto ela
pegava algo através de uma pilha de mercadorias.
“Eu trouxe o dinheiro.” Lawrence mostrou o pequeno saco
de estopa, e Eve fechou os olhos como se estivesse tomando uma
bebida pela primeira vez em três dias.
“Eu arranjei um navio. Encontrei um capitão cujo lucro
desapareceu no levante. Quando o nomeei com um bom preço, ele
disse que zarparia mesmo que a marinha enviasse navios para bloqueá-
lo.
Ela tinha um bom olho, isso era certo.
Agora, tudo o que restava era mover a pele com segurança através
dessa revolta.
Então eles a levavam rio abaixo e triplicariam seu dinheiro.
Isso o deixava tonto só de pensar.
Eve pegou a pequena bolsa que havia puxado da pilha
de mercadorias e rapidamente a prendeu no bolso do peito, depois se
levantou. “O lote da companhia não vai balançar a cabeça
quando avistar nossas moedas de ouro. Seus olhos serão ligados
ao dinheiro, e eles vão concordar apesar de tudo.”
Era fácil imaginar, e Lawrence sorriu, embora não tivesse certeza
de quão convincente era seu sorriso.
“Nesse caso, vamos lá! Este acordo é uma piada!”
A conversa de Eve era resultado de seus nervos.
O acordo era enorme. Em prata trenni, o valor chegava a duas mil
peças e, mesmo convertido para as lendárias moedas de
ouro lumione por conveniência, chegava a sessenta dessa moeda.
CAPÍTULO VI ⊰ 246 ⊱

A quantidade de lucro que poderia ser extraída desse


dinheiro fazia a vida humana parecer inevitavelmente confusa.
Não, ela era confusa.
Eve parecia estar indo para a saída do estábulo atrás de Lawrence,
mas ele não se mexeu. Ele bloqueou o caminho, então ela teve
que parar.
“O que há de errado?” Ela perguntou, olhando para cima, seu
rosto incerto.
“Quando comprarmos as peles com esse dinheiro, o lucro chegará
a quatro mil peças de prata no final, certo?”
Eve era cerca de uma cabeça mais baixa que Lawrence. Ela
recuou um passo, depois dois, seu capuz escondendo sua expressão
completamente. “Isso mesmo,” disse ela.
“E você arranjou um navio, então agora tudo o que precisamos
fazer é comprar as peles.”
“Correto.”
“E você tem um bom senso de onde vender essa pele.”
“Correto.”
Em troca de emprestar o dinheiro para Lawrence, Eve
estava emprestando sua experiência e inteligência.
Ela pensou em tudo, desenhando um mapa de exatamente como
ela abriria caminho através dos complicados relacionamentos
da cidade, fechando um acordo e obtendo lucro.
Eve apareceu diante dele, totalmente confiante de que não
importava o vento repentino, ela não hesitaria.
Um mercador viajante que atravessou o deserto — essa era a
imagem de Eve que ele teve da primeira vez, sua voz rouca pelo vento
seco.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 247 ⊱

Embora, de tempos em tempos, Lawrence vislumbrasse seu eu


mais fraco sob o capuz grosso que ela usava, ela tinha coragem de ser
capaz de continuar enganando-o.
Ela era uma mercadora astuta o suficiente para isso.
Se ele apenas ficasse quieto, fingindo não perceber nada, fingindo
que estava deixando o negócio nas mãos dela, não haveria problemas.
Se Eve fosse enganá-lo, ela não iria roubar a sua parte.
A verdade nua e crua era que ela era sábia o suficiente para fazer
esse acordo acontecer sem problemas.
Ela não era boba. Ele sabia que ela não era tão imprudente a ponto
de fazer um acordo sem chance de sucesso.
Então ele deveria ficar quieto.
Se o acordo fosse bem-sucedido, Lawrence se tornaria no mínimo
um mercador da cidade.
Se ele pudesse ficar quieto.
“Você duvida de mim?” Eve exigiu.
“Não.”
“Então o que foi? Você perdeu a coragem?”
Lawrence olhou dentro de si.
Ele era fraco? Tímido?
Não.
Havia apenas uma razão para ele não poder permanecer tolo e
silencioso. Ele não conseguia tirar Holo da cabeça.
“Se não nos apressarmos, os mercadores além das
muralhas resolverão suas situações financeiras. Eles estão
fazendo arranjos. Não sabemos de onde eles podem surgir. Você só
quer morder seu rabo enquanto vê como os outros geram um lucro
absurdo? Você está ouvin—”
CAPÍTULO VI ⊰ 248 ⊱

“Você não está assustada?” perguntou Lawrence, interrompendo-


a.
Eve parecia atordoada. “Eu? Hah. Não seja absurdo,” ela
cuspiu, torcendo os lábios. “Claro que estou.”
Sua voz era baixa, mas ainda ecoava pelo armazém.
“Estamos falando de milhares de peças de prata aqui. Como eu
não poderia ter medo? Uma vida humana é uma coisa frágil diante de
tanto dinheiro. Não tenho coragem de ficar calma nesse tipo de
cenário.”
“Não há garantia de que eu não mude de ideia e ataque você”, disse
Lawrence.
“Hah. De fato. O contrário também é verdade. Não, nossa
suspeita um do outro só pode aumentar... mas em ambos os casos,”
respirou fundo como se quisesse se acalmar “não podemos continuar
correndo esses riscos.”
Eve realmente entendia o perigo deste acordo.
Não, era precisamente porque ela entendia que estava enganando
Lawrence.
Então, o que ela via do outro lado desse lucro, pelo qual estava
disposta a se esforçar tanto?
Eve riu com uma voz seca. “Eu posso dizer pelo seu rosto que você
quer me perguntar uma coisa estúpida. Você quer saber por que vou
fazer tanto esforço para ganhar dinheiro, não é?” Ela disse, parecendo
esfregar a palma da mão direita no quadril.
Isso foi o quão natural o movimento pareceu.
“Desculpe, mas eu não posso ter você desistindo do acordo agora.”
De repente, um cutelo de lâmina grossa estava em sua
mão. Teria sido rude chamá-lo de faca.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 249 ⊱

“Para ser sincera, eu não queria usar isso. Mas considere


a quantidade. Vou ter problemas se você sair agora. Você
entende, não é?”
Uma vez que têm uma arma em suas mãos, a maioria das pessoas
fica excitada quando o sangue corre para suas cabeças, mas a voz de
Eve era calma e seca até o fim.
“Enquanto o negócio correr bem, seu lucro será
garantido. Então entregue.”
“Uma vida humana não vale muito diante de sessenta peças
de ouro.”
“Isso mesmo... e você não quer descobrir isso pessoalmente,
não é?”
Lawrence exibiu seu sorriso de mercador e entregou o saco
de estopa que Holo lhe dera, oferecendo-o a Eve.
“Que as bênçãos de Deus estejam sobre aqueles com inteligência
e sabedoria,” murmurou Eva, e ela fez como se fosse pegar a bolsa. Mas
então—
“...”
“—!”
Cada um deles se moveu com energia e sem palavras.
Lawrence recuou, e a lâmina de Eve girou para baixo.
Um instante depois, houve um som estridente quando a bolsa
de moedas de ouro atingiu o chão.
O instante passou.
Os olhos de Eve brilharam com uma chama azul, e Lawrence
olhou para ela uniformemente, sem surpresa.
Alguns segundos depois, seus fracassos mútuos ocorreram para
cada um deles.
“Nós dois perdemos. Estou errada?”
CAPÍTULO VI ⊰ 250 ⊱

Como ela não puxou o braço para trás e recuou, Lawrence teve
um vislumbre claro da lâmina.
Eve foi esperta até o fim.
A lâmina havia sido revertida, atingindo o lado opaco da arma de
um gume. Ele poderia dizer que Eve não tinha nenhuma intenção de
cortá-lo.
Por outro lado, a esquiva de Lawrence tinha sido muito sincera,
e, no entanto, o fato de ele não ter sido surpreendido significava que
estava convencido de que a lâmina dela cairia.
Se ele realmente confiasse em Eve, Lawrence teria acreditado
no contrário, parado ou traindo surpresa quando forçado a se esquivar.
Ele não confiava nela, e não havia se surpreendido porque sabia
que ela estava escondendo alguma coisa.
“Meu fracasso foi ser farejada por você. Foi isso que você quis
dizer ao perguntar se eu estava com medo, não é?” Perguntou Eve.
Eve nem olhava para a bolsa de moedas no chão.
Isso era uma prova de que ela estava acostumada à violência.
Se ele pensasse no fato de que seu oponente era uma mulher, ele
estaria morto em um instante.
“A estátua na casa de Rigolo é uma evidência, não é?” perguntou
Lawrence.
O lábio de Eve torceu e ela trocou a faca de
sua posição invertida para um aperto adequado.
“Você fingia estar lidando com estátuas de pedra, mas o
que realmente estava fazendo era contrabandear sal de rocha
processado moldado em estátuas.”
“Poderia ser...” ela disse, e Lawrence podia ver Eve abaixando sua
posição.
Quer ele corresse ou não, isso parecia uma aposta ruim.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 251 ⊱

“Eu tinha motivos para suspeitar que você contrabandeava sal, mas
nunca me ocorreu que seria sal esculpido, já que a Igreja certamente
notaria que você estava realizando o contrabando nessa escala.”
Mas ainda havia uma maneira de contornar o problema.
Não será necessário dizer que isso significava colocar a Igreja
no acordo.
A paróquia de Lenos estava desesperada por dinheiro.
A Igreja não hesitaria em se envolver com o contrabando de sal,
o que certamente trazia mais dinheiro do que estátuas de pedra.
Lawrence não havia percebido isso mais cedo devido ao fato de
que Eve trouxe suas estátuas de uma cidade portuária.
Se o material estivesse sendo transportado de uma cidade
litorânea, do ponto de vista de peso e volume, qualquer sal obviamente
seria sal de grão.
Transportar sal grosso e mais trabalhoso da costa ia contra o bom
senso de qualquer mercador.
E era esse senso comum que Eve havia manipulado para passar
pelos portões da cidade.
“Tenho certeza de que você e a Igreja tiveram uma adorável lua
de mel por um tempo. Ouvi dizer que estava jorrando tanto dinheiro
que ninguém conseguia descobrir de onde vinha. Mas então
tudo acabou, acho que por causa da campanha do norte. A Igreja
começou a solidificar sua base de poder e saiu da raquete de
contrabando de sal, em vez de arriscar um levante ou dois. E então,
esse problema de pele surgiu. E, sendo esperta, foi isso que você
propôs ao bispo—”
Eve levantou a ponta de sua lâmina.
Lawrence deu outro passo.
“Se os mercadores que esperavam do lado de fora da cidade
comprariam toda a pele, por que não fazer isso sozinhos?”
CAPÍTULO VI ⊰ 252 ⊱

Eve havia dito que ouvira os resultados da reunião do Conselho


dos Cinquenta de seus contatos dentro da Igreja.
Ainda assim, sua habilidade estava fora do comum.
Em vez de imaginar que Eve tinha inventado tudo isso no local,
fazia mais sentido para Lawrence acreditar que ela havia planejado o
tempo todo, e só então entrou em ação.
E nem era preciso dizer quem lucrava mais com uma regra que
restringia as vendas de peles a dinheiro.
Seria extremamente lucrativo para a Igreja, em cujos cofres havia
uma quantia quase inimaginável de dinheiro dos dízimos que coletava.
Quanto maior a companhia de comércio, mais seus
negócios aconteciam no papel, nas entradas de livros, com todo o
dinheiro entrando e saindo da firma gravado assiduamente,
dificultando a obtenção de dinheiro a portas fechadas.
E com as cuidadosas buscas corporais sendo realizadas
nos portões da cidade e, no caso de mercadores que compram
peles, questionando a origem de seu dinheiro, um número
significativo de mercadores poderia ser contido.
Mas Eve ainda mantinha a confiança de que ela poderia comprar
peles.
Era verdade que os mercadores estrangeiros haviam feito longos
preparativos, mas agora que os artesãos e os fornecedores haviam se
revoltado, nenhum deles se arriscaria a dar dinheiro aos estrangeiros.
E, no entanto, Eve estava nervosa.
Isso poderia significar apenas uma coisa.
Ela sabia onde os mercadores estrangeiros iriam conseguir
seu dinheiro, e sabia que não havia nada que pudesse fazer para
impedir.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 253 ⊱

Esse era o verdadeiro motivo da Igreja ao decidir cortar os


laços com a nobre mercadora caída que, além de contrabandear
sal, havia se aproximado do arcebispo da região à beira-mar.
Eve disse que a Igreja alegou que era mais vantajoso lidar com uma
empresa mercantil do que com uma mercadora individual.
E foi exatamente assim.
Se a Igreja faria parceria com uma empresa comercial em um
esforço para comprar peles, a ação implicava que eles haviam ganhado
um patrono poderoso, permitindo que eles a abandonassem.
Eve deve ter pensado que nenhum dos mercadores
externos poderia estar carregando uma grande quantidade de
dinheiro, mas e se a Igreja transferisse cuidadosamente seu dízimo para
fora da cidade?
Os artesãos e mercadores revoltantes descobririam
que, contrariamente à sua crença, os mercadores estrangeiros tinham
uma grande quantia em dinheiro, provavelmente porque alguma
entidade da cidade os havia traído.
Não havia uma única mentira na história que Eve havia
apresentado a Lawrence.
Não havia mentira... mas também não era verdade.
“A estátua na casa de Rigolo é certamente sal-gema. E você
está certo de que fui eu quem chamou a atenção daquele péssimo bispo
e que ele me abandonou e também encontrou outro patrono. Vou
deixar você decidir se acredita em mim ou não,” disse Eve com uma
risada, jogando a faca no chão.
“Confie em mim”, ela parecia estar dizendo.
Lawrence nem se perguntou se havia ou não a necessidade de ela
mentir até agora.
Ele simplesmente decidia se ela estava mentindo ou não e agia
de acordo.
CAPÍTULO VI ⊰ 254 ⊱

Isso era tudo.


“E a razão pela qual você acha que eu trouxe o acordo até
você... provavelmente também está certo.”
“Eu sou um escudo para protegê-la.”
Eve encolheu os ombros. “Sou uma contrabandista de sal que
conhece todos os piores segredos da Igreja. Claro, antes de nos
separarmos, eles garantiram minha vida. Era um contrato verbal,
então você nunca sabe. Se surgir uma boa oportunidade, tenho certeza
de que eles me usarão novamente. Então deve ser verdade. E eu
também tive lucro. Eu não tinha nenhuma intenção de começar uma
revolta, e tenho certeza que eles sabem disso.”
“Mas você não podia deixar escapar o acordo que você propôs a
eles.”
“Exatamente. Mesmo que isso signifique interferir com as
expectativas deles, não posso deixar esse lucro ir embora.”
“Então você pensou: ‘Eles podem matar uma pessoa, mas é difícil
matar duas.’”
O que a Igreja pensaria de Lawrence, um homem que usou sua
própria companheira como garantia em um acordo que ia contra
os interesses da cidade?
Do lado de fora, ele certamente parecia um conspirador
que conhecia todos os meandros do plano de Eve.
Uma pessoa pode ser facilmente silenciada, mas, assim que
existem duas, as coisas se tornam difíceis — ainda mais quando a
segunda pessoa é uma pessoa de fora, sobre a qual não tem informações
básicas. Sem saber de onde Lawrence veio, não havia como dizer que
firma ou guilda poderia invadir a cidade se ele fosse morto.
Lawrence, sem saber, havia desempenhado esse papel.
E porque ele não sabia nada sobre isso, seu desempenho tinha sido
magnífico.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 255 ⊱

Ele deve ter parecido simplesmente imprudente ou parecia


que acreditava que não havia motivos para temer a Igreja.
Se ele não soubesse de nada, se fingisse não saber de nada, o
negócio certamente teria dado certo.
“Então, o que vai ser?” Eve perguntou.
“Vai ser isso aqui,” disse Lawrence, e naquele instante, ele
se lançou para o saco de ouro e a lâmina.
“...”
“...”
Os dois se entreolharam sem palavras.
Um suor frio escorreu na testa de Lawrence.
No momento em que ele estendeu a mão para a lâmina, uma
pequena faca apareceu na mão de Eve, e ela o perfurou.
E desta vez ela não estava golpeando com o lado cego da lâmina.
Isso Lawrence podia prever, mas sair do caminho seria uma
aposta.
“Você quer tanto esse dinheiro?” Ele perguntou.
Por algum milagre, ele foi capaz de torcer a mão esquerda de Eve
pelo pulso.
Enquanto ela estava longe de ser impotente, ela ainda era uma
mulher. A faca caiu da mão dela.
“V-você não...?”
“Ah...” Lawrence fez uma pausa antes de continuar. “Eu sim.”
“Isso é uma—”
“Piada,” talvez ela tivesse dito, mas Lawrence torceu o braço e a
empurrou contra uma pilha de caixas de madeira, agarrando a gola
com a mão livre e puxando-a para trás, cortando a voz dela.
CAPÍTULO VI ⊰ 256 ⊱

“Se você me matar e esconder meu cadáver, ele provavelmente


não será encontrado até muito tempo depois que o acordo for feito. A
Igreja nunca imaginaria que nossa parceria acabou. Eu tenho que dizer,
estou impressionado. Ou você estava simplesmente planejando pegar
o ouro e fugir?”
Eve ficou na ponta dos pés, com o rosto contorcido.
O suor oleoso em sua testa era a prova de que isso não era um ato.
“Não, você não faria isso. A razão pela qual você tentou me matar
é a bolsa que estava procurando quando entrei na despensa. Você está
morrendo de vontade de usá-lo.”
Naquele instante, Eve empalideceu.
Ela percebeu que se ele continuasse a sufocá-la, sua vida
poderia realmente estar em perigo, e isso aparecia em seu rosto.
O dinheiro era mais importante para ela do que sua vida.
Lawrence riu.
“Então, é o dinheiro que você ganhou do contrabando de sal? O
que você conseguiu acumular ao longo do tempo deve ser pelo menos
igual ao que eu trouxe — talvez seja mais. E você ia comprar peles
com tudo isso, comigo sem saber de nada.”
Eve não respondeu.
A expressão torturada em seu rosto parecia vir mais de seu medo
de que o dinheiro no bolso do peito fosse levado do que o fato de seu
plano ter sido revelado.
“A razão pela qual você não conseguiu fazer o negócio de peles é
porque tem muito dinheiro disponível. Se você tentasse sozinha,
a Igreja não pensaria em matá-la. Então você me trouxe. É fácil matar
uma pessoa, mas matar duas — isso é difícil. E você continuará a
reunir dinheiro para investir até que a Igreja se empenhe seriamente
em nos eliminar. Uma coisa é não se importar com a vida
de um estranho, mas você nem se importa com a sua. Tudo o
que importa é o lucro!”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 257 ⊱

Se não fosse por esse fato, Lawrence provavelmente teria ficado


quieto.
Ele provavelmente fingiria ignorar o contrabando de sal e
simplesmente se concentraria no negócio.
Mas ele não podia assistir alguém correr riscos tão grandes
e simplesmente deixar isso para lá.
Por maior que fosse o lucro, tinha que haver um limite para
a quantidade de risco permitida.
O que Eve estava fazendo era equivalente a suicídio.
Tendo chegado tão longe, ele queria — precisava — perguntar o
porquê.
“O que é isso…?”
“...?”
“O que é no final de tudo isso que faz valer a pena correr riscos
absurdos?”
Mesmo quando Lawrence a levantou do chão, mesmo quando seu
rosto ficou vermelho escuro, mesmo assim, Eve sorriu.
“Também sou uma mercadora. Ganhar dinheiro me traz
felicidade. Mas não sei o que há no final de tudo. Primeiro você faz
uma peça de prata e depois duas. Depois das duas, três. Mas você
nunca parou para considerar o que espera no final deste esforço para
saciar essa sede constante?”
Claro, Lawrence também não tinha considerado isso.
Ele não teve o luxo.
Isso porque desde que conheceu Holo, ele de repente se sentiu
mais livre.
Sua busca constante pelo lucro havia diminuído de alguma forma.
Seu lugar fora substituído por conversas com Holo.
Eve provavelmente era exatamente o seu oposto.
CAPÍTULO VI ⊰ 258 ⊱

Ela colocava o lucro acima de sua própria vida.


“O-o que... o que fazer...” ela começou, sua voz mais rouca que
o normal.
Lawrence afrouxou um pouco o aperto, e Eve chiou como
se estivesse asmática, tossindo. O sorriso dela nunca vacilou enquanto
ela continuava.
“O que eu... acho que me espera?”
Os olhos azuis dela se encontravam com os dele. “Você é tão
infantil que pensa que algo está esperando?” Ela zombou.
Ele não voltou a apertar. Ela atingiu o alvo perfeitamente.
“Toda vez que eu olhava para o rico bastardo que me comprou,
eu me perguntava: o que ele poderia estar fazendo com
tanto dinheiro? Não importa quanto você ganha, não há fim para isso,
mas o dia seguinte chega e você não pode deixar de ganhar mais. Que
horrível é ser rico, pensei.”
Eve tossiu, respirou fundo e continuou. “E devo parecer uma
criatura patética para você. Afinal, eu escolhi o mesmo caminho que
ele.”
No momento seguinte, Lawrence sentiu como se tivesse visto a
mão de Eve se mover.
E então, sem realmente entender o que tinha acontecido, quando
percebeu que havia levado um soco, ele caiu no chão.
“Vi seus esforços vãos, até o vi morrer, e ainda assim escolhi esse
caminho. Você sabe por quê?”
Não era a pequena faca que agora estava empoleirada sob a
garganta de Lawrence.
Era o grande cutelo na mão dela, esperando vigilante por uma
chance de fazer seu trabalho.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 259 ⊱

“— é por isso,” disse Eve, atingindo o rosto de Lawrence com


um golpe terrível com o cabo da lâmina. Sua visão explodiu em luz
vermelha, depois metade do rosto se transformou em uma dor quente.
Ele percebeu que seu corpo estava muito mais leve, mas não
conseguia se levantar.
Nem ele podia fechar a boca e, com o que parecia mais uma
pressão desorientadora e insuportável por todo o corpo, ele não
conseguia nem levantar a voz. No entanto, de alguma forma, usando o
cotovelo, Lawrence conseguiu rolar e entrar em uma posição
rastejante. Ele não podia se mover mais do que isso, e olhou para as
gotas de sangue que caíam no chão através dos olhos embaçados pelas
lágrimas.
Seus ouvidos ainda podiam entender os sons ao seu redor, então
ele sabia que Eve havia deixado o armazém.
Ela provavelmente pegou o dinheiro.
Esse pensamento filtrou como água agradavelmente fresca através
de sua cabeça nadadora.
Ele não sabia quanto tempo ficou lá antes que
algum hóspede aleatório da estalagem entrasse e corresse para o lado
dele, ajudando-o a se sentar.
Ele era um homem grande e redondo, com roupas de todos
os lados e peles. Tinha que ser o velho mercador de peles do norte que
Arold mencionara.
“Você está bem?”
Lawrence riu da frase clichê, apesar de tudo, depois conseguiu dar
um “desculpe” e assentir.
“Foi um ladrão?”
Encontrar uma pessoa desabada em um armazém naturalmente
sugeria isso.
Mas Lawrence balançou a cabeça negativamente.
CAPÍTULO VI ⊰ 260 ⊱

“Um acordo quebrado, então?”


Havia apenas dois tipos de infortúnios que poderiam acontecer
com um mercador.
“Oh, o que é isso...” disse o homem, e quando Lawrence viu o
que havia apanhado, esqueceu o rosto dolorido e riu.
“O que há de errado?”
Evidentemente, o gordo não sabia ler, porque apenas inclinou
a cabeça com curiosidade para o jornal e, quando Lawrence o alcançou
o encarou com perplexidade escrita em todo o rosto.
Lawrence olhou para o jornal mais uma vez.
Ele realmente não estava entendendo errado.
Aparentemente, Eve não conseguiu deixar
Lawrence completamente de lado.
“Obsessão, talvez?” Lawrence murmurou para si mesmo,
engolindo sangue.
Mas isso não parecia certo.
Imediatamente depois que ela atingiu Lawrence com o cabo
do cutelo, ele teve um vislumbre do rosto de Eve.
Não era obcecado nem avarento.
“Ei, você está bem?” O homem rapidamente tentou
ajudar Lawrence quando ele começou a se levantar, mas Lawrence
apenas assentiu e recusou.
Eve deixou para ele a escritura de Arold.
Como colega mercador, ele mal podia deixar de entender o
que ela queria dizer com isso.
Depois de se levantar, Lawrence começou a andar, embora de
forma instável.
Ele cambaleou para fora do armazém e entrou no estábulo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 261 ⊱

“Ela precisa ver isso, não é?”


Eve pegou todo o seu dinheiro.
Havia apenas um lugar para Lawrence ir.
“Ela precisa ver.”
Ele riu de novo, depois cuspiu sangue.
avia tantas pessoas nas ruas que era impossível passar
perto da praça da cidade para chegar às docas, devido à
luta entre aqueles que tentavam tornar pública a decisão
do conselho e aqueles que se opunham a essa decisão.
Gritos de raiva e golpes eram trocados, e a tensão era alta.
Nenhum deles notou o terrível estado de Lawrence. Isso era o
quão ruim o tumulto estava.
Enquanto o sol ou a lua estivessem no céu, ele poderia navegar
por uma cidade complicada apenas com a hora e a direção. Ele
correu pelas ruas, indo para a Companhia Delink.
Eve provavelmente tinha ido diretamente comprar peles.
Não parecia que Lawrence ganharia quantias surpreendentes, mas
ele sentiu que não se importava.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 263 ⊱

Deixar a carta que provava que Arold estava entregando a


estalagem era provavelmente a última concessão de Eve, mas para
Lawrence era o suficiente.
A carta de garantia que ele possuía provavelmente valia pouco
comparado ao valor que havia emprestado da Delink
Company. No mínimo, os mercadores queriam ganhar os favores de
Eve, que era nobre, uma meta que eles seriam capazes de
alcançar. Se seriam capazes ou não de coletar rapidamente o dinheiro
de Lawrence era uma preocupação secundária, e provavelmente
estariam dispostos a esperar um pouco, por mais que ele estivesse
pobre.
O problema era Holo.
Que tipo de rosto ela faria quando descobrisse que Lawrence
deixara escapar o acordo que lhe daria o sonho?
Ela ficaria furiosa com certeza.
“Bem, bem!” Não era apenas Eringin. Cada um dos membros
da Delink Company o observava com expressões neutras. Lawrence
não esperava nada além disso.
Quando ele perguntou onde Holo estava sendo mantida, eles o
levaram a um quarto dentro do prédio.
No entanto, uma vez que ele colocou a mão na porta, eles o
pararam com os olhos.
“Não coloque a mão na garantia,” eles pareciam dizer.
Lawrence pegou o papel que Eve lhe dera e o entregou à
Companhia Delink. Eles fizeram o cálculo da perda de lucros
com tanta rapidez que envergonhariam um viajante.
Eringin pôs o papel no bolso do peito e sorriu — genuinamente
pela primeira vez — antes de se retirar.
Lawrence colocou a mão na porta e a abriu.
EPÍLOGO ⊰ 264 ⊱

“Eu disse que ninguém pode entrar—!” Exclamou Holo, depois


se interrompeu.
Ele esperava que ela chorasse, mas evidentemente não dava a
Holo crédito suficiente.
No entanto, ela estava claramente chocada, seu rosto uma máscara
de raiva.
“Ora, você... você...” Seus lábios trêmulos pareciam dificultar a
articulação de palavras.
Lawrence fechou a porta atrás dele e se sentou na cadeira no meio
da sala.
“Seu idiota!”
Holo voou para ele. Certamente essas palavras foram feitas para
descrever exatamente o que aconteceu neste momento.
Ele esperava isso e, assim, conseguiu evitar ser jogado da cadeira.
“Não, não me diga, não me diga que você cancelou o acordo!”
“Eu certamente não fiz. Foi roubado de mim.”
A surpresa de Holo foi como a de uma donzela cujo vestido
favorito havia sido manchado, e ela agarrou Lawrence pela gola,
usando toda a sua força.
“Esse não era o seu sonho?!”
“Foi o meu sonho. Não. Ainda é.”
“Então por que — por quê?”
“Por que estou tão calmo, você quer dizer?”
Holo olhou à beira das lágrimas, os lábios tremendo
violentamente.
Lawrence tinha certeza de que, independentemente do resultado
do acordo, ele estaria se separando de Holo nesta cidade.
Holo sentiu o mesmo.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 265 ⊱

“Nós mercadores resolvemos algumas coisas, então fiquei com o


suficiente para comprá-la de volta desta companhia.”
Sem palavras... Lawrence queria rotular e enquadrar o rosto de
Holo da forma que estava naquele momento.
“Você — você não se lembra por que eu estava tão assustada?”
“É muito embaraçoso. Não consigo falar sobre isso.”
Holo o atingiu no rosto, exatamente onde Eve o havia atingido
com o cabo do cutelo, e a dor foi suficiente para fazê-lo desmoronar.
Holo então impiedosamente o puxou de volta.
“E então você voltou, mesmo sabendo disso, para se colocar
diante de mim, a Sábia Loba de Yoitsu? O que você deseja? O que você
deseja? Me Conta! Apenas me diga, maldito seja!”
Lawrence lembrou-se de quando a vira assim antes.
Naquela época, Lawrence também havia sido espancado, perdido
todos os seus bens e enfrentado a morte.
Holo o havia ajudado a escapar daquela vez.
E agora?
Ele havia sido roubado, ferido, mas conseguiu escapar enquanto
protegia a vida de Holo... Ela não pensaria assim?
Caso contrário, as palavras que Holo esperava eram óbvias.
Ela queria se afastar dele aqui nesta cidade, sorrindo o
tempo todo.
“Sua... forma de lobo.”
Holo assentiu, mostrando suas presas. “Deixe comigo. Você se
tornará um mercador bem-sucedido, tudo graças a ter me
conhecido. Podemos terminar a história com um sorriso. Deve ser
assim!” ela disse, retirando a bolsa que continha os grãos de trigo em
volta do pescoço.
Lawrence a observou sorrindo.
EPÍLOGO ⊰ 266 ⊱

“Qual é o —”
Ela nunca conseguiu terminar a frase.
“Você achou que eu ia pedir para você usar sua forma de lobo
para recuperar o dinheiro?”
Lawrence puxou o corpo de Holo para seu
abraço. Imediatamente o som de algo se espalhando pôde ser ouvido,
sem dúvida o grão de trigo no chão.
Talvez entre eles houvesse algumas lágrimas, mas ele descartou
isso como uma ilusão.
“Eve está buscando um acordo equivalente ao suicídio. Se a
Igreja souber disso, nossas vidas também estarão em
perigo. Deveríamos deixar esta cidade antes que a revolta acabe.”
“—!”
Holo tentou se afastar, mas Lawrence a deteve e continuou
falando o mais friamente possível.
“Eu não vi a verdadeira natureza de Eve. Ela é obcecada por
dinheiro. Ela não pensa em jogar sua vida fora por isso. Mas nenhum
número de vidas satisfará um acordo como esse.”
“Então, com que acordo você vai concordar?” Perguntou
Holo. Ela novamente tentou escapar do abraço de Lawrence,
mas acabou se rendendo.
“Basta atravessar uma ponte perigosa uma vez.”
“...”
Quando Lawrence visitou a vila de Pasloe, não havia nenhuma
razão específica para Holo, escondida em sua carroça, viajar com
ele. Ela poderia ter roubado as roupas dele e levado o trigo, e ela
ficaria bem sozinha.
Se ela realmente acreditasse que se aproximar de outro
levava sempre ao desespero, se ela realmente temia isso, por mais que
desejasse companhia, ela nunca teria falado com ele.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 267 ⊱
EPÍLOGO ⊰ 268 ⊱

Um cão que se queima na lareira sempre será cauteloso.


Quem se aproxima da lareira é quem pensa que nela arde
castanhas assadas e é incapaz de esquecer esse sabor.
Mesmo que ele pudesse ver quais dificuldades teria que enfrentar
ou mesmo se, no final, não sobrasse nada, Lawrence teria que estender
a mão. Ele precisava.
Ele precisava ver.
Ele precisava ver o que estava no final de tudo isso.
Quando Eve atingiu Lawrence, ele riu da humilhação. Ele riu
como uma garota.
Lawrence era um pouco jovem demais para se transformar em
um recluso esclarecido.
Ele passou a mão pela nuca de Holo e ela se encolheu.
Chegar mais perto do que eles já estavam não poderia ser a decisão
certa. A visão de Holo sobre o assunto era a correta, ele supôs.
O fim certamente chegaria e, portanto, permanecer assim não
era o caminho mais sábio.
E, no entanto, Lawrence abraçou Holo. E então —
“Eu gosto de você.”
Ele beijou sua bochecha direita levemente.
Holo congelou, depois olhou Lawrence direto nos olhos, tão
perto que suas testas quase se tocaram. Sua expressão de raiva mudou
lentamente.
“O que você sabe sobre mim?”
“Não sei muito. Não sei se a decisão que seus séculos de vida a
fizeram tomar está correta. Mas eu sei uma coisa.”
Ele sentiu como se pudesse derreter em suas pupilas vermelho-
marrom.
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 269 ⊱

Não havia dúvida de que ele morreria antes dela, e isso significava
que seus valores mudariam mais rapidamente.
Certamente Lawrence seria aquele por quem o
prazer desapareceria primeiro.
E, no entanto, ele não a deixou ir.
“Desejar que você seja minha não vai me fazer tê-la. Mas se eu não
desejar, você nunca será minha.”
Holo olhou para baixo, depois se afastou violentamente,
finalmente conseguindo se libertar.
Sua cauda se eriçou e seus ouvidos se arrepiaram com sua raiva
avassaladora.
Mas ela não mudou para sua forma de lobo. Ela
permaneceu humana, olhando para ele.
“Eve persegue lucro, mesmo que isso coloque sua vida em
perigo. Mesmo que no momento em que ela consiga o que quer, ela
desapareça. Há uma lição a ser aprendida como mercador. Chame de
espelho. Eu pensei que deveria tentar ser dessa forma,” terminou
Lawrence sem nenhum constrangimento, limpando a garganta uma
vez.
Ele então se inclinou para recolher os grãos de trigo que haviam
sido derramados embaixo da cadeira.
Holo ficou parada, imóvel.
Ela ficou lá sem olhar para nada em particular.
Quando as gotas começaram a cair no chão onde Lawrence
recolheu o trigo, ele olhou para cima.
“Seu tolo...” disse Holo, enxugando as lágrimas com uma
mão. Elas brotaram uma após a outra, mas ela as limpava
desajeitadamente.
Lawrence ofereceu a bolsa de trigo, agora reabastecida, em
direção à mão livre de Holo, e então ela a agarrou.
EPÍLOGO ⊰ 270 ⊱

“Você assumirá a responsabilidade, não é?” O sorriso


dela não foi deliberado.
“Quando chegar a hora, vamos nos separar com sorrisos e deixar
isso para trás. Não existe uma jornada que não termine. Mas...”
As lágrimas continuaram a cair, mas agora Holo parecia estar
chorando mais com seu rosto patético do que qualquer outra coisa.
Até uma garota humana raramente pareceria tão feia.
Lawrence sorriu. “Mas, como está, não acho que possamos nos
separar sorrindo agora.”
Holo assentiu com as palavras de Lawrence enquanto ela enxugava
as lágrimas.
“De qualquer forma, por que você é tão pessimista?” ele
perguntou.
Tinha que haver uma razão.
Não havia dúvida de que os muitos anos em que ela
passara continha razões suficientes para sua timidez.
No entanto, Holo secou as lágrimas, agarrou a bolsa de trigo e
enrolou o dedo indicador no de Lawrence. Apesar das
muitas mudanças de humor e felicidade, as muitas dificuldades, ela
ainda teve esperança suficiente para se arrastar até a carroça dele
naquele dia.
A conclusão de que, para alcançar a felicidade, não se deve desejar
nada é inadmissível.
Mesmo Holo, tendo vivido tantos séculos, não poderia ter
esquecido a inocência de sua juventude.
Eventualmente, ela olhou para o teto, fungando alto.
Um momento se passou.
“Você quer saber por que sou pessimista?” ela perguntou,
olhando para Lawrence. “Você não prefere me ver chorando?”
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 271 ⊱

Lawrence só pôde rir do ataque inesperado.


Ele não ficou de pé, mas ficou sentado, segurando a mão de Holo e
a beijando, como um cavaleiro beija a mão de uma donzela.
Ela era Holo, a Sábia Loba. Quando ela falou em seguida, foi em
um tom que convinha à situação, como se ela estivesse fazendo
um pronunciamento.
“Você rejeitou minha proposta, então é melhor estar preparado
para assumir a responsabilidade pelo que pode vir.”
“... eu vou,” respondeu Lawrence.
Holo ficou em silêncio por um momento, depois suspirou.
“Você levou minha loucura a sério — sério o suficiente para
perder todo o seu lucro. Então eu —”
Ela se deteve, sacudiu a cabeça e continuou.
“Eu vou seguir seu plano tolo. Contudo!”
“Contudo?”
Assim que Lawrence falou, Holo o chutou com força no ombro,
depois olhou para ele como uma pessoa olha para um inseto.
“Não posso ter um mercador inútil como meu companheiro. Não
me diga que você deixou o seu negócio ser roubado, depois deu meia-
volta e correu.”
Dado que isso era o que Holo entendia por gentileza, Lawrence
tinha apenas uma coisa a dizer.
Ele pegou a mão dela e ficou de pé, depois limpou o que restava
das lágrimas do rosto dela. “Sua gentileza também é bastante
assustadora.”
Lawrence não tinha certeza se ela o chamaria de tolo por isso.
Quanto ao porquê, certamente Holo não seria mencionada nas
histórias que seriam transmitidas pela eternidade.
EPÍLOGO ⊰ 272 ⊱

Havia apenas algumas coisas que a impediriam de falar o que


pensava.
“...Então, como você recuperará o dinheiro?” Os olhos de Holo
eram frios e penetrantes, como se dissessem que ele não tinha escolha.
E, no entanto, Lawrence tinha vontade de fazer uma piada.
Afinal, aqueles olhos escondiam seu constrangimento.
“Esqueça o lucro. Prefiro que você me devolva minha iniciativa.”
“Tolo,” declarou Holo categoricamente, dando um tapa na
bochecha inchada e se afastando. “Você acha que eu permitiria uma
coisa dessas?”
Lawrence queria se dobrar de dor, mas seu tom sugeria que ela
não estava preocupada com isso.
Ela se virou como se lhe mostrasse a magnífica cauda de Holo, a
Sábia Loba de Yoitsu, depois pôs a mão no quadril e o olhou por cima
do ombro. “Eu teria problemas se me apaixonasse por você.”
Lawrence nunca esqueceria seu sorriso travesso.
Holo riu, fazendo com que seus cabelos castanhos tremessem.
Era uma conversa tola.
E era mesmo, ele pensou.
“Suponho que você teria,” disse ele.
“Mm.”
Lawrence e Holo deixaram a sala.
Eles deram as mãos e, embora nenhum deles tivesse tomado a
iniciativa, seus dedos estavam entrelaçados.
XTRAS
POSFÁCIO ⊰ 276 ⊱
POSFÁCIO ⊰ 278 ⊱
ENTREVISTA COM ISUNA HASESEKURA
ANIME EXPO 2015

Entrevista do The-O Network

Como criador da premiada série de light


novels Spice & Wolf, Isuna Hasekura
rapidamente abriu seu caminho nas
mentes dos fãs de animes em todo o
mundo, escrevendo histórias clássicas
focadas na economia e em como ela
influencia o mundo. Além de Spice &
Wolf, seu portfólio também inclui a visual
novel World End Economica, que foi recentemente traduzida e
publicada pelo Sekai Project. Nós tivemos a chance de entrevistá-lo
durante a Anime Expo 2015 e pudemos perguntar sobre o que
moldou seu trabalho, bem como seus pensamentos sobre a tradução
em inglês para World End Economica.

T-ON: Você disse uma vez que sonhava em ser um artista de mangá,
mas acabou se tornando um autor. O que originalmente o levou a
escrever histórias focadas na economia
em vez de outros gêneros? Você tem
algum gênero que particularmente gosta
de ler? Algum livro favorito?

Hasekura: Pessoalmente, achei difícil


desenhar, mas com uma novel eu
poderia começar a escrever
POSFÁCIO ⊰ 280 ⊱

imediatamente. Eu escolhi escrever sobre economia porque é um


assunto interessante, como um quebra-cabeça. Por exemplo, quando
o dólar norte-americano sobe em relação ao iene japonês ou a outras
moedas, este último também muda, enquanto outras economias que
não estão conectadas ao dólar não. É um quebra-cabeça, porque um
fator afeta várias outras coisas e você vê o que muda e o que não muda.
É disso que eu gosto.

Meus três gêneros favoritos, em ordem, são economia, qualquer coisa


relacionada à história e neurologia. Meu livro favorito é A Fogueira
das Vaidades, de Tom Wolfe.

T-ON: Qual é a parte mais divertida de criar novos cenários mundiais


e sistemas econômicos? Tem alguma coisa em especial que você usou
para ajudá-lo ao longo do caminho? Algum exemplo?

Hasekura: Na verdade, não crio configurações e sistemas originais. A


maioria deles vem da pesquisa de livros de referência históricos e
outras fontes de informação.
O que acho interessante é que tenho que considerar a vida cotidiana
das pessoas que vivem em cada mundo. Pegue o tipo de roupa que
alguém usaria, por exemplo. Não é apenas "desenhar a roupa" e
pronto. Eu tive que pensar em que tipo de material era feito (algodão,
lã, etc.) e, além disso, como as pessoas cuidariam das ovelhas, que
ferramentas elas usariam para colher a lã e assim por diante. O ciclo
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 281 ⊱

de compra, venda e criação de materiais para produzir mais materiais,


juntamente com itens do cotidiano, é o que eu acho fascinante.

T-ON: Ao contrário de suas outras


histórias, Billionaire Girl se passa na era
moderna, em vez de um mundo
histórico. Há uma razão específica para
isso? Entre a era moderna, a histórica e
os mundos futurísticos da ficção
científica, sobre qual você mais gosta de
escrever?

Hasekura: A razão pela qual escolhi a era moderna para Billionaire Girl
foi porque eu queria que os leitores entendessem melhor a história.
Um personagem poderia comprar um carro caro, roupas ou investir
no mercado de ações e os leitores entenderiam imediatamente. No
entanto, eu ainda goste de escrever mais sobre mundos históricos, pois
normalmente é o oposto da era moderna, não a compreendemos
completamente. Embora a era moderna possa ser mais compreensível,
sobre eras passadas sabemos apenas o que está nos documentos e
pinturas históricas. Muitas vezes temos que usar nossa imaginação
para pensar em como as coisas eram dois ou três séculos atrás.

T-ON: Alguns de seus trabalhos mais recentes, como Billionaire Girl e


World End Economica, apresentam o mercado de ações. Enquanto
pesquisava, você se interessou por ações? Quais foram os resultados?
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Hasekura: Eu tenho um interesse em ações faz um tempo, então não


foi apenas por causa dessas duas histórias. Eu fiz um teste na bolsa
americana com as ações da Nikkei (Japão) e de Hong Kong, e me saí
muito bem.

T-ON: O que levou à criação do Spicy Tails? Você tem alguma história
divertida sobre seu trabalho com eles? Você pode dar alguma dica
sobre projetos futuros?

Hasekura: Na verdade, eu queria criar um jogo indie já faz um bom


tempo e aconteceu de dar certo este projeto. Não sei se isso é uma
história engraçada, mas com o passar do tempo eu fui dormindo cada
vez menos e as coisas ficaram cada vez mais difíceis.
Eu gostaria de fazer algo com o Oculus Rift. Não sei o que pode ser,
especulação em tempo real, talvez? É só uma ideia.

T-ON: Hal, de World End Economica, é mais jovem do que outros


protagonistas masculinos em seus trabalhos, como Kraft Lawrence, de
SPICE & WOLF VOL V ⊰ 283 ⊱

Spice & Wolf, e Kusler, de Magudala de Nemure. Houve alguma


dificuldade em escrever Hal levando em conta seus outros
personagens?

Hasekura: Foi difícil, porque claramente não sou mais adolescente.


Eu tive que encontrar maneiras de fazer Hal estragar tudo ou fazer
coisas que são características de sua idade.

T-ON: As light novels de Spice & Wolf estão quase no final de sua
edição em inglês. Como as interações com os fãs que falam inglês
mudaram da sua estreia para hoje? Alguma conversa particularmente
interessante/memorável com os fãs?

Hasekura: Esta é a primeira vez que estive em um evento fora da Ásia,


então não tive muito contato com fãs que falam inglês. O que posso
dizer é que há uma grande diferença entre os fãs orientais e ocidentais.
Alguns anos atrás, fui a um evento chamado Fancy Frontier em Taiwan,
realizado em um campus universitário. Muitos fãs que me visitaram
estavam no ensino médio ou na faculdade. Aqui na Anime Expo eu
notei que tem muita gente mais velha e que o nível de entusiasmo é
muito maior do que em Taiwan. De tempos em tempos, recebo cartas
de fãs que falam chinês, mas não de muitos fãs que falam inglês.

T-ON: O Kickstarter de World End Economica bateu mais de quatro


vezes a sua meta de financiamento original. Você esperava essa reação
dos seus fãs?
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Hasekura: Me pegou completamente desprevenido. Eu pensei que


pelo menos atingiria o valor da meta, mas nunca pensei chegar no
quádruplo desse número.
Teria feito mais sentido que isso acontecesse
na China ou em Taiwan, porque há muito
mais pessoas que apoiam meu trabalho lá.
Como eu tinha pouca interação com os fãs
ingleses, não tinha como avaliar por que era
tão popular. Meu trabalho mais conhecido,
Spice & Wolf, já tem muitos anos. Pelo que
li, a comunidade de falantes de inglês pode
ser pequena em número, mas a paixão deles
é esmagadora. Eles são muito dedicados.

T-ON: Você gostaria de enviar uma mensagem para seus fãs e


apoiadores do Kickstarter?

Hasekura: Eu só quero agradecer a todos os meus fãs por apoiarem o


meu trabalho. Obrigado a todos os fãs de Spice & Wolf que, mesmo
sendo uma série mais antiga, ainda a apoiam até hoje.

T-ON: E por fim, o que você pensa sobre a seguinte foto?


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Hasekura: Eu já o vi antes na internet. Na verdade, eu vi alguém na


sessão de autógrafos ontem que tinha o mesmo painel, até pensei que
era ele a princípio, mas era outra pessoa. Quando vi isso pela primeira
vez, fiquei muito feliz. Se ele for ao Japão e tivermos a oportunidade,
eu adoraria conhecê-lo.
POSFÁCIO ⊰ 286 ⊱

OS AUTORES
http://hasekuraisuna.jp/

Billionaire Magdala de Shoujo wa World End


Isuna Hasekura Girl Nemure Shoka no Economica
História Umi de
Nemuru

Nascido em 27 de dezembro de 1982, Isuna Hasekura é um estudante de física e


gasta seus dias lamentando a cruel natureza do mundo desde que estudar
harmônicas de superfície esférica falhou em dar a ele o resultado correto da
restituição do imposto de renda. Entretanto, devido a situações atenuantes, ele é
incapaz de prover uma explicação satisfatória sobre harmônicas de superfície
esférica.

Gelatin Risou no Uchi no Maid Witch Hunt


Juu Ayakura Himo wa Futeikei Curtain Call
Arte Seikatsu

Nascido em 1981. Local: Kyoto. Tipo sanguíneo: AB. Atualmente vivendo uma vida
livre e espartana em Tokyo, ele tem sido até então incapaz de por seus planos de
peregrinação aos templos em ação.

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