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Copyright 2020 © A G Moore

Autora: A G Moore
Revisão: Fabiano Jucá
Diagramação: Juju Figueiredo
Capa: Will Nascimento.
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido
na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Nota da Autora
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Rivka
Capítulo 2
Malcolm
Rivka
Capítulo 3
Rivka
Capítulo 4
Malcolm
Rivka
Capítulo 5
Malcolm
Rivka
Capítulo 6
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 7
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 8
Rivka
Malcolm
Capítulo 9
Malcolm
Rivka
Capítulo 10
Malcolm
Rivka
Capítulo 11
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 12
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 13
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 14
Rivka
Capítulo 15
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 16
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 17
Malcolm
Rivka
Capítulo 18
Rivka
Malcolm
Capítulo 19
Rivka
Linda
Capítulo 20
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 21
Rivka
Malcolm
Capítulo 22
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 23
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 24
Malcolm
Rivka
Capítulo 25
Rivka
Malcolm
Capítulo 26
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 27
Malcolm
Rivka
Capítulo 28
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 29
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 30
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 31
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 32
Rivka
Capítulo 33
Malcolm
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 34
Malcolm
Rivka
Capítulo 35
Rivka
Malcolm
Capítulo 36
Malcolm
Rivka
Capítulo 37
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 38
Malcolm
Rivka
Capítulo 39
Rivka
Malcolm
Rivka
Capítulo 40
Malcolm
Rivka
Malcolm
Capítulo 41
Malcolm
Rivka
Epílogo
LIVRO 2 - RIVKA E O ELO PERPÉTUO
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Epílogo
Agradecimentos
Mais sobre a autora
Outras Obras
Leia esse livro com sua mente aberta.
O enredo não se trata de mafiosos nem é um romance Dark, então
peço com todo amor que esqueça tudo o que já leu desses temas e comece
essa história como se fosse a primeira da sua vida.
Sinta tudo do começo ao fim.
A.G. Moore.
Dedico a Daiane Alves.
O anjo que Deus me presenteou. Esse livro não estaria aqui hoje se
não fosse você.
A densa camada branca e gelada cobria toda a área gramada da
região. Era o ápice do inverno e as recomendações orientavam que ninguém
permanecesse ali naquele local, pois havia risco de avalanches e
soterramentos pelo excesso de neve.
Mas, ainda assim, eles estavam caminhando lado a lado pelo vasto
caminho alvo.
Ele não segurava a mão dela, uma vez que ela mantinha as suas sob os
braços cruzados, enluvados e protegidos.
O trajeto foi silencioso para ambas as partes.
Ouvia-se apenas um som:
O do coração.
Era como se eles fossem capazes de ouvir o coração do outro, que
gritava por socorro.
“Faça alguma coisa!”, dizia um.
“Pense melhor!”, dizia o outro.
Porém, a razão se fingia de surda e ignorava os protestos.
A caminhada seguia firme, sem pausas, sem retrocessos, ambos
compenetrados em chegar ao destino final e acabar logo com o que assolava
suas mentes.
Estar ali era perturbador, mas não havia saída.
Até que chegaram ao ponto de separação e ele disse, sem olhá-la:
— Fique. Agora é só comigo.
A voz dele soou como o alimento que os ouvidos dela ansiavam
ingerir. Imediatamente ela levantou o rosto, antes cabisbaixo, à procura de
algum vestígio nele.
Algo que dissesse o que ela tanto ansiava saber.
Ele, ainda sem olhá-la nos olhos, apenas seguiu adiante sem olhar
para trás, em passos morosos, porém firmes.
O coração que ele enfim havia descoberto em si, batia em intensa
rebeldia ao que sua cabeça ordenava. Mas ele tinha que ir.
Era seu dever.
Enquanto ele seguia, ela mantinha os olhos fitos nele, ansiando que
algo diferente ocorresse e acabasse com toda angústia que reinava dentro de
si.
E aconteceu.
A oitenta metros de distância dela, ele parou e virou.
Ela sentiu frio, um frio que dominou todo seu corpo e imperava sobre
o frio do ambiente. Então ela jurou que viu seus lábios se movendo, num
sibilo claro e simples.
E seu coração se aqueceu ao notar que, ali, o dele também estava
aquecido...
Uma única vez.
Rivka
Hoje é meu grande dia.

Desde pequena ansiei por esse momento. Era algo que minha mente
constantemente elaborava, gerando sonhos.
O dia do meu casamento.
Acredito que toda mulher um dia imagina como será seu enlace.
Casar já foi o maior motivo de nós, mulheres, existirmos, épocas atrás, nos
tempos aristocráticos.
Para mim, hoje, é motivo de intensa felicidade.
Finalmente formarei minha própria família, terei um esposo com
quem poderei contar sempre, gerarei filhos e realizarei muitos dos meus
sonhos de menina.
De frente ao espelho do meu quarto, na mansão onde cresci, uma
lágrima abandonou meu olho sem que eu notasse.
— Feliz, meu doce? — indagou Doralice, a mulher que sempre
cuidou de mim.
A chamo de Dora desde que me entendo por gente. Meu pai contou
que a mamãe faleceu ao me dar à luz, e que, desde então, Dora cuidou de
mim como se fosse sua própria filha.
É como me sinto com ela, como se fôssemos família.
Respirei fundo e a fitei pelo espelho. Dora estava atrás de mim,
afagando meus ombros revestidos pelo elegante tecido rendado.
— Sim, Dora. Você sabe como sonhei em me casar. Parece bobo, mas
— enxuguei a lágrima delicadamente — esse foi meu sonho a vida inteira.
Seus olhinhos iluminados e negros se encheram d’água. De imediato,
me virei e a abracei com todas as forças.
— Sentirei tanto a sua falta. Tanto. — Aproveitei o momento e expeli
os pensamentos que me assolavam.
— Também, meu doce. — Ela se apartou e me encarou firmemente.
— Tenho medo dele não te tratar bem.
Foi quando pensei no meu futuro marido e nas motivações do meu
casamento.

Malcolm Samuels

Sabe, eu jamais acreditei naquela história da família que comanda o


mundo.
Quando meu pai veio há pouco tempo me contar toda a verdade
sobre o que envolve a família Samuels, eu compreendi o motivo de diversas
situações que passei na minha vida.

Ele dizia que eu garantiria o futuro da sua empresa, que lhe daria
orgulho e poderia ser uma mulher muito poderosa, se fosse inteligente. Me
disse que eu precisava ser forte e continuar sendo eu mesma, pois em
hipótese alguma poderia me separar do meu esposo.
Recordo-me como se fosse hoje, o dia em que meu pai e eu fizemos
uma viagem diferente de todas as que costumávamos fazer. Ele me levou em
um local de temperatura baixíssima. Estávamos, com certeza, bem próximos
de algum dos polos terrestres.
Ao chegarmos, alugamos um helicóptero e, só depois de descer em
um campo completamente alvo pela neve, fomos levados por um jipe até uma
casa no meio do nada.
Naquela casa eu o vi pela primeira e única vez antes de nos
casarmos.
Conheci Malcolm Samuels em sua tenra adolescência.
Eu jazia em uma sala de estar, enquanto meu pai havia ido para
algum tipo de reunião. Estava sozinha, mas de repente um menino, que
parecia ter entre a faixa de 15 e 20 anos, desceu as escadas lentamente em
passos sorrateiros, caminhou até onde eu estava e sentou no sofá à minha
frente.
Meus olhos foram de encontro aos dele de imediato e, mesmo ainda
criança, senti algo resfriar minha espinha.
Era medo.
Os olhos dele eram tão azuis que poderiam congelar qualquer um que
fizesse contato direto.
— Você é a filha de Albert, certo? — indagou.
Sua voz denotava a nítida passagem pela puberdade, porém, com
uma firmeza amedrontadora.
Eu, com ombros encolhidos e temendo aquele menino frio, assenti
com a cabeça.
— Ah, não acredito... — Ele meneou a cabeça, parecendo ofendido
com minha resposta. — Não acredito.
Como minha imaturidade não me permitia tomar atitude alguma,
apenas me calei e aguardei enquanto ele levantava, impaciente, e andava em
círculos pela sala. Até que meu pai desceu ao lado de um senhor um pouco
mais velho que ele.
— Você não vai me fazer casar com essa criança, pai! — Malcolm
andou a passos firmes na direção do senhor ao lado do meu pai e o
confrontou.
Eu não entendi muito bem sobre o que falavam, exatamente. Só tinha
oito anos, queria brincar, me divertir. Mas então o homem o fez calar,
puxando o garoto até ficar longe de minhas vistas.
Meu pai andou rapidamente até mim com sua feição preocupada e,
ao beijar minha cabeça, disse:
— Logo te explicarei tudo, minha menina. Logo você vai saber.

— Ele não seria capaz de me fazer mal, Dora. Sei me cuidar. —


Tentei confortar o coração de minha cuidadora, pois sabia que ela se
preocuparia dia após dia, no instante em que eu saísse daquela casa em
direção à minha nova vida.
Assim que eu me casasse, Dora receberia todos os seus direitos e se
aposentaria, para viver em paz. Eu não podia preocupá-la com meus medos.
Era meu sonho me casar e ser feliz.
Também havia se tornado minha maior meta pessoal.

Assim que Dora saiu do quarto, eu abri meu armário e peguei o papel
que assinei dias antes, com as explicações de tudo que havia no acordo. Era
uma nota de ciência.

“Estou ciente de que estou prestes a entrar em um enlace matrimonial


com interesses estritamente financeiros e benéficos para ambas as partes
envolvidas.
Estou ciente de que o primeiro acordo foi feito em quatro de fevereiro
de dois mil e três, firmado pelo meu responsável legal na época, Albert
Eliabe Rosemberg.
Estou ciente de que, ao firmar o contrato de casamento civil com
Malcolm B. Samuels, passo todo o direito de herdeira do Império Rosemberg
para suas mãos, bem como os bens móveis e imóveis contidos no inventário
de Albert Eliabe Rosemberg.
Estou ciente de que tenho o direito de pedir a anulação do casamento
a qualquer momento, fazendo com que todo o direito de herdeira retorne para
minhas mãos, porém, ocorre o ônus que me obriga a devolver dezessete anos
de investimento do Patriarcado no Império Rosemberg, bem como lucros
gerados devido ao investimento aplicado na empresa desde a data citada
acima.
Estou ciente de que devo ser submetida às ordens expressas que
Malcolm B. Samuels me der desde o instante em que o casamento for
firmado em contrato.
Estou ciente de que a pena para traição ou conspiração contra
acionistas e/ou familiares da família Samuels é a morte por execução.
Disposta a cumprir a função determinada a mim, declaro ciência dos
termos acima.
Rivka Vargas Rosemberg.”

Respirei fundo, pois entendia desde pequena a importância que aquilo


tinha para meu pai. Não podia decepcioná-lo.
Chamei Dora novamente e descemos juntas as escadarias da minha
casa e fui entregue ao meu pai, que me aguardava dentro da sala, em frente à
grande porta de madeira que se abriria para que caminhássemos juntos até o
altar.
O casamento ocorreu em meu lar, como um pedido pessoal de meu
pai, pois ele sabia dos meus sonhos de menina. Ele tinha ideia de como
desejei realizar aquele momento.
As portas enfim se abriram e todo formigamento que não senti no
estômago nas últimas horas vieram com força total.
Eu estava nervosa, insegura, com medo, ansiosa. Não sabia discernir
qual sentimento sobressaía no meio daquele caos.
Mentalmente clamei a Elohim, pedindo que acalmasse meu coração.
— Estou com você, minha menina. Até o fim dos meus dias.
Com os olhos fitos adiante, sem expressar emoção alguma, meu pai
sussurrou num tom que apenas eu pude ouvir. Era uma declaração em meio a
toda aquela cena. Era um momentinho pai e filha, antes de eu me tornar
mulher de outro homem.
Meus olhos estavam baixos. O receio de elevar o rosto em meio à
caminhada até o altar me fez olhar meus pés por mais tempo do que o
comum, mas, em um dado momento, me senti corajosa o suficiente para
elevá-los.
Um sopro de audácia tocou-me, fazendo-me encarar meu futuro
marido.
Malcolm.
O menino que, depois do episódio dos meus oito anos, jamais voltei a
ver.
O menino dos olhos congelantes e da feição rude.
O menino que se tornara um homem.
O homem que em instantes se tornaria meu esposo.
Ao fitá-lo diretamente nos olhos, o mesmo arrepio do passado me
invadiu, mas dessa vez não tive medo: sorri.

— Sim, eu aceito.
Declarei depois dos longos minutos de cerimônia onde o celebrante
falava sobre amor, união e família.
Malcolm já havia dito sim em seu tom firme e um tanto tenebroso,
mas na minha vez, ele enfim virou o rosto e me olhou com calma.
Após as considerações finais, entrega de alianças e benção, fomos
declarados marido e mulher.
— Pode beijar a noiva.
Nesse instante meu coração quis saltar pela boca.
Notei que comecei a suar frio, estava muito, mas muito nervosa.
Malcolm segurou minhas duas mãos, fazendo-me virar em sua
direção.
Então se aproximou em câmera lenta — ao menos era o que para mim
parecia.
Um passo.
Sua mão percorreu minha bochecha até se acomodar em minha nuca
e, em poucos instantes, o senti perto demais a ponto de nossos lábios
encostarem um no outro.
Ele não sabia.
Ninguém sabia.
Mas aquele foi o meu primeiro beijo.

E o grande portal para as guerras que eu vivenciaria a partir daquele


momento.
Malcolm
O que a gente não faz por causa de uma maldita regra?
Meu pai, quando era vivo, deixou bem claro o acordo que fez com
Albert Rosenberg. Nossa família manteve a empresa dele por dezessete anos
a fim de que fosse potência mundial no setor de novas tecnologias, e, como
sinal do pacto, sua filha seria minha esposa. Fidelidade eterna.
Que ideia mais atual, não?
Completamente inspirada no século XVIII.
Mas, sem esse casamento, minha posse como Patriarca dentro da
organização jamais seria validada. Eu nasci, cresci e vivo para cumprir o meu
propósito dentro do Patriarcado.
Há muito mais sobre esse acordo, que não convém mencionar no
momento, mas me dói saber que finalmente terei que me vincular a uma
mulher perante a lei, pelo resto da vida, apenas para validar o acordo
bilionário que meu pai fez no passado com o pai dela.
O peso da aliança já começou a doer quando eu tinha dezoito anos, no
dia em que eu soube que um dia aquela pobre criança seria minha mulher.
Coitada da menina, cheguei a sentir pena.
Hoje o sentimento é apenas de dever. É algo que tenho que fazer, e
pela honra da família e memória do meu pai, farei.
Pelo que Romero me apresentou em dossiê, a menina foi educada em
casa, na Europa. É metade brasileira e metade israelense. Seu pai foi morar
fora de Israel após a morte da esposa, assim que a filha nasceu.
Rivka Rosenberg tem vinte e cinco anos, é virgem, nunca saiu de casa
sem companhia, recebeu educação curricular e religiosa em casa, é filha
única e herdeira do império Rosemberg — a maior empresa de avanços
tecnológicos do mundo.
Pelas fotos da minha rede de segurança mundial, pude constatar que
ela se manteve bonita e bem conservada, graças a Deus.
Já não bastasse casar por obrigação. Se a mulher fosse prima do
capeta seria impossível.
— Animado para ser de uma mulher só?
Meu braço direito, Romero, entrou em meu escritório e me livrou dos
pensamentos sobre o dia que sucederia a hoje.
— Nem que meu pau fosse furta-cor, amigo — soltei, mantendo meu
olhar firme sobre os papéis na minha mesa.
Não sou muito de piadas nem brincadeiras, mas Romero é meu amigo
desde a infância. Ele conhece muito do peso da função que assumirei, e com
ele eu posso ser apenas Malcolm e esquecer o Patriarca.
— Esse é o meu amigo. — Ele abriu uma garrafa de uísque do meu
bar particular e nos serviu.
Sentou à minha frente, separando-nos apenas pela mesa de mogno
repleta de papéis e anotações.
— E como andam as negociações?
Estreitei o cenho, tentando me recordar o tema central do que Romero
queria falar. Afastei o contrato de compromisso que assinaria ao assumir o
Patriarcado e me concentrei nele. Depois de beber mais um pouco, respondi:
— Se for sobre as máfias que existem por aí, está tudo sob controle.
Meu segurança de confiança bufou.
— Não consigo entender como eles pensam que mandam em tudo.
São todos uns bostas que se acham fodões.
Sorri de viés.
— Eles não sabiam com quem estavam lidando, Romero. Os “Capos”,
ou sei lá quais nomes a mais possam ter inventado, nunca revelam à sua
organização sobre nós. Nós somos o poder oculto desse planeta. Eu imagino
que os mafiosos não se sentiriam tanto se soubessem que seu líder precisa
pedir permissão para cada merda que deseja fazer. — Levantei e fingi olhar
alguns livros da minha biblioteca, para soltar o que sei. Romero sabe que de
mim não esconde nada. — Inclusive, que desejam matar um inútil que comeu
a mulher velha daquele Russo.
— Tá. Você soube — ele soltou um suspiro, derrotado.
Direcionei meu olhar repreensivo a ele, e me aproximei da cadeira
onde ele estava sentado. Queria que aquele inútil aprendesse a lição.
— Não há nada nesse mundo que eu não saiba, Romero. Você é meu
amigo, mas não vou livrá-lo de cada buraco que decidir se enfiar. Não sou o
herói da história e acho que sabe muito bem disso.
Ele se aprumou e o percebi retesar. Medo. Muito bom.
— Da próxima peço para me entregarem seu corpo ferido para que eu
mesmo o execute.
Meu amigo sabe que não adianta argumentar comigo.
Não vai mudar em nada ele tentar explicar o que ocorreu, pois sequer
o ouvirei. A realidade é a mesma, e nada muda. Ele sabe que não podemos
nos aproximar de mulheres de mafiosos. Em hipótese alguma.
Eles possuem suas esposas como um tipo de troféu, e mesmo casando
por acordos, assim como no Patriarcado, a fidelidade é algo exigido a preço
de sangue.
Eu não queria sequer saber o que ocorreu com a mulher que foi pega
com Romero.
O dia seguinte chegou e, como tradição, minha mãe veio me acordar.
— Vamos, Mac. Hoje é seu grande dia! — cantarolou dando leves
socos na porta do meu quarto.
Convivi com minha mãe apenas até meus sete anos de idade. Depois
passei a frequentar a academia de formação e só a via aos fins de semana. Ela
sempre foi cuidadosa e boa, apesar de não conseguir me livrar dos pesadelos
que precisei enfrentar. Tinha ciência de que deveria ser uma pessoa muito
boa para aguentar meu pai e seu temperamento explosivo. Não me mantive
muito perto dela depois da adolescência para não ter influências em meu
controle de emoções.
Mas sua bondade era algo que jamais saiu da minha cabeça.
E eu a respeitava muito por isso.
Me levantei e andei lentamente até o banheiro. Nu, com a cara
inchada de cansaço e trinta e cinco anos bem aparentes nas minhas feições,
encarei-me no espelho e contemplei aquelas que seriam as últimas horas de
liberdade.
Em breve, uma aliança gigante e pesada estaria em meu anelar
esquerdo e uma mulher tola e inocente dormiria em minha cama.
Esfreguei o rosto, afastando o pesadelo da vida de casado.
Realmente era algo que jamais sonhei, nem sequer imaginei. Quem
em sã consciência sonha em casar? A individualidade é o maior presente de
cada ser humano, todos deveriam prezar por isso.
Mas as regras do Patriarcado — cujo domínio assumi recentemente
— me impediam de negar um enlace matrimonial planejado há dezessete
anos, com termos e argumentos severos e inquebráveis.
Eu teria de aturar a menina, querendo ou não. Senão era pena de
morte.
Jamais, em toda a história, um futuro Patriarca negou um casamento
que envolvia bilhões de dólares e tantos anos envolvidos e saiu vivo para
contar.

Rivka
Minha festa de casamento foi maravilhosa. Malcolm me apresentou a
todos os líderes da sociedade, a políticos, a pessoas importantes. Me senti
realmente como uma pessoa especial naquele instante.
Ele ainda não havia dirigido nenhuma frase completa me olhando
diretamente nos olhos, mas eu cria que era devido à correria da festa e à
quantidade de pessoas que deveríamos cumprimentar.
Num dado momento, ele me liberou e eu retornei à mesa dos noivos,
onde meu pai estava conversando com a mãe de Malcolm.
— Ah, minha linda! Que linda minha nora! — Adélia, minha sogra,
levantou e veio me abraçar antes que eu me sentasse.
Meus sentimentos estavam ainda um pouco conturbados, pois eu não
conhecia ninguém. Meu pai era a única pessoa familiar no meio daquele
reboliço e, também, com quem eu poderia contar. Nem Dora foi autorizada a
festejar comigo.
— Obrigada. — Abaixei a cabeça, um pouco tímida.
Ela, porém, tocou meu queixo e elevou meu rosto.
— Rivka, você agora é uma Samuels. Seu rosto jamais, em hipótese
alguma, pode andar cabisbaixo. O mantenha assim, elevado.
Assenti, absorvendo o conselho de ouro, achando que a mulher estava
se referindo apenas ao fato de eu carregar o sobrenome de sua família.
Mal sabia eu que, nas piores situações, deveria manter a cabeça
erguida também.

Meu pai trocou poucas palavras comigo. Eu entendia que ele não
podia demonstrar muita emoção perante as pessoas ao redor, um dia ele
chegou a me contar algo parecido, então compreendi seu afastamento antes
da festa encerrar.
Malcolm não me chamou novamente, mas o vi andando pela festa
cumprimentando as pessoas sempre com a mesma feição congelada e
imparcial, como se não conseguisse expressar emoções ou sentimentos.
Era a mesma face para tudo.
Por fim, as pessoas foram embora aos poucos e logo avistei Malcolm
e um homem que aparentava ter a mesma faixa etária dele, se aproximando.
— A festa acabou — ele disse para mim, mas logo virou o rosto na
direção do homem que o acompanhava. — Romero, leve-a, por favor.
Sem dizer mais nada, se virou e foi andando para fora.
Me senti como se não fosse absolutamente nada. Um enfeite no meio
daquela ornamentação gigante e espetacular. Sabia que estava ali para
cumprir um acordo, mas custava alguma coisa o homem ao menos ser gentil?
Imediatamente, meus olhos começaram a arder, mas contive a vontade de
chorar de raiva daquele ser humano congelado.
— Vamos?
O outro homem, que agora eu sabia que se chamava Romero,
estendeu a mão na minha direção e sorriu, simpático.
Ao menos alguma pessoa sabia sorrir naquele lugar.
— Sim. Obrigada.
Dei minha mão a ele e fui guiada para a limusine que me aguardava
na rua sob o céu nublado daquela tarde. Antes de entrar, ousei deixar minha
curiosidade falar alto.
— Para onde vamos? Quem é você e por que meu marido não vai
comigo?
Romero, que estava com a mão na maçaneta da porta, prestes a abri-la
para que eu entrasse, conteve uma risada e murmurou:
— Malcolm tá mesmo fodido.
— O que disse? — perguntei, pois não estava acreditando no que
havia entendido.
Ele abanou a cabeça e tentou ficar sério.
— Nada, senhora Samuels. Eu pensei alto. — Abriu a porta e
sinalizou com a mão para que eu entrasse, e assim o fiz. — Então quer dizer
que a senhora é curiosa?
Perguntou antes de fechar a porta.
Enquanto ele dava a volta para entrar no local do motorista, eu decidia
se respondia ou não. Havia passado horas sem falar com ninguém, apenas
respondendo cumprimentos e não sabia absolutamente de nada sobre minha
nova vida, além do que havia lido no papel. Nem onde eu moraria me
contaram.
— Sim. Sou curiosa. Poderia responder minhas perguntas?
Ele sorriu de novo e ligou o carro, seguindo para onde deveria me
levar.
.
Rivka
Durante o caminho até a casa onde eu moraria com Malcolm, tive
uma conversa com Romero que me agradou muito.
Ele foi bem claro com muitas coisas que eu não compreendia e me
ajudou a entender melhor quem Malcolm é. Parecia uma pessoa confiável.
— Primeiro, meu nome é Romero, como deve ter ouvido por aí, e
Malcolm e eu somos amigos desde a infância. Eu não fui criado na
organização, mas Malcolm tratou de me inserir como seu segurança pessoal,
pois somos amigos demais e ele precisava de alguém de confiança ao lado.
Estou falando tudo isso para que confie em mim. Provavelmente farei sua
segurança também daqui para frente, então me verá muitas vezes.
Fiquei olhando o trajeto pela janela enquanto ouvia Romero falar. Ele,
ao contrário de Malcolm, mostrou-se gentil e alegre, um bom homem para ser
meu segurança. Precisava de pessoas que fossem assim ao meu lado, não uma
parede de concreto como meu marido. Mudo e impenetrável.
— Estou te levando para sua nova casa. Lá você pegará suas malas
para a viagem de lua de mel que fará com Malcolm.
Isso me despertou o interesse.
— Teremos lua de mel? Achei que nosso casamento era limitado ao
arranjo, não precisava de tudo isso.
Fitei-o pelo retrovisor.
— Teve festa de casamento, terá lua de mel. Para qualquer outra
pessoa fora da cúpula do Patriarcado, é um casamento como todos os
casamentos. Sei que vocês mal se conhecem, mas com o tempo podem se
tornar bons amigos e até cúmplices. Há fatos de casamentos na organização
que os parceiros se dão muito bem com o passar dos anos.
Como?
E o amor, onde fica?
Ele não mencionou a palavra “amor”, nem a expressão “se
apaixonar”. O que há na cabeça dessas pessoas?
— Hã... Sei. — Me limitei a respostas vagas enquanto somente ouvia.
Dora vez ou outra exaltava minha inteligência e a forma sagaz de
como eu descobria as coisas que queria, somente juntando peças no ar.
Percebi que deveria usar esse método a partir do dia em que casei, pois havia
muito que eu não sabia e precisava descobrir.
Essa tal “organização” da qual meu pai faz parte e eu fui uma moeda
no acordo entre ele e a família de Malcolm, é algo que eu ainda não soube
decifrar. Nunca, em todos os meus vinte e cinco anos, pesquei algum furo ou
conversa de papai sobre isso. Havia descoberto há pouco tempo que a
organização se chamava Patriarcado, e apenas sei que se limita a um grupo de
pessoas que regem o mundo.
Romero desatou a falar inúmeras coisas sobre ser uma Samuels, sobre
como aguentar Malcolm sem perder a cabeça e sobre como eu deveria me
portar a partir de agora. Itens que eu ignorei, assimilando somente o
essencial, porque a pergunta que eu fiz antes de entrarmos no carro ainda
martelava em minha cabeça:
Por que meu marido não está indo comigo?
— Desculpe interromper, mas Malcolm já está em casa? Por que não
viemos juntos nessa limusine?
Romero devolveu o olhar que eu havia lançado pelo retrovisor e deu
de ombros antes de se concentrar novamente na pista.
— Logo você vai entender que ele é... peculiar. — Deu uma pausa, e
assim que percebeu que eu abriria a boca para continuar indagando,
prosseguiu: — Nem tudo que Malcolm faz tem um porquê. Não
questionamos o que ele decide. Se ele quis ir antes sem você, é porque ele
quis e ponto. Meu conselho é: evite questionamentos desnecessários com ele.
Um calafrio percorreu minha espinha e alcançou minha nuca, me
deixando desconfortável com a resposta que recebi.
Lá dentro do meu peito, a recordação da menina que presenciou o
garoto dos olhos congelantes a amedrontando somente com o olhar, gritou
alto.
Pressentia que talvez ele pudesse causar medo em mim, mas a mulher
corajosa que habita em mim me impediu de ouvir tais pensamentos por tanto
tempo.
Eu não tinha experiência de vida, nunca lidei com homem algum, a
não ser meu pai, mas isso não dá o direito de ninguém me amedrontar.
Eu sabia argumentar quando queria me defender.

Minha mais nova casa era enorme e tinha três andares. Não deu tempo
de conhecer tudo, pois minhas coisas estavam ainda no quarto de hóspedes do
primeiro andar. Somente na volta da lua de mel, conheceria de fato meu novo
lar.
Já de malas prontas, aguardando somente meu esposo dar o ar da
graça, me mantive andando pela sala, inquieta, sem saber muito o que fazer,
então decidi ir até a cozinha.
Naquela cozinha maravilhosa, toda em inox com ilha central e
acabamento de primeira qualidade, me vi no paraíso. Sempre amei cozinhar,
e torcia demais para que eu conseguisse me adaptar àquele novo ambiente.
De pé e uniformizada, estava uma senhora bem baixinha — mais do
que eu, até —, lavando louças. Seus cabelos eram grisalhos e mantinham-se
sob uma touca feita especialmente para o traje que vestia.
— Com licença. — Me sentei em uma banqueta, apoiando os braços
sobre a ilha no centro da cozinha.
Torci para que ela também falasse português, pois era uma das
línguas em comum que Malcolm e eu tínhamos devido à nossa nacionalidade
dupla.
A mulher desligou a torneira, enxugou as mãos e se virou na minha
direção.
— Qual a sua graça? – perguntou sorridente.
Um sorriso lindo, capaz de iluminar ambientes. Por reflexo, sorri
também.
— Sou Rivka, a esposa de Malcolm. Estou aqui admirando essa
cozinha dos sonhos e te vi. Como se chama?
Ela continuou organizando as louças recém-lavadas na cozinha
enquanto me respondia.
— Sou Linda. A governanta barra faz-tudo nessa casa. — Deu uma
risadinha. — Patrão não gosta de muitos empregados, então fazemos mais de
uma função por aqui.
Eu começaria minha sessão de perguntas curiosas, se não fosse a
chegada de alguém no recinto.
— O que faz na cozinha? — A voz dele perfurou minhas costas. Era
firme demais, como se estivesse dando bronca em alguém vinte e quatro
horas por dia.
Me virei e dei de cara com meu marido na porta. Ele não parecia mais
aquela muralha humana do casamento, vestia algo mais descontraído. Uma
bermuda cargo e uma camiseta preta. O cabelo ruivo, quase loiro, estava
penteado para trás e, bloqueando a visão dos olhos de gelo, os óculos de sol
preenchiam o rosto dele, dividindo a glória somente com sua barba cheia que
mal me permitia ver seus lábios.
Será que aquilo era a sombra de um curto sorriso?
Percebi que o olhava demais no instante que meu marido cruzou os
braços tatuados, esperando minha resposta.
— Ah! É... Eu gosto de cozinhas, e como estava há muito tempo
esperando...
Ele estendeu a palma da mão, dando o sinal para que eu parasse de
falar.
Mas... O quê?
— Entendi. — Focou em Linda e continuou a dizer. — Linda, estarei
fora por três dias. Mantenha tudo sob controle nessa casa. Qualquer urgência,
não tarde em me ligar. No meu retorno gostaria de comer aquele prato. Volto
na hora do jantar.
Fiquei ali no meio, me sentindo constrangida por ter me calado
mediante a somente um gesto do homem, enquanto ele me ignorava e seguia
falando com Linda.
— Sim, patrão. A menina também vai?
Eu ainda estava sentada, só vendo a interação deles. Malcolm já tinha
dado as costas e caminhava rumo à sala.
Uma aflição estranha tomou conta do meu peito, não estava
acostumada a ser tratada daquela forma.
Será que era mania dele, deixar as pessoas falando sozinhas ou cortá-
las no meio de suas frases?
Não deu tempo para refletir, pois Malcolm virou de novo e disse na
sua voz de trovão:
— Ela vem. — Levantou os óculos até a cabeça e fixou seus olhos em
mim. — Venha.
Me levantei e me despedi de Linda com um aceno gentil, caminhando
em seguida até onde meu marido estava.
Nossa viagem foi como esperei: silenciosa.
Ele nada disse durante o trajeto, muito menos eu.
Passei os longos minutos apenas relembrando cada letra composta
naquele contrato de ciência que assinei antes de casar. Mal havia dito sim e já
queria desistir. Então pensei em meu pai e em todo o sacrifício que fez desde
que eu era pequena.
A empresa não era tão requisitada na época que ele firmou o acordo
com o pai de Malcolm. Eu tinha total ciência de que esse “Patriarcado”
investiu pesado para que a empresa de meu pai fosse o que é hoje, e por isso
eu estava ali, solidificando a aliança, abrindo mão de tudo que eu herdaria por
conta do meu pai.
Moramos atualmente em Londres, bem no coração da Inglaterra.
Sempre amei esse país, apesar de não ser inglesa, mas imaginei que na minha
lua de mel talvez viajássemos para outro país.
No entanto, Malcolm decidiu que iríamos para o litoral da Inglaterra.
Viajamos até St Austell, uma localidade na região da Cornualha. Foram
aproximadamente quatro horas de viagem até conseguirmos chegar ao hotel
onde tínhamos nossas reservas.
Eu já conhecia o lugar por fotos e pesquisas sobre as melhores praias
do país. Confesso que sempre desejei visitar o distrito de St Austell, mas
realmente estar ali na minha viagem pós-casamento foi uma surpresa.
— Chegamos — disse ele, enfim, após mais de quatro horas em
silêncio.
Eu adormeci, obviamente, cansada de tanto pensar. Não esperaria que
meu marido engatasse uma conversa comigo sem nenhuma motivação, mas
em pelo menos uma hora da viagem, eu estive acordada e ansiando ao menos
por uma orientação sobre onde iríamos.
Quando acompanhei as placas e percebi em qual lugar estávamos
chegando, fiquei mais calma, e no instante em que ele estacionou e disse
“chegamos”, notei a “empolgação” que ele estava com tudo aquilo.
E isso me esmoreceu um pouco.
— Aqui é St Austell? — perguntei antes de sair do carro com minha
bolsa de ombro.
Ele assentiu e saímos, deixando as bagagens a cargo do serviço de
hotel.
Malcolm foi ágil, firme e imponente em todas as suas ações. Desde a
entrada no hall do hotel, até a forma com que agiu com as recepcionistas,
mostrando que ele tinha tudo sempre sob controle.
— Apenas procure por Samuels em seus registros — ordenou à
recepcionista.
Eu fiquei ao lado, só observando como ele agia e tentando me mostrar
à altura para que fosse ao menos digna do título de senhora Samuels para
quem visse.
Mas estava falhando miseravelmente.
— E a moça, precisa de um quarto também? — a recepcionista
perguntou e em seguida me olhou de cima a baixo.
Não estava em maltrapilhos. Apenas minha cara de sono com os
cabelos um tanto desgrenhados pela viagem poderia ter dado alguma falsa
impressão à atendente.
No momento em que eu abriria minha boca para explicar
educadamente o fato de eu ser esposa e não uma pessoa aleatória, Malcolm
colocou o punho fechado sobre o balcão e aproximou o rosto da
recepcionista, a intimidando.
— Tenho uma péssima notícia para a senhorita. Depois do que acabou
de fazer, está demitida. Falarei com seu superior amanhã pela manhã, pois já
é tarde da noite.
— Hã? Ma-mas eu só-só...
— Somente verifique a maldita reserva, em voz alta. — Seus olhos
congelantes estavam fixos nos olhos da moça.
— S-sim. — Ela abaixou o olhar para a tela e leu: — Senhor Malcolm
B. Samuels e senhora Rivka V. R. Samuels. Oh...
A moça tapou a boca e me olhou espantada. Acho que entendeu
finalmente que se tratava de um casal. Mas não poderia jamais julgá-la. Olha
a forma como meu marido trata a própria esposa?
Quem em sã consciência acharia que somos um casal recém-casado?
Imediatamente ela finalizou o check-in e liberou nossa chave para o
quarto em questão.
Seguimos para nosso andar em silêncio, como se nada tivesse
ocorrido. Enquanto eu digeria a atitude dele, o seguia.
Chegamos no quarto e nossa bagagem já esperava em nossa porta.
Não precisei mover um dedo, pois Malcolm levou tudo para dentro e
posicionou perto do armário. Entrei e fechei a porta, em seguida olhei ao
redor e admirei aquele quarto luxuoso de hotel. Certamente estávamos no
melhor hotel da cidade.
Tudo para mim era novidade, pois jamais fiquei hospedada em hotéis.
Sempre que meu pai me levava a algum lugar, era para negócios, ou então
alugávamos uma casa com empregados para que ficássemos num ambiente
mais familiar.
Aquele cômodo enorme era mais que somente um quarto, tinha tudo
para o pleno funcionamento de uma casa completa, exceto cozinha. O
acabamento das paredes era em tons pastéis e no chão jazia uma madeira
muito valiosa, envernizada. Seu brilho era surreal. Quando meu olhar parou
de vaguear pelo local e encontrou meu marido se despindo andando em
direção ao banheiro, de imediato fechei os olhos e depois os abri devagar até
que a imagem dele com suas diversas tatuagens nas costas tivesse sumido de
minhas vistas.
Bufei irritada, pois percebi que ele simplesmente agiu de forma
indiferente à minha presença. Como posso tentar me aproximar dele?
O que posso fazer para que ao menos sejamos amigos, como Romero
comentou?
Me sentei à beira da cama e comecei a pensar enquanto ele não
aparecia novamente, então a frase de Romero falou alto, lembrando o fato de
eu ser curiosa.
Naquele exato momento, eu tive uma ideia.
Malcolm
Se já não bastasse ter de me casar, ainda preciso lidar com uma
mulher que mais parece uma estátua.
A menina é quieta, sem atitude, simplória demais e — aparentemente
falando — não muito atraente.
Sua beleza é comum. Rivka é bonita, não posso ignorar o fato, mas
não passa do comum. Pele parda, cabelos negros ondulados até um pouco
abaixo dos ombros e corpo magro, sem muitas curvas.
Não estou acostumado com mulheres tão simplórias do lado. Jamais
transei com alguém que não tinha uma carne na bunda para apertar.
Era insano pensar nessas coisas com ela do lado de fora do banheiro
onde eu estava tomando banho.
Mais insano ainda era não me preocupar tanto com os problemas da
organização, que estão pesando em minhas costas. Já tinha dado uma
averiguada em tudo que faria antes mesmo de assumir o posto, desde que
meu pai morreu, há três meses. O Patriarcado não pode sair do meu controle,
lá há pessoas dispostas a tudo para assumir o meu lugar e em hipótese alguma
permitiria que invalidassem tudo que passei a vida inteira para cumprir o meu
dever. No entanto, decidi ouvir o conselho de Romero e esses dias de lua de
mel serão para espairecer minha cabeça conturbada.
Assim que saí do banheiro, já de banho tomado, apenas enrolado
numa toalha, encarei Rivka, que estava sentada no meio da cama, imóvel,
olhando para mim.
Coitada, nunca deve ter visto um homem gostoso como eu na vida.
— Pode dormir — cansado, orientei.
Se a menina esperava que eu a faria minha naquele dia, estava
enganada. Não sou a droga de um adolescente movido por hormônios, tenho
controle.
Me virei e já estava a caminho da sala quando sua voz me fez parar.
— Hã, eu...
Tornei a olhá-la e cruzei os braços, já sem paciência — não que eu a
possua, na verdade.
— Garota, é o seguinte. Estou ansioso para relaxar minha mente e
corpo. Preciso dormir. Amanhã dou um trato em sua carência. Fique com a
cama, estou no sofá.
— Eu quero só que me responda algumas coisas.
O quê?
O dia tinha sido um lixo, meu humor já nem existia mais e ela ainda
queria que eu respondesse perguntas?
Era minha esposa ou uma repórter?
— Não entendo que perguntas quer que eu responda. Amanhã nos
falamos.
Novamente me virei, mas ela foi insistente, me fazendo notá-la mais
uma vez ao me encher de questionamentos.
— Por que não nos falamos direito? Por que não foi comigo do
casamento para nossa casa? Por que age assim, se agora somos casados? Não
foi assim que imaginei viver com meu marido, independente de quem fosse.
Sua voz continha certa revolta, como se realmente imaginasse por
longos anos uma vida de casada. Claro que isso é bobagem, ninguém pensa
nisso.
Essa garota provavelmente deveria ser uma boa atriz, para elaborar
essa cena toda e me fazer revelar tudo sobre a organização.
Azar o seu, linguaruda, eu não confio nem em minha própria sombra.
— Se pensa que pode simplesmente chegar hoje em minha vida
exigindo respostas de coisas que não te dizem respeito, está enganada, garota
falante. Achei que era calada, mas me enganei. — Elevei um pouco o tom
para amedrontá-la. — Não me questione nada de minha vida ou de minhas
decisões.
Eu precisava fazê-la se situar em seu lugar.

Rivka
— É meu direito saber mais da sua vida. Vamos conviver sabe-se lá
quanto tempo juntos!
Ele estava irado. Dava para ver pela forma como sugava o ar de forma
pesada aos pulmões. Tentava se controlar, apesar de externar certo controle.
Não sei se ele é do tipo que agride mulheres e, sinceramente, falhei
em provocá-lo sem nem pensar nessa possibilidade. Mas no instante em que
suas mãos foram simultaneamente ao seu rosto, respirei aliviada.
Malcolm soltou o ar enquanto esfregava as mãos da testa até o queixo,
encarando o teto. Em seguida, me encarou de uma forma letal.
— Olha, entenda uma só coisa, garota: o que temos é um papel
assinado. Isso não te dá direito a nada além de meu nome, minha imagem e
um sexo mais ou menos nas noites que estiver carente. Fora isso, seja apenas
a esposa insossa e calada que estava sendo até minutos atrás.
Aquilo causou uma ardência no centro do meu peito. Foi tão profundo
que o acalentei, levando minha mão até lá.
Senti meus olhos arderem, num prelúdio de que lágrimas viriam.
Nunca fui tratada desse jeito por ninguém. Por que meu pai me sujeitou a
esse casamento?
Engoli o choro e em segundos decidi continuar com minha
insistência, podia revogar o contrato de casamento, mas eu quebraria a
empresa do meu pai. No meu íntimo, aceitei o desafio que estava à minha
frente. Eu o faria ceder, nem que fosse aos poucos.
Tijolo por tijolo.
— Você não me conhece, Malcolm.
Levantei da cama e dei alguns passos até estarmos frente a frente.
— Eu vou ter as respostas que desejo, cedo ou tarde. Posso sim ser a
esposa que você pediu, na frente dos demais, mas saiba que a Rivka é bem
mais que isso. Muito mais.
Ele não se abalou com minha postura de falsa autoritária. Saiu da
minha frente, ignorando-me por completo, pegou um travesseiro no armário e
um lençol e andou até o sofá que tinha na sala daquele "quarto" gigante.
— O que você queria, quando começou a abrir a boca? — A voz dele,
um pouco distante, ecoou.
Eu estava imóvel, apenas acompanhando a cena. Parada no meio do
quarto, escutando a voz de Malcolm estremecer toda a minha mente, com
perguntas idiotas.
Decidi ser sincera.
— Eu só queria que me notasse.
Abaixei a cabeça, ciente de que ele não podia me ver, então virei e
andei até a cama, me jogando nela em seguida.
Alguns segundos longos de silêncio reinaram entre nós até sua voz me
fazer abrir os olhos já fechados, num susto.
— Parabéns. Conseguiu.
Era ele, na porta do quarto. Fechei os olhos novamente, então escutei
a porta ser trancada.
Precisava orar pedindo a Adonai que me desse muita sabedoria.
Esse homem certamente tiraria minha paz.
Amanheceu, mas eu mal dormi durante a noite.
Aparentemente, Malcolm desistiu de dormir na sala e dormiu ao meu
lado na cama, virado ao contrário. Eu não quis pensar na sua proximidade
com meu corpo, mas esperei um tempo antes de ir ao banheiro e tomar meu
banho para dormir definitivamente.
Era estranho ser casada com um homem que não quer você por perto,
que te chama de garota falante e deseja que você seja calada e insossa.
Assim que acordei, fiz minhas orações e percebi que Malcolm já não
estava no quarto. Decidi que me programaria para curtir a viagem com ou
sem ele e me troquei, colocando um biquíni que levei para tomar banho de
praia, junto com uma saída de praia linda e branquinha que ganhei de Dora.
Depois de tudo que precisava fazer, saí do quarto e desci rumo ao
restaurante do hotel. Ainda era cedo, precisava aproveitar o café da manhã.
Chegando lá, foi inevitável notar meu marido já se alimentando em
uma mesa aleatória, sem mim. Esse homem, além de sem coração, ainda era
sem consideração.
Ali, em público, agi da forma como ele queria e não dirigi uma só
palavra a ele, mas notei quando seus olhos repararam no modo como eu
estava vestida.
Ponto para mim.
Depois de comermos em silêncio, me levantei antes dele e segui de
cabeça erguida até o hall do hotel.
Lá eu estava com pose de madame, óculos escuros e chapéu na cabeça
para me proteger do sol com nuvens que fazia lá fora, apenas aguardando
algum táxi próximo à recepção, quando senti um aperto forte em meu braço.
— Aonde pensa que vai? — Pude sentir seu corpo colado nas minhas
costas e seu hálito resvalando em minha orelha.
— À praia.
Respondi sem me virar para olhá-lo. Não queria me sentir congelada
por seu olhar frio e intimidante.
— Já entendi seu jogo, linguaruda. Se pensa que me importo com o
que fará da sua vida, se engana. Vá para sua praia, mas chegue antes do
almoço. Lembre-se de que o seu compromisso nessa maldita viagem é
comigo.
Fechei os olhos e aspirei suas palavras como se fossem aromáticas.
E aquilo não me cheirava nada bem.
Lembrei de todos os ensinamentos que tive sobre a obediência e
submissão que devia ao meu esposo. Não queria me sujar com Elohim por
conta de um homem frio sem coração.
— Antes do almoço estarei aqui.
Então seu aperto em meu braço se soltou.
— Bom.
E logo o percebi se afastar com sua presença pesada, me fazendo
sentir novamente a leveza do ambiente ao meu redor.
Eu curtiria minha lua de mel, mesmo sem meu marido ao lado.
Malcolm
— Siga-a. Não a perca de vista — ordenei ao meu segurança
particular da viagem.
Quando Rivka desatou a falar antes da hora em que eu iria dormir,
percebi algo nítido em sua fala: interesse.
Ela tinha algum interesse implícito em mim, e me restava investigar
para saber qual seria. Sou desconfiado demais, e me enganei quando pensei
que ela seria uma mulher tão fácil de lidar. Quem em sã consciência me
desafiaria na noite de núpcias?

Eu vou ter as respostas que desejo, cedo ou tarde. Posso sim ser a
esposa que você pediu, na frente dos demais, mas saiba que a Rivka é bem
mais que isso. Muito mais.
A frase que ela me disse martelou minha cabeça a noite inteira. E é
como sempre digo: melhor dormir ao lado dos inimigos, do que ser atingido à
distância.
Desisti de dormir na sala, pois algo nela me intrigou. Aguardei por
qualquer tipo de reação durante a noite, mas ela apenas dormiu pesadamente
até amanhecer.
Ainda estou em alerta e, mesmo não tendo atração alguma por essa
menina, a farei minha nessa noite. Rivka precisa entender que deve estar ao
meu lado e não contra mim. Não preciso me satisfazer sexualmente para
preencher meu ego. Aprendi com a vida que o autocontrole pode ser a
ferramenta mais poderosa para manter a sanidade.
Ela foi para a praia, mas meu segurança a seguiu para que nada
fugisse ao meu controle. Romero não veio, pois sabe que não gosto que
participe tão ativamente da minha intimidade, e essa coisa de lua de mel era
um banquete para suas piadinhas e provocações. Quem veio para escoltar-me
são Philip e Roussel, ambos ingleses bem treinados pelo Patriarcado.
O dia estava ensolarado, com as típicas nuvens que jamais abandonam
o céu inglês. Resolvi adiantar algumas negociações em meu laptop, já que
dias de sol não me enchem os olhos. Estaria me apresentando ao conselho de
sócios no retorno da lua de mel, e colocaria em ordem cada função dentro da
organização. Somos o poder acima de tudo e todos, comandamos máfias,
FBI, CIA, Forças Armadas e a política. Sabia que teria muito trabalho pela
frente.
Apesar de estar com minha mente focada em meu dever, precisava
também descansar um pouco. Praia era algo que não curtia muito, mas não
pensei em outro local para passar esses dias, senão onde estou.
— Por favor, poderia falar com o gerente do hotel? — pedi à
recepcionista de plantão.
Não tinha esquecido o vexame que passei na noite anterior. Ninguém
jamais pode desdenhar de um Samuels, seja ele quem for. Com certeza faria a
recepcionista pagar caro pelo modo como me tratou, e depois continuou
tratando Rivka.
“Há negócios pendentes de sua aprovação em seu escritório central.
Precisamos saber com exatidão o horário em que estará retornando da viagem
com sua esposa, para que possamos informar aos responsáveis o tempo que
podem aguardar.”

Esse foi um trecho de um dos e-mails que recebi naquele dia. O


secretário, Louis, fazia toda a triagem do que era mais importante e cuidava
dos e-mails mais sigilosos da organização. Não. Eu não confio nele. Mas ele
me conhece bem e sabe que andar um centímetro que seja fora da faixa
poderia destruir sua vida e de toda a sua família com apenas um estalar de
dedos.

Meu pai foi um Patriarca muito severo, porém, não tão inteligente.
Muitas das vezes eu via que seus negócios não eram tão benéficos assim para
nós, mas não conseguia entender o porquê.
Quando voltar da viagem porei tudo em seu devido lugar, ajustando o
que resta, para que enfim possa comandar o Patriarcado sem pendências.

Respondi o e-mail mencionado avisando dia e hora em que Rivka e eu


retornaríamos para casa. Quando foi onze e quarenta da manhã, a porta do
quarto foi aberta.
‫כמה גדול אלוהים שלי‬
‫אני אשיר כמה גדול אלוהים שלי‬
‫וכולם יראו כמה גדול אלוהי‬
‫בפאר מלך‬
‫בהדר ואור‬
‫ לגרום לאדמה לשמוח‬,‫לגרום לאדמה לשמו ח‬

(Quão grande é o meu Deus


Vou cantar quão grande é o meu Deus
E todos verão como Deus é grande
Em resplendor glorioso
Com Majestade e luz
Faça a terra se alegrar, faça a terra se alegrar...)

Rivka cantava uma canção em sua língua natal, o hebraico. Ela não
havia me visto ainda, pois foi direto para o banheiro ao lado do quarto. Eu
estava na mesinha de escritório ao lado da cama, só escutando enquanto ela
cantarolava.
De fato, era uma garota ingênua e inocente. Seu despreparo era
notório e eu pensava seriamente no fato dela realmente estar ciente ou não
sobre onde está metida. Se soubesse onde estava envolvida, não cantaria nem
expressaria tanta alegria assim.

Me temeria.
Temeria o que pode acontecer com ela no meio de tantas pessoas
cruéis como eu.

Rivka
‫ ֶמֶל ָהעוָֹלם‬,ּ ‫ֵהינו‬ - ֱ ‫ה' א‬ ‫ָבּרוּ ַאָתּה‬

(Bendito és tu, Deus, Rei do Universo.)

Quando pisei na areia da praia e avistei o horizonte, me ajoelhei em


prantos, por ser tão falha com Adonai, meu Deus.
Sempre fui temente a Deus, recebi uma educação religiosa judaica,
mesmo não sendo uma praticante tão ativa atualmente. Por ter mãe brasileira,
sempre me mantive perto dos costumes daquela terra tão diversificada, me
permitindo ponderar bem sobre onde me limitaria pela religião. Quando
contemplei aquela praia maravilhosa, só pude agradecer a meu Elohim pela
oportunidade de estar ali. Como a criação é linda! Como são belos os grãos
de areia que salpicam nossos pés ao caminhar rumo ao mar!
Estava maravilhada, fazia anos que não ia a uma praia e, mesmo não
sabendo nadar, amava ficar à beira do mar me refrescando. Esqueci até do
rancor que guardei de meu marido, por ter sido tão duro comigo desde o
momento do “sim”. Minha missão era quebrar aquele muro tijolo a tijolo, e
eu não podia desistir assim tão fácil. Sempre compreendi que o casamento é
um elo eterno criado por Deus, onde um luta pelo outro e ambos por fim são
felizes.
Eu creio que Malcolm vai gostar de mim um dia.
Não sei quando, nem como, mas vai gostar.

O almoço no hotel começava ao meio-dia. Quando deu onze e meia,


retornei a fim de tomar um banho para o almoço.
Voltei ao hotel com uma canção linda em mente e comecei a
cantarolar baixo a sua letra. Quando cheguei no quarto de hotel e notei que
ninguém estava lá, pelo silêncio, aumentei o volume de minha voz e cantei
ainda mais.
Tinha renovado minhas forças, lavado minha alma, ninguém me faria
mal.
Assim que terminei meu banho, percebi que não tinha buscado
calcinha e roupa para vestir, então apenas me enrolei na toalha e saí do
cômodo rumo ao quarto.
— Veja se não é minha querida esposa!
Eu estava caminhando com os olhos baixos, quando ouvi a voz de
trovão de Malcolm, me fazendo saltar em susto e quase largar a toalha. Sorte
que meus reflexos foram ágeis e consegui firmá-la em meu corpo
rapidamente.
Ele estava sentado no meio da cama, com os braços cruzados e o
olhar sarcástico em direção a mim. Em meio àquela barba, pude notar um
curto sorriso de canto.
— Pediu para que eu voltasse antes do almoço — foi a única coisa
que eu falei.
Ele assentiu e depois soltou os braços e estendeu a mão para mim, me
fazendo um convite a me aproximar.
Dei alguns passos e parei na frente dele, corando da cabeça aos pés
pelo fato de estar nua debaixo daquela toalha. Não imaginei que ele me veria
nua assim, tão de repente. Claro que não sou tola, eu sei o que maridos e
esposas fazem após o casamento, mesmo sem nunca ter experimentado.
Mas eu pensei que seria à noite, na cama, com calma...
Não assim, em plena luz do dia.
As pessoas fazem essas coisas de dia?
Pode ser só coisa da minha cabeça, talvez ele só queira falar algo e
poupe meu momento constrangedor. Pode ser que queira saber o que eu gosto
de comer, talvez.
— Por que está tão vermelha? O sol não está tão quente assim lá fora.
Ele indagou com verdadeira curiosidade. Ficou olhando meu rosto de
forma analítica e depois tornou a perguntar:
— Diga. O que houve? Foi o sol?
Estranhei seu interesse repentino pelo meu bem-estar, mas tratei de
negar com a cabeça rapidamente e expliquei:
— Não! A praia estava ótima, com certeza, mas é que você me
assustou e eu nunca fiquei assim... — Deixei a frase morrer.
Era estranho falar de coisas íntimas com alguém que já tinha se
mostrado frio para tudo. Provavelmente ele reagiria com um “ah, você é
virgem. Ok, vamos almoçar”.
— Prossiga. — Cruzou os braços e estreitou o cenho, frio como
sempre.
Pai do céu, me dê paciência e forças.
Troquei os pesos dos pés, nervosa, e ainda segurando firme minha
toalha, respirei fundo e tirei coragem do mesmo lugar de quando eu o
enfrentei ontem.
— NUA! Nunca fiquei assim, nua, na frente de um homem, okay?
Agora pode continuar com suas afirmações frias e metódicas sobre isso e
depois vamos almoçar, pois estou com fome.
Emburrei a cara involuntariamente. Ele, porém, descruzou os braços e
simplesmente esticou um deles até minha toalha, pegando para si, me
deixando literalmente nua.
— Ei! — Tampei as partes íntimas com minhas mãos. — O que está
fazendo?
Ele levantou e deixou a toalha sobre uma cadeira qualquer no quarto,
sem expressar absolutamente nada em seu rosto ou ações. O homem
dominava a linguagem corporal, não era possível.
Eu aproveitei seu afastamento e me sentei na cama, ainda com as
mãos sobre minha intimidade e meus seios, tentando poupar-me da vergonha
que estava passando ali.
Ele voltou e parou na minha frente.
Seu rosto se aproximou do meu, fazendo com que ele abaixasse um
pouco, já que eu estava sentada e ele de pé.
Quando seu nariz quase tocou o meu devido à proximidade, ele falou
em sussurro:
— Você é minha. Não quero que tenha vergonha disso.
Sua voz reverberou em minha mente de uma forma intensa e louca,
como se quisesse ficar gravada em minha memória. Depois ele simplesmente
tirou minhas mãos de onde estavam, me deixando cem por cento desnuda à
sua frente.
Malcolm desceu os olhos por meu corpo e eu tremi dos pés à cabeça
mediante aquele olhar. Estava um pouco em choque para reagir, mas não
sentia medo.
Era uma sensação estranha, diferente.
Depois dele me “avaliar”, virou as costas e disse:
— Vamos almoçar.
O quê?
Após ter me constrangido, demonstrado sua possessão em palavras e
me feito esperar por alguma coisa boa, saiu, me deixando sozinha para lidar
com tudo o que havia ocorrido naqueles curtos, porém intensos, minutos.
O que mais poderia me surpreender?
Rivka
— Minha filha, você foi escolhida para uma missão muito importante
em sua vida. Sei que pode parecer loucura, mas é mais importante do que
parece. Você é a peça fundamental para tudo aquilo que papai construiu até
hoje. Minha princesa preciosa. Minha herdeira.

A voz do meu pai, do momento em que eu tinha só oito anos, ecoou


em minha cabeça.
Estava em frente ao espelho do banheiro, penteando meus cachos
negros, tentando compreender o que ele queria dizer com “mais importante
do que parece”.
Será que meu casamento era algo como uma desculpa inicial para
uma coisa maior a seguir?
Havia muitas coisas pelas quais minha curiosidade estava mais
aguçada. Eu teria que encontrar as respostas, nem que demorasse anos.
Não compreendia o fato de entrar num casamento de conveniência
com uma pessoa tão amargurada, tão sem sentimentos. O que Malcolm havia
feito minutos atrás foi tão vil que só de lembrar minha garganta fechou,
ansiando que meus olhos despejassem lágrimas.
Sabia que devia me submeter às ordens dele e não podia traí-lo
jamais, mas não fui avisada do tratamento desagradável a qual seria
submetida.
Lá no fundo a vontade de odiá-lo começava a crescer, mas eu me
lembrava dos ensinamentos do livro sagrado. Eu deveria honrá-lo como meu
marido, mesmo que ele não merecesse. Precisava conquistar sua confiança,
precisava ser perseverante.
Me encarei no espelho já pronta e suspirei ao constatar uma Rivka
totalmente diferente com apenas um dia de casada.
Eu já não era a mesma menina que saiu de casa para constituir uma
família.

Temia quem poderia me tornar após anos ao lado desse homem.


Nosso almoço foi todo em silêncio, assim como tem sido tudo desde
que chegamos naquele lugar, mas com um pequeno diferencial: eu estava
começando a sentir aquela ausência de esperança, como se nada do que eu
fizesse ali e fora dali fosse fazer meu marido começar a me olhar com olhos
gentis. Porque ele não é gentil. Já provou que não pode me dar aquilo que eu
sempre procurei:
O amor.
Passado aquele momento, descansamos alguns minutos e em seguida
Malcolm revelou que seu secretário havia programado algumas atividades
para fazermos naquele dia. A primeira foi uma caminhada pelo Pinetum
Gardens, uma extensa área verde, composta por lagos, árvores, flores e uma
vista impagável. Realmente compreendia que somente uma mulher poderia
ter colocado uma programação daquelas para Malcolm, pois era um local
sensível demais para ele. Um ambiente de paz, onde podíamos sentar,
conversar e refletir sobre diversas coisas.
Não estava cheio, pelo contrário, mas assim que começamos a
caminhar pelo local, percebi que ele simplesmente não compreendia que
estava acompanhado. Ia andando na frente e eu deveria segui-lo. Até o
momento em que eu o alcancei e tomei sua mão.
– O que está fazendo? – indagou ele, curioso e em defesa.
Entrelacei nossos dedos, mostrando como um casal deve caminhar em
ambientes como aquele.
– Somos recém-casados. As pessoas podem olhar e não compreender
a forma como caminhamos juntos sem estar lado a lado. Vamos andar assim,
depois você faz como quiser.
E nos puxei adiante, o fazendo concordar forçado.
Ele estava com óculos escuros estilo aviador, o que não me permitia
ler seus olhos, mas pude notar a surpresa em sua feição pela minha atitude.
Eu gostava de me sentir no controle em alguns momentos. Talvez Adonai
gostasse de me ver assim também, pois eu sentia-me leve.
– Que lago magnífico!
Apontei para a obra de Deus e me aproximei ainda de mãos dadas
com meu esposo. Abaixei para sentir a temperatura da água e me bateu uma
saudade de mergulhar no mar. Precisava dar outro banho em minha alma,
depois de ter ficado pouco tempo ao lado de quem acabara sujando-a.
Eu estava ainda sentindo a água quando Malcolm levantou e largou
minha mão para atender uma chamada em seu telefone, que acabara de tocar.
Tentei me manter firme, mas era difícil a cada vez que constatava
estar casada com um ser sem coração.
Meu pai sempre dizia que me amava. Como me causou tanto dano
através de um enlace tão vil?
O que realmente estava em jogo nesse acordo para que eu merecesse
uma vida tão infeliz e sem amor?
Pois era assim que eu me sentia, ali, alisando as águas cristalinas.
Uma mulher com os sonhos completamente destruídos.
Depois daquele passeio, visitamos um museu e retornamos para o
hotel ao anoitecer. Antes de subirmos, já jantamos, e depois eu só pensava
em dormir para que tudo aquilo acabasse logo. Faltava apenas mais um dia na
convivência com Malcolm, depois ele voltaria à sua rotina e eu poderia me
esconder de alguma forma.
Mas naquela noite ele me reivindicou como sua.
Aquilo ficou marcado para sempre em minha alma.

Malcolm
Ela dormia serena ao meu lado depois de termos feito sexo pela
primeira vez.
Foi como sempre é. Morno.
Transar com virgens não é meu forte e eu não podia simplesmente
expressar minhas preferências a ela, porque não é uma mulher que
dispensarei amanhã.
É a droga da minha esposa.
Tive que conter meus impulsos, meus movimentos, meu ritmo, para
que ela pudesse entender que aquilo a marcava como minha, mas que, nas
próximas vezes, seria diferente.
Não. Eu não fui o cara que vai lá e leva uma toalhinha para que ela se
limpe. Não foi assim que eu aprendi.
Contra nossas dores só nós podemos lutar, e eu compreendia muito
bem sobre como lidar com sua dor sendo indefeso e frágil.
Quando acabei, eu fui ao banheiro e joguei o preservativo no lixo e
uma água no corpo para dormir. Depois ela entrou e deu seu jeito.
Não houve troca de palavras.
Não houve ultrapassagem de limites de ambas as partes.
E eu fiz o meu dever.
Nosso casamento estava consumado.
Na minha cabeça só vinha meu pai me dando conselhos sobre como
eu deveria agir quando enfim me casasse:

– Usufrua-a e a deixe sempre à sua disposição. Não se apegue a


nenhuma das palavras que ela possa dizer, evite criar laços. Lembre-se de
que decisões erradas podem custar a sua vida

Rivka
Enfim consumamos nosso casamento.
Dizer que foi diferente de como eu imaginava seria uma mentira, pois
eu já estava imaginando que não seria algo bom. Depois que conheci
Malcolm como meu marido naquele altar, já não conseguia esperar que algo
de bom viesse dele.
Mas lá dentro, em meu peito, algo dizia: persista. Não desista.
E minha teimosia e curiosidade em conhecer mais daquele iceberg
não me permitiu ser fraca e chorar ao lado dele depois do sexo doloroso e
triste que fizemos.
Ele não me beijou, apenas tocou em alguns pontos de meu corpo que,
por momentos, me fizeram relaxar, mas depois que o tive inteiro dentro de
mim, foi como se nada tivesse acontecido antes.
Seus olhos azuis se mantinham firmes, hipnoticamente nos meus.
Ele fazia tudo me olhando sem titubear. Eu me segurei, fui forte.
Me senti uma boneca e senti que ele era uma máquina. Fria e sem
vida.
Tomei um banho para me limpar e depois voltei para a cama. Vi que
ele estava deitado de barriga para cima, olhando o teto, e somente dei de
ombros e deitei ao seu lado.
Um suspiro que exalava da minha alma fez com que eu me encolhesse
na cama, triste e solitária naquela noite, pensando seriamente em como eu
lidaria com tudo aquilo numa próxima vez.
Me permiti, ao menos nos sonhos, ter o que eu realmente queria.
Na manhã seguinte aproveitei que levantei mais cedo que ele e pedi
que trouxessem nossos cafés da manhã no quarto.
Enquanto eu aguardava, fiquei andando de um lado para o outro,
ainda de camisola e cabelo bagunçado, sem saber exatamente o que dizer e
como agir.
Eu queria ver o lado bom dele. Queria que ele sentisse ao menos um
carinho por mim, e mesmo que eu o odiasse em dados momentos e minha
alma se partisse ao meio em infelicidade, eu não podia me render.
Era meu destino estar ao lado dele até o fim dos meus dias, então eu
precisava fazer alguma coisa para que não fosse aquela rotina do começo ao
fim.
Rivka
Nosso último dia de viagem foi marcado pelos amplos momentos de
silêncio. Eu não quis provocá-lo, muito menos chateá-lo com perguntas em
todo o tempo, pois tinha em foco o fato de fazê-lo sentir alguma coisa por
mim, nem que fosse compaixão.
Era de se compadecer ter ao lado uma mulher como eu, sem chance
de ser feliz.
Não sou feia, pelo contrário, sempre atraí muitos olhares por onde
andava, desde a adolescência. Meu pai dizia que meu marido seria sortudo
em me ter. O espelho e minha educação nunca permitiram que eu me
diminuísse, então não tinha motivos para me culpar ao pensar no fato de
Malcolm ser tão frio.
Ele era assim.
O defeito está nele.
Servi café da manhã para ele no dia seguinte da consumação do nosso
casamento.
Me ofereci para ajudar a guardar as roupas na mala, pois iríamos
embora no dia seguinte.
Fui cortês e educada, me preocupando em momentos que ele parecia
divagar em pensamentos longe da nossa realidade.
Mas nada deu certo.
Nada o fez sequer falar comigo de modo mais... afável.
Voltamos para Londres depois do almoço no último dia de viagem.
Malcolm comentou comigo que tinha muitas coisas pendentes de ajustes na
nossa cidade e eu compreendi, desejando que fôssemos mesmo embora logo.
Já com todas as bagagens no carro e tudo ajustado, me despedi do
lugar lindo e acolhedor com um olhar triste.
De tudo naquela viagem, a natureza foi a única que me deu alegria.
— Graças te dou, Adonai, por criar tão belo lugar. — Respirei fundo
e entrei no automóvel.
Malcolm estava enviando alguma mensagem no celular, mas assim
que me acomodei, ele deu partida e seguimos rumo à nossa nova vida dali
para frente.
Eu só desejava, lá em meu íntimo, que os dias fossem melhores.

Malcolm
Algo estava errado.
Algo estava muito errado.

Recebi o e-mail dias atrás confirmando a hora em que eu voltaria da


lua de mel. Depois desse e-mail, eu tive que confirmar novamente o horário
mais duas vezes, em situações aleatórias.
Aquilo estava me causando um mal-estar.
Uma premonição, talvez, de que problemas poderiam surgir.
No Patriarcado não podemos nunca confiar em ninguém. Desde que
comecei a ser preparado, ainda na infância, meu pai insistia em dizer todas as
noites antes da hora de dormir a seguinte frase:
Quando menos esperar, sua sombra te trairá.
E a cada nova fase de treino, adaptação, fortalecimento psicológico e
físico, eu repetia que minha sombra poderia me trair quando eu menos
esperasse.
Além de tudo aquilo que fui treinado, ainda lidei com a pior dor que
uma criança poderia enfrentar, forjando minha alma e detonando qualquer
vestígio sentimental que poderia existir em mim.
Só de recordar, doía.
Não era como se fossem tramar contra mim sem que eu soubesse,
afinal, eu sei de tudo. Mas pode ser, talvez, o começo de algo. E só por
começar, já devo cortar o mal pela raiz.
Quando meu pai me passou orientações sobre acordos nupciais e
revelou tudo sobre Rivka, eu sabia que era bem mais que uma troca de
favores. Sabia que ia além de ter mais poder e ter que casar com uma virgem
inocente.
Era bem mais.
E poderia criar inimigos entre os meus.

O trânsito fluiu tranquilamente até a metade do caminho de St Austell


até Londres, pois um acidente acabou nos fazendo ficar parados na estrada
sem poder sair por quase uma hora. Não comuniquei a ninguém esse atraso
no percurso, por precaução, e pedi a Rivka que também não comunicasse a
ninguém.
– A quem falaria? Não tenho mais ninguém, agora pertenço a você,
não é mesmo?
Senti uma leve ironia em sua resposta, tentando talvez me intimar a
introduzi-la mais em meus negócios.
Já tinha notado o quanto minha esposa era curiosa. Ela perguntava
sobre tudo a todos, o tempo inteiro. Evitava me questionar muitas coisas, mas
quando menos percebia, já estava fazendo perguntas.
Era visível que não fazia por mal, então seus questionamentos
começaram a parar de me incomodar de ontem para cá.
O que é um avanço. Sinal de que conseguirei lidar com ela sem
muitas discussões nem estresses, apenas ignorando-a.
Pensei que teria uma esposa diferente. Quieta. Subserviente.
Introspectiva.
Seria a esposa perfeita.
Não me atrapalharia.
Não me incomodaria.
Não me provocaria nem me tiraria a paciência, que já é quase nula.
Mas então Rivka chegou como uma caixa de surpresas. E que maldita
caixa. Se eu soubesse...
Nada.
Mesmo que eu soubesse, ainda assim casaria com ela. Há muito
envolvido.
Há demais envolvido.
Tenho que olhar para o rosto dela e me lembrar de tudo que está
assinado naquele papel antigo de anos atrás entre meu pai e o dela.
Será minha motivação para aguentá-la o resto da vida.

“Um pacto de sangue. A união de duas famílias poderosas. Ao


permitir que Rivka V. Rosenberg se una a Malcolm B. Samuels, firmamos
que ambos estarão intimados a cumprir cada cláusula do contrato abaixo, em
benefício da organização que rege o mundo, sendo rompido somente através
da morte de ambos os mencionados.”
Releria o maldito acordo quando tivesse tempo. Não poderia me
esquecer.

Rivka
A gente se atrasou mais de uma hora para chegar à nossa cidade. Não
sabia se o atraso complicaria Malcolm, mas fiquei quieta apenas pensando
em como seria minha rotina a partir daquele dia.
Sabia que amor, carinho e atenção eu jamais teria. Doía constatar isso.
Mas eu tinha meus talentos e minha capacidade de fazer amigos é
alta. Farei amizade até com os empregados, se me permitirem.
Não permitirei que minha rotina seja solitária e obscura por conta do
marido asqueroso que tenho.
Em meio aos pensamentos sobre tudo que viveria dali em diante, mal
percebi que Malcolm xingava trilhões de palavrões ao meu lado no instante
em que subimos à rua da nossa casa.
– Oh, Elohim! – gritei, horrorizada com a cena que se abria a cada vez
que nos aproximávamos do terreno enorme onde ficava a mansão.
Um incêndio de proporções catastróficas dominava o quarteirão
inteiro onde a casa que morávamos se situava.
– Mas que inferno é esse!?
Malcolm bateu com o punho no volante e parou o carro na esquina
dos muros da mansão.
Saiu apressado e correu até onde algumas pessoas estavam
aglomeradas.
Também fiz o mesmo, saindo do veículo e indo até eles.
Linda estava sendo acolhida por alguns bombeiros socorristas
enquanto, mais adiante, o caminhão de bombeiros tentava aplacar as chamas.
No meio das pessoas que tossiam muito por conta da fumaça,
reconheci Romero. O vi correr na direção de Malcolm e dar um abraço nele.
Eles realmente são amigos. Dava para notar de longe.
Fiquei ali, perto de Linda, esperando-a melhorar da tosse e
observando tudo ao redor, quando notei um homem baixo, todo revestido de
preto cobrindo cada pedaço de sua pele e um capuz que não me permitia ver
seu rosto, caminhando rapidamente de braços cruzados para longe dali.
Andei rapidamente até Malcolm para avisá-lo. Poderia ser algum
criminoso.
– Malcolm. – Toquei seu ombro por trás.
Ele falava coisas sobre traição, rebeldia e sei lá mais o que, no
momento em que o toquei.
– Agora não – respondeu sem me olhar.
– É importante – tentei ser sutil.
Romero estava de frente para Malcolm, que estava de costas para
mim, o que o possibilitou me encarar analiticamente e me dar uma força a
mais.
– Amigo. Acho que é realmente importante – ele complementou,
fazendo Malcolm se virar e me olhar.
Respirei fundo e direcionei o olhar discretamente para a direção onde
estava a pessoa que vi.
– Vi uma pessoa parecendo um fugitivo, andando ali.
Malcolm seguiu a pista que eu dei e, junto com Romero, saíram
andando lentamente na direção que eu os indicara.
Fiquei ali de braços cruzados olhando os dois descerem a rua, sem
saber como agir. Então pela primeira vez notei que meu marido mantinha
uma arma escondida em algum lugar na sua roupa, porque ela, de repente,
apareceu em sua mão.
Respirei fundo, temendo e torcendo para que nada de mal os
acontecesse, mas ciente de que essa vida perigosa faria parte dos meus dias
dali em diante.
Rivka
Descobrimos que o incêndio foi proposital. Alguém provocou tudo
aquilo. Havia pequenas bombas inflamáveis instaladas em pontos-chave na
casa, causando o incêndio de uma forma rápida e inevitável. Um de nossos
empregados morreu socorrendo a todos que estavam lá dentro. Era David,
sobrinho de Linda. Ela estava arrasada com a perda de seu parente e eu
também, por ela.
Malcolm deu a ordem de que nos hospedássemos em um hotel
simples da cidade. Segundo ele, os luxuosos estariam às vistas de quem
queria matá-lo.
Pois agora ele tinha ciência de que queriam destruí-lo.
A pessoa que eu mostrei fugindo era realmente participante de tudo.

– Linda, fique tranquila. Estamos aqui para o que precisar.


Eu fiquei o dia seguinte inteiro no quarto locado para os empregados,
vendo como eles estavam e consolando Linda. Ela ainda não compreendia
como alguém poderia ser tão cruel.
– Era um jovem, tinha a vida inteira pela frente, menina. – Fungou,
enxugando as lágrimas que não paravam de jorrar. – Eu cuidava dele como
sua mãe. O menino perdeu os pais há muitos anos. Era como se fosse meu
filho.
A abracei sentada em sua cama, dando todo carinho que eu podia dar.
De imediato me imaginei sendo mãe, gerando um bebê, dando
acalento, amor, vendo crescer e, de repente, o perdendo cruelmente.
Só em imaginar, desatei a chorar também. Ficamos ali sentadas sobre
a cama, nos abraçando em prantos.
Era um tempo de dor.
No quarto havia também mais duas pessoas: Lindsay e Erick, dois
funcionários da mansão. Lindsay cuidava dos quartos de hóspedes, banheiros
e salões, enquanto Linda era a empregada de confiança, que cuidava do
quarto de Malcolm e de seu escritório, além da cozinha e lavanderia. Erick
era jardineiro. Um jovem senhor de aparentes quarenta anos e feição
taciturna. Eles estavam próximos de nós, com um olhar complacente, também
sem saber muito o que dizer.
Poucos minutos se passaram, até que a porta se abriu.
Era meu marido, revestido em fúria e ódio, todo em preto da cabeça
aos pés.
– Erick, precisamos ter uma conversa agora.
Saiu entrando e dando passos firmes na direção do homem, que, pela
primeira vez, pareceu com medo.
– Senhor? E-eu não compreendo sua atitude, senhor – Erick falava
enquanto dava passos para trás, prestes a dar de costas na parede.
Malcolm foi rápido e o alcançou. Segurou a camisa de Erick com as
duas mãos em punho e o pressionou contra a parede com violência, nos
assustando com o barulho do baque.
– Você cuida da área externa da mansão. Você deixou que entrassem
e destruíssem tudo. Foi você, não foi?
A voz de Malcolm carregava raiva, mas não subia o tom. Era neutra,
equilibrada.
Enquanto a cena discorria, eu encarava tudo aquilo com horror.
Minha vida não tinha que ser tão ruim. Meus dias não precisavam ser
tão sombrios.
Antes de Malcolm, a uma hora daquelas eu estaria lendo livros,
estudando sobre alguma coisa, passeando na rua ou até visitando lares de
crianças carentes.
Jamais imaginei estar tão perto da personificação do inimigo.
Meu marido era o homem mais sem sentimentos que eu conheci.
– Patrão, eu juro pela minha vida que não sei de nada. Absolutamente
n...
Antes dele concluir, Malcolm desferiu um soco em sua face, e aquilo
me fez saltar da cama e correr até ele, furiosa.
– Larga ele! – Empurrei meu marido. – Não vê que ele também está
sofrendo pela perda de David?
Meu empurrão fez com que Malcolm soltasse de Erick, mas assim
que ele firmou os pés e levantou o olhar para mim, sabia que aquele poderia
ser o pior dia da vida dele, e por minha atitude inconsequente, o pior da
minha vida também.
– Suma da minha frente.
Ele deu um passo na minha direção. Seu olhar estava tomado de
escuridão e cada palavra dele me fez tremer e temer.
Como um anjo enviado do céu, Romero entrou no quarto da mesma
forma que Malcolm havia entrado minutos antes: intempestivamente.
– Malcolm! – Correu até ele. – O que está fazendo aqui?
Meu marido ainda estava de frente para mim, com os olhos fixos nos
meus, respirando pesadamente.
Romero o tocou no ombro e repetiu:
– O que faz aqui? Temos mais o que fazer, venha!
Me mantive firme também. Por dentro estava morrendo de medo da
reação dele, mas torcendo que, se fosse de todo ruim, eu poderia me livrar
desse acordo idiota e sumir da vida desse homem.
Foi quando Malcolm fechou os olhos, cerrou os punhos para baixo e
respirou fundo novamente, antes de falar com Romero.
– Tem razão. Traga Erick conosco.
E simplesmente saiu sem olhar para nada e nem ninguém.
Romero obedeceu, obviamente, levando Erick mesmo golpeado a
tiracolo, e assim que a porta do quarto foi fechada após a saída dele,
permanecemos somente eu, Linda e Lindsay.
Foi quando o choque de realidade me atingiu sobre toda a cena que
presenciei. Então comecei a tremer compulsivamente.
Estava traumatizada.
Com muito medo. Muito medo.
Mal notei quando sentei no chão, no meio do quarto, e ali fiquei no
canto, encostada na parede, chorando sem controle e tremendo de medo.
Aquela cena jamais sairia da minha cabeça.
Jamais.
Nunca esquecerei o olhar diabólico e ameaçador que ele dirigiu para
mim.

Malcolm
Eu já não era mais eu.
O ódio me consumia até os poros superficiais da minha pele.
Estavam tramando minha morte dentro do Patriarcado. Estavam
contra mim.
Era de se esperar uma ou duas discordâncias, mas uma rebelião?
Não conseguia compreender os motivos. Somente entendia que os
negócios que estava prestes a romper não eram vantajosos, e os que mantive
estavam alinhados com o que queríamos. É preciso pensar com a razão para
manter a paz mundial e o controle dos povos.
Dentro da organização eu também tinha que lidar com meu único
familiar ainda vivo, meu primo Enzo. Minha mãe, por ser apenas a esposa do
patriarca, não era considerada como parte da organização. Sabia que Enzo me
odiava, mas não suspeitava dele, pois ele me devia sua própria vida.
Estava tudo caminhando bem. Claro que ainda tinha que ajustar
alguns pontos e conversar severamente com alguns chefes de estado, mas
nada que fugisse ao meu controle nas proporções que ocorreram no dia
anterior.
Tive que subornar a mídia de forma absurda para que meu incêndio
não fosse noticiado.
Tive que marcar uma reunião urgente para dali a dois dias, com todos
os acionistas do Patriarcado, para compreender melhor de onde vem esse
problema.
Ainda ontem, assim que Romero e eu pegamos o intruso que Rivka
apontou, o levamos a um dos calabouços que temos nos subsolos da cidade e
lá o fizemos falar sob tortura.
Ele era apenas o executor do plano, não sabia nada mais. Porém, sabia
que a finalidade era matar a mim e aos meus de confiança.
Antes de executá-lo a sangue frio, ele também confessou que eu
estava sendo traído por um dos meus.
Aquilo foi o que sentenciou todo o meu acúmulo de ódio nas horas
seguintes.
Não dormi à noite. Ordenei que todos fossem para um hotel mediano
e eu passei a madrugada vagando pelos esconderijos subterrâneos do
Patriarca. Onde somente eu, meu pai e mais ninguém sabíamos a localização.
Pela manhã voltei ao hotel e fiquei em meu quarto conversando com
Romero, tentando assimilar de onde poderia vir tudo aquilo. Alguém dentro
de minha casa deveria estar compactuando com tais planos.
De imediato pensei em Erick. Não podia ser outro.
Romero pediu que eu me acalmasse e foi buscar uma água com
açúcar, mas não me segurei e segui para o quarto dos empregados; uma vez
lá, acabei me descontrolando.
Tinha que manter meu controle emocional e físico.
Não era um moleque. Era o Patriarca.
Mas, para piorar a situação, Rivka tentou se meter no meio de tudo e
aquilo quase lhe causou problemas, se não fosse pelo meu amigo chegando
na hora exata.

– Irmão... você está fora de si.


Ele dizia enquanto caminhávamos até meu quarto, carregando Erick.
Minhas mãos se mantinham na cabeça, agarrando meus cabelos. A
mente? Uma confusão só. Jamais imaginei ter que lidar com tanta coisa em
tão pouco tempo. Havia acabado de assumir meu posto de Patriarca, logo
casei e em seguida sofro um atentado.
– Me diga quem não estaria, Romero? – foi o que consegui dizer,
antes de entrarmos no cômodo que aluguei e fechar a porta.
Me joguei de costas na cama e encarei o teto branco.
– Eu poderia estar morto se não fosse o engarrafamento na estrada.
Minha voz não expressava emoção, era imparcial, assim como meus
sentimentos.
Em meu interior somente havia caos.
– Pois é, garotão. Não estamos na hora de sair matando todo mundo
que virmos pela frente. Inclusive, o que faremos com Erick?
Já tinha me esquecido de Erick de tanto divagar.
O maldito estava ferido no rosto, sentado no canto do meu quarto,
com olhos temerosos.
– Você o colocou ali? – indaguei a Romero.
Ele assentiu e deu de ombros.
– Não tinha onde botar. Você dá a ordem, patrão – respondeu
encostado na porta do quarto com seus braços cruzados.
Sentei sobre a cama e olhei quem poderia ser o dedo-duro de toda a
história. Erick.
– Essa é sua chance, Erick. Conte tudo o que sabe, ou irá desejar ter
morrido no incêndio.
Malcolm
O homem me olhava com medo, mas tentava se manter firme diante
da situação em que se encontrava. Erick trabalha na minha mansão há muitos
anos e nunca tive problemas com ele. Era de se estranhar que logo ele fosse
um dos capangas da rebelião.
Peguei uma cadeira e sentei de frente para ele, que jazia no chão.
Romero amarrou as mãos e os pés dele, impedindo-o de fazer gracinhas e eu
não queria apelar para força bruta no momento.
– Então. Desembucha.
Intimei.
Ele rolou os olhos de mim até Romero e abanou a cabeça em
negativa, antes de começar a falar.
– Não sei do que está falando, patrão. Eu realmente não tenho nada a
ver com o incêndio, se é o que deseja saber.
Eu o encarava minuciosamente, para pescar qualquer expressão que
pudesse denotar a mentira.
– Não implantou os inflamáveis? Não permitiu a entrada de alguém
que pudesse ser suspeito?
Quando finalizei a frase, ele encarou o teto, buscando na memória
algo que pudesse responder, então arregalou os olhos e aquilo me deixou
nervoso. Ele tinha a resposta.
– Me lembro que, há uns dias, houve um apagão de luz em toda a
mansão. Ficamos sem energia por horas, mas não queríamos incomodar o
senhor nem o seu Romero com trivialidades.
Quando ele pausou para respirar, eu já tinha levantado e apontado
minha arma para a cara dele.
– Não pare. Continue – ordenei.
Ele engoliu em seco e prosseguiu.
– Tentamos chamar a empresa responsável por fornecer energia, mas
não conseguimos. Só que, quando bateu seis horas sem luz, alguns
eletricistas da empresa de energia foram até a mansão.
– E você simplesmente os deixou entrar.
Erick não respondeu, somente assentiu.
Abaixei a arma e fechei os olhos para controlar a vontade que tinha de
estourar os miolos de Erick naquele hotel sem luxo algum. Respirei fundo e
levantei da cadeira.
– Romero, grave cada detalhe que Erick possa dar sobre esse episódio
e depois o leve até o segundo andar.
Romero, que estava recostado na parede lateral apenas observando
tudo em seu papel de segurança, questionou:
– Mas... tem certeza que devo levá-lo ao segundo andar? Não acha
extremo demais? O homem contou tudo o que podia.
Romero e seu coração mole.
Acontece que o “segundo andar” era o plano além da vida. Quando
nos referíamos a esse “segundo andar”, era a execução. Eu não ficaria com
um funcionário ciente de que há coisas ocultas a serem descobertas, muito
menos com ódio de mim por tê-lo agredido.
Melhor acabar com ele de uma vez, do que tê-lo me dando problemas
futuros.
– Quer mesmo questionar minha decisão, Romero?
Meu olhar já disse tudo, pois ele somente assentiu e levou Erick
embora. O questionaria, gravaria as informações e depois o mataria.

Aquele começo de noite foi conturbado demais. Minha mente


fervilhava e latejava em dores.
Depois que Romero saiu, eu tomei um banho e deitei sobre a cama,
tentando espairecer nem que fosse por poucos minutos, mas não foi possível
porque alguém bateu à minha porta.
Me levantei com preguiça e caminhei até lá.
– Quem é?
– Eu. Linda.
Era a voz da Linda. O que ela iria querer a uma hora daquela?
Sem compreender o motivo da ida dela ao meu quarto, abri e a deixei
entrar, voltando em seguida para minha cama.
Estava exausto física e psicologicamente.
– O que a traz aqui, Linda? – indaguei deitado com as mãos sob a
cabeça, olhando o teto branco sem detalhes.
– Menino, sei que não gosta que te chame assim, mas preciso ter uma
conversa sincera com você. Preciso que me olhe nos olhos e compreenda o
que tenho para dizer.
Levantei a cabeça e me pus a encará-la. Linda arrastou a cadeira onde
eu estava sentado tempos antes e a colocou perto da minha cama, sentando
nela em seguida.
Por respeito a quem ela é, me sentei e fiquei frente a frente com ela.
Linda tinha uma moral em minha vida. Cuidou de mim desde
pequeno, como uma segunda mãe. Ela me entende, apesar de saber que não
sou o menino que ela criou na infância.
– Diga.
Respirei fundo e aguardei suas palavras, mas ela teve uma atitude
inesperada. Pegou minhas mãos e as segurou, como se suplicasse algo.
– Menino. Eu te conheço bem. Sei que não é essa pessoa dura e sem
coração que aparenta ser. Sei que aí dentro habita aquele pequeno garoto que
fazia desenhos de toda a família unida, dizendo que seu sonho era viajar o
mundo com seus pais. Eu me lembro desse menino. Ele ainda deve existir aí
dentro. Não posso crer que ele morreu.
Nos olhos dela havia lágrimas retidas, querendo ser liberadas.
Não falei nada. Não conseguia falar.
– Você se casou, Malcolm. Tem uma bela esposa. Uma mulher que,
apesar de mal te conhecer, quer somar em sua vida. Rivka é um anjo sem
asas, menino. Se pudesse ver como aquela mulher é boa, pura e tão amorosa,
não a trataria da forma como a trata.
Então as lágrimas desceram. Ela estava realmente chorando por causa
de Rivka?
– Estou de luto, perdi o menino que tinha como filho. Mas quando
paro e recordo tudo que fiz por ele, a forma como o tratava, sei que o concedi
a melhor vida que ele poderia ter. Você deve tratar sua esposa com respeito,
fazê-la se sentir útil, acolhida em sua família. Não estou pedindo para amá-la,
mas não mate a pessoa linda que ela é. Suas atitudes a estão matando. Eu
consigo ver que a lua de mel de vocês não foi boa, só pelo modo como Rivka
está neste momento.
Aquilo me chamou a atenção. Jamais me perguntei como ela estaria, o
que ela poderia estar sentindo. A forma como ela me desafiou hoje mais cedo
foi tão... crua.
– Como ela está?
Me mantive firme em perguntar sobre ela, apesar de estar um tanto
preocupado. Não sabia como era ser um marido. Estava agindo como homem
solteiro desde sempre, mas não podia sequer cogitar a possibilidade de que
Rivka abandonasse nosso tratado.
Ela deve levar nosso enlace até o fim de nossos dias.
É nosso dever.
Sua desistência pode me levar à morte, e eu não passei por tudo que
passei para morrer por causa de uma mulher sensível.
Linda abaixou o rosto e, com pesar, respondeu:
– Traumatizada. Não sei. Está em choque e não quer sair do chão do
quarto para nada. Não me responde, apenas chora dizendo que “não devia ser
assim”.
Aquilo foi como um soco em meu estômago, me causando um
reboliço em todos os órgãos.
– Vamos até ela. Não posso permitir que adoeça. Que desista.
Me levantei, mas Linda me segurou pelo punho, me fazendo parar ao
seu lado antes de prosseguir.
– Ela não é um de seus soldados. Ela tem sentimentos. Trate-a como
ela merece.
Assenti e segui, mesmo sabendo que eu não fazia a mínima ideia de
como agir dali em diante.

Rivka
Seu olhar diabólico não quis ir embora.
Suas palavras vis, desde que nos conhecemos, iam e voltavam.
Sua forma bruta e cruel de me fazer sua em minha primeira noite com
um homem me causou repugnância.
Eu estava começando a odiar Malcolm.

Adonai, Deus do universo, venha me trazer socorro!

Não me lembro por quantos minutos ou horas me mantive imersa em


meu próprio mundo no quarto dos empregados no hotel, mas só “acordei”
quando ouvi aquela voz novamente.
– Rivka.
Não. Não. Ele me faria mal. Ele me diria coisas cruéis.
– Rivka.
Dessa vez senti seu toque em meu queixo, me fazendo erguer a
cabeça.
Ele estava abaixado no meu nível, e me olhava com certa confusão.
– Você está bem? – perguntou.
Abanei a cabeça para os lados, afirmando que não. Não estava.
– Posso te levar para o seu quarto? Quer que chame um médico?
Arregalei os olhos e a vontade de chorar veio com força. Não
controlei, apenas despejei as lágrimas.
Estava sentada naquele chão escuro, abraçando meus joelhos sem
saber como agir, quando em meio ao tormento das lágrimas, senti que
Malcolm estava tentando me pegar no colo.
O medo se apossou de mim, da cabeça aos pés.
Então consegui finalmente falar.
– O que vai fazer comigo? Me-me matar?
Ele seguia me carregando no colo por um corredor. Pude perceber
uma nota de riso escapar de sua garganta, antes dele responder.
– Não farei nada. Nem te mataria... não por hoje. – Pareceu rir de
leve.
Eu nunca o tinha visto assim. Minha desgraça estava sendo uma piada
para ele?
Tentei me mexer em seu colo, escapar de seus braços, mas foi em
vão.
– Xiiu. Fica tranquila. Vou te deixar no quarto, na cama, e vou
chamar um médico particular para te ver.
Não tive saída.
Então relaxei meu corpo e só esperei. Esperei toda aquela dor em
minha alma passar.
Malcolm
Não sabia discernir os sentimentos que percorreram minha cabeça
quando Linda veio me alertar sobre Rivka. Ela não podia desistir do nosso
acordo, da nossa aliança. O dever vem em primeiro lugar sempre.
Será que Rivka não entendia?
Eu a comprei quando aceitei as condições de meu pai sobre o futuro
do Patriarcado. Aceitei a escolha que fizeram para mim.
Ela não podia simplesmente fugir quando as coisas não ficassem boas.
Não podia.
Eu tinha que rever tudo sobre Rivka urgentemente.
E foi isso que fiz. Busquei, de alguma forma, que ela se aliasse a mim
e entendesse nosso propósito, mesmo que não saiba a verdade a fundo.
Só tinha que deixá-la ciente de que devia suportar esse contrato e
passar pelas provações que ainda viriam. Eu precisava provar a todos que
posso estar na posição em que estou e serei ainda melhor do que meu pai foi.

Rivka
Era manhã e eu acabei dormindo mais do que deveria, por causa dos
remédios receitados pelo médico na noite anterior. Segundo ele, eu tive um
tipo de surto de pânico. Algo que jamais tive em toda a minha vida.
Mas, depois da noite de descanso, acordei bem melhor.
Assim que abri os olhos e me espreguicei, notei que Malcolm não
estava do meu lado. O quarto era nosso e me lembro que ele havia dormido
do meu lado, para me auxiliar caso fosse preciso.
Claro, estritamente profissional. Como se não fosse nada meu.
Mas, ao sentar-me na cama, avistei uma bandeja com suco natural de
laranja e alguns sanduíches sobre o criado-mudo ali do meu ladinho. Sorri e
meu estômago retrucou de fome.
Logo peguei a bandeja e a coloquei sobre a cama, para me deliciar
com calma. Foi então que vi um pequeno bilhete no canto da bandeja. O abri.

“Coma tudo. Você precisa estar forte.


M.”

Não sei que tipo de anjo deve ter tocado no meu marido, pois eu
jamais imaginaria que ele escreveria qualquer tipo de bilhete. Muito menos
traria bandeja com café da manhã para mim.
O que aconteceu de ontem pra hoje que não me contaram?
Dei de ombros e deixei qualquer pensamento esperançoso para lá. A
realidade de quem Malcolm era já tinha sido revelada a mim. Não tinha
esperanças.
O dia inteiro tive que acompanhar Malcolm em sua rota para escolher
uma nova residência. Estávamos bem disfarçados de casal recém-casado que
desejava um espaço amplo para viver com a família que, segundo a atuação
de Malcolm, seria bem grande.
Fui a esposa que ele sempre pediu que eu fosse. Educada, sem muitas
opiniões e expressões, apesar dele não ter exigido naquele dia que eu agisse
assim. Inclusive, nos poucos momentos que trocou palavras comigo no carro
entre uma visita e outra às casas, perguntou como eu estava me sentindo e se
queria algo para comer.
– Não se preocupe, estou bem – era o que eu sempre respondia.
Uma barreira estava começando a subir em volta do meu coração, eu
desejava com toda a alma que ele gostasse de mim, me tivesse como uma
pessoa com quem pode contar, mas não queria pagar o preço que estava
pagando.
Estava me ferindo demais no percurso.
Já era a quinta casa que visitávamos, quando senti que ali deveria ser
nosso lar. Lembrava um pouco a mansão anterior por dentro. Ao menos nos
cômodos que eu já tinha visitado antes de viajar de lua de mel.
O corretor atendeu um telefonema quando estávamos na sacada do
quarto principal no segundo andar, então me virei para finalmente comunicar
ao meu esposo sobre minha opinião.
– Malcolm – o chamei.
Ele, que olhava inexpressivo para o horizonte, com os cotovelos
apoiados no pequeno muro, se virou e me encarou com curiosidade.
– Diga.
Abracei a mim mesma enquanto caminhava para mais perto dele.
– Eu gostei dessa casa. Acho que é um bom lugar para morarmos.
Ele assentiu e voltou a olhar o nada.
– Achei a casa bastante completa para tudo que ela deve ter. Vamos
comprá-la.
Então se afastou dali e virou rumo ao quarto, para ir embora.
Acostumada com toda essa coisa de ser deixada para trás, o segui um
pouco mais alegre que o fim de cada visita que fizemos antes.
Afinal, já tínhamos encontrado a casa perfeita.

Compramos a casa e em uma semana já estava tudo nos conformes.


Todos os meus pertences que levei na viagem já estavam em meu armário no
quarto e eu também já tinha ido ao shopping renovar o restante do guarda-
roupas, pois não tinha mais nada devido ao incêndio.
Fiquei sabendo que Erick desapareceu, depois daquele episódio no
hotel. Imaginei que pudesse ter ficado com medo de Malcolm e então fugiu,
para não se prejudicar.
Eu sabia que ele não era uma pessoa má.
Pessoas más conseguem exalar a maldade da alma em apenas um
olhar.
Linda e eu ficamos bem mais próximas. Também criei um elo com
Lindsay, apesar dela ser bastante reservada.
Meu marido continuou sendo a muralha fria de sempre, mas parecia
um pouco preocupado com meu bem-estar. Como se fizesse parte do seu
ritual do dia, perguntar como eu estava e se tinha me alimentado bem.
Todos os dias eu orava ao meu Elohim, para me dar a chance de ser
feliz, estando ou não no meio dessa confusão toda que meu pai me meteu.
Era segunda-feira, começo de junho em Londres. O clima de
primavera aos poucos dando espaço ao calor do verão ameno típico do país.
Meu pai me telefonou poucas vezes depois do casamento, mas naquela tarde
eu é que liguei para ele. Queria ouvir sua voz, queria um acalento.
Me deitei na sala de estar da mais nova mansão em que morava e ali
fiquei com meu celular, enquanto falava com ele.
– Pai?
Assim que o chamei, pude notar sua dificuldade em me responder.
– Pai, tá tudo bem? Sou eu, Rivka. Sua filha.
– Minha menina... – a voz falha respondeu.
Devia estar resfriado ou cansado demais para me atender.
Meu pai não era tão jovem, apesar de ter casado muito cedo com
minha mãe. Eles só conseguiram gerar a mim quando meu pai tinha trinta e
cinco e minha mãe trinta e dois. Eu fui seu pequeno milagre.
– Está tudo bem, pai? Sua voz parece estar falhando – me preocupei.
Ele tossiu.
– Nada, minha filha. Estou bem. Apenas trabalhando muito e ficando
bastante cansado. Como tem passado em sua nova vida de casada?
“Horrível, pai. Tenho um marido que não me nota e me trata como
sua irmã mais nova, vivo em um ambiente desconhecido onde falam em
códigos perto de mim e nunca sei do que se trata. Me sinto oprimida muitas
das vezes.”
Era o que eu queria dizer, mas o que meu pai disse condoeu meu
coração. Ele não merecia saber dos meus problemas.
– Tudo ótimo, pai. Sabe como é, no começo é difícil, mas com o
tempo a gente vai aprendendo a lidar.
Ele respirou fundo.
– Sim. Você é forte. Tem uma missão muito importante. Persevere.
Se a missão for ser notada e feliz eu estava falhando miseravelmente,
mas concordei e me despedi.
Falar com meu pai era sempre um tanto doloroso e nostálgico.
O sol já começava a se pôr quando subi as escadas e caminhava pelo
corredor rumo ao meu quarto. Tomaria um banho e depois desceria para
tentar fazer um jantar diferente. Gosto de cozinhar e queria ter essa liberdade
em minha casa.
Mas ouvi alguns barulhos vindos de uma das portas do corredor
contrário ao meu, era o corredor de trabalho de Malcolm, eu jamais me
aproximava de lá, por ordens dele. Mas o som despertou minha curiosidade e
me fez seguir até lá. Era barulho de algo batendo em um ritmo intenso.
Conforme me aproximava, mais ficavam audíveis.
– Ah! Ah...
O som da voz foi abafado, mas consegui ouvir que era uma mulher. A
voz era de uma mulher.
Uma linha congelante subiu por minha espinha, atingindo minha nuca
em cheio e me fazendo tremer. Eu estava nervosa. O que seria aquilo?
Fiquei ali perto daquela porta fechada tentando decifrar mais sons, só
que a voz parecia estar abafada e os únicos sons audíveis eram os de algo
sendo pressionado. “Tum... Tum...”
Poucos segundos se passaram e então decifrei a voz de um homem:
– Aprenda a ser comida em silêncio, vadia.
Aquela voz grossa, firme e aterrorizante...
Quando identifiquei de quem vinha, meus olhos imediatamente
encheram de lágrimas e eu corri. Corri o mais rápido que pude e me tranquei
em meu quarto.
Não podia ser o que eu estava pensando.
Então me deitei sobre a cama e abracei o travesseiro, chorando
enquanto me lembrava da voz da mulher, das batidas que poderiam ser dos
corpos deles em choque e depois da voz dele.
Ele estava me traindo dentro da nossa própria casa.

Não me lembro quantos minutos, ou horas, passaram, mas despertei


com um toque em meu ombro.
– Hey, tá tudo bem?
Quando me virei, dei de cara com quem menos desejava.
– Ah, sim, sim. – Esfreguei meu rosto e me levantei enquanto meu
marido me olhava diretamente nos olhos, tentando entender-me. – Acho que
comi muito no almoço, deu um sono chato, então deitei e acabei apagando.
Ele cruzou os braços.
– Hum. Preciso que venha comigo conhecer umas pessoas.
– Agora? – questionei aturdida, queria que desse tempo para ao
menos tomar um banho.
– Tem vinte minutos para se aprontar. Linda separou sua roupa, logo
mais ela trará.
Foi quando percebi que ele se vestia com um terno de gala e estava
um pouco mais bonito que o habitual.
Assim que ele se foi do meu quarto, lembrei o motivo pelo qual não
posso nem achá-lo bonito. Nada nele me pertence, nem o corpo, nem o
coração.
Até traída já fui com menos de um mês de casada.
Caminhei até o banheiro e me encarei no espelho.
– Ah, Rivka. Já passou da hora de aprender a ser superior ao que
Malcolm espera, não é mesmo?
Se ele queria sempre esfregar na minha cara que eu não era suficiente
para absolutamente nada, eu mostraria para ele que posso ser única e absoluta
sendo eu mesma.
Rivka
O elegante vestido vermelho-sangue com detalhes bordados, colado
ao corpo, fez com que eu me sentisse uma rainha. Fazia muito tempo que não
ia a um jantar de gala, e mesmo não sabendo ao certo o local nem o evento
que iria com Malcolm, estava animada não somente para mostrar o lado mais
exuberante da minha beleza ao meu marido, mas também colocar meu plano
em prática.
Magoada, ferida, arrasada eu ainda estava.
Mas não adiantava nada chorar na cama quente, nem reclamar. Já
tinha notado que não fazia diferença alguma ao meu esposo a forma como eu
reagia às suas grosserias e friezas.
Tinha que falar a língua dele, e nesse último mês aprendi um pouco
sobre como me portar da forma como ele tanto espera.
Ao descer a escadaria da nossa casa, ele me aguardava de pé com as
mãos nos bolsos de sua calça extremamente alinhada.
Seus olhos encontraram os meus e logo percorreram por meu corpo,
analíticos.
– Está elegante, Rivka – disse.
– Obrigada – respondi assentindo ao descer o último degrau e parar
bem à frente dele.
Jurei dez vezes mentalmente que não seria fraca.
Daquela vez acharia forças no além, pediria para que Adonai me
revestisse milhões de vezes, se possível, mas não seria fraca.
Mantivemos esse pequeno duelo de olhares por alguns segundos, até
ele o quebrar.
– Bom. – Pigarreou – Vamos.

Durante o trajeto não trocamos palavras. Eu retoquei minha


maquiagem e ajustei meu cabelo mais uma vez. Usava um penteado lateral
que me deixava um tanto sedutora. Não sabia seduzir, era um fato, mas eu
queria fingir.
Naquela noite eu seria uma outra Rivka, talvez uma mulher de
negócios, poderosa, instigante e sensual, ao menos por fora.
Por dentro sempre seria eu mesma.
Se eu quisesse que Malcolm me tratasse da forma como mereço, tinha
que ser como eu sou, sem máscaras. Mas, quanto ao exterior, podia inovar
um pouquinho.
Chegamos a uma mansão gigante que poderia sem dúvidas fazer parte
da aristocracia pela beleza e imponência. Havia carros luxuosos por toda a
área externa da casa, seguranças, manobristas e guias que levavam os
convidados para dentro do local.
– É um jantar? Um evento político? – perguntei antes de sairmos do
carro.
– Um jantar de negócios. Sem imprensa. Apenas os maiores chefes de
estado do mundo e meus sócios.
Tendo dito isto, Malcolm saiu e, enquanto eu assimilava a
informação, minha porta foi aberta. Um funcionário abriu para mim e foi
gentil ao me ajudar a sair do automóvel.
Sorri graciosa para o homem e segui adiante para Malcolm, que já
estava alguns passos à frente.
Ele me ofereceu o braço para que eu enlaçasse o meu, mas recusei
delicadamente, apertando a pequena bolsa com as duas mãos sobre meu
vestido. Ele parou de andar e me encarou firme, arqueando uma sobrancelha,
porém nada disse e continuou logo o trajeto, pondo as mãos nos bolsos.
Por dentro de mim subiu um calafrio, lembrando o medo que sentia
por aquele ser que eu chamo de esposo, e logo lembrei que horas antes, seu
corpo estava atrelado ao de alguma vadia barata em uma sala escondida na
nossa casa.
A lembrança trouxe raiva e rubor às minhas bochechas, eu precisava
focar no meu plano.

Malcolm
Hoje o dia foi especialmente estressante.
Além de eu ter que lidar com exigências de presidentes fodidos de
países pobres, ainda tive que cumprir alguns acordos.
Estava exausto e com a mente totalmente fora do evento anual de
chefes de estado que o Patriarcado organiza. Seria meu primeiro evento como
patriarca e teria que levar minha esposa-troféu comigo.
Rivka tem se comportado bem, está um pouco mais participativa e
não surta como fazia nos primeiros dias depois do casamento. Parece que
nosso trato está intacto, mas ainda tenho certas limitações quando me refiro a
ela.
Não tenho conseguido ler seus pensamentos através das expressões.
Ela está virando mestre em disfarçar o que sente e pensa, coisa que antes não
fazia.
Está ficando fria, assim como eu, não tem me desafiado nem me
seduzido, o que por um lado é um alívio, pois preciso evitar muito contato
com ela no quesito sexual, a não ser que meu nome esteja em jogo.
E que fique claro: sexo é somente com mulheres. Nem custando
minha vida comeria algum homem.
Mas, ali no salão principal onde o evento transcorria, percebi que ela
estava amável demais e muito sorridente com os chefes que vinham falar
conosco.
– Vida longa ao nosso novo patriarca! – Tirei meus olhos da Rivka,
que também se atentou à voz que me saudou.
Ele se aproximou com aquele sorriso traiçoeiro e abriu os braços para
me abraçar, mesmo sabendo que odeio contatos físicos.
– Como vai, Enzo? – indaguei sem emoção.
Enzo é meu primo legítimo, o segundo na linhagem dos patriarcas. Se
eu fosse morto, ele assumiria, mas mesmo comigo vivo, ele tenta ter mais
destaque que eu em tudo.
É um puta invejoso.
– Enzo não. Sou o próta* do Patriarcado. – Ainda rindo como um
babaca, tentou me intimidar.
– Tá – respondi em toda minha seriedade.
Odiava Enzo com todas as minhas forças. Se pudesse matá-lo, já o
teria feito, mas dentro da organização familiares não podem se executar,
senão toda a família é executada posteriormente para que a raiz podre seja
arrancada.
Pelo modo que ele estava me olhando naquele instante, também sentia
o desejo intrínseco de me ver morto.
Como somos muito conhecidos dentro do Patriarcado, nem que eu
planejasse com muito custo conseguiria executá-lo sem que soubessem no
fim das contas, e da mesma forma ele a mim.
E isso fazia com que eu suspeitasse de que talvez ele tivesse algo
relacionado com o incêndio.
Ainda estava no começo do evento, eu mal tinha chegado no local e
todo o foco das pessoas estava em mim e em Rivka. Precisava tomar alguma
bebida para lidar com tanta gente assim sem perder o senso de civilidade.
Ignorei qualquer coisa que Enzo tenha dito e saí dali a passos largos
até o grande bar que havia no local. Somente bebidas de primeira qualidade
no mundo eram produzidas e servidas ali, e eu não me contive em pedir a
minha favorita.
– Um negroni, por favor.
Pedi e aguardei. Segundos foram precisos para que o presidente dos
Estados Unidos viesse falar comigo.
– É um prazer enfim conhecer pessoalmente um jovem com tanta
honra como o senhor, Patriarca.
Me virei para encará-lo e o analisei dos pés à cabeça. O homem
exalava uma falsa simpatia que podia ser revelada a quilômetros de distância.
Não precisava dominar leitura corporal para isso.
–- O prazer é meu. – Mantive meu tom gélido.
O mal desses presidentes de bosta é achar que qualquer coisa compra
o poder. Ele se tornou presidente recentemente, não nasceu no meio político
nem no meio aristocrático, mas pensa que pode mandar em alguma coisa por
gerir um país economicamente forte, em termos.
Ele começou a querer puxar assunto e forçar uma amizade que nunca
vai existir, mas simplesmente ignorei praticamente tudo que ele dizia. Apenas
um assunto me chamou a atenção.
– Vi que se casou recentemente. – Isso me fez encará-lo fixamente
nos olhos. – Onde está sua esposa? Como é mesmo que se chama?
Ele elevou a cabeça e olhou para o teto, como se buscasse em sua
memória.
– Não me recordo o nome, mas é uma judia – gesticulou e torceu a
boca, se referindo a Rivka. – Uma menina bonita, confesso, mas poderia
talvez ter escolhido uma das mulheres da minha terra. Temos uma variedade
boa de mulheres lindas de raça pura.
Engoli minha bebida em seco.
Ele estava sendo preconceituoso com Rivka descaradamente.
– Temo pela sua vida depois de ter dito algo tão audacioso como o
que disse agora, senhor presidente.
Coloquei minha bebida já finalizada no balcão e procurei Rivka com
os olhos pelo aglomerado de pessoas. Estava saturado daquele homem.
Não era difícil encontrá-la com o vestido vermelho que usava, porém
não a encontrei. Foi como se ela tivesse tomado chá de sumiço.
– Onde está...? – indaguei a mim mesmo, andando pelo amplo salão.
Onde essa mulher se meteu?

Rivka
Ainda não tinha me acostumado com a chuva de olhares que recebi
desde o instante em que cheguei naquele evento. Não sei a real finalidade de
um evento como aquele existir, mas vi ali representantes de diversas nações e
povos.
O salão mais parecia um palácio da realeza, de tão elegante, e eu me
sentia uma formiga com a imensidão do lugar.
Assim que Malcolm simplesmente saiu de perto de mim sem mais
nem menos, o homem que falava com ele soltou uma risada curta e se
afastou. Fiquei ali, plantada, sem saber como agir, então decidi dar uma volta
pelo local.
Quase ninguém me conhecia mesmo, então não sentiriam minha falta.
Caminhando pelos corredores luxuosos da mansão, avistei um amplo
portal que levava até uma varanda muito bonita, onde podia-se ver a área de
trás da mansão com esplendor. Piscinas, árvores frutíferas, jardins e áreas
para esporte preenchiam todo o terreno gigante. Era tudo muito lindo.
De repente uma voz me tirou do transe de admiração pelo lugar.
– Você deve ser a Rivka Samuels. Esposa do nosso querido patriarca.
Quando me virei, dei de cara com o mesmo homem que falara há
pouco com meu marido. O homem era bonito, alto, sorridente e loiro.
Aparência galante e sedutora que faria meninas se iludirem em poucos
minutos.
– Creio que já deve ter me visto, quando conversou com ele há pouco
tempo.
Cruzei os braços segurando minha bolsinha e encostei nos pilares da
varanda, de costas. Ele caminhou lentamente e se aproximou de mim a ponto
de estarmos um palmo frente a frente.
– Sim, eu a vi. Não queria demonstrar as emoções que senti ao ver
mulher tão bela no meio de pessoas tão vazias. Permita-me apresentar.
Estendeu a mão e, como um príncipe, esperou que eu desse a minha.
Como jamais tinha sido tratada com tanto zelo ultimamente, estranhei, mas
decidi dar uma chance ao homem para ver o que realmente queria.
Estendi minha mão e ele beijou delicadamente o dorso.
– Me chamo Enzo. Sou uma das peças fundamentais para o
funcionamento do Patriarcado. Com certeza já deve ter ouvido falarem de
mim.
Como não me lembrava de ter ouvido o nome dele, apenas neguei
com a cabeça. Enzo, porém, manteve sua mão na minha e continuou falando
em seu tom galanteador, me olhando fixo nos olhos.
– Não importa se nunca ouviu falar de mim. Agora é o melhor
momento. – Levou sua mão ao meu rosto e acariciou minha bochecha rubra.
– Como Malcolm te encontrou?
Ao ouvir o nome do meu marido, balancei a cabeça, fugindo do
carinho daquele homem. Era loucura conversar às escondidas com um
homem tão atirado assim enquanto meu marido circulava dentro do salão
cumprimentando as pessoas.
Ele podia até ter audácia para me trair debaixo do meu nariz, mas
minha integridade jamais me permitiria fazer o mesmo.
– Com licença, preciso ir. – Segui rumo à porta de volta ao salão, mas
assim que passei ao lado de Enzo, ele segurou meu punho com força.
Senti um calafrio percorrer minha espinha e meu sexto sentido apitou.
– Calma, princesinha. Sou bem próximo de Malcolm, quase como um
irmão. Jamais seria desrespeitoso com você. Aliás, não precisa dizer nada da
sua vida, eu sei de cada detalhe dela.
Toda a cor do meu rosto já tinha se esvaído, com toda certeza. Eu
estava começando a ficar com medo daquela voz exalando gentileza demais.
E o sorriso? Diabólico.
– Compreendo. Depois conversamos, preciso encontrar meu esposo.
Tentei desvencilhar meu braço da mão de Enzo, porém não consegui.
Ele me puxou em um ímpeto para perto e, quando levei o susto pela
proximidade e ia gritar, sua outra mão tapou minha boca.
– Shiiiu. Sou delicado, carinhoso e posso ser mais homem do que seu
marido é, em todos os sentidos. Sinta. – Ele colou seu corpo no meu, me
encurralando na sacada, e senti um volume incomum sob sua calça. Ele
estava excitado, que doente! – Tenho certeza que Malcolm não te toca como
merece, seus poros exalam um ar virginal. Deliciosa.
Fechei os olhos, sem poder reagir. Então senti Enzo cheirando meu
pescoço e percorrendo seu rosto pelo meu corpo enquanto segurava minha
mão para trás de mim e tapava minha boca com a outra.
– Quietinha, como eu gosto. Aqui é um ótimo lugar, ninguém vem
aqui...
– ENZO!
Abri meus olhos ao ouvir o grito, e o que avistei a partir dali foi
surreal.
Rivka
Malcolm apareceu de repente e berrou o nome de Enzo como um
trovão, fazendo com que o imbecil que tentava abusar de mim soltasse-me
imediatamente e virasse de frente para ele.
– Ah, priminho, estava mesmo falando de voc...
A frase foi interrompida por Malcolm furioso segurando seu primo
pelo pescoço como se pesasse uma pena.
– Maldito invejoso filho de uma puta!
Tapei a boca com as mãos, ainda em choque pelo ocorrido, e me
afastei dos dois. Meus olhos então começaram a encher d’água. Não podia
acreditar no que possivelmente aconteceria se meu marido não chegasse a
tempo.
Malcolm ficou pressionando o pescoço de Enzo por um tempo, até
desacordá-lo. Não faço ideia de como podia desacordar uma pessoa dessa
forma, mas assim que Enzo fechou os olhos e despencou seu corpo, Malcolm
o jogou no chão e pegou o celular.
– Romero. Seu dia de folga acabou. Tenho um trabalho especial aqui
no evento anual. Venha sem alarde.
Enquanto isso, eu ainda estava pálida e em choque ali no canto
daquela varanda tão elegante, sem saber o que fazer. Ao desligar, Malcolm se
virou para mim e se aproximou lentamente sem me olhar nos olhos.
Ao estar próximo o suficiente para sussurrar, disse:
– Sei que não foi culpa sua. Enzo tem um longo histórico.
Por incrível que pareça, eu ainda não tinha pensado na possibilidade
de Malcolm me culpar pelo ocorrido, talvez pela minha ingenuidade em
imaginar que ele seria realista com a cena que se deparou, mas quando disse
aquilo eu confirmei que sim, talvez qualquer homem pensasse que eu pudesse
ter dado alguma condição ou chance para que aquela cena se desenrolasse, o
que ainda não faz com que eu seja culpada, obviamente.
Constatar que Malcolm confiou em mim pela primeira vez desde
nosso casamento, sem eu precisar dizer uma só palavra, trouxe ar aos meus
pulmões.
Elevei o rosto e o fitei com os olhos úmidos.
– Obrigada.
Ele manteve seus olhos firmes nos meus por alguns segundos e eu
senti como se nem ele soubesse o motivo pelo qual confiou em mim tão
prontamente. Mas logo nossa conexão foi interrompida pela chamada
telefônica.
Ele se afastou novamente e atendeu.
– Que rápido. Estou na varanda 12.
Ao desligar, ficou ali olhando para o nada, de costas para mim, apenas
aguardando. Poucos segundos foram necessários para que Romero aparecesse
em sua moto pelo gramado.
Ele estava vestido como uma pessoa normal, nenhum uniforme nem
roupas formais demais. Realmente devia estar de folga.
– O que tu manda, malvadão? – brincou ao subir os degraus laterais
do varandado.
Ele e Malcolm se cumprimentaram e depois só vi ambos conversando
em tom baixo, para que eu não ouvisse.
Enquanto isso, Enzo ainda estava estirado no chão quase como um
morto-vivo.

Malcolm
Tive que controlar todo o ódio que correu em minhas veias para não
matar Enzo ali, na frente de Rivka, e acabar estragando tudo, nos
sentenciando à morte também.
Mas o que ele fez passou de qualquer limite aceitável por qualquer ser
humano, por mais podre que seja. Ele tem beleza e liberdade para conquistar
qualquer mulher que queira, mas quis abusar da minha esposa apenas para me
provocar.
Tudo isso porque é um mimadinho de merda, infeliz.
Meu autocontrole quase foi para o espaço quando vi a forma como
Rivka parecia uma boneca de pano com medo e o maldito pressionando-a de
várias formas agressivas.
Ainda bem que pensei rápido e não o matei. Fiz com que Romero
viesse com urgência para que levasse Enzo para o calabouço. Lá eu trataria
dele pessoalmente depois do evento acabar e de deixar Rivka em casa.
Ainda não tinha entendido como não desconfiei nem por um segundo
da mulher que casou comigo, mesmo sabendo que não simpatizamos um com
o outro. Rivka poderia sim ter procurado algum homem para apenas
satisfazer seu ego, ou sei lá, até desenferrujar técnicas de sedução... Mas algo
lá dentro me dizia que ela não é esse tipo de mulher.
O pouco que já convivi com ela fez com que eu surpreendentemente
compreendesse quem ela era em seu caráter, fazendo com que um pequeno
ponto de confiança entre nós se estabelecesse. Quando ouvi seu
agradecimento tão sincero com os olhos banhados em lágrimas, percebi o
quanto eu era um maldito babaca com ela.
Ela é ingênua e inocente e isso me irrita profundamente, mas ao
mesmo tempo aguça algo que ainda não identifiquei dentro de mim.
Ela não faz meu tipo nem na aparência e nem na personalidade, mas
eu senti como se naquele momento de agradecimento, eu pudesse confiar
nela, para, sei lá... talvez ser uma amiga.
Estava definitivamente louco.
Devia ser toda aquela atmosfera estranha causada pelo evento anual.

De fato, devia.

Rivka
O resto do evento foi em modo automático. Queria que acabasse logo
para me jogar na minha cama e chorar pelo ocorrido até amanhecer. Estava
me sentindo tão suja pelo toque daquele horrendo. Um homem com beleza
tão notória podia ser mais podre até que meu próprio marido, que ao menos
mostra externamente que não tem nada de bom dentro de si.
Sempre tive pavor de pessoas falsas. Elas conseguem mascarar
perfeitamente qualquer pensamento ou sentimento que seu interior as revele,
com uma feição contrastante tão convincente que faz pessoas arriscarem até
suas próprias vidas em prol de sua reputação.
Conheci apenas uma pessoa assim em toda minha vida. Minha melhor
amiga da época de ONGs e atividades sociais.
Yanca era linda, especialmente linda. Sem exageros. Nossa amizade
durou longos sete anos, até eu descobrir, por meio de uma ligação por
engano, que ela sempre teve inveja de mim e até roubava minhas coisas sem
eu saber. Inventava histórias horrorosas sobre mim e contava para todas as
pessoas do grupo que eu prestava apoio. Quando ela percebeu que era eu do
outro lado da linha, quis se justificar de várias formas, até contou que estava
encenando para uma peça beneficente.
Claro que eu acreditei nela, mas comecei a ficar de olho no
comportamento das pessoas ao redor e vi realmente que todos agiam de
forma estranha comigo. Como se eu fosse a pessoa mais suja do local.
A mais digna de nojo.
Então orei a Elohim, o criador de todas as coisas, e pedi que me desse
forças para me afastar de pessoas como Yanca.
Aos poucos consegui cortar nosso laço de amizade.
Foi a única amiga que tive, além de Doralice, que cuidou sempre
muito bem de mim.
Lembro como se fosse ontem o momento em que excluí de vez Yanca
de minha vida.

Estava em meu quarto na mansão de meu pai, lendo a Torá, quando


Dora bateu em minha porta. Pedi licença a Deus e fechei o livro sagrado
para que pudesse abrir meu quarto.
Assim que Dora entrou, vi em sua mão uma pequena bandeja com
chocolates e uma xícara de café forte.
– Mais uma bomba, Dora? – indaguei.
Eu conhecia minha governanta muito bem e sabia que ela só trazia
minhas guloseimas favoritas quando algo estava mal.
Ela entrou no meu quarto e colocou a bandeja sobre a minha mesa de
refeições.
Logo andou até mim e segurou minhas duas mãos.
– Acho que está na hora de deletar todos os laços que tem com a tal
de Yanca.
Na mesma hora desviei o olhar. Me doía falar da menina que eu
dediquei tanta amizade e amor.
– Mas, e se ela mudar? Se ela vir que eu posso ser uma boa amiga de
verdade?
– Não verá, menina. Nesse mundo existem pessoas boas e pessoas
más. Nem sempre elas são o que são porque querem e sim porque foram
criadas dessa forma, mas Yanca escolheu ser o que é. Ela nunca vai mudar.
Para mudar precisa querer.
E me contou que ela havia postado na rede social uma foto com meu
brinco de ouro cravejado de diamantes, roubado. Havia semanas que não o
encontrava e estava com ela o tempo todo.
– Nem adianta você ligar e perguntar, ela vai mentir como sempre e
dizer que ganhou um igual, ou mandou fazer inspirado no seu. Rivka, minha
querida... – Acariciou meus cabelos. – Dê um basta.
Fechei os olhos e respirei fundo. Estávamos de pé no meio do quarto,
então decidi envolver Dora com um abraço apertado, porque tudo que ela
tinha me aconselhado sempre era verdade.
Aquele foi o dia em que decidi anular Yanca da minha vida e todas as
pessoas falsas junto com ela.

Assim que Malcolm e eu chegamos em casa, ele me chamou para


conversarmos no seu escritório particular.
Jamais havia entrado nesse cômodo da nossa casa, pois a casa era
separada entre o lado dele, onde eu não tinha acesso, e o lado nosso. O segui
em silêncio e, assim que entramos no escritório, reconheci sendo a maldita
sala da traição de mais cedo.
Estava com isso na cabeça e tinha que manter meu plano em mente.
Toda essa complicação acabou me afastando do plano inicial, mas eu
mantive a ideia em mente e aquele seria um bom momento para colocá-la em
ação.
– Sente-se, Rivka. – Malcolm separou uma cadeira para mim, em
frente à dele, no meio do escritório.
O cômodo era amplo e bem rústico. Predominava o amadeirado
escuro e a cor marsala nos móveis. Havia uma pequena biblioteca em uma
das paredes e, do lado contrário, um bar.
A mesa principal ficava em frente à janela frontal e, no meio do local,
onde eu e ele estávamos, havia um lustre no teto e um tapete bonito no chão.
Jazíamos frente a frente, sentados.
Malcolm não é muito de rodeios, então começou logo no assunto
principal.
– Gostaria de te contar um pouco sobre quem Enzo é.
Cruzou as mãos e apoiou os cotovelos sobre as pernas.
Tentei relaxar na cadeira confortável, mas não consegui. Não queria
falar sobre esse assunto.
– Se puder, eu realmente não quero saber nada de seu primo. Não hoje
– pedi.
Ele me encarou fixamente e recostou-se na cadeira, liberando as mãos
cruzadas.
– Eu o mataria agora, daqui a pouco. – Quando ele disse isso, meu
corpo gelou. Matar alguém assim, do nada? – Mas não posso fazer isso.
Então quis te explicar quem ele é, e alertar sobre o fato de que você deve se
manter sempre longe. Quase não o vejo, mas daqui para frente talvez ele
apareça com mais frequência e não quero que você acabe criando algum
vínculo, por menor que seja, com ele.
Foi frio e direto, como sempre foi.
Eu assenti, já tinha identificado que Enzo é o tipo de pessoa que eu
desejo manter longe, então por mim mesma jamais me afeiçoaria a ele.
– Entendi.
Malcolm e eu ficamos nos olhando ainda no vácuo causado pelo
silêncio e falta de palavras a serem ditas, então decidi entrar no tema que eu
gostaria.
– Eu tenho algo para dizer, algo muito importante e preciso que me
entenda. Acho que esse é o momento certo.
Revesti minha voz de força e firmeza, me preparando para qualquer
argumento que Malcolm pudesse criar contra meu pedido.
– O momento certo de quê? – indagou com sua costumeira
sobrancelha arqueada.
Um reboliço se instalou no meu estômago, me deixando nervosa, mas
eu não podia desistir.
– Eu... – respirei fundo e o alfinetei com o olhar – quero um
namorado.
Que Adonai me ajude, pois eu pressentia que uma bomba ia explodir
em 3... 2... 1.
Rivka
– O QUÊ? – a resposta dura, em um tom bem mais alto que o comum,
me fez dar um leve salto da cadeira.
Arregalei bem os olhos e sorvi mais uma dose de coragem.
– O que ouviu. Um namorado. Alguém para...
– Sexo? – ele me interrompeu. – Você quer um macho pra transar?
Sua feição desacreditada me fez recuar. Malcolm realmente não
entendia o que era um relacionamento.
Me esforcei descomunalmente pra não rolar os olhos e parecer
debochada, mas expliquei exatamente qual era meu ponto. Onde eu queria
chegar.
– Suponhamos que, mesmo casados, a fidelidade não faça parte dessa
nossa... – ponderei – relação. Talvez seja bom que você seja livre para ficar
com qualquer mulher, na mesma medida que eu também. Assim evitamos
cobranças um com o outro. Sei que as traições são cobradas, mas ninguém
precisaria saber.
Ele pareceu ponderar minha proposta por milésimos de segundo antes
de explodir e levantar furioso.
– Está propondo que eu seja corno? – Parou na minha frente, exalando
sua autoridade e crueldade implícitas no olhar.
Em qualquer dia antes desse, eu teria medo dos raios congelantes que
o azul das suas írises irradiava, mas não. Eu tinha sofrido um quase abuso,
tinha sido traída horas antes, estava ferida por dentro desde o dia que casei.
Chega de apenas acatar.
– Não necessariamente. Seria um acordo. Eu escolheria um homem
para namorar, pois realmente gostaria de viver um relacionamento
verdadeiro. Não sou o tipo de mulher que cresce pra ser independente e se
realizar sozinha. Eu sonho em ter uma família. Alguém que me ame. Nasci
para amar e ser amada, Malcolm. Enquanto você... ficaria como sempre
ficou.
Joguei a isca.
Ele me puxou da cadeira, fazendo com que eu ficasse de pé frente a
ele, e em seguida cruzou os braços. Ergui a cabeça para nossos olhos
duelarem. Medo eu tinha, mas não ia recuar. Não naquela hora.
– O que quer dizer com “como sempre ficou”? – rosnou, parecendo
impaciente.
– Comendo vadias às escondidas, como fez hoje bem aqui, nesse
maldito escritório.
Elevei meu tom, mostrando toda minha indignação com aquele idiota.
Até estranhei meu linguajar, mas me mantive firme.
Os olhos dele se arregalaram e buscaram qualquer vestígio de blefe
nos meus, mas me mantive sólida em minhas convicções e expressões.
Um silêncio que mais parecia um abismo reinou entre nós e, quando
eu quase estava quebrando a feição de durona, ele abriu a boca e indagou
num tom pacífico:
– Então você quis se vingar de mim no salão, quando seduziu Enzo
pelas minhas costas?
Eu não era perita em linguagem corporal nem leitura facial, mas pelo
tom de voz que meu marido proferiu tais palavras, parecia como... decepção.
Se entre nós não tinha respeito nem confiança, como poderia estar
decepcionado comigo? Ele disse que acreditava que eu não era a culpada. Por
que estava me acusando?
– Não sou esse tipo de mulher, Malcolm. Cansei de tentar fazer você
confiar em mim – me abri e inevitavelmente meus olhos começaram a arder.
Malditas lágrimas! – Desde que trocamos essas alianças – estendi a mão
mostrando o enorme círculo dourado enquanto ele manteve fito seus olhos
nos meus – eu esperava o mínimo que fosse de respeito e confiança. Já
entendi que nunca terei o seu amor ou afeto, ou qualquer coisa que seja, por
isso fiz esse pedido ousado, porque eu não sei se posso suportar tanto tempo
apenas cedendo sem receber o mínimo em troca. Aprendi que devemos ser
aquilo que desejamos que sejam conosco, mas essa recíproca não funciona
aqui. – Apontei para ele e depois para mim. – Você não confia em mim, por
mais que eu tenha demonstrado sempre que posso ser uma boa aliada. Faço
tudo que espera de mim,
aprendi a viver sozinha, sem amigos nem ninguém para conversar e
tudo que recebo são ordens e desprezo. Agora vem me acusar de algo que
jamais, em toda minha vida, passou pela minha cabeça. Não sou o tipo de
mulher que se vinga, sou do tipo que provo que estou certa sem sujar o meu
caráter.
Quando encerrei o curto discurso, algumas lágrimas já deslizavam
pelo meu rosto, porém meu marido estava com sua máscara impassível e fria
somente ouvindo sem nem expressar sua compaixão.
Respirei fundo, engolindo o choro que ainda queria descer, enquanto
Malcolm era uma estátua ainda fitando-me profundamente.
Não quis esperar sua resposta, pois, depois de alguns segundos, senti
que ela não viria, então me virei de costas e comecei a andar até a porta com
a intenção de ir para meu quarto.
Assim que atingi a maçaneta, senti a mão dele envolver meu braço.
Antes que ele me puxasse, eu virei com uma feição questionadora. Ansiosa
por alguma resposta positiva, iludida, talvez.
– Acho que temos um acordo. – Me soltou e estendeu a mão, fazendo
menção a um aperto.
Não queria perguntar se era sobre o fato de eu namorar ou sobre o
fato de confiarmos um no outro, mas estendi a minha mão e ali selamos
alguma coisa que eu esperava ansiosamente que, no fim de tudo, fosse bom.

Malcolm
A garota estava certa e eu me odiava por ter que admitir aquilo.
Ser sempre a razão de tudo fez com que eu jamais esperasse estar
errado.
Rivka conseguiu algo que nunca alguém havia logrado antes: minha
razão.
Assim que ela saiu do escritório, continuei lá e bebi um pouco antes
de ligar para Romero e dar algum comando sobre Enzo.
Precisava entender bem o que tinha ocorrido, explicar como ele era
para Rivka e pensar sobre o que poderia fazer com ele sem ser condenado
pelo Patriarcado.
Muitos pensam que, pelo fato de eu ser o líder, posso fazer o que
quiser e quando quiser, mas não é bem assim quando se trata de leis internas.
Posso ser deposto caso infrinja alguma delas e a última coisa que desejo é
que Enzo assuma meu lugar. Afinal, ele é o primeiro na sucessão patriarcal.
Fora que meu afastamento é sinônimo de morte.
– Opa, irmão, pode falar – Romero atendeu a chamada.
Sempre bem-humorado, mesmo trabalhando na folga.
– Como está o babaca?
– Gritando como uma gazela. Sabe como são esses caras que fingem
ser macho, mas no fundo são princesinhas da Disney, não é?
Só Romero para me fazer querer rir no meio de tudo isso.
– Eu iria pessoalmente até vocês, mas estou com alguns problemas
pendentes. Peço que o torture como um aviso. Pensei em arrancar as bolas
dele, talvez. O que acha?
Não seria de todo o ruim e eu não seria perseguido por isso.
– Acho uma boa ideia, porém, eu no seu lugar cortaria a língua dele.
O idiota só fala merda.
Tive uma ideia.
– Faça-o escolher, Romero. A dondoca vai se mijar toda só de ter que
optar por uma das duas torturas. Dê o seu melhor. Quando concluir, me avise.
Desliguei a chamada e suspirei, cansado.
A proposta de Rivka veio em cheio na minha mente e eu precisava
fazer alguma coisa.

Rivka
Aquela noite fui dormir depois de um banho quente. Precisava relaxar
um pouco. Tinha sido ousada demais, direta demais. O que estava
acontecendo com a Rivka de um mês atrás?
Temia perder minha essência por conta de um crápula desalmado
como Malcolm.
Deitei-me e me permiti sonhar para imaginar que um dia estaria numa
outra realidade e, enfim, viveria meu grande sonho.
Ter uma família de verdade.

Éramos só nós dois naquele deque. O sol começava a se pôr e eu


sentia a brisa fresca amenizando o calor. Seu olhar me aquecia e fazia meu
coração descansar, protegido.
Quando sua mão tocou meu rosto e se aproximou, prestes a me dar
um dos seus belos beijos, uma voz infantil masculina me fez desconectar
daquele momento.
– Mamãe!

Despertei num susto naquele quarto iluminado somente por um


abajur. Malcolm e eu dormíamos em quartos separados por opção minha,
então me sentia segura mesmo quando tinha pesadelos. Não tinha ninguém
para me atormentar durante a madrugada.
Mas vi uma sombra humana sentada próximo à minha cama, na
minha poltrona.
Aquilo fez com que um medo irreal me tomasse.
Me sentei e elevei os cobertores até meus seios, por instinto. Estava
de camisola.
– Quem é?
Acendi o outro abajur sobre o criado-mudo no lado onde a pessoa se
encontrava, beirando à cama.
– Deus do céu! – gritei ao ver quem era.
– Sou tão horroroso assim? – inexpressivo como sempre, meu marido
perguntou.
– Está aí há muito tempo? Como entrou no meu quarto sem bater?
Meu coração ainda estava acelerado por conta do susto. Que homem
mais doido.
– Você lembra minha mãe – disse, sem responder minhas perguntas.
Sorvi uma grande quantidade de ar aos pulmões e, deixando o sonho
louco que tive de lado, me concentrei em livrar-me de Malcolm e voltar a
dormir. Que horas eram? Quatro da manhã? Algo assim.
– Acho que está com sono. Que tal ir para seu quarto?
Mas, como antes, não adiantou eu ter falado nenhuma palavra, porque
ele se manteve ali sentado com as mãos cruzadas e cotovelos apoiados sobre
os joelhos, olhando para o nada.
– A forma como lida comigo, esse seu jeito de sempre justificar seu
ponto sem precisar jogar sujo. A ingenuidade, talvez. Muita coisa parecida
com ela. Deviam conversar mais uma com a outra, talvez.
O homem surtou. Só pode. Eu conheci a mãe dele somente no
casamento, depois não soube de nada. Onde mora, como vive, nada.
Ele estava pensando em me fazer conviver com ela?
– Talvez seja uma boa ideia, sim – respondi o que veio à cabeça e
acabei gesticulando, soltando o lençol.
Era tímida, mas não queria esconder meu corpo por conta disso, e sim
porque Malcolm já deixara claro que nada em mim o atraía. Não havia
motivo pra que eu o permitisse ver meus contornos mais íntimos.
Imediatamente trouxe o lençol sobre meus seios novamente.
Ele levantou da poltrona, deu a volta ao redor da cama e sentou bem
do meu lado.
Por dentro eu já estava nervosa de novo. Não dá pra prever o que esse
homem fará.
– Enzo chegou a tocar em você?
Oi?
Eu já tinha até deixado o doido do primo dele de fora da minha
cabeça. O perdoei porque é uma pobre alma, apesar de ter sido bastante
traumático. Contudo, não gosto de remoer momentos ruins, para acabar não
ficando como no dia em que tive meu primeiro surto por conta de Malcolm.
Precisava me adaptar, me ajustar. Ser uma camaleoa.
– Sim. Ele se esfregou em mim e acabou passando a mão pelo meu
corpo enquanto me pressionava.
Tive que trazer o momento à memória.
Malcolm tocou meu lençol, onde eu segurava.
– Não gosto quando se reprime.
Mais uma vez eu entendi que ele desejava me ver do mesmo modo
como no hotel. Aquilo me dava um pouco de insegurança.
Mas meu cérebro de imediato comparou Malcolm com Enzo. Se tem
algo que meu marido nunca fez foi me obrigar a ter relações sexuais com ele,
enquanto Enzo me elogiou, porém não soube compreender um não.
Aproveitei e usei aquele momento como um pequeno teste.
– Mas o corpo é meu e eu quero me manter coberta.
– Eu não vou te obrigar a transar comigo, só quero que não tenha
pudores. Sou seu marido.
– Não sou como a mulher que usou com tanto ardor hoje cedo – cuspi,
chateada. – Preciso me sentir segura ou, no mínimo, apreciada.
Ele estreitou os olhos num olhar fatal e soltou um leve bufo antes de
destilar seu veneno.
– O que te fez mudar tanto de ontem pra hoje? Não foi o tipo de
esposa que te pedi para ser. Lembre-se que temos grandes negócios
envolvidos no nosso enlace. Não pode desistir disso.
Sinalizou nós dois com a mão.
Apertei ainda mais o lençol sobre o peito e elevei meu nariz.
– Não precisa fazer nada por pena ou medo de eu romper nosso
casamento. Minha palavra vale a minha vida. Eu assinei até que a morte nos
separe e será a morte quem nos irá separar um dia. Só quero que respeite meu
pedido de mais cedo.
Ele levantou parecendo um pouco alterado, talvez com raiva. Estava
estranho, para dizer a verdade.
– Não deixarei outro homem comer você.
– Não é comer! É amar! – dei um grito em um surto de nervosismo.
– Foda-se. Não vai.
Respirei fundo e tentei não me alterar.
– Então, sobre o que firmamos o acordo?
Ele passou a mão no cabelo que estava preso em um pequeno coque,
ponderou e disse:
– Sobre eu confiar em você. Vou te incluir mais nas minhas coisas. Te
dar um ponto de confiança. Por isso quero que ande mais com minha mãe. E
se sinta muito agraciada, pois você tem o que ninguém conseguiu. Um
pedaço bem pequeno dessa confiança. – Virou as costas. – Boa noite.
E se foi.
Rivka
Depois de Malcolm ter feito aquela aparição no meu quarto no meio
da noite, meu cérebro entrou em conflito com tudo aquilo que eu havia
imaginado sobre ele. Já o conhecia vagamente para compreender que não era
normal aquele tipo de atitude, e se a nossa questão fosse realmente a
confiança, eu daria meu melhor para que ele continuasse confiando em mim.
Já não esperava que ele gostasse de mim como mulher, nem me
desejasse. Sabia que talvez isso jamais aconteceria, porém, gostaria muito de
ter sua confiança e, quem sabe, no futuro, fôssemos amigos.
Afinal, Malcolm é minha família, querendo ele ou não.
Sou temente demais a Adonai, o Deus do universo. Sei que Ele
planejou sua criação com um propósito e, por mais que a minha família não
seja perfeita, não seria por falta de esforço meu.
Esperanças eu não tinha.
Fé no meu esposo, também não tinha.
Mas tinha fé no Deus que jamais me deixou na mão mesmo nos piores
momentos. Independente de tudo que já posso ter sofrido, sou abençoada.
Nada me falta. Saúde, vestes, alimento, um bom teto para morar. Não tenho
do que reclamar.
Dois dias depois da nossa conversa, ele apareceu no meu quarto antes
mesmo de eu acordar.
Como sempre, me assustando.
– Bom dia – disse assim que abri meus olhos e, assustada, o fitei.
Imediatamente meu esposo, que estava sentado no mesmo lugar da
madrugada doida, abocanhou a maçã suculenta que comia enquanto eu
tentava digerir o abuso de privacidade que ocorria ali.
– Acho que posso levantar sem sua ajuda – balbuciei ainda sonolenta.
Eram sete da manhã.
Apertei o cobertor em meu colo e me sentei na cama.
– Sei que pode. Vim avisar para fazer uma pequena mala. Vamos
visitar minha mãe.
Levantou e saiu do meu quarto, assim como entrou.
– Eu, hein.
Fiz minhas orações matinais e fui aprontar minha maleta. Esperava
ansiosamente que Romero fosse conosco, pois não aguentaria viajar para
onde fosse sem nem trocar algumas palavras com alguém. Malcolm mais
parecia uma estátua, então que ao menos seu segurança particular
conversasse comigo.
Tomei um banho e me vesti bem à vontade. O dia estava acalorado,
apesar das comuns nuvens no céu. Coloquei um short jeans branco e uma
blusinha regata preta acompanhados da minha sandália rasteira e meus óculos
favoritos.
Após tomar café e cumprimentar Linda com um caloroso abraço,
peguei minha mala e segui com meu esposo, que manteve seu silêncio
habitual até o momento em que subimos na Range Rover.
– Vá atrás, Rivka. Romero irá conosco.
Quis saltar de alegria, mas disfarcei apenas assentindo e tomando meu
assento no banco de trás do carro.
Assim que Romero entrou, nos cumprimentamos e partimos.
Minha sogra mora na cidade vizinha, não é tão longe, mas ela não
gosta de se deslocar sem motivos extremamente importantes. Foi assim no
casamento.
Malcolm não fazia tanta questão de conversar em códigos com
Romero, agora ele até falava mais claramente do que antes, o que me fazia
ficar atenta ao que tanto diziam.
– Se o conselho maldito vier exigir algo de mim, mostrarei as provas
que tenho – Malcolm disse num dado momento da conversa.
– E se ainda assim eles encrencarem, que se dane. Quem é o patriarca
nessa bagaça? – Romero gesticulou, expressivo.
Quis rir pelo modo como ele disse, mas logo meu marido o corrigiu.
– Não é assim que as coisas funcionam, Romero. Tenho visto que um
líder nunca consegue liderar sozinho. – Respirou fundo e bateu de leve no
volante. – Preciso de aliados.
– Podemos aproveitar a visita e ver com sua mãe quais eram os
homens de confiança do seu pai.
A conversa entre eles estava tão interessante que não conseguia me
desligar.
– Já pensei nisso. Adélia nunca se envolveu com nada referente ao
Patriarcado.
Um curto silêncio se instaurou, então Romero virou um pouco o rosto
e me encarou de soslaio.
– No seu caso, Rivka estará por dentro de tudo que acontece?
Abaixei meu olhar, esperando o que falariam da minha pessoa, mas só
ouvi silêncio por longos segundos, até que levantei o rosto e peguei meu
esposo me encarando pelo espelho do retrovisor.
– Ela cresceu dentro do Patriarcado. Mesmo sem saber, deve estar
ciente de algumas coisas.
Até o momento eu não sabia quase nada. Sempre estavam falando em
códigos perto de mim ou em meias palavras que eu jamais conseguia decifrar.
Só que estava disposta a merecer mais confiança e saber mais sobre a
organização em que estava imersa até o último fio de cabelo.

Quando chegamos à imensa fazenda luxuosa da minha sogra, fiquei


contemplando o nosso trajeto desde que a porteira fora aberta até enfim
chegarmos à casa. Era uma estradinha de paralelepípedos muito bem tratada,
com flores nos canteiros durante todo o trajeto. A grama, bem aparada e
verde, demonstrava o cuidado que Adélia tinha com aquele lugar.
Obviamente, devia ter muitos empregados, mas o zelo com a propriedade
quem dita é o dono.
– Que lugar lindo! – exclamei.
– Aqui tem que andar acompanhado, pois é tão grande e tem tanta
coisa que você pode se perder – Romero comentou.
– Estou vendo. No meio do nada, mas tão lindo.
E como eu pensei, com muitos empregados. A cada instante eu
avistava um homem no terreno. Seguranças, talvez?
Assim que estacionamos, eu saí do carro empolgada para pisar
naquela graminha fofa e respirar um ar mais puro que o da cidade. Pude
relaxar.
Malcolm e Romero já tinham saído do carro e estavam entrando pela
escadaria da frente da mansão enquanto eu andava devagar, admirando tudo
aquilo.
Era grande, limpo, lindo. O dia estava maravilhoso, com poucas
nuvens. Consegui avistar um rio mais adiante e muitas árvores frutíferas.
Pediria com certeza para Adélia me levar para conhecer o lugar.
Subi as escadas e o sorriso foi inevitável quando Adélia apareceu na
porta principal com os dois braços abertos e um sorriso genuíno para mim.
– Menina! Como estou feliz em te ver! – Nos abraçamos e eu me senti
acolhida pela primeira vez desde que casei.
A única pessoa com quem consigo estar à vontade é Linda, porém não
posso ser quem atrapalha seu trabalho e por isso não me aproximo todos os
dias.
No meio do abraço me lembrei do meu pai e do fato de eu não tê-lo
visto mais depois do casamento.
Constatar a saudade de me sentir amada e protegida encheu meus
olhos de lágrimas.
– Obrigada pela recepção, Adélia – respondi amável.
Assim que nos afastamos, ela segurou na minha mão e me levou
direto para o quarto que separou para mim. A casa era enorme, mas só tinha
um pavimento. Andamos por um longo corredor até chegarmos no quarto em
questão e, quando enfim entramos...
– Oh! Desculpa, filho. – Adélia tinha aberto a porta e deu de cara com
Malcolm trocando a roupa.
Ele nem deve ter falado com ninguém quando chegou, foi direto para
o quarto. Que antissocial!
Ele vestiu a bermuda como se ninguém o tivesse visto seminu e em
seguida virou na nossa direção, ainda sem blusa.
– Você me pariu, mãe. Não tem o que desculpar.
Mas minha face parecia um pimentão, pois eu ainda me sentia
envergonhada em ver a nudez – ou parte dela – do meu marido. Ainda mais
na frente da mãe dele.
– Filho, trouxe Rivka para mostrar o quarto e se acomodar.
Ele assentiu e, assim que entramos completamente no amplo cômodo,
ele segurou a porta.
– Fique à vontade, vou tomar um banho de rio.
– Mas, filho, não vai comer nada? – Adélia perguntou, mas foi em
vão, pois Malcolm tem a maldita mania de sair andando e deixar as pessoas
falando sozinhas.
– Ahn... acho que não precisa se preocupar com Malcolm – falei num
tom ameno. – Ele sempre faz o que quer.
Ela bufou e depois riu.
– É verdade.
O quarto não era só meu. Era meu e de Malcolm. Segundo a mãe dele,
um casal que presta dorme junto e se satisfaz. Deixei que ela falasse um
pouco dos seus pensamentos quanto ao modo de ser feliz no casamento,
mostrando sempre meu sorriso mais amável, mesmo ciente de que nada
daquilo seria real pra mim.
Não me atentei a alguns detalhes que mais adiante seriam preciosos.

Na hora do almoço estávamos todos à mesa quando curvei minha


cabeça para fazer minha prece. Assim que a levantei, percebi minha sogra me
olhando admirada.
– Que linda. Você ora.
Não sabia o que responder, então apenas sorri e comecei a comer.
Era estranho ter aquela rotina tão mais quente, harmoniosa, feliz,
mesmo sabendo que um dia antes não era assim.
Mais estranho ainda eram as olhadas que meu marido me dava sem
nem disfarçar. Como se estivesse me analisando o tempo inteiro e eu nem
soubesse o que fazer pra ser aprovada por aquela pequena prova interna.
– Mac, meu filho. Por que não leva sua esposa para conhecer a área
toda da fazenda?
O silêncio que reinou naquele momento beirava um abismo, de tão
enorme. Mas me mantive concentrada em finalizar o meu almoço,
independente dele querer me mostrar o local ou não. Qualquer coisa pediria
para Romero. Ele é um bom amigo.
– Vejo o que dá pra fazer – disse e depois complementou, olhando
direto nos olhos de sua mãe: – Se eu puder pedir um favor, não tente fazer o
que está fazendo com relação a Rivka e eu. É em vão.
Sua mãe, que antes tinha um sorriso terno no rosto, o fechou e tomou
uma boa dose de ar antes de replicar ao filho:
– Como quiser, Malcolm Samuels.
Fiquei pasma com o modo como ele se dirigiu à sua própria mãe. Era
nítido nos olhos dela que não tinha gostado do tom gélido e grosseiro que
Malcolm acabara de usar com ela.
Malcolm se retirou da mesa sem pedir licença, deixando apenas eu e
Adélia ali. Então quis mostrar a ela que podia contar comigo em qualquer
momento, inclusive naquele que havia acabado de ocorrer. Depositei minha
mão sobre a dela, que estava cerrada em punho sobre a mesa. Assim que
Adélia viu minha mão, abriu a sua para que recebesse meu toque.
– Eu entendo você – disse a ela.
Então ela sorriu de novo.

Se Malcolm não fosse me levar para conhecer a fazenda, eu iria


sozinha. Adélia me aconselhou a me divertir e aproveitar os dias que estaria
lá para distrair a cabeça. Era o que faria.
Procurei Romero, que estava conversando com os funcionários locais.
Ele me informou que não podia me levar em lugar algum sem antes falar com
Malcolm, mas eu fui insistente a ponto dele ceder.
– Não pode negar algo à esposa do patriarca. Estou querendo apenas
me divertir. Que mal tem em me levar para conhecer a área?
– Mas seu marido não vai gostar de ver que sumiu.
Dei de ombros.
– Ele não me percebe, Romero. Nem verá que sumi.
Ele estapeou a própria testa e olhou para o céu, pedindo perdão.
– Vamos, senhora Samuels. Mas não podemos demorar. Farei sua
escolta e te apresentarei os melhores pontos dessa terra.
Já tinha posto o biquini por baixo do vestidinho floral que estava
vestindo, pronta para aproveitar qualquer aventura que fosse. Eu queria
apenas esquecer da vida amarga que vivo com Malcolm e fingir que, ao
menos por um dia, podia ser uma garota normal.
Malcolm
– Mãe, eu não quero voltar para aquele lugar! – Já tinha pedido mais
de cem vezes, mas parecia que dona Adélia tinha se esquecido de ser mãe.
Estava há dois meses na academia de formação para o Patriarcado e
não aguentava mais. Meu pai só dizia que eu tinha que suportar, que
precisava ser forte, mas meu corpo infantil e fraco já não suportava toda a
pressão.
Eu era o mais atacado naquele maldito lugar.
– Filho, se seu pai souber que está chorando por causa da
academia...
Fechei os olhos e enxuguei as lágrimas, com medo da surra que
poderia levar caso meu pai visse.
– Inventa algo, mãe. Diz que eu tive um surto e fiquei doido. Não sei,
só me tira de lá – implorei quase me ajoelhando naquela saleta.
Estávamos no sítio, meus pais e eu, passando um feriado prolongado.
Aproveitei que meu pai foi dar uma volta pela propriedade e chamei minha
mãe para dentro do banheiro suíte do meu quarto. Ela era boa. Ela podia me
ouvir.
Só de lembrar tudo que aconteceu comigo durante a última semana,
eu queria vomitar.
– Mac... me perdoe, mas eu não tenho esse poder. – Ela abaixou e,
ficando da minha altura, me abraçou forte.
Mas eu não queria abraços, queria soluções. Queria fugir da
academia.
Nem que eu tirasse minha própria vida pra isso.

Despertei das lembranças enquanto jogava pedras nas águas correntes


do rio que havia na fazenda. Vez ou outra eu me lembrava quão quebrado fui
naquele lugar, e quando estou na fazenda as memórias vêm com mais força.
Ali sentado, tentando desanuviar meus pensamentos, ouvi passos
acelerados vindo atrás de mim.
Quando virei dei de cara com Richard, o capataz da fazenda.
– Senhor Samuels – proferiu ofegante enquanto se aproximava. – Sua
esposa sumiu.
Só me faltava essa.
Me levantei e soltei um bufo, cansado.
– Como sumiu? Já procuraram por ela por toda a propriedade? –
indaguei em meu tom gélido e firme, fazendo com que o capataz gaguejasse
na resposta.
– Nã-não, senhor. Acontece que sua mãe pediu para que a chamasse,
mas ninguém a encontrou pela residência e nos arredores, então me
chamaram, busquei pelas proximidades, mas o senhor sabe como esse terreno
é extenso, eu perderia o dia todo se a procurasse sozinha.
Esfreguei minha mão sobre meu rosto, cansado de muitas coisas,
inclusive de ter que cuidar de Rivka. Só aquele curto momento lembrando de
minha infância sugou todas as minhas energias.
– Vou procurá-la a oeste, verifique o leste.
Não estava longe da casa, então caminhei até lá e peguei meu Puro-
Sangue Inglês. O cavalo que já está na família há alguns anos. Sabia que com
ele encontraria Rivka em instantes.
O sol começara a querer se pôr e a última vez que a vi foi no almoço.
Certamente deve ter ido a algum local aquático, pelo que já percebi ser um de
seus gostos. Procuraria na cachoeira e nas lagoas ao redor. Em algum canto
ela estaria, com certeza.
– Bom garoto. – O cavalo amansou quando o montei, demonstrando
submissão.
Era um cavalo de temperamento difícil de domar, mas nunca gostei
do que é fácil, então logo criei um vínculo com o animal.
Estava pronto para procurar pela minha esposa fugitiva, e depois a
chamaria para uma conversa séria.
Odeio não estar ciente das coisas e o que ela fez foi simplesmente sair
sem me dar a droga de uma satisfação.

Rivka
Romero me mostrou vários lugares lindos, desde campos floridos,
pequenas florestas, colinas, até os rios mais transparentes e refrescantes. De
todos, eu preferi ficar em um lago calmo e escondido. Segundo Romero,
aquele lugar se chamava “lago do segredo” e tinha um acesso escondido que
somente pessoas autorizadas conheciam.
Era como um local privativo, onde a pessoa podia meditar, relaxar,
aproveitar sem medo de ser incomodada. Então ali eu fiquei.
– Vai entrar no lago também? – indaguei a ele, assim que passamos
pelo pequeno túnel rochoso.
Do lado de fora dava para ver somente uma pequena montanha em
rochas, era um milagre da criação divina. Lá dentro era um pouco escuro,
mas quando chegamos ao centro onde havia o lago, vários feixes de luz do
teto rochoso incidiam sobre a água, fazendo com que parecesse um palco
com canhões de luz. A água era cristalina e morna. Maravilhoso.
– Não, senhora. Vou ficar aqui dentro, perto da entrada, aguardando.
Dei de ombros.
– Tudo bem. Mas acho que devia aproveitar um pouco.
Eu via que Romero se dedicava demais ao seu trabalho. Que mal teria
mergulhar um pouco para espairecer a mente?
Independente da escolha dele, eu quis mergulhar.
Confesso que não sou boa nadadora, isso até me influenciou a
escolher um lago e não um rio. Ainda bem que não era tão fundo, assim como
a praia de St Austell, onde passei a lua de mel. Lá consegui ficar na água por
um tempo e mergulhar um pouco, sem riscos.
Fui educada por um pai religioso, mas minha mãe era brasileira.
Nossa família já não era vista como uma tradicional família judia por conta
disso, então meus costumes foram adaptados às diversas ocasiões, mesmo
mamãe tendo falecido quando nasci.
Meu pai dizia que faria tudo comigo de acordo com o que ela faria se
estivesse lá.
Apesar de certos costumes, sempre usei biquini para mergulhar e,
mesmo envergonhada por estar exposta, não sentia que elohim me condenava
por isso.
Também não me condenava pelos braços e pernas descobertos em um
dia quente daqueles.
Tirei a roupa de cima e simplesmente saltei dentro da água.
Queria me refrescar e esquecer um pouco do fato de estar presa numa
realidade completamente oposta a que eu desejei desde a infância.
Permiti que minha mente mergulhasse comigo e imaginei que
protagonizava um daqueles filmes melodramáticos onde a mocinha e o
mocinho fogem para um local secreto e acabam tomando banho em um lago
no meio do caminho.
Eu estava lá, jogando água para o alto e cantarolando canções de
amor, quando ouvi uma risada reprimida.
Abri meus olhos e virei na direção do som.
Adonai, todo poderoso!
Tinha esquecido completamente que Romero estava me esperando na
porta do pequeno túnel, do lado de dentro. Ou seja, ele viu toda minha cena
infantil.
– Ei, do que tá rindo, hein? – perguntei, tentando jogar água na
direção dele.
Foi em vão, ele estava bem distante, há uns vinte metros, quase.
Romero voltou a rir e se aproximou aos poucos.
– Desculpa, Rivka. – Preferia quando me chamava pelo nome, odeio
ser chamada de senhora. – É que eu nunca conheci uma garota tão...
Rolei os olhos, envergonhada, porém orgulhosa demais para admitir.
– Idiota?
Ele prendeu a boca antes de mais uma risada sair e estendeu a mão em
um palmo, pedindo que eu aguardasse.
Eu era motivo de piada, que legal.
Romero estava bem na minha frente, na margem do lago, então
sentou, respirou e se acalmou para não rir mais.
– Quis dizer... ingênua. Estava aí cantando músicas românticas e
dançando de um lado para o outro... Não sabia que era assim. Não sabia que
ainda existiam pessoas que creem nessa coisa toda.
E toda a piada caiu por terra, pois senti que Romero estava falando
sobre seus próprios sentimentos, não os meus.
Apoiei meus braços sobre a borda e os cruzei, pondo minha cabeça
sobre eles enquanto meus pés balançavam na água.
– Já se apaixonou, Romero?
Ele envolveu as pernas dobradas e olhou para qualquer direção
naquele interior rochoso, menos para meu rosto.
– O amor é bobeira, senhora Samuels. Eu aconselharia você a não
esperar que isso aconteça. Não vai acontecer.
Ah, querido, eu já sei disso.
Saber que mais uma pessoa acha que não sou boa o suficiente para
despertar algum sentimento bom em meu marido foi como se uma agulha
congelada espetasse meu peito.
Doía.
– Acho que você pode um dia encontrar o amor, Romero. Não feche
os olhos para algo tão bonito. Não estamos falando de Malcolm e eu aqui.
Estamos falando de você e o que possa ter sofrido.
Então ele me olhou no rosto, respirou fundo, se balançou um pouco,
talvez controlando as emoções, e disse:
– Meu amigo tem sorte em ter você.
Não sei se foi o clima caloroso e amistoso naquele lugar ou a
conversa sentimental, mas eu estava quase chorando por ter ouvido aquelas
palavras saindo de Romero, então, para desviar do tema triste, pedi ajuda para
sair da água.
Ele se levantou e estendeu a mão para mim, só que ao invés de eu
subir... o puxei para dentro da água.
A partir dali os minutos foram apenas de gargalhadas.
Romero tentou revidar me puxando quando tentei fugir da água.
Joguei água na cara dele e ali ficamos brincando como duas crianças por
alguns minutos.
Até que ouvi um pigarro.
– Rum.
Paramos toda a agitação imediatamente e pude sentir meu coração
querer saltar pela boca. Eu tinha perdido toda a cor do rosto quando virei as
costas e dei de cara com Malcolm encostado no montão de rochas com os
braços cruzados e feição taciturna.
Romero, porém, não ficou congelado como eu, e logo saiu da água
tentando se justificar.
– Patrão, eu estava acompanhando a senhora Samuels e...
Malcolm levantou o palmo da mão na direção dele, impedindo-o de
prosseguir sua fala.
– Saia daqui – disse, calmo como um robô.
Imediatamente ele caminhou até o túnel de saída e virou com uma
feição de lamento para mim, mas logo seguiu seu rumo e me deixou a sós
com o monstro.
Malcolm
Foram intermináveis 84 segundos parado dentro daquela caverna
onde havia o lago do segredo, assistindo minha esposa e meu braço direito
brincarem como crianças, molhados dentro d´água.
Estava furioso? Sim, estava.
Queria gritar e amedrontar os dois para que me respeitassem? Sim,
queria, mas fui instruído a saber manipular meus sentimentos e emoções, e
aquele descontrole não podia fazer parte das minhas ações como patriarca.
Então esperei para ver se os babacas me enxergavam e, como pensei,
Rivka foi a primeira.
Traidora filha de uma...
Senti um aperto estranho em meu peito sobre a cena que presenciei, e
aquilo foi uma novidade. Não identifiquei ao certo o que era, mas sabia que
não podia ser bom. Assim que Romero se foi – depois eu lidaria com ele –,
minha esposa saiu parecendo desolada do lago.
Tentei observar bem o modo como ela estava à meia-luz, afinal, o sol
estava indo embora e aquele lugar já não tinha boa iluminação, e não pude
evitar observar o modo como ela estava reagindo ao meu flagra.
Estava enrolando os cabelos negros ondulados de um lado só,
espremendo a água que estava neles enquanto caminhava lentamente com seu
biquini até mim.
– Se me permite falar...
– Não quero que diga nada.
Isso fez com que ela enfim me olhasse nos olhos.
As amêndoas negras de seu rosto se estreitaram. Provavelmente
estranhando minha reação.
– Não vai brigar comigo?
Eu quero brigar sim, Rivka, porque odiei ser o marido que não sabe
onde a esposa está, e quando a encontra a vê agarrada com o melhor amigo.
Minha mente instintivamente elaborou a frase contra minha própria vontade e
ali eu percebi que precisava apenas descansar do dia de merda que eu tive por
conta das lembranças.
Aquela maldita frase na minha cabeça não pertencia a mim.
– Não por agora. Apenas se vista e venha.
Me virei e a deixei lá para que seguisse meus passos até o exterior da
gruta.

Já estávamos no casarão e minha mãe já tinha nos intimado a comer


com ela na sala de jantar, mas eu precisava punir Rivka de alguma forma,
então a primeira coisa que pensei foi em deixá-la tomando banho na suíte do
nosso quarto enquanto eu saía do cômodo e trancava com a única chave.
Nos veríamos somente mais tarde.
Se eu estivesse de bom humor.
Rivka
Era a vigésima vez que contava cem carneirinhos, esperando que
milagrosamente a porta do quarto se abrisse.
Malcolm trancou, com certeza, e me deixou horas dentro daquele
lugar, sozinha.
Minha consciência não pesava pelo que tinha feito. Poucas semanas
com Malcolm já foram suficientes pra compreender que ele não se importa
com o que eu faço ou deixo de fazer, ele se importa com a imagem dele
diante do que eu faço.
Sei que talvez tenha sido imprudente ao chamar Romero para me
acompanhar, e não uma outra mulher junto, mas eu não tinha amizade com
ninguém dali. Só confiava nele.
Não o via com outros olhos, apesar de ser muito bonito.
Era difícil desfocar da bosta do meu marido. Eu não o amava, mas
meu senso de responsabilidade fazia com que minha primeira atitude sempre
fosse pensando no bem-estar da nossa família. Não queria traí-lo, apesar de
ter sido traída e não soubesse o real motivo da traição. Não queria fazê-lo se
sentir mal, apesar dele ter me magoado muitas vezes. Era algo meu ser assim.
Eu era uma mulher completamente dirigida por meus princípios.
Mas isso não me impedia de tentar ser feliz de outras formas, e a
forma que encontrei naquele dia foi distraindo minha cabeça mergulhando.
Estava cansada demais de Malcolm e toda sua grosseria gratuita.
Uma hora eu explodiria e não teria princípio algum que pudesse me
segurar.
Já havia enjoado de olhar a hora no relógio quando ouvi a chave
sendo passada na tranca. Estava deitava na cama, de barriga para baixo,
descansando.
– Boa noite.
Malcolm entrou e trancou novamente a porta.
O acompanhei com os olhos. Ele tirou a camiseta que vestia e a jogou
num canto do quarto, depois tirou a calça e ficou ali só de roupa de baixo
como se eu nem estivesse olhando.
– Você percebeu que me trancou? – indaguei apenas pra confirmar.
Ele abriu o armário e ficou ali fuçando sei lá o quê.
– Percebi sim. Por mim você seria trancada num quarto escuro sem
luz, cama ou qualquer coisa confortável. Mas não posso ser tão cruel aqui,
estou na casa da minha mãe. Como pode perceber, ela é um anjo em pessoa.
Então tirou um short do armário e o vestiu, ficando parcialmente nu.
Ele enfim me encarou com o olhar mais fatal que poderia ter e
arrastou uma poltrona que tinha no canto de leitura, colocando em frente à
cama na minha direção.
Me levantei e sentei, sabia que vinha alguma ordem ou discurso sobre
o fato dele ser o patriarca ou eu ter que gerar confiança nele e tal.
– Rivka, já passou da hora de você entender que não é mais a filha do
seu papai. Aqui, no meu mundo, a realidade é outra e preciso que se adapte.
O que ele estava querendo dizer?
– Não entendi – questionei realmente confusa.
Achei que falaríamos sobre minha ida repentina com Romero ao lago
do segredo.
Ele passou a mão nos cabelos e estreitou o cenho, antes de continuar a
falar.
– Você não pode simplesmente sentir vontade de ir nadar na minha
propriedade familiar e sumir sem que eu saiba. Não pode pegar meu homem
de confiança e dar ordens como se fosse eu. Não pode se esfregar nele como
uma vagabunda dentro d´água e querer que eu fique feliz com isso.
Simplesmente não pode. É uma Samuels. Se meu nome estiver manchado
pelas suas impulsividades, terá que ser como a maioria das esposas dentro da
organização: uma mera dona de casa sem valor.
Eu não estava acreditando no discurso ridículo que ele tinha feito.
Era tão idiota que eu sinceramente não acreditava naquilo.
– Quer que eu agradeça por você ser um marido maravilhoso que não
tranca a mulher dentro de casa, é isso? – ironizei com a coragem que nem
sabia que tinha.
Quando percebi que o toquei com as minhas palavras, pela sua reação
espantada, continuei:
– Quer que eu fique feliz por ouvir você me traindo no seu escritório sem
nem saber o motivo pelo qual me traiu? Ou quer que eu seja eternamente
grata por ter destruído meus sonhos de menina quando disse que nunca teria
amor nessa vida? – Meu coração começou a acelerar, mas não parei. – Talvez
queira mesmo é que eu me sinta privilegiada por não ser atraente o suficiente
para que meu marido me deseje, e não a outras.
Quando terminei de falar meus olhos estavam cheios de lágrimas. Que
droga!
A última coisa que eu queria era mostrar quão detonada por dentro eu
estava.
Dava para ver quão nervoso ele estava, pois levantou e começou a
andar em círculos pelo quarto enquanto eu falava. Via sua veia pulsante no
pescoço, sobre a parte mais tatuada de sua pele, demonstrando quão mexido
podia estar.
Então dei o golpe final.
– Acho mesmo que devo ser muito desprezível como mulher. Porque,
mesmo tendo vários olhares masculinos sobre mim, ainda ouço a maldita voz
interior que me lembra que não sou como você. Isso me impede de ter
coragem de te colocar um par de chifres enormes. – Ele parou e me olhou
exalando fúria. – Assim, olha – apontei para minha cabeça –, iguais aos que
você colocou em mim, seu idiota!
Ele andou rapidamente até mim e segurou meu rosto com apenas uma
mão.
– Você não sabe o que está falando – rosnou.
– Está me machucando. Me solta – pedi com dificuldade, já que
minhas bochechas estavam apertadas pela sua mão.
Ele me soltou e respirou fundo. Não tinha visto ele quase perder o
controle daquele jeito. Malcolm sempre foi neutro, como se dominasse todas
as emoções. Era o mesmo rosto e o mesmo tom de voz para qualquer coisa.
Mas naquele momento ele tinha se descontrolado.
E eu senti um pouco de medo.
Ainda de pé próximo a mim, ele soltou no seu tom de voz habitual.
– Eu a traí por hábito. Não fiz pensando em trair você. Apenas
continuei com meus hábitos de antes do casamento.
– Quem ela é? – perguntei, aproveitando o milagre que foi ele
comentar sobre o assunto.
Ele sentou novamente na poltrona e abaixou a cabeça, apoiando as
duas mãos nela.
– Uma contratada de luxo – soltou.
Eu engoli a informação querendo socar aquele homem, mas só
consegui clamar a Deus na minha mente para que me ajudasse a passar por
aquele momento sem enlouquecer.
– Não faça mais isso. Se quer minha fidelidade, o mínimo que deve
fazer é ser fiel.
Pela primeira vez vi o esboço de um sorriso no canto da boca
envolvida pela ampla barba que meu esposo possui.
– Pouco mais de um mês ao meu lado e já está dando ordens?
Rolei os olhos e permiti que ele visse minha reação. Homens...
– Confia em mim, não confia? – questionei.
– Devo mesmo confiar? Não acabou transando com Romero? –
arqueou uma sobrancelha.
Minha feição se tornou indignada. Não podia crer no que acabara de
ouvir. Levantei e, dessa vez, eu quem andei pelo quarto contendo minha
fúria.
– Acha que eu faria sexo assim, do nada, ainda mais com seu homem
de confiança? – Apontei o dedo na direção dele, em riste. – Você realmente
não me conhece, Malcolm.

Malcolm
Ela estava me deixando confuso.
Não sei qual jogo Rivka começou a jogar comigo, mas estava dando
certo. Nos últimos dias ela se tornou ousada, autoritária e firme em suas
convicções.
Confesso que estava se tornando sexy com aquele porte “senhora
Samuels”.
Eu precisava de distância dela, porque previa que talvez a confiança
que queremos ter um com o outro acabe por desnortear meus propósitos e
convicções.
Assim que ela declarou que não a conheço e foi para o banheiro suíte,
eu deitei na cama e peguei meu celular. Programei minha volta para Londres
em dois dias e faria Rivka ficar por mais uma semana ali na fazenda.
Seria o melhor para ela e para mim.
Dois dias depois.
Acordei novamente pela madrugada e me aproximei de Rivka na
cama. Ela estava ao meu lado, devidamente vestida com seu pijama estranho,
mas seus cabelos exalavam um cheiro inebriante. Eu tinha que me aproximar
um pouco mais.
Assim que consegui aproximar meu rosto dos cabelos dela, o sono
veio com força e então adormeci em segundos.

– Não! A vassoura não!


Estava desesperado, dentro da despensa da academia do
Patriarcado, amarrado nas mãos e pés.
– Ah, gatinha, a vassoura não fará nem cócegas! – Aquela voz
asquerosa do veterano me fez fechar os olhos e me desligar do que poderia
acontecer nos minutos seguintes.

Levantei assustado e suado. Novidade.


Tinha acabado de ter mais um pesadelo disfarçado de lembrança.
Maldita lembrança.
Olhei ao redor e Rivka já não estava no quarto. Ainda bem. Levantei e
fui tomar um banho para tentar me reequilibrar. Não podia aparecer tão
abalado na frente das pessoas.
Precisava ir embora logo da fazenda. Aquele lugar me levava direto
para a infância que sempre lutei para esquecer.

Rivka
Estávamos há três dias na fazenda. Minha linda sogra era a pessoa
mais amável que conheci no mundo depois de Dora e de meu pai. Não
conseguia entender como conseguiu criar um filho tão insensível como
Malcolm, mas nem tudo tem explicação nessa vida, não é mesmo?
Malcolm começou a ficar estranho. Sempre me dava suas patadas, já
nem me afetava, mas começou a fazer mais questão de estar comigo nos
locais onde eu queria ir e me observava demais, como um analista.
Era estranho.
Não brigamos mais, nem debatemos sobre as coisas que conversamos
duas noites antes daquela manhã gloriosa e quente do terceiro dia, o que para
mim foi um avanço muito maduro.
Eu só tinha vinte e cinco anos e muito gás para me aventurar. Estava
exausta da vida de esposa do Patriarca e minha sogra me deu tanto apoio nos
últimos dias que me senti ainda mais renovada.
– Ah, menina, por que não faz algum curso? Ou uma atividade para
espairecer a mente? – Adélia sugeriu durante aquele café da manhã
maravilhoso.
Malcolm ainda dormia e eu preferia assim. Desci mais cedo e ajudei
as empregadas a fazer o café. Amo cozinhar e já estava sentindo falta de pôr
em prática meus hábitos culinários. Aproveitei e fiz umas panquecas doces
para o desjejum.
– Eu fazia trabalho voluntário um tempo atrás. Ajudava em algumas
ongs, acho que voltarei a fazer isso – comentei enquanto comíamos.
Éramos somente nós duas à mesa e aquilo nos dava algumas
liberdades.
– Quando seu marido era vivo, te permitia fazer coisas assim? –
perguntei.
Ela bebericou seu café e olhou para o alto, buscando na memória a
resposta que pedi.
– Meu casamento não era como os demais do Patriarcado, menina. Eu
sabia que os casais eram arranjados e não tinha amor nem respeito muitas das
vezes. Mas Frederich e eu éramos felizes. Ele nunca me proibiu de nada, nem
me impediu. Fiz o que eu queria fazer, pois nos amávamos e nos
respeitávamos.
Oi?
Pela primeira vez eu compreendi o motivo dela falar tanto de
casamento bem sucedido nos dias anteriores. Ela teve um casamento de
sucesso. Mas... como?
– Como conseguiu a proeza de ser amada pelo patriarca?
Não contive as palavras que fugiram da minha boca, mas logo ouvi
passos. Era meu marido.
– Dia – resmungou com a feição de quem mal tinha dormido.
– Bom dia, filho. Sente-se. Temos panquecas deliciosas hoje.
Adélia disse que Malcolm amava panquecas no café da manhã, então
se ele amasse as minhas sem nem saber que eu fui a cozinheira, teria um
ponto.
Ele se sentou de frente a mim e selecionou tudo que gostaria de
comer, inclusive as panquecas. Adélia continuou bebendo seu café e eu
disfarcei minhas olhadas para ver se ele comeria e gostaria das panquecas.
– Não foi Helga quem fez as panquecas – ele só analisou, continuando
a comer sem dizer mais nada.
Ficamos quietas e eu já imaginei que ele tinha odiado, então finalizei
meu café e já estava pronta para me retirar do recinto, quando ele
complementou:
– Estão deliciosas demais para ter sido Helga.
Helga é a cozinheira oficial da minha sogra. Uma senhora amável e
caprichosa. A comida dela era divina e não tinha defeito algum, mas se
Malcolm considerou minhas panquecas deliciosas e superiores, eu que não
iria negar.
– Com licença, vou dar um pulo no quarto.
Me levantei e andei a passos curtos em direção ao corredor dos quartos, e
mesmo um tanto distante da sala de jantar, pude ouvir Adélia comentar:
– Foi Rivka quem fez as panquecas, filho.
No fundo eu estava feliz, por mais que o motivo fosse algo tão bobo.
Enfim Malcolm gostou de algo que vem de mim.
Estava nos estábulos conversando com Diana, a responsável por
cuidar de cada cavalo ali presente. Queria ajudar em alguma coisa, me sentia
muito parada por só ser uma hóspede.
– Se quiser, mais tarde reporei a comida deles, pode vir me ajudar –
disse amável.
Assenti feliz.
– Venho sim.
Logo o capataz da fazenda se aproximou de mim. Era um homem
jovem de aparentes trinta e poucos anos, porte atlético e pele morena de sol.
Muito educado, preciso ressaltar.
– Senhora Samuels, caso precise de orientações sobre a fazenda, fale
comigo. Sei como funciona cada metro quadrado. – Encostou seu cotovelo
em meu braço, de leve.
Olhei para ele e sorri. Gostava quando as pessoas me faziam sentir em
casa.
– Obrigada.
– Vim para te chamar. O senhor Samuels pediu que fosse ao encontro
dele.
Bati as mãos na calça jeans que usava, limpando os vestígios do
estábulo, e o segui.
– Sim, vamos.

Assim que chegamos no casarão, um dos empregados me avisou que


Malcolm estava no quarto à minha espera. O capataz, muito educado, se
ofereceu para levar-me até lá. Achei exagero, mas aceitei. Andamos pelo
corredor até a porta do quarto e quando Malcolm abriu, sua feição neutra
logo ficou em alerta quando notou o homem ao meu lado.
–Volte para seus afazeres, Victor.
Eu entrei e não quis ver os dois trocando palavras. Estava
pressentindo que Malcolm havia me chamado para algo importante. Então
avistei as malas sobre a cama, já prontas.
No entanto, não tinha minha roupa nelas.
Assim que ouvi o barulho da porta fechando e sendo trancada, respirei
fundo. Sentia que iríamos brigar.
– O que aconteceu? Por que me chamou?
Estava de pé com os braços cruzados em defensiva. Queria entender a
cena das malas sem perder nada.
Ele veio até mim e tocou meus braços, como se quisesse aliviar o que
diria.
– Volto daqui a pouco para Londres. Tenho muitas pendências e
preciso resolver logo.
– Então farei minha mala também. – Soltei os braços antes cruzados.
Ele me largou e virou as costas para mim, andando em direção à
cama.
– Você ficará mais sete dias aqui. Preciso ir sozinho.
Por um lado, fiquei tranquila por ficar sem ele me vigiando, mas por
outro fiquei preocupada, pois não sabia o que poderia acontecer com ele por
lá.
Estávamos criando um pequeno, bem pequeno, elo de amizade devido
à confiança que começamos a gerar. Em três dias na fazenda avançamos o
equivalente a mais de um mês em Londres.
– E...? – não sabia mais o que perguntar.
Ele me olhou novamente de uma forma intensa e estranha. Malcolm
tinha desses momentos esquisitos depois que viemos para a fazenda.
– Cuidado com o Victor. Eu vi como ele olhou para você. Cuidado
com qualquer pessoa nesse lugar – alertou tentando não ser ácido, porém
falhou miseravelmente.
– Para você, ninguém presta.
– Mas é a verdade da vida. Não valemos nada – afirmou voltando à
sua feição dura e cruel.
Suguei muito ar aos pulmões, pois minha paciência não estava das
melhores. Devia ser a TPM.
– Então o que mais deseja dizer antes de ir? Quer minha benção?
Deus abençoe – falei seca e segui rumo à porta.
Queria voltar logo para os estábulos e ajudar Diana a alimentar os
cavalos, mas fui brutalmente segurada pelo braço no instante em que toquei a
maçaneta. Malcolm me virou para ele e grudou seu corpo no meu, colando
minhas costas na porta.
– Desejo isso.
Ele simplesmente devorou-me com seus lábios e a princípio não reagi,
no entanto, ele continuou insistindo para que eu o beijasse, então fechei meus
olhos e tentei me conectar ao momento mesmo sem vínculo sentimental com
meu próprio esposo.
Seus lábios eram macios, quentes, devoravam os meus com certa
urgência e calma ao mesmo tempo. Era como se um duelo fosse travado onde
ambos perderiam, mas aproveitariam até o último minuto antes de serem
decretados perdedores.
Sua língua habilidosa envolveu a minha, me fazendo amolecer em
seus braços por sentir pela primeira vez o que era um beijo de verdade.
A Rivka sensível e tola tomou as rédeas e quando menos notei, meus
braços envolveram o pescoço daquele homem sem alma e nosso beijo se
intensificou de tal modo que precisei de ar.
O lugar estava quente, muito quente.
– Preciso... respirar... – ofeguei ainda de olhos fechados e testa colada
à dele.
Malcolm, porém, suspirou e aos poucos se afastou, fazendo com que
eu abrisse meus olhos e encontrasse os azuis quase cinza dele me fitando com
intensidade.
– Preciso ir – foi o que disse.
E em poucos minutos ele realmente foi, me deixando aturdida em
ilusões e pensamentos, como se retornasse à estaca zero do dia do casamento.
Malcolm
– Só queremos saber como você lidará com essa escória da
humanidade?
Estava numa reunião secreta com dois dos meus chefes mais
poderosos dos governos mundiais. Ambos desejavam derrubar o FBI de vez
por terem desobedecido mais de uma vez as nossas ordens.
– Não podemos acabar com o FBI, é um meio por onde também
monitoramos todo esquema de segurança. Podemos apenas dar um susto e
um aviso para o atual presidente.
Ali elaboramos um ataque como forma de aviso. Ter que alinhar
todos os corpos governamentais na nossa visão era cansativo. Muitos estavam
se voltando contra o Patriarcado por conta de meu pai ter morrido. Achavam
que eu não seria um bom patriarca.
Desde que assumi, notei que há gente querendo me matar, mas ainda
não descobri a fonte de tudo, muito menos a motivação, mas irei decifrar esse
enigma.
Quando me formei na academia, estava 110% da forma como deveria
estar. Lembro de meu pai citar, todos os fins de semana em que eu passava
em casa, as leis de um Patriarcado de sucesso:
1- Razão é o que move.
2- Dever é mais importante que tudo.
3- Família é prioridade na segurança.
4- Decisões devem ser frias e racionais.
5- Traidores pagam com seu sangue.
6- Amor é ponto fraco.
7- Escolha sempre pela organização.

Essas eram as principais, porém havia um livrinho de regras de


conduta para que meu cérebro jamais esquecesse tudo que eu precisava saber.
Li inúmeros livros sobre leitura corporal, psicologia, poder da mente,
persuasão, anulando sentimentos em prol da razão, entre outros. Ser um
Patriarca é cumprir seu dever acima de tudo.
É o juramento que fazemos quando assumimos a posição.
Nos sete dias que fiquei sozinho em Londres, consegui ajustar tudo –
ou quase tudo – concernente ao Patriarcado.
Tive que conferir alguns presos nas nossas salas subterrâneas de
tortura e consegui algumas provas para levar à justiça sobre crimes
mundialmente conhecidos. Muitas vezes não dava apenas para mandar
alguém resolver, devia ser eu mesmo a fazer.
Mas cada dia que passava e cada noite que eu dormia rolando de um
lado para o outro na cama, nem que fosse por curtos segundos, Rivka vinha
em minha mente.
Eu estava admirado pela força que ela demonstrou ter.
Não abandonou seu caráter, nem perdeu seus princípios ao tentar me
fazer confiar nela. Desde que casamos tenho reparado que ela não se
envergonha nunca de ser quem é, de expressar o que pensa, por mais ingênua
que seja. Ela não se esconde detrás de máscaras e não deve a ninguém.
Aquilo me fazia admirá-la quase todas as noites.
E a lembrança do beijo ia e vinha, como uma maldição.
Mas logo em seguida eu lembrava...

– Isso é o que o amor faz, Malcolm. O amor só machuca.


Uma chicotada. Duas. Três.
Estava sendo chicoteado pelo meu maior inimigo da academia, e pelo
fato dele ser maior e mais forte, eu não conseguia reagir. Tinha só doze
anos.
– Repita comigo: o amor não existe.
Eu já sabia que o amor não existia, meu pai dizia a mesma coisa,
porém nunca vivenciei na pele a realidade da frase até então.
– O – uma chicotada – amor – duas – não – mais uma – existe.
Ainda estava longe de descobrir o porquê dele sempre me maltratar,
mas dentro de mim, a cada maldade que ele fazia, a sede de vingança
crescia.

O amor não existe.


Jamais poderia amar alguém, eu não conseguia. Não podia.
Ser quem sou é mais do que um nome, um posto, é uma formação. Fui
moldado para ser desse jeito e mesmo que meu corpo sinta falta do ligeiro
momento que passei ao lado da mulher com quem casei, preferia desprezá-la
a ter que alimentar qualquer sentimento que me faça descumprir meu dever
na vida.

Rivka
Nos quatro dias seguintes à ida de Malcolm para Londres, não tive
nenhuma notícia dele.
Nenhuma ligação, mensagem, nada.
Também, era de se esperar o sumiço. O homem enlouqueceu, me deu
um beijo e foi embora.
Sinceramente eu não estava entendendo mais nada.
No fundo, minha mente sonhadora de menina pensava que talvez eu
estivesse rompendo a fortaleza de gelo naquele coração.
Mas não.
Não mesmo.
Acordei cedo naquela manhã, pois Adélia me pediu para tomarmos
café na sua biblioteca. Ela queria me mostrar algumas coisas da família e eu,
curiosa como sou, não pude negar.
Assim que entrei no ambiente, a vi sentada em uma linda cadeira
acolchoada revestida de couro, com suas roupas sempre tão elegantes. Ela
portava alguns livros enormes nas mãos.
Quando me aproximei mais, notei que não eram livros comuns, eram
álbuns de fotografias.
Antes de sentar-me ao seu lado, não pude deixar de notar as estantes
enormes cheias de livros que envolviam o lugar. Me sentia num mar literário
onde podia viver a vida que quisesse a hora que desejasse.
– Nossa... queria ter visto essa biblioteca antes. Já teria lido muitos
livros durante os dias que fiquei aqui – comentei ainda abobada.
Me sentei e cumprimentei minha sogra que, sempre amável, retribuiu.
– Ah, minha menina, eu sou tão ciumenta com minha biblioteca,
espero ter certa intimidade para trazer alguém aqui.
Me senti importante quando ouvi aquilo. Estava subindo um degrau
na relação com ela.
– Obrigada pela confiança, Adélia.
Sorri.
Tomamos café com calma, enquanto falávamos sobre diversos
assuntos. Não cheguei a conversar com ela sobre a forma como Malcolm e eu
nos tratávamos, mas ela já tinha percebido e vez ou outra me dava conselhos
preciosos. Quando enfim finalizamos o café, ela abriu o álbum enorme que
tinha em mãos e começou a folhear.
– Quero que conheça seu esposo quando era criança. Talvez saiba
identificar um pouco mais sobre ele quando vir a autenticidade no rosto dele
criança. Isso ajuda.
– Realmente é difícil saber o que ele está achando de tudo, pois sua
feição jamais muda. É estranho.
Ela riu e apontou uma pequena foto.
Certamente era Malcolm com os cabelos desgrenhados e loiros ao
vento. Aparentava ter cinco anos ou pouco mais. Estava segurando uma
medalha e em seu rosto havia um sorriso lindo. Seus olhos brilhavam de
alegria e estavam muito arregalados, surpresos com a conquista.
– Aqui ele ganhou a medalha de soletração na escola. Foi antes de
entrar na academia do Patriarcado. Ele tinha seis anos e amava ler e escrever.
Dizia que quando crescesse escreveria muitas histórias.
Levantei o olhar e notei que Adélia se emocionava ao ver a pureza de
seu filho tão nítida na foto.
– Era um menino muito bonito e feliz, com certeza.
Ela confirmou com a cabeça e me mostrou outra foto, naquela ele
tinha cinco anos e era seu aniversário.
– Frederich não gostava de festas. Dizia que não era lícito a família
patriarcal comemorar esse tipo de coisa e eu compreendia. Para todos de fora,
não podíamos nos dar ao luxo de expressar sentimentos. Quanto mais
sentimental você é, mais fraco aos olhos de todos você se torna. Malcolm
estava feliz com o pequeno bolinho e a vela com o número 5. Disse que foi o
melhor aniversário da sua vida.
Alisei a pequena foto. Malcolm olhava concentrado para o bolo cheio
de glacê branco com uma vela enorme com o número 5. Olhava com
admiração, fixo, concentrado. Aquele olhar ele ainda tinha, pois já o vira
daquela forma algumas vezes.
Bem perto daquela foto, tinha outra onde Malcolm estava sério, um
pouco mais velho.
– Nessa foto, por que ele está tão sério? Ainda era tão criança –
perguntei.
Adélia suspirou pesadamente e observou bastante a foto antes de
falar.
– Ele já estava na academia do Patriarcado. Eu não sabia ao certo no
que constavam os treinamentos, mas sabia que ele acabaria realmente se
tornando um menino mais fechado, como todos os homens da organização.
Mas Malcolm não...
Parou de falar, como se não pudesse contar mais.
Só que sou curiosa e tive que pedir pra que ela continuasse.
– Malcolm não gostava de lá por algum motivo que nunca me disse.
Dizia que era horrível e que odiava. Por pelo menos três anos ele chorou
escondido para mim, pedindo, implorando para que eu convencesse Frederich
a tirar ele de lá.
Meu coração apertou dentro do peito. O que será que Malcolm passou
dentro daquele lugar que o deixou do jeito que é hoje?
– E o que o pai dele dizia sobre esse lugar?
– Que só tinha homens. As mulheres eram proibidas e que o ensino
era extremamente rigoroso. Ele devia estar lidando mal com as provas físicas
e as pressões psicológicas, mas que aquilo o faria o homem que ele devia ser.
Então eu apenas aceitei e abracei meu filho por inúmeros finais de semana,
até que ele parou de chorar um dia. E desde esse dia nunca mais o vi
expressando emoção alguma.
E realmente as fotos do resto da infância e adolescência de Malcolm
estavam praticamente iguais. Com o mesmo rosto que ele usa hoje. Imparcial
e inexpressivo.

Estava cavalgando naquele fim de tarde. Diana me ensinou como


montar e em alguns dias eu comecei a praticar em um cavalo manso e menor
que os demais. Estava ficando boa naquilo e, enquanto trotava, sentia a brisa
tocando minha pele suavemente. Era libertador.
Assim que retornei ao casarão, Victor, o capataz, estava na porta me
aguardando.
– Senhora Samuels, como vai?
O cumprimentei com um meneio.
– Bem.
– Vim aqui para levar seu cavalo para o estábulo e dizer que, caso
precise, estou aqui. – Deu uma piscadinha estranha.
Era impressão minha ou ele estava dando em cima de mim?
Agradeci o gesto, mas lembrei que Malcolm me pediu cuidados
extremos. Não podia vacilar, pois ele confiava em mim.
Entrei e segui direto rumo ao quarto, mas acidentalmente acabei
escutando a voz da minha sogra falando com alguém ao telefone dentro da
biblioteca, que estava de porta aberta.
Adonai que me purifique e perdoe, pois escutar conversa alheia é
pecado, mas sentia que tinha que ouvir.
– Filho, está tudo bem, eu já disse. Tudo como sempre esteve. – Uma
pequena pausa antes dela continuar. – Sim, eu estou bem, estão todos muito
bem. – Mais uma pausa. – Se está me enrolando para saber se sua esposa está
bem, por que não liga para ela?
Meu coração começou a acelerar.
Ele enfim deu sinal de vida e perguntou por mim. Ao menos parecia
ter perguntado.
Não sabia como falar ou reagir depois do último momento que
passamos. Eu era leiga nesses assuntos sentimentais. Como será que ele
reagiria?
Corri para meu quarto e me tranquei no banheiro para tomar meu
banho. Deixei o celular sobre o balcão apenas aguardando a chamada. Ele
poderia ligar a qualquer momento.
Qualquer instante.
Agora, depois, amanhã...
Mas não ligou.
Mais dias se passaram e chegou o momento em que eu voltaria para
minha casa. Aquela semana foi crucial para que eu enfim descansasse de tudo
que passei no último mês, e realmente me sentia revigorada.
Não sabia a hora que meu marido chegaria, então não pus o celular
para despertar, apenas adormeci.
Meu tronco estava pesado, como se algo estivesse sobre mim. Não sei
como tinha dormido tanto, mas no instante em que abri devagar meus olhos,
vi um braço tatuado em volta da minha cintura.
Respirei fundo e virei lentamente o rosto, tentando atestar a origem do
braço.
Era ele.
E estava dormindo também.
Sabia que momentos como aquele poderiam ser raríssimos, então
continuei ali, aproveitando o abraço e o corpo dele colado ao meu para
dormir mais um pouquinho.
Quem sabe fosse um sonho?
Quem sabe era real?
Rivka
O sol já iluminava todo o amplo quarto quando abri meus olhos
naquela manhã. Com certeza tinha dormido muito e já devia ser tarde. Sentia
meu corpo dar indícios de preguiça por ter dormido demais.
Me espreguicei e virei para o lado, mas Malcolm não estava lá.
Acreditei que o que vi na madrugada fosse sonho, mas então a porta do
quarto se abriu e lá estava ele em toda sua glória e beleza, com uma bermuda
jeans e uma regata. Básico para qualquer pessoa, mas para meus olhos
iludidos, muito bonito.
Papai sempre me alertou sobre o perigo de acreditar demais nas
pessoas e eu já tinha sofrido por conta disso, mas nunca tinha me apaixonado
por ninguém e não sabia quais sentimentos devia evitar ou deixar de
“quarentena”. Mesmo tendo passado tudo que passei com Malcolm, aquele
homem que ele estava tentando ser nos dias que passamos juntos na fazenda
fez meu coração tolo acreditar que eu podia viver uma história de amor um
dia.
Uma história bem doida, diga-se de passagem, mas real.
Eu precisava ser menos idiota, mas não conseguia. Estava no auge dos
vinte e cinco anos, cheia de hormônios e desejos, porém só tinha uma pessoa
que podia suprir tudo isso.
O observei com cautela, analisando cada traço. Malcolm não era
musculoso ao extremo, tinha um porte atlético e forte. Com o corpo revestido
de tatuagens sem fim, seu ar de bad boy podia ser visto a quilômetros de
distância.
Os cabelos compridos e loiros estavam amarrados no topo da cabeça,
num coque mal feito, e sua barba cheia estava devidamente aparada. Eu
gostava do que via.
Gostava muito.
– Bom dia – disse ele ao fechar a porta e vir andando até a cama.
Quando ele se sentou ao meu lado, eu percebi que estive quieta por
tempo demais.
– Bom dia. Chegou de madrugada ou só agora?
Ele estreitou os olhos e respondeu de pronto:
– Cheguei agora. Por quê?
Arregalei os olhos e olhei ao redor para ver se não tinha alguma
pessoa escondida no quarto ou sei lá. Como que um homem me abraçou de
madrugada e não era Malcolm?
Comecei a ficar nervosa.
– Hã... tem certeza? Porque eu juro que alguém entrou de madrugada
aqui.
O fitei fixamente, para que notasse que eu dizia a verdade. Ele tinha
que saber que meu quarto foi invadido.
– E esse alguém, você chegou a ver?
Levantei e me sentei para explicar melhor.
– Eu estava dormindo tranquilamente e senti um braço me envolver.
Apenas acordei por conta do peso do braço no meu corpo e, quando vi, era
um homem. Como a luz estava fraca demais não identifiquei quem era,
pensei que podia ser você.
– E não levantou para averiguar? Não acendeu a luz ou quis confirmar
se era eu? E se fosse um abusador ou maníaco?
O tom de voz dele já estava rude. Quando chegou e deu bom dia
parecia tranquilo. Qual o problema desse homem?
– Pelo visto não era. A pessoa até foi embora.
Ele levantou e suspirou antes de colocar a mão na cintura e me lançar
um olhar repreensivo.
– E se fosse? Rivka, era eu sim. Mas e se não fosse? Você precisa
entender que não é mais uma pessoa qualquer. Precisa ter o pensamento ágil.
Saí da cama e segui rumo ao banheiro enquanto ele tagarelava sobre
agilidade, esperteza e defesa.
Se queria que eu soubesse essas coisas devia me treinar, não ficar
apenas exigindo.
Depois da minha higiene matinal, saí do quarto e ele estava ali ainda,
sentado na beira da cama.
– Achei que já tinha ido – comentei.
– Se arruma, vamos dar um passeio pela propriedade. Coloque o
biquini.
Então, após ter feito seu pedido, saiu me deixando à vontade.
Fiz minhas orações e então me aprontei para nosso passeio. Meu
coração palpitava ansioso e com uma esperança que antes estava morta, mas
do nada voltou a viver.
– Você é uma menina tola, Rivka – murmurei contra o espelho. – Tola
demais.
Malcolm dominava a arte de cavalgar. Era como se conseguisse se
comunicar com o cavalo por telepatia. Sua harmonia com o animal era
simplesmente admirável. Assim que chegamos na cachoeira, ele amarrou o
cavalo em uma árvore e seguimos pela curta trilha até onde dava para tomar
banho.
Eu estava doida para perguntar a ele como tinham sido os dias que
passou em Londres, mas já tínhamos debatido pela manhã, queria evitar
estresses à toa.
Quando enfim contemplei aquela maravilha divina, fechei meus olhos
e agradeci.
– ‫תודה לאל שלי על נפלאותי ך‬.
(Agradeço a meu Deus por suas maravilhas)
Era esplêndido poder contemplar tanta beleza assim. Como as pessoas
têm coragem de dizer que todas essas maravilhas não foram arquitetadas por
um ser divino?
– Essa é a minha cachoeira.
A voz de Malcolm me fez virar o rosto para o lado, onde ele estava.
Ele observava atentamente as águas torrentes despencando como rios
vindos do céu, concentrado, como sempre sem denotar emoções em sua fala.
– Muito bonita. Não a conheci nos dias que estive aqui sem você.
– E nunca conheceria sem mim. Como eu disse, a cachoeira é minha.
Só eu posso entrar.
Ah...
Fiquei sem palavras e estava mais que ansiosa para imergir naquela
água gelada.
Ele, porém, se despiu totalmente – e quando digo totalmente, é sem
nenhuma roupa – e entrou na água.
Pude sentir o rubor invadir minhas bochechas e aquecer todo meu
corpo. Eu não teria coragem de tomar banho no lago da cachoeira sem
absolutamente nada.
Então fiquei somente de biquini, colocando minha roupa perto da
dele, e desci pelas pedras até a água.
Malcolm mergulhava como se fosse um peixe. Ainda não o tinha
visto daquela forma, tão à vontade na água. Nunca nos divertimos juntos nem
fizemos esse tipo de programação antes, então confesso que fiquei bastante
abismada, impactada.
– O que tanto olha? – indagou ele, se aproximando de mim
lentamente. – Gosta do que vê, não é?
Uma das coisas que mais me irritava nele era esse ego gigante e
soberbo. Deus que me perdoe.
Mas sim, eu estava amando a vista, mas não confessaria tão
abertamente.
– Talvez esteja gostando. Talvez não. – Dei de ombros e arrisquei
mergulhar um pouco.
Não era fundo, então me garantia no nado e no mergulho. Meu pavor
era quando não conseguia sentir o pé no chão.
Quando menos esperei, senti o braço dele envolver minha cintura, por
trás. A princípio fui tomada de medo, pois não sou boa nadadora, apenas me
viro, só que no instante em que senti o corpo de Malcolm colado ao meu...
– Acho que você está ficando muito abusadinha, linguaruda. Merece
ser colocada no prumo.
Não sei se compreendi bem a forma como ele sussurrou ao pé do meu
ouvido, mas não parecia um tom de voz que queria colocar medo em alguém.
Pelo contrário, me fez arrepiar.
Estranho.
– Que prumo é esse? Porque acho que já deixei claro que não sou o
tipo que... – comecei a falar me virando para ficar de frente pra ele, mas fui
interrompida com seus lábios simplesmente devorando-me sem pedir licença.
Adonai, meu Senhor, o que eu faço?
Não queria parecer a tola inocente que não sabe reagir àquele tipo de
investida, mas eu realmente não sabia como reagir.
“Não pensa, Rivka, apenas aproveita.”
Uma voz no meu consciente me orientou e eu entendi que era pra
obedecê-la.
Enlacei o pescoço do meu marido enquanto correspondia aos seus
beijos e instintivamente envolvi sua cintura com minhas pernas, me
pendurando nele.
Sim, eu sabia que ele estava excitado e tudo mais, mas foi como se eu
nem me importasse. Foi algo... natural.
– Assim você não facilita – ele praticamente gemeu a frase no meu
ouvido e desceu as duas mãos para meu traseiro. – Vamos resolver isso agora
mesmo.

Depois de Malcolm me despir e jogar meu biquini em algum lugar,


ele começou a beijar meu corpo todo, literalmente.
Minha mente voltou para a única vez em que tivemos algum
envolvimento íntimo, na lua de mel, mas foi diferente, pois Malcolm não
tinha me beijado. Muito menos colocado a boca em lugares...
– Deus do céu! – ofeguei quando o senti atingindo pontos estratégicos
do meu colo.
Enquanto ele me devorava com sua boca, as mãos percorriam outros
locais também estratégicos.
Fechei meus olhos e me deixei levar, apenas sentindo suas carícias me
dominando. Ele havia me encostado sobre uma pedra à beira do lago, e
mesmo com nossos corpos submersos da cintura para baixo, era como se eu
pegasse fogo da cabeça aos pés.
Como ele era habilidoso!
Pude sentir prazer de uma forma inenarrável pela primeira vez desde
que casei e aquele local reservado com a visão linda de uma cachoeira foi
testemunha.
Achei que apenas trocaríamos carícias, mas depois de um tempo ele
pediu para que eu o segurasse firme nos ombros e envolvesse com mais força
minhas pernas em sua cintura, pois tentaria não ser intenso demais.
Compreendi nos minutos seguintes quando nos unimos em um e o
senti dentro de mim depois de tanto tempo.
Naquele ato eu compreendi realmente o tanto que os casais se
importam e prezam por terem intimidades.
Era bom. Bom demais.
Apaguei da minha cabeça minha primeira vez e, para mim, a primeira
vez ficou marcada como aquela.
A da cachoeira.

Malcolm
Puta merda.
Eu não tinha planejado transar com Rivka naquele lugar. Tinha
prometido para mim mesmo que manteria minha esposa no lugar dela e nosso
vínculo seria como sempre foi: um trato.
Mas com essa coisa toda de confiança, o fato dela falar demais e
querer que eu a tenha numa alta conta sempre, fez com que eu desse uma
pequena chance de tê-la, talvez, como uma aliada.
No entanto, algo dentro de mim avisava que mulheres não servem
para essas coisas. E esse algo estava certo.
Lá estava eu, comendo minha aliada sem controle algum. Mesmo
sabendo que a aliada é minha esposa e eu não poderei simplesmente ignorá-la
nas próximas horas.
E que maldição, fiquei sete dias longe dela sentindo falta da maldita.
Eu a queria, era fato.
Eu a desejava. Uma novidade, com certeza.
E eu tinha perdido o controle das minhas ações.
O que me tornava um fraco.
Atitude imperdoável.
No caminho de volta para o casarão eu já estava pensando em como
fazê-la entender que aquilo que aconteceu na verdade não tinha sido nada.
Sou homem. Ela é mulher. Isso acontece.
Ainda mais quando parei de aliviar minha tensão sexual com as
prostitutas que contrato semanalmente.
Sou um homem de palavra e de dever. Achei justo o pedido de Rivka
por fidelidade, uma vez que não desejo ser o chifrudo da história.
Só que as coisas não podiam fugir do meu controle.
Definitivamente, não podiam.

E eu tinha que dar um jeito naquilo.


Rivka
Já fazia duas semanas que tínhamos retornado para Londres e eu
estava tentando compreender o motivo de Malcolm estar ainda mais distante
que o habitual.
A cena da cachoeira ia e vinha nos meus pensamentos e sonhos quase
todos os dias, mas, quando despertava, a solidão por dormir sozinha atingia
meu peito.
Era agonizante.
Em contrapartida, estive um pouco mais inteirada sobre o Patriarcado.
Nos momentos em que Malcolm e eu conversávamos – sempre com Romero
junto –, ele me explicava algumas coisas, como por exemplo, o motivo da
reunião que ele teria com Enzo.
Me parece que Enzo aprendeu uma lição, mas meu marido não quis
contar de qual modo seu primo aprendeu. O que eu sabia era que devia estar
sempre em alerta com movimentos suspeitos, contatos telefônicos,
empregados dentro e fora da casa. Malcolm suspeitava de que Enzo estava
tramando algo contra sua vida e usaria infiltrados para concluir seu plano.
Não achei que Enzo faria algo tão cruel, mas se Malcolm disse que
sim, quem sou eu para negar? Afinal, ele já abusou de mulheres indefesas.
Do que mais ele seria capaz?

Estava eu em casa, espiando por trás das pesadas cortinas da porta da


varanda de meu quarto, que dava na entrada frontal da mansão em que resido,
quando, enfim, avistei o carro de Malcolm entrando na propriedade.
Fechei as cortinas e corri até a penteadeira, a fim de me olhar no
espelho. Estava bonita, com meu vestido azul-marinho de tecido, bem reto
com botões frontais de cima a baixo. Amava aquela roupa.
Andei a passos largos até a porta do quarto e a abri, seguindo adiante
rumo às escadarias que logo meu esposo subiria. Assim como o previsto, ele
subiu a passos pesados com Romero à sua escolta.
Assim que passou por mim, disse “venha”, e seguiu para o corredor
particular dele, onde eu estava começando aos poucos a ter acesso.
Os segui e entrei no escritório dele, fechando a porta em seguida.
Foi eu trancar o lugar, que acabei por estremecer pelo brado dado por
meu esposo.
– Maldito! – o grito acompanhou um soco forte na mesa de mogno,
que se mostrou muito resistente.
Me virei e, assustada, me aproximei dos dois.
– O que houve? Enzo ameaçou vocês?
Romero tentou explicar. Compreendi que, naquele momento,
Malcolm não estava dado a explicações.
– Chegamos lá e fomos cercados. Enzo afirmou que se vingará de nós
por termos feito o que fizemos com ele e que era para Malcolm se preparar
para reviver seu pior pesadelo. Não compreendi muito bem, pois sabemos
que Malcolm não tem medo de nada. Então...
– Ele só quer te amedrontar – tentei acalmá-lo mesmo sabendo que
poderia ser tratada como um lixo. Malcolm não estava nos seus melhores
momentos. – Sabe que não pode fazer nada contra o Patriarca. Certo?
– Sim. Ele não pode – foi Romero novamente quem respondeu.
Enquanto conversávamos Romero e eu, Malcolm estava com os olhos
fitos na mesa, no local que tinha socado anteriormente.
– Não sei o que ele planeja, mas vou matá-lo antes – enfim proferiu,
cerrando os dentes de ódio.
– Tudo isso por causa daquele dia... do baile? – perguntei em minha
ingenuidade.
Malcolm levantou o rosto e me fuzilou com o olhar.
Calafrios me dominaram antes dele proferir qualquer palavra com sua
voz de trovão.
– Acha mesmo que temo a morte por conta de um deslize de Enzo?
Aquele maldito filho de uma puta não sabe com quem se meteu e não é de
hoje. Enzo e eu temos uma longa dívida. Uma longa dívida.
Não tinha entendido bem, mas sabia que dívidas um dia eram
cobradas.

– Menina, por que está tão abatida?


Linda, como sempre, era a alegria dos meus dias naquela mansão
quase mal-assombrada.
Não podia sair, estava vivendo em cativeiro pois Malcolm não queria
que eu corresse riscos em momentos turbulentos como aqueles. Me sentia
entediada e meu próprio marido nunca mais encostou em mim como homem,
o que me fazia suspeitar de que talvez ele ainda estivesse me traindo.
Quando eu descia para fazer algo para o jantar, era sempre nos
momentos em que minha cabeça girava com pensamentos conflituosos me
fazendo querer chorar.
Eu estava gostando do babaca do Malcolm. Tudo isso porque ele me
tratou bem na fazenda, naquela maldita cachoeira e depois realmente mostrou
que estava confiando mais em mim. Tive a esperança de que ele também
estivesse gostando de mim e enfim pudéssemos viver uma rotina melhor
como marido e mulher.
Mas a cada dia que eu ia dormir e ele não batia à minha porta, minhas
esperanças se esvaíam.
– Preciso passear, Linda. Estou me sentindo prisioneira dentro dessa
casa enorme.
Abri a geladeira e comecei a pegar os ingredientes para o jantar
daquela noite. Eu faria um ensopado caprichado repleto de legumes.
Enquanto ela e eu começávamos a picar e lavar os legumes e
organizar os demais ingredientes, ficamos ali falando de tudo que me
assolava.
Mesmo sabendo que não podia cruzar uma linha com ninguém.
– Fala com o patrão sobre isso. Ele não pode te trancafiar aqui todos
os dias. É maldade!
Quis rir.
– Maldade é um elogio para Malcolm, Linda. Ele nem sequer
pergunta se eu desejo fazer algo diferente. Não se preocupa comigo. Sou
como uma bagagem em sua vida. Estou muito chateada.
Segurei as lágrimas para que não caíssem, e assim que virei o rosto
para a direita, avistei na entrada da cozinha o alvo do meu bate-papo apenas
me observando com os braços cruzados.
Meu peito acelerou com o susto e acabei gritando um “oh”
involuntário.
– Venha comigo – disse ele antes de virar e seguir para o local de
onde ele veio.
– Meu Deus... – sussurrei enquanto lavava as mãos e deixava tudo lá
para que Linda continuasse meu trabalho.
Ela me deu um olhar cúmplice e eu a agradeci mentalmente antes de
correr para não perder Malcolm de vista.
Ele subiu as escadas e foi direto para... meu quarto?
Quando entrei, ele estava sentado na poltrona que eu usava para
leitura. Suas mãos estavam na nuca e sua pose se mantinha relaxada, à
vontade.
Fechei a porta e o encarei, com receio.
– Por que me chamou assim?
Me aproximei lentamente enquanto ele falava:
– Por que desabafa com Linda?
Boa, Malcolm! Respondendo com outra pergunta.
– Porque eu gosto dela. Ela me entende.
– Acho que devia parar de falar sobre mim com ela. Converse sobre
qualquer coisa, menos eu.
– Ah, que interessante. Então sobre o que eu poderia falar? –
perguntei debochando. Estava começando a gostar de ser irônica. – Ah!
Nada! Porque eu não saio daqui pra absolutamente nada!
Ele abaixou a cabeça e balançou em negativa, depois a levantou e me
encarou com firmeza. Seu cenho estava estreito, seus olhos azuis bem fixos
nos meus.
– Faz muito tempo que você não é assim comigo. Mandona e
faladeira. Isso me excita, apesar de eu querer brigar com você.
Arregalei os olhos e dei dois passos para trás.
Quando eu estava irritada ele ficava excitado? Que coisa louca!
– Mas não pense que deixarei você se aproveitar desse momento.
Quero que me libere para sair. Preciso respirar outros ares.
Então ele levantou parecendo furioso e se aproximou de mim, colando
seu corpo no meu enquanto segurava meu braço.
– Não quero que corra riscos. Ainda não entendeu que estão tentando
me atingir? Você é a droga da minha esposa. Preciso que controle seu fogo
no rabo ao menos por um tempo.
Que babaca!
Me livrei do seu aperto e o empurrei com força.
– Quando penso que está melhorando, você piora! O que pensa que
sou? Já não confiava em mim o suficiente para entender que nunca trairia sua
confiança?
Minha voz estava começando a embargar. Engoli o choro e prossegui.
– Nem preciso dizer que já até suspeito que você voltou a pegar suas
“luxuosas amigas”, mas ainda assim sou leal ao que firmamos um com o
outro. Apesar de desejar, com todo o meu coração, que você queira a mim e
não a outras.
Aquilo o fez cerrar os olhos e fechar as duas mãos em punhos. A
feição que Malcolm fez parecia dolorosa. Como se minhas palavras
perfurassem seu corpo.
Mas ele logo se manteve firme, como sempre; abriu os olhos e falou
na sua voz neutra sempre superior:
– Não me importo. Apenas me obedeça.
E saiu sem perder sua pose de dono do mundo.
Maldito!

A cada dia que passava me sentia pior. Comecei a pesquisar os


sintomas que eu estava apresentando e tudo que o Google me informava era
que podia ser depressão ou beira de morte. Anulei a segunda opção, pois não
podemos confiar cem por cento no que achamos na internet, mas a depressão
se encaixou bem comigo.
Não queria mais fazer nada. Me sentia feia, impotente. Mal tinha
ânimo para pentear os cabelos e quando saía do quarto comia duas garfadas
de comida e só.
Aquela definitivamente não era eu.
Não falei nem com meu pai desde que voltei da fazenda, pois odiava
mentir para ele e fingir que estava tudo bem.
Malcolm nunca mais falou comigo desde o dia que discutimos, e
também não me manteve a par das situações do Patriarcado. Eu estava
literalmente invisível naquela casa.
Passei um mês assim. Emagreci alguns quilos. Dormia mais que
ficava acordada. Até que um dia eu estava descendo as escadas para comer
alguma coisa – apenas porque não desejava morrer, apesar de tudo –, mas
minhas pernas enfraqueceram e eu caí, rolando meu corpo degraus abaixo.
E tudo escureceu.

Linda
Estava suspeitando que a menina Rivka estivesse mal de saúde.
Seu rosto estava pálido e sua alimentação não era a mesma há
semanas.
Nunca queria sair do quarto, e quando saía parecia um zumbi.
Falei cinco vezes com Malcolm usando toda a intimidade que tenho
em sua vida, mas todas as vezes ele dizia que veria o que ia fazer.
E não fazia nada.
Mas quando ouvi um barulho vindo da sala, corri assustada já
imaginando que podia ser algo com a patroinha. Eu gostava demais daquela
menina. Era um anjo em pessoa.
– Ah! – dei um berro. – Menina, acorda! – Abaixei ao lado do corpo
dela e dei uns tapinhas leves em suas costas para ver se ela despertava.
Nada adiantou.
Sabia que não podia mexer num corpo acidentado para não piorar a
situação, então levantei e andei o mais rápido que pude até o telefone fixo da
cozinha.
Disquei o número dele e ansiei que atendesse de pronto.
– Diga. – A voz dele ecoou.
Tomei fôlego para contar o ocorrido.
– Sua esposa parece... desacordada. Eu diria que está quase morta.
Venha socorrê-la o mais rápido que puder.
– Maldição...
Desliguei a chamada e fiquei aguardando ao lado do corpo
desacordado de Rivka, torcendo e orando para que Deus não a deixasse
morrer.
– Por favor, Deus. Seja bondoso com essa menina. Ela precisa viver,
ela precisa viver...
Malcolm
Que ela não morra.
Que ela não morra.
Que ela não morra.
Não sei nem a quem eu estava pedindo aquilo, pois nunca acreditei
em divindades, mas torcer pela vida de Rivka parecia certo naquele instante.
Ela estava sendo atendida pelos médicos da emergência e eu estava
andando pesadamente de um lado para o outro naquela maldita sala de espera
há longos minutos.
A voz de Linda começou a ecoar na minha cabeça, lembrando como
fui idiota e infantil em não verificar a saúde da minha esposa por conta das
preocupações que havia tido nas últimas semanas.
Enzo fez uma denúncia contra mim ao conselho do Patriarcado e, até
eu provar que era mentira, quase perdi meu posto, pois as pessoas que
afirmaram que eu matei eram nada mais nada menos que um primo distante
meu e o pai de Rivka.
Não queria que ela soubesse que mataram seu próprio pai, por isso
estava fugindo dela deliberadamente.
Posso não ter coração, mas tenho senso. Sei que ela é sentimental e
isso destruiria sua vida.
Mas parece que acabei destruindo a vida dela mesmo sem querer.
Coloquei um investigador secreto atrás do culpado pela morte do pai
de Rivka sem que o Patriarcado soubesse. O homem já tinha feito serviços
secretos para mim outras vezes e nunca foi descoberto. Sabia que podia
contar com ele.
Sobre a prova de que não fui eu o mandante, a data da morte deles
coincidia justamente com o dia em que busquei Rivka na fazenda.
Enzo acabou se enrolando em provar suas acusações, mesmo
demorando semanas para me avisar do fato. O babaca era um bosta, jamais
seria um bom Patriarca se mal sabia se expressar e amedrontar as pessoas.
Deve ter sido o nerd excluído da academia.
Não passou nem metade do que eu passei.
Se bem que todos os que têm cargo de sucessão no Patriarcado
passaram por coisas iguais ou parecidas. Aquela academia forja nosso caráter,
molda nossa mente e anula nosso coração.
Tem dias que eu olho para trás e penso que podia ter sido outra
pessoa, não eu.

– Sr. Samuels.
A doutora que atendeu Rivka enfim saiu da sala vermelha e me
chamou.
Me levantei imediatamente e andei até ela, transparecendo calma.
– Diga. Como minha esposa está?
– O quadro dela é grave. Anemia, imunidade baixa, pressão arterial
quase como a de um defunto. Atividade cerebral lenta, subpeso, desidratação,
dentre outros detalhes menos importantes. Ela está internada e ficará assim
por alguns dias até tudo se estabilizar. Minha preocupação é somente pelo
fato dela ter tudo isso e ninguém jamais ter notado. – Ela me encarou
desconfiada. – O senhor sabia que sua esposa estava adoecendo?
Passei a mão pelos cabelos desgrenhados e admiti.
– Sabia que ela não estava bem, mas não tive tempo para verificar sua
saúde. Ela estava o tempo todo trancada no quarto dormindo, não pensei
que...
– Perdoe-me, senhor, mas se o senhor não tem capacidade de cuidar
da sua própria esposa, recomendo que contrate um enfermeiro particular para
lidar com ela quando tiver alta do hospital. Pois precisará de
acompanhamento.
Assenti e, mesmo cheio de problemas na minha cabeça, parei para
pensar na saúde de Rivka. Eu não a via apenas como a mulher que tinha que
viver em prol do nosso contrato. Eu sabia que podia confiar nela, e apesar de
tê-la ignorado nas últimas semanas por falta de tempo e – confesso – medo de
estar perto demais e me afetar, tinha que compensar tudo que causei a ela.
Rivka não merecia ser tratada daquela forma.
Eu faria um esforço maior para que ela se sentisse bem e que nossa
aliança de confiança se mantivesse firme.
– Fique tranquila. Ela terá bons cuidados.

Dois dias se passaram e algo dentro de mim não permitiu que eu


ficasse muito tempo fora daquele hospital.
Andava desconfiado demais, olhando ao redor, procurando motivos
pelos quais minha preocupação se mantinha acesa.
Custava admitir a mim mesmo que era só pelo bem-estar dela, da
frágil mulher com quem me casei.
A culpa estava dilacerando meu peito. Sabia lidar com tudo, com
todos, fui treinado para liderar o mundo inteiro e comandar chefes de estado,
mas não conseguia cuidar de uma mulher indefesa e pura.
Me culpava por nunca ter tido aulas dessa categoria durante minha
formação escolar, culpava-me ainda mais por jamais ter aprendido como meu
pai conseguiu manter minha mãe ao seu lado mesmo sendo frio e insensível
como eu.
Sabia que meu pai não amava ninguém, ele expressava tudo em seu
olhar e modo de agir. Minha mãe sempre foi uma mulher bondosa, eu
realmente não tinha a mínima noção de como ela suportou estar tantos anos
ao lado dele.
Um dia perguntaria.
Mas lá estava eu, insistente e culpado, ao lado do leito onde a pequena
mulher de pele parda e cabelos negros se mantinha dormindo como um
perfeito anjo.
– O que eu faço agora? – indaguei mais para mim do que para
qualquer outra pessoa.
Sabia que Rivka abriria os olhos logo, pois era o horário aproximado
que ela havia acordado nos dias anteriores, então fiquei ali, esperando ela
acordar.
Então suas írises castanhas foram se revelando aos poucos e logo se
direcionaram a mim.
– Bom dia... – proferiu quase num sussurro e depois tomou uma boa
dose de ar.
Assenti, temendo falar qualquer coisa tola, e saí do quarto para
providenciar o café da manhã dela.
Procurei pela enfermeira que estava cuidando dela e, em alguns curtos
minutos, eu jazia com a bandeja de suprimentos para que Rivka se
alimentasse.
Quando voltei ao quarto, ela já estava sentada, pronta para comer.
– Não sei se está gostoso... mas é o que precisa tomar, então... – dei
de ombros, tentando descontrair.
Eu não sabia fazer essas coisas direito. Mal ria das piadas de Romero.
– Obrigada. – Ela arriscou um sorriso grato e me mantive fito em seu
olhar.
Era como se ela conseguisse ler mentes. Entendia que eu tentava me
redimir, e pelo que a conheço, ela também sabia que eu não mudaria, mas
parecia confiar no que eu tentava ser.

Rivka
Suas íris azuis quase cinzas nunca mentiam pra mim, e apesar de eu
ser uma menina tola e iludida, não negava enxergar a verdade crua que seus
olhos demonstravam.
Eles diziam: “Me desculpe, vou tentar ser mais legal. Mas, caso eu
não consiga, só lamento”.
E sinceramente, estava cansada de me importar.
Cansada de esperar algo mais que a migalha que Malcolm me dava.
Minha saúde esteve em risco, minha vida estava frágil e todos os
exames e medicamentos a que fui sujeitada nos últimos dias comprovavam
isso.
E para piorar, foi naquele dia que descobri algo que realmente
transformou meu coração em uma pedra dura de gelo.
Tinha acabado de tomar o café da manhã enquanto Malcolm lia
jornal, sentado na poltrona ao meu lado. Acionei o alarme que chamava a
enfermeira e logo ela apareceu, muito solícita como sempre.
Sabia que nos minutos seguintes minha médica faria o relatório do
meu estado atual. Desde que cheguei ali, pela manhã ela o fazia, me deixando
a par de tudo que tinha acontecido.
E foi o que ocorreu.
Ela entrou com uma prancheta, Malcolm levantou assim que a viu e
veio para perto de mim. A mão dele tocou meu ombro, ansiando também pela
explicação sobre minha internação e as evoluções das últimas vinte e quatro
horas.
– Senhora Samuels, primeiro preciso dizer que está se recuperando
muito bem de sua anemia e sua pressão arterial já normalizou. Ainda precisa
de cuidados que estarei listando na sua alta, mas o que desejo falar agora é
algo que foi uma surpresa para todos aqui.
Imediatamente senti o ar escapar das minhas vias aéreas. O que
poderia ser?
– Pode falar, doutora.
Ela cerrou a boca com força e sua feição se tornou pensativa. Aquilo
só piorava meu estado mental. Estava com medo de ter algo mais grave do
que tudo que ela já tinha me dito no dia anterior.
– Descobrimos que você esteve grávida. Mas, chegou aqui com o
aborto concluído. Não quis alarmar ontem, pois não sabia se seu sangramento
era decorrente de outros fatores, no entanto, exames mais detalhados
relataram que seu útero estava um pouco mais dilatado e seu sangue estava
produzindo os hormônios exatos que se produzem durante uma gestação.
Fora que isso pode ter colaborado para que sua pressão estivesse tão baixa.
Quando ela falou aquilo, meu coração parou. Não consegui reagir.
Simplesmente não consegui.
– Mas temos uma boa notícia, estava bem no comecinho da gestação,
então não te afetará em nada posteriormente. Pode ficar tranquila.
Eu não estava tranquila.
Não estava.

Malcolm
Por que a doutora não me falou da tal gravidez antes de jogar tudo na
cara de Rivka? Será que ela come merda no café da manhã?
Pela feição da mulher ao meu lado, a notícia veio como um balde de
gelo sobre sua cabeça. Rivka, que já estava mais corada, voltou a ficar branca
como um papel.
– Doutora, se me permite, pode me deixar a sós com minha esposa?
Me intrometi mesmo e que se dane.
Doutorazinha louca.
Ela assentiu e se foi. Toquei a mão de Rivka e apertei, enquanto a
olhava com peso.
– Não sei o que dizer.
Ela afundou a cabeça no travesseiro virando o corpo de lado e chorou
segurando minha mão.
Ficou ali, chorando por um longo tempo até que dissesse:
– Já chega. Pra mim já chega.
Sua voz parecia um rugido em meio à dor. Um rugido baixo,
escondido, mas um rugido.
Jamais tinha ouvido tanta amargura saindo da voz dela.
Aquilo desatou tudo o que vivemos depois.

Mais alguns dias foram necessários para que Rivka tivesse alta.
Recebi orientação de todos os procedimentos necessários para que sua
alimentação e bem-estar fossem mantidos, e contratei uma enfermeira
particular para cuidar dela pelo período orientado pela doutora: um mês.
Assim que chegamos em casa, coloquei tudo em ordem para que as
coisas voltassem aos seus lugares como antes.
Todas as minhas reuniões adiadas foram remarcadas, os telefonemas
que repassei, voltei a tomar ciência. Enfim, tomei a frente de todas as coisas
do Patriarcado que tinha deixado de lado. Reassumi.
Romero me manteve orientado sobre o que aconteceu nos últimos
dias, pois o liberei de ser meu segurança para espionar como meus liderados
fariam meu trabalho.
Tudo voltou aos seus lugares.
Menos uma coisa.
Rivka não era mais a mesma.
Sua feição, suas atitudes, o brilho em seus olhos. Nada voltou a ser
como antes.
Rivka
Odeio a minha vida.
Sabe quantas vezes eu falei isso nos dias, meses, anos seguintes?
Muitas.
Tudo tem limite, a gente aprende com cada coisa louca que nos
ocorre, não é mesmo?
Eu tive que quase morrer e matar um feto involuntariamente para
aprender que minha vida não era de nada e que eu não podia mudar ninguém.
Eu não tinha a capacidade de mudar uma pessoa.
Não adiantava eu falar o que queria, agir como pensava que deveria.
Malcolm não mudaria nem por um decreto do homem mais poderoso do
mundo.
Ah, esse homem é ele mesmo.
Então já tinha me conformado.
Ele não mudaria.
Mas ainda que eu soubesse que a vida que eu tenho não era das
melhores, não podia simplesmente jogá-la fora sem fazer alguma coisa.
Foi o que decidi.
Minha vida seria diferente.
Eu me ajustaria ao modo como Malcolm rege o mundo e todas as
pessoas ao redor. Eu agiria como uma pessoa em quem ele deve confiar e
seria a pessoa em quem ele confia.
Vestiria a capa do papel que meu pai sempre quis que eu fizesse, mas
jamais estaria leiga. Eu entraria de cabeça.
Saberia de tudo.
Nunca mais seria enganada.

Já me sentia revigorada e forte, após duas semanas sendo cuidada em


casa. Malcolm me visitava todas as manhãs e conversava um pouco comigo
sobre como anda tudo no mundo e algumas coisas do Patriarcado.
Eu ouvia, assentia, não respondia e ficava lá, planejando.
Um dia, quando ele bateu à minha porta, eu havia me arrumado para
dar uma corrida ao redor da propriedade. Começaria a me exercitar, sair do
sedentarismo para iniciar um novo propósito de vida.
Estava de short de lycra e uma regata comprida fininha,
transparecendo o top nadador que eu usava por baixo, quando abri a porta e
meu esposo me olhou de cima a baixo.
– Bom dia – disse ele com um olhar confuso.
Arqueei a sobrancelha e respondi firme:
– Bom dia.
Permiti que ele entrasse e voltei ao banheiro suíte a fim de pentear
meus cabelos e prendê-los em um rabo de cavalo.
Malcolm ficou andando pelo meu quarto e depois apareceu na porta
do banheiro, me olhando de forma estranha.
– Está tudo bem? – indagou.
– Tudo ótimo. Melhor nunca estaria. E você? – respondi sem encará-
lo, ainda ajustando meu cabelo.
Quando finalizei, me virei e passei direto por ele para pegar meu par
de tênis no closet.
Ao retornar ao quarto, Malcolm já estava encostado na porta
principal, que estava fechada, com os braços cruzados e sua pose de manda-
chuva.
– Aonde pensa que vai? Vim te atualizar de tudo como faço todos os
dias e, pela primeira vez desde o hospital, te encontro se arrumando para...
sair?
Sua voz era autoritária, mas no final soou um tanto de desdém.
– Sim. Vou dar uma caminhada. Me exercitar.
Fui firme, não tinha interesse algum em ouvi-lo falar. Queria mesmo
caminhar.
– Entendi – ele retrucou parecendo contrariado, mas saiu do meu
caminho.
Abri a porta sob seus olhos e notei quando o par de esferas azuis me
cobiçaram de cima a baixo.
Homens.
– Volte em uma hora – ordenou.
– Tá bom, capitão – desdenhei. – Quando eu voltar temos que
conversar.
Agora fui eu quem deu a ordem. Touchè.
Malcolm ficou boquiaberto por um segundo, mas logo rebateu:
– Ah, vamos?
– Sim. Vamos.
Me virei rapidamente, fazendo meu cabelo dar uma movimentada
bem autoritária, e desfilei corredor abaixo.
Estava na hora de fazê-lo enxergar que a Rivka de antes morreu junto
com aquele bebê no hospital.
Agora era uma nova eu.

Exatamente uma hora depois eu já estava de banho tomado batendo à


porta do escritório de Malcolm.
Já nem pensava antes de agir, estava em modo automático.
Quando ele abriu a porta e me viu, deu passagem para que eu
entrasse.
Decidi ficar de pé, próxima à estante de livros. Amava ler e tinha
retornado recentemente ao hábito de leitura. Excluí os romances da lista e
passei a ler suspense e thriller psicológico.
Eram bons, preciso confessar.
– Então, o que minha querida esposa deseja conversar? Vamos direto
ao ponto.
Ele trancou a porta e andou até onde eu estava, parando exatamente a
dois palmos à minha frente, e cruzou os braços.
Desafiador.
– Quero te fazer uma proposta. Também serei direta – mantive meus
olhos fixos nos dele, sem titubear em nenhuma palavra. – Ou você me inclui
em tudo dentro do Patriarcado: reuniões, decisões, ações, treinos, tudo!
Quero que me ensine absolutamente tudo, desde socar uma pessoa para
desacordá-la a atirar no ponto exato para que ela morra. Ou, sua segunda
opção é que eu desapareça da sua vida definitivamente, rompendo nosso
contrato e tudo em que ele te favorece.
Me expressei bastante em gestos enquanto falava. Queria que ele
percebesse que não era mais a menina idiota de um pouco mais de três meses
antes.
Achei até que foi rápido esse meu despertar.
Quantas mulheres vivem com um monstro ao lado por anos e nunca
conseguem tomar uma atitude? Eu não precisava viver assim. Não podia
viver mendigando amor o resto da vida.
E quando eu pensava na palavra amor, lembrava dos poucos momentos bons
que passei com o traste do meu marido. Lembrava do quanto fui tola em
acreditar que um dia ele podia sequer gostar de mim.
Sou linda – maravilhosa, diga-se de passagem –, bem-criada, sei me
virar, sou uma pessoa confiável e boa. Não mereço nada menos que o melhor.
Eu tinha que ter entendido isso logo no começo.
Ainda bem que deu tempo. Custou a morte de um bebê em evolução
dentro de mim e quase a minha morte, mas deu tempo.
– Você está louca – juro que ele quase riu, sarcástico. – Só pode estar.
Estalei a língua e encenei uma feição de tristeza.
– Ah, que pena que não leva a sério o que eu peço. Nosso contrato
está cancelado agora mesmo. Sem volta.
Arrisquei dar alguns passos firmes rumo à porta, mas ele me segurou
pelo braço e me puxou para si, como de costume.
– Nem pense nisso. – Com o nariz colado ao meu, olhou para meus
olhos, alternando de um lado para o outro, provavelmente buscando vestígios
de dúvida em mim. – O que aconteceu com você?
Sua voz soou um tanto indignada, afetada. Queria me convencer de
que estava magoado, coitado.
Lá dentro do meu peito, cada palavra que ele proferia chegava e
voltava como flocos de neve congeladas e sem vida.
Apontei o dedo indicador em seu peito.
– Você aconteceu. E não há um só ser humano na Terra que não vire
outra pessoa ao dar de cara com alguém como você. – Engoli em seco. –
Agora aguenta.
O empurrei, saindo de seu alcance e voltando para a porta.
Estava quase saindo quando me virei e intimei a ele, que se mantinha
no mesmo local de segundos atrás:
– Tem até o jantar para me dar uma resposta.
Fechei a porta e corri para meu quarto em meio à adrenalina de ter
enfrentado meu marido como nunca fizera antes.
Assim que fechei a porta, me recostei nela e, com o coração
palpitando, eu respirei fundo e soltei o ar lentamente.
Ali, sozinha, só o Criador e eu, pude fechar os olhos e permitir que
uma fina lágrima descesse de um deles, provando que, por mais machucada e
ferida que eu estivesse, lá dentro, bem no fundo, eu ainda era eu.
Aquela era uma faceta que somente eu veria. Mais ninguém.

Malcolm
Soquei a estante, fazendo vários livros despencarem de lá, assim que
Rivka saiu do meu escritório.
Desde quando ela tinha ficado daquele jeito? Eu sabia que ela era
curiosa, queria provar que era digna de confiança e às vezes ficava mandona.
Mas aquela conversa jamais aconteceria com ela antes.
Aquele modo de agir era atípico. Rivka não era assim.
O pior de tudo foi que ela saiu e meu sangue ferveu, desejando-a mais
que nunca.
Desde que ela tinha retornado do hospital eu a visitava todos os dias
pela manhã, falando sobre os acontecimentos gerais e fiscalizando a
alimentação matinal dela. Me sentiria um incompetente caso Rivka adoecesse
novamente. Era meu dever fazê-la se recuperar por completo.
Já tinha notado que ela estava mais calada e às vezes me ignorava
completamente. Foi como se ela tivesse morrido e outra pessoa assumido seu
lugar.
Algumas coisas, notava que ainda eram dela. A forma de impor sua
opinião e de colocar as palavras uma a uma com toda classe não mudou, mas
essa revolta implícita e todo esse autoritarismo... Humm, me fez pensar
coisas absurdamente quentes enquanto ela rebolava até a porta antes de sair.
“Tem até o jantar para me dar uma resposta.”
Quis rir sozinho depois que notei quão maluco eu estava. Tinha me
irritado por ter sido desafiado e encurralado pela minha esposa, mas no final,
vi que ela estava ainda mais sexy e deliciosa.
Tinha que tirar algum proveito disso.
E por que não ensinando algumas coisas para ela, como defesa
pessoal e tiro ao alvo? Apenas o básico, para dizer que ensinei.
Assim mantenho o contrato firmado e ela se satisfaz pensando que
agora sabe tudo.
No fim de tudo, a terei gemendo meu nome em diversas situações.
Rivka não perde por esperar.

– Não me diga que agora o plano mudou?


Romero estava comigo no carro, rumo ao tribunal de supremacia.
Esse tribunal era composto por alguns júris do corpo mais antigo do
Patriarcado e eu era o juiz, que julgava alguns casos bem específicos de
pessoas com quem tenho aliança no mundo inteiro.
Era cansativo, feito uma só vez na semana com apenas 20 casos no
dia. Era difícil para conseguirem trazer os casos até mim, mas geralmente,
quando o aliado consegue trazer, é praticamente causa ganha em seu favor.
– Eu quero apenas fodê-la, Romero. Só isso – expliquei com os olhos
fitos no caminho.
Ele riu, como sempre, e depois continuou falando suas bobagens.
– Sei. E quando menos perceber está aí colocando ela num altar de
adoração, falando dela com cara de bocó e planejando uma renca de criança
pra criar no resto da vida. Sai dessa, Malcolm!
Me mantive sério. Odiava essas conversas inúteis. Só comentei sobre
Rivka com ele porque precisava falar com alguma pessoa sobre quão
abobado eu fiquei com sua mudança.
– Tenho um planeta para gerenciar. Acha mesmo que colocarei uma
mulher na frente de tudo? Não sei nem o que é isso, Romero. Esses
sentimentos não fazem parte de mim, nunca fizeram. Acho bom você parar de
comentar sobre isso, só quis contar sobre o que aconteceu mais cedo e ponto.
Ele logo se empertigou no assento e controlou seu riso, ficando sério
em segundos.
– Perdão. Eu gosto dela. Rivka é especial, não sei, ela tem algo...
Simplesmente passei a odiar Romero naquele instante e não sabia
exatamente o motivo. Ele começou a elogiar e encontrar qualidades demais
na minha mulher. Devia estar sem medo da morte, provavelmente.
– O que ela tem ou deixa de ter não te diz respeito. – Aumentei o tom
de voz, o fazendo se calar. – Sei que são amigos. Mas saiba que a história
daquele lago lá eu ainda não digeri.
– Patrão, eu estava protegendo sua esposa, nada mais. Eu juro!
Fazer alguém sentir medo é o melhor modo de se manter no controle.
Romero era um bom homem, leal e amigo. Cumpria com todo o dever
sem negar nada, mas era medroso quando se tratava de mim. O que por um
lado era bom.
– Rivka é minha mulher. Nada mais justo que eu aproveite e goze dos
benefícios de marido sempre que possível – murmurei e encerrei a conversa.
Aquela garota estava tomando espaço demais na minha cabeça,
precisava me concentrar no julgamento.

– Culpado. Um de meus homens fará sua execução agora mesmo.


Senhor Harrison, está livre de toda culpa.
O último caso estava sendo encerrado naquele momento. Um homem
tinha sido roubado em milhões em sua empresa por um sócio que sonegava
impostos e falsificava documentos fiscais. O governo descobriu sobre os
milhões que haviam ocultado e ele foi levado à cadeia mesmo sem saber o
motivo. Com o tempo, investigando através de pessoas de confiança,
descobriu que o sócio o roubava e pediu para que levasse o caso do sócio e
dele até mim.
Se eu julgo o caso, o país é obrigado a aceitar e acatar minha decisão.
No caso, agora o sócio irá morrer pela traição e roubo ao dono da
empresa, que é nosso aliado, enquanto o dono não voltará para a prisão e será
livre dos impostos que não pagou devido ao roubo, e também da culpa pela
sonegação daquele ano.
Pensar em todo o problema de cada caso era extremamente cansativo
e, quando olhei o relógio de pulso, notei que já era noite.
Rivka provavelmente já tinha jantado e não me esperava mais.
Não importa, eu mando em tudo, tenho tudo sob controle.
Finalizei tudo que devia na sede jurídica do Patriarcado e voltei com
Romero para casa.
– Estarei à sua disposição, senhor – ele se despediu de mim, indo para
seu posto assim que chegamos em minha residência.
Entrei em casa e estava tudo apagado. Linda provavelmente já devia
estar dormindo e os empregados nas suas casas. Tranquei a porta principal e
subi rumo ao meu quarto, mas antes andei pelos corredores até o quarto de
Rivka, para ver se a linguaruda já dormia.
Estava exausto, sem muita paciência, mas precisava ao menos deixá-
la ciente da minha resposta à sua proposta.
Dei duas batidas à sua porta e aguardei.
Dez, quinze, vinte segundos. Bati novamente.
Ela devia estar em um sono muito profundo, então peguei minha
chave reserva e abri.
O quarto estava apagado e silencioso. Sem abajur aceso ou ar-
condicionado ligado. Então acendi a luz.
– Maldita!
Corri até a cama e constatei o que temia. Ela não estava lá.
Nem no banheiro, nem no closet. Pelo contrário, o closet estava quase
vazio.
– Onde essa maluca foi? – Voltei ao quarto e pressionei a cabeça, que
já estava doendo de cansaço. – Não é possível que ela tenha mesmo ido
embora.
Saí do quarto e corri até o meu, ofegante e preocupado. Rivka
simplesmente deve ter enlouquecido. Ela não tem a mínima noção do que é
sair pelas ruas assim, do nada.
As pessoas sabem que ela é minha esposa, logo poderiam fazer algo
com ela.
Que mulher mais.... Arrrgh!!!
Assim que abri a porta do meu quarto, vi um papel dobrado no chão.
Abaixei e abri.

“Como disse, esperei sua resposta até o jantar. Como não apareceu,
compreendi como uma negativa. Adeus.”

– Maldita maluca!
E agora, o que eu vou fazer?
Malcolm
– Vamos, Romero. Precisamos achar essa mulher agora.
Desliguei o celular e peguei todo o necessário para ir atrás de Rivka.
Armamentos, cobertores, medicamentos, água.
Sim, eu estava preparado para o pior.
A garota é louca, sabe que não consegue se defender nem de um
mosquito e foge à noite para sabe-se lá onde.
Desci correndo as escadas. Não perco meu controle por nada, mas o
que estava sentindo era completamente estranho. Uma palpitação somada à
preocupação pela vida de Rivka. Em meu íntimo sabia que não podia perdê-
la, nosso contrato não pode ser rompido e, mesmo que ela morresse, ainda
corria o risco de perder todo o império de sua família por conta dos
acionistas. Temos apenas três meses e pouco de casados, eles poderiam
alegar qualquer coisa para justificar a morte dela, inclusive, que estou
envolvido, fazendo com que eu perca tudo que está incluso em contrato, e
com isso também acabe perdendo meu posto futuramente.
Ser o patriarca era uma dádiva e uma maldição.
Até solidificar meu nome e o patrimônio que conquistei por herdar o
Patriarcado de meu pai, todo o conselho era contra mim. Jamais tiveram um
patriarca tão jovem, tenho apenas trinta e cinco anos. Meu pai assumiu com
quarenta e três e teve dificuldades no início, imagine eu.
– Vamos, patrão.
Romero já me aguardava com o carro ligado na garagem. Assim que
entrei, imediatamente acionei os vigias para que liberassem as imagens das
câmeras de segurança nas ruas.
Seria fácil encontrá-la
Tomara que esteja viva.

Rivka
Eu sei.
Sei que não dá pra fugir do homem mais poderoso do mundo.
Sei que não dá pra se esconder da pessoa que tem acesso a tudo e
todos o tempo que quiser.
Então quis apenas dar um susto mesmo, sabe?
Malcolm acha que me tem em suas mãos, mas não imagina que
aquela Rivka tola que ele dominava estava adormecida em um quartinho
escondido dentro do meu coração.
Jamais acordaria ela outra vez.
Peguei um táxi e pedi para me deixarem em um hotel que ficava meia
hora distante da mansão de Malcolm. Cheguei lá e fiz logo meu check-in,
optando pelo quarto mais simples.
Sabia que o controlador do meu marido apareceria em poucas horas,
então não gastaria dinheiro à toa. Há muita gente necessitada no mundo para
que eu desperdice desse modo.
Linda infelizmente reprovou minha decisão. Não contei o que faria,
apenas disse que iria embora. Ela ficou preocupada, mas a acalmei dizendo
que eu sabia exatamente o que estava fazendo.
Ela pediu para que me cuidasse e falou que estaria torcendo por mim.
Pessoas como ela sempre me fazem crer que o mundo ainda pode
ficar bom, mas quando me deparo com espécimes semelhantes ao meu
esposo, a ilusão fica abafada pela realidade crua e dura.
Para quem tinha acabado de enfrentar uma depressão severa, um
aborto e uma experiência de quase-morte, eu queria viver. Queria viver
intensamente e como jamais tinha vivido.
Então não me faria mal enlouquecer Malcolm um pouquinho. Já tinha
me conformado com o fato de que teria que suportá-lo até o fim da minha
vida, então que ao menos seja um pouco mais interessante.
Assim que entrei no elevador, um homem também entrou. Era um
homem normal, vestido como qualquer pessoa se vestiria, mas tinha algo nele
que me fez respirar mais acelerado que o normal.
Medo, instinto, não sei.
Ele cheirava a frutas cítricas frescas e tinha um porte viril e acolhedor.
Parecia um tipo de homem que cuida de sua família e a protege de todo mal.
Me sentia estranha em reparar assim num homem, mas não sei, ele era
diferente.
Estava com o celular na mão, sem nem me notar, então disfarcei e
parei de encarar até chegar no andar onde estaria hospedada.
Andar com Malcolm me fez perceber mais o mundo lá fora. Valorizar
o que há de bom.
Assim que cheguei ao meu andar, segui rumo ao quarto descrito no
cartão de acesso em minha mão. Entrei com minha mala de rodinhas e fiquei
lá, sentada sobre a cama, apenas esperando.
Esperando.
Esperando.
Malcolm
Mal tinha saído de casa e recebi uma ligação.
– Patrão, perdoe ligar esse horário, mas acredito que vi sua esposa.
Disfarcei, pois nem Romero sabia da existência desse detetive e
segurança particular que possuo. O homem é realmente bom e já tinha me
provado isso.
– Aguardo sua mensagem.
Desliguei e fiquei esperando a mensagem com a informação sobre
Rivka. Não falaria nada em voz alta para que Romero não desconfiasse. Ele
conhece toda a equipe de segurança e a coordena. Com certeza odiaria saber
que não o deleguei para certos serviços.
Que fique claro que o motivo não era porque não confiava nele, e sim
porque o Patriarcado jamais poderia saber. Eram coisas absurdamente
internas e particulares.
Um leve tremor em meu celular acusou a chegada da mensagem.
Club Quartes Hotel.
Uma foto.
Nela Rivka aparecia de perfil, e nada mais. Não dava para identificar
o ambiente direito.
Mas era ela.
Imediatamente configurei o GPS para o hotel em questão e seguimos.
– Como soube que era esse o hotel?
Romero perguntou, claro.
– Recebi a informação de check-in em meu aparelho – menti.
Eu receberia a informação do check-in dela, mas o programa atualiza
de doze em doze horas, ou seja, só teria a informação ao meio-dia.
Precisava ajustar os períodos de atualização desse programa
novamente. Pode nos atrasar numa busca emergencial.
– Ah, então vamos.
E seguimos rapidamente. Romero dirigia, pois eu estava com muita
dor de cabeça. O dia tinha sido totalmente maçante e exaustivo, meu corpo
estava pedindo para deitar e descansar. No entanto, precisava buscar a
menina teimosa.

Foi fácil entrar no hotel e pedir uma chave reserva do quarto onde
Rivka estava. Em poucos minutos eu estava em frente à porta, mas sem abrir.
– O que está esperando, malvadão?
Levei o indicador ao polegar exigindo silêncio de Romero. Queria
escutar a movimentação no interior do quarto. Não sei por que tive a ideia de
fazer aquilo, mas... Lembrei que pouco tempo atrás ela tinha me pedido um
namorado.
Talvez estivesse com algum homem, não sei.
Eu nem sabia mais se ela teria essa capacidade, mas preferia não
duvidar de nada. Rivka ultimamente tem me surpreendido.
Uma turbulenta caixinha de surpresas ela havia se tornado.
Com a orelha grudada à porta, não notei movimentos nem barulhos,
então decidi abrir.
Foi somente abrir a porta para que um peso despencasse de meus
ombros. Ela estava lá.
Dormindo, mas estava.
Andei até a cama onde minha esposa jazia deitada de mal jeito, com a
mala ainda feita ao lado no chão, e a toquei pelo ombro.
– Vamos para casa.
Lentamente seus olhos se abriram. Ela os esfregou e me encarou
ainda sonolenta.
– Você demorou – murmurou e bocejou em seguida.
Mas que...?
– Então estava me esperando? – Sentei ao seu lado, confuso.
Ela assentiu. Seu corpo estava mole, devia ter pegado no sono há
pouco tempo.
– Não sou idiota. Sei que me encontraria. Mas não quero voltar
andando, pode me levar no colo?
O que ela pensa que sou? Seu criado?
Romero se ofereceu para levá-la, alegando que eu estava cansado. Eu
estava, obviamente, mas não o deixaria levar Rivka nem por cima do meu
cadáver.
– Vamos.
Levantei e a tomei em meus braços, respirando fundo e tirando forças
de onde não tinha, até que consegui expulsar o cansaço e andei com ela em
meus braços.
Se era esse o pedido para que voltasse para casa, tudo bem.
Descemos pelo elevador e finalizei o pedido do quarto na recepção
por ela. Romero vinha atrás com a mala enorme que ela trouxe e eu seguia
rumo ao carro, carregando-a em meus braços. Rivka dormia como um bebê.
– Como consegue dormir desse jeito? – indaguei sabendo que não
teria resposta.
Em instantes já estávamos dentro do carro. A coloquei deitada no
banco de trás e segui viagem no carona, com Romero ao volante.
Vez ou outra virava o rosto para verificar como ela estava, e assim
como a encontrei, ela permaneceu.
Dormindo como um anjo.

A noite foi longa.


Coloquei Rivka em meu quarto e fui tomar banho para conseguir
dormir um pouco. Se já estava cansado antes de toda a maratona que ela
criou, depois então, estava mais que morto.
Todos temos limites e minha bateria de energia estava no negativo.
Saí do banho, mal me sequei e coloquei apenas uma cueca para
dormir. Queria dormir nu, mas a donzela acordaria pela manhã e, sei lá,
poderia surtar.
Rivka estava imprevisível.
Deitei ao lado dela, mas meus olhos não queriam se fechar. Fiquei ali
observando os traços do rosto dela à meia-luz, encontrando motivos para que
eu voltasse a tratá-la como antes, mas até seu rosto estava mais belo aos meus
olhos.
Não sei se isso é possível, mas já ouvi dizer que pessoas fazem
trabalhos de magia para cativar outras. Estava com medo de ter sido alvo de
uma coisa dessas.
Os traços delicados, finos e macios do rosto dela indicavam que sua
vida não foi forjada pela dor. Rivka dormia sem nenhuma linha de expressão
sinuosa na testa ou em qualquer parte do rosto. Era como se ela sonhasse com
o céu, se existisse.
Arrisquei tocar a porção dos cabelos que tinham caído sobre os olhos
dela, para encaixar novamente atrás da orelha. Ela dormia de lado, virada
para mim e – maldição! – estava ainda mais linda e atraente que de costume.
Seus lábios rosados eram alinhados, porém carnudos. Uma tentação
para qualquer homem. A tentação era tanta, que arrisquei deslizar meu
polegar áspero sobre sua pele fina e lisa.
– Teimosa – sussurrei.
Ela não escutou e nem se moveu, como eu previa, então decidi fechar
os olhos à força e dormir. Eu precisava. Meu corpo estava clamando por
descanso.
Mas, de tempos em tempos, eu abria meus olhos novamente.
Foi longa. A noite foi longa.
Rivka
Naquela noite tive um sonho tão estranho, como uma visão.
Estava em um local frio, tão frio que sentia como se tivesse com
vários casacos em meu corpo. Nesse lugar eu via uma criança de costas,
brincando na neve enquanto eu observava.
Depois eu sentia um calor vindo pelas minhas costas e braços
masculinos me envolveram por trás.
Me sentia bem, acolhida. No instante em que me virei para encarar o
rosto do homem, eu acordei.
Já era manhã e eu não estava no meu quarto. Olhei para o lado e lá
estava o motivo de toda a minha tormenta.
Literalmente o meu estresse completo.
Ainda deitada, refiz meus passos do dia anterior e lembrei que
Malcolm me buscou no hotel e eu estava morta de sono, por isso pedi que me
trouxesse no colo.
Meio infantil, eu sei, mas eu estava cansada. Ficar brincando de gato e
rato é cansativo. Eu queria merecer o espaço que pelo qual tenho lutado, nem
que para isso tenha que fazer Malcolm ficar louco.
Fiquei ali, virada de frente pra ele, admirando aquela beleza celestial.
Tão lindo, mas tão babaca.
O cenho sempre franzido, com suas linhas de expressão duras e
fundas, fazia qualquer pessoa pensar que dentro daquela cabeça havia uma
guerra infindável.
Instintivamente passei a mão sobre sua testa, aliviando a tensão que
havia nelas, e depois desci os dedos para sua barba comprida sempre bem
cortada. O homem mantinha um visual impecável e aquele ar de mandão me
atraía tanto... quando não me irritava profundamente.
Quando meu coração começou a acelerar, eu virei para o lado oposto
e respirei fundo. Tinha que controlar meus impulsos. A antiga Rivka ficaria
lá, babando, sonhando com um futuro perfeito só pelo fato de ter dormido ao
lado dele, mas eu não era mais assim.
Sabia que a cada dia, mesmo que desse um passo para frente, ele me
arrastava à força para trás sem nem pedir licença.
Constatar isso me fez querer levantar logo e ir para meu quarto, mas
quando quis fazer isso, o braço de Malcolm segurou-me pela cintura e me
trouxe de volta para perto dele.
Perto demais.
Ele se aconchegou em meu corpo, de tal modo que pude sentir sua
virilidade me encostando por trás.
Um arrepio de desejo percorreu todo meu corpo, fechei os olhos e
pedi forças a Adonai.
– Fica.
Ele encaixou o rosto barbado em meu ombro e sussurrou com aquela
voz rouca que convenceria até seu pior inimigo.
Eu fiquei... Fiquei por apenas dez segundos, pois precisava me manter
forte em minhas convicções.
Então me desvencilhei do seu abraço e, sem nem olhar para trás, segui
para meu quarto.

Malcolm
Já era tarde, passava das nove da manhã. Para quem tinha ido dormir
depois das três, eu até que dormi bem. As noites sempre são muito curtas
para mim e os afazeres borbulham na minha cabeça noite e dia.
Nunca pensei que seria tão pesado comandar o Patriarcado.
Era um trabalho exaustivo demais.
Rivka acordou e, mesmo cedendo para ela e agindo como um fraco ao
pedir para que ela ficasse, a louca se foi.
Quem estava começando a ficar louco era eu.
Mas naquele dia não insistiria mais em proximidades com ela.
Evitaria me aproximar dela pelos próximos dias, o máximo possível.

Eu queria ser o homem a dar aulas de tiro ao alvo e defesa pessoal


para Rivka, mas minha agenda não permitia, então deleguei a alguns homens
de confiança esse fardo.
Já fazia um mês desde o dia em que tinha buscado Rivka no hotel, e
desde lá nossa relação era como devia ser:
Formal e fria.
Ela nunca mais me cobrou nada, apenas fazia o que achava que devia
e cumpria com suas aulas.
Quando precisava de alguma autorização ou estar ciente de algo, me
pedia nos horários que nos víamos: almoço, jantar ou café da manhã.
Linda quase todos os dias ficava enchendo minha cabeça falando dela.
Eu, obviamente, fingia que ouvia.
– Meu filho, essa menina está se tornando uma mulher diferente.
Você precisa tratá-la com amor, senão irá perdê-la para sempre.
– Entendi. Pode deixar, Linda. Vou dar uns tratos nela – pisquei e
mordi a maçã em minha mão.
Era assim sempre depois do café da manhã. Eu ia até a cozinha pegar
uma fruta e ela vinha com esse papo.
– Não falo de sexo, digo de sentimento. Atenção.
Por dentro eu ria.
– Tudo bem, Linda. Obrigado pela dica. Vou trabalhar, fique bem.
Evitava ser grosseiro com ela. Linda tinha um espaço exclusivo na
minha vida. Foi minha segunda mãe. Por falar em pais... minha mãe ligou
poucas vezes, pois sempre soube que eu não gostava muito que ligasse, mas o
pai de Rivka já estava morto. Não tinha a mínima noção de como ela saberia
da notícia, então decidi informar que ele tinha viajado para um país distante a
mando do Patriarcado.
Ela acreditou, mas começou a fazer muitas perguntas, como sempre.
Rivka é muito ligada ao seu pai, sabia que em algum momento ela o
procuraria, apesar de vê-la evitando o máximo ficar falando com ele sobre
como está sua vida, sempre que ligava antes da nossa viagem para a fazenda.
Eu sabia de tudo. Ouvia todos os telefonemas.
Assim que cheguei na sede administrativa do Patriarcado, fui
informado que o conselho me aguardava na sala de reuniões.
Tomei fôlego e segui.
Assim que entrei na sala ampla e escura, observei a enorme mesa
cheia de acionistas. Dentre eles, Enzo, o inútil.
– O que tanto tramam pelas minhas costas? – perguntei, fechei a porta
e sentei em meu lugar, na cabeceira.
Apollo foi o primeiro a expor o motivo da reunião.
– Temos avaliado a gestão que está fazendo, Malcolm. Precisamos
pontuar alguns locais que devem ter mais atenção.
– É, priminho. Em outras palavras, você não está sendo um bom
Patriarca. Acho que está se importando demais com sua mulherzinha.
– Acha que está falando com quem, Enzo? – elevei a voz e o encarei
com meu olhar tenebroso. – Creio que não preciso lembrar quem é que
coloca ordem nisso aqui.
Alguns pigarros desconcertados soaram no ambiente e logo preparei
minha fala.
– Reconheço que posso não estar dando a atenção aos senhores como
deveria. Assumi meu posto herdado há um pouco mais de quatro meses e,
com o casamento que fiz, paguei minha entrada na liderança de modo limpo.
Acredito que não temos dúvidas quanto a isso por aqui, certo?
Silêncio. Bom. Muito bom.
– Não sou meu pai. Nunca serei. Então não admito que façam
comparações. Tenho meu modo de agir e a forma como estou gerindo a
organização é ainda melhor do que meu pai fez. Ele teve falhas, estou
ajustando cada falha que ele cometeu e sempre buscando o melhor para que
nosso poder jamais se desestabilize.
– Tenho um ponto, senhor – Bruno, meu representante no México,
solicitou palavra. – Estamos precisando da sua presença rotineiramente nos
filiados pelo mundo. Os soldados do Patriarcado precisam ver que está ativo
entre nós. Lá no México alguns de nossos soldados cogitam migrar para as
forças armadas.
Ao ouvir aquilo eu tive que rir.
– Como? – Contive a risada. – Eles não sabem que depois do
Patriarcado só existe a morte?
Bruno tentou se retratar.
– Eles estão achando que nosso líder não se importa. É como se
pensassem que o senhor simplesmente os descartaria a qualquer momento.
Sugiro que comece a fazer as visitas periódicas.
Respirei fundo e busquei razão para responder. Complicado.
– E como faço para estar presente em mais de duzentas bases filiadas
sem me multiplicar?
Outro levantou a mão.
– Delegue para nós. Somos seus sócios, podemos falar pelo senhor
onde formos.
Havia mais de vinte homens naquela mesa. Realmente, caso eu
delegasse alguns países a cada um deles, me tiraria um bom peso das costas.
Mas, por outro lado, ainda não confio neles. Preciso saber o que fazer,
rápido.
– Estaremos agendando uma outra reunião amanhã e veremos esse
ponto. Agora preciso que me apresentem os impostos pagos pelos países que
vocês coordenam. Temos que fazer o balanço mensal ainda essa semana.
Todos eles abriram suas pastas e colocaram os papéis correspondentes
sobre a mesa e ali fiquei praticamente todo o dia ajustando pontos,
verificando rendas e dando comandos para cada acionista.

No fim do dia me despedi de todos e fui direto para a academia onde


treino esporadicamente. Aquele dia foi cansativo, porém precisava pôr meu
físico em dia. Treinei por pouco mais de uma hora, tomei um banho e segui
para casa já com uma roupa mais à vontade.
Ao chegar, o empregado que substituiu Erick – chamado Brian – me
comunicou que Rivka estava no salão externo da mansão, onde havia um
tatame com bolsas de areia para treino. Eu não gostava de treinar em casa
devido aos olhares sobre mim, mas gostei de saber que ela estava ali, debaixo
das minhas vistas.
Caminhei até o salão e abri a porta devagar. Lá estava ela.
Um short que marcava seu corpo e um top eram as únicas peças que
usava. Os movimentos femininos, ao mesmo tempo firmes, mostravam que
Rivka estava evoluindo cada dia mais.
Ela não percebeu que eu estava lá, pois a música alta não permitiu,
por isso fiquei ali olhando cada curva daquele corpo delicioso e intocável.
Essa mulher me fazia acender em segundos e eu ainda não tinha
compreendido o porquê.
– O que tanto olha?
A voz dela me tirou do transe imaginário que estava começando a ter.
Mesmo sem olhar para trás, ela notou minha presença e abaixou o
som. Veja como estamos!
– Essa sua bunda gostosa. Aliás, está ficando boa nos golpes.
Como eu esperava, ela virou para mim, rolou os olhos e continuou
golpeando o saco, cada vez mais forte.
– Um dia, se Deus permitir, você será meu saco de pancadas –
comentou, ofegante, entre os socos.
– Posso ser agora, caso você seja capaz de me acertar.
Me ofereci e entrei no espaço dela.
Rivka cruzou os braços e me encarou com uma sobrancelha arqueada,
desafiadora.
– Tem certeza? Depois não vale chorar.
Cogitei rir pela primeira vez na frente dela, mas preferi manter minha
seriedade.
– Veremos.

– Vamos! Sou o não sou seu saco de pancadas?


A cada golpe que ela dava, eu defendia com a mão. Ela ainda era
iniciante, previsível. Já estava deixando-a cansada, quando decidi dar uma
lição.
Rivka tentou acertar meu maxilar, mas defendi com o braço do lado
oposto ao que ela acertaria e envolvi seu punho, torcendo e fazendo com que
ela virasse todo o corpo para a direção que eu girava.
– Ah! Assim vai me quebrar! – gemeu dolorida.
Soltei-a e ela massageou o braço torcido, lançando-me um olhar fatal.
– Não adianta me olhar assim. Se quer se defender, precisa evoluir. –
Cruzei os braços e me aproximei dela, fitando-a nos olhos. – Seus golpes são
previsíveis. Para que nunca seja pega precisa ter sempre uma carta na manga.
Depois de se movimentar e relaxar, ela perguntou:
– Que tipo de carta posso ter na manga?
– Disse que gostaria de aprender golpes letais, certo? Vou te ensinar
um.
Naquele instante toda a seriedade da minha esposa caiu por terra e um
sorriso radiante se abriu em seu rosto. Que Rivka estava estranha eu já tinha
notado há tempos, mas não sabia que ela sentia felicidade descomunal por
conhecer sobre como matar uma pessoa.
– Ah! Graças a Deus! Estava cansada dessas lições idiotas daquele
instrutor que me arrumou. – Esfregou as mãos uma na outra enquanto dava
pulinhos alternando os pés. – Vamos, diga tudo!
Putz, o que eu fui inventar?

Rivka
Estava empolgada para aprender um golpe que realmente me
defenderia numa situação de catástrofe. Malcolm estava bastante abusadinho
naquele dia, soltando piadas e sendo até mais legal que o normal.
Ultimamente ele mal falava comigo e eu com ele.
Mas não podia deixar passar a chance de aprender mais. Queria ser
independente em tudo, inclusive na defesa pessoal.
– O inimigo vai estar com o corpo armado, pronto para te atacar. Os
braços geralmente na posição que já conhece – em punho elevado na frente
do torso –, mas como você dará um golpe letal com a pessoa pronta para te
atacar?
Ele começou a explicar e me concentrei em aprender passo a passo.
Fiquei na posição que ele disse, com os braços elevados com o punho
na altura do queixo, aproximadamente. Ele pediu para que eu tentasse dar um
soco no rosto dele e eu o fiz.
Então, com um braço ele afastou a mão que o acertaria e com o outro
estapeou a curva do meu pescoço para cima, e quando elevei o rosto por
causa do golpe, ele passou a perna por trás da minha, me desequilibrando e
fazendo com que eu caísse de costas no chão.
Claro que ele me segurou para que eu não caísse, mas foi inevitável
que eu me desequilibrasse.
– Se você cai assim, como uma tábua no chão, pode ter um
traumatismo craniano ao bater a cabeça e morrer. Geralmente as pessoas
morrem com esse golpe.
Ele me puxou para cima e me segurou pela cintura enquanto eu
assimilava cada movimento que ele fez, ofegante e assustada.
Demoraria um pouco até aprender esse golpe, mas era bom, muito
bom.
– Uau.
– Pois é, teimosa. Conseguiu pela teimosia – ele murmurou com o
rosto próximo ao meu.
Se eu não o conhecesse, pensaria que estava interessado em mim. Mas
Malcolm nunca joga para perder. Ele queria apenas satisfazer suas
necessidades sexuais e ponto.
Era para isso que eu servia, na cabeça dele.
– Estou aqui pensando em como vou contar tudo isso para meu pai
quando ele voltar de viagem.
Estava me sentindo uma péssima filha por passar tanto tempo sem
ligar para meu pai, mas ele entendia e eu tentava a todo custo evitar levar
problemas a ele. Queria mostrar que sou uma mulher diferente e que estou
me descobrindo.
Malcolm se afastou e parou com a gracinha, de imediato.
– Acredito que ele ficaria muito orgulhoso – entonou na sua seriedade
típica.
Estranhei o modo como se referiu a meu pai, no passado.
O que estava acontecendo?
– Ele ficará orgulhoso. Quando voltar de viagem, ele...
– Ficaria – Malcolm me cortou, sobrepondo sua voz à minha. – Não
vai ficar mais.
Deu dois passos para trás e encarou o chão.
Como assim “não vai ficar mais”? O que ele queria dizer com isso?
Será que...
Que...
Meu coração começou a acelerar desenfreadamente e, sem nem
pensar, as lágrimas já começaram a se acumular em meus olhos.
– Você não quis dizer isso... quis? – Me aproximei de Malcolm e o fiz
me olhar nos olhos. Ele bufou e levantou o rosto. – QUIS?!!!
Meu marido levou as mãos aos cabelos presos e apertou a cabeça.
Não... ele não agia daquela forma quando algo estava bem. Não agia.
– Malcolm! – soquei seu peito como nunca antes. – Onde meu pai
está?!
Gritei alto, usando toda minha força.
As lágrimas caíam pesadas em seu percurso sorrateiro enquanto
minha pulsação aumentava cada vez mais.
Ele se manteve parado, recebendo meus golpes sem tirar os olhos dos
meus. Suas íris eram tão frias quanto o gelo e aquilo perfurava ainda mais
meu coração.
Não podia ser.
Não podia ser.
– Responde, imbecil! Responde!!!! – Mais socos intensos sobre o
peito dele, até que o choro começou a me dominar e as forças a se esgotarem.
– Meu paaaaaaaaai!!!!
Despenquei já frágil no chão, ciente de que sim, o homem que me
criou com todo amor e me ensinou a ser quem sou já não estava mais nessa
Terra.
A forma como Malcolm me deu a notícia foi tão insensível quanto
ele. Eu não suportaria que ele me visse naquele momento.
– Vai embora daqui! – em prantos, implorei. – Vaaai!!!
Queria ficar só.
Apenas eu e a dor dilacerante que me agonizava.
Malcolm
Já tinha passado da hora de contar para ela que seu pai estava morto.
Estava tentando esperar o melhor momento, mas foi só ela tocar nele dentro
do assunto que já revelei a verdade.
Às vezes é mais fácil ser duro e direto do que tentar passar vaselina
demais.
Ver Rivka gemendo de dor e se abraçando jogada ao chão me deixou
sem ação. Eu não sabia o que fazer numa situação daquelas.
Pelo contrário... quando eu estive numa situação dessas, não obtive
nenhuma ajuda.

– Ahhhh! Não, não, não, não...


Eu me coçava, agoniado, tentando tirar da minha pele tudo que havia
acontecido.
Doía tanto.
Feria não só minha pele, mas lá dentro.
Meu peito doía.
– Não aguento mais. Não aguento.
Dentro daquele armário, escondido, estava foragido daqueles que me
perseguiam desde que entrei na academia. Não tinha sido a primeira vez,
nem seria a última.
Eu precisava ser forte.
Chorei todas as minhas lágrimas disponíveis e, torcendo para que a
dor do ocorrido passasse, decidi me ferir.
Peguei o pequeno artefato de ferro que os professores usavam para
agrupar papéis que eu tinha escondido no bolso e o desenformei, fazendo
com que sua ponta fina ficasse à mostra.
Comecei a causar uma dor em mim mesmo para calar as outras.
Precisava calar as outras.

Só de lembrar daquele episódio, dei meia-volta no caminho onde


estava rumo à mansão e voltei ao salão em que Rivka se mantinha sofrendo.
Não era justo que eu visse a cena se repetir.
Não era justo com ela.
Apressei o passo, algo lá dentro me dizia que nem toda ferida precisa
ser curada com outras. Rivka não precisava ter o mesmo fim que eu.
Entrei de supetão no salão e a vi já cansada de gritar, quase
arrancando os cabelos. Gemia “meu papai, meu papai”...
– Por favor... vem comigo.
Abaixei na sua frente e estendi a mão. Queria que ela não se
afundasse na dor.
– Não! – gritou com os olhos cheios d’água.
– Por favor. Não pode ficar aí sozinha só chorando... – juro que tentei
manter minha voz o mais equilibrada possível.
Queria mesmo que ela ficasse bem e estava estranhando meu
sentimento.
Me sentei e abracei meus joelhos à sua frente, esperando que ela
reagisse. Mas sua única atitude foi continuar chorando de soluçar.
Eu sabia que ela amava o pai, mas não sabia que seria tão intensa a
dor que a morte dele causaria a ela. Não conheci em toda minha vida pessoas
que tinham vínculos tão enormes quanto ela e seu genitor. Talvez jamais
conhecesse se ela não aparecesse em minha vida.
– Não quis que soubesse dessa forma – admiti num sussurro. – Achei
que talvez fosse uma boa hora e, sem rodeios, doeria menos.
Rivka levantou o rosto e me fitou com revolta.
– O modo como atiram em você, ou a circunstância, jamais muda a
queimação que a bala causará. Não foi a hora nem a forma como disse. Você
nunca seria capaz de me ferir tanto quanto saber que a única pessoa que me
amava nesse mundo não existe mais.
Mais lágrimas caíram pelo seu rosto. Ela fungou e continuou a falar
com a voz embargada.
– A pessoa que te criou com todo amor desde seu nascimento. Que te
ensinou a ser forte, corajosa e amorosa. A pessoa que te mostrou que em tudo
devemos ter esperança e fé. Ele foi a única pessoa que me dizia sempre que
tudo ficaria bem, que era pra eu continuar, persistir. Ele sempre dizia que eu
era capaz. Ele era meu pai. Meu tudo. Você jamais entenderia. Jamais
entenderia. Nunca perdeu alguém tão importante, tão especial.
Abaixou a cabeça e voltou às lágrimas.
Ali senti uma faca afiada atravessando meu peito, dizendo que sim, eu
já tinha perdido alguém. Sem nem perceber, havia falado em voz alta e aquilo
chamou atenção da minha esposa para mim.
– Perdeu? – perguntou, sem muitas forças.
Assenti, ponderando sobre ter ou não coragem de revelar a ela minha
maior dor.
– Perdi a mim mesmo. Me mataram antes mesmo que eu pudesse ser
alguém.
Então levantei minha blusa e a joguei num canto. Peguei uma mão de
Rivka que estava envolvendo os joelhos e a trouxe para perto de mim.
– As feridas que esses desenhos escondem provam que por trás delas
existia a alma de um garoto que foi morto há muitos anos... muitos anos.

Rivka
Não sei o que eu queria naquele momento. Se era morrer, voltar no
tempo ou só chorar até toda a dor passar.
Mas sei que não queria sair daquele lugar até entender tudo.
Meu pai estava morto.
Morto.
E eu nem tive a chance de dizer adeus.
Quando Malcolm me deu a notícia, eu não soube discernir o que
exatamente me deixou pior. Saber de uma forma tão fria, saber depois do
ocorrido ou simplesmente saber.
Não sabia quanto tempo tinha que meu pai havia falecido, mas era
óbvio que Malcolm não me deu a notícia no dia. Ele esperou para me
informar.
Mas era como eu havia dito: nada faria doer menos. A notícia em si já
foi o meu fim.
Espinhos perfuravam minha alma no instante em que me derramei no
chão e do nada meu marido apareceu de novo tentando me consolar.
A última coisa que eu desejava era aturar Malcolm e sua frieza, mas
quando ele compartilhou um pedacinho da sua alma, algo em mim se
quebrou.
– Você não entende o que eu sinto, Malcolm. – Respirei fundo,
contendo as lágrimas. – Não consegue entender. Nunca vai entender.
Ele assentiu e eu deslizei a mão sobre cada cicatriz volumosa de seu
corpo. As tatuagens escondiam bem, pois eu nunca havia reparado antes que
eram cortes.
– Estavam bem escondidas, não é? – perguntou ele.
Sua voz estava rouca, limitada. Dava para notar que era um esforço
descomunal para que ele falasse sobre aquilo.
Quiçá jamais tenha falado antes.
– Muito. São cortes pequenos, fáceis de esconder sob as tintas da
tatuagem. – Elevei meus olhos e me concentrei em seu olhar. – Quanto tempo
faz?
Ele engoliu em seco.
– Muitos anos. – Ele tocou meu queixo. – Imaginei que talvez fizesse
o mesmo a você. Não queria permitir que se machucasse.
Fechei os olhos engolindo não só aquela dor lacerante da perda, mas
também a dor do sentimento que eu guardei no fundo do meu âmago. Eu
estava me apaixonando por Malcolm quando decidi mudar. Quando tudo
aconteceu.
As palavras que ele estava proferindo naquele momento tinham um
efeito avassalador em mim. A sede de estar com ele queria voltar.
Eu não podia.
Não podia ser tão tola novamente.
– Jamais me machucaria, Malcolm. Minhas maiores feridas já foram
feitas. Rasgaram aqui – apontei para meu coração – e está difícil fazê-las
cicatrizar.
Ele inspirou profundamente encarando meu peito, o local onde eu
estava com a mão. Meu coração já tinha sido machucado. Estava um acúmulo
de feridas que não sei se um dia sarariam. A notícia de meu pai deu a facada
final.
Eu precisava ser forte.
Por mim.
Por ele.
Por nós.
Ele tocou por cima da minha mão e fechou os olhos. O observei
atentamente porque não queria ser levada pelo momento de fragilidade.
Malcolm não era dado a sentimentos e aquele instante que estávamos vivendo
foi totalmente movido pela notícia que detonou meu dia.
– Eu não sei o que é isso, Rivka. Não consigo entender o que é.
Do que ele estava falando?
– O coração?
Quando eu perguntei, os olhos dele se abriram e fixaram-se nos meus.
– O que você sente. Essa devoção pelas pessoas que ama. Não
consigo entender.
Então o telefone dele tocou, nos trazendo para a realidade, me
lembrando o motivo pelo qual eu estava chorando até Malcolm vir e me
envolver com sua magia e sua história de homem sofrido.
Logo o poderoso rei da Terra voltou a ser quem era e se foi dali, me
deixando aturdida em sentimentos, pensamentos e lágrimas.
Rivka
Perder meu pai trouxe algo mais na minha realidade.
A certeza de que não teria mais ninguém para correr e pedir ajuda
quando as coisas ficassem feias.
Ser sua única filhinha, cuidada com tanto amor, era o que me dava
esperança caso nada desse certo.
Só tinha vinte e cinco anos! Não era para perder meu pai assim, tão
cedo.
Passei o resto do dia trancada em meu quarto olhando as fotos que
tinha com ele, guardadas em um pequeno caixote no closet.
Mal conseguia respirar em meio a tantas lágrimas, soluços e gritos
agonizantes de dor. Não podia focar em mais nada, só nele.
– Você era jovem, pai. Tinha muita vida ainda para viver.
Falei encarando a foto em que nós dois viajamos quando eu tinha
dezesseis anos. Estávamos nos Estados Unidos, com a Estátua da Liberdade
no fundo. Nossos sorrisos eram amplos, genuínos. Como eu o amava!!!
Linda me trouxe comida nos horários de refeições, mas ninguém me
perturbou. Todos entenderam meu momento, inclusive meu esposo.
Apesar dele ser como é, me admirei pelo modo como tentou me
consolar. Ele não faz ideia de como se consola alguém ferido, então permitiu
que eu soubesse um pedaço do que passou.
Aquilo atiçou minha curiosidade, mas não era o momento para me
preocupar com isso. Precisava viver meu luto.

Malcolm
Assim que saí daquele ambiente onde Rivka estava sofrendo, me
arrependi de ter sido movido pelo momento. Isso jamais tinha acontecido
antes.
Nem minha mãe sabe das minhas feridas, do meu passado.
– Não é possível – sussurrei para mim mesmo, encarando-me no
espelho após tomar um banho naquela noite.
As coisas estavam começando a fugir do controle.
Rivka é culpada de tudo isso. Ela conseguiu acessar algum espaço em
minha mente e não consigo mais ser o mesmo nem no trabalho.
Amanhã terei que ajustar com meus acionistas as visitas periódicas às
bases mundiais e ainda não tinha conseguido pensar sequer em uma solução.
Olhei meu corpo no espelho. As tatuagens. As marcas dos cortes.
– Qual o sentido de tudo isso?
Pela primeira vez a pergunta pairou na minha cabeça.
Qual sentido havia em ter todo o poder, dominar qualquer humano na
face da Terra e ser temido e respeitado, à preço da sua alma?
– Eu quero que você e sua língua gigante vão para...
– Calma, meu adorado primo! – Enzo me cortou antes que as coisas
ficassem piores.
Ele apareceu na minha casa antes de eu sair para encontrar os
acionistas para a reunião. Já tinha pensado em como dividiria os fardos, mas
isso me daria trabalho e levaria tempo.
– Eu queria apenas ver como você está e sugerir algo bem interessante
para sua solução de hoje.
Estávamos no meu escritório e ele tentou jogar algumas piadinhas
sem graça, como sempre. Eu, no entanto, já tinha acordado uma pilha de
nervos.
– Seja rápido. Não tenho sua vida.
Ele se aprumou na cadeira e firmou seus olhos nos meus. Sério e
profissional.
– Nos odiamos e isso é fato. Meu maior desejo na vida inteira é que
você morra para que eu assuma tudo isso aqui – gesticulou sinalizando ao
redor –, mas sejamos sinceros entre nós dois: naturalmente falando, isso não
vai acontecer. Você é esperto e difícil demais de ser enganado. Mas eu sei de
coisas que você não gostaria que ninguém jamais soubesse. E isso tem um
preço.
Meu sangue começou a subir.
O que mais me irrita no mundo é um assunto ser guiado até os
segredos que alguém esconde. E pela forma como Enzo estava levando a
conversa, chegaríamos a isso.
– Prossiga – fui típico, frio.
Ele estendeu o celular e me mostrou uma foto.
– Quero que conheça o Khaled.
Quando meus olhos focaram na foto que ele mostrou, senti calafrios
subindo por minha espinha. Aquele rosto era muito familiar.
Muito familiar.
Não transpareci absolutamente nada para Enzo, apenas olhei
novamente para ele, esperando o fim do discurso.
– Khaled foi criado fora do país, separado do irmão Karl. Irmão esse
que foi brutalmente assassinado aos dezoito anos, dias antes de se formar na
academia do Patriarcado. Rumores percorrem até hoje, sugerindo que alguém
com certa influência pudesse estar envolvido. Khaled está com sede de
vingança e pode talvez desenterrar esse caso esquecido... que pode acabar
chegando em nosso atual patriarca. Afinal, rumores indicam que Karl sempre
te mantinha por perto, apesar de não serem amigos.
Joguei as lembranças para escanteio, não era a hora de me lembrar de
tudo o que passei naqueles anos infernais e tentei pensar rápido.
Se o Patriarcado quisesse investigar esse caso novamente, era fato que
descobririam no fim das contas que eu matei Karl.
Um assassinato dentro da academia é compensado com a morte do
assassino.
Não sei se depois de tantos anos a lei ainda se aplicaria, teria que
averiguar, mas não posso cair na conversa fiada de Enzo.
– Que coincidência. Conheço diversas pessoas que foram vítimas de
um primo meu chamado Enzo. Primo este que cansou de me pedir socorro e
liberdade de julgamentos duros que poderiam custar a vida dele. Acho que
seria uma boa hora para reabrirmos cada caso e rever o verdadeiro culpado. –
Levantei e espalmei as mãos sobre a mesa. – Vá com suas ideias infundadas
para o inferno! Não tenho nada a temer. O que eu devo, eu pago. Não sei o
que estava querendo com essa história, mas aqui você só vai conseguir sarna
pra se coçar.
Ele, inexpressivo, levantou e comentou suavemente, como quem não
quer nada:
– Queria apenas uma posição de privilégio no comando das bases.
Talvez duas ou três para que eu comande. Seria fácil para você, uma vez que
não deseja estar em todas ao mesmo tempo, pois não é Deus.
Soltei um riso seco, sem expressão.
– Eu o conheço. Não é apenas isso o que quer.
Ele sorriu. O sorriso diabólico.
– É, primo. Não é mesmo, não. – Se aproximou de mim e me encarou
com firmeza no olhar. – Quero ser o sortudo no seu primeiro aniversário de
casamento. Quero ter mais ações na empresa e privilégios fiscais. Quero uma
porrada de coisas, Malcolm, nem que pra isso precise investigar até a sua
mãe.
– Você morre antes de ter o que quer.
Ele se afastou e murmurou antes de deixar a sala:
– Bom saber que é capaz de tudo sem medir consequências.
E fechou a porta.
Porra!
Eu o tinha salvado diversas vezes mesmo antes de ser o patriarca, pela
chance de poder cobrar sempre uma dívida. Nem sempre a pessoa que detém
mais poder é admirada. Muitas vezes precisamos manter quem nos odeia
preso por débitos. Era assim que mantinha Enzo em minha mão.
Até aquele dia.
De imediato chamei Romero, que em curtos minutos já estava em
meu escritório.
– O que manda, patrão? – Entrou e fechou a porta.
Romero era quem mais realizava minhas ordens de execução, então
estava mais do que ciente de tudo que eu e Enzo já nos envolvemos.
– Enzo esteve aqui. Inventou um monte de bosta para tentar me
manter em sua mão. Preciso tramar a morte dele o mais rápido possível.
Ele arregalou os olhos.
– Tem certeza? Não podemos talvez fazer algo parecido com a última
vez? O cara ficou sem bolas e ainda quer mais?!
Respirei fundo e apertei as têmporas. Minha cabeça estava
começando a doer.
– Ele precisa morrer. Não posso ser descoberto e também não posso
ter nenhuma ligação com a forma como ele morrerá. Precisamos pensar em
algo rápido.
A reunião foi rápida. Deleguei alguns países a acionistas que me
pareciam mais leais, e aos demais deixei que cuidassem da parte financeira,
aqui mesmo na Inglaterra. A parte financeira era sempre fiscalizada, então
não tinha o que temer. Enzo ficou com apenas um país e como responsável
financeiro. Não daria o que ele pediu nem por um decreto. Qualquer
movimento em prol dele poderia indicar que temo suas ameaças.
Seu rosto se contorceu de ódio, mas que se dane.
Pouco me importava.
Estava aturdido nas minhas funções e tinha que deixar tudo
estabilizado o mais rápido possível.

Naquele fim de semana fui sem Rivka visitar minha mãe. Algo no
discurso de Enzo me trouxe à memória algumas cláusulas no contrato de
acordo de casamento. O Patriarca, para se oficializar como tal, devia
conseguir o maior acordo milionário daquela geração para a organização. O
acordo geralmente é selado com o casamento, ou algum vínculo perpétuo.
Em noventa por cento das vezes, o casamento é a forma mais usada.
Meu pai fechou o acordo com o pai da minha mãe. Eles eram donos
da maior petrolífera do mundo. Minha mãe morava no interior, numa fazenda
no Brasil. Através desse acordo, meu pai casou com minha mãe e,
consequentemente, deteve o poder sobre todo o mercado de petróleo mundial.
O mesmo se aplicou comigo e Rivka. Seu pai era dono da maior
empresa de avanços tecnológicos do mundo. As criações absurdamente
avançadas que eles produzem auxiliam todos os setores da nossa economia
global. Produzem desde pequenos chips rastreadores, até gigantescos parques
movidos a energia sustentável. Tudo que se podia construir, ele fazia o
melhor.
Assim que ele faleceu, por ser o marido de Rivka e termos firmado
contrato antes mesmo do casamento, eu assumi toda a empresa sem que ela
nem precisasse saber, delegando funções aos funcionários que já estavam no
comando anteriormente.
Subornei a imprensa para que não noticiassem absolutamente nada
sobre ele em lugar nenhum e fui levando a história até onde chegou.
Rivka não tinha tanto acesso ao mundo digital e informativo. Ela
apenas assistia aos noticiários pela tevê, nunca gostou de se prender a um
celular ou computador, então não me preocupei tanto, apesar de ser um risco
enorme caso ela procurasse por ele por esses meios.
O que tanto me fez procurar minha mãe naquele fim de semana foi
uma cláusula em especial.

– Ah, meu filho lindo! – Quando me viu, Adélia abriu os braços e o


sorriso.
Permiti que ela me abraçasse e logo entramos. Não podia perder
muito tempo.
– Como tem passado, mãe?
Enquanto íamos para a sala de estar, puxei conversa.
– Estou bem. Sabe que já estou quase terminando todos os livros da
minha biblioteca? Preciso comprar mais. Estou também com saudades de te
fazer uma visita. Faz meses que a gente não se fala. Como está tudo por lá? E
minha norinha?
Entramos na sala de estar e me acomodei ali. Retirei minha jaqueta e
relaxei na poltrona. A casa da minha mãe era sempre assim, leve. Dava
vontade de ficar bem mais tempo do que o devido.
– Um dia venho com Rivka e vamos juntos ao shopping mais próximo
comprar mais livros para você. Em Londres está tudo bem, tudo sob controle.
Ela estava sentada na poltrona ao meu lado e puxou minha mão,
envolvendo-a com a sua.
– Fico feliz ao ver que está seguindo os passos do seu pai.
Deu aquele sorriso gracioso que sempre me dá. Assenti e mantive a
mão na dela, enquanto encarava o teto. Precisava das respostas que tinha ido
buscar, mas tinha que ter cautela. Minha mãe não poderia suspeitar de modo
algum que a pergunta tem algum interesse por trás, senão ela faria de tudo
para descobrir a real intenção e eu estaria ferrado no fim das contas.

– Ah, Mac. Meu casamento com seu pai foi muito bonito. Nos
casamos lá no Brasil. Eu pedi que fosse na minha terra. Tem o álbum de
fotos, quer ver?
Já estávamos há quase uma hora conversando. Eu criei com cautela
um percurso lento até o tema que eu desejava saber. E – finalmente –
estávamos nele.
Anuí com a cabeça e ela levantou alegre para buscar o bendito álbum.
Em instantes, voltou com o livro enorme e o abriu.
– Olha que lindo. O sítio parecia daqueles de filme de tão enfeitado. –
Mostrou a cerimônia, as fotos deles fazendo os votos, o beijo, a festa, tudo.
Eu acompanhei cada pequena explicação de cada foto, com a
paciência que nunca tive, mas precisava.
– Estou feliz por você finalmente querer ver mais da história da nossa
família. Agora que casou deve estar mais sensível a essas coisas – expressou
alegria ao dizer.
Não quis deixá-la triste, então assenti.
Peguei o álbum nas minhas mãos e o folheei enquanto perguntava
mais.
– E a convivência com meu pai, foi tranquila no começo? Ele era um
cara difícil.
A olhei de soslaio, fingindo ver as fotos. Ela estava encarando o teto,
buscando as lembranças.
– No começo eu cortei um dobrado. Seu pai era um homem
amargurado demais. Eu não era o tipo de mulher que sabia levar um fora, ou
até um tapa.
A encarei um pouco em choque.
– Um tapa? Ele te batia?
Não havia regras para agressão familiar dentro do Patriarcado. Muitos
sabiam que os casamentos não eram felizes nem com sentimentos genuínos,
então às vezes os casais se agrediam. Meu pai sempre me orientou a jamais
agredir a mulher com quem eu me casaria. Ele dizia que eu mostraria todo o
meu valor e autoridade, sem precisar tocar um dedo nela.
“Mulheres não são para ser agredidas. Você as submete usando a
inteligência.”
Era o que dizia sempre.
Então eu realmente fiquei em choque quando descobri que ele bateu
em minha mãe.
– Me agrediu algumas vezes, e como eu era uma maria mijona,
chorava sempre. Até que um dia eu o esfaqueei enquanto dormia.
Aquela história estava começando a ficar interessante.
– E ele não fez nada?
– Pediu ajuda. Estava perdendo sangue e eu podia deixá-lo lá para
morrer se quisesse. Era madrugada e estávamos no nosso quarto. Mas apenas
o orientei dizendo que se ele casou para ter uma escrava sexual e um saco de
pancadas, que conquistasse cada fonte de petróleo com sua própria pá. E se
encostasse a mão em mim novamente, não teria misericórdia com ele outra
vez.
Abri a boca e encarei aquela jovem senhora cheia de ousadia. Quem
acreditaria que minha mãe fez uma coisa daquelas?
– Quando aconteceu isso?
– Estávamos perto de comemorar nosso primeiro ano de casados.
Isso. Cheguei onde eu queria.
– Quando fizeram um ano juntos, comemoraram? Teve algo de
especial?
Minha mãe estreitou o cenho e me encarou cheia de desconfiança no
olhar.
– Quer ideias para fazer com Rivka? Meu filho, eu não sou tão “para
frente” assim a ponto de falar das minhas experiências íntimas.
Contorci o rosto, tentando não imaginar qualquer coisa entre ela e
meu pai. Era absurdamente horrorizante.
– Não digo sobre isso. Mantenha a compostura, dona Adélia – a
repreendi, com uma pitada de humor.
Eram raras as vezes que ela e eu conversávamos tão abertamente.
Tinha até me esquecido qual foi a última.
– Ah, Mac. Seu pai me levou para jantar em um restaurante super
elegante... Mas na volta aconteceu algo...
Então ela abaixou o rosto e respirou fundo com os olhos fechados.
Não... Ela tinha passado pelo que eu esperava.
– Diga.
– Fomos assaltados na rua. Era tarde e não tinha muita gente
circulando pela cidade aqui em Londres. Achei que queriam apenas nos
roubar, mas me levaram junto.
Engoli em seco e fiquei apenas ouvindo, olhando minhas próprias
mãos cruzadas sobre meu colo.
O relato dela confirmaria tudo aquilo que eu sabia, mas temia que
acontecesse novamente.
Dessa vez com Rivka.
Malcolm
– Eram homens encapuzados e muito fortes. Eles estavam com
algumas motos e um deles com um carro mais atrás do nosso. Me colocaram
no carro e taparam meus olhos. Eu chorava de medo, estava apavorada.
Então sua mão, que já tinha soltado a minha, voltou a tocar-me,
segurando com força.
– Logo no dia que comemorei um ano de casada, filho. Fui abusada
por aproximadamente sete homens.
A ira que percorreu meu corpo fez com que eu controlasse a força
bruta que emanava em mim. Queria voltar no tempo e esquartejar cada
maldito que fez aquilo com ela... E só de imaginar que a história poderia se
repetir...
– Sinto muito. Preciso ir – falei rapidamente e me levantei.
Não dava para ficar mais.
Meu pai com certeza sabia o que aconteceria com a mulher dele e
permitiu. Por quê?
Eles deviam se odiar muito.
– Filho!
Ela veio correndo atrás de mim enquanto eu seguia pelos corredores
para fora do casarão. Sua mão tocou meu ombro e respirei fundo antes de
virar e olhar nos olhos da mulher que me criou.
– Diga.
Ela estava com lágrimas nos olhos, provavelmente causadas pela
lembrança dolorida.
– Preciso dizer três coisas. Por favor, Mac. Me ouça – suplicou.
Me mantive parado, fito nela. Se realmente fosse importante eu
jamais esqueceria.
Anuí e aguardei o que ela diria. Sua mão um tanto áspera tocou
lentamente meu rosto e deslizou com ternura até minha barba antes de
proferir:
– Não tenha medo. Seu pai me amou. Não permita que façam o
mesmo com ela.
E me abraçou.
Sem pensar duas vezes, levantei os braços e a envolvi também em um
abraço que quase nunca retribuo. Parecia certo.
Ela sabia muito mais do que eu podia imaginar.
Mas não seria eu quem faria mais perguntas.

Rivka
Há dias eu me mantenho mais calada que o normal.
Não é por nada específico, mas por enxergar que nem tudo precisa ser
dito. Quanto mais nos calamos, mais observamos.
A vida passa sob nossos olhos e muita gente nem vê. Meu pai se foi
num piscar de olhos e eu não percebi. Não vi.
Não soube o motivo e as notícias que busquei também não diziam
nada. Imaginei que poderia ser algo tramado pelo pessoal do Patriarcado.
Eles lidam com vidas como se fossem números, sem valor algum.
Já tinha reparado que pouco se falava nas mulheres dos homens que
atuavam dentro do Patriarcado. O pouco que vi, ouvi e fiquei ciente, só falava
dos homens.
Poder, poder, poder e mais poder.
Patriarcado por isso mesmo, de pai para filho. Homens.
Eu estava no meio de um caos hereditário, sem poder fazer
absolutamente nada. Com o destino escolhido desde a infância, iludida com
uma realidade que jamais poderia mudar.
As princesas da Disney nunca foram tão surreais pra mim após meu
casamento com Malcolm.
Naquela manhã de sábado eu observava os pássaros que circundavam
a mansão. Andavam em bando, harmoniosamente. Depois senti a brisa suave
que tocava meu rosto e balançava meus cabelos na janela do meu quarto.
A vida era bem mais que nossas individualidades.
Não podia deixar de agradecer a Adonai, por toda sua criação perfeita
e harmônica, apesar do homem ter sido uma criação que comete tantas
tolices.
– Obrigada... Obrigada. – Fechei os olhos e deixei a luz fraca do sol
me aquecer.
Tinha compreendido e superado meu luto com fé e esperança de que
eu cumpriria a missão que meu pai tanto dizia.
Logo procuraria saber mais detalhes sobre o acordo feito entre meu
pai e o pai de Malcolm quando eu completei oito anos, mas para aquele
momento eu só queria uma dose de paz.
Fiz minhas orações e desci rumo à biblioteca. Leria um novo livro
naquele sábado.
Assim que entrei naquela terra magnífica dos mundos imaginários,
respirei fundo e comecei minha caça.
Estava selecionando livros para ler o primeiro capítulo e verificar se
me interessavam, quando alguém entrou correndo e chorando no cômodo.
Era Lindsay.
– Meu Deus! – Levei a mão ao peito, assustada.
A menina estava com o rosto inchado de tanto chorar.
Ela me viu e quis fugir.
– Desculpe, senhora.
Virou e tentou sair de lá. Não devia ter me visto quando chegou.
– Não! – a chamei. – Senta aqui, Lindsay. Fica tranquila.
Ela assentiu com as mãos sobre o rosto e veio para perto de mim.
Sentou na poltrona de leitura que havia ao lado da estante em que eu mexia
anteriormente e tentou controlar suas lágrimas.
– Eu n-não sabia que est-tava aqui, dona Rivka.
Coitada. Vê-la daquele jeito me partiu o coração. Abaixei até ficar
face a face com ela e enxuguei uma lágrima teimosa que deslizou na sua face.
– Não precisa ter vergonha de chorar. Fazia tempo que eu não te via
aqui na casa, está tudo bem?
Ela me encarou ainda tristonha e assentiu.
– Eu estava de férias. Linda me deu outros afazeres desde que
retornei, agora eu cuido da área externa e da área de serviço. Não entro mais
aqui na casa.
– E por que tentou se esconder aqui para chorar? Me conta o que
aconteceu.
Ela uniu as mãos, entrelaçando os dedos sobre o colo como num tique
nervoso, e fez de tudo para segurar mais lágrimas que ameaçavam sair.
– Descobri agora cedo que meu namorado me traiu – não aguentou e
se debulhou em lágrimas. – E eu estou grávida dele.
Deus do céu.
Naquele momento olhei ao redor e não via luz no fim do túnel.
Lindsay foi traída e estava grávida. Como viveria naquele momento tão
frágil, sem o apoio do homem que, além de ser seu amor, é pai de seu bebê?
Eu compreendia em partes o que ela sentia, pois passei por situações
parecidas. A diferença é que não cheguei a amar Malcolm e quando descobri
minha gravidez, ela já nem existia mais.
– Fique calma. Vamos averiguar e ver se seu namorado realmente
traiu você. Pode ter sido algum engano, não sei. Mas independente disso,
Lindsay, preciso que se enxergue no meio do que está passando. Você não é
uma figurante, é a protagonista. Está carregando no ventre um ser que
depende totalmente de você. Só você tem o poder de ajustar o destino dessa
história. – Levantei e estendi a mão para que ela segurasse firme com a sua. –
Vamos comer alguma coisa? Depois a gente pensa nas soluções. O que acha?
Os olhinhos dela, vermelhos e inchados, reluziram pela pequena
centelha de esperança que gerei dentro dela.
Mulheres precisam ajudar outras mulheres.
Infelizmente há muitas mulheres sozinhas nesse mundo gigante.
Sozinhas mesmo, sem nada as favorecendo ao redor.
Assim como eu no meio do Patriarcado. Uma mulher que deseja ser
vista e ouvida no meio de uma tradição masculina criada há séculos, passada
de geração em geração.

Passei a tarde toda com Linda e Lindsay, conversando sobre enxoval


do bebê e sobre o trabalho que ela faria na mansão nos próximos meses.
Lindsay estava de dezesseis semanas, aproximadamente quatro meses
gestante. Ainda não sabia o sexo, mas não tinha revelado nada ao namorado
por receio. Era jovem e não planejou nada, mas precisava ser madura e lidar
com aquela nova realidade.
A aconselhei sobre a questão da traição. Ela conversaria com ele e
juntos decidiriam o melhor rumo da relação. Se acabarem se separando, ela
quer deixá-lo ciente de que não abre mão das responsabilidades dele como
pai da criança.
Isso é fundamental.
Linda se ofereceu para apadrinhar o bebê e eu nem debati. Não era tão
presente na vida dos funcionários da mansão como gostaria, mas amava vê-
los alegres, conversando sobre uma vida comum, sem o peso de qualquer
aliança milionária.
Uma vida de escolhas livres.

Não quis saber onde Malcolm estava, apenas estava ciente de que
sairia e voltaria tarde. Sábado geralmente era um dia em que ele trabalhava
em casa e nos víamos mais que o normal, ou íamos a algum evento
corporativo, ou viajávamos em nosso jato para os países próximos para
eventos, reuniões ou qualquer coisa concernente ao Patriarcado.
Eu, como sempre, era o enfeite de mesa em cada lugar que ia.
Ele não me deixava mais sozinha desde o acontecido com Enzo
naquele evento anual, mas também não me deixava a par de tudo que
conversava, muitas das vezes falando em códigos ou enigmas.
Tinha acabado de dar uma caminhada no fim da tarde, quando
retornei para casa e fui tomar um banho relaxante na banheira. Fiquei lá
pensando em toda a minha vida.
Na menina que eu era.
Na que eu estava me tornando.
Senti um calafrio fazendo meu corpo estremecer ao imaginar quem eu
seria no futuro.
– Estou com medo – sussurrei para mim mesma.
As circunstâncias nos fazem mudar. Eu não conseguia mais ter a
mesma perspectiva confiante e iludida sobre tudo, mas não era amargurada
nem má com as pessoas. Eu aprendi que o amor sempre resolve os
problemas, mesmo entendendo que nem todo mundo sabe o que ele significa.
Relaxei minha cabeça para trás, no apoio que havia na banheira, e
fiquei ali sob toda a espuma e água quente borbulhando, apenas aproveitando
o instante de paz.
Não sei quanto tempo passou, mas acabei cochilando ali mesmo, de
tanto que meu corpo estava relaxado.
O que me fez despertar foi a movimentação que senti na banheira.
Abri os olhos rapidamente e, sem pensar, levantei e peguei o vidro de
xampu que estava ao meu lado sobre o suporte, disposta a atacar quem
estivesse ali.
– Vai me matar com um xampu?
O infeliz me deu um susto tão grande, que foi difícil normalizar meus
batimentos cardíacos quando notei que não era ninguém a temer, apenas meu
marido idiota.
Ele já estava deitado do lado oposto do meu. A banheira era enorme,
cabiam umas quatro pessoas confortavelmente. Assim que me acalmei
percebi que estava de pé, nua com o xampu apontado para Malcolm,
enquanto ele fechou os olhos e moveu os braços debaixo d’água, como se não
tivesse quase me matado do coração.
– Levei um susto, seu... seu... – Quis xingá-lo, mas a vergonha falou
mais alto.
Odiava que Malcolm me visse nua sem minha permissão. Odiava.
– Seu marido maravilhoso e gostoso. Já passamos da fase da timidez,
Rivka. Lembra da nossa lua de mel?
Entrei novamente na água, me cobrindo por completo, e lá fiquei, sem
saber como reagir àquela invasão no meu banheiro particular.
– Lembro que você me deu medo. Lembro que me fez ficar nua
apenas para me dizer que sou sua e não tenho o que temer. Muito legal da sua
parte – ironizei. – Agora, se me dá licença, pode sair para que eu finalize meu
banho?
Ele afundou o corpo na água, me ignorando completamente. Depois
subiu, esfregou o rosto e disse:
– Não.
– Se sua prepotência fosse alimento, acabaríamos com a fome em
todo o mundo – resmunguei.
Se ele queria me provocar, que o fizesse. Minha paciência para lidar
com ele estava no subzero.
Então tive uma ideia. Uma ideia que o faria enlouquecer de vez.
Malcolm
Depois de falar com minha mãe, voltei com mil pensamentos em
mente durante o trajeto.
Não sou idiota, pude compreender naqueles três conselhos que ela
sabia sim de tudo. Minha mãe sabia como funcionava o Patriarcado.
Sempre soube.
Então ela sabia o que acontecia comigo na academia.
Será?
Não deixaria as dúvidas me consumirem. Precisava elaborar um plano
diferente de tudo que tenho feito até então. Percebi que jamais agiria como
meu pai. Jamais agrediria Rivka, nem a deixaria ser estuprada apenas para
provar que minhas decisões dentro da organização não são medidas por
sentimentos.
Pois esse era o motivo.
As leis para o líder eram as mais rigorosas.
Não podíamos ser sentimentais em absolutamente nada. Nada. Tudo
sempre devia ser pensado pela razão, pelo dever.
A família era importante, claro, mas as leis vinham acima de qualquer
coisa. O dever dentro da organização não podia ser revogado, anulado,
escapado.

1- Razão é o que move.


2- Dever é mais importante que tudo.
3- Família é prioridade na segurança.
4- Decisões devem ser frias e racionais.
5- Traidores pagam com seu sangue.
6- Amor é ponto fraco.
7- Escolha sempre pela organização.

Tudo girava em torno do Patriarcado. Tudo. Se meu pai amou minha


mãe, como ela diz, então como conseguiu ocultar de todos?
Como foi possível que eles se amassem e ninguém desconfiasse?
Será que no final das contas é permitido sentir, nem que seja uma
única vez?
A morte do meu pai ainda estava estranha aos meus olhos, mas não
tentaria investigar porque iria contra meu próprio domínio dentro da
organização. Não posso ir contra a morte dele, uma vez que ela trouxe para
mim o poder de gerir o Patriarcado.
Eu podia tudo, ao passo que na verdade não podia quase nada.
Estava exausto mentalmente. Precisava relaxar.
Minha mente voou até Rivka, que devia ainda estar um tanto isolada
desde a última vez que nos falamos.
Senti uma estranha falta de ar, um aperto no peito no momento em
que ela passou pela minha cabeça.
– Que estranho – murmurei e abri os vidros do carro, desligando o ar-
condicionado.
A sensação do vento batendo em meu rosto amenizou a forma como
eu me sentia esmagado por dentro, como se o fato de eu pensar em Rivka me
trouxesse uma sensação de perda.
A veria assim que chegasse em casa.
Seria a primeira coisa que faria.
Malcolm
Sinceramente? Eu devia estar louco, não sei. Mas no momento em
que entrei preocupado no quarto de Rivka, temendo uma segunda fuga sua e
constatei que ela ainda estava lá, meu peito se aliviou.
Ela jazia dormindo na banheira, sem medo algum de acabar
deslizando e se afogando na água. Que menina maluca!
Pude ficar admirando cada traço de seu rosto e a pele exposta fora
d’água por um tempo, até decidir me unir a ela.
E lá fiquei, observando sua beleza angelical até que me notasse ali.
– Se sua prepotência fosse alimento, acabaríamos com a fome em
todo o mundo – resmungou.
Era engraçado quando ela tentava se mostrar furiosa, pois acabava
fazendo um biquinho esquisito e ao mesmo tempo bastante cativante.
– Só digo a verdade. Ainda não se acostumou?
Estava provocando a ira da teimosia em pessoa. Gostava quando ela
ficava brava, aquilo me excitava ao extremo.
Admito que minhas intenções foram completamente maliciosas ao vê-
la na banheira. Não posso negar uma coisa dessa.
Mas, agindo completamente diferente do que eu esperava, ela me
ignorou totalmente e esticou o braço, pegando o sabonete líquido que havia
ao lado da banheira sobre um suporte. Despejou uma dose do conteúdo sobre
suas mãos e – acreditem se quiser! – começou a esfregar aquilo no corpo
lentamente.
– Quê?
Soltei sem pensar, mas ela também ignorou e continuou encarando
seu corpo enquanto se ensaboava. Suas mãos delicadas deslizavam por cada
curva daquele corpo que parecia ter sido levemente bronzeado ao natural.
Logo levantou-se um pouco, fazendo com que eu visse sua nudez da
cintura para cima, então começou a ensaboar sua barriga, subindo para os
seios e depois o pescoço.
– O que está fazendo?
Não me contive e perguntei.
Ela fingiu que não lembrava da minha presença ali. Safada!
– Ah! – Tapou a boca, simulando um susto. – Estava apenas agindo
como se não estivesse aqui, já que não deseja sair.
Maldita tentação!
– E quer que eu fique vendo você se alisar sem fazer nada?
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Quero apenas tomar meu banho. E você?
Dito isso, ela mergulhou na água e emergiu em seguida, ficando de
pé, completamente à mostra para mim, em seguida colocou uma perna de um
lado e outra do outro, fazendo com que eu ficasse debaixo dela, tendo uma
visão bastante...
– Sabe, marido... – Sentou sobre mim e a partir dali eu já tinha
desligado totalmente meu cérebro. – Acho que precisa relaxar um pouco. Vou
te ajudar ensaboando você com calma.
Engoli em seco e me mantive olhando fixamente nos olhos dela. Meu
semblante estava sério, como sempre, mascarando qualquer maluquice que
passava na minha mente naquele instante.
Ela não esperou minha reação, só começou a acariciar meu corpo
lentamente, começando por meu peito tatuado e subindo para meu pescoço.
Rivka acariciou minha barba e esfregou meus cabelos úmidos, causando uma
sensação gostosa e inegável.
Fechei os olhos sem conseguir controlar mais nada. Se eu ainda tinha
algum controle sobre meus atos, ele havia ido embora ali.
Então envolvi sua cintura com meus braços, grudando seu peito ao meu, e
deslizei minha barba por seu pescoço, a provocando com arrepios.
Ela soltou um leve gemido, que me intencionou a continuar.
Enquanto eu a mantinha firme com meu abraço, elevei uma das
minhas mãos até sua nuca e massageei, a fazendo deitar a cabeça sobre minha
mão devido ao prazer da carícia.
Eu queria logo acabar com aquelas preliminares e me afundar dentro
dela, mas não sou esse tipo de homem.
Assim que ela voltou a me encarar, roçando seu nariz no meu, a beijei
possessivamente enquanto nossos corpos entraram em atrito.
Ela também desejava fazer sexo comigo, então não me policiei como
tentei na vez da cachoeira.
Eu a queria.
A queria como nunca antes quis.
Rivka
Depois daquele beijo arrebatador onde até minha alma ficou dopada,
me lembrei que não estava planejando tudo aquilo e então me afastei dele e
respirei fundo.
O olhar de Malcolm era como o de um predador prestes a devorar sua
presa. Suas íris dilatadas brilhavam como nunca, e sua pele estava totalmente
arrepiada.
Pude sentir toda sua intensidade quando meu corpo estava grudado ao
dele, mesmo sem termos consumado o ato, e aquilo me deixou sem ar.
Ele era bom e sabia que era.
Mas eu era ainda melhor.
Me levantei e peguei a toalha, me enrolando nela, saindo da banheira
em seguida.
– Aonde vai? – Sua voz estava carregada de intensidade e a pude
sentir perfurando minhas costas.
Sem virar para trás, apenas respondi:
– Vou jantar.
Assim como um dia ele fez comigo, na lua de mel, quando me iludi
pensando que ele faria amor comigo. Quão tola eu fui.
Podia parecer uma vingança boba e infantil para qualquer pessoa. Mas
para mim, foi como um imenso troféu.
O deixei lá e segui para meu quarto, depois para o closet onde me
vesti rapidamente com o coração ultra acelerado, já esperando uma retaliação
da parte dele.
Mas quando voltei ao quarto, cruzei o cômodo chegando ao banheiro
e abri a porta.
Ele já não estava mais lá.
Linda estava preparando uma refeição maravilhosa para nós. Como
era sábado, eu sempre pedia que fosse massa. Naquela noite foi lasanha de
peito de peru ao molho branco. Amo!
Ela estava começando a fazer o molho quando entrei na cozinha a
passos sorrateiros.
– Rivka, menina, nem adianta disfarçar. Sei que é você.
Ela estava de costas para mim, com o corpo virado para o balcão onde
montava a iguaria deliciosa em tabuleiros.
– Poxa, nunca consigo te dar um susto! – brinquei e fui até ela.
Apoiei minhas mãos sobre seus ombros e deixei um beijo estalado em
sua bochecha, antes de me oferecer como ajudante.
– Sabe que não gosto de ficar sem fazer nada, então me diga, o que
posso fazer?
Ela estalou a língua e lavou as mãos antes de se virar para mim,
apoiando-as na sua cintura.
– E sabe que não gosto que atrapalhem o modo que eu faço as coisas.
Você sabe muito de cozinha, vai acabar desandando tudo. – Tirou o avental.
– Pode assumir daqui, vou adiantar a arrumação da mesa.
Ela sorriu quando constatou o quanto eu estava feliz por poder
cozinhar. Não gostava de ser um fardo para ninguém, mas fazer comida
sempre foi e sempre será uma das minhas terapias mais agradáveis.
A cozinha era o ambiente mais iluminado da casa. Todos os demais
cômodos exalavam escuridão, assim como o dono do lugar. As cores sempre
eram escuras, móveis amadeirados também escuros e nada tão pacífico. Mas
a cozinha era branca em sua totalidade.
Exalava paz.
Fiquei ali pelos próximos minutos finalizando o molho e montando a
lasanha, até que enfim ela ficou pronta e, de cabelos presos num coque e
avental mesmo, levei os pratos para a sala de jantar.
Malcolm já estava na cabeceira, mexendo em seu celular. Quando o
servi ele elevou o rosto, me encarou por alguns segundos que pareciam uma
eternidade, mas nada disse.
Respirei fundo e me sentei onde sempre sentava e comecei a comer.
Ele voltou a olhar para o celular, digitou algumas coisas e o guardou
no bolso da calça.
Algo me dizia que podia ser uma garota de programa, talvez. Ou só
coisas do Patriarcado.
Ele ainda não tinha me inserido em nada e aquilo me dava nos nervos.
– A lasanha está gostosa?
Perguntei, a fim de quebrar o gelo entre nós. Ele devia estar me
odiando por deixá-lo naquela situação há pouco tempo.
– Uhum.
Respondeu e sua voz soou como a de um trovão furioso.
Tá, ele não estava para brincadeiras.
Senti um pinguinho de culpa me corroer. Sabia que a Rivka interior
não morreria por completo, ela queria gritar aqui dentro que eu estava sendo
tola, perdendo a chance de cativar o coração congelado do homem.
Mas eu não desejava isso.
Quando o via, lembrava de tudo. A dor que me causou, a perda que
me escondeu, tudo.
Eu não conseguia odiá-lo, mas jamais desejaria amá-lo.
Agora, além da Rivka interior e da Rivka sensata (de fora), tinha o
meu corpo de mulher que estava ansiando por toques específicos, como os
que recebi no dia da cachoeira.
Em meio a tantos pensamentos, nem notei que estava mexendo na
comida no prato e bagunçando tudo ao invés de comer.
– Vai sair hoje ainda? – perguntei.
Malcolm parou sua mão que estava levando uma porção de lasanha no
garfo até a boca e me encarou.
Ali ficou por alguns segundos, como uma estátua.
Então jogou o talher sobre o prato e socou a mesa, me assustando.
O susto foi tão grande que eu tremi da cabeça aos pés.
Em seguida ele arrastou a cadeira para trás, levantou e apoiou as mãos
sobre a mesa, e curvou o corpo na minha direção.
– O que você quer, afinal?! – vociferou como jamais antes tinha feito.
Malcolm não era o tipo de homem que explodia assim, ele sempre
mantinha o semblante calmo. Tinha controle das suas emoções. Apenas sua
voz ditava a forma como seu humor estava no momento.
Mas ali eu vi um homem furioso. Extremamente furioso.
Respirei várias vezes, pensando no que diria. Estava calada pelo
medo, pelo susto, não conseguia raciocinar.
– E-eu... Eu...
Tentei dizer algo, mas não conseguia. Droga, eu era uma fraca!
– Eu vou dizer o que você quer, garota. Quer me deixar maluco, quer
fazer com que eu me perca nas minhas próprias convicções e pensamentos.
Você quer que eu morra, pois é isso que vai me acontecer, caso continue com
esses seus joguinhos baratos. Perderei a cabeça e vou falhar como Patriarca.
E sabe o que farão comigo? Vão me matar para que Enzo assuma daqui para
frente. É um ciclo e você não consegue enxergar. Seu mundinho é limitado. –
Apontou para a minha cabeça, insinuando que eu jamais conseguiria pensar
em tudo o que disse.
– Não sou deficiente – finalmente achei firmeza na minha voz e falei,
exalando fúria sem manter a compostura. – Eu posso entender tudo o que diz,
se você falasse comigo. Mas pelo que parece não pode me incluir em nada.
Isso te sobrecarrega e faz você ficar maluco SOZINHO!
Levantei e me afastei da mesa.
– Confesso que quis tirar você um pouco do sério, porque é só desse
jeito que tenho conseguido o que quero. Você me ensinou a ser assim. Você
me quebrou, Malcolm. Não adianta querer me culpar pelo seu fracasso como
líder.
Saí dali a passos rápidos e assim que sumi do seu ângulo de visão
comecei a correr rumo ao meu quarto. A verdade era que eu estava brincando
com o capeta sem saber. Malcolm não seria pacífico o tempo todo, uma hora
ele perderia a cabeça mesmo e essa hora chegou.
Elohim, me ajuda!
Entrei no quarto e pude ouvir os passos dele no andar de baixo, firmes
e pesados.
Estava subindo as escadas quando eu fechei a porta e tranquei, me
colocando atrás para ajudar em alguma coisa.
Sabendo que seria em vão.
Ele viria atrás de mim e “eu que lute”.
Rivka
Como eu temia, aconteceu.
Ele socou minha porta, mas eu não abri.
– Abra agora, não seja teimosa.
Respirei fundo, mas não abri.
– Está calmo? Eu não vou abrir se for para termos uma discussão.
Cinco segundos foram necessários até que ele respondesse.
– Abra.
Não estava gritando, nem sendo rude. Então me virei, destranquei
mesmo sabendo que ele poderia abrir com a chave que ele tem, e abri apenas
uma fresta, a fim de analisar o rosto dele antes de deixá-lo entrar.
Ele se mantinha apoiado pelo antebraço na parede do corredor e sua
feição era apenas de uma pessoa cansada.
Então abri tudo.
– Entra.
Assim que meu marido entrou, tranquei a porta. Se ele estava lá para
conversar, eu só o deixaria depois que tivesse minhas respostas.
Ele seguiu até a minha janela e abriu as cortinas, afastando os vidros
para permitir que o ar noturno invadisse o ambiente. Ali ele ficou apoiado,
quieto.
Eu, pelo contrário, fiquei perto da porta, só esperando o que ele diria.
Não contei o tempo que demorou, mas longos segundos foram
necessários até que ele dissesse:
– Sofri o primeiro abuso sexual quando tinha sete anos.
Ele soltou, assim, do nada, e virou na minha direção com os braços
cruzados, encostando seu corpo na janela.
Fiquei sem reação. Impactada.
O impacto que sua frase causou em mim dava para ser notado por
cada fibra facial minha. Minha boca tinha se aberto e meus olhos,
arregalados.
– Pois é – continuou ele, com sua voz mais branda.
Malcolm não olhou mais para mim, apenas encarou o teto enquanto
continuava a falar.
– Era a primeira semana de aulas na academia do Patriarcado. Eu
estava empolgado, meu pai tinha dito que lá eu aprenderia tudo o que
precisava para assumir seu lugar. Minha cabeça inocente não sabia que o
Patriarcado era o que é, eu pensava que era como uma empresa, algo do tipo.
Foi então, na primeira noite que dormi lá, no dormitório, que o pesadelo
começou.
“Havia um garoto que era cinco anos mais velho que eu, de algumas
turmas acima. Ele me olhava muito, o tempo todo. Naquele primeiro dia,
assim que eu entrei no dormitório com o pessoal da minha turma, ele abriu a
porta e me chamou lá fora.
Senti um pouco de medo, mas não entendia o que poderia ser. Eu era
só a porra de uma criança inocente – nessa hora ele respirou fundo antes de
continuar a falar. – Mas então ele disse que tinha uma tarefa extra na sala de
aula e que se eu não fizesse, jamais seria o Patriarca.
Cogitar não realizar o desejo do meu pai era um pecado para minha
cabeça infantil. Eu tinha que ser o Patriarca custasse o que custasse, então lá
fui eu atrás daquele garoto do inferno.
Percorremos os corredores vazios, com todos os vigias ausentes, e eu
nem sabia o motivo. Quando chegamos perto da minha sala, ele disse que
seria em outra sala, e essa sala na verdade era um armário de itens de
limpeza.
Entramos lá e tinha mais dois garotos da mesma idade dele, me
esperando.
– Oi. Ele me disse que tenho uma tarefa extra. Vocês também farão
essa tarefa? – perguntei e os meninos riram.
– Não, seu trouxa. Só você. Vamos apenas nos certificar de que você
não chore como uma mulherzinha.
Então eu me assustei, mas era tarde. Eles me vendaram, lacraram
minha boca com uma fita grossa e amarraram meus braços.
Fiquei em uma posição desconfortável com o rosto no chão e joelhos
dobrados, prestes a entrar numa sessão de tortura que durou seis anos.”

Meu coração estava em frangalhos, e sem ao menos perceber, eu


imaginei cada detalhe da cena que ele descrevia, visualizando aquele pequeno
Malcolm da foto que a mãe dele tinha me mostrado. Aquilo fez com que
lágrimas silenciosas percorressem meu rosto enquanto ouvia.
Queria dizer “sinto muito” ou “que horror”, mas não sabia se era
apropriado. Ele estava revelando coisas difíceis que talvez ninguém soubesse,
eu tinha que me manter apenas ouvindo.
– Tinha dia que ele usava materiais de limpeza para me violar. Outros
ele me chicoteava tanto que eu fazia xixi de medo e depois tinha que lamber
cada gota no chão. A vez pior foi quando eu fiz dez anos e ele, pela primeira
vez, me estuprou usando seu próprio corpo. Entenda como quiser. Eu já não
sentia dor. Pedi socorro para minha mãe, mas ela parecia alheia a qualquer
sofrimento que eu passava. Já não dormia, não comia direito e dentro de mim
só crescia o ódio por todos e a vontade de um dia me vingar. A única coisa
que me mantinha ali dentro era cumprir o propósito pelo qual eu nasci: ser o
Patriarca e orgulhar meus pais.
Nesse momento ele finalmente me encarou e eu pude ver brevemente
seus olhos marejados.
Droga, mil vezes droga.
Eu o tinha atingido em cheio. Fiz algo que o feriu profundamente, não
apenas o orgulho, mas feriu todo o sacrifício que ele passou para estar onde
está.
Era isso que ele queria que eu entendesse, provavelmente.
– Por favor, não precisa dizer mais nada – levantei as duas mãos ao
ar, pedindo que ele parasse.
Ele se manteve na mesma posição, me olhando com os braços
cruzados, encostado no parapeito da janela.
– Não contei isso para sentir pena. Não sinta. Hoje isso não dói mais.
Eu me vinguei. Eu o matei. Eu estou onde deveria estar, sou o Patriarca.
Venci essa batalha.
Sua voz estava carregada de rancor, frieza. Estava exatamente do
mesmo jeito de quando eu o conheci.
– Eu não imaginava que ser o Patriarca era tão importante. Jamais
imaginei que meninos tão pequenos fossem submetidos a torturas tão
absurdas.
Minha voz já estava trêmula, queria chorar.
– Não são submetidos. Só quem passa por esse tipo de coisa é a
pessoa que assumirá o posto na próxima geração. Sempre tem o torturador e
o torturado. Sempre tem. Hoje eu sei disso, mas na época, não entendia. –
Deu alguns passos à frente e me fitou com intensidade. – O que eu quero que
você entenda é: nada nunca será mais importante que esse Patriarcado para
mim. Nada. Pela memória do meu pai eu estou aqui e farei ainda mais do que
ele fez quando estava no poder. É por isso que somos tão leais à organização.
Só quem está aqui, na frente de tudo, consegue enxergar.
– Mas... por que eu preciso entender isso?
Nessa hora ele fechou os olhos, tomou uma boa dose de ar e quando
os abriu novamente, suas pupilas estavam dilatadas. Malcolm se aproximou
mais e me encurralou na parede, me fechando com seus braços lado a lado do
meu corpo, antes de encostar sua testa na minha.
Ficamos ali respirando o mesmo ar por alguns segundos. Ele me
encarava firme, decidido.
– Porque preciso que não me tire do foco. Você está fazendo algo
queimar aqui dentro.
Pegou minha mão e colocou sobre seu peito coberto pelo tecido da
camisa.
Senti meu coração falhar uma batida e minha mente estava totalmente
ausente. Tudo que ele contou e o modo como pediu ajuda tinham me
amolecido de tal modo que a única parte de mim que estava sobrando ali era
a mulher que o desejava.
Respirei fundo e acariciei o local onde seu coração mora, depois desci
a mão até a barra da sua camisa e a levantei.
– Vamos queimar juntos.
Sem pensar em nada, ele terminou de tirar a camisa e me pegou pelas
coxas, pressionando-me na parede enquanto eu envolvia minhas pernas na
sua cintura.
– Não quero que brinque desse jeito, Rivka. Você não sabe o que
acontece comigo quando faz o que fez mais cedo.
Eu sorri, estava doida para me entregar.
– Prometo que não vai se repetir. Agora me faça sua de uma vez.
Imediatamente seus lábios se apossaram dos meus com fúria. Uma
revolta velada sobre um sentimento reprimido que havia entre nós e nem
mesmo tínhamos conhecimento.
Estávamos ali, apenas saboreando como era sentir sem reservas.

Malcolm
Não sei de onde veio a ideia de contar meu passado para Rivka. Pôr
para fora tudo que passei fez com que eu voltasse no tempo, mas toda aquela
dor estava cauterizada e precisava me concentrar no presente. Na minha
função.
Minha esposa me tirava do foco constantemente e foi o que ocorreu
naquele começo de noite na banheira. O desejo latente me possuiu, e quando
pensei que ela seria minha, a maluca saiu rebolando, me deixando lá a ver
navios.
Já tinha entendido que precisava mantê-la distante de mim, e joguei
limpo ao revelar tudo para que ela enfim entendesse, mas parece que o
ambiente foi envolto por uma aura quente e sedutora, me fazendo ansiar por
possuí-la ao invés de afastá-la.
Nos beijávamos colados um ao outro com ela de costas na parede
enquanto eu a suspendia com meus braços. Era como se o beijo de Rivka
contivesse algum tipo de antídoto que apagava toda e qualquer racionalidade
dentro da minha cabeça.
Eu me encontrava em um estado que jamais tinha ficado antes.
A única coisa que eu queria naquele instante era fazê-la minha.
– Vamos fazer isso direito. – A pus no chão e puxei sua mão até a
cama.
Ela estava corada e ofegante, a visão do paraíso para mim.
Então a empurrei com um pouco de brutalidade para o colchão e ela
caiu de costas com os braços no alto da cabeça.
Os olhos dela brilhavam me analisando da cabeça aos pés, então a
instiguei ainda mais, me despindo lentamente.
Já estava sem a blusa, depois abaixei devagar a calça de moletom que
vestia, me deixando seminu.
– Quer fazer as honras?
Apontei para o foco de todo meu desejo por ela, que ainda estava
coberto pela boxer.
Ela rolou os olhos e riu.
– Como você é convencido. Se acha o gostosão mesmo?
Elevei o canto da boca, sorrindo de viés.
– Eu sou.
Já estava prestes a me despir por completo quando Rivka levantou,
sentando-se na minha frente, com o rosto na direção do único pedaço do meu
corpo ainda vestido.
– Eu tiro – disse ela com uma voz repleta de anseio.
Em seguida posicionou os polegares no canto do tecido sobre minha
cintura e abaixou de uma vez, me expondo por completo.
Vê-la olhando com tanta curiosidade e desejo para minha nudez fez
com que eu ficasse ainda mais excitado.
Então ela colocou a mão...
– Put... Ah... – soltei um gemido inesperado.
Ela não estava mesmo brincando.
Queria que Rivka fizesse tudo que já vi mulheres quase morrerem
para fazer comigo, mas entendia que ela não era como qualquer outra antes.
Era minha mulher. Minha esposa.
E sua inocência por ser intocada antes de me conhecer fazia com que
seus gestos fossem completamente curiosos, como o que fazia naquele
instante.
– Desculpa, eu... – Ela soltou a mão e me encarou assustada. – Peguei
sem querer.
Estava sentindo um puta orgulho dela e me sentia babaca por isso.
– Não fica com vergonha. Do mesmo modo que seu corpo é meu, o
meu é seu. Somos casados.
E para não constrangê-la ainda mais, a deitei novamente na cama e
assumi o comando. Faria com que ela jamais esquecesse daquela noite.

Rivka
Deus do céu! Eu tinha colocado a mão na intimidade do meu marido!
Socorro, Adonai!
Não sabia se era normal esse tipo de coisa, a gente só tinha feito sexo
duas vezes e nas duas eu mal o toquei, então... estava com medo de fazer algo
errado.
Mas pareceu que ele entendeu minha falta de experiência e me deitou
sobre a cama, se posicionando sobre mim e me despindo por completo.
Malcolm deslizou sua barba pelo meu pescoço, me fazendo arrepiar enquanto
nossas intimidades se chocavam. Eu me sentia como um forno no seu pico de
queimada.
– Relaxe, minha teimosa – sussurrou em meu ouvido.
Aquela voz rouca e sedutora que ele fazia me deixava vendo estrelas.
– Sou sua, é? – perguntei provocando.
Ele depositou beijos molhados perto da minha orelha e percorreu um
caminho de beijos até minha boca, em seguida afastou o rosto e disse:
– Só minha. Que não tenha dúvidas quanto a isso.
Sua ordem firme depois de ter me acariciado de modo tão gostoso me
fez sorrir. A pateta sonhadora estava lá dentro ganhando voz.
Antes dele voltar com suas carícias, aproveitei e perguntei também:
– E você também é só meu ou ainda preciso dividir?
Juro que tentei controlar a indignação que estava sentindo ao
perguntar. Mas eu sempre desconfiei que ele ainda me traía, desde a vez que
presenciei o fato.
Ele relaxou um pouco o corpo e abanou a cabeça em negativa, como
se pensasse que o que eu perguntei fosse algo idiota.
E o pior. Ele não me respondeu. Voltou a beijar minha bochecha,
seguindo para meu pescoço e indo até a outra orelha ainda não marcada.
Chegando lá, ele sugou o lóbulo me arrepiando por inteira e depois
sussurrou:
– Sou todo seu desde que me pediu um maldito namorado, linguaruda.
Confesso que saber daquilo me deixou bastante feliz, então trouxe seu
rosto para o meu e, depois de trocarmos olhares, o beijei sem precisar dizer
nada.
Rivka
Malcolm me satisfez de diversas formas, me mostrando que dá para
se ter prazer com uma variedade enorme de carícias.
Suas mãos habilidosas me faziam flutuar naquele colchão macio.
A cada vez que nos beijávamos, era como se um pedaço de um
enorme quebra-cabeças fosse posto no lugar. Sentia sua língua deslizar pela
minha e seus lábios macios me embriagavam como uma bebida forte.
Meu marido logo mostrou toda sua habilidade quando percorreu com
sua boca por todo meu corpo. Meus seios, minha barriga e até os lugares mais
inapropriados.
Ou não.
– Ai... – Fechei os olhos quando o senti em meu ponto mais íntimo.
Não demorou muito para que meu corpo se contorcesse e eu sentisse
como se fogos de artifícios estivessem explodindo dentro de mim.
E, logo depois, um alívio.
Malcolm levantou o rosto e ficou me olhando enquanto eu buscava
minha vergonha em algum lugar onde ela havia se perdido.
– Você fica tão linda em êxtase.
Tapei os olhos com as mãos, envergonhada.
– Meu Deus... não acredito que fizemos isso. – Sorri.
Ele tirou minhas mãos, deixando minha face à mostra, e me
presenteou com seu primeiro sorriso desde o dia que nos conhecemos.
Deus do céu, ele sabia sorrir!
E putz... era lindo.
– Vamos fazer muito mais. Venha.

Voltamos ao local onde eu o desprezei. A banheira.


Ele estava lá, me abraçando encostado no apoio, e eu mantinha
minhas costas em seu peito.
Podia sentir que ele desejava muito se aliviar, estava rijo sob mim,
mas era como se até sobre isso ele tivesse controle.
O homem controlava tudo.
– Como consegue acertar? – perguntei em meio às nossas carícias.
O rosto dele estava encaixado sobre meu ombro, então virei o meu
para que nos olhássemos melhor nos olhos.
– Acertar?
– É... os lugares certos, que eu sinto... as coisas – tentei explicar do
meu modo e ele soltou uma risada curta e depois deixou um selinho na minha
boca.
Deus do céu, o homem era outro.
– Você é engraçada – comentou –, mas todos nós temos pontos de
prazer exatos, alguns têm em outros locais também, mas há os pontos fixos,
que existem em qualquer pessoa.
Naquele instante ele deslizou a mão sobre minha coxa, chegou até
meu joelho e foi para debaixo dele, voltando o percurso até chegar no meu
traseiro.
Eu estava sentada com a perna flexionada, sua carícia me fez arrepiar
por inteiro e foi tão... simples.
– Essa pele próxima às partes íntimas. O lado de trás da coxa. É uma
pele muito sensível.
Respirei pesado e soltei lentamente.
– Percebi.
Virei meu rosto para frente, deitando sobre seu peito de costas, e ali
ficamos, abraçados por um tempo, sob a água morna da banheira.
Malcolm mantinha um braço envolto na minha cintura enquanto a
mão livre deslizava pela minha pele, até que a mão tocou minha intimidade e
eu ofeguei.
– Uh...
Ele se manteve acariciando meu ponto mais sensível por um tempo,
onde eu fechei os olhos e fiquei entregue às sensações, até que ele viesse falar
ao meu ouvido:
– Vá para a outra ponta da banheira, fique de joelhos e segure o
beiral.
Era uma ordem. Dada pela voz quente e rouca do meu marido. Sem
nem pensar, obedeci.
Me coloquei de joelhos e segurei firme o beiral da banheira. Ele veio
por trás, abaixou um pouco minhas costas e acariciou minha pele antes de se
unir a mim e me fazer sua por completo.
– Como você está quente, Rivka – ele gemeu ao me invadir.
Quando senti sua totalidade dentro de mim, só desejei que ele
continuasse.
Mais nada.
– Seja como deseja ser – pedi.
Com uma mão ele segurou a lateral da banheira e a outra continuou
acariciando-me no ponto onde eu mais podia sentir. Então começou a investir
contra mim com calma.
– Tem certeza? – perguntou.
– Absoluta. Não seja delicado, quero o que tiver para me dar.
Ele xingou um palavrão cabeludo em voz alta, e sem cerimônias me
possuiu da forma como ele queria.
E eu também queria.

Malcolm
Estava tentando ir devagar com ela. Rivka não estava acostumada
com a minha intensidade, mas seu pedido ousado me surpreendeu e fez com
que todo meu desejo por devorá-la do modo mais insano possível tomasse as
rédeas da situação.
Então me enterrei com força e mantive a pressão em cada estocada,
enquanto ouvia seus ofegares e gemidos que pareciam músicas aos meus
ouvidos.
Ela se segurava com força e eu já havia perdido completamente o
controle.
Variamos as posições enquanto estávamos ali na banheira, até que me
segurei para não chegar ao primeiro ápice.
Queria cansá-la mais um pouquinho.
A noite foi longa e cheia de êxtases.
Rivka e eu transamos em diversos cômodos da casa, até chegarmos ao
meu quarto. Confesso que não esperava aquela intensidade da parte dela e
isso me fez ficar bastante surpreso.
Estava me secando naquela madrugada após mais um banho e me fitei
frente ao espelho.
– Malcolm Samuels, o que está acontecendo com você?
Era a pergunta que valia um milhão de dólares.
Fui deitar vestindo apenas a calça de moletom que uso nos dias mais
frios, como aquele, apesar de estarmos quase no outono, e ao ver a mulher
que me satisfez nas últimas horas deitada ali em um sono pacífico e tranquilo,
eu suspirei.
Sim, suspirei como um ridículo.
Não queria admitir, mas a menina teimosa estava começando a se
enraizar sob minha pele de um jeito inesperado. Aquilo me dava medo e
preocupação.
Deitei ao lado dela e evitei olhá-la, ficando de barriga para cima,
encarando o teto pelo resto da madrugada até pegar no sono.

1 mês depois

– Você vai me matar desse jeito! – tentei me defender do golpe que


Rivka já estava mestre e saí perdendo.
Sim, ela me abateu!
Esparramado no chão, a repreendi, senão a teimosia em pessoa
continuaria me batendo até tirar sangue.
Ela parou de me golpear e levantou dando pulinhos em posição de
ataque, pronta para mais.
Me sentei no tatame e estendi a mão pedindo um tempo.
– Você está empolgada demais. Precisa descansar – recomendei.
– Descansar pra quê? Para conseguirem me matar quando quiserem?
– perguntou indignada. – Não sou esposa troféu, meu camarada. Levanta a
bunda daí.
Soltei um sorriso, rendido.
Ela não desistiria fácil e – pelos céus! – eu adorava isso nela.
Levantei e voltamos às posições de treino para mais um
enfrentamento, só que daquela vez eu seria mais esperto e não perderia para
minha esposa.
Assim ficamos pelo resto da tarde e começo da noite naquele
domingo. Não tinha nenhum evento agendado, então Rivka e eu decidimos
treinar um pouco mais. Ela já estava ficando ótima na defesa pessoal e
também no ataque.
No último mês nosso vínculo se tornou estreito e sólido. Criamos um
elo de amizade e confiança que jamais tive com ninguém, nem com Romero.
Por falar nele, o babaca vez ou outra insinuava gracinhas com relação
à minha proximidade com minha esposa, mas eu já nem o rebatia, sabia que
não valia a pena.
Eu deixei claro todos os limites que ela não podia ultrapassar e
expliquei que não podia incluí-la nos assuntos do Patriarcado mais do que eu
já fazia com as conversas em casa. Ela teimou – como sempre – em ir para a
sede mundial e nas viagens que faço a trabalho, mas ela simplesmente não
podia.
O corpo era composto totalmente por homens, nenhuma mulher tinha
algum poder dentro da organização. Rivka era mais do que privilegiada em
saber de tudo que acontecia porque eu contava, mas a teimosa queria sempre
mais.
Estava perto do momento em que revelaria a ela sobre as cláusulas do
contrato que firmei com o Patriarcado antes de assumir, que inclui fatos que
ela está inserida, como o aniversário de um ano de casamento. Queria apenas
organizar bem as informações na mente e procurar uma solução para que
tudo fosse feito sem ônus.
Não permitiria que ela passasse por nenhum risco. Não deixaria.
Naquela noite, depois do banho, fomos jantar e meu celular apitou,
com uma mensagem do meu detetive pessoal.
Tenho informações sigilosas.
De imediato fui para meu escritório, deixando Rivka comendo
sozinha.
Tranquei o cômodo e liguei para ele do meu celular clandestino.

– Como posso pegar as informações?


– Sr. Samuels, posso deixar agora mesmo na sua casa, apenas esteja
próximo ao portão quando eu te avisar.
– Entendido.
Desliguei a chamada e retornei para a sala de jantar.
– Aconteceu alguma coisa?
A curiosidade em forma de gente perguntou.
– Nada de mais. Vamos comer.
Me sentei novamente e finalizei a comida em silêncio, pensando no
que eu saberia em pouco tempo.
Provavelmente era sobre Enzo e suas tramoias, precisava estar pronto
para qualquer plano da sua parte.

Rivka
Cinco meses que estamos casados e finalmente conseguimos nos dar
bem. Malcolm é difícil, não escuta tudo o que eu tenho para dizer e às vezes
nossas opiniões batem de frente uma com a outra, mas tudo no fim das contas
acaba na nossa cama.
Sim, agora vivemos no mesmo quarto.
Convencê-lo de que não tem necessidade de termos tanta
individualidade assim foi difícil, mas ele entendeu e aceitou quando o
convenci da melhor forma.
Na cama tínhamos uma sintonia surreal, era como se existisse um
mundo separado do real e ali a gente conseguisse se conectar e se tornar nós
mesmos, sem leis, amarras, ideologias ou regras.
Ele às vezes até dizia coisas que jamais falaria fora do quarto.
Aquilo tentava me iludir, mas minha sobriedade foi forte e me
manteve fiel aos meus princípios. Eu nunca mais fui trouxa, pelo menos no
último mês.
Jamais cedi sem exigir o que penso.
Nunca o permiti que me usasse ao seu bel prazer.
O fazia me ouvir, querendo ou não.
Ainda tínhamos um longo trajeto nessa vida de casados para
caminhar, mas o fato de sermos amigos e confiarmos um no outro já estava
de bom tamanho.
Depois de jantarmos, subi sozinha para nosso quarto e ali fiquei
olhando da janela em direção ao portão. Conhecia meu marido quando estava
ansioso, e o modo como ele agiu durante todo o jantar depois de ter ido ao
escritório e voltado era sinônimo de ansiedade.
Algum segurança provavelmente viria entregar alguma informação,
ou algo do tipo.
Fiquei ali pela próxima meia hora, quando ele enfim saiu e voltou
com uma pasta na mão.
Saí da janela e me deitei na cama, fingindo que já estava dormindo.
Poucos minutos se passaram até que ele entrou no quarto. Abri um pouco os
olhos para ver, mas a pasta não estava nas suas mãos.
Uma pulga atrás da minha orelha coçou.
O que tinha de secreto naquela pasta que eu não poderia saber?
Malcolm
Esperaria Rivka dormir profundamente e voltaria para meu escritório.
Sobre meu investigador e segurança particular ninguém saberia, nem ela.
Deitei-me ao seu lado e ali aguardei, pois ela já estava dormindo
levemente.
Quando o sono pesado a atingiu, levantei de mansinho e segui rumo
ao meu escritório, lá tranquei a porta e finalmente abri a pasta antes de me
sentar à mesa e averiguar cada documento.
Fiquei ali lendo cada palavra lentamente para compreender os
fundamentos da investigação e mal pude crer no que descobri.
– Esse infeliz passou dos limites.
Depois que concluí cada página, pude constatar que meu primo seria
capaz de tudo para conquistar minha posição de Patriarca.
Ele é doente, só pode.
Ele foi capaz de envenenar o pai de Rivka, que acabou adoecendo
“naturalmente”, para que não levantasse suspeitas dentro da organização.
Além disso, sua intenção era que Rivka desistisse do nosso contrato
após a morte do pai e que eu perdesse o pagamento para entrada como
Patriarca.
Dentro da organização só assumimos o posto herdado com um acordo
bilionário que favorece a todos, e foi o que fiz ao casar com Rivka.
Se ela desistisse do casamento comigo, perderíamos a empresa
também. O pai dela sempre soube que um dia sua filha seria minha. Foi
através da ajuda do Patriarcado que a empresa dele tomou as proporções que
têm atualmente. Ele nos devia, então foi como se tivéssemos comprado seu
bem mais precioso em troca de tudo que demos a ele.
Mas Rivka tinha o poder de escolha, apesar de tudo. Podia anular
nosso casamento e eu simplesmente morreria.
Literalmente.
Porque ninguém além do Patriarca pode ter ciência de tudo dentro da
organização como eu sei. E se não sou mais o Patriarca, a morte é minha
sentença.
Enzo queria me matar de modo “limpo”, pelos olhos dele.
Segundo a investigação do detetive, Enzo também observava minha
mulher às escondidas e mandava espiões para vigiá-la quando saía. Mesmo
sendo poucas as vezes que ela ia sem mim na rua, sempre ia acompanhada de
algum segurança ou empregado da casa por precaução.
Ainda bem. A partir daquele momento nem isso ela faria sem mim.
Me multiplicaria por mil, mas não a deixaria sozinha.
As informações na folha também revelavam que a intenção de Enzo
era cativar Rivka e conquistá-la para que ela continue sendo esposa do
Patriarca quando eu morrer.
– Idiota. Nunca!
Os registros de conversas telefônicas, investigações corpo a corpo e
análise de dados estavam detalhados em cada página nas minhas mãos. Nem
o detetive mais eficaz de todo o Patriarcado concluiria algo em tão pouco
tempo quanto esse homem fez.
E aquilo me deu uma ideia.
Ele teria uma nova função além de detetive. Seria a segurança do meu
futuro.

Todos os dias, após minha descoberta, eu mal olhava no rosto de


Enzo dentro da sede corporativa. Sua falsa simpatia somada ao descaramento
era de se desprezar. Ele sempre perguntava por Rivka e ficava analisando
minha posição ao responder, achando que eu era um idiota inconsequente que
não sabia suas verdadeiras intenções.
Se o Patriarcado suspeitar que estou sobrepondo os interesses da
minha esposa aos da organização – o que eu não estou fazendo –, eles me
depõem e o fim é a morte.
Nenhuma regra podia ser quebrada, havia olhos em todos os lugares.
Era como se qualquer pequeno deslize fosse o argumento ideal para
que alguém derrubasse você.
Todos os dias eu me perguntava:
Como meu pai suportou isso por tanto tempo?
E a cada dia que eu chegava em casa com a cabeça latejando em
dores, Rivka se tornava meu remédio mais delicioso.

Rivka
Oh, Adonai, me ensina a compreender melhor as situações que eu
passo!
Malcolm não me contou sobre a pasta e nem sobre quem veio
entregar. Eu estava preocupada, mas ao mesmo tempo ciente de que ele não
faria nada que pudesse me prejudicar.
Acho...
E era nesse “acho” que eu ficava andando de um lado para o outro no
meu quarto, pensativa. Para não enlouquecer, descia, ia até a cozinha, fazia
alguma das minhas invenções culinárias e conversava com Linda e Lindsay.
Inclusive, Lindsay está com o casamento marcado, disse que a traição
do namorado foi um engano e que ele amou saber que seria pai e a pediu em
casamento. Estava na torcida pela felicidade dela, assim como Linda também.
Minhas tardes eram passadas na biblioteca, quando eu não ficava
atordoada por meus pensamentos doidos. Lá eu lia sobre tudo, e estava
naquela semana lendo sobre serial killers.
Nunca tinha lido algo do tipo, então achei interessante.
Agradecia todos os dias pela manhã ao meu Deus por jamais tê-lo
esquecido nessa caminhada da vida, mas sim aprendido que não podemos nos
sujeitar a tudo aquilo que nos é imposto. Tinha acalmado meu coração e
abafado todo ódio e rancor que estava sentindo por Malcolm ter me ferido
tanto, e estava exercitando perdoá-lo um dia.
Ainda não conseguia, pois quando eu pensava em tudo, doía.
Mas sei que um dia o farei.
Estava sentada na biblioteca, lendo, quando o celular que mal uso
tocou.
Atendi de pronto sem verificar o número.
– Alô.
– Olá, querida esposa do Patriarca.
A voz parecia muito com a de Malcolm, então ponderei por
descontrair e responder com uma brincadeira, ou fingir que não entendia o
que diziam.
Optei por fingir que não entendia.
– O que disse? Quem fala?
– É a senhora Rivka Samuels?
Engoli em seco, estava suando frio de nervoso.
– Sim. Quem está falando?
Um silêncio perturbador reinou na chamada antes do homem dizer:
– O homem mais gostoso do universo, que faz você gritar alto de
prazer.
Ahhhh, idiota!
Fiquei aliviada por saber que era Malcolm, ao mesmo tempo que tive
vontade de esganá-lo pelo susto que tomei.
– Quero matar você. Levei um susto!
Ele riu do outro lado da linha.
Estava sendo bastante rotineiro ouvi-lo rir e vê-lo sorrindo.
– Esperava que fosse outra pessoa? Só eu ligo pra você, linguaruda.
– Pois é, mas não sei, ando muito desconfiada. O que você quer?
– Você. Esteja bastante relaxada hoje à noite, pois estou com muita
fome.
Mas... que abusado!
– Vai chegar que horas, mandão?
– Tarde. Hoje o imbecil do Enzo, junto com os caras dele, estão me
infernizando. Pena que as leis não me permitem matá-lo.
– Fica tranquilo. Vou te esperar.
Desliguei e me afundei na poltrona relembrando a promessa que
Malcolm fez para mais tarde. Se tinha algo que a gente se entendia bem
demais, era nessa fome que temos um pelo outro.

Malcolm
Tive que ir para meu carro estacionado na rua, para me distrair um
pouco falando com Rivka. O estresse estava dominando minha mente e toda a
cobrança que me faziam estava prestes a explodir minha cabeça.
Respirei fundo e contive minha excitação. Só de pensar na minha
mulher totalmente disponível para mim, me acendia.
Voltei para o prédio e enfrentei com força mais aquelas horas
agonizantes ao lado daquelas pessoas.

Romero estava me aguardando do lado de fora do prédio, como faz


todos os dias. Andamos até onde meu carro estava, em silêncio, mas assim
que entramos, ele soltou:
– Boa noite, patrão. Como foi o dia?
Relaxei no banco do carona enquanto ele assumia o volante.
– Uma merda. Corre pra casa, por favor.
– Como mandar.
Ele saiu com o carro e percorreu velozmente as ruas da cidade rumo à
minha casa. Estava mais do que exausto, a cada dia mais a rotina da
organização pesava sobre meus ombros. Era fatigante, dolorido, intenso.
Romero não puxou conversa e eu agradeci mentalmente por isso.
Ainda não tínhamos elaborado o plano certo para acabar com Enzo e eu
contava totalmente com ele para isso. Não podia delegar essa função a
ninguém que não fosse tão leal quanto Romero.
Assim que chegamos em casa, nos despedimos e eu caminhei rumo ao
interior da mansão escura e imponente de época aristocrática.
Como de costume, o interior estava já com as luzes apagadas e os
empregados recolhidos em suas casas ou quartos. Subi as escadas rumo ao
quarto que divido com Rivka, ansioso por vê-la e dividir um pouco desse
peso que senti durante o dia.
Parecia loucura confiar tanto em uma mulher, sabendo que cresci
escutando que dentro da organização apenas os homens comandavam e as
mulheres eram subjugadas. Descobrir que uma mulher pura e inocente detém
todo o peso que carrego comigo sem me virar as costas era uma dádiva.
Assim que abri o quarto, ela estava lá.
De pijama com mangas compridas por conta do frio, fazendo suas
orações. Fiquei observando a forma como ela estava, e admirando seu
momento de fé.
Assim que ela terminou, sentou na cama e me viu.
– Ah, oi.
Entrei, deixei minha pasta no canto do cômodo e retirei o casaco,
pendurando no cabideiro ao lado da porta.
– Oi.
As luzes estavam apagadas e apenas dois abajures acesos, um em
cada lado da cama, iluminavam o ambiente.
Me aproximei dela e toquei seu queixo, a fazendo levantar o rosto
para me encarar.
– Estou morto.
Soltei um lufo de ar, esperando que ela compreendesse o nível de
exaustão que eu estava.
– Quer tomar um banho e depois conversar sobre?
Sua voz angelical percorreu meus ouvidos e impregnou-se por minha
mente.
– Quero.
Rivka
Malcolm estava no banho enquanto eu fiquei pensativa, na cama.
Estava pronta para dormir devido à demora absurda dele, quando finalmente
o ouvi chegar. Pedi a Adonai que me revestisse de forças, já não sabia muito
como ajudá-lo a resolver os problemas dentro do Patriarcado, fazendo com
que a liderança dele fosse bem aceita. Eu o via como um homem firme, com
opiniões sólidas e autoridade, não entendia como existiam pessoas que não o
aceitavam.
Assim que meu marido saiu do banheiro, caminhou com sua toalha
enrolada na cintura até a cama e se despiu, deitando totalmente nu ao meu
lado.
– Que alívio. Um banho é um banho – soltou, expressando mais
relaxamento.
Me virei para seu lado e o abracei. Sei que ele tinha me pedido para
me preparar, pois a noite prometia muito sexo, só que compreendi que aquele
não estava sendo um momento propício.
Ele me aconchegou, permitindo que eu deitasse a cabeça sobre seu
peito enquanto envolvia-me em seu abraço também.
– Como foi o dia?
Malcolm demorava a engatar nas conversas. Não era acostumado a se
abrir e contar os acontecimentos do dia, mas havia momentos que ele só
conseguia ficar tranquilo se contasse.
– Ah, o de sempre.
– Enzo? Os acionistas bostas? – incentivei.
Ele encheu o pulmão de ar. Lá vinha relatório.
– O babaca tem a coragem de sempre me cutucar, me ameaçando ou
fazendo piadas. Sei que muitos acionistas preferem que ele esteja no meu
lugar, mas ainda não entendi o que eles temem. Já provei para aqueles merdas
que sou um bom gestor. Consertei muita coisa que meu pai fez errado, estou
verificando de perto cada base internacional através dos homens de confiança
que visitam esporadicamente e nossas finanças estão maravilhosas. Qual o
problema dessas pessoas?
Eu não sabia bem o que dizer, mas precisava fazê-lo se sentir mais
leve. Me sentia no dever de ajudá-lo.
– Malcolm, tem muita coisa que está mal explicada desde que você
assumiu. Será que seu pai não cometeu erros graves que podem estar
comprometendo o nome e o legado Samuels? Não sei, talvez se você
conversasse com sua mãe sobre isso...
Num ímpeto ele sentou na cama e me olhou, estupefato.
– É isso. Minha mãe sabe, com certeza sabe.
Me senti aliviada por ter ajudado e feliz ao vê-lo mais disposto do que
no instante em que chegou.
Sorri, me ajoelhei sobre a cama e toquei o rosto dele, dando uma
carícia suave. Em seguida sentei em seu colo, de frente para ele, que me
olhava sério, com o cenho franzido, sem piscar.
– Só isso que te tirou a paz por hoje?
Ele fechou os olhos por um instante e depois os abriu.
– O resto não importa.
Segurou meu rosto com a possessividade que eu já estava acostumada
e me beijou. Suas mãos logo percorreram meu corpo até a barra da camisa do
pijama.
Ele se afastou apenas para me ajudar a tirar toda a roupa até que eu
ficasse totalmente nua, assim como ele, e nossa noite começasse.

Malcolm
A cada noite que eu passava com Rivka, me sentia ainda mais
conectado a ela.
Ela me escutava, me dava suas opiniões e depois a gente transava
como se não houvesse amanhã. Quando finalmente fomos deitar, me
posicionei deitado de barriga para cima, olhando o teto com os braços para
trás cruzados sob a cabeça enquanto ela se enredava em mim como um bicho-
preguiça.
– Já parou para pensar em como seria se eu não tivesse perdido o
bebê?
No meio do silêncio pacífico, ela soltou a pergunta no ar.
O sono estava começando a me dominar, mas não podia deixá-la sem
resposta.
– Não. Eu não pensei nesse bebê desde que saí daquele hospital.
A verdade sempre é a melhor opção, e foi ela que decidi contar.
Não tinha desejo de ter um filho, era algo que nunca passou em minha
cabeça e verdadeiramente não sei nem como lidaria.
– Uau. Às vezes esqueço que não tem coração – ela murmurou com a
voz triste.
Tinha se chateado, que merda.
– Eu disse a verdade, Riv. Não consigo imaginar um bebê no meu
mundo. Foi até bom que ele não viesse.
O que eu disse fez com que ela se desvencilhasse do meu abraço e
sentasse na cama. Seu rosto se contorceu e a indignação se tornou nítida no
que ela falou a seguir.
– Como você tem coragem de dizer algo assim? Eu perdi uma das
coisas que mais desejava ter.
Ah, droga. Eu tinha dito algo tão mal assim?
Dei de ombros. Não tinha resposta para aquilo.
Ela respirou fundo e fechou os olhos enquanto sugava e soltava o ar.
– Tá. Eu evito pensar no bebê também para não reviver o momento,
foi doloroso, por isso não gosto de pensar. Mas um dia eu desejo ter um filho
e...
– Isso não vai acontecer. Está se medicando? Não teremos filhos,
ainda não pensei bem sobre esse assunto, mas por enquanto não teremos.
Voltei a sentar, deixando clara minha opinião que devia prevalecer
naquele instante.
– Estou me medicando, mas não entendo o motivo de não querer.
Passei a mão pelo rosto, já cansado da discussão que tinha acabado de
começar.
Odiava discutir com ela.
– Olha a minha vida, Riv. Olha o que eu passei. Acha que desejo que
um filho meu passe pelo mesmo? – expliquei, dizendo o que me veio em
mente naquele momento.
Não precisei pensar, apenas disse, e aquilo fez com que Rivka parasse
de falar e me encarasse em silêncio.
Ainda em silêncio, ela se deitou e foi dormir.
Soltei um lufo de ar, desejando apenas que o dia de amanhã fosse
melhor que o de hoje, e me deitei me entregando ao sono naquela madrugada.

Rivka
Sem que Malcolm sequer notasse, passei a noite chorando.
Simplesmente tudo estava fugindo do meu controle. Me contive em
falar do nosso bebê desde o ocorrido, apenas para evitar mais destroços, e no
momento em que pensei que meu marido já estava mais envolvido na nossa
relação, ele me mostra que não.
Malcolm não sente absolutamente nada por mim, nem por ele mesmo.
Nossa amizade se limitava aos conselhos e ao sexo. Tudo como uma
relação contratual deve ser.
Minha mente voou até a pequena menina de oito anos que viu aquele
garoto revoltado na cabana situada em meio ao gelo.
Eu não sabia no que estava sendo inserida, mas a cada dia tudo ficava
ainda mais claro.
Meu pai me vendeu para que a empresa prosperasse. Simples assim.
O Patriarcado nada mais é que uma empresa controladora de todos os
poderes mundiais possíveis. A empresa que meu pai fundou tinha tudo para
ser a melhor em âmbito mundial e eles viram isso.
Investiram na empresa e, como moeda de troca, eu fui dada a
Malcolm.
No fim das contas eles ficaram com tudo.
Eu não tinha mais nada que era do meu pai. Malcolm me mostrou o
inventário dele depois das nossas infindáveis discussões e lá eu vi que
realmente fui tratada como um objeto.
A empresa somente voltaria para minhas mãos caso me separasse de
Malcolm, com o risco de ser perseguida pelos outros acionistas do
Patriarcado ansiando pela potência bilionária que eu teria.
Minha vida seria um inferno.
Inferno por inferno, melhor viver com meu marido, que ao menos me
dá algo no meio do caos.
Estava estranhando minha frieza para lidar com essas situações, mas o
tempo me ensinou que há fatos que devem ser separados dos sentimentos.
Eu sentia que gostava de Malcolm, gostava de estar com ele apesar de
tudo que passei no início. Estava conquistando meu espaço na vida dele e
também estava gostando da minha nova vida, pouco a pouco.
Meu maior medo era acabar me apaixonando perdidamente e
esquecendo de mim mesma.
Quando citei o bebê, era a Rivka sonhadora quem ansiava por ser
mãe, e eu não podia abrir mão daquilo. Não podia.
Como colocaria na cabeça de Malcolm que um dia quero sentir a
dádiva da maternidade?

Não fomos visitar Adélia nos dias seguintes, Malcolm disse que
estava elaborando uma ocasião especial para que a visitássemos. Com visitas
demais a mãe dele poderia levantar suspeitas de conspirações dentro da
organização.
Eu não entendia muito o que ele queria dizer com aquilo, mas
concordei em esperar.
E assim passamos por mais um mês.

– Quer dirigir?
Malcolm e eu estávamos prontos para pegar estrada até a fazenda da
minha sogra. Sua picape pessoal era enorme e eu me sentia uma formiga lá
dentro, ele ainda queria que eu dirigisse.
– Tem tempo que não faço isso... Não sei.
Guardamos a bagagem e, quando ele fechou a mala, girou o chaveiro
com a chave no indicador, enquanto me olhava curioso.
– Quero ver suas capacidades condutoras.
Bufei.
Quando ele queria algo, ele conseguia. Mas eu era teimosa, não
cederia fácil.
– Na volta eu conduzo, preciso me adaptar com essa máquina enorme
primeiro.
Ele parou de girar a chave e apontou para si.
– Quando diz máquina enorme, se refere a mim ou ao carro?
O deixei falando sozinho e abri o carro, sentando-me no carona
enquanto o aguardava. Ele tinha um ego tão gigante que às vezes me dava
nos nervos.
Era pouco tempo de viagem e, pela primeira vez, eu lidaria com
Malcolm na estrada de uma forma nova.
Agora nós éramos cúmplices, amigos.
Rivka
Minha sogra estava radiante em nos ver. Correu e me abraçou assim
que descemos do carro. Ela dispunha de um porte físico bem conservado para
uma senhora acima dos sessenta.
– Ah, que saudades! – sua doce voz provocou sensações boas em meu
peito.
– Também estava com saudades, Adélia.
Nos afastamos e ela me olhou de cima a baixo, como se verificasse
cada ponto do meu corpo.
– Está bem? Tem se alimentado direitinho?
Sorri.
– Tenho sim, estou no meu peso ideal e com muita disposição, pode
confiar.
– Ô... muita mesmo.
Meu marido, que estava levando a mala para dentro sem pedir ajuda a
nenhum empregado, como sempre, soltou a pérola no ar, me fazendo
enrubescer na frente da mulher que o deu à luz.
– Hã... vamos colocar o papo em dia? Deixa só ajeitar minhas coisas
lá no quarto.
Caminhei rumo à casa com Adélia ao meu lado exalando alegria por
termos ido vê-la depois de cinco meses desde a última visita.
Ela disse que estaria na cozinha dando orientações sobre o almoço
enquanto eu e Malcolm nos ajustaríamos no quarto.
Assim que cheguei ao último cômodo do corredor daquela casa, vi
meu marido já abrindo a mala que trouxemos, retirando as roupas e pertences
de lá, pondo por sobre a cama.
– Hum... prendado – o provoquei depois de ter fechado a porta.
Caminhei até ele e o abracei por trás enquanto ele fazia seu trabalho
de organizar as roupas.
– Vai ficar aí pendurada em mim como um filhote de coala?
Inspirei fundo, mergulhando nas sensações que seu cheiro me trazia.
Malcolm cheirava a masculinidade pura. Um cheiro de sabonete com um leve
toque amadeirado, intenso. Mesmo dirigindo por um tempo longo dentro de
um carro desconfortável, o homem se mantinha cheiroso. Como pode?
– Estou um pouco cansada da viagem, que tal relaxarmos um pouco?
Um banho, talvez?
Ele ficou ereto, deixando as roupas de lado e se virou, pondo-se de
frente para mim.
Elevei um pouco meu rosto para que nos olhássemos nos olhos. Ele
era um tanto mais alto, o que fazia com que minha altura batesse em seu
pescoço.
Malcolm segurou meu rosto com suas duas mãos e depositou um
beijo suave na ponta do meu nariz.
– Conheço suas intenções. Não estamos em casa, que tal darmos uma
atenção à minha mãe por agora e depois nos trancamos aqui – aproximou a
boca coberta pela barba cheia em meu ouvido, fazendo com que seus pelos
me causassem arrepio –, e eu faço tudo o que você desejar?
Não era todo dia que ele estava assim, de bom humor, mas parecia
que o clima caloroso e acolhedor da fazenda de sua mãe o deixava mais...
vulnerável.
Fechei os olhos, suspirando ao imaginar tudo o que eu desejava que
ele fizesse.
Estava me tornando uma maníaca!
Adonai que me perdoe e ajude!

Tínhamos acabado de almoçar. Como tradição de interior, o almoço


foi servido cedo, não tão depois do momento em que chegamos à casa.
Adélia nos levou até à biblioteca, pois a informamos que
precisávamos conversar sobre assuntos sérios, e ela disse que lá era o local
mais secreto que tinha na casa, onde só pessoas dignas e merecedoras
poderiam entrar.
Lembrei da primeira vez que entrei ali, quando ela realmente me
considerou alguém importante e me mostrou as fotos da infância de Malcolm.
A lembrança trouxe um sorriso calmo aos meus lábios enquanto andávamos
até o cômodo.
Malcolm segurava minha mão. Ele não tinha o costume, mas eu
tentava não me surpreender tanto com esses pequenos gestos e acabar me
iludindo demais para me decepcionar, como no dia em que ele revelou que
não deseja ter filhos.
Entramos e nos sentamos no centro daquele paraíso dos livros. As
poltronas estavam posicionadas em um círculo, sobre um tapete felpudo
marrom. No centro, havia uma pequena mesinha onde havia alguns cadernos.
Malcolm, como de costume, foi direto ao ponto assim que nós três já
estávamos sentados.
– Mãe, preciso compreender coisas que meu pai fazia como Patriarca.
A mulher, experiente e paciente, fitou seu filho com certa curiosidade.
– O que, exatamente?
Ele relaxou na poltrona e ponderou um pouco antes de falar:
– Sofri um atentado assim que casei e assumi o Patriarcado. Meu pai
tinha falecido três meses antes do casamento, deixando a organização em
uma liderança conjunta dos sócios que dirigem a sede aqui em Londres.
Sempre participei da mesa dos sócios, todos sabiam que um dia eu assumiria,
mas, ainda assim, suspeito de um grupo de rebeldes que querem me tirar do
cargo. Enzo já deixou claro que fará o que for possível, inclusive está me
investigando para encontrar alguma falha em minha liderança.
Ela estava prestando atenção atentamente ao que Malcolm dizia,
assim como eu. Queria que ele falasse tudo a ela, e esclarecesse também a
mim, coisas como a influência do Patriarcado em nosso casamento.
– E há falhas? – a mãe dele indagou.
Malcolm deu de ombros e abaixou o olhar para o chão.
– Acredito que não. Estou cumprindo à risca cada maldita regra para
me manter firme no poder. Era o que meu pai queria, foi para isso que nasci e
passei por aquela maldita academia.
Estava sendo sincero, falando tudo o que guardava. Quando citava a
academia eu me lembrava das torturas e abusos que um dia me contou, aquilo
me embrulhava o estômago.
– Entendi. Já contou para Rivka o que ela terá de fazer quando
completarem um ano juntos?
Quando ela mencionou meu nome, fiquei em estado de alerta. Encarei
Malcolm, que arregalou os olhos quando também me fitou. Ele sabia que eu
não estava ciente de nada relacionado àquilo.
– Ainda não. Estou pensando em como posso evitar que isso aconteça.
– Está aí o problema, meu filho. Não pode evitar. Esse Patriarcado é
cruel, eles são duros demais. Pensa que criei você para que fosse essa pessoa
fria que é hoje? Quando eu soube do que se tratava tudo dentro dessa
organização você já era nascido. Minha vontade era de te esconder do
mundo.
Meu coração começou a acelerar. Estava entrando em terrenos
perigosos. O Patriarcado era bem mais do que eu pensava.
– O que você quer evitar, Malcolm? – perguntei. – E o que você quer
dizer com cruel quando se refere ao Patriarcado, Adélia?
Os dois trocaram olhares cheios de cumplicidade, e pude perceber
uma permissão implícita que Malcolm lançou para sua mãe.
– Menina. Nós, mulheres, somos como objeto de troca. Uma moeda
corrente. – Ela tocou minha mão sobre o apoio da poltrona. – O Patriarcado
tem um poder gigante controlador da economia mundial, eles escolhem quem
quiser e subjugam a pessoa para que ela faça o que eles desejam. Tudo para
continuarem comandando o mundo e cada potência bilionária que existe por
aí. Eles apostam em pequenos empresários que têm potencial de evolução e
os financiam, como foi com o seu pai. Como foi com o meu pai. Assinam um
contrato onde toda aquela ajuda um dia é paga com o total poder sobre a
empresa que eles ajudaram. E a forma mais sensata é unindo a família do
dono da empresa com a família do Patriarca que está no poder, ou que
assumirá.
Assim que ela se calou, Malcolm continuou a explicar:
– Para que eu assuma o posto de Patriarca e comande toda a
organização pelo mundo, preciso dar um acordo bilionário a todos. É como
um pagamento por entrar no poder. Meu pai já tinha deixado tudo
encaminhado quando assinou os termos com seu pai, há dezessete anos. Eu
ainda não entendia muito, achava que teria que me casar naquele mesmo ano,
e você ainda era uma... criança.
Minha mente voou até a primeira vez que o vi. Sem barba, bigodes ou
cabelos compridos. Apenas um menino loiro de olhos azuis, com uma fúria
indomável no olhar.
– Estou começando a entender o motivo pelo qual meu pai me
sujeitou a tudo. Ele só queria ser reconhecido, influente. Ter uma empresa
bem-sucedida.
– Seu pai era tão ambicioso e cruel como qualquer um de nós, Rivka.
Ele também estava disposto a tudo pelo poder.
O choque de realidade que ouvir tudo aquilo me causou foi surreal.
Meu coração estava palpitando forte, não sei se suportaria ouvir o que
realmente estava querendo saber.
– Podem continuar.
Adélia tomou a palavra, ainda sem soltar sua mão da minha.
– As cláusulas do contrato são claras: você será a esposa do Patriarca,
mas de tempos em tempos haverá uma avaliação onde o Patriarca terá que
provar que seus interesses pessoais ou sentimentais não são mais importantes
que a organização. É como se você pertencesse a Malcolm, mas também
fosse patrimônio de todos os acionistas.
Malcolm se levantou e andou até a janela da biblioteca que estava
fechada. Ali ficou observando o imenso gramado através do vidro, enquanto
sua mãe continuou a me explicar.
– É uma regra idiota, criada por homens machistas sedentos por
poder. Eles podem sortear até sete homens para abusar sexualmente da
mulher do Patriarca quando o casamento dele com ela completa um ano, e
depois com dez, e depois com vinte, e quando fazem trinta anos de casados,
se não tiverem herdeiro homem, ele deverá executar sua esposa e as filhas
mulheres, se houver. Isso o faz mais poderoso e respeitado, provando que
suas decisões dentro da organização são imparciais, sem influências
sentimentais e temporárias.
Levei a mão ao peito, sentindo como se uma faca afiada perfurasse
meu coração.
As lágrimas retidas em mim despencaram pesadas, apesar de me
manter firme, tentando digerir a informação que acabara de ouvir.
Não adiantava eu querer me aliar a Malcolm e ser sua amiga. Não
adiantava ser sua conselheira, sua companheira.
Ele colocaria sempre as regras e o dever em primeiro lugar e eu
sofreria como um objeto.
Sofreria até o fim dos meus dias.
– Alguns contratos com empresas que desejam se aliar te pedirão
como prova de que a palavra do Patriarca tem honra. Você terá que ser usada
por empresários do mundo inteiro, sempre que um novo contrato for
assinado, caso ele deseje que assim seja.
– Isso não pode ser verdade. Onde está escrito?
– No contrato de posse. Malcolm assinou, não foi?
Foi nessa hora que meu marido virou o rosto na minha direção.
Mesmo distante, com os braços debruçados na janela, sua feição era como a
de uma pessoa que não tinha paz vinte e quatro horas por dia.
– Assinou? É verdade isso tudo, Malcolm? – perguntei com a voz
trêmula, temendo a resposta.
Ele só balançou a cabeça, confirmando.
– Menina, eu poss...
Não ouvi o que Adélia quis dizer, somente fui dominada pela fúria de
saber que era pivô de um grande jogo, alheia a qualquer conhecimento sobre
as regras.
Me levantei e corri, saindo da biblioteca rumo ao quarto.
Estava desnorteada. Perdida.
Assim que entrei no quarto, tranquei a porta para que ninguém me
perturbasse. Sentei no chão e fiz a única coisa que estava apta a fazer no
momento: chorar desesperada e compulsivamente.
Malcolm
Fazer Rivka tomar ciência daquele maldito contrato em que jamais
quis pensar novamente, me causou uma dor nova.
Fiquei ali na janela, esperando o momento em que minha mãe
contaria tudo, assimilando lentamente a minha realidade e odiando imaginar
Rivka naquela situação.
Mas quando a vi chorar e sair correndo do quarto, foi como se um
buraco tivesse sido cavado em mim.
Ela iria embora. Ela me deixaria.
Qualquer pessoa ciente daquilo o faria.
– Vou até ela.
Avisei minha mãe, que assentiu e ficou ali, pensativa em sua poltrona.
Não queria pensar no que ela teve que suportar por causa do meu pai. Aquele
era o momento de impedir que Rivka saísse da minha vida.
Corri como um maratonista pelo corredor e, quando empurrei a porta
do quarto, estava trancada.
Bati algumas vezes, desejando que ela abrisse rápido.
– Abra, por favor, Riv.
Soquei mais algumas vezes e não obtive nenhuma resposta.
– Saia daqui! Me deixa sozinha!
A voz dela, inundada de dor misturada à fúria, fez com que meu
desespero aumentasse.
Não estava reconhecendo aquilo em mim. Apenas sabia que não podia
deixá-la ir.
Não podia perdê-la.
– Por favor. Abra. Precisamos conversar – pedi demonstrando meu
desespero.
Que se danem as máscaras.
Mas não adiantou.
Ela não abriu e eu não arrombaria a porta.
Daria a ela o tempo e o respeito para que se acalmasse antes de
conversarmos.

Rivka
Fiquei por algumas horas trancada naquele quarto, chorando, quando
decidi me encarar no espelho do banheiro suíte.
Estava derrotada para quem quisesse me ver.
Usada.
Era como eu me sentia.
Sem alma.
Era como eu desejava ser.
Insensível.
Era a única coisa que pedia a elohim naquele momento.
Que eu não sentisse absolutamente nada por ninguém. Não podia
colocar meus sentimentos em jogo naquele instante.
Era uma decisão racional, precisava ser.
Malcolm assinou o maldito contrato, claro que ele assinaria. Tudo que
passou a vida inteira o preparou para ser essa droga de Patriarca, ele não
deixaria de assinar o que fosse.
Mas eu ainda tinha uma opção.
Deixá-lo para sempre e abrir mão de tudo aquilo que meu pai
construiu com tanto sacrifício. Não me importaria em recomeçar a vida
pobre, sem ter para onde ir ou onde morar. Procuraria por Doralice e pediria
ajuda, não sei.
Eu sairia daquela situação. Não consigo admitir que uma mulher
possa se sujeitar a tantas barbaridades.
Ser abusada por sete homens?
Estar disponível para quem quisesse?
Ser abusada de dez em dez anos apenas para que saibam que Malcolm
não sente nada por mim?
De onde essas regras malditas saíram???
Lavei o rosto, limpando os vestígios de maquiagem leve em meu
rosto que as lágrimas tinham detonado.
Respirei fundo, controlando a vontade de continuar chorando, e me
olhei bem naquele espelho.
– Você não nasceu para isso, Rivka. Seus sonhos morreram por
completo. Não vai realizar nada. Que tal se entregar à morte?
Quando pensei naquilo, uma voz dentro de mim disse:
– Não.
Então me ajoelhei fraca no chão, entregue.
– Adonai... por quê?
Já era noite quando senti braços me carregando no colo e me
colocando sobre um colchão macio.
Tinha dormido no chão do banheiro, após voltar a chorar todas as
lágrimas existentes em mim.
Não abri os olhos, não precisei abrir para reconhecer a pessoa dona do
cheiro inconfundível para minhas narinas.
Apenas me permiti descansar, estava exausta física e emocionalmente.

Malcolm
– Ela vai me deixar. Se ela me deixar, eu vou morrer. Eles irão me
matar!
Entrei desesperado na biblioteca, depois da minha tentativa de falar
com Rivka ter sido um fracasso.
Minha mãe levantou e veio até mim com seu olhar cheio de
compaixão. Eu sabia que ela não tinha revelado tudo para me prejudicar,
queria apenas ajudar.
– Filho, eu queria contar a ela como foi comigo. Como eu e seu pai
conseguimos passar por muitas dessas cobranças. Tivemos que abrir mão de
algumas coisas para que pudéssemos ser felizes e criar você como deveria.
Ela me abraçou e eu retribuí o gesto.
Não conseguia me manter calmo, então logo me desvencilhei e voltei
a andar em círculos com as mãos em punho, abrindo e fechando.
Nunca tinha ficado daquele jeito. Estava fora de controle.
– Ela vai embora, mãe. Vão cobrar tudo que fizeram pela empresa do
pai dela e ela ficará na sarjeta. Enquanto eu serei executado por não cumprir
minha função. Não há piedade e exceções, mãe. Não há.
Minha alma estava agitada, minha mente embaralhada. Eu só queria
que tudo aquilo se fodesse e Rivka me ouvisse.
Não estava me importando tanto com a organização como antes.
Aquilo me chocou na mesma intensidade que o fato de saber que ela
irá embora e eu morrerei.
– Não vai acontecer, filho. Vamos pensar em alguma coisa. Logo ela
se acalma e a gente conversa melhor. Podemos elaborar algum plano, talvez.
Adélia tentava ser confiante, mas eu sabia a verdade: não havia saída.

Passei o resto do dia andando pela propriedade, sem rumo, apenas


afastando os pensamentos obscuros que toda a situação me presenteou.
O que mais me tirava a paz era saber que um dia teria que contar para
Rivka sobre o contrato e as cláusulas. Era basicamente sobre o fato de eu
sempre gerar lucros e benefícios para o Patriarcado, mesmo que custasse
minha própria vida ou de minha família.
A noite caiu e eu retornei para a casa, tomei um banho e tentei
novamente contato com Rivka em nosso quarto. Ainda estava trancado e
silencioso, o que me deixou bastante desconfiado. Pedi uma chave reserva
para minha mãe e em instantes estava entrando no cômodo à procura da
minha esposa.
Lá estava ela, estirada no chão do banheiro, dormindo, com o rosto
inchado de tanto chorar.
Aquilo apertou meu peito de modo tão intenso, que a única coisa que
desejei naquele instante foi que ela ficasse bem.
Depois conversaríamos.
Assim, a coloquei na cama e me deitei ao seu lado, tentando dormir
sem sucesso algum.
Quando o sol estava prestes a nascer, consegui finalmente cair no
sono e só despertei horas depois, com movimentos sobre a cama e barulhos
no quarto.
Ao abrir e esfregar os olhos, avistei Rivka organizando a mala que
trouxemos. Estava colocando todos os seus pertences, sem os meus.
Me sentei na cama.
– O que está fazendo?
Ela mantinha a mala sobre o colchão e colocava as mudas de roupas,
me ignorando completamente.
– Riv. O que está fazendo? Por que arruma a mala?
Ela então virou o rosto para mim, e notei seu olhar marejado e
cansado.
– Malcolm – fechou a mala e a colocou no chão –, estou pedindo a
você o nosso divórcio. Vou embora agora da sua vida.

Rivka
Dentro do meu peito, uma chama ardente me pedia para ficar. Era a
maldita paixão que eu alimentava pelo meu marido. Mas eu dei voz à razão e
continuei firme no que havia decidido.
– O quê?
Ele perguntou, atônito.
Sem dizer nada, eu peguei a mala novamente e comecei a andar até a
porta, rumo à minha nova vida. Em breve não seria mais a senhora Samuels e
conquistaria pouco a pouco a vida que sempre sonhei.
Malcolm, porém, levantou rapidamente e correu até a porta, se
interpondo a ela com o corpo.
– Precisamos conversar. Por favor. Me escuta.
Em outro momento eu admiraria o “por favor” saindo da sua boca,
mas não dava mais para aceitar aquelas migalhas quando sabia que poderia
ser usada como objeto sexual de homens cruéis a qualquer momento.
– Está decidido, Malcolm. Eu vou e você não vai me impedir.
Proferi com todas as forças que consegui reunir e olhei bem fixo para
aqueles olhos azuis. Não queria ficar tanto tempo no mesmo ambiente que
ele, com medo de acabar sendo influenciada por qualquer coisa que ele fosse
dizer.
– Se você for, eu serei morto.
Ele estava sério, sem piscar nem titubear.
– Eu não tenho saída, Rivka. Nossa separação é a minha sentença de
morte. Minha maior falha como Patriarca e, consequentemente, a destruição
do legado do meu pai. Irão me matar e depois matarão minha mãe, por não
ter mais utilidade alguma.
Fechei os olhos e os pressionei enquanto digeria a informação. Não
acreditaria em qualquer coisa, queria provas.
– Não vou me submeter a nada por sua causa, Malcolm. Já não basta
tudo o que sofri para que ao menos me aceitasse? – Respirei fundo,
controlando as emoções. – Nem tudo é sobre você. Seu argumento é apenas
esse, que pode morrer. E eu? Onde eu fico nessa história? Posso ser usada
como uma boneca inflável e tudo bem?! E se eu não tiver filhos homens,
daqui a trinta anos você é obrigado a me matar. Olha que lindo! –
ironizei, sentindo as lágrimas deixando meus olhos sem que eu
precisasse invocá-las.
– Por favor, Riv... vamos dar um jeito.
– UM JEITO? – Elevei minha voz e joguei a mala no chão para me
aproximar daquele babaca. – Você só pode ser doente mesmo.
– Acha que não estou atordoado por conta disso? Pensa que não fico
remoendo esse maldito contrato dia e noite o tempo inteiro na minha cabeça?
Eu passei por tudo o que passei na minha infância, e você sabe bem como foi,
passei tudo o que passei na adolescência e vida adulta para assumir o posto
do meu pai. Desde o começo eu te avisei que o Patriarcado vinha antes de
tudo para mim. É meu dever.
– Foda-se o seu dever! Eu quero ter uma vida normal!
Soquei o peito dele, já chorando como uma criança.
Será que ele seria eternamente esse homem sem coração?
Nada que vivemos até então havia valido a pena?
Qual seria a melhor saída, afinal?
Ele segurou meus punhos e colou seu rosto no meu.
– Vamos dar um jeito. Eu prometo.
Malcolm
Ela não quis me ouvir.
Ela estava decidida a ir embora.
Ela estava pouco se lixando para o fato de eu ser executado assim que
nos separássemos.
Aquilo doeu. Doeu mais do que qualquer dor que eu tinha sentido e
sofrido em minha vida. Foi uma dor nova. Uma dor... profunda.
Rivka saiu do quarto com a mala e eu já não sabia mais o que fazer.
Fiquei parado no meio do quarto, olhando ao redor, buscando na memória o
momento em que eu me perdi.
Estava perdido.
Estava... sem rumo.
– O que vai fazer?
Karl me olhava com medo. Jamais tinha visto medo em suas írises.
Mas daquela vez era eu quem detinha todo o poder.
Tinha só treze anos e sabia que talvez jamais teria a chance de vê-lo
novamente caso ele se formasse na academia. Poderia ser enviado para
algum país e nunca mais teria a chance de me vingar por tudo que ele me fez
nos últimos anos.
– Não importa.
Respondi frio.
Estávamos em um galpão abandonado no final do quarteirão onde
ficava a academia. O segui quando encerramos as atividades de sexta e cada
um foi liberado para ir para suas casas. Eu sabia que ele ia embora sozinho,
estava estudando cada passo dele há anos.
Apenas elaborei a emboscada perfeita.
Lá estava ele, amarrado à barra de ferro no meio do galpão, com as
mãos e pés atados e nu.
– Como deseja morrer? Pedaço a pedaço ou queimado ainda vivo?
Ele começou a se debater, tentando se livrar das amarras. Achou que
eu era idiota e não sabia dar nós. Aprendemos tudo dentro da academia,
desde como amarrar uma pessoa até os pontos mais vitais de seu corpo para
uma possível tortura.
– Eu-eu... Me desculpa! Não quis fazer tudo aquilo com você, eu só
fazia porque...
– Pedaço a pedaço então, certo? – o ignorei e abaixei para pegar as
facas que havia preparado na semana anterior e guardado ali, num
esconderijo.
Quando Karl viu a pequena faca afiada, gritou.
– Socorro! Estou sendo vítima de um serial killer!
Comecei a rir. Sim, eu gargalhei da sua ideia idiota.
– Serial killer? Um garoto de treze anos te torturando é demais para
nossa mídia podre digerir.
– Babaca! Eu devia ter matado você! Te odeio desde o dia que entrou
nessa porra de academia! Eu mandava em tudo. Todos obedeciam às minhas
ordens. Eu era o chefão da academia e se tudo desse certo, sairia com
honras para chefiar grandes organizações criminosas dentro do Patriarcado.
Mas o herdeirozinho do maioral teve que entrar e tirar toda a atenção e o
foco que as pessoas tinham em mim. Era “futuro Patriarca pra cá”, “futuro
Patriarca pra lá”. E eu?
Cruzei os braços e fiquei ali, de frente pra ele, apenas ouvindo.
Minha feição imutável demonstrava que não, eu não estava com dó daquele
maldito.
– Queria apenas mostrar quem mandava em tudo no primeiro dia.
Mas a cada dia que passava você tomava mais o foco. Eu não queria fazer
tudo o que fiz, mas você mereceu.
Fechei os olhos e me forcei a não lembrar as malditas torturas que o
inútil havia me feito.
– Vamos acabar com isso.
Lacrei a boca dele com uma fita rígida e, usando a faca, comecei a
cortar seu peito e seus braços, contando por cada dia que eu fui abusado
física, sexual e psicologicamente.
Depois de contabilizar os mais de dois mil cortes em seu corpo,
comecei a tirar os pedaços dos lugares que ele usava para me ferir. Cada
dedo das mãos foi arrancado, unindo-se a outros órgãos.
Fiquei ali, por horas, fazendo minha obra de arte e executando minha
vingança.
No fim de tudo, ele já não tinha sangue, nem fôlego, nem vida.
– Eu venci – sussurrei ao vê-lo despedaçado perante mim.

Nesse dia eu andei por horas sem rumo nas ruas, fazendo de tudo para
que minha consciência não me incriminasse. Foi minha primeira morte. A
primeira vingança.
Aquilo também me trouxe alívio em saber que não sofreria mais por
causa da existência de Karl no mundo.
E a partir dali fiz uma promessa a mim mesmo: jamais permitiria que
me manipulassem e subjugassem. Eu seria dono de mim.
A sensação de ter o controle sobre mim, de ser meu próprio dono,
estava em risco. Meu peito doía, mais do que nos dias em que fui torturado
em minha infância.
Eu estava morrendo, antes mesmo de morrer.
Fui para o banheiro suíte e tirei minha blusa.
Encarei-me no espelho, inspecionando o tipo de homem que eu era.
– O que você é, Malcolm? Me diga.
A pergunta retórica ficou no ar, e a dor lacerante me consumia mais e
mais.
Pude sentir meus olhos começarem a arder e, por instinto, peguei uma
lâmina de barbear disponível. Observando-me através do espelho, perpassei o
lado cortante sobre meu coração, fazendo um X.
Sabia que minha solução era somente aplacar uma dor com outra pior,
mas a dor da lâmina não chegava aos pés da dor que eu estava sentindo lá
dentro.
– Que coisa maldita.
A lâmina e eu ficamos duelando por toda minha pele, e por onde eu a
passava doía, mas ainda não era o suficiente.
Meus olhos fitaram o chão, quando comecei a sentir as gotas de
sangue escorrendo por meu corpo, mas isso não fez com que eu desistisse de
me ferir.
Precisava me curar daquela dor intrínseca e agonizante.
Já tinha me marcado completamente em meu peito, decidi continuar
nos braços e, se não fosse o suficiente, cortaria minhas pernas e assim por
diante.
– Vamos. Acaba logo!
Era uma súplica à dor da minha alma, que não queria me abandonar.
Quando pensava nela, doía ainda mais.
Queria me ferir até a morte, me fazendo pagar pelo que fiz a Karl,
talvez?
Não sei quanto tempo fiquei ali, mas em um momento me senti fraco
e precisei sentar.
Havia perdido muito sangue.

Rivka
Eu não conseguia parar de chorar.
As lágrimas me desobedeciam, assim como a palpitação forte em meu
peito, me avisando que eu estava me enganando achando que seria feliz um
dia.
Não seria.
Estava presa ao homem sem coração e aquilo me deixava com ódio de
mim mesma.
– Eu te odeio, Malcolm! Te odeio!
Gritei socando o volante de sua picape.
Sabia que ele poderia me encontrar, se quisesse. Mas era tão fraco e
babaca que nem veio atrás de mim. Até o último minuto eu acreditava que ele
jogaria tudo para o alto e diria algo como “vamos fugir juntos, seremos
felizes, vamos recomeçar!”.
Mas não.
Ele ficou lá com seu maldito Patriarcado.
Queria que eu acreditasse que poderia morrer caso nos separássemos,
mas a verdade era que seu ego era tão inflado que não suportaria perder nada,
nem sua mulher. Essa era a verdade.
Era posse, não era amor.
Nunca foi nem nunca seria amor.
Estava quase chegando na cidade vizinha, quando meu celular tocou.
– Alô.
A voz preocupada de Adélia me fez parar no acostamento para prestar
atenção ao que dizia.
– Menina, preciso que me ajude. Meu filho está morrendo, ele está
perdendo quase todo o seu sangue. Volte, por favor. Já chamei meus médicos
particulares, mas eu suplico que retorne. Nunca o vi assim antes. – Então ela
soluçou e continuou, com a voz trêmula de choro. – Ele nunca ficou assim,
menina. Por favor, volte. Não quero perder meu único filho.
O desespero nítido na voz dela causou um reboliço em meu estômago
e uma aflição em meu peito.
Desliguei a chamada sem responder, não conseguia falar nada.
Abaixei a cabeça na altura do volante e respirei fundo.
– Não importa. Não posso voltar. Ele não é mais problema meu. Não
importa.
Repeti as frases curtas como mantras, mantendo minha mente no
controle do meu coração, que retumbava contrariado e preocupado com
Malcolm, e quando menos percebi já estava chorando desenfreadamente,
ligando o carro para fazer o retorno.

Estava ofegante e pálida no instante em que entrei naquela casa


novamente. Adélia estava sentada no sofá com as mãos unidas como uma
prece, nitidamente preocupada, até que me viu.
– Rivka.
Levantou e veio até mim, me abraçando com força.
Meus batimentos estavam acelerados demais, eu precisava sentar.
– Adélia, onde ele está?
Ela se afastou e, com os olhos cheios de lágrimas, relatou:
– Está em um dos quartos, sendo cuidado pela equipe médica. –
Enxugou as lágrimas que caíam e depois abaixou a cabeça. – Não sei como
ele conseguiu sobreviver. Estava em uma poça enorme de sangue.
E soluçou, dando início a um choro compulsivo.
A abracei e a trouxe para o sofá, eu estava dominada pela
preocupação por ele e queria vê-lo, mas se sua mãe não estava lá,
provavelmente eu não poderia estar também.
Tentei me manter forte.
Tentei controlar minhas lágrimas.
Tentei acalmar meu coração.
Mas a cada segundo que meu coração batia, ele me dava a resposta de
tudo, bem na minha cara.
Eu o amava. Amava aquele infeliz e me odiava por tomar ciência
daquilo.
– Será que posso vê-lo? – perguntei, temendo a resposta.
A mãe dele que me chamou, mas não sabia se era apropriado que o
visse logo, talvez fosse melhor esperar, sei lá. Estava confusa e atordoada
depois de constatar algo tão sério como o sentimento que tenho por Malcolm.
Ela assentiu e disse que assim que os médicos liberassem, me deixaria
ser a primeira a vê-lo.
E assim passamos as próximas horas.
Até que me foi permitido entrar no quarto, que tinha sido
transformado em um quarto de hospital provisório.
Malcolm estava deitado com seu corpo envolto em faixas, coberto de
cima a baixo. Apenas o rosto sobreviveu às ataduras.
Ligado ao soro, com os batimentos cardíacos mais fracos que o
normal, meu marido parecia dormir, mas não como um anjo. O cenho
franzido de lei estava lá.
Até dopado ele se preocupava com alguma coisa lá dentro da sua
cabeça.
Acariciei seus cabelos e fiquei como uma tola observando seus traços
faciais. Estava apaixonada desde quando? Era tão idiota que sonhei por tanto
tempo em um dia amar, mas quando enfim o senti, não o identifiquei.
Será que o amor é sempre assim, como uma surpresa?
Não estava feliz em saber que o amava, pois isso indicaria que eu
estaria disposta a repensar sobre o fato de deixá-lo, mas ao mesmo tempo
precisava conversar com a mãe dele e entender como ela conseguiu passar
por tudo aquilo e ainda dizer com toda a calmaria que ela e o seu falecido
esposo se amaram.
Que tipo de amor foi esse?
Como eles fizeram dar certo?
– Oi.
Me assustei com a voz rouca e debilitada de Malcolm. Ele devia estar
dormindo.
– Você devia estar dormindo. Te doparam para isso.
Ele fez um bico.
– Medicamento nenhum faz efeito em mim por muito tempo.
Pronto. O homem mal foi socorrido, estava cheio de cortes pelo corpo
– segundo os médicos –, sangrou horrores e depois de algumas horinhas já se
exibia.
– Aham, super-homem. Descanse, depois falaremos sobre essa sua
aventura.
Acariciei seu rosto, afastando os cabelos teimosos que invadiam por
causa do vento.
– Só se ficar aqui comigo – pediu. – A dor está passando, fique
comigo.
– A dor dos cortes já está passando assim tão rápido?
Estranhei.
– Não. A dor na minha alma.
Foi a primeira vez que seus olhos azuis pareciam como os de uma
criança. Dependentes, sinceros, frágeis.
Não queria pensar que era o sentimento que tenho por ele o fato de
vê-lo de um modo novo, pois a forma como ele se encontrava poderia ter sido
um fator provocador para muitas coisas mudarem.
– Eu fico.
Rivka
Ficamos mais do que o esperado na fazenda, para a recuperação de
Malcolm ser completa. No dia seguinte do acontecido, ele conseguiu ligar
para Romero e avisar que ficaria ao menos mais dois dias.
Ainda estava todo atado, sem poder sair da cama para quase nada, a
não ser ir ao banheiro, e também estava ficando mal acostumado com relação
a mim.
– Não... deixa que outra pessoa vai lá fora – pediu de uma forma tão
cativante que até estranhei.
Eu havia levantado para buscar nosso café da manhã, era bem cedo e
Malcolm ainda estava bem debilitado em sua cama. Toda vez que levantava
para ir ao banheiro, sentia tontura por conta da perda de sangue.
– Tenho que buscar nosso café. Eu vou voltar, fica tranquilo.
Tentei largar a mão dele, que fez seu melhor esforço para segurar a
minha.
– Se você for, eu vou levantar também.
Ameaçou levantar rapidamente, mas teve uma vertigem, que o fez cair
deitado na cama novamente.
– Droga de tontura – murmurou.
Eu sorri, mas logo fiquei séria. Ele odiaria me ver rindo da situação
em que ele se encontrava.
– Se você não ficar quieto aí, eu vou é ficar pela cozinha mesmo e só
volto amanhã.
Ameacei, adorando o fato dele querer ficar grudado em mim.
Algo o fez mudar. Ele não estava mais se revestindo da capa de
autoridade máxima que sempre vestiu. Estava se expressando como uma
pessoa normal, fazendo caretas, até charmes!
Malcolm rolou os olhos e cruzou os braços dentro de suas limitações.
– Volte rápido.
Homens...

– Menina, depois precisamos conversar sobre uma solução para você


e meu filho não precisarem cumprir esse contrato idiota.
Adélia estava na cozinha comigo, sem nenhum empregado ao redor
para ouvir nossa conversa.
Enquanto eu preparava tudo para que Malcolm se alimentasse bem, a
gente falava sobre o meu futuro.
– Sinceramente, minha sogra, eu queria fugir de tudo isso. Queria
largar Malcolm e recomeçar minha vida. Mas...
Deixei a resposta morrer no ar enquanto ajustava tudo na bandeja.
Ela veio ao meu lado e tocou o cotovelo no meu, me fazendo olhá-la
fixamente nos olhos.
– Você o ama.
Respirei fundo, derrotada.
– É uma maldição essa coisa de amar homens como eles, não é?
Ela somente assentiu, mas sorriu antes de concluir:
– Dá pra ser feliz enquanto isso tudo durar. Apenas pense no hoje e
deixe o amanhã planejado. Viver cada dia com intensidade ajuda a encarar o
amanhã com mais força.
Pesquei a frase, depositando no meu cantinho reflexivo na mente.
Usaria sempre que precisasse.
Levei a bandeja contendo as iguarias maravilhosas que eu mesma
preparei. Cuidaria do meu marido para que se recuperasse logo, e assim,
juntos, planejaríamos nosso futuro.

Malcolm
O incidente que ocorreu comigo me provou duas coisas:
Eu só morreria quando eu quisesse.
Eu precisava de Rivka mais do que pensava.
Estava cansado de não perceber o quanto ela era importante na minha
vida. Não sabia ao certo o que sentia, mas havia decidido me permitir sentir.
Era um homem completamente destroçado, não sabia lidar com essas
coisas emocionais, mas eu faria de tudo para que ela ficasse por perto.
Constatar aquilo foi difícil, pois ia contra tudo o que levei a vida
inteira construindo. A minha devoção ao Patriarcado e a honra que precisava
dar ao meu pai.
Só que Rivka havia se tornado peça fundamental na minha vida. Não
queria e não podia perdê-la, e não era pelo medo de ser morto.
Eu simplesmente precisava dela.
Ponto.

Assim que a morena esbelta com quem casei entrou no quarto,


sorridente com a bandeja na mão, eu sorri em resposta e meu peito se
aqueceu.
Era incrível que toda a dor tivesse ido embora num passe de mágica,
somente por ter minha mulher ao meu lado.
Que loucura.
– Você que preparou?
Perguntei quando ela me ajudou a me sentar na cama e posicionou a
bandeja sobre meu colo.
– Uhum. Panquecas. Suas favoritas.
A cada dia ela ficava ainda mais perfeita aos meus olhos.
– Antes de comer, venha e me dê um beijo.
Ela sentou ao meu lado e segurou meu rosto, depositando um beijo
casto sobre meus lábios.
– Agora coma, senhor beijoqueiro. Precisamos que fique bem logo.
Eu ri.
– Já está com saudade de abusar do meu corpo. Essa mulher é
insaciável... – brinquei e ela quase me deu um tapa no ombro, mas não o fez
por conta das minhas feridas.
Devorei as panquecas e os medicamentos que o médico receitou,
torcendo para que ainda naquele dia eu já parasse de sentir as tonturas.
Odiava ficar parado imóvel em algum lugar.

Rivka fez como eu havia pedido, não saiu do meu lado na cama pelo
resto do dia, e ficou lendo em voz alta um livro de suspense da biblioteca da
minha mãe.
– Está fácil demais de resolver esse mistério. Quem sabe de tudo é a
vizinha velha. Tá na cara.
Comentei quando ela havia finalizado um capítulo, antes de começar
o outro.
– Você é um chato. Quero ler tudo, tem como parar de ficar chutando
as soluções do final da história? O autor pode nos surpreender.
– Livros são previsíveis. Sou perito nessas coisas de achar soluções
em diversas situações.
Rivka fechou o livro e levantou um tanto revoltada, batendo os pés ao
invés de andar normalmente.
– Não quero mais ler por hoje. Você não sabe apreciar uma boa
história.
Ela foi ao banheiro depois de guardar o livro e retornou com todo o
material de cuidados médicos para me tratar.
Era a hora do banho. Que tortura.

Dois dias se passaram, eu estava como novo, apenas com as marcas


das feridas, mas sem precisar ficar todo enfaixado como antes. Elas haviam
começado a cicatrizar rápido com os medicamentos e pomadas que usei nos
últimos dias, e mesmo ainda bastante frágeis, eu não podia parar por mais
nem um dia sequer.

Minha mãe conversou conosco antes de irmos embora e disse que a


única coisa que ela não teve controle foi sobre o estupro no primeiro
aniversário de casamento, mas as demais cláusulas, meu pai sempre
conseguia reverter com algo que o Patriarcado ama: poder.
Ele inventou que minha mãe estava doente, com uma doença crônica,
dependente de remédios e que não podia se esforçar. Era mirabolante toda a
história inventada, mas que no fim das contas deu muito certo, pois ele
sempre chegava com um novo contrato bilionário na época em que minha
mãe seria “sacrificada”, e abafava a história com dinheiro e atestados
médicos.
O acordo entre meu pai e minha mãe foi em serem cúmplices e
amantes um do outro dentro de casa, e fora dela transparecerem que viviam
uma vida fria, sem sentimentos nem emoções. Por muito tempo o teatro
funcionou, até ele morrer.
Ela não quis revelar ao certo o motivo da morte dele, mas disse que o
Patriarcado descobriu várias coisas e entendeu como traição.
Naquele instante eu compreendi o motivo de quase todos os acionistas
irem contra mim. Eles acreditam que eu trairei a organização, como meu pai.
Acreditam que faria o mesmo que ele.

E olha que interessante.


Eu faria.

– Você faria o mesmo que seu pai fez pela sua mãe, por mim?
No caminho de volta para casa Rivka perguntou, um pouco
amedrontada. Era de se esperar que ela tivesse medo. Tinha descoberto tudo
em poucos dias, sua realidade mudou completamente com isso.
– A pergunta é: você faria o que minha mãe fez, por mim? Porque eu
jamais te obrigaria a fazer. Só que eu preciso que saiba que eu não farei o que
meu pai fez, farei ainda melhor. Ninguém jamais saberá e nem tocará um
dedo em um fio de cabelo seu.
Um embrulho congelante se fez em meu estômago, gerando uma
sensação nova dentre todas as recentes. Medo, insegurança talvez?
Queria que ela respondesse que faria de tudo para estar ao meu lado,
porque, putz! Eu faria até a pior loucura para jamais perdê-la.
Ela estava ainda pensativa, dirigindo concentrada na estrada. Levei
minha mão até a sua e a envolvi.
Precisava daquela proximidade.
– Eu faria – suspirou. – Mas quero que saiba que você não merece.
Sorri e trouxe a mão dela para depositar um beijo.
– Essa é a minha garota.

Tínhamos chegado na cidade há alguns minutos, mas decidimos


passar em um shopping antes. Rivka queria comprar alguma coisa que não
tinha me dito. Falou que era para eu aguardar na praça de alimentação, pois
me faria uma surpresa.
Odiei a ideia, a priori.
Mas compreendi que era algo bom e que me beneficiaria em alguma
coisa, afinal, era uma surpresa para mim.
Ela garantiu que duas horas eram o suficiente, e que eu não precisava
me preocupar, mas já tinham se passado duas horas e cinco minutos e nada
dela voltar.
Liguei para seu celular e, no terceiro toque, ela atendeu.
– Estou saindo daqui, em cinco minutos te encontro na praça.
– Venha logo.
Desliguei e fiquei esperando. Não gostei daquela experiência. Será
que todos os homens normais faziam aquilo com as mulheres?
Olhei ao redor e encontrei alguns homens sentados com várias
sacolas, também parecendo esperar alguém.
Os cinco minutos passaram e nada de Rivka chegar.
Não queria parecer controlador demais, mas não podíamos demorar
tanto assim, eu precisava tomar os remédios e deitar um pouco, estava me
sentindo um tanto fraco.
Lá se foram dez, quinze, vinte minutos, então caguei pra minha
aparência de controlador e liguei pra ela novamente.
Só que daquela vez o celular nem chegou a chamar.
Caiu na caixa postal.
Respirei fundo e liguei outra vez.
Caixa postal.
– Que brincadeira é essa que ela está fazendo?
Não estava gostando do rumo daquela situação, então levantei e andei
nos corredores próximos à praça de alimentação para ver se a encontrava.
Nada de Rivka.
Parei em quiosques de venda e perguntei para ver se alguém a tinha
visto.
– Você por acaso viu por aqui uma mulher magra, morena, com um
vestidinho branco? Ela tem cabelos negros ondulados até a altura dos
ombros...
Repeti a descrição de Rivka umas dez vezes, para pessoas diferentes.
Quando olhei para o relógio, já havia se passado uma hora.
– Será que ela desistiu de mim outra vez?
Não imaginei que a mulher com quem compartilho a vida e a cama
seria uma pessoa sem palavra. Há pouco tempo ela prometeu estar comigo,
não mudaria da água para o vinho.
Optei por respirar e pensar.
Ela poderia não ter me visto e ido para casa de táxi. Talvez tenha sido.
Com esse pensamento segui rumo à minha mansão e, chegando lá, ignorei
Romero e seus protestos na entrada, entrando em alta velocidade na sala de
estar, tendo uma infeliz surpresa.
Enzo estava sentado confortável em meu sofá, como se fosse dono do
mundo, com aquele sorriso maquiavélico típico.
– Oi, priminho. Sabe me dizer onde está sua bela esposa?
Malcolm
Não era novidade que Enzo queria me destruir desde o dia em que me
casei e assumi o Patriarcado.
Eu esperava um plano secreto de pessoas que eu nunca imaginei que
me trairiam, mas ele não usou o artifício da falsidade, quis logo que eu
soubesse quem ele é.
Desde o incêndio, onde me fez suspeitar de que ele estava
monitorando meus e-mails para verificar a hora e dia exatos em que eu
retornaria, percebi que ele não jogava para perder.
Cada vez era um susto diferente. Um ataque novo.
A tentativa de estupro da minha esposa.
A conspiração dos acionistas contra mim.
A tentativa de manipular os líderes internacionais bem na minha cara.
A chantagem usando Khaled como isca.
E agora... isso.
Romero e eu ainda não tínhamos pensado exatamente em como matá-
lo sem deixar nenhuma suspeita. Enzo é muito famoso entre todos da cúpula
e entre os chefes de estado. Sua morte com certeza seria chorada por países
afora. O babaca sabe conquistar gente para ele.
Era meu oposto por fora, mas pior do que eu por dentro.
– O que faz na minha casa?
Mantive o controle que eu tinha perdido quando percebi a ausência de
Rivka no shopping. Ele jamais poderia saber o tanto que ela me afeta.
Ele se levantou e andou até mim com sua falsa imponência e estendeu
a mão, sugerindo um cumprimento.
– Vim em paz.
Não tinha noção do que ele tinha planejado, mas não foi aquilo que eu
imaginei que seria. Com toda certeza.
O cumprimentei sem muita vontade e pedi que me acompanhasse ao
meu escritório. Lá falaríamos o que tivesse de ser falado.
– Esse seu segurança pode ir junto? – pediu.
Lancei uma autorização a Romero através do olhar e ele nos
acompanhou.
Entramos no escritório e fechei a porta. Não fui cortês, muito menos
paciente ao pedir para que todos sentassem a fim de dialogar. Fui direto ao
ponto.
– Diga o que quer.
Me sentei na ponta da minha mesa e cruzei os braços ao confrontar
meu único primo vivo e o primeiro na linha de sucessão.
– Acho melhor você se acomodar. Eu tenho a oferecer a melhor
proposta de toda a sua vida.

Rivka
Tinha acabado de comprar vários conjuntos de lingerie maravilhosos
e alguns acessórios especiais. Queria que nossos próximos dias fizessem com
que nosso vínculo se estreitasse ainda mais e que ele pudesse enfim amolecer
completamente para mim.
A gente lutaria contra todas as regras mais absurdas por aquilo que
acreditávamos.
Sim, pode me chamar de trouxa, louca, iludida... Mas eu sabia que
mesmo que meu marido não sentisse o que eu sinto por ele, ele tinha algo que
nunca poderia ser questionado:
Senso de dever. Lealdade.
O que ele prometia, cumpria. Quando ele empenhava sua palavra,
levava até o fim.
Era sincero, real. Não me enganava com falsas promessas, me
mostrava o que era e ponto.
Aquilo no fim das contas me trouxe uma segurança de que um dia
sairíamos daquela situação vitoriosos.
Mas, no momento em que estava andando pelos corredores do
shopping para encontrar Malcolm, fui puxada para dentro de um corredor
estreito lateral.
Lá, um velho horroroso grudou seu peito no meu e levantou uma arma
na minha costela, disfarçando para que ninguém que passasse perto dali visse.
Não deu tempo de eu reagir ou pedir socorro, o susto me tirou todas as ações.
Eu perdi a cor, mal percebia o que estava acontecendo.
– Quietinha.
Estava sentindo falta de ar, medo e desespero. Pude perceber que
suava frio no instante em que ele sussurrou em meu ouvido tais palavras:
– Você vem comigo em silêncio, sem levantar suspeitas. Qualquer
movimento brusco eu ativo esse controle – mostrou um botãozinho pequeno
na mão, que combinava com o outro botão que ele colou no meu braço – e
você simplesmente pega fogo e morre como uma palha seca.
Meu peito subia e descia num ritmo frenético em busca de ar. Não
consegui pensar, apenas obedeci ao que o velho disse, e assim andei ao lado
dele como um robô até o lado de fora do shopping, onde entramos em uma
minivan.
Quando ele me colocou lá dentro, havia outros homens com seus
rostos cobertos me aguardando. No instante em que um me puxou para dentro
como um saco de batatas, o outro enfiou algo no meu pescoço que me fez
apagar em segundos.

Abri os olhos sem entender exatamente o que tinha acontecido. Aos


poucos minha mente foi retornando aos instantes mais temerosos e
apavorantes da minha vida.
Se o que eu tinha vivido foi ruim, aquilo era a amostra do inferno.
Eu estava algemada com as mãos para o alto em uma parede. Minhas
pernas se encontravam soltas, mas eu mal conseguia tocar com o pé inteiro
no chão. O corpo estava suspenso, como uma roupa no varal.
Aquela sala quadrada de aproximadamente 4x4m era obscura e fedia
a xixi e outros dejetos. Não tinha janela, apenas uma porta bem na minha
frente.
Quando tentei me observar, notei que estava suja e suada, mas
continuava com o mesmo vestido que usava no shopping.
– Socorro! – dei um grito, agradecendo mentalmente por não terem
lacrado minha boca.
Que lugar era aquele?
Quem faria uma coisa daquelas comigo?
E qual interesse teriam em me manter ali?
Não demorou muito para que alguém abrisse a porta e entrasse.
Era um homem. Sua pele era morena e seus cabelos estavam
raspados. Ele tinha um olhar maléfico e me encarava de cima a baixo com
uma fúria sobre-humana através dos seus olhos escuros.
– A bela adormecida enfim despertou – ironizou, fazendo com que
sua voz invadisse meu corpo e me enchesse de calafrios.
Meu medo se intensificou. A primeira coisa que pensei foi em chorar
tudo o que estava preso. Não conseguia reagir, nem pensar.
– P-por que estou aq-qui? – gaguejei, mal ouvindo minha voz.
Ele cruzou os braços na minha frente e empinou o nariz, analisando-
me. Um soco daquele homem poderia me matar, com certeza.
– Já era para entender que você é um objeto e não uma mulher. Está
há seis meses com aquele maldito filho da puta e não aprendeu? – Andou
para perto de mim e apontou o dedo em riste na minha direção. – Não deve
questionar absolutamente nada. Apenas obedecer.
Fechei os olhos e ali meu choro despencou como um rio. Não
conseguia entender o que tinha feito de errado para estar naquela situação.
Será que já eram as regras do Patriarcado sendo executadas?
Ele me feriria? Abusaria de mim?
– Por favor... Por favor... Por favor... – pedia, suplicava, tremia.
Ele começou a rir, elevando o tom da sua voz a cada vez que parava
para tomar ar. Sua risada só me fez gemer e chorar ainda mais.
Adonai, me ajuda!
– Você é patética. Será muito divertido fazê-la pagar por tudo que seu
esposo fez ao meu irmão.
Então sacou um artefato do bolso que em segundos se tornou algo
semelhante a uma faca e o posicionou no meu peito. Fechei os olhos. Ele me
mataria.
Assim que ouvi o barulho de tecido sendo rasgado, voltei a olhar.
Ele tinha cortado meu vestido branco de cima a baixo, fazendo com
que eu ficasse apenas de calcinha, pois não usava sutiã.
Tentei me encolher. Não queria que me vissem seminua.
Não queria que um maldito sequestrador abusasse de mim.
Ele jogou o tecido no canto ao chão e voltou a me observar, brincando
com a faca em sua mão.
– O que posso marcar em você hoje?
Não havia compreendido a seriedade da situação. Ele tinha dito algo
relacionado a um irmão, depois pareceu que desejava me cortar. Qual o
propósito de tudo aquilo?
– Você quer dinheiro? Quer... posses? – perguntei sem pensar, eu só
queria me livrar daquilo. – Eu t-tenho muita influênci-cia. Posso ajuda-dar.
Parece que ele não gostou do que eu falei, porque assim que seus
olhos se firmaram nos meus, foi como se exalassem chamas ardentes de ódio.
Ele rosnou como uma fera, respirou fundo e deu dois passos rápidos
na minha direção com a faca em punho, mirando meu peito.
Era ali que eu morreria.
Fechei os olhos e me rendi. Não tinha nada que eu pudesse fazer.
– Khaled!
Alguém abriu bruscamente a porta, fazendo com que o homem não
concluísse o que desejava e minha vida fosse poupada.
Abri os olhos lentamente e vi um outro homem que também parecia
um soldado, como o tal do Khaled.
O medo de ser morta daquele jeito me gerou uma crise de pânico
terrível, e ali mesmo comecei a tentar respirar um ar que não conseguia.
Puxava o ar, mas era como se não houvesse um. Meu peito estava
comprimido. Minha visão ficou turva.
Tentei por várias vezes respirar, estava impossível.
O meu quase assassino saiu da sala para atender seu chamado, me
deixando sozinha outra vez, vivendo meu pior pesadelo.

Não sei quantas horas haviam passado, mas estava apagada por um
bom tempo. Quando novamente abri meus olhos, já não estava mais presa
suspensa em uma parede. Estava deitada em uma maca fria e desconfortável,
com as mãos algemadas ao ferro lateral da maca.
Elevei um pouco o pescoço para ver minha situação, eu estava
molhada e com um odor terrível, como se tivessem urinado em mim.
A sala não era a mesma, era outra e tinha uma pequena janela
quadrada no alto, que mostrava ser começo do dia ou o fim, devido à leve
escuridão.
Fiquei ali avaliando minha vida e a situação em que me encontrava.
Senti saudades da minha infância, das pessoas queridas que passaram pela
minha vida. Saudades de Dora, que nunca mais vi desde que casei. Saudades
de meu pai, que por mais que tivesse me vendido, nunca me tratou com
desprezo e sempre me deu carinho.
Então pensei em Malcolm e em como ele estaria naquele momento.
Será que estava me procurando?
Será que estava preocupado?
Um soluço solitário saiu da minha garganta, avisando que a
intensidade da tristeza tinha abalado minha alma de tal maneira, que daquela
vez foi ela quem chorou.
Lá dentro, no mais recôndito e oculto, eu sentia minha alma gemer em
dores, chorando por tudo aquilo que eu estava vivendo.
Com certeza Adonai não tinha preparado aquela vida para mim.
Rivka
Não consegui mais dormir.
Percebi que era manhã, quando o sol lá fora se intensificou. Mas eu
ainda estava presa à maca no canto do quarto.
Logo alguém entrou naquele lugar, me assustando.
— Garota. Vai tomar um banho e vestir essa roupa. — Jogou um
conjunto de moletom preto em mim. — Estará livre em poucas horas.
Como?
Estarei livre?
Não quis raciocinar muito sobre o que havia ouvido, apenas aguardei
o homem me soltar das algemas e me ajudar a levantar para ir ao banheiro
que ficava numa portinha quase invisível no canto daquele quarto.
Percebi quão fraca eu estava quando a vertigem me atingiu assim que
levantei.
Estava sem noção de tempo, nem lugar. A dor da fome já nem doía
tanto quanto nas primeiras horas.
O homem me acompanhou somente até a entrada do banheiro e me
soltou. Me segurei no batente da porta para não cair e pedi forças a meu
Deus.
Precisava continuar viva e sóbria.
O banheiro era minúsculo, mas ali consegui tomar um banho gelado,
porém acalentador. Era como se as águas torrentes despencassem sobre mim
e levassem embora cada gemido de dor que tive nas últimas horas.
— Por quê? — soltei em meio à minha aflição.
Minhas mãos mantinham meu corpo firmado ao segurar na parede
enquanto eu sentia a pequena chuva, e rios jorravam de meus olhos fazendo
um mix onde eu não sabia mais o que era lágrima e o que era banho.
A única coisa que eu sabia era que aquilo tinha de acabar.

Malcolm
Estava andando de um lado para o outro dentro daquele maldito
galpão.
Em pouco tempo Rivka seria entregue a mim e voltaríamos para casa
em paz.
Queria poder usar todos os meus poderes e influências para matar
todos os envolvidos um a um, mas não era a hora. Ainda não era a hora.
Não me arrependo do que tive que fazer para que me devolvessem
minha esposa.
Não era justo que ela sofresse ainda mais do que já sofrera nos
últimos meses.
— Vamos... Vamos... Chega logo...
Murmurei ansioso enquanto caminhava ali dentro do local
abandonado. Ótimo lugar para um ponto de encontro. No meio do nada, sem
rastreio do mapa, sem vigias nem vizinhança.
Enquanto aguardava, pude olhar para mim mesmo. Um homem de
preto da cabeça aos pés, com a alma podre e as mãos sujas de sangue. Quem
daria realmente valor a uma pessoa como eu?
A jaqueta de couro que eu usava jamais valorizaria o produto que a
veste, nem a calça das marcas mais caras, ou o calçado de maior valor.
Eu já estava perdido, mas ela me enxergou.
Isso não tinha preço em nenhum lugar do mundo.
Longos minutos se passaram até que uma minivan preta estacionasse
do lado de fora. Me escondi para ver quem estava ali, porém foram tão
inteligentes que apenas enxotaram Rivka para fora e partiram sem nem saber
se havia alguém esperando por ela.
Meu carro estava do outro lado do galpão, fora da visão de quem
chegasse.
Assim que vi a minivan se distanciar o suficiente, concentrei-me
naquela mulher de cabeça baixa e braços envoltos em si mesma.
Ela estava em cacos.
Maldição!
Rivka não se movia. Da mesma forma que a puseram para fora, ela
ficou. Parada no meio do nada, olhando para o chão, sem sentido.
Então eu saí e fui andando até ela, lentamente.
Meu coração retumbava acelerado com a proximidade da mulher que
tinha um poder enorme sobre mim e mal sabia.
Nem eu sabia ao certo quão poderosa ela era.
— Riv?
Parei à sua frente e estendi minha mão, para que ela me notasse.
Seu rosto foi se revelando aos poucos, ao passo em que ela levantou a
cabeça.
Quando os olhos cor de chocolate se fixaram aos meus, ela os
arregalou.
— Malcolm? — perguntou com a voz chorosa, derramando lágrimas
finas pelo rosto. — É mesmo você?
Pude sentir um golpe em meu âmago ao ouvi-la dizer aquilo. O que
tinham feito à minha menina teimosa?
— Sou eu... Sou eu. — A envolvi com meus braços e ela relaxou,
liberando seu soluço entalado na garganta para chorar. — Vai ficar tudo bem.
Eu prometo.
Depositei um beijo no topo de sua cabeça e a mantive sob meu abraço
por um tempo, ela precisava se sentir segura.
E eu precisava me sentir novamente em paz.

Rivka estava dormindo de lado em posição fetal na nossa cama


enquanto eu a fiscalizava como um guardião. Conferi sua respiração
inúmeras vezes e atestei se não estava febril por outras muitas. Ela já tinha se
alimentado, mas ainda estava muito fraca. Lá dentro de mim foi como se
alguém ligasse uma furadeira.
Me sentia em pedaços por vê-la tão vulnerável.
Me esqueci de tudo no instante em que ela apareceu.
Faria tudo novamente para estar com ela.
Aquilo estava sendo novo e tão... dependente. Não sabia que
sentimento era, ou se até mesmo podia ser algum sentimento.
Jamais senti algo igual por uma pessoa ou coisa, mas era só Rivka me
olhar ternamente que chamas ardentes acendiam em meu peito.
Ela me fazia queimar.
E queimar era algo bom. Muito bom.
— Precisa ficar bem logo, minha teimosa. Temos muito o que
planejar.
Acariciei seus cabelos e beijei sua testa. O movimento deve ter feito
com que ela despertasse, porque logo abriu os olhos e, ainda frágil,
balbuciou:
— Quero parar de viver pesadelos.
Fechei os olhos com toda a força, ciente de que ela era vítima no meio
daquilo tudo. Precisava ser liberta. Ser feliz.
Aquilo me deu ainda mais forças e certeza de que eu havia tomado a
decisão certa.
— Você nunca mais viverá.

Rivka
Algumas semanas desde o meu sequestro se passaram.
Malcolm não me contou como fez para que me libertassem, apenas
disse que foi simples e que faria quantas vezes fossem necessárias.
Ele estava muito cuidadoso comigo, como nunca foi antes.
Era como se meu marido finalmente fosse tudo aquilo que um dia eu
havia sonhado. Malcolm era um novo homem somente para mim.
Ele avisou que delegou várias funções dentro do Patriarcado e não
precisaria mais estar tão presente assim, e falou que conseguiu uma liberação
da cláusula que faz com que eu seja abusada no nosso aniversário de um ano,
invalidando-a.
Sinceramente eu não queria nem imaginar o que ele possa ter feito
para conseguir.
Ninguém conseguiu antes e ele tinha conseguido em dois dias — que
foi o tempo em que eu estive cativa.
Confesso que a curiosidade era grande, mas ele insistia em dizer que
estava tudo sob controle.
Sua mãe ligava mais vezes para nós e eu me sentia muito bem
conversando com ela. É uma mulher forte, cheia de ideais e princípios.
Nossas conversas sempre chegavam no mesmo assunto: livros.
Nossa paixão pela leitura fazia com que a relação sogra e nora fosse
um paraíso.
Já estava há sete meses casada com Malcolm e pela primeira vez ele
lembrou.
— O que faremos para comemorar?
Eu estava preparando as panquecas da manhã antes que ele
despertasse, mas foi só eu sair da cama que o bendito acordou.
Lá estava ele, me agarrando pelas costas trajando somente uma calça
de frio, enquanto eu tentava fazer nosso café.
— Se você me deixar fazer as panquecas, poderemos comemorar
daqui a pouco.
— Rum — resmungou —. Comemorar comendo panquecas? Não tem
algo melhor?
Virei o rosto para o lado e o encarei em desafio.
Esse homem anda muito mal-acostumado.
— Deixa de ser abusado! Só por conta disso vamos comemorar no
ringue!
Ele riu e me largou, murmurando algo como “quero ver se tá pronta
pro que eu quero”, enquanto caminhava até a sala de jantar.
Meu coração era grato por ele ter me resgatado. Não sabia o que seria
de mim caso Malcolm não desse seu jeito, aquilo foi uma grande prova de
que sou importante pra ele, e mesmo que ele não diga com todas as letras, eu
me sentia especial.
Me sentia além do que desejada. Ousaria dizer que me sentia amada.
Ele me pediu perdão por todo mal que me causou no começo do
casamento e eu o perdoei com muita facilidade. A verdade era que meu
coração já o tinha perdoado, mas quando ele mesmo pediu o perdão, foi como
se realmente o peso da mágoa tivesse se libertado de mim.
Finalizei as panquecas e levei até a mesa. Ficamos lá conversando
descontraídos e comendo, até que Linda apareceu.
— Gosto quando vejo vocês assim — apenas comentou e continuou
seu rumo até os quartos onde pretendia arrumar.
Malcolm e eu rimos.
— Ela é um amor — comentei com ele, finalizando minha panqueca.
Ele, que ainda tinha várias no seu prato, engoliu o pedaço que
mastigava e deu de ombros.
— Sempre foi. Linda é uma peça rara, como da família.
Assenti e continuamos nosso desjejum enquanto também falávamos
de assuntos triviais e rotineiros. Malcolm me contou que o Patriarcado
entraria em uma negociação histórica nos próximos meses e disse que
beneficiaria muito nossa vida.
Algo me dizia, bem no fundo, que eu teria alguma surpresa até o final
daquele dia.
Só esperava ansiosamente que, em algum momento, eu e meu marido
ficássemos a sós em nosso santuário particular — vulgo quarto —, porque lá
eu tinha certeza de que não haveria nenhuma pendência a ser resolvida.
Malcolm
Nas últimas semanas fui bastante sigiloso ao preparar a surpresa para
Rivka. Nosso dia mensal, onde comemoramos mais um mês desde o
casamento, era o momento ideal para revelar a ela o que estava elaborando.
Pude contar com a ajuda do homem que ninguém sabia da existência:
meu detetive e segurança secreto. Ele correu atrás de tudo para que pudesse
fazer a surpresa ideal.
Rivka ficaria radiante.
Naquele começo de noite, enquanto ela verificava tudo sobre roupas,
acessórios e outras coisas femininas, eu dei uma saída e me encontrei com
Joshua, meu detetive.
— Sua invisibilidade e eficiência são inacreditáveis.
Comentei assim que o vi, naquele bar nas ruas mais movimentadas de
Londres, servindo bebida.
O homem conseguia se passar por tudo e ninguém o via. Era invisível.
— Obrigado, senhor. Estou com o que me pediu e também carrego a
pasta que contém as fotos do projeto para o local que imaginou.
Ele passava de um lado para o outro, discretamente, servindo as
pessoas.
Quando voltava até mim, continuávamos nosso diálogo.
— Onde posso pegar? Há como colocar em minha maleta? — Mostrei
sem muito alarde a maleta que carregava.
Ele assentiu e pediu licença para ir ao toalete. Como o local estava
abarrotado de gente, esperei um pouco e também fui ao banheiro, mas ele não
estava lá. O que Joshua fez foi simplesmente pegar minha maleta no meio do
tumulto sem que eu visse, e depois me entregou pelos corredores do banheiro
sem que eu também nem percebesse de onde ele estava vindo.
Fui embora dali depois de pagar a bebida e só abri a maleta quando
cheguei em casa, dentro de meu escritório.
Romero estava me acompanhando menos aos lugares. Ele não
aceitava tudo o que eu tinha feito para salvar Rivka e jurou que faria Enzo
pagar com a própria vida.
Enzo me fez uma proposta e eu vi como a melhor da minha vida,
assim como ele tinha dito, mas Romero simplesmente surtou e queria matar
Enzo com as próprias mãos desde então.
Para mantê-lo longe de problemas, não o convoquei mais como antes.
Precisava lidar sozinho com tudo o que seria da minha vida dali para
frente.
Cheguei em casa e, assim que me trancafiei no escritório, respirei
fundo encarando a maleta de couro.
A pus sobre a mesa e a abri rapidamente, desejando que a solução de
tudo estivesse ali.
E mais uma vez Joshua me surpreendeu, fazendo tudo exatamente
como eu havia pedido, sem nenhuma falha.
Encontrar esse homem foi como agulha num palheiro.
— Ótimo.
Verifiquei as plantas, projetos e o pen drive que ele havia enviado
junto.
Liguei o computador e inseri o pen drive, a fim de verificar o que
havia.
Tinha um vídeo.
Era ele, meu detetive, no meio do nada no Canadá.
O lugar onde ele se encontrava estava coberto por neve.
— Senhor Samuels, como pode verificar, esse foi o terreno que
consegui para sua construção subterrânea. Ao redor não há sinal de GPS ou
telefone. Aqui a eletricidade ainda não chegou. Estamos a aproximadamente
trinta e cinco quilômetros de qualquer civilização.
Ele segurava a câmera com um bastão e o levantou para que eu
verificasse o perímetro através da filmagem.
Realmente não havia absolutamente nada ao redor.
— Pesquisei sobre esse local e é uma boa terra para se construir de
modo subterrâneo. O melhor ponto do fim da cidade. Sua obra será
resistente a qualquer desastre natural que possa ocorrer, por estar sob tanta
terra e gelo. A terra no momento não pertence ao governo, é de um
bilionário do Canadá, que apenas a mantém como área de proteção natural.
Já consegui o contato do dono, os documentos estão todos na pasta.
Pausei o vídeo e peguei os documentos.
Eram registros de posse extremamente rigorosos e corretos perante a
lei. Não seria difícil comprar. Eu teria que fazer tudo com cautela para que
não me desse problemas no futuro.
Verifiquei a chave simbólica que ele havia posto como eu pedi e,
depois de averiguar as plantas do projeto do imóvel, fui até Rivka com a
pasta em uma das mãos e a chave em uma caixinha de veludo, na outra.
Adentrei no meu quarto e, assim que fechei a porta, tive a visão do
paraíso.
Rivka estava impecável em um vestido longo num tipo de verde que
simplesmente havia nascido para o tom de pele dela.
Ela pendurava brincos de esmeraldas em suas orelhas enquanto
olhava-se no espelho gigante que havia em uma das paredes quando caminhei
até ela e inspirei seu aroma doce.
— Está caprichando... deliciosa.
A admirei sem atrapalhar. Ela sorriu e aquela curva em seu rosto que
mostrava os dentes alinhados sempre me causava uma inquietação gostosa no
peito.
— Assim vou querer comemorar aqui mesmo. Vá se aprontar,
homem.
Deixei a pasta sobre a cama, escondi a caixinha e, antes de tudo, fui
tomar um banho.

Já estávamos no nosso jantar especial que mandei preparar após o


horário de funcionamento no Greenwich Park. Era um ponto famoso na nossa
cidade, mas Rivka e eu nunca saímos nem curtimos nada juntos, então decidi
levá-la naquele momento especial.
Havia uma tenda enorme posicionada bem no centro do campo
gramado, iluminada apenas com tochas ao redor, na parte mais baixa do
parque. Lá dentro, uma mesa repleta de farturas. Tudo aquilo que ela amava
comer.
— ‫( אל אהוב‬Deus amado!)
Rivka exclamou em sua língua natural ao ver toda aquela estrutura.
— Tentei acertar o que gostava de comer, mas como gosta de tudo um
pouco...
Ela ainda olhava atônita tudo aquilo, impressionada. Depois se virou e
me olhou com uma admiração que eu gostaria de fotografar para nunca
esquecer.
— Eu... estou sem palavras.
De imediato seus olhos começaram a marejar e uma pequena lágrima
acabou se formando no canto de seu olho. Assim que a gota percorreu a
bochecha dela, levei meu polegar até lá, enxugando-a.
— Isso aqui não é nada em vista do que você merece viver.
Encaixei minhas mãos na sua nuca lentamente, aproximando-me
ainda mais de seu corpo frágil antes de tocar meus lábios nos dela.
Vê-la tão entregue, tão serena em meus braços, me sinalizava de que
tudo valeria a pena no final.
Por ela tudo vale a pena.

Rivka
Eu estava surpresa.
Surpresa não era exatamente o nome, porque em nenhum pensamento
meu jamais cogitei que Malcolm faria algo semelhante ao que ele tinha feito
naquele dia.
Ele, definitivamente, nunca faria algo tão romântico.
Quem era aquele homem?
Nosso beijo foi terno, carinhoso e gentil. Ele me acariciou meus
cabelos próximo à nuca enquanto sua boca se apossava da minha lentamente.
Nossas línguas se rendiam ao embate que sempre vivíamos, mas que
daquela vez se assemelhava a uma guerra de paz.
Meus braços o envolveram na cintura, agarrando seu corpo musculoso
e firme envolto pela camisa social. O lugar cheirava a romance de livro. Eu
estava vivendo um momento inédito com o homem de gelo.
Ficamos ali nos beijando por um tempo, depois me afastei para tomar
uma boa dose de ar e novamente observar tudo aquilo.
— Bom... estamos aqui para comer, então... — Apontei para a mesa
repleta de iguarias deliciosas.
Malcolm riu e abanou a cabeça em negativa.
— Você é única.
Nos sentamos e começamos a conversar enquanto devorávamos cada
prato disponível. Os que eu mais comia eram as massas. Spaguetti, nhoque,
lasanha, calzone. Também devorei as carnes brancas.
— Deus amado, eu estou no céu. Morri e fui para o paraíso. — Fitei
meu marido, que não parava de me olhar feito um bobo enquanto eu comia
tudo. — O que deu em você para armar algo tão grandioso?
Ele deu de ombros.
— Linda, Lindsay e minha mãe podem ser muito influentes em suas
ideias.
— Poxa, achei que tinha sido ideia sua.
Ele negou com a cabeça.
— Sabe que jamais pensaria em nada disso, não sabe?
Soltei um muxoxo.
— Pois é, eu sei. E sei que meu marido é extremamente verdadeiro,
por isso preciso parar de perguntar tudo se não quero ficar decepcionada com
a resposta.
Ele esticou o braço sobre a mesa, envolvendo sua mão na minha.
— Posso não ser capaz de fazer coisas grandiosas como essa para
você. Ou, talvez, não ser o homem que sempre desejou antes de se casar
comigo. Mas o que você causa em mim é o combustível necessário para que
eu tente.
Firmei meu olhar nas írises semelhantes ao céu aberto, absorvendo o
impacto que aquelas palavras estavam causando em mim.
Eu o amava, sabia daquilo e estava ansiosa para um dia contar, e cada
coisa que ele fazia para compensar tudo que eu passei, só me dizia o quanto
ele se importava e merecia esse sentimento que crescia dia após dia em meu
peito.
Ficamos ali, nos admirando por um bom tempo, até que finalizamos o
jantar.
Malcolm comentou que ainda tinha mais surpresas e aquilo me fez
sorrir pela milionésima vez no dia.
Eu estava uma boba sorridente.
— Oh, Deus... que lindo!
Estávamos no observatório real, ainda dentro do parque. Malcolm
tinha o controle sobre tudo e isso o ajudou para que não tivesse
absolutamente ninguém naquele lugar, só nós dois.
Ali, naquele amplo terraço numa altura considerável, podíamos ver
grande parte de Londres e nos maravilhar com a vista esplêndida.
Eu estava ali debruçada com os antebraços sobre o parapeito, quando
um pigarro me fez olhar para trás.
Malcolm estava com uma mão coçando a nuca, parecendo nervoso, e
a outra mão estendida contendo uma caixinha de veludo.
Oh, céus. Se não fôssemos casados eu imaginaria...
— Quando os casais se pedem em casamento é algo parecido com
isso, certo?
Ele perguntou, me fazendo admirar o esforço com que elaborou
aquilo.
Sorri e peguei a caixinha, mas antes de abri-la o puxei para um
abraço.
Me aconcheguei em seu peito quente já coberto por um casaco bem
grosso, curtindo cada segundo daquele momento tão particular, único e
nosso.
— Não quero que isso aqui acabe nunca — sussurrei de olhos
fechados, sentindo uma leve brisa tocar meu rosto.
Malcolm firmou seus braços ao meu redor e beijou o topo da minha
cabeça com ternura antes de dizer:
— Não vai acabar. Abra a caixinha.
O pedido dele me fez dar atenção ao pequeno cubo de veludo em
minha mão. Assim que abri, uma chave prateada foi revelada em seu interior.
— Uma chave?
Perguntei curiosa. O que ele estava tramando?
— Vem, vamos sentar aqui que te conto tudo.
Caminhamos para perto dali e sentamos sob a luz da lua, com ajuda
das lamparinas que levamos. O chão estava coberto por um colchão fino com
travesseiros ao redor. Tudo minimamente planejado.
Ele pediu que eu deitasse em seu colo e assim o fiz. Malcolm
encostou sentado na parede e fiquei sentada entre suas pernas, com minhas
costas em seu peito, sentindo sua respiração quente no meu pescoço. Ele me
manteve abraçada e inspirou forte.
— Amo seu cheiro. Quero que nunca se esqueça desse dia.
Fechei os olhos e me permiti ser levada pelas sensações que só ele
provocava em mim. Malcolm tinha um domínio sobre minhas emoções e uma
firmeza em suas ações que me faziam apenas desejar unir-me a ele cada vez
que ficávamos a sós.
— Você está mestre em me seduzir, devia me ensinar uns truques —
brinquei em meio ao momento relaxante.
Ele sugou o lóbulo da minha orelha e elevou as duas mãos aos meus
seios.
— Você não precisa de truques. Me seduz sem esforço algum.
Deus do céu, o homem estava pegando fogo e ainda não tinha me
explicado sobre a tal chave. Respirei fundo, recobrando a minha sanidade, e
perguntei:
— O que aquela chave significa?
Logo o vi acalmar um pouco mais os ânimos e voltar a envolver
minha cintura.
— A chave da nossa casa secreta. Vamos construir uma casa secreta
subterrânea no Canadá. Preciso te contar algumas coisas que podem ser boas,
e outras que não serão tão boas assim.
Rivka
Nos aconchegamos no colchão olhando para o céu fechado naquela
noite fria; estava bem próximo de nevar, então aquele dia era um dos últimos
antes da temporada congelante.
Fiquei na posição que mais amava quando deitava com ele, agarrada
em seu torso, como um bicho-preguiça, enquanto ele envolvia um braço ao
meu redor e o outro apoiava na nuca, com seu corpo de barriga para cima.
— Quando você foi sequestrada eu entrei em colapso. Para mim foi o
pior pesadelo que vivi, ainda mais do que dias antes, quando disse que me
deixaria. Mas daquela vez não podia me render. Tinha um inimigo contra
quem lutar.
Fiquei ali atenta, ouvindo o que ele dizia.
— Enzo apareceu de surpresa em nossa casa e, assim que cheguei do
shopping, desolado por não te ver lá, o encontrei sentado como se fosse o rei
do mundo no sofá da minha sala. Ali fomos ao escritório e firmamos um
acordo.
— Acordo? Mas Enzo não presta, ele não pode simplesmente...
— Calma, teimosinha. Deixe-me explicar.
Me calei, inspirei pesadamente e aguardei o que viria. Por dentro já
estava indignada ao cogitar qualquer assunto em comum com Enzo.
— Ele chegou lá com provas incontestáveis que fariam o Patriarcado
me executar a sangue frio. Ele descobriu que matei o irmão de Khaled, Karl.
O cara que abusava de mim na infância.
Levei a mão ao meu peito, angustiada com o rumo daquela conversa.
— Descobriu também que meu pai havia mentido para todo o
conselho por anos, com relação à saúde da minha mãe. Tudo isso foi
descoberto porque o tratamento dela simplesmente acabou depois que ele
morreu. Provavelmente Adélia pensou que não seria mais alvo de
investigações depois que eu assumisse e não continuou com o plano. Não sei.
O plano do meu pai já seria motivo para cortar o mal pela raiz, porém,
somente o fez desconfiar de que eu e você pudéssemos um dia fazer o
mesmo, então ele usou o maldito espião que havia na fazenda da minha mãe
para nos vigiar quando fôssemos lá. O maldito era Richard.
— Oh!
Abri a boca, perplexa com a notícia. Richard era um espião? Como
assim?
— Pois é. Richard nos viu transar na minha cachoeira secreta, ele nos
seguiu e nem faço ideia de como conseguiu entrar. Depois ele me viu
visitando minha mãe sozinho, sem você. Por último ele relatou como fiquei
após nossa despedida, confirmando tudo que Enzo precisava para me ter em
sua mão. Além de ter apoio de 80% dos acionistas e chefes de estado. Eles
desejam Enzo, não eu.
A fúria subiu por minha corrente sanguínea e me fez levantar,
completamente revoltada com o que eu tinha acabado de ouvir.
— Ele não consegue entender que esse Patriarcado é importante pra
você? Que maldição de primo esse homem é? Isso não é ser família! Que
babaca, idiota, quero fazê-lo engolir suas próprias bolas.
Quando virei o rosto, lá estava Malcolm contendo uma risada.
— Qual a graça?
— Você fica extremamente charmosa quando está brava. E Enzo não
possui mais bolas.
Oi?
— Não consigo digerir tudo isso, Malcolm! Ele conseguiu que
tirassem você do poder, é isso? Não pode ser.
Malcolm me puxou de novo para que eu deitasse sob sua proteção e
ficou acariciando minhas costas antes de prosseguir.
— Fique tranquila. Eu estava num momento de dor, de sofrimento.
Você estava cativa e foi ali que eu soube quem havia armado tudo. Enzo se
uniu a Khaled, que desejava se vingar de mim a todo custo. Khaled te mataria
do mesmo modo que matei o irmão dele, enquanto Enzo se encarregaria de
me sentenciar à morte. Mas, com tudo isso em mãos, ele foi muito, muito
inteligente. Me ofereceu a seguinte proposta: eu o daria o Patriarcado e o
domínio total sobre a organização e as filiadas, entregaria sua empresa a ele e
todo o patrimônio que você herdou do seu pai, e em troca ele te pouparia e
me daria seis meses para que eu fosse embora com você para nunca mais
voltarmos. Começaríamos uma nova vida, com uma nova identidade, num
local onde ninguém sequer soubesse quem somos. Tudo pela pequena chama
de misericórdia do próximo patriarca.
O silêncio pairou pelo ar por longos segundos, até que minha
pergunta saiu como um fio de voz.
— Você abriu mão de tudo... por mim?
Malcolm não respondeu, apenas virou seu corpo na minha direção e
roçou o nariz no meu, acarinhando-me.
— Eu também me livro no final da história. Por nós.
Sem ao menos perceber, comecei a chorar desesperadamente, como
um bebê. Não sabia se era de felicidade ou de tristeza. Queria ser feliz com
Malcolm, mas não queria que fosse por uma decisão encurralada como
aquela. Ele praticamente foi forçado a abrir mão de tudo, senão morreríamos.
— Shiu... não chore. — Ele enxugou minhas lágrimas com o polegar,
depois beijou meu rosto molhado. — Não quero que pense que apenas fiz
pela pressão. Já tinha te prometido que faria algo ainda maior, se fosse para
proteger você das malditas regras. Agora as regras não valem mais. Estamos
livres.
Parecia um grande sonho.
Lá no fundo, bem no fundo, eu me questionava se realmente aquilo
aconteceria.
Tentei controlar o choro, mas ainda estava emotiva.
— Então essa casa será nossa segunda chance? — indaguei,
esperançosa.
Ele me fitou com uma intensidade única, que só ele conseguia ter,
depois beijou minha testa, aumentando o aperto do seu abraço em mim.
— Será um recomeço.

Malcolm
Ficamos mais um pouco admirando a vista enquanto conversávamos
sobre nosso futuro.
Todos os documentos e plantas estavam em casa e eu a mostraria
assim que chegássemos.
Rivka era intensa em seus sentimentos. Dava para notar quando ela
ficava feliz ou triste com algo, e quando dei a notícia a ela, pude notar sua
confusão sentimental.
Sua pureza e altruísmo jamais permitiriam que se alegrasse somente
com o que viu de bom em tudo o que disse. Ela se preocupou comigo antes
de tudo, chorou por minha causa.
Não entendia exatamente o que meu coração estava nutrindo por ela,
mas podia desconfiar que poderia se tornar a tal paixão que muitos falam.
Sempre tive receio de sentir algo semelhante a isso, medo, talvez. O
tempo foi me mostrando que sentimentos bons não são ameaçadores, eles
vêm também para ensinar algo. Quando eles nos dominam é para que, além
de toda tormenta da vida, haja momentos de paz.
Dentro de mim algo se confirmava sempre que eu a via, a tocava, a
sentia: tinha tomado a decisão certa.

Entramos em casa já nos agarrando intensamente. Rivka não queria se


conter, estava ansiosa para que nos tornássemos um lá no parque, porém sua
timidez e receio de fazer algo em local aberto me fez preservá-la. Teríamos
nossa noite recheada de prazer dentro da nossa casa, no local onde nos
despimos não apenas das nossas roupas, mas de toda máscara social.
No quarto éramos só um casal que desejava se entregar por inteiro.
Enganchei as pernas da minha mulher na minha cintura, enquanto ela
se pendurava no meu pescoço durante o trajeto da porta principal até nosso
quarto. Fui correndo o mais rápido que pude.
Tranquei a porta e imediatamente voltei a beijá-la com a
possessividade que sei que ela gosta. Rivka é frágil apenas em alguns
momentos, quando se trata de sexo ela é uma leoa selvagem totalmente
destemida.
— Não quero dormir hoje. Quero que dure até o amanhecer.
Entre ofegares e beijos afoitos, ela sussurrou.
Andei com ela no colo até a cama e a lancei ali, antes de respondê-la.
— Se depender de mim — joguei o casaco para um lado do chão — a
gente só sai desse quarto na próxima comemoração mensal. — Retirei minha
camisa botão a botão.
Rivka me olhava deitada na cama, mordendo os lábios ansiosa. O
vestido verde ainda a adornava como uma princesa. Queria rasgá-lo no meio.
Assim que fiquei nu, estendi a mão para que ela se levantasse e ela
assim o fez, ficando de pé na minha frente, com um olhar brilhante.
— Não vamos perder tempo, não é mesmo?
Não esperei a resposta dela, apenas segurei firme cada lado do vestido
separado pelo decote nos seios dela e abri, rasgando tudo sem cerimônias.
— Oh! Você... — Ela arregalou os olhos e não conseguiu formular
uma frase inteira.
A ajudei a se livrar do que havia sobrado, e quando estávamos nós
dois do modo como viemos ao mundo, a envolvi pela cintura, trazendo seu
corpo esbelto e delicioso para perto.
Ela logo me abraçou e eu correspondi, permitindo-me sentir um
pouco mais da adrenalina e batimentos cardíacos frenéticos antes do sexo.
— Eu amo você.
Estava em um momento gostoso enquanto deslizava minhas mãos
pelas costas dela, tocando suas curvas e pontos sensíveis quando de repente a
ouvi falar aquilo.
Pensei que tinha sido minha imaginação ou uma voz do além. Jamais
em toda minha vida alguém havia dirigido as três curtas palavras a mim. Nem
mesmo minha mãe.
Então, depois de mais alguns segundos, ela repetiu:
— Amo você. Gostaria que soubesse.
Fiquei sem ar.
Me afastei lentamente, apenas para olhá-la nos olhos, e então
verifiquei em seu rosto qualquer rastro de mentira ou dúvida. Dominava a
linguagem corporal, não podia ser enganado com algo tão sério.
Mas tudo em Rivka era sincero. Não havia meio-termo.
— Você tem certeza do que está falando?
Perguntei, ainda um pouco assustado por ter ouvido.
Ela assentiu sorrindo, depois levou a mão que me abraçava da cintura
até meu rosto barbado.
— Não achei que teria coragem de um dia dizer, mas já faz tempo.
Você conseguiu me fazer amá-lo, mesmo depois de tudo. Estou amando sua
nova versão.
Não percebi quando derramei uma lágrima involuntária pelo rosto,
mas Rivka viu e a enxugou antes mesmo que eu tentasse me justificar.
— Homens como você também podem amar. Podem chorar. Podem
sorrir. — Fechei os olhos, recebendo seu carinho em minha face. — Quero
ser a felizarda que estará presente quando viver cada um desses momentos.
Ela não me cobrou uma resposta igual, ou uma declaração.
Essa mulher não existe.
A virei na direção da cama e deitei com ela, me colocando sobre seu
corpo delicioso e a beijando enquanto nossos corpos nus se chocavam e se
acariciavam com nossos movimentos intensos.
Ela deslizou sua mão pelas minhas costas enquanto retribuía o beijo
com ardor, e chegou até meu traseiro, apertando a carne.
— Gosto tanto de fazer isso, você tem mais carne aí do que eu —
brincou e eu ri.
Ela sempre fazia essas brincadeiras no meio da relação. Já tinha me
acostumado e ficava ainda mais excitado quando recebia suas provocações
engraçadas ou elogios espontâneos como aquele.
— Eu sou dotado de diversos exageros... — mordisquei a ponta da
sua orelha após sussurrar com minha voz repleta de desejo.
Em seguida rocei minha barba pelo pescoço dela, descendo devagar
até o vale entre seus seios, onde dei uma atenção especial com a boca.
— Céus... amo seus exageros — balbuciou ao receber minhas
carícias.
Estava querendo agradá-la ainda mais que em todas as vezes que
transamos juntos. Aquela era especial. E pelos próximos meses eu deveria
viver com o máximo de intensidade possível ao lado daquela mulher que
detém cada descompasso do meu coração.

Rivka
Finalmente contei que o amo. Ele enfim soube.
Não esperei um “eu também” como resposta, pois Malcolm
demonstrava em cada ato de amor o quanto me tinha afeto. Amor eu não
tinha certeza, mas uma paixão intensa era quase que absoluta.
Fizemos amor diversas vezes naquela madrugada e, na última vez,
estávamos na cozinha. Eu teimei em ensiná-lo a fazer panqueca.
Sim, no meio da madrugada.
Lá estava Malcolm totalmente nu, com apenas um avental, na beira do
fogão tentando fazer a massa virar algo comestível. Claro que eu fiquei ali
pertinho observando. Mais precisamente atrás, com a visão de sua linda e
redonda bunda.
— Deve estar gostoso, não sei se ficará bonito, mas gostoso eu sei que
está — ele comentou, concentrado no preparo.
Mal tinha prestado atenção ao que ele dizia, apenas o verificava de
cima a baixo vez ou outra, admirando aquele avental amarrado que dava um
ar totalmente sedutor no corpo nu do meu marido.
— Aham... gostoso sim.
Ele notou que eu estava desligada, aérea.
Virou o rosto com a feição desconfiada. Seus cabelos presos num
coque mal feito o deixavam ainda mais sexy, casando com todo o resto do
pacote.
— Você tem certeza de que está somente com fome de panqueca?
Porque esse seu rosto vermelho e sua pele toda arrepiada me dizem o
contrário.
Ali eu notei que estava dando sinais demais da admiração que tinha
por ele. Malcolm desligou o fogo e deixou a panqueca pronta em um prato
sobre a bancada da cozinha antes de vir andando lentamente até mim,
retirando o avental.
— Suba naquela bancada de granizo — ordenou com toda sua
autoridade.
Imediatamente subi, me sentando na bancada do lado contrário onde
havia o fogão, no caso, atrás de onde eu estive o tempo todo.
Ele me alcançou e tocou meus joelhos, abrindo-me.
— Sua safadeza não acaba, menina teimosa? — perguntou na sua voz
de trovão, me fazendo estremecer.
Ele sabia que eu amava, adorava demais quando ele fazia isso.
No segundo seguinte ele retornou à bancada onde as panquecas
estavam e as despedaçou sobre o prato antes de trazê-las para perto de mim.
Então distribuiu vários pedaços pelo meu corpo, depois abriu o
armário da cozinha e pegou mel.
— Malcolm... — o chamei como se estivesse suplicando por algo, no
instante em que despejou linhas de mel por meu corpo nu.
Ele me faria enlouquecer de tanto prazer.
— Já que estamos com fome, nada melhor que unir as duas coisas que
mais gosto de comer.
Proferiu enquanto continuava sua obra de arte. Eu encostei na parede
às minhas costas e aguardei até que concluísse, fazendo com que eu estivesse
cheia de pedaços de panqueca e mel do pescoço para baixo.
Então ele começou a me devorar, literalmente.
Iniciou pelo pescoço e foi descendo lentamente.

Nossos corpos ainda estavam melados depois da brincadeira com mel


e panquecas no momento em que ele me possuiu da forma mais visceral que
podia. A cada investida, eu ia ao céu e voltava enquanto ele rosnava como
um animal selvagem que busca alívio. Foi intenso, bruto, selvagem.
E eu estava amando ainda mais, cada vez que ele me fazia sua.
Depois fomos para o banho que finalmente nos entregaria para a cama
rumo a algumas horas de sono, e assim que fomos deitar, já devidamente
limpos, ele se aconchegou em mim como uma concha e me envolveu de lado.
Ficamos ali apenas ouvindo as respirações um do outro com o dia
praticamente amanhecendo lá fora, quando ele sussurrou:
— Eu não sabia que precisava de você na minha vida, mas hoje eu
não posso viver mais sem você do meu lado.
Ouvir aquilo foi como uma declaração e eu me senti uma menina
boba e inocente absorvendo cada palavra como se dependesse delas para
viver.
— Eu nunca vou embora. Prometo — respondi e um lufo de ar saiu da
sua garganta.
— Obrigado por ficar. Por não desistir.
Malcolm
Três meses se passaram, e no decorrer deles eu e Rivka viajávamos
muito para começar a ajustar a obra da nossa casa subterrânea. Ela foi se
empolgando a cada dia mais com a ideia e agora só contava os dias para nos
mudarmos para lá.
Avisei que faria a entrega oficial da minha posição para Enzo quando
completássemos um ano de casados, como a prova que ele precisa para me
manter livre e longe, e isso a manteve satisfeita, sem mais perguntas sobre o
trato.
Eu não queria que ela soubesse de tudo, ainda não era o momento.
Romero estava estranho desde a minha assinatura com Enzo. E
naquela quarta-feira fria de fevereiro tivemos um pequeno embate, trancados
em meu escritório.
— Não vou permitir que faça essa loucura! Há meses tenho tentado te
alertar sobre tudo e...
— Cala a boca, Romero! — esbravejei. — Se Rivka aparece aqui e
escuta suas besteiras ela irá questionar, e não podemos fugir do plano.
Eu finalizava diversos processos burocráticos em meu computador.
Precisava de paz e silêncio.
Ele puxou a cadeira e sentou à minha frente, apoiando os braços sobre
a mesa de mogno.
— Enzo precisa morrer. Ele não pode assumir seu lugar. — Abaixou
o tom de voz para que somente eu o ouvisse. — Se não pode matá-lo, eu o
mato.
Que parte esse homem ainda não tinha entendido do plano?
— Porra, Romero! Você vai lá, mata o homem, e os capangas dele
entendem como um sinal verde de que eu o retaliei porque sequestraram
Rivka meses atrás. Vão compreender que eu o mandei matá-lo e farão sabe o
quê? Virão atrás de Rivka e eu. — Coloquei ainda mais firmeza na minha voz
quando continuei, dizendo: — E olha, não virão sozinhos, virão com o
conselho e com toda a tropa de batalhas especiais para nos executar um a um.
Com razão. Com motivo. Fazendo com que mesmo que Enzo não assuma, o
próximo na linha garanta a sua vaga.
Ele se calou, e enfim relaxou.
— Ainda assim achei extrema demais sua decisão.
— Não importa. Agora saia. — Indiquei a porta.
Ele se levantou bufando e ainda um tanto atordoado. Por isso eu
odiava vínculos sentimentais dentro da organização. As pessoas não
pensavam com sua razão. Romero estava pensando em mim como um irmão
que tem desde que era criança, não como um homem racional disposto a tudo
para se livrar do peso que carrega nos ombros.
— Sairei — disse.
Antes que ele abrisse a porta, complementei:
— E não diga uma só palavra para minha esposa. Ela sabe tudo o que
precisa saber.
Ele assentiu e se foi.
Meus pensamentos voaram até o dia em que o conheci. Romero era
um menino que mais ficava na rua do que em casa, morava com os pais
doentes e perambulava por uma praça próximo à minha casa todos os fins de
semana.

Eu tinha sete anos quando o conheci. Linda havia me levado para


distrair a cabeça na praça, depois da primeira semana na academia do
Patriarcado. Eu estava ficando maluco pela forma como me tratavam lá
dentro e só queria ficar trancado no meu quarto.
Com muito esforço ela conseguiu me arrastar para lá, e quando
cheguei vi que não tinha uma só criança brincando no pequeno campinho
que havia ali.
— Que tal corrermos um pouco? Pode correr pelo campo e eu vou
marcar sua velocidade no relógio.
Linda sempre amável, sugeriu e eu aceitei. Não tinha saída, precisava
me distrair ou morreria de tédio e depressão.
Corri para o campinho e, assim que Linda deu o sinal, comecei a
trotar em círculos, aumentando cada vez mais a velocidade. Ela gritava a
quantidade de voltas enquanto eu corria, sentindo o vento forte bater pelo
meu rosto.
Não notei imediatamente que um garoto começou a correr do meu
lado, ele era rápido e conseguia me acompanhar muito bem.
O ignorei porque não era dado a amizades, mas ele se manteve firme,
correndo sem parar até o momento em que eu também parei.
— Ufa — ele soltou um lufo de ar ao meu lado, apoiando as mãos nos
joelhos. — Você corre bem.
Linda me ofereceu uma toalha para enxugar o rosto e um pouco de
água numa garrafinha. Quando o menino viu a água, seus olhos brilharam.
— Poxa, estou morrendo de sede, posso beber um gole? — andou até
Linda e estendeu a mão, pedindo.
— Não pode não — neguei sem pensar.
Ele deu um passo para trás, recuando com a feição triste.
— Desculpa, é que estou desde cedo sem beber nada.
Linda me repreendeu e disse que compraria uma garrafinha de água
bem perto dali para que ele saciasse sua sede. Quando ela se foi, me senti um
pouco mal por ter sido rude.
— Eu não tenho amigos — falei, encarando-o firmemente com meus
braços cruzados.
Ele sorriu e estendeu a mão para mim.
— Que legal. Eu também não tenho. Podemos ser amigos um do
outro, se quiser. Topa?

Relembrar aquele dia me fez olhar tudo sob uma ótica diferente.
Romero era mesmo meu amigo. Era leal.
Mas não podia inseri-lo naquele assunto. Era meu plano e precisava
que ele somente obedecesse. Logo ele estaria livre para viver uma vida
normal, fora de tudo isso.

Rivka estava com um catálogo de cores de tintas em mãos, deitada


sobre a cama, quando entrei no quarto.
Ela logo me viu e sorriu, fazendo meu peito se aquecer como de
costume.
— Estou escolhendo as cores da parede da nossa casa. Não quero
nada escuro como aqui, gosto de luz. O que acha?
Apontou para as cores que tinha selecionado. Me sentei ao seu lado
para observar melhor. Eu não entendia muito de nomes complexos de cores,
mas tudo que ela escolheu pairava muito entre o azul, o verde e o branco.
— Boa escolha.
Meu celular começou a tocar. Assim que encarei o visor, vi que era
minha mãe.
Ela não ligava à toa, precisava atender.
Levantei da cama e atendi a chamada.
— Diga, mãe.
— Filho, estou ligando porque não ando me sentindo muito bem. Não
sei, é como se uma fraqueza estranha me tomasse vez ou outra. Quero que
saiba, caso algo aconteça a mim.
Me preocupava com a mulher que me deu à luz, mas sabia que um dia
ela também pagaria por tudo que viveu com meu pai. Provavelmente teria
sido vítima da mesma medicação venenosa de que Albert faleceu.
— Mãe, venha para minha casa. Precisa de cuidados urgente.
— Vou fazer um esforço, filho.
Assim que desliguei a chamada, Rivka estava me encarando com sua
tradicional feição curiosa.
— O que está havendo com ela?
Ela se levantou de sua posição, sentando-se na cama, e a acompanhei
sentando-me novamente ao seu lado.
— Enzo realmente não joga para perder. Se prepare, pois minha mãe
terá o mesmo destino que seu pai, acredito que ela tenha sido envenenada,
como ele.
Rivka já sabia tudo que ocorreu com seu pai, pois um dia eu expliquei
e mostrei toda a tramoia de Enzo, descoberta por meu detetive particular.
Ela ainda não sabia que eu tinha esse homem trabalhando para mim.
Um dia saberia.
— Quanta crueldade. Estou farta desse povo sem coração! —
exclamou com revolta, já com lágrimas nos olhos. — Não podemos ir logo
embora? Temos ainda que ficar aqui por mais três meses? E sua mãe, se vier
a tempo podemos tratar sua saúde e...
A abracei.
— Se acalma. — Acariciei seus cabelos negros em ondas. — Logo
estaremos livres desse pesadelo.
Rivka
Sabe quando você está fazendo planos, mas sente que algo diferente
pode acontecer e destruir tudo?
Estava assim desde o momento que Malcolm me contou sobre ter
desistido de ser Patriarca.
Achei que talvez ele tenha cedido facilmente demais. Não sei. Tinha
ciência de que o Patriarcado era tudo que importava para ele. Lembro-me
como se fosse ontem, o dia em que ele me contou sobre os abusos na
infância, afirmando que passou por tudo somente para estar onde estava.
O que o fez largar tudo aquilo?
Temia que as acusações de Enzo fossem piores do que as que eu
sabia, e que as regras realmente fossem tão rigorosas a fim de matar a todos
nós sem dó nem piedade a qualquer momento.
Mas me permiti confiar em Malcolm. Ele estava sendo um bom
amigo, amante, marido e eu devia isso a ele, por ter me priorizado, no fim das
contas.
Eu estava mestre na defesa pessoal e no ataque, mas naqueles últimos
três meses antes da mudança, eu pedi novamente que me ensinasse tiro ao
alvo.
Malcolm ficou me enrolando, mas cedeu, e aquela tarde, depois de
termos discutido mais sobre as cores e alguns outros ajustes da casa nova, ele
me levou de carro até uma base de treinamento do Patriarcado.
— Já sabem que você não será mais o Patriarca? — perguntei assim
que chegamos lá.
Como de costume, fora de casa nos tratávamos como meros
conhecidos, para manter as aparências, então evitei abraçá-lo durante o trajeto
do carro até a entrada da base.
— Aqui não. Apenas os sócios sabem. Eles não podem falar a
ninguém, é quebra da regra de sigilo informativo.
— E deixa eu adivinhar. Se quebrarem a regra são punidos com a
morte.
— Exatamente.
Rolei os olhos ao constatar mais uma vez dentre as tantas nos últimos
nove meses, que o mundo precisava se livrar daquele poder podre que amava
uma carnificina.
Entramos na base de treinamento e muitos olhares pousaram sobre
mim.
Era nítido que pensaram barbaridades ao ver a mulher do Patriarca
numa base de treinamento.
Lá não havia mulheres.
Mas Malcolm estava pouco se lixando e andou comigo ignorando
tudo e todos, até encontrarmos um lugar mais reservado com um bom alvo
para ele me ensinar a atirar.
E ali ficamos por pelo menos duas horas.

Estávamos chegando em casa comentando sobre minha primeira aula


super bem-sucedida. Malcolm ficou orgulhoso de mim, disse até que me
presentearia. Eu sabia muito bem o tipo de presente a que ele sempre se
refere, mas ainda assim aceitei.
— Não te incomodou ver a cara das pessoas nos observando como se
tivéssemos sete cabeças? — indaguei.
Com os olhos fitos no trânsito, ele respondeu:
— Não. Até eu estou estranhando o fato de não me preocupar com
isso.
Virei o rosto para a janela e sorri secretamente, como uma
adolescente. Pequenas coisas me enchiam de alegria, como saber que ele se
importou mais com nosso elo do que com os homens do Patriarcado.
Estávamos felizes, mesmo preocupados com minha sogra e com
nosso futuro em outro país, mas toda a alegria daquele momento foi embora
assim que chegamos em casa.
O celular de Malcolm tocou. Ele sinalizou que atenderia no escritório
e me indicou para ir com ele até lá.
Deus do céu, o que poderia ser?

Malcolm
— Estou ligando para dar notícias frescas, querido primo.
Enzo, em sua acidez somada à ironia, me ligou naquele começo de
noite.
— Diga.
— Primeiro. Se deseja me matar, precisa ser mais inteligente. Poderia
matar perto de ter sua liberdade ou, quem sabe, depois que mandasse sua
esposa para algum lugar longe para que ela não sofresse uma possível
retaliação. Mas não... Me manda seu fiel escudeiro de merda para tentar me
matar escondido. Sozinho. — Estalou a língua — Tsc, tsc... Péssimo
Patriarca mesmo, como sempre soube.
— Não mandei Romero ir até você. O que ele está fazendo aí?
Ouvi um eco na sua voz, como se o lugar que estivesse fosse um
galpão abandonado, fechado.
— Ele estava, até pensar que podia fazer justiça com as próprias
mãos. Lembra o dia em que ele arrancou minhas bolas?
Maldição... Que não seja o que eu estou pensando.
— Enzo... — rosnei entredentes. — Onde Romero está?
Rivka me encarava encostada na porta fechada do meu escritório, com
as mãos na boca, assustada. Sabia que ela também gostava muito de Romero,
devia estar tão preocupada quanto eu.
— Fique atento ao vídeo. Seu querido amigo falará por si próprio. Ah,
e que isso seja um aviso para que nosso trato seja levado até o fim.
Desligou a chamada e imediatamente uma mensagem chegou no meu
aplicativo. Enzo mandou um vídeo.

No vídeo, Romero estava amarrado em uma pilastra, nu, com os


braços e pernas atados. O local era como eu suspeitava, um galpão
abandonado em algum lugar. Poderia talvez ser o local onde deixaram Rivka
para que eu a encontrasse.
— Priminho, olha só seu fiel escudeiro, como se encontra. —
Aproximou a câmera do rosto de Romero, que exalava ódio. — O jogo virou,
não é mesmo?
— Não virou. Não chorei como uma gazela. Não tenho medo de um
homem sem bolas — Romero resmungou e um tapa fora imediatamente
deferido em seu rosto.
Enzo o tinha batido.
— Cala a boca, justiceiro. Vamos deixar você escolher qual pedaço
do seu corpo detonarei primeiro. Posso começar me vingando e arrancando
não só suas bolas, mas o conjunto completo, afinal, só serve para comer
mulheres velhas de mafiosos casados.
Romero se agitou, tentando se soltar enquanto murmurava: “vou te
matar, eu vou te matar”.
— Não vai não.
Enzo então virou para a câmera frontal e o vídeo passou a ser
dominado pelo seu rosto ridículo.
— Malcolm, meu adorado primo fracote. Esse vídeo está sendo
gravado só para que saiba que tudo o que eu prometo, eu cumpro. Mas
ninguém que tenta me esfaquear pelas costas sai vivo para contar a história.
Seu amigo tentou me esfaquear na rua, com o rosto vendado. Um burro.
Achou que eu lidaria com aquilo como um assalto, mas olha.... Estamos aqui.
Ele levantou uma pistola e encostou a ponta dela no queixo, com a
feição pensativa.
— O que eu faço primeiro... Me vingo cortando suas partes ou
esmago seu cérebro com um tiro?
Milésimos de segundos se passaram, e então um estouro.
Páff.
Enzo virou novamente a tela para a câmera traseira e o que eu vi
simplesmente me fechou a garganta.
Ele atirou no meio da testa de Romero, acabando com sua vida de
uma hora para a outra.

— Não — murmurei para mim mesmo, quando acabei de ver o vídeo.


— Não... Não é real. Ele está mentindo, isso foi...
Rivka já chorava sem nem ter visto o que vi, mas escutou cada frase
e, mesmo estando ali na porta, sentou no chão e se entregou ao seu mar de
tristeza.
Ódio, fúria, revolta e uma sede insaciável de vingança me possuiu,
gerando uma ideia que poderia mudar completamente os planos futuros.
Malcolm
Finalmente chegou o dia.
O primeiro aniversário de casamento entre Rivka e eu. O dia em que
tudo vai acabar e uma nova história poderá ser escrita. Será uma nova era de
liberdade.
Nos últimos três meses, minha esposa conseguiu cativar ainda mais
meu coração com sua bondade, fé e amor. Ela dizia que me ama sempre que
possível e eu ainda não tinha conseguido sequer dizer o mesmo.
Aprendi a ser o homem que ela merece, porque eu precisava que ela
vivesse isso. Ela lidou com tantas mazelas da minha alma, agora tinha que
usufruir de algo bom, apesar de eu não merecê-la.
Minha mãe não morreu, apesar de ter sido envenenada como Albert.
Conseguimos tratá-la a tempo e a única sequela que se manteve nela foram os
ossos fracos, o que a fazia depender de cadeiras de rodas. Ela é a mulher mais
forte que já conheci, e em nossas conversas tudo ficava cada vez mais claro.
Papai começou a se apaixonar por ela quando eu era bem pequeno, ela
entendia tudo sobre o Patriarcado, mas não sabia sobre minha tortura na
academia. Aquilo me fez entender que os abusos sexuais foram algo que
somente eu tive. Não era algo premeditado. Karl o fez por si próprio.
Muitas coisas ficaram claras com relação à sua frieza ao falar de
amor. Minha mãe aprendeu a expressar amor em atitudes, e nunca a dizia em
palavras, assim como meu pai fazia. Aquilo foi ruim para mim, mas sua
bondade me marcou tanto a ponto de me fazê-la respeitar somente por isso,
sem ouvi-la dizer que me ama.
Eu não conseguia dizer “eu te amo” a nenhum ser vivo ou morto. Mas
eu sentia que podia amar. Já não achava o amor uma fraqueza, pois foi ele
quem me deu a coragem que eu precisava para abandonar tudo aquilo que me
dominou e subjugou a vida toda:
o Patriarcado.
O combinado entre Enzo e eu foi que nos encontraríamos na cabana
ártica, pertencente ao Patriarcado. Lá era onde as maiores negociações da
organização eram feitas pelo Patriarca.
Lá foi onde vi Rivka pela primeira vez.
Com nosso jato, nos despedimos de nosso país. Todos os meus
empregados pessoais foram demitidos e receberam uma gorda indenização
para se manterem por um tempo até encontrarem outros empregos; minha
mãe preferiu ficar na sua fazenda. Ela sabia, no fundo, no fundo, que não
aguentaria viver muitas aventuras mais.
Assim que partimos, algo em meu peito dizia que minha decisão não
tinha mais volta. Precisava me manter firme no que havia escolhido.
E agora ciente do sentimento que enchia meu peito de vida: o Amor.

Rivka
Estava feliz, empolgada, animada para nossa nova vida.
Malcolm explicou que as novas identidades fariam com que ninguém
nos encontrasse no futuro e que não precisássemos prestar contas de nada.
Viveríamos bem distantes dos povoados, mas nossa casa era super abastecida
e os alimentos poderiam durar por um ano inteiro.
Planejamos tudo certinho.
Lá temos uma caminhonete e um barco. O acesso à nossa casa é feito
de duas formas. Uma casinha congelada no meio do nada, onde tem uma
porta trancada a cadeados. Dentro há o elevador gerido por códigos de
segurança, que nos leva ao subsolo.
Ou o acesso de emergência que fica a quilômetros dali, já no povoado
mais próximo. Dentro de uma residência abandonada, que também
compramos. No sótão. Malcolm comentou como foi difícil levar energia
elétrica para lá, mas tudo foi feito legalmente, não tínhamos o que temer.
Nosso primeiro dia com a casa já pronta foi duas semanas antes de
fazermos um ano de casados.
Malcolm me carregou no colo porta adentro, dizendo que faria como
deveria ter feito desde o começo.
— Pode me soltar! — Gargalhei porque ele não só me carregava,
também me fazia cócegas.
— Calma, ainda não chegamos na cama.
Continuou enquanto atravessávamos a singela sala azul com uma
decoração mais clean e atual do que o mausoléu da Inglaterra.
A casa era pequena, não havia um corredor amplo, era apenas bem
dividida. Uma sala com cozinha americana, um banheiro social, um quarto
com suíte e um outro quarto. Bem simples.
Mas perfeito para nós.
Assim que chegamos ao nosso quarto, ele me depositou sobre a cama
de casal. Eu estava já em prantos de tanto rir e ele também ria da minha cara,
obviamente.
— Deus amado, não consigo parar! — Tentei controlar a risada, mas
tinha entrado em algum tipo de crise.
Ele deitou ao meu lado e ficou observando-me com um sorriso lindo
no rosto.
Aos poucos minhas risadas foram cessando, dando espaço à imensa
vontade de demonstrar a Malcolm o quanto eu estava feliz.
Tomei sua mão e depositei sobre meu peito. Meu coração batia
frenético.
Respirei fundo a fim de me acalmar, havia acabado de ter uma crise
de riso, queria que ele soubesse o quanto eu estava feliz sem dizer uma só
palavra.
Ali ficamos lado a lado, deitados de barriga para cima, encarando o
teto branco com um lustre maravilhoso cheios de pedrinhas de cristal que eu
escolhi.
A mão dele sobre meu peito queimava como fogo.
— Isso realmente está acontecendo — soltou, depois inspirou o ar
com força e liberou lentamente.
— Não pensei que poderia viver algo assim do seu lado.
Foi quando ele virou o rosto na minha direção e eu também o encarei
com intensidade no olhar. A mão dele, antes no meu peito, capturou a minha
e levou para o peito dele, onde mora o coração.
— Meu coração é o órgão mais leal do meu corpo. Ele não costuma se
enganar, muito menos ser persuadido por qualquer coisa. Hoje ele está
totalmente subjugado, mas nunca foi tão feliz. Sabe por quê?
Abanei a cabeça em negativa, já ansiosa pelo que diria.
— Porque ele obedece somente aos seus comandos. Os comandos da
sua dona.
Fechei os olhos e absorvi a intensidade daquelas palavras.
Era um “eu te amo”, de outro jeito. Malcolm estava aprendendo a se
expressar, a demonstrar seu amor, seu afeto com palavras.
E, céus, ele estava fazendo aquilo melhor do que qualquer humano
que já está acostumado.
O que Malcolm fazia que não era melhor do que qualquer pessoa?
O homem era a perfeição em tudo que se empenhava em fazer.
— Meu amor por você não para de crescer — sussurrei e cheguei para
mais perto dele, tocando seu rosto. — Obrigada por sempre surpreender o
meu coração.
— Não mereço seu amor.
De vez em quando ele vinha com essas ideias.
— Merece sim. Não só o amor, mas tudo que vem com ele. É um
pacote completo.
O beijei de forma casta e ele logo retribuiu. Ali ficamos, nos amando,
saboreando a paz que jamais havíamos tido antes.
Ainda não era o dia oficial da nossa mudança, porém, naquela noite
que passamos lá marcamos cada cômodo, nos amando sem reservas.

E lá estávamos, Malcolm e eu, com toda a bagagem que trouxemos


em nosso jato. O jato foi vendido assim que chegamos, Ele disse que pode ser
uma grande pista para que o Patriarcado nos encontre no futuro e queira
qualquer coisa. As mochilas ficaram espalhadas pela sala porque estávamos
exaustos, mas era o começo do melhor dia das nossas vidas. O dia em que
completamos um ano de casados.
Naquele dia, também, ele encontraria Enzo na Groenlândia. Na
cabana do Patriarcado. Segundo ele, esse encontro selaria a entrega de todo o
poder que Malcolm tinha a ele, lá os acordos são firmados com sangue e os
contratos são arquivados. É o local onde as maiores negociações da história
foram feitos.
Inclusive, o que me vinculou a Malcolm, quando tinha oito anos de
idade.
Eu estava deitada no sofá, cansada com meus olhos fechados,
enquanto meu marido andava de um lado para o outro.
Estava nervoso, ansioso.
Eu já o conhecia o suficiente para detectar aquilo.
— Desembucha, meu amor.
Os cabelos loiros amarrados num coque eram alisados pela mão
nervosa de Malcolm de tempos em tempos. Ele estava muito inquieto.
— Não é nada... Eu só acho que talvez seja uma boa ideia que você vá
comigo.
Parou no meio da sala com as mãos na cintura, aguardando minha
resposta.
— Claro que eu irei. Não te deixo sozinho nem por um decreto.
Aquilo me fez levantar já com todas as forças renovadas. Meu esposo
estava precisando do meu apoio, ele teria.
— Mas você não poderá entrar na cabana.
Aquilo não me cheirava bem.
Dei de ombros, derrotada. Ele não tinha perguntado, tinha afirmado.
Então eu sabia que não era negociável.
— Podemos agora focar no nosso dia? — Andei lentamente até ele e
me engalfinhei em seu abraço quente.
Ele me deu um cheiro no pescoço e beijou-me ao pé da orelha.
— Vamos aproveitar da forma que mais amamos.

— Você já comeu sete! — exclamei com a quantidade de panquecas


que ele estava devorando, e ainda não eram nem nove horas da manhã.
— E você, três. Se é para comermos bem, que seja.
A televisão estava ligada. Aquilo era novidade para nós, pois
Malcolm nunca teve tevê em sua casa, porque não a via por falta de tempo.
Tudo era resolvido e pesquisado através de jornais e do computador e celular.
O programa matinal estava completamente maçante.
— Acho que podemos desligar essa coisa.
Ele assentiu e eu desliguei. Levantei levando nossos pratos vazios
sujos de panquecas doces e, para provocar meu marido, quando saí da
cozinha e passei pela sala, retirei a camiseta enorme que vestia, ficando
seminua, apenas com um shortinho.
A casa era aquecida, a temperatura estava exageradamente agradável.
Desfilei rumo ao quarto, queria tomar um banho, estava toda suja de
doce. Aconteceu como esperado, e logo Malcolm me agarrou por trás e
grudou seu corpo no meu, encaixando seu rosto na curva do meu pescoço.
— Mulher... não me atiça essa hora da manhã.
Fechei os olhos sentindo a carícia, mas me desvencilhei dele,
abanando a cabeça em negativa.
— Vou tomar um banho daqueles, chefão. Quer me acompanhar?
Me virei de frente para ele e abaixei o short, levando minha roupa
íntima junto.
Ele esfregou o rosto, me olhando de cima a baixo.
Malcolm às vezes teimava em ser mais calmo para me agradar, só que
tinha vezes que eu só queria meu ogro selvagem.
— Porra, Rivka. Hoje não teremos delicadeza, menina teimosa.
E simplesmente se despiu numa velocidade absurda, tomando-me
para si ali mesmo, na parede do quarto, antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa.
Seu corpo quente colado ao meu sempre causava sensações únicas em
mim. Sentir sua pele, seu cheiro, seus batimentos cardíacos fortes e rítmicos
enquanto me fazia sua... Me completava.
Ele era a peça que faltava em mim, e eu nele.

Pegamos o voo alugado para a Groenlândia às duas da tarde.


Chegamos em Nuuk e ainda era dia. Malcolm contou que naquela época o sol
se põe muito tarde, fazendo o dia durar mais que em qualquer outro lugar.
O avião ficou lá, aguardando nossa volta. Malcolm negociou com o
piloto discretamente, longe de mim, mas eu sabia que era tudo para dar um ar
de maior autoridade a ele. Ele gostava de se mostrar no controle e não tiraria
isso dele jamais.
Depois alugamos um carro e juntos fomos até a área montanhosa
congelada.
— Depois de estacionar, vamos andar bastante, Riv.
Comentou ainda dirigindo. Ele parecia um tanto tenso, mas eu estava
confiante. Tudo daria certo.
— Tudo bem. Vou com você até o fim do mundo.
Ele não sorriu, apenas assentiu em sua seriedade comum.
Deixamos o carro num local de fácil acesso para as montanhas e
começamos a percorrer o caminho lado a lado, de mãos dadas. O frio lá era
ainda mais intenso que no Canadá, o que me fez recordar o dia em que estive
ali, ainda criança.
Malcolm não disse uma só palavra durante o percurso, e algo atingiu
em cheio meu coração, como um alerta.
Ele apenas faria o que tivesse que fazer e voltaria para mim.
Ele voltaria para mim.
Não quis ser a mulher chata que faz perguntas, pois era difícil até para
manter a respiração em controle total, mas depois de uma longa jornada,
enfim avistamos a cabana isolada bem no meio do nada.
Malcolm olhou a hora no relógio, estava adiantado alguns minutos.
— Acho que aqui você pode ficar.
Soltou minha mão e se virou, ficando frente a frente comigo.
Ele não tocou em mim, nem sorriu, nem disse nada. O que estava
acontecendo?
— Amor... — tentei iniciar uma conversa para entender o que estava
pairando no ar entre nós.
— Eu menti.
Foi o que ele disse.
Malcolm proferiu aquilo e olhou para seus próprios pés.
Não acreditei e perguntei:
— O que disse?
Minha voz, já carregada de temor e num desespero iminente, me fez
respirar mais rápido.
— Menti. Eu menti o tempo todo.
Então me olhou, e nos seus olhos eu via... arrependimento?
— Sobre o que, Malcolm? Eu não estou entendendo. — Ameacei
tocar seu rosto, mas ele me impediu.
Aquilo cravou espadas afiadas em meu peito.
— Enzo não me propôs o que eu disse que tinha proposto. — Ele
tomou uma dose boa de ar e prosseguiu. — Nem no sonho mais lindo do
mundo ele me permitiria ficar vivo depois de tudo que passamos.
Olhei ao redor, ansiando por algum vestígio de que aquele momento
fosse uma pegadinha, um sonho talvez.
Mas quando meus olhos encontraram os de Malcolm novamente, eu
vi.
Ele estava falando a verdade.
Então uma lágrima solitária abandonou-me, antes dele continuar
explicando seu plano ridículo.
— Você morreria. Ele me mostrou as câmeras de segurança do local
onde você estava e... vê-la dopada, frágil, presa como uma carne de açougue
fez com que eu quisesse matá-lo ali mesmo. Quem não deixou foi Romero.
Senão nós dois perderíamos. Sua vida estaria entregue a eles. Enzo e Khaled.
Então eu percebi que sua vida vale bem mais que a minha. Bem mais. Enzo
usou a peça correta para me convencer de que ele finalmente teria o que
desejava. Assumiria o Patriarcado, a empresa do seu pai, todos os meus bens,
e em troca você seria livre.
Abri a boca em espanto. Não podia ser real.
As lágrimas já estavam esfriando ainda mais meu rosto, por conta da
temperatura ambiente, e meu coração parecia como se tivesse sido largado na
estrada e esmagado por uma carreta.
— Mas... você podia...
— Não podia. Não podia, Rivka. — Ali finalmente ele segurou meu
rosto, para afirmar tudo o que disse olhando-me nos olhos. — Qualquer saída
que pensei naquele momento levaria à sua morte. Eu posso morrer, você não.
— Não!!! — O empurrei, permitindo que o soluço escapasse da
minha garganta, liberando todas as lágrimas que tinham de ser libertas.
Eu estava feliz. Estávamos planejando tudo e seríamos felizes!
— Riv... esses últimos meses foram apenas o prazo que implorei para
ele. Pedi que ao menos deixasse tudo ajustado para que você realmente se
salvasse no fim das contas. Eu não podia permitir que uma pessoa como você
pagasse pelo que eu sou.
Eu não queria mais ouvir. Não podia mais escutar.
Tapei os ouvidos e me sentei no gelo, de olhos fechados, torcendo
para que o sonho acabasse.
Na verdade, o pesadelo.
Foi quando Malcolm tocou meu ombro e estendeu a mão para que eu
levantasse, e eu abri os olhos me concentrando nos azuis frios e brilhantes
dos seus.
Ele também chorava.
Chorava como jamais o tinha visto chorar. Na realidade nunca o vi
chorar, apenas escorrer uma lágrima ou duas. Porém, daquele jeito... não.
Aceitei sua mão e levantei, abraçando com força seu corpo, clamando
a Adonai que ele nos unisse como um só fisicamente, assim como éramos
perante Deus.
Mas nada aconteceu. Ele continuou sendo ele e eu sendo eu.
Seu soluço acompanhado do seu choro me quebrou completamente
enquanto nos abraçávamos forte. Em meu âmago havia só dor. Uma dor
dilacerante e visceral, que se assemelhava a cortes profundos feitos por
alguém com muita raiva.
Meu coração estava rasgado, dilacerado.
Chegou o momento, então Malcolm se afastou e enxugou as lágrimas.
— Me perdoe, Riv.
Meu rosto estava banhado em lágrimas, mas quando o ouvi pedindo
perdão não pude evitar beijá-lo com todo meu amor.
Era um ponto final que eu nunca queria colocar.
Por que a vida tem que ser tão cruel conosco?
Por que não podemos um dia simplesmente decidir ser felizes e
conseguir?
Nos beijamos com ardor e eu senti no seu beijo a vontade de me
manter marcada como sua. Malcolm estava apenas sendo Malcolm indo para
sua morte.
Estava cumprindo seu dever.
Assim que ele se distanciou, abriu o bolso do casaco e me entregou
um papel.
— Guarde. Abra quando estiver próxima ao carro em que viemos até
aqui.
— Não vou conseguir viver sem você, não vou. — Já estava me
derramando em prantos novamente, abraçando a mim mesma.
Ele foi firme.
— Você vai. — Levantou meu rosto e me fez encará-lo. — Lembre-
se de que é uma Samuels. Não se abata. Você vai viver da melhor forma
possível. Por mim.
Peguei o papel de sua mão e o guardei.
Malcolm se virou e começou a andar lentamente rumo à cabana.
Eu sou teimosa, então continuei andando ao seu lado.
Queria que ele desistisse.
Não sei, ainda torcia para que não fosse real.
Mas em um dado momento ele parou e apenas disse:
— Fique. Agora é comigo.
A cada passo que ele se distanciava de mim, um rasgo a mais surgia
em meu coração.
Um passo. Um rasgo.
Fiquei ali olhando, sem coragem de voltar. Apenas desejando que ele
se virasse para dar o último adeus.
A cabana ficava cada vez mais perto para ele, mas não o via olhar
para trás. Aquilo estava me matando mais ainda.
Então, ele parou e virou.
Mais lágrimas despencaram do meu rosto quando ele sibilou de forma
clara com o rosto em prantos:
— Eu amo você.
E meu coração, congelado pelo frio do lugar e dolorido por ter sido
esmagado, se aqueceu.
Ele finalmente tinha dito as três palavras que tanto tentava dizer.
Rivka se manteve ali, aguardando ansiosamente que algo mudasse o
fim daquela história. Não aceitaria tão facilmente ter seu esposo morto apenas
por amá-la.
Enquanto isso, Malcolm e Enzo estavam a sós em seu último embate.
— Bom saber que você é um homem de palavra.
Enzo proferiu com todo ódio e rancor que sentia por Malcolm.
Desde pequeno desejava ser seu primo, assumir seu lugar. Sabia que
ele tinha pais que se importavam com ele, assim como pessoas ao redor que
pairavam sobre ele para dar tudo o que ele precisava, enquanto Enzo era um
rejeitado em tudo que se empenhava em fazer.
Malcolm estava em frangalhos, sua alma já não existia no momento
em que adentrou a cabana de madeira revestida. Sabia que ali selaria seu
destino. Havia aceitado entregar sua própria vida para que Rivka vivesse a
que sempre sonhou.
Jamais imaginara ter a coragem e ousadia para tal feito, uma vez que
nunca acreditou sobre a existência do amor. Mas quando a paixão por Rivka
trouxe essa verdade dentro de si, não se acovardou no instante que precisou
se sacrificar por ela.
— O dever vem antes de qualquer coisa. Vamos acabar logo com
isso.
Enzo estava cheio de sonhos e planos para executar assim que
Malcolm finalmente abrisse mão do Patriarcado. Ali, na cabana, as
negociações eram feitas e seladas com sangue, e todos os documentos eram
anexados e inseridos num grande arquivo localizado no subsolo.
O que Enzo não sabia era que Malcolm havia visitado a cabana dias
antes e instalado diversos explosivos. Seu primo não seria tão beneficiado
como ele prometeu, e ele tinha ciência de que a qualquer momento poderia
caçar Rivka pelo mundo.
Malcolm pensava apenas em uma coisa: Justiça.

Do lado de fora Rivka chorava de modo intenso e incessante. Sua dor


de alma era tão grande que não conseguia ficar de pé, muito menos tinha
forças para voltar ao trajeto que fez antes com seu esposo.
Manteve-se esperançosa de que tudo talvez mudasse, mas de repente
um estrondo se ouviu e a cabana onde Malcolm e Enzo estavam fora
detonada.
A única coisa que sobrou foi a imagem das chamas e da fumaça em
sua mente aflita.

“Riv,

Se está lendo isso, é porque eu tive que partir.


Não é fácil saber quando será sua morte, mas pior do que morrer, é
saber que deixará a pessoa que mais ama.
Com você aprendi o que é o amor, e desde aquele beijo inocente no
dia do nosso “sim”, fui invadido por sua bondade e ingenuidade. Seu modo
de ser, que sempre me tirava do sério, se tornou meu maior vício.
Saber que minha esposa é a pessoa mais especial na minha vida só
me confirma o que eu já sei: tomei a decisão certa.
Por você, tudo valeu a pena.
Quero pedir que não se entregue ao luto a ponto de ficar desnorteada
como foi com seu pai. Por mim, seja forte. Preciso que siga com tudo que
havíamos planejado. Ainda pode ter tudo o que desejou, minha teimosa, só
que agora sem mim.
Volte para nossa casa secreta. Lá, dentro do cofre, tem algumas
instruções minhas sobre diversas coisas que poderão te ajudar na
sobrevivência daqui para frente.
Um detetive particular e secreto irá te procurar, o nome dele é Josh.
O homem é eficiente, prestativo e leal, ele sabe de tudo o que passamos e
deixei a cargo dele a sua segurança.
Tudo que precisar, pode pedir para ele que ele fará.
Quanto a tudo o que vivemos, eu só posso dizer: obrigado.
Obrigado por me fazer feliz.
Obrigado por nunca desistir de mim.
Obrigado por cada panqueca caprichada que fez para me agradar.
Obrigado por cada irritação excitante que me fez passar.
Obrigado por sempre dar suas opiniões e me manter calmo.
Obrigado por ser minha paz em meio a tantas guerras.
Obrigado por me salvar.
Obrigado por me fazer simplesmente sentir, mesmo que por uma
única vez.

Do eternamente seu, Malcolm Samuels.”


FIM.
Autora: A. G. Moore
Revisora: Renata Gomes
Capa: Will Nascimento
Diagramação Alice Lima
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido
na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Prólogo
Era tudo ou nada.
Não havia saída, ambos estavam encurralados sem saber como agir.
Tudo tinha saído do controle e do plano. Fingir ser quem não é para criar
alianças dentre organizações rebeldes estava custando caro para eles.
Os homens mascarados daquela sala, estavam com os braços cruzados
em fileira, apenas observando Josh com os braços presos à corrente suspensa
no teto, enquanto faziam questionários. Rivka -, agora Rebeca -, se mantinha
cativa por um dos homens daquele grupo, com os braços para trás e boca
tapada.
- Não vou perguntar muitas vezes mais. De onde vêm e o que estavam
querendo ao invadir minha base?
O chefe daquele grupo se assemelhava a um militar rebelde. Andava
em passos calculados, como numa marcha. Sua roupa completamente preta
unindo-se à máscara facial denotava a escuridão que havia em seu interior.
- Eu já expliquei, senhor. Sou apenas um pesquisador local. Estava de
visita ao país e por acidente acabei me aventurando por suas terras.
Josh afirmara com o domínio da mentira.
Era perito em disfarces.
Após a afirmação, o olhar dele percorreu a sala obscura até dar de
encontro com os olhos de Rivka, que aguardava apenas um sinal para o
ataque. Josh utilizou a linguagem combinada previamente, olhando para o
teto e pressionando os olhos lentamente.
Era um sinal para que Riv desse o último argumento para que eles
pudessem ser livres.
- Eu coordeno essa equipe há anos. Estou aqui nessa base há tempo
demais para saber que ninguém chega aqui por acaso. – O chefe, estando no
meio da sala, entre Rivka e Joshua, apontou para os dois simultaneamente. –
Podem executá-los.
Imediatamente Riv abriu a boca e mordeu a mão do homem que a
calava, o fazendo liberar seus lábios.
- Por favor, temos um filho! – E começou a sua parte mais dramática
de toda a encenação, debulhando-se em lágrimas. – Como ele viverá sem os
pais? Não sabe nem tomar banho sozinho, é apenas uma criança. Perdoe-nos,
não temos a intenção de nada, nos enganamos, senhor!
Esperançosa, ela se manteve chorando até que o chefe mascarado se
aproximou dela e a analisou de cima a baixo. Rivka estava com seu melhor
disfarce. Cabelos ruivos, e lentes de contato verdes, além de uma roupa no
melhor estilo beata, cobrindo-a do pescoço aos pés, acompanhada de um
óculos fundo de garrafa.
Um dos soldados daquela organização, falou:
- Mestre, os acusados não parecem mesmo culpados. Acredito que
possam ser liberados.
O clima de dúvida sobre executar ou não Rivka e Joshua pairou pelo
ar por curtos segundos, até que o chefe, sem dizer nada, andou até Joshua e
inseriu a chave na sua algema, liberando-o.
Joshua não era, nem jamais foi homem de perder oportunidades, e
imediatamente usou as correntes que havia acabado de se soltar, para
envolver o pescoço do chefe da organização.
Antes mesmo que seus soldados se alvoroçassem, Rivka abaixou,
virou o corpo, aproveitando a distração do soldado que a prendia, e o golpeou
na virilha, fazendo-o gemer e se afastar dela. De pronto ela retirou o
armamento do coldre dele e se manteve em posição de ataque para que
nenhum soldado se aproximasse dela.
Enquanto isso, Josh mantinha o chefe preso pelo pescoço, com sua
arma também em mãos.
- Se vocês se aproximarem de nós, matamos seu chefe – afirmou ele
em seu tom autoritário.
Josh e Riv se entreolharam e um sorriso cúmplice e sorrateiro brotou
em seus lábios.
Mais uma batalha vencida.
(...)

- Mamãe!
O menino de fios dourados mesclados aos negros, correu ao enxergar
sua mãe na entrada de sua residência.
Rivka abaixou, sorridente, e abriu seus braços para recebê-lo.
- Amor! – Ela o envolveu com ternura, e aspirou o aroma que exalava
dos cabelos da criança. – Estava com saudades, filho.
Quando o menino se afastou, disse sorridente:
- Aprendi muitas coisas novas com a Zeta hoje. Vou te mostrar.
Antes que ele virasse e fosse em busca de seus trabalhinhos
produzidos na ausência de sua mãe, Joshua apareceu finalmente na entrada da
sala.
- Tio Josh!
Com a mesma empolgação que foi abraçar sua mãe, correu até o
homem que amava a companhia.
Joshua elevou a criança ao ar e em seguida o posicionou sobre seus
ombros, com as pernas alternadas, sentado sobre si.
- Acho que alguém estava com saudades – comentou com o menino.
- Estava sim! – Soltou, animado com a brincadeira.
Joshua perambulou pela sala saltitante com o garoto, o fazendo
gargalhar de tanta alegria.
Rivka sempre admirava a cena da interação de Zion com Josh e sua
mente voava ao homem que deveria estar ali, no lugar dele. Dando atenção e
carinho ao seu próprio filho. Mas o momento nostálgico durou apenas curtos
segundos, pois o tempo não poderia parar. Ela tinha uma missão importante
para cumprir e uma criança para ensinar a vida.
A vida como ela é.
Capítulo 1
“Há pessoas que nos falam
E nem as escutamos;
Há pessoas que nos ferem
E nem cicatrizes deixam;
Mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas
E nos marcam para sempre.”
Cecília Meirelles

Rivka
ANTES

Riv, meu amor;


Essa é a primeira carta de algumas que deixei para te ajudar na sua
nova vida.
Por favor, não seja teimosa e descumpra os meus pedidos. Sei que muitos
parecerão loucos, mas preciso que os faça.
Antes de tudo, respire e repita: Foi tudo por amor.
Sim, o que fiz foi porque te amo além da minha própria vida, então
não se odeie ou me odeie. Era para ser assim. Não tínhamos outra
alternativa.
Segundo: Organize meus pertences na nossa casa e os deixe onde
ninguém possa ver. Entendo que não vai querer se desvencilhar deles por um
tempo, mas quando estiver pronta, o faça.
Joshua deve aparecer nos próximos dias. Trate-o bem. O homem é
leal e inteligente. Vai te auxiliar nos trâmites legais para que possa usufruir
de tudo que deixei para você.
Aprenda com ele tudo sobre como ser uma boa espiã, aprenda mais
sobre lutas e disfarces. Vai precisar.
O patriarcado deve investigar em breve minha morte, assim como a
de Enzo, pois meu plano foi que ambos morrêssemos naquela cabana. Com
isso, também vão tentar te procurar, mas isso não será uma ameaça à sua
vida se souber se esconder bem.
Use sua nova identidade.
Tenha novos sonhos, você pode.
E, sei que pode parecer egoísta demais pedir isso... Mas eu peço que
seu coração seja sempre meu.
Assim como o meu é seu.
Com amor, Malcolm Samuels.
•••
- Meu coração é seu, Riv.
Sua voz sempre firme e sedutora se impregnou sob minhas células
auditivas enquanto ele me fazia sua mais uma vez, e outra vez, e sempre.
Meus olhos estavam fechados, enquanto o corpo de Malcolm me
pressionava na parede do quarto, segurando meus braços para o alto. Fazer
amor com ele era sempre extasiante. Apaixonante.
Eu o amava, sempre o amaria.
E de repente, a imagem dele desapareceu e me vi sozinha, nua,
ofegante e perdida.
Não!
Acordei gritando em pensamento, num susto. O sonho havia sido real,
real demais para que acabasse daquela forma. E constatar que a minha
realidade tinha se tornado outra em tão poucas horas, fez meu peito doer
novamente.
Era como se flocos de gelo perfurassem meu peito, atravessando-o a
cada instante que eu invocava Malcolm em pensamento. Um sinal de que eu
havia sido marcada para sempre. Doer não era nada comparado ao amor que
ele me fez sentir.
Por que ninguém nos prepara para sentir o luto? Por que sofrer por
alguém que se foi dói tanto? Já não bastava perder meu pai, Romero, que
sempre foi um bom amigo... Agora eu tinha que lidar com a morte do homem
que me fez amar do jeito que sempre sonhei.
Uma lágrima teimosa percorreu meu rosto enquanto eu ainda
assimilava onde estava. Não tinha chegado bem ontem, depois que fui
embora da Groenlândia. Apenas voltei para a casa subterrânea porque a
esperança de que tudo fosse uma ideia brilhante de Malcolm me manteve
confiante.
Tudo aquilo que eu vivi durante os doze meses ao lado do homem que
amei, mudou completamente minha perspectiva de vida.
Estava dura, com uma casca de titânio revestindo minha fraqueza.
Não era mais a mesma. Não conseguia sequer me sentir a mesma pessoa.
Nunca mais seria.
Depois da noite quase toda em claro que passei na casa secreta que
planejamos com tanto afinco, decidi que voltaria lá na Groenlândia e
procuraria meu marido. Ele poderia ter fugido, talvez. Não sei. Eu o
procuraria nem que custasse minha própria vida.
Levantei me sentindo tonta e fraca e perambulei pelo meu quarto
como uma zumbi desviando das fotos e das roupas de Malcolm no chão.
Sim, passei quase a noite completa agarrando-me a cada pequena
lembrança que eu podia ter dele.
Tudo ali intensificava ainda mais minha saudade, eu estava morrendo
por dentro.
Assim que abri a porta, senti cheiro de café.
Mas... Eu não tinha preparado café algum e ninguém tem acesso a
minha casa.
Por um momento o fio de esperança se acendeu, me indicando que
meu marido derrotou Enzo e conseguiu voltar para mim, por um milagre.
Mas por outro lado eu tinha que ser inteligente. Estava sozinha e
qualquer estranho que cruzasse meu caminho poderia ser algum espião do
Patriarcado, talvez. Malcolm me pediu para seguir tudo o que indicou nas
cartas que havia no cofre, porém eu só tinha lido uma até então e não parei de
chorar.
Nessa carta ele me alertava sobre possíveis ataques que eu pudesse
sofrer, pois ele faria de tudo para que Enzo morresse também na cabana.
Abri o compartimento secreto dentro do quarto sem fazer um pio,
peguei minha 9mm e inseri o silenciador. Verifiquei se estava munida e
quando percebi que sim, enfim andei a passos sorrateiros até a sala.
Ouvia movimento vindo da cozinha americana, então tinha que ser
bem rápida e sagaz.
Me escondi detrás da pilastra antes de entrar na sala, olhando a
cozinha de longe, observando o corpo que se movia de um lado para o outro.
Era um homem.
Regulei minha respiração ofegante e um tanto abalada por ter chorado
tanto nas últimas horas, afim de não dar nenhum indício de que eu estava ali,
para o homem.
Quando ele virou de costas, eu andei rapidamente e empunhei a arma
em sua direção estando ainda na sala.
- Quem é você?
No instante em que ele virou o rosto – ainda estando na cozinha - e
eu percebi que não era meu marido, atirei sem dó nem piedade em seu
ombro, o que o fez gemer de dor e levantar a outra mão pedindo paz.
- Aghhhhh. Estou do seu lado! — gemeu, abaixado detrás da bancada
da cozinha.
Andei lentamente sem nem me importar por estar de pijama florido e
quando entrei na cozinha e o vi, apontei a arma novamente para sua face.
- Retire toda a roupa, se livre de qualquer armamento ou item que
possa me ferir. Você terá dez minutos para me detalhar quem é, de onde vem
e como conseguiu acesso à minha casa.
O rosto dele estava contorcido enquanto apertava a área do ombro
perfurada pela bala e respirava fundo.
- Tá. Depois preciso cuidar disso. — Apontou com o queixo para o
próprio ombro.
Então meu sangue esfriou um pouco ao perceber que o homem não
tinha intenção de me atacar. Suas mãos não carregavam nada arriscado e seu
rosto era... Peculiar.
Eu o tinha visto alguma vez, no passado.
Mas onde?

(...)

- Então você é o Joshua?


O homem de pele parda e cabelos cor de chocolate estava amarrado
sobre uma cadeira com mãos e pés atados. O local onde atirei ainda sangrava,
mas eu estava simplesmente pouco me importando com aquilo. Não
conseguia sentir absolutamente nada, estava anestesiada pela minha perda.
- Pode me chamar de Josh. E sim, sou o homem que Malcolm
determinou para que fizesse sua segurança por um tempo.
Andei de um lado a outro pela pequena sala, com os braços para trás
enquanto segurava minha arma. Malcolm disse que o homem apareceria nos
próximos dias, não que invadiria minha casa.
- Preciso de provas.
Parei a alguns centímetros na frente do homem e frisei:
- Não serei boazinha, porque não quero ter que conviver com
qualquer pessoa que seja no momento em que estou agora. – Segurei as
lágrimas que já ameaçavam sair. – Perdi tudo que tinha quando Malcolm
morreu. Então espero que compreenda.
Ele assentiu. O olhar dele era marcante, determinado, porém exalava
uma bondade velada. Não parecia ser uma pessoa ruim. Os olhos nunca
mentem.
- Preciso que me ajude somente com a ferida. A bala perfurou há
tempo demais.
Foi quando notei que o homem perdia muito sangue e ainda assim, se
mantinha firme como se tivesse comido um boi inteiro. Como pode?
- Ok. Vou pegar o kit de primeiros socorros.
Não demorou muito para que Joshua tratasse a si mesmo, com uma
habilidade admirável. Ele entendia bem de cuidados médicos e eu fiquei ali
perto apenas observando o que fazia com minha arma apontada para ele. Não
podia dar mole. Ele ainda não tinha provado ser quem disse que era.
Depois de devidamente enfaixado e cuidado, Josh pediu água e quase
implorou que eu o deixasse deitar, estava começando a ficar um pouco mole
devido a perda de sangue.
Permiti que ele deitasse no sofá e fui pegar o copo de água. Quando
retornei, ele já estava dormindo.
- Eu, hein.
Aquela manhã tinha sido agitada, mas o cheiro de café fez meu
estômago roncar revoltado. Decidi ignorar minha mente maluca que mandava
eu ficar vigiando o homem o tempo todo com receio de sua atitude e fui
beber um pouco do líquido preto que me mantinha mais atenta e alimentada.
Enquanto estava bebericando o café, sentada sobre a bancada da
cozinha americana, olhei a sujeira ao redor e respirei fundo. Havia sangue
para todo lado.
Não me importei com a sujeira, apenas lembrei que meu coração
estava daquele jeito. Ensanguentado jogado pelo chão.
Malcolm me deixou no momento em que pensei que finalmente
seríamos felizes.
Abaixei a cabeça e respirei fundo, contendo as emoções.
- Adonai, me ajuda. Eu não sei mais o que fazer.
Não podia fazer o que minha cabeça mandava. Queria justiça, queria
voltar lá e ver meu marido vivo. Queria ter morrido com ele.
Era um conflito interno de pensamentos loucos e alucinantes.
Eu precisava de paz.
Não sei quanto tempo fiquei ali, revisando pensamentos, mas de
repente meu estômago se revirou e uma imensa ânsia de vômito dominou
todo meu corpo, me fazendo correr até o banheiro e despejar todo o café para
fora de mim.
O homem que amo me desejou uma nova vida, mas logo no primeiro
dia eu quase matei um homem, chorei até não aguentar mais e simplesmente
não contive um mísero café dentro do estômago.
Algo me dizia que meus dias futuros não seriam melhores que aquele.
Capítulo 2
ANTES

Eu ainda estava enjoada e tonta, mas firme e forte limpando toda a


casa. Provavelmente todo meu abalo emocional e psicológico pela perda
acarretou tudo que houve comigo. Já tinha limpado o banheiro e a sala,
depois fui para a cozinha quando escutei movimento no sofá.
O homem acabara de acordar, depois de ter sido baleado por mim.
Me surpreendi por ter atirado em alguém? Claro. Mas não podia ser
tão ingênua a ponto de achar que qualquer pessoa que aparecesse seria para
me ajudar.
Um ano com Malcolm me tornou muito desconfiada.
Não demorei muito em observá-lo, continuei meu trabalho com
afinco, precisava me livrar daquela sujeira toda e seguir com meus planos
originais antes desse intruso aparecer em meu caminho.
Pouco tempo foi necessário para o homem estar ao meu lado, um
tanto relutante e receoso.
- Não devia ter dormido. Me desculpe aparecer assim do nada, mas
era o que o Sr. Samuels havia combinado comigo. – Quando ouvi “Sr.
Samuels”, estremeci. – Ele foi categórico quando me informou que a senhora
poderia não querer me receber.
Me virei para a esquerda, finalmente podendo encarar os olhos do
homem sem tanto receio. Minhas mãos se mantinham sob a água da pia,
lavando a esponja cheia de sabão.
- Ele falou muito sobre mim?
Podia parecer bobo, mas qualquer lembrança, informação ou registro
que Malcolm tivesse sobre o passado, eu queria saber. Tudo amenizava um
pouco a dor excruciante que meu peito sentia sem cessar.
Ele assentiu.
- Me disse que era muito teimosa. – Deu de ombro com o ombro são.
Depois estendeu a mão para o registro da torneira, cerrando a corrente de
água da bica. – Eu não quero incomodá-la, mas estou aqui para ser útil e
cumprir o que me foi determinado. Me permite ajudá-la?
Foi quando notei que meu olhar estava repleto de lágrimas. O homem
me olhava com pesar, algo semelhante a pena.
Eu não estava nada bem. Definitivamente.
- Tenho como escolher? – perguntei, respirando fundo, enxugando a
lágrima tentando me manter forte.
Ele abaixou o olhar.
- Infelizmente não, senhora Samuels. Precisará da minha ajuda por
um tempo. – Depois elevou os olhos novamente, me fitando com mais
intensidade. – Prometo ser invisível quando precisar. Sou bom nisso.
Assenti, sem alternativa e larguei a esponja, que até então, não tinha
notado estar esganando com a mão. Passei por Joshua me pondo à caminho
do quarto.
O lugar onde as lembranças vinham com tanta facilidade. Lá tinha as
roupas dele, o cheiro dele, nossas fotos e suas cartas. Lá havia também a
cama onde fizemos amor horas antes.
Onde consumamos o tanto que desejávamos um ao outro.
Ao fitar a cama imensa ainda bagunçada cheia de roupas dele, me
joguei e me permiti despedaçar-me mais uma vez. Era como se eu não mais
existisse e meus cacos estivessem espalhados pelo cômodo, procurando pela
outra metade da minha alma.
Metade essa que não mais existia.
(...)

Não sei quanto tempo passou, mas eu acabei caindo em um sono


repleto de lembranças ainda frescas na minha mente. Queria ter ficado lá, nas
lembranças, mas a realidade é cruel e me trouxe de volta na primeira
oportunidade.
Assim que me arrastei do quarto para o banheiro, pude observar como
eu estava para quem me visse através do amplo espelho que lá havia. Um
olhar abatido, uma feição branca demais para meu tom de pele a aparência
turbada, como se tivesse passado por um furacão.
Respirei fundo e tirei as roupas. Precisava de um banho. Não podia
permanecer daquela forma. Algo lá dentro me encorajava a averiguar a fundo
sobre a morte de Malcolm.
Enquanto as gotas do chuveiro faziam seu trabalho, eu repetia
mentalmente:
Não desista. Não desista. Não desista.
Não desistiria fácil da minha felicidade, apesar do meu coração saber
a resposta daquela minha busca insana.
Lá dentro, bem no fundo, eu sabia que seria em vão, mas ainda assim,
insisti.
E foi com o dinheiro que tinha guardado no cofre secreto, minha
identidade nova e uma ousadia inesperada, que saí da casa subterrânea após
notar que Joshua não estava por ali.
Ufa, não precisaria de uma babá me reprovando em cada atitude louca
que desejava tomar.
Segui perambulando a pé pela neve, sabendo que a caminhada era
longa e intensa até o povoado mais próximo. Não tinha nenhum meio de
transporte guardado na garagem superior, eu supunha que Joshua havia
utilizado a motoneve e não retornaria nas próximas horas.
No entanto, supus errado.
Porque era ele quem vinha de encontro a mim, voltando do povoado
aonde eu estava querendo chegar.
Imediatamente parou ao meu lado e desligou a moto.
- Está indo em algum lugar? – inquiriu gentil.
Respirei fundo, pois não queria companhias e sabia que pelo ocorrido
de mais cedo, seria praticamente impossível realizar meu querer.
- Vou até a Groenlândia, onde Malcolm morreu. Quero verificar se
está mesmo morto e vasculhar o lugar.
A feição dele se tornou surpresa e seus olhos escuros se arregalaram,
em espanto.
- Me perdoe, senhora Samuels, mas está completamente louca! –
Quando ouvi o que ele disse, me apressei em argumentar, indignada, porém
ele acrescentou: - Não pode ir até lá sozinha.
Fechei a boca e pensei. Não estava apta a discutir naquele instante.
Queria respostas, queria esclarecimentos e sobretudo, justiça. Mas quando o
ouvi dizer “sozinha”, indaguei:
- Quer dizer que posso ir, mas terei que ir acompanhada?
Ele olhou para o alto e murmurou algo inteligível, antes de me fitar e
responder:
- Pode ir aonde desejar, senhora. Desde que eu esteja junto.
- Então me dê espaço nessa motoneve, vamos até o aeroporto mais
próximo. Preciso alugar um jato.
Ele me deixou à sua frente, mas pilotou rapidamente para o destino
que eu desejava.
Não percebi que Joshua estava com uma mochila nas costas até
entrarmos no pequeno avião alugado, horas depois. Ainda tinha tempo até
chegarmos a Groenlândia e retornar. O dia lá acabava bastante tarde.
HORAS DEPOIS
Nada.
Simplesmente nada.
O dia estava anunciando estar chegando o seu fim, mas Joshua e eu
prosseguimos em nossa caminhada incessante em busca de Malcolm ou
algum vestígio de que ele conseguira salvar-se.
A cabana estava lá, em cinzas. Se há corpos debaixo de tanta cinza,
também virara pó pelo modo como tudo ali estava. Joshua não me permitiu
procurar os ossos no meio daquela montanha destroçada, pois meu coração
estava mais destroçado que ela.
- Ele pode ter fugido! – gritei, desesperada.
Minha cintura estava sendo fortemente segurada pelo homem que me
acompanhara. Eu me jogava para frente, em prantos, querendo mergulhar-me
nos rastros do incêndio que houve ali. Apesar de fraca, por nada ter parado
em meu estômago desde a manhã, eu me sentia forte quando o assunto era
buscar o homem da minha vida.
Eu o amo, sempre vou amar!
- Malcoooooolm! – urrei, quase sem voz. – Sou eu, amor! Sua Riv!
Despenquei no chão. O peito retumbante pelas batidas frenéticas de
meu coração dilacerado. A força que antes me mantinha de pé fora embora
num sopro, bem como ela tinha chegado.
Lágrimas de desespero dominaram meu ser, e quando menos percebi,
gemia de dor.
Meu ser era a dor. Havíamos nos fundido em uma só.
Mal pude perceber o tempo que me mantive ali, prostrada no chão em
prantos. Tremendo. Chorando. Gritando. Então uma mão tocou meu ombro e
eu entrei em alerta.
Será que...
Me levantei da neve branca e, me pondo de joelhos, virei-me a fim de
atestar minhas ilusões.
- Temos que ir, senhora Samuels. Ou chegaremos tarde demais na sua
casa.
Analisei os traços faciais do homem que tão gentilmente me tocou e
suspirei, resignada. Não era ele. Não era meu marido.
Ele estava morto.
Com a ajuda do homem me levantei e ele me auxiliou na longa
caminhada até a pista onde poderíamos pegar o carro e retornar ao aeroporto
para voar de volta ao Canadá.
A cada passo que eu dava, me distanciava da minha única fonte de
esperança.
Malcolm não estava ali.
Ele estava morto debaixo daquelas cinzas.
Ele tinha mesmo me deixado.
Ele nunca mais voltaria.
Permaneci nesses pensamentos pela viagem inteira e o silêncio de
Joshua colaborou com minhas reflexões internas, porém, ao nos aproximar da
minha casa, já de noite, ele comentou ao entrarmos no elevador que nos
levaria ao subterrâneo.
- Entendo sua dor.
Descíamos dentro da caixa metálica, ambos encarando os pés. Eu
angustiada, ele... não sei bem como devia estar, mas feliz não estava, com
toda certeza.
Elevei meu rosto e me virei para encará-lo.
- Não entende não.
E a última lágrima escorreu pelos meus olhos, me avisando que eu
tinha feito tudo que podia fazer. Chorar não me traria Malcolm de volta.
Depois daquele dia, por pelo menos cinco longos anos, nunca mais
chorei.
Nunca mais.
Elevei meu queixo, me lembrando que apesar de tudo, eu era uma
Samuels. Se não teria meu marido de volta e meus sonhos sendo realizados
outra vez, só me sobrava uma única coisa:
Justiça.
Capítulo 3
Rivka
ATUALMENTE
- Não me importa quem é, maldito. Se você serve àquela organização
repugnante, infelizmente seu fim é só um.
Apertei o gatilho, disparando bem no centro do peito do homem à
minha frente.
O homem havia nos seguido por quase todo o país desde que Joshua,
Zion e eu chegamos. Procurar por aliados pelo mundo estava sendo mais
difícil que encontrar agulha em palheiro, mas nosso contingente estava
crescendo e em breve, poderíamos enfrentar o Patriarcado e aniquilar aquela
força maligna e obscura do mundo de uma vez.
Eu não gostava de matar pessoas. Odiava, na verdade.
Sempre compreendi que Adonai nos dava o dom da vida, mas da
mesma forma que a vida era um presente, as nossas decisões ao decorrer
delas nos traziam presentes, bons ou ruins. Se você passa sua vida fazendo
maldades, não queira que o melhor lhe aconteça... Seu fim será bastante ruim,
posso assegurar-lhe.
Só que no meu caso, era vida ou morte. Eu tinha uma missão especial
para cumprir e se morresse, nada valeria a pena.
Josh me encarava naquele galpão com uma feição admirada. Ele
sempre se surpreendia quando eu apertava o gatilho. Ainda não compreendia
o porquê.
Estávamos no México. Um dos países onde havia mais rebeliões
contra o Patriarcado. Eu devia me aliar a cada uma delas.
- O que tanto olha? – inquiri a Josh, empunhando a arma de volta ao
coldre em meu tornozelo enquanto caminhava até ele.
O galpão era amplo e mal iluminado. Estávamos apenas ele, eu e o
homem morto. Zion sempre ficava com uma babá contratada de urgência e
com Zeta, nossa babá android que fiscalizava tudo e nos passava como ele
estava em tempo real.
Zion era minha razão de viver e havia se tornado meu tudo assim que
chegou para mim.
- Ainda fico surpreso quando atira em alguém. Sei que não gosta e
evita o máximo. – Deu de ombros e pegou o aparelho eletrônico por onde
fiscalizávamos Zion. – Ele está dormindo agora. Voltamos ao hotel ou você
quer espairecer um pouco a cabeça?
Joshua havia se tornado o melhor amigo que eu poderia ter. Custei a
confiar nele de coração aberto, mas ele já tinha me dado provas de que era
um homem totalmente leal e idôneo.
Além de tudo isso, ele me conhecia como ninguém. O que quase
cinco anos ao lado da pessoa não fazem?
- Espairecer. A praia é longe daqui?
Estávamos em Acapulco, um local praiano e bastante turístico. Foi
tranquilo nos hospedar por ali, pois independente da época do ano, a cidade
sempre recebe turistas.
- Não muito. Vamos lá.
E em alguns minutos meus pés estavam amaciando a areia fofa e
gelada sob o céu estrelado. O mar estava revolto, era outono e eu entendia
que não estava bom para banho naquele instante, então não segui meus
impulsos que ordenavam que me jogasse na água.
Me vestia como uma mulher conservadora. Usava vestido longo até
os pés e sapatos fechados. Um casaquinho cobria meus ombros e braços e
uma peruca ruiva adornava meus cabelos antes negros.
Caminhei livre pelo vasto espaço arenoso e relaxante, mantendo em
mente que Adonai me perdoasse pelo que tinha acabado de fazer.
“Oh, Deus, criador de toda a Terra.. Me perdoe por fazer justiça com
minhas mãos.”
Era o que sempre orava, depois de cometer assassinato. Pois era o que
tinha me tornado: Uma assassina.
Ainda não conseguia lidar muito com a culpa. Desde que iniciei a
missão contra o Patriarcado eu matei somente 7 pessoas. Todas foram caso de
vida ou morte ou pessoas que eram enviadas como espiãs
Não compreendia como pessoas do Patriarcado acabavam me
achando uma vez ou outra durante o ano, acredito que seja pelas viagens com
identificações diferentes. Não sei... Ou talvez pelo fato de alguém suspeitar e
denunciar.
Ao menos eu entendia que não sabiam de verdade que era eu, Rivka.
Encarando o céu estrelado com meus braços cruzados, respirei fundo
e fechei meus olhos em seguida.
Que meu elohim me perdoe.
- Ele te entende, Rivka. Sabe que não fez por mal.
A voz de Joshua veio por trás de mim, se aproximando até estar ao
meu lado. Ele e essa mania de me decifrar sem esforço.
- Sei que entende, mas não posso simplesmente me agarrar na sua
compreensão sobre mim e esquecer de me confessar. O erro foi meu, apesar
de ter sido a única saída.
Abri os olhos e o encarei de soslaio. Ele olhava o céu com as mãos
dentro dos bolsos da calça.
- Está certa – soltou um suspiro. – Sempre está.
Então ele me encarou e sorriu.
- Vamos?
Assenti e andamos até o carro alugado da nossa viagem, rumo ao
hotel onde estávamos hospedados.
(...)

Já era tarde da noite quando chegamos ao hotel mediano onde nos


hospedamos. Zion, como Josh me havia informado, dormia como um anjo e
logo liberei a babá. Fui para o banheiro tomar um banho e assim que saí, Josh
foi tomar o dele.
Sempre pedíamos um quarto com cama de casal e uma de solteiro,
sendo que Zion dormia comigo na de casal e Joshua na de solteiro. Éramos
uma família apenas para os curiosos e para as organizações que tentamos nos
infiltrar, mas sabíamos que nossa relação não poderia jamais ultrapassar a
barreira da amizade.
Por quê?
Eu posso responder o porquê.
Porque quando eu me deitava e fechava meus olhos, minha mente me
mostrava apenas um par de olhos absurdamente azuis, me fazendo ansiar por
mergulhar dentro deles.
Joshua também não é o tipo de homem que se relaciona com alguém e
já tínhamos falado sobre isso.
Agora Malcolm...
Eu jamais o esqueceria. Ainda mais tendo um filho com praticamente
todos os mesmos traços faciais do pai.
E olha que eu já tentei.
Zion era a cópia perfeita de Malcolm, pelo que me lembrava de suas
fotos da infância. Nem se eu planejasse, ele sairia tão perfeito. Não fico
chateada nem triste por meu filho ter herdado apenas a compaixão, o amor e a
teimosia de mim, pelo contrário, me sinto agraciada pois Adonai me deu a
chance de ver o homem que amo no rosto do segundo homem que amo: o
pequeno loiro que dormia serenamente ao meu lado na cama.
Deitada naquela ampla cama sem sono algum, fiquei encarando o teto
escuro do quarto iluminado apenas por um único abajur no canto.
Joshua saiu do banheiro devidamente vestido e eu nem precisei virar o
rosto para perceber seu percurso até a cama. Também se jogou e ficou
encarando o teto, como eu.
— Vai ser sempre assim, não vai?
Questionei, pedindo aos céus que ele lesse meus pensamentos, como
facilmente fazia. Não me sentia eu mesma enquanto buscasse destruir aquele
Patriarcado maldito. Eu queria acabar com tudo e finalmente poder criar meu
filho num mundo diferente. Ter um final feliz.
— Não vai. Um dia todo esse peso vai sair das suas costas. Será livre.
Quando a voz dele ecoou pelo cômodo denotando seu cansaço e
compreensão comigo, não pude deixar de sentir meu peito doer.
Por diversas vezes no ano ele e eu temos essa conversa, mas não
compreendo o fato dele jamais mudar a resposta. No entanto, sou teimosa.
Não posso simplesmente acatar e ficar quieta.
— E você vai poder ser livre também. Não vai?
Não o estava expulsando da minha vida. Jamais faria isso. Eu amava a
companhia dele, éramos amigos como jamais imaginei um dia ser de alguém.
Nem Malcolm conseguiu chegar tão longe, com relação a confiança. Eu
confiava mais em Josh do que em mim mesma.
Era grata por tudo que ele estava fazendo por mim, sabia que ao
princípio, tinha sido uma ordem de Malcolm. Ele o contratara para me
guardar.
Mas eu já estava me virando muito bem sozinha.
— Não vamos ter essa conversa de novo. — Foi o que ele decretou.
Soltei um bufo irritada. Por que ele não vai procurar a felicidade dele
e me deixa aqui? Podemos continuar nossa amizade e nos vermos de vez em
quando. Será que sou tão ruim pra encontrar aliados assim?
— Idiota — murmurei e me virei na direção de Zion, declarando o
fim daquela curta troca de informações.
Não demorou muito para eu perceber que Joshua havia escutado meu
xingamento.
— Teimosa.

(...)

Nos dias seguintes àquele, conseguimos elaborar todo o plano certeiro


para que a grande organização rebelde de Acapulco se aliasse a nós.
Na noite em que finalmente conseguimos entrar na cúpula da
organização como serventes da pequena festa que eles estavam organizando,
agradeci a Deus mentalmente porque já estava cansada de esperar uma
chance para dar de cara com o chefe.
O que mais me deixou intrigada desde que comecei a missão de unir
forças contra o patriarcado foi o fato de todos os chefes que convenci até
hoje, serem homens e não mulheres.
Uma injustiça, com toda certeza. Mulheres são mais táticas e
organizadas que os homens, isso eu poderia afirmar.
Josh estava perambulando servindo os convidados da pequena festa e
eu, disfarçada com uniforme de garçonete, aproveitei que os vinhos tinham se
esgotado e caminhei até a adega, que fica num corredor próximo a cozinha.
Ninguém notou quando, ao invés da adega, entrei num corredor mal
iluminado e tirei o uniforme de garçonete, revelando minha roupa de
convidada por baixo dela.
— Agora, os retoques na maquiagem.
Abri o espelhinho com pequenas luzes que ajudavam a me maquiar no
escuro. Finalizei a maquiagem com mais requinte e arrematei com um batom
vermelho.
Estiquei o vestidinho o máximo que pude e mantive os saltinhos
discretos. No meu seio, o decote amplo que chegava até metade da minha
barriga, causava um certo incômodo por não ser algo comum para mim, mas
era necessário.
Saí dali caminhando com destreza até alguns corredores adiante,
sempre de cabeça elevada quando me deparava com algum convidado.
Já tinha gravado a ação das pessoas enquanto as servia. Era só manter
o padrão.
Mal virei um outro corredor por ali cheio de portas, e dei de cara com
um casal se enroscando com tanta ênfase que não precisavam nem tirar as
roupas. Devia estar rolando tudo na posição em que se encontravam.
Passei discretamente por eles para não chamar atenção e logo vi. A
última porta.
Pelo mapa que fizemos ao estudar o lugar — graças aos informantes
de Josh —, aquela era a sala do chefe. Eu só precisava entrar lá e permanecer
até que o dito cujo a adentrasse.
Tinha que pegá-lo de surpresa.
Não havia ninguém no perímetro. Nem um só guarda. Estava
estranhando, mas não podia perder a chance, então peguei de dentro do meu
sutiã meu decodificador de miolos e inseri na fechadura, aguardando que ele
fizesse seu trabalho.
Abri.
E para minha surpresa, daquela vez não tive o resultado que estava
acostumada a ter.
Capítulo 4
ANTES

— Grávida. Estou grávida.


Encarei o teste caseiro em minha mão dentro do banheiro da minha
casa subterrânea, ainda em choque pelo que acabara de descobrir.
Todo meu enjôo, os vômitos e os desmaios estavam ligados com isso.
Um bebê.
Uma lágrima involuntária desceu de meu olho antes que eu pudesse
elaborar algo mais coerente pra compreender como eu cheguei até aquela
situação.
Oh, claro. Claro que eu sei como são feitos os bebês e me recordar
disso trouxe um aquecimento gostoso em meu interior. Os dias ao lado de
Malcolm eram sempre muito proveitosos no quesito sexo.
O que me deixou espantada foi apenas o fato de mais uma vez reviver
a dor de ter perdido o homem que, com certeza, ficaria finalmente feliz com
aquela notícia.
Malcolm nunca quis ter filhos, mas o seu único motivo era temer que
a criança passasse por tudo que ele passou. Isolados no Canadá, não teríamos
esse problema... Mas então, ele se foi.
Ainda sentada sobre o sanitário com os olhos fitos no teste, respirei
fundo e decidi me agarrar naquele fio de esperança. Pode ser Adonai sendo
benevolente e me dando mais motivos para viver.
Porque a única coisa que eu quis depois de perder Malcolm, foi
morrer com ele.
Saí do banheiro arrastada, ainda um tanto aturdida em pensamentos,
quando cheguei à sala e dei de cara com Joshua andando de um lado a outro,
pensativo, coçando a barba.
— Positivo.
Murmurei sem tanta empolgação.
Já estávamos na companhia um do outro há um mês. Josuha era um
homem bom, apesar das minhas eternas desconfianças. Ele se empenhava em
ser uma pessoa agradável de se conviver. Em um mês, já tinha me contado
sobre diversas missões que fez pelo mundo.
Pensei que ele não tinha me ouvido, mas seu corpo enrijeceu e
paralisou de pé no meio da sala.
— Está gravida. Isso muda tudo.
Me aproximei e deixei o teste embrulhado numa sacolinha sobre a
mesinha de canto na sala.
— O que muda? Vai poder ir embora logo e me deixar em paz sem ter
que enfrentar o maldito patriarcado?
Cruzei os braços frente a ele. Naquela manhã eu estava cansada, sabe?
Cada dia um mix de emoções diferentes me dominava e eu não compreendia
a diversidade de vontades que me acometia. Um dia eu queria jogar tudo pro
alto, no outro queria ficar no canto do quarto chorando em posição fetal, no
outro queria comer até explodir e no outro queria perambular pelo gelo até a
exaustão. Era loucura.
Ele passou a mão pelos cabelos e me olhou intrigado.
— Ainda não entendeu que estou aqui para cumprir uma missão, não
é? — Abanei o rosto, negando. — O sr. Samuels me disse que dois anos eram
suficientes. Em dois anos eu te treinaria e te auxiliaria na derrubada do
Patriarcado. Mas com o bebê... Só começaremos os treinos pesados depois
que a criança estiver desmamada e falando por si só. Não dá para deixarmos
um bebê aos cuidados de uma babá sem que a criança diga o que fez. Não é
confiável.
Arregalei os olhos, impactada com o raciocínio tão cru e lógico que
ele teve em poucos segundos sobre meu futuro e do bebê, inserindo a missão
dele no meio. No entanto, o que me intrigou foi o fato dele ter dito que
Malcolm o contratou por dois anos. Então aquilo significava o quê?
Joshua não me esperou indagar, logo continuou explicando sua linha
de pensamento.
— A solução é uma: Daqui a dois anos e meio poderemos começar.
Alguns meses até o bebê nascer e um ano, quase dois, para ensinarmos ele a
se expressar, nem que seja com poucas palavras. — Saiu da minha frente e
andou até uma parede da sala onde continha vários livros e pastas com
documentos. Retirou uma pasta de lá e deu uma averiguada leve nos papéis
que continham nela. — Devido a sua situação, terei que ficar por uns quatro
anos, pelo menos. Mas não tem problema, acertamos sobre isso depois. Creio
que Malcolm deve ter deixado orientações sobre as finanças e tudo mais que
diz respeito ao que ele reservou a você.
Seus olhos cor de chocolate derretido me encararam com uma
intensidade ímpar. Eu ainda estava tentando assimilar a primeira frase da sua
linha de raciocínio. Lenta. Eu sei.
— Está dizendo que já pensou nos meus próximos quatro anos e
simplesmente decidiu como seria, sem nem perguntar o que acho disso?
Meu tom saiu um tanto indignado, furioso.
Me joguei no sofá e bufei, pensando apenas na minha tristeza sem fim
e no rombo que meu peito tentava curar, falhando sem dó.
Ele veio até mim, sentando ao meu lado.
— Estou dizendo que fui contratado para cumprir uma tarefa e eu não
sou dos que vão embora sem cumprir. Mas para cumprir a missão de te
formar e auxiliar na destruição do Patriarcado, vai demorar devido sua
gravidez.
Rolei os olhos. Prático demais pra ele.
— Então vá embora e retorne daqui a dois anos e meio.
Bom, o resultado daquilo vocês podem imaginar. Joshua
simplesmente ignorou o que eu disse, deu uma risada idiota e saiu dali rumo
ao quarto que estava usando.
Eu ainda estava um tanto imersa na notícia chocante da minha
gravidez e deixei o fato do homem planejar os próximos anos, pra lá.
Só ali, sentada naquele sofá, com as pernas dobradas sobre o couro
acolchoado envolvendo-as com um abraço protetor, eu pude mergulhar fundo
numa realidade que teria apenas nos meus sonhos.
Eu, ele, um bebê lindo...

(...)

5 meses se passaram e a cada mês, uma descoberta nova se


desencadeava.
Eu me consultava numa clínica do povoado mais próximo de onde
estava morando. Joshua conseguiu uma peruca ruiva, muito bem elaborada,
que consegui usar tranquilamente me disfarçando de uma mulher recatada e
dentro dos padrões de uma sociedade antiquada. Ele era meu marido de
mentira e nosso bebê estava sendo a grande benção de Deus para nosso
casamento recente.
Eu me sentia horrível naquele disfarce, mas não podia dar brechas.
Usava identidades falsas e ele também. Quando o bebê nascesse, Joshua
afirmou que faria com as fontes que tem, uma identidade original com o
nome real do bebê e dos pais, sendo que esses documentos não teriam
registro mundial. Será como se meu filho nascesse só para mim.
Para o mundo, ele era filho de Rebeca Scott e Magnus Liverpool.
Eu estava gestante de oito meses e minha barriga ocupava todo meu
ângulo de visão, impedindo-me de me ver da cintura para baixo sem
consultar um espelho. Era engraçado como Zion sempre respondia ao meu
toque e ao meu chamado mesmo ainda morando num forninho.
As cartas de Malcolm não me mantiveram calma. Ele datou cada uma
delas e a ansiedade por ler todas me fazia muitas das vezes ter pequenos
surtos de saudade e choros compulsivos. No entanto, ele tinha mandado uma
para seis meses depois da sua morte.
Aquela estava ali, sempre na cabeceira da minha cama esperando o
dia para ser aberta.
– Imagino quão ansiosa deve estar para abrir, falta só uma semana.
Eu estava sentada na beira da cama encarando a carta como se
dependesse dela para viver, quando Joshua apareceu, apoiando-se na soleira
da porta.
Ainda não confiava nele.
Não confiava em homem algum, em ninguém, mesmo ciente de que
Joshua era o único homem que eu teria contato por um tempo. Meu Zion será
meu único companheiro em breve e aquilo sim, me daria felicidade e
acalento.
– Ainda me pergunto como você consegue me aguentar na gravidez e
não ter surtos de insanidade mental.
Murmurei ainda encarando a carta, Joshua atrás de mim ainda no
mesmo local de onde o vi.
Ele riu.
— Ah, vamos, Rivka. Levanta a bunda daí, vamos pesquisar um
pouco sobre bebês e coisas interessantes. Não vá mergulhar no mar de
tristeza agora que está perto de ver Zion. Daqui uma semana você lerá a carta
dele e eu juro que passo o dia inteiro sem trocar uma palavra contigo.
Eu odiava que ele tivesse razão, mas o que Joshua sempre se mostrava
ser, é racional. Sempre pensava muito antes de agir e tinha argumentos fortes
para suas escolhas. Cinco meses ao lado dele consegui admirar essa sua
capacidade. Eu gostaria de ser assim. Não agir por emoção e sim por
racionalidade.
Respirei fundo e me levantei, caminhando como um pinguim trajando
um vestidinho leve de flores que contrastavam demais com meu humor
absurdamente obscuro naquele momento.
Quando vi Joshua na sala com vários livros sobre maternidade e
cuidados com bebê, eu sorri. Eram raras as vezes em que um sorriso feliz saía
dos meus lábios, mas lá estava ele, um maldito sorriso.
— Você não vai conquistar minha confiança com livros sobre bebê.
Afirmei ao tentar me sentar no sofá e quase me desequilibrar. Sorte
que ele se levantou e me escorou a tempo. Me sentei enfim e tive de imediato
sua resposta.
— Acho que não tem opção, Sra. Samuels.
Vez ou outra, me chamava de Rivka, mas na maioria das vezes eu era
a Sra. Samuels. O que me lembrava a responsabilidade que eu tinha em
destruir o maldito Patriarcado. Eu detonaria aquele câncer do mundo.
Nem que vivesse só para isso.
Depois de passarmos a tarde toda lendo sobre parto, comportamento
de bebê nos primeiros dias de nascido, puerpério e tudo mais, Joshua ligou a
tevê que eu mal assistia e disse que colocaria um filme.
Ele tentava com afinco me deixar entretida com algo pra não ficar
chorando pelos cantos. Alguns dias ele conseguia, mas havia dias em que a
dor e a saudade era tanta, que nem a mais imensa diversão conseguia impedir
que a lágrima descesse.
Quando descobri que o bebê era um menino, não pensei em outro
nome. Imediatamente Zion passou pela minha cabeça.
Zion (Sião em português e Tzion em hebraico) possui o significado
bíblico de terra prometida. Inicialmente era o nome do monte em Jerusalém
no qual foi construída a cidade do rei Davi. O Monte Sião passou a designar a
terra prometida ou a própria Jerusalém.
Uma promessa, um nome abençoado.
Meu filho já era mais que abençoado.
Eu viveria minha vida para ensiná-lo como temer a Deus e ser um
homem de bem. Claro, depois de acabar com a organização que privou de
mim essa liberdade e arrancou de Malcolm toda sua vida.
Me deixei levar naquele dia pelo clima doce e agradável, impedindo
que pensamentos de ódio e vingança se apoderassem de mim e anoiteceu
enquanto Joshua e eu víamos os mais diversos e loucos filmes na imensa tevê
de plasma.

Uma semana depois.

Era seis da manhã quando acordei num susto e me lembrei que era a
data em que Malcolm colocou na carta.
Acendi o abajur perto de mim e peguei a bendita carta no local onde
estava desde a semana anterior.
Ao abrir com os dedos trêmulos, respirei fundo e me sentei.

“Riv, amor da minha vida.


Eu não tive a chance de te chamar de meu amor, ou dizer o quanto te
amo, mas tentei das formas que eu conseguia. Sou um babaca, não é?
Sabia que o tempo que tínhamos era curto e não conseguia quebrar a
maldita barreira do orgulho, mas cá estou eu. Essa carta foi escrita um dia
antes de meu plano de detonar a cabana com Enzo dentro ser concretizada.
Quero que consiga viver do melhor modo e preciso que siga algumas
dicas, caso planeje algo com Josh contra o Patriarcado.
1- Eles sempre sabem de tudo. Tem acesso a rede de segurança mundial, isso inclui as câmeras.
2- Eles estão em todos os lugares com seus infiltrados e cobaias. Cuidado com perseguições.
3- Não tenha medo de atirar para matar. Será necessário.
4- Varie no disfarce sempre que possível.
5- Todo ano o Patriarcado faz uma festa anual, onde celebram seu poder com todos os
componentes da organização (chefes de estado, exércitos, seguranças, sócios, etc) Essa é a
data específica onde você poderá atuar.
6- Só vá quando tiver um contingente amplo para te suprir. Há muitos grupos rebeldes pelo
mundo, que sempre perderam ao enfrentar o Patriarcado por falta de planejamento. Você não
vai perder.
7- E só para reforçar. Eu amo você.

Queria ter te dado tudo o que merece, o futuro que sonhou, mas a
vida tem dessas coisas. Eu faria tudo de novo se fosse para salvar sua vida.
Com amor,
Malcolm Samuels.

E lá estava eu em prantos novamente, tremendo, chorando alto com o


peito ardendo.
Até que num instante, senti uma cachoeira se romper em mim e
molhar minhas pernas intensamente.
— Ai, não.
Ainda não era a hora, mas parece que meu filho sentiu que seu pai
estava falando comigo de algum jeito e decidiu que era o melhor momento de
vir ao mundo.
Capítulo 5
Rivka
ATUALMENTE
— Ora, ora, ora. Veja se não é Rebeca Scott.
Quando consegui entrar na sala do chefe e acender a luz para verificar
o lugar, o próprio estava me aguardando.
O susto que levei não podia ser mensurado. Meu coração parecia
querer saltar pela boca.
O homem de meia idade, aparentes quarenta e tantos anos e feições
rudes, bem bronzeado, soprou a fumaça do charuto que dançava por entre
seus dedos. Sua pose sobre a cadeira que estava sentado, me lembrava a de
um mafioso.
— Acho que está se confundindo, senhor. Estou procurando uma
pessoa.
Tentei disfarçar, mas o maldito susto me pegou tão desprevenida que
nada que eu dissesse sairia coerente naquele instante.
Ele estreitou o cenho contendo um par de sobrancelhas muito
cabeluda, na minha direção.
— Sei tudo sobre você. É uma de nós. Quer detonar o Patriarcado,
não quer?
Alívio percorreu minha espinha quando ele mencionou o fato de odiar
o Patriarcado. Eu sabia que eles eram rebeldes, mas não sabia até qual ponto.
Vai que de um dia pro outro o Patriarcado conseguiu comprar todos eles e
estavam apenas ali mantendo uma fachada de rebelião?
Me aproximei lentamente de sua mesa e vi quando seus olhos
vaguearam sobre meu corpo.
Maldito decote!
— Posso ser sim, ou não. Não sou burra, senhor Sanchez. Estou aqui
para uma conversa amigável, sob os meus termos.
Deixei de propósito, a alça do vestido deslizar um pouco por meu
braço, dando um ar ainda mais sedutor em minha roupa colada.
— Porra, mulher... Não sou o tipo de homem que se contém ao ver
uma provocação dessas. Acho melhor sentar aí e ser direta ao ponto.
Ele se irritou e isso me fez empertigar no lugar, ainda de pé. Respirei
fundo e o obedeci, sentando em seguida.
Não queria que o homem me atacasse ou algo do tipo, mas às vezes a
sedução me ajudava à princípio. Jamais passei por nada constrangedor.
— Tenho o melhor plano para que Patriarcado seja aniquilado da face
da Terra. Fontes seguras e mapas que nenhum rebelde antes teve acesso. Para
que nossa aliança seja feita, firmaremos um contrato e seu exército será parte
do meu, para juntos, no dia certo, estarmos nesse confronto.
Ele elevou o rosto e me analisou ainda com a feição dura.
— Como sabe se sou mesmo um rebelde?
A pergunta me pegou de surpresa, mas fingi que já a esperava e
respondi com maestria:
— Eu sei tudo sobre você.
Ao dizer aquilo, como um blefe ridículo, o homem levantou da sua
cadeira enorme e acolchoada e deu a volta na mesa de mogno escura, bem
imponente, parando de frente a mim. Sua mão segurou meu pulso, me pondo
de pé em segundos.
— Então deve saber que eu não rejeito mulher que me provoca.
Ao dizer aquilo, não consegui assimilar e logo fui invadida com um
beijo insano, fugaz e com gosto de charuto. Estava enojada do abuso daquele
maldito chefe.
A forma como ele me segurou firme no pulso e depois se firmou na
minha cintura me fez querer vomitar na cara dele. Logo senti sua mão descer
para minha bunda e apertar ali, antes de seus lábios deixarem os meus.
— Idiota... — murmurei.
Ele sorriu. Um sorriso amarelo sem vida.
— Não vamos firmar acordo algum, vadia. Não firmo acordo com
mulheres. Vocês são voláteis e fracas. Além disso, o Rei do Sul está
montando uma grande equipe de rebeldes contra o patriarcado também. Deve
desistir, baratinha. Esse mundo não é para você.
O ódio subiu por minhas veias e me consumiu de uma forma tão feroz
que sem pensar em nada dei um golpe de direita no rosto daquele babaca.
Me afastei quando ele sentiu a dor e massageou o rosto, mas não deu
tempo de eu fugir dali. Como se pressentissem que algo aconteceria, dois
seguranças de terno entraram na sala e me pegaram pelos braços como se eu
fosse um lixo, me enxotando para fora da presença do verme.
Eu me debatia, minhas pernas estavam fora do alcance do chão e os
homens não eram gentis, me carregaram por um amplo corredor, até que um
deles murmurou para o outro:
— Deixa que eu cuido daqui em diante.
O outro apenas respondeu “positivo”, me largou e deu meia volta,
retornando para de onde eu saí.
O corredor que o outro segurança e eu adentramos era escuro, sem
nenhuma iluminação, mas ele conseguia caminhar como se enxergasse tudo.
Devia ser os óculos de visão noturna, talvez. Eu sabia que muitos seguranças
usavam, poderia ser isso.
O aperto no meu braço se afrouxou um pouco, quando ele abriu uma
porta e me empurrou para dentro, acendendo a luz em seguida.
Era um quarto.
Eu me abracei, desejando poder apenas voltar para minha casa e ficar
um pouco mais com meu filho. Se aquele segurança tivesse intenção de
abusar de mim, não sei o que eu faria.
Usaria todos os meus golpes aprendidos com Malcolm e Joshua
contra ele, com toda certeza.
Fiquei parada, com os olhos nos pés, apenas esperando. Pensando no
que faria dependendo da ação do homem. Então ele tocou meu queixo
fazendo-me fitar seus olhos já sem os óculos.
— Josh! — Corri e o abracei.
Não sei o que senti naquela hora. Estava a salva! Deus amado, eu não
seria abusada por ninguém, graças aos céus!
Ele me envolveu no seu abraço também, acariciando minhas costas
com o carinho que eu conhecia. Nossas respirações estavam rápidas, intensas.
O que passamos ali nas últimas horas foi pura adrenalina.
Depois de me acalmar um pouco, me afastei, fitando-o com
curiosidade.
— Como conseguiu se tornar o segurança do chefe?
Ele sorriu e deu de ombros.
— Com esse rostinho é difícil negar que sou um ótimo protetor. Além
disso, eu sabia de todos os códigos deles, não são tão inteligentes. Logo
consegui me infiltrar. Agora você... — Tocou minha mão e a levantou no
alto, me fazendo girar no mesmo lugar. — Uau... Está muito gostosa. Como
conseguiu entrar na sala do chefe?
— Ah, eu usei o decodificador. Mas não deu certo, Joshua. Não
consegui a aliança.
Bufei frustrada, estava cansada daquele lugar.
Nós já estávamos hospedados há semanas, sempre chegamos muito
antes para não levantar suspeitas e estudamos o local que vamos “invadir”.
Daquela vez, fora a primeira em que Joshua e eu não conseguimos firmar
uma aliança contra o Patriarcado.
Ele deixou de sorrir e soltou minha mão, alisando os cabelos com uma
feição preocupada.
— Mas ele não quer detonar o Patriarcado ou o que?
Caminhei lentamente para a ampla cama chamativa e fofa daquele
quarto de luxo e me sentei na pontinha do colchão, relaxando o corpo antes
de explicar tudo a Josh.
— Ele disse que já fechou com o Rei do Sul. Que diabos é Rei do
Sul?
Joshua cruzou os braços e começou a caminhar pelo quarto pensativo.
Ele tem um raciocínio tão veloz que eu ficava admirada e boba com suas
conclusões e soluções rápidas.
— O Rei do Sul estava em decadência até um tempo atrás. Não ouvi
mais falar dele. Preciso averiguar com meus informantes sobre isso.
Conquistamos todos os grupos rebeldes de todos os continentes, menos os da
américa. O Rei do Sul tem sua fonte no Brasil. Precisamos ir até lá. Talvez
seja melhor, porque se todas as organizações rebeldes das américas estiverem
sob o domínio do Rei do Sul, será mais fácil se aliar diretamente a ele e
concretizaremos nossa missão mais rápido do que pensamos.
Respirei fundo e soltei uma boa lufada de ar. Era alívio.
Alívio por sentir que estava perto de tudo acabar.
Alívio por compreender que eu tinha dado o melhor de mim e
finalmente conseguiria viver em paz depois de destruir o maldito Patriarcado.
Alívio porque meu filho merece um mundo melhor.
Uma lágrima deslizou por meu rosto e eu quis chorar. Logo Joshua
estava na minha frente, enxugando a lágrima teimosa.
— Não chora. — Sua voz era um sussurro terno. — Vai dar tudo
certo. Estarei aqui até o fim, está bem?
Elevei o rosto e pude contemplar o mar castanho que habitava nos
olhos de Josh, reluzirem. Ter a amizade dele nesses momentos me trazia uma
paz que há tanto tempo eu não sentia.
Toquei seu rosto e me mantive séria.
— Este é um daqueles momentos, Josh.
Ele apertou os lábios e assentiu, compreendendo o que eu estava
dizendo.
— Não precisava dizer.
Capítulo 6
Rivka
ANTES
Sentados no meio do tapete da sala cercado por uma gradezinha de
ferro, estávamos eu e Zion, com seus quase seis meses de vida. Ele não era o
tipo de criança que fica quietinho onde colocamos, mas sim, do tipo que se
desloca com tudo que pode. Apesar de ainda não engatinhar, o abençoado se
arrasta todo pra sair de onde eu ponho.
As grades ajudam demais a mantê-lo dentro de um único ambiente,
sob minhas vistas.
Ele apertava seus bonequinhos macios enquanto eu dava papa de fruta
para ele, na colher. Nunca imaginei que poderia amar tanto uma pessoa na
vida, da forma como amo Zion. Achava que o amor de marido e mulher fosse
o maior e mais belo que já tinha vivido, mas a maternidade me provou que eu
ainda não sabia de nada.
Um filho é a maior fonte de amor inesgotável que existe.
— Abre o bocão pra mamãe...
Levei a colher cheia até a boquinha do meu pequeno loiro com
cabelos fartos. Ele obedeceu e abriu, ingerindo tudo.
— Muito bem!
Aquele era um dia bastante importante. A morte de Malcolm
completara um ano. Com Zion na minha vida, as crises de choro e saudade
eram mais escassas, mas não deixavam de existir. Eu evitava demonstrar
qualquer tipo de fraqueza na frente do homenzinho que precisava da minha
fortaleza.
Enquanto o alimentava na hora do almoço, ali sentada no meio da
sala, era impossível não imaginar e sonhar como seria a realidade se o pai do
meu filho estivesse entre nós. Eu podia facilmente visualizá-lo sentado na
poltrona no canto da sala, tentando alimentar Zion no seu colo com o cenho
franzido e os olhos concentrados. Eu conseguia sonhar com a cena dele
segurando nosso filho com as mãos na barriguinha dele enquanto o suspendia
ao alto, numa brincadeira bruta típica de pais.
Mal notei que uma lágrima acabou despencando de meu olho, quando
ouvi a voz de Joshua.
— Quer ajuda?
Ele sentou ao meu lado exatamente no instante em que Zion vinha
com tudo, quase atingindo o prato que eu segurava, com suas mãozinhas.
Apesar de estar dentro do cercado, ele se ajoelhava e se jogava com os braços
para onde queria, sem nem pensar no que derrubaria no meio do caminho.
Joshua o impediu de sujar tudo, tomando o prato das minhas mãos
enquanto eu ainda estava presa no meu devaneio, só quando escutei sua voz,
pude voltar a mim.
Abanei minha cabeça, afastando os pensamentos dolorosos e iludidos,
para encarar o segurança particular, mais conhecido como minha babá.
— Está tudo sob controle, Joshua. Obrigada.
Apesar dele ser uma boa pessoa, sempre me ajudar quando preciso e
também saber cozinhar como ninguém, eu não queria dar meu braço a torcer
e dizer que confio nele. Odiava precisar da ajuda dele para qualquer coisa que
fosse e, mais ainda, quando se tratava do meu filho.
Ele assentiu, me entregando o prato novamente.
— Estarei fora por hoje, volto amanhã. Caso precise de um fôlego,
fique à vontade pois não estarei para incomodar.
Uma pontada me atingiu em cheio quando ele falou aquilo. Me senti
malvada, cruel, por muitas das vezes acabar sendo rude e limitando nosso
vínculo dentro da casa. Ele ficaria por alguns anos e, mesmo eu odiando a
ideia, tinha que admitir que precisava mesmo de ajuda.
Não sabia como conseguiria lidar com Zion sozinha, sendo que nem
saio para fazer as compras e resolver qualquer coisa que seja. Joshua resolve
praticamente tudo. Até o momento, eu só estive no hospital da pequena
cidadela vizinha para parir e estar nas consultas de Zion.
Para todos, Joshua era meu esposo e vivíamos felizes numa casinha
isolada longe do centro. A casa que Malcolm comprou no povoado mais
perto, para servir de “fachada”, caso eu precisasse de uma.
A casa era mobiliada e linda. Joshua chegou a dizer que comprou
móveis novos para lá e que um dia me levaria para conhecer, quando
precisássemos comprovar qualquer residência a alguém.
Provavelmente ele estaria na casa em questão, dando um tempo longe
de mim.
— Está ótimo. Até amanhã.
Ele acarinhou os cabelos do meu bebê e sorriu para ele, se
despedindo. Então nos minutos seguintes eu já estava à sós com Zion e Deus.
Depois do almoço bem sucedido, decidi dar um banho no meu bebê
lindo que havia acabado de detonar por completo uma fralda, enchendo-a.
— Vamos, meu príncipe. Temos que bambanhá.
O peguei e o levei até o banheiro, enchendo a banheira enorme que
havia lá, para que Zion e eu tomássemos banho juntos. Antes de entrarmos,
limpei toda a sujeira nele e lavei seu bumbum no chuveiro.
Zion ama a água. Toda vez que entramos na banheira ele começa a
agitar os bracinhos e rir. Na verdade, ele gargalha e isso me dá momentos
extremos de alegria, mesmo que sejam momentos raríssimos. Meu coração se
aquece com a possibilidade de ter o sorriso de Zion como meu maior
combustível de alegria permanente, até quando Deus permitir.
Depois do banho animado cheio de canções divertidas, enquanto ele
fica no cercadinho na sala, eu preparo uma mamadeira pequena, que ele
sempre toma antes da soneca da tarde.
Já não mama mais no peito, pois aos cinco meses comecei o desmame
lento para que os planos para nosso futuro fossem feitos e seguidos conforme
Joshua e eu conversamos ainda na gestação.
Já deitado em meu colo segurando a mamadeira enquanto mama, Zion
é acalentado pelo meu movimento andando de um lado a outro no meu quarto
enquanto cantarolo uma canção de ninar muito famosa nos canais infantis da
tevê.
— Brilha, estrelinha, brilha. Brilha, brilha só pra mim. Ilumina este
céu. Pro luar não ter mais fim. Brilha, estrelinha, brilha. Quero ver você
brilhar.
Perco-me no tempo enquanto canto e me deixo embalar pelo
momento único que estava vivendo ali, com o fruto de algo tão intenso e tão
recente, vivido por mim.
Em instantes o sono embalou meu filho e a mamadeira, já vazia,
deixada num canto do quarto. O depositei no bercinho e fiquei ali, admirando
sua beleza e seu sono pacífico até que ele também acabasse me embalando
em um.
Era comum sentir muito sono quando colocava Zion para dormir.
Depois do seu nascimento, os momentos de descanso foram muito poucos, e
como eu mal dormia antes, acabei virando praticamente uma zumbi, fazendo
com que todo o cansaço acumulado, estivesse cobrando seu preço ali, seis
meses após o parto.
Deitei na cama, lembrando que tinha mais uma carta para abrir.
De imediato meus olhos quiseram arder, porém os fechei, permitindo-
me sonhar com uma realidade aonde Malcolm, Zion e eu estávamos juntos e
felizes.

(...)

Ninguém está preparado para o luto. É difícil, muitas das vezes pode
chegar a ser enfadonho, até. Se você nunca perdeu alguém importante, jamais
vai compreender o que meu coração sentiu dia após dia, por meses, anos,
concernente à morte do homem que amei.
Não foi uma morte comum.
Não foi um acidente, uma bala perdida, uma catástrofe natural. Não
foi.
Foi um sacrifício.
E esse sacrifício fora por mim.
Saber que se é o motivo de alguém desejar se entregar a morte para
que fique segura, não é bem uma forma boa de se digerir o luto.
Um ano após aquele fatídico dia, eu ainda estava em frangalhos.
Após meu curto cochilo, despertei e fui direto ao cofre aonde as cartas
estavam guardadas. Não tinham muitas, e as datas nas quais foram escritas
não seguiam uma ordem cronológica da data pelo qual Malcolm exigia que
fossem aberta.
Por exemplo, a última carta, de seis meses, ele escreveu um dia antes
de morrer, porém, a carta de um ano, havia sido escrita dias antes.
Pelo que constava no cabeçalho, assim que abri o envelope.
“Já nem sei como escrever isso. Eu realmente não sei se tenho
coragem o suficiente de cometer a loucura que planejei.
Não. Eu não quero morrer.
Sim. Por você vale a pena a morte, o inferno, o que for! Mas não
quero morrer.
Não passei a vida inteira preso dentro de um sistema de merda para
simplesmente morrer quando consegui enfim me libertar dele.
Essa carta aqui é mais um desabafo do que uma orientação.
Rivka, amor da minha vida.
Nunca deixe que ditem regras sobre como deve viver. Isso é uma
merda.
Desejo sim que lute contra o Patriarcado e que, consiga aprender
tudo que puder com Joshua para que ninguém mais seja uma vítima desse
poder obscuro sobre o planeta, mas, sinceramente... Caso você não queira...
Foda-se.
Viva sua vida.
Estou um tanto cansado, sabe? Eu amo vê-la feliz e me odiaria, onde
quer que esteja, vê-la sofrendo dia após dia, ainda tendo que enfrentar um
amplo exército de sanguinários malditos.
Viva um dia de cada vez. Se permita respirar.
Você precisa estar viva para qualquer coisa que faça. Seja ela
enfrentar o Patriarcado ou simplesmente sumir do mapa e recomeçar.
Precisa estar viva.
Já faz um ano que eu possivelmente morri. A ideia é essa. Eu vou me
sacrificar por você. Você perdeu tanto no instante em que casou comigo
que... Só de lembrar me sinto um maldito babaca.
Queria poder não precisar tomar essa atitude, mas foi a única
alternativa.
Não vou cansar de dizer isso a você.
Já passou um ano, e se está lendo isso hoje, eu não tive nem chance
de escapar com vida naquele dia. O que mostra que tudo aconteceu como
devia ter acontecido.
No mais, seja forte.
Não sei se escreverei muitas cartas depois dessa, eu já escrevi outras
antes, com datas posteriores para que leia, no entanto, só quero pedir que
coloque esse pequeno chip num leitor de cartão e veja o que há dentro dele.
Isso pode ser importante.
Amo você. Sou um maldito por não ter dito em voz alta ainda, espero
que isso tenha mudado antes de eu partir.
Sempre Seu,
M.”

Peguei o pequeno cartão de memória micro e, ainda sentada sobre


minha cama com o coração prestes a saltar da minha boca, decidi não abrir
ainda.
Não queria abalar ainda mais minha mente. Abriria no melhor
momento.
Num momento mais oportuno.
Quem sabe em breve?
Capítulo 7
Rivka
ATUALMENTE

Depois da decepção no México, já de volta ao Canadá, eu encarava o


bendito chip em minhas mãos como uma preciosidade. Ainda não tinha
chegado a coragem de abrir e escutar o que quer que seja que Malcolm tenha
dito, mesmo ciente de que dali a um dia, sua morte completaria mais um ano.
O quinto.
Guardei dentro do cofre em meu quarto com toda a segurança que eu
prezava e fui a sala, ainda com meu pijama de dormir. Acabei dormindo
demais, Zion e Joshua já estavam fazendo algazarra na sala e quando cheguei,
os dois pararam imediatamente com uma guerra de travesseiros onde
espumas e penas se encontravam praticamente inundando todo o chão
carpetado.
Vesti a armadura de mulher invencível. Meu filho precisava da minha
força.
—Meu Deus do céu! Quem vai arrumar essa bagunça?
Como uma mãe tradicional que se preocupa com as farras do filho,
pus a mão na cintura encarando-os com fúria.
Joshua apontou para Zion e vice-versa.
— Ele! — ambos gritaram em uníssono.
Rolei os olhos e balancei a mão no ar, dando liberação para
continuarem a bagunça enquanto eu ia até a cozinha fazer meu desjejum.
Eles voltaram a brincar, compreendendo meu sinal, e eu simplesmente
me sentei numa banqueta localizada sob a bancada de mármore da cozinha
americana, para preparar meu café.
Imersa nos meus pensamentos, organizei cada passo que dei desde a
morte de Malcolm até ali. Foram quase cinco anos. Cinco longos e intensos
anos.
Não queria retornar à dor excruciante do momento da perda, deixaria
para sofrer amanhã, no entanto, os últimos dias estavam martelando em
minha mente.
Será que estava mesmo fazendo tudo que ele esperava que eu fizesse?
E se tivéssemos mesmo chegado ao ponto em que finalmente
conseguiríamos derrubar o Patriarcado? Era apenas encontrar o Rei do Sul,
nos aliar a ele e executar o plano.
Pareceu tudo tão simples.
Fácil.
Estava estranhando aquilo tudo. Estava estranhando a facilidade com
que o fim da trajetória se demonstrou.
Um sexto sentido apitou em minha mente, me deixando encucada e
desconfiada de tudo a minha volta. Joshua era um homem de confiança mas
ele lidava com pessoas das quais eu não conhecia. E se alguma delas fosse
um infiltrado espião do Patriarcado?
E se, por algum descuido, a informação do Rei do Sul for uma
inverdade apenas para nos enredar numa trama arquitetada para nossa morte?
Eu precisava analisar bem as coisas antes de fazer essa viagem longa
e demorada.
Não conseguiria me aliar ao Rei do Sul em duas semanas, como de
costume com as outras organizações rebeldes que vínhamos nos aliando.
Poderíamos talvez passar meses no Brasil, arquitetando tudo e mesmo
assim, após a aliança, ainda teríamos que permanecer, pois a estratégia final
seria elaborada.
Nem que no fim das contas, cada sócio, soldado, executor e capanga
do Patriarcado tenha seu destino selado com a morte.
— Uma pena de ganso pelos seus pensamentos.
Acordei do devaneio elevando os olhos, antes pousados na minha
caneca ainda cheia de café não ingerido. Dei de cara com Joshua, com seu
raro sorriso de canto e uma mão contendo uma das penas dos travesseiros da
pequena guerra já encerrada.
— Nada demais. Preciso tomar café, estou naquele clima pensativo
demais, sabe?
Só então percebi que ainda mexia no café com uma colherzinha sem
parar. Encerrei o ato e ingeri a bebida já não tão quente quanto antes.
Ele estreitou o cenho e se pôs sério. Olhei adiante, procurando meu
filho, encontrando-o vendo algum programa infantil na tevê.
Um menino de apenas quatro anos que só queria ter uma vida normal,
como a de qualquer criança.
— Sei com o que se preocupa. Está acabando, Rivka. — Josh
capturou novamente minha atenção para seu rosto.
Ele não me chamava de Riv e eu agradecia aos céus por isso. Esse
apelido pertencia a Malcolm, mais ninguém.
— Ele precisa ir à escola, ter amigos, conhecer pessoas... Isso tudo
está me matando, Josh. Quero que acabe, mas estou tão aflita com os últimos
acontecimentos. Não consigo digerir que está tudo tão... fácil. Parece que tem
algo errado.
O encarei e sustentei o olhar. Ele manteve o seu fixo nos meus, sem
desviar, parecendo querer imergir no que eu dizia além das palavras. Não
falei nada. Esperei que ele finalizasse sua leitura rápida dos meus olhos e
enfim, proferisse:
— Temos de ser cautelosos. Não podemos confiar em qualquer um.
Tive uma ideia. — Passou a mão sobre os cabelos lisos do mesmo tom de
chocolate de seus olhos. — Podemos escolher ao menos mais um grupo
rebelde das américas para visitarmos. Caso se confirme sobre o Rei do Sul,
vamos direto até ele.
Nem pensei, apenas me vi assentindo, concordando com o que
propôs, pois era o mais sensato a fazer. Se tudo fosse um plano contra nós, o
Rei do Sul estaria nos esperando àquela altura do campeonato, e não uma das
organizações rebeldes menores.
Meu coração deu uma acalmada considerável e pude enfim respirar
mais tranquila. Estava quase à beira de uma crise de ansiedade desenvolvida
por tudo que passei nos últimos anos, mas consegui controlar.
Já com o café finalizado, sem desejar comer nem uma torrada sequer,
dei a volta no balcão e caminhei até onde meu filho estava, sentando no sofá
ao seu lado, repleto de penas ao redor.
— Como dormiu essa noite, meu amor? — O abracei, depositando um
beijo no topo de sua cabeça.
Ele, com os olhos conectados com o desenho, apenas disse:
— Bem, mamãe. Não tive sonhos, dormi diretão!
Sorri e o peguei, colocando sobre meu colo, permitindo que ele ainda
ficasse com o corpo voltado para a tevê.
— Sabe que a mãe ama você, não sabe? — sussurrei no ouvido do
meu pequeno.
— Sim, mamãe. Você diz isso todo dia. Já gravei aqui, olha. —
Apontou para sua cabeça.
— Quero que guarde também aqui, Zion. — Peguei sua mão e
coloquei no seu coração, com a minha por cima da dele. — Nunca deixe de
dizer o quanto ama as pessoas que você quer manter ao seu lado para sempre.
Isso é muito importante.
Ele enfim virou o rosto, me fitando com seus olhinhos
resplandecentemente azuis.
— Então eu amo muito você e também amo o tio Josh. A Zeta nem
tanto, ela é um robô que só sabe mandar eu fazer as coisas.
Gargalhei da sua resposta, sem deixar passar sua declaração. Zion não
falava que me ama assim, na mesma frequência que eu. Ele dizia em
momentos importantes e isso deve ter herdado do pai, pois pela forma como
eu sempre me declaro, já era para ele ser um “eu te amo” ambulante.
— Gosto muito de saber disso, filho. Gosto de verdade. — Beijei sua
bochecha.
Percebi passos atrás de nós e logo avistei Joshua balançando os fios
loiros de Zion, passando ao redor do sofá.
— Também gostei de saber disso, garotão.
Ele sentou perto de nós no sofá e indagou:
— Zeta já está ligada?
Eu me esqueci completamente de ligar Zeta quando despertei. Já
passara da hora da lição matinal de Zion e eu precisava correr. Estava com a
mente tão bagunçada que me desliguei completamente.
Deixei Zion novamente no sofá vendo desenhos ao lado de Josh
enquanto corria até o quarto a passos rápidos, abrindo em seguida o armário
separado para a android que cuidava de meu filho.
Ao ligar o robô, ela elevou o rosto e me fitou:
— Estamos com mais de uma hora de atraso, senhora Samuels.
— Eu sei, Zeta. Tente ser breve na lição matinal de hoje, mais tarde
compensamos após o almoço, sim?
O robô que nada tinha em semelhança a um humano, assentiu e
caminhou atrás de mim até a sala, chamando Zion para sua aula.
— Vamos filho. Mais tarde vou perguntar se aprendeu mesmo —
incentivei.
Um pouco chateado por acabar com sua diversão, Zion seguiu com
Zeta até o escritório pequeno da casa.
(...)

— Só vocês para me fazer ficar catando penas de ganso!


Estava furiosa com aquela terapia ocupacional que me fez perder
alguns longos minutos da minha manhã. A guerra de travesseiros
simplesmente enfestou a sala de penas.
Por um lado, afastou a sombra obscura que me preparava para o dia
que estava se aproximando.
E lá estava eu, catando uma a uma com a mão e depositando num
saco plástico.
— Zion precisa de algumas atividades diferentes, de vez em quando.
Ele é criança, tem que gastar as energias.
Josh me ajudava a catar na velocidade de uma lesma com retardo.
— Quando for assim, você pode levá-lo à superfície. Sabe que para os
demais você é o pai dele, pode simplesmente cadastrá-lo em alguma
escolinha. Não sei…
Dei de ombros e o deixei refletir. Mas Josh sempre tinha uma resposta
para tudo, eu já me acostumei a não deixá-lo sem palavras.
Ele sempre respondia. Sempre já tinha pensado naquilo que eu falei.
Era incrível.
— Já pensei nessa hipótese, mas li numa matéria que quando a família
se muda demais, se desloca ou viaja constantemente, o ideal é não criar tantos
laços afetivos. A criança pode se apegar a uma ou duas pessoas a cada local
que vai, é normal. No entanto, quando é inserida numa comunidade de muitas
pessoas e depois retirada abruptamente de lá, sente a perda numa intensidade
maior. Pode criar uma lacuna que faz com que a criança seja procrastinadora
no futuro, raivosa ou amargurada.
— Já nem me surpreendo com suas respostas.
Falei ainda juntando as penas, mas cometi o grande erro de levantar
os olhos e vê-lo muito perto com a sobrancelha arqueada, sugestiva.
— Devo me preocupar por não te surpreender de alguma forma?
Babaca!
Corei.
Ele não tinha que ficar falando daquele jeito àquela hora da manhã,
ainda mais insinuando coisas maldosas. Nessas horas eu odiava ser uma
amiga tão íntima.
— O que você tem de inteligente, tem de idiota. Para de fazer isso.
Me virei de costas para ele e segui para os cantos da sala onde ainda
havia penas.
Ele riu. Simplesmente. Sem dizer mais nada.
Mas um aperto no meu peito me delatou lembrando que ele se
mantinha ali. No meu peito.
E lá, ele jamais morreria.
No dia seguinte...
Antes que o relógio apitasse a fim de me despertar, já me levantei.
Aquele era um dia marcante no ano, o dia em que eu precisava me isolar de
tudo e todos.
Me encarei no espelho do banheiro da suíte e me concentrei nas
olheiras sobressalentes. Desde quando não dormia de modo decente? Já nem
lembrava. Lavei o rosto e fiz toda minha higiene matinal, antes de vestir-me
completamente empacotada pronta para o frio da superfície.
Inspirar o ar congelante da estação fazia com que o aperto no peito
amenizasse.
Era cedo, Zion e Joshua ainda dormiam então me empenhei em não
fazer barulho algum. Apenas me desloquei para fora e tomei o elevador que
levava até a superfície.
Chegando na área externa, permiti que o vento gelado abraçasse meu
rosto sem dó nem pena. Fechei os olhos.
Era o exato dia em que completara cinco anos.
Cinco longos anos.
Caminhei pelo amplo espaço enevoado sem nada em vista. Morava no
breu. No meio do nada. O sol mal começara a nascer e meus passos
incessantes pelo campo alvo e deserto, me provava que ano após ano sempre
seria a mesma coisa naquele dia.
Lembranças vivas.
Recordação de palavras tão acesas em minha memória, quanto se
fossem proferidas naquele instante.
“Riv, eu menti.”
Estava ofegante, já cansada de tanto andar, mas não podia parar.
Devia acompanhar o ritmo das batidas loucas do meu coração que diziam
apenas “mais um ano passou”, “nada vai acontecer”, “suas esperanças já
acabaram”.
“Você vai viver, por mim.”
Era o que eu tentava e tentava, desde o momento que entrei naquela
casa após a perda que levou consigo fragmentos da minha alma e coração.
Se não fosse Zion... Se não fosse a determinação em fazer todo o
patriarcado pagar caro...
Despenquei no chão, já sem força nas pernas. Havia andado por muito
tempo no frio impiedoso do Canadá. Mal conseguia respirar.
Aquela era minha rotina anual. Todo ano, quando a morte dele fazia
aniversário eu estava lá, arriscando minha própria vida tentando entender
simplesmente o porquê.
Por que ele me deixou?
Será que estou fazendo jus à sua memória da forma como ele queria?

(...)

Quando entrei um tanto aérea em minha casa subterrânea, braços


fortes me envolveram.
Eu só fechei os olhos e relaxei, pois sabia quem era.
— Um dia vai passar. – Ele beijou o topo da minha cabeça.
Respirei fundo e me permiti acreditar naquelas palavras. Palavras de
uma pessoa que não viveu o que eu vivi. Não amou como eu amei. Não se
entregou como eu me entreguei.
Mesmo sendo impossível acreditar nelas, eu me permiti ser enganada
por um tempo, apenas pra respirar melhor.
Crer que um dia a dor latejante da perda do homem da minha vida iria
embora, fazia doer menos naquele dia. Ao menos naquele dia.
Me afastei do abraço sempre protetor de Josh e me arrastei para a
cozinha. Precisava aplacar toda a melancolia com café forte e sem açúcar.
— Se não quiser falar sobre isso... Tudo bem. – Ouvi sua voz atrás de
mim, enquanto eu mexia na cafeteira.
Ser amiga de Joshua era um presente.
— Doeu. Só isso. Ainda doeu. Enquanto continuar doendo será a
mesma coisa, todos os anos. Eu só preciso vestir meu traje de supermãe e
mulher maravilha, fingindo que nada aconteceu. Que hoje é um dia normal.
E que um dia, essa data não vai ter mais o poder de me desfazer em
cacos.
Mal sabia o que o destino estava preparando para mim. Estava mais
próximo do que eu podia imaginar.
Capítulo 8
Rivka
ANTES
“Já fez dois anos que eu fui, meu bem.
Sempre quis saber como esse termo “meu bem” sairia dos meus
lábios, mas nunca ousei proferir. Saiba que você é meu bem mais precioso.
Se cuide. Se permita cuidar de si mesma.
Eu devo estar no inferno, já que não sou um anjo como você, então
trate de se manter essa mulher maravilhosa e admirável para que um dia
possa encontrar com seu adorado Adonai.
Pelo jeito que você fala Dele, ele vai te receber de braços abertos.
Essa carta aqui está sendo escrita com você dormindo ao meu lado,
na madrugada, na casa secreta do Canadá. Você está tão empolgada com
nosso futuro, com nossos planos. Eu me sinto um lixo por ter que estragar
tudo.
Mas não se preocupe. Pensei em cada mínimo detalhe.
Se não estou mais no mundo dos vivos, ao menos me permiti
organizar tudo o que estava ao meu alcance.
Josh já deve ter te preparado e você deve estar perto de derrubar o
Patriarcado. Certo?
Eles não lutam para morrer, Riv. Eles lutam para matar. Eles
mandam em tudo então NÃO CONFIE EM NINGUÉM.
E se, até Joshua te der motivos de desconfiança, desconfie.
Sua sombra pode te trair, eu escutava isso o tempo todo.
Assim que puder, procure notícias sobre minha mãe. Se já não
mataram ela. Temo o perigo que ela corre, mas é inevitável que aconteça sua
morte.
Eu acredito em você.
Te amo para sempre,
Malcolm Samuels.”
A cada maldita carta era a mesma sensação dilacerante e dolorosa.
Quando vai passar?
Dois anos haviam se passado e eu não tinha mais esperanças de que
ele pudesse estar vivo. No fundo, acreditava que seu plano era apenas fingir a
morte, mas quem conseguiria fazer isso por dois anos longe da pessoa que
ama?
Eu vi os escombros. Eu vi as cinzas.
Não tinha como ele se salvar.
Pedi a Joshua para averiguar sobre a mãe de Malcolm e o esperado
realmente ocorreu. Ela acabou falecendo meses depois, naturalmente.
Então a cada ano, a dor era maior e a esperança, menor...
Zion já corria, andava, falava muitas palavras. Ele era muito evoluído
para a idade dele. Tinha apenas um ano e meio e já contava até dez e entendia
algumas letras do alfabeto. Eu o achava super inteligente por isso, no entanto,
o que mais me preocupava era que eu começaria a treinar com Joshua e
deixar Zion com a Android que compramos num mercado clandestino.
É um robô de última geração. Zeta tem Inteligência artificial e guarda
qualquer tipo de informação útil. Consegue reproduzir até expressões
sentimentais através das palavras.
Preenchi o HD dela com tudo sobre a educação de Zion e a grade de
horários. Nos primeiros dias, ela estará no modo repetição, pois assim ela
aprenderá como eu faço com Zion e poderá reproduzir da mesma forma. O
carinho, o cuidado, a atenção, tudo.
A primeira orientação que Joshua me deu foi me cadastrar em uma
academia. Lá eu ficaria em forma e faria meu corpo suportar peso e pressão.
Foi o que eu fiz.
Durante o segundo para o terceiro ano, muitas barreiras foram
quebradas entre Joshua e eu. Ele finalmente estava me ensinando tudo que
sabia e, como um maravilhoso professor, teve paciência e compreendeu meus
momentos de tristeza.
Um dia durante um treino eu tive o vislumbre do dia em que Malcolm
morreu. As imagens voltaram como um flash enquanto nós treinávamos
golpes sobre a superfície congelada da área externa.
Ali eu descobri que estava com ansiedade. Quando me vi sem ar, com
o coração palpitando e simplesmente achando que eu ia ter um surto e
simplesmente morrer.
Eu achei que ia morrer.
A cabeça ficou completamente embaralhada e eu não sabia se
desmaiava ou me mantinha em pé, respirava ou me deixava levar, bebia uma
água ou botava qualquer resto dentro de mim para fora.
Estava uma confusão total.
Depois desse dia os cuidados de Josh comigo foram ainda mais
intensos. Ele começou a ler minhas ações e prever tudo o que eu sentia ou
faria. Ele me estudou e com isso, conseguiu minha total confiança.
Até que o terceiro ano depois da morte de Malcolm chegou e com ele,
um adeus definitivo.
Três anos.
Três malditos anos.
(...)
Depois de fazer Zion dormir e desligar Zeta, me arrastei até a sala e
peguei a bebida mais forte que eu tinha na minha adega.
Me servi de um copo generoso e me sentei naquele sofá frio de couro
preto, ansiando que a quentura da bebida pudesse queimar qualquer vestígio
de lembrança de Malcolm em mim. Eu queria tanto poder esquecer, queria
tanto poder viver sem seu fantasma me assombrando!
Mas eu o amava de verdade. Se não tinha tanta certeza do fato quando
ele estava vivo, após três anos de sua morte, já não me restava dúvidas.
Eu jamais amaria outra pessoa senão Malcolm Samuels.
— A vida é um jogo ferrado.
Proferi enquanto ingeria a bebida, imersa nas minhas memórias, nos
meus pensamentos loucos e insanos.
Minha visão turva pelas lágrimas não me permitia enxergar muito
bem naquela meia escuridão. A sala estava pouco iluminada apenas pelo
pequeno artefato luminoso sobre a mesa de centro, no entanto, eu levantei e
me permiti repetir diversas doses da bebida.
Até que mal lembrava meu próprio nome.
Já entorpecida nas minhas recordações, levei minha mão para dentro
de meu pijama, deslizando-a por minha barriga até alcançar minha peça
íntima. Queria sentir ao menos algum prazer naquilo tudo, afinal.
Malcolm sempre soube onde me tocar. Ele sempre me fez me sentir
nas nuvens quando me fazia sua. Eu não conseguia sem ele, mas podia tentar.
Queria.
Por longos minutos estive ali, me aliviando sozinha, já deitada no sofá
da sala imersa às lágrimas e aos gemidos de um prazer solitário e triste.
— O que está... Oh, não.
Alguém disse, mas nem abri os olhos para ver. Estava letarga, imersa
na minha própria insanidade.
Senti o sofá se afundar um pouco perto de mim e em segundos fui
levantada como se pesasse uma pena, e posta no colo dele, como um bebê.
— Shhiu... eu estou aqui. Vai ficar tudo bem.
Não era a voz grave de trovão que eu esperava ouvir. Era uma voz
firme, máscula, porém suave ao mesmo tempo. Me trouxe um pouco de paz
no meio do caos.
Tirei minha mão da minha intimidade e me abracei, deixando as
lágrimas livres para fazerem seu percurso.
— Três anos. Não aguento mais. Não aguento.
Mas ele nada disse, só me embalou até que eu não mais chorasse.
E longos minutos se passaram.
A noite se tornou madrugada e, assim que a luz fora acesa, eu já tinha
recobrado um tanto da minha consciência que a bebida havia levado. Era
Joshua ali. Ele sempre vinha ao meu socorro.
Minha cabeça doía um pouco, mas depois do quinto copo cheio de
água, consegui assimilar o que aconteceu.
— Eu devia estar um horror de se ver. Me desculpa, Joshua.
Estávamos lado a lado no sofá. Ele acariciava minhas costas, num ato
protetor que era comum a ele.
— Estava bastante escuro, não vou dizer que a cena era desagradável.
Acho que você estava tendo orgasmos deitada aqui nesse sofá. Ao menos os
gemidos eram bastante verdadeiros.
Corei. Droga.
Eram poucas as vezes que eu chegava nesse extremo. Nunca permiti
que me vissem assim, que enxergassem minha vulnerabilidade e carência.
Não queria que Joshua tivesse visto.
— Três anos, Josh. Eu sinto falta.
Ele pigarreou e largou a mão que me acariciava, unindo com a sua
outra mão em um aperto com os braços sobre as pernas.
— Você não tem que me dar explicações sobre nada, Rivka. Somos
amigos, adultos, donos do nosso nariz. Não precisa explicar. Eu só quis
quebrar o gelo, te mostrar que pode se abrir comigo, mesmo quando parecer
que é... constrangedor demais. — Ele tomou uma boa dose de ar e a liberou
logo em seguida. — Vivo sozinho desde que me entendo por gente. Sei o que
está sentindo.
Aquilo me fez virar o rosto na direção dele e fitá-lo com curiosidade.
— Nunca teve um relacionamento de verdade, Josh? — Ele abanou a
cabeça, negando. — Oh! Então... nunca teve sexo?
Minha indagação fez com que ele soltasse uma curta risada, mas
assim que os olhos achocolatados me encararam, uma faísca se acendeu
neles. Rápido, mas eu notei.
— Sempre encontro nas minhas missões por aí, algumas mulheres
dispostas a dar prazer sem elo emocional. Se é que me entende. Mas nunca
tive um relacionamento. Pra mim não funciona ter um. Vai contra tudo o que
eu planejei para minha vida.
Assenti e de imediato me lembrei o que eu mesma estava fazendo
horas antes. Ele me viu... Ele me assistiu...
— Você ficou olhando?
Como se lesse por trás das entrelinhas, sem precisar de mais
explicações, ele respondeu:
— Não. Cheguei porque ouvi um barulho estranho. Não pensei que
poderia ser gemido de prazer. Assim que te vi bêbada se tocando, quis te
ajudar a organizar sua mente. Você parecia perdida. Logo te abracei e tentei
acalmá-la.
Assenti.
Um silêncio do tamanho de um abismo imperou entre nós e eu remoía
tudo o que tínhamos conversado em mente.
Já fazia três anos. Malcolm não voltaria. Voltaria?
— Ele não vai voltar, não é?
Joshua uniu as sobrancelhas num suspirar penoso, e disse:
— Não, Rivka. Ele não vai voltar. Pelo menos, não que eu tenha
ciência.
Finalmente a resposta que eu tanto esperava saiu de seus lábios.
Joshua não tinha coragem de me contar sempre que eu perguntava. Ele
desconversava, dizia que eu tinha que viver e deixar que o destino faça seu
trabalho. Mas ele sempre soube. Ele sabia que Malcolm não vai voltar nunca.
Josh levantou e caminhou até a cozinha americana.
Fiquei admirando-o de longe. Ele tinha os cabelos num tom
chocolate, como os olhos, e sua barba era grande, bem aparada, cuidada
mesmo cheia. Seu corpo parecia moldado numa academia, mas não era um
corpo de adolescente. Ele era forte, viril. Do jeito que estava naquela cozinha,
apenas de calça moletom e torso nu, podia causar ataques cardíacos em
muitas menininhas desavisadas.
Sorte que não sou uma menininha.
Ele era lindo. Não podia negar. Jamais o tinha visto com esses olhos.
Os olhos de uma mulher que deseja saciar suas vontades com um homem.
Me perdoa, Deus. Eu não sei o que estou fazendo!
Minha mente conturbada não me permitiu ficar remoendo decisões,
então apenas me levantei decidida.
Ele preparava um café, ou algo do tipo, pois nem me permiti olhar
direito. Apenas retirei minha blusa do pijama e meu short, ficando somente
de calcinha rendada. Caminhei a passos lentos na direção dele, sem ser
notada, mas no curto segundo que seus olhos se elevaram, ele os abaixou
novamente num hábito, mas logo os elevou de novo, espantado.
— Puta merda — proferiu.
Antes que ele pudesse dizer algo mais, eu já estava de frente para ele,
tapando seu lábio com o indicador.
— Eu não aguento mais, Josh. Sou mulher, sou adulta, sou mãe e
ainda quero arriscar minha vida pra acabar com aquele câncer do Patriarcado.
Preciso, ao menos algumas vezes, ter momentos prazerosos. Quero que me
ajude.
Me senti uma mulher horrível por dentro. Não queria trair a memória
do homem que eu amo, mas ele não voltaria. Já tinha se passado três anos.
Deixei os lábios de Joshua livres, e a resposta logo veio.
— Seremos sempre amigos.
Assenti.
— Sempre amigos — afirmei.
— Eu não posso te dar amor, Rivka.
— Eu não quero amor, Josh. Eu já amo alguém, mas essa pessoa está
morta.
Ele assentiu.
— Isso não pode mudar nada entre a gente. Absolutamente nada. —
Deu mais uma condição.
— Nada vai mudar. — Respirei fundo, encarando o mar de chocolate
nos olhos dele com firmeza. — Eu só preciso de sexo, uma vez ou outra para
aplacar a tensão. Eu não conseguiria com mais ninguém, Josh. Não sou o tipo
de mulher que transa com qualquer um. Eu estou me sentindo altamente
estressada e cheia de problemas, sinto saudade dele, mas ele não vai voltar
pra matar essa vontade louca que corre aqui dentro — apontei para meu
peito. — Queria que fosse ele, mas ele não está aqui.
Joshua assentiu, ainda sério. Parecia analisar bem antes de decidir
sobre aquilo. Para mim parecia simples. Somos parceiros no plano contra o
patriarcado e amigos fora dele, nada mudaria, a não ser nas noites mais
sombrias onde eu precisasse libertar toda tensão acumulada. Ele seria meu
escape e eu o dele.
— É uma troca, Joshua. Você não precisa procurar ninguém enquanto
eu estiver aqui. Vamos nos ajudar. Vai poupar seu trabalho.
— Rivka. — Ele tocou meu rosto com carinho e estreitou o cenho ao
dizer:— Um dia isso tudo vai acabar e eu vou embora. Quero apenas me
assegurar de que sexo não vai ser um elo entre a gente. Preciso me manter
livre, como sempre fui.
Sorri.
— Ouvir isso me alivia a alma. Porque a última coisa que eu quero é
um homem apaixonado me atormentando.
No segundo seguinte, os lábios dele reivindicaram os meus.
Foi terno, suave, delicado. Pude fechar meus olhos e substituir todas
as sensações que Josh estava me causando, pelas que eu sentia anos atrás com
o homem da minha vida.
Enquanto Joshua envolvia suas mãos nas minhas coxas e suspendia
minhas pernas, eu via Malcolm fazendo o mesmo, na minha cabeça.
Ele me carregou agarrada em si até seu quarto, me jogando sobre a
cama assim que fechou a porta.
— Não dá mais para retroceder, Rivka. Já estou duro aqui. Vou durar
a noite inteira.
Foi um alerta, mas eu estava imersa nas minhas recordações e apenas
disse:
— Pode durar duas, até.

(...)

As mãos hábeis dele mantinham as minhas elevadas acima da cabeça


enquanto nossos corpos se chocavam em um só.
Não houve muitas preliminares, estávamos ansiosos, tanto eu, quanto
ele, então ele logo colocou seu preservativo depois de sua boca preparar todo
o caminho, e me possuiu da forma mais bruta e visceral que existia.
Era daquele jeito que eu me lembrava quando pensava em Malcolm.
Do jeito possessivo, intenso, bruto. Queria sempre assim.
— Ah.... Oh... Mais, mais... — Gemia sem pensar.
Meus pensamentos eram incoerentes e, mesmo tendo bebido horas
antes, não me sentia bêbada. Me sentia apenas entorpecida. Queria ficar ali,
entregue, para sempre.
As investidas do corpo rígido e forte de Josh contra o meu eram
profundas e avassaladoras. Ele ia sempre o mais fundo que podia e voltava
quase saindo de mim, retornando com fúria novamente.
— É assim comigo, Rivka. Não sei ser bonzinho entre quatro paredes.
Ofeguei e apertei mais suas mãos sobre as minhas, ali no colchão.
— Estou acostumada. Não pare.
Ficamos naquela posição, ele sobre mim, por um tempo, até que da
mesma forma que fui lançada sobre a cama quando chegamos ao quarto, fui
virada por ele como uma boneca e depois senti minha bunda arder.
— Ai! — Gemi, não sabia se era de dor pela ardência do tapa ou
prazer.
— Vem cá, na pontinha da cama. De joelhos.
Me coloquei onde ele tinha orientado e fiquei aguardando sua entrada
nada sutil enquanto meus joelhos e minhas mãos se mantinham firmes sobre
o colchão.
Ficamos ali, entregues às sensações de liberdade e êxtase à noite
inteira. Não me lembro quantas vezes eu vi estrelas e cheguei ao ápice, mas
Joshua não demorava muito para estar logo pronto para outra.
Só notei que havia se passado muito tempo, quando na última vez que
transamos, o alarme dele soou.
Ainda estávamos atrelados sobre a cama, envoltos no lençol branco
fino, onde ele me fazia sua de conchinha, lento, calmo.
— Acho que vou querer comer você todo dia — sussurrou ao pé do
meu ouvido no instante em que chegamos juntos ao ápice.
Esse linguajar sujo e impessoal me incomodava um pouco. Estava
acostumada a ouvir apenas Malcolm falando besteiras em meu ouvido, me
fazendo arrepiar e desejar ainda mais dele. No entanto, aquilo não era um
relacionamento, então eu não tinha opção de me incomodar ou não.
Nossos papéis eram somente aquele.
Dar e sentir, sem cobrar nada.
E depois que saí de seu quarto e fui para o meu, abri imediatamente o
cofre à procura da carta daquele ano e me surpreendi ao contabilizar quantas
tinham lá. Eu já tinha lido todas.
Malcolm também havia me dado adeus.
Capítulo 9
RIVKA
ATUALMENTE
— Preciso começar a planejar meu futuro.
Proferi depois de mais uma madrugada onde minhas vontades loucas
e carnais ditaram as regras. Joshua me olhava espalhado na cama, com os
braços cruzados sob a nuca.
— Você sempre diz algo do tipo.
Inseri a blusa e indaguei de pé, frente a cama onde a minutos antes
estávamos embolados.
— Não entendi. Como assim? — Pus as mãos na cintura e me
mantive ali, aguardando suas análises.
Nossos momentos extravagantes juntos não eram tão frequentes, mas
se tornaram necessários, ainda mais em tempos tão loucos como os que
estamos vivendo hoje em dia.
— Depois da transa. É como se quisesse escapar para um terreno
neutro. Rivka, somos amigos a bastante tempo, não precisa fugir dos
problemas. O que está havendo?
Rolei os olhos por constatar, mais uma vez, razão no que o bendito
havia dito e me sentei na beirada da cama, fitando a imensidão achocolatada
que era seus olhos.
— Eu penso nele. Só isso. Então procuro alguma coisa com que
pensar. Agora, por exemplo, me veio em mente que logo, logo o patriarcado
acaba e... O que farei com minha vida e a de Zion? Como vamos lidar com
tudo depois?
Ele elevou o torso, sentando-se e aproximou seu corpo do meu.
— Não faço a mínima ideia, mas de uma coisa eu sei: Você poderá
fazer o que quiser, sem culpa ou medo. E eu... Bem, eu te deixarei livre de
uma vez por todas. Mas só depois de tudo isso, não antes!
A lealdade às promessas e deveres que Joshua possui são de se
admirar. Eu não queria que ele sentisse como se eu e meu filho fôssemos um
fardo que está carregando ao longo dos anos, mesmo sendo pago para isso,
então sempre o lembrava da sua liberdade. Eu desejava que ele fosse feliz.
— Tem razão. — Alisei as pernas num gesto tranquilizador. — Acho
que é hora de voltar ao quarto. Até mais, Josh.
Me levantei e não esperei sua despedida, saí do quarto indo para o
meu e quando o abri, avistei o pequeno menino de fios dourados em sua
cabeça, dormindo serenamente como se nada na vida fosse difícil. Como se
tudo fosse lindo e perfeito.
— Amo você, Zion. Para sempre.
Me deitei ao lado do meu pequeno e pedi a Adonai que me desse uma
noite tranquila como a que estava dando ao meu filho.

(...)

— Isso! Mais um tiro certeiro.


Era dia de treinamento de tiro ao alvo e o espaço que construí próprio
para isso no subsolo testemunhava as longas horas que eu passava
semanalmente ali, enquanto Zeta dava aulas particulares escolares ao meu
filho.
De todas as balas disponíveis, acertei o centro do alvo em todas as
chances, restando apenas uma bala em minha pistola.
Empunhei o objeto pesado ao alto e mirei onde queria acertar,
disparando em seguida.
— Há! Uhul!
Dei alguns pulinhos comemorando minha maravilhosa pontaria.
Estava sozinha naquele recinto, Joshua tinha ido ao mercado e faria
sozinho a compra do mês. Enquanto eu treinava, minha mente se esvaziava
de todo o processo que eu estava vivendo internamente.
Sentia o fim perto de acontecer. Era como se as respostas para todos
os dilemas dos últimos cinco anos fossem enfim ser revelados e aquilo mexia
com minha ansiedade.
Depois que saí do tiro ao alvo, fui para a academia muscular e fiquei
ali fazendo alguns exercícios, detonando minha manhã. Até que Zeta me
chamou com seu sinalizador.
Era um aparelhinho como os de uma babá eletrônica, porém bem
pequeno. Fica no meu pulso e geralmente só uso quando estamos em casa em
cômodos diferentes. Tenho medo de destruí-lo lá fora e alguém acabar
roubando.
— Diga, Zeta.
— Senhora Samuels, Zion já completou toda a aula de hoje, posso
permitir que ele assista desenhos animados na tevê?
— Pode sim. Logo estou aí.
Desliguei e segui para o banheiro disposto ali do lado da minha
academia particular. Eu já tinha usufruído de uma grande parte do dinheiro
que Malcolm me deixou. Aumentei alguns cômodos na casa e construí
outros, para que eu conseguisse fazer tudo que eu quero. Mas isso foi depois
do adeus definitivo dele, quando fez três anos de sua morte.
Eu compreendi que Malcolm nunca mais voltaria então precisava
viver da melhor forma, para que ele se sinta orgulhoso onde quer que esteja.
E mesmo sendo um poço de ciúme e possessividade, ele gostaria de
saber que apesar do sexo tórrido, Joshua e eu nos tornamos amigos e
cumprimos tudo o quanto ele designou.
JOSHUA
Rivka é, definitivamente, a mulher mais teimosa do planeta.
Caso um dia eu encontre uma versão pior, terei de pedir perdão para
Rivka, no entanto, por hora, ela bate o recorde.
Quando Malcolm me contava sobre ela, eu não imaginava quão real
ele estava sendo em suas definições.
“Ela é teimosa, meu caro. Teimosa mesmo, do tipo ninguém segura.”
“Acho que vocês serão amigos, depois dela querer te matar pelo
menos algumas vezes.”
“Riv é doce, mas só com quem merece. Ela aprendeu que a vida é
dura e acabou se tornando um pouco dura também.”
As poucas vezes que nos comunicamos para falar do plano em que eu
seria o treinador da sua esposa, ele foi bem detalhista ao falar dela.
Dava para notar o quanto Rivka era especial para ele.
Mas essas lembranças com o defunto me invadem a mente toda vez
que eu encaro Rivka de modo despretensioso e desejo simplesmente comê-la
por inteiro como se fosse uma fruta suculenta.
A mulher é uma dinamite na cama e eu não ando conseguindo me
afastar ou manter o controle.
É tesão puro. Cru.
Mas não quero que ela acabe se machucando mais uma vez.
Por isso digo que sim. A teimosia dessa mulher um dia pode dá-la o
poder de dominar o mundo, porque francamente...
Estou fazendo as malditas compras no lugar dela esse mês graças à
sua teimosia.
— Magnus!
Uma voz feminina chamou meu nome falso, enquanto eu escolhia as
frutas no meio do mercado.
Logo virei o rosto e vi a bela ruiva se aproximando.
Linda, cheia de curvas e com um corpo moldado em academia.
Deliciosa.
— Opa.
Seus dentes brancos se expandiram ao me ouvir responder, em
instantes ela estava do meu lado, tocando meu braço.
— Quanto tempo não nos vemos. O que anda fazendo?
Concentrei-me no meu percurso e segui empurrando o carrinho até o
setor de carnes, enquanto falava com Diana.
Eu jamais esqueço um nome, e o dela não custou muito a me lembrar.
— Muito trabalho, muitas viagens. Meu filho está crescendo então
também tenho dado mais atenção a ele...
Ela enganchou o braço no meu e seguiu falando.
— Queria ver você outra vez. Sabe que eu acabei meu relacionamento
né? Aquele que eu comecei um pouco depois de você me dispensar. Estava
pensando aqui comigo... — Aproximou a boca do meu ouvido. — Será que
você não quer uma geral? Eu faço tudo e topo tudo.
A proposta dela me chamou atenção. Eu nunca transei com outra
mulher depois do acordo que fiz com Rivka, mas já estava começando a
perceber que ela comparecia à minha cama com mais frequência.
Precisava cortar o mal pela raíz e me acostumar com a vida que
levava antes, porque em breve eu estarei indo embora. Nosso plano está
quase no fim.
— Quero sim, Diana. Bom pra você amanhã à noite? Naquela casa?
— Vai deixar a casa só pra gente?
Ela sorriu com os olhos arregalados em espanto. Diana não ligava
muito para locais onde se deve trepar. Onde a gente se via, saía se comendo.
Mas daquela vez eu queria algo diferente.
— Sim. Só nossa.
Ela sorriu da maneira mais safada que podia existir e eu senti meu
corpo reagir.
Amanhã promete.

(...)
Chegando em casa, me surpreendi pelo silêncio absoluto que reinava
naquele lugar. Fui deixando as bolsas com as compras no chão da cozinha e
caminhei a passos lentos até o quarto de Rivka.
Ao abrir lentamente a porta, avistei ela e Zion dormindo como dois
bebês sobre a cama. Ela estava com os cabelos molhados, trajando um
shortinho com um top no busto. Provavelmente tinha tomado banho e acabou
dormindo antes de se vestir por inteira.
Verifiquei o aquecedor, para que a temperatura ficasse agradável para
os dois e saí do quarto.
Adentrei meu quarto e abri o notebook no modo de segurança
máxima. Nenhum código ou criptografia daquele meu computador poderia
ser rackeado e isso me ajudava demais em todos os serviços que tenho pelo
mundo.
Ao abrir meu e-mail, verifiquei um que tanto estava aguardando.
Fiz o download da minha mensagem codificada e abri o arquivo,
decodificando em seguida.

“Meu caro.
Segue abaixo a localização de duas organizações rebeldes que podem
estar fora do domínio do Rei do Sul. O endereço final do esconderijo do Rei
do Sul, também está abaixo.”
Finalmente a resposta que eu tanto ansiava havia chegado.
Agora era nos preparar, viajar e fechar esse ciclo.
Capítulo 10
RIVKA
Meses se passaram e muita coisa mudou na minha cabeça, durante
todo o processo de treinamento para as últimas organizações rebeldes que
precisamos alcançar.
Joshua garantiu que seu informante revelou que ainda havia duas
organizações na américa do sul, fora do domínio do Rei do sul, e passamos
dois meses nos preparando para invadí-la e conquistá-la.
Enquanto isso, meu elo com Joshua começou a ficar mais distante.
Nossa amizade se manteve intacta como sempre foi, no entanto ele não estava
mais tão disponível nas noites como era antes. Confesso que eu estava
ficando mal acostumada a sarar dores da minha alma com sexo, mas
ultimamente ele tem sumido e retornado no meio da madrugada, sem me
dizer muita coisa.
Me parece que é um ensaio para o afastamento definitivo e eu me
sinto indiferente a tudo isso. Não é como se eu tivesse desenvolvido
sentimentos românticos por ele, isso não aconteceu. Mas me surpreendo
quando paro e penso que tudo está chegando ao fim. Finalmente poderei em
breve ser feliz com meu filho e viver uma nova vida.
O grande dia enfim chegou e nosso avião particular já foi preparado
para a longa viagem. Seguimos nós quatro: Joshua, Zion, eu e Zeta, para o
Uruguai: Um dos países destino da nossa viagem final.
Conseguimos nos hospedar em uma casa alugada bem reservada,
como sempre fazemos, e de lá, ficamos uma semana firmando e solidificando
o plano, analisando por fora o local onde invadiríamos. Uma fábrica
abandonada de papéis higiênicos. A organização está instalada no subsolo,
como diversas que já nos deparamos durante essa missão.
(...)
Era tudo ou nada.
Não havia saída, ambos estávamos encurralados sem saber como agir.
Tudo tinha saído do controle e do plano. Fingir ser quem não é para criar
alianças dentre organizações rebeldes estava custando caro para nós.
Os homens mascarados daquela sala, estavam com os braços cruzados
em fileira, apenas observando Josh com os braços presos à corrente suspensa
no teto, enquanto faziam questionários. Eu era mantida cativa por um dos
homens daquele grupo, com os braços para trás e boca tapada.
- Não vou perguntar muitas vezes mais. De onde vêm e o que estavam
querendo ao invadir minha base?
O chefe daquele grupo se assemelhava a um militar rebelde. Andava
em passos calculados, como numa marcha. Sua roupa completamente preta
unindo-se à máscara facial denotava a escuridão que havia em seu interior.
- Eu já expliquei, senhor. Sou apenas um pesquisador local. Estava de
visita ao país e por acidente acabei me aventurando por suas terras.
Josh afirmara com o domínio da mentira.
Era perito em disfarces.
Após a afirmação, o olhar dele percorreu a sala obscura até dar de
encontro com meus olhos, que aguardava apenas um sinal para o ataque. Josh
utilizou a linguagem combinada previamente, olhando para o teto e
pressionando os olhos lentamente.
Era um sinal para que eu desse o último argumento para que
pudéssemos ser livres.
- Eu coordeno essa equipe há anos. Estou aqui nessa base há tempo
demais para saber que ninguém chega aqui por acaso. – O chefe, estando no
meio da sala, entre eu e Joshua, apontou para os dois simultaneamente. –
Podem executá-los.
Imediatamente abri a boca e mordi a mão do homem que me calava, o
fazendo liberar meus lábios.
- Por favor, temos um filho! – E comecei a parte mais dramática de
toda a encenação, debulhando-me em lágrimas. – Como ele viverá sem os
pais? Não sabe nem tomar banho sozinho, é apenas uma criança. Perdoe-nos,
não temos a intenção de nada, nos enganamos, senhor!
Esperançosa, me mantive chorando até que o chefe mascarado se
aproximou e me analisou de cima a baixo. Eu estava com meu melhor
disfarce. Cabelos ruivos, e lentes de contato verdes, além de uma roupa no
melhor estilo beata, cobrindo-me do pescoço aos pés, acompanhada de um
óculos fundo de garrafa.
Um dos soldados daquela organização, falou:
- Mestre, os acusados não parecem mesmo culpados. Acredito que
possam ser liberados.
O clima de dúvida sobre executar ou não Joshua e eu pairou pelo ar
por curtos segundos, até que o chefe, sem dizer nada, andou até Joshua e
inseriu a chave na sua algema, liberando-o.
Joshua não era, nem jamais foi homem de perder oportunidades, e
imediatamente usou as correntes que havia acabado de se soltar, para
envolver o pescoço do chefe da organização.
Antes mesmo que seus soldados se alvoroçassem, abaixei, virei o
corpo, aproveitando a distração do soldado que me prendia, e o golpeei na
virilha, fazendo-o gemer e se afastar. De pronto retirei o armamento do coldre
dele e me mantive em posição de ataque para que nenhum soldado se
aproximasse de mim.
Enquanto isso, Josh mantinha o chefe preso pelo pescoço, com sua
arma também em mãos.
- Se vocês se aproximarem de nós, matamos seu chefe – afirmou ele
em seu tom autoritário.
Josh e eu nos entreolhamos e um sorriso cúmplice e sorrateiro brotou
em nossos lábios.
Mais uma batalha vencida.
Depois de fecharmos mais uma aliança praticamente baseada na
pressão, voltamos para nossa casa alugada, onde Joshua imediatamente foi
brincar com Zion, me deixando apenas olhando a cena, imaginando como
seria se fosse Malcolm ali.
Ele seria um bom pai?
Ele daria carinho e atenção para nosso filho?
O Malcolm que me casei talvez não fosse o melhor dos pais, no
entanto o que eu vi morrer por mim, faria de tudo para que fôssemos a
família mais feliz do mundo.
Eu tinha certeza disso.

(...)

— O que tanto analisa esses papéis?


Já era madrugada e eu imaginei que todos estivessem dormindo.
Caminhei pela sala pequena e me sentei na mesa de jantar, analisando todos
os papéis do nosso plano final.
Faltava apenas invadir o esconderijo do Rei do Sul, e quando eu
mencionava esse nome, um calafrio percorria minha espinha de baixo a cima,
fazendo-me temer o inesperado.
Jamais enfrentei alguém com tanto poder nesses últimos cinco anos.
Sempre foram organizações rebeldes particulares, independentes. Agora um
chefão que administra centenas delas de uma vez... Era uma novidade e tanto.
Seria um grande desafio.
Joshua, no entanto, apareceu e apoiou suas mãos em meus ombros.
— Eu apenas não quero falhar. Não podemos depois de termos
chegado até aqui.
Ele arrastou a cadeira ao meu lado e sentou, pegando em mãos os
papéis que eu já tinha analisado bem.
Era um plano perfeito. Cada acesso, cada disfarce, cada utensílio de
espionagem... Era o melhor plano até agora.
— Não vamos. – Ele respirou fundo e soltou de uma vez. – Se esse
Rei do Sul fosse sociável, eu diria para seduzi-lo. Mas ninguém sabe se ele é
um jovem imaturo ou um senhor de oitenta anos. O homem mal vê a luz do
dia. E lá todos também usam máscaras tapando parte do rosto. Fica difícil
identificar quem são do lado de fora.
— Mais uma organização em que usam máscaras? Que problema
essas pessoas têm em mostrarem o rosto?
Joshua deu de ombros e continuou analisando todo o plano, falando
em seguida:
— Pode ser porque é um modo de dividirem a vida dentro da
organização e a de fora. Pode ser que haja famílias, pais, trabalhadores, no
meio dessa loucura toda. Eles dominam as áreas que conseguem sem serem
vistos.
Assenti, com meu foco somente nos papéis.
Segundo as fontes de Josuha, o Rei do Sul existe há mais de setenta
anos, e seu legado nunca foi repassado a nenhum herdeiro até então. No
entanto não sabemos se a pessoa que representa o Rei, é o fundador, ou
algum que assumirá em breve. Há rumores de que o primeiro Rei do Sul
passou o bastão, mas ninguém pode confirmar, porque ambos agem com a
mesma postura autoritária e se escondem detrás de máscaras completas. Não
há quem tem a coragem de revelar o rosto do homem que está sentado na
cadeira principal, por isso apostam que ainda é o mesmo de sempre.
Se for um homem jovem que tem poder de nos derrubar com apenas
uma mão?
Essa era uma informação importante que deveríamos estar cientes, e
isso me incomodou profundamente.
— Eu quero ser a pessoa a enfrentar esse Rei do Sul. Sinto que posso
conseguir nossa aliança.
As palavras saíram sem nem eu pensar nelas. Apenas acabam saindo.
Joshua virou o rosto e me encontrou encarando o seu. Seu semblante
não revelou o que pensava da minha proposta, no entanto seus olhos
desceram por meu rosto e percorreram meu corpo que vestia apenas um
pijama simples.
Suas íris crepitaram o desejo inundado nelas.
Abaixei meu olhar. Não queria lidar com isso no momento.
— Acho que deve dormir.
Ele sussurrou e em seguida, levantou rumo ao seu quarto, me
deixando só outra vez. Meu medo era que ele confundisse nossa amizade e
nossa casualidade, mas eu comecei a perceber que ele me evitava mais do que
deveria.
Não queria que paixão fosse um problema nessa altura do
campeonato, ou então eu terei de me virar sozinha a partir de agora.
Capítulo 11
RIVKA
Zion estava indo maravilhosamente bem nas matérias escolares. Me
dava orgulho a cada vez que eu conferia suas tarefas, e no dia em que
finalmente eu ficaria cara a cara com o Rei do Sul, passei quase o dia inteiro
com meu filho.
— Parabéns, meu amor! Conseguiu ler mais algumas palavras!
Estávamos sentados lado a lado na mesinha que há na sala daquela
casa pequena que alugamos no Brasil, não havia vizinhança por perto,
vivíamos em um vilarejo afastado da cidade e, para chegar na vizinhança,
andávamos bastante.
— Agora só falta saber todas as palavras do dicionário, mamãe.
Eu o olhei admirando a inteligência e perspicácia que ele tem. Um
pouco mais de quatro anos e já saber ler bastante coisa é um avanço e tanto.
Segundo as orientações que eu pesquisei na internet, nessa idade as crianças
ainda estão aprendendo bem menos do que ele já sabe.
— O dicionário vai ser pouca coisa, quando você aprender a ler de
vez. Pode ter certeza.
Ele sorriu pra mim e me abraçou em seguida. A luz do sol se pondo
que vinha da janela na nossa frente, aqueceu o momento, me deixando ainda
mais sensível do que o esperado.
Me afastei do meu filho e enxuguei a pequena lágrima que acabou
caindo de meu olho.
— Você é tudo pra mim, Zion.
— E você pra mim, mãe.
Arrumei toda a bagunça de cadernos e deixei no canto da mesinha que
usávamos. Me apressei em dar um banho em Zion enquanto Joshua estava no
quarto organizando nossos equipamentos para essa fase importantíssima da
minha missão.
Assim que repassei com Zeta todas as coordenadas para aquela noite,
liberei meu filho para assistir filmes infantis enquanto eu resolvia uma parte
crucial da nossa vida lá fora.
Joshua enfim se encontrou comigo na sala com nossas mochilas em
mãos.
— Vamos? — inquiriu.
Respirei fundo e respondi:
— Vamos.

(...)

O Trajeto era longo, afinal, não podíamos simplesmente alugar uma


casa tão perto de onde tentaríamos invadir para firmar aliança. Meu filho não
pode correr riscos desnecessários.
— Seus equipamentos estão nessa mochila menor. Você sabe que não
pode entrar de mochila, então apenas coloque suas roupas recatadas e eu
darei a instrução dos locais onde você vai encaixar cada peça de ataque.
Abri a mochila ainda dentro da caminhonete, vestida apenas com um
colã preto, peguei minhas roupas recatadas e as inseri, juntamente com a
peruca ruiva.
Aprendi nesses anos de disfarce, que não é bom sair nem chegar
disfarçada em casa, para que ninguém saiba exatamente quem é aquele
personagem. Já estava acostumada a me trocar dentro do carro em
movimento.
— Pronta — afirmei depois de longos minutos. — Agora me explica
para que serve cada bijuteria dessa. Não vou pra nenhum desfile nem festa.
Mas não eram bijuterias comuns. Joshua me revelou o que cada uma
escondia. Havia uma faca pequena afiada dentro do anel, uma bomba de odor
no pingente do cordão, um microfone em um dos brincos, um ácido corrosivo
no outro e um tranquilizante na pulseira que eu usava.
E o mais interessante de tudo, é que foi tudo feito de polímeros, o que
passa sem ser detectado em um detector de metais.
— Tem certeza de que quer entrar sozinha?
Finalmente tínhamos chegado no quarteirão do esconderijo. Eu faria
entrada por uma das saídas de emergência subterrâneas.
Esse povo gosta de construir coisa no subsolo.
Pelos cálculos e estudos que fizemos, se eu entrar na hora certa, eu
consigo acesso a sala do chefe sem que ninguém me veja e, quando eu chegar
lá, o bicho vai pegar.
— Sim. Não sei do que eles são capazes, Joshua. Se for apenas um de
nós e acabar em morte...
Ele tocou meu rosto, virando-me gentilmente na sua direção, ainda
com a outra mão sobre o volante.
— Não diga isso. — Seu olhar se aqueceu e se tornou tão terno, que
eu quis chorar. — É melhor que eu vá.
Abanei a cabeça, me desvencilhando do toque dele.
— Não. Eu me preparei para isso, Josh. É tudo ou nada.
E não esperei que ele dissesse nada, apenas abri a porta e saltei para
fora.
— Rivka.
A voz dele me fez parar quando fechei a porta do carro depois de
descer. Olhei para dentro e o vi em um duelo interno.
— Diga.
Perguntei, sem saber exatamente se queria mesmo que ele
respondesse. No entanto ele apenas respirou fundo e disse:
— Boa sorte. Estarei aqui ouvindo tudo.
Assenti e segui para o divisor da minha missão. Se eu fechar essa
aliança, todas as organizações rebeldes estarão enfim unidas e juntos,
poderemos invadir a sede do Patriarcado, destruir cada membro e cada
governante espalhado pelo mundo inteiro ao mesmo tempo.
Poderemos enfim dar cabo nesse câncer mundial.

(...)

Tum Tum Tum Tum.


Meu coração batia tão alto que eu não conseguia ouvir nada a minha
volta.
Estava dentro da base rebelde mais forte do mundo. Enfim daria de
cara com o Rei do Sul.
— Você consegue.
Murmurei para mim mesma, antes de virar um corredor estreito e
quase ser vista por dois guardas enormes.
Recolhi meu corpo para onde estava antes e pus a mão no peito,
tentando controlar os batimentos que, desenfreados, me deixavam ainda mais
aflita.
Os corredores eram escuros. Totalmente.
Para passar por eles, os guardas andavam com um arco luminescente
na cabeça e óculos de visão noturna também era um dos acessórios
indispensáveis.
Eu estava com minhas lentes de visão noturna que me permitiam
adaptar entre ambientes claros e escuros. Coisas da tecnologia.
Após longos minutos, enfim me senti mais confiante para sair daquele
corredor estranho e segui o caminho que passei semanas gravando em mente
através do mapeamento que fizemos do lugar.
Depois de mais alguns percursos com dificuldades, enfim encontrei o
corredor certo. O corredor do chefe.
Como esperado, havia dois brutamontes na frente da porta e esse era o
único corredor que tinha iluminação total. Era como se ninguém pudesse
passar perto dali sem ser visto, de qualquer forma.
Eu precisava fazer com que eles saíssem de lá de algum jeito e na
hora me veio um branco gigante na mente. Não sabia o que fazer.
“Pensa, Riv... Pensa...”
Eu não tinha muita coisa pra usar, então peguei o anel e destravei a
pequena faca afiada que havia dentro. Por sorte, mesmo sendo de polímero,
era afiada demais e cortava super bem.
O corredor a minha frente era escuro, assim como o que eu estava,
mas virando na minha direita, daria no corredor do Rei do Sul, que havia luz.
Ponderei minha estratégia e decidi por em ação.
Mirei o final do corredor na minha frente, que mesmo escuro eu tinha
ciência de que havia uma porta ao fim. Uma porta que dava de cara comigo,
se eu seguisse reto. Lancei a faca afiada e depois de um curto segundo, ouvi
ela sendo cravada em uma das portas.
Isso agitou os seguranças.
— O que aconteceu? Será que alguém esta com problemas? — Um
dos guardas questionou.
— Acho melhor você conferir. — O outro disse.
Me encolhi num canto detrás de uma pilastra para que, ao dobrar o
corredor oposto ao meu, eles não notassem a presença de ninguém onde eu
estava.
O primeiro guarda foi averiguar a origem do barulho, mas o anterior
ficou.
— Acho melhor você me dar cobertura — disse o que foi verificar. —
Não tem nada aqui, pode ser algum invasor.
Imediatamente ouvi passos rápidos do outro guarda e, assim que ele
andou rapidamente até alcançar o outro, me aproveitei do barulho dos passos
deles e corri até a porta do Rei do Sul.
Pedindo a Adonai que me revestisse de força, abri a maçaneta e por
sorte, não estava trancada à chave.
Me coloquei para dentro, mesmo sabendo que seria capturada por
qualquer pessoa perto da porta. Mas fui mais esperta e logo me abaixei,
esquivando de dois braços que tentaram me segurar.
— Vim em paz! — disse ao levantar. — Preciso da ajuda do Rei do
Sul.
A escuridão que antes reinava na sala, virou luz de imediato. Várias
lâmpadas foram acesas, parte por parte da sala que era gigante, a começar
pela área da porta, onde eu estava encostada.
A sala era como um corredor gigante, só que bem mais largo. Um
exército de mascarados estava posicionado em sentido a cada dois metros de
distância, encostados na parede do começo da sala até o fim dela, em ambos
os lados.
Meus olhos correram imediatamente para o final da sala, onde havia
uma grande cadeira elevada em uma espécie de tablado. Nela havia um
homem de preto da cabeça aos pés, com o rosto completamente revestido por
uma máscara de ferro, como dos cavaleiros medievais.
Ele não parecia um senhor de idade, pela posição que se encontrava.
Estava com o cotovelo no braço da cadeira luxuosa e amadeirada, apoiando a
cabeça com a mão, como se estivesse cansado.
— Mais um espião do Patriarcado fingindo que quer ajuda do Rei do
Sul. Vocês me dão asco.
Um soldado com uma desenvoltura bastante feminina, andou
lentamente até mim. Ele estava de pé ao lado do Rei do Sul, como se velasse
por sua vida.
Nesse momento, dois dos guardas já haviam me algemado e me
imobilizado. No entanto, eu estava de pé, assistindo tudo aquilo.
— Não sou nada disso, sou apenas uma mulher que precisa de ajuda.
Ouvi dizer que o Rei do Sul é a justiça acima da justiça.
Proferi no instante que o soldado — na verdade uma soldada, pois era
mulher e eu só vi quando ela chegou perto pois os seios a condenaram —,
parou na minha frente.
— A quem quer enganar, garota? Com essa roupa de beata e essa cara
de sonsa. Quem necessitado de ajuda invade a maior organização do mundo?
A mulher achava que aquilo ali era a maior organização do mundo?
Só podia ser piada.
Contive o riso no momento em que ela iria dizer algo mais, porém
uma voz bradou.
— Chega, Delta.
Aquele timbre forte e muito rouco me arrepiou da cabeça aos pés.
Dava para ver que a pessoa que proferiu aquilo tinha uma autoridade
extrema.
Delta parou e apenas me olhou de cima a baixo antes de voltar ao seu
posto.
— Tragam-na até mim.
Os dois seguranças me suspenderam e me carregaram como se eu
fosse um baú até alguns metros de distância do Rei do Sul, no entanto, uma
quantidade de soldados ficaram entre eu e ele, provavelmente fazendo sua
escolta.
— Diga para que veio.
Mais uma vez a voz dele me causou não só arrepios, mas tremores e
me deixou um tanto abalada. Era muito potente e autoritária, mas muito
rouca. Como se tivesse dificuldades para falar, no entanto, fosse firme o
bastante para causar medo em quem tiver presente.
— Eu preciso de ajuda. Não posso falar exatamente o quê, preciso te
dizer à sós. É algo de extrema importância da sua pessoa, posso garantir.
Ele relaxou na cadeira, deixando o corpo cair um pouco mais para trás
e em seguida, cruzou os braços.
A aparência dele não era de um jovem de vinte anos, mas também
não era a de um de setenta. Eu diria que parecia um homem bastante maduro.
— As coisas aqui não são como você pensa que são, Rebeca Scott.
Ao ouvir meu nome de mentira, congelei. Ele sabia quem eu era e
poderia muito bem decidir me matar a qualquer momento. Se quisesse
alguma aliança, já teria feito sem que eu precisasse vir aqui. Ele
provavelmente sabia tudo pois os informantes do México devem ter
repassado a ele quando eu fui lá.
Que burra! Não imaginei que me investigariam desse modo, eu mal
tinha dito quem era naquele momento passado.
— Hã, eu...
— Vou te dar uma única chance de dizer o que deseja. Tire as roupas.
Como?
Meu cérebro entrou em conflito. O que ele queria dizer com “tirar as
roupas”? Será que era como os demais chefes aliados a ele, doidos para
abusar de mulheres indefesas?
Mas esse maldito não perde por esperar...
Testarei inicialmente, minha tática defensiva.
— Oh! Por favor, senhor! Tenho marido e filho para cuidar, apenas
me ouça e me libere para voltar para minha família!
Comecei a chorar de modo teatral, me jogando ao chão e parando de
resistir aos apertos dos braços dos guardas que me suspendiam, para dar
ainda mais realismo ao show.
No entanto, o Rei do Sul se manteve imóvel.
— Tire a roupa. A não ser que queira que outra pessoa tire.
Logo os guardas começaram a tocar nas minhas roupas, prestes a
arrancá-las de mim, mas eu os golpeei simultaneamente, aplicando uma
rasteira em um e um golpe na boca do estômago do outro, com meu cotovelo.
Outros vieram para cima de mim e, mesmo me defendendo, acabaram
puxando minha peruca quase impossível de ser deslocada e rasgaram minha
saia, me deixando apenas de blusão e calcinha, com botas nos pés.
— Chega.
O dono da voz mais forte e rouca que já ouvi na vida levantou de sua
imponente cadeira e andou na minha direção, afastando os soldados que
estavam ao meu redor.
O que eu achei que seria minha salvação, se tornou algo pior. Ele me
segurou pelo pescoço e me trouxe caminhando lentamente até uma porta no
cantinho lateral daquele quarto.
— Não entrem — disse aos demais.
Assim que acendeu a luz, ele me jogou no chão daquela sala pequena
onde havia apenas um pequeno sofá e trancou a porta por dentro, ficando
encostado com os braços cruzados sobre o peito, vendo meu estado
deplorável.
— É assim que fazem com as mulheres que pedem ajuda? Eu só
queria...
— Eu sei o que você queria.
A máscara de ferro inserida na cabeça dele não me permitia nem
enxergar seus olhos com clareza, mas eu era guiada pelo que a voz dele me
demonstrava e, naquele momento, ele não queria me ferir.
— Então... — Ainda sentada no chão, tentando cobrir partes do meu
corpo que estavam expostas, questionei. — Por que isso? Podia simplesmente
chegar ao ponto sem tanta humilhação.
Um silêncio que mais parecia um abismo, reinou por segundos que se
assemelhavam a horas completas.
Eu queria apenas voltar para meu filho.
— Você vai fazer o que eu vou dizer... Rebeca. — Deu dois passos,
ficando apenas a um metro de mim e abaixou, falando em tom baixo: — Vai
embora para sua família e vai esquecer qualquer coisa que já fez até o dia de
hoje. Você não está qualificada para o que pensa que está. Pode ir. Seja feliz
com seu... marido e filho.
Ao proferir “marido e filho”, senti um desdém pessoal, mas não
estava bem o suficiente para mais um embate.
Eu tinha perdido.
Essa era a sentença.
Não adiantou nada do que fiz nos últimos anos, eu não vingaria a
morte do único homem que amei.
— Eu não fiz tudo esses longos anos para nada. Você não entende. Eu
odeio o patriarcado com todas as minhas forças. Apenas quero que se aliem a
mim.
Ele abanou o rosto e por fragmentos de segundos, pude ver uma luz
refletir nos olhos dele.
Eram...
Um bolo se instalou na minha garganta, quando eu identifiquei a
exata cor dos olhos do homem na minha frente. Eu ainda não tinha superado.
Precisava parar de ver Malcolm em cada par de olhos azuis que eu encarava.
— Não precisamos de você. Vá embora.
Ele enfim levantou e saiu da sala, me deixando sozinha ali apenas
assimilando o que tinha acabado de acontecer.
Eu tinha falhado na minha missão, e não tinha mais volta.
Capítulo 12
RIVKA
Não sou o tipo de mulher que desiste fácil das coisas.
Nunca daria para trás em algo que trabalhei com tanto afinco por
anos, apenas porque um babaca manipulador disse que eu não devo continuar
minha missão.
Quem esse Rei do Sul pensa que é?
Depois do primeiro dia em que estive cara a cara com ele, voltei lá
mais duas vezes. Nas duas vezes em que retornei, entrei por outros locais e
consegui novamente, manobrar a segurança para chegar até o chefão.
Por quê?
Porque eu não lido bem com humilhações. Não mais.
No entanto, minhas duas idas foram praticamente em vão. A primeira,
no dia após meu primeiro contato com o Rei do Sul, foi igualmente
humilhante, mas eu não me importei. Queria apenas que ele mudasse de ideia
e se aliasse a mim.
Ele, mais uma vez, me levou para a salinha a sós e falou com sua voz
rouca em um tom paciente demais, para que eu vá embora.
No dia seguinte, foi minha segunda tentativa de contato após minha
primeira invasão, só que dessa vez, o Rei do Sul não quis falar comigo. Ele
simplesmente permitiu que a tal de Delta — sua cachorrinha particular —,
me levasse para fora.
Joshua estava tentando me convencer de que seria um erro ficar
insistindo tanto no Rei do Sul. Ele achava que uma hora ou outra, ele nos
procuraria, porque só nós temos algumas informações dadas por organizações
rebeldes de outros continentes, que muito provavelmente, ele precisaria.
Mas algo me intrigava e me matinha no Brasil em banho-maria.
E eu soube exatamente o que era, exatos sete dias após minha
primeira invasão à base do Rei do Sul.
Foi numa tarde calorosa, quando havíamos acabado de chegar do
mercado localizado a uma distância considerável da casa alugada. Estávamos
Zion, Joshua e eu, entretidos com as brincadeiras criativas do meu filho, que
mal notamos que não estávamos sozinhos ao adentrar a casa.
— Eu vou criar novos tipos de animais, mãe. Acho que cavalos são
muito lentos, queria que fossem rápidos como uma moto!
Abri a porta e meu filho foi o primeiro a entrar, contando seus sonhos
de criança. Ele achava que era possível dar uma de Deus e criar espécies
novas de animais.
— Ah, meu lindo, talvez você consiga criar algo extraordinário, mas
animais são bem complicados para se criar.. não acha, Josh?
Entrei atrás de Zion e virei o rosto, indagando a Joshua, o chamando
para a conversa. Ele dava risadas, achando graça da mente fértil do meu filho,
quando, de repente, seu rosto paralisou em uma feição séria, olhando para
algum ponto na sala, atrás de mim.
Me virei, procurando Zion, pensando que ele poderia ter se
machucado em alguma coisa, no entanto, o que vi me causou tremores e
calafrios do alto da cabeça até a planta dos pés.
Petrificada era meu estado de choque, mas pude perceber o
movimento ao meu redor. Joshua deixou as compras no chão e numa
velocidade ímpar, pegou a arma que carrega consigo para cima e para baixo e
em instantes estava de frente para o ser que parecia o dono do lugar, mesmo
sentado na poltrona de canto da minha sala alugada.
— Acho que você não vai desejar me matar, Joshua.
A voz... A voz era...
Diferente.
Consegui aos poucos firmar meus passos e, andei lentamente até ele.
Os olhos azuis como um céu de verão não saíam dos meus. Hipnotizantes
como sempre me lembrava.
A cada passo que eu dava até ele, uma lágrima descia.
Meu coração retumbava frenético em resposta a todo o mix de
emoções que percorreu minha mente naquele instante e eu não sabia mais de
nada.
Só queria abraçá-lo, eu queria…
— Vo-você... — Eu só consegui proferir isso e me joguei ao chão,
abraçando suas pernas permitindo que todas as lágrimas derramadas por
cinco longos anos fossem despencadas de uma só vez.
Josh percebeu que eu não corria perigo e se afastou.
Eu apenas chorei.
Pude ouvir Joshua falando para que Zion ficasse no quarto com ele,
pois eu tinha assuntos de gente grande para resolver.
Era ele. Era o meu marido. Em carne, osso, vida. Ele trajava roupas
de couro em tons negros e em sua cabeça havia um chapéu, que mal me
possibilitava ver seus cabelos que antes eram longos.
Tinha que ser ele. Não podia ser outra pessoa.
Não era ilusão, era?
— Já chega.
A voz dele ecoou e de imediato se levantou, me afastando da posição
rendida na qual eu estava. Não entendi sua frieza, era para que estivéssemos
nos abraçando calorosamente e tudo voltasse a ser como antes.
Em mim, nada tinha mudado.
— Malcolm? É você?
Tive que perguntar. Podia ser um truque de alguém, não sei. Há tantos
artistas plásticos que podem reproduzir rostos por aí e eu só consegui pensar
que poderia ser uma armadilha, depois do choque inicial.
Ele, já de pé, posicionou as mãos nos bolsos de sua calça e andou
lentamente pela sala, sem me responder.
Me levantei, tentando me recompor. Não podia reagir de modo tão
fraco à ele, sabendo que apesar do choque, ele não desejou estar do mesmo
modo como sempre esteve com relação a mim.
Algo mudou.
E a voz...
— Você é o Rei do Sul, não é?
Ele parou no centro da sala, debaixo de um lustre rústico e me fitou
novamente com aquela intensidade única no olhar. Cruzou os braços e enfim
disse:
— E você o ser humano mais teimoso da face da Terra. Não vim aqui
para nada do que sua cabeça está pensando. Você já tem a vida perfeita que
merece, Rivka.
Suas palavras me golpearam de tal modo, que instintivamente levei a
mão ao peito e massageei.
Sem notar, eu dei uma risada sem humor algum.
— Vida perfeita? Você só pode estar de brincadeira!
Me alterei dando passos firmes em direção a ele. Queria encará-lo
olhos nos olhos. Meu sentimentalismo já tinha passado. Aprendi a controlar
muito bem minhas emoções e, naquele instante, eu precisava ser forte.
Emoções depois a gente administra com racionalidade.
Ele se manteve inerte, sem expressar nada dos sentimentos que eu
lembrava meu marido expressando nos nossos últimos momentos. Aquele
não era o meu Malcolm.
— Se casou com meu detetive. Teve a porra de um filho. Ainda acha
que é capaz de derrubar a maldição do Patriarcado sozinha? Eu só vim te
pedir uma coisa, mulher. Vá embora e nunca mais volte. Não preciso de você,
eu mesmo vou anular esse câncer do mundo. Já estou quase lá.
Como um último golpe certeiro e afiado, senti suas palavras
perfurando meu coração antes enlutado, mas que agora clamava por
explicações.
— Por quê? — Me aproximei mais dele e toquei o indicador sobre seu
peito. Ele não desconectava seus olhos dos meus nem por um segundo. —
Por que me fez passar por esse inferno durante mais de cinco anos? Por quê?
O soquei, ao finalizar a frase, mas ele não se moveu.
Tentei ler aqueles olhos de gelo, mas nada transparecia.
Quem era essa pessoa?
— A sua voz... O seu cabelo... Eu quero saber o que aconteceu, por
que você fingiu estar morto?!
Acabei gritando, expressando toda minha fúria sobre ele, que não se
movia nem respondia.
— Você me abandonou, eu quase morri, eu... Você planejou tudo?
Como pôde ser tão cruel, tão... — A cada frase, eu socava seu peito, eu
gritava em dor, eu chorava sem controle também. — Eu te odeio! Você
brincou comigo, você foi... Como eu pude acreditar que você morreu, você
me fez achar que estava MORTO! MORTO! MORTO!
Nesse instante ele segurou minhas duas mãos que o socavam
incessantemente e controlou meus acessos de raiva como se manipulasse uma
boneca. Então se aproximou um pouco mais do meu rosto, me permitindo ver
pequenas cicatrizes e marcas de queimaduras escondidas por seu pescoço
devido ao tecido da blusa.
— Eu morri. Eu estou morto. Volte para seu paraíso que eu volto para
meu inferno.
E me soltou, fazendo com que todo meu peso se tornasse dez vezes
maior e eu mal conseguisse ficar de pé. Despenquei no chão enquanto o via
andar até a porta de saída da sala, como se nada tivesse acontecido.
— Apenas vá. Seja feliz.
E se foi.
Capítulo 13
MALCOLM
Retornei para minha base secreta já cem por cento como Rei do Sul
tanto em vestes quanto em máscaras e acessórios, sem permitir que aquela
ponta ínfima e curta de aflição se alastrasse sobre meu peito.
Ela estava bem.
Estava feliz.
Estava com uma família.
Isso que importava. Eu tinha apenas que focar em aumentar minhas
redes e conquistar todas as organizações rebeldes da Europa, e enfim estaria
com o mundo dominado e o patriarcado nunca me venceria.
Eu declararia guerra contra esses malditos pelo que me fizeram passar
e por tudo que fizeram às gerações anteriores.
Entrei na minha sala do trono e lá estavam meus escudeiros, meus
seguranças oficiais e confiáveis, passei pelo corredor que eles preenchiam e
segui direto até minha sala de descanso.
Eu morava naquela maldição de subsolo, mas minhas acomodações
eram escondidas, ninguém tinha acesso a não ser eu e o Rei do Sul que me
passou o reinado. Ele aposentou, mas continua vivendo sua vida
normalmente, acima do subsolo, como se nada tivesse acontecido. O bom de
viver com máscaras é que sua identidade é eternamente preservada.
Ouvi um batido na porta.
Só podia ser Delta, a única que tem liberdade de entrar a qualquer
momento.
— Entre.
Peguei uma garrafa de água no frigobar localizado na mesa ao canto
da sala e me acomodei no sofá, ingerindo-a em seguida.
— Chegou tão calado, Alfa.
O respeito sempre muito nítido em sua entonação, fez com que eu não
mandasse Delta à merda naquele momento.
— Eu sou calado.
Bebi mais um pouco da água e fechei os olhos, relaxando sobre o sofá
macio de couro, encostando a cabeça na parede atrás dele.
Todos ali me chamam de Alfa, sou o Rei do Sul, o primeiro soldado.
Só senti que Delta se aproximou, pois ouvi seus passos lentos
chegando perto, em seguida, um suspiro.
— Foi até ela, não foi? — ela indagou e eu apenas assenti, de olhos
ainda fechados. — Quer falar sobre isso?
— Eu quero apenas descansar. Quando for a hora dos julgamentos me
chame.
Sem mais questionamentos ou barulhos, ela saiu da sala e eu ali
fiquei.
Como alguns anos podem mudar completamente o rumo da sua vida,
não é mesmo?
Eu precisava evitar reavivar memórias que não lembrava mais. Estar
olhando para ela era como um choque de recordações e aquilo me deixava
confuso.
Não pude deixar de imaginar que minha ex esposa agora transava com
meu segurança e tinha um filho dele. Eu mesmo vi as fotos que chegaram até
mim, mostrando seus passos e tudo que andou fazendo desde o momento em
que a vi pela primeira vez aqui, uma semana atrás. Eu sabia que era ela. Tive
a confirmação quando a vi seminua em minha frente e seus olhos
tremeluziram.
Dali eu a investiguei, e tudo que eu descobri me fez apenas desejar
que eu não lembrasse.
Ter ela por perto era uma ameaça às minhas recordações mortas
naquele incidente.

RIVKA
Eu não iria chorar.
Repeti o mantra cem vezes em mente, desde o momento em que
Malcolm saiu da casa e sumiu de vista.
Já chorei demais por ele, não era para desperdiçar lágrimas sem
motivos adequados. Meu filho precisava de mim.
Sentada no lugar onde ele estava minutos antes, eu fiquei refletindo se
os momentos que passei ali foram mesmo reais. Malcolm era o Rei do Sul.
Ele fingiu que morreu e fugiu pra tentar enfrentar o Patriarcado sem mim.
Algo não estava fechando nessa conta.
Se ele quer enfrentar sozinho, por quê deixou as cartas e mandou seu
segurança me treinar?
Por que não me afastou quando precisava afastar, no começo de tudo?
Suas cartas e orientações me deram esperança, e hoje ele jogou tudo
no lixo.
Eu precisava entender a raíz de tudo isso.
Não iria embora do Brasil até ter a verdade completa na minha mão.
— Tudo bem por aí?
Era Joshua, aparecendo do corredor.
Assenti ainda um pouco absorta nos pensamentos sobre o que tinha
acabado de acontecer. Ele se aproximou lentamente e, pela visão periférica,
mesmo encarando o chão, pude notar que ele estava reticente.
— Eu queria poder matá-lo, mas quando vi que era mesmo ele... —
Enfim o encarei e ele passou a mão pelos cabelos marrons. — Precisava
deixar que tivessem uma conversa.
Minha mente incoerente ainda tentava juntar pedaços do quebra-
cabeça que se formava, mas uma parte de mim começou a se questionar se
Joshua estava ciente de tudo aquilo.
Ele andava sumido ultimamente e um pouco distante, fora os segredos
que ele tem e eu não sei. Não que tenha direito de saber tudo sobre ele, mas...
Aquilo gerava em mim uma pitada de desconfiança.
— Diga, Josh. Você sabia? Sabia que ele não estava morto?
Ainda sentada, esperei sua resposta que demorou a vir. Ele arrastou
uma cadeira da pequena mesa de escritório que tinha perto dali e se sentou à
minha frente, segurando minhas mãos em seguida.
— Olhe para mim. Quero que preste atenção ao que direi. — Ele
começou e eu o obedeci. — Eu posso ter segredos, mas não costumo mentir.
Sou leal às minhas missões e realmente nunca soube do fato dele não ter
morrido. Eu cheguei a suspeitar de que ele possa ter escapado do incêndio,
até investiguei, mas foi bem no começo. Não consegui chegar a nenhuma
conclusão. Se ele arquitetou tudo isso, foi muito inteligente. Muito mesmo.
Alívio me engolfou e em seguida as emoções tomaram conta de mim
sem que eu me controlasse. Lágrimas já corriam por meu rosto.
— Então... Nossa história pode ter sido uma farsa? Até os sentimentos
que ele expressava por mim, tudo? Ele estava arquitetando desde o começo
apenas pra se livrar do patriarcado? Qual seria a intenção? Vingar o pai? As
leis? O que sofreu na infância? Qual seria a intenção por trás de tudo?
Minha cabeça deu um nó e eu só conseguia chorar. Joshua, como um
bom amigo apenas me abraçou, acalentando-me com seus braços sempre
dispostos a ajudar.
— Zion está aonde?
Indaguei com a cabeça no ombro de Josh.
— Estava cansado, deixei ele vendo desenhos e acabou dormindo em
segundos.
Ele respondeu.
Me afastei o suficiente para que nossos narizes estivessem colados um
no outro e pude notar um lampejo de desejo percorrer os olhos do homem
que cuidou de mim por cinco anos, sem querer nada mais do que apenas o
que lhe fora prometido.
— Acho que não podemos mais continuar com... Você sabe.
Sussurrei fitando-o nos olhos achocolatados mais sinceros que já
conheci.
Ele, no entanto, encarava meus lábios com sede.
— Concordo.
Apenas disse, sem deixar de olhar minha boca. Aquele não era um
bom momento para se deixar levar pelas emoções. Eu tinha total controle do
que sentia vontade e do que me movia sentimentalmente. Infelizmente meu
coração nunca bateu mais forte pelo homem que estava na minha frente, e eu,
pela primeira vez, me amaldiçoei por isso.
Seria fácil gostar de Joshua. Ele era leal, centrado, protetor, bonito,
forte, corajoso, educado, gentil e muitas outras qualidades que eu desejaria
em um homem facilmente, se já não tivesse me apaixonado pelo monstro em
forma de gente.
— Eu vou voltar lá. Vou confrontá-lo.
Disse e me afastei, fazendo com que seu olhar enfim focasse nos
meus olhos, transparecendo dúvida.
— Tem certeza? O que ele disse além do que eu presenciei
incialmente aqui?
Contei tudo que aconteceu e Joshua ficou simplesmente transtornado.
Ele levantou com fúria e andou a passos pesados pela sala, xingando e
praguejando de todos os modos e línguas que conhecia.
Me pus de pé e andei até a janela que dava uma bela vista dos campos
gramados ao redor da casinha alugada. Cruzei os braços e fiquei ali, no
parapeito apenas pensando na minha próxima tacada de mestre.
Malcolm acha que vai se livrar de mim sem dar as respostas que
preciso? Está completamente enganado.
MALCOLM
Dois dias se passaram e eu pedi aos meus investigadores que
fiscalizassem Rivka de perto para ver quando iria embora.
O que não aconteceu.
A teimosa continuou na casa e parecia viver uma vida indiferente a
tudo o que demonstrou para mim, no primeiro instante em que me viu.
A cena toda dela se jogando aos meus pés, como se tivesse sentido
minha falta, foi apenas uma encenação, com toda certeza. Ela não parecia
nem uma mulher enlutada ou infeliz, pelas informações que eu recebia.
Estava na minha sala do trono aguardando alguns casos exclusivos
para dar a decisão final, quando Delta correu em minha direção. Ela tinha
saído para almoçar e retornou como se tivesse visto um fantasma.
— Ela está aí, Alfa.
Eu entendi quando ela mencionou “ela”, mas ainda sim, indaguei.
— Ela quem?
De frente para mim em pé, com sua cabeça curvada em respeito a
minha posição, ela elevou a cabeça lentamente para conseguir falar com mais
clareza.
— Sua mulher.
Inspirei com dificuldade e encarei o teto.
Algo dentro de mim dizia que ela não desistiria com facilidade, então
a pequena esperança de que Rivka aparecesse novamente, nem que fosse para
me insultar, me atormentava.
— Diga que não irei recebê-la. Diga que estou em momentos íntimos,
com algumas prostitutas.
Delta engoliu em seco e escondeu seu pensamento sobre o que eu
acabara de dizer, apenas pelo local onde estava, mas eu tinha ciência de que
depois, ela encheria minha cabeça com seu papo de mulherzinha.
— Sim, Alfa.
Ela se virou e eu pude ouvir um curto sussurro sair de sua garganta
dizendo “babaca”.
Não importa.
Ela precisava se manter longe, e eu faria de tudo para que isso
acontecesse.
Assim que minha soldada fiel saiu da sala, outro soldado se
aproximou lentamente e curvou sua cabeça antes de se posicionar à minha
frente e dizer:
— Sei que não sou ninguém, altíssimo Alfa, mas peço permissão para
fazer um pedido pessoal.
Balancei a mão no ar, permitindo que prosseguisse.
— A mulher mencionada por Delta, muito me atraiu aos olhos. Caso
não a deseje mais em sua carteira, peço permissão para que esteja disponível
para mim.
Havia uma carteira de mulheres que satisfaziam o Rei do Sul. Essa
carteira já existe há anos, antes mesmo de eu me tornar Rei. Já presenciei o
antigo Rei sendo agradado por muitas dessas mulheres, mas desde que me
tornei Rei, não tenho visto graça nelas. Já convoquei algumas e foram poucas
as que consegui transar.
Nunca fui um maníaco sexual, sou bem controlado nesse quesito. Não
me movo por vontades, muito menos por impulsos. Gosto de ter tudo sob
meu controle. Tudo mesmo.
O soldado com certeza, pensou que Rivka fazia parte das mulheres da
carteira, pois Delta afirmou que era “minha mulher”, mas o ódio que subiu do
meu peito até minha garganta por ouvi-lo dizer que ela é agradável a ele, me
fez responder de um modo jamais feito antes.
— É minha mulher. Minha. Não é uma contratada, muito menos uma
prostituta. Pertence a mim e a mais ninguém. Saia da minha frente.
Ele logo se afastou e saiu da sala, mesmo sendo um dos soldados que
fazem minha segurança interna. Deve ter ficado com mais medo do que o que
eu queria gerar.
Mal ele saiu, a porta se abriu e Rivka entrou por ela como se fosse a
Rainha do lugar.
Estava com uma calça preta colada em seu corpo bem mais curvilíneo
do que eu me lembrava e sua blusa também era preta, ressaltando cada curva
de seu corpo. Maldita.
Delta entrou correndo logo depois, com os olhos arregalados cheios
de medo.
— Eu tentei impedi-la! — Ela veio se explicando.
Os seguranças partiram para cima de Rivka, mas eu os impedi.
— Deixem-na.
— Olha, você se tornou mesmo um mentiroso de marca maior. —
Bateu palmas. — Meus parabéns, querido. Dizer que estava transando com
prostitutas é uma desculpa maravilhosa.
Respirei fundo enquanto ela andava e chegava cada vez mais perto.
— O que quer?
Rivka cruzou os braços ficando apenas a um metro de distância de
mim, separada apenas pela pequena escadaria que elevava meu trono.
– Respostas.
Capítulo 14
RIVKA
Se me restavam dúvidas sobre o fato do Rei do Sul ser realmente o
homem que amei, todas elas foram sanadas no momento em que enfim
colocamos muitos dos fatos na mesa.
Malcolm pediu que todos os guardas saíssem da sua sala de Rei e, por
último implorou para que a mulherzinha que anda colada com ele, o deixasse
a sós comigo.
Ela não queria que ficássemos sozinhos, me olhava de uma forma
estranha, como se de algum modo, pudesse mediar nossa conversa.
Não queria mediadores. Queria eu, ele e a verdade.
Apenas isso.
Depois que ficamos sozinhos, ele se levantou de seu trono e desceu os
três degraus que o igualava a mim. Caminhou até a saleta onde eu fui
humilhada da última vez e veio de lá com uma cadeira.
— Pode se sentar aqui.
Colocou bem perto do trono dele, basicamente ao lado.
Subi os degraus e me sentei, apenas esperando a pergunta principal
sair de seus lábios. Enquanto isso, fiquei analisando aquele homem da cabeça
aos pés. Os trajes que ocultavam todo seu corpo, as máscaras que mal me
delatavam sua aparência e os cabelos que eu não conseguia ver nem um fio.
Será que ele ainda tem cabelos?
— Me diga. O que deseja saber?
Indagou, cruzando as mãos enluvadas sobre suas pernas, fitando-me
com a intensidade que eu sempre me lembraria, mas não com o mesmo calor
das minhas lembranças.
— Como sobreviveu? Como conseguiu escapar? Por que não me
procurou? Por que me deu orientações para que eu executasse o plano que
hoje é você quem está prestes a executar? Preciso que me esclareça tudo, e só
assim eu irei embora.
Seus olhos se fixaram em qualquer ponto das paredes escuras daquela
sala e foi como se ele retornasse ao dia em questão. Toda a vida havia se
esvaído do seu olhar.
— Eu não quero falar sobre isso. Passei os piores dias de toda a minha
vida e não quero que pense que foi diferente do que você possa ter sofrido.
Eu falei que morri e me sinto um homem morto. O que sobrou aqui foram
restos, apenas restos dispostos a uma vingança épica. Preciso que se afaste
disso. Preciso que me deixe focar.
Engoli de forma áspera a saliva contendo as verdades que eu acabara
de ouvir.
Ele não me diria o que eu queria, ele insistiria em dizer que me deseja
longe.
Por que isso dói mais do que deveria em mim?
Instintivamente levei minha mão sobre a dele e isso fez com que
subisse um calor que há tanto eu não sentia. Me odiava por ainda amá-lo
mesmo que meu amor por ele fosse o maior combustível do meu sofrimento
atual.
— Quero vê-lo. Quero entender o que houve. Eu prometo que irei
logo depois, me deixe só... Vê-lo.
A voz rouca e falha retrucou:
— Para quê? Para ver o que sobrou do homem que ainda se lembra?
Ele enfim virou o olhar para mim e o que vi em seus olhos, me
perfurou por dentro.
— Sua voz...
— Nunca mais voltará ao normal. Minhas cordas vocais foram
danificadas no incêndio. Agora e para sempre vou falar assim.
Assenti, ainda refletindo sobre insistir mesmo em perguntar tudo, ou
deixá-lo em paz. Ele não parecia disposto a me dar as respostas que eu queria
e eu já estava me sentindo mal por fazê-lo se recordar de tudo, inclusive as
coisas ruins.
— Não farei mais perguntas. Quero apenas contar minha versão dos
fatos e então, se ainda achar que devo ir embora, eu irei.
Ele se remexeu em seu trono, relaxando em seguida. Fitou a parede
no fim da sala e ali ficou concentrado enquanto eu prosseguia. Levei seu
silêncio como uma permissão.
— Você me levou até a Groenlândia. Eu vi quando a cabana explodiu
e você morreu. Eu estava lá. Parte de mim se foi quando eu vi que você
nunca mais voltaria pra mim. Então eu li a carta que você me entregou
minutos antes e aquilo me deu forças pra retornar para nosso esconderijo.
Nossa casa secreta.
Notei seu pomo de adão se mover, no entanto os olhos se mantinham
firmes e vidrados para frente, sem permitir que virasse para mim.
— Quando eu cheguei em casa, na nossa casa, Joshua apareceu como
um fantasma no dia seguinte e eu quase o matei, pensando que era um
inimigo. Mas ele estava ali por uma ordem sua. Você o tinha contratado para
me proteger e me preparar para a grande vingança contra o Patriarcado.
— Então, acabaram se envolvendo, transando que nem bichos no cio
e gerando uma criança. Ponto final. Já pode ir embora agora.
Que ódio!
A ira que subiu em mim no instante em que ele disse isso, era o
suficiente para eu agarrar o pescoço do meu ex marido e asfixiá-lo com todas
as forças, mas eu precisava dizer a verdade senão me culparia para sempre.
— Como você é idiota! Deus do céu!
Dei um berro que o fez me olhar espantado.
— Eu odeio você e essa figura abominável que se tornou, mas antes
de te deixar sozinho nessa vida maldita que escolheu, tenho que te contar
tudo. Então cala essa sua boca machista e nojenta pra que eu possa falar!
Ele nada disse, apenas cruzou os braços e relaxou em seu assento.
— Diga, mulher maravilha — debochou.
Me coloquei de pé porque não estava mais aguentando me expressar
sentada numa cadeira, então desci as escadas e fiquei andando pela sala vazia
e mal iluminada, contando o resto da história.
— Joshua ficaria apenas dois anos e meio ao meu lado, conforme o
contrato que você fechou com ele. Eu demorei meses para confiar nele, e
anos para criar realmente um laço de amizade inquebrável. Tudo porque
meus sentimentos estavam esmagados e mortos juntos com o homem que eu
sempre amei. Não demorou muito, para que logo no começo, Joshua
percebesse que havia algo estranho comigo. Eu dormia demais e passava
muito mal. Vomitava e enjoava de qualquer coisa. Então veio a surpresa: Eu
estava grávida.
Como o babaca que eu imaginei que ele seria, Malcolm perguntou:
— Como assim?
— Eu engravidei algumas semanas antes de você ter morrido, seu
inútil. Não parou para reparar no meu filho quando procurou saber da minha
vida?
Ele respirou fundo e encarou o chão, parecendo pensar bem no que
diria.
— Não sou fã de crianças então quando eu soube que tinha um filho...
Não quis saber nome, idade, aparência ou qualquer coisa do tipo. Quando
estive na sua casa naquele dia eu nem olhei para ele.
Levei minha mão até a minha garganta porque saber que o pai de Zion
não se importa com os sentimentos do próprio filho, doía. Era amargo.
Minha voz estava travada na garganta. Não queria falar mais nada. Já
estava machucada demais pela sua rejeição e agora sabendo que ele optou por
não saber nada sobre meu filho... Doeu ainda mais.
— Você... Ao menos... Me procurou desde o começo? Ou realmente
tudo fez parte de um plano?
Um silêncio ensurdecedor pairou no ar, deixando o ambiente denso e
incômodo. Foram longos segundos em que eu fiquei de braços cruzados
andando de um lado a outro encarando o chão apenas esperando a resposta
sair de sua boca.
Mas quando menos esperei, seu sussurro fez-se ouvir:
— Te procurar foi a única coisa que eu fiz desde que percebi que
estava vivo.
Meu coração começou a acelerar e a respiração se tornou intensa e
insuficiente. Ele tinha dito que me procurou, mas... Ele sabia onde eu estava!
— Não consigo entender! — Não queria que a voz embargasse, mas
foi inútil. — Você me colocou em um local onde só você sabia! Como não
me encontrou? Como pôde dizer que estava me procurando?
Ele se colocou de pé e andou rapidamente até mim, puxando-me pelo
braço até uma outra sala próxima ao seu trono. Entramos ali e a luz se
acendeu automaticamente. Era um escritório enorme, com sofá, tapete, mesa,
computadores, armários, bar, entre outras coisas que configuram um
escritório digno de realeza.
Malcolm fechou a porta em todas as travas de segurança e tirou sua
máscara, exibindo seu rosto por completo e enfim eu pude ver seus cabelos.
Estavam raspados e havia somente um moicano com os cabelos loiros
rebeldes aparados. Nas laterais da sua cabeça muitas marcas de queimadura
onde não se podia mais nascer cabelos e algumas linhas também atingiam seu
rosto. A barba comprida tinha ido embora e apenas uma pequena barba e
bigode curto envolvia seus lábios.
Ele estava completamente diferente do que eu me lembrava, mas
igualmente lindo, sem defeito algum aos meus olhos.
— Quer ver mais? — Sua voz continha fúria. Ele estava com raiva e
eu mal compreendia o motivo.
Mas afirmei com a cabeça. Queria ver tudo.
Ele deslizou o zíper do colete que envolvia sua blusa negra que
adornava sua pele e em seguida, levantou a blusa, deixando seu torso à
mostra.
As tatuagens estavam lá. Algumas deformadas com marcas enormes
de queimaduras e outras ainda intactas. Um dos seus braços parecia ter ficado
em carne viva, pois estava totalmente rígido, com uma pele nova sem marca
alguma de tatuagem, apenas a marca de que o fogo o havia maltratado.
— Adonai! — Levei a mão a boca, estupefata com a visão que tive.
Não sabia que ele tinha sofrido tanto e, pelo visto, deve ter ficado
meses inconsciente ou internado.
— Pronto. Agora pode ir embora ciente de que me tornei esse resto
humano. Sobre a criança, ainda não sei como reagir a essa informação, mas...
— Ele foi se vestindo novamente enquanto falava. — Se o menino for
mesmo meu filho, ficará comigo aqui e será treinado desde já. Não quero um
filho fraco e sentimental.
— O quê?
Gritei e impedi que ele colocasse a máscara de novo, eu precisava
olhar cada pedacinho do seu rosto enquanto dava a cartada final.
Segurei em seu rosto e o fiz me olhar com receio. Ele não sabia o que
esperar. Estávamos tão perto que meu coração tolo e infeliz pedia
ardentemente que eu me lançasse sobre ele como uma idiota.
Mas eu não era mais a menina do passado.
— Só quero que me diga uma coisa. Apenas uma coisa. — Acariciei
seu rosto, tocando delicadamente as marcas de queimadura. — Estamos aqui
só eu e você. Sem mentiras. Dois adultos que já sofreram mais do que
deveriam. Me diga se o que vivemos antes da maldita explosão foi mentira ou
foi verdade?
Seus olhos passearam pelos meus, tão penetrantes e límpidos. Por um
segundo eu vi a máscara impenetrável cair por terra e enxerguei um dilema
interno sendo travado nele.
Seu olhar, por milésimos de segundos, passou dos meus olhos à
minha boca e depois ele os cerrou, antes de dizer:
— Já soube demais por hoje. Agora vá.
Se desvencilhou do meu toque e colocou a máscara, finalizando seu
traje de Rei do Sul.
— Eu vou, mas não vou desistir. Vou voltar.
Ele destravou a porta e abriu para que eu saísse, mas assim que pus o
corpo para fora, o ouvi dizendo:
— Eu sei. Eu sei que vai.
Capítulo 15
JOSHUA
Eu estava com Zion caminhando pelo quarteirão enquanto ele
brincava com um cachorrinho que apareceu por ali. Estávamos esperando o
retorno de Rivka da conversa que teria com o Rei do Sul, vulgo Malcolm.
Desde que eu o vi vivo novamente, muitas coisas deixaram de fazer
sentido. A missão que ele me delegou junto com sua esposa, não teria
nenhuma valia pois o homem simplesmente decidiu fazer tudo sozinho e nos
anular da jogada.
O que me preocupava não era tanto a parte estratégica de tudo e sim, a
sentimental.
Jamais me apaixonei ou me deixei levar por sentimentos, mas já tinha
percebido que meu coração começara a alimentar sentimentos involuntários
por Rivka. Eu gostava dela. Não era paixão, muito menos amor, mas eu
gostava demais a ponto de desistir do que eu desejo para que ela fique bem.
O que para mim era um grande perigo. O marido dela estava vivo e a
qualquer momento eles se acertariam. Não estamos vivendo em um romance
comum das novelas, os fatos são mais difíceis do que poderíamos imaginar.
Mas Rivka o ama.
Ela ainda ama o canalha.
Ele não a merece, mas é o dono do coração dela.
Eu só queria saber como lidar com a pontada que sinto toda vez em
que penso em ir embora e deixá-la finalmente sozinha.

MALCOLM
— Não me encha de perguntas, Delta!
Lá estava ela, enchendo minha paciência.
Rivka tinha ido embora e eu executei dois julgamentos, me deixando
livre para um fim de tarde de descanso em minha sala particular. Mas minha
fiel escudeira não conseguia manter a língua dentro da boca.
— Pergunto sim! Sou a única nesse lugar todo que sabe a verdade
dessa história e, se você ficar de lenga lenga pra falar pra ela, eu é quem
direi!
Retirei o meu selo oficial de dentro da gaveta e comecei a selar
algumas leis que ainda estavam em aprovação na política brasileira. Sem
minha aprovação, nada é decidido. Por isso que amo ser o Rei do Sul, todos
os países da América do Sul se sujeitam a mim.
Mas diferente do Patriarcado, aqui não temos leis abusivas para
esposas, crianças ou futuros líderes. A justiça do Rei do Sul é a mais limpa
que eu já vi, apesar de estar por trás de toda legalidade.
— Se interessou pela minha mulher, Delta?
Indaguei encarando os papéis, sentado à minha mesa.
Ela soltou um muxoxo e puxou a cadeira de frente a mim, do outro
lado da mesa. Sentou-se e tamborilou os dedos sobre o mármore.
— Se bem que ela é muito bonita. Mas não furo o olho de amigos.
Dei uma risada sem tanta vida. Não gostava de dizer que tenho
amigos, mas Delta, desde que entrei nessa organização, tem se mostrado
muito leal.
— Diga algo a ela e eu esqueço da sua amizade. Mato você.
— Okay, Okay, meu caro. Sei que tem coragem e não vou insistir,
mas ainda acho que está sendo um idiota. Por que quer que ela acredite que
armou tudo? Quer deixar ela pensando que você não se importa com ela e
com o menino, que eu tenho certeza de que é seu filho. Já viu a foto?
Aquilo me chamou atenção. Ainda não tinha notado o rosto da
criança. Realmente nem reparei.
— Me mostra a foto. — Levantei o olhar para ela, pedindo.
Delta sorriu de canto e levantou com um ar vitorioso, saindo da minha
sala retornando poucos instantes depois com um papel em mãos.
— Teve um dia em que nossos investigadores trouxeram algumas
fotos. Tinha fotos daquele tal segurança lá que toma conta da sua mulher,
beijando-a e logo atrás uma foto do menino. Você simplesmente ignorou as
fotos quando viu a do beijo e nem notou a do menino atrás. Mas eu peguei e
guardei.
Estendeu o papel para mim. No dia em questão, foi o seguinte depois
de Riv ter invadido minha base pela primeira vez e eu tê-la visto depois de
tantos anos. Nunca tinha encontrado seu paradeiro e já até cogitei o fato dela
estar morta. De repente ela aparece e depois eu descubro que tinha se tornado
amante do meu detetive. Mal quis saber da criança.
Segurei o papel e finalmente me permiti olhar a imagem impressa.
Era um menino de cabelos lisos loiros mesclados com castanhos e
olhar tão azul que parecia um céu de verão. O menino era a minha cópia,
quando tinha sua idade.
Era meu filho.
Fiquei por um longo tempo admirando a foto, me permitindo imaginar
como seria, se eu tivesse acompanhado a gestação dela, tivesse visto ele
nascer e segurado nos braços. Aquilo causou um aperto enorme em meu
peito.
Mais um motivo de manter Rivka longe.
Acabei dizendo que treinaria o menino para não ser sentimental, mas
ao vê-lo, com um olhar tão inocente e puro, só desejei que ele jamais
soubesse da minha existência.
Uma criança dessa não pode continuar tão inocente ao lado de um
monstro como eu.
— Preciso que eles vão embora. Só isso, Delta. Não quero que corram
riscos. Quero que vivam, mesmo que para isso eu não esteja ao lado deles.
Delta fingiu um choro falso e depois riu.
— Que nobre da sua parte. E qual dia vai dizer pra ela que você não
se lembra de nada? Que ficou quase um ano em coma graças a um médico
maluco que te encontrou nos escombros antes do fogo te detonar todo? Que
dia vai dizer a ela que sua memória se apagou por meses e não se lembrava
onde ela poderia estar, nem o que tinha feito ou dito a ela desde a última
recordação? Alfa, você tem que esclarecer tudo pra ela!
Soquei a mesa com tanta fúria que Delta saltou em sua cadeira.
— Não entende? Ela precisa viver! Os dois precisam estar protegidos!
Eu já a introduzi nessa realidade de merda uma vez, sabendo que ela não
suportaria! Não posso ser esse idiota outra vez. Se eu contar a verdade para
Riv, ela vai querer ficar ao meu lado. Eu a conheço.
— E sei o quanto é teimosa e blá blá blá...
Ela cantarolou, debochando de mim.
— Agora me deixa em paz. Se eu morrer no fim de tudo, não vou
perder nada que já não tenha perdido uma vez. Agora Rivka e o meu filho
precisam viver a vida que, por minha causa, nunca conseguiram viver.

RIVKA
Uma confusão só era a minha cabeça.
Por um lado, eu queria ir embora. Ser rejeitada e expulsa mais de uma
vez por quem eu esperei reagir de forma totalmente contrária, deveria ser
motivo suficiente pra me mandar pro Canadá novamente.
Mas por outro lado, eu tinha uma pulga atrás da orelha.
Algo me dizia que havia mais nessa história do que somente o que eu
conseguia ver e ouvir.
Assim que cheguei em casa, Joshua estava deitado no sofá
observando Zion que desenhava em seu caderno sentado no tapete bem ao
lado dele.
— Zeta trabalhou hoje?
Foi a primeira pergunta que fiz. Por não termos estado juntos nos
últimos dias lá fora, Josh não tem nem ligado a robô que instrui Zion em
lições escolares.
— Apenas uma hora. Demos uma volta lá fora e fiz ele gastar
bastante energia.
Zion enfim se despertou de sua obra de arte e notou que eu havia
chegado.
— Mamãe! — Levantou os olhos para mim e estendeu os braços.
Fechei a porta da sala com a chave e andei rapidamente até meu
pedaço de céu. Abaixei e o envolvi com um abraço caloroso, depositando
beijos sobre sua cabeça.
— Que saudade a mamãe sentiu, meu amor.
Envolvendo meu filho nos braços, me lembrei da ameaça de Malcolm
contra ele. Ninguém seria capaz de tirá-lo de mim para introduzí-lo a uma
realidade tão cruel quanto a que ele vive.
— Hoje o dia foi muito bom. Até encontramos um cachorrinho
abandonado na rua e brincamos com ele!
Ele me contou empolgado sobre o dia e Joshua, ainda deitado
encarando o noticiário que passava na tevê, me causava uma leve sensação de
familiaridade. Era como se eu tivesse ido trabalhar e retornasse no fim do dia
para minha família.
— O que fizeram com o cachorrinho?
— Achamos um casal que estava caminhando na estrada que acabou
gostando dele e levando pra casa. Eu queria muito um cachorrinho mas o tio
Josh disse que logo voltaremos pra nossa casa e não podemos levar nenhum
animal.
Assenti, fitando os olhinhos azuis mais sinceros do mundo.
— Tio Josh tem razão. Acho que está bem perto a hora de voltarmos
pra casa.
Isso despertou a atenção de Joshua, que enfim me encarou. Eu firmei
meu olhar no dele, deixando no ar que precisávamos conversar mais tarde.
E depois de um banho relaxante, coloquei meu filho para dormir e
chamei Josh, que já estava em seu quarto, para conversarmos sentados à
mesinha na sala.
Assim que nos sentamos, ele foi direto.
— O que ficou resolvido? Não gosto de deixar você sozinha nas
missões, me sinto um inútil.
Rolei os olhos e contei tudo que houve naquele dia, deixando claro o
que pensava sobre Malcolm e tudo o que tinha me dito.
— Eu preciso ter acesso a tudo que Malcolm deixou para mim. Tudo
ficou no Canadá. Tenho que juntar as peças desse quebra-cabeça louco.
Ele assentiu, quieto. Reflexivo.
— Acho que não vai mais precisar dos meus serviços, Rivka.
— O que quer dizer com isso?
Ele desviou o olhar e encarou algum ponto aleatório do cômodo.
— Somos amigos, convivemos por anos e eu gostei de ser útil para
você, assim como você também foi uma ótima companhia. Mas agora,
independente de tudo, é algo que apenas você pode resolver. O último passo é
só seu e o Rei do Sul não é nada mais nada menos do que uma pessoa que
conhece seu potencial. Eu não acho que ele realmente quer o que deixa
transparecer. É quase impossível você passar pela vida de alguém sem deixar
sua marca pessoal.
Quando ele citou essa última frase, meu coração se aqueceu e eu pude
notar certa melancolia no seu tom de voz. Joshua sempre foi tão profissional
e imparcial, mas daquela vez ele demonstrava algo mais. Isso me deixou um
tanto aflita.
— Não precisa ir agora, você pode esperar que ao menos eu consiga
firmar esse acordo ou ao menos esclarecer a Malcolm tudo o que ele mesmo
tinha pedido para mim depois da suposta morte.
Ele deu uma curta risada sem humor e vida alguma.
— Sabe o que vai acontecer? Vocês vão se acertar. Eu vi o quanto
você o ama, vi de perto, por cinco anos. Li cada uma das cartas dele, peço
desculpas, mas eu precisava fazer meu papel de investigador com excelência.
Ele não parece um homem que fingiu tudo aquilo. Quando eu o via
pessoalmente, antes do plano ser executado, os olhos dele brilhavam ao falar
de você. Isso com certeza foi real. Eu preciso estar longe no momento em que
vocês enfim se entenderem. Posso acabar sendo uma pedra no caminho e eu
não fui contratado para isso.
Engoli minha vontade de chorar, porque foi isso que senti naquele
momento.
Odeio despedidas e Joshua tinha conquistado um lugar tão especial no
meu coração, que eu nunca imaginava o dia em que ele iria embora. Não
queria imaginar.
— Posso pedir ao menos um favor?
Toquei sua mão sobre a mesa e a segurei com força.
Ele assentiu, me fitando olho no olho.
— Volte comigo para o Canadá e me oriente da melhor forma. Me dê
os melhores planos e me ajude a arquitetar algo frio, para que, quando eu
voltar ao Brasil, seja para confrontá-lo de uma só vez e enfim concluir a
missão que o homem que eu amei — não esse de agora —, me incumbiu.
Então poderá ir para sempre.
Josh pareceu ponderar minha proposta por longos segundos, mas
suspirou pesadamente antes de assentir.
— Eu ajudo. Não seria o homem que sou se te abandonar antes do
último ato.
Me levantei e o chamei para que se levantasse também. Ali nos
abraçamos, não como adultos que supriam sua carência emocional um com o
outro, ou pessoas que eram meros aliados. Nos abraçamos como amigos leais
e pessoas determinadas a ir até o fim pelo que se dispuseram a fazer.
Capítulo 16
MALCOLM
ANTES

Eu vivi por um longo tempo em uma imensidão obscura.


Vi Rivka, vi meus pais, vi todas as mortes que eu provoquei e de
repente, comecei a ver minha adolescência, meus traumas, as cenas de
espancamento e tortura e minha infância.
Vi o menino inocente que não sabia o que a vida lhe tinha reservado e
então, me vi apenas um bebê.
Não conseguia entender como a mente pode reter essas memórias tão
vivas de uma época em que ninguém se lembra mais, no entanto era eu lá, no
colo da minha mãe.
Então a explosão.
Pablo queimando vivo na minha frente, me amaldiçoando enquanto
eu apenas olhava e esperava que eu também morresse. Era para isso que eu
estava ali, para acabar com ele e tudo que sua mente maquiavélica seria capaz
de provocar. Precisava atestar sua morte.
Ali eu fiquei até que ele se tornasse cinzas, então a dor começou a se
alastrar em mim.
Eu também queimava.
Essa cena, nas minhas memórias, começou a queimar e se desfazer
como pó, e então eu entrei em um vácuo onde só havia escuridão.
(...)

— Vamos, abra os olhos...


Uma voz bem distante disse, e isso me fez tentar obedecer ao
comando em questão. Se eu estava morto, poderia ter acabado de chegar ao
inferno.
Lentamente, sem tantas forças eu abri meus olhos e só enxergava uma
névoa branca.
“Não vejo nada” — Eu quis dizer, mas quando forcei as cordas
vocais, não saía nada.
Doía. Coçava, arranhava.
— Muito bem. Bem vindo de volta, meu caro.
Uma luz passou pelas minhas vistas e eu rolei os olhos na direção
dela.
— Está enxergando. Creio que vai demorar para ver cem por cento,
pois a visão foi um tanto danificada. Mas você é a cobaia certa para meus
novos experimentos.
Sem ver quase nada e sem poder falar, tentei me mover.
Fracasso total.
Estava em uma cama, sentia o colchão macio. O lugar era frio, pois
podia sentir meu corpo envolto em muitos tecidos grossos.
Onde eu estava?
Senti a aproximação do homem que falava novamente. Ele sentou do
meu lado direito.
— Deve estar tentando falar, mas ainda não vai conseguir. O dano na
corda vocal foi muito profundo, mas logo logo conseguirá pronunciar
algumas curtas sílabas. Quer saber há quanto tempo está aqui?
Balancei a cabeça para cima e para baixo, isso eu conseguia fazer
tranquilamente.
— Onze meses. Esteve no além por todo esse tempo. Depois quero
que me diga o que tem depois da morte, meu caro. Você, com certeza, esteve
lá. Morreu umas duas vezes nesse processo, mas consegui te trazer de volta.
Trazer de volta...
Eu estava vivo?
Tentei mover meu corpo, algum membro. Eu queria me sentir vivo,
mas parecia que estava morto ainda. O que estava acontecendo comigo?
— Calma, chefão. Vai se cansar muito rápido desse jeito. Ainda não
tem tanta energia e vai precisar de alguns meses de tratamento até voltar à sua
vida normal. Ou, pelo menos, parte dela. — O homem tocou minha mão, que
percebi estar envolta em ataduras. — Depois conto como foi te resgatar
daquela queimada total. Te conto também quem eu sou e por que eu estou
aqui cuidando de você.
Se levantou e se afastou, não me permitindo saber de mais nada.

RIVKA
ATUALMENTE
Com certeza Malcolm, ou Rei do Sul, como quiser chamar, pensou
que eu desisti da minha ideia de compreender como tudo aconteceu no nosso
passado.
Mal sabe ele que fui apenas me munir de informações, retornando ao
Canadá.
Joshua e Zion, assim que pisamos em terras canadenses, trataram de
combinar as atividades que fariam juntos assim que chegássemos em casa. Eu
não conseguia tirar Malcolm da minha cabeça, como uma praga.
Alimentei o amor e a perda que sofri por tantos anos, que a ideia de
tê-lo novamente em minha vida era um alento, ao mesmo tempo que ter
ciência de que o homem que amo não é mais o mesmo, me gerou uma onda
profunda de repulsa.
Não dele, mas do que se tornou.
Nunca vi uma pessoa se adaptar tanto ao meio onde vive, como ele.
Consigo lembrar claramente o processo que foi, para que o Patriarca
senhor Samuels jogasse por terra a capa de impenetrável e enfim se
entregasse ao que sentia por mim.
— Meu coração é o órgão mais leal do meu corpo. Ele não costuma se
enganar, muito menos ser persuadido por qualquer coisa. Hoje ele está
totalmente subjugado, mas nunca foi tão feliz. Sabe por quê?
Abanei a cabeça em negativa, já ansiosa pelo que diria.
— Porque ele obedece somente aos seus comandos. Os comandos da
sua dona.
Fechei os olhos e absorvi a intensidade daquelas palavras.
Era um “eu te amo”, de outro jeito. Malcolm estava aprendendo a se
expressar, a demonstrar seu amor, seu afeto com palavras.
E, céus, ele estava fazendo aquilo melhor do que qualquer humano
que já está acostumado.
O que Malcolm fazia que não era melhor do que qualquer pessoa?
O homem era a perfeição em tudo que se empenhava em fazer.
— Meu amor por você não para de crescer — sussurrei e cheguei para
mais perto dele, tocando seu rosto. — Obrigada por sempre surpreender o
meu coração.
— Não mereço seu amor.
De vez em quando ele vinha com essas ideias.
— Merece sim. Não só o amor, mas tudo que vem com ele. É um
pacote completo.
Abanei a cabeça desanuviando a lembrança e impedindo que uma
lágrima solitária deslizasse por meu rosto, enquanto seguíamos todos em um
carro alugado até nosso povoado. De lá, acessaríamos a entrada pela casa
externa.
O trajeto não era tão longo. Já estávamos acostumados a sempre
viajar e, nesses últimos cinco anos eu pensei que jamais viveria outra vida.
Acabei me acostumando.
— Pensando, mamãe?
Zion me fez parar de olhar a pista e encarar seus olhinhos azuis
reluzentes.
— Sim, filho. Pensando em como posso agradar o amor da minha
vida, que é você.
Toquei a ponta do seu nariz e ele riu ao meu lado, ambos sentados no
banco traseiro.
— Pode pensar em fazer alguma comida doce bem gostosa.
Ele esfregou uma mão na outra e estreitou os olhos, como quem
elabora um plano maquiavélico. Ri, abraçando meu pedaço de mim em
seguida e ali ficamos no nosso pequeno mundinho até que chegássemos em
casa.
Joshua, no entanto, se manteve quieto desde o voo do Brasil para cá.
O avião, por ser alugado, não me dava opções de companhia a não ser ele e
Zion, e mesmo assim, a maior parte das horas todos dormiram.
A solidão já me cumprimentava como uma velha amiga, e eu enfim
caí em mim.
Nada do que vivi até hoje, foi totalmente sozinha.
Quando eu não tive mais meu pai, tive Malcolm. Quando não tive
Malcolm, tive Joshua.
Agora Joshua se vai e eu preciso aprender a lidar com o mundo como
ele é, pois só assim meu filho estará sendo formado da melhor forma.
(...)

Dias depois
Passei os dias desde que cheguei ao Canadá, juntando todas as
informações que tinha de Malcolm. As cartas, que estavam em um baú no
cofre secreto, os utensílios que ele deixou preparado para meu uso defensivo
e de ataque, a mala com roupas e itens pessoais dele que eu nunca quis me
desfazer, e por último, uma pequena maletinha que eu escondia a sete chaves
por baixo de todas as roupas antigas de Malcolm.
Nessa maletinha continha uma carta, onde ele menciona um pen
drive, junto com o bendito do item.
Ainda não tinha averiguado o que havia naquele pen drive, mas, assim
que eu retornasse ao brasil, veria em meu notebook pessoal antes de qualquer
coisa.
Tudo isso, depois que Joshua enfim fosse embora.
A frieza que ele tem demonstrado por mim desde o dia em que disse
que sua missão estava chegando ao fim, só me demonstrava o quão
profissional foram os nossos laços.
Eu cria piamente que poderia manter ao menos uma amizade com ele,
mas pelo visto, seria apenas uma amizade de mão única, porque ele jamais
me retribuiria.
Após fechar as malas sobre a cama do meu quarto, para meu retorno
ao Brasil, alguém bateu a porta e abriu em seguida:
— Tudo pronto?
Era Joshua. O chamei para entrar sinalizando com a mão e ele se pôs
corpo adentro.
— Tudinho. Falta apenas as coisinhas de Zion.
Ele alisou a mão nas coxas e sentou, parecendo um pouco reticente
sobre o que falaria a seguir.
— Acho que podemos então elaborar seu plano infalível, não é
mesmo?
Um sorriso amplo e cheio de esperança surgiu em meu rosto.
— Mas é claro! Me dê as coordenadas.
Ele assentiu e tirou do bolso do jeans um papel dobrado. Abriu
lentamente e eu pude perceber que ali estava um mapa.
Mas era um mapa completamente diferente dos que eu vi até então.
Capítulo 17
MALCOLM
ANTES
Já tinham se passado algumas semanas depois do meu retorno à vida.
Ainda não conseguia identificar muitas coisas a minha volta, mas a visão
estava ficando cada dia mais clara.
Logo nos primeiros dias eu arrisquei me recordar do local onde eu
estava, quando me acidentei, no entanto nenhuma lembrança vinha a minha
mente.
Eu não sabia como eu tinha sido queimado vivo e como fui parar
naquele local.
Precisava de muitas respostas.
— Trouxe sua sopa.
O médico que me tratava, entrou no quarto branco onde eu estava
hospedado desde sempre e sentou ao meu lado em uma cadeira também
branca.
— A visão ainda está embaçada?
— Não muito.
Minha voz era um risco trêmulo. Tão rouca quanto se tivesse sido
usada em estádios como um torcedor leal de algum time por longos dias.
Ainda não conseguia me mover completamente, mas ele me ajudava a
sentar para me alimentar. Eu queria sair dali o mais rápido possível porque
algo me dizia que as pessoas que prezo estavam em perigo.
Ao pensar nas pessoas que sentia falta, ela veio em minha mente.
Rivka.
Eu tentava me lembrar claramente de tudo que vivi com ela, mas suas
aparições em minha mente viam sem ordem em flashes inacabados.
Como a cena que veio no momento em que me alimentava naquela
tarde.
– O que está fazendo?
Ela mantinha a mala sobre o colchão e colocava as mudas de roupas,
me ignorando completamente.
– Riv. O que está fazendo? Por que arruma a mala?
Ela então virou o rosto para mim, e notei seu olhar marejado e
cansado.
– Malcolm – fechou a mala e a colocou no chão –, estou pedindo a
você o nosso divórcio. Vou embora agora da sua vida.
Ao recordar aquele momento, meu coração começou a acelerar. Ela
foi embora e... E depois?
O homem de cabelos grisalhos ao meu lado imediatamente percebeu
meus batimentos acelerados pois eu estava conectado a inúmeras máquinas.
— Opa. O que aconteceu aqui? — perguntou amigável.
Eu não confiava nele, mas ele estava me alimentando e me mantendo
vivo. Devia dar algum ponto de confiança, afinal.
— Você sabe do meu... passado?
Eu enfim perguntei.
Perguntei porque eu estava perdido. Perguntei porque ele ainda não
tinha me dito nada além de vagas informações do agora. Semanas internado
não fez com que nada do passado se esclarecesse.
Ele depositou a tigela com a sopa em um cômodo perto dali e
retornou ao lugar de antes: ao meu lado.
— Já quer saber de tudo? Acho que se eu contar tudo o que sei, você
vai querer sair dessa maca hoje e isso vai te matar. Precisa esperar e se
recuperar completamente. — Deu uma pequena pausa encarando as mãos
sobre as próprias pernas. Depois me fitou. — Se lembrou de algo relevante?
Respirei fundo e virei o rosto para a janela na minha esquerda, o lado
oposto de onde ele estava.
— Nada importante.
Eu não entregaria Rivka assim, sem ao menos entender tudo o que
estava acontecendo comigo.

(...)

Algumas madrugadas depois eu tive um sonho tão vívido quanto uma


lembrança.
Nos beijávamos colados um ao outro com ela de costas na parede
enquanto eu a suspendia com meus braços. Era como se o beijo de Rivka
contivesse algum tipo de antídoto que apagava toda e qualquer racionalidade
dentro da minha cabeça.
Eu me encontrava em um estado que jamais tinha ficado antes.
A única coisa que eu queria naquele instante era fazê-la minha.
– Vamos fazer isso direito. – A pus no chão e puxei sua mão até a
cama.
Ela estava corada e ofegante, a visão do paraíso para mim.
Então a empurrei com um pouco de brutalidade para o colchão e ela
caiu de costas com os braços no alto da cabeça.
Os olhos dela brilhavam me analisando da cabeça aos pés, então a
instiguei ainda mais, me despindo lentamente.
Já estava sem a blusa, depois abaixei devagar a calça de moletom que
vestia, me deixando seminu.
– Quer fazer as honras?
Apontei para o foco de todo meu desejo por ela, que ainda estava
coberto pela boxer.
Ela rolou os olhos e riu.
– Como você é convencido. Se acha o gostosão mesmo?
Elevei o canto da boca, sorrindo de viés.
– Eu sou.
Abri os olhos em um susto, estava começando a amanhecer lá fora e
minha respiração se encontrava ofegante.
O sonho foi tão real, com certeza era uma lembrança.
Eu sentia algo profundo por Rivka, mas algo me deixava inquieto.
Como fui parar naquela situação? Como ela estaria enquanto eu me
recuperava da morte?
E o Patriarcado? E minha mãe? Os acionistas? Meus inimigos?
Como todos estavam?
Uma sede de vingança como veneno subiu por minha garganta e eu
sabia que assim que saísse daquele lugar, procuraria por minha mulher e me
vingaria de cada um que arquitetou a minha queda.
Se eu não morri, foi porque estava recebendo uma nova chance.

RIVKA
ATUALMENTE
Estava chocada com a forma tão eficaz que Joshua trabalhava. Ele
simplesmente encontrou o mapa do local onde Malcolm estava morando. Era
uma residência secreta e, segundo ele, apenas o Rei do Sul tinha acesso.
Não perguntei como ele conseguiu tal proeza, mas decorei cada
acesso e cada cômodo, porque era lá, naquele lugar, que eu reapareceria
finalmente com todas as minhas cartas na manga.
E que Elohim me ajudasse, porque se ainda assim eu não conseguisse
o que desejo: Que é destruir o maldito patriarcado com minhas próprias
mãos; Terei de tirar o Rei do Sul dessa jogada.
(...)

Na noite em que chegamos ao Brasil, após colocar meu filho para


dormir e Joshua preferir ficar hospedado em um outro lugar, eu coloquei
minhas roupas de treino e fui correr ao redor da propriedade alugada.
Queria colocar toda minha fúria para fora. Externar meus sentimentos,
meus pensamentos reprimidos e tudo que passei por toda a minha vida.
Nunca me senti uma mulher livre, essa é a verdade.
Fui criada para ser a mulher perfeita. Um exemplo de moça recatada,
devota e pura.
Vivi sempre numa mentira, onde eu mal sabia onde meu pai estava
me introduzindo, e quando me apaixonei por Malcolm... Meus olhos foram
abrindo aos poucos.
Eu consegui amá-lo mesmo com todas as suas mazelas e a
personalidade tão rude e cruel. Confesso que me submeti a coisas que hoje,
jamais me submeteria. Não voltaria no passado e apagaria meu amor por ele,
pois foi assim que Deus me permitiu amadurecer e ter meu bem mais
precioso: Zion.
No entanto, eu jamais diria a outras mulheres para serem como fui.
Aceitarem o que aceitei.
Se sujeitarem a tão pouco.
E de algo eu tinha certeza em meio àquela corrida noturna onde
expelia todas as minhas emoções em lágrimas e suor:
Eu não vou deixar que ninguém jamais me manipule outra vez.
Capítulo 18
MALCOLM
Atualmente
Fazia poucas semanas desde que Rivka, meu antigo detetive e meu
filho se foram.
Cada dia que passava era como se eu ingerisse um ácido que corroía
todo meu interior. Sentia tanta falta daquela mulher, mas jamais a faria passar
por tudo que passou novamente.
Por mais que eu não me lembre de tudo, eu tenho consciência de que
a fiz sofrer.
Sobre o menino... Realmente não sentia nada além de curiosidade.
Queria um dia vê-lo frente a frente. Talvez conseguisse sentir, nem que fosse
por um breve momento, como é ser um pai.
Não pediria jamais para Rivka entregá-lo a mim. Sei que ela o deve
ter criado com zelo e cuidado e jamais a tiraria o direito de mantê-lo sob suas
asas.
Sou impulsivo, isso jamais mudou dentro de mim, e é essa
impulsividade que tem me amedrontado desde que eles se foram.
Porque eu sinto que, se a vir novamente um dia outra vez... Posso não
conseguir manter minhas mãos longe dela como eu deveria.
O que há no coração que nos faz sentir como escravos de outro ser
humano?
Eu a desejava tanto, que mal conseguia me fitar no espelho no fim do
dia. Minhas vontades estavam lá, estampadas em meus olhos, claras como a
água cristalina.
— Hey, Alfa.
Acordei dos meus pensamentos insanos e foquei no rosto de um de
meus soldados mascarados. Estava na sala do meu trono e, como um dia
ruim, tudo era entediante.
— Diga.
Ele limpou a garganta e, em sua posição habitual com as mãos nas
costas, proferiu:
— Temos ordens da Delta para que o senhor descanse por hoje. Ela
solicitou que fosse para sua residência.
Estreitei o cenho sem compreender o que tinha acabado de ouvir.
— Delta me deu ordens? Quem ela pensa que é?
Sem alterar meu tom de voz, inquiri, realmente curioso por saber qual
o propósito oculto na ordem dada pela minha fiel escudeira.
Delta não é o tipo de soldada subserviente. Por isso a aliei a mim.
Sempre compreendi que, quando fazemos a pessoa mais rebelde do grupo ser
nosso aliado, perpetuamos nosso poder.
Ela jamais tomou decisões sem antes me solicitar, por causa da sua
lealdade.
— Perdão, Alfa. Delta apenas me passou o comando. Vou chamá-la
para que fale diretamente a ela.
E assim ele saiu da sala, deixando apenas os outros guardas sempre
silenciosos em forma.
Tamborilei meus dedos envolvidos pela grossa luva de Neoprene,
sobre os apoios do trono onde estava impaciente pela situação recente. Tudo
bem que, de uns dias para cá, não tenho sido eu mesmo nos comandos da
organização Rei do Sul, mas isso não isenta meu poder nem a necessidade da
minha presença em tudo.
Não demorou para Delta entrar na sala com sua pose habitual de
comando.
— Alfa. — Fez uma breve reverência.
— Me diga que ideia maluca é essa de me mandar para casa? Acha
que sou quem nessa porra de organização?
Fixei meus olhos nos dela e deixei minha fúria transparente para
quem quisesse ver.
Ela, porém, não se abateu.
— Sei quem o senhor é. Tanto sei que meu pedido para um dia de
folga é estritamente pensando na organização — ponderou. — Posso falar
aqui no meio de todos esses guardiões como testemunha, quão fragilizado e
abatido você pode estar.
Essa última parte ela falou num tom baixo, o que me fez gelar por
dentro.
Maldita.
— Para minha sala. Agora.
Assim que eu ordenei, ela abaixou a cabeça e seguiu para a porta em
questão. Nos minutos seguintes estávamos apenas ela e eu debatendo
trancados na sala.
— Seu abuso está chegando a limites que não tenho paciência. —
Esfreguei a mão no rosto, tentando controlar minha cólera.
Ela arqueou uma sobrancelha, se aproximou, colocando-se bem a
minha frente e posicionou as mãos na cintura, desafiadoramente.
— Desde que a mulher se foi você anda esquisito. Daqui a pouco
todos estarão reparando e o antigo Rei do Sul saberá de tudo que houve.
Creio que não deseja perder seu reinado por causa de uma paixão louca.
Então vá, descanse e coloque suas ideias no lugar para voltar a ser o Rei do
Sul que estava sendo antes dela aparecer.
Levantei o rosto e encarei o teto.
Delta tinha razão.
— Eu procurei ela por anos. Achei que estava morta. Você não
entenderia.
— Não só entendo como me compadeço. Você tem a mim e aos seus
soldados treinados. Hoje não temos nada para alinhar e nossos treinamentos
para a guerra contra o Patriarcado continuam firmes com ou sem você. — Ela
tocou em meu ombro e isso fez com que eu a fitasse nos olhos. — Sempre
pensei que seríamos amigos. Mas hoje eu vejo que você não mistura as
coisas. Então como sua representante fiel e uma pessoa que deseja que tudo
se resolva, peço que vá para casa.
Respirei fundo e relaxei os músculos. Um dia não me faria mal.
O que poderia acontecer em poucas horas?

(...)

Acessei a saída subterrânea secreta dentro da organização, rumo a


minha casa. O que eu mais gostava era do fato de ninguém saber onde fica, a
não ser o antigo Rei do Sul.
Isso me dá mais privacidade e liberdade.
Minha casa como Rei do Sul é o lugar que conhece mais do que eu
deixo demonstrar.
Meus medos estão aqui. Meus receios. Meus pensamentos mais
obscuros.
Todos moram comigo nessa casa.
Assim que cheguei já fui tirando as roupas pelo meio do percurso
desde a porta até o banheiro. Liguei a torneira da hidromassagem e deitei ali
dentro, esperando encher enquanto relaxava minha mente.
Ainda não conseguia lembrar se eu tinha ciência do lugar onde Rivka
estava morando. Sabia apenas que estava disposto a tudo para protegê-la, pois
meu primo Pablo me ameaçava constantemente.
Fechei meus olhos e permiti que minha mente viajasse no passado.
Flashes desconexos da vida que tive começaram a se alastrar. Minha
mãe sempre tão atenciosa falando sobre a vida como ela é, mesmo que eu já
tivesse em mente a paixão e a devoção por aquele maldito patriarcado.
Meu pai... Ah, meu pai.
Queria tanto dar orgulho a ele e acabei caindo no meu próprio
orgulho.
E Rivka...
— Amo você. Gostaria que soubesse.
Fiquei sem ar.
Me afastei lentamente, apenas para olhá-la nos olhos, e então
verifiquei em seu rosto qualquer rastro de mentira ou dúvida. Dominava a
linguagem corporal, não podia ser enganado com algo tão sério.
Mas tudo em Rivka era sincero. Não havia meio-termo.
— Você tem certeza do que está falando?
Perguntei, ainda um pouco assustado por ter ouvido.
Ela assentiu sorrindo, depois levou a mão que me abraçava da cintura
até meu rosto barbado.
— Não achei que teria coragem de um dia dizer, mas já faz tempo.
Você conseguiu me fazer amá-lo, mesmo depois de tudo. Estou amando sua
nova versão.
Não percebi quando derramei uma lágrima involuntária pelo rosto,
mas Rivka viu e a enxugou antes mesmo que eu tentasse me justificar.
— Homens como você também podem amar. Podem chorar. Podem
sorrir. — Fechei os olhos, recebendo seu carinho em minha face. — Quero
ser a felizarda que estará presente quando viver cada um desses momentos.
Ela não me cobrou uma resposta igual, ou uma declaração.
Essa mulher não existe.
A virei na direção da cama e deitei com ela, me colocando sobre seu
corpo delicioso e a beijando enquanto nossos corpos nus se chocavam e se
acariciavam com nossos movimentos intensos.
Abri os olhos assustado. Acabara de lembrar de uma cena que não
tinha recordado antes. Eu estava sentindo algo mais... Algo... Diferente.
— Olha, que surpresa. Seu instrumento ainda funciona.
Virei-me para a esquerda, abruptamente e dei de cara com a última
pessoa que poderia surgir ali.
— Rivka?
A mulher estava estupidamente gostosa com um macacão de couro
preto adornando o corpo. Seus armamentos estavam devidamente guardados
nos suportes envolvendo suas coxas e, uma arma com silenciador, estava
empunhada em sua mão, direcionada a mim.
Como ela foi aparecer ali?
— Sim. Eu mesma. Desculpe interromper seu momento de diversão,
mas eu precisava surgir no instante em que você menos esperasse.
Abanei a cabeça, sem medo algum das suas ameaças implícitas. Abri
um sorriso falso.
— Eu não te esperaria nem se marcasse um horário comigo. Meus
parabéns, me surpreendeu. — Fechei o sorriso debochado. — Agora pare de
palhaçada e saia da minha casa.
Ela gargalhou, como se realmente achasse graça do que eu tinha dito.
— Engraçadinho, você. Quem dá as ordens aqui sou eu, Rei do Sul.
Se levante e não enrole-se numa toalha. Quero você bem vulnerável. Saia da
banheira e caminhe até o quarto, com as mãos para cima.
Sua voz continha uma fúria que eu ainda não tinha visto. Não dava
tempo para raciocinar e compreender como ela havia conseguido entrar na
minha casa secreta, então apenas levantei e obedeci.
Assim que cheguei ao quarto, a arma dela se mantinha apontada na
minha direção. Para ser mais preciso, na direção da minha cabeça.
Sentei na cama.
— O que deseja? Me transformar num eunuco? Quer atirar no meu
pau?
Ela rolou os olhos e depois se manteve firme no seu posicionamento.
— Desejo ser a Rainha do Sul. Você vai passar o poder de toda a
organização para mim. E vai ser hoje.
Capítulo 19
Rivka
Depois de algumas semanas no Canadá, arquitetando o melhor plano
possível ao lado de Joshua, retornamos ao Brasil de vez. Trouxe tudo o que
eu podia para passar uma longa temporada. Zion e Zeta já tinham sido
avisados da repentina mudança e tudo o que foi preciso alterar em rotinas,
horários, programações, eu deixei alinhado.
Joshua me prometeu ficar até que eu falasse com Malcolm pela
primeira vez.
E depois de poucos dias desde a chegada ao Brasil, pude contar com
uma ajuda inesperada para realizar tudo o que desejava: Delta.
Sim, acabei descobrindo que foi ela quem nos mandou o mapa da
residência secreta onde Malcolm – vulgo Rei do Sul – mora. A ajuda da fiel
escudeira do meu ex marido fez com que tudo ficasse ainda mais divertido.
Ela arquitetou um plano onde o faria passar o dia inteiro em casa e, nesse dia,
eu o confrontaria de guarda baixa.
— Ele não costuma andar desarmado ou sem seu faro defensivo a não
ser em casa. Como sou inteligente, descobri onde ele mora com muita
facilidade e já sondei o território. Claro que ele não faz ideia de que eu saiba,
mas vai se chocar mesmo quando te vir por lá.
No dia em que Delta estava me dando algumas coordenadas sobre a
organização, ela afirmou isso, que despertou minha curiosidade.
— Por que está me ajudando?
Indaguei.
Ela deu de ombros, encostada na parede da minha cozinha com os
braços cruzados.
— Apenas acho que você quer mesmo detonar o Patriarcado. Ele
também quer. Vocês têm um passado e podem se unir para chegarmos mais
rápido no fim disso tudo. Que mal tem em dar um empurrãozinho?
Eu pensava que ela podia talvez fazer parte do harém de mulheres que
se deitam com Malcolm, mas pelo modo de agir e pela forma como ela falou
comigo... a vi como aliada.
— Tá certo.
Com todo o plano em mente, já no dia de executá-lo, orei a Adonai
pedindo compaixão e forças. Deus sabia e era o único que sabia bem, o
quanto eu desejava que Malcolm e eu fôssemos ao menos aliados e nunca
inimigos.
Não dá para simplesmente apagar o que vivemos, foi forte demais
para mim. Ele foi, é, e sempre será o amor da minha vida independente das
circunstâncias. Mas no momento meu foco é simplesmente a missão.
Sentimentos ficam para depois... Ou nunca.

Escondida no quarto dele num local um tanto sem criatividade –


debaixo da cama -, fiquei esperando que ele me desse alguma brecha para
pegá-lo desprevenido.
O que aconteceu logo, pois Malcolm mal chegou naquela tarde e já
foi tomar banho. Seus passos, assim como seu banho foi silencioso. Apenas o
barulho das águas me faziam estar alerta. Quando pude observar de relance
ele dentro da banheira com a cabeça relaxada para trás, deitado de olhos
fechados, me permiti admirar um pouco aquele homem.
Não era mais o mesmo tipo físico que eu me recordava, ele estava
mais forte. Maior.
Com certeza recuperou o tempo perdido depois do incidente.
Foi difícil evitar a queimação nas minhas bochechas, quando o vi nu
sob a água, pensando em alguma coisa que o fazia dar um curto sorriso.
Curto e raro.
Então foi minha deixa, me aproximei lentamente sem que ele notasse
e empunhei a arma na direção da cabeça dele.
Meus olhos viram a notável ereção debaixo dágua, mas não me
constrangi, pelo contrário, usei aquilo ao meu favor, fazendo com que ele me
obedecesse e seguisse comigo até seu quarto, absolutamente nu.
Malcolm tentou me ferir com palavras algumas vezes, mas eu rebati a
altura e, quando afirmei que ele deveria me passar o comando do Rei do Sul
e me tornar a rainha do Sul, ele surtou.
— Você só pode estar louca!
Mantive minha risada sarcástica como uma marca registrada daquele
momento, e disse:
— Louco está você, ao pensar que vai chegar em algum lugar se não
me tiver ao seu lado. O antigo Malcolm me deu as coordenadas. Ele me
deixou segredos que você jamais teria acesso. Com as informações que tenho,
posso ir hoje mesmo até o Patriarcado e, mesmo sem os países com o Rei do
Sul no comando, eu detonaria aquele câncer.
Blefei.
Eu não sabia se tinha essa banca toda.
Ainda não tinha olhado o pen drive, apenas tinha as informações das
cartas.
Mas torcia para que naquele pequeno artefato, contivesse toda a
solução dos meus problemas.
Uma das suas sobrancelhas se arquearam e seu sorriso debochado
pairou no rosto.
— Então fique à vontade. Destrua-os.
Sem muita paciência, atirei no ombro dele o fazendo gemer e cair no
chão como um bicho.
Abaixei e fiquei olhando aquele homem nu, perdendo sangue.
— Minha paciência tem estado bastante curta, senhor Samuels. Não
sei se lembra, mas esse sempre foi seu nome. — Estiquei a mão e segurei o
queixo dele, fazendo seu rosto ficar na direção do meu. — Não te dei uma
opção. Você vai entregar o Rei do Sul a sua nova Rainha.
Ódio pairou sob seu olhar, mas eu não me importava. Malcolm estava
apertando a ferida causada pela bala e eu apenas olhava, sentada ali no chão
mesmo, distante dele para que não houvesse espaço para sua retaliação contra
mim.
— Você é diferente de como me lembrava — disse entredentes. —
Deixou de ser doce.
Respirei fundo. Ele estava tentando me atingir de outros modos.
— Bom, acho que já posso te algemar. Você está ficando alucinado e
ainda está baleado... Nada melhor que um descanso.
Me pus de pé e cheguei até ele, no meio do quarto. Estiquei uma mão
e puxei o braço bom dele para cima, a fim de que ficasse de pé na minha
frente.
Passei o olho novamente pelo seu corpo nu e muito bem treinado na
academia. A vontade de beijar cada pedacinho dele estava me consumindo.
Precisava de controle.
— Mãos para trás.
Nossa conversa sempre estava acompanhada da arma que eu não
abaixava de jeito nenhum.
Ele fechou os olhos, parecendo irritado, mas posicionou as mãos nas
costas. Nos segundos seguintes eu já o havia prendido em algemas.
— Agora vou cuidar dessa bagunça aí. Senta na cama.
— O que pretende?
Me afastei e comecei a procurar pelos armários, alguma maleta de
primeiros socorros. Eu tinha que evitar que a bala permanecesse dentro
daquele imbecil.
— Apenas fazer uma boa ação.
(...)
Longos minutos se passaram, no entanto, Malcolm já estava com seu
ombro devidamente cuidado e enfaixado. Ainda estava nu, agora deitado na
cama com as mãos algemadas sob o corpo.
Seus olhos azuis cristalinos não paravam de fazer perguntas que sua
boca não reproduzia. Eu via uma batalha no olhar dele. Via como ele
desejava algo diferente daquilo que estava acontecendo.
Mas eu preferia não me iludir. Preferia achar que era tudo uma
encenação.
— Ainda faz um bom trabalho?
Estava sentada numa cadeira perto do corpo dele, que se mantinha
deitado de barriga para cima na cama.
Seu olhar se virou para mim e o questionamento estampado em seu
rosto foi visível.
— O quê?
Apontei com a arma para seu sexo. Queria mesmo deixá-lo muito,
mas muito constrangido.
Só que eu esqueci que ele não era Joshua, ou qualquer outro homem
da face da Terra. Era Malcolm.
— Senta aqui. Vem testar.
Babaca.
No fundo eu queria dizer “Sim, estava morrendo de saudades, tô indo
agora.”, mas não era o momento. Apesar de meu corpo todo se arrepiar
apenas na possibilidade de tê-lo dentro de mim.
Malcolm me fez a mulher mais maníaca da face da Terra.
Isso me fez lembrar das nossas loucas noites em que fazíamos amor
inúmeras vezes e aprontávamos com tudo que víamos na nossa frente.
Inclusive panquecas.
— Ainda gosta de panquecas?
Tentei mudar o assunto.
Ele virou o rosto e voltou a encarar o teto.
— Certos gostos nunca mudam.
Sua voz rouca e tão, mas tão grossa ecoou de uma forma tão sensual
naquele quarto que eu estremeci. Estava enfraquecendo. Não podia recuar.
Decidi então jogar o jogo dele. Eu teria sua renúncia de Rei do Sul
por bem ou por mal.
— Vou testar.
Comecei a deslizar o zíper frontal do meu macacão para baixo,
quando Malcolm me fitou com surpresa, inquirindo:
— Como?
Rolei os olhos e sorri de modo dominador, apontando a arma para seu
membro.
— Isso aí. Vamos ver se ainda faz alguma coisa.
— Não tô acreditanto. Você só pode estar de sacan...
Sua fala se deteve no instante em que terminei de me despir. Estava
completamente nua debaixo do tecido de couro e imediatamente me arrepiei
ao sentir o ar que circulava pelos dutos de ventilação.
A excitação e o desejo por controle estava me fazendo queimar de
desejo por dentro. Eu queria levá-lo ao seu limite, mas no fundo, queria
mesmo era matar a saudade. Eu o amava, nunca negaria isso a ninguém.
Mas não deixaria jamais ele tomar o controle que já aprendi a
manusear muito bem.
— Gosta do que vê?
Subi na cama, me posicionando sobre ele, de joelhos intercalando seu
corpo.
Malcolm engoliu em seco, sem poder se movimentar muito, apenas
fechou os olhos e sugou o máximo de ar que conseguiu ao seus pulmões.
— Sei, sei..., Está sem palavras — falei.
A coragem de agir como uma mulher dona do mundo me dominou
desde quando escolhi não ser mais humilhada nem dirigida por Malcolm nem
por homem algum. Eu poderia estar agindo como uma qualquer, para quem
quiser julgar, mas para mim, eu estava sendo poderosa.
Ainda com uma arma apontada para a testa de Malcolm, usei a mão
livre para me auxiliar na hora de me posicionar sobre ele e então o senti
deslizando para dentro de mim quando relaxei.
— Uau... Quanto tempo, não é mesmo? — perguntei. — Não vai
dizer nada, querido?
Minha ironia era tão notória que o fazia se calar. Malcolm nada dizia,
apenas me olhava com algo semelhante a dor. Suas íris azuis brilhavam, mas
seu cenho franzido dizia que algo não estava certo.
Não fizemos amor, eu fiz sexo. Sozinha. Sem nenhuma ajuda dele.
Me movimentei para cima e para baixo procurando sempre o melhor ponto
que me dava prazer e ali fiquei até que eu atingisse meu êxtase.
Ele nada disse durante esse ato.
Assim que me desconectei do corpo quente e delicioso do meu ex
marido, ele soltou as curtas palavras:
— Saiba que eu também quis. Se eu não quisesse, nada teria
acontecido.
Como sempre, querendo ser o ponto de decisão entre nós. Já de pé,
respondi olhando-o com firmeza:
— Aham. Claro. Você me desafiou, por isso fizemos isso. Não abusei
da sua inocência, pode ficar tranquilo.
Fui ao banheiro e quando voltei, ele estava ainda deitado com as mãos
algemadas debaixo do corpo.
Deitei ao seu lado. Estava cansada de esperar sua bandeira branca.
— Não vai dizer logo que renuncia ao seu reinado aqui nessa
organização?
Em fração de segundos, Malcolm rolou sobre mim e, mesmo
algemado, conseguiu me prender debaixo de si somente com o seu peso e
suas pernas agarradas entre meu corpo.
— Enfim largou essa maldita arma, mulher — sussurrou com o rosto
colado ao meu. — Quero deixar claro algumas coisas…
Eu tentava empurrá-lo, mas ele era pesado e conseguia me deixar sem
ar com a pressão que fazia contra meu peito. Idiota! Como eu fui burra em
largar a arma por alguns segundos apenas para ir ao banheiro!
— Te odeio! — gritei antes que ele dissesse qualquer coisa.
Ele respirou fundo, me pressionando ainda mais forte sob seu corpo.
— Eu estou disposto a fazer um acordo, mas antes, quero deixar
algumas coisas bem estabelecidas entre nós.
A palavra “acordo” me fez relaxar um pouco. Ele estava começando a
ser maleável e isso poderia me ajudar. Queria ouvir o que ele tem a dizer.
— Diga — murmurei entredentes, cheia de raiva.
Ele mordiscou meu lábio inferior, antes que eu pudesse raciocinar e
em seguida começou a chupar o superior, abrindo um portal para um longo e
intenso beijo que eu jamais esperaria que acontecesse.
Mas aconteceu.
Aconteceu porque eu sou uma idiota. Simples assim.
Ele começou a me beijar de uma forma tão... Intensa e segura, que
não consegui não me desmanchar sob ele. Os lábios de Malcolm dominavam
os meus, como se o universo inteiro pudesse notar o quanto nossas bocas se
encaixavam sincronizadamente.
Fechei os olhos e me deleitei naquele beijo delicioso que há mais de
cinco anos, eu não recebia. Não era o beijo do começo do nosso casamento,
era o beijo do final. Da fase em que estávamos nos amando.
Ele estava querendo dizer o quê com aquilo tudo?
E tudo que ele me fez sofrer por cinco anos?
E toda sua ideia arquitetônica para me deixar de lado e conquistar o
mundo sozinho?
Eu não podia perdoá-lo tão fácil.
Mordi seu lábio a ponto de arrancar sangue, então ele parou de me
beijar.
— Ai. Você está violenta, Riv.
Como eu sonhei ouvi-lo me chamar de Riv... Mas a circunstância era
outra.
— Acha que pode brincar comigo? Acha que sou uma marionete? As
regras quem dá sou eu. Não é só porque transamos que você vai me dominar
outra vez. Não sou mais a menina tola que você conheceu.
Minha voz saiu com autoridade e firmeza, ele me olhava firme, sem
vacilar o olhar.
Um curto silêncio foi necessário para me fazer digerir tudo o que
tinha acontecido nos minutos anteriores, e creio que para ele foi exatamente o
mesmo.
— Não sirvo mais para fingir, Riv. Estou cansado.
Se levantou, me deixando livre e andou pelo cômodo ainda com as
mãos algemadas.
— Estou ficando velho, já passei dos quarenta e, sinceramente... Você
é teimosa demais para ser protegida. Quer se foder toda nessa maldita
organização mas não entende que eu só queria que você estivesse segura com
nosso filho!
Eu não estava entendendo bem o que ele queria dizer. Mas aquela
entonação não parecia ser do Malcolm dos últimos dias... O jeito dele se
expressar e falar, lembrava o meu Malcolm. O Malcolm que me amava.
Sentei-me na cama e fiquei ali, aguardando que mais palavras saíssem
da sua boca.
— Tem como soltar meus punhos?
Me olhou com um olhar pidão. Ele realmente parecia cansado e
sincero.
Mas neguei. Não ia cair na lábia dele.
Malcolm fechou os olhos e suspirou.
— Ok. Você pode ser a maldita Rainha do Sul. — Estava prestes a
ficar de pé e gritar pelo que havia acabado de ouvir, quando ele completou:
— Desde que eu esteja ao seu lado. Não vou te deixar sozinha nem que me
custe a vida outra vez.
Entendi.
Minha teimosia e a persistência dele eram nossa marca registrada.
Sempre foram, na verdade.
Só que agora eu não confiava nele, não sabia se estava mesmo sendo
sincero ou só jogando comigo para que eu o soltasse e ele me prendesse ou
até... matasse.
— Me prove que está sendo sincero. Não consigo confiar em você.
Pedi. Ele apontou com a cabeça para um armário em questão e eu
segui até a porta indicada, abrindo-a em seguida.
Havia algumas pastas plásticas com muitos papeis dentro. Era um
armário de documentos.
— Fique a vontade para ler cada folha, cada laudo, olhar cada foto. Aí
está toda a verdade de como foram meus últimos cinco anos longe de você.
Emoção tentou dominar meu coração e saltar para a superfície,
marejando meus olhos ao encarar tudo aquilo em minhas mãos. Foram longos
anos vivendo algo que sempre pensei ser o que Malcolm queria. Mas ao revê-
lo frente a frente, tudo caiu por terra.
Será que ali havia minhas verdadeiras esperanças de ter minha
história de volta ao lado do homem que sempre amei?
— Você pode esperar até que eu leia?
Virei meu rosto e o fitei com curiosidade no olhar. Os olhos de
Malcolm já estavam como os meus, um tanto úmidos.
— Ah, Riv... Pensei que nunca mais diria isso, mas... Eu esperaria a
eternidade inteira quantas vezes fossem necessárias. — Pausou e suspirou
antes de continuar. — Por você vale a pena, minha teimosa.
Seus lábios formaram um curto sorriso.
Capítulo 20
MALCOLM
ANTES
2 anos após o incidente.
Eu já estava caminhando, falando e me virando sozinho. Estava em
uma casa na Groelândia e o médico que me assistia se chamava Goubert.
Quando ele me revelou que fazia parte do Patriarcado, eu quis fugir
pois algo me dizia que poderia ser perigoso, mas ainda estava instável e fraco
para isso. Ele me ajudou justamente porque me reconheceu como atual
patriarca.
O que Goubert disse, e me surpreendeu, foi que ninguém jamais
soube onde ele morava nem que eu estava lá. Os noticiários internos e
mundiais anunciavam minha morte, assim como a morte do meu primo
Pablo.
— Quando encontrei seu corpo evidentemente numa tentativa de
escapar daquele lugar que havia explodido, olhei ao redor para saber se havia
mais alguém, porém não encontrei. Retornei no dia seguinte e encontrei os
destroços de mais uma pessoa. Essa pessoa era Pablo.
Ele me contou, após alguns meses desde que eu acordei consciente.
Como homem desconfiado que sou, demorei um tempo para
compreender a lealdade que Goubert tinha pela minha pessoa. Ele não era fiel
a organização, era fiel ao patriarca.
Ele me questionou se eu me lembrava o real motivo para chegar a
quase morte. Mas eu ainda não me recordava. Dentro do Patriarcado foi
divulgado que eu e Pablo fomos executados por traição.
Ou seja, eu não conseguiria voltar lá e simplesmente assumir meu
lugar.
Precisava montar um amplo quebra-cabeças para compreender toda a
situação e enfim assumir meu lugar de origem.
Rivka era uma lembrança muito vívida em meus dias. Ela sempre
estava lá, de alguma maneira. Às vezes, eu não me lembrava das nossas
conversas, apenas das cenas como borrões. O Doutor me disse que tive uma
concussão cerebral e que alguns fragmentos da minha memória poderiam
demorar a voltar, ou jamais retornar.
Mas não era nada preocupante, a não ser o fato de não ter a mínima
ideia de onde Rivka poderia estar. Perguntei sobre ela para Goubert e ele me
disse que o Patriarcado estava investigando durante todo o primeiro ano para
que a executassem também, mas depois de tanto procurar, veio um noticiário
afirmando que ela havia sido encontrada em uma ilha na américa do Sul e
quando tentou fugir, morreu queimada por águas-vivas.
O Patriarcado fez um enterro simbólico, e quando vi as fotos, meu
coração se afundou dentro de mim.
Eu não sentia que era ela a mulher dentro do caixão lacrado nas
imagens em que observei.
Era como se quisessem apenas dar um fim numa investigação mal
sucedida.
Em dois anos dentro daquela casa sendo tratado e enfim recuperado,
decidi executar a minha justiça. Goubert me ajudou a planejar todo o
necessário. Ele me informou que havia outras pequenas organizações
semelhantes ao Patriarcado e que eu poderia me aliar a elas.

Eu já sabia da existência dessas organizações. Como Patriarca, meu


dever antigamente era acabar com uma por uma, enquanto estivesse no poder.
Mas eu não podia contar com minha própria organização, pois queriam me
ver morto. Me lembrava que Rivka odiava o Patriarcado e por conta de
algumas leis severas, eu quase a perdi.
Eu queria encontrá-la, e o melhor modo, era sendo um grande inimigo
do Patriarcado.
Após um bom tempo de preparo e toda a ajuda de Goubert, consegui
documentos falsos que me garantiam como cidadão americano e o prometi
que procuraria por Rivka no mundo inteiro. Não falei que me aliaria aos
inimigos do Patriarcado, porque por mais que ele tivesse me ajudado, ainda
fazia parte da organização que eu queria detonar.
Ele me fez prometer que, quando eu retornasse ao posto de Patriarca,
o colocasse como primeiro responsável pela medicina mundial. O homem
realmente é um gênio e me usou como cobaia para várias das suas criações
científicas.
Eu me sentia forte, determinado e mais inteligente do que nunca. Era
como se partes adormecidas do meu cérebro tivessem sido ativas e eu
conseguisse planejar tudo com mais clareza.
Os primeiros meses foram apenas para fazer dinheiro. Eu acabei me
envolvendo com o submundo dos cassinos de Las Vegas e lá, conheci o
primeiro chefe rebelde.
Ali foi o portal para que enfim iniciasse uma nova missão.
Eu procuraria por Rivka pelo mundo inteiro, e ao mesmo tempo,
uniria povos contra o Patriarcado.

(...)

ATUALMENTE
Para minha infelicidade, Riv estava vestida novamente, sentada na
poltrona do meu quarto lendo todo o conteúdo das pastas.
Ali estavam os noticiários internos e externos do Patriarcado, meus
laudos médicos e fotos de todo tempo que passei naquela casa na Groelândia
com Dr. Goubert.
Também uni nos arquivos meus documentos falsos, meus disfarces e
todas as anotações que fiz sobre os locais que passei e dentro dos relatos eu
sempre mencionava o fato de não ter encontrado Rivka.
Ela com certeza leria uma por uma.
Eu a procurei pelo mundo inteiro, porque por mais que não me
lembrasse dos últimos acontecimentos antes da minha quase-morte, eu sabia
que a amava.
Não tinha dificuldade para assumir isso dentro de mim.
Era claro como água cristalina o quanto ela tem poder sobre mim.
Rivka era, é, e sempre será a minha dona.
E putz, eu não queria que ela se arriscasse por minha causa outra vez.
Doeu demais ter que tratá-la como um lixo para que a mantivesse segura com
nosso filho longe de toda essa bagunça. Mas um traço muito forte da
personalidade dela é a teimosia.
E eu amava mesmo sendo o ser mais cabeça dura que já pisou na
Terra.
— Ainda falta um bocado.
Comentei, sentando ao seu lado.
Acabei enrolando uma toalha na minha cintura. Queria deixar tudo
mais sério entre nós e a nudez poderia ser um impedimento. No entanto,
queria que ela compreendesse que ainda não tinha acabado o que houve há
pouco tempo naquela bendita cama.
Ah, mas não tinha nem começado, na verdade.
— Já disse que vou ler tudo — disse, com os olhos fitos nos papeis.
— Depois tenho perguntas a fazer.
Relaxei o corpo, deitando no colchão macio e encarando o teto.
Um alívio tomou conta do meu corpo, quando eu cedi para ela.
Queria, desde o começo, ter agarrado essa mulher e mostrado o quanto senti
sua falta. Mas as coisas não eram como eu desejava e, mesmo cedendo agora,
ainda tínhamos que estabelecer limites para certos riscos que ela correria.
Todo meu plano teria de ser alterado.
Maldição.
(...)

Já era noite e eu acabei cochilando devido ao cansaço. Despertei num


susto e apalpei o colchão, acendendo a luminária ao lado da cama, me dando
a visão de nada mais nada menos do que ninguém ali.
Rivka tinha ido embora?
Levantei atordoado e, sem nem pensar em como estava, marchei para
fora do quarto em busca de algum vestígio da mulher que me deixava
maluco. Não podia ter sido um sonho, certo?
Ao me aproximar da cozinha, um cheiro familiar invadiu minhas
narinas e meu coração parou de se desesperar. Só podia ser ela.
Apareci no batente da porta e confirmei. Rivka estava cozinhando
panquecas.
Que delícia.
— Porra, que susto.
Deixei escapar. Ela virou o rosto, sorrindo e deu de ombros.
— Você dormiu como um bebê e eu estava com fome. Estou
preparando para nós, mas depois já vou pra casa. Zion está me esperando.
Zion...
— Nosso filho?
Andei lentamente até ela e a envolvi por trás, encaixando meu rosto
na curva do seu pescoço e inalando seu aroma mesclado com o cheiro das
panquecas.
— Sim. Joshua está com ele e...
Ao ouvir o nome do traíra, soltei o corpo delicado de Rivka e andei
impaciente pela cozinha. Não lembrava mais do homem que assumiu meu
lugar por esses anos. Droga! Ele comia a minha mulher!
— Quando ele vai embora?
Encostei na parede oposta a ela, cruzei os braços e indaguei com
firmeza. Queria um posicionamento concreto sobre aquilo que eles tinham.
— Ele logo vai, já tinha dito que iria. — Ela se manteve finalizando
as panquecas, me respondendo num tom neutro, habitual.
— Quando foi a última vez que vocês transaram?
Perguntei mesmo. Estava puto. Morto de ciúmes. Odiava sentir essa
merda.
A pergunta a fez parar com tudo, desligar o fogo e virar para enfim
me encarar. Seu cenho estava franzido e seus braços também se cruzaram
sobre o peito.
— E quem se importa? O homem que tinha zilhões de prostitutas?
Sua ironia me faria rebater à altura, mas perceber o fato dela também
estar enciumada já me fez a pessoa mais feliz naquele dia. Então eu sorri.
— Você não faz ideia do que eu tive que fazer pra chegar onde estou
hoje. Mas uma coisa te garanto: Você nunca, jamais, em hipótese alguma, foi
trocada onde mais importa.
Toquei o centro do meu peito, mostrando o lugar que ela comandava e
desmandava se assim quisesse.
Não me importava em parecer fraco, entregue ou qualquer coisa.
Passei tempo demais sem saber o que é viver isso que sinto hoje e já que
enfim eu cedi, não poderia dar espaço para o orgulho nem uma única vez.
Ela rolou os olhos.
— Você tá jogando tão baixo...
Fechei os olhos. Só a voz dela já me deixava em alerta. Então olhei
para baixo e percebi que estava nu novamente. A toalha devia ter ficado na
cama.
Andei até ela e, com um braço envolvi sua cintura por completo,
aproximando seu corpo do meu até não sobrar nenhum espaço sequer. Minha
outra mão foi direto ao ponto que eu mais desejava naquele momento.
Ela ofegou e fechou os olhos.
— Jogando baixo assim? Nessa altura, aproximadamente? — Minha
boca sussurrou em seu ouvido enquanto eu massageava seu ponto dolorido
com a mão.
Eu queria despi-la ali mesmo, na cozinha, por isso logo a soltei e me
afastei, deixando-a ansiosa por mais.
Rivka abriu os olhos com nítidas chamas tremeluzindo em suas íris, e
perguntou:
— Está brincando comigo?
Arqueei uma sobrancelha e sorri.
— Jamais... Só estou esperando que você me diga agora, após ler tudo
o que leu e ver tudo o que viu, se quer aceitar meu acordo e comandar o Rei
do Sul comigo. Será minha Rainha, dona de toda a organização, dona disso
tudo aqui — apontei para mim mesmo —, e minha mulher outra vez. O que
me diz?
Ela olhou ao redor, parecendo pensar bastante sobre a proposta.
Cruzou os braços sobre si e suspirou.
A dúvida interna que pairava sobre ela me mantinha inquieto, mas
não podia simplesmente obrigá-la a nada. Eu jamais permitiria que ela fizesse
tudo sozinha então essas são as regras. Se ela aceitar, tudo bem. Mas se não
aceitar, entenderei que será nosso fim para sempre.
Não permitirei que ela acabe sendo massacrada por aqueles infelizes.
Capítulo 21
Rivka
Não podia mais fingir que era a mulher mais durona do mundo após
ler tudo o que li. Ele realmente passou anos se recuperando, depois me
procurou pelo mundo inteiro enquanto fechava alianças.
Ele não lembrava de onde eu poderia estar.
Malcolm não mentiu, ele apenas queria me proteger, ao saber que eu
estava determinada a fazer o mesmo que ele.
Talvez ele estivesse me procurando apenas para me manter como sua
mulher, assim como éramos antes. Não esperava encontrar uma pessoa
determinada a tudo para destronar o Patriarcado do mundo.
Ele se surpreendeu e não soube como reagir.
Agora tudo era diferente. Havia Zion. Havia Joshua, que apesar de ser
somente um amigo, fazia parte da minha história também. Havia tudo o que
eu passei e havia o amor que ainda nutria por Malcolm e só crescia.
Eu odiava amá-lo, mas naquele momento, vendo-o tão deliciosamente
ansioso por mim e sincero em todas as palavras que saíam da sua boca, não
pude evitar correr para seus braços e pedir para que me fizesse sua como nos
velhos tempos.
Não aguentava mais.
Era ele o dono do meu coração.
Seria ele para sempre.
Eu aceitaria não ser a dona de todo o plano contra o Patriarcado se ele
estivesse ao meu lado. Valeria a pena.
Assim que o agarrei, envolvi minhas pernas na sua cintura e pude
sentir toda sua potência pressionando-me. Estava ansiosa e ele não era
diferente.
Malcolm me agarrou pela bunda e voltamos ao ponto inicial: o quarto.
As panquecas esperariam um pouco mais, sorte que eu já tinha
terminado tudo.
Assim que chegamos em seu quarto iluminado apenas por uma
pequena luminária perto da cama, ele me lançou sobre o colchão macio e,
sem preliminares, me despiu.
— Eu sonhei com isso por tanto tempo, Riv.
Ele ofegou ao dizer, assim que lançou meu macacão longe.
Eu não sentia nenhuma vergonha ao notar como os olhos de Malcolm
me devoravam despudoradamente. Ele desejava-me com toda a intensidade
de seu ser e eu correspondia do mesmo modo.
Já estava mais do que pronta para ele.
— Toque em si mesma.
Pediu.
Ele não esperou que eu obedecesse, mas fez o mesmo, levando sua
mão direita ao seu membro, envolvendo-o e estimulando-o enquanto eu me
acariciava lentamente.
— Isso... Quero te ver mais um pouco antes de te comer, minha
Rainha.
Fechei os olhos e suspirei. Meu Deus! Ouvi-lo me chamando de
“minha Rainha” me deixou ainda mais desejosa do que jamais estive em toda
minha vida.
Obedeci e ficamos envolvidos apenas olhando um ao outro, por um
tempo considerável até que ele não se conteve e levou suas mãos até meus
joelhos, abrindo-me.
— Fica aí deitadinha, só aproveita.
Malcolm abaixou e eu só consegui ver seu rosto se aproximando do
meu sexo lentamente e em seguida, sua língua me dominou com tanta
voracidade, que eu fechei os olhos e só consegui gemer e gritar de tanto
prazer.
— Isso! Ai... Mais...
Arqueei minhas costas, sentindo que estava chegando ao êxtase
rapidamente, mas a boca dele se apartou de mim.
— Nãaaao...
Tortura. Era isso que ele queria me dar. Tortura.
Malcolm ficou de pé novamente e lambeu os lábios com gosto, antes
de dizer:
— Só vai poder gozar com meu pau dentro de você.
Ele sempre teve a boca suja e manias diretas de falar, mas pouco me
lembrava das frases e sim mais das sensações. Relaxei e me permiti ser como
uma boneca naquele quarto. Ele me virou de bruços e pediu que eu
ajoelhasse.
Assim o fiz, e segundos depois, o senti me penetrando fundo e forte,
sem cerimônias.
— Ahhh... — Gemi sentindo uma pontada dolorida por sua invasão
brusca, mas logo se tornou a melhor coisa que eu poderia sentir na vida
inteira.
Suas investidas eram sempre fortes, profundas e revezava entre o
rápido e o devagar. Eu gritava de tanto desejo por aquele homem. Tanta
saudade. Tanta vontade de ficar ali para sempre.
Em um dado momento, ele envolveu meus cabelos em seu punho e
me elevou para cima, encostando seu peito em minhas costas enquanto me
fazia sua da forma mais bruta que existia.
Ali ficamos por longos minutos que se tornaram horas. Parávamos
quando atingíamos nosso ápice e minutos depois, recomeçávamos.
Repetimos o sexo até eu me dar conta do horário.
Quando já era quase meia noite e todas as panquecas já tinham sido
devoradas, após mais uma rodada de sexo, nos embolamos na cama e ali
ficamos encarando um ao outro como se o mundo pudesse acabar a qualquer
momento.
Ele acariciava meu rosto com tanto carinho e seus olhos azuis como o
céu me mostravam o quanto ele desejava estar ali, assim como eu.
— Preciso voltar — sussurrei, sem querer me desgrudar dele.
— Fica essa noite.
Sua voz rouca e firme ecoou pelo cômodo, me trazendo sensações que
há tanto tempo não sentia.
— Volto amanhã. Zion virá comigo. Quer conhecê-lo?
Perguntei finalmente. Não tinha mencionado Zion muitas vezes
durante aquele dia, mas eu precisava esclarecer a ele que meu filho era tudo
pra mim.
Se ele fosse um impedimento para qualquer coisa, já não teríamos
mais o mesmo acordo.
Malcolm pareceu ponderar, mas enfim respondeu:
— Quero sim. Pode trazê-lo.
Não pude evitar o sorriso que se abriu em meu rosto de maneira
involuntária. Saber que ele deseja conhecer finalmente o filho, é um grande
avanço em tudo que passamos. Eu achava que talvez a parte paterna do meu
Malcolm jamais se desenvolveria.
Tomei uma ducha rápida e me aprontei para ir. Ele insistiu em me
levar e colocou seu disfarce de sempre, para que não associassem ele a
ninguém. Malcolm parecia um homem normal, usava um chapéu e um par de
óculos.
— Volta amanhã mesmo?
Ele inquiriu. Abaixou os óculos e seu olhar me envolveu.
— Sim. Vou resolver algumas coisas antes, mas amanhã estarei com
você.
Combinamos horário e meu acesso na base do Rei do Sul não mais
como invasora, e sim como convidada até solidificarmos minha nova
posição. Me despedi dele com um beijo casto, desci do carro e caminhei até a
porta de casa.
A casa estava apagada, a não ser somente pela luminária da sala e
uma lâmpada da varanda acesas. Entrei sem fazer alarde, já ciente de que
Zion estaria dormindo naquele horário.
Eu temia apenas por Joshua, que devia ter me esperado o dia inteiro e
não recebeu nenhuma notícia sequer de mim.
Caminhei a passos sorrateiros pela sala, constatando que ninguém
estava lá. Abri a porta do meu quarto e encontrei meu filho dormindo como
um anjo. Em seguida arrisquei tocar a maçaneta do quarto de Joshua, mas
algo me impediu.
Não podia mais abusar da nossa amizade e simplesmente invadir a
privacidade dele desse jeito. Se ele estiver dormindo ou fazendo qualquer
coisa, é direito dele e eu não poderia simplesmente sair abrindo a porta do
quarto.
Voltei a sala e encontrei sobre a mesinha próxima da janela, um papel
dobrado.
O abri e o que li escrito nele, me abalou.
“Rivka,
Provavelmente quando chegar já estarei dormindo e seu filho
também. Ficamos esperando até onze da noite, mas Zion estava muito
sonolento e eu ainda tinha coisas da minha próxima missão para resolver.
Fico feliz por tudo ter se ajeitado. Sua demora com certeza decreta
que você e Malcolm se entenderam.
Notícias ruins voam, e como não soube de nada nas últimas horas,
pude supor a notícia boa.
Você é uma mulher extraordinária. Nunca deixem que pensem o
contrário. Talvez, amanhã quando acordar, eu já esteja longe. Recebi uma
nova missão e estou no aguardo apenas das últimas coordenadas para ir.
Então esse papel ficará com minha despedida e meu agradecimento.
Foi bom ser seu amigo e seu treinador. Foi bom cumprir essa missão.
Até breve.”
Não notei quando uma pequena lágrima solitária manchou o papel,
mas em seguida uma angústia invadiu meu peito e aquele sentimento de
perda começou a me alertar de que eu enfrentaria momentos ruins em breve.
Não dava para negar que Joshua já tinha conquistado um pedaço do
meu coração e, mesmo que todo ele pertencesse a Malcolm, eu devia meus
últimos anos ao homem que me deu força e apoio quando eu não tinha mais
ninguém.
Não queria me despedir dele com uma carta, então sem pensar muito
andei atordoada até o quarto dele e simplesmente abri a porta, sem nem
pensar no que eu veria do outro lado.
Capítulo 22
Rivka
Entrei no quarto de Joshua e o que vi me despedaçou.
Ele arrumava suas malas com um semblante derrotado e triste, coisa
que eu não tinha presenciado desde que nos conhecemos. Eram raras as vezes
em que ele era tão transparente com relação a sentimentos negativos, mas
naquele instante, eu pude ver tudo.
Ainda de pé, com a porta fechada atrás de mim, encarei o homem
sobre a cama.
— Você não pode ir embora assim. Não pode sumir da minha vida
como se nada tivesse acontecido.
Ele fechou a mala e me encarou com serenidade no olhar.
— Minha missão ao seu lado já foi cumprida. Tenho que ir embora.
— Abaixou o olhar. — Fico feliz por vocês terem se ajustado.
Me sentei na ponta da cama, um pouco sem reação ao que acabara de
ouvir.
— Como sabe? — Ele conectou seu olhar ao meu. — Como sabe que
nos entendemos?
Joshua respirou fundo e disse:
— Você não ficaria por doze horas ao lado de um homem irredutível
em aceitar você por lá. — Ele deu um curto sorriso. — Nem sua teimosia
chegaria a tanto.
Eu ri, achando graça da sua colocação, mas logo em seguida fechei o
sorriso.
— Pois é... estamos caminhando.
— Recebi uma nova missão em que começo amanhã. Tenho mesmo
que ir. Espero que fique bem.
Um silêncio incômodo pairou pelo ar. Suspirei pesado e encarei seus
olhos achocolatados com toda sinceridade que havia em mim.
—Não sei se consigo sem você. — Minha voz embargou. — Foram
cinco anos em que fomos uma equipe infalível. Eu não queria que fosse
embora assim... tão rápido.
Ele se levantou e deu a volta, sentando-se ao meu lado. Sua mão
delicadamente levou uma pequena mecha do meu cabelo negro à orelha,
depois acariciou minha bochecha.
— Você sempre soube que um dia eu iria. — A voz dele era mais um
sussurro. — Já está mais do que na hora. Obrigado por tudo, Rivka. Você não
foi apenas uma aliada, mas se tornou uma amiga muito especial. Antes do
amanhecer, não estarei mais aqui. Espero que tudo dê certo e você seja feliz.
Abaixei minha cabeça. Não queria mostrar a lágrima solitária que
descia do meu rosto naquele momento. Eu amava Joshua com todo meu
coração, como um grande amigo que a vida me presenteou. Era tão dolorosa
a dor da partida que eu jamais iria suportar. Não me importo se por fora me
tornei uma mulher mais forte. Dentro de mim ainda sou a garota que odeia
perder pessoas amadas, sejam elas quem forem.
— Se der, me mande um e-mail quando estiver na sua nova missão.
Foi a única coisa que eu consegui falar naquele momento.
Me levantei sem trocar abraços ou qualquer outra despedida, e fui
para meu quarto.
Tinha que lidar com isso como lidei com a morte do meu marido por
cinco anos. Quem sabe um dia a vida me permite dar de cara com Joshua
novamente e tê-lo como um grande amigo no meu dia-a-dia?
Não custa sonhar.

(...)

Amanheceu e um braço fino me envolveu na imensa cama de casal.


— Mamãe, acorda. Já está tarde e tem gente chamando na porta.
O sussurro de Zion me fez saltar da cama numa velocidade jamais
imaginada. Olhei ao redor e vi meu pequeno raio de sol sentado na cama,
ainda de pijama, com os olhos arregalados me encarando.
— Que susto, filho. Que horas são?
Massageei as têmporas e respirei fundo para me situar.
— Onze da manhã. Eu estava de pé há um tempão, mas não queria
acordar você. Estava dormindo tão tranquila.
Deu de ombros e eu quis abraçá-lo com todo meu amor. Mas então
me lembrei da segunda parte da frase que ouvi ao acordar.
— Tem gente na porta?
Ele assentiu e de imediato, saí correndo para verificar, fazendo Zion
me seguir ao chamá-lo com a mão.
Sem mal olhar o modo como eu estava vestida, abri a porta principal
já ciente de que do outro lado, não havia ninguém, pois as portas eram de
vidro vazado.
Na varanda, olhei ao redor e apenas pude ver a grande propriedade
gramada repleta de árvores frutíferas com grades de proteção e divisão das
propriedades vizinhas sob minhas vistas.
Não havia ninguém.
Ao olhar para baixo, avistei uma pequena caixinha com um papel
dobrado sobre ela e um laço amarrando os dois itens.
Peguei e, primeiramente abri o papel.
Zion estava já ao meu lado, agarrado na minha perna, sem entender
nada.
— Viu quem estava aqui, filho?
Zion abanou a cabeça, negando.
— Só vi que era um homem. Mas não o conheço.
Assenti e comecei a ler o bilhete.

“O dia ontem foi cansativo, eu sei.


Te deixarei dormir mais um pouco,
Volto ao meio dia para levar minha mulher e meu filho para almoçar.”

Mal notei quando comecei a sorrir sozinha e, assim que abri a


caixinha, uma surpresa maior.
Havia uma aliança de ouro com pedrinhas minuciosas em diamantes
cravejados em seu entorno.
Eu jamais deixaria de ser uma tola apaixonada, tinha certeza disso.
Era estúpido demais da minha parte querer sorrir o dia todo só por causa
daquele presente e do recado?
Inseri a aliança no meu anelar esquerdo e entrei com meu filho em
casa, sem parar de sorrir.
— O que era dentro da caixinha, mamãe?
Zion perguntou em sua inocência.
Sentamos no sofá e eu me virei de frente para ele, segurei suas mãos e
fitei profundamente seus olhinhos azuis.
— Mamãe precisa te apresentar uma pessoa, filho. Esse presente foi
um anel muito bonito que um homem deu pra mamãe. Você logo irá
conhecê-lo e eu espero que você goste dele…
— E meu tio Josh?
Sua pergunta me calou imediatamente.
Eu nem tinha pensado em Joshua naquela manhã. Não tinha
averiguado se ele tinha mesmo ido embora e a indagação de Zion me trouxe à
realidade.
Meu filho estava apegado à Joshua. Por mais que fosse apenas um
amigo e nada mais. Não era justo simplesmente de um dia para o outro,
Malcolm aparecer querendo um espaço que nunca havia conquistado.
Acariciei seus cabelos mesclados e beijei sua testa.
— Tio Josh precisou partir. Ele foi para uma missão nova e teve que
viajar pra muito longe. Quem sabe um dia o veremos novamente?
Os olhos de Zion eram determinados e um tanto firmes. Eu sempre
achei que ele seria aquela criança emotiva e sensível, por ser criado ao meu
lado, mas nesses instantes eu via que tinha muito de Malcolm dentro do meu
pequeno.
Ele agia friamente com relação a sentimentos muito profundos. Eu
sabia que ele amava Joshua.
— Ontem ele disse que tinha que ajudar uma nova família e que eu
seria o homem da casa. Era isso que ele queria dizer, não era mamãe? Que
iria embora.
Fechei os olhos e suspirei. Meu pequeno era tão inteligente para a
idade dele. Conseguia assimilar tudo de uma forma que muitos adultos não
faziam.
— Sim, filho. Ele precisou ir. Que bom que você entendeu tudinho.
Agora vamos nos aprontar? Daqui a pouco sairemos para almoçar.
Ele assentiu e sorriu, logo depois levantou e correu em direção ao
quarto, dizendo que escolheria uma roupa bem bonita.
Olhei para mim mesma, ainda de pijama e fiquei pensando sobre
como em tão pouco tempo tudo que eu estava acostumada a viver nos últimos
anos, mudou drasticamente.
Me levantei e fui até o quarto onde Joshua estava hospedado até horas
antes e, quando abri a porta, avistei um pequeno papel dobrado sobre a cama.
Era o dia dos bilhetes.
“Não esqueça do pen drive.”
Era a única coisa que o bilhete dizia.
Eu havia me esquecido completamente do pen drive. Que cabeça!
Fui tomar banho e logo depois, conferiria o conteúdo do pen drive
antes de Malcolm chegar.
Afinal, poderia ter algo ali dentro que me ajudaria de uma vez por
todas na derrota do Patriarcado.
(...)

Zion assistia suas programações favoritas na tevê do quarto enquanto


eu abria meu notebook pouco usado, na sala. Sentada à pequena mesinha
naquele recinto, inseri o pen drive no computador e esperei a pasta abrir.
A campainha soou.
Virei o rosto e pude ver a silhueta do homem que eu esperava do lado
de fora da casa. Ele estava trajando preto e na sua cabeça havia um chapéu
marrom. Estava de costas, enigmático como sempre.
Fechei o notebook sem averiguar nada, deixaria o pen drive para outra
hora. Segui até a porta e a abri, verificando dos pés a cabeça quem estava a
minha frente.
Então ele se virou.
Seus olhos azuis como o céu daquela tarde fez com que um calor
indizível subisse por minhas costas e dominasse todo meu corpo. Em sua mão
havia um pequeno ramalhete de margaridas, as quais ele logo me entregou
antes de depositar um beijo casto sobre minha testa.
— Descansou bastante, Riv?
Aquela voz rouca e intensa reverberou em mim. Tudo nele me fazia
vibrar.
A versão romântica do homem sempre tão frio que eu conheci no
passado estava sarando cada ferida que o tempo deixou. Uma a uma,
lentamente.
— Sim, estou renovada. — Apontei para trás. — Entre.
Entramos e enquanto eu levava as flores para um pequeno jarrinho na
cozinha, ele sentou sobre o sofá e tirou o chapéu, ficando apenas com seu
moicano à mostra.
Eu estava me acostumando à sua nova imagem e sua nova voz. Era
tudo muito recente ainda, mas sentia que finalmente as coisas entrariam no
eixo.
Retornei e me sentei perto dele no sofá. Ainda não chamaria Zion
para o meio de nós, pois queria estabelecer alguns limites.
Malcolm me olhava com sua intensidade peculiar. Tudo nele era
intenso.
— Zion está no quarto. — Encarei minhas mãos entrelaçadas sobre
meu colo. — Acho que devemos ir devagar. Não sei se ele assimilaria tão
bem o fato do pai nunca ter morrido. Serão muitas perguntas.
Voltei a encará-lo e ele se mantinha encarando-me.
— Como achar melhor. Eu só preciso conhecê-lo. — Tocou meu
rosto e se aproximou lentamente. — Mas antes preciso de outra coisa.
Me beijou delicadamente, com paixão. Sua boca quente fez com que o
ar ao redor ficasse na mesma temperatura. Ele governava tudo, até o
ambiente. Era incrível como seu domínio sobre mim era imutável, e mesmo
apesar dos anos distantes, nossa atração se tornou ainda mais intensa.
Me deixei levar por aquele beijo tão sensual e envolvente, e o toquei
onde eu podia naquele momento. Seus ombros, braços, coxas... Tudo. Eu
queria estar perto e nunca mais me distanciar.
— Eu sou totalmente apaixonado por você.
Ele sussurrou ao se afastar, ofegante.
Eu mal conseguia acreditar em suas palavras.
— E eu por você.
Sorri e me levantei, ajustando o vestido longo de tecido fresco que eu
usava, antes de finalmente chamar meu filho no quarto para apresentar o
único homem que mais importava além dele.
Finalmente eu apresentaria Zion a seu pai.
Capítulo 23
Malcolm
O cerco estava se fechando e não tínhamos mais opções. Desde a hora
em que Rivka voltou para casa, eu fiquei elaborando planos, a inserindo nos
próximos passos.
Faltava apenas duas etapas para que nosso ataque ao Patriarcado
enfim se concretizasse.
Eu devia me aliançar a mais algumas organizações rebeldes e, dar um
jeito de descobrir todos os infiltrados que o Patriarcado envia para essas
organizações. Eles sabem que os rebeldes existem e isso era algo sigiloso
durante o tempo em que fui Patriarca. Me lembro que existia uma listagem
com o nome de todos os infiltrados incluindo os países em que eles eram
enviados. Precisava, de algum jeito, acessar essa lista.
Lembrei do traidor do Joshua, que trabalhava para mim, mas já o
tinha despedido e pago muito bem pelos anos que cuidou da minha mulher e
do meu filho.
O idiota já tinha conseguido um novo trabalho e me assegurou de que
logo iria embora. O que aconteceu rápido, pelo que fui informado naquela
manhã em que me organizei para ver novamente minha esposa.
Delta e meus demais seguranças, que na verdade também participam
ativamente de muitas decisões que tomo dentro da organização Rei do Sul,
vieram pela manhã indagar sobre meu dia anterior.
— Alfa, se sente melhor?
O olhar de Delta era perspicaz. Ela sabia que meu dia tinha sido
ótimo, os demais, porém, apenas esperaram a resposta.
Havia acabado de adentrar a sala do trono e apenas averiguaria e
checaria minha ficha de tarefas do dia, antes de visitar Rivka e meu filho.
Sentado em meu trono, encarei o rosto de todos.
— Muito melhor, sim. E com decisões a serem tomadas.
Continuei verificando os papéis em minhas mãos, mas logo fui
interrompido.
— O senhor já tem as últimas coordenadas para nosso plano de
destruição contra o Patriarcado?
Encarei meu segundo oficial e ele logo prosseguiu em sua fala.
— O exército já está todo treinado e reajustado como o senhor disse
que deveríamos fazer. Desde o último Rei do Sul, que não trabalhávamos
tanto e com tanta esperança de enfim chegarmos ao nosso objetivo.
Todos aqueles soldados um dia foram prejudicados pelo Patriarcado.
Cada um deles tem uma conta a acertar com a organização que moldou meu
caráter desde pequeno.
Desde o dia em que fui acolhido pelo Rei do Sul, enquanto buscava
incessantemente por Rivka pelo mundo, tenho notado o quão leal são as
pessoas dessa organização.
Eles são pagos e vivem vidas normais por trás das máscaras, mas
quando vestem seus trajes, se tornam pessoas cem por cento dispostas a tudo
pelo ideal a qual lhes foi apresentado.
Nunca antes conheci lealdade tal.
Isso me fez olhar essa batalha com novos olhos. Eu queria minha
vingança, mas queria que aquelas pessoas pudessem um dia governar comigo
uma nova organização mundial, corrigindo todos os erros do Patriarcado.
— Falta bem pouco. Muito pouco.

(...)

Era quase dez da manhã e, depois de avisar que eu me ausentaria por


algumas horas, decidi visitar Rivka assim que soube que Joshua tinha ido
embora.
Eu tinha um ciúme violento desse homem, mesmo ciente do que
passei com Riv no dia anterior. Era como se apenas a figura dele perto dela,
já me incomodasse profundamente.
Eu compreendia o fato dela gostar dele, de serem amigos, mas meu
ciúme não sabia diferenciar nada disso e eu precisava organizar tudo muito
bem na minha cabeça.
Aquela mulher que reavivou uma chama ardente no meu peito, não
era mais a menina que a tinha implantado anos atrás.
Rivka sabia muito bem o que queria e, mesmo confessando seus
sentimentos a mim, deixou claro que entre nós acima de tudo, há o acordo em
que ela governa comigo e juntos destruímos a maldição do Patriarcado.
Desde que comecei a procura-la pelo mundo, eu não tinha ideia de
que seriam em tais circunstâncias.
Não me lembrava de tê-la deixado onde ela disse que a deixei, nem
tê-la dado as orientações que ela me informou.
Eu estava à procura de uma donzela em perigo, para mantê-la
quietinha na sua casa, segura, enquanto eu me vingava.
Mas o que acabei encontrando foi uma mistura de mulher maravilha
com Lara Croft, anexando toda a beleza e personalidade teimosa da única
mulher que meu coração sempre bateria mais forte.
Eu a amava, e que se dane qualquer coisa ao redor.
Quando cheguei em sua casa, numa área mais reservada daquela
região, onde havia muitos sítios e casebres solitários, não tive resposta sobre
sua presença. Pelo fato de algumas janelas estarem entreabertas, imaginei que
estivesse em casa então deixei um presente com um pequeno recado.
Retornei ao meio dia.
Minha empolgação era tanta que ao vê-la, de vestido colorido com
um sorriso lindo no rosto, não me contive em apreciar mais um pouco do seu
sabor antes que minha vida desse um giro completo com o momento em que
eu viria meu filho.
Zion.
Esse é o nome que Rivka o deu.
Meu coração batia forte no peito enquanto, sentado encarando os
próprios joelhos, eu os aguardava virem do quarto.
Olharia, falaria, tocaria em meu filho pela primeira vez.
A ideia de ter um filho sempre foi algo distante e indesejável para
mim. Eu cresci ao lado de crianças que não foram pessoas boas e eu mesmo,
fui um exemplo de crueldade. Tudo que sofri ainda sendo menino inocente e
os traumas que enfrentei já adolescente, jamais se apagariam da minha
memória, mesmo que eu morresse três mortes.
Testificar que, ainda assim, tive a sorte em gerar um ser humano
melhor do que o que eu já tenha visto a vida inteira, me deixava um tanto
relutante.
E eu odiava sentimentos fracos reinando em mim.
Não sabia lidar com essas coisas.
— Prontinhos.
A voz de Rivka ecoou assim que se aproximou de mim. Meu rosto,
antes olhando meus próprios joelhos, se elevou e encontrou o da mulher da
minha vida, antes de dar de cara com o pequeno menino ao seu lado.
Agarrado com as duas mãos em uma única mão de Rivka, o menino
de pele branca e cabelos ora loiros, ora cor de mel, que balançavam enquanto
ele tentava se ajeitar, me encarava.
Foi então que nossos olhos se cruzaram.
O que vi nos olhos daquele menino, eu jamais veria em lugar algum
nem se tivesse um sonho celestial.
Era puro. Era... Era algo tão genuíno.
— Prazer em te conhecer, Zion.
Me ajoelhei no chão e parei de frente para ele, praticamente da sua
altura.
Ele abaixou o olhar por alguns segundos e depois me fitou com
curiosidade.
— Você vai morar com a gente no lugar do tio Josh?
Estreitei o cenho. Não era a resposta que eu esperava, mas eu entendia
que — mais uma vez —, Joshua tinha cativado o coração de alguém que eu
queria cativar.
Afinal, ele viu Zion nascer.
Pigarreei, tentando não amedrontar com o tom rouco demais da minha
voz.
— Eu prometo que se você quiser, posso deixar o quarto do seu tio
Joshua vazio por um tempo.
Era incrível como Zion se parecia comigo, quando era criança.
Ele assentiu e estendeu a mão, para um aperto amigável.
— Então, prazer. Qual o seu nome?
Encarei Rivka, que nos olhava com os olhos marejados e bochechas
rubras.
— Malcolm. Esse é meu nome.
Decidi ser sincero e dar meu nome real. O menino merecia saber
quem sou eu, mesmo que a paternidade não seja revelada de pronto.
Ele arregalou os olhinhos e fechou a boca numa linha fina, pensativo.
— Igual o nome do meu pai. Mas ele morreu antes de eu nascer,
sabia?
Fechei os olhos sentindo a dor daquela frase. Queria tanto ter estado
com ele desde o começo. Queria poder mudar o passado e decidir o futuro
com minhas próprias mãos.
— Bom, acho que podemos sair. Tudo bem, meu filho? Depois a
gente conversa mais coisas legais.
Rivka me fez abrir os olhos e fita-la. Ela cortou nossa conversa
constrangedora e me fez respirar um pouco mais.
Levantei do chão e seguimos para o carro, rumo a um restaurante que
eu adorava na região. A comida era típica brasileira e em pouco tempo, eu já
tinha acostumado com tanta coisa gostosa.
Assim que chegamos, tentei cativar Zion um pouco mais, perguntando
sobre o que gostava de comer e ele, sempre muito centrado, disse que o que
mais gostava no mundo inteiro eram doces.
Que criança não ama doces?
Nos sentamos em uma área reservada no interior do restaurante
elegante, porém com um clima caseiro. Do lado de fora havia parque para
crianças e um espaço enorme gramado para que as pessoas pudessem
caminhar e conversar.
— Com licença. O que gostariam de pedir?
O garçom nos abordou. Rivka me fitou de um modo tranquilo e senti
que deveria decidir por nós dois.
— O prato da casa. E você, Zion? — Virei e indaguei a meu filho.
Ele olhou o cardápio fingindo que o lia, e respondeu:
— Igual ao de vocês.
Rivka riu discretamente do modo que o menino estava agindo. Como
eu não o conhecia, não sabia se era seu natural ou apenas uma forma mais
formal de agir.
— Ele é sempre assim, participativo?
Rivka estava sentada à minha frente e Zion, do lado dela. Enquanto eu
indagava em um tom baixo, ele mantinha seus olhinhos vidrados no parque
que tinha do lado de fora.
— Às vezes. Zion é muito inteligente, mas não é dado a conversas à
toa. Ainda nem fez cinco anos, mas já gosta de tomar algumas decisões. Ele
tem uma personalidade forte, apesar de ser doce e muito amoroso.
Enquanto a comida não chegava, eu perguntei mais sobre a rotina dos
dois. Como era tudo no Canadá. Zion me disse que tem uma babá android
que se chama Zeta. Ela cuida dele quando a mãe precisa se ausentar.
Admirei essa informação pois, nenhuma criança lidaria tão facilmente
com um robô. Zion era mesmo diferente.
— Eu até que gosto dela, sabe? Só que tem uns dias que quase não
tenho aulas. Tio Josh passeou comigo depois que chegamos aqui no Brasil e
as aulas tem ficado para depois.
Ele mencionou tudo isso com muito orgulho.
— Eu imagino que talvez a Zeta saiba muitas coisas que a gente não
sabe. Podíamos um dia perguntar a ela coisas bem difíceis. Será que ela
saberia responder?
Questionei, tentando criar algum elo de amizade com ele.
Eu sentia que precisava fazê-lo gostar de mim.
Eu já estava totalmente cativado por ele.
Os olhos dele se arregalaram e brilharam. Acho que ganhei um ponto.
— Que ideia genial! Se a Zeta errasse alguma pergunta, ela não
precisaria chamar minha atenção quando eu errar!
Não aguentei e comecei a rir. Era raro sorrir, dar risada então era
quase um milagre. Mas, definitivamente, Zion tinha essa capacidade
intrínseca. Ele me faria rir por muitas vezes.
Eu sentia isso muito forte em meu coração.
Rivka nos acompanhou, rindo do comentário do filho.
— Filho... — Riv conteve as risadas aos poucos. — Não é assim que
as coisas funcionam. Um dia você vai entender. Mas a ideia do Malcolm foi
sim, muito legal.
Olhei admirado para aquela cena.
Quem diria que um homem como eu voltaria a sentir coisas tão
inexprimíveis dentro do peito?
Mas já me disseram que, uma vez amando, jamais se deixa de amar.
O amor não é um sentimento que desaprendemos.
Quando aprendemos, é para valer.
Alguns instantes de silêncio se fizeram antes de Zion pedir para
brincar no parquinho. Peguei meu celular e acionei meus seguranças que
sempre estavam por perto, para ficarem ao redor de todo o terreno.
Eles estavam me escoltando de longe, mas pedi que se aproximassem
mais. Zion não poderia simplesmente brincar e acabar se ferindo ou sendo
atacado por qualquer pessoa que seja.
Rivka o levou para o parque do lado de fora do restaurante e ficou um
tempo por lá. Relaxei confortavelmente na cadeira acolchoada e, de longe, os
avistei interagindo. Riv era uma boa mãe, dava para notar. Ela tirou de letra
toda a maternidade. Nasceu mesmo para isso.
Eu não imagino quão difícil deve ter sido no começo, sem mim.
E isso me leva novamente ao Joshua.
Peguei meu telefone secreto e disquei o número confidencial.
No segundo toque, ele atendeu.
— Já está por onde?
— Acabei de fazer uma ponte aérea. Ainda estou no Brasil, mas em
outro estado. Sua transferência foi efetivada, obrigado. Se puder me deixar
em paz daqui em diante, eu agradeceria muito.
Respirei fundo.
— Sim, eu deixo. Queria apenas averiguar se cumpriria com o trato.
Pelo que fui informado eu te contratei por menos tempo que você prestou
serviço então já quitei essa diferença. Espero que seu próximo trabalho seja
um sucesso. Adeus.
Desliguei a chamada.
Eu não lidaria com Joshua do mesmo modo como lido com Rivka. Ele
pode ter sido um bom homem na vida dela e do meu filho, mas cumpriu
apenas o que lhe foi ordenado. Era mais do que a hora de fechar esse ciclo.
Rivka veio caminhando sozinha pelo amplo salão do restaurante,
exibindo seu vestido cheio de cores para quem quisesse ver. Ela era e sempre
seria uma mulher muito atraente e gostosa. Que sorte eu tenho.
O sorriso dela se abriu quando me flagrou praticamente idolatrando
sua imagem.
— Está bem, garotão?
Sentou ao meu lado e envolveu meu pescoço com seus braços.
Sorri de canto e depois, segurei seu rosto com carinho.
— Por fora, tudo ótimo. Por dentro... Uma bagunça total. Você é a
grande culpada.
Depositei um pequeno beijo sobre sua testa e a abracei. Precisava
estar perto o suficiente do seu corpo. Era quase que uma necessidade vital.
— Zion está brincando. A área é fechada e tem muitos monitores do
lugar tomando conta das crianças. Então entrei.
Ela disse com o rosto afundado em meu pescoço.
— Nosso filho gostou de mim?
Me afastei para buscar a resposta nos olhos dela. Rivka foi sincera e
logo disse:
— Acredito que sim. Mas Zion não costuma fazer novos amigos,
então creio que vai demorar um pouco para que confie em você.
Assenti.
Virei o rosto na direção do parque onde ele brincava e tentei encontrar
sua figura à distância.
Ele estava no escorregador.
— Quero que ele tenha tudo que eu não tive. — Comecei a falar,
ainda encarando a imagem do meu filho. — Naquele dia, em que eu falei
sobre treiná-lo e cria-lo dentro da organização, era apenas blefe. Queria
atingir você no ponto mais forte. Não conseguiria nem se tentasse, fazer com
que um ser tão puro fosse introduzido numa realidade tão cruel.
Quando meu olhar encontrou novamente o de Riv, os olhos dela
estavam marejados. Seus braços ainda me envolviam e os meus a ela.
— Tenho medo disso tudo ser um sonho e um dia eu acordar e ver
que não aconteceu.
Foi a única coisa que ela conseguiu dizer, antes de chegar um
atendente na nossa mesa.
— Com licença. Queria que me acompanhassem, por favor.
A mulher parecia aflita e seu rosto branco estava ainda mais pálido
que o tom normal.
— O que houve?
Riv perguntou, já se colocando de pé.
Meu olhar foi direto para onde eu estava encarando há menos de dois
minutos antes.
Zion.
— Onde está meu filho?
Tentei manter a calma e perguntei, já sentindo o meu coração querer
saltar de mim.
— Peço que me ajudem a procurar, pois ele sumiu de repente e...
— Adonai! — Riv gritou e saiu correndo na direção do parque. —
Zion!!!
Deixei algumas notas altas para quitar a conta e saí correndo atrás de
Rivka. Zion não podia ter se perdido. Meus seguranças estavam ao redor, eles
o segurariam.
Ao chegar na área externa, tentei me concentrar e acionei meus
seguranças.
Meu filho não poderia simplesmente sumir assim.
Capítulo 24
Rivka
Meu filho.
Meu único filho.
O presente que Deus me deu no momento mais difícil da minha vida.
Não pode ser.
Fazia quarenta minutos que eu e Malcolm, junto com seus seguranças,
rondávamos todos os cantos e o terreno daquele restaurante.
Ninguém o viu.
Ninguém sabia de nada.
Como ele poderia ter sumido assim?
Meu coração palpitava numa frequência que nunca senti antes. Minha
respiração já não sabia mais o que era estar ofegante, ela mal estava presente.
Minhas pernas doíam pelo trajeto que corri e por tudo que fiz, mas eu
não desistiria.
Acharia meu filho.
Malcolm parecia igualmente desesperado, apesar da sua facilidade em
disfarçar emoções. Era nítido que ele não tentava mais fingir na minha frente.
Eu realmente o vi preocupado como nunca antes.
— O que vamos fazer?
Perguntei indo de encontro a ele, já sentindo as lágrimas queimando
meu rosto.
Até segundos atrás eu ainda tinha esperança de que pudesse ser uma
brincadeira do meu filho ou, qualquer coisa do tipo. Mas já estávamos há
quase uma hora procurando e nada. Em lugar algum ele estava.
Uma sensação horrível me engolfou.
Antes que eu desabasse no chão em prantos, ele me envolveu nos seus
braços.
Não aguentei e deixei que minhas pernas amolecessem e a escuridão
me tomasse. Estava tonta. Estava aflita. Estava completamente fora de mim.
— Vamos acha-lo, meu amor. Vamos acha-lo.
Sua voz me acalmando foi a última coisa que escutei antes de tudo
escurecer.

(...)

Abri meus olhos lentamente e não reconheci onde estava.


Minha visão estava um pouco turva e aos poucos foi desvanecendo.
Quando dei por mim, notei que estava na casa alugada no Brasil.
Estava na minha cama, ainda com o vestido do almoço.
Esfreguei os olhos e olhei ao redor. Não havia ninguém.
Me arrastei para fora da cama, esforçando-me para me situar. Tudo
poderia ter sido apenas uma alucinação, talvez.
Zion deve estar brincando na sala, vendo algum desenho.
Abri lentamente a porta e o que avistei, mesmo de longe, me fez parar
para ouvir.
— Vocês tem até a meia noite de hoje para encontrar meu filho.
MEIA NOITE, MALDITOS! Senão eu mesmo vou executar um por um.
Era a voz de Malcolm.
— Senhor, procuramos em tudo quanto é lugar. O menino
simplesmente desapareceu!
— O que disse?
Escutei um barulho de socos. Um homem gemeu.
Decidi aparecer e chegar em cena.
Malcolm agredia brutalmente um homem enquanto outros dois
homens apenas olhavam numa posição de sentido. Ele deferia socos no rosto
daquele homem que já tinha machucado e só parou quando ouviu minha voz.
— O que está acontecendo?
Quando os olhos azuis de Malcolm cruzaram com os meus, sua feição
se abrandou e ele simplesmente largou o homem que estava ferindo, veio até
mim parecendo derrotado e disse:
— Estou fazendo de tudo, Riv. Eles não estão achando meu filho em
lugar nenhum.
Sua voz soou pela primeira vez desde cedo, muito abalada. Ele
realmente estava transtornado.
— Vocês podem, por favor, sair?
Pedi aos três homens que mais pareciam guardas, e eles me
atenderam. O golpeado teve dificuldade mas logo se foi com os demais.
Sentei no sofá, ainda um pouco atordoada em estado de choque.
Era muita informação para digerir.
Olhei para a janela e avistei o horizonte, já com o sol querendo ir
embora.
— Eu apaguei por muito tempo, não é?
Perguntei.
Malcolm pegou uma garrafa de água na geladeira e trouxe, sentando-
se ao meu lado em seguida.
— Achei que te perderia também.
Sua voz estava arrastada. Lenta. Ele me ofereceu a água e eu bebi
apenas um gole antes de levantar os olhos do chão e fita-lo profundamente.
— Meu filho ainda não apareceu?
Minha pergunta pareceu cacos afiados de vidro perfurando os ouvidos
dele, pois suas mãos foram direto para as orelhas, as tapando.
— Não quero ouvir mais isso. Ele vai aparecer, ele... Eu não posso ter
falhado outra vez com você. Não posso perder ele, logo agora... Logo agora!
Malcolm fechou os olhos e relaxou o corpo no sofá, olhando para o
teto enquanto eu ainda lenta, tentava pensar em alguma coisa.
Olhando de um lado para o outro naquela sala, não via nada que
pudesse me ajudar a não ser meu notebook. Talvez sua foto poderia estar em
algum anúncio de crianças perdidas da cidade.
Levantei e peguei meu notebook, lembrando naquele momento que o
pen drive estava ainda ali.
Antes mesmo de voltar para o sofá, decidi abrir logo a pasta do pen
drive.
Algo me dizia que ali tinha uma chave preciosa para nós.
(...)

Nomes, nomes, fotos, nomes...


O pen drive continha algumas pastas.
A primeira se chamava “01” e dentro dela, alguns arquivos em PDF
tinham listas com nomes, bairros, cidades e organizações. Um último arquivo
continha as fotos 3x4 de cada pessoa citada nos arquivos anteriores.
Saindo da pasta “01”, cliquei na pasta “02”, onde havia um vídeo. Na
miniatura dava para ver Malcolm nesse vídeo. Eu abriria depois.
O que me intrigou foi o conteúdo da primeira pasta.
Ainda distante de Malcolm, olhei a tela do computador aberta com os
arquivos e olhei para o homem que eu jurei amar até a morte. Será que ele
deveria saber o que tinha dentro daquele pen drive?
Será que isso poderia nos ajudar em alguma coisa, para encontrar
Zion?
Não queria agir com desconfiança, eu precisava incluir Malcolm em
tudo, pois ele tem se mostrado digno para isso, então imediatamente peguei o
pequeno computador e levei comigo até o sofá, sentei ao lado dele novamente
e apontei para a tela.
—Isso estava em uma das cartas que você deixou pra mim.
Os olhos atordoados do homem que eu amo se focaram na tela e sua
mão começou a deslizar pelo touchpad.
— Eu mandei isso? Eu... — Perguntou enquanto mexia na pasta 01 e
abria o arquivo. — Não pode ser...
Como eu não tinha noção do que poderia realmente ser aquela lista,
apenas aguardei para ver a reação dele, que em segundos se mostrou mais do
que surpresa, esperançosa.
— Isso pode nos ajudar! Era essa a lista que eu queria! — Pegou o
notebook do meu colo e colocou sobre o seu. — Deve ser um pouco antiga
mas dá para termos uma base. Apenas o Patriarca sabe sobre as organizações
rebeldes. Se eu morri e ninguém foi treinado a assumir meu lugar, a pessoa
que está hoje não deve saber de quase nada. Essa lista provavelmente não
teve alterações.
Aquilo era uma notícia e tanto! Mas eu não queria saber disso, queria
saber do meu filho!
— Mas e Zion? Precisamos encontra-lo!
Dei um grito alterado e me pus de pé. Queria que, de alguma forma,
aquilo nos ajudasse, mas pelo que parecia...
— Vamos encontra-lo. Deixa eu ver se temos espiões do Patriarcado
aqui no Rei do Sul.
Não havia compreendido ainda o raciocínio dele, mas depois de
alguns minutos, eu entendi.
Malcolm encontrou dois espiões dentro da nossa atual organização
rebelde, por causa da lista. E esses dois já estavam conosco há anos e nunca
foram descobertos. Um desses, inclusive, estava dentro da sala do trono como
um dos mais fieis.
Malcolm imediatamente acionou os seguranças do lado de fora da
minha casa e os pediu que tranquilizasse a todos na organização, pois tudo
voltaria em breve ao normal.
Ele queria que ninguém suspeitasse de que apenas nós dois iríamos
atrás de quem possivelmente, roubou Zion de nós.
Capítulo 25
Malcolm
Estávamos a caminho da organização e minha mente fervilhava com
tudo que eu pretendia fazer com aqueles malditos filhos de uma puta
traidores.
Rivka se manteve silenciosa em todo o tempo e eu, preferi consola-la
apenas segurando firme em sua mão.
Não deixaria jamais alguém roubar novamente um dos maiores
motivos da minha felicidade. Independente de qualquer coisa.
Chegamos no Rei do Sul e, assim que passamos pelos corredores do
subsolo, a tensão pairou no ar. Controlei meus impulsos e minhas emoções
para que não estrangulasse o pescoço de um dos traidores, que hoje fazia
parte da minha tropa de elite na sala do trono.
Maldição.
Sempre tive informantes esse tempo todo e não sabia.
O que será que o Patriarcado já sabe sobre mim?
Ao adentrar a sala do trono, lá estavam todos os meus soldados de
prontidão, como sempre. Meus olhos foram direto para Delta, a única em que
eu podia confiar.
Se ela fosse uma das traidoras eu estaria completamente perdido, pois
de fato ela sabe muito mais que os demais.
Chamei a ela e ao “07” para minha sala particular. Fingi dar uma
missão especial a eles.
Assim que Riv e eu entramos na sala, aguardamos que eles viessem
também.
— Apenas fique tranquila. Agora vamos resolver esse problema.
Depositei um beijo rápido sobre a boca de Rivka e aguardei que meus
soldados adentrassem a sala.
Assim que eles o fizeram, tranquei a porta e pedi que ambos
sentassem na poltrona.
— Alfa, está tudo bem?
Delta indagou com certa curiosidade.
Transpareci calmaria em meu semblante e sorri.
— Melhor não estaria.
Andei pela sala pensativo com as mãos entrelaçadas para trás como
um soldado e, enquanto organizava as palavras, ambos dos meus escudeiros
ficavam ainda mais tensos.
Parei no centro da pequena saleta de pé e encarei os dois, acomodados
na poltrona.
— Gostaria que se posicionasse a minha frente, zero sete.
Ele prontamente se levantou e andou até mim como um soldadinho
bem formado.
— Delta. Fique atrás dele, por favor.
Ela também obedeceu, mesmo sem entender.
Respirei fundo.
— O desarme e o dispa. O deixe como veio ao mundo.
— Senhor, o que deseja com isso? — O imbecil finalmente abriu a
boca, parecendo nervoso.
Sorri sarcasticamente, doido pra dar um tiro no meio das bolas
daquele maldito.
— Apenas verificações padronizadas. Se mantenha quieto com as
mãos ao alto.
Enquanto Delta fazia o trabalho, eu olhava minunciosamente cada
pedaço de pele do traidor. Verifiquei se havia escutas, se tinha algum tipo de
monitoramento ou radar, mas não tinha nada.
Quando chegou na peça íntima, um pequeno aparelho estava inserido
na lateral dela. Era bem pequeno, mas eu sabia o que era. Um tipo de rádio.
Contato direto com alguém.
Aquilo não pertencia ao Rei do Sul. Minha organização não enviava
nada daquilo.
— O que seria isso?
Ele começou a gaguejar e trocar as palavras.
— N-nada... E-eu ape-penas...
Saquei a pistola do meu coldre e friamente atirei no pé daquele
imbecil. Ele gritou e começou a xingar ao mesmo tempo em que pedia
misericórdia.
— Presta atenção. Você não vai avisar a ninguém que eu já estou
ciente de quem você é. Quero apenas que diga onde meu filho está.
Delta segurava o soldado ferido pela cintura, para que ele não fugisse.
Riv apenas encarava a cena com frieza nos olhos, algo que eu ainda não tinha
visto ela presenciar de modo tão indiferente.
— N-não s-sei...
Ele, mancando, ainda tinha a audácia de mentir pra mim.
— Eu posso realizar meu desejo e atirar nas suas bolas inúteis para
que você diga. Mas acredito que não seja necessário tanto. Você é inteligente
o suficiente pra saber que eu vou te matar caso não me fale nada.
Continuei plácido, com a arma em punho apontada para a face do
infeliz. Ele relutou por um tempo, Delta incentivou mandando ele falar logo o
que sabia e, quando ele percebeu que logo desmaiaria por perder muito
sangue, abriu o bico:
— Temos um esconderijo ao oeste daqui, dez minutos de carro. É um
galpão abandonado onde era um supermercado. A criança está lá.

(...)

Levei alguns dos meus soldados de elite para irem comigo resgatar
Zion. Pedi que Rivka ficasse, mas ela não quis. Disse que mataria todos que
visse pela frente, caso fosse necessário.
Eu desconhecia aquela ousadia toda, pois mesmo sabendo que agora
ela tinha outros posicionamentos, jamais me esqueceria da doce mulher
pacata pelo qual meu coração se envolveu. Eu amava a ambas.
Não demorou muito para que invadíssemos o local que o traidor havia
informado e, como eles não esperavam que eu soubesse da existência deles,
foi fácil entrar lá e logo encontrar meu pequeno desfalecido amarrado a uma
cadeira onde estava sentado.
— Filho! – Riv correu até ele sem pensar.
Enquanto ela corria, eu comecei a atirar em todos os homens que
vinham na nossa direção. Entramos na calada, mas o grito dela alarmou os
que estavam ali, guardando a criança.
— Não adianta tentar. É o fim de todos vocês.
Delta e mais outros soldados me acompanharam, finalizando com
quem viesse nos atacar enquanto seguíamos adiante até chegar em Zion. Riv
já o envolvia protetoramente enquanto uma arma se fazia presente em sua
mão direita, apontada para todos os lados no seu estado de alerta.
Eram doze homens naquele galpão abandonado.
Doze traidores e cupins do Patriarcado.
Assassinamos todos e, graças a Deus, meu filho não viu nada daquilo.
— Delta, dê uma verificada no lugar. Veja se há algo importante que
precisamos levar.
Ordenei enquanto me aproximava de Zion e Rivka, que se mantinham
no meio daquele amplo salão, unidos. Riv tentava desatar os nós das cordas
que prendiam nosso filho e ele, ainda desacordado, não reagia a nada.
— Está respirando?
Perguntei abaixando-me ao lado dela e ajudando a desatar os nós.
— Sim, mas parece que foi dopado.
Não tinha focado no rosto da minha mulher ainda, mas ao ouvir sua
voz trêmula e embargada, notei o quanto daquela menina pura e ingênua
ainda havia em seu interior. Ela conteve os sentimentos até onde conseguiu,
mas ali, no fim de tudo, não conseguia mais reprimir o que sentia.
Lágrimas deslizavam por seu rosto de mãe aflita enquanto livrava
nosso filho das amarras e tocava a pele branca do corpo dele que estava suja,
verificando pulsação e procurando marcas de espancamento.
— Isso tudo vai acabar logo, eu prometo a vocês.
Sussurrei próximo do ouvido dela, em uma promessa.

(...)

Duas semanas se passaram.


Riv e eu exterminamos todos os possíveis informantes que não só a
lista nos deu, mas o soldado ferido que me informou também acabou
revelando.
No fim todos morreram.
No dia seguinte do resgate do meu filho, começamos a planejar o
ataque ao Patriarcado e com a lista, foi tudo mais fácil.
Rivka me revelou que já tinha fechado alianças com todas as
organizações que faltavam para que eu fechasse e com isso, o mundo inteiro
rebelde já estava sob nosso domínio.
Convocamos a todos, para invadirem as sedes nacionais do
Patriarcado no mesmo dia, na mesma hora. Os rebeldes dominariam sobre
essa organização maldita e depois que tudo for exterminado, nós dois
faremos a justiça certa.
Zion não se lembrava de muita coisa das horas em que foi cativo, pois
o doparam do começo ao fim. No fundo Riv e eu preferimos que ele não se
recordasse mesmo, pois seria uma memória traumática para ele no futuro.
Estávamos em uma nova casa alugada, depois dessas duas semanas de
planejamento, apenas acertando os últimos ajustes.
Na cama, é claro.
— Não consigo entender o fato de você não se lembrar de algumas
coisas com relação a mim, mas saber exatamente tudo sobre como eu gosto
na cama. Isso é um tanto injusto, não acha?
Ela perguntou, de manhã bem cedo, depois dos inúmeros orgasmos
que a dei durante a noite.
Aquela noite, em especial, foi comemoração do aniversário dela.
Aconchegada em meu peito debaixo do edredom no quarto gelado
pelo ar condicionado, beijei o topo da sua cabeça.
— Eu realmente não lembro de algumas cenas, mas parece que
quando se trata de sexo, há uma memória adicional. Uma memória
sensorial...
Ela elevou o rosto e estreitou os olhos.
— Hum. Sei. Não me venha com piadinhas sobre cabeças do homem.
Isso me soa muito brasileiro, eles adoram essas piadas pelo que tenho visto
no tempo em que estou aqui.
— Ei! Somos brasileiros também, não somos?
Ela montou sobre mim e acariciou meu peito enquanto dizia:
— É... uma parte de nós tem toda essa essência. Inclusive, estou
sentindo um calor subindo agora...
Jamais me cansaria de vê-la nua em minha frente. Rivka era
exatamente o meu tipo, da cabeça aos pés. O corpo delicado, pele parda com
os olhos escuros e cabelos em ondas que caíam como uma cascata pelos
ombros e braços. Seus seios pequenos, mas deliciosos de se ver e todo o resto
que eu devoro pedacinho por pedacinho, todos os dias, para sempre.
— Porra, Riv... Eu amo você.
A segurei pela cintura e a ajudei a se posicionar sobre meu membro
rijo, que já aguentaria mais um round de sexo naquelas últimas horas.
Ela começou a deslizar e se movimentar vagarosamente, enquanto as
mãos alisavam seus seios e seu corpo, me seduzindo ainda mais do que eu
podia sentir.
— Não me canso disso. Eu estava com saudades de sentir você dentro
de mim. Meu corpo pedia por você. Só você é o encaixe perfeito.
Ela murmurou como uma gata manhosa enquanto se movia,
acelerando lentamente. Me torturando.
— Seu encaixe perfeito gostaria de ouvir coisas também como: O
melhor, o mais gostoso...
Firmei as mãos sobre o corpo dela e inverti nossas posições, me
colocando por cima.
Ela deu um gritinho, surpresa.
Suguei seus lábios com intensidade. Eu queria algo um pouco mais
bruto e Riv sabe que eu gosto assim.
Enquanto eu estocava forte e intenso, ela arranhava minhas costas
com suas pernas totalmente amarradas sobre meu tronco. Os gemidos e gritos
de prazer invadiam todo o quarto e eu comemorava o fato do quarto do nosso
filho ser no final do corredor e não ao nosso lado.
Minhas mãos foram como garras até os cabelos dela e levei minha
boca ao seu ouvido.
— Diga “o melhor”.
Ordenei.
Ela sorriu e repetiu, ofegante entre minhas investidas.
— O melhor.
— Diga “o mais gostoso”.
— O mais gostoso.
— Agora diga “ Sou sua para sempre.”
Sem relutar, ela disse:
— Sou sua para sempre.
Beijei-a mais uma vez antes de firmar minha testa na dela e fechar os
olhos, sentindo a onda de prazer supremo nos envolver naqueles segundos.
Antes que pudéssemos chegar ao ponto máximo, ali, eu sussurrei:
— Eu te amo.
Riv jamais cansaria de ouvir. Eu não me lembrava de ter dito essas
palavras antes da minha suposta “morte”. Queria que ela tivesse certeza do
meu amor. Da profundidade do que eu sentia por ela e por nossa família.
— Não mais do que eu, Malcolm.
Capítulo 26
Rivka
Durante trinta e um anos da minha vida, pensei por diversas vezes
sobre a palavra “felicidade”. Achava que estar feliz era realizar sonhos, era
conquistar coisas e objetivos, quando na verdade, nas últimas semanas eu
descobri o sentido genuíno dessa palavra, quando notei minha família unida.
Malcolm eu e Zion.
Confesso que, quando me deparei com a verdade sobre a morte de
Malcolm, não quis acreditar que ele havia se tornado um homem tão vil e que
me tratava com hostilidade.
Mas compreendi que tudo era sua estratégia de defesa.
Pra quem só sofre, o sofrimento já é o esperado. Nunca se espera o
contrário. Malcolm sempre foi acostumado a sofrer em sua parte sentimental
e afetiva. Foi tudo mais cômodo, se continuasse sendo assim.
Mas eu não queria mais sofrer.
E foi minha teimosia e persistência, que nos aliançou para o que
estávamos conquistando hoje:
A derrota do Patriarcado.
Assim que chegamos em Londres, alugamos uma casa bem distante
da cidade para que Zeta e alguns seguranças de confiança do Rei do Sul,
ficasse com Zion enquanto executávamos nosso plano.
O comando de destruição da sede internacional, com todos os
componentes dentro, seria simultâneo em todo o mundo. Sabíamos que o
Patriarcado tinha um domínio absurdo sobre os governantes mundiais e,
nossa ideia não era matar cada um deles, mas alinhar a uma nova ordem.
No dia da execução do plano, Malcolm e eu já tínhamos conseguido
rackear todo o sistema de segurança deles, simplesmente acionando o próprio
responsável por essa área dentro do Patriarcado. Como Malcolm me
informou, há muitas pessoas lá dentro que são leais ao Patriarca e não à
organização. O técnico era uma dessas pessoas.
Ainda assim, mantivemos ele isolado e com escutas, para que não
comentasse com ninguém sobre nós.
Esse acesso seria para passar dados bancários e de poderes mundiais
para nossa nova organização. A que Malcolm e eu gerenciaremos.
Não que fosse nossa vontade plena, mas há a necessidade de haver
alguém acima dos poderes governamentais mundiais. O Patriarcado fazia
isso. Era o poder sobre o poder. Eles autorizavam leis, executavam justiças
acima da justiça, eles selecionavam quem ia governar e quem não iria. Tudo
passava por eles. Até as organizações criminosas se mantinham sob suas
mãos.
Agora tudo seria nosso.
— Bom dia, amor.
Malcolm me abraçou por trás e encaixou seu rosto sobre meu ombro.
Estava na janela do prédio que alugamos em poucos quarteirões de
distância da sede do Patriarcado, para ver nosso plano sendo executado.
— É gostoso demais ouvir você me chamar de amor.
Respondi, ainda olhando a movimentação daquela manhã nublada. As
ruas repletas de pessoas alheias a tudo que vai acontecer em poucas horas.
— Só não te mostro o que é ainda mais gostoso que isso agora,
porque esse apartamento tá cheio de seguranças.
Ele roçou sua barba em meu pescoço, pedindo acesso para me
acarinhar e eu dei. Por meu pedido, ele permitiu que ela crescesse mais do
que o tamanho que ele mantinha quando o vi como Rei do Sul. Eu amava sua
barba comprida e queria ela de volta.
— Hoje será o dia decisivo das nossas vidas... Acho que dá pra
escaparmos um pouco no banheiro, talvez.
Ele depositou um beijo molhado na curva do meu pescoço e depois,
sem nem perguntar nada, saiu me puxando pela cintura até o banheiro.
Entramos naquele pequeno recinto e trancamos a porta. Ele me
posicionou sentada na bancada fria de mármore, ao lado da pia. Seus olhos
azuis penetrantes eram ao mesmo tempo frios e cálidos. Eu amava admirar
seu olhar.
— Estava aqui duro a noite inteira, me contendo pra não detonar com
você naquela cama desconfortável porque tinha gente dormindo no outro
quarto e na sala. Agora você me diz que podíamos usar o banheiro? Merece
uma pequena tortura.
A rouquidão da sua voz me excitava ao extremo. Se ele antes do
incidente já me enchia de desejo, agora então, mais forte, mais gostoso, com
essa voz rouca de morrer, eu fico úmida só de pensar.
— Não me tortura não, senhor... — Gemi, segurando o balcão com
firmeza.
Ele sorriu de canto e simplesmente abaixou meu short, me despindo
da cintura para baixo.
— Levanta bem essas pernas.
Lentamente ele desceu o rosto e com fúria e ardor, devorou-me com a
boca, levando-me ao ápice do prazer em instantes.
Eu segurava firme seus cabelos loiros enquanto me permitia relaxar e
sentir tudo o que ele me dava, sem reservas.
Amava quando éramos apenas ele e eu.
A combinação perfeita.
(...)

Estava próximo do horário de concretização do nosso ataque.


Malcolm já estava pronto, com sua mochila nas costas e disfarce para o rosto,
pois ele entraria no prédio sede do Patriarcado e deixaria a última mensagem
antes da implosão.
— Poderia verificar se todos os explosivos foram realmente instalados
com segurança?
Indagou ele ao técnico de segurança. O homem verificou em seu
computador o rastreio de cada explosivo e ali, conferimos se tudo estava ok.
Ao mesmo tempo, ao redor do mundo, todos os soldados de confiança
do Rei do Sul faziam sua verificação explosiva sobre a filial do patriarcado
naquele país.
Era tudo simultâneo.
Depois de todas as verificações devidas, fiquei no canto da sala, com
os braços cruzados apenas esperando o momento certo.
Eu não iria até lá. Malcolm pediu que eu ficasse ali, com seus aliados,
prontos para atacar caso a vida dele fosse colocada em risco. Só de imaginar
a hipótese de perde-lo, eu já gelava.
Não queria passar por toda aquela sensação novamente.
— Quem vai com você?
Questionei bastante brava. Ele não poderia ir sem alguma escolta.
Malcolm, que estava quase na porta de saída do apartamento, apenas
verificando cada equipamento de segurança dos seus soldados, me encarou e
seu olhar frio e calculista, se tornou terno.
Se aproximou lentamente de mim, segurou meu rosto e depositou um
beijo na ponta do meu nariz.
— Delta e zero um vão atrás, para dar uma força. Mas você sabe que
preciso resolver isso sozinho. Não sabe?
Respirei fundo com os olhos fechados e depois firmei meu olhar no
dele, procurando a verdade e a sinceridade tão transparente que eu conseguia
distinguir com facilidade.
E ali estava.
Ele estava sendo mais do que protetor, ele estava sendo verdadeiro e
sincero. Eu sabia que a luta maior era dele, pois foi ele quem suportou essa
organização maldita desde o nascimento. Eu queria vingança, ele sempre
desejou justiça.
— É. Eu sei... Mas me preocupo. Por favor, me mantenha na escuta.
Ordenei.
Ele fez sinal de sentido com a mão e sorriu.
— Sim, senhora rainha. Logo eu volto pra você e para nosso filho.
Meu coração começou a acelerar com a curta despedida. Ele não
dramatizou, nem pareceu mentir como fez no Canadá há anos atrás. Dessa
vez ele foi cem por cento verdadeiro e eu estava ao lado dele em cada passo
do plano, organizando e opinando.
Eu não tinha sido deixada de fora.
Precisava confiar que Malcolm não se sacrificaria outra vez.
Logo meu homem se afastou e seguiu para a porta e, antes de sair, deu
uma última ordem aos seus súditos que ficariam comigo.
— O que foi que pedi a todos vocês? Digam.
Aquela quantidade grande de homens afirmou em uníssono:
— Matar e morrer pela vida da Rainha.
Quando ouvi aquilo, fechei os olhos e permiti que uma lágrima
solitária deslizasse pelo meu rosto. Ele não tinha dito isso na minha frente,
nenhum dos dias anteriores. Por que deu essa ordem, se vai ficar tudo bem?
Meu coração já queria saltar para fora do corpo que o prendia,
enquanto a respiração, já escassa, se fazia ainda mais ínfima.
Foi quando ele murmurou com os lábios antes de ir:
— Eu amo você.
E se foi.
Capítulo 27
Malcolm
Estava tudo mais do que certo para a justiça ser feita.
Havia acabado de chegar ao subsolo do prédio sede do Patriarcado e,
com os óculos e a touca nos cabelos, não me identificariam devido as
queimaduras na lateral do rosto.
O técnico de segurança reinseriu meus dados pessoais para que eu
possa passar despercebido por reconhecimento ocular. E foi assim que
consegui adentrar ao elevador exclusivo do Patriarca e ir direto ao topo do
prédio, acompanhado por Delta e zero um, que se mantinham em silencio.
Ao chegar ao andar de destino, respirei fundo.
Era a hora que mais aguardei nos últimos anos.
Destruiríamos todas as pessoas envolvidas nesse câncer mundial, ao
mesmo tempo. Eu e os diversos chefiados por mim, ao redor do mundo.
No hall principal do andar do chefe, não havia ninguém, como de
costume. Segui direto para a sala do Patriarca e bati à porta.
— Entre.
Uma voz masculina bradou.
Assim que abri e dei de cara com a pessoa que estava sentada à mesa
de chefe, ódio e ânsia de vômito subiu por minha bile.
O homem era Victor. Um dos seguranças que ficou na casa de minha
mãe como capataz. O que ele fazia como Patriarca?
— Você?
Ele estreitou os olhos, tentando saber quem eu sou, provavelmente.
Tirei a touca e os óculos.
— Ah... O morto vivo.
Ele foi seco.
Me aproximei lentamente da mesa de mogno e apalpei a arma em
meu coldre.
— Acho que você não vai querer me matar, Malcolm. Como já deve
ter notado, fui mais inteligente que qualquer pessoa um dia já foi. Hoje eu
comando isso tudo e sei que veio tentar me matar.
Dei uma risada sarcástica.
— Na verdade não. Não quero saber como foi que atingiu essa
posição, mas apenas vim avisar que... — Acionei o botão acoplado à meu
cinto de couro, que fazia as câmeras de segurança transmitirem
mundialmente a todas as filiais do Patriarcado a minha mensagem, como um
vírus. — A partir de hoje o Patriarcado deixa de existir. Todos os poderes,
todas as pessoas envolvidas, toda a terra nesse instante deixa de ser
governada por você, Victor e qualquer outro membro dessa organização
maldita. Apenas um aviso. Governantes mundiais, aguardem segunda ordem
em breve.
— Acha mesmo que vai me tirar do poder, seu inútil que serviu como
objeto sexual a vida inteira? Você não sabe como foi difícil para mim, fazer
Enzo passar todo o poder para mim caso morresse. Não sabe o que eu tive
que fazer!
Se alterou, ficando de pé e começou a gritar como um louco
psicopata.
— Vou matar você.
Ele pegou uma arma, mas fui mais rápido e já acionei o helicóptero de
resgate antes mesmo dele atirar em mim e pensar que estava tudo vencido.
Permiti que ele me atingisse no ombro e depois, empunhei minha
arma e atirei no centro de sua cabeça, de uma só vez.
— Não gosto de bater papo com perdedores.
A eletricidade simplesmente despencou do prédio e tudo ficou escuro
naquele fim de tarde. Apenas a grande janela atrás da mesa onde Victor
estava, iluminava o ambiente com o pôr do sol.
— É agora, Riv. Eu amo você.
Ouvi ela falar “cuidado, por favor”.
Peguei o controle dos explosivos que estavam presos como uma
pulseira em meu pulso e comandei pela escuta:
— Cinco, quatro, três... Todos à postos?
“Todos conectados, Alfa. Cem por cento de conectividade.”
— Dois, um...
Apertei o botão e senti a implosão do prédio se iniciar. As estruturas
tremiam e eu só tive tempo de correr para a janela e aguardar o dardo lançado
de dentro do helicóptero, que quebrou o vidro.
Alfa e zero um, que esperavam do lado de fora da sala, entraram e,
nós três unidos, nos demos o braço para que fôssemos resgatados pelo
helicóptero de resgate.
O que, graças a Adonai — como diz minha esposa —, deu certo.
Em instantes todo o prédio ruiu, mas não estávamos mais dentro dele
para morrer junto.
O fato de todas as organizações rebeldes estarem alinhadas cooperou
para que cada pequeno ponto de ação do Patriarcado no mundo fosse
destruído, e a lista que deixei antes da minha morte para Rivka, fez com que
todos exterminassem os infiltrados antes do plano ser organizado.
Tivemos 100% de aproveitamento e sucesso.

Rivka
O maior susto que eu poderia levar depois do sequestro do meu filho,
foi a possibilidade de perder Malcolm outra vez.
Mas graças a meu elohim, isso não aconteceu.
Fiquei orando e com total atenção à escuta desde o momento em que
ele saiu, até a implosão do prédio do Patriarcado.
A imprensa mundial se movimentou em instantes e, em todos os
canais de noticiários mundiais, se anunciava a queda simultânea de prédios
pelo mundo.
O Patriarcado não podia ser divulgado tão abertamente em imprensa,
então apenas ficou no ar um ataque mundial, que abalou milhões de pessoas
ao redor da terra, por não saberem sobre o que se tratava tal atentado.
No fim daquele dia Malcolm retornou para mim, ferido, mas vivo.
E eu tive a plena certeza de que nossos dias a partir daquele, seriam
completamente diferentes. Uma paz invadiu meu peito ao imaginar como
seria nós dois juntos, numa vida sem disfarces e perseguições.
Dar a vida que sempre sonhei ao meu filho, ao lado do pai dele.

(...)

Meses depois...
Retornamos ao Canadá, depois de implantar e inaugurar a RISE –
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL. Rise significa Ascenção e pelo fato de
Malcolm e eu estarmos de frente, não tivemos muita resistência dos líderes
mundiais. Acessamos todos os dados do antigo Patriarcado e simplesmente
convertemos tudo à nossa nova organização.
Estávamos buscando tudo que tinha ficado na casa subterrânea e
Malcolm, pela primeira vez desde o incidente, entrou na casa. Ele não se
lembrava daquele lugar, mas quando chegamos no quarto onde tínhamos feito
amor diversas vezes, ele teve alguns lapsos de memória, como sempre.
Ele se recordava apenas de momentos muito marcantes para ele.
Nesses dias no Canadá, lembrei de sonhos que tive em um local de
gelo e todos eles se realizaram ali, durante todos aqueles anos.
Eram sonhos premonições.
Nosso filho já sabia que Malcolm era seu pai, no começo ele não
entendeu exatamente como foi possível o pai morrer e voltar à vida, mas
depois da paciente explicação do pai, ele compreendeu e ficou feliz por saber
que enfim teria uma família como a das crianças dos filmes e desenhos que
assiste.
O médico que cuidou dele no Canadá foi incluído na nova
organização com selo de honra e reconhecimento por manter a vida do chefe
sã e salva. O homem era bondoso e muito inteligente. Um médico cientista
que poderia mudar o mundo.
— O que tanto olha, amor?
Meu marido veio por trás e me envolveu com seu abraço forte e
caloroso naquele frio impetuoso na área superior à casa.
Eu encarava o céu branco e a neve à perder de vista.
Estava me despedindo de um pedaço da minha vida.
— Estava lembrando os momentos que já passei aqui. Me
despedindo.
Minha voz soou melancólica.
Ele firmou seu abraço e beijou meu ombro.
— Tenho notícias do Joshua.
De imediato me virei para encará-lo de frente. Os olhos arregalados,
ansiosos por saber se meu amigo estava bem.
— Ele está bem?
Malcolm tocou meus ombros e assentiu.
— Está bem. Está como segurança pessoal da filha do presidente dos
estados unidos. Não sei se era bem uma missão que ele gostaria de exercer
mas... Parece que ele está se saindo bem.
Tapei minha boca, em espanto.
— Minha nossa! Ele deve estar irritado por trabalhar em algo tão...
Tão...
Ele deu de ombros.
— Eu garanti um trabalho muito lucrativo para ele. Estava ajudando-
o, mas não sabia que seria como babá.
Ali eu soube que ele providenciou a ida de Joshua para sua nova
missão. Era certo que Malcolm não aceitaria que eu morasse com nenhum
homem senão ele, e sinceramente, eu bateria de frente com essa decisão dele
mas... Sentia que Joshua iria mesmo se Malcolm não movesse os pauzinhos.
— Depois mando um e-mail para ver se ele está bem. — ponderei,
sem saber se ele responderia algum e-mail.
— Eu morro de ciúmes dele e peço perdão por me intrometer, mas...
Não vou me opor caso queira manter contato com ele.
Gostei de escutar aquilo e abracei o amor da minha vida com força.
Não tínhamos um relacionamento normal nem perfeito aos olhos da
sociedade. Éramos dois traumatizados, cheios de mazelas da vida e histórias
para contar, mas éramos um quando estávamos juntos.
Nosso objetivo junto sempre foi e sempre será, a harmonia da nossa
família.
E foi ali, me despedindo daquele lugar, que chamei Zion para também
dizer adeus à casa. Nós três deixamos o Canadá e tudo o que ele representou.
Cada dor, cada momento triste cheio de ódio e sede de vingança ficou para
traz.
O que levamos foi apenas a vontade de continuar uma vida abundante
cheia de sonhos a realizar.
Meu filho estava feliz com o pai e comigo, e para mim, isso era o
suficiente.
Estava finalmente vivendo o amor, em toda sua plenitude.
Epílogo
Cinco anos se passaram.
— Mãe, pai!
Zion veio correndo pelo amplo campo gramado da nossa fazenda no
interior da Inglaterra. Governávamos a RISE, mas mantínhamos nossa vida
simples longe de toda a movimentação da cidade grande.
Nosso menino já tinha nove anos e gostava de catalogar insetos. Ele
saía pela fazenda e, cada animalzinho novo que via, queria catalogar.
Compramos uma câmera e deixamos ele livre para fotografar cada um
dos insetos que via.
— Oi, filho.
Malcolm e eu estávamos abraçados sentados sobre um tecido que
forrava a grama naquele fim de tarde. Era fim de semana e gostávamos de
passar conversando sobre qualquer trivialidade que não fosse a RISE.
Já estávamos com uma idade madura, eu tinha 36 e ele 46, mas o
homem não apagava jamais o fogo que sentia quando estávamos entre quatro
paredes.
Era simplesmente insaciável.
— Mãe, descobri um inseto novo, perto do lago! Olha a foto!
Zion mostrou a foto e logo vi correndo pelo mesmo trajeto que ele,
nossa pequena Thalia, de apenas quatro aninhos.
— Papai, Zion me deixou sozinha com os bichos!
Ela correu para o colo de Malcolm, que como um pai protetor que
mimava demais essa criança, abraçou sua filha e caiu na lábia dela de que
havia sido abandonada pelo irmão.
Thalia parecia muito comigo, mas os olhos eram heterocromáticos.
Um era castanho e o outro era azul. Uma raridade que mal se vê hoje em dia.
Ficamos nós quatro ali, conversando com nossos filhos, apenas
vivendo um dia de cada vez, deixando que a felicidade atual simplesmente
apagasse qualquer sofrimento que tivemos no passado.
— Zion, meu filho, sua irmã precisa da sua proteção.
Malcolm alertou ao menino, mesmo usando um tom brando de voz.
— Ela quer fazer tudo que eu faço, pai. Já falei que mexer com bicho
é coisa de criança grande.
Ele retrucou.
— Então vamos fazer assim: Fiquem aqui vendo o sol se por com
papai e mamãe, e depois faremos o que mais gostamos de comer lá na
cozinha...
Os olhos das crianças se arregalaram, brilhando, e quando olhei para
Malcolm com Thalia do meu lado, o brilho dos olhos dele era mais malicioso.
— Panquecas!
Todos gritamos em uma só voz.
Panquecas era a melhor programação em família.

(...)

— Quero comer você com panquecas.


Meu marido sussurrou no tom rouco e sedutor da sua voz, em meu
ouvido. As crianças já tinham tomado banho e subido para dormir. A casa
estava vazia e só estávamos ele e eu na cozinha limpando tudo.
Não tínhamos empregados aos fins de semana.
— Como nos velhos tempos?
Indaguei, já disposta a uma loucura com o homem que me faz a
mulher mais feliz da face da Terra.
Deslizando o zíper das costas do meu vestido, ele respondeu
lentamente:
— Como nos velhos tempos e como sempre.
Em instantes estávamos nós dois nus, entre carícias e beijos
apaixonados envoltos por panquecas e mel por todo corpo. Malcolm comia as
panquecas enquanto me segurava em seu colo, invadindo-me por inteira.
Éramos um só no meio da cozinha. Na parede, na bancada, no chão,
até de pé no meio do nada. Ele estava ainda mais forte e musculoso, seu vigor
me saciava como nunca antes.
Estávamos felizes.
Enfim, felizes para sempre.
Em todas as áreas, em todos os dias, em tudo.
Ter o amor dele pela primeira vez foi trabalhoso, mas quando a
segunda vez chegou e enfim nos reconhecemos e nos amamos novamente,
selamos esse amor.
Nosso amor se tornou o elo perpétuo que nos uniria em vida ou além
dela.

FIM
Agradecimentos
A Deus.
Obrigada, Senhor.
Obrigada porque sem seu amor, sem sua ajuda, sem sua inspiração eu
nada seria.
Sua graça me trouxe até aqui e, mais uma vez, um livro está sendo
lançado depois de tantas lutas.
Obrigada por ser tão bom comigo, eu te amo!
Obrigada a Poliana e as meninas do grupo do whatsapp!
Obrigada às minhas amigas literárias que sempre me ajudam quando
preciso. Vocês sabem quem são vocês!
Obrigada aos leitores do wattpad, por cada comentário motivador.
Agradeço a Renata que revisou, ao Will que fez a capa e a Alice Lima
que diagramou. Vocês são top!

Mais uma vez, obrigada a você, leitor, por me dar a chance de mostrar
mais uma de minhas obras.
A. G. Moore.
FACEBOOK
GRUPO FACEBOOK
INSTAGRAM
WATTPAD
Último lançado na amazon:
Nosso Acordo.
Até quando uma amizade pode chegar?
Camila e Miguel sempre foram amigos, mas um acordo chegou para
provar que tudo poderia ser diferente num piscar de olhos.
Mais de um milhão de leituras na plataforma Amazon

Série Feelings:
Os livros de romance com drama que te farão suspirar, chorar e se
apaixonar até a última linha lida!
Inesquecível
Imensurável
Irrefreável
Indestrutível
Quatro amigos — Como tudo começou (conto spin-off)
Teorias sobre o amor (conto spin-off)

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