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Capítulo 1: Fortaleza Flutuante

A pé, nossa jornada levaria meio dia indo para o norte da Cidade Mágica de
Sharia, mas seria apenas uma hora a cavalo. Nosso destino eram algumas
ruínas antigas – os restos de uma fortaleza.
Detritos estavam espalhados pelo chão, vestígios de algum piso de pedra.
Pilares de pedra grossos jaziam derrubados. Era como olhar para o Partenon,
fora que os anos haviam sido menos gentis com este lugar. Sem dúvida, em
um período, era uma visão majestosa de se ver, mas agora é pouco mais do
que um eco da história.
— Estes são os restos da Fortaleza Scott. Os humanos a construíram durante
a Guerra de Laplace. Dizem que havia mil humanos que se barricaram para se
opor à invasão dos demônios. Infelizmente, não foram páreo para eles, e a
fortaleza acabou sendo tomada.
Quem deu essa explicação útil foi a mulher ao meu lado, uma loira com
cabelos trançados. Sua aparência era inocente e estava vestindo uma roupa de
viagem luxuosa. Mesmo de longe, seria possível dizer que Ariel Anemoi
Asura era uma beldade incomparável que exalava carisma.
Espera, será que ela estava dirigindo essa explicação a mim?
Mantive minha boca fechada e olhei ao redor. Luke e Sylphie estavam logo
atrás de nós, com Roxy, Zanoba, Cliff e Elinalise na retaguarda. Nanahoshi
estava na frente, liderando nosso grupo. O olhar de Ariel estava fixo em mim,
e não havia ninguém entre nós. Eu tinha razão; ela estava falando comigo.
Recentemente tínhamos viajado com a nobreza de Ranoa, mas nós dois nunca
tínhamos conversado de verdade, por isso a minha confusão.
— Você com certeza sabe das coisas, Princesa — falei, por fim.
Ela me direcionou um sorriso suave.
— Isso é retratado em muitas das canções folclóricas desta área.
— Eu não sabia que você tinha interesse em canções folclóricas.
— Fazer conexões com a nobreza local requer que eu esteja familiarizada
com elas — respondeu Ariel com naturalidade. O conhecimento de velhas
histórias era aparentemente essencial para aproximar-se da classe alta. Isso
devia dar muito trabalho. — Mas você tem certeza de que podemos chegar ao
Lorde Perugius a partir daqui?
— Essa é uma boa pergunta. Não faço ideia de como funciona, mas… — Fiz
uma pausa, olhando para Nanahoshi à nossa frente. Ela carregava uma
mochila enorme nos ombros e tinha dificuldade para caminhar, graças aos
escombros. Mesmo assim, continuou andando sem olhar para trás. Eu estava
seguindo seu exemplo, mas me perguntei como ela planejava chegar a
Perugius a partir daqui. Até onde eu conseguia me lembrar, minhas leituras
sobre magia de teletransporte não faziam menção a círculos nesta área. Ou
talvez houvesse um, mas não foi notado porque estava escondido. — Me
preocupo mais com a possibilidade de ele ficar irritado com o número de
pessoas.
Ariel riu.
— Lorde Rudeus, você diz algumas coisas divertidas. Este é o herói que
ganhou o título de “rei”, sabe. Nosso pequeno grupo dificilmente o
perturbará.
— Espero que você esteja certa.
Olhei ao redor, mentalmente marcando cada pessoa em nosso grupo:
Nanahoshi, eu, Ariel, Sylphie, Luke, Roxy, Zanoba, Cliff e Elinalise. Isso
somava nove pessoas, o suficiente para ser uma grande unidade familiar.
Embora a Ariel pudesse não considerar isso uma multidão tão grande.
Frequentemente, a realeza recebe dezenas de convidados ao mesmo tempo,
então um grupo de menos de dez provavelmente não os perturbaria.
Norn recusou meu convite; estava muito ocupada com a escola. Ela disse que
trabalharia duro para equilibrar o estudo de esgrima com a tarefa de ser
membro do conselho estudantil. Isso talvez tenha influenciado em sua recusa.
Entretanto, se ela estivesse conosco, eu provavelmente também teria que
trazer Aisha. Isso nos tornaria um grupo de onze, definitivamente uma
multidão. Não me sinto confortável em levar tantas pessoas para encontrar
alguém que sequer conhecia.
— Lorde Perugius agora passa seus dias em reclusão, mas depois da Guerra
de Laplace, ele viveu no Reino Asura por um tempo. As pessoas de lá
pensam nele como um igual ao seu próprio rei. É dito que ele uma vez levou
cem servos consigo quando visitou o palácio. Alguém assim dificilmente
piscaria diante de um pequeno grupo de nove pessoas — disse Ariel.
— Acho que sim.
Em uma tangente completamente sem relação, a voz de Ariel com certeza era
agradável de escutar. Certamente era natural ficar irritado quando visitantes
batiam sem aviso prévio, mas as palavras dela fizeram parecer que tudo
ficaria perfeitamente bem. Para ser honesto, foi desconcertante. Sua voz era
como o sussurro do demônio.
Olhei para a princesa.
— Se ele estava farto da vida no palácio, então talvez não goste do conceito
de receber visitantes.
— Se esse fosse o caso, Lady Nanahoshi não teria concordado em me deixar
ir junto.
— Realmente não acho que ela pensa muito nisso — murmurei, lembrando-
me das circunstâncias que levaram Ariel a se juntar ao nosso grupo…
Quando Nanahoshi mencionou Perugius pela primeira vez, fiquei tão
animado quanto quando era uma criança na manhã do meu aniversário.
Estávamos falando do Rei Dragão Blindado. Eu sabia tudo sobre ele. Li até
um livro, não muito depois de reencarnar neste mundo.
Perugius foi um herói da Guerra de Laplace há 400 anos. De acordo com o
que li, ele podia controlar doze familiares, restaurou uma antiga fortaleza
flutuante à sua antiga glória e até lutou contra o próprio Laplace com seus
camaradas. Depois que Laplace foi selado, as pessoas o louvaram tanto que o
novo calendário foi batizado de “Dragão Blindado” em sua homenagem.
Embora Perugius fosse conhecido como o Rei Dragão Blindado, não tinha
nenhum território sobre o qual governar. Ele eventualmente deixou o palácio
Asurano e começou a viajar pelo mundo em sua fortaleza flutuante,
Destruidora do Caos. Estamos indo encontrar esse homem das lendas. Eu não
conseguia diminuir as expectativas. Quer dizer, estamos indo para o castelo
no céu, Laputa!
É verdade, eu estava ocupado o suficiente entre ser pai e fazer minha própria
pesquisa, mas ainda queria muito ir. Desculpe, Lucie, seu pai não é páreo
para a própria curiosidade. Mas prometo que vou te trazer algo! E então
decidi ir junto com Nanahoshi.
Enquanto eu lutava interiormente com meu próprio egoísmo, Sylphie não
ficou tão conflituosa. Em vez disso, perguntou:
— Tudo bem se eu levar a Princesa Ariel junto?
— Ariel? — Nanahoshi torceu o nariz.
Disse que a princesa tinha tentado solicitar o favor de Nanahoshi várias
vezes. Afinal, ela controlava um grande fluxo de comércio entre o Reino
Asura e o Reino de Ranoa. Claro, Ariel queria a garota em seu bolso. O
problema era que Nanahoshi queria o mínimo possível de envolvimento com
este mundo, razão pela qual parecia irritada com tudo nele.
Na verdade, isso não é atuação. Acho que ela está realmente irritada.
— Sim — disse Sylphie. — Lorde Perugius vive em reclusão por muitos
anos, mas a corte Asurana ainda o reverencia. A Princesa Ariel está… bem,
considerando seus planos para o futuro, acho que ela gostaria de conhecê-lo.
Ariel cultivou conexões em vários lugares com o propósito de,
eventualmente, tomar a coroa Asurana. Na verdade, ela tinha passado anos
fazendo esses preparativos, mas suas chances eram quase tão boas quanto em
um cara ou coroa. Não era a aposta mais segura, se alguém me perguntasse.
A princesa se formaria no próximo ano, mas eu não fazia ideia do que ela
planejava fazer depois disso. Talvez continuasse no mesmo lugar
acumulando mais poder, ou talvez voltasse para a capital em Asura para
tomar o trono. Eu ajudaria se ela escolhesse a última opção, mas, falando
honestamente, estava me sentindo um pouco menos entusiasmado agora que
era casado e tinha uma criança. Queria manter meu envolvimento em um
nível em que não impactasse negativamente a minha família, se possível.
Bem, meus sentimentos à parte, a proposta de Sylphie foi provavelmente
outra tentativa de ajudar Ariel com suas conexões. Se ela pudesse obter o
apoio do Rei Dragão Blindado Perugius, um homem reverenciado como um
herói no Reino Asura, isso tornaria sua luta pela coroa mais fácil.
— Bem, te devo por tudo o que você fez… — Nanahoshi encolheu os
ombros. — Claro, por que não? Pode trazê-la.
Considerando o quão óbvias as ambições de Ariel eram, imaginei que
Nanahoshi a rejeitaria, mas ela concordou na hora. Aparentemente, Sylphie
cuidou de Nanahoshi enquanto eu estava fora. Isso incluía compartilhar
comida, fornecer roupas e lançar magia de desintoxicação nela quando
adoecesse. Nanahoshi raramente aparecia desde o aniversário de Lucie, mas
Sylphie disse que ela usava muito nossa banheira antes disso.
Sylphie ergueu o punho e sorriu.
— Sério? Obrigada. A Princesa Ariel ficará encantada.
E foi assim que Ariel e Luke acabaram se juntando a nós. Sylphie disse que
Ariel estava excepcionalmente entusiasmada com isso. Acho que ser princesa
não a impedia de ficar animada para conhecer alguém tão famoso. Até eu
estava empolgado. Digo, estávamos falando de um herói em carne e osso. Do
tipo que só se encontra em livros. Eu mal podia esperar para ver que tipo de
pessoa ele era. Espero que não seja irritadiço.
Pensando bem…
De repente, lembrei que tinha conhecido um de seus subordinados há muito
tempo, antes do Incidente de Deslocamento. O homem se autodenominava
Arumanfi, o Brilhante. Ele pensou que eu era a mente por trás do Incidente
de Deslocamento e tentou me atacar. Ghislaine conseguiu acalmá-lo e eu não
tive a impressão de que ele era uma pessoa má. Ainda assim, considerando
que ele tentou me matar do nada, havia algo inegavelmente perigoso no
sujeito. Quem sabia se seu mestre, Perugius, seria melhor? O pensamento me
deixou nervoso.
Tudo bem, mas só porque seu subordinado perdeu o controle, não significa
que ele faria isso.
Além do mais, parecia que Perugius teve uma premonição do que estava
prestes a acontecer e tentou impedir o Incidente de Deslocamento antes que
ele ocorresse. Nesse caso, merecia todos os elogios do mundo. Apesar de
tentar matar um inocente no processo…
Bem, tanto faz. Passado é passado. Vou deixar o que passou no passado. Não
conseguiria nada de bom ao ser hostil com alguém que estaria encontrando
pela primeira vez. Perdoar era importante.
— Chegamos.
Enquanto eu ficava perdido em pensamentos, Nanahoshi finalmente parou
nosso grupo quando chegamos ao centro das ruínas. Não havia absolutamente
nada no local. Ou era o que eu pensava. Após uma inspeção mais detalhada,
notei uma pedra enterrada sob os escombros que era perfeita para sentar. Na
verdade, era um monumento. Um com um emblema brilhante que
representava um grupo temível: os Sete Grandes Poderes. Esses tipos de
monumentos estavam espalhados por todo o mundo, mas quem diria que
encontraríamos um assim?
Ao mesmo tempo, não era um círculo mágico. Talvez houvesse uma porta em
algum lugar que se abriria, revelando escadas que levavam a um círculo de
teletransporte. Ou talvez o próprio monumento tivesse algum tipo de
mecanismo instalado. Ou talvez precisássemos apenas recitar algumas
palavras mágicas e a pedra automaticamente nos teletransportaria.
— Então, o que vamos fazer agora que estamos aqui?
— Chamá-lo. — Nanahoshi tirou a mochila dos ombros e procurou por um
apito de metal. Ela o colocou contra os lábios e soprou com força. — Fsssh…
Nenhum som saiu, apenas ar. Um apito de cachorro ou algo assim?
— Não estou ouvindo nada. — Cliff semicerrou os olhos, cético.
— É um som que as pessoas normais não conseguem escutar, mas agora ele
deve vir. — Nanahoshi sentou-se em uma das muitas pedras espalhadas ao
nosso redor.
Um som que as pessoas normais não conseguem ouvir, mas de alguma forma
Perugius conseguiria ouvir? Isso significa que o apito é um item mágico ou
que Perugius é um cachorro.
— Cliff. — A expressão de Elinalise ficou sombria quando ela se dirigiu a
ele.
— O que foi?
— Só um aviso: alguém pode dizer algo humilhante para você enquanto
estivermos lá, mas você não deve perder a calma e revidar. Está bem?
Ele fez uma careta, fazendo beicinho igual uma criança que acabou de ser
repreendida por sua mãe a respeito de seus estudos.
— Eu sei. Não sou criança.
Elinalise aninhou-se contra ele e sussurrou algo em seu ouvido. A expressão
de Cliff relaxou, o que significava que ela estava lhe dizendo palavras doces
ou que se desculpou.
— Estou ansioso para ver que tipo de estátuas residem na fortaleza flutuante!
— declarou Zanoba.
Sempre entusiasta. No momento em que soube que visitaríamos Perugius, ele
disse: “Devíamos aproveitar a oportunidade para mostrar a Lorde Perugius as
nossas criações.” Em seguida, enfiou várias estatuetas que eu fiz (incluindo a
de Ruijerd) em uma caixa para levar conosco. Eu não fazia ideia se teríamos
realmente uma oportunidade ou não, mas Zanoba planejava anunciar nosso
negócio para Perugius, assim como eu havia mostrado meu trabalho para
Badigadi. Ele com certeza era apaixonado pelo nosso trabalho.
Julie e Ginger não estavam conosco. Julie ficou para trás no quarto de
Zanoba, e ele ordenou que Ginger agisse como guarda-costas da minha
família. Não que estivessem em algum tipo de perigo, mas pelo menos ela
poderia fornecer assistência se precisassem de alguma coisa. Eu tinha certeza
que o verdadeiro desejo de Ginger era estar ao lado de Zanoba, mas era pelo
menos reconfortante saber que tinha alguém para cuidar da minha família
enquanto eu estivesse fora.
— Tente não forçar muito os seus interesses para ele. Estamos falando de
alguém que viveu por mais de 400 anos — falei.
— Bwahaha! Lorde Badi viveu ainda mais do que isso. Qualquer pessoa que
viveu tanto tempo deve apreciar a excelente qualidade de suas estatuetas,
Mestre.
— Se você diz… — Inclinei a cabeça. — Hm?
Uma luz apareceu bem distante.
— Ele chegou — murmurou Nanahoshi.
Uma figura apareceu diante de nós uma fração de segundo depois. Foi quase
instantâneo, em um piscar de olhos.
O homem tinha cabelos loiros e estava vestido com o que parecia ser um
uniforme escolar branco. Ele provavelmente era muito bonito, mas seu rosto
estava escondido sob uma máscara amarela que parecia uma raposa. Uma
longa adaga pendurada ao seu lado. Ele estava exatamente como eu
lembrava.
— Arumanfi, o Brilhante, ao seu serviço — disse ele.
O jeito como ele apareceu do nada foi realmente estranho. Em um momento
não estava em lugar algum, e então surgiu no meio do nosso grupo. Ele
provavelmente voou de sua fortaleza flutuante na velocidade da luz. Fez o
mesmo quando eu o conheci, antes que toda a Região de Fittoa
desaparecesse.
Nosso grupo ficou em silêncio. Arumanfi olhou brevemente em minha
direção. Imaginei se ele lembrava de mim. Parte de mim temia que ele
pudesse me atacar novamente. Secretamente ativei meu Olho Demoníaco,
aumentando meu aperto em meu cajado. No entanto, Arumanfi não pareceu
me reconhecer, para meu alívio. Seu olhar passou pelo resto do nosso grupo
antes de ir até Nanahoshi.
— Há muitos de vocês — disse ele. Devia estar considerando nossos
números.
Nanahoshi acenou com a cabeça.
— Sim, há, mas isso não é um problema, é? Ele disse que eu poderia levar
um grupo de dez.
— O número de pessoas não é um problema. Entretanto… — Seu olhar
pousou em Roxy. — O demônio é.
— O-O quê? Por quê? — Roxy parecia um gato que tomou um banho de
água fria.
— Não permitimos demônios em nossa fortaleza flutuante.
— A-Ah, é isso… — Os ombros de Roxy caíram para frente. Ela ficou
arrasada.
Durante a guerra de Laplace, Perugius lutou contra os demônios. Talvez
ainda guardasse rancor deles. A guerra costumava deixar uma marca no
coração das pessoas.
— Não tem como fazer uma exceção?
— Lorde Perugius é um homem muito magnânimo, mas odeia demônios.
Eu quase tinha esquecido que tal discriminação existia, porque a maioria das
pessoas não tinha preconceito especial em relação aos demônios nesta região.
Mas o mesmo não poderia ser dito para o resto do mundo. Perugius pode ser
um homem lendário, mas também participou da guerra. Assim como Ruijerd
carregava cicatrizes mentais desses eventos, talvez Perugius também tivesse
algumas. Ainda assim, me senti mal por Roxy, já que ela era a única que não
podia ir.
— Não, está tudo bem — disse ela. Seus ombros afundaram em derrota. —
Se for assim, ficarei para trás. Além disso, fiquei com um pouco de medo de
ver Per… Lorde Perugius, de qualquer maneira, e ainda tenho meu trabalho
como professora. É melhor assim.
Embora ela estivesse desistindo, não conseguia esconder a decepção em seu
rosto. Uma parte sua definitivamente queria nos acompanhar. Ainda assim,
ela forçou um sorriso enquanto se virava para mim, tentando ser
reconfortante.
— Está tudo bem, Rudeus. Vou cuidar de tudo em casa.
— Tudo bem, mas vou te trazer uma lembrancinha.
Ela puxou a aba do chapéu para baixo, buscando esconder o rosto. Após uma
breve pausa, murmurou, como se estivesse brincando:
— Eu não preciso de nenhuma lembrancinha. Me dê um bom abraço quando
chegar em casa, isso já está bom.
Joguei meus braços em volta dela, segurando-a por dez segundos inteiros.
Seu coração começou a bater forte e tive que me afastar antes que minha
bazuca atômica recarregasse.
— O-Obrigada…
— Não — falei —, obrigado você.
As bochechas de Roxy ficaram vermelhas enquanto ela se mexia. Ela sorriu,
apesar de seu constrangimento, quando nós dois nos afastamos. Assim que eu
voltar para casa, faremos tudo isso e muito mais.
— Terminaram? — perguntou Arumanfi. Ele fez o seu caminho enquanto
nós dois compartilhávamos uma despedida sincera. Agora que minhas mãos
não estavam mais ocupadas, ele me entregou um bastão. Olhei ao redor e
percebi que todos os outros tinham um. — Segure isso. — ele disse.
Agarrei o objeto. Era de metal, com cerca de 20 centímetros de comprimento,
com um padrão complexo esculpido em sua superfície. Havia um cristal
mágico em cada extremidade. Provavelmente um instrumento mágico.
— Então, o que eu faço enquanto seguro?
— Só precisa segurar — disse ele. — Lorde Perugius usará magia de
teletransporte para levar todos vocês para sua fortaleza.
Então este item estava imbuído de magia de teletransporte? Era mesmo isso?
Nesse caso, isso era terrivelmente conveniente. Mas não disseram que
humanos não podiam ser convocados? Espere, talvez esteja tudo bem, já que
isso não é magia de invocação. Mas, qual a diferença entre as duas coisas?
— Como vamos voltar quando terminarmos?
— Voltam da mesma forma, na maioria das vezes — respondeu Arumanfi
casualmente.
Isso significa que há uma maneira de nos teletransportarem de volta para cá.
Lucie já seria adulta quando voltássemos, se tivéssemos que voltar a pé.
Saber que isso não aconteceria era um alívio.
— Todo mundo está com um desses? Certifiquem-se de segurar com as mãos
nuas.
Olhei para minha mão esquerda. Por ser artificial, não havia como agarrar o
bastão com as duas mãos nuas.
Nanahoshi nos examinou para ter certeza de que seguimos as instruções e
acenou com a cabeça para Arumanfi.
— Parece que todos estão prontos. Pois bem. Só um momento. — Ele
balançou a cabeça e desapareceu em um clarão de luz no momento seguinte.
Muito provavelmente correndo de volta para a fortaleza para dizer a Perugius
que estávamos prontos para ser convocados.
— Isso é meio emocionante — disse Ariel, sorrindo para Sylphie.
— Sim, é.
Sylphie estava certa. A princesa estava certamente mais enérgica do que o
normal.
Enfim, teletransporte, hein? Se algo der errado, podemos ser transportados
para sabe-se lá onde. Embora pudesse ser uma lenda viva, Perugius ainda era
uma pessoa, e pessoas cometem erros. Ah, cara, isso dá medo.
— Hm?
Enquanto eu imaginava o pior cenário possível, o calor começou a correr pelo
bastão em minhas mãos. O calor foi transferido para minhas mãos e parecia
que estava sendo puxado em sua direção. Imaginei o que aconteceria se eu o
soltasse. Sem dúvida, a magia de teletransporte falharia. Mas a sensação foi
tão repentina que não me surpreenderia se outra pessoa largasse o bastão
instintivamente.
— Huh?
Olhei ao redor e percebi que todo mundo já tinha sumido. Não, nem todo
mundo. Sylphie olhou para mim um segundo antes de desaparecer. Apenas
Roxy e eu permanecemos.
Hm? Me deixaram para trás?
A segunda dúvida começou a surgir, descobri que minha consciência estava
sendo absorvida pelo bastão.
Quando percebi o que estava acontecendo, tudo ao meu redor ficou branco.
Era um espaço vazio e sem cor. Um fio invisível me puxou com uma
velocidade inacreditável. Era como se alguém estivesse usando um guincho
elétrico para enrolar a linha de pesca, e eu fosse o peixe fresco enganchado na
outra extremidade, zunindo pelo ar. De longe, tive um vislumbre de Sylphie
sendo puxada de forma semelhante por esta força invisível. É essa a sensação
de estar do outro lado da magia de invocação?
Mais importante, essa configuração parecia familiar. Eu já tinha visto isso
antes… mas onde?
Isso mesmo, o Deus Homem!
Nunca pensei muito nisso, mas agora vi que este lugar se parecia com a área
que eu via quando encontrava o Deus Homem em meus sonhos. Exceto esse
momento, sempre estava em meu antigo corpo. Desta vez, ainda era Rudeus,
com minhas vestes balançando ao meu redor enquanto voava para frente.
Uma luz enorme esperava à frente. Estava tecida em um círculo mágico
misterioso e complexo, e me sugou quando me aproximei.
Na próxima vez que abri meus olhos, havia chão sólido abaixo de mim
novamente.
— Ufa!
Respirei fundo e me sentei. Foi como ser acordado de um sonho. Eu tinha
perdido a consciência em algum momento? Não, não era isso. Lembrei de
voar por uma grande extensão de nada.
— Então esta é a magia de invocação de Perugius, hein?
Foi uma sensação peculiar. A última vez que senti isso foi durante o
Incidente de Deslocamento. Naquela época, eu também senti que estava
voando pelo ar. Porém, desta vez havia uma diferença: uma sensação de
estabilidade. A calamidade foi como um trem saindo de seus trilhos. Desta
vez, foi mais como um táxi que me levou com segurança ao local correto.
— Isso com certeza pareceu familiar — sussurrou Sylphie para mim.
Evidentemente, eu não era o único que me sentia assim.
— Sim, pareceu — falei, olhando para os demais de nosso grupo. Ariel,
Luke, Zanoba, Cliff, Elinalise e Nanahoshi. Todo mundo estava presente.
Exceto por Nanahoshi e Elinalise, todos pareciam absolutamente perplexos
com o que acabaram de experimentar. Pelo menos estavam todos seguros.
— Este círculo mágico é enorme — murmurou Cliff.
Foi só então que percebi em que estávamos. Abaixo de nós havia um enorme
círculo mágico com cerca de vinte metros de largura. Foi esculpido
diretamente em um belo piso de mármore. A água corria pelo padrão
gravado, emitindo uma luz fraca. Provavelmente estava imbuída de algum
tipo de magia. Deixando a água de lado, eu já tinha visto esse mesmo tipo de
luz antes — nas ruínas pelas quais chegamos a Begaritt. Em outras palavras,
era uma espécie de círculo de teletransporte.
— Uau…
O que realmente roubou minha atenção não foi o padrão abaixo de nós, mas o
enorme castelo à nossa frente. Devia ter pelo menos cinquenta andares de
altura, e igualmente largo, sua forma maciça e imponente. Certamente, o
interior não seria menos majestoso. Me esforcei para fazer uma comparação
com minha vida anterior, mas nada de tamanho semelhante apareceu em
mente. O mais próximo que pude pensar seria em pegar o Tokyo Dome e
colocar um castelo em cima dele.
Então isso é uma fortaleza flutuante. Eu já tinha visto isso no chão antes, mas
não notei o quanto era grande. Mesmo de longe, não era menos
impressionável.
— Incrível. — O queixo de Sylphie caiu. — É maior que o palácio Asurano.
Um amplo jardim se estendia diante da estrutura gigantesca. Tinha árvores e
flores coloridas suficientes para virar um labirinto. Um canal corria na frente,
sua água cintilando na luz. Dava para perceber que o lugar estava bem
cuidado, mesmo de longe.
— R-Rudy, atrás de nós — guinchou Sylphie.
— Hm? — Olhei para trás. Do outro lado do círculo havia uma cerca de
metal. Além disso, havia um mar de puro branco. — Nuvens, hein?
Uma vez andei de avião, na escola primária em minha vida anterior. Essa
cena se assemelhava às minhas memórias daquela época, embora fosse
diferente vê-las pessoalmente em vez de olhar através de uma janela. Havia
algo profundamente comovente em olhar para as nuvens assim.
Cliff e Luke estavam boquiabertos. Até Ariel arregalou os olhos de surpresa
quando ela espiou por cima da grade, vendo o mar branco abaixo de nós.
Todos ficaram sem palavras com a vista. Mas eu não poderia culpar nenhum
deles. Aviões não existiam neste mundo, e também não existia o conceito de
trilha pelas montanhas. Não havia outra maneira de experimentar algo assim.
Sylphie agarrou meu robe.
— Qual é o problema?
— Não me dou muito bem com lugares altos. — Suas pernas tremiam.
Ela realmente concordou em vir para um castelo voador, apesar de seu medo
de altura? Com certeza estava determinada. Se ela perdesse o equilíbrio, eu
certamente a pegaria e carregaria.
— Espero que a vista de nossa fortaleza flutuante seja do seu agrado — disse
uma voz desconhecida atrás de nós.
Eu me virei. Uma mulher estava fora das linhas do círculo, imóvel como uma
estátua. Ela tinha cabelo loiro platinado na altura dos ombros, e seu rosto
estava escondido sob uma máscara de pássaro branca. Era difícil dizer se ela
era bonita ou não, mas claramente tinha o corpo de uma mulher. Suas roupas
eram todas brancas e segurava um bastão com uma pedra mágica que era
preta e quase toda opaca. Aposto que custa um bom dinheiro. Não que o
único valor de um item fosse seu valor financeiro, mas aquela coisa ainda
tinha que ser cara. Ainda mais do que meu amado cajado.
Dito isso, a parte mais notável de sua aparência não eram suas roupas nem
seu cajado. Eram as enormes asas negras projetando-se de suas costas.
— Alguém do povo do céu…?
Suas asas tinham uma presença dominante, mas a mulher estava tão quieta
enquanto ficava lá que nem tínhamos notado ela. Foi realmente bizarro.
Assim que a notamos, ela inclinou a cabeça em uma reverência. Por mais
inexperiente em etiqueta que eu fosse, ainda podia dizer o quão polido era
cada um de seus movimentos.
— Apresento minhas sinceras boas-vindas a todos vocês. Sou a primeira dos
servos do Lorde Perugius, Sylvaril do Vazio. Serei aquela que os guiará em
torno de nossa fortaleza flutuante, Destruidora do Caos.
— Me chamo Luke Notos Greyrat, cavaleiro da segunda princesa de Asura,
Ariel Anemoi Asura. É um grande prazer conhecê-la. Estamos ansiosos para
ver mais de sua magnífica fortaleza. — Luke ficou na frente de Ariel
enquanto oferecia sua própria saudação educada, sorrindo suavemente para
Sylvaril.
Por que ele está sorrindo para ela assim? Não é como se ela tivesse tetas
enormes. Não que sejam particularmente pequenas. É essa a sua preferência?
Nah, não pode ser isso. Ele provavelmente está apenas sendo educado.
— Sou Ariel Anemoi Asura, a segunda princesa do Reino Asura. — Ariel
beliscou a ponta da saia, fazendo uma reverência lenta. Seus movimentos
eram tão graciosos que eu nunca seria capaz de imitá-los.
O resto de nós também se apresentou de maneira semelhante. Cliff e Zanoba
se comportavam da mesma maneira refinada que se esperaria da nobreza. Eu
era provavelmente o mais ignorante de nosso grupo quando se tratava de
etiqueta adequada.
— É um prazer conhecer todos vocês — respondeu Sylvaril educadamente,
sua voz não traindo nada de suas emoções interiores.
— Já faz um tempo, Senhorita Sylvaril. — Nanahoshi foi a última a falar,
acenando com a cabeça em saudação.
— De fato, Lady Nanahoshi. É bom ver… bem, não, parece que você não
está com uma saúde muito boa, está?
— Não estou no meu melhor, mas estou bem.
A conversa foi breve, mas se a atmosfera amigável servisse de indício, as
duas se davam bem.
— Bem, vamos. Sigam-me, todos. — Sylvaril girou os calcanhares e
avançou, seus passos totalmente silenciosos. Sua cabeça não balançava
enquanto ela se movia, e suas roupas eram tão longas que escondiam seus
pés. Era como assistir um fantasma à deriva.
Nanahoshi não piscou enquanto seguia atrás de Sylvaril, então o resto de nós
seguiu seu exemplo.
Sylvaril pegou o caminho que cortava direto pelo jardim. Um portão feito de
pedra assomava à frente, parecendo um arco triunfal. Ao nos aproximarmos,
Zanoba cantarolou em apreciação.
— Ahh, que alívio impressionante!
Embora ele estivesse realmente interessado apenas em bonecos e estatuetas,
ainda tinha bastante conhecimento sobre outras formas de arte. Talvez porque
todas tivessem algo em comum. Por outro lado, eu não tinha como julgar esse
tipo de design. Bem, se Zanoba está tão impressionado, tenho certeza que
deve ser incrível. Ele normalmente não age tão surpreso com qualquer coisa
que não seja uma estatueta ou algo do tipo.
Segui seu olhar e olhei para cima.
— Ah, uau…
Relevos intrincados foram cinzelados em toda a superfície do portão, os
padrões finos estendendo-se até a parte inferior do arco. Não era possível
deixar de ficar boquiaberto. Ficamos olhando enquanto caminhávamos, e
Sylvaril deu uma explicação.
— Este portão foi criado pelo Rei Dragão Abissal Maxwell. Lorde Maxwell
tem talento para construção e artesanato mágicos. Uma de suas outras
criações é o palácio branco do País Sagrado de Millis…
— Whoooooa! — Zanoba engasgou.
Sylvaril fez uma pausa e se virou.
— Algum problema?
— P-Preciso perguntar! Onde está o Mestre Maxwell agora?! — A voz de
Zanoba saiu em um guincho agudo enquanto ele tremia, seus olhos fixos em
uma parte específica do portão. O que estava acontecendo com ele? Eu não
fazia ideia do que ele estava olhando.
— Lorde Maxwell é do tipo errante — respondeu Sylvaril. — Supondo que
ele ainda não tenha falecido, provavelmente está se aventurando em algum
lugar.
— Ah, que pena. Um homem tão magnífico… Se eu tivesse a chance de
conhecê-lo… — Zanoba mal conseguia conter sua empolgação. Bem, para
ser honesto, não era como se ele estivesse tentando.

— Podemos continuar? — perguntou Sylvaril.


— Ah, sim, claro. Sinto muito. Fiquei simplesmente comovido com a
grandeza de seu trabalho.
— Verdade? Nesse caso, pode encontrar uma série de peças esplêndidas
dentro da fortaleza. Espero que aproveite seu tempo enquanto estiver aqui. —
Imaginei que ela estava sorrindo por baixo da máscara.
Zanoba correu até mim e sussurrou em meu ouvido:
— Mestre, você viu?
— Sim.
— Esta é uma descoberta enorme. Foi bom termos vindo. Temos uma
enorme dívida de gratidão com a Mestra Nanahoshi.
Sobre o que era essa descoberta que ele estava falando? Parece que eu não
estava olhando para a mesma parte do relevo que ele.
— Desculpa — falei —, não faço ideia do que você parece ter encontrado.
Conte-me sobre isso depois.
O rosto de Zanoba foi parar no chão.
— Inacreditável. E pensar que meu mestre ignoraria uma informação tão
importante… — Abatido, ele deu um passo para trás de mim. Sinto muito, eu
simplesmente não tenho olho artístico para as coisas que você tem.
— Hm?
Quando passamos pelo portão, partículas brancas de repente começaram a
cair do corpo de Sylphie enquanto ela caminhava à minha frente. Na verdade,
essas mesmas partículas também estavam caindo do meu corpo.
— Oh? — Sylvaril parou novamente, virando-se para nos encarar. Sua
máscara escondeu sua expressão, mas seu comportamento visivelmente
mudou.
— Hm, há algum tipo de problema? — perguntei timidamente.
No passado, Arumanfi me atacou do nada. Poderia acontecer de novo. Achei
melhor esclarecer quaisquer mal-entendidos antes disso. Se realmente
tivéssemos feito algo para ofendê-la, seria melhor partirmos agora do que
lutar. Havia coisas que eu queria perguntar a Perugius, mas se isso
significasse lutar para chegar até ele, preferia ir para casa.
— Não, nada muito importante. Existem muitos outros como vocês em todo
o mundo.
— Sério? — O que ela quis dizer com isso? Isso me deixou nervoso. Não
seria como um tipo de game show em que o chão abre e eu acabaria forçado a
ir a outros lugares como antes, certo? Talvez devesse ativar meu olho
demoníaco só por precaução.
— No entanto — continuou Sylvaril —, você se importaria se eu fizesse a
vocês dois uma pergunta?
Isso confirmou que algo também estava acontecendo comigo. Eu não fazia
ideia do que eram essas partículas brancas caindo, mas isso parecia
semelhante a ser retido no scanner de bagagem passando pela segurança do
aeroporto.
— Pois não? — perguntei.
— As palavras “Deus Homem” significam alguma coisa para algum de
vocês?
Forcei minha expressão a permanecer neutra.
Deus Homem. No momento em que ouvi esse nome, as memórias de Orsted
voltaram à tona. Ele tinha me feito uma pergunta semelhante, e quando
respondi com sinceridade, ele quase me matou. Aquilo estava para se repetir?
Eu não queria isso.
Hesitei. Se eu dissesse a ela que sabia quem era, isso poderia levar a
hostilidades. É verdade que eu já havia dançado na palma da mão daquele
idiota antes, e que ele também me ajudou. Eu não tinha intenção de ser um de
seus capangas, mas segui muitos de seus conselhos.
Enquanto eu gaguejava silenciosamente, Sylphie respondeu por nós dois. Ela
balançou a cabeça.
— Não, nunca tinha ouvido esse nome antes.
— Você sente uma raiva profunda em seu coração e um desejo inegável de
matar quando ouve esse nome?
Sylphie silenciosamente balançou a cabeça novamente. Fiz o mesmo, mas a
descrição me tocou. Orsted reagiu dessa forma quando ouviu o nome do Deus
Homem. Se isso os incomodava, talvez significasse que Perugius e Orsted
estavam em conflito um com o outro.
— Nesse caso, não tenho mais nada a dizer. — Sylvaril se virou e voltou a
andar.
Nomear sua fortaleza flutuante de Destruidora do Caos foi a coisa mais geek
que se possa imaginar, mas seu exterior era reconhecidamente
impressionante. Como diabos alguém criou uma estrutura tão massiva?
Parecia impossível, mas havia esculturas incrivelmente detalhadas espalhadas
pelos corredores. Cada peça decorativa falava dos talentos magistrais de seu
criador.
O interior era tão embasbacante quanto eu imaginava. Havia tapetes com
bordados dourados dispostos. As paredes foram pintadas e cerâmicas e
estátuas caras decoravam os corredores. Zanoba ficou bêbado de prazer,
balbuciando. “Esta escultura lembra o estilo de Ganon. Este é o trabalho
dele?” e “Esta é uma estátua de um cavaleiro Elanjin? Que fortuito, ser capaz
de ver essas obras pessoalmente!” Para minha consternação, ele adicionava
comentários efusivos em todas as oportunidades. Sylvaril e Ariel o agradaram
no início, mas rapidamente se cansaram de seu entusiasmo e recorreram
apenas a sorrisos tensos em resposta.
Normalmente, outro membro de nosso grupo se juntava a ele com suas
próprias travessuras desagradáveis. Infelizmente, o pobre Cliff estava tão
visivelmente nervoso que senti pena dele por isso. Seus olhos estavam
arregalados e sua boca firmemente fechada, como se tivesse resolvido não
dizer uma palavra até que alguém se dirigisse a ele. Elinalise o puxava pela
mão, como uma mãe arrastando seu filho nervoso. Bem, honestamente, é
melhor que os dois não estejam causando confusão.
— Esta é a câmara de audiência. — Depois de nos guiar por um longo
corredor, Sylvaril parou na porta. Dragões foram pintados de cada lado. A
porta em si era grossa e adornada com prata.
Levamos cerca de uma hora para chegar a este lugar. Esta fortaleza era
enorme. Quase precisávamos de um Segway para navegar pelo local em
tempo hábil.
— Lorde Perugius é um homem muito tolerante, mas ainda assim aviso que
tomem cuidado com suas maneiras — advertiu Sylvaril, alcançando a
maçaneta da porta.
Você não deveria bater primeiro?
— Perdão, mas ainda estamos com nossas roupas de viagem! Não seria
desrespeitoso comparecer perante sua senhoria assim? — perguntou Ariel em
pânico.
Era bastante comum para nobres e realeza ter pessoas esperando em uma sala
separada antes de recebê-los. As pessoas normalmente usavam essa
oportunidade para se refrescar e vestir roupas formais. Foi assim que me
lembrei de como foi no Reino de Shirone, quando conheci seu rei, embora eu
não tivesse roupa formal na época, então fui com meu robe sujo. Espera,
merda. Eu deveria ter trazido roupas formais?
— Lorde Perugius não é do tipo que se preocupa com a maneira de se vestir.
Na verdade, ele achou a formalidade no Reino Asura sufocante. Acredito que
você acharia a recepção dele mais positiva se entrasse como está agora, em
vez de se trocar — disse Sylvaril.
De alguma forma, não fiquei surpreso ao ouvir isso. Talvez a razão pela qual
ele começou a viver nesta fortaleza flutuante foi porque o colocaram no
espremedor em Asura.
Ainda assim, Ariel franziu os lábios.
— Tudo bem. — Ela finalmente aceitou. — Mas poderíamos primeiro
guardar nossa bagagem e agasalhos em algum lugar, pelo menos?
— Pois bem. Nessa direção, então. — Sylvaril acenou com a cabeça e nos
guiou para uma sala ao lado. Era tão espaçosa quanto um dos quartos da
minha casa, mas apertada em comparação com o quão enorme era o castelo.
Havia uma mesa e um armário, junto com alguns outros móveis. Apesar da
decoração ser mais discreta do que tínhamos visto até o momento, até mesmo
os cabides e outras bugigangas eram de alta qualidade.
— Agradecemos sinceramente a sua compreensão — disse Ariel.
— Lorde Perugius já está esperando, então recomendo que se apresse. —
Sylvaril nos deixou com essas palavras.
Assim que Ariel teve certeza de que Sylvaril tinha ido embora, ela começou a
tirar sua jaqueta. Luke a pegou dela, enquanto Sylphie pescava uma escova
de sua bagagem e começava a alisar rapidamente o cabelo de Ariel. Da
mesma forma, Zanoba agarrou um cabide para colocar sua jaqueta antes de
puxar algo mais formal de sua bolsa para ocupar seu lugar. Elinalise verificou
as roupas e o cabelo de Cliff. Sem nada melhor para fazer, tirei a poeira do
robe e ajustei o colarinho. Eu não tinha nenhuma roupa formal, mas as roupas
não eram realmente o que importava. Era a intenção. Se Sylvaril
recomendasse que encontrássemos Perugius em nossas roupas casuais do dia
a dia, era o que eu faria.
Da mesma forma, Nanahoshi apenas ficou lá e observou tudo. O único
esforço que ela fez a respeito de sua aparência foi alisar a franja. Ei, espera
um minuto, ela está com o uniforme escolar.
— Certo! — Assim que todos terminaram, Sylphie tirou os óculos escuros e
estávamos todos prontos para ir. No espaço de dez minutos, Ariel mudou
drasticamente a sua aparência. Apenas tirar as roupas externas e alisar o
cabelo foi o suficiente para deixá-la com uma aparência radiante. Talvez
parte de ser da realeza seja aprimorar sua habilidade de se enfeitar em poucos
minutos.
— Sinto muito pela demora.
— De forma alguma. Por aqui. — Sylvaril não parecia nem um pouco
perturbada enquanto nos conduzia de volta para a porta com o brasão do
dragão esculpido nela. Perugius esperava lá dentro. O pensamento fez todo o
meu corpo ficar tenso.
— Ah. — Ariel soltou um suspiro profundo quando a porta foi aberta.

Capítulo 2: Uma Audiência com Perugius


O homem no trono exalava uma presença dominante. Ele tinha cabelos
prateados brilhantes e pupilas douradas que eram pequenas, mas penetrantes.
Havia um ar de realeza nele.
Então este é o Rei Dragão Blindado Perugius.
Minhas pernas começaram a tremer no momento em que coloquei os olhos
nele. Eu soube na mesma hora o que estava me assustando. Ele é
assustadoramente semelhante ao homem de cabelo prateado que me matou,
de quem eu nunca esqueceria. É verdade que suas roupas, estilos de cabelo e
características faciais eram todos diferentes, mas havia algo
inconfundivelmente semelhante em Perugius e o Deus Dragão Orsted.
— Dêem um passo à frente — comandou Sylvaril.
Nanahoshi liderou o grupo, com Ariel logo atrás dela. Fui atrás delas, como
se quisesse me esconder.
A câmara era vasta, com um teto alto e pilares que se assemelhavam a
árvores enormes. Um lustre deslumbrante lançava luz em nós. A
extravagância quase desequilibrou meu queixo. As paredes estavam
enfeitadas com estandartes pintados com emblemas complexos. Alguns
reconheci, como o brasão do Reino Asura e do País Sagrado de Millis. Outros
pareciam familiares, mas havia alguns que nunca tinha visto.
Onze homens e mulheres se alinhavam de cada lado do tapete de veludo que
estávamos atravessando. Estavam todos vestidos de branco, com apenas os
modelos de suas roupas sendo ligeiramente diferentes. Mas cada um usava
uma máscara diferente. Algumas foram moldados a partir de animais, outras
cobriam apenas os olhos, lembrando a viseira que o Ciclope dos X-Men
usava. Tinha alguns que usavam um capacete que os fazia parecer uma
espécie de policial robô, e outros tinham o que quase parecia um balde na
cabeça.
Deviam ser os doze familiares de Perugius. Não que a palavra realmente se
encaixasse, já que todos pareciam humanos. Arumanfi, no entanto, tinha sido
páreo para Ghislaine em combate. Isso provavelmente significava que todos
tinham poderes no mesmo nível de um Rei da Espada. Definitivamente, não
queria torná-los inimigos. É melhor tomar muito cuidado com a maneira
como falo, apenas para garantir.
— Por favor, pare aí — disse Sylvaril.
Nanahoshi congelou no lugar.
O trono ficava a duas pequenas escadas e a dez passos de onde estávamos.
Perugius olhou silenciosamente para nós. Mais especificamente, eu tinha
certeza de que ele estava olhando para mim. Nossos olhos pareceram se
encontrar e um calafrio percorreu meu corpo.
Sylvaril passou lentamente por nosso grupo e subiu as escadas, tomando seu
lugar à direita de Perugius. Arumanfi estava à sua esquerda. O resto dos
familiares se alinharam de cada lado de nós.
Perugius manteve seu olhar fixo em nós enquanto dizia lentamente:
— Eu sou o Rei Dragão Blindado, Perugius Dola.
Ele disse Dola! Igual à pirata do ar?! Espera, não. Castelo no Céu não tem
nada a ver com isso.
— Já faz um tempo, Lorde Perugius. Eu vim, como prometi.
Nanahoshi abaixou a cabeça enquanto falava. Era raro ela se curvar assim e
falar tão respeitosamente. Notei que Ariel estava fazendo o mesmo, enquanto
Luke e Sylphie estavam ajoelhados. Hesitei sobre como deveria mostrar
respeito, mas decidi fazer uma reverência normal, ao estilo japonês!
— Então você voltou, Nanahoshi.
Havia algo tão poderoso e intimidante em sua voz que senti um arrepio
percorrer minhas costas. O medo ameaçou me engolir por inteiro. Meu
coração batia tão forte que sofri para respirar. O suor escorreu pela minha
testa. Isso é meio incrível. É como se ele realmente fosse um rei.
— Presumo que isso signifique que você encontrou uma maneira de invocar
coisas de outro mundo?
— Sim — disse Nanahoshi. — Mas não tenho certeza se os resultados são os
que você desejava.
— É a busca pelo conhecimento que dá um propósito a nós, o povo dragão,
não as conquistas em si.
Espera, povo dragão? Então ele é um daqueles dragões?
Eu nunca tinha pensado muito nisso, mas até que fazia sentido. Deus Dragão,
Rei Dragão Blindado. Eles não eram humanos. Eram dragões. Agora fazia
sentido porque Orsted e Perugius se pareciam; eles eram da mesma espécie.
Imperturbável, Nanahoshi continuou sua conversa com Perugius. Ele foi
surpreendentemente amigável com ela. Pelo menos o tempo que passou
confinado neste castelo não o transformou em um velho rabugento.
— Como combinamos, gostaria que você me ensinasse sobre a magia de
invocação neste mundo.
— Que seja — disse ele.
Os dois deviam ter feito um acordo muito antes disso. Nanahoshi estudaria
como invocar objetos de outro mundo e, uma vez que seu trabalho desse
frutos, iria compartilhar o que descobriu com Perugius. Por sua vez, ele iria
ensiná-la sobre os mistérios da magia de invocação deste mundo.
— A propósito, este grupo que trouxe é bastante grande. Quem são essas
pessoas?
— Na verdade, ajudaram na minha pesquisa. Os trouxe para visitá-lo como
uma recompensa por sua ajuda.
— Ah. — Perugius soltou um suspiro entediado.
Chamar isso de recompensa não caiu bem para mim, mas ela não estava
totalmente errada.
— É um prazer conhecê-lo — disse Ariel, dando um passo à frente. — Sou
Ariel Anemoi Asura, a segunda princesa do Reino Asura. Fico honrada em
estar na presença de alguém tão grande quanto você, meu lorde.
— Ariel Anemoi Asura, você disse?
— Sim, espero que possamos nos conhecer melhor em breve.
Ele bufou.
— Eu já sei quem você é. Você perdeu aquela batalha suja e dissimulada pela
coroa que estão travando em Asura, mas se recusa a ceder. Em vez disso, está
arrastando todos ao seu redor para as águas lamacentas do conflito. Garota
tola.
Luke ergueu a cabeça. A raiva turvou sua expressão, mas antes que ele
pudesse fazer qualquer coisa, Ariel levantou a mão para detê-lo. Ela conteve
a voz enquanto respondia:
— Essa é uma maneira dura de ver as coisas, mas você está correto. — Seus
lábios se curvaram em um sorriso suave enquanto ela o olhava fixamente,
sem vacilar.
— Suponho que você veio aqui esperando que eu lhe emprestasse minha
força.
— De forma alguma. Você é um herói de renome mundial. Simplesmente
queria te conhecer.
— Hmph. Posso ver através do seu teatro.
Como sempre, a voz dela exalava carisma, mas seu rosto havia perdido toda a
cor. Um suor frio gotejou em sua pele. Perugius a leu como um livro aberto e
claramente não teve uma boa impressão. Ela estava lutando para lidar com
isso.
Perugius olhou para ela, sorrindo como se estivesse zombando de uma
criança mal-comportada.
— Mas você veio aqui. Isso também deve ser o destino. Te darei uma chance.
Você pode ficar aqui no meu castelo.
— F-Fico… grata por sua generosidade. — Ariel curvou-se uma vez antes de
recuar. Sua expressão se dissolveu em alívio, mas ainda havia ansiedade em
seus olhos.
— Bem, então, e você?
Depois que Ariel deu um passo para trás, o olhar de Perugius mudou para
mim. Era como se ele me considerasse o segundo na classificação após ela.
Então olhei para o resto e percebi que todos os outros estavam sobre um
joelho. Os únicos em pé eram Nanahoshi, Ariel e eu. Era natural que sua
atenção se direcionasse a mim.
Coloquei a mão no peito e baixei a cabeça novamente.
— Prazer em te conhecer. Meu nome é Rudeus Greyrat.
— Rudeus Greyrat? — Ele falou meu nome como se estivesse ruminando. —
Tive muitos problemas para te teletransportar para cá.
Inclinei minha cabeça, confuso.
— Normalmente, ao usar magia de teletransporte, você não pode invocar
alguém com mana superior à sua. — Ele fez uma careta. — Sua mana parece
bastante com a de Laplace. Se você estivesse determinado a resistir, eu
provavelmente não poderia te teletransportar.
— Ah. Bem, peço desculpas pelo incômodo.
Laplace era o Deus Demônio que Perugius selou há 400 anos. Cada vez que
alguém avaliava minha magia, sempre o mencionavam. Acho que nossa
mana devia ser bem parecida.
— Não importa, mas te aviso a não tentar usar essa sua magia repulsiva no
meu castelo.
— Eu nem sonharia com isso — falei.
Era como se ele estivesse tentando me convencer a não tentar qualquer coisa
estúpida. Não, era mais do que isso – era um aviso. Mas por que estava tão
desconfiado de mim? Eu não costumava ficar furioso sem motivo. Nem
quando tenho motivos costumo ficar.
Ah, talvez ele se lembre do que aconteceu pouco antes do Incidente de
Deslocamento. Especificamente, da parte em que Arumanfi tentou me matar.
Talvez pensasse que eu guardava rancor e este era seu pedido para tratar isso
como águas passadas.
— Hm, se isso é sobre o que aconteceu antes do Incidente de Deslocamento,
eu não tenho nada contra você. Então…
— Hm? Do que você está falando? — Perugius inclinou a cabeça.
Arumanfi apareceu ao lado dele em um piscar de olhos, sussurrando os
detalhes ao seu ouvido.
— Ah sim, agora me lembro. Havia um garoto tentando lançar magia no
céu… protegido por uma Rei da Espada. Então aquele garoto era você, hein?
Ele não lembrava. Bem, isso significava que eu tinha me encrencado ainda
mais. Abordar isso do nada foi como anunciar que eu tinha algum rancor.
Pelo menos não parecia que usariam isso contra mim. Afinal, eu não tinha
feito nada de errado… tinha?
— Rudeus Greyrat, pelo que ouvi, também é o nome da pessoa que
conseguiu ferir Orsted.
Se por “ferir” ele quis dizer que dei a Orsted o equivalente a um corte feito
com papel, então sim. Ele e Orsted devem ser conhecidos, para que saiba
tanto. Achei que era esse o caso. Orsted era o único elo comum entre
Nanahoshi e o rei deste castelo flutuante. Parece que eu estava certo.
— Aqueles com talentos como você, às vezes, confiam demais em suas
habilidades. Ser capaz de ferir o Deus Dragão sem dúvidas te deu um ego
extremamente inflado. No entanto, se escolher lutar comigo, a morte é tudo o
que o espera.
Naquele instante, seus familiares começaram a irradiar sede de sangue. Pare,
por favor. Não quero brigar com nenhum de vocês. Só vim aqui para
aprender a respeito da doença de Zenith e compreender um pouco sobre
magia de invocação.
Talvez Perugius tivesse a impressão equivocada de que eu lutei com Orsted
como um igual e foi assim que o feri. Ainda assim, ele tinha doze familiares
presentes. Eu sabia quais eram suas habilidades, mais ou menos, apenas pelo
que tinha lido nos livros. Isso não era o mesmo que vê-los em ação no campo
de batalha. Além disso, os números sempre eram uma grande vantagem em
uma luta. Isso era o que tornava os zumbis tão assustadores: eram fracos por
conta própria, mas em grande número, podiam facilmente dominar os outros.
Se Arumanfi servisse de parâmetro, então os outros também seriam pelo
menos tão capazes quanto Ghislaine. Para não falar das habilidades que o
próprio Perugius possuía, ele sem dúvidas também era forte. Não havia como
sobreviver enfrentando todos eles. Eu também não tinha intenção de fazer
isso.
— Claro, não tenho intenção de tentar me opor a você, Lorde Perugius —
falei.
— Sábia decisão. Gosto de pessoas inteligentes. Os tolos apenas cegam os
outros, mas os inteligentes ajudam uns aos outros a crescer.
Em outras palavras, “pessoas inteligentes” eram aquelas que não se opunham
a ele. Eu não me considerava do tipo inteligente, mas sou esperto o bastante
para não começar uma briga com ele.
— Lorde Perugius. — Nanahoshi interrompeu. — Se me permite, hm… a
enorme reserva de mana dele tem sido de grande ajuda em minha pesquisa.
Ele não é inimigo. Você poderia, por favor, tratá-lo com um pouco mais de
gentileza?
Eu sabia que podia contar com você para intervir! Sim, isso aí. Não tenho
interesse em fazer inimigos. Vamos nos dar bem uns com os outros.
— Hm. — Perugius balançou a cabeça. — Muito bem, então serei “gentil”.
Já que você ajudou Nanahoshi, o que deseja em troca? Dinheiro? Ou é poder
que você busca?
Sua voz soou monótona, como se ele estivesse entediado com a conversa. Ele
concordou em me tratar como hóspede, pelo menos, mas as pessoas
geralmente eram tão hostis com alguém que tinham acabado de conhecer?
Parecia especialmente desagradável, já que eu estava sendo tão respeitoso.
Não importa. Seria melhor fazer a pergunta que estava em minha mente.
— Se eu puder… Tenho uma coisa que gostaria de perguntar.
— O quê?
— É sobre a doença da minha mãe. — Passei a explicar os detalhes da
condição de Zenith.
— Entendo. — Ele acenou com a cabeça depois que eu terminei de falar. —
Ouvi dizer que existem velhos labirintos por aí que levam as pessoas em
cativeiro. Essa pessoa se torna o “coração” do labirinto, permitindo que ele
funcione. A mana que flui através dela, como resultado disso, a transforma.
Todos perdem suas memórias, sem exceção, e em troca, seu corpo é
infundido com um poder misterioso.
— Um poder misterioso? — repeti, confuso.
— Acredito que vocês chamam essas pessoas de Criança Amaldiçoada ou
Criança Abençoada.
Então Zenith tinha uma maldição sobre ela? Uma que não a permitiria rir ou
chorar?
— Mas por que esses labirintos usam pessoas?
— Não sei. Existe uma teoria de que os demônios antigos deram à luz a esses
labirintos e suas criaturas em uma missão para criar um paraíso para eles. O
cristal mágico no centro desses labirintos distribui mana a todos os seus
habitantes. Lá, podem prosperar sem nunca passar fome. Não seria
surpreendente se esses labirintos mais antigos levassem humanos em
cativeiro para aumentar sua eficiência.
Então, os antigos demônios tentaram criar um paraíso onde nunca morreriam
de fome? Pensando bem, havia um monte de monstros no labirinto de
teletransporte. O lugar estava praticamente infestado por aqueles Demônios
Vorazes assustadores. Imaginei o motivo pelo qual poderiam estar infestando
aqueles túneis, mas essa explicação fazia sentido.
Mas, espera aí. Roxy disse que estava ficando sem mana no labirinto. Então,
obviamente, é exagero dizer que estivesse dando mana para aqueles que o
habitavam. A menos que os monstros tenham alguma forma de absorver
mana do espaço vazio ou algo assim, não?
Bem, nada disso realmente importava no momento. Zenith era minha
prioridade.
— Você conhece alguma maneira de curar minha mãe?
— Não sei os detalhes, entretanto… — A voz de Perugius cessou quando ele
lançou um olhar para alguém atrás de mim. — Há uma mulher cujo destino
seguiu um caminho semelhante. Uma que segue viva até hoje. Se é
informação que você busca, ela seria a mais bem informada.
Segui seu olhar para a elfa com cabelos loiros deslumbrantes em nosso grupo.
Elinalise lentamente ergueu a cabeça.
— Elinalise Dragonroad, uma de minhas companheiras salvou você de um
labirinto há cerca de 200 anos.
— Isso mesmo — disse ela.
— Você é a elfa que perdeu suas memórias. Já te encontrei antes. Você com
certeza cresceu. Esqueceu de mim?
— Não, não esqueci. — Ela evitou olhar para mim, uma expressão estranha
em seu rosto.
Mas o que diabos estava acontecendo? Isso significava que Elinalise tinha
passado pela mesma coisa? Alguém a resgatou de um labirinto há 200 anos?
Espera, calma aí. Eu não sabia sobre isso.
— Por que não conversou sobre isso com ele? — perguntou Perugius. — Já
que vocês dois estão juntos aqui, suponho que devem se conhecer.
— Sim, mas…
— Você experimentou isso pessoalmente. Sabe mais sobre o assunto do que
qualquer outra pessoa saberia.
As palavras dele acalmaram o protesto dela, mas ela permaneceu decidida na
próxima vez que falou.
— Nunca recuperei minhas memórias. Não disse nada porque pensei que o
caso de Zenith poderia ser diferente.
Seu rosto se contorceu de dor, apesar de quão bravamente ela falou. Cliff
gentilmente passou o braço em volta do ombro dela. Fiquei confuso demais
para falar. Claro, eu realmente achava que Elinalise tinha agido um pouco
estranho naquela época, mas nunca imaginei que tal coisa também tivesse
acontecido com ela.
— Sinto muito. Senti que precisava te dizer, mas você tem estado tão feliz
que hesitei em tocar no assunto. Além disso, a maldição de Zenith não é um
perigo para a vida dela. Pensei que ela talvez fosse uma Criança Abençoada
ou que, caso se recuperasse, não haveria nenhum efeito adverso.
Ela continuou balbuciando desculpas, e fiz tudo o que pude para reunir forças
para dizer:
— Podemos discutir isso mais tarde.
— Certo.
Eu não tinha intenção de culpá-la, sério. Ela podia não ter compartilhado sua
história, mas deu alguns conselhos sobre a condição de Zenith quando
estávamos no Continente de Begaritt. Na época, achei que ela estava apenas
compartilhando a sabedoria que acumulou ao longo dos anos, mas,
aparentemente, estava falando por experiência própria.
Conhecendo Elinalise, ela provavelmente tinha seus motivos. Talvez tivesse
pensado que Zenith poderia ser diferente, que ela conseguiria recuperar suas
memórias. Ou talvez simplesmente não quisesse torcer a faca depois que eu
já havia perdido Paul. Ela só manteve isso para si mesma por consideração a
mim, eu tinha certeza. Ainda assim, gostaria que ela tivesse falado um pouco
mais sobre a maldição que poderia estar afetando Zenith.
— Mais alguma coisa? — perguntou Perugius, desinteressado.
Balancei minha cabeça.
— Não.
A conversa durou apenas alguns minutos, mas me deixou exausto, como se
estivéssemos conversando por horas. Ainda havia mais o que eu queria
perguntar: sobre magia de invocação, por exemplo, ou a Guerra de Laplace
ou o Incidente de Deslocamento, mas meu cérebro estava tão cheio. Não
poderia inserir mais nenhuma informação, mesmo se quisesse.
— E quanto a vocês? Existe alguma coisa que desejam?
Zanoba se levantou.
— Você me permitiria fazer uma pergunta?
— E você é?
— Peço desculpas por não me apresentar antes. Sou Zanoba Shirone, terceiro
príncipe do Reino de Shirone.
— Um príncipe, hein? E você também deseja meu apoio para que possa
assumir o trono de seu país?
— Não, tal coisa não tem valor algum para mim — respondeu Zanoba, sem
pestanejar. Ele tirou um caderninho do bolso. Havia algo desenhado na capa,
algo que eu reconheci.
Espera um minuto. É o que vimos no meu porão, nas plantas do fabricante de
bonecas.
— Este brasão se parece tanto com o seu quanto com o de Lorde Maxwell.
Vejo que há outros semelhantes naquela parede ali. Sabe a quem pertence
este?
Segui seu olhar para a parede coberta por vários brasões. Vários deles
pareciam familiares. Um deles era o mesmo que eu tinha visto esculpido no
monumento aos Sete Grandes Poderes. Outro pertencia ao Deus Dragão
Orsted. Outro foi esculpido em um instrumento mágico que ajudava a manter
as ruínas de teletransporte escondidas. A julgar pelo encantamento que
tivemos que usar para isso, o brasão provavelmente pertencia ao Imperador
Dragão Sagrado, Shirad. O que estava ao lado era o mesmo brasão desenhado
no caderno de Zanoba.
— Isso eu sei. Isso pertence ao Rei Dragão Maníaco, Caos.
— Ooh!
Aha, então foi isso que Zanoba viu no portão. Ele devia ter visto o brasão de
Maxwell ali e percebeu sua semelhança com o das plantas. Naturalmente,
presumiu que os dois deviam estar de alguma forma ligados. Incrível! Fiquei
impressionado!
Zanoba deu um passo à frente, incapaz de conter sua euforia com a
descoberta.
— P-Posso perguntar onde está este Deus Dragão Maníaco, Caos?
Perugius balançou a cabeça.
— Ele está morto. Faleceu há algumas décadas, e não sei se ele tem um
sucessor.
O caderno escorregou entre os dedos de Zanoba, caindo no chão. Seus
ombros desabaram.
— E-Então é isso… — Em um instante, seu rosto parecia ter envelhecido
cinco anos. O que é bem impressionante, porque Zanoba já parecia muito
mais velho do que era.
Perugius deslizou para a frente em seu assento.
— A propósito, onde você encontrou isso?
Zanoba continuou a parecer abatido enquanto respondia:
— Oh, encontrei isto na casa de meu mestre, em uma propriedade decadente
na Cidade Mágica de Sharia. Foi desenhado em alguns projetos de um
boneco automatizado.
— Hm. Um boneco automatizado, você diz. — Perugius acenou com a
cabeça para si mesmo. — E como era o boneco? Incrível?
— Oh, sim, mais do que as palavras podem expressar! Os detalhes artesanais
eram completamente encantadores. Só de olhar já poderia dizer quão grande
era o amor do criador por bonecos! Eu compartilho o mesmo carinho, então
pude sentir a profundidade de sua adoração!
Um sorriso se estendeu pelo rosto de Perugius, chegando até os olhos.
— Parece que você tem uma apreciação pelas artes. Isso me agrada. Tenho
várias obras de Caos em meu tesouro. Depois vou mostrá-las a você.
Sua voz foi tão gentil, eu não podia acreditar que este era o mesmo homem
que tinha falado tão rudemente comigo apenas alguns minutos antes. Por que
Zanoba estava recebendo tratamento especial? Mas não era como se isso
realmente me importasse.
— Você me honra! — O rosto de Zanoba iluminou-se quando ele caiu no
chão, prostrando-se. Obviamente, estava tão feliz quanto Perugius. Melhor
ainda, ganhou o favor do rei dragão. Eu o invejei por isso. Eu queria o
mesmo.
— Mais alguma coisa? — perguntou Perugius.
Sylphie ergueu a mão.
— Sim, tenho uma… quero dizer, se você não se importar, há algo que eu
gostaria de perguntar. — Ela curvou-se desajeitadamente.
— E você é?
— Sylphie Greyrat, esposa de Rudeus Greyrat e guarda-costas da Princesa
Ariel.
Sylvaril se inclinou, sussurrando algo no ouvido de Perugius. O homem
grunhiu, seu humor azedou.
— Então foram vocês dois… — murmurou ele.
Sylphie e eu? Nós dois tínhamos feito algo para aborrecê-lo? Sylphie tinha
uma grande reserva de mana, mas não era tão vasta quanto a minha. Será que
ele se incomodava por no passado ela ter cabelos verdes?
— Antes de responder à sua pergunta, quero que responda uma coisa para
mim. Vocês dois têm um filho?
Sua pergunta apareceu tão do nada que Sylphie hesitou por um momento,
confusa. Ela balançou a cabeça lentamente.
— Huh? Não, mas temos uma filha.
— Pois bem. Se algum dia tiverem um filho, tragam-no aqui. Eu o nomearei
para você.
— Uh, hm, tudo bem…
Ele deu um sorriso estranho.
Bem, isso é um pouco desconfortável. Ele estava insinuando que haveria algo
errado com nosso filho se tivéssemos um menino? Ou estava tentando dar ao
nosso filho um nome super peculiar? Afinal, este era o homem que batizou
sua fortaleza de Destruidora do Caos.
— Pois bem. — Perugius pigarreou. — Qual é a pergunta?
— Eu gostaria de perguntar sobre o Incidente de Deslocamento. Você sabe
quem o causou?
Recentemente eu não tinha pensado muito nisso. O Incidente de
Deslocamento foi o que teletransportou Nanahoshi do Japão para este mundo.
A única coisa que fazia algum sentido era que foi uma magia poderosa o
suficiente para arrancar uma pessoa de sua própria dimensão. No meu caso,
por acaso reencarnei, mas talvez as leis da física ou da magia fossem
diferentes quando alguém chegava com seu corpo original. Claro, o oposto
poderia ser verdade. Talvez alguém estivesse tentando fazer outra coisa, e o
efeito de sua magia acabou invocando Nanahoshi. O que significava que a
coisa toda foi apenas um acidente.
— Não tenho certeza de nada. Na época, suspeitei que fosse obra de alguém
conectado a Laplace, mas… — Ele olhou para Nanahoshi antes de continuar.
— Nem mesmo eu sou capaz de convocar alguém como ela e, se não sou
capaz, ninguém neste mundo é.
— Ou seja?
— Essa calamidade não foi causada pelo homem. Foi um acidente.
Imaginei que fosse o caso. Era possível que alguém mais capaz de invocar
magia do que Perugius fosse o responsável, como Orsted. Embora fosse rude
suspeitar de um culpado por trás das coisas quando Perugius já afirmou que
não há um. Vou apenas manter meus pensamentos para mim mesmo. Não
estou com vontade de deixar esse cara ainda mais irritado.
— Ah, certo. Obrigada. — Enquanto eu considerava diferentes possibilidades
em minha cabeça, Sylphie baixou os olhos e encerrou a conversa.
— Alguém mais? — perguntou Perugius novamente. Desta vez, ninguém
respondeu. Elinalise manteve os olhos grudados no chão e Cliff estava
nervoso demais para se mexer. Quanto aos outros, Ariel já havia terminado e
Luke ainda estava ajoelhado em silêncio.
— Nesse caso, aproveitem sua estadia aqui em minha bela fortaleza. — Ele
deu um aceno exagerado e nossa audiência acabou.
Sylvaril nos guiou até a área de hóspedes, onde quase vinte quartos idênticos
estavam vagos. Dentro havia móveis de madeira escura, colchões de penas e
enormes espelhos cristalinos. Cada quarto tinha um recipiente cheio com o
que supus ser álcool. A única coisa que diferia entre eles eram as pinturas em
cada um. As acomodações eram muito mais luxuosas do que um típico hotel
de negócios. Para fazer uma comparação com minha vida anterior, era como
uma suíte real no Empire Hotel. Não que eu tivesse alguma experiência em
ficar em uma suíte ou no Empire Hotel, sabe.
— Há apenas doze de vocês gerenciando um castelo tão vasto? — Ariel
deixou escapar.
Ela tinha um ponto. Quase não havia uma partícula de poeira nos cantos dos
cômodos. Parecia quase como se ninguém nunca tivesse estado neles. Eu não
chamaria isso de assustador, mas passava um ar de solidão, como comprar
um controle extra para o seu console, embora não tivesse amigos com quem
jogar. Ainda que Perugius tivesse insinuado que ocasionalmente recebiam
alguns visitantes.
Depois de escolhermos nossos quartos, nos separamos para fazer nossas
próprias coisas. Zanoba e Ariel partiram para ver um pouco mais do castelo.
Luke e Sylphie acompanharam a princesa, é claro.
Quanto a mim, fiquei no meu quarto. Eu estava exausto. Nossa audiência
durou pouco mais de uma hora, mas foi como se eu tivesse enfiado um dia
inteiro de discussão na minha cabeça. Parte de mim queria ver mais da
fortaleza, mas, por ora, iria descansar.
Desabei na cama.
— Ahh, tão macia.
Tão macia, na verdade, que senti que iria afundar até o chão. Me pergunto se
poderíamos levar uma dessas camas conosco para casa…
Não. Deixe as camas de lado por enquanto. Fiquei surpreso com os brasões
que vi. Um monte de nomes impressionantes que não reconheci surgiram em
nossas conversas, como o Rei Dragão Abissal e o Rei Dragão Maníaco. Se
bem me lembro, eles faziam parte dos Cinco Generais Dragões. Na era
mítica, enfrentaram o Deus Dragão em uma batalha que ceifou todas as suas
vidas. Mas, não eram as mesmas pessoas dos mitos? Os que estavam na
história provavelmente eram de muitas gerações precedentes das pessoas que
surgiram em nossa conversa.
Desses cinco, três foram mencionados: o Rei Dragão Blindado Perugius, o
Rei Dragão Abissal Maxwell e o Rei Dragão Maníaco Caos. Havia também
aquele cujo nome ouvi no encantamento para as ruínas de teletransporte,
Dragão Imperador Sagrado Shirad. Isso somava quatro deles. Era para haver
um Imperador Dragão e quatro Reis Dragões, o que significava que havia
mais um Rei Dragão sobrando. Pensando bem nisso, só vi quatro brasões
semelhantes ao do Deus Dragão naquela parede. Talvez o último de seu
grupo estivesse em maus lençóis com Perugius?
Em todo caso, fiquei mais surpreso com a conexão com o boneco. Eu sabia
que já tinha visto o brasão daquelas plantas em algum lugar antes, mas pensar
que pertencia a um dos reis dragões… Eu não sabia nada sobre a linguagem
daqueles memorandos, mas talvez pudéssemos pedir a Perugius para decifrá-
los para nós. Isso nos colocaria muito à frente de onde estávamos no
momento. Então talvez devesse pedir a ele.
Ou não. Ele não parecia gostar muito de mim. Na verdade, parecia
desconfiado de mim. Vou pedir a Zanoba para importuná-lo sobre isso. Os
dois pareciam compartilhar do mesmo apreço pela arte.
Espera. Se aquele brasão pertencesse ao Rei Dragão Maníaco, isso
significava que ele já morou na minha casa. Um Rei Dragão, de todas as
pessoas, se enfiou no meu porão para brincar com bonecos. Devia ter algo de
errado com a cabeça dele. A maneira como aquele boneco operava era bem
maluca. Bem, dado que Caos e Zanoba pareciam estar na mesma frequência,
o título “maníaco” fazia muito sentido. Ele devia amar bonecos.
Tirando isso, eu esperava aprender magia de invocação com Perugius, mas
nesse ritmo, não parecia muito provável. Ele foi tão hostil comigo. Se eu
pedisse para me ensinar, ele poderia dizer: “O quê? Planejando convocar
Laplace com aquela sua mana toda?”
Hmm. Imagino se algo assim é possível.
Perugius disse que era impossível convocar alguém cuja mana fosse maior
que a sua. Já que a minha se equiparava à de Laplace, significava que eu
realmente poderia invocá-lo? Poderia construir um altar sinistro no subsolo e
trazer o Deus Demônio de volta à vida? Eu não faria isso, é claro, mas
poderia entender sua animosidade em relação a mim caso isso fosse verdade.
— Bem, poderia ter sido pior. — Embora Perugius me odiasse, não me
expulsou de seu castelo ou tentou começar uma briga comigo. No momento,
eu poderia respirar com facilidade. Não foi tudo perfeito, mas correu tudo
bem.
E assim meu primeiro dia na fortaleza flutuante terminou com uma
contemplação silenciosa.

Capítulo 3: O Passado e uma Maldição,


Invocação e Ciúme
Duzentos anos atrás, uma garota foi resgatada de um labirinto. Ela havia
perdido todas as suas memórias e emoções. Não tinha ideia de quem era,
apenas que tinha que ser uma elfa, pois se parecia com uma. Então, foi
colocada em um assentamento élfico e passou a ter uma vida normal lá. As
pessoas da aldeia a receberam bem, embora fosse uma estranha para eles. As
memórias da garota jamais retornaram, mas suas emoções voltaram depois de
alguns anos. Ela era alegre e sociável e, em pouco tempo, se apaixonou por
um dos homens da aldeia.
Só depois que os dois tornaram-se íntimos é que passou a ter um problema:
sua libido disparou de repente. Ela queria fazer sexo todas as noites.
Elfos não estavam inclinados à intimidade frequente, pelo menos não
comparados a humanos e goblins. Seu parceiro lutava para acompanhar suas
necessidades, mas os dois ainda viviam em harmonia. No entanto, algo
estranho aconteceu com seu corpo nessa época. Depois de começarem a fazer
sexo, passou a dar à luz a pequenos cristais redondos de magia todos os
meses. Dentro havia um acúmulo incrivelmente densa de mana. Quando
contou ao marido, ele ficou um tanto nervoso com o fenômeno anormal, mas
garantiu que não era necessário preocupação.
Pouco tempo depois, o marido começou a vender esses cristais em uma
cidade humana. Embora parecesse que seus olhos estavam cegos pela
ganância, dificilmente poderia culpá-lo por cobiçar o dinheiro que esses
cristais lhe renderam. Nunca foi rico, e sua esposa não trabalhava. Pelo
menos, o homem nunca a tratou como se fosse sua árvore de dinheiro
pessoal.
A tragédia aconteceu cinco anos depois. O marido morreu… ou melhor
dizendo, foi assassinado. Com sua carga de cristais extremamente caros,
chamou a atenção de alguns bandidos, os quais atacaram, tirando sua vida e
riqueza.
Com ele morto, a mulher tornou-se uma viúva. Embora tenha caído em uma
depressão profunda, ainda resistiu. Infelizmente, havia um problema com seu
corpo… sua libido insaciável acumulou-se mais uma vez. Dez dias depois
que seu marido faleceu, o desejo bateu rápido e forte de dentro dela. Não
conseguiu reprimir e atacou um dos homens da aldeia. Sabia que era errado,
mas o fez da mesma maneira. Pelo menos o homem em questão não estava
relutante, e nada aconteceu depois que cometeram o ato uma vez.
Mais dez dias se passaram e ela foi atrás de um homem diferente. Em
seguida, mais dez dias e fez isso de novo. Seu apetite era tão indomável que
logo se espalhou a notícia de sua promiscuidade selvagem. Todas as
mulheres da aldeia a criticaram e a expulsaram. Depois disso, aquela mulher
tornou-se prostituta, depois escrava e, por fim, aventureira. Diz-se que até
hoje continua vagando pelo mundo.
— E é basicamente assim que minha vida tem sido — disse Elinalise. Ela
contou sua história para mim na primeira hora desta manhã.
— Não precisava me contar tudo.
Honestamente, ouvir tudo isso me deixou atordoado. Eu só precisava saber da
maldição, mas Elinalise não deixou um detalhe sequer de fora.
— Esta é minha maneira de compensar por não ter contado nada disso antes.
— Então, uh, Cliff já sabe de tudo isso?
— É claro. Contei antes do nosso casamento.
— Ah, beleza. E quanto a Sylphie?
— Ela não sabe. Duvido que queira saber que sua avó já vendeu seu corpo
por dinheiro.
Dei de ombros.
— Não acho que ela se importaria com esse tipo de coisa.
— Só espero que não a veja de forma diferente se souber dos rumores sobre
mim por aí. Ela pode ter meu sangue correndo em suas veias, mas é apenas
uma garota normal.
— Eu sei. Nunca faria isso com ela. — Além disso, Sylphie não é
responsável por coisas que Elinalise pode ter feito no passado.
Dito isso, depois de ouvir tudo pelo que ela havia passado, pude entender
porque manteve silêncio sobre sua história e sua relação com Sylphie.
Ninguém quer que as pessoas as olhem de maneira diferente. Enfim, passado
é passado. Havia coisas no meu passado que eu também não queria revelar.
Eu não posso fingir que as coisas que fiz na minha vida anterior não existiam,
mas essa história ficaria na minha cabeça, e apenas na minha.
— Então, que maldição é essa? — perguntei.
— A mana em meu corpo se acumula e condensa em um cristal mágico ao
receber a semente masculina. Se eu não receber a semente de um homem, ela
continuará aumentando até me matar.
— Mas você estava bem nos primeiros anos, certo?
— Para ser honesta, também não entendo muito bem. Na época, não estava
tendo meu período, então talvez isso tivesse algo a ver.
— Seu período… — repeti suas palavras antes de parar. Se tinha algo a ver
com seu ciclo menstrual, então talvez fossem seus óvulos que estavam se
transformando nestes cristais mágicos. Neste caso, a maldição de Zenith
provavelmente era algo bem diferente. Presumi que ela ainda tinha aquelas
visitas mensais. Afinal, já havia dado à luz a dois filhos e, embora Lilia não
tenha me dado detalhes, ela tinha apenas cerca de 35 anos. — Mas suas
memórias nunca voltaram?
Ela balançou a cabeça.
— Não. Não lembro de nada.
Fiquei em silêncio. Então ainda não lembrava de seu passado, o que
significava que não tinha ideia de quem era ao certo. Havia uma pequena
possibilidade de que pudesse se lembrar de repente algum dia, mas se não
lembrou em 200 anos, parecia improvável que o faria agora.
— A condição de Zenith é diferente da minha — disse Elinalise. — A julgar
pela forma como age, parece que sabe quem são seus filhos. Pode ser que
recupere todas as suas memórias.
— Espero que esteja certa. — No entanto, talvez fosse melhor não ser tão
positivo assim. — E quanto à maldição dela? — perguntei.
— No momento, ela não está mostrando nenhum sinal de ter uma igual à
minha.
— Ah. Acho que não.
— É mais provável que seja uma diferente.
— Sério?
Ela assentiu.
— Acho que há uma possibilidade distinta. Tem alguma ideia de qual poderia
ser a maldição dela?
Uma ideia, hein… Hm. Algo vago, talvez, mas nada conclusivo. Após uma
breve pausa, admiti:
— Não, nada.
— Tudo bem, enfim, melhor continuar de olho nela.
De qualquer forma, não era algo letal, mas poderia haver um gatilho por aí
que faria com que se manifestasse.
— Acho que isso é tudo que podemos fazer agora, hein? Ficar de olho nela?
— Sim.
Eu não teria tantas esperanças, mas ainda não podia deixar de rezar para que
nada de ruim acontecesse.
— Isso é tudo o que sei — disse Elinalise. — Sinto muito. Havia muito que
eu não queria dizer, e demorei para contar a verdade. — Ela abaixou a
cabeça.
Eu entendia não querer compartilhar sobre seu passado. Na verdade, me senti
culpado por não compartilhar os eventos da minha vida anterior com Sylphie
e Roxy. Foi ruim Elinalise não ter me falado antes, mas eu não seria um
hipócrita e ficaria irritado por causa disso.
— Não, eu agradeço por você ter falado sobre isso, embora não se sentisse
confortável. Obrigado. — Estendi minha mão e ela a balançou, apertando
com força.
— Bem, então vou voltar para o Cliff.
— Vou descansar um pouco mais, depois vou dar uma olhada na Nanahoshi
— falei.
— Muito bem. Tenha um bom dia. — Elinalise se virou e saiu do aposento.
No final, não aprendi nada novo sobre a condição de Zenith. Havia uma
grande probabilidade de que tivesse uma maldição, mas ainda não havia
causado nenhum problema. Tudo que podia fazer era me preparar para agir
no caso de algo acabar acontecendo.
Depois do café da manhã, nos reunimos em uma sala com uma mesa
comprida e nos sentamos. Nanahoshi e Cliff sentaram-se ao meu lado e
Zanoba do outro. Diretamente à minha frente estava Sylvaril do Vazio, a
mulher com asas negras que servia a Perugius.
— Tudo bem, agora vamos começar nossa aula.
O acordo era Perugius ensinar magia de invocação a Nanahoshi, mas
Nanahoshi foi gentil o suficiente para pedir que fôssemos incluídos.
Estávamos começando do básico, então não era Perugius quem estava nos
ensinando. Ele apareceria quando fosse a hora de colocar em prática o que
tínhamos aprendido. Provavelmente estava tomando chá com Ariel neste
momento.
Uh, no entanto, eu talvez devesse estar me concentrando na aula em vez de
me preocupar sobre onde Perugius está.
— Primeiro — disse Sylvaril —, vamos nos certificar de que estamos todos
em sincronia. O que é magia de invocação? Você aí…
— Cliff. Cliff Grimor.
— Cliff, por favor, responda. O que é magia de invocação?
Havia dois tipos de magia de invocação. A primeira era a concessão, que era
usada principalmente para criar implementos mágicos, em outras palavras, o
desenho de círculos de invocação. Cliff especializou-se nisso, e era uma arte
que estava em crescimento na Cidade Mágica de Sharia.
O segundo tipo era a invocação, que permitia invocar qualquer coisa que
exista, desde animais simples como cães e gatos até feras altamente
inteligentes. Essa lista incluía monstros dóceis que eram fáceis para os
humanos domarem, bem como aqueles com baixo intelecto, tipo goblins e
entes. Também é possível invocar espíritos que existiam em algum lugar do
mundo.
Não havia professores em Sharia que pudessem realizar magia de invocação.
Até mesmo a guilda tinha poucas pessoas que podiam realizá-la, e eram todos
amadores. Talvez algum outro país estivesse monopolizando aquela escola de
magia, ou talvez simplesmente ninguém ao redor de Sharia pudesse ensiná-la.
De qualquer forma, essa era a extensão do meu conhecimento. E Cliff devia
saber tanto quanto eu, pois deu a mesma resposta.
— Errado — disse Sylvaril com um aceno de cabeça. — É verdade que
invocar requer um círculo mágico por natureza, mas o desenho de um círculo
não faz parte desta escola de magia.
— O que significa que apenas o último se qualifica como magia de
invocação, certo? — perguntei. A atmosfera local me lembrou da época que
Roxy costumava me dar aulas quando criança.
— Sim, mas Cliff não estava errado quando disse que havia dois tipos de
magia de invocação.
— Em outras palavras, concessão não é um desses tipos.
— De fato — falou ela com tranquilidade, mas como não havia quadro-negro
ou livro didático, tive que fazer anotações usando a pilha de papéis e a caneta
de pena que trouxe. Isso fez com que parecesse uma aula de verdade. —
Existem dois tipos de magia de invocação: Invocação de Espírito Maligno e
Invocação de Espírito.
Anotei os dois nomes. Pelo que me lembrei, espíritos eram seres que existiam
em nosso mundo, mas raramente se mostravam. Os únicos tipos que já vi
antes eram os Espíritos Luz de Lâmpada que invoquei com aqueles
pergaminhos.
— Qual é a diferença entre os dois? — perguntei.
— Invocação de Espírito Maligno, como vocês humanos bem sabem, permite
que invoquem uma besta que vive em algum lugar na selva. Por um pacto
antigo, qualquer coisa considerada uma pessoa não pode ser invocada. No
entanto, tudo que existe no mundo pode ser.
Portanto, todos os tipos de criaturas podem ser invocados com essa magia,
até mesmo dragões.
— O que é este “pacto antigo”?
— Quando a magia de invocação nasceu neste mundo, nossos ancestrais
fizeram um pacto. A magia não pode quebrar essas regras antigas.
Então pessoas não podiam ser invocadas? Isso era verdade mesmo? O que
havia de tão diferente entre teletransportar uma pessoa e invocá-la? Não que
isso importasse. O importante era aprender o básico. Eu poderia fazer
perguntas mais aprofundadas depois.
— Foi mal — falei. — Por favor, continue.
— Pois bem. Na Invocação de Espírito Maligno, não se pode invocar uma
criatura com mais mana do que o invocador. Mesmo se o fizer, há uma
grande probabilidade de que não consigam controlar a criatura que
invocaram.
Pensando bem, li sobre isso em um livro há muito tempo. Acho que o nome
era Magia de Invocação de Sig. Continha a história de alguém que invocou
uma criatura mais forte do que ele, e que o comeu vivo. Considerando o quão
vasta era minha própria reserva de mana, eu provavelmente não teria
problemas, não importa o que invocasse, mas não tinha ideia se aquilo me
obedeceria ou não. Não que eu tivesse planos de invocar algo poderoso.
Além disso, já tínhamos três animais de estimação em casa. Não havia
necessidade de invocar nada.
— Oh, sim, criaturas vivas são a única coisa que dá para invocar? —
questionei.
— Sim. Não é possível invocar os mortos.
— Não, eu quis dizer objetos. Tipo… posso invocar algumas roupas que
estão na minha casa agora?
— Receio que isto seja impossível.
Então não teria como invocar a calcinha da Roxy. Espera um segundo aí.
Nanahoshi conseguiu invocar uma garrafa de plástico. Com certeza não era
impossível. Talvez fosse melhor dizer que ninguém neste mundo havia
descoberto como fazer isso. Isso explicaria o porquê do Perugius estar tão
interessado na pesquisa de Nanahoshi, pois significava que tal magia era
possível. Agora entendi o motivo dele ter concordado.
— Posso continuar? — perguntou Sylvaril, interrompendo meus
pensamentos.
— Ah, sim. Minhas desculpas por interromper tanto.
— Não se preocupe. Suas perguntas indicam o quão apaixonado você é pelo
aprendizado. — Ela assentiu lentamente antes de continuar. — A Invocação
de Espíritos, como o nome indica, envolve a criação de um espírito.
— Criação? Como se de fato fosse criá-los?
— Correto. Você gasta mana no processo e cria um espírito com certas
habilidades. É assim que funciona a Invocação de Espírito.
Em outras palavras, ao usar aqueles pergaminhos que Nanahoshi tinha
fornecido, eu não estava invocando Espíritos Luz de Lâmpada de outro lugar,
mas sim os conjurando com minha própria mana.
— Espíritos possuem baixo nível de intelecto e obedecerão às ordens do
invocador até que esgotem toda sua mana — explicou Sylvaril.
— E isso é absoluto?
Houve uma pausa antes de ela responder:
— Não. Se você construir especificamente o círculo de modo que não sigam
suas ordens, então um espírito com livre arbítrio será criado em seu lugar.
Mas se não fizesse isso, seguiriam todos os comandos? Isso era quase como
programar. Espere, por falar em programação, senti que tinha ouvido falar de
um conceito semelhante…
— Isso me parece estranho — disse Cliff, a voz cheia de insatisfação. —
Aqueles de vocês que servem a Perugius eram espíritos invocados há 400
anos, não? Você é muito inteligente se for esse o caso, e é estranho que não
tenha desaparecido nos séculos que se passaram.
Exatamente o que eu esperaria de você, Cliff. Ele era muito astuto para deixar
essa inconsistência passar.
Sylvaril assentiu alegremente.
— Fico feliz por ter tocado no assunto. O predecessor de Lorde Perugius, o
primeiro Rei Dragão Blindado, passou adiante seu conhecimento de como
criar onze espíritos antigos, altamente inteligentes e poderosos.
Normalmente, os espíritos desse calibre não durariam mais do que um único
dia, mas Lorde Perugius desenvolveu uma maneira de mantê-los por séculos.
Ela com certeza estava se gabando. Mas pude entender o motivo. Foi um
feito e tanto manter por toda a eternidade o que normalmente duraria apenas
um dia. Em outras palavras, movimento perpétuo, um conceito tão incrível
em meu mundo anterior quanto era neste.
Hm, espera um pouco. Ela disse onze espíritos antigos. Essa conta não bate.
— Você não quer dizer doze? — perguntei.
— Não, onze. Não sou um dos espíritos do Lorde Perugius.
Pisquei para ela.
— Não é?
— Não mesmo. Lorde Perugius me salvou durante a Guerra de Laplace, e eu
o sirvo desde então. Sou apenas alguém do povo do céu.
Povo do céu? Bem, isso explicaria as asas. Se os outros são seus servos,
talvez ela fosse mais como uma confidente. Ou amante? Não, isso não
poderia ser possível. O romance não era o único vínculo que existia no
mundo.
— Então, o que iremos aprender? — perguntei.
— Vamos nos concentrar principalmente na Invocação de Espírito Maligno
— disse ela. — Porém, Lorde Perugius considera a invocação de coisas de
outro mundo parecida com Invocação de Espírito, por isso tenho certeza de
que tocaremos nesse assunto.
Quer dizer que iríamos aprender ambas? Eu estava ansioso por isso. Poderia
ser divertido invocar monstros de todo o mundo e abrir um zoológico.
— Eu gostaria de aprender mais sobre Invocação de Espírito, se possível —
disse Zanoba.
Cliff concordou com a cabeça.
— Também estou interessado no assunto.
Quando percebi o quanto os dois estavam investindo nisso, algo em meu
cérebro finalmente deu um clique. Programação. Isso mesmo. A maneira
como o núcleo daquele boneco automatizado funcionava me lembrou de
programação.
Espera. Se pudéssemos aprender a Invocação de Espírito, talvez pudéssemos
completar aquele boneco. Claro, não pensei que seria fácil ter sucesso onde o
Rei Dragão Maníaco, Caos, havia falhado, mas eu tinha certeza de que
mesmo assim essa magia seria útil. Nunca se sabe quando tal conhecimento
pode ser vantajoso.
— Tudo bem, agora vamos começar aprendendo os fundamentos da
invocação. Primeiro, por favor, vejam este círculo mágico.
Então Sylvaril começou a aula. Infelizmente, eu estava atrás dos outros três
quando se tratava de saber como desenhar um círculo mágico, quase como
um desistente que de repente decidiu se juntar a seus colegas. Talvez devesse
ter aprendido o básico em vez de deixar para todos os outros.
Entretanto, não era tarde demais para começar. Nunca se era velho demais
para aprender algo novo, e eu tinha apenas 18 anos. Veja só Zanoba. Ele
estava na casa dos vinte anos quando entrou na academia e percorreu um
longo caminho refinando sua habilidade de fazer bonecos. Eu deveria seguir
seu exemplo. Mesmo que estivesse começando em péssimas condições.
Depois que a aula acabasse, eu precisava fazer algumas revisões e praticar.
— A propósito — disse Sylvaril —, está quase na hora do almoço. Se houver
algo específico que queiram comer, por favor, me avisem.
E assim terminou a nossa aula.
Na noite anterior, jantamos a antiga culinária Asurana, que incluía
almôndegas e batatas cozidas com sopa de ervas. Havia pão feito de trigo e
outros grãos, entre alguns outros pratos. Não era muito diferente do que
comíamos em Sharia. Considerando o quão grande a fortaleza parecia vista
de fora, foi uma refeição deveras deliciosa, ainda que parecesse simples. Mas
do ponto de vista de Perugius, não era uma culinária antiga. Ele considerava
isso a culinária Asurana tradicional, a comida padrão que as pessoas faziam
há 400 anos. Havia um ditado que li em algum lugar: a tecnologia avança em
tempos de guerra, enquanto a culinária avança em tempos de paz. Os pratos
de Asura mudaram muito nos últimos 400 anos.
O jantar foi servido em cada um dos nossos quartos, mas comi o meu com
Sylphie. Por mais luxuosos que fossem os quartos, jantar sozinho era muito
solitário. Era estranho como nunca me senti assim em minha vida anterior.
Realmente mudei desde então.
O café da manhã, por outro lado, tive que comer sozinho. É a vida.
Já era hora do almoço, e Sylvaril se ofereceu para nos fazer o que
quiséssemos. Considerando que Arumanfi estava a bordo e podia fazer
tarefas na velocidade da luz, podiam buscar ingredientes em qualquer país do
mundo. Na verdade, poderiam simplesmente fazer o pedido em qualquer
restaurante e fazer com que ele trouxesse a comida de volta. Sua velocidade
era muito útil para entregas a domicílio.
— Posso pedir algo de Millis? — perguntou Cliff.
— Hm, então eu gostaria de algo de Shirone — disse Zanoba.
Ambos desejavam a comida de seus respectivos países de origem. Não
importa o quanto agissem como se estivessem confortáveis, sentiam falta de
casa, com certeza.
— Pois bem. Irei preparar para vocês. — A voz de Sylvaril era gentil
enquanto respondia aos seus pedidos, sua máscara escondia qualquer emoção
em seu rosto.
— Pode ser qualquer coisa para mim — disse Nanahoshi.
Talvez ela não tivesse percebido, mas esta era a nossa chance. Eu não era o
tipo de homem que deixava uma boa oportunidade passar. Como o
carismático Char Aznable costumava dizer: faça o melhor uso de todas as
chances que tiver!
— Estou pensando em arroz branco temperado com vinagre e peixe fresco e
cru picadinho por cima — falei. — Conhece esse prato?
— O quê?! Algo assim existe? — O rosto de Nanahoshi se iluminou.
Infelizmente, Sylvaril balançou a cabeça.
— Não, nunca ouvi sobre tal coisa. Mas temos arroz aqui.
Os ombros de Nanahoshi despencaram.
Entretanto, fiquei super feliz em saber disso. Enquanto tivéssemos arroz,
poderíamos facilmente encontrar outra coisa para acompanhar.
— Que tal água fria com ovo cru e farinha de trigo, misturada para formar
uma massa fina na qual você pode mergulhar camarão, lula ou vegetais e
fritar em óleo em alta temperatura?
— Também nunca ouvi falar disso. Mas temos farinha branca e ovos.
Ooh, então eles têm ovos! Isso quer dizer que sempre posso pedir ovo cru
sobre o arroz quente!
Como era de se esperar, sushi e tempura estavam fora de alcance. Isso
provavelmente significava que eu também estava sem sorte com o sukiyaki,
já que envolvia molho de soja fervente, açúcar e mirin em uma panela. O que
quer que comêssemos não seria tão delicioso quanto o que se poderia comer
em um restaurante no Japão, mas pelo menos com esses ingredientes
poderíamos fazer algo. O que realmente precisávamos era de molho de soja.
Esse era o verdadeiro sabor japonês que estávamos desejando.
— Que tal um molho de soja fermentada? Tanto o molho de soja quanto a
pasta de soja serviriam.
— Não temos nada parecido aqui em nossa fortaleza.
Como eu suspeitava, tal coisa não existe aqui.
— Soube, no entanto, que o Reino Biheiril usa um molho semelhante ao que
você descreveu. Poderíamos mandar Arumanfi ir procurá-lo.
Fiquei animado.
— Sim, por favor! — Não me importava que fosse um problema extra para
Arumanfi. Se pudéssemos fazê-lo procurar, não teria problema.
Depois de uma hora, ele voltou sem molho de soja. Não foi nenhuma
surpresa, dado o curto espaço de tempo, e foi minha culpa ter mencionado o
assunto quando já era quase hora do almoço. Mas, embora não tenha
encontrado o molho de soja, nos trouxe outra coisa: uma substância marrom-
avermelhada que o povo de Biheiril fazia fermentando os grãos. Eles o
chamavam de tofu, mas decidi chamar de missô. Bem, qual é, não há dúvidas
de que é missô.
Se a memória não me falhava, o Reino Biheiril ficava na parte nordeste do
Continente Central. Missô e molho de soja eram as duas faces da mesma
moeda. Talvez já tivessem inventado o molho de soja naquele país. Algum
dia, precisaria ir até lá e ver com meus próprios olhos. Teria que encontrar
tempo para visitar, mesmo que fosse dentro de 10 ou 20 anos.
Tirando isso, tínhamos arroz e missô, então, é claro, pedi que nos
conseguissem peixe branco. Infelizmente, não tínhamos rabanete ralado ou
gengibre, mas tínhamos limões. Legumes em conserva teriam sido uma boa
adição, mas não adiantava se preocupar com algo que não tinham por esses
lados. Fiz o meu melhor para dar a Sylvaril uma receita decente, mantendo os
ingredientes disponíveis em mente.
— É isto que queria? — perguntou ela, reaparecendo um pouco depois com
uma porção de arroz bem quente. O vapor subia do marisco com sabor de
missô. Depois vinha o peixe bem torrado com limão. Havia dois pratos, um
para mim e outro para Nanahoshi. O meu tinha um ovo cru.
— De vez em quando é preciso se fazer um agrado com uma comida
reconfortante como esta — falei.
Após uma longa pausa, Nanahoshi respondeu:
— Sim, eu acho.
Embora os dois pratos parecessem perfeitos, Nanahoshi os observava de
maneira consternada. Talvez não gostasse por se parecerem com comida
japonesa apenas em aparência, sem ter o mesmo sabor. Bem, eu não poderia
culpá-la. Não chegava nem perto do sabor que eu me lembrava. Mas ainda
assim era divertido experimentar, mesmo que não fosse autêntico.
— Junte as mãos em agradecimento e vamos começar — falei.
— Sim, pode deixar.
Nanahoshi não parava de franzir a testa enquanto pegava o garfo e a colher e
começava a comer. Sua expressão estava contorcida de desgosto enquanto
desossava o peixe, espremia um pouco de limão e dava uma mordidinha. Em
seguida, deu uma bocada hesitante no arroz, mastigando devagar. Havia uma
tigela de porcelana branca cheia de sopa de missô, da qual também tomou um
gole.
No final, disse:
— Esta sopa de missô não tem nada de dashi. — Lágrimas grandes e gordas
brotaram de seus olhos. Continuou comendo enquanto elas escorriam.
Era algo terrível. O arroz estava seco e sem gosto, e a sopa de missô,
incrivelmente salgada. Embora o peixe estivesse delicioso, o cheiro era
horrível e não combinava nem um pouco com o limão. O equilíbrio era
terrível. Não estava bom. A culinária japonesa da nossa memória tinha um
sabor muito mais delicado. Apesar de tudo isso, Nanahoshi continuou a
comer em meio às lágrimas. Não falou de novo até terminar, mas não
demorou muito.
— Obrigada pela comida.
Ouvir isso foi o suficiente para saber que fiz a escolha certa.
Após a refeição, encerramos nossa aula da tarde. As aulas sobre magia de
invocação eram realmente muito interessantes, talvez porque Sylvaril era uma
professora muito boa. Embora não tenha nos ensinado nada importante
naquele dia, certamente começaríamos a absorver os conceitos mais cedo ou
mais tarde. Agora, eu precisava fazer uma revisão para me preparar para a
próxima aula.
Com isso em mente, passei meu tempo depois da aula vagando pelos
corredores da fortaleza flutuante. Explorando, se assim preferir. Este lugar
era incrivelmente grande, então eu não seria capaz de ver tudo em um ou dois
dias. Mais uma vez, fiquei impressionado com a forma como algo tão grande
poderia voar desse jeito.
Perdido em pensamentos, vi uma dupla à frente: Zanoba e Cliff. Eles também
deviam ter decidido explorar depois da aula.
Espere um minuto. Que estranho. Por que não me convidaram? Eles me
abandonaram?
— Ei Zanoba, Mestre Cliff. O que estão fazendo? — perguntei, me
aproximando. Não sei pra vocês, mas eu preferia fazer parte da matilha do
que ser um lobo solitário.
— Mestre! Na verdade, eu estava vagando pelos corredores quando Lorde
Cliff me chamou.
— Sim, aquilo chamou minha atenção, então…
Aparentemente, não estavam passeando juntos, então não foi como se
tivessem me abandonado. Que alívio. Algo bom também, uma vez que eu não
era um lobo… selvagem ou sei lá. Eu era um humano que gostava de se
reunir com outros humanos, já que era isso que nos tornava os melhores
mamíferos terrestres.
Isso mesmo. Devemos nos agrupar, já que seremos mais fortes juntos.
— E qual “aquilo” é esse? — perguntei.
Cliff indicou algumas escadas próximas, que curiosamente levavam para
baixo em vez de para cima. Pelo que parecia, este lugar não era apenas
ridiculamente enorme; também tinha um porão.
— Huh. Isso parece interessante. Se vocês estão planejando investigar, ficaria
feliz em ir junto — ofereci.
— É mais do que bem-vindo, mas… — Cliff parou.
— O quê? Algum problema?
— Não é isso. Só me pergunto se é realmente certo irmos lá sem permissão.
— Hm, não sei. — Disseram que éramos livres para vagar pelo castelo, mas o
porão era considerado parte do castelo? As pessoas geralmente deixavam
outras pessoas entrarem em seus porões sem problema? Eu mesmo guardava
alguns itens preciosos no meu e preferia que ninguém os perturbasse.
— Não deve ser um problema — disse Zanoba. — Por que não damos uma
olhada? Lorde Perugius disse que éramos livres para entrar em qualquer
cômodo que não estivesse trancado. Estas escadas nem estão atrás de uma
porta, então ele certamente não se importaria.
— Espera, espera um segundo. Às vezes as pessoas têm regras não ditas
sobre esse tipo de coisa, sabe? — Regras tácitas que estavam tão
profundamente enraizadas nas pessoas que já pensavam ser senso comum.
— Acha mesmo? Hm… — Zanoba inclinou a cabeça, ainda não convencido.
Talvez, sendo da realeza, não pudesse imaginar ter uma sala na qual não
gostaria que outras pessoas entrassem.
— Oh?
Enquanto nós três ponderávamos sobre o assunto, Nanahoshi apareceu de
repente. Ela era do tipo que preferia a solidão, mas talvez nosso grupo
chamou sua atenção o suficiente para atraí-la.
— O que fazem aqui?
Explicamos que estávamos interessados em saber para onde as escadas
levavam, mas não sabíamos se teríamos ou não permissão para nos
aventurarmos livremente para além delas.
— Claro que podem — disse ela.
— Sério? Podemos?
— Sim. As portas pelas quais ele não quer que entrem estão trancadas.
— Você já entrou em alguma delas?
— Sim, da última vez que estive aqui, pude ver algumas.
Ela devia se referir à sua visita anterior com Orsted. O pensamento por si só
foi suficiente para fazer minhas pernas parecerem geleia. Quase podia
imaginá-lo presente.
— Você não pode entrar na maioria dos cômodos lá embaixo, já que estão
trancados — explicou Nanahoshi —, mas há algo interessante lá.
— Algo interessante? — repeti, a curiosidade tomando conta de mim.
— Algo que vocês provavelmente gostariam.
Fazia algum tempo que eu não ouvia ninguém usar “vocês” para se referir
coletivamente aos meus amigos e a mim. Nanahoshi parecia o tipo de pessoa
que usava essa palavra o tempo todo, pelo menos antes de ser transportada
para este mundo.
— Se estão tão nervosos, querem que eu seja a guia?
Nós três trocamos olhares. Zanoba e Cliff estavam ansiosos para aceitar a
oferta. Eu estava me sentindo um pouco menos aventureiro, mas não queria
ser o único deixado de fora. Como ela se ofereceu para nos guiar, certamente
não havia perigo em ir.
— Sim, por favor — falei depois de olhar para os outros dois caras.
O porão era ainda mais amplo do que os andares principais. Além disso,
também era mais parecido com um labirinto. As coisas ficaram mais
complexas depois que descemos vários lances de escada, virando o que
parecia uma masmorra. Isso me fez pensar se o andar térreo era apenas para
entreter convidados e a verdadeira fortaleza era, na realidade, subterrânea.
Vagamos pelos corredores por um bom tempo com Nanahoshi nos guiando.
No início, tentamos abrir várias portas, curiosos, mas estavam todas
trancadas. Portas destrancadas só levavam a lugares vazios.
Quantos lances de escada já descemos até este ponto? Devemos estar bem
abaixo do andar principal.
Embora pouco iluminado, o primeiro andar do porão estava limpo, pelo
menos. No entanto, ficava mais escuro à medida que íamos mais fundo, e
também estava úmido. Havia menos portas e mais caminhos divididos e
curvas a serem feitas. Os pisos ainda se inclinavam aqui e ali, tornando tudo
ainda mais labiríntico.
Os corredores mais distantes não estavam limpos, e ratos periodicamente
passavam correndo por nossos pés enquanto caminhávamos. Os olhos deles
brilhavam verde na escuridão. Era assustador, mas pelo menos não eram
monstros, e fugiam no momento em que nos viram, como se esperaria de
roedores. Aparentemente, havíamos entrado em uma parte não utilizada da
fortaleza, mas isso não impediu Nanahoshi. Ela, no entanto, me pediu para
invocar um Espírito Luz de Lâmpada antes de prosseguirmos.
— Hm, não estou familiarizado com este tipo de arquitetura. Para mim, não
reconhecer tudo deve significar que é de antes da primeira Grande Guerra
Humano Demônio ou… — A voz de Zanoba sumiu. Ele estava se divertindo
muito só de ver o layout do porão. Seu ânimo permaneceu elevado, mesmo
enquanto nos aventurávamos cada vez mais a fundo.
— Ei, Silente, tem certeza de que não está perdida? — perguntou Cliff.
— Não, está tudo certo.
Embora tenha achado divertido no início, Cliff estava começando a perder a
paciência. Estávamos vagando pelos corredores sem entrar em um único
cômodo pelo qual passamos.
— Ah, isso é incrível demais.Poder visitar um local como este é uma
oportunidade rara. Viu, Mestre? Veja como estas pedras estão dispostas. Esta
é uma maneira especial de colocá-las em camadas. À primeira vista, todas
parecem ter tamanhos aleatórios, mas são naturais; nenhuma delas foi
alterada artificialmente. Mas quando considera que são parte de um porão que
sustenta um castelo tão enorme, é desconcertante como o lugar ainda está de
pé. Não é mesmo comum ver pedras deste tipo no nosso continente. Não
tenho muito interesse por arquitetura, mas os mistérios deste lugar são
cativantes. Mas por que será que escolheram este método em específico…
Zanoba estava genuinamente se divertindo. No momento em que encontrava
algo novo, começava a agir assim.
— Mestre, o que acha da forma como estas pedras estão dispostas?
— Não sei nada sobre esse tipo de… Espera, já vi esse tipo de arquitetura
antes. Isso é empilhamento de blocos padrão, pelo que me lembro.
— Aha, eu não esperaria nada menos de você, Mestre! Então conhece esta
técnica. Empilhamento de blocos padrão, você diz? Como exatamente esta
técnica funciona?
— Olhe ali no canto. As pedras foram alteradas. Quem quer que tenha
construído isso as cortou em uma forma retangular e as empilhou em um
padrão alternado. Viu? Ao fazer isso, pode-se aumentar a estabilidade dos
cantos.
— Ah, entendo. Ao aumentar a estabilidade dos cantos, também fortalece
toda a estrutura.
Ver o empilhamento de blocos padrão ali foi um choque. Isso me fez pensar
se alguém do período dos Reinos Combatentes havia construído este castelo.
Não, isso não poderia ser possível. Esta não era uma técnica exclusiva do
Japão. Certamente, as pessoas deste mundo criaram o mesmo método de
organizar as pedras para reforçar a estabilidade de seus edifícios. Além disso,
a arquitetura de pedra era muito comum neste mundo. Esta técnica deve ter
sido algo que criaram em algum momento do passado.
— Oh?
Depois que descemos outro lance de escada, a atmosfera ao nosso redor
mudou. Não estávamos mais em um labirinto. Em vez disso, estávamos
vagando por um vasto corredor com uma única porta grande à nossa frente.
Parecia aquela que tínhamos visto na frente da câmara de audiência, com um
brasão de Rei Dragão Blindado gravado nela. Isso deu a impressão de que
algo precioso e valioso estava escondido lá dentro.
— Um beco sem saída? — supus.
Nanahoshi balançou a cabeça.
— Não. Este é o nosso destino. — Ela avançou e apertou a mão contra a
porta.
— Ah…
Embora mal a tocasse, a porta cedeu com um rangido. Aparentemente, esta
não estava trancada. Um grande rato saiu correndo, passando por nossos pés
e deslizando pela fresta enquanto Nanahoshi empurrava a porta para abri-la.
Lá dentro havia um vasto aposento, sem janelas visíveis. Esta era a parte mais
profunda e interna do castelo flutuante; um cômodo escondido atrás de uma
porta com um brasão gravado nela, que certamente continha algo secreto
dentro de suas paredes.
— Por mais infantil que possa parecer para um homem da minha idade, estou
animado — disse Zanoba.
Cliff concordou com a cabeça.
— Eu também.
E eu também.
— Eu sabia que garotos como vocês iriam gostar disso — murmurou
Nanahoshi.
Acho que está entendendo alguma coisa aqui errado. Existem garotos por aí
que detestam esse tipo de coisa ou não têm interesse algum. Mas não eu!
— Vamos dar uma olhada — disse Cliff. Aparentemente, não conseguia
conter a curiosidade por mais tempo. Entrou no cômodo e eu o segui de
perto, usando silenciosamente o meu Espírito Luz de Lâmpada para iluminar
a área.
— Oooh.
Uma visão estranha nos esperava quando o cômodo se encheu de luz.
— O que é isto? É incrível! — Zanoba foi dominado pela emoção enquanto
subia até um dos murais na parede. Corri atrás dele, sentindo como se
tivéssemos descoberto algum tipo de tesouro.
— Murais, hein? Devem ser muito antigos.
A tinta estava lascada em vários lugares, mas graças à durabilidade das
pedras, as pinturas não foram danificadas o suficiente para serem
indecifráveis. Eu não conhecia nenhuma tradição envolvendo o desenho de
murais como esses neste mundo. Me lembravam dos afrescos egípcios do
meu mundo anterior.
— Não posso nem começar a imaginar o quão antigos devem ser —
murmurou Zanoba. — Mestre, esta é uma descoberta incrível!
— Chamar isso de descoberta é exagero. Tenho certeza de que Lorde
Perugius já sabia disso antes de nós os encontrarmos.
Descrever as pinturas seria difícil, mas retratavam mais ou menos uma
história. Todos os murais apresentavam uma figura peculiar. Muito
provavelmente, a intenção era retratar o que a pessoa viu e experimentou
durante sua vida. Não havia palavras acompanhando as pinturas, então era
difícil adivinhar que cena ou circunstância estavam tentando transmitir. Havia
montanhas invertidas, pessoas com asas, pessoas adorando o que parecia ser
um rei, uma pedra flutuante, pessoas reunidas, um dragão voando, duas
pessoas abraçando um bebê, uma sombra caída, um rei triste, um rei furioso,
pessoas se consultando e, em seguida, uma sombra misteriosa atrás de um
grupo de pessoas. A pintura final, que provavelmente representava a
conclusão da história, estava pela metade, e ninguém sabia o que o artista
tentou retratar.
— Sinto que já vi essa história em algum lugar antes.
— Eu também, mas não me lembro onde.
— Hm…
Nós três inclinamos nossas cabeças enquanto olhávamos para os murais.
Atrás de nós, um rangido ecoou. Olhamos para trás e vimos Arumanfi. Ao
lado dele estava um homem com cabelos prateados e uma aura de comando.
Perugius…
— O que fazem aqui? — demandou ele.
— Oh, é você, Lorde Perugius. — Zanoba se ajoelhou na mesma hora, então
Cliff e eu seguimos o exemplo mais do que depressa.
Enquanto mantinha minha cabeça abaixada, disfarçadamente olhei para
Nanahoshi, que ainda estava de pé. Alguém pode, por favor, ensinar etiqueta
a esta garota?
Dito isso, eu poderia direcionar estas palavras para Perugius. O que ele estava
fazendo aqui? Talvez realmente estivesse chateado conosco por aparecermos
sem permissão, e nos seguiu para reclamar.
— Chega. Levantem-se.
Rapidamente nos levantamos.
— Perdoe-nos. Enquanto explorávamos seu magnífico castelo, por acaso
viemos vagar aqui embaixo. E, vejam só, como seria de esperar de uma
fortaleza tão grandiosa, até mesmo o porão contém mistério suficiente para
fazer o coração disparar. Nunca imaginei que encontraríamos algo assim
aqui.
Zanoba divagava em um ritmo rápido, então apenas grunhi e acenei com a
cabeça. Ele era mesmo útil em momentos como este, e é bem provável que
cada palavra dele foi genuína.
— Entretanto — continuou Zanoba. —, temo que deixamos nossa
curiosidade se apossar de nós e o ofendemos no processo. Com Lady
Nanahoshi como nossa guia, concluímos que poderíamos vagar por aqui,
desde que não houvesse portas trancadas para bloquear nosso caminho, mas
devemos ter nos aventurado muito longe, mesmo sem perceber.
— Não me importo — disse Perugius. — Quanto a estes murais, não fui eu
quem os criou.
Nanahoshi lançou um olhar triunfante para nós, como se dissesse: “Estão
vendo? Eu disse que estava tudo bem.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Zanoba.
Ele se virou em direção a uma das paredes, um olhar distante em seu rosto,
como se estivesse observando o passado.
— Quando obtive esta fortaleza flutuante, não havia quase nada aqui dentro.
Havia vestígios do que uma vez existiu aqui, mas tudo tinha desbotado e
desmoronado. — Perugius olhava para os murais enquanto falava, estreitando
os olhos quando se aproximou e passou os dedos por eles. — As únicas
coisas que ficaram intactas foram estas pinturas nas paredes, e estão em boas
condições desde então. Todo o resto foi perdido.
— Hm…
— E com elas, percebi que nossos ancestrais tinham uma mensagem que
queriam passar, uma história que queriam que seus sucessores herdassem. —
Ele voltou seu olhar para mim. — É por isso que não tranquei a porta deste
cômodo. Se alguém vem aqui com vontade de vê-las, não tenho motivos para
recusar. Claro, apenas uma pessoa assim apareceu.
— Agradecemos sua explicação — disse Zanoba. — E fico feliz em saber
que não o ofendemos. Não viemos necessariamente com a esperança de ver
estes murais, mas parece que nossos ancestrais estavam tentando transmitir
algo, deixando-os aqui. Há algo profundamente cativante nesta ideia.
— Eu gostaria de concordar com você, mas não gosto destas pinturas —
disse Perugius. — Há algo sufocante nelas. Me dão náuseas.
— Bem, cada um com seu gosto, como dizem. Tirando isso, não devemos
nos demorar aqui por muito tempo. Receio ter muito pouco controle sobre
minha própria força. Se eu tocasse acidentalmente nestas paredes, poderia
destruí-las, e isso seria uma pena. — Zanoba voltou seu olhar para a porta,
como se para indicar que estava pronto para retornar ao andar principal.
Perugius falou baixinho:
— Arumanfi, guie-os de volta.
— Como ordenar!
Voltamos ao andar principal com Arumanfi como nosso guia, mas Perugius
não se juntou a nós. Ele devia ter seus próprios sentimentos sobre os murais,
pois continuou naquele cômodo.
Depois disso, nosso grupo se desfez e voltei para o meu quarto sem
incidentes. Já era noite. O sol se pôs enquanto explorávamos o porão. Outro
dia já havia terminado.
Imaginei por quanto tempo essas nossas pequenas aulas continuariam. Não
importava quanto tempo tirássemos de folga da universidade, contanto que
fôssemos para a sala de aula, mas eu não queria ficar longe de casa por muito
tempo. Lucie e Zenith pesavam em minha mente.
Bem, agora, é melhor lidar com o que tenho em mãos. Não faço ideia do que
está acontecendo com Zenith, e Lilia está cuidando de Lucie para mim. A
única coisa que me resta fazer é praticar e revisar a magia de invocação.
Assim que me joguei no sofá e comecei a vasculhar minha bagagem em
busca de uma pilha de papel, alguém bateu na porta.
— Rudy? Está aí dentro? — Sylphie não esperou pela minha resposta antes
de espiar. No momento em que me viu, ela entrou e sentou-se ao meu lado.
Então, soltou um suspiro pesado.
Peguei uma jarra próxima, servi um pouco de água e a entreguei.
— Beba. Deve estar exausta.
— Obrigada. — Ela pegou e engoliu o líquido ansiosamente. — Ufa.
Parecia mais cansada do que o normal.
— Como estão as coisas com a Princesa Ariel? — perguntei.
— Hm, então, não tão bem.
— Quão ruim está?
— Lorde Perugius não está levando Sua Alteza muito a sério.
Pelo que parecia, Ariel queria Perugius em seu acampamento, por isso estava
usando todo o seu tempo para listar todos os benefícios que ele teria ao apoiá-
la. Depois que ela ascendesse ao trono, ele poderia ter status nobre, seu
próprio território ou acomodações especiais caso quisesse se envolver no
comércio em Asura. Claro, Perugius a rejeitou por completo, dizendo que não
precisava de nada disso.
— Bem, sim, não admira que ela esteja tendo problemas — falei.
— O que quer dizer?
— Tipo, ele escolheu viver aqui, longe de tudo isso. Então, ou não está nem
um pouco interessado nisso ou isso o enoja demais.
— O quê? — Sylphie inclinou a cabeça de maneira interrogativa. — Mas
pensei que ele disse que escolheu viver aqui porque é mais conveniente para
impedir o Deus Demônio de se erguer novamente.
Ele disse isso mesmo? Bem, sem dúvida esse também era um dos motivos.
— Não é isso que estou dizendo. Se ele quer poder, já está em posição de
tomá-lo para si. Afinal, é o herói da Guerra de Laplace. Sylvaril disse que ele
considera a formalidade da corte Asurana sufocante. Se está tentando atraí-lo
com poder e prestígio, isso só vai servir contra o propósito.
Se ele quisesse mesmo deixar a fortaleza, já poderia tê-lo feito. Mas esteve
confinado nela por décadas. Perugius certamente tinha seus motivos.
— Sim, o que você diz faz sentido. Pode ser que a Princesa Ariel esteja sendo
muito impaciente… — Sua voz cessou por um momento. — Ei, Rudy, o que
acha que devemos fazer?
— Essa é uma pergunta difícil.
Eu não tinha absolutamente nenhuma ideia. Sentia mesmo que Ariel estava
pulando alguns passos cruciais nisso. Normalmente, uma pessoa cultivaria
amizades antes de pedir favores. Se a outra parte não quisesse, poderia
oferecer-lhe condições em troca. Ariel se beneficiava de seu carisma natural,
usando-o em sua vantagem para fazer conexões instantâneas. Ela nunca tinha
enfrentado alguém que pudesse resistir a seus encantos. Perugius e Nanahoshi
foram criados de forma diferente. Eu provavelmente estou na mesma
categoria que eles. Estava feliz em fazer algo pelo bem de Sylphie, mas não
estava inclinado a ajudar Ariel.
— Primeiro, acho que ela deveria tentar melhorar seu relacionamento com
Perugius.
— Melhorar como? — perguntou Sylphie.
— Compartilhando seus hobbies ou perguntando sobre histórias heróicas de
seu passado.
— Hobbies e histórias heróicas? Acho que estou entendendo.
— Pode ser que levar Zanoba junto ajude. Acho que, entre todos nós,
Perugius gosta mais dele. Zanoba poderia seguir com a conversa por ela, e
Ariel só assentiria com a cabeça. Isso provavelmente melhoraria a percepção
de Perugius sobre ela.
— Hmm, tá. Vou tentar contar o que você disse para Sua Alteza.
— Não me leve muito a sério — avisei. — Não sou infalível.
— Ehehe, agradeço o conselho, de qualquer maneira. — Sylphie me deu um
beijinho na bochecha.
A sensação suave de seus lábios foi o suficiente para me fazer esquecer de
estudar. Em vez disso, seu beijo despertou desejos perversos dentro de mim.
Talvez eu deva levá-la à cama comigo para que possamos dar início aos
planos de um segundo bebê. Descartei a ideia mais do que depressa. Não, não
posso me distrair. Vou estudar. Vou ter que me contentar em apalpar um
pouco a sua bunda… espera, não!
— A propósito, como vão as coisas com você, Rudy?
— Hm, mais ou menos, eu acho.
Selei meu demônio da luxúria enquanto discutíamos tudo que aconteceu no
último dia. Conversamos sobre a maldição de Zenith, magia de invocação, a
refeição que compartilhei com Nanahoshi e como ela liderou nossa incursão
no porão da fortaleza.
— Você com certeza é muito legal com Nanahoshi — resmungou Sylphie
depois que terminei.
Acho que comer com outra garota e sair com ela realmente não é boa ideia.
Dito isso, Zanoba e Cliff estiveram presentes nas duas vezes, então não era
como se eu estivesse sozinho com Nanahoshi. Mas usei do meu tempo para
fazer aquela refeição para ela.
Droga. Tenho que fazer algo para ajustar o humor de Sylphie. Precisava
deixar claro que meu amor por ela excedia em muito a amizade que
compartilhava com Nanahoshi.
— Hm, Senhorita Sylphiette…
— Sim?
— Posso te segurar em meus braços?
Ela respirou fundo, as bochechas corando enquanto fazia beicinho e se
virava.
— Você sempre tenta me beijar assim. Por quê? Está se sentindo culpado por
algo?
Eita. Ela está sendo mais fria que o normal hoje. O que está rolando? Está
chateada de verdade comigo? Não me diga que este é o período de calmaria
de que as pessoas costumam falar em casamentos. Mas, bem, nosso
aniversário de três anos está chegando. A maldita marca dos três anos.
Balancei minha cabeça. Não, o número de anos não importa! Mas estou com
sérios problemas aqui. O que eu faço?!
— Estou brincando! Desculpe por brincar assim, mas parecia que você estava
se divertindo muito enquanto estava com ela, então eu queria me vingar um
pouco. — Sylphie mostrou a língua enquanto jogava os braços em volta de
mim e me apertava em um abraço.
Puxei-a para perto. Ela era tão pequena, mas ainda continuava tão macia e
quente como sempre. Eu amava aquela sensação que vinha dela. Talvez
merecesse que me odiasse, mas, mesmo assim, não queria que o fizesse. No
futuro tomarei mais cuidado…
— Mas, para ser honesta, por que você está tão obcecado pela Nanahoshi,
afinal? — perguntou Sylphie.
— Hm, bem, sei bastante sobre a situação dela e de onde veio, por isso quero
ajudá-la no que puder. Mas não é como se eu estivesse romanticamente
interessado nela ou algo assim, entendeu? — A maneira como divaguei fez
com que soasse ainda mais suspeito.
— Ehehe, sim, eu sei. — Sylphie riu, dando tapinhas na minha cabeça. Então
me deu um tapinha nas costas antes de se afastar. — Bem, eu deveria voltar
para a Princesa Ariel. Continue trabalhando duro, Rudy.
— Sim, pode deixar. E você também.
Droga. Achei que tudo estava indo muito bem, mas as frustrações de Sylphie
comigo devem ter se acumulado bastante. Isso não pode continuar. Pode ser
que fosse uma boa ideia me afastar de Nanahoshi. Talvez tirar um tempo para
fazer coisas que a deixassem feliz não foi uma boa ideia. Hmm…
Sylphie abriu a porta para sair e congelou.
— Hã?
Nanahoshi estava parada à porta.
— Desculpa. Não quis me intrometer entre vocês dois, mas… cof, cof… —
Ela teve um ataque de tosse, segurando a garganta e o peito enquanto seu
rosto se contorcia de dor. — Desculpa. Eu ouvi tudo. Cof… Não se preocupe,
não tenho interesse no Rudeus… Cof…
— Oh, hm, tudo bem. Isso é ótimo, mas, hã, você está bem? — perguntou
Sylphie.
— Estou be… cof, cof…
A condição de Nanahoshi estava muito pior do que eu tinha visto. Ela estava
engasgando como se houvesse algo preso em sua garganta, o que só
aumentou nosso desconforto.
— É que, sabe, minha tosse piorou muito… Cof, cof… Fui ao Cliff para ver
se conseguia fazer com que ele lançasse alguma magia de desintoxicação em
mim, mas estava ocupado com Elinalise. Pensei em pedir a Rudeus que
fizesse isso, mas se isso só vai causar mais mal-entendidos, vou esperar e
pedir que Cliff me ajude amanhã.
— Não, sem problema. Está tudo bem. Não estou tão preocupada com isso,
na verdade — disse Sylphie, em pânico. Quando Nanahoshi se virou para
sair, Sylphie a agarrou pelo ombro. — Hum, eu posso lançar em você, mas se
minha magia não for eficaz o suficiente, pode ser uma boa ideia que Cliff
lance um feitiço de nível superior em você mais tarde.
— Obrigada. Eu agradeceria, se não for incômodo.
— Tudo bem, então aqui vai. — Sylphie gentilmente pressionou a mão no
pescoço de Nanahoshi. Ela lançou seu feitiço de desintoxicação sem recitar o
encantamento em momento algum; uma façanha que eu permanecia incapaz
de realizar. Claro, que seja, não posso fazer isso agora. Mas tenho certeza de
que, se trabalhar nisso, também acabarei conseguindo.
— Hm? — A voz de Sylphie cortou meus pensamentos enquanto ela
inclinava a cabeça em confusão.
No momento seguinte, Nanahoshi começou sua tosse seca novamente.
— O quê? Isso é… meio estranho? Minha mana está… o que é isso? —
Sylphie inclinou a cabeça para o outro lado e tentou pressionar a mão oposta
no ombro de Nanahoshi. Neste ínterim, o ataque de tosse de Nanahoshi só
piorou.
— Está tudo bem? — perguntei, minha ansiedade aumentando.
Nanahoshi tapou a boca com a mão.
— Urgh… blegh! — Ouviu-se o som de respingos de líquido.
— Hã?
Um coágulo de sangue caiu no chão.
— E-Ei…
Nanahoshi encarou a mão em silêncio, atordoada. Seu cérebro parecia não
conseguir processar o que via. Virou a palma da mão na minha direção, como
se achasse que eu poderia ter as respostas. Sua pele estava coberta de sangue.
Um segundo depois, caiu no chão e perdeu a consciência.
— O quê? Por quê?
Não fui o único parado ali, estupefato. Sylphie também estava congelada no
lugar.
— Agora mesmo, quando tentei lançar minha magia nela, isso… por quê? Eu
não… — Manchas de sangue cobriram o rosto e as mãos de Sylphie enquanto
ela olhava para Nanahoshi. Sua pele estava mortalmente pálida.
Eu logo caminhei em direção a ela.
— Sylphie. — Havia um tremor em minha voz.
Ela se encolheu, os olhos tremendo de medo enquanto recuava um passo.
— N-Não! Não fui eu. Eu não fiz nada com ela. — Sylphie continuou
recuando até ficar presa em um canto. Eu a segui silenciosamente até que ela
estivesse de costas para a parede. Uma vez que soube que não tinha para onde
correr, fechou os olhos com força. — Eu sei o que disse um minuto atrás,
mas realmente só pretendia te provocar um pouco… Mas, sério, eu… eu
nunca faria algo assim!
Tirei um lenço do bolso, umedecendo-o com minha magia de água, e,
devagar, comecei a limpar o sangue do rosto dela.
— Hã…?
Uma vez que estava limpo, comecei a limpar sua mão em seguida. O pior
transmissor de doenças eram os fluídos corporais de uma pessoa doente. Não
achava que limpar o sangue de Nanahoshi de Sylphie iria consertar tudo
magicamente, mas não poderia deixá-la assim. Da parte de Sylphie, ela não
tentou resistir; apenas ficou parada e me deixou trabalhar.
— Está tudo bem, Sylphie. Assisti toda a sua interação com Nanahoshi. Você
não fez nada de errado.
— C-Certo.
Eu estava calmo agora. Vê-la perder toda a compostura me ajudou a manter a
minha. Pelo menos, era isso que eu esperava.
— Está tudo bem — repeti de novo. — Você não fez nada. Nanahoshi está
doente há algum tempo. Entendeu?
— Sim…
— As coisas simplesmente aconteceram de uma vez, no pior momento
possível. Isso não é culpa sua.
— T-Tudo bem, mas… quando tentei usar minha magia nela, havia algo…
estranho dentro dela. Era como se minha mana não passasse por ela. Na
verdade, parecia só… sumir ou algo assim…
O sangue escorria da boca e do nariz de Nanahoshi enquanto ela estava
deitada no chão, inconsciente. Sua vida poderia estar em perigo se não a
ajudássemos. Sylphie ainda estava em choque.
Eu preciso acalmá-la. Não, talvez seja exatamente o oposto. Talvez eu
devesse mandar ela fazer algo. Normalmente, quando alguém estava neste
estado de confusão, dar-lhe algo para fazer ajudava a sair dessa situação.
— Ouça, Sylphie. Preciso que peça ajuda, pode ser Cliff ou Lorde Perugius.
— V-Você quer que eu vá?
— Sim. Vou cuidar da Nanahoshi e fazer o que puder por ela, mas, enquanto
isso, preciso que busque ajuda. Pode fazer isso?
— S-Sim, posso. — A clareza voltou a seus olhos quando correu para o
corredor e saiu. Sylphie havia enfrentado uma carnificina várias vezes antes,
mas isso não a preparou para ter um conhecido vomitando sangue do nada.
Até ela foi pega despreparada. Pior ainda, tudo aconteceu logo depois que
Sylphie tocou em Nanahoshi.
Eu sabia que minha esposa não era do tipo que machucaria outra pessoa, não
importa o quão ciumenta fosse. Dito isso, às vezes podia ser compulsiva e…
Não, não, não é possível.
— Tudo bem — falei, jogando esses pensamentos para longe enquanto me
virava para encarar Nanahoshi. Apesar do que disse a Sylphie, havia poucos
cuidados de emergência que eu posso dar à nossa amiga inconsciente.
Só posso fazer o possível.

Capítulo 4: Lamento
Passaram três dias desde o desmaio de Nanahoshi. Ela ainda não tinha
recuperado a consciência e ainda não sabíamos o que a fez vomitar sangue.
Arumanfi apareceu instantaneamente depois que Sylphie saiu para buscar
ajuda. Ele olhou Nanahoshi e a carregou direto para a enfermaria. Nesse meio
tempo, reuni todos para explicar a situação. Disse a eles que a condição de
Nanahoshi havia piorado, e quando Sylphie tentou lançar magia de
desintoxicação nela, ela cuspiu sangue e desmaiou. Também lhes disse que
estava sendo tratada na enfermaria. Tudo aconteceu tão rápido, e isso era tudo
que eu sabia. Todos ficaram surpresos, mas pelo menos entenderam o que
estava acontecendo.
No momento, Yuruzu da Redenção era quem estava cuidando de Nanahoshi.
Yuruzu possuía um poder de cura especial que lhe permitia transferir o vigor
e a saúde de uma pessoa para outra. Como isso funcionava de maneira muito
diferente da magia de desintoxicação, poderia ser eficaz no tratamento de
doenças que não podiam ser curadas por meios normais. Era o que se
esperava, pelo menos. O único problema era que Yuruzu não conseguia fazer
isso sozinha. Ela precisava da cooperação de alguém para realizar sua
mágica.
Sylphie imediatamente se ofereceu. Yuruzu a fez deitar ao lado de Nanahoshi
e começou a trabalhar sua magia. O rosto de Nanahoshi se contorceu de
angústia durante o processo todo, e suas crises de tosse foram incessantes,
mesmo que ainda estivesse inconsciente.
— Karowante, como ela está? — Perugius olhou para Nanahoshi antes de
ordenar para que um dos seus subordinados a inspecionasse. O homem sob
seu comando era Karowante da Compreensão, cuja habilidade lhe permitia
perscrutar o desconhecido, identificar os segredos de uma pessoa. Isso
também significava que poderia analisar a condição de um indivíduo se este
não estivesse bem, quase como uma visão de raio-x.
Ele olhou para Nanahoshi, ou talvez através dela, e balançou a cabeça.
— Não é algo que Yuruzu pode curar com seus poderes.
— Então procure nos registros — disse Perugius.
— Como ordenar.
Com isso, seu subordinado passou a buscar informações sobre a doença e
como curá-la. Karowante iria comparar os sintomas que observara em
Nanahoshi com a literatura mantida na fortaleza. Ofereci-me para ajudar, mas
Perugius recusou categoricamente; ele não tinha intenção de deixar um
estranho se meter em seus arquivos. Nesse ínterim, Yuruzu continuou seu
tratamento e Sylphie permaneceu na enfermaria.
Fiquei sem nada para me manter entretido. É claro que não passei os três dias
sem fazer absolutamente nada. Voltei para casa e atualizei Roxy sobre nossa
situação, informando-a de que Nanahoshi havia desmaiado e Sylphie estava
ajudando a tratá-la. Assim, contei que demoraríamos um pouco para voltar
para casa.
Depois de ouvir tudo, Roxy entrou em ação imediatamente. Entrou em
contato com a universidade e pediu licença, depois explicou tudo para nossa
família em meu lugar. Também prometeu cuidar de todos enquanto
estivéssemos fora. Ela estava muito mais calma e controlada do que eu. Não
havia dúvida de que estava acostumada com essas situações.
No final, eu realmente não fiz nada. Roxy fez tudo em meu lugar. Tudo o que
fiz foi lembrar Aisha e Norn, mais uma vez, que demoraríamos para voltar.
Então peguei uma muda extra de roupa e corri de volta para a fortaleza
flutuante. Não que houvesse algo que eu pudesse fazer quando voltasse,
exceto orar para que Nanahoshi escapasse dessa situação em segurança.
— Será que ela vai ficar bem?
Assim como eu, Cliff não tinha nada para fazer além de remexer os
polegares. O castelo tinha uma capela, e era onde Cliff ia para oferecer suas
orações fervorosas.
— Que seja feita a tua vontade, Lorde Millis — disse ele, com as mãos juntas
e os olhos fechados.
Pessoas de fé frequentemente oravam assim em tempos de dificuldade.
Quanto a mim, nunca acreditei em nenhum tipo de poder superior. Eu só
colocava fé nas pessoas que me ajudaram neste mundo. E sabia que mesmo
se orasse para Roxy ou Sylphie, não aliviaria a ansiedade que sentia.
À medida que o silêncio se estendia, de repente me lembrei de um filme que
vi há muito tempo. Era uma história famosa sobre alienígenas dominando o
mundo. Seus avanços científicos permitiram que dominassem a humanidade
e nos eliminassem. Mas, no final do filme, todas as suas máquinas pararam
bruscamente. Eles não tinham imunidade ao vírus do resfriado comum, que
dizimou a todos.
Nanahoshi tinha sido teletransportada para este mundo. Ela não reencarnou,
como eu. Além disso, não envelhecia e não podia usar magia ou implementos
mágicos. Talvez não fosse simplesmente de mana que ela carecia, mas
também de imunidade a agentes patógenos deste mundo.
Não, se fosse o caso, deveria ter adoecido muito antes. Já se passaram oito
anos desde o Incidente de Deslocamento. Foi tempo demais sem ser afetada.
Estreitei os lábios.
Ela realmente vai morrer?
Já era o quarto dia desde o desmaio de Nanahoshi. Fomos todos chamados a
uma sala com uma mesa redonda. Perugius e todos os seus familiares
estavam presentes, exceto Yuruzu da Redenção. Eles estavam atrás de seu
lorde enquanto este se sentava em uma cadeira extravagante.
— Por favor, sentem-se — disse Sylvaril.
Fizemos o que ela pediu, acomodando-nos em nossas cadeiras. Sylphie ainda
estava ajudando Yuruzu com o tratamento de Nanahoshi, então, sem ela,
restavam apenas seis de nós.
— Descobrimos o que aflige Lady Nanahoshi — disse Sylvaril, dando um
passo à frente assim que todos nós nos sentamos.
Enfim descobriram o que é.
— O nome da doença dela é Síndrome de Esgotamento.
Síndrome de Esgotamento? Foi a primeira vez que ouvi a respeito. Olhei ao
redor; parecia que eu não era o único. Cliff provavelmente tinha o maior
conhecimento médico entre nós, mas até ele parecia confuso, balançando a
cabeça.
— Não é de se surpreender que não conheçam. Era uma doença ativa há eras,
quando humanos possuíam menos mana do que hoje em dia. Naquela época,
várias crianças nasceram sem mana. Quando chegavam aos dez anos, mais ou
menos, morriam devido a essa síndrome, sem exceção.
Bem, isso parecia combinar com aquilo que Nanahoshi enfrentava. Embora
não fosse uma criança de dez anos, já estava neste mundo há oito anos e não
possuía mana. Então, a doença dela definitivamente não era culpa de Sylphie.
— De acordo com a literatura, aqueles que não possuem mana própria não
têm a capacidade de neutralizar a mana externa que é filtrada. Assim, ela se
acumula dentro deles ao longo de uma década e causa essa doença.
Não entendi muito bem o que isso significava, mas parecia semelhante ao
conceito de bactérias boas e más. Ter sua própria mana significava ter
bactérias boas para eliminar as ruins, mas aqueles que não tinham mana
apenas acumulariam bactérias ruins em seus corpos. Embora eu não tivesse
certeza do quanto poderíamos confiar nessa literatura de que Sylvaril falava,
sua explicação fazia sentido.
— Você descobriu alguma coisa sobre como curar essa doença? — perguntei.
— Não havia nada. Isso aconteceu há 7.000 anos. À medida que a mana
natural dos humanos se fortalecia com o tempo, a síndrome desapareceu.
Esse período significava que a síndrome estava ativa antes da primeira
Grande Guerra Humano Demônio. Se não me falha a memória, dizem que
essa guerra durou um milênio. Um conflito tão vasto que resultou em uma
grande evolução. Seja como for, a humanidade devia ter conseguido se
fortalecer. Faz sentido a Síndrome do Esgotamento ter desaparecido como
resultado disso.
No entanto, 7.000 anos era muito tempo. Não era de se surpreender que
tivessem pouca literatura sobre o assunto. Foi um milagre terem conseguido
descobrir o nome do que atormentava Nanahoshi.
— Então, o que faremos? — perguntei.
— Congelaremos ela no tempo. — Não foi Sylvaril quem respondeu a mim
desta vez, mas sim Perugius, cuja forma imponente estava rigidamente
sentada em sua cadeira de luxo. — Casacossustador do Tempo pode usar seu
poder para congelar o relógio de Nanahoshi.
Um homem deu um passo à frente enquanto Perugius falava. Ele usava uma
máscara que se projetava na boca. Parecia um pouco os lábios enrugados de
uma máscara Hyottoko, não, talvez mais como uma máscara de gás? Então
esse é o Casacossustador do Tempo, hein?
Eu tinha certeza que sua habilidade era congelar o tempo de qualquer pessoa
que ele tocasse. Isso pararia seu tempo também, mas pelo menos se o usasse
em Nanahoshi, a impediria de morrer ou piorar.
— Muito bem. O que faremos depois disso?
— Entraremos em contato com as pessoas na superfície e procuraremos uma
maneira de curá-la.
Tudo bem. Essa era uma das formas de dar um jeito nisso. Com a reputação
de Perugius, certamente não havia muitos que nos rejeitariam.
— Embora eu não tenha ideia de quantas pessoas lá fora vão querer tentar
salvá-la — acrescentou Perugius.
— Não pode usar sua influência para ajudá-la? — perguntei.
— O vínculo entre mim e Nanahoshi é apenas contratual. Não vou me
colocar em dívida com outras pessoas para ajudá-la.
Isso soou terrivelmente frio para mim.
Dito isso, eu não sabia nada sobre o relacionamento deles, então não iria
enfiar o nariz onde não deveria.
— Espera, não me entenda mal. Vocês são meus convidados, então farei o
que puder para ajudar. No entanto, o propósito de toda a minha vida é
procurar Laplace e derrotá-lo. A minha ajuda se limita a isso. Não posso
ajudá-la às custas de meu próprio objetivo.
Então, basicamente, já que cuidar de Laplace era o seu trabalho, ele não faria
nenhum esforço extra para ajudá-la. Se pedisse ajuda a outra pessoa, isso o
colocaria em dívida, o que acabaria tendo que pagar. Seria uma dívida pesada
demais, considerando que precisávamos de uma cura para uma síndrome que
não existia há milhares de anos. Não havia como dizer que tipo de preço seria
exigido por um favor desses.
Perugius não tinha obrigações para com alguém como Nanahoshi. Não, na
verdade, já tinha feito mais do que era sua obrigação. Tratou de sua condição
e a estava mantendo viva. Era por isso que estava fazendo essa declaração,
dizendo que não faria mais do que já fizera. Se algum de nós quisesse salvá-
la, poderia ficar à vontade. Não achei que houvesse nada de errado nisso.
— Está planejando abandonar Nanahoshi, é isso?! — gritou Cliff, pondo-se
de pé.
— Eu nunca disse que iria abandoná-la.
— Mentiroso. Você tem este castelo incrível e todos esses familiares
excepcionais à sua disposição! Se alguém pode procurar uma cura, esse
alguém é você!
A sobrancelha de Perugius se contraiu.
— Ter a capacidade de fazer algo não significa que sejamos obrigados a fazê-
lo.
— Cansei dos seus joguinhos! — rosnou Cliff. — É dever de quem tem
poder ajudar quem precisa!
— Hmph. Não empurre a irritante baboseira religiosa irritante de Millis para
cima de mim.
— O que disse?
Eu sabia que Cliff estava apenas falando com raiva. Ele acreditava em Millis,
que lembrava o cristianismo do meu mundo anterior. Talvez um dos
ensinamentos de Millis fosse que as pessoas deveriam estender a mão da
misericórdia aos cordeiros que precisam de socorro. Achei, entretanto, um
erro dizer isso a Perugius. Ele estava agindo em seu próprio senso de
moralidade. Nos últimos 400 anos, ele está trabalhando em prol de um
objetivo. Estava interessado na pesquisa de Nanahoshi sobre invocação de
coisas de outros mundos, mas isso não tinha prioridade acima de Laplace.
Era, no máximo, uma forma de matar o tempo.
— O que você está dizendo é o mesmo que abandonar Nanahoshi! Se vai
ajudá-la, deve se comprometer a fazer da maneira certa!
— Cliff, chega! — berrou Elinalise depois que ele chutou a cadeira. Ela o
agarrou pelos ombros e o segurou com força para que não pudesse se mover.
— Eu sei como se sente, mas controle-se.
Seus lábios se contraíram.
— Não quero te perder por algo assim — continuou ela.
Pelo cômodo, todos os onze familiares de Perugius se colocaram em posição
de batalha. Perugius deu uma olhada em Cliff, que era comparativamente
impotente, e seus lábios se curvaram em um sorriso zombeteiro.
— Se está tão incomodado com a condição dela, por que não toma uma
atitude? Seu Deus diria o mesmo, não é? “Não confie nos outros para ajudar
os necessitados”, se não estou enganado, não é?
— Grr… — Cliff fez uma careta ao deslizar de volta para sua cadeira,
irritado com as palavras de Perugius. Certamente não era sua intenção pular
na garganta de Perugius. Só estava aborrecido com o fato de que alguém tão
poderoso, que parecia capaz de qualquer coisa, não tentar nos ajudar.
— Huff. — Expirei profundamente. Beleza, e agora? Quero ajudar
Nanahoshi, mas não tenho ideia de por onde começar. O resto do grupo
parecia igualmente perplexo. Na minha família, Aisha, em particular, passava
muito tempo com Nanahoshi e ficaria muito triste se ela falecesse. Além
disso, se não fizéssemos nada e víssemos Nanahoshi definhar, Sylphie se
culparia.
Não há algo que eu possa fazer?
— Com licença — disse uma voz quando a porta da sala se abriu. Yuruzu da
Redenção entrou. — Lady Nanahoshi recuperou a consciência.
No momento em que ouvi isso, pulei da cadeira.
— E… E? Como ela está?
— Pelo que parece, os sintomas parecem ter melhorado.
— Como assim?
— A Síndrome de Esgotamento causa um acúmulo de mana, que altera o
corpo levando a contrair a doença. Conseguimos tratar esses sintomas.
Ao que parece, a Síndrome de Esgotamento parecia se assemelhar à AIDS.
Toda a tosse dela até o momento devia ser um sintoma. Foi por isso que
nossa magia de desintoxicação foi eficaz em tratar seus sintomas superficiais,
mas em momento algum se livrou do problema.
— Você não pode absorver a mana do corpo dela ou algo assim? —
perguntei.
— Não sou capaz de fazer isso.
— E não conhece ninguém que possa?
Yuruzu balançou a cabeça lentamente.
— Ah, bem, então…
Eu me perguntei se havia alguma outra maneira de drenar o excesso de mana
do corpo. Por exemplo, poderíamos fazer um implemento mágico com tais
propriedades. Decerto nossa capacidade de fazer tais objetos progrediu nos
7.000 anos desde o aparecimento da Síndrome de Esgotamento. O que
podíamos fazer? Poderia usar a Pedra de Absorção de Mana para purificá-la?
Nem, essa coisa não é capaz de absorver mana de dentro do corpo de uma
pessoa. Embora eu tenha a sensação de que não é impossível usar dessa
forma. Talvez devêssemos fazer algo em vez disso? Mas quanto tempo
levaria para fazer algo com essas coisas? E não há nenhuma garantia de que
isso funcionaria. Merda.
— De qualquer forma, vou ver como Nanahoshi está — falei, caminhando
até a porta. Os outros logo me seguiram.
A enfermaria estava deserta. Tinha a mesma mobília dos quartos de
hóspedes, mas o interior era feito de pedra e sem janelas. Uma espécie de
mesa de operação ficava no centro da sala, e também havia um gabinete
contendo uma faca, bandagens e outros suprimentos médicos.
O silêncio pairava no ar.
Nanahoshi estava em uma cama no canto do quarto. Todo o sangue que havia
expelido tinha sumido. Em algum momento, Sylphie e Yuruzu lhe deram um
vestido branco imaculado, como se fosse algum tipo de paciente de hospital.
Por fora, não havia indicação de que estava em perigo, mas a vida parecia ter
sido drenada dela.
— Nanahoshi? Você está bem?
Ela olhou para mim.
— Pareço bem para você?
Não, ela não parecia. Seu rosto estava mortalmente pálido e havia olheiras.
Só de olhar já dava para ver que estava doente. Talvez os poderes de
Redenção de Yuruzu também estivessem drenando o paciente.
A propósito, a cama ao lado da Nanahoshi estava vazia. Yuruzu levou
Sylphie para seu quarto de hóspedes assim que entramos. Vi Sylphie
passando, e ela parecia fraca. Esteve ajudando no tratamento de Nanahoshi
nos últimos quatro dias. Embora não tivesse ficado sem comida e água, ainda
teve um impacto notável em sua constituição.
— Yuruzu disse que não podem me curar.
— Eu sei — falei enquanto me sentava ao lado dela. Parecia que a Senhorita
Yuruzu não tinha escondido nenhum detalhe de Nanahoshi. — Bem, tenho
certeza que você vai melhorar logo.
— Nós dois sabemos que não vou. — Ela voltou o olhar para a parede e ficou
quieta.
Talvez dizer isso tenha sido um pouco imprudente da minha parte.
Depois de um longo e prolongado silêncio, Ariel e os outros tentaram
conversar com Nanahoshi. Alguns deles tentaram consolá-la, alguns a
encorajaram a manter o ânimo e outros prometeram que ela iria melhorar em
breve. Todos estavam apenas tentando melhorar o humor dela, mas,
infelizmente, em momentos como este, às vezes isso tem o efeito oposto.
Para quem sente dor, não há nada mais desprezível do que uma garantia
vazia.
Nanahoshi não respondia a nada, então todos eventualmente ficaram sem o
que dizer. Um silêncio opressor permeou o ar, sufocando a atmosfera.
— Bem, então, Nanahoshi, eu devo voltar para o meu quarto. Virei para te
ver de novo — disse Ariel. Ela foi a primeira a sair, e os outros logo
seguiram atrás dela.
Cliff demorou. Foi apenas com a sugestão de Elinalise que enfim desocupou
o quarto. Quando saíram pela porta, eu a ouvi dizer:
— Não há palavras que possamos oferecer a ela.
Fui o único que restou. Não sabia por que tinha ficado, mas senti que
precisava estar junto com ela, que seria perigoso deixá-la sozinha. Não havia
nada que eu pudesse dizer a ela, no entanto. Não quando estava sofrendo de
algo incurável. Qualquer coisa que eu dissesse seria inútil.
Nanahoshi devia estar repleta de ansiedade. Sua pesquisa sobre magia de
invocação estava indo pelo caminho certo. Ela ficou estagnada no primeiro
estágio, mas avançou além do segundo e chegou ao terceiro estágio. A julgar
pelo que Perugius disse, ela já tinha tudo de que precisava para passar para o
próximo estágio. Eu não fazia ideia de quão perto ela estava do quinto estágio
de sua pesquisa, mas se as coisas continuassem do jeito que estavam,
provavelmente poderia ir para casa em mais ou menos em um ou dois anos.
Mas assim que as coisas finalmente começaram a melhorar para ela, isso
aconteceu. Foi como um diagnóstico de câncer. Mesmo que o câncer não
fosse mais considerado intratável em meu mundo, a taxa de mortalidade
continuava bastante alta. Foi o suficiente para encurralar Nanahoshi e enchê-
la de desespero.
Não seria surpreendente se ela explodisse novamente. Se de fato fosse
verdade que essa doença não tinha cura, então não havia um futuro à sua
frente. Se isso significava que nunca poderia voltar para casa, então talvez
merecesse o direito de ficar furiosa. Talvez se liberasse sua fúria até que não
houvesse mais nada, pudesse se acalmar e encontrar uma maneira de
aproveitar o pouco tempo que lhe restava. Se decidisse extravasar, eu ficaria
ao lado dela até o fim.
— Para começar, nunca tive um corpo forte, sabe — disse Nanahoshi com
um suspiro enquanto eu permanecia sentado em silêncio. Sua voz soou mais
alegre do que eu esperava, mas era do tipo vazio e insincera. — Eu não diria
que sou do tipo doente, mas pegava pelo menos um resfriado por ano.
Fiquei quieto e ouvi enquanto suas palavras saíam.
— Minhas notas eram boas, mas eu não era muito atlética. Preferia ficar
dentro de casa.
Após uma breve pausa, mudou de assunto.
— Este mundo não fez muito progresso na frente médica, não é?
Quando não respondi, ela continuou:
— Talvez seja porque dependem muito da magia neste mundo, mas você
sabia que as pessoas daqui nem mesmo lavam suas feridas depois de se
machucarem? Como resultado, muitos recebem o tratamento tarde demais e
morrem ou perdem um membro. Idiotas, não acha? Apenas limpar as feridas
com água já preveniriam que tais infecções acontecessem…
Esperei e ela mudou para um assunto diferente.
— Desde que percebi que não posso usar magia, tenho tomado uma série de
precauções. Evito lugares lotados para não contrair doenças. Também me
recuso a comer alimentos que desconheço.
Essas pausas continuaram, intercaladas com seus pensamentos aleatórios.
— Posso parecer muito doente, da sua perspectiva, mas na verdade tenho
feito exercícios no meu quarto. Tenho estado o mais em forma que posso, à
minha maneira. Quer dizer, eu sabia que se ficasse doente, poderia não ser
tratável. Na verdade, imaginei que provavelmente seria incurável. E
provavelmente seria alguma doença da qual eu nunca tinha ouvido falar
antes.
“Para começo de conversa, não acha que este mundo é muito estranho?
Existem monstros aqui, pesados o suficiente para te esmagar, e eu não sei se
é a magia ou o quê, mas este mundo parece ignorar as leis da física. Tipo,
beleza, claro, achei este lugar muito legal quando cheguei. Na verdade, eu
mesma já joguei alguns videogames e não posso dizer que odeio espadas,
magia e outras coisas do tipo. Estaria mentindo se dissesse que não acho isso
empolgante. Parte de mim uma vez sentiu inveja de você por ser capaz de
reencarnar em um mundo como este…”
A voz dela sumiu de repente, os ombros tremendo. Lentamente, ela virou o
rosto para mim. Seus olhos estavam vermelhos e inchados enquanto se
enchiam de lágrimas.
— Não quero morrer.
As lágrimas começaram a cair, uma após a outra, como se uma represa
tivesse estourado dentro dela.
— Não quero morrer em um lugar como este! Não neste mundo bizarro e
estranho! Por quê?! Merda, por que isso está acontecendo comigo?! Não faz
sentido algum! Sabia que o meu corpo não mudou em nada nos últimos oito
anos? Eu não cresci mais e meu cabelo está do mesmo comprimento de
sempre! Mas meu estômago ronca e, se eu comer, ainda faço cocô. Mesmo
assim, minhas unhas não crescem e eu também não menstruei mais!
Ela agarrou um jarro ali perto, então o arremessou para o outro lado do
quarto. Atingiu a parede oposta e se espatifou, espirrando água por todo o
chão.
— Eu não sou um humano deste mundo! Não estou vivendo aqui! Sou como
um cadáver ambulante! Então, por quê? Por que posso ficar doente?! Isso não
faz sentido. Por que isso tem que acontecer comigo? Não quero morrer! Não
quero morrer neste mundo estúpido e estranho!
As lágrimas surgiram cada vez mais rápidas enquanto ela chorava.
— Quer dizer, nem beijei ninguém! Ainda não disse ao cara que amo como
me sinto! Sinto tanta inveja de você. Você aproveita cada dia, vivendo cada
momento ao máximo. O que você tem para se sentir triste? Ah, então seu pai
morreu e sua mãe está gravemente doente? E daí? Quem liga! Não vou nem
ver meu pai antes de morrer. Minha mãe nem vai saber que eu sumi. Sinto
falta deles, tanto da minha mãe quanto do meu pai!
“Ainda me lembro da manhã antes de me teletransportar para cá. Meu pai
disse que voltaria para casa mais cedo naquele dia, e minha mãe disse que iria
fazer peixe grelhado para o jantar. Eu disse a ele que tinha amigos indo lá pra
casa, então preferia que não voltasse para casa mais cedo, e disse à minha
mãe que estava enjoada de peixe. Por que… por que eu disse essas coisas?
Tenho certeza de que os dois estão muito preocupados. Sinto falta deles.
Quero ir para casa. Não quero morrer. Não quero morrer aqui…”
Ela colocou os braços em volta das pernas, enfiando o rosto nos joelhos. Um
choro abafado soava, junto com soluços e gritos tristes.
A dor em sua voz foi como uma adaga em meu coração. Quando vim a este
mundo, provavelmente não teria empatia por ela. “Sinto falta deles. Quero ir
para casa. Quero ver minha família novamente”. A pessoa que eu era naquela
época ficaria perplexa se alguém dissesse essas coisas. Eu teria pensado: Eh,
esqueça-os de uma vez e aproveite o novo mundo em que você está.
Agora as coisas eram diferentes. Compreendia ela querer voltar para casa e
ver sua família de novo. Sabia o quão preciosos aqueles dias aparentemente
monótonos podiam ser. Depois que eles passam, é impossível recuperá-los.
Impossível mesmo.
Paul estava morto. As memórias de Zenith podem nunca mais voltar. A
calorosa família que eu conhecia de Buena Village se foi. No entanto, em seu
lugar, agora eu tenho uma nova família para proteger: Sylphie, Roxy, Lucie,
Lilia, Aisha, Norn e Zenith. Se eu fosse de alguma forma separado das
minhas garotas para sempre, isso iria rasgar meu coração ao meio. Se alguma
delas desaparecesse, eu iria até os confins da terra para encontrá-la
novamente. E se eu fosse transportado de volta para o meu antigo mundo, não
importaria se eu pudesse usar magia lá ou se chovessem garotas na minha
horta para me encherem de afeição. Eu ainda estaria decidido a voltar para
este mundo.
— Hic… hic… — O corpo inteiro de Nanahoshi tremia enquanto ela
apertava os joelhos com os braços.
Ela nunca tinha se aproximado mais do que era absolutamente necessário de
Zanoba, Cliff ou Sylphie, mas sempre me ouviu. Quando eu lhe pedia algo,
ela ajudava. Quando eu dava uma festa, ela comparecia. Parando para pensar,
nunca me tratou mal. Ficava um pouco animada sempre que falávamos em
japonês. Como a única pessoa que falava sua língua materna, eu era seu único
porto seguro.
— Por favor, alguém, me salve… — Nanahoshi chorava baixinho.
Levantei da minha cadeira.
Voltei para a sala com a mesa redonda para encontrar Perugius ainda sentado
lá dentro. Todos seus familiares haviam partido. Ele estava lá, sozinho, como
se estivesse esperando por mim.
— O que foi? — perguntou ele.
— Eu vou salvá-la. Apreciaria muito se você pudesse me dar qualquer ajuda,
mas não vou pedir mais do que está disposto a dar.
Suas sobrancelhas levantaram em surpresa, mas ele acenou com a cabeça.
— Oh? Vai procurar uma maneira de salvá-la?
Ele olhou fixamente para mim, como se tentasse verificar o quão sincero eu
estava sendo e o quão determinado estava. Senti ceticismo nele, como se
achasse que eu não faria nada a menos que isso me beneficiasse, mas eu não
era do tipo calculista. Já que não tinha nada a esconder, encarei-o de volta.
— Muito bem — disse ele. — Eu também ficaria magoado em vê-la morrer.
Ótimo, já decidi o que vou fazer, mas agora, por onde começo?
Trata-se de uma doença extinta há mais de 7.000 anos. Nenhum de nós tinha
ideia de como poderíamos encontrar uma cura para ela. Tudo o que sabíamos
com certeza era que a magia de desintoxicação e a magia de cura eram
ineficazes. Perugius teria dito algo se a cura fosse tão simples.
Talvez um implemento mágico? Mas também não faço ideia se isso
funcionaria.
Se estivéssemos procurando por um implemento mágico que pudesse afetar
alguém internamente, Cliff havia arquitetado um para Elinalise. No caso dela,
ele o aprimorou ao longo do tempo enquanto verificava sua eficácia, mas,
mesmo assim, não tinha acabado com a sua maldição.
Ainda assim, talvez pudéssemos fazer o mesmo com Nanahoshi e trabalhar
aos poucos em sua condição enquanto adicionássemos melhorias ao
dispositivo. Isso, no entanto, exigiria que monitorássemos sua constituição
quanto às mudanças ao longo do tempo, e Nanahoshi provavelmente não tem
muito tempo. Ela vomitou sangue durante as crises. Yuruzu curou os
sintomas superficiais, mas sem dúvida reapareceriam em breve. Pode ser que
não sobreviva ao próximo surto. Além disso, com seu corpo congelado no
tempo, não havia oportunidade para fazermos experimentos.
Portanto, não poderíamos usar um implemento mágico. Talvez pudéssemos
fazer um eventualmente, mas agora precisávamos de algo com efeitos
imediatos. Talvez alguém conhecesse tal tratamento, como o Deus Homem
ou Orsted. Eles eram os candidatos mais prováveis em minha mente. O
problema é que eu não tinha como entrar em contato com o Deus Homem.
Com um pouco de sorte, ele poderia me visitar em meus sonhos nesta noite e
dar seus conselhos, mas nossa comunicação era inteiramente por lazer; eu
não tinha como entrar em contato. Além disso, não tínhamos tempo para
esperar e torcer para que aparecesse.
— Lorde Perugius, há alguma maneira de entrarmos em contato com o Deus
Dragão Orsted? — perguntei.
— Não. Não sei sua localização atual.
Então, até mesmo Orsted estava fora de nosso alcance.
— Em qualquer caso, também duvido que ele saiba de uma solução. Ele
apareceu neste mundo há apenas cerca de 100 anos. Por mais sábio que seja,
não teria como saber sobre uma doença de 7.000 anos atrás.
Orsted tinha cerca de 100 anos então, hein? Achei que já existia há mais
tempo. Comparado a Perugius, ele era muito jovem. Mesmo que ainda fosse
muito mais velho do que eu.
— Tudo bem, mas quem no mundo saberia sobre uma doença de 7.000
anos… — Minha voz foi parando.
Espere. Existe alguém assim. Acabei de lembrar.
Sim, de fato. Existe alguém que viveu todo esse tempo. Eu não tinha a
impressão de que saberia muito sobre doenças e afins, mas não custava nada
perguntar.
— Na verdade — falei —, há alguém que me vem à mente.
— Oh?
Dito isso, eu não tinha ideia de como encontrar essa pessoa. A última vez que
nos encontramos foi inteiramente por coincidência, e nos separamos não
muito depois de nos encontrarmos. Nossa conexão era pouca, além de não ter
meios de contato.
Ainda assim, precisava fazer algo. Nada mudaria se ficasse esperando.
— Seria possível você me mandar para o Continente Demônio?
— Continente Demônio? E o que planeja fazer lá? — perguntou Perugius.
Só nos vimos uma vez no passado. Aparentemente, também se encontrou
com Roxy, mas ninguém sabia onde estava. Mesmo assim, eu sabia o nome
dele — ou melhor, o nome dela — há muito tempo, tendo estudado sobre
suas façanhas quando morava na Região de Fittoa. Nunca esquecerei nosso
encontro.
— Eu gostaria de rastrear o Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika
Kishirisu.
Kishirika, esse era o nome da mulher responsável pela primeira Grande
Guerra Humano Demônio que aconteceu há 7.000 anos.

Capítulo 5: Retorno ao Continente Demônio


Nosso plano era simples. Primeiro, Perugius nos levaria ao Continente
Demônio. Em seguida, começaríamos nossa busca por Kishirika e
perguntaríamos se ela sabia como curar a Síndrome de Esgotamento ou, caso
não soubesse, se conhecia alguém que saberia.
É isso, bem simples.
Ou pelo menos seria se ela estivesse escondida em algum castelo por aí como
Perugius. Infelizmente, Kishirika tendia a vagar pelo continente, então
precisaríamos de sorte para encontrá-la. Eu não fazia ideia de quanto tempo
isso levaria.
A situação não era de todo ruim, pelo menos. Perugius disse que faria um
círculo de teletransporte que nos levaria a um dos pontos centrais do
Continente Demônio. Simplificando, seremos teletransportados
instantaneamente deste castelo para a maioria das cidades no Continente
Demônio. Eu estava bem ansioso com o tempo de viagem, então essa seria
uma preocupação a menos, felizmente. Com alguma sorte, poderíamos
encontrar Kishirika dentro de uma semana.
Os círculos de teletransporte eram um pouco assustadores, no entanto. Seu
poder nos permite viajar instantaneamente deste castelo no céu para qualquer
cidade do mundo. Isso significava que, como ferramenta de guerra, poderiam
deixar os exércitos contornar qualquer terreno ou defesa. Não que alguém
tentasse invadir esta fortaleza. Ainda assim, eu podia entender a razão dessa
magia ser considerada proibida e o porquê de Orsted e Perugius só a usar em
segredo.
Não, tenho certeza de que eles não são os únicos usando. Sem dúvida, havia
outros feitiços e ferramentas que as pessoas usavam em segredo, apesar de
serem proibidos. O mundo era assim.
Não tive escrúpulos em trapacear e usar tal magia para acelerar minha busca
por Kishirika. Estaríamos usando a estratégia de Roxy quando ela foi para o
Continente Demônio procurando por mim: visitaríamos cada cidade
individualmente e as investigaríamos minuciosamente antes de
prosseguirmos. Eu não tinha certeza de quanto tempo isso levaria, mas
imaginei que terminaríamos em, talvez, um ano. Afinal, a viagem levaria
apenas um dia.
O único problema que enfrentávamos era de passar um pelo outro enquanto
marchávamos para a próxima cidade e Kishirika para a que tínhamos acabado
de desocupar. Para se prevenir disso, eu pegaria uma ideia de Roxy e
colocaria pedidos em cada Guilda de Aventureiros que passássemos, tudo
para reduzir as chances de isso acontecer. Seria uma caça ao tesouro, por
assim dizer. Pagaríamos uma bela recompensa a qualquer um que
conseguisse encontrar e capturar a Grande Imperador Demônio. Com a
condição de que a deixassem ilesa, é claro.
Reuni os outros: Ariel, Luke, Cliff, Elinalise, Zanoba e Sylphie, e expliquei
meu plano a eles.
Sylphie tinha recuperado a consciência enquanto eu estava falando com
Perugius. No entanto, era óbvio que esses tratamentos a afetaram. Ela já era
bastante magra, mas agora parecia quase esquelética. Achei que precisaria de
pelo menos cinco dias para recuperar suas forças.
— Para salvar Nanahoshi, gostaria que todos vocês ajudassem — falei.
Ariel imediatamente acenou com a cabeça.
— Se é isso que você deseja, terei o prazer de emprestar meus implementos
mágicos. — Ela ofereceu um dos anéis que usava. Era um de um par, e
derramar mana em um faz a joia do outro anel iluminar-se. Era um tesouro
secreto do Reino Asura, usado para alertar a pessoa do outro lado a respeito
do perigo. Eu não sabia ao certo para que iria usá-lo, mas certamente seria
útil em algum momento. Algo parecido com um pager.
— Zanoba, Senhorita Elinalise, gostaria que viessem comigo.
Queria os dois como guarda-costas. Afinal, Zanoba era uma Criança
Abençoada. Se acontecesse de enfrentarmos uma hidra novamente, ele com
certeza lidaria com isso. Eu não conseguia criar uma Aura de Batalha, então
minhas defesas físicas eram muito fracas. Era somente graças a Atrapalhar
Magia e a Pedra de Absorção de Mana que minha defesa mágica era elevada.
Com Zanoba em nossa vanguarda, teríamos uma chance caso enfrentássemos
outra hidra. Claro, eu ficaria arrasado se meu excesso de confiança levasse à
sua morte, e foi por isso que adicionei Elinalise para me apoiar.
— E quanto a mim? — perguntou Cliff.
— Gostaria que você criasse um implemento mágico.
Falando francamente, não havia garantia de que Kishirika saberia qualquer
coisa sobre essa doença ou de que encontraríamos uma cura. Era possível que
estivéssemos apenas perdendo tempo. Portanto, achei que deveríamos
abordar a situação de vários ângulos. A doença de Nanahoshi era semelhante
a uma maldição, se Cliff trabalhasse em sua pesquisa, poderia ser capaz de
fazer um item capaz de prolongar a vida dela.
— Não — disse ele. — Eu vou com você!
Cliff se opôs totalmente à minha ideia.
— Por favor, me leve junto! Também quero fazer algo por Nanahoshi!
Sua pesquisa seria fazer algo por ela, mas ele queria ser mais pró-ativo. Isso
era compreensível. Fazer a mesma pesquisa de sempre não daria a mesma
sensação de realização.
Cliff continuou:
— Eu te imploro, Rudeus. Entendo o sentimento dela de querer voltar para
casa.
Pensando bem nisso, Cliff estava longe de sua casa por um bom tempo. Ele
era bastante baixo para sua idade, então parecia ter apenas quinze anos, mas,
na realidade, já tinha dezenove. Acho que ele tinha dito que deixou o País
Sagrado de Millis há cerca de seis ou sete anos.
O desejo de Cliff de ir para casa não era exatamente o mesmo de Nanahoshi,
visto que ela era de um mundo totalmente diferente, mas ele podia sentir
alguma empatia, pelo menos em algum nível.
— Tudo bem — falei finalmente.
— Sério?!
Já estava levando Elinalise comigo e, com Nanahoshi tendo seu tempo
congelado, havia um limite para a quantidade de pesquisas que Cliff poderia
fazer, de qualquer maneira. Não precisava forçá-lo a ficar e trabalhar
enquanto saímos em uma busca. Ele poderia retomar sua pesquisa se
voltássemos de mãos vazias ou se não conseguíssemos encontrar Kishirika no
final, e nós o apoiaríamos de todas as maneiras que pudéssemos.
— Sim, Mestre Cliff, ficaria feliz em tê-lo comigo.
Nesse caso, precisávamos encurtar nosso tempo de busca a fim de tornar a
mudança para a pesquisa de uma cura o mais tranquila possível, presumindo
que nossa rota atual de investigação falhasse. Cerca de seis meses a um ano
deveriam ser suficientes.
— E quanto a mim? O que devo fazer? — perguntou Sylphie, seu rosto
pálido. Ela ainda não tinha recuperado as forças, então não tinha como ir
conosco. Além do mais…
— Sylphie, quero que descanse por enquanto.
— Claro, mas depois disso, o que eu faço?
— Quando você terminar de se recuperar… — Hesitei. Finalmente, falei: —
Gostaria que voltasse para casa e cuidasse de Lucie.
— Hein? — Seu rosto ficou turvo.
Me apressei a explicar:
— Posso não ser capaz de voltar para casa tão cedo. Não acho que seja bom
para uma criança ficar longe dos pais por tanto tempo.
Não estava dizendo que uma criança precisava necessariamente dos pais para
um desenvolvimento infantil adequado, mas Paul e Zenith foram a razão de
eu ter crescido desse jeito. Era melhor para uma criança ter pais para cuidar
dela. Era normal que seus pais saíssem por uma ou duas semanas, mas deixar
uma criança sem os pais por meses a fio, não.
— Hm, certo. — Sylphie cedeu — Acho que tem razão. Se você não estiver
por perto, cabe a mim cuidar dela.
— Sinto muito.
— Não, está tudo bem.
Eu já tinha dito a ela que a condição de Nanahoshi não era sua culpa, mas
estava claro que Sylphie ainda queria ajudar.
— Sylphie, você já fez mais do que o suficiente. Eu cuido do resto, confie em
mim.
— Eu sei… — Ela assentiu, embora ainda parecesse desapontada.
Não era como se ela não amasse Lucie, mas Sylphie cuidava de si mesma
desde os 10 anos, graças ao Incidente de Deslocamento. Seus pais morreram
antes mesmo de terem a chance de se reunir. Ela sobreviveu em grande parte
por causa da sorte e das pessoas que conheceu ao longo do caminho, mas
ainda dava duro em seu trabalho e se esforçava muito em nosso casamento.
Talvez ela achasse que uma criança ficaria bem sem os pais. Ou talvez fosse
uma crença mais difundida neste mundo, de que uma criança nem sempre
precisa de uma mãe e um pai cuidando dela.
De qualquer forma, Sylphie ainda tinha apenas 18 anos. A maneira de pensar
das pessoas não muda repentinamente no momento em que arrumam filhos.
Em vez disso, amadurecem ao longo dos anos, à medida que criam esses
filhos. Quando eu tinha dezoito anos, na minha vida anterior, nunca pensei
em ter um filho. Nesse aspecto, Sylphie estava tendo um desempenho
fantástico.
— Acho que Roxy terá algumas coisas para dizer a você se estiver indo para
o Continente Demônio — avisou Sylphie. — Não há ninguém entre nós mais
familiarizado com aquele lugar do que ela.
— Você está certa sobre isso. Se eu tiver qualquer problema enquanto estiver
lá, irei consultar a Roxy quando voltar.
Ela não estava presente. Eu adoraria receber seu conselho, mas Perugius não
tinha intenção de deixar um demônio visitar o local. Ele rejeitou a ideia
quando tentei abordá-lo sobre isso.
Ao mesmo tempo, Roxy precisava pensar em sua carreira como professora.
Depois de passar por todos aqueles problemas para ganhar sua posição, seria
uma vergonha para ela ser demitida depois de apenas um ano. Eu queria
salvar Nanahoshi, mas não à custa de tudo que havíamos construído como
família. Nossas vidas também eram importantes. Era por isso que eu
precisava de Sylphie e Roxy para cuidar de todos os outros e manter as coisas
funcionando perfeitamente.
Certo, parte disso provavelmente era o meu ego falando. Minhas palavras não
eram exatamente sabedoria obtida ao longo de eras, mas, mesmo assim, não
queria Roxy e Sylphie caminhando para o perigo. Queria nunca mais
testemunhar a morte de alguém que amo, não depois de Paul. Nenhum lugar
neste mundo era totalmente seguro, mas o Continente Demônio era muito
mais perigoso do que a Cidade Mágica de Sharia.
— Por favor, não perca um braço ou qualquer outra coisa desta vez, tá? —
Sylphie franziu as sobrancelhas, preocupada.
— Vou tomar cuidado.
Era exatamente por isso que estava levando Zanoba e Elinalise comigo.
Embora se algum deles estivesse em perigo mortal, eu prontamente
sacrificaria meu braço direito para salvá-los. De preferência, não minha
própria vida, não se pudesse evitar.
Bem, tanto faz. Desta vez as coisas correriam muito melhor, eu tinha certeza.
Voltei para casa mais uma vez para explicar a situação para Roxy e o resto da
minha família. Quando disse a elas que não voltaria para casa por um tempo,
Aisha, em particular, pareceu ansiosa. Felizmente, desta vez seria muito mais
fácil ir e vir, e eu planejava voltar para vê-las a cada poucos dias, parecia
mais uma viagem a negócios do que uma ausência prolongada. Só falei que
talvez demoraria um pouco para voltar, caso algum imprevisto aparecesse.
Havia a possibilidade de que nosso círculo de teletransporte fosse desativado,
então levaríamos muito tempo para voltar para casa.
— Tudo bem, vou deixar as coisas aqui com você.
— Tudo bem, tome cuidado, Rudy — disse Roxy.
Achei que ela iria insistir em ir junto, mas concordou em ficar para trás
depois de ouvir todos os detalhes. Foi um pouco anticlimático, na verdade.
De qualquer forma, eu estaria viajando de um lado para o outro a partir da
fortaleza flutuante, mas era importante me preparar para o inesperado; nunca
se sabe o que pode acontecer. Perugius nos disse que mesmo se fôssemos
incapazes de usar o círculo de teletransporte para retornar à fortaleza,
poderíamos usar um certo implemento mágico na frente de um dos
monumentos aos Sete Grandes Poderes e ele enviaria alguém para nos
resgatar. Não que eu não confiasse nele, mas nunca se sabe o que poderia
acontecer. Talvez Laplace ressuscitasse no segundo após nossa partida, se
isso acontecesse, Perugius estaria muito ocupado para se preocupar conosco.
Com essas possibilidades em mente, peguei uma grande quantia em dinheiro
e itens com os quais poderíamos negociar, bem como um mapa das ruínas de
teletransporte. Poderíamos voltar do Continente Demônio dentro de seis
meses, contanto que tivéssemos todas essas precauções. Também coloquei
vários itens úteis em minha bagagem, incluindo alguns pergaminhos de
Espíritos Luz de Lâmpada. Meus preparativos estavam em ordem.
O círculo de teletransporte na fortaleza de Perugius estava localizado abaixo
do nível do solo.
— Por aqui — disse Sylvaril enquanto nos guiava para uma sala no terceiro
andar do porão. A porta estava trancada quando fomos explorar.
O interior estava escuro, mas o brilho pálido do círculo impedia que a
escuridão nos engolisse.
— Lorde Perugius desenhou este círculo recentemente. Está ligado a um
círculo no Continente Demônio que há muito tempo não é usado.
— O que você quer dizer com “há muito tempo não é usado”?
— Existem muitos círculos de teletransporte no mundo cujas conexões
foram, por qualquer motivo, destruídas, deixando-os inativos.
Os círculos de teletransporte só funcionavam enquanto ambos os lados
estivessem conectados. Vinculando seu círculo a um que havia se
desconectado, ele poderia restaurar sua funcionalidade. O círculo em questão
era provavelmente um dos muitos que tiveram tal destino.
— E Lorde Perugius sabe de todos os círculos de teletransporte por aí?
— Ele é poderoso e magnânimo — respondeu Sylvaril com orgulho.
Honestamente, seria mais útil criar um monte de novos círculos de
teletransporte vinculados aos antigos. Certo, tal magia era proibida, para
começar, e eu tinha certeza que ele não me ensinaria. Além disso, brincar
com essas coisas por motivos egoístas só me renderia mais inimigos, e esse é
um pensamento assustador. Não preciso ser ganancioso.
Além disso, não poderia esquecer que qualquer pessoa conseguiria usar esses
círculos, não apenas eu. Sempre seria possível que um monstro temível
pudesse tropeçar em um dos círculos. Se eu criasse um monte sem levar em
conta as consequências, isso poderia levar à destruição de uma aldeia inteira.
Se isso acontecesse, eu não conseguiria dormir à noite.
— Lorde Perugius disse que este círculo o levará a um lugar próximo a
Grande Imperador Demônio — disse Sylvaril.
— Espera, então ele sabe onde ela está?
— Claro.
Ah, certo, que surpresa. Achei que ele simplesmente nos mandaria para uma
cidade grande e teríamos que resolver tudo por conta própria.
— Dito isso, há uma possibilidade de que seus cálculos estejam incorretos.
— Sim, isso não é de surpreender — murmurei. Afinal, a Imperador
Demônio que eu conhecia era bastante imprevisível. Justamente quando se
pensava que iria encontrá-la em um lugar, ela vagaria para outro lugar. Neste
aspecto, seu noivo era igual.
Ah, é mesmo, esqueci do Badigadi.
Não o via há algum tempo. Talvez já tivesse voltado para seu próprio
território. Parecia que ele também tinha vivido muito tempo, então perguntar
a ele sobre a síndrome também poderia não ser má ideia.
— Tudo bem — falei —, vamos verificar, de qualquer maneira.
— Não verificamos seu destino, existe a possibilidade de que o círculo na
outra extremidade esteja localizado em um local sem saída. Por favor, seja
cauteloso.
— Quer dizer que você acha que está fechado?
— Possivelmente. A fim de ocultar sua localização, alguém pode ter selado a
entrada.
Bem, ela tinha um bom ponto. Se não houvesse entrada para o local, ninguém
jamais o descobriria. Havia pessoas lá fora que procuravam portas
escondidas, mas eram poucos que circulavam por todo canto brandindo uma
picareta contra as paredes. As únicas pessoas que cavavam sem parar quando
encontravam algumas ruínas antigas eram os Egiptólogos.
Quem sabe, talvez tenham ladrões de túmulos e arqueólogos aqui que saem
roubando ruínas de teletransporte e eu simplesmente não sabia sobre isso.
Dei de ombros.
— Bem, se parecer que não podemos passar, voltaremos aqui.
— Desejo-lhe boa sorte.
Sylvaril permaneceu na sala enquanto nosso grupo saltava para o círculo
mágico e se teletransportava para longe.
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Quantas vezes eu já tinha me teletransportado assim? Uma vez durante o
Incidente de Deslocamento, duas vezes indo e voltando de Begaritt e uma vez
usando instrumentos mágicos para visitar o castelo de Perugius. Esta
excursão foi o passeio número cinco. Estava finalmente me acostumando
com a sensação, que era como acordar de um sonho.
— Ufa.
O lugar para onde nos teletransportamos era uma sala escura, o fedor de mofo
e poeira pairava pelo ar. O que quer que este lugar fosse, estava abandonado
há muito tempo. Não havia luz nem velas que pudéssemos usar, era
realmente como uma ruína antiga.
Pensando bem, esqueci de perguntar exatamente onde o círculo nos levaria.
— Atchim! — Cliff espirrou atrás de mim.
Olhei para trás enquanto os outros três saíam do círculo. Elinalise estava
totalmente imperturbável. Zanoba também caminhou com confiança. Cliff era
o único que parecia intrigado com o processo de teletransporte.
— O ar daqui com certeza está mofado. Vamos deixar este lugar logo. —
Zanoba deu o pontapé inicial em nossa busca por uma saída.
— Hm… — Examinei as paredes. Não havia portas, escadas ou buracos no
teto que pudéssemos usar para rastejar para fora. Para minha tristeza,
procurar no chão também não resultou em nada. Estávamos em uma sala
trancada.
Então era isso que ela quis dizer com “fechado”. Sylvaril acertou em cheio.
— Ei. Então, uh, como você acha que vamos sair daqui? — perguntei.
— Hm.
Nosso grupo se separou e começou a procurar uma saída. Olhamos para
cima, para baixo, esquerda, direita, esquerda, direita, de B a A…
Basicamente, olhamos em todos os lugares e mais um pouco.
— É isso — anunciou Elinalise após alguns minutos de busca. Ela havia
encontrado uma parede adjacente a outra sala. Bateu e ouviu o eco, o que
significava que levava a algum lugar. As paredes eram tão grossas que eu não
conseguia ouvir nada. Acho que não é nenhuma surpresa que elfos tenham
uma audição superior.
— Certo! Hora de socar, Zanoba!
— Hmph! — Ele bateu com o punho na parede que, apesar de ter cerca de 50
centímetros de espessura, ainda cedeu, revelando uma pequena abertura.
Zanoba continuou alargando a passagem, cravando o punho na parede com a
mesma facilidade de uma criança derrubando um castelo de areia. Uma vez
que ficou largo o suficiente para alguém passar, Elinalise entrou.
— Vou assumir a liderança.
Essa nova abertura levou a outro espaço aberto, também escuro feito breu.
Era de se esperar, já que a estrutura era toda de pedra, mas isso era o pouco
que sabíamos sobre o local. Não fazíamos ideia sobre estarmos acima ou
abaixo do solo.
— Rudeus, um pouco de luz — disse Elinalise.
Segui seu comando e usei um dos pergaminhos de Espírito Luz de Lâmpada.
Ele iluminou nossos arredores, revelando uma sala quadrada com cerca de
dez metros de largura.
— Ugh… — Cliff gemeu enquanto olhava ao redor. As sombras dançavam
através de vários ossos brancos no chão. Como estávamos no Continente
Demônio, talvez não fosse de surpreender que os esqueletos variassem em
forma e tamanho, fazendo-os parecer quase artificiais.
— Parece que este lugar já foi uma prisão — disse Elinalise após examinar os
restos mortais. Na verdade, havia algemas de metal enferrujadas nas mãos
dos esqueletos.
A expressão de Cliff tornou-se triste quando ele juntou as mãos.
— Qu… Que Lorde Millis lhes conceda a salvação na morte.
Segui seu exemplo, juntando minhas mãos. Saudações ao Buda Amitaba1,
saudações ao Buda Amitaba. Descanse em paz. Receio que iremos incomodá-
lo por enquanto, mas partiremos assim que pudermos.
— Tudo bem, vamos embora.
Este lugar estava coberto de ossos. Quantas pessoas foram trancafiadas aqui?
Aposto que ninguém percebeu que logo do outro lado da parede havia um
círculo de teletransporte. Espere, mas Perugius mencionou que o círculo não
estava mais conectado a nada. Talvez essas pessoas tenham sido
teletransportadas para cá e seladas com magia. Se fosse esse o caso, quem fez
isso foi terrivelmente cruel.
— Encontrei algumas escadas — disse Elinalise. — Podemos subir a partir
daqui.
Os degraus estavam no canto da sala. Ao que parece, esses prisioneiros nem
mesmo eram mantidos em celas. Ou assim pensei, até me aproximar da
escada e encontrar algumas dobradiças enferrujadas no chão. Talvez
houvesse barras de madeira para conter essas pessoas, mas apodreceram ao
longo dos milênios.
No topo da escada havia uma escotilha de metal que se abria para cima.
Elinalise verificou cuidadosamente se havia armadilhas e tentou abrir, mas
sem sorte. Havia algo pesado em cima dela, travando-a no lugar.
— Tudo bem, Robô Zanoba, é hora de explodir! — declarei.
— Mestre, o que é essa coisa de “Robô” de que você fala?
— Ah, uh, em uma das regiões que já estive, é assim que chamam os homens
com corpos de aço que possuem uma força monstruosa.
— Hahaha, então é isso que significa. Hmph!
Zanoba pressionou as mãos contra a porta e começou a arfar. Ela rangeu
quando começou a abrir. Areia caiu sobre nós.
— Guh!
— Não se preocupe — falei —, vou cuidar da areia.
— S-Sim, tudo bem, Mestre.
Usei minha magia para bloquear a queda de areia enquanto Zanoba
continuava empurrando, levantando a escotilha pesada com toda sua força.
Logo, raios de luz perfuraram as rachaduras. Aparentemente, essa era a saída.
Depois que Zanoba forçou a tampa o suficiente para que alguém pudesse
passar, Elinalise passou por nós e saiu primeiro.
— Tudo limpo.
Com essa garantia, seguimos atrás dela.
Lá fora, nos encontramos em uma inclinação íngreme. A inclinação
acentuada estava coberta com terra marrom-avermelhada, com pedras
espalhadas até onde a vista alcançava. Bem longe, havia uma floresta que
lembrava os espinhos de um peixe, uma visão única encontrada apenas no
Continente Demônio. Também localizei o que parecia ser uma Grande
Tartaruga, bem longe no horizonte.
— Então este é o Continente Demônio! — Cliff engoliu em seco, olhando
cautelosamente para o declive.
Não havia cidades próximas, pelo menos não que eu pudesse ver. Me
perguntei o quão perto realmente estávamos de Kishirika. Precisávamos
procurar a cidade mais próxima? E onde diabos estávamos? Talvez fosse
melhor voltarmos à fortaleza e perguntar.
Não, antes de fazermos isso, devemos fazer uma busca na área.
— Mestre Cliff, o Continente Demônio é enorme e perigoso. E o pior, muitos
dos monstros aqui vivem em bandos, então, por favor, tome cuidado.
— Sim, eu sei. — A expressão dele estava totalmente séria quando
concordou.
Eu quis frisar sobre este lugar ser perigoso, pois até um guerreiro habilidoso
perderia sua vida se vagasse pensando que era tão seguro quanto o
Continente Central ou o Continente Millis.
— Não há monstros por perto. Estamos seguros no momento — disse
Elinalise.
Ela não estava baixando a guarda. Queria pensar que eu também não, mas da
última vez que estive aqui, Ruijerd estava comigo. Talvez isso tivesse
suavizado minha sensação de perigo, mas eu agora poderia fazer uso de
minhas experiências em Begaritt.
— Além disso, devo avisá-lo que não há muitos fiéis de Millis aqui. A forma
de pensar deles é muito diferente da sua, então tente não começar nenhuma
briga desnecessária — falei.
— Eu já sei… — Cliff se interrompeu e pigarreou antes de continuar: —
Não, você está certo. Entendo.
Talvez eu parecesse um pouco condescendente, mas Cliff nunca esteve em
nenhum lugar com tantos demônios. Arriscar brigas por diferenças
insignificantes de opinião só causaria problemas. Não era como quando eu
estava viajando com Eris. Queria evitar o conflito, tanto quanto fosse
possível.
— Cliff não conhece a Língua dos Demônios — disse Elinalise —, então
você não terá que se preocupar.
Verdade, e Elinalise também não sabia como falar a língua. Ela e seu grupo
viajaram por este continente por quase dois anos, mas, aparentemente,
deixaram Roxy falar o tempo todo. Embora Elinalise parecesse conhecer
alguns termos sexuais, se Cliff soubesse da vida diária dela por aqui,
provavelmente desmaiaria, mas isso era por causa de sua maldição.
— Mestre!
Zanoba havia alcançado o topo da encosta e estava gritando para mim. O
conceito de ser cuidadoso provavelmente foi totalmente ignorado por ele.
Não era de surpreender, já que ele poderia cair de um penhasco e sair ileso.
— Está vendo alguma coisa? — Escalei atrás dele.
— Uau… — A borda da encosta abruptamente se transformava em um
penhasco íngreme. Arregalei os olhos de surpresa com a visão que estava
além disso.
— Ooh, isso é incrível. Então é assim que as cidades daqui se parecem. — A
voz de Cliff estava maravilhada.
Não estávamos em um penhasco comum, este era enorme. Uma cidade inteira
se espalhava abaixo de nós, aninhada dentro de uma cratera. No meio
estavam as ruínas de um castelo de ferro.
— Espera, então é aqui que ele pensa que ela está? — murmurei para mim
mesmo, mal-humorado.
Eu conhecia esta cidade. A cratera atuava como proteção natural, impedindo
a invasão de monstros. À noite, as pedras mágicas embutidas nas paredes
internas se acendiam, iluminando a cidade.
Também conhecia a origem do castelo. Já tinha sido o quartel-general da
Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika Kishirisu. O local foi
seriamente danificado em um conflito durante a Guerra de Laplace, e agora
era conhecido como o Antigo Castelo Kishirika.
Na minha última visita, esta cidade, Rikarisu, não me deixou com nada além
de memórias ruins.

Capítulo 6: Procura por Kishirika


Rikarisu foi a última cidade em que me aventurei quando estive no
Continente Demônio, junto com Ruijerd e Eris. No final, fomos expulsos
deste lugar, me deixando com um gosto amargo na boca. No entanto, minhas
experiências nela não foram de todo ruins, Rikarisu me ensinou a não pensar
demais ou me preocupar muito com as coisas.
Descemos a encosta e circundamos o perímetro da cratera, em direção à
entrada da cidade. Dois guardas estavam de prontidão exatamente como na
minha última visita. Naquela época, fiz Ruijerd usar algo sobre a cabeça.
— Ei, espere. — Cliff parou e olhou para mim. — Tem guardas aqui, vamos
mesmo ficar bem?
— Nós ficaremos bem, as cidades no Continente Demônio nunca rejeitam
ninguém.
— Certo, mas esses caras são bem intimidantes.
Ele estava certo sobre isso, pelo menos. Esses guardas estavam vestidos com
armaduras pretas e capacetes que escondiam completamente seus rostos. As
armaduras pareciam bem sinistras, com pontas afiadas. Na minha última
visita os soldados aqui não usavam esse equipamento. Talvez tivessem
mudado o uniforme desde então.
— Alto lá — disseram quando tentamos passar por eles.
— Sim, o que é? — Respondi na Língua Demônio.
— É sobre essa mulher com você… — Olharam para Elinalise.
Cliff deu um passo à frente, como se quisesse protegê-la, mas Elinalise não se
incomodou.
— O que estão dizendo?
— E aí? — perguntou um dos guardas, consultando seu parceiro. Pegaram
um folheto de papel e olharam entre aquilo e Elinalise. Dei uma espiada;
retratava uma mulher tão incrivelmente bela quanto uma súcubo. Era alta,
com seios voluptuosos e cabelos ondulados. Era em preto e branco, mas é
certo que Elinalise era um pouco semelhante. Mesmo assim, o tamanho dos
seios é totalmente diferente.
— Não é ela.
— Sim, ela não bate com o retrato.
Os guardas guardaram o folheto.
— Desculpem-nos por barrar vocês. Podem seguir em frente.
— Aconteceu algum problema? — perguntei.
— Nada que diga respeito a você.
A rejeição deles foi tão direta que seguimos nosso caminho em silêncio.
— Parece que estão procurando por alguém — disse Elinalise.
— Aparentemente sim.
Algum criminoso se refugiou nesta cidade? Bem, certamente não tinha nada a
ver conosco, mas tínhamos que tomar cuidado do mesmo jeito, pois não
queria encontrar um serial killer em um beco enquanto procurávamos por
Kishirika.
— Bem — continuou Elinalise, mudando de assunto —, o que devemos fazer
primeiro?
— Vamos conseguir algum dinheiro. Primeiro vamos para a Guilda dos
Aventureiros.
— Tudo bem.
E assim fizemos.
— Uau, este lugar é incrível.
O mercado aberto perto da entrada foi o suficiente para tirar o fôlego de Cliff.
Estava do jeito que eu me lembrava, muitas pessoas e bastante agitado, havia
aventureiros de todas as raças presentes, muitos deles montando bestas
lagartos, mas, apesar dessas diferenças, agiam da mesma forma que as
pessoas em Sharia. Os mercadores brigavam com aventureiros, os habitantes
da cidade perambulavam examinando as lojas com grande interesse e
mendigos imploravam por caridade aos donos das lojas e eram expulsos por
isso. Pode-se ver essas coisas em qualquer lugar. Cliff deveria estar
acostumado a isso, mas as diferentes raças de demônios chamaram sua
atenção.
Houve uma coisa que chamou minha atenção: soldados em armaduras pretas
estavam posicionados ao redor da cidade. Cada vez que davam uma olhada
em Elinalise, puxavam aquele folheto de papel para verificar. Era fácil dizer
que ela não era quem estavam procurando, mesmo de longe, já que nunca se
aproximaram de nós.
— Mestre Cliff, parece que sua esposa é bem popular por aqui — provoquei.
— Uh, sim. Isso vai ser um problema?
— Supondo que a Senhorita Elinalise não tenha feito nada para se meter em
problemas da última vez que esteve aqui, tenho certeza de que ficaremos
bem.
Olhei para ela, Elinalise encolheu os ombros.
— Não fiz nada de errado. — Ela se recusou a encontrar meu olhar. Talvez
não tivesse feito nada de errado, mas tinha feito algo pervertido.
A Guilda de Aventureiros continuava exatamente como eu me lembrava. O
tempo não tinha sido muito bom para ela, mas já estava dilapidada desde
aquela época. Quando entramos, instantaneamente chamamos a atenção de
todos.
Ah, que nostálgico. A última vez que estive nela, fizemos um pequeno show
que fez todo mundo explodir em risadas. Depois daquilo, as pessoas
rapidamente se familiarizaram com Ruijerd.
No final das contas, foi tudo em vão.
Os outros ocupantes rapidamente perderam o interesse por nós e se
afastaram. Um grupo com uma elfa e um bando de humanos era raro, com
certeza, mas não era o suficiente para prender a atenção das pessoas por
muito tempo.
Fomos para a recepcionista e trocamos várias moedas de ouro de Ranoa por
algumas moedas do Continente Demônio. Recebemos, em troca, quase cem
moedas de minério verde e as jogamos em nossas bolsas sem nos preocupar
em verificar a quantia. No passado, contar cada moeda era uma tarefa diária.
As coisas certamente mudaram.
Nah, tudo que mudou é que agora tenho mais dinheiro.
Depois disso, solicitamos à guilda que as pessoas procurassem Kishirika.
— Ela se parece com uma jovem de cabelos roxos e roupas de couro.
Também tem uma risada maníaca inconfundível e sai por aí se
autodenominando a “Grande Imperador do Mundo Demônio”.
Dada a natureza do nosso pedido, era uma missão de baixo escalão, mas
ainda assim acrescentei uma bela recompensa a ela. Enquanto observava a
recepcionista pregá-la no quadro de avisos, outro folheto no canto chamou
minha atenção; a busca e resgate por sobreviventes da Região de Fittoa.
O grupo de busca em Millis havia se dispersado, mas a missão ainda estava
ativa. As informações de contato também eram as mesmas, indicando as
pessoas a procurarem por Paul no País Sagrado de Millis. Se alguém
aparecesse e fizesse a jornada até Millis, ficaria bem arrasado por não
encontrar ninguém para recebê-lo. Pedi à recepcionista que mudasse as
informações de contato, em vez disso direcionando as pessoas para Alphonse
no campo de refugiados. Presumi que ele ainda estava aceitando
sobreviventes. Poderia ter colocado meu endereço, ao invés disso, mas não
tínhamos meios ou energia para cuidar de nenhum estranho que aparecesse.
— Tudo bem, terminamos por aqui.
— Qual é o próximo passo? — perguntou Cliff.
Me perguntei o mesmo. Certamente, poderíamos fazer algumas buscas nós
mesmos. Ficaríamos por uma semana e reuniríamos informações, também
poderíamos contratar algumas pessoas para ajudar a vasculhar a área. Nosso
pedido na guilda foi, para ser sincero, um tipo de seguro, para o caso de não
podermos encontrá-la pessoalmente.
— Vamos começar reunindo informações — falei.
Enquanto olhava ao redor, um homem começou a se mover em minha
direção. Ele tinha a cabeça de um cavalo.
Ah, é você. Eu não conseguiria te esquecer, mesmo se tentasse.
Era o homem que nos levou a uma armadilha. Foi por sua culpa que fomos
expulsos de Rikarisu. Bem… certo, seria exagero dizer isso, nós também
quebramos várias regras.
— Ei! — gritou Nokopara com a mesma alegria que eu me lembrava do
nosso primeiro encontro. Esse cara fazia questão de cumprimentar novatos
todos os dias, hein? Então percebi que era com Elinalise que ele estava
falando.
— Já faz um tempo, hein? Você e Roxy já se separaram?
Elinalise olhou interrogativamente por um momento, até que pareceu
compreender. Ela deu um soco na própria mão.
— Ah, você é o cara que costumava ser do grupo da Roxy há muito tempo.
— O quê…?
Ele já foi membro do grupo de aventuras da Roxy? Que diabos?
Elinalise se virou para mim.
— Rudeus, por favor, traduza para mim. Esse cara é meu… bem, na verdade,
ele é conhecido da Roxy.
Com o incentivo dela, aproximei-me do homem que tentou se aproveitar de
nós há oito anos. Então ele já esteve no grupo de Roxy há muito tempo…
Isso significa que tentou fazer a mesma coisa com ela? Mas ela nunca disse
nada sobre isso.
— Ei, meu nome é Nokopara. Consegue entender o que estou dizendo?
Aparentemente, ele não se lembrava de mim. Não que eu pudesse culpá-lo;
minha aparência havia mudado drasticamente nos oito anos desde nosso
último encontro. Nokopara também… não envelheceu nada, pelo que pude
ver. Sinceramente, eu não fazia ideia de como avaliar a idade de um cavalo.
Na verdade, talvez ele tivesse problemas para distinguir os humanos por
causa de nossa raça, e foi por isso que não me reconheceu.
— Sim, Senhor Nokopara, posso falar a Língua Demônio — falei.
— Rudeus, esse cara sabe muito sobre esta cidade — interrompeu Elinalise.
— Será que pode fazer com que ele nos ajude?
Sim, eu sabia muito bem quão boas eram suas habilidades de coleta de
informações; bem como o quão persistente era. Ele ficava de olho nas
pessoas, e sua capacidade de colher informações também era inestimável. Foi
assim que quase nos pegou em sua arapuca da última vez. Podia até guardar
rancor sobre como as coisas terminaram naquela época. Em vez de
desenterrar o passado e fazer dele um inimigo, provavelmente seria melhor
esconder minha verdadeira identidade e fazer uso dele.
— Atoleiro — falei —, prazer conhecê-lo.
— Sim! Atoleiro, hein? — Ele fez uma pausa. — Espera, já te vi em algum
lugar?
— Não, não seja absurdo.
Se Eris estivesse comigo, duvido que ela seria capaz de perdoá-lo pelo que
aconteceu, mas o tempo era um luxo que eu não tinha e não estava disposto a
desperdiçá-lo desenterrando velhos conflitos. Afinal, naquela época
Nokopara não sabia que Ruijerd era um Superd, e fomos nós que baixamos
nossa guarda. Isso era água passada. Nokopara até se cagou em público da
última vez, então conseguimos um pouco de justiça com isso.
— Estamos à procura de alguém. Será que pode nos ajudar?
Ele olhou para mim por um momento antes de perguntar:
— Quanto você está pagando?
Isso me irritou. A primeira coisa que ele mencionou foi dinheiro?
Não, espera. É natural que alguém pergunte sobre o pagamento quando se
deseja que esteja prestando um serviço.
— Duas moedas de minério verde, e se você encontrá-la, te daremos mais
duas além delas.
— Quatro moedas?! — relinchou ele. — V-Você está falando sério?!
Ah, talvez eu tenha oferecido um pouco demais. Já faz um tempo, esqueci
completamente do valor do dinheiro aqui. Que seja.
— Isso porque estamos com pressa, mas devo preveni-lo de querer nos
enganar simplesmente por saber que temos dinheiro.
— Ei, vamos lá, eu nunca enganaria nenhum amigo da Roxy. Na verdade,
ficarei feliz em aceitar metade do que você ofereceu. — Ele riu, enxugando o
focinho com a mão.
Depois de fornecermos a Nokopara todas as informações de que precisava
para encontrar Kishirika, ele disse que nos contataria novamente em meio
dia, desaparecendo no tumulto das ruas da cidade.
— Você fez um bom trabalho em se segurar — comentou Elinalise depois
que nos despedimos dele.
— Segurar em quê?
— Bem, acabei de pensar… ele é o homem que armou para você antes, não
é?
Arregalei os olhos.
— Fico surpreso que saiba disso.
— Ah, sabe, um passarinho me contou quando estive aqui da última vez.
Contou que Nokopara quase morreu depois de mexer com o Fim da Linha,
mas não acho que Roxy saiba disso.
Eu não podia acreditar que Elinalise sabia. Enfim, talvez fosse mais
surpreendente se ela não soubesse. Um Superd sendo expulso da cidade era
uma grande notícia.
— Foi basicamente um acidente infeliz — falei. Em parte, foi minha culpa
por tentar escolher o caminho mais fácil. É verdade que pessoas como
Nokopara, que usavam os outros para seus próprios fins, me davam nojo, mas
eu também não era um santo. Não tinha nada que julgar os outros. Se
Nokopara não me reconheceu, tudo bem. — Não planejo me vingar ou algo
assim, embora eu não vá ser tão indulgente se ele tentar nos trair novamente.
Dizem que se você tocar o rosto de Buda três vezes, ele perderá a paciência.
Infelizmente para Nokopara, não sou nenhum Buda. Me engane uma vez e a
vergonha é sua, me engane duas e não haverá uma terceira.
— A propósito, o que foi aquilo sobre ele ter sido do grupo de Roxy?
— Ah, aquilo…
Ouvir sobre a conexão deles me deixou em conflito, não tinha a melhor
opinião sobre Nokopara, mas saber que ele passou um tempo com Roxy antes
de eu conhecê-la me deixou com um pouco de ciúmes.
Ah, bem, quem sabe, talvez fosse um cara decente quando era criança.
Afinal, não importa o quão bom alguém fosse quando garoto, não havia
garantia de que se tornaria um bom adulto.
Ainda havia muito para fazer enquanto esperávamos por Nokopara. Primeiro,
tínhamos que encontrar um lugar para ficar. Um grande número de estalagens
locais eram direcionadas a aventureiros, desde iniciantes até aqueles de nível
especialmente alto. Escolhemos o último para ficar. Por um lado, as pousadas
mais luxuosas eram mais seguras, além disso, a taxa de câmbio indicava que
mesmo os quartos mais luxuosos eram bem baratos para mim.
— Isso com certeza desperta algumas memórias.
Enquanto procurávamos um lugar para ficar, passamos pela Pousada Garra de
Lobo, onde eu havia me hospedado da última vez. Três jovens,
provavelmente aventureiros de baixo escalão, surgiram conforme
passávamos, conversando entre si. Já era um pouco tarde para pegar novas
missões da guilda, então talvez estivessem saindo para fazer compras.
Pensei por outro grupo de novatos que ficou na mesma pousada conosco
naquela época. Me perguntei como Kurt e os outros estavam. Um erro que
cometi levou à morte de um deles, mas eu esperava que os outros ainda
estivessem bem.
Nah, já passaram oito anos. Quem sabe se ainda estão vivos. Se estivessem e
por acaso eu os encontrasse, seria bom relaxar e falar sobre os velhos tempos.
Ei, aí está uma boa ideia. Talvez eu deva ver se também não consigo ajuda
dos Caçadores P.
Se minha memória estivesse correta, seus nomes eram Jalil e Vizquel. Eles
eram saqueadores. Desta vez, eu não pediria que ajudassem a localizar um
animal de estimação, mas Kishirika era como um animal. Quem sabe, talvez
pudessem encontrá-la.
— Acho que gostaria de passar por uma certa loja, conheço muito bem as
pessoas que dirigem o lugar.
— Não esperava menos de você, Mestre. Certamente tem boas conexões.
— Eu não diria isso, essas são as únicas pessoas que conheço aqui.
Liderei o grupo até a loja de animais dos Caçadores P. Eu tinha uma noção
geral de onde ficava, embora as memórias estivessem um pouco confusas.
Felizmente, já havia caminhado nessas mesmas ruas muitas vezes quando era
mais jovem, e ainda havia os pontos de referência dos quais me lembrava ao
longo do caminho, mas quando chegamos ao nosso destino a loja parecia
completamente diferente. O pet shop agora era um açougue, vendendo carne
processada.
Alguém coberto com o que parecia pele de rato estava cuidando do lugar,
então me aproximei.
— Bem-vindo!
— Com licença, mas pensei que aqui costumava haver um pet shop. Você
sabe o que aconteceu com ele?
— Ah, está falando de Jalil? Ele cometeu um erro ao tentar treinar uma fera
há dois anos e morreu.
Sério? Ele morreu?
— E Vizquel?
— Ela? Deixou este lugar há um ano. Disse que não havia nenhum trabalho
aqui para ela sem o Jalil.
Então ela também não está aqui.
Eu não conseguia acreditar que Jalil realmente tinha morrido. Sabia que o
Continente Demônio era um lugar cruel, mas na verdade fiquei um pouco
triste ao saber que ele havia partido. Embora também tivesse traído Ruijerd
no final, trabalhamos juntos e nos demos bem por algum tempo.
— A Vizquel passou esta loja para mim quando ela foi embora — explicou o
açougueiro. — Você é amigo deles?
— Sim, acho que poderia dizer isso.
— Certo, nesse caso, vou dar um desconto a vocês.
Perguntei sobre Kishirika e comprei um pouco de carne de Grande Tartaruga
como agradecimento. Sem surpresas, o gosto era absolutamente terrível.
Passamos o resto do dia tentando reunir informações, o que foi um processo
muito lento. Eu era o único no grupo que falava a Língua Demônio, então
tive que cuidar de todas as perguntas. Talvez eu realmente devesse ter
insistido no assunto e teimado para que Roxy viesse conosco.
Não. Na realidade, um interlocutor adicional não teria agilizado tanto as
coisas. Tudo que eu podia fazer agora era contar com Nokopara, já que pelo
menos ele era um especialista neste campo. Eu tinha praticamente desistido
de encontrar alguma pista.
E então…
— Ela parece uma garotinha de cabelo roxo e roupas de couro. Também tem
uma risada maníaca inconfundível e sai por aí se autodenominando a Grande
Imperador do Mundo Demônio. Você já viu alguém assim?
— Ah, aquela garota. Sim, eu a vi, mas não recentemente. Acho que foi há
cerca de um ano.
Eu tinha me acostumado tanto com as respostas negativas que essa resposta
foi inesperada. Altamente inesperada, na verdade. Talvez nossa primeira
aventura pelo Continente Demônio fosse resultar em sucesso.
— Acertamos o alvo! — declarou Cliff empolgado, como se já a tivéssemos
encontrado.
Elinalise balançou a cabeça.
— Sim, mas disseram que não a viram recentemente.
Infelizmente, ela estava certa. Mencionaram tê-la visto, mas isso foi há um
ano. E, para piorar as coisas, ninguém a tinha visto nos últimos seis meses.
Talvez nem estivesse mais nesta cidade, talvez devêssemos ter perguntado
para onde ela iria a seguir. Rikarisu estava localizada na ponta nordeste do
Continente Demônio. Se ela estava indo para outra aldeia, teria que ir para o
sul ou oeste. Havia montanhas a sudoeste, então não achei que ela fosse para
lá.
Sim, mas é da Kishirika que estamos falando. Não que eu a conhecesse bem,
mas ela não parecia o tipo que usava estradas normais. Se estivesse certo,
não tinha como dizer qual direção ela tomou.
— Por enquanto, vamos esperar para ouvir o relatório de Nokopara.
— Eu, de alguma forma, duvido que ele tenha algo digno de nota em apenas
meio dia.
De toda forma, voltamos para a Guilda dos Aventureiros. Planejamos pegar
uma mesa e comer alguma coisa, mas Nokopara apareceu antes que
pudéssemos encher nossos estômagos.
— Ei. Desculpem a demora. — Ele tinha a mesma expressão otimista em seu
rosto. — Como pode imaginar, não consegui encontrar a pequena senhora,
mas consegui algumas informações.
— Estamos ouvindo.
Na maior parte, o que ele nos contou bateu com aquilo que descobrimos.
Afinal, havia um limite do que se podia descobrir em meio dia, mas ele
conseguiu montar um dossiê de onde ela foi vista com mais frequência e
quando foi vista pela última vez. Isso foi bastante impressionante pelo curto
prazo que teve. Ele provavelmente coletava informações regularmente, ou
talvez simplesmente tivesse boas conexões. De qualquer maneira, isso
significava que ele só teria que procurar um pouco mais de informações,
fuçando antes que pudesse vender seu conhecimento. Geese também parecia
ser muito talentoso nesse tipo de coisa.
— Além disso, sobre a sua imperador demônio… parece que algum rei
demônio também está procurando por ela.
— Rei demônio? — Levantei uma sobrancelha.
— Sim, cerca de um ano atrás, o rei demônio de uma região vizinha veio até
aqui por algum motivo.
O dito rei demônio era o residente atual do Antigo Castelo Kishirika, no meio
de Rikarisu. Aqueles guardas de armadura negra espalhados pela cidade eram
supostamente os soldados particulares, cavaleiros ou guarda-costas de elite,
ou como quisesse chamá-los, deste rei demônio.
— Por acaso o nome dele seria Badigadi? — perguntei.
— Nah, não é Lorde Badi. É sua irmã mais velha, Lady Atofe, uma terrível
rei demônio.
Huh, então Badi tem uma irmã? Imaginei se ela também tinha seis braços, era
toda bombada e parecia uma amazona negra.
— Aterrorizante, hein?
Ele assentiu.
— Sim, ela sobreviveu à Guerra de Laplace por ser uma rei demônio
agressiva que resolvia todos os problemas com o uso da força. Se você fizer
algo que ela não goste, com certeza terá sua cabeça arrancada de seus
ombros.
Era difícil imaginar isso, considerando o quão bem-humorado Badigadi era,
mas se o que ele afirmava fosse verdade, provavelmente seria melhor não se
aproximar dela, mesmo sendo parente de Badigadi, uma vez que também
poderia ser imortal. Em outras palavras, talvez estivesse viva 7.000 anos atrás
e conhecesse uma cura para a Síndrome de Esgotamento. Buscar uma
audiência para perguntar a ela sobre isso poderia não ser uma má ideia,
embora eu não tivesse ideia a respeito de ela concordar em se encontrar
conosco ou não.
— Já que estamos falando sobre este assunto, Badigadi não voltou? —
perguntei.
— Não… Mas, ei, ele ainda é um rei demônio. Você deve usar um título
adequado ao se referir a ele.
— Ah, minhas desculpas.
Portanto, Badigadi ainda não havia retornado. Para onde ele foi? Mas, bem,
ele não passou os últimos oito anos vagando por aí? Talvez vagar de um lado
para o outro fosse algum tipo de hobby dele.
Depois de falar com Nokopara, atualizei o restante sobre o que havia
aprendido. Zanoba pressionou a mão no queixo e disse:
— Ainda assim, mesmo que Lady Atofe esteja procurando por Kirishika, a
imagem que eles tinham não se parecia em nada com a sua descrição.
Ele tinha razão, a Kishirika de que eu me lembrava não se parecia em nada
com a mulher que procuravam. Aquela que eu conhecia parecia uma
garotinha. Na verdade, nunca pensei que a foto que aqueles guardas tinham
deveria ser de Kishirika. Mas existiam algumas semelhanças. Talvez fosse
daquele jeito que Kishirika se parecia quando adulta. Será que tinha
amadurecido desde quando a vi?
Nah, não pode ser. As pessoas na cidade também a descreveram como uma
garotinha. Nesse caso, talvez este rei demônio não tivesse ideia de que
Kishirika agora parecia uma criança. Pode valer a pena perguntar sobre isso a
Nokopara.
— Ei, aquele esboço dos guardas não se parecia em nada com a Kishirika. O
que sabe sobre isso?
— Os reis demônios são bastante irreverentes quando se trata de detalhes.
Lady Atofe provavelmente não se preocupou em levar em consideração a
idade atual da imperador demônio.
— Ah, certo. — Badigadi também era bastante indiferente a esse respeito.
Não seria surpreendente se Atofe fosse igual. — Acho que devemos ir fazer
uma visita a Lady Atofe e bater um papo.
Me levantei e Nokopara entrou em pânico.
— E-Espere um minuto. Estou lhe dizendo, Lady Atofe é problema. É melhor
ficar longe dela.
— Não, temo que seja necessário. Contanto que não a ofendamos, certamente
não teremos problemas.
Não teríamos, não é? Certamente esperava que não. Se o pior acontecesse, eu
poderia disparar magia por trás da segurança do meu escudo, Zanoba. Tudo o
que tinha que fazer era acertá-la com um bom disparo, como fiz com
Badigadi, e então fugir. Assim que fugíssemos, poderíamos procurar
Badigadi e fazê-lo mediar as coisas enquanto implorássemos por perdão.
Sim, soa como um bom plano!
— Se pretende buscar uma audiência, acredito que meu título deve ser útil.
— Zanoba se levantou e riu.
Eu não tinha essa confiança. Talvez ele fosse da realeza e estivesse
acostumado a usar sua posição dessa forma, mas Ariel parecia uma aposta
mais segura, caso estivéssemos tomando esse caminho.
Espera aí, depois de ver como as coisas correram com Perugius, talvez
Zanoba seja o mais agradável dos dois. Ariel estava desesperada para fazer
conexões. Seus motivos ocultos um tanto transparentes poderiam azedar o
humor da rei demônio.
— Lady Atofe conhece bem as artes finas? — perguntei a Nokopara.
— Huh? Artes finas? Não faço ideia. Quero dizer, ela é uma rei demônio, e a
maioria desses caras tem algum tipo de hobby desses. Quanto a Lady Atofe…
Não tenho certeza se artes finas são seu hobby.
E quanto a Badigadi? Qual era o seu hobby? Tive a impressão de que ele
realmente não tinha um. A menos que contasse o álcool, já que ele gostava de
beber coisas caras. Nokopara mencionou que Atofe era assustadora, mas
Badigadi também poderia ser intimidante. Se ela não fosse pior do que ele, eu
estaria bem.
— Tudo bem. Então, por enquanto, vamos apenas seguir em frente e ver.
Com isso, Elinalise e Cliff se levantaram e se juntaram a nós.
Todo o lamentável caso nos exigiu cerca de uma hora e nos deixou parados a
uma certa distância do castelo. Em resumo, foi um desastre. Zanoba mostrou
aos guardas o brasão da família real Shirone e eu traduzi para ele, solicitando
uma audiência. Infelizmente…
— Nunca ouvi falar deste país. Além disso, Lady Atofe está ocupada! Ela
não tem tempo a perder com reuniões!
Em outras palavras, bateram a porta em nossa cara. Não que eu pudesse
realmente culpá-los. Shirone era um país bastante pequeno. Era como se
alguém de um pequeno país africano se anunciasse para um japonês. Além
disso, não tínhamos um compromisso marcado, era natural que nos
dispensassem.
— Sinto muitíssimo, Mestre. Parece que meu país não tem a autoridade
necessária. — Zanoba não ficou chateado, apesar de quão rude foi sua
rejeição. Em vez disso, acabou me pedindo desculpas.
— Não, não pensei o suficiente na ideia. Isso foi minha culpa.
— Bem, eu também duvidava que eles já tivessem ouvido falar do meu país.
— Ele franziu a testa. Zanoba não era do tipo patriota, mas com certeza
achava que menosprezar sua terra natal desse jeito era um insulto.
Cliff suspirou.
— Ei, por que não descansamos um pouco? — Ele estava encostado em uma
parede próxima.
Eu ainda tinha energia de sobra para continuar, mas Zanoba estava com suor
escorrendo pela testa.
— Sim, estou um pouco exausto.
Dada sua força monstruosa, era fácil presumir que ele tinha muita resistência,
mas ele era mais do tipo parado. Um dia inteiro de exercícios talvez estivesse
cobrando seu preço. Trabalhamos sem parar, até minha mente estava
começando a ficar lenta. Talvez devêssemos descansar.
— Vocês têm razão — falei. — Que tal comermos alguma coisa?
Não tivemos tempo para almoçar. O charque que comemos nesse meio tempo
não foi o suficiente para encher nossos estômagos. Eu não estava muito
interessado em comer, já que a comida local era bem nojenta, mas não
tínhamos muitas escolhas.
— Mestre, parece que há uma banca de rua ali, por que não provamos? Tudo
bem para você, Lorde Cliff?
Assim que Zanoba mencionou isso, senti o cheiro de carne grelhada. Minha
atenção foi atraída para uma barraca de espetos. Especiarias tomavam o ar,
indicando que esta era uma parte da carne picante do Continente Demônio.
Havia três clientes esperando.
— Não estou reclamando, mas vamos ficar de pé e comer? Isso não é falta de
educação? — perguntou Cliff.
— É um pouco tarde para se preocupar com isso.
Elinalise juntou-se ao final da fila.
— Vou fazer o pedido — disse ela. — Enquanto isso, Rudeus, por favor,
consiga algumas cadeiras.
Eu hesitei.
— Tem certeza de que vai ficar bem, mesmo sem falar a língua?
— Posso usar meus dedos para indicar quantos queremos. Vou ficar bem.
Em outras palavras, a linguagem corporal era universal o suficiente para que
ela não precisasse falar a língua. Nesse ínterim, usei magia para conjurar
algumas cadeiras na beira da estrada. Estava tudo bem ficar de pé e comer,
mas deveríamos sentar se fôssemos descansar. Não me importava em plantar
minha bunda na terra, mas Zanoba e Cliff claramente se incomodariam.
Cliff saiu para se juntar a Elinalise.
— Vou acompanhá-la.
— Uff. — Zanoba e eu nos sentamos quando terminei de preparar tudo. A
exaustão tomou conta de mim. Senti como se todo o esforço que havíamos
feito tivesse sido em vão. Não tínhamos ideia se encontraríamos Kishirika ou
não. Mesmo que a encontrássemos, ela pode não ter as informações que
procuramos. Na verdade, havia uma grande probabilidade de que ela não
tivesse. Como Badigadi, ela viveu uma vida incrivelmente longa, mas
provavelmente não se importava muito com doenças. Além disso, de quantos
detalhes se lembraria depois de tantos milênios?
— Não pense demais nessas coisas — alertou Zanoba.
— Huh?
— Mestre, você parece sentir muito mais responsabilidade do que deveria
quando se trata da doença de Lady Nanahoshi.
— Sim, você está certo. — Logicamente, eu sabia que o fato de ela estar
doente não tinha nada a ver comigo, mas minhas emoções tinham vontade
própria.
Zanoba continuou:
— Mas eu entendo um pouco como ela se sente, querendo voltar para a casa
onde viveu a maior parte de sua vida. É por isso que estou aqui, tentando
ajudar.
— Mesmo? Achei que você fosse mais apegado à maneira como sua vida está
agora.
— Claro que sou, mas, recentemente, comecei a sentir saudades de casa.
Pelo visto, até ele tinha boas lembranças de Shirone. Achei que ele ficaria
bem em qualquer lugar, desde que tivesse seus bonecos ou estatuetas, mas
Zanoba não era tão diferente das pessoas normais.
— Considerando o quão desesperada Lady Nanahoshi está para retornar, só
posso imaginar que ela deixou algo incrivelmente precioso para trás quando
veio para cá.
— Sim, o cara que ela ama e a família, pelo que ela me disse.
Era uma resposta bastante clichê, mas isso não tornava as pessoas que ela
estimava menos valiosas. Eu sabia o quão importante a família e os entes
queridos eram e o quanto doeria perdê-los.
— Infelizmente não consigo sentir empatia por nenhuma dessas coisas —
disse Zanoba.
— Pense da seguinte maneira: a maneira como ela se sente a respeito deles é
como você se sente em relação aos bonecos.
Enquanto conversávamos, mantive meu olhar em Cliff e Elinalise. Os dois
mudaram muito desde que os conheci. Como de costume, Cliff era péssimo
em entender a atmosfera, mas tentava criar empatia pelos outros à sua própria
maneira. Elinalise continuava quase a mesma, ainda me lembrava de quando
ela passava o tempo todo perseguindo homens, mas caso eles se separassem
agora, eu sabia que despenderiam todos os esforços para se encontrarem
novamente.
Continuei a observá-los em silêncio. O cliente na frente deles comprou a
carne, e um mendigo com um capuz esfarrapado tropeçou nele na esperança
de conseguir alguns restos, apenas para o referido cliente chutá-lo para longe.
O nariz de Cliff dilatou-se enquanto observava, mas Elinalise o deteve antes
que começasse uma briga.
Conhecendo o caráter de Cliff, aposto que ele comprará um a mais para o
pobre mendigo.
E ele fez exatamente isso. O mendigo agradeceu bastante antes de devorar o
espeto. Em seguida, começou a implorar a Cliff por mais um pouco. Embora
exasperado, ele cedeu e entregou-lhe mais alguns, e o mendigo pegou sua
mão, seu corpo inteiro tremendo de gratidão.
Espera aí. Estou tendo um déjà vu aqui.
Não tinha passado pela mesma coisa há muito tempo? Quando foi? E onde?
Eu tinha certeza de que foi no Continente Demônio. Não, espera, foi no
Continente Millis? Lembrei de compartilhar um pouco da minha comida com
mendigos… não, não eram mendigos, eram?
Não, não, mais importante, aquele mendigo não agradeceu a Cliff na Língua
Humana?
Naquele momento, o mendigo sorriu e começou a rir loucamente.
— Fwahahaha!
Sua voz estava tão alta que ecoou por toda a cidade. Ela tirou a capa e berrou:
— Meu nome é Kishirika Kishirisu! As pessoas me chamam de Grande
Imperador do Mundo Demônio! Já que salvou minha vida, concederei um
desejo a você. Vá em frente, diga-me o que quer!
Minha cabeça começou a girar.
Kishirika parecia a mesma de sempre. Usava botas de cano alto, shorts
reveladores e um top de couro. O traje expôs a estreiteza plana de seu físico,
desde a pele pálida de sua clavícula até o umbigo e as coxas. Ela continuava
com o mesmo cabelo roxo volumoso e ondulado e dois chifres de cabra.
Estava coberta de mais sujeira e fuligem desta vez, mas não havia como
confundi-la com outra pessoa. Esta era a Grande Imperador do Mundo
Demônio, Kishirika Kishirisu.
— Fwahahahaha! Fwaha! Fwahahaha!

Cliff ficou pasmo. Elinalise também assistiu com espanto, sem palavras, seu
rosto pendendo para uma expressão cômica e inexpressiva que eu nunca tinha
visto antes. Mas eu entendia sua confusão, mesmo eu não tinha ideia do que
estava acontecendo.
Zanoba foi o único que manteve a cabeça fria. Ele colocou a mão no queixo e
murmurou:
— Ah, então esta é a mulher em quem Sua Majestade Badi tanto pensa.
Um ditado de repente passou pela minha mente: “O bem que você faz para os
outros é o bem que você faz para si mesmo.” Cliff era um excelente exemplo
disso. Era fácil dizer que ajudaria uma pessoa necessitada se a encontrasse,
mas muitos não o faziam. Afinal, mendigos usavam roupas esfarrapadas,
tinham a pele coberta de fuligem e dentes podres. Na maioria das vezes,
também cheiravam mal. Isso desencorajava as pessoas de se aproximarem
deles, com medo de pegar alguma coisa. Será que eu poderia ver uma pessoa
assim, sentir compaixão por ela e oferecer-lhe a comida que estava
comprando para mim? Talvez não. Não os chutaria como o outro cliente fez,
mas também não era nenhum santo.
Cliff, no entanto, possuía um coração caridoso. Quando o conheci, pensei que
ele era tacanho e mesquinho, mas agora, pensava que um dia ele seria um
sacerdote esplêndido. Grande Cliff!
Certo, vou parar de elogiá-lo e partir para a questão mais importante: por qual
razão Kishirika está agindo como um mendigo, logo aqui, de todos os
lugares?
— Venha, não precisa ser tímido! Diga o que seu coração deseja! E diga-me
seu nome — disse Kishirika.
— Huh? Uh, ok… M-Meu nome é Cliff Grimor. — Cliff ainda estava em
choque com a declaração repentina de que ela era exatamente a pessoa que
estávamos procurando. Ele olhou para mim com um olhar suplicante.
Kishirika fez uma pose altiva ao responder:
— Cliff, hm? Alimentar-me foi uma conquista nobre! Afinal, não comi uma
única migalha nos últimos seis meses!
Me aproximei e me inseri na conversa.
— Nesse caso, gostaria de mais comida?
— Ooh! Sério? Vocês são realmente generosos. Sim, generosos mesmo!
Vocês vão longe na vida, guardem minhas palavras!
Kishirika devorou mais espetos de Grande Tartaruga. A maneira como ela os
devorou me fez pensar onde que aquilo tudo ficava naquele corpinho
minúsculo. E ela continuou, um após o outro.
— Ufa! Isso me satisfez. Agora estarei bem por mais um ano. — Depois de
terminar a refeição, Kishirika bateu com a mão na barriga, satisfeita.
Tínhamos comprado todos os espetos que o dono da barraca tinha à venda.
Ele ficou bem feliz pelo sucesso nos negócios.
Com isso feito…
— Já faz muito tempo, Lady Kishirika — falei.
— Hm? E quem é você? — Quando abaixei minha cabeça, ela bufou e me
olhou fixamente. — Hmm? Oh? — Um de seus olhos girou, mudando de um
olho normal para um de seus olhos demoníacos. Então bateu com o punho na
palma da mão. — Aha! É você! Você é o garoto humano com a mana
nojenta. Claro que lembro de você! Eu te dei um dos meus olhos. Acho que
seu nome era, uh… Roo… Roomba? Roombaus! Sim, era isso! Faz um
tempo.
— Rudeus Greyrat — corrigi. Não sou um maldito robô de limpeza1, muito
obrigado.
— Sim, Rudeus, muito tempo mesmo. Você com certeza ficou muito maior.
Bem, como foram as coisas depois que nos separamos? Você tem se saído
bem? — Ela deu um tapinha na minha coxa, no ponto mais alto que podia
alcançar. Isso me lembrou um líder de seção em um trabalho de escritório
dando tapinhas no ombro de seus subordinados.
— Sim, o olho que você me deu antes realmente salvou minha vida em
inúmeras ocasiões.
— Fwahaha! Sim, tenho certeza que sim! — Ela acenou com a cabeça,
satisfeita.
Ela realmente é muito fácil de manipular.
— No entanto, só vou conceder minha recompensa a um de vocês! Apenas
um! — Ela se virou e apontou o dedo para Cliff. — Você, Cliff Grimor,
declare o seu desejo, seja ele qual for.
Ele engoliu em seco e olhou para ela. Naquele momento, a dúvida tomou
minha mente. Ele não iria, né?
Era de conhecimento geral que Kishirika Kishirisu oferecia olhos demoníacos
como recompensa às pessoas, e Cliff tinha seus próprios objetivos. Um olho
demoníaco poderia ajudá-lo a criar implementos mágicos. Até eu sabia disso.
É por isso que espero estar errado…
— N-Nesse caso, por favor, me diga como curar a Síndrome de Esgotamento
— disse Cliff finalmente.
— Oh?
— Uma conhecida minha está com essa doença. Conseguiram fazê-la
sobreviver até agora, mas não há indicação de que irá se recuperar por conta
própria. Se você souber de alguma maneira de ajudá-la, por favor, me diga.
Meus ombros cederam de alívio. Minhas preocupações foram totalmente
infundadas e, honestamente, um pouco ofensivas para Cliff. Eu teria que
oferecer uma refeição para ele assim que voltássemos para casa.
— Hm, Síndrome de Esgotamento, você diz. Esse nome desperta algumas
memórias. Devo admitir que estou um pouco surpresa ao ouvir falar de
alguém com isso nos dias de hoje.
Zanoba e eu trocamos olhares, balançando as cabeças. Parecia que Kishirika
estava familiarizada com a doença.
— É curável?
— Uma pergunta boba. Claro que é! Tudo o que você precisa fazer é pegar
um pouco de Grama Sokas, fazer um pouco de chá com ela, beber e o
problema vai embora junto com a merda!
Eu sorri. Isso era perfeito. Havia uma chance de que a memória de Kishirika
estivesse ruim e essa grama não funcionasse, mas agora pelo menos tínhamos
algumas informações. Por “fazer um chá”, provavelmente falava de esmagar
as folhas em um pouco de água e depois beber.
— Grama Sokas? Nunca tinha ouvido falar disso antes. Onde podemos
encontrar isso?
— Maio, a Cidade Fantasma.
— Uh, Cidade Fantasma?!
Caramba. Quando a palavra “fantasma” era usada na mesma frase que
“cidade”, geralmente significava que o lugar em questão era difícil de
encontrar. Como se só pudesse visitá-lo em seus sonhos ou tivesse que
atravessar um deserto para chegar até lá ou algo assim.
— Ao norte daquela cidade, na ponta das Montanhas Wyrm Vermelho, tem
uma caverna nas profundezas de uma ravina conhecida como Cauda do
Wyrm Vermelho. Escondido em suas partes mais profundas e escuras está
uma plantação abundante de Grama Sokas.
— Então, temos que ir para uma caverna neste lugar, a Cauda do Wyrm?
Parecia um RPG. Depois de chegarmos tão longe, ela iria nos enviar em uma
missão para procurar a grama? E tínhamos que ir para uma caverna localizada
em um lugar chamado Cauda do Wyrm? Se o nome fosse alguma indicação,
provavelmente estaríamos lutando contra alguns dragões ao longo do
caminho. Essa era uma tarefa difícil.
Não, isso não é tão ruim, sinceramente. O pior cenário possível era não
encontrar Kishirika e passar os próximos anos procurando.
Mas, certo, espera, eu conhecia as Montanhas Wyrm Vermelho, mas nunca
tinha ouvido falar de um lugar chamado Cauda do Wyrm Vermelho.
— Então, onde exatamente está localizada a Cauda do Wyrm?
— Pergunta inteligente. Sabe, no final da segunda Grande Guerra Humano
Demônio, a batalha do Deus Dragão e do Deus Lutador acabou abrindo um
buraco no continente, destruindo o lugar que antes era chamado de Cauda do
Wyrm.
— O quê…?
Uh, então o lugar que precisávamos encontrar não existia mais? Além disso,
essa história que estava nos contando era totalmente diferente da que eu tinha
ouvido. A história dizia que o enorme buraco no continente foi resultado da
batalha de Kishirika com o Cavaleiro Dourado. Dito isso, Kishirika não
parecia ser uma lutadora… Bem, tanto faz. Afinal, era uma lenda e as pessoas
muitas vezes contavam essas histórias da maneira que lhes era conveniente.
No momento, minha prioridade era a Grama Sokas.
— Isso significa que a grama Sokas não existe mais?
Kishirika balançou a cabeça.
— Não, eu estava apenas explicando o lugar de descobrimento da caverna
Cauda do Wyrm.
Se foi lá que foi descoberta pela primeira vez, isso significa que também
existe em outro lugar?
— A Grama Sokas cresce nas profundezas das cavernas, onde o sol não bate.
Com base nesta descrição, podemos encontrar essa grama dentro de
labirintos. Então podíamos entrar em qualquer labirinto antigo? Nesse caso,
precisávamos repensar a composição do nosso grupo antes de nos
aventurarmos. Precisaríamos de cerca de vinte pessoas… Não, poderíamos
oferecer uma recompensa, recrutar alguns aventureiros e enviar cem pessoas.
— E — continuou Kishirika —, foi por isso que ordenei a cada rei demônio
que cultivasse essa grama em seu castelo!
—…
— Afinal, a erva é deliciosa. Aqueles que provam dela têm uma expectativa
de vida excepcionalmente alta. Isso porque aqueles que bebem são reis
demônios imortais. Fwahaha!
—…
Então, basicamente, o que ela estava nos dizendo era que todo rei demônio
tinha essas coisas crescendo em seu castelo? E por ser considerado um chá de
luxo, seria possível encontrarmos comerciantes que o vendessem?
— Fwahahahaha! Você achou que teria que ir buscá-la? Aposto que sim, não
é? Sua coisinha lamentável! Tem um monte plantada bem ali no meu castelo!
Fwahahahaha!
Ninguém me culparia por querer ver o quão longe eu poderia chutar essa
idiota, certo?
Cliff parecia pensar na mesma coisa. Ele avançou com as mãos fechadas.
— Sua…!
— Por favor, espere, Mestre Cliff! Não sejamos precipitados. Primeiro
precisamos fazê-la contar tudo o que sabe.
— S-Sim, você está certo.
Opa, talvez eu não devesse ter dito essa última parte em voz alta.
Se realmente havia Grama Sokas no castelo… não havia motivo para ficar
com raiva. Na verdade, era perfeito. Claro, ela nos preocupou por nada e isso
me irritou um pouco, mas foi algo que serviu de lição.
Certo, esfrie sua cabeça. Você pode até ficar de joelhos e implorar por isso.
— Tudo bem, Lady Kishirika, então imploro que você compartilhe um pouco
de sua Grama Sokas conosco.
— Claro! Só tem um probleminha.
— Que problema é esse?
— Bem, sabe, há um problema detestável no meu castelo no momento. É
bastante difícil de lidar e não é muito inteligente, então passei os últimos seis
meses fugindo de… Ops.
Suas palavras foram sumindo enquanto ela olhava para algo atrás de nós.
— Hm? — Segui seu olhar.
Vários soldados vestidos com armaduras pretas estavam lá. Cinco, seis,
sete… vinte, no total. Pior ainda, outro grupo se reuniu na rua à nossa frente e
mais grupos se espalharam em um beco próximo. Logo, ficamos cercados por
trinta deles. Eles nos encaravam, como se estivessem tentando nos intimidar.
Elinalise deu um passo à frente, a mão pairando sobre a espada em seu
quadril. Suor frio cobria sua testa. Com esses números, não havia como
corrermos.
O que deveríamos fazer?
Poderia agarrar dois deles, Zanoba em meu braço direito e Cliff em meu
esquerdo, e usar minha magia para dar um salto voador, mas e quanto a
Kishirika e Elinalise?
O homem aparentemente encarregado pelos soldados avançou em nossa
direção. Sua voz estava rouca, mas vibrante quando disse:
— Nós somos os guardas pessoais da Rei Demônio Imortal Atoferatofe, que
governa o Território de Gaslow. — Ele falou fluentemente na língua humana.
— Por ordem real dela, por favor, entreguem Lady Kishirika e venham
conosco para o castelo.
Atrás dele, os outros cavaleiros puxaram seus esboços e os compararam à
Kishirika da vida real. Seus rostos demonstraram bastante confusão. Como
Nokopara suspeitou, a imagem não se parecia em nada com Kishirika porque
Atofe não tinha detalhes sobre isso, mas embora ela não se parecesse com a
mulher que foram instruídos a encontrar, gritar a plenos pulmões que era a
Grande Imperador do Mundo Demônio foi o suficiente para atrair a atenção
de qualquer pessoa.
— E se dissermos não? — Elinalise gracejou.
Os guardas imediatamente sacaram suas espadas. O barulho ensurdecedor de
lâminas saindo de suas bainhas ecoou pela área.
— Não vamos ter misericórdia de vocês.
Não que eu fosse capaz de dizer a força de uma pessoa só de relance, mas até
eu podia ver que essas pessoas eram experientes em batalha. Havia uma
diferença marcante entre um novato e aqueles que haviam resistido a muitas
lutas, e esses soldados eram, sem dúvidas, do segundo grupo. Senti que eram
muito mais capazes do que um bando de cavaleiros quaisquer.
— V-Você não deve ouvi-los. Se permitir que te levem para o castelo, não há
como dizer o que poderá acontecer com você. Estamos falando da Rei
Demônio Atoferatofe — argumentou Kishirika. — Ela não é nada além de
uma completa imbecil!
Franzi as sobrancelhas. Ela tinha razão, por que deveríamos concordar em
deixar essa suposta idiota nos prender? Não tínhamos negócios com Atofe.
Tínhamos que encontrar uma maneira de escapar disso.
Ah, mas espera aí, a grama de que precisamos não está embaixo do castelo?
Talvez possamos entrar sorrateiramente… Não, vamos ser realistas, nunca vi
essa grama antes, então nem saberia o que procurar.
Enquanto eu hesitava, o líder dos cavaleiros removeu seu capacete.
— Eu imploro. — Seu cabelo era vermelho flamejante e seu rosto estava
desgastado pelo tempo. Ele nos deu um sorriso suave e abaixou a cabeça. —
Se você não vier, temo que minha senhora vá nos punir. Juro que não vamos
te tratar mal, então, por favor…
A maneira como ele se curvou foi bastante sincera. Eu costumava ser o tipo
de japonês que não se importava em dizer não às pessoas, mas não era mais
assim. Quando alguém falava de forma tão sincera, era difícil não se sentir
obrigado a fazer um agrado.
— Não confie em uma palavra do que ele diz! Atofe não é o tipo de pessoa
com quem você pode ter uma conversa razoável! — Kishirika tinha gotas de
suor frio escorrendo pelo rosto. Obviamente havia mais nisso do que ela
estava demonstrando.
— Ouvi sobre o que vocês estavam falando — disse o velho capitão
cavaleiro. — Também cultivamos Grama Sokas no Território de Gaslow,
então sabemos como cultivá-la. Se desejar, podemos fornecer um vaso para
você levar para casa. Então, por favor, venham conosco.
Ele continuou com a cabeça baixa. Não senti nada além de honestidade
emanando dele. O homem e seus subordinados poderiam ter nos capturado à
força, mas ele estava se esforçando para fazer um pedido. Eu não sabia
absolutamente nada sobre Atofe, o único rei demônio que eu conhecia era
Badigadi, mas ter um superior como Atofe era sem dúvida difícil.
— Já que estamos nesse assunto — falei —, o que Lady Atofe tem contra
Lady Kishirika? Se possível, gostaria de saber a razão pela qual ela esteve
perseguindo Lady Kishirika pelos últimos seis meses.
— Há um ano, minha senhora veio a esta cidade em busca de um frasco
especial de licor que era produzido no Território Gekura, mas Lady Kishirika
o roubou e tomou tudo.
— Aha.
O capitão suspirou.
— Minha senhora estava muito ansiosa por aquela garrafa, então ficou
furiosa com a afronta. Ela nos chamou de nossas estações de trabalho em
casa e ordenou que procurássemos a culpada. Infelizmente, não sabíamos da
aparência atual de Lady Kishirika e o esboço que tínhamos dela não era
preciso o suficiente para ser útil, então não estávamos tendo sorte até agora.
— Tudo bem, entendo sua situação.
Usei minha magia para colocar algemas em Kishirika.

Capítulo 7: Uma Audiência com a Rei


Demônio Imortal
Resumindo, o Antigo Castelo Kishirika era uma peça pitoresca da arquitetura
demoníaca. Foi construído com pedras de ferro especialmente trabalhadas e,
embora faltasse os detalhes intrincados e a elegância da fortaleza flutuante de
Perugius, ainda era um espetáculo para ser visto. Na verdade, alguém com
gostos mais práticos provavelmente gostaria mais disso. Seu único defeito era
um buraco considerável na torre central.
O local era uma atração turística, por isso era normalmente aberto ao público
(desde que pagasse a entrada), mas as áreas onde se podia entrar eram
limitadas. Fomos levados direto para a sala de audiências. Não a espaçosa e
vistosa usada para deslumbrar os turistas, mas uma pequena que era utilizada
com mais regularidade.
Cavaleiros em armaduras pretas alinhavam-se no estreito corredor, e sua
presença tornava tudo opressor e abafado. A cereja no topo desse bolo
desagradável era que o trono à nossa frente estava vazio.
— Ela com certeza está demorando uma eternidade — murmurei.
— A realeza requer tempo para se preparar antes de receber visitantes —
respondeu Zanoba.
— Isso inclui você?
— Eu já demorei tanto para me preparar a ponto de fazer você esperar por
mim, Mestre?
— Por mais que você ame as artes plásticas, não parece ter nenhum interesse
em roupas.
Zanoba resmungou:
— Me desanima ouvir você dizer isso. Achei que você, entre todas as
pessoas, entenderia o cuidado que coloco em meus botões e bordados.
— Quer dizer que você se preocupa com essas coisas quando está comprando
ou mandando fazer, certo? Não quando está se preparando.
Estávamos esperando há pelo menos duas horas. Nossa brincadeira sem
sentido me impediu de ficar entediado, mas o sol já tinha se posto. Eu não
estava reclamando de ficar parado por ser exaustivo, mas gostaria que
tivessem nos dado lugares enquanto esperávamos.
Zanoba e eu éramos os únicos na câmara de audiência além dos guardas.
Elinalise e Cliff tinham saído com um dos cavaleiros para pegar a grama de
que precisávamos no porão do castelo.
— Ei, onde está Lady Atofe? Ela está vindo?
— Já te falei, enviamos alguém para buscá-la.
— Mas ela não está um pouco atrasada? Não me diga que ela está fora da
cidade?
— Ela não é do tipo pontual. Seu senso de tempo não funciona como o nosso.
Seria bom estar preparado para esperar por um dia.
— Certo, mas não podemos simplesmente deixar essas pessoas esperando
para sempre.
— Vocês, calem a boca.
Ouvi os cavaleiros discutindo. Eles estavam agindo muito casualmente. Ouvir
a conversa deles me deixou à vontade.
De repente, o velho capitão cavaleiro foi em nossa direção.
— Ela logo estará aqui, então, por favor, espere um pouco mais. Além disso,
peço que recuse qualquer recompensa que ela lhe ofereça.
— Desculpe, uma recompensa?
— Se as coisas derem errado e você acabar aceitando uma recompensa, não
haverá nada que o resto de nós possa fazer para ajudá-lo.
— Uh, certo… Vou manter isso em mente. — Balancei a cabeça,
genuinamente pretendendo seguir seu conselho.
Eu não fazia ideia do que ele queria dizer, mas não tinha interesse em aceitar
qualquer recompensa. Eu não tinha caído tanto ao ponto de vender Kishirika
por uma compensação. Falando nisso, a Imperador Demônio estava
atualmente amarrada com tantas cordas que parecia uma lagarta deitada no
chão. Ela seria punida mais tarde. Eu não sabia o que tinham em mente, uma
surra? Mandar limpar o banheiro? Mas com certeza não seria algo muito
severo.
Tirando isso, eu não podia baixar a guarda. Afinal, estávamos prestes a
encontrar uma rei demônio. Os únicos demônios de alto escalão que conheci
foram Kishirika e Badigadi.
Os dois são sempre tão despreocupados, mas aposto que se os irritasse… huh,
estranho. Tenho a sensação de que não seria tão ruim, na verdade.
— Mexa-se!
Uma voz soou atrás de mim. Olhei por cima do ombro e vi uma mulher. De
todos que conheci, era a que mais se parecia com um demônio estereotipado.
Sua pele era preto-azulada, seu cabelo branco e seus olhos vermelho-sangue.
Ela tinha asas de morcego e um chifre grosso projetava-se de sua cabeça.
Como os cavaleiros, também usava armadura negra, embora estivesse claro
que a dela tinha passado por muito mais batalhas do que a deles. Estava
coberta de arranhões e todos os elementos decorativos haviam sido
arrancados há muito tempo. Uma enorme espada pendurada em sua cintura,
uma que parecia muito grande para seus braços esqueléticos. Sua bainha era
muito mais extravagante do que a dos outros soldados. Ela não era tão alta,
provavelmente uma altura média para uma mulher adulta. Mais alta do que
Ariel, porém mais baixa do que eu.
A coisa mais notável sobre ela era algo completamente diferente. Havia uma
aura de raiva e hostilidade indescritíveis sobre ela. Se a violência tivesse
cheiro, ela o usaria como perfume, pois era óbvio que utilizaria a força em
qualquer um que tentasse desobedecê-la. Isso me lembrou de Eris. Ela era
como uma cavaleira… não, uma capitã cavaleira, para ser mais preciso. Seria
sensato não provocá-la.
— Não me escutou? Eu disse mexa-se. — reiterou.
— Ah, sim, claro. — Obedientemente saí do caminho.
— Muito melhor. — Longas mechas de cabelo branco balançavam atrás dela
enquanto caminhava até o trono e se virava para nos encarar. Ela se sentou e,
tendo removido a bainha da cintura, bateu a espada entre as pernas,
assumindo uma pose real.
Ela respirou fundo e gritou:
— Eu sou a Rei Demônio Imortal Atoferatofe Rybak!
— Hã…?
Quando inclinei minha cabeça em confusão, os cavaleiros de armadura negra
removeram rapidamente suas espadas de suas bainhas, erguendo-as como
uma demonstração de respeito e fidelidade à sua soberana. No entanto, um
deles se absteve desse ritual e se aproximou do trono. Era o velho capitão
cavaleiro.
— Lady Atofe! Por que entrou pela entrada da frente? Quantas vezes já falei
para você entrar na sala do trono pela porta dos fundos?!
— A razão deveria ser óbvia. Eu gosto mais de entrar pela frente.
— Seus caprichos não devem ditar seu comportamento!
— Você não sabe que a melhor parte de desafiar um rei demônio como herói
é ser capaz de valsar pela sala do trono antes de envolvê-los em uma luta?
— Que relevância isso tem?! Seu pai já foi um dos Cinco Grandes Reis
Demônios. Ó, como ele lamentaria ao ver a forma que sua filha se comporta!
E não apenas ele, o que seu marido, Lorde Rybak, pensaria?
— Cale-se já! — Atofe puxou a espada da bainha e a empurrou na direção do
velho com tanta rapidez que não consegui acompanhar seus movimentos.
O velho capitão cavaleiro desembainhou sua espada para desviar o ataque,
mas não foi rápido o suficiente. Seu capacete voou quando ele caiu para trás.
Os outros cavaleiros na sala correram para sua direção em pânico.
— Pare de gritar na frente de nossos convidados — disparou Atofe. — Meu
velho estaria se revirando no túmulo!
O capacete do capitão cavaleiro veio rolando em minha direção. Estava
rachado, bem no meio.
Que poder incrível.
Abaixei-me para pegá-lo e encontrei o interior coberto de sangue úmido e
pegajoso.
— Ugh!
Espera, calma aí. Isso significa que o ataque dela realmente acertou a cabeça
dele. Uh… Sério? Ela realmente o matou?
— Muito bem, mas ainda imploro que esteja atenta. — Apesar de minhas
preocupações, o velho capitão cavaleiro se levantou do chão como se
estivesse completamente bem. Ele se curvou para Atofe, fumaça subia de sua
testa.
Parece que ele está bem.
Talvez também fosse imortal. Na verdade, possivelmente o resto dos guardas
fossem todos imortais.
— Que bom que você entendeu. Tudo bem, vamos fazer isso de novo.
— Como ordenar!
Atofe devolveu a espada à bainha e retomou sua pose de superior. Um dos
outros cavaleiros levou um novo capacete ao capitão e entraram em
formação. Mais uma vez, desembainharam suas espadas e as ofereceram à
sua líder.
— Eu sou a Rei Demônio Imortal Atoferatofe Rybak.
Zanoba rapidamente ajoelhou-se e abaixou a cabeça, então segui o exemplo.
Eu não sabia nada sobre esse tipo de etiqueta e presumi que deveria apenas
seguir seu exemplo.
— Em primeiro lugar, permita-me agradecê-lo. Conseguimos pegar essa
idiota graças a você. — Atofe voltou seu olhar para Kishirika.
Nossa imperador demônio foi enrolada igual um burrito. Ela parecia
resignada, como se tivesse perdido completamente as esperanças. Quase me
senti mal por ela. Nós basicamente cuspimos nela depois que ela nos ajudou e
nos deu as respostas que procurávamos. Ainda assim, era um mal necessário.
Tínhamos nossos próprios objetivos a cumprir.
— Não tínhamos referências sobre ela, então nossa busca foi se arrastando.
Você fez bem em encontrá-la.
Ah, então era exatamente como eu suspeitava. Lady Atofe não tinha os
detalhes quando fez aquele esboço.
— E também… — Atofe continuou na mesma pose enquanto olhava para
longe. Sua voz foi sumindo e ela permaneceu em completo silêncio. Cinco
minutos se passaram com ela congelada desse jeito.
Uh, o motor dela quebrou ou algo assim?
— Moore, o que eu deveria dizer a seguir?
— Uma recompensa. Você ia dar a eles uma recompensa.
Aparentemente, o nome do velho capitão cavaleiro era Moore. Algo nesse
nome me fez imaginar um cara sorrindo loucamente. Tipo moo-hoo-ha-ha.
— Hm, sim. Eu preciso dar uma recompensa — murmurou Atofe para si
mesma.
— Não precisa. — Recitei a frase que tinha preparado mentalmente após o
conselho de Moore. Achei que fosse uma formalidade. Provavelmente foi por
isso que ele sugeriu que eu recusasse.
Atofe bateu o pé.
— Está dizendo que não quer minha recompensa? — Ela olhou para mim
com seus olhos assassinos.
Minhas pernas começaram a tremer. A inimizade que ela exalava não era
brincadeira. Estava em um nível completamente diferente de Linia e Pursena.
Foi a mesma animosidade nos olhos de Ruijerd quando ele olhou para mim.
— N-Não, eu ficaria feliz em receber sua recompensa.
Era melhor não desafiar alguém como ela. Se queria insistir em nos dar algo,
era melhor apenas aceitar.
É tudo o que posso fazer. Moore tinha aconselhado a não fazer isso, mas se a
alternativa fosse irritá-la intencionalmente, provavelmente seria melhor
ceder.
Limpei a garganta e perguntei:
— Se não se importa que eu pergunte, o que pretende nos dar?
Atofe semicerrou os olhos, um sorriso satisfeito aparecendo em seu rosto.
— Poder.
Poder, hein? Poder… Bem, eu estaria mentindo se dissesse que não queria
isso. Se era isso que ela estava oferecendo, valia a pena aceitar.
Certo, mas o Senhor Moore nos disse que seria melhor não aceitarmos.
Talvez eu deva cancelar tudo e dizer que ele já concordou em nos dar
algumas daquelas folhas no porão do castelo, então vamos pegar isso e ir para
casa.
— Concedo a você o privilégio de se juntar à minha guarda pessoal para que
vocês possam treinar seus corpos!
— Você o quê?
Hã? Então ela não iria apenas colocar a mão na minha cabeça e despertar
algum poder latente em mim, ou conceder-me um olho demoníaco como o de
Kishirika?
— Você parece muito fraco. Mas, ei, dez anos de meu treinamento vão deixar
você aceitável.
— Hm, uh…
— Isso mesmo, por uma década inteira ficarei sem descanso para ajudá-lo a
temperar seu corpo. Bem, o que acha? É uma grande honra, não é?
Dez anos ininterruptos?
Uh, não, eu tenho duas esposas e uma filha esperando por mim em casa,
então eu gostaria de dispensar essa coisa de treinamento, caso isso seja tudo.
Claro, dez anos de treinamento certamente iria me tornar muito mais forte,
mas de que adiantaria se eu tivesse que abandonar tudo para isso? Qual seria
o propósito de ficar tão forte? Quem eu queria derrotar? Tá, talvez pudesse
proteger melhor os meus entes queridos se ficasse mais forte, mas valeria a
pena abandoná-los por uma década?
E aí, o que eu faço? Não, quero dizer, não tenho escolha a não ser recusar.
Não posso me juntar à guarda pessoal dela.
Olhei para Moore. Ele balançou a cabeça, uma expressão de resignação no
rosto.
— Sinto muito, mas por mais que seja uma grande honra, terei de me abster.
— Absurdo! Agora, alguém traga uma armadura preta e prepare um contrato
para ele assinar!
Vários dos guardas pessoais de Atofe saíram da sala sob o seu comando.
— Estou lhe dando a melhor armadura, o melhor treinamento e permitindo
que entre na guarda mais renomada de todo o Continente Demônio! Não há
maior honra! Você não poderá se opor a mim depois de assinar o contrato.
Não que você fosse tentar, mesmo sem essa formalidade, tenho certeza. Na
verdade, você deve estar muito feliz.
Não fiquei nem um pouco feliz.
Ainda assim, de todos os demônios de alto escalão que conheci, ela soava
mais como uma rei demônio. Estranhamente, fiquei feliz por ter a
oportunidade de conhecê-la. Talvez eu não fosse o único a quem ela ofereceu
essa recompensa. Possivelmente outros em sua guarda também tivessem sido
forçados a um contrato.
— Lamento muito — falei —, mas tenho uma família à espera em casa. Não
posso simplesmente deixá-los por 10 anos.
— Não vejo problema. Não vi meu filho nenhuma vez nos últimos cem anos.
Acredite em mim, falta de notícias também é boa notícia. É a prova de que
ainda estão vivos.
O quê, então, por ter abandonado o filho por um século, ela queria que eu
fizesse o mesmo com minha família por uma década? Claro que não.
— M-Mas dez anos é um tempo incrivelmente longo para um humano. Além
disso, prometi à minha família que voltaria e…
— E? — As veias estavam se contraindo em sua testa. Ela estava começando
a perder a paciência.
— E eu tenho uma amiga doente esperando por mim. Preciso encontrar uma
cura para ela o mais rápido possível e voltar para casa. Além disso, tenho
tantas outras coisas para fazer… Não posso simplesmente ficar aqui e
acumular poder…
— Cale a boca! — Atofe gritou tão alto que ecoou pelas paredes.
Ah, cara, isso foi um pouco assustador. Certo, não, foi simplesmente
assustador. O que há de errado com ela? Por que está gritando comigo?
— Você vai entrar na minha guarda pessoal ou não?! Pare com os quebra-
cabeças e responda!
— N-Não vou!
Ela congelou no lugar. Seu rosto todo ficou vermelho enquanto sua expressão
se contorcia.
— Por quê?! Por que você me recusaria?!
Hã? Uh, eu não listei literalmente todas as razões?
— Uh, hm…
Agora era um bom momento para deixar as coisas com Zanoba. Ou ao menos
era o meu plano, quando olhei em sua direção vi que ele praticamente tinha
pontos de interrogação dançando acima de sua cabeça enquanto olhava com
dúvida para mim.
Ah, merda, isso mesmo. Ficamos o tempo todo falando na Língua Demônio.
Ele não faz ideia do que estávamos dizendo. Não posso contar com ele.
O que eu deveria fazer? Como iria convencê-la a desistir?
Alguns momentos atrás os cavaleiros estavam de bom humor, mas depois da
minha conversa com Atofe, a atmosfera ficou hostil e tensa. Era como se
fosse um time esportivo que tivesse viajado para jogar no campo do
adversário.
— Eu te disse — desabafou Kishirika. — Ela é uma completa imbecil. É
melhor vocês não se envolverem. Não dá nem para ter uma conversa
adequada com ela!
— Calada! Eu não sou uma imbecil! — gritou Atofe abruptamente, puxando
a espada. — Agora entendi. Você está tirando sarro de mim. É por isso que
disse que não aceitaria minha recompensa. Você me acha estúpida, então está
zombando de mim! — Ela caminhou furiosamente em nossa direção.
Uh, o quê? Ei, espera aí.
— Lady Atofe, por favor, tente se acalmar! Você vai quebrar algo dentro do
castelo se continuar girando essa coisa!
— Não sou uma idiota, entendeu? Não sou! — Ela brandiu sua espada com o
rosto contorcido de raiva enquanto atacava em nossa direção. Seus guardas
tentaram impedi-la e detê-la. — Saiam! — Atofe os empurrou para o lado e
avançou contra nós igual um touro.
Ah, merda. Ah, merda! Devo usar minha magia?! Não, posso piorar as coisas
se resolver atacar.
— Eu cuido disso — disse Zanoba. Ele se levantou e parou na minha frente.
— Hmph! — Ele agarrou os braços de Atofe quando ela se lançou sobre nós.
Ela tentou chutá-lo para fora do caminho, mas ele não se mexeu, como
poderia esperar do poder de uma Criança Abençoada.
— Hm, você é muito forte! — Ela arregalou os olhos, intrigada enquanto
olhava para Zanoba, um sorriso curvava seus lábios.
Alheio ao que ela estava dizendo, já que não falava a língua, Zanoba a
repreendeu.
— Acalme-se! Não queríamos ofender. Queremos apenas a grama que você
tem em seu porão.
— Pare de falar essas palavras estrangeiras estranhas para mim! — retrucou
ela, desinteressada por tudo o que ele tinha a dizer. Na verdade, parecia que
ela não entendia a Língua Humana, apesar da fluência de Moore.
Ainda segurando sua espada, Atofe tentou esmurrar e chutar Zanoba, mas
sem sucesso. Por fim, gritou de desagrado.
— Sua aberração, você é duro feito uma rocha! Você deve ter alguma Aura
de Batalha te protegendo. Interessante!
Com isso, ela cortou o braço com a espada, libertando-se do aperto de
Zanoba.
Isso mesmo. Atofe cortou seu próprio membro sem hesitação. Aos seus
olhos, era apenas um incômodo prendendo-a. Ela o cortou com a indiferença
casual de alguém cortando um fio solto depois que seu suéter ficou preso.
— Hmph!
No momento em que seu braço se separou de seu corpo, ele se transformou
em um pedaço flácido de carne. Zanoba o soltou e ele bateu no chão.
Segundos depois, rastejou em direção a Atofe e se reconectou ao corpo dela.
Momentos depois, seu braço estava de volta ao normal. Eu tinha visto
Badigadi fazer algo semelhante. A ferida cicatrizou sem deixar nenhuma
marca.
— Tudo bem então. Vou lhe dar minha introdução completa: Sou a Rei
Demônio Imortal Atoferatofe Rybak, esposa de Kalman Rybak, o fundador
do estilo de espada Deus do Norte. Vou mostrar como o estilo realmente se
parece quando usado em combate! — Ela ergueu sua espada bem alto no ar.
Zanoba ficou com os punhos cerrados, como se planejasse enfrentá-la
desarmado. Um tremor percorreu minha espinha. Algo me disse que isso não
iria acabar bem. Tipo, Zanoba poderia morrer. Por mais que fosse uma
Criança Abençoada, não era imune a ferimentos. Eu, por exemplo, consegui
arranhar até mesmo o Deus Dragão Orsted com a minha magia, mesmo sendo
poderoso como ele era. Não havia absolutos neste mundo. Zanoba, por
exemplo, era fraco contra fogo. Além disso, embora ele pudesse ser resistente
a ataques físicos, isso não significava que não poderiam machucá-lo.
— Urgh!
Eu imediatamente comecei a gastar minha mana em um feitiço, com a
intenção de torná-lo o mais rápido e denso possível. Lançar Canhão de Pedra
demoraria muito, infelizmente, mas agora eu tinha mais experiência no uso
de magia do que antes.
— Fwahahaha! Agora morra! Este é o estilo supremo do Deus do Norte…
— Eletricidade!
Um raio roxo disparou do meu braço protético. Ele estalou no ar, brilhando
tão forte que ficamos momentaneamente cegos.
— Ugyaah! — Atofe foi golpeada para trás, a espada escorregou entre seus
dedos.
Uma sensação de dormência e formigamento percorreu minha mão, todo o
caminho até meu cotovelo, mas não era nada com que me preocupar. Eu não
coloquei mana suficiente naquele feitiço para eletrocutá-la.
— Hah!
Aproveitando-se da oportunidade de seu oponente estar indefeso, Zanoba
lançou seu ataque. Seu punho acertou bem no rosto dela.
— Gyahaaaa!
Suas feições se contorceram enquanto ela voava pelo ar, batendo na parede
do castelo. Tudo se estilhaçou com a força de sua colisão, e Atofe caiu junto
com os destroços.
— Ah, Lady Atofe! — Os cavaleiros se amontoaram perto do buraco na
parede como um grupo de pardais agitados.
— Hm, eu cometi um erro. Estava tão focado em protegê-lo, Mestre, que não
me contive. Imagino se isso a matou.
— Nah, tenho certeza que ela ainda está viva. — Eles a chamavam de Rei
Demônio Imortal por uma razão. O problema era o que aconteceria a seguir.
— Oh, não, agora realmente conseguiram.
— Sim, isso é ruim…
— Não consigo acreditar nisso.
Vinte ou mais dos guardas de armadura negra nos cercaram, murmurando
entre si. Eu tinha certeza de que não iriam nos deixar partir depois do que
fizemos com sua mestra.
— Khh. — Levantei meu cajado, pronto para enfrentá-los. Isso era culpa
minha. Se eu tivesse dado ouvidos ao aviso de Moore, isso nunca teria…
Espera, eu realmente fui o culpado aqui? Eu meio que não acho que fui, na
verdade.
Eu não poderia saber que ela reagiria assim, e mesmo se a rejeitasse desde o
início, o resultado provavelmente teria sido o mesmo.
De qualquer forma, posso deixar o joguinho de culpa para depois. Agora
tenho que descobrir como sair dessa situação.
Porém, por mais preocupante que fosse ter esses cavaleiros nos cercando, eles
não sacaram suas espadas. Apenas olharam para nós.
Zanoba ergueu os punhos vazios. Talvez eu devesse ter conjurado uma arma
para ele antes de chegarmos. Agora eu não tinha tempo. Talvez houvesse um
tronco em algum lugar entre todos os destroços da parede quebrada.
— Vocês dois… — Moore se aproximou, agindo como representante. Ele
estava falando na Língua Demônio neste momento. — Devo perguntar de
novo, em nome de minha senhora, têm certeza de que não querem se juntar a
nós?
— Vamos deixar a oportunidade passar — respondi, sem hesitar desta vez.
— Lady Atofe tem afinidade com indivíduos fortes. Considerando que você
foi capaz de impedi-la antes que usasse sua técnica suprema e que a
mandaram voando para as paredes do castelo com um único soco, tenho
certeza que agora ela terá ainda mais interesse nesta força.
Uma surpresa e tanto. Todos os reis demônios que conheci ou dos quais ouvi
falar eram assim. Nenhum deles batia bem da cabeça. Dito isso, nenhum dos
guardas fez menção de nos prender, embora soubessem que Atofe nos
desejaria. Na verdade, depois de assistir Atofe sair do castelo, alguns
disseram coisas como: “Uau, olhe ela voando” e “Bem, isso é o que ela ganha
por baixar a guarda” e “Tsk, tsk.”
Moore disse:
— Nós, de sua guarda pessoal, não fazemos nenhum movimento a menos que
recebamos uma ordem. No entanto, uma vez que ela nos dê um comando, não
seremos capazes de deixá-los ir. — Com isso, vários dos guardas nos
lançaram olhares penetrantes. Eu não iria zombar deles por não agirem até
que recebessem uma ordem. Eu estava, no mínimo, grato por isso.
— O que vai acontecer se ela nos pegar? — perguntei.
— Ela vai desafiá-lo para um duelo, tenho certeza.
Fiz uma careta, confuso.
— Se você perder no duelo, ela o deixará inconsciente e o forçará a assinar
um contrato. Uma vez feito isso, você nunca será capaz de desafiá-la
novamente.
— E, hm, quanto tempo dura esse contrato?
— Até você morrer, é claro.
Engoli em seco, fazendo barulho o suficiente para aqueles ao meu redor
ouvirem.
— Embora você possa ter dois anos de folga a cada dez anos.
Quebrando isso em números menores, significava que era basicamente uma
folga a cada cinco dias. Mas por que isso parecia tão desanimador?
— A maior parte da guarda dela está aqui porque quer, mas há muitos que
foram recrutados à força. Em particular, muitos dos humanos entre nós
lamentam seu destino. Até nós sentimos simpatia por eles.
Vários cavaleiros baixaram seus olhares. Aparentemente, muitos deles
enfrentaram nosso dilema e foram forçados a um contrato com Atofe. Ela
chamava isso de recompensa, mas era basicamente um contrato de
escravidão.
Então é por isso que ele disse para não aceitar a recompensa. Eu gostaria que
ele tivesse me dado mais detalhes de antemão.
Não, foi minha culpa por não pedir esclarecimentos. Lá estava eu pensando
que não poderíamos baixar a guarda, e no final eu mesmo fiz isso.
— E-Então… — Lambi os lábios. — O que acontece se vencermos este
duelo?
— Oh, você realmente acha que pode vencer? Nos últimos 5.000 anos, nem
uma única pessoa derrotou nossa mestra, fora o Deus do Norte Kalman e o
Deus Demônio Laplace. Realmente acha que pode vencê-la?
— É, provavelmente não.
Eles a chamavam de imortal e ela provavelmente tinha tanta resistência
quanto Badigadi. Para piorar as coisas, parecia muito mais habilidosa em
batalha do que ele. Badigadi não era um acólito do estilo de espada Deus do
Norte, pelo menos não quando treinamos.
— O que acontece se o duelo terminar empatado?
— Se ela o considerar um inimigo, ela o desafiará novamente. Se ver você
como um aliado, vai reconhecê-lo como um igual.
Fiquei curioso sobre como ela se sentiria no meu caso. Conhecendo minha
sorte, provavelmente voltaria a me desafiar. Ficou muito claro que ela me via
como um inimigo. E se continuasse duelando comigo uma e outra vez, eu
estava fadado a em algum momento perder.
— E-Então o que devo…?
— Corra. — Moore não mediu palavras. — Agora mesmo, seus amigos
devem ter terminado de coletar a Grama Sokas. Há um túnel abaixo do
castelo que o levará para fora da cidade, então pode usá-lo para fugir.
Os outros cavaleiros concordaram:
— Por favor, não termine do mesmo jeito que eu.
— Ei, se acontecer de você ir para o País Sagrado de Millis…
— Idiota, você mesmo poderá voltar lá depois de mais três anos de serviço.
— Sim, mas ainda assim…
Mais vozes tristes se juntaram ao coro, mas ignorei. Tínhamos as mãos
ocupadas com nossos próprios problemas. Grato por sua disposição de nos
deixar ir, comecei a andar em direção à porta. Mas parei quando avistei
Kishirika pela visão periférica. Ela me olhava suplicante. Depois de tudo o
que aconteceu, nós dois éramos fugitivos.
— Você não se importaria de eu levar Lady Kishirika comigo, não é?
— Bem, nosso trabalho era apenas pegá-la, então vá em frente…
Então, estavam dispostos a fechar os olhos. Atofe não havia dado nenhuma
ordem nova desde que a primeira foi atendida. Fiquei pensando se eles seriam
punidos por isso.
Ah, bem, não é problema meu.
Usei minha magia para queimar as cordas que prendiam Kishirika e a soltei.
— Ahh, muito grata. Você tem minha gratidão.
Depois disso, fugimos da sala do trono.
Encontramos Elinalise e Cliff dentro do castelo. Ambos tinham mochilas
cheias de folhas de chá e vasos de plantas em cada braço. As folhas eram de
uma cor ocre amarelada e pareciam aloe vera murcha.
— Disseram que essas plantas são vulneráveis à luz solar, então vamos
precisar cultivá-las no subsolo. Nos deram um memorando de como manter
em casa, mas não consigo ler o que está escrito — disse Elinalise.
— Roxy ou eu podemos ler mais tarde, mas precisamos nos apressar.
— Aconteceu alguma coisa?
Expliquei a situação e Elinalise não pareceu nem um pouco surpresa.
— Ouvi algo sobre isso. Kishirika oferece olhos demoníacos, Badigadi dá
conhecimento e Atoferatofe dá poder, ou algo assim.
— Você devia ter me contado — resmunguei.
— Eu não falo Língua Demônio. Você deveria ser nosso intérprete.
Ela tinha razão. Eu não tinha explicado as coisas direito. Em minha defesa, eu
não era um intérprete licenciado, então mal sabia o que estava fazendo.
— Não temos tempo para ficar parados e brigar. Vamos em frente. Então, uh,
devemos pegar o túnel subterrâneo ou voltar por onde viemos?
As palavras de Cliff chamaram minha atenção de volta para a questão
pertinente em mãos. Atofe provavelmente ainda estava reorganizando seu
rosto depois que Zanoba o quebrou, mas poderia ir até nós a qualquer
momento. Sem dúvidas, ficaria ainda mais animada depois do que fizemos
com ela.
— Você deveria desistir do túnel — disse uma voz de baixo.
Olhei para baixo, era Kishirika. Quando nos conhecemos, éramos quase da
mesma altura, mas eu havia crescido muito nos anos seguintes e tive que
dobrar o pescoço para ter a visão dela.
— Pensei em não dizer nada para retribuir sua traição — disse Kishirika, —
Mas Badi destruiu aquele túnel durante a Guerra de Laplace.
— É sério?
— Sim. Aquele homem com quem você falou é um traidor. Afinal, Moore é o
braço direito de Atofe. Ele não diz nada além de mentiras para que possa
manipular as coisas a favor dela. Apesar do que ele disse, provavelmente
começou a conspirar contra você no momento em que você lutou com ela.
Não confiei totalmente em nada do que ela disse, mas provavelmente era
verdade. Ele podia ter nos enganado, pretendendo nos encurralar quando
descobríssemos que o túnel subterrâneo era um beco sem saída.
Moore, seu bastardo… Não posso acreditar que você nos traiu.
Mas, espera, mesmo que ele tenha nos enganado, pelo menos não nos atacou
enquanto estávamos na sala do trono. E embora Atofe também parecesse
intimidá-lo, isso não significava que ele estava do nosso lado. Além disso, ele
havia providenciado a grama de que precisávamos e um memorando com
instruções, então não era totalmente ruim. Talvez tenhamos sido os culpados
por rejeitar suas boas intenções e prejudicar seu relacionamento com Atofe.
Eu deveria apenas ter entegue Kishirika, recusado sua oferta e voltado
correndo para casa. Talvez isso tivesse azedado meu relacionamento com
Atofe, mas eu poderia ter tomado conta dos problemas.
— Se ele realmente for tão astuto quanto você afirma, não teria sido melhor
nos capturar na sala do trono? — perguntei.
— É de Atofe que estamos falando. Ela gosta de perseguir suas presas e
encurralá-las sozinha.
Faz sentido. Então ele está preparando as coisas para ela. Esse tipo de sutileza
provavelmente era importante para um homem em sua posição, servindo a
um rei demônio como Atofe. Embora eu me perguntasse se os outros
cavaleiros sabiam de seus motivos ocultos.
— Então, o que está dizendo é que devemos fugir para a superfície, certo?
— Sim. O resto da guarda deve estar ocupada com as inspeções.
Isso mesmo… estavam conduzindo uma inspeção perto da entrada quando
entramos. Toda a guarda pessoal de Atofe já estaria reunida dentro do castelo,
o que significava que a entrada estava desprotegida.
— Mas, considerando que nos deixaram levar você, talvez imaginaram que
você nos daria essa informação e nos levaria para o alto. Ou talvez, sem você
saber, podem ter consertado aquele túnel subterrâneo.
— Se você vai ficar pensando tanto nisso, então não importa qual caminho
vai escolher, não é?
Verdade, adivinhar qual rota o inimigo usaria para nos perseguir seria, de
qualquer forma, uma aposta.
— Senhorita Elinalise. — Eu me virei para ela. — Qual você escolheria?
— Se dependesse de mim, certamente não escolheria o caminho que tem
grandes chances de nos levar a um beco sem saída.
— Zanoba?
— Espaços fechados são melhores para eu lutar.
— E você Cliff?
— E-Eu também iria para a superfície. Não gosto de lugares escuros.
Incrível, então iremos com o voto da maioria.
— Certo, vamos para cima — declarei. — Senhorita Elinalise, você assume a
frente e nos leva direto para o círculo de teletransporte. Zanoba e Cliff
seguirão bem atrás de você, e eu fecharei a retaguarda. Zanoba e eu podemos
carregar toda a bagagem.
Peguei a mochila e as plantas de Elinalise. Era melhor para Zanoba e eu
carregarmos essas coisas. Estava tudo bem se eu estivesse sobrecarregado, já
que poderia simplesmente usar magia, e a força sobre-humana de Zanoba
permitia que ele carregasse uma carga pesada com facilidade.
— Por favor, o que eu devo fazer? — Kishirika exigiu saber.
— Quanto a você, Vossa Majestade, Zanoba está carregando toda aquela
bagagem de qualquer forma, então por que não se senta nela?
— Muito bem! — Ela obedientemente empoleirou-se no ombro dele.
Isso era para ser uma piada… Mas, de qualquer maneira, esse é o lugar mais
seguro para ela estar.
— Tudo bem, vamos lá!
Corremos para a saída do castelo. Assim que saímos dele, uma voz raivosa
irrompeu de longe.
— Moooooore! Atrás deleeees!
Se eu não estava com medo antes, tenho certeza que agora estou.
A escuridão pairava sobre a cidade enquanto caminhávamos pela via
principal. Por mais que eu quisesse derreter nas sombras, toda a área era
muito bem iluminada. A luz que emanava das paredes da cratera brilhava
sobre nós.
Escolher a rota de cima foi a escolha certa. Não havia um único soldado de
armadura negra à vista, e nenhum nos perseguindo. Kishirika estava certa. No
momento, os guardas provavelmente estavam preocupados em vasculhar os
túneis subterrâneos.
Se tivéssemos sorte, Atofe poderia desistir de sua perseguição… mas isso não
era provável. Afinal, tínhamos levado Kishirika conosco. Isso apenas dava
ainda mais incentivo para Atofe nos rastrear.
Quando nos afastamos da rua principal, passamos pela Guilda dos
Aventureiros. Fiquei pensando se Nokopara ainda estava lá dentro. Nunca
pensei que sairíamos da cidade tão rápido. Já havíamos pago nossa
hospedagem durante a noite e nossas roupas ainda estavam em nossos
quartos. Deixar essas coisas para trás era desperdício, mas não eram tão
importantes. Seria melhor perder o mínimo possível.
Enquanto passávamos pelo mercado quase deserto, avistei o beco onde
tínhamos tingido o cabelo do Ruijerd. Daquela vez também precisamos fugir
da cidade. Era difícil acreditar que a mesma coisa estava acontecendo de
novo. Sinceramente, eu não tinha nada além de lembranças amargas de
Rikarisu.
Finalmente, chegamos à grande fenda que formava a entrada da cidade.
Havia alguns guardas lá, mas nenhum soldado em armadura preta. Um tinha
cabeça de lagarto, enquanto o outro tinha cabeça de porco. Eles olharam
confusos, mas nos deixaram escapar.
O círculo de teletransporte não ficava longe dos arredores da cidade.
Seguimos em torno do perímetro da cratera.
— Oh? Para onde vocês estão indo? — perguntou Kishirika.
— Há um círculo de teletransporte nesta direção. É o que usamos para chegar
aqui.
— Hm, você não me disse. Difícil de acreditar que tal coisa ainda permaneça
aqui, mas então aga-guk! Mordi minha língua…
Tínhamos deixado uma marca no solo para nos guiar de volta quando fosse a
hora de partir. Não haveria nenhum problema em localizar o círculo. Estava
escuro fora da cidade, mas a visão de elfa de Elinalise nos guiaria. Só
precisávamos virar à esquerda na marca, escalar a encosta e então o círculo
de teletransporte estaria bem na nossa frente.
Quando alcançamos nosso marco, derrapei até parar. Eu não tive escolha.
— Hmph. Você demorou para chegar aqui.
Acima de nós, na encosta, bem na entrada do círculo de teletransporte, estava
Atofe. Ela estava acompanhada por nada menos que dez de seus guardas.
Naquele momento, notei o buraco no chão perto da entrada do nosso círculo
mágico. Talvez fosse a saída para o túnel que passava sob o castelo.
— Moore nunca deixa de impressionar. Foi exatamente como ele disse. Vou
elogiá-lo mais tarde — murmurou Atofe para si mesma.
Ele leu nossos movimentos?
Não, não era isso. Eles conseguiram nos impedir. Não foram nossos
movimentos que leram, mas nosso destino.
—B-Bem, você com certeza chegou aqui muito rápido, não é? — falei sem
jeito.
— Hmph. Voar para cá foi simples. Pude ver você e seus companheiros
facilmente do céu. — Quando ela respondeu, suas asas estremeceram atrás
dela. — Parece que Moore também chegou.
Olhei por cima do ombro e um bando de cavaleiros de armadura negra estava
correndo em nossa direção. Eles também deviam ter seguido em torno da
borda da cratera. Enquanto Atofe foi pelo céu, dez de seus guardas pegaram a
passagem subterrânea e o restante nos perseguiu pela superfície.
Então, usaram todas as rotas à disposição para nos perseguir.
Era óbvio quando se pensava nisso. Eles não eram o Inspetor Zenigata1,
então tiveram que se separar dessa maneira. Se conhecessem nosso destino,
teriam todos os motivos para verificar todas as rotas de fuga possíveis.
Os guardas se espalharam atrás de nós. Fomos cercados. Não havia nenhum
lugar para correr. Nossa única saída estava selada.
— Moore, você fez um trabalho esplêndido. Tudo correu como você disse —
disse Atofe.
— Se você estiver satisfeita, espero que se contenha e faça o que eu pedi.
— Não. — A resposta de Atofe foi curta quando ela levantou a mão. Ao seu
gesto, os outros cavaleiros desembainharam suas espadas. — Pois bem…
A rei demônio deu um passo em nossa direção e desembainhou sua própria
arma. Enquanto ela se elevava acima de nós na encosta, apontou sua lâmina
para mim e disse:
— Fwahahaha! Eu sou a Rei Demônio Imortal Atoferatofe Rybak. Se me
vencer, eu o declararei um herói! Se perder, será meu fantoche até o dia em
que soltar seu último suspiro!
O sorriso em seu rosto era selvagem, e uma aura sufocante de sede de sangue
emanou dela. Apesar de ser mais baixa do que eu, ela parecia um titã de cinco
metros de altura agora.
Sinto muito, Sylphie… Posso não conseguir voltar para casa.

Capítulo 8: Confronto com a Rei Demônio


Imortal
A Rei Demônio Imortal Atoferatofe era extremamente famosa. Ela é filha de
um dos Cinco Grandes Reis Demônios, Imortal Necross Lacross, e começou
a ganhar notoriedade durante a segunda Grande Guerra Humano Demônio.
Atofe era usada como exemplo da raça dos demônios. Mesmo que não fosse
muito inteligente, ela possuía destreza e resistência insanas em batalha. Era
temida como uma rei demônio feroz. Seus subordinados compensavam suas
deficiências intelectuais, mas quando tiveram sua rota de abastecimento
cortada durante a guerra, foram todos eliminados. Graças a isso foi capturada
pelos humanos e selada.
Não foi até a Guerra de Laplace que Atofe reviveu. Laplace foi quem deu a
ela uma nova vida, e ela fez um nome para si como rei demônio, trabalhando
ao lado dele. Quando o conflito terminou, foi derrotada pelo Deus do Norte
Kalman e rendeu-se.
De acordo com uma história, o Deus do Norte Kalman deixou uma criança
com a Rei Demônio Atofe, e foi esse herdeiro que se tornou o Deus do Norte
Kalman II. Outra conta que o Deus do Norte Kalman transmitiu a sabedoria
de sua técnica de espada à rei demônio. Uma outra afirmava que foi a Rei
Demônio Atofe quem ensinou ao Deus do Norte Kalman II tudo o que ele
sabia.
Se alguma dessas histórias fosse verdade, então Atofe era uma veterana das
batalhas que havia transmitido as técnicas do Deus do Norte. Além disso, seu
corpo também era imortal. Lutar com uma mulher assim seria idiotice.
Atofe estava diante de nós com seu séquito de soldados de armadura negra.
Nossa rota de fuga foi bloqueada. Com base em sua expressão, estava ansiosa
para partir para cima, sua lâmina estava em mão, pronta para a luta.
— Venham, podem vir os quatro de uma vez!
Atofe não fez movimento algum para começar a batalha, apenas ergueu a
espada e nos examinou. Isso foi proposital. Com o poder à sua disposição, ela
era perfeitamente capaz de nos dominar antes que pudéssemos reagir, mas
não fez nada.
— Você não vai me pegar desprevenida desta vez — avisou. — Eu aprendo
rápido. — Seus olhos brilhavam em chamas enquanto olhava entre Zanoba e
eu. Desta vez, estava totalmente alerta, pronta para a força desumana dele e
para minha magia elétrica.
Nossos ataques anteriores não fizeram nada. Zanoba tinha praticamente
esmagado seu crânio, mas sua cabeça agora estava perfeitamente intacta.
Porém, sua vigilância indicou que nossos esforços foram eficazes o
suficiente.
— Continuem. Tentem de novo. Desta vez, vai ser diferente.
Ela parecia confiante.
Tive a sensação de que ela evadiria de nossos ataques. O estilo Deus da Água
permitia que uma pessoa se opusesse a ataques mágicos. Eu não sabia muito
sobre o estilo Deus do Norte, mas, bem, ela era uma rei demônio. Eu tinha
certeza que minha magia não teria muito efeito dessa vez.
Ativei meu olho demoníaco, mas ver um segundo no futuro realmente me
dará vantagem contra um oponente de tal calibre?
Enquanto eu refletia sobre como lidar com a situação, decidi que criar uma
abertura seria minha melhor aposta.
Mas o que faço depois disso? E mesmo se criar uma abertura, minha magia
funcionará contra ela?
Mesmo o Canhão de Pedra mais poderoso que consegui fazer não foi o
suficiente para matar Badigadi. Além disso, Atofe estava preparada para o
meu ataque. Se ela se defendesse, minha magia não…
— Rudeus. — Elinalise de repente sussurrou ao meu ouvido. — Vamos ao
menos dar cobertura para o Cliff, para que ele possa se teletransportar para
fora daqui.
Olhei para Cliff. Ele estava bravamente olhando para Atofe, mas suas pernas
tremiam. Ele seria inútil na batalha.
— Se o enviarmos com as folhas de chá, as plantas e o memorando, ele terá o
suficiente para salvar Nanahoshi — continuou Elinalise.
— Bom ponto.
Ela estava certa. Esta era a nossa melhor opção. Tínhamos que salvar
Nanahoshi. Essa era a razão por trás de nossa jornada. Nada era mais
importante do que alcançar nosso objetivo. Mesmo assim, eu ainda queria
voltar para casa vivo.
Não, mesmo se eu for derrotado, provavelmente não vou morrer. Só não
poderei ver minha família por pelo menos uma década, e tenho certeza que
não quero isso.
— Também poderíamos chamar reforços. Tenho certeza de que Perugius já
lutou com Atofe no passado. Ele com certeza nos ajudaria.
Perugius e seus doze familiares, essa era uma boa ideia. Talvez pudéssemos
fazer com que ele nos apoiasse. Considerando a arrogância que demonstrava,
ele certamente tinha poder suficiente para lutar contra Atofe.
— Tudo bem — falei —, vamos fazer isso. Acha que pode convencer o
Cliff?
— Vou tentar. — Elinalise foi na direção dele.
Nós três, Zanoba, Elinalise e eu, poderíamos criar uma abertura para Cliff
escapar e se teletransportar de volta para a fortaleza. Enquanto ele persuadia
Perugius a nos salvar, teríamos que resistir a Atofe. Supondo que Cliff tivesse
sucesso, Perugius surgiria ao nosso resgate.
Mas isso funcionaria? Podíamos mesmo aguentar por tanto tempo? E será
que Cliff conseguiria convencer Perugius a nos ajudar? Se ele demorasse
muito, poderíamos perder e ser forçados a assinar um contrato. Ainda assim,
se Cliff voltasse, pelo menos Nanahoshi seria salva. Essa era a razão para os
nossos esforços. Mas eu também queria ir para casa.
Ah, merda. Acho que estou pensando demais.
Respirei fundo e disse a mim mesmo: Acalme-se.
Primeiro, precisávamos imobilizar Atofe por alguns minutos. Durante esse
intervalo, eu dispersaria os outros cavaleiros com minha magia para que Cliff
pudesse escapar. Dependendo de como as coisas corressem, o restante
poderia até ser capaz de fugir com ele.
Certo, vamos lá.
Podíamos não ser capazes de derrotar Atofe, mas podíamos derrotar seus
guardas.
Vamos fazer isso. Vamos esmagá-los em pedaços, matar todos. Se for
necessário para eu voltar para casa, farei isso. Beleza, você pode fazer isso,
Rudeus! Desta vez, você não vai ser só conversa fiada. Pronto?
— Não tema, Mestre. Mesmo ao custo de minha vida, manterei a Rei
Demônio Atofe aqui. — Zanoba tinha nervos de aço e estava perfeitamente
calmo. Isso era tranquilizador. Por que ele sempre conseguia soar tão heroico
nesses momentos? Era algum tipo de peça de teatro ou algo assim? Se eu
fosse uma mulher, ele me teria aos seus pés.
Perto dali, Cliff e Elinalise estavam cochichando.
— O problema é que não sei se posso passar por eles. Minhas pernas não são
rápidas, especialmente se eu tiver que carregar tudo isso comigo…
— Rudeus e eu não vamos deixar ninguém chegar até você — prometeu
Elinalise, mantendo a voz baixa. — Só não olhe para trás e não pare para
pensar. Conte seus passos e corra o mais rápido que puder. Tente não
tropeçar.
— Mas eu deveria me juntar a vocês na batalha…
— Não podemos vencer, nem mesmo com nós quatro. Precisamos que você
chame reforços. Esse é o seu dever nesta luta, e é extremamente importante.
— Certo… Beleza, entendi.
Faltavam trinta passos para o círculo de teletransportação. Não tão perto, mas
também não tão longe. Se Cliff corresse com tudo o que tinha, seria capaz de
sobreviver.
Depois de um ou dois minutos, Elinalise voltou e disse:
— Certo, eu o convenci.
Olhei para Cliff. Ele acenou com a cabeça, com o olhar determinado de um
homem dedicado a cumprir o seu dever, e não o de um homem fugindo da
batalha. Elinalise fez bem em dizer a ele que seu papel era uma parte
fundamental da luta. Ela sempre foi boa em persuasão. Eu não teria sido
capaz de convencê-lo tão facilmente.
— Zanoba e eu vamos distrair Atofe e criar uma abertura — disse Elinalise.
— Rudeus, você usará a oportunidade para incapacitar os guardas.
— Entendido.
Com isso, nosso caminho foi traçado. Viramos para Atofe.
Ela ainda estava com a espada em punho enquanto nos olhava com raiva.
— Acham que podem me vencer?
Não havia inimigos atrás dela, mas estávamos em uma encosta e o terreno era
instável. Eu estava preocupado sobre Cliff conseguir correr com todas essas
coisas sem cair. Tudo o que podíamos fazer era acreditar nele.
— Zanoba, Senhorita Elinalise, darei o ataque inicial com minha magia.
— Boa ideia.
Virei-me para Atofe e levantei meu cajado. Eu usaria meu velho e prático
Canhão de Pedra. Talvez Raio fosse uma escolha melhor, já que era a magia
de nível Rei com o melhor poder de fogo para se usar contra um único
oponente, mas a esta distância, poderíamos ser pegos no feitiço. Eu queria
evitar ser um idiota e nos exterminar com minha própria magia.
— Uff… — Exalei antes de concentrar minha mana no cajado.
Atofe ficou parada. Ela já sabia que eu poderia usar magia sem recitar
nenhum encantamento, mas não fez nenhum movimento para me
interromper. Isso era perfeito para mim.
Meu Olho da Previsão leu seus movimentos: Atofe irá desviar meu Canhão
de Pedra com sua espada. As pessoas diziam que meu Canhão de Pedra
estava em um nível incrivelmente alto de magia, mas mesmo isso não
funcionaria contra ela.
Será que Eletricidade funcionaria melhor? Mas posso realmente usar um
feitiço para o qual ela está mais alerta?
— Mestre, juro que acompanharei qualquer ataque que você desencadear,
então, por favor, tenha fé em mim. — Zanoba olhou diretamente para mim,
os olhos cheios de confiança.
— Certo… — Era tranquilizador ouvi-lo dizer isso. Claramente, tinha algum
tipo de plano. Nesse caso, eu apenas seguiria seu comando. — Tudo bem,
então vamos lá!
— Sim, Mestre!
Lancei meu Canhão de Pedra depois de juntar toda a mana que pude. Um
som agudo cortou o ar enquanto voava em direção a Atofe.
— Eu consigo ver através do seu ataque!
Ela deixou uma imagem residual para trás enquanto reagia. Mesmo que
chamar de imagem residual fosse um exagero; ela mal moveu o braço,
mudando ligeiramente a direção da espada. Naquele instante, meu Canhão de
Pedra acertou sua arma, enviando faíscas para todos os lados. Meu ataque foi
desviado, passando rapidamente por Atofe e batendo em uma pedra na
encosta. Enormes nuvens de areia subiram.
Eu sabia. Esse feitiço não é bom contra ela.
— Graaaaaaah!
Zanoba atirou algo em Atofe.
— Gwaaaahaa!
Ela alegremente preparou sua espada para cortar a coisa que ele atirou em sua
direção enquanto gritava.
— Seus ataques são inú… hein?
Quando Atofe estava prestes a cortar o projétil, ela congelou. Um segundo
depois, aquilo a acertou bem no rosto.
— Fwah?!
— Oof!
Kishirika estava colada ao rosto de Atofe. Ela estava montada no ombro de
Zanoba alguns momentos antes.
— Nojenta! Você cheira a merda! Pelo menos tome um banho, sua idiota! —
uivou Atofe.
— Com licença, não é como se eu quise… hyaaaah!
Atofe não deixou Kishirika terminar. Ela arrancou a imperador demônio
fedida de seu rosto e a jogou para longe. Kishirika caiu fora do nosso raio de
combate.
— Repugnante. O que você estava pensando, jogando algo assim no… quê?!
Enquanto Atofe gritava de exasperação, Zanoba cerrou o punho e investiu
contra ela. Elinalise estava logo atrás dele, escondendo-se em sua sombra.
Merda.
Eu podia ver no que isso ia dar.
— Então você passou pelas minhas defesas. Gosto do seu espírito!
— Haaaaah! — Zanoba deu um soco. A força por trás era o suficiente para
deixar meu cabelo em pé. Seu soco cortou o ar quando atingiu o rosto dela.
Atofe tentou desviar o golpe com sua manopla…
— Gah?!
Mas falhou. O punho dele bateu em sua manopla, fazendo-a tropeçar
enquanto sua armadura se deformava com a força do golpe.
— Haaah!
Zanoba continuou com outro golpe. Ele deu um grande passo e deu um soco
em direção ao torso dela.
— Fraco! — resmungou Atofe.
Seus ataques não eram suficientes para forçá-la para trás. Mesmo com a
postura estranha em que se encontrava, ainda conseguia balançar sua espada
enorme. Um estalo alto ecoou quando suas pernas se dobraram e ela
direcionou sua arma com toda a força para o torso de Zanoba.
— Guh… uuurgh! — O rosto dele se contorceu de dor quando caiu sobre um
joelho. Mesmo meu Canhão de Pedra não era suficiente para fazê-lo cair, mas
com um único ataque, ela o forçou ao chão.
Atofe olhou para ele e bufou.
— Você tem um corpo impressionante, mas não se esqueça: não existe defesa
perfeita. Meu marido, Kal, foi quem… gah!
— Hah!
No meio de seu discurso, Elinalise apareceu por trás de Zanoba, usando suas
costas como ponto de partida. Seu ataque, apoiado pela força centrífuga,
cortou o ar quando ela acertou o pescoço de Atofe. Sua lâmina foi desviada
com um estrondo alto. Nenhuma pele faria esse som. Atofe devia estar
usando Aura de Batalha para se proteger.
— Eu ainda não terminei!
Assim que Elinalise percebeu que não funcionaria, recuou. Ela preparou seu
escudo enquanto redobrava seus esforços, empurrando com sua arma. Ondas
de choque invisíveis surgiram na direção de Atofe.
— Hmph!
Ela nem se mexeu, só franziu as sobrancelhas em desgosto, como se um
pouco de areia tivesse entrado em seu olho.
— Sua espada é muito fraca! Olha, é assim que se faz! — Atofe balançou os
quadris e direcionou sua enorme espada para Elinalise. A elfa deu um passo
para trás na tentativa de se esquivar, mas…
— Khh?!
Ela ergueu seu escudo no último segundo. Logo em seguida, um som
profundo ecoou e Elinalise saiu girando pelo ar. Ela rolou pelo chão coberto
de pedras e se levantou igual um gato. O medo brilhou em seus olhos. Seu
ataque foi ineficaz.
Atofe havia criado ondas de choque apenas balançando sua espada. Se
Elinalise não tivesse bloqueado com seu escudo, poderia ter sido cortada ao
meio.
— Seu trabalho com os pés é impressionante, admito — disse Atofe. — Se
você treinar comigo, pode…
— Graaaaaah! — Zanoba saltou, abrindo os braços enquanto investia contra
Atofe. — Aaaah! — Ele passou os braços ao redor dela, pela frente,
prendendo-a, então a ergueu até que seus pés não tocassem mais o chão.
— Hmph, seu desgraçado, você não tem vergonha? Colocando seus braços
em volta de mim como… guh!
Seus braços eram como uma prensa apertando-a. Sangue negro jorrou da
boca de Atofe. Aparentemente, esse tipo de ataque era eficaz! Bem, ela ainda
era uma rei demônio imortal. Qualquer dano que sofresse seria temporário.
— Mestre, agora!
— …!
Suas palavras me trouxeram de volta à realidade. Ele conteve Atofe. Essa era
a nossa chance.
— Cliff, vai! Corre! — Derramei toda a minha mana em meu cajado. Usaria
um ataque total na área e nocautearia todos os soldados inimigos.
— Certo!
Quando Cliff começou a correr, os cavaleiros próximos ficaram alertas e
prepararam suas espadas. Para o azar deles, já era tarde demais.
— Nova Congelante!
Um vento gelado saiu do meu cajado. O solo estalou ao congelar e dedos de
gelo dispararam em direção dos cavaleiros que nos cercavam.
— Ah!
— Guh?!
Meu feitiço prendeu seus pés no lugar. Nossa vitória estava assegurada. Eu os
peguei desprevenidos; não tiveram oportunidade de fugir do meu ataque.
Ou assim pensei. Uma voz soou:
— Chamas violentas consumam meu corpo. Queima Local!
Uma onda de calor se espalhou de um homem, envolvendo os outros. Esse
calor começou a combater minha Nova Congelante. O homem que lançou o
feitiço tinha vapor saindo de seus braços enquanto descongelava o gelo.
Então era o Moore…
O velho capitão cavaleiro havia começado seu cântico no momento em que
levantei meu cajado, permitindo-lhe contra-atacar meu feitiço poucos
segundos depois. Fiquei chocado com a quantidade de poder mágico que ele
possuía, e também com a rapidez com que terminou seu encantamento.
Porém, sua magia só conseguiu libertar ele e os dois guardas mais próximos.
Os outros estavam completamente envoltos em gelo. Ainda havia uma grande
diferença entre nosso poder mágico, e neste ponto eu era vencedor.
E também matei pela primeira vez.
— Estou impressionado com a quantidade de poder mágico que você possui,
sendo capaz de congelar todos nós. Todos, recitem o encantamento para
Queima Local!
— Como desejar! Espírito do Fogo que preside sobre todas as coisas entre o
céu e a terra…
Enquanto Moore gritava, os outros começaram a entoar o feitiço de dentro do
gelo em que estavam presos.
Não estão mortos. Ninguém morreu.
Devia ser a armadura. Talvez tivesse dado a eles uma resistência natural à
magia de água.
Bem, que merda.
— Grrr… — Atofe rosnou quando Cliff passou por ela. — Moore, não o
deixe escapar!
— Entendido!
Ao comando de Atofe, Moore entrou em ação. Poucos segundos depois, os
outros dois cavaleiros mais próximos a ele conseguiram descongelar e correr
atrás dele.
— Como se eu fosse deixar vocês passarem! — Elinalise disparou na frente
dos dois. — Rudeus! Você cuida dele!
Moore perseguiu Cliff sem nem olhar para trás. Ele se movia bem rápido para
um homem de armadura. Enquanto isso, Cliff estava carregando um peso
enorme. Havia apenas cerca de sete passos entre eles.
Virei meu cajado na direção de Moore.
— Canhão de Pedra!
Moore usará a Parede de Terra para tentar bloquear meu Canhão de Pedra.
Sem problemas. Eu ainda poderia fazer isso. Derramei toda a mana que pude
em meu cajado e lancei meu feitiço.
— Parede de… gah!
Enquanto Moore continuava correndo, ele apontou a mão em minha direção
enquanto tentava recitar seu encantamento, mas meu Canhão de Pedra atingiu
seu braço igual uma espécie de laser. Sua apêndice, junto com a armadura
que o cobria, girou pelo ar. A perda daquele membro o fez tropeçar, mas ele
não desistiu de sua perseguição.
— Conceda-me o teu poder, Espíritos da Água! Névoa Profunda! — Moore
recitou outro feitiço, criando uma névoa que o envolveu. Pelo visto, pretendia
usar isso como uma cortina de fumaça para evitar meu Canhão de Pedra.
Ainda assim, ele pode lançar esses encantamentos muito rápido. Ele aprendeu
a reduzir seus cantos consideravelmente, assim como Roxy.
— Rajada de Vento!
A rajada que desencadeei dispersou a névoa, mas Moore não se intimidou.
Ele não deu sinais de perder o foco enquanto perseguia Cliff. Talvez aquela
armadura negra dele também fornecesse resistência contra feitiços de vento.
E então? Havia apenas uma curta distância o separando de Cliff. Minhas
escolhas estavam se estreitando nessas circunstâncias.
Enquanto pensava em ideias, meu Olho da Previsão me disse o que
aconteceria logo depois.
Moore vai começar a entoar um feitiço enquanto continua correndo atrás de
Cliff.
— Espíritos das terras estéreis, atendam ao meu chamado e entreguem-me…
— Atrapalhar Magia! — Pratiquei isso com Sylphie inúmeras vezes. A magia
foi direto para Moore e interrompeu o feitiço que estava tentando lançar.
— Impossível! Atrapalhar Magia?! — Surpreso, Moore olhou para as mãos.
Mesmo assim, continuou correndo. Estava a apenas cinco passos de Cliff.
— Atoleiro!
Logo depois lancei outro feitiço contra ele, usando minha mão esquerda para
bloquear seu caminho. Usar a magia que estava mais acostumado a utilizar
era uma boa escolha. Meu oponente podia ser um veterano, mas as
habilidades de batalha que eu havia adquirido ao longo dos anos ainda
funcionavam contra ele. Além disso, passei por simulações como essa
quando estava praticando.
— Grrr!
O terreno entre Cliff e Moore ficou parecendo um pântano. A lama tinha
consistência de cola, grudando nos pés de Moore. Isso parecia que iria detê-
lo…
— Deus desconhecido, atenda ao meu chamado e levante a terra em direção
aos céus! Lança de Terra! — Moore lançou um feitiço em seus pés. Um
bloco de terra se ergueu e ele o usou como ponto de partida para voar sobre
meu Atoleiro.
— Khh!
Ele não parava. Apenas continuava correndo. Tudo o que eu jogava nele, ele
rebatia ou resistia.
Então, essas são as habilidades de um mago veterano…
— Rudeus, ajude Cliff! Rápido! — gritou Elinalise atrás de mim.
— Eu sei! — Lancei a ela um breve olhar. Ela estava travando uma batalha
com os soldados que antes estavam ao lado de Moore. Eram dois contra um.
Ela não era o alvo, mas estava fazendo o seu melhor para mantê-los
ocupados.
— Liberte-me, droga! Agora mesmo! Você não tem vergonha? Pare de se
agarrar a mim! Vamos pelo menos trocar socos! — rugiu Atofe.
Zanoba respondeu:
— Mesmo se você me matar, não vou te deixar ir!
Atofe já tinha dado uma cabeçada nele. Ele manteve um forte controle sobre
ela, mesmo enquanto o sangue escorria de sua testa.
Enquanto isso, os outros cavaleiros estavam se descongelando lentamente. O
vapor estava preenchendo a área.
— Khh…
Como eu poderia fazer Moore parar de segui-lo? Ele era forte e tinha muito
mais experiência em lutar com magia. Feitiços normais não funcionam contra
ele. Devo lançar algo mais poderoso?
Não. Mesmo se um feitiço poderoso parasse Moore, seria inútil se Cliff fosse
pego pela explosão. Além disso, Moore era insanamente bom em responder a
tudo o que eu jogava nele, e ele também tinha aquela armadura idiota…
— …!
Foi quando percebi que o chão embaixo de mim estava molhado, resultado da
Nova Congelante que usei momentos atrás. Os soldados usaram Queima
Local para derreter o gelo que eu fiz, e agora o solo estava encharcado.
Moore não era exceção, tendo sido o primeiro a descongelar-se. Claro,
Elinalise e eu também tínhamos água aos pés.
Se Atofe nunca viu aquele tipo de magia antes, então certamente Moore
também não. Não importa o quão experiente ele fosse, não seria capaz de se
opor a um feitiço que nunca tinha visto. Embora se eu o usasse, todos nós,
Elinalise, Zanoba e eu, inclusive, seríamos atingidos por ele. Apenas Cliff
permaneceria ileso, pois estava fora do alcance do meu feitiço. Ele ficaria
bem.
Fiz minha escolha naquele momento. Sem hesitação.
— Eletricidade!
Derramei mana suficiente no feitiço para atordoar todos sem matá-los.
Eletricidade disparou da minha mão. Estalou no ar enquanto envolvia a área
antes de atingir o solo. Conduzido através da água, todos ao redor foram
atingidos.
— Gyaaaah!
— Aaaah!
— Oooooh…
Fumaça subia dos cavaleiros de armadura negra enquanto desmaiavam.
Todos foram pegos pelo choque, incluindo Elinalise, Zanoba, Atofe, os
outros soldados, Moore e eu.
— Ugh! Gahh!
Passou direto pelo meu corpo, atingindo minha espinha e minhas
articulações. Cada parte de mim parecia dobrar na direção errada. Eu não
tinha usado mana suficiente para matar, então sabia que sairia dessa com
vida. Mas isso não impediu que a escuridão engolisse minha visão enquanto
eu perdia a consciência.
Quando acordei, estava jogado no chão. Lembrei de ter desmaiado, mas não
durou mais que dois segundos. Meu corpo inteiro estava paralisado. Pelo
menos consegui recuperar a visão.
O que aconteceu com Cliff?
Levantei minha cabeça.
Moore estava de joelhos, fumaça subia das rachaduras de sua armadura. Ele
tinha uma mão estendida na direção de Cliff, e eu podia ouvi-lo murmurar o
que achei ser um encantamento.
Preciso usar o Atrapalhar Magia… Não, não vou conseguir a tempo.
Concentrei mana em meu braço esquerdo. Mesmo que a minha mão direita
estivesse dormente com o choque, minha mão protética ainda podia se mover.
Soltei meus dedos e lancei um feitiço de minha palma.
— Amarração de Vento — grunhiu Moore.
— Braço, absorva!
O chicote de ar que Moore conjurou desapareceu na hora.
— O quê?! — A cabeça de Moore virou em minha direção. Não consegui ver
sua expressão através do capacete, mas sua surpresa era nítida.
Cliff nunca olhou para trás. Ele estava a apenas três passos do círculo
mágico. Ninguém poderia pegá-lo. Graças à minha magia, eles não podiam
nem mesmo tentar, se quisessem.
Meu feitiço também paralisou Atofe. Seus olhos estavam bem abertos,
olhando para mim igual um tigre.
— Desgraçado, você realmente nos pegou. Essa foi uma magia estranha.
Permaneci em silêncio.
— Ainda assim, eu devia ter esperado por isso. Mal posso esperar para você
ser meu subordinado. Kehehe. Tenho desejado um mago como você. Vou te
tratar muito bem, prometo. Kehehe… — Ela sorriu loucamente para mim.
Eu a encarei de volta, sem hesitar.
Sendo uma demônio imortal, eu tinha certeza que ela se recuperaria mais
rápido do que eu. Não haveria mais fuga. Não conseguiríamos resistir a ela.
Zanoba estava inconsciente. Mesmo que ele ainda estivesse com os braços
em volta de Atofe, parecia preste a ceder a qualquer momento. Dada sua
baixa tolerância à dor, provavelmente ficaria inconsciente por um tempo.
Este… era o fim.
—…
Olhei para Elinalise. Seu corpo inteiro tremia enquanto tentava se levantar.
Ela provavelmente tinha sofrido a mesma quantidade de dano que eu, mas
não ia deixar que isso a impedisse. Ela ainda não tinha desistido.
Depois de desistir, está tudo acabado. O treinador de cabelos brancos[1] de
Slam Dunk também disse isso.
Com um pouco de esforço, eu poderia fazer o mesmo.
Vai, vamos lá. Vamos pra casa. Quero voltar. Eu tenho que voltar.
E quando eu chegasse em casa, hm… talvez tivesse um tempo gostoso com
Sylphie. E Roxy também, é claro. Eu também queria abraçar a pequena
Lucie. Além disso, prometi ensinar esgrima e magia para Norn, e estava
ansioso para comer o arroz de Aisha. Lilia carregava um fardo enorme sobre
os ombros, cuidando da minha mãe. Zenith com certeza poderia acabar
recuperando a memória. Quando ela a recuperasse, poderíamos visitar o
túmulo do Pai juntos.
Sim, isso mesmo. Continuaremos sorrindo juntos, como sempre fizemos.
Minha vida neste mundo era tão insanamente agradável. Eu tinha que
protegê-la. Eu precisava.
Certo, eu posso fazer isso. Mova-se, Rudeus. Não me importo se é apenas o
seu braço; você pode ao menos usar magia.
E o meu cajado? Para onde foi? Eu precisava dele para usar meus feitiços.
Ah, achei.
No final das contas, eu estava deitado em cima dele.
Desculpe, Aqua Heartia. Tenho certeza de que devo ser pesado.
Enfim, eu poderia fazer isso. Só teria que aguentar até a ajuda chegar. Isso
era tudo. Não havia necessidade de vencer.
Por favor, Mestre Cliff. Eu sei que você provavelmente odeia Perugius, mas
eu imploro a você, por favor, convença-o. Não me importo se você não puder
fazer isso de imediato, mas se puder pelo menos trazer alguma ajuda dentro
de um ano, seria incrível.
— Quê? — Elinalise deixou escapar um suspiro estrangulado.
Minha cabeça se ergueu e segui seu olhar. Cliff tinha acabado de chegar à
entrada das ruínas subterrâneas, onde encontrou um dos soldados de
armadura negra.
— Sem chances.
Um deles esteve o tempo todo lá dentro?
— Ah…
Por que não considerei essa possibilidade? Essa abertura era bastante óbvia.
Não importa o quão estúpida Atofe fosse, é claro que ela investigaria as
ruínas.
Uma escuridão se espalhou dentro de mim. A emoção que me dominou era
uma com a qual eu estava muito familiarizado, desespero. Isso me fez querer
gritar e cair de exaustão. Nunca mais veria Sylphie ou Roxy. Em vez disso,
teria que treinar com a idiota da rei demônio até o dia em que morresse.
Enquanto me resignava ao meu destino, toda a força do meu corpo me
deixou.
Naquele momento, uma voz surpresa gritou.
— O quê…?!
Não fui eu. Não foi Elinalise ou Zanoba. Também não foi Moore.
Foi Atofe. Era ela quem ofegava enquanto olhava na direção de Cliff.
— Ah, Lady Atofe… — O cavaleiro de armadura empurrou Cliff que deu
passagem manquejando. Algo nele estava… estranho. — O círculo mágico
ali leva até Peru…
No instante seguinte, algo se partiu horizontalmente em seu corpo. Ele foi
dividido em dois. O indivíduo brilhante que apareceu atrás dele tinha cabelos
prateados, pequenas pupilas douradas e roupas brancas cobertas de manchas
de sangue.
— Rei Demônio Imortal Atoferatofe, hein? — O homem que apareceu na
entrada das ruínas falou fluentemente a Língua Demônio. — Eu nunca teria
esperado que você estivesse aqui. Mesmo que eu tenha considerado que algo
assim poderia acontecer quando conectei meu círculo de teletransportação a
Rikarisu.
Várias pessoas estavam atrás dele. Reconheci dois: Arumanfi, o Brilho, e
Sylvaril do Vazio. Eu ainda não sabia os nomes dos outros, mas eram seis no
total.
— Seus soldados imundos mancharam minha fortaleza com sangue.
Ah, isso faz sentido. Atofe chegou aqui antes de nós. Ela deve ter encontrado
a entrada para as ruínas e ordenou que seus soldados entrassem e
vasculhassem. Aqueles que encontraram o círculo de teletransportação, sem
dúvidas, entraram para ver o que havia do outro lado. Assim, demônios
entraram na fortaleza flutuante de Perugius.
— Peeerugiuuuus! — uivou Atofe.
O próprio Rei Dragão Blindado estava diante de nós.
No momento em que Atofe avistou Perugius, a atmosfera ao seu redor
mudou. A hostilidade que exalava dela era diferente de tudo que tínhamos
visto. A maneira como ela mostrava suas presas e seu olhar quase me fizeram
pensar se ele assassinou os pais dela ou algo assim.
— Perugius, seu desgraçado!
Mesmo que seu corpo ainda estivesse dormente com o choque, Atofe se
levantou e empurrou Zanoba para longe. O corpo dele caiu, completamente
mole. Ela o ignorou enquanto mantinha seu olhar travado em Perugius. Suas
asas começaram a bater rapidamente enquanto ela concentrava sua força nas
pernas e tentava se lançar para frente, mas seus joelhos cederam.
— Hah hah!
Perugius a encarou de volta, os lábios rachados em um sorriso encantado.
— Ah? Esta é uma surpresa bastante agradável, Atoferatofe. Você baixou a
guarda de novo? Isso parece ser algo que sua tribo de demônios imortais
geralmente faz.
— Então essas pessoas, eram seus subordinados, hein?! Esse seu truque
dissimulado… Tudo isso para que pudesse me matar? O que aconteceu com o
juramento que você fez a Kal?!
Perugius riu enquanto olhava para ela.
Dominada pela raiva, Atofe gritou com ele. Moore tentou chegar até ela,
porém seus pés instáveis impossibilitaram alcançá-la. Os únicos que saíram
ilesos do meu feitiço foram Perugius e seus familiares, assim como Cliff.
Ele parecia considerar Atofe como um tigre de olho em sua presa.
— Não entenda mal — disse ele. — Essas pessoas queriam salvar uma
amiga, então pediram minha ajuda. Isso é tudo.
— Não se atreva a mentir para mim! Graaaah!
— Vou manter a promessa que fiz a Kal. Ele era meu melhor amigo.
— Vocês dois eram amigos, mas eu ainda odeio sua raça!
Após uma longa pausa, Perugius respondeu:
— Eu também detesto pessoas como você. Você é uma idiota que não dá
ouvidos à razão. — Ele ergueu os dois braços, as palmas das mãos abertas.
O rosto de Atofe ficou pálido.
— N-Não, você não iria…
Ele ignorou seus protestos e começou a entoar.
— Este dragão vive apenas para servir. Suas garras são tão longas e afiadas
que ele nunca consegue fechar a mão…
Senti como se já tivesse ouvido isso em algum lugar.
— Quando a raiva o consome, ele não consegue fechar o punho. Mesmo que
suas garras possam quebrar e suas presas caírem, logo perceberá que emoção
consome este dragão fiel quando ele abandona sua devoção!
Perugius pronunciou cada palavra, uma por uma. Ao fazer isso, a mana
circundante se agrupou ao seu redor.
— Ó dragão general, tu que foste o terceiro a morrer, cujos olhos eram os
mais afiados, cujo corpo estava coberto de escamas brancas, eu, Rei Dragão
Blindado Perugius, te invoco.
No momento em que percebi o que estava acontecendo, Atofe estava cercada
por dois portões, bloqueando-a do resto de nós. Ambos tinham dragões
minuciosamente esculpidos detalhadamente e eram bem ornamentados. Um
era prateado, enquanto o outro era dourado. Eles surgiram do chão enquanto
Perugius continuava seu encantamento.
— Abra, Portão da Retaguarda do Wyrm. Chame adiante, Portão da
Vanguarda do Wyrm.
Como ordenou, eles se abriram. Algo estava derramando do direito e se
infiltrou no esquerdo. Não era vento. Era algo que não podia ser visto a olho
nu, algo que eu conhecia bem.
Mana. Ele convocou aqueles portões para absorver mana.
Meu próprio poder mágico estava sendo sugado de mim. Não era a mesma
experiência que tive com Orsted. A drenagem desta vez estava mais rápida,
mais intensa, já que minava minha resistência.
— Não, Lady Atofe, por favor, corra… — Moore, que estava rastejando em
nossa direção, desabou completamente.
As pernas de Atofe ainda tremiam violentamente quando ela olhou
fixavamente para Perugius com um olhar feroz.
— Perugiuuuus!
O corpo dela parecia menor do que antes. Talvez aqueles portões estivessem
absorvendo a Aura de Batalha que ela envolveu ao seu redor.
— Você realmente pretende quebrar seu juramento?!
— Não vou quebrá-lo. Porém, esta é uma oportunidade extremamente rara
que não posso deixar passar. — Perugius ergueu a mão direita. Estava
irradiando uma luz tão brilhante que banhava toda a área. — Ataque do
Dragão Blindado, Primeiro Corte.
Quando abaixou a mão. Toda a luz penetrou direto em Atofe.
— Não vou me esquecer disso, Perugiuuuus! — Seu corpo inteiro congelou
no lugar. O tempo pareceu parar por um segundo, e então ela foi arremessada
no ar. Seu corpo se partiu ao meio quando ela saiu de vista.
— Hmph. Não é como se isso fosse te matar mesmo — murmurou Perugius
para si mesmo. Tendo perdido o interesse, ele se virou para sair. — Sylvaril,
reúna os quatro e cuide de seus ferimentos.
— E os outros soldados?
— Deixe eles.
— Vejo que a Grande Imperador Demônio do Mundo Demônio, Kishirika,
também está entre eles.
No canto da minha visão, Kishirika estava caída no chão. No momento em
que Sylvaril a mencionou, ela estremeceu. Aparentemente, também foi
atingida pelo meu ataque elétrico.
Sinto muito por isso.
— Deixe-a também.
— À suas ordens.
Aparentemente, ele iria ignorar Kishirika. Ainda bem.
— Uff. — Quando Sylvaril e os outros se aproximaram, soltei um suspiro de
alívio.
Estamos salvos.
Depois disso, os familiares de Perugius nos ajudaram a voltar para o círculo
de teletransportação. Todos tínhamos que usar seus ombros para nos apoiar
enquanto caminhávamos, exceto Cliff, é claro. Ele falou com Kishirika
enquanto os familiares cuidavam de nós. No momento em que olhei na
direção deles, Kishirika estava gargalhando para si mesma enquanto
desaparecia no horizonte, livre novamente. Na próxima vez que a víssemos,
esperava que tivéssemos mais facilidade para encontrá-la… mas isso não era
muito importante no momento.
Depois que todos nós estávamos de volta à fortaleza, Sylvaril cortou a
conexão entre o círculo deles e o próximo a Rikarisu. Não havia mais um
caminho de volta ao Continente Demônio.
Fomos encaminhados à enfermaria para tratamento de eletrocussão. Cliff
cuidou de nós. Ele até mesmo se ofereceu.
— Nunca vi queimaduras como essas antes — murmurou enquanto usava sua
magia para nos curar. Embora nossas feridas não apresentassem risco de vida,
as queimaduras haviam penetrado fundo o suficiente para danificar
permanentemente os nossos corpos caso não recebêssemos tratamento. Eu me
senti culpado por ferir Elinalise e Zanoba tão gravemente, mas se não tivesse
feito aquele ataque, não teríamos incapacitado aquela rei demônio imortal.
Cliff foi muito cuidadoso ao cuidar das feridas de Elinalise. Ele
provavelmente estava preocupado com cicatrizes residuais. Da sua parte,
Elinalise achou a preocupação dele tão cativante que, assim que ele terminou
de tratá-la, ela o carregou para algum lugar.
Zanoba permaneceu inconsciente, mesmo depois de ser curado. Ele realmente
salvou minha pele. Nenhuma quantidade de gratidão poderia retribuir
totalmente por isso. Por mais inestimável que fosse a amizade, eu tinha que
agradecê-lo por tudo o que fez. Eu teria a certeza de transmitir meu
agradecimento quando ele acordasse.
Assim que fiquei totalmente curado e pude me mover novamente, fui ver
Sylphie. Ela estava deitada na cama, lendo um livro, mas quando entrei, ela
olhou para cima e inclinou a cabeça.
— Algum problema?
Sem resposta, eu silenciosamente deitei na cama e passei meus braços em
volta dela. Ela soltou um grito de surpresa, que me apunhalou no coração.
Parecia rejeição. Embora magoado, eu ainda a abracei com força.
A risada de Atofe ainda pairava em meus ouvidos, assim como o desespero
que senti quando meu corpo inteiro ficou tão dormente que eu não conseguia
me mover. Eu sabia que não morreria naquela luta. Atofe estava se
segurando, e mesmo seus cavaleiros não tinham ido até nós com todo o seu
poder. A magia que Moore usou não era perigosa o suficiente para matar,
mas isso não a tornava menos assustadora. Se Perugius não tivesse chegado
bem na hora, Atofe teria nos capturado e nos feito assinar aquele contrato. Eu
nunca teria a chance de segurar Sylphie em meus braços assim novamente.
Nem ver Lucie enquanto ela crescia. Ou Roxy, ou Norn, ou Aisha, nenhuma
delas.
Só esse pensamento já me abalou profundamente. O suficiente para que todo
o meu corpo tremesse de medo. Não havia nada mais precioso do que o calor
que eu tinha em meus braços neste momento.
De repente, uma mão acariciou meu cabelo. Sylphie estava acariciando minha
cabeça, passando seus dedos macios, delicados e quentes pelo meu cabelo.
Ela felizmente retribuiu meu abraço. Nem mesmo pediu uma explicação;
simplesmente me abraçou de volta. Era o suficiente para mim. Com meus
braços em volta dela, adormeci, aliviado.
[1] Rudeus se refere a um personagem de mangá, Mitsuyoshi Anzai, o
técnico do time de basquete da Escola Secundária Shohoku e um dos
melhores técnicos do Japão.

Capítulo 9: Um Dia na Fortaleza Flutuante


Passaram dois dias em um piscar de olhos.
Depois de recuperar a consciência, Zanoba alegremente passeou pelo castelo,
apreciando toda a arte que havia nele. Ser capaz de andar livremente o
deixava de bom humor. Fiquei aliviado por ele ter se recuperado totalmente
do meu feitiço elétrico. Se não tivesse recuperado a consciência, eu não
saberia o que dizer a Ginger.
Cliff, por outro lado, havia mudado. Imediatamente após a batalha, ele falou
com Kishirika e eu me perguntei do que se tratava. Acontece que estavam
discutindo sua recompensa por ajudá-la antes: um olho demoníaco. Ele
ganhou o Olho da Identificação. Isso permitia que olhasse para qualquer item
e entendesse suas características. Ele o escolheu para poder ajudar se algo
como a doença de Nanahoshi aparecesse novamente. Como sempre, Cliff
estava sendo heróico.
Esse heroísmo, entretanto, não estava ajudando a dominar os olhos. Ele
estava sofrendo com isso. Aparentemente, tudo o que olhava aparecia com
uma identificação e uma explicação. Para ele, o mundo inteiro foi inundado
com textos. Ele não podia andar sem Elinalise guiando-o pela mão. Mas eu
tinha certeza de que em algum momento dominaria isso. Quando o fizesse, as
pessoas certamente o chamariam de Cliff, o Sábio! Até então, provavelmente
teria que usar um tapa-olho.
A próxima foi Nanahoshi.
Preparamos um chá com as folhas que conseguimos no Continente Demônio
e pedimos para ela tomar. Não muito tempo depois, Nanahoshi começou a
reclamar que precisava usar o banheiro. Yuruzu a auxiliou e… bem, para
preservar sua honra, pouparei os detalhes. Digamos que ela estava se
recuperando.
— Como está se sentindo? — perguntei.
Nanahoshi ainda estava acamada. Sua pele havia melhorado bastante, mas o
cansaço ainda permanecia. Ela também perdeu muito peso. Era como se tudo
o que ela tinha no estômago tivesse saído, deixando nada além de um
esqueleto para trás.
— Estou me sentindo um pouco melhor.

Para ficar em segurança, ela precisaria descansar por mais um mês, mas ao
menos seu humor estava melhorando.
Sua expressão estava diferente de sua normalidade tensa. Em vez disso,
parecia estar atordoada por ter acabado de acordar. Seu cabelo estava todo
bagunçado, apontando em todas as direções. Eu costumava pensar que ela
levava um estilo de vida pouco saudável, mas pelo menos mantinha o cabelo
sempre penteado.
— Obrigada por me ajudar. — Ela baixou a cabeça, as mãos em forma de
concha em torno de uma caneca quente de chá de Grama Sokas. Sua
formalidade e sinceridade eram uma demonstração rara. — Realmente
aprecio que tenha corrido tanto risco para ir buscar essas folhas de chá para
mim. Você, hm… realmente me ajudou.
Havia algo profundamente perturbador em ouvi-la falar assim.
Nah, tenho certeza que ela só está se sentindo fraca, então está meio fora de
si.
— De nada.
— Você também cuidou de mim da última vez que tive problemas. Te falei
algumas coisas bem insensíveis, mas você me ajudou e nunca demonstrou
ressentimentos. Nem sei como começar a te agradecer… — Ela me lançou
um olhar de desculpas.
Eu nunca tinha testemunhado Nanahoshi agindo tão educadamente. Talvez as
habilidades de Yuruzu da Redenção pudessem transferir personalidades, além
da resistência.
— Agora que penso nisso, fui bastante casual e rude com você, embora você
seja mais velho do que eu.
Balancei minha cabeça.
— Não me importo com isso. Neste mundo, tenho apenas dezoito anos.
— E quantos anos tinha antes de vir para cá?
— Trinta. Mas não se preocupe com isso. Vamos esquecer essa coisa de
idade. Não precisa ser tão educada. Pode continuar falando comigo como
sempre fez.
— Certo.
Sua expressão estava serena enquanto ela lentamente bebericava seu chá,
como se pudesse sentir os efeitos de imediato.
Limpei a garganta.
— Tenho certeza de que já te contaram, mas sua doença…
— Não vai ser curada. É, eu sei.
Nanahoshi não estava totalmente curado da Síndrome de Esgotamento. A
Grama Sokas iria temporariamente quebrar o amontoado de mana dentro
dela, mas se não fosse tratada, acumularia os mesmos níveis de antes. Já que
ela não era deste mundo, não tinha imunidade à síndrome que o resto das
pessoas tinha. Felizmente, beber chá de Grama Sokas diariamente evitaria
que isso se acumulasse.
Havia também a possibilidade de que até mesmo um pouco de magia a
deixasse doente. A próxima doença que contraísse poderia ser algo que nem
mesmo Kishirika conhecesse, algo ainda mais antigo do que a Síndrome de
Esgotamento. Enquanto estivesse neste mundo, ela não poderia evitar o
contato com mana. Isso estava por toda parte: na atmosfera, na comida.
— Nanahoshi, você tem que voltar para casa. Você não pode morrer aqui.
— Sim…
— Farei tudo o que puder para ajudá-la a encontrar uma maneira de voltar.
— Mas eu…
Balancei minha cabeça.
— Não preciso da sua gratidão nem nada assim. Mas se eu acabar me
metendo em algum problema, espero poder contar com sua ajuda.
Nanahoshi começou a fungar enquanto as lágrimas brotavam de seus olhos.
Ela deixou um soluço abafado escapar, sua voz soando quase como um
sussurro, e disse:
— Obrigada.
Esperei pacientemente até que ela parasse de chorar.
Ela continuou soluçando um pouco, seus olhos vermelhos e inchados. Então
falou com uma voz anasalada:
— Mas eu vou para casa.
— Sim. Tenho certeza que você quer voltar o mais rápido possível.
— Não, quero dizer, posso não ser capaz de recompensá-lo por tudo antes de
partir.
Espera, então ela quer me retribuir por tudo antes de ir para casa? Ela é mais
consciente do que imaginei.
— Não há necessidade de se pressionar assim. Afinal, você também já me
ajudou.
— Fiz aquilo para agradecer pela ajuda na minha pesquisa.
— Tudo bem, então eu gostaria de alguns conselhos detalhados sobre um
assunto específico.
Ela franziu a testa.
— Qual assunto?
— Por exemplo, o que uma garota da minha idade quer? Sylphie e eu temos
um longo futuro pela frente. Somos casados e temos uma filha, mas ainda não
sei o que se passa na cabeça dela. Considerando que você tem mais ou menos
a mesma idade, achei que pudesse saber de algo.
— Sobre o que Sylphie está pensando? — Nanahoshi acariciou seu queixo e
olhou para seu cobertor. Ela parecia estar considerando seriamente o assunto.
Certamente está dedicada a me retribuir.
— Você não precisa responder agora — falei. — Pode esperar até termos
uma briga ou até eu querer fazer as pazes com ela ou algo assim.
— Certo. — Nanahoshi assentiu, sua expressão sincera.
Embora ela tivesse a idade semelhante à de Sylphie, havia muitas coisas que
as diferenciavam; eram de mundos diferentes e Sylphie era casada.
Nanahoshi não conseguia entendê-la completamente. Até eu não fazia ideia
do que os caras da minha idade pensavam.
— Nesse caso, vamos deixar por isso mesmo. Tenho certeza de que seu corpo
ainda está fraco, então use seu tempo para se recuperar.
— Sim, eu vou — respondeu Nanahoshi. — Obrigada.
Então saí do quarto. Se ficasse com ela por muito tempo, poderia deixar
Sylphie com ciúmes de novo. Ela ficava fofa, mas eu não sentia prazer em
deixá-la ansiosa. Nunca quis fazê-la duvidar do meu amor. O fato de ainda
não ter conseguido fazer isso foi um fracasso da minha parte.
Enquanto eu caminhava pelo corredor, a luz do sol da tarde entrava pelas
janelas.
Ah, o pôr do sol é lindo, não importa em que mundo esteja.
Não sou muito fã de lugares altos, mas a vista do amplo jardim da fortaleza
flutuante era tentadora. De lá, poderia olhar para o mar de nuvens enquanto o
sol se escondia atrás do horizonte.
Até eu gostava de me deleitar com isso de vez em quando. Com esse
pensamento em mente, fui para fora.
Os arbustos estavam perfeitamente aparados e havia dezenas de flores que eu
nunca tinha visto antes. Conforme o sol se punha sob as nuvens, banhava a
área com uma luz radiante, fazendo com que parecesse uma miragem.
Se eu trouxesse Sylphie para um lugar como este e sussurrasse palavras doces
para ela, como responderia? Conhecendo-a, provavelmente ficaria vermelha,
baixaria o olhar para o chão e apertaria minha mão. Sua reação com certeza
seria adorável.
Muito bem, assim que Sylphie se recuperar totalmente, vamos tentar!
Eu queria fazer o mesmo com Roxy, mas, infelizmente, demônios eram
proibidos de entrar na fortaleza. Além disso, provavelmente não seria muito
bom, considerando a personalidade de Roxy. Ela provavelmente me encararia
sem expressão e diria: “Você sabe que não precisa usar essas falas cafonas
comigo, certo?” Ela, de qualquer forma, estaria disposta a dormir comigo.
Esse era o seu nível de franqueza, embora não parecesse.
Mas não é isso! Não é sobre sexo. Só quero um amorzinho! Eu queria que
assistíssemos o pôr do sol juntos. Roxy diria: “É lindo mesmo, não é?” E eu
responderia: “Sim, mas não tão lindo quanto você.” E então ela coraria e
agiria envergonhada, era isso que eu queria ver!
Bem, ela não está aqui, de qualquer maneira, então estou sem sorte.
— Hm?
Enquanto caminhava, perdido em pensamentos, avistei uma mesa na beira do
jardim. Três pessoas se sentavam ao redor.
— E foi então que meu mestre usou sua magia. Aquela luz roxa disparou de
sua mão direita e queimou o corpo de Atofe, paralisando-a no lugar.
— Aha. Então foi a magia dele que a enfraqueceu tanto.
— A magia de Lorde Rudeus parece não possuir limites.
Zanoba, Ariel e Perugius estavam tendo uma boa conversa. À medida que o
sol da tarde os banhava, pareciam estar se divertindo com a conversa. Luke e
Sylvaril esperavam nas proximidades, embora não estivessem participando.
Apenas ficaram parados e ouviram a conversa de Zanoba.
— Mestra Elinalise e eu fomos pegos em seu ataque, mas não acho que haja
outro mago no mundo que possa usar tal feitiço além do meu mestre.
— Ouvi dizer que parecia um relâmpago — comentou Perugius. — Mas se
foi capaz de paralisar Atofe, como você diz, deve ter sido muito potente.
— E? O que aconteceu depois disso? Como a batalha terminou? —
perguntou Ariel.
— Infelizmente, lamento dizer, perdi a consciência naquele ponto, então não
consigo… Ah, aí está o homem em carne e osso.
O olhar de Zanoba me encontrou, então não tive outra escolha. Fiz uma
reverência e caminhei em sua direção.
— Boa tarde. Estão promovendo uma festa do chá?
— Sim, Mestre! Lorde Perugius disse que queria saber como nossa batalha
com Atofe aconteceu, então eu estava explicando os detalhes.
— Entendo. — Olhei para Perugius. Ele parecia estar com um humor muito
melhor do que quando tivemos aquela primeira audiência.
— Ouvi dizer que foi a sua magia que enfraqueceu Atofe, Rudeus — disse
ele.
— Não, isso foi em grande parte graças a Zanoba prendendo-a no lugar. Se
eu tivesse direcionado meu feitiço nela sem a ajuda dele, ela poderia ter
desviado.
— Entendo, sim. Hehe, aquela imagem dela ainda continua em minha mente.
— Seu rosto se abriu em um sorriso obsceno.
Ele realmente odeia tanto a Atofe? Ele estava de bom humor.
— Você parece estar bem animado — falei.
— Claro que estou. Nunca, nem em meus sonhos mais loucos, pensei que
teria a oportunidade de me vingar de alguém que me causou dor em tantas
ocasiões que até perdi a conta.
— Vingança?
— Sim. Um rancor, se preferir, que durou vários anos.
Ele provavelmente estava se referindo à guerra que aconteceu há 400 anos: a
Guerra de Laplace. Perugius era um jovem aventureiro na época, mas ajudou
os humanos, lutando na linha de frente. Atofe também liderou algumas das
forças dos demônios, agindo como general. Perugius a encontrou muitas
vezes no campo de batalha. Por ser jovem e inexperiente, ele não era capaz de
vencê-la, sofrendo ferimentos fatais a cada encontro. Duas pessoas o
salvaram naquela época: o Deus Dragão Urupen, um irmão mais velho de
Perugius, e o Deus do Norte Kalman.
Perugius só conseguia ranger os dentes de frustração a cada derrota. Ele
planejou se vingar de Atofe, mas o Deus do Norte Kalman se casou com ela.
Quando Kalman morreu, fez os dois jurarem que não se matariam. Assim,
Perugius nunca mais voltou ao Continente Demônio, destruindo suas chances
de vingança. Ele quase havia perdido as esperanças de se vingar de Atofe,
mas esse momento foi mais perfeito do que ele poderia ter imaginado. Fez
um disparo contra ela, e não era como se Atofe pudesse ir atrás dele. Foi isso
que o deixou nas nuvens.
— Devo agradecer por isso — disse Perugius. — Você fez um trabalho
esplêndido.
— Tem certeza de que está tudo bem em quebrar seu juramento ao Deus do
Norte Kalman?
— Ele nos proibiu de matar uns aos outros. Tenho certeza de que não se
preocuparia com uma surra unilateral.
Bater em um oponente indefeso por algo que foi feito séculos atrás me
parecia muito bárbaro. Embora isso demonstra em muito a profundidade do
rancor em questão.
— Parece que posso ter te julgado um pouco mal. Eu devia te dar alguma
recompensa — disse Perugius.
— Eu realmente não preciso de uma recompensa.
Não, obrigado. Me deixa fora dessa. Não quero poder, não do jeito que Atofe
ofereceu.
— Ah, sim, assim que Nanahoshi terminar de se recuperar, irei pessoalmente
ensiná-lo como usar a magia de invocação.
Hesitei.
— Uh, não vou ficar preso aqui e incapaz de voltar para casa pela próxima
década se concordar com isso, certo?
— Não me compare a Atofe.
Bem, desde que eu pudesse ir para casa, não havia razão para recusar. Eu
queria saber mais sobre magia de invocação e teletransporte. Além disso,
poderia enfrentar uma crise semelhante no futuro. Não faria mal aprender
outras maneiras de lutar, apenas para o caso. Eu não gostava de conflitos,
mas, neste mundo, precisava de um pouco de força para escapar do perigo.
Achei que tinha o suficiente para proteger minha família, mas depois da hidra
e do que aconteceu desta vez, ficou claro que eu não era poderoso o
suficiente. Eu queria pensar que as situações em que teria que lutar contra
qualquer coisa desse nível seriam poucas e distantes, mas era melhor prevenir
do que remediar.
— Hm, Lorde Perugius, acha que poderia fazer algum treinamento comigo ou
me ensinar como lutar melhor? Não me importo se for depois das aulas de
invocação.
— Hmph. Isso é graças ao seu encontro com Atofe? Ou ainda não está
satisfeito com o poder que possui?
Ah, merda. Agora seu humor azedou. Nada bom.
— Não é nada disso. Apenas pensei que seria bom ter opções melhores caso
tivesse esse tipo de problema novamente.
Depois de uma longa pausa, ele disse:
— Muito bem. Vou te dar um item para que possa entrar em contato comigo.
Sylvaril. — Ele lançou um olhar para ela.
Sylvaril tirou uma flauta de seu bolso, que parecia uma torre com um dragão
enrolado nela.
— Se usar isso em qualquer lugar com o qual eu tenha uma conexão,
Noitelimpa do Trovão Estrondoso vai ouvir e Arumanfi irá até você.
Aceitei a flauta e a guardei. Parecia que ele iria ao meu socorro se eu
precisasse. Essa também não era uma solução ruim.
— Hm, parece que o sol se pôs.
Olhei para trás; a luz do entardecer havia se apagado. Agora a lua estava
pairando no céu. Estranhamente, a área ao nosso redor não estava escura. Isso
era graças ao brilho azul que as flores do jardim emitiam.
— Esta mesa é feita de iluminadores — explicou Perugius. — Vá em frente,
sente-se. Por que não continuamos conversando um pouco?
Obedientemente, me sentei.
— A arte dos anões estava realmente no auge antes da segunda Grande
Guerra Humano Demônio.
— De fato. Se os anões não tivessem perdido sua terra natal durante o
conflito, ainda poderiam estar fazendo obras-primas.
Perugius era na verdade um sujeito interessante quando se conversava com
ele. Possuía muita sabedoria e amava as artes plásticas. Ele também era um
homem de cultura que apreciava o trabalho criativo.
— Ao menos a raça dos anões resistiu. Possuem mãos tão hábeis que tenho
certeza de que um dia produzirão outro artesão capaz de criar um trabalho
excelente.
— Falando nisso — disse Perugius, redirecionando a conversa —, acredito
que você disse que um de vocês estava criando uma artesã.
Zanoba acenou com a cabeça.
— Sim, embora possa não parecer, meu mestre tem um profundo
conhecimento sobre estatuetas. Pensamos que, se ensinássemos essas técnicas
a uma anã, poderíamos alcançar novos patamares.
— Você me mostrou uma das estatuetas de Rudeus. Segue um processo
interessante. É incrível que ele tenha conseguido criar uma réplica de uma
pessoa com detalhes tão intrincados.
Os dois estavam gostando da conversa. Infelizmente, eu não tinha o nível de
conhecimento que eles possuíam, então não fui capaz de acompanhá-los. Mas
a discussão continuava interessante o suficiente para ouvir.
— Não — falei —, vocês estão exagerando.
— Não há necessidade de ser humilde — disse Perugius.
— De fato. Sylphie me disse muitas vezes sobre como você é talentoso,
Lorde Rudeus.
Na verdade, havia mais um participante em nossa festa do chá. Enquanto os
outros dois conversavam alegremente um com o outro, ela tentou participar
com suas próprias sugestões e conhecimentos. Infelizmente, suas tentativas
foram infrutíferas. Esses dois eram tão “experts”que ela, como eu, não tinha
esperança de acompanhar.
— Não é apenas magia. Lorde Rudeus também conhece as artes. É realmente
uma pessoa incrível.
— Obrigado, Princesa.
Agindo como terceira na conversa estava ninguém menos que Ariel Anemoi
Asura. Ela estava desesperada pela ajuda de Perugius, mas não sabia como
conseguir o seu favor. Eu sorri desconfortavelmente enquanto ela me regava
com elogios exagerados. Na maior parte da conversa, ela se transformou em
um robô que se inseriu desajeitadamente e repetiu as mesmas falas genéricas.
Era óbvio que não tinha nada de substancial a acrescentar à conversa.
Ela tem um longo caminho pela frente.
— A propósito, Lorde Perugius, estávamos pensando em colocar algumas
dessas estatuetas no mercado em breve. Podemos pedir sua opinião honesta
sobre a ideia? — Zanoba deixou escapar. Ele pegou uma caixa que havia
deixado a seus pés, uma que eu já tinha visto antes.
— Oh? — Intrigado, Perugius olhou para aquilo. Quando Zanoba levantou a
tampa, entretanto, o humor dele logo azedou. — Uma estatueta de um
Superd?
— Eu deveria saber que você iria reconhecê-la com um simples olhar.
Perugius estreitou os lábios.
Zanoba pegou a estatueta de Ruijerd que Julie havia feito. Estilisticamente,
era um pouco diferente da que eu fiz, mas a pose e o design faziam com que
parecesse real. Mas não foi o suficiente para satisfazer Perugius.
— Você me faz essa pergunta, mesmo sabendo como detesto demônios? —
Ele encarou a estatueta de Ruijerd com nojo enquanto cuspia: — É melhor
você desistir de qualquer ilusão que tenha sobre vender esta coisa.
Sem qualquer esperança, conforme imaginei. Perugius realmente detestava
demônios. Ele era uma pessoa tolerante, mas tinha mais preconceito contra os
demônios do que qualquer pessoa que já conheci. Zanoba deveria saber que
mostrar uma estatueta Superd para alguém como Perugius serviria apenas
para o irritar. O que ele estava planejando?
— No entanto, o modelo para esta estatueta é alguém com quem você tem
uma dívida, Lorde Perugius — disse Zanoba.
— Uma dívida, você diz? — Perugius franziu a testa. Depois de pensar por
um momento, ele arregalou os olhos. — Não me diga que você usou Ruijerd
Superdia como modelo para isso?
— Sim, usamos. Você me disse que em sua última batalha contra Laplace, foi
Lorde Ruijerd quem o ajudou.
As palavras saíram suavemente da boca de Zanoba. Ele não estava falando
isso ao acaso. Os dois haviam desfrutado de várias sessões de chá sem mim;
Zanoba devia ter obtido essa informação anteriormente. Agora eu pude ver o
rumo da conversa, e isso me deu esperanças.
— Claro, estou perfeitamente ciente de sua aversão por demônios. No
entanto, também acredito que, se as habilidades do meu mestre tivessem
alguma exposição pública, esse tipo de arte conquistaria o mundo. Não
gostaria de ver isso acontecendo? Imagine isso: um mundo esplêndido
transbordando de arte.
— Hmm… — Perugius fez uma careta.
Estávamos muito perto de convencê-lo. Será que eu também devia participar
da conversa?
— Odeio os Superds. Eles se movem na escuridão, massacrando vidas
inocentes. Embora também seja verdade que sem a ajuda de Ruijerd, eu não
estaria vivo. Entretanto…
— Lorde Perugius, Ruijerd lamenta pelas coisas que fez no passado — falei
sem querer.
— Ele lamenta? — Perugius inclinou a cabeça.
Agora, como devo explicar melhor isso…
— Sim. Laplace o enganou.
— Laplace, você diz… — O rosto de Perugius anuviou-se.
Parece que essa é uma boa direção.
— Isso mesmo. Laplace deu a ele uma lança que o roubou de seus sentidos.
Ruijerd foi manipulado para desonrar todo o seu clã. Pior, matou até sua
própria família. Agora, ele se sente envergonhado de si mesmo e odeia
Laplace pelo que ele fez.
Perugius ouviu em silêncio.
— É por isso que ele está viajando pelo mundo, procurando uma maneira de
recuperar a honra do seu povo. Este nosso plano é uma forma de ajudá-lo em
seus esforços. Também tenho uma grande dívida com Ruijerd. Se você é
grato pela ajuda que ele lhe forneceu, espero que aprove o que estamos
fazendo, como uma forma de retribuição.
Perugius cruzou os braços, fechou os olhos e franziu as sobrancelhas. Depois
de um longo silêncio, finalmente disse:
— Não me importo com os Superds e sua reputação, mas devo honrar minhas
dívidas.
— Oh, então?
— Faça como quiser.
Embora não estivesse satisfeito, Perugius ao menos concordou. Agora
poderíamos vender nossas estatuetas de Ruijerd sem medo de Arumanfi
aparecer do nada e destruir nossa loja. Na verdade, se alguém desaprovasse
nossa atitude, poderíamos dizer a eles que Perugius nos deu permissão. Eu
não fazia ideia de quanto peso seu nome carregava, mas com certeza seria
útil, dada a sua fama.
De qualquer forma, Zanoba com certeza apresentou um argumento
convincente. Ser capaz de abordar um tópico tão complicado… ele estava
definitivamente me impressionando cada vez mais. Eu precisava aprender
com seu exemplo.
— Agradecemos a sua consideração.
Zanoba e eu inclinamos nossas cabeças. Estávamos um passo mais perto de
vender essas estatuetas ao público.
Espere um pouco mais por mim, Ruijerd.
— Já que estamos no assunto, Mestre, por que não dá a Lorde Perugius um
gostinho de sua habilidade? — Zanoba bateu na palma da mão como se essa
ideia tivesse acabado de surgir.
— Minha habilidade?
— Você sabe, sua habilidade especial de fazer essas estatuetas do nada.
Olhei para Perugius, que acenou com a cabeça em aprovação.
— Me mostre. Estou interessado nesta sua magia.
E então comecei minha demonstração em tempo real de como fazer uma
estatueta. Fiz a mesma coisa de sempre: usei a magia de terra para criar a
forma geral e, em seguida, retirei cada parte até que a figura geral se juntasse.
Desta vez, decidi criar uma do tamanho de uma estatueta Nendoroid[1]. Isso
tornou as coisas mais fáceis e significava que eu poderia terminar
rapidamente. A qualidade não seria das melhores, mas pelo menos as peças
eram simples de construir. Criei uma máscara de pássaro sobre o rosto da
figura. Esta seria uma estatueta de Sylvaril.
— Esta é Sylvaril? Você é muito hábil. — Os olhos de Perugius estavam
fixos em mim enquanto eu trabalhava, observando cada passo de perto. Ele
parecia muito interessado. Fiquei pensando se ele era capaz de ver minha
mana. Ou talvez pudesse apenas sentir como eu a estava manipulando.
Afinal, ele era um herói lendário. — Nunca imaginei que alguém usaria
magia de terra desta forma.
— Se você tiver um pedido, posso fazer o que quiser — ofereci.
— Pois bem. Nesse caso, traga-me uma estatueta de alta qualidade que você
fez e eu a comprarei de você.
Legal, agora tínhamos um cliente regular. Considerando que não fazíamos
ideia de para onde Badigadi foi, garantir outra oportunidade de negócio como
essa era importante.
— Nesse caso… — falou Ariel, juntando-se à conversa. — Também temos
alguns artesãos esplêndidos no Reino Asura. — Ela continuou com um
discurso sobre como seus artesãos eram habilidosos e prometeu que mandaria
instalar uma estátua de Perugius assim que assumisse o trono.
Durante todo o tempo de divagação dela, Perugius pareceu irritado. Quando
ela terminou, ele cuspiu:
— Os artesãos de Asura só criam obras para satisfazer a vaidade da nobreza.
Não há nada de interessante na arte deles.
— O quê…? — Ariel ficou sem palavras.
Como se para martelar o último prego no caixão, Perugius continuou:
— Se você realmente se tornar rainha, não terá coisas mais importantes para
fazer do que criar uma estátua minha?
— B-Bem, eu…
Perugius a interrompeu.
— Ou a apropriação indevida dos impostos das pessoas para viver no luxo é a
sua definição de ser rainha?
— N-Não, de forma alguma. Sinto muito. Falei fora de hora. Por favor,
esqueça que eu disse alguma coisa. — Ariel baixou o olhar, tentando recuar.
Era difícil acreditar que essa pessoa abatida normalmente transbordava
carisma e confiança.
Ainda assim, a maneira como Perugius a rejeitou friamente foi desnecessária.
Ele realmente a odiava tanto? O que ela disse realmente o incomodou tanto?
— Espere, Ariel Anemoi Asura — gritou Perugius enquanto ela tentava se
afastar. Seu opressivo olhar penetrou nela. — O que ser rainha significa para
você? O que uma verdadeira rainha possui?
— Bem… são sábias, escutam seus ministros e não esquecem de sua posição
na sociedade…
— Errado. — Perugius balançou a cabeça, nem mesmo a deixando terminar.
— O rei Asurano que eu conhecia era um verdadeiro rei, mas não era nada
parecido com isso que você descreve.
— Qual rei?
— O homem que assumiu o trono após a Guerra de Laplace, meu amigo
jurado, Gaunis Freean Asura.
Eu já tinha ouvido falar um pouco sobre o Rei Gaunis. Ele foi o último
membro sobrevivente da família real Asurana após a Guerra de Laplace. Ele
se tornou um grande governante que uniu o país depois que ele foi devastado
durante o conflito. A luta teve um grande impacto nas terras Asuranas, mas
suas habilidades como monarca impediram o país de entrar em guerra civil.
— Ouvi dizer que o Rei Gaunis foi um grande governante. Duvido que algum
dia poderei seguir seus passos.
Perugius balançou a cabeça.
— Ele não era grande. Era um covarde que odiava conflitos e estava sempre
fugindo. Ele não podia estudar para salvar a própria vida, não possuía
nenhuma habilidade em batalha, e estava sempre fugindo para algum bar para
cobiçar as mulheres de lá. Não tinha ambição de assumir o trono, mas tinha a
qualidade mais importante que um governante pode ter. Isso, eu acredito, é o
que o tornou um verdadeiro rei.
— Que qualidade era essa?
— Se você mesma puder me trazer essa resposta, te darei meu apoio.
Ah, então esta é a prova que ele pretende dar a ela. Está testando Ariel, para
ver se é alguém que merece sua ajuda ou não.
— A qualidade mais importante que um rei pode ter — repetiu Ariel,
acariciando seu queixo enquanto olhava para a mesa. Ela provavelmente
estava tentando se lembrar das histórias que ouvira sobre o Rei Gaunis.
Pelo que foi dito, pensei que o cara era um babaca. Ou será que era um gênio
disfarçado, parecido com Oda Nobunaga?
— Rudeus. — Perugius se virou para mim. — O que acha?
— Receio não ter ideia de como responder à pergunta, visto que não sou da
realeza.
— Que resposta sem graça. Você não tem que pensar na resposta, apenas
diga o que surgir em mente.
Continua sendo uma tarefa difícil.
Um rei, hein? O que um rei deveria ser, acima de tudo? Eu sabia que eles
apareciam muito em histórias de fantasia, mas o que realmente faziam? Eram
alguém no topo de tudo. Governante de um país, tipo um primeiro-ministro,
eu sabia disso. Para ser honesto, eu não tinha muito interesse em política,
mesmo na minha vida anterior. Tudo o que fiz foi observar como outras
pessoas na internet reagiam aos políticos e seguia o exemplo.
— Pessoalmente, acho que prefiro um governante que possa se colocar no
lugar das pessoas comuns, em vez de alguém que confia apenas em suas
próprias habilidades.
— Aha. — Perugius exalou, parecendo impressionado com minha resposta
branda. — Ariel, este garoto acabou de me dar uma resposta muito melhor do
que a sua.
Depois de uma pausa, ela argumentou:
— Mas uma pessoa não pode ser rei se pensar apenas nas pessoas.
— Verdade. Também não é como se Gaunis pensasse apenas nas pessoas. No
entanto, aqueles ao seu redor lhe ajudaram, e ele foi capaz de suprimir o
potencial de revoltas em Asura.
— Então está dizendo que as próprias habilidades de um rei não têm sentido?
— É o que você acha? Um país que faz de um imbecil seu governante é um
bom país aos seus olhos?
A expressão de Ariel se contorceu de tristeza e frustração. O que exatamente
Perugius estava tentando fazer com que ela dissesse? Eu não fazia ideia.
Bem, não que eu realmente precisasse. Não planejava tomar nenhum trono.
Talvez Perugius estivesse na verdade tentando testar a determinação e o
caráter de Ariel. Talvez não houvesse uma resposta “correta”.
Ainda assim, ser rei é tão grandioso que vale a pena passar por todos esses
problemas para se tornar um?
— Você deve pensar muito sobre isso, Ariel Anemoi Asura. — Após uma
breve pausa, Perugius disse: — Agora, está tarde. Por que não voltamos para
a fortaleza?
Com isso, nossa festa do chá acabou.
Eu me lembraria por muito tempo da aparência de Ariel enquanto
caminhávamos de volta para dentro, seus ombros caídos para frente enquanto
ela arrastava os pés junto com Luke aos seus calcanhares.
[1] Linha de figuras de personagens representadas na proporção comprimida
de aproximadamente duas cabeças de altura. O tamanho médio é de 10 cm.

Capítulo 10: Ponto de Virada (Parte 4)


Os dias passaram voando. Assim que Sylphie se recuperou o suficiente,
voltamos para Sharia. O sol estava se pondo quando chegamos em casa. Me
senti estranhamente nostálgico, de pé na frente de nossa propriedade, embora
apenas alguns dias se passaram desde a última vez que estive aqui.
— Estamos em casa!
— Sim, sim. Bem-vindos de volta… ei, espera, Irmãozão?
No momento em que entramos pela porta da frente, Aisha entrou correndo na
sala. Parecia totalmente pasma, o que não era surpreendente depois do
discurso que fiz sobre a possibilidade de ficar longe de casa por um longo
tempo.
— Já voltou? Você salvou a Senhorita Nanahoshi? Ou… era impossível? —
perguntou Aisha ansiosamente.
Estendi a mão e baguncei seu cabelo.
— Whoa, ei! — Aisha arquejou, parecendo uma atriz ruim lendo a linha de
um roteiro. Ela não parecia nem um pouco chateada com a minha
demonstração de afeto. — O que foi isso de repente?
— Nada. Nanahoshi já está bem. Explicarei em um minuto. Roxy já está em
casa? E quanto a Norn?
— Norn ainda está na escola. Senhorita Roxy está em seu quarto, acredito.
Quanto à minha mã… — Ela fez uma pausa e se corrigiu. — Mamãe, a
Senhorita Lilia, quero dizer, está lavando a roupa. A Mãe, Senhorita Zenith,
está descansando.
— Tudo bem, então Norn ainda está na escola. Desculpe te dar mais trabalho,
mas poderia buscar a Roxy?
— Sim, sim, capitão!
Poucos minutos depois, Roxy desceu as escadas. Ela devia ter cochilado em
sua mesa, já que seu cabelo estava todo bagunçado e desgrenhado, e havia
uma marca vermelha em sua bochecha.
— Bem-vindo de volta, Rudy. Como foi?
— Estou prestes a explicar isso. Mas antes disso… — Deslizei minhas mãos
sob seus braços e a levantei, envolvendo-a firmemente em meu abraço.
Prometemos que faríamos isso quando eu voltasse para casa.
— Uau! Hm… — Embora inicialmente pega desprevenida, Roxy
cautelosamente colocou os braços em volta de mim e retribuiu o abraço. —
Bem-vindo de volta.
— Estou feliz por estar de volta.
Depois de uma aventura tempestuosa, estava finalmente em casa.
— E foi isso que aconteceu.
Contei tudo a elas; foi muita coisa. Não entrei em detalhes, mas incluí tudo o
que era pertinente. Dediquei um tempo especial para transmitir tudo o que
aprendi em relação à maldição de Zenith. Teríamos de ficar de olho nela.
— Vou continuar na fortaleza flutuante por enquanto, mas voltarei para casa
pelo menos uma vez a cada três dias — falei.
Ariel e Sylphie também ficariam na fortaleza até que seus esforços dessem
frutos. Sylphie também pretendia voltar para casa a cada poucos dias.
Nenhum de nós seria capaz de frequentar a escola, mas… bem, contanto que
aparecêssemos para a aula mensal, com certeza estaria tudo bem. Eu não
tinha assistido nenhuma aula recentemente.
— Muito bem, Lorde Rudeus. Cuidarei bem da casa e de Zenith na sua
ausência, então não precisa se preocupar. — Lilia me assegurou. Coloquei
um grande fardo em seus ombros.
Enfim, esse foi o fim do meu relatório. Nossa reunião de família foi
encerrada.
— Ufa, estou completamente exausta — disse Sylphie. — Acho que vou
descansar. E você, Rudy?
— Vou cair na cama depois de tomar um banho.
— Hm… devo te esperar na cama?
— Nah, hoje não precisa se preocupar com isso.
— Certo.
E, com isso, deixei Sylphie descansar.
Percebi que não tinha tomado nada além de banhos frios nos últimos dias.
Senti falta de mergulhar em água morna. Fui direto para o banho e usei minha
magia para aquecer a água. Robô de Aquecimento de Água Roombaus:
Ativar!
Eu realmente deveria me enxaguar antes de dar um pulo, mas… ah, bem.
Tirei minhas roupas e deslizei para a banheira.
— Ufa.
A água quente fumegante me envolveu e pude sentir o cansaço se esvair do
meu corpo. Realmente, não tinha percebido o quanto os últimos dez dias
tinham me desgastado.
Mesmo assim, dez dias. É difícil acreditar que já faz esse tempo desde que
fomos para o castelo de Perugius.
Tanta coisa aconteceu nesse curto espaço de tempo. Nanahoshi desmaiou,
então fomos para o Continente Demônio, encontramos Kishirika e irritamos
Atofe de uma forma majestosa…
Atofe com certeza era forte. Tive a sensação de que nunca poderia derrotá-la.
Era tolice até mesmo considerar superar um oponente do nível dela. Fiquei
surpreso com a minha magia de eletricidade ter realmente funcionado. Talvez
eu tivesse uma chance, contanto que meu oponente baixasse a guarda…
Talvez valesse a pena fazer mais pesquisas para aprimorar minha magia. Pelo
menos para que mesmo se eu estivesse cercado por água, não fosse atingido
pelos efeitos do meu próprio feitiço. No momento, eu não tinha ideia de
como poderia evitar isso.
E se eu cobrir meu corpo com borracha? Igual o Homem Elástico daquele
programa de TV para crianças.
O subordinado de Atofe, Moore, também era muito forte. Não importava o
feitiço que eu lançava, ele sempre parecia ter um contra-ataque. Como se
soubesse de todas as magias que existiam e como se defender contra elas.
Até agora, o único outro mago forte que eu conhecia era Roxy, mas ela era
mais especialista em enfrentar monstros. Foi a primeira vez que vi alguém
que era um especialista em lutar contra outros oponentes humanos.
Talvez enquanto tivesse o Atrapalhar Magia e meu braço protético, poderia
encontrar uma maneira de lidar com um inimigo como aquele. Realmente não
havia uma estratégia determinada para enfrentar adversários fortes como ele.
Independentemente disso, se existem pessoas tão poderosas no mundo todo,
realmente preciso trabalhar para ficar mais forte. Nunca pensei que seria
confrontado com oponentes como aqueles, mas eu sempre os encontrava
regularmente.
Havia apenas um problema: como deveria ficar mais forte? Eu aparentemente
não era capaz de usar a Aura de Batalha, então havia um limite para o quanto
poderia treinar fisicamente. Ainda assim, não importava se fosse fisicamente
fraco, contanto que pudesse me sobressair sobre meu oponente. Nesse caso,
talvez estivesse indo na direção certa ao aprender magia de invocação com
Perugius.
Se eu continuasse mudando de marcha sem decidir por um caminho fixo,
acabaria sendo um idiota sem especialidade alguma. Sabia bem disso graças à
minha vida passada. Embora houvesse tanta coisa acontecendo neste mundo e
existissem tantas possibilidades, era realmente benéfico adquirir uma ampla
gama de habilidades. Preferia assim a como era o Japão, onde tinha que
escolher uma única profissão e segui-la por toda a vida.
Oh, sim, também gostaria de aprender a desenhar círculos de teletransporte.
Pois então, se algo assim acontecesse novamente, poderia fugir rapidamente.
A magia em si podia ser proibida e acho que o teletransporte era bastante
assustador, mas o medo não me ajudaria a aprender nada. Afinal,
conhecimento é poder. Ter uma maneira de se comunicar à distância também
seria bom. Ariel nos emprestou seus anéis, mas acabamos não usando. Talvez
pudéssemos aprimorá-los para que pudessem enviar mensagens simples de
um lado para outro. Embora provavelmente não funcionassem em todo o
mundo, poderiam pelo menos ser algo parecido com um pager.
Vejamos, o que mais… Eu tinha certeza de que algo mais me veio à mente
quando fui para o Continente Demônio.
— Ah, isso sempre acontece — resmunguei.
Eu sempre esquecia das coisas. Tive uma ideia, jurei para mim mesmo que
faria isso mais tarde, e, então, surgia outra coisa e esqueço completamente
dos outros planos que tinha na minha cabeça. Queria poder dizer que tinha
uma memória muito boa, mas com certeza estava falhando bastante.
Merda. Se continuar assim, posso acabar cometendo sempre os mesmos
erros.
Tive sorte de as coisas terem corrido bem desta vez, mas posso não ter tanta
sorte na próxima. Se não consigo lembrar em que preciso melhorar, não seria
capaz de cuidar de meus pontos fracos antes do próximo incidente
imprevisto.
Certo, mas então o que devo fazer? Hmm…
Depois de pensar por um bom tempo, tive uma ideia.
É isso! Lembro de alguém me dizendo que deveria escrever as coisas se
quisesse lembrar delas.
— Tudo bem, acho que devo começar a escrever um diário.
A ideia pareceu ainda melhor depois que falei em voz alta. Poderia registrar
os detalhes do que aconteceu, o que aprendi, o que precisava trabalhar e
qualquer outra coisa que eu precisasse. Então, poderia chegar a uma solução,
decidir o que priorizar, estabelecer uma meta clara e selecionar meu próximo
objetivo. Ao fazer isso, não teria mais que confiar na sorte e poderia refletir
sobre qualquer erro para que não acontecesse novamente. Isso diminuiria
minhas chances de repetir os erros do passado. Isso também levaria a erros
menos graves a longo prazo. É certo que manter um diário não era uma
garantia de que tudo sairia perfeitamente bem, mas não era um ponto de
partida ruim.
Sim, acho que vai funcionar muito bem. Então, vamos escrever. Agora
mesmo!
Com esse pensamento em mente, saltei da banheira.
— Se bem que, na verdade, não vendem diários por aqui.
Me enxuguei antes de ir para o meu escritório. Afundei na cadeira e tirei um
maço de papéis do fundo da minha prateleira. Embora não fosse um diário
encadernado, ainda poderia escrever. Anotar as coisas era a parte mais
importante.
Mas apenas escrever em alguns papéis soltos é um pouco deprimente. Vamos
fazer um pequeno projeto com isso.
Não que começar com estilo fosse o objetivo principal, mas não custaria nada
customizar a aparência do meu novo diário.
Juntei os papéis soltos e os coloquei na minha mesa. Usei magia para fazer
furos na borda. Então, usei magia de terra para criar anéis para inserir através
deles. Em seguida, precisava de três placas e uma articulação. Poderia colocar
tudo junto em forma de livro, para que pudesse abrir com minhas folhas de
papel encadernado do lado de dentro.
E, com isso, meu diário encadernado estava completo. Quanto acha que me
custou? Nada, completamente caseiro! Tá, bem, o papel custou dinheiro.
Gostaria de saber se alguém aqui compraria um perfurador de papel se eu
fizesse um para venda. Valia a pena escrever. Se eu não anotasse todas as
minhas ideias, acabaria me esquecendo delas.
Então, como se faz um perfurador de papel? Uhh…
Não. Eu tinha coisas mais importantes para escrever primeiro.
— Hm, por onde devo começar…
Quanto tempo se passou desde a última vez que tive um diário? Quando era
um recluso na minha vida anterior, tentei usar um daqueles sites de texto, mas
não usei por muito tempo. Eu poderia seguir o mesmo caminho se não fosse
consciente a respeito disso. Felizmente, este meu corpo era bastante receptivo
às rotinas, então provavelmente faria isso automaticamente, desde que fizesse
disso um hábito.
Certo, provavelmente devo parar com isso. Parece estranho falar sobre este
corpo em terceira pessoa, como se não fosse meu.
O que eu deveria ter dito era: sou do tipo que faz as coisas cuidadosamente,
desde que as torne um hábito, então não deve ser um problema.
Bem melhor.
Enquanto eu ia e voltava em meus pensamentos, comecei a rabiscar os
eventos dos últimos dez dias. Estava bocejando quando terminei. Antes que
eu percebesse, fui dominado pela sonolência.
A área ao meu redor ficou toda branca. Não havia nada além de uma total
falta de cor. Eu conhecia bem este lugar. Tinha visto isso quando Perugius
usou sua magia de teletransporte para me mandar através do espaço.
Mas, onde exatamente eu estava? Nunca tinha pensado muito nisso, mas
comecei a me perguntar se este era um lugar real em algum lugar deste
mundo.
Tirando isso, gostaria de não voltar a esta forma toda vez que venho aqui.
Eu estava de volta ao corpo que tinha antes de reencarnar, de volta à época
em que era um recluso sem esperanças e obeso. Não tinha intenção de evitar
a verdade de que esta já foi minha vida, mas ainda assim me dava nojo. Não
estava dessa forma na vez que Perugius me transportou.
— E aí.
De repente, lá estava ele. Seu rosto sempre branco com um sorriso esguio,
um mosaico cobrindo toda sua face. No instante em que o vi, foi como se a
lembrança de sua aparência tivesse sido apagada de minha mente.
Era o Deus Homem.
— Já faz um tempo.
Sim, com certeza faz. Acho que já passaram dois anos, hein?
— Já faz tanto tempo?
Da última vez que recebi seus conselhos foi antes de partir para o Continente
Begaritt. Então, sim, dois anos.
— Então não faz tanto tempo.
Quando eu era um aventureiro, você ficou sem mostrar a cara por uns três
anos. Nossa, que nostalgia… Naquela época eu era um sem noção.
— Sim. Você agora parece estar comparativamente bem consigo mesmo.
Acho que sim. Casei e estou me dando bem com minha família.
Definitivamente estou curtindo minha vida muito mais desta vez.
— E você também conheceu Perugius, pelo que vejo.
Perugius, né? Ele com certeza é incrível. Na minha vida anterior, jamais
sonhei que algum dia encontraria alguém como ele. Parece também ter
gostado de mim. Sabe, ele disse que compraria uma de minhas estatuetas se
eu fizesse uma boa. Nunca cheguei perto de um nível em que pudesse vender
minhas coisas antes de reencarnar.
— Atofe também gostou de você.
Uh, sim, mas com ela estou muito menos feliz. Embora eu ache que meu
treinamento valeu a pena, já que está tão interessada em mim. Trabalhei em
minha força física e minhas habilidades mágicas. Se Roxy nunca tivesse me
ensinado magia de água de nível Rei, eu teria acabado em sérios problemas
desta vez. Meu feitiço elétrico foi bastante eficaz contra Atofe e seu guarda.
— Com certeza foi. Aquela magia que você usou foi incrível. Tenho certeza
de que você poderia usá-la até contra Orsted.
Contra Orsted?
— Não há muitas magias no mundo que possam ignorar a Aura de Batalha e
paralisar o corpo de uma pessoa.
Faz sentido. Acho que as pessoas daqui não têm como se defender contra
choques elétricos. Mas, ainda assim, é de Orsted que estamos falando. Ele
apenas usará Atrapalhar Magia para tornar tudo ineficaz.
— Mesmo que seu poder não supere o de seu oponente, não significa que
você não tem chances de conquistar a vitória.
Você tem razão… Espera, não. Impossível. Eu poder usar um pouco de
magia anormal não muda o fato de que Orsted me esmagaria feito panqueca.
Além disso, não tenho interesse em lutar com ele. Não tenho nada contra o
cara.
— Ah, é mesmo?
De qualquer forma, você realmente me ajudou durante toda a missão de
Begaritt. Estaria mentindo se dissesse que não tenho arrependimentos, mas
não foi tão ruim. Embora eu não tenha seguido seu conselho.
— Bem, foi a sua escolha.
Só por curiosidade, o que teria acontecido se eu não tivesse ido?
— Se não tivesse ido, seu pai teria encontrado uma maneira de salvar sua
mãe, e não teria morrido. Além disso, você teria duas princesas do povo-fera
para você e viveria feliz para sempre.
Mas que porra? Então está dizendo que ele só morreu porque eu fui?
— Isso mesmo. Por você estar lá, ele ficou determinado a se exibir na sua
frente, e foi isso que ferrou com tudo.
É, mas mesmo assim, isso não pode…
— Se tivesse deixado as coisas como estavam, ele teria reunido seus
companheiros para salvar sua mãe. Roxy também, é claro.
Então… quê? Está dizendo que tudo que eu fiz foi inútil? E, ei, quando a
encontrei, Roxy estava à beira da morte. Acho difícil acreditar que ela estaria
bem sem o meu envolvimento.
— Ela realmente ficaria bem sem você. Afinal, estava destinada a sobreviver.
O que quer dizer com isso? Que porra de destino é esse? Explique-se.
— Lembra daquele comerciante que você salvou? Se não estivesse lá, a
entrega dele teria sido atrasada. No dia em que ele chegou, um certo
aventureiro saiu andando pelo mercado e comprou sua mercadoria, pedras
mágicas. No entanto, se o comerciante não tivesse chegado, aquele homem
teria comprado outra coisa.
Tipo o quê?
— Tipo um mapa que o guiasse pelo Labirinto de Teletransportação.
Ah, qual é, por que venderiam algo tão conveniente?
— Depois de não conseguir atrair pessoas para se juntarem a ele na guilda,
Geese teria bolado um esquema para aumentar o número de pessoas
interessadas em conquistar o labirinto. No processo, venderia um mapa que
guiasse-os pelo Labirinto por um preço baixo.
Agora entendi. Está dizendo que ele venderia o mapa que fez. É verdade que
existem poucas pessoas que gostariam de ir com Paul e os outros, mas
poderia haver quem pensasse que poderia explorar por si próprio. Então está
dizendo que o cara que compraria o mapa reuniria seus companheiros,
entraria no labirinto e salvaria Roxy?
— Precisamente. Ele toparia com seu pai na entrada, e entrariam todos
juntos. Por sorte, também encontrariam Roxy.
Quer dizer que, pelo fato de terem mais pessoas com eles, seria mais fácil
atravessar o labirinto e resgatar a minha mãe?
— Correto. Embora fossem demorar muito mais tempo do que você. Cerca
de dois anos, para ser mais preciso. Já que já faz mais ou menos esse tempo
que você partiu, seria agora que eles a tirariam de lá.
Isso é meio difícil de acreditar. Parece tão conveniente.
— Talvez, mas é o destino.
Tudo bem. Acho que você tem razão. Dizem que a verdade é mais estranha
que a ficção. Acho que isso significa que teria sido melhor se eu não estivesse
lá. Droga, isso é deprimente. Embora, se isso acontecesse, acho que não teria
sido capaz de me casar com Roxy.
— Verdade. Ela teria se apaixonado pelo homem que a resgatou, em vez
disso. Embora ele a recusaria.
Bem, não parece tão ruim quando você pensa dessa forma. Afinal, eu amo a
Roxy. Embora tenha resultado na morte de Paul. Fico muito confuso ao
pensar que tive que perdê-lo para poder me casar com ela. Não é como se eu
me arrependesse de nosso casamento… Só que, se tivesse um relacionamento
semelhante com Linia e Pursena, imagino que também teria ficado feliz com
esse resultado. Não que eu esteja bem em ser parceiro de qualquer pessoa,
mas se tivesse seguido esse caminho, provavelmente não teria conseguido
algo melhor, não saberia que poderia ter estado com Roxy, em vez disso. Ah,
caramba…
— Agora isso é passado.
Sim, você está certo. Arrependimentos não vão me fazer bem. Decidi ir para
Begaritt e está feito. Agora estou feliz. A escolha que fiz pode ter sido um
erro, mas isso não muda como as coisas são agora. Tenho arrependimentos,
mas não acho que foi de todo ruim.
— Você com certeza é otimista.
Enfim, qual é o motivo para sua visita hoje? Algo mais preocupante está
vindo ao meu encontro?
— Não, nada tão grande. Na verdade, é muito menos um conselho e muito
mais um favor.
Um favor? Vindo de você? Isso é incomum. Nunca me pediu nada antes.
— Até eu às vezes preciso de um favor.
Hmm. Certo. Seja o que for, diga. Não parece que seria ruim ouvir o que tem
a dizer e seguir seus conselhos de vez em quando. Acho que tenho
desconfiado um pouco de você.
— Ah, sério? É bom te ouvir dizendo isso.
Bem, você não mediu esforços para me ajudar. Na verdade, me sinto mal por
ter duvidado tanto de você. Só pensei que você estava gostando de me ver
sofrer, por isso que agi assim.
— Você me magoa. Por meu nome, deve perceber que sou um deus. É
verdade que fico entediado e quero assistir quando algo interessante está
acontecendo, mas não tenho o hábito de enganar as pessoas apenas para ter
prazer em sua infelicidade.
Sim, acho que sim. Não existe muita gente assim.
— De fato.
Então? O que quer de mim?
— Nada muito importante. Apenas quero que desça ao porão quando acordar.
Verifique e certifique-se de que não há nada estranho lá embaixo. Se não
encontrar nada, não se preocupe com isso.
Algo estranho? Mas… Nah, não importa. Entendi. Não o questionarei desta
vez, simplesmente farei isso.
— Hehe, tudo bem. Você tem meu agradecimento.
Quando minha consciência começou a sumir, um sorriso doentio se abriu no
rosto do Deus Homem.
Abri meus olhos. Uma vela cintilava no limite da minha visão. Olhei pela
clarabóia e vi a lua no céu. Não havia outros sons. A casa estava em silêncio.
Eu tinha adormecido enquanto escrevia meu diário. Um pouco de baba
escorria pelo meu queixo e pela página meio escrita.
Acho que vou reescrever isso.
Rasguei a página e a deixei no canto da minha mesa. Depois copiei o que
tinha escrito em uma nova folha.
Me pergunto por quanto tempo dormi. Meu corpo parece tão lento, é como se
tivesse ficado inconsciente por dias.
Quando levantei, algo caiu de meus ombros, um cobertor. Sylphie ou Roxy
devia ter jogado em cima de mim. Quem quer que tenha sido, apreciei o
gesto.
— Certo, então…
Eu ainda me lembrava do meu sonho. O Deus Homem me disse para dar uma
olhada no porão.
Um conselho meio estranho.
Apesar de tudo, achei que não havia nada de errado em concordar com isso.
Ele nunca me deu conselhos ruins no passado, então decidi realizar seus
desejos ocasionalmente. Isso beneficiaria nós dois. Além disso, o Deus
Homem devia estar cansado de me ver falando mal dele toda vez que tentava
me dar um conselho. Mesmo que nosso relacionamento fosse do tipo de dar e
receber, caberia a mim me dar bem com ele, caso precisasse de sua ajuda.
Enquanto me dirigia para o porão, deixei um espirro enorme escapar.
— Atchim! Uff, com certeza está frio…
A primavera ainda estava longe e a neve continuava a cobrir o solo, por isso
estava frio. Eu não deveria ter cochilado ali. Precisava me apressar e ir para a
cama para que pudesse me aconchegar sob um cobertor quente.
Peguei meu robe de um gancho na parede, onde estava pendurado, e puxei-o
sobre meus braços.
Imagino que horas são.
Devia ser por volta da meia-noite, considerando que não ouvi nenhum outro
som na casa. Se eu entrasse furtivamente no quarto de Roxy ou Sylphie e
deslizasse para debaixo das cobertas com elas, provavelmente gritariam de
surpresa. Não me importava se não fizéssemos sexo; só queria um pouco de
calor. Na verdade, estava me sentindo muito solitário. Provavelmente foi
graças ao Deus Homem. Não devia ter perguntado a ele o que teria
acontecido se eu não tivesse ido para Begaritt.
Não, quem perguntou fui eu. A culpa é minha. E se a culpa é minha, eu
deveria apenas dormir sozinho.
Estava preocupado com esses pensamentos enquanto empurrava a porta para
abrí-la
— Hm?
De repente, senti uma presença atrás de mim e me virei. Tudo que vi foi a
cadeira vazia que deixei para trás. Ninguém estava lá.
Claro que não.
— Deve ser só a minha imaginação.
As únicas coisas na sala eram uma escrivaninha, uma cadeira e uma estante
de livros. Não havia nenhum lugar para alguém se esconder. Tinha uma
janela, mas não era grande o suficiente para alguém entrar e sair
furtivamente. A única entrada era a porta diante da qual eu estava parado. A
sala era pequena o suficiente para que uma vela fosse suficiente para iluminar
todos os cantos e recantos. A única pessoa que poderia estar ali era eu.
Então, por que achei que outra pessoa estava aqui, embora seja praticamente
impossível?
Apesar de meu ceticismo, continuei sentindo uma presença na sala. Foi
estranho. Talvez houvesse um besouro embaixo da minha estante ou algo
assim?
— …?
Havia algo de desagradável nisso. Meu coração batia de forma irregular. Era
ansiedade? Por que eu estaria ansioso?
— Bem, tanto faz. Vou apenas passar pelo porão e dar uma olhada…
Terminei de abrir a porta e comecei a sair. E então imediatamente me virei e
exclamei:
— Aha, te peguei!
Não havia lógica em minhas ações; tinha feito isso por impulso. Só estava
tentando me certificar de que não havia ninguém ali. Ainda assim, olha só,
tinha alguém lá.
— Huh…?
Um homem com um robe velho e esfarrapado estava sentado em minha
cadeira, a única cadeira da sala. Ele era velho, com rugas no rosto, cabelo
branco como a neve. O início de uma barba cobria seu queixo, dando a
impressão de que não se preocupava muito com sua aparência. Tinha o ar de
um veterano experiente, mas havia algo rude e nada refinado nele, como se
tivesse saído de uma longa batalha. A luz em seus olhos era nítida e as cores
das pupilas direita e esquerda eram diferentes uma da outra.
Seus lábios tremeram de surpresa.
— Então… eu consegui?
Ele olhou ao redor, semicerrando os olhos enquanto sua expressão se enchia
de emoção. No entanto, então olhou para sua mão, tocou seu estômago e
encolheu-se. Seu sorriso se tornou autodepreciativo.
— Não, eu fracassei. Acho que não tinha esperança de ter sucesso…
Me senti como se já o tivesse visto em algum lugar, mas não tinha lembrança
dele. Havia algo familiar, entretanto, como se ele parecesse com alguém.
Quem poderia ser? Paul, talvez? Não, ele não. Sauros, então? Mas ele não
exalava o mesmo nível de ousadia de Sauros. Este velho parecia muito mais
tímido.
— Q-Quem é você? Hm, o Deus Homem, talvez?
No momento em que falei esse nome, seus olhos, agora arregalados,
voltaram-se para mim.
Reconheci essa reação. Orsted teve a mesma reação exagerada quando eu
disse esse nome. Eles eram iguais. No entanto, este homem não se parecia em
nada com Orsted.
— Não.
Ele balançou a cabeça lentamente, olhando diretamente nos meus olhos.
Havia força em seu olhar. Ele se recusou a desviar o olhar. Era como se eu
estivesse sendo sugado, quase como se estivesse olhando para um espelho.
O homem velho olhou para a porta atrás de mim e franziu a testa. Apontou
um dedo ossudo e desgastado para ela e a porta se fechou. Dei um pulo por
causa do barulho.
Como ele fez isso?
Confuso, me virei para ele. Havia um brilho em seus olhos quando olhou para
mim.
— Não vá até o porão. Você está sendo enganado pelo Deus Homem.
— O quê? — Enganado? O que ele estava falando? Não entendi. — Espere
um segundo. Quem diabos é você? Como entrou aqui?
— Eu sou…
Ele abriu a boca para falar, mas de repente a fechou. Após um momento de
contemplação, finalmente disse:
— Eu sou _____.
Esse nome me deu um choque, um que eu nunca havia sentido antes. Eu era a
única pessoa neste mundo que conhecia esse nome. Um que eu levaria para o
túmulo sem nunca compartilhar com mais ninguém, um que eu queria
esquecer, um que não deveria existir neste mundo.
Meu nome em minha vida passada.
— Eu vim do futuro — disse ele.

Capítulo 11: Um Começo e um Fim


O velho veio do futuro; ao menos foi o que ele disse. Sinceramente, eu não
entendi muito bem, mas ele realmente parecia um pouco comigo.
— Futuro… então você é eu no futuro?
— Isso mesmo. Sou você daqui a, mais ou menos, 50 anos.
Ele claramente não fazia rodeios para falar. Porém, como tinha sido muito
repentino, eu não sabia se devia acreditar ou não. Por outro lado, ele sabia
meu nome. Eu nunca havia o mencionado e jamais teria. Talvez existisse uma
forma de utilizar a magia para ler a mente das pessoas.
Dito isso, reencarnei neste mundo com todas as minhas memórias intactas.
Então não seria um exagero considerar que a viagem no tempo também
pudesse existir. Não tinha como saber se ele estava falando a verdade ou não.
— Desculpa, mas não tenho tempo para te explicar os detalhes sobre a
viagem no tempo — falou.
— O que quer dizer?
— Exatamente o que você ouviu. Sei que parece uma frase retirada de um
filme Hollywoodiano, mas realmente não tenho muito tempo. Você precisa
me ouvir.
Ele fez aquela referência a Hollywood sem nem piscar. Isso significava que
tinha que ter alguma conexão com minha vida passada. Talvez realmente
fosse minha versão do futuro.
Em seus olhos havia um brilho e uma escuridão oculta. Ele, sinceramente,
parecia ser alguém que matava diariamente. Havia uma certa frieza em seu
olhar, como se não se importasse com a vida de outras pessoas. Eu estava
destinado a me tornar uma pessoa assim no futuro? Não podia ser; era difícil
de acreditar. Porém, ainda assim, ele tinha uma expressão honesta em seu
rosto.
Certo, vamos assumir que ele seja eu daqui a 50 anos e, pelo menos, escutar o
que tem a dizer.
— Não há nada no porão — revelou ele. — Ao menos foi o que pensei
quando desci e não encontrei nada. Me senti calmo nos dias seguintes, já que
o Deus-Homem havia dito que não precisava me preocupar se não
encontrasse nada. — O velho homem contorceu seu rosto para uma expressão
de nojo. — Mas eu estava errado, e agora posso te dizer o porquê.
Ele levou um dedo, o indicador esquerdo, até sua testa, como se estivesse se
lembrando do incidente.
Espera, o quê? Uma mão normal?
— Preste atenção. Acho que tem um rato no porão; um doente. Ele
provavelmente tem dentes roxos, parecidos com pedras mágicas. Não faço
ideia de onde ele saiu ou como chegou lá. Provavelmente se escondeu na
minha bagagem enquanto eu estava na fortaleza flutuante de Perugius,
mas isso não importa agora.
O velho abriu sua mão e bateu seu outro punho contra ela.
— Ao descer para o porão, você irá assustar o rato que, por sua vez, irá fugir
para a cozinha. Lá, ele vai mexer nos restos de comida que você deixou.
Aisha vai encontrá-lo morto no dia seguinte e vai jogar tudo fora.
Permaneci em silêncio e somente o escutei.
— Aisha irá se livrar das sobras dando-as para um gato de rua comer.
A mão esquerda dele não é protética. Então ele não sou eu? Ou encontrou
alguma forma de restaurar sua mão perdida nesses 50 anos?
— Mas, antes disso, Roxy irá ficar com fome e descerá de seu quarto para
comer um pouco das sobras. Consequentemente, vai pegar a doença que o
rato estava carregando.
— O quê? A Roxy vai ficar doente? — A menção ao nome dela me fez voltar
a focar na conversa.
— Ela vai sofrer da Síndrome da Petrificação.
Senti como se já tivesse escutado esse nome antes. É mesmo. Aparentemente
é uma doença que só pode ser curada com magia de desintoxicação de nível
Deus. Era uma doença incurável que fazia os infectados se tornarem pedras
mágicas lentamente. Mas onde foi que ouvi isso?
— No início nós não percebemos. Afinal de contas, é extremamente raro que
alguém se infecte com a Síndrome da Petrificação. Os patógenos só
conseguem se desenvolver se uma vida estiver sendo gerada dentro da
pessoa.
— Espera, então isso quer dizer…
— Sim, foi uma criança que não nasceu. Essa doença só afeta mulheres
grávidas. Fiquei surpreso quando descobri isso.
— O quê? M-Mas a Roxy não…
— Ela está grávida — disse ele. — Não deveria ser tão surpreendente. Vocês
transam, então é óbvio que aconteceria em algum momento.
Espera, a Roxy está grávida?
Uau. Essa era uma notícia extremamente feliz, mas, mesmo assim, estava
sendo dita da pior maneira possível.
— Por alguma razão, alguns ratos são resistentes à doença e acabam agindo
como transmissores da Síndrome de Petrificação. É possível reconhecê-los só
com um olhar, pois seus dentes viram cristais roxos. Eles transmitem a
patologia para tudo que mordem. Ela somente pode ser transmitida oralmente
e os patógenos não sobrevivem por muito tempo após sair de seu hospedeiro;
leva, no máximo, cerca de meio-dia para que morram. Além disso, não é
muito contagiante, já que só infecta mulheres grávidas.
—…
— Os patógenos se alojam dentro do feto e o transformam. A partir daí,
passam a transformar o corpo da mãe em pedra.
Então Roxy iria se infectar com essa doença?
— Se você for descuidado e descer até o porão, vai assustar aquele roedor.
No dia seguinte, Aisha irá reclamar para você sobre um corpo de rato
estranho que encontrou na casa. Duas semanas depois, você ouvirá sobre um
gato ter sido infectado pela Síndrome da Petrificação; Roxy vai desmaiar de
febre pouco tempo depois.
Hesitei antes de, finalmente, perguntar:
— E o que vai acontecer com ela?
— Ela vai morrer.
A resposta foi tão franca e direta que me deixou sem palavras.
— Ela vai perder seus movimentos lentamente até ficar de cama. Seus pés
irão começar a se transformar em pedra e, neste momento, você perceberá
que ela está com a Síndrome de Petrificação.
— Ela não melhorou no seu caso? Você não procurou uma cura?
A tristeza tomou conta de seu rosto conforme ele passou a olhar para o chão.
— Fiquei desesperado para salvar ela; até mesmo fui para o País Sagrado de
Millis para procurar uma cura. Consegui aprender a encantação necessária
para curá-la, mas muita coisa aconteceu, então levei tempo demais para
voltar. Quando finalmente cheguei, já era tarde demais: metade de seu corpo
já havia sido transformado. Ela já havia morrido.
— Não pode ser…
Ele, imediatamente, levantou sua cabeça e me encarou com o olhar intenso
que havia voltado aos seus olhos.
— Esse incidente estará conectado com algo que irá acontecer daqui a 30
anos. Tudo acontecerá por causa do que o Deus-Homem disse. Não seja
enganado. Você tem as memórias da sua vida passada, então deveria
entender: ele é a raiz de todo o mal desse mundo, o chefão.
— Mas por que ele está atrás da Roxy?
— Eu não sei a resposta disso até hoje. No entanto, sei que ele está agindo
com algum objetivo em mente. A última coisa que ele me disse foi: “Graças à
sua idiotice, tudo aconteceu como o planejado.” — Ele cerrou os dentes. —
Merda.
O Deus-Homem realmente disse isso? Hmm…
— Talvez Orsted ou Laplace saibam os objetivos dele. Não consegui os
encontrar nesses 50 anos. É provável que você também não consiga, caso
tente.
— Nem mesmo Nanahoshi soube onde encontrar Orsted?
Sua expressão ficou triste quando ouviu o nome dela. Talvez ela realmente
não soubesse.
— Nunca a perguntei, mas talvez seja uma boa ideia você perguntar. Mesmo
que ela não saiba a localização exata dele, é inteligente o suficiente para
pensar em todas as possibilidades possíveis com o teletransporte, então deve
conseguir pensar em algo.
— O que aconteceu com Nanahoshi?
Ele apertou seus lábios e não respondeu. O olhar triste em seu rosto já
expressava tudo que eu precisava saber, mas, após uma pausa, ele finalmente
respondeu:
— Ela falhou bem no final. Eu não soube a confortar e, então…
Ela não conseguiu voltar para casa? Então deve ter se desesperado e tirado a
própria vida.
— Tá bom. Não precisa falar mais nada.
— É, eu também não quero falar disso. — Ele levantou seu rosto e tentou
recuperar sua compostura. — Também há uma outra coisa que é importante.
Você descobriria isso daqui a 10 anos, mas o Deus-Homem não é chamado
dessa forma pelas pessoas.
— Como assim?
— Ele é um deus dos humanos. Em outras palavras, é o Deus dos Homens.
Todos que ouviram falar dele, o conhecem como “o Deus dos Homens”.
Apenas os que o conheceram sabem do nome “Deus-Homem”. Eu não faço
ideia do motivo de ele querer ser chamado assim, mas assumo que seja a
maneira dele tirar sarro das pessoas.
Agora fez sentido. Era por isso que algumas pessoas (Orsted) reagiram de
maneira tão exagerada após escutar esse nome. As únicas pessoas que o
conheciam eram as que tinham o encontrado e sido enganadas por esse deus.
— No início, ele parecia falar somente coisas que me beneficiavam. — O
velho fechou sua mão novamente. Seu ódio parecia queimar como uma
chama intensa em seus olhos. Uma sede de sangue irradiava dele, mas, por
algum motivo, eu não achava assustador. — Ele não mentiu nenhuma vez
para você, até agora. Pelo menos até onde eu e você sabemos.
Seu punho começou a tremer e algo brilhou dentro dele, estalando igual
eletricidade.
— Mas havia um motivo por trás disso tudo: ele queria fazer você perder sua
cautela, para que o obedecesse sem questionar.
Embora eu estivesse impressionado e encarando as faíscas que estavam
saindo de sua mão, também me preparei para caso ele tentasse algo.
— Não se deixe ser enganado! Você já leu mangás, não leu? Sabe que as
pessoas que mais falam sobre confiança são sempre as que te enganam.
— Sim. Eu sei, mas…
Ele rebateu:
— Não, você não sabe de nada! Depois da Roxy, será a Sylphie. Você vai
estar extremamente triste pela morte da Roxy, então não vai nem mesmo
pensar na Sylphie por um tempo. Por causa disso, ela vai ficar chateada e vai
começar a sofrer de depressão. Com isso, o Deus-Homem vai se aproveitar
desse momento para manipular o Luke.
— O Luke? Sério?
— Sério. Depois você vai ouvir isso da garota que estava saindo com ele na
época: “Ele, de repente, acordou com pressa em um dia e afirmou ter ouvido
a voz de Deus.”
— E… o que acontece depois disso?
— O Luke aconselha a Ariel a voltar depressa para Asura e Sylphie te
abandona para ir junto com eles. Ariel continua em desvantagem após não
conseguir o apoio de Perugius, mas ainda tenta se agarrar à sua pequena
chance de vitória e começa uma guerra civil. No entanto, ela é derrotada e
Sylphie morre em batalha.
A Sylphie… morre?
— Você vai perder as duas. — O homem balançou sua cabeça e cerrou seus
dentes. — Ainda consigo escutar a voz do Deus-Homem revelando todas as
suas artimanhas para mim. Aquela risada aguda… a sensação da mão dele
tocando no meu ombro enquanto me dizia “obrigado por toda a ajuda.”
Merda… porra!
Foi possível ver uma eletricidade tão brilhante quanto o sol do meio-dia ao
redor dele, quando bateu seu punho em minha mesa. A luz desapareceu em
um instante, mas a minha mesa permaneceu com uma parte queimada. Após
finalmente recuperar sua compostura, o velho respirou fundo.
— Vou dizer mais uma vez: não confie nele. Caso contrário, vai se
arrepender. — Após terminar de falar, ele colocou a mão em sua barriga. Sua
expressão estava cada vez pior. — Eu não tenho muito tempo, mas acho que,
mesmo depois de eu dizer tudo isso, você não vai saber o que fazer. — Seu
rosto estava extremamente pálido e marcas escuras estavam começando a
aparecer abaixo de seus olhos.
O homem respirou pela boca e forçou o ar a sair de novo. Ele parecia estar à
beira da morte. Estava doente?
— Primeiro… Isso, a Eris.
Franzi a testa após ouvir o nome dela.
— Quero que escreva uma carta para ela o mais rápido possível. Diga que
você pode ter a traído um pouco, mas que ainda a ama.
— Não, eu não amo — falei sarcasticamente. — Ela é a culpada de eu ter
sofrido de disfunção erétil.
— Você é um homem, não é? Perdoe ela. Você consegue fazer isso.
Franzi minha testa.
Ele soltou uma risada autodepreciativa.
— Bom, eu não consegui. Nós dois não nos demos bem por vários anos.
— Como assim?
— Ela me deixava à beira da morte frequentemente, me seguia em todos os
lugares que eu ia e, toda vez que me encontrava, me atacava bruscamente.
Mas, mesmo assim, controlava a força de seus socos. Ela conseguiria me
matar, caso realmente quisesse, mas nunca me atacou quando eu estava mal.
Na verdade, quando eu estava em apuros, ela me ajudava das sombras;
parecia o Vegeta de Dragon Ball.
Vegeta? Sério…?
— De qualquer maneira, ela não é o príncipe dos vegetais1. Ela sempre te
amou; só quer ficar com você. Foi por causa desse sentimento que se esforça
ao máximo em tudo que faz. No entanto, também é horrível com as palavras
e não sabe se expressar, então tudo que consegue fazer é “falar com os
punhos”.
Até agora isso parece perfeito, mas eu já tenho duas esposas e uma filha.
Claro que devo ter amado a Eris em algum momento, mas… isso ficou no
passado. Talvez seja um passado que eu ainda precise superar, mas já foi.
— Eu já tenho a Sylphie e a Roxy.
— Não tem problema. Sylphie é mente-aberta e a Roxy não acha que te
merece, então também irá te perdoar. Eris também aceitará, se explicar tudo
antes de a encontrar. Além disso, você ainda ama ela, não ama? Ah, talvez
seja melhor te avisar: Esteja preparado para levar um soco dela. Esse é o tipo
de mulher que ela é.
— Eu entendi o que você quis dizer, mas…
— Você estará cercado de mulheres que te amam. Qual é o problema nisso?
Parece maravilhoso. Não me diga que não vai aguentar o tranco…
— Não fale como se não tivesse nada a ver com você.
— Eu já perdi todo mundo — disse. — Estou te falando isso porque você é
eu.
Suas palavras pareciam ter um peso estranho, mas…
— Ainda tenho que assumir a responsabilidade de cuidar de Roxy e de
Sylphie.
— “Se formos falar de responsabilidade, você também tem esse dever com
Eris. Ela se esforçou por você durante esse tempo todo. Se não percebeu, ela
só é péssima em se expressar, mas nunca parou de se esforçar pelo seu bem.
Se acha que deve algo para alguém, então que tal olhar para ela e para o
quanto ela se empenhou?” A Ghislaine vai jogar isso na sua cara enquanto
você… observa o corpo de Eris.
O corpo…?
— A Eris também morre…?
— Sim, me protegendo. Acho que foi… quando desafiei Atofe pela segunda
vez. Aquela rei demônio era mais terrível do que eu tinha pensado. Deixei
minha guarda baixa — disse ele enquanto apertava seus lábios, como se fosse
uma memória distante.
Quão forte eu vou ser no futuro para conseguir deixar minha guarda baixa
contra alguém como Atofe? Ele realmente é eu? Estou duvidando cada vez
mais.
— Você tem que enviar essa carta, entendeu? Se começar a agir agora, pode
não ser tarde demais para evitar ter os mesmos arrependimentos que eu.
— Hm, tá bom. Já que você insistiu tanto nisso, eu envio; mas para onde?
— Para o Santuário da Espada. Você provavelmente já deve ter percebido
que ela está lá.
O Santuário da Espada não era tão distante de Sharia. Ele estava certo: eu
realmente tinha uma sensação de que ela pudesse estar treinando lá.
— Tá bom.
— Não escreva nada que possa afastar ela — avisou. — Se ela se desesperar,
será o seu fim.
— Eu sei.
Eu sabia muito bem o tipo de pessoa que Eris era, ou, pelo menos, costumava
saber. Se o que ele tinha falado era verdade, então ela nunca quis me
abandonar. Eu simplesmente não tinha percebido isso durante esse tempo
todo. Após pensar no que ele falou, lembrei de que ela realmente era péssima
com as palavras. Não seria surpresa nenhuma se seus sentimentos não
tivessem sido expressados direito naquela carta e isso gerasse mal-
entendidos, consequentemente fazendo com que eu ficasse sem rumo.
— Uff… — O velho suspirou e, em seguida, tremeu por parecer ter lembrado
de algo e levantou seu rosto. — Além disso, esqueci de te dizer uma coisa
importante: não trate o Deus-Homem como seu inimigo.
— O quê? Mas você disse que ele estava me enganando.
— Sim, mas você não conseguiria derrotá-lo. Eu mesmo não consegui, já que
nunca o encontrei. — A voz dele estava repleta de angústia.
Ele quis dizer que nunca o encontrou fisicamente? Então o espaço em que o
Deus-Homem vive não está neste mundo?
— Meu corpo inteiro tremeu quando percebi que jamais conseguiria me
vingar por Roxy ou por Sylphie. Dei meu melhor para derrotá-lo, mas não
consegui nem mesmo chegar perto dele. Posso manipular a eletricidade e a
gravidade, mas o Deus-Homem jamais chegaria perto o suficiente para que eu
fizesse uso disso contra ele.
O homem apontou para um tinteiro que estava em minha mesa, que levitou
por alguns segundos antes de cair novamente em minha mesa fazendo
barulho enquanto espirrava algumas gotas de tinta.
— Eu posso levitar as coisas, posso enviar mensagens a longas distâncias e,
até mesmo, fazer um braço crescer de novo. Além de tudo isso, também
consegui viajar no tempo e voltar para o passado — pausou. — Por mais que
essa magia tenha sido uma falha.
Uma falha? Qual parte dessa magia era uma falha? Ele estava bem na minha
frente, não estava?
— Tenho certeza de que já começou a perceber isso, mas, neste mundo, a
magia é onipotente. Assim que entender isso, vai conseguir fazer qualquer
coisa, ainda que precise de tempo, pesquisa e prática para aprender.
Ele levantou sua mão esquerda enquanto falava. A maneira como tinha a
movido fez parecer que estava se gabando, mas seu rosto já havia
ultrapassado a palidez; estava completamente branco. Os círculos ao redor de
seus olhos estavam cada vez mais escuros e seus lábios estavam começando a
ficar azuis.
— Mas todo esse poder não adiantou de nada. Já era tarde demais. Quando
finalmente consegui ficar forte, todas as pessoas que queria proteger já
tinham partido.
Ainda tinha um pouco de brilho em seus olhos, mas a força já tinha os
deixado. Sua respiração estava irregular e rouca.
— Você entendeu o que eu disse? Vou dizer mais uma vez: odeio o Deus-
Homem, mas também não consigo ganhar dele. Não há como derrotá-lo. Eu
não consegui encontrar uma forma de alcançá-lo sozinho; os objetos
necessários para chegar até ele não existiram durante meu tempo de vida. Por
isso, não lute com ele. Não faço ideia de qual é seu objetivo, mas faça o que
eu disse, mesmo que tenha que o bajular. Não se oponha a ele, deixe-o fazer
o que quiser. E, então, enquanto todas as pessoas que você ama estão vivas…
Toda a força em sua mão se esvaiu, fazendo com que ela caísse. Ele levantou
seu rosto e vagou com seu olhar pelo teto.
— Você precisa fazer três coisas: converse com Nanahoshi, escreva uma
carta para Eris e duvide do Deus-Homem sem se opor a ele. Só isso.
Eu não o respondi. Tudo tinha ocorrido tão de repente que eu não sabia o que
dizer. Mas uma coisa estava clara: ele estava desesperado para me dizer algo.
— V-Você não pode dar um conselho mais concreto do que esse? —
perguntei.
— Conselho, né? Aah, isso é nostálgico. É verdade que eu costumava ser um
preguiçoso quando estava na sua idade… Bom, eu amaria te dar mais
detalhes e dizer tudo que sei, sabe…? Mas meu tempo acabou.
— Você só fala isso: que está sem tempo e que seu tempo acabou. O que isso
quer dizer? Está com pressa para assistir um episódio especial de anime?
— Não, isso quer dizer que tudo acabou. Aliás, já que estamos nesse tópico,
não dependa dos outros. Você não dependeu de ninguém quando chegou
neste mundo. — Ele olhou para mim com a mesma emoção em seu olhar que
teria ao olhar para seu neto.
Pensando bem, realmente estive dependendo muito das outras pessoas
recentemente.
— Além disso, seu futuro já deve ter sido alterado pela minha vinda ao
passado. As coisas que eu disse talvez não aconteçam mais. Porém, eu vir ao
passado não mudará a história que eu vivi…
Em seguida, a luz sumiu de seus olhos; seus dois braços ficaram fracos e ele
levantou seu rosto enquanto tentava puxar o ar dolorosamente.
— Ugh… Você vai… ter uma vida… diferente da minha… Vai obter o
sucesso… e falhar… assim como sempre foi. Irá refletir… sobre seus erros…
e se arrependerá também…
O velho se mexeu, o que fez com que caísse da cadeira.
— Ei, você está bem?! — Corri para seu lado e me assustei ao segurá-lo em
meus braços. Mesmo parecendo ser bem musculoso, ele era
inacreditavelmente leve. Provavelmente não estava pesando nem mesmo 40
quilos.
O que diabos há de errado com o corpo dele?
— Jamais… pense que… você pode… fazer igual a mim… e voltar do
futuro… para corrigir seus erros. Essa magia foi uma falha… Não tem
como… viver tudo de novo.
Seus olhos sem vida vagaram de um lado para o outro enquanto ele deslizava
suas mãos trêmulas para dentro de seu robe.
— Usei esse diário como guia… para qual data eu deveria voltar… e o trouxe
comigo. Escrevi… tudo nele. Por favor… faça o que puder… para garantir…
que não se arrependa. Não deixe aquele desgraçado rir de você… como fez
comigo.
Seus olhos inexpressivos começaram a lacrimejar enquanto ele retirava um
livro enorme de seu robe. Suas páginas estavam desgastadas pelos anos de
uso, mas parecia familiar; era o mesmo que eu havia feito momentos atrás.
A mão do homem caiu no chão assim que eu peguei seu diário. Contudo, não
foi isso que chamou a minha atenção. Quando ele retirou seu diário, foi
possível ver um pouco o que estava dentro de seu robe. Não havia nada onde
seu estômago deveria estar.
— O que aconteceu com seu corpo?
— Ha… minha magia… estava incompleta. Não consegui trazer meu corpo
inteiro… de volta no tempo.
— O quê? M-Mas você acabou de dizer que consegue até mesmo fazer seu
braço crescer de novo.
— Não tenho mais nenhuma mana. Sinto muito… talvez tivesse sido melhor
se Cliff ainda estivesse vivo… Só um pouco mais de tempo… ainda tenho
informações…
— Sinto muito. Você já fez o suficiente. Não precisa dizer mais nada.
— Não quero que você… se arrependa… ou que as coisas aconteçam como o
Deus-Homem quer… Por que justo agora…? Justo quando falta dizer tantas
coisas… Se eu, pelo menos, pudesse ver elas de novo…
Ele já não estava mais olhando para mim ou para qualquer outra coisa. Já
havia começado a dizer coisas vagas; suas frases não faziam mais sentido. A
escuridão se espalhou por seus olhos, como se a sombra da morte estivesse o
cobrindo.
Então é assim que as pessoas ficam antes de morrer… Não, enquanto
morrem.
— Ah.
Seus olhos recuperaram o foco por um instante. Ele olhou para algo atrás de
mim e levantou uma de suas mãos trêmulas naquela direção.
— Aah… Sylphie, Roxy… vocês são lindas demais…
Uma lágrima escorreu por sua bochecha enquanto a luz de seus olhos
desaparecia por completo. Seu corpo perdeu toda a força e sua cabeça caiu
para trás.
Ele havia morrido.
Olhei para trás, mas a porta ainda estava fechada. Como o homem havia feito
um escândalo, pensei que alguém tivesse acordado e corrido para ver o que
tinha acontecido. Ele devia ter alucinado em seus últimos suspiros.
Logo após eu pensar nisso, escutei passos apressados de alguém descendo as
escadas.
— …!
Após eu sair rapidamente do quarto, encontrei Roxy e Sylphie segurando
uma vela e uma arma em cada mão.
— Rudy, ouvi algumas vozes e um barulho. Tem alguém aqui?
— Talvez seja um ladrão.
As duas pareciam aliviadas por me ver, mas ainda estavam com a guarda alta.
Deveria contar sobre o velho para elas? Eu hesitei. É melhor não.
— Não há ninguém. — Finalmente falei. — Eu estava dormindo e tive um
sonho estranho, então acabei lançando um feitiço sem querer. Creio que o
barulho tenha sido causado por isso. Foi mal.
— Foi só um feitiço que você usou enquanto dormia? — perguntou Sylphie,
sem acreditar. — Mas eu acho que escutei alguém gritando. Está tudo bem?
Hmm… se está sendo difícil para você, que tal dormirmos no mesmo quarto?
Sabe, a minha avó disse que sentir o calor de outra pessoa é o melhor
remédio para o sofrimento de alguém.
— Não precisa. Tenho certeza de que eu faria alguma safadeza se dormisse
com você, o que não seria bom, já que não se recuperou totalmente, não é?
Após eu recusar a oferta tentadora da Sylphie, Roxy fez uma careta.
— Se está tão ruim assim, você pode dormir comigo, por mais que eu tenha
começado a suspeitar que… De toda forma, se puder ficar apenas nos
toques…
— Nah, estou bem por hoje.
Apesar de Roxy não ter terminado o que estava dizendo, suas palavras me
fizeram lembrar o que o velho havia dito; que ela estava grávida. Ela também
achava isso, levando em conta a forma como havia falado.
— Está tudo bem mesmo, sério — assegurei a ambas. — Vocês duas podem
voltar a dormir. Vou dormir depois de arrumar meu escritório.
Sylphie assentiu lentamente.
— Bom, já que você diz, tudo bem. Mas pode falar com a gente, caso precise
de nós, viu?
— Nós somos casados, então não hesite em falar com a gente. De toda forma,
boa noite.
As duas ainda pareciam estar muito preocupadas quando voltaram ao
segundo andar. Observei elas irem antes de voltar para meu escritório.
Primeiro era necessário confirmar a veracidade do que o velho havia me dito.
Eu não fazia ideia de quem ele era na verdade: se realmente era eu do futuro
ou se era alguém completamente diferente. O que ele havia dito parecia ser
verdade, considerando que havia arriscado a própria vida para me avisar. O
complicado era que havia sido tão repentino que estava sendo difícil de
acreditar.
—…
No entanto, havia um pensamento que não saía de minha cabeça.
Eu não quero perder elas.
E também não queria morrer com arrependimentos, como havia acontecido
com ele.
Acompanhei elas até seus quartos para garantir que estavam seguras e as
proibi expressamente de sair de novo nesta noite. Passei por todos os quartos
no segundo andar e os fechei pelo lado de fora para prevenir que saíssem.
Após isso, desci as escadas e vasculhei o primeiro andar para ter certeza de
que ninguém estava lá. Assim que tive certeza de que a barra estava limpa,
voltei para meu escritório para despir o velho.
— Quê…?!
Ele não tinha um estômago. Sob suas costelas somente havia um buraco onde
só era possível ver ossos e pele. Ele praticamente não tinha vísceras.
Deixando isso de lado, o resto de seu corpo era incrível. Era difícil de
acreditar que esses eram os músculos de alguém em seus quase setenta anos.
Além disso, estava repleto de cicatrizes de batalha. Havia uma
particularmente estranha em seu peito; era como se sua pele tivesse sido
colada de volta. No entanto, até mesmo as suas sardas estavam exatamente
nos mesmo locais que as minhas.
Até onde vi, era extremamente igual a mim. A única coisa que nos
diferenciava era que tinha uma mão esquerda funcional. Ele mencionou que
ele mesmo havia a restaurado.
Ele deve ter sido muito habilidoso em magia de cura para conseguir fazer
isso.
Ele não estava carregando nada além do diário e não estava utilizando
nenhum acessório ou nem mesmo um cajado. Tudo que ele estava vestindo
por baixo do robe era uma camisa, uma cueca e uma calça. Também não
havia nada em seus bolsos.
Tenho certeza de que eu carregaria algum tipo de lembrança se Sylphie e
Roxy morressem.
Por outro lado, ele devia ter passado por diversas coisas ao longo desses 50
anos que poderiam fazer com que perdesse essas recordações.
Após deixar esses assuntos de lado, enrolei o corpo do velho em um lençol
que estava por perto e passei pela cozinha enquanto o carregava em direção à
porta dos fundos.
Parei quando encontrei algumas sobras da noite anterior no balcão; estavam
empilhadas em um prato. Eram as sobras que ele havia dito que o rato
comeria. Provavelmente seria melhor eu me livrar delas.
Fui para o nosso jardim dos fundos e carreguei o corpo do velho para um
terreno baldio próximo. Lá, fiz uma cova, o coloquei dentro e o incendiei.
Meu feitiço foi poderoso o suficiente para o reduzir a pó e ossos em alguns
segundos. O fedor da carne queimada se espalhou pelo ar; era ainda mais
nauseante ao saber que estava saindo do meu próprio corpo carbonizado.
— Ugh…
Meu estômago revirou com esse pensamento, o que fez com que eu
precisasse correr para o canto do terreno para vomitar.
Assim que terminei a cremação, usei minha mana para conjurar um pote para
que colocasse seus ossos. Eu iria o enterrar no mesmo local onde enterrei
Paul. Se ele realmente fosse uma versão minha do futuro, ali seria onde
ficaria mais feliz.
Preenchi o buraco novamente depois de terminar de coletar seus ossos. Em
seguida, voltei para casa pela porta dos fundos e fui direto para meu
escritório. Deixei os restos mortais do velho ao lado de suas roupas e peguei
o meu cajado.
Desta vez, o meu destino era o porão. Ativei o meu olho demoníaco no
caminho.
O velho havia me dito para não ir. Ele havia me avisado de que o rato fugiria,
comeria nossas sobras e que a doença que ele carregava seria passada para
Roxy. Mas eu tinha que ter certeza se o rato realmente estava lá ou não. Se eu
não visse com os meus próprios olhos, não seria capaz de acreditar no que ele
havia me dito, Além disso, se ele estivesse certo, eu não poderia deixar
aquele roedor à solta.
—…
As escadas que levavam para o porão estavam escuras. Utilizei um
pergaminho de Espíritos Luz de Lâmpada para iluminar a área. Depois de
descer, respirei fundo e coloquei a minha mão na porta.
— Hm…
Havia poeira acumulada no canto da escadaria, o que me ajudou a encontrar o
que estava procurando: pistas. Pegadas de rato, especificamente. Também era
possível ver onde o rabo dele havia sido arrastado. Essas pegadas tinham
somente um destino: o porão. Não havia traços de que ele havia saído.
Eu não conseguia criar coragem para abrir a porta. Ao invés disso, usei magia
para fazer um buraco do tamanho do meu punho nela. E, então, coloquei
mana em meu cajado e o passei pela abertura. Pensei em gelo o suficiente
para cobrir um quarto inteiro. Lá dentro havia alguns itens mágicos e o
fertilizante que Aisha havia usado no jardim, mas tudo isso era irrelevante.
— Nova Congelante — sussurrei. Gelo surgiu em todo o cômodo em um
instante. Apenas para garantir, repeti o feitiço. — Nova… Congelante.
Um sopro frio saiu de meu cajado e cobriu todos os cantos e buracos do
porão. Passei meu Espírito Luz de Lâmpada pela abertura e olhei lá dentro
para ter certeza de que o gelo estava cobrindo todo o local. E, então,
finalmente abri a porta, entrei e a fechei atrás de mim.
—…
Eu, imediatamente, encontrei o rato. Ele havia morrido, congelado, próximo à
porta escondida que levava ao meu templo pessoal. A boca da criatura estava
meio aberta e com dentes roxos dentro dela. Eles realmente pareciam pedras
mágicas.
Fiz uma varredura pela área para garantir que um segundo não havia se
esgueirado junto. Após ter certeza de que não havia mais nenhum, criei uma
caixa com magia de terra, usei gravetos para pegar o corpo do rato de forma
segura e o coloquei dentro. Em seguida a selei para que ninguém a abrisse de
forma descuidada.
Seria melhor se eu o queimasse e me livrasse dele ou se o enviasse para a
Guilda de Magos para ser estudado?
A última parecia ser a melhor opção. Se eu reportasse o que tinha escutado do
velho sobre a Síndrome de Petrificação quando entregasse o corpo do rato
para a guilda, poderiam verificar a veracidade do que ele havia dito, por mais
que eu não soubesse se conseguiriam extrair o patógeno de um corpo
congelado.
Ao sair do porão, tranquei a porta e selei o buraco que havia feito antes. O
velho havia dito que a doença não podia ser transmitida pelo ar e que não era
muito contagiosa, mas era melhor prevenir do que remediar.
Voltei para meu escritório. Já estava completamente desperto após tudo
aquilo, então não conseguiria dormir tão cedo.
Bom, o que eu deveria fazer primeiro? Na verdade, o que posso fazer agora
mesmo?
Deveria ler o diário desgastado que o velho havia trazido consigo? Talvez
pudesse me avisar sobre acontecimentos futuros, apesar de que ele também
havia dito que a história já havia sido alterada. Falando em termos de ficção
científica, eu já estava em uma linha de tempo alternativa, que havia sido
criada pela volta do meu eu do futuro ao passado. Era provável que boa parte
das coisas que ele havia enfrentado não acontecessem comigo, mesmo se eu
lesse tudo contido neste caderno e me preparasse para isso.
Olhei para o tinteiro e para as manchas que haviam sido deixadas em minha
mesa. As marcas de queimadura também haviam permanecido onde ele tinha
batido com a mana concentrada em sua mão. Ver isso fez com que eu
lembrasse do que ele havia me dito: “você precisa fazer três coisas”. A
primeira coisa da lista era algo que eu conseguiria fazer de imediato.
Sentei, peguei um papel e segurei minha caneta.
—…
Primeiro deveria escrever uma carta para Eris. Ela tinha sido minha primeira
parceira sexual e alguém que eu tinha amado antes dela desaparecer do nada.
Eu ainda tinha sentimentos complexos em relação a ela.
Mas o que eu deveria escrever? Me perguntei enquanto encostava a minha
caneta no papel.

Capítulo Extra: O Nascimento da Nova Rei


da Espada
Três Santos da Espada, Nina Falion, Gino Britz e Eris Greyrat, estavam
reunidos no Salão Efêmero do Santuário da Espada, todos com um joelho no
chão. Na frente deles estava o Deus da Espada, Gall Falion.
Ele estava de pé enquanto observava calmamente os seus pupilos, os quais
estavam segurando as espadas em seus quadris. Ele falou lentamente:
— Suas habilidades já superaram o nível de Santo da Espada.
Os ombros de Gino tremeram.
— Já está na hora de reconhecer o primeiro Rei da Espada desde Ghislaine.
Gino arregalou seus olhos e cerrou seus punhos. Uma emoção indescritível
tomou conta dele, o fazendo querer pular e gritar, mas suprimiu esse impulso.
Ele não entendeu aquela emoção, mas sabia que não era uma ruim.
No entanto, o Deus da Espada não havia terminado de falar.
— Antes de fazermos isso, tenho uma pergunta para vocês.
Todos esperaram silenciosamente.
— Qual vocês acham que é a diferença entre um Santo da Espada, um Rei da
Espada e um Imperador da Espada?
— Força? — Nina deixou escapar.
A expressão de todos deixava claro que não conseguiam imaginar nenhuma
outra resposta. Porém, ao mesmo tempo, também sabiam que não era algo tão
simples. O Deus da Espada queria saber o que havia além da força; o que
mais os separava.
— Nina, o que seu professor mandou você fazer antes de aprender a Espada
de Luz?
O professor de Nina não era Gall Falion. A pessoa que a orientava era o pai
de Gino, Timothy Britz. Ao se recordar dos ensinamentos dele, ela
respondeu:
— Ele me disse: “Já que você é destra, treine sua mão esquerda.” Além disso,
também disse que eu não conseguiria fazer a Espada de Luz até que
conseguisse empunhar uma espada com minha mão esquerda perfeitamente.
— Ele está certo. Sabe o motivo pelo qual sua mão não dominante é
importante para usar a Espada de Luz?
— Se tensionar sua mão dominante, fará com que a espada desvie para os
lados.
— Exatamente. Você precisa colocar toda a sua Aura de Batalha no golpe e
cortar em uma linha reta. É simples, mas esse é o maior segredo da técnica
Espada de Luz.
A esgrima se baseava em cortar um objeto em movimento. Qualquer pessoa
desviaria facilmente de um ataque frontal, por isso que os espadachins
atacavam por baixo, pelos lados ou pelas diagonais; faziam movimentos
imprevisíveis para pegar o inimigo desprevenido.
No entanto, tinha sido diferente com o primeiro Deus da Espada. Ele não
precisava desses truques. Ao invés disso, simplesmente cortava todos ao se
mover mais rápido do que seu oponente conseguia reagir.
— Esse segredo também faz parte da história do estilo Deus da Espada. —
Gall bateu levemente com sua unha na empunhadura da sua espada. — Os
Deuses da Espada de todas as gerações se esforçaram para conseguir
desvendar, lentamente, as técnicas inexplicáveis que o primeiro Deus da
Espada havia cultivado. Isso foi o que conduziu o estilo Deus da Espada à sua
forma atual. Após entender os segredos e os princípios por trás da Espada de
Luz e aprender a como utilizá-la na prática, tudo se torna simples; até mesmo
uma pessoa com pouco talento consegue lutar. Isso foi o que nos trouxe até a
era em que o estilo Deus da Espada é considerado o mais forte. É graças ao
primeiro Deus da Espada e aos seus sucessores, os quais desvendaram os
segredos de suas técnicas, que podemos permanecer de cabeça erguida.
Seus dedos batucaram na empunhadura da espada novamente.
— A Espada de Luz é a melhor técnica do estilo Deus da Espada. Os
praticantes de outros estilos poderiam até mesmo ver ela como nossa técnica
secreta. No entanto, há alguns que entendem a sua essência melhor do que
outros. Há os Santos da Espada, os Reis da Espada, os Imperadores da
Espada e o Deus da Espada… Na verdade, é um pouco estranho. Todos nós
fazemos a mesma coisa, mas alguns são mais fortes e outros, mais fracos.
Gall se virou para Gino.
— O que você acha que nos torna diferentes, Gino? Me responda.
Gino, que estava com uma expressão apreensiva, levantou seu rosto. Ele não
tinha ideia de qual era a resposta, mas se sentiu pressionado a responder
rápido.
— A h-habilidade de pensar de forma lógica, de se mover habilmente, e…
hm, a força física ou… t-talvez a qualidade da espada…?
— A qualidade da espada?! Você já treinou por quantos anos, garoto? Tem
certeza de que não precisa voltar a estudar o básico?! — gritou Gall para ele.
— E-Eu sinto muito! — Gino ficou pálido e desviou seu olhar para baixo.
O que Gino realmente queria dizer era “talento”, mas ele sabia que essa não
era a resposta que o Deus da Espada queria. Não havia como uma pergunta
tão complexa ser respondida com uma única palavra; agora estavam
discutindo sobre o que o talento era, afinal. Gall poderia expulsá-lo se ele
dissesse algo tão estúpido.
— Você não entende porque ainda é uma criança, né? Não que isso importe.
Os fortes continuarão sendo fortes, entendendo ou não. Bom, Nina, sua
resposta.
Nina pensou cuidadosamente em sua resposta. A pergunta provavelmente era
sobre o que os separava daqueles que estavam acima deles. Tinha que ser
algo que os Reis da Espada e outros acima possuíam que Nina e seu grupo,
não.
Ao pensar bem, ela percebeu que a maioria das pessoas das posições mais
altas tinha um parceiro romântico. Ela também queria isso: um namorado ou
um marido…
Nina olhou para Gino, que ainda estava olhando fixamente para o chão com
uma expressão de vergonha. Ele era mais novo do que ela, mas, ultimamente,
ela parecia muito interessada nele…
De repente, uma palavra que ela escutava o Deus da Espada falar de vez em
quando surgiu em sua mente.
— É “desejo”?
— Hm, bom, você certamente amadureceu bastante ultimamente; está agindo
de forma mais feminina. Como esperado da minha filha.
Ele riu, sabendo exatamente o que ela tinha pensado. Nina não esboçou
nenhuma reação, já que havia praticado para que não demonstrasse esse tipo
de coisa.
— Desejo… bom, não está tão errada. Mas até onde seu desejo vai?
— Como assim?
— Por exemplo: se eu te dissesse que você teria que escolher entre se casar
com o Gino ou se tornar uma Rei da Espada, o que você escolheria?
Gino e Nina olharam um para o outro após ouvirem sobre casamento, o que a
fez ficar corada.
— Eu me tornaria uma Rei da Espada.
Em outras palavras, ela abandonaria a chance de se casar com Gino. Isso
mostrava o limite de seu desejo. Um pouco após responder, ela percebeu que
havia errado em sua escolha.
— Ingênua como sempre. — Ele debochou dela com uma risada enquanto ela
abaixava sua cabeça. Gall, então, direcionou sua atenção para a última pessoa
do trio. — Qual é a sua resposta, Eris?
— Determinação.
— Determinação…? Errou. Essa também não é a resposta. — Ele riu ao
descartar a resposta dela.
No entanto, Eris simplesmente o olhou de volta e disse:
— É sim. Determinação é a resposta correta.
No fundo de sua mente, ela relembrou da mão de Orsted atravessando o peito
de Rudeus. Se recordou de lamentar o quão fraca era enquanto ele caía no
chão.
Ela havia ficado mais forte desde aquela época. Sua força e sua velocidade
aumentaram drasticamente. Contudo, isso não era o suficiente para derrotar
Orsted. Após treinar por anos, Eris já tinha noção dos limites de suas
habilidades. Independentemente do quanto treinasse, jamais chegaria no nível
de Orsted. Isso não era um exagero, ela sabia que nunca seria capaz de
derrotá-lo sozinha.
Mas, se estivesse com Rudeus, a história seria outra. Talvez conseguissem
fazer isso, se estivessem juntos. Eles conseguiriam vencer, com a magia dele
e as habilidades de espada dela.
Mesmo que eu me sacrifique para segurar Orsted, Rudeus vai estar lá para
dar o golpe final.
Se Rudeus vencesse, a vitória também seria de Eris. Ela estaria morta, claro,
mas Rudeus ainda estaria vivo. Ela não se importava com isso, por mais que
significasse que não teriam um futuro juntos. Uma vida caseira no futuro só
faria ela perder a coragem, o que consequentemente a faria hesitar em uma
luta. Com isso, os dois morreriam. Se alguém precisava morrer, tinha que ser
ela. Eris estava determinada a seguir esse caminho ou, melhor dizendo, havia
se conformado com isso.
— Então você não se importa com não poder se tornar uma Rei da Espada?
— perguntou Gall
— Não ligo para isso.
— Pensei que quisesse ficar mais forte.
— Eu quero, mas um título não altera a força de uma pessoa, altera?
O Deus da Espada murmurou, satisfeito:
— Muito bom. Eris e Nina, lutem. Quem ganhar vai ser nomeada como Rei
da Espada.
Gino ficou com os ombros caídos pela sensação de derrota.
Nina e Eris se encararam.
—…
As duas estavam empunhando espadas de madeira. Por mais que não
parecesse uma arma letal, poderia ser utilizada para finalizar facilmente a
vida do oponente, nas mãos de duas Santas da Espada.
— Isso me traz memórias de quando pisei aqui pela primeira vez.
— Realmente.
Havia se passado diversos anos desde que Ghislaine havia levado Eris para o
Santuário da Espada. A garota agiu como um animal selvagem quando
chegou e, com isso, fez Nina passar por uma humilhação; ela havia se mijado
de medo na frente de Gino e de outros Santos da Espada. Só lembrar disso já
a fazia querer cobrir seu rosto e se contorcer de agonia.
Mas, mesmo assim, ela não a odiava. Foi graças a Eris que havia ficado mais
forte, descartando o orgulho e focando completamente em seu treinamento. A
humilhação que havia passado tinha se tornado a sua motivação.
Nina afirmou com confiança:
— Desta vez serei a vencedora.
Eris soltou sua sede de sangue, mas Nina nem mesmo piscou. Ela parecia um
monge em treinamento, pela forma como olhava para Eris com calma.
— Hunf.
Em seguida, toda a hostilidade da Eris desapareceu. Sua expressão era um
completo oposto de Nina. Ela estava sorrindo de forma maníaca, como se
fosse um predador encarando a sua presa. A maneira como seu sorriso
perturbador ia de uma orelha até a outra era o suficiente para fazer qualquer
um tremer.
Nina sentiu um medo instintivo crescer dentro de si. Ela já havia perdido
diversas vezes para a Eris durante o treinamento com a Rei da Água, Isolte.
Claro que ela também tinha ganhado algumas vezes, mas as memórias mais
fortes em sua mente eram de suas derrotas. Isso ocorria, principalmente,
porque Eris dava aquele sorriso toda vez que Nina perdia.
—…
Eris não havia se movido; estava numa imobilidade mortal e com aquele
sorriso bestial em seu rosto. Isso era raro, levando em conta que ela sempre
era a primeira a atacar. Nina achou que ela estava almejando um contra-
ataque. Ela já havia sofrido contra-ataques enquanto lutava contra Isolde. Por
mais que Eris não conseguisse utilizar as técnicas do estilo Deus da Água,
ainda conseguiria utilizar o estilo Deus do Norte, que também tinha contra-
ataques. Esse provavelmente era o objetivo dela.
—…
O local estava em silêncio. Eris estava segurando a sua espada na altura dos
ombros, enquanto Nina segurava a dela acima de sua cabeça. Ambas estavam
completamente paradas, a um passo de distância uma da outra. Nina não
esboçava nenhuma reação, enquanto Eris estava com um sorriso enorme
estampado em seu rosto. As duas pareciam estátuas estranhas, pela forma
como se encaravam sem nem mesmo piscar. Essa demora não era normal
para estudantes do estilo Deus da Espada, que pregava que o vencedor seria o
primeiro a fazer um movimento.
Nenhuma das duas ousou se mover, até que Gall Falion finalmente soltou um
suspiro.
— Até quando vocês vão ficar se encarando?
Essas palavras foram o estopim. Nina foi a primeira a se mover, dando um
passo confiante para frente. Movimento, esse, que havia repetido milhares de
vezes ao longo de seu treinamento. Ela moveu suas pernas de forma
excelente e coerente, o que fez força surgir em seu torso. Ela combinou essa
força com sua Aura de Batalha e a enviou para seus braços e, em seguida,
para sua espada. A habilidade considerada a mais rápida de todas, a Espada
de Luz, estava sendo utilizada contra Eris.
A técnica da Nina foi impecável. Qualquer pessoa que visse, ficaria
impressionada por sua excelência. Mas…
— Graaaaah!
Um forte impacto acertou o estômago de Nina, a lançando para trás e fazendo
com que seu corpo batesse na parede antes de cair no chão. Seu uniforme
havia rasgado, o que fez com que sua barriga tonificada ficasse visível e fosse
possível ver uma marca vermelha surgindo lentamente em sua pele. Ao
mesmo tempo, ela sentiu como se seu corpo estivesse queimando.
— Acabou! — declarou o Deus da Espada.
Nina encarou Eris, confusa. Ela estava com suor escorrendo de sua testa e seu
uniforme havia sido levemente cortado na região do ombro, mas não havia
ferida alguma nela. Ela também não estava mais com aquele sorriso em seu
rosto; simplesmente estava de pé, de forma honrada, como a vitoriosa.
— Ugh…
Nina entendeu o que tinha acontecido: Eris havia dado um passo para frente
ao mesmo tempo em que Nina tinha se movido e, enquanto ela dava seu
golpe por cima, Eris se abaixou e aplicou sua própria Espada de Luz pelo
lado.
O que Nina não conseguia entender era como isso tinha acontecido. A técnica
dela deveria ter atingido primeiro, já que havia agido antes e movia sua
espada levemente mais rápido do que Eris. Além disso, ela havia dado o
golpe por cima, que era a posição de ataque mais rápida. Mesmo se algum
pequeno erro de cálculo fosse levado em conta, seu ataque deveria ter
acertado antes do ataque de Eris. Contudo, a batalha delas não acabou nem
mesmo em empate. Por que ela havia sido jogada contra a parede enquanto
Eris continuava de pé?
— Utilizar uma força avassaladora não é a única forma de ganhar de alguém
— disse Eris, bem baixo.
Nina não entendeu o que ela quis dizer.
Eris havia usado uma técnica do estilo Deus do Norte. Originalmente, a
Espada de Luz tinha uma força excessiva. Mas, ao invés disso, Eris havia
transformado a força em velocidade. Ela havia diminuído a força até que só
nocauteasse seu oponente, o que tornou a execução mais rápida. Não havia se
baseado em força bruta, mas sim na distribuição de sua Aura de Batalha.
Essa era uma técnica que ela tinha aprendido em seu treinamento com o
Imperador do Norte. Se comparar com a força que tinha sacrificado para
utilizar a técnica, a velocidade gerada a mais tinha sido, honestamente,
insignificante. Mas, mesmo que a diferença fosse menor que a largura de um
fio de cabelo, foi isso que fez ela vencer.
— Magnífico, Eris. Eu te dou o título de Rei da Espada.
Nina se levantou lentamente. Seu rosto se contorceu com a dor latejante em
sua barriga.
Ela me superou completamente.
Por terem utilizado espadas de madeira, ela somente foi jogada para trás e
ferida. Se Eris tivesse utilizado uma espada de verdade, teria conseguido
acertar o coração de Nina. Havia sido um ataque relativamente fraco,
considerando que uma Espada de Luz normal dividiria o corpo do oponente
em dois, mas essa força conseguiria matar mesmo assim. Como Eris somente
tinha um rasgo no ombro de seu uniforme, isso era mais do que o suficiente
para qualificá-la como a vencedora. Foi uma derrota completa para Nina.
Nina suspirou e se deitou. Ela havia perdido neste duelo em todos os
quesitos. O primeiro movimento tinha sido dela e, mesmo assim, havia
perdido. Perdi completamente. Já era. Ela sentiu um peso sufocante em seu
peito.
— Está frustrada, Nina? — perguntou o Deus da Espada.
— Sim.
Lágrimas desceram por suas bochechas.
— Você ainda tem potencial. Se anime.
— Tudo bem, Pai.
Naquele dia, pela primeira vez em muito tempo, ela chamou Gall de pai, ao
invés de mestre.
—…
O Deus da Espada esperou, em silêncio, ela parar de chorar. Eris voltou a
franzir as sobrancelhas e cruzar os braços na região de seu peito enquanto
ficava por perto.
Assim que Nina parou de fungar, Gall se virou para Eris e disse:
— Vou te dar o título de Rei da Espada, mas não tenho mais nada para te
ensinar. Você é uma mestre.
Um mestre, assim como o nome implicava, era alguém que tinha alcançado a
maestria no estilo. Nina e Gino olharam um para o outro, surpresos. Esse
reconhecimento era tão especial que nem mesmo os dois Imperadores da
Espada ou a Rei da Espada Ghislaine haviam recebido antes.
— Eu também posso te dar o título de Imperador da Espada… mas, nesse
caso, você terá que batalhar com Ghislaine. Se for mais gananciosa e quiser
ser Deus da Espada, vai precisar me matar. — Ele colocou uma mão na
bainha de sua espada, como se estivesse a desafiando a responder.
Eris balançou sua cabeça.
— Não ligo para o título de Deus da Espada.
— Imaginei que fosse dizer isso. Bom, então o que irá fazer?
— Primeiro vou voltar para minha família.
Ao olhar nos olhos dela, o Deus da Espada ficou impressionado com o
quanto estavam brilhando. Eris havia ficado sempre com uma sensação de
perda. Se ela continuasse sua jornada para se tornar mais forte e não perdesse
de vista o seu objetivo, talvez realmente conseguisse derrotar aquele Orsted
invencível. Esse era o tipo de potencial que Gall sentia nela.
— Venha, Eris. Vou te dar uma das minhas sete espadas como prova de que
você é uma Rei da Espada.
— Certo…
Naquele dia, o longo período de treinamento de Eris havia chegado a um fim.
A cerimônia para determinar o novo Rei da Espada terminou após Eris e o
Deus da Espada saírem. Somente Nina e Gino permaneceram naquele salão.
Eles ficaram sentados em silêncio por um tempo. Estavam frustrados e com
inveja, mas nenhum deles queria transparecer ou falar disso.
Ambos se levantaram silenciosamente e caminharam lado a lado até o canto
do Salão Efêmero, onde ficavam as espadas de madeira, e cada um pegou a
sua.
Pouco tempo depois, o eco de suas espadas colidindo podia ser escutado pelo
salão. Essa era uma sinfonia que tocava diariamente pelo Santuário da Espada
e, conforme os dois treinavam, davam continuação àquele som rítmico.
Table of Contents
Capítulo 1: Fortaleza Flutuante
Capítulo 2: Uma Audiência com Perugius
Capítulo 3: O Passado e uma Maldição, Invocação e Ciúme
Capítulo 4: Lamento
Capítulo 5: Retorno ao Continente Demônio
Capítulo 6: Procura por Kishirika
Capítulo 7: Uma Audiência com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 8: Confronto com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 9: Um Dia na Fortaleza Flutuante
Capítulo 10: Ponto de Virada (Parte 4)
Capítulo 11: Um Começo e um Fim
Capítulo Extra: O Nascimento da Nova Rei da Espada
Table of Contents
Capítulo 1: Fortaleza Flutuante
Capítulo 2: Uma Audiência com Perugius
Capítulo 3: O Passado e uma Maldição, Invocação e Ciúme
Capítulo 4: Lamento
Capítulo 5: Retorno ao Continente Demônio
Capítulo 6: Procura por Kishirika
Capítulo 7: Uma Audiência com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 8: Confronto com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 9: Um Dia na Fortaleza Flutuante
Capítulo 10: Ponto de Virada (Parte 4)
Capítulo 11: Um Começo e um Fim
Capítulo Extra: O Nascimento da Nova Rei da Espada
Table of Contents
Capítulo 1: Fortaleza Flutuante
Capítulo 2: Uma Audiência com Perugius
Capítulo 3: O Passado e uma Maldição, Invocação e Ciúme
Capítulo 4: Lamento
Capítulo 5: Retorno ao Continente Demônio
Capítulo 6: Procura por Kishirika
Capítulo 7: Uma Audiência com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 8: Confronto com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 9: Um Dia na Fortaleza Flutuante
Capítulo 10: Ponto de Virada (Parte 4)
Capítulo 11: Um Começo e um Fim
Capítulo Extra: O Nascimento da Nova Rei da Espada
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Capítulo 1: Fortaleza Flutuante
Capítulo 2: Uma Audiência com Perugius
Capítulo 3: O Passado e uma Maldição, Invocação e Ciúme
Capítulo 4: Lamento
Capítulo 5: Retorno ao Continente Demônio
Capítulo 6: Procura por Kishirika
Capítulo 7: Uma Audiência com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 8: Confronto com a Rei Demônio Imortal
Capítulo 9: Um Dia na Fortaleza Flutuante
Capítulo 10: Ponto de Virada (Parte 4)
Capítulo 11: Um Começo e um Fim
Capítulo Extra: O Nascimento da Nova Rei da Espada

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