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A pé, nossa jornada levaria meio dia indo para o norte da Cidade Mágica de
Sharia, mas seria apenas uma hora a cavalo. Nosso destino eram algumas
ruínas antigas – os restos de uma fortaleza.
Detritos estavam espalhados pelo chão, vestígios de algum piso de pedra.
Pilares de pedra grossos jaziam derrubados. Era como olhar para o Partenon,
fora que os anos haviam sido menos gentis com este lugar. Sem dúvida, em
um período, era uma visão majestosa de se ver, mas agora é pouco mais do
que um eco da história.
— Estes são os restos da Fortaleza Scott. Os humanos a construíram durante
a Guerra de Laplace. Dizem que havia mil humanos que se barricaram para se
opor à invasão dos demônios. Infelizmente, não foram páreo para eles, e a
fortaleza acabou sendo tomada.
Quem deu essa explicação útil foi a mulher ao meu lado, uma loira com
cabelos trançados. Sua aparência era inocente e estava vestindo uma roupa de
viagem luxuosa. Mesmo de longe, seria possível dizer que Ariel Anemoi
Asura era uma beldade incomparável que exalava carisma.
Espera, será que ela estava dirigindo essa explicação a mim?
Mantive minha boca fechada e olhei ao redor. Luke e Sylphie estavam logo
atrás de nós, com Roxy, Zanoba, Cliff e Elinalise na retaguarda. Nanahoshi
estava na frente, liderando nosso grupo. O olhar de Ariel estava fixo em mim,
e não havia ninguém entre nós. Eu tinha razão; ela estava falando comigo.
Recentemente tínhamos viajado com a nobreza de Ranoa, mas nós dois nunca
tínhamos conversado de verdade, por isso a minha confusão.
— Você com certeza sabe das coisas, Princesa — falei, por fim.
Ela me direcionou um sorriso suave.
— Isso é retratado em muitas das canções folclóricas desta área.
— Eu não sabia que você tinha interesse em canções folclóricas.
— Fazer conexões com a nobreza local requer que eu esteja familiarizada
com elas — respondeu Ariel com naturalidade. O conhecimento de velhas
histórias era aparentemente essencial para aproximar-se da classe alta. Isso
devia dar muito trabalho. — Mas você tem certeza de que podemos chegar ao
Lorde Perugius a partir daqui?
— Essa é uma boa pergunta. Não faço ideia de como funciona, mas… — Fiz
uma pausa, olhando para Nanahoshi à nossa frente. Ela carregava uma
mochila enorme nos ombros e tinha dificuldade para caminhar, graças aos
escombros. Mesmo assim, continuou andando sem olhar para trás. Eu estava
seguindo seu exemplo, mas me perguntei como ela planejava chegar a
Perugius a partir daqui. Até onde eu conseguia me lembrar, minhas leituras
sobre magia de teletransporte não faziam menção a círculos nesta área. Ou
talvez houvesse um, mas não foi notado porque estava escondido. — Me
preocupo mais com a possibilidade de ele ficar irritado com o número de
pessoas.
Ariel riu.
— Lorde Rudeus, você diz algumas coisas divertidas. Este é o herói que
ganhou o título de “rei”, sabe. Nosso pequeno grupo dificilmente o
perturbará.
— Espero que você esteja certa.
Olhei ao redor, mentalmente marcando cada pessoa em nosso grupo:
Nanahoshi, eu, Ariel, Sylphie, Luke, Roxy, Zanoba, Cliff e Elinalise. Isso
somava nove pessoas, o suficiente para ser uma grande unidade familiar.
Embora a Ariel pudesse não considerar isso uma multidão tão grande.
Frequentemente, a realeza recebe dezenas de convidados ao mesmo tempo,
então um grupo de menos de dez provavelmente não os perturbaria.
Norn recusou meu convite; estava muito ocupada com a escola. Ela disse que
trabalharia duro para equilibrar o estudo de esgrima com a tarefa de ser
membro do conselho estudantil. Isso talvez tenha influenciado em sua recusa.
Entretanto, se ela estivesse conosco, eu provavelmente também teria que
trazer Aisha. Isso nos tornaria um grupo de onze, definitivamente uma
multidão. Não me sinto confortável em levar tantas pessoas para encontrar
alguém que sequer conhecia.
— Lorde Perugius agora passa seus dias em reclusão, mas depois da Guerra
de Laplace, ele viveu no Reino Asura por um tempo. As pessoas de lá
pensam nele como um igual ao seu próprio rei. É dito que ele uma vez levou
cem servos consigo quando visitou o palácio. Alguém assim dificilmente
piscaria diante de um pequeno grupo de nove pessoas — disse Ariel.
— Acho que sim.
Em uma tangente completamente sem relação, a voz de Ariel com certeza era
agradável de escutar. Certamente era natural ficar irritado quando visitantes
batiam sem aviso prévio, mas as palavras dela fizeram parecer que tudo
ficaria perfeitamente bem. Para ser honesto, foi desconcertante. Sua voz era
como o sussurro do demônio.
Olhei para a princesa.
— Se ele estava farto da vida no palácio, então talvez não goste do conceito
de receber visitantes.
— Se esse fosse o caso, Lady Nanahoshi não teria concordado em me deixar
ir junto.
— Realmente não acho que ela pensa muito nisso — murmurei, lembrando-
me das circunstâncias que levaram Ariel a se juntar ao nosso grupo…
Quando Nanahoshi mencionou Perugius pela primeira vez, fiquei tão
animado quanto quando era uma criança na manhã do meu aniversário.
Estávamos falando do Rei Dragão Blindado. Eu sabia tudo sobre ele. Li até
um livro, não muito depois de reencarnar neste mundo.
Perugius foi um herói da Guerra de Laplace há 400 anos. De acordo com o
que li, ele podia controlar doze familiares, restaurou uma antiga fortaleza
flutuante à sua antiga glória e até lutou contra o próprio Laplace com seus
camaradas. Depois que Laplace foi selado, as pessoas o louvaram tanto que o
novo calendário foi batizado de “Dragão Blindado” em sua homenagem.
Embora Perugius fosse conhecido como o Rei Dragão Blindado, não tinha
nenhum território sobre o qual governar. Ele eventualmente deixou o palácio
Asurano e começou a viajar pelo mundo em sua fortaleza flutuante,
Destruidora do Caos. Estamos indo encontrar esse homem das lendas. Eu não
conseguia diminuir as expectativas. Quer dizer, estamos indo para o castelo
no céu, Laputa!
É verdade, eu estava ocupado o suficiente entre ser pai e fazer minha própria
pesquisa, mas ainda queria muito ir. Desculpe, Lucie, seu pai não é páreo
para a própria curiosidade. Mas prometo que vou te trazer algo! E então
decidi ir junto com Nanahoshi.
Enquanto eu lutava interiormente com meu próprio egoísmo, Sylphie não
ficou tão conflituosa. Em vez disso, perguntou:
— Tudo bem se eu levar a Princesa Ariel junto?
— Ariel? — Nanahoshi torceu o nariz.
Disse que a princesa tinha tentado solicitar o favor de Nanahoshi várias
vezes. Afinal, ela controlava um grande fluxo de comércio entre o Reino
Asura e o Reino de Ranoa. Claro, Ariel queria a garota em seu bolso. O
problema era que Nanahoshi queria o mínimo possível de envolvimento com
este mundo, razão pela qual parecia irritada com tudo nele.
Na verdade, isso não é atuação. Acho que ela está realmente irritada.
— Sim — disse Sylphie. — Lorde Perugius vive em reclusão por muitos
anos, mas a corte Asurana ainda o reverencia. A Princesa Ariel está… bem,
considerando seus planos para o futuro, acho que ela gostaria de conhecê-lo.
Ariel cultivou conexões em vários lugares com o propósito de,
eventualmente, tomar a coroa Asurana. Na verdade, ela tinha passado anos
fazendo esses preparativos, mas suas chances eram quase tão boas quanto em
um cara ou coroa. Não era a aposta mais segura, se alguém me perguntasse.
A princesa se formaria no próximo ano, mas eu não fazia ideia do que ela
planejava fazer depois disso. Talvez continuasse no mesmo lugar
acumulando mais poder, ou talvez voltasse para a capital em Asura para
tomar o trono. Eu ajudaria se ela escolhesse a última opção, mas, falando
honestamente, estava me sentindo um pouco menos entusiasmado agora que
era casado e tinha uma criança. Queria manter meu envolvimento em um
nível em que não impactasse negativamente a minha família, se possível.
Bem, meus sentimentos à parte, a proposta de Sylphie foi provavelmente
outra tentativa de ajudar Ariel com suas conexões. Se ela pudesse obter o
apoio do Rei Dragão Blindado Perugius, um homem reverenciado como um
herói no Reino Asura, isso tornaria sua luta pela coroa mais fácil.
— Bem, te devo por tudo o que você fez… — Nanahoshi encolheu os
ombros. — Claro, por que não? Pode trazê-la.
Considerando o quão óbvias as ambições de Ariel eram, imaginei que
Nanahoshi a rejeitaria, mas ela concordou na hora. Aparentemente, Sylphie
cuidou de Nanahoshi enquanto eu estava fora. Isso incluía compartilhar
comida, fornecer roupas e lançar magia de desintoxicação nela quando
adoecesse. Nanahoshi raramente aparecia desde o aniversário de Lucie, mas
Sylphie disse que ela usava muito nossa banheira antes disso.
Sylphie ergueu o punho e sorriu.
— Sério? Obrigada. A Princesa Ariel ficará encantada.
E foi assim que Ariel e Luke acabaram se juntando a nós. Sylphie disse que
Ariel estava excepcionalmente entusiasmada com isso. Acho que ser princesa
não a impedia de ficar animada para conhecer alguém tão famoso. Até eu
estava empolgado. Digo, estávamos falando de um herói em carne e osso. Do
tipo que só se encontra em livros. Eu mal podia esperar para ver que tipo de
pessoa ele era. Espero que não seja irritadiço.
Pensando bem…
De repente, lembrei que tinha conhecido um de seus subordinados há muito
tempo, antes do Incidente de Deslocamento. O homem se autodenominava
Arumanfi, o Brilhante. Ele pensou que eu era a mente por trás do Incidente
de Deslocamento e tentou me atacar. Ghislaine conseguiu acalmá-lo e eu não
tive a impressão de que ele era uma pessoa má. Ainda assim, considerando
que ele tentou me matar do nada, havia algo inegavelmente perigoso no
sujeito. Quem sabia se seu mestre, Perugius, seria melhor? O pensamento me
deixou nervoso.
Tudo bem, mas só porque seu subordinado perdeu o controle, não significa
que ele faria isso.
Além do mais, parecia que Perugius teve uma premonição do que estava
prestes a acontecer e tentou impedir o Incidente de Deslocamento antes que
ele ocorresse. Nesse caso, merecia todos os elogios do mundo. Apesar de
tentar matar um inocente no processo…
Bem, tanto faz. Passado é passado. Vou deixar o que passou no passado. Não
conseguiria nada de bom ao ser hostil com alguém que estaria encontrando
pela primeira vez. Perdoar era importante.
— Chegamos.
Enquanto eu ficava perdido em pensamentos, Nanahoshi finalmente parou
nosso grupo quando chegamos ao centro das ruínas. Não havia absolutamente
nada no local. Ou era o que eu pensava. Após uma inspeção mais detalhada,
notei uma pedra enterrada sob os escombros que era perfeita para sentar. Na
verdade, era um monumento. Um com um emblema brilhante que
representava um grupo temível: os Sete Grandes Poderes. Esses tipos de
monumentos estavam espalhados por todo o mundo, mas quem diria que
encontraríamos um assim?
Ao mesmo tempo, não era um círculo mágico. Talvez houvesse uma porta em
algum lugar que se abriria, revelando escadas que levavam a um círculo de
teletransporte. Ou talvez o próprio monumento tivesse algum tipo de
mecanismo instalado. Ou talvez precisássemos apenas recitar algumas
palavras mágicas e a pedra automaticamente nos teletransportaria.
— Então, o que vamos fazer agora que estamos aqui?
— Chamá-lo. — Nanahoshi tirou a mochila dos ombros e procurou por um
apito de metal. Ela o colocou contra os lábios e soprou com força. — Fsssh…
Nenhum som saiu, apenas ar. Um apito de cachorro ou algo assim?
— Não estou ouvindo nada. — Cliff semicerrou os olhos, cético.
— É um som que as pessoas normais não conseguem escutar, mas agora ele
deve vir. — Nanahoshi sentou-se em uma das muitas pedras espalhadas ao
nosso redor.
Um som que as pessoas normais não conseguem ouvir, mas de alguma forma
Perugius conseguiria ouvir? Isso significa que o apito é um item mágico ou
que Perugius é um cachorro.
— Cliff. — A expressão de Elinalise ficou sombria quando ela se dirigiu a
ele.
— O que foi?
— Só um aviso: alguém pode dizer algo humilhante para você enquanto
estivermos lá, mas você não deve perder a calma e revidar. Está bem?
Ele fez uma careta, fazendo beicinho igual uma criança que acabou de ser
repreendida por sua mãe a respeito de seus estudos.
— Eu sei. Não sou criança.
Elinalise aninhou-se contra ele e sussurrou algo em seu ouvido. A expressão
de Cliff relaxou, o que significava que ela estava lhe dizendo palavras doces
ou que se desculpou.
— Estou ansioso para ver que tipo de estátuas residem na fortaleza flutuante!
— declarou Zanoba.
Sempre entusiasta. No momento em que soube que visitaríamos Perugius, ele
disse: “Devíamos aproveitar a oportunidade para mostrar a Lorde Perugius as
nossas criações.” Em seguida, enfiou várias estatuetas que eu fiz (incluindo a
de Ruijerd) em uma caixa para levar conosco. Eu não fazia ideia se teríamos
realmente uma oportunidade ou não, mas Zanoba planejava anunciar nosso
negócio para Perugius, assim como eu havia mostrado meu trabalho para
Badigadi. Ele com certeza era apaixonado pelo nosso trabalho.
Julie e Ginger não estavam conosco. Julie ficou para trás no quarto de
Zanoba, e ele ordenou que Ginger agisse como guarda-costas da minha
família. Não que estivessem em algum tipo de perigo, mas pelo menos ela
poderia fornecer assistência se precisassem de alguma coisa. Eu tinha certeza
que o verdadeiro desejo de Ginger era estar ao lado de Zanoba, mas era pelo
menos reconfortante saber que tinha alguém para cuidar da minha família
enquanto eu estivesse fora.
— Tente não forçar muito os seus interesses para ele. Estamos falando de
alguém que viveu por mais de 400 anos — falei.
— Bwahaha! Lorde Badi viveu ainda mais do que isso. Qualquer pessoa que
viveu tanto tempo deve apreciar a excelente qualidade de suas estatuetas,
Mestre.
— Se você diz… — Inclinei a cabeça. — Hm?
Uma luz apareceu bem distante.
— Ele chegou — murmurou Nanahoshi.
Uma figura apareceu diante de nós uma fração de segundo depois. Foi quase
instantâneo, em um piscar de olhos.
O homem tinha cabelos loiros e estava vestido com o que parecia ser um
uniforme escolar branco. Ele provavelmente era muito bonito, mas seu rosto
estava escondido sob uma máscara amarela que parecia uma raposa. Uma
longa adaga pendurada ao seu lado. Ele estava exatamente como eu
lembrava.
— Arumanfi, o Brilhante, ao seu serviço — disse ele.
O jeito como ele apareceu do nada foi realmente estranho. Em um momento
não estava em lugar algum, e então surgiu no meio do nosso grupo. Ele
provavelmente voou de sua fortaleza flutuante na velocidade da luz. Fez o
mesmo quando eu o conheci, antes que toda a Região de Fittoa
desaparecesse.
Nosso grupo ficou em silêncio. Arumanfi olhou brevemente em minha
direção. Imaginei se ele lembrava de mim. Parte de mim temia que ele
pudesse me atacar novamente. Secretamente ativei meu Olho Demoníaco,
aumentando meu aperto em meu cajado. No entanto, Arumanfi não pareceu
me reconhecer, para meu alívio. Seu olhar passou pelo resto do nosso grupo
antes de ir até Nanahoshi.
— Há muitos de vocês — disse ele. Devia estar considerando nossos
números.
Nanahoshi acenou com a cabeça.
— Sim, há, mas isso não é um problema, é? Ele disse que eu poderia levar
um grupo de dez.
— O número de pessoas não é um problema. Entretanto… — Seu olhar
pousou em Roxy. — O demônio é.
— O-O quê? Por quê? — Roxy parecia um gato que tomou um banho de
água fria.
— Não permitimos demônios em nossa fortaleza flutuante.
— A-Ah, é isso… — Os ombros de Roxy caíram para frente. Ela ficou
arrasada.
Durante a guerra de Laplace, Perugius lutou contra os demônios. Talvez
ainda guardasse rancor deles. A guerra costumava deixar uma marca no
coração das pessoas.
— Não tem como fazer uma exceção?
— Lorde Perugius é um homem muito magnânimo, mas odeia demônios.
Eu quase tinha esquecido que tal discriminação existia, porque a maioria das
pessoas não tinha preconceito especial em relação aos demônios nesta região.
Mas o mesmo não poderia ser dito para o resto do mundo. Perugius pode ser
um homem lendário, mas também participou da guerra. Assim como Ruijerd
carregava cicatrizes mentais desses eventos, talvez Perugius também tivesse
algumas. Ainda assim, me senti mal por Roxy, já que ela era a única que não
podia ir.
— Não, está tudo bem — disse ela. Seus ombros afundaram em derrota. —
Se for assim, ficarei para trás. Além disso, fiquei com um pouco de medo de
ver Per… Lorde Perugius, de qualquer maneira, e ainda tenho meu trabalho
como professora. É melhor assim.
Embora ela estivesse desistindo, não conseguia esconder a decepção em seu
rosto. Uma parte sua definitivamente queria nos acompanhar. Ainda assim,
ela forçou um sorriso enquanto se virava para mim, tentando ser
reconfortante.
— Está tudo bem, Rudeus. Vou cuidar de tudo em casa.
— Tudo bem, mas vou te trazer uma lembrancinha.
Ela puxou a aba do chapéu para baixo, buscando esconder o rosto. Após uma
breve pausa, murmurou, como se estivesse brincando:
— Eu não preciso de nenhuma lembrancinha. Me dê um bom abraço quando
chegar em casa, isso já está bom.
Joguei meus braços em volta dela, segurando-a por dez segundos inteiros.
Seu coração começou a bater forte e tive que me afastar antes que minha
bazuca atômica recarregasse.
— O-Obrigada…
— Não — falei —, obrigado você.
As bochechas de Roxy ficaram vermelhas enquanto ela se mexia. Ela sorriu,
apesar de seu constrangimento, quando nós dois nos afastamos. Assim que eu
voltar para casa, faremos tudo isso e muito mais.
— Terminaram? — perguntou Arumanfi. Ele fez o seu caminho enquanto
nós dois compartilhávamos uma despedida sincera. Agora que minhas mãos
não estavam mais ocupadas, ele me entregou um bastão. Olhei ao redor e
percebi que todos os outros tinham um. — Segure isso. — ele disse.
Agarrei o objeto. Era de metal, com cerca de 20 centímetros de comprimento,
com um padrão complexo esculpido em sua superfície. Havia um cristal
mágico em cada extremidade. Provavelmente um instrumento mágico.
— Então, o que eu faço enquanto seguro?
— Só precisa segurar — disse ele. — Lorde Perugius usará magia de
teletransporte para levar todos vocês para sua fortaleza.
Então este item estava imbuído de magia de teletransporte? Era mesmo isso?
Nesse caso, isso era terrivelmente conveniente. Mas não disseram que
humanos não podiam ser convocados? Espere, talvez esteja tudo bem, já que
isso não é magia de invocação. Mas, qual a diferença entre as duas coisas?
— Como vamos voltar quando terminarmos?
— Voltam da mesma forma, na maioria das vezes — respondeu Arumanfi
casualmente.
Isso significa que há uma maneira de nos teletransportarem de volta para cá.
Lucie já seria adulta quando voltássemos, se tivéssemos que voltar a pé.
Saber que isso não aconteceria era um alívio.
— Todo mundo está com um desses? Certifiquem-se de segurar com as mãos
nuas.
Olhei para minha mão esquerda. Por ser artificial, não havia como agarrar o
bastão com as duas mãos nuas.
Nanahoshi nos examinou para ter certeza de que seguimos as instruções e
acenou com a cabeça para Arumanfi.
— Parece que todos estão prontos. Pois bem. Só um momento. — Ele
balançou a cabeça e desapareceu em um clarão de luz no momento seguinte.
Muito provavelmente correndo de volta para a fortaleza para dizer a Perugius
que estávamos prontos para ser convocados.
— Isso é meio emocionante — disse Ariel, sorrindo para Sylphie.
— Sim, é.
Sylphie estava certa. A princesa estava certamente mais enérgica do que o
normal.
Enfim, teletransporte, hein? Se algo der errado, podemos ser transportados
para sabe-se lá onde. Embora pudesse ser uma lenda viva, Perugius ainda era
uma pessoa, e pessoas cometem erros. Ah, cara, isso dá medo.
— Hm?
Enquanto eu imaginava o pior cenário possível, o calor começou a correr pelo
bastão em minhas mãos. O calor foi transferido para minhas mãos e parecia
que estava sendo puxado em sua direção. Imaginei o que aconteceria se eu o
soltasse. Sem dúvida, a magia de teletransporte falharia. Mas a sensação foi
tão repentina que não me surpreenderia se outra pessoa largasse o bastão
instintivamente.
— Huh?
Olhei ao redor e percebi que todo mundo já tinha sumido. Não, nem todo
mundo. Sylphie olhou para mim um segundo antes de desaparecer. Apenas
Roxy e eu permanecemos.
Hm? Me deixaram para trás?
A segunda dúvida começou a surgir, descobri que minha consciência estava
sendo absorvida pelo bastão.
Quando percebi o que estava acontecendo, tudo ao meu redor ficou branco.
Era um espaço vazio e sem cor. Um fio invisível me puxou com uma
velocidade inacreditável. Era como se alguém estivesse usando um guincho
elétrico para enrolar a linha de pesca, e eu fosse o peixe fresco enganchado na
outra extremidade, zunindo pelo ar. De longe, tive um vislumbre de Sylphie
sendo puxada de forma semelhante por esta força invisível. É essa a sensação
de estar do outro lado da magia de invocação?
Mais importante, essa configuração parecia familiar. Eu já tinha visto isso
antes… mas onde?
Isso mesmo, o Deus Homem!
Nunca pensei muito nisso, mas agora vi que este lugar se parecia com a área
que eu via quando encontrava o Deus Homem em meus sonhos. Exceto esse
momento, sempre estava em meu antigo corpo. Desta vez, ainda era Rudeus,
com minhas vestes balançando ao meu redor enquanto voava para frente.
Uma luz enorme esperava à frente. Estava tecida em um círculo mágico
misterioso e complexo, e me sugou quando me aproximei.
Na próxima vez que abri meus olhos, havia chão sólido abaixo de mim
novamente.
— Ufa!
Respirei fundo e me sentei. Foi como ser acordado de um sonho. Eu tinha
perdido a consciência em algum momento? Não, não era isso. Lembrei de
voar por uma grande extensão de nada.
— Então esta é a magia de invocação de Perugius, hein?
Foi uma sensação peculiar. A última vez que senti isso foi durante o
Incidente de Deslocamento. Naquela época, eu também senti que estava
voando pelo ar. Porém, desta vez havia uma diferença: uma sensação de
estabilidade. A calamidade foi como um trem saindo de seus trilhos. Desta
vez, foi mais como um táxi que me levou com segurança ao local correto.
— Isso com certeza pareceu familiar — sussurrou Sylphie para mim.
Evidentemente, eu não era o único que me sentia assim.
— Sim, pareceu — falei, olhando para os demais de nosso grupo. Ariel,
Luke, Zanoba, Cliff, Elinalise e Nanahoshi. Todo mundo estava presente.
Exceto por Nanahoshi e Elinalise, todos pareciam absolutamente perplexos
com o que acabaram de experimentar. Pelo menos estavam todos seguros.
— Este círculo mágico é enorme — murmurou Cliff.
Foi só então que percebi em que estávamos. Abaixo de nós havia um enorme
círculo mágico com cerca de vinte metros de largura. Foi esculpido
diretamente em um belo piso de mármore. A água corria pelo padrão
gravado, emitindo uma luz fraca. Provavelmente estava imbuída de algum
tipo de magia. Deixando a água de lado, eu já tinha visto esse mesmo tipo de
luz antes — nas ruínas pelas quais chegamos a Begaritt. Em outras palavras,
era uma espécie de círculo de teletransporte.
— Uau…
O que realmente roubou minha atenção não foi o padrão abaixo de nós, mas o
enorme castelo à nossa frente. Devia ter pelo menos cinquenta andares de
altura, e igualmente largo, sua forma maciça e imponente. Certamente, o
interior não seria menos majestoso. Me esforcei para fazer uma comparação
com minha vida anterior, mas nada de tamanho semelhante apareceu em
mente. O mais próximo que pude pensar seria em pegar o Tokyo Dome e
colocar um castelo em cima dele.
Então isso é uma fortaleza flutuante. Eu já tinha visto isso no chão antes, mas
não notei o quanto era grande. Mesmo de longe, não era menos
impressionável.
— Incrível. — O queixo de Sylphie caiu. — É maior que o palácio Asurano.
Um amplo jardim se estendia diante da estrutura gigantesca. Tinha árvores e
flores coloridas suficientes para virar um labirinto. Um canal corria na frente,
sua água cintilando na luz. Dava para perceber que o lugar estava bem
cuidado, mesmo de longe.
— R-Rudy, atrás de nós — guinchou Sylphie.
— Hm? — Olhei para trás. Do outro lado do círculo havia uma cerca de
metal. Além disso, havia um mar de puro branco. — Nuvens, hein?
Uma vez andei de avião, na escola primária em minha vida anterior. Essa
cena se assemelhava às minhas memórias daquela época, embora fosse
diferente vê-las pessoalmente em vez de olhar através de uma janela. Havia
algo profundamente comovente em olhar para as nuvens assim.
Cliff e Luke estavam boquiabertos. Até Ariel arregalou os olhos de surpresa
quando ela espiou por cima da grade, vendo o mar branco abaixo de nós.
Todos ficaram sem palavras com a vista. Mas eu não poderia culpar nenhum
deles. Aviões não existiam neste mundo, e também não existia o conceito de
trilha pelas montanhas. Não havia outra maneira de experimentar algo assim.
Sylphie agarrou meu robe.
— Qual é o problema?
— Não me dou muito bem com lugares altos. — Suas pernas tremiam.
Ela realmente concordou em vir para um castelo voador, apesar de seu medo
de altura? Com certeza estava determinada. Se ela perdesse o equilíbrio, eu
certamente a pegaria e carregaria.
— Espero que a vista de nossa fortaleza flutuante seja do seu agrado — disse
uma voz desconhecida atrás de nós.
Eu me virei. Uma mulher estava fora das linhas do círculo, imóvel como uma
estátua. Ela tinha cabelo loiro platinado na altura dos ombros, e seu rosto
estava escondido sob uma máscara de pássaro branca. Era difícil dizer se ela
era bonita ou não, mas claramente tinha o corpo de uma mulher. Suas roupas
eram todas brancas e segurava um bastão com uma pedra mágica que era
preta e quase toda opaca. Aposto que custa um bom dinheiro. Não que o
único valor de um item fosse seu valor financeiro, mas aquela coisa ainda
tinha que ser cara. Ainda mais do que meu amado cajado.
Dito isso, a parte mais notável de sua aparência não eram suas roupas nem
seu cajado. Eram as enormes asas negras projetando-se de suas costas.
— Alguém do povo do céu…?
Suas asas tinham uma presença dominante, mas a mulher estava tão quieta
enquanto ficava lá que nem tínhamos notado ela. Foi realmente bizarro.
Assim que a notamos, ela inclinou a cabeça em uma reverência. Por mais
inexperiente em etiqueta que eu fosse, ainda podia dizer o quão polido era
cada um de seus movimentos.
— Apresento minhas sinceras boas-vindas a todos vocês. Sou a primeira dos
servos do Lorde Perugius, Sylvaril do Vazio. Serei aquela que os guiará em
torno de nossa fortaleza flutuante, Destruidora do Caos.
— Me chamo Luke Notos Greyrat, cavaleiro da segunda princesa de Asura,
Ariel Anemoi Asura. É um grande prazer conhecê-la. Estamos ansiosos para
ver mais de sua magnífica fortaleza. — Luke ficou na frente de Ariel
enquanto oferecia sua própria saudação educada, sorrindo suavemente para
Sylvaril.
Por que ele está sorrindo para ela assim? Não é como se ela tivesse tetas
enormes. Não que sejam particularmente pequenas. É essa a sua preferência?
Nah, não pode ser isso. Ele provavelmente está apenas sendo educado.
— Sou Ariel Anemoi Asura, a segunda princesa do Reino Asura. — Ariel
beliscou a ponta da saia, fazendo uma reverência lenta. Seus movimentos
eram tão graciosos que eu nunca seria capaz de imitá-los.
O resto de nós também se apresentou de maneira semelhante. Cliff e Zanoba
se comportavam da mesma maneira refinada que se esperaria da nobreza. Eu
era provavelmente o mais ignorante de nosso grupo quando se tratava de
etiqueta adequada.
— É um prazer conhecer todos vocês — respondeu Sylvaril educadamente,
sua voz não traindo nada de suas emoções interiores.
— Já faz um tempo, Senhorita Sylvaril. — Nanahoshi foi a última a falar,
acenando com a cabeça em saudação.
— De fato, Lady Nanahoshi. É bom ver… bem, não, parece que você não
está com uma saúde muito boa, está?
— Não estou no meu melhor, mas estou bem.
A conversa foi breve, mas se a atmosfera amigável servisse de indício, as
duas se davam bem.
— Bem, vamos. Sigam-me, todos. — Sylvaril girou os calcanhares e
avançou, seus passos totalmente silenciosos. Sua cabeça não balançava
enquanto ela se movia, e suas roupas eram tão longas que escondiam seus
pés. Era como assistir um fantasma à deriva.
Nanahoshi não piscou enquanto seguia atrás de Sylvaril, então o resto de nós
seguiu seu exemplo.
Sylvaril pegou o caminho que cortava direto pelo jardim. Um portão feito de
pedra assomava à frente, parecendo um arco triunfal. Ao nos aproximarmos,
Zanoba cantarolou em apreciação.
— Ahh, que alívio impressionante!
Embora ele estivesse realmente interessado apenas em bonecos e estatuetas,
ainda tinha bastante conhecimento sobre outras formas de arte. Talvez porque
todas tivessem algo em comum. Por outro lado, eu não tinha como julgar esse
tipo de design. Bem, se Zanoba está tão impressionado, tenho certeza que
deve ser incrível. Ele normalmente não age tão surpreso com qualquer coisa
que não seja uma estatueta ou algo do tipo.
Segui seu olhar e olhei para cima.
— Ah, uau…
Relevos intrincados foram cinzelados em toda a superfície do portão, os
padrões finos estendendo-se até a parte inferior do arco. Não era possível
deixar de ficar boquiaberto. Ficamos olhando enquanto caminhávamos, e
Sylvaril deu uma explicação.
— Este portão foi criado pelo Rei Dragão Abissal Maxwell. Lorde Maxwell
tem talento para construção e artesanato mágicos. Uma de suas outras
criações é o palácio branco do País Sagrado de Millis…
— Whoooooa! — Zanoba engasgou.
Sylvaril fez uma pausa e se virou.
— Algum problema?
— P-Preciso perguntar! Onde está o Mestre Maxwell agora?! — A voz de
Zanoba saiu em um guincho agudo enquanto ele tremia, seus olhos fixos em
uma parte específica do portão. O que estava acontecendo com ele? Eu não
fazia ideia do que ele estava olhando.
— Lorde Maxwell é do tipo errante — respondeu Sylvaril. — Supondo que
ele ainda não tenha falecido, provavelmente está se aventurando em algum
lugar.
— Ah, que pena. Um homem tão magnífico… Se eu tivesse a chance de
conhecê-lo… — Zanoba mal conseguia conter sua empolgação. Bem, para
ser honesto, não era como se ele estivesse tentando.
Capítulo 4: Lamento
Passaram três dias desde o desmaio de Nanahoshi. Ela ainda não tinha
recuperado a consciência e ainda não sabíamos o que a fez vomitar sangue.
Arumanfi apareceu instantaneamente depois que Sylphie saiu para buscar
ajuda. Ele olhou Nanahoshi e a carregou direto para a enfermaria. Nesse meio
tempo, reuni todos para explicar a situação. Disse a eles que a condição de
Nanahoshi havia piorado, e quando Sylphie tentou lançar magia de
desintoxicação nela, ela cuspiu sangue e desmaiou. Também lhes disse que
estava sendo tratada na enfermaria. Tudo aconteceu tão rápido, e isso era tudo
que eu sabia. Todos ficaram surpresos, mas pelo menos entenderam o que
estava acontecendo.
No momento, Yuruzu da Redenção era quem estava cuidando de Nanahoshi.
Yuruzu possuía um poder de cura especial que lhe permitia transferir o vigor
e a saúde de uma pessoa para outra. Como isso funcionava de maneira muito
diferente da magia de desintoxicação, poderia ser eficaz no tratamento de
doenças que não podiam ser curadas por meios normais. Era o que se
esperava, pelo menos. O único problema era que Yuruzu não conseguia fazer
isso sozinha. Ela precisava da cooperação de alguém para realizar sua
mágica.
Sylphie imediatamente se ofereceu. Yuruzu a fez deitar ao lado de Nanahoshi
e começou a trabalhar sua magia. O rosto de Nanahoshi se contorceu de
angústia durante o processo todo, e suas crises de tosse foram incessantes,
mesmo que ainda estivesse inconsciente.
— Karowante, como ela está? — Perugius olhou para Nanahoshi antes de
ordenar para que um dos seus subordinados a inspecionasse. O homem sob
seu comando era Karowante da Compreensão, cuja habilidade lhe permitia
perscrutar o desconhecido, identificar os segredos de uma pessoa. Isso
também significava que poderia analisar a condição de um indivíduo se este
não estivesse bem, quase como uma visão de raio-x.
Ele olhou para Nanahoshi, ou talvez através dela, e balançou a cabeça.
— Não é algo que Yuruzu pode curar com seus poderes.
— Então procure nos registros — disse Perugius.
— Como ordenar.
Com isso, seu subordinado passou a buscar informações sobre a doença e
como curá-la. Karowante iria comparar os sintomas que observara em
Nanahoshi com a literatura mantida na fortaleza. Ofereci-me para ajudar, mas
Perugius recusou categoricamente; ele não tinha intenção de deixar um
estranho se meter em seus arquivos. Nesse ínterim, Yuruzu continuou seu
tratamento e Sylphie permaneceu na enfermaria.
Fiquei sem nada para me manter entretido. É claro que não passei os três dias
sem fazer absolutamente nada. Voltei para casa e atualizei Roxy sobre nossa
situação, informando-a de que Nanahoshi havia desmaiado e Sylphie estava
ajudando a tratá-la. Assim, contei que demoraríamos um pouco para voltar
para casa.
Depois de ouvir tudo, Roxy entrou em ação imediatamente. Entrou em
contato com a universidade e pediu licença, depois explicou tudo para nossa
família em meu lugar. Também prometeu cuidar de todos enquanto
estivéssemos fora. Ela estava muito mais calma e controlada do que eu. Não
havia dúvida de que estava acostumada com essas situações.
No final, eu realmente não fiz nada. Roxy fez tudo em meu lugar. Tudo o que
fiz foi lembrar Aisha e Norn, mais uma vez, que demoraríamos para voltar.
Então peguei uma muda extra de roupa e corri de volta para a fortaleza
flutuante. Não que houvesse algo que eu pudesse fazer quando voltasse,
exceto orar para que Nanahoshi escapasse dessa situação em segurança.
— Será que ela vai ficar bem?
Assim como eu, Cliff não tinha nada para fazer além de remexer os
polegares. O castelo tinha uma capela, e era onde Cliff ia para oferecer suas
orações fervorosas.
— Que seja feita a tua vontade, Lorde Millis — disse ele, com as mãos juntas
e os olhos fechados.
Pessoas de fé frequentemente oravam assim em tempos de dificuldade.
Quanto a mim, nunca acreditei em nenhum tipo de poder superior. Eu só
colocava fé nas pessoas que me ajudaram neste mundo. E sabia que mesmo
se orasse para Roxy ou Sylphie, não aliviaria a ansiedade que sentia.
À medida que o silêncio se estendia, de repente me lembrei de um filme que
vi há muito tempo. Era uma história famosa sobre alienígenas dominando o
mundo. Seus avanços científicos permitiram que dominassem a humanidade
e nos eliminassem. Mas, no final do filme, todas as suas máquinas pararam
bruscamente. Eles não tinham imunidade ao vírus do resfriado comum, que
dizimou a todos.
Nanahoshi tinha sido teletransportada para este mundo. Ela não reencarnou,
como eu. Além disso, não envelhecia e não podia usar magia ou implementos
mágicos. Talvez não fosse simplesmente de mana que ela carecia, mas
também de imunidade a agentes patógenos deste mundo.
Não, se fosse o caso, deveria ter adoecido muito antes. Já se passaram oito
anos desde o Incidente de Deslocamento. Foi tempo demais sem ser afetada.
Estreitei os lábios.
Ela realmente vai morrer?
Já era o quarto dia desde o desmaio de Nanahoshi. Fomos todos chamados a
uma sala com uma mesa redonda. Perugius e todos os seus familiares
estavam presentes, exceto Yuruzu da Redenção. Eles estavam atrás de seu
lorde enquanto este se sentava em uma cadeira extravagante.
— Por favor, sentem-se — disse Sylvaril.
Fizemos o que ela pediu, acomodando-nos em nossas cadeiras. Sylphie ainda
estava ajudando Yuruzu com o tratamento de Nanahoshi, então, sem ela,
restavam apenas seis de nós.
— Descobrimos o que aflige Lady Nanahoshi — disse Sylvaril, dando um
passo à frente assim que todos nós nos sentamos.
Enfim descobriram o que é.
— O nome da doença dela é Síndrome de Esgotamento.
Síndrome de Esgotamento? Foi a primeira vez que ouvi a respeito. Olhei ao
redor; parecia que eu não era o único. Cliff provavelmente tinha o maior
conhecimento médico entre nós, mas até ele parecia confuso, balançando a
cabeça.
— Não é de se surpreender que não conheçam. Era uma doença ativa há eras,
quando humanos possuíam menos mana do que hoje em dia. Naquela época,
várias crianças nasceram sem mana. Quando chegavam aos dez anos, mais ou
menos, morriam devido a essa síndrome, sem exceção.
Bem, isso parecia combinar com aquilo que Nanahoshi enfrentava. Embora
não fosse uma criança de dez anos, já estava neste mundo há oito anos e não
possuía mana. Então, a doença dela definitivamente não era culpa de Sylphie.
— De acordo com a literatura, aqueles que não possuem mana própria não
têm a capacidade de neutralizar a mana externa que é filtrada. Assim, ela se
acumula dentro deles ao longo de uma década e causa essa doença.
Não entendi muito bem o que isso significava, mas parecia semelhante ao
conceito de bactérias boas e más. Ter sua própria mana significava ter
bactérias boas para eliminar as ruins, mas aqueles que não tinham mana
apenas acumulariam bactérias ruins em seus corpos. Embora eu não tivesse
certeza do quanto poderíamos confiar nessa literatura de que Sylvaril falava,
sua explicação fazia sentido.
— Você descobriu alguma coisa sobre como curar essa doença? — perguntei.
— Não havia nada. Isso aconteceu há 7.000 anos. À medida que a mana
natural dos humanos se fortalecia com o tempo, a síndrome desapareceu.
Esse período significava que a síndrome estava ativa antes da primeira
Grande Guerra Humano Demônio. Se não me falha a memória, dizem que
essa guerra durou um milênio. Um conflito tão vasto que resultou em uma
grande evolução. Seja como for, a humanidade devia ter conseguido se
fortalecer. Faz sentido a Síndrome do Esgotamento ter desaparecido como
resultado disso.
No entanto, 7.000 anos era muito tempo. Não era de se surpreender que
tivessem pouca literatura sobre o assunto. Foi um milagre terem conseguido
descobrir o nome do que atormentava Nanahoshi.
— Então, o que faremos? — perguntei.
— Congelaremos ela no tempo. — Não foi Sylvaril quem respondeu a mim
desta vez, mas sim Perugius, cuja forma imponente estava rigidamente
sentada em sua cadeira de luxo. — Casacossustador do Tempo pode usar seu
poder para congelar o relógio de Nanahoshi.
Um homem deu um passo à frente enquanto Perugius falava. Ele usava uma
máscara que se projetava na boca. Parecia um pouco os lábios enrugados de
uma máscara Hyottoko, não, talvez mais como uma máscara de gás? Então
esse é o Casacossustador do Tempo, hein?
Eu tinha certeza que sua habilidade era congelar o tempo de qualquer pessoa
que ele tocasse. Isso pararia seu tempo também, mas pelo menos se o usasse
em Nanahoshi, a impediria de morrer ou piorar.
— Muito bem. O que faremos depois disso?
— Entraremos em contato com as pessoas na superfície e procuraremos uma
maneira de curá-la.
Tudo bem. Essa era uma das formas de dar um jeito nisso. Com a reputação
de Perugius, certamente não havia muitos que nos rejeitariam.
— Embora eu não tenha ideia de quantas pessoas lá fora vão querer tentar
salvá-la — acrescentou Perugius.
— Não pode usar sua influência para ajudá-la? — perguntei.
— O vínculo entre mim e Nanahoshi é apenas contratual. Não vou me
colocar em dívida com outras pessoas para ajudá-la.
Isso soou terrivelmente frio para mim.
Dito isso, eu não sabia nada sobre o relacionamento deles, então não iria
enfiar o nariz onde não deveria.
— Espera, não me entenda mal. Vocês são meus convidados, então farei o
que puder para ajudar. No entanto, o propósito de toda a minha vida é
procurar Laplace e derrotá-lo. A minha ajuda se limita a isso. Não posso
ajudá-la às custas de meu próprio objetivo.
Então, basicamente, já que cuidar de Laplace era o seu trabalho, ele não faria
nenhum esforço extra para ajudá-la. Se pedisse ajuda a outra pessoa, isso o
colocaria em dívida, o que acabaria tendo que pagar. Seria uma dívida pesada
demais, considerando que precisávamos de uma cura para uma síndrome que
não existia há milhares de anos. Não havia como dizer que tipo de preço seria
exigido por um favor desses.
Perugius não tinha obrigações para com alguém como Nanahoshi. Não, na
verdade, já tinha feito mais do que era sua obrigação. Tratou de sua condição
e a estava mantendo viva. Era por isso que estava fazendo essa declaração,
dizendo que não faria mais do que já fizera. Se algum de nós quisesse salvá-
la, poderia ficar à vontade. Não achei que houvesse nada de errado nisso.
— Está planejando abandonar Nanahoshi, é isso?! — gritou Cliff, pondo-se
de pé.
— Eu nunca disse que iria abandoná-la.
— Mentiroso. Você tem este castelo incrível e todos esses familiares
excepcionais à sua disposição! Se alguém pode procurar uma cura, esse
alguém é você!
A sobrancelha de Perugius se contraiu.
— Ter a capacidade de fazer algo não significa que sejamos obrigados a fazê-
lo.
— Cansei dos seus joguinhos! — rosnou Cliff. — É dever de quem tem
poder ajudar quem precisa!
— Hmph. Não empurre a irritante baboseira religiosa irritante de Millis para
cima de mim.
— O que disse?
Eu sabia que Cliff estava apenas falando com raiva. Ele acreditava em Millis,
que lembrava o cristianismo do meu mundo anterior. Talvez um dos
ensinamentos de Millis fosse que as pessoas deveriam estender a mão da
misericórdia aos cordeiros que precisam de socorro. Achei, entretanto, um
erro dizer isso a Perugius. Ele estava agindo em seu próprio senso de
moralidade. Nos últimos 400 anos, ele está trabalhando em prol de um
objetivo. Estava interessado na pesquisa de Nanahoshi sobre invocação de
coisas de outros mundos, mas isso não tinha prioridade acima de Laplace.
Era, no máximo, uma forma de matar o tempo.
— O que você está dizendo é o mesmo que abandonar Nanahoshi! Se vai
ajudá-la, deve se comprometer a fazer da maneira certa!
— Cliff, chega! — berrou Elinalise depois que ele chutou a cadeira. Ela o
agarrou pelos ombros e o segurou com força para que não pudesse se mover.
— Eu sei como se sente, mas controle-se.
Seus lábios se contraíram.
— Não quero te perder por algo assim — continuou ela.
Pelo cômodo, todos os onze familiares de Perugius se colocaram em posição
de batalha. Perugius deu uma olhada em Cliff, que era comparativamente
impotente, e seus lábios se curvaram em um sorriso zombeteiro.
— Se está tão incomodado com a condição dela, por que não toma uma
atitude? Seu Deus diria o mesmo, não é? “Não confie nos outros para ajudar
os necessitados”, se não estou enganado, não é?
— Grr… — Cliff fez uma careta ao deslizar de volta para sua cadeira,
irritado com as palavras de Perugius. Certamente não era sua intenção pular
na garganta de Perugius. Só estava aborrecido com o fato de que alguém tão
poderoso, que parecia capaz de qualquer coisa, não tentar nos ajudar.
— Huff. — Expirei profundamente. Beleza, e agora? Quero ajudar
Nanahoshi, mas não tenho ideia de por onde começar. O resto do grupo
parecia igualmente perplexo. Na minha família, Aisha, em particular, passava
muito tempo com Nanahoshi e ficaria muito triste se ela falecesse. Além
disso, se não fizéssemos nada e víssemos Nanahoshi definhar, Sylphie se
culparia.
Não há algo que eu possa fazer?
— Com licença — disse uma voz quando a porta da sala se abriu. Yuruzu da
Redenção entrou. — Lady Nanahoshi recuperou a consciência.
No momento em que ouvi isso, pulei da cadeira.
— E… E? Como ela está?
— Pelo que parece, os sintomas parecem ter melhorado.
— Como assim?
— A Síndrome de Esgotamento causa um acúmulo de mana, que altera o
corpo levando a contrair a doença. Conseguimos tratar esses sintomas.
Ao que parece, a Síndrome de Esgotamento parecia se assemelhar à AIDS.
Toda a tosse dela até o momento devia ser um sintoma. Foi por isso que
nossa magia de desintoxicação foi eficaz em tratar seus sintomas superficiais,
mas em momento algum se livrou do problema.
— Você não pode absorver a mana do corpo dela ou algo assim? —
perguntei.
— Não sou capaz de fazer isso.
— E não conhece ninguém que possa?
Yuruzu balançou a cabeça lentamente.
— Ah, bem, então…
Eu me perguntei se havia alguma outra maneira de drenar o excesso de mana
do corpo. Por exemplo, poderíamos fazer um implemento mágico com tais
propriedades. Decerto nossa capacidade de fazer tais objetos progrediu nos
7.000 anos desde o aparecimento da Síndrome de Esgotamento. O que
podíamos fazer? Poderia usar a Pedra de Absorção de Mana para purificá-la?
Nem, essa coisa não é capaz de absorver mana de dentro do corpo de uma
pessoa. Embora eu tenha a sensação de que não é impossível usar dessa
forma. Talvez devêssemos fazer algo em vez disso? Mas quanto tempo
levaria para fazer algo com essas coisas? E não há nenhuma garantia de que
isso funcionaria. Merda.
— De qualquer forma, vou ver como Nanahoshi está — falei, caminhando
até a porta. Os outros logo me seguiram.
A enfermaria estava deserta. Tinha a mesma mobília dos quartos de
hóspedes, mas o interior era feito de pedra e sem janelas. Uma espécie de
mesa de operação ficava no centro da sala, e também havia um gabinete
contendo uma faca, bandagens e outros suprimentos médicos.
O silêncio pairava no ar.
Nanahoshi estava em uma cama no canto do quarto. Todo o sangue que havia
expelido tinha sumido. Em algum momento, Sylphie e Yuruzu lhe deram um
vestido branco imaculado, como se fosse algum tipo de paciente de hospital.
Por fora, não havia indicação de que estava em perigo, mas a vida parecia ter
sido drenada dela.
— Nanahoshi? Você está bem?
Ela olhou para mim.
— Pareço bem para você?
Não, ela não parecia. Seu rosto estava mortalmente pálido e havia olheiras.
Só de olhar já dava para ver que estava doente. Talvez os poderes de
Redenção de Yuruzu também estivessem drenando o paciente.
A propósito, a cama ao lado da Nanahoshi estava vazia. Yuruzu levou
Sylphie para seu quarto de hóspedes assim que entramos. Vi Sylphie
passando, e ela parecia fraca. Esteve ajudando no tratamento de Nanahoshi
nos últimos quatro dias. Embora não tivesse ficado sem comida e água, ainda
teve um impacto notável em sua constituição.
— Yuruzu disse que não podem me curar.
— Eu sei — falei enquanto me sentava ao lado dela. Parecia que a Senhorita
Yuruzu não tinha escondido nenhum detalhe de Nanahoshi. — Bem, tenho
certeza que você vai melhorar logo.
— Nós dois sabemos que não vou. — Ela voltou o olhar para a parede e ficou
quieta.
Talvez dizer isso tenha sido um pouco imprudente da minha parte.
Depois de um longo e prolongado silêncio, Ariel e os outros tentaram
conversar com Nanahoshi. Alguns deles tentaram consolá-la, alguns a
encorajaram a manter o ânimo e outros prometeram que ela iria melhorar em
breve. Todos estavam apenas tentando melhorar o humor dela, mas,
infelizmente, em momentos como este, às vezes isso tem o efeito oposto.
Para quem sente dor, não há nada mais desprezível do que uma garantia
vazia.
Nanahoshi não respondia a nada, então todos eventualmente ficaram sem o
que dizer. Um silêncio opressor permeou o ar, sufocando a atmosfera.
— Bem, então, Nanahoshi, eu devo voltar para o meu quarto. Virei para te
ver de novo — disse Ariel. Ela foi a primeira a sair, e os outros logo
seguiram atrás dela.
Cliff demorou. Foi apenas com a sugestão de Elinalise que enfim desocupou
o quarto. Quando saíram pela porta, eu a ouvi dizer:
— Não há palavras que possamos oferecer a ela.
Fui o único que restou. Não sabia por que tinha ficado, mas senti que
precisava estar junto com ela, que seria perigoso deixá-la sozinha. Não havia
nada que eu pudesse dizer a ela, no entanto. Não quando estava sofrendo de
algo incurável. Qualquer coisa que eu dissesse seria inútil.
Nanahoshi devia estar repleta de ansiedade. Sua pesquisa sobre magia de
invocação estava indo pelo caminho certo. Ela ficou estagnada no primeiro
estágio, mas avançou além do segundo e chegou ao terceiro estágio. A julgar
pelo que Perugius disse, ela já tinha tudo de que precisava para passar para o
próximo estágio. Eu não fazia ideia de quão perto ela estava do quinto estágio
de sua pesquisa, mas se as coisas continuassem do jeito que estavam,
provavelmente poderia ir para casa em mais ou menos em um ou dois anos.
Mas assim que as coisas finalmente começaram a melhorar para ela, isso
aconteceu. Foi como um diagnóstico de câncer. Mesmo que o câncer não
fosse mais considerado intratável em meu mundo, a taxa de mortalidade
continuava bastante alta. Foi o suficiente para encurralar Nanahoshi e enchê-
la de desespero.
Não seria surpreendente se ela explodisse novamente. Se de fato fosse
verdade que essa doença não tinha cura, então não havia um futuro à sua
frente. Se isso significava que nunca poderia voltar para casa, então talvez
merecesse o direito de ficar furiosa. Talvez se liberasse sua fúria até que não
houvesse mais nada, pudesse se acalmar e encontrar uma maneira de
aproveitar o pouco tempo que lhe restava. Se decidisse extravasar, eu ficaria
ao lado dela até o fim.
— Para começar, nunca tive um corpo forte, sabe — disse Nanahoshi com
um suspiro enquanto eu permanecia sentado em silêncio. Sua voz soou mais
alegre do que eu esperava, mas era do tipo vazio e insincera. — Eu não diria
que sou do tipo doente, mas pegava pelo menos um resfriado por ano.
Fiquei quieto e ouvi enquanto suas palavras saíam.
— Minhas notas eram boas, mas eu não era muito atlética. Preferia ficar
dentro de casa.
Após uma breve pausa, mudou de assunto.
— Este mundo não fez muito progresso na frente médica, não é?
Quando não respondi, ela continuou:
— Talvez seja porque dependem muito da magia neste mundo, mas você
sabia que as pessoas daqui nem mesmo lavam suas feridas depois de se
machucarem? Como resultado, muitos recebem o tratamento tarde demais e
morrem ou perdem um membro. Idiotas, não acha? Apenas limpar as feridas
com água já preveniriam que tais infecções acontecessem…
Esperei e ela mudou para um assunto diferente.
— Desde que percebi que não posso usar magia, tenho tomado uma série de
precauções. Evito lugares lotados para não contrair doenças. Também me
recuso a comer alimentos que desconheço.
Essas pausas continuaram, intercaladas com seus pensamentos aleatórios.
— Posso parecer muito doente, da sua perspectiva, mas na verdade tenho
feito exercícios no meu quarto. Tenho estado o mais em forma que posso, à
minha maneira. Quer dizer, eu sabia que se ficasse doente, poderia não ser
tratável. Na verdade, imaginei que provavelmente seria incurável. E
provavelmente seria alguma doença da qual eu nunca tinha ouvido falar
antes.
“Para começo de conversa, não acha que este mundo é muito estranho?
Existem monstros aqui, pesados o suficiente para te esmagar, e eu não sei se
é a magia ou o quê, mas este mundo parece ignorar as leis da física. Tipo,
beleza, claro, achei este lugar muito legal quando cheguei. Na verdade, eu
mesma já joguei alguns videogames e não posso dizer que odeio espadas,
magia e outras coisas do tipo. Estaria mentindo se dissesse que não acho isso
empolgante. Parte de mim uma vez sentiu inveja de você por ser capaz de
reencarnar em um mundo como este…”
A voz dela sumiu de repente, os ombros tremendo. Lentamente, ela virou o
rosto para mim. Seus olhos estavam vermelhos e inchados enquanto se
enchiam de lágrimas.
— Não quero morrer.
As lágrimas começaram a cair, uma após a outra, como se uma represa
tivesse estourado dentro dela.
— Não quero morrer em um lugar como este! Não neste mundo bizarro e
estranho! Por quê?! Merda, por que isso está acontecendo comigo?! Não faz
sentido algum! Sabia que o meu corpo não mudou em nada nos últimos oito
anos? Eu não cresci mais e meu cabelo está do mesmo comprimento de
sempre! Mas meu estômago ronca e, se eu comer, ainda faço cocô. Mesmo
assim, minhas unhas não crescem e eu também não menstruei mais!
Ela agarrou um jarro ali perto, então o arremessou para o outro lado do
quarto. Atingiu a parede oposta e se espatifou, espirrando água por todo o
chão.
— Eu não sou um humano deste mundo! Não estou vivendo aqui! Sou como
um cadáver ambulante! Então, por quê? Por que posso ficar doente?! Isso não
faz sentido. Por que isso tem que acontecer comigo? Não quero morrer! Não
quero morrer neste mundo estúpido e estranho!
As lágrimas surgiram cada vez mais rápidas enquanto ela chorava.
— Quer dizer, nem beijei ninguém! Ainda não disse ao cara que amo como
me sinto! Sinto tanta inveja de você. Você aproveita cada dia, vivendo cada
momento ao máximo. O que você tem para se sentir triste? Ah, então seu pai
morreu e sua mãe está gravemente doente? E daí? Quem liga! Não vou nem
ver meu pai antes de morrer. Minha mãe nem vai saber que eu sumi. Sinto
falta deles, tanto da minha mãe quanto do meu pai!
“Ainda me lembro da manhã antes de me teletransportar para cá. Meu pai
disse que voltaria para casa mais cedo naquele dia, e minha mãe disse que iria
fazer peixe grelhado para o jantar. Eu disse a ele que tinha amigos indo lá pra
casa, então preferia que não voltasse para casa mais cedo, e disse à minha
mãe que estava enjoada de peixe. Por que… por que eu disse essas coisas?
Tenho certeza de que os dois estão muito preocupados. Sinto falta deles.
Quero ir para casa. Não quero morrer. Não quero morrer aqui…”
Ela colocou os braços em volta das pernas, enfiando o rosto nos joelhos. Um
choro abafado soava, junto com soluços e gritos tristes.
A dor em sua voz foi como uma adaga em meu coração. Quando vim a este
mundo, provavelmente não teria empatia por ela. “Sinto falta deles. Quero ir
para casa. Quero ver minha família novamente”. A pessoa que eu era naquela
época ficaria perplexa se alguém dissesse essas coisas. Eu teria pensado: Eh,
esqueça-os de uma vez e aproveite o novo mundo em que você está.
Agora as coisas eram diferentes. Compreendia ela querer voltar para casa e
ver sua família de novo. Sabia o quão preciosos aqueles dias aparentemente
monótonos podiam ser. Depois que eles passam, é impossível recuperá-los.
Impossível mesmo.
Paul estava morto. As memórias de Zenith podem nunca mais voltar. A
calorosa família que eu conhecia de Buena Village se foi. No entanto, em seu
lugar, agora eu tenho uma nova família para proteger: Sylphie, Roxy, Lucie,
Lilia, Aisha, Norn e Zenith. Se eu fosse de alguma forma separado das
minhas garotas para sempre, isso iria rasgar meu coração ao meio. Se alguma
delas desaparecesse, eu iria até os confins da terra para encontrá-la
novamente. E se eu fosse transportado de volta para o meu antigo mundo, não
importaria se eu pudesse usar magia lá ou se chovessem garotas na minha
horta para me encherem de afeição. Eu ainda estaria decidido a voltar para
este mundo.
— Hic… hic… — O corpo inteiro de Nanahoshi tremia enquanto ela
apertava os joelhos com os braços.
Ela nunca tinha se aproximado mais do que era absolutamente necessário de
Zanoba, Cliff ou Sylphie, mas sempre me ouviu. Quando eu lhe pedia algo,
ela ajudava. Quando eu dava uma festa, ela comparecia. Parando para pensar,
nunca me tratou mal. Ficava um pouco animada sempre que falávamos em
japonês. Como a única pessoa que falava sua língua materna, eu era seu único
porto seguro.
— Por favor, alguém, me salve… — Nanahoshi chorava baixinho.
Levantei da minha cadeira.
Voltei para a sala com a mesa redonda para encontrar Perugius ainda sentado
lá dentro. Todos seus familiares haviam partido. Ele estava lá, sozinho, como
se estivesse esperando por mim.
— O que foi? — perguntou ele.
— Eu vou salvá-la. Apreciaria muito se você pudesse me dar qualquer ajuda,
mas não vou pedir mais do que está disposto a dar.
Suas sobrancelhas levantaram em surpresa, mas ele acenou com a cabeça.
— Oh? Vai procurar uma maneira de salvá-la?
Ele olhou fixamente para mim, como se tentasse verificar o quão sincero eu
estava sendo e o quão determinado estava. Senti ceticismo nele, como se
achasse que eu não faria nada a menos que isso me beneficiasse, mas eu não
era do tipo calculista. Já que não tinha nada a esconder, encarei-o de volta.
— Muito bem — disse ele. — Eu também ficaria magoado em vê-la morrer.
Ótimo, já decidi o que vou fazer, mas agora, por onde começo?
Trata-se de uma doença extinta há mais de 7.000 anos. Nenhum de nós tinha
ideia de como poderíamos encontrar uma cura para ela. Tudo o que sabíamos
com certeza era que a magia de desintoxicação e a magia de cura eram
ineficazes. Perugius teria dito algo se a cura fosse tão simples.
Talvez um implemento mágico? Mas também não faço ideia se isso
funcionaria.
Se estivéssemos procurando por um implemento mágico que pudesse afetar
alguém internamente, Cliff havia arquitetado um para Elinalise. No caso dela,
ele o aprimorou ao longo do tempo enquanto verificava sua eficácia, mas,
mesmo assim, não tinha acabado com a sua maldição.
Ainda assim, talvez pudéssemos fazer o mesmo com Nanahoshi e trabalhar
aos poucos em sua condição enquanto adicionássemos melhorias ao
dispositivo. Isso, no entanto, exigiria que monitorássemos sua constituição
quanto às mudanças ao longo do tempo, e Nanahoshi provavelmente não tem
muito tempo. Ela vomitou sangue durante as crises. Yuruzu curou os
sintomas superficiais, mas sem dúvida reapareceriam em breve. Pode ser que
não sobreviva ao próximo surto. Além disso, com seu corpo congelado no
tempo, não havia oportunidade para fazermos experimentos.
Portanto, não poderíamos usar um implemento mágico. Talvez pudéssemos
fazer um eventualmente, mas agora precisávamos de algo com efeitos
imediatos. Talvez alguém conhecesse tal tratamento, como o Deus Homem
ou Orsted. Eles eram os candidatos mais prováveis em minha mente. O
problema é que eu não tinha como entrar em contato com o Deus Homem.
Com um pouco de sorte, ele poderia me visitar em meus sonhos nesta noite e
dar seus conselhos, mas nossa comunicação era inteiramente por lazer; eu
não tinha como entrar em contato. Além disso, não tínhamos tempo para
esperar e torcer para que aparecesse.
— Lorde Perugius, há alguma maneira de entrarmos em contato com o Deus
Dragão Orsted? — perguntei.
— Não. Não sei sua localização atual.
Então, até mesmo Orsted estava fora de nosso alcance.
— Em qualquer caso, também duvido que ele saiba de uma solução. Ele
apareceu neste mundo há apenas cerca de 100 anos. Por mais sábio que seja,
não teria como saber sobre uma doença de 7.000 anos atrás.
Orsted tinha cerca de 100 anos então, hein? Achei que já existia há mais
tempo. Comparado a Perugius, ele era muito jovem. Mesmo que ainda fosse
muito mais velho do que eu.
— Tudo bem, mas quem no mundo saberia sobre uma doença de 7.000
anos… — Minha voz foi parando.
Espere. Existe alguém assim. Acabei de lembrar.
Sim, de fato. Existe alguém que viveu todo esse tempo. Eu não tinha a
impressão de que saberia muito sobre doenças e afins, mas não custava nada
perguntar.
— Na verdade — falei —, há alguém que me vem à mente.
— Oh?
Dito isso, eu não tinha ideia de como encontrar essa pessoa. A última vez que
nos encontramos foi inteiramente por coincidência, e nos separamos não
muito depois de nos encontrarmos. Nossa conexão era pouca, além de não ter
meios de contato.
Ainda assim, precisava fazer algo. Nada mudaria se ficasse esperando.
— Seria possível você me mandar para o Continente Demônio?
— Continente Demônio? E o que planeja fazer lá? — perguntou Perugius.
Só nos vimos uma vez no passado. Aparentemente, também se encontrou
com Roxy, mas ninguém sabia onde estava. Mesmo assim, eu sabia o nome
dele — ou melhor, o nome dela — há muito tempo, tendo estudado sobre
suas façanhas quando morava na Região de Fittoa. Nunca esquecerei nosso
encontro.
— Eu gostaria de rastrear o Grande Imperador do Mundo Demônio, Kishirika
Kishirisu.
Kishirika, esse era o nome da mulher responsável pela primeira Grande
Guerra Humano Demônio que aconteceu há 7.000 anos.
Cliff ficou pasmo. Elinalise também assistiu com espanto, sem palavras, seu
rosto pendendo para uma expressão cômica e inexpressiva que eu nunca tinha
visto antes. Mas eu entendia sua confusão, mesmo eu não tinha ideia do que
estava acontecendo.
Zanoba foi o único que manteve a cabeça fria. Ele colocou a mão no queixo e
murmurou:
— Ah, então esta é a mulher em quem Sua Majestade Badi tanto pensa.
Um ditado de repente passou pela minha mente: “O bem que você faz para os
outros é o bem que você faz para si mesmo.” Cliff era um excelente exemplo
disso. Era fácil dizer que ajudaria uma pessoa necessitada se a encontrasse,
mas muitos não o faziam. Afinal, mendigos usavam roupas esfarrapadas,
tinham a pele coberta de fuligem e dentes podres. Na maioria das vezes,
também cheiravam mal. Isso desencorajava as pessoas de se aproximarem
deles, com medo de pegar alguma coisa. Será que eu poderia ver uma pessoa
assim, sentir compaixão por ela e oferecer-lhe a comida que estava
comprando para mim? Talvez não. Não os chutaria como o outro cliente fez,
mas também não era nenhum santo.
Cliff, no entanto, possuía um coração caridoso. Quando o conheci, pensei que
ele era tacanho e mesquinho, mas agora, pensava que um dia ele seria um
sacerdote esplêndido. Grande Cliff!
Certo, vou parar de elogiá-lo e partir para a questão mais importante: por qual
razão Kishirika está agindo como um mendigo, logo aqui, de todos os
lugares?
— Venha, não precisa ser tímido! Diga o que seu coração deseja! E diga-me
seu nome — disse Kishirika.
— Huh? Uh, ok… M-Meu nome é Cliff Grimor. — Cliff ainda estava em
choque com a declaração repentina de que ela era exatamente a pessoa que
estávamos procurando. Ele olhou para mim com um olhar suplicante.
Kishirika fez uma pose altiva ao responder:
— Cliff, hm? Alimentar-me foi uma conquista nobre! Afinal, não comi uma
única migalha nos últimos seis meses!
Me aproximei e me inseri na conversa.
— Nesse caso, gostaria de mais comida?
— Ooh! Sério? Vocês são realmente generosos. Sim, generosos mesmo!
Vocês vão longe na vida, guardem minhas palavras!
Kishirika devorou mais espetos de Grande Tartaruga. A maneira como ela os
devorou me fez pensar onde que aquilo tudo ficava naquele corpinho
minúsculo. E ela continuou, um após o outro.
— Ufa! Isso me satisfez. Agora estarei bem por mais um ano. — Depois de
terminar a refeição, Kishirika bateu com a mão na barriga, satisfeita.
Tínhamos comprado todos os espetos que o dono da barraca tinha à venda.
Ele ficou bem feliz pelo sucesso nos negócios.
Com isso feito…
— Já faz muito tempo, Lady Kishirika — falei.
— Hm? E quem é você? — Quando abaixei minha cabeça, ela bufou e me
olhou fixamente. — Hmm? Oh? — Um de seus olhos girou, mudando de um
olho normal para um de seus olhos demoníacos. Então bateu com o punho na
palma da mão. — Aha! É você! Você é o garoto humano com a mana
nojenta. Claro que lembro de você! Eu te dei um dos meus olhos. Acho que
seu nome era, uh… Roo… Roomba? Roombaus! Sim, era isso! Faz um
tempo.
— Rudeus Greyrat — corrigi. Não sou um maldito robô de limpeza1, muito
obrigado.
— Sim, Rudeus, muito tempo mesmo. Você com certeza ficou muito maior.
Bem, como foram as coisas depois que nos separamos? Você tem se saído
bem? — Ela deu um tapinha na minha coxa, no ponto mais alto que podia
alcançar. Isso me lembrou um líder de seção em um trabalho de escritório
dando tapinhas no ombro de seus subordinados.
— Sim, o olho que você me deu antes realmente salvou minha vida em
inúmeras ocasiões.
— Fwahaha! Sim, tenho certeza que sim! — Ela acenou com a cabeça,
satisfeita.
Ela realmente é muito fácil de manipular.
— No entanto, só vou conceder minha recompensa a um de vocês! Apenas
um! — Ela se virou e apontou o dedo para Cliff. — Você, Cliff Grimor,
declare o seu desejo, seja ele qual for.
Ele engoliu em seco e olhou para ela. Naquele momento, a dúvida tomou
minha mente. Ele não iria, né?
Era de conhecimento geral que Kishirika Kishirisu oferecia olhos demoníacos
como recompensa às pessoas, e Cliff tinha seus próprios objetivos. Um olho
demoníaco poderia ajudá-lo a criar implementos mágicos. Até eu sabia disso.
É por isso que espero estar errado…
— N-Nesse caso, por favor, me diga como curar a Síndrome de Esgotamento
— disse Cliff finalmente.
— Oh?
— Uma conhecida minha está com essa doença. Conseguiram fazê-la
sobreviver até agora, mas não há indicação de que irá se recuperar por conta
própria. Se você souber de alguma maneira de ajudá-la, por favor, me diga.
Meus ombros cederam de alívio. Minhas preocupações foram totalmente
infundadas e, honestamente, um pouco ofensivas para Cliff. Eu teria que
oferecer uma refeição para ele assim que voltássemos para casa.
— Hm, Síndrome de Esgotamento, você diz. Esse nome desperta algumas
memórias. Devo admitir que estou um pouco surpresa ao ouvir falar de
alguém com isso nos dias de hoje.
Zanoba e eu trocamos olhares, balançando as cabeças. Parecia que Kishirika
estava familiarizada com a doença.
— É curável?
— Uma pergunta boba. Claro que é! Tudo o que você precisa fazer é pegar
um pouco de Grama Sokas, fazer um pouco de chá com ela, beber e o
problema vai embora junto com a merda!
Eu sorri. Isso era perfeito. Havia uma chance de que a memória de Kishirika
estivesse ruim e essa grama não funcionasse, mas agora pelo menos tínhamos
algumas informações. Por “fazer um chá”, provavelmente falava de esmagar
as folhas em um pouco de água e depois beber.
— Grama Sokas? Nunca tinha ouvido falar disso antes. Onde podemos
encontrar isso?
— Maio, a Cidade Fantasma.
— Uh, Cidade Fantasma?!
Caramba. Quando a palavra “fantasma” era usada na mesma frase que
“cidade”, geralmente significava que o lugar em questão era difícil de
encontrar. Como se só pudesse visitá-lo em seus sonhos ou tivesse que
atravessar um deserto para chegar até lá ou algo assim.
— Ao norte daquela cidade, na ponta das Montanhas Wyrm Vermelho, tem
uma caverna nas profundezas de uma ravina conhecida como Cauda do
Wyrm Vermelho. Escondido em suas partes mais profundas e escuras está
uma plantação abundante de Grama Sokas.
— Então, temos que ir para uma caverna neste lugar, a Cauda do Wyrm?
Parecia um RPG. Depois de chegarmos tão longe, ela iria nos enviar em uma
missão para procurar a grama? E tínhamos que ir para uma caverna localizada
em um lugar chamado Cauda do Wyrm? Se o nome fosse alguma indicação,
provavelmente estaríamos lutando contra alguns dragões ao longo do
caminho. Essa era uma tarefa difícil.
Não, isso não é tão ruim, sinceramente. O pior cenário possível era não
encontrar Kishirika e passar os próximos anos procurando.
Mas, certo, espera, eu conhecia as Montanhas Wyrm Vermelho, mas nunca
tinha ouvido falar de um lugar chamado Cauda do Wyrm Vermelho.
— Então, onde exatamente está localizada a Cauda do Wyrm?
— Pergunta inteligente. Sabe, no final da segunda Grande Guerra Humano
Demônio, a batalha do Deus Dragão e do Deus Lutador acabou abrindo um
buraco no continente, destruindo o lugar que antes era chamado de Cauda do
Wyrm.
— O quê…?
Uh, então o lugar que precisávamos encontrar não existia mais? Além disso,
essa história que estava nos contando era totalmente diferente da que eu tinha
ouvido. A história dizia que o enorme buraco no continente foi resultado da
batalha de Kishirika com o Cavaleiro Dourado. Dito isso, Kishirika não
parecia ser uma lutadora… Bem, tanto faz. Afinal, era uma lenda e as pessoas
muitas vezes contavam essas histórias da maneira que lhes era conveniente.
No momento, minha prioridade era a Grama Sokas.
— Isso significa que a grama Sokas não existe mais?
Kishirika balançou a cabeça.
— Não, eu estava apenas explicando o lugar de descobrimento da caverna
Cauda do Wyrm.
Se foi lá que foi descoberta pela primeira vez, isso significa que também
existe em outro lugar?
— A Grama Sokas cresce nas profundezas das cavernas, onde o sol não bate.
Com base nesta descrição, podemos encontrar essa grama dentro de
labirintos. Então podíamos entrar em qualquer labirinto antigo? Nesse caso,
precisávamos repensar a composição do nosso grupo antes de nos
aventurarmos. Precisaríamos de cerca de vinte pessoas… Não, poderíamos
oferecer uma recompensa, recrutar alguns aventureiros e enviar cem pessoas.
— E — continuou Kishirika —, foi por isso que ordenei a cada rei demônio
que cultivasse essa grama em seu castelo!
—…
— Afinal, a erva é deliciosa. Aqueles que provam dela têm uma expectativa
de vida excepcionalmente alta. Isso porque aqueles que bebem são reis
demônios imortais. Fwahaha!
—…
Então, basicamente, o que ela estava nos dizendo era que todo rei demônio
tinha essas coisas crescendo em seu castelo? E por ser considerado um chá de
luxo, seria possível encontrarmos comerciantes que o vendessem?
— Fwahahahaha! Você achou que teria que ir buscá-la? Aposto que sim, não
é? Sua coisinha lamentável! Tem um monte plantada bem ali no meu castelo!
Fwahahahaha!
Ninguém me culparia por querer ver o quão longe eu poderia chutar essa
idiota, certo?
Cliff parecia pensar na mesma coisa. Ele avançou com as mãos fechadas.
— Sua…!
— Por favor, espere, Mestre Cliff! Não sejamos precipitados. Primeiro
precisamos fazê-la contar tudo o que sabe.
— S-Sim, você está certo.
Opa, talvez eu não devesse ter dito essa última parte em voz alta.
Se realmente havia Grama Sokas no castelo… não havia motivo para ficar
com raiva. Na verdade, era perfeito. Claro, ela nos preocupou por nada e isso
me irritou um pouco, mas foi algo que serviu de lição.
Certo, esfrie sua cabeça. Você pode até ficar de joelhos e implorar por isso.
— Tudo bem, Lady Kishirika, então imploro que você compartilhe um pouco
de sua Grama Sokas conosco.
— Claro! Só tem um probleminha.
— Que problema é esse?
— Bem, sabe, há um problema detestável no meu castelo no momento. É
bastante difícil de lidar e não é muito inteligente, então passei os últimos seis
meses fugindo de… Ops.
Suas palavras foram sumindo enquanto ela olhava para algo atrás de nós.
— Hm? — Segui seu olhar.
Vários soldados vestidos com armaduras pretas estavam lá. Cinco, seis,
sete… vinte, no total. Pior ainda, outro grupo se reuniu na rua à nossa frente e
mais grupos se espalharam em um beco próximo. Logo, ficamos cercados por
trinta deles. Eles nos encaravam, como se estivessem tentando nos intimidar.
Elinalise deu um passo à frente, a mão pairando sobre a espada em seu
quadril. Suor frio cobria sua testa. Com esses números, não havia como
corrermos.
O que deveríamos fazer?
Poderia agarrar dois deles, Zanoba em meu braço direito e Cliff em meu
esquerdo, e usar minha magia para dar um salto voador, mas e quanto a
Kishirika e Elinalise?
O homem aparentemente encarregado pelos soldados avançou em nossa
direção. Sua voz estava rouca, mas vibrante quando disse:
— Nós somos os guardas pessoais da Rei Demônio Imortal Atoferatofe, que
governa o Território de Gaslow. — Ele falou fluentemente na língua humana.
— Por ordem real dela, por favor, entreguem Lady Kishirika e venham
conosco para o castelo.
Atrás dele, os outros cavaleiros puxaram seus esboços e os compararam à
Kishirika da vida real. Seus rostos demonstraram bastante confusão. Como
Nokopara suspeitou, a imagem não se parecia em nada com Kishirika porque
Atofe não tinha detalhes sobre isso, mas embora ela não se parecesse com a
mulher que foram instruídos a encontrar, gritar a plenos pulmões que era a
Grande Imperador do Mundo Demônio foi o suficiente para atrair a atenção
de qualquer pessoa.
— E se dissermos não? — Elinalise gracejou.
Os guardas imediatamente sacaram suas espadas. O barulho ensurdecedor de
lâminas saindo de suas bainhas ecoou pela área.
— Não vamos ter misericórdia de vocês.
Não que eu fosse capaz de dizer a força de uma pessoa só de relance, mas até
eu podia ver que essas pessoas eram experientes em batalha. Havia uma
diferença marcante entre um novato e aqueles que haviam resistido a muitas
lutas, e esses soldados eram, sem dúvidas, do segundo grupo. Senti que eram
muito mais capazes do que um bando de cavaleiros quaisquer.
— V-Você não deve ouvi-los. Se permitir que te levem para o castelo, não há
como dizer o que poderá acontecer com você. Estamos falando da Rei
Demônio Atoferatofe — argumentou Kishirika. — Ela não é nada além de
uma completa imbecil!
Franzi as sobrancelhas. Ela tinha razão, por que deveríamos concordar em
deixar essa suposta idiota nos prender? Não tínhamos negócios com Atofe.
Tínhamos que encontrar uma maneira de escapar disso.
Ah, mas espera aí, a grama de que precisamos não está embaixo do castelo?
Talvez possamos entrar sorrateiramente… Não, vamos ser realistas, nunca vi
essa grama antes, então nem saberia o que procurar.
Enquanto eu hesitava, o líder dos cavaleiros removeu seu capacete.
— Eu imploro. — Seu cabelo era vermelho flamejante e seu rosto estava
desgastado pelo tempo. Ele nos deu um sorriso suave e abaixou a cabeça. —
Se você não vier, temo que minha senhora vá nos punir. Juro que não vamos
te tratar mal, então, por favor…
A maneira como ele se curvou foi bastante sincera. Eu costumava ser o tipo
de japonês que não se importava em dizer não às pessoas, mas não era mais
assim. Quando alguém falava de forma tão sincera, era difícil não se sentir
obrigado a fazer um agrado.
— Não confie em uma palavra do que ele diz! Atofe não é o tipo de pessoa
com quem você pode ter uma conversa razoável! — Kishirika tinha gotas de
suor frio escorrendo pelo rosto. Obviamente havia mais nisso do que ela
estava demonstrando.
— Ouvi sobre o que vocês estavam falando — disse o velho capitão
cavaleiro. — Também cultivamos Grama Sokas no Território de Gaslow,
então sabemos como cultivá-la. Se desejar, podemos fornecer um vaso para
você levar para casa. Então, por favor, venham conosco.
Ele continuou com a cabeça baixa. Não senti nada além de honestidade
emanando dele. O homem e seus subordinados poderiam ter nos capturado à
força, mas ele estava se esforçando para fazer um pedido. Eu não sabia
absolutamente nada sobre Atofe, o único rei demônio que eu conhecia era
Badigadi, mas ter um superior como Atofe era sem dúvida difícil.
— Já que estamos nesse assunto — falei —, o que Lady Atofe tem contra
Lady Kishirika? Se possível, gostaria de saber a razão pela qual ela esteve
perseguindo Lady Kishirika pelos últimos seis meses.
— Há um ano, minha senhora veio a esta cidade em busca de um frasco
especial de licor que era produzido no Território Gekura, mas Lady Kishirika
o roubou e tomou tudo.
— Aha.
O capitão suspirou.
— Minha senhora estava muito ansiosa por aquela garrafa, então ficou
furiosa com a afronta. Ela nos chamou de nossas estações de trabalho em
casa e ordenou que procurássemos a culpada. Infelizmente, não sabíamos da
aparência atual de Lady Kishirika e o esboço que tínhamos dela não era
preciso o suficiente para ser útil, então não estávamos tendo sorte até agora.
— Tudo bem, entendo sua situação.
Usei minha magia para colocar algemas em Kishirika.
Para ficar em segurança, ela precisaria descansar por mais um mês, mas ao
menos seu humor estava melhorando.
Sua expressão estava diferente de sua normalidade tensa. Em vez disso,
parecia estar atordoada por ter acabado de acordar. Seu cabelo estava todo
bagunçado, apontando em todas as direções. Eu costumava pensar que ela
levava um estilo de vida pouco saudável, mas pelo menos mantinha o cabelo
sempre penteado.
— Obrigada por me ajudar. — Ela baixou a cabeça, as mãos em forma de
concha em torno de uma caneca quente de chá de Grama Sokas. Sua
formalidade e sinceridade eram uma demonstração rara. — Realmente
aprecio que tenha corrido tanto risco para ir buscar essas folhas de chá para
mim. Você, hm… realmente me ajudou.
Havia algo profundamente perturbador em ouvi-la falar assim.
Nah, tenho certeza que ela só está se sentindo fraca, então está meio fora de
si.
— De nada.
— Você também cuidou de mim da última vez que tive problemas. Te falei
algumas coisas bem insensíveis, mas você me ajudou e nunca demonstrou
ressentimentos. Nem sei como começar a te agradecer… — Ela me lançou
um olhar de desculpas.
Eu nunca tinha testemunhado Nanahoshi agindo tão educadamente. Talvez as
habilidades de Yuruzu da Redenção pudessem transferir personalidades, além
da resistência.
— Agora que penso nisso, fui bastante casual e rude com você, embora você
seja mais velho do que eu.
Balancei minha cabeça.
— Não me importo com isso. Neste mundo, tenho apenas dezoito anos.
— E quantos anos tinha antes de vir para cá?
— Trinta. Mas não se preocupe com isso. Vamos esquecer essa coisa de
idade. Não precisa ser tão educada. Pode continuar falando comigo como
sempre fez.
— Certo.
Sua expressão estava serena enquanto ela lentamente bebericava seu chá,
como se pudesse sentir os efeitos de imediato.
Limpei a garganta.
— Tenho certeza de que já te contaram, mas sua doença…
— Não vai ser curada. É, eu sei.
Nanahoshi não estava totalmente curado da Síndrome de Esgotamento. A
Grama Sokas iria temporariamente quebrar o amontoado de mana dentro
dela, mas se não fosse tratada, acumularia os mesmos níveis de antes. Já que
ela não era deste mundo, não tinha imunidade à síndrome que o resto das
pessoas tinha. Felizmente, beber chá de Grama Sokas diariamente evitaria
que isso se acumulasse.
Havia também a possibilidade de que até mesmo um pouco de magia a
deixasse doente. A próxima doença que contraísse poderia ser algo que nem
mesmo Kishirika conhecesse, algo ainda mais antigo do que a Síndrome de
Esgotamento. Enquanto estivesse neste mundo, ela não poderia evitar o
contato com mana. Isso estava por toda parte: na atmosfera, na comida.
— Nanahoshi, você tem que voltar para casa. Você não pode morrer aqui.
— Sim…
— Farei tudo o que puder para ajudá-la a encontrar uma maneira de voltar.
— Mas eu…
Balancei minha cabeça.
— Não preciso da sua gratidão nem nada assim. Mas se eu acabar me
metendo em algum problema, espero poder contar com sua ajuda.
Nanahoshi começou a fungar enquanto as lágrimas brotavam de seus olhos.
Ela deixou um soluço abafado escapar, sua voz soando quase como um
sussurro, e disse:
— Obrigada.
Esperei pacientemente até que ela parasse de chorar.
Ela continuou soluçando um pouco, seus olhos vermelhos e inchados. Então
falou com uma voz anasalada:
— Mas eu vou para casa.
— Sim. Tenho certeza que você quer voltar o mais rápido possível.
— Não, quero dizer, posso não ser capaz de recompensá-lo por tudo antes de
partir.
Espera, então ela quer me retribuir por tudo antes de ir para casa? Ela é mais
consciente do que imaginei.
— Não há necessidade de se pressionar assim. Afinal, você também já me
ajudou.
— Fiz aquilo para agradecer pela ajuda na minha pesquisa.
— Tudo bem, então eu gostaria de alguns conselhos detalhados sobre um
assunto específico.
Ela franziu a testa.
— Qual assunto?
— Por exemplo, o que uma garota da minha idade quer? Sylphie e eu temos
um longo futuro pela frente. Somos casados e temos uma filha, mas ainda não
sei o que se passa na cabeça dela. Considerando que você tem mais ou menos
a mesma idade, achei que pudesse saber de algo.
— Sobre o que Sylphie está pensando? — Nanahoshi acariciou seu queixo e
olhou para seu cobertor. Ela parecia estar considerando seriamente o assunto.
Certamente está dedicada a me retribuir.
— Você não precisa responder agora — falei. — Pode esperar até termos
uma briga ou até eu querer fazer as pazes com ela ou algo assim.
— Certo. — Nanahoshi assentiu, sua expressão sincera.
Embora ela tivesse a idade semelhante à de Sylphie, havia muitas coisas que
as diferenciavam; eram de mundos diferentes e Sylphie era casada.
Nanahoshi não conseguia entendê-la completamente. Até eu não fazia ideia
do que os caras da minha idade pensavam.
— Nesse caso, vamos deixar por isso mesmo. Tenho certeza de que seu corpo
ainda está fraco, então use seu tempo para se recuperar.
— Sim, eu vou — respondeu Nanahoshi. — Obrigada.
Então saí do quarto. Se ficasse com ela por muito tempo, poderia deixar
Sylphie com ciúmes de novo. Ela ficava fofa, mas eu não sentia prazer em
deixá-la ansiosa. Nunca quis fazê-la duvidar do meu amor. O fato de ainda
não ter conseguido fazer isso foi um fracasso da minha parte.
Enquanto eu caminhava pelo corredor, a luz do sol da tarde entrava pelas
janelas.
Ah, o pôr do sol é lindo, não importa em que mundo esteja.
Não sou muito fã de lugares altos, mas a vista do amplo jardim da fortaleza
flutuante era tentadora. De lá, poderia olhar para o mar de nuvens enquanto o
sol se escondia atrás do horizonte.
Até eu gostava de me deleitar com isso de vez em quando. Com esse
pensamento em mente, fui para fora.
Os arbustos estavam perfeitamente aparados e havia dezenas de flores que eu
nunca tinha visto antes. Conforme o sol se punha sob as nuvens, banhava a
área com uma luz radiante, fazendo com que parecesse uma miragem.
Se eu trouxesse Sylphie para um lugar como este e sussurrasse palavras doces
para ela, como responderia? Conhecendo-a, provavelmente ficaria vermelha,
baixaria o olhar para o chão e apertaria minha mão. Sua reação com certeza
seria adorável.
Muito bem, assim que Sylphie se recuperar totalmente, vamos tentar!
Eu queria fazer o mesmo com Roxy, mas, infelizmente, demônios eram
proibidos de entrar na fortaleza. Além disso, provavelmente não seria muito
bom, considerando a personalidade de Roxy. Ela provavelmente me encararia
sem expressão e diria: “Você sabe que não precisa usar essas falas cafonas
comigo, certo?” Ela, de qualquer forma, estaria disposta a dormir comigo.
Esse era o seu nível de franqueza, embora não parecesse.
Mas não é isso! Não é sobre sexo. Só quero um amorzinho! Eu queria que
assistíssemos o pôr do sol juntos. Roxy diria: “É lindo mesmo, não é?” E eu
responderia: “Sim, mas não tão lindo quanto você.” E então ela coraria e
agiria envergonhada, era isso que eu queria ver!
Bem, ela não está aqui, de qualquer maneira, então estou sem sorte.
— Hm?
Enquanto caminhava, perdido em pensamentos, avistei uma mesa na beira do
jardim. Três pessoas se sentavam ao redor.
— E foi então que meu mestre usou sua magia. Aquela luz roxa disparou de
sua mão direita e queimou o corpo de Atofe, paralisando-a no lugar.
— Aha. Então foi a magia dele que a enfraqueceu tanto.
— A magia de Lorde Rudeus parece não possuir limites.
Zanoba, Ariel e Perugius estavam tendo uma boa conversa. À medida que o
sol da tarde os banhava, pareciam estar se divertindo com a conversa. Luke e
Sylvaril esperavam nas proximidades, embora não estivessem participando.
Apenas ficaram parados e ouviram a conversa de Zanoba.
— Mestra Elinalise e eu fomos pegos em seu ataque, mas não acho que haja
outro mago no mundo que possa usar tal feitiço além do meu mestre.
— Ouvi dizer que parecia um relâmpago — comentou Perugius. — Mas se
foi capaz de paralisar Atofe, como você diz, deve ter sido muito potente.
— E? O que aconteceu depois disso? Como a batalha terminou? —
perguntou Ariel.
— Infelizmente, lamento dizer, perdi a consciência naquele ponto, então não
consigo… Ah, aí está o homem em carne e osso.
O olhar de Zanoba me encontrou, então não tive outra escolha. Fiz uma
reverência e caminhei em sua direção.
— Boa tarde. Estão promovendo uma festa do chá?
— Sim, Mestre! Lorde Perugius disse que queria saber como nossa batalha
com Atofe aconteceu, então eu estava explicando os detalhes.
— Entendo. — Olhei para Perugius. Ele parecia estar com um humor muito
melhor do que quando tivemos aquela primeira audiência.
— Ouvi dizer que foi a sua magia que enfraqueceu Atofe, Rudeus — disse
ele.
— Não, isso foi em grande parte graças a Zanoba prendendo-a no lugar. Se
eu tivesse direcionado meu feitiço nela sem a ajuda dele, ela poderia ter
desviado.
— Entendo, sim. Hehe, aquela imagem dela ainda continua em minha mente.
— Seu rosto se abriu em um sorriso obsceno.
Ele realmente odeia tanto a Atofe? Ele estava de bom humor.
— Você parece estar bem animado — falei.
— Claro que estou. Nunca, nem em meus sonhos mais loucos, pensei que
teria a oportunidade de me vingar de alguém que me causou dor em tantas
ocasiões que até perdi a conta.
— Vingança?
— Sim. Um rancor, se preferir, que durou vários anos.
Ele provavelmente estava se referindo à guerra que aconteceu há 400 anos: a
Guerra de Laplace. Perugius era um jovem aventureiro na época, mas ajudou
os humanos, lutando na linha de frente. Atofe também liderou algumas das
forças dos demônios, agindo como general. Perugius a encontrou muitas
vezes no campo de batalha. Por ser jovem e inexperiente, ele não era capaz de
vencê-la, sofrendo ferimentos fatais a cada encontro. Duas pessoas o
salvaram naquela época: o Deus Dragão Urupen, um irmão mais velho de
Perugius, e o Deus do Norte Kalman.
Perugius só conseguia ranger os dentes de frustração a cada derrota. Ele
planejou se vingar de Atofe, mas o Deus do Norte Kalman se casou com ela.
Quando Kalman morreu, fez os dois jurarem que não se matariam. Assim,
Perugius nunca mais voltou ao Continente Demônio, destruindo suas chances
de vingança. Ele quase havia perdido as esperanças de se vingar de Atofe,
mas esse momento foi mais perfeito do que ele poderia ter imaginado. Fez
um disparo contra ela, e não era como se Atofe pudesse ir atrás dele. Foi isso
que o deixou nas nuvens.
— Devo agradecer por isso — disse Perugius. — Você fez um trabalho
esplêndido.
— Tem certeza de que está tudo bem em quebrar seu juramento ao Deus do
Norte Kalman?
— Ele nos proibiu de matar uns aos outros. Tenho certeza de que não se
preocuparia com uma surra unilateral.
Bater em um oponente indefeso por algo que foi feito séculos atrás me
parecia muito bárbaro. Embora isso demonstra em muito a profundidade do
rancor em questão.
— Parece que posso ter te julgado um pouco mal. Eu devia te dar alguma
recompensa — disse Perugius.
— Eu realmente não preciso de uma recompensa.
Não, obrigado. Me deixa fora dessa. Não quero poder, não do jeito que Atofe
ofereceu.
— Ah, sim, assim que Nanahoshi terminar de se recuperar, irei pessoalmente
ensiná-lo como usar a magia de invocação.
Hesitei.
— Uh, não vou ficar preso aqui e incapaz de voltar para casa pela próxima
década se concordar com isso, certo?
— Não me compare a Atofe.
Bem, desde que eu pudesse ir para casa, não havia razão para recusar. Eu
queria saber mais sobre magia de invocação e teletransporte. Além disso,
poderia enfrentar uma crise semelhante no futuro. Não faria mal aprender
outras maneiras de lutar, apenas para o caso. Eu não gostava de conflitos,
mas, neste mundo, precisava de um pouco de força para escapar do perigo.
Achei que tinha o suficiente para proteger minha família, mas depois da hidra
e do que aconteceu desta vez, ficou claro que eu não era poderoso o
suficiente. Eu queria pensar que as situações em que teria que lutar contra
qualquer coisa desse nível seriam poucas e distantes, mas era melhor prevenir
do que remediar.
— Hm, Lorde Perugius, acha que poderia fazer algum treinamento comigo ou
me ensinar como lutar melhor? Não me importo se for depois das aulas de
invocação.
— Hmph. Isso é graças ao seu encontro com Atofe? Ou ainda não está
satisfeito com o poder que possui?
Ah, merda. Agora seu humor azedou. Nada bom.
— Não é nada disso. Apenas pensei que seria bom ter opções melhores caso
tivesse esse tipo de problema novamente.
Depois de uma longa pausa, ele disse:
— Muito bem. Vou te dar um item para que possa entrar em contato comigo.
Sylvaril. — Ele lançou um olhar para ela.
Sylvaril tirou uma flauta de seu bolso, que parecia uma torre com um dragão
enrolado nela.
— Se usar isso em qualquer lugar com o qual eu tenha uma conexão,
Noitelimpa do Trovão Estrondoso vai ouvir e Arumanfi irá até você.
Aceitei a flauta e a guardei. Parecia que ele iria ao meu socorro se eu
precisasse. Essa também não era uma solução ruim.
— Hm, parece que o sol se pôs.
Olhei para trás; a luz do entardecer havia se apagado. Agora a lua estava
pairando no céu. Estranhamente, a área ao nosso redor não estava escura. Isso
era graças ao brilho azul que as flores do jardim emitiam.
— Esta mesa é feita de iluminadores — explicou Perugius. — Vá em frente,
sente-se. Por que não continuamos conversando um pouco?
Obedientemente, me sentei.
— A arte dos anões estava realmente no auge antes da segunda Grande
Guerra Humano Demônio.
— De fato. Se os anões não tivessem perdido sua terra natal durante o
conflito, ainda poderiam estar fazendo obras-primas.
Perugius era na verdade um sujeito interessante quando se conversava com
ele. Possuía muita sabedoria e amava as artes plásticas. Ele também era um
homem de cultura que apreciava o trabalho criativo.
— Ao menos a raça dos anões resistiu. Possuem mãos tão hábeis que tenho
certeza de que um dia produzirão outro artesão capaz de criar um trabalho
excelente.
— Falando nisso — disse Perugius, redirecionando a conversa —, acredito
que você disse que um de vocês estava criando uma artesã.
Zanoba acenou com a cabeça.
— Sim, embora possa não parecer, meu mestre tem um profundo
conhecimento sobre estatuetas. Pensamos que, se ensinássemos essas técnicas
a uma anã, poderíamos alcançar novos patamares.
— Você me mostrou uma das estatuetas de Rudeus. Segue um processo
interessante. É incrível que ele tenha conseguido criar uma réplica de uma
pessoa com detalhes tão intrincados.
Os dois estavam gostando da conversa. Infelizmente, eu não tinha o nível de
conhecimento que eles possuíam, então não fui capaz de acompanhá-los. Mas
a discussão continuava interessante o suficiente para ouvir.
— Não — falei —, vocês estão exagerando.
— Não há necessidade de ser humilde — disse Perugius.
— De fato. Sylphie me disse muitas vezes sobre como você é talentoso,
Lorde Rudeus.
Na verdade, havia mais um participante em nossa festa do chá. Enquanto os
outros dois conversavam alegremente um com o outro, ela tentou participar
com suas próprias sugestões e conhecimentos. Infelizmente, suas tentativas
foram infrutíferas. Esses dois eram tão “experts”que ela, como eu, não tinha
esperança de acompanhar.
— Não é apenas magia. Lorde Rudeus também conhece as artes. É realmente
uma pessoa incrível.
— Obrigado, Princesa.
Agindo como terceira na conversa estava ninguém menos que Ariel Anemoi
Asura. Ela estava desesperada pela ajuda de Perugius, mas não sabia como
conseguir o seu favor. Eu sorri desconfortavelmente enquanto ela me regava
com elogios exagerados. Na maior parte da conversa, ela se transformou em
um robô que se inseriu desajeitadamente e repetiu as mesmas falas genéricas.
Era óbvio que não tinha nada de substancial a acrescentar à conversa.
Ela tem um longo caminho pela frente.
— A propósito, Lorde Perugius, estávamos pensando em colocar algumas
dessas estatuetas no mercado em breve. Podemos pedir sua opinião honesta
sobre a ideia? — Zanoba deixou escapar. Ele pegou uma caixa que havia
deixado a seus pés, uma que eu já tinha visto antes.
— Oh? — Intrigado, Perugius olhou para aquilo. Quando Zanoba levantou a
tampa, entretanto, o humor dele logo azedou. — Uma estatueta de um
Superd?
— Eu deveria saber que você iria reconhecê-la com um simples olhar.
Perugius estreitou os lábios.
Zanoba pegou a estatueta de Ruijerd que Julie havia feito. Estilisticamente,
era um pouco diferente da que eu fiz, mas a pose e o design faziam com que
parecesse real. Mas não foi o suficiente para satisfazer Perugius.
— Você me faz essa pergunta, mesmo sabendo como detesto demônios? —
Ele encarou a estatueta de Ruijerd com nojo enquanto cuspia: — É melhor
você desistir de qualquer ilusão que tenha sobre vender esta coisa.
Sem qualquer esperança, conforme imaginei. Perugius realmente detestava
demônios. Ele era uma pessoa tolerante, mas tinha mais preconceito contra os
demônios do que qualquer pessoa que já conheci. Zanoba deveria saber que
mostrar uma estatueta Superd para alguém como Perugius serviria apenas
para o irritar. O que ele estava planejando?
— No entanto, o modelo para esta estatueta é alguém com quem você tem
uma dívida, Lorde Perugius — disse Zanoba.
— Uma dívida, você diz? — Perugius franziu a testa. Depois de pensar por
um momento, ele arregalou os olhos. — Não me diga que você usou Ruijerd
Superdia como modelo para isso?
— Sim, usamos. Você me disse que em sua última batalha contra Laplace, foi
Lorde Ruijerd quem o ajudou.
As palavras saíram suavemente da boca de Zanoba. Ele não estava falando
isso ao acaso. Os dois haviam desfrutado de várias sessões de chá sem mim;
Zanoba devia ter obtido essa informação anteriormente. Agora eu pude ver o
rumo da conversa, e isso me deu esperanças.
— Claro, estou perfeitamente ciente de sua aversão por demônios. No
entanto, também acredito que, se as habilidades do meu mestre tivessem
alguma exposição pública, esse tipo de arte conquistaria o mundo. Não
gostaria de ver isso acontecendo? Imagine isso: um mundo esplêndido
transbordando de arte.
— Hmm… — Perugius fez uma careta.
Estávamos muito perto de convencê-lo. Será que eu também devia participar
da conversa?
— Odeio os Superds. Eles se movem na escuridão, massacrando vidas
inocentes. Embora também seja verdade que sem a ajuda de Ruijerd, eu não
estaria vivo. Entretanto…
— Lorde Perugius, Ruijerd lamenta pelas coisas que fez no passado — falei
sem querer.
— Ele lamenta? — Perugius inclinou a cabeça.
Agora, como devo explicar melhor isso…
— Sim. Laplace o enganou.
— Laplace, você diz… — O rosto de Perugius anuviou-se.
Parece que essa é uma boa direção.
— Isso mesmo. Laplace deu a ele uma lança que o roubou de seus sentidos.
Ruijerd foi manipulado para desonrar todo o seu clã. Pior, matou até sua
própria família. Agora, ele se sente envergonhado de si mesmo e odeia
Laplace pelo que ele fez.
Perugius ouviu em silêncio.
— É por isso que ele está viajando pelo mundo, procurando uma maneira de
recuperar a honra do seu povo. Este nosso plano é uma forma de ajudá-lo em
seus esforços. Também tenho uma grande dívida com Ruijerd. Se você é
grato pela ajuda que ele lhe forneceu, espero que aprove o que estamos
fazendo, como uma forma de retribuição.
Perugius cruzou os braços, fechou os olhos e franziu as sobrancelhas. Depois
de um longo silêncio, finalmente disse:
— Não me importo com os Superds e sua reputação, mas devo honrar minhas
dívidas.
— Oh, então?
— Faça como quiser.
Embora não estivesse satisfeito, Perugius ao menos concordou. Agora
poderíamos vender nossas estatuetas de Ruijerd sem medo de Arumanfi
aparecer do nada e destruir nossa loja. Na verdade, se alguém desaprovasse
nossa atitude, poderíamos dizer a eles que Perugius nos deu permissão. Eu
não fazia ideia de quanto peso seu nome carregava, mas com certeza seria
útil, dada a sua fama.
De qualquer forma, Zanoba com certeza apresentou um argumento
convincente. Ser capaz de abordar um tópico tão complicado… ele estava
definitivamente me impressionando cada vez mais. Eu precisava aprender
com seu exemplo.
— Agradecemos a sua consideração.
Zanoba e eu inclinamos nossas cabeças. Estávamos um passo mais perto de
vender essas estatuetas ao público.
Espere um pouco mais por mim, Ruijerd.
— Já que estamos no assunto, Mestre, por que não dá a Lorde Perugius um
gostinho de sua habilidade? — Zanoba bateu na palma da mão como se essa
ideia tivesse acabado de surgir.
— Minha habilidade?
— Você sabe, sua habilidade especial de fazer essas estatuetas do nada.
Olhei para Perugius, que acenou com a cabeça em aprovação.
— Me mostre. Estou interessado nesta sua magia.
E então comecei minha demonstração em tempo real de como fazer uma
estatueta. Fiz a mesma coisa de sempre: usei a magia de terra para criar a
forma geral e, em seguida, retirei cada parte até que a figura geral se juntasse.
Desta vez, decidi criar uma do tamanho de uma estatueta Nendoroid[1]. Isso
tornou as coisas mais fáceis e significava que eu poderia terminar
rapidamente. A qualidade não seria das melhores, mas pelo menos as peças
eram simples de construir. Criei uma máscara de pássaro sobre o rosto da
figura. Esta seria uma estatueta de Sylvaril.
— Esta é Sylvaril? Você é muito hábil. — Os olhos de Perugius estavam
fixos em mim enquanto eu trabalhava, observando cada passo de perto. Ele
parecia muito interessado. Fiquei pensando se ele era capaz de ver minha
mana. Ou talvez pudesse apenas sentir como eu a estava manipulando.
Afinal, ele era um herói lendário. — Nunca imaginei que alguém usaria
magia de terra desta forma.
— Se você tiver um pedido, posso fazer o que quiser — ofereci.
— Pois bem. Nesse caso, traga-me uma estatueta de alta qualidade que você
fez e eu a comprarei de você.
Legal, agora tínhamos um cliente regular. Considerando que não fazíamos
ideia de para onde Badigadi foi, garantir outra oportunidade de negócio como
essa era importante.
— Nesse caso… — falou Ariel, juntando-se à conversa. — Também temos
alguns artesãos esplêndidos no Reino Asura. — Ela continuou com um
discurso sobre como seus artesãos eram habilidosos e prometeu que mandaria
instalar uma estátua de Perugius assim que assumisse o trono.
Durante todo o tempo de divagação dela, Perugius pareceu irritado. Quando
ela terminou, ele cuspiu:
— Os artesãos de Asura só criam obras para satisfazer a vaidade da nobreza.
Não há nada de interessante na arte deles.
— O quê…? — Ariel ficou sem palavras.
Como se para martelar o último prego no caixão, Perugius continuou:
— Se você realmente se tornar rainha, não terá coisas mais importantes para
fazer do que criar uma estátua minha?
— B-Bem, eu…
Perugius a interrompeu.
— Ou a apropriação indevida dos impostos das pessoas para viver no luxo é a
sua definição de ser rainha?
— N-Não, de forma alguma. Sinto muito. Falei fora de hora. Por favor,
esqueça que eu disse alguma coisa. — Ariel baixou o olhar, tentando recuar.
Era difícil acreditar que essa pessoa abatida normalmente transbordava
carisma e confiança.
Ainda assim, a maneira como Perugius a rejeitou friamente foi desnecessária.
Ele realmente a odiava tanto? O que ela disse realmente o incomodou tanto?
— Espere, Ariel Anemoi Asura — gritou Perugius enquanto ela tentava se
afastar. Seu opressivo olhar penetrou nela. — O que ser rainha significa para
você? O que uma verdadeira rainha possui?
— Bem… são sábias, escutam seus ministros e não esquecem de sua posição
na sociedade…
— Errado. — Perugius balançou a cabeça, nem mesmo a deixando terminar.
— O rei Asurano que eu conhecia era um verdadeiro rei, mas não era nada
parecido com isso que você descreve.
— Qual rei?
— O homem que assumiu o trono após a Guerra de Laplace, meu amigo
jurado, Gaunis Freean Asura.
Eu já tinha ouvido falar um pouco sobre o Rei Gaunis. Ele foi o último
membro sobrevivente da família real Asurana após a Guerra de Laplace. Ele
se tornou um grande governante que uniu o país depois que ele foi devastado
durante o conflito. A luta teve um grande impacto nas terras Asuranas, mas
suas habilidades como monarca impediram o país de entrar em guerra civil.
— Ouvi dizer que o Rei Gaunis foi um grande governante. Duvido que algum
dia poderei seguir seus passos.
Perugius balançou a cabeça.
— Ele não era grande. Era um covarde que odiava conflitos e estava sempre
fugindo. Ele não podia estudar para salvar a própria vida, não possuía
nenhuma habilidade em batalha, e estava sempre fugindo para algum bar para
cobiçar as mulheres de lá. Não tinha ambição de assumir o trono, mas tinha a
qualidade mais importante que um governante pode ter. Isso, eu acredito, é o
que o tornou um verdadeiro rei.
— Que qualidade era essa?
— Se você mesma puder me trazer essa resposta, te darei meu apoio.
Ah, então esta é a prova que ele pretende dar a ela. Está testando Ariel, para
ver se é alguém que merece sua ajuda ou não.
— A qualidade mais importante que um rei pode ter — repetiu Ariel,
acariciando seu queixo enquanto olhava para a mesa. Ela provavelmente
estava tentando se lembrar das histórias que ouvira sobre o Rei Gaunis.
Pelo que foi dito, pensei que o cara era um babaca. Ou será que era um gênio
disfarçado, parecido com Oda Nobunaga?
— Rudeus. — Perugius se virou para mim. — O que acha?
— Receio não ter ideia de como responder à pergunta, visto que não sou da
realeza.
— Que resposta sem graça. Você não tem que pensar na resposta, apenas
diga o que surgir em mente.
Continua sendo uma tarefa difícil.
Um rei, hein? O que um rei deveria ser, acima de tudo? Eu sabia que eles
apareciam muito em histórias de fantasia, mas o que realmente faziam? Eram
alguém no topo de tudo. Governante de um país, tipo um primeiro-ministro,
eu sabia disso. Para ser honesto, eu não tinha muito interesse em política,
mesmo na minha vida anterior. Tudo o que fiz foi observar como outras
pessoas na internet reagiam aos políticos e seguia o exemplo.
— Pessoalmente, acho que prefiro um governante que possa se colocar no
lugar das pessoas comuns, em vez de alguém que confia apenas em suas
próprias habilidades.
— Aha. — Perugius exalou, parecendo impressionado com minha resposta
branda. — Ariel, este garoto acabou de me dar uma resposta muito melhor do
que a sua.
Depois de uma pausa, ela argumentou:
— Mas uma pessoa não pode ser rei se pensar apenas nas pessoas.
— Verdade. Também não é como se Gaunis pensasse apenas nas pessoas. No
entanto, aqueles ao seu redor lhe ajudaram, e ele foi capaz de suprimir o
potencial de revoltas em Asura.
— Então está dizendo que as próprias habilidades de um rei não têm sentido?
— É o que você acha? Um país que faz de um imbecil seu governante é um
bom país aos seus olhos?
A expressão de Ariel se contorceu de tristeza e frustração. O que exatamente
Perugius estava tentando fazer com que ela dissesse? Eu não fazia ideia.
Bem, não que eu realmente precisasse. Não planejava tomar nenhum trono.
Talvez Perugius estivesse na verdade tentando testar a determinação e o
caráter de Ariel. Talvez não houvesse uma resposta “correta”.
Ainda assim, ser rei é tão grandioso que vale a pena passar por todos esses
problemas para se tornar um?
— Você deve pensar muito sobre isso, Ariel Anemoi Asura. — Após uma
breve pausa, Perugius disse: — Agora, está tarde. Por que não voltamos para
a fortaleza?
Com isso, nossa festa do chá acabou.
Eu me lembraria por muito tempo da aparência de Ariel enquanto
caminhávamos de volta para dentro, seus ombros caídos para frente enquanto
ela arrastava os pés junto com Luke aos seus calcanhares.
[1] Linha de figuras de personagens representadas na proporção comprimida
de aproximadamente duas cabeças de altura. O tamanho médio é de 10 cm.