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Capítulo 1: Primeira Missão

Deixe-me resumir brevemente tudo o que aconteceu até agora.


Depois de descobrir que o Deus-Homem estava me enganando o tempo todo,
cheguei ao fundo do poço. Uma série de eventos se seguiu, culminando em um
confronto entre mim e Orsted, que no fim resultou em eu me tornar seu
subordinado.
Isso mesmo, encontrei um empregador!
Como se isso não fosse chocante o suficiente, também me reencontrei com Eris
e me casei com ela.
Ah, é como se os raios quentes do sol da primavera estivessem caindo sobre
mim! Como se minha vida tivesse chegado ao ápice!
A primavera era a estação de novos começos, e com meu casamento com Eris,
eu estava explodindo com vigor renovado. Pode ser verão agora, mas ainda era
primavera em meu coração!
Eu me sentia nas nuvens enquanto ia trabalhar — meu local de trabalho era onde
Orsted morava atualmente. Desta vez, eu estava sozinho, como um homem deve
estar quando está indo trabalhar. Para ser honesto, era bastante normal em nossa
casa as mulheres trabalharem também, então não havia nada de errado em trazer
alguém junto. Mas a maldição de Orsted impunha que se sentiriam hostis para
com ele, por isso era melhor fazer o caminho sozinho.
— Hm?
Quando cheguei à cabana, vi alguém desabado no chão.
Quem seria o louco de cair ali?
— Ah?!
Zanoba… É Zanoba! Ele morreu!
Ele estava caído contra um pedaço de metal de três metros de altura, escorado de
costas.
— Não pode ser… — Corri até ele e agarrei seus ombros, balançando-o. — Qual
é, não pode ser verdade. Fale comigo, Zanoba!
Ele tinha pulso. Suas pupilas se moviam, e ele… estava respirando. Seu corpo
ainda estava quente, também. Sim, definitivamente ainda estava vivo!
Acho que tirei a conclusão errada. Não está morto. Estava dormindo.
— Você quase me matou de susto…
De tanto susto, quase gritei “Jesus” com toda a força. Enfim, o que estava
fazendo dormindo ali? Ele era da realeza. Não deveria estar em uma caminha
macia ou algo assim? Já estava velho demais para estar daquele jeito.
Enquanto eu suspirava com alívio, a porta da cabana se abriu, e Orsted saiu.
— Rudeus… Enfim chegou.
— Oh, hm, sim. Cheguei.
Ele nos encarava.
— Ontem à noite, Zanoba Shirone trouxe aquela coisa para cá.
— Que coisa?
— Aquela armadura que você usou antes em batalha. — Ele olhou para o pedaço
de metal que Zanoba estava encostado.
Após uma inspeção mais detalhada, percebi que era realmente minha Armadura
Mágica. Não tinha reconhecido antes porque estava em pedaços. Parando para
pensar, mencionei que foi destruída em batalha e que a deixei para trás, além de
precisar ir recuperá-la em breve.
— E vocês dois acabaram se encontrando durante isso e lutaram? — perguntei.
— Sim.
Zanoba provavelmente nunca sequer imaginou que Orsted estaria aqui, de todos
os lugares. Eu deveria ter dito a ele antes, mas não tive a chance. Não parecia
que tinha ferimentos graves, pelo menos. Orsted deve ter pegado leve com ele.
— No final da nossa batalha, ele jurou que não me deixaria colocar as mãos nessa
armadura. Disse que tinha que se certificar de entregá-la a você. É por isso que
ele rastejou o resto do caminho até ela. Não há dúvidas de que ele gosta de você.
— Oh, Zanoba! — Eu imediatamente me inclinei sobre ele e usei minha magia
de cura. Já que não possuía ferimentos externos, não era tão complicado, mas eu
queria que dormisse em paz, pelo menos.
Na verdade, agora que penso nisso, Orsted deixou-o aqui depois de ter
desmaiado? Talvez ele seja mais impiedoso do que eu imaginava.
— Uh, então ele vai acordar depois, né?
— Coloquei-o para dormir usando a magia de hipnose passada pela Tribo Nuka.
Ele deve acordar em algumas horas.
Ah, então foi isso que ele usou em Zanoba. Que tipo de magia seria essa…
Deveras intrigante. Essa magia de hipnose também poderia permitir que o
usuário manipulasse as ações de outra pessoa? Tipo, se eu usasse em Sylphie e a
mandasse levantar a saia, ela faria isso?
Se bem que não preciso de magia de hipnose para isso. Ela faria, caso eu pedisse.
Na verdade, se era isso que eu queria, eu precisava comprar uma saia para ela.
Uma minissaia seria melhor. Uma daquelas com babados e enfeitadas
combinaria com ela, com certeza.
Além disso, se a magia de hipnose fosse tão poderosa, Orsted provavelmente a
estaria usando muito mais. Colocar alguém para dormir talvez fosse o limite de
sua utilidade.
— Entre. Vamos retomar nossa discussão de ontem — disse Orsted enquanto
desaparecia de volta para dentro da cabana.
Tirei meu casaco e o coloquei sobre Zanoba. Então, usei minha magia para
conjurar um teto de terra para protegê-lo antes de ir atrás de Orsted. Assim que
terminasse ali, pegaria Zanoba e o levaria de volta para Ginger.
— Permita-me ir direto ao ponto — disse Orsted, enquanto nos acomodávamos
em nossos lugares. Ele tirou meu diário do bolso e o colocou na mesa entre nós.
— Uma leitura deveras fascinante. Tenho certo interesse nessa magia referente
à viagem no tempo que o seu eu do futuro falou, mas já que não temos
informações o suficiente para recriá-la, teremos que deixar de lado por enquanto.
— Certo.
— Foram várias as coisas que chamaram minha atenção, mas antes de
discutirmos o conteúdo do diário, eu gostaria de saber o que você e o Deus-
Homem conversaram no passado. Me conte tudo. Não poupe detalhes.
— Sim, é claro.
Contei tudo o que pude lembrar. Nosso primeiro encontro aconteceu
imediatamente após o Incidente de Deslocamento. Depois disso, eu o vi
novamente na Cidade de Rikarisu, depois no Porto do Vento, Porto Oriental e
logo depois que Orsted quase me matou. Depois disso, eu o vi de novo quando
me matriculei na Academia Mágica, logo antes de ir para Begaritt,
imediatamente antes de meu futuro eu vir visitar e novamente logo depois.
Também nos encontramos enquanto eu me preparava para enfrentar Orsted. Dez
vezes no total.
Dei a Orsted o máximo de detalhes que pude lembrar de cada conversa, incluindo
o que o Deus-Homem me ordenou fazer e como suas instruções se desenrolaram.
Depois do Incidente de Deslocamento, ele me disse para confiar em Ruijerd.
Como resultado, me tornei um aventureiro. Na Cidade de Rikarisu, ele me
instruiu a aceitar um pedido para procurar o animal de estimação perdido de
alguém. Isso me levou a conhecer Jalil e Vizquel e terminou conosco sendo
expulsos da cidade. No Porto do Vento, ele me disse para carregar um pouco de
comida e atravessar os becos. Foi assim que encontrei a Grande Imperatriz do
Mundo Demônio e recebi um de seus Olhos Demoníacos.
Em Porto Oriental, ele me mostrou uma premonição e ordenou que eu fosse a
Shirone. Lá, conheci Zanoba e salvei Aisha e Lilia. Ele não me deu nenhum
conselho grande após o incidente em que Orsted quase me matou. No entanto,
me disse para me matricular na academia e investigar o Incidente de
Deslocamento. Graças a isso, reencontrei Sylphie e nós dois nos casamos.
O Deus-Homem me avisou para não ir a Begaritt. Eu o ignorei, o que levou à
morte de Paul e Zenith se tornar uma casca quase vazia, mas pelo menos não era
tudo negativo — eu me casei com Roxy como resultado. Embora o Deus-Homem
alegasse que Paul teria sobrevivido se eu não tivesse ido.
O Deus-Homem falou comigo de novo, antes de meu futuro eu vir visitar, e me
disse para verificar meu porão. No momento em que saí da minha cadeira para
seguir seu conselho, meu futuro eu apareceu e me disse tudo o que estava prestes
a acontecer. E, como avisou, havia de fato um rato lá embaixo.
Depois que lidei com tudo isso, o Deus-Homem reapareceu, descontente. Foi
quando me disse para matar Orsted. Sem outra opção para proteger minha
família, obedeci e comecei a me preparar para nossa batalha. Foi durante esse
processo que ele visitou novamente para me dar todos os tipos de conselhos. Foi
graças a ele que conseguimos terminar a Armadura Mágica tão rápido.
Orsted ouvia em silêncio enquanto eu falava. Ele sequer grunhiu ou assentiu,
nem fez nenhuma pergunta. Ficou completamente em silêncio até eu terminar.
— E isso é tudo — eu disse. — Entendeu algo com tudo isso?
— Sim. Agora entendo exatamente como ele estava usando você.
Oh, sério? Bem, acho que não deveria estar surpreso, pois era com Orsted que eu
estava conversando.
— Ele usou você para mudar o curso da história — disse Orsted.
— Da história?
— Sim. Normalmente, a mão do destino é tão forte que certas coisas devem ser
imutáveis, mas ele encontrou uma maneira de contornar isso, usando você.
— Porque meu próprio destino é forte demais?
— Precisamente.
Uau. Então meu destino é tão poderoso que pode mudar o curso da história?
— Mas, Senhor Orsted, você não poderia fazer a mesma coisa, se quisesse?
— Sim. — Ele assentiu, dando um tapa no topo do diário. — Mas não consigo
ver o objetivo dele em alterar tanto a história.
— Não é para evitar ser morto? — perguntei.
— Não leve as palavras dele a sério.
— Ah, certo.
Acho que há uma possibilidade de ele estar mentindo sobre tudo isso.
— De qualquer forma, há uma coisa que eu sei com certeza — disse Orsted.
— O que seria?
— O que quer que esteja no final deste curso alterado da história é algo que deve
beneficiá-lo.
— Faz sentido.
Depois de uma breve pausa, Orsted continuou:
— A fim de direcionar o futuro para um curso mais benéfico para mim, você
alterará sua trajetória atual.
Ele quer que eu “altere”, não “corrija”, hein? Acho que faz sentido. Na realidade,
ainda não é história, pois, tecnicamente, não aconteceu. História é aquilo que
você fez no passado.
— Está sendo indireto demais — eu disse.
— Já estou fazendo planos para daqui cem anos. Tudo o que aconteceu até agora,
e que acontecerá a partir daqui, é uma base. Mas graças a você e Nanahoshi,
muito disso acabou saindo dos trilhos.
Cem anos no futuro? Bem, acho que ele está armando as coisas há um tempo,
então não pode mudar seus planos agora.
— Só para esclarecer, nós dois não podemos simplesmente ir aonde o Deus-
Homem estiver e dar um chute em seu traseiro, né?
Orsted balançou a cabeça.
— Até que tenhamos recolhido os tesouros escondidos, não seremos capazes de
chegar ao lugar em que ele está.
— E eu estou supondo que não podemos apenas reuni-los rapidamente, é isso?
— Quatro são fáceis de obter, mas Laplace tem a peça final. Ele não vai reviver
por mais oitenta anos. Serei eu a recolher esses tesouros. É melhor você não agir
por conta própria, entendeu?
Agir por conta própria? Eu não tinha ideia de onde esses tesouros estavam
localizados, para começar. Meu diário mencionou que estavam com os Cinco
Generais Dragão, mas eu só sabia o paradeiro de um, Perugius.
Espera aí. Caos — o Rei Dragão Maníaco — está morto, certo? Isso não vai ser
um problema?
— Fiquei sabendo que o Lorde do Caos já faleceu. Como vai lidar com isso?
— Eu já adquiri o tesouro que ele possuía.
Ah, tudo bem. Então quer dizer que já deu um jeito nisso.
— Mas, espera um pouco — eu disse. — E se o Deus-Homem já previu que você
tentará mudar o futuro?
— Hm?
— Quero dizer, e se eu estiver apenas cavando nossas sepulturas ao agir? Ou a
minha, no mínimo?
— Não. Além de seus poderes de previsão, acredito que também é altamente
provável que ele tenha uma característica especial que faz com que todas as
criaturas vivas deste mundo confiem nele incondicionalmente. Isso o deixou com
deficiências para lidar com irregularidades.
Hã, nunca notei. Acho que dava para dizer que o Deus-Homem tem uma
maldição própria.
Espera. Dizer que as pessoas confiavam nele incondicionalmente era um
exagero. Eu nunca confiei nele, por exemplo.
Mas a maldição do Orsted não funciona comigo. Talvez isso signifique que a
maldição do Deus-Homem também não. Parecia que ele tinha dificuldade em
lidar comigo e com meu constante ceticismo. Embora eu tenha acabado
confiando nele no final…
Talvez sua maldição não fosse tão ineficaz, afinal. E quem sabe minha resistência
à maldição de Orsted pode vir a acabar e eu começaria a temê-lo também.
Não, não há garantia de que a informação de Orsted seja confiável. Suas
suposições sobre a natureza da maldição do Deus-Homem podem não estar
totalmente corretas.
Assim que comecei a pensar nessa possibilidade, comecei a duvidar de tudo. É
melhor parar com isso, decidi.
— Eu não sou bom nessa coisa de “adivinhar o que meu oponente planejou” —
eu disse. — Acha mesmo que podemos vencer isso?
— Sim — disse ele, confiante. — Nosso inimigo não é invencível. Estou a apenas
um passo de acabar com ele.
Parecia mais que ele estava tranquilizando a si mesmo do que a mim. De qualquer
forma, ele tinha a intenção de ganhar. Estava determinado a reivindicar a vitória
no final, mesmo que fôssemos os azarões ao longo do caminho. Achei essa parte
promissora.
— Então, vamos mudar o curso do futuro próximo — disse Orsted.
— Futuro próximo?
— Sim. — Ele fez uma pausa, então continuou: — Faremos da Segunda Princesa
Ariel Anemoi Asura rainha do Reino Asura.
— Certo.
Então íamos dar nosso apoio a ela? Maravilha. Na verdade, estava pensando em
como queria ajudá-la. Se esta era a minha primeira missão, faria com prazer.
Tomei uma boa decisão aceitando um emprego nesta empresa!
— Dependendo das circunstâncias, posso usá-la como um fantoche.
Pisquei.
— Hã…?
Fantoche? Bem, isso certamente soou um pouco ameaçador. Em vez de apoiá-
la, parecia que estaríamos puxando seus pauzinhos. Sim, definitivamente parecia
mais do que um pouco ameaçador.
Acho que a empresa em que me inscrevi é super obscura.
— Mas será mesmo que alguém como a Princesa Ariel seria facilmente
manipulada… — murmurei.
— Eu digo fantoche, mas não seria algo tão extremo como manipulá-la. Contanto
que possamos estabelecer laços com o Reino Asura no futuro, isso será
suficiente.
— Então está tudo bem.
Ele provavelmente estava pensando cem anos no futuro. Cada pequeno passo
que déssemos se somaria, alterando o curso da história no processo. Como
resultado, o mundo seria muito diferente em outro século. Por exemplo,
poderíamos persuadir a princesa a se concentrar mais na pesquisa mágica ou no
fortalecimento dos militares. Poderíamos até lançar as bases necessárias para
corroer todo o reino, se quiséssemos.
— Uh, você tem certeza que está tudo bem fazer isso? — perguntei, perturbado
pelo meu último pensamento.
— É claro. A história como eu a conheço tinha Ariel como rainha, para começo
de conversa.
— Oh? Eu adoraria ouvir mais sobre essa história, se não se importar.
— Muito bem. — assentiu ele. — Originalmente, Ariel Anemoi Asura se tornaria
rainha. Seu curso foi protegido por um destino forte, como se fosse
predeterminado.
— É um pouco difícil para mim acreditar nisso, vendo como ela está agora — eu
disse.
— De fato.
A posição de Ariel só piorou nos últimos tempos. Pelo que eu vi, parecia muito
provável que fosse entrar em combate direto com Perugius. Era por isso que
Sylphie estava constantemente ocupada correndo de um lado para o outro. Eles
estavam tentando o melhor que podiam, mas era uma batalha complicada.
— Para que ela se torne rainha, Ariel precisa do apoio de três pessoas — explicou
Orsted. — A primeira é o mago guardião Derrick Redbat.
Pelo que me lembrava, era o nome do homem que serviu como guarda de Ariel
antes de Sylphie. Eu tinha certeza de que ele havia falecido durante o Incidente
de Deslocamento.
— Derrick era altamente inteligente e ambicioso também. Mesmo sem o
Incidente de Deslocamento, Ariel estava destinada a um dia encontrar Perugius.
E foi Derrick quem convenceu Perugius a se juntar a ela.
Então, basicamente, se Derrick estivesse vivo, ela não estaria na posição terrível
que está agora.
— Derrick continuou a aconselhá-la depois disso, levando-o a assumir o cargo
de primeiro-ministro no final.
Primeiro-ministro, hein? Bem, essa é uma posição muito importante.
Balancei a cabeça.
— E você está dizendo que o Incidente de Deslocamento tirou a vida de alguém
tão crucial?
— De fato. Ele deveria estar protegido por seu próprio destino forte…, mas
morreu.
O que significava que o destino de alguém não era absoluto. Eu supostamente
tinha o destino do meu lado me protegendo da morte também, mas se o fim
sangrento de Derrick era alguma indicação, é melhor eu não deixar isso subir à
minha cabeça.
— Então o que você está tentando dizer é que temos que encontrar alguém para
substituí-lo, certo? — perguntei.
— Não. Se quisermos fazê-la nossa marionete, um primeiro-ministro só nos
atrapalharia. Não precisamos disso.
— Tem certeza de que ela será capaz de governar o país sem um?
— Vir para a Cidade Mágica de Sharia a ajudou a crescer e mudar como pessoa.
Não será um problema.
Se você diz.
Meu medo era que isso voltasse para nos assombrar se fôssemos rápidos e
desleixados demais. Pelo menos ele não estava me dizendo para me tornar o
primeiro-ministro. Eu estava longe de ser um gênio como Derrick.
— A outra pessoa-chave é Eris Boreas Greyrat.
— Eris? — Meus olhos se arregalaram. O que ela tem a ver com isso? Claro, ela
fazia parte da nobreza asurana, mas não tinha conexão com Ariel até onde eu
sabia.
— Originalmente, a guarda asurana a selecionou por sua habilidade com a
espada. Ela se juntou às fileiras deles, e foi assim que conheceu Luke. Os dois
deveriam se casar.
Algo pinicou o meu peito.
— Não consigo mesmo imaginar os dois se casando — murmurei.
— Foi amor à primeira vista para ele.
— É sério isso?
O que Luke deveria ser? Descendente de algum herói ou algo assim? Embora eu
pudesse vê-lo se apaixonando por Eris. Ela tinha um rosto bonito e seios
enormes. Eu não poderia culpar ninguém por ser enganado por sua aparência.
Orsted continuou:
— Não importa quantas vezes ela o socou, ele continuou a persegui-la, e isso
suavizou seu coração. Depois que os dois se casaram, foram extremamente
afetuosos um com o outro.
Um casal muito afetuoso, hein? Hm… Bem, é verdade que uma vez que entra
em seu coração, ela começa a mostrar seu lado mais fofo. Mas toda essa conversa
me fez sentir meio corno, de alguma forma. É isso. Quando voltar para casa, terei
que me esgueirar por trás de Eris e apalpá-la. Tenho certeza que ela vai me bater
por causa disso, mas é um preço que estou disposto a pagar. Se isso significa
tocar o peito dela, não me importo de ser o saco de pancadas.
— Bem, tenho certeza que é uma história que você não acha interessante — disse
Orsted.
— Para falar a verdade, não, não acho.
— Muito bem, vou manter meu resumo breve então.
Eu não poderia me importar menos como a história poderia ter sido diferente.
Nesta linha do tempo, Luke e Eris não estavam juntos.
Sou o único para o qual a nossa bela dama dá seu afeto! Lady Eris pertence a
mim e somente a mim!
— A Eris Boreas Greyrat que eu conhecia era uma espadachim habilidosa,
embora menos do que seu eu atual, mas ainda assim alcançou o nível de Santo.
Apesar de sua bela aparência e status impressionante, sua personalidade ardente
lhe rendeu o epíteto de Leão Vermelho.
Leão Vermelho, hein? Há muito tempo, as pessoas a comparavam a um macaco
selvagem. Um leão era um passo enorme em comparação. Atualmente, ela era
conhecida como Cão Louco.
No final, acho que ainda é uma fera.
— Eris e Luke trabalharam juntos para proteger Ariel de assassinatos inúmeras
vezes, protegendo-a em seu caminho até a realeza.
— Em outras palavras, Sylphie assumiu o papel que originalmente deveria ser
de Eris.
— Correto.
— O que aconteceu com Sylphie nesta linha do tempo alternativa? — Embora
eu soubesse que provavelmente não tinha nada a ver com o tópico principal, não
pude deixar de perguntar.
— Sylphiette virou aprendiz de Roxy Migurdia e mais tarde se tornou uma
aventureira. As pessoas tendiam a odiá-la por seu cabelo verde, mas, no final, ela
conquistou vários labirintos famosos e fez um nome para si mesma como uma
das maiores exploradoras de masmorras do mundo.
— Uau.
Impressionante, Sylphie! Não esperaria menos da minha esposa. Teria que dar
uma bela beijoca em sua orelha quando chegasse em casa.
— E? Com quem ela acabou ficando?
— Não estou tendo esta conversa com você para satisfazer sua curiosidade —
resmungou Orsted.
Oops. Sinto muito por isso. Meus ombros baixaram.
Orsted suspirou antes de continuar, claramente exasperado:
— Até onde sei, nem Sylphiette nem Roxy Migurdia se casaram. Viveram a vida
toda como solteiras.
— Interessante. Obrigado por me dizer.
Então foi assim que as coisas aconteceram. Roxy e Sylphie nunca ficaram com
mais ninguém. Acho que isso significa que as duas pertencem apenas a mim. Isso
aquece muito o meu coração. Especialmente depois de saber que Eris se casou
com Luke. Acho que é isso que querem dizer quando falam sobre um cara ser
possessivo. Aquelas duas garotas são minhas! Não deixarei que mais ninguém
as tenha.
— Você gostaria de ouvir sobre o resto da sua família também?
— Não, vamos voltar ao assunto — eu disse.
Por mais que eu quisesse perguntar, a linha do tempo que ele falava foi uma em
que eu nunca existi. Saber o que aconteceu lá não mudaria nada sobre o presente.
Era melhor ficar com as informações necessárias. Eu tinha ouvido o suficiente
para saciar minha curiosidade.
— Tudo bem, então, já que Sylphie assumiu a posição de Eris, não há problema,
certo?
— De fato. O fato de Ariel ainda estar viva é prova disso. Embora ter Eris ao seu
lado também significasse que Ariel tinha o apoio de Philip Boreas Greyrat e
Sauros Boreas Greyrat.
Eles também foram vítimas do Incidente de Deslocamento. A ausência deles
tornou nossa situação ainda mais terrível.
— Tudo bem, mas você disse que havia três pessoas. Quem é o último?
— Tristina Purplehorse.
Tristina Purpa-o-quê? Esse certamente não era um nome que eu já tinha ouvido
antes.
— Ela é a filha da nobreza de alto escalão, a casa Purplehorse. Ela foi sequestrada
quando tinha oito anos. O Alto-ministro Darius Silva Ganius a mantém como
escrava sexual.
Esse nome não me era estranho. Se me lembro direito, ele estava desfrutando de
um maior apoio e impulso dentro do reino agora. Eu tinha certeza de que ele
estava apoiando o primeiro príncipe. Mas uma escrava sexual de oito anos, hein?
Que cretino.
— Tristina seria secretamente descartada, mas, por sorte, Ariel a salvou. Mesmo
com seu status, Darius não podia escapar da repreensão por ter confinado uma
filha da casa Purplehouse por anos. Ele perdeu sua posição como resultado do
escândalo, que também marcou a queda do Primeiro Príncipe Grabel.
Então o nome do primeiro príncipe é Grabel. Beleza, entendi!
— Tudo bem — eu disse. — Então, onde está essa Tristina nesta linha do tempo?
— Desaparecida.
— E você tem certeza de que ela não está morta?
— Não tenho. Darius tem o hábito de vasculhar imediatamente tudo ao seu redor
sempre que ocorre um incidente. Isso inclui se livrar de escravos, então há uma
grande probabilidade de que ela já esteja morta.
— Nesse caso, acho que é melhor presumir que ela não está mais entre nós.
— Bem, aquele que treina e supervisiona esses escravos para Darius
normalmente vende qualquer um que esteja marcado como descarte para lucrar
com eles. Assumindo que o mesmo aconteceu com Tristina, ela provavelmente
ainda é uma escrava, apenas com um novo mestre. Ou, talvez, se ainda for jovem
o suficiente, tenha aprendido habilidades suficientes para se tornar uma ladra nas
ruas. — Orsted deu um tapinha no meu diário. — A ladra chamada “Triss”, que
foi mencionada em seu diário, me vem à mente.
Triss… Isso mesmo, havia uma ladra que ajudou meu futuro eu a entrar no Reino
Asura. Não havia muitos detalhes sobre ela, no entanto.
— Sim — eu disse —, mas o nome “Triss” não é raro em Asura. Os asuranos
pareciam ter uma preocupação com nomes que tinham “ris” neles, fosse Eris ou
Triss.
— É verdade, mas até onde sei, não havia nenhuma ladra chamada Triss naquela
área. Além disso, Tristina tem uma série de características únicas que combinam
com a mulher descrita em seu diário.
Ah, isso faz sentido.
Já que Orsted sabia qual linha temporal era a original, ele prestava atenção
quando alguém estranho aparecia em meu diário, ainda mais com um nome
semelhante. Talvez fossem de fato a mesma pessoa. Mas alguém chamada
Tristina realmente encurtaria seu nome para Triss? Eu estava tendo a sensação
de que já vi isso em A Viagem de Chihiro.
— Tudo bem, então está dizendo que, contanto que a gente coloque nossas mãos
nela, podemos derrubar o alto-ministro?
— Sim, pois ela é uma testemunha viva de seus crimes.
Em outras palavras, se quiséssemos ter algum sucesso em fazer Ariel rainha,
precisávamos encontrar essa tal de Triss.
— Por que ela não volta para casa? — perguntei.
— O sequestro serviu de cobertura. Na realidade, sua família a vendeu.
— Então, mesmo que sua família a tenha vendido de propósito, você ainda acha
que a notícia de que ela foi mantida como escrava sexual faria Darius perder sua
posição?
— Sim. Até onde o público sabe, ela realmente foi sequestrada. Além disso, a
verdade é apenas um pretexto para derrubar Darius.
Entendi.
Darius tinha vários inimigos, e eles não se importavam com os detalhes de seu
escândalo. Tudo o que queriam era uma desculpa para se livrarem dele. Contanto
que pudessem dizer ao público que ele raptou à força a filha de um aristocrata de
alto escalão, isso seria o suficiente para tirá-lo de seu status.
— Ugh, esse país é um grande pé no saco — resmunguei.
— Concordo. No entanto, é precisamente porque essas pessoas desonestas
residem lá que Asura detém o maior poder do mundo. Seria assim, mesmo que a
terra em que viviam não fosse tão abundante.
Fazia sentido. Na minha opinião, aqueles que discutiam entre si desta maneira
tendiam a desenvolver melhores habilidades de negociação, o que beneficiava na
hora que surgia a necessidade de diplomacia. Mas talvez minhas opiniões fossem
um pouco tendenciosas.
— Mesmo assim — continuou ele —, seremos capazes de remover o Alto-
ministro Darius contanto que tenhamos Tristina. Com ele fora, não teremos
nenhum problema com o resto da oposição.
— Ele é realmente uma figura tão poderosa assim?
Orsted assentiu.
— É. Não é exagero dizer que o atual rei não poderia manter seu trono sem
Darius.
Uau, ele é tão importante assim? Acho que ele é como um fazedor de reis —
alguém que recolhe ouro e estabelece todas as bases.
— Se Ariel de alguma forma não conseguir removê-lo de seu posto atual, então
caberá a você matá-lo.
— Quê? — Fiquei boquiaberto. — Quer que eu faça isso?
— Sim. Você tem um destino forte. Deve ser uma questão simples para você se
livrar dele.
Meu destino realmente tinha algo a ver com ser capaz de matar alguém ou não?
Pensando bem, o Deus-Homem disse algo sobre como eu poderia ser capaz de
matar Orsted quando outros teriam falhado.
Depois de uma longa pausa, eu finalmente disse:
— Tudo bem. Entendi.
Eu não gostava da ideia de matar alguém, mas se isso significasse proteger a vida
da minha família, certamente faria o meu melhor. Meu alvo era um ministro do
mal, de qualquer maneira. Claro que poderia acabar com alguém assim. Se meu
oponente era tão insidioso — basicamente como um Zaku Gundam — então ele
nem podia ser considerado humano.
— Mas, a partir de tudo que ouvi, não era para ter um segundo príncipe e seu
grupo de seguidores? Tem certeza de que não temos que lidar com eles?
— Você se refere ao Segundo Príncipe Halfaust? Ele nunca teve a chance de se
tornar rei. Nem tem vontade, e, além disso, há poucos que pensam que ele é capaz
de se sentar no trono.
Então Halfaust é o nome do segundo príncipe. Não tenho ideia de como ele é ou
que tipo de pessoa é, mas presumo que tem que ser pelo menos um pouco capaz
de ser considerado um candidato ao trono. Melhor prevenir do que remediar, pois
nunca se sabe o que pode acontecer.
— Não há nada com que se preocupar — assegurou Orsted. — Mesmo se
falharmos, sempre haverá uma próxima vez.
— Próxima? Você se refere ao nosso próximo passo?
— Ah… Sim, foi isso mesmo que quis dizer.
— E o que acontecerá com Ariel, se falharmos?
— Ela vai morrer, tenho certeza.
Talvez dois mil anos de vida o tenham insensibilizado ao fracasso. Um plano que
tinha muitos anos em construção teria suas armadilhas. Você nem sempre
conseguia o que queria, e se ele estava jogando a longo prazo, com um século de
antecedência, então era provável que não ligaria para alguns fracassos ao longo
do caminho.
Mas, mesmo assim…
— Não vamos correr riscos. Falar isso de forma irreverente só trará um sorriso
para o rosto do Deus-Homem.
As bochechas de Orsted ficaram vermelhas de raiva, o que me deixou
aterrorizado.
Eu continuei apressadamente:
— Pode haver outros fracassos nos esperando se não nos comprometermos
agora. Esses fracassos somam. Eles podem afetar se você é vitorioso ou não.
Eu não me importava se ele estava mais focado em vencer do que no caminho
para chegar lá, mas se Ariel morresse, havia uma boa chance de Sylphie também
se envolver nisso. Também prometi apresentar Ghislaine a Ariel. Se aqueles
próximos a mim sofressem, eu também sofreria. E eu certamente não queria
sofrer.
— Em vez disso, devemos planejar cada passo com cuidado. Vamos manter a
guarda erguida e garantir que sejamos vitoriosos toda vez que enfrentarmos ele.
— Isto é evidente. — Orsted ainda franziu a testa ameaçadoramente, mas
assentiu em concordância.
— Agora — eu disse —, com isso fora do caminho, nossa primeira tarefa será
colocar a Princesa Ariel no trono. Você emitirá suas ordens, e eu as cumprirei.
Isso soa bem?
— Sim.
Era como se eu tivesse ganhado um patrocinador. Tipo, agora eu tinha Senhor
Orsted da renomada Sociedade do Deus Dragão me apoiando! A única
desvantagem era o trabalho imposto por ele, o que era meio que um saco para
mim.
— Beleza — eu disse. — Vamos bolar um plano para lidar com o Segundo
Príncipe Halfaust então!
— Posso dar um jeito nisso sozinho. Só preciso derrubar os principais nobres
que o apoiam. Como ele não deseja o trono, isso será mais do que suficiente para
fazer com que abandone a briga por ele.
Uma percepção me atingiu enquanto ouvia Orsted. Do seu ponto de vista,
provavelmente não importava quem se tornasse rei. Mesmo que Halfaust de
alguma forma assumisse o trono, ele poderia simplesmente me infiltrar em seu
círculo interno.
— Em cerca de um mês, a notícia deve chegar de que o rei atual adoeceu. Há
algo que precisamos fazer antes disso — disse Orsted.
— O que seria? — perguntei.
Sua expressão ficou sombria, deixando claro que ele não permitiria erros. Bem,
isso é assustador. Provavelmente ele sempre ficava daquele jeito quando estava
falando sério, mas isso não fazia com que parecesse menos intimidador. Se
olhares pudessem matar, eu estaria mortinho da silva agora.
— Precisamos trazer Perugius Dola para o lado de Ariel. Seu apoio será crítico,
se ela quiser assumir o trono.
Apesar da enorme ansiedade que suas palavras causaram, eu meio que previa
isso. Derrick Redbat estava destinado a persuadir Perugius a se juntar a Ariel,
mas ele não estava aqui. Perugius, no entanto, ainda era um trunfo necessário.
Eu teria que assumir o papel de Derrick e encontrar uma maneira de conquistá-
lo.
— Então, basicamente, vou precisar passar o próximo mês me aproximando de
Ariel e Luke enquanto também tento convencer Perugius a se juntar a ela. Estou
certo?
— Sim.
— Então está tudo bem.
Pelo menos tínhamos feito um plano concreto para resolver nosso problema
atual. Íamos mudar o presente na esperança de alterar o curso do futuro daqui a
cem anos. Para isso, precisávamos nomear Ariel rainha.
Isso deve ser bom o suficiente para a nossa primeira reunião de estratégia.
Enquanto pensava nisso, Orsted disse:
— Pegue isso. — Ele tirou um pergaminho do bolso e o entregou a mim.
Desdobrei-o e vi um círculo mágico que tinha sido desenhado nele.
— O que é?
— Um círculo de invocação de Besta Guardiã — disse ele.
— Ooh!
Era aquilo que ele mencionou ontem! Fiquei impressionado por ele ter cumprido
a promessa tão cedo. Imaginei que demoraria um pouco, já que provavelmente
priorizaria a leitura do meu diário primeiro.
— Coloque sua mana nele e imagine algo que vai proteger sua família. Pode até
mesmo ser uma palavra. Isso deve ser o suficiente para invocar algo que você
precisa.
— Uma imagem tão vaga realmente será suficiente? — perguntei.
— Sua reserva de mana é enorme. Você ganhará um parceiro melhor dessa
maneira do que se tentasse invocar algo em específico.
Eu não estava tão convencido, mas, se ele dizia, valia a pena tentar.
— Só espero não acabar invocando nada estranho. Sabe, como uma garotinha
cujo título começa com Imperatriz e termina com Demônio.
— O que vai invocar depende inteiramente de você. Dito isto, Kishirika Kishirisu
possui uma enorme quantidade de poder. Um círculo de invocação tão pequeno
não seria capaz de trazê-la até você.
Então o tamanho é o único problema? Isso significa que se fizermos um círculo
de invocação maior, eu poderia teoricamente invocá-la?
Não que eu quisesse fazer isso. Ela era muito desagradável.
— De qualquer forma — eu disse —, vou me certificar de invocar a Besta
Guardiã amanhã.
— Muito bem.
Meu coração batia forte de tanta animação. Que tipo de criatura eu poderia
invocar? Uma das fortonas, eu esperava. Com ela ao meu lado, eu pareceria duas
vezes mais maneiro do que agora, o suficiente para fazer com que Sylphie e Roxy
se apaixonassem por mim novamente.
Ah, é mesmo. Há mais um assunto importante que esqueci de perguntar a ele.
— É mesmo. Supostamente, um dos meus descendentes vai ajudá-lo no futuro.
Isso significa que eu deveria ter um monte de filhos só para garantir, né? Ou isso
representa o perigo potencial de um deles dar à luz a Laplace mais tarde?
Ele olhou para mim em silêncio antes de finalmente dizer:
— Nenhum de seus filhos dará à luz a Laplace. Faça como quiser.
— Entendido. Farei exatamente isso, então.
Isso significa que estou livre para ter muitos bebês! Certamente Orsted ficaria
satisfeito em ter um grande número de companheiros também.
— Nesse caso, peço que me dê licença. Preciso ver como funciona esse círculo
de invocação que você me deu.
— Certo.
— Vejo você novamente em alguns dias. Se algo acontecer enquanto isso, por
favor, certifique-se de enviar uma carta para minha casa de novo. — Quando
comecei a me levantar, lembrei de mais uma coisa. — A propósito, milorde, você
já foi visitar Nanahoshi?
— Não, ainda não.
— Eu sei que não é meu dever dizer isso, mas se está incomodado por ela ter me
ajudado a montar uma armadilha para você, espero que tenha a intenção de
perdoá-la. Eu basicamente a chantageei para obedecer.
Ele não disse nada, seus lábios formando uma linha fina e estreita. Eu não queria
que tivessem uma briga por minha causa.
— Nanahoshi sempre foi contra eu lutar contra você — continuei. — Ela disse
que você fez muito por ela.
Orsted ficou em silêncio.
— Na verdade, parece que ela ainda se sente culpada por ter concordado em me
ajudar. Se puder ter a bondade de perdoá-la, espero que possa encontrá-la e dar-
lhe a chance de se desculpar, pelo menos.
— Muito bem. Farei como sugere. Nanahoshi é… apesar de todos os seus
defeitos, uma mulher útil.
Isso mesmo! Ela definitivamente é útil. Muito útil!
— Ah, tem mais uma coisa — disse Orsted. — Embora eu possa entrar em
contato com você à vontade, seria inconveniente se houvesse uma emergência e
você não tivesse como entrar em contato comigo. Leve isso junto. — Ele tirou
um anel do bolso do peito e o colocou na mesa.
Eu já tinha visto algo assim antes, e muito recentemente. Na verdade, este era
um anel que Nanahoshi já possuíra, o mesmo que ela usou para atrair Orsted para
minha armadilha.
— Se for necessário, use isso para me chamar.
Quando utilizado, o anel emite um poder mágico que lhe permite agir como um
ímã natural, levando seu anel parceiro a sua localização. Se fosse um implemento
mágico, poderíamos transformá-lo em algo como um radar, mas, infelizmente,
era difícil demais replicar o efeito de itens mágicos. Quase não havia tais
duplicatas na existência.
Orsted, ao entregá-lo para mim, mostrava sua confiança de que poderia me
destruir, caso disparasse outro ataque surpresa contra ele. Ou talvez fosse a prova
de que confiava em mim para não tentar novamente.
Eu escolho acreditar na última opção.
Orsted certamente não tinha nenhum desejo de liberar seu poder real uma
segunda ou terceira vez, esgotando assim sua preciosa mana de novo. Se ele
estava confiando em mim com isso, cabia a mim não o desapontar.
— Muito bem. Nos encontraremos novamente mais tarde.
Guardei o anel e fui para casa. Claro, não esqueci de pegar Zanoba quando saí.
Capítulo 2: Besta Guardiã

Tínhamos um mês até o Reino Asura enviar a notícia de que seu rei havia
adoecido. Nesse tempo, tinha que trabalhar com Ariel para convencer Perugius
a se juntar a ela. Para isso, eu precisava dar todos os detalhes possíveis a Sylphie.
Mas ela provavelmente está com a guarda alta graças à maldição de Orsted, então
talvez eu não consiga convencê-la a me trazer para os planos de Ariel. Eu estava
dividido sobre confiar nela e contar toda a verdade, ou desistir de lutar contra a
maldição de Orsted e evitar mencioná-lo completamente.
Mas, primeiro, eu tinha outro objetivo para completar. Ou seja, a razão pela qual
concordei em trabalhar com Orsted — proteger minha família. Agora que eu era
o garoto de recados dele, estarei longe de casa com mais frequência. Eu precisava
de alguém — ou algo — para assumir o meu lugar.
Assim, minha primeira ordem de trabalhos era invocar uma Besta Guardiã.
Ainda era de manhã quando reuni todos os membros da minha família no jardim.
Isso incluía Aisha, Lilia e Zenith, que normalmente passavam todo o tempo
dentro de casa, bem como Eris, que havia se juntado à família recentemente.
Roxy e Norn também estavam presentes, assim como Tu e Ente. Sylphie
carregava Lucie, que havia acabado de aprender a ficar de pé enquanto segurava
algo.
— Vou invocar uma Besta Guardião que servirá nossa família, agora. Podem
ficar à vontade para aplaudirem.
— Yay!
O aplauso soou da multidão. O fervor do público estava atingindo seu auge. A
apresentação de hoje seria lendária!
Espere, Tu e Ente. Por que vocês dois não estão aplaudindo? Não pode ser assim.
O quê? São animais de estimação, por isso não conseguem aplaudir? Bem, acho
que não há nada que possa ser feito.
— Quanto ao que exatamente vou invocar, temo que não tenho certeza. No
entanto, podemos esperar algo particularmente poderoso. E essa criatura, seja lá
o que for, manterá nossa família segura e protegida.
— Tem certeza que vai dar certo? Que essa coisa não vai nos comer enquanto
você estiver fora? — perguntou Sylphie, preocupada.
Esse é um pensamento aterrorizante.
Dito isso, eu me lembro de ter lido uma história como essa há muito tempo. Algo
sobre alguém que invocou uma besta que não conseguia controlar, e ela matou
todo mundo.
— Entendo que esteja preocupada, mas isso foi feito pela mão meticulosa do
Deus Dragão.
— E é por isso mesmo que estou preocupada.
Logicamente falando, Orsted nunca usaria uma maneira tão indireta de se livrar
de nós, mas Sylphie talvez não estava pensando direito graças à sua maldição.
Mas espere, esse poderia ser o jeito dele de colocar uma coleira em mim no caso
de eu o trair? Tipo, se eu virar as costas para ele, ele vai me ameaçar? “Com um
estalar de dedos, aquela fera que mora em sua casa devorará toda a sua família.”
Isso não parecia provável.
— Enfim, vou invocar agora. Se parecer perigosa, podemos nos livrar dela
juntos, e então darei uma bronca em Orsted.
— Gostei da ideia. — declarou Eris, animada. Ela puxou uma espada de sua
bainha com um tinido majestoso. Ela tinha duas no quadril. À direita estava
Eminência, uma lâmina mágica que o Deus da Espada havia dado de presente. À
sua esquerda estava uma que ela se apegou e usou por um longo tempo.
Não incomodava ter que carregar as duas ao mesmo tempo?
— Quando isso acontecer, todos nós seremos capazes de enfrentar Orsted juntos!
— declarou ela.
Não vamos lutar. Vamos apresentar uma queixa, como um cliente normal
insatisfeito com o serviço. Se tentássemos derrotá-lo, seríamos nós que
estaríamos batendo as botas.
Dito isso, ela parecia terrivelmente feliz. Ela não estava apenas procurando uma
desculpa para começar uma briga com ele, estava?
— Não vamos enfrentar Orsted — eu disse. — Mas teremos muitas chances de
lutar juntos no futuro. Espero que guarde sua força até lá.
Ela fez uma careta, como se a ideia a incomodasse. Tudo bem se quisesse lutar
contra outras pessoas, mas Orsted estava fora dos limites. Nunca na minha vida
queria lutar outra batalha tão desesperada, se pudesse evitar. Eu me mijaria se
tivesse que fazer isso uma segunda vez.
— Ainda assim, você tem certeza de que esse círculo mágico é seguro? Talvez
seja uma boa ideia pedir para que alguém como Lorde Perugius dê uma olhada
nele, não é? — perguntou Roxy. Aparentemente, ela também desconfiava de algo
que Orsted havia feito.
Essa maldição dele é realmente poderosa.
Por mais absurdo que toda a maldição parecesse, a intensidade de suas reações
tornava impossível negar sua existência. Isso tornou a minha decisão fácil,
embora eu tenha decidido dar uma segunda olhada no pergaminho antes de usá-
lo. Eu não iria tão longe a ponto de pedir que Perugius o verificasse, mas não
faria mal examiná-lo mais uma vez.
— Hm.
Parecia um círculo de invocação normal. A parte que restringia as condições da
invocação tinha alguns símbolos com os quais eu não estava familiarizado, mas
não havia nada muito suspeito, pelo que pude ver. Talvez eu possa pedir para
Nanahoshi dar uma olhada? Não, isso seria rude da minha parte. Orsted só fez
isso para mim porque eu não sabia como fazer sozinho. Do que adiantava ser
desconfiado?
— Tenho certeza de que está tudo bem — eu disse.
— Bem, se você diz. Confio em você. Mas espere um pouco até eu pegar o meu
cajado. — Roxy, ao que parecia, não estava totalmente convencida. Ela disse que
confiava em mim, mas ainda assim desapareceu dentro de casa para recuperar
sua arma no caso de as coisas ficarem feias.
— Eu não tenho ideia do porquê todos parecem tão atentos, mas… você tem
certeza de que isso não é perigoso, Irmão? — Norn franziu a testa.
Aisha bateu com a mão no ombro de Norn.
— Não seja idiota. Se fosse tão perigoso, ele não ativaria conosco por perto.
Sua confiança parecia uma adaga no peito. Honestamente, eu não
tinha confirmado se este círculo de invocação era seguro. Eu poderia usar assim
mesmo? Talvez deva esperar até que Perugius verifique, só para ter certeza?
Mas se o fizesse, o olhar afetuoso de Aisha se tornaria uma decepção. E ela só
suspeitaria de Orsted depois disso.
— Se o pior acontecer, agirei como um escudo para todos. Por favor, faça o que
for necessário — disse Lilia.
Bem, isso soava ameaçador.
Eu não pensei que chegaria a isso, mas todo mundo estava tão nervoso que eu
estava no limite. Nós realmente ficaríamos bem?
Não! Preciso ter fé em Orsted. Ele disse que confiava em mim.
— Tudo bem então — eu disse. — Vou usar agora.
Todos concordaram com a cabeça.
Coloquei o pergaminho em uma mesa que criei usando minha magia de terra.
— E lá vai!
Eu me preparei e coloquei minhas mãos no círculo. Concentrei-me, deixando a
magia fluir através de minhas veias e se reunir na ponta dos dedos. De lá,
coloquei no círculo.
Continuei bombeando mais e mais da minha mana. Essa criatura deveria ser algo
que pudesse proteger minha família. Mesmo se eu me drenasse, ainda não seria
o suficiente aos meus olhos. Ficaria feliz de usar até a última gota de mana de
Orsted também, se pudesse. Usar mais mana não necessariamente garantia uma
Besta Guardiã forte, mas eu ainda daria tudo o que tinha.
Orsted também disse que era importante imaginar o que eu queria.
Algo para proteger minha família…
Isso foi vago demais.
Eu precisava de algo incrivelmente poderoso. Poderoso o suficiente para que um
oponente normal não tivesse chance. Algo que era muito leal e nunca se oporia
a mim. E já que deveria estar protegendo minha família, de preferência não algo
grosseiro e indecente. Eu com certeza não queria um monstro tentáculo coberto
de muco. Isso não seria bom para minhas irmãs ou Lucie. Esta Besta Guardiã
seria o cavaleiro de Lucie, então eu precisava de algo respeitável.
Isso mesmo. Uma criatura de elevado caráter moral, que é leal e forte. Beleza,
pedido feito, bora!
— Venha, Besta Guardiã!
O círculo começou a emitir uma luz brilhante, não um branco puro, mas uma
mistura de azul, vermelho, amarelo e verde. Era um arco-íris inteiro. Mas senti
como se a invocação tivesse sido pega em algo, como se houvesse alguma coisa
impedindo-a.
O que poderia ser?
Ignorei e continuei derramando mais mana. O que quer que estivesse bloqueando
o feitiço estalou.
— Aaaah!
Gemeu uma voz, embora eu não soubesse de onde vinha o som. Era a Besta
Guardiã que agora estaria protegendo minha família? Parecia bastante sinistra,
como se a criatura estivesse sofrendo. Eu simplesmente aumentei minha
produção de mana, puxando o que quer que fosse através do círculo de
invocação.
— Aaaaah! — Uma voz soou quando o fluxo de mana que eu estava alimentando
no círculo foi abruptamente interrompido.
A luz desapareceu e, lá de dentro, apareceu…
— Khh…
Um homem de máscara amarela e uniforme branco, uma grande adaga pendurada
ao seu lado. Ele estava empoleirado no topo da plataforma de terra que eu havia
criado, de joelhos com os braços enrolados em torno de si mesmo.
— Como isso é possível… Como meu contrato com Lorde Perugius poderia ser
destruído assim…?
Ele permaneceu naquela pose enquanto levantava a cabeça e olhava em volta. A
máscara obscureceu seus olhos, mas eu poderia jurar que estava olhando direto
para mim.
— Qual é o significado disso?! — exigiu o homem mascarado.
Não, era errado chamá-lo assim. Eu sabia exatamente quem era.
Arumanfi do Brilho. Arumanfi, o Brilhante.
A pose que ele estava lembrava um anjo caído. Não que eu esteja tentando fazer
pouco caso dele, juro. Eu não seria capaz de me igualar ao seu brilho. Ele é muito
mais brilhante do que eu. Brincad-
— Estou te perguntando, Rudeus Greyrat, quais são suas intenções aqui?! — Ele
saltou da mesa e tentou me agarrar pelo colarinho, mas congelou no meio do
caminho, e todo o seu corpo tremia.
Eris imediatamente se moveu para a posição de batalha, mas levantei a mão para
detê-la.
Garota má. Volte para o seu canil, Eris.
Sério, o que estava acontecendo? De todas as pessoas, invoquei o brilhante e
nobre Arumanfi. Isso era mesmo possível? No entanto, apesar de sua forma
humana, ele era um espírito. Talvez isso não tenha sido tão surpreendente, afinal.
Não que isso explicasse tudo. Foi tudo um estratagema de Orsted? Ele estava
tentando provocar Perugius, para fazê-lo me matar em vez disso?
Oh, qual é, se vai tão longe assim, então basta fazer o trabalho sozinho.
— Uh, não, sabe… Isso meio que rolou… Eu estava ativando um círculo mágico
que o Senhor Orsted me deu, e meio que… invoquei você sem querer.
— Você disse um círculo mágico de Orsted? O que estava tentando invocar?
— Uma Besta Guardiã para tomar conta da minha família.
Arumanfi pegou o pergaminho com o círculo mágico. Ele o estudou antes de
abrir.
— Essas são algumas estipulações incômodas que ele colocou na entidade
invocada.
— Hm, que condições são essas?
— Aquele que este círculo invoca deve ser absolutamente obediente a você, e
deve defender sua família contra quaisquer calamidades que possam acontecer
em perpetuidade. Em outras palavras, deve servi-lo pela eternidade.
Uau. Então, basicamente, este círculo era um contrato de escravidão?
A boa notícia é que Orsted não mentiu para mim. Parece que ele é confiável,
afinal!
— Mais alguma coisa? — perguntei.
— O invocador será aquele que determina o que é invocado.
Então, basicamente, eu poderia decidir que Besta Guardiã recebia. Ótimo.
— Então eu gostaria de fazer uma troca.
— Uma troca?
— Sim, não era minha intenção invocá-lo, Senhor Arumanfi. É por isso que
gostaria de trocá-lo por outro.
— Então seja rápido e desfaça o contrato comigo. Sou o orgulhoso servo de
Lorde Perugius, não seu.
— Hã, sim. Certo.
Para ser honesto, não era uma ideia tão ruim ter Arumanfi protegendo nossa
família. Ele se movia na velocidade da luz, então, caso algum imprevisto
acontecesse, seria a pessoa perfeita para me passar uma mensagem.
Sim, mas Perugius o valoriza demais. Se eu o tirasse dele, poderia causar
discórdia entre nós.
Franzi as sobrancelhas.
— Hm, então, como eu faço isso, exatamente?
— Ordene-me que volte para o lado de Lorde Perugius agora mesmo. Dotbath
da Destruição será capaz de romper o contrato.
— Certo.
— Ordene-me. Agora.
Devido à cláusula de obediência absoluta, ele precisava de uma ordem direta
minha para sair.
— Beleza, então pelo poder deste círculo de invocação, eu ordeno que você vá
até Lorde Perugius e peça conselhos a ele sobre a melhor forma de invocar uma
boa Besta Guardiã.
Arumanfi manteve o círculo mágico em suas mãos enquanto desaparecia em um
flash de luz.
— Peço desculpa a todos, pois parece que estraguei com tudo — eu disse
enquanto olhava para a minha família.
Todos olhavam para mim, de queixo caído.
Arumanfi voltou depois de um tempo. Ele entregou uma mensagem de Perugius,
sibilando sobre como ele havia deixado essa transgressão de lado, mas era melhor
que nunca mais acontecesse. Afinal, Arumanfi tinha um orgulho extremo de seu
status como servo de Perugius. Eu me senti genuinamente culpado por roubar
isso dele, mesmo que por pouco tempo.
O círculo que Orsted me desenhou parece ter perdido seu poder quando o
contrato foi anulado, então Perugius me fez um novo. Era difícil acreditar que
ele me mostraria tamanha bondade depois que fui tão rude ao roubar um de seus
servos. Ele era mesmo tão magnânimo quanto Sylvaril alegava.
A parte verdadeiramente aterrorizante de toda a provação era o nível de poder
que o círculo de Orsted havia feito. Ou talvez a culpa fosse da minha própria
magia? Talvez ambos. Cada um deles era apenas uma faísca, mas, se
combinados, formavam uma chama furiosa.
Como a invocação de antes não havia esgotado muito da minha mana, decidi me
recompor e tentar de novo imediatamente. De acordo com Perugius, era melhor
não imaginar conceitos vagos como majestoso, onisciente ou onipotente, mas
sim um animal.
Se isso fosse tudo, gostaria que Orsted tivesse dito antes. Mas conhecendo-o, ele
provavelmente teria me dito para manter Arumanfi, mesmo essa ideia parecendo
loucura.
— Beleza, vamos tentar mais uma vez.
Eu examinei a área antes de colocar minhas mãos no círculo mágico de novo.
Desta vez, eu ia manter uma imagem concreta em minha mente. Eu queria um
animal forte e orgulhoso.
Um leão!
Eu não tinha ideia se eles existiam aqui como eu os conhecia, mas a palavra
existia na língua, então certamente havia algo semelhante. Eu queria o rei das
feras, a criatura mais forte que este mundo tinha a oferecer. Embora, se eu
quisesse algo leal, talvez fosse melhor ser servido por um canino do que por um
felino.
Nem, isso não importa. O círculo mágico requer obediência absoluta, então só
preciso focar em algo que é forte. Quero a besta mais nobre que existe neste
mundo.
Concentrei toda a magia que tinha em todos os cantos do meu corpo na minha
mão direita. Por um tempo, fechei bem os olhos, mas enquanto as últimas gotas
de mana que eu tinha em meu corpo iam para o círculo, os abri de novo.
Vamos! Que venha algo incrível!
Respirei fundo quando o círculo mágico emitiu uma luz deslumbrante. Era o
mesmo arco-íris colorido que eu tinha visto antes, mas, desta vez, não
experimentei a sensação do feitiço travando em algo. Minha mana fluiu
suavemente para o círculo, e o que quer que estivesse do outro lado atendeu ao
meu chamado. Na verdade, parecia que uma mão estava sendo estendida em
minha direção, e tudo o que eu precisava fazer era pegá-la e puxar. Eu estava
confiante de que teria sucesso desta vez.
— Tudo bem, venha! — gritei.
Um leve uivo ecoou pelo ar.
— Auuuuuu!
Ficava cada vez mais alto, zumbindo em meus ouvidos.
Deveria dizer algo enquanto invoco essa coisa? Na verdade, acho que não
importa…
Enquanto ponderava, a luz desapareceu. O que estava diante de mim era um leão
branco, com mais de dois metros de altura. Presumi que fosse fêmea, já que não
tinha juba. A forma com a qual seu focinho estava estendido, entretanto, me
lembrava mais um cão do que um gato.
Espere, isso não é um leão. É um cachorro. E a julgar pelo quão curtas suas
pernas são, é um filhote.
Na verdade, após uma inspeção mais detalhada, percebi que sua pele não era
branca, mas prateada. Parecia um filhote de shiba inu, mas muito maior.
Hmm… Estraguei tudo de novo?
— É adorável! — exclamou Aisha.
— Mas tem certeza que essa coisa aí pode nos proteger? Norn franziu a testa.
— Bem — disse Sylphie — Para um filhote, parece confiante.
Roxy assentiu.
— No mínimo, parece inocente demais para qualquer um suspeitar que é uma
Besta Guardiã.
As duas pareciam aprovar.
— Parece inteligente — comentou Lilia. Ela tinha um rosto inexpressivo
perfeito, por isso era difícil saber o que estava pensando, mas não franzia a testa,
pelo menos.
Zenith estava sem expressão como sempre. Eu não tinha ideia do que Ente
pensava de nossa mais nova adição, mas Tu já estava deitado de costas,
expressando submissão à nossa Besta Guardiã.
Pelas primeiras impressões, não parecia nada mal.
Mas tenho certeza que já vi esse filhote antes.
— Espere — disse Eris. — Não é a Besta Sagrada que estava apegada a você na
Vila Doldia, Rudeus?
Isso mesmo! Acabei de lembrar. Uh, quais eram mesmo as palavras na Língua
do Deus Fera…
Pigarreei e disse:
— Você é a Besta Sagrada de Doldia?
— Auau.
O grande cachorro balançou a cabeça em resposta antes de lamber meu rosto.
Ugh, que fedor… Droga, o que essa coisa acha que sou? Um pedaço de carne?
Pelo menos eu tinha certeza do que invoquei.
— Entendo.
A Besta Sagrada, hein? A mesma que a tribo Doldia valorizava tanto que a
trancaram bem nas profundezas de sua vila…
Droga. Se descobrirem que a invoquei para servir como minha guardiã pessoal,
ficariam irritados demais, não? Se me colocassem na lista de procurados, só
causaria mais problemas. Eu já tinha coisa demais para lidar.
Acho que também vou precisar trocar essa…
Mas a anulação do contrato causaria mais problemas para Perugius ou Orsted. E
não havia garantia de que eu conseguiria algo melhor na terceira tentativa.
Hmm…
Falei na Língua do Deus Fera:
— Ó Besta Guardiã, se me permite a humilde pergunta, você possui o poder de
proteger minha família de qualquer calamidade que possa cair sobre ela?
— Auau!
Ele parecia estar dizendo “Deixa comigo!” Parecia bem motivado, mas, por outro
lado, já tinha sido sequestrado antes. Eu poderia realmente confiar nele para
protegê-los? Orsted me garantiu que o Deus-Homem provavelmente não viria
mais atrás da minha família, então talvez eu não tivesse nada com que me
preocupar, mas…
— Arf?
Enquanto eu estava perdido em pensamentos, a Besta Sagrada saltou da mesa de
invocação e pressionou seu corpo contra mim, lambendo meu rosto novamente.
Ahh, ele é tão macio… Com certeza eles têm usado algum tipo de condicionador
nele. E se é a nossa Besta Guardiã, isso significa que vou ser capaz de desfrutar
de seu pelo fofo todos os dias.
— Pois é, acho que me enganei. Esta aqui com certeza não é a Besta Sagrada.
Não mesmo. Esta não era a criatura sagrada que o povo-fera admirava com tanta
reverência. Definitivamente não. Não havia como seu deus protetor aparecer aqui
de maneira alguma. Tinha que ser um sósia.
Isso mesmo. Esta coisa é um… um leão, é isso!
Estava claro que era um filhote de leão que invoquei de um entre a infinidade de
mundos alternativos. Pelo menos era esta a explicação que decidi. Era boa o
bastante para mim. Embora a desculpa não parecesse ter forças quando se tratava
de me proteger da ira de Doldia.
Bem, se as coisas começassem a dar errado, eu poderia pedir ao Lorde Perugius
por um favor e trocar este filhote de leão por outra coisa. Até lá, teríamos um
período experimental.
— Muito bem. De hoje em diante, seu nome é Léo! — proclamei, erguendo a
mão para o alto.
A Besta Sagrada prontamente lambeu meus dedos antes de bufar em resposta.
Então, de repente, levantou a cabeça como se tivesse notado algo. Seu olhar se
virou para Roxy. Léo trotou até ela antes de enfiar prontamente o rosto na saia
dela.
— Ack! Ei! O que está fazendo?! — gritou Roxy, batendo nele com o cajado.
Nosso canino pervertido apenas fungou e lambeu sua perna antes de envolver
seu enorme corpo ao redor dela.
— Hm, Rudy… O que eu devia fazer a respeito disso? —Nervosa, ela olhou para
mim.
Eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas estava claro que nosso novo
membro da família estava apegado a Roxy.
— Léo, agora que eu o invoquei, você é meu servo — eu disse na Língua do
Deus Fera. — Seu dever é proteger minha família. Entendeu?
— Auau! — latiu ele, alegremente.
Eu não tinha ideia de como um filhote seria útil para cuidar de todos, mas como
era isso que eu havia invocado, seria nossa Besta Guardiã a partir de agora.
Não tenho dúvidas de que irá provar seu valor.
— Léo, permita-me explicar um pouco sobre qual é o seu trabalho aqui. Sei que
está acostumado a ficar de boa e deixar que as pessoas o mimem, mas não é o
caso aqui. Você vai ter que usar uma coleira e viver em uma casa de cachorro
como um cão normal. Se alguém suspeito aparecer, você late para ele, morde e
o incapacita. Se for forte demais, tem a minha permissão para matar. Terá três
refeições por dia, e é livre para tirar cochilos sempre que quiser. Se assim o
desejar, até o levaremos para passear quando quiser. Se achar essas condições
aceitáveis, por favor, ladre uma vez.
— Au!
Ótimo, esse é o tipo de resposta que gosto de ouvir. E mais uma coisa…
— Nem preciso dizer que, caso tente fazer qualquer coisa para machucar minha
família…
— Arf… — Sua garganta retumbou, como se ele estivesse ofendido com a mera
ideia.
— Ótimo. Então nosso contrato está selado. Agora vamos dar um aperto de mãos.
— Estendi a mão e ele prontamente ofereceu a pata.
E com isso, nossa família tinha um novo animal de estimação.
Capítulo 3: Movimento Inicial

Dois dias se passaram desde que invoquei nossa Besta Guardiã. Pedi para gravar
seu nome em uma coleira de couro que enrolamos em volta do seu pescoço, e
construímos uma grande casinha de cachorro para ele. Seu trabalho era,
essencialmente, ser nossa segurança.
Quando eu acordava de manhã, ele estava esperando na entrada da frente quando
Eris e eu saíamos para treinar no quintal. Continuava de pé na entrada como uma
sentinela até que fosse hora de dar um passeio.
Assim que voltávamos para o lar, entrava em casa e cuidava de todos. Léo
periodicamente fazia rondas no recinto para garantir que nada estava errado. Se
estivesse, fazia o possível para remediar. Se Lucie estivesse chorando, ele a
confortava. Se Aisha saísse para fazer compras, ele a acompanhava. Quando
fosse pedido, até levaria Norn para a escola.
Era como se tivéssemos nosso próprio sistema de segurança.
Léo era incrivelmente inteligente, ouvia com atenção o que minha família lhe
dizia e era perfeitamente treinado na utilização do banheiro. Quanto aos truques,
ele sabia esperar, deitar, dar a patinha e implorar, e coisas ainda mais
complicadas, como girar três vezes e latir, além de dar cambalhotas como um
gato.
Também era muito submisso à minha família. Quando Aisha ou Norn se
aproximavam nervosamente para acariciá-lo, abanava o rabo com tanta força
que parecia um rotor de helicóptero. Ele gostava particularmente de Roxy e agia
como um cavaleiro leal ao seu redor. Sua atitude em relação a ela era
marcadamente diferente de suas interações com todos os outros. Quando Roxy
acordava, ele a rodeava enquanto abanava o rabo e tentava enfiar a cabeça entre
as pernas dela. A primeira vez que fez isso, eu o repreendi, dizendo: “Eu sou o
único que pode lambê-la lá”. Ele agiu desanimado e desistiu, mas, no dia
seguinte, estava de volta.
Roxy normalmente se deslocava para trabalhar nas costas de Dillo, mas notei
Léo latindo para ele, como se estivesse tentando dizer algo. Eu não tinha como
decifrar suas palavras ou saber se Tu as estava ouvindo, mas o tatu parecia se
afastar nervosamente de Léo. Também vi Léo no pé da escada enquanto Roxy
subia, encarando-a como se estivesse preocupado que ela pudesse escorregar e
cair. Sua superproteção quase me fez sentir como um marido patético por não
me preocupar tanto com ela.
Eu me perguntava o porquê dele estar tão focado apenas em Roxy, mas talvez
fosse porque era um cachorro. Talvez pudesse farejar qual dos membros da nossa
família era o mais impressionante.
Pensando bem, Linia e Pursena pareciam ter a mesma habilidade.
Apesar de agir como o servo perfeito para Roxy, Léo e Eris não eram os mais
compatíveis. Ou melhor, Léo parecia desencorajado com ela. Ela, por outro lado,
adorava animais. Amava enfiar a cara no pelo macio deles e abraçá-los com
força. Talvez ela o tivesse encurralado e feito exatamente isso sem que eu
soubesse. O poder do Rei da Espada Louco não era brincadeira. Eu mesmo tinha
sentido na pele. Quando ela abraçava alguém com toda sua força, era como ser
esmagado até a morte por um urso. Sua vida passava diante de seus olhos.
Eu não me importava em ser abraçado assim, mas podia entender o motivo de
Léo manter uma distância. Ele só se aproximava dela quando era hora de ir
passear, quando os dois checavam o perímetro da casa antes de partirem.
Tive um pressentimento que isso tinha a ver com a resistência dela. Um passeio
para ele não era uma caminhada ao redor do quarteirão; eu suspeitava que ele
estava circulando em volta de toda a cidade em seus pequenos passeios. Para
conseguir isso tão rapidamente exigia uma velocidade impressionante, e a única
pessoa em nossa casa que poderia igualar esse ritmo era Eris. Sylphie poderia ser
capaz de acompanhar, se tentasse, mas por pouco. De qualquer forma, Léo
normalmente escolhia Eris como sua parceira de passeios. Talvez ele a
considerasse uma companheira de guarda.
Aliás, o território de Léo abrangia um raio de dois quilômetros ao redor de nossa
casa. Ele não deixaria nem um gato de rua entrar em seu território. Pelo que
parecia, estava cumprindo sua missão de proteger nossa família. Todo esse
negócio da Besta Guardiã me deu mais paz de espírito do que eu esperava.
Não havia dúvida de que um cachorro era uma boa escolha.
O único problema era que o tal do cachorro também era o deus protetor da tribo
do povo-fera. Quando Ghislaine veio ver Eris, ficou boquiaberta ao encontrar
Léo.
— Não consigo entendê-lo quando fala — disse ela —, mas me parece que veio
por vontade própria, caso em que a Tribo Doldia não deve ter queixas.
Então posso ficar de boa.
Era hora de passar para o próximo passo do plano. E, bem na hora, Luke apareceu
na nossa casa.
Eu tinha saído para fazer uma tarefa rápida, que levou apenas vinte minutos.
Quando cheguei em casa, Luke estava parado no portão da frente.
Imediatamente me escondi nas sombras para ficar de olho nele, lembrando o que
Orsted me disse sobre o Deus-Homem ser capaz de manipular as pessoas.
Também me lembrei da entrada no meu diário que mencionava Luke sendo
usado pelo Deus-Homem para derrubar Sylphie. Meu futuro eu era
reconhecidamente um pouco paranoico, então sua palavra pode não ser a mais
confiável, mas se o Deus-Homem quisesse acabar com Sylphie ou Ariel, Luke
seria um fantoche eficaz. Sylphie confiava nele, afinal, independentemente do
que ela dissesse sobre ele.
Em outras palavras, Luke tinha a maior probabilidade de ser escolhido como um
dos apóstolos do Deus-Homem. Se estivéssemos em guerra com ele, seria
primordial localizar seus seguidores e descobrir seus motivos. Com isso em
mente, fiquei de olho nele enquanto corria de sombra em sombra até estar perto
o suficiente para ouvir sua voz.
— Nunca soube que alguém tão incrível quanto você veio para esta cidade. Você
é maravilhosa, adorável. Seus olhos são tão lindos e cheios de determinação, e
seu cabelo é macio como seda. É como um anjo… não, como uma deusa da
beleza que veio agraciar este mundo com sua presença! Bastou um único olhar
para que meu coração fosse roubado!
Suas palavras fizeram minha cabeça doer.
Que monte de clichês fora de moda.
Nem eu diria algo tão sentimental e exagerado. Mas talvez essas coisas fossem
perfeitamente normais neste mundo? Se eu dissesse algo assim para Sylphie,
talvez ela ficaria vermelha como um tomate. Eu já conseguia imaginá-la sorrindo
timidamente e dizendo: “Não precisa se esforçar muito para me bajular. Já sou
toda sua, Rudy”. Ehehe.
— Oh, peço perdão pelos meus modos — disse Luke. — Eu nem me apresentei.
Sou Luke Notos Greyrat, segundo filho da minha casa. Os Notos Greyrats
presidem uma das quatro principais regiões do Reino Asura.
Se ele realmente fosse um dos lacaios do Deus-Homem, fazia sentido que
exagerasse quando flertasse com uma garota, especialmente se fosse sob o
comando do Deus-Homem. Seria estranho ir tão longe assim, se não fosse o caso.
Não faltavam mulheres para rodeá-lo. Baseado no que Sylphie me disse, ele via
as garotas como pouco mais do que brinquedos sexuais descartáveis.
Mais importante, com quem diabos ele estava tentando flertar agora? Não
consegui ver bem de onde estava me escondendo. Se estava comparando seu alvo
a um anjo, a primeira pessoa que veio à mente foi Sylphie, mas não ousaria falar
com ela assim. A palavra deusa imediatamente trouxe Roxy à mente, já que era
exatamente o que ela era para mim, mas também não poderia ser. Então… Aisha,
talvez? Não, ela era mais como um diabinho do que um anjo.
— Perdoe minha audácia, mas poderia me dar a graça de seu nome? Claro,
entenderei se não quiser me dizer o sobrenome. Mas te suplico, ó formosa, que
pelo menos compartilhe seu primeiro nome como consolo, para que eu possa
gravá-lo em meu coração.
Assim, pelo menos, serei capaz de ouvir o nome do alvo de seus afetos. Quem
ele estava tentando conquistar? Quando eu soubesse a resposta, poderia descobrir
em quem Deus-Homem estava de olho. Claro, assumindo que Luke realmente
fosse um de seus apóstolos. Não podia descartar a possibilidade de que tivesse
se apaixonado por um dos membros da minha família à primeira vista.
No entanto, se for o último caso, eu seria um pouco mais do que apenas um
bisbilhoteiro.
— Ah, vejo que você se recusa a compartilhar seu nome comigo. Então, pelo
menos, imploro que me dê a honra de beijar sua mão. Isso por si só será o
suficiente para me consolar. — Ele se inclinou para frente, estendendo a mão em
direção à outra pessoa.
Sua cabeça sacudiu momentaneamente. Então todo o seu corpo congelou.
O que aconteceu?
Ficou claro que algo estava acontecendo. Foi um ataque do Deus-Homem sobre
ele? Ou estava sendo controlado neste exato minuto?
Enquanto eu contemplava tais perguntas, Luke de repente caiu de joelhos e
desmaiou. Ele sequer se mexeu. Perdeu a consciência por completo. Mas o que
raios aconteceu?
Espere, tenho certeza que já vi isso antes. O puxão, o colapso e a perda de
consciência… Oh, céus, isso faz com que a minha cabeça também doa.
— Hmph.
Depois que Luke caiu, uma mulher saiu do nosso portão e olhou para ele. Ela
bateu o pé na cabeça inconsciente dele.
Eris. Foi Eris quem o nocauteou.
— Qual que é a sua, hein? Apareceu do nada e ficou falando abobrinha que nem
um doido! — Ela franziu o nariz, chutando-o novamente para empurrá-lo para
fora do caminho. Então voltou marchando para casa como se nada tivesse
acontecido.
Saí das sombras e fui até Luke. Ele ainda estava inconsciente, o branco de seus
olhos aparecendo. Ela deu um belo sopapo nele. Tive que questionar sua moral
por se atrever a dar em cima de uma das minhas esposas, mas parando para
pensar, lembrei sobre o que reportei a Ariel e Luke quando cheguei em casa, e
não contei a ele sobre meu casamento. Na realidade, essa foi a primeira vez que
ele viu Eris.
Ainda assim, fiquei chocado por ter tentado dar em cima dela daquela maneira.
Talvez a linha do tempo original em que os dois ficaram juntos tenha o
influenciado. Ou talvez fosse a prova de que ele realmente estava aliado ao Deus-
Homem. Era difícil ter certeza, de qualquer maneira.
Apertei os lábios. Por enquanto, pelo menos, era melhor não o deixar deitado do
lado de fora. Decidi arrastá-lo para dentro de casa comigo. Eu poderia começar
o interrogatório assim que recuperasse a consciência.
— Cheguei — disse enquanto puxava Luke para dentro.
Eris estava lá para me cumprimentar, embora estivesse em silêncio no início. Seu
rosto se iluminou quando me viu, mas no momento em que avistou Luke, franziu
as sobrancelhas e cruzou os braços.
— Conhece esse cara aí? — perguntou ela.
— Pois é. Bem, acho que pode dizer que é colega de Sylphie, para ser mais
preciso.
— O-Oh… Bem, foi mal. Dei um soco nele.
Oh? Ela está sendo mansa demais.
Balancei a cabeça.
— Está tudo bem. Aposto que foi culpa dele por dizer algo inapropriado.
— Foi — concordou ela.
— Sendo assim, a culpa é só dele.
Ele ganhou o que pediu por tentar colocar suas mãos sujas em minha Eris.
Mesmo assim, eu ia deitá-lo em algum lugar para que pudesse descansar.
Ele atrapalharia se eu o colocasse na sala. Talvez eu devesse jogá-lo em um dos
quartos vazios no primeiro andar.
— Ei, Rudeus — Eris chamou por mim.
— Sim?
— Você também quer beijar minha mão?
Encarei a mão dela. Estava coberta de calos devido ao treinamento, muito áspera
e dura para a mão de uma mulher. Ainda assim, combinava com ela, e eu gostava
de suas mãos do jeito que eram.
— Prefiro beijar seus lábios do que a sua mão.
Isso me rendeu um soco rápido no estômago. Ela não colocou tanta força, mas a
sua mira foi tão precisa que acertou em cheio no fígado.
— Está fora de questão até anoitecer — ralhou Eris, seu rosto ficando vermelho
enquanto caminhava em direção à sala de estar.
Ah, beleza. Então estou livre para clamá-los à noite. Mal posso esperar.
Deixando isso de lado… O que devo fazer agora? Pessoalmente, eu queria
consultar Sylphie logo para que pudesse transmitir meu desejo de ajudar Ariel.
Dessa forma, todos nós poderíamos trabalhar juntos para persuadir Perugius a se
juntar a ela. Infelizmente, eu não tinha ideia do que motivou Luke a viajar para
cá. Se viesse para causar problemas em nome do Deus-Homem, eu com certeza
não poderia deixar isso passar.
Acho que vou esperar Luke acordar.
Enquanto Luke permanecia inconsciente, fui ver Sylphie e as outras. Eu ficaria
de coração partido se algo de ruim acontecesse com o restante dos membros da
minha família enquanto eu estava preocupado com Luke. Embora era provável
que isso não fosse acontecer, já que Eris estava ali.
Léo estava no topo da escada, no segundo andar, sentado de maneira obediente,
com uma expressão de alerta. Passei por ele e verifiquei vários dos quartos. O
quarto de Roxy estava cheio de roupas, mas desocupado. Considerando que Tu
também estava ausente, provavelmente era seguro afirmar que ela já havia saído
para a academia.
Sylphie e Aisha estavam cozinhando na cozinha. Saí rápido, não querendo
interrompê-las. Encontrei Zenith enfiada na cama, dormindo, com Lilia lendo
um livro ao seu lado. Nada de estranho.
Encontrei Eris brincando com Lucie na sala de estar. Lucie agarrou as mãos de
Eris e subiu em cima do sofá, enquanto Eris a apoiava nervosamente e cuidava
dela. Foi uma visão emocionante, mas só pude saboreá-la por alguns instantes.
Então voltei para a quarto onde deixei Luke.
Ele já havia recuperado a consciência quando voltei.
— Tive um sonho com um anjo ruivo. Ela era linda e doce, mas também era tão
forte. Minha mulher ideal. Mas quando tentei beijar a mão dela, acordei. — Ele
estava sentado, os olhos vazios enquanto murmurava incompreensivelmente para
si mesmo.
Deve ter sofrido algum dano cerebral depois do soco da Eris. Espere, não pode
ser isso. Ele estava dizendo aquela merda de anjo antes de ela bater nele.
— Por favor, acalme-se, Mestre Luke. Não existe anjo ruivo.
— Ah, Rudeus. — Ele olhou para mim distraidamente. — Espera, o que está
fazendo aqui? Hã? Onde estou… estou na sua casa? Eu estava no portão da frente
agora há pouco, e aquele anjo… O que está rolando?
Suas memórias estavam confusas. Pelo menos não parecia que tinha encontrado
o Deus-Homem durante seu breve lapso de consciência.
— Aah! — Luke olhou para trás de mim e gritou.
Olhei para trás e Eris estava lá. Ela abriu a porta e estava olhando para dentro.
— Hmph! — Ela deu uma olhada em Luke, bufou e marchou de volta para a sala
de estar. Pelo que parecia, estava um pouco preocupada com ele.
O coração da minha frágil donzela estava batendo de preocupação. Não me diga
que ela já começou a desenvolver sentimentos por ele? Isso não pode ser verdade,
certo?
— Ah, espera! Seu nome, por favor, pelo menos me dê seu nome! Se você
também puder me dar seu endereço e me dizer sua flor favorita, eu ficaria
eternamente grato! Ah, e ficaria encantado se pudesse me dizer que tipo de
homem gosta!
— Por favor, acalme-se — eu disse. — O endereço dela é aqui. É aqui que ela
mora.
Consegui impedir Luke de segui-la para fora do quarto, mas ele me agarrou pelos
ombros e aproximou o rosto.
— Rudeus, se ela mora aqui, isso deve significar que você é parente, certo?!
Diga-me, quem é ela?!
— O nome dela é Eris Greyrat. Nós acabamos de nos casar.
— Quê… Você se casou…? — Luke congelou. — Então isso significa… que
ela é sua mulher?
— Sim, isso mesmo.
Dada a nossa dinâmica de relacionamento, provavelmente era mais adequado
dizer que eu era o homem dela, mas o significado era o mesmo.
— Oh… — A voz dele foi sumindo.
Por instinto, eu disse:
— Sinto muito.
Luke balançou a cabeça.
— Por que você se desculparia? É como diz o ditado: deus ajuda quem cedo
madruga.
— Suponho que seja verdade.
Depois de ouvir sobre a linha do tempo alternativa de Orsted, não pude deixar de
me sentir culpado. Luke e Eris originalmente deveriam ser um casal. A situação
era parecida com receber uma encomenda e descobrir que estava no nome do
vizinho.
Mesmo assim, isso não mudou nosso passado juntos. Eu que fui seu tutor e viajei
até o Continente Demônio com ela. Tínhamos compartilhado nossa primeira
experiência sexual juntos.
Luke suspirou.
— Não é tão raro ver boas mulheres se apaixonarem por um único homem. Ou
para bons homens se apaixonarem por uma mulher solteira. — Seja qual for a
razão, ele continuou: — Os homens muitas vezes mantêm um número de
mulheres para si mesmos, mas o oposto é praticamente inédito. Foi assim que
deus nos fez humanos. Afinal, um homem pode dar sua semente a várias
mulheres, mas uma mulher só pode ter o filho de um homem por vez. Parece que
existem mulheres demoníacas que podem ter vários bebês de homens diferentes
ao mesmo tempo, mas o mesmo não pode ser dito da nossa raça.
Ele estava certo disso a partir de sua perspectiva masculina tendenciosa. Claro,
quem era eu para falar? Mas, não querendo me defender aqui, acho que é
perfeitamente razoável que desse certo para ambos os lados. Tipo, uma mulher e
vários homens. Um harém inverso.
— Boas mulheres tendem a se reunir em torno do homem que detém mais poder
— continuou Luke. — Você tem poder, dinheiro, status e prestígio. Entendo por
que aquele anjo, a Senhorita Eris, escolheu estar com você. Então… — Ele fez
uma pausa e balançou a cabeça. — Não, não é isso. Eu não vim até aqui para ter
essa conversa com você. — Luke soltou outro grande suspiro. — Vim aqui
porque tenho algo para te pedir.
— Oh? — Eu me sentei.
O momento era muito conveniente. Fazia sentido pensar que ele era lacaio do
Deus-Homem, tentando mudar o curso da história. Eu não conseguia evitar essa
suspeita, mas o ouviria de qualquer maneira. Presumi que tentaria encontrar
alguma maneira de me levar em direção à minha própria destruição ou tentar
impedir a ascensão de Ariel ao trono.
— Você nos emprestaria… quero dizer, emprestaria sua ajuda à Princesa Ariel?
Não consegui acreditar no que acabei de ouvir.
O que estava acontecendo? Ele está pedindo minha ajuda? Não era para me pedir
o oposto?
Não, eu tinha deixado perfeitamente claro que iria ajudá-la se necessário. Ele não
estava se aproximando de mim com tal pedido do nada.
— É claro. Eu ficaria mais do que feliz, mas por que você está perguntando isso
quando eu já disse que ajudaria?
— Suas habilidades com magia e capacidade de fazer amizade com pessoas de
personalidades difíceis são surpreendentes. Além disso, demonstrou suas
capacidades de luta voltando para casa vivo de uma batalha com o Deus Dragão.
Ele até o aceitou como seu subordinado. Verdadeiramente, tais feitos deixam
qualquer um sem palavras.
Tudo bem, fico um pouco desconfortável quando você se esforça para me elogiar
assim.
— No entanto, temíamos que envolver você perturbasse a felicidade de Sylphie.
— Luke ergueu a cabeça. — É por isso que nunca pedimos a sua ajuda até agora.
Não podíamos. Nem a Princesa Ariel nem eu desejamos envolver Sylphie nessa
luta pelo poder mais do que já a envolvemos.
Ele tinha dito isso antes, quando nós dois duelamos.
— Mas… — Luke baixou o olhar.
Ele era bonito o suficiente para que tal pose o fizesse parecer mais um herói
torturado. Não era de admirar que a maioria das mulheres se apaixonava por ele
com facilidade.
— Nos últimos seis anos, exercemos nossa influência com as Nações Mágicas
para recrutar vários nobres e artesãos ao nosso lado. Entre eles estão alguns
nobres que nasceram em Asura, e até mesmo alguns com grande influência
política lá. Mas não foi o suficiente para nos assegurar uma vitória decisiva.
Afinal, essas pessoas ainda são forasteiras aos olhos do reino.
— Hhm — eu disse.
— No entanto, Lorde Perugius poderia virar o jogo para nós. Ele tem enorme
influência no reino, além de sua força de carisma e impressionante poder marcial.
Se o tivéssemos ao nosso lado, isso contribuiria para o caminho da Princesa Ariel
até o trono. A vitória não estaria garantida, é claro, mas ao mesmo tempo não
acho que podemos ter sucesso sem a ajuda dele. A Princesa Ariel precisa de
alguém de reputação impressionante para apoiá-la.
Luke estava falando sério. Ou pelo menos não detectei nenhum engano ou
segundas intenções. Ele acreditava sinceramente que Perugius era necessário
para Ariel reivindicar o trono. Orsted, da mesma forma, tinha uma alta opinião
sobre Perugius.
Ele balançou a cabeça, acrescentando:
— Mas, apesar disso, Sua Alteza quase desistiu de tentar persuadi-lo a se juntar
a nós.
— Bem, dado o que está acontecendo, eu realmente não posso culpá-la — eu
disse. Quando os vi pela última vez, Perugius tinha tanto interesse por ela quanto
no chão em que pisava. Em outras palavras: nada.
— Claro, encontrá-lo foi pura sorte, para começo de conversa — disse Luke. —
A Princesa Ariel diz que vamos nos virar sem ele. Concordei com ela. Se
passarmos mais alguns anos fortalecendo nossas fraquezas, provavelmente
seremos capazes de reivindicar a vitória sobre seus oponentes.
Essas foram palavras intrigantes. De acordo com Orsted, restavam pouco mais
de vinte dias antes da notícia de que o governante do reino havia adoecido. Se
Luke estivesse em contato com o Deus-Homem, ele não estaria falando como se
tivessem vários anos pela frente, considerando que ele o teria alertado do que
estava por vir.
— Realisticamente, no entanto, seria difícil. Sem a ajuda de Lorde Perugius,
sofreríamos grandes perdas mesmo que ganhássemos. E outros problemas podem
surgir depois que ela garantir a coroa.
Com base no que ele estava dizendo, Ariel tentava desencadear conflitos internos
no reino. Ela precisava assumir a liderança nesta luta pelo poder, enganando seus
oponentes e vencendo-os em seu próprio jogo para que pudesse ser a última
sobrevivente. Estava de olho na posição suprema de poder no país mais poderoso
do mundo. Esse trono não poderia ser reivindicado apenas com palavras. Eles
precisariam lutar por isso.
Mas a luta continuaria mesmo depois que a meta fosse alcançada. Se ainda
existisse resistência a seu governo, caso ainda tivesse aqueles que alegassem que
ela não era digna, Ariel poderia perder tudo depois de usar todo o seu capital
político para se tornar rainha.
Perugius, no entanto, poderia atuar como um impedimento para tal oposição.
Como um dos três heróis que mataram o Deus Demônio, ele ainda dominava o
reino. Nem todo nobre se ajoelharia com ele presente, mas certamente calaria
muitos deles se o Rei Dragão Blindado Perugius anunciasse seu apoio ao governo
de Ariel. Por este motivo Luke estava desesperado para ter seu apoio.
— E… a fim de ter certeza absoluta de que podemos alcançar a vitória, eu
gostaria de sua ajuda — disse Luke.
— Você sabe que eu não sei nada sobre política, certo? É perfeitamente possível
que eu não seja de nenhuma ajuda.
— Você é alguém muito maior do que parece imaginar. Será muito útil apenas
ao ser você mesmo.
Cocei minha cabeça.
— Eu não sou tão bom.
— Bom ou não, é um guerreiro confiável e tem contatos. Conhece Lorde
Perugius, o Deus Dragão, um rei demônio, o neto do papa Milis, toda a tribo
Doldia e a Sete Estrelas Silenciosa. Seus contatos por si só são impressionantes,
e nem estamos pedindo que você os use. É o fato de você estar tão bem conectado
que prova que possui algo especial. Eu gostaria que compartilhasse um pouco
disso com a Princesa Ariel.
Fiquei em silêncio.
Talvez eu suspeitasse de um motivo oculto por trás dos elogios de Luke pelo fato
de eu não ter muito contato com ele. Ainda assim, eu me perguntava… Ele era
realmente o fantoche do Deus-Homem ou não? Orsted já havia me ordenado a
ajudar Ariel, então eu teria ajudado se Luke tivesse pedido ou não. Entretanto,
ele ter previsto minhas ações me fez questionar se estava fazendo isso por
vontade própria.
Talvez eu devesse tentar algumas perguntas capciosas e ver o que ele diz.
— Quem ordenou que você viesse me ver? — perguntei.
— Ordenou? Se está se referindo à Sua Alteza, ela não fez tal pedido.
— O que significa que alguém te aconselhou a vir até mim?
Luke balançou a cabeça.
— Foi decisão minha apenas.
— E o nome Deus-Homem lembra alguma coisa?
— Deus-Homem? Lembro-me de ouvir esse nome quando visitávamos Lorde
Perugius. Quem exatamente é esse?
Bem, se estivesse em conluio com o Deus-Homem, não mostraria suas cartas na
manga tão facilmente. O Deus-Homem nunca me pediu para manter nossa
associação em segredo, mas não havia como saber se não proibiria outras pessoas
de falar sobre ele.
Luke me olhou, perplexo com minha pergunta, mas depois de alguns momentos,
ele coçou a parte de trás da cabeça e disse:
— Acho que parece que estou me contradizendo. Desejamos a felicidade de
Sylphie, e é possível que possamos roubá-la disso envolvendo-a em nosso
conflito com o reino. Se eles nos rotularem como insurgentes, nem mesmo as
Nações Mágicas serão capazes de nos proteger.
Essa parte também me assustava. Não havia como sabermos o que aconteceria
se fizéssemos de Asura um inimigo. De acordo com meu diário do futuro,
Sylphie morreu como resultado, e o Reino Santo de Millis conseguiu matar
Zanoba. Claro, eu poderia lutar decentemente. Se liberasse minha magia em seu
potencial máximo, poderia até eliminar um enorme número de inimigos de uma
vez. Eu até seria temível em combate corpo-a-corpo assim que minha Armadura
Mágica fosse reparada. Orsted admitiu que não podia se conter ao me encarar
naquela armadura.
Dito isto, era ingênuo esperar vencer todas as batalhas que se travava de frente.
Nem mesmo um idiota enfrentaria um lutador profissional de mãos vazias. Para
derrotar alguém assim, é possível apunhalá-lo pelas costas, envenená-lo ou usar
dinheiro para pressioná-lo a se submeter. Se não pode derrotar alguém usando
apenas o poder, só tinha que usar alguns outros meios.
Meu futuro eu havia fortificado suas defesas ao estabelecer uma forte relação
com o Reino Asura. O suficiente para que não viessem atrás dele, pelo menos.
Melhor ainda, eles ainda o valorizavam o suficiente para recusar o pedido do
Reino Santo para entregá-lo.
O que aconteceria desta vez? Com Léo em nossa casa, os outros países se
conteriam, não querendo prejudicar seu relacionamento com a tribo Doldia?
Quão bom protetor ele provaria ser? Orsted me garantiu que eu ficaria bem
enquanto tivesse minha Besta Guardiã. De acordo com ele, Léo seria
perfeitamente capaz de manter minha família segura, já que tinha seu próprio
destino forte.
Mas aquele cachorrinho pode realmente proteger minha família sozinho?
— No entanto — disse Luke —, já que você tem o Deus Dragão te apoiando,
acho que não vai manchar toda a alegria de Sylphie se a envolvermos agora.
Eu não estava tão certo sobre isso. Havia lugares onde a influência de Orsted não
tinha poder. As pessoas deste mundo poderiam ter ouvido falar dos Sete Grandes
Poderes, mas não pareciam perceber o quão fortes eram, ou quão inumanas suas
habilidades eram.
— Ter o apoio do Deus Dragão não significa que minha vida não estaria em risco
— eu disse.
— Isso é verdade — admitiu Luke. Ele respirou fundo e olhou diretamente nos
meus olhos. — Mas é exatamente por isso que só precisamos do seu apoio na
superfície por ora. Quero que a Princesa Ariel seja rainha, custe o que custar. —
Ele olhou para mim com brilho nos olhos.
Encontrei seu olhar sem vacilar, surpreso com o quão forte era. Sua determinação
me lembrou a de Ruijerd, como se ele estivesse disposto a jogar tudo fora para
atingir seu objetivo.
— E por que isso? — perguntei.
Depois de uma longa pausa, Luke respondeu:
— Foi o último pedido de um amigo falecido. — Eu logo soube que ele estava
se referindo a Derrick Redbat. — Por favor, poderia emprestar sua força à
Princesa Ariel?
Presumi que não estava me prometendo nada em troca, pois veio por vontade
própria, não por um pedido de Ariel. Em vez de oferecer um acordo, ele estava
pedindo um favor.
Esfreguei o queixo. Em retrospectiva, eu ainda era eu mesmo quando o Deus-
Homem estava puxando as cordas. Ele me deu conselhos, mas eu estava
desesperadamente quebrando a cabeça para interpretar suas palavras e descobrir
a melhor forma de proceder. Talvez o mesmo fosse verdade para Luke. Talvez
ele estivesse tentando o seu melhor para procurar um caminho a seguir. Se fosse
esse o caso, eu queria ajudá-lo.
Restava um único problema. Meu oponente não era Ariel nem o Reino Asura.
Era o Deus-Homem. Se houvesse alguma possibilidade de que juntar-me a Ariel
tinha algo a ver com o plano do Deus-Homem, eu primeiro precisava consultar
Orsted.
— Você me permitiria procurar o conselho daqueles ao meu redor antes que eu
lhe dê uma resposta? — perguntei.
Luke sorriu, apesar de parecer que queria chorar. Pelo que parecia, pensou que
essa fosse minha maneira de recusá-lo. Ele se levantou e, depois de uma longa
pausa, disse:
— Tudo bem. Desculpe incomodá-lo.
— Não se preocupe. Darei minha resposta oficial em alguns dias. Prometo.
Seus ombros caíram enquanto saía do quarto. Eu o segui, com a intenção de
acompanhá-lo até a saída. Atravessamos o corredor e fomos em direção à porta
da frente. Léo estava no topo da escada, da mesma forma que antes, olhando para
nós. Ele soltou um rosnado baixo, como se quisesse deixar Luke saber que não
passaria por ele até o segundo andar.
Isso significa que Luke é mesmo suspeito? Embora eu não tivesse ideia se Léo
podia farejar os fantoches do Deus-Homem apenas com o olfato.
— Oh… — Eris espiou da sala de estar ao ouvir o rosnado.
Luke imediatamente colocou a mão no peito e se curvou.
— Senhorita, percebo que eu ignorava sua identidade antes, mas ainda peço
desculpas pelo meu comportamento rude. Espero que nos encontremos
novamente algum dia.
Eris se abaixou para pegar a saia e fazer uma reverência, mas percebeu
tardiamente que usava calças. Ela fez uma careta, sentindo-se estranha, e cruzou
os braços sobre o peito.
— Eu me certificarei de entretê-lo adequadamente na próxima vez.
— Aprecio o que diz, mesmo. Bem, se me der licença.
Antes que ele tivesse a chance de sair, alguém bocejou de cima de nós.
— Eris, por favor, não grite assim. Todo mundo ainda está dormindo — disse
Sylphie enquanto descia as escadas. Ela deve ter ido lá para cima depois que eu
a verifiquei mais cedo na cozinha. Seus olhos ainda estavam pesados de sono.
Aparentemente, ela voltou para a cama. Quando seu olhar pousou em Luke e em
mim, ela disse: — Oh, bem-vindo de volta, Rudy… hm? Luke, você por aqui?
Por quê? Aconteceu algo com Sua Alteza?
— Eu… tinha uma tarefa para resolver e decidi dar uma passada.
— Huh. Bem, não precisa ter pressa, então. Posso preparar um chá para você —
ofereceu Sylphie.
— Não, eu deveria ir embora.
— Tudo bem. Voltarei em breve, por isso tome conta da princesa por mim até
lá.
— Pode deixar. — Luke sorriu desolado ao sair. Sylphie e eu o seguimos até o
portão e nos despedimos. Sua figura recuando me lembrou de um assalariado
solitário, completamente exausto enquanto voltava para casa do trabalho.
— O que deu nele? — perguntou-se Sylphie.
Eu não respondi, mas não pude deixar de sentir como se algo tivesse sido
colocado em movimento. Não importa como eu decidisse agir sobre isso, não
poderia fazer um trabalho meia-boca. Com isso em mente, era hora de reportar a
Orsted.
Capítulo 4: Opinião Formada

Usei o anel que Orsted me deu para contatá-lo. Cerca de uma hora depois, recebi
uma carta dizendo para encontrá-lo do lado de fora da minha cabana, ao lado.
Aparentemente, ainda estava por perto quando entrei em contato. Ele poderia
simplesmente ter vindo me ver em vez de enviar uma carta…
De qualquer forma, fiz o que ordenou e parti para encontrá-lo no local acordado.
Cheguei e o encontrei com os braços cruzados, parecendo que tinha cochilado.
Ele obviamente estava esperando por mim. Eu me senti um pouco culpado por
não ter chegado mais cedo.
— Desculpe por ter feito você esperar tanto — eu disse.
— Não. Faz pouco tempo que cheguei.
A gente parecia um casal que havia acabado de começar a namorar. Enfim. Eu o
informei sobre os eventos desde a última vez que nos encontramos, começando
com nossa nova Besta Guardiã, Léo. Ele não viu nenhum problema com isso. Na
verdade, ficou chocado que um animal tão importante tivesse atendido minha
convocação. Ele me garantiu que a segurança da minha família estava garantida
com uma Besta Sagrada guardando-os. Aparentemente, Léo era mais importante
do que eu imaginava.
Chamou muito a minha atenção quando ele murmurou para si mesmo.
— Talvez o filho de Roxy seja mesmo especial.
Eu sorri quando ouvi isso.
Também sugeri que removesse a maldição de Cliff. Orsted parecia disposto a
tentar. Desta forma, Cliff viria à cabana de vez em quando para trabalhar no
desenvolvimento de um implemento mágico que poderia combater sua maldição.
Como não tínhamos ideia de quando veríamos os frutos do trabalho de Cliff, eu
disse a Orsted que manteria o disfarce de que ele estava mantendo minha família
como refém. Ele manteve um rosto inexpressivo durante minha explicação, então
meramente assentiu:
— Certo.
Quando admiti que ainda não tinha falado com Ariel, ele me repreendeu. Eu
poderia ter dito a ele que estava preocupado com Eris e Léo ou que estava
esperando por uma boa oportunidade para apresentar Ghislaine a Ariel, já que
seria perfeito para me aproximar dela, mas essas seriam apenas desculpas. Eu
tinha tirado as férias mensais que era de direito. Eu poderia admitir que fui
negligente.
Orsted tinha ido se encontrar com Perugius enquanto eu estava aproveitando meu
belo tempo. Ele solicitou que Perugius apoiasse a candidatura de Ariel para a
coroa, mas foi recusado. Perugius teimosamente insistiu que não mudaria de
posição até ter certeza de que ela estava apta para o cargo.
Você tem culhões mesmo, Lorde Perugius. Parecia morrer de medo de Orsted,
mas ainda o rejeitou sem pensar duas vezes. Tenho que admirá-lo por isso.
Deixando isso de lado, contei a Orsted sobre a visita de Luke. Também
mencionei que seu pedido de ajuda poderia ser em nome do Deus-Homem e
mencionei o quão preocupado eu estava em ajudar Ariel. Finalmente, perguntei
se ele tinha alguma intenção de mudar seu plano original.
Destemido, Orsted disse:
— Não. Faremos com que Ariel se torne rainha.
Ele descartou a possibilidade de que o Deus-Homem quisesse esse resultado.
Ariel estar no trono era de suma importância para ele. Quando perguntei como
deveríamos lidar com Luke, Orsted não teve uma resposta imediata.
Depois de vários minutos de contemplação, ele enfim murmurou:
— Talvez devêssemos matá-lo…
Fiquei boquiaberto. Eram palavras aterrorizantes para se dizer com tamanha
casualidade.
— Você vai matá-lo?
Orsted ficou em silêncio, mas o olhar em seu rosto era aterrorizante.
Espera, não. É assim que ele sempre se parece.
Ele baixou a cabeça para a mesa e olhou — ou encarou, pelo que me parecia —
um ponto específico.
Sim, mudei de ideia. Ele com certeza estava fazendo uma cara assustadora.
— Não há como saber o que um dos apóstolos do Deus-Homem pode fazer.
Matá-lo seria a melhor maneira de erradicar qualquer incerteza — disse Orsted.
— Eu… acho que…
Matar Luke? Eu já deveria ter me preparado para fazer o que fosse necessário,
mas não conseguia impedir meu estômago de dar nós de ansiedade. Luke estava
trabalhando tanto para ajudar Ariel, e nós íamos matá-lo? Apesar de tudo que eu
tinha conquistado, nunca tinha matado ninguém antes. Claro, um bando de
bandidos foi pego no meu feitiço quando estávamos em Begaritt e alguns deles
provavelmente morreram, mas não os olhei nos olhos enquanto fazia isso.
Então a primeira pessoa que eu mataria seria Luke? Esta seria a minha introdução
ao assassinato? O pensamento fez meu sangue gelar. Ao mesmo tempo, parte de
mim sentia que não tinha outra escolha. Se ele fosse um inimigo e representasse
uma ameaça para minha família e para mim, era melhor me livrar dele. Não podia
deixar minhas emoções atrapalharem. Isso podia voltar mais tarde para me
assombrar.
Mas posso mesmo justificar tirar a vida de outra pessoa simplesmente porque
“eu não tinha outra escolha”?
Não era minha intenção pregar a moralidade, mas a ideia ainda não me caía bem.
Eu era mais contrário à ideia de matar do que imaginava, considerando o quanto
recuava com o pensamento.
— Ainda não temos certeza de que ele é um dos apóstolos do Deus-Homem,
certo? — eu disse, minha voz esforçando um tom de esperança vazia.
Orsted balançou a cabeça.
— Não. Dado o momento das ações de Luke, não há dúvida de que é.
— O que você quer dizer com isso?
— Suas tentativas de negociar com Perugius ainda não acabaram
completamente, e as notícias sobre o rei adoecendo ainda não chegaram a eles.
No entanto, Luke escolheu este momento em particular para procurá-lo. Não há
dúvidas de que é obra do Deus-Homem. — Orsted cuspiu as últimas palavras
com desgosto.
Ele realmente despreza o Deus-Homem com cada centímetro do seu ser.
— Nesse caso, por que ele me pediria para ajudar Ariel? — perguntei. — Não
era para estar fazendo o oposto disso? Se não quer que Ariel seja rainha, deveria
estar tentando me manter longe dela.
— É provável que esteja buscando o controle de alguém do Reino Asura para
nos levar a uma armadilha. Neste momento, o Deus-Homem não pode ver você
diretamente, e é por isso que está usando Luke. É o jeito dele de ficar de olho em
você. Pense nisso como alguém colocando a orelha na parede para ouvir o que
está acontecendo do outro lado.
— Então Luke está me monitorando?
— É possível que isso não seja tudo — disse Orsted. — Há uma chance de ele
tentar algo em algum momento. É mais seguro nos livrarmos dele.
Era possível que eu pudesse revelar o objetivo de Orsted por meio de minhas
ações ou palavras. Não é de admirar, então, o porquê do Deus-Homem ter
decidido colocar alguém para me vigiar. Seria impossível manter Luke
totalmente fora de jogo enquanto eu ajudava Ariel com seu objetivo.
— Vamos supor por um momento que matamos Luke — eu disse. — Tem
certeza de que isso não afetará negativamente Sua Alteza ou qualquer outra
pessoa?
Orsted estreitou os olhos.
— O que quer dizer?
Comecei a analisar as possíveis repercussões do assassinato de Luke com base
no que Orsted me disse antes.
— Você mencionou um cara, Derrick Redbat, acho que era o nome dele, que
originalmente deveria se tornar primeiro-ministro, mas ele não está mais entre
nós. Com sua ausência, é muito provável que Ariel dependa por completo de
Luke para obter apoio moral.
Ariel certamente confiava nele. Embora ela tivesse outros atendentes como
Sylphie, Luke desempenhava o maior papel entre seus apoiadores imediatos. Não
era afeto ou romance, mas algo semelhante ao vínculo que eu compartilhava com
Cliff e Zanoba. Não importa o que acontecesse, eu estava confiante de que eles
nunca me trairiam. Ariel provavelmente sentia o mesmo por Luke.
— O Deus-Homem pode ter considerado que descobriríamos sua conexão com
Luke. Talvez todo o seu objetivo seja nos fazer matá-lo — eu disse.
Não havia como saber o que poderia acontecer com Ariel se Luke morresse. Os
humanos eram fracos. Não importa o quão duros pareciam por fora, eles eram
frágeis o suficiente para desmoronar sob as condições certas. Eu tive alguma
experiência pessoal com isso. Perdi por completo meu rumo — perdi a mim
mesmo de vista — quando Paul morreu.
Claro, se tudo o que queríamos fosse um fantoche, talvez estivéssemos melhor
sem Luke.
Estudei a expressão de Orsted enquanto conduzia meu debate interno. O homem
finalmente assentiu em concordância, seu rosto não menos aterrorizante do que
antes.
— Isso é bastante provável. A Ariel que eu conhecia valorizava muito o Luke.
Sem ele, ela pode não ter sucesso no caminho em direção à realeza.
Claramente, ele também não queria uma boneca sem vida no trono.
— Então acho que devemos deixar Luke em paz, por ora — eu disse.
Sim, em parte porque não queria matá-lo. Mas Luke também era um dos
melhores amigos de Sylphie, assim como meu primo. Nós não éramos muito
próximos, mas tínhamos uma conexão grande o bastante para que eu não o
quisesse morto. Além disso, eu também tinha uma aversão pessoal a matar.
Talvez tendo percebido isso, Orsted respondeu em silêncio:
— Tudo bem. Faremos o que você aconselha, então.
— Obrigado.
Escapei-me de uma boa, mas pode ser que ainda tenhamos que matar Luke no
final. Se chegasse a esse ponto, Sylphie poderia ficar ressentida comigo por causa
disso. Isso poderia até mesmo levar a um divórcio. Esse pensamento fez meu
estômago doer. Mesmo assim, eu tinha que me preparar, apenas no caso de eu
ter que cruzar aquela linha no final.
Enfim, isso dá um jeito no que diz respeito a Luke.
Aproveitando o embalo do assunto, também tirei outras dúvidas que tinha em
mente.
— Você falou antes que o Deus-Homem não consegue controlar várias pessoas
de uma vez, certo? — perguntei. — Sendo assim, quantas ele consegue?
Orsted mencionou brevemente de passagem que o Deus-Homem não podia
controlar toda uma multidão de uma vez, mas isso significava que
ele poderia controlar mais de uma pessoa, certo?
— Eu não posso lhe dar um número preciso, mas é mais provável que seja em
torno de três.
Só três, hein? Menos do que eu esperava.
— E quais são as chances de que ele possa controlar mais do que isso? —
perguntei.
— Não é impossível, mas quando tentou me matar, empregou apenas três pessoas
para o ato. Nenhum dos outros veio diretamente atrás de mim. Provavelmente
estamos seguros em assumir que são apenas três.
— Quais eram essas três?
— O Deus da Espada, o Deus do Norte e o Rei Demônio.
E, aparentemente, Orsted virou o jogo contra todos eles.
Um Rei Demônio e mais dois dos Sete Grandes Poderes, hein? Se nem mesmo
esse tipo de poder de fogo foi suficiente para se livrar de Orsted, não é de admirar
que o Deus-Homem tenha desistido dessa rota.
Se ele jogasse esse tipo de gente contra mim, é provável que eu não tivesse
chance. Embora se ele pudesse provavelmente já o teria feito. Eu suspeitava que
estava alterando lentamente os destinos das pessoas por longos períodos, como
fez comigo.
Talvez seja um grande fã de vídeos de máquina de Rube Goldberg1.
— Mas por que será que só consegue controlar três…? — murmurei.
— Porque esse é o limite de suas habilidades de previsão.
— Quer dizer que ele só consegue prever o futuro de três pessoas por vez, e mais
do que isso é impossível?
— Correto.
Eu me perguntei se isso significava que ele poderia ser capaz de controlar quatro
pessoas, assumindo que não visse o futuro delas.
Não, alguém que pode trapacear e ver o futuro nunca apostaria desistindo desse
poder específico. Fazia sentido supor que controlaria apenas três pessoas e não
mais.
— Então, se Luke é um desses três, isso significa que ele tem mais dois sob seu
controle — eu supus.
— Não há nenhuma evidência de que esteja controlando três pessoas agora.
Dei de ombros.
— Você pode estar certo, mas acho que há uma boa chance de que tenha pelo
menos uma pessoa sob seu controle no Reino Asura.
— Por que acha isso? — perguntou Orsted.
— Se o Deus-Homem realmente não quer que Ariel suba ao trono, faz sentido
ele controlar alguém que se opõe a ela e alguém que a esteja apoiando. Perfeito
para coletar e divulgar informações, né?
— O Deus-Homem não precisa ir tão longe para… Não, suponho que haja algum
valor em relatar seus movimentos à oposição. — Apesar de sua discordância
inicial, Orsted conseguiu se convencer a concordar comigo.
Mas agora que pensei nisso, o Deus-Homem podia ver o coração das pessoas.
Talvez não precisasse reunir informações. Embora as perspectivas futuras de
Ariel estivessem obscurecidas de sua visão graças à minha presença, ter alguém
que pudesse nos vigiar era mais do que suficiente para ele.
— É perfeitamente possível que ele esteja envolvido em algo bem diferente —
pensei em voz alta. — Tipo, talvez ele esteja esperando para atacar minha família
quando eu sair de casa ou algo assim.
— Com a Besta Sagrada servindo como guardiã de sua família, o Deus-Homem
não pode atacá-los quando bem entender. Aquela criatura tem poder suficiente
para que você não precise se preocupar com isso.
Eu o encarei.
— Mais do que Arumanfi?
Orsted bufou.
— Os espíritos de Perugius nem podem se comparar.
Era difícil acreditar no que ele estava dizendo, sendo que Léo ainda não havia se
mostrado digno, mas era o Rei Dragão que estava falando. Certamente, eu podia
confiar no que estava dizendo. Para ser honesto, eu não tinha como saber de
qualquer maneira.
— Mudando de assunto — disse Orsted. — Você provavelmente está certo sobre
o Deus-Homem ter um fantoche no reino.
Concordei com a cabeça.
— Então a chave para a vitória será farejar essa pessoa, presumo eu?
— De fato. Não sei nada sobre seu terceiro apóstolo, assumindo que ele tenha
um. Pode ser que essa pessoa esteja operando separadamente e não esteja
relacionada ao trono asurano. Mantenha-se atento.
Para alcançar a vitória contra o Deus-Homem, tínhamos que identificar seus três
fantoches, derrotá-los e alcançar nossos próprios objetivos no processo.
Provavelmente teríamos que repetir esse processo várias vezes. Nosso objetivo
atual era colocar Ariel no trono. Embora não tenha sido confirmado, era provável
que Luke fosse um de seus lacaios. As identidades dos outros dois ainda eram
um mistério.
— Há alguém que você conhece com certeza absoluta que não está do lado dele?
Perguntei isso sabendo que estava pedindo o impossível. Realmente não
importava quem eram os fantoches do Deus-Homem; nossos objetivos não
mudariam. Ainda assim, se ele assumisse o controle de Zanoba ou Cliff, e Orsted
me encarregasse de matá-los, eu não saberia o que fazer. Ficaria arrasado.
— Sua família está a salvo da influência dele. Além da pulseira que você usa,
eles também estão sob a proteção da Besta Guardiã.
— E quanto a Cliff e Zanoba?
Depois de uma pausa, ele disse:
— Eles podem ser possíveis alvos. Tenha cuidado perto deles.
É sério? Essa não era a resposta que eu queria ouvir.
— Há algo que possamos fazer para garantir que não caiam em suas mãos? —
perguntei.
Orsted balançou a cabeça.
— Não. Se achar necessário, pode avisá-los para não ouvirem as palavras de
alguém que se autodenomina Deus-Homem. Embora eu duvide que isso lhe faria
algum bem.
Nada bom, né? Bem, isso me coloca em apuros.
Era uma questão de sorte. O Deus-Homem não se apegava a ninguém. Tudo o
que eu podia fazer era rezar — para um deus diferente — para que Zanoba e Cliff
não se tornassem alvos dele.
— Por enquanto — eu disse, mudando de assunto —, eu deveria trabalhar para
obter o apoio de Perugius para ajudar Ariel no caminho para se tornar rainha,
certo? Esse plano ainda não mudou?
— Correto. Embora você deva permanecer cauteloso com o apóstolo do Deus-
Homem. Se ele começar a propor algo, me informe imediatamente.
— Muito bem.
Pelo menos nosso plano de ataque permaneceu o mesmo por enquanto.
— De qualquer forma, parece que Ariel se esforçou bastante. — Acariciei o
queixo. — Pelo que posso ver, ela não tem nada para influenciar a opinião de
Perugius.
— Hm. — Orsted apenas grunhiu.
— A última vez que estive com os dois, acredito que ele perguntou a ela qual é
o elemento necessário para ser rei, e ela não foi capaz de responder
adequadamente.
— Ah, sim. É muito a cara dele fazer uma pergunta dessas.
— Você… por acaso sabe a resposta? — perguntei.
Orsted olhou para mim.
Eita! Você não tem que me dar uma encarada feia dessas. Já entendi. Este é um
obstáculo que ela precisa superar se quer ser rainha, certo?
— Não tenho ideia — disse ele. — No entanto, a única pessoa que Perugius já
apoiou para o trono foi Gaunis Freean Asura. Se pesquisar sobre ele, deve ser
capaz de encontrar uma pista para levá-lo na direção certa.
Espere, então você também não sabe? Bem, acho que me deu uma dica pelo
menos.
— Tudo bem. Então vou partir para resolver isso. — Era o trunfo que eu usaria
para entrar em contato com Ariel.
Antes de sair, Orsted me emprestou um de seus itens mágicos.
Digo emprestar porque ele chamou de presente, mas eu penso nisso como
equipamento para o trabalho. Era um manto, e convenientemente cinza, mesmo
que eu não tivesse nenhuma participação em sua criação. Era um pouco mais
escuro do manto que eu estava usando.
— Esse manto foi usado pelo grande sábio Titiana há um milênio — disse Orsted.
— É feito de pele de um Rato-víbora da Morte, tecido com fios magicamente
imbuídos. Tem alta resistência mágica e é à prova de facadas. Provavelmente se
tornou um item mágico depois de ser deixado em um labirinto por um longo
período, onde desenvolveu a capacidade de reduzir o peso do usuário pela
metade, o que significa que pode se mover como o vento, se necessário. Como
não pode usar a Aura de Batalha, isso deve ser útil.
Se suas palavras fossem reais, era um item incrível.
— Então… — lambi os lábios. — Qual seria o preço de algo desse nível?
— Peguei isso do Repositório do Povo Dragão depois da última vez que nos
vimos. Valeria uma quantidade decente, se vendido, mas estou te dando para que
possa se proteger. Use.
Ops. Ele me leu como um livro.
Eu me perguntava o que era o Repositório do Povo Dragão. Eles tinham um
monte de itens como esse guardados lá? Era provável que sim. Eu já podia
imaginar: botas que podiam abrir baús de tesouro com um chute, um trompete
que podia revelar salas secretas…
De qualquer forma, este manto aumentaria minha proficiência em combate. Com
certeza estava bem abaixo da minha Armadura Mágica, mas eu poderia
preencher a lacuna com o meu próprio conhecimento e coragem.
Mas espera lá, não tenho nada disso. Oh, bem, acho que vou ter que tentar o meu
melhor de qualquer maneira.
Naquela noite, chamei Sylphie para o meu quarto. Se eu ia ajudar Ariel, precisava
falar com minha esposa primeiro. Sylphie deve ter percebido que era um assunto
sério, pois, quando apareceu, ela estava com suas roupas normais em vez de
pijamas. Por mim, tudo bem, considerando o tópico que eu estava prestes a
abordar.
— Então, Rudy, sobre o que queria conversar? — perguntou Sylphie, com uma
expressão resguardada.
Dificilmente poderia culpá-la por ser cautelosa. Nas últimas vezes que a chamei
aqui, tinha sido para transmitir o que ela deve ter pensado que era conversa de
louco.
— Sylphie, vou ser direto — eu disse.
— Tudo bem.
— Fui ordenado a ajudar a Princesa Ariel a se tornar rainha.
Ela fez uma careta desconfiada, então seu rosto se iluminou, mas quase tão
rapidamente ela voltou a franzir a testa de novo.
— Ordenado? — repetiu ela.
— Isso mesmo.
— O que significa que você não está fazendo isso por vontade própria?
— Orsted foi quem mandou.
Seu comportamento mudou completamente. Eu tinha enrolado ao lhe contar a
verdade sobre o envolvimento de Orsted, mas tinha tanta culpa sobre as coisas
que fiz para ela no passado. Desta vez, pelo menos, queria confiar nela e dizer a
verdade. Era uma de suas amigas íntimas de quem estávamos falando.
Sylphie ficou boquiaberta comigo por um momento antes de fechar a mandíbula
e estreitar os olhos.
— E qual é o motivo dele para fazer a Princesa Ariel virar rainha? Ele pode se
beneficiar disso de alguma forma?
— Isso lhe dará conexões com o Reino Asura através de mim. Não parece que
ele quer algo agora, mas pode pedir ajuda no futuro.
— Mas ele é o Deus Dragão. Aquele que te derrotou até perder os sentidos
mesmo quando usou a Armadura Mágica. Sei que o Reino Asura é considerado
o mais poderoso do mundo, mas ainda não consigo imaginar alguém como ele
querendo ter tais relações com eles.
— Há alguns assuntos que só podem ser resolvidos por influência política e não
apenas pela força — argumentei. — É natural que Orsted queira isso à sua
disposição, para que possa usá-lo quando precisar.
Era apenas a preparação da base. Era difícil explicar, mas fazer Ariel ser rainha
agora lhe permitiria colher os benefícios em mais cem anos. Orsted tinha uma
visão geral de como o futuro deveria se desenrolar. Eu não tinha ideia de como
ele faria uso de Ariel no fim, ou se sequer a utilizaria. O que eu sabia, com base
no que li no diário do meu eu do futuro, era que Ariel se tornar rainha seria
inconveniente para o Deus-Homem. Sendo assim, a colocaríamos no trono.
Claro, parte disso era para atrapalhar o Deus-Homem, mas também era um
princípio básico de guerra não deixar seu oponente fazer o que queria.
Todo o plano significava muito mais para Orsted do que para mim. Na verdade,
não significava quase nada para mim. No que me diz respeito, as desvantagens
superam as vantagens. Se eu ajudasse Ariel a assumir o trono, todos me
rotulariam como um de seus apoiadores, e isso significava ser puxado para a
bagunça pegajosa e corrupta que era a política aristocrática. Pessoalmente,
colocar um pé na porta do reino não valia a pena o envolvimento.
Não, meu desejo de ajudar Ariel era puramente pessoal. Ela tinha me apoiado
muito, e era hora de retribuir por isso. Talvez fosse melhor não pensar em prós e
contras, mas sim olhar para isso em termos mais simples. Ariel ficaria muito feliz
caso conseguisse se tornar rainha. Sylphie ficaria muito feliz se sua amiga
próxima conseguisse alcançar seu objetivo. E se conseguíssemos impedir o
Deus-Homem de fazer tudo do seu jeito, Orsted ficaria satisfeito. Eu também me
beneficiaria; o amor de Sylphie por mim se aprofundaria, e Orsted estaria
convencido da minha utilidade.
Sim, essa é a melhor maneira de pensar nisso.
— Bem, deixando à parte as demandas futuras de Orsted, neste momento, acho
que a princesa Ariel só se beneficiará — eu disse.
— Hmm… — Sylphie colocou a mão no queixo. — Acho que você está certo.
Existem muitas pessoas desagradáveis no Reino Asura, e se pensarmos nisso
como uma disputa de vilões contra vilões, não é uma má jogada.
Credo. Sylphie não estava pegando leve. Eu me perguntava o que ela realmente
achava de Orsted. Eu podia admitir que ele parecia um cara do mal, mas parecia
ainda mais ameaçador e indigno de confiança do que eu pensava? Ele parecia o
tipo de pessoa que poderia matar alguém ao conhecê-lo pela primeira vez?
Beleza, não tenho como argumentar com essa última.
— A Princesa Ariel deve ser a única a decidir se devemos aceitar a ajuda dele ou
não — disse ela, estreitando os olhos. — Pessoalmente, quero uma garantia de
que ele não nos trairá.
— Uma garantia?
— Sim. Por que você parece tão certo de que ele não vai nos apunhalar pelas
costas?
Na verdade, não estava confiante. Para ser sincero, ele parecia estar escondendo
algo de mim. Mas parecia mais confiável do que o Deus-Homem, pelo menos.
Se eu o chamasse, ele vinha de imediato.
— Não que eu ache que ele não vai — eu disse —, mas acredito que está sendo
sincero em seus negócios comigo. Enquanto eu não trabalhar contra ele e
continuar me fazendo útil, não acho que será nosso inimigo.
— Se você diz… — Ela franziu os lábios, não totalmente convencida. — Tudo
bem, vou deixar de lado a questão se Orsted é confiável ou não, pelo menos por
enquanto.
— Tem certeza?
— Continuar nosso debate não vai adiantar nada, vai? E parece que você confia
nele.
Dei de ombros.
— Pois é, verdade.
— Teríamos apenas um cabo de guerra verbal interminável se continuássemos
com isso. — Sylphie respirou fundo, endireitou as costas e fixou o olhar em mim
novamente. — Mais importante, acho que devemos discutir quais são seus
planos. Como você, ou melhor, como Orsted pretende torná-la rainha?
Sylphie estava sendo excepcionalmente séria. Agora ela não estava aqui como
minha esposa, mas como guarda-costas de Ariel. Era um lado dela que eu
raramente via. Sua expressão, juntamente com sua natureza natural juvenil, a fez
parecer um nobre distinto.
— Por enquanto, pretendemos persuadir Lorde Perugius a apoiá-la.
— Mas se for entre um Rei Dragão e um Deus Dragão, este, isto é, Orsted, não
seria um nível mais alto? No entanto, ele ainda quer convencer Perugius a nos
ajudar?
Concordei com a cabeça.
— Lorde Perugius tem maior influência política no Reino Asura, e suas palavras
têm mais peso com as pessoas de lá. Em contraste, Orsted não tem absolutamente
nenhuma autoridade em Asura. — Eu só estava repetindo o que ele mesmo me
disse.
— Mas Lorde Perugius não parece se inclinar com tanta facilidade. Não importa
o que a Princesa Ariel diga, ele não dará bola para ela. Luke e eu tentamos
convencê-lo em nome dela, mas sem sucesso.
— Sim, as coisas parecem bem difíceis.
Perugius até se recusou a honrar o pedido de Orsted para ajudá-la. Eu pensei que
ele teria atendido a qualquer ordem, dado o quanto parecia temer o Deus Dragão,
mas claramente tinha suas próprias opiniões sobre a situação.
— Mas — continuou Sylphie — Zanoba parece ter o agradado. Ele até parece
ter gostado de você também, Rudy. Fico me perguntando qual é a diferença.
— Se eu tivesse que chutar, diria que é porque nós dois não estamos tentando
nos tornar reis — eu disse.
— Tentar pegar uma coroa o ofende de alguma forma?
Um pouco simplista, mas não muito longe da visão pessoal de Perugius sobre os
reis.
Sylphie suspirou.
— Eu me pergunto se ele nunca teve qualquer intenção de ajudá-la desde o
começo.
— Não, se fosse esse o caso, ele a teria recusado logo de cara. Ele parece estar
testando-a.
— Sério? Hm… — Sylphie cruzou os braços e inclinou a cabeça.
— De qualquer forma, eu agradeceria se você me permitisse falar diretamente
com a Princesa Ariel nos próximos dias. Se importa?
— Sem problema. Vou arrumar as coisas para você. Também avisarei Luke. Nós
dois estaremos presentes para a sua conversa. Tudo bem assim, né?
Concordei com a cabeça.
— Por mim, sem problemas. Embora eu gostaria de manter o envolvimento de
Orsted em segredo, assim encobriria isso dizendo que você e Luke me
convenceram a fazê-lo. Pode fazer isso?
— Por que esconderíamos a verdade sobre Orsted? Já que você é seu subordinado
agora, pode dar à Princesa Ariel paz de espírito saber que você está fazendo isso
sob ordens.
Em outras palavras, ela se sentiria aliviada ao ouvir que tinha o apoio do Deus
Dragão. No entanto, eu não queria o apóstolo do Deus-Homem, ou seja, Luke,
tendo mais informações do que era necessário. Mesmo que ainda não tivéssemos
confirmado se ele era um fantoche ou não.
— Os olhos e ouvidos do Deus-Homem podem estar em qualquer lugar. Eu
gostaria de manter os objetivos e ordens de Orsted discretos.
Sylphie fez uma pausa antes de perguntar:
— Orsted está lutando contra esse Deus-Homem, certo? Ele é realmente tão mau
assim?
— Mau ou não, ele tentou matar Roxy, tentou ir atrás de você e tentou me matar
ao me colocar contra Orsted. Ele é nosso inimigo.
— Quê? Ele tentou ir atrás de mim? — Ela sacudiu a cabeça, examinando nossos
arredores. — Ele ainda está atrás de mim?
— Eu não saberia dizer, mas duvido que tenha desistido.
— Nesse caso, vou ficar alerta — disse Sylphie.
— Especialmente à noite.
Sylphie riu.
— A única pessoa nesta cidade que tentaria ir atrás de mim à noite é você, Rudy.
Hahaha, bem, perdi no argumento. Talvez eu devesse fazer exatamente isso hoje
à noite.
De qualquer forma, pelo menos conseguimos elaborar um plano para eu
encontrar Ariel.
— Então, Rudy… — Achei que a conversa tinha acabado, mas Sylphie
continuou. — Se você vai ajudar Sua Alteza, isso significa que também vai ao
Reino Asura, certo?
— Sim, com certeza vou. Não posso meramente convencer Perugius a ajudar e
depois mandá-la embora e fingir que não era mais assunto meu.
Além disso, eu precisaria derrotar qualquer apóstolo que o Deus-Homem tenha
escondido no reino. Também precisava ir atrás da tal de Tristina. O que
significava que nem precisava consultar Orsted sobre se eu precisava ir ou não.
Claramente era obrigado.
— Quero que me leve junto — disse Sylphie.
— O quê?
— Eu sei que você provavelmente quer que eu fique aqui e cuide de Lucie.
Também sei que a Princesa Ariel e Luke querem que eu continue morando aqui
em Sharia. Mas, para ser honesta, quero ajudar. Estou com eles há tanto tempo.
— Ela estendeu a mão e pegou a minha, seus dedos macios se curvando
firmemente em torno dos meus. — Por favor, Rudy. Quero que me leve junto.
Apertei a mão dela. Francamente, eu queria que ela ficasse. Talvez era meu
egoísmo falando, mas queria que ela estivesse onde fosse seguro, onde pudesse
cuidar de Lucie. Não me entenda mal, eu não sou um daqueles caras que pensam
que o destino de uma mulher na vida é ficar em silêncio atrás de seu homem. Era
só que… Não podia explicar, mas não queria que Sylphie corresse perigo.
Ainda assim, Sylphie passou anos com Ariel e Luke. Eles foram companheiros
desde o Incidente de Deslocamento. Eles eram para ela o que Ruijerd era para
mim, e se Ruijerd alguma vez se encontrasse em apuros, eu largaria tudo para
correr em seu auxílio. Eu devia isso a ele depois do quanto fez por mim. Claro,
hesitaria se tivesse que escolher entre ajudá-lo ou proteger a vida da minha
família, mas ele ainda era uma das minhas principais prioridades. Eu tinha
certeza que Sylphie sentia o mesmo sobre Ariel e os outros. A família ainda era
importante para ela, e ela sabia que precisava ajudar a criar Lucie. Mesmo assim,
se seus amigos precisassem de ajuda, ela queria fazer tudo ao seu alcance para
estar lá para eles. Isso era natural.
— Beleza — eu disse. — Então empreste-me sua ajuda, Sylphie.
— Certo! — O rosto de Sylphie se iluminou, sua boca se alargando em um
sorriso.
Foi então que me lembrei do que o Deus-Homem havia me dito: que Sylphie
estava destinada a morrer no Reino Asura. Eu odiava considerar a possibilidade,
mas isso acabaria encurtando seu tempo de vida? Eu estava pensando demais
nisso? O curso da história foi alterado. As coisas podem não acontecer como
aconteceram no diário do meu eu do futuro. Ainda assim, eu tinha que dizer isso.
— Sylphie.
— Sim?
— O Deus-Homem não se envolverá diretamente, mas usará outras pessoas para
ficar no nosso caminho.
— Você quer dizer como ele te usou para lutar contra Orsted? — perguntou ela.
— Exatamente.
Sylphie franziu a testa.
— Então devemos ter cuidado com qualquer um que possa estar sob seu controle.
— Certo. Mas… bem, pode ser alguém próximo a você.
— Alguém próximo a mim? — Ela piscou. — Tipo quem?
— Tipo Luke.
Seu rosto ficou rígido.
— Rudy, isso está fora de questão. Se Orsted está trabalhando para fazer a
Princesa Ariel subir ao trono, então o Deus-Homem vai tentar barrar isso, certo?
O que significa que vai tentar impedi-la, então não tem como ele ir atrás de Luke.
Luke nunca se voltaria contra a Princesa Ariel.
— O Deus-Homem pode encontrar uma maneira de convencê-lo. Ele tem uma
maneira de corromper as pessoas.
Sylphie olhou para mim. Senti uma hostilidade assassina em seu olhar. Talvez
esta tenha sido a primeira vez que a vi me olhar daquele jeito.
— Se Luke ficar longe de mim e tentar machucar Sua Alteza… — Sua voz
vacilou. — Eu vou matá-lo.
Ela disse isso com tanta determinação que me causou um arrepio. Esta foi a
primeira vez que pensei nela como aterrorizante.
— Nem Luke nem eu queremos trair Sua Alteza — continuou Sylphie. — Tenho
certeza de que ele prefere morrer do que ser enganado por alguém e apunhalá-la
pelas costas. E eu também.
Eu era capaz de entender muito bem como ela se sentia. Se eu fizesse algo que
machucasse Ruijerd, até Eris poderia se virar contra mim. Era a mesma coisa
aqui.
— Entendo. Perdão por trazer isso à tona do nada — eu disse.
No entanto, Sylphie balançou a cabeça.
— Não, não há necessidade de você se desculpar. Agradeço por me avisar. Ela
sorriu baixinho.
Ver essa expressão em seu rosto me ajudou a finalmente me fortalecer. Se algum
dia Luke precisasse morrer, eu não poderia deixar que fosse pelas mãos de
Sylphie. Deveria ser eu quem cometeria o ato.
Capítulo 5: Trabalhando em
Equipe

Quando cheguei à fortaleza flutuante, Ariel estava no jardim, dando uma festa
do chá. Sylvaril estava servindo, mas Perugius não estava à vista. Em vez disso,
Nanahoshi era aquela sentada em frente a Sua Alteza.
Ela não deve estar muito preocupada com sua situação, já que pode dar uma festa
do chá, pensei, mas com a mesma rapidez percebi que estava enganado. Ariel
tinha o rosto exausto como o de um assalariado sobrecarregado. Combina
perfeitamente com a exaustão que vi no rosto do Luke.
Ariel se esforçava para colocar um sorriso elegante no rosto, mas não conseguia
esconder as olheiras. Ela deve estar se sentindo encurralada. A maneira como
olhava para Nanahoshi gritava: “Vamos, pergunte-me o que está errado.
Pergunte!”
Nanahoshi a ignorava por completo. Na verdade, ela parecia desconfortável
sentada ali. Não recusaria um convite para tomar chá, mas ao mesmo tempo, era
claro que não queria ser arrastada para a situação confusa entre Ariel e Perugius.
Se alguma vez houvesse uma garota-propaganda para o arquétipo do
protagonista preguiçoso, seria Nanahoshi.
A única razão pela qual ela não fugiu do local foi porque Ariel havia oferecido
sua ajuda quando estava à beira da morte. Mesmo que Ariel só tenha nos
emprestado o uso de seu implemento mágico, ainda era considerado ajuda.
— Oh, Rudeus. — A expressão de Nanahoshi relaxou no momento em que ela
me viu. — Importa-se de vir aqui e sentar um pouco?
Sentei-me entre as duas garotas. Sylvaril aproveitou a oportunidade para me
servir uma xícara de chá. A xícara estalou quando ela a bateu na minha frente, o
que era incomumente violento para alguém tão refinado quanto ela. Olhei para
ela e pude sentir a frieza emanando de trás de sua máscara. Talvez estivesse
zangada com a minha invocação errada de Arumanfi.
Foi mal aí…
— Tudo bem, Rudeus, vá em frente — murmurou Sylphie enquanto se
posicionava atrás de Ariel. A princesa parecia um pouco mais relaxada graças à
sua presença.
Olhei em volta e notei Luke ao fundo. Eu tinha falado com ele antes da nossa
chegada. Disse a ele que cooperaria com a princesa e ele ficou feliz demais,
enchendo Sylphie de elogios por conseguir me persuadir.
— Ora, Lorde Rudeus — disse Ariel. — Já faz um bom tempo. Gostaria de
parabenizá-lo por se tornar subordinado do Deus Dragão Orsted, mas devo
perguntar… você tem certeza de que foi a escolha certa? — Suas palavras
careciam de seu vigor habitual. Ela estava sendo vaga. Talvez Sylphie já tivesse
falado mal de Orsted para ela.
— Obrigado. Estar a serviço de alguém poderoso proporciona uma certa paz de
espírito. Isso vale para qualquer pessoa, não apenas para mim — respondi.
— Você também é muito poderoso. Suponho que pessoas de poder semelhante
tendem a ser atraídas umas pelas outras. Alguém assim sequer me daria um
minuto de seu tempo.
Ah, cara. Ela está se vendendo por pouco. Parece que as coisas estão indo em
uma direção bastante sombria.
— Ei — sussurrou Nanahoshi, me cutucando de lado. — Orsted veio me ver
ontem.
— É mesmo? E?
— Eu me desculpei, e ele me perdoou. Ele me disse que esperava continuar nosso
relacionamento.
— É bom ouvir isso — eu disse.
Foi uma conversa curta, mas parecia que um peso havia sido tirado de seus
ombros. As pessoas costumavam comentar que, se pedir desculpas fosse o
suficiente para resolver os problemas, a polícia não precisaria existir, mas eu
argumentaria que a maioria das coisas poderia ser resolvida por um pedido de
desculpas sincero. Pessoalmente, eu não estaria disposto a perdoar alguém que
me enganou, me levou a uma armadilha e quase me matou… Mas isso só
demonstrava o quão generoso Orsted era.
— Eu também vi Lorde Orsted — disse Ariel, a voz tão agradável quanto um
sino.
Havia algo estranhamente carismático na voz dela que fazia você querer ouvir o
que ela dizia. Sem contar que ela também era linda. Seu cabelo loiro era mais
radiante do que o de qualquer outra pessoa que eu já tinha visto. Ela era a
personificação da própria beleza. Eu estava cercado por muitos homens e
mulheres atraentes, mas se tivesse que classificá-los objetivamente, Ariel estaria
no topo. Não era uma beleza comum; era como uma bela obra de arte. Como se
tivesse saído de um quadro. Com certeza, agora ela não tinha sua energia
habitual, mas isso só lhe dava o brilho efêmero de uma viúva exausta.
— Ele é um homem aterrorizante — continuou Ariel. — Eu só o vi de longe,
mas isso foi o suficiente para todo o meu cabelo ficar em pé, gritando que era
perigoso.
Ah, então ela já o viu.
Provavelmente não é uma boa ideia dizer a ela que eu estou operando sob suas
ordens, então, mas talvez não importasse. Ela já sabia que eu era seu
subordinado.
Ariel continuou:
— Isso foi ontem. Ele foi para casa depois de tomar um chá com Lady
Nanahoshi. Parecia estar de mau humor o tempo todo, mas quando Lady Sylvaril
derramou um pouco de chá nele, não ficou chateado com ela.
Sylvaril derramou chá em Orsted? Ela não poderia ter feito isso de propósito,
certo? Não, deve ter ficado tão apavorada que sua mão escorregou.
— A atmosfera parecia incrivelmente tensa, mas Lady Nanahoshi tinha um
sorriso tão caloroso em seu rosto, um que eu nunca tinha visto antes. Apesar da
aparência e comportamento de Lorde Orsted, ele deve ser bastante magnânimo e
de mente aberta.
Espera, sério? Estou surpreso em ouvi-la dizer isso. Talvez a maldição não seja
tão eficaz nela como no resto do pessoal. Isso funciona a nosso favor, pelo
menos. Ou poderia ser obra do Deus-Homem?
Na verdade, ele se beneficiaria mais com o controle das ações dela. Em vez de
usar Luke para guiá-la, por que não puxar seus pauzinhos diretamente já que ela
estava no comando de todo o show? Orsted nunca havia sugerido tal
possibilidade, no entanto. Talvez ele tivesse uma boa razão para acreditar que o
Deus-Homem não a tocaria.
— Aparentemente, ele é tão odiado por todos por causa de uma maldição que
carrega — eu disse a ela.
— Oh, é mesmo? Nesse caso, talvez eu devesse ter dito olá. Ele era intimidante
o suficiente que mesmo de longe minhas pernas tremiam. Se eu ouvisse a voz
dele de perto, eu poderia me molhar. — Ela riu.
Uh, se molhar…?
— Entretanto seja muito bom se aliviar na frente das pessoas…
— Perdão?
— Lady Ariel. — repreendeu Sylphie.
Tenho certeza que ela estava se referindo a esportes aquáticos, mas vou fingir
que não ouvi isso. A casta superior de Asura parecia estar cheia de pervertidos.
Havia algo incrivelmente imoral em ouvir uma garota tão pitoresca falar sobre
chuva dourada.
— Rudy! Tire esse sorriso depravado da cara! Você está diante da princesa —
gritou Sylphie.
— Sim, senhora. — Cobri a boca com a mão. Meu rosto traiu meus pensamentos
tão facilmente? Claro, eu era um pervertido, mas eu, na verdade, só estava
interessado em ver as garotas que eu gostava fazendo coisas eróticas. Como
Sylphie, por exemplo. Não que eu fosse pedir para ela fazer xixi na minha frente.
Não queria que me odiasse.
— Ugh. — Nanahoshi franziu o nariz, claramente enojada, mas decidi ignorá-la.
— Ahem. — pigarreou Ariel. — De qualquer forma, Lorde Rudeus, fez todo o
sentido para mim quando ouvi que você estava trabalhando para Lorde Orsted.
— Oh? Por quê?
— Porque acredito que seria preciso alguém tão poderoso quanto ele para ser
capaz de controlar alguém como você.
Sério? Acho que não é preciso muito para me controlar. Tudo o que Sylphie tinha
que fazer quando estávamos na cama à noite era dizer: “Ei, Rudy, tenho um favor
a pedir”, e eu abanava o rabo como um cachorro, pronto para fazer o que fosse.
Para ser claro, eu não estava esperando esse tipo de coisa de Ariel. Tudo o que
eu precisava dela era dinheiro vivo. Afinal, eu era o tipo de homem que
trabalhava por duas coisas: dinheiro e mulheres.
Enfim, já estava na hora de pararmos de ficar de enrolação. Eu estava aqui para
falar sobre cooperação, não para conversar sobre Orsted.
— Quando você diz alguém poderoso, também não quer dizer alguém como
você, Princesa Ariel? — perguntei, me fazendo de bobo.
Ariel colocou a mão sobre a boca e estreitou os olhos.
— Oh? Eu não sabia que você lisonjeava as pessoas assim.
Não era para ser simples lisonjeio. Mesmo que eu tenha me tornado insensível a
esses títulos ultimamente, Ariel ainda era a princesa do Reino Asura. Nos termos
da minha vida anterior, ela era um pouco semelhante ao príncipe herdeiro da
Inglaterra em status. Pode-se ter um vislumbre dela em cerimônias oficiais, mas
falar diretamente com ela estava fora de questão, muito menos ser capaz de se
sentar com ela ao redor de uma mesa como esta. Este era o seu nível de
importância.
Deixando seu status de lado, Ariel estava trabalhando duro para aumentar sua
influência. Quase todas as pessoas em uma posição chave em Sharia tinham
alguma conexão com ela. Havia o diretor e vice-diretor da academia, o alto
escalão da Guilda dos Magos, o chefe da oficina de implementos mágicos, o
principal administrador de uma empresa e o líder da filial da Guilda dos
Aventureiros local. Essas eram as conexões que eu conhecia pessoalmente.
Podia-se invocar o nome dela e esperar um tratamento favorável onde quer que
fosse. Não era exagero dizer que sua influência podia ser sentida nos níveis mais
altos das principais indústrias de Sharia.
Em suma, não lhe faltava conexões. Ela tinha muito poder.
— Cogitei a ideia de tê-lo como meu subordinado — disse Ariel.
— Oh, é mesmo?
— Mas logo desisti da ideia. Por uma série de razões, mas principalmente porque
seu poder é demais para eu lidar. — Ela olhou para o lado. Além do jardim
deslumbrante havia uma extensão de nuvens brancas e céu aberto, estendendo-
se ao longe. Ela olhou naquela direção enquanto murmurava para si mesma: —
Você tem poder além de si mesmo. Isso será o seu fim.
Por um momento, pensei que estava falando comigo, mas eu estava enganado.
Ariel voltou sua atenção para mim e explicou:
— Quando eu era mais jovem, vi uma peça no palácio. Essa foi uma frase da
Grande Imperatriz Demônio Kishirika Kishirisu.
Eu tinha certeza que ela nunca tinha dito isso. Talvez fosse a frase que outra
pessoa tenha inventado. A garotinha que conheci nunca seria capaz de dizer uma
frase tão inteligente.
— Quando o Cavaleiro Dourado Aldebaran a derrotou, Kishirika o amaldiçoou
com essas palavras enquanto ela estava morrendo — disse Ariel.
— Huh.
— Aldebaran tornou-se rei dos humanos depois disso, mas todos o temiam. No
final, seus retentores o traíram e o mataram.
Essa peça que ela tinha visto certamente mostrava o lado mais sombrio da
natureza humana, mas era bem diferente da história que eu conhecia.
— Essa peça é sempre realizada quando um membro da família real celebra um
marco importante em sua vida.
Esses marcos eram o quinto, décimo e décimo quinto aniversários. No Reino
Asura, essas ocasiões eram sempre celebradas com grandes festas. Pelo que
parecia, a família real também realizava uma peça.
— Ela se desvia da história — Ariel reconheceu —, mas me disseram que destaca
o estado de espírito que alguém da realeza deveria ter.
Então, não é historicamente preciso, como eu suspeitava. Isso não era
surpreendente. Era bem diferente da história que eu conhecia. O Cavaleiro
Dourado Aldebaran e Kishirika Kirisu derrubaram um ao outro na batalha.
Espere, não, talvez eu estivesse pensando no confronto entre o Rei Dragão
Demoníaco Laplace e o Deus Lutador.
Oh, bem, não é tão importante.
— Que estado de espírito é esse? — perguntei.
— Os princípios-chave sobre o que faz um rei: lutar, vencer e governar os
súditos.
Franzi as sobrancelhas.
— No entanto, se isso é realmente tudo, por que o povo de Aldebaran o traiu e o
matou? O rei que escreveu esta peça estava tentando amaldiçoar a geração que
veio depois dele? Quando eu era mais jovem, não podia deixar de ter essas
dúvidas. Foi só quando fiz quinze anos que de repente percebi. “Você tem poder
além de si mesmo. Isso será o seu fim”. Essas palavras resumiam perfeitamente
a mensagem central.
Ela fez uma pausa e olhou para longe novamente enquanto continuava:
— Muito poder levará alguém pelo caminho da destruição. Assim, deve-se
apenas exercer o máximo de poder que seja possível controlar. Se alguém quer
se tornar rei, deve ser capaz de dominar tudo o que tem à sua disposição. Mesmo
agora, ainda acredito que isso seja verdade.
Ariel baixou a cabeça, seus longos cílios lançando sombras sobre as bochechas.
— Estou perfeitamente ciente de que você e Lorde Perugius são mais do que
posso suportar. — Ela usava seu sorriso suave de sempre, mas parecia que estava
à beira das lágrimas. — Vou pedir a ajuda de Lorde Perugius mais uma vez, mas
se ele me recusar, acho que vou desistir de tentar convencê-lo.
— Vai desistir? — perguntei.
— Sim. Nem preciso dizer que não pretendo desistir de me tornar rainha, mas
deixarei de lado meus esforços para obter o apoio dele. Embora seu poder possa
estar além de mim, o trono asurano não está.
Eu não disse nada, mas quase senti vontade de suspirar. Ela estava muito
preocupada sobre se alguém estava “além dela” ou não.
— Princesa Ariel — eu disse.
— Sim, pois não, Lorde Rudeus?
— Que parte de mim você acha que é tão poderosa?
Ariel disse que eu era poderoso e especial. Sempre sonhei em ser visto de tal
maneira, mas, do jeito que as coisas estavam, eu definitivamente não pensava em
mim mesmo como alguém extraordinário. Essa nem era uma visão tendenciosa,
na minha opinião. Eu ainda não tinha atingido um nível que pudesse ser chamado
de impressionante.
— Oh, se eu fosse citar todas as suas qualidades incríveis, a lista continuaria até
não dar mais. Suponho que a maior seria sua impressionante reserva de mana.
— Minha reserva de mana, então?
Bem, é verdade que a minha reserva de mana supera a da maioria das pessoas.
Ter o Aspecto de Laplace me abençoava com uma das boas. Talvez tanto que
uma pessoa comum jamais se igualaria a mim apenas pelo esforço. Eu poderia
também admitir que isso tinha se provado benéfico mais de uma vez no passado.
Ainda assim, uma grande quantidade de mana não era solução para tudo. Todos
os problemas que enfrentei exigiam outras soluções.
— Talvez se minha reserva de mana pudesse resolver todos os problemas que
estou enfrentando, eu concordaria que sou uma pessoa poderosa — eu disse.
— Que problemas são esses?
— É difícil dar um exemplo concreto, pois são uma ocorrência diária. No
momento, passo todos os dias me preocupando como vou explicar o que está
acontecendo para minha família.
Eu estava apavorado com o Deus-Homem e com medo de Orsted também. Eu
tinha ocultado os detalhes e alimentado mentiras para minha família, não tendo
ideia de como explicar as coisas para eles. E Ariel disse que eu era poderoso?
Não me faça rir.
— Não posso falar por Lorde Perugius — eu disse —, mas não sou poderoso,
pelo menos. Sou simplesmente o marido de sua amiga íntima que por acaso tem
uma reserva de mana maior do que a maioria das pessoas, e possuo um monte de
conhecidos esquisitos. Mas sou apenas um mago comum, na verdade. Um que
está constantemente preocupado com alguma coisa. — Esses eram meus
sentimentos honestos, não importa o quão embaraçosamente clichê soasse.
Estendi a mão sobre a mesa e peguei a de Ariel. Sua pele era tão macia, e seus
dedos eram tão delicados que eu quase temia que eles pudessem quebrar em meu
aperto. Sylphie fez beicinho no canto, mas teria que lidar com isso por enquanto.
— Princesa Ariel, eu não vim aqui hoje para uma simples conversa.
— Você veio para tentar discutir algo? — Ariel manteve um sorriso gentil no
rosto, nem um pouco perturbada por eu ter agarrado sua mão de repente. Senti
um pouco de exaustão por trás disso, mas era um rosto impecavelmente
inexpressivo.
— Se isso basta para tocar seu coração, pode ser algo apelativo… Mas, na
realidade, foram Luke e Sylphie que me pediram para vir até aqui.
Em uma exibição incomum de agitação, a cabeça de Ariel sacudiu enquanto
olhava para os dois. Sylphie ficou firme, enquanto Luke rapidamente abaixou a
cabeça.
— Eles me imploraram para ajudá-la.
Seus dedos delicados apertaram os meus como uma morsa de bancada, exibindo
muito mais força do que eu pensava ser possível, o suficiente para me fazer
estremecer.
— Os dois disseram isso…? — murmurou ela.
— Não vim aqui para lhe menosprezar, zombando sobre como precisa da minha
ajuda. Na realidade, é o oposto. — Eu me perguntava sobre como teria reagido
a mim ao ter agarrado sua mão de repente e dizer tudo isso, caso ela estivesse em
seu eu normal e confiante. — Poderia, por favor, me deixar trabalhar ao seu lado?
Uma lágrima caiu dos olhos de Ariel. Era lindo. No entanto, estranhamente,
fiquei surpreso por ela chorar.
Por que será? Me perguntei.
Ariel rapidamente enxugou as lágrimas com a mão livre. Ela forçou um sorriso
e disse:
— Esta é a primeira vez que ouço uma cantada que consegue me abalar
profundamente. — Estava claro que ela não estava brincando; havia ajustado sua
expressão, suas bochechas não estavam corando e ela também não estava mais
chorando. Ela parecia uma princesa digna. — Devo admitir, ficaria grata pela
ajuda — disse Ariel, acenando com a cabeça. — Ainda assim… — Ela abaixou
o queixo e me estudou de perto, tentando descobrir minhas intenções. — Você é
o subordinado de Lorde Orsted agora, certo? Ele realmente permitirá que você
faça uma coisa dessas?
— Já conversei com ele sobre isso — assegurei-a.
— O que significa que você está agindo sob as ordens dele, então, sim?
Sua maldição não parecia completamente eficaz nela, então talvez não fosse um
problema responder honestamente. Mas optei por seguir o plano e manter sua
intenção em segredo.
— Não, de modo algum. — Balancei a cabeça. — Fui eu quem disse que queria
ajudá-la, e ele me disse que eu estava livre para fazer o que quisesse.
Depois de uma breve pausa, Ariel disse:
— Tudo bem. Ótimo. Certifique-se de transmitir minha gratidão a ele então.
Sylphie franziu os lábios, infeliz com a maneira como eu lidei com as coisas,
mas era assim que tinha que ser.
— Nesse caso, estou ansiosa para ter o seu apoio — disse Ariel.
— E mal posso esperar para trabalhar com você. — Reajustamos nossas mãos e
apertamos.
Agora que resolvemos isso, é hora de passar para os detalhes.
— Se vamos fazer de você rainha, poderíamos pedir a ajuda de Lorde Orsted no
assunto…, mas, francamente, ele não tem muita influência no Reino Asura. Eu
não acho que ele seria de muita ajuda para você — eu disse, precedendo meu
ponto principal. — Como tal, acho que a ajuda de Lorde Perugius será crucial.
— Concordo — disse Ariel, séria, sentando-se ereta em sua cadeira.
Talvez eu estivesse apenas imaginando, mas Sylphie e Luke pareciam mais
sérios agora do que há alguns minutos.
Orsted também mencionou que convencer Perugius a apoiar Ariel era primordial,
o que reforçava ainda mais a autoridade que ele tem em Asura. O problema era
como persuadi-lo.
Perugius nos fez uma pergunta antes, que era…
— Qual é a qualidade mais importante que um rei deve ter? Se você puder me
trazer essa resposta, então eu lhe darei meu apoio — eu disse, recitando o que
lembrei de nossa conversa anterior com Perugius.
Os olhos de Ariel se contraíram. Ela tinha torturado seu cérebro repetidamente
em busca da resposta para a pergunta.
— Que tipo de resposta ele quer… — eu disse.
Anteriormente, Ariel havia respondido: “Eles são sábios, ouvem seus ministros
e não se esquecem de sua posição na sociedade”, mas Perugius descartou isso,
dizendo estar incorreto. Ele então virou a pergunta para mim, e eu respondi:
“Acho que prefiro um governante que possa se colocar no lugar do povo comum,
em vez de alguém que confie em suas próprias habilidades.” Perugius chamou
essa resposta de “preferível”, mas isso sugeriu que também não era a correta.
Se o que Orsted falou fosse verdade, Derrick Redbat deve ter encontrado a
resposta correta para esse desafio quando foi questionado. Orsted também
sugeriu que a resposta provavelmente tinha algo a ver com Gaunis Freean Asura.
Claro, como a história havia sido alterada, não havia garantia de que Derrick
tivesse respondido à mesma pergunta que enfrentamos agora, mas valia a pena
investigar.
— Se não me falha a memória, Rei Gaunis era amigo íntimo de Lorde Perugius,
certo? — perguntei.
Ariel assentiu.
— Sim, a história de sua amizade é famosa. Lorde Perugius também parece muito
nostálgico quando ele aparece em uma conversa.
— Nesse caso, qualquer que seja essa qualidade, Rei Gaunis deve ter possuído.
Certo?
— Talvez.
— Você pode pesquisar sobre ele, não é? Deve ter alguns registros.
Pensei que minha sugestão era infalível, mas sabe-se lá o motivo, Ariel e seus
dois guarda-costas pareciam menos entusiasmados.
— Odeio dizer isso a você… — disse Ariel.
— O quê? Eu disse algo estranho?
— Não, mas já investigamos o Rei Gaunis. Não encontramos nada digno de nota
nos arquivos desta fortaleza flutuante, nem na biblioteca de Ranoa.
Ah, então eles já tentaram essa rota. Fazia sentido. O relacionamento de Perugius
com Gaunis era conhecido por toda parte. Seria mais estranho se não tivessem
seguido essa pista.
— Se pudéssemos verificar a biblioteca nacional em Asura, pode haver algo que
ele publicou que possa nos dar uma visão melhor, mas…
É verdade que o melhor lugar para encontrar informações sobre um rei asurano
seria na biblioteca do reino. Mas, por razões óbvias, teríamos dificuldade em
fazer uma visita ao lugar agora.
— Bem, isso é preocupante — eu disse. — Nesse caso…
Talvez fosse melhor perguntar sobre Derrick. Mas como eu faria tal indagação?
Todos achariam estranho que eu soubesse sobre ele, para começar.
— Hum, antes de discutirmos mais isso… — Ariel olhou brevemente para
Sylvaril. — Tem certeza de que está tudo bem? Lorde Perugius pode ouvir tudo
o que estamos dizendo.
Inclinei a cabeça.
— E? Acredito que ele vá achar tudo divertido.
— Eu me preocupo que ele não permita que discutamos esse assunto como um
grupo — explicou Ariel.
Ah, é isso que ela quer dizer. Ariel pensou que ele poderia querer que ela
pensasse sobre isso e encontrasse uma resposta por conta própria. Eu, por outro
lado, não tinha tanta certeza de que esse era o objetivo dele.
Olhei para Sylvaril. Ela agitou suas asas suavemente antes de dizer:
— Não importa para Lorde Perugius como você chega à sua resposta. Se for a
correta, ele lhe dará seu apoio. — As palavras não foram ditas, mas seu tom
insinuava: Isso é óbvio. Ele é, afinal, uma pessoa muito magnânima.
— Você quer dizer que eu deveria ter consultado os outros desde o início? —
perguntou Ariel.
Sylvaril assentiu.
— Na verdade, Lorde Perugius estava profundamente intrigado com o motivo
pelo qual você estava tentando resolvê-lo por conta própria.
Ariel sorriu amargamente.
— Eu me encurralei pensando demais, pelo que vejo. — murmurou ela para si
mesma, depois se levantou, sua determinação renovada. Ela ergueu os braços,
jogando o cabelo loiro para o alto. Ela caiu sobre os ombros enquanto se
espreguiçava, com as mãos entrelaçadas no ar. Então estalou o pescoço e bateu
nas bochechas.
Não é o tipo de comportamento que se esperaria de uma princesa.
Às vezes, as pessoas podiam se limitar pensando demais. Elas eram
frequentemente sobrecarregadas pela crença de que as coisas tinham que ser de
uma certa maneira e que não havia alternativas. Esses preconceitos e objeção
muitas vezes levavam as pessoas para longe do caminho correto. Era só quando
uma pessoa percebia que estava enganada, quando notava a existência de
diversas maneiras de realizar a mesma coisa, que seu campo de visão se expandia
e fazia com que se sentisse mais livre do que nunca. Eu tinha experimentado algo
semelhante quando Roxy me arrastou para fora pela primeira vez.
— Tá bom! — declarou Ariel. — Sylphie, Luke, sentem-se.
— Como ordenar!
— Tudo bem.
Os dois se acomodaram alegremente à mesa, o que só fez Nanahoshi se sentir
ainda mais estranha.
— Agora, então, vamos começar nossa reunião — disse Ariel, exalando a mesma
confiança que eu tinha visto dela quando a conheci.
Devo começar a bater palmas? Não, é melhor não.
Em vez disso, levantei a mão e disse:
— Antes de começarmos, gostaria de ter certeza de que estamos todos em
sintonia. Se importa?
— Sintonia? — repetiu Ariel.
— O que eu quero dizer é que eu realmente não sei muito sobre você, Sua Alteza.
— Suponho que não… Bem, o que gostaria de saber? — Suas bochechas coraram
e Sylphie olhou significativamente para mim.
Ah, fala sério. Não estou pedindo as estatísticas vitais dela. Estou tentando ter
uma conversa séria.
— Primeiro, se não se importar de compartilhar, eu gostaria de ouvir o motivo
de você querer se tornar rainha.
Eu sabia que ela queria se tornar rainha, mas só tinha pegado partes sobre suas
motivações. Ela mencionou algo sobre quantas pessoas morreram por ela.
Presumi que Derrick fosse um deles.
— Tenho quase certeza de que já te disse quais são minhas motivações — disse
Ariel.
— O quê? Disse?
— Sim, quando você e Sylphie se casaram.
— É mesmo…? — Cocei minha cabeça. — Bem, eu gostaria que você me
lembrasse mesmo assim.
— Eu disse a você que não seria capaz de enfrentar as pessoas que acreditavam
em mim e morreram por mim se eu não me tornasse rainha.
Concordei com a cabeça.
— Entendo. Então está fazendo isso pelas pessoas que sacrificaram suas vidas
por você… Poderia me contar mais sobre essas pessoas?
Ela sorriu e inclinou a cabeça.
— Isso é de alguma forma relevante para o nosso problema atual?
Reconheço um olhar de rejeição quando vejo um. Ela não quer falar sobre isso.
— Não sei se tem alguma relevância ou não — confessei. — Mas do meu ponto
de vista, parece que Lorde Perugius está testando você. Nesse caso, talvez se
vasculharmos sua história e motivações, possamos encontrar pistas que nos
levem à resposta que buscamos.
— Entendo o que você quer dizer.
Eu estava apenas dizendo isso como uma desculpa, mas na verdade faz sentido.
Francamente, eu não tinha ideia do que fazia um verdadeiro rei, ou o que quer
que Perugius quisesse chamá-lo. Eu não sabia nada sobre reis além do que tinha
lido em um romance há muito tempo. Lembrei-me de uma frase que dizia algo
como: “Um rei vive pelo seu povo. Não, é mais do que isso, ele existe para guiar
o povo”. Minha ignorância sobre o assunto significava que espremer meu cérebro
com a questão não seria muito produtivo.
— Pois bem, então. Devo avisá-lo que muitos morreram. Perdemos um número
especialmente grande quando fugimos de Asura. Treze, para ser precisa. Os
quatro cavaleiros eram Alasdair, Callum, Dominic e Cedric. Os três magos eram
Kevin, Johan e Babette. Meus seis empregados eram Marcellin, Bernadette,
Edwina, Florence e Corinne. Duvido que algum dia esquecerei seus nomes
enquanto eu viver. Nossa jornada foi brutal. Lutamos juntos e superamos tantos
obstáculos. Cada um deles desejava desesperadamente que eu me tornasse rainha
e morresse tentando fazer isso acontecer.
Espera, o quê? Derrick nem está entre os nomes que ela listou. Que estranho…
Orsted havia mencionado que Derrick havia morrido, mas Ariel nem o
mencionou. Talvez ele não fosse tão importante para ela? Talvez ele tivesse
descoberto algo a partir dos treze que ela mencionara, caso estivesse vivo.
— Conte-me mais sobre cada um deles — eu disse.
— Pois bem. Levará algum tempo para fazer isso. Algum problema referente a
isso?
Balancei a cabeça.
— Não me importo. Cada um deles deve ter sido importante, então eu odiaria
pular um que fosse.
Assim que eu disse isso, a atmosfera ficou menos tensa. Ariel sorriu quando Luke
ficou boquiaberto de surpresa. Seja qual fosse o motivo, Sylphie parecia estar
sorrindo orgulhosamente. Nanahoshi era a única que parecia desconfortável.
— Tudo bem, nesse caso…
Ariel lentamente começou a se abrir sobre as treze pessoas que havia perdido.
Ela me contou onde nasceram, como foram criados e como conheceu todas elas.
Ela também entrou em seus gostos e desgostos, suas personalidades, do que mais
se orgulhavam, quais conversas tiveram, o que as fazia rir, o que as deixava com
raiva e o que as fazia chorar. Não poupou detalhes. Até me contou quem se dava
bem com quem, quem gostava de quem e quem odiava quem. No fim, explicou
como cada uma delas morreu. Cada pessoa tinha sua própria parcela de drama,
mas todas eram gente de verdade, que viveu e morreu.
A conversa me disse tudo o que eu precisava saber sobre cada um dos treze.
Sylphie e Luke também entraram aqui e ali com suas próprias lembranças dos
falecidos. Todos os três tinham uma riqueza de informações que podiam
compartilhar sobre o grupo que perderam, o tanto que se lembravam deles.
Suspeitei que as outras duas garotas que serviam Ariel, que não estavam
presentes no momento, pudessem fazer o mesmo.
Meu eu do futuro disse que Sylphie partiu para se juntar a Ariel porque se
desencantou com ele, mas, pessoalmente, acho que ela teria ido de qualquer
maneira. Os laços compartilhados pelo grupo deles eram tão fortes que eu não
podia descartar essa possibilidade. Para ser honesto, estava sentindo um pouco
de ciúmes. Deram suas vidas por Ariel, morreram protegendo-a. O peso disso
era algo que eu conhecia muito bem. E eu achava que era uma coisa boa Sylphie
saber disse, também.
— Isso é tudo — disse Ariel assim que terminou.
— Hm, interessante…
Infelizmente, nada do que ela havia dito parecia relacionado ao que era preciso
para ser um “verdadeiro rei”. De certa forma, os laços que ela tinha com eles
pareciam evidências suficientes de que ela estava apta para o papel. Afinal, a
távola redonda do Rei Arthur também tinha treze assentos.
Sim, claro, se incluísse os sobreviventes, não chegava a treze, mas mesmo
assim…
— Oh, minha nossa, esqueci de outra pessoa que era muito importante — disse
Ariel.
Era isso que eu estava esperando. Tem que ser…
— Derrick Redbat.
Viu, eu sabia! Era isso que eu estava esperando.
Fiquei quieto, esperando que ela continuasse, mas Ariel apenas juntou as
sobrancelhas enquanto seu rosto se franzia.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ah, é só… Para dizer a verdade, de repente percebi que realmente não o
conhecia tão bem.
Ugh, ótimo. Então ele bateu as botas antes de ficar próximo dela.
Isso era um problema. Ela poderia ter mais a dizer sobre ele se, como na linha
do tempo original, os dois tivessem lutado lado a lado e construído confiança
enquanto ambos colocavam suas vidas em risco. Mas, infelizmente, ela não fez
isso. Se os dois não tivessem construído memórias juntos, então ela não saberia
que tipo de pessoa ele era, e eu não seria capaz de usar essa informação para
descobrir como ele conseguiu influenciar Perugius.
— Você se lembra de alguma coisa sobre ele? — perguntei. — Não importa se
parecer insignificante. Você disse que ele era alguém importante, então tinha que
haver algo, certo?
Minha única opção era pressioná-la por respostas.
— Vejamos… Ele era uma pessoa muito séria e profissional.
Ariel continuou adicionando alguns detalhes, mas ele parecia muito…bem,
normal para mim. Apenas um mago mediano e esperto. Era um intrometido
irritante, do tipo que sempre suspirava de exasperação com as palhaçadas de seus
amigos. Quando Ariel saía e fazia as coisas por conta própria, ele olhava para ela
com um olhar crítico e a repreendia. O que ela me passou me fazia lembrar de
Cliff. Ou talvez ele fosse mais como o Vice-Diretor Jenius. De qualquer forma,
ele era basicamente o equivalente a um avô intrometido sempre se preocupando
com o futuro de Ariel.
— Na época, meu comportamento não era digno de alguém que poderia se sentar
no trono. Eu vivia um estilo de vida indolente. Nem sonhava em me tornar
rainha… Foi quando aconteceu o Incidente de Deslocamento. Uma besta
apareceu de repente, e Derrick morreu me protegendo. Seu último desejo era que
eu me tornasse rainha. Foi por isso que passei a seguir esse caminho.
— Entendo.
Nada do que ela me descreveu me mostrava o que ele tinha em mente ou o que
desejava, o que era uma pena, pois ela tinha me falado mais do que o suficiente
sobre os treze que morreram durante sua jornada até aqui. Essa conversa também
não deu nenhuma pista.
Tem que haver alguma coisa, pensei. Alguma maneira de extrair as informações
de que preciso…
Enquanto eu estava murmurando para mim mesmo, contemplando uma solução,
alguém de repente falou:
— Pensando bem, ele nunca duvidou que a Princesa Ariel seria a próxima rainha.
Ele aproveitou todas as oportunidades que pôde para sugerir que ela assumisse o
trono — disse Luke. Ele fez uma pose sensual, colocando a mão no queixo
enquanto se lembrava do que sabia. — Talvez ele soubesse a resposta; sabia o
que faz de alguém um verdadeiro rei. Isso explicaria o porquê dele estar tão
confiante de que ela se tornaria rainha, porque sabia que ela possuía essa
qualidade.
Bom trabalho, Luke!
Fazia sentido quando eu pensava nisso: Luke, como Ariel, tinha sido próximo de
Derrick.
Mas tenho que ter cuidado com o que ele diz. É possível que ele só esteja
compartilhando isso baseado no conselho que recebeu do Deus-Homem.
Era melhor presumir que qualquer coisa que Luke sugerisse poderia ser perigosa,
mesmo que o próprio homem não quisesse fazer mal.
— Interessante. Isso certamente é possível — disse Ariel. Ela assentiu, como se
as palavras que Derrick lhe dissera finalmente fizessem sentido com esse
contexto adicional.
— Infelizmente, ele já não está mais conosco. — Luke a lembrou.
Todos ficaram quietos. Não tínhamos como saber o que Derrick estava pensando.
Enquanto o silêncio se estendia, a atmosfera ficou mais pesada. Talvez
tivéssemos passado muito tempo nos debruçando sobre aqueles que nos foram
perdidos.
— Bem, de qualquer forma, vamos continuar pensando nisso e ver se podemos
encontrar outras pistas — eu disse.
Minhas palavras não fizeram nada para aliviar o ar sombrio que se instalara sobre
a mesa. No final, não encontramos opções construtivas naquele dia
Capítulo 6: Sugestão de Osterd

— E foi assim que aconteceu.


Após meu encontro com Ariel, fui imediatamente me encontrar com Orsted e
retransmitir o que havia sido discutido. Se Luke era o mensageiro do Deus-
Homem, eu era de Orsted. Gostaria de informá-lo sobre cada pequeno detalhe.
Em essência, eu era um informante. Rudeus, o Linguarudo, pode-se dizer.
— Hm, então eles já buscaram por informações sobre Gaunis… — murmurou
Orsted.
— O que vamos fazer agora? — perguntei, apesar de já esperar que ele me
encarasse e dissesse para pensar por mim mesmo de vez em quando.
Só para ficar claro, eu não era do tipo que procurava a aprovação dos outros para
cada coisinha que eu fazia, beleza? Minha intenção era ser o mais independente
possível, mas tinha acabado de me tornar subordinado de Orsted. Eu ainda não
tinha certeza do que precisava ser relatado a ele e do que poderia ser tratado
sozinho. Enquanto pensava em qual seria esse limite, eu estava em grande parte
submetendo a ele a maioria dos assuntos em nossa missão atual. Não queria que
ele brigasse comigo por fazer as coisas sem sua opinião prévia.
Além disso, eu estava pedindo a opinião dele, não uma resposta concreta. Não
precisava soletrar tudo para mim, apenas me colocar na direção certa. Dessa
forma, eu lentamente aprenderia como ele queria lidar com os assuntos. Além
disso, eu tinha uma sugestão à mão se me dissesse para pensar por mim mesmo:
Orsted e eu poderíamos usar círculos de teleporte para nos infiltrarmos na
biblioteca asurana, onde poderíamos roubar os materiais necessários. Isso era o
que eu tinha planejado se ele não tivesse outras sugestões.
— Você deve ir à Biblioteca Labirinto, neste caso.
Sua resposta me pegou desprevenido. Inclinei a cabeça. “Biblioteca
Labirinto”? E o que seria isso?
Orsted viu a confusão no meu rosto.
— Um labirinto onde cópias de livros de todo o mundo estão armazenadas —
explicou ele.
Nunca pensei que algo assim existisse…
— Como esses livros são copiados? — perguntei.
— Um certo Rei Demônio amante de livros usa o poder de seu olho demoníaco
para copiá-los.
Considerando que as primeiras pessoas que me vieram à mente quando ele disse
Rei Demônio foram Badigadi e Atofe, imaginei que o indivíduo era semelhante
— alguém com uma risada desagradável e oito braços, cada um segurando um
volume de mangá. Parte de mim se perguntou a razão de alguém fazer isso com
a biblioteca, mas quando Orsted disse que era um rei demônio… De alguma
forma, essa era toda a explicação que eu precisava.
— Bem, parece que deve ser muito útil — admiti.
Se a biblioteca tinha todos os livros de todo o mundo, isso significava que
continha uma enorme quantidade de informações. Claro, havia informações por
aí que nunca se transformaram em livros, mas a grande maioria, sim. Era como
a Wikipédia, mas para magia. Pode ser que encontre informações sobre o que
quiser lá.
— Não exatamente — disse Orsted. — O lugar não está nem um pouco
organizado.
— Ah, beleza…
Ter uma riqueza de informações significava pouco se não pudesse pesquisar
sistematicamente o que estava procurando. Os dicionários só funcionam porque
são ordenados de maneira alfabética, permitindo que fosse encontrada com
rapidez a definição para qualquer palavra que precisasse. A tal biblioteca, por
outro lado, tinha um grande número de livros espalhados de forma aleatória. Era
difícil supor quantas horas, dias ou até semanas levaria para localizar um volume
específico.
— Nesse caso — eu disse — não seria difícil encontrarmos as informações que
buscamos?
— A grande maioria da literatura sobre Gaunis Freean Asura é agrupada por data
de publicação. Seria difícil reunir tudo o que já foi escrito sobre ele, mas ainda
encontraria mais lá do que na biblioteca nacional de Asura.
Huh. Então, pelo que parecia, esse rei demônio não copiou os livros de maneira
aleatória, mas em ordem de quando foram escritos, do mais antigo ao mais
recente. Se assim fosse, não seria impossível localizar o que precisávamos,
especialmente no caso de Gaunis. Ele foi um grande rei e herói de guerra. Tinha
que haver uma tonelada de livros sobre ele.
— Beleza, então onde fica esse lugar? — perguntei.
— Continente Demônio. A Região de Hyleth, nas profundezas da Floresta
Espectral.
— E presumo que vamos para lá…
— Usando círculos de teleporte — continuou ele.
As viagens tinham mesmo se tornado mais convenientes ultimamente graças a
esses círculos de teleporte. Isso me deixou nostálgico pelo tempo que passei com
Ruijerd e Eris, viajando do Continente Demônio até o Continente Central.
— Muito bem. Vou sugerir isso para Ariel e os outros — eu disse.
Seria um pouco antinatural para eu sugerir um local tão obscuro do nada. Talvez
fosse melhor dizer que eu tinha cutucado Orsted para obter informações e que
foi assim que eu soube sobre o lugar. Já poderia imaginar a oposição à minha
menção ao nome dele, mas isso me daria a oportunidade de flexibilizar as minhas
proezas persuasivas. Orsted provavelmente me recrutou esperando que eu fosse
útil dessa maneira.
Assim que me virei para ir embora, ele me chamou:
— Rudeus.
— Sim?
— Se você não conseguir encontrar sua resposta mesmo depois de vasculhar
vários materiais sobre Gaunis, tente isso. — Ele me deu uma gravura que eu só
podia assumir ser a capa de um livro. Era lindamente desenhada. Eu me
perguntava se foi ele mesmo quem fez.
— E o que seria isso? — perguntei.
— Entenderá assim que ler. Claro, se os livros que você encontrar sobre Gaunis
lhe fornecerem a resposta que busca, então não precisará se preocupar com isso.
Suas palavras, embora vagas, pareciam conter algum significado oculto. Por
enquanto, guardei a foto que ele me entregou e saí.
Já era tarde da noite quando voltei para a fortaleza flutuante. Não havia toque de
recolher lá, então Arumanfi me levou para dentro como de costume. Ele me
avisou que Perugius já havia se retirado para dormir, então eu deveria ficar quieto
enquanto atravessava os corredores.
Isso significa que Ariel também pode estar dormindo.
Talvez eu devesse ter ido para casa em vez de voltar correndo para cá, mas era
tarde demais para me arrepender da minha decisão. Eu poderia passar a noite
aqui e falar com Ariel sobre a Biblioteca Labirinto logo pela manhã.
Com isso em mente, fui em direção aos aposentos dos hóspedes, mas notei algo
se movendo no canto da minha visão.
Merda, uma barata? Mesmo nesta altitude? Acho que nem mesmo os espíritos de
Perugius podem se proteger contra uma infestação. Faz sentido, considerando os
ratos que vi no porão.
Mas então percebi que essa coisa, o que quer que fosse, estava do lado de fora
da janela próxima. A luz prateada entrou através do vidro, e um belo jardim se
expandiu para além dele. A lua não fornecia muita luz, mas semicerrei os olhos
e notei alguém sentado à mesa do lado de fora.
Quem estaria lá fora a esta hora?
Talvez Sylvaril estivesse fazendo hora extra. Seja qual for o caso, decidi ir lá e
descobrir.
— Huh.
Uma bela visão me cumprimentou quando saí do recinto. Banhada ao luar, a
grama brilhava levemente, guiando meu caminho adiante. Levava para um
caminho de flores que não eram notáveis durante o dia, mas assumia o brilho do
luar e brilhava como uma miragem. Eu podia ver porque Sylvaril se gabava sobre
este jardim em todas as oportunidades.
Uma garota estava sentada à mesa onde Perugius e Ariel frequentemente
saboreavam chá. Como não usava máscara, havia apenas uma pessoa que poderia
ser.
Bem, beleza, Nanahoshi não tem usado tanto assim a sua máscara, por isso pensei
que ainda poderia tecnicamente existir duas possibilidades.
No entanto, a pessoa sentada lá era uma beldade inigualável, conhecida
localmente por seu charme incomparável. Em outras palavras, Ariel. Ela estava
pensando longe, ou, para ser mais preciso, parecia quase imóvel, enquanto
olhava para o fantástico jardim.
— Princesa Ariel? — eu disse.
— Hm? — Seus ombros saltaram quando ela se virou para me encarar. — Oh, é
você, Lorde Rudeus…
— O que faz aqui, numa hora dessas?
A exaustão rastejava em seu rosto enquanto desviava o olhar.
— Eu não conseguia dormir, então dei uma fugidinha até aqui.
— Sem alertar Sylphie ou Luke?
— Sim, minhas desculpas. Eu só queria aproveitar um pouco o ar noturno
sozinha.
Eu não a estava julgando por isso, mas, ao mesmo tempo, ela tinha pessoas para
salvar a vida dela. Ela sabia disso melhor do que qualquer outro. Talvez tenha
sido isso que a obrigou a se desculpar.
— Bem — eu disse. — Todo mundo tem momentos assim.
— Até mesmo um rei? — perguntou Ariel.
— Um rei ainda é um ser humano. Então é claro.
Ela ficou em silêncio.
Eu ouvi dizer que os reis nunca deveriam mostrar fraqueza, mas isso apenas
significava que eles não poderiam expor, não que não tivessem. Todos tinham
momentos de vulnerabilidade, quando precisavam parar para pensar.
— E no que você estava pensando? — Sentei-me ao lado dela à mesa. Talvez ela
não quisesse ser perturbada, mas eu precisava conversar com ela de qualquer
maneira. Embora pudesse esperar até amanhã, parecia melhor contar a ela assim
que eu pudesse.
— Eu estava pensando se realmente estou apta para ser rainha ou não —
respondeu ela.
Com certeza não eram as palavras que eu esperava ouvir.
— Então, você me parece que seria uma rainha esplêndida — eu disse.
— A realeza é boa em colocar uma fachada para enganar outras pessoas. Não
passa de ilusão.
— Ah, então é algo interno que está te consumindo?
Ela ficou quieta por um momento antes de dizer:
— No fim das contas, só estou indo por esse caminho porque não poderia encarar
ninguém de outra forma. Talvez nunca tenha sido adequada para ser rainha.
Talvez fosse melhor aceitar um casamento arranjado com qualquer nobre que
fosse considerado melhor para mim e ficar de brincadeira com Luke como igual,
assim como era no passado. — Sua voz foi ficando mais silenciosa. Eu nunca
tinha visto tanta fragilidade dela antes.
— B-Bem… — gaguejei.
Merda. Merda, merda, merda! Ela está tão para baixo que está seguindo em uma
direção terrível. Se começar a pensar seriamente em desistir da candidatura ao
trono, estarei em maus lençóis.
Especialmente porque Orsted já estava planejando ajudar a torná-la rainha. Essas
circunstâncias únicas à parte, eu ainda tinha uma opinião bastante alta de Ariel.
Ela pode ter sido expulsa de Asura depois de perder o jogo político, mas ela não
desistiu. Estava lutando com unhas e dentes para fortalecer sua posição e criar
uma base sólida para perseguir seus objetivos. Levou cinco ou seis anos para
chegar até aqui; para ser sincero, eu teria desistido no meio do caminho. Não, eu
teria jogado as mãos para o alto em derrota no momento em que fui expulso do
país, assim como fiz quando pensei que Eris havia me rejeitado.
Não queria que Ariel desistisse agora. Eu sabia que, mesmo que ela quebrasse
por dentro, provavelmente colocaria uma frente corajosa e iria para o Reino
Asura de qualquer maneira. Mas como ela ganharia se não tivesse ambição por
trás disso? Quem iria querer apoiar uma pessoa que não tinha vida em seus olhos?
A Ariel sobre a qual o meu eu do futuro escreveu deve ter sido assim. Ela não
conseguiu ganhar o apoio de Perugius e partiu para Asura de qualquer maneira,
apenas para ser traída e morta.
Isso foi tudo especulação, é claro, mas quando vinha o momento decisivo, seu
estado mental pode ser o fator decisivo. Não que a força de vontade fosse tudo,
mas quando uma pessoa era levada ao seu ponto de ruptura, sua mentalidade
poderia fazer a diferença entre a vitória e a derrota.
— Princesa Ariel…
Eu disse o nome dela, embora não tivesse palavras reais para lhe oferecer. Eu
não estava planejando ser rei, e também não conhecia muitos reis, nem poderia
simpatizar com o que ela havia passado. Tudo o que eu tinha visto era a máscara
que ela mostrou para o mundo exterior. O que quer que eu dissesse acabaria
entrando por um ouvido e saindo pelo outro.
— Lorde Orsted tem uma ideia de onde podemos encontrar uma infinidade de
livros sobre Gaunis Freean Asura — eu disse.
— Hã?
— Antes de decidir se você é realmente apta para o trono ou não, por que não
tenta dar uma olhada nesses materiais para ver o que encontra?
Os olhos de Ariel se arregalaram. Ela olhou para mim e murmurou:
— Lorde Orsted…? — Ela engoliu em seco. — E onde encontraríamos esses
livros?
— Em um lugar chamado Biblioteca Labirinto…
— Vamos. — Ariel decidiu antes que eu pudesse terminar minha frase. Nem um
segundo de hesitação.
— Você com certeza não perdeu tempo discutindo se deveria ir ou não.
Ela começou a se virar, mas seu olhar voltou imediatamente para mim. Havia
poder lá — paixão.
— Posso estar me sentindo fraca agora…, mas ainda não desisti.
— Bom saber.
Ela parecia frágil como vidro no momento, mas ainda era uma mulher com os
olhos na coroa. Se não tivesse coragem, não teria chegado tão longe.
— Tudo bem então. Vamos pegar a estrada — eu disse, assentindo com tanta
determinação quanto ela acabara de me mostrar.
Três dias depois, eu me encontrei em uma casa nos arredores de Sharia. Era uma
cabana diferente daquela onde Orsted havia se estabelecido, e dentro havia um
círculo de teleporte emitindo uma luz deslumbrante e pálida.
— Então este é o círculo de teleporte que vamos usar — comentou Ariel ao meu
lado.
Depois que conversamos, ela imediatamente saiu para despertar Sylphie e Luke
e começar os preparativos para partir. Eu corri de volta até Orsted para atualizá-
lo. Ele então limpou o porão deste lugar e colocou o círculo de teleporte
necessário. Este era um tipo inerte que exigia que minha mana trabalhasse, como
o tipo que Perugius costumava usar.
— Não é a primeira vez que vejo um — disse a princesa. — Mas admito, estou
um pouco nervosa com a ideia de pisar nele. — Ela olhou com curiosidade. De
repente, seu olhar se afastou enquanto examinava graciosamente a área, como se
tivesse percebido algo de repente. Então, virou-se para mim. — A propósito,
notei que Lorde Orsted está ausente.
— É sua maneira de mostrar consideração, já que sua maldição seria apenas uma
distração desnecessária.
— Ah, entendo. Eu esperava pelo menos me apresentar a ele — disse Ariel.
Se Orsted aparecesse, os três provavelmente se recusariam a usar o círculo
mágico que ele criou. Embora sua maldição parecesse não afetar Ariel
inteiramente, não havia como saber que efeito teria se ela a enfrentasse de cara.
— É uma pena. — Ariel franziu a testa, desapontada. Ela era apenas destemida
ou gostava de ficar cara a cara com coisas aterrorizantes?
De qualquer forma, não podia deixá-la se encontrar com Orsted. A pior parte de
sua maldição fazia com que aqueles que o olhavam perdessem toda a
racionalidade. Mesmo Sylphie e Roxy, com sua sensibilidade e conhecimento da
referida maldição, não conseguiam confiar em Orsted. Era impossível saber que
efeito isso poderia ter em Ariel. Ela estava bem no momento, mas se fosse
confrontada com ele de perto, provavelmente ficaria tão aterrorizada que
manteria distância, mesmo de mim.
Seria incrível se Ariel pudesse falar com Orsted tão abertamente quanto eu, mas
o risco significava que manter distância era a melhor opção. Ela ainda o achava
intimidador, mas também entendia que poderia usá-lo. Na verdade, quando
mencionei que foi Orsted quem sugeriu visitar a Biblioteca Labirinto, ela
embarcou nessa sem pensar em quais seriam as intenções dele. Talvez fosse
natural — utilizar-se de qualquer meio possível —, mas a maldição de Orsted
era na maioria das vezes tão poderosa que boa parte das pessoas não aceitaria sua
ajuda, mesmo quando encurralada.
— Mas este círculo foi feito por Orsted, certo? — perguntou Sylphie.
— Tem certeza de que é seguro usar isso? Não quero ser jogado em um poço de
bestas — resmungou Luke.
Nenhum dos dois confiava em Orsted. Se Ariel lidasse com ele diretamente,
poderia ficar igual a eles. Precisava evitar isso a todo custo.
— Não falem desse jeito, pessoal. Lorde Rudeus nunca colocaria Sylphie em
perigo, não é? — Ariel olhou para mim.
— Claro — respondi. — Eu já usei uma vez, só para me certificar.
Não havia nada de incomum em nosso destino, além de cheirar a mofo e estar
coberto de poeira. Claro, eu não me aventurei muito longe, já que o lugar deveria
ser um labirinto.
— Então vamos seguir nosso caminho… ou assim eu gostaria de dizer, mas
primeiro… — Ariel ficou na frente do círculo mágico, seu olhar focado em mim,
ou, para ser mais preciso, nas duas mulheres atrás de mim. — Gostaria de
apresentá-las?
Olhei para trás, onde Eris e Ghislaine estavam. Quando eu contei para Eris que
iria para a Biblioteca Labirinto, ela se animou ao ouvir labirinto e pediu para vir
junto. Eu não imaginava que seria de muita utilidade caçando livros. E Orsted
me garantiu que o lugar não era muito perigoso, mas vai saber. Não faria mal ter
poder de luta extra. Então, sem uma boa razão para recusar Eris, eu a deixei vir
junto.
Eu tinha um motivo oculto para arrastar Ghislaine junto. Esta era a oportunidade
perfeita para apresentá-la a Ariel. Embora eu pudesse ter esperado até me
aproximar de Sua Alteza, Ariel já me considerava mais do que o esperado, então
não achei que seria um problema acelerar as coisas. Além disso, ela teria mais
dificuldade em confiar em Ghislaine se eu esperasse para apresentá-la quando
estivéssemos prestes a partir para Asura. Acredito que esta aventura labiríntica
seja uma boa oportunidade para já ir preparando o terreno.
Quando falei sobre Ariel conhecer Ghislaine e Eris há alguns dias, Ghislaine
disse que não sabia nada sobre etiqueta, por isso não tinha certeza de como se
apresentar. Eris, da mesma forma, estava ansiosa se seu guarda-roupa seria
aceitável para encontrar a realeza. Irônico, já que elas normalmente nunca diziam
essas coisas.
Sylphie interveio para tranquilizá-las. Enquanto suspirava para si mesma, ela
explicou que a Princesa Ariel não era exigente com os modos dos outros. Ela
também disse que as roupas de Eris estavam perfeitamente bem. Mas se as duas
estivessem preocupadas, ela ficaria feliz em ensiná-las. Nos três dias que se
seguiram à nossa partida, elas trabalharam duro para se prepararem.
Eris deu um passo à frente, como se estivesse esperando o tempo todo até que
Ariel notasse as duas. Estendi a mão para impedi-la.
— Quê? — gritou ela para mim.
Espera um pouco. Vou te apresentar, prometo!
— Princesa Ariel, esta é Eris. Como deve saber, ela ganhou o apelido de Rei da
Espada Furioso. Ela está nos acompanhando hoje como minha guarda-costas. —
Eu olhei para ela e sussurrei: — Beleza, agora é a sua vez.
Ela começou a cruzar os braços antes de se segurar e colocar a mão no peito,
curvando a cabeça.
— Meu nome é Eris Greyrat.
Sua atitude não era a mais educada, mas Ariel sorriu calorosamente para ela
mesmo assim.
— É um prazer conhecê-la, Lady Eris. Sou a Segunda Princesa Ariel Anemoi
Asura. Ouvi muitos rumores sobre você desde de quando eu era mais jovem.
— Hmph. Nada de bom, aposto.
Ariel riu.
— É verdade, os que chegaram à capital não foram os mais lisonjeiros. No
entanto, não julgo as pessoas com base nos sussurros que ouço dos outros. Afinal,
é tudo boato.
Eris não respondeu.
— O fato de você estar ao lado de Lorde Rudeus é a prova de que não se pode
acreditar em todos eles — disse Ariel. — As pessoas que ele mantém em sua
companhia podem ter suas peculiaridades, mas nenhuma delas é má.
Satisfeita, Eris assentiu e cruzou os braços. Ela estava com as pernas levemente
abertas, completamente esquecendo da etiqueta da nobreza que deveria seguir.
— Isso mesmo — disse Eris. — Rudeus é incrível. Bom saber que entende isso.
— De fato. Dito isso, embora possamos não estar na companhia uma da outra
por muito tempo, estou ansiosa pelo nosso tempo juntas. — Ariel fez uma
reverência graciosa.
Eris apenas olhou para a princesa e bufou, embora tenha baixado um pouco a
cabeça.
— Ahem. — pigarreou Sylphie, coçando a parte de trás da orelha.
— Ah! — Eris ofegou baixinho, baixando os braços. Ela fez uma careta enquanto
recuava alguns passos.
Forcei um sorriso desajeitado enquanto me movia na direção de Ghislaine em
seguida.
— E esta é a Loba Negra Ghislaine Dedoldia. Eu a trouxe para apresentá-la na
esperança de que ela possa se tornar um de seus guarda-costas, Sua Alteza.
Ghislaine deu um passo à frente e se ajoelhou. Ela estreitou o olho descoberto,
encarando a princesa.
— Ghislaine — grunhiu ela.
— É um prazer conhecê-la também, Lady Ghislaine. Sou a Segunda Princesa
Ariel Anemoi Asura. Quando você ainda morava na região de Fittoa, eu…
— Eu tenho uma pergunta — disse Ghislaine, interrompendo-a. — Disseram-me
que se eu servisse sob seu comando, seria capaz de me vingar por Lorde Sauros.
Isso é verdade?
Foi tão rude e abrupto que me perguntei a razão de ela ter se incomodado em
praticar etiqueta com Sylphie nos últimos três dias. Então, pude ver que era a
cara dela; isso não era uma questão em que Ghislaine pudesse se comprometer.
— É verdade — disse Ariel, sem perder tempo.
Para dizer a verdade, eu já havia preparado as bases para garantir que suas
demandas fossem atendidas; eu disse a Sylphie que seu objetivo era vingar
Sauros.
— Se você me acompanhar até o palácio asurano, descobriremos juntas quem foi
realmente responsável, quem puxou os fios para derrubar Lorde Sauros. Não,
não nós… Eu é que vou descobrir para você. E, quando o fizer, por favor, use
essa sua lâmina para fazer justiça.
Por algum motivo, ela lançou um olhar significativo para Eris quando falou.
O que isso deveria significar? Ela está de olho em Eris? Está mesmo interessada
nela? Quero dizer, sim, Eris parece muito juvenil e durona, mas… sério?
Não, não tinha como ser possível. Ghislaine era quem queria se vingar de Sauros,
mas Eris tinha razões ainda maiores para querer sua morte vingada. Ariel
provavelmente pensou que Eris estava atrás da mesma coisa e estava agindo
como meu guarda-costas apenas em nome.
Eu não sabia o que Eris pensava sobre isso, mas se ela tivesse a oportunidade de
acabar com os assassinos de Sauros, ela provavelmente faria isso. E eu também.
Eu não sairia para caçá-los e matá-los, mas se houvesse um cérebro por trás de
tudo e eles aparecessem na minha frente, eu os traria à justiça.
A morte de Sauros foi um resultado da conspiração para reduzir o poder da
família Boreas, uma vez que eram uma das quatro famílias que supervisionavam
uma vasta extensão de terras do reino, ao mesmo tempo em que enfraqueceram
a influência do primeiro príncipe. Havia tantos possíveis culpados que era difícil
filtrá-los.
— Eu vou — disse Ghislaine a Ariel, curvando a cabeça. Sua cauda se movia
enquanto ela virava o olhar para Sylphie. — Bem, o que eu deveria fazer, então?
— Hm, por enquanto, você virá como guarda-costas da Princesa Ariel. Por favor,
proteja-a das cinzas da batalha.
— Cinzas? — Ghislaine franziu a testa. — Estamos enfrentando um monstro que
cospe fogo?
— Hã? Não, é… É para acabar com qualquer um que tente atacá-la, foi isso o
que eu quis dizer.
— Ah, então era isso. Entendi. Além disso, não há necessidade de títulos
extravagantes a partir de agora. Apenas me chame de Ghislaine. — Ao dizer sua
parte, Ghislaine voltou para seu lugar atrás de mim.
— Bem, foi uma honra conhecer vocês duas — disse Ariel, fazendo reverência
diante de nós mais uma vez.
Eu instintivamente me curvei em resposta, o que levou uma Eris confusa a seguir
o exemplo. Ghislaine, por outro lado, apenas balançou a cabeça em
reconhecimento. As duas eram apenas conhecidas até o dado momento, mas não
havia dúvidas de que seria formada uma confiança entre elas conforme o tempo
que trabalhassem juntas.
Da mesma forma, eu precisava me certificar de que o primeiro trabalho fosse
tranquilo, a fim de aprofundar a confiança entre mim e Orsted.
— Beleza — eu disse. — Vamos começar.
Era hora de entrar na Biblioteca Labirinto.
Capítulo 7: A Biblioteca do
Labirinto

Sair do círculo de teleporte foi como acordar de um sonho. Não importa quantas
vezes eu experimentasse, jamais me acostumaria. Isso me fazia lembrar bastante
dos encontros com Deus-Homem.
Olhei para meus companheiros. Quase todos tinham olhares surpresos no rosto.
Até mesmo a sempre séria Eris estava boquiaberta enquanto olhava em volta.
Ghislaine foi a única que não pareceu surpresa.
Pensando bem, ela é a primeira do povo-fera a usar um círculo de teleporte.
Foi a primeira vez que vi Ariel totalmente chocada. Ela olhou para cima, com a
boca entreaberta e seus olhos desfocados, olhando para longe.
Fico imaginando se ficaria brava comigo se eu colocasse meu dedo em sua boca.
Deixa quieto. Mesmo que não ficasse, Sylphie com certeza teria um ataque.
— Ah! — Ariel finalmente piscou e recuperou a compostura. Ela se virou para
mim. — Chegamos ao nosso destino, não é mesmo?
— Sim.
Estávamos em um local de piso e paredes de pedra, semelhante às ruínas da Tribo
Dragão que visitei. Todos os outros círculos de teleporte que utilizei levavam a
lugares como este. A única diferença era que este aqui tinha uma porta decente,
e o local estava preenchido pelo cheiro de tinta, pergaminho e mofo. Isso me
garantia que definitivamente tínhamos chegado à Biblioteca Labirinto, mesmo
que não houvesse livros ali.
— Disseram-me que não havia perigo real aqui, mas, no final das contas, o lugar
é um labirinto — eu disse. — Vamos ficar atentos.
A tensão voltou aos rostos de Sylphie e Luke. A expressão de Ghislaine
permaneceu ilegível como sempre, e Eris… bem, Eris parecia bastante animada.
— Eu vou assumir a liderança! — declarou ela, indo em direção ao corredor que
levava mais a fundo no labirinto.
— Calma aí!
— Gah?!
Agarrei-a pela blusa para impedir seu avanço. Ela se virou e me encarou.
— Qual que é a sua?
— Eris, pode haver armadilhas. Deixe outra pessoa assumir a liderança. Se uma
luta começar, você pode tomar a vanguarda, mas por enquanto, fique para trás.
— Certo. — Ela franziu os lábios, fazendo beicinho enquanto relutantemente
recuava para trás de mim.
Beleza, mas tem um problema: quem deveria assumir a liderança? As únicas
pessoas com alguma experiência em um labirinto sou eu e…
— Hm? — grunhiu Ghislaine.
Ghislaine, eu acho.
Geese e vários outros me contaram tudo o que eu precisava saber sobre as
terríveis consequências de deixar Ghislaine liderar um grupo. Como alguém do
povo-fera, ela poderia ser capaz de farejar o perigo e evitá-lo, mas tinha o talento
de tropeçar em todas as armadilhas possíveis e pular de cabeça em enxames de
monstros. Ela definitivamente não era uma boa escolha para nos liderar.
— Já que tenho um Olho da Previsão, vou assumir a liderança — eu disse. —
Eris seguirá logo atrás de mim. Ghislaine e Luke protegerão a Princesa Ariel de
ambos os lados e Sylphie cuidará da retaguarda. Parece ser a melhor maneira de
prosseguir. O que vocês acham?
Pessoalmente falando, achei que era uma formação inteligente, e todo mundo
parecia concordar, acenando com a cabeça em silêncio.
— Não tenho objeções — disse Ariel. — Vamos deixar você assumir a liderança,
Lorde Rudeus.
Com o selo de aprovação de Ariel, entramos em formação.
Eu estaria explorando o caminho à frente, mas pelo que Orsted me disse, a
Biblioteca Labirinto diferia de outros labirintos, pois quase não havia armadilhas.
Desde que evitemos quebrar uma regra chave, ficaremos bem.
Falando nisso… devo avisar o resto.
— Enquanto estivermos aqui, pedirei que não utilizem magia de fogo — eu disse.
— Por quê? — Eris exigiu saber.
Sylphie imediatamente entendeu meu raciocínio.
— Porque se você usar magia de fogo em um labirinto, esgotará todo o oxigênio.
O rosto de Eris contorceu em perplexidade, como se não entendesse o que aquela
última palavra significava. Sylphie era claramente mais experiente neste campo,
mas seu palpite, embora bom, estava errado.
— Há isso também — admiti. — Mas na verdade é porque os monstros aqui
ficarão com raiva e atacarão qualquer um que danificar, queimar ou roubar
qualquer um dos livros. Não espero que tenhamos que lutar, mas se tivermos, por
favor, tenham cuidado para não danificar nenhum dos tomos.
— Que monstros estranhos — murmurou Eris.
— Bem, para ser mais específico, eles são na verdade familiares do Rei Demônio
que vive nas profundezas deste labirinto. Qualquer um ficaria com raiva se
alguém danificasse suas coisas.
— Faz sentido — assentiu Eris. — Certo, entendi!
Felizmente, desta vez ela quis mesmo dizer isso, não estando apenas agindo de
maneira corajosa.
— Não estou falando apenas com você, Eris. Também quero que vocês tenham
cuidado, Ghislaine, Luke.
— Entendi — grunhiu Ghislaine.
Ansioso, Luke franziu a testa e disse:
— E se não tivermos outra escolha?
— Não sei dizer quanta tolerância esse Rei Demônio tem. Também é a minha
primeira vez aqui.
— Tudo bem… — Luke estendeu a mão em direção ao punho de sua espada, as
sobrancelhas ainda franzidas. Ele não era um espadachim muito habilidoso. Para
os padrões médios, era bom o suficiente, mas não chegava nem perto do nível de
controle perfeito que Eris e Ghislaine tinham. Ele provavelmente sabia que havia
uma grande probabilidade de acertar um livro se começasse a balançar a lâmina.
— Se o que me disseram for verdade, não espero que a gente vá batalhar — eu
disse.
— Eu confio em você nisso, mas… na chance de termos que lutar, talvez seja
melhor eu ficar atrás.
— Sendo assim, deixaremos a guarda da Princesa Ariel para você.
Luke assentiu, confiante de que pelo menos conseguiria fazer isso.
— De qualquer forma, vamos andando.
Dito isso, abri a porta à nossa frente.
— Oh, uau… — Ofeguei quando passei pela porta. Não tive como evitar. Um
corredor sem fim se estendia diante de mim, mas não era só isso. Suas paredes,
de três metros de altura, eram compostas por estantes de pedra que se
prolongavam ao longe. Os livros estavam guardados nas prateleiras. — Entendo,
então esta é a Biblioteca Labirinto…
Fui até uma das estantes de livros. Os volumes eram mais como manuscritos,
sem encadernação de capa dura. Na verdade, alguns não tinham uma lombada e
eram apenas feixes de papel unidos. Não, não apenas alguns, mas sim a maioria
do material nas prateleiras. Grande parte parecia mais um amontoado
desorganizado de papel de rascunho e anotações do que uma coleção de notas
organizadas. No meio dessa bagunça, vi apenas um volume que tinha uma capa.
Seu título era Ledger, escrito na Língua do Deus Demônio. Com base nisso,
imaginei que continha registros contábeis de alguma loja em algum lugar do
Continente Demônio.
Calmamente olhei para a prateleira da parede oposta. Era igual. De que adiantaria
um monte de papel rascunhado como esse para alguém? Era um mistério para
mim. Pelo menos se encaixava no significado de Biblioteca Labirinto, até mesmo
o seu conteúdo era como um labirinto.
— Rudeus? Qual é o problema? — perguntou Eris.
— Oh, não. Não é nada.
Tentar encontrar o livro que procurávamos seria como procurar uma agulha num
palheiro. Eu me perguntei se realmente seríamos capazes de localizar algum
material sobre o Rei Gaunis.
— Vamos, temos que continuar andando — disse.
Caminhamos por um bom tempo depois disso. As estantes seguiam até o infinito.
No início, tudo que podíamos ver era um corredor que seguia em frente, mas
aparentemente tinha uma ligeira curva. Havia uma breve lacuna nas prateleiras,
onde o corredor se ramificou na forma de um H.
Decidi seguir em frente, deixando um sinal para marcar onde estávamos antes de
seguir em frente. Encontramos vários monstros em nosso caminho. Um era um
caracol grande o suficiente para bloquear metade do corredor. Tentáculos que se
contorciam saíam de suas costas. A mera visão causou um arrepio na minha
espinha. Foi só quando percebi que aqueles tentáculos estavam segurando
diversos livros que me senti menos cauteloso. Eu não tinha ideia de como a
criatura era chamada, então decidi chamá-la provisoriamente de Caracol-
Cthulhu.
Também encontramos um slime negro. De longe, não consegui distinguir outras
características além de que era um slime, então decidi chamá-lo assim mesmo
por enquanto. Ambas as criaturas estavam pegando livros e puxando-os para seus
respectivos corpos, descendo o corredor. Eles não chegariam ao seu destino tão
cedo, mas ficava claro que moviam-se com propósito, ou seja, não estavam
apenas andando sem rumo.
Havia também algumas formigas bípedes negras, que chegavam na altura do meu
joelho. Também pareciam ter seus próprios destinos, nem mesmo nos dando um
olhar enquanto seguiam seu caminho. Não tinham características chamativas, por
isso, por falta de algo melhor para chamá-las, decidi me referir a elas
simplesmente como formigas.
Embora as formigas nos tenham visto, não pareciam agressivas, em vez disso,
desapareciam labirinto adentro. Eu estava tão acostumado a monstros atacando
indiscriminadamente que parecia um pouco anticlimático. Eris e Ghislaine saíam
correndo para matá-los a toda hora. Foi um pesadelo tentar detê-las.
Ainda não tínhamos encontrado nenhuma armadilha. No início, nos movemos
pelos corredores com muita cautela, mas depois de uma hora sem nada, parecia
bobagem continuar pisando em ovos. Fiquei feliz, já que isso demonstrava que a
informação de Orsted era precisa. Ele não tentou nos enganar. Nesse ritmo, eu
realmente começaria a confiar nele.
Então, novamente, eu já tinha experiência com um certo grupo que tentou ganhar
minha confiança antes de me apunhalar pelas costas.
Não vou citar nomes, mas digamos que começa com M e rima com Zod.
— Ah, é um beco sem saída.
Foi uma hora de caminhada até encontrar um. Ficamos atentos o tempo todo,
examinando as prateleiras enquanto avançávamos, mas mesmo com o ritmo
lento, era provável que tivéssemos caminhado cerca de quatro quilômetros. A
curva do corredor era suave o suficiente para que eu não achasse que tínhamos
completado uma volta completa ao redor do labirinto ainda.
De qualquer forma, este corredor não tinha nada sobre o Rei Gaunis. Os volumes
cobriam uma junção de assuntos e idiomas, mas uma coisa que tinham em
comum era a data de publicação. Todos foram publicados por volta do final da
segunda Grande Guerra Humano-Demônio, a qual aconteceu há cerca de
trezentos anos.
— Vamos refazer nossos passos até onde o caminho se dividiu pela última vez
— eu disse, dando meia-volta.
A área em questão era aquela que se dividia na forma de H, com dois caminhos
levando para o interior e dois para exterior.
Acho que o mais próximo seria aquele voltado para os corredores exteriores.
— Ei, Rudy… Por que não tentamos entrar primeiro? — sugeriu Sylphie.
— Oh? Por que sugere isso? — perguntei.
— Eu dei uma olhada e parece que os corredores externos contêm volumes mais
antigos, enquanto os internos parecem ser mais recentes.
Se isso fosse verdade, então ir para dentro nos levaria aos anos do reinado de
Gaunis, aqueles após a Guerra de Laplace.
— Beleza — eu disse. — Nesse caso, vamos refazer nossos passos um pouco
mais para o corredor que dá para dentro.
Sylphie, observadora como sempre. Eu deveria saber que você teria um olho
afiado para isso.
Caminhamos novamente por um tempo. Como Sylphie comentou, quanto mais
andávamos, mais recentes eram os livros. Ao mesmo tempo, a curva do corredor
tornou-se muito mais perceptível. Isso também significava que os próprios
corredores eram muito mais curtos do que haviam sido. Estávamos nos
aproximando do centro do círculo.
Eu imaginava o que encontraríamos no meio. Já que isso era um labirinto, talvez
o mestre do lugar? Seu guardião? Orsted disse que os livros foram criados por
um demônio amante de livros, mas talvez isso não fosse tudo. Pode ser que outra
coisa também vivesse ali. Considerando minhas memórias do Labirinto de
Teleporte, eu não queria lutar se não precisasse.
A Guerra de Laplace começou há cerca de quatrocentos anos. Não deveríamos
ter que ir até o centro para encontrar essa seção, lembrei-me, tentando controlar
minha ansiedade.
— Este lugar é meio chato — resmungou Eris, mal-humorada.
Ah, isso traz muitas memórias.
Eu já tinha visto Eris ficar entediada antes. Era melhor avisá-la para não tentar
nada engraçado só porque não estava sendo entretida.
— Eris, eu sei que você não está se divertindo, mas se tentar alguma coisa…
— Eu sei, eu… — Eris de repente puxou sua espada da bainha. Uma fração de
segundo depois, Ghislaine também tirou a dela.
— Quantos?! — perguntei.
Por ter viajado com Ruijerd antes, sabia que isso significava que havia monstros
por perto. Sylphie e os outros também estavam atentos. Meu Olho da Previsão
ainda não havia percebido nada.
— Na próxima curva… para a esquerda… na parte de trás — disse Eris,
surpreendendo-me com o quão bem ela conseguia identificar essa presença
estranha.
— Não sei dizer exatamente quantos são, mas tem vários — acrescentou
Ghislaine.
É a cara dela ser vaga sobre os números. Ela tinha esquecido nossas aulas?
Mesmo depois de todo o esforço que investi nelas?
Certo, agora não é o momento para isso.
— Vou dar uma olhada — eu disse, dando um passo à frente. Movendo-me o
mais silenciosamente possível, fui em direção à interseção em forma de H e
espiei com cuidado para a curva.
Havia mesmo um monte de monstros, principalmente slimes e formigas. Os
slimes estavam se unindo e se separando sem parar, o que tornava impossível
saber quantos eram.
Ainda bem. Ghislaine não esqueceu como fazer contas.
Ainda assim, o que essas coisas estavam fazendo?
— Eles estão cavando as paredes… e fazendo prateleiras?
Pelo que pude ver, as formigas estavam esculpindo na rocha, enquanto os slimes
coletavam os escombros resultantes e os consumiam. Eles então os quebravam
dentro de seus corpos antes de transformá-los e cuspi-los para fazer novas
prateleiras ao longo da parede. Basicamente, a Biblioteca Labirinto era um
embaraço de corredores que eles criavam.
— Não parece haver perigo — anunciei, chamando todos.
Eles se aproximaram nervosamente, espiando ao redor da curva como eu tinha
feito momentos antes. Assim que viram o que estava acontecendo, soltaram um
suspiro de alívio.
— Então eles só estão construindo mais prateleiras — comentou Ariel.
— Orsted me disse que os monstros aqui são basicamente como familiares.
Suponho que isso signifique que são um pouco diferentes das outras criaturas
que vimos antes — eu disse.
Com isso fora do caminho, aceleramos nosso passo em frente.
Devemos ter caminhado por mais cinco horas depois disso. Cada vez que
chegávamos a um canto que levava mais para dentro, nos virávamos, mas muitos
levavam a becos sem saída, e algumas das interseções só tinham corredores que
levavam para fora. Isso impossibilitava chegar ao centro. No entanto, estávamos
gradualmente começando a encontrar livros cada vez mais novos, então eu sabia
que estávamos nos aproximando.
Decidimos fazer uma pequena pausa. Sylphie e Luke não estavam muito mal,
mas Ariel estava bastante exausta. A maior parte do nosso grupo estava em
excelente forma física, mas Ariel não estava acostumada a caminhar tanto. Ela
era de fato uma princesa, no sentido mais literal possível. Enquanto isso, a
(antiga) nobre em nosso grupo estava quase chorando de tanto tédio.
— Este lugar realmente não é nada além de livros. Achei que um labirinto seria
um pouco mais interessante do que isso — murmurou Eris.
Se ao menos ela aprendesse com o exemplo de Ghislaine.
Ghislaine parecia satisfeita apenas com o exercício que tivemos ao caminhar até
aqui.
— Eris, um labirinto não é um lugar divertido — eu disse.
— Você não acha? Mas é uma parte essencial da aventura. Eu sempre quis visitar
um, mas isso é chato.
— Nem me fale…
Eu não tinha boas lembranças de estar em um labirinto. Afinal, Paul tinha
morrido em um. Eu nunca mais queria passar por algo tão traumático, nunca
mesmo. A menos que houvesse uma razão muito convincente, eu estava contente
em não ver outro labirinto em minha vida. Eris deveria saber pelo que passei,
mas eu realmente não podia culpá-la por seus interesses.
— Salões repletos de monstros, tesouro intocado esperando para ser descoberto
e, no final de tudo, um enorme monstro guardião! — clamou Eris, animada.
— Eris — interrompeu Sylphie —, deixa isso de lado. Rudy perdeu o pai em um
labirinto, você sabe.
— Hã? — Por um momento, Eris ficou surpresa. — Oh… — Seu rosto
empalideceu rapidamente, os lábios franzindo e formando uma careta. Ela
apertou as sobrancelhas e manteve os olhos voltados ao chão enquanto
murmurava: — Desculpa…
— Está tudo bem. Não precisa pedir desculpas — eu disse. — Sei que você
ansiava por visitar um labirinto desde que era jovem.
— Você não se importa?
— Eu só quero que tenha em mente que há labirintos verdadeiramente perigosos
por aí também. Daqueles que podem te tirar um ente querido em um piscar de
olhos.
— É, eu entendi. — Eris balançou a cabeça.
Anos atrás, ela nunca teria se desculpado tão seriamente assim.
Quando viramos em uma interseção, nos encontramos em uma área aberta. Era
um buraco ridiculamente largo e em forma de cone. Tinha vários níveis, com
escadas ensanduichadas entre trechos de prateleiras. Isso me lembrou dos
assentos apertados no coliseu de Roma.
Em seu centro havia um slime enorme. Seu corpo tremia, dezenas de braços se
estendendo do meio como tentáculos, cada um segurando uma caneta e
rabiscando algo a uma velocidade relâmpago. Apenas um de seus apêndices era
diferente: apontava diretamente para cima. Tinha um olho enorme na ponta, que
encarava o teto.
No segundo em que vi esta criatura, um pensamento passou pela minha
mente: Oh, merda.
Este era, sem dúvida, o mestre do labirinto, e nós tínhamos inadvertidamente
pisado dentro do seu alcance de ataque. Eu não era o único que sentia perigo;
aqueles atrás de mim estavam igualmente sem palavras. Eris e Ghislaine estavam
boquiabertas, mesmo enquanto sacavam suas armas.
— O que diabos é aquela coisa?! — Luke deixou escapar.
Valeu, Luke, você acabou de dizer o que o resto de nós estava pensando.
— Só pode ser o governante deste lugar — eu disse. — Orsted me disse que era
um Rei Demônio, mas eu não estava imaginando isso…
— Este é bem diferente de Lorde Badigadi — disse Sylphie.
Exato. Eu havia antecipado algo mais parecido com Badigadi, mas isso era muito
mais… gosmento do que o que eu tinha em mente. Então, claro, havia várias
subespécies de demônios, por isso não era muito estranho terem um Rei Demônio
slime.
Mas um slime que lê livros? Beleza, beleza. Não é legal julgar. Tenho certeza
que até os slimes gostam de ler.
— Se este é realmente um Rei Demônio, então não devemos cumprimentá-lo?
— perguntou Ariel.
— Eu me pergunto se ele pode falar… — murmurei.
Havia muitos tipos de demônios. Alguns não tinham cordas vocais e, portanto,
não conseguiam falar. Parecia que esse poderia se enquadrar nessa categoria. Se
minhas experiências passadas com Reis Demônios fossem valer de alguma coisa,
eles não ouviam as pessoas. Admito, Badigadi e Atofe foram os únicos que
conheci, mas nenhum deles ouvia os outros. Não poderíamos julgar esse slime
apenas pela aparência, mas provavelmente seria mais seguro manter isso para
nós mesmos.
— Como não parece que nos notou, vamos tentar manter as coisas assim e agir
em silêncio.
Afinal, o silêncio era uma das regras de ouro de uma biblioteca.
Retomamos nossa busca, tendo o cuidado de ficar em silêncio. Parecia haver
slimes menores na área se movendo também. Pareciam estar nos ignorando por
ora, mas não tinha como saber o que aconteceria se o slime chefe nos visse.
Nenhum dos familiares parecia muito poderoso, mas era impossível ter certeza,
então era melhor ficarmos atentos. Se todos atacassem juntos, poderíamos ficar
em apuros.
— Ah! — Sylphie ofegou de repente.
— O que foi? — Por mais curioso que eu fosse, não conseguia desviar o olhar
do enorme slime no centro da sala.
— Está aqui, Rudy. Nesta área.
O que está aqui?
Olhei para trás. Sylphie estendeu a mão para uma prateleira ao longo da parede
externa, arrancando um livro do meio que se chamava Rei Gaunis: Ascensão e
Reinado. Era um entre vários.
Eu estava tão distraído com o slime gigante que não havia notado, mas
aparentemente essa era a área que abrigava livros escritos após a Guerra de
Laplace. Parecia que tínhamos passado por cima da seção cobrindo o meio e o
fim desse conflito, mas, novamente, as pessoas naquela época provavelmente
estavam tão ocupadas lutando que não tinham tempo para escrever livros. Mas
uma vez que a vitória era deles e a vida das pessoas começou a voltar ao normal,
aqueles que podiam contar os detalhes do caso começaram a escrever tudo, e os
livros nessa área provavelmente pertenciam a esses autores.
— Nesse caso, vamos voltar para o último beco sem saída e acampar lá —
propus.
Eris assentiu:
— Sim, não posso dizer que quero dormir com aquela coisa à vista.
— Concordo. Me dá arrepios só de olhar para aquilo — disse Ghislaine.
— Sério? — Ariel inclinou a cabeça. — Eu acho que parece bastante inteligente.
Eris cruzou os braços.
— Espadas não funcionam muito bem em slimes como esse, não é?
— Um slime morre se tiver o seu núcleo destruído — disse Ghislaine. — Mas
esse é tão grande que a espada nem chegará ao núcleo.
O comentário de Ariel foi bizarro, mas eu estava mais preocupado com quão
preparadas Eris e Ghislaine estavam para entrar em batalha. Felizmente, todos
pareciam concordar que deveríamos sair dali. Eu não queria ficar perto de algo
que não sabíamos nada e cujos movimentos não podíamos prever.
Ainda assim, depois de uma longa jornada, finalmente chegamos ao nosso
destino, e isso foi motivo de celebração, pelo menos.
Uma semana inteira se passou depois de montarmos acampamento. Nosso grupo
passou o tempo todo se movendo entre nossa base e a seção de livros sobre o Rei
Gaunis. Passamos todos os dias folheando-os. No início, nós os pegamos
sorrateiramente e recuamos para algum lugar onde o slime gigante não pudesse
nos ver, antes de folhearmos as páginas e tomarmos notas. Então, devolvíamos
os livros com todo o cuidado ao seu devido lugar.
Depois de três dias disso, percebemos que nada parecia chamar a atenção do
proprietário, então começamos a fazer nossa pesquisa diretamente nas
prateleiras. Isso significava que Eris e Ghislaine não tinham nada para fazer,
então as duas treinavam com suas espadas ou iam caminhar pela área. Eu ainda
não tinha certeza de que este lugar era totalmente seguro, então queria que
tivessem cuidado, mas não podia esperar que ficassem quietas o tempo todo. No
quinto dia, desisti de me preocupar com isso. Não houve nenhum problema em
suas atividades.
Enquanto isso, não nos faltava materiais sobre o Rei Gaunis. O que não foi
surpreendente, já que ele se tornou o monarca do país que venceu a guerra.
Gaunis não era apenas um rei na época que se seguiu à Guerra de Laplace, ele
também já foi um dos muitos príncipes. A literatura era um pouco irregular sobre
os números, especialmente aquelas destinadas a crianças. Algumas histórias
diziam que ele tinha dezenas de irmãos, outras diziam que ele era o mais novo
de três. A única coisa que todos concordavam era que ele tinha dois irmãos mais
velhos. Isso se alinhava com o que Ariel parecia saber. O mais velho era um
guerreiro impressionante e destemido, enquanto o segundo mais velho era um
estrategista engenhoso. Gaunis, sendo o terceiro filho, era dotado de inteligência
e força.
Foram esses três príncipes que decidiram tomar uma posição contra o exército
invasor de Laplace. No entanto, as tropas de Laplace eram poderosas. Nem a
força bruta do mais velho nem as táticas brutas do segundo mais velho poderiam
superar o exército inimigo, e assim os dois morreram.
A guerra culminou em uma batalha decisiva na frente sul do Continente Central,
que finalmente resultou na morte do Rei de Asura, o pai de Gaunis. Assim,
Gaunis assumiu o trono apesar de sua juventude. Ele era um homem talentoso,
mas sua força não era igual à de seu irmão mais velho, nem suas táticas eram
iguais às do segundo mais velho. Alguém como ele poderia vencer o exército de
Laplace, quando seus irmãos e o rei anterior já haviam caído diante dele?
Sim, podia. Assim era como a literatura dizia, uma vez que era descrito que ele
tinha inúmeros amigos: o Deus Dragão Urupen, o Deus do Norte Kalman e o Rei
Dragão Blindado Perugius, para citar alguns dos numerosos heróis que ele
chamava de companheiros. Gaunis foi até eles e se prostrou, implorando para
que o ajudassem a encontrar uma maneira de derrubar Laplace. Sete heróis
responderam ao seu chamado e partiram em uma jornada para derrotar o inimigo
jurado de Gaunis.
Os detalhes combinavam com o que eu havia lido há muito tempo em Lendas do
Rei Dragão Blindado. Esses livros também diziam mais sobre as aventuras de
Perugius e seus companheiros do que sobre o Rei Gaunis.
Depois que os heróis partiram em sua missão, Rei Gaunis consolidou o poder no
Reino Asura e cavalgou para encontrar o exército de Laplace. Foi um confronto
defensivo após o outro, uma batalha de desgaste. No entanto, o Rei Gaunis
conseguiu conter o avanço do inimigo, impedindo Asura de cair até Perugius e
os outros retornarem. Ele realmente era o homem por trás das cenas.
Quanto ao tipo de pessoa que o Rei Gaunis era… a literatura tendia a não ser
confiável. A maioria dos volumes o descrevia como um governante exemplar,
inigualável em sua excelência e transbordante de talento. Eles nunca ilustraram
exatamente como ele possuía essas qualidades, mas ainda assim o enchiam de
elogios.
Ariel parecia satisfeita com esses relatos, pois combinavam exatamente com o
que ela ouvira, mas quanto mais eu procurava, mais eu encontrava informações
estranhas misturadas com o resto. De acordo com outras fontes, Gaunis era um
alcoólatra sem talento que se esgueirava para a cidade para brincar enquanto seus
irmãos mais velhos talentosos participavam do esforço de guerra.
Aparentemente, ele bebia e brigava quase todo dia.
No início, pensei que alguém que odiava o rei havia escrito isso para manchá-lo,
mas esses relatos deram exemplos específicos de seu comportamento e as datas
exatas em que esses eventos ocorreram, ao contrário das fontes que o elogiaram.
Isso os tornava muito mais críveis aos meus olhos.
Mesmo assim, eu ainda me vi pensando: “Não, não, isso não pode ser verdade”
enquanto lia. Tudo isso mudou no dia de hoje, quando finalmente encontrei a
fonte mais confiável de todas.
Datado por volta dos últimos anos da Guerra de Laplace, era um diário escrito
pelo próprio Rei Gaunis. O início de seu registro antecede sua ascensão ao trono,
quando seus dois irmãos mais velhos ainda participavam ativamente da guerra.
Estava escrito um relato detalhado dos pensamentos diários de Gaunis Freean
Asura e experiências passadas.
Gaunis era a ovelha negra da família. Seus dois irmãos mais velhos eram tão
geniais que ninguém esperava nada dele, o que só o irritava. Mesmo que ele
reclamasse, ninguém lhe dava atenção. Era por isso que fugia do castelo para
ficar pela cidade o tempo todo.
Como havia uma guerra ativa acontecendo, a cidade não era a mais segura, mas
isso também a tornava o lugar perfeito para Gaunis desabafar suas frustrações.
Ele bebia até ficar bêbado, choramingava sobre como tudo era injusto, então
entrava em brigas. Não houve consequências por ele ter puxado briga com
fanfarrões na cidade.
Se fosse resumir o tipo de pessoa que Gaunis era com uma palavra, seria
simplesmente: lixoso.
Depois de ler seu diário, Ariel ficou tão chocada que passou meio dia acabada,
sem fazer nada. Mesmo agora, ela estava sentada, escorada em uma das
prateleiras, com as pernas dobradas contra o peito, e sua expressão era obscura
enquanto murmurava para si mesma:
— É isso? É esse o tipo de rei que Lorde Perugius está procurando?
Luke e Sylphie estavam tentando ajudá-la a recuperar a compostura, mas até
mesmo suas vozes estavam tensas com o choque de descobrir que tipo de pessoa
Gaunis realmente era.
Pessoalmente… grande rei ou não, Gaunis era um ser humano, para começo de
conversa, então seu comportamento não era tão surpreendente para mim. Na
verdade, ficou mais fácil de entender ele.
Embora eu tenha que admitir que o comportamento não é muito real.
Apesar disso, Perugius achou adequado apoiar alguém como Gaunis. Então
talvez Gaunis sendo um lixo de ser humano pode realmente ser uma dica. Assim,
continuei minha busca, e foi então que encontrei um livro profundamente
intrigante sobre as Crianças Abençoadas.
Este tomo cobria quais Crianças Abençoadas haviam sido descobertas na época,
que poderes possuíam e que tipo de pessoas eram. Nada disso parecia ter a ver
com Gaunis. Pelo menos não até que encontrei um artigo que descrevia a
“Criança Abençoada Impotente”. Só o título me fez imaginar o oposto de
Zanoba, que ostentava força desumana. Impotente sugeria que essa pessoa era
frágil e covarde.
Apesar de minhas impressões, o poder descrito foi considerado extremamente
perigoso, o suficiente para que o texto enfatizasse que qualquer pessoa que o
possuísse deveria ser morta de imediato. Uma Criança Abençoada Impotente
poderia desativar os poderes de outras Crianças Abençoadas.
Eu tinha visto esse padrão muitas vezes em light novels de superpoderes. Na
maioria dos casos, a pessoa com a capacidade de desativar os poderes dos outros
não tinha outras habilidades próprias. Isso muitas vezes os colocava em
desvantagem e outros os desprezavam. Mas nessas séries, a maioria dos
personagens centrais possuía superpoderes, como noventa por cento deles, então
a habilidade de anular suas habilidades mudava o jogo. Naturalmente, a pessoa
que possuía esse dom raro era o principal protagonista.
As Crianças Abençoadas eram tão raras neste mundo, no entanto, que talvez
tenha existido apenas algumas. Ser capaz de anular suas habilidades não parecia
tão forte. Na verdade, parecia extremamente inútil para mim. Seria muito melhor
ter um guerreiro ao estilo de Deus da Espada do seu lado do que alguém assim.
Dito isto, outras Crianças Abençoadas tendiam a ser figuras de autoridade em
seus respectivos países. Elas poderiam criar milagres com seus poderes que
normalmente não poderiam ser realizados por meio da magia comum. Por essa
mesma razão, seria uma enorme desvantagem para um país se o poder de sua
Criança Abençoada fosse apagado. Outros países veriam uma Criança
Abençoada Impotente como um incômodo, enquanto seu próprio país os
consideraria como uma responsabilidade inútil que apenas os colocaria sob
escrutínio estrangeiro. Assim, era aconselhado matar tal criança imediatamente.
O poder descrito, no entanto, chamou a minha atenção. Crianças Abençoadas
Impotentes aparentemente também poderiam dissipar os poderes das Crianças
Amaldiçoadas. Elas eram iguais, afinal. A única diferença entre elas era se o
poder que tinham era benéfico ou não, então fazia sentido que as habilidades da
Impotente também fossem eficazes contra eles.
Eu me perguntava, no entanto, se essa capacidade de apagar os poderes de outras
Crianças Abençoadas e Crianças Amaldiçoadas também poderia ser usada para
anular outras coisas. Como maldições normais, por exemplo. O título Crianças
Amaldiçoadas se prestava à crença de que haviam sido marcadas por uma
maldição real, mas as duas coisas não estavam tão relacionadas.
Como este livro não dizia explicitamente que esse era o caso, presumi que as
habilidades das Impotentes não poderiam curar maldições, mas talvez eu
precisasse ver tudo como um todo. As Crianças Abençoadas possuíam diversas
habilidades diferentes. Cada uma delas violava as leis naturais do mundo. Parecia
plausível que uma delas pudesse apagar maldições ou voltar no tempo. Em outras
palavras, com o poder certo da Criança Abençoada, podemos ser capazes de
devolver as memórias de Zenith para ela.
Essa foi apenas uma observação desejável da minha parte, é claro, mas valia a
pena perguntar a Orsted quando chegasse em casa.
— Ah, é melhor anotar isso no meu diário, para que eu não esqueça — murmurei.
Fechei o livro que estava lendo e peguei meu diário. Para ser franco, depois de
ler o diário do meu eu do futuro, eu tinha minhas dúvidas sobre continuar com
essa coisa, mas ele salvou minha pele. Eu não tinha intenção de voltar ao passado,
no entanto. Ia fazer o possível para que não fosse preciso. Dito isso, talvez um
dia eu queira confiar meu diário a alguém. Tipo, quando minha hora chegar,
talvez eu queira passar meu testamento. A pessoa que for ler vai se beneficiar da
orientação de todas as informações que incluí.
— Vejamos… descobri que as Crianças Abençoadas podem ter vários poderes
diferentes. Há até mesmo aquelas que conseguem manipular as habilidades de
outras Crianças Abençoadas ou Amaldiçoadas. Talvez eu possa conseguir algo,
mesmo que essa coisa pareça impossível usando esses poderes… Pronto, isso é
o suficiente, eu acho.
Levantei a cabeça depois de terminar de rabiscar e tive um vislumbre do enorme
slime no meio do buraco, contorcendo-se como sempre fazia. Fiquei assustado
quando o encontrei pela primeira vez, mas me acostumei com aquilo na semana
passada. Não era menos aterrorizante do que antes, mas não havia se lançado
contra nós. Ele passava todo o seu tempo olhando para o teto e copiando livros,
o que sugeria que era inteligente pelo menos.
De repente, olhei de volta para o meu diário. — Espere um segundo, “eu poderia
ser capaz de alcançar algo, mesmo que essa coisa pareça impossível”? Isso não
é um pouco vago demais? Talvez eu devesse escrever um exemplo específico
sobre onde usar esses poderes.
Até agora eu nunca tinha pensado muito em escrever nada em detalhes. Talvez
estar neste labirinto tenha me encorajado a mudar meus modos? Haha. Bem, era
hora de reescrever essa vaga parte. Arranquei a página atual, substituindo-a por
outra que usei para reescrever meus pensamentos atuais.
Sabe, sinto que isso seria muito mais fácil se eu tivesse um pouco de corretivo.
Mas como eu faria isso? Ou devo só espalhar tinta branca na página?
— Hm? — Olhei para cima, notando que um dos muitos tentáculos do slime
gigante tinha acabado de rasgar uma página do livro que estava escrevendo.
Observei em silêncio. Algo sobre isso me fez pensar…
Só para ter certeza, escrevi uma frase aleatória no meu livro. Imediatamente
depois, o tentáculo começou a imitar meu movimento. Então comecei a escurecer
a página inteira com tinta. O slime fez a mesma coisa.
Está me copiando…?
Não, isso não estava certo. Não estava me copiando; estava copiando o que eu
havia escrito.
— Se gosta de livros, então isso significa que deve ser capaz de ler, certo? —
murmurei comigo mesmo.
O slime não tinha boca ou ouvidos, então talvez não entendesse palavras faladas,
mas tinha aquele olho gigante na ponta de um de seus tentáculos. Isso significava
que sabia ler, certo?
— Acho que vale a pena tentar.
Mas devo consultar Ariel e os outros antes de tentar me comunicar com ele? Não,
isso não me faria nenhum bem. Ariel já estava nas últimas com a nossa situação
atual, prestes a desistir e ir para casa. Vale a pena uma aposta neste momento.
— Vejamos… Bom dia para você, Rei Demônio. É um prazer conhecê-lo. Me
chamo Rudeus Greyrat. Você tem uma biblioteca incrível aqui. — recitei as
palavras enquanto as escrevia em meu diário.
Um dos tentáculos do slime gigante imediatamente começou a correr pela
página, mas então parou de repente. Era algo que ainda não tínhamos visto antes.
Não havia apenas copiado o que eu havia escrito; seus outros braços haviam
parado de se mover completamente.
Um ar misterioso pousou sobre a cavidade em forma de cone.
— Estou sendo muito apressado? — perguntei a mim mesmo. Por uma fração de
segundo, perdi a coragem, mas já era tarde demais para me arrepender agora.
O globo ocular do slime gigante, que estava olhando para o teto o tempo todo,
agora se virou para mim. Aquela coisa era gigantesca. Ele claramente podia me
ver boquiaberto.
O slime se encolheu por um momento. No segundo seguinte, seus tentáculos
dispararam em uma velocidade incrível, quase como agulhas de porco-espinho
disparando em todas as direções.
Meu Olho da Previsão me disse: um tentáculo está vindo em minha direção.
Eu me abaixei, presumindo que aquilo fosse me empalar. Para minha surpresa, o
tentáculo parou bem na minha frente. Estava segurando um único pedaço de
papel. Não, não era isso, não estava segurando nada, seu corpo era como um
adesivo, então o papel estava apenas preso a ele. De qualquer forma, segurava o
papel diretamente na minha frente, uma mensagem rabiscada nele dizia:
Eu sou o Rei Demônio Beethove Tovetha, da Tribo Nen. Bem-vindo ao meu
castelo, Futuro Autor.
Oh… Ooooh! Comunicação estabelecida com sucesso! Eu erguia os punhos
mentalmente. Espera, não. Espera um pouco. É sério? Acabei tendo a ideia de
conversar com essa coisa por acaso. Nunca imaginei que daria tudo certo. Uh, e
agora…
Rapidamente escrevi minha resposta.
Minhas mais profundas desculpas por não ter prestado meus devidos respeitos
antes. É uma honra conhecê-lo, Vossa Majestade. Viemos aqui na esperança de
pesquisar um certo assunto. Estaria disposto a permitir a nossa estadia aqui
enquanto isso?
Sua resposta foi sucinta e simples.
Sim.
Ufa! Enfim pude dar um suspiro de alívio depois de estar no limite o tempo todo.
Limpei o suor frio da minha testa.
Beleza, pensei. Posso mesmo fazer isso. Embora talvez seja melhor alertar Eris
na próxima vez antes de tentar algo. Isso foi um pouco precipitado demais.
Ainda assim, que nome interessante. Isso me lembrou de um certo compositor
que passou a vida fazendo música. Orsted havia me dito que esse Rei Demônio
não era um cara tão ruim, e com base em nossa breve interação, parecia que ele
estava certo.
Mas, e agora? Pensei sobre o que eu diria depois de iniciar uma conversa com
ele. Talvez eu possa perguntar sobre algumas informações relativas a Gaunis. Se
era mesmo o mestre deste labirinto, devia saber sobre ele.
Na verdade, estamos procurando um certo livro, escrevi.
Encontre você mesmo, respondeu o slime instantaneamente.
Oof, pensei. Que frieza.
Então, novamente, éramos completos estranhos que apareceram do nada. Eu não
poderia culpar o slime por recusar o que deve ter considerado uma demanda
estranha. Pelo menos não estava nos mandando embora.
Mas, continuou o slime, você conseguiu me divertir.
Pelo que parecia, ele não estava simplesmente me ignorando, como pensei de
começo. Perturbado, peguei meu diário novamente e respondi:
Eu disse algo tão engraçado?
O slime respondeu:
Você veio aqui carregando um livro do futuro. Isso foi realmente chocante. E
agora está escrevendo uma continuação de seu conteúdo enquanto falamos. Se
não chama isso de interessante ou divertido, então o que é? Como recompensa
por me divertir, vou conceder-lhe um desejo.
Livro do futuro? Ah, deve estar se referindo àquele diário que meu eu do futuro
trouxe para esta linha temporal. Eu não o trouxe para o labirinto. E se o que o
slime estava dizendo era verdade, provavelmente já havia copiado o conteúdo
daquele diário. Do ponto de vista do slime, meu diário atual era uma continuação
do anterior. Isso era irônico. Um diário do passado sendo a continuação de um
do futuro. Dava para ver como ele achava uma série de livros tão única algo tão
interessante.
Tudo isso à parte, parecia que os Reis Demônios adoravam recompensar as boas
ações concedendo desejos às pessoas. Isso fazia parte da cultura deles ou algo
assim?
Então perguntei:
Um desejo? Vai me dar o que eu quiser?
A única coisa que eu, Beethove Tovetha, sou capaz de fazer por você é procurar
qualquer livro que desejar, respondeu ele.
Bem, dado o tipo de criatura com quem eu estava lidando, eu não poderia esperar
que me desse vastas riquezas, imortalidade, ou qualquer coisa assim. Agora que
eu sabia os parâmetros desta concessão de desejos, porém, que livro devo pedir-
lhe para encontrar? Separar um único volume seria difícil. Eu teria que saber o
título para poder pedir algo específico. Nós já havíamos pesquisado a maior parte
da literatura pertencente a Gaunis, mas ainda não tínhamos encontrado a chave
que precisávamos…
Espere. Talvez eu devesse desistir de procurar algo relacionado a Gaunis e pedir-
lhe para procurar por qualquer livro que possa elucidar uma maneira de curar
Zenith de sua condição. Dado o vasto conhecimento contido nesta biblioteca e
como este lugar é enorme, pode haver alguma informação sobre uma maneira de
tratá-la. Por outro lado, é igualmente possível que não haja.
Não, eu não poderia perguntar sobre isso. Eu não tinha vindo a esta Biblioteca
Labirinto para procurar uma maneira de curar Zenith. Minha prioridade era Ariel.
Eu vim aqui para ajudá-la. Zenith ainda pesava em minha mente, mas sua
condição está estável agora. Não podia me deixar distrair. Se Orsted começasse
a pensar que eu não era confiável e decidisse me abandonar, o Deus-Homem
poderia aproveitar a oportunidade para massacrar toda a minha família. Precisava
evitar isso a todo custo. Zenith era importante, mas não poderia ser minha
primeira prioridade no momento. Precisei deixá-la de lado.
— Oh, é mesmo. — De repente me lembrei do pedaço de papel que tinha enfiado
no bolso. Era o que Orsted havia passado para mim bem quando eu estava saindo.
Tinha uma capa de livro desenhada nele. Orsted provavelmente antecipou que
não conseguiríamos encontrar o que buscávamos, motivo pelo qual me entregou
isso. Talvez quisesse que eu mostrasse ao Rei Demônio. Ele mencionou que
podia ver o futuro ou algo assim.
Nesse caso, escrevi:
Eu gostaria que você encontrasse um livro com uma capa que se parece com esta.
Muito bem, respondeu o slime.
Entreguei-lhe o pedaço de papel e, uma fração de segundo depois, ele tirou um
volume de uma das prateleiras do local. Pelo que parecia, o volume estava por
perto o tempo todo.
O slime agarrou o livro, colocou-o dentro de seu corpo e o transferiu para o
tentáculo que balançava na minha frente. Peguei-o, esperando que estivesse
pingando gosma nojenta, mas, para minha surpresa, estava perfeitamente seco.
Acho que eu não deveria estar surpreso. Esse slime é um amante de livros, então
é claro que saberia como lidar com eles de maneira apropriada.
Olhei para o tomo. Tinha uma capa de couro vermelha adornada com árvores
frutíferas, e era particularmente grossa. Eu folheei, dando-lhe um olhar
superficial. As páginas estavam cobertas de escritas, exprimidas de margem a
margem.
Seu desejo foi concedido, escreveu Beethove. Não tenha pressa e aproveite a
leitura.
Ele então retraiu seus tentáculos e retomou seu trabalho de cópia mais uma vez.
E se esse livro tivesse a mesma capa que eu estava procurando, mas não fosse o
certo? Posso pedir uma troca? Com certeza, a contracapa até tinha os mesmos
rabiscos na borda, então as chances de este ser o livro errado eram pequenas.
— Bem, de qualquer forma, acho que é hora de abrir essa coisa. Sentei-me e virei
para a primeira página. Mal li algumas linhas antes que engasgasse. — Este livro
é… — Eu ainda não tinha certeza se possuía as pistas que precisávamos ou não,
mas sabia com certeza que tinha que mostrar isso a Ariel imediatamente.
Quando voltei para o nosso acampamento, Ariel ainda estava sentada abraçando
os joelhos contra o peito. Sylphie e Luke não estavam ali, muito menos Eris.
Talvez todos tivessem saído para procurar mais materiais para peneirar. No lugar
deles, Ghislaine permaneceu ao lado da princesa, não muito diferente de um cão
de guarda.
Fui a frente de Ariel. Como ela estava de saia, sua calcinha branca estava à vista,
mas tentei desviar o olhar. Eris e Sylphie podem não estar aqui observando, mas
isso não significava que eu pudesse dar uma espiada. Isso era território proibido.
— Oh, Lorde Rudeus — murmurou ela.
— Você deve estar exausta, Vossa Alteza.
— Minhas desculpas por deixar você me ver assim. — Ela ajustou sua postura,
sentando-se mais graciosamente desta vez.
Adeus, belíssima calcinha branca. Nosso tempo juntos foi curto.
De qualquer forma, isso não importava agora.
— Princesa Ariel, encontrei algo bom — eu disse.
— Algo de bom? E o que seria?
— Acho que é algo que vai te deixar animada.
— Hm… O que poderia ser? Um romance erótico escrito na época em que o
Reino Asura foi fundado?
Algo assim realmente a deixaria animada? Me perguntei.
— Perdão — disse ela. — Fico a pensar, o que você tem aí?
Agora que ela estava mentalmente encurralada, estava balbuciando tudo quanto
era tipo de coisas estranhas, o que era divertido. Talvez não fosse uma má ideia
deixá-la nesse estado por mais um tempo. Mas, novamente, não tínhamos muito
tempo antes de termos que ir para Asura. Não tínhamos tempo a perder brincando
assim.
— Isso — eu disse, entregando a ela o livro que eu estava segurando.
Os olhos de Ariel se arregalaram ao ver a capa.
— Essas coisas penduradas nas árvores… É o emblema do morcego.
Então eram morcegos e não frutas? Quase me pegou nessa.
— De qualquer forma, por favor, vá em frente e leia. Eu prometo que será mais
emocionante para você do que um romance erótico — eu disse.
Ela franziu a testa com ceticismo enquanto olhava para a capa. Finalmente, abriu
para a primeira página.
— Ah — Ela ofegou em realização enquanto passava pelas primeiras linhas.
Havia descoberto a mesma coisa que eu momentos antes; este era o diário de
Derrick Redbat.
Um diário é onde se registra os acontecimentos mundanos de sua vida cotidiana.
Ele permite resumir brevemente os acontecimentos recentes, mantendo as coisas
simples e diretas, enquanto expressa as emoções que está sentindo no momento.
Na verdade, um diário não é meramente uma série de eventos; é um registro dos
sentimentos do escritor. O autor escreve sobre o que o irritava, o que o levava às
lágrimas, o que o fazia rir, o que lhe trazia prazer, o que lhe trazia dor, que
preconceitos detinham. Eles escrevem sobre quando se sentem solitários, felizes,
lascivos e todas as outras emoções intermediárias. A maneira como essas coisas
são registradas é ao mesmo tempo detalhada e vaga.
No diário de Derrick, ele nunca mencionou seu próprio nome, mas escrevia
diariamente sobre Ariel e Luke. Era um diário comum e casual: um que poderia
ser encontrado em qualquer lugar do mundo. E foi por essa mesma razão que
seus verdadeiros pensamentos estavam contidos ali.
Havia um orgulho intenso em suas palavras, além do que eu esperaria. Eu não
conseguia esconder meu choque com o quanto ele realmente acreditava em Ariel
em seu âmago, mais do que qualquer outra pessoa que eu já conheci antes. E eu
sabia muito bem quanto carisma ela possuía.
Ariel começou a vasculhar o livro. Ela devorou cada palavra, silenciosa e
metodicamente. Decidi esperar por perto até que ela terminasse.
Enquanto a observava virar as páginas, Sylphie, Luke e Eris voltaram. Estavam
com os braços carregados de livros. Haviam localizado uma verdadeira
montanha de material a respeito de Gaunis em outra estante. Quando Sylphie e
Eris me notaram olhando para Ariel, suas expressões ficaram azedas, até o ponto
de notaram o quão absorvida Ariel estava no livro.
Sylphie silenciosamente se sentou ao meu lado, não mais fazendo beicinho sobre
minha atenção estar focada em outro lugar.
— Rudy, o que está havendo? — perguntou ela.
— Encontrei um livro interessante, então estou pedindo para a Princesa Ariel lê-
lo — eu disse.
— Oh? Que livro é esse?
— Diário de Derrick Redbat.
O queixo de Luke despencou. Ele olhou para Ariel.
— Pensando bem, ele escrevia naquela coisa praticamente todos os dias.
— Você deve considerar lê-lo depois também — sugeri.
— Pois é, acho que sim. Embora eu tenha certeza de que ele não tinha coisas
muito boas a dizer sobre mim.
Dei de ombros. Isso era algo que ele teria que ler para descobrir por si mesmo.
— De qualquer forma — disse Sylphie —, é incrível que você tenha encontrado
algo tão específico assim.
— Sim, bem, eu meio que tenho alguma relação com diários — eu disse, optando
por não compartilhar que o encontrei utilizando informações de Orsted. Era
verdade, de qualquer forma: eu realmente tinha uma conexão com diários. Havia
o que eu tinha escrito, o que Gaunis havia escrito, e agora o que Derrick Redbat
escreveu.
Depois de um tempo, Ariel finalmente terminou de ler. Ela fechou o livro com
um estalo. Sua expressão era desprovida de qualquer emoção real e difícil de ler,
mas estava obviamente sentindo algo, dadas suas bochechas coradas e olhos
enevoados.
— Princesa Ariel? — Luke imediatamente foi até ela, ajoelhando-se ao seu lado.
— Oh Luke… Você deveria ler isso também.
— Como desejar.
Ariel entregou o livro a ele antes de se virar para mim. A hesitação em seus olhos
havia desaparecido completamente. Ela deve ter descoberto algo enquanto lia
aquele livro. Algo que eu, como alguém de fora, não teria sido capaz de pegar.
Qualquer que fosse sua epifania, provavelmente era algo que Derrick teria dito
diretamente a ela se ainda estivesse vivo.
— Bem, princesa, você ficou satisfeita com isso? — perguntei.
— Sim. Você fez um excelente trabalho ao encontrá-lo. — A expressão em seu
rosto dizia tudo antes mesmo das palavras saírem de seus lábios. — Agora eu sei
a resposta à pergunta de Lorde Perugius.
Havia tanta força em seus olhos que eu só pude acenar silenciosamente.
Depois disso, começamos nossos preparativos para voltar para casa. Sylphie e eu
começamos a devolver os livros que tínhamos emprestado, enquanto Eris,
Ghislaine e Luke limpavam nosso acampamento. Não havia um local específico
onde colocamos os livros lidos, então nós mesmos tivemos que realizar a difícil
tarefa de colocá-los de volta exatamente onde os encontramos.
Andamos de um lado para o outro, tentando colocá-los no lugar certo, mas
aparentemente falhamos algumas vezes. Eu só sabia porque um slime viria e
pegaria o livro de onde o havíamos guardado, correndo para devolvê-lo ao seu
devido lugar.
Parte de mim achava que deveríamos confiar a tarefa de organizar todos esses
livros aos lacaios do Rei Demônio, mas deixar para trás um monte de livros sem
colocá-los de volta onde os encontramos era obviamente maus modos. Esta
biblioteca tinha um sistema de organização terrível, mas continha uma riqueza
de informações. Poderia chegar um dia em que precisássemos usar este lugar
novamente, então era do nosso melhor interesse cuidar de nossas maneiras. Se
eu conseguisse agradar o Rei Demônio Beethove, ele poderia ficar disposto a
encontrar um livro para mim de novo.
Com isso em mente, conseguimos devolver todos os livros antes de enfim voltar
ao acampamento. Todos os outros já haviam terminado de fazer as malas naquele
momento e ficaram girando os polegares enquanto esperavam por nós.
Eris estava entediada, sentada com as duas pernas esticadas na frente dela.
Ghislaine cruzava as suas sob ela enquanto meditava. Ariel estava sentada
graciosamente ao lado de Luke enquanto esperava que nós terminássemos.
Luke ainda estava embalando o diário de Derrick em seus braços, lágrimas
brotando em seus olhos.
— Eu não posso… acreditar nisso. — Suas sobrancelhas estavam franzidas, as
mãos tremendo enquanto virava as páginas e absorvia as palavras. — Eu fui…
tão idiota…
— Luke — disse Ariel em repreensão. — Isso vale para nós dois.
— Vossa Alteza…
Ariel sorriu para ele, e as lágrimas finalmente caíram, escorrendo por suas
bochechas. Seu rosto se contraiu enquanto ela o observava.
Tendo lido um pouco do diário, eu já sabia o que Derrick achava de Luke. Nada
disso era bom, pelo menos era o que parecia. Ele até escreveu sobre como Luke
era um pirralho podre, ensinando Ariel nada além de mau comportamento. No
entanto, ficou claro pela maneira como escreveu o quão profundo era seu afeto
por Ariel.
Derrick podia sentir que, apesar da juventude de Luke, o garoto tinha um talento
especial para lidar com as pessoas. Se Luke começasse a usar esse talento natural
em homens e mulheres, poderia subir nas hierarquia e ter seus próprios
seguidores algum dia. Simplificando, Derrick esperava grandes coisas dele no
futuro. Mesmo enquanto reclamava da preocupação ridícula de Luke com as
mulheres, ele também via potencial por trás desse verniz.
Se Derrick ainda estivesse vivo, Ariel e Luke poderiam não estar tão apaixonados
por assumir o trono quanto eram agora. Mas se ele pudesse vê-los agora,
provavelmente ficaria mais do que feliz em ajudá-los, embora se ele realmente
estivesse aqui, Sylphie não teria lugar entre eles. Derrick observou os dois de
perto e tinha grandes expectativas sobre o que poderiam realizar.
Olhei para Sylphie, que estava ao meu lado. Seu rosto estava em uma expressão
conflituosa enquanto observava seus dois amigos. Talvez este não fosse um
desenvolvimento tão feliz no que dizia respeito a ela. Ela se considerava um dos
membros fundadores de seu grupo, mas este diário dissipou essa noção.
Considerei puxá-la para perto e acariciar sua cabeça, dizendo que ela ainda me
tinha, então não havia necessidade de se preocupar, mas tive a sensação de que
não era o que ela precisava agora.
Enquanto eu estava preocupado com meus pensamentos, Sylphie murmurou:
— Tudo bem, aqui vamos nós. — Reunindo sua coragem, ela foi em direção aos
seus amigos e se ajoelhou. — Ei, pessoal…
— Sylphie…
Ariel e Luke tinham expressões estranhas enquanto olhavam para ela. Eles não
tinham feito nada de errado, mas eu podia entender o motivo de se sentirem
culpados. Sempre a trataram como se ela estivesse com eles desde o início.
O que será que ela planeja dizer? Meu estômago estava cheio de ansiedade.
A voz de Sylphie tremeu quando ela disse:
— Hm, esse tal de Derrick… Quando voltarmos para casa, posso pedir que me
conte mais sobre ele? Como parece que ele tinha grandes expectativas em vocês
dois, eu gostaria de saber sobre ele também.
— Claro — disse Luke, acenando com a cabeça. — Na verdade, quero que você
saiba mais sobre ele. Ele foi a primeira pessoa a reconhecer o verdadeiro
potencial da Princesa Ariel.
Ariel ficou em silêncio, mas a maneira como sorriu deixou claro que concordava
com tudo o que ele havia dito.
Sylphie sorriu, satisfeita com a resposta.
Bati com a mão na boca sem nem perceber o que estava fazendo. Vê-los encheu
meu coração com tanta emoção. Lembrei-me de Sylphie em sua juventude,
quando morávamos em Buena Village. Ela estava sempre sozinha, intimidada
pelas outras crianças. Eu era o único amigo que ela tinha, e quando ela pensou
que eu poderia ir embora, seus olhos se encheram de lágrimas.
Mas olhe para isso agora, eu pensei. Aquela garotinha solitária agora tem amigos
incríveis.
Eu não tinha feito nada para ajudá-la. Ariel e Luke eram amigos que Sylphie
tinha feito sozinha.
Admito que foi um pouco triste perceber que ela não pertencia mais apenas a
mim, mas isso era uma coisa boa. Eu tinha certeza. Não teria pensado assim no
passado, mas era assim que as coisas deveriam ser. Nem eu, nem ninguém,
deveria estar cuidando dela como um protetor. Ela precisava ser igual, tanto em
nosso relacionamento quanto em sua amizade com Ariel e Luke. Ela conseguiu
cultivar esses relacionamentos por conta própria. Também estava tentando o seu
melhor para ficar em pé de igualdade comigo.
Isso significa que eu preciso igualar seus esforços.
Quando se tratava de amizades e igualdade, as primeiras pessoas que me vieram
à mente foram Cliff e Zanoba.
— E-Ei, Rudeus…
Olhei para o meu lado. Eris estava parada lá, batendo o cotovelo contra o meu.
O que ela poderia querer? Talvez estivesse com ciúmes por eu ter colado meus
olhos em Sylphie o tempo todo. Não se preocupe. Não vou te deixar de fora.
Estamos casados agora, então me certificarei de banhá-la tanto… hm?
Eris estava olhando para trás de nós, para o corredor.
O que poderia estar olhando?
— Uhh?! — Engoli em seco, quando finalmente percebi o que havia chamado
sua atenção.
O corredor estava repleto com uma quantidade gigantesca de slimes e formigas.
Ambos eram vermelhos reluzentes; no caso do primeiro, era seu núcleo emitindo
luz, enquanto no caso do segundo, eram seus olhos. De qualquer forma, estava
claro que estavam chateados.
— Os Livr…
— Você… o… man…
O enxame falava em gemidos, embora fosse difícil saber como estavam
produzindo aquele barulho. De qualquer forma, estavam lentamente se
aproximando.
Por quê? Por que estão com raiva?
Tínhamos devolvido os livros aos seus devidos lugares. Eu não sabia onde o
diário de Derrick pertencia, então planejava devolver isso ao Rei Demônio e
prestar meus respeitos antes de partirmos. Era o único livro que ainda tínhamos.
— Você… o… man…
— Chou…
Você… o… manchou…? O que manchamos? Um livro?
— Oh! — Virei a cabeça para encarar Luke.
Ele estava olhando para o exército de monstros com a boca aberta. Só percebeu
depois de um momento, quando olhou para o livro que segurava. Suas lágrimas
haviam encharcado a página, fazendo a tinta escorrer tanto que algumas das
palavras eram indistinguíveis.
— S-Sinto muito mesmo! — Luke se desculpou apressadamente, pegando um
lenço do bolso para secar o livro.
— Não, Luke, você não pode fazer isso! — gritou Sylphie, tentando detê-lo, mas
seu aviso chegou tarde demais. Sua tentativa só fez com que a tinta borrasse
ainda mais, e graças a suas lágrimas enfraquecendo a integridade do papel,
rasgou sob a força de sua mão.
— Graaaah!
Atrás das formigas, um Caracol-Cthulhu veio atacando a uma velocidade
avassaladora. As formigas abriram a mandíbula e os slimes se encolheram. Eles
estavam tão furiosos que perderam os sentidos.
Eris saltou reflexivamente na nossa frente.
— S-Sinto muito, nós realmente não queríamos fazer isso! — gritei por trás dela,
mas meu apelo foi ignorado.
Os slimes nos atacaram, e Eris e Ghislaine avançaram para derrubá-los. Em um
único golpe, conseguiram cortar seis núcleos dos slimes ao meio, deixando poças
pegajosas no chão.
Eris olhou para nós e gritou:
— Rudeus!
Eu queria agradecer ao Rei Demônio por se esforçar para nos acomodar, e queria
me desculpar por profanar um de seus livros. Eu esperava, ao mesmo tempo, que
estivessem dispostos a ouvir o nosso lado da história. Infelizmente, essas
criaturas enlouqueceram em fúria. Eles não dariam ouvidos à razão mesmo que
tentássemos conversar.
— Vamos correr! — Eu me virei para pegar nossa bagagem.
Sylphie e os outros se moveram rapidamente, seguindo minha liderança. Luke
foi o único que ficou para trás, ainda estupefato por suas ações terem acionado
tudo isso. Felizmente, ele estava acostumado a recuar depressa. Ele pegou o que
restava e sacou a espada para proteger Ariel, caso algo passasse por nossas
defesas.
— Sylphie! — gritei.
— Pode deixar! Vou assumir a liderança! Sigam-me!
Tudo o que eu tinha feito era chamar seu nome, mas isso foi o suficiente para ela
interpretar minhas instruções.
Então isso é o que chamam de estar sincronizados. Talvez tenha sido apenas uma
coincidência, mas ainda assim me fez feliz.
— Ghislaine, você dá cobertura para Sylphie. Luke, fique com a princesa e
mantenha-a segura. Eris e eu forneceremos cobertura.
— Fornecer cobertura? Fornecer cobertura de onde?! — rugiu Eris.
— Na retaguarda.
Eu virei meu cajado em direção aos slimes invasores.
Desculpe, Lorde Beethove, mas Luke não tinha más intenções.
Beleza, admito, ele provavelmente era um dos apóstolos do Deus-Homem, então
era possível que estivesse operando sob as ordens dele… Não, isso é loucura. Eu
não acho que foi isso. Bem, de qualquer forma, desculpe, Rei Demônio!
— Nova Congelante!
Gelo se formou na ponta do meu cajado, provocando uma rajada fria que ondulou
para o exterior. Os monstros atingidos por ele instantaneamente começaram a
congelar, mas seus movimentos não pararam por completo. Meu feitiço só os
atrasou. Aparentemente, eles resistiram ao efeito total, mas atrasar seu avanço
era bom o suficiente.
— Yaaah!
Ghislaine golpeava com a espada no alto, cortando instantaneamente os inimigos
que bloqueavam nosso caminho. Ela cortou os slimes e as formigas como se
fossem manteiga. Teria usado esse impulso para continuar avançando, mas um
Caracol-Cthulhu parou seu avanço. Seus ataques atingiram sua concha com um
estrondo. Seus tentáculos em forma de porrete contraíram antes de ir para o
contra-ataque. Em termos modernos, era como um tank1 que de repente sacou
uma lança e começou a ir para a ofensiva com ela. Sem outras opções, Ghislaine
começou a fugir de seu ataque.
— Lança de Gelo! — gritou Sylphie.
O caracol conseguiu se manter seguro se escondendo em sua concha, mas sua
barriga estava desprotegida. A lança de Sylphie se projetou pela terra, espetando
a criatura.
— Agora, vamos!
— Certo!
Sylphie avançou, rompendo as fileiras do inimigo com Ghislaine logo atrás.
Ariel e Luke corriam atrás deles, mas uma formiga que havia evitado minha
Nova Congelante saltando pelo teto caiu em direção a eles.
— Hah! — Eris imediatamente se moveu para intervir. Seu golpe foi tão pesado
que arrancou a cabeça da criatura de seu corpo antes de deixar uma cratera de
impacto no chão.
— Canhão de Pedra! — Sem perder tempo, lancei um feitiço nela. Essas criaturas
do tipo inseto às vezes podiam continuar se movendo mesmo sem a cabeça. Eu
preferia não dar chance ao azar.
Acabar com o inimigo era uma regra de batalha inabalável, mas considerando o
quão graciosamente o Rei Demônio nos permitiu entrar em sua biblioteca, me
senti um pouco culpado abatendo seus familiares assim.
— Agora as coisas estão ficando mais interessantes — disse Eris.
— Interessante? Está me dando dor de estômago — resmunguei enquanto corria
atrás de Ariel e dos outros.
— Droga, quantas dessas criaturas existem?!
A perseguição da horda era implacável. Apesar de parecerem despretensiosos,
essas bestas detinham muito poder. Os slimes em particular eram muito mais
rápidos do que pareciam inicialmente — como os Slimes de Metal em Dragon
Quest. Se parássemos por um segundo, essas formigas estariam sobre nós, e suas
mandíbulas eram poderosas o suficiente para atravessar a rocha mais dura. Mas
o pior deles eram os Caracóis-Cthulhu que vinham atacando pela frente. Se
Ghislaine e Eris não usassem toda a força de suas lâminas em seu ataque, aquilo
simplesmente se defenderia. Mesmo que conseguissem cortar, não era o
suficiente para matar a criatura na hora; ela ainda atacaria com seus tentáculos
em forma de porrete.
Felizmente, a Biblioteca Labirinto não tinha quartos e era, em vez disso, uma
coleção de corredores interconectados. Então, enquanto mantivéssemos uma
ofensiva sólida na vanguarda e na retaguarda, não seriam capazes de nos cercar
por completo e nos matar. Sylphie e Ghislaine tomaram a dianteira, nos guiando,
enquanto Eris e eu cobrimos a retaguarda. Eu continuei liberando Novas
Congelante enquanto Ghislaine abria caminho à frente. Sylphie continuou
lançando Lanças de Gelo do chão abaixo, espetando cada caracol, e Eris
eliminava o que restava. Nós lentamente avançamos enquanto nos
certificávamos de que nada se esgueiraria atrás de nós. Tínhamos um número
exaustivo de inimigos, mas estávamos pelo menos progredindo.
— Ali, em frente! — A voz aguda de Ghislaine cortou o ar.
Eu me virei. À nossa frente havia um enorme enxame de slimes, todos agrupados.
Em um piscar de olhos, eles se transformaram em um único e enorme slime que
bloqueou completamente nosso caminho.
— Só pode estar de zoeira com a minha cara!
Sério? Agora temos que enfrentar um Rei Slime?
— Haaaah! Impacto Tornado! — Sylphie lançou sua magia nele, e Ghislaine
trouxe sua espada sobre ele, mas o Rei Slime se recuperou dos danos quase
instantaneamente e continuou a nos bloquear.
— Rudy, eu não posso lidar com isso! — disse Sylphie.
— Eu assumo a partir daqui! — Corri para frente, tomando o lugar de Sylphie
para que ela pudesse recuar para ajudar Eris a cobrir nossa retaguarda. Foi uma
transição perfeita. Não precisei dar instruções explícitas a ela; ela se moveu
sozinha.
Pensando bem, esta é a primeira vez que nós dois lutamos contra algo juntos, não
é? Ela tem mais coragem do que eu pensava.
Honestamente, não era algo vindo de mim. Era ela quem estava pegando minhas
pistas silenciosas e reagindo apropriadamente. Na fração de segundo em que
passamos um pelo outro, nossos olhos se encontraram. Sua expressão acabou
mostrando o pânico que ela estava sentindo, mas naquele momento, seus lábios
relaxaram um pouco e suas orelhas se contraíram. Talvez os mesmos
pensamentos tivessem passado por sua mente e, com eles, uma pontada de
felicidade e vergonha.
Opa, espera aí. Agora não é hora para isso.
Deixando isso de lado, esse slime era gigantesco. Eu me perguntei se o Rei
Demônio havia surgido da mesma forma. Não, isso não poderia ser possível. Esta
coisa tinha um grande número de núcleos dentro dela. Não era uma entidade
única, mas um conglomerado de muitos.
O que significava que a melhor maneira de o quebrar era…
— Ghislaine, vou lançar uma explosão poderosa e fazê-lo em pedaços. Quero
que você acabe com o máximo possível de slimes menores que conseguir — eu
disse.
— Deixa comigo.
Ela não estava se afastando nem nada, mas dei instruções detalhadas porque não
queria que entrasse ao mesmo tempo em que usava minha magia.
— Ufa…
Respirei fundo e comecei a concentrar mana na minha mão direita. Precisava de
um feitiço que fizesse um buraco no slime gigante. O Tornado Impacto de
Sylphie era um feitiço avançado que fazia o vento girar rapidamente, quase como
uma broca. Ele fez um buraco na criatura, mas sem força suficiente para quebrá-
la em pedaços. Eu precisava de algo que causasse destruição, não em um único
ponto concentrado, mas em uma ampla área. E isso requisitava mais do que
Sylphie poderia reunir.
— Estrondo Sônico Melhorado!
O que desencadeei foi uma onda de choque sem forma. Como o nome implicava,
era semelhante a Estrondo Sônico, que era um feitiço intermediário, mas
adicionava um impacto que excedia em muito o feitiço base em poder.
Uma explosão invisível ecoou pelos corredores, explodindo através do slime
com uma velocidade incrível. A força fez com que a criatura se estilhaçasse em
pedaços.
— Graaaah! — Como se recusasse a ser superada pelos tremores que ondulavam
pelo chão e pelas paredes, Ghislaine soltou um rugido feroz e atacou. Em um
piscar de olhos, ela cortou os núcleos de pelo menos uma dúzia de slimes.
— Hein?! — Engoli em seco, percebendo que outro inimigo estava à espreita
atrás daquela parede de slime enorme. Não, não um. Havia cinco Caracóis-
Cthulhu. Eles pararam seu avanço momentaneamente quando o choque do meu
ataque os atingiu, mas com a mesma rapidez, estavam de volta em movimento,
avançando em nossa direção. Os caracóis conseguiram passar por Ghislaine e se
aproximaram de mim.
— Graaaah! — Ghislaine saltou para trás, batendo a espada em um. Ela deve ter
encontrado um ponto fraco em sua concha, porque isso foi o suficiente para fazer
com que ele cambaleasse. Ele colidiu com uma das prateleiras próximas e foi
enterrado em uma montanha de livros.
— Hmph! — grunhi, lançando Canhões de Pedra em mais dois. Os feitiços
dividiram o ar com um som agudo, perfurando as conchas das criaturas, deixando
uma bagunça pegajosa no rastro antes de explodir do outro lado.
Infelizmente, esse não foi o fim. As tripas de caracol se espalharam por toda
parte, mas mesmo depois de ser mergulhado nas entranhas de seu companheiro,
um quarto caracol continuou seguindo em frente. Ghislaine se moveu para
bloqueá-lo, ficando entre mim e meu suposto agressor.
Mas ainda sobrou um, certo? Apenas quatro tinham se ido.
Quando pensei nisso, já era tarde demais. Respirei fundo quando meu Olho da
Previsão avistou o quinto. Tinha se escondido na sombra do quarto e se
esgueirou, despercebido. A visão de seu tentáculo tomou conta dos meus olhos.
Tarde demais para contra-atacar. Eu tinha que me esquivar de alguma forma. Em
uma decisão de uma fração de segundo, joguei minha parte superior do corpo
para trás.
— Eh?
Pegou meu flanco. Eu tinha conseguido evitar o tentáculo, mas o caracol ainda
bateu em mim, me mandando para trás.
— Guh!
Bati em uma estante com tanta força que o ar foi arrancado dos meus pulmões.
Merda. Eles conseguiram passar por nós.
O caracol que havia batido em mim agora estava atacando Ariel. A princesa
estava tentando revidar o melhor que podia. Ela tinha uma pequena espada, os
olhos arregalados quando encontrou a besta de frente. Em pânico, mas
determinada, não tremia de medo. Ela deve ter enfrentado ataques surpresa como
este várias vezes antes. Mesmo assim, o caracol estava em fúria, brandindo seus
tentáculos enquanto se aproximava dela.
Eu não acho que Ariel poderia lidar com isso. Levantei minha mão direita,
conjurando um Canhão de Pedra para lançar no caracol.
Tudo bem. Vou fazer isso a tempo, pensei.
Mas, nesse mesmo momento, vi outra coisa à beira da minha visão — slimes. A
aparição dos caracóis distraiu Ghislaine, impedindo-a de cortá-los. Aqueles que
escaparam de sua lâmina mais cedo passaram pelos caracóis caídos e avançaram
em nossa direção. Ghislaine, entretanto, ainda não tinha terminado o quarto
caracol. A dúvida me atingiu, mas não foi o suficiente para retardar meu feitiço.
— Canhão de Pedra!
Ele dividiu o ar, batendo em sua marca precisamente como pretendido. Um
estrondo agradável e familiar ecoou quando quebrou o corpo do caracol. Naquele
instante, os slimes se esquivaram de Ghislaine e correram em direção a Ariel.
Apenas um único homem estava entre eles e a princesa, Luke. Ele provavelmente
estava se preparando para enfrentar o caracol antes de eu matá-lo. Seu foco então
mudou para os dez slimes invasores. Dois deles foram em minha direção
enquanto eu me ajoelhava ao lado de uma das estantes. Três outros refizeram o
caminho para flanquear Ghislaine.
Concentrei meu Olho da Previsão nos dois que se aproximavam de mim. Lidei
calmamente com eles enquanto mantinha meus olhos em Luke. Seu ataque
preventivo contra os cinco que o cercavam conseguiu matar um. No entanto, os
outros quatro já estavam se movendo em sincronia. Um se lançou a seus pés,
enquanto outro bateu em seu estômago. Luke caiu em um joelho, momento em
que o terceiro slime se enrolou em torno de sua espada, enquanto o último deles
mirava um ataque contra sua cabeça desprotegida.
— Urgh?!
Luke levou um forte golpe no crânio. Sangue jorrou de sua testa e saiu de seu
nariz, mas isso não foi suficiente para detê-lo. Ele puxou uma espada curta de
sua bainha na cintura e esfaqueou o slime enrolado em torno de sua arma
principal. Com ela livre, ele derrubou dois outros que estavam se lançando em
Ariel.
— Eu não vou deixar você encostar um dedo na Princesa Ariel! — berrou ele.
Infelizmente, ainda restava um slime, o que havia desferido um golpe tão feroz
em sua cabeça. Luke havia virado as costas para ele para cortar os outros, e agora
o slime se lançava sobre ele, mirando na parte de trás de sua cabeça. Apesar de
quão macio seu corpo parecia, tinha a força de um disparo de canhão. Se acertar
no lugar errado, pode quebrar o crânio dele.
Felizmente, o slime não atingiu seu alvo porque Ariel enfiou sua espada direto
em seu núcleo. O slime transformou-se em gosma sem forma e respingou em
uma poça no chão.
— Princesa Ariel. — Luke ofegou.
— Luke, em tempos como este, não tenho intenção de permanecer uma simples
flor decorativa. — Ela sorriu.
Com isso, o caminho à frente ficou limpo.
Ghislaine lançou um olhar sombrio para mim.
— Em frente! — ordenei, levantando-me do chão. Banhei o grupo com magia de
cura enquanto me esforçava para me juntar na parte dianteira da nossa formação.
Por mais culpado que eu me sentisse por arruinar uma cena tão comovente, ainda
tínhamos uma inundação de inimigos nos atacando por trás. Precisávamos nos
apressar.
Depois disso, continuamos eliminando nossos oponentes enquanto corríamos em
direção à saída. As bestas tentaram todo tipo de tática para impedir nossa retirada.
Slimes formavam paredes, caracóis vinham em massa, formigas se espalhavam
pelo teto e tentavam cair sobre nós em grupo. Quando os inimigos
inevitavelmente passavam, Luke protegia com ferocidade a princesa como se sua
vida dependesse disso. Ariel também fez sua parte com sua própria magia e
espada curta, derrubando o que quer que viesse em seu caminho.
Graças a esses esforços diligentes, chegamos ao círculo de teleporte praticamente
ilesos. Se Ariel tivesse sido uma mera flor decorativa, ou se Luke tivesse se
revelado o apóstolo do Deus-Homem e esfaqueado alguém pelas costas, nossa
formação teria, sem dúvida, desmoronado.
Mesmo assim, ainda tinha sido uma falha. Eu esperava voltar aqui se
precisássemos pesquisar qualquer outra coisa, mas, infelizmente, isso agora
parecia impossível. Matamos um grande número de servos do Rei Demônio e
danificamos diversos livros durante nossa retirada.
Quem teria pensado que alguém chorando em um livro iria irritá-los tanto?
O único raio de esperança era que esses familiares se moviam mais como
marionetes do que bestas pensantes de verdade. Mas mesmo que fossem
máquinas irracionais, ainda as destruímos. Eu teria que ser casca grossa para usar
a falta de consciência deles como desculpa para conseguir o perdão do Rei
Demônio. Não. Mesmo com uma carta de desculpas, eu tinha certeza de que ele
não deixaria nada disso passar.
Pelo menos havia algumas vantagens: se Luke era ou não um dos apóstolos do
Deus-Homem, ele provou que ainda protegeria Ariel com sua vida. E Ariel
encontrou sua resposta à pergunta de Perugius. Conseguimos o que queríamos.
Completamos nosso objetivo. Isso era o suficiente por agora.
Capítulo 8: O Rei Dragão
Blindado e a Segunda Princesa

Doze espíritos foram reunidos na câmara de audiência da Destruidora do Caos:


Sylvaril do Vazio, Arumanfi, o Brilho, Yuruzu da Expiação, Karowante da
Visão, Scarecoat do Tempo, Clearnight do Trovão Rugidor, Dotbath da
Destruição, Trophymus a Ondulação, Harkenmail da Vida, Gall do Grande
Terremoto, Furiasfile da Fúria e Paltempt das Trevas.
O Rei Dragão Blindado Perugius Dola, dono desta fortaleza flutuante e mestre
dos espíritos, estava sentado ao fundo da sala. Diante dele estava a segunda
princesa do Reino Asura, Ariel Anemoi Asura. Mesmo estando cercada por esses
espíritos intimidadores, não se acovardou.
Assim que saímos do labirinto e retornamos, Ariel sinalizou para Sylvaril,
solicitando uma reunião com Perugius em sua câmara de audiência. Uma hora
depois, ele convocou Ariel para uma reunião, e ela passou o tempo intermediário
arrumando seu traje. Sylphie e Luke fizeram o mesmo, trocando seus trajes de
aventureiros. As roupas que eles vestiam eram tão impressionantes quanto você
esperaria para uma princesa e seus dois guarda-costas.
Quanto a mim, estava usando o manto que Orsted me deu. Não era atraente ou
ostentoso, mas o Deus Dragão o havia concedido a mim, tornando-o como uma
espécie de uniforme de trabalho. Com certeza Perugius não se importaria.
Ariel caminhou silenciosamente ao lado dos espíritos, com um sorriso ousado no
rosto. Sem se preocupar com os olhares, ela parou na frente de Perugius e fez
uma reverência. Sylphie e Luke se ajoelharam. Claro, desta vez segui o exemplo.
— Estou muito grata por você ter tomado um tempo para me conceder uma
audiência — disse Ariel.
— Chega de cerimônia. O que você quer? Com base em suas roupas, presumo
que isso não seja apenas um convite para um chá da tarde — disse Perugius,
como se fingisse não ter noção. Certamente Sylvaril já o havia informado. Não
havia como ele não saber do que se tratava. Sua recepção era irreverente e fria,
mas concordou com a audiência, então talvez esse vai-e-vem fosse pouco mais
do que formalidade.
— Lorde Perugius, vim aqui para buscar sua ajuda em minha tentativa de me
tornar rainha do Reino Asura. — Ariel foi direto ao ponto, não se distraindo com
seu pequeno ato.
— Oh? Então permita-me perguntar mais uma vez. — Perugius colocou o
cotovelo no apoio de braço, apoiando a bochecha contra o punho enquanto
inclinava a cabeça e dizia:
— Qual é a coisa mais importante que um rei deve possuir?
Ariel ergueu o queixo.
— A coisa mais importante que um rei deve possuir é…
Eu ainda não tinha ouvido a resposta dela. Ariel disse que sabia, mas não havia
garantia de que era a resposta certa. Claro, mesmo que ela tivesse me dito o que
era, eu também não saberia se era o correto. Ainda assim, gostaria que ela tivesse
discutido isso comigo de antemão, só para garantir..
Não, não, vamos ter um pouco de fé nela. Ela tem tanta confiança em si mesma,
então sua resposta não deve estar errada, com certeza.
— Determinação — disse Ariel. — Determinação de continuar a vontade
daqueles que vieram antes deles.
Suas palavras ecoaram na câmara silenciosa. Estava tão quieto, tirando sua voz,
que era difícil acreditar que dezessete pessoas estavam presentes.
— Oh? — Perugius exalou. Sua expressão ainda era ilegível, não dando nenhuma
pista se ela acertou ou errou completamente.
Determinação de continuar a vontade daqueles que vieram antes deles…
Essa era a resposta que ela havia chegado, e eu podia entender o porquê. Seu
caminho para a coroa começou com a morte. Derrick foi o primeiro a cair. Treze
de seus outros retentores se juntaram a ele, empurrando-a para onde estava agora.
Eu sabia que tipo de pessoas eram e que futuro esperavam, pois ela me disse.
Através de suas palavras, Derrick comunicou sua vontade, da qual ela deveria
cumprir. Mesmo depois de sua morte, Ariel tentou fazer jus ao que viu nela.
Certamente havia inúmeros outros que depositaram suas esperanças nela. Esse
era o fundamento sobre o qual ela se tornaria rainha.
Em seguida, havia Gaunis Freean Asura, amigo íntimo de Perugius e um homem
que ganhou destaque durante um período de guerra. Nossa árdua pesquisa
revelou que ele já foi belo de um cuzão. Um que era sociável, com vários
companheiros próximos. Gaunis se aventurava na cidade quase todos os dias para
beber e brigar com aventureiros e mercenários. No entanto, como qualquer outro
ser humano, ele certamente tinha dias em que estava de bom humor. Dias em que
bebia a quantidade certa que reduziria suas inibições o suficiente para reclamar
sobre a realeza e os nobres para qualquer aventureiro ou mercenário que
escutasse. Eles, sem dúvida, o agradariam enquanto sorriam desajeitadamente e
ocasionalmente ajudavam quando ele precisava de ajuda. Da mesma forma, ele
também ouviria seus pedidos.
Em tempos de guerra, aventureiros, mercenários e soldados de baixa patente
eram considerados peões dispensáveis. Gaunis os encontrou e ouviu seus desejos
finais, pelo menos, foi o que descobri. E então ele se tornou rei, não porque
queria, mas porque não tinha outra escolha.
Deve ter havido nobres e cavaleiros que não gostaram de vê-lo subir ao trono,
mas não entre os aventureiros e mercenários. Eles o apoiaram. Por isso que
Perugius e os outros partiram em sua jornada para derrubar Laplace e,
finalmente, conseguiram. Eles foram obrigados a ajudar alguém que honrou os
últimos desejos dos soldados sem nome que lutaram e morreram em campos de
batalha violentos.
Enquanto Perugius e seu grupo estavam fora, Gaunis conseguiu afastar os
invasores. Claro, isso não foi apenas com a ajuda de aventureiros e mercenários.
Seus esforços teriam falhado a menos que todos se unissem para deter o avanço
implacável de Laplace. Em algum momento, os nobres e cavaleiros devem ter
cedido e decidido apoiá-lo. Não porque ele tivesse herdado as vontades do
falecido, provavelmente, mas porque ele estava carregando a vontade de seu pai
e irmãos caídos, proteger Asura.
Com essa conexão com Gaunis, certamente tinha que ser a resposta certa… mas
realmente é a certa? Pessoalmente, eu achava que o ponto era mais embaixo…
Depois de uma longa pausa, Perugius grunhiu.
— Hmph. Realizar a vontade do falecido, você diz? — Ele olhou para ela e riu.
— Em outras palavras, seu desejo de se tornar rainha depende inteiramente da
vontade de outras pessoas. Acha que alguém assim pode ser uma rainha de
verdade? — Seu tom era condescendente e irrisório, o que provavelmente
significava que lhe demos a resposta errada.
Ariel, no entanto, não perdeu a coragem.
— Sim, você está totalmente certo, Lorde Perugius. Meu desejo depende da
vontade dos outros. Estou certa de que isso está muito longe do que o resto do
mundo consideraria uma verdadeira rainha. Mas… — Ela respirou fundo e, com
o rosto cheio de determinação, disse: — Se eu posso ser a rainha que aqueles que
confiaram suas vontades a mim esperam, então não me importo se não for um
‘rei de verdade’.
— Ah? — Perugius fez uma careta, não parecendo muito satisfeito com sua
resposta. — E você me pediria para ajudar uma rainha tão tola quanto você?
— Sim. Se sou tão tola, mais uma razão para esperar sua ajuda.
— Hah!
Ah, cara, não gosto para onde isso está indo.
Ariel lhe deu uma resposta pensativa. Em vez de ficar obcecada com o que é ser
um verdadeiro rei, ela se concentraria em cumprir os desejos daqueles que
morreram por ela. Esse era o tipo de líder que seria, um rei do povo, cujas
políticas refletiam seus desejos. Fosse essa a resposta correta ou não, era um
objetivo admirável. Infelizmente, parecia estar muito longe do que Perugius
esperava.
— Você realmente acha que sua resposta é suficiente para me obrigar a ajudá-
la? — Perugius perguntou.
Ariel balançou a cabeça.
— Não, não acho, meu senhor. Porém, esses são meus verdadeiros sentimentos.
Sem mentiras, sem tramas, esta é a rainha que eu, Ariel Anemoi Asura, desejo
me tornar. — Seu olhar se fixou intensamente em Perugius. — Se você rejeitar
o que eu represento, então não preciso do seu poder.
Suas palavras foram desdenhosas. Até Perugius foi pego de surpresa, seus olhos
se arregalaram. Uma onda de choque percorreu os doze espíritos reunidos.
Sylphie e Luke ficaram surpresos, e eu também. Sabia que precisávamos da ajuda
de Perugius para a vitória, estaríamos em apuros se ele realmente recusasse.
Perugius semicerrou os olhos.
— Você acha que pode alcançar o trono sem a minha ajuda?
— Se meus ideais são tão vastamente diferentes dos seus, então eu acho que seu
auxílio seria mais um obstáculo do que uma ajuda.
Perugius baixou a mão da bochecha e lentamente se levantou. Suas feições
estavam em fúria, a boca esticada em uma linha fina e os olhos arregalados. Ele
não cerrou os punhos, mas seus ombros estavam quadrados.
De repente, ele levantou a mão. Momentaneamente, imaginei todos os doze
espíritos avançando sobre Ariel. Mas não foi isso que aconteceu.
— Muito bem, Ariel Anemoi Asura! — A voz de Perugius explodiu. — Você
deixou sua convicção clara.
Segurei meu cajado com mais força, concentrando a magia na ponta, com a
intenção de defender Ariel se fosse preciso. As palavras de Perugius
suspenderam minha ação.
— Eu, Rei Dragão Blindado Perugius Dola, juro pelo nome do meu falecido
amigo, Gaunis Freean Asura, que vou ajudá-la em sua conquista! — Sua voz
ficou ainda mais alta. — Vou preparar um círculo de teletransporte para você!
Volte para o palácio assim que puder, arrume tudo e me chame quando estiver
pronta!
— Obrigada. — disse Ariel.
Sylphie e Luke se curvaram ainda mais. Eu congelei, a mão ainda agarrando
firmemente meu cajado. Eu estava confuso. A maneira como ele falou deixou
claro que ela deu a resposta errada. Suas palavras obviamente o desagradaram,
ou pelo menos foi essa a impressão que tive, e ainda assim decidiu ajudá-la. Ele
viu uma faísca de potencial durante a conversa ou algo assim? O que estava
passando pela cabeça dele? Não sei responder.
— Com sua permissão. — Ariel conduziu nosso grupo em direção à saída. Ela
apresentava uma feição indecifrável enquanto Luke e Sylphie sorriam
triunfantemente. E como não poderiam? Perugius estava agora oficialmente
apoiando a candidatura de Ariel para o trono. Ele estava no acampamento dela
agora. O que significava que eu tinha completado com sucesso minha primeira
missão de Orsted.
Levantei-me e comecei a seguir o grupo, então parei e olhei de volta para o trono.
Perugius estava cercado por seus doze seguidores, arrogantemente sentado em
sua cadeira, olhando para nós. Ele estava nos observando sair, o que naturalmente
significava que nossos olhos se encontraram quando me virei.
— O que é, Rudeus Greyrat? — Perugius perguntou.
— Nada não… — Eu estava prestes a me virar e a seguir Ariel, mas não consegui
afastar minha curiosidade. Eu tinha que perguntar. — Então, no final, foi a
resposta certa? Isso é realmente o que faz um verdadeiro rei?
Perugius suspirou e disse:
— Não era a resposta que eu desejava, não.
— Então por que concordou em ajudá-la?
Ele sorriu.
— Houve um tempo no passado em que todos nós pensávamos que Gaunis era a
definição de um verdadeiro rei. Ele era flexível, mas cauteloso, generoso, mas
sensível. Ele abraçou suas inadequações, sabendo que todos os humanos as
tinham, e foi exatamente isso que o tornou adequado. Além disso, ele via as
pessoas como pessoas, investia em seus pontos fortes e as ajudava a crescer. Ele,
mais do que qualquer outro que eu conhecia, era o mais qualificado para liderar
os humanos e seu mundo devastado pela guerra.
Perugius parecia se lembrar de Gaunis com carinho. O homem de quem ele falou
parecia diferente do homem que eu havia lido, mas ele tinha visto Gaunis por si
mesmo. Certamente seu relato era mais crível do que qualquer velho tomo
empoeirado, embora ele pudesse estar vendo o passado através de óculos com
tons de rosa.
— Ariel Anemoi Asura não tem a menor semelhança com Gaunis. No entanto,
observando como ela se comportava, de repente me lembrei de algo. Este não
era o ‘rei ideal’ de que Gaunis havia falado?
— Gaunis falou de um rei ideal? — Eu perguntei.
— Sim. Ele se considerava longe do ideal. Sempre falava sobre o que
considerava o “rei ideal”, desde seus dias mais jovens em bares, até seu tempo
em acampamentos no campo de batalha e mesmo depois de se tornar rei. —
Perugius fez uma pausa, fixando o olhar em mim. — Ele disse: ‘Um rei ideal é
aquele pelo qual outras pessoas estão dispostas a sacrificar suas vidas.’
Ah, agora entendi. Então é por isso.
Ariel havia dito a ele que um grande rei tinha “a determinação de continuar a
vontade dos outros.”
— Uma dúzia ou mais de retentores já perderam a vida por ela. Morreram
protegendo-a. Eles fizeram isso apesar de não saberem se ela poderia realmente
ascender ao trono ou não. Na verdade, eles sabiam que as chances eram baixas,
sabiam que seu sacrifício poderia nunca ser recompensado. Tudo porque
acharam que ela era alguém em quem valia a pena arriscar a vida. Então, mesmo
que ela não fosse o rei ideal que Perugius esperava, era o que Gaunis considerava
o rei ideal. Havia tantos ideais lá fora quanto havia pessoas.
— Entendo. — eu disse. — Entendi agora. Sua capacidade de avaliar as pessoas
é realmente impressionante. — Curvei-me mais uma vez antes de sair.
— Rudeus Greyrat. — Perugius chamou por mim.
Olhei para trás. Ele havia deixado a cadeira e começado a andar antes de me
chamar.
— Eu tenho uma pergunta. — disse ele.
— Sim, pois não?
— Por que você não mencionou Orsted em tudo isso? Odeio aquele homem, mas
a presença dele não é algo que eu possa ignorar. Você não considerou que as
coisas poderiam ser mais tranquilas se você o citasse?
Orsted já havia me dito que Perugius o havia recusado. Sabendo disso, eu não
conseguia ver como mencionar Orsted teria melhorado o resultado. Ele estava
me testando?
Você quer uma resposta inteligente?
— Nem Orsted nem eu somos os que procuram a realeza. — eu disse.
— Mas Orsted deseja ver Ariel se tornar rainha, não é? E você se aliou a ele, ou
estou enganado? Nesse caso, você não deveria ter aproveitado a influência dele
para promover seus objetivos?
— Mesmo que isso acelerasse as coisas, a Princesa Ariel ainda seria a que
assumiria o trono, e ela precisa da sua ajuda para isso. Não importa quanta ajuda
nós fornecemos, ainda somos forasteiros. Usar desnecessariamente o nome de
Orsted para forçar a conformidade só gerará inimizade.
Hehe, essa foi uma resposta bem foda, se me permite dizer.
Sim, no que me diz respeito, aqueles que se envolveram aqui precisavam
contribuir por vontade própria. Uma vez que Ariel fosse rainha, ela teria que
governar o país por conta própria. Embora eu não pudesse falar por Orsted, sem
saber seus planos, não tinha exigências a fazer de Ariel depois que isso acabasse.
Como eu não tinha nada a ver com isso, não deveria me envolver muito.
— Que maneira fraca de se pensar. — Perugius cuspiu, antes de sair da sala. Seus
doze servos permaneceram para trás, e eu mal conseguia respirar sob o peso de
todos os seus olhares. Corri em direção à porta, incapaz de suportar.
Puta merda, isso foi embaraçoso. Acho que isso significa que respostas
mesquinhas são proibidas para ele.
Depois de sair da câmara de audiências, fui direto para o quarto de Ariel. Eu não
bati, em vez disso, abri a porta enquanto falava:
— Desculpe por me atrasar…
A primeira coisa que vi foi um par de ombros brancos como porcelana. Sylphie
já havia tirado as roupas elegantes de Ariel e estava afrouxando o espartilho.
— Ah! Rudy, como se atreve! — Sylphie gritou para mim.
— Não há necessidade de discutir — disse Ariel. — Lorde Rudeus serviu bem a
nossa causa. Não há necessidade de pedir permissão para entrar em meus
aposentos. Se ele considera olhar meu corpo uma recompensa suficiente por seus
serviços, então esse é um pequeno preço a pagar.
— O quê? — Sylphie ficou boquiaberta. — Mas, Princesa Ariel…
— Ah, vejo que não estava sendo atenciosa o suficiente. — Ariel fez uma pausa.
— Lorde Rudeus, minhas desculpas, mas eu agradeceria se você saísse.
Eu já estava fora da porta quando ela disse isso e só peguei o que ela estava
dizendo quando a fechei. Não tinha ideia de onde ela tirou suas falsas impressões,
mas eu não estava descaradamente entrando para dar uma espiada enquanto ela
estava se despindo.
Mesmo que ela tenha um corpo bonito.
O mesmo poderia ser dito de Eris, mas o dela era um produto de treinamento
intenso, enquanto a figura Ariel era algo com que ela nasceu naturalmente e não
precisava lutar para alcançar. Ela tinha seus genes para agradecer. Se
estivéssemos falando de equilíbrio entre o topo e o fundo, Sylphie não ficava
para trás. Seu peito e sua bunda eram pequenos e planos. Era uma simetria
perfeita. Eu adorava isso nela. Roxy, enquanto isso, era uma deusa, então ela não
podia ser comparada a mais ninguém.
— Da próxima vez, vou ter certeza de bater, — murmurei para mim mesmo.
Além disso, não bater antes me levou a ver um pervertido abraçando sua estátua.
Isso deveria ter sido uma lição suficiente para mim.
Devo ser uma pessoa que aprende devagar.
Espere um segundo. Luke estava no quarto com elas, certo? Então ele foi
autorizado a olhar? Bem, não foi surpreendente. Ariel provavelmente se sentia
mais confortável com ele do que qualquer outra pessoa.
— Tudo bem, Rudy, você pode entrar agora — disse Sylphie, espiando pela
porta.
Quando tentei entrar, ela fez beicinho.
— Você a viu… sabe…
— Notei que ela usa calcinha branca.
As bochechas de Sylphie incharam com o ar enquanto ela fazia uma careta. Eu
sabia que ela também estava usando calcinha branca, porque eu espiei enquanto
ela estava se trocando ontem à noite. Cutuquei suas bochechas inchadas e entrei
no quarto. Alguns passos depois, senti Sylphie beliscar minha bunda.
— Ah, querida, Srta. Sylphie…
— O que foi, Senhor Rudeus?
— Vamos guardar para quando chegarmos em casa, tá?
— Hmph! — Desta vez, ela deu um tapa na minha bunda antes de marchar para
o canto da sala onde se jogou com força em uma cadeira. Suas bochechas
brilhavam em vermelho, o que a tornava ainda mais adorável.
Enfim…
Ariel sentou-se em uma cadeira, tendo terminado de se trocar. Ela parecia uma
princesa, mesmo em sua roupa casual. Era porque suas roupas eram caras, ou o
fato de uma princesa de verdade usá-las? Não importava.
— Peço desculpas por ter entrado sem bater, quando você estava ocupada se
trocando — eu disse.
— De jeito nenhum… Então, o que você achou?
— Achei sobre o quê? — Perguntei.
— Meu corpo.
Ela tem mesmo que me perguntar isso? Eu só sei que Sylphie vai ficar furiosa
comigo mais tarde.
Não, isso provavelmente era um teste. Ótimo, todos querem me testar hoje. É
melhor não escolher a resposta errada desta vez.
— Incrível… ou assim eu gostaria de dizer, mas sendo sincero, prefiro o de
Sylphie.
— É assim mesmo que você se sente? Então devo me desculpar por mostrar algo
tão desagradável. — Ariel riu.
O rosto de Sylphie ficou ainda mais brilhante enquanto resmungava:
— Não acredito que você disse isso…
Luke apenas deu de ombros. Como tínhamos convencido Perugius a nos ajudar
com sucesso, todos estavam de bom humor.
— Por favor, sente-se, — disse Ariel.
Assim que me acomodei em frente a ela, seu rosto ficou solene.
Acho que eu deveria levar a sério também.
— Graças aos seus esforços, Lorde Rudeus, agora podemos passar para a
próxima fase do nosso plano.
Eu balancei a cabeça.
— Não, eu não fiz nada.
— Não precisa ser humilde. Só consegui encontrar a resposta porque você nos
levou àquela biblioteca.
Mas ela encontrou a resposta por conta própria, e foi quem convenceu Perugius.
Com certeza, talvez eu pudesse levar algum crédito pelo resultado, já que Derrick
não estava aqui para convencer Perugius em seu nome, e na linha do tempo do
meu futuro, ela nunca conseguiu ganhar a confiança de Perugius por conta
própria.
Acho que não há mal nenhum em me dar tapinhas nas costas por causa disso.
Ainda assim, Orsted era responsável por mais da metade do plano.
— Agora vamos falar do que vem a seguir. Lorde Perugius nos aconselhou a
voltar ao palácio o mais rápido possível e organizar as coisas. Planejo ouvir suas
palavras e fazer exatamente isso.
— O que você quer dizer com ‘organizar as coisas’?
— Exatamente o que as palavras implicam.
Sim, olha, o problema é que eu não sei o que elas implicam. Espera,
provavelmente deveria tentar pensar por mim mesmo antes de pedir uma
explicação.
Para resumir, Perugius não iria pegar a estrada conosco e seguir o caminho todo
até o Reino Asura. Assim, ele queria enviar Ariel à frente para que ela pudesse
preparar o palco para sua entrada. Esta etapa poderia ser, por exemplo, uma festa
com a presença de dezenas de nobres. Uma vez feito isso, poderíamos saudar sua
entrada com seus doze espíritos, tocando alguns gongos extravagantes. Os nobres
ficariam boquiabertos de surpresa, ofegantes: “Urk! É Perugius!” antes de
prostrar-se prontamente. Ou algo assim, pelo menos.
— Então… não há nenhuma razão real para se apressar, não é? Não deveríamos
passar um pouco mais de tempo nos preparando? — Perguntei.
— Não podemos nos dar ao luxo. Recebi a notícia de que meu pai ficou muito
doente. — Apesar de entregar o que deveria ter sido uma notícia chocante, a
expressão de Ariel não demonstrava nenhuma emoção.
Ah, então é isso. Ariel já descobriu. Fico imaginando se ela obteu essa
informação através de canais normais ou se o Deus-Homem havia divulgado a
notícia a Luke, que então a transmitiu a ela. Suspeitei do último.
Mas espere um minuto. Não seria possível que Ariel tenha obtido essa
informação diretamente do Deus-Homem? O que significaria que ela poderia ser
uma de suas apóstolas. Se assim for, isso vai atrapalhar nossos planos.
Era aterrorizante pensar nisso. Eu teria que consultar Orsted sobre a possibilidade
de ela ser uma apóstola.
— A julgar pela expressão em seu rosto, acho que você já sabia — Ariel
adivinhou.
— Hein?
— Já que você é um servo do Deus Dragão, acho que não deveria me surpreender
que você não tenha se surpreendido.
Limpei a garganta.
— Ah… Bem, o pedido do Mestre Luke foi tão repentino, e você parecia bastante
motivada a seguir em frente com seus planos. Suspeitei que algo estava
acontecendo.
Satisfeita com a minha resposta, ela assentiu.
Ufa.
— Tenho certeza de que você deve ter seus próprios assuntos para cuidar…
Nesse caso, catorze ou quinze dias devem ser suficientes para você organizar as
coisas e se preparar para nossa jornada, né?
Ela planeja partir em duas semanas, não é?
Cerca de vinte e dois ou vinte e três dias já haviam se passado desde que recebi
as ordens de Orsted. Isso significava que quase um mês se passou desde que tudo
começou. Sua estimativa de quando a notícia da saúde do rei chegaria provou ser
precisa.
— Felizmente, se pudermos ordenar a Lorde Perugius que prepare alguns
círculos de teletransporte para nós, nossa jornada não levará muito tempo.
Devemos ter tempo para trabalhar. Ainda assim, sabendo que meu pai está
doente, gostaria de voltar o mais rápido possível, para que não seja tarde demais.
Gostaria de chegar antes que meus irmãos tenham a chance de garantir sua
posição.
A julgar por suas palavras, a doença do rei era terminal. Isso significaria a
coroação de um novo rei. Se levássemos muito tempo, Ariel perderia a chance
de competir pelo trono.
Só havia uma coisa que me preocupava. Orsted havia mencionado um espinho
no Reino Asura com o qual teríamos que lidar: o Alto Ministro Darius Silva
Ganius. De acordo com Orsted, precisávamos encontrar Tristina, já que ela era
seu calcanhar de Aquiles. Poderíamos tirá-lo do cargo enquanto a tivéssemos do
nosso lado. Era tentador pensar que ele não seria mais um fator adverso agora
que garantimos a cooperação de Perugius. Mas Orsted não teria mencionado
Darius se ele não fosse um obstáculo aos nossos planos.
Com Perugius apoiando-a, Ariel se igualou ao primeiro príncipe e sua facção em
poder e influência. Livrar-se de Darius a colocaria na frente. Se nossa vitória
fosse garantida, eu teria que agir novamente.
— Princesa Ariel, por falar em círculos de teletransporte… Não seria melhor ter
um perto da fronteira com o Reino Asura do que dentro da própria nação? —
Propus.
— Oh? E por quê?
— Se souberem que alguém tão proeminente quanto uma princesa capaz de
entrar no reino sem passar pela fronteira, eles podem começar a suspeitar de algo.
Especialmente porque círculos de teletransporte são proibidos. Se descobrissem
que você os usou, provocaria perguntas desnecessárias. Acho que seria melhor
irmos da fronteira para a capital. Dessa forma, as pessoas também podem te ver
enquanto passamos.
— Hm, entendo. Bom ponto.
Legal! Agora tudo que tenho que fazer é arranjar uma desculpa para fazermos
contato com a organização em que a Triss está. Ainda não pensei como vou fazer
isso, mas a maioria das organizações do tipo fora-da-lei como essa estão
dispostas a negociar enquanto o dinheiro estiver envolvido.
— Sou contra essa ideia — disse Luke, interrompendo nossa conversa. — Se
Sua Majestade estiver realmente doente, o primeiro ou segundo príncipe pode ter
servos ao longo da estrada para obstruir nosso retorno. Os círculos de
teletransporte podem ser proibidos, mas enquanto os que usamos não forem
descobertos, podemos inventar desculpas de como chegamos à capital
despercebidos.
— Esse é um argumento razoável — Ariel reconheceu. — Continue.
— Desta vez, temos Rudeus nos acompanhando. Não deve haver preocupações
quando se trata de nossa força na batalha. No entanto, rumores dizem que o
primeiro príncipe alistou os serviços de um Imperador do Norte. Mesmo que o
palácio possa conter seus próprios perigos, acho que estaríamos em perigo ainda
maior se fôssemos pegos na estrada aberta por um espadachim experiente do
estilo Deus do Norte. — Dava para perceber um pouco de medo em sua voz.
— É verdade, não queremos ser alvo desse tipo de oponente — Ariel concordou.
Ela e Sylphie pareciam preferir a proposta de Luke à minha. Os três fugiram do
reino e lutaram com unhas e dentes para chegar até aqui, perdendo inúmeros
outros no processo. Era natural que temessem ser atacados na estrada.
Ainda assim… e agora? Devo dar alguma desculpa para ir na frente deles para
que eu possa fazer contato com Triss?
Não, seria contra o propósito se algo acontecesse com Ariel e os outros nesse
meio tempo. Eu ainda tinha que satisfazer todas as minhas suspeitas de que Luke
era um dos apóstolos do Deus-Homem. Sua sugestão pode até estar a mando do
Deus-Homem.
Ariel franziu a testa.
— Vocês dois trouxeram argumentos sólidos… Sylphie, o que você acha?
— Hm, pessoalmente, acho que devemos nos teletransportar diretamente para o
reino. Não temos ideia de onde este círculo nos levará dentro do reino Asura.
Além disso, não pode haver maior vantagem do que enganar o primeiro príncipe
não passando pelo posto de controle da fronteira.
Então Sylphie apoia a ideia do Luke?
— Além disso, — continuou Sylphie, — conseguimos escapar do país sem
causar muita agitação. Não vejo razão para não entrarmos secretamente. Levaria
mais de um mês para viajar a pé da fronteira. Esse tempo poderia ser melhor
gasto em outras coisas.
Como sempre, o raciocínio de Sylphie era sólido e bem articulado. Era fácil ver
seu ponto de vista e difícil discordar dele.
— Muito bem… eu entendo seu ponto de vista — disse Ariel. — Nesse caso,
procederemos como planejado e nos teletransportaremos para dentro do Reino
Asura.
Ariel se decidiu enquanto eu estava ocupado avaliando as habilidades
persuasivas de Sylphie. Em parte, a culpa foi minha por não compartilhar mais
informações com Sylphie antes do tempo.
Ah, cara. O que eu faço agora?
Minhas opções eram trabalhar separadamente do grupo principal e entrar em
contato com Triss, ou encontrar alguém para fazer isso em meu lugar.
Ghislaine… não era realmente a pessoa certa para esse tipo de coisa. Elinalise
estava grávida, e pela mesma razão, não posso arrastar Cliff. Em quem mais eu
confiava que também tivesse talento para negociação?
Parece que Zanoba também estaria fora de questão, mas se eu o enviasse junto
com Ginger… Não. Ordenar o príncipe de outro país assim pode causar
problemas para mim mais tarde.
Enquanto eu estava perdido em pensamentos, uma batida de repente soou sobre
a porta.
— Entre.
Sylvaril entrou. Ela olhou ao redor, balançando as asas antes de dizer: — Alguns
minutos atrás, descobrimos que todos os círculos de teletransporte dentro do
Reino Asura foram destruídos.
— Hein?!
A notícia veio do nada, nos surpreendendo.
— O que você quer dizer? — Ariel perguntou.
— Deixe-me explicar…
Sylvaril nos informou sobre os detalhes. Após nossa sessão de audiência,
Perugius ordenou a Sylvaril que ativasse imediatamente um de seus círculos
mágicos. Um em sua fortaleza flutuante levava diretamente a um local específico
no Reino Asura. Quando ela tentou ativar, descobriu que não estava
respondendo. Sylvaril sentiu que algo estava errado e enviou Arumanfi para
investigar o círculo do outro lado, e foi assim que descobriram que havia sido
destruído. Ele verificou os outros círculos dentro do Reino Asura e constatou-se
que cada um deles também foram destruídos.
— E assim, não somos mais capazes de nos teletransportar dentro do Reino
Asura.
O círculo de teletransporte mais próximo agora estava perto da fronteira da
nação. Teríamos que caminhar o resto do caminho até lá.
Alguém deliberadamente sabotou os círculos. Não havia como ser uma
coincidência. A única pergunta era quem? Deus-Homem ou Orsted? Poderia
perguntar a este último amanhã. Então saberia a resposta.
Ainda assim, a situação desencadeou algo inesperado, suspeita em relação a
mim. Logo depois que sugeri que não nos teletransportássemos para o reino, eles
foram forçados pelas circunstâncias a fazer exatamente isso, como se fosse
orquestrado. Luke me olhou com cautela, como se tivesse certeza de que eu sabia
algo sobre isso e não estava compartilhando. Até Sylphie olhou nervosamente
para mim. Eu tinha certeza que os dois achavam que era obra de Orsted.
Ariel foi a única que não ficou abalada com as notícias.
— Nesse caso, — disse ela, — acho que não temos outra opção. Seguiremos a
sugestão de Lorde Rudeus.
— M-mas Princesa Ariel — Luke começou a protestar, boquiaberto pelo choque.
Ariel o interrompeu e disse: — Luke, informe Ellemoi e Cleane da situação e,
por favor, ajude-os com os preparativos. Sylphie, venha comigo. Precisamos
prestar nossos respeitos às senhoras e senhores do Reino de Ranoa. Vou deixá-
lo com seus próprios afazeres, Lorde Rudeus. Certifique-se de se despedir de sua
família e amigos por enquanto.
— Como você ordena — Luke disse calmamente, assentindo com a cabeça.
Apesar do desconforto que pairava no ar, nos separamos.
Capítulo 9: Antes de Viajar para
o Reino Asura

Pela terceira vez, encontrei Orsted no chalé nos arredores de Sharia.


— E foi assim que Ariel acabou convencendo Lorde Perugius a ajudá-la e como
descobrimos que não poderíamos acessar os círculos mágicos localizados dentro
da fronteira Asurana.
— Hm — Orsted sorriu.
Parece tão sinistro quando ele faz isso. Mas acho que provavelmente é apenas
seu sorriso normal.
— Entendo. Você se saiu bem então.
Se a ruga em sua testa era alguma indicação, ele estava tramando algo mesmo
enquanto me elogiava.
Não, o rosto dele é sempre assim.
— Mas aconselho você a nunca mais voltar à Biblioteca do Labirinto. Aquele
Rei Demônio guarda rancor.
— Urk… Certo, entendi.
Infelizmente, não fui poupado de uma repreensão pelo meu fracasso lá. Orsted
até fez uma careta enquanto dizia isso. Não, na verdade, acho que ele ficou
irritado comigo. Sua expressão parecia dizer:
De todos os lugares, como você causou problemas em uma biblioteca? — Mas
não foi minha culpa agora, foi? Não sabia que o Luke ia chorar como um bebê
por causa de um livro.
— Suponho que não há como eles aceitarem um pedido de desculpas? —
perguntei.
— Isso seria inútil. Reis Demônios não funcionam com bom senso.
Pela minha escassa interação com esse Rei Demônio, parecia que ele poderia
realmente estar disposto a me ouvir, mas Orsted não parecia pensar assim.
Admito que fizemos uma bagunça. Destruímos uma série de estantes enquanto
fugimos, embora não tivéssemos outra escolha. Queria expressar o quão
arrependido estava, pelo menos, mas eu estava desistindo de voltar, como Orsted
aconselhou. Talvez nunca mais aparecer lá fosse o melhor pedido de desculpas
que pudesse dar.
Não, no caso daquele Rei Demônio, a melhor coisa que posso fazer é escrever
no meu diário. Atualizações diárias seriam impossíveis, mas tentaria fazer o
máximo possível.
Enfim, deixando isso de lado…
— O que você acha que aconteceu aos círculos de teletransporte? — perguntei.
O grupo suspeitou do meu envolvimento por um momento. Eles caíram em si
imediatamente depois, mas isso ainda era o suficiente para colocar uma semente
de dúvida em suas cabeças, para fazê-los pensar que eu estava escondendo algo.
— Obra do Deus-Homem, tenho certeza. Parece que sua primeira tentativa de
nos frustrar falhou. — Orsted assentiu para si mesmo, confiante em sua
explicação.
Ele estava com um humor extraordinariamente bom. Ele continuou murmurando
algo como:
— Só mais uma pessoa…
Eu não tinha ideia do que ele queria dizer, mas ficaria grato por qualquer
esclarecimento.
— Se não se importa, poderia me explicar o que quer dizer com o Deus-Homem
falhando?
— Hmph. De fato. — Orsted ajustou sua postura e olhou para mim com olhos
flamejantes. Se ele forçasse mais sua expressão, poderia começar a brilhar e
atirar raios laser em mim. Pew, pew! — Perugius confirmou que esses círculos
de teletransporte dele são inutilizáveis, certo?
— Correto, patrão.
— Patrão…? — Orsted fez uma pausa antes de continuar. — Não há muitos
desses círculos dentro das fronteiras de Asura. A maioria foi colocada para que
a realeza e os nobres pudessem escapar se alguma vez se encontrassem
encurralados. Entre eles, vários já não são funcionais e esses são os que Perugius
usou.
Hm, interessante. Então eles são como uma rota de fuga secreta para a família
real.
— Assim, você tem sua resposta — disse ele.
Entendo. Então essa é a minha resposta… Uma ova que é! Isso não é resposta
nenhuma!
— O que você quer dizer com isso? — Exigi, caindo de joelhos e inclinando a
cabeça. — Por favor, explique! Preciso de algo mais concreto para trabalhar!
Orsted fez uma careta ameaçadora.
Certo, não é ameaçadora. É assim que o rosto dele sempre parece.
— Simplificando, esses círculos de teletransporte estão em lugares onde uma
pessoa comum não pode encontrá-los. Muitos são protegidos por soldados.
Alguém que possa entrar e destruí-los deve ser alguém de autoridade respeitável,
seja um nobre ou um aristocrata de alto escalão.
— Certo, eu entendo onde você quer chegar com isso. E?
— Use a cabeça um pouco.
— Sim, senhor.
Beleza, vamos repassar isso. O culpado era um aristocrata real ou alguém com
autoridade para entrar em uma área restrita, de repente, cortou sua própria tábua
da salvação destruindo todos os círculos que atuavam como rotas de fuga para
eles. Sem mencionar que esses já eram círculos inoperantes que Perugius poderia
usar para viajar. A possibilidade de que o Deus-Homem orquestrasse tudo isso
parecia astronomicamente alta. Um cidadão normal não tinha razão para destruir
um círculo mágico. Isso significava que um de seus apóstolos era da realeza ou
alguém em posição de manipular a família real. Os candidatos mais prováveis
para essa função eram…
— Primeiro Príncipe Grabel ou Alto Ministro Darius. Um deles é o apóstolo do
Deus-Homem?
— De fato. A disseminação desses círculos por todo o reino implica o
envolvimento do Alto Ministro Darius, uma vez que seus soldados privados estão
espalhados por toda a nação.
Ooh, agora eu estou começando a entender os fatos! Não sabia que ele tinha um
exército privado espalhado por Asura, mas faz sentido!
— Então, podemos ter alguma certeza de que o Alto Ministro Darius é o apóstolo
do Deus-Homem?
— Sim. É possível que seja o Primeiro Príncipe, mas isso não muda nada.
Teremos que matar os dois de qualquer maneira.
Bem, o Primeiro Príncipe é inimigo da Ariel, então faz sentido… Mas isso nos
justifica matar um Príncipe? Acho que não importa. Se Orsted diz que precisa
ser feito, terei que fazê-lo.
— Isso significa que há apenas um apóstolo desaparecido — disse Orsted.
— Só um? Isso significa que você tem certeza de que Luke é um apóstolo agora?
— Sem dúvida alguma.
— E quanto a Ariel? — perguntei. — Ela é uma possibilidade?
— Não.
Beleza, vamos lá. Chega de respostas vagas.
— E em que você baseia isso? — eu disse, exasperado.
— Há certas pessoas que o Deus-Homem não pode manipular.
— Certo, então, uh… como você pode dizer que ela é um deles?
— Intuição. Com base em muitos anos de experiência — disse Orsted.
Intuição, hein…
Ele fez uma breve pausa antes de responder, o que significava que tinha certeza
de que Ariel não era uma apóstola, mas não podia me dizer seu verdadeiro
raciocínio. Decidi não me intrometer mais. Havia perguntas mais importantes em
minha mente.
— O que acontece se sua intuição se revelar errada e ela for uma apóstola?
— Se isso acontecer, assumirei a responsabilidade e me livrarei dela.
“Se livrar” a “matando”? Isso foi duro, especialmente considerando o quão
próximos ficamos nas últimas semanas, incluindo o incidente em que eu a
encontrei enquanto ela estava se trocando. Mas se Orsted estava disposto a
apostar tanto nela, eu provavelmente deveria confiar nele.
Hm. Nesse caso, talvez eu devesse compartilhar informações sobre ele com
Ariel? Sua maldição não parecia ter tanto efeito nela e se ela não fosse uma das
apóstolas do Deus-Homem, talvez fosse melhor revelar tudo. Dessa forma, ela
poderia trabalhar conosco para ficar de olho em Luke.
Não, melhor não fazer isso. Como Sylphie, ela confiava nele cegamente. Ela
nunca acreditaria que ele trabalharia para sua destruição. E Luke só estava
fazendo o que achava melhor para ela. Trazer à tona o Deus-Homem seria
cutucar um ninho de vespas. Luke não era inimigo da Ariel. Ser manipulado pelo
Deus-Homem não mudava sua lealdade. Ele só estava fazendo coisas que
pareciam uma boa ideia, apesar do fato de que eram tudo menos isso.
Agora, Orsted o considerava um mero espião que observava minhas ações e as
relatava ao Deus-Homem. Ele não faria nada para machucar Ariel. No entanto,
ele pode acabar agindo de acordo com o conselho do Deus-Homem para fazer
algo que parecia ajudar Ariel na superfície, mas acabaria levando à sua
condenação. Isso é o que realmente o tornava perigoso. Eu podia entender o
desejo instintivo do Orsted de matá-lo.
— Sir Orsted — eu disse de repente.
— O quê?
— Há algo que eu gostaria de esclarecer com você, apenas para estar do lado
seguro, sobre como devo abordar nossa batalha com o Deus-Homem. Você se
importa se eu escolher seu cérebro?
Ele fechou a cara.
— Hm? Tudo bem.
Comecei a delinear sua guerra com o Deus-Homem.
Primeiro, sabíamos que o Deus-Homem podia ver o futuro. Sua visão era ao
mesmo tempo expansiva e precisa. Ele também tinha a capacidade de manipular
as pessoas para mudar o curso desse futuro. No entanto, não podia ver eventos
relacionados ao Orsted. As artes secretas do Deus-Dragão eram mais fortes do
que a visão presciente do Deus-Homem. Sempre que Orsted se envolvia em um
caso, o Deus-Homem via um falso reflexo do futuro. Assim, ele sabia que Orsted
estava envolvido sempre que sentia algo ligeiramente errado ou o futuro
experimentava uma mudança dramática, mas não conseguia ver exatamente
como Orsted havia provocado essas mudanças. Tudo o que podia fazer era
adivinhar. Se não pudesse definir os objetivos do Orsted ou o que ele havia
planejado, o Deus-Homem não poderia responder de acordo e influenciar o
futuro de uma maneira que o beneficiasse.
A maldição de Orsted significava que nenhum dos apóstolos do Deus-Homem
tinha sido capaz de se aproximar o suficiente para espionar suas atividades, então
seus movimentos não eram detectados. Ao mesmo tempo, essa maldição também
limitava o escopo do que ele poderia realizar. Só agora, depois que fui para seu
lado que ele tinha mais opções à sua disposição.
No que diz respeito ao Deus-Homem, eu era atualmente um peão invisível no
tabuleiro de xadrez. Mas se eu tomasse medidas concretas, ele poderia descobrir
o que Orsted estava planejando. Era por isso que eu mantinha meus movimentos
discretos, para evitar mostrar minhas intenções para o Luke, que agia como os
olhos e ouvidos do Deus-Homem. Também escondi informações de Sylphie e
Ariel, já que eu sabia o quanto elas confiavam nele e que responderiam quaisquer
perguntas que ele fizesse.
Dizem que você não pode colocar portas na boca das pessoas, então tentei não
dizer nada a ninguém, na medida do possível.
Eu planejava manter os objetivos e ações do Orsted o mais secreto possível. Isso
pode me fazer parecer suspeito para os outros, como desta vez, mas isso
certamente nos levaria à vitória. Manteríamos nossas intenções em segredo ao
mesmo tempo que derrotávamos os apóstolos do Deus-Homem enquanto
trabalhávamos para alcançar nossos objetivos. Eu serviria Orsted pelo resto da
minha vida e, daqui a cem anos, ele sairia por cima.
— Essa é a minha interpretação da situação. Está certa?
— Sim. Está. — Orsted assentiu.
Nesse caso, tudo o que eu tinha feito até agora estava tecnicamente correto.
Perugius me chamou de fraco, mas estávamos em direção ao nosso objetivo. Por
enquanto, sabíamos que Luke e Darius eram os candidatos mais prováveis a
serem apóstolos do Deus-Homem. Assim faltava um.
— Me pergunto quem é a última pessoa — eu disse.
— Não sei… Mas, a julgar pelos padrões passados do Deus-Homem, é altamente
provável que seja alguém extremamente hábil em artes marciais ou magia.
— Alguém habilidoso em artes marciais ou magia…
Uh, ele disse que não seria ninguém da minha família, certo? O que significa que
Eris e Sylphie estão fora de cogitação, felizmente.
Pensando bem, o diário do meu eu do futuro mencionou um Imperador do Norte
e um Deus da Água no Reino Asura. Ariel também mencionou que o Primeiro
Príncipe estava empregando um Imperador do Norte.
— Será que é o Imperador do Norte ou Deus da Água? — Eu perguntei.
— Auber e Reida, hein? Sim, há uma boa chance. Quando você for para o Reino
Asura, tenha cuidado.
— Você não vai vir junto?
— Estarei seguindo você, é claro, mas não vamos trabalhar juntos.
A maneira como ele disse “seguindo você” soou sinistra, como se ele fosse me
seguir como um marionetista. Bem, isso significa que posso consultá-lo se surgir
alguma coisa. Não é tão ruim.
— Tudo bem — falei. — Nesse caso, Luke, Darius, Auber e Reida são aqueles
que devo ter cuidado.
— De fato. Você pode matar Darius, Auber ou Reida, se quiser. Quanto a Luke…
fique de olho na situação e use seu discernimento. Se necessário, elimine-o.
— Você quer que eu decida se devo matar algum deles? — fiquei boquiaberto.
— Sim. Deixo a seu critério.
Ele realmente achava que eu era alguém capaz de tomar esse tipo de decisão?
Desculpe, pergunta boba. Claro que sim. Eu não havia mostrado qualquer
hesitação quando o ataquei e tentei matá-lo, afinal.
— Bem, o que faremos até a hora de partir? — Eu disse.
Orsted deu de ombros.
— Faça os preparativos.
Preparativos, certo… mas o que isso significa?
— O que exatamente devo preparar?
— Primeiro, prepare seu equipamento. Você provavelmente enfrentará os
apóstolos do Deus-Homem em batalha enquanto estiver em Asura. Com sua
força, tenho certeza de que você não terá problemas, mas seria sábio levar alguma
forma de proteção. Ele se virou e olhou para fora da cabana, onde minha
Armadura Mágica estava em ruínas. Zanoba estava consertando-a, mas não havia
lugar para armazená-la na cidade, então a deixamos aqui.
— Essa coisa não corresponde à armadura do Deus-Lutador, mas ainda é uma
obra espetacular. Tenho certeza de que você deve ter trabalhado duro para criá-
la.
— Bem, sim… mas recebemos conselhos do Deus-Homem em sua construção.
— Oh? Então ele cavou sua própria cova. Como isso se chama?
— Se chama o quê? — pisquei para ele.
— A armadura.
— Oh. Armadura Mágica.
— Entendo… Que nome sem inspiração. Que tal eu dar um novo nome para ela?
Vejamos…
— Não, mas obrigado — eu disse interrompendo-o.
Orsted estreitou os olhos e riu. Seu sorriso estava tão perturbador como sempre.
Nosso gosto por nomes (ou a falta deles) à parte, me perguntei como Zanoba e
Cliff reagiriam se soubessem que alguém tão incrivelmente poderoso havia
elogiado sua criação.
— Se planeja continuar usando essa coisa no futuro, considere melhorá-la.
Atualmente, drena toda a sua mana em uma única batalha.
Eu franzi a testa.
— Mas, mesmo que fizéssemos uma versão menor e mais eficiente, não seria
concluída em apenas duas semanas.
— Então teremos que arquivar essa ideia para outra hora — disse Orsted,
acariciando seu queixo.
Será que ele estaria disposto a dar uma mãozinha? Nesse caso, acho que o
símbolo da Sociedade do Deus Dragão acabaria gravado nela.
— Não ser capaz de usar a Aura da Batalha certamente é inconveniente —
murmurou Orsted. — Por enquanto, vou ver se consigo preparar alguns itens
mágicos para você usar.
— Oh, isso seria ótimo. Obrigado.
Então, Orsted me forneceria não apenas o melhor ambiente de trabalho e
remuneração, mas também o melhor equipamento? Maldição. Mas faz sentido.
Ele me arrumou um robe também. A diferença entre ele e a abordagem
inescrutável e desinteressada do Deus-Homem era como o dia e a noite.
— Falando nisso… tenho ouvido bastante sobre a armadura do Deus-Lutador
ultimamente. Como ela é exatamente? — Eu perguntei.
— A maior obra-prima do Rei Demônio-Dragão Laplace e também seu pior
fracasso.
A obra-prima de Laplace? Então foi ele que fez, não foi?
— A armadura em si brilha dourada com poder mágico e confere força
imensurável ao seu portador. No entanto, a mana que contém é tão grande que
deu à armadura uma mente própria. Ela assume o controle sobre o usuário,
forçando-o a lutar até a morte. É uma armadura amaldiçoada.
Armadura amaldiçoada, hein? Acho que o povo dragão tem um talento especial
para fazer esse tipo de coisa. Laplace fez todos os tipos de itens amaldiçoados,
das lanças do Superd a essa armadura dourada… Nada do que ele tinha criado
era bom.
— Dito isso, a armadura atualmente está inativa no meio do Mar de Ringus. —
continuou Orsted.
Ele parecia saber tudo sobre qualquer coisa. Isso fez dele um recurso
verdadeiramente conveniente. No entanto, não podia depender dele para tudo; eu
tinha que encontrar algumas coisas que poderia fazer de forma independente.
Infelizmente, só faltavam duas semanas para partirmos. Não havia muito que eu
pudesse fazer.
Eu não podia ficar complacente simplesmente porque era subordinado do Orsted.
Ele era um pouco indiferente sobre os assuntos. Ou, mais precisamente, ele
parecia pensar que sempre poderia tentar novamente se a primeira tentativa
falhasse. Talvez ele pretendesse desenvolver magia que o permitisse voltar ao
passado depois de ler o diário do meu eu do futuro. Ou talvez já tivesse
experimentado um lapso de tempo como esse.
Pensando bem, ele uma vez disse algo parecido com “tentar de novo na próxima
vez”, e assim que as palavras saíram de sua boca, fez uma cara estranha, como
se tivesse percebido que havia falado demais.
Talvez ele tivesse passado por esses lapsos temporais não uma ou duas vezes,
mas várias vezes. Eu não tinha ideia do porquê mantinha isso em segredo, mas
como ele não havia mencionado, provavelmente não me responderia, mesmo que
eu perguntasse.
Mas mesmo que Orsted pudesse simplesmente fazer as coisas de novo na
próxima vez, não havia próxima vez para mim. Você só tem uma vida para
viver… ou assim eu gostaria de dizer, mas isso provavelmente não foi o mais
convincente vindo de mim, dada a minha experiência com reencarnação. Mesmo
assim, depois de conversar com meu eu do futuro, observar seus últimos
momentos e ler seu diário, pude sentir o quão cheio de arrependimentos ele
estava. Eu não poderia simplesmente apostar em meus erros e começar de novo
se desse errado. Ou melhor, senti que estaria traindo a pessoa que fui até agora
se mantivesse essa mentalidade.
É por isso que preciso colocar tudo o que tenho nisso.
Mas como, especificamente?
Claro, eu poderia aprimorar minhas habilidades de luta e magia, mas não acho
que mais prática me tornaria muito mais forte de repente. Se isso fosse possível,
ficaria feliz em trabalhar em um regime rigoroso para aumentar minhas
habilidades, mas não era. Além disso, qualquer coisa nova que eu conseguisse
em apenas duas semanas de preparação seria pouco confiável e incompleta. Era
melhor continuar desenvolvendo as habilidades que eu já tinha.
Além disso, decidi reservar um tempo para executar algumas batalhas simuladas.
Eu sentia como se algo estivesse faltando há algum tempo. A prática e o
treinamento eram importantes, mas nada poderia substituir o teste das técnicas
que aprendi em batalha. Pugilato eu diria, se isso fosse boxe. Ou lutas de
exibição, se você preferir a terminologia de jogos de luta.
Minha parceira de treino seria a Eris. Ela agora era uma Rei da Espada e muito
melhor do que eu no combate corpo a corpo, então seria um boa luta. Na verdade,
estava mais preocupado com a situação de não ser considerado um desafio para
ela. Pelo menos eu poderia usar meus feitiços Atoleiro e Névoa Profunda para
dar a ela uma nova experiência de batalha. Por mais que ela se gabasse de suas
proezas de batalha, ainda era vulnerável a armadilhas que visavam suas
fraquezas.
Além disso, eu pediria a Zanoba e Cliff que tentassem reparar e melhorar minha
Armadura Mágica. Precisava ser menor e mais eficiente em termos de
combustível, mesmo que isso significasse reduzir suas capacidades. Eles
provavelmente não conseguiriam fazer isso em duas semanas, mas isso me
serviria a longo prazo, então eu queria que começassem agora. Com a ajuda do
Orsted, certamente podemos terminar o projeto nos próximos dois anos. Parecia
que ele também forneceria qualquer equipamento que precisássemos, isso já
diminuiria o tempo consideravelmente, pelo menos.
Então era assim que eu planejava melhorar meu treinamento e equipamento.
Agora eu só precisava pensar sobre o que restava. Com tão pouco tempo,
precisava planejar com cuidado. Então decidi agendar minhas próximas duas
semanas.
Primeiro, anunciaria minha próxima longa ausência para a família. Não era um
tópico que queria abordar, em parte porque provavelmente não estaria por perto
quando a Roxy entrasse em trabalho de parto, mas não podia evitar contar a elas
para sempre.
Em seguida, precisava entrar em contato com Cliff. Além das melhorias que eu
queria que fizesse na Armadura Mágica, eu tinha outro pedido para ele. Ou seja,
queria que ele conduzisse experimentos sobre a maldição de Orsted.
Pensando bem, me pergunto se Orsted sabe o que está acontecendo com a Zenith.
— A propósito, senhor… — comecei a falar.
— O que foi?
Expliquei a condição da Zenith para ele e trouxe à tona o livro que descobri na
Biblioteca do Labirinto que se referia a uma Criança Abençoada que podia
remover maldições.
— Aquela Criança Abençoada não parece estar entre os vivos agora, mas você
sabe de qualquer outra maneira que possa curá-la? — eu disse.
Orsted refletiu em silêncio. Depois de um tempo, finalmente falou, sua voz era
mais gentil do que o normal.
— É verdade que você pode ser capaz de fazê-la voltar ao normal se usar as
habilidades desta Criança Abençoada Impotente. No entanto, suas habilidades
não substituem uma cura real. Se você tentar forçar a mente dela a voltar ao que
era antes, isso pode sair pela culatra e as coisas podem ficar piores.
Então, há probabilidades decentes de que só a piore, não é?
Então, novamente, depois de tudo o que ela passou, foi um milagre que estivesse
viva. Se tentar interferir em seu estado mental significava possivelmente piorar
as coisas, provavelmente era mais sábio ficar de olho nela por enquanto. Sua
condição não era uma preocupação de saúde no momento.
Acho que tenho que ser paciente e cuidar dela.
— Certo. Bem, com isso fora do caminho, vou começar os preparativos para
partir para o Reino Asura — eu disse.
Esclareci todas as perguntas que tinha, então tudo o que resta é fazer o melhor
que posso no tempo que tenho!
No dia seguinte, tivemos nossa reunião de família como planejei.
Na verdade, sinto que temos tido muitas dessas reuniões de família ultimamente.
Desta vez, era para anunciar minha partida para o Reino Asura. Eu disse a elas
que ficaria fora por cerca de três a quatro meses para ajudar Ariel.
A reação a isso foi indiferença.
— Certo, bem, boa sorte com isso. Oh, mas antes de ir, eu agradeceria se você
pudesse fazer um pouco de terra para o jardim — disse Aisha. Ela estava mais
preocupada com seu jardim do que com meu bem-estar.
— Então a Princesa Ariel vai sair da academia… — Norn murmurou. Assim
como Aisha, ela também não parecia muito preocupada comigo. Será que elas
farão uma festa de despedida?
Isso é… estranho. Da última vez que nos despedimos nós cantamos e dançamos,
elas pareciam um pouco mais, não sei… emocionais? Quero uma despedida
emocionante de novo. Eu quero ser capaz de abraçar minhas irmãs choronas e
consolá-las fazendo a minha melhor expressão de Exterminador do Futuro e
dizendo: “Eu voltarei!”
— Ei, Aisha — falei. — Sabe, uh, talvez eu não volte para casa desta vez…
— Hã? Toda vez que fazemos isso, você sempre age como se não fosse voltar
para casa, mas depois aparece de volta à nossa porta como se não fosse nada
demais.
Eu mal escapei da morte todas as vezes, mas talvez minhas irmãzinhas não
vissem dessa maneira. Ou talvez estivessem tentando ser atenciosas e não me
preocupar antes de partir. Seja qual for o caso, faria o meu melhor lá fora. Eu
ficaria satisfeito se as duas pudessem viver suas vidas pacificamente enquanto
isso.
— Além disso, isso significa que outra mulher se juntará à nossa casa — disse
Norn.
— Exatamente, o que nos faz sentir idiotas por nos preocuparmos — disse Aisha
concordando. — E desta vez, a senhorita Sylphie e Eris vão com você. Isso nos
dá uma paz extra de espírito.
Como se fosse uma deixa, Eris se retirou para seu quarto para começar a fazer as
malas para a viagem. Mais cedo, quando falei para onde iria, ela disse:
— Oh? Então eu também vou. — Ela nem hesitou.
— Falando nisso, quem você acha que ele trará para casa desta vez? — disse
Aisha, virando-se para Norn.
— Difícil dizer com certeza. Talvez uma das garotas que servem a Princesa
Ariel? A senhorita Ellemoi ou a Cleane, talvez?
Minhas duas irmãs estavam dizendo coisas muito rudes, mas para constar, eu não
pretendia ter mais esposas. Por um lado, eu quase nunca tinha falado com
Ellemoi ou Cleane. Eu pensei em dizer isso, mas por outro lado, eu realmente
não confiava na cabeça entre minhas pernas.
Mas duvido seriamente que algo assim vá acontecer desta vez. Sylphie e Eris
estarão comigo, afinal.
Exato. Estava sozinho nas últimas duas aventuras, o que me deixou
emocionalmente devastado. As coisas não foram bem porque não tinha ninguém
para me barrar. Eu precisava de alguém para me impedir. Sylphie e Eris eram
perfeitas para isso. Tudo o que eu tinha que fazer era pedir a ajuda delas e assim
seria feito.
— Vou orar por sua segurança — disse Lilia. Ela e minha mãe não agiram
diferente do normal.
— Senhorita Lilia, hum, sobre a Lucie… por favor, cuide bem dela. — A
expressão da Sylphie estava pesada de culpa.
— Sim, minha senhora. Vou cuidar de tudo enquanto você estiver fora. — Lilia
inclinou a cabeça.
— Eu sei que não é bom abandoná-la assim, mas eu só…
Lilia balançou a cabeça.
— Não se preocupe. Esta é a razão pela qual você tem uma empregada como eu
aqui.
Lucie começou a falar palavras simples, como nomes de membros da família ou
animais de estimação, como: Mamãe, Asha, Lala, Mu, Belha, Tu. Meu coração
tremia de emoção, observando como ela se esforçava para dizer as palavras. Ela
ainda não tinha me chamado de “Papai”. Ela dizia “Rudy” às vezes, mas não
“Papai”. Eu não tinha passado muito tempo com ela ultimamente, então
provavelmente seria a última coisa que ela aprenderia. E agora, Sylphie e eu
íamos deixá-la em casa para fazer uma viagem.
Eu tinha a sensação de que nós dois ainda não tínhamos entendido o que
significava ser pais. Especialmente eu. Não fazia ideia de quando esse dia
chegaria. Eu achava que Lucie era o anjo mais adorável, mas pensar assim não
era a mesma coisa que ser pai, era?
— Então eu não vou te ver de novo por quatro meses? Vai ser solitário — disse
Roxy, cabisbaixa.
Eu não estava apenas deixando minha filha para trás, mas uma esposa grávida
também. Me senti horrível por isso.
— Bem, não tenho certeza. Eu gostaria de voltar antes de você dar à luz, se
possível — eu disse.
— Não se preocupe. Leve o tempo que precisar. Enquanto eu tiver a Lilia e a
Aisha ao meu lado quando for a hora, não preciso de você aqui. Em troca,
gostaria que me trouxesse uma lembrança. Eu adoraria comer algumas balas e
doces azedos do Reino Asura — aquelas frutas secas cobertas de açúcar. Elas
são deliciosas.
Roxy estava de volta à sua expressão de sempre. Ela provavelmente estava
ansiosa, já que este seria seu primeiro parto, mas não deixou que nada desse
tumulto interior aparecesse.
— Você tem um olhar lamentável em seu rosto, Rudy — continuou ela. — Eu
não tenho ideia com o que você está preocupado, mas na Tribo Migurd, é natural
que os homens saiam para caçar enquanto as mulheres ficam em casa para
proteger a casa e as crianças.
Ela estufou o peito enquanto falava, sempre a esposa confiável. Eu sabia que
tudo provavelmente acabaria bem se deixasse nas mãos dela, mas era realmente
justificável deixá-la assim?
— É uma pena, no entanto, já que finalmente consegui essas longas férias. Roxy
suspirou. — Eu pensei que seria capaz de passar elas calmamente com você.
— Sim, eu gostaria que pudéssemos ter feito isso.
Roxy tirou uma folga até o nascimento do bebê. Em Ranoa, era normal que a
esposa deixasse o emprego quando engravidasse para poder se concentrar em
criar seu filho, mas Roxy queria continuar sendo professora, então persuadiu
Jenius a dar a ela uma licença maternidade. Só depois soube que tinha usado meu
nome para conseguir o que queria, mas se ela conseguiu, então tudo bem.
Ainda havia algum tempo antes da nossa partida. Decidi passar os momentos
livres que tinha com a Roxy.
Naquela noite, ouvi vozes acaloradas de Sylphie e Eris saindo do quarto da
última. Sylphie disse algo e Eris respondeu. Do outro lado da porta, ouvi Eris
gritando palavras como: “Por quê?!” e “Como assim?!” Sylphie respondia cada
questionamento calmamente, assim gradualmente o tom da Eris foi ficando mais
silencioso até que, no final, ela finalmente murmurou: “Tudo bem, entendi.”
Mais tarde, Eris veio ao meu quarto, assim que fui para a cama e estava prestes
a adormecer. Ela se escondeu mal-humorada embaixo das cobertas e envolveu
os braços em torno de mim, puxando-me para perto, como se eu fosse um
travesseiro de corpo. Seus grandes seios macios pressionaram contra mim.
Não é muito cavalheiresco de sua parte entrar aqui no meio da noite e me tentar
com isso.
Não que me importasse; eu também era um cavalheiro da noite. No que diz
respeito ao sexo, pelo menos. Mas antes de entrarmos nisso, havia uma coisa que
eu precisava perguntar a ela.
— Você brigou com a Sylphie?
— Não — Ela bufou.
— Certo.
Eu não tinha ouvido nenhum som de soco. Era possível que, se eu saísse da cama
e fosse para o quarto da Eris, encontraria Sylphie desmaiada no chão, mas decidi
acreditar em sua palavra.
— A partir de amanhã, vou acompanhar a Sylphie — disse Eris. — Vamos nos
encontrar com a Ghislaine e ajudar a preparar as coisas.
Ariel já havia começado a fazer os preparativos. Ela ia sair da universidade para
voltar para casa, e o curto prazo significava que fazer as malas era um pesadelo.
Ela também tinha que entrar em contato com várias pessoas da
região, provavelmente foi por isso que Eris foi convidada a ajudar como guarda-
costas.
— Então, enquanto isso, ela quer que você passe o máximo de tempo possível
com a Roxy — continuou Eris.
— ‘Ela’? Você quer dizer a Sylphie? — perguntei, surpreso.
— Aham.
Então era por isso que as duas estavam brigando. Sylphie estava tentando ser
atenciosa com a Roxy, e se eu tivesse menos coisas para lidar, então poderia
passar mais tempo com ela. Ela realmente pensou nisso. Ainda assim, fiquei
chocado por ela ter conseguido persuadir a Eris sem ter que lutar. Eris com
certeza havia amadurecido. Ela não era mais a mesma garota que espancava as
pessoas indiscriminadamente. Se você tivesse um argumento bem
fundamentado, então lhe daria ouvidos.
— E é por isso que ela disse que eu poderia ficar com você esta noite — disse
Eris.
Talvez eu tenha falado cedo demais, aparentemente. Eris havia dado suas
próprias condições. Mesmo assim, ainda era impressionante que ela tenha
concordado com a proposta da Sylphie. Ela tinha amadurecido. Pois era muito
egocêntrica todos esses anos. Agora, isso se foi. Sua paixão furiosa havia esfriado
e seus punhos cerrados não encontrariam mais o caminho para os rostos. A
princesa frenética estava morta, a gorila selvagem silenciada, a loba louca
reivindicada pelo sono eterno. A Eris que mostrava os dentes para todo mundo
se foi para sempre…
Não, isso provavelmente é uma exceção.
Era como se Sylphie desistisse de sua vez comigo como parte do acordo,
deixando de lado seus próprios desejos. Eu teria que fazer o meu melhor para
agradecê-la enquanto estivermos viajando.
Preocupado com esses pensamentos, enrolei meus braços em volta da Eris.
Quase imediatamente, ela começou a rasgar minhas roupas.
— Sabe — eu disse — seria um momento terrível se você descobrisse que estava
grávida na viagem, então talvez devêssemos pegar leve hoje e…
— Pensaremos nisso quando a hora chegar.
E ela fez o que queria comigo naquela noite, como sempre fez. Planejamento
familiar eram claramente palavras que não existiam em seu dicionário.
No dia seguinte, Cliff passou por aqui para uma visita.
— Ei, Rudeus, se estiver livre esta noite, quer sair para comer?
Era um convite para jantar e as únicas pessoas que iam eram Cliff, Zanoba e eu.
Nunca tive uma noite dos homens; normalmente, quando fazíamos isso, Sylphie,
Elinalise e vários outras acompanhavam. Talvez desta vez, os outros rapazes
planejavam ir a um lugar muito atrevido para as meninas. Ou talvez eles
quisessem discutir algo que seria muito estranho para falar com as mulheres
presentes.
— Tudo bem — falei.
Seja qual for o caso, concordei instantaneamente. Não tinha razão para recusá-
lo, e mais importante, eu tinha um favor que queria pedir a ele de qualquer
maneira. Então, este foi o momento perfeito.
O sol estava começando a se pôr quando encontrei Cliff e Zanoba no local
acordado. O restaurante dessa reunião era mais elegante do que os lugares que
costumávamos frequentar. Quando entramos, parei para verificar a fachada, que
dizia A Águia do Mar Vermelho.
Esta era uma tendência de nomeação nas Três Nações Mágicas: lugares com
águia no nome eram tipicamente restaurantes, enquanto falcão era para bares e
pubs, morcego para bordéis e cavalo para pousadas. É certo que nem todos os
estabelecimentos seguiram esta nomenclatura. Alguns lugares começavam
servindo um excelente álcool, mas então o proprietário melhorava suas
habilidades culinárias e a comida se tornava seu carro-chefe. Era
surpreendentemente comum, na verdade. Portanto, a tendência de nomeação era
mais como uma diretriz geral.
A Águia do Mar Vermelho era exatamente o tipo de lugar que Cliff escolheria,
sofisticado e luxuoso. Os clientes eram principalmente nobres menores ou
comerciantes ricos. Um dos funcionários nos guiou para uma sala elegante. De
acordo com eles, esta era a terceira melhor sala que eles tinham para oferecer.
— Se soubéssemos que Lord Rudeus estaria nos visitando, teríamos preparado
uma das melhores salas — disseram eles. Mas não havia necessidade de se
desculpar por minha causa.
Então é assim que um restaurante de luxo se parece, hein? Quando Cliff disse
que iríamos jantar, pensei que iríamos comer algo casual, mas este lugar tinha
até guarnição no jantar.
Nós três nos sentamos em uma mesa quadrada.
— Agora, então, Rudeus, você sabe por que viemos aqui — por que reservamos
especialmente uma sala para falar com você? — Cliff perguntou com a testa
franzida.
Ele parecia meio zangado e eu tinha a sensação de que sabia o porquê.
— Hoje é… seu aniversário? — eu perguntei.
— Meu aniversário já passou. — Cliff respondeu secamente, sem se divertir com
minha piada.
Espera, ele tem vinte anos agora? Ou vinte e um? Seu rosto era infantil, então
parecia cinco anos mais novo do que realmente era, mas pelos padrões deste
mundo, ele já havia atingido a idade adulta. Algumas pessoas já tinham dois ou
três filhos com a idade dele.
— Estamos aqui por outra coisa — disse Cliff.
— Certo. — Ajustei minha posição na cadeira. Aparentemente, estávamos
prestes a ter uma conversa séria.
— Sabe…
Conhecendo Cliff, provavelmente era sobre Orsted. Eu jurei que lhe contaria os
detalhes sobre o que aconteceu com Orsted quando voltei para casa depois de ser
espancado, mas nunca cumpri essa promessa. Imaginei que ele me chamou aqui
para me dar uma bronca.
— Em relação à criança que Elinalise e eu vamos ter… tenho pensado em chamá-
lo de Clive se for menino e Elleclarisse se for menina. O que você acha?
Espera. Um nome? Foi para isso que viemos aqui hoje? Então eu tive uma ideia
completamente errada?
— Basicamente, usaremos um nome estilo Millis, se for um menino, e um nome
élfico, se for uma menina. O que você acha, Rudeus? — Cliff se virou para mim.
— Ah… Bem, Clive soa como o nome de um homem inteligente com boas
chances de ser um político, mas também soa como um nome que alguém com
uma personalidade exigente teria. Elleclarisse é um nome bonito e soa muito
bem. Embora eu não possa deixar de sentir que ela pode ter um encontro ruim
com um ladrão em seu futuro, um que vai roubar algo importante dela. Como o
coração dela.
— Imaginei que você diria isso. — Cliff respondeu enquanto se inclinava para
trás em sua cadeira, olhando para o teto. Depois de um momento, ele olhou para
mim com uma expressão firme. — Na verdade, isso foi uma piada. Já decidimos
os nomes. Embora eu aprecie sua opinião, não foi por isso que o trouxe aqui hoje.
Oh, então ele estava apenas me zoando. Não podia ter feito isso com um rosto
tão sério. Se vai zoar, pelo menos sorria um pouco. Você e Zanoba parecem duros
como estátuas, sabe?
— Certamente, você já adivinhou do que se trata agora, Rudeus. Está relacionado
às suas ações ultimamente. — Cliff apontou um dedo na minha direção.
Zanoba assentiu com a cabeça. Ele também parecia um pouco irritado.
— Mestre, não importa o que você decida fazer, tenho toda a intenção de segui-
lo até o amargo fim. Dito isso, você não acha que tem sido um pouco reservado
conosco ultimamente?
— Uh, você acha? — fingi ignorância.
— Do nada, você nos pediu para começar a construir essa armadura insanamente
poderosa para você. No meio da criação, você começou a nos dar conselhos
extremamente específicos. Você nem mesmo disse quem ia enfrentar e então
descobrimos que era um dos Sete Grandes…
Zanoba foi interrompido no meio da frase pela porta se abrindo. Um garçom
entrou trazendo nossas bebidas. Zanoba se encolheu e fechou a boca, esperando
silenciosamente o término da distribuição das bebidas. Assim que ele saiu, a
conversa foi retomada. Embora eu suspeitasse que eles tivessem reservado esta
sala para manter nossa conversa privada, suas atitudes deixaram claro que era
em parte por medo do Orsted.
— Descobrimos que seu oponente era um dos Sete Grandes Poderes, o Deus-
Dragão Orsted. — terminou Zanoba. — E não só isso, uma vez que você lutou
com tudo, dizimou completamente uma floresta inteira!
— Não, ainda está lá. Bom, metade dela, na verdade — eu disse.
Zanoba ignorou minha defesa e continuou.
— E depois de tudo isso, você se rendeu.
— Eu não tive outra escolha.
— Para ele te pôr de joelhos sem te matar depois que você vestiu aquela armadura
e usar tudo o que tinha nele… o homem deve ser um monstro. É a única
explicação.
Bem, em certo sentido, Orsted era um tipo de monstro. Era ruim o suficiente que
ele pudesse anular feitiços à distância, mas eu também não tinha chance contra
ele em combate corpo a corpo. Não que eu fosse particularmente habilidoso, mas
ainda achava que podia lutar decentemente.
— Como você não parecia muito abalado com isso, presumi que o Deus-Dragão
deveria ser um homem decente, mas ele… — Zanoba fez uma pausa, tremendo
enquanto baixava o olhar. Depois de um momento, sua cabeça levantou
novamente e ele declarou em voz alta. — Aquele homem… é um demônio em
carne e osso! Alguns dias atrás, eu o vi com meus próprios olhos e soube em um
instante que ele era nosso inimigo!
Os dois tiveram uma pequena briga na semana passada, onde Orsted nocauteou
Zanoba. Aquele breve encontro foi o suficiente para ele ser atingido pela
maldição do Orsted.
Hm, mas espere um minuto. Até aquele momento, ele não pensava tão mal do
Orsted. O que deve significar que a maldição não é ativada até que alguém o
encontre. Pensando bem, Aisha e Norn não parecem tão repelidos por ele quanto
todos os outros. Acho que a maldição não as afeta, desde que elas só o conheçam
indiretamente.
— Devo que assumir que você perdeu a sanidade para servir a um homem como
ele. — Zanoba balançou a cabeça, incapaz de entender. A maldição deve ser
extremamente potente para ele ter uma reação tão extrema por simplesmente ver
Orsted uma vez.
— Pessoalmente, eu mesmo ainda não encontrei esse Orsted, então não sei com
certeza o que o Zanoba quer dizer — disse Cliff. — Mas Zanoba, Sylphie e Roxy
parecem considerá-lo perigoso. Se estão todos de acordo sobre ele, deve ser um
homem mau.
Essa foi uma declaração chocante vinda de um homem que nunca parecia ouvir
o que as outras pessoas diziam. No entanto, pelo que parece, Cliff ainda não foi
afetado pela maldição.
— Concordar em trabalhar com um homem assim não soa como o sábio Rudeus
que eu conheço — disse Cliff.
Sim, bem, eu não sou particularmente sábio.
Ainda assim, isso representava um problema. Seria difícil continuar quando
muitos dos mais próximos a mim desaprovassem o Orsted.
— Mas… quando você nos pediu para reparar a Armadura Mágica, finalmente
percebi. — Cliff sorriu presunçosamente. — Você planeja lutar com ele de novo,
não é? Contra o Deus-Dragão Orsted, quero dizer.
— Hã? — meu queixo caiu.
— Você só está fingindo trabalhar com ele para poder esperar por uma abertura
e atacar. Essa é a sua estratégia, certo?
— Uh, não, Orsted e eu…
Cliff ergueu a mão para me impedir.
— Você não precisa me dizer nada. A razão pela qual você nos pediu para
melhorar a eficiência de mana da armadura… é porque você quer torná-la
acessível para Zanoba e eu, certo? Em outras palavras, você planeja nos fazer
lutar com você eventualmente… — ele sorriu triunfantemente. — Certo? Estou
errado?
Sim, você está absolutamente errado.
Quase pareceu bobo discutir o assunto neste momento. Era melhor ignorar e dizer
que sim, eles eventualmente lutariam comigo e isso era apenas uma preparação
para a batalha que viria. Dessa forma, eles acabariam vendo por si mesmos
(embora gradualmente) que Orsted não era um cara tão ruim.
Então comecei.
— Mestre Cliff…
Fiz uma pausa. Dado o quão próximos éramos, eu não achava certo adoçar as
coisas e mentir para atender meus próprios interesses. Eles podem não acreditar
na verdade, mas eu tinha que pelo menos tentar dizer.
— O que foi?
— Na verdade, Orsted tem uma maldição colocada em si que faz com que todos
ao seu redor o odeiem — expliquei. — Você acreditaria se eu te contasse isso?
— O quê? Sério?
— Um deus maligno me enganou e foi por isso que lutei contra Orsted em
primeiro lugar. Você acreditaria nisso também?
— Um deus maligno? Uh, você quer dizer aquele que você adora com a calcinha
e o pano manchado de sangue?
Eu o encarei.
— Te matarei com prazer se você se atrever a dizer isso de novo.
— Uh… hã? Err, desculpe. Acho que não é esse deus, então. Certo, entendi o
que você está dizendo. Continue.
Opa, acidentalmente deixei minha raiva escapar por um segundo. Mesmo assim,
não é certo ridicularizar a religião de outra pessoa. Roxy é uma deusa justa.
De qualquer forma, esse não é o ponto…
— Foi assim que acabei conhecendo Orsted. Por alguma razão, a maldição dele
não funciona comigo, então nós dois fomos capazes de conversar e resolver as
coisas. Em troca de seu perdão, concordei em trabalhar ao lado dele para
combater esse deus maligno. Você acreditaria nisso também?
— Hmm…
— Certamente não vou — disse Zanoba com seus óculos brilhando sob a luz. —
Estou cético de que um homem como aquele se voluntariaria a lutar ao lado de
qualquer outra pessoa.
— Hã? É surpreendente ouvir alguém como o Zanoba assumir esse tipo de
posição — disse Cliff. Ele cruzou os braços em contemplação.
— Pense dessa forma, o Zanoba só se interessa por bonecas e figuras, mas ele é
estranhamente insistente sobre sua aversão por Orsted — eu disse. — Isso não te
parece estranho? Tem que ser um efeito da maldição.
— Bem, já que você mencionou… — Cliff fez uma pausa. — Não, quando penso
nisso, Zanoba se importa muito com os assuntos que dizem respeito a você. Se o
Orsted realmente não é confiável, então faz sentido ele se preocupar.
Talvez isso fosse verdade. Talvez Zanoba realmente estivesse preocupado com
o meu bem-estar. Eu estava grato por ele se importar tanto… mas, ao mesmo
tempo, este era um momento em que desejava que ele não se importasse. Sim,
Orsted estava escondendo algumas coisas de mim e ainda não sabia se poderia
confiar nele completamente. Mesmo assim, não fui tolo o suficiente para ficar
trocando entre o Orsted e o Deus-Homem e arriscar ser inimigo de ambos.
Bem, acho que não tenho outra escolha. Terei que mentir então.
— Tudo bem, entendo. Nesse caso, vamos com a explicação do Cliff.
— Minha explicação? O que quer dizer?
Limpei a garganta.
— Aham, é como você disse, Mestre Cliff. Planejo derrubar Orsted. Mas é muito
cedo para agir agora. Terei que esperar minha chance e fazer o que ele pedir.
— O quê? Você tem certeza disso? Então, e a conversa que acabamos de ter?
Fingi ignorância.
— Pensamento em voz alta. Seria bom se isso fosse a verdade. — Uma vez que
Cliff visse Orsted pessoalmente, ele provavelmente pensaria da mesma forma
que Zanoba. Era melhor jogar junto com sua pequena teoria. — Com isso em
mente — continuei — eu apreciaria sua cooperação contínua no futuro.
— Eu vou te proteger, Mestre. Em preparação para a próxima batalha com
Orsted, farei uma armadura que até Julie poderia usar.
— Ótimo. Mal posso esperar. — Eu não tinha intenção de fazer Julie lutar, é
claro, mas saber que ele estava motivado a ir tão longe era suficiente.
— Com isso fora do caminho, há outra coisa que eu gostaria de pedir a você —
eu disse, virando-me para Cliff.
— Sim?
Originalmente, planejava lhe pedir ajuda para combater a maldição do Orsted,
mas agora eu teria que explicar de uma maneira que se alinhasse melhor com sua
teoria.
— Sabe, Orsted está realmente protegido por uma espécie de barreira — eu disse.
— Uma barreira? Como uma mágica?
— Não, mais como uma maldição.
Cliff franziu a testa.
— A maldição faz com que quando você olha para Orsted, hesite
automaticamente, intimidado demais para lutar com força total — expliquei.
— Sério? Ele tem uma maldição como essa?
— Sim. Foi por isso que perdi para ele. Presumo que deve ter sido o mesmo para
você, Zanoba? — perguntei, me virando para ele.
— Parecia que eu tinha sido derrotado do nada. Não conseguia entender o que
tinha acontecido. Agora que você mencionou, tive a sensação de que meu corpo
não estava se movendo como normalmente.
Sim, isso é apenas sua imaginação… mas vou guardar isso para mim.
Cliff assentiu.
— Entendo, bem, uma maldição como essa seria realmente incômoda…
— Sim, extremamente incômoda — concordei. — E por essa mesma razão, eu
gostaria que você visse se não pode fazer algo sobre essa maldição dele.
— Mas toda a minha pesquisa foi centrada especificamente na Elinalise. Não
tenho ideia se funcionaria no Orsted…
— Bem, se não funcionar, então teremos que contra-atacar de outra maneira. Mas
você não pode trabalhar em sua pesquisa sobre a maldição da Elinalise enquanto
ela estiver grávida, certo? Então, eu gostaria que você pesquisasse o quanto pode
enfraquecer os efeitos de outras maldições nesse meio tempo.
Cliff estava tentando se tornar um especialista em maldições. Embora não tenha
conseguido suprimir completamente a maldição da Elinalise, ele conseguiu
reduzir significativamente sua potência. Eu esperava que ele pudesse dar um jeito
de enfraquecer a maldição do Orsted, para que ninguém sentisse medo quando o
olhassem (ou pelo menos não tanto quanto agora).
— Mas você tem certeza de que Orsted concordaria em participar dessa
pesquisa? Como você vai enganá-lo? — Cliff perguntou com ceticismo.
— Orsted é como um lobo faminto por presas; tem fome de batalha. Na realidade,
ele também está descontente com os efeitos da maldição.
Os olhos de Cliff se arregalaram.
— Sério? Mas é graças a essa maldição que ele tem uma vantagem sobre seus
oponentes, certo?
— Ele mesmo me disse que gostaria de enfrentar um oponente e combatê-los
com todo o poder sem que se encolhessem diante dele.
Isso foi uma mentira descarada. Eu teria que pedir ao Orsted para mentir também
e manter esta farsa na frente do Cliff.
Hora de montar as peças e deixar tudo se encaixar.
— Está falando sério…? — Cliff olhou para mim incrédulo.
— Aham. É por isso que preciso que você mergulhe de cabeça na pesquisa, sem
restrições.
— Hm… Certo. Não gosto de enganar as pessoas, mas se você tem certeza disso,
vou tentar.
Uhuuuu! Você é o melhor de todos, Mestre Cliff! Elinalise, não se esqueça de
dar a ele um pouco de amor!
Com isso fora do caminho, eu poderia lentamente começar a convencer Sylphie
e os outros a verem meu lado. A vitória seria minha se encontrasse uma maneira
de lidar com a maldição do Orsted.
E por outro lado, ufa… A culpa que eu sentia não era motivo de riso. Por que
tive que mentir assim para todos ao meu redor? Não era a moralidade disso que
me incomodava, às vezes as mentiras eram apenas necessárias. Mesmo assim,
Cliff, Zanoba, Sylphie, Roxy e Eris estavam seriamente preocupados comigo.
Mentir para eles me fez sentir como se os estivesse traindo. Esperava que
pudéssemos rir disso mais tarde, assim que conseguíssemos acabar com a
maldição do Orsted.
— Bem, é isso então. Estou ansioso por sua ajuda contínua, Zanoba, Mestre Cliff.
— Sim. Estou aliviado que você tenha algo na manga, Mestre.
— Não é uma tarefa pequena que você me deu, mas vou cuidar disso.
Com isso, todos assentimos.
Não muito tempo depois, nossa comida finalmente chegou. Pratos requintados
cobriam a mesa e todos tínhamos álcool em nossos copos, o que significava que
o banquete estava pronto para começar. Eu levantei meu copo e disse:
— Tudo bem, agora que terminamos com as discussões sérias, por que não
fazemos um brinde e comemos?
— Sim, é uma boa ideia. — Zanoba espelhou minhas ações. — A que devemos
brindar?
Cliff ergueu seu próprio copo e disse:
— Bem, não há mulheres conosco hoje, então acho que podemos brindar à
amizade masculina… O que acham?
Isso é um pouco sentimental demais, não é?
Sentimental ou não, eu sabia que nem Zanoba nem Cliff me trairiam quando a
situação ficasse feia. Isso ficou claro no diário do meu eu do futuro. Cliff me
ajudou mesmo correndo o risco de todo o seu país se voltar contra ele. Zanoba
ficou comigo mesmo quando me tornei um verdadeiro pedaço de merda. Eram
amigos verdadeiros e insubstituíveis.
Admito que menti para eles hoje, mas no que fosse preciso, até que a morte nos
separasse, eu queria estar lá por eles. Só esse pensamento deixou meus olhos
marejados. E se estivéssemos sendo muito sentimentais? Entre minha vida no
Japão e meu tempo aqui, eu tinha vivido o suficiente para ser um velho antiquado
de qualquer maneira. Isso me serviu perfeitamente.
— Nesse caso, à nossa amizade!
— Sim, à amizade!
— Saúde!
Nós tilintamos nossos copos, derramando álcool por toda parte.
— Mas por falar em amizade masculina… que tipo de coisas os homens falam
em momentos como este? — Cliff perguntou, intrigado.
— Safadezas e coisas obscenas? — eu sugeri.
— Safadezas? Ah, pensando bem, ouvi dizer que você tem uma nova esposa
agora.
Eu sorri.
— Sim, o nome dela é Eris. Na verdade, ela era uma amiga de infância.
— Eris? Esse nome traz de volta memórias — disse Zanoba, estreitando os olhos
enquanto se lembrava de nosso primeiro encontro. — Eu me perguntei como a
mulher uma vez chamada de Cão Raivoso havia se tornado. Me certificarei de
prestar meus respeitos em breve.
Zanoba e Eris não tinham se falado muito no Reino Shirone, mas acho que ele
ainda se lembrava dela. Ela era bastante intensa, então seria difícil esquecê-la.
Hum. Fiz uma pausa.
— Espera aí. Agora que penso nisso, Mestre Cliff, você sabia sobre a Eris antes
também, certo? Você não disse algo sobre conhecê-la há muito tempo?
—N-Nós tivemos uma breve interação há muito tempo — ele murmurou. — Eu
não sinto nada por ela agora.
Ah, então ele teve um pequeno encontro com ela anos atrás… Aposto que ela
esqueceu completamente que ele existia. Isso não seria surpreendente,
conhecendo a Eris.
— O assunto mais importante aqui é você, Rudeus. Já lhe disse isso antes, mas
as mulheres não são colecionáveis — Cliff começou um longo e prolongado
sermão. — Você não pode simplesmente trazer um monte delas para fazer suas
vontades…
Uma vez que nós três estávamos suficientemente bêbados, foi Zanoba quem
começou a falar safadeza. A conversa começou sobre a esposa com quem ele
havia se casado anos antes, mas se transformou em uma história de terror no
meio do caminho antes de finalmente fazer a transição para uma série de
reclamações sobre como ela não conseguia entender suas bonecas. Cliff e eu
contamos histórias sobre Eris e Elinalise. Ambas eram monstros na cama, assim
pudemos simpatizar com a situação um do outro.
Infelizmente, Zanoba rapidamente ficou entediado com essa conversa, então
voltamos a discutir sobre minha Armadura Mágica. Quando comecei a passar os
detalhes de como eu a usei na minha luta com Orsted, os dois ouviram
avidamente com os olhos brilhando de fascínio. Aparentemente, robô gigante
contra super-monstro era um show universalmente divertido.
No decorrer disso, mencionei como Orsted restaurou meu braço perdido. Sem a
prótese, eu podia sentir o peito das minhas esposas com satisfação, mas, por outro
lado, minha força diminuiu bastante. Eu não podia mais fazer o mesmo trabalho
extenuante que fazia quando usava o braço protético.
— Vamos fazer outro agora mesmo! — Cliff declarou, estendendo a mão para
agarrar Zanoba e eu pelo braço.
— Hm? Agora? — Zanoba resmungou.
— Isso mesmo. Este restaurante deve fechar em breve. Podemos beber algumas
bebidas no meu quarto enquanto trabalhamos na criação de uma nova mão
protética!
— Parece bom. Vamos lá! — concordei ansiosamente, pulando da minha
cadeira.
Zanoba riu.
— Hahaha, suponho que não tenho outra escolha a não ser acompanhá-los!
Nós três saímos do restaurante enquanto estava fechando. No caminho de volta
para o quarto do Cliff, paramos para comprar algumas bebidas. Elinalise, que
deveria estar esperando em casa, não estava em lugar nenhum quando chegamos.
Encontramos um bilhete dizendo que ela tinha saído para visitar minha casa,
então pelo menos não havia razão para se preocupar.
Levamos nossas bebidas para o escritório do Cliff e começamos a construir uma
nova mão protética enquanto tomávamos nossas bebidas e tagarelávamos sem
parar.
— Estou dizendo, se você fizer leve assim, ela não terá força para isso! Ah, viu!
Viu! Quebrou. É por isso que estou te falando. Tem que ser mais pesada! —
resmungou Cliff.
Zanoba bufou.
— Bobagem, com a magia de terra do Mestre, podemos fazer isso! Eu te garanto!
— Certo, passe para cá então! — estendi a mão. — Vou te mostrar o que minha
magia realmente pode fazer! Oooooh, que tal isso!
— Burro, não está diferente do que era um segundo atrás! — Cliff gritou para
mim.
— Hah, seus olhos não conseguem ver a verdade. Mas eu te garanto, está duas
vezes mais forte do que era antes. Experimente você mesmo.
— Quebrou instantaneamente.
— Uh, opa?
— Nesse caso, vamos revisar nosso design — disse Zanoba. — Contanto que
consiga colocar os dedos nela, está boa o suficiente, então se alterarmos onde a
palma da mão deveria estar aqui…
— Ei, Zanoba, espere um momento — interrompi.
— Vamos, Mestre, todo mundo falha às vezes.
Balancei a cabeça.
— Vou tentar de novo. Me dê mais uma chance.
— Haha, tudo bem, mas esta é a última!
Fazer uma mão protética estava se mostrando extremamente difícil.
Provavelmente porque estávamos todos bêbados. Ninguém tinha juízo suficiente
para tomar as decisões certas, então estávamos todos ficando muito ousados. No
entanto, de alguma forma, nosso trabalho foi surpreendentemente preciso… ou
pelo menos, eu pensei que era.
Independentemente disso, beber com os meninos e tagarelar enquanto tentava
fazer algo acabou sendo insanamente divertido. Eu estava de bom humor.
Se outra oportunidade aparecer, eu gostaria de fazer isso novamente, pensei
comigo mesmo enquanto bebíamos a noite toda.
Enquanto os meninos estavam ocupados bêbados e gritando: “Não tenho medo
de nenhuma mãe esta noite!”, três meninas de pijama estavam sentadas em uma
cama enorme no segundo andar da propriedade de Rudeus.
— Hoje marca a vigésima sexta sessão de nossas reuniões regulares da Casa
Greyrat. Podemos ter uma salva de palmas? — perguntou a garota de cabelos
brancos.
A garota de cabelos azuis prontamente bateu palmas. A garota de cabelos
vermelhos estava sentada com as pernas dobradas sob ela, uma expressão séria
em seu rosto enquanto obedecia ao comando. Uma delas tinha idade suficiente
para não ser mais chamada de “garota”, mas se alguém dissesse isso, o dono da
casa iria rugir de raiva como um demônio possuído, então todos tiveram o
cuidado de manter a boca fechada. Como o dono argumentaria, ela parecia jovem
o suficiente para ser uma estudante do ensino médio, então qual era o problema
em chamá-la de garota? Embora uma pessoa do mundo anterior do dono
estivesse em perfeita razão em apontar que esse era precisamente o problema.
Digressões à parte, a garota ruiva, Eris, olhou fixamente para as outras duas em
sua companhia. Ela estava treinando no quintal quando Sylphie a arrastou para
dentro deste quarto sem explicação. Ela se sentiu um pouco perdida.
A garota de cabelos brancos, Sylphie, pigarreou. Ela estava usando seu habitual
conjunto de pijama macio de duas peças — o tipo que Rudeus gostava.
— Ahem, como Eris se juntou a nós recentemente, permita-me explicar…
— Eu cuidarei da explicação. — A garota de cabelos azuis, Roxy, interrompeu.
Ela usava uma camisola com um design adorável. Quem não a conhecesse
melhor, pensaria que foi feita para uma criança. — Essas reuniões são algo que
Sylphie criou como uma maneira de nos unirmos. Cada uma de nós tem suas
próprias expectativas, sentimentos de ciúme e possessividade, mas se
sucumbirmos a isso e competirmos entre nós, só machucará o Rudy. Como
membros desta família, nosso dever é fazer tudo o que pudermos para tornar este
um refúgio seguro para ele.
Eris olhou para seu próprio traje. Era simples e casual. Ela jurou interiormente
que iria às compras amanhã para encontrar alguns pijamas adequados.
— Eris, está ouvindo? — perguntou Roxy.
— S-Sim! — Eris balançou a cabeça. Mas ela ainda estava honestamente um
pouco confusa, já que nunca imaginou que elas realizavam reuniões como essa.
— De qualquer forma — disse Roxy — se houver algo que você queira nos dizer,
por favor, faça-o aqui. Vamos tentar não brigar na frente do Rudy. Especialmente
porque ele tem estado tão ocupado ultimamente. Gostaríamos de evitar aumentar
seus fardos o máximo que pudermos.
— Entendi. — Eris assentiu solenemente.
Sem brigas dentro de casa. Sem causar problemas para o Rudeus.
Eris nasceu no Reino Asura e, embora seu pai, Philip, tivesse apenas uma esposa,
muitas casas no reino tinham várias esposas. Era especialmente comum em casas
nobres de alto escalão que estavam ansiosas para ter o maior número possível de
descendentes, já que sua linhagem corria o risco de morrer de outra forma. Até
mesmo o amado avô da Eris tinha tomado várias parceiras.
Eris lembrou-se de algo que seu avô lhe disse há muito tempo.
— Você pode dizer o calibre de um nobre pelo quão bem suas muitas esposas se
dão bem umas com as outras.
Quanto melhor as três se davam, mais positivamente isso refletiria em Rudeus.
— Com isso fora do caminho… o tópico de hoje tem a ver conosco. Nós duas
não te conhecemos muito bem, Eris, e você também não nos conhece bem. É por
isso que gostaríamos de aproveitar esta oportunidade para aprofundar nossa
amizade.
Enquanto Sylphie falava, ela estendeu a mão para debaixo da cama e tirou uma
garrafa de licor forte que se podia encontrar em qualquer loja de bebidas. Roxy
pegou alguns copos e uma bandeja de lanches variados e colocou no meio da
cama.
Quase como um espadachim apunhalando sua lâmina no chão, Sylphie colocou
a garrafa no meio do círculo e declarou:
— Por hoje, vamos contar tudo sobre nós mesmas, sem restrições. Cada uma de
nós contará como conhecemos o Rudeus e o que nos trouxe aonde estamos agora.
No processo, demonstraremos quão profundos são nossos sentimentos pelo
Rudy.
— Vamos lá! — Eris estufou o peito. Ela estava confiante de que seu amor pelo
Rudeus era inigualável.
— Nesse caso, vou começar — disse Sylphie. — Rudeus e eu nos conhecemos
quando ele ainda morava na Vila Buena. Tínhamos cerca de cinco anos na
época…
Assim começou a reunião das meninas na propriedade do Rudeus, uma reunião
que continuou até tarde da noite. Como Roxy estava grávida, ela não bebeu
álcool. Eris só ficou um pouco embriagada, talvez devido a uma forte resistência
natural. Isso significava que Sylphie era a única que estava absolutamente
bêbada.
— Sabe, Rudy foi o primeiro amigo que fiz. Eu o amei deeeeeesde então. Oh,
isso traz tantas lembranças. Ele me apertou em seus braços naquela época
também. Não disse uma palavra, apenas colocou os braços em volta de mim
assim e apertou… Ehehe. — O fedor da bebida pesou a respiração da Sylphie
enquanto ela se agarrava a Eris.
Embora Eris estivesse um pouco irritada com o grude da Sylphie, não a repeliu.
Ela apenas curvou os lábios, fazendo beicinho.
— E daí? Rudeus me abraçou quando éramos mais jovens também.
— Sim, você já nos disse — Sylphie reclamou. — Estou com tanta inveja. Você
esteve com o Rudy durante o melhor período de sua vida. Você até foi a primeira.
A propósito, como foi? Nossa primeira vez juntos foi incrível.
— Não foi grande coisa — Eris bufou. — Bastante normal, eu acho? Além disso,
v-você teve o primeiro filho e se casou com ele primeiro… tenho mais ciúmes
disso.
A conversa estava ficando azeda e foi por isso que Roxy aproveitou a
oportunidade para interromper.
— Tá, tá, não há nada de errado em não ser a primeira. Eu não fui a primeira dele
em nada, mas ainda estou perfeitamente feliz.
— Boo! — Sylphie zombou. — Você não pode falar, Roxy! Você é a número
um dele. É a pessoa que ele mais respeita.
— Respeita…? Sinceramente, não entendo por que ele parece me reverenciar
tanto.
— Rudy me disse que é porque você ensinou a ele a coisa mais preciosa do
mundo. Algo realmente especial! Aposto que é algo pervertido, algo que ele
realmente gosta!
Roxy balançou a cabeça.
— Ele era bastante pervertido quando eu apareci. Eu não tinha nada para ensiná-
lo sobre esses assuntos. Quando era mais novo, ele até me espionava quando eu
tomava banho. Tudo o que sempre lhe ensinei foi coisas normais… Hmm. — Ela
caiu em pensamentos.
Honestamente, o que Rudeus viu nela? Pelo que Roxy conseguia se lembrar, ele
era muito apegado a ela desde o início. Mas o que ela poderia ter ensinado a ele
naquela época que era tão especial? Nada se destacava em sua mente.
— Bem, suas circunstâncias especiais à parte, até a Eris tem seus próprios
encantos distintos. Estou realmente perdendo a confiança aqui… — Sylphie
baixou a cabeça.
— Encantos distintos? O que isso significa? — Eris exigiu saber.
— Quero dizer, sabe. Você é forte, certo? Estou com ciúmes de você poder lutar
ao lado do Rudy. Trabalhei duro para chegar onde estou e cresci muito, mas
nunca vou me comparar a ele. Você viu na Biblioteca Labirinto. Rudy está
sempre tentando me proteger. Eu agradeço isso, mas… — Sylphie se remexia
em seu lugar de forma inquieta, consequência de ter bebido muito mais do que
deveria.
Apesar de ver o quão ansiosa a outra mulher estava, Eris não deixou essas
palavras inflar seu ego. Ela foi ao Santuário da Espada precisamente para treinar
a fim de se tornar igual a ele. Seu objetivo era rivalizá-lo em força e alcançou
isso; ela estava confiante de que poderia vencê-lo, mesmo que ele usasse sua
magia em batalha. Isso lhe trouxe grande satisfação, mas ela ainda não conseguia
deixar de sentir um pouco de inveja do relacionamento entre Sylphie e Rudeus.
Especialmente porque ela era forte o suficiente para se proteger e nunca poderia
ser a mulher que Rudeus tinha que cuidar.
Enquanto Sylphie agonizava sobre o assunto, Roxy inclinou a cabeça e Eris
cruzou os braços. Do nada, a porta do quarto se abriu.
— Perdoem-me, madames.
— Oh, é você, senhorita Lilia — disse Roxy.
Entrou uma mulher de meia-idade com roupa de empregada. Fumaça de vapor
subia de uma tigela de batatas cozidas e outros vegetais variados.
— Eu trouxe um lanche extra da madrugada — disse Lilia.
Roxy sorriu.
— Peço desculpas por te incomodar assim.
— De jeito nenhum, Roxy. Cuidar de você e das outras damas da casa faz parte
dos meus deveres como empregada.
Roxy inclinou a cabeça em agradecimento e Lilia baixou o queixo.
— Uh, hum… bem, estou muito honrada e profundamente… uh, grata… — Eris
gaguejou, não acostumada a usar frases tão educadas.
— De jeito nenhum, Eris. Você não precisa me agradecer. Agora que você é uma
das esposas de Rudeus, isso significa que eu a considero minha ama também.
Eris ainda estava lutando em como interagir com Lilia. A propriedade de sua
família na região de Fittoa tinha várias criadas, mas Eris teve a sensação de que
não deveria tratar Lilia da mesma maneira. Afinal, era a mãe de uma das irmãs
de Rudeus. De certa forma, ela era como uma babá ou segunda mãe para ele. A
última coisa que Eris queria era fazer a mãe do Rudeus a odiasse.
— Além disso, você não precisa falar tão educadamente comigo. Eu ouvi muito
de você quando morava na Vila Buena.
— Uh, o-o que você ouviu?
— Bom… — Lilia hesitou. Eris já sabia que não era nada bom se fosse algo que
Lilia tinha ouvido de quando ela ainda era criança. — Ouvi dizer que você era
muito violenta, que ninguém conseguia controlá-la e que seria difícil viver a vida
de uma verdadeira nobre…
Eris fez uma careta, esticando o lábio inferior. Apesar do desenvolvimento em
suas habilidades de espada, ela não era tão diferente agora. Houve um período
em que tentou o seu melhor para cumprir o papel que lhe foi dado, mas jogou
tudo isso fora.
— Mas agora olhe para você. Você se transformou em uma jovem deslumbrante.
O Deus da Espada, e até mesmo o senhor da Região de Fittoa, ficaria orgulhoso
de ver a mulher que você é agora.
— Eu acho… — Eris baixou o olhar. — Mas meu pai e meu avô já estão…
— Ah, peço desculpas. — Os olhos da Lilia se encheram de tristeza e ela abaixou
a cabeça.
— Está tudo bem. Esse desastre afetou a todos. Não fui a única que perdeu
alguém. A mãe e o pai do Rudeus também foram…
O silêncio tomou conta. Naquela breve conversa, a atmosfera no quarto ficou
sombria. O vapor continuou a subir da comida quente que Lilia havia trazido.
— P-Pensando nisso, Lilia, você está com o Rudy desde a infância, certo? —
disse Sylphie, desconfortável com a mudança de humor.
Depois de uma pausa, a criada respondeu.
— Sim. Afinal, fui contratada para ser sua babá.
— Isso significa que você o conhecia antes que Roxy e eu o conhecêssemos.
Como ele era naquela época?
— Quando era criança? — Lilia ficou quieta por um momento enquanto voltava
seu pensamento ao passado. — Hm, devo confessar, eu o achei um pouco
perturbador no início.
— Hã? Por quê?
— É difícil colocar em palavras… Lorde Rudeus era tão evasivo quanto um
fantasma. Desaparecia de repente e quando você pensava que o tinha encontrado,
ele tinha um sorriso assustador no rosto. Talvez seja por isso.
Ela sorriu ao se lembrar do passado. Por que ela evitava tanto o Rudeus naquela
época, mesmo que ele fosse uma criança tão adorável? Lilia se lembrava de se
sentir enojada por ele, mas esqueceu aquelas emoções com o tempo, e tudo o que
restava eram lembranças felizes.
— Mas, honestamente, isso não é diferente de como ele está agora, certo?
— Sim, é verdade — admitiu Lilia. — Naquela época, sempre que eu o pegava,
ele tinha um sorriso lascivo no rosto enquanto apalpava meu peito…
— Eu também não acho que isso tenha mudado, não é? — perguntou Sylphie.
— Agora que você mencionou, não, não mudou.
Rudeus tem sido um pervertido desde o momento em que nasceu, aparentemente.
As histórias da Lilia deixaram um clima estranho no quarto. No entanto, havia
uma garota entre elas que bufou triunfantemente.
— Se ele gostava tanto do peito da Lilia, então deve estar muito feliz com o meu
— declarou Eris. Ela realmente tinha um seio impressionante. — Eu estava meio
preocupada, na verdade. Sylphie e Roxy são tão pequenas, pensei que talvez meu
corpo não fosse o tipo dele.
— R-Rudy não é do tipo que julga uma garota por suas curvas — disse Sylphie,
com um tremor na voz.
— Agora que penso nisso, enquanto viajávamos juntos, ele olhava para o peito
das meninas o tempo todo — Eris murmurou para si mesma.
— O quê? Mesmo enquanto vocês estavam viajando? — Sylphie acariciou o
queixo. — Embora, agora que penso nisso, ele encontrou todas as desculpas que
pôde para tocar meu peito logo depois que nos casamos. Nos meus dias de folga,
passava o dia inteiro fazendo isso.
— Ele realmente não tocou muito no meu… me pergunto se não está interessado
no meu peito… — Os ombros da Roxy caíram quando ela apertou seus seios.
Infelizmente, não havia muito o que pegar.
— Bem, de qualquer forma, devo me desculpar… — disse Lilia.
— Senhorita Lilia, você deveria beber conosco — disse Sylphie a chamando. —
Não faria mal fazer isso ocasionalmente.
Roxy assentiu.
— Sim, agora que mencionou, também não me lembro de você beber muito
enquanto estávamos na Vila Buena. Como você bem sabe, não posso beber nada
agora, mas já que está aqui, por que não se junta a nós?
— Eu… mas eu tenho que cuidar da Zenith…
— Então traga-a também — disse Sylphie.
Eris assentiu.
— Sim. Somos todas mulheres adultas aqui. Podemos beber juntas!
A única coisa que não faltava a um bêbado era entusiasmo e essas meninas
tinham isso de sobra. Sylphie não demorou nada para convencer Lilia a arrastar
Zenith para sua bebedeira.
Elinalise estava solitária naquela noite sem o Cliff. Ele havia saído mais cedo,
insistindo que tinha algo para conversar com Rudeus, de homem para homem.
Não querendo diminuir seu orgulho, Elinalise se despediu enquanto se elogiava
por ser uma esposa tão virtuosa e clemente.
No entanto, ela rapidamente se viu entediada com nada para fazer. Ela e Cliff
faziam sexo regularmente, apesar de sua barriga inchada, mas com ele fora, não
havia como satisfazer seus desejos carnais. Na verdade, desde que estava
grávida, os impulsos não eram piores do que o normal. Ela imaginou que ficaria
bem ficando sem fazer um dia e então deixou a residência deles para visitar a
Residência Greyrat, a fim de verificar Sylphie e Roxy.
Ela chegou para encontrar um grupo de cinco mulheres dando sua própria festa,
banhada a bebidas.
— Oh, minhas caras, parece que vocês estão fazendo algo divertido.
— Ah, vovó! — Sylphie sorriu. — Sua barriga está ficando grande. Meu
irmãozinho está aí? Ou terei uma irmãzinha? Ah, espera… Se Cliff é basicamente
meu pai, então isso faz com que Rudy… Uh, hm…
Quando Elinalise entrou, Sylphie estava apalpando os peitos da Eris por trás. Por
sua vez, Eris ignorou Sylphie, concentrada na comida que ela estava
silenciosamente enfiando em sua boca enquanto tomava sua bebida. Zenith
estava sentada perto, agindo como refil de bebida pessoal da Eris. Ao lado dela,
Lilia estava bebendo, com Roxy enchendo seu copo sempre que ficava vazio.
— Senhorita Roxy — disse Lilia — por que… por que minha filha não pode
ganhar o amor do Lorde Rudeus também?!
— Ele a ama. — Desapontada por não poder participar por causa de sua gravidez,
Roxy ainda agradou Lilia com uma resposta sincera.
— Eu me pergunto se isso é realmente verdade…
— Bem, é certo que ele só a vê como uma irmã mais nova — disse Roxy.
— Mas a verdadeira felicidade de uma mulher não vem de ser amada por um
homem?!
— Bem, eu definitivamente estou feliz, mas não acho que essa seja a única forma
de felicidade que se pode ter. Além disso, Aisha é uma garota talentosa. Tenho
certeza de que ela acabará encontrando um parceiro maravilhoso.
Lilia se endireitou.
— Alguém ainda melhor que o Rudeus?!
— Bem, seria difícil encontrar um homem melhor que Rudy… Quando você
coloca assim, eu realmente acertei em cheio, não foi? Como comprar um local
privilegiado de terra por trocados antes que todos percebam seu valor e o preço
suba…
Observando-os, Elinalise se lembrou de como garotas solteiras da Guilda dos
Aventureiros se reuniam para dar festas. Aquelas que lamentavam por não
conseguirem arranjar um bom homem se encontravam regularmente para se
embebedar e se alegrar antes de finalmente serem repreendidas pelo barman e
acabarem nas ruas após a hora de fechar, onde dormiam até de manhã.
Elinalise se juntava ansiosamente às garotas da Guilda dos Aventureiros quando
podia. Ela não tinha nada a temer; ao contrário delas, nunca lhe faltou homens.
A única razão pela qual ela participava, era para poder desfrutar de um pouco de
álcool com um grupo de pessoas.
— Rudeus choraria se pudesse vê-las assim. A única vez que uma garota deveria
ficar embriagada é na companhia de seu parceiro, quando estão a sós — disse
ela.
— Ah, não diga essas coisas, vovó — disse Sylphie. — Ah, ei. Você sempre
ensina a Roxy a fazer coisas na cama, certo? Por que não me ensina nada, hein?
Por quê?
— Oh, Sylphie, honestamente… você está completamente bêbada. Mas quanto
ao motivo de eu nunca ter te ensinado nada, é porque Rudeus ficará mais excitado
se ele achar que você é uma garota inocente que não sabe nada sobre sexo.
— Mais uma razão para você me ensinar tudo! Estou cansada de deixar Rudy
fazer o que quiser comigo na cama. Já está na hora de fazê-lo gritar para variar!
Levou apenas alguns segundos para Elinalise abandonar todo o bom senso ao ver
sua neta bêbada como um gambá. Ela era uma boa conversadora e era exatamente
por isso que decidiu que era melhor se juntar às meninas bebendo ao lado delas.
— De qualquer forma — disse Elinalise — vou pegar um copo para mim. Ela
mal conseguiu agarrar um vazio antes que a mão da Sylphie disparasse para detê-
la.
— Não pode! Garotas com barriga grande não podem beber álcool!
— Diga isso à Roxy.
— Eu não preciso! Roxy não está bebendo, então não há problemas lá! Além
disso, mesmo que tenha bebido, ela pode usar magia de desintoxicação, então
não preciso me preocupar! — Se Sylphie estivesse sóbria, nunca teria dito algo
assim, mas ela já estava bêbada.
Elinalise suspirou, exasperada e encontrou uma cadeira vazia para sentar.
— Sabe, eu também aprendi a usar essa magia na academia.
— Bem, eu consigo usar ela sem recitar um encantamento! — Sylphie bufou.
— Sim, sim, que incrível. Eu não esperaria menos da minha neta.
— E é exatamente por isso que você não pode beber! Está fora de cogitação!
— Sim, sim. Entendi. — Elinalise riu da jactância triunfante da Sylphie e desistiu
da ideia de beber, optando por lanchar.
— Não é porque eu sou sua neta. É graças ao Rudy me ensinar — disse Sylphie.
— Faço tudo o que ele me diz — seja magia ou sexo.
— E é porque você é esse tipo de mulher que você o tenta tanto — apontou
Elinalise.
— Sim! Ele age muito mais motivado de manhã depois que dormimos juntos.
Ehehe!
Elinalise levou cerca de uma hora para gastar a alta energia da Sylphie.
Naquela noite, quatro das mulheres beberam até o esquecimento, beberam
enquanto soltavam todos os sentimentos negativos que haviam acumulado. Sua
ansiedade em torno do Rudeus fazendo tantas coisas em segredo ultimamente.
Suas suspeitas sobre o Deus-Homem e Orsted. No entanto, todas estavam
otimistas de que de alguma forma daria certo. Foi com esse turbilhão de emoções
que elas beberam e se divertiram.
Roxy e Elinalise, que permaneciam sóbrias, foram gentis o suficiente para
agradar as outras e suas inúmeras reclamações até que finalmente cochilaram.
Foram elas que lançaram magia de desintoxicação nas outras. Quando tudo
finalmente acabou, Elinalise voltou para sua casa enquanto Roxy se retirava para
seu quarto. Esta última fez os preparativos para a faculdade amanhã antes de ir
para a cama.
Havia apenas uma garota na casa que não pôde participar da festinha e dormiu
mal-humorada a noite toda, mas Roxy nem percebeu que a deixaram de fora até
a manhã seguinte.
Quando meus olhos se abriram, me vi agarrado ao Zanoba. Nem preciso dizer,
mas não sou homossexual — só fiz isso porque eu fui totalmente arrasado ontem
à noite. Era um bom álcool que tínhamos bebido. Honestamente, eu nunca tive o
objetivo de beber com outros homens na minha vida anterior, mas acabou que
sair com uns caras que eu gostava fez o gosto do álcool muito melhor.
— Ugh, mas minha cabeça está me matando… — Como minha cabeça estava
latejando ferozmente, lancei magia de cura e desintoxicação em mim. O
latejamento imediatamente diminuiu. Era como tomar uma aspirina super forte
que funcionava imediatamente, lavando a dor e sua fonte.
Eu fiz o mesmo com Zanoba e Cliff, mesmo que ainda estivessem dormindo
como um par de troncos. O primeiro estava com o pé apoiado no rosto do Cliff,
e era provavelmente por isso que Cliff parecia estar tendo um sono tão ruim.
Desculpe, amigo, mas a magia de cura e desintoxicação não pode tirar o chulé.
Embora minha magia tenha feito um excelente trabalho aliviando a dor de uma
ressaca, não ajudava com a desidratação. Decidi tomar um gole de água antes
que minha dor de cabeça voltasse, usei magia da terra para conjurar uma xícara
e depois magia da água para encher…
— Hm? — Fiz uma pausa quando notei algo no meio da sala. O que quer que
fosse, tinha a forma de um braço, mas várias placas de metal haviam sido
colocadas em camadas, tornando-o um pouco maior e mais grosso do que um
braço normal, além de pesado.
— Uh, o que essa coisa deveria ser mesmo? — Quebrei meu cérebro tentando
me lembrar dos acontecimentos da noite anterior. — Na verdade, onde diabos eu
estou, afinal? — Examinei a sala, mas não reconheci meu entorno. Eu tinha
certeza de que já tinha estado aqui antes e podia dizer que era o quarto do Cliff,
pelo menos, mas fora isso…
— Hum, vamos ver, acho que bebemos um monte no restaurante… Oh, sim,
entramos no assunto de refazer minha mão protética. Cliff disse que tinha os
materiais aqui para desenhar círculos mágicos para isso, então é por isso que
viemos aqui para sua casa…
Foi aí que minha lembrança terminou. Tudo depois disso era sombrio. A julgar
pelas evidências, bebemos álcool enquanto trabalhávamos para fazer essa nova
versão da prótese.
— Hum.
Por mais confuso que meu cérebro estivesse nos detalhes, lembrei-me de partes
sobre nossas tentativas não irem como planejado. Estendi a mão e peguei a
prótese, ou manopla, em vez disso, e a inspecionei. Era pesada, provavelmente
pesando cerca de dez quilos, o que significava que eu a havia feito com minha
magia de terra. Eu até deixei um espaço perfeito na palma da mão onde uma
pedra mágica poderia ser embutida. Ela sofreu para caber na minha mão
enquanto a segurava, então eu a coloquei no chão e enfiei minha mão. Caiu como
uma luva.
— Terra, seja minha mão — murmurei. Mana começou a se acumular no meu
braço, alimentando-se da luva, e gradualmente, tornou-se mais e mais leve. Meu
tato ficava menos sensível ao usá-la, mas eu poderia facilmente pegar o que
quisesse, dando-me nostalgia afetuosa do tempo que passei com minha prótese.
Não havia como confundir, esta era a Prótese Zaliff. Ou a Manopla Zaliff, se
quisermos um termo mais preciso.
— Nós realmente terminamos!
De fato, criamos com sucesso a Manopla Zaliff.
Depois disso, nós três nos sentamos grogues e apreciamos o café da manhã que
Elinalise fez. Ela tinha chegado em casa em alguma hora cedo esta manhã.
— Nós conseguimos.
— Sim.
— Vamos nos certificar de inscrever um projeto limpo para ele mais tarde.
Enquanto comemorávamos a conclusão da manopla, faltou-nos energia para
mostrar muito entusiasmo. Nenhuma quantidade de magia de cura ou
desintoxicação poderia restaurar as horas de sono perdidas para festejar até a
madrugada.
— Bem, até mais.
— Sim, vamos beber de novo algum dia.
— De fato! Foi um prazer.
Nos despedimos reservadamente, prometendo fazer isso de novo.
Meus pés se arrastaram enquanto eu voltava para casa. Já era quase meio-dia e o
sol bateu em mim. O calor do verão era inevitável. Isso também significava que
a neve havia desaparecido há muito tempo e, em breve, o povo-fera entraria na
temporada de acasalamento. Pessoalmente, eu estava ansioso para acasalar o ano
todo, então as estações não tinham muito impacto em mim, mas ver como todos
os outros também estavam ansiosos me deixou inquieto.
A barriga da Roxy começou a crescer. Eu estava ansioso para decidir um nome
para o nosso bebê, mas em apenas duas semanas teria que partir com Ariel para
o Reino Asura. Eu poderia voltar instantaneamente para casa com magia de
teletransporte, mas não tínhamos ideia de quantos meses passaríamos lá.
Eu odiava a ideia de que eu não estaria lá para o nascimento. Afinal, quando
Roxy entrar em trabalho de parto, ela terá passado mais de nove meses com
sintomas desconfortáveis da gravidez, tudo para que possa dar à luz ao meu filho.
Havia pouco que pudesse fazer por ela em troca, mas eu precisava mostrar o quão
grato eu estava através de minhas ações, pelo menos.
Me pergunto se será um menino ou uma menina…
Como Lucie era uma menina, eu meio que queria um menino desta vez, mas
honestamente, não importava de qualquer maneira.
Pensando bem, Eris mencionou que quer ter um menino.
De volta ao Japão, havia dicas e truques para determinar o sexo do seu bebê, mas
quais eram mesmo? Tipo, se você fizesse a coisa A então seria mais fácil ter um
menino e se você fizesse a coisa B seria mais fácil ter uma menina, ou algo assim.
Lembrei-me de vinagre sendo usado em algum momento também…
Eu me pergunto se você pode mudar o sexo de um bebê através da magia neste
mundo…
De qualquer forma, não importava. Nós criaríamos nosso bebê com amor,
independentemente do sexo deles.
Eris provavelmente também acabaria grávida em pouco tempo. Minha
preocupação era se ela se acalmaria e se comportaria durante a gravidez. Além
disso, ela parecia estar com pressa de ter um bebê. No meio da intimidade, ela
fazia uma série de pausas para perguntar: “Posso engravidar assim?” e “Tem
certeza de que isso está certo?”
Parte disso era porque ela naturalmente tinha uma alta libido, mas talvez outro
ponto seja a situação em que ela se sinta atrasada em relação às outras meninas,
visto que Sylphie já tinha Lucie e Roxy estava grávida no momento. No Reino
Asura, havia um forte senso de que não se podia declarar abertamente a esposa
de um homem até que tivessem seu filho. Não tinha ideia do que Eris pensava
sobre isso, mas se ela quisesse ter um bebê rapidamente para se sentir mais
segura, eu a ajudaria.
Finalmente, vi minha casa ao longe. Como eu não havia dito às meninas que
ficaria fora por uma noite, imaginei que elas provavelmente ficariam chateadas
comigo. Não que nossa casa fosse rígida sobre esse tipo de coisa.
Talvez fosse sensato criar uma regra concreta em relação ao toque de recolher e
passar a noite fora. Sequestros eram um problema comum neste mundo e não
havia como dizer o que o Deus-Homem podia fazer. Lucie estava crescendo,
então estabelecer uma regra agora serviria para proteger ela e nossos outros filhos
futuros.
— Cheguei em casa! — declarei quando entrei.
— Oh, irmão, bem-vindo de volta! — disse Aisha. Não vi nem cabelo nem couro
do resto da minha família.
— Hã? Cadê todo mundo? Todas saíram?
— Elas ficaram acordadas até tarde da noite — explicou Aisha. — Ainda estão
dormindo!
O quê, elas estavam festejando? Sem a minha presença? Isso significa que fui
deixado de fora de toda a diversão?
Em outras palavras, enquanto eu estava bebendo com os meninos, as garotas
tiveram sua própria comemoração. Eu só esperava que elas não tivessem passado
o tempo falando mal de mim.
— Dá para acreditar? Elas foram tão frias comigo! — Aisha resmungou. —
Enquanto eu dormia, elas se reuniram para beber e conversar!
— Ah, então você não participou da festa?
— Não. Léo e eu dormimos juntos a noite toda. Falando no Léo… quando
acordei esta manhã, notei que a cama estava fria e molhada. Léo aparentemente
teve um acidente. Eu o peguei e ele parecia todo abatido. Ele pode parecer um
cachorro grande, mas ainda é apenas um cachorrinho.
Aisha parece estar aproveitando seus dias aqui.
— Mesmo? E o que você fez? Você lavou seus lençóis? — perguntei.
— É claro. Ah, a senhorita Eris me ajudou. Ela prometeu que não contaria a
ninguém, já que também costumava molhar a cama. Eu a disse que não foi eu,
mas ela não acreditou em mim, não importa o que eu dissesse. Por favor, diga a
ela a verdade. Juro, nunca molhei a cama desde que nasci.
— Não sei. Você tem certeza disso? — provoquei.
— Ugh, você também não! Vocês são cruéis!
Fomos para a sala de estar enquanto brincávamos.
Me pergunto se a Eris participou dessa festa da bebida. Isso me deixou um pouco
ansioso, mas era bom que ela parecesse estar se dando bem com as outras garotas.
— Oh, Rudeus, bem-vindo de volta.
Enquanto estava perdido em pensamentos, Eris desceu as escadas. Ela estava
vestindo roupas leves e flexíveis e carregava uma espada de madeira, mesmo que
suas armas reais ainda estivessem em seus quadris.
— É bom estar em casa — eu disse. — Indo para o treinamento agora?
— Aham! Tenho que treinar ainda mais!
Eu não tinha ideia do que haviam discutido durante a festa, mas ela parecia estar
de bom humor.
O que me lembra que tenho um favor a pedir a ela.
— Eris.
— O quê?
Talvez fosse graças ao sol na caminhada de volta, mas minha mente estava mais
limpa do que antes e meu corpo também parecia mais leve. Tudo que eu
precisava era outro copo de água e eu estaria pronto para ir. Um copo grande! E
enquanto eu estava no clima, era o momento perfeito para perguntar.
— Se você vai treinar, que tal ter uma batalha simulada comigo? Sabe, como
você e Ruijerd faziam enquanto viajávamos juntos. Não faço isso há muito
tempo.
Por um momento, ela olhou vagamente para mim, mas logo se recuperou e deu
um sorriso.
— Parece ótimo! Vou te fazer de gato e sapato, como costumava fazer!
— Ugh… Bom, tentarei o meu melhor para acompanhar.
Como era uma batalha simulada, eu esperava que ela pelo menos se segurasse o
suficiente para não me matar.
Vai ficar tudo bem, certo? Certo? Quero dizer, ela é um Rei da Espada agora,
então ela pode se conter… certo?
— Bem, eu vou para o jardim primeiro, então! Eris declarou, antes de se apressar.
Com essa promessa feita, saí para trocar de roupa. Eris se tornou bem durona
desde a última vez que a vi e eu não podia me deixar parecer muito patético na
frente dela.
Hora de dar o melhor de mim!
Nós dois nos separamos, um de frente para o outro.
— Faz muito tempo desde que lutei com você assim — disse Eris.
— Com certeza. — Quantos anos se passaram desde que viajamos com o
Ruijerd? Cerca de cinco, se minha aproximação estivesse correta.
— Eu não vou perder mais para você! — Eris gritou.
— Não se preocupe. Não tenho ilusões sobre ser capaz de vencer.
Eu costumava derrotá-la depois de receber meu Olho da Previsão, mas nas
circunstâncias atuais, a vantagem que me dava era insignificante, na melhor das
hipóteses. Nós dois tínhamos vivido vidas diferentes depois que nos separamos.
Eris passou todo o seu tempo estudando a espada, sem fazer nada além de lutar.
Tendo visto seu confronto com Orsted, eu já podia dizer que não tinha chance de
vencê-la.
— Dito isso, você não tem muita experiência em lutar contra um mago, tem? —
Eu perguntei.
— Não.
— E eu nunca enfrentei alguém com habilidade suficiente para usar algo como a
Espada de Luz. Batalhas simuladas como essas nos ajudarão a nos preparar para
enfrentar adversários de um nível de habilidade semelhante.
Eris bufou, sorrindo de orelha a orelha.
O que ela tem? Eu não a elogiei tanto assim. Eu disse algo engraçado?
— Realmente já faz uma eternidade desde que fizemos isso! — disse ela.
— É, imagino que sim.
Eris não estava apenas se referindo ao treino, ela estava se lembrando quando eu
era seu tutor e costumava analisar logicamente o que estávamos fazendo
enquanto treinávamos.
— Bem, com isso fora do caminho, é hora de lutar! Assim como antes, quando
estávamos viajando.
— Aham, entendi!
Ela ergueu sua espada de madeira, segurando-a bem acima de sua cabeça, sua
pose favorita desde a infância. No entanto, as coisas são diferentes agora. No
momento em que ela fez aquela pose, o ar ao seu redor se acalmou. A aura tensa
e pretensiosa sobre ela desapareceu em um instante. Em pânico, entrei em uma
posição de luta e agarrei meu cajado, liberando meu Olho da Previsão.
— Quando estiver p…
Antes que eu pudesse falar, a figura da Eris ficou desfocada. Quando terminei a
frase, uma força atingiu meu ombro direito. Derrubei meu cajado antes que
pudesse registrar o que havia acontecido e me esparramei. Quando dei por mim,
estava olhando para o céu. Houve um atraso antes da dor chegar, disparando pelo
meu ombro.
— Agh… Urk…
Eu não conseguia mover meu braço direito, o que me fez suspeitar que ela
quebrou minha omoplata. Consegui alcançar minha mão esquerda e comecei a
recitar.
— Que esse poder divino dê sustância satisfatoriamente, dando a alguém que
perdeu sua força, poder para se levantar novamente! Cura! — Lentamente, a dor
diminuiu.
Eris apareceu no meu campo de visão, ainda segurando a espada acima da cabeça
com um olhar confuso no rosto, como se dissesse: “E agora? Posso bater em você
de novo?”
— Espera! Pare! Desisto! — Estendi a mão para detê-la e ela finalmente abaixou
a arma.
Respirei fundo e me levantei do chão.
— Eris, aquilo de agora era a Espada de Luz?
— Aham.
Essa é a técnica secreta do estilo Deus da Espada. Eu tinha visto uma vez antes,
e Orsted até me bateu com a técnica, mas vê-la mais uma vez reforçou como era
divinamente rápida. Eu não tive tempo de piscar, muito menos reagir.
— Então era isso… — murmurei. — Incrível. Eu nem vi chegando.
— Claro?! Coloquei tudo o que tinha nisso. — Eris assentiu, satisfeita com meu
elogio.
— Acho que vou ter que trabalhar duro para encontrar uma maneira de contra-
atacar.
Eris bufou.
— Não será tão fácil!
— Sim, não espero que eu seja capaz de fazer isso hoje…
Ainda assim, eu não podia parecer um completo perdedor na frente dela.
Precisava ter certeza de que ela poderia aprender algo com essas batalhas
simuladas.
Bem, para resumir os resultados de nossas batalhas… Perdi miseravelmente. Eris
venceu nove das dez lutas.
Eu franzi minha testa. Eu já sabia que Eris era forte. Na verdade, já imaginava
que não seria páreo para ela antes de começarmos. O objetivo dessas batalhas
simuladas não era vencer, mas ficar mais forte. Experimentar o melhor do estilo
Deus da Espada era uma lição valiosa em si mesmo.
No entanto, por mais que eu apreciasse isso, não pude deixar de me sentir
totalmente desanimado depois de ser espancado tantas vezes. Eu tentei realmente
tudo: Atoleiro, Névoa Profunda, Fortaleza de Terra, Onda de Vácuo e Bomba
Sônica. Até tentei usar vento e areia para obscurecer a visão dela. Eu pensei que
ficar encurralada seria sua fraqueza, e certamente era, mas sua Espada de Luz era
tão rápida que superava isso.
Mesmo se conseguíssemos nos atacar ao mesmo tempo, eu ainda perdia. Eu
pensei que Eletricidade seria o suficiente para nos fazer empatar, mas Eris
manteve um aperto firme em sua espada, mesmo enquanto isso passava por
ela, continuou me atacando. Ela não tinha falta de coragem, com certeza.
Enquanto isso, bastava um golpe e eu perdia. A lacuna ridícula entre sua
resistência e a minha me fez preocupar se ela se sentiria desiludida depois de
tudo isso.
— Eu realmente sou um perdedor, não sou? — suspirei.
— Por que você acha isso?
— Digo, olha para você. Você trabalhou duro e se tornou tão poderosa como
resultado, por outro lado meus esforços somados desencadearam em sucessivas
derrotas. Sinto que não consigo olhar nos seus olhos, especialmente com quantas
horas de treinamento você teve em comparação comigo.
A única vez que venci foi quando consegui parar a espada dela com a minha
Manopla Zaliff. Eris ficou abalada pela resistência anormal que sentiu através da
minha manga, o que a deixou boquiaberta de surpresa. Eu não a culpava, ela
pensou que quebraria meu braço com seu golpe, apenas para ser recebida com
aço que desviou seu ataque. A Manopla Zaliff tinha um design mais elegante do
que o da sua antecessora, embora as duas pesassem mais ou menos o mesmo.
— O quê? — disse Eris, espantada. — Então você pode deixar seu braço duro
também? — As implicações sexuais fizeram com que suas bochechas corassem
intensamente. Infelizmente, havia apenas uma parte do meu corpo que eu podia
endurecer assim e geralmente permanecia flácida até a noite.
De qualquer forma, eu posso ter vencido, mas não foi por causa da minha força.
A sorte me favoreceu e a mesma tática não funcionaria duas vezes. Se ela tivesse
usado uma espada de verdade em vez de uma de madeira, havia uma boa chance
de ela ter cortado minha mão junto com a manopla. No que me dizia respeito,
essa vitória não contava. Minha taxa de vitória, então, era zero por cento.
Sim, me chame de Grande Perdedor Rudeus.
— Isso não é verdade — disse Eris. — Estamos falando de espada contra magia
aqui. Em combates corpo a corpo, é natural que você perca.
Honestamente, essa não era a reação que eu esperava. Na minha mente, só tinha
imaginado dois cenários. Em um, ela estufava o peito e dizia: “Claro! Porque eu
sou mais forte!” e então ela perderia a paciência e gritaria: “Rudeus, você precisa
treinar mais!” No outro ela suspiraria, ficaria enojada e diria: “Você me entedia.”
Sua resposta foi tão diferente que fiquei boquiaberto.
Sério, acabei de ouvir a palavra “corpo a corpo” saindo da boca da Eris?
— Começamos dentro do meu alcance de ataque preferido, então você está em
desvantagem desde o início. Na verdade, sou eu quem deveria ter vergonha de
você ter vencido uma vez. Eris disse tudo isso com um olhar completamente
sério no rosto.
Estou ouvindo coisas? Essa é mesmo a minha Eris?
Eu tive que me lembrar que ela era uma Rei da Espada agora. Claro que ela tinha
conhecimento sobre combate. Seria estranho se não tivesse. Ela falou isso
analiticamente quando ensinou esgrima à Norn também.
Eu sabia disso, mas não conseguia deixar de perguntar.
— Eris, tenho uma pergunta…
— O quê?
— Quem, uh, te ensinou tudo isso?
Foi o Rei da Espada? Um Imperador da Espada? Suspeitei que fosse um desses
dois. Não perguntei porque queria saber quem a ensinou especificamente. Talvez
eu só quisesse me tranquilizar confirmando que ela não tinha inventado tudo isso
sozinha.
Se for esse o caso, sou um bastardo odioso.
Mas não pude evitar. Por fora, parecia que não tinha mudado nada, mas muito
sobre ela estava diferente e me deixou um pouco… bem, chocado.
— Auber foi quem me ensinou sobre combate corpo a corpo! — declarou Eris.
Como imaginei, alguém a ensinou. Mas o nome Auber me fez refletir. Eu tinha
certeza de que tinha ouvido em algum lugar antes.
— Espera… O Imperador do Norte? Imperador do Norte Auber?
— Esse mesmo!
— Pelo que entendi, você era aprendiz do Deus da Espada, mas você está dizendo
que também aprendeu com o Imperador do Norte?
— E um pouco do Deus da Água também, claro!
Deus da Água Reida também, hein?
Claro, não era surpreendente que ela aprendesse outros estilos de espada no
Santuário da Espada. Estava no nome do lugar. Ou talvez esses guerreiros
tivessem passado por lá e ela tivesse recebido lições não oficiais deles dessa
maneira.
Independentemente disso, o Imperador do Norte Auber e o Deus da Água Reida
eram grandes nomes. Orsted mencionou que havia uma boa chance de lutarmos
contra aqueles dois em Asura e eis que foram eles que ensinaram a Eris o que ela
sabia. Me perguntei se isso era uma armadilha. Eu queria acreditar que fosse uma
simples coincidência, mas…
— Eris, para dizer a verdade, há uma boa chance de enfrentarmos esses dois
quando formos para Asura.
— Sério?
— Sim. Eles estão do lado do inimigo.
Pensei que até Eris teria dificuldade em enfrentar seus ex-professores. Tentei
dizer diplomaticamente, mas ela simplesmente cruzou os braços e sorriu como
se estivesse pronta para entrar em batalha.
— Sério? Isso me dá vontade de lutar!
Ela parecia que ficaria feliz em lutar com eles aqui e agora. Aparentemente, o
relacionamento dela com eles não era o mesmo que tinha com Ghislaine. Na
verdade, me perguntei se ela tinha feito algum amigo no Santuário da Espada.
Fiquei preocupado.
— Bem, se você está ansiosa para a batalha, então eu também não vou me segurar
ao lutar contra eles.
— Com certeza! É melhor você não se segurar contra eles — disse ela.
Eu a encarei.
— Porque você acha que seria desrespeitoso?
— Porque eles vão cortá-lo em dois em um instante. — Sua expressão deixou
claro que ela não estava brincando. — Mas não se preocupe, você tem a mim
para protegê-lo!
— C-Certo…
Por mais reconfortante que isso fosse, ser informado de que me cortariam em
dois era honestamente aterrorizante. Eu definitivamente não queria enfrentá-los
de frente. Talvez pudéssemos atraí-los para uma armadilha ou ciladas, então as
condições nos favorecerão. Eu teria que contar com isso.
— Bem, de qualquer maneira, obrigado por fazer essa batalha simulada comigo.
— Não precisa me agradecer. Como sua esposa, é meu dever!
Ah, meu Deus. Você vai me fazer corar.
— Bem, então, como seu marido, é melhor eu trabalhar duro para poder ficar
frente a frente com você — eu disse.
— Você está ótimo desse jeito!
— Tem certeza?
— Sim. Todo mundo tem seu próprio papel a desempenhar! Na verdade, se eu
souber que você está do meu lado na batalha, isso me deixará à vontade.
Hum. Há cinco anos, Eris nunca teria dito algo assim. As habilidades que
adquiriu durante o tempo que passou treinando eram certamente a coisa mais
notável, mas ela também amadureceu mentalmente.
Eu realmente vou ter que trabalhar duro, para que ela não se sinta desiludida por
mim.
Continuei lutando com Eris enquanto me preparava para nossa partida. Isso
incluía fazer melhorias na minha Armadura Mágica, trabalhar em uma maneira
de combater a maldição do Orsted, bem como fazer as malas para a viagem. Fiz
tudo isso enquanto tentava passar mais tempo com a Roxy.
Claro, eu não ficava com ela o tempo todo. Tive várias reuniões com o Orsted
onde discutimos quais habilidades o Imperador do Norte Auber e o Deus da Água
Reida podiam usar, além de como combatê-las. Também descobrimos como
contatar o bando de ladrões com quem Triss estava envolvida. Só para ter certeza,
revisei meu conhecimento geográfico da Capital de Asura, Ars, bem como a
configuração geográfica do Palácio de Prata onde a realeza residia. Eu também
apresentei Cliff ao Orsted, para que pudesse começar a estudar a maldição dele.
Eu estava fazendo tudo o que podia, enquanto tentava reservar um tempo extra
para passar com a Roxy.
Eu não a estava perseguindo, para ser claro. Sim, talvez eu vadiasse na frente da
porta dela às vezes e me esgueirasse de cantinho para chamar sua atenção, mas,
na maioria das vezes, eu era bastante direto em pedir seu tempo.
Talvez porque estivesse grávida, ela estava mais disposta do que o normal a
aceitar minha companhia. Não que já tivesse recusado antes, é claro, mas ela
estava fazendo um esforço mais concertado para se aproximar de mim. Isso
aqueceu meu coração.
Ela sempre foi um pouco indiferente comigo. Se eu estivesse sentado no sofá,
ela optaria por uma das poltronas, ou se sentaria à minha frente, em vez de se
acomodar ao meu lado. Isso mudou ultimamente. Ela se aconchegava ao meu
lado ou se jogava no meu colo. Dá para acreditar? No meu colo! Esta era a mesma
Roxy que odiava ser tratada como uma criança, mas começou voluntariamente a
se empoleirar nas minhas pernas. Como se não bastasse, suas bochechas
brilhavam, como se ela estivesse envergonhada por estar fazendo isso. Sem
dúvida, era preciso mais coragem para fazer isso do que simplesmente sentar ao
meu lado.
Foi por isso que me certifiquei de oferecer orações de gratidão ao meu altar todas
as noites.
Minhas Deusas, obrigado por me deixarem ter uma vida tão feliz.
Uma noite, Roxy e eu estávamos sentados no sofá da sala, lado a lado. Muitas
vezes sentávamos juntos e conversávamos assim quando o dia chegava ao fim.
Nós nunca ficávamos sem assunto. Roxy discutia como as coisas estavam na
faculdade ou notícias sobre os últimos implementos mágicos. Às vezes,
conversávamos sobre nossas aventuras após o Incidente de Deslocamento.
Nenhum dos assuntos era de suma importância, mas conversar com ela sempre
me deixava à vontade. Apenas ouvir sua voz era o suficiente para me fazer feliz.
As palavras da Roxy sempre carregavam nuances profundas, cheias de sabedoria
e iluminação. Nunca passei um minuto entediante com ela.
— Você está sendo muito inseguro — disse Roxy. — Embora um mago deva
manter distância enquanto ataca, se ele se afastar muito, isso significa um atraso
maior antes que seu ataque atinja.
— Mas quando estou lutando com alguém com uma espada, não devo colocar
alguma distância entre nós?
O assunto da discussão de hoje era minha luta com Eris. A maioria das pessoas
me julgaria dizendo que era errado falar de outra mulher quando eu estava
passando tempo com a Roxy, mas, na verdade, foi ela quem abordou o assunto.
Ela assistiu nossa luta, assistiu eu sendo espancado.
Roxy concordou.
— Verdade. Se você é um mago enfrentando um espadachim, quanto mais
distância você conseguir, melhor será a sua situação. O impacto do seu feitiço
pode ser atrasado, mas pelo menos os ataques do seu oponente também não o
atingirão.
— Viu, assim como eu disse.
— No entanto, isso tudo muda no momento em que você entra no alcance de
ataque do seu oponente.
Meus ombros caíram.
— Sério?
— Assim que você estiver ao alcance dele, ele terá a vantagem completa. Afinal,
eles são rápidos. Tentar colocar distância entre você e eles nesse ponto é inútil;
você não será capaz de se mover rápido o suficiente para sair do alcance deles.
Eles virão direto para você caso tente isso e seus ataques são como uma onda em
forma de cone que se move para fora, o que significa que é mais provável que
você seja atingido por isso quanto mais você se afasta.
— Sim, entendi.
Eu experimentei isso inúmeras vezes em minhas batalhas simulada contra a Eris.
Ela geralmente me pressionava quando atacava, mas muitas vezes também me
mantinha pouco dentro do alcance. Dessa posição, poderia defender qualquer
magia que eu tentasse atingir e se eu tentasse recuar, ela me perseguiria. Eu havia
perdido quase trinta vezes antes de perceber o que ela estava fazendo.
— Permita-me te interrogar. Quando você está enfrentando um oponente cuja
área de ataque está na frente dele, onde está a posição mais vantajosa no campo?
— Atrás do inimigo? — Eu chutei.
Roxy concordou.
— Precisamente. Eles vão avançar com o ataque, então o centro de equilíbrio
deles será inclinado para frente. Mesmo que eles tentem defender sua retaguarda
com um ataque, seu poder será severamente reduzido. Se puder resistir a isso,
terá a chance de contra-atacar. Assim, a chave é sair de seu alcance de ataque e
flanqueá-los!
— Hm, faz sentido.
Portanto, era melhor avançar em vez de recuar. O movimento mais perigoso era
na verdade o melhor caminho para a sobrevivência. O brilhantismo da Roxy não
me surpreendeu; ela não era minha professora à toa. Como uma aventureira, ela
provavelmente tinha visto sua parcela de tais situações. Ela provavelmente
derrubou várias bestas poderosas e demoníacas à queima-roupa. Chamá-la de
deusa não era exagero.
Meus olhos brilharam enquanto eu olhava para minha esposa e ela
desajeitadamente desviou o olhar.
— Ahem, bem, tenho certeza de que será difícil com a Eris como sua oponente.
Eu certamente não conseguiria. Então, por favor, não me peça para demonstrar
para você.
— Não, tenho certeza de que se alguém pudesse fazer isso, seria você! — Me
emocionei.
— Não, eu realmente não conseguiria! Então pare de me olhar como se achasse
que sou algum tipo de super-humano invencível!
Eu não estou olhando para você assim. Meus olhos estão brilhando porque você
é uma deusa.
Independentemente disso, finalmente tive minha resposta. Eu não deveria tentar
escapar do meu oponente recuando todas as vezes. Eu precisava avançar pelo
menos ocasionalmente, obter vantagem sobre o meu oponente e interromper seu
ímpeto com um contra-ataque. Isso o forçaria a duvidar de si mesmo, então ao
fazê-lo duvidar de seu método usual de atacar me daria vantagem. Se eu pudesse
fazê-lo pensar que era um risco fechar muita distância entre nós, isso faria com
que eu pudesse recuar e ganhar vantagem. Com certeza não seria tão simples
com a Eris. Eu teria que continuar perdendo para ela enquanto testava minhas
opções com cautela.
— Ahem. — Roxy pigarreou, interrompendo meus pensamentos. — Bem, Rudy,
já que sua partida está se aproximando rapidamente, acho que está na hora de
você decidir um nome para o bebê.
— Pensar no nome de um bebê antes de partir para uma aventura não é um mau
presságio? — Eu disse.
— Isso é uma superstição nascida da história de um herói humano, certo? Não
tem nada a ver com a Tribo Migurd.
Aff, ela rejeitou isso completamente. Mas um mau presságio ainda era um mau
presságio. Ainda assim, se minha deusa disse que não era nada para se preocupar,
não havia necessidade de acreditar na superstição. Eu faria o que minha deusa
me pedisse.
— Em nossa aldeia, é o trabalho do líder da tribo escolher um nome — disse
Roxy. — E você é o líder da nossa casa, certo? Então, apresse-se e tome sua
decisão.
— Você tem certeza de que quer que eu faça essa escolha sozinho?
— É claro. Enquanto estiver fora, estarei carinhosamente acariciando minha
barriga chamando nosso bebê pelo nome que você der. Isso me trará alguma
felicidade em sua ausência.
Enquanto falava, acariciava sua barriga. Coloquei minha mão sobre a dela e segui
seus movimentos. Era estranho pensar em como essa mulher que eu conhecia há
mais de uma década agora segurava meu bebê dentro dela. Eu já havia
experimentado essa mesma sensação intrigante antes com a Sylphie e agora
estava de novo com a Roxy. Meu peito se encheu de felicidade. Era uma sensação
tão agradável, uma que eu queria desfrutar de novo e de novo.
— Ehehe — eu ri.
— O que foi, Rudy? Essa risada soa exatamente como a da Sylphie.
Assim como a da Sylphie, hein?
— Na verdade, nada. Pensando no quanto eu gosto da sua barriga.
— Eu não sou tão esbelta quanto a Sylphie, nem tão em forma e musculosa
quanto a Eris… mas se você ainda gosta do meu corpo, então você pode tocá-lo
o quanto quiser.
— Sério? — eu perguntei, embora já estivesse fazendo isso nos últimos minutos.
— Afinal, metade do bebê dentro de mim pertence a você.
— Mas e você? Quanto de você me pertence?
Roxy fez uma pausa antes de dizer:
— Tudo, pelo menos do lado de fora.
— Mas eu não posso reivindicar o bebê aí dentro também?
Ela balançou a cabeça.
— Metade do bebê pertence a mim. Não vou ceder a isso.
Hm, faz sentido. Eu sabia que ela era sábia. Isso mesmo, uma criança pertence a
ambos os pais. E Roxy pertence a mim.
— Vamos ver, o que devemos fazer com o nome… — murmurei.
— Hm, bem, um nome Migurdiano seria algo como… Lola?
Os Migurd pareciam gostar de nomes que começavam com Ro ou Lo, mas como
nosso filho era apenas meio-Migurdiano, não havia razão para nos atermos à
tradição.
— Eu acho que seria melhor se pegássemos algo de nossos nomes, Rudeus e
Roxy, e os combinássemos — eu disse.
— Essa é uma boa ideia. Então… Rodeus? Ou Luxy… Acho que nossos nomes
não combinam muito bem.
— Bobagem, formamos um par perfeito — insisti.
Mas não podíamos simplesmente juntar nossos nomes assim. Talvez pudéssemos
mudar uma vogal. Começar o nome com, digamos… Re ou Le em vez disso.
Re… Rerere…
Ai, droga. Isso soou como o velho Rerere de Tensai Bakabon. Eu poderia
imaginar nosso filho cantarolando “Rerere” para si mesmo enquanto varria o
chão com sua vassoura de bambu. Não havia nada de errado em querer as coisas
limpas, mas definitivamente não era o que precisávamos agora.
Gostei do som do nome que Roxy comentou há pouco — Lola. Isso me fez
imaginar uma jovem que estava ansiosa para experimentar a paixão febril do
amor. Mas isso também não funcionaria. Eu queria algo mais… mais parecido
com Roxy. Algo que soava sábio e, ao mesmo tempo, cativante. Eu amo a
maneira como ela se vira quando eu chamo seu nome e como ela olhou para mim,
fazendo uma careta perfeita como se perguntasse: “Sim? O que você
precisa?” Esse era exatamente o tipo de nome que eu queria para o nosso filho.
Hmm, hmm… Hmm.
La, Le, Li, Lo, Lu… qual deles seria o mais adequado para o bebê?
Consegui!
— Se for um menino, vamos chamá-lo de Loro e se for uma menina, vamos
chamá-la de Lara. Que tal? — Eu propus.
— Uma ótima ideia. Loro e Lara. Eu gosto do som desses nomes.
É claro que sim! Eu praticamente arranquei esses nomes dos Aventureiros de
Lolo, afinal. Com uma ligeira alteração.
— Isso não te faz feliz, Loro? Ou Lara? Seu pai teve a gentileza de decidir um
nome para você. — Apesar de ter a aparência de uma estudante do ensino médio,
a expressão que Roxy usava enquanto alisava sua barriga era como a da santa
mãe.
Divino! Ela é absolutamente divina! O que significa que nosso bebê será filho de
uma deusa!
— Rudy — disse Roxy, interrompendo meus pensamentos.
— Sim?
— Eu sei que agi como se não estivesse preocupada há alguns dias, mas… espero
que você volte para casa são e salvo, certo? Quero que nós dois possamos segurar
essa criança juntos.
— Sim senhora!
Ela não tinha que me dizer duas vezes.
Aqueles dias indulgentes passaram rapidamente e logo tivemos que partir para o
reino. Éramos oito na equipe. O grupo da Ariel era composto por Luke, Sylphie,
Ellemoi e Cleane. Depois havia Eris, Ghislaine e eu. Tínhamos uma única
carruagem, que exigia dois de nossos cinco cavalos para puxá-la. A pompa da
Ariel era bastante modesta para a segunda princesa de um país tão grande quanto
Asura.
Para o mundo exterior, pareceria que estávamos nos preparando para entrar no
país. Na realidade, planejávamos acessar um círculo de teletransporte proibido
para agilizar nosso transporte. Apesar da natureza secreta de nossa missão, havia
uma multidão inteira na entrada da cidade esperando para nos ver partir. Este
grupo incluía o vice-diretor, oficiais do conselho estudantil, o gerente geral da
Guilda dos Magos, o líder da oficina de implementos mágicos e um punhado de
outros chefes de organizações, juntamente com representantes da nobreza e da
realeza das Três Nações Mágicas. Todos se aproximaram um após o outro para
se despedir da Ariel.
Esses caras não entendem a definição de secreto, não é? Só porque você não está
dando uma festa não significa que está tudo bem em reunir tanta gente.
Bem, independentemente disso, a presença deles aqui era a prova de que os
esforços da Ariel para fazer conexões em Ranoa deram frutos. Talvez chegasse
o dia em que eu precisasse fazer uso dessas conexões. Orsted era insanamente
poderoso, mas não tinha boas relações com os outros. Eu estava por minha conta
nessa frente. Decidi me misturar com os outros e prestar meus respeitos a eles.
E assim, partimos para o Reino Asura.
Capítulo Extra: O Rei da Espada
Lobo Negro

As manhãs de Ghislaine Dedoldia começavam antes do sol nascer. Vestia as


roupas do dia, bebia um copo d’água, fazia alguns alongamentos básicos e depois
deixava a pousada onde estava hospedada. Ela passaria a próxima hora andando
pela cidade.
Era quieto no início da manhã, mas isso não significava que ninguém estava
acordado. As pessoas se aglomeravam nos grandes prédios, em frente à Guilda
dos Aventureiros e na entrada da cidade, onde se agitavam sonolentamente.
Ghislaine se aproximou da entrada da cidade quando uma equipe de aventureiros
estava voltando de uma missão. Era um grande grupo com mais de vinte,
provavelmente uma equipe famosa. Atrás deles, um cavalo musculoso puxava
uma grande carroça que abrigava uma enorme criatura bovina. Essa fera era uma
provável mutação repentina que apareceu nos arredores da cidade, e essa famosa
equipe aceitou a missão de captar ela. Seus rostos estavam pesados de exaustão,
o que sugeria que a missão levara dias para ser concluída.
Ghislaine os observou por um tempo, então finalmente perdeu o interesse e se
virou para sair. Depois de sua caminhada, voltou para a pousada, onde praticou
com sua espada no pátio. Foi um exercício simples; tudo o que fez foi balançar
sua arma repetidamente.
Tinha feito a mesma rotina monótona diariamente sem falhar por mais de uma
década. O Deus da Espada Gal Falion havia ordenado que ela fizesse isso eras
atrás. Ela fez isso enquanto estava no Santuário da Espada. Continou quando se
tornou uma aventureira. E mesmo depois que Eris e Sauros a contratou para ser
uma guarda-costas e instrutora de esgrima. Ela fez isso mesmo quando foi
teletransportada para a Zona de Conflito durante o Incidente de Deslocamento,
bem como quando chegou ao campo de refugiados na região de Fittoa, onde
ajudou Alphonse. Continuou fazendo isso mesmo depois de se reunir com Eris e
retornar ao Santuário da Espada. Mesmo agora, como guarda-costas de Ariel,
nunca faltou a uma sessão.
Este treinamento lhe dava uma noção de sua condição física e estado mental a
cada dia. Ultimamente, sua mente estava em paz. Ela tinha dois objetivos a
cumprir: proteger Eris e vingar Sauros. Agora, um deles estava completo. Ela
havia entregado Eris com segurança de volta a Rudeus. Essa missão acabou. Só
restava uma coisa. Apenas uma.
Ghislaine gostou disso. Ter um objetivo era simples, fácil de entender e ela não
precisava se esforçar para isso. Melhor ainda, seu caminho já estava traçado
diante dela. Rudeus a apresentou a Ariel, que entendeu o que Ghislaine queria
realizar e prometeu deixar Ghislaine fazer exatamente isso.
Finalmente, tudo era simples. Tudo que tinha de fazer quando chegasse a hora
era atacar e derrubar seu inimigo. Essa simplicidade era o motivo pelo qual se
sentia tão relaxada ultimamente.
Naquela noite, Ghislaine visitou um dos muitos pubs de Sharia. Clamor encheu
o ar, mas estava visivelmente quieto aos seus arredores. Apesar de ter passado
do seu auge, Ghislaine ainda era uma beleza, uma mulher fera com pele
bronzeada e musculatura impressionante. Ainda assim, ninguém tentou se
aproximar dela. A aura perigosa que exalava lembrava as pessoas da Rei da
Espada Berserker, que era o assunto de rumores intermináveis.
A Rei da Espada Berserker, uma pessoa que balançava os punhos
indiscriminadamente e cortava as pessoas. Alguém que não tinha razão e nunca
pensava duas vezes antes de liberar sua fúria. Apenas encontrar seu olhar poderia
provocar uma briga, e ela era uma espadachins incrível além de tudo. O mistério
que a cercava apenas aumentava o medo, e por isso todos deram a Ghislaine um
amplo espaço.
Na verdade, embora Ghislaine fosse a professora dessa suposta Rei da Espada
Berserker, não era a própria. Ela se sentou em uma cadeira ao lado do balcão,
mantendo-se sozinha, mais quieta do que qualquer um dos outros clientes
enquanto tomava sua bebida. Isso a deixou ainda mais intimidadora,
acrescentando peso aos rumores. Claro, Ghislaine não estava intencionalmente
tentando ser ameaçadora; estava apenas esperando sua comida chegar.
Ghislaine sabia que este lugar havia adquirido a carne da fera que aqueles
aventureiros trouxeram esta manhã, o que significava que eles estariam servindo
fatias grossas de bife suculento. Foi por isso que seu olhar estava grudado na
cozinha, de onde o cheiro de carne crepitante flutuou para provocá-la. Ela
esperou ansiosamente, salivando com o pensamento.
A porta se abriu de repente e uma campainha soou para anunciar a chegada de
um novo convidado. Uma elfa com cabelos lindos, um rosto bonito e seios
generosos entrou. Sua barriga, no entanto, estava tão inchado que parecia bizarro
em sua figura esbelta, um sinal claro de que estava grávida.
Assim que outras pessoas no pub a viram, seus rostos se iluminaram e eles a
chamaram ansiosamente.
— Ei, já faz um tempo! Não está mais procurando por parceiros masculinos?
— Parando para pensar agora, você se casou, não foi? Venha se sentar, vamos
tomar algumas bebidas juntos!
A elfa rejeitou magistralmente seus convites e entrou mais fundo no pub, direto
para o assento mais interno ao longo do balcão. Lá, ocupou um lugar ao lado da
pessoa que todo mundo estava evitando como se fosse uma praga. Todos a
observaram e engoliram em seco, nervosos.
— Olá Ghislaine. Desculpe deixá-la esperando — disse Elinalise em uma voz
cantante enquanto se virava para a mulher-fera.
— Você está atrasada. — Ghislaine grunhiu.
— Bem, não posso evitar. Estou grávida afinal…
— Espere aí! — A voz aguda de Ghislaine soou, cortando Elinalise no meio da
frase. Chocada, Elinalise congelou.
O proprietário apareceu da cozinha, trazendo um enorme prato de madeira. Ele
foi direto até elas e colocou a refeição na frente de Ghislaine.
— É isto o que você queria?
Havia uma placa de ferro sobre a madeira, em cima da qual estava um bife
escaldante com vapor saindo dele. Vinha com um lado de batatas grelhadas e
legumes variados que só provocavam ainda mais sua barriga roncando.
— Sim. — Ghislaine assentiu, preocupada demais olhando para a carne para
dispensar um único olhar ao homem.
— Então tome o seu tempo e aproveite a refeição.
— Oh, também gostaria de um pouco de água e uns petiscos — disse Elinalise,
chamando por ele.
— Claro. — O proprietário gritou por cima do ombro.
Elinalise afundou em seu assento.
— Ah, estou completamente exausta. Já passei pela gravidez inúmeras vezes
antes, mas nunca fica mais fácil.
— Uh-hum.
— Mas me pergunto o porquê… não comecei a desgostar depois de passar por
isso tantas vezes.
— Uh-hum.
— Falando nisso, sua época de acasalamento deve ser em breve, certo? Não é
hora de você encontrar um parceiro? Se quiser, ficaria feliz em juntar você com
alguém.
— Uh-hum.
Ghislaine nem sequer olhou para Elinalise. Ela simplesmente esperou com a faca
e o garfo na mão, olhando para o pedaço de carne fumegante. A baba escorria
por seu queixo.
— Não há necessidade de esperar meu pedido. Vá em frente e coma — disse
Elinalise.
— Tem certeza?
— É claro. Não vai ser nada bom se ficar frio.
— A carne é sempre boa, mesmo fria. — Mesmo enquanto dizia isso, Ghislaine
começou a devorar o bife grosso. Estava um pouco mal passado, mas ainda
estava cozido, o que era a maneira perfeita de preparar um pedaço de carne fresco
como este.
Ghislaine o cortou, esfaqueou um pedaço e o enfiou na boca. Foi banhado em
molho picante que não era brincadeira, dando-lhe um cheiro e sabor deliciosos.
Era raro o suficiente para ser um pouco picante, mas isso era perfeito para
Ghislaine. Ela o rasgou, deixando seus sucos naturais encherem sua boca.
Este era o paraíso.
Ghislaine continuou cortando sua carne e devorando-a, deixando suas bochechas
se encherem de suco enquanto mastigava. Uma vez que engolia, voltava a cortar
outro pedaço. Ela ficou em silêncio o tempo todo, ignorando completamente a
presença de Elinalise, que não se importou, descansando o rosto contra a mão e
observando-a.
— Isso é bom? A propósito, eu estava certa em escolher este lugar.
Elinalise foi quem deu a dica para Ghislaine sobre os bifes daqui. Como tiveram
a sorte de se reunir depois de tanto tempo, Elinalise decidiu convidar Ghislaine
para jantar e conversar. Naturalmente, escolheu o tipo exato de pub que Ghislaine
adorava.
— Aqui está — anunciou o proprietário ao chegar com o pedido de Elinalise.
Ghislaine já havia devorado metade de seu bife a essa altura.
— Que incomum para você — Ghislaine comentou. — Não vai beber? — Agora
que seu estômago não estava mais completamente vazio, ela percebeu que
Elinalise havia pedido apenas água.
— Sim, o álcool seria o mais adequado para o nosso feliz reencontro e a conversa
deprimente que estamos prestes a ter, mas, infelizmente, não poderei participar
— disse Elinalise, batendo levemente em sua barriga inchada.
— Está bem então. — Ghislaine não se incomodou em tentar pressioná-la.
— Recentemente tentei tomar um pouco de álcool, mas Sylphie me impediu. Me
tratou como uma criança, dizendo que estava “fora de cogitação”. — Elinalise
tinha uma expressão vazia enquanto acariciava sua barriga.
Ghislaine franziu a testa. — Ouvi dizer que se casou, mas nunca imaginei que
você seria tão dedicada a um cara.
— É uma surpresa para mim também, mas Cliff é um homem maravilhoso.
Claro, ele não é muito flexível e não ouve sempre, mas é autoconfiante e tem um
forte senso de responsabilidade. Quando fazemos sexo, ele vai com tudo. Não se
concentra simplesmente em seu próprio prazer, tenta o seu melhor para garantir
que eu me sinta bem também. É tão adorável… Oh, Ghislaine, você deveria
tentar encontrar alguém para você logo também!
— Vou passar. — Ghislaine ignorou a conversa romântica sem pensar duas
vezes. Ela já havia desistido de viver como mulher, optando por se concentrar
em levar sua vida como uma espadachim.
— Bem, não vou forçá-la. Mais importante…
Elinalise fez uma pausa, erguendo o copo e levando-o na direção de Ghislaine,
que largou a faca e pegou a caneca.
— Por um reencontro afetuoso entre amigas — disse Elinalise.
— Sim. Felicidades.
Elas tilintaram suas canecas, um som agradavelmente ressonante. As duas ex-
membros do Presas do Lobo Negro finalmente se reuniram novamente.
— Teria sido melhor se Talhand e Geese estivessem aqui para se juntar a nós…
— Elinalise murmurou.
— Paul e Zenith também.
Em um instante, o que deveria ser um encontro alegre se tornou sombrio. Porém,
foi exatamente por isso que Elinalise veio aqui, para ter essa conversa.
— Sobre Paul… é uma pena o que aconteceu. Em um mundo ideal, eu teria sido
a primeira a ir, não ele.
— Ele teve uma vida acelerada e imprudente — disse Ghislaine. — Achei que
ele encontraria seu fim mais cedo ou mais tarde.
— Sim, me lembro de você dizendo algo assim há muito tempo.
Ghislaine balançou a cabeça. — Foi você quem disse isso.
— Oh sério?
— Sim, mas o fato dele ter partido não é tão surpreendente para mim.
— Mas Paul partiu de forma triunfal — disse Elinalise. — Quer ouvir a história?
— Sim, me conte.
Elinalise contou a história como Ghislaine pediu. Começou explicando como
Paul se separou de sua família e procurou desesperadamente por eles. Como,
apesar de seus hábitos mulherengos, se afastou das tentações e insistiu em
permanecer leal à Zenith. Também contou como foi o reencontro dele com
Rudeus em Begaritt, como Paul parecia feliz enquanto os dois conversavam.
Finalmente, ela contou os detalhes de sua batalha e como Paul morreu
protegendo Rudeus.
— Huh. — Ghislaine grunhiu. — Ele com certeza mudou. Difícil acreditar que
é o mesmo homem que sempre fez merda com você.
— Oh? Parece que me lembro de você ser a que mais foi feita de idiota,
Ghislaine. Pelo que me lembro, você abanava o rabo toda vez que encarava Paul
por um tempo.
— Eu estava delirando. Deve ter sido a época de acasalamento. Além disso, não
sou uma Adoldia. Meu rabo não balança sempre que estou feliz.
— Foi uma figura de linguagem. — Elinalise a tranquilizou.
— Hmph.
— Mas você realmente era adorável naquela época. Sempre se preocupando com
Paul a cada passo…
— Isso foi há muito tempo atrás. Esqueça isso.
Elinalise deu uma risadinha, colocando um pedaço de carne docemente
temperado em sua boca. Não era tão macio quanto o bife de Ghislaine, então teve
que mastigar um pouco antes de engolir. Enquanto Ghislaine observava, decidiu
pedir a mesma coisa.
— Aqui, você pode pegar. Vamos pedir outra coisa e dividir — disse Elinalise,
passando o prato para a amiga.
As duas festejaram, deixando o som de mastigação encher o ar entre elas por um
tempo.
— A condição de Zenith foi um choque maior para mim do que a morte de Paul
— disse Elinalise.
Uma vez que o prato estava vazio, Ghislaine respondeu: — Sim. Nunca teria
sonhado que a veria em tal estado.
— De fato.
Ghislaine não respondeu.
— É assim que as coisas são, eu acho. Somos aventureiros. O fato dela estar viva
já deveria ser motivo de comemoração. Além disso, Rudeus está procurando uma
maneira de curá-la. Quem sabe, talvez ela volte ao seu estado normal
eventualmente.
— É?
— Bem, ela pode já ser uma velha quando esse dia chegar.
Ghislaine riu e esvaziou sua caneca.
— Quando isso acontecer, espero que possamos beber juntas novamente.
— Eu também espero. Teremos que chamar Geese e Talhand quando esse dia
chegar e fazer uma grande festa.
— O que esses dois estão fazendo, afinal?
— Bem, depois que Talhand e eu nos separamos…
As duas continuaram conversando sobre vários assuntos. Elinalise falou sobre o
que aconteceu depois que se separaram do grupo, o que fizeram após o Incidente
de Deslocamento, como ela conheceu Rudeus. Até revisitaram suas aventuras
passadas, como a vez em que mergulharam em algumas ruínas antigas tentando
encontrar uma lendária espada sagrada. Depois houve a vez em que Geese perdeu
todo o dinheiro no jogo e eles tiveram que extorquir algumas pessoas aleatórias
por fundos. Outra vez, quando Ghislaine entrou em sua temporada de
acasalamento, Paul saltou para tirar proveito da situação e Elinalise se juntou a
ele, transformando-os em um trisal. A maioria de suas memórias juntas eram
embaraçosas, mas preciosas, profundamente enraizadas nos corações das duas
mulheres.
Os olhos de Elinalise estavam semicerrados enquanto ela tagarelava. Ghislaine
bebeu tanto álcool que ficou totalmente arrasada, com o rosto vazio enquanto
apoiava o queixo na mão.
— Ah minha querida — disse Elinalise. — Raramente vejo você bebendo até
cair assim. Consegue voltar para o seu quarto sozinha?
— Estou bem. Não há mais lobos que se incomodariam em vir atrás de mim.
Ghislaine lançou um olhar por cima do ombro. Mesmo os aventureiros mais
robustos foram rápidos em desviar o olhar. — Talvez eu devesse ter aceitado
Lorde Philip em sua oferta, afinal.
— Philip? Ah, você quer dizer o da região de Fittoa?
— Sim. Ele me pediu para ser sua amante uma vez.
— Ah, minha querida. Perdeu uma oportunidade de ouro aí. Você poderia estar
feita na vida se concordasse — Elinalise brincou.
Ghislaine sorriu tristemente. — Eu não poderia ter ensinado Eris se tivesse
concordado.
— Estou chocada de ouvir você se preocupar com uma coisa dessas… —
Elinalise inclinou a cabeça. — Oh?
Os olhos de Ghislaine estavam fixos na parede, queimando de fúria.
— Lorde Philip já está morto. Ele não sobreviveu ao Incidente de Deslocamento.
Dei-lhe um enterro adequado e reivindiquei as cabeças daqueles que o mataram.
— Oh meu Deus. Eu não sabia. Isso é uma vergonha.
— Senhorita Eris está casada com Rudeus agora. — Ghislaine levantou a cabeça,
um brilho assassino em seus olhos enquanto olhava para o teto. — Tudo o que
resta é vingar o Senhor Sauros.
Ela exalava uma aura tão ameaçadora que vários dos clientes decidiram fugir,
sentindo o perigo. Elinalise não ficou abalada com isso. Sabia que Ghislaine era
capaz de se tornar cruel e na mesma hora cortar alguém, mas também sabia que
ela não seria o alvo da mulher-fera.
— Então é por isso que se tornou a guarda-costas de Sua Alteza — Elinalise
supôs.
— Sim.
Elinalise suspirou e seguiu o olhar de Ghislaine para o teto. — Você com certeza
mudou. Não costumava ser uma cavalheira tão ferozmente leal.
Ghislaine congelou e baixou o olhar para o copo, pegando seu próprio reflexo no
líquido âmbar dentro. A resposta veio a ela de uma vez.
— Sou membro da Tribo Doldia. É por isso. — Ela se levantou abruptamente,
seu andar tão confiante que era difícil acreditar que estava bêbada.
— Onde você está indo? — Elinalise a chamou.
— Para casa.
— Ah, minha querida. Você está tão apressada como sempre. — Elinalise deu
de ombros e se levantou de seu assento. Tirou uma moeda de prata do bolso e a
jogou no balcão. Então correu atrás de sua amiga, que já havia saído do prédio e
estava desaparecendo na rua escura. — Ghislaine!
Ghislaine fez uma pausa, as orelhas se contraindo enquanto olhava por cima do
ombro.
— Enquanto você estiver no Reino Asura, certifique-se de proteger Rudeus e
Sylphie! Esses dois são meus netos adoráveis, você sabe!
— Sim, eu vou. — A cauda de Ghislaine se animou quando respondeu.
Com isso, Elinalise virou na direção oposta, de volta para sua humilde casa, onde
Cliff a esperava.
Ghislaine ficou olhando para ela. “Hmph,” ela grunhiu. Sua lista de coisas a fazer
de repente aumentou.
Por outro lado, não era algo que ela tinha que fazer. Proteger aqueles dois era
algo que planejava fazer de qualquer maneira.
— Eu fiquei mais sábia — percebeu, satisfeita consigo mesma. Ela estava em
alto astral enquanto voltava para sua pousada.

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