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Tínhamos um mês até o Reino Asura enviar a notícia de que seu rei havia
adoecido. Nesse tempo, tinha que trabalhar com Ariel para convencer Perugius
a se juntar a ela. Para isso, eu precisava dar todos os detalhes possíveis a Sylphie.
Mas ela provavelmente está com a guarda alta graças à maldição de Orsted, então
talvez eu não consiga convencê-la a me trazer para os planos de Ariel. Eu estava
dividido sobre confiar nela e contar toda a verdade, ou desistir de lutar contra a
maldição de Orsted e evitar mencioná-lo completamente.
Mas, primeiro, eu tinha outro objetivo para completar. Ou seja, a razão pela qual
concordei em trabalhar com Orsted — proteger minha família. Agora que eu era
o garoto de recados dele, estarei longe de casa com mais frequência. Eu precisava
de alguém — ou algo — para assumir o meu lugar.
Assim, minha primeira ordem de trabalhos era invocar uma Besta Guardiã.
Ainda era de manhã quando reuni todos os membros da minha família no jardim.
Isso incluía Aisha, Lilia e Zenith, que normalmente passavam todo o tempo
dentro de casa, bem como Eris, que havia se juntado à família recentemente.
Roxy e Norn também estavam presentes, assim como Tu e Ente. Sylphie
carregava Lucie, que havia acabado de aprender a ficar de pé enquanto segurava
algo.
— Vou invocar uma Besta Guardião que servirá nossa família, agora. Podem
ficar à vontade para aplaudirem.
— Yay!
O aplauso soou da multidão. O fervor do público estava atingindo seu auge. A
apresentação de hoje seria lendária!
Espere, Tu e Ente. Por que vocês dois não estão aplaudindo? Não pode ser assim.
O quê? São animais de estimação, por isso não conseguem aplaudir? Bem, acho
que não há nada que possa ser feito.
— Quanto ao que exatamente vou invocar, temo que não tenho certeza. No
entanto, podemos esperar algo particularmente poderoso. E essa criatura, seja lá
o que for, manterá nossa família segura e protegida.
— Tem certeza que vai dar certo? Que essa coisa não vai nos comer enquanto
você estiver fora? — perguntou Sylphie, preocupada.
Esse é um pensamento aterrorizante.
Dito isso, eu me lembro de ter lido uma história como essa há muito tempo. Algo
sobre alguém que invocou uma besta que não conseguia controlar, e ela matou
todo mundo.
— Entendo que esteja preocupada, mas isso foi feito pela mão meticulosa do
Deus Dragão.
— E é por isso mesmo que estou preocupada.
Logicamente falando, Orsted nunca usaria uma maneira tão indireta de se livrar
de nós, mas Sylphie talvez não estava pensando direito graças à sua maldição.
Mas espere, esse poderia ser o jeito dele de colocar uma coleira em mim no caso
de eu o trair? Tipo, se eu virar as costas para ele, ele vai me ameaçar? “Com um
estalar de dedos, aquela fera que mora em sua casa devorará toda a sua família.”
Isso não parecia provável.
— Enfim, vou invocar agora. Se parecer perigosa, podemos nos livrar dela
juntos, e então darei uma bronca em Orsted.
— Gostei da ideia. — declarou Eris, animada. Ela puxou uma espada de sua
bainha com um tinido majestoso. Ela tinha duas no quadril. À direita estava
Eminência, uma lâmina mágica que o Deus da Espada havia dado de presente. À
sua esquerda estava uma que ela se apegou e usou por um longo tempo.
Não incomodava ter que carregar as duas ao mesmo tempo?
— Quando isso acontecer, todos nós seremos capazes de enfrentar Orsted juntos!
— declarou ela.
Não vamos lutar. Vamos apresentar uma queixa, como um cliente normal
insatisfeito com o serviço. Se tentássemos derrotá-lo, seríamos nós que
estaríamos batendo as botas.
Dito isso, ela parecia terrivelmente feliz. Ela não estava apenas procurando uma
desculpa para começar uma briga com ele, estava?
— Não vamos enfrentar Orsted — eu disse. — Mas teremos muitas chances de
lutar juntos no futuro. Espero que guarde sua força até lá.
Ela fez uma careta, como se a ideia a incomodasse. Tudo bem se quisesse lutar
contra outras pessoas, mas Orsted estava fora dos limites. Nunca na minha vida
queria lutar outra batalha tão desesperada, se pudesse evitar. Eu me mijaria se
tivesse que fazer isso uma segunda vez.
— Ainda assim, você tem certeza de que esse círculo mágico é seguro? Talvez
seja uma boa ideia pedir para que alguém como Lorde Perugius dê uma olhada
nele, não é? — perguntou Roxy. Aparentemente, ela também desconfiava de algo
que Orsted havia feito.
Essa maldição dele é realmente poderosa.
Por mais absurdo que toda a maldição parecesse, a intensidade de suas reações
tornava impossível negar sua existência. Isso tornou a minha decisão fácil,
embora eu tenha decidido dar uma segunda olhada no pergaminho antes de usá-
lo. Eu não iria tão longe a ponto de pedir que Perugius o verificasse, mas não
faria mal examiná-lo mais uma vez.
— Hm.
Parecia um círculo de invocação normal. A parte que restringia as condições da
invocação tinha alguns símbolos com os quais eu não estava familiarizado, mas
não havia nada muito suspeito, pelo que pude ver. Talvez eu possa pedir para
Nanahoshi dar uma olhada? Não, isso seria rude da minha parte. Orsted só fez
isso para mim porque eu não sabia como fazer sozinho. Do que adiantava ser
desconfiado?
— Tenho certeza de que está tudo bem — eu disse.
— Bem, se você diz. Confio em você. Mas espere um pouco até eu pegar o meu
cajado. — Roxy, ao que parecia, não estava totalmente convencida. Ela disse que
confiava em mim, mas ainda assim desapareceu dentro de casa para recuperar
sua arma no caso de as coisas ficarem feias.
— Eu não tenho ideia do porquê todos parecem tão atentos, mas… você tem
certeza de que isso não é perigoso, Irmão? — Norn franziu a testa.
Aisha bateu com a mão no ombro de Norn.
— Não seja idiota. Se fosse tão perigoso, ele não ativaria conosco por perto.
Sua confiança parecia uma adaga no peito. Honestamente, eu não
tinha confirmado se este círculo de invocação era seguro. Eu poderia usar assim
mesmo? Talvez deva esperar até que Perugius verifique, só para ter certeza?
Mas se o fizesse, o olhar afetuoso de Aisha se tornaria uma decepção. E ela só
suspeitaria de Orsted depois disso.
— Se o pior acontecer, agirei como um escudo para todos. Por favor, faça o que
for necessário — disse Lilia.
Bem, isso soava ameaçador.
Eu não pensei que chegaria a isso, mas todo mundo estava tão nervoso que eu
estava no limite. Nós realmente ficaríamos bem?
Não! Preciso ter fé em Orsted. Ele disse que confiava em mim.
— Tudo bem então — eu disse. — Vou usar agora.
Todos concordaram com a cabeça.
Coloquei o pergaminho em uma mesa que criei usando minha magia de terra.
— E lá vai!
Eu me preparei e coloquei minhas mãos no círculo. Concentrei-me, deixando a
magia fluir através de minhas veias e se reunir na ponta dos dedos. De lá,
coloquei no círculo.
Continuei bombeando mais e mais da minha mana. Essa criatura deveria ser algo
que pudesse proteger minha família. Mesmo se eu me drenasse, ainda não seria
o suficiente aos meus olhos. Ficaria feliz de usar até a última gota de mana de
Orsted também, se pudesse. Usar mais mana não necessariamente garantia uma
Besta Guardiã forte, mas eu ainda daria tudo o que tinha.
Orsted também disse que era importante imaginar o que eu queria.
Algo para proteger minha família…
Isso foi vago demais.
Eu precisava de algo incrivelmente poderoso. Poderoso o suficiente para que um
oponente normal não tivesse chance. Algo que era muito leal e nunca se oporia
a mim. E já que deveria estar protegendo minha família, de preferência não algo
grosseiro e indecente. Eu com certeza não queria um monstro tentáculo coberto
de muco. Isso não seria bom para minhas irmãs ou Lucie. Esta Besta Guardiã
seria o cavaleiro de Lucie, então eu precisava de algo respeitável.
Isso mesmo. Uma criatura de elevado caráter moral, que é leal e forte. Beleza,
pedido feito, bora!
— Venha, Besta Guardiã!
O círculo começou a emitir uma luz brilhante, não um branco puro, mas uma
mistura de azul, vermelho, amarelo e verde. Era um arco-íris inteiro. Mas senti
como se a invocação tivesse sido pega em algo, como se houvesse alguma coisa
impedindo-a.
O que poderia ser?
Ignorei e continuei derramando mais mana. O que quer que estivesse bloqueando
o feitiço estalou.
— Aaaah!
Gemeu uma voz, embora eu não soubesse de onde vinha o som. Era a Besta
Guardiã que agora estaria protegendo minha família? Parecia bastante sinistra,
como se a criatura estivesse sofrendo. Eu simplesmente aumentei minha
produção de mana, puxando o que quer que fosse através do círculo de
invocação.
— Aaaaah! — Uma voz soou quando o fluxo de mana que eu estava alimentando
no círculo foi abruptamente interrompido.
A luz desapareceu e, lá de dentro, apareceu…
— Khh…
Um homem de máscara amarela e uniforme branco, uma grande adaga pendurada
ao seu lado. Ele estava empoleirado no topo da plataforma de terra que eu havia
criado, de joelhos com os braços enrolados em torno de si mesmo.
— Como isso é possível… Como meu contrato com Lorde Perugius poderia ser
destruído assim…?
Ele permaneceu naquela pose enquanto levantava a cabeça e olhava em volta. A
máscara obscureceu seus olhos, mas eu poderia jurar que estava olhando direto
para mim.
— Qual é o significado disso?! — exigiu o homem mascarado.
Não, era errado chamá-lo assim. Eu sabia exatamente quem era.
Arumanfi do Brilho. Arumanfi, o Brilhante.
A pose que ele estava lembrava um anjo caído. Não que eu esteja tentando fazer
pouco caso dele, juro. Eu não seria capaz de me igualar ao seu brilho. Ele é muito
mais brilhante do que eu. Brincad-
— Estou te perguntando, Rudeus Greyrat, quais são suas intenções aqui?! — Ele
saltou da mesa e tentou me agarrar pelo colarinho, mas congelou no meio do
caminho, e todo o seu corpo tremia.
Eris imediatamente se moveu para a posição de batalha, mas levantei a mão para
detê-la.
Garota má. Volte para o seu canil, Eris.
Sério, o que estava acontecendo? De todas as pessoas, invoquei o brilhante e
nobre Arumanfi. Isso era mesmo possível? No entanto, apesar de sua forma
humana, ele era um espírito. Talvez isso não tenha sido tão surpreendente, afinal.
Não que isso explicasse tudo. Foi tudo um estratagema de Orsted? Ele estava
tentando provocar Perugius, para fazê-lo me matar em vez disso?
Oh, qual é, se vai tão longe assim, então basta fazer o trabalho sozinho.
— Uh, não, sabe… Isso meio que rolou… Eu estava ativando um círculo mágico
que o Senhor Orsted me deu, e meio que… invoquei você sem querer.
— Você disse um círculo mágico de Orsted? O que estava tentando invocar?
— Uma Besta Guardiã para tomar conta da minha família.
Arumanfi pegou o pergaminho com o círculo mágico. Ele o estudou antes de
abrir.
— Essas são algumas estipulações incômodas que ele colocou na entidade
invocada.
— Hm, que condições são essas?
— Aquele que este círculo invoca deve ser absolutamente obediente a você, e
deve defender sua família contra quaisquer calamidades que possam acontecer
em perpetuidade. Em outras palavras, deve servi-lo pela eternidade.
Uau. Então, basicamente, este círculo era um contrato de escravidão?
A boa notícia é que Orsted não mentiu para mim. Parece que ele é confiável,
afinal!
— Mais alguma coisa? — perguntei.
— O invocador será aquele que determina o que é invocado.
Então, basicamente, eu poderia decidir que Besta Guardiã recebia. Ótimo.
— Então eu gostaria de fazer uma troca.
— Uma troca?
— Sim, não era minha intenção invocá-lo, Senhor Arumanfi. É por isso que
gostaria de trocá-lo por outro.
— Então seja rápido e desfaça o contrato comigo. Sou o orgulhoso servo de
Lorde Perugius, não seu.
— Hã, sim. Certo.
Para ser honesto, não era uma ideia tão ruim ter Arumanfi protegendo nossa
família. Ele se movia na velocidade da luz, então, caso algum imprevisto
acontecesse, seria a pessoa perfeita para me passar uma mensagem.
Sim, mas Perugius o valoriza demais. Se eu o tirasse dele, poderia causar
discórdia entre nós.
Franzi as sobrancelhas.
— Hm, então, como eu faço isso, exatamente?
— Ordene-me que volte para o lado de Lorde Perugius agora mesmo. Dotbath
da Destruição será capaz de romper o contrato.
— Certo.
— Ordene-me. Agora.
Devido à cláusula de obediência absoluta, ele precisava de uma ordem direta
minha para sair.
— Beleza, então pelo poder deste círculo de invocação, eu ordeno que você vá
até Lorde Perugius e peça conselhos a ele sobre a melhor forma de invocar uma
boa Besta Guardiã.
Arumanfi manteve o círculo mágico em suas mãos enquanto desaparecia em um
flash de luz.
— Peço desculpa a todos, pois parece que estraguei com tudo — eu disse
enquanto olhava para a minha família.
Todos olhavam para mim, de queixo caído.
Arumanfi voltou depois de um tempo. Ele entregou uma mensagem de Perugius,
sibilando sobre como ele havia deixado essa transgressão de lado, mas era melhor
que nunca mais acontecesse. Afinal, Arumanfi tinha um orgulho extremo de seu
status como servo de Perugius. Eu me senti genuinamente culpado por roubar
isso dele, mesmo que por pouco tempo.
O círculo que Orsted me desenhou parece ter perdido seu poder quando o
contrato foi anulado, então Perugius me fez um novo. Era difícil acreditar que
ele me mostraria tamanha bondade depois que fui tão rude ao roubar um de seus
servos. Ele era mesmo tão magnânimo quanto Sylvaril alegava.
A parte verdadeiramente aterrorizante de toda a provação era o nível de poder
que o círculo de Orsted havia feito. Ou talvez a culpa fosse da minha própria
magia? Talvez ambos. Cada um deles era apenas uma faísca, mas, se
combinados, formavam uma chama furiosa.
Como a invocação de antes não havia esgotado muito da minha mana, decidi me
recompor e tentar de novo imediatamente. De acordo com Perugius, era melhor
não imaginar conceitos vagos como majestoso, onisciente ou onipotente, mas
sim um animal.
Se isso fosse tudo, gostaria que Orsted tivesse dito antes. Mas conhecendo-o, ele
provavelmente teria me dito para manter Arumanfi, mesmo essa ideia parecendo
loucura.
— Beleza, vamos tentar mais uma vez.
Eu examinei a área antes de colocar minhas mãos no círculo mágico de novo.
Desta vez, eu ia manter uma imagem concreta em minha mente. Eu queria um
animal forte e orgulhoso.
Um leão!
Eu não tinha ideia se eles existiam aqui como eu os conhecia, mas a palavra
existia na língua, então certamente havia algo semelhante. Eu queria o rei das
feras, a criatura mais forte que este mundo tinha a oferecer. Embora, se eu
quisesse algo leal, talvez fosse melhor ser servido por um canino do que por um
felino.
Nem, isso não importa. O círculo mágico requer obediência absoluta, então só
preciso focar em algo que é forte. Quero a besta mais nobre que existe neste
mundo.
Concentrei toda a magia que tinha em todos os cantos do meu corpo na minha
mão direita. Por um tempo, fechei bem os olhos, mas enquanto as últimas gotas
de mana que eu tinha em meu corpo iam para o círculo, os abri de novo.
Vamos! Que venha algo incrível!
Respirei fundo quando o círculo mágico emitiu uma luz deslumbrante. Era o
mesmo arco-íris colorido que eu tinha visto antes, mas, desta vez, não
experimentei a sensação do feitiço travando em algo. Minha mana fluiu
suavemente para o círculo, e o que quer que estivesse do outro lado atendeu ao
meu chamado. Na verdade, parecia que uma mão estava sendo estendida em
minha direção, e tudo o que eu precisava fazer era pegá-la e puxar. Eu estava
confiante de que teria sucesso desta vez.
— Tudo bem, venha! — gritei.
Um leve uivo ecoou pelo ar.
— Auuuuuu!
Ficava cada vez mais alto, zumbindo em meus ouvidos.
Deveria dizer algo enquanto invoco essa coisa? Na verdade, acho que não
importa…
Enquanto ponderava, a luz desapareceu. O que estava diante de mim era um leão
branco, com mais de dois metros de altura. Presumi que fosse fêmea, já que não
tinha juba. A forma com a qual seu focinho estava estendido, entretanto, me
lembrava mais um cão do que um gato.
Espere, isso não é um leão. É um cachorro. E a julgar pelo quão curtas suas
pernas são, é um filhote.
Na verdade, após uma inspeção mais detalhada, percebi que sua pele não era
branca, mas prateada. Parecia um filhote de shiba inu, mas muito maior.
Hmm… Estraguei tudo de novo?
— É adorável! — exclamou Aisha.
— Mas tem certeza que essa coisa aí pode nos proteger? Norn franziu a testa.
— Bem — disse Sylphie — Para um filhote, parece confiante.
Roxy assentiu.
— No mínimo, parece inocente demais para qualquer um suspeitar que é uma
Besta Guardiã.
As duas pareciam aprovar.
— Parece inteligente — comentou Lilia. Ela tinha um rosto inexpressivo
perfeito, por isso era difícil saber o que estava pensando, mas não franzia a testa,
pelo menos.
Zenith estava sem expressão como sempre. Eu não tinha ideia do que Ente
pensava de nossa mais nova adição, mas Tu já estava deitado de costas,
expressando submissão à nossa Besta Guardiã.
Pelas primeiras impressões, não parecia nada mal.
Mas tenho certeza que já vi esse filhote antes.
— Espere — disse Eris. — Não é a Besta Sagrada que estava apegada a você na
Vila Doldia, Rudeus?
Isso mesmo! Acabei de lembrar. Uh, quais eram mesmo as palavras na Língua
do Deus Fera…
Pigarreei e disse:
— Você é a Besta Sagrada de Doldia?
— Auau.
O grande cachorro balançou a cabeça em resposta antes de lamber meu rosto.
Ugh, que fedor… Droga, o que essa coisa acha que sou? Um pedaço de carne?
Pelo menos eu tinha certeza do que invoquei.
— Entendo.
A Besta Sagrada, hein? A mesma que a tribo Doldia valorizava tanto que a
trancaram bem nas profundezas de sua vila…
Droga. Se descobrirem que a invoquei para servir como minha guardiã pessoal,
ficariam irritados demais, não? Se me colocassem na lista de procurados, só
causaria mais problemas. Eu já tinha coisa demais para lidar.
Acho que também vou precisar trocar essa…
Mas a anulação do contrato causaria mais problemas para Perugius ou Orsted. E
não havia garantia de que eu conseguiria algo melhor na terceira tentativa.
Hmm…
Falei na Língua do Deus Fera:
— Ó Besta Guardiã, se me permite a humilde pergunta, você possui o poder de
proteger minha família de qualquer calamidade que possa cair sobre ela?
— Auau!
Ele parecia estar dizendo “Deixa comigo!” Parecia bem motivado, mas, por outro
lado, já tinha sido sequestrado antes. Eu poderia realmente confiar nele para
protegê-los? Orsted me garantiu que o Deus-Homem provavelmente não viria
mais atrás da minha família, então talvez eu não tivesse nada com que me
preocupar, mas…
— Arf?
Enquanto eu estava perdido em pensamentos, a Besta Sagrada saltou da mesa de
invocação e pressionou seu corpo contra mim, lambendo meu rosto novamente.
Ahh, ele é tão macio… Com certeza eles têm usado algum tipo de condicionador
nele. E se é a nossa Besta Guardiã, isso significa que vou ser capaz de desfrutar
de seu pelo fofo todos os dias.
— Pois é, acho que me enganei. Esta aqui com certeza não é a Besta Sagrada.
Não mesmo. Esta não era a criatura sagrada que o povo-fera admirava com tanta
reverência. Definitivamente não. Não havia como seu deus protetor aparecer aqui
de maneira alguma. Tinha que ser um sósia.
Isso mesmo. Esta coisa é um… um leão, é isso!
Estava claro que era um filhote de leão que invoquei de um entre a infinidade de
mundos alternativos. Pelo menos era esta a explicação que decidi. Era boa o
bastante para mim. Embora a desculpa não parecesse ter forças quando se tratava
de me proteger da ira de Doldia.
Bem, se as coisas começassem a dar errado, eu poderia pedir ao Lorde Perugius
por um favor e trocar este filhote de leão por outra coisa. Até lá, teríamos um
período experimental.
— Muito bem. De hoje em diante, seu nome é Léo! — proclamei, erguendo a
mão para o alto.
A Besta Sagrada prontamente lambeu meus dedos antes de bufar em resposta.
Então, de repente, levantou a cabeça como se tivesse notado algo. Seu olhar se
virou para Roxy. Léo trotou até ela antes de enfiar prontamente o rosto na saia
dela.
— Ack! Ei! O que está fazendo?! — gritou Roxy, batendo nele com o cajado.
Nosso canino pervertido apenas fungou e lambeu sua perna antes de envolver
seu enorme corpo ao redor dela.
— Hm, Rudy… O que eu devia fazer a respeito disso? —Nervosa, ela olhou para
mim.
Eu não tinha ideia do que estava acontecendo, mas estava claro que nosso novo
membro da família estava apegado a Roxy.
— Léo, agora que eu o invoquei, você é meu servo — eu disse na Língua do
Deus Fera. — Seu dever é proteger minha família. Entendeu?
— Auau! — latiu ele, alegremente.
Eu não tinha ideia de como um filhote seria útil para cuidar de todos, mas como
era isso que eu havia invocado, seria nossa Besta Guardiã a partir de agora.
Não tenho dúvidas de que irá provar seu valor.
— Léo, permita-me explicar um pouco sobre qual é o seu trabalho aqui. Sei que
está acostumado a ficar de boa e deixar que as pessoas o mimem, mas não é o
caso aqui. Você vai ter que usar uma coleira e viver em uma casa de cachorro
como um cão normal. Se alguém suspeito aparecer, você late para ele, morde e
o incapacita. Se for forte demais, tem a minha permissão para matar. Terá três
refeições por dia, e é livre para tirar cochilos sempre que quiser. Se assim o
desejar, até o levaremos para passear quando quiser. Se achar essas condições
aceitáveis, por favor, ladre uma vez.
— Au!
Ótimo, esse é o tipo de resposta que gosto de ouvir. E mais uma coisa…
— Nem preciso dizer que, caso tente fazer qualquer coisa para machucar minha
família…
— Arf… — Sua garganta retumbou, como se ele estivesse ofendido com a mera
ideia.
— Ótimo. Então nosso contrato está selado. Agora vamos dar um aperto de mãos.
— Estendi a mão e ele prontamente ofereceu a pata.
E com isso, nossa família tinha um novo animal de estimação.
Capítulo 3: Movimento Inicial
Dois dias se passaram desde que invoquei nossa Besta Guardiã. Pedi para gravar
seu nome em uma coleira de couro que enrolamos em volta do seu pescoço, e
construímos uma grande casinha de cachorro para ele. Seu trabalho era,
essencialmente, ser nossa segurança.
Quando eu acordava de manhã, ele estava esperando na entrada da frente quando
Eris e eu saíamos para treinar no quintal. Continuava de pé na entrada como uma
sentinela até que fosse hora de dar um passeio.
Assim que voltávamos para o lar, entrava em casa e cuidava de todos. Léo
periodicamente fazia rondas no recinto para garantir que nada estava errado. Se
estivesse, fazia o possível para remediar. Se Lucie estivesse chorando, ele a
confortava. Se Aisha saísse para fazer compras, ele a acompanhava. Quando
fosse pedido, até levaria Norn para a escola.
Era como se tivéssemos nosso próprio sistema de segurança.
Léo era incrivelmente inteligente, ouvia com atenção o que minha família lhe
dizia e era perfeitamente treinado na utilização do banheiro. Quanto aos truques,
ele sabia esperar, deitar, dar a patinha e implorar, e coisas ainda mais
complicadas, como girar três vezes e latir, além de dar cambalhotas como um
gato.
Também era muito submisso à minha família. Quando Aisha ou Norn se
aproximavam nervosamente para acariciá-lo, abanava o rabo com tanta força
que parecia um rotor de helicóptero. Ele gostava particularmente de Roxy e agia
como um cavaleiro leal ao seu redor. Sua atitude em relação a ela era
marcadamente diferente de suas interações com todos os outros. Quando Roxy
acordava, ele a rodeava enquanto abanava o rabo e tentava enfiar a cabeça entre
as pernas dela. A primeira vez que fez isso, eu o repreendi, dizendo: “Eu sou o
único que pode lambê-la lá”. Ele agiu desanimado e desistiu, mas, no dia
seguinte, estava de volta.
Roxy normalmente se deslocava para trabalhar nas costas de Dillo, mas notei
Léo latindo para ele, como se estivesse tentando dizer algo. Eu não tinha como
decifrar suas palavras ou saber se Tu as estava ouvindo, mas o tatu parecia se
afastar nervosamente de Léo. Também vi Léo no pé da escada enquanto Roxy
subia, encarando-a como se estivesse preocupado que ela pudesse escorregar e
cair. Sua superproteção quase me fez sentir como um marido patético por não
me preocupar tanto com ela.
Eu me perguntava o porquê dele estar tão focado apenas em Roxy, mas talvez
fosse porque era um cachorro. Talvez pudesse farejar qual dos membros da nossa
família era o mais impressionante.
Pensando bem, Linia e Pursena pareciam ter a mesma habilidade.
Apesar de agir como o servo perfeito para Roxy, Léo e Eris não eram os mais
compatíveis. Ou melhor, Léo parecia desencorajado com ela. Ela, por outro lado,
adorava animais. Amava enfiar a cara no pelo macio deles e abraçá-los com
força. Talvez ela o tivesse encurralado e feito exatamente isso sem que eu
soubesse. O poder do Rei da Espada Louco não era brincadeira. Eu mesmo tinha
sentido na pele. Quando ela abraçava alguém com toda sua força, era como ser
esmagado até a morte por um urso. Sua vida passava diante de seus olhos.
Eu não me importava em ser abraçado assim, mas podia entender o motivo de
Léo manter uma distância. Ele só se aproximava dela quando era hora de ir
passear, quando os dois checavam o perímetro da casa antes de partirem.
Tive um pressentimento que isso tinha a ver com a resistência dela. Um passeio
para ele não era uma caminhada ao redor do quarteirão; eu suspeitava que ele
estava circulando em volta de toda a cidade em seus pequenos passeios. Para
conseguir isso tão rapidamente exigia uma velocidade impressionante, e a única
pessoa em nossa casa que poderia igualar esse ritmo era Eris. Sylphie poderia ser
capaz de acompanhar, se tentasse, mas por pouco. De qualquer forma, Léo
normalmente escolhia Eris como sua parceira de passeios. Talvez ele a
considerasse uma companheira de guarda.
Aliás, o território de Léo abrangia um raio de dois quilômetros ao redor de nossa
casa. Ele não deixaria nem um gato de rua entrar em seu território. Pelo que
parecia, estava cumprindo sua missão de proteger nossa família. Todo esse
negócio da Besta Guardiã me deu mais paz de espírito do que eu esperava.
Não havia dúvida de que um cachorro era uma boa escolha.
O único problema era que o tal do cachorro também era o deus protetor da tribo
do povo-fera. Quando Ghislaine veio ver Eris, ficou boquiaberta ao encontrar
Léo.
— Não consigo entendê-lo quando fala — disse ela —, mas me parece que veio
por vontade própria, caso em que a Tribo Doldia não deve ter queixas.
Então posso ficar de boa.
Era hora de passar para o próximo passo do plano. E, bem na hora, Luke apareceu
na nossa casa.
Eu tinha saído para fazer uma tarefa rápida, que levou apenas vinte minutos.
Quando cheguei em casa, Luke estava parado no portão da frente.
Imediatamente me escondi nas sombras para ficar de olho nele, lembrando o que
Orsted me disse sobre o Deus-Homem ser capaz de manipular as pessoas.
Também me lembrei da entrada no meu diário que mencionava Luke sendo
usado pelo Deus-Homem para derrubar Sylphie. Meu futuro eu era
reconhecidamente um pouco paranoico, então sua palavra pode não ser a mais
confiável, mas se o Deus-Homem quisesse acabar com Sylphie ou Ariel, Luke
seria um fantoche eficaz. Sylphie confiava nele, afinal, independentemente do
que ela dissesse sobre ele.
Em outras palavras, Luke tinha a maior probabilidade de ser escolhido como um
dos apóstolos do Deus-Homem. Se estivéssemos em guerra com ele, seria
primordial localizar seus seguidores e descobrir seus motivos. Com isso em
mente, fiquei de olho nele enquanto corria de sombra em sombra até estar perto
o suficiente para ouvir sua voz.
— Nunca soube que alguém tão incrível quanto você veio para esta cidade. Você
é maravilhosa, adorável. Seus olhos são tão lindos e cheios de determinação, e
seu cabelo é macio como seda. É como um anjo… não, como uma deusa da
beleza que veio agraciar este mundo com sua presença! Bastou um único olhar
para que meu coração fosse roubado!
Suas palavras fizeram minha cabeça doer.
Que monte de clichês fora de moda.
Nem eu diria algo tão sentimental e exagerado. Mas talvez essas coisas fossem
perfeitamente normais neste mundo? Se eu dissesse algo assim para Sylphie,
talvez ela ficaria vermelha como um tomate. Eu já conseguia imaginá-la sorrindo
timidamente e dizendo: “Não precisa se esforçar muito para me bajular. Já sou
toda sua, Rudy”. Ehehe.
— Oh, peço perdão pelos meus modos — disse Luke. — Eu nem me apresentei.
Sou Luke Notos Greyrat, segundo filho da minha casa. Os Notos Greyrats
presidem uma das quatro principais regiões do Reino Asura.
Se ele realmente fosse um dos lacaios do Deus-Homem, fazia sentido que
exagerasse quando flertasse com uma garota, especialmente se fosse sob o
comando do Deus-Homem. Seria estranho ir tão longe assim, se não fosse o caso.
Não faltavam mulheres para rodeá-lo. Baseado no que Sylphie me disse, ele via
as garotas como pouco mais do que brinquedos sexuais descartáveis.
Mais importante, com quem diabos ele estava tentando flertar agora? Não
consegui ver bem de onde estava me escondendo. Se estava comparando seu alvo
a um anjo, a primeira pessoa que veio à mente foi Sylphie, mas não ousaria falar
com ela assim. A palavra deusa imediatamente trouxe Roxy à mente, já que era
exatamente o que ela era para mim, mas também não poderia ser. Então… Aisha,
talvez? Não, ela era mais como um diabinho do que um anjo.
— Perdoe minha audácia, mas poderia me dar a graça de seu nome? Claro,
entenderei se não quiser me dizer o sobrenome. Mas te suplico, ó formosa, que
pelo menos compartilhe seu primeiro nome como consolo, para que eu possa
gravá-lo em meu coração.
Assim, pelo menos, serei capaz de ouvir o nome do alvo de seus afetos. Quem
ele estava tentando conquistar? Quando eu soubesse a resposta, poderia descobrir
em quem Deus-Homem estava de olho. Claro, assumindo que Luke realmente
fosse um de seus apóstolos. Não podia descartar a possibilidade de que tivesse
se apaixonado por um dos membros da minha família à primeira vista.
No entanto, se for o último caso, eu seria um pouco mais do que apenas um
bisbilhoteiro.
— Ah, vejo que você se recusa a compartilhar seu nome comigo. Então, pelo
menos, imploro que me dê a honra de beijar sua mão. Isso por si só será o
suficiente para me consolar. — Ele se inclinou para frente, estendendo a mão em
direção à outra pessoa.
Sua cabeça sacudiu momentaneamente. Então todo o seu corpo congelou.
O que aconteceu?
Ficou claro que algo estava acontecendo. Foi um ataque do Deus-Homem sobre
ele? Ou estava sendo controlado neste exato minuto?
Enquanto eu contemplava tais perguntas, Luke de repente caiu de joelhos e
desmaiou. Ele sequer se mexeu. Perdeu a consciência por completo. Mas o que
raios aconteceu?
Espere, tenho certeza que já vi isso antes. O puxão, o colapso e a perda de
consciência… Oh, céus, isso faz com que a minha cabeça também doa.
— Hmph.
Depois que Luke caiu, uma mulher saiu do nosso portão e olhou para ele. Ela
bateu o pé na cabeça inconsciente dele.
Eris. Foi Eris quem o nocauteou.
— Qual que é a sua, hein? Apareceu do nada e ficou falando abobrinha que nem
um doido! — Ela franziu o nariz, chutando-o novamente para empurrá-lo para
fora do caminho. Então voltou marchando para casa como se nada tivesse
acontecido.
Saí das sombras e fui até Luke. Ele ainda estava inconsciente, o branco de seus
olhos aparecendo. Ela deu um belo sopapo nele. Tive que questionar sua moral
por se atrever a dar em cima de uma das minhas esposas, mas parando para
pensar, lembrei sobre o que reportei a Ariel e Luke quando cheguei em casa, e
não contei a ele sobre meu casamento. Na realidade, essa foi a primeira vez que
ele viu Eris.
Ainda assim, fiquei chocado por ter tentado dar em cima dela daquela maneira.
Talvez a linha do tempo original em que os dois ficaram juntos tenha o
influenciado. Ou talvez fosse a prova de que ele realmente estava aliado ao Deus-
Homem. Era difícil ter certeza, de qualquer maneira.
Apertei os lábios. Por enquanto, pelo menos, era melhor não o deixar deitado do
lado de fora. Decidi arrastá-lo para dentro de casa comigo. Eu poderia começar
o interrogatório assim que recuperasse a consciência.
— Cheguei — disse enquanto puxava Luke para dentro.
Eris estava lá para me cumprimentar, embora estivesse em silêncio no início. Seu
rosto se iluminou quando me viu, mas no momento em que avistou Luke, franziu
as sobrancelhas e cruzou os braços.
— Conhece esse cara aí? — perguntou ela.
— Pois é. Bem, acho que pode dizer que é colega de Sylphie, para ser mais
preciso.
— O-Oh… Bem, foi mal. Dei um soco nele.
Oh? Ela está sendo mansa demais.
Balancei a cabeça.
— Está tudo bem. Aposto que foi culpa dele por dizer algo inapropriado.
— Foi — concordou ela.
— Sendo assim, a culpa é só dele.
Ele ganhou o que pediu por tentar colocar suas mãos sujas em minha Eris.
Mesmo assim, eu ia deitá-lo em algum lugar para que pudesse descansar.
Ele atrapalharia se eu o colocasse na sala. Talvez eu devesse jogá-lo em um dos
quartos vazios no primeiro andar.
— Ei, Rudeus — Eris chamou por mim.
— Sim?
— Você também quer beijar minha mão?
Encarei a mão dela. Estava coberta de calos devido ao treinamento, muito áspera
e dura para a mão de uma mulher. Ainda assim, combinava com ela, e eu gostava
de suas mãos do jeito que eram.
— Prefiro beijar seus lábios do que a sua mão.
Isso me rendeu um soco rápido no estômago. Ela não colocou tanta força, mas a
sua mira foi tão precisa que acertou em cheio no fígado.
— Está fora de questão até anoitecer — ralhou Eris, seu rosto ficando vermelho
enquanto caminhava em direção à sala de estar.
Ah, beleza. Então estou livre para clamá-los à noite. Mal posso esperar.
Deixando isso de lado… O que devo fazer agora? Pessoalmente, eu queria
consultar Sylphie logo para que pudesse transmitir meu desejo de ajudar Ariel.
Dessa forma, todos nós poderíamos trabalhar juntos para persuadir Perugius a se
juntar a ela. Infelizmente, eu não tinha ideia do que motivou Luke a viajar para
cá. Se viesse para causar problemas em nome do Deus-Homem, eu com certeza
não poderia deixar isso passar.
Acho que vou esperar Luke acordar.
Enquanto Luke permanecia inconsciente, fui ver Sylphie e as outras. Eu ficaria
de coração partido se algo de ruim acontecesse com o restante dos membros da
minha família enquanto eu estava preocupado com Luke. Embora era provável
que isso não fosse acontecer, já que Eris estava ali.
Léo estava no topo da escada, no segundo andar, sentado de maneira obediente,
com uma expressão de alerta. Passei por ele e verifiquei vários dos quartos. O
quarto de Roxy estava cheio de roupas, mas desocupado. Considerando que Tu
também estava ausente, provavelmente era seguro afirmar que ela já havia saído
para a academia.
Sylphie e Aisha estavam cozinhando na cozinha. Saí rápido, não querendo
interrompê-las. Encontrei Zenith enfiada na cama, dormindo, com Lilia lendo
um livro ao seu lado. Nada de estranho.
Encontrei Eris brincando com Lucie na sala de estar. Lucie agarrou as mãos de
Eris e subiu em cima do sofá, enquanto Eris a apoiava nervosamente e cuidava
dela. Foi uma visão emocionante, mas só pude saboreá-la por alguns instantes.
Então voltei para a quarto onde deixei Luke.
Ele já havia recuperado a consciência quando voltei.
— Tive um sonho com um anjo ruivo. Ela era linda e doce, mas também era tão
forte. Minha mulher ideal. Mas quando tentei beijar a mão dela, acordei. — Ele
estava sentado, os olhos vazios enquanto murmurava incompreensivelmente para
si mesmo.
Deve ter sofrido algum dano cerebral depois do soco da Eris. Espere, não pode
ser isso. Ele estava dizendo aquela merda de anjo antes de ela bater nele.
— Por favor, acalme-se, Mestre Luke. Não existe anjo ruivo.
— Ah, Rudeus. — Ele olhou para mim distraidamente. — Espera, o que está
fazendo aqui? Hã? Onde estou… estou na sua casa? Eu estava no portão da frente
agora há pouco, e aquele anjo… O que está rolando?
Suas memórias estavam confusas. Pelo menos não parecia que tinha encontrado
o Deus-Homem durante seu breve lapso de consciência.
— Aah! — Luke olhou para trás de mim e gritou.
Olhei para trás e Eris estava lá. Ela abriu a porta e estava olhando para dentro.
— Hmph! — Ela deu uma olhada em Luke, bufou e marchou de volta para a sala
de estar. Pelo que parecia, estava um pouco preocupada com ele.
O coração da minha frágil donzela estava batendo de preocupação. Não me diga
que ela já começou a desenvolver sentimentos por ele? Isso não pode ser verdade,
certo?
— Ah, espera! Seu nome, por favor, pelo menos me dê seu nome! Se você
também puder me dar seu endereço e me dizer sua flor favorita, eu ficaria
eternamente grato! Ah, e ficaria encantado se pudesse me dizer que tipo de
homem gosta!
— Por favor, acalme-se — eu disse. — O endereço dela é aqui. É aqui que ela
mora.
Consegui impedir Luke de segui-la para fora do quarto, mas ele me agarrou pelos
ombros e aproximou o rosto.
— Rudeus, se ela mora aqui, isso deve significar que você é parente, certo?!
Diga-me, quem é ela?!
— O nome dela é Eris Greyrat. Nós acabamos de nos casar.
— Quê… Você se casou…? — Luke congelou. — Então isso significa… que
ela é sua mulher?
— Sim, isso mesmo.
Dada a nossa dinâmica de relacionamento, provavelmente era mais adequado
dizer que eu era o homem dela, mas o significado era o mesmo.
— Oh… — A voz dele foi sumindo.
Por instinto, eu disse:
— Sinto muito.
Luke balançou a cabeça.
— Por que você se desculparia? É como diz o ditado: deus ajuda quem cedo
madruga.
— Suponho que seja verdade.
Depois de ouvir sobre a linha do tempo alternativa de Orsted, não pude deixar de
me sentir culpado. Luke e Eris originalmente deveriam ser um casal. A situação
era parecida com receber uma encomenda e descobrir que estava no nome do
vizinho.
Mesmo assim, isso não mudou nosso passado juntos. Eu que fui seu tutor e viajei
até o Continente Demônio com ela. Tínhamos compartilhado nossa primeira
experiência sexual juntos.
Luke suspirou.
— Não é tão raro ver boas mulheres se apaixonarem por um único homem. Ou
para bons homens se apaixonarem por uma mulher solteira. — Seja qual for a
razão, ele continuou: — Os homens muitas vezes mantêm um número de
mulheres para si mesmos, mas o oposto é praticamente inédito. Foi assim que
deus nos fez humanos. Afinal, um homem pode dar sua semente a várias
mulheres, mas uma mulher só pode ter o filho de um homem por vez. Parece que
existem mulheres demoníacas que podem ter vários bebês de homens diferentes
ao mesmo tempo, mas o mesmo não pode ser dito da nossa raça.
Ele estava certo disso a partir de sua perspectiva masculina tendenciosa. Claro,
quem era eu para falar? Mas, não querendo me defender aqui, acho que é
perfeitamente razoável que desse certo para ambos os lados. Tipo, uma mulher e
vários homens. Um harém inverso.
— Boas mulheres tendem a se reunir em torno do homem que detém mais poder
— continuou Luke. — Você tem poder, dinheiro, status e prestígio. Entendo por
que aquele anjo, a Senhorita Eris, escolheu estar com você. Então… — Ele fez
uma pausa e balançou a cabeça. — Não, não é isso. Eu não vim até aqui para ter
essa conversa com você. — Luke soltou outro grande suspiro. — Vim aqui
porque tenho algo para te pedir.
— Oh? — Eu me sentei.
O momento era muito conveniente. Fazia sentido pensar que ele era lacaio do
Deus-Homem, tentando mudar o curso da história. Eu não conseguia evitar essa
suspeita, mas o ouviria de qualquer maneira. Presumi que tentaria encontrar
alguma maneira de me levar em direção à minha própria destruição ou tentar
impedir a ascensão de Ariel ao trono.
— Você nos emprestaria… quero dizer, emprestaria sua ajuda à Princesa Ariel?
Não consegui acreditar no que acabei de ouvir.
O que estava acontecendo? Ele está pedindo minha ajuda? Não era para me pedir
o oposto?
Não, eu tinha deixado perfeitamente claro que iria ajudá-la se necessário. Ele não
estava se aproximando de mim com tal pedido do nada.
— É claro. Eu ficaria mais do que feliz, mas por que você está perguntando isso
quando eu já disse que ajudaria?
— Suas habilidades com magia e capacidade de fazer amizade com pessoas de
personalidades difíceis são surpreendentes. Além disso, demonstrou suas
capacidades de luta voltando para casa vivo de uma batalha com o Deus Dragão.
Ele até o aceitou como seu subordinado. Verdadeiramente, tais feitos deixam
qualquer um sem palavras.
Tudo bem, fico um pouco desconfortável quando você se esforça para me elogiar
assim.
— No entanto, temíamos que envolver você perturbasse a felicidade de Sylphie.
— Luke ergueu a cabeça. — É por isso que nunca pedimos a sua ajuda até agora.
Não podíamos. Nem a Princesa Ariel nem eu desejamos envolver Sylphie nessa
luta pelo poder mais do que já a envolvemos.
Ele tinha dito isso antes, quando nós dois duelamos.
— Mas… — Luke baixou o olhar.
Ele era bonito o suficiente para que tal pose o fizesse parecer mais um herói
torturado. Não era de admirar que a maioria das mulheres se apaixonava por ele
com facilidade.
— Nos últimos seis anos, exercemos nossa influência com as Nações Mágicas
para recrutar vários nobres e artesãos ao nosso lado. Entre eles estão alguns
nobres que nasceram em Asura, e até mesmo alguns com grande influência
política lá. Mas não foi o suficiente para nos assegurar uma vitória decisiva.
Afinal, essas pessoas ainda são forasteiras aos olhos do reino.
— Hhm — eu disse.
— No entanto, Lorde Perugius poderia virar o jogo para nós. Ele tem enorme
influência no reino, além de sua força de carisma e impressionante poder marcial.
Se o tivéssemos ao nosso lado, isso contribuiria para o caminho da Princesa Ariel
até o trono. A vitória não estaria garantida, é claro, mas ao mesmo tempo não
acho que podemos ter sucesso sem a ajuda dele. A Princesa Ariel precisa de
alguém de reputação impressionante para apoiá-la.
Luke estava falando sério. Ou pelo menos não detectei nenhum engano ou
segundas intenções. Ele acreditava sinceramente que Perugius era necessário
para Ariel reivindicar o trono. Orsted, da mesma forma, tinha uma alta opinião
sobre Perugius.
Ele balançou a cabeça, acrescentando:
— Mas, apesar disso, Sua Alteza quase desistiu de tentar persuadi-lo a se juntar
a nós.
— Bem, dado o que está acontecendo, eu realmente não posso culpá-la — eu
disse. Quando os vi pela última vez, Perugius tinha tanto interesse por ela quanto
no chão em que pisava. Em outras palavras: nada.
— Claro, encontrá-lo foi pura sorte, para começo de conversa — disse Luke. —
A Princesa Ariel diz que vamos nos virar sem ele. Concordei com ela. Se
passarmos mais alguns anos fortalecendo nossas fraquezas, provavelmente
seremos capazes de reivindicar a vitória sobre seus oponentes.
Essas foram palavras intrigantes. De acordo com Orsted, restavam pouco mais
de vinte dias antes da notícia de que o governante do reino havia adoecido. Se
Luke estivesse em contato com o Deus-Homem, ele não estaria falando como se
tivessem vários anos pela frente, considerando que ele o teria alertado do que
estava por vir.
— Realisticamente, no entanto, seria difícil. Sem a ajuda de Lorde Perugius,
sofreríamos grandes perdas mesmo que ganhássemos. E outros problemas podem
surgir depois que ela garantir a coroa.
Com base no que ele estava dizendo, Ariel tentava desencadear conflitos internos
no reino. Ela precisava assumir a liderança nesta luta pelo poder, enganando seus
oponentes e vencendo-os em seu próprio jogo para que pudesse ser a última
sobrevivente. Estava de olho na posição suprema de poder no país mais poderoso
do mundo. Esse trono não poderia ser reivindicado apenas com palavras. Eles
precisariam lutar por isso.
Mas a luta continuaria mesmo depois que a meta fosse alcançada. Se ainda
existisse resistência a seu governo, caso ainda tivesse aqueles que alegassem que
ela não era digna, Ariel poderia perder tudo depois de usar todo o seu capital
político para se tornar rainha.
Perugius, no entanto, poderia atuar como um impedimento para tal oposição.
Como um dos três heróis que mataram o Deus Demônio, ele ainda dominava o
reino. Nem todo nobre se ajoelharia com ele presente, mas certamente calaria
muitos deles se o Rei Dragão Blindado Perugius anunciasse seu apoio ao governo
de Ariel. Por este motivo Luke estava desesperado para ter seu apoio.
— E… a fim de ter certeza absoluta de que podemos alcançar a vitória, eu
gostaria de sua ajuda — disse Luke.
— Você sabe que eu não sei nada sobre política, certo? É perfeitamente possível
que eu não seja de nenhuma ajuda.
— Você é alguém muito maior do que parece imaginar. Será muito útil apenas
ao ser você mesmo.
Cocei minha cabeça.
— Eu não sou tão bom.
— Bom ou não, é um guerreiro confiável e tem contatos. Conhece Lorde
Perugius, o Deus Dragão, um rei demônio, o neto do papa Milis, toda a tribo
Doldia e a Sete Estrelas Silenciosa. Seus contatos por si só são impressionantes,
e nem estamos pedindo que você os use. É o fato de você estar tão bem conectado
que prova que possui algo especial. Eu gostaria que compartilhasse um pouco
disso com a Princesa Ariel.
Fiquei em silêncio.
Talvez eu suspeitasse de um motivo oculto por trás dos elogios de Luke pelo fato
de eu não ter muito contato com ele. Ainda assim, eu me perguntava… Ele era
realmente o fantoche do Deus-Homem ou não? Orsted já havia me ordenado a
ajudar Ariel, então eu teria ajudado se Luke tivesse pedido ou não. Entretanto,
ele ter previsto minhas ações me fez questionar se estava fazendo isso por
vontade própria.
Talvez eu devesse tentar algumas perguntas capciosas e ver o que ele diz.
— Quem ordenou que você viesse me ver? — perguntei.
— Ordenou? Se está se referindo à Sua Alteza, ela não fez tal pedido.
— O que significa que alguém te aconselhou a vir até mim?
Luke balançou a cabeça.
— Foi decisão minha apenas.
— E o nome Deus-Homem lembra alguma coisa?
— Deus-Homem? Lembro-me de ouvir esse nome quando visitávamos Lorde
Perugius. Quem exatamente é esse?
Bem, se estivesse em conluio com o Deus-Homem, não mostraria suas cartas na
manga tão facilmente. O Deus-Homem nunca me pediu para manter nossa
associação em segredo, mas não havia como saber se não proibiria outras pessoas
de falar sobre ele.
Luke me olhou, perplexo com minha pergunta, mas depois de alguns momentos,
ele coçou a parte de trás da cabeça e disse:
— Acho que parece que estou me contradizendo. Desejamos a felicidade de
Sylphie, e é possível que possamos roubá-la disso envolvendo-a em nosso
conflito com o reino. Se eles nos rotularem como insurgentes, nem mesmo as
Nações Mágicas serão capazes de nos proteger.
Essa parte também me assustava. Não havia como sabermos o que aconteceria
se fizéssemos de Asura um inimigo. De acordo com meu diário do futuro,
Sylphie morreu como resultado, e o Reino Santo de Millis conseguiu matar
Zanoba. Claro, eu poderia lutar decentemente. Se liberasse minha magia em seu
potencial máximo, poderia até eliminar um enorme número de inimigos de uma
vez. Eu até seria temível em combate corpo-a-corpo assim que minha Armadura
Mágica fosse reparada. Orsted admitiu que não podia se conter ao me encarar
naquela armadura.
Dito isto, era ingênuo esperar vencer todas as batalhas que se travava de frente.
Nem mesmo um idiota enfrentaria um lutador profissional de mãos vazias. Para
derrotar alguém assim, é possível apunhalá-lo pelas costas, envenená-lo ou usar
dinheiro para pressioná-lo a se submeter. Se não pode derrotar alguém usando
apenas o poder, só tinha que usar alguns outros meios.
Meu futuro eu havia fortificado suas defesas ao estabelecer uma forte relação
com o Reino Asura. O suficiente para que não viessem atrás dele, pelo menos.
Melhor ainda, eles ainda o valorizavam o suficiente para recusar o pedido do
Reino Santo para entregá-lo.
O que aconteceria desta vez? Com Léo em nossa casa, os outros países se
conteriam, não querendo prejudicar seu relacionamento com a tribo Doldia?
Quão bom protetor ele provaria ser? Orsted me garantiu que eu ficaria bem
enquanto tivesse minha Besta Guardiã. De acordo com ele, Léo seria
perfeitamente capaz de manter minha família segura, já que tinha seu próprio
destino forte.
Mas aquele cachorrinho pode realmente proteger minha família sozinho?
— No entanto — disse Luke —, já que você tem o Deus Dragão te apoiando,
acho que não vai manchar toda a alegria de Sylphie se a envolvermos agora.
Eu não estava tão certo sobre isso. Havia lugares onde a influência de Orsted não
tinha poder. As pessoas deste mundo poderiam ter ouvido falar dos Sete Grandes
Poderes, mas não pareciam perceber o quão fortes eram, ou quão inumanas suas
habilidades eram.
— Ter o apoio do Deus Dragão não significa que minha vida não estaria em risco
— eu disse.
— Isso é verdade — admitiu Luke. Ele respirou fundo e olhou diretamente nos
meus olhos. — Mas é exatamente por isso que só precisamos do seu apoio na
superfície por ora. Quero que a Princesa Ariel seja rainha, custe o que custar. —
Ele olhou para mim com brilho nos olhos.
Encontrei seu olhar sem vacilar, surpreso com o quão forte era. Sua determinação
me lembrou a de Ruijerd, como se ele estivesse disposto a jogar tudo fora para
atingir seu objetivo.
— E por que isso? — perguntei.
Depois de uma longa pausa, Luke respondeu:
— Foi o último pedido de um amigo falecido. — Eu logo soube que ele estava
se referindo a Derrick Redbat. — Por favor, poderia emprestar sua força à
Princesa Ariel?
Presumi que não estava me prometendo nada em troca, pois veio por vontade
própria, não por um pedido de Ariel. Em vez de oferecer um acordo, ele estava
pedindo um favor.
Esfreguei o queixo. Em retrospectiva, eu ainda era eu mesmo quando o Deus-
Homem estava puxando as cordas. Ele me deu conselhos, mas eu estava
desesperadamente quebrando a cabeça para interpretar suas palavras e descobrir
a melhor forma de proceder. Talvez o mesmo fosse verdade para Luke. Talvez
ele estivesse tentando o seu melhor para procurar um caminho a seguir. Se fosse
esse o caso, eu queria ajudá-lo.
Restava um único problema. Meu oponente não era Ariel nem o Reino Asura.
Era o Deus-Homem. Se houvesse alguma possibilidade de que juntar-me a Ariel
tinha algo a ver com o plano do Deus-Homem, eu primeiro precisava consultar
Orsted.
— Você me permitiria procurar o conselho daqueles ao meu redor antes que eu
lhe dê uma resposta? — perguntei.
Luke sorriu, apesar de parecer que queria chorar. Pelo que parecia, pensou que
essa fosse minha maneira de recusá-lo. Ele se levantou e, depois de uma longa
pausa, disse:
— Tudo bem. Desculpe incomodá-lo.
— Não se preocupe. Darei minha resposta oficial em alguns dias. Prometo.
Seus ombros caíram enquanto saía do quarto. Eu o segui, com a intenção de
acompanhá-lo até a saída. Atravessamos o corredor e fomos em direção à porta
da frente. Léo estava no topo da escada, da mesma forma que antes, olhando para
nós. Ele soltou um rosnado baixo, como se quisesse deixar Luke saber que não
passaria por ele até o segundo andar.
Isso significa que Luke é mesmo suspeito? Embora eu não tivesse ideia se Léo
podia farejar os fantoches do Deus-Homem apenas com o olfato.
— Oh… — Eris espiou da sala de estar ao ouvir o rosnado.
Luke imediatamente colocou a mão no peito e se curvou.
— Senhorita, percebo que eu ignorava sua identidade antes, mas ainda peço
desculpas pelo meu comportamento rude. Espero que nos encontremos
novamente algum dia.
Eris se abaixou para pegar a saia e fazer uma reverência, mas percebeu
tardiamente que usava calças. Ela fez uma careta, sentindo-se estranha, e cruzou
os braços sobre o peito.
— Eu me certificarei de entretê-lo adequadamente na próxima vez.
— Aprecio o que diz, mesmo. Bem, se me der licença.
Antes que ele tivesse a chance de sair, alguém bocejou de cima de nós.
— Eris, por favor, não grite assim. Todo mundo ainda está dormindo — disse
Sylphie enquanto descia as escadas. Ela deve ter ido lá para cima depois que eu
a verifiquei mais cedo na cozinha. Seus olhos ainda estavam pesados de sono.
Aparentemente, ela voltou para a cama. Quando seu olhar pousou em Luke e em
mim, ela disse: — Oh, bem-vindo de volta, Rudy… hm? Luke, você por aqui?
Por quê? Aconteceu algo com Sua Alteza?
— Eu… tinha uma tarefa para resolver e decidi dar uma passada.
— Huh. Bem, não precisa ter pressa, então. Posso preparar um chá para você —
ofereceu Sylphie.
— Não, eu deveria ir embora.
— Tudo bem. Voltarei em breve, por isso tome conta da princesa por mim até
lá.
— Pode deixar. — Luke sorriu desolado ao sair. Sylphie e eu o seguimos até o
portão e nos despedimos. Sua figura recuando me lembrou de um assalariado
solitário, completamente exausto enquanto voltava para casa do trabalho.
— O que deu nele? — perguntou-se Sylphie.
Eu não respondi, mas não pude deixar de sentir como se algo tivesse sido
colocado em movimento. Não importa como eu decidisse agir sobre isso, não
poderia fazer um trabalho meia-boca. Com isso em mente, era hora de reportar a
Orsted.
Capítulo 4: Opinião Formada
Usei o anel que Orsted me deu para contatá-lo. Cerca de uma hora depois, recebi
uma carta dizendo para encontrá-lo do lado de fora da minha cabana, ao lado.
Aparentemente, ainda estava por perto quando entrei em contato. Ele poderia
simplesmente ter vindo me ver em vez de enviar uma carta…
De qualquer forma, fiz o que ordenou e parti para encontrá-lo no local acordado.
Cheguei e o encontrei com os braços cruzados, parecendo que tinha cochilado.
Ele obviamente estava esperando por mim. Eu me senti um pouco culpado por
não ter chegado mais cedo.
— Desculpe por ter feito você esperar tanto — eu disse.
— Não. Faz pouco tempo que cheguei.
A gente parecia um casal que havia acabado de começar a namorar. Enfim. Eu o
informei sobre os eventos desde a última vez que nos encontramos, começando
com nossa nova Besta Guardiã, Léo. Ele não viu nenhum problema com isso. Na
verdade, ficou chocado que um animal tão importante tivesse atendido minha
convocação. Ele me garantiu que a segurança da minha família estava garantida
com uma Besta Sagrada guardando-os. Aparentemente, Léo era mais importante
do que eu imaginava.
Chamou muito a minha atenção quando ele murmurou para si mesmo.
— Talvez o filho de Roxy seja mesmo especial.
Eu sorri quando ouvi isso.
Também sugeri que removesse a maldição de Cliff. Orsted parecia disposto a
tentar. Desta forma, Cliff viria à cabana de vez em quando para trabalhar no
desenvolvimento de um implemento mágico que poderia combater sua maldição.
Como não tínhamos ideia de quando veríamos os frutos do trabalho de Cliff, eu
disse a Orsted que manteria o disfarce de que ele estava mantendo minha família
como refém. Ele manteve um rosto inexpressivo durante minha explicação, então
meramente assentiu:
— Certo.
Quando admiti que ainda não tinha falado com Ariel, ele me repreendeu. Eu
poderia ter dito a ele que estava preocupado com Eris e Léo ou que estava
esperando por uma boa oportunidade para apresentar Ghislaine a Ariel, já que
seria perfeito para me aproximar dela, mas essas seriam apenas desculpas. Eu
tinha tirado as férias mensais que era de direito. Eu poderia admitir que fui
negligente.
Orsted tinha ido se encontrar com Perugius enquanto eu estava aproveitando meu
belo tempo. Ele solicitou que Perugius apoiasse a candidatura de Ariel para a
coroa, mas foi recusado. Perugius teimosamente insistiu que não mudaria de
posição até ter certeza de que ela estava apta para o cargo.
Você tem culhões mesmo, Lorde Perugius. Parecia morrer de medo de Orsted,
mas ainda o rejeitou sem pensar duas vezes. Tenho que admirá-lo por isso.
Deixando isso de lado, contei a Orsted sobre a visita de Luke. Também
mencionei que seu pedido de ajuda poderia ser em nome do Deus-Homem e
mencionei o quão preocupado eu estava em ajudar Ariel. Finalmente, perguntei
se ele tinha alguma intenção de mudar seu plano original.
Destemido, Orsted disse:
— Não. Faremos com que Ariel se torne rainha.
Ele descartou a possibilidade de que o Deus-Homem quisesse esse resultado.
Ariel estar no trono era de suma importância para ele. Quando perguntei como
deveríamos lidar com Luke, Orsted não teve uma resposta imediata.
Depois de vários minutos de contemplação, ele enfim murmurou:
— Talvez devêssemos matá-lo…
Fiquei boquiaberto. Eram palavras aterrorizantes para se dizer com tamanha
casualidade.
— Você vai matá-lo?
Orsted ficou em silêncio, mas o olhar em seu rosto era aterrorizante.
Espera, não. É assim que ele sempre se parece.
Ele baixou a cabeça para a mesa e olhou — ou encarou, pelo que me parecia —
um ponto específico.
Sim, mudei de ideia. Ele com certeza estava fazendo uma cara assustadora.
— Não há como saber o que um dos apóstolos do Deus-Homem pode fazer.
Matá-lo seria a melhor maneira de erradicar qualquer incerteza — disse Orsted.
— Eu… acho que…
Matar Luke? Eu já deveria ter me preparado para fazer o que fosse necessário,
mas não conseguia impedir meu estômago de dar nós de ansiedade. Luke estava
trabalhando tanto para ajudar Ariel, e nós íamos matá-lo? Apesar de tudo que eu
tinha conquistado, nunca tinha matado ninguém antes. Claro, um bando de
bandidos foi pego no meu feitiço quando estávamos em Begaritt e alguns deles
provavelmente morreram, mas não os olhei nos olhos enquanto fazia isso.
Então a primeira pessoa que eu mataria seria Luke? Esta seria a minha introdução
ao assassinato? O pensamento fez meu sangue gelar. Ao mesmo tempo, parte de
mim sentia que não tinha outra escolha. Se ele fosse um inimigo e representasse
uma ameaça para minha família e para mim, era melhor me livrar dele. Não podia
deixar minhas emoções atrapalharem. Isso podia voltar mais tarde para me
assombrar.
Mas posso mesmo justificar tirar a vida de outra pessoa simplesmente porque
“eu não tinha outra escolha”?
Não era minha intenção pregar a moralidade, mas a ideia ainda não me caía bem.
Eu era mais contrário à ideia de matar do que imaginava, considerando o quanto
recuava com o pensamento.
— Ainda não temos certeza de que ele é um dos apóstolos do Deus-Homem,
certo? — eu disse, minha voz esforçando um tom de esperança vazia.
Orsted balançou a cabeça.
— Não. Dado o momento das ações de Luke, não há dúvida de que é.
— O que você quer dizer com isso?
— Suas tentativas de negociar com Perugius ainda não acabaram
completamente, e as notícias sobre o rei adoecendo ainda não chegaram a eles.
No entanto, Luke escolheu este momento em particular para procurá-lo. Não há
dúvidas de que é obra do Deus-Homem. — Orsted cuspiu as últimas palavras
com desgosto.
Ele realmente despreza o Deus-Homem com cada centímetro do seu ser.
— Nesse caso, por que ele me pediria para ajudar Ariel? — perguntei. — Não
era para estar fazendo o oposto disso? Se não quer que Ariel seja rainha, deveria
estar tentando me manter longe dela.
— É provável que esteja buscando o controle de alguém do Reino Asura para
nos levar a uma armadilha. Neste momento, o Deus-Homem não pode ver você
diretamente, e é por isso que está usando Luke. É o jeito dele de ficar de olho em
você. Pense nisso como alguém colocando a orelha na parede para ouvir o que
está acontecendo do outro lado.
— Então Luke está me monitorando?
— É possível que isso não seja tudo — disse Orsted. — Há uma chance de ele
tentar algo em algum momento. É mais seguro nos livrarmos dele.
Era possível que eu pudesse revelar o objetivo de Orsted por meio de minhas
ações ou palavras. Não é de admirar, então, o porquê do Deus-Homem ter
decidido colocar alguém para me vigiar. Seria impossível manter Luke
totalmente fora de jogo enquanto eu ajudava Ariel com seu objetivo.
— Vamos supor por um momento que matamos Luke — eu disse. — Tem
certeza de que isso não afetará negativamente Sua Alteza ou qualquer outra
pessoa?
Orsted estreitou os olhos.
— O que quer dizer?
Comecei a analisar as possíveis repercussões do assassinato de Luke com base
no que Orsted me disse antes.
— Você mencionou um cara, Derrick Redbat, acho que era o nome dele, que
originalmente deveria se tornar primeiro-ministro, mas ele não está mais entre
nós. Com sua ausência, é muito provável que Ariel dependa por completo de
Luke para obter apoio moral.
Ariel certamente confiava nele. Embora ela tivesse outros atendentes como
Sylphie, Luke desempenhava o maior papel entre seus apoiadores imediatos. Não
era afeto ou romance, mas algo semelhante ao vínculo que eu compartilhava com
Cliff e Zanoba. Não importa o que acontecesse, eu estava confiante de que eles
nunca me trairiam. Ariel provavelmente sentia o mesmo por Luke.
— O Deus-Homem pode ter considerado que descobriríamos sua conexão com
Luke. Talvez todo o seu objetivo seja nos fazer matá-lo — eu disse.
Não havia como saber o que poderia acontecer com Ariel se Luke morresse. Os
humanos eram fracos. Não importa o quão duros pareciam por fora, eles eram
frágeis o suficiente para desmoronar sob as condições certas. Eu tive alguma
experiência pessoal com isso. Perdi por completo meu rumo — perdi a mim
mesmo de vista — quando Paul morreu.
Claro, se tudo o que queríamos fosse um fantoche, talvez estivéssemos melhor
sem Luke.
Estudei a expressão de Orsted enquanto conduzia meu debate interno. O homem
finalmente assentiu em concordância, seu rosto não menos aterrorizante do que
antes.
— Isso é bastante provável. A Ariel que eu conhecia valorizava muito o Luke.
Sem ele, ela pode não ter sucesso no caminho em direção à realeza.
Claramente, ele também não queria uma boneca sem vida no trono.
— Então acho que devemos deixar Luke em paz, por ora — eu disse.
Sim, em parte porque não queria matá-lo. Mas Luke também era um dos
melhores amigos de Sylphie, assim como meu primo. Nós não éramos muito
próximos, mas tínhamos uma conexão grande o bastante para que eu não o
quisesse morto. Além disso, eu também tinha uma aversão pessoal a matar.
Talvez tendo percebido isso, Orsted respondeu em silêncio:
— Tudo bem. Faremos o que você aconselha, então.
— Obrigado.
Escapei-me de uma boa, mas pode ser que ainda tenhamos que matar Luke no
final. Se chegasse a esse ponto, Sylphie poderia ficar ressentida comigo por causa
disso. Isso poderia até mesmo levar a um divórcio. Esse pensamento fez meu
estômago doer. Mesmo assim, eu tinha que me preparar, apenas no caso de eu
ter que cruzar aquela linha no final.
Enfim, isso dá um jeito no que diz respeito a Luke.
Aproveitando o embalo do assunto, também tirei outras dúvidas que tinha em
mente.
— Você falou antes que o Deus-Homem não consegue controlar várias pessoas
de uma vez, certo? — perguntei. — Sendo assim, quantas ele consegue?
Orsted mencionou brevemente de passagem que o Deus-Homem não podia
controlar toda uma multidão de uma vez, mas isso significava que
ele poderia controlar mais de uma pessoa, certo?
— Eu não posso lhe dar um número preciso, mas é mais provável que seja em
torno de três.
Só três, hein? Menos do que eu esperava.
— E quais são as chances de que ele possa controlar mais do que isso? —
perguntei.
— Não é impossível, mas quando tentou me matar, empregou apenas três pessoas
para o ato. Nenhum dos outros veio diretamente atrás de mim. Provavelmente
estamos seguros em assumir que são apenas três.
— Quais eram essas três?
— O Deus da Espada, o Deus do Norte e o Rei Demônio.
E, aparentemente, Orsted virou o jogo contra todos eles.
Um Rei Demônio e mais dois dos Sete Grandes Poderes, hein? Se nem mesmo
esse tipo de poder de fogo foi suficiente para se livrar de Orsted, não é de admirar
que o Deus-Homem tenha desistido dessa rota.
Se ele jogasse esse tipo de gente contra mim, é provável que eu não tivesse
chance. Embora se ele pudesse provavelmente já o teria feito. Eu suspeitava que
estava alterando lentamente os destinos das pessoas por longos períodos, como
fez comigo.
Talvez seja um grande fã de vídeos de máquina de Rube Goldberg1.
— Mas por que será que só consegue controlar três…? — murmurei.
— Porque esse é o limite de suas habilidades de previsão.
— Quer dizer que ele só consegue prever o futuro de três pessoas por vez, e mais
do que isso é impossível?
— Correto.
Eu me perguntei se isso significava que ele poderia ser capaz de controlar quatro
pessoas, assumindo que não visse o futuro delas.
Não, alguém que pode trapacear e ver o futuro nunca apostaria desistindo desse
poder específico. Fazia sentido supor que controlaria apenas três pessoas e não
mais.
— Então, se Luke é um desses três, isso significa que ele tem mais dois sob seu
controle — eu supus.
— Não há nenhuma evidência de que esteja controlando três pessoas agora.
Dei de ombros.
— Você pode estar certo, mas acho que há uma boa chance de que tenha pelo
menos uma pessoa sob seu controle no Reino Asura.
— Por que acha isso? — perguntou Orsted.
— Se o Deus-Homem realmente não quer que Ariel suba ao trono, faz sentido
ele controlar alguém que se opõe a ela e alguém que a esteja apoiando. Perfeito
para coletar e divulgar informações, né?
— O Deus-Homem não precisa ir tão longe para… Não, suponho que haja algum
valor em relatar seus movimentos à oposição. — Apesar de sua discordância
inicial, Orsted conseguiu se convencer a concordar comigo.
Mas agora que pensei nisso, o Deus-Homem podia ver o coração das pessoas.
Talvez não precisasse reunir informações. Embora as perspectivas futuras de
Ariel estivessem obscurecidas de sua visão graças à minha presença, ter alguém
que pudesse nos vigiar era mais do que suficiente para ele.
— É perfeitamente possível que ele esteja envolvido em algo bem diferente —
pensei em voz alta. — Tipo, talvez ele esteja esperando para atacar minha família
quando eu sair de casa ou algo assim.
— Com a Besta Sagrada servindo como guardiã de sua família, o Deus-Homem
não pode atacá-los quando bem entender. Aquela criatura tem poder suficiente
para que você não precise se preocupar com isso.
Eu o encarei.
— Mais do que Arumanfi?
Orsted bufou.
— Os espíritos de Perugius nem podem se comparar.
Era difícil acreditar no que ele estava dizendo, sendo que Léo ainda não havia se
mostrado digno, mas era o Rei Dragão que estava falando. Certamente, eu podia
confiar no que estava dizendo. Para ser honesto, eu não tinha como saber de
qualquer maneira.
— Mudando de assunto — disse Orsted. — Você provavelmente está certo sobre
o Deus-Homem ter um fantoche no reino.
Concordei com a cabeça.
— Então a chave para a vitória será farejar essa pessoa, presumo eu?
— De fato. Não sei nada sobre seu terceiro apóstolo, assumindo que ele tenha
um. Pode ser que essa pessoa esteja operando separadamente e não esteja
relacionada ao trono asurano. Mantenha-se atento.
Para alcançar a vitória contra o Deus-Homem, tínhamos que identificar seus três
fantoches, derrotá-los e alcançar nossos próprios objetivos no processo.
Provavelmente teríamos que repetir esse processo várias vezes. Nosso objetivo
atual era colocar Ariel no trono. Embora não tenha sido confirmado, era provável
que Luke fosse um de seus lacaios. As identidades dos outros dois ainda eram
um mistério.
— Há alguém que você conhece com certeza absoluta que não está do lado dele?
Perguntei isso sabendo que estava pedindo o impossível. Realmente não
importava quem eram os fantoches do Deus-Homem; nossos objetivos não
mudariam. Ainda assim, se ele assumisse o controle de Zanoba ou Cliff, e Orsted
me encarregasse de matá-los, eu não saberia o que fazer. Ficaria arrasado.
— Sua família está a salvo da influência dele. Além da pulseira que você usa,
eles também estão sob a proteção da Besta Guardiã.
— E quanto a Cliff e Zanoba?
Depois de uma pausa, ele disse:
— Eles podem ser possíveis alvos. Tenha cuidado perto deles.
É sério? Essa não era a resposta que eu queria ouvir.
— Há algo que possamos fazer para garantir que não caiam em suas mãos? —
perguntei.
Orsted balançou a cabeça.
— Não. Se achar necessário, pode avisá-los para não ouvirem as palavras de
alguém que se autodenomina Deus-Homem. Embora eu duvide que isso lhe faria
algum bem.
Nada bom, né? Bem, isso me coloca em apuros.
Era uma questão de sorte. O Deus-Homem não se apegava a ninguém. Tudo o
que eu podia fazer era rezar — para um deus diferente — para que Zanoba e Cliff
não se tornassem alvos dele.
— Por enquanto — eu disse, mudando de assunto —, eu deveria trabalhar para
obter o apoio de Perugius para ajudar Ariel no caminho para se tornar rainha,
certo? Esse plano ainda não mudou?
— Correto. Embora você deva permanecer cauteloso com o apóstolo do Deus-
Homem. Se ele começar a propor algo, me informe imediatamente.
— Muito bem.
Pelo menos nosso plano de ataque permaneceu o mesmo por enquanto.
— De qualquer forma, parece que Ariel se esforçou bastante. — Acariciei o
queixo. — Pelo que posso ver, ela não tem nada para influenciar a opinião de
Perugius.
— Hm. — Orsted apenas grunhiu.
— A última vez que estive com os dois, acredito que ele perguntou a ela qual é
o elemento necessário para ser rei, e ela não foi capaz de responder
adequadamente.
— Ah, sim. É muito a cara dele fazer uma pergunta dessas.
— Você… por acaso sabe a resposta? — perguntei.
Orsted olhou para mim.
Eita! Você não tem que me dar uma encarada feia dessas. Já entendi. Este é um
obstáculo que ela precisa superar se quer ser rainha, certo?
— Não tenho ideia — disse ele. — No entanto, a única pessoa que Perugius já
apoiou para o trono foi Gaunis Freean Asura. Se pesquisar sobre ele, deve ser
capaz de encontrar uma pista para levá-lo na direção certa.
Espere, então você também não sabe? Bem, acho que me deu uma dica pelo
menos.
— Tudo bem. Então vou partir para resolver isso. — Era o trunfo que eu usaria
para entrar em contato com Ariel.
Antes de sair, Orsted me emprestou um de seus itens mágicos.
Digo emprestar porque ele chamou de presente, mas eu penso nisso como
equipamento para o trabalho. Era um manto, e convenientemente cinza, mesmo
que eu não tivesse nenhuma participação em sua criação. Era um pouco mais
escuro do manto que eu estava usando.
— Esse manto foi usado pelo grande sábio Titiana há um milênio — disse Orsted.
— É feito de pele de um Rato-víbora da Morte, tecido com fios magicamente
imbuídos. Tem alta resistência mágica e é à prova de facadas. Provavelmente se
tornou um item mágico depois de ser deixado em um labirinto por um longo
período, onde desenvolveu a capacidade de reduzir o peso do usuário pela
metade, o que significa que pode se mover como o vento, se necessário. Como
não pode usar a Aura de Batalha, isso deve ser útil.
Se suas palavras fossem reais, era um item incrível.
— Então… — lambi os lábios. — Qual seria o preço de algo desse nível?
— Peguei isso do Repositório do Povo Dragão depois da última vez que nos
vimos. Valeria uma quantidade decente, se vendido, mas estou te dando para que
possa se proteger. Use.
Ops. Ele me leu como um livro.
Eu me perguntava o que era o Repositório do Povo Dragão. Eles tinham um
monte de itens como esse guardados lá? Era provável que sim. Eu já podia
imaginar: botas que podiam abrir baús de tesouro com um chute, um trompete
que podia revelar salas secretas…
De qualquer forma, este manto aumentaria minha proficiência em combate. Com
certeza estava bem abaixo da minha Armadura Mágica, mas eu poderia
preencher a lacuna com o meu próprio conhecimento e coragem.
Mas espera lá, não tenho nada disso. Oh, bem, acho que vou ter que tentar o meu
melhor de qualquer maneira.
Naquela noite, chamei Sylphie para o meu quarto. Se eu ia ajudar Ariel, precisava
falar com minha esposa primeiro. Sylphie deve ter percebido que era um assunto
sério, pois, quando apareceu, ela estava com suas roupas normais em vez de
pijamas. Por mim, tudo bem, considerando o tópico que eu estava prestes a
abordar.
— Então, Rudy, sobre o que queria conversar? — perguntou Sylphie, com uma
expressão resguardada.
Dificilmente poderia culpá-la por ser cautelosa. Nas últimas vezes que a chamei
aqui, tinha sido para transmitir o que ela deve ter pensado que era conversa de
louco.
— Sylphie, vou ser direto — eu disse.
— Tudo bem.
— Fui ordenado a ajudar a Princesa Ariel a se tornar rainha.
Ela fez uma careta desconfiada, então seu rosto se iluminou, mas quase tão
rapidamente ela voltou a franzir a testa de novo.
— Ordenado? — repetiu ela.
— Isso mesmo.
— O que significa que você não está fazendo isso por vontade própria?
— Orsted foi quem mandou.
Seu comportamento mudou completamente. Eu tinha enrolado ao lhe contar a
verdade sobre o envolvimento de Orsted, mas tinha tanta culpa sobre as coisas
que fiz para ela no passado. Desta vez, pelo menos, queria confiar nela e dizer a
verdade. Era uma de suas amigas íntimas de quem estávamos falando.
Sylphie ficou boquiaberta comigo por um momento antes de fechar a mandíbula
e estreitar os olhos.
— E qual é o motivo dele para fazer a Princesa Ariel virar rainha? Ele pode se
beneficiar disso de alguma forma?
— Isso lhe dará conexões com o Reino Asura através de mim. Não parece que
ele quer algo agora, mas pode pedir ajuda no futuro.
— Mas ele é o Deus Dragão. Aquele que te derrotou até perder os sentidos
mesmo quando usou a Armadura Mágica. Sei que o Reino Asura é considerado
o mais poderoso do mundo, mas ainda não consigo imaginar alguém como ele
querendo ter tais relações com eles.
— Há alguns assuntos que só podem ser resolvidos por influência política e não
apenas pela força — argumentei. — É natural que Orsted queira isso à sua
disposição, para que possa usá-lo quando precisar.
Era apenas a preparação da base. Era difícil explicar, mas fazer Ariel ser rainha
agora lhe permitiria colher os benefícios em mais cem anos. Orsted tinha uma
visão geral de como o futuro deveria se desenrolar. Eu não tinha ideia de como
ele faria uso de Ariel no fim, ou se sequer a utilizaria. O que eu sabia, com base
no que li no diário do meu eu do futuro, era que Ariel se tornar rainha seria
inconveniente para o Deus-Homem. Sendo assim, a colocaríamos no trono.
Claro, parte disso era para atrapalhar o Deus-Homem, mas também era um
princípio básico de guerra não deixar seu oponente fazer o que queria.
Todo o plano significava muito mais para Orsted do que para mim. Na verdade,
não significava quase nada para mim. No que me diz respeito, as desvantagens
superam as vantagens. Se eu ajudasse Ariel a assumir o trono, todos me
rotulariam como um de seus apoiadores, e isso significava ser puxado para a
bagunça pegajosa e corrupta que era a política aristocrática. Pessoalmente,
colocar um pé na porta do reino não valia a pena o envolvimento.
Não, meu desejo de ajudar Ariel era puramente pessoal. Ela tinha me apoiado
muito, e era hora de retribuir por isso. Talvez fosse melhor não pensar em prós e
contras, mas sim olhar para isso em termos mais simples. Ariel ficaria muito feliz
caso conseguisse se tornar rainha. Sylphie ficaria muito feliz se sua amiga
próxima conseguisse alcançar seu objetivo. E se conseguíssemos impedir o
Deus-Homem de fazer tudo do seu jeito, Orsted ficaria satisfeito. Eu também me
beneficiaria; o amor de Sylphie por mim se aprofundaria, e Orsted estaria
convencido da minha utilidade.
Sim, essa é a melhor maneira de pensar nisso.
— Bem, deixando à parte as demandas futuras de Orsted, neste momento, acho
que a princesa Ariel só se beneficiará — eu disse.
— Hmm… — Sylphie colocou a mão no queixo. — Acho que você está certo.
Existem muitas pessoas desagradáveis no Reino Asura, e se pensarmos nisso
como uma disputa de vilões contra vilões, não é uma má jogada.
Credo. Sylphie não estava pegando leve. Eu me perguntava o que ela realmente
achava de Orsted. Eu podia admitir que ele parecia um cara do mal, mas parecia
ainda mais ameaçador e indigno de confiança do que eu pensava? Ele parecia o
tipo de pessoa que poderia matar alguém ao conhecê-lo pela primeira vez?
Beleza, não tenho como argumentar com essa última.
— A Princesa Ariel deve ser a única a decidir se devemos aceitar a ajuda dele ou
não — disse ela, estreitando os olhos. — Pessoalmente, quero uma garantia de
que ele não nos trairá.
— Uma garantia?
— Sim. Por que você parece tão certo de que ele não vai nos apunhalar pelas
costas?
Na verdade, não estava confiante. Para ser sincero, ele parecia estar escondendo
algo de mim. Mas parecia mais confiável do que o Deus-Homem, pelo menos.
Se eu o chamasse, ele vinha de imediato.
— Não que eu ache que ele não vai — eu disse —, mas acredito que está sendo
sincero em seus negócios comigo. Enquanto eu não trabalhar contra ele e
continuar me fazendo útil, não acho que será nosso inimigo.
— Se você diz… — Ela franziu os lábios, não totalmente convencida. — Tudo
bem, vou deixar de lado a questão se Orsted é confiável ou não, pelo menos por
enquanto.
— Tem certeza?
— Continuar nosso debate não vai adiantar nada, vai? E parece que você confia
nele.
Dei de ombros.
— Pois é, verdade.
— Teríamos apenas um cabo de guerra verbal interminável se continuássemos
com isso. — Sylphie respirou fundo, endireitou as costas e fixou o olhar em mim
novamente. — Mais importante, acho que devemos discutir quais são seus
planos. Como você, ou melhor, como Orsted pretende torná-la rainha?
Sylphie estava sendo excepcionalmente séria. Agora ela não estava aqui como
minha esposa, mas como guarda-costas de Ariel. Era um lado dela que eu
raramente via. Sua expressão, juntamente com sua natureza natural juvenil, a fez
parecer um nobre distinto.
— Por enquanto, pretendemos persuadir Lorde Perugius a apoiá-la.
— Mas se for entre um Rei Dragão e um Deus Dragão, este, isto é, Orsted, não
seria um nível mais alto? No entanto, ele ainda quer convencer Perugius a nos
ajudar?
Concordei com a cabeça.
— Lorde Perugius tem maior influência política no Reino Asura, e suas palavras
têm mais peso com as pessoas de lá. Em contraste, Orsted não tem absolutamente
nenhuma autoridade em Asura. — Eu só estava repetindo o que ele mesmo me
disse.
— Mas Lorde Perugius não parece se inclinar com tanta facilidade. Não importa
o que a Princesa Ariel diga, ele não dará bola para ela. Luke e eu tentamos
convencê-lo em nome dela, mas sem sucesso.
— Sim, as coisas parecem bem difíceis.
Perugius até se recusou a honrar o pedido de Orsted para ajudá-la. Eu pensei que
ele teria atendido a qualquer ordem, dado o quanto parecia temer o Deus Dragão,
mas claramente tinha suas próprias opiniões sobre a situação.
— Mas — continuou Sylphie — Zanoba parece ter o agradado. Ele até parece
ter gostado de você também, Rudy. Fico me perguntando qual é a diferença.
— Se eu tivesse que chutar, diria que é porque nós dois não estamos tentando
nos tornar reis — eu disse.
— Tentar pegar uma coroa o ofende de alguma forma?
Um pouco simplista, mas não muito longe da visão pessoal de Perugius sobre os
reis.
Sylphie suspirou.
— Eu me pergunto se ele nunca teve qualquer intenção de ajudá-la desde o
começo.
— Não, se fosse esse o caso, ele a teria recusado logo de cara. Ele parece estar
testando-a.
— Sério? Hm… — Sylphie cruzou os braços e inclinou a cabeça.
— De qualquer forma, eu agradeceria se você me permitisse falar diretamente
com a Princesa Ariel nos próximos dias. Se importa?
— Sem problema. Vou arrumar as coisas para você. Também avisarei Luke. Nós
dois estaremos presentes para a sua conversa. Tudo bem assim, né?
Concordei com a cabeça.
— Por mim, sem problemas. Embora eu gostaria de manter o envolvimento de
Orsted em segredo, assim encobriria isso dizendo que você e Luke me
convenceram a fazê-lo. Pode fazer isso?
— Por que esconderíamos a verdade sobre Orsted? Já que você é seu subordinado
agora, pode dar à Princesa Ariel paz de espírito saber que você está fazendo isso
sob ordens.
Em outras palavras, ela se sentiria aliviada ao ouvir que tinha o apoio do Deus
Dragão. No entanto, eu não queria o apóstolo do Deus-Homem, ou seja, Luke,
tendo mais informações do que era necessário. Mesmo que ainda não tivéssemos
confirmado se ele era um fantoche ou não.
— Os olhos e ouvidos do Deus-Homem podem estar em qualquer lugar. Eu
gostaria de manter os objetivos e ordens de Orsted discretos.
Sylphie fez uma pausa antes de perguntar:
— Orsted está lutando contra esse Deus-Homem, certo? Ele é realmente tão mau
assim?
— Mau ou não, ele tentou matar Roxy, tentou ir atrás de você e tentou me matar
ao me colocar contra Orsted. Ele é nosso inimigo.
— Quê? Ele tentou ir atrás de mim? — Ela sacudiu a cabeça, examinando nossos
arredores. — Ele ainda está atrás de mim?
— Eu não saberia dizer, mas duvido que tenha desistido.
— Nesse caso, vou ficar alerta — disse Sylphie.
— Especialmente à noite.
Sylphie riu.
— A única pessoa nesta cidade que tentaria ir atrás de mim à noite é você, Rudy.
Hahaha, bem, perdi no argumento. Talvez eu devesse fazer exatamente isso hoje
à noite.
De qualquer forma, pelo menos conseguimos elaborar um plano para eu
encontrar Ariel.
— Então, Rudy… — Achei que a conversa tinha acabado, mas Sylphie
continuou. — Se você vai ajudar Sua Alteza, isso significa que também vai ao
Reino Asura, certo?
— Sim, com certeza vou. Não posso meramente convencer Perugius a ajudar e
depois mandá-la embora e fingir que não era mais assunto meu.
Além disso, eu precisaria derrotar qualquer apóstolo que o Deus-Homem tenha
escondido no reino. Também precisava ir atrás da tal de Tristina. O que
significava que nem precisava consultar Orsted sobre se eu precisava ir ou não.
Claramente era obrigado.
— Quero que me leve junto — disse Sylphie.
— O quê?
— Eu sei que você provavelmente quer que eu fique aqui e cuide de Lucie.
Também sei que a Princesa Ariel e Luke querem que eu continue morando aqui
em Sharia. Mas, para ser honesta, quero ajudar. Estou com eles há tanto tempo.
— Ela estendeu a mão e pegou a minha, seus dedos macios se curvando
firmemente em torno dos meus. — Por favor, Rudy. Quero que me leve junto.
Apertei a mão dela. Francamente, eu queria que ela ficasse. Talvez era meu
egoísmo falando, mas queria que ela estivesse onde fosse seguro, onde pudesse
cuidar de Lucie. Não me entenda mal, eu não sou um daqueles caras que pensam
que o destino de uma mulher na vida é ficar em silêncio atrás de seu homem. Era
só que… Não podia explicar, mas não queria que Sylphie corresse perigo.
Ainda assim, Sylphie passou anos com Ariel e Luke. Eles foram companheiros
desde o Incidente de Deslocamento. Eles eram para ela o que Ruijerd era para
mim, e se Ruijerd alguma vez se encontrasse em apuros, eu largaria tudo para
correr em seu auxílio. Eu devia isso a ele depois do quanto fez por mim. Claro,
hesitaria se tivesse que escolher entre ajudá-lo ou proteger a vida da minha
família, mas ele ainda era uma das minhas principais prioridades. Eu tinha
certeza que Sylphie sentia o mesmo sobre Ariel e os outros. A família ainda era
importante para ela, e ela sabia que precisava ajudar a criar Lucie. Mesmo assim,
se seus amigos precisassem de ajuda, ela queria fazer tudo ao seu alcance para
estar lá para eles. Isso era natural.
— Beleza — eu disse. — Então empreste-me sua ajuda, Sylphie.
— Certo! — O rosto de Sylphie se iluminou, sua boca se alargando em um
sorriso.
Foi então que me lembrei do que o Deus-Homem havia me dito: que Sylphie
estava destinada a morrer no Reino Asura. Eu odiava considerar a possibilidade,
mas isso acabaria encurtando seu tempo de vida? Eu estava pensando demais
nisso? O curso da história foi alterado. As coisas podem não acontecer como
aconteceram no diário do meu eu do futuro. Ainda assim, eu tinha que dizer isso.
— Sylphie.
— Sim?
— O Deus-Homem não se envolverá diretamente, mas usará outras pessoas para
ficar no nosso caminho.
— Você quer dizer como ele te usou para lutar contra Orsted? — perguntou ela.
— Exatamente.
Sylphie franziu a testa.
— Então devemos ter cuidado com qualquer um que possa estar sob seu controle.
— Certo. Mas… bem, pode ser alguém próximo a você.
— Alguém próximo a mim? — Ela piscou. — Tipo quem?
— Tipo Luke.
Seu rosto ficou rígido.
— Rudy, isso está fora de questão. Se Orsted está trabalhando para fazer a
Princesa Ariel subir ao trono, então o Deus-Homem vai tentar barrar isso, certo?
O que significa que vai tentar impedi-la, então não tem como ele ir atrás de Luke.
Luke nunca se voltaria contra a Princesa Ariel.
— O Deus-Homem pode encontrar uma maneira de convencê-lo. Ele tem uma
maneira de corromper as pessoas.
Sylphie olhou para mim. Senti uma hostilidade assassina em seu olhar. Talvez
esta tenha sido a primeira vez que a vi me olhar daquele jeito.
— Se Luke ficar longe de mim e tentar machucar Sua Alteza… — Sua voz
vacilou. — Eu vou matá-lo.
Ela disse isso com tanta determinação que me causou um arrepio. Esta foi a
primeira vez que pensei nela como aterrorizante.
— Nem Luke nem eu queremos trair Sua Alteza — continuou Sylphie. — Tenho
certeza de que ele prefere morrer do que ser enganado por alguém e apunhalá-la
pelas costas. E eu também.
Eu era capaz de entender muito bem como ela se sentia. Se eu fizesse algo que
machucasse Ruijerd, até Eris poderia se virar contra mim. Era a mesma coisa
aqui.
— Entendo. Perdão por trazer isso à tona do nada — eu disse.
No entanto, Sylphie balançou a cabeça.
— Não, não há necessidade de você se desculpar. Agradeço por me avisar. Ela
sorriu baixinho.
Ver essa expressão em seu rosto me ajudou a finalmente me fortalecer. Se algum
dia Luke precisasse morrer, eu não poderia deixar que fosse pelas mãos de
Sylphie. Deveria ser eu quem cometeria o ato.
Capítulo 5: Trabalhando em
Equipe
Quando cheguei à fortaleza flutuante, Ariel estava no jardim, dando uma festa
do chá. Sylvaril estava servindo, mas Perugius não estava à vista. Em vez disso,
Nanahoshi era aquela sentada em frente a Sua Alteza.
Ela não deve estar muito preocupada com sua situação, já que pode dar uma festa
do chá, pensei, mas com a mesma rapidez percebi que estava enganado. Ariel
tinha o rosto exausto como o de um assalariado sobrecarregado. Combina
perfeitamente com a exaustão que vi no rosto do Luke.
Ariel se esforçava para colocar um sorriso elegante no rosto, mas não conseguia
esconder as olheiras. Ela deve estar se sentindo encurralada. A maneira como
olhava para Nanahoshi gritava: “Vamos, pergunte-me o que está errado.
Pergunte!”
Nanahoshi a ignorava por completo. Na verdade, ela parecia desconfortável
sentada ali. Não recusaria um convite para tomar chá, mas ao mesmo tempo, era
claro que não queria ser arrastada para a situação confusa entre Ariel e Perugius.
Se alguma vez houvesse uma garota-propaganda para o arquétipo do
protagonista preguiçoso, seria Nanahoshi.
A única razão pela qual ela não fugiu do local foi porque Ariel havia oferecido
sua ajuda quando estava à beira da morte. Mesmo que Ariel só tenha nos
emprestado o uso de seu implemento mágico, ainda era considerado ajuda.
— Oh, Rudeus. — A expressão de Nanahoshi relaxou no momento em que ela
me viu. — Importa-se de vir aqui e sentar um pouco?
Sentei-me entre as duas garotas. Sylvaril aproveitou a oportunidade para me
servir uma xícara de chá. A xícara estalou quando ela a bateu na minha frente, o
que era incomumente violento para alguém tão refinado quanto ela. Olhei para
ela e pude sentir a frieza emanando de trás de sua máscara. Talvez estivesse
zangada com a minha invocação errada de Arumanfi.
Foi mal aí…
— Tudo bem, Rudeus, vá em frente — murmurou Sylphie enquanto se
posicionava atrás de Ariel. A princesa parecia um pouco mais relaxada graças à
sua presença.
Olhei em volta e notei Luke ao fundo. Eu tinha falado com ele antes da nossa
chegada. Disse a ele que cooperaria com a princesa e ele ficou feliz demais,
enchendo Sylphie de elogios por conseguir me persuadir.
— Ora, Lorde Rudeus — disse Ariel. — Já faz um bom tempo. Gostaria de
parabenizá-lo por se tornar subordinado do Deus Dragão Orsted, mas devo
perguntar… você tem certeza de que foi a escolha certa? — Suas palavras
careciam de seu vigor habitual. Ela estava sendo vaga. Talvez Sylphie já tivesse
falado mal de Orsted para ela.
— Obrigado. Estar a serviço de alguém poderoso proporciona uma certa paz de
espírito. Isso vale para qualquer pessoa, não apenas para mim — respondi.
— Você também é muito poderoso. Suponho que pessoas de poder semelhante
tendem a ser atraídas umas pelas outras. Alguém assim sequer me daria um
minuto de seu tempo.
Ah, cara. Ela está se vendendo por pouco. Parece que as coisas estão indo em
uma direção bastante sombria.
— Ei — sussurrou Nanahoshi, me cutucando de lado. — Orsted veio me ver
ontem.
— É mesmo? E?
— Eu me desculpei, e ele me perdoou. Ele me disse que esperava continuar nosso
relacionamento.
— É bom ouvir isso — eu disse.
Foi uma conversa curta, mas parecia que um peso havia sido tirado de seus
ombros. As pessoas costumavam comentar que, se pedir desculpas fosse o
suficiente para resolver os problemas, a polícia não precisaria existir, mas eu
argumentaria que a maioria das coisas poderia ser resolvida por um pedido de
desculpas sincero. Pessoalmente, eu não estaria disposto a perdoar alguém que
me enganou, me levou a uma armadilha e quase me matou… Mas isso só
demonstrava o quão generoso Orsted era.
— Eu também vi Lorde Orsted — disse Ariel, a voz tão agradável quanto um
sino.
Havia algo estranhamente carismático na voz dela que fazia você querer ouvir o
que ela dizia. Sem contar que ela também era linda. Seu cabelo loiro era mais
radiante do que o de qualquer outra pessoa que eu já tinha visto. Ela era a
personificação da própria beleza. Eu estava cercado por muitos homens e
mulheres atraentes, mas se tivesse que classificá-los objetivamente, Ariel estaria
no topo. Não era uma beleza comum; era como uma bela obra de arte. Como se
tivesse saído de um quadro. Com certeza, agora ela não tinha sua energia
habitual, mas isso só lhe dava o brilho efêmero de uma viúva exausta.
— Ele é um homem aterrorizante — continuou Ariel. — Eu só o vi de longe,
mas isso foi o suficiente para todo o meu cabelo ficar em pé, gritando que era
perigoso.
Ah, então ela já o viu.
Provavelmente não é uma boa ideia dizer a ela que eu estou operando sob suas
ordens, então, mas talvez não importasse. Ela já sabia que eu era seu
subordinado.
Ariel continuou:
— Isso foi ontem. Ele foi para casa depois de tomar um chá com Lady
Nanahoshi. Parecia estar de mau humor o tempo todo, mas quando Lady Sylvaril
derramou um pouco de chá nele, não ficou chateado com ela.
Sylvaril derramou chá em Orsted? Ela não poderia ter feito isso de propósito,
certo? Não, deve ter ficado tão apavorada que sua mão escorregou.
— A atmosfera parecia incrivelmente tensa, mas Lady Nanahoshi tinha um
sorriso tão caloroso em seu rosto, um que eu nunca tinha visto antes. Apesar da
aparência e comportamento de Lorde Orsted, ele deve ser bastante magnânimo e
de mente aberta.
Espera, sério? Estou surpreso em ouvi-la dizer isso. Talvez a maldição não seja
tão eficaz nela como no resto do pessoal. Isso funciona a nosso favor, pelo
menos. Ou poderia ser obra do Deus-Homem?
Na verdade, ele se beneficiaria mais com o controle das ações dela. Em vez de
usar Luke para guiá-la, por que não puxar seus pauzinhos diretamente já que ela
estava no comando de todo o show? Orsted nunca havia sugerido tal
possibilidade, no entanto. Talvez ele tivesse uma boa razão para acreditar que o
Deus-Homem não a tocaria.
— Aparentemente, ele é tão odiado por todos por causa de uma maldição que
carrega — eu disse a ela.
— Oh, é mesmo? Nesse caso, talvez eu devesse ter dito olá. Ele era intimidante
o suficiente que mesmo de longe minhas pernas tremiam. Se eu ouvisse a voz
dele de perto, eu poderia me molhar. — Ela riu.
Uh, se molhar…?
— Entretanto seja muito bom se aliviar na frente das pessoas…
— Perdão?
— Lady Ariel. — repreendeu Sylphie.
Tenho certeza que ela estava se referindo a esportes aquáticos, mas vou fingir
que não ouvi isso. A casta superior de Asura parecia estar cheia de pervertidos.
Havia algo incrivelmente imoral em ouvir uma garota tão pitoresca falar sobre
chuva dourada.
— Rudy! Tire esse sorriso depravado da cara! Você está diante da princesa —
gritou Sylphie.
— Sim, senhora. — Cobri a boca com a mão. Meu rosto traiu meus pensamentos
tão facilmente? Claro, eu era um pervertido, mas eu, na verdade, só estava
interessado em ver as garotas que eu gostava fazendo coisas eróticas. Como
Sylphie, por exemplo. Não que eu fosse pedir para ela fazer xixi na minha frente.
Não queria que me odiasse.
— Ugh. — Nanahoshi franziu o nariz, claramente enojada, mas decidi ignorá-la.
— Ahem. — pigarreou Ariel. — De qualquer forma, Lorde Rudeus, fez todo o
sentido para mim quando ouvi que você estava trabalhando para Lorde Orsted.
— Oh? Por quê?
— Porque acredito que seria preciso alguém tão poderoso quanto ele para ser
capaz de controlar alguém como você.
Sério? Acho que não é preciso muito para me controlar. Tudo o que Sylphie tinha
que fazer quando estávamos na cama à noite era dizer: “Ei, Rudy, tenho um favor
a pedir”, e eu abanava o rabo como um cachorro, pronto para fazer o que fosse.
Para ser claro, eu não estava esperando esse tipo de coisa de Ariel. Tudo o que
eu precisava dela era dinheiro vivo. Afinal, eu era o tipo de homem que
trabalhava por duas coisas: dinheiro e mulheres.
Enfim, já estava na hora de pararmos de ficar de enrolação. Eu estava aqui para
falar sobre cooperação, não para conversar sobre Orsted.
— Quando você diz alguém poderoso, também não quer dizer alguém como
você, Princesa Ariel? — perguntei, me fazendo de bobo.
Ariel colocou a mão sobre a boca e estreitou os olhos.
— Oh? Eu não sabia que você lisonjeava as pessoas assim.
Não era para ser simples lisonjeio. Mesmo que eu tenha me tornado insensível a
esses títulos ultimamente, Ariel ainda era a princesa do Reino Asura. Nos termos
da minha vida anterior, ela era um pouco semelhante ao príncipe herdeiro da
Inglaterra em status. Pode-se ter um vislumbre dela em cerimônias oficiais, mas
falar diretamente com ela estava fora de questão, muito menos ser capaz de se
sentar com ela ao redor de uma mesa como esta. Este era o seu nível de
importância.
Deixando seu status de lado, Ariel estava trabalhando duro para aumentar sua
influência. Quase todas as pessoas em uma posição chave em Sharia tinham
alguma conexão com ela. Havia o diretor e vice-diretor da academia, o alto
escalão da Guilda dos Magos, o chefe da oficina de implementos mágicos, o
principal administrador de uma empresa e o líder da filial da Guilda dos
Aventureiros local. Essas eram as conexões que eu conhecia pessoalmente.
Podia-se invocar o nome dela e esperar um tratamento favorável onde quer que
fosse. Não era exagero dizer que sua influência podia ser sentida nos níveis mais
altos das principais indústrias de Sharia.
Em suma, não lhe faltava conexões. Ela tinha muito poder.
— Cogitei a ideia de tê-lo como meu subordinado — disse Ariel.
— Oh, é mesmo?
— Mas logo desisti da ideia. Por uma série de razões, mas principalmente porque
seu poder é demais para eu lidar. — Ela olhou para o lado. Além do jardim
deslumbrante havia uma extensão de nuvens brancas e céu aberto, estendendo-
se ao longe. Ela olhou naquela direção enquanto murmurava para si mesma: —
Você tem poder além de si mesmo. Isso será o seu fim.
Por um momento, pensei que estava falando comigo, mas eu estava enganado.
Ariel voltou sua atenção para mim e explicou:
— Quando eu era mais jovem, vi uma peça no palácio. Essa foi uma frase da
Grande Imperatriz Demônio Kishirika Kishirisu.
Eu tinha certeza que ela nunca tinha dito isso. Talvez fosse a frase que outra
pessoa tenha inventado. A garotinha que conheci nunca seria capaz de dizer uma
frase tão inteligente.
— Quando o Cavaleiro Dourado Aldebaran a derrotou, Kishirika o amaldiçoou
com essas palavras enquanto ela estava morrendo — disse Ariel.
— Huh.
— Aldebaran tornou-se rei dos humanos depois disso, mas todos o temiam. No
final, seus retentores o traíram e o mataram.
Essa peça que ela tinha visto certamente mostrava o lado mais sombrio da
natureza humana, mas era bem diferente da história que eu conhecia.
— Essa peça é sempre realizada quando um membro da família real celebra um
marco importante em sua vida.
Esses marcos eram o quinto, décimo e décimo quinto aniversários. No Reino
Asura, essas ocasiões eram sempre celebradas com grandes festas. Pelo que
parecia, a família real também realizava uma peça.
— Ela se desvia da história — Ariel reconheceu —, mas me disseram que destaca
o estado de espírito que alguém da realeza deveria ter.
Então, não é historicamente preciso, como eu suspeitava. Isso não era
surpreendente. Era bem diferente da história que eu conhecia. O Cavaleiro
Dourado Aldebaran e Kishirika Kirisu derrubaram um ao outro na batalha.
Espere, não, talvez eu estivesse pensando no confronto entre o Rei Dragão
Demoníaco Laplace e o Deus Lutador.
Oh, bem, não é tão importante.
— Que estado de espírito é esse? — perguntei.
— Os princípios-chave sobre o que faz um rei: lutar, vencer e governar os
súditos.
Franzi as sobrancelhas.
— No entanto, se isso é realmente tudo, por que o povo de Aldebaran o traiu e o
matou? O rei que escreveu esta peça estava tentando amaldiçoar a geração que
veio depois dele? Quando eu era mais jovem, não podia deixar de ter essas
dúvidas. Foi só quando fiz quinze anos que de repente percebi. “Você tem poder
além de si mesmo. Isso será o seu fim”. Essas palavras resumiam perfeitamente
a mensagem central.
Ela fez uma pausa e olhou para longe novamente enquanto continuava:
— Muito poder levará alguém pelo caminho da destruição. Assim, deve-se
apenas exercer o máximo de poder que seja possível controlar. Se alguém quer
se tornar rei, deve ser capaz de dominar tudo o que tem à sua disposição. Mesmo
agora, ainda acredito que isso seja verdade.
Ariel baixou a cabeça, seus longos cílios lançando sombras sobre as bochechas.
— Estou perfeitamente ciente de que você e Lorde Perugius são mais do que
posso suportar. — Ela usava seu sorriso suave de sempre, mas parecia que estava
à beira das lágrimas. — Vou pedir a ajuda de Lorde Perugius mais uma vez, mas
se ele me recusar, acho que vou desistir de tentar convencê-lo.
— Vai desistir? — perguntei.
— Sim. Nem preciso dizer que não pretendo desistir de me tornar rainha, mas
deixarei de lado meus esforços para obter o apoio dele. Embora seu poder possa
estar além de mim, o trono asurano não está.
Eu não disse nada, mas quase senti vontade de suspirar. Ela estava muito
preocupada sobre se alguém estava “além dela” ou não.
— Princesa Ariel — eu disse.
— Sim, pois não, Lorde Rudeus?
— Que parte de mim você acha que é tão poderosa?
Ariel disse que eu era poderoso e especial. Sempre sonhei em ser visto de tal
maneira, mas, do jeito que as coisas estavam, eu definitivamente não pensava em
mim mesmo como alguém extraordinário. Essa nem era uma visão tendenciosa,
na minha opinião. Eu ainda não tinha atingido um nível que pudesse ser chamado
de impressionante.
— Oh, se eu fosse citar todas as suas qualidades incríveis, a lista continuaria até
não dar mais. Suponho que a maior seria sua impressionante reserva de mana.
— Minha reserva de mana, então?
Bem, é verdade que a minha reserva de mana supera a da maioria das pessoas.
Ter o Aspecto de Laplace me abençoava com uma das boas. Talvez tanto que
uma pessoa comum jamais se igualaria a mim apenas pelo esforço. Eu poderia
também admitir que isso tinha se provado benéfico mais de uma vez no passado.
Ainda assim, uma grande quantidade de mana não era solução para tudo. Todos
os problemas que enfrentei exigiam outras soluções.
— Talvez se minha reserva de mana pudesse resolver todos os problemas que
estou enfrentando, eu concordaria que sou uma pessoa poderosa — eu disse.
— Que problemas são esses?
— É difícil dar um exemplo concreto, pois são uma ocorrência diária. No
momento, passo todos os dias me preocupando como vou explicar o que está
acontecendo para minha família.
Eu estava apavorado com o Deus-Homem e com medo de Orsted também. Eu
tinha ocultado os detalhes e alimentado mentiras para minha família, não tendo
ideia de como explicar as coisas para eles. E Ariel disse que eu era poderoso?
Não me faça rir.
— Não posso falar por Lorde Perugius — eu disse —, mas não sou poderoso,
pelo menos. Sou simplesmente o marido de sua amiga íntima que por acaso tem
uma reserva de mana maior do que a maioria das pessoas, e possuo um monte de
conhecidos esquisitos. Mas sou apenas um mago comum, na verdade. Um que
está constantemente preocupado com alguma coisa. — Esses eram meus
sentimentos honestos, não importa o quão embaraçosamente clichê soasse.
Estendi a mão sobre a mesa e peguei a de Ariel. Sua pele era tão macia, e seus
dedos eram tão delicados que eu quase temia que eles pudessem quebrar em meu
aperto. Sylphie fez beicinho no canto, mas teria que lidar com isso por enquanto.
— Princesa Ariel, eu não vim aqui hoje para uma simples conversa.
— Você veio para tentar discutir algo? — Ariel manteve um sorriso gentil no
rosto, nem um pouco perturbada por eu ter agarrado sua mão de repente. Senti
um pouco de exaustão por trás disso, mas era um rosto impecavelmente
inexpressivo.
— Se isso basta para tocar seu coração, pode ser algo apelativo… Mas, na
realidade, foram Luke e Sylphie que me pediram para vir até aqui.
Em uma exibição incomum de agitação, a cabeça de Ariel sacudiu enquanto
olhava para os dois. Sylphie ficou firme, enquanto Luke rapidamente abaixou a
cabeça.
— Eles me imploraram para ajudá-la.
Seus dedos delicados apertaram os meus como uma morsa de bancada, exibindo
muito mais força do que eu pensava ser possível, o suficiente para me fazer
estremecer.
— Os dois disseram isso…? — murmurou ela.
— Não vim aqui para lhe menosprezar, zombando sobre como precisa da minha
ajuda. Na realidade, é o oposto. — Eu me perguntava sobre como teria reagido
a mim ao ter agarrado sua mão de repente e dizer tudo isso, caso ela estivesse em
seu eu normal e confiante. — Poderia, por favor, me deixar trabalhar ao seu lado?
Uma lágrima caiu dos olhos de Ariel. Era lindo. No entanto, estranhamente,
fiquei surpreso por ela chorar.
Por que será? Me perguntei.
Ariel rapidamente enxugou as lágrimas com a mão livre. Ela forçou um sorriso
e disse:
— Esta é a primeira vez que ouço uma cantada que consegue me abalar
profundamente. — Estava claro que ela não estava brincando; havia ajustado sua
expressão, suas bochechas não estavam corando e ela também não estava mais
chorando. Ela parecia uma princesa digna. — Devo admitir, ficaria grata pela
ajuda — disse Ariel, acenando com a cabeça. — Ainda assim… — Ela abaixou
o queixo e me estudou de perto, tentando descobrir minhas intenções. — Você é
o subordinado de Lorde Orsted agora, certo? Ele realmente permitirá que você
faça uma coisa dessas?
— Já conversei com ele sobre isso — assegurei-a.
— O que significa que você está agindo sob as ordens dele, então, sim?
Sua maldição não parecia completamente eficaz nela, então talvez não fosse um
problema responder honestamente. Mas optei por seguir o plano e manter sua
intenção em segredo.
— Não, de modo algum. — Balancei a cabeça. — Fui eu quem disse que queria
ajudá-la, e ele me disse que eu estava livre para fazer o que quisesse.
Depois de uma breve pausa, Ariel disse:
— Tudo bem. Ótimo. Certifique-se de transmitir minha gratidão a ele então.
Sylphie franziu os lábios, infeliz com a maneira como eu lidei com as coisas,
mas era assim que tinha que ser.
— Nesse caso, estou ansiosa para ter o seu apoio — disse Ariel.
— E mal posso esperar para trabalhar com você. — Reajustamos nossas mãos e
apertamos.
Agora que resolvemos isso, é hora de passar para os detalhes.
— Se vamos fazer de você rainha, poderíamos pedir a ajuda de Lorde Orsted no
assunto…, mas, francamente, ele não tem muita influência no Reino Asura. Eu
não acho que ele seria de muita ajuda para você — eu disse, precedendo meu
ponto principal. — Como tal, acho que a ajuda de Lorde Perugius será crucial.
— Concordo — disse Ariel, séria, sentando-se ereta em sua cadeira.
Talvez eu estivesse apenas imaginando, mas Sylphie e Luke pareciam mais
sérios agora do que há alguns minutos.
Orsted também mencionou que convencer Perugius a apoiar Ariel era primordial,
o que reforçava ainda mais a autoridade que ele tem em Asura. O problema era
como persuadi-lo.
Perugius nos fez uma pergunta antes, que era…
— Qual é a qualidade mais importante que um rei deve ter? Se você puder me
trazer essa resposta, então eu lhe darei meu apoio — eu disse, recitando o que
lembrei de nossa conversa anterior com Perugius.
Os olhos de Ariel se contraíram. Ela tinha torturado seu cérebro repetidamente
em busca da resposta para a pergunta.
— Que tipo de resposta ele quer… — eu disse.
Anteriormente, Ariel havia respondido: “Eles são sábios, ouvem seus ministros
e não se esquecem de sua posição na sociedade”, mas Perugius descartou isso,
dizendo estar incorreto. Ele então virou a pergunta para mim, e eu respondi:
“Acho que prefiro um governante que possa se colocar no lugar do povo comum,
em vez de alguém que confie em suas próprias habilidades.” Perugius chamou
essa resposta de “preferível”, mas isso sugeriu que também não era a correta.
Se o que Orsted falou fosse verdade, Derrick Redbat deve ter encontrado a
resposta correta para esse desafio quando foi questionado. Orsted também
sugeriu que a resposta provavelmente tinha algo a ver com Gaunis Freean Asura.
Claro, como a história havia sido alterada, não havia garantia de que Derrick
tivesse respondido à mesma pergunta que enfrentamos agora, mas valia a pena
investigar.
— Se não me falha a memória, Rei Gaunis era amigo íntimo de Lorde Perugius,
certo? — perguntei.
Ariel assentiu.
— Sim, a história de sua amizade é famosa. Lorde Perugius também parece muito
nostálgico quando ele aparece em uma conversa.
— Nesse caso, qualquer que seja essa qualidade, Rei Gaunis deve ter possuído.
Certo?
— Talvez.
— Você pode pesquisar sobre ele, não é? Deve ter alguns registros.
Pensei que minha sugestão era infalível, mas sabe-se lá o motivo, Ariel e seus
dois guarda-costas pareciam menos entusiasmados.
— Odeio dizer isso a você… — disse Ariel.
— O quê? Eu disse algo estranho?
— Não, mas já investigamos o Rei Gaunis. Não encontramos nada digno de nota
nos arquivos desta fortaleza flutuante, nem na biblioteca de Ranoa.
Ah, então eles já tentaram essa rota. Fazia sentido. O relacionamento de Perugius
com Gaunis era conhecido por toda parte. Seria mais estranho se não tivessem
seguido essa pista.
— Se pudéssemos verificar a biblioteca nacional em Asura, pode haver algo que
ele publicou que possa nos dar uma visão melhor, mas…
É verdade que o melhor lugar para encontrar informações sobre um rei asurano
seria na biblioteca do reino. Mas, por razões óbvias, teríamos dificuldade em
fazer uma visita ao lugar agora.
— Bem, isso é preocupante — eu disse. — Nesse caso…
Talvez fosse melhor perguntar sobre Derrick. Mas como eu faria tal indagação?
Todos achariam estranho que eu soubesse sobre ele, para começar.
— Hum, antes de discutirmos mais isso… — Ariel olhou brevemente para
Sylvaril. — Tem certeza de que está tudo bem? Lorde Perugius pode ouvir tudo
o que estamos dizendo.
Inclinei a cabeça.
— E? Acredito que ele vá achar tudo divertido.
— Eu me preocupo que ele não permita que discutamos esse assunto como um
grupo — explicou Ariel.
Ah, é isso que ela quer dizer. Ariel pensou que ele poderia querer que ela
pensasse sobre isso e encontrasse uma resposta por conta própria. Eu, por outro
lado, não tinha tanta certeza de que esse era o objetivo dele.
Olhei para Sylvaril. Ela agitou suas asas suavemente antes de dizer:
— Não importa para Lorde Perugius como você chega à sua resposta. Se for a
correta, ele lhe dará seu apoio. — As palavras não foram ditas, mas seu tom
insinuava: Isso é óbvio. Ele é, afinal, uma pessoa muito magnânima.
— Você quer dizer que eu deveria ter consultado os outros desde o início? —
perguntou Ariel.
Sylvaril assentiu.
— Na verdade, Lorde Perugius estava profundamente intrigado com o motivo
pelo qual você estava tentando resolvê-lo por conta própria.
Ariel sorriu amargamente.
— Eu me encurralei pensando demais, pelo que vejo. — murmurou ela para si
mesma, depois se levantou, sua determinação renovada. Ela ergueu os braços,
jogando o cabelo loiro para o alto. Ela caiu sobre os ombros enquanto se
espreguiçava, com as mãos entrelaçadas no ar. Então estalou o pescoço e bateu
nas bochechas.
Não é o tipo de comportamento que se esperaria de uma princesa.
Às vezes, as pessoas podiam se limitar pensando demais. Elas eram
frequentemente sobrecarregadas pela crença de que as coisas tinham que ser de
uma certa maneira e que não havia alternativas. Esses preconceitos e objeção
muitas vezes levavam as pessoas para longe do caminho correto. Era só quando
uma pessoa percebia que estava enganada, quando notava a existência de
diversas maneiras de realizar a mesma coisa, que seu campo de visão se expandia
e fazia com que se sentisse mais livre do que nunca. Eu tinha experimentado algo
semelhante quando Roxy me arrastou para fora pela primeira vez.
— Tá bom! — declarou Ariel. — Sylphie, Luke, sentem-se.
— Como ordenar!
— Tudo bem.
Os dois se acomodaram alegremente à mesa, o que só fez Nanahoshi se sentir
ainda mais estranha.
— Agora, então, vamos começar nossa reunião — disse Ariel, exalando a mesma
confiança que eu tinha visto dela quando a conheci.
Devo começar a bater palmas? Não, é melhor não.
Em vez disso, levantei a mão e disse:
— Antes de começarmos, gostaria de ter certeza de que estamos todos em
sintonia. Se importa?
— Sintonia? — repetiu Ariel.
— O que eu quero dizer é que eu realmente não sei muito sobre você, Sua Alteza.
— Suponho que não… Bem, o que gostaria de saber? — Suas bochechas coraram
e Sylphie olhou significativamente para mim.
Ah, fala sério. Não estou pedindo as estatísticas vitais dela. Estou tentando ter
uma conversa séria.
— Primeiro, se não se importar de compartilhar, eu gostaria de ouvir o motivo
de você querer se tornar rainha.
Eu sabia que ela queria se tornar rainha, mas só tinha pegado partes sobre suas
motivações. Ela mencionou algo sobre quantas pessoas morreram por ela.
Presumi que Derrick fosse um deles.
— Tenho quase certeza de que já te disse quais são minhas motivações — disse
Ariel.
— O quê? Disse?
— Sim, quando você e Sylphie se casaram.
— É mesmo…? — Cocei minha cabeça. — Bem, eu gostaria que você me
lembrasse mesmo assim.
— Eu disse a você que não seria capaz de enfrentar as pessoas que acreditavam
em mim e morreram por mim se eu não me tornasse rainha.
Concordei com a cabeça.
— Entendo. Então está fazendo isso pelas pessoas que sacrificaram suas vidas
por você… Poderia me contar mais sobre essas pessoas?
Ela sorriu e inclinou a cabeça.
— Isso é de alguma forma relevante para o nosso problema atual?
Reconheço um olhar de rejeição quando vejo um. Ela não quer falar sobre isso.
— Não sei se tem alguma relevância ou não — confessei. — Mas do meu ponto
de vista, parece que Lorde Perugius está testando você. Nesse caso, talvez se
vasculharmos sua história e motivações, possamos encontrar pistas que nos
levem à resposta que buscamos.
— Entendo o que você quer dizer.
Eu estava apenas dizendo isso como uma desculpa, mas na verdade faz sentido.
Francamente, eu não tinha ideia do que fazia um verdadeiro rei, ou o que quer
que Perugius quisesse chamá-lo. Eu não sabia nada sobre reis além do que tinha
lido em um romance há muito tempo. Lembrei-me de uma frase que dizia algo
como: “Um rei vive pelo seu povo. Não, é mais do que isso, ele existe para guiar
o povo”. Minha ignorância sobre o assunto significava que espremer meu cérebro
com a questão não seria muito produtivo.
— Pois bem, então. Devo avisá-lo que muitos morreram. Perdemos um número
especialmente grande quando fugimos de Asura. Treze, para ser precisa. Os
quatro cavaleiros eram Alasdair, Callum, Dominic e Cedric. Os três magos eram
Kevin, Johan e Babette. Meus seis empregados eram Marcellin, Bernadette,
Edwina, Florence e Corinne. Duvido que algum dia esquecerei seus nomes
enquanto eu viver. Nossa jornada foi brutal. Lutamos juntos e superamos tantos
obstáculos. Cada um deles desejava desesperadamente que eu me tornasse rainha
e morresse tentando fazer isso acontecer.
Espera, o quê? Derrick nem está entre os nomes que ela listou. Que estranho…
Orsted havia mencionado que Derrick havia morrido, mas Ariel nem o
mencionou. Talvez ele não fosse tão importante para ela? Talvez ele tivesse
descoberto algo a partir dos treze que ela mencionara, caso estivesse vivo.
— Conte-me mais sobre cada um deles — eu disse.
— Pois bem. Levará algum tempo para fazer isso. Algum problema referente a
isso?
Balancei a cabeça.
— Não me importo. Cada um deles deve ter sido importante, então eu odiaria
pular um que fosse.
Assim que eu disse isso, a atmosfera ficou menos tensa. Ariel sorriu quando Luke
ficou boquiaberto de surpresa. Seja qual fosse o motivo, Sylphie parecia estar
sorrindo orgulhosamente. Nanahoshi era a única que parecia desconfortável.
— Tudo bem, nesse caso…
Ariel lentamente começou a se abrir sobre as treze pessoas que havia perdido.
Ela me contou onde nasceram, como foram criados e como conheceu todas elas.
Ela também entrou em seus gostos e desgostos, suas personalidades, do que mais
se orgulhavam, quais conversas tiveram, o que as fazia rir, o que as deixava com
raiva e o que as fazia chorar. Não poupou detalhes. Até me contou quem se dava
bem com quem, quem gostava de quem e quem odiava quem. No fim, explicou
como cada uma delas morreu. Cada pessoa tinha sua própria parcela de drama,
mas todas eram gente de verdade, que viveu e morreu.
A conversa me disse tudo o que eu precisava saber sobre cada um dos treze.
Sylphie e Luke também entraram aqui e ali com suas próprias lembranças dos
falecidos. Todos os três tinham uma riqueza de informações que podiam
compartilhar sobre o grupo que perderam, o tanto que se lembravam deles.
Suspeitei que as outras duas garotas que serviam Ariel, que não estavam
presentes no momento, pudessem fazer o mesmo.
Meu eu do futuro disse que Sylphie partiu para se juntar a Ariel porque se
desencantou com ele, mas, pessoalmente, acho que ela teria ido de qualquer
maneira. Os laços compartilhados pelo grupo deles eram tão fortes que eu não
podia descartar essa possibilidade. Para ser honesto, estava sentindo um pouco
de ciúmes. Deram suas vidas por Ariel, morreram protegendo-a. O peso disso
era algo que eu conhecia muito bem. E eu achava que era uma coisa boa Sylphie
saber disse, também.
— Isso é tudo — disse Ariel assim que terminou.
— Hm, interessante…
Infelizmente, nada do que ela havia dito parecia relacionado ao que era preciso
para ser um “verdadeiro rei”. De certa forma, os laços que ela tinha com eles
pareciam evidências suficientes de que ela estava apta para o papel. Afinal, a
távola redonda do Rei Arthur também tinha treze assentos.
Sim, claro, se incluísse os sobreviventes, não chegava a treze, mas mesmo
assim…
— Oh, minha nossa, esqueci de outra pessoa que era muito importante — disse
Ariel.
Era isso que eu estava esperando. Tem que ser…
— Derrick Redbat.
Viu, eu sabia! Era isso que eu estava esperando.
Fiquei quieto, esperando que ela continuasse, mas Ariel apenas juntou as
sobrancelhas enquanto seu rosto se franzia.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ah, é só… Para dizer a verdade, de repente percebi que realmente não o
conhecia tão bem.
Ugh, ótimo. Então ele bateu as botas antes de ficar próximo dela.
Isso era um problema. Ela poderia ter mais a dizer sobre ele se, como na linha
do tempo original, os dois tivessem lutado lado a lado e construído confiança
enquanto ambos colocavam suas vidas em risco. Mas, infelizmente, ela não fez
isso. Se os dois não tivessem construído memórias juntos, então ela não saberia
que tipo de pessoa ele era, e eu não seria capaz de usar essa informação para
descobrir como ele conseguiu influenciar Perugius.
— Você se lembra de alguma coisa sobre ele? — perguntei. — Não importa se
parecer insignificante. Você disse que ele era alguém importante, então tinha que
haver algo, certo?
Minha única opção era pressioná-la por respostas.
— Vejamos… Ele era uma pessoa muito séria e profissional.
Ariel continuou adicionando alguns detalhes, mas ele parecia muito…bem,
normal para mim. Apenas um mago mediano e esperto. Era um intrometido
irritante, do tipo que sempre suspirava de exasperação com as palhaçadas de seus
amigos. Quando Ariel saía e fazia as coisas por conta própria, ele olhava para ela
com um olhar crítico e a repreendia. O que ela me passou me fazia lembrar de
Cliff. Ou talvez ele fosse mais como o Vice-Diretor Jenius. De qualquer forma,
ele era basicamente o equivalente a um avô intrometido sempre se preocupando
com o futuro de Ariel.
— Na época, meu comportamento não era digno de alguém que poderia se sentar
no trono. Eu vivia um estilo de vida indolente. Nem sonhava em me tornar
rainha… Foi quando aconteceu o Incidente de Deslocamento. Uma besta
apareceu de repente, e Derrick morreu me protegendo. Seu último desejo era que
eu me tornasse rainha. Foi por isso que passei a seguir esse caminho.
— Entendo.
Nada do que ela me descreveu me mostrava o que ele tinha em mente ou o que
desejava, o que era uma pena, pois ela tinha me falado mais do que o suficiente
sobre os treze que morreram durante sua jornada até aqui. Essa conversa também
não deu nenhuma pista.
Tem que haver alguma coisa, pensei. Alguma maneira de extrair as informações
de que preciso…
Enquanto eu estava murmurando para mim mesmo, contemplando uma solução,
alguém de repente falou:
— Pensando bem, ele nunca duvidou que a Princesa Ariel seria a próxima rainha.
Ele aproveitou todas as oportunidades que pôde para sugerir que ela assumisse o
trono — disse Luke. Ele fez uma pose sensual, colocando a mão no queixo
enquanto se lembrava do que sabia. — Talvez ele soubesse a resposta; sabia o
que faz de alguém um verdadeiro rei. Isso explicaria o porquê dele estar tão
confiante de que ela se tornaria rainha, porque sabia que ela possuía essa
qualidade.
Bom trabalho, Luke!
Fazia sentido quando eu pensava nisso: Luke, como Ariel, tinha sido próximo de
Derrick.
Mas tenho que ter cuidado com o que ele diz. É possível que ele só esteja
compartilhando isso baseado no conselho que recebeu do Deus-Homem.
Era melhor presumir que qualquer coisa que Luke sugerisse poderia ser perigosa,
mesmo que o próprio homem não quisesse fazer mal.
— Interessante. Isso certamente é possível — disse Ariel. Ela assentiu, como se
as palavras que Derrick lhe dissera finalmente fizessem sentido com esse
contexto adicional.
— Infelizmente, ele já não está mais conosco. — Luke a lembrou.
Todos ficaram quietos. Não tínhamos como saber o que Derrick estava pensando.
Enquanto o silêncio se estendia, a atmosfera ficou mais pesada. Talvez
tivéssemos passado muito tempo nos debruçando sobre aqueles que nos foram
perdidos.
— Bem, de qualquer forma, vamos continuar pensando nisso e ver se podemos
encontrar outras pistas — eu disse.
Minhas palavras não fizeram nada para aliviar o ar sombrio que se instalara sobre
a mesa. No final, não encontramos opções construtivas naquele dia
Capítulo 6: Sugestão de Osterd
Sair do círculo de teleporte foi como acordar de um sonho. Não importa quantas
vezes eu experimentasse, jamais me acostumaria. Isso me fazia lembrar bastante
dos encontros com Deus-Homem.
Olhei para meus companheiros. Quase todos tinham olhares surpresos no rosto.
Até mesmo a sempre séria Eris estava boquiaberta enquanto olhava em volta.
Ghislaine foi a única que não pareceu surpresa.
Pensando bem, ela é a primeira do povo-fera a usar um círculo de teleporte.
Foi a primeira vez que vi Ariel totalmente chocada. Ela olhou para cima, com a
boca entreaberta e seus olhos desfocados, olhando para longe.
Fico imaginando se ficaria brava comigo se eu colocasse meu dedo em sua boca.
Deixa quieto. Mesmo que não ficasse, Sylphie com certeza teria um ataque.
— Ah! — Ariel finalmente piscou e recuperou a compostura. Ela se virou para
mim. — Chegamos ao nosso destino, não é mesmo?
— Sim.
Estávamos em um local de piso e paredes de pedra, semelhante às ruínas da Tribo
Dragão que visitei. Todos os outros círculos de teleporte que utilizei levavam a
lugares como este. A única diferença era que este aqui tinha uma porta decente,
e o local estava preenchido pelo cheiro de tinta, pergaminho e mofo. Isso me
garantia que definitivamente tínhamos chegado à Biblioteca Labirinto, mesmo
que não houvesse livros ali.
— Disseram-me que não havia perigo real aqui, mas, no final das contas, o lugar
é um labirinto — eu disse. — Vamos ficar atentos.
A tensão voltou aos rostos de Sylphie e Luke. A expressão de Ghislaine
permaneceu ilegível como sempre, e Eris… bem, Eris parecia bastante animada.
— Eu vou assumir a liderança! — declarou ela, indo em direção ao corredor que
levava mais a fundo no labirinto.
— Calma aí!
— Gah?!
Agarrei-a pela blusa para impedir seu avanço. Ela se virou e me encarou.
— Qual que é a sua?
— Eris, pode haver armadilhas. Deixe outra pessoa assumir a liderança. Se uma
luta começar, você pode tomar a vanguarda, mas por enquanto, fique para trás.
— Certo. — Ela franziu os lábios, fazendo beicinho enquanto relutantemente
recuava para trás de mim.
Beleza, mas tem um problema: quem deveria assumir a liderança? As únicas
pessoas com alguma experiência em um labirinto sou eu e…
— Hm? — grunhiu Ghislaine.
Ghislaine, eu acho.
Geese e vários outros me contaram tudo o que eu precisava saber sobre as
terríveis consequências de deixar Ghislaine liderar um grupo. Como alguém do
povo-fera, ela poderia ser capaz de farejar o perigo e evitá-lo, mas tinha o talento
de tropeçar em todas as armadilhas possíveis e pular de cabeça em enxames de
monstros. Ela definitivamente não era uma boa escolha para nos liderar.
— Já que tenho um Olho da Previsão, vou assumir a liderança — eu disse. —
Eris seguirá logo atrás de mim. Ghislaine e Luke protegerão a Princesa Ariel de
ambos os lados e Sylphie cuidará da retaguarda. Parece ser a melhor maneira de
prosseguir. O que vocês acham?
Pessoalmente falando, achei que era uma formação inteligente, e todo mundo
parecia concordar, acenando com a cabeça em silêncio.
— Não tenho objeções — disse Ariel. — Vamos deixar você assumir a liderança,
Lorde Rudeus.
Com o selo de aprovação de Ariel, entramos em formação.
Eu estaria explorando o caminho à frente, mas pelo que Orsted me disse, a
Biblioteca Labirinto diferia de outros labirintos, pois quase não havia armadilhas.
Desde que evitemos quebrar uma regra chave, ficaremos bem.
Falando nisso… devo avisar o resto.
— Enquanto estivermos aqui, pedirei que não utilizem magia de fogo — eu disse.
— Por quê? — Eris exigiu saber.
Sylphie imediatamente entendeu meu raciocínio.
— Porque se você usar magia de fogo em um labirinto, esgotará todo o oxigênio.
O rosto de Eris contorceu em perplexidade, como se não entendesse o que aquela
última palavra significava. Sylphie era claramente mais experiente neste campo,
mas seu palpite, embora bom, estava errado.
— Há isso também — admiti. — Mas na verdade é porque os monstros aqui
ficarão com raiva e atacarão qualquer um que danificar, queimar ou roubar
qualquer um dos livros. Não espero que tenhamos que lutar, mas se tivermos, por
favor, tenham cuidado para não danificar nenhum dos tomos.
— Que monstros estranhos — murmurou Eris.
— Bem, para ser mais específico, eles são na verdade familiares do Rei Demônio
que vive nas profundezas deste labirinto. Qualquer um ficaria com raiva se
alguém danificasse suas coisas.
— Faz sentido — assentiu Eris. — Certo, entendi!
Felizmente, desta vez ela quis mesmo dizer isso, não estando apenas agindo de
maneira corajosa.
— Não estou falando apenas com você, Eris. Também quero que vocês tenham
cuidado, Ghislaine, Luke.
— Entendi — grunhiu Ghislaine.
Ansioso, Luke franziu a testa e disse:
— E se não tivermos outra escolha?
— Não sei dizer quanta tolerância esse Rei Demônio tem. Também é a minha
primeira vez aqui.
— Tudo bem… — Luke estendeu a mão em direção ao punho de sua espada, as
sobrancelhas ainda franzidas. Ele não era um espadachim muito habilidoso. Para
os padrões médios, era bom o suficiente, mas não chegava nem perto do nível de
controle perfeito que Eris e Ghislaine tinham. Ele provavelmente sabia que havia
uma grande probabilidade de acertar um livro se começasse a balançar a lâmina.
— Se o que me disseram for verdade, não espero que a gente vá batalhar — eu
disse.
— Eu confio em você nisso, mas… na chance de termos que lutar, talvez seja
melhor eu ficar atrás.
— Sendo assim, deixaremos a guarda da Princesa Ariel para você.
Luke assentiu, confiante de que pelo menos conseguiria fazer isso.
— De qualquer forma, vamos andando.
Dito isso, abri a porta à nossa frente.
— Oh, uau… — Ofeguei quando passei pela porta. Não tive como evitar. Um
corredor sem fim se estendia diante de mim, mas não era só isso. Suas paredes,
de três metros de altura, eram compostas por estantes de pedra que se
prolongavam ao longe. Os livros estavam guardados nas prateleiras. — Entendo,
então esta é a Biblioteca Labirinto…
Fui até uma das estantes de livros. Os volumes eram mais como manuscritos,
sem encadernação de capa dura. Na verdade, alguns não tinham uma lombada e
eram apenas feixes de papel unidos. Não, não apenas alguns, mas sim a maioria
do material nas prateleiras. Grande parte parecia mais um amontoado
desorganizado de papel de rascunho e anotações do que uma coleção de notas
organizadas. No meio dessa bagunça, vi apenas um volume que tinha uma capa.
Seu título era Ledger, escrito na Língua do Deus Demônio. Com base nisso,
imaginei que continha registros contábeis de alguma loja em algum lugar do
Continente Demônio.
Calmamente olhei para a prateleira da parede oposta. Era igual. De que adiantaria
um monte de papel rascunhado como esse para alguém? Era um mistério para
mim. Pelo menos se encaixava no significado de Biblioteca Labirinto, até mesmo
o seu conteúdo era como um labirinto.
— Rudeus? Qual é o problema? — perguntou Eris.
— Oh, não. Não é nada.
Tentar encontrar o livro que procurávamos seria como procurar uma agulha num
palheiro. Eu me perguntei se realmente seríamos capazes de localizar algum
material sobre o Rei Gaunis.
— Vamos, temos que continuar andando — disse.
Caminhamos por um bom tempo depois disso. As estantes seguiam até o infinito.
No início, tudo que podíamos ver era um corredor que seguia em frente, mas
aparentemente tinha uma ligeira curva. Havia uma breve lacuna nas prateleiras,
onde o corredor se ramificou na forma de um H.
Decidi seguir em frente, deixando um sinal para marcar onde estávamos antes de
seguir em frente. Encontramos vários monstros em nosso caminho. Um era um
caracol grande o suficiente para bloquear metade do corredor. Tentáculos que se
contorciam saíam de suas costas. A mera visão causou um arrepio na minha
espinha. Foi só quando percebi que aqueles tentáculos estavam segurando
diversos livros que me senti menos cauteloso. Eu não tinha ideia de como a
criatura era chamada, então decidi chamá-la provisoriamente de Caracol-
Cthulhu.
Também encontramos um slime negro. De longe, não consegui distinguir outras
características além de que era um slime, então decidi chamá-lo assim mesmo
por enquanto. Ambas as criaturas estavam pegando livros e puxando-os para seus
respectivos corpos, descendo o corredor. Eles não chegariam ao seu destino tão
cedo, mas ficava claro que moviam-se com propósito, ou seja, não estavam
apenas andando sem rumo.
Havia também algumas formigas bípedes negras, que chegavam na altura do meu
joelho. Também pareciam ter seus próprios destinos, nem mesmo nos dando um
olhar enquanto seguiam seu caminho. Não tinham características chamativas, por
isso, por falta de algo melhor para chamá-las, decidi me referir a elas
simplesmente como formigas.
Embora as formigas nos tenham visto, não pareciam agressivas, em vez disso,
desapareciam labirinto adentro. Eu estava tão acostumado a monstros atacando
indiscriminadamente que parecia um pouco anticlimático. Eris e Ghislaine saíam
correndo para matá-los a toda hora. Foi um pesadelo tentar detê-las.
Ainda não tínhamos encontrado nenhuma armadilha. No início, nos movemos
pelos corredores com muita cautela, mas depois de uma hora sem nada, parecia
bobagem continuar pisando em ovos. Fiquei feliz, já que isso demonstrava que a
informação de Orsted era precisa. Ele não tentou nos enganar. Nesse ritmo, eu
realmente começaria a confiar nele.
Então, novamente, eu já tinha experiência com um certo grupo que tentou ganhar
minha confiança antes de me apunhalar pelas costas.
Não vou citar nomes, mas digamos que começa com M e rima com Zod.
— Ah, é um beco sem saída.
Foi uma hora de caminhada até encontrar um. Ficamos atentos o tempo todo,
examinando as prateleiras enquanto avançávamos, mas mesmo com o ritmo
lento, era provável que tivéssemos caminhado cerca de quatro quilômetros. A
curva do corredor era suave o suficiente para que eu não achasse que tínhamos
completado uma volta completa ao redor do labirinto ainda.
De qualquer forma, este corredor não tinha nada sobre o Rei Gaunis. Os volumes
cobriam uma junção de assuntos e idiomas, mas uma coisa que tinham em
comum era a data de publicação. Todos foram publicados por volta do final da
segunda Grande Guerra Humano-Demônio, a qual aconteceu há cerca de
trezentos anos.
— Vamos refazer nossos passos até onde o caminho se dividiu pela última vez
— eu disse, dando meia-volta.
A área em questão era aquela que se dividia na forma de H, com dois caminhos
levando para o interior e dois para exterior.
Acho que o mais próximo seria aquele voltado para os corredores exteriores.
— Ei, Rudy… Por que não tentamos entrar primeiro? — sugeriu Sylphie.
— Oh? Por que sugere isso? — perguntei.
— Eu dei uma olhada e parece que os corredores externos contêm volumes mais
antigos, enquanto os internos parecem ser mais recentes.
Se isso fosse verdade, então ir para dentro nos levaria aos anos do reinado de
Gaunis, aqueles após a Guerra de Laplace.
— Beleza — eu disse. — Nesse caso, vamos refazer nossos passos um pouco
mais para o corredor que dá para dentro.
Sylphie, observadora como sempre. Eu deveria saber que você teria um olho
afiado para isso.
Caminhamos novamente por um tempo. Como Sylphie comentou, quanto mais
andávamos, mais recentes eram os livros. Ao mesmo tempo, a curva do corredor
tornou-se muito mais perceptível. Isso também significava que os próprios
corredores eram muito mais curtos do que haviam sido. Estávamos nos
aproximando do centro do círculo.
Eu imaginava o que encontraríamos no meio. Já que isso era um labirinto, talvez
o mestre do lugar? Seu guardião? Orsted disse que os livros foram criados por
um demônio amante de livros, mas talvez isso não fosse tudo. Pode ser que outra
coisa também vivesse ali. Considerando minhas memórias do Labirinto de
Teleporte, eu não queria lutar se não precisasse.
A Guerra de Laplace começou há cerca de quatrocentos anos. Não deveríamos
ter que ir até o centro para encontrar essa seção, lembrei-me, tentando controlar
minha ansiedade.
— Este lugar é meio chato — resmungou Eris, mal-humorada.
Ah, isso traz muitas memórias.
Eu já tinha visto Eris ficar entediada antes. Era melhor avisá-la para não tentar
nada engraçado só porque não estava sendo entretida.
— Eris, eu sei que você não está se divertindo, mas se tentar alguma coisa…
— Eu sei, eu… — Eris de repente puxou sua espada da bainha. Uma fração de
segundo depois, Ghislaine também tirou a dela.
— Quantos?! — perguntei.
Por ter viajado com Ruijerd antes, sabia que isso significava que havia monstros
por perto. Sylphie e os outros também estavam atentos. Meu Olho da Previsão
ainda não havia percebido nada.
— Na próxima curva… para a esquerda… na parte de trás — disse Eris,
surpreendendo-me com o quão bem ela conseguia identificar essa presença
estranha.
— Não sei dizer exatamente quantos são, mas tem vários — acrescentou
Ghislaine.
É a cara dela ser vaga sobre os números. Ela tinha esquecido nossas aulas?
Mesmo depois de todo o esforço que investi nelas?
Certo, agora não é o momento para isso.
— Vou dar uma olhada — eu disse, dando um passo à frente. Movendo-me o
mais silenciosamente possível, fui em direção à interseção em forma de H e
espiei com cuidado para a curva.
Havia mesmo um monte de monstros, principalmente slimes e formigas. Os
slimes estavam se unindo e se separando sem parar, o que tornava impossível
saber quantos eram.
Ainda bem. Ghislaine não esqueceu como fazer contas.
Ainda assim, o que essas coisas estavam fazendo?
— Eles estão cavando as paredes… e fazendo prateleiras?
Pelo que pude ver, as formigas estavam esculpindo na rocha, enquanto os slimes
coletavam os escombros resultantes e os consumiam. Eles então os quebravam
dentro de seus corpos antes de transformá-los e cuspi-los para fazer novas
prateleiras ao longo da parede. Basicamente, a Biblioteca Labirinto era um
embaraço de corredores que eles criavam.
— Não parece haver perigo — anunciei, chamando todos.
Eles se aproximaram nervosamente, espiando ao redor da curva como eu tinha
feito momentos antes. Assim que viram o que estava acontecendo, soltaram um
suspiro de alívio.
— Então eles só estão construindo mais prateleiras — comentou Ariel.
— Orsted me disse que os monstros aqui são basicamente como familiares.
Suponho que isso signifique que são um pouco diferentes das outras criaturas
que vimos antes — eu disse.
Com isso fora do caminho, aceleramos nosso passo em frente.
Devemos ter caminhado por mais cinco horas depois disso. Cada vez que
chegávamos a um canto que levava mais para dentro, nos virávamos, mas muitos
levavam a becos sem saída, e algumas das interseções só tinham corredores que
levavam para fora. Isso impossibilitava chegar ao centro. No entanto, estávamos
gradualmente começando a encontrar livros cada vez mais novos, então eu sabia
que estávamos nos aproximando.
Decidimos fazer uma pequena pausa. Sylphie e Luke não estavam muito mal,
mas Ariel estava bastante exausta. A maior parte do nosso grupo estava em
excelente forma física, mas Ariel não estava acostumada a caminhar tanto. Ela
era de fato uma princesa, no sentido mais literal possível. Enquanto isso, a
(antiga) nobre em nosso grupo estava quase chorando de tanto tédio.
— Este lugar realmente não é nada além de livros. Achei que um labirinto seria
um pouco mais interessante do que isso — murmurou Eris.
Se ao menos ela aprendesse com o exemplo de Ghislaine.
Ghislaine parecia satisfeita apenas com o exercício que tivemos ao caminhar até
aqui.
— Eris, um labirinto não é um lugar divertido — eu disse.
— Você não acha? Mas é uma parte essencial da aventura. Eu sempre quis visitar
um, mas isso é chato.
— Nem me fale…
Eu não tinha boas lembranças de estar em um labirinto. Afinal, Paul tinha
morrido em um. Eu nunca mais queria passar por algo tão traumático, nunca
mesmo. A menos que houvesse uma razão muito convincente, eu estava contente
em não ver outro labirinto em minha vida. Eris deveria saber pelo que passei,
mas eu realmente não podia culpá-la por seus interesses.
— Salões repletos de monstros, tesouro intocado esperando para ser descoberto
e, no final de tudo, um enorme monstro guardião! — clamou Eris, animada.
— Eris — interrompeu Sylphie —, deixa isso de lado. Rudy perdeu o pai em um
labirinto, você sabe.
— Hã? — Por um momento, Eris ficou surpresa. — Oh… — Seu rosto
empalideceu rapidamente, os lábios franzindo e formando uma careta. Ela
apertou as sobrancelhas e manteve os olhos voltados ao chão enquanto
murmurava: — Desculpa…
— Está tudo bem. Não precisa pedir desculpas — eu disse. — Sei que você
ansiava por visitar um labirinto desde que era jovem.
— Você não se importa?
— Eu só quero que tenha em mente que há labirintos verdadeiramente perigosos
por aí também. Daqueles que podem te tirar um ente querido em um piscar de
olhos.
— É, eu entendi. — Eris balançou a cabeça.
Anos atrás, ela nunca teria se desculpado tão seriamente assim.
Quando viramos em uma interseção, nos encontramos em uma área aberta. Era
um buraco ridiculamente largo e em forma de cone. Tinha vários níveis, com
escadas ensanduichadas entre trechos de prateleiras. Isso me lembrou dos
assentos apertados no coliseu de Roma.
Em seu centro havia um slime enorme. Seu corpo tremia, dezenas de braços se
estendendo do meio como tentáculos, cada um segurando uma caneta e
rabiscando algo a uma velocidade relâmpago. Apenas um de seus apêndices era
diferente: apontava diretamente para cima. Tinha um olho enorme na ponta, que
encarava o teto.
No segundo em que vi esta criatura, um pensamento passou pela minha
mente: Oh, merda.
Este era, sem dúvida, o mestre do labirinto, e nós tínhamos inadvertidamente
pisado dentro do seu alcance de ataque. Eu não era o único que sentia perigo;
aqueles atrás de mim estavam igualmente sem palavras. Eris e Ghislaine estavam
boquiabertas, mesmo enquanto sacavam suas armas.
— O que diabos é aquela coisa?! — Luke deixou escapar.
Valeu, Luke, você acabou de dizer o que o resto de nós estava pensando.
— Só pode ser o governante deste lugar — eu disse. — Orsted me disse que era
um Rei Demônio, mas eu não estava imaginando isso…
— Este é bem diferente de Lorde Badigadi — disse Sylphie.
Exato. Eu havia antecipado algo mais parecido com Badigadi, mas isso era muito
mais… gosmento do que o que eu tinha em mente. Então, claro, havia várias
subespécies de demônios, por isso não era muito estranho terem um Rei Demônio
slime.
Mas um slime que lê livros? Beleza, beleza. Não é legal julgar. Tenho certeza
que até os slimes gostam de ler.
— Se este é realmente um Rei Demônio, então não devemos cumprimentá-lo?
— perguntou Ariel.
— Eu me pergunto se ele pode falar… — murmurei.
Havia muitos tipos de demônios. Alguns não tinham cordas vocais e, portanto,
não conseguiam falar. Parecia que esse poderia se enquadrar nessa categoria. Se
minhas experiências passadas com Reis Demônios fossem valer de alguma coisa,
eles não ouviam as pessoas. Admito, Badigadi e Atofe foram os únicos que
conheci, mas nenhum deles ouvia os outros. Não poderíamos julgar esse slime
apenas pela aparência, mas provavelmente seria mais seguro manter isso para
nós mesmos.
— Como não parece que nos notou, vamos tentar manter as coisas assim e agir
em silêncio.
Afinal, o silêncio era uma das regras de ouro de uma biblioteca.
Retomamos nossa busca, tendo o cuidado de ficar em silêncio. Parecia haver
slimes menores na área se movendo também. Pareciam estar nos ignorando por
ora, mas não tinha como saber o que aconteceria se o slime chefe nos visse.
Nenhum dos familiares parecia muito poderoso, mas era impossível ter certeza,
então era melhor ficarmos atentos. Se todos atacassem juntos, poderíamos ficar
em apuros.
— Ah! — Sylphie ofegou de repente.
— O que foi? — Por mais curioso que eu fosse, não conseguia desviar o olhar
do enorme slime no centro da sala.
— Está aqui, Rudy. Nesta área.
O que está aqui?
Olhei para trás. Sylphie estendeu a mão para uma prateleira ao longo da parede
externa, arrancando um livro do meio que se chamava Rei Gaunis: Ascensão e
Reinado. Era um entre vários.
Eu estava tão distraído com o slime gigante que não havia notado, mas
aparentemente essa era a área que abrigava livros escritos após a Guerra de
Laplace. Parecia que tínhamos passado por cima da seção cobrindo o meio e o
fim desse conflito, mas, novamente, as pessoas naquela época provavelmente
estavam tão ocupadas lutando que não tinham tempo para escrever livros. Mas
uma vez que a vitória era deles e a vida das pessoas começou a voltar ao normal,
aqueles que podiam contar os detalhes do caso começaram a escrever tudo, e os
livros nessa área provavelmente pertenciam a esses autores.
— Nesse caso, vamos voltar para o último beco sem saída e acampar lá —
propus.
Eris assentiu:
— Sim, não posso dizer que quero dormir com aquela coisa à vista.
— Concordo. Me dá arrepios só de olhar para aquilo — disse Ghislaine.
— Sério? — Ariel inclinou a cabeça. — Eu acho que parece bastante inteligente.
Eris cruzou os braços.
— Espadas não funcionam muito bem em slimes como esse, não é?
— Um slime morre se tiver o seu núcleo destruído — disse Ghislaine. — Mas
esse é tão grande que a espada nem chegará ao núcleo.
O comentário de Ariel foi bizarro, mas eu estava mais preocupado com quão
preparadas Eris e Ghislaine estavam para entrar em batalha. Felizmente, todos
pareciam concordar que deveríamos sair dali. Eu não queria ficar perto de algo
que não sabíamos nada e cujos movimentos não podíamos prever.
Ainda assim, depois de uma longa jornada, finalmente chegamos ao nosso
destino, e isso foi motivo de celebração, pelo menos.
Uma semana inteira se passou depois de montarmos acampamento. Nosso grupo
passou o tempo todo se movendo entre nossa base e a seção de livros sobre o Rei
Gaunis. Passamos todos os dias folheando-os. No início, nós os pegamos
sorrateiramente e recuamos para algum lugar onde o slime gigante não pudesse
nos ver, antes de folhearmos as páginas e tomarmos notas. Então, devolvíamos
os livros com todo o cuidado ao seu devido lugar.
Depois de três dias disso, percebemos que nada parecia chamar a atenção do
proprietário, então começamos a fazer nossa pesquisa diretamente nas
prateleiras. Isso significava que Eris e Ghislaine não tinham nada para fazer,
então as duas treinavam com suas espadas ou iam caminhar pela área. Eu ainda
não tinha certeza de que este lugar era totalmente seguro, então queria que
tivessem cuidado, mas não podia esperar que ficassem quietas o tempo todo. No
quinto dia, desisti de me preocupar com isso. Não houve nenhum problema em
suas atividades.
Enquanto isso, não nos faltava materiais sobre o Rei Gaunis. O que não foi
surpreendente, já que ele se tornou o monarca do país que venceu a guerra.
Gaunis não era apenas um rei na época que se seguiu à Guerra de Laplace, ele
também já foi um dos muitos príncipes. A literatura era um pouco irregular sobre
os números, especialmente aquelas destinadas a crianças. Algumas histórias
diziam que ele tinha dezenas de irmãos, outras diziam que ele era o mais novo
de três. A única coisa que todos concordavam era que ele tinha dois irmãos mais
velhos. Isso se alinhava com o que Ariel parecia saber. O mais velho era um
guerreiro impressionante e destemido, enquanto o segundo mais velho era um
estrategista engenhoso. Gaunis, sendo o terceiro filho, era dotado de inteligência
e força.
Foram esses três príncipes que decidiram tomar uma posição contra o exército
invasor de Laplace. No entanto, as tropas de Laplace eram poderosas. Nem a
força bruta do mais velho nem as táticas brutas do segundo mais velho poderiam
superar o exército inimigo, e assim os dois morreram.
A guerra culminou em uma batalha decisiva na frente sul do Continente Central,
que finalmente resultou na morte do Rei de Asura, o pai de Gaunis. Assim,
Gaunis assumiu o trono apesar de sua juventude. Ele era um homem talentoso,
mas sua força não era igual à de seu irmão mais velho, nem suas táticas eram
iguais às do segundo mais velho. Alguém como ele poderia vencer o exército de
Laplace, quando seus irmãos e o rei anterior já haviam caído diante dele?
Sim, podia. Assim era como a literatura dizia, uma vez que era descrito que ele
tinha inúmeros amigos: o Deus Dragão Urupen, o Deus do Norte Kalman e o Rei
Dragão Blindado Perugius, para citar alguns dos numerosos heróis que ele
chamava de companheiros. Gaunis foi até eles e se prostrou, implorando para
que o ajudassem a encontrar uma maneira de derrubar Laplace. Sete heróis
responderam ao seu chamado e partiram em uma jornada para derrotar o inimigo
jurado de Gaunis.
Os detalhes combinavam com o que eu havia lido há muito tempo em Lendas do
Rei Dragão Blindado. Esses livros também diziam mais sobre as aventuras de
Perugius e seus companheiros do que sobre o Rei Gaunis.
Depois que os heróis partiram em sua missão, Rei Gaunis consolidou o poder no
Reino Asura e cavalgou para encontrar o exército de Laplace. Foi um confronto
defensivo após o outro, uma batalha de desgaste. No entanto, o Rei Gaunis
conseguiu conter o avanço do inimigo, impedindo Asura de cair até Perugius e
os outros retornarem. Ele realmente era o homem por trás das cenas.
Quanto ao tipo de pessoa que o Rei Gaunis era… a literatura tendia a não ser
confiável. A maioria dos volumes o descrevia como um governante exemplar,
inigualável em sua excelência e transbordante de talento. Eles nunca ilustraram
exatamente como ele possuía essas qualidades, mas ainda assim o enchiam de
elogios.
Ariel parecia satisfeita com esses relatos, pois combinavam exatamente com o
que ela ouvira, mas quanto mais eu procurava, mais eu encontrava informações
estranhas misturadas com o resto. De acordo com outras fontes, Gaunis era um
alcoólatra sem talento que se esgueirava para a cidade para brincar enquanto seus
irmãos mais velhos talentosos participavam do esforço de guerra.
Aparentemente, ele bebia e brigava quase todo dia.
No início, pensei que alguém que odiava o rei havia escrito isso para manchá-lo,
mas esses relatos deram exemplos específicos de seu comportamento e as datas
exatas em que esses eventos ocorreram, ao contrário das fontes que o elogiaram.
Isso os tornava muito mais críveis aos meus olhos.
Mesmo assim, eu ainda me vi pensando: “Não, não, isso não pode ser verdade”
enquanto lia. Tudo isso mudou no dia de hoje, quando finalmente encontrei a
fonte mais confiável de todas.
Datado por volta dos últimos anos da Guerra de Laplace, era um diário escrito
pelo próprio Rei Gaunis. O início de seu registro antecede sua ascensão ao trono,
quando seus dois irmãos mais velhos ainda participavam ativamente da guerra.
Estava escrito um relato detalhado dos pensamentos diários de Gaunis Freean
Asura e experiências passadas.
Gaunis era a ovelha negra da família. Seus dois irmãos mais velhos eram tão
geniais que ninguém esperava nada dele, o que só o irritava. Mesmo que ele
reclamasse, ninguém lhe dava atenção. Era por isso que fugia do castelo para
ficar pela cidade o tempo todo.
Como havia uma guerra ativa acontecendo, a cidade não era a mais segura, mas
isso também a tornava o lugar perfeito para Gaunis desabafar suas frustrações.
Ele bebia até ficar bêbado, choramingava sobre como tudo era injusto, então
entrava em brigas. Não houve consequências por ele ter puxado briga com
fanfarrões na cidade.
Se fosse resumir o tipo de pessoa que Gaunis era com uma palavra, seria
simplesmente: lixoso.
Depois de ler seu diário, Ariel ficou tão chocada que passou meio dia acabada,
sem fazer nada. Mesmo agora, ela estava sentada, escorada em uma das
prateleiras, com as pernas dobradas contra o peito, e sua expressão era obscura
enquanto murmurava para si mesma:
— É isso? É esse o tipo de rei que Lorde Perugius está procurando?
Luke e Sylphie estavam tentando ajudá-la a recuperar a compostura, mas até
mesmo suas vozes estavam tensas com o choque de descobrir que tipo de pessoa
Gaunis realmente era.
Pessoalmente… grande rei ou não, Gaunis era um ser humano, para começo de
conversa, então seu comportamento não era tão surpreendente para mim. Na
verdade, ficou mais fácil de entender ele.
Embora eu tenha que admitir que o comportamento não é muito real.
Apesar disso, Perugius achou adequado apoiar alguém como Gaunis. Então
talvez Gaunis sendo um lixo de ser humano pode realmente ser uma dica. Assim,
continuei minha busca, e foi então que encontrei um livro profundamente
intrigante sobre as Crianças Abençoadas.
Este tomo cobria quais Crianças Abençoadas haviam sido descobertas na época,
que poderes possuíam e que tipo de pessoas eram. Nada disso parecia ter a ver
com Gaunis. Pelo menos não até que encontrei um artigo que descrevia a
“Criança Abençoada Impotente”. Só o título me fez imaginar o oposto de
Zanoba, que ostentava força desumana. Impotente sugeria que essa pessoa era
frágil e covarde.
Apesar de minhas impressões, o poder descrito foi considerado extremamente
perigoso, o suficiente para que o texto enfatizasse que qualquer pessoa que o
possuísse deveria ser morta de imediato. Uma Criança Abençoada Impotente
poderia desativar os poderes de outras Crianças Abençoadas.
Eu tinha visto esse padrão muitas vezes em light novels de superpoderes. Na
maioria dos casos, a pessoa com a capacidade de desativar os poderes dos outros
não tinha outras habilidades próprias. Isso muitas vezes os colocava em
desvantagem e outros os desprezavam. Mas nessas séries, a maioria dos
personagens centrais possuía superpoderes, como noventa por cento deles, então
a habilidade de anular suas habilidades mudava o jogo. Naturalmente, a pessoa
que possuía esse dom raro era o principal protagonista.
As Crianças Abençoadas eram tão raras neste mundo, no entanto, que talvez
tenha existido apenas algumas. Ser capaz de anular suas habilidades não parecia
tão forte. Na verdade, parecia extremamente inútil para mim. Seria muito melhor
ter um guerreiro ao estilo de Deus da Espada do seu lado do que alguém assim.
Dito isto, outras Crianças Abençoadas tendiam a ser figuras de autoridade em
seus respectivos países. Elas poderiam criar milagres com seus poderes que
normalmente não poderiam ser realizados por meio da magia comum. Por essa
mesma razão, seria uma enorme desvantagem para um país se o poder de sua
Criança Abençoada fosse apagado. Outros países veriam uma Criança
Abençoada Impotente como um incômodo, enquanto seu próprio país os
consideraria como uma responsabilidade inútil que apenas os colocaria sob
escrutínio estrangeiro. Assim, era aconselhado matar tal criança imediatamente.
O poder descrito, no entanto, chamou a minha atenção. Crianças Abençoadas
Impotentes aparentemente também poderiam dissipar os poderes das Crianças
Amaldiçoadas. Elas eram iguais, afinal. A única diferença entre elas era se o
poder que tinham era benéfico ou não, então fazia sentido que as habilidades da
Impotente também fossem eficazes contra eles.
Eu me perguntava, no entanto, se essa capacidade de apagar os poderes de outras
Crianças Abençoadas e Crianças Amaldiçoadas também poderia ser usada para
anular outras coisas. Como maldições normais, por exemplo. O título Crianças
Amaldiçoadas se prestava à crença de que haviam sido marcadas por uma
maldição real, mas as duas coisas não estavam tão relacionadas.
Como este livro não dizia explicitamente que esse era o caso, presumi que as
habilidades das Impotentes não poderiam curar maldições, mas talvez eu
precisasse ver tudo como um todo. As Crianças Abençoadas possuíam diversas
habilidades diferentes. Cada uma delas violava as leis naturais do mundo. Parecia
plausível que uma delas pudesse apagar maldições ou voltar no tempo. Em outras
palavras, com o poder certo da Criança Abençoada, podemos ser capazes de
devolver as memórias de Zenith para ela.
Essa foi apenas uma observação desejável da minha parte, é claro, mas valia a
pena perguntar a Orsted quando chegasse em casa.
— Ah, é melhor anotar isso no meu diário, para que eu não esqueça — murmurei.
Fechei o livro que estava lendo e peguei meu diário. Para ser franco, depois de
ler o diário do meu eu do futuro, eu tinha minhas dúvidas sobre continuar com
essa coisa, mas ele salvou minha pele. Eu não tinha intenção de voltar ao passado,
no entanto. Ia fazer o possível para que não fosse preciso. Dito isso, talvez um
dia eu queira confiar meu diário a alguém. Tipo, quando minha hora chegar,
talvez eu queira passar meu testamento. A pessoa que for ler vai se beneficiar da
orientação de todas as informações que incluí.
— Vejamos… descobri que as Crianças Abençoadas podem ter vários poderes
diferentes. Há até mesmo aquelas que conseguem manipular as habilidades de
outras Crianças Abençoadas ou Amaldiçoadas. Talvez eu possa conseguir algo,
mesmo que essa coisa pareça impossível usando esses poderes… Pronto, isso é
o suficiente, eu acho.
Levantei a cabeça depois de terminar de rabiscar e tive um vislumbre do enorme
slime no meio do buraco, contorcendo-se como sempre fazia. Fiquei assustado
quando o encontrei pela primeira vez, mas me acostumei com aquilo na semana
passada. Não era menos aterrorizante do que antes, mas não havia se lançado
contra nós. Ele passava todo o seu tempo olhando para o teto e copiando livros,
o que sugeria que era inteligente pelo menos.
De repente, olhei de volta para o meu diário. — Espere um segundo, “eu poderia
ser capaz de alcançar algo, mesmo que essa coisa pareça impossível”? Isso não
é um pouco vago demais? Talvez eu devesse escrever um exemplo específico
sobre onde usar esses poderes.
Até agora eu nunca tinha pensado muito em escrever nada em detalhes. Talvez
estar neste labirinto tenha me encorajado a mudar meus modos? Haha. Bem, era
hora de reescrever essa vaga parte. Arranquei a página atual, substituindo-a por
outra que usei para reescrever meus pensamentos atuais.
Sabe, sinto que isso seria muito mais fácil se eu tivesse um pouco de corretivo.
Mas como eu faria isso? Ou devo só espalhar tinta branca na página?
— Hm? — Olhei para cima, notando que um dos muitos tentáculos do slime
gigante tinha acabado de rasgar uma página do livro que estava escrevendo.
Observei em silêncio. Algo sobre isso me fez pensar…
Só para ter certeza, escrevi uma frase aleatória no meu livro. Imediatamente
depois, o tentáculo começou a imitar meu movimento. Então comecei a escurecer
a página inteira com tinta. O slime fez a mesma coisa.
Está me copiando…?
Não, isso não estava certo. Não estava me copiando; estava copiando o que eu
havia escrito.
— Se gosta de livros, então isso significa que deve ser capaz de ler, certo? —
murmurei comigo mesmo.
O slime não tinha boca ou ouvidos, então talvez não entendesse palavras faladas,
mas tinha aquele olho gigante na ponta de um de seus tentáculos. Isso significava
que sabia ler, certo?
— Acho que vale a pena tentar.
Mas devo consultar Ariel e os outros antes de tentar me comunicar com ele? Não,
isso não me faria nenhum bem. Ariel já estava nas últimas com a nossa situação
atual, prestes a desistir e ir para casa. Vale a pena uma aposta neste momento.
— Vejamos… Bom dia para você, Rei Demônio. É um prazer conhecê-lo. Me
chamo Rudeus Greyrat. Você tem uma biblioteca incrível aqui. — recitei as
palavras enquanto as escrevia em meu diário.
Um dos tentáculos do slime gigante imediatamente começou a correr pela
página, mas então parou de repente. Era algo que ainda não tínhamos visto antes.
Não havia apenas copiado o que eu havia escrito; seus outros braços haviam
parado de se mover completamente.
Um ar misterioso pousou sobre a cavidade em forma de cone.
— Estou sendo muito apressado? — perguntei a mim mesmo. Por uma fração de
segundo, perdi a coragem, mas já era tarde demais para me arrepender agora.
O globo ocular do slime gigante, que estava olhando para o teto o tempo todo,
agora se virou para mim. Aquela coisa era gigantesca. Ele claramente podia me
ver boquiaberto.
O slime se encolheu por um momento. No segundo seguinte, seus tentáculos
dispararam em uma velocidade incrível, quase como agulhas de porco-espinho
disparando em todas as direções.
Meu Olho da Previsão me disse: um tentáculo está vindo em minha direção.
Eu me abaixei, presumindo que aquilo fosse me empalar. Para minha surpresa, o
tentáculo parou bem na minha frente. Estava segurando um único pedaço de
papel. Não, não era isso, não estava segurando nada, seu corpo era como um
adesivo, então o papel estava apenas preso a ele. De qualquer forma, segurava o
papel diretamente na minha frente, uma mensagem rabiscada nele dizia:
Eu sou o Rei Demônio Beethove Tovetha, da Tribo Nen. Bem-vindo ao meu
castelo, Futuro Autor.
Oh… Ooooh! Comunicação estabelecida com sucesso! Eu erguia os punhos
mentalmente. Espera, não. Espera um pouco. É sério? Acabei tendo a ideia de
conversar com essa coisa por acaso. Nunca imaginei que daria tudo certo. Uh, e
agora…
Rapidamente escrevi minha resposta.
Minhas mais profundas desculpas por não ter prestado meus devidos respeitos
antes. É uma honra conhecê-lo, Vossa Majestade. Viemos aqui na esperança de
pesquisar um certo assunto. Estaria disposto a permitir a nossa estadia aqui
enquanto isso?
Sua resposta foi sucinta e simples.
Sim.
Ufa! Enfim pude dar um suspiro de alívio depois de estar no limite o tempo todo.
Limpei o suor frio da minha testa.
Beleza, pensei. Posso mesmo fazer isso. Embora talvez seja melhor alertar Eris
na próxima vez antes de tentar algo. Isso foi um pouco precipitado demais.
Ainda assim, que nome interessante. Isso me lembrou de um certo compositor
que passou a vida fazendo música. Orsted havia me dito que esse Rei Demônio
não era um cara tão ruim, e com base em nossa breve interação, parecia que ele
estava certo.
Mas, e agora? Pensei sobre o que eu diria depois de iniciar uma conversa com
ele. Talvez eu possa perguntar sobre algumas informações relativas a Gaunis. Se
era mesmo o mestre deste labirinto, devia saber sobre ele.
Na verdade, estamos procurando um certo livro, escrevi.
Encontre você mesmo, respondeu o slime instantaneamente.
Oof, pensei. Que frieza.
Então, novamente, éramos completos estranhos que apareceram do nada. Eu não
poderia culpar o slime por recusar o que deve ter considerado uma demanda
estranha. Pelo menos não estava nos mandando embora.
Mas, continuou o slime, você conseguiu me divertir.
Pelo que parecia, ele não estava simplesmente me ignorando, como pensei de
começo. Perturbado, peguei meu diário novamente e respondi:
Eu disse algo tão engraçado?
O slime respondeu:
Você veio aqui carregando um livro do futuro. Isso foi realmente chocante. E
agora está escrevendo uma continuação de seu conteúdo enquanto falamos. Se
não chama isso de interessante ou divertido, então o que é? Como recompensa
por me divertir, vou conceder-lhe um desejo.
Livro do futuro? Ah, deve estar se referindo àquele diário que meu eu do futuro
trouxe para esta linha temporal. Eu não o trouxe para o labirinto. E se o que o
slime estava dizendo era verdade, provavelmente já havia copiado o conteúdo
daquele diário. Do ponto de vista do slime, meu diário atual era uma continuação
do anterior. Isso era irônico. Um diário do passado sendo a continuação de um
do futuro. Dava para ver como ele achava uma série de livros tão única algo tão
interessante.
Tudo isso à parte, parecia que os Reis Demônios adoravam recompensar as boas
ações concedendo desejos às pessoas. Isso fazia parte da cultura deles ou algo
assim?
Então perguntei:
Um desejo? Vai me dar o que eu quiser?
A única coisa que eu, Beethove Tovetha, sou capaz de fazer por você é procurar
qualquer livro que desejar, respondeu ele.
Bem, dado o tipo de criatura com quem eu estava lidando, eu não poderia esperar
que me desse vastas riquezas, imortalidade, ou qualquer coisa assim. Agora que
eu sabia os parâmetros desta concessão de desejos, porém, que livro devo pedir-
lhe para encontrar? Separar um único volume seria difícil. Eu teria que saber o
título para poder pedir algo específico. Nós já havíamos pesquisado a maior parte
da literatura pertencente a Gaunis, mas ainda não tínhamos encontrado a chave
que precisávamos…
Espere. Talvez eu devesse desistir de procurar algo relacionado a Gaunis e pedir-
lhe para procurar por qualquer livro que possa elucidar uma maneira de curar
Zenith de sua condição. Dado o vasto conhecimento contido nesta biblioteca e
como este lugar é enorme, pode haver alguma informação sobre uma maneira de
tratá-la. Por outro lado, é igualmente possível que não haja.
Não, eu não poderia perguntar sobre isso. Eu não tinha vindo a esta Biblioteca
Labirinto para procurar uma maneira de curar Zenith. Minha prioridade era Ariel.
Eu vim aqui para ajudá-la. Zenith ainda pesava em minha mente, mas sua
condição está estável agora. Não podia me deixar distrair. Se Orsted começasse
a pensar que eu não era confiável e decidisse me abandonar, o Deus-Homem
poderia aproveitar a oportunidade para massacrar toda a minha família. Precisava
evitar isso a todo custo. Zenith era importante, mas não poderia ser minha
primeira prioridade no momento. Precisei deixá-la de lado.
— Oh, é mesmo. — De repente me lembrei do pedaço de papel que tinha enfiado
no bolso. Era o que Orsted havia passado para mim bem quando eu estava saindo.
Tinha uma capa de livro desenhada nele. Orsted provavelmente antecipou que
não conseguiríamos encontrar o que buscávamos, motivo pelo qual me entregou
isso. Talvez quisesse que eu mostrasse ao Rei Demônio. Ele mencionou que
podia ver o futuro ou algo assim.
Nesse caso, escrevi:
Eu gostaria que você encontrasse um livro com uma capa que se parece com esta.
Muito bem, respondeu o slime.
Entreguei-lhe o pedaço de papel e, uma fração de segundo depois, ele tirou um
volume de uma das prateleiras do local. Pelo que parecia, o volume estava por
perto o tempo todo.
O slime agarrou o livro, colocou-o dentro de seu corpo e o transferiu para o
tentáculo que balançava na minha frente. Peguei-o, esperando que estivesse
pingando gosma nojenta, mas, para minha surpresa, estava perfeitamente seco.
Acho que eu não deveria estar surpreso. Esse slime é um amante de livros, então
é claro que saberia como lidar com eles de maneira apropriada.
Olhei para o tomo. Tinha uma capa de couro vermelha adornada com árvores
frutíferas, e era particularmente grossa. Eu folheei, dando-lhe um olhar
superficial. As páginas estavam cobertas de escritas, exprimidas de margem a
margem.
Seu desejo foi concedido, escreveu Beethove. Não tenha pressa e aproveite a
leitura.
Ele então retraiu seus tentáculos e retomou seu trabalho de cópia mais uma vez.
E se esse livro tivesse a mesma capa que eu estava procurando, mas não fosse o
certo? Posso pedir uma troca? Com certeza, a contracapa até tinha os mesmos
rabiscos na borda, então as chances de este ser o livro errado eram pequenas.
— Bem, de qualquer forma, acho que é hora de abrir essa coisa. Sentei-me e virei
para a primeira página. Mal li algumas linhas antes que engasgasse. — Este livro
é… — Eu ainda não tinha certeza se possuía as pistas que precisávamos ou não,
mas sabia com certeza que tinha que mostrar isso a Ariel imediatamente.
Quando voltei para o nosso acampamento, Ariel ainda estava sentada abraçando
os joelhos contra o peito. Sylphie e Luke não estavam ali, muito menos Eris.
Talvez todos tivessem saído para procurar mais materiais para peneirar. No lugar
deles, Ghislaine permaneceu ao lado da princesa, não muito diferente de um cão
de guarda.
Fui a frente de Ariel. Como ela estava de saia, sua calcinha branca estava à vista,
mas tentei desviar o olhar. Eris e Sylphie podem não estar aqui observando, mas
isso não significava que eu pudesse dar uma espiada. Isso era território proibido.
— Oh, Lorde Rudeus — murmurou ela.
— Você deve estar exausta, Vossa Alteza.
— Minhas desculpas por deixar você me ver assim. — Ela ajustou sua postura,
sentando-se mais graciosamente desta vez.
Adeus, belíssima calcinha branca. Nosso tempo juntos foi curto.
De qualquer forma, isso não importava agora.
— Princesa Ariel, encontrei algo bom — eu disse.
— Algo de bom? E o que seria?
— Acho que é algo que vai te deixar animada.
— Hm… O que poderia ser? Um romance erótico escrito na época em que o
Reino Asura foi fundado?
Algo assim realmente a deixaria animada? Me perguntei.
— Perdão — disse ela. — Fico a pensar, o que você tem aí?
Agora que ela estava mentalmente encurralada, estava balbuciando tudo quanto
era tipo de coisas estranhas, o que era divertido. Talvez não fosse uma má ideia
deixá-la nesse estado por mais um tempo. Mas, novamente, não tínhamos muito
tempo antes de termos que ir para Asura. Não tínhamos tempo a perder brincando
assim.
— Isso — eu disse, entregando a ela o livro que eu estava segurando.
Os olhos de Ariel se arregalaram ao ver a capa.
— Essas coisas penduradas nas árvores… É o emblema do morcego.
Então eram morcegos e não frutas? Quase me pegou nessa.
— De qualquer forma, por favor, vá em frente e leia. Eu prometo que será mais
emocionante para você do que um romance erótico — eu disse.
Ela franziu a testa com ceticismo enquanto olhava para a capa. Finalmente, abriu
para a primeira página.
— Ah — Ela ofegou em realização enquanto passava pelas primeiras linhas.
Havia descoberto a mesma coisa que eu momentos antes; este era o diário de
Derrick Redbat.
Um diário é onde se registra os acontecimentos mundanos de sua vida cotidiana.
Ele permite resumir brevemente os acontecimentos recentes, mantendo as coisas
simples e diretas, enquanto expressa as emoções que está sentindo no momento.
Na verdade, um diário não é meramente uma série de eventos; é um registro dos
sentimentos do escritor. O autor escreve sobre o que o irritava, o que o levava às
lágrimas, o que o fazia rir, o que lhe trazia prazer, o que lhe trazia dor, que
preconceitos detinham. Eles escrevem sobre quando se sentem solitários, felizes,
lascivos e todas as outras emoções intermediárias. A maneira como essas coisas
são registradas é ao mesmo tempo detalhada e vaga.
No diário de Derrick, ele nunca mencionou seu próprio nome, mas escrevia
diariamente sobre Ariel e Luke. Era um diário comum e casual: um que poderia
ser encontrado em qualquer lugar do mundo. E foi por essa mesma razão que
seus verdadeiros pensamentos estavam contidos ali.
Havia um orgulho intenso em suas palavras, além do que eu esperaria. Eu não
conseguia esconder meu choque com o quanto ele realmente acreditava em Ariel
em seu âmago, mais do que qualquer outra pessoa que eu já conheci antes. E eu
sabia muito bem quanto carisma ela possuía.
Ariel começou a vasculhar o livro. Ela devorou cada palavra, silenciosa e
metodicamente. Decidi esperar por perto até que ela terminasse.
Enquanto a observava virar as páginas, Sylphie, Luke e Eris voltaram. Estavam
com os braços carregados de livros. Haviam localizado uma verdadeira
montanha de material a respeito de Gaunis em outra estante. Quando Sylphie e
Eris me notaram olhando para Ariel, suas expressões ficaram azedas, até o ponto
de notaram o quão absorvida Ariel estava no livro.
Sylphie silenciosamente se sentou ao meu lado, não mais fazendo beicinho sobre
minha atenção estar focada em outro lugar.
— Rudy, o que está havendo? — perguntou ela.
— Encontrei um livro interessante, então estou pedindo para a Princesa Ariel lê-
lo — eu disse.
— Oh? Que livro é esse?
— Diário de Derrick Redbat.
O queixo de Luke despencou. Ele olhou para Ariel.
— Pensando bem, ele escrevia naquela coisa praticamente todos os dias.
— Você deve considerar lê-lo depois também — sugeri.
— Pois é, acho que sim. Embora eu tenha certeza de que ele não tinha coisas
muito boas a dizer sobre mim.
Dei de ombros. Isso era algo que ele teria que ler para descobrir por si mesmo.
— De qualquer forma — disse Sylphie —, é incrível que você tenha encontrado
algo tão específico assim.
— Sim, bem, eu meio que tenho alguma relação com diários — eu disse, optando
por não compartilhar que o encontrei utilizando informações de Orsted. Era
verdade, de qualquer forma: eu realmente tinha uma conexão com diários. Havia
o que eu tinha escrito, o que Gaunis havia escrito, e agora o que Derrick Redbat
escreveu.
Depois de um tempo, Ariel finalmente terminou de ler. Ela fechou o livro com
um estalo. Sua expressão era desprovida de qualquer emoção real e difícil de ler,
mas estava obviamente sentindo algo, dadas suas bochechas coradas e olhos
enevoados.
— Princesa Ariel? — Luke imediatamente foi até ela, ajoelhando-se ao seu lado.
— Oh Luke… Você deveria ler isso também.
— Como desejar.
Ariel entregou o livro a ele antes de se virar para mim. A hesitação em seus olhos
havia desaparecido completamente. Ela deve ter descoberto algo enquanto lia
aquele livro. Algo que eu, como alguém de fora, não teria sido capaz de pegar.
Qualquer que fosse sua epifania, provavelmente era algo que Derrick teria dito
diretamente a ela se ainda estivesse vivo.
— Bem, princesa, você ficou satisfeita com isso? — perguntei.
— Sim. Você fez um excelente trabalho ao encontrá-lo. — A expressão em seu
rosto dizia tudo antes mesmo das palavras saírem de seus lábios. — Agora eu sei
a resposta à pergunta de Lorde Perugius.
Havia tanta força em seus olhos que eu só pude acenar silenciosamente.
Depois disso, começamos nossos preparativos para voltar para casa. Sylphie e eu
começamos a devolver os livros que tínhamos emprestado, enquanto Eris,
Ghislaine e Luke limpavam nosso acampamento. Não havia um local específico
onde colocamos os livros lidos, então nós mesmos tivemos que realizar a difícil
tarefa de colocá-los de volta exatamente onde os encontramos.
Andamos de um lado para o outro, tentando colocá-los no lugar certo, mas
aparentemente falhamos algumas vezes. Eu só sabia porque um slime viria e
pegaria o livro de onde o havíamos guardado, correndo para devolvê-lo ao seu
devido lugar.
Parte de mim achava que deveríamos confiar a tarefa de organizar todos esses
livros aos lacaios do Rei Demônio, mas deixar para trás um monte de livros sem
colocá-los de volta onde os encontramos era obviamente maus modos. Esta
biblioteca tinha um sistema de organização terrível, mas continha uma riqueza
de informações. Poderia chegar um dia em que precisássemos usar este lugar
novamente, então era do nosso melhor interesse cuidar de nossas maneiras. Se
eu conseguisse agradar o Rei Demônio Beethove, ele poderia ficar disposto a
encontrar um livro para mim de novo.
Com isso em mente, conseguimos devolver todos os livros antes de enfim voltar
ao acampamento. Todos os outros já haviam terminado de fazer as malas naquele
momento e ficaram girando os polegares enquanto esperavam por nós.
Eris estava entediada, sentada com as duas pernas esticadas na frente dela.
Ghislaine cruzava as suas sob ela enquanto meditava. Ariel estava sentada
graciosamente ao lado de Luke enquanto esperava que nós terminássemos.
Luke ainda estava embalando o diário de Derrick em seus braços, lágrimas
brotando em seus olhos.
— Eu não posso… acreditar nisso. — Suas sobrancelhas estavam franzidas, as
mãos tremendo enquanto virava as páginas e absorvia as palavras. — Eu fui…
tão idiota…
— Luke — disse Ariel em repreensão. — Isso vale para nós dois.
— Vossa Alteza…
Ariel sorriu para ele, e as lágrimas finalmente caíram, escorrendo por suas
bochechas. Seu rosto se contraiu enquanto ela o observava.
Tendo lido um pouco do diário, eu já sabia o que Derrick achava de Luke. Nada
disso era bom, pelo menos era o que parecia. Ele até escreveu sobre como Luke
era um pirralho podre, ensinando Ariel nada além de mau comportamento. No
entanto, ficou claro pela maneira como escreveu o quão profundo era seu afeto
por Ariel.
Derrick podia sentir que, apesar da juventude de Luke, o garoto tinha um talento
especial para lidar com as pessoas. Se Luke começasse a usar esse talento natural
em homens e mulheres, poderia subir nas hierarquia e ter seus próprios
seguidores algum dia. Simplificando, Derrick esperava grandes coisas dele no
futuro. Mesmo enquanto reclamava da preocupação ridícula de Luke com as
mulheres, ele também via potencial por trás desse verniz.
Se Derrick ainda estivesse vivo, Ariel e Luke poderiam não estar tão apaixonados
por assumir o trono quanto eram agora. Mas se ele pudesse vê-los agora,
provavelmente ficaria mais do que feliz em ajudá-los, embora se ele realmente
estivesse aqui, Sylphie não teria lugar entre eles. Derrick observou os dois de
perto e tinha grandes expectativas sobre o que poderiam realizar.
Olhei para Sylphie, que estava ao meu lado. Seu rosto estava em uma expressão
conflituosa enquanto observava seus dois amigos. Talvez este não fosse um
desenvolvimento tão feliz no que dizia respeito a ela. Ela se considerava um dos
membros fundadores de seu grupo, mas este diário dissipou essa noção.
Considerei puxá-la para perto e acariciar sua cabeça, dizendo que ela ainda me
tinha, então não havia necessidade de se preocupar, mas tive a sensação de que
não era o que ela precisava agora.
Enquanto eu estava preocupado com meus pensamentos, Sylphie murmurou:
— Tudo bem, aqui vamos nós. — Reunindo sua coragem, ela foi em direção aos
seus amigos e se ajoelhou. — Ei, pessoal…
— Sylphie…
Ariel e Luke tinham expressões estranhas enquanto olhavam para ela. Eles não
tinham feito nada de errado, mas eu podia entender o motivo de se sentirem
culpados. Sempre a trataram como se ela estivesse com eles desde o início.
O que será que ela planeja dizer? Meu estômago estava cheio de ansiedade.
A voz de Sylphie tremeu quando ela disse:
— Hm, esse tal de Derrick… Quando voltarmos para casa, posso pedir que me
conte mais sobre ele? Como parece que ele tinha grandes expectativas em vocês
dois, eu gostaria de saber sobre ele também.
— Claro — disse Luke, acenando com a cabeça. — Na verdade, quero que você
saiba mais sobre ele. Ele foi a primeira pessoa a reconhecer o verdadeiro
potencial da Princesa Ariel.
Ariel ficou em silêncio, mas a maneira como sorriu deixou claro que concordava
com tudo o que ele havia dito.
Sylphie sorriu, satisfeita com a resposta.
Bati com a mão na boca sem nem perceber o que estava fazendo. Vê-los encheu
meu coração com tanta emoção. Lembrei-me de Sylphie em sua juventude,
quando morávamos em Buena Village. Ela estava sempre sozinha, intimidada
pelas outras crianças. Eu era o único amigo que ela tinha, e quando ela pensou
que eu poderia ir embora, seus olhos se encheram de lágrimas.
Mas olhe para isso agora, eu pensei. Aquela garotinha solitária agora tem amigos
incríveis.
Eu não tinha feito nada para ajudá-la. Ariel e Luke eram amigos que Sylphie
tinha feito sozinha.
Admito que foi um pouco triste perceber que ela não pertencia mais apenas a
mim, mas isso era uma coisa boa. Eu tinha certeza. Não teria pensado assim no
passado, mas era assim que as coisas deveriam ser. Nem eu, nem ninguém,
deveria estar cuidando dela como um protetor. Ela precisava ser igual, tanto em
nosso relacionamento quanto em sua amizade com Ariel e Luke. Ela conseguiu
cultivar esses relacionamentos por conta própria. Também estava tentando o seu
melhor para ficar em pé de igualdade comigo.
Isso significa que eu preciso igualar seus esforços.
Quando se tratava de amizades e igualdade, as primeiras pessoas que me vieram
à mente foram Cliff e Zanoba.
— E-Ei, Rudeus…
Olhei para o meu lado. Eris estava parada lá, batendo o cotovelo contra o meu.
O que ela poderia querer? Talvez estivesse com ciúmes por eu ter colado meus
olhos em Sylphie o tempo todo. Não se preocupe. Não vou te deixar de fora.
Estamos casados agora, então me certificarei de banhá-la tanto… hm?
Eris estava olhando para trás de nós, para o corredor.
O que poderia estar olhando?
— Uhh?! — Engoli em seco, quando finalmente percebi o que havia chamado
sua atenção.
O corredor estava repleto com uma quantidade gigantesca de slimes e formigas.
Ambos eram vermelhos reluzentes; no caso do primeiro, era seu núcleo emitindo
luz, enquanto no caso do segundo, eram seus olhos. De qualquer forma, estava
claro que estavam chateados.
— Os Livr…
— Você… o… man…
O enxame falava em gemidos, embora fosse difícil saber como estavam
produzindo aquele barulho. De qualquer forma, estavam lentamente se
aproximando.
Por quê? Por que estão com raiva?
Tínhamos devolvido os livros aos seus devidos lugares. Eu não sabia onde o
diário de Derrick pertencia, então planejava devolver isso ao Rei Demônio e
prestar meus respeitos antes de partirmos. Era o único livro que ainda tínhamos.
— Você… o… man…
— Chou…
Você… o… manchou…? O que manchamos? Um livro?
— Oh! — Virei a cabeça para encarar Luke.
Ele estava olhando para o exército de monstros com a boca aberta. Só percebeu
depois de um momento, quando olhou para o livro que segurava. Suas lágrimas
haviam encharcado a página, fazendo a tinta escorrer tanto que algumas das
palavras eram indistinguíveis.
— S-Sinto muito mesmo! — Luke se desculpou apressadamente, pegando um
lenço do bolso para secar o livro.
— Não, Luke, você não pode fazer isso! — gritou Sylphie, tentando detê-lo, mas
seu aviso chegou tarde demais. Sua tentativa só fez com que a tinta borrasse
ainda mais, e graças a suas lágrimas enfraquecendo a integridade do papel,
rasgou sob a força de sua mão.
— Graaaah!
Atrás das formigas, um Caracol-Cthulhu veio atacando a uma velocidade
avassaladora. As formigas abriram a mandíbula e os slimes se encolheram. Eles
estavam tão furiosos que perderam os sentidos.
Eris saltou reflexivamente na nossa frente.
— S-Sinto muito, nós realmente não queríamos fazer isso! — gritei por trás dela,
mas meu apelo foi ignorado.
Os slimes nos atacaram, e Eris e Ghislaine avançaram para derrubá-los. Em um
único golpe, conseguiram cortar seis núcleos dos slimes ao meio, deixando poças
pegajosas no chão.
Eris olhou para nós e gritou:
— Rudeus!
Eu queria agradecer ao Rei Demônio por se esforçar para nos acomodar, e queria
me desculpar por profanar um de seus livros. Eu esperava, ao mesmo tempo, que
estivessem dispostos a ouvir o nosso lado da história. Infelizmente, essas
criaturas enlouqueceram em fúria. Eles não dariam ouvidos à razão mesmo que
tentássemos conversar.
— Vamos correr! — Eu me virei para pegar nossa bagagem.
Sylphie e os outros se moveram rapidamente, seguindo minha liderança. Luke
foi o único que ficou para trás, ainda estupefato por suas ações terem acionado
tudo isso. Felizmente, ele estava acostumado a recuar depressa. Ele pegou o que
restava e sacou a espada para proteger Ariel, caso algo passasse por nossas
defesas.
— Sylphie! — gritei.
— Pode deixar! Vou assumir a liderança! Sigam-me!
Tudo o que eu tinha feito era chamar seu nome, mas isso foi o suficiente para ela
interpretar minhas instruções.
Então isso é o que chamam de estar sincronizados. Talvez tenha sido apenas uma
coincidência, mas ainda assim me fez feliz.
— Ghislaine, você dá cobertura para Sylphie. Luke, fique com a princesa e
mantenha-a segura. Eris e eu forneceremos cobertura.
— Fornecer cobertura? Fornecer cobertura de onde?! — rugiu Eris.
— Na retaguarda.
Eu virei meu cajado em direção aos slimes invasores.
Desculpe, Lorde Beethove, mas Luke não tinha más intenções.
Beleza, admito, ele provavelmente era um dos apóstolos do Deus-Homem, então
era possível que estivesse operando sob as ordens dele… Não, isso é loucura. Eu
não acho que foi isso. Bem, de qualquer forma, desculpe, Rei Demônio!
— Nova Congelante!
Gelo se formou na ponta do meu cajado, provocando uma rajada fria que ondulou
para o exterior. Os monstros atingidos por ele instantaneamente começaram a
congelar, mas seus movimentos não pararam por completo. Meu feitiço só os
atrasou. Aparentemente, eles resistiram ao efeito total, mas atrasar seu avanço
era bom o suficiente.
— Yaaah!
Ghislaine golpeava com a espada no alto, cortando instantaneamente os inimigos
que bloqueavam nosso caminho. Ela cortou os slimes e as formigas como se
fossem manteiga. Teria usado esse impulso para continuar avançando, mas um
Caracol-Cthulhu parou seu avanço. Seus ataques atingiram sua concha com um
estrondo. Seus tentáculos em forma de porrete contraíram antes de ir para o
contra-ataque. Em termos modernos, era como um tank1 que de repente sacou
uma lança e começou a ir para a ofensiva com ela. Sem outras opções, Ghislaine
começou a fugir de seu ataque.
— Lança de Gelo! — gritou Sylphie.
O caracol conseguiu se manter seguro se escondendo em sua concha, mas sua
barriga estava desprotegida. A lança de Sylphie se projetou pela terra, espetando
a criatura.
— Agora, vamos!
— Certo!
Sylphie avançou, rompendo as fileiras do inimigo com Ghislaine logo atrás.
Ariel e Luke corriam atrás deles, mas uma formiga que havia evitado minha
Nova Congelante saltando pelo teto caiu em direção a eles.
— Hah! — Eris imediatamente se moveu para intervir. Seu golpe foi tão pesado
que arrancou a cabeça da criatura de seu corpo antes de deixar uma cratera de
impacto no chão.
— Canhão de Pedra! — Sem perder tempo, lancei um feitiço nela. Essas criaturas
do tipo inseto às vezes podiam continuar se movendo mesmo sem a cabeça. Eu
preferia não dar chance ao azar.
Acabar com o inimigo era uma regra de batalha inabalável, mas considerando o
quão graciosamente o Rei Demônio nos permitiu entrar em sua biblioteca, me
senti um pouco culpado abatendo seus familiares assim.
— Agora as coisas estão ficando mais interessantes — disse Eris.
— Interessante? Está me dando dor de estômago — resmunguei enquanto corria
atrás de Ariel e dos outros.
— Droga, quantas dessas criaturas existem?!
A perseguição da horda era implacável. Apesar de parecerem despretensiosos,
essas bestas detinham muito poder. Os slimes em particular eram muito mais
rápidos do que pareciam inicialmente — como os Slimes de Metal em Dragon
Quest. Se parássemos por um segundo, essas formigas estariam sobre nós, e suas
mandíbulas eram poderosas o suficiente para atravessar a rocha mais dura. Mas
o pior deles eram os Caracóis-Cthulhu que vinham atacando pela frente. Se
Ghislaine e Eris não usassem toda a força de suas lâminas em seu ataque, aquilo
simplesmente se defenderia. Mesmo que conseguissem cortar, não era o
suficiente para matar a criatura na hora; ela ainda atacaria com seus tentáculos
em forma de porrete.
Felizmente, a Biblioteca Labirinto não tinha quartos e era, em vez disso, uma
coleção de corredores interconectados. Então, enquanto mantivéssemos uma
ofensiva sólida na vanguarda e na retaguarda, não seriam capazes de nos cercar
por completo e nos matar. Sylphie e Ghislaine tomaram a dianteira, nos guiando,
enquanto Eris e eu cobrimos a retaguarda. Eu continuei liberando Novas
Congelante enquanto Ghislaine abria caminho à frente. Sylphie continuou
lançando Lanças de Gelo do chão abaixo, espetando cada caracol, e Eris
eliminava o que restava. Nós lentamente avançamos enquanto nos
certificávamos de que nada se esgueiraria atrás de nós. Tínhamos um número
exaustivo de inimigos, mas estávamos pelo menos progredindo.
— Ali, em frente! — A voz aguda de Ghislaine cortou o ar.
Eu me virei. À nossa frente havia um enorme enxame de slimes, todos agrupados.
Em um piscar de olhos, eles se transformaram em um único e enorme slime que
bloqueou completamente nosso caminho.
— Só pode estar de zoeira com a minha cara!
Sério? Agora temos que enfrentar um Rei Slime?
— Haaaah! Impacto Tornado! — Sylphie lançou sua magia nele, e Ghislaine
trouxe sua espada sobre ele, mas o Rei Slime se recuperou dos danos quase
instantaneamente e continuou a nos bloquear.
— Rudy, eu não posso lidar com isso! — disse Sylphie.
— Eu assumo a partir daqui! — Corri para frente, tomando o lugar de Sylphie
para que ela pudesse recuar para ajudar Eris a cobrir nossa retaguarda. Foi uma
transição perfeita. Não precisei dar instruções explícitas a ela; ela se moveu
sozinha.
Pensando bem, esta é a primeira vez que nós dois lutamos contra algo juntos, não
é? Ela tem mais coragem do que eu pensava.
Honestamente, não era algo vindo de mim. Era ela quem estava pegando minhas
pistas silenciosas e reagindo apropriadamente. Na fração de segundo em que
passamos um pelo outro, nossos olhos se encontraram. Sua expressão acabou
mostrando o pânico que ela estava sentindo, mas naquele momento, seus lábios
relaxaram um pouco e suas orelhas se contraíram. Talvez os mesmos
pensamentos tivessem passado por sua mente e, com eles, uma pontada de
felicidade e vergonha.
Opa, espera aí. Agora não é hora para isso.
Deixando isso de lado, esse slime era gigantesco. Eu me perguntei se o Rei
Demônio havia surgido da mesma forma. Não, isso não poderia ser possível. Esta
coisa tinha um grande número de núcleos dentro dela. Não era uma entidade
única, mas um conglomerado de muitos.
O que significava que a melhor maneira de o quebrar era…
— Ghislaine, vou lançar uma explosão poderosa e fazê-lo em pedaços. Quero
que você acabe com o máximo possível de slimes menores que conseguir — eu
disse.
— Deixa comigo.
Ela não estava se afastando nem nada, mas dei instruções detalhadas porque não
queria que entrasse ao mesmo tempo em que usava minha magia.
— Ufa…
Respirei fundo e comecei a concentrar mana na minha mão direita. Precisava de
um feitiço que fizesse um buraco no slime gigante. O Tornado Impacto de
Sylphie era um feitiço avançado que fazia o vento girar rapidamente, quase como
uma broca. Ele fez um buraco na criatura, mas sem força suficiente para quebrá-
la em pedaços. Eu precisava de algo que causasse destruição, não em um único
ponto concentrado, mas em uma ampla área. E isso requisitava mais do que
Sylphie poderia reunir.
— Estrondo Sônico Melhorado!
O que desencadeei foi uma onda de choque sem forma. Como o nome implicava,
era semelhante a Estrondo Sônico, que era um feitiço intermediário, mas
adicionava um impacto que excedia em muito o feitiço base em poder.
Uma explosão invisível ecoou pelos corredores, explodindo através do slime
com uma velocidade incrível. A força fez com que a criatura se estilhaçasse em
pedaços.
— Graaaah! — Como se recusasse a ser superada pelos tremores que ondulavam
pelo chão e pelas paredes, Ghislaine soltou um rugido feroz e atacou. Em um
piscar de olhos, ela cortou os núcleos de pelo menos uma dúzia de slimes.
— Hein?! — Engoli em seco, percebendo que outro inimigo estava à espreita
atrás daquela parede de slime enorme. Não, não um. Havia cinco Caracóis-
Cthulhu. Eles pararam seu avanço momentaneamente quando o choque do meu
ataque os atingiu, mas com a mesma rapidez, estavam de volta em movimento,
avançando em nossa direção. Os caracóis conseguiram passar por Ghislaine e se
aproximaram de mim.
— Graaaah! — Ghislaine saltou para trás, batendo a espada em um. Ela deve ter
encontrado um ponto fraco em sua concha, porque isso foi o suficiente para fazer
com que ele cambaleasse. Ele colidiu com uma das prateleiras próximas e foi
enterrado em uma montanha de livros.
— Hmph! — grunhi, lançando Canhões de Pedra em mais dois. Os feitiços
dividiram o ar com um som agudo, perfurando as conchas das criaturas, deixando
uma bagunça pegajosa no rastro antes de explodir do outro lado.
Infelizmente, esse não foi o fim. As tripas de caracol se espalharam por toda
parte, mas mesmo depois de ser mergulhado nas entranhas de seu companheiro,
um quarto caracol continuou seguindo em frente. Ghislaine se moveu para
bloqueá-lo, ficando entre mim e meu suposto agressor.
Mas ainda sobrou um, certo? Apenas quatro tinham se ido.
Quando pensei nisso, já era tarde demais. Respirei fundo quando meu Olho da
Previsão avistou o quinto. Tinha se escondido na sombra do quarto e se
esgueirou, despercebido. A visão de seu tentáculo tomou conta dos meus olhos.
Tarde demais para contra-atacar. Eu tinha que me esquivar de alguma forma. Em
uma decisão de uma fração de segundo, joguei minha parte superior do corpo
para trás.
— Eh?
Pegou meu flanco. Eu tinha conseguido evitar o tentáculo, mas o caracol ainda
bateu em mim, me mandando para trás.
— Guh!
Bati em uma estante com tanta força que o ar foi arrancado dos meus pulmões.
Merda. Eles conseguiram passar por nós.
O caracol que havia batido em mim agora estava atacando Ariel. A princesa
estava tentando revidar o melhor que podia. Ela tinha uma pequena espada, os
olhos arregalados quando encontrou a besta de frente. Em pânico, mas
determinada, não tremia de medo. Ela deve ter enfrentado ataques surpresa como
este várias vezes antes. Mesmo assim, o caracol estava em fúria, brandindo seus
tentáculos enquanto se aproximava dela.
Eu não acho que Ariel poderia lidar com isso. Levantei minha mão direita,
conjurando um Canhão de Pedra para lançar no caracol.
Tudo bem. Vou fazer isso a tempo, pensei.
Mas, nesse mesmo momento, vi outra coisa à beira da minha visão — slimes. A
aparição dos caracóis distraiu Ghislaine, impedindo-a de cortá-los. Aqueles que
escaparam de sua lâmina mais cedo passaram pelos caracóis caídos e avançaram
em nossa direção. Ghislaine, entretanto, ainda não tinha terminado o quarto
caracol. A dúvida me atingiu, mas não foi o suficiente para retardar meu feitiço.
— Canhão de Pedra!
Ele dividiu o ar, batendo em sua marca precisamente como pretendido. Um
estrondo agradável e familiar ecoou quando quebrou o corpo do caracol. Naquele
instante, os slimes se esquivaram de Ghislaine e correram em direção a Ariel.
Apenas um único homem estava entre eles e a princesa, Luke. Ele provavelmente
estava se preparando para enfrentar o caracol antes de eu matá-lo. Seu foco então
mudou para os dez slimes invasores. Dois deles foram em minha direção
enquanto eu me ajoelhava ao lado de uma das estantes. Três outros refizeram o
caminho para flanquear Ghislaine.
Concentrei meu Olho da Previsão nos dois que se aproximavam de mim. Lidei
calmamente com eles enquanto mantinha meus olhos em Luke. Seu ataque
preventivo contra os cinco que o cercavam conseguiu matar um. No entanto, os
outros quatro já estavam se movendo em sincronia. Um se lançou a seus pés,
enquanto outro bateu em seu estômago. Luke caiu em um joelho, momento em
que o terceiro slime se enrolou em torno de sua espada, enquanto o último deles
mirava um ataque contra sua cabeça desprotegida.
— Urgh?!
Luke levou um forte golpe no crânio. Sangue jorrou de sua testa e saiu de seu
nariz, mas isso não foi suficiente para detê-lo. Ele puxou uma espada curta de
sua bainha na cintura e esfaqueou o slime enrolado em torno de sua arma
principal. Com ela livre, ele derrubou dois outros que estavam se lançando em
Ariel.
— Eu não vou deixar você encostar um dedo na Princesa Ariel! — berrou ele.
Infelizmente, ainda restava um slime, o que havia desferido um golpe tão feroz
em sua cabeça. Luke havia virado as costas para ele para cortar os outros, e agora
o slime se lançava sobre ele, mirando na parte de trás de sua cabeça. Apesar de
quão macio seu corpo parecia, tinha a força de um disparo de canhão. Se acertar
no lugar errado, pode quebrar o crânio dele.
Felizmente, o slime não atingiu seu alvo porque Ariel enfiou sua espada direto
em seu núcleo. O slime transformou-se em gosma sem forma e respingou em
uma poça no chão.
— Princesa Ariel. — Luke ofegou.
— Luke, em tempos como este, não tenho intenção de permanecer uma simples
flor decorativa. — Ela sorriu.
Com isso, o caminho à frente ficou limpo.
Ghislaine lançou um olhar sombrio para mim.
— Em frente! — ordenei, levantando-me do chão. Banhei o grupo com magia de
cura enquanto me esforçava para me juntar na parte dianteira da nossa formação.
Por mais culpado que eu me sentisse por arruinar uma cena tão comovente, ainda
tínhamos uma inundação de inimigos nos atacando por trás. Precisávamos nos
apressar.
Depois disso, continuamos eliminando nossos oponentes enquanto corríamos em
direção à saída. As bestas tentaram todo tipo de tática para impedir nossa retirada.
Slimes formavam paredes, caracóis vinham em massa, formigas se espalhavam
pelo teto e tentavam cair sobre nós em grupo. Quando os inimigos
inevitavelmente passavam, Luke protegia com ferocidade a princesa como se sua
vida dependesse disso. Ariel também fez sua parte com sua própria magia e
espada curta, derrubando o que quer que viesse em seu caminho.
Graças a esses esforços diligentes, chegamos ao círculo de teleporte praticamente
ilesos. Se Ariel tivesse sido uma mera flor decorativa, ou se Luke tivesse se
revelado o apóstolo do Deus-Homem e esfaqueado alguém pelas costas, nossa
formação teria, sem dúvida, desmoronado.
Mesmo assim, ainda tinha sido uma falha. Eu esperava voltar aqui se
precisássemos pesquisar qualquer outra coisa, mas, infelizmente, isso agora
parecia impossível. Matamos um grande número de servos do Rei Demônio e
danificamos diversos livros durante nossa retirada.
Quem teria pensado que alguém chorando em um livro iria irritá-los tanto?
O único raio de esperança era que esses familiares se moviam mais como
marionetes do que bestas pensantes de verdade. Mas mesmo que fossem
máquinas irracionais, ainda as destruímos. Eu teria que ser casca grossa para usar
a falta de consciência deles como desculpa para conseguir o perdão do Rei
Demônio. Não. Mesmo com uma carta de desculpas, eu tinha certeza de que ele
não deixaria nada disso passar.
Pelo menos havia algumas vantagens: se Luke era ou não um dos apóstolos do
Deus-Homem, ele provou que ainda protegeria Ariel com sua vida. E Ariel
encontrou sua resposta à pergunta de Perugius. Conseguimos o que queríamos.
Completamos nosso objetivo. Isso era o suficiente por agora.
Capítulo 8: O Rei Dragão
Blindado e a Segunda Princesa