Uma conversa entre um psicólogo e seu novo paciente.
— Bom dia, Sr. X. Seja bem-vindo. Como posso ajudá-lo hoje?
— Bom dia, doutor. Bom, eu tenho muita coisa pra falar. Não sei por onde começar. — Bem, comecemos do começo. O que te trouxe até aqui? — São várias coisas, sabe… Mas eu precisava falar com alguém. E uma amiga me indicou o senhor. — Certo. Dentre essas várias coisas, tem alguma que se destaca? — Sim. Eu fiz muito mal pra alguém. E também, eu acho que tenho alguma espécie de TOC. — Certo. O que te faz pensar que você tem TOC? — Eu não penso. Eu sei que tenho. Eu fico repetindo alguns rituaizinhos, e já pesquisei e sei que isso caracteriza TOC, sem sombra de dúvida. — Quais são esses rituais? — Organizar algumas coisas sempre da mesma maneira. Me preocupar minimamente com os detalhes de organização. Limpar sempre o mesmo lugar milhares de vezes. Conferir se desliguei mesmo a boca do fogão, conferir se desliguei a chave do gás. Esse tipo de coisa. — E quando isso começou? — Tem algum tempo. Eu sempre fui extremamente cuidadoso, assim, mas as coisas foram piorando. — Certo… — Eu percebia que por ali não ia obter muita coisa. Tinha alguma espécie de barreira. Sim, tinha todas as características de TOC, mas algo me apitava que aquilo não era o mais importante, agora. Desviei do assunto: — Você me falou que fez muito mal pra alguém. Quer me falar sobre isso? — Pra ser sincero, não. — E como você pretende que eu te ajude se você não falar? — Eu não acho que você pode me ajudar, doutor. Eu tô vindo aqui mais por obrigação. — Por obrigação? Obrigação com quem? — Comigo mesmo. — Certo… Então, se você quer se ajudar, você tem que falar, concorda? — Sim e não. Eu sei que tinha que vir aqui. Mas também sei que não vai adiantar nada. Fiquei quieto e esperei. Tem vezes que não adianta ficar estimulando. Tem que deixá-los falar. Ele ficou me olhando, com aqueles olhos vazios (mas não totalmente desprovidos de vida) e tristonhos. Durou mais de um minuto. Mas, finalmente, funcionou. — Talvez eu deva ir embora. — Talvez sim. Mas você vai pagar pela consulta de hoje de qualquer jeito. Então, seria bom se você aproveitasse esse tempo pelo menos descarregando o que tem aí dentro de você — eu não gostava de jogar a carta de “pagar pela consulta”, mas, com o ser humano, incrivelmente funciona. Dos mais sadios aos mais psicopatas, ninguém gosta de jogar dinheiro fora, não importa se são dois reais ou dez milhões. Ele suspirou e exalou. Um suspiro e um exalar cansados. — Acontece que o que eu tenho pra falar, eu não posso falar pra você. Eu não posso falar pra ninguém. Isso me comprometeria. Esperei. — Eu sei que existe o sigilo médico-paciente — ele continuou —, mesmo você não sendo médico, bom, tem também esse sigilo psicólogo-paciente. Mas também sei que esse sigilo vai até certo ponto. Se eu te confessar um crime, por exemplo, você tem que relatar às autoridades. Ele ergueu os olhos e me encarou. Pude ver agora um brilho malvado, perverso, por trás daquele olhar de cachorro abandonado. Ele também deu uma leve erguida na sobrancelha direita. — Desde que você não me confesse um homícidio… — Eu sei o que você vai falar — me interrompeu. — Eu já fiz terapia antes, eu assisti The Soprano’s, eu li livros que tinham essa interação médico-paciente. Psicólogo-paciente — corrigiu-se. — É sobre um homicídio que você quer relatar? — Foi uma má pergunta, mas às vezes elas escapam. Ele me olhou com uma expressão que dizia “que bobo, ele”, e só suspirou de volta. Ficou quieto. Eu poderia insistir naquilo, mas sabia que também não me levaria a lugar nenhum, de alguma forma. Talvez ele tivesse mesmo cometido um crime hediondo, mas de nada me adiantaria ficar especulando sobre aquilo, àquela altura. Então, decidi desviar o foco. Se fosse para se apresentar, aquilo se apresentaria em alguma hora. — O que você faz da vida, Sr. X? Ele riu. Foi uma risadinha triste, mas de deboche. — É assim que você começa suas conversas? Eu o encarei. Com a minha melhor cara de pôquer possível. Eu não podia cair em seus joguinhos. Novo suspiro. — Eu trabalho com contabilidade, se é isso que você quer saber. — Certo. E você gosta do seu trabalho? — Por que isso é relevante? — havia um tom de irritação agora em sua voz. — Pode se mostrar mais relevante do que você imagina, Sr. X. — Sim, eu gosto do meu trabalho — mas não havia qualquer esforço para soar verdadeiro por sua parte. Também não encontraria nada por ali. Eu podia atacar o velho clichê, tentar falar da família, mas não. Eu não gosto de abandonar o barco na primeira oportunidade, gosto de levar a primeira sessão até o limite, gosto de fazer a pessoa falar, gosto ao menos de tentar. Mesmo nos casos que eu sei (ou pressinto) que a pessoa não vai voltar. E eu pressentia isso com o Sr. X. Mas eu não ia me dar por vencido. — Esse anel, em sua mão. É de rubi? — Ele tinha um bonito anel no dedo indicador da mão direita. Era claramente de rubi. Eu só queria relaxá-lo um pouco. — Sim, é de rubi — ele me olhou novamente, repentinamente surpreso. Deu um sorrisinho afetado. Ele podia reagir da mesma forma defensiva, percebendo que eu estava apenas tentando contorná-lo, mas se percebeu não deixou transparecer. — Presente de minha mãe. Claro. Clássico, clássico, pensei. — É um bonito anel. Você usa ele sempre? — Sim. Uso sempre. — Eu tenho alguns aneis… — Doutor, eu não paguei essa sessão para ouvir você falar da sua vida — ele me olhou e agora estava honestamente bravo. Com raiva, até. Ele não tinha pagado a sessão ainda, mas eu entendi o que ele quis dizer. Esperei. — Sim, Sr. X. Mas sobre o que você quer falar? Não é possível tudo partir de mim. Se você não colaborar, isso vai ser à toa. — Como eu disse, talvez seja melhor eu ir — ele fez menção de levantar-se, mas foi bastante teatral. Voltou a sentar-se na poltrona. — Não, eu não vou dar esse gosto pro senhor. Eu esperei novamente, com minha feição impassível, mas com uma deslocadinha de boca que sugeria um pouco de diversão. — Tá bem. Você quer saber da pessoa que eu machuquei? Então vou contar. Esperei. — Vamos chamá-la de Sra. X, ok? Já que estamos nessa. Mas não era minha mulher não, não se preocupe. “Ela costumava ir lá em casa todas as sexta-feiras. Bebíamos uma cerveja, assistíamos um filme e depois transávamos. E como transávamos, doutor. Transávamos legal. Era o ponto alto da minha semana.” “Aquilo perdurou por meses e nunca houve qualquer menção da minha parte ou dela que aquilo não estava bom. Eu sei que nós dois estávamos nos divertindo. Até que um dia, ela chegou na minha casa, com um engradado de long neck de Budweiser na minha mão, um pacote pardo de comida chinesa na outra.” “Eu senti que ela estava estranha, só como um instinto, porque ela agia normal. Comemos, conversamos, rimos. Pegamos uma cerveja cada e fomos para o sofá. Eu não costumava tomar a iniciativa, é ela que começava a me beijar e me bulinar, e deixei que fosse assim. Em certa altura, estávamos vendo um filme qualquer na televisão, Garrota, Interrompida, se não me falha a memória, ela começou a beijar meu pescoço e apalpar meu pau por cima da calça, ainda com uma cerveja na mão.” “Aquele dia a gente não transou. Antes que ela pudesse evoluir nas carícias, eu pausei o filme, tirei a mão dela e perguntei: ‘O que há de errado?’. Ela me olhou como se eu estivesse maluco. Como se eu fosse maluco de sequer pensar que havia algo de errado. ‘Nada errado, baby’. ‘Eu sei que tem alguma coisa’, falei. Ela ainda insistiu na negação por alguns momentos, mas finalmente, suspirou e desembuchou. ‘Eu acho que a gente não devia mais se ver’, ela falou. ‘E por quê?’ eu perguntei. Mas já sabia a resposta.” “Sim, ela tinha outro, e sim, ela foi embora. Eu fiquei um pouco frustrado, mas muito pouco, talvez decepcionado, e só deixei ela ir. Em algum ponto profundo dentro de mim, eu sabia ou ao menos achava que ela ia voltar. E ela voltou. Três semanas depois, sexta-feira à noite, lá estava ela tocando a minha campainha. Eu abri a porta. Pacote de papel pardo numa mão, uma garrafa de vinho na outra.” “Mas eu fiquei com raiva, doutor. Eu fiquei com raiva por o que eu sabia que ia acontecer se concretizar. Fechei a porta e arrastei ela até a bancada da cozinha. Com um gesto agressivo, fiz com que ela largasse as coisas em cima da bancada, abaixei suas calças e comecei a meter.” “Tinha um quê de tesão naquilo, sim, ela deu a entender isso, do tipo ‘nossa, que agressivo, tudo isso é saudade’, mas ao mesmo tempo, sei que ela também estava apavorada. Eu também fiquei um pouco assustado, tamanha agressividade que apliquei nela. Terminei rápido, gozei dentro dela, eu via a porra escorrer da sua boceta para as pernas. Ela ainda estava com as calças arriadas, eu podia ver a calcinha rosa dela lá, embolada na calça, e pensava como ela parecia idiota naquela posição.” “Ergui minhas calças, sentindo um pouco de nojo, sabia que a porra remanscente ia grudar tudo na minha cueca, e soltei um gemido de desprazer. Ela se virou de frente pra mim, eu tinha fodido ela de costas, é claro, e começou a puxar as calças, com uma expressão de medo na cara.” “‘Vai embora’, eu disse. Ela pareceu atônita. ‘O quê…?’ ela começou a perguntar, mas eu não dei brecha. Juntei as coisas que ela tinha colocado na bancada, estiquei pra ela, que agarrou com mãos moles, e apontei para a porta. ‘Vai… Embora.’ Ela não pestanejou. Apenas foi.” “Duas semanas depois, ela voltou. Não nos falamos nenhuma vez naquele período. Nem por ligação, nem de qualquer outra forma. Quando ela tocou a campainha, numa mesma sexta-feira, numa mesma ‘noite’, eu sabia que era ela. A cena se repetiu: abri a porta, embalagem de papel pardo, uma garrafa de vodca.” “Mas eu já estava cansado daquilo. Eu não queria repetir o mesmo cenário. Acho que ela viu aquilo na minha expressão cansada quando abri a porta. Então ela largou a garrafa e a embalagem — a embalagem se espatifou, devendo ter misturado o que fosse que estivesse lá dentro —, fazendo a vodca se estilhaçar no chão, e fechou a porta atrás de si. Se abaixou, destravou meu cinto, abaixou as minhas calças, sem pudor nenhum, e começou a me mamar.” “Me chupou até eu gozar, lambeu os beiços ainda sujos de porra e virou as costas, abrindo a porta, saindo, sem falar uma palavra. Foi depois disso que os eventos de TOC começaram. Não começaram imediatamente, digo. Eu só limpei a bagunça que ela deixara, juntei os cacos, passei um pano (não deu muito certo, porque era carpete, aquela merda ia ficar fedendo a vodca), taquei a embalagem de comida direto no lixo (era frango frito, a embalagem estava toda engordurada por fora) e me sentei ao sofá para assistir alguma coisa. Nem me dei ao trabalho de passar um pedaço de papel higiênico na ponta do pau, de novo.” “Eu esperei. Depois de quatro semanas, me dei conta que, toda sexta-feira, eu esperava que ela voltasse. Foi aí que os rituais começaram. Eu acho que comecei a fazê-los para me certificar que, se eu fizesse tudo certo, ela reapareceria. É claro que, de primeira, eu não fazia isso conscientemente. Só fui perceber depois.” “Até que um dia ela apareceu. Foram 36 dias depois. É claro, eu estava contando o dia da noite do último evento também, para dar os 36 dias. 35 dias seria um número ruim. Então, para ser correto, não foi um dia que ela apareceu. Foi uma noite. Uma noite de sexta-feira.” “Se eu quisesse ser melodramático, eu diria que era uma noite de sexta-feira 13. Não era. Mas era. Ela apareceu na minha porta. Eu abri. Não estava com embalagem de comida, nem com garrafa ou lata ou qualquer coisa de bebida alcóolica. Estava pálida, com os ombros caídos, grandes olheiras, cabelo bagunçado. Eu fiquei quieto ali, parado, olhando pra ela. Já fazia umas cinco semanas, mas com o rabo de olho ainda podia ver a mancha de vodca no carpete. Era minha imaginação, claro. Mas eu podia sentir o fedor azedo da vodca seca. Era imaginação, também. Mas tinha um quê de verdade.” “Ela entrou, perambulando devagar pelo meu apartamento, como um zumbi, catatônica. Eu fechei a porta e me voltei pra ela. Ela não falou nada. Só foi até o sofá e se sentou. Eu me sentei ao lado dela. Coloquei um filme. Assistimos sem falar uma palavra. Era Velozes e Furiosos 3, eu acho. O Vin Diesel era um bom partido. É, na verdade. Nem foi um filme que eu escolhi. Estava passando em algum canal de televisão aberto. Quando o filme acabou, ela bateu duas palmas frouxas (eu me lembro até hoje do barulho: claap… claap…, como se ela estivesse batendo palmas para um enterro), levantou-se, foi até a cozinha, pegou um copo de vidro no escorredor, encheu com água da torneira, bebericou em grandes, mas vagarosos goles, deixou o copo ali, dentro da pia, foi até a porta de entrada, abriu e saiu. Nunca mais vi ela.” “Nunca mais vi ela até 40 dias depois. Como você pode saber, se for bom de conta, não era uma sexta-feira. Para dar numa sexta-feira, teria que ser múltiplos de sete ou perto disso, dependendo da maneira que eu contasse. Considerando o dia do evento em si ou não. Mas 40 não poderia ser. Talvez 36, talvez 34, mais certamente 35. 43 ou 42. Mas nunca 40. Mas agora chega a parte que eu não posso te contar, doutor. Já acabou nossa sessão?”