Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Era uma quarta-feira à noite, assim pelas 9h, e a televisão estava ligada no
Você Decide só por estar. Geralmente eu só costumava olhar pra tevê na hora do
resultado final e aí é que prestava atenção para ver se entendia a história toda
nos últimos 2 minutos. Eu estava escarrapachada no sofá lendo no jornal de
domingo os lançamentos literários - me lembro bem - quando de repente ouvi um
som característico. Eu conhecia aquele bater de asas. Chispei da sala enquanto a
barata gigante se arremessava contra as paredes e contra o teto de um lado para
o outro. Naquele momento, entre um susto e uma corrida, lembrei-me de papai,
que Deus tenha sua alma. Foi o único homem que conheci na vida que não tinha
medo de barata, além de minha tia Filinha, aliás ela também pegava o bicho pelos
bigodes e estourava no chão que nem um estalinho, igual papai. Se bem que tia
Filinha fosse minha tia pelo lado materno, mas não faz diferença.
Enquanto eu dava tratos à bola tentando achar um jeito de me livrar da
barata sem ter que ficar no mesmo cômodo que ela, algo misterioso aconteceu.
Glorificante. Do jeito que entrou, saiu voando pela janela e nesse instante meu
coração se encheu de fé e eu dei graças ao poder divino. Voltei a me sentar mais
alerta no sofá, repetindo as olhadas à trajetória da barata, ela podia voltar. Foi
quando eu ouvi de novo um bater de asas e já estava me preparando para
desabalar correndo outra vez, maldizendo que estava muito bom pra ser verdade,
mas a mão pousada no meu ombro esquerdo me impediu.
- Paz, Marilda, eis aqui o seu anjo da guarda.
- Anjo da guarda? Mas quem é que lhe chamou? Acabei de tomar o maior
susto, não sei se você viu, e me aparece outro bicho de asa aqui no oitavo andar,
como é que vocês conseguem?
- Desculpe, Marilda, eu entendo sua aflição, mas é que nós precisamos
conversar.
- Tudo bem, me deixe tomar primeiro um copo d’água, que eu estou com o
coração na boca. Está servido?
- Se tiver uma cerveja gelada, eu aceito.
- Só tem Skol.
- Serve.
Quando voltei da cozinha, ele estava bem instalado e fazendo miséria no
meu controle remoto.
- Fique à vontade, eu não durmo cedo mesmo, como você sabe.
- Não, não, só estava dando uma olhada para ver o que é que estava
passando. É raro ter um tempinho e...
- Não se apresse, vai fundo, não deve ser nada assim tão importante
mesmo que você quer me falar, não é verdade?
- Não, Marilda, o assunto é grave - disse ele, desligando a televisão. Ajeitou
um pouco a roupa e falou:
- Vamos ao que interessa.
Aproveitei a pausa que ele fez para dar uma bicada na cerveja e falei:
- Bonito esse tecido do seu vestido, hein?
- Túnica.
- Pois é, bonito.
Faltou pouco eu perguntar de onde era, tinha uns brilhinhos e naquele tom
azul celeste até que dava um belo modelito pruma passagem de ano novo. Ótimo
o caimento. Impressionante mesmo foi a rapidez do anjo pra derrubar o copo de
cerveja.
- Não enche de novo não, senão eu acabo tomando.
- Ah, desculpe, horário de serviço, né? Caramba, foi a maior barata que eu
já vi na vida, você viu?
- E quem você acha que mostrou pra ela o caminho da rua?
- Legal, você não mata não, né? Tem que ser pacífico. Só que, daqui a
pouco, ela vai entrar na casa de outra pessoa.
- Acabou de pousar no bolo de chocolate do 608.
- Eca, você devia ter matado. Ih, esqueci que não pode.
- Marilda, sou seu anjo da guarda e vim aqui porque preciso lhe falar. Você
está pra influenciar uma decisão que modificará os destinos de todo esse país e
isso nós não podemos permitir.
- Eu? Como? Como é que eu posso ter certeza de que você é mesmo meu
anjo da guarda?
- Arcanjo. Não gosto de ficar me gabando, mas sou arcanjo - existem
apenas cinco. Você nasceu num dia 5 de dezembro de mil novecentos e...
- E daí? O que é que isso tem a ver com a minha idade?
- Não é com a idade, Marilda, mas sim com o dia em que você nasceu. Por
um acaso, 5 de dezembro é dia de arcanjo.
- E que arcanjo é você?
- Arcanjo Micael.
- Micael? Nunca ouvi falar. Não é Miguel, não?
- Não, Miguel é o outro.
- E o que é que o anjo quer comigo?
- Bem, eu, não sei como lhe dizer, mas...
Ele disfarçou, mas eu vi como se abanou um pouco com as asas.
- Diga. Eu vou morrer?
- Vai, como todo mundo, mas não agora.
- Vou morrer quando? Como? De acidente?
- Marilda, por favor, não fique me perguntando as coisas, eu não posso
contar.
- Veio pra quê, então?
- Eu nem me dei ao trabalho de tentar ser educada. Aliás, minha vida
estava uma merda. Muito trabalho, pouco dinheiro, preços subindo e um
orçamento do dentista que eu nem sabia como é que ia pagar.
- Saiba que as pessoas passam umas pelas vidas das outras.
- Sei.
- E que, por vezes, alguém que se conhece, ainda que por um curto
período de tempo, pode mudar o rumo da vida do outro.
- Entendi.
O anjo parou de falar um momento e correu os olhos na minha estante de
livros, como se procurasse alguma coisa.
- Cadê aquele livro do Herman Hesse que eu lhe inspirei pra comprar?
- O Sidarta?
- Esse mesmo.
- Emprestei pro ex-namorado da minha irmã, o Tuco.
- Diga que se enganou, que o livro não era eu, e peça de volta.
- Pedir de volta? Mas, por quê?
- Porque aquele sujeito tem mais livros do que todo mundo desse prédio
junto, de tanto pedir livro emprestado e não devolver. E, de mais a mais, eu ainda
não li e quero o seu.
- Bem que eu não estava com muita vontade, mas a Verinha insistiu. Esse
negócio de ficar fazendo bonito com o chapéu dos outros...
- Sabe aquele seu namorado, o Pinel?
- Quê que tem ele? Ele fez alguma besteira? Se fez, não tenho nada a ver
com isso, só conheço ele há três meses, a gente até que não se vê muito. Ele tá
com aids?
- Não, Marilda, calma, ele não está.
- Então sou eu que tou com aids.
- Também não, não tem isso de doença, não.
- Fala, então, Seu Anjo.
Levantei pra pegar outra cerveja e reparei nos pés dele usando sandália
franciscana, menores que os meus.
- Vai falando, que a casa é pequena, e daqui eu escuto.
- O negócio é o seguinte - começou ele, abrindo a porta da geladeira pra
mim. Você está convencendo o Pinel a fazer faculdade, não está?
- Não sei não, estou?
- Está sim, já peguei você com essa conversa umas três vezes. Uma foi da
primeira vez que vocês foram juntos à praia, no Pepino, até que deu aquela
ventania e zuniu com a barraca da gorda, lembra?
- Lembro.
Quando cheguei na sala, ele já estava me esperando lá.
- Outro dia, foi quando vocês foram fazer compras juntos, enquanto
esperavam na fila do caixa do Carrefour e ele ficou de vir aqui trazer o que era
mais pesado e até hoje!
- Lembro, lembro.
- Então, e da terceira vez foi depois que vocês, como direi, transaram e
acenderam, como direi, um cigarrinho.
- Foi, então não foi? O Pinel falou até que estava vendo meu anjo da
guarda e eu achei que era viagem da maconha e dei umas sacudidas nele,
terminei de fumar o dele e tudo. Nossa! Ele tava vendo o anjo mesmo?
- É, eu me distraí.
- Tá bom, ok. Vai querer que eu faça o quê? Largue o fumo, largue o Pinel?
- Precisa não. Basta parar de dizer pra ele ir estudar.
- Mas, por que?
- Vai por mim, Marilda!
- Por que?
- Olha, melhor ir procurando um outro emprego porque deram um
desfalque na firma e se você não sair antes de falir não recebe nem os atrasados.
- Por que, hein?
- Ah, sim! O seu carro está pra pifar a qualquer momento, acho que é
problema de bateria, como não entendo muito de mecânica, é só palpite. Agora,
se parar na rua, sinto muito, mas não dá pra eu empurrar. Com essa túnica
comprida... Ia acabar tropeçando e entrando pelo pára-brisa de trás - riu sozinho.
- Por que, anjo?
- Mês que vem tem síndico novo. Ladrão igual ao que está aí, já pensou em
ser síndica, Marilda?
- POR QUE?
O anjo se levantou.
- Porque se isso acontecer ele vai entrar para a política e vai acabar
presidente da república. Já pensou, que desastre?
Soltei uma gargalhada.
- Pois fique sabendo, seu anjo mal informado, que anteontem ele se filiou
ao PT.
- Sério?
- Sério.
- Mesmo?
- Hum hum.
- Isso muda tudo. Então veja se convence ele a estudar, porque aí ele
acaba no PSDB e as chances de se eleger diminuem. Poso contar com sua
compreensão?
Depois de apertar rapidamente a minha mão, o anjo foi pra trás de mim,
que é o lugar dele. Desde então, não voltamos a nos ver e eu passei a ter sempre
em casa uma lata grande de inseticida.
Quintos, por favor!
. Estréias
ATOCHA (The day Samuel Hankins saw the face of God) - de Michael Douglas.
Com Michael Douglas e Juliette Binocchi. Art-Fashion Mall 4 (Estrada da Gávea
899 - 325-1258), às 16h20m, 18h40m e 21h. Roxy 3 (Avenida Nossa Senhora de
Copacabana 945 - 236-6245) às 14h30m, 16h50m, 19h10m e 21h30m e Via
Parque 6 (Avenida Alvorada3000 - Barra da Tijuca - Via Parque Shopping), às 14h
(sábado e domingo), 16h20m, 18h40 e 21h. No pequeno vilarejo de Stone
Washed, aventureiros da febre do ouro perambulam com seu espetáculo
mambembe a fim de atrair incautos garimpeiros. Sarah Jane, líder do bando,
confecciona por acidente o protótipo do que viria a se tornar a calça jeans. 14
anos.
. Continuações
BELGRADO (Belgrado) - De Peter Weir. Com Roman Polanski, David Bowie e
Christopher Reeves. Estação Botafogo 3 (Rua Voluntários da Pátria 88 - 537-
1112), às 15h20m. Confusões de um triângulo amoroso formado pelos atores
principais, alternando a ambição desenfreada de sexo e as lutas políticas de seu
partido de esquerda. 10 anos.
. Reapresentações
A VIDA E A VIDA DE JUDAS ISCARIOTES (No fuck me, man!) - De Mike Nichols.
Com Meryl Streep, Ray Collins e Bonnie Bedelia. Comédia no melhor estilo Monte
Phytom, numa tentativa de resgatar a imagem de Judas. A narrativa compreende
o período desde que o personagem bíblico seviciou um ex-colega de ginásio até o
conhecido desfecho, em que acaba na ponta de uma corda. Livre.
O crítico julga
. O ESCONDERIJO SECRETO - Para Jonathan José Veiga (ótimo) “O diretor Ted
Kotcheff consegue explorar magistralmente o sentimento do pai invejoso, numa
representação que nos remete aos primórdios do espetáculo shakespeareano.
Jack Nicholson está perfeito no papel de Arabella.” Para Cláudio Uchôa (muito
bom): “Com uma produção milionária e os mais modernos recursos em efeitos
especiais, Kotcheff mostra que é preciso muito mais do que apenas paixões
violentas e um roteiro bem escrito para se fazer um campeão de bilheteria. Peca
apenas na escolha da atriz Winona Ryder, inadequada para o papel de uma
mulher madura.” Para Arlette Éris Gôndola (ótimo): “Há muito tempo o cinema
americano não nos brinda com uma película deste quilate. Simplesmente
instigante.”
Bom
. OS TURÍNGIOS E O BOLO DE AMÊNDOAS - “Mais uma prova de que um
amontoado de fatos só não é suficiente para se fazer um filme de qualidade. O
elenco se esforça para equilibrar a ação, contando com o auxílio de belas
paisagens canadenses e uma excelente trilha sonora. Gostei.” (J.J.V.) “Wenders
busca em nova tentativa o tema recorrente da falta de ética em família. É
impressionante como o autor sempre logra mostrar uma nova faceta da
problemática comum entre parentes. Minha única ressalva é contra as cenas de
sexo, que poderiam ser mais longas.” (C.U.) “Não será difícil para o espectador
identificar-se com um ou outro personagem da trama. Absolutamente instigante.”
(A.E.G.)
Sofrível
. ATOCHA - “Não sei onde é que o Michael Douglas estava com a cabeça para
sair gravando uma bobajada tão grande. Além do mais, a proposta de atrair o
público infantil por causa do tema não funcionou.” (C.U.)
Ditos e feitos
O teste abaixo está sendo proposto com o propósito de avaliar sua cultura
geral. Vamos ver como andam seus conhecimentos desta rica fonte de nosso
folclore: o provérbio.
Os bebês não têm meias palavras. Para falar a verdade, também não têm
palavras inteiras. Só vão aprendê-las meses mais tarde. Neste meio tempo,
contudo, dispõem sem reservas do bem mais coercitivo recurso do choro. Alguns
chegam até a abusar dele, porque é bom aproveitar dos privilégios dispensados a
quem ainda está no colinho.
Se os bebês falassem, o que diriam? Ou então, se as mães conseguissem
decodificar-lhes o choro? Talvez fosse pior, com as traduções as menos
esperadas:
“Que porcaria de leite gorduroso, mãe! O que ´e que você anda comendo?
Como é que fica o meu colesterolzinho?...”
“Blá, este leite está frio!”
“Ou o papai arranja um emprego ou não vou resistir só com este caldinho
aguado. Compra uma armadura de peito, mãe, pra se prevenir, que eu não
estou parando em pé. Aliás, pelo jeito não vou chegar a ficar em pé de fraco. E
essas perninhas tortas... Sonhei tanto com botinhas ortopédicas (choro engolido).”
Pouco antes do velho truque de “tomar o choro”, a língua enrolada tapando
a garganta do sujeitinho que já vai ficando com a cabeça roxa, o linguajar que
esbravejava não ia ser dos melhores...
“Onde é que eu vim parar meu querubim da guarda? Esta molóide me
deixou cair de dois andares e não quer que eu chore? Estou todo quebrado, levei
tanto tempo para solidificar os ossinhos, faltou só a moleira. E agora foi a única
que sobrou mais ou menos firme! Ainda por cima foi chamar a besta do porteiro
para destrancar a porta do play. Ai, meu sacro...”
“Hoje eu me dano de chorar mas não vou aturar mais esta tortura. A
perversa da sogra da minha mãe insiste em me dar uma droga de leite em pó que
me dá a maior diarréia. Sabe lá o que é se contorcer de dor e depois nem poder
correr pro banheiro? É vexame em cima de vexame, volta e meia estou todo
cagado, e tome fralda descartável. Se tem gente estranha por perto ficam me
cutucando os fundilhos para depois dizer: ele se sujou de novo. Me sujei não,
estou todo cagado, isto sim, CA-GA-DO. E lava dali, e seca daqui, não há óleo
que chegue, estou com a bundinha pegando fogo. Mal posso esperar por um
hambúrguer do Mc Donald’s.”
Sábia é a natureza. Melhor deixar como está.
Cantigas infantis
O gato na íntegra
No futuro estudos revelarão bem mais sobre o que o poder público vem
fazendo para tentar apagar a memória nacional. Em nome deste resgate, já iniciei
as pesquisas sobre o tema de minha tese de doutorado, onde tentarei explicar o
porquê de A linda rosa juvenil ser na Alemanha um cântico de feliz aniversário e
aqui não.
Das letras
Está certo, cinco minutos de atraso não justificam uma crônica. Mas é que
a esses cinco vão se seguir cinco outros, sabe-se lá quantas vezes, como de
praxe.
Imagino o conferencista instruindo neste momento o seu enviado especial.
De tempo em tempo este enfia a cabeça na porta do auditório e conta
discretamente o número de pessoas que esperam. Ele o faz como se procurasse
alguém, cautelosos para não levantar a suspeita de sua torturante fiscalização.
- Agora são onze, Professor.
- Mas, só! Quinze minutos de atraso e só tem onze espectadores? Eu não
posso ir pra lá, eu não posso entrar lá e falar pra esse público minguado! Seria um
ultraje! Você se lembra dos cinqüenta em Ribeirão Preto? E dos trinta em Porto
Alegre? Para menos que isso eu não falo. E nós estamos no Rio de Janeiro.
Professor II
• Cadê o homem?
• Tá lá no quartinho, Zé Ramiro.
• Ele tá amarrado?
• Tá, ‘cabamos de chegar.
• Então vai lá e desamarra. Não! Deixa que eu
mesmo vou.
• Já são 10h?
• São.
• Me daí o número, vou ligar do celular. Droga, só dá
ocupado. Ocupado em cima de ocupado. Joca, tenta lá do
orelhão. Não, pensando bem, vai tu, Túlio, que esse cara é um
lesado. E além do mais, ele agora foi promovido a babá de
ancião, rêrêrê.
• Pô, Zé Ramiro, faz isso comigo não.
• Vai logo, Túlio.
Foca
No bar
O sonho de Délis
Memórias de um aventureiro
Corri mundo, herdei o sangue de meu avô, pai de meu pai, que também se
chamava Jorge. Fui aos cinco continentes, num tempo em que não havia essas
facilidades de avião, as distâncias eram medidas em jornadas e só os fortes
resistiam. Lembro as poucas vezes que vi meu avô, um homem pequeno, eu me
colocava nos seus joelhos e imitava um cavalinho. “Adiante para oeste!, ele
gritava. Gritava as mesmas palavras às vezes também no meio do sono,
felizmente para vovó o velho estava sempre na estrada.
Meu avô Jorge construiu o império de nossa família e quis se certificar de
que nos deixaria a todos amparados antes de sair no mundo pelo mero prazer da
aventura. Aprendeu seu ofício com o avô de meu pai, português de poucas
palavras, mas de mãos ágeis. O bisavô foi quem trouxe para o Rio de janeiro a
indústria e comércio do amendoim confeitado - quem não conhece hoje o
amendoim confeitado?
Justiça seja feita ao meu pai, que entre uma amante e outra sempre
arranjava umas horas livres para cuidar do nosso patrimônio. Foi ele o primeiro a
pensar em diversificar os negócios da família: disseminou o uso do cachorro-
quente de lingüiça (o segredo está no molho!, sempre repetia), montou uma
cadeia de restaurantes cuja especialidade eram os pratos de bacalhau, dali se
lançou à construção naval e hoje! Bem, hoje somos o império que somos. Mas a
jogada de mestre foi mesmo espalhar de ponta a ponta na cidade os barraqueiros
de amendoim.
Para ser sincero, foi bastante difícil o tempo em que precisei ficar adiante
dos negócios, logo após a morte de papai. Nessa época vovô, que como eu
também foi muito longevo, aproveitava a vida lá pras bandas das Ilhas Fidji, se
não me engano, e só nos mandou um curto telegrama, dizendo: “Já fiz a minha
parte, é hora de vocês trabalharem um pouco. Me deixem fuder em paz.” Não
havia como tirar a razão do velho depois disso.
Bem, o caso é que eu não podia levar uma vida acomodada com o mundo
a minha espera. Chamei meu irmão mais novo, e verdade seja dita, ele sempre
levou mais jeito de diretor presidente que eu, transmiti-lhe os encargos das
holdings e pus o pé na estrada. Mesmo assim, conservava comigo o espírito
arrojado de vovô e não desconsiderei a possibilidade de unir o útil ao agradável.
Disfarçado de homem do povo, fui levar nossa atividade do amendoim à Europa.
Comecei pela Inglaterra, eu mesmo preparando o amendoim em pleno
Hyde Park, em meio a um mar de chapéus-côco e guarda-chuvas pretos no
caminho pro trabalho. O cinzento do céu em nada lembrava nossas paisagens
praianas e a inicial indiferença daquele povo frio logo deixaram claro que não ia
ser nada fácil. Mas eu não esmoreci e depois de um mês inteiro debaixo de chuva
gritando “olha o amendoim confeitado” alguém me soprou a idéia de tentar gritar
em inglês e pois não é que deu certo? Dali a cinco minutos vendi meu primeiro
saquinho. Acho também que o aroma do amendoim é que foi irresistível para os
ingleses. Eu mal tinha tempo de berrar “try sweetened peanuts”, tamanho era o
assédio dos fregueses. Bom que assim não dava tempo de o amendoim esfriar.
Mas logo chegou o inverno e debaixo de sete graus negativos ninguém sai
de casa nem pra comprar o jornal, que dirá amendoim confeitado. O movimento
foi diminuindo e desisti da idéia de treinar trabalhadores locais para expandir o
negócio. Reuni o pouco que me restava e segui em direção à Índia. Tive o
cuidado de remeter boa soma ao Brasil, com a qual meu irmão deveria
providenciar novo carregamento de material que esperasse por mim no porto de
Bombaim.
No caminho passei pela Alemanha e não fosse a concorrência das glasierte
Mandel, as amêndoas confeitadas, talvez tivesse tentado a sorte lá. Cheguei
mesmo a imaginar uma estrondosa campanha publicitária, na qual louvaria a
superioridade do amendoim: “vejam quantos dentes da frente quebrados por
causa da dura camada de açúcar dessas amêndoas. Nossos confeitos são mais
leves e além disso não grudam nos dedos e não derretem em poucas horas.”
Sinto saudade dos tempos em Bombaim! Foram quinze anos percorrendo
aquelas terras. O preço do amendoim andava baixo e meu irmão me enviou nada
menos que 200 kg do precioso produto, os quais estoquei com cuidado e me
abasteceram nos primeiros meses. Houve apenas um problema que atrasou em
algumas semanas o empreendimento, eu estava louco para começar e tive que
aprender a paciência dos orientais. Ele esqueceu do Nescau! Como é que alguém
confeita amendoim sem Nescau? Foi o que gritei pra ele no telefone n época, me
diga o que eu faço com 200 kg de amendoim sem nenhum Nescau? Não fosse
pelo apoio de Mohandas, que a mim se afeiçoou e acompanhou em todas as
aventuras pela Ásia, talvez eu tivesse fracassado.
Mohandas foi, inclusive, convencido pelo próprio produto nosso e abraçou
de todo coração a idéia de comercializá-lo em seu país, após ter comido a
primeira porção que lhe preparei com o resto de Nescau que havia no fundo da
última lata. “Uma iguaria”, ele repetia, “uma iguaria de Shiva.” Fiquei surpreso com
sua habilidade para desembaraçar a papelada assim que as primeiras cem latas
de meio quilo entravaram na alfândega, parecia estar defendendo uma causa
religiosa. “Estamos salvos, senho, salvos!”, não me esqueço de suas palavras,
ainda que passados quase 50 anos desde aquele dia. Pobre diabo, a vida de
Mohandas terminou na boca de um crocodilo do Rio Gandok, pouco tempo depois
que deixei a Índia. Não sei dizer quem de nós se tornou guardião de quem, eu
bem que disse a ele que precisava de óculos.
Quantas alegrias compartilhamos juntos, meu companheiro e eu. Ele vivia
me sorrindo com seus dentes brancos, onde sempre havia uma casca de
amendoim delatando gulodice. Brigávamos muito, eu dizia, “não vá me comer o
amendoim enquanto estiver atendendo os fregueses, que fica feio”, soube depois
de sua morte que ele sempre arranjava um ou outro garoto que vigiasse a
barraquinha para ir deliciar-se às escondidas. Só que esquecia de avisar aos
moleques da minha recomendação e, bem, aparecia ocasionalmente uma queixa.
A mãe de Mohandas - já era anciã quando a conheci e nunca a vi em outra
posição que não fosse sentada como Buda - tinha verdadeiro ódio de mim, o qual
manifestava com olhares viperinos e xingamentos em dialeto nas poucas vezes
que nos encontramos. “Mamãe se enfurece dizendo que o Nescau ainda vai
acabar com meus dentes”, ria ele baixinho. Dentes. Quando penso nos dentes
daquele crocodilo...
Eram mesmo instigantes todas as perspectivas abertas naquele nosso
trabalho. Além de disseminar um aspecto cultural brasileiro e, mais que isso,
familiar, em diversas e distantes terras, sempre havia que adaptar-se às novas
situações. Como no caso dos elefantes, por exemplo. Ó, como nos divertimos à
larga com aqueles lindos elefantes! É de conhecimento geral que estes animais
tão amigos adoram amendoins tanto quanto detestam ratos. E ratos não eram
exatamente o que nós costumávamos caramelar. O fato é que, tão logo os
amendoins fossem lançados na bacia, onde já fervilhava a calda incandescente,
não havia paquiderme num raio de 2 km, por mais bem treinado que fosse, que
não mudasse de rumo e viesse até a barraca, a despeito dos maus tratos de
chicote.
Da primeira vez nos assustamos, o bicho mergulhou a tromba baloiçante no
calor da mistura mesmo e por pouco não mata seu dono com uma baciada na
cabeça - acho que o amendoim era pouco. A confusão estava formada, de um
lado o homem reclamava das queimaduras na boca do bicho, do outro queríamos
saber quem é que ia arcar com o prejuízo. Acabou ficando uma coisa pela outra e
nós passamos a ter sempre à mão o amendoim do elefante, que ficava num balde
à parte e tinha preço especial.
Ainda hoje, quem vá à Inglaterra poderá encontrar no centro de Londres
um continuador da minha obras, um rapaz esforçado e abnegado na sua função
solitária, fruto de uma paixão minha com a faxineira da pensão de Courtney
Street. Infelizmente ele não teve filhos que perpetuem a saga de nossa família,
ouvi dizer que ele aprecia os Stones mas detesta amendoins - ninguém é perfeito.
Contudo tenho o orgulho de dizer que espalhei meu nome e o do minduim pelos
quatro cantos da terra, nas regiões desde a Sicília até o Butão, do Parque
Yellowstone a Antares, fornecendo sem diferença de credo e cor a iraquianos, a
povos de arbustos e zulus.
Na próxima quinta-feira completo 97 anos e me sinto melhor do que nunca.
Graças ao amendoim confeitado, que jamais deixei de consumir, conservo o vigor
e o apetite dos passados anos e em nenhuma contenda com mulher de qualquer
raça enlameei a fama de meu avô Jorge. Ah, que vida tem sido a minha: amigos
por toda parte, cenários cinematográficos, horizontes e lucros sem fim, como sem
fim cresce a minha alegria nessa família predestinada. Meu neto mais velho se
mudou para os Estados Unidos e está se dando muito bem no ramo das batata
fritas - alguém aí já ouviu falar na Springle’s?
O saco plástico
Você no Mundo
Sabe aquelas noites em que você acorda lá pela 1h e meia e fica ligadão?
Não chega ao ponto de querer sair fazendo exercício e prefere continuar deitado,
mas falta alguma coisa para entreter até o sono voltar dali mais umas três horas.
Imagine então se tivesse alguém acordado e bem disposto a conversar.
Sim, porque bater papo de madrugada até que é bom. Difícil mesmo é achar
alguém que queira na mesma hora que você. E se existisse um serviço só pra
isso? Uma mistura de CVV com Clube da Amizade. Com a vantagem da tarifa
reduzida naquele horário. Aí, o cara se descobria insone e lá ia ele se distrair até
conseguir relaxar.
Com a proteção do anonimato - você não precisaria se identificar - seria
possível conversar sobre qualquer assunto. Dava para contar o pesadelo que
tinha acabado de acordá-lo - como se sabe, se a gente conta não acontece - ou o
que você ia fazer no dia seguinte de manhã, por exemplo. Profissionais bem
treinados pra não sair dando palpite na sua vida iriam escutá-lo pacientemente,
claro que sem deixar de participar, mas falar mesmo seria com você.
Como é que ninguém pensou nisso antes? Bastaria fazer uma assinatura
pelo serviço e pronto. Logo nos primeiros meses, um sucesso completo. O
telefone de lá ia dar várias vezes ocupado, porque cada ligação não tem hora pra
acabar. Dali a um ano os clientes mais antigos só iriam desligar às 6h da manhã,
hora em que encerra o atendimento. Só de idosos, que além de outros efeitos
começam a sofrer de horários alterados, necessitam menos de sono, e quando
dormem é com o horário correspondente ao do Japão, ia ser uma loucura.
Inevitável que se formassem ligações de amizade. O Sr. Queiroz, de 78
anos, só ia querer ser atendido pela Maria das Graças. “Ela já me conhece e eu
não preciso ficar explicando tudo de novo. O ramal dela está ocupado? Não tem
importância, eu espero, não tem pressa. Aqui ninguém está querendo usar o
telefone.” Ou o Pedrinho, de 12 anos, que acabava de descobrir uma solução
mágica para resolver as questões de Geografia e História. “Mas então, a
professora falou que os aliados ganharam a Segunda Guerra. Quem é que era
mesmo?” de lápis e papel para anotar tudo.
Claro que cantadas não iam faltar. De ambas as partes. Ia ter homem se
oferecendo para hora extra no serviço de atendimento só pra poder falar “nossa, a
essa hora sua voz está tão rouquinha, ai!” Poderiam até surgir, dependendo da
demanda, consultorias especializadas:
“O senhor tem dez mil dólares e quer saber qual é o melhor investimento
para aplicar atualmente?”
“O seu marido aboliu completamente a prática do sexo em casa e só transa
se for no motel - não necessariamente com a senhora?”
“Quer que eu repita a tabuada de nove?”
“Eu não moro aí perto não, Sr. Queiróz, com é que eu vou saber em qual
supermercado está mais baixo o preço da laranja?”
“Peraí que eu vou pegar a lista dos autores que escreveram sobre
semiótica.”
Breve podia até ser criado o serviço internacional. Ele facilitaria muito, não
apenas o intercâmbio comercial e turístico, mas também o cultural - e sem as
barreiras de fuso horário:
“Le lo dé a mi hijo un pastel de cumpleaños.”
“No, no, no se dice eso, sino se lo dé a mi hijo, que es la forma correcta.”
Enquanto tudo isso não acontece, vá contando carneirinhos ou amornando
o leite. Só que esteja avisado de quanta experiência boa você estará perdendo.
Armadinha para pegar gato
Deixe cair uma folha de papel. Antes que ela toque o chão, o gato estará lá,
esperando entediado.
Deixe cair um gato, sem fervura. Antes que ele toque o chão, o cachorro
estará lá, esperando para abocanhá-lo.
O Presidente
O dia da posse foi tumultuado, não porque qualquer estrato social tivesse
preparado demonstrações de oposição, que isso não combinava com a mansidão
do rebanho. Posse de presidente é assim, cerimônia daqui e de lá, banquete,
festa, juramento, a guarda perfilada, sobe e desce de rampa, a faixa, a fala e
repórteres, muitos repórteres, fazendo o seu trabalho.
- Dois mil e oitocentos de salário mínimo não dá! Não foi isso que nós
combinamos...
- O que não dava era cento e quarenta por mês. Lembra o que disseram
meus colegas presidentes? “Se eu ganhasse o mínimo, dava um tiro na cabeça.”
Então. Vou começar por aí. Eu mesmo não estou ganhando nada com esse
negócio. Juntei umas economias e já arranjei para dar aulas à noite três vezes por
semana numa universidade, o salário é bom.
- Presidente!
- Sabe o que vai conseguir com isso?
- Vão liqüidá-lo!
- Você não vai longe com isso, eles não vão deixar barato.
- Breves.
- Ilha de Marajó.
- Maldito presidente!
- Também acho.
- Sem trocadilhos, por favor! Preciso falar com o meu advogado, com os
meus assessores, com alguém!
- Ele mesmo.
- Estamos perdidos.
Vida em branco
As igrejas da Europa estão vazias para sempre.
Culpa da indústria automobilística que não lançou o modelo Fé 95.
Como é que as pessoas podem ir à igreja sem Fé?
A máquina de lavar e o sabão em pó vão lavar mais bem a sua roupa que você
comprou e é da última moda
embora você não goste nem da textura do tecido nem das cores ácidas
mas é a moda
e que você pagou com o cheque especial
da sua conta naquele banco que é um templo de mármore
a sua conta salário
do emprego que você detesta.
Mas a tendência do mercado é mesmo essa: terceirização.
Consultorias, auditorias, informatização.
Você está bem enquadrado.
Não se preocupe com nada e só vá pensando nisso
enquanto engole a sua aspirina diária, junto com o relaxante muscular e o anti-
depressivo.
Em breve você não será capaz de lembrar qual era a cor de um urso polar.
Tente dizer em voz alta os doze signos do Zodíaco de trás para a frente.
Pelo menos as quatro estações do ano..
Tudo bem, tem mais gente que não consegue porque isso remete a lembrança de
coisas que se aprende na infância.
O colo da sua avó.
Passar as costas da mão na bochecha enrugada dele
que falava muito pouco com a boca e dizia tudo com o olhar.
Sua avó dizia "amor". Igual a avó de todo mundo.
mas o tempo passou, a avó morreu eu nunca mais
abri uma enciclopédia sobre o mundo animal e os negócios
têm que ser feitos.
A avó é branca, o urso é branco, a fé é branca.
O mundo está escurecendo, acho que vai se apagar
boa noite.
O plano
- É o que estou lhe contando. Mês passado o homem tava louco por mim,
vivia me dando presente. De repente isso. Eu não me conformo, eu não me
conformo.
- Calma, amiga, essas coisas são assim mesmo.
Ela bebeu um gole de chope.
- Sabe qual foi o meu erro? Você não vai acreditar, mas o meu erro foi ter
dito a ele que eu estava apaixonada. Foi só isso, eu não disse mais que isso,
daquele minuto em diante a fisionomia dele mudou.
Bebeu outro gole e continuou.
- Ele em disse depois que era tudo o que ele tinha medo. Pior, que ele não
queria: eu apaixonada.
- Homem não tem sentimento não. Ele deve ter ficado com medo de se
apegar. Melhor sofrer agora do que sofrer mais no futuro.
- Mas eu não consigo me conformar. Eu não vou me conformar. Tudo o que
eu quero é ele de volta.
Ela fica um tempo parada com o olhar vidrado. O amigo tenta ver o que
está dentro do copo que ela está encarando.
- Eu tenho que fazer alguma coisa, qualquer coisa.
- Mas, o quê?
- Toda terça à noite ele pega o ônibus para Friburgo, lá pelas seis e meia.
Sai do trabalho e viaja para a casa dos pais. A folga dele é na quarta e ele só
volta na quinta-feira de manhã.
- E dai?
- Daí eu pensei em me esconder e depois comprar uma passagem na
poltrona do lado dele. Duas hora e meia de viagem e eu ali, ele não ia agüentar,
acabava falando alguma coisa. O escurinho da estrada também faz um clima.
- Ele disse que não quer, deixa de ser maluca.
- Espera aí! E se eu tentasse uma coisa mais drástica? e se eu entrasse no
ônibus e fizesse ele dormir com clorofórmio, éter, sei lá? Na hora de desembarcar
eu dizia, "por favor, me ajude aqui, o meu marido está passando mal", botavam a
gente num táxi e eu levava ele prum motel e amarrava até ele mudar de idéia.
- Você não bebeu tanto prá estar falando esse monte de bobagem...
- Não é bobagem. E quer saber de uma coisa? Você vai me ajudar. Você
pega o ônibus e faz ele dormir, eu já vou estar esperando vocês com o táxi na
rodoviária...
- Me tira disso, você não pode estar falando sério.
- Eu tô desesperada! Me ajuda, vai?
...
Provável que tenha faltado coragem e ela desistiu da idéia. Ou então
realizaram o plano mas o ex-namorado se encantou e preferiu ficar com o amigo
dela. Também pode ser que tivesse um recado quando chegou em casa:
- Ele ligou? É verdade que ele ligou?
- Ligou sim, pediu pra você ligar pra ele.
- Sério? Ligou mesmo? Não acredito...
- Mas é verdade, então ele não ligou?
- Bem, se é assim... Ligo de volta semana que vem.
Série de flores (I): margarida
Tentei escutar o grão brotar, mas os homens de gravata latiam alto demais.
De um lado para outro, esbarrando nas cadeiras, sem calças, tanto afeitos ao
exercício do sexo, e as gravatas em cores berrantes sacudindo, o nó mais frouxo
do que eu desejaria. Morte. Morte aos levantamentos estatísticos, planilhas de
percentual de lucros, vou escrever PAIXÃO em letras gigantes por sobre a
papelada, de batom vermelho.
Os brindes e o som dos copos dos brindes não me deixaram ouvir também
quando as pétalas abriram. A fumaça dos cigarros envolveu a cor sedosa de cada
uma. A flor sufocava, mas de longe, onde eu estava, não conseguia livrá-la,
pobre.
Não, eles não pisaram a flor como no final de todas as histórias, onde
fortes, fracos, poesia e ambição se misturam. Ela enfeitou, em outra ocasião, o
túmulo do acionista majoritário.
Triste destino, o das flores.
Cronologia de uma dama
21 de maio de 1992 - Maria Alice conhece o orgasmo pela primeira vez durante
um exame ginecológico de rotina e sai dizendo que aquele foi o melhor
aniversário que já teve.
28 de maio de 1992 - Ainda perturbada pela experiência da semana anterior,
Maria Alice decide mudar de vida. Entrega a filha na casa da sogra e se oferece
no puteiro mais próximo.
Peças de vestuário
2 pares de mocassins pretos
4 pares de sapatos de cromo alemão
1 par de pantufas vermelhas
1 par de sandália havaiana
1 par de botas de cano longo
1 par de botinas pretas
meia dúzia de cintos
1 bolsa capanga
1 carteira de notas
1 bolsa à tiracolo
5 malas de couro
10 pares de meias
4 ceroulões
3 calças de lã
1 pijama longo listrado
9 batinas
3 estolas sacerdotais
5 calças jeans
2 calças de linho
1 terno
8 cuecas samba-canção
6 camisetas de meia
2 pares de luvas de lã
2 echarpes de lã
1 colete de flanela
11 camisas sociais
3 calças de brim de algodão
1 sobretudo de lã
1 casaquinho leve
1 camisa 10 da seleção brasileira
2 shorts
4 lenços
30 calcinhas de mulher de diversas cores
3 baby doll
1 combinação
3 caixas fechadas de preservativos da marca Jontex, com 20 pacotes de 3
unidades cada
1 pacote aberto em uso com 2 preservativos preservados
Artigos de cozinha
1 panela de pressão grande
1 panela de pressão pequena
4 tabuleiros de teflon de diversos tamanhos
1 fôrma de bolo redonda
1 jogo com 3 saladeiras de vidro
2 refratárias
1 faqueiro de inox com 60 peças
1 facão de trinchar
1 concha
1 escumadeira
1 aparelho para fondue com espetos
espetos de churrasco
1 pedra de afiar
jogo de facas Guinzo completo com 15 peças
concha de sorvete
jogo de sobremesa
1 aparelho de jantar com 72 peças
1 aparelho de chá com 24 peças
1 jogo para café - bule, açucareiro, manteigueira e leiteira
4 canecas
2 vasilhas de consomê
2 bandejas de inox
1 travessa de peixe
1 escorredor de macarrão
1 ralo
1 espremedor de alho
1 descaroçador de azeitonas
1 canecão
1 jarra de suco
1 garrafa térmica
2 ampolas reserva
5 saca-rolhas
1 amassador de batatas
1 conjunto de potes para temperos
jogo para sal e pimenta
1 pá de bolo
16 potes de tapaware de diversos tamanhos
conjunto de copos para vinho com 6 unidades
conjunto de copos para champagne com 6 unidades
conjunto de copos para água com 6 unidades
1 bacião de plástico
2 rolos de papel alumínio
10 panelas de teflon
3 frigideiras de teflon
1 chaleira
conjunto de latas para mantimentos com 5 unidades
1 balde de gelo
1 pegador de gelo
1 pegador de macarrão
Mobiliário
1 cama de casal
1 armário duplex com 8 portas
1 penteadeira em mogno
2 mesinhas de cabeceira
1 tapete felpudo 4 x 4m
1 cabideiro
1 porta-chapéus
1 estante de jacarandá
1 mesa
6 cadeiras
1 mesa para televisão
11 quadros
1 arca de jacarandá
1 cristaleira de peroba
jogo de estofados, com 2 poltronas e 1 sofá
1 capacho
1 mesa de cozinha em fórmica
4 cadeiras em fórmica
2 armários de cozinha
1 paneleiro
1 armário de banheiro de treliça em jacarandá
1 cesto de roupa
1 cama de solteiro
1 armário de 2 portas
1 poltrona romântica
1 espelho
Eletro-domésticos
1 tv colorida de 32 polegadas com controle remoto
1 vídeo cassete de 4 cabeças
1 aparelhagem de som com CD e controle remoto
1 fogão de 4 bocas
1 geladeira de 40 l com freezer
1 máquina de lavar roupa
1 vitrola
1 máquina de escrever eletrônica
1 gravador portátil
1 projetor de slides tipo carrossel
1 forno de microondas
1 rádio-relógio despertador
1 barbeador elétrico
1 batedeira
1 multi-mixer
1 liqüidificador industrial
1 espremedor de frutas
1 secador de cabelos profissional
Obras publicadas
Em livros - 1 exemplar de cada:
As sandálias do pescador
O retrato de Dorian Gray
Enterrem meu coração na curva do rio
O pêndulo de Foucault
As melhores de Bocage
Palavras de sabedoria
O elixir da longa vida
Exodus
Bíblia sagrada
Manual da 1ª comunhão
A vida dos santos
Tem aquela do...
1984
As aventuras de Tom Sawyer
Contos eróticos
Cartas a Felice
O castelo
O processo
A casa verde
Coletânea do movimento modernista
Obras completas de Machado de Assis
O diário de Anne Frank
O tesouro do pirata
Gata em teto de zinco quente
Lolita
O poderoso chefão
Histórias da carochinha para adultos
A verdadeira história de Adão e Eva
Povos da América
Dicionário alemão-português-alemão
Dicionário alemão-inglês-alemão
Atlas geográfico ilustrado
Atlas histórico ilustrado
Guia prático do corpo humano ilustrado
O Kama Sutra
O Kama Sutra em pocket book
Enciclopédia Barsa em 30 volumes
Enciclopédia de biografias
Duden
Cozinha maravilhosa da Ofélia
Coleção os grandes cientistas do nosso tempo
O que é teologia? - Coleção primeiros passos
O que é sociologia? - Coleção primeiros passos
O que é filosofia? - Coleção primeiros passos
O guia das religiões
Manual de magia para iniciantes
1001 simpatias
Receitas fáceis de pão
Diversos
1 fone de ouvidos
4 porta-retratos
1 látego
2 álbuns de fotografia
1 caixa de lápis de cor
1 resma de papel ofício II
1 árvore de natal
30 bolas de natal
1 jogo de luzes coloridas
5 velas perfumadas
1 porta-guardanapos
1 caixinha de madeira
1 cestinha de vime
1 rede
1 rede de pescar
1 poster da Cláudia Raia
1 bichinho de pelúcia
calendários antigos desde 1956 - total de 38 unidades
1 vibrador
10 pilhas grandes
1 avental
1 touca plástica
Zeferino Mathias, violeiro de repente, casou com Maria das Águas. Tiveram
dez filhos: Zé Tem Tem, Luísa Rebeldia, Marion, Geraldo Olho Verde, Tibúrcio,
Maravilha Maria, Judith, Ana Romilda, Terêncio e Zuê.
Zé Tem Tem, que começou guia de cego e terminou dono de uma portinha,
desposou Amélia e com ela teve doze filhos: Marcelino, Cirilo, Celso Otávio,
Cezarina, Valdete Helena, João Truão, Orelino, Lico, Fátima Sônia, Adelaida,
Zoroastro e Evenilson.
Marcelino desceu para São Paulo e lá foi viver com Emilinha, que teve
gêmeos três vezes: Elisângela e Emilene, Rui e Ruiz, Francisco e Freitoni.
Ruiz se casou com uma filha de imigrante chamada Gúndula. Sua prole:
Udo Aureliano, Jutta Cristina, Enoli, Cosme Franz e Boris Licurvo Tem Tem, em
homenagem ao bisavô.
Boris Tem Tem engravidou a menina Zelinha e com ela teve que casar. Da
união nasceram: Olofredo, Manfredo, Sarita Olinda, Olga Nilda, Ivo das Mercês,
Carlos Batista e Godofredo.
Olofredo juntou os trapos com uma bilheteira de cinema e também tiveram
filhos: Marlon Augusto, Ava teresa, Tzá-Tzá Larissa, Charlton Benedito e Yul
Clóvis.
Marlos Augusto casou com Menina e ela lhe deu três filhos: Abelardo
Babosa, Sílvio Santo e Fausto Selva.
Para a tristeza da família, Fausto Selva jamais foi aprovado num teste de
espermograma.
Angie e mais algumas
"Não se fazem mais homens como antigamente, disso todo mundo sabe.
Há também quem diga que, quem casou, casou, quem não casou não casa mais.
Mas as jovens românticas contemporâneas podem contar com a experiência da
vovó, que teve oito maridos, e está aqui pronta a esclarecer suas dúvidas."
Assim começava invariavelmente o programa de rádio "Dicas da Vovó", que
de uma vez por semana logo passou à meia hora diária com audiência recorde:
Não que o programa tivesse algo de especial, mas é que a vovó apenas tinha a
coragem de dizer o que a sua própria avó lhe diria se estivesse viva e o que a sua
mãe não diz porque não está nem aí.
Tan-tan-tan-tan-tan-tan-tan. Sobe a música na abertura, no melhor estilo
radiofônico dos anos 40. O narrador anuncia a entrada triunfal e logo a voz
trêmula da vovó se faz ouvir ao microfone. Ela às vezes responde ligações no ar,
outras vezes dá respostas às cartas que recebe, ou mesmo distribui conselhos
gerais.
"Se a minha netinha conheceu um rapaz novo e é do tipo que procura um
bom casamento, faça o seguinte teste. mesmo que voc6e não goste de
hambúrguer, diga a ele que quer ir lanchar no McDonald's ou no Bob's. Isso.
Agora observe o jeito de ele comer. Se o seu namorado pegar o sanduíche com a
maior destreza e devorar feito um morto de fome, não serve. Pior ainda se ele não
se sujar nem um pouquinho com o molho. Se ele come rápido assim, esses
sanduíches, é sinal de que não é nada refinado e se não se suja demonstra que
está habituado. Pule fora enquanto é tempo e vê se da próxima vez usa uma
tanga mais cavada na praia."
A redação tem recebido protestos de diversos setores da sociedade,
principalmente dos educacionais e religiosos, que acusam a vovó de reacionária e
fascista. As revistas femininas até já se encarregaram de promover o apelido que
colocaram na velha: fascite necrosante. mas a vovó continua prestando seu
serviço, alheia a maledicências de invejosos, e com índices de audiência
crescentes.
"Se você estiver no carro d seu namorado assim à luz do dia mesmo, sem
safadeza, mão no banco, e voc6es tiveram uma briguinha recente e você fez
aquele jogo duro que vovó ensinou na semana passada, então, ele deve estar lhe
fazendo a maior declaração de amor. Porque homem é assim, mais maltrata, mais
ele gama. Se no meio da declaração de amor dele passar outra moça na calçada
e você se distrair completamente do que ele estiver falando para poder reparar no
modelinho da roupa dela, esqueça! A não ser que os pais dele morem muito bem
e você não esteja fazendo questão de orgasmo."
FM
Março de 89 - Não foi mesmo boa idéia ter vindo aqui para Miami fazer o
curso de comissária de bordo na Pan Am. Os funcionários agem de forma
suspeita, como se o mundo fosse acabar amanhã. E ainda mais essa: dobraram a
duração de um para dois meses. Eu estou voltando. Não quero perder o
semestre.
Maio de 93 - Eu juro que tentei. Faz três meses que eu estou dando aula
desde Ipanema até a Avenida Brasil - às vezes no mesmo dia -, tudo pra fugir do
escritório. Não tenho nenhuma turma de espanhol, e por mais que eu ensine
inglês e alemão até quase dez da noite o dinheiro não aparece. Também não
tenho carteira assinada.
Abril de 94 - Dia 1°.: parece brincadeira, mas hoje eu volto pro Brasil depois
de três meses de neve e estágios, não necessariamente nesta ordem. O carnaval
na Alemanha é o que há de mais bizarro na face da Terra. O jornalismo que se
faz aqui também é de pouca aplicação prática no Brasil - sobram repartições e
faltam notícias.
Os insetos são numerosos e têm certas regalias que nós não temos. Com
uma reprodução em escala industrial eles chutam pra longe qualquer risco de
extinção. A maioria voa. Os grandes rivais dos insetos são os seres humanos, já
que as fêmeas das outras espécies não são dadas a chiliques. Sabe-se de casos
esporádicos, mormente na extinta Tchecoslováquia, da simpatia humana pela
classe.
Quando o mundo acabar e até os ratos de laboratório sumirem sem
agüentar o tranco da radioatividade, os insetos continuarão passeando sobre os
escombros e ignorando qualquer mudança. Para eles, esse negócio de vida
depois da morte é tudo igual.
Talvez haja alguma coisa especial nestes animaizinhos esquecidos por
nós. Algum suspense num escaravelho. Sucesso musical em besouros. Algo de
sábio nas cigarras e de otário nas formigas e abelhas. A praticidade feminina do
louva-a-Deus. O sagrado nas baratas. Deve ser isso, baratas são seres
escolhidos e nós estamos agindo a sua revelia.
Digamos que os gregos tivessem razão e existe um céu cheio de deuses
caprichosos. Eles criaram e continuam criando tantos bichos que a gente morre e
nunca nem ouviu falar. Religião e ciência garantem a superioridade do homem
mas legislar em causa própria não vale. Pode ser que, dentre toda a criação, eles
prefiram as baratas.
Uma barata é a coisa mais nojenta que existe, ganha até da mosca, que
vive pousando em cocô. Se uma mosca entra voando pela janela ninguém se
abala, mas se é uma barata... A barata não tem encantos, pelo menos pra gente.
Só serve para se esconder e começar a destruir tudo: come página de livro, põe
ovo onde não devia, pode até roer o seu sovaco se você se distrair - eu sei de um
caso. Hoje em dia até os homens têm medo de barata: “Eu não mato, jogo álcool
em cima pra ela morrer.” Ou: “Eu mato de longe, mas se ela triscar em mim eu
arrepio todo.”
Quando o assunto é barata, ninguém tem piedade. Não há quem diga que
vai só espantar a barata, como se faz com a lagartixa, nada disso, dá-lhe
chinelada e inseticida. Parece que a humanidade que desforrar na barata as suas
duas maiores frustrações: uma é não saber voar, outra é não saber fazer sexo
direito.
O que as pessoas não consideram é o status da barata. Ela está em toda
parte, nos cantos dos vários cantos dos mundo - o bigode da barata portuguesa é
maior, que eu já vi! - freqüentando sempre as cozinhas dos melhores
restaurantes. A barata que anda no esgoto é um ser livre, que apesar da opção
pela marginalidade não comete os crimes que você já sabe qual o bicho que faz -
pergunte a qualquer tamanduá.
A barata não discrimina nenhuma classe social e marca presença nas
periferias, nas favelas e nos condomínios de alto luxo. Seja na cela de prisão ou
numa trincheira de guerra a barata está lá para lembrar que a vida ainda existe.
Ou quem sabe essa seja uma maneira que os deuses encontram de demonstrar
ao homem uma vaga lembrança vinda do alto.
Há quem acuse a barata de ser um bicho covarde, mas ele que tente
sobreviver ao holocausto. Vivendo em perigo permanente sem encontrar um ninho
onde descansar. Perseguido. Discriminado. Numa fuga constante que só faz
transformar num especialista em fuga e fica por aí a evolução. Mas, e se as
baratas não tiverem pecados? E se já forem uma forma perfeita e que deu o azar
de ter que dividir a terra com os seres humanos?
Vai ver que é isso. Os deuses não estão nada satisfeitos com o andamento
dessa história. E cada vez que estala um chinelo sobre o esqueleto externo de
uma barata inocente aumenta o débito coletivo. Desaba uma chuva daquelas na
China. Explode uma nova revolução na antiga União Soviética. A swat mete uma
bala na cabeça de um veterano armado do Vietnã. Seu ônibus quebra.
Com ou sem insetos em circulação, as relações humanas estão cada vez
mais corroídas - e não propriamente por eles. As pessoas convivem mas entre si
demonstram pouca humanidade. E ainda dizem que as baratas é que não têm
sangue. Não admira que elas sempre fujam correndo da gente. O apocalipse há
de acertar estas contas. As humildes herdarão a terra.
Um convite
Dia onomástico
Uma desequilibrada mental tenta encontrar na rua alguém com o nome do santo
do dia.
Cineshow
Uma paródia da seção de cinema dos jornais com filmes impossíveis e críticas
disparatadas.
Ditos e feitos
Uma confusão com provérbios adulterados.
Cantigas infantis
Atirei o pau no gato vira uma monografia de mestrado com 320 págs., aqui
resumida.
Das letras
Definições amalucadas de A a Z.
Professor I Professor II
Uma singela homenagem à figura do professor.
O seqüestro
Bandidos desastrados se metem em encrenca quando levam por engano um
velhinho de 93 anos.
Foca
O drama de uma foca perdida na redação do jornal.
No bar
Quatro irmãos fisiculturistas são solicitados para dar surras em desafetos.
O sonho de Délis
Um pesadelo com a participação especial de Jô Soares.
Memórias de um aventureiro
Um milionário aumenta a fortuna da família espalhando o consumo do amendoim
com Nescau pelo mundo.
O saco plástico
Um saco plástico cósmico vem recolher seus semelhantes e isso acaba com a
vida no planeta.
Você no mundo
O retrato caricato da classe média brasileira e do seu consumo.
Telefônicas
Um serviço de atendimento por telefone resolve os mais variados problemas de
quem sofre de insônia.
O presidente
Um presidente rebelde consegue realizar uma revolução moral numa república
sul-americana.
Vida em branco
Um delírio sobre a maneira artificializada pela qual vamos vivendo.
O plano
Moça abandonada fica imaginando estratégias para recuperar o namorado.
Inventariando Roy
O padre Roy Müller, 47, morreu e agora uma lista de seus pertences revela o lado
oculto de seu comportamento.
Árvore genealógica
O charme dessa história está na proliferação da família e nos nomes dos seus
componentes.
Tradução simultânea
A tradutora de uma conferência sofre um ataque de nervos no meio do serviço e
sai dizendo o que lhe dá na telha.
Dicas da vovó
Programa de rádio onde uma viúva de oito maridos dá conselhos avançadinhos
para quem quer agarrar um homem.
FM
Marcelinho ouve um palavrão no rádio e o pai dele resolve tomar providências.
Tempos bicudos
Colegas de faculdade desempregados se reencontram na rua quando viram
camelôs.
O fotógrafo
Geovani Pena, fotógrafo de nu feminino, se torna vítima de uma obsessão e põe
tudo a perder.
Paranóia
Morador de uma vizinhança barulhenta procura ajuda de um psicanalista para
enfrentar o problema.
Entomólogo amor
Nova visão de mundo que associa as tragédias humanas à alta de consideração
com os seres eleitos pelos deuses: as baratas.
Um convite
A reprodução de uma festa de reveillon numa praia do Rio de Janeiro feita por
alguém que não estava lá.
The end
Este texto sem título é um desabafo contra a falta de oportunidade que aflige a
maior parte das pessoas atualmente.