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O dia em que conheci meu anjo da guarda

Era uma quarta-feira à noite, assim pelas 9h, e a televisão estava ligada no
Você Decide só por estar. Geralmente eu só costumava olhar pra tevê na hora do
resultado final e aí é que prestava atenção para ver se entendia a história toda
nos últimos 2 minutos. Eu estava escarrapachada no sofá lendo no jornal de
domingo os lançamentos literários - me lembro bem - quando de repente ouvi um
som característico. Eu conhecia aquele bater de asas. Chispei da sala enquanto a
barata gigante se arremessava contra as paredes e contra o teto de um lado para
o outro. Naquele momento, entre um susto e uma corrida, lembrei-me de papai,
que Deus tenha sua alma. Foi o único homem que conheci na vida que não tinha
medo de barata, além de minha tia Filinha, aliás ela também pegava o bicho pelos
bigodes e estourava no chão que nem um estalinho, igual papai. Se bem que tia
Filinha fosse minha tia pelo lado materno, mas não faz diferença.
Enquanto eu dava tratos à bola tentando achar um jeito de me livrar da
barata sem ter que ficar no mesmo cômodo que ela, algo misterioso aconteceu.
Glorificante. Do jeito que entrou, saiu voando pela janela e nesse instante meu
coração se encheu de fé e eu dei graças ao poder divino. Voltei a me sentar mais
alerta no sofá, repetindo as olhadas à trajetória da barata, ela podia voltar. Foi
quando eu ouvi de novo um bater de asas e já estava me preparando para
desabalar correndo outra vez, maldizendo que estava muito bom pra ser verdade,
mas a mão pousada no meu ombro esquerdo me impediu.
- Paz, Marilda, eis aqui o seu anjo da guarda.
- Anjo da guarda? Mas quem é que lhe chamou? Acabei de tomar o maior
susto, não sei se você viu, e me aparece outro bicho de asa aqui no oitavo andar,
como é que vocês conseguem?
- Desculpe, Marilda, eu entendo sua aflição, mas é que nós precisamos
conversar.
- Tudo bem, me deixe tomar primeiro um copo d’água, que eu estou com o
coração na boca. Está servido?
- Se tiver uma cerveja gelada, eu aceito.
- Só tem Skol.
- Serve.
Quando voltei da cozinha, ele estava bem instalado e fazendo miséria no
meu controle remoto.
- Fique à vontade, eu não durmo cedo mesmo, como você sabe.
- Não, não, só estava dando uma olhada para ver o que é que estava
passando. É raro ter um tempinho e...
- Não se apresse, vai fundo, não deve ser nada assim tão importante
mesmo que você quer me falar, não é verdade?
- Não, Marilda, o assunto é grave - disse ele, desligando a televisão. Ajeitou
um pouco a roupa e falou:
- Vamos ao que interessa.
Aproveitei a pausa que ele fez para dar uma bicada na cerveja e falei:
- Bonito esse tecido do seu vestido, hein?
- Túnica.
- Pois é, bonito.
Faltou pouco eu perguntar de onde era, tinha uns brilhinhos e naquele tom
azul celeste até que dava um belo modelito pruma passagem de ano novo. Ótimo
o caimento. Impressionante mesmo foi a rapidez do anjo pra derrubar o copo de
cerveja.
- Não enche de novo não, senão eu acabo tomando.
- Ah, desculpe, horário de serviço, né? Caramba, foi a maior barata que eu
já vi na vida, você viu?
- E quem você acha que mostrou pra ela o caminho da rua?
- Legal, você não mata não, né? Tem que ser pacífico. Só que, daqui a
pouco, ela vai entrar na casa de outra pessoa.
- Acabou de pousar no bolo de chocolate do 608.
- Eca, você devia ter matado. Ih, esqueci que não pode.
- Marilda, sou seu anjo da guarda e vim aqui porque preciso lhe falar. Você
está pra influenciar uma decisão que modificará os destinos de todo esse país e
isso nós não podemos permitir.
- Eu? Como? Como é que eu posso ter certeza de que você é mesmo meu
anjo da guarda?
- Arcanjo. Não gosto de ficar me gabando, mas sou arcanjo - existem
apenas cinco. Você nasceu num dia 5 de dezembro de mil novecentos e...
- E daí? O que é que isso tem a ver com a minha idade?
- Não é com a idade, Marilda, mas sim com o dia em que você nasceu. Por
um acaso, 5 de dezembro é dia de arcanjo.
- E que arcanjo é você?
- Arcanjo Micael.
- Micael? Nunca ouvi falar. Não é Miguel, não?
- Não, Miguel é o outro.
- E o que é que o anjo quer comigo?
- Bem, eu, não sei como lhe dizer, mas...
Ele disfarçou, mas eu vi como se abanou um pouco com as asas.
- Diga. Eu vou morrer?
- Vai, como todo mundo, mas não agora.
- Vou morrer quando? Como? De acidente?
- Marilda, por favor, não fique me perguntando as coisas, eu não posso
contar.
- Veio pra quê, então?
- Eu nem me dei ao trabalho de tentar ser educada. Aliás, minha vida
estava uma merda. Muito trabalho, pouco dinheiro, preços subindo e um
orçamento do dentista que eu nem sabia como é que ia pagar.
- Saiba que as pessoas passam umas pelas vidas das outras.
- Sei.
- E que, por vezes, alguém que se conhece, ainda que por um curto
período de tempo, pode mudar o rumo da vida do outro.
- Entendi.
O anjo parou de falar um momento e correu os olhos na minha estante de
livros, como se procurasse alguma coisa.
- Cadê aquele livro do Herman Hesse que eu lhe inspirei pra comprar?
- O Sidarta?
- Esse mesmo.
- Emprestei pro ex-namorado da minha irmã, o Tuco.
- Diga que se enganou, que o livro não era eu, e peça de volta.
- Pedir de volta? Mas, por quê?
- Porque aquele sujeito tem mais livros do que todo mundo desse prédio
junto, de tanto pedir livro emprestado e não devolver. E, de mais a mais, eu ainda
não li e quero o seu.
- Bem que eu não estava com muita vontade, mas a Verinha insistiu. Esse
negócio de ficar fazendo bonito com o chapéu dos outros...
- Sabe aquele seu namorado, o Pinel?
- Quê que tem ele? Ele fez alguma besteira? Se fez, não tenho nada a ver
com isso, só conheço ele há três meses, a gente até que não se vê muito. Ele tá
com aids?
- Não, Marilda, calma, ele não está.
- Então sou eu que tou com aids.
- Também não, não tem isso de doença, não.
- Fala, então, Seu Anjo.
Levantei pra pegar outra cerveja e reparei nos pés dele usando sandália
franciscana, menores que os meus.
- Vai falando, que a casa é pequena, e daqui eu escuto.
- O negócio é o seguinte - começou ele, abrindo a porta da geladeira pra
mim. Você está convencendo o Pinel a fazer faculdade, não está?
- Não sei não, estou?
- Está sim, já peguei você com essa conversa umas três vezes. Uma foi da
primeira vez que vocês foram juntos à praia, no Pepino, até que deu aquela
ventania e zuniu com a barraca da gorda, lembra?
- Lembro.
Quando cheguei na sala, ele já estava me esperando lá.
- Outro dia, foi quando vocês foram fazer compras juntos, enquanto
esperavam na fila do caixa do Carrefour e ele ficou de vir aqui trazer o que era
mais pesado e até hoje!
- Lembro, lembro.
- Então, e da terceira vez foi depois que vocês, como direi, transaram e
acenderam, como direi, um cigarrinho.
- Foi, então não foi? O Pinel falou até que estava vendo meu anjo da
guarda e eu achei que era viagem da maconha e dei umas sacudidas nele,
terminei de fumar o dele e tudo. Nossa! Ele tava vendo o anjo mesmo?
- É, eu me distraí.
- Tá bom, ok. Vai querer que eu faça o quê? Largue o fumo, largue o Pinel?
- Precisa não. Basta parar de dizer pra ele ir estudar.
- Mas, por que?
- Vai por mim, Marilda!
- Por que?
- Olha, melhor ir procurando um outro emprego porque deram um
desfalque na firma e se você não sair antes de falir não recebe nem os atrasados.
- Por que, hein?
- Ah, sim! O seu carro está pra pifar a qualquer momento, acho que é
problema de bateria, como não entendo muito de mecânica, é só palpite. Agora,
se parar na rua, sinto muito, mas não dá pra eu empurrar. Com essa túnica
comprida... Ia acabar tropeçando e entrando pelo pára-brisa de trás - riu sozinho.
- Por que, anjo?
- Mês que vem tem síndico novo. Ladrão igual ao que está aí, já pensou em
ser síndica, Marilda?
- POR QUE?
O anjo se levantou.
- Porque se isso acontecer ele vai entrar para a política e vai acabar
presidente da república. Já pensou, que desastre?
Soltei uma gargalhada.
- Pois fique sabendo, seu anjo mal informado, que anteontem ele se filiou
ao PT.
- Sério?
- Sério.
- Mesmo?
- Hum hum.
- Isso muda tudo. Então veja se convence ele a estudar, porque aí ele
acaba no PSDB e as chances de se eleger diminuem. Poso contar com sua
compreensão?
Depois de apertar rapidamente a minha mão, o anjo foi pra trás de mim,
que é o lugar dele. Desde então, não voltamos a nos ver e eu passei a ter sempre
em casa uma lata grande de inseticida.
Quintos, por favor!

Os corredores do centro empresarial estavam vazios. Ouvindo os próprios


passos, o auditor caminhava passando pelas vitrines das lojas ainda fechadas e
aproveitando a solidão daquelas horas. Seis e meia da manhã. Súbito, pareceu-
lhe escutar o som de um coro de vozes. É, ainda estava com sono. Um único
elevador estava em funcionamento.
- Décimo oitavo, por favor.
A porta metálica do elevador se fechou e pela primeira vez ele reparou
como o espaço ali dentro era grande. Sentiu um movimento ascendente que
breve parou. Eles não estavam no décimo oitavo. A porta continuava fechada.
- O que é que está acontecendo, ascensorista? Algum defeito?
O homem uniformizado não se mexeu.
- Ascensorista, estou falando com o senhor.
Silêncio. Um segundo de medo inexplicável.
- Ou o senhor chama ajuda pelo telefone interno ou eu uso o meu celular.
O rosto se virou para ele, que então percebeu a diferença do ascensorista
de todo dia. Claro, o ascensorista era um mulato alto, sorridente, enquanto que
esse... esse tinha um aspecto sombrio. Apesar de não lhe parecer completamente
estranho.
- Onde é que está o ascensorista?
- O ascensorista, hoje, sou eu - disse o dono do corpinho atarracado,
apertando as sobrancelhas cerradas e deixando sair a voz de uma potência
impressionante.
O auditor pensou em perguntar onde estava o mulato, sentia um
inexplicável temor daquele homem suspeito e precisava dizer alguma coisa, mas
a informação não ia resolver nada.
- Faça o seu serviço! Tenho uma apresentação para as sete horas e
preciso arrumar o material na sala.
- Você não vai estar lá.
- Como?
- Não se aborreça por isto. O nosso encontro está marcado há muito tempo
e agora chegou.
- Mas do que é que o senhor está falando?
- De você. Da sua vida. Do seu sucesso. Do seu... coração.
- Seja lá quem for o senhor, fique sabendo que não pode me deter aqui
preso.
- Ouça, vamos direto ao que interessa. Com quem pensa que você está
falando?
- Com um petulante que se infiltrou nesse prédio, sabe-se lá com que
propósito, se enfiou neste uniforme e deve estar pensando numa maneira de me
extorquir dinheiro.
- Verdade? Pois saiba que dinheiro não me interessa. Só é atraente para
vocês, os poderosos dessa terra. Até que faz sentido.
O homem pequeno cruzou os braços como quem espera. O auditor ficou
calado, andando de um do para o outro, pensando no que ia fazer. Lembrou da
vista da varanda que tinha do apartamento e teve certeza de que não ia voltar a
vê-la. Adeus imenso mar. Seu corpo estremeceu.
- Pois fique sabendo que vou telefonar para a polícia e, logo logo, acabou-
se a sua graça.
- Não vai, não.
- Você está armado? - levantou-se de junto da pasta aberta no chão, com
um salto.
- Armado, eu? De jeito nenhum. Acontece que a bateria acabou.
- Acabou coisa nenhuma, eu peguei uma novinha antes de sair e... Droga,
está apagado mesmo.
- Não disse?
O ascensorista puxou o assento de metal pegado na parede e sentou-se no
banco improvisado.
- Sei que não vai acreditar, mas foi você quem me chamou aqui.
- Eu não chamei ninguém, o senhor está louco! Pois fique sabendo que eu
sou o auditor mais importante desta empresa que ocupa do décimo quinto ao
vigésimo andar.
- Eu sei, eu sei quem você é, não costumo me enganar. Agora diga: quem
você acha que eu sou?
A resposta passou feito um flash pela cabeça do auditor.
- Desculpe, estou sem cartões. O demônio, às suas ordens.
- Quem? - berrou o homem, com um riso nervoso.
- Pode chamar de diabo ou satanás, se preferir.
- E está fazendo o quê, aqui no elevador?
- Era o único jeito de conversarmos. Imagine eu ter que marcar hora! Vai
dizer que está surpreso?
- Claro que estou.
- Pois com a vida que você leva, não devia.
- Está falando de quê?
- Em primeiro lugar, você sempre se achou melhor que os outros e isso é
significativo. Por isso, pra você e sua família tudo, para o resto a lei.
- E o que é que isso tem de mais? É a estrutura do mundo moderno.
- Era a do mundo antigo também, aliás, desde que o mundo é mundo tenho
estado atento aos avarentos como você.
- Avarento, eu? E o estudo dos filhos? E as viagens de presente para
minha mulher?
- Só que nunca deu uma esmola na vida. Nem uminha. Uma moeda prum
cego que fosse, nada. Ajudou patrões a explorarem ainda mais seus empregados,
são essas coisas que não deixam a maldade morrer. Não, não preciso me
preocupar com tempos de crise.
- E o que mais?
- Pecado de missão. Sua filha mais velha sempre foi uma verdadeira peste
e cometeu todo tipo de injustiça. Você nunca se meteu.
- A menina tem uma personalidade forte, só isso. E por acaso ela é sua
filha?
- Pode-se dizer que sim. Saiba que quando fecharam a fábrica da área
onze, quando o seu relatório atestou que, se não dava prejuízo, também não dava
lucro, teve um operário que se matou. Deixou cinco filhos, o desgraçado. Está lá
com agente, claro que numa posição sem regalias, mas deve ter outra chance em
breve.
- Eu não estou acreditando no que estou ouvindo.
- Pois pode acreditar e veja aí se não são sete e quinze.
- Como o tempo passou depressa!
- É a minha companhia.
- Por favor, me deixe sair, eu tenho que ir à reunião.
- Sinto muito, nós vamos pra outro lugar. Nem adianta eu ficar aqui mais
tempo enumerando casos passados, você sabe melhor do que eu.
- Quer dizer que, a grosso modo, todo mundo que é bem sucedido tem
auxílio seu? Está comprometido?
- Pode-se dizer que sim. Já viu alguém se dar bem nessa sociedade cruel
sem ajuda de padrinho?
- Todo o empresariado, classe artística, homens públicos?
- Desses últimos, nem se fala.
- Quer dizer que a turma toda está condenada à danação?
- Aí já não posso entrar em detalhes, a parte de julgamento é
responsabilidade de outra seção. Eu só executo.
- Ouça, será que não tem jeito de entrarmos num acordo?
A pasta tremia na mão do auditor.
- Típica reação de escroque e covarde querendo regatear. Sabe que você
não me desaponta nem um pouco?
- É sério. Se você me der mais um tempo, eu posso pensar em alguma
coisa. Fazer mais maldades. Eu posso, por exemplo, promover uns dois
advogados novatos que eu acho que rezam pela nossa cartilha.
O homem de terno quase se ajoelhava aos pés do ascensorista.
- É pouco e eu já estou satisfeito.
- Eu também posso estimular nos meus filhos a arte da ganância. É
investimento de curto prazo, eles já são adultos.
- Deixe que, dos seus filhos, cuido eu.
- E o que é que vai acontecer comigo? Com o meu corpo?
- Bem, depois que nós formos embora, o elevador vai voltar a descer e as
pessoas vão achar o seu corpo caído, quando chegar ao térreo. A esta hora já
tem certo movimento, eu sempre gostei de cenas espetaculares, como nas
óperas.
- E eu vou morrer de quê?
- Vão dizer que você teve um enfarte fulminante provocado por estresse e
vida sedentária, como é comum nestes casos.
- Quer dizer que todos esses executivos que morrem de repente são...
- Tudo gente de quem levei a alma. Agora vamos, deixe a pasta aí e me
siga.
- Para onde?
- Chame dos quintos dos infernos, se quiser - disse o diabo, apertando o
botão de desce.
Dia onomástico

Ficar encostada no poste, assim, bem na beira da calçada, braços e pernas


cruzadas, com o firme, único e exclusivo propósito de movimentar o dia das
pessoas. Quando não está passando carro, fica fácil chamar quem vai do outro
lado da rua, assim:
- Ô, moço! Ei, moço!
Nem faz mal que tenha mais de um, ou que nenhum deles seja, na
verdade, moço. Todos ficarão na dúvida, se devem atender ou não, por um
momento perdendo o ritmo do passo, e apenas um irá atender ao chamado,
eliminando assim os outros.
- Como é o seu nome?
Ele chega na beira da calçada, não está escutando direito, porque passou
um carro com a descarga aberta.
- Como é seu nome, moço, o seu nome?
O homem aproveita a brecha e atravessa rápido entre dois carros. estão
frente a frente, agora.
- Você perguntou o meu nome? Por que? Eu te conheço?
- Não, não conhece. Qual é seu nome?
Impossível não ceder, diante da insistência de uma mesma pergunta. Sem
nem saber por quê, ele responde.
- Virgílio. Meu nome é Virgílio.
- Ah, não. Obrigada.
- É só isso que você quer?
- É sim.
O homem sacode a cabeça e vai embora, vai contar mais tarde, em algum
lugar, uma coisa que não entendeu.
Passam uns cinco minutos, talvez dez.
- Ei, moço, qual é o seu nome?
- É João.
- É Felipe.
- Estou com pressa.
- Guilherme.
- Não te conheço.
- É Felipe.
- Guilherme.
- João Pinto da Silva, às suas ordens.
- Estou com pressa.
- Não te conheço.
Passam uns cinco dias, talvez dez.
Ela muda de esquina.
- Ei, moço, qual é o seu nome?
Chega de manhã numa rua nova, em que nunca esteve antes. Vai começar
tudo de novo. Antes de chamar, pega um livrinho no bolso, a capa mastigada, e
ali lê o nome do santo do dia.
O martírio de São Martírio

Começa este mês uma campanha do Vaticano para tentar resgatar a


imagem de São Martírio, depois que a abertura das salas lacradas da biblioteca
deixou à mostra a nudez frontal da verdade sobre este santo. Devotos por toda
parte do mundo sempre houve, mas só agora a Igreja está disposta a reconhecer
as qualidades de São Martírio e esquecer mágoas passadas, legalizando assim a
situação dele.
Dentre os documentos escritos por monges beneditinos na Idade Média
está um livro que conta toda a saga da vida e morte do santo que foi esquecido
por quase um milênio. Ele viveu no século IV da Era Cristã numa região da atual
Turquia e a partir dos estudos recentes já há quem afirme que Martírio foi
relegado a segundo plano por ter sido contemporâneo do muito mais popular São
Jorge, tendo sido até mesmo confundido com ele.
Na realidade, os martírios de são Martírio foram bem piores e bem mais
prolongados. Jorge sofreu apenas sete anos de torturas no cárcere, enquanto que
ele ficou nada menos que 45 anos em poder do Imperador Cretínio, o perverso. O
nome verdadeiro de São Martírio, que assim só ficou conhecido dado aos
sofrimentos vividos por quase meio século, era Paulo César, mas como já existia
um outro São Paulo e Paulo César nunca foi nome de santo, o apelido colocado
pelo povo acabou pegando e permanecendo até hoje.
O que mais impressiona na história de São Martírio é que ele, de santo,
não tinha nada. Embora cristão, vivia como um homem comum, fumando,
bebendo e apostando, sua caridade não permitindo jamais que negligenciasse o
consolo às perseguidas das cristãs, independente de idade, sexo, cor ou credo.
Com uma autêntica entrega ao semelhante, por diversas vezes não foi entendido
pelos seus companheiros de clandestinidade, que o julgavam um tarado
pervertido. Contudo, ele perseverou.
Os prodígios de Martírio, embora negados por muitos, acabaram
despertando a ira, a cobiça e a dor de cotovelo do Imperador Cretínio, recém-
chegado ao poder e a uma sacanagem. Cretínio enviou seus homens no encalço
de Martírio tão logo pôde e em breve a merda estava feita. Não houve aquele ou
aquela que, tendo conhecido na própria pele a grandeza e a firmeza do santo, não
chorasse pelas ruas com um único lamento: “Levaram nosso Martírio, ai de nós,
sem ter mais quem nos faça sofrer!
“Levado a ferros à presença do imperador, que, aliás, olhou pra ele
lambendo os beiços, Martírio não negou nada do que era acusado, repetindo que
o dever do cristão é dar a todo que estiver necessitado. Os primeiros tempos de
Martírio na prisão foram terríveis: surras e banhos frios diários não lograram
diminuir seu ímpeto. Além disso, tinha que aturar, na cela ao lado, três cristãos
novos que se amarravam em canto gregoriano e cantavam o dia inteiro, pensando
que estavam agradando. Ao fim do primeiro ano, nasceu a filha do imperador e
Martírio foi obrigado a assistir duas vezes ao vídeo da cesariana.
O tempo passava, mas as vívidas lembranças de seu rebanho abandonado
impediam que Martírio fraquejasse. Já não apanhava com freqüência e banho,
agora, só uma vez por semana, o que deu o troco aos patetas do canto
gregoriano, os quais passaram a se queixar. A história fedeu porque, naquela
região de calor, vestiam o santo com roupa de motoqueiro, ou seja, com calças e
jaqueta de couro, mais o capacete - as orelhas eram cuidadosamente dobradas
antes de enfiarem a cabeça dentro dele. Quando completou dois anos de Martírio
na prisão, ele padeceu a tortura de assistir três dias seguidos ao vídeo da festa de
um aninho da filha do imperador.
Findo o entusiasmo dos primeiros dias, Cretínio desinteressou-se
relativamente de Martírio. Afinal, tinha outros cristãos dentro e fora das prisões
para torturar, terras a conquistar e estava em dúvida se ia ou não aceitar o convite
para participar do primeiro comitê de direitos humanos. Martírio até que teria
terminado seus dias numa boa ou sido libertado pelo chefe da carceragem, caso
tivesse controlado seus impulsos. Mas, como se sabe, todo santo possui uma
energia que costuma ser bem mais forte do que ele, de forma que o santo acabou
se dando mal.
Caiu nos ouvidos do imperador a notícia do que Martírio vinha promovendo
nas masmorras do palácio. Quando o movimento lá em cima sossegava,
mancomunado com os guardas de todos os plantões, o santo ia pessoalmente
abrir as celas e, aí, cada um que se defendesse. Cretínio não pôde suportar a
idéia de que seus presos se divertissem sem ele e claro que só podia desforrar
em cima de Martírio. O terceiro suplício ia começar.
Desta vez, o imperador se decidiu por punir o santo rebelde de forma
exemplar. Reuniu o povo em praça pública e executou todas as torturas que seus
emissários tinham aprendido no que havia de mais moderno nas viagens a
Oriente e ao Ocidente. Foi assim que, primeiro, colocaram sob suas unhas
espetinhos de bambu, depois que doeu bastante, arrancaram as unhas das mãos
e dos pés, deixando só os espetinhos. Com o auxílio de uma pinça em brasa,
arrancaram lentamente todos os pêlos do corpo de Martírio - eu disse TODOS! -
poupando apenas a penugem da cabeça - talvez fuja ao conhecimento geral que
o santo era careca, o que em parte explica seu sucesso com as mulheres.
Findo isso, após cinco horas - como todo bom careca, Martírio era bem
peludo - puseram o homem no pau de arara, assistindo no telão primeiro ao show
da Fafá de Belém, depois à festa de 15 anos de Macedônia, a filha do imperador,
que já estava uma mocinha. Como presente de aniversário, Macedônia pediu ao
pai que a deixasse pernoitar uma vez na cela de São Martírio. Cumprida sua
vontade, a menina saiu dali jurando que tinha sido convertida pelo santo.
Nosso herói ficou muito abatido com todos aqueles maus tratos. Mas o
tempo cura todas as feridas, os pêlos voltaram a crescer e ele se sentia um novo
homem. Como não podia sossegar a periquita, Martírio começou a promover
cultos, importunando a tranqüilidade dos outros torturados que não eram
necessariamente cristãos e achavam tudo aquilo coisa de babaca, além de
desaforo.
Completamente furibundo, Cretínio mandou chamar Martírio em sua
presença e perguntou, na lata, se ele executava algum tipo de plano para fuder
com a paciência imperial. Martírio soltou uma gargalhada que sacudiu até as
paredes da masmorra. Fazia 25 anos que tinha sido roubado do mundo lá fora e,
desde então, vinha sendo punido só porque descobriu o que era belo e bom.
Tomado de fúria, Cretínio mandou vir os guardas, que arrastaram Martírio pelos
cabelos - lembram-se de que o santo era careca - para dar duro numa frente de
trabalho. Ele só parou uma vez de cavar buracos quando Macedônia se casou
com Pereu, o príncipe persa, e ele foi acorrentado para assistir às imagens da
festa e da cerimônia por 72h seguidas.
Após 10 anos de trabalhos forçados, Martírio foi reconduzido à masmorra,
onde 10 anos mais tarde findaria uma vida de provas e expiações pela fechadura
do próximo. São Martírio deixou este mundo de dores quando lhe foi impingido o
mais cruel de todos os sofrimentos que conhecera até então e ele não resistiu.
Deu-se que durante um desses acasos do destino a avó materna do imperador
sofreu um acidente num circuito de alta velocidade. Cretínio ficou varrido e
transtornado, sem conseguir se conformar com a perda da avó, ainda em tão
tenra idade. Filmou de próprio punho os cortejos fúnebres, que levaram uma
semana, e compôs na harpa uma melodia que cada cidadão era obrigado a
cantarolar até chegar a missa de mês. Adivinhem quem ele escolheu para a
avant-premiére?
Martírio não sobreviveu nem até chegarem as cenas do enterro da velha.
Ele também já não era mais nenhum garoto e, afinal, foram 65 anos de pura
travessura. Mas sua alma foi recebida no reino dos justos e é isso o que interessa,
e não as veleidades terrenas. Atormentado por ter perdido sua vítima preferida,
Cretínio uma noite prometeu não mais pecar e, daí a sete dias, foi fulminado por
um raio. Foi a chegada do perdão. Irmanados nos coros celestes, a briga agora é
pra saber se São Cretínio ou São Martírio, qual dos dois, deve ser escolhido para
padroeiro dos videomakers.
Cineshow

. Estréias
ATOCHA (The day Samuel Hankins saw the face of God) - de Michael Douglas.
Com Michael Douglas e Juliette Binocchi. Art-Fashion Mall 4 (Estrada da Gávea
899 - 325-1258), às 16h20m, 18h40m e 21h. Roxy 3 (Avenida Nossa Senhora de
Copacabana 945 - 236-6245) às 14h30m, 16h50m, 19h10m e 21h30m e Via
Parque 6 (Avenida Alvorada3000 - Barra da Tijuca - Via Parque Shopping), às 14h
(sábado e domingo), 16h20m, 18h40 e 21h. No pequeno vilarejo de Stone
Washed, aventureiros da febre do ouro perambulam com seu espetáculo
mambembe a fim de atrair incautos garimpeiros. Sarah Jane, líder do bando,
confecciona por acidente o protótipo do que viria a se tornar a calça jeans. 14
anos.

. Continuações
BELGRADO (Belgrado) - De Peter Weir. Com Roman Polanski, David Bowie e
Christopher Reeves. Estação Botafogo 3 (Rua Voluntários da Pátria 88 - 537-
1112), às 15h20m. Confusões de um triângulo amoroso formado pelos atores
principais, alternando a ambição desenfreada de sexo e as lutas políticas de seu
partido de esquerda. 10 anos.

OS TURÍNGIOS E O BOLO DE AMÊNDOAS (Die Thüringen und der


Mandelkuchen) - De Wim Wenders. Com Denzel Washington, Nicole Kidman e
Ann Margaret. Rios Sul 2 (Rua Lauro Müller 116 - lj. 401 - 542-7946), América
(Rua Conde de Bonfim 334 Tijuca - 264-4246), Madureira 2 (Rua Dagmar da
Fonseca 54-B - 450-1338) e Icaraí (Praia de Icaraí, 161 - 717-0120 - Niterói), às
16h40m, 19h e 21h20m. Um homem tenta provar sua inocência, depois que sua
sogra maldosa o desmoraliza na escola onde trabalha. O filme explora a linha de
suspense e critica de forma implacável o conservadorismo da sociedade
moderna. Livre.

. Reapresentações
A VIDA E A VIDA DE JUDAS ISCARIOTES (No fuck me, man!) - De Mike Nichols.
Com Meryl Streep, Ray Collins e Bonnie Bedelia. Comédia no melhor estilo Monte
Phytom, numa tentativa de resgatar a imagem de Judas. A narrativa compreende
o período desde que o personagem bíblico seviciou um ex-colega de ginásio até o
conhecido desfecho, em que acaba na ponta de uma corda. Livre.

O ESCONDERIJO SECRETO (The hidden place) - De Ted Kotcheff. Com Winona


Ryder, Jack Nicholson e Jon Finch. Star São Gonçalo (Nilo Peçanha 56 lj. 70 -
Rodo - 712-4048), às 16h, 17h40m, 19h20 e 21h. Arabella é uma jovem
melancólica que se apaixona pelo dono do único drive-in da cidade de Pekinpa,
de 200 mil habitantes, no Arkansas. Enciumado, o pai do rapaz planeja uma
vingança e se segue uma série de acontecimentos, que vão do trágico ao cômico.
12 anos.
ENTRE O NÍVEL E O ABSTRATO (Mr.Scott goes bananas) - De Linda Ellen. Com
Craig T.Nelson e Maureen Stapleton. Ricamar (Av.Nossa Sra. De Copacabana
360 - 255-4491), às 16h (esta sessão somente de 2ª a 6ª feira), 18h15m e
20h30m. Professor universitário descobre o sexo durante pesquisas sobre a
existência do buraco negro. Drama inspirado em conto homônimo de Victor Hugo.
16 anos.

O crítico julga
. O ESCONDERIJO SECRETO - Para Jonathan José Veiga (ótimo) “O diretor Ted
Kotcheff consegue explorar magistralmente o sentimento do pai invejoso, numa
representação que nos remete aos primórdios do espetáculo shakespeareano.
Jack Nicholson está perfeito no papel de Arabella.” Para Cláudio Uchôa (muito
bom): “Com uma produção milionária e os mais modernos recursos em efeitos
especiais, Kotcheff mostra que é preciso muito mais do que apenas paixões
violentas e um roteiro bem escrito para se fazer um campeão de bilheteria. Peca
apenas na escolha da atriz Winona Ryder, inadequada para o papel de uma
mulher madura.” Para Arlette Éris Gôndola (ótimo): “Há muito tempo o cinema
americano não nos brinda com uma película deste quilate. Simplesmente
instigante.”

Bom
. OS TURÍNGIOS E O BOLO DE AMÊNDOAS - “Mais uma prova de que um
amontoado de fatos só não é suficiente para se fazer um filme de qualidade. O
elenco se esforça para equilibrar a ação, contando com o auxílio de belas
paisagens canadenses e uma excelente trilha sonora. Gostei.” (J.J.V.) “Wenders
busca em nova tentativa o tema recorrente da falta de ética em família. É
impressionante como o autor sempre logra mostrar uma nova faceta da
problemática comum entre parentes. Minha única ressalva é contra as cenas de
sexo, que poderiam ser mais longas.” (C.U.) “Não será difícil para o espectador
identificar-se com um ou outro personagem da trama. Absolutamente instigante.”
(A.E.G.)

Sofrível
. ATOCHA - “Não sei onde é que o Michael Douglas estava com a cabeça para
sair gravando uma bobajada tão grande. Além do mais, a proposta de atrair o
público infantil por causa do tema não funcionou.” (C.U.)

. A VIDA E A VIDA DE JUDAS ISCARIOTES - “Nem o refinamento de Meryl


Streep consegue salvar este filme de se tornar um dos piores casos de indigência
de que se tem notícia desde o lançamento de ‘Carlitos Repórter’. Apesar disso o
filme é limpo e honesto. Apenas instigante.” (A.E.G.)

. ENTRE O NÍVEL E O ABSTRATO - “Pornografia barata do início ao fim em


fórmula mais do que batida, que costuma tirar o espectador do sério. O professor
bobão está, contudo, magistralmente interpretado pelo novato Craig T.Nelson.”
(J.J.V.)
. BELGRADO - “Para os amantes do sexo livre regado a fisiologismos de toda
espécie, está aí um divertimento e tanto. Confesso que terminei de assistir sem
entender o que é que aqueles três queriam além de sacanagem. O mais
surpreendente é que, nos Estados Unidos, a bilheteria só ficou atrás de “O Parque
dos Dinossauros”.” (C.U.)
Cinco minutos com o seu astro

Nome artístico: Tássia Valença


Nome completo: Cleonilde Fonseca da Silva
Data de nascimento: 15/04/1956
Atividade do momento: Estou ensaiando para o musical “O rock manso das
quengas”, uma ópera aberta sertaneja inspirada no baião de Luis Gonzaga, onde
faço o papel de Ademilde, a filha mais velha da cafetina.
Seu melhor papel: Gostei muito do mordomo mudo que fiz na novela das 7h,
“Caminhos sem volta”, principalmente pela oportunidade de contracenar com a
Fernanda Montenegro. Certo que foi uma única cena, mas fiquei ouvindo um
tempão o elogio dos telespectadores pela minha técnica pra amparar a torta de
creme na minha cara. Eu treinei muito, sabe? Esse foi meu papel preferido, foi
também o único na tevê até agora.
Preferências - Cor: azul-marinho
Comida: a da Dona Dondinha, a senhora que me criou.
Gosto também do hambúrguer do Bob’s.
Esporte: tae-ken-do, com o Mestre Morcego
Animal: sou louca pelo Bussunda.
Música: “Casaco Marrom”, da Evinha
Filme: “Tubarão - Parte II”
Meu primeiro beijo: Foi um dia na saída do Maracanã, descendo a rampa, eu
devia ter uns 13 anos. Até hoje não sei quem me beijou. Levei também um
apertão no peito e um beliscão na bunda, desde esse dia não vou mais ao estádio
de short e camiseta. Mas o Flamengo deu de 3 a zero no Vasco.
Meu point: Gosto de ficar com os colegas no Silverado, um barzinho que
inauguraram ali na Francisco Sá, bem perto do teatro.
Morri de Vergonha: O dia que me apresentaram ao produtor do “Rock”. Ninguém
me disse que o homem era japonês, podia ser filho, e só depois de eu falar uns
15 minutos vieram me avisar que ele não estava entendendo uma palavra.
Para matar o tempo nada melhor: do que sair pra passear na Barra com o
Tuchiro, aquele nosso produtor. Não conversamos muito porque ele ainda não
aprendeu bem o português, mas mesmo assim é divertido.
Trago sempre na bolsa: batom vermelho. Uma atriz precisa zelar pela aparência.
Cultura reciclada

Interessados em investigar a quantas anda a cabeça do nosso ancião,


fizemos uma breve enquete entre brasileiros e brasileiras com mais de 65 anos,
da qual publicamos abaixo as melhores passagens:
“O velho está na moda. Primeiro veio a onda da velhice sadia, depois
surgiu a universidade da terceira idade, as excursões turísticas e os bailes só para
idosos. Na Unicamp está sendo estudada a criação de um novo centro de estudos
geriátricos, dentro dos moldes da tendência internacional.
Mas o que é, afinal, que o nosso velho pensa? Preparamos algumas
perguntas e vejam aí os resultados.”
. O senhor sabe o que é megabyte?
“Mega o quê? Megabyte? É, acho que já ouvi falar sim. Não é um molho
pronto da Arisco? Um que já vem com o orégano no purê de tomate? Lá em casa
nós não vamos comprar, minha patroa tem alergia a orégano.” João Silvério
Maringa, 72 anos, funcionário aposentado.
. O que é que a senhora acha da volta da pena de morte?
“Uma barbaridade. Esses deputados não têm o mínimo senso cristão. No
nosso Brasil, um país católico, o papa já esteve até aí, então. Olhe, eu não sou
católica não, freqüento há 15 anos um grupo kardecista, mas a mensagem cristã
é a mesma. Fazer alguma coisa por esta pivetada desgraçada de rua eles não
fazem. Outro dia mesmo assaltaram minha prima, arrancaram a bolsa e jogaram
ela no chão. Mas ela já está com as pernas meio bambas, é cinco anos mais
velha que eu. Esse negócio de pena de morte não tem cabimento, tinha que
matar o coisa ruim que fez uma proposta dessas.” Rosa Emília Gouveia e Sá, 68
anos, dona de casa.
. Prá que serve o computador de bordo nos novos modelos de carros?
“Já estão botando computador, eu vi o anúncio na televisão, do Tempra.
Saber pra que serve não sei não, imagine, com o que eu ganho do INPS, sabe
quanto é que eu vou botar a mão num carro desses? Só duvido que o Tempra
seja mais confortável que o Ford bigode.” Juarez Neri, 82 anos, contador
aposentado.
. A senhora sabe o que é onanismo?
“Sei, é quando uma pessoa nasce baixinha!” Eneida Leão, 67 anos,
professora de música.
. Se o golpe militar de 64 fosse hoje, o que é que o senhor faria?
“A mesma coisa que eu e todo mundo fez na época. Absolutamente nada.”
Terêncio de Oliveira Pinho, 70 anos, aposentado da RFFSA.
. A senhora já ouviu falar na Kate Moss?
“Não.” Juliana Maria da Graça, 92 anos, historiadora aposentada.
. O senhor sabe o que é falso positivo?
“Falso positivo? Não sei não, mas não concordo. Se é falso não pode ser
positivo, meu filho.” Ganimedes Alcântara, 68 anos, autônomo.
. O senhor acredita em inferno?
“Acredito. O inferno é aqui mesmo.” Etelvino Soares, 71 anos, vendedor de
mariola nos trens da Central.
. Qual sua opinião sobre o Amir Klink?
“Esse rapaz deve ter problema. Sai assim meses afora sozinho, como ele
fica tanto tempo sem sexo? Diga a ele que eu conheço uma garrafada que é tiro e
queda.” Zito Filho, 69 anos, taifeiro reformado.
. O senhor pode cantar alguma coisa pra nós?
“A deusa da minha rua, minha canção preferida. A deusa da minha rua tem
os olhos onde a lua costuma se embriagar. Como é que é mesmo? A deusa da
minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar. A deusa. Só um
minutinho que eu já vou lembrar. A deusa, tã-nã-nã, se embriagar. Tem alguém aí
que lembra, me ajuda aqui!” Octávio Mello, 66 anos, dono de casa lotérica.
. Se a senhora pudesse mandar uma mensagem para os jovens, o que
diria?
“Fala mais alto, que a pilha está fraca.” Marlene mattos, 88 anos, ex-
vedete.
. O senhor sabe quem são os presidenciáveis?
“Sei, mas só falo se você me disser pra que lado fica o cartório do Márcio
Braga.” Isaac Chemnitz, 75 anos, escritor e advogado.

Ditos e feitos
O teste abaixo está sendo proposto com o propósito de avaliar sua cultura
geral. Vamos ver como andam seus conhecimentos desta rica fonte de nosso
folclore: o provérbio.

Se conselho editorial fosse bom...


Com mulher e pernilongo de bigode...
Uma andorinha só impressa na nova cédula de um real...
Em casa de ferreiro cego...
Estava boiando mais por fora...
Deus ajuda e empresta a juros baixos...
Quando um não quer às 2h da manhã...
Estava mais tesouro perdido...
Quem puxa aos sacos dos seus...
A formiga atômica só trabalha...

a próstata também degenera.


Quem cedo madruga e começa a gastar por conta.
Quem tem um espeto de pau no olho é rei.
Do que o umbigo sujo em dança do ventre de vedete.
Dois não fodem nem se tiver briga.
Do que cego sem bengala em tiroteio na favela.
Porque não aceitou a cantada da cigarra.
Não faz Plano verão.
Ninguém dava: estavam todos vendidos.
Nem diabo mexicano de sombreiro pode.

Verifique agora as respostas e a sua cotação de acordo com o escore:


1-e
2-c
3-i
4-b
5-f
6-g
7-a
8-d
9-j
10 - h

10 acertos - Cara, como você é descolado!


De 9 a 7 acertos - Até que você sabe se ligar.
De 6 a 1 acerto - Você é um perigo para os pastos do país.
Nenhum acerto - de que planeta você vem?
Tratado dos bebês
Parte I - Do choro

Os bebês não têm meias palavras. Para falar a verdade, também não têm
palavras inteiras. Só vão aprendê-las meses mais tarde. Neste meio tempo,
contudo, dispõem sem reservas do bem mais coercitivo recurso do choro. Alguns
chegam até a abusar dele, porque é bom aproveitar dos privilégios dispensados a
quem ainda está no colinho.
Se os bebês falassem, o que diriam? Ou então, se as mães conseguissem
decodificar-lhes o choro? Talvez fosse pior, com as traduções as menos
esperadas:
“Que porcaria de leite gorduroso, mãe! O que ´e que você anda comendo?
Como é que fica o meu colesterolzinho?...”
“Blá, este leite está frio!”
“Ou o papai arranja um emprego ou não vou resistir só com este caldinho
aguado. Compra uma armadura de peito, mãe, pra se prevenir, que eu não
estou parando em pé. Aliás, pelo jeito não vou chegar a ficar em pé de fraco. E
essas perninhas tortas... Sonhei tanto com botinhas ortopédicas (choro engolido).”
Pouco antes do velho truque de “tomar o choro”, a língua enrolada tapando
a garganta do sujeitinho que já vai ficando com a cabeça roxa, o linguajar que
esbravejava não ia ser dos melhores...
“Onde é que eu vim parar meu querubim da guarda? Esta molóide me
deixou cair de dois andares e não quer que eu chore? Estou todo quebrado, levei
tanto tempo para solidificar os ossinhos, faltou só a moleira. E agora foi a única
que sobrou mais ou menos firme! Ainda por cima foi chamar a besta do porteiro
para destrancar a porta do play. Ai, meu sacro...”
“Hoje eu me dano de chorar mas não vou aturar mais esta tortura. A
perversa da sogra da minha mãe insiste em me dar uma droga de leite em pó que
me dá a maior diarréia. Sabe lá o que é se contorcer de dor e depois nem poder
correr pro banheiro? É vexame em cima de vexame, volta e meia estou todo
cagado, e tome fralda descartável. Se tem gente estranha por perto ficam me
cutucando os fundilhos para depois dizer: ele se sujou de novo. Me sujei não,
estou todo cagado, isto sim, CA-GA-DO. E lava dali, e seca daqui, não há óleo
que chegue, estou com a bundinha pegando fogo. Mal posso esperar por um
hambúrguer do Mc Donald’s.”
Sábia é a natureza. Melhor deixar como está.
Cantigas infantis

Desde tempos imemoriais um sem número de gerações tem crescido ao


som das cantigas de roda. O cancioneiro popular revela nosso rico folclore
anônimo expresso nos ritmos, danças e cantos regionais em nenhum lugar do
mundo comparados ao nosso ineditismo e variedade. Recordando vívidas
lembranças da minha passada alegria infantil, abracei como tema para minha tese
de mestrado em lingüística a pesquisa e análise das cantigas infantis. Dado à
vastidão do tema, como surgiam sempre novas fontes de informação, pincei uma
única cantiga e esmiucei a fundo, sendo a monografia final de 320 páginas a
conclusão de dezoito meses de esforços.
Revelações surpreendentes coroaram esse estudo, do qual farei abaixo um
breve resumo, sendo que o texto completo de Dona Chica e o gatôtô: o mítico do
inconsciente popular como estrutura pró-revolucionária na América Latina - o caso
brasileiro está saindo pela Record este mês.

Identificação dos agentes

Atirei o pau no gatôtô


mas o gatôtô
não morreurreurreu
Dona Chicaca
‘dimirôcêcê
do berrô
do berrô que o gato deu
miau!

Sem me ater à questão da própria violência da paulada no gato, vimos que


a acentuação propositadamente alterada nas palavras gatôtô, ‘dimirô e do berrô
se apresenta como o primeiro indicador da rebelião contra a cultura estabelecida -
neste caso, contra a língua. O mesmo pode ser dito sobre a grafia suprimida de
‘dimirô - eu tinha 19 anos quando entendi que o certo seria admirou-se.
A repetição da última sílaba da palavra morreu revela uma certa
determinação em concretizar o malfadado assassinato do gato. Dona Chica é
uma identidade disfarce para o rio São Francisco, que demarca as raízes deste
movimento campesino de libertação, uma vez que foi dessa população ribeirinha
que se originou cantiga.
A necessidade de anonimato dos líderes revolucionários justifica o porquê
de o pau ter sido atirado. Seria demasiado o risco de chegar perto do gato, o que
garantiria com certeza o esfacelamento do crânio do animal.
E por que justamente atentar contra o gato? Por que não contra o cachorro,
ou o indefeso peixinho de aquário? Porque existe todo um simbolismo inculcado
na figura do gato. O gato representa o político profissional, o expoliador do
tesouro público, essa praga que assola o país de ponta a ponta desde os tempos
da Ilha de Vera Cruz. As sete vidas do gato correspondem ao perigo iminente de
uma nova reeleição.
Há muito mais que se possa relatar sobre o atirei o pau no gato, mas não
pretendo me estender demais. Antes de entrar em considerações mais gerais,
quero apenas trazer à tona a discussão do volume do grito do gato. Trata-se de
uma referência ao uso de carros de som no primeiro berrô e da massacrante
propaganda eleitoral no segundo em períodos de campanha. O miau equivale ao
babau e até mesmo ao fudeu, palavras que representam o que significa para o
povo cada mandato individual.

Redução dos fatores

Agora vejamos o resultado da tentativa de retirar da cantiga seus traços


mais característicos, ou seja, a rebeldia:
Atirei o pau no gato
mas o gato
não morreu
Dona Chica
admirou-se
do berro
que o gato deu.

As alterações na forma comprometem sem sombra de dúvida o teor do


conteúdo.

O gato na íntegra

O que a maioria da população desconhece, salvo na região onde se


originou a cantiga, é que existe uma continuação de atirei o pau no gato,
suprimida do uso corrente dado ao caráter sanguinário dos versos. Às margens do
Velho Chico, ainda hoje a canção é assim cantada na íntegra:

Atirei o pau no gatôtô


mas o gatôtô
não morreurreurreu
Dona Chicaca
‘dimirôcêcê
do berrô
do berrô que o gato deu
miau!

Gato entrô na minha casasa


comeu ‘bróbrabra
e capitãotãotão
mas no fundo
‘citinhosôsô
tinha um olho
tinha um olho neleição.

Quando dei por conta o gatôtô


‘rudiava
a capoeirárá
dona Chicaca
‘trai o bichuchu
que a paulada
que a paulada é certeira.

Mas o gato tinha partete


cum canhotôtô
desde abrilbrilbril
Dona Chicaca
olhô pro ladôdô
danadô
danadô aí fugiu.

Soube que na paraíbaba


mais de um gatôtô
pereceuceuceu
cabra machôchô
torce o rabôbô
estripa o bichu
estripa o bichu e bota mel.

Minha jura é compromissôssô


pressa vidádá
melhorárárá
‘garro o gatôtô
pelo rabôbô
piso, mordo,
cuspo e babo inté matá.

No futuro estudos revelarão bem mais sobre o que o poder público vem
fazendo para tentar apagar a memória nacional. Em nome deste resgate, já iniciei
as pesquisas sobre o tema de minha tese de doutorado, onde tentarei explicar o
porquê de A linda rosa juvenil ser na Alemanha um cântico de feliz aniversário e
aqui não.
Das letras

Alma - parte imaterial do ser humano, pessoa, chefe. O que invariavelmente


aparece quando você brigou com a patroa e foi dormir na sala.
Biombo - tabique móvel para divisão de compartimentos numa casa. O que
encobre as taras mais secretas e as safadezas mais fugidias.
Cegar - tornar cego, tirar a vista, alucinar. Resumindo: enfiar o dedo no cú.
Dentro - do lado interior, interiormente. A prisão de ventre quando passa de cinco
dias.
Escape - ação de escapar, fuga. Pode ser também um comando do computador.
Fole - utensílio para produzir vento e ativar uma combustão, parte do instrumento
musical. Digamos que você bebeu demais, está com bafo de cachaça e resolveu
cantar bem alto.
Gôndola - barco comprido e chato, de remos. Veículo apropriado para os casais
que, em vez de sentar lado a lado, preferem falar olho no olho.
Horrendo - que causa horror, medonho, muito feio. Alguém no espelho depois de
vomitar a noite inteira, ou o dia seguinte do fole.
Indulgência - facilidade em perdoar as faltas dos outros, remissão de penas. A
avó que estraga as criancinhas.
Junho - sexto mês do ano. Podia ter sido julho também.
Kirie - invocação que se faz no princípio da missa. Esse negócio move as mais
fortes energias.
Longe - a grande distância, no espaço ou no tempo. Onde cada um gostaria de
estar.
Mofina - infelicidade, mulher infeliz ou turbulenta, avareza, artigo anônimo e
difamatório. Você fez um péssimo casamento e levou a sogra como contrapeso;.
Negro - preto, sombrio, homem da raça negra. O capoeirista com a avó atrás do
toco.
Onze - dez mais um. Podia ter sido oito também.
Pecado - transgressão de preceito religioso, culpa, vício. Fudeu com a mulher dos
outros depois de cheirar e ficou com remorso.
Quase - perto, por pouco. Seu jogo da loteria ou um tiro de raspão.
Ruga - prega na pele, carquilha. Sem essa de plástica, as manchas senis vão
acabar entregando!
Soprar - dirigir o sopro para, apagar com o sopro, encher de ar, segredar, sugerir.
Tudo o que tem em dia do aniversário, principalmente se os convidados forem
comíveis.
Teia - tecido de linho ou lã, trama, intriga, rede das aranhas, tocha. Um processo
burocrático ou coisa pior que se possa imaginar.
Um - o primeiro dos números, uno, indivisível, contínuo, certo, algum, algarismo
representativo do número um. Só pode ser Deus.
Voz - som produzido na laringe, queixa, clamor, forma por que o verbo indica a
ação, direito de falar. Aquilo que acaba justo quando você foi participar da
passeata, mesmo antes de o guarda ter lhe acertado com o cacetete na garganta.
Watt - unidade de potência, correspondente à potência de um motor que produz a
energia de um joule/seg. Custa um dinheirão.
Xô - interjeição para espantar aves, mas também serve para espantar moscas,
vendedoras de artesanato e putas em geral, se você não for chegado e estiver
tomando um chopinho na Atlântica.
Yuppie - executivo modernosos que acha que o pau dele, além de maior, vem
com controle remoto.
Zorra - carro para transporte de grandes pesos, pessoa muito vagarosa, raposa
velha, pequena rede de arrastar caranguejo, nome de planta, confusão. Tudo que
se relaciona à conhecida figura do “mala” ou, quiçá, uma convenção deles.
Professor I

Está certo, cinco minutos de atraso não justificam uma crônica. Mas é que
a esses cinco vão se seguir cinco outros, sabe-se lá quantas vezes, como de
praxe.
Imagino o conferencista instruindo neste momento o seu enviado especial.
De tempo em tempo este enfia a cabeça na porta do auditório e conta
discretamente o número de pessoas que esperam. Ele o faz como se procurasse
alguém, cautelosos para não levantar a suspeita de sua torturante fiscalização.
- Agora são onze, Professor.
- Mas, só! Quinze minutos de atraso e só tem onze espectadores? Eu não
posso ir pra lá, eu não posso entrar lá e falar pra esse público minguado! Seria um
ultraje! Você se lembra dos cinqüenta em Ribeirão Preto? E dos trinta em Porto
Alegre? Para menos que isso eu não falo. E nós estamos no Rio de Janeiro.

Professor II

Venerando professor, sei bem da distância de formação intelectual que nos


separa. Imagino ver uma pirâmide de livros livros às centenas, empilhados de um
em um, e lá em cima meu professor sentado, se equilibrando. As perninhas
parecem, se me permite o aparte, bem curtas vistas daqui. E eu, humildemente,
me aproximo e começo a fazer cosquinha num pé de página. Empreendimento
arriscado, senhor, imagine a primeira vítima de sua queda! Mas, qual, estamos
unidos como um par de sapatos. Um existindo em função do outro, eu aqui bem
perto, assim, respirando no seu pescoço, atento a qualquer chamado.
O seqüestro

• Cadê o homem?
• Tá lá no quartinho, Zé Ramiro.
• Ele tá amarrado?
• Tá, ‘cabamos de chegar.
• Então vai lá e desamarra. Não! Deixa que eu
mesmo vou.

• Mas o que é isso? Vocês pegaram o homem


errado?
• É, a gente já ia te falar, na hora o negócio embolou
um pouco e...
• Quem é esse velho? Cadê o empresário que eu
mandei vocês trazerem?
• Calma, Ramiro, calma que o Joca já vai explicar.
Fala, Joca.
• Bom, nós cercamos a casa que nem o combinado.
Ficamos de tocais desde as quatro da manhã. Dois homens na
frente, dois nos fundos e mais dois nos carros.
• Tá querendo me explicar meu plano? Desembucha
logo.
• Bom, aí a gente estava certo que o primeiro a sair
de casa ia ser o doutor empresário. Sabe como é, a gente ficou
vigiando a casa uma semana. A semana inteira, deu seis horas e
o homem saía.
• E daí, O que é que deu errado?
• Juro que não sei. Só sei que ‘inda ‘tava meio escuro
e vimos o vulto saindo pelo portão e...
• Caralho! Não era o homem!
• Peraí, Joca. Justo naquela hora, Ramiro, passou
uma patrulhinha fazendo a ronda, olha que nunca passa
patrulhinha ali, e aí a gente não podia perder mais tempo.
• Meteram o saco na cabeça deste infeliz e trouxeram
pensando que era o outro!
• Foi sim.

• Acho que o homem deve ser pai do empresário.


• Pai, que pai, mané pai. O velho deve ter no mínimo
uns 90 anos. Vai ver que é avô.
• Puta, olha que vocês já me fizeram muita merda,
mas desta vez foi demais.
• Tá tudo certo, Ramiro, qual é o problema? Pedimos
resgate por esse aí.
• E quem é que vai pagar pra ter esse traste de volta?
O desgraçado nem fala mais, fala?
• Não ouvimos falar ainda não.
• Que cheiro miserento é esse?
• É o velho.
• Acho que ele se mijou, deixa ver. É, tá todo mijado
sim.
• Merda, eu peço um empresário e vocês me vêm
com um velho mijado, a família deve estar querendo mais é se
livrar.
• Que isso, chefe, olhe que velho tem valor estimativo.
• Pára de falar besteira, Joca, pára de falar besteira!
• Quê que a gente faz agora, Ramiro?
• Vou pensar. Revira os bolsos do velho pra ver se
descobre quem ele é.

• Ramiro, dá pra arranjar aí com a dona do barraco


outra calça?
• Quê? Não vai me dizer que ele se mijou de novo?
• Pior, agora se cagou. O quartinho ficou todo
empestiado.
• Caralho. Deixa o infeliz sem calça.
• Não pode, ele se mija o tempo todo.
• E o que é que a gente faz?
• Bom, já escutei falar aí numas tais de fraldas
geriátricas.
• Era só o que faltava. E quanto é que custa isso?
Vocês nem me identificaram o homem e já querem gastar
dinheiro. Eu tô fudido mesmo.
• Deixe que eu vou buscar os documentos dele,
enquanto o Joca vai comprar as fraldas.

• Taí. Homero do Couto Vilamor, 93 anos. Só


achamos esse vale-idoso, não tinha identidade, mas pela foto é
ele mesmo.
• Dinheiro, tinha algum?
• Uma nota de 500 e quatro de 100. No bolso só
achamos só mais as chaves, só.
• Bonito. Ele já falou alguma coisa?
• Resmungou lá um negócio, pediu pra chamar a
empregada da casa que é amiga dele.
• Taqui as fraldas.
• Isso. Agora quem é que vai fazer o serviço no
velho?
• Vai tu mesmo, Joca, tu já teve filho uma vez.
• Sobra sempre pra mim.
• Túlio, tu vai lá e descobre o telefone da casa.
Descobre também como está o movimento, se já tão dando falta
do velho.

• Zé Ramiro, negócio é o seguinte. O que é que nós


vamos dar pra ele comer?
• Como, o que é que nós vamos dar? A mesma
comida nossa, pede mais uma quentinha e vamos à luta.
• Acho que não vai dar, não. Ele pediu batata frita.
• Essa é boa.
• Mas não é? Quer um hambúrguer e batata frita ou
então pão com ovo estalado. E coca-cola.
• Manda buscar.
• Posso pedir um pra mim também?
• Pro velho, Joca, manda vir o do velho e só.
• Más notícias. Não vi nenhum movimento estranho
na casa. Parece que não deram a menor falta do Seu Homero. A
rua ‘tava calma, não vi polícia, não vi carro de reportagem, porra
nenhuma.
• Espera. Eles vão descobrir.
• Ramiro, o velho ainda ‘tá com fome, ele quer mais
um hambúrguer. E as fraldas só vão dar até amanhã.
• Merda, providencia, nós não podemos maltratar,
sabe como é que é.
• O que é que a gente faz agora?
• Seguinte, Túlio. Se não deram falta dele, vamos
fazer eles dar. Hoje à noite a gente liga pra família dizendo o
preço do resgate.

• Já são 10h?
• São.
• Me daí o número, vou ligar do celular. Droga, só dá
ocupado. Ocupado em cima de ocupado. Joca, tenta lá do
orelhão. Não, pensando bem, vai tu, Túlio, que esse cara é um
lesado. E além do mais, ele agora foi promovido a babá de
ancião, rêrêrê.
• Pô, Zé Ramiro, faz isso comigo não.
• Vai logo, Túlio.

• Não teve jeito, só dava ocupado.


• Bonito. Tentamos de novo amanhã.
• E aí, ficou sabendo mais alguma coisa do velho?
• O porteiro do prédio em frente disse que é amigo da
empregada. Ela contou que de vez em quando o Seu Homero
foge, que gosta de ir sozinho na casa dos parentes e que às
vezes chega até a casa de uma sobrinha, lá pras bandas do
estado do Rio. Disse que não tem visto o velho não, mas que é
comum ele sumir mesmo.
• Grande. O porteiro não desconfiou de ti, não?
• Ô, chefe, quê isso? Sabe como é porteiro, adora
saber da vida de todo mundo. Tá tudo nos esquema.
• Olhaí, não dá bobeira.
• É só isso mesmo, Zé Ramiro, as fraldas e o lanche
do velho?
• Só, e vai anotando essas despesas. Ai, se a
malandragem fica sabendo disso!

• Uma semana e nada. O que foi que deu errado


dessa vez?
• Chefe, acabei de chegar e falei com o porteiro de
novo.
• E daí?
• Bom, Seu Homero é mesmo avô do empresário. Ah,
e ele me falou também que a dona da casa tem uma mania
esquisita de desligar o telefone do plug às 10h, porque desde
uma notícia de morte não gosta de atender telefone à noite.

• Porra, então é isso. Que horas são agora?


• Oito e vinte.
• Então corre lá no orelhão, Túlio, a bateria do celular
acabou.
• Mas eu ‘tou sem ficha.
• Liga a cobrar

• A ligação estava horrível, deve ter sido a chuva de


ontem. A mulher não me escutava de jeito nenhum e eu não
podia ficar gritando no meio da rua, alô, aqui fala o seqüestrador.
• Não falta acontecer mais nada!
• Gente, o velho sumiu. Procurei por todo canto, saí
pra rua, nada. Foi o tempo de eu ir ao banheiro, não levou nem
meia hora.
• Joca, você e essa mania de ficar lendo o jornal.
Pronto, deixei o besta de vigia e olhaí. Um velho de 93 anos é
mais rápido do que ele.
• Quer que a gente vá procurar, chefe?
• Tá maluco, acabou o dinheiro da comida e das
fraldas do velho, o desgraçado me arruinou.
• Tadinho, até que era bonzinho.
• E quem é que vai ficar com o prejuízo? Sabe lá, o
velho pode contar onde era o cativeiro.
• Esquece. Deixa que alguém encontra ele. Não
quero mais saber de seqüestro. Vou planejar o assalto a um carro
forte.

• Chefe, Seu Homero está aí na porta, querendo


saber cadê o hambúrguer dele.

Foca

Um crime inédito na história policial do Rio provavelmente não vai ser


desvendado, na opinião do delegado Ari Franco, da 6ª DP (Cidade Nova).
Acontece que a vítima não pode prestar depoimento, porque ela não fala. Rosane,
como foi apelidada, é uma foca que apareceu misteriosamente longe do mar, em
pleno Centro, ontem pela manhã. Repórteres do jornal O GLOBO, que a
encontraram dentro da redação, não sabem o que fazer com ela e nem a polícia
encaminhou ainda o animal para o Jardim Zoológico.
- A verdade é que esta foca não quer colaborar. Não conta de onde veio,
não tem placa de licença e não explica como é que conseguiu passar pela
portaria sem crachá - disse o delegado.
A popularidade de Rosane também não é das melhores junto aos
jornalistas. Embora não seja acusada de crime de peculato e formação de
quadrilha, como a ex-primeira dama, ela não come desde que chegou e já há
quem levante a hipótese de se tratar de uma foca vegetariana. Temendo protesto
por parte dos Defensores da Terra, o diretor administrativo do jornal mandou
incluir peixe no cardápio de hoje.
O deputado Carlos Minc, engajado nos crimes contra os animais desde
que sua família entrou em extinção, esteve na redação e denuncia maus tratos
cometidos contra a foca.
- Primeiro expulsaram a pobrezinha de um terminal. Depois levaram para
apurar uma matéria e puseram para fora do carro de reportagem, em plena Rua
da Assembléia, porque só tinha cinco lugares. E olha que ela tinha esperado uma
hora pelo entrevistado, para fazer uma cobertura instigante sobre viadutos
deteriorados pela urina humana. Alguém tem que tomar uma providência - afirmou
Minc.
Repórteres da geral, que não quiseram se identificar por motivos óbvios,
solicitaram a colaboração do Green Peace e estão articulando um encontro ainda
esta semana entre Roberto Marinho e Brigitte Bardot.
Os caçadores de peles no Pólo Norte pelo menos matam logo a paulada,
mas não ficam torturando os animais desta maneira, sem dizer se vão contratar
ou se querem que toque corneta e equilibre a bola no nariz ao mesmo tempo -
informou um redator do anonimato.

No bar

Encontraram-se no bar um palhaço, o inspetor e o arquivista. Sobre a mesa


o cinzeiro com três cigarros amassados, dois copos cheirando a cerveja, um
paliteiro sujo e uma garrafa de Brahma vazia.
- Garçom, traz a conta.
Quê isso, mal acabaram de chegar.
- Minha mulher está me esperando em casa. O garoto está com febre.
Imagine o clima.
Onde já se viu, homem feito ligar pra essas historiazinhas de dona de casa
que não tem mais o que fazer a não ser torrar a paciência do marido.
- Tá certo, mas só fico pra mais uma.
- O garçom encheu os três copos.
- Continua aí sua história, inspetor.
- Ah, sim. Como ia dizendo, eu não acreditei em nada do que ela estava me
falando, mas fiz que estava. Falou que o sujeito tinha passado a mão na bunda
dela, que depois tentou beijar, não sei o quê. Eu só escutando.
- E aí - perguntou o palhaço, coçando as bolas.
- Aí eu cheguei bem perto, encarei ela e confirmei: onde é que foi mesmo
isso?
- “Foi naquela rua atrás da igreja, agora eu esqueci o nome.
- E a cara dele?
- Não vi direito não, tava escuro.
- Mas às duas e quinze da tarde?
- Pois é, estava armando um temporal.”
- Então tu deu um prensa nela?
- Dei, aí dei, a história não tinha nem pé nem cabeça. Ela tinha que contar
a verdade.
- Quem, tua namorada?
- Que namorada, palhaço? Tu acha que eu tô contando da minha
namorada?
- Não era não?
- Ele tá contando de uma dona que depôs lá na delegacia.
- Aaah...
- O inspetor tomou um gole do copo, meio enfezado.
- Mas, conta aí.
- Conto droga nenhuma não, esse cara me tira do sério.
- Desculpe, não precisa se irritar desse jeito.
- Na mesa do fundo tinha quatro irmãos da academia de cultura física.
Fazia tempo que eles não exercitavam direito os músculos e aquela noite estavam
decididos a tirar o atraso.
- Cumé, já escolheram?
- Ainda tem pouca gente, deixa dar umas dez horas.
- Não pode ficar tarde porque eu quero ver o filme que começa à uma e
meia.
- Calma, rapaz. Alá, tão entrando uns caras.
- Vai ter graça nenhuma. Já repararam nos três ali daquela mesa?
- Eu já, na falta de coisa melhor pegamos o fantasiado e os colegas dele
mesmo.
- Que fantasiado? Aquele é o palhaço do circo.
- Mas que o cara tá fantasiado, isso ele tá.
- Até que ia ser divertido esmigalhar aquela roupinha dele.
- Inda mais com ele dentro!
- Maninho, traz uma porção de frango aí pra nós. Não gostamos de
trabalhar de barriga vazia.
Duas mesas à esquerda um casal brigava.
- Eu não agüento mais ter namorado galinha. Todo homem que eu arranjo
cisma de me botar chifre.
- Mas o que é isso, Cristina. Eu só acompanhei sua prima em casa!
- E você pensa que ela não me falou do convite que você fez quando
chegaram no portão?
- Eu não disse nada de mais. Que é isso, você me conhece.
- Por isso mesmo.
- Na mesa do palhaço o clima também estava esquentando.
- Assim não dá. Não consigo contar uma história que seja, sem o palhaço
vir atrapalhar.
- Ele está nervoso hoje, né?
- Sentaí, inspetor, já pedi mais uma.
- Pede pro seu amigo calar a boca, senão eu não me responsabilizo.
- O inspetor foi ao banheiro.
- Mas Cristina, que papo é esse de ciúme? Eu gosto só de você.
- Eu sei. Sem vergonha. Não sei onde é que eu estou que não lhe viro essa
caipirinha na cara.
- Ela se levantou para ir retocar o batom.
- O arquivista e o palhaço conversavam animadamente em sua mesa
quando o inspetor teve uma idéia macabra.
- Os rapazes aí estão a fim de faturar uma grana?
- Depende.
- Estão vendo aquele idiota ali vestido de palhaço? Quero que vocês dêem
um pau nele.
- Um pau, assim, das quantas? Que foi que ele te fez, meu irmãozinho?
- Isso não interessa. Topam ou não topam? É vinte pra cada um.
- É, até que é uma oferta. Mas é só o palhaço?
- Pra quebrar mesmo, só. No outro dá só uns bofetes pra despistar. Eu vou
dar um jeito de sair antes deles e depois vocês se viram. Taí o dinheiro.
Os irmãos não entenderam direito mas até que acharam vantagem ainda
sair lucrando sem perder o passatempo.
- Oi, posso falar com vocês um minuto? Tão vendo aquele cara ali? É o
meu namorado. Ele está precisando de uma lição e quero que vocês dêem um
corretivo nele. Não é pra machucar não, só amassa ele um pouco. Então, vocês
querem?
- Agora eles não estavam entendendo mais nada.
- Aí tem vinte pra cada um.
- Está tabelado?
- Cala a boca, idiota. Pode deixar com a gente, senhora.
- Quem é que ia acreditar num negócio daqueles?
O inspetor saiu e a garota também, batendo os saltos dos sapatos,
enquanto os quatro ainda preparavam um esquema.
O jeito é a gente se separar. Duas surras encomendadas assim, na mesma
noite!
- Meu filho, será que você podia me fazer um favor? Tá vendo aquele velho
ali de 70 anos tomando Malzbier?
- Já sei, dona, a senhora quer que a gente dê um pau no seu marido! Não
sei se sabe que a tabela é vinte mangos. Claro que não, mas o que é isso? Eu
queria só que vocês me informassem se na sua academia tem turma de aeróbica
para idosos.
- Tem não, madame.
Quando os irmãos olharam de novo, tanto o namorado quanto o palhaço e
o arquivista já tinham ido embora.
- E agora, galera, o quê que a gente faz? Que tal inaugurar o disque-surra?

Morte aos manobristas

Depois que inventaram o carro, muita coisa mudou no mundo. E quando o


carro se popularizou, aí mesmo é que ficou tudo diferente. Os espaços, por
exemplo. Em gente que diz: a calçada é dos pedestres, o asfalto é dos carros e a
favela é terra de ninguém. Só que o pedestre, de esquina em esquina, precisa
atravessar a rua - que ousadia! - e todo mundo está cansado de passar por
calçadas tomadas de carros, geralmente tendo que andar por ali, ó, no meio-fio.
Taí. Cada motorista acredita que andar de carro é uma maravilha. Ele acredita
também que dirige otimamente e que barbeiros são os outros. Sob este ponto de
vista os problemas começam de verdade na hora de estacionar.
Não há estacionamentos que cheguem. Parece até que não há
estacionamentos legítimos - a não ser nos shopping centers e nas lojas de
departamentos - esse um ou outro nas áreas críticas não é regra, é exceção.
Chegou-se ao cúmulo de cobrar estacionamento no meio da rua. Você pára o
carro crente que a rua está livre, não se sabe de onde aparece um cara de colete
laranja com um bloquinho na mão e se você protesta ele aponta para uma placa
ali no alto do poste. Já não se pode mais dizer que a rua é pública.
Como se sabe, a cidade tem lugar para todos, ainda que seja do lado de
fora. Assim, toda vez que surge um poder outorgado - e o diabo há de conhecer
quais os critérios! - surge também um poder paralelo. A questão tipicamente
urbana do estacionamento não haveria de ser diferente. Surgiram os flanelinhas,
mas vamos chamá-los manobristas, que é um nome mais pomposo. Seriam eles
estrategistas de guerra? Que manobras urdiriam, especialmente na calda da
noite, mormente nas ruas de bares e casas noturnas, parece que brotam da terra.
São onipresentes. Fundistas natos e imbatíveis, como se revelam, se o carro lá da
outra esquina tenta escapar ao cerco inescapável, procurando sair ao mesmo
tempo que outro carro bem distante.
Todo mundo conhece pelo menos um caso de alguém que foi assistir ao
seu cantor favorito e acabou tendo que pagar mais ao manobrista do que o preço
do ingresso. Há o manobrista do tipo tímido, que se aproxima quando o motorista
já trancou o carro e apenas diz, baixinho, que ‘vai olhar o carro’. Quer olhar, tudo
bem, mas não espere que eu vá pagar por isso. Outro gênero prefere pular na
janela do motorista enquanto ele ainda luta pra enfiar o carro na vaga apertada.
Em vez de ajudar, o manobrista faz questão que o dono veja que ele já registrou
tudo que tem dentro do carro: celular, toca-fitas, cd player. Aliás, é com base
nisso que ele altera a tarifa. Quem pode paga mais.
Há o manobrista que não diz uma palavra, só dança. Tem muito bem
ensaiados os passos do seu gestual, é um verdadeiro mestre-sala em ação. Usa
quepe e flanelinha - aliás, é o único que carrega a flanelinha, pode ser também
um trapo de pano se o movimento andar fraco, mas ninguém nunca viu ele limpar
nada com aquilo. Na verdade a flanelinha serve como muleta, é um apoio para ele
saber quem é e que não vai ser confundido aí com um malandro qualquer.
Por último existe o tipo falante. O motorista obediente reconhece e reage
prontamente aos comandos de ‘desfaz o jogo’, ‘vai todo atrás’ e o clássico ‘deixa
solto’. A voz desse manobrista parece uma trovoada. No início de carreira ele
freqüenta os arredores de bares movimentados e para a vizinhança inteira é um
personagem muito íntimo, porque não deixa ninguém dormir, nem outro ladrão se
aproximar do seu território. Bem informado, ele comparece aos locais certos em
dia de show e tem todo um procedimento ético. Primeiro avisa ao motorista que
vai ter que dar a ele mais do que o valo do ingresso - sim, é ele de novo. Depois
vai procurar dois pitocos que ajudem ao motorista colocar o carro em cima da
calçada alta - isso o trânsito buzinando atrás. Então ele localiza dentro do carro
onde é que está a tranca, aquela barra de ferro que prende o volante num dos
pedais, pro caso de o motorista não querer pagar adiantado. Arranca o dinheiro
da mão dele e já sai dali pronto pra quebrar o pau com outro dos muitos
manobristas que disputam o pedaço. Uma luta de titãs. Ele jurou que ficava até o
final do show. O motorista se dá por satisfeito se encontrar o carro com a pintura
pouco arranhada no lugar onde deixou.
Há desdobramentos curiosos do manobrista enquanto instituição. O
namorado vai pegar a garota pra sair na sexta-feira à noite e quando chegam ao
destino ele é abordado pelo flanelinha. Ninguém acredite que a garota não está
prestando atenção em como o rapaz vai reagir, ainda mais se for início de
namoro. Situação constrangedora. Por um minuto o galã hesitará sem saber o
que fazer. Ele pode soltar os bichos em cima do cara de pau, a namorada
começará a tremer e suplicará para que eles vão para outro bar. O namorado
atende, fingindo contrariedade, mas deixa que ele sabe que não restava nada a
fazer, a não ser a fuga. Outra reação é primeiro fingir que pechincha e depois
pagar quietinho. O namorado sai resmungando, pode até usar o mote para fazer
uma crítica social, mas toma cuidado pro manobrista não ouvir. Por último o rapaz
confessa que não é bem aquilo que ele está pensando, o carro é da minha mãe, o
golpe final, pergunta se a garota tem trocado.
É possível que a coisa piore no futuro. Todo mundo quando pode quer ter
carro, pro resto a miséria vai aumentando, a disputa por uma vaga vai ser de
lascar. O chefe de família pergunta ao corretor de imóveis sobre o prédio em
construção, ‘quantas vagas de garagem, três? Não pode, o senhor vai me criar
um problema. Dois quartos no apartamento dá, boto meus dois filhos
adolescentes num quarto só e no outro fico com a minha mulher, mas... e os
carros? Precisamos de quatro vagas, uma para mim, uma para ela, e uma para o
carro de cada garoto!’ Ou então o neto que ia levar a avó ao médico e encosta de
motor ligado na frente do prédio dela. ‘Eu não quero estacionar, vim buscar a
minha avó de 90 anos, ela deve estar descendo... quem disse que não posso
esperar? A área é sua? Eu vou ter que dar volta no quarteirão? Mas... droga, olha
aí um querendo parar na vaga!’
Estas e outras alucinações passaram pela cabeça doente de um homem
poderoso. Ele teve então uma idéia macabra. Decidiu agir imediatamente, até
porque tempo livre não faltava. Na mesma tarde saiu à procura de um carro forte,
preto e, por que não?, importado. Compacto, rápido em manobras. E o melhor!
Ainda sem placa. Se o vendedor soubesse da terrível finalidade que o novo cliente
queria dar ao carro, por certo tremeria dentro das calças.
Por via das dúvidas o criminoso apagou um pouco o número de série
pregado no vidro do carro passando álcool. Esperou a noite virar madrugada e
saiu. Fingiu estacionar o carro perto de um bar e o manobrista apareceu. Não
atendeu aos comandos justamente para atraí-lo para perto do carro. Engatou a
primeira e o derrubou com um solavanco. Arrancou passando com as rodas em
cima da flanelinha do infeliz.
Que prazer, que sensação maravilhosa! A tensão para não ser apanhado, a
adrenalina de pensar se alguém viu ou não. Ele continuou por noites selvagens,
saíram umas linhas no jornal - louco à solta aterroriza flanelinhas na cidade -,
depois esqueceram. Aumentou o número de vítimas. Foram eles que começaram!
Tornou-se o vingador de uma classe que era prejudicada dia após dia, noite após
noite, um caso sem defesa. A polícia nunca se importou com este achincalhe.
Extorsão, de cotas mínimas, mas ainda assim extorsão, e o pior, livre de
impostos.
Por um bom tempo ficou difícil encontrar um flanelinha, ‘Pára ali perto do
bar, amor, onde tem mais movimento, que a rua está meio deserta.’ Enquanto
isso, num ponto distante da cidade, ele bolava outro plano, desta vez algo
elaborado, envolvendo caixas de frutas de conde, caquis e sinais fechados.

O sonho de Délis

Eu estava calmamente somando todas as contas que tinha para pagar


aquele mês, quando um ruído na cozinha atraiu minha atenção. Como estava
sozinha em casa aquela noite, achei esquisito e me levantei para verificar. Quase
caí pra trás ao dar de cara com o Jô Soares, a porta da geladeira aberta e ele
destruindo o que via pela frente. Não me intimidei e, tolamente, perguntei o que
ele desejava. A resposta soou em alto alemão, embora ele estivesse vestido
como um cacique da tribo waurá.
Desconsolada, dei as costas e voltei à máquina de calcular, ponderando se
já deveria ou não ir incluindo a despesa extra de comida. Chegavam aos meus
ouvidos os gemidos e suspiros do gordo, que depois de devorar o frango assado
comia com as mãos grandes tascos de manjar branco. Eu ainda pensei: quem
diria, hein, o Jô Soares, um homem tão fino. Bobagem, o responsável pelo assalto
era um cacique alemão e não ele. Cruzamos no corredor e ele me disse
sorridente: até amanhã, às 11 e meia!
Foi quando descobri sentados na sala mãe e filho muito pobres. Magrinhos,
medrosos, tão diferentes do entrevistador, eles me aguardavam para fazer um
pedido. Queriam saber onde estavam os cd’s de música sertaneja. Na minha
casa? Não, deveria estar havendo algum engano. Não seria no apartamento de
baixo? Senão, era no de cima, eu sabia que algum vizinho ali gostava de ouvir
som sertanejo na toda. Logo me compadeci deles e ofereci algo para comer, caso
o Jô não tivesse localizado a lataria. Quando voltei com os pêssegos e as
sardinhas, eles já tinham saído e deixado a porta aberta.
Eu sabia que algo inédito estava acontecendo. Atordoada, enfiei a cabeça
debaixo da torneira e deixei a água farta escorrer pelo tanque. Minha mãe me
ofereceu uma daquelas toalhas felpudas e me convidou pra ir assistir à passagem
dos tanques militares na rua. Ela estava muito entusiasmada porque tínhamos
uma vista excelente do golpe dali do oitavo andar, mas me recomendou cautela,
sempre há uma bala perdida.
Tudo acontecia como se poderia imaginar. Barricadas de ponta a ponta
pelas calçadas, soldados atirando no povo, o povo apedrejando os soldados e
tocando fogo em carros e bancas de jornal. Reconheci até um fotógrafo do DIA no
meio da confusão, logo depois o homem foi massacrado por um grupo de
populares e soldados descontentes, que deixaram a câmera intacta.
Minha mãe me chamou para dentro, disse que estava passando coisa
melhor na televisão. Eu me sentei do lado dela e comecei a pentear os cabelos
quando percebi que estavam bem curtos e corri para o espelho procurando
minhas longas madeixas de até poucos segundos atrás. No lugar do banheiro
agora existia um açougue, uma fila de mulheres estáticas e um açougueiro
histriônico que berrava a plenos pulmões que a maminha acabou sem desviar os
olhos dos peitos das mulheres.
Cruzei com o Jô Soares quando saía do açougue, só que agora ele estava
vestido de Napoleão e me cumprimentou em italiano. Do outro lado da calçada
um bando de cachorros perseguia uma cadela no cio e na esquina um deles
pegou a cachorra e, bem, todos sabem o que acontece nesses casos. Um velho
parou do meu lado para atravessar na faixa de pedestres e enquanto
esperávamos o sinal verde ele me perguntou, com lágrimas nos olhos, pra que
lado ficava o Banerj. Aquilo me cortou o coração, mas foi bom porque me fez
lembrar que tinha que pagar as contas.
Corri para casa e quando procurei as chaves dos portões do prédio me
lembrei que na pressa tinha esquecido o chaveiro no açougue. Já ia voltar mas
chegou o garoto da entrega na bicicleta e me deu as chaves e um pacote com
meio quilo de lingüiça da grossa. Peguei o elevador pensando se ia ensopá-las
com batata ou fritar com molho e só aí me lembrei que era vegetariana. Toquei a
campainha da vizinha do meu andar e o marido dela nem ficou surpreso quando
abriu a porta e eu lhe entreguei as lingüiças.
Sem saber explicar por quê, sentia uma enorme paz no coração. Só que
alguém me esperava em casa, um homem gordo, de óculos, não, não sei se era o
Jô de novo, por mais que me esforçasse não conseguia ver seu rosto. Ele não
estava muito a fim de conversa, me sacudia pelo braço perguntando onde
estavam as salsichas que tinha encomendado. Eu repetia que não eram
salsichas, que eram lingüiças, mas ele começou a ficar violento e só tive tempo de
abrir a porta e apontar para a casa da vizinha. Ainda estava passando a chave e
ouvi os gritos do marido sendo espancado.
Peguei uma cesta debaixo da mesa e comecei a brincar com a ninhada de
gatinhos persas, eram todos brancos, menos um, que era preto e usava uma
gravatinha azul de cetim. Num instante que me virei os gatinhos sumiram pela
casa. Pouco depois achei um monte de papel rasgado no chão e reconheci parte
das contas de gás e telefone. Bem, ao menos um problema estava resolvido.
Comecei a fazer as malas para viajar quando tocou a campainha e meu primo
Abílio vinha para me levar ao aeroporto. De repente eu já estava lá, ma me
perdera de Abílio e tinha que enfrentar a escada rolante com as quatro enormes
malas.
A escada subia e subia mas nunca chegava ao fim, uma mala rolou para
baixo e eu tentei segurar, lá do alto ouvia a voz de meu primo incentivando: vem,
falta pouco, vem que eu te ajudo. A mala tinha se estatelado no andar de baixo e
eu sabia que as 25 garrafas de uísque lá dentro haviam se quebrado. Abandonei
a mala onde caiu e a última coisa de que me lembro era que eu procurava o
passaporte feito louca, quando o alto-falante anunciou meu vôo para Maceió. Foi
aí que acordei e meu primeiro pensamento o de saber onde é que havia mesmo
guardado aquele dicionário de sonhos.

Memórias de um aventureiro

Corri mundo, herdei o sangue de meu avô, pai de meu pai, que também se
chamava Jorge. Fui aos cinco continentes, num tempo em que não havia essas
facilidades de avião, as distâncias eram medidas em jornadas e só os fortes
resistiam. Lembro as poucas vezes que vi meu avô, um homem pequeno, eu me
colocava nos seus joelhos e imitava um cavalinho. “Adiante para oeste!, ele
gritava. Gritava as mesmas palavras às vezes também no meio do sono,
felizmente para vovó o velho estava sempre na estrada.
Meu avô Jorge construiu o império de nossa família e quis se certificar de
que nos deixaria a todos amparados antes de sair no mundo pelo mero prazer da
aventura. Aprendeu seu ofício com o avô de meu pai, português de poucas
palavras, mas de mãos ágeis. O bisavô foi quem trouxe para o Rio de janeiro a
indústria e comércio do amendoim confeitado - quem não conhece hoje o
amendoim confeitado?
Justiça seja feita ao meu pai, que entre uma amante e outra sempre
arranjava umas horas livres para cuidar do nosso patrimônio. Foi ele o primeiro a
pensar em diversificar os negócios da família: disseminou o uso do cachorro-
quente de lingüiça (o segredo está no molho!, sempre repetia), montou uma
cadeia de restaurantes cuja especialidade eram os pratos de bacalhau, dali se
lançou à construção naval e hoje! Bem, hoje somos o império que somos. Mas a
jogada de mestre foi mesmo espalhar de ponta a ponta na cidade os barraqueiros
de amendoim.
Para ser sincero, foi bastante difícil o tempo em que precisei ficar adiante
dos negócios, logo após a morte de papai. Nessa época vovô, que como eu
também foi muito longevo, aproveitava a vida lá pras bandas das Ilhas Fidji, se
não me engano, e só nos mandou um curto telegrama, dizendo: “Já fiz a minha
parte, é hora de vocês trabalharem um pouco. Me deixem fuder em paz.” Não
havia como tirar a razão do velho depois disso.
Bem, o caso é que eu não podia levar uma vida acomodada com o mundo
a minha espera. Chamei meu irmão mais novo, e verdade seja dita, ele sempre
levou mais jeito de diretor presidente que eu, transmiti-lhe os encargos das
holdings e pus o pé na estrada. Mesmo assim, conservava comigo o espírito
arrojado de vovô e não desconsiderei a possibilidade de unir o útil ao agradável.
Disfarçado de homem do povo, fui levar nossa atividade do amendoim à Europa.
Comecei pela Inglaterra, eu mesmo preparando o amendoim em pleno
Hyde Park, em meio a um mar de chapéus-côco e guarda-chuvas pretos no
caminho pro trabalho. O cinzento do céu em nada lembrava nossas paisagens
praianas e a inicial indiferença daquele povo frio logo deixaram claro que não ia
ser nada fácil. Mas eu não esmoreci e depois de um mês inteiro debaixo de chuva
gritando “olha o amendoim confeitado” alguém me soprou a idéia de tentar gritar
em inglês e pois não é que deu certo? Dali a cinco minutos vendi meu primeiro
saquinho. Acho também que o aroma do amendoim é que foi irresistível para os
ingleses. Eu mal tinha tempo de berrar “try sweetened peanuts”, tamanho era o
assédio dos fregueses. Bom que assim não dava tempo de o amendoim esfriar.
Mas logo chegou o inverno e debaixo de sete graus negativos ninguém sai
de casa nem pra comprar o jornal, que dirá amendoim confeitado. O movimento
foi diminuindo e desisti da idéia de treinar trabalhadores locais para expandir o
negócio. Reuni o pouco que me restava e segui em direção à Índia. Tive o
cuidado de remeter boa soma ao Brasil, com a qual meu irmão deveria
providenciar novo carregamento de material que esperasse por mim no porto de
Bombaim.
No caminho passei pela Alemanha e não fosse a concorrência das glasierte
Mandel, as amêndoas confeitadas, talvez tivesse tentado a sorte lá. Cheguei
mesmo a imaginar uma estrondosa campanha publicitária, na qual louvaria a
superioridade do amendoim: “vejam quantos dentes da frente quebrados por
causa da dura camada de açúcar dessas amêndoas. Nossos confeitos são mais
leves e além disso não grudam nos dedos e não derretem em poucas horas.”
Sinto saudade dos tempos em Bombaim! Foram quinze anos percorrendo
aquelas terras. O preço do amendoim andava baixo e meu irmão me enviou nada
menos que 200 kg do precioso produto, os quais estoquei com cuidado e me
abasteceram nos primeiros meses. Houve apenas um problema que atrasou em
algumas semanas o empreendimento, eu estava louco para começar e tive que
aprender a paciência dos orientais. Ele esqueceu do Nescau! Como é que alguém
confeita amendoim sem Nescau? Foi o que gritei pra ele no telefone n época, me
diga o que eu faço com 200 kg de amendoim sem nenhum Nescau? Não fosse
pelo apoio de Mohandas, que a mim se afeiçoou e acompanhou em todas as
aventuras pela Ásia, talvez eu tivesse fracassado.
Mohandas foi, inclusive, convencido pelo próprio produto nosso e abraçou
de todo coração a idéia de comercializá-lo em seu país, após ter comido a
primeira porção que lhe preparei com o resto de Nescau que havia no fundo da
última lata. “Uma iguaria”, ele repetia, “uma iguaria de Shiva.” Fiquei surpreso com
sua habilidade para desembaraçar a papelada assim que as primeiras cem latas
de meio quilo entravaram na alfândega, parecia estar defendendo uma causa
religiosa. “Estamos salvos, senho, salvos!”, não me esqueço de suas palavras,
ainda que passados quase 50 anos desde aquele dia. Pobre diabo, a vida de
Mohandas terminou na boca de um crocodilo do Rio Gandok, pouco tempo depois
que deixei a Índia. Não sei dizer quem de nós se tornou guardião de quem, eu
bem que disse a ele que precisava de óculos.
Quantas alegrias compartilhamos juntos, meu companheiro e eu. Ele vivia
me sorrindo com seus dentes brancos, onde sempre havia uma casca de
amendoim delatando gulodice. Brigávamos muito, eu dizia, “não vá me comer o
amendoim enquanto estiver atendendo os fregueses, que fica feio”, soube depois
de sua morte que ele sempre arranjava um ou outro garoto que vigiasse a
barraquinha para ir deliciar-se às escondidas. Só que esquecia de avisar aos
moleques da minha recomendação e, bem, aparecia ocasionalmente uma queixa.
A mãe de Mohandas - já era anciã quando a conheci e nunca a vi em outra
posição que não fosse sentada como Buda - tinha verdadeiro ódio de mim, o qual
manifestava com olhares viperinos e xingamentos em dialeto nas poucas vezes
que nos encontramos. “Mamãe se enfurece dizendo que o Nescau ainda vai
acabar com meus dentes”, ria ele baixinho. Dentes. Quando penso nos dentes
daquele crocodilo...
Eram mesmo instigantes todas as perspectivas abertas naquele nosso
trabalho. Além de disseminar um aspecto cultural brasileiro e, mais que isso,
familiar, em diversas e distantes terras, sempre havia que adaptar-se às novas
situações. Como no caso dos elefantes, por exemplo. Ó, como nos divertimos à
larga com aqueles lindos elefantes! É de conhecimento geral que estes animais
tão amigos adoram amendoins tanto quanto detestam ratos. E ratos não eram
exatamente o que nós costumávamos caramelar. O fato é que, tão logo os
amendoins fossem lançados na bacia, onde já fervilhava a calda incandescente,
não havia paquiderme num raio de 2 km, por mais bem treinado que fosse, que
não mudasse de rumo e viesse até a barraca, a despeito dos maus tratos de
chicote.
Da primeira vez nos assustamos, o bicho mergulhou a tromba baloiçante no
calor da mistura mesmo e por pouco não mata seu dono com uma baciada na
cabeça - acho que o amendoim era pouco. A confusão estava formada, de um
lado o homem reclamava das queimaduras na boca do bicho, do outro queríamos
saber quem é que ia arcar com o prejuízo. Acabou ficando uma coisa pela outra e
nós passamos a ter sempre à mão o amendoim do elefante, que ficava num balde
à parte e tinha preço especial.
Ainda hoje, quem vá à Inglaterra poderá encontrar no centro de Londres
um continuador da minha obras, um rapaz esforçado e abnegado na sua função
solitária, fruto de uma paixão minha com a faxineira da pensão de Courtney
Street. Infelizmente ele não teve filhos que perpetuem a saga de nossa família,
ouvi dizer que ele aprecia os Stones mas detesta amendoins - ninguém é perfeito.
Contudo tenho o orgulho de dizer que espalhei meu nome e o do minduim pelos
quatro cantos da terra, nas regiões desde a Sicília até o Butão, do Parque
Yellowstone a Antares, fornecendo sem diferença de credo e cor a iraquianos, a
povos de arbustos e zulus.
Na próxima quinta-feira completo 97 anos e me sinto melhor do que nunca.
Graças ao amendoim confeitado, que jamais deixei de consumir, conservo o vigor
e o apetite dos passados anos e em nenhuma contenda com mulher de qualquer
raça enlameei a fama de meu avô Jorge. Ah, que vida tem sido a minha: amigos
por toda parte, cenários cinematográficos, horizontes e lucros sem fim, como sem
fim cresce a minha alegria nessa família predestinada. Meu neto mais velho se
mudou para os Estados Unidos e está se dando muito bem no ramo das batata
fritas - alguém aí já ouviu falar na Springle’s?

O saco plástico

Poucas pessoas viram aquela coisa voando no céu às 9h da manhã de um


dia nublado. Quem viu pensou que era só um saco plástico. Podia ser também um
balão apagado, mas não, o formato era mesmo de um saco plástico. Vamos dizer
que fosse branco. Ninguém parou para se perguntar que tamanho teria o saco
plástico para ser visto tão grande do chão estando àquela altura.
Às 9h12min o saco plástico escolheu um terreno deserto, propriedade do
Colégio dos Santos Anjos, na Muda, e aterrizou. Não saltaram homenzinhos
verdes porque isso é invencionice de quem não tem mais o que fazer. Mas as
coisas não continuaram iguais ao que eram antes. O colégio e o convento
começaram a mudar.
“Quem será que derrubou as meadas de linha que estavam guardadas
aqui? Não entrou ninguém estranho no meu quarto!”, pensou a Irmã Maria Gema,
78 anos, que enxergava pouco mas ainda não estava caducando. “Botei tudo
guardadinho aqui, junto com o material de bordado, dentro de um saquinho
plástico.”
A nave não se demorou muito na área, apesar de muito material ter sido
recolhido. Por todo lado o efeito da sua passagem ficou visível: lixo espalhado
pela calçada, as compras que se espalhavam das mãos nuas das donas de casa,
a fita de vídeo que o garoto foi pegar atirada no chão, tudo, tudo assim. O saco
plástico parecia maior, mas nem por isso teve mais dificuldade para decolar do
chão.
Próxima parada: São Paulo. Depois Vitória, Ilhéus, Brasília, Miami,
Washington, Ottawa, Londres, paris, Tóquio, etc, etc. numa operação rápida a
nave foi atraindo todo e cada saco plástico do mundo e estocando tudo até
parecer um gigantesco pára-quedas, que cobria tudo, pesadão, desabado entre o
céu e os oceanos. Na Terra ninguém mais via o sol e as estrelas, puseram um
tapume em cima da cabeça da Humanidade. A vida acabou No lugar dela só um
saco plástico boiando no Cosmos. Pensando bem... vai ver que era um colchão.

Orgia passada a limpo

Aquele desastre começou, como tantos outros, de maneira inocente. Tudo


porque um guri era muito burro e vivia levando esbregues em casa e na escola.
Só na segunda série já estava pelo terceiro ano consecutivo e lá pelo mês de abril
eram fortes as perspectivas de repetir de ano. Os estudantes incipientes precisam
escrever muito por diversos motivos: para ver se melhoram aquela caligrafia
horrorosa, pra conferir se aprenderam a soletrar as palavras e principalmente pra
justificar a despesa impossível de material escolar no início do semestre. Todo
mundo sabe que o garoto não vai gastar duas resmas por ano nem que use as
folhas de ofício pra limpar a bunda no banheiro do colégio, mas tudo bem.
Pois então, sem mencionar outros aspectos aborrecidos que bem conhece
quem tem criança em idade escolar, vamos nos ater somente ao dado de que o
tal garoto era burro, muito burro. E como só depois da escrita firme é que se
passa a usar a caneta, não havia lápis e borracha que chegassem. Era erro no
ditado, copiava cem vezes cada palavra errada, lá pela terceira já ia escrevendo
com o erro de novo, ou então se perdia na vírgula dos decimais, pior ainda era dia
de fazer redação. A professora convocou uma reunião e jurava que ele era
retardado, não houve jeito de arrancá-lo da turma, sempre tem um aluno com
mais dificuldade que exige o carinho e a atenção dos educadores, a senhora
compreende.
Das sete ao meio-dia era olhar pro caderno do moleque e repetir: apaga.
Apaga. Apaga isso. Apaga, que tá tudo errado. Mas o nome no alto da folha ele
até que acertava, só se confundia um pouco com a data, falha perfeitamente
justificável pra uma criança reincidente da segunda série como ele. Caderno
furado, página de livro furada, de tanto esfregar, pra tentar consertar o erro
cometido na hora de consertar o anterior. Na carteira dele, com dentro da pasta e
de todo material, abundava aquela paçoca preta que é a mistura do grafite com o
farelo da borracha devidamente ligados pelo suor das mãos do garoto que apaga.
Se fossem esses todos os males do mundo! Defeitos infantis, infrações
pueris, são nada diante dos pecados verdadeiros. E o pecado se espalha por
onde quer que existam homens, é transmitido até mesmo para os objetos me
manuseio constante, como o carro, a televisão ou a caneta. Neste caso foi o lápis
do garoto, o lápis e a borracha, que começaram a ação.
Eles não eram exatamente iguais aos outros. Sua mãe, cansada dos
gastos com material escolar, bolou uma estratégia parta economizar dinheiro.
Comprou para o filho uma borracha bem dura e um lápis HB, que escreve mais
fraco e portanto é mais fácil de apagar. O grafite dele também é mais tenaz, de
modo que ambos iam demoram para acabar. Está claro que o menino puxou para
o lado do pai, e a mãe entregou contente ao filho o pacote da papelaria dando-lhe
um beijo no cocuruto.
Não levou muito tempo para o lápis e a borracha se tornarem íntimos.
Apertados dentro do estojo, que na verdade era um bolsinha comprida com zíper,
foram intensificando um contato físico e nunca se separaram, até porque tanta era
a auto-confiança do guri que já começava a escrever com a borracha do lado. Ela
ficava olhando o comprimento do companheiro, admirando como era teso, verde
era sua cor favorita e também a cor do lápis. Este por sua vez era chegado a uma
carne dura, ao formato roliço e à pele clara da borracha.
Primeiro a borracha só apagava as palavras no livro ou no caderno, ou
então os primeiros palavrões que o menino escrevia mal soletrados na fórmica da
carteira. Por sorte ele ganhou um canivete no aniversário e passou a destruir com
mais requinte o patrimônio do colégio, arrebitando a cobertura nos cantinhos ou
perpetuando para a posteridade seu apelido no tampo da mesa e nos encostos
das cadeiras. Entretanto, a força dos acontecimentos determina mais do que se
possa imaginar, e foi aí que o caldo engrossou.
No escurinho do estojo, lápis e borracha começaram a se tocar. Dali
passaram rápido para o sarro e logo não havia meio de separar os dois. O lápis
vivia com a ponta curtinha de tanto andar enterrado nas carnes da borracha, que
exibia sem pudor os seus satisfeitos furos. A alegria era mesmo quando o menino
apontava o lápis. E ele apontava sempre, porque nunca gostou de escrever com
lápis sem ponta - imbecil acreditava que seria mais fácil escrever assim,
desconhecendo que a prática só funcionava para quem aprendia a lição.
A farelada de borracha comia mais solta do que nunca, por todo lado,
poeira de grafite e meleca de apagação, da pegação dos dois amantes calientes.
Lápis e borracha começaram a diminuir, a professora continuava aturando a
ignorância despregada do garoto, ele aprendendo direitinho a errar como nunca,
até que um personagem novo apareceu para mudar completamente o rumo desta
história.
O tio. O tio do guri burro, irmão mais moço de sua mãe, solteiro, sub-
empregado, que descolava com sorte uma que outra garotinha mas logo todas se
cansavam dele. Porque o desgraçado era muito chato. Lá uma vez ou outra o tio
chato redescobria o caminho da casa da irmã e passava sem avisar para pegar o
almoço. A irmão não podia fazer desfeita porque acabava se lembrando de sua
finada mãe. Botava o prato tão rápido quanto podia e o infeliz sequer reparava
que sempre comia sozinho.
Naquele dia o tio precisava de um favor. Aliás, só lembrou quando viu que
o moleque estava lá como ele mesmo no passado, quebrando a cabeça com o
dever de casa. Será que o meu filho não tinha aí um lápis pra emprestar pro titio?
Depois titio devolve. Deixa levar a borracha também. Sabe como é, ele precisava
fazer conta na loja, vive perdendo lápis, caneta, borracha, o supervisor já
começou a chiar.
A tragédia estava feita. Ninguém poderia evitar porque ninguém
desconfiava do lápis. Nem da borracha. Eles serviram ao tio durante aquela tarde
e, num momento de descuido em que ficaram lado a lado no balcão, decidiram
fazer um pacto, um pacto de morte. Assim, quando o último empregado tivesse
ido embora, depois de baixada a porta de ferro, iriam se amar até o fim, até
gastarem a tarraqueta, até dar cabo do derradeiro cotoco. Não podiam suportar a
mudança brusca de vida e principalmente o risco de de serem separados um do
outro por engano.
Foi o que aconteceu. Ajudados pelo apontador de manivela de uso da loja,
não demorou muito para que se consumasse o destino daqueles amantes. Os
restos de um se confundiram nos restos de outro. Descansaram, finalmente, de
tanta luta e paixão. Unidos eternamente. O acontecimento comoveu a todos
presentes ali na papelaria, chocou setores mais tradicionais, como o dos livros-
caixa, e foi encoberto dos álbuns de bebê, primeira comunhão e de quinze anos.
Excitados pelo embate dos apaixonados, um a um os lápis começaram a
saltar das caixas, de todos os tipos e formas, esparramavam-se as caixas de lápis
de cor. Os lápis cera avançaram sobre as borrachas redondas, os lápis borracha
assumiam seu homossexualismo e buscaram seus pares para participar. De
repente, de todos os lados, por trás das latas de lixo, dentro das gavetas,
confortavelmente instalados sobre folhas de almaço com e sem pauta, e até
escancarado em cima do balcão, os casais viveram loucamente o frenesi do sexo
livre. Até as lapiseiras fizeram também seu mecânico amor. Por fim, onde quer
que se olhasse, restos de borracha e pontas de lápis. Já estava amanhecendo
quando o último som de borracha queimada silenciou.
Pensaram que a papelaria tinha sido assaltada. Depois de avaliado o
prejuízo disseram que era obra de vandalismo. Naquele dia não se venderam
diversos artigos e a loja ficou com uma atmosfera meio triste. Os próprios
vendedores perceberam que quase não entrou freguês. Mas logo chegou parte do
estoque de uma das filiais e o ritmo acabou voltando ao normal.
O guri até que sentiu falta do lápis e da borracha, aos quais já tinha se
acostumado. Dentro de sua candura não podia imaginar que mudara o destino de
dezenas, senão centenas de objetos. Não, aqueles lápis não iam acabar entre
trêmulas mãos de velhos, nem tão pouco ter o fundo roído pelos dentes dos
meninos. Sua existência, e também a daquelas borrachas, fora destinada a
consumir-se pela paixão.
Que a ignorância do menino e a limitação do seu tio não sejam suficientes
para represar o humano em nós. Mesmo cercados pelas paredes, que nós
saibamos detrás das portas resgatar uma energia primitiva, a mesma que redimiu
a lápis e borrachas de um destino mais cruel porque mais só e menos feliz. Ainda
que seja difícil, sempre poderemos ouvir de longe o sábio conselho da professora:
apaga tudo e escreve de novo. Escreve de novo a vida.

Você no Mundo

Quando você estiver deprimido, olhe em volta e sempre encontrará alguém


em por situação. Quantas vezes você já não escutou isso? E em todos elas
pensou que saber da desgraça dos outros não lhe serve nem um pouco de
consolo. Nessas horas você contra-ataca e lembra o monte de gente que está
numa boa. Mas, onde é que você está afinal?
Tem uns que circulam em carro importado. Tem muitos que são carga nos
trens suburbanos. Você, no máximo, se aperta um pouco num vagão de metrô,
entre as estações da Carioca e da Central.
Alguns vêm ao mundo para usar roupa de baile enquanto outros nunca
vestiram uma roupa nova. Você fica contente quando compra um jeans na C & A.
Existem aqueles que se deleitam com rosbife e cordon bleu. Outros que
uma vez por mês conseguem comer uma aba de carne. O bife à milanesa
comparece vez em quando à sua mesa.
Os filhos das boas famílias vão aprender inglês na Inglaterra. As crianças
pobres estão com sorte quando encontram na escola pública o professor de
português. Você faz o cursinho do Yázigi caso consiga meia bolsa.
Uns poucos privilegiados têm pai que pague uma faculdade particular. A
maioria dos brasileiros não consegue terminar o primeiro grau. Com um certo
esforço voc6e é aprovado numa universidade pública.
Gente de bem conta com parabólica e assiste aos programas de tevê por
assinatura. Os que não tem vintém vão ver a novela na casa do vizinho. Você de
vez em quando chuta a antena tentando pegar uma imagem melhorzinha no seu
aparelho de televisão.
O rico liga e recebe o tempo todo com seu celular. O pobre só encontra
orelhão quebrado que engole todas as fichas e não completa uma ligação. Você
tem a facilidade de ligar de casa, mas deixa dar 8h que o impulso é mais barato.
As famílias de posses mandam os filhos recém-casados para as Bahamas.
O casal de classe baixa consegue que na lua de mel a família vá dormir em outro
cômodo. Quando você se casar, irá no máximo por um fim de semana em
Teresópolis, na melhor das hipóteses, para Campos do Jordão.
Tem gente que falece e é enterrada no São João Batista. Outros morrem e
vão para uma cova rasa em Ricardo de Albuquerque. Se você morrer amanhã,
sossegue, vai ficar pertinho no Cemitério do Caju.
Há aqueles que adoecem e vão se tratar nos Estados Unidos. Tem também
os que são tratados nas macas dos corredores do Souza Aguiar. Mas você,
dependendo do plano de saúde, pode até ter direito a quarto particular da clínica
para onde for levado.
O rico tem casa na praia e na serra. O pobre levanta o barraco na favela ou
no subúrbio. Só quem não tem casa própria é você, que aluga um sala e dois
quartos, se conseguir fiador.
Uns poucos, quando chegam a uma certa idade, mandam re-encapar todos
os dentes. Boa parte dos brasileiros chega ao final da vida sem nenhum ou com
um único dente. Você faz o que pode entre obturações e canais, investindo na
boca aquilo que sobra do seu patrimônio. Aliás, seus dentes são seu único
patrimônio.
A mãe de muita gente recebe de aniversário um presente cotado em dólar.
Já outras mães não sabem o que é presente de aniversário. A sua só ganha uma
lembrancinha, assim mesmo porque foi comprado no cartão.
Existem aqueles que têm assinatura de diversas publicações, até do
exterior. Tem a galera que só lê as manchetes penduradas na banca. Mas para
você comprar o jornal todo domingo é sagrado.
Mais aliviado? Alegre-se! E vá aproveitando enquanto pode.
Telefônicas

Sabe aquelas noites em que você acorda lá pela 1h e meia e fica ligadão?
Não chega ao ponto de querer sair fazendo exercício e prefere continuar deitado,
mas falta alguma coisa para entreter até o sono voltar dali mais umas três horas.
Imagine então se tivesse alguém acordado e bem disposto a conversar.
Sim, porque bater papo de madrugada até que é bom. Difícil mesmo é achar
alguém que queira na mesma hora que você. E se existisse um serviço só pra
isso? Uma mistura de CVV com Clube da Amizade. Com a vantagem da tarifa
reduzida naquele horário. Aí, o cara se descobria insone e lá ia ele se distrair até
conseguir relaxar.
Com a proteção do anonimato - você não precisaria se identificar - seria
possível conversar sobre qualquer assunto. Dava para contar o pesadelo que
tinha acabado de acordá-lo - como se sabe, se a gente conta não acontece - ou o
que você ia fazer no dia seguinte de manhã, por exemplo. Profissionais bem
treinados pra não sair dando palpite na sua vida iriam escutá-lo pacientemente,
claro que sem deixar de participar, mas falar mesmo seria com você.
Como é que ninguém pensou nisso antes? Bastaria fazer uma assinatura
pelo serviço e pronto. Logo nos primeiros meses, um sucesso completo. O
telefone de lá ia dar várias vezes ocupado, porque cada ligação não tem hora pra
acabar. Dali a um ano os clientes mais antigos só iriam desligar às 6h da manhã,
hora em que encerra o atendimento. Só de idosos, que além de outros efeitos
começam a sofrer de horários alterados, necessitam menos de sono, e quando
dormem é com o horário correspondente ao do Japão, ia ser uma loucura.
Inevitável que se formassem ligações de amizade. O Sr. Queiroz, de 78
anos, só ia querer ser atendido pela Maria das Graças. “Ela já me conhece e eu
não preciso ficar explicando tudo de novo. O ramal dela está ocupado? Não tem
importância, eu espero, não tem pressa. Aqui ninguém está querendo usar o
telefone.” Ou o Pedrinho, de 12 anos, que acabava de descobrir uma solução
mágica para resolver as questões de Geografia e História. “Mas então, a
professora falou que os aliados ganharam a Segunda Guerra. Quem é que era
mesmo?” de lápis e papel para anotar tudo.
Claro que cantadas não iam faltar. De ambas as partes. Ia ter homem se
oferecendo para hora extra no serviço de atendimento só pra poder falar “nossa, a
essa hora sua voz está tão rouquinha, ai!” Poderiam até surgir, dependendo da
demanda, consultorias especializadas:
“O senhor tem dez mil dólares e quer saber qual é o melhor investimento
para aplicar atualmente?”
“O seu marido aboliu completamente a prática do sexo em casa e só transa
se for no motel - não necessariamente com a senhora?”
“Quer que eu repita a tabuada de nove?”
“Eu não moro aí perto não, Sr. Queiróz, com é que eu vou saber em qual
supermercado está mais baixo o preço da laranja?”
“Peraí que eu vou pegar a lista dos autores que escreveram sobre
semiótica.”
Breve podia até ser criado o serviço internacional. Ele facilitaria muito, não
apenas o intercâmbio comercial e turístico, mas também o cultural - e sem as
barreiras de fuso horário:
“Le lo dé a mi hijo un pastel de cumpleaños.”
“No, no, no se dice eso, sino se lo dé a mi hijo, que es la forma correcta.”
Enquanto tudo isso não acontece, vá contando carneirinhos ou amornando
o leite. Só que esteja avisado de quanta experiência boa você estará perdendo.
Armadinha para pegar gato

Deixe cair uma folha de papel. Antes que ela toque o chão, o gato estará lá,
esperando entediado.

Armadilha para pegar cachorro

Deixe cair um gato, sem fervura. Antes que ele toque o chão, o cachorro
estará lá, esperando para abocanhá-lo.
O Presidente

O resultado da eleição para presidente da república foi aquilo que se


esperava. Ganhou o candidato da situação. A expectativa geral era de que tudo ia
continuar como sempre. Os poderosos ficando mais ricos e vice-versa. Os
excluídos sempre mais pobres. Todos sabem como é difícil surgir algo de novo no
meio de conhecidas histórias, se bem que, às vezes, acontece.

O dia da posse foi tumultuado, não porque qualquer estrato social tivesse
preparado demonstrações de oposição, que isso não combinava com a mansidão
do rebanho. Posse de presidente é assim, cerimônia daqui e de lá, banquete,
festa, juramento, a guarda perfilada, sobe e desce de rampa, a faixa, a fala e
repórteres, muitos repórteres, fazendo o seu trabalho.

Mas até para presidente em dias da posse chega a hora de dormir. As


luzes apagadas, o palácio em silêncio onde todos dormiam... menos o presidente.
Estava muito excitado para dormir. Pensando no dia seguinte, e em como
ninguémia acreditar no que estava vendo. “Enganei todo mundo”, repetia pra si
mesmo, baixinho, até pegar no sono, com um sorriso de criança feliz.

- Presidente, o senhor não pode fazer isso!

- Claro que posso. Sou o presidente, ou não sou?

- Que conversa é essa de aumentar os salários? Todos os salários? De


todo mundo?

- A turma está ganhando muito pouco e eu prometi que ia acabar com a


fome.

O ministro da fazenda pensou em chamar um médico. Olhava pro cara


atrás da mesa e pra foto presidencial pendurada na parede atrás dele, devia
haver algum engano, será que aquele sentado ali era mesmo o presidente?

- Minha secretária já digitou o decreto, querem ler?

O ministro da fazenda pegou o documento, o ministro do trabalho colocu


com ele e os dois começaram a ler. O texto, bastante conciso, dizia basicamente
o seguinte:
O salário mínimo passa a valer vinte vezes mais, não só para os
trabalhadores, como também para os pensionistas e aposentados. O salário
máximo permitido será de cinco novos mínimos. Profissionais de nível superior
têm a garantia de salários que conpensem seus esforços, sem exceder o máximo.
Cargos executivos, como diretores e presidentes, podem negociar seus
vencimentos livremente com os donos das empresas, mas vão se preparando
para contribuir com porcentagens proporcionalmente maiores no recolhimento de
impostos. Do presidente aos vereadores, os políticos não vão receber mais
qualquer vencimento pelo exercício do mandato. Com isso, atender aos interesses
dos eleitores passa a ser um ofício voluntário. A excelência da administração vai
garantir aos políticos o tempo livre para trabalhar pelo próprio sustento, já que a
dedicação aos órgãos públicos vai ser de seis horas diárias. Faltas sistemáticas,
quer no setor público, quer no privado, serão interpretadas como desistência da
função.

- Dois mil e oitocentos de salário mínimo não dá! Não foi isso que nós
combinamos...

- O que não dava era cento e quarenta por mês. Lembra o que disseram
meus colegas presidentes? “Se eu ganhasse o mínimo, dava um tiro na cabeça.”
Então. Vou começar por aí. Eu mesmo não estou ganhando nada com esse
negócio. Juntei umas economias e já arranjei para dar aulas à noite três vezes por
semana numa universidade, o salário é bom.

Os ministros esbarravam um no outro, se agitando para lá e para cá pelo


gabinete.

- Está tudo acertado, assumimos um compromisso com os empresários,


com os bancos estrangeiros, militares, até com a igreja, você só se elegeu graças
a esses pactos. Nem pense em mudar as regras do jogo agora, você não pode.

- Posso e vou. O presidente sou eu.

O presidente ficou sorrindo e observando o ministro da fazenda, até que ele


resolveu dizer alguma coisa.

- Você não percebe o que está fazendo?

- É-só-o-co-me-ço - anunciou, tocando com a caneta uma bateria


imaginária.

- Político sem salário é um estímulo à corrupção, à propina nas negociatas!

- Não me diga. Isso nunca existiu... vamos inovar.

- Presidente!
- Sabe o que vai conseguir com isso?

- Vão liqüidá-lo!

- Senhores, se não estão dispostos ao sacrifício necessário a um


representante do povo, não ficarei desapontado se colocarem ainda hoje seus
cargos à disposição.

- Você não vai longe com isso, eles não vão deixar barato.

- Vamos ver. Tentem me matar.

Os dois ministros saíram batendo a porta, furiosos, enquanto o presidente


assinava a regulamentação salarial com a segurança de quem se sente
absolutamente protegido.

Em todos os cantos do país, recém-criadas obras públicas e privadas


transformavam a massa de desempregados em felizes trabalhadores. O primeiro
mês de governo ainda não tinha terminado. Escolas e casas populares, hospitais
e açudes, teatros e redes de irrigação, tudo ia surgindo no campo e na cidade.
Quilômetros de ferrovias e rede elétrica e telefônica viriam para unir os pontos da
pátria redesenhada, fermentando nas áreas antes desocupadas, as esquecidas
porque privadas dos confortos da civilização. A reconstrução nacional inaugurou,
sobretudo, mais longe e mais numerosos, os reformatórios da cidadania,
instituições criadas para fazer recobrar aos maus filhos da terra a vergonha na
cara, quem diria.

- Ao contrário do que se poderia imaginar, o aumento dos salários não


provocou inflação. O governo não emitiu moeda, não permitiu elevação de preços,
nem tarifas, nem impostos - salvo para a classe abastada - mas cuidou de dar um
jeito nos especuladores.

- Como é que chama mesmo esse buraco em que nós estamos?

- Breves.

- E onde é que fica isso?

- Ilha de Marajó.

- Maldito presidente!

- Também acho.

- Quando é que vamos sair daqui?


- Isso ele ainda não decidiu. Só nos resta esperar que nossas estadias
sejam ‘breves’.

- Sem trocadilhos, por favor! Preciso falar com o meu advogado, com os
meus assessores, com alguém!

- Contanto que o senhor pague o interurbano do seu bolso, tudo okey.


Quem é o seu advogado?

- O Doutor Junquilho Távora.

- Não! Aquele consultor da Fiesp?

- Ele mesmo.

- No jornal dizia que ele foi mandado pro reformatório de Olindina, na


Bahia.

- Estamos perdidos.

A debandada dos ministros não assustou nem um pouco o presidente.


Devagar começaram a aparecer jovens idealistas, alguns recém-saídos da
faculdade, sem experiência em administração pública, berrou a oposição dos
terraços com vista para o mar. Dispostos ao trabalho voluntário e livres dos vícios
da coruupção, berrou de volta o presidente. Câmaras municipais lotaram de
donas de casa. Experientes na economia doméstica, elas logo equilibraram o
orçamento das cidades. E ainda sobrou verba para arrumar a pavimentação,
reformar fachadas e interiores de prédios públicos, cultivar jardins.

Os jovens de juventude e os jovens de espírito se lançaram por inteiro nas


reformas sócio-político-econômico-culturais. Não houve necessidade de sufocar
qualquer foco de golpe em todo país de dimensões continentais. As forças
armadas estavam de acordo com o salário mínimo para os soldados e com o
salário máximo para o oficialato, que era igual ao de todo mundo e muito superior
ao que eles recebiam antes. Além do mais, os tempos são outros, é preciso
acompanhá-los e ninguém farejou tendências de esquerda nos programas de
governo.

Enfim a democracia - foi a manchete de jornal e a palavra corrente nas


bocs das pessoas. A imprensa estrangeira deu destaque ao sucesso alcançado
pela república sul-americana: nunca se conheceu um ambiente tão democrático,
onde cada cidadão, incluindo as crianças, faz valer desde os seus mínimos
direitos civis, além de ser um agente dentro da comunidade. Há lugar para todos e
as mudanças fluem dentro da legalidade.

Condenados deixaram a reclusão e passaram a dar duro nas frentes de


trabalho. Do minério, da colheita que tiravam da terra, ia o alimento para sua
família e para a família da vítima. Os índices de criminalidade e consumo de
drogas baixavam de mês para mês. Os programas de solidariedade na ação
social se modificaram quando não puderam encontrar mais ninguém de barriga
vazia. Daí passaram a se empenhar no combate a outro tipo de fome, a de
conhecimento. O primeiro passo foi atacar o analfabetismo, que é o pior tipo de
cegueira, mas tem cura.

O dono da empresa de ônibus que tentou aumentar a tarifa foi mandado


para o reformatório da cidadania de Barras, no norte do Piauí. O prefeito cearense
que quis colocar toda a família sem concurso como servidores públicos está no
reformatório de Curitiba. O empresário que escondeu mercadoria está no de
Araraquara. O diretor de hospital que apresentou guias falsas para receber da
previdência foi parar em Além Paraíba. O presidente das organizações que
manteve durante anos boa parte do pessoal sem contrato de trabalho, e isso no
principal canal de televisão, está recolhido no reformatório da cidadania de Barão
de Melgaço, distrito de Rondônia. Sem direito a mosquiteiro.

É claro que tentaram matar o presidente. Várias vezes. Só que o


helicóptero sabotado não caiu, o carro dele não perdeu o controle - os carros
oficiais foram extintos, junto com os apartamentos funcionais, diárias de viagem e
auxílio-paletó - nenhum dos tiros acertou o alvo, nada, nada. Nada podia fazer
mal ao presidente. Ele sabia que era absolutamente protegido. Afinal, teve o
corpo fechado no melhor dos terreiros de candomblé e os orixás puseram a mão
sobre a sua cabeça e a luz adiante do seu caminho. Nem os agentes americanos
podiam com ele.

No final do primeiro mandato, o país era outro. O rural e o urbano, agora,


se confundiam. O campo ganhou as comodidades da cidade, a cidade já não
perdiam em tranqüilidade para o campo. Acabou esse negócio de levar horas
para chegar ao trabalho. As indústrias, agências bancárias, os shoppings e as
clínicas de beleza e saúde se espalharam pelo país. Cinemas, teatros, galerias de
arte, parques e universidades perto de todo mundo. Assim como os centros de
pesquisa e oficinas de treinamento técnico. Ninguém mais precisaria trabalhar de
pé nem ficar sem horário de almoço. Mães com seus filhos e filhos com seus pais.
De novo o direito a ter bicho de estimação. O presidente foi reeleito.

Ninguém ficou muito tempo nos reformatórios da cidadania e, depois, cada


cidade aproveitou o prédio do melhor jeito que pôde. Uma boa temporada por lá já
mexeu com as certezas dos internos. Mas foi do lado de fora mesmo que esta luta
foi ganha, porque a coletividade remanejou antigas idéias sobre a lei da vantagem
e passou a reagir. Quando o malandro tentava, não tinha quem cooperasse e aí
ele desistia. A maioria, que antes compunha a classe dos excluídos, sob certo
prisma contrariava por essa exclusão a lógica natural entre pesos e medidas, mas
o importante é que ela conseguiu se incluir na dignidade pelas próprias mãos e
pés. Foi bonito. E assim, sem excluir os antigos tiranos, mantidas as duas partes
num período de quarentena, a nova sociedade tirou deles a oportunidade da
tirania. Foi bonito também.
Esta habilidade para “ser feliz”, para um governo do povo, para o povo e
pelo povo, esteve sempre lá. Oprimida por um amontoado de injustiças, misérias
e mazelas, escondida no fundo do peito. Bem ali onde a gente sente uma
pontada, toda vez que escuta um pedacinho do hino nacional. Mas uma revolução
silenciosa precisa do líder, o mártir, o presidente, o pacifista, o santo, o filho do
próprio Deus. Todos somos. E é mais fácil fechar o corpo do que abrir a cabeça,
porque para fechar o corpo a fé precisa ser lançada ao próprio Deus, enquanto
para abrir a cabeça, a pessoa tem que acreditar em si, que é mais difícil, é por
isso.

O gabinete ficou vazio com o fim do expediente. O presidente descansava


na sua cadeira e lembrava de como tinha sido o primeiro dia de mandato. Foi um
longo caminho até ali e ele adorou cada minuto. Mais que isso, sentiu-se honrado
por conseguir unificar, não o país, mas a nação. Dali a pouco estava na hora de ir
pra aula. Talvez as coisas tivessem sido diferentes se ele fosse professor de
matemática, em vez de história, e se acreditasse em outra religião.

Uma questão de classe


Lipi bem que poderia ser um cachorro feliz. Ele tentava, mas decididamente
fazia o gênero encucado, e perdia muito da vida com isso, ele sabia. Era uma
questão de posicionamento.
Fora dado de presente bem novinho, embora ainda se lembrasse
vagamente daquele dia. Cercado de carinho pelos moradores da casa, até
mesmo entre a criadagem encontrou uma acolhida simpática, de maneira que ao
longo dos anos jamais ouvira um ”sai daí” e vinha merecendo de todos, senão a
atenção dos primeiros dias, ao menos consideração e respeito.
Não haveria problemas se não tratasse de uma família tão fina. O próprio
ambiente, os cristais, porcelanas e tapetes intimidavam até mesmo aos humanos
da casa, e principalmente a estes. Não era possível sentir-se à vontade ali. E ele,
Lipi, só depois de ter-se certificado de que não havia ninguém por perto, arriscava
coçar-se. Não que fosse pulguento, nem pensar, mas é que o hábito faz parte da
vida de um cachorro.
Com o passar do tempo, Lipi foi se tornando vítima de uma espécie de
síndrome pela qual suas atividades mais simples , como fazer as refeições, por
exemplo, exigiam um terrível sacrifício. Em primeiro lugar porque sua vasilha
metálica de tão polida e brilhante, refletindo seu rosto às vezes faminto, causava
estranheza. Além do mais, serviam-lhe com raras alterações a mesma ração
insossa e em pequenas quantidades. Decididamente, comer já não consistia num
prazer em sua vida.
Ainda havia a lembrança de sua origem nem tão nobre. Quem olhasse
julgaria que Lipi era um típico Sealyham Terrier, embora na verdade houvesse um
seu antepassado que era, nada mais nada menos, da mais pura linhagem dos
vira-latas. Chegou a ter pesadelos nos quais se via banido de casa, sob os
olhares de reprovação do Sr. General, seu dono, e depois faminto, perdido pelas
ruas. Nessas ocasiões acordava em sobressalto, sem poder contudo alegrar-se
por ser apenas um sonho, já que a realidade também tinha seus percalços.
Naquele dia estava com os nervos à flor da pele. Conceição, a cozinheira,
chegara no justo momento em que fuçava, distraído, sua calda, justo a cauda.
Zanzava pela casa sem nem saber bem onde se deitar, sem poder descansar,
parecia que andava sobre ovos. Ao dobrar uma esquina, do lavabo para a sala de
estar, deteve-se para ouvir uma conversa. Era uma prima afastada e linguaruda
que, tendo-se irritado com o General por um motivo qualquer, tentava agora
intimidá-lo:
- Vai dizer que já se esqueceu, Gordillo, que o pai de vovô, antes de se
fazer na cultura do café, vivia de fazer uns serviços no cartório da cidade, se
lembra? De como ele juntou o dinheiro para comprar a terra a partir dos agrados
que lhe faziam por cada escritura que ele...
- Basta. Como você se atreve a remexer nestes assuntos?
Lipi não se deu ao trabalho de ouvir o resto da conversa. Sentou-se
pensativo num canto e as quatro estrelas diante dos seus olhos foram pouco a
pouco se cobrindo de fuligem negra. A copeira comentou com Conceição que o
cachorro passara toda a tarde bebendo água avidamente e a intervalos curtos,
sem no entanto tê-la eliminado do organismo uma só vez. E à noite, quando a
família reunida aos amigos, alguns inclusive graduados. desfrutava à sua maneira
contida do auge de uma reunião, Lipi ultrapassou as dependências onde deveria
se recolher numa ocasião como aquela e diante dos rostos mais que estarrecidos
deu a maior mijada de sua vida bem em cima do persa da família.

Vida em branco
As igrejas da Europa estão vazias para sempre.
Culpa da indústria automobilística que não lançou o modelo Fé 95.
Como é que as pessoas podem ir à igreja sem Fé?
A máquina de lavar e o sabão em pó vão lavar mais bem a sua roupa que você
comprou e é da última moda
embora você não goste nem da textura do tecido nem das cores ácidas
mas é a moda
e que você pagou com o cheque especial
da sua conta naquele banco que é um templo de mármore
a sua conta salário
do emprego que você detesta.
Mas a tendência do mercado é mesmo essa: terceirização.
Consultorias, auditorias, informatização.
Você está bem enquadrado.
Não se preocupe com nada e só vá pensando nisso
enquanto engole a sua aspirina diária, junto com o relaxante muscular e o anti-
depressivo.
Em breve você não será capaz de lembrar qual era a cor de um urso polar.
Tente dizer em voz alta os doze signos do Zodíaco de trás para a frente.
Pelo menos as quatro estações do ano..
Tudo bem, tem mais gente que não consegue porque isso remete a lembrança de
coisas que se aprende na infância.
O colo da sua avó.
Passar as costas da mão na bochecha enrugada dele
que falava muito pouco com a boca e dizia tudo com o olhar.
Sua avó dizia "amor". Igual a avó de todo mundo.
mas o tempo passou, a avó morreu eu nunca mais
abri uma enciclopédia sobre o mundo animal e os negócios
têm que ser feitos.
A avó é branca, o urso é branco, a fé é branca.
O mundo está escurecendo, acho que vai se apagar
boa noite.

O plano
- É o que estou lhe contando. Mês passado o homem tava louco por mim,
vivia me dando presente. De repente isso. Eu não me conformo, eu não me
conformo.
- Calma, amiga, essas coisas são assim mesmo.
Ela bebeu um gole de chope.
- Sabe qual foi o meu erro? Você não vai acreditar, mas o meu erro foi ter
dito a ele que eu estava apaixonada. Foi só isso, eu não disse mais que isso,
daquele minuto em diante a fisionomia dele mudou.
Bebeu outro gole e continuou.
- Ele em disse depois que era tudo o que ele tinha medo. Pior, que ele não
queria: eu apaixonada.
- Homem não tem sentimento não. Ele deve ter ficado com medo de se
apegar. Melhor sofrer agora do que sofrer mais no futuro.
- Mas eu não consigo me conformar. Eu não vou me conformar. Tudo o que
eu quero é ele de volta.
Ela fica um tempo parada com o olhar vidrado. O amigo tenta ver o que
está dentro do copo que ela está encarando.
- Eu tenho que fazer alguma coisa, qualquer coisa.
- Mas, o quê?
- Toda terça à noite ele pega o ônibus para Friburgo, lá pelas seis e meia.
Sai do trabalho e viaja para a casa dos pais. A folga dele é na quarta e ele só
volta na quinta-feira de manhã.
- E dai?
- Daí eu pensei em me esconder e depois comprar uma passagem na
poltrona do lado dele. Duas hora e meia de viagem e eu ali, ele não ia agüentar,
acabava falando alguma coisa. O escurinho da estrada também faz um clima.
- Ele disse que não quer, deixa de ser maluca.
- Espera aí! E se eu tentasse uma coisa mais drástica? e se eu entrasse no
ônibus e fizesse ele dormir com clorofórmio, éter, sei lá? Na hora de desembarcar
eu dizia, "por favor, me ajude aqui, o meu marido está passando mal", botavam a
gente num táxi e eu levava ele prum motel e amarrava até ele mudar de idéia.
- Você não bebeu tanto prá estar falando esse monte de bobagem...
- Não é bobagem. E quer saber de uma coisa? Você vai me ajudar. Você
pega o ônibus e faz ele dormir, eu já vou estar esperando vocês com o táxi na
rodoviária...
- Me tira disso, você não pode estar falando sério.
- Eu tô desesperada! Me ajuda, vai?
...
Provável que tenha faltado coragem e ela desistiu da idéia. Ou então
realizaram o plano mas o ex-namorado se encantou e preferiu ficar com o amigo
dela. Também pode ser que tivesse um recado quando chegou em casa:
- Ele ligou? É verdade que ele ligou?
- Ligou sim, pediu pra você ligar pra ele.
- Sério? Ligou mesmo? Não acredito...
- Mas é verdade, então ele não ligou?
- Bem, se é assim... Ligo de volta semana que vem.
Série de flores (I): margarida

Tentei escutar o grão brotar, mas os homens de gravata latiam alto demais.
De um lado para outro, esbarrando nas cadeiras, sem calças, tanto afeitos ao
exercício do sexo, e as gravatas em cores berrantes sacudindo, o nó mais frouxo
do que eu desejaria. Morte. Morte aos levantamentos estatísticos, planilhas de
percentual de lucros, vou escrever PAIXÃO em letras gigantes por sobre a
papelada, de batom vermelho.
Os brindes e o som dos copos dos brindes não me deixaram ouvir também
quando as pétalas abriram. A fumaça dos cigarros envolveu a cor sedosa de cada
uma. A flor sufocava, mas de longe, onde eu estava, não conseguia livrá-la,
pobre.
Não, eles não pisaram a flor como no final de todas as histórias, onde
fortes, fracos, poesia e ambição se misturam. Ela enfeitou, em outra ocasião, o
túmulo do acionista majoritário.
Triste destino, o das flores.
Cronologia de uma dama

21 de maio de 1956 - Nasce Maria Alice numa maternidade da zona norte. É um


bebê normal e rosadinho.

30 de outubro de 1963 - Maria Alice ganha o primeiro beijo na boca de um


coleguinha de classe mas não gosta porque é muito babado.

21 de março de 1967 - O mesmo coleguinha aproveita a hora do recreio e mostra


o peru pra ela, que não dá maior importância ao acontecimento.

15 de setembro de 1970 - alheia à comemoração do tricampeonato da seleção, a


turma da rua convida Maria Alice pra ir assistir a um filme de sacanagem. Ela
rejeita.

08 de janeiro de 1972 - Um operário de obra grita do equivalente ao segundo


andar que gostaria imensamente de chupar a xota dela e todo mundo que
passava na hora fica envergonhado, mas Maria Alice apenas ignora o fato.

02 de junho de 1975 - No seu primeiro dia no escritório o chefe, dando palmadas


nas coxas, a convida para sentar no colinho. Ela diz que agora não pode porque
vai fazer um café.

10 de março de 1976 - Há duas semanas na faculdade, um colega veterano a


leva para o motel, com o pretexto de executar uma pesquisa de campo. Ingênua,
Maria Alice não dá pelo fato de ali ter pedido o cabaço.

25 de maio de 1981 - Maria Alice se casa no civil e no religioso com um


funcionário do Banco do brasil. A família inteira comemora. Ela sequer repara nos
comentários de que tirou a sorte grande nem sabe ao certo se os olhos do marido
são castanhos ou mesmo verdes como escutou dizer.

25 de outubro de 1981 - O marido é promovido a gerente da agência em


Taboatão do Norte mas Maria Alice permanece no Rio cuidando de uma avó
enferma.

13 de fevereiro de 1982 - Sentindo fortes dores abdominais, Maria Alice é levada


ao hospital e só então descobre que estava grávida e que vai dar a luz a uma
menina.

21 de maio de 1992 - Maria Alice conhece o orgasmo pela primeira vez durante
um exame ginecológico de rotina e sai dizendo que aquele foi o melhor
aniversário que já teve.
28 de maio de 1992 - Ainda perturbada pela experiência da semana anterior,
Maria Alice decide mudar de vida. Entrega a filha na casa da sogra e se oferece
no puteiro mais próximo.

30 de maio de 1994 - Maria Alice participa como convidada de Marta Suplicy no I


Simpósio Nacional de Educação Sócio-Erótica patrocinado em conjunto pela
Academia Brasileira de Medicina e pela Johnson & Johnson. Aplaudida de pé
dado à criatividade dos depoimentos e as aplicação prática, Maria Alice já prepara
um livro a ser lançado ainda este ano pela Editora Vozes.
Inventariando Roy

O padre Roy morreu deixando grande pesar na paróquia de Cruz Alta,


Ribeirão Preto, mas a vida continua. Roy Müller, teólogo anglo-alemão, sempre
dedicou-se à causa dos pobres e ajudou a dezenas de milhares de famílias
carentes ao longo dos seus 26 anos de sacerdócio. Padre Roy deixou seus fiéis
precocemente, findos 47 anos de uma vida plena de atividades, durante a qual
espalhou a palavra dos evangelhos pelos quatro cantos da Europa e do Brasil.
Tendo sido o corpo devidamente despachado em avião para o
sepultamento na sua terra natal, um subúrbio de Hamburgo, faltava agora remeter
via marítima os pertences do finado para a família no porto daquela cidade. Do
conhecimento de embarque deve constar uma descrição detalhada de tudo o que
será colocado em container, desde as peças de roupa até o mobiliário. Um
funcionário da Five Arrows, cia de transportes americana, depois de visitar por
três dias a casa do padre, afirmou jamais em anos de profissão ter visto coisa
semelhante.
A verdade dos fatos fala por si mesma. A lista dos bens de Roy, abaixo
reproduzida, dará uma idéia do que o inventariante quis dizer:

Peças de vestuário
2 pares de mocassins pretos
4 pares de sapatos de cromo alemão
1 par de pantufas vermelhas
1 par de sandália havaiana
1 par de botas de cano longo
1 par de botinas pretas
meia dúzia de cintos
1 bolsa capanga
1 carteira de notas
1 bolsa à tiracolo
5 malas de couro
10 pares de meias
4 ceroulões
3 calças de lã
1 pijama longo listrado
9 batinas
3 estolas sacerdotais
5 calças jeans
2 calças de linho
1 terno
8 cuecas samba-canção
6 camisetas de meia
2 pares de luvas de lã
2 echarpes de lã
1 colete de flanela
11 camisas sociais
3 calças de brim de algodão
1 sobretudo de lã
1 casaquinho leve
1 camisa 10 da seleção brasileira
2 shorts
4 lenços
30 calcinhas de mulher de diversas cores
3 baby doll
1 combinação
3 caixas fechadas de preservativos da marca Jontex, com 20 pacotes de 3
unidades cada
1 pacote aberto em uso com 2 preservativos preservados

Artigos de cama & mesa


1 cobertor de lã de casal
2 colchas de algodão grosso
1 colcha de chenille rosa
4 jogos de lençóis e casal com 2 fronhas e um lençol dobra feita de elástico
6 jogos de toalhas - banho e rosto
4 toalhas de mesa quadriculadas
1 toalha branca de renda
1toalha branca de linho com 6 guardanapos

Artigos de cozinha
1 panela de pressão grande
1 panela de pressão pequena
4 tabuleiros de teflon de diversos tamanhos
1 fôrma de bolo redonda
1 jogo com 3 saladeiras de vidro
2 refratárias
1 faqueiro de inox com 60 peças
1 facão de trinchar
1 concha
1 escumadeira
1 aparelho para fondue com espetos
espetos de churrasco
1 pedra de afiar
jogo de facas Guinzo completo com 15 peças
concha de sorvete
jogo de sobremesa
1 aparelho de jantar com 72 peças
1 aparelho de chá com 24 peças
1 jogo para café - bule, açucareiro, manteigueira e leiteira
4 canecas
2 vasilhas de consomê
2 bandejas de inox
1 travessa de peixe
1 escorredor de macarrão
1 ralo
1 espremedor de alho
1 descaroçador de azeitonas
1 canecão
1 jarra de suco
1 garrafa térmica
2 ampolas reserva
5 saca-rolhas
1 amassador de batatas
1 conjunto de potes para temperos
jogo para sal e pimenta
1 pá de bolo
16 potes de tapaware de diversos tamanhos
conjunto de copos para vinho com 6 unidades
conjunto de copos para champagne com 6 unidades
conjunto de copos para água com 6 unidades
1 bacião de plástico
2 rolos de papel alumínio
10 panelas de teflon
3 frigideiras de teflon
1 chaleira
conjunto de latas para mantimentos com 5 unidades
1 balde de gelo
1 pegador de gelo
1 pegador de macarrão

Mobiliário
1 cama de casal
1 armário duplex com 8 portas
1 penteadeira em mogno
2 mesinhas de cabeceira
1 tapete felpudo 4 x 4m
1 cabideiro
1 porta-chapéus
1 estante de jacarandá
1 mesa
6 cadeiras
1 mesa para televisão
11 quadros
1 arca de jacarandá
1 cristaleira de peroba
jogo de estofados, com 2 poltronas e 1 sofá
1 capacho
1 mesa de cozinha em fórmica
4 cadeiras em fórmica
2 armários de cozinha
1 paneleiro
1 armário de banheiro de treliça em jacarandá
1 cesto de roupa
1 cama de solteiro
1 armário de 2 portas
1 poltrona romântica
1 espelho

Eletro-domésticos
1 tv colorida de 32 polegadas com controle remoto
1 vídeo cassete de 4 cabeças
1 aparelhagem de som com CD e controle remoto
1 fogão de 4 bocas
1 geladeira de 40 l com freezer
1 máquina de lavar roupa
1 vitrola
1 máquina de escrever eletrônica
1 gravador portátil
1 projetor de slides tipo carrossel
1 forno de microondas
1 rádio-relógio despertador
1 barbeador elétrico
1 batedeira
1 multi-mixer
1 liqüidificador industrial
1 espremedor de frutas
1 secador de cabelos profissional

Obras publicadas
Em livros - 1 exemplar de cada:
As sandálias do pescador
O retrato de Dorian Gray
Enterrem meu coração na curva do rio
O pêndulo de Foucault
As melhores de Bocage
Palavras de sabedoria
O elixir da longa vida
Exodus
Bíblia sagrada
Manual da 1ª comunhão
A vida dos santos
Tem aquela do...
1984
As aventuras de Tom Sawyer
Contos eróticos
Cartas a Felice
O castelo
O processo
A casa verde
Coletânea do movimento modernista
Obras completas de Machado de Assis
O diário de Anne Frank
O tesouro do pirata
Gata em teto de zinco quente
Lolita
O poderoso chefão
Histórias da carochinha para adultos
A verdadeira história de Adão e Eva
Povos da América
Dicionário alemão-português-alemão
Dicionário alemão-inglês-alemão
Atlas geográfico ilustrado
Atlas histórico ilustrado
Guia prático do corpo humano ilustrado
O Kama Sutra
O Kama Sutra em pocket book
Enciclopédia Barsa em 30 volumes
Enciclopédia de biografias
Duden
Cozinha maravilhosa da Ofélia
Coleção os grandes cientistas do nosso tempo
O que é teologia? - Coleção primeiros passos
O que é sociologia? - Coleção primeiros passos
O que é filosofia? - Coleção primeiros passos
O guia das religiões
Manual de magia para iniciantes
1001 simpatias
Receitas fáceis de pão

Em revistas - 1 exemplar de cada:


Revista Geográfica - do no. 120 ao 315
A coleção completa do Mad
Chiclete com banana - ns. 15 e 16

Em discos - 1 exemplar de cada:


Anos dourados
Românticos de Cuba
O melhor da bossa nova
Elba
Dois
Água viva
O melhor de Enio Moriconi
Cantatas de Bach
O canto gregoriano
Horas de meditação
Disco days
Clássicos para amar
Lucio Gatica e orquestra
O melhor de Luis Gonzaga
All things must pass
Frank Sinatra convida
Para comer alguém

Em CDs - 1 exemplar de cada:


As quatro estações de Vivaldi
Música barroca
Zucchero
Sister Act 2
Trilha sonora do filme JFK

Em vídeos - 1 exemplar de cada:


Vitor ou Vitória?
A noviça rebelde
Cinema Paradiso
Elas querem sacanagem
Decamerão
Laranja mecânica
O último tango em Paris
Caravaggio
Rock é rock mesmo
Fantasia
Os 10 mandamentos
Proposta indecente

Diversos
1 fone de ouvidos
4 porta-retratos
1 látego
2 álbuns de fotografia
1 caixa de lápis de cor
1 resma de papel ofício II
1 árvore de natal
30 bolas de natal
1 jogo de luzes coloridas
5 velas perfumadas
1 porta-guardanapos
1 caixinha de madeira
1 cestinha de vime
1 rede
1 rede de pescar
1 poster da Cláudia Raia
1 bichinho de pelúcia
calendários antigos desde 1956 - total de 38 unidades
1 vibrador
10 pilhas grandes
1 avental
1 touca plástica

Por motivos óbvios, alimentos perecíveis, medicamentos e artigos de toucador do


Padre Roy Müller foram distribuídos à população carente a comunidade de Cruz
Alta.
Amigos para sempre

No dia em que Josué da Costa Silva nasceu, lá no bairro de Benfica, num


domingo qualquer do ano de 1943, caía o maior temporal. A mãe dele, D.Nininha,
se contorcendo em dores pro nascimento do oitavo filho enquanto o pai, Seu
Ataulfo, mesmo com a hora da mulher ainda saiu debaixo de chuva para exercitar
sua sinuquinha, a segunda melhor diversão dessa vida. Do outro lado da cidade,
no mesmo 20 de junho, nascia na Casa de Saúde São Sebastião o primogênito
dos Alves e Souza, Roberto Jr. E embora os dois tenham nascido no mesmo
minuto, justo quando aquele relâmpago cruzou o escuro do céu e o raio caiu
sacudindo todo o Rio de Janeiro, a vida deles foi completamente diferente até que
o destino fez mais uma das suas.
D.Nininha m sua cama, ensopada de suor e da chuva que se entranhava
em tudo, sem a limpeza e o cuidado que recebeu Roberto Jr. No quarto,
praticamente só a cama, no armário de duas portas, de um lado os trapos dos
meninos, do outro, os seus e os do marido. Num canto uma imagem de N.Sra.
das Graças, no outro os olhos escancarados da filha mais velha. Aos pés da
cama, a calma da parteira contrariando a impressão de que a morte rondava por
perto. Na casa de saúde espocava um champanhe. Dois meninos postos no
mundo, não por obra do amor, mas de uma busca pelo gozo ou pelo patrimônio.
Apesar da tristeza característica de um e outro, Josué e Roberto chegaram
à idade adulta. Roberto quis se matar quando a primeira namorada o trocou por
um rapaz mais rico. Josué quase deu cabo da vida depois que o time perdeu o
campeonato de futebol no campinho graças ao gol que ele engoliu. Vez em
quando o dois pensavam em desistir de viver, como costuma acontecer àquelas
pessoas que não são propriamente filhas do amor. O amor, ou foi mal feito, ou
não havia, a mulher só estava ali de presença, não vibrou junto com o homem, e
pra ele também poderia ter sido melhor.
Nestes casos, e não por qualquer obra do corpo, mas por obra das almas
que não estavam se amando, o que acontece é o mínimo: dá-se a fecundação
porque é coisa da natureza, mas as conseqüências para aquela pessoa que está
começando ali são inevitáveis. O sujeito é um sujeito triste, desapegado da vida,
do tipo quieto, desinteressado, que trabalha no seu trabalho sem alegria, que
geralmente se casa e gera filhos iguais a ele - pessoas sem paixão. E o número
dessas pessoas é muito, bem maior do que se pensa.
Não houve grandes surpresas na vida de Josué e Roberto. Cedo o pobre
teve que esquecer do futebol, mas afinal nem se perdeu grande coisa porque a
verdade é que ele não dava para a coisa. Aprendeu com um vizinho o serviço de
encanador e foi tocando com a mulher, filha e filho apáticos, no mesmo bairro de
Benfica. Quanto a Roberto, deu no que tinha que dar. Nem bem fez 20 anos, já foi
levado pelo pai pro escritório de direito e começou a ser apresentado aos clientes
da casa, fiéis desde o tempo do avô.
Num sábado á tarde, quando a pia da cozinha começou a inundar tudo,
Roberto largou o pedido de indenização assegurado em 800 mil dólares e com
surpreendente destreza fez o devido reparo do cano. Nem a mulher, D.Rosali,
nem a empregada Evelise Cristina, conseguiram fechar a boca depois do que
acabaram de ver. Coisa de duas semanas antes, tinha baixado um santo no
Josué lá na birosca, naquela em que ele perpetuava a tradição da família jogando
sua sinuquinha, embora sem o mesmo entusiasmo do pai em cama e mesa. Aí
também Josué tinha, lá como no futebol, suas dificuldades para encaçapar. Fazer
o quê? Cada um faz uso daquilo que lhe é servido.
Pois então, Seu Gemêncio, o vizinho que ensinara a profissão a Josué,
discutia com o dono da birosca que direito ele ia ter lá numa contenda com o seu
empregador. Diferente de Josué, que sempre foi biscateiro, Gemêncio era
empregado da mesma família fazia 30 anos e como não era FGTS achava que
tinha direito a uma indenização. O antigo aprendiz encheu o peito, deu um tapa no
balcão e disse, sem pestanejar, que o direito do mestre era receber em dobro o
número de salários correspondente aos anos trabalhados. Que fosse procurar
seus direitos na justiça do trabalho. E quem estava no bar saiu espalhando que o
calhorda do Josué até que entendia um tanto de lei, pelo menos para isso ele
servia.
Seu Gemêncio apelou pro ministério público e acabou dando com os burros
n’água. Esperou tanto tempo pela decisão da justiça, cada vez mais se
endividando sem poder contar com o salário que já não tinha, que acabou
entrando no desgraçado do acordo. Antes de receber bem menos do que o seu
direito em vida do que se acabar debaixo da terra esperando o dinheiro sair. Mas
isso é lá outra história. De maneira que Seu Gemêncio, Josué e Roberto Jr. Já
não tinham grandes alegrias na vida, a não ser uma vez ou outra saber de um
inimigo que morreu. Com mulher nunca tiveram essas habilidades, se bem que
Seu Gemêncio não, Seu Gemêncio era porreta, mas agora que estava velho, não
funcionava igual a antes.
Quis o destino que essas duas crianças de domingo viessem a se
encontrar e a mudar definitivamente as suas vidas - até então um não sabia da
existência do outro. O encontro se deu numa época difícil, numa situação difícil,
logo após ter terminado mais uma greve de bancários no Rio de Janeiro. As filas
de contribuintes - claro, porque todo mundo acaba pagando imposto, nem que
seja só uma vez na vida e atire a primeira pedra aquele que jamais pagou uma
taxinha só - se esparramavam pela calçada. O sol castigando velhos e moços
provava que é para todos, apesar do sofrimento ninguém arredava pé porque o
dinheiro era a conta de pagar o colégio das crianças sem multa, segunda-feira já
teria os 10%.
Implorando aos céus por um milagre, o clima tenso dentro das agências
onde todos queriam vazar os olhos do seu caixa com uma caneta BIC de próprio
punho, não adiantou nada e cada um que contasse aí no mínimo umas três horas
e meia de relógio, até conseguir sair da agência. De repente, para alegria da
moçada, passa uma dona boazuda de mini-saia e collant rebolando a ... não! Isso
é outra história.
Josué estava na fila na frente de Roberto Jr., não, Roberto Jr. É que estava
bem na frente de Josué, porque afinal Josué tinha pai paraibano e filho de
paraibano não vira a costa para homem. O primeiro perdera na véspera o cartão
magnético e precisava sacar a quantia para a mulher pagar às 18h a analista
porque ela não aceita cheque. Contar com um estafeta nem pensar, além do
tumulto do retorno bancário, ainda teve uma passeata de professores da rede
pública pela Rio Branco que fudeu com o trânsito e ele ouviu de passagem no
rádio do carro sobre o engavetamento de dois trens no ramal de Japeri. A esta
hora, dois dos três estafetas estariam provavelmente agonizando em meio às
ferragens, aquele não era mesmo seu dia de sorte.
Mas... não! Atrás dele, na fila, sem que soubesse ainda estava o homem
que iria mudar toda a sua existência. Esperavam perto da porta aqueles dois, mas
de lá sairia um novo homem, um novo Roberto jr. Graças àquele pobre
encanador. Tudo se deu de forma bem rápida, o diálogo, a princípio emperrado
pela gravata do preconceito esganando o pescoço do advogado, logo fluía às mil
maravilhas. Pra agilizar o atendimento, tão logo cruzou a porta Roberto Jr. Pegou
o cheque já preenchido e a sua carteira de identidade. Josué também estava com
a identidade na mão, para poder receber a mixaria do cheque que a madame lhe
deu semana passada e desde então não tinha entrado nenhum, até porque hoje
em dia quem é o louco de guardar dinheiro em casa?
O velho da fila do lado começou a dar alteração conclamando
colaboradores para sua mórbida intenção de linchamento coletivo, a começar pelo
gerente, quando esbarrou em Roberto e em Josué. Ao mesmo tempo abaixaram
para catar no chão as carteiras, só que Roberto pegou por engano a identidade
imunda e esfrangalhada do pobre, enquanto Josué examinava a sua, plastificada
e intacta. Imediatamente os dois notaram a semelhança da data do nascimento e
por um instante ficaram tão perturbados que quase não iam atendendo à moça
que lhes estendia os dois cheques de volta. Foi como se, pelo tempo de um raio,
um tivesse se imaginado com a vida do outro. Naquela hora e meia que a fila se
arrastou até o guichê as duas almas gêmeas conversaram sobre tudo: seus
gostos, seus defeitos, se devia ou não voltar a pena de morte, a importância do
ascendente para o desempenho sexual e até mesmo a importância do
desempenho sexual.
Depois que foi atendido, Josué ainda ficou um pouco assim do lado no
guichê recontando o pagamento, que já era pouco, imagine se a caixa erra e dá
de menos! Roberto se apressou para sair junto do banco com seu novo camarada
e mal botaram o pé n calçada sugeriu um próximo encontro. Sei lá, foi tão bom
conversar com alguém assim tão parecido comigo. Josué confessou que tinha tido
a mesma vontade, e só não ia se atrever de fazer proposta assim prum homem de
gabarito. Apertaram cordialmente as mãos. Josué recebeu o cartão do doutor e
telefonou marcando um encontro pra sexta-feira seguinte, no galeto da Senador
Dantas. Deixe que a mulher vai pensar que é encontro com nega. D.Rosali que
maquinasse qual teria sido o grande negócio que explicasse a euforia do marido.
Dia seguinte, deu no jornal: Chuva de verão faz duas vítimas. Raio cai na
rede elétrica e mata carbonizados dois homens de 50 anos em pleno Largo da
Carioca. Houve deslizamentos no morro do Vidigal (pág.10).
Árvore genealógica

Zeferino Mathias, violeiro de repente, casou com Maria das Águas. Tiveram
dez filhos: Zé Tem Tem, Luísa Rebeldia, Marion, Geraldo Olho Verde, Tibúrcio,
Maravilha Maria, Judith, Ana Romilda, Terêncio e Zuê.
Zé Tem Tem, que começou guia de cego e terminou dono de uma portinha,
desposou Amélia e com ela teve doze filhos: Marcelino, Cirilo, Celso Otávio,
Cezarina, Valdete Helena, João Truão, Orelino, Lico, Fátima Sônia, Adelaida,
Zoroastro e Evenilson.
Marcelino desceu para São Paulo e lá foi viver com Emilinha, que teve
gêmeos três vezes: Elisângela e Emilene, Rui e Ruiz, Francisco e Freitoni.
Ruiz se casou com uma filha de imigrante chamada Gúndula. Sua prole:
Udo Aureliano, Jutta Cristina, Enoli, Cosme Franz e Boris Licurvo Tem Tem, em
homenagem ao bisavô.
Boris Tem Tem engravidou a menina Zelinha e com ela teve que casar. Da
união nasceram: Olofredo, Manfredo, Sarita Olinda, Olga Nilda, Ivo das Mercês,
Carlos Batista e Godofredo.
Olofredo juntou os trapos com uma bilheteira de cinema e também tiveram
filhos: Marlon Augusto, Ava teresa, Tzá-Tzá Larissa, Charlton Benedito e Yul
Clóvis.
Marlos Augusto casou com Menina e ela lhe deu três filhos: Abelardo
Babosa, Sílvio Santo e Fausto Selva.
Para a tristeza da família, Fausto Selva jamais foi aprovado num teste de
espermograma.
Angie e mais algumas

Vinha eu alegremente descendo as escadas da estação do metrô da Saenz


Peña, 8h e meia da manhã, associando pra mim mesmo “Miss you” dos Stones.
Só quando botei os pés na plataforma eu percebi que tinha outra coisa tocando
mais alto. O som ambiente enchia o espaço com nada mais nada menos que “The
sound of music” em versão orquestrada. Pronto! Percebi naquele momento que
meu dia tinha acabado e ainda eram 8h 32min.
Senti vontade de atirar alguém dos trilhos mas do que é que isso ia
adiantar? O trem parou, eu entrei correndo, mas no mesmo vagão entraram
também duas mulheres lá pelos 45 anos. Elas falavam alto. Muito alto. Como
quem viaja de ônibus. Uma Estava até usando aquele pezinho de meia que se
usa quando o sapato aperta. E o que é que tem isso? Ela estava de sandália
havaiana! A outra tinha uma voz murcha, apesar de estridente, e eu comecei a
reparar. Cadê os dentes? Por que é que ela tinha que sair de casa pra chatear
gente que nem conhece com aquela boca de maracujá? Dentro de mim a revolta
crescia.
Juntou até gente pra ver o espetáculo que as duas estavam dando. Quanto
mais a colega falava sacanagem, mais a desdentada ria. Juro que se tivesse
comigo um saquinho de amendoim ia lá e oferecia. Só pra contrariar. Saltei na
estação da Carioca e saí empurrando todo mundo na escada rolante, até sair ali
do lado do convento de Santo Antônio. Recebi uns quinze papeizinhos de
“compro ouro” até conseguir chegar ao trabalho.
Na hora do almoço aproveitei pra levar um material de exame no
laboratório e só quando cheguei lá percebi que tinha esquecido em casa a
requisição do médico. Maldita Julie Andrews! Tenho certeza que, não fosse por
ela e aquela praga de trilha sonora, nada daquilo estaria acontecendo. Voltei pro
trabalho assoviando “Waiting on a friend” a plenos pulmões pela Rio Branco, pra
ver se espantava um pouco aquela carga terrível.
A tarde transcorreu tranqüila e felizmente na volta a música do metrô tinha
sido desligada. Só foi chato encontrar minha vizinha do andar na portaria do meu
prédio e ter que ouvir ela reclamar de novo por que é que o carro do corpo de
bombeiros que fica na esquina tem que sair de sirene ligada às 2h e meia da
manhã, se não tem quase carro passando e a gente acorda assustado pensando
que o fogo é no prédio e ainda bem que a escada deles chega aqui no sexto
andar e blá-blá-blá...
Tomei um banho e não quis nem saber de janta. Fui direto na estante de
vídeos e resolvi ver o show que tinha gravado dos Rolling Stones. Quando peguei
a fita e vi que saíam formigas por todo lado, formigas em profusão, fizeram uma
colônia no meu vídeo dos Stones. Ainda abri pra ver se tinha algum jeito de
salvar, mas foi inútil. Atirei a fita lixeira abaixo e fui m deitar, amaldiçoando
nazistas e produtores de musicais inspirados na segunda guerra, minha cabeça
tocando “Satisfaction” no último volume.
Tradução simultânea

Cada participante pagou 540 dólares para assistir a um da de palestra do


professor canadense Jack Bobitt, com tema “como lucrar mais no atendimento ao
cliente”. Ele fez uma introdução de 15 minutos e mandou exibir o primeiro vídeo.
Na platéia, 52 pessoas afiavam o ouvido para não deixar escapar nada do
receptor de tradução simultânea. Olhos ávidos acompanharam o manual bilingüe
quando ele passou do vídeo para a primeira série de transparências.
Tudo refletia a classe A. O suntuoso salão “Rio de Janeiro” do hotel cinco
estrelas, os participantes que vinham de outros estados ou não, mas sempre
executivos e executivas de grandes grupos industriais e comerciais, que estavam
ali, perdendo um dia de trabalho, com tudo pago pela empresa, para aprender o
que havia de mais moderno em estratégias de marketing internacional, com um
almoço pra ninguém botar defeito dentre os dois blocos da conferência incluído no
preço. E mais dois coffee breaks: café, leite, chá, petit fours diversos, etc, etc.
As recepcionistas uniformizadas aproveitavam as pausas para distribuir
sobre as mesas maciço material de propaganda sobre os próximos seminários até
o final do ano. Lá no fundo do salão, dois operadores de som bocejavam ao lado
de uma cabine.
Quem estaria protegido dentro daquela cabine tão bem fechada, com
microfones e fortes lâmpadas de mesa? Duas mulheres, as duas tradutoras.
Mesma idade, cerca de 40 anos, corte de cabelo chanel tradicional, timbre de voz
parecido. A cada meia hora uma passava para a outra a tarefa de sair repetindo
em português o que o professor dizia. Traduzindo e entendendo a próxima frase
dele ao mesmo tempo. Não perdiam nada, mas tinham muito o que puxar pela
cabeça. Típico trabalho que sobra pra mulher,
Lá pelas quatro da tarde a palestra transcorria perfeita. Se alguém quisesse
fazer uma pergunta bastaria chamar uma das recepcionistas que viria com um
microfone sem fio até o participante, mas naquele dia todo mundo entendeu tudo
e durante os intervalos só corriam elogios ao excelente nível do curso e do
palestrante.
Nada poderia atrapalhar o sucesso da conferência. Nada. Nem mesmo a
invasão de um forte grupo armado que tentasse assaltar os turistas e quem mais
estivesse no hotel, porque a segurança lá embaixo era digna da Rio 92.
Jack Bobitt vinha repetindo a mesma palestra desde o ano passado e já
ganhara muito dinheiro com isso. Nos últimos 14 meses, nos panfletos impressos
em russo, espanhol e alemão, vinha lá no alto que o homem era MBA da
universidade de Columbia, Master of Business Administration, mestre de
administração de negócios, o mestrado que exigia uma preparação diferenciada e
mais difícil que as demais.
Bobitt parou de falar quando não conseguiu mais ouvir a própria voz. Mais
de 50 pessoas gargalhavam ao mesmo tempo. Ele ficou olhando o velho da
primeira fileira debruçado em cima da mesa, que chorava de tanto rir. Os técnicos
de som e as recepcionistas lá atrás estavam sem receptor mas conseguiam
escutar a tradução porque o som vazava da cabine. E que não era a reprodução
das palavras de Bobitt.
Pouco antes ele tinha dado um exemplo de atendimento preferencial em
seu país. “A cadeia chamada Pizza Pizza lançou uma campanha que basicamente
repetia um único número de telefone para pedido de entrega. de qualquer ponto
da cidade, bastava o cliente ligar para o número que já sabia de cor, em vez de ter
que procurar o telefone de um concorrente, e pedir sua pizza, fornecendo o
endereço. Através de uma rede de computador a central telefônica passava o
pedido para o ponto de venda mais próximo da residência e em poucos minutos a
pizza era entregue. A estratégia funcionou muito bem, até que outras pizzarias
começaram a imitar o serviço, mas isso também faz parte dos negócios. Um outro
exemplo é o da rede de supermercados Big Bay, que permite aos funcionários
oferecer este determinando tipo de serviço aos clientes. Trata-se de fazer o
cliente acreditar que está sendo aberta uma exceção à regra para atender suas
necessidades individuais. Imaginem que uma família volta de viagem e encontra a
geladeira vazia. O pai vai até o supermercado mais próximo e quando vai pagar
descobre que deixou a carteira dentro da mala. Mas o caixa sugere que ele vá
levar a comida para a mulher e os filhos e volte mais tarde para pagar a conta.
Esse é o tipo de coisa que ganha um cliente. Blá-blá-blá...”
Só havia uma tradutora na cabine. Que já estava bastante irritada, não
apenas por problemas particulares, mas também porque o conferencista insistia
em falar com um inédito sotaque, repetindo por exemplo a palavra “about” como
quem diz “a boat”. Se a palestra não durasse mais aqueles 40 minutos, tudo teria
sido evitado, mas.. certos acontecimentos são imprevisíveis e assim...
“Não dá, mas não dá mesmo! Entenderam o que esse senhor está
dizendo? Além de todas as outras obviedades que ele falou vem agora com essa
sugestão que nunca ia dar no Brasil! Não, gente, por favor, me ajudem a me livrar
desse tormento, esse homem está enchendo o ... bolso de dinheiro falando umas
bobagens e fica todo mundo aí, achando lindo? Dá pra imaginar essa cena do
supermercado aqui, dá? Aliás, nem aqui nem lá. Essa miséria no Brasil e o caixa
dizendo “o senhor vai em casa que eu fico esperando o senhor trazer o
pagamento mais tarde. ”Hein? Hein? Eu não agüento, não agüento!”
Um técnico de som pensou em cortar a voz dela, depois achou melhor ir lá
fora buscar ajuda. Justo nessa hora a outra tradutora tinha saído pra fumar um
cigarrinho! “Vocês têm que se revoltar e mostrar que brasileiro não é só um monte
de babacas! Reajam!”, continuava a mulher, vociferando.
Em seguida ela foi arrancada do microfone e arrastada para fora pela
supervisora, pelo técnico e mais um funcionário do hotel. A supervisora retornou
arrumando o cabelo e a muito custo conseguiu restaurar a ordem na platéia. Não
podia se desculpar com o palestrante, que aguardava sentado e com ar de
espanto, porque não falava uma palavra de inglês. Nem as recepcionistas. Nem
os técnicos. Como também os participantes não falavam. A tarefa teria cabido à
outra tradutora, mas como sempre ela saiu imediatamente após o término da
conferência. Independente de ética ou de ataques de nervos, respeitava o lema
da classe: tradutor traduz, mas não faz serviço de intérprete.
Dicas da vovó

"Não se fazem mais homens como antigamente, disso todo mundo sabe.
Há também quem diga que, quem casou, casou, quem não casou não casa mais.
Mas as jovens românticas contemporâneas podem contar com a experiência da
vovó, que teve oito maridos, e está aqui pronta a esclarecer suas dúvidas."
Assim começava invariavelmente o programa de rádio "Dicas da Vovó", que
de uma vez por semana logo passou à meia hora diária com audiência recorde:
Não que o programa tivesse algo de especial, mas é que a vovó apenas tinha a
coragem de dizer o que a sua própria avó lhe diria se estivesse viva e o que a sua
mãe não diz porque não está nem aí.
Tan-tan-tan-tan-tan-tan-tan. Sobe a música na abertura, no melhor estilo
radiofônico dos anos 40. O narrador anuncia a entrada triunfal e logo a voz
trêmula da vovó se faz ouvir ao microfone. Ela às vezes responde ligações no ar,
outras vezes dá respostas às cartas que recebe, ou mesmo distribui conselhos
gerais.
"Se a minha netinha conheceu um rapaz novo e é do tipo que procura um
bom casamento, faça o seguinte teste. mesmo que voc6e não goste de
hambúrguer, diga a ele que quer ir lanchar no McDonald's ou no Bob's. Isso.
Agora observe o jeito de ele comer. Se o seu namorado pegar o sanduíche com a
maior destreza e devorar feito um morto de fome, não serve. Pior ainda se ele não
se sujar nem um pouquinho com o molho. Se ele come rápido assim, esses
sanduíches, é sinal de que não é nada refinado e se não se suja demonstra que
está habituado. Pule fora enquanto é tempo e vê se da próxima vez usa uma
tanga mais cavada na praia."
A redação tem recebido protestos de diversos setores da sociedade,
principalmente dos educacionais e religiosos, que acusam a vovó de reacionária e
fascista. As revistas femininas até já se encarregaram de promover o apelido que
colocaram na velha: fascite necrosante. mas a vovó continua prestando seu
serviço, alheia a maledicências de invejosos, e com índices de audiência
crescentes.
"Se você estiver no carro d seu namorado assim à luz do dia mesmo, sem
safadeza, mão no banco, e voc6es tiveram uma briguinha recente e você fez
aquele jogo duro que vovó ensinou na semana passada, então, ele deve estar lhe
fazendo a maior declaração de amor. Porque homem é assim, mais maltrata, mais
ele gama. Se no meio da declaração de amor dele passar outra moça na calçada
e você se distrair completamente do que ele estiver falando para poder reparar no
modelinho da roupa dela, esqueça! A não ser que os pais dele morem muito bem
e você não esteja fazendo questão de orgasmo."
FM

Marcelinho estava ouvindo rádio no quarto dos fundos, girando de meio em


meio minuto o botão do dial. Aí ele ouviu o locutor anunciando as pedidas
culturais para o sábado na JB FM, a preferida da vovó:
"Outra boa opção para quem gosta de rock é ir ao Garagem assistir ao
show do grupo Br... do grupo Brrr... Vocês tão doidos? Eu não posso ler isto no ar!
É pra ler assim mesmo? Não é brenha não? Meu santíssimo... assistir ao show do
grupo Bronha Incidental, até domingo, blá-blá-blá."
Clic.
Marcelinho caminha até a sala.
- Ô pai, eu ouvi o home falar agora no rádio uma palavra que eu não
conheço.
Marcelo abaixa o jornal e encara o pequeno, sentindo-se bem no seu papel
de pai:
- Que palavra foi que você não entendeu?
- Ele disse o grupo Bronha Incidental. Quero saber o que é.
- Meu filho! Não repete isso não! Onde foi que você disse que ouviu essa
palavra? Em que rádio?
- É palavrão... Foi na JB FM.
- Isso é um absurdo. Eu tenho um amigo que é diretor de jornalismo lá, não
pode ficar desse jeito - não são nem 11h da manhã. Cadê a censura?
O pai ultrajado agarra o telefone e liga para a redação.
- Não adianta, só dá ocupado. Mas eu vou lá.
- Eu também vou.
- Nada disso, o senhor fica.
- Ficar com quem, pai? Mamãe foi no supermercado...
- Vamos, eu vou tirar o carro.
...
- Eu quero falar com o Pedro Paulo, é uma emergência. Pedro Paulo, você
não vai acreditar o que o meu filho ouviu agora há pouco do seu locutor aqui na
rádio. Fala prá ele, Marcelinho.
- Ele falou que ia ter no Garagem um show do Bronha Incidental. O senhor
sabe o quê que é?
- Não é possível! A que hora foi isso, garoto?
- Pai, fala prá gente, ele também não sabe.
- Responde a pergunta do Pedro Paulo, Marcelo.
- Bom, acho que era 10h.
- 10h, locutor Amaral Filho. Dona Odete, me mande ele aqui com as laudas
do texto. Fique calmo, Marcelo, que nós vamos esclarecer isso. Eu já ouvi falar do
grupo, foi o pai de um dos rapazes, amigo da minha mulher, que pediu prá gente
divulgar. Me deu uns rascunhos de release, mas eu confesso que não reparei
direito no nome da banda.
...
- Eu li isso mesmo, Bronha Incidental, até me admirei de deixarem passar.
Perguntei no ar e tudo.
- Mas isso não é possível, nós estamos numa rádio, Amaral Filho, numa
rádio.
- Olhaí a lauda, está rebatido e tudo, bateram um O em cima de um E,
depois riscaram e escreveram com O de novo.
- Me traz os rascunhos, Odete!
...
- Letra desgraçada a do cara, mas é bronha incidental mesmo. Eu sinto
muito, Marcelo, não podíamos ter deixado passar.
- Esses são os profissionais da comunicação, criticam todo mundo e
acabam fazendo dessas coisas. Vamos prá casa, meu filho.
...
- pai, não se preocupa não, Eu fui lá no escritório e olhei no dicionário.
Taqui: relativo a incidente, que incide, acessório, circunstância acidental, episódio.
Folha Corrida (I)

Dezembro de 84 - Pedi demissão do trabalho. Quatro meses de burocracia


bancária alemã me bastam. Eles estão aceitando qualquer um pra trabalhar aqui.
Até eu. Até o malandro que me indicou. Estou livre de novo e o melhor é que eu
ainda tenho 20 anos.

Setembro de 85 - Tranquei a matrícula na UFRJ. Dois meses de jornalismo


chegaram. Não tenho nada a ver com essa turma - eles vêm de carro novo e
tomam coca-cola em vez de assistir aula. A culpa não é deles, os professores é
que não estão com nada.

Outubro de 86 - Consegui esta vaga de secretária bilíngüe alemão, o


expediente é longo e o salário é curto, mas ainda acho que devo comemorar. No
escritório tudo está caindo aos pedaços, principalmente o meu chefe angolano,
mas faço o que posso para ele não se agitar e piorar aquele suor insuportável.

Outubro de 87 - 1ª. semana: Eu já tinha pedido demissão quando essa


maldita catapora apareceu. E eu com viagem marcada para a Alemanha! Agora
temos dois problemas: eu não posso ajudar a ver quem vai ficar no meu lugar e
nem sei se vão me deixar entrar no país. Emprego lá só se for numa fábrica de
máscaras de carnaval.

Março de 88 - Nem acredito que estou estudando jornalismo de novo. Bom


que o curso na UERJ é noturno, todo mundo trabalha e até os professores são de
embromar pouco. Se Deus quiser, desta vez eu me formo.

Março de 89 - Não foi mesmo boa idéia ter vindo aqui para Miami fazer o
curso de comissária de bordo na Pan Am. Os funcionários agem de forma
suspeita, como se o mundo fosse acabar amanhã. E ainda mais essa: dobraram a
duração de um para dois meses. Eu estou voltando. Não quero perder o
semestre.

Maio de 89 - Agora eu sossego. Bom emprego de secretária trilíngüe no


escritório da Adidas. Um chefe é divertido e o outro é bonitão. Fico aqui pelo
menos até me formar. A vista do Pão de Açúcar é a melhor parte.

Novembro de 90 - Estou desempregada de novo. O presidente bonitão se


demitiu e o chefe engraçado mora em São Paulo. Mês passado levaram o
escritório para lá. Não dá pra transferir a faculdade no meio do sexto período.

Fevereiro de 91 - Detesto meu trabalho aqui. A empresa é de controle de


qualidade mas não passa os seus executivos pela verificação. O chefe menor
escreve errado até em português, que dirá em espanhol. A mulher é bem mais
alta do que ele. O grande chefe alemão está deserto de sentimentos e idéias. Se
eu não pedir as contas pulo daqui da Torre do Rio Sul. Vai ser uma operação
difícil, porque as janelas, pra prevenir, não abrem.

Dezembro de 91 - É a minha formatura e eu devia estar alegre, mas não


estou. Tenho a sensação de que os problemas estão só começando. Minha
monografia sobre quarenta filmes com jornalistas foi um sucesso, mas a verdade
é que eu ainda não entendi direito a profissão.

Maio de 92 - Escapei por pouco. Acabaram os três meses de experi6encia


na Coca-Cola e eles já iam me contratando. Por sorte a Rio-92 está aí e me
chamaram pra fazer produção pra um canal de tevê da Alemanha.

Novembro de 92 - terminaram as 15 semanas de estágio no jornal O Globo,


mas pelo visto não me querem por aqui. Se eu soubesse teria tentado o Estadão
lá em São Paulo, porque também passei na prova, mas a gente não pode
adivinhar.

Janeiro de 93 - Dia de São Sebastião: Fui operada há menos de duas


semanas e perdi o ovário direito, que tinha um cisto superdesenvolvido. Perdi
também a bolsa pra fazer um mestrado em Oregon. Isso depois de 40 recusas de
universidades do mundo inteiro ao longo de dois anos e meio. Que derrota!

Maio de 93 - Eu juro que tentei. Faz três meses que eu estou dando aula
desde Ipanema até a Avenida Brasil - às vezes no mesmo dia -, tudo pra fugir do
escritório. Não tenho nenhuma turma de espanhol, e por mais que eu ensine
inglês e alemão até quase dez da noite o dinheiro não aparece. Também não
tenho carteira assinada.

Junho de 93 - Não aguentei a saudade de um namorado e vim pra


Alemanha atrás dele, que me dispensou logo de cara. Pra não perder a viagem
aproveitei pra pedir um estágio naquela televisão que me conhece. Consegui, mas
não foi o suficiente pra me consolar.

Abril de 94 - Dia 1°.: parece brincadeira, mas hoje eu volto pro Brasil depois
de três meses de neve e estágios, não necessariamente nesta ordem. O carnaval
na Alemanha é o que há de mais bizarro na face da Terra. O jornalismo que se
faz aqui também é de pouca aplicação prática no Brasil - sobram repartições e
faltam notícias.

Junho de 94 - Dia 4: Hoje o Brasil entra em campo - não me perguntem


contra quem, que eu já esqueci! - e eu também. Fui aprovada para um estágio de
quatro semanas na Vênus Platinada, deve ser a minha grande chance. Tenho a
sensação de que, se o brasil faturar esse tetra, eu também vou me dar bem, mas
nunca se sabe.
Novembro de 94 - Sou a secretária do escritório da Klöckner no Rio há dez
dias. Um telefonema muda tudo. Quando terminou o estágio na Globo substituí
uma coordenadora no mês de férias dela mas ficou nisso. Agora me chamaram
de volta, o outro coordenador está condenado pela AIDS, e só Deus sabe o que
pode acontecer.

Fevereiro de 95 - 1ª. semana: Mal posso crer na minha sorte! Contrariando


as probabilidades, estou para ser contratada. A rotina tem sua dose de tensão e
de frustração, mas eu gosto do que eu faço e sempre podem surgir uma
oportunidade mais de acordo com a minha aspiração intelectual.

Fevereiro de 95 - 2ª. semana: As requisições de exame médico ainda estão


na minha bolsa, só que agora vão pro lixo. Acabo de saber que a cúpula precisou
da minha vaga para encaixar a filha de um famoso e falecido imortal (imortal?). A
editoria Rio não pode dispensar um repórter pra ela entrar no lugar, que é
prejuízo. Não sei o que dizer.

Maio de 95 - Parece milagre, mas eu fui aprovada pro XV Curso Bloch de


Comunicação. Tenho pela frente seis semanas de palestras com quem faz as
revistas do grupo. Algo me diz que essa é minha última chance. deve ser porque
eu já mandei currículo pra tudo quanto é lugar e só a Editora Abril mandou
resposta, um lacônico "não, obrigada".

Julho de 95 - Hoje é quinta-feira dia 6 e a situação é a seguinte: A Bloch


pode ligar até amanhã para me propor sabe lá que tipo de trabalho sabe lá pra
qual revista sabe lá por quanto. O detalhe é que amanhã de manhã fiquei de dar
resposta pra uma companhia seguradora que me oferece um emprego de...
secretária.

Eu não merecia isso. Mantenham líquidos inflamáveis à distância.


Folha Corrida (II)

Independente do que se vai fazer, só sair de casa e ir trabalhar fora já


muda o mundo da gente. Dá pra acumular a tal da experiência - que eu, aliás,
não sei pra que que serve e ouso substituir pela mera habilidade - e também a
vivência, que é parente da experiência em primeiro grau, embora mais taciturna.
Tempos depois, deslizando o dedo pela superfície desbotada da memória,
a gente encontra uns carocinhos ásperos, e se surpreende de como é que ainda
consegue identificar cada um.
Um dos meus é japonês, cerca de 45 anos, e se chama Endo. Endo San
faz parte de uma minoria intelectual no seu país porque ultrapassou o nível
universitário, o que por si só já é um feito, se considerarmos que o sujeito tem que
aprender os ideogramas num grau máximo de complicação. Aliás, esta linguagem
é um desconhecido japonês tanto tanto pra nós quanto para as massas deles.
Endo é um bem sucedido executivo, já teve postos nos cinco continentes, só faz
conta usando um ábaco. Endo é um ser dual.
Hoje ele trouxe na marmita um prato exótico. Executivo de marmita aliás já
é exótico. Endo abre seu amarelo sorriso dizendo que adora mokoto. Não senhor,
não conhecemos comida japonesa. Ah, o prato é daqui mesmo, não conheço. A
perna do boi. O senhor quer dizer mocotó.
Endo adora também mocotó de mulata. É um devasso. Nos fins de semana
a mulher dele tem que andar bem lá atrás, depois dos três filhos, como manda a
tradição. Endo é um ser dual. Todo dia chega no escritório fedendo a porre de
uísque. A saliva está grossa, mas ele não perde o bom humor. E isso ele resolve
ali no bebedouro de garrafa mesmo, escarrando na grade onde a água cai, sem
se dar ao trabalho de ir até o banheiro. Afinal, ele é quem manda.
Meu indicador desliza um pouco mais adiante e esbarra em dois carocinhos
contíguos. Um deles é francês, o outro é alemão. Um deles é jornalista, o outro foi
fotógrafo. Os dois estão meio encostados num escritório de relações públicas.
Neste escritório há dois banheiros. Um deles é feminino, o outro é
masculino. O feminino se comporta direitinho e sempre embrulha os absorventes
usados. O masculino são os piores pesadelos da faxineira.
Pelo menos duas vezes por semana ela chama todo mundo pra ver.
mijaram na pia de novo. Ela tem dois suspeitos e ninguém discorda. Até o final do
expediente D. Maria roga as piores pragas baianas contra o membro pecador. Ela
esfrega o assoalho branco e implora pra gente limpar os pés antes de entrar, mas
não esquece o assunto.
Tem coisa pior. Que eu tenha visto, bem umas três vezes no período de um
ano. Gritos, todo mundo corria pro banheiro masculino. Agora passaram da conta.
Agora passaram a toalha de mão na bunda. Alguém limpou a bunda com a toalha
branquinha, lavadinha, que D. Maria trocou ontem. Ela se descontrola.
Ninguém reage quando ela se recusa a lavar a toalha. Precisa dinheiro pra
comprar toalhas novas, com essa já vão três. Só pode ser um doente. Um
pervertido. Um dos dois.
O terceiro carocinho daqui pra lá é mais pontiagudo do que os anteriores e
está mais bem localizado. Numa loja de jóias e souvenires em plena Princesa
Isabel. Há poucos vendedores e ainda menos vendas. A disputa entre eles é
feroz. E a casa precisa fazer dinheiro.
Uma vendedora novata não tem a mínima chance. O filho do dono da loja,
embora diga que ela parece um patinho no meio das feras, insiste: tem que
aprender a conhecer as pedras. E aponta uma, duas, três. Vai levar algum tempo.
Quatro da tarde, entra um italiano e quer saber o preço de um tamborzinho.
Legítima pele de gato - não se encontra desses com facilidade hoje em dia - e
com umas contas do tipo lágrima de Nossa Senhora amarradas na ponta de umas
cordinhas. Você sacode o cabo pra um lado e pro outro, as contas vão batendo no
couro do gato e faz o maior esporro. A vantagem é que qualquer gringo, ainda que
tente, não perde o ritmo.
O italiano reclama do preço do brinquedo. No Pão de Açúcar tava mais
barato. A sugestão geral é de que ele volte ao Pão de Açúcar. Ele passa por um
brasileiro na saída, um brasileiro em loja de souvenir, algo suspeito. Tem que
aprender a reconhecer as pedras.
O brasileiro vai direto falar com a vendedora mais antiga, uma uruguaia, e
só quem se aproxima é o patinho. Ele fica à meia distância, o suficiente para ouvir
a conversa e para saber que aquele não é um cliente.
Tem que aprender a identificar as pedras. O sujeito é um policial faturando
por fora, a loja é fachada para distribuir cocaína, e nunca um apelido de patinho
foi tão bem escolhido.
A experiência acumulada só ocupa espaço que poderia estar sendo mais
bem ocupado com outras letras de música. Já a vivência não, a vivência pode
render assunto em conversas de salão, quando não umas boas piadas.
Folha Corrida (III)

"... Por favor! Em vez de me mandar procurar tratamento, me ajude a


encontrar um lugar na sociedade."
Pronto! Estava escrito. Com esta ela completava a crônica de humor
número 45 e agora já podia pensar em publicação. Conseguira juntar a
quantidade necessária para quase um ano de uma publicação que saísse toda
semana ou para quatro anos numa revista mensal.
Faltava agora a parte mais difícil. "Vou oferecer pra quem? Ninguém me
conhece. Pior ainda, não conheço ninguém nesse meio." Pensou em fazer
primeiro uma pesquisa de mercado.
Não, opinião de mãe não vale. A melhor amiga adorou, leu tudo num dia,
mas melhor amiga também não vale. Um amigo chegado leu, achou alguns textos
inteligentes e outros engraçados. A irmã dele, de 74 anos, leu duas vezes, mas
não disse se gostou.
Mandou encadernar umas cópias e tentou traçar uma estratégia de
marketing. "Eu podia decorar tudo e sair por aí, declamando. Atacando onde
estivesse um microfone. Palcos, tribunas, reunião de condomínio. A entrada ao
vivo num noticiário de tevê. No supermercado, em vez da oferta-relâmpago
abaixando o preço da batata lisa, aparecia eu com uma história engraçada. Ou,
no metrô. Ninguém agüenta mais ouvir que não pode ultrapassar a faixa amarela."
Mas havia um obstáculo. O que fazer com os palavrões? Sem eles, alguns
textos perderiam parte da graça. Não era em todo lugar que podiam ser
publicadas. Talvez em revistas adultas. Isso! Selecionaria as melhores do
mercado. A abordagem poderia ser assim, um apelo em forma de carta, ou
crônica:
Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1995.
Prezado Doutor Editor:
Desculpe o incômodo, eu vir assim importunando, mas só o senhor pode
salvar a minha vida. Eu sei que o tempo é curto pra tomar conta de uma casa de
publicação tão grande, mas é uma emergência. Estou lhe pedindo socorro. Minha
sobrevivência depende do doutor.
Entrei no vício sozinha. Com cinco anos, comecei, de uma hora pra outra, a
ler as manchetes penduradas nas bancas de jornal, quando ia pro jardim de
infância. Bem rápido, passei a escrever e não consegui mais parar. Hoje leio até
placa de carro.
Aos 11 anos a nossa língua só não me satisfazia e eu experimentei o
inglês, que se encontra em qualquer esquina. Aos 16, completamente
dependente, precisava de uma coisa mais pesada e parti para o alemão. Depois
de uma fase curta com o francês e espanhol, aos 22 anos, eu dei um tempo.
Mas sustentar a dependência nunca foi fácil. Arranjei emprego numa
editora e em escritórios de multinacionais. Nesse caminho sem volta, aconteceu o
inevitável. Acabei me formando em Jornalismo.
A esta altura já precisava vender pra garantir minha dose diária. Fui
estagiária, produtora e repórter na rede internacional. Cheguei a prestar serviço
pra maior máquina de informação do país.
De tanto ler e escrever estou sofrendo alucinações. A mania de
perseguição aumenta a cada tentativa fracassada de ser empregada como
jornalista. E agora só me resta uma chance. Este apelo que estou fazendo pro
doutor. O doutor me dando um cantinho de página pra eu plantar umas idéias
como colaboradora.
Eu sei que foi difícil o senhor chegar ao espaço que tem hoje. Eu não estou
falando daquele assunto de reforma não, só quero um pedacinho pra garantir
minha subsistência.
Porque escrever, doutor, é a minha droga e sem ela eu não vivo. Com ela,
atualmente, eu nem sobrevivo. Garantido meu consumo, o risco é aparecer mais
algum dependente, mas aí gero lucro pro senhor. Por favor! Em vez de me
mandar procurar tratamento, me ajude a encontrar um lugar na sociedade.
Tempos bicudos

Acaba de chegar outro metrô na estação terminal da Saenz peña. A saída


da Conde de Bonfim com General Roca transborda de gente, como se fosse
líquido se esparramando na calçada e tomando cada pedacinho de espaço livre.
O sinal está fechado e é difícil chegar ao meio-fio. Só nessa esquina tem
carrocinha de cachorro quente, do churro e da pipoca, fora os camelôs que
vendem de tudo espalhado pelo chão. Cuidado para não pisar nas colchas de
matelassê! E quem não agüenta esperar pela janta acaba piorando o
congestionamento.
As opiniões se dividem: contra ou a favor dos camelôs? Eles vendem mais
barato. Eles não pagam imposto. Você não tem que enfrentar fila. Eles distribuem
contrabando. Se todo mundo decidisse virar trabalhador informal o tesouro não ia
ter verba pra pagar os parlamentares e os servidores. Poderia ser uma vantagem.
Uma coisa não se discute: o camelô é um fenômeno da crise. Da crise
econômica, administrativa, demográfica, o que for, e que só de uns mandatos pra
cá se incorporou na paisagem carioca.
Vinte anos atrás o que se encontrava na calçada era a carrocinha de
pipoca e de amendoim confeitado, a moça vendendo bucha pra banho - mas não
era sempre, o angu do Gomes em pontos estratégicos, só. Circulando a gente
tinha os favoritos da criançada: o picolé do china, o homem do algodão doce, o
amendoim torradinho e o imbatível ting ling (ou ping ling, há dúvidas) chamando
com a matraca para os bijus e pirulitos de açúcar queimado.
Ninguém, vendendo no ônibus não tinha. Hoje é uma enxurrada pela porta
da frente e num trajeto da Tijuca ao Leblon você acaba comprando dois wafers de
leite condensado e dois d brigadeiro, quatro chiliques - é igual ao prestígio, só de
outra marca -, três caixinhas de pastilha de fruta e cinco sonhos de valsa, por um
real cada lote. Nunca se comeu tanta balinha no Brasil, comemoram os dentistas.
Tem também os cegos e os estropiados que sempre acabam levando algum dos
corações mais moles.
Estão ficando freqüentes os conflitos entre os camelôs e a polícia ou os
fiscais mais os batalhões de choque da PE. Fala-se de crime organizado. De
ambos os lados. Até que dá pra desconfiar do discurso no ônibus, os motoristas
devem ouvir umas 20 vezes por dia: desculpe incomodar o silêncio da viagem de
vocês, mas é que eu tenho aqui uma promoção. É o tã-nã-nã, a alegria das suas
crianças e o passatempo da sua viagem. Nas padarias e confeitarias o senhor ou
a senhora vai pagar de setenta a oitenta centavos a unidade, aqui na minha mão
um é cinqüenta e três é um real. Eu poderia estar matando ou estar roubando.
Quem puder comprar eu agradeço de coração. Quem não puder comprar eu
agradeço da mesma fora. Mais alguém? Mais alguém? A todos o meu bom dia e
uma boa viagem.
Talvez o milagre econômico desça em breve sobre os brasileiros sem
distinção de classe social, o que é mais difícil, e em alguns anos ninguém se
lembre do pregão padronizado do ônibus. Aí também vão desaparecer aqueles
papeizinhos xerocados pedindo dinheiro pra alimentar os irmãos menores, que
você recebe e fica com vontade de perguntar à criancinha onde é que está o
safado do papai. E os camelôs nas ruas da zona norte à zona sul, por que não
têm emprego? Porque não há emprego para todo mundo. Tem o problema da
falta de qualificação profissional, mas a oferta de cursos acessíveis a qualquer um
no mercado não é propriamente responsabilidade do trabalhador. Quem está por
cima da carne seca nem se preocupa com esse detalhe, já que se acostumou a
não trabalhar e pensa que com todo mundo também é assim.
Caso o milagre econômico continue circunscrito nas esferas do poder vai
faltar calçada pra todo mundo. Do asfalto nem se fala, tem de veterinário a
engenheiro na praça. Mas como nem todo mundo consegue o capital para o seu
próprio táxi, aperta aí que o companheiro também precisa armar a banquinha
dele.
- Breno, você por aqui? Dá cá um abraço, amigão
- Quanto tempo, hein? Desde a nossa formatura...
- É, já faz uns cinco anos.
- Cinco não, faz oito anos e quatro meses.
- Quem diria.
- O que é que você tem aí?
- Tô começando agora. Hoje só trouxe bis, mas amanhã chega o
polenguinho também.
- Legal. Arma a tua banca aqui do lado da minha qu a gente já vai
conversando.
- Não tem problema com o ponto, não?
- Que nada, o pessoal aqui me conhece. São três anos correndo junto do
rapa e levando borracha no lombo.
- Você tá com uma banca boa, hein? Só importados.
- É, eu comecei pequenininho e agora estou nessa de Kinderovo e
bombom Ferrero. Pensar que eu omi isso na Europa nos bons tempos, nem
tinham trazido pro Brasil ainda. Me ofereceram vender esses eletro-eletrônicos,
mas é uma mercadoria mais cara e eu tenho medo de não vender. Prefiro o
pinga-pinga.
- Eu morro de medo dessa coisa de polícia.
- Que nada, é só você ficar na sua. Eu também não concordo com esse
negócio de depredar a loja dos outros, não. Tem colega que perde logo as
estribeiras e não se conforma quando levam o material. Dá uma certa revolta
mesmo.
- Gente, quem diria que nós íamos acabar na rua?
- Nós, só, não. Tenho uma surpresa pra você. Camarada, dá um olhada
aqui um minutinho? Vem cá, você não vai acreditar quem é que montou tabuleiro
aqui na esquina.
- Geraldo?
- Como vai essa força?
- A turma toda junta de novo.
- Cê tá nessa há muito tempo?
- Não, dancei no último corte do Banco do Brasil.
- Você tava bem lá?
- Mais ou menos, tava na assessoria de comunicação, naquela agência da
Rio Branco com Presidente Vargas.
-Sei.
- E você?
- Bom, eu dancei na crise do JB.
- A crise da crise.
- Vocês é que são felizes. Eu não tive nem o gostinho. Fiquei de estágio em
estágio...
- E acabou na calçada.
- Tem notícia do pessoal?
- O José não-sei-o-quê, lembra, aquele grandão? Tá vendendo coco na
Avenida Atlântica.
- Esse tá bem.
- A gente até que podia reunir o pessoal. Não teve ninguém que se deu
bem, não é possível? Um para vingar a turma.
- A Julice tá no ramo. O pai dela é dono daquela banca de jornal 24h em
frente à C & A.
O fotógrafo

Geovani Pena. Esse era o nome do homem. Fotógrafo profissional.


Especialidade: fotografar atrizes. Jovens, bonitas e nuas. Para uma revista
masculina internacional.
Geovani Pena, 42 anos, um metro e cinqüenta e sete, careca e barbudo,
pele parda, óculos para oito graus de miopia. Mas a voz de Geovani era uma
seda. Tinha voz de galã. Fosse por conta da voz, fosse pela feiúra, nenhuma
mulher se inibia em fazer uma sessão fotográfica. Por isso é que ele conseguia
sempre as melhores fotos, as mulheres que eram lindas registradas em
momentos da maior tranqüilidade.
Como foi que caiu nessa vida, Geovani não sabia. O pai fotógrafo sempre
explicava alguma coisa ao garoto caladão, dali para começar a trabalhar foi só
porque não conseguia outro ofício. Fora do estúdio Geovani era um homem que
ninguém reparava. Poderia passar na boa por um anônimo vendedor de sapatos.
Mas ele costumava ver bem mais do que apenas os pés nus das mulheres.
Não era famoso. Embora sua reputação no meio fosse a do melhor
fotógrafo de nu artístico do Brasil. E se um dia viajasse para os Estados Unidos,
como sugeriam alguns, aí então é que ganharia renome internacional e rios de
dinheiro.
Geovani não pensava em nada disso. Fazia seu serviço e o bom salário ia
todo para casa. Tinha uma mulher tão feia quanto ele, que aliás era só cinco anos
mais velha, se bem que parecia que eram dez, e dois filhos lindos. É verdade,
dois meninos de sete e oito anos, Henrique e Ricardo. Tudo que ganhava Geovani
investia para melhorar a casa de dois andares e na educação dos garotos.
Só havia uma coisa no mundo que incomodava Geovani. Uma conversa
besta com que sempre vinham para o lado dele. Isso por quinze, vinte anos. Se a
mulher estava presente então, nem se fala! Mas como se livrar sem ter que
abandonar a profissão?
- Não sei como é que você agüenta, Geovani, ver tanta mulher bonita! E
com esse seu jeitão... Quantas é que já caíram no seu papo, hein?
- Eu sou um marido fiel.
- Fiel e maluco. Conta aí. A Cláudia Raia é aquele mulherão todo que a
gente vê na televisão mesmo?
- Não reparei.
- Como não, se todo ano você fotografa a mulher? Fala a verdade...
- Geovani tentava mudar de assunto:
- Pode deixar que eu tiro as fotos do aniversário do seu filho.
- Filho? Que filho? Ah, o meu filho? Tudo bem, mas quem é que está
falando em filho? Eu estou falando é daquelas crianças que você fica vendo sem
fraldinha. E comandando. “Aí, vira de lado. Agora de frente, pode se esparramar.
Agarra ali aquele ursinho. Isso, vira o bumbum pra cima.” Você não fica em pé,
não?
- Às vezes eu fotografo sentado.
- E quem é que está falando se é em pé ou se é sentado? Eu quero saber
se ele não fica fora de si. De repente você até pode não ficar, mas ele fica, não
fica?
- Não fica não, eu sou profissional.
- Antigamente o termo certo era brocha.
Muitas vezes se repetiam conversas semelhantes. Não fazia diferença o
nível intelectual ou social do interlocutor. Bastava alguém comentar qual era o
trabalho de Geovani que a ladainha machista vinha à tona. Ele começou a reagir
com agressividade.
- Sou fotógrafo da revista sim e não admito que ninguém duvide da minha
postura profissional!
Geovani deixou de freqüentar, a mulher também preferia o sossego do lar e
dos filhos. Mas deitado quieto na cama ou no sofá da sala uma idéia começava a
martelar sua cabeça. Uma fixação que aumentava e não adiantou fingir que não
sabia. Será que os outros homens tinham razão?
Passou a observar a mulher com mais cuidado. Uma hora em que abaixou
para pegar o jornal no chão deu uma boa filmada na ua bunda. Conhecia bem
aquela velha bunda. Velha, caída, pelancuda. Tentou imaginar a mulher nua no
estúdio. Teve uma crise de riso que assustou as crianças.
- Você está passando bem, Geovani?
Ele foi lavar o rosto sem responder à mulher.
Outro dia acordou primeiro e ficou olhando a mulher dormindo. Era muita
ruga. Tão diferente das outras tão perfeitas... Geovani amava aquela mulher há
mais de 20 anos, mas também amava a beleza feminina e aí estava o segredo do
seu sucesso. Tinha plena consciência de que o seu olhar aguçado é que
determinava o instante de apertar o disparador. Justo quando uma mulher
irradiava mais beleza, nem um segundo antes nem depois.
Geovani passou a ter problemas. Falava menos, pouco ria, se afastava da
mulher e adiava ao máximo qualquer sessão fotográfica. Durante uma sessão
suava frio e interrompia o tempo todo para ir ao banheiro. A qualidade das fotos
começou a piorar e algumas atrizes e modelos se queixaram de estar pouco à
vontade.
- Sei lá, ele está diferente. Agora fica me olhando esquisito.
O editor chamou Geovani. Conversaram. Geovani pediu umas férias, duas
semanas iam chegar, vai ver que estava cansado. Jamais retornou ao trabalho.
Também não voltou para casa. A última vez que foi visto estava no nordeste com
suas nove mulheres, voltando de um culto da igreja mórmon.
Paranóia

• Doutor, eu preciso da sua ajuda. Estou desesperado.


• É só se acomodar ali no divã e ir me contando o que é que há.
• Barulho, doutor, pra onde eu me viro tem barulho.
• Mas a poluição sonora lhe incomoda assim?
• A poluição nem tanto. O senhor diz barulho de trânsito, barulho de
máquina, quando muito um tiroteio?
• O psicanalista concorda com a cabeça.
• Não, quanto a isso está tudo bem. Eu até já me acostumei com freada de
ônibus de madrugada. A minha rua é muito movimentada, sabe? É por
outro motivo que eu não consigo dormir. O senhor reparou nas minhas
olheiras?
• É, tão fundas.
• Não durmo há três noites, doutor, só cochilo.
• Por que? Que barulho é esse?
• Vozes. Vozes humanas.
• Você está ouvindo vozes?
• Claro, eu não sou surdo. Aliás, tenho ouvido de tísico.
• De onde vêm essas vozes? Da sua cabeça?
• Não, elas vêm da rua mesmo. São os meus vizinhos.
• Hãããããã.
• A minha vida está se tornando um inferno, doutor. Já pensei em acabar
com tudo. Comprar uma arma, sei lá. Sábado passado a vizinha do
primeiro andar fez mais um churrasco no play e pôs aqueles discos
horríveis e eu pensei em repetir aquele crime do vidro de maionese cheio
de água. Eu moro no sexto andar. No domingo foi festinha de criança no
prédio em frente até as tantas, acho que uma besta e umas flechas iam
resolver.
• Calma, você está muito agitado. Não tente fazer justiça por conta própria.
• Teve um cara que deu uns tiros num baile funk perto da casa dele lá em
Cordovil e acabou preso. A polícia não defende mais as vítimas, eu me
solidarizei com o coitado, já eram quatro da manhã.
• Por favor, dite de novo e me conte os detalhes. Tem algum aspecto de
sexo envolvido?
• Não senhor.
• Pena, isso facilitaria as coisas.
• Eu, quando quero transar, doutor, saio de casa e vou prum motel, senão
não consigo me concentrar.
• Como é que foi ontem?
• Bom, ontem foi o seguinte. Antes era só na sexta-feira lá na academia.
Depois eles partiram pra quinta e agora já começam na quarta-feira.
• Que academia?
• Ah, é, não falei pro senhor. Tem mais ou menos um ano na casa de
esquina da minha rua abriram uma academia de ginástica. Eu falei: ferrou.
A casa tem um quintal atrás e é ali que eles se reúnem pra beber e
conversar.
• Você já tentou entrar num acordo?
• Foi a primeira coisa que eu fiz. Vesti uma roupa e fui lá pedir pra falar com
a dona. Ela foi logo dizendo que eles já tinham licença pra manter a cantina
e que durante a semana tudo bem, mas às sextas-feiras ela não ia
respeitar o horário de silêncio a partir das dez da noite.
• E depois?
• Teve dia de eu ligar para a PM mas eles não dão a mínima. Pedi ajuda
para a delegacia móvel do meio ambiente, só que no dia que eles queriam
vir e me ligaram bem tarde da noite o barulho nem estava tanto e eu fiquei
com medo de represálias.
• Como assim?
• O senhor sabe. Eu sou pessoa física e eles pessoa jurídica. E o senho não
viu os braços daqueles marombeiros. Lá tem de tudo, até capoeira.
• Entendo. E o que é que eles fazem?
• Bom, eles sentam naquelas mesinhas de bar e ficam bebendo cerveja até
as tantas. Às vezes rola um churrasco ou alguém traz um violão. Mas
mesmo sem isso, a barulheira é insuportável. Eles já falam muito alto,
bebendo então, quanto mais tarde, pior. Às vezes eles sobem pelas
paredes.
• Você está falando de falta de sexo?
• Bom, disso eu acho que eles devem sofrer, porque senão não iam passar a
noite ali no sereno, mas quando eu falo subir pelas paredes é subir pelas
paredes mesmo. A academia dá curso de alpinismo e tem mas travas
pregadas no prédio pelo lado de fora até o segundo andar que eles usam
pra escalar. A pintura da parede acabou.
• Por que você não muda de lugar?
• Mais do que eu mudo, impossível. Eu tenho até um colchonete que eu
carrego pra sala, mas nem sempre dá certo.
• Não entendi.
• É o seguinte: meu apartamento é de fundos e o meu quarto é que dá para
a rua. Quando eu vou para a sala o que entra pela janela é o barulho da
vila que fica atrás. E sabe como é pessoal de vil: toda hora tem um grupo
com cadeira na calçada, uma festa junina, um pagode dos diabos.
• É difícil assim.
• Já tentei de tudo. Dormir com ventilador ligado, com música baixinho.
Algodão no ouvido é todo dia. Comprei até umas bolinhas moldáveis de
silicone que os nadadores usam pra não entrar água, dez reais jogados
fora. Nada adianta. Peguei mania de dormir com uma almofada apertada
contra a cabeça. E o pior é que quando eu durmo no chão, não é a mesma
coisa que a cama. Eu fico acordando de duas em duas horas e venho
espiar da área se eles já foram embora. Nunca vão antes das quatro. Eu
estou desesperado.
• Você já me contou tudo?
• E tem a vizinha de baixo com o amante dela. Vivem brigando e um
tentando jogar o outro pela janela.
• Se acalme.
• E tem o vizinho de cima, o filho dele é meio doente da cabeça e só anda
batendo os pés, batendo porta.
• Tente se controlar.
• Não sei como é que ainda não caiu a maçaneta da porta da rua!
• É melhor você se deitar de novo.
• A vizinha do lado não, a vizinha do lado tem educação.
• Graças a Deus.
• Mas o vizinho de cima vive jogando lixo na minha casa. O proprietário
manda resolver com a polícia. Eu não agüento mais. As gargalhadas!
• Que gargalhadas?
• As gargalhadas que sobem da academia no meio da noite. Parece até que
eu estou no inferno, um tormento sem descanso. Doutor, o senhor precisa
me ajudar.
• O seu problema não é clínico, posso lhe receitar no máximo um
tranqüilizante.
• Eu tenho uma solução melhor.
• Qual?
• Estive verificando a vizinhança... deixa eu vir dormir aqui no consultório?
Entomólogo amor

Os insetos são numerosos e têm certas regalias que nós não temos. Com
uma reprodução em escala industrial eles chutam pra longe qualquer risco de
extinção. A maioria voa. Os grandes rivais dos insetos são os seres humanos, já
que as fêmeas das outras espécies não são dadas a chiliques. Sabe-se de casos
esporádicos, mormente na extinta Tchecoslováquia, da simpatia humana pela
classe.
Quando o mundo acabar e até os ratos de laboratório sumirem sem
agüentar o tranco da radioatividade, os insetos continuarão passeando sobre os
escombros e ignorando qualquer mudança. Para eles, esse negócio de vida
depois da morte é tudo igual.
Talvez haja alguma coisa especial nestes animaizinhos esquecidos por
nós. Algum suspense num escaravelho. Sucesso musical em besouros. Algo de
sábio nas cigarras e de otário nas formigas e abelhas. A praticidade feminina do
louva-a-Deus. O sagrado nas baratas. Deve ser isso, baratas são seres
escolhidos e nós estamos agindo a sua revelia.
Digamos que os gregos tivessem razão e existe um céu cheio de deuses
caprichosos. Eles criaram e continuam criando tantos bichos que a gente morre e
nunca nem ouviu falar. Religião e ciência garantem a superioridade do homem
mas legislar em causa própria não vale. Pode ser que, dentre toda a criação, eles
prefiram as baratas.
Uma barata é a coisa mais nojenta que existe, ganha até da mosca, que
vive pousando em cocô. Se uma mosca entra voando pela janela ninguém se
abala, mas se é uma barata... A barata não tem encantos, pelo menos pra gente.
Só serve para se esconder e começar a destruir tudo: come página de livro, põe
ovo onde não devia, pode até roer o seu sovaco se você se distrair - eu sei de um
caso. Hoje em dia até os homens têm medo de barata: “Eu não mato, jogo álcool
em cima pra ela morrer.” Ou: “Eu mato de longe, mas se ela triscar em mim eu
arrepio todo.”
Quando o assunto é barata, ninguém tem piedade. Não há quem diga que
vai só espantar a barata, como se faz com a lagartixa, nada disso, dá-lhe
chinelada e inseticida. Parece que a humanidade que desforrar na barata as suas
duas maiores frustrações: uma é não saber voar, outra é não saber fazer sexo
direito.
O que as pessoas não consideram é o status da barata. Ela está em toda
parte, nos cantos dos vários cantos dos mundo - o bigode da barata portuguesa é
maior, que eu já vi! - freqüentando sempre as cozinhas dos melhores
restaurantes. A barata que anda no esgoto é um ser livre, que apesar da opção
pela marginalidade não comete os crimes que você já sabe qual o bicho que faz -
pergunte a qualquer tamanduá.
A barata não discrimina nenhuma classe social e marca presença nas
periferias, nas favelas e nos condomínios de alto luxo. Seja na cela de prisão ou
numa trincheira de guerra a barata está lá para lembrar que a vida ainda existe.
Ou quem sabe essa seja uma maneira que os deuses encontram de demonstrar
ao homem uma vaga lembrança vinda do alto.
Há quem acuse a barata de ser um bicho covarde, mas ele que tente
sobreviver ao holocausto. Vivendo em perigo permanente sem encontrar um ninho
onde descansar. Perseguido. Discriminado. Numa fuga constante que só faz
transformar num especialista em fuga e fica por aí a evolução. Mas, e se as
baratas não tiverem pecados? E se já forem uma forma perfeita e que deu o azar
de ter que dividir a terra com os seres humanos?
Vai ver que é isso. Os deuses não estão nada satisfeitos com o andamento
dessa história. E cada vez que estala um chinelo sobre o esqueleto externo de
uma barata inocente aumenta o débito coletivo. Desaba uma chuva daquelas na
China. Explode uma nova revolução na antiga União Soviética. A swat mete uma
bala na cabeça de um veterano armado do Vietnã. Seu ônibus quebra.
Com ou sem insetos em circulação, as relações humanas estão cada vez
mais corroídas - e não propriamente por eles. As pessoas convivem mas entre si
demonstram pouca humanidade. E ainda dizem que as baratas é que não têm
sangue. Não admira que elas sempre fujam correndo da gente. O apocalipse há
de acertar estas contas. As humildes herdarão a terra.
Um convite

Passou pra lá uma mulher de vestido vermelho. O sapato de salto também é


vermelho, o cabelo é preto. O vestido é justo e ela está rebolando. Tem alguém
do lado dela que eu não consegui ver. O garçon trouxe oito chopes e quando tirou
abandeja da mesa ficou uma rodela molhada no lugar, pelo cheiro é chope
mesmo. Pela mulher de vermelho passou um casal bem jovem, ele está de
bermuda, ela de calça pijama, os dois têm cabelos claros e lisos e cara de quem
sempre viveu na zona sul. Na frente vai o filho deles, de uns quatro ou cinco anos,
pedalando a bicicleta de rodinhas. O casal mudo não tem qualquer esperança no
olhar. Um outro casal de velhos, juntos a 48 anos, casaram-se na capela de Santa
Terezinha em Vitória da Conquista, está todo de branco. Até o poodle deles é
branco. E fica assustado, com a língua de fora, naquele tremor frenético dobrável
de língua de cachorro com calor, que pinga, treme e balança. O cachorro se agita,
quer sair correndo, só não sabe pra onde, cada vez que estoura um fogo de
artifício. E como é reveillon, e como estamos na Avenida Atlântica, quase esquina
da Figueiredo de Magalhães. E como descrever todo o que estamos vendo, se
são esperadas aproximadamente quatro milhões de pessoas com suas bicicletas
e cachorros e flores e garrafas, como contar tudo o que estamos vendo sem ao
menos estar lá. Mas no céu, o céu não se divide. No céu é noite tanto aqui como
lá. Pelo céu cortam as luzes e as explosões, explodem as estrelas e as almas dos
homens que já viveram, os bons e os maus e os iguais a mim e a você. Estamos
todos esperando o tempo certo de dizer que o ano novo chegou, e assim, tudo
muda, ainda que tudo permaneça a mesma coisa. Há uma onda no mar da terra
que é o céu e que leva um ano pra subir e arrebentar, como se fosse uma página
virando. É só a mesma história sempre continuando, embora apareçam mulheres
de vermelho e desapareçam os garçons, ou quaisquer outros. Mas depois que a
festa acabar vamos todos embora. Ficarão as flores nas praias, a foto na primeira
página do jornal do dia seguinte. Um cenário vazio. Um instante de areias
desertas. Agora o poodle repousa de olhos fechado a sua língua antes trêmula
que não se mexe mais. Sopra um vento que aos poucos retira a areia de cima de
um cachorro há muito enterrado. Cacos de silêncio. Um som que passou. Um
deus lá em cima olhando tudo ao esmo tempo parece satisfeito. O francês bêbado
abraça uma mulata e sua muito dentro do paletó. Vozes, vozes, vozes, vozes.
Alguém se machucou sem gravidade. Não posso dizer, eles passam tão rápido!
Todos passam tão rápido! Você viu? Aquele, aquela, aquele, o bebê no carrinho,
cheiro de pólvora, sons, o santo incorporou, o mulato morde um cachorro quente.
Lixo no chão, amanhã os garis começam cedo. E vamos esperar mais tempo.
Não, a festa está sempre lá. Só quem corta o céu uma vez é cada um de nós.

Um mundão de idéias na cabeça de um paralítico vitimado pela estrutura


guilhotinesca da vida. O corpo fica fora desta estrutura mas a cabeça sem braços
nem pernas não consegue sair do mesmo lugar onde caiu, não consegue se
deslocar, não rema, não corre, não sabe rolar como a rocha. Daí vem surgindo
uma geração completa de mutilados, vitimados na guerra pela sobrevivência.
Suas idéias sobrevivem mas não encontram pasto, não encontram berço pra
germinar, é uma analogia transportada da fissão nuclear. Isto dói? Provável que
não, o corpo já não é corpo, as ligações nervosas foram cortadas, não há feixes
de comunicação, só um abarrotado de idéias que se multiplicam que nem células
cancerosas e o espaço dentro do crânio sempre igual vai comprimindo uma por
uma, até o ponto de saturação. O que vem depois disso? A antropofagia, se os
pensamentos fossem seres humanos, se os seres humanos fossem
pensamentos. Eles não podem sair de onde estão - nem cabeças, nem idéias,
nem seres humanos - e o resultado deste caos está aí pra qualquer um ver:
(olhos, bocas, narizes, orelhas e cabelos continuam preservados, embora que,
sem garganta, as vozes não saiam mais): concorrentes afins se devoram, por toda
parte livros e filmes falam de antropofagia, o noticiário internacional ferve de
casos policiais do gênero, mas tudo ainda é muito silenciosos, oculto mesmo, a
coisa deve alastrar pra breve. As cabeças que se devoram mutuamente são um
efeito da disposição em que estão: as lá do alto desabam sobre as inferiores, e
estas sobre as mais abaixo, um processo avalanche, super-sônico, eficaz no
extermínio mas ineficiente nesta busca de saciedade. Os dentes ávido em rasgar
faces e estraçalhar as carnes têm tanta pressa e selvageria que destroem sem
aproveitar de cada cabeça tudo o que poderiam ter tirado. Aí vem aves de rapina
pra se alimentar dos restos e o quadro fica ainda mais feio, porque elas fedem
muito.
Uma cabeça devora outra sem deixar que ela se instrua, sem que conheça
nada, sem que tenha bons pensamentos, bons exemplos ou inspirações. Assim
que ela se sentir uma completa inutilidade, assim que perca toda gota de auto-
estima, outra arcada se abre e se sacia dela, arrotando e cuspindo. O fim é
quando terminam as idéias, a que engoliu as demais não vira coisa nenhuma,
uma massa disforme caída no meio das poucas cabeças que chegaram ao fim do
barranco.
Essa alucinação é o resultado de idéias, cabeças e seres humanos que
não encontraram expressão no mundo.
Esse exagero, essa extinção se chama processo civilizatório em operação
na realidade.

O almanaque espúrio & um certo número de barbaridades de pouca monta é


uma coletânea de 45 contos e crônicas de humor divididos pela temática em 11
grandes grupos. Alguns dos textos são completamente absurdos e outros são
críticas ou confusões a partir da realidade.

O poder econômico, a religião, a discriminação e os problemas urbanos aparecem


como alvos principais de contestação. A linha mestra deste livro é subverter a
ordem sempre que possível, enfocar um assunto comum sob um ponto de vista
diferenciado, ou pelo menos apontar as rachaduras de uma estrutura social
decadente.

O dia em que conheci meu anjo da guarda


Marilda é surpreendida pela visita do seu anjo da guarda porque um palpite dela
pode modificar os destinos do país.

Quintos, por favor!


O diabo vem buscar a alma do auditor malvado dentro de um elevador.

Dia onomástico
Uma desequilibrada mental tenta encontrar na rua alguém com o nome do santo
do dia.

O martírio de São Martírio


Conta o padecimento deste santo pervertido que era torturado com a exibição de
vídeos domésticos.

Cineshow
Uma paródia da seção de cinema dos jornais com filmes impossíveis e críticas
disparatadas.

Cinco minutos com seu astro


A entrevista ping-pong com uma atriz iniciante.
Cultura reciclada
Uma enquete feita entre os idosos para descobrir o quanto eles sabem sobre
atualidades.

Ditos e feitos
Uma confusão com provérbios adulterados.

Tratado dos bebês Parte I - Do choro


As queixas malcriadas que substituiriam o choro dos bebês.

Cantigas infantis
Atirei o pau no gato vira uma monografia de mestrado com 320 págs., aqui
resumida.

Das letras
Definições amalucadas de A a Z.

Professor I Professor II
Uma singela homenagem à figura do professor.

O seqüestro
Bandidos desastrados se metem em encrenca quando levam por engano um
velhinho de 93 anos.

Foca
O drama de uma foca perdida na redação do jornal.

No bar
Quatro irmãos fisiculturistas são solicitados para dar surras em desafetos.

Morte aos manobristas


Um vingador anônimo resolve agir contra os flanelinhas.

O sonho de Délis
Um pesadelo com a participação especial de Jô Soares.

Memórias de um aventureiro
Um milionário aumenta a fortuna da família espalhando o consumo do amendoim
com Nescau pelo mundo.

O saco plástico
Um saco plástico cósmico vem recolher seus semelhantes e isso acaba com a
vida no planeta.

Orgia passada a limpo


O lápis e a borracha de um menino burro desencadeiam uma suruba do material
escolar numa papelaria.

Você no mundo
O retrato caricato da classe média brasileira e do seu consumo.

Telefônicas
Um serviço de atendimento por telefone resolve os mais variados problemas de
quem sofre de insônia.

Armadilha para pegar gato Armadilha para pegar cachorro


Só para fazer um carinho nos nossos amigos mais verdadeiros.

O presidente
Um presidente rebelde consegue realizar uma revolução moral numa república
sul-americana.

Uma questão de classe


A revanche do cachorro de estimação contra a hipocrisia da família rica.

Vida em branco
Um delírio sobre a maneira artificializada pela qual vamos vivendo.

O plano
Moça abandonada fica imaginando estratégias para recuperar o namorado.

Série de flores (I): Margarida


Uma explosão poético-simplista contra a classe dos executivos.

Cronologia de uma dama


A trajetória de Maria Alice do nascimento à vida adulta, ressaltando os episódios
sexuais mais marcantes para ela ao longo desses anos.

Inventariando Roy
O padre Roy Müller, 47, morreu e agora uma lista de seus pertences revela o lado
oculto de seu comportamento.

Amigos para sempre


Josué da Costa Silva, o encanador, e Roberto Alves e Souza Jr., o advogado,
nasceram no mesmo dia e se aproximam juntos da morte.

Árvore genealógica
O charme dessa história está na proliferação da família e nos nomes dos seus
componentes.

Angie e mais algumas


As agruras e pequenas chateações num dia da vida de um fã dos Rolling Stones.

Tradução simultânea
A tradutora de uma conferência sofre um ataque de nervos no meio do serviço e
sai dizendo o que lhe dá na telha.

Dicas da vovó
Programa de rádio onde uma viúva de oito maridos dá conselhos avançadinhos
para quem quer agarrar um homem.

FM
Marcelinho ouve um palavrão no rádio e o pai dele resolve tomar providências.

Folha corrida (I)


Uma jovem oscila durante onze anos entre esporádicos empregos como
secretária e tentativas frustradas de se firmar como jornalista.

Folha corrida (II)


Memórias de acontecimentos insólitos na passagem da mesma jovem por
diversos locais de trabalho.

Folha corrida (III)


Uma carta desesperada da autora tentando conseguir espaço para publicar suas
histórias.

Tempos bicudos
Colegas de faculdade desempregados se reencontram na rua quando viram
camelôs.

O fotógrafo
Geovani Pena, fotógrafo de nu feminino, se torna vítima de uma obsessão e põe
tudo a perder.

Paranóia
Morador de uma vizinhança barulhenta procura ajuda de um psicanalista para
enfrentar o problema.

Entomólogo amor
Nova visão de mundo que associa as tragédias humanas à alta de consideração
com os seres eleitos pelos deuses: as baratas.

Um convite
A reprodução de uma festa de reveillon numa praia do Rio de Janeiro feita por
alguém que não estava lá.

The end
Este texto sem título é um desabafo contra a falta de oportunidade que aflige a
maior parte das pessoas atualmente.

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