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CAPÍTULO I

Aquela noite estava um inferno. Dia 20. Sempre o dia 20. Por mais que ele tentasse,
dormir era impossível. Virou-se de um lado pro outro, tomou um banho e dois calmantes, mas
mesmo assim o sono não veio. O maldito dia 20 não o deixava dormir e era isso que mais o
irritava. Pela manhã, com certeza estaria morto de sono, sua concentração passaria o dia
inteiro oscilando e não conseguiria fazer nada no trabalho.
Quando o incômodo atingiu seu auge, levantou e foi em direção ao espelho do
banheiro. No escuro ainda se encarou e viu seu rosto nas sombras. Sua barba estava enorme e
o brilho dos olhos verdes mal dava pra ser visto, embora estivesse lá em algum lugar. Quando
acendeu a luz, se olhou mais uma vez e sentiu nojo de si mesmo. Nunca iria se perdoar pelo o
que tinha feito e o dia 20 não o deixaria esquecer. Se tivesse feito tudo diferente naquele dia,
se ao menos não tivesse deixado... mas isso não importava mais. É passado e é melhor deixar
isso pra trás antes que te mate, pensou enquanto ainda se encarava no reflexo.
Resolveu sair. Apagou as luzes do banheiro, vestiu uma camiseta e uma calça, pegou as
chaves do carro e foi em direção à garagem. A porta automática já estava levantando quando
entrou no carro e numa ré brusca, saiu de casa. Pra onde estou indo? Pra onde estou me
levando? Ligou o rádio. Uma música triste estava passando na programação. Não fazia ideia de
quem era. Provavelmente mais uma dessas divas pop com vozes melosas e letras sem sentido.
Ao perceber isso, mudou de estação e sintonizou em uma de música eletrônica. Depois de 20
minutos dirigindo sem rumo, avistou o posto de gasolina e resolveu abastecer.
- B’noite senhor – recebeu o frentista, já contendo um bocejo – quanto vai querer?
- Coloca 20 reais. Gasolina comum – Maldito 20!, lembrou – Ei! Não! Coloca 30, é
melhor.
- Beleza. – Enquanto o frentista abastecia, olhou para o relógio. Os ponteiros
luminosos indicavam que já eram duas da manhã. Resolveu ir à lojinha de conveniência lá
atrás. O letreiro que tinha uma placa com “24 horas” iluminado, estava com o 4 apagado,
deixando o 2 brilhando sozinho junto com o “horas”. Droga. 20 desgraçado. Tá em todo lugar.
Ao entrar, pegou um maço de cigarros na prateleira, junto com um energético e um pacote de
batata frita. O gordo sentado atrás do caixa, lia uma revista enquanto uma TV pequena
sintonizava em um canal qualquer. Ao vê-lo se aproximar, parou de ler e se preparou pra
passar na máquina o que ele tinha comprado.
- Deu 20 reais. Qual a forma de pagamento? – falou o homem um tanto bruto, como se
achasse um absurdo alguém sair de casa de madrugada pra comprar porcaria e atrapalhar sua
leitura.
- Acrescenta mais isso aqui. – ele pegou um saquinho de balas e colocou no balcão –
vou pagar no débito.
- Somou 21,50 – depois que o gordo ensacolou tudo e devolveu o cartão, ele foi em
direção ao frentista que o esperava sentado na cadeira.
- Sua chave cara. Obrigado. – Ele também agradeceu, ligou o carro e saiu mais uma
vez sem rumo.
Depois de um tempo dirigindo, as lembranças começaram a vir. Eram inevitáveis,
principalmente naquele dia. Não pense nisso, não pense nisso, falava para si mesmo, tentando
mudar o pensamento pra outras coisas. E então, aquela ideia veio seca e fria. Há algum tempo,
ela percorria a sua mente, como se não quisesse nada. Como se estivesse esperando o
momento certo, como se farejasse o seu medo e daí, buscasse se aproveitar de seu
sofrimento. Um desejo que superava a vontade de qualquer outra coisa. Não seria irônico que
eu desse vazão a essa vontade justo hoje? Depois de cinco anos...
O energético tinha acabado, a batata frita estava na metade e a sede cortava a sua
garganta junto com o sal do aperitivo. Ao passar pela ponte que cruzava todas as manhãs e
tardes para ir e vir do trabalho, ele estacionou. O que estava prestes a fazer iria aliviar a sua
dor, quebraria aquele sentimento, queimaria todo o sofrimento que o corroia por dentro há
meia década.
Encostou-se à murada e olhou para baixo. O rio era assustador, e corria veloz e
traiçoeiro lá do alto. Passou a perna pela grade de proteção, e sentou. O vento batia em seu
rosto, o céu estava estrelado e a lua trazia um brilho fantasmagórico sobre o mundo. Que bela
noite pra se morrer.
Começou a contar. Nada mais justo que o número 20 marcasse o seu fim. Seus últimos
20 segundos, suas últimas 20 batidas de coração. 13, 14, 15...
- Tá pensando em pular? – Aquela voz feminina quase o desequilibrou de susto. Olhou
para os lados procurando a sua origem e viu uma garota nos seus 15, 16 anos. Parecia uma
mendiga, embora um olhar mais atento revelasse que seus trajes eram meio hippies.
Carregava uma bolsa enorme ao lado das ancas e uma toca que a ajudava a se proteger do
frio. Um suéter na cor creme cobria o que parecia ser uma blusa meio desbotada, coberta por
colares de sementes que ela carregava no pescoço.
- Não estou pensando. Eu vou pular – respondeu um tanto surpreso com o tremido da
própria voz.
- Na boa cara, se tu fosse pular, já tinha se jogado. Ficou um tempão aí. Tava o quê?
Contando? – E esboçou um sorriso de desdém.
- Isso, tava contando. Meus últimos 20 segundos de vida.
- Vinte? Que eu saiba o normal é contar até dez – e por baixo da voz irônica, se
percebeu uma pontada de curiosidade.
- Não preciso me explicar pra você.
- É claro que precisa droga. Já parou pra pensar que eu vou ser a última pessoa com
quem tu falou? O mínimo que tu pode fazer é conceder uns 20 minutos pra dizer por que tu tá
querendo voar.
Ela percebeu ao terminar de falar, que ele ficara surpreso. Mesmo nas sombras, deu
pra ver a boca dele formando um pequeno “O” de espanto. Esse cara é doido.
- Bem, já que tu num quer falar, foda-se. Tô vazando. – ela foi se afastando - Vou
deixar tu terminar a tua parada aí. Foi legal te conhecer. E na boa, cai de peito aberto. Se for
cair de pé tu não vai morrer da queda, mas afogado. Acho que é pior.
- Como sabe disso? – perguntou.
- Já vi acontecer. Ou acha que é o primeiro maluco que pula dessa porra aqui? Terceiro
só esse mês man. Tem gente que diz que é a crise.
- Não. – interviu ele - Você fala como se já tivesse sentido vontade de fazer isso. Uma
pessoa normal iria tentar argumentar e me impedir de pular.
- Cara, tu é doido. Pra mim, morre porque quer. A vida é um direito não uma
obrigação. Abre mão dela, quem sentir vontade. E eu... Eu tô muito bem viva, obrigada. Se tu
acha que eu vou ficar choramingando pra tu não pular, é mais doido ainda.
Passado um tempo, perguntou:
- Quantas pessoas você disse que já pularam dessa ponte?
- Sei lá. Só sei que três vieram nesse mês. É o tempo que eu cheguei por aqui.
- E você conversou com eles? Assim como tá conversando comigo?
- Não. – Nenhum valeu a pena. – Só tô falando contigo por causa do teu farol. Ele me
acordou quando tu chegou. Só ia vim ver. Mas como tu tem que contar, é melhor eu vazar.
Deixa eu ir man. Falou aê.
- Como assim acordou? Você tava dormindo? Tipo, aqui? – aquela garota afastou todas
as suas intenções da mente. Como ela poderia ver a morte como algo tão casual, tão normal?
De certa forma ele estava se sentindo um pouco ressentido por ela não tentar ajudá-lo ou
pedi-lo para que não fizesse isso. Ninguém se importa mesmo, pensou. Mas mesmo assim,
aquela garota parecia ser diferente. E ele queria saber quem era ela.
- Cara, importa mesmo onde eu durmo? Tu tá nas últimas meu chapa. Parte dessa pra
melhor logo. E não se esquece de seguir a luz. Não te quero vagando por aqui e me
assombrando de noite, caralho. – Virou de costas e começou a caminhar pra longe, pra
escuridão.
- EI! Espera!
Ela olhou pra trás. Parou a meia distância e respondeu: - Que foi agora cara?
- Acho que você merece saber por que eu quero morrer essa noite – ela o olhou
intrigada, esperando. Será que eu quero saber mesmo? – Então vai, conta.
Ele passou a perna, pela murada e depois a outra. Seguiu na direção dela, parando a
uma curta distância e falou baixo como se tivesse medo de que outras pessoas estivessem
ouvindo, como se aquelas palavras não devessem ser pronunciadas altas de mais: - Meu filho...
Eu matei meu filho.
E chorou.

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