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PRÓLOGO - Tudo vai ficar bem

Marcam exatamente 10 da manhã no ponteiro do meu relógio, no sol escaldante do Rio de


Janeiro e eu estou prestes a me tornar o mais novo PM do estado mais perigoso do Brasil.

Confesso que isso foi uma das coisas que me fizeram escolher essa carreira, fazer justiça e
bater em vagabundo é o poder que a farda nos proporciona.

Passei como 6° da turma, então eu pude escolher para qual batalhão eu iria, e é claro que
escolhi o 23° BPM. Leblon, Ipanema, Gávea, São Conrado, mais tranquilo que isso só
nascendo herdeiro.

Aqui estou eu, de boina na cabeça, olhando para minha coroa, cheia de lágrimas nos olhos
e orgulhosa da conquista do filho, mas também de alívio, já que batalhou para caralho para
me dar um futuro.

Após o soar da corneta, abracei a velha, olhei para ela e disse:

“Agora tudo vai ser diferente, mãe.”

E o sorriso que ela abriu faria até os olhos do capeta lacrimejarem.

“Agora tudo vai ficar bem.”

CAPÍTULO 1 - Omitir ou Se Corromper


Passaram-se 3 anos desde a minha formatura, e advinha só? É claro que não ficou tudo
bem. Minha coroa desenvolveu uma doença chamada Cardiopatia reumática, uma merda
de doença do coração que deixou minha coroa acamada no HCPM, mas nós não temos
recursos nem para cuidar dos policiais baleados, imagina a porra da minha mãe.

Mas não teve jeito, tivemos que passar de clínica em clínica, hospital em hospital, mas os
diagnósticos sempre eram piores que o anterior, mas em um momento um médico me deu
esperanças ao dizer que seria necessária uma cirurgia. Eu nem preciso te dizer o valor, não
é? Basta dizer que seria suficiente para aposentar você pelo resto da sua vida.

Como se não bastasse, ela não tinha tempo, no máximo um ano para eu conseguir pagar o
tratamento, caso contrário, já sabe, né?

E mais uma vez estava eu, como de costume, puxando Blitz as 7 da manhã de
segunda-feira, só para foder trabalhador mesmo. Mando encostar um carro dos vidros
escuros, peço a documentação e faço a abordagem padrão.
O cidadão, cheio de marra, joga duas notas de cem no meu peito e pergunta se essa
documentação serve. A mão chega a coçar para quebrar a cara desse filho da puta, o
procedimento é claro, tentativa de suborno prevista no Art. 333 do código penal. É levar
para a delegacia e manter sob a custódia do delegado.

Olhei para a nota, pensei em prender aquele babaca. Pensei em quebrar ele na porrada.
Pensei na coroa deitada na cama de um hospital medíocre…

Como disse um grande filósofo: “ou você se omite, ou se corrompe, ou vai pra guerra”, e eu
me corrompi.

Peguei a porra das notas e fiz sinal para seguir, mas o sorrisinho de satisfação do filho da
puta deixou minha honra ainda mais quebrada do que me corromper.

Ao menos servirá para comprar 3 remédios para a velha, aliviar um pouco o sofrimento, ela
é mais importante que isso.

Engoli minha raiva e pedi autorização para o Sargento para comer alguma coisa,
normalmente eu não seria liberado, mas o barrigudo não poderia perder a chance de me
pedir para comprar para ele também, já que comida de rancho é uma merda. Fui num
boteco comprar a porra do lanche, mas no caminho tinha que passar por baixo de um
viaduto, carinhosamente chamado de “beco do assalto”, porque quem passava ali sempre
perdia alguma coisa.

Não deu outra, passando pelo beco, avistei uma mulher vindo na direção oposta e um
pivete enquadrou ela com um simulacro de arma de fogo, por um momento meu
pensamento foi encher a porra do moleque de chumbo, mas eu já sabia que se fizesse isso
minha cara estaria estampada no Jornal no mesmo dia.

“Policial mata jovem estudante a caminho da escola”

Mas não quero ser preso, não posso ser preso.

Chego na encolha, já que o imbecil estava ocupado demais roubando os pertences da


garota que nem me viu se aproximar, enquadrei o meliante que tinha no máximo 17 anos,
pelo visto jovem demais para saber o que é certo e errado, mais uma vítima da sociedade
que será solta no dia seguinte, mas eu tinha que fazer meu papel. Algemei o individuo que
não ofereceu resistência já que se tremeu todo quando viu minha presença.

— Ele conseguiu pegar alguma coisa? — Disse para garota que estava congelada de medo
após o ocorrido

— Não senhor
— Senhor está no céu, pode me chamar de Souza. — Falei levantando o vagabundo do
chão na marra. — Tenha cuidado ao andar por aqui, é perigoso. Se estiver sozinha, é
melhor procurar outro caminho.
— Eu sei, não costumo vir por aqui, é que hoje eu tive que vir de ônibus para faculdade e
não sabia chegar lá sem ser por aqui
Depois que ela falou isso que parei para prestar atenção nela, loira, baixinha, com toda
certeza eu levantaria ela com mais facilidade do que o gansinho que acabei de algemar.

Nessa hora eu me liguei que a patricinha era estudante da PUC, aquele tipinho que abraça
árvore, fuma maconha, fora Bolsonaro, marcha pela paz(contra a polícia) e os caralhos.

— Você vai ficar aí parada ou o quê? — Ela me olhou nervosa e começou a gaguejar
falando que era estudante de psicologia e que eu poderia ajudar ela com uma coisa, mas eu
estava ocupado demais carregando o meliante para prestar mais atenção nela, até que ela
perguntou…

— Se você me passar seu Whatsapp, eu posso te mandar um formulário, vai ajudar muito
na minha pesquisa

Eu não posso me envolver com patricinha, filha de empresário, e essa merda parecia caô
demais para mim, não posso esquecer que recompensa para PM que vacila é tomar tiro,
principalmente no Rio de Janeiro. Ela reparou na minha indecisão.

— Se você participar, irá receber uma participação no valor de R$ 150.

Disse, com um sorrisinho desajeitado. Isso foi o suficiente para me persuadir, não o sorriso,
mas o dinheiro, já daria para comprar mais remédios para minha coroa.

Passei meu número e escoltei ela por um caminho mais tranquilo e levei o marginal de volta
para a viatura.

— Puta que pariu, Souza, eu te peço para comprar um lanche e tu me traz um galeto
algemado porra? Bota esse merda na viatura e vamo embora daqui.

Foi de lá até a porra da delegacia ouvindo o barrigudo falando merda, mas minha mente
estava em outro lugar. Tava na patricinha cujo nome nem perguntei.

CAPÍTULO 2 - Lugarzinho Especial


Já fazia mais ou menos uma semana desde o ocorrido com a patricinha lá no beco do
assalto, mas quando se é polícia, essas paradas para você vira rotina, ou você acha que ela
é a única mina gostosa que eu já vi em ocorrência?

Vocês iriam ficar malucos se vissem a quantidade de mulher bonita que aparece com a cara
toda fodida de tanto apanhar do namoradinho traficante. Mas ela…Mesmo não sendo a
mais bonita, nem a mais desenrolada de papo(ela congelou, lembra?) ela me chamou a
atenção de alguma forma.

Passei a merda da semana inteira olhando o celular esperando uma mensagem dela, quase
que levo uma advertência do barrigudo. Depois do quinto dia eu já achava que ela estava
tirando uma com minha cara, mas depois de 7 dias a filha da puta me manda a mensagem.
— Oi, lembra de mim? rsrs — Sou a Ju, você me ajudou naquele dia e ficou de participar da
minha pesquisa, tem como me encontrar na confeitaria Colombo, lá no forte Copacabana
amanhã?

Patricinha da porra, me chamando para Confeitaria Colombo, puta lugarzinho de rico, um


salgado qualquer é papo de 30 Reais, é foda, mas não vou dar uma de duro para a loirinha.

— Saio do serviço às 17:30, te encontro às 18h — Respondi secamente, como o soldado


que sou. Sem merda de emojizinho e essas viadagens do caralho. Mas não vou negar que
por dentro estava que nem um moleque eufórico vendo peitos pela primeira vez.

Fiquei desatento o serviço inteiro e o bigode me chamou a atenção novamente, não posso
ficar de bobeira, militar não pode ficar desatento.

Cheguei em casa no final do dia completamente esgotado, abri a porta do quarto para ver
como estava minha mãe, é claro que eu não teria condições de mantê-la no hospital, então
ela ficou fazendo o tratamento aqui em casa.

Estava deitada na cama, com aquela cara de cansada como de costume, assistindo Netflix
que eu pagava com muito suor (pois é, 30 conto faz falta para um policial).

Me olhou com brilhos nos olhos, como se soubesse que algo estava prestes a acontecer, é,
ela sabia.

Trouxe a quentinha para a janta e os remédios que consegui, química pesada, exigia muito
do corpo dela, mas a coroa era batalhadora e não desistia.

Fui dormir e acordei com uma disposição que já não tinha há tempos, o serviço passou se
arrastando, mas dessa vez o barrigudo não encheu o meu saco. Talvez até ele tenha
notado algo diferente.

Terminando o serviço, fui direto para o ponto de ônibus. Te peguei né? Tá achando que PM
tem carro porra? Bom, ter até tem, mas eu não.

Já deixei separado a roupa no alojamento, a menos pior que eu tinha, uma calça jeans azul
escura, uma camisa polo preta, com um Silver Scent, perfume de vagabundo, já dá para
quebrar o galho.

Cheguei no forte um pouco atrasado, e de cara vi a moça lá me esperando, eram 18 horas,


o sol já estava se pondo e ela tomando uma caipirinha, puta cena bonita, tão bonita que o
Chico Buarque escreveria um MPB de tão bonita que é.

Me sentei, meio envergonhado, mas sempre mantendo a pose, porra, já troquei tiro com
vagabundo, não é o rostinho bonito dela que vai me intimidar.

— Desculpa a demora. — Ela me olhou meio constrangida, e disse que não tinha problema.
Puxou o notebook de dentro da bolsa, um MacBook que poderia custar facilmente três
meses do meu soldo e começou a fazer perguntas, idade, nome e coisas esse tipo, até que
ela fez uma pergunta que me chamou atenção.

— Por que você escolheu trabalhar com uma profissão ligada a violência?
— Porra moça, tá de sacanagem? — Respondi assim mesmo. Ela chegou a arregalar os
olhinhos verdes dela. — Você acha que a gente gosta de sair de casa sem saber se irá
voltar todos os dias? Acha que é uma coisa que você escolhe no terceiro ano do Ensino
Médio? É essa “violência” da PM, que permite que as outras pessoas durmam
tranquilamente em suas casas, enquanto arriscamos nossas vidas. Por isso, quando penso
em desistir de tudo isso, lembro de quantas pessoas estão dormindo em suas camas
quentinhas, passeando, namorando e curtindo a vida enquanto estou trabalhando. Pois a
vida tem um senso de humor mórbido, onde alguns têm que sofrer para que outros possam
usufruir da paz.

Quando terminei meu discurso, a mina ficou perplexa e sem palavras, mas depois de alguns
segundos de tensão, onde eu me senti um idiota por falar tudo aquilo, ela deu um sorriso e
começou a perguntar várias outras coisas. Sabe o que é conversar com uma pessoa que
está prestando atenção de verdade naquilo que você está dizendo? Que realmente quer
saber da tua história, o que tu pensa, como você se sente?

Conversamos até o anoitecer, eu só notei que estava tarde quando um funcionário veio me
falar que o estabelecimento iria fechar. Nós já íamos nos despedindo quando ela se
aproximou de mim, me olhou com uma carinha safada e sussurrou no meu ouvido:

— Não queria que essa fosse a última vez que nos vemos, que tal repetirmos o encontro na
próxima sexta-feira? No mesmo horário.
— Como nosso lugarzinho de encontros? — Sorri, involuntariamente, como um garoto.
— Isso mesmo, nosso lugarzinho especial.

Depois da risada tímida, virou as costas e foi embora. Óbvio que fiquei olhando ela ir,
reparando em cada curva do corpo dela, até que ela se virou alguns passos depois e
percebeu que estava olhando. Para não perder a pose, fingi que nada aconteceu, virei e fui
embora.

CAPÍTULO 3 - O vício cobra seu preço


Ficamos nessa rotina por cerca de 6 meses, todas as sextas-feiras, eu ia lá no Forte e
encontrava a Juliana. No começo, eu mais ajudava o trabalho dela, do que qualquer outra
coisa, trouxe depoimentos de outros policiais, gravações de operações, coisa que ela
jamais iria conseguir sozinha.

Poderia ganhar uma nota vendendo isso para qualquer repórter sensacionalista da Globo,
mas preferi dar tudo de graça.

A Juliana era inteligente, nem precisaria de tudo isso para concluir o trabalho genial que
fazia, mas com minha ajuda, a pesquisa dela foi selecionada pela faculdade e recebeu um
investimento que deve dar anos do meu soldo. Ela agradecia constantemente e insistia em
dividir comigo, mas eu sempre recusei, questão de dignidade.

No meu trabalho? Nada de novo, serviço sempre calmo. A coroa não demorou para notar
que eu estava diferente, mas porra, eu sempre chegava com a cara cansada, amarrada e
agora estava até falando manso.

— Guilherme, quando vai me apresentar essa menina?


— Que menina, mãe?
— Você acha que sou boba, rapaz? Tá chegando mais tarde todas as sextas, com cara de
adolescente e cheiro de mulher, ou está apaixonado, ou está aprontando por aí.

É bom ver que ela está melhorando lentamente graças ao esforço que estava fazendo para
manter o tratamento dela. Tanto que achei que não teria problema em economizar um
pouco nos remédios.

Ia passar a dar doses um pouco menores e com minhas economias comprar um par de
alianças para mim e para Juliana. Isso mesmo que você está lendo, eu iria pedir direto em
noivado, nada de namoro e coisinhas de adolescentes.

É óbvio que nos estávamos nos pegando, é óbvio que nos já estávamos fodendo. E rapaz,
aquela loirinha fode demais. Vê se pode eu pedir uma mina dessa em namoro? Namoro de
PM é prostituta, irmão. Fiel mesmo assim você casa!

Era o dia inteiro com ela no Whatsapp, o barrigudo já tinha desistido de dar esporro. Em
compensação, só estava fazendo serviço em lugares de merda. Perto de boteco, trânsito,
guarda em escolas.

Acha que eu estava ligando? Aquela porra daquela bocetinha maldita já tinha me
enfeitiçado completamente.

Completando exatos 6 meses, chamei ela para nosso lugarzinho especial. O nosso lugar.
Onde nós podíamos conversar sobre tudo. O mesmo lugar onde passávamos horas juntos.

Coloquei até a mesma roupa que usei no primeiro dia, com o mesmo perfume vagabundo,
mas que eu tenho certeza que ela adora. Gosto dessas coisas, para mim todas as coisas
possuem um simbolismo muito forte.

Ela chegou, com um vestidinho que acentuava ainda mais as suas curvas, tão bela que
pareciam ter sido esculpidas pelas mãos do próprio Praxíteles. Coisa que nem as balas dos
vagabundos conseguiam fazer, ela fez. Estava nervoso, com as mãos trêmulas.

Conversamos, como de costume, ao anoitecer, o brilho dos prédios começou a refletir no


mar como um espelho.

— Juliana, eu preciso te contar uma coisa.


— Alguma surpresa hoje, amor? Eu percebi que está com a mesma roupa daquele dia… Da
nossa primeira sexta-feira.
— Sim, hoje completam 6 meses desde aquele dia, e darei mais um motivo para torná-lo
ainda mais especial. — Você sabe que fez muito bem para mim nesses últimos meses, é a
única pessoa que me conhece de verdade, a única que eu posso confiar e me abrir sobre
meus demônios. Seria injusto dizer que você não é a mulher que eu quero para minha vida,
para ser mãe dos meus filhos. Também seria covarde ter medo de assumir que te amo…
Quer se casar comigo?

Ela abriu um sorriso tão largo que fez todo meu nervosismo explodir. Quer saber o que é
melhor que ser feliz? Fazer quem você ama feliz.

Porra, aquela carinha dela só não é mais bonita que a que ela faz quando goza, e olha que
eu pararia o tempo para admirar aquela cena.

Quando ela viu os anéis, foi exatamente isso, cobriu o rosto e começou a chorar baixinho.
Me aproximei para abraçá-la e percebi que o choro já não era mais de felicidade…

— Esses dias eu recebi uma proposta muito importante para minha carreira, para o meu
futuro e eu sei que você jamais aceitaria que eu fosse embora, eu estava procurando
formas de te contar, de te explicar, mas eu não consegui.
— Proposta muito importante? Que porra é essa? O que pode ser mais importante do que
eu estar te pedindo em casamento, aqui e agora?
— Olha para nós dois, Guilherme, nos vivemos mundos completamente diferentes… Eu não
posso deixar que você seja um obstaculo para o meu futuro.

Eu sabia que tudo que ela estava dizendo era verdade, o pai dela jamais foi com a minha
cara, a mãe dela sequer dirigia a palavra para mim. Não era nem desconfiança, era
preconceito mesmo, escancarado. Para mim? Foda-se, mas para ela isso era importante.

— Aquele trabalho que me ajudou a fazer, me deu uma oportunidade fazer parte de um
comitê de direitos humanos na ONU, é essa a proposta que recebi. — O voo é depois de
amanhã. Me desculpa.

A voz dentro de mim dizia “Não faz nada, deixa ela ir embora, a culpa é toda tua, pm vai se
iludir com patricinha rapá?”, mas não deu.

Segurei ela pelo braço com tanta força que meus dedos marcaram a pele branca dela,
levantei o dedo na cara dela.

— Sua filha da puta! 6 Meses! 6 Meses ficando comigo, me fazendo acreditar e agora tu faz
essa merda, como se tudo isso não fosse nada?
— Me solta, Guilherme, tá me machucando!
— Você tem noção do que fez com minha vida, sua patricinha de merda? Acha que eu sou
mais um dos seus brinquedos que usa, se diverte e joga fora?
— Guilherme, vai ser melhor para nós dois…
— Vai se foder, Juliana!
— ME SOLTA GUILHERME — Ela berrou, fazendo as pessoas ao redor olharem para a
cena.

Larguei os braços dela e deixei ela ir, naquele momento todo aquele amor que eu sentia por
ela se transformou num vazio consumidor, mas nada disso importava mais, a culpa era
minha.

Semanas se passaram e meu rendimento no batalhão só caia, fui realocado para o


administrativo, mas porra, só a rua podia curar minha depressão e esses filhos da puta me
mandam ficar sentado em uma cadeira? Logo eu, policial destaque, prestes a ser
promovido… Agora? Estava jogando minha carreira no lixo.

Aquele vazio já havia me consumido quase por inteiro e até a única coisa que me impedia
de se matar já não tinha tanta importância para mim. Cada vez mais e mais do meu soldo
era para bancar as bebidas e as putas.

Os remédios da coroa começaram a faltar, mas ela nunca reclamou, batalhadora como é,
nunca reclamaria e resistiu de cabeça em pé.

Certo dia, eu saí do serviço com outros dois irmãos de farda e fomos, ainda fardados, para
um puteiro de luxo ali da região. Eu bancava as putas como se fosse burguês, mal sabem
elas que eu sou um merda e é apenas para isso que meu soldo serve.

Essas minas são fodas, riem, dizem que te amam, no fundo, sabem que tu é só mais um
deprimido que está ali para achar conforto momentâneo. Conforto esse que elas te dão
mediante ao preço…

Foi quando eu estava levando uma delas para o quarto que recebi uma ligação de um
vizinho, atendi o telefone prestes a dar um esporro no filho da puta por estar atrapalhando a
minha foda.

— Qual foi, irmão?


— Sua mãe está no Hospital, vem correndo para cá!!

O vício cobra seu preço.

CAPÍTULO 4 - Bem-vindo ao inferno


Cheguei no hospital já preparado para o pior, me culpando por tudo isso, eu era um merda e
eu sabia disso. Passei direto pelo meu vizinho e fui logo falar com o médico, me identifiquei
com dificuldade, porque já lutava para me controlar e não cair no choro.

Tudo aquilo era culpa minha, se as duas pessoas mais importantes para mim me
abandonassem, eu ia ficar sozinho, e acabar me matando mais cedo ou mais tarde.
— Sua mãe está em estado grave, já pedimos transferência para o HCPM, onde eles vão
cuidar dela por mais tempo. Mas ela precisa da cirurgia com urgência para reverter seu
quadro. — Arregalei os olhos, sem acreditar.
— Ela está viva, doutor?
— Sim, mas não por muito tempo.
— Quanto tempo eu tenho?
— Antes do fim do ano ela precisará estar na mesa de cirurgia, caso contrário será
irreversível.

Naquela hora eu senti que era Deus me dando uma segunda chance, era a voz dele saindo
da boca daquele médico. Dessa vez eu não iria falhar.

— Nessa situação, quanto custa a cirurgia, doutor?


— Nas mãos de um bom cirurgião? Cerca de 300 mil reais.

O valor me acertou em cheio, eu nunca iria conseguir juntar essa grana, pelo menos não há
tempo. Perguntei se poderia falar com ela, mas ela estava de repouso.

Naquele momento eu já não tinha mais dúvidas, andei pelas ruas até o amanhecer. Me
apresentei no quartel com uma carta na mão, um pedido de transferência para o 41º
batalhão. O encarregado me olhou assustado, já que todos nós sabíamos da fama do 41.

Patrulhar as áreas mais perigosas da cidade, complexos do Chapadão e da Pedreira, servir


de apoio em guarnições da Maré, na Penha e no Alemão. O batalhão que mais via
combate, ficando atrás apenas dos esquadrões de elite da polícia militar do estado, como o
Bope.

Pisando lá já conseguia sentir a diferença, saindo de um batalhão da zona sul, onde a gente
só usava revolver e cassetete, no 41 é AR-15, FAL e os caralhos. É tanto equipamento
bélico que tu chega a tremer, achando que tá na Ucrânia lutando contra a invasão Russa.

Me apresentei ao comandante, como dita o figurino e depois fui para minha nova
companhia.

— PUTA QUE PARIU, NÃO ACREDITO… — Alguém gritou um pouco atrás de mim, olhei
para trás e reconheci a cara de um velho amigo. O filho da puta do Yuri, o 01 da minha
turma, promessa da PM, chegou a ser convidado para adentrar no curso de formação do
BOPE, então não era surpresa encontrá-lo aqui no GAT.
— Que porra você veio fazer no Inferno, moleque? — Me perguntou com aquela voz rouca,
me dando um tapa no braço que por pouco não me deixa um hematoma.
— Cansei de ser babá de madame e de gringo, quero brincar de polícia, porra! — Respondi
do jeito que ele gosta de ouvir.

O cara ficou maluco…

— Irmão, quinta vai ter uma operação na Kelson’s, vamos barulhar aqueles vagabundos
filhos da puta, e você vai junto comigo!
— Por mim já estou dentro. — Concordo de imediato.
Nos despedimos e cada um tomou seu rumo. Só tive uma semana para me adaptar aos
padrões do novo batalhão, praticar tiros, exercícios, etc. Passei a semana inteira me
preparando para a operação na favela do Kelson.

Chegando o dia, depois do expediente padrão, me reuni com os GAT, a maioria ex morador
de favela, então sabem bem como funciona a parada dentro do morro. Coloquei um colete,
uma balaclava, preparei a porra do meu fuzil e seguimos em direção ao inferno.

Subimos com duas viaturas, não tínhamos caveirão, nem nada desse tipo para nos dar
cobertura, então a única oportunidade era aproveitar o efeito surpresa.

As viaturas vão até as barrigas feitas pelos bandidos, daí em diante é a pé em fogo aberto
com os vagabundos. Eles até tentam trocar, mas é nessas horas que o treinamento militar
faz a diferença.

Confesso que o nervosismo me fez tremer em alguns momentos, isso fez com que a tropa
progredisse e eu ficasse para trás, com medo de tomar bala.

Mas logo pensei: “Que porra é essa? Já esqueceu das merdas que tu fez? Que tua mãe tá
na cama de um hospital fodida por tua causa? Mete a cara nessa porra!”

Saí do buraco que eu tava e progredimos a cada centímetro da favela, enquanto os


vagabundos fugiam entre as vielas.

Reparei em um dos vagabundos baleados que ainda estava vivo, cheguei no meliante já
com a arma apontada na cara.

— Fala onde tá a grana, que eu te mato de uma vez, sem sofrer.


— Vai se foder, mandado filho da puta! — O marginal lançou, se esforçando para dizer cada
palavra. Enfiei meu dedo no buraco onde ele foi atingido e perguntei novamente.
— Cadê a grana, vagabundo? — Gemendo de dor, ele diz que tá no fundo falso da estante.

Fui lá, abri e me deparei que tinha várias notas de 200, 100, 50. Lógico que era pouco para
o que eu precisava, mas já era alguma coisa. Antes de conseguir guardar o dinheiro,
percebo alguém chegando…

— Que porra é essa, Souza? Tu é bandido agora, irmão?


— Não é nada disso, cara.
— Nada disso é o caralho! — Disse, me enquadrando.
— Eu vi tudo parceiro. Eu te trago aqui para subir o morro e tu vem roubar o dinheiro de
traficante, porra?

Vendo que eu não tinha alternativas, expliquei toda minha situação para ele. Falei tudo,
desde o começo, na maior sinceridade do mundo e de fundo a gente ainda os tiros, mas
com intervalos cada vez maiores.

O Yuri ouviu minha história, refletiu um pouco, ficou um tempo pensando nas minhas
palavras…
— Tu vai me entregar? — Indaguei.
— Não, eu sei que você é um cara bom, que não está fazendo isso porque é um corrupto
de merda, tu sabe que meu sonho sempre foi ser caveira, mas se tu for preso agora tua
mãe vai morrer sozinha lá no hospital, então vamos fazer o seguinte...
— Eu vou requisitar tua entrada no GAT e você vai subir no morro comigo em todas as
operações, dessa forma tu pode ficar com o dinheiro que tu achar e eu não vou te dedurar.

Olhei bem na cara dele, sabia que ele era maluco por isso, cagava para dinheiro, status,
fama, o que ele queria é subir o morro e fazer vagabundo se mijar de medo.

Enfim, que escolha eu tinha? Era minha melhor opção. Apertei a mão dele com firmeza,
olhei nos olhos dele e disse…

— Fechado, irmão.

CAPÍTULO 5 - A morte chegou


Meados de setembro, nesse meio tempo eu já contabilizava mais de 8 operações, 67 kg de
cocaína apreendidos, fuzis a rodo, menores de idade presos e outros vagabundos mortos.
Além disso, fui promovido pelo meu desempenho nas operações, agora eu era cabo.

Já havia separado cerca de 90 mil que arrecadei nas operações, não era muito, mas já
dava para cobrir a entrada da cirurgia da coroa. Mas como na vida nem tudo são flores, é
claro que ela tem que te dar uma rasteira para te mostrar como a realidade é…E ela é dura
e cruel.

Numa manhã de terça, eu, Yuri e mais dois companheiros do GAT estávamos no batalhão e
entra a porra de um coronel na sala, um CORONEL, alguém que a gente só vê em fotos no
mural.

— Nosso batalhão foi requisitado pelo Secretário de segurança pública do estado, que está
impressionado com o desempenho apresentado pela unidade. Os senhores irão ocupar o
complexo do Chapadão, dando apoio direto ao BOPE. A semana será dedicada
exclusivamente para os preparativos para a operação, entendido?
— Sim, senhor! — Gritamos, bravejamos em concordância.
— Descansar, cavalheiros.

Para quem não conhece, o Complexo do Chapadão é uma favela localizada na zona norte
do Rio, em uma posição estratégica que dá à facção que a dominar, a capacidade de lançar
ataques de várias frentes simultaneamente. O que a tornava uma peça de disputa das três
grandes facções cariocas.

Atualmente, o complexo é dominado pelo comando vermelho, a mais violenta das facções.
Eles não se rendiam, trocavam bala e nós adorávamos. Dessa forma, não precisávamos ter
pena ao alvejar qualquer um deles.
A inteligência da polícia estimava cerca de ao menos 70 marginais fortemente armados na
favela, liderados pelo chefe do morro conhecido como Ferrugem, o bandido da vez. Todos
queriam ele preso, se a gente conseguisse pegar esse filho da puta, nossa cara estaria
estampada na mídia e passaríamos a notoriedade das caveiras, era o que o Yuri achava…

Talvez até fosse verdade, mas é dos caveiras que estamos falando.

Depois de uma semana inteira de treinamento, chegou o grande dia. Esperávamos


ansiosamente no pátio do batalhão a chegada dos caveiras. Quando eles chegaram,
fizeram a entrada triunfal que eles tanto gostam. Caveirão, fuzil para todo lado, balaclavas e
máscaras de caveira, farda preta… Porra, não dá para negar, os caras são fodas para
caralho.

No auge do preparo físico, é a elite, e sabem disso. É tipo aquela mulher gostosa, que sabe
que é gostosa e adora provocar.

Já nós? Fomos zoados durante todo o percurso até o Complexo.

“É isso aí, convencional, pronto para subir a favela ao lado de homens de verdade?”
“Os caveiras matam, os convencionais carregam os corpos.”

Isso são só algumas das frases que ouvimos durante o trajeto. E é óbvio que eu e o Yuri
estávamos pouco nos fodendo para isso. Na hora do tiroteio a gente vê quem é quem.

Nessa hora, o sangue já estava quente, é uma sensação complexa. Tu fica nervoso, mas ao
mesmo tempo quer mostrar tudo que tem.

Chegando no chapadão, na calada da noite, para camuflar com a farda preta, as ruas mais
ou menos desertas, o Yuri senta do meu lado e puxa conversa.

— Porra Guilherme, hoje é o nosso dia, irmão, O dia que vamos mostrar do que somos
feitos.

Ele sabia que eu estava nervoso, e apesar de não ser bom com palavras, veio tentar me
acalmar.

— Irmão, é melhor tirar teus problemas da tua cabeça. Lá em cima será tu e tua arma, o
vagabundo e arma dele. Lá não importa o que tu faz, quanto tu ganha, se a bala te acertar,
tu sangrará igual todo mundo.
— Vamo deitar esses filhas da puta, porra! — Falei, em resposta.

Não precisou falar mais nada, os comboios embarcaram em meio a favela, os tiros de
traçante atingiam os caveirões que abriam caminho dando cobertura. Parecia coisa de filme
americano, mas não estamos em Hollywood, aqui é Brasil.

Já descemos do carro dando tiro, progredindo direitinho, como manda o figurino. Igualmente
os caveiras, mas os caras tinham mais estilo, subiam o morro apavorando.
“A morte chegou!”
“Viemos buscar vocês!””
“Não adianta fugir da morte!”

Até nós ficávamos assustados com aquela porra, mas se eles fazem, é porque funciona.

Deixamos a equipe do BOPE enfrentar os pontos fortes do complexo, mandamos metade


do efetivo de apoio ficar na contenção e a outra metade estava comigo e com o Yuri
caçando o dono do morro.

Contornamos o tiroteio mais pesado, até chegar na casa do filho da puta. Uma puta mansão
em meio a favela, bem guardada, cheia de traficante fazendo a guarnição, mas nós eramos
mais preparados, não teve jeito, rendemos cada um deles.

Eu e o Yuri fomos os primeiros a invadir a casa do meliante, lá tinha tudo, piscina, TV de sei
lá quantas polegadas, videogame de última geração, tudo do bom e do melhor, não dá para
dizer que esses filhos da putas não sabem fazer dinheiro.

Subimos as escadas e palmeamos cada canto da casa, só tinha uma porta trancada. Nós
olhamos um para o outro e metemos o pé na porta. Entramos no quarto e achamos o
Ferrugem com uma pistola na mão, mas rendido, com as duas mãos para cima, sem
oferecer qualquer resistência, enquanto nossas armas apontavam direto para sua cabeça.

Atrás dele estava a esposa, a filha, que deveria ter uns 4 anos no máximo, e uma senhora
já idosa, que tentava acalmar a pequena.

Eu não falei nada, nem o Yuri e ele largou a pistola, pôs as mãos na cabeça e esperou que
nós o prendêssemos. Talvez ele achasse que dessa forma nós pouparíamos a família dele.

Abaixei minha arma e o Yuri também, eu jamais mataria ele na frente da família dele, por
mais filho da puta que ele fosse.

De repente, um zunido forte passa do lado da minha orelha, fico desnorteado e me jogo no
chão. Quando levantamos, vimos o que aconteceu.

A porra dos caveiras entrou no quarto atrás de nós e encheu o Ferrugem de bala, o cara
ainda estava agonizando na frente da filha, que estava toda suja de sangue, já dá até para
imaginar essa manchete no jornal, não é?

Levantei pronto para descontar minha irá nesses arrombados, mas o Yuri foi mais rápido
que eu.

— SEUS FILHOS DA PUTA DE MERDA, ESTÃO FICANDO MALUCOS, PORRA? O CARA


JÁ ESTAVA RENDIDO. — Os caveiras riam da nossa cara enquanto enquadravam a família
do defunto ao lado. E o Yuri não iria deixar isso barato, puxou um deles pelo braço e
disse…
— Tá achando que tem algum babaca aqui, caveira? — Os caveiras jogaram o Yuri contra a
parede, e o outro me imobilizou através do pescoço.
— Vocês acham que não sabemos quem vocês são? — Um deles perguntou…
— Um é frustrado, quer ser caveira, mas tem medo de não conseguir. Já o outro é um pobre
coitado que fica roubando dinheiro de traficante.
— Vocês são patéticos. — Outro caveira completou.

O mesmo empurrou no meu peito uma sacola grande, que com toda certeza tinha mais de
100 mil reais dentro. Olhei para o Yuri, que estava jogado no chão e não consegui segurar a
ira.

Consegui todo o dinheiro que eu precisava, mas a que custo?

CAPÍTULO 6 - Agora é Tarde


Depois do incidente no Complexo do Chapadão, viramos as celebridades do momento. O
BOPE, ironicamente, elogiou a “incrível atuação do GAT, que demonstrou extremo
profissionalismo numa operação tão importante quanto aquela”

Eu e o Yuri fomos promovidos a 3º Sargento, nossas carreiras estavam decolando, a


princípio ele não quis aceitar a promoção, principalmente depois da humilhação que
sofremos nas mãos dos caveiras. Mas eu o convenci de que não valia a pena comprar essa
briga.

“Nossa guerra é outra, irmão. Foca nas lutas que podemos vencer. Lutar contra o sistema e
vencer é praticamente impossível.”

Mais cedo ou mais tarde, o inevitável acabou acontecendo. Nós dois ingressamos no curso
de operações especiais do BOPE, com o dinheiro que eu havia arrecado já havia pago a
cirurgia da minha coroa. Graças a Deus e aos cirurgiões, deu tudo certo. O problema foi
contido e ela estava estável, agora era repousar e evitar qualquer tipo de estresse. Em 6
meses ela poderia sair de casa sozinha.

Já era próximo de dezembro quando o curso iniciou, não preciso entrar em detalhes, não é?
Todo mundo já assistiu ao filme Tropa de Elite e tem ideia de como é.

Tem porrada? Tem.


Tem esculacho? Pra caralho.
É uma merda? É, mas foda-se, faz parte do processo. Se fosse para formar princesas, o
curso seria na Disney, não no Rio de Janeiro.

Mas eu percebia que o Yuri estava diferente, meio frio, distante.


— Porra, irmãozinho, eu já nem sei como é viver como uma pessoa normal. Isso é minha
vida. — Para de falar merda, Yuri. — Respondi. — Um dia tu ainda vai encontrar uma mina
para te tirar dessa guerra.

A segunda fase do curso é o que nós estávamos esperando, treinamento tático, diversos
procedimentos que salvariam muitas vidas na época do GAT.

Quando nos formamos, já eramos dois monstros do BOPE, e eles costumam mandar
recém-formados para muitas operações, já que estão com gás após concluir o curso de
formação.

Deixei diversos bandidos no chão, deixei muita mãe chorando, já cheguei em casa várias
vezes sujo de sangue e fedendo a morte. A guerra cobra seu preço, e nem sempre ele é
barato.

Minha vida passou a ser a guerra, fiz da morte minha religião, cansei de entrar com o Yuri
em favela e trocar tiro, e ver a morte de perto me encarando.

“Atentei para, quando lutar com monstros, não se tornar a ti mesmo um monstro, pois se tu
olhas por muito para dentro do abismo, o abismo também olha para dentro de você” Disse
Nietzsche

Já tinha me acostumado com aquilo, aquelas sensações, tudo virou a minha rotina.
Comecei a tratar os convencionais com o mesmo desprezo que os caveiras nos tratavam no
início.

É foda, irmão. Esse é o sistema. Sem querer ser clichê, mas já sendo, isso nunca vai
mudar, sempre vai haver a guerra e aqueles loucos o bastante para entrarem nela. Seja
com uma farda e um distintivo ou na favela, vendendo pó ou pedra para viciados.

Um belo dia, recebo uma chamada de um número desconhecido, atendo e uma voz
feminina fala:

— Me encontra no nosso lugar, no nosso horário.

Eu conhecia aquela voz, era a Juliana. Nem fodendo que eu iria encontrar aquela piranha,
mas o Yuri insistiu.

— Vai, irmão, vai! Ela pode te ajudar com tudo isso!

O Yuri já estava desiludido com tudo, assim como eu, mas pelo menos ele queria me ver
bem. Fervendo de ódio, a contragosto, eu fui.

Chegando no Forte, no mesmo horário, como de costume, ela sequer me reconheceu.

— O que houve com você? — Ela perguntou, assustada.


— Eu disse para você não me procurar, Juliana.
— Guilherme, eu preciso conversar com você!
— Nós não temos nada para conversar, Juliana.
— Sua mãe não está bem, Gui.

Nessa hora eu não me contive, puxei ela pelo braço, encarei ela nos olhos e falei:

— Ela estaria muito bem se você não tivesse me largado para ir bancar a turista na Europa
e dar essa boceta para os maconheiros da PUC. — Ela estava visivelmente chocada, mas
tentou se controlar.
— Você precisa de ajuda, Guilherme, me ouve, por favor.
— Ajuda? Vai se foder, você é parte de tudo isso, Juliana, tudo isso! — Tudo que eu queria
era continuar no meu batalhão e continuar minha carreira em paz, mas depois de você, a
minha vida se tornou um inferno. Agora você, que não sabe de porra nenhuma sobre nada,
aparece aqui para dizer que eu preciso de ajuda? — Percebo seus olhos estão cheios de
lagrimas.
— Me desculpa pelo que fiz com você. — Ela falou, com a voz embargada.
— Nunca imaginei que você iria se transformar nisso… Mas eu voltei, e dessa vez quero
fazer as coisas certas. Você errou e eu também, podemos fazer as coisas certas dessa vez.

Virei minha cara, me recusando a olhar para a vagabunda e ouvir o que ela tinha a dizer.

— Gui… Am… Amor, eu estou grávida.

Nessa hora meu mundo desabou… Filha de uma puta, meu primeiro pensamento foi negar
e xingá-la de todos os nomes que eu conhecia, mas no fundo, no fundo, eu sabia que
aquele filho era meu. Respirei fundo e me controlei.

— Juliana, na última vez que nos vimos, você disse que isso seria melhor para nós, para o
nosso próprio bem. — Hoje sou eu que digo isso para você, não chegue perto de mim. Vou
bancar a criança e todas as necessidades dela, apesar de você não precisar da porra do
meu dinheiro para nada, mas não existe mais nós dois. — Conclui levantando e indo
embora.

Dessa vez a depressão bateu forte, mas eu tinha meu remédio, lembra? Fui à mais um dia
de caça. De operação em operação, chegava em casa ensanguentado, nem o Yuri me
acompanhava mais nas operações.

Fiz meu nome no batalhão, me deram a alcunha de “Super-Homem”, segundo eles, eu


botava a cara no meio do tiroteio como se fosse o homem de aço, sem medo de tomar tiro,
mas adivinha… Eu realmente não tinha.

Quando numa quinta-feira a Juliana me ligou novamente. Atendi a contragosto e ouvi a voz
dela me chamando com urgência para o HCPM. Sem entender nada, fui voando para lá.

Chegando no hospital, fui recebido por ela, consternada, e por um médico.

— O senhor é o Sargento Guilherme Soares da Silva? — Perguntou o doutor.


— Eu mesmo.
— Lamento informar, mas a mãe do senhor faleceu hoje, às 22:48. Minhas condolências por
sua perda. — Ele disse, se retirando antes que eu pudesse pedir por mais informações.

Naquela hora tudo escureceu para mim, a Juliana conseguiu me segurar e me arrastar para
um banco. Eu estava tonto, desnorteado. Eu dei todos os remédios, paguei a cirurgia e
ainda assim perdi a pessoa mais importante da minha vida, o que pode ter acontecido? Eu
falava comigo mesmo, tentando me convencer de que aquilo não era real.

— Sua mãe não podia passar por estresses constantes, Guilherme, o que você acha que
ela sentia ao ver você chegar todo ensanguentado em casa? Você era tudo para ela, mas
ela deixou de ser tudo para você — Sua vida era guerra e morte.

Pela primeira vez em anos desabei em lagrimas, o último fio que me ligava ao mundo havia
partido. Meu único pensamento era estourar meus miolos na mesma noite, mas a Juliana
me levou para casa e não permitiu que isso acontecesse, mal sabia ela que eu já estava
morto.

Ela até tentou… Tentou me fazer feliz, seria uma ótima esposa e com toda certeza será
uma excelente mãe, mas infelizmente a criança vai crescer sem pai, exatamente como eu.

Separei uma quantia considerável para ela, o suficiente para que ela não precisasse mais
trabalhar e se preocupar apenas em educar nosso filho.

Sexta-feira, coincidentemente, dia de operação.

Morro da Pedreira, favela perigosa. Subi com um time extremamente experiente, sem
novatos, sem erros, os caveiras são proibidos de morrer, mas para mim essa lei seria
quebrada nesse mesmo dia.

Subi a porra do morro igual maluco, berrando, como de costume, fazendo vagabundo se
cagar inteiro, eles viam em mim a imagem do próprio Lucifer, trazendo o inferno consigo.

O meu rastro era de corpos baleados, enquanto procurava alguém digno de matar o
“Homem de aço”, aqueles que mais valentões foram os primeiros a tombar.

Nesse momento eu já passava a xingar a Deus, perguntando se nem da porra de morrer eu


seria capaz, se aquilo era uma punição por todos os erros que cometi, talvez fosse.

Até que por um momento as coisas pareciam passar mais lentamente, chovia, mas um calor
incontrolável subiu em meu peito, como se queimasse por dentro…

Foi um tiro certeiro, próximo ao ombro, no meu peito esquerdo, quando olhei para baixo, o
sangue se misturava a minha farda preta e as gotas da chuva. Quando cai, tentei ver o
valentão que conseguiu a proeza de me alvejar.

Um moleque, de 17 anos no máximo, parecia familiar… Ele estava completamente


apavorado, mas eu sorri, satisfeito, enquanto o sangue escorria pelo chão.
Quem diria que depois de tudo isso, eu seria morto por um gancinho qualquer, após me
derrubar, sem dúvidas iria virar considerado na favela, um bandido perigoso, tirar muitas
outras vidas além da minha e manter a chama dessa guerra acesa por mais tempo.

Quando os meus companheiros me encontraram, eu já estava sem vida. Antes de fechar


meus olhos, eu conseguia enxergar minha mãe, a Juliana, os momentos que vivemos
naqueles encontros de sexta à tarde, no nosso filho…

Mas agora é tarde…

Me perdoa, mãe.
Me perdoa, filho.
Me perdoa, amor.

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