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Eduardo

Montilla

Sexta-feira, início da noite. Tá começando a esfriar. Ainda não é inverno, falta um mês, mas
o frio já é dele. Ganhei um moletom de treino oficial do Grêmio. Da Kappa. Veio parar nas
mãos da mãe, por meio de um cara que faz uns serviços lá na igreja. Acho que é isso. Ele é
sogro do Alex Xavier. Acho que o Alex Xavier já saiu do Grêmio. Foi pra Portuguesa. Ou
será pro Sport? Não lembro. Sei que jogava aqui no coloradinho e foi parar no Grêmio há
uns três anos. Era zagueiro e o Cláudio Duarte inventou ele de lateral-direito. Se saiu bem.
O Tite manteve ele ali, e ficou de reserva do Anderson Lima. Estava no elenco campeão da
Copa do Brasil ano passado. Campeão não, tetracampeão, com licença. O único. Amanhã
tem jogo. Estamos bem na Libertadores, mas no Gauchão está complicado. O Grafite não
deslancha. Somos obrigados a ganhar do 15 amanhã. Senão tá fora. Se o Grêmio não levar o
Gauchão, o inter leva. Pior é isso. Não é deixar de ganhar. É ganhar o inter. Foda-se. Vou
colocar o moletom. É bonito, pesado. Vai dar bom pro inverno. Gostei. Obrigado mãe.
Obrigado sogro do Alex Xavier. Quando começar as aulas vou usar ele. Começa segunda.
Esse é o meu último final de semana antes de começar. Tenho que levar a sério. Não tenho
a mínima ideia como seja. Diz que tem trote e tal. Não to afim. Que não me venham com
essa frescurada que o bicho vai pegar pro lado daquela playboyzada. Me darem trote, vai
vendo. Tentem a sorte.

Vou fazer economia. Vou descobrir lá do que se trata. Não faz meio ano que estava no
Ciep, feliz que já estava acabando o martírio escolar e de repente passei no tal do Peies, e
segunda-feira vou estar na Universidade Federal. Muito louco isso. Deve ser diferente do
colégio. Parece que dá pra escolher as matérias. O colégio já não tinha mais mistério, tirava
de letra. As aulas só vão começar agora, quase no inverno porque estavam em greve.
Comecei bem. Não conheço nenhum professor universitário, mas dizem que não ganham
mal. As professoras do colégio já não ganham, imagina os de universidade. Até pouco
tempo me indignava: "o que querem fazendo greve? Choram de barriga cheia. O que sobra
pra mim? Greve serve só pra fazer a gente penar no período que era pra estar de férias,
depois. Cambada de pau no cu". Hoje reconheço que estão no direito deles. Greve é
instrumento de pressão contra o sistema. E eu sou a favor de tudo que for contra o sistema.
O foda é que só rico consegue pressionar o sistema. Eu achava que as professoras do
colégio não ganham mal porque via direto elas chegando com altos carrões. O
estacionamento dos professores era repleto deles. Como se a posse de um carro fosse
balizador de saúde financeira. Professor merece ganhar bem, só acho. A maioria deles, pelo
menos. Não é fácil. Um dia uma guria no pátio da escola comentou algo a respeito, sobre os
professores reclamarem de ganhar mal e tal, mas andarem todos de carrões, e uma
professora que descia de um desses, ouviu. E respondeu "minha filha, posso ter sido burra
pra escolher minha profissão, mas não fui pra escolher o marido". Puta que pariu. A mina
podia ter ficado sem essa.

O ET uma vez deu uma dessas. No tempo do Tancredinho. Fomos colega lá, ET e eu. Faz
uns milianos, na sexta série. Ele ainda não era o ET, era o Julinho. Virou ET depois que a
bebida tomou conta. O julinho não pode beber que se transforma. Enlouquece. Só faz
merda. Pisa no feitiço, vira extra-terrestre. Daí ET. Mas sendo só o Julinho da sexta série
ele já não batia muito bem. Uma vez lá no Tancredinho uma professora passou nas salas
oferecendo uma rifa. Segundo ela, era pra fazer alguma reforma na escola.
Coincidentemente o diretor havia trocado de carro uns meses antes. O ET soltou na lata que
a rifa não era pra reforma nenhuma, e sim pra pagar o carro novo do diretor. Não demorou
muito, a diretora, que era esposa do diretor, apareceu lá na sala e mandou o Julinho repetir o
que dissera. Ele falou que tinha ouvido falar... Tenho que rir. Julinho pegou suspensão.
Podia ter ficado sem essa. E só foi meu colega aquele ano, porque rodou, lógico, e eu
passei.

Julinho agora é colega do João. Estudam de noite, ainda no Tancredinho. Estão no primeiro
do segundo grau, eu acho. Vai ser estranho eu não estudar mais na Cohab. Vou ter que ir
para o centro todos os dias. Deve ser uma sala repleta de filhinhos de papai e de patricinhas.
Não curto esses tipos. Por mim não ia nunca para o centro. Só pra agitar de noite com a
gurizada. Dar portão nos ônibus e tocar o terror nos playboys na frente do Café Brasil.
Agora vou estar dividindo sala de aula com eles. Puta merda. Conheço bem esses tipos.
Tem finais de semana que trabalho na carrocinha de cachorro-quente do seu Zé na frente
das boates, no centro. Viro a madrugada e vejo vários exemplares dessa gente. São
estranhos, parecem que vivem em um universo paralelo ao meu. Inclusive amanhã acho que
vai ter trampo pra mim lá. Tenho que ver isso. Começar a faculdade com um troquinho,
pelo menos, nem que seja pra tomar um cafezinho na hora que for pitar um crivo. Quando
fui fazer a matrícula, vi que tinha uma cantina lá na entrada.

A gurizada ficou surpresa quando soube que eu entrei pra faculdade. Eu sempre falei pra
eles da importância de estudar. Não precisa se matar estudando. Mas no mínimo concluir os
bagulhos. Terminar o segundo grau pelo menos. Colégio é barbada. O pessoal me
respeitava por isso. Não só por isso, claro. Sempre fui ponta firme. Sempre segurei meus
b.o's. Tanto que tenho trânsito livre em todas as bocadas da T. Neves. O ET é um que não
tem. Tem umas quebradas aí que se ele se apresenta, tá feita a merda. Também, ele faz por
merecer. E sabe disso. Eu podia virar a noite na função, ir até altas horas da madruga na
loucuragem, mas no outro dia, de manhã cedo, lá estava eu, indo com a pastinha debaixo do
braço em direção ao Ciepão. Quase sempre ia deixando um rastro de fumaça pelo caminho.
Quando estava muito frio, passava pelo boteco do seu Nabuco e derrubava um martelinho
de conhaque, só pra aquecer o peito. E depois era só cumprir o expediente na aula. Passava
ligeiro, era só não ficar rateando e fazer o que tinha que ser feito. Conseguia atingir o
necessário de presença e estudava para as provas na véspera. Pronto. Às vezes conseguia até
antecipar as férias. Espero que isso funcione na faculdade. Ouvi dizer que lá os professores
não dão tudo mastigado. Tu que tem que correr atrás. E ainda querem aumento de salário.
Tá, parei.

Esse final de semana quero aproveitar pra curtir de boa. Estou indo pra banda. Bolei um
beck e coloquei no bolso da calça. É um fino, mas não perninha de grilo! Aqui não tem
fartura mas também não tem miséria. Vou deixar pra tocar fogo mais pro final da noite, pra
dormir legal. A banda tá embaçada, tá calma mas os homens estão em cima. O joão deve ter
alguma coisa, ele sempre tem. O ET nunca tem. Ele não é muito do beck. Fuma só porque
fumamos perto. Negócio dele é álcool. E pó. Mas pó não é muito frequente, não. Só
ocasiões especiais. Hoje o cardápio vai ser beck e bira. O tradicional. Não vamos ficar na
rua. Combinamos de beber lá na casa do ET. Na frente, na real. Bem de boas. O ET anda
tranquilo, por incrível que pareça. Faz tempo que não apronta. Se ele tivesse naquela fase
que ele entra às vezes não ia ter como ficar bebendo lá. Ia ser só pra arrumar incômodo. E
de incômodo eu tô legal. Quero distância. Como eu disse, a banda anda calma. Mas o diabo
sabe porque é velho, já diz o ditado, e banda muito calma geralmente é sinal que a
tempestade está por vir.

Esse mês faz um ano que o Feijão tomou um pipoco do Fladi. Bem ali, na famigerada rua
do ET. Nesse dia eu não estava. Também, era terça-feira de madrugada. Ainda falei com o
Flad algumas horas antes, fumamos um ali na parada e ele subiu pra T. Neves, onde tudo se
deu. Eu fui pra casa bem antes. Fiquei sabendo pelo Schimitão na rádio, quando tomava
café pra sair pra aula, no dia seguinte. Ouvi meio por cima os nomes e não peguei o
contexto. Fiquei com aquilo martelando minha cabeça a manhã toda. Saí da aula e passei lá
no Feijão pra me certificar. O Binho me atendeu e eu esperei ele me contar, na esperança de
eu ter entendido mal a notícia. Depois de uns minutos de conversa que ele foi me falar: "tu
ficou sabendo de ontem?", como se fosse só um fato corriqueiro. Esse Binho...
Era fato. Depois de alguns pets de samba e outras coisitas más, o Fladi achou que o Feijão
estava conversando demais com a mina dele, a Dogão, apontou o oitão e atirou na coxa. E
detalhe, o oitão era do Vladi e do Feijão. Os dois haviam "adquirido" juntos. Sociedade no
oitão tudo bem, na mulher já era demais.

Hoje a banda anda tranquila. Além do Fladi, tem mais um par de mano guardado. O Feijão
e o Binho estão na clínica de reabilitação, numa fazenda. Um final de semana a cada dois
meses eles saem. Aparecem por aqui, enchem a cara a torto e direito e voltam serenos pra
fazenda. Os manos guardados já não tem esse privilégio. Essa temporada baixaram vários,
fizeram a limpa. Semana passada gravei umas fitas e mandei pro Vigia pela coroa dele.
Também mandei um tênis surrado que eu tinha lá, pra ele bater uma bolinha no pátio. O
Vigia gastava a pelota. Tô pra ver melhor ponta-direita se criar por aqui. Os cruzamentos
dele viam certeiros. Saudade de jogar bola. Mas não tenho mais o mesmo pique. Desde que
quebrei o pé nunca mais fui o mesmo.

Eu não devo nada pra Polícia. Eles bem que tentam com que eu fique devendo. Admito que
sou de fato um fora da lei, pelo simples fato de fumar um. Mas aí me prender e me esquecer
no fundo de uma cela só por causa disso, é o cúmulo da falta de senso dessa justiça porca
deste país retrógrado e hipócrita. Se alguém aqui está errado, na minha opinião, é a lei.

É a lei que joga os usuários (ou apreciadores) da erva à margem da sociedade, que enquanto
enche os tubos de álcool, nicotina, valium, rivotril, Coca-Cola e McDonald, apontam seus
dedos sujos em nossa direção. Aí colocam tudo no mesmo balaio, traficante e usuário.
Assim é natural que acabemos nos envolvendo com outras pessoas que já estão à margem
da lei em função de outros crimes, esses sim, que lesam e prejudicam terceiros. Ou por já
estarem taxados de marginais, acabam enveredando definitivamente para caminhos deveras
tortuosos. E boa parte do meu círculo de amizade, desde a infância, é desse meio. São as
pessoas que acabaram me acolhendo, que me entendem e que não me julgam. Não
compactuo das outras atividades fora da lei que eles pratiquem. Me restrinjo a fazer a
cabeça. Mas também não os julgo. Desde que não seja estupro ou maltrato à crianças e
animais. Nesses casos eu julgo mesmo.

Mas como dizia, nunca tive problemas com drogas. Meu problema é com a polícia. E pra
tristeza e raiva dos brigadianos metidos a Charles Bronson aqui da zona oeste, nunca nesses
meus 18 anos de existência conseguiram me grampear. Nem quando era menor e um pouco
mais inconsequente e mais inclinado a entrar em trocação por aí, o que volta e meia me
obrigava a ter que andar pela noite com algum artefato pontiagudo para minha auto-defesa.
Depender do aparelho de repressão do Estado pra me proteger? Vai vendo. Polícia para
quem precisa de polícia. Me inclua fora. A mim ela não protege. Só reprime.

Já estou inaugurando meu moletom. E nos dia de hoje não sinto necessidade de colocar
nada de segurança pessoal sob ele, na cintura. Saio de casa e cruzo pela rua do João, ainda
na Parque. Ele coloca um e fumamos enquanto trocamos uma ideia. Sobra a ponta que ele
guarda na caixa de fósforos. Cada um liga seu cigarro e vamos atrás do sambão. Sai mais
em conta pegar a cachaça e a Coca-Cola separadas do que pedir pro bolicheiro fazer a
mistura. A bebida sim é droga pesada. Ela é capaz de te tirar de órbita. Testemunhei muitas
vidas degradadas pela bebida aqui pra esses lados. Gente que jogou tudo fora e vive em
função do próximo gole. Os botecos por aqui vivem lotados de tios em fim de carreira.
Costumo dizer que a T. Neves me obriga a beber. Mas pra mim é costume. Ainda não é
vício. O cara se acostuma com aquela função e a bebida acaba sendo um subterfúgio. Uma
hora tenho que dar um tempo. Já foi pior. Cigarro é outra coisa que não faz sentido e
também acostuma. Não tem nada pra fazer, acende um cigarro. Está fazendo alguma coisa,
também acende. A simples ação de tê-lo entre os dedos e eventualmente levá-lo à boca se
torna mecânico. E o pior é que não dá nenhum barato. Samba feito, agora é em direção à T.
Neves, na casa do ET.

O ET mora em uma casa simples da Cohab. Tem uma garagem aberta do lado que além de
guardar o passat vermelho do seu Albery, seu pai (ou seu Popopô, como apelidou o Vigia)
ainda serve de corredor para chegar até a casa da irmã dele, que mora nos fundos com o
marido e filho. Dificilmente vemos os parentes dos fundos quando vamos lá. A casa deve
ser a terceira ou quarta depois da esquina. Por ter bastante árvores na calçada em frente,
quando as luzes do pátio estão apagadas, fica bastante escuro e quem passa na rua só
enxerga que tem gente ali com muito esforço. A casa do ET já foi palco de vários
quadrinhos. Muitas histórias que contamos se passam lá. Se não aconteceu totalmente lá,
começou, passou ou terminou por ali. Até demos um tempo da baia dele. Teve uma época
que estava demais. Era point da malandragem daquela área da T. Neves. E por fim acabava
sendo fácil dos contras encontrarem os desafetos por ali. Tiroteio era mato.

Por respeito aos pais do ET, respeito que ele esquecia completamente o que era quando
bebia um pouco mais, que a gurizada frequentadora do ambiente chegou em um consenso
de não ir mais lá. E assim acabou o suprimento dele. Foi como aplicar sanção a um país
para cortar o seu abastecimento e relações exteriores. Não sendo o ET uma figura muito
bem quista em outros círculos pelo bairro, sem que fossemos vista-lo para beber, ele mesmo
não tinha como ir atrás da bebida, sozinho. Ficou isolado e se obrigou a mudar de postura. E
é só por isso que hoje resolvemos ir beber lá. O ET está sereno, a noite tá fria e os homens
estão fazendo a limpa. E não vai ter junção. São só nós três. Tudo propício para que
transcorra da melhor maneira possível. Sem stress.

O João é tranquilo. Conheço a menos tempo do que o ET, mas também já faz bastante
tempo e tenho mais afinidade, até porque ele não sai fora da casa que nem o ET. Se bem
que ninguém sai fora da casa que nem o ET. Impossível. O João é mais parceria. É possível
dar banda com ele por aí pois ao contrário de uns, e assim como eu, ele não deve nada pra
ninguém. É sério e não leva desaforo pra casa. Também não deixa o cara na mão quando a
coisa aperta. Dá pra confiar. Bebe e fuma pra caralho. Eu não fico atrás. E é um dos poucos
que conheço na banda que compartilha o meu gosto pelo rock pesado. Aliás, conheci o João
assim, quando puxei assunto ao escutar de longe o ruído que vinha do fone de ouvido dele,
uma noite no Oreco. Perguntei o que ele estava curtindo e ele prontamente respondeu que
era Deicide. Porra. Tinha que ser amigo desse maluco. A Partir dali, sempre que um
conseguia um som novo, emprestava para o outro gravar. O defeito do João é ser colorado.
Fanático. Fica putasso quando flauteo ele. Me divirto. Mas acho que esse ano o gauchão
eles levam. Vou ter que aguentar. Aguentar nada, já tenho pronto o "quem gosta de gauchão
é prenda" pra devolver quando vir as piadinhas.

Chegamos. O ET já está ali na frente, fumando um palheiro no escuro. Sóbrio. Como é


diferente o ET sóbrio. Outra pessoa. Pegamos um banco de madeira comprido e sem
encosto e colocamos ali na frente, no lado de fora do pátio, na calçada, encostado no muro.
O seu Popopô foi dar um bico no que estava se passando. Não verbalizou nenhuma objeção.
Nem precisa. A expressão do rosto entrega a contrariedade. Compreensível, depois de tudo
o que ele já testemunhou por ali. Mas hoje vai ser diferente, seu Albery, não se preocupe.
Sem tendel. Estamos pela ordem e progresso. Tudo na Santa Paz. O ET puxa uma extensão
e traz um toca-fita. O João gravou para ele o último CD dos Racionais. Dá o play e regula o
volume de modo que apenas nós onde estamos possamos ouvir. Calibra o copão de plástico
com gravura dos Trapalhões, de alguma promoção antiga da Coca-Cola e abrimos os
trabalhos.

Conversa vai, conversa vem, meio pet já foi, som rolando, eis que de repente surge uma
silhueta na esquina que grita alguns impropérios em nossa direção. Mais especificamente
em direção ao senhor Julinho. Nos questionamos sobre o que se tratava e o destinatário das
ofensas confirmou que o elemento em questão era o Cigano, pois há alguns dias vinha
prometendo ir à desforra contra ele. A desforra exatamente do que, não se sabia, muito
menos o ET, mas o conhecendo como conhecíamos não era de estranhar. Quando
metamorfoseado sob o efeito etílico, era comum o ET sair de sua zona de conforto, ou seja,
do seu pátio, e andar algumas quadras pela cohab onde conseguia invariavelmente agregar
mais algumas inimizades. É um talento nato. Depois de voltar a ser Júlio de novo, ficava
sabendo que fulano ou ciclano queria sua cabeça, mas não lembrava por qual motivo.

Dessa feita não deveria ser diferente. O velho Cigano esbravejava da esquina. De onde ele
estava dificilmente se enxergava quem estaria ali, em nossa posição. Mas deveria saber que
o ET, que era quem lhe interessava, estava. Se fosse algum tempinho atrás, certamente a
essa altura já teríamos levantado e partido pra ignorância. Mas enquanto ele xingava de lá,
falávamos entre nós para não entrar na onda do velho, que daqui a pouco ele parava.
Cachorro que late não morde. Porque ele não caminha alguns metros e vem até aqui?
Enquanto ficar só de gritedo lá da esquina, o problema é dos vizinhos.

Não é tarde da noite. Deve ser umas dez, por aí, quanto muito. O previsto se cumpriu. O
homem cansou, não reagimos e ele sumiu. Ficamos de boa e seguimos no embalo tranquilo
de uma sexta-feira fria. O moletom é quente. O cara usava ele nos treinamentos no
Olímpico, imagina só. Devia dar combate no Ronaldinho nos treinos. Tem um número 18
pintado no lado com uma tinta para tecidos, branca. Até hoje, que me lembre, a Kappa é
quem fez os uniformes mais bonitos que o Grêmio já teve. Aquela camiseta com a qual
vencemos a Copa do Brasil ano passado, em pleno Morumbi, contra o Corinthians, era
linda. Não tinha patrocínio. Odeio patrocínios na camiseta. Poluem. E aí o cara compra,
paga caro, e tem que sair fazendo propaganda para esses capitalistas malditos. Amanhã tem
que ganhar do 15, não é possível. Naquele campinho deles lá em Campo Bom não é fácil.
Acabou o samba.

João pega a bicicleta do ET e vai buscar outro. Volta com o samba e mais um punhado
daqueles pacotes de salgadinhos de dez centavos que ficam presos por um arame sobre o
balcão desses bolichos de vila. Grande João. Quem também volta? Cigano. De novo
gritando lá da esquina. Já estamos com um pet na mente, mas ainda conseguimos conter
nossos instintos mais primitivos. Repetimos os mantras: "deixa quieto / não dá bola / daqui
a pouco ele cansa / mano, não devo, não temo, dá meu copo que já era.." Deu certo. Segue o
baile.

Precisamos falar sobre o Cigano. Não, ele não é um cigano. Pelo menos não mora em
barraca, não dirige caminhonetão e não tem aquele sorriso carregado de dentes de ouro.
Mora ali na outra quadra. Bem na esquina. Por isso que fica nesse vai e vem. Vai pra casa,
dá um tempo, deve ficar matutando o que o ET deve ter feito pra ele, certamente deve estar
tomando um trago também, e volta pra esquina continuando seu protesto, repleto de revolta
e xingamentos. Não conheço muito bem o Cigano. Não tenho intimidade, nunca conversei
com ele, pra falar a verdade mal lembro da cara dele. Sou péssimo fisionomista. Tenho
dificuldade em gravar rostos. Demora um bom tempo para fixar algum na memória. O do
Cigano é um desses. Pode ser que tenha dentes de ouro mesmo, vá saber. Se tiver,
possivelmente estão com os dias contados, tendo em vista a merda em que ele se encontra
atualmente. Mas também nunca tive qualquer problema com ele. Passo seguido ali pela
frente da casa dele, e algumas vezes nos acenamos mutuamente com a cabeça. Respeito.

Desde que me conheço por gente o Cigano mora naquela esquina. Quando era piá andava
bastante naquela rua, pois tinha alguns colegas de aula que moravam nela, com os quais
costumava jogar futebol por ali. O filho mais novo dele era colega da minha irmã no
Tancredinho. Tenho lembranças antigas de vê-lo sentado no pátio, em frente de casa, nos
finais de tarde quando voltava do colégio e ele provavelmente recém havia encerrado
expediente no trabalho. Estava sempre com a camiseta e o boné da firma, com a cuia de
chimarrão em uma mão, o cigarro em outra, em companhia da esposa e as crianças
brincando em volta. Quando vinha com meu colega de aula que era seu vizinho, às vezes
parávamos ali porque a esposa do Cigano puxava assunto. Era uma senhora de uns quarenta
e poucos anos, com marcas de expressão profundas na pele escurecida do sol e ressequida
por ele talvez, uma tatuagem mal feita no antebraço e que nunca consegui identificar o que
era, e quase sempre com uma camiseta antiga do inter. Bastante comunicativa e
extremamente magra. Magérrima. O pito sempre entre os dedos. Enquanto ela conversava
debruçada sobre o muro, as crianças vinham em volta pra dar os seus pitacos no assunto
aleatório, que geralmente girava em torno da dupla Grenal. O Cigano pouco se manifestava,
mas conservava um rosto amigável e por vezes até ria de uma ou outra bobagem que
falávamos. Passava a impressão de ser um casal bem entrosado e de convivência
harmoniosa.

Frequentemente, nessa época, via no pátio do Cigano alguns representantes da velha guarda
da malandragem da T. Neves. Um indicativo de que era bem relacionado. Outras ocasiões,
ao passar por ali, o cheiro doce da erva da paz exalava da casa. Mas nunca vi o Cigano pela
rua. Estava sempre no seu pátio, no seu recanto. Sempre foi uma casa simplória, daquelas
originais da cohab que não sofreram modificações, que não fizeram puxadinho. O terreno é
bem acima do nível da rua e construíram um muro em torno, que parece ser alto visto de
fora, mas que de dentro do pátio dá na altura do peito. Lembro quando construíram aquele
muro. Foram os próprios malandros velhos que levantaram. E um sinal explícito de que não
era só o muro que protegia a casa, é de que mesmo decorridos anos da sua construção, ele
seguia intacto, sem uma pixação sequer, algo raro na vizinhança, ainda mais em um muro
de esquina com tamanho potencial para a expressão artística da gurizada medonha que
adorava rabiscar os muros alheios.
A afinidade do casal Cigano não se restringia às cuias de mate no final de tarde. Eles
compartilhavam o gosto pela bebida. Era sabido. Não se via o marido pelos bares do bairro,
como os outros pinguços conhecidos, frequentadores assíduos destes. Bebiam em casa na
companhia um do outro. Ele era motorista de ônibus na cidade. Na maior empresa de
transporte urbano daqui. Fazia anos. Ouvi dizer que acabou encostado devido ao problema
com o álcool. Pouco tempo depois o baque maior aconteceu. A esposa adoeceu e não muito
tempo depois morreu. As crianças, que já não eram mais tão crianças, acho que o mais novo
devia ter quase 16, já que regulava com minha irmã, foram embora e o velho Cigano ficou
só. Restou estreitar ainda mais os laços com o álcool. Creio eu que ainda não tenha 50 anos.
No máximo 50. Recentemente abandonou os cuidados com o terreno, com a casa e com a
própria saúde e aparência. A barba amarelada pela fumaça está enorme, as roupas sujas e
não encontra motivos para tomar banho. Uma tarde passei por ali e ouvi o debochado do pai
do Diabão, seu vizinho, comentando que o Cigano já andava com a certidão de óbito no
bolso. A malandragem da T. Neves, não mais só a velha guarda, passou a frequentar a casa.
Levavam bebidas, que era o que ele mais prezava, faziam sopões e churrascos e tinham
segurança pra consumirem, e até comercializarem de vez em quando, suas drogas ali, livre
do alcance da polícia. Ouvi falar que certo dia até um banho deram no velho. Mas vaquinha
pra luz e água não fizeram. Foram cortadas. Dentro de casa não tinha mais nada,
praticamente. E assim vivia o Cigano. E foi com esse cidadão que o ET arrumou treta dia
desses.

E mais uma vez Cigano se deslocou uma quadra, de uma esquina para outra, para
novamente repetir o repertório de xingamentos em nossa direção. Agora já estávamos com
um pet e meio de samba fazendo efeito no organismo e aquela função estava ficando
irritante. De repente o velhote inventa de puxar um facão três listas. Os gritos viraram
pedidos para que o ET se apresentasse para ser, segundo palavras dele, picotado. Deu umas
duas batidas com o instrumento nas grades da casa da esquina, que ecoaram rua acima,
antes de riscá-lo pelo chão, levantando faísca dos paralelepípedos. Passou dos limites.
Quase que instintivamente levantamos e partimos, os três, em disparada na direção dele.
Desarmados, bom lembrar. Acabou a paz. Cigano ainda sabia correr, e mesmo com o facão
em riste imprimiu uma fuga que só terminou quando bateu o portão do seu pátio e sumiu no
breu de sua casa.

Na hora não ocorreu que poderia ser uma tocaia para nos atrair até lá, onde os habituais
frequentadores do ambiente estariam à nossa espera e o desenlace seria brutal. Mas se fosse
isso, não chegaria a se realizar, uma vez que ao chegarmos apressados na esquina já tivemos
que voltar em mesmo ritmo, pois o Vectra da Brigada Militar surgiu em sentido contrário e
veio ao nosso encontro. Conseguimos chegar na frente da casa do ET com a viatura no
encalço. Não dava tempo de levantar o trinco do portãozinho de ferro ao lado do muro onde
há pouco estávamos escorados. Mas conseguimos jogar o banco e o aparelho toca-fita para
dentro do pátio antes de saltarmos por sobre o muro. Enquanto ET e eu voávamos para
dentro do pátio, assistimos o carro frear cinematograficamente e ainda sentir o vento das
mãos dos brigadianos nas nossas retaguardas. O longo braço da lei não nos alcançou. Mas
alcançou o João que ficara com alguns segundos de desvantagem e não teve tempo de
adentrar o pátio.

Nós dois protegidos pela inviolabilidade da propriedade privada, assistimos os agentes da


lei revistarem o João do lado de fora sob os nossos protestos acerca da injustiça que se
desenlaçava. Afinal, estávamos bebendo pacificamente quando fomos provocados
reiteradamente por um indivíduo que escapou incólume. Era atrás dele que deveriam ter ido.
Ele estava armado, porra! Ele que estava procurando problema, e bastou um momento
reativo para que nós o encontrássemos. Não adiantava argumentar. E os protestos viraram
revolta mesmo quando o policial achou a caixa de fósforos do João, abriu e se deparou com
a ponta, que tinha mais cheiro que morruga, mas que foi o suficiente para se permitirem
algemá-lo e colocá-lo no banco traseiro do Vectra.

Não acreditávamos no que víamos, e a reação foi começar a xingar compulsivamente aquele
instrumento repressivo desse Estado falido, com suas leis estúpidas de combate às drogas
inspiradas nas políticas norte-americanas dos anos 30. Nesse momento os pais do ET
tentavam em vão nos conter, e os parentes da casa dos fundos assistiam apavorados a mais
esse quadro lamentável sendo pintado. Chegamos próximo ao portão para tentar
deliberadamente agredir, nem que seja verbalmente aquela instituição. Sim. Não
individualizo quem estava por trás daquela farda. Não sei quem são, amanhã não lembrarei
de seus rostos. É todo um sistema o problema. Eles são apenas a personificação de um
aparelho criado para acossar os pobres da periferia e defender a propriedade dos ricos. O
alvo da nossa revolta era a polícia.

Em algum momento, quando o embate ocorria separando os oponentes apenas pelo pequeno
portão de ferro, o brigadiano mais próximo conseguiu segurar pelo meu belo moletom e
tentou me puxar por cima do portão, não conseguindo o intento devido a um soco que
disparei no automático em sua direção, lhe atingindo em alguma parte que não sei definir
onde e o fazendo afastar-se. Vendo a situação crítica, o segundo levantou o cassetete na
direção do ET, que conseguiu puxar o mesmo e nos dar uma cassetete de vantagem, agora
em nosso poder, dentro do pátio.
Uma ordem foi vociferada dos fundos do pátio: "entra!", creio que tenha sido a irmã do ET,
provavelmente ordenando que nós entrássemos para dentro da casa e aceitássemos a prisão
do João. Mas quem prontamente atendeu à solicitação foram os brigadianos. Foi como
autorizar que um espírito maligno adentrasse. E pensando bem, eles não tinham alternativa
a não ser arrumar um motivo para invadir. Já tinham perdido um cassetete. Será que
invadiriam a propriedade de algum rico em circunstâncias semelhantes? Provavelmente não.
Na periferia eles encontram aval e o ambiente propício para agirem a bel prazer.
Inviolabilidade da propriedade privada? Só se for propriedade de rico. Agora quem assistia
o show era o João, já acomodado solitariamente na viatura.

A dupla de brigadianos veio sedenta em nossa direção. Enquanto impedia um de pousar


suas mãos sobre mim, o outro desesperado corria atrás do ET, que já havia escondido dentro
de casa o cassetete. A trocação ocorria de forma equilibrada até que houve o pedido de
reforço e mais um vectra chegou acompanhado do camburão da Patamo. Aí desequilibrou.
Na cena seguinte já estava deitado de bruços com os braços e as pernas virados para trás e
só enxergava fardas verdes em volta, enquanto o ET passava sendo carregado para logo ser
atirado na carroceria do camburão.

Eu fui colocado carinhosamente no banco de trás do segundo vectra. Três viaturas!!! Cada
um de nós ocupando uma. Que luxo. O comboio com os perigosos delinquentes demorou
um pouco para partir porque o cassetete ainda não fora encontrado. Depois de alguns longos
minutos, localizaram embaixo da cama, no quarto do menino ET, e assim podemos dar
início ao passeio noturno pelas ruas santamariense. Meu amigo Tião Galinha sempre falava,
"quem tá na chuva vai se molhar. Quem fuma um direto pela rua, um dia cai. Se tu ainda
não caiu, tu vai cair". Sábio. Eis-me aqui. Caí pela primeira vez. Não faz um ano que
completei os dezoito anos e acabo de sentir o geladinho das algemas e o conforto do banco
traseiro de uma viatura. E agora estou prestes a conhecer a famosa "celinha" da qual já
ouvira tantas e tantas histórias dos meus experientes amigos. O ET já conhecia. João e eu
seremos apresentados. Quando desembarco no centro de operações da Polícia Civil
conduzido pelos meus novos amigos, João já está lá, sentadinho, com uma das mãos presa
em um corrimão na parede, pela algema. Em seguida vem o ET, em uma chegada um pouco
mais tumultuada. Ele fez muito mais amigos. Imagino o quão descontraída foi a viagem,
acomodado na carroceria da Patamo, na companhia de vários soldados. Não demora muito e
chega o seu Albery. Pergunta a mim e ao João se não queremos que avise os nossos pais.
Achamos melhor não. Nos chamam para as perguntas de praxe, verificação dos documentos
e tocar piano. Não faço ideia o que vem pela frente. Agora não adianta mais espernear e
protestar. Fui abatido. Só me resta esperar e ver onde vai dar essa história.
O ET, também com o braço pendurado no corrimão, em uma parede perpendicular à minha,
começa a me chamar. Finjo que não é comigo. Ele não desiste e aumenta o volume. Um
brigadiano manda educadamente ele calar a boca. Ele retruca e ganha uma botinada nas
pernas. Sossega. Alguns minutos e começa de novo. O que ele quer? Porra meu, me deixa
em paz, fica na tua! Começamos a bater boca, o policial intervém e de novo recorre à
pedagogia tradicional da polícia para acalmar meu amigo Extra Terrestre. O tempo passa
devagar. Sexta-feira o expediente é movimentado no C.O. Nosso caso vai ficando como se
esquecido fosse. Viramos meras peças decorativas penduradas nas paredes salmão da ampla
sala. A essa altura já não é mais sexta-feira. Será que daqui é para o presídio? Será que esse
final de semana estarei formando dupla de ataque com o Vigia, como nos velhos tempos,
em um novo campo de futebol? Vou precisar de tênis. Que merda. Estou até preferindo o
trote da universidade. Se ao menos estivesse formado, ganharia uma cela especial. Penso
nos meus coroas. Que desgosto. Mas pelo menos não matei e não roubei ninguém. Nem
com droga me pegaram. Mas ainda tem tempo. Tenho um boladinho aqui no bolso da calça!
Está aqui! Puta que pariu. Ainda dá pra piorar, por enquanto estou no lucro. Vou dizer para
eles não irem me visitar na cadeia. Não quero que passem por essa situação. Eu me viro.

O ET começa a se remexer no banco. Parece que está com coceira. Com a mão que está
solta ele tenta alcançar o bolso de trás da calça, do lado do braço preso. O que esse louco tá
aprontando? Vai dar merda. Os brigadianos ainda não se atinaram. De repente ele consegue
puxar um pacotinho de fumo. Não tô acreditando. Com uma só mão disponível ele abre o
saquinho, tira o columinho, espicha e joga em cima um punhado do tabaco. Eu só observo e
não acredito no que estou vendo. Pra dizer a verdade, acredito sim. É o ET. Enquanto tenta
bolar o palheiro com uma mão só, ele fica resmungando. Que louco de merda. Fica
chamando a atenção, daqui a pouco os caras vão lembrar de fazer uma girica completa na
gente e vão achar o meu beck. O policial enxerga. Se dirige até ele, dá um tapa na mão e o
projeto de cigarro artesanal voa para longe. Acabou a paciência. O brigadiano visivelmente
irritado solta o dezoito do corrimão, levanta-o como se fosse um boneco e o leva em direção
a um corredor, onde depois de alguns instantes ouve-se o barulho da tranca de ferro abrindo
e fechando. O policial volta sozinho. Pronto, ET está na tal celinha e o ambiente ali na
frente fica um pouco mais ameno. Fico olhando o palheiro aberto no chão próximo ao saco
de fumo...

As horas passam, em determinado momento chegam outros companheiros foras-da-lei e


para ceder espaço, João e eu somos convidados a conhecer as outras dependências do órgão
público. Tiram-nos as algemas e somos apresentados às celinhas. Ficamos todos separados.
Pelo menos aqui posso mijar. Levo a mão ao bolso e sinto a presença do beck. Ocorre o
conflito interno: o que faço com isso? jogo na privada? Engulo? Não faço nada. Resolvo
deixar como está. O que é um peido pra quem está cagado?

Não sei que horas são. O ET tenta puxar assunto. Mando ele calar a boca. Ele retruca.
Ameaço ele. João também se irrita. Será que ele não percebe que quanto mais ele encher,
mais esses putos vão se encarnar? Finalmente surge o agente da lei que abre as grades e nos
chama para a frente. Somos orientados a ir até o guichê e recebemos um termo
circunstanciado, impresso em folha de formulário, com a data da audiência no fórum de
Santa Maria. O crime a ser respondido: desacato à autoridade e resistência à prisão. Que
orgulho! Quebrei o monopólio estatal do uso da violência, contra o próprio ente
monopolizador. Só João ganhou o artigo 16, posse de substância entorpecente. Seu Popopô
já havia ido embora há algum tempo. Tomara que não tenha avisado os meus velhos.
Imagina acordar no meio da madrugada com o telefone tocando e a comunicação de que o
filho estava sob custódia do aparelho de repressão do Estado?

Quando a liberdade cantou com a aurora do sábado surgindo, descemos a rampa do Centro
de operações para ganhar a rua dos Andradas. Não havia defronte nenhum carro vermelho
conversível, com uma loiraça na direção nos esperando, como acontece naqueles filmes
adolescentes. Mas havia, exatamente em nossa frente, um pirata sorridente com um
papagaio no ombro. Ele estava no rótulo de uma garrafa de vidro, com tampa sem lacre,
praticamente cheia de um líquido transparente e incolor, repousando sobre a tampa de uma
lixeira de ferro. Sem pensar duas vezes, e sem interromper a caminhada, peguei a garrafa,
abri, cheirei e experimentei. Rum! Foi como um brinde à liberdade! À vida! Ganhamos a
companhia do simpático pirata e com ele seguimos nossa caminhada com destino à
Tancredo Neves. O motivo do belo recipiente com tão distinto conteúdo ter sido
abandonado naquele local é um mistério. E siceramente pouco nos preocupamos em
desvendá-lo. Foi o universo conspirando em nosso favor para corrigir a injustiça que a lei
do homens nos infrigira, pronto. Pouco mais adiante, saquei o baseado do bolso e a
comoção dos outros dois foi imensa. Sim, estive uma madrugada inteira preso no antro
policial com um beck no bolso.

O caminho de volta foi leve e divertido, caminhando, bebendo, fumando e contando


histórias. Bem mais divertido que a ida. Um desfecho bem melhor que a encomenda. Saí de
casa na sexta-feira querendo paz. E é em paz que quero voltar e dormir o sono dos justos.
Hoje é sábado e o Grêmio precisa ganhar. E eu preciso lavar meu moletom. Tenho que ver
com o seu Zé se vai ter trampo pra hoje. E segunda-feira começam as aulas. E que não me
venham com bobagem de trote pro meu lado. Esses playboys não imaginam com quem
estão lidando. Sou fora da lei e já perdi o meu réu primário.
Junho 2021

*história passada em maio de 2002

Em memória de José Mário Cândido da Silva, ou Binho (☆20/07/1985 + 08/01/2005), Júlio


César da Silva, ou ET (☆19/04/1982 +08/12/2018), José Brum, ou seu Zé e Cigano.

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