Jack se debatia na cama. Ele dormia e sonhava profundamente. No
sonho, a janela de seu quarto era engolida pela visão de um tornado lá fora. As nuvens se juntavam em uma grande massa negra e rodopiavam com a força do vento. Jack estava ali, deitado na cama, no mundo real, mas também estava deitado na cama em seu sonho. Mas no sonho, estava de olhos abertos. E contemplava aquela imensidão lá fora, aquela fúria da Natureza, ao melhor estilo O Mágico de Oz. Ele se sentia a Dorothy sendo engolida pelo olho do furacão. Embora o tornado não tivesse, ainda, invadido sua casa. Mas ele sentia que era questão de tempo. E pensava: “O que será que vai acontecer? Será que eu vou morrer? Ou será que ele vai me engolir e eu vou permanecer vivo lá dentro, até ele amainar e me arremessar em algum lugar?”. Seu irmão bate à porta do quarto e ele já não sabe mais o que é ficção e o que é realidade. Seu irmão diz a ele para se levantar e ir até a cozinha. Eles precisam conversar e se preparar para a chegada “das ex”, como ele diz. Jack concorda, seu irmão fecha a porta e, quando ele olha para a janela de novo, a tormenta já passou. Ele veste a primeira roupa que vê no guarda-roupa, que na verdade é só uma bermuda e vai, ainda sem camiseta, até a cozinha. Seu irmão já está lá, enchendo uma xícara de café, derramando o líquido de uma garrafa térmica preta. Jack conhece aquela garrafa térmica, mas acha aquilo estranho, afinal, seu irmão não costuma beber café. Seu irmão, Carlos, diz que seu pai logo chega com mais café. Jack pensa “ok”, mas logo se lembra de que seu pai não mora mais ali. Ele ainda está vivo? Não consegue se lembrar. Por que seu pai viria trazer café para eles? Deixando esses pensamentos de lado, Jack pega uma xícara de porcelana azul-acinzentada do escorredor de louças. Ele pensa em como a xícara, a cor da xícara, lembra aquelas nuvens negras lá fora. E então comenta com seu irmão. Seu irmão faz pouco caso, dá uma risadinha e balança a cabeça. Diz que não viu nuvens negras nenhumas. Não viu tornado nenhum. Aquilo choca Jack; ele insiste no assunto. Seu irmão parece perceber a importância que tem pra ele, e troca algumas palavras a respeito, mas Jack vê que a mente de Carlos está concentrada em outra coisa. Provavelmente, o assunto “das ex”. Então, Jack decide perguntar do que se trata, afinal. Carlos diz que eles devem esperar seu pai. Jack desiste e, deixando o café pela metade na xícara, larga a xícara na pia e volta para seu quarto. Diz para Carlos acordá-lo novamente quando o pai deles chegar. Antes de ir para o quarto, Jack vai até o banheiro, pega sua escova de dentes e começa a escovar os dentes no seco. Sem pasta, sem água. Deita-se na cama, ainda com a escova na boca e adormece. Aqui, ele se dá conta de que é tudo um sonho. Acorda com seu pai batendo à porta. Eles vão até a sala. Seu irmão, Carlos, já não está mais lá. Jack já não diz mais nada. Ele está perdido, confuso. Seu pai aponta para o sofá, Jack se senta, e seu pai, Mário, vai até a cozinha. Jack pensa que ele deve ter ido pegar o bendito café. Mas seu pai some por lá. Logo, sua irmã, Priscila, aparece. Ela se senta ao seu lado no sofá e eles começam a conversar. Jack gosta de Priscila. Eles começam a jogar conversa fora e, por um momento, Jack até se esquece “das ex”, de Carlos, de seu pai, do tornado lá fora. Jack até se esquece de que adormeceu com uma escova de dentes na boca e acordou sem ela. Dado momento, sua irmã se levanta e some. Jack pensa que aquilo está parecendo um maldito teatro e ri sozinho consigo. Fica se perguntando quem é o próximo a entrar em cena. E logo a próxima atriz entra. É sua cunhada. Aline entra na sala, senta-se no sofá ao seu lado e eles começam a papear. É um papo diferente do que ele vinha tendo com Priscila; afinal, Aline também é uma mulher, mas não é sua irmã. Enquanto conversa com ela, sua mente está focada em outro assunto: “ela não é mesmo sua irmã? Afinal, se ela é mulher de meu irmão, é como se ela fosse uma irmã…”. Mas Aline está cheirosa. Acabou de sair do banho, aparentemente. Seu cabelo ainda está molhado e ela veste um roupão. Jack pode sentir o cheiro de sabonete Dove de amendôas, o cheiro do xampu Garnier Fructis, aquele cheiro de frutas cítricas e ao mesmo tempo adocicado, pode sentir o hálito dela, que não é bom, mas também não é fedido. É um aroma de morte, mas de morte doce. Ele fica se perguntando o que há de errado com ele. Então ela se aproxima dele e, de repente, a televisão está ligada. Jack não lembra de haver uma televisão na sala, mas começa a assisti-la mesmo assim. Está passando um filme na televisão. Um filme de comédia. Comédia romântica? Talvez. Ele não se importa. Ele sabe que está passando algo na televisão, mas não consegue discernir o que é e quem está atuando. Então, Aline se aconchega junto a ele. Se recosta no seu ombro e ele, instintivamente, a abraça, por cima do roupão. Ele sabe o que está acontecendo, agora. Por mais que sua mão esteja envolta em sua cintura, ele pode sentir o peso e o contorno dos seios dela em seu antebraço. Então ela diz algo que ele não pode ignorar: “O Carlos não pode saber”. Ele olha pra ela, levemente surpreso, aparentando surpresa mas sem senti-la de verdade, e aproxima o rosto. Inclina-se para beijá-la. Acorda. Está com a escova de dentes presa à bochecha. Baba escorre da sua boca e há uma poça no lençol logo abaixo dele. Alguém está batendo à porta. É seu irmão, Carlos. Seu pai também está ali. Seu pai é Mário. Ou seria André? Ou Silvio? Ou Carter? Ele não consegue se lembrar. Seu pai está vivo? Ele olha para a janela lá fora e há uma imensidão negra. As nuvens se unem no céu e rodopiam como numa dança louca. É um tornado. Tem que ser um tornado. Seu irmão está gritando alguma coisa atrás de si, junto à porta, mas ele não consegue discernir o que é. O barulho do vento está muito alto. Então, ele consegue. — Jack! Jack! Levanta! Temos que sair daqui! Temos que ir para o porão! Porão? Porão? Isso faz sentido. Mas temos um porão nessa casa? Jack decide que não se importa, ele acaba de acordar e não está perfeito para fazer julgamentos. Decide só se salvar daquilo. Ele pula da cama e vê que está só de samba-canção. Ele decide não perder tempo com roupas, arremessa a escova de dentes no lixo do quarto (sem saber porque está fazendo isso) e corre atrás de seu irmão e de seu pai, que disparam no corredor. Eles chegam até a sala e há uma escada encostada no alçapão. Seu pai e Carlos começam a subi-la e Jack vai atrás, perguntando-se: “isso não deveria ser o sótão?”. Mas não se importa. Quando chegam ao pavimento superior, que nada mais é que o pavimento dentro do telhado, Jack percebe como está escuro lá dentro. Não pode enxergar nada. Então pensa em outra coisa e, quando vê, está perguntando em voz alta: — Carlos, o tornado não vai varrer todas essas telhas aqui em cima? Carlos ignora a pergunta e acende um fósforo. O fósforo ilumina tudo ali em cima. E então Jack vê algo que o choca. Aline está presa a um gancho, preso ao topo do telhado, com uma corda amarrada ao pescoço, a cabeça caída sobre o peito. Há sangue em sua camisola branca. Jack pergunta-se, incoerentemente: “Como é que ela se enforcou e tem tanto sangue?”. Seu irmão vira-se para ele, com olhos arregalados, aquele fósforo ainda acesso em frente ao seu rosto, parecendo alguém que está querendo parecer assustador para começar a contar uma história de terror em frente à fogueira: — Jack, por que você fez isso? Jack começa a balbuciar, gaguejar, ele não consegue dar uma resposta coerente. Ele sabe que não fez aquilo, mas, ao mesmo tempo, tem medo de ter feito. Seu pai sumiu. É só ele e seu irmão ali. E a namorada dele, Aline, morta, dependurada por aquela corda. E logo não há nem ela mais. Jack acorda. No susto. Está sentado no sofá. Seu pescoço dói. Agora ele sabe, finalmente, que está acordado de verdade. Não sabe como sabe, mas sabe. É aquela sensação de alívio de finalmente ter se libertado dos pesadelos. Ele tenta erguer a cabeça, se ajeitar, estralar o pescoço para aliviar a rigidez. E então sente um peso no ombro. Aline. Aline está com a cabeça deitada nele. Ele não pode ver o rosto dela muito bem, porque os cabelos negros dela cobrem toda a face. Então ele ergue delicadamente a cabeça dela. Ela está muito pálida. Muito pálida. Quase cadavérica. Há bolsões de olheira amarelados embaixo de seus olhos. Jack olha pra frente. Pra mesinha de centro da sala. Ele percebe com a visão periférica que a televisão está ligada. Está passando alguma coisa ali. O volume está alto. É um filme. O Mágico de Oz? Ele gosta daquele filme, ele pensa, loucamente. A mesinha de centro. Dois copos de plástico grande. Aqueles copos que a gente usa para servir refrigerante. E… Pílulas? Frascos de remédio? Jack grita.