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Copyright © 2019 Bruna Longobucco

Capa: Denis Lenzi


Revisão: Bruna Longobucco
Revisão final e Diagramação: Carla Santos

Edição independente
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blongobucco@hotmail.com

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou duplicada sem


autorização expressa da autora. Os infratores serão punidos na forma da
lei.

Belo Horizonte
2019
Capa
Folha de rosto
Créditos
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Notas
1994

— Gianni, Gianni, adivinha só? A tia Helga vem brincar com a gente
hoje! — disse Pietro assim que entrou no quarto, com um sorrisão
estampado no rosto.
Gianni era a forma como ele chamava o irmão mais velho desde que
aprendeu a falar. Tinham dois anos de diferença e, mesmo querendo chorar,
Giovanni riu de seu entusiasmo. O pai tinha avisado, mais cedo, que depois
do almoço iria para o acampamento, então brincar com Helga estava fora de
questão. Desde os dois anos que ele passava as férias longe de casa. Sabia
que Pietro sentia sua falta, mas ninguém lhe dava opção.
Assim que Pietro reparou na bolsa de viagem com a logo do grupo de
escotismo ao lado da cama, o seu sorriso se apagou.
— Ah, não. Você vai pra lá de novo?
Giovanni deu de ombros.
— Não queria ir, você sabe.
Pietro se aproximou chateado e sentou-se ao lado do irmão. Era um
menino magrinho e batia no ombro dele. Enquanto Giovanni era um
menino forte, de cabelos pretos e olhos claros, Pietro era miúdo, tom de
pele mais morena, cabelos castanhos e os olhos pretos.
— Droga! Eu preferia ir com você, mas eles nunca deixam.
— Eu sei, também queria que fosse comigo. — Ele escovou os cabelos
do irmão num carinho e se deitou na cama olhando para o teto e lamentando
mais um período de férias longe de Pietro.
Pietro então se sentou na cama e baixou a cabeça, com os olhos
marejados. Notando sua tristeza, Giovanni se sentou ao lado dele e falou:
— Ei, qual a palavra mágica de hoje?
— Não tem uma. Estou chateado.
— Não fica. Vai, fala uma palavra mágica pra mim, anda! — Aquela era
uma brincadeira dos dois. Sempre que um chorava, o outro dizia uma
palavra mágica para afastar a tristeza. Foi o avô quem lhes ensinou.
— Hum... sorvete! Serve essa?
— Serve. Então tá, quando eu voltar, a gente vai pedir a tia Helga pra
nos levar numa sorveteria. Combinado?
— Combinado! — exclamou, já se animando.
Os pais entraram no quarto e pediram a Pietro que saísse. O menino
reclamou, mas Ângela o empurrou porta afora.
— Por que não se arrumou ainda? — A mãe perguntou ríspida para
Giovanni.
O menino não respondeu. Olhou para Rogério, sem entender por que o
pai o detestava tanto. Tinha dez anos e nunca recebeu um elogio ou um
carinho por parte dele. E a mãe pouco se importava com ele.
Não queria acampar, queria ficar com o irmão, mas sabia que não
adiantava protestar. Assim que o período escolar terminava, Rogério sempre
o arrastava até o carro e o jogava lá dentro como se fosse um fardo. Chamá-
lo de pai ficava cada vez mais difícil. Talvez fosse mais fácil engolir uma
pedra.
“Vai ser escoteiro para aprender a ser gente”, era o que repetia.
— Mas por que não posso ficar com meu irmão?
— Eu já disse que não é não!
— Vocês não podem me obrigar!
— Vou mostrar se não.
A mãe saiu do quarto enquanto o pai abria a fivela do cinto. Giovanni
nem cabia em si de tanta humilhação e raiva. Mais raiva sentia cada vez que
a mãe se omitia. Não queria chorar, ainda assim não segurava. Rogério não
viu quando Pietro entrou e meteu o cinto sem piedade. O irmão pulou na
frente e levou uma cintada na boca. Ele caiu sobre Giovanni com o impacto.
Seus lábios rasgaram e o sangue começou a escorrer.
Ele se levantou e gritou para o pai, as lágrimas descendo:
— Chega disso, seu monstro!
Rogério olhou para ele assustado e Giovanni entendeu que, embora
nunca tivesse se incomodado com sua dor, bater em Pietro doía nele.
Ver o irmão se ferir por sua causa foi o fim do mundo e ele sabia que
para o pai também foi doloroso, pela primeira vez ele viu através dos olhos
do Pietro o que aquele homem era de verdade: um covarde.
Em Giovanni, ele batia onde ninguém veria. Nas coxas, no traseiro, nas
costas. Nunca demonstrou afeto pelo filho mais velho, mas com o caçula
era diferente. Nunca encostou nele.
Pietro empurrou o pai e saiu do quarto. Giovanni foi atrás dele. Ele
desceu as escadas correndo. Saiu pela porta da frente que estava aberta.
Correram pelo jardim. Ele foi tão rápido que o irmão não conseguiu
alcançar.
O portão estava aberto, porque o motorista esperava para levar Giovanni
ao ponto da excursão.
Os pais saíram de casa atrás dos dois. O motorista também saiu do
carro. Agora corriam todos pela rua. Pietro saiu da rua residencial onde
moravam e seguiu na direção da avenida.
Giovanni virou a esquina a tempo de ver o sinal abrir, mas Pietro não
parou nem quando ele gritou. Estavam a poucos metros e Giovanni não
conseguiu impedir que ele avançasse. Ouviu a freada, o impacto... o menino
foi jogado longe por um táxi.
Giovanni se ajoelhou no chão e se encolheu, tampando os ouvidos. Viu
o motorista se aproximar, depois os pais. Uma multidão se formava no
passeio. Sirenes, ruídos, os pais imploravam por um médico, gritavam por
socorro, mas, pela forma como o corpo dele bateu no asfalto, ele sabia que
o irmão nunca mais voltaria pra casa.
Urla, 2002

Assombra-me a morte e a ideia do nada.


E ainda que eu tente em vão compreender,
assombra-me ainda mais a vida e o
sentido relativo que o tudo possa ter.

Giovanni acordou suando frio. Em algumas noites, os pesadelos com a


morte do irmão voltavam e eram tão reais como se revivesse o momento.
Precisou de alguns anos de terapia para superar o que aconteceu, mas,
quando o sono resgatava o passado, se sentia perdido e vulnerável como
uma criança.
Lavou o rosto com água fria e encarou o espelho por alguns instantes.
Fazia algum tempo que evitava se encarar. Alguém que ignorasse seus
sentimentos poderia até olhar superficialmente e elogiar sua aparência. Mas
por dentro não era tão bonito assim. Tinha muitas mágoas, feridas abertas e
uma dificuldade enorme de abrir o coração.
A pele branca e os cabelos pretos ondulados puxou da mãe. Do avô
herdou os olhos claros, embora os de Gennaro fossem azuis e os dele de um
verde intenso, também puxou sua estatura, um metro e oitenta e cinco. Com
o pai não se identificava nem fisicamente e nem emocionalmente. Rogério
era um homem de estatura mediana, cabelos castanhos e olhos pretos.
Autoritário e explosivo.
Se estivesse vivo, o irmão caçula seria parecido com ele, porque aos
oito anos já havia uma semelhança física impressionante. Pensar em Pietro
o devastava. Sentia culpa e um vazio na alma. Depois que ele se foi, seu
mundo perdeu a pouca graça que tinha. Um soluço escapou da sua garganta,
depois outro e mais outro. Não deu para segurar.
Mais que seu reflexo, via dor e inadequação. Saiu do banheiro
controlando a vontade de socar a parede. A casa dos pais guardava
lembranças que preferia esquecer. A imagem de um menino abraçando os
joelhos no quarto escuro e chorando em cima da cama veio devastadora.
Tentou bloquear o passado. Contou até dez respirando pausadamente.
Ele se desencontrava de tudo ali e o ressentimento ainda sangrava.
Sempre sentiu necessidade de se destacar, de provar alguma coisa a alguém.
Tanto que venceu inúmeras olimpíadas de matemática durante o
fundamental e o ensino médio. Mas o que recebia dos pais era indiferença,
eles nunca lhe deram mérito por isso.
Rogério e Ângela eram dois egoístas. O que faltava neles? Difícil saber.
Eram pessoas de condição, a vida lhes foi generosa na herança e nas
aquisições. Tinham boa saúde, aparência e mal completaram quarenta anos,
mas como o avô costumava dizer: nem sempre o homem é capaz de
enxergar o que tem.
Quando Pietro morreu, o avô lhe levou para morar em Porto da Onça.
Ninguém se importou, mas para ele foi como sair do inferno. Agora estava
nele de novo. O avô morreu, a única família que ele conheceu e sua perda
lhe rasgava ao meio. De novo.
Foi junto dele, na estadia em Porto da Onça, que encontrou amor,
compreensão e exemplo. Teve uma figura masculina que lhe ensinou a ser
homem.
Agora se sentia órfão, mas fosse como fosse a situação, não pretendia
viver com os pais. De jeito nenhum. Preferia ir para o litoral e se tornar um
pescador a ter que viver nos moldes fúteis e arrogantes dos Souza Velasco.
Mais lágrimas. Afundou na cama experimentando um misto de dor e
revolta. Não ouviu a porta abrir, então, ao sentir um toque nos ombros,
virou e se deparou com Helga. Certamente a única pessoa com quem tinha
uma conexão no mundo além do avô. Sua expressão se suavizou.
— Não fique assim, Gianni. — Gianni, era o modo carinhoso como ela
costumava lhe chamar. Antes para imitar Pietro e depois por carinho.
— O nonno está melhor agora. A doença o fez sofrer demais. Não sei
você, mas acredito que quando a gente morre deixa o corpo físico, contudo,
nosso espírito é imortal. Tenha fé.
— Eu também acredito. Sei que ele está livre da dor, tia, eu sei, mas
ainda que exista algo além da vida, não consigo evitar meu sofrimento. Dói
demais. Perdi todo mundo que eu amava nesta vida. Não me veja como um
egoísta, é que além da dor de ficar sem meu avô, porque você sabe que foi
ele que me criou, a ideia de morar com meus pais me desespera.
— Talvez você não precise voltar para esta casa.
Helga sabia das surras e de tudo que aconteceu no passado. Apenas
tolerava os pais de Gianni e só frequentava a casa por conta dele.
— Como? Meu pai certamente vai vender tudo que o nonno deixou em
Porto da Onça. Minha mãe nasceu lá, mas não suporta o lugar.
— Calma, está tirando conclusões precipitadas.
Ela tirou um lenço de papel da bolsa e secou-lhe as lágrimas. Depois,
passou a mão nos próprios olhos marejados e afastou os cabelos pretos e
lisos. O adolescente constatou que os olhos cor de mel lhe transmitiam
serenidade. Além de linda, Helga tia tinha um coração maior que o mundo.
Fala calma, um jeito doce de lidar com as pessoas, estava sempre elegante e
com um sorriso caloroso para oferecer.
— Sabe de alguma coisa que não sei?
— Seu avô fez um testamento. O advogado dele é o Heitor. Lembra-se
dele?
— Claro. É o padrinho da Lila. — A menina era a única filha de Helga.
— Então, o Heitor já ligou e agendou uma reunião com você e seus pais
para a próxima semana. Um dia depois do seu aniversário.
— Puxa, tia, essa história de testamento me dá nos nervos. Coisa mais
horrível. Já imagino o Sr. Rogério, sempre tão frio e calculista, preocupado
com o destino de tudo que pertencia ao sogro. Não é lamentável esse ciclo
da vida em que alguém de posses morre e em pouco tempo se agitam os
herdeiros por causa do que ficou? Honestamente, isso me faz mal.
— Não é bonito, mas a sucessão é necessária. Tudo ainda é muito
recente, mas quando a revolta passar vai entender que alguns procedimentos
são inevitáveis, ainda que dolorosos. Seja como for, querido, não podemos
desprezar o trabalho de toda uma vida. Não quero nada dos outros que me
seja indevido, não cobiço o alheio, mas se algo me é destinado, aí sim eu
aceito de bom grado. Sem dinheiro, não se pode fazer muito do que é
preciso ou desejado.
— Eu sei o que quer dizer.
— Que bom. — E ela o encarou antes de dizer: — Olha, Gianni, a vida
tem seus momentos de dor, de mudanças drásticas e da mesma forma nos
reserva muitas alegrias. Sei que tem seus medos, suas diferenças com seus
pais, mas não deixe o medo ou a mágoa guiar suas atitudes. Pense no
exemplo do seu avô, imigrante italiano, que chegou ao Brasil tão jovem e
não se intimidou com as dificuldades que enfrentou, aprendeu o português,
trabalhou e construiu um império.
— Verdade. O nonno foi um lutador.
— Pois então. O que conta diante dos percalços da vida é a nossa
conduta. Deve ter ouvido isso muitas vezes: “cada um colhe o que planta”.
— Já. Valeu, tia, pelos conselhos, por tentar me animar.
Ela sorriu e se foi depois de lhe dar um abraço. Giovanni viu pelo
menos um aspecto positivo naquele momento triste: faltava uma semana
para o seu aniversário de dezoito anos. Uma semana. E isso significava
muito. Era libertador. Ao se tornar legalmente capaz, ninguém poderia se
intrometer em suas decisões. Nunca mais seria obrigado a viver segundo as
imposições dos pais.
“Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo...”
Tempo perdido – Legião Urbana

Meses depois...

Não era uma opinião isolada, moradores da ilha e turistas concordavam


que o amanhecer em Porto da Onça era como uma pintura.
Coisa linda de se ver... Respirou fundo e encarou o mar. Não se cansava
daquele lugar. Não parava de exaltar sua beleza. Gostava da brisa lambendo
seu rosto. Dos nuances do céu ao receber o sol, que despontava com seus
primeiros raios sobre a água.
Naquele dia, Giovanni acordou bem cedo para se encontrar com um
amigo no píer.
Gostava de caminhar com os pés na areia branca e macia que se
derramava nas dunas. Ver a vegetação rasteira. Tartarugas, gaivotas,
corujas, todos brincavam entre árvores e coqueiros, emoldurados pelo
horizonte quase sempre azul ao fundo e o som do ir e vir das ondas.
E não admirava só os dias de sol. Gostava também dos dias de frio e
vento, que pareciam varrer o desânimo e trazer esperança de um futuro
melhor.
Mesmo no verão, o entardecer trazia a brisa fresca que embalava as
folhas dos coqueirais, varria as pinhas do chão, agitava o mar e a areia.
Sempre que os negócios permitiam que saísse mais cedo da empresa,
permitia-se deitar na rede da varanda do chalé e curtir o visual da prainha.
Helga gostava de implicar com ele:
“Que é isso, menino, já nasceu velho, foi?”
Parecia mesmo um senhor de idade algumas vezes. Nas outras era só
um jovem cheio de cicatrizes e inseguranças, tentando manter o foco e
acertar seus passos no mundo.
Talvez tenha sido a convivência com o avô que o tornou precoce. A
verdade é que só em Porto da Onça sentia-se realmente em casa, o que
gerava conflitos com os pais. Por eles, teria estudado fora e estaria se
preparando para um dia assumir os negócios. Trabalhar com o pai estava
fora de questão. E acompanhar a mãe nos eventos sociais a fim de farejar
possíveis oportunidades de lucro vultoso ou laçar uma jovem herdeira
estava fora de cogitação.
Ao completar dezoito anos optou por cursar administração à distância e
coordenar a indústria pesqueira que herdou do avô, a Cia. Del Mare, de que
Helga agora era sócia. E ainda que aquilo gerasse horas e horas de
discussão em família, não abriria mão da liberdade que conquistou. Foi um
choque quando Ângela e Rogério descobriram que ele tinha herdado 50%
do patrimônio do avô.
Ainda se lembrava da reunião com o advogado. Um estresse, mas não
puderam anular a decisão. Ângela ainda propôs que ele vendesse tudo e
ajudasse o pai na empresa. “Nunca”, Giovanni respondeu. “Para isso, vocês
têm Sabrina”. A irmã mais nova seguia à risca os conselhos da mãe, e
encontrar um noivo adequado às pretensões dos Souza Velasco não seria
difícil, o que afastava qualquer sensação de culpa que pudesse alimentar.

Naquela manhã tinha combinado um churrasco no sítio de um amigo, ao


norte da ilha. Antes que entrasse no carro, a porta do chalé se abriu e o
rapaz olhou para a caseira com carinho. O sorriso logo se apagou, quando
notou que ela não parecia bem. Estava pálida. Os olhos rasos d’água.
— O que aconteceu, Nica?!
— Sua mãe acabou de ligar. Ai, meu Deus! Não sei como te contar...
Ele podia ler na expressão de Nica que algo de muito grave havia
acontecido.
— Por quê? Fale de uma vez, estou preocupado.
— Sua tia Helga... Ela... sofreu um acidente. Filho, sinto muito por ter
que dar uma notícia tão triste — afirmou Nica, as lágrimas descendo pelo
rosto rechonchudo.
— Como assim? Está insinuando que Helga morreu?
— Ela não resistiu.
— Ah não! Isso não pode ser verdade!
— É sim, filho. Infelizmente.
Giovanni sentiu os olhos transbordarem. Embora fosse sua tia por
afinidade, Helga era a última conexão com o termo família que lhe restava.
Casou-se com seu tio aos vinte anos e enviuvou cedo. Ele a deixou rica.
Tinha uma construtora em São Paulo e muitos imóveis alugados. Aos vinte
e oito anos, após quatro anos de luto, conheceu um dos funcionários de
Rogério, Davi, e se casaram. Da união nasceu Lila, a menina estava com
oito anos de idade. Quando o avô morreu, um ano atrás, constatou-se que a
indústria tinha dívidas e ela foi a única que se ofereceu para ajudá-lo.
Injetou o capital necessário e tornou-se sua sócia sem pedir uma única
garantia.
— Meu Deus! E o Davi, a menina?
— Ângela nada falou sobre a menina. Quanto ao casal, nenhum dos
dois sobreviveu.
Nica sentiu o peito apertado ao ver a dor do rapaz e o abraçou
carinhosamente.
— Sei o quanto gostava dela. Ela era mesmo uma pessoa especial.
O embalou por alguns minutos em que Giovanni experimentou uma dor
intensa. Após um tempo, aconselhou:
— Precisa se trocar e viajar para prestar as últimas homenagens.

Giovanni perdeu o chão. Fazia tão pouco tempo da morte do avô e uma
bomba como aquelas desabava sobre sua cabeça. Perder o amparo de Helga
era como perder o chão.
Ao chegar à casa dos pais, num condomínio fechado na cidade de Urla,
interior do Rio de Janeiro, ainda não podia acreditar no que aconteceu.
Respirou fundo. Entrava na sala quando a mãe veio abraçá-lo aos prantos.
Esquivou-se do contato, que não suportava, e ela, obviamente ignorando
sua reação, disse:
— Estamos em choque. Pobre Helga. Tão jovem, tão linda. Não tinha
nem 40 anos, ainda não consigo acreditar em tamanha fatalidade.
— Acho que a minha ficha ainda nem caiu. E a menina, mãe? Estou
aflito por notícias da Lila desde que saí de Porto da Onça. Nica não sabia
dizer nada.
— Sobreviveu. Coitadinha, estava com a babá.
Giovanni respirou aliviado e os olhos ficaram marejados.
— Fique tranquilo. Seu pai já mandou o motorista buscar as duas.
— Que bom.
— Eu fico me perguntando o que vai ser dessa criança, pobrezinha.
— Como assim? — Incrédulo, o rapaz fixou a mãe e a viu esboçar um
sorriso sem graça.
— Veja bem, meu filho, a Lila ficou órfã.
Só de pensar no que passava pela cabeça da mãe, Giovanni se arrepiou.
— Sim, mas somos a família dela, certo?
— O que quer dizer com isso?
— Eu que peço, seja clara comigo, o que está pensando fazer?
— Entregá-la a uma assistente social, claro. Já criei meus filhos. Não
tenho vocação e nem disposição para cuidar de outra criança.
— Isso eu sei melhor do que ninguém. — Por um instante, algo de
vulnerabilidade passou pelos olhos da mãe, mas logo ela ergueu a cabeça e
assumiu a postura altiva. Estava sempre vestida de forma impecável e
maquiada. Como se a elegância formasse uma barreira entre ela e o resto
dos mortais. Ele se incluía nisso. Mesmo assim, ainda não tinha perdido a
capacidade de se chocar.
— Quer dizer que pretende se livrar dela como se fosse um fardo?
— Sejamos honestos, Giovanni. A gente gostava muito da Helga, mas a
bem da verdade, a menina não tem nosso sangue.
— Mas o Davi não tinha ninguém e a Helga só tinha a gente.
— Filho, depois vamos sentar e conversar melhor sobre o que fazer.
Não podemos tomar nenhuma atitude sem consultar seu pai e sua irmã. A
menina tem oito anos. Está grandinha, é verdade, mas pagando bem
podemos até encontrar alguém que queira adotá-la. Quem sabe o padrinho?
— Vou fingir que não ouvi. Seja o que for, não vou deixar minha
priminha ser criada por ninguém que não seja da família.
— Ela não é sua prima.
— Nem sei por que ainda me surpreendo com sua frieza. Estamos
vivendo as consequências de uma tragédia, falando sobre o futuro de uma
criança, uma menina que vimos nascer...
— Você está nervoso com o que aconteceu, é natural. Vá se acalmar!
Depois conversamos.
— Não estou nervoso. Independentemente de qualquer laço de sangue,
ela é minha prima. Afinal, quando precisei, só a tia Helga me estendeu a
mão e nunca vou me esquecer disso.
Irritado com a postura da mãe, subiu as escadas em direção ao quarto
que ocupava quando ali vivia. Um quarto tão impessoal quanto a casa em
que cresceu, pois, embora fosse luxuosa, arejada e espaçosa, tinha o dom de
sufocá-lo. E o pior, aquele quarto estava povoado de lembranças que o
faziam sofrer.
Amigos do casal e colegas de trabalho compareceram ao enterro com
expressões pesarosas. Heitor, amigo de Helga e padrinho de Lila, estava
muito abalado. Giovanni notou o desconforto de Ângela ao cumprimentá-
lo. Ele sabia que os dois cresceram próximos em Porto da Onça, mas por
algum motivo que desconhecia a mãe o desprezava.
Era um sacrifício para os pais permanecerem ali até o fim, mas para
aqueles dois, valia tudo em prol das aparências. Cansado de tanta falsidade,
se despediu rapidamente de Heitor e se afastou.
Não lidava muito bem com a morte, pensou ao deixar o cemitério de
Urla. Já tinha lhe levado Pietro, o nonno e agora Helga. Suas perdas não
foram poucas até ali. Sequer suportava funerais. Não via sentido no ritual
fúnebre. A sepultura lembrava-lhe uma espécie de prisão e almas não
podiam ser aprisionadas. Ainda mais uma alma tão leve e iluminada como a
de Helga. Quando chegasse sua vez, preferia ser cremado, que suas cinzas
fossem atiradas ao mar. Livres sob o céu azul e o frescor da água... No
embalar suave das ondas. O fato é que tinha problemas de se despedir dos
entes queridos. Principalmente em se tratando de duas pessoas tão jovens e
cheias de vida.
Talvez a falta de sentido fosse o estranho sentido de tudo. O silêncio, o
escuro, o frio... Como Helga costumava falar: “tudo se trata de ciclos,
encerramos um e logo vem outro”. Ela acreditava na vida após a morte. No
recomeço de quem desencarna e na evolução de quem ainda pode seguir em
frente e viver com coragem, vontade e atitude. Na oportunidade de quem
pode fazer uma escolha diferente todo dia.
“Quem não muda, Gianni”, dizia ela, “é porque se acomoda. Achar que
não vai dar conta é uma ótima desculpa para os acomodados, que depois
ficam cobiçando o que os outros conquistaram a duras penas. Ver os
resultados é fácil, difícil é obtê-los, então é igualmente fácil invejar o que é
bom. Quem subestima o sucesso do outro subestima a própria capacidade
de vencer na vida, mesmo sem se dar conta disso. Além de ser um enorme
desperdício de potencial.”
Ainda com as palavras da tia na mente, caminhou vagarosamente sobre
a relva verde, até atravessar o grande portão de ferro e fez uma prece pela
alma de todos que ali descansavam.

Giovanni dispensou a oferta do motorista e preferiu percorrer a pé os


cinco quilômetros até a casa dos pais. Ao chegar, os olhos ardiam e sentiu-
se ainda mais só. Helga sempre foi um porto-seguro. No momento, via-se
como nau sem rumo. Que vida é essa que se desfaz de um momento para o
outro e leva com ela nossos planos e sonhos? Porque se tinha uma coisa que
invejava na tia era o alto astral e a capacidade de perseguir os próprios
sonhos. E ele sabia que a vida dela não tinha sido nada fácil.
Não conheceu o pai. Perdeu a mãe pouco depois da morte do primeiro
marido, a quem amou intensamente. Mais do que a Davi, ela lhe confessou
um dia. E, com exceção de sua família, não tinha parentes. Agora, Ângela e
Rogério queriam se livrar da pequena órfã, como se fosse um fardo.
Percorreu o jardim da casa dos pais distraído e não viu quando a pequena
Lila correu em sua direção.
— Gianni, Gianni! — ela gritou, um lampejo de luz em seus olhos.
Ele se voltou ao som da voz infantil. Como a mãe, aquela era a forma
como a menina o tratava. Muito de sua tristeza se foi ao ver seu rostinho
sorridente. Abaixando-se, a pegou no colo e a rodopiou no ar. Não era de
carinhos e abraços, mas Lila era a única pessoa de que não conseguia
manter distância.
— Que saudade de você, coisa linda!
Os cabelos castanhos e lisos emanaram um perfume suave de morango e
seus olhinhos cor de mel transbordaram.
— Gianni, a minha bá disse que a mamãe e o papai agora vão morar no
céu. É verdade?
Ele a colocou no chão, inseguro quanto ao que dizer. Engoliu as
próprias lágrimas, tocando-lhe o rostinho delicado. Puxou o ar
profundamente e segurou suas mãos antes de responder.
— É sim, linda... — respondeu com os lábios trêmulos, era tão difícil
dizer aquilo para uma criança... — Eles se transformaram em estrelas. E
estrelas até podem nos ver, e podemos vê-las, mas elas não podem mais
viver em nosso planeta.
— Mas e eu? Por que me deixaram? Se fiquei sem pai e mãe, quem vai
cuidar de mim agora? — perguntou a pequena, com os olhos marejados.
— Eu vou, pimentinha — ele pensou na seriedade do que afirmou,
jurando a si mesmo que faria de tudo para que Lila continuasse uma criança
espoleta e feliz.
Ela o encarou insegura. Embora fizesse beicinho e chorasse
sentidamente, as palavras de Giovanni a acalmaram.
— Promete?
— Prometo.
— Então tem que beijar seus dedos. Senão a promessa não funciona.
Ele riu e beijou o indicador e o dedo médio, assim como Helga
costumava fazer.

No dia seguinte ao funeral, Heitor, que além de amigo era o advogado


de Helga, foi até a mansão à procura da família Souza Velasco. A mãe de
Giovanni ficou tensa quando ele pediu para falar com o filho.
Giovanni cumprimentou Heitor, que conhecia desde menino.
Era um homem jovial, alto, forte, os olhos verdes e seus cabelos
castanhos e lisos estavam sempre impecáveis. Vestia-se com a elegância
própria da profissão. Era o filho de um pescador que Gennaro apadrinhou
desde o nascimento.
— Desculpe-me por procurá-lo tão cedo. Sei que a perda é recente, mas
quando soube do acidente, fiquei preocupadíssimo com Lila.
— Entendo. Sei o quanto minha tia confiava no senhor.
— Pois é. Mais que seu advogado, éramos grandes amigos e sou o
padrinho da menina, você sabe. Sinto imensamente a morte de Helga. Ela
era admirável. Perdemos uma grande pessoa. Só que mesmo num momento
tão triste, minha afilhada merece toda nossa atenção e cuidado.
— Claro, concordo.
— Vim conversar sobre a vontade de sua tia.
Ele fixou a mãe do rapaz, que o observava como uma águia faminta e
pediu:
— Ângela, será que posso conversar com o Giovanni em particular?
— Se meu filho estiver relacionado ao destino de Lila, não vou me
retirar.
— Tudo bem, Heitor, pode falar na frente dela — assegurou o rapaz.
Heitor clareou a garganta, sabendo que não seria uma conversa fácil.
Fora a animosidade de Ângela com ele, que já vinha de décadas, sabia que
ela não veria com bons olhos a determinação de Helga.
— Era a vontade de sua tia que você cuidasse da menina caso algo lhe
acontecesse. Desde que você completou 18 anos e vocês se tornaram sócios,
ela o nomeou tutor da menor. Tentei argumentar com ela, já que sou
padrinho de Lila, mas ela me disse que se pudesse escolher um irmão para a
menina seria você. Queria que na ausência dela, vocês convivessem, para
um dia administrarem juntos os negócios.
— Não pode ser! — gritou Ângela. — Meu filho ainda é um menino.
— Não legalmente.
— Mãe, por favor, estamos falando do destino de Lila. O que importa
aqui é a vontade de Helga e se esta foi a vontade dela, eu me sinto muito
honrado. É o mínimo que eu posso fazer por alguém tão especial.
— É jovem, solteiro, mal saiu das fraldas, posso saber como vai cuidar
de uma criança?
— Ela e a babá vão comigo para a casa de praia. Se eu cresci em Porto
da Onça, ela também pode crescer lá. Temos escola na ilha e tudo o que
uma criança precisa para ser feliz. Além disso, conto com a ajuda do Heitor
— ao que o advogado assentiu —, Nica e Tarso, esqueceu?
— Nica e o marido são dois ignorantes. E o Heitor é um homem
ocupado.
— Não, Ângela, para Lila sempre estarei disponível. Pode contar
comigo, Giovanni.
— Obrigado. Quanto à Nica e o Tarso, mãe, você mal os conhece. São
duas pessoas a quem quero muito bem. Mais do que funcionários
dedicados, são como família. Se quer mesmo saber, Nica é como se fosse
uma mãe pra mim.
Ofendida, Ângela se retirou. Ao saber da decisão da ex-cunhada,
Rogério ficou furioso. No entanto, nada abalou a decisão de Giovanni. Mas
Ângela não o deixou em paz até que ele lhe entregasse a menina para
estudar em Urla. Ele temia que Lila passasse pelo que ele passou, a
rejeição, mas desde que Pietro se foi Rogério nunca mais encostou o dedo
nele e acabou aceitando a oferta da mãe, por achar que a menina teria uma
criação mais adequada longe dele. Talvez ele tivesse se tornado egoísta
demais para compartilhar a vida com quem quer que fosse.
“Os motivos do amor não têm motivo.”
William Shakespeare

Dez anos depois...

Com os cabelos castanhos e lisos caindo quase até a cintura e um


vestido que mal alcançava os joelhos, Lila correu em direção ao mar. Não
se importou com a areia quente sob os pés descalços ou com a brisa que lhe
desalinhava os cabelos. A sensação era gostosa demais. Só em Porto da
Onça ela conseguia ser leve e livre.
Lá não tinha regras. Não precisava se vestir desse ou daquele jeito.
Nada de sapatos apertados ou roupas desconfortáveis. Nada de penteados
engomadinhos e risadinhas falsas nos eventos sociais tediosos e esnobes
que Ângela e Rogério frequentavam semanalmente. Podia correr, sorrir
espontaneamente, se pendurar nas árvores, comer a fruta no pé e se
lambuzar todinha.
A velha Nica não conseguiu acompanhar o ritmo de Lila e ordenou que
a esperasse:
— Volta aqui, sua abusada!
Mas Lila não se importava e, ainda vestida, se jogou no mar. Brincou
com as ondas por quase meia hora, torturando os nervos da caseira, que a
observava da areia. — Deixa só o Giovanni chegar que eu vou contar
tudinho.
— Por que não nada comigo, Niquinha? — gritou a jovem.
— Era só o que faltava! Uma mulher da minha idade se atirar no mar de
roupa e tudo.
— E qual o problema? Você ainda é uma gatona!
As faces da senhora ficaram rosadas como um tomate maduro. Além
dos seus 50 anos, era cheinha demais para deixar o pudor de lado e se
colocar transparente como Lila estava agora, com o vestido branco colado
ao corpo.
— Vou fingir que acredito.
— Eu não minto.
Nica riu.
— Até acredito, mas ainda continua sendo muito atrevida!
Ainda resistente, Lila deixou o mar. O tecido molhado moldava seu
corpo adolescente, revelando o contorno dos seios perfeitos. Nica constatou
que a menina havia crescido consideravelmente desde as férias passadas.
Era agora uma moça feita. Tão linda quanto Helga foi um dia. Cheia de
curvas e atributos que se tornavam sinal de alerta para ela e o marido, pois a
amavam como uma neta e não queriam que um malandro qualquer se
aproveitasse dela.
— Estou com saudade do Gianni. Faz um tempão que não o vejo. Ele
prometeu cuidar de mim, mas nunca vai me visitar na casa dos pais. E
quando venho para a vila, ficar na casa do padrinho, nem o vejo.
— Você sabe como ele é ocupado. Tudo que ele faz é pensando no
futuro de vocês.
— Eu sei que ele é ocupado, não nego isso, mas percebo que ele evita a
casa dos pais. Toda vez que está com eles discute. Não entendo por que tive
que morar com aqueles dois chatos.
— Não seja ingrata, Lila. Foi a melhor decisão para seu futuro. Dona
Ângela pode ser rigorosa, mas não pode negar que ela te deu uma educação
impecável.
— Eu sei o que me custou essa educação... Perdi minha bá e a
liberdade. E vamos concordar que ela só ficou comigo para me tirar de
perto do Gianni, isto sim.
— É que o seu Rogério implicava que não era certo uma menina morar
na casa de um homem solteiro.
— Como se você e o Tarso não estivessem aqui.
— Nesse ponto, eu te dou razão. Não gostei na época. Você sempre foi
como uma irmã para o Giovanni. São praticamente primos. Infelizmente, as
pessoas maldam.
Lila não gostou nem um pouco da linha de pensamento de Nica.
— Somos nada. Sou apenas um fardo que ele herdou de minha mãe.
Ainda bem que fiz dezoito anos. agora sim eu serei dona do meu nariz.
— Ai, Deus, fico preocupada que faça alguma coisa errada. O Giovanni
lhe quer muito bem.
— Que nada. Aqui eu só atrapalho a vida dele. Lá, eu atrapalho a da
Ângela. Tornar-me uma bagagem indesejada foi o preço que eu paguei por
perder meus pais tão cedo.
Nica se entristeceu. Bem conhecia Ângela e sabia como ela era fria com
Lila. A mesma frieza com que tratou Giovanni a vida inteira. Com Rogério
não era diferente. Se mal enxergava os filhos, quanto mais uma menina que
só recebeu em casa por obrigação.
— A dona cobra arrepia cada vez que eu falo em visitar o filho dela,
parece até que vou engoli-lo.
— Também não gosto que falte ao respeito.
— Corte minha língua, mas não me calo. É cobra sim.
— Pois cortar não corto, mas bem sou capaz de passar sabão na sua
boca — ralhou a caseira.
— Não tenho mais dez anos de idade. Você seria capaz, Niquinha? Não
percebeu que eu cresci?
— O pior é que é verdade, mas não passa de uma menina grande. Minha
menina.
— Te adoro, Nica, mas nem sabão vai adiantar. Eu sempre falo o que
penso.
Lila a abraçou. Depois correu para o chuveiro.
Enternecida, Nica sentiu os olhos marejados. Devido ao peso
avantajado, tinha dificuldades em acompanhá-la, mas cada vez que ela
entrava naquele chalé, a luz parecia voltar. Seu passarinho estava prestes a
sair do ninho, podia sentir. Mesmo atrevida, Lila estava plantada em seu
coração. Ela e Giovanni. Gostava dos dois como se fossem sua família e
tudo o que queria é que fossem felizes.

Lila estava em Porto da Onça há mais de uma semana. Nesse ínterim


havia devorado uns vinte romances e uma quantidade considerável de
tabletes de chocolate meio amargo Lindt, quando Giovanni finalmente
chegou de viagem.
Ao lado da namorada, uma loira de corpo escultural e nariz empinado,
ele saiu da lancha aliviado por finalmente avistar a prainha. Seguia a orla da
praia de mãos dadas com Carolina, um pouco extenuado pelo blá-blá-blá
incansável da loira, quando viu uma turista que se banhava nas
proximidades do chalé. Engoliu em seco. O corpo moreno e curvilíneo era
de tirar o fôlego. Usava uma touca de natação e não conseguia ver a cor de
seus cabelos. O rosto também estava encoberto pelas mãos, o que lhe
atribuía um ar misterioso.
O entardecer tingia o céu de vermelho e, sob os tons do pôr do sol, viu a
banhista sair do mar. Quando ela ganhou a areia, a água escorreu pelo corpo
jovem e bem torneado. E que corpo... era linda. Só de observá-la sentiu-se
atraído. Nem sabia quantas mulheres passaram por sua cama nos últimos
cinco anos, mas há muito tempo que uma delas não despertava seu interesse
de forma tão intensa.
Contrariada, Carolina notou o que lhe prendia a atenção. Mordeu os
lábios de ciúme. Um brilho ferino surgiu no olhar ao perguntar:
— Ei! Posso saber o que está olhando? Ou devo dizer quem?!
— O quê?
Ele então viu a banhista pegar uma toalha para se enxugar e retirar a
touca. Quando ela balançou os longos cabelos castanhos e lisos, reconheceu
Lila boquiaberto. Aquela morena atraente era Lila? Sentiu-se atraído por
ela? Que loucura!
Ainda estava processando a informação sob o olhar confuso da
namorada, quando Lila o viu e, acenando, largou a toalha na cadeira de
praia perto do mar e logo correu em sua direção. Desvencilhando-se de
Carolina, Giovanni se aproximou da jovem confuso.
— Gianni! — exclamou Lila ao se jogar em seus braços. — Que
saudade!
Instantes depois, ele a colocou no chão, um pouco sem jeito por não tê-
la reconhecido. Fixou seus olhos brilhantes e perguntou:
— Quando chegou, Pimentinha?
— Há uma semana.
— E o que deu na sua cabeça para se banhar aqui sozinha?
Lila riu.
— Ai, Gianni, não preciso mais de babá, né? E não seja um estraga-
prazer! Não sou mais criança e até a Nica já percebeu. — Ela sorriu, mas
seu sorriso morreu nos lábios ao encarar Carolina. A loira a fuzilava com os
olhos.
— Claro, já tem 18 anos, certo?
— Certo.
— Recebeu meu presente?
— Sim, obrigada. Eu amei. — Ele tinha enviado um conjunto de
brincos e pulseira de ouro e cristal. Flores, chocolates e um lindo cartão.
Mas não foi vê-la, o que a deixou muito magoada. — Só não gostei da sua
ausência, achei muita falta de consideração.
— Perdão, Pequena. Eu estava na Europa visitando um cliente. Não
pude adiantar a volta. Sabe que exportamos alguns produtos agora, não
sabe?
— Sei. Tudo bem. — Só então cumprimentou a namorada dele, que
sequer disfarçava a impaciência. — Como vai, Carolina? — cumprimentou
entredentes, desgostosa ao encarar a mulherzinha arrogante e pretensiosa
que estava com ele há dois anos.
— Muito bem, lindinha. Melhor impossível. O Giovanni me faz muito
feliz.
— Imagino que sim. Bom, se me dão licença, eu... eu vou pegar minhas
coisas. Preciso muito de uma chuveirada.
Furiosa com a presença de Carolina e o tratamento infantil que
Giovanni lhe dedicava, Lila fingiu um sorriso forçado e, recolhendo suas
coisas da areia, envolveu o corpo com uma canga e se dirigiu ao chalé.
Confuso, Giovanni a observou se afastar. O que deu nele para cobiçar o
corpo de Lila? Que loucura. Mas a verdade é que não a reconheceu de
imediato. Sua protegida estava crescendo rápido demais.
Já em casa, Lila se refugiou no quarto contrariada. “Aquele namoro
estava indo longe demais”, pensou. Antes, Giovanni aparecia com uma
moça diferente a cada temporada, mas aquela lambisgoia metida já estava
com ele há seis meses.
Será que ele não via como Carolina era fútil e petulante? Lágrimas
queimaram seus olhos e odiou sua situação de dependência e a pouca idade.
Sempre gostou de Giovanni. Era a única família que possuía. Logo que
perdeu os pais, passou a morar no chalé com ele, Nica, Tarso e a antiga
babá. Foram os melhores anos de sua vida, mas, assim que completou 12
anos, Rogério e Ângela vieram buscá-la para estudar na cidade, insistindo
que seria melhor para sua educação. Para seu desgosto, Giovanni acabou
cedendo. Assim que se viu com sua guarda, Ângela mandou a babá embora
e transformou sua vida em um inferno. Só podia passear na ilha durante as
férias e ocasiões festivas e pouco visitava o padrinho. Para piorar, à medida
que crescia percebeu que seus sentimentos por Giovanni não eram de prima
e muito menos de irmã, como Nica gostava de dizer. Um dia se deu conta
de que estava apaixonada por ele e já fazia algum tempo que não podia vê-
lo sem sentir as pernas bambas e o coração disparar.
Se aquilo era errado? Achava que não. Não conseguiu evitar. Talvez
fosse resultado da admiração que sentia ou de seus sonhos tolos de se casar
com ele algum dia.
Ele, por sua vez, insistia em vê-la como um bebê. Lila tinha um medo
terrível de que esse sentimento nunca mudasse. Será que ele não percebia
que ficarem juntos era a situação ideal?
Ele administrava seus bens, eram sócios na construtora e na indústria
pesqueira, Cia. del Mare, e ela amava Porto da Onça. Definitivamente,
precisava tomar alguma atitude para que a enxergasse como mulher. Só não
sabia qual. Ainda.
Lembrou-se então de um marcador de página de prata que foi da mãe e
que sempre carregava com ela dentro do diário. O pegou e releu um
provérbio português:

“No amor e na guerra vale tudo.”

Será que aquilo fazia mesmo sentido? Escreveu a citação e a pergunta


no diário. De qualquer forma, ela iria descobrir.
Dois dias depois, viu a oportunidade que esperava para mostrar a
Giovanni que já não era uma criança.
Era verão. O Natal se aproximava. O sobrinho de Tarso veio visitar os
tios. Aos dezenove anos, Túlio encantou-se por Lila. Era um rapaz
charmoso, forte, moreno de cabelos encaracolados. Fizeram amizade
rapidamente e passavam as tardes nadando, caminhando na orla da praia,
andando de barco ou visitando os pontos turísticos de Porto da Onça.
A princípio, Giovanni não deu importância. O que só enfureceu Lila e a
deixou ainda mais determinada a provar que era uma mulher e não uma
criança. Então, certo dia, ele passeava com Carolina de barco quando viu os
dois adolescentes trocando beijos nas dunas em frente ao chalé. Pela
primeira vez, entendeu que Lila tinha crescido e não gostou nem um pouco
do que viu.
— Mas o que significa aquilo?
Carolina o encarou intrigada, arqueando as sobrancelhas em sinal de
alerta. O namorado vivia tomando conta da afilhada e isso começava a
incomodar. Precisava prestar mais atenção na pirralha.
— Ah, Giovanni, é apenas um casal de adolescentes se pegando. Precisa
parar de bancar a ama-seca de Lila. Ela está bem grandinha. Já fez dezoito
anos e você ainda acha que ela tem dez.
— Ela é muito nova pra namorar.
— Eu não acho. Estamos em 2013. Em que mundo você vive? Aliás,
não responda, baby. Eu sei... Como sei que você não é propriamente um
exemplo de boa moral, o que me intriga ainda mais.
— Não estou falando de mim.
— Pois se quer saber, a Lila tem que aproveitar. E vamos combinar que
o Túlio, apesar de pobre, o que é um defeito irremediável, é uma gracinha.
Está mesmo na hora de você cortar o cordão umbilical, querendo ou não.
— Não gosto de ironia, você sabe.
— Falando assim me dá a impressão que está com ciúme dela.
— Ficou louca? Isso é coisa que insinue para mim?
— Pois então se controle e deixe-a em paz. Você não é o pai dela, já não
é mais o tutor e muito menos namorado. Não tem nada a ver com quem ela
beija ou deixa de beijar e muito menos com quem vai para a cama.
Furioso, Giovanni a encarou chocado. “Cama?!”. A ideia de Lila
fazendo sexo o atordoou. Ancorou o barco e, alheio ao que Carolina dizia,
percorreu o trapiche e abordou os adolescentes aos gritos, que se separaram
assustados.
A discussão de Giovanni e Lila se estendeu por toda a tarde. No dia
seguinte, Tarso levou Túlio embora e Lila, apesar de chateada por ter
melado o passeio do rapaz, que usou sem intenção de magoar, não pôde
evitar certa satisfação ao ver que seus planos atraíram a atenção de
Giovanni. Mesmo assim, fingiu ressentimento e não saiu do quarto por toda
a tarde.
Na manhã seguinte, estava no píer quando Giovanni se aproximou e
pediu desculpas.
— Olha, Lila, eu apenas não acho certo que você se envolva com
alguém tão cedo.
— Isso é hipocrisia!
— Não entendi.
— Você se envolve com quem bem entende. Até emplacar esse namoro
com a Carolina, usava o anexo atrás do chalé para seus encontros
pervertidos, acha que eu não sei? Ora, vira e mexe aparece nas colunas
sociais desfilando com uma peguete diferente. Por que eu não posso fazer o
que bem entendo da minha vida?
Por um instante, ele ficou sem palavras. Então respondeu:
— Primeiro, eu sou bem mais velho. Depois, exijo que me respeite. Nós
dois não tem comparação.
— A verdade incomodou?
— Você é muito nova e anda com a língua muito afiada.
— Já completei 18 anos, Gianni, não é mais meu tutor. Por que insiste
em me ver como um bebê? Estou cheia disso.
Só então ele notou que ela estava com uma camiseta fininha e sem sutiã.
Pôde ver perfeitamente os seios redondos de aréolas escuras roçando o
tecido transparente de forma sensual. Sim, ela não era mais criança e aquilo
doía de uma forma que ele não entendia.
— Isso lá é jeito de se vestir?
— Fala sério. Agora vai implicar com as minhas roupas também?
— Está indecente, Lila. Não quero que saia por aí se oferecendo desse
jeito.
— Não pode me impedir de viver.
— É só uma questão de saber o que é melhor pra você.
— Quanta pretensão! Eu não acho que loiras fúteis e siliconadas sejam
o par ideal e mesmo assim você vive provando a espécie.
— Que boca a sua.
Ela o encarou. Ele se inclinou para ela e, apesar de ser mais alto, agora
seus rostos estavam bem próximos. Ela admirou os olhos verdes, os traços
marcantes. Queria afundar as mãos naqueles cabelos que se ondulavam até
a nuca, brincar com a franja que caía de lado, tocar os ombros fortes, mas
não podia. Leu seu desagrado nas linhas de expressão que agora se
formavam ao se sentir desafiado por ela. Como um homem podia ser tão
irritante e tão delicioso ao mesmo tempo?
— Não pode determinar o que é melhor pra mim, Senhor Guardião da
Moral. Eu cresci, não percebe? Tenho vontades...
— É para o seu bem.
— Está me sufocando. Precisa parar de me enxergar como a pequena
órfã.
Ela se virou com raiva, mas Giovanni a seguiu, impedindo-a de se
afastar. Segurando-a pelos braços, fez com que se voltasse para ele e a
forçou a encará-lo.
— O que está acontecendo? Pensei que tivesse carinho por mim.
Ela o encarou, confusa. Viu que ele estava sentido e sua expressão se
suavizou.
— Eu tenho, Gianni, sempre tive, mas não gosto do jeito como me trata.
Até aqui dispôs sobre a minha vida como bem entendeu, mas agora que não
é mais meu tutor, precisa aceitar que cresci e que tenho vontade própria,
além de sentimentos e... desejos.
Ele clareou a garganta com a última palavra que ela disse. Aquilo não
era fácil de engolir.
— Pelo que entendi, você ainda tem mágoa de mim porque permiti que
fosse morar com meus pais. É isso, não é?
— Também, só que... — ela desviou o olhar sem coragem de dizer a
verdade — essa não é minha maior mágoa.
— E posso saber qual é?
“Você não ser louco por mim”, ela queria dizer, mas não teve coragem.
— De todo jeito, agora não vou ter mais que morar em Urla. Aleluia!
Mal posso esperar para ter o meu cantinho.
— Como assim?
— Assim.
— Puxa, Gianni, não pode mais me tratar como uma menininha boba e
descabeçada. Vou repetir até a ficha cair: Eu não sou mais criança!
— E o que isso significa?
— Que pretendo morar sozinha, seguir minha vida assim como você fez
um dia, namorar, beijar e fazer muito sexo, e sem interferência de ninguém,
ouviu?
— O quê?! — Ele não sabia o que o deixava mais tenso. E Lila falando
em fazer muito sexo era algo que não conseguia digerir.
— Você ouviu.
As bocas de ambos estavam perigosamente próximas e o olhar dele
completamente chocado, Lila precisou lutar contra o impulso de provar seus
lábios. Pediu desculpas por falar aquele monte de asneiras silenciosamente,
mas foi o único jeito de se fazer notar. Os centímetros que diferenciavam
1,85m de altura contra os seus 1,62m agora se ampliavam, porque ela quase
encolheu ante a forma quase dolorosa como ele recebia aquela enxurrada de
informações.
Giovanni, por sua vez, a encarava sem saber o que se passava com ele.
Desejo de ser ele a mergulhar naquele corpo pela primeira vez? Não podia
ser. Estava maluco. Só podia estar. Sua alma não tinha se corrompido tanto
ao ponto de sentir-se atraído pela menina que viu crescer, tinha?
Pensou no que a mãe e o pai diriam se soubessem o que se passava com
ele. Ângela, que sempre o culpou pela morte do irmão, decerto o chamaria
de pedófilo, entre outras ofensas. E Rogério apena zombaria dele ao afirmar
o quanto eram parecidos, ainda que ele rejeitasse a ideia. Por Deus! Sentiu-
se repentinamente sujo e a soltou como se sua pele o queimasse.
— Faça como quiser! — Depois se afastou.
Triste, Lila o acompanhou com o olhar. Por um momento, teve a
impressão de que Giovanni iria beijá-la. Só podia estar delirando. Estava
tão apaixonada que passou a imaginar coisas.

Na manhã seguinte, Lila estava saindo do quarto quando viu Carolina


entrar no quarto de Giovanni vestindo nada mais que uma toalha. Ela
costumava ficar no anexo dos hóspedes, mas pelo visto o relacionamento
com Giovanni estava mais sério do que ela pensava. Ouviu alguns risinhos
da loira e, antes que escutasse mais do que queria, se afastou dali.
Saiu para caminhar. Estava frustrada. Tinha planos e por mais que eles
não incluíssem quem ela verdadeiramente queria ao seu lado, estava na hora
de perseguir seus sonhos, pois agora que fez 18 anos e tinha terminado o
ensino médio, não pretendia voltar para Urla. O que precisava era tirar seus
planos da cabeça e concretizá-los.
Quando Tarso passou por ela no velho fusca e ofereceu uma carona,
aceitou satisfeita. Ele estava indo para a vila e ela o acompanhou. Lá viu
algumas casinhas com placa de aluga-se e vende-se. Conversou na
imobiliária e verificou alguns valores. Anotou para consultar o padrinho.
Despediu-se de Giovanni na manhã seguinte alegando que ia passar uns
dias na casa de Heitor, como sempre fazia quando estava na ilha. O
padrinho e a esposa tinham uma casa no vilarejo e Lila adorava o lugar.
Também adorava Ester Fuegos e o sentimento era recíproco. Ela era uma
mulher arrojada, bonita e amável. Heitor a conheceu há uns cinco anos e,
após um ano saindo juntos, a pediu em casamento.
Ester recebeu muito bem a afilhada do marido. Mais nova oito anos do
que Heitor, tinha 40 anos, era uma talentosa pintora e vivia reclusa grande
parte do tempo em seu ateliê. Expunha seus trabalhos na única galeria de
arte de Porto da Onça. Pintava paisagens locais, retratando bem os
costumes, a pesca, a gastronomia e o artesanato da ilha.
Por conta dela, Heitor fixou residência em Porto da Onça e ia ao Rio de
Janeiro duas vezes por semana para resolver pendências do escritório que
tinha em sociedade com o único irmão.
Lila contou para Ester que estava decidida a viver em Porto da Onça.
Para ela, a maioridade chegou como uma alforria. Finalmente teria
autonomia para fazer o que gostava. Lia muito desde pequena, rabiscava
alguns textos e trabalhar com livros era um sonho. Tinha direito à renda da
Del Mare e não se esquivaria de participar das decisões da empresa, mas
não precisaria trabalhar lado a lado com Gianni, tampouco sair de Porto da
Onça.
Outra de suas decisões foi comprar um jipe, pois tinha tirado carteira
assim que completou 18 anos, ainda em Urla. Depois, empolgada, visitou
várias lojas com Ester.
Não demorou e Heitor encontrou um imóvel perfeito para as intenções
da afilhada, estava à venda por um valor excelente, insistiu que ela falasse
com Giovanni primeiro, que já estava ausente da ilha há vinte dias. Como
não conseguiu contatar o rapaz, que não retornou nem uma de suas
ligações, fez o que Lila pediu.
Ester a acompanhou até São Paulo, onde encomendou livros, revistas,
cartões e outros artigos. Comprou tudo que achava essencial para a livraria.
Voltou exultante para a ilha e mal podia esperar para ver seu projeto
concretizado.
Sua nova casa tinha dois andares de 120m2 e ficava de frente para a
praça principal da pequena cidade.
O primeiro andar era da loja e havia uma vaga de garagem. No segundo
tinha um apartamento de três quartos, com suíte, cozinha, área de serviço,
sala de TV e sacada. O imóvel tinha sido pintado e mobiliado recentemente,
tudo de muito bom gosto, então só o que ela precisou foi doar algumas
coisas que não queria. Para a loja, contratou um marceneiro para fazer
alguns armários, o balcão de atendimento e algumas estantes coloridas.
Pagou pela urgência e só levou duas semanas para se mudar, com as
dicas e a ajuda preciosa de Ester ficou top.
Pendurou os exemplares dos seus três livros favoritos na parede atrás do
balcão: “O pequeno príncipe”, “Orgulho e preconceito” e “Romeu e
Julieta”. Ganhou os três da mãe quando fez oito anos, pouco antes de perdê-
la, todos em edições de luxo. Quis emoldurá-los para sempre se lembrar de
que eles eram o motivo pelo qual aquela livraria existia. Para ela, literatura
ia além do lazer e da necessidade de se informar, sobretudo, era uma
paixão.
Estava trancando a loja e admirando a placa recém-instalada, onde
brilhava o nome Livraria da Ilha em alto-relevo, quando Nica chegou. A
caseira soube da loja por Tarso e quis conhecer, ficou encantada com a
rapidez e o capricho com que Lila ajeitou o lugar.
— Está uma lindeza, filha! Fico até emocionada.
— Que bom, Nica. Para ser justa tive muita ajuda do padrinho e da
Ester, foram como anjos para mim.
— Aqueles dois são demais.
— São mesmo.
— Olha, este lugar superou minhas expectativas. Parabéns, eu te desejo
muito sucesso!
Abraçou Nica emocionada.
— Obrigada. Sua opinião é muito importante pra mim. Quero te mostrar
tudo. Meu apartamento fica no segundo andar. Já está mobiliado e é muito
charmoso. Daqui uns dias, eu me mudo pra cá, assim, para trabalhar, só
terei mesmo que descer as escadas.
— Filha, estou surpresa com sua coragem e determinação. Tenho muito
orgulho de você!
— Vamos ver se o Gianni concorda.
— Ele vai concordar. Você começa quando?
— Depois de amanhã.
— Boa sorte, filha. No começo eu não queria que morasse sozinha, mas,
pensando bem, vai ser melhor pra você.
— Vai sim. Independência, Niquinha. É uma palavra maravilhosa pra
mim. Talvez se meus pais estivessem vivos fosse diferente, mas não estão e
faz tempo que não me sinto tão animada.
E sigo seguindo
As ondas invadindo
A sós
Vejo formas e nuvens
Observo o dançar dos sóis
Ao meu lado
As notas
A imagem que guardei
De um tempo
Da água
Da tarde em que te encontrei.

Lila se mudou para o apartamento e dois dias depois abriu a livraria.


Contratou uma moça para ajudá-la em casa duas vezes por semana e
também com a limpeza da loja.
No começo, a responsabilidade de morar sozinha e ter um negócio a
assustou um pouco. Precisava se arrastar da cama depois de pular umas três
funções soneca do celular, pois sentia muito sono, já que sempre estudou no
turno da tarde, mas após uns dez dias ficou mais motivada e passou a
acordar antes mesmo de o despertador tocar.
Havia um colégio no centro da cidade e algumas adolescentes
começaram a se interessar pela sala de leitura que fez na livraria.
Estava trabalhando há duas semanas quando Giovanni voltou para Porto
da Onça e se inteirou das novidades.
Foi imediatamente falar com Lila. Antes de entrar na loja, observou a
fachada em letra caixa e uma charmosa logomarca com uma varinha de
condão sobre um livro. Reparou que havia um cartaz na entrada:

“Contrata-se auxiliar de biblioteca.”

Uma vez no interior ficou surpreso com o capricho e organização. Uma


placa de MDF com fundo branco e moldura dourada estava sobre um
suporte no balcão:

Quando a realidade se tornar insuportável mergulhe nas páginas de um


livro e a vida lhe será mágica por alguns instantes. Parece fantasia, mas ler
é transcender.

A citação era a cara de Lila.


Havia uma sala com sofás de três e dois lugares coloridos, duas cabines
com computadores e uma mesa de frente para as estantes que convidava à
leitura. Um aroma de chiclete no ambiente saía de um difusor. Tudo limpo e
a decoração cativante, com estantes coloridas, os livros separados por
gêneros. Quadros com emojis divertidos enfeitavam as paredes. Duas
gôndolas exibiam os lançamentos e os artigos de papelaria foram dispostos
numa enorme vitrine. Apesar de contrariado com a decisão que Lila tomou,
não podia negar que aprovou o que viu.
A livraria era acolhedora, bem a cara da ilha e tinha potencial, já que
não existia concorrência. Para uma lojista inexperiente, ela se saiu muito
bem na decoração e organização do negócio. Apertou uma campainha no
balcão perto da entrada e Lila, que estava abaixada organizando alguns
documentos no armário, se levantou e o viu. Surpresa, ela abriu um sorriso
de um canto a outro do rosto, mas Giovanni não estava com expressão
amigável e foi logo falando:
— Muito bem, senhorita! Quando Nica me contou sobre a livraria e o
apartamento, eu não pude acreditar.
— Certo. E agora que está aqui aposto que adorou!
— Engraçadinha.
Ela saiu de trás do balcão em L e lhe deu um beijo estalado no rosto,
inundando as narinas dele com seu perfume frutal.
Lila usava uma jardineira jeans e uma camiseta rosa de tecido leve, nos
pés uma sapatilha no mesmo tom da camiseta. O cabelo estava preso num
rabo de cavalo. Vestia por cima da roupa um avental amarelo com a logo da
livraria. Não podia estar mais adorável.
— Estou muito feliz com sua visita, Gianni. Bem-vindo a este pequeno
reduto da sexta arte em Porto da Onça. Minha loja ficou um charme, não
ficou?
— Com uma proprietária tão modesta, o que mais posso dizer?
Ela estava radiante e não se importou com a resposta.
— Ah, eu sei que adorou. Mal posso esperar pra te mostrar minha casa.
Vem comigo!
Empolgada, ela o puxou para fora e fechou a porta da livraria
rapidamente, virando uma placa artesanal branca que também tinha a logo
da loja onde estava escrito “Volto já”.
Depois subiu com ele para o segundo andar, usando a entrada
independente ao lado da loja. Abriu a porta do apartamento ansiosa e fez
uma reverência para que ele passasse.
— Tcharan!
Giovanni explorou a decoração leve e jovial antes de falar o que
pensava. Sala de jantar e TV compartilhavam o mesmo ambiente. De um
lado, uma mesa de quatro lugares e um aparador; e do outro, um sofá
goiaba em L cheio de almofadas coloridas. No chão, um tapete felpudo no
mesmo tom do sofá. Uma TV de 50 polegadas no centro da parede sem fios
aparentes. Abaixo um pequeno hack perolado com um aparelho de DVD e
uma caixa de som. Do lado, um vaso com uma planta ornamental. Uma
porta de vidro separava a sacada da sala de TV.
— Vem, ainda não te mostrei a sacada. Quero que conheça cada
cantinho da minha nova casa.
E ela mostrou tudo muito animada. Giovanni não pôde negar que estava
admirado com seu capricho e bom gosto. Os quartos e banheiros tinham a
mesma decoração leve: o piso claro de porcelanato, móveis claros, todos os
ambientes amplos e ensolarados. Havia aromas de ambientes em todos os
cômodos, cada canto do apê limpo e cheiroso. Uma porta à esquerda da
entrada dava acesso a uma charmosa cozinha, que por sua vez interligava-se
à área de serviço e DCE.
— E então? — perguntou ela enquanto ligava a Nespresso para fazer
um café. Ela pegou duas xícaras vermelhas de cerâmica Le Creuset, que
ganhou de Ester e colocou na mesa. E depois um porta-bolo no mesmo tom
de vermelho. Ao tirar a tampa revelou um delicioso bolo de chocolate.
Quando se deu conta, Giovanni estava tomando café com ela.
— Você tem bom gosto, eu confesso.
— Sabia que ia gostar!
— Eu adorei o café, o bolo, mas preciso ser sincero. Não vim
propriamente para conhecer a loja e a casa. Estou preocupado com você.
— Com o quê?
— E seus estudos, a faculdade? Precisa prometer pra mim que vai voltar
para Urla e ficar lá até se graduar.
A expressão dela foi de frustração total. Mesmo maior de idade e
independente, ele nunca a veria como adulta.
— Sério que veio aqui pra isso?
— Muito sério.
— Sem chance, Gianni. Está me pedindo pra sair do céu e voltar ao
purgatório.
Ele até quis rir, pois sabia que morar com seus pais não era nada fácil.
— Eu só quero o melhor pra você.
— Claro que tenho planos de estudar e se isso te faz feliz estou olhando
uma faculdade à distância, mas só pretendo voltar à casa dos seus pais para
pegar o resto das minhas coisas. Estou feliz aqui. Eu me sinto dona do meu
nariz pela primeira vez e acho que sabe o gostinho disso. Não tem ideia do
que é finalmente ter a minha casa.
— Lila...
— Deixa de ser tão... chato e certinho.
Não aceitava a ideia de vê-la morando sozinha e desprotegida, mas, por
mais que argumentasse, Lila não cedeu.
Ele não parou de insistir para que ela voltasse para Urla e ela não
cansou de rejeitar a ideia. Eles continuaram discutindo cada vez que se
esbarravam e um ano se passou.

Meados de dezembro. Lila agradecia a Deus por ter lhe enviado Tomaz.
Ele era um jovem estudante de biblioteconomia, aspirante a poeta, amante
dos livros, que contratou um mês após abrir a livraria.
Não foi difícil confiar nele. Negro, tinha 1,70m de altura, não muito
magro, bonito por fora e por dentro. Ele usava um cavanhaque
meticulosamente aparado, era muito cheiroso e sua roupa estava sempre
impecável. Sorriso contagiante, a afinidade entre eles foi imediata. Ele tinha
um namorado no Rio, o Jean, filho de franceses e estudante de Medicina.
Era loiro e de olhos verdes, mais alto que Tomaz e com um corpo de
modelo, também simpático, Jean era de família rica e visitava o namorado
dois fins de semana por mês, já que tinha um loft na ilha.
Tomaz era sério, pontual e ótimo filho, o que comprovou quando
conheceu sua mãe e as duas irmãs. Ficou órfão de pai aos 14 anos e foi mais
um ponto em que se identificaram. Ele a ajudava muito e a incentivou a
cursar a faculdade on-line de Letras. Lila logo sentiu que podia confiar nele
e se matriculou antes que ele completasse três meses de experiência. O
primeiro semestre voou.
Além de se sair bem no primeiro período do curso, venderam muito
para o Natal e estava super-realizada, porque a livraria superou suas
expectativas.
Meses atrás trouxe algumas novidades para a ilha, como saraus e
contação de histórias. Também enriqueceu o estoque da loja com biscuits,
lentes, lupas, lunetas, sacolas coloridas, marca-páginas artesanais, além de
artigos de papelaria, dos quais a vila carecia, como cartões e papéis de
presentes, que fizeram sucesso entre os clientes e alavancaram as vendas
dos livros.
Naquela manhã esteve com o contador de Heitor, que viu um futuro
promissor para ela como empreendedora. Ficou orgulhosa. Despediu-se de
Tomaz com inúmeras recomendações, pois ele ainda tinha uma semana de
trabalho pela frente, antes do Natal, já ela precisaria se ausentar uns dias.
Almoçaria no chalé a convite de Nica e depois seguiria para Urla com
Giovanni, para o casamento de Sabrina.
Fazia um tempo que não ia ao chalé. Aprontou-se rapidinho, reforçou o
protetor solar, pegou a mala e dirigiu sentindo o sol e a brisa gostosa do mar
contra o rosto. Assim que estacionou o jipe em frente à varanda de
Giovanni, o próprio veio recebê-la. Vestia-se de forma descontraída, com
uma bermuda de sarja xadrez e camiseta branca. Estava de chinelo.
Ela se perguntou como ele conseguia ficar delicioso mesmo estando tão
à vontade.
Antes que pusesse os pés na areia, ele começou com a lenga-lenga de
que não fazia sentido uma jovem herdeira como ela continuar em Porto da
Onça, quando podia estudar nas melhores faculdades do exterior se
quisesse.
“Cancela o delicioso, ô falta de paciência com esse homem, Meu
Deus!”, Lila pensou, mas respirou fundo e respondeu:
— Oi pra você também, Gianni. Continua adorável como sempre. Posso
saber onde estão suas loiras peitudas antiestresse?
Ele fechou a cara, mas ela nem se importou e respondeu:
— Precisa delas, porque nem me esperou sair do carro e já veio me
doutrinar.
— Engraçadinha. Se estou estressado, a culpa é sua. Ainda não desisti
de ampliar seus horizontes. Tudo o que eu falo é para o seu bem.
— Eu sei, eu sei... Faz um ano que está pegando no meu pé. É que, se
ainda não percebeu, temos ideias diferentes sobre nossos horizontes e o
meu está promissor, colorido, letrado e feliz. Acredita que a Casa da Cultura
me procurou para ser curadora da primeira Feira Literária da Ilha?
— O Carlos — que era o contador do Heitor — esteve lá na empresa
mais cedo e me contou. Também informou que as suas vendas de fim de
ano foram excelentes.
— Então mereço parabéns, não acha?
— Eu nunca duvidei da sua capacidade, Lila, mas saber disso me
deixou mais preocupado, porque agora sei que não vai mais sair desta ilha.
É um desperdício de talento. E é querer muito pouco da vida.
— Querer pouco da vida? Não concordo. Com a minha idade você
também veio pra cá.
Ele baixou os olhos.
— Minha história com a ilha é diferente.
Ela saltou do jipe e respondeu:
— Olha, eu preferia que me abraçasse e me desse um beijo, só isso.
Vamos deixar claro: você não é meu pai e não é mais meu tutor. Insistindo
assim, tudo que vai conseguir é me afastar. Tente entender que estou feliz
onde estou. Não preciso estudar em Harvard pra me sentir realizada. Não
preciso morar em Nova York para ser antenada. Embora, confesso, algum
dia possa fazer algum curso por lá. É que eu amo esta ilha. Amo os livros e
amo... — Ela quase disse amo você, mas não teve coragem. Mordeu o lábio
inferior e murmurou: — Esquece. Não adianta mesmo argumentar com
você. Vou dar um beijo na Nica.
Só então ele notou que ela usava uma calça cigarrete preta e justa e um
top amarelo de tirar o fôlego, porque os seios atraentes praticamente
saltavam para fora daquele pedaço mínimo e indecente de pano. Nos pés
uma sapatilha preta. O único acessório eram os brincos de capim dourado
em forma de notas musicais. Ela estava linda e muito adulta para seu gosto.
Engoliu seco, mas não desistiu.
— Lila, ainda não acabei.
— Mas eu sim.
Ela entrou irritada no chalé. Abraçou Nica, conversaram alguns
instantes. Almoçou pouco, Giovanni tão calado quanto ela, nitidamente
contrariado.
— Vocês têm que viajar daqui a pouco. Sugiro que desamarrem essas
caras. Sabrina vai se casar e precisa de energia boa e convidados felizes.
“I threw a wish in the well
Don't ask me, I'll never tell
I looked to you as it fell
And now you're in my way...”1
Carly Rae Jepsen

Gianni e Lila fizeram a travessia sem trocar mais do que três palavras.
Lila respirou aliviada quando soube por Nica que, na véspera, Carolina se
despediu do namorado para cumprir seu ritual de beleza de dois dias num
SPA. Aturá-la na travessia seria insuportável.
Enquanto avançavam pelo mar, no iPod ela ouvia Call me maybe,
olhando para ele cada vez que o via distraído e distante.
Se gênios das lâmpadas existissem, seu primeiro pedido seria “eu quero
Gianni pra mim”. Não com aquele papo chato de tutor, ela queria o homem.
Aquele 1,80m de masculinidade. Aquele cabelo macio e cheiroso. Aqueles
olhos de tirar o fôlego.
Uma música, duas músicas, uma playlist inteira se foi. Era uma tortura
sentir o cheiro dele, estar ao lado dele e não poder tocá-lo. De uns tempos
pra cá ficar perto dele era quase como levar seu chocolate favorito na bolsa
sem poder provar.
Finalmente a tortura de ficarem tão distantes mesmo estando lado a lado
acabou. O motorista de Ângela os esperava na estação das barcas, com um
Freelander cor de chumbo.
Não demorou e estavam no condomínio de luxo. O casamento da irmã
de Giovanni realizar-se-ia na mansão dos pais, por imposição da própria
Ângela que, frequentemente, fulgurava na coluna social de Urla. Para o
evento, contrataram um buffet renomado e investiram fortunas na decoração
do jardim. Mesas ornamentadas com flores do campo e microrrosas
vermelhas se espalhavam pelo gramado, dispostas ao longo de um palco
improvisado. No centro do palco, sob uma iluminação digna de contos de
fadas, um altar.
Tanto Ângela como Rogério cumprimentaram Lila com um oi frio,
nitidamente desinteressados em sua presença. Foi a governanta, Laura, que
lhe informou que o antigo quarto que ocupava ainda estava à sua
disposição. Ela agradeceu e subiu as escadas para se aprontar sem olhar
para Giovanni, que acompanhava cada um de seus passos atentamente.
Uma hora depois, Lila já havia tomado banho e estava passando uma
loção hidratante no corpo, quando Giovanni entrou na suíte sem bater. Algo
nada usual em seu comportamento. Lila o encarou surpresa. Sua única peça
de roupa era uma calcinha branca de renda e levou um susto, o que a fez
cobrir os seios com as mãos. Não tinha o hábito de trancar a porta e
Giovanni nunca foi de entrar sem pedir licença.
Ele ficou perplexo, sem conseguir desviar os olhos da peça minúscula
de lycra, que mal lhe cobria o sexo. Murmurou um pedido de desculpas
antes de se retirar. Ele bateu a porta e ela pôde ouvi-lo resmungar. O rosto
dela pegou fogo, mas não podia negar que seu constrangimento ao
surpreendê-la praticamente nua lhe divertia.
Quando a ficha caiu, jogou-se na cama rindo gostosamente. Pelo menos,
agora ele sabia que não era mais uma menina, porque se tinha uma coisa de
que se orgulhava era sua comissão de frente.
Acabava de se arrumar quando ouviu a voz de Ângela no quarto ao
lado: o quarto de Sabrina. Curiosa, quis ver a noiva. Gostava de Sabrina,
apesar de criticar sua submissão à vontade da mãe. Era uma moça doce e
gentil, apesar de completamente manipulada. Ao entrar, surpreendeu-se
com o vestido digno de uma princesa.
— Uau! Você está maravilhosa, Bri!
— Obrigada, Lila, mas se soubesse como estou nervosa...
— Não é hora para nervosismos, Sabrina! — repreendeu a mãe.
— Sei que concordei com este casamento, mãe, mas estou insegura...
Eu não sei se está certo, não gosto do Marcos como deveria gostar.
— Não me venha com chiliques. Agradeça a Deus por se casar com um
homem como o Marcos. Ele é rico, bonito, e o mais importante, escolheu
você como esposa. Esse negócio de amor não passa de ilusão. Não existe. A
gente pode perder uma vida inteira esperando uma cumplicidade que não
vem, o que só resulta em frustração. Amor só serve para nos fazer baixar a
guarda e causar estragos. Acredite, filha, quando a gente se apaixona, a
única coisa que faz é meter os pés pelas mãos.
Lila não concordava, mas não podia abrir a boca sem comprar uma
briga com a “Malvadângela” e não era o momento. Sempre achou Marcos
muito frio e grosso com a noiva. Como não queria guerra, forçou-se a
fechar a boca.
— Mesmo assim me sinto péssima. Não foi o que eu sonhei.
— Ah, claro, posso imaginar com o que sonhou. Deixe de ser imatura.
Não acha tarde demais pra me falar esse tipo de coisa?
— Desculpa, não posso evitar. Estou me casando porque sei que é a sua
vontade e a do papai, mas parece tão errado, não estou feliz. Não consigo
pensar em como será minha vida a dois. E na intimidade? Como vou
suportar?
— Bobagem. Sua vida será como a de todas as mulheres de nossa
família. Uma vida de requinte e conforto, um marido fino e galanteador.
Sonhos são sonhos, querida. Um bom casamento é tudo na vida real.
Depois, o Marcos é sócio do seu pai. Estamos em crise, você sabe. Não
podemos perder a garantia de um genro como ele. E na intimidade, lembre-
se, não importa o que você sente, mas o que demonstra sentir.
Contrariada e completamente enojada com o discurso de Ângela, Lila
sentiu pena de Sabrina. Sabia que ela só teve um amor na vida, porque ela
mesma contou. O filho do ex-jardineiro, seu Nestor. Alberto era um rapaz
negro, bonito, porte atlético, humilde e muito inteligente. Infelizmente, um
dia Nestor abandonou o emprego sem deixar rastro e Alberto sumiu sem dar
qualquer satisfação para a namorada. Sabrina ficou arrasada.
O que Lila não sabia é que Ângela os flagrou certa manhã. Não fez nada
num primeiro momento. Então, sem alarde, obrigou o empregado de anos a
se mudar para uma fazenda em Minas Gerais, propriedade que herdou da
família e que o irmão mais novo administrava para ela, onde ele prestaria o
mesmo serviço. Quando ele alegou que não queria sair de Urla, ameaçou
toda sua família, e deixou claro que nunca mais Alberto poderia se
aproximar de Sabrina novamente. Destacou dois seguranças para
acompanhá-los na mudança e o pobre jardineiro não teve escolha.
Sem desconfiar que a mãe descobriu seu namoro, Sabrina nunca soube
por que o rapaz sumiu sem se despedir. Certo dia ouviu boatos entre as
empregadas de que ele teria engravidado uma moça no interior e por isso se
mudou da cidade. Sequer imaginou que as intrigas faziam parte de um
plano perverso da mãe para separá-los. Desiludida, anos depois aceitou
aquele relacionamento imposto pelos pais.
— Não sei se vou aguentar a pressão. Já não durmo há quatro noites.
Mesmo o make up não disfarçou minhas olheiras.
— Ora, pare com esse pânico. O que é isso agora? Espere! Tenho uma
coisinha que vai te acalmar.
Ângela se retirou dos aposentos. Instantes depois retornou com um
pequeno frasco nas mãos.
— O que tem aí? — perguntou Sabrina, aflita.
— Um sedativo milagroso. Quando tiver insônia ou se sentir muito
ansiosa, tome quatro gotinhas e a vida vai parecer mais leve. Só não tome
mais do que a dosagem indicada, porque faz a gente apagar completamente.
Insegura, a moça colocou o frasco na penteadeira. Então, a mãe pingou
quatro gotas na água e deu para ela.
Não se passou um minuto e Rogério veio avisar que o fotógrafo havia
chegado. Mãe e filha deixaram o quarto apressadas. Querendo proteger
Sabrina, Lila levou o frasco para o próprio quarto. Perguntou-se como uma
mãe podia influenciar a filha de forma tão negativa.
A cerimônia, apesar do calmante e da atmosfera romântica, foi um
suplício para Sabrina, constatou Lila. Para quem a conhecia e notava seu
sofrimento, também não foi fácil de suportar.
Não entendia por que Giovanni não fez nada para impedir a irmã de
entrar em uma união sem amor. Quase protestou perante todos quando a
jovem emitiu um trêmulo e inseguro sim que confirmou o compromisso,
mas se conteve a tempo, já que ninguém da família se importava com o
desconforto e a tristeza da noiva.
Quando a festa começou, Lila quis voltar sozinha para Porto da Onça,
mas àquela hora não tinha balsa. No dia seguinte sairia bem cedo. Mais uma
vez percebia como era importante ter sua independência e agradecia a Deus
pela atitude que tomou, quando se mudou para a ilha. Preferia o cheiro de
peixe podre do lixo da Cia. Del Mare a ter que ficar sorrindo para aquela
gente hipócrita e esnobe. E aquilo ainda duraria algumas horas.
As amigas de Ângela se aproximavam dela como se representasse mais
um dos objetos decorativos dos Souza Velasco, o interesse, claro, era
avaliar a educação que a “pobre órfã” recebeu e xeretar sobre sua vida na
ilha.
— “Saco!” — murmurou com impaciência, após uns esboços de sorriso
fingidos e alguns ois e tchaus.
Esgueirando-se pela casa, acabou por se refugiar na biblioteca. Mas se
enganou ao pensar que estaria sozinha. Mal fechou a porta, deu de cara com
Giovanni.
— Você aqui?
— Não me diga que também está fugindo da festa? — perguntou ele.
— Nem me fala... Coitada da Bri! Parece que engoliu um cabo de aço.
Ela não queria se casar. Foi difícil ver o esforço que fez para se manter
naquele vestido. Fiquei enjoada se quer saber.
— Eu também. Tentei falar com ela quando ficou noiva, mas me
ignorou. Não temos muita afinidade. O que me irrita é ver que ela não teve
força de vontade pra lutar contra a imposição dos pais.
— Seus pais, né? Você não ajudou em nada. Aliás, sempre foi muito
distante da sua irmã. Nunca entendi o motivo. Ela é tão doce, tão diferente
de todos aqui.
Lila corou ao perceber que era ofensivo falar da família dele daquele
jeito, mas não se desculpou.
Giovanni franziu a testa e apenas respondeu:
— Tive meus motivos.
O rosto dele se fechou em sombra. Ela podia ver que algo se escondia
atrás daquela rejeição que ele sentia por Urla. E doía saber que, mesmo com
aquela resistência, ele lhe mandou viver sob a tutela dos lobos. Aturou não
foi pouco naquela casa.
— Desculpa, mas não dá pra entender seus motivos.
— A Sabrina é maior de idade e fez a escolha dela. Era uma guerra
perdida.
— Não estou tão certa. Acho estranha sua omissão.
— O que quer dizer?
— Também fiz minha escolha há um ano e você não me deixa em paz
com a opção de viver na ilha, então, isso que falou não faz sentido.
Ele ficou momentaneamente sem palavras e ela continuou:
— É triste você dar de ombros para sua única irmã. E triste a Bri não ter
reagido. Desde que vim morar aqui percebi o modo como sua mãe a
controlava. E falo por experiência própria, ela sabe ser sufocante. Essa
dominação que ela impõe às pessoas é uma espécie de jogo e a Ângela sabe
muito bem como movimentar as peças.
— Nossa, Lila, não acha que está sendo muito dura com a minha mãe?
— perguntou ele, sabendo que estava sendo cínico.
— Não acho. E não faça essa cara cínica. Sei bem que por trás dessa
cara de lobo mau bate um coração de manteiga.
Giovanni inclinou a cabeça pra trás e riu com gosto. Depois respondeu
bem sério.
— Está enganada, Pimentinha. É que pra você nunca mostrei as garras.
Lila pareceu um tanto amargurada. Não suportava o apelido carinhoso
porque a fazia se sentir no jardim de infância. Ela baixou os olhos
marejados e, vendo sua angústia, ele foi sincero:
— Eu sei como Dona Ângela consegue ser egoísta e autoritária e
lamento por Sabrina.
— Não acho que seja exatamente por maldade. Ela é assim e nem se dá
conta. E até hoje ninguém foi capaz de enfrentá-la. Como você, que não
moveu um dedo para ajudar sua irmã a se livrar do compromisso com o
Marcos.
Envergonhado, Giovanni desviou o olhar. De fato tinha sido indiferente
com a irmã. Sentiu-se mal durante a cerimônia ao ver como ela estava
abatida. Detestava as discussões com os pais e sempre se esquivava delas.
Na realidade, se esquivava deles. Tinha seus motivos e pensar neles era
doloroso. Ergueu os olhos e respondeu Lila com uma pergunta:
— Acho que você é jovem demais para se preocupar tanto, Lila.
— Posso ter 19 anos, mas a vida me tirou muitas coisas. Isso faz a gente
crescer na marra.
O olhar dela se nublou e Lila caminhou até a janela buscando o ar
fresco da noite. Olhou os convidados no jardim sem nenhum interesse, a
não ser disfarçar algumas lágrimas que teimavam em cair.
Giovanni então se lembrou do episódio no quarto e clareou a garganta.
— Antes que eu me esqueça, desculpa pelo que aconteceu mais cedo,
Lila. Entrei no seu quarto sem bater, fui muito inconveniente.
Ela secou os olhos úmidos e se virou para ele sorrindo. Um ar
debochado substituiu a tristeza.
— Hum... Foi mesmo. Gostou do que viu? — quis provocar, mas ele
ficou sério.
— Pare com isso, não tem graça.
Lila queria provocar ainda mais. Não teve coragem.
— Tá bom, esquece. E a Carolina? Por que não está lá fora ao lado da
sua namorada? — perguntou.
— Porque eu precisava de um tempo sozinho. Ela não se importa. Está
se divertindo, quando me afastei ela estava combinando um fim de semana
num resort recém-inaugurado com as amigas da minha mãe: Fátima
Alencar, Tatiana de Souza e Daniela Amaral.
— Aff, o trio Peruete High Society! Conheço bem aquelas três...
preguiça.
Ele não se segurou e gargalhou.
— Só você pra inventar esses apelidos. Não se cansa de ser moleca?
— Não. Estou feliz por estar aqui com você, Gianni. Só assim pra gente
trocar umas palavras sem discutir por que moro sozinha, tenho uma livraria
e faço um curso à distância. E, claro, sem a sua namorada me engolir por
receber atenção privilegiada em meio a uma festa.
— Ok, eu me rendo. Desculpa por estar sendo tão chato e insistente nos
últimos tempos. Tenho muito orgulho de você, Lila!
— Uau! Que coisa boa de se ouvir.
Ela ergueu a sobrancelha esquerda e completou:
— Boa e inesperada.
Giovanni riu. Aproximando-se, a abraçou. Sentiu então o calor do corpo
feminino e o perfume suave. Alguma coisa que ele não entendia tinha
mudado naquele contato, porque não conseguia mais ver a menina de antes
e se repreendia por isso.
Lila usava um vestido de seda azul-claro e um salto prateado. O decote
revelava mais do que devia dos seios redondos e naturais que viu mais cedo
e o tecido fino delineava o corpo atraente. O cabelo estava preso num
penteado que emoldurava a face delicada com perfeição. A maquiagem
suave realçava a pele morena. Ele não resistiu e depositou um beijo em suas
faces, mas ela virou o rosto na mesma hora e o beijo pegou no canto da
boca. Os lábios cheios deixando uma espécie de eletricidade nos dele.
Atrevida, viu a oportunidade e mordiscou seu lábio superior, roçando o
corpo no dele. Giovanni lembrou-se então da calcinha de renda minúscula
que ela usava quando entrou no quarto, dos seios lindos e sentiu sua ereção
pressionar a cueca.
Precisava se afastar, sabia disso, mas ela o impediu, segurando-o pelos
ombros e olhando firme em seus olhos. Aqueles olhos eram os únicos
capazes de baixar sua guarda. Sempre foram. A respiração dela, o cheiro
dela, aquilo fez com que sua libido acordasse de uma forma assustadora. O
que era aquele desejo louco? O corpo dele estava reagindo de forma
traiçoeira à presença de Lila e aquilo não era nada bom.
Não podia corrompê-la, porque Lila era a única pessoa da família,
talvez a única pessoa no mundo por quem tinha consideração. Isso o levava
a pensar em que perdeu, o avô, Helga e Pietro, cuja passagem foi tão breve
pela vida. Pensar em Pietro foi como jogar um balde de água fria em cima
dele.
Deus, o que estava acontecendo? Não podia se sentir atraído por Lila.
Chegava a ser incestuoso. Foi com dificuldade que a afastou. Viu que ela
baixou os olhos frustrada. Ele murmurou um pedido de desculpas e saiu da
biblioteca apressado. Decepcionada, a moça permaneceu ali ainda algum
tempo. Por um instante sentiu que Giovanni a queria. Mas foi só um
instante e ele fugiu de novo.
“Mesmo quando isso não é certo
Onde há desejo, haverá uma chama
Onde há uma chama,
Alguém está sujeito a se queimar...”2
Try – Pink

Anoitecia quando Lila saiu da biblioteca. Ficou na sala algum tempo


tentando fugir dos avanços de César, um advogado mala que trabalhava
como assessor de Rogério e que insistia em puxar conversa com ela, sempre
que a via.
Mas não era só ele que se insinuava. Faltava paciência para tolerar
alguns convidados de Ângela. Eram tão superficiais que chegava a doer.
Sem contar os amigos de Rogério, que nos últimos meses davam em cima
dela sem nem procurar disfarçar. E o pior é que eram casados. Não dava pra
suportar a canalhice. Quando chegou ao jardim respirou fundo. O ar fresco
da noite ao som de Somewhere over the Rainbow, na voz inesquecível de
Israel Ka’i Kamakawiwo’ole, não caía nada mal.
Alguns casais dançavam no salão de festas ao lado da piscina. Ela se
aproximou e sentiu o peito apertado ao ver Carolina nos braços de
Giovanni. Ela roçava os seios no peito dele e tocava seu pescoço com os
lábios de uma forma provocante. Parece que sentiu seu olhar sobre eles,
porque a encarou, então fechou as mãos no rosto dele e o puxou para um
beijo ousado.
Lila ficou ali parada, sem conseguir desviar o olhar, querendo sentir
aquele beijo. O coração se partindo. Foi César que a tirou daquela espécie
de transe, quando a chamou para dançar e a puxou pela mão.
— Vai, Lila, me dá uma chance, não vai se arrepender. Posso te mostrar
o mundo, garota.
— Não começa, César. Eu disse lá dentro e vou repetir: qual parte de
não estou a fim de você ainda não entendeu?
— Vai se arrepender da forma como me trata, garota. Mas eu sei bem o
que você quer. Garotas como você se fazem de difíceis pra se supervalorizar
e ganhar alguma coisa em troca.
— Está muito enganado. E se eu fosse desse tipo, acredite em mim,
você seria o último homem com quem eu faria alguma troca.
— Cuidado, Lila, pode ser arrepender do que está falando.
Ele estava bêbado e sua voz se alterou. Ela sentiu medo do que viu nos
olhos dele. Era o tipo de sujeito pretensioso que se achava. Ele a puxou pela
cintura e pôde sentir o hálito quente na testa, aquele corpo asqueroso se
encostando nela.
Mas Giovanni ouviu e a forma como ele a ameaçou, fez seu sangue
ferver. Desvencilhou-se de Carolina e afastou César de Lila, puxando-o
pelo colarinho.
— Deixe-a em paz, César. Nem tente ameaçar Lila de novo ou acabo
com você!
César arqueou as sobrancelhas e riu com cinismo.
— Agora entendi a petulância desta vagabunda. Ela é sua. É isso que
quer me dizer?
— Ela não é de ninguém, o que está insinuando não faz o menor
sentido. Só não quebro sua cara por consideração a minha irmã.
— Isso não vai ficar assim, Giovanni.
— Não tenho medo de você. Some da minha frente antes que eu faça
uma loucura.
César viu que ele não estava brincando e resolveu se afastar.
— Você está bem? — perguntou para Lila.
— Obrigada, Gianni. Esse cara é muito insistente. Alguns homens não
aceitam um não.
— Homens idiotas e machistas. Homens que não respeitam uma mulher
não são homens de verdade. Faz tempo que ele dá em cima de você?
— Faz. Uns dois anos, pra ser bem clara.
— Que absurdo. Eu não sabia. Você ainda era menor de idade, por que
nunca me contou?
— Porque ela pode se defender sozinha. E talvez esteja exagerando só
pra chamar sua atenção — afirmou Carolina irritada, intrometendo-se na
conversa, cada vez mais enfurecida com a superproteção de Giovanni em
relação à Lila.
— Não preciso desse tipo de atenção, Carolina. Foi mal, Gianni.
Desculpa por estragar sua noite — disse Lila.
— Não, queridinha, você não estragou. A nossa noite ainda nem
começou. — E Carolina o abraçou, fazendo um gesto com a mão para que
ela sumisse dali.
Acompanhando o olhar magoado de Lila, Ângela esperou que ela se
afastasse da pista de dança e do filho. Quando ela se acomodou numa mesa
à beira da piscina, se aproximou.
— Está gostando da festa, Lila?
— Como não? — mentiu a jovem. — Você tem muito bom gosto,
Ângela.
— Verdade. Não posso negar. Estou tão feliz. Já sabe da novidade?
— Não. Que novidade?
— Finalmente o Giovanni pediu a Carol em casamento.
— O quê?! — perguntou Lila, sem disfarçar o choque.
— A Carolina me contou a novidade logo após a cerimônia. Estava
radiante. Disse que pretendem oficializar o compromisso amanhã.
Lila ergueu a sobrancelha esquerda intrigada. Duvidosa, analisou a
expressão de Ângela.
— Mas o Gianni não me disse nada.
— E por que diria? Não seja ridícula, menina. Que eu saiba, meu filho
não precisa da sua permissão. Está se dando importância demais, coisinha.
Aliás, sempre se deu. — E inclinou a cabeça para trás, rindo com cinismo.
Lila surpreendeu-se. Pela primeira vez, Ângela tirava a máscara e
deixava claro que não a suportava.
— Acha que não notei o modo como olha meu filho? Desde que se
entende por gente, o segue feito um cachorrinho. Agora inventou essa
livraria ridícula na ilha só para chamar sua atenção. Eu até que fiquei
aliviada quando saiu da minha casa, mas não gosto de saber que está tão
perto do Giovanni. Acha mesmo que um homem do porte dele vai notar
uma ratinha como você? Ele é um empresário bem-sucedido, cobiçado por
muitas garotas de famílias de posses, além de rico é um homem bonito
demais, já você é uma coisinha insignificante que mal saiu das fraldas. Não
se enxerga?
— Não estou entendendo por que está me destratando. Se acha que ele
nunca vai me notar, que mal tem vivermos na mesma ilha?
— Não seja cínica. Tudo que o Giovanni sente por você é pena. Só isso.
Não se iluda, ele fez o que fez por um dever moral com sua mãe. Agora já
tem 19 anos, está na faculdade, tem sua herança e pode viver sua vida bem
longe dele.
— Onde eu vou viver é uma escolha só minha, mas não se esqueça de
que sou sócia do seu filho e a construtora era da minha mãe. Logo, também
sou uma empresária bem-sucedida. Não vou ficar longe do que é meu por
conta do que você quer.
— Cobrinha! Pois trate de deixá-lo em paz, ou vai se arrepender,
entendeu?! — Dizendo isto, lançou-lhe um olhar de desprezo e se afastou.
Magoada, Lila correu do jardim. Entrou na casa e subiu apressadamente
as escadas que levavam ao segundo andar. Já no quarto, jogou-se na cama e
chorou muito.
Bruxa! O Giovanni não vai se casar com Carolina. Não pode e, se
depender de mim, não vai, eu juro!
Naquele momento, Lila sentiu como se estivessem rasgando seu
coração. Experimentou raiva e humilhação ao mesmo tempo. E enquanto as
lágrimas inundavam seu rosto, repetia para si mesma que Ângela estava
mentindo só para fazê-la sofrer. Seria ela realmente um empecilho na vida
de Giovanni?
Começou a considerar a probabilidade de um casamento entre ele e
Carolina e teve certeza de que precisava fazer alguma coisa para impedir
aquela união. Carolina era arrogante, maldosa, fria e interesseira. Como ele
não enxergava? Ela destratava Tarso e Nica. Mesmo com ela, sempre se
fingiu de boazinha na frente dele e pelas costas ironizava. Sem contar o
modo grosseiro como dava ordem ao pessoal da empresa quando passava
por ali. Uma das secretárias lhe contou isso a última vez que esteve lá.
Giovanni não merecia ser tão infeliz. Lila precisava agir depressa, só não
sabia o que fazer. Restava uma ilusão de que ele sentisse algo por ela, mas
sabia que mesmo que sentisse nunca ia assumir. Talvez ele não entendesse
os próprios sentimentos e queria se enganar em relação à Carolina.
Por que tinha se apaixonado por ele? Por quê? Não era justo. Precisava
cair na real. Ele era tudo aquilo que Ângela falou e muito mais. Rico, lindo
e bem-sucedido e uma década os separava. Giovanni nunca a veria como
mulher. Ele sempre seria a órfã desprotegida, a filha da prima querida, mais
nada. Não pôde evitar mais lágrimas. Chorou até seu coração se desapertar.
Após algum tempo se acalmou, enxugou o rosto no travesseiro e refletiu
sobre as palavras da cascavel.
Será que o melhor era sumir de vez da vida dele? Estudar fora como ele
queria? A razão dizia sim. O coração gritava não.
Lembrou-se da mãe. Então se levantou e abriu a bolsa de viagem. Pegou
o diário que sempre carregava com ela e segurou mais uma vez o marcador
de página. Seria este o conselho de Helga para a vida? O provérbio dizia:
“no amor e na guerra vale tudo”. Ela decidiu arriscar. Não apenas por
vingança, mas para dar uma chance ao amor. Certo ou errado, não
questionaria, já que Carolina e Ângela não tinham escrúpulos.
Levantou-se e foi até a sacada do quarto. Ao ver o casal de mãos dadas
à beira da piscina, uma grande mágoa tomou seu coração. E mais do que
mágoa, sentia ciúme. Estava cansada de ser tratada como criança. Cansada
das cobranças de Giovanni para ficar longe da ilha, das humilhações da
“Malvadângela” e de ver as pessoas se referindo a ela como um fardo. Pela
primeira vez, seus olhos exibiam um brilho maldoso. Ela mostraria para
elas como uma ratinha pode ser travessa.
Giovanni fitou a namorada enquanto passeavam pelo jardim. Ela tinha
bebido demais e atropelava as palavras antes que ele pudesse processar a
enxurrada de futilidades. Desde que mencionou a possibilidade de um
compromisso mais sério, levado pelo medo do que andava sentindo por
Lila, ela só fazia falar em casamento, na catedral, no buffet, na festa
maravilhosa e cara, no estilista famoso que queria para seu vestido de
noiva. Agiu por impulso e, de repente, entendeu a consequência de seus
atos. Sem querer, estava agindo como a irmã. Deixando-se levar pela onda e
se ancorando num relacionamento que não lhe fazia feliz.
Está certo que no começo sentia desejo por Carolina, gostava de sua
companhia, ela era uma mulher bonita, atraente, mas nunca quis nada sério
com ela. Não demorou a notar o quanto ela era geniosa e mimada, e o pior,
detestava a ilha. Acabou arrastando o namoro por comodismo, e também
para se livrar do assédio da esposa de um cliente importante, mas
ultimamente conviver com sua futilidade estava difícil e até o desejo
arrefeceu. Perto dele, ela tentava disfarçar o mau gênio e foi por um deslize
que presenciou alguns rompantes que o deixaram consternado. Pra piorar,
Carolina deu mostras de um caráter preconceituoso diversas vezes. Julgava
as pessoas pela aparência e conta bancária.
Fazia alguns meses que queria terminar, porque sabia que não tinha
futuro. Ela era bonita sim e muito sensual, tiveram bons momentos juntos,
mas a atração se foi e já não suportava a forma como ela o pressionava e
exigia sua atenção. Sequer conseguia virar uma noite ao lado dela e aturar
ficava cada vez mais difícil.
Quando comentava que precisavam de um tempo, ela chorava e fazia
chantagem emocional. E foi levando até ali.
A verdade é que nunca considerou a possibilidade de tê-la como a mãe
de seus futuros filhos e só falou em casamento para afastar seus
pensamentos proibidos em relação à Lila. Desde quando o carinho e amor
que sentia se transformou em desejo?
Sentiu falta dos conselhos de Nica. Queria ser novamente um menino e
correr para o colo do avô. Em sua mente iam mil perguntas sem respostas.
Medos que não podia explicar. Tinha 29 anos e parecia um adolescente.
Pior, era agora um homem cheio de culpa pelos próprios desejos.
Os pais de Carolina, ambos médicos e muito amigos de Ângela e
Rogério, se aproximaram e chamaram a filha para partir. Ainda sem
coragem de colocar um ponto final na relação. Giovanni depositou um beijo
na testa da jovem e, quando ela se foi, procurou por Lila. Não a encontrou e
bebeu algumas taças de vinho com alguns amigos. Depois, pegou uma
garrafa e uma taça com o garçom e se retirou sem ser notado.
Parou diante do quarto da moça. Durante alguns instantes, hesitou. E se
ela estivesse dormindo? Não resistiu e bateu.
— Entra. — respondeu Lila curiosa. Quem seria?
Assim que Giovanni entrou no quarto, ela percebeu que ele estava
alterado. Ele fechou a porta e um pouco constrangido justificou a garrafa de
vinho.
— Só pra esquentar.
— Estou vendo.
Ele colocou a garrafa na cômoda e a encarou preocupado.
— Saiu da festa tão cedo. O que você tem?
— Nada. Sabia que eu não estava gostando.
— Não minta pra mim, menina. Vi que conversou com a minha mãe.
— Foi. A verdade é que cansei do teatro.
— Eu também — afirmou ele.
— Demorou.
— Lila, Lila, nem sempre a gente pode fazer o que quer.
— Tem certeza que não? Porque eu não concordo. Cada um faz
exatamente o que escolhe fazer.
Por um minuto, ele a encarou confuso. Ela estava zangada e ainda assim
tão linda, recostada na cama, com o vestido da festa. O decote exibindo os
seios redondos. Os joelhos levemente dobrados exibindo as pernas
atraentes. Engoliu seco ao ver quão excitado ficava só de olhar para ela.
— O que minha mãe queria com você?
— Ela me contou muito animada que vai se casar com Carolina.
— Hum... foi isso. Está zangada?
— Eu não gostei. Quer saber o que eu penso?
— Adianta dizer que não?
Ela balançou a cabeça, negando.
— Devia é se casar comigo.
Giovanni olhou em seus olhos e sorriu.
— Em outra vida, quem sabe. Sério, gatinha, se tivesse a minha idade
seríamos perfeitos um para o outro.
— Somos perfeitos um pro outro, Gianni, você é que não percebe. E se
percebe não aceita, só porque sou mais nova, o que é preconceito.
Ele não conteve uma gargalhada e bebeu outra taça de vinho antes de
responder:
— Quer brincar com fogo, menina? — Ele tirou o paletó e afrouxou a
gravata, justificando que estava com calor.
— Tem algum risco de eu me queimar? Porque se tiver eu quero.
Ela umedeceu os lábios e saiu da cama, se aproximando dele. Assim
que ela se sentou em seu colo e rodeou seu pescoço com as mãos, Giovanni
percebeu que quem estava brincando com fogo era ele. Bebeu mais um gole
de vinho e então respondeu:
— Você só tem 19 anos. São mais de dez anos de diferença entre nós.
Tem muito para viver antes de se amarrar em alguém.
Ela disse em seu ouvido bem baixinho:
— Sabrina tem só cinco anos a mais do que eu e o noivo dela é quinze
anos mais velho.
— Com a gente é diferente. Eu te vi crescer. Segurei você no colo. Fui
seu tutor. Eu me considero como... seu irmão.
— Mas não é. Se eu realmente fosse sua irmã, não teria sido obrigada a
morar com seus pais até a maioridade.
Giovanni observou o modo franco como ela falava. As faces coradas, o
olhar determinado, a boca de lábios cheios e tão próxima convidando a um
beijo. Os olhos cor de mel se tornavam mais escuros à noite, mas ainda
conservavam o mesmo brilho atrevido, dourado. Lila tornou-se uma
tentação. Admirou os traços perfeitos do rosto em forma de coração. Ela
parecia uma boneca. Sentiu a cueca apertar e viu que ela notou com um
sorrisinho malicioso.
— Viu, você me quer.
— Você é linda. A verdade é que eu não posso querer.
Embora lutasse contra seus instintos, reconhecia que o corpo de Lila
agora era um corpo de mulher. Uma mulher delicada e atraente. Mais que
isso, uma mulher que estava se insinuando para ele.
Sentindo que o álcool aguçava ainda mais seu desejo, a tirou do colo e
caminhou até a cômoda com um certo incômodo. Apoiou-se ali alguns
instantes, depois pegou a garrafa de vinho. No entanto, antes que enchesse a
taça, sentiu uma súbita tontura.
— Posso usar seu banheiro?
— Claro — afirmou Lila, indicando a porta do closet e conduzindo-o
até o toalete.
Assim que ele fechou a porta, Lila fixou o frasco que trouxe do quarto
de Sabrina em sua cômoda e uma ideia maluca lhe passou pela cabeça. Sem
dúvida, era um plano ousado, que, se desse certo, poderia impedir aquele
casamento absurdo com Carolina. Decidida, checou a dosagem indicada na
bula e apressou-se em dobrar as gotas do remédio no vinho, caindo duas a
mais.
Após lavar o rosto, Giovanni sentiu-se bem melhor e voltou para o
quarto. Foi até a janela e a brisa da noite agitou seus cabelos. Olhou para
Lila, que agora estava sentada na cama e quis abraçá-la. Só por um
momento, um instante que fosse, queria esquecer sua idade e tudo o mais
que os separava.
Percebeu que amava tudo naquela menina. O cheiro, o sorriso, os olhos,
os gestos, a inteligência, a espontaneidade, a beleza e até a juventude. Lila
era parte dele, a única parte que não foi contaminada pelos pais e pelo
passado. Casando-se com Carolina, sabia que o vínculo entre eles nunca
mais seria o mesmo. Não poderia mais protegê-la do mundo, das pessoas
cruéis e interesseiras. Dos homens manipuladores e abusivos como César.
Odiava a ideia de ver aquela inocência se perder com alguém que não a
merecesse. Era superproteção ou sofria com o ciúme só de pensar em vê-la
nos braços de outro homem? Estava tão confuso.
Com um nó na garganta, pegou a taça na cômoda e a virou de uma só
vez. Depois, bebeu mais um pouco da bebida. Passou as mãos na boca
ainda úmida do vinho e abandonou o recipiente na cômoda. Venceu a
distância até a cama e sentou-se ao lado de Lila. Encarando-a, segurou seu
rosto com as mãos.
— Eu... quero que saiba que amo você.. sempre amei. Tudo que eu fiz,
tudo o que eu te falo é pensando no seu bem. Aconteça o que acontecer, vai
estar sempre no meu coração.
Lila não conteve as lágrimas pensando que aquilo soava como uma
despedida. Ele estava bêbado, é verdade, mas podia sentir que estava sendo
sincero. E aquele amor que ele jurava, não era nem de longe o amor que ela
queria conhecer. Triste, desviou o olhar. Quando ele fez menção de se
levantar, pediu que a abraçasse. Implorou que ficasse com ela mais uns
instantes. Ele cedeu e a embalou nos braços. Lila recostou o rosto
masculino em seus seios. Sentiu o perfume amadeirado mesclando-se ao
cheiro da bebida. Aconchegou-se a ele, deitaram-se os dois na cama.
Giovanni brincava com os longos cabelos castanhos e as bocas
naturalmente se buscaram. Um beijo que deixou ambos excitados, acesos,
mas ele sentiu-se ainda mais tonto e a boca de Lila foi a última coisa que
viu antes de apagar.
Ao ver que o sedativo fez efeito, Lila experimentou um misto de culpa e
alívio, mas sabia que aquela era sua única oportunidade de ficar com
Giovanni.
Levantou-se da cama rapidamente. Trancou a porta do quarto. Mesmo
constrangida, o despiu completamente. Ele tinha um corpo forte, bonito, as
pernas musculosas, era intimamente muito bem dotado, impossível não
admirá-lo, não desejá-lo. Em seguida se despiu também. Espalhou as roupas
pelo quarto de forma displicente.
Não se sentia nada bem fazendo aquilo, mas era preciso. O rosto
queimava com a própria ousadia, espetou o dedo com uma agulha e sujou o
lençol. Então, moldou o corpo ao dele e puxou o edredom para cobri-los.
Encostou-se a ele. O coração estava disparado. Jamais se viu capaz de tal
vilania. Repetiu mentalmente que se tratava de um gesto de sobrevivência.
Se no amor e na guerra valia tudo, precisava ter coragem e seguir adiante. E
isso não incluía hesitações ou arrependimentos.

Quando o sol bateu na janela do quarto de Lila, Giovanni acordou.


Passou a mão pelos cabelos pretos bagunçados. Estava com a boca amarga
e a cabeça latejando. Esfregou os olhos, levou algum tempo até que se
acostumasse à claridade. Sentiu um peso no corpo, um perfume suave e, ao
abrir os olhos, assustou-se com os cabelos castanhos de Lila espalhados em
seu peito. Nua, dormia aconchegada a ele. Os seios perfeitos em contato
com sua pele. As coxas entrelaçadas. Assustado, constatou a própria nudez
e tentando se lembrar da noite anterior, experimentou uma sensação
péssima. O que eu fiz, meu Deus? Tentou se mexer sem acordá-la, mas ao
se sentar na cama, observou as roupas espalhadas no chão. Tudo indicava
que passaram a noite juntos. Não, aquilo não podia ser verdade!
Ao sentir o movimento, Lila despertou. Veio à consciência da noite
anterior e, ao levantar a cabeça, deparou-se com um par de olhos verdes
atemorizados. Ciente de que nada cobria seus corpos, corou. Repassou os
próprios planos e mandou embora qualquer vestígio de culpa ou timidez.
Não podia vacilar! O abraçou carinhosamente e afundou a cabeça em seu
pescoço, mas o sentiu tão tenso que quase se arrependeu do que fez. Quase,
mas sabia que precisava ser forte.
— Gianni, você me fez mulher, me deu uma linda noite de amor. Mais
do que linda, foi inesquecível.
Ele envolveu o rosto delicado com as mãos, reprimindo os instintos do
próprio corpo.
— Diga que isso não aconteceu, Lila, por favor.
— Você não se lembra? — Ele se arrependeu da pergunta ao ver sua
decepção. — Tudo o que me disse foi mentira? Não pode ter se esquecido.
Ao encarar seus olhos marejados, Giovanni sentiu-se um canalha.
— Eu... eu não sei como isso aconteceu. Por favor, diga que não lhe fiz
nenhum mal.
— Não, você não me fez mal. Pelo contrário, você me fez feliz. Disse
que me desejava e que ficaríamos juntos para sempre. Eu acreditei. Há
muito tempo que te amo em silêncio. Como insistia em me ver como
criança, já tinha perdido as esperanças. Então, a noite passada você me
disse tudo que eu queria ouvir. Você me beijou, me tocou e me fez tão feliz,
não diga agora que não foi real, por favor.
Envergonhada por mentir tão descaradamente, Lila voltou o olhar em
outra direção e, dando-se conta da própria nudez, envolveu-se no edredom
que cobria a cama. Desesperado, Giovanni também se enrolou num lençol.
Só piorou sua angústia ao ver a garrafa de vinho praticamente vazia na
cômoda e o sangue no lençol. Estava ali a prova do que ele fez. Naquela
hora, pensou nos pais, em Helga, na namorada e quis desaparecer.
— Meu Deus, o que foi que eu fiz? Sou responsável por você, não podia
ter agido tão mal.
— Ei, você foi responsável. Não é mais. Eu moro sozinha há um ano e
já passei dos 19.
— Lila, não importa, dormir com você é um ato imperdoável,
incestuoso...
— Não fale assim, Gianni, não estrague tudo! — Os olhos cor de mel
transbordaram e ele a abraçou, pedindo perdão.
Experimentando culpa e remorso, Lila se envergonhou da própria
atitude, mas lembrou-se do desprezo de Ângela e manteve-se firme. Sabia
que agora era tarde para voltar atrás. Já tinha ido longe demais para se
arrepender e colocar tudo a perder.
— Está agindo como se fosse pecado, não é. Eu te amo como uma
mulher ama um homem, se fosse errado Deus não permitiria que eu me
sentisse assim. Está me assustando! Se arrependeu de tudo que me falou?
Não gosta mais de mim?
Ele a encarou, a expressão sofrida.
— Claro que gosto, eu amo, mas você é minha menina. Eu tinha que te
proteger.
— Sempre me protegeu, mas agora eu não sou mais uma menina, eu sou
uma mulher, não pode controlar o desejo que eu sinto por você ou que sente
por mim. Não vou permitir que transforme nossa noite linda em uma coisa
suja. Eu queria, você também, não pode estar errado.
— Você é tão nova, vai se arrepender.
— Nunca. Eu me arrependeria se eu não te amasse, mas eu te amo. Eu
me apaixonei por você faz tanto tempo. Por favor, fala pra mim que vai
cumprir suas promessas, que vai se casar comigo, porque se me deixar, aí
sim vai partir meu coração. Eu jamais me entregaria a alguém sem amor.
— Casar?! — perguntou ele assustado. — Lila, eu...
Aflita, ela o interrompeu:
— Sim, você disse que ia se casar comigo. Estava só brincando com
meus sentimentos? Não faz isso. Casa comigo, Gianni?
Ao ver as lágrimas que inundavam o rosto delicado, ele se aproximou e
a tomou nos braços como se ainda fosse uma criança.
— Calma, claro que vou cumprir minhas promessas. Sabe que eu
sempre cumpro.
— Sim, eu sei... eu sei. Você vai ver, vamos ser muito felizes. Não
existe outro homem pra mim e nem outro lugar que eu queira mais como
minha casa do que Porto da Onça.
— Espero que esteja certa. Ah, Deus, como eu espero.
— Gianni, estava escrito. A gente não pode fugir do que sente.
E sem dar tempo para que ele pensasse mais, se enroscou nele e grudou
a boca na dele como sempre quis fazer. Foi com dificuldade que Giovanni
encerrou o beijo instantes depois, a fim de tomar um banho e esfriar a
cabeça. Precisava de tempo para entender a gravidade do que fez.
“Descobrir sem querer o quanto é frágil
Decidir escolhendo cada passo
onde ir num futuro incerto...”
Recomeçar – Tânia Mara

Naquela mesma tarde, Giovanni procurou Carolina para terminar o


namoro. Disse que pretendia acabar com tudo havia algum tempo e só adiou
porque não queria magoá-la. Pediu desculpas sentindo um alívio enorme,
mas ela encarou o rompimento com raiva e agressividade.
Com os pais, foi ainda pior. Ao saber que ele terminou com Carolina e
que pretendia firmar compromisso com Lila, Ângela e Rogério ficaram
furiosos. Mas, por mais que protestassem, não poderiam impedi-lo.
Combinaram que Lila continuaria morando no apartamento até que se
cumprissem as burocracias para o casamento no civil, que levaria quase um
mês.
Na véspera do casamento, Giovanni a buscou e voltaram juntos para
Urla. Na manhã em que Heitor foi buscar a afilhada para levá-la ao cartório,
Ângela a abordou ainda na escada:
— Eu te subestimei, ratinha, confesso. Fez o que fez por vingança, não
foi?
— Do que está falando? — Lila fez a mais inocente das expressões.
— Não seja cínica. Sabe que seduziu meu filho e o forçou a este
casamento.
E Lila desceu os últimos degraus, respondendo baixinho:
— Eu tive a melhor das professoras.
Saiu com um sorrisão no rosto, não sem antes agradecer pela estadia e
soprar-lhe um beijo, que de carinhoso não tinha absolutamente nada.

O cartório ficava num prédio de dois andares, com a fachada em vidro e


granito. Pequeno e charmoso, ficava num bairro distinto de Urla.
Para a cerimônia, Lila escolheu um vestido branco de seda, decote
tomara que caia reto, com saia rodada e esvoaçante. Era delicado como a
noiva e ao mesmo tempo moderno. O calçado um scarpin branco de salto
cinco e um brinco em forma de gota de ouro e cristal. O cabelo foi penteado
para trás e caía em cascata, na franja havia delicada tiara. A maquiagem era
suave. Sem dúvida, uma linda noiva.
Giovanni vestiu um terno cor de chumbo de marca, cinto e sapatos
pretos italianos, abotoaduras de ouro branco. Com os cabelos penteados
para trás e barba feita, sua postura era impecável.
Formavam um casal de capa de revista, mas se Lila estava radiante,
Giovanni sentia um misto de constrangimento e insegurança.
Mas ele cumpriu a palavra e não hesitou na hora do sim.
Enquanto o juiz de paz os declarava legalmente marido e mulher, Lila
pensou que a expressão de Giovanni era de alguém indo para a forca.
Reviveu o que sentiu na noite do casamento de Bri. Sim, inegavelmente
queria dar o troco em Ângela e Carolina. Mas sua mágoa por elas nem se
comparava ao sentimento forte e verdadeiro que nutria por Giovanni. Ao
vê-lo tão sério diante do juiz de paz, quase revelou a verdade, pois temeu
ter cometido o maior erro de sua vida ao mentir para ele. Então, ele roçou
os lábios nos dela e, apesar do toque suave, a energia foi tão intensa que ela
se acalmou. Sabia muito bem que a pior parte, a de enfrentar a verdade,
ainda estava por vir e precisaria aguentar firme, sem deixar transparecer
seus medos.
Se Sabrina foi carinhosa, os pais de Giovanni cumprimentaram Lila
com raiva contida. Saíram do cartório e seguiram para um bistrô requintado
que Ângela escolheu para o almoço, justamente pela discrição do local.
Após duas horas de uma breve comemoração, os noivos se despediram.
Estavam na porta quando Carolina abordou Lila de forma exaltada:
— Piranhazinha! Eu sempre desconfiei de você. Nunca me enganou,
sua dissimulada! Não pense que esse casamento vai dar certo. Você não é
mulher pro Giovanni, nunca vai ser. Ele pode ter colocado uma aliança no
seu dedo, mas se fez isso foi por pena e não paixão.
Giovanni segurou a ex-namorada, antes que ela avançasse em Lila.
— Já chega, Carol. Por favor.
— Vocês me pagam! Não serão felizes juntos, eu prometo.
Ângela veio até a porta do restaurante e convenceu Carolina a entrar e
tomar um copo de água para se acalmar. Os noivos entraram no carro e
seguiram para Porto da Onça.
Meia hora depois, já estavam na lancha. Giovanni rompeu o silêncio
constrangedor e finalmente falou com Lila:
— Não se importe com as ameaças de Carolina, ela está ferida.
— Eu sei. Eu entendo. Estaria como ela se tivesse te perdido.
— Lila, Lila, você merecia um noivo da sua idade e uma linda festa de
casamento. Tem certeza de que não preferia ter esperado mais?
— Não. Eu já tenho tudo o que eu queria.
Ele a encarou com uma expressão angustiada. Ela girava a aliança no
dedo com expressão sonhadora e, embora se sentisse um canalha, Lila não
transparecia sequer um pingo de dúvida.
— Nica também está uma fera conosco. Ela não consegue entender o
que nos levou a fazer isso.
— Ai, ai... Nica é como você. Insiste em me ver como uma criança
frágil e indefesa. Os dois não conseguem enxergar que eu cresci. E se quer
saber, não aguento mais você se culpando pelo que fez. Pensei que gostasse
de mim, que me quisesse ainda que negasse, mas estou começando a achar
que me enganei.
Sem saber o que fazer e desconfortável com aquela situação, Giovanni a
abraçou. Passando a mão em seus lábios trêmulos, não resistiu e a beijou. E
foi um beijo tão terno, que levou Lila a acreditar que seus sentimentos eram
correspondidos.
Quando chegaram à prainha, Nica os recebeu emburrada na varanda do
chalé. Envergonhado, Giovanni desviou o olhar, mas Lila a abraçou e
beijou suas faces, como se nada de mais estivesse acontecendo.
— Ah, menina, não posso acreditar que se casaram. Veja isso se pode...
— afirmou contrariada, enquanto Giovanni entrava na casa com as malas da
esposa.
— Claro que pode. E em vez de fazer com que Gianni se sinta mais
culpado, deveria torcer pela nossa felicidade.
— Tenho medo pelos dois. Eu não consigo aceitar que duas criaturas
que tinham um relacionamento praticamente de irmãos possam estar
casadas.
— Eu sempre disse que não me sentia como irmã dele. Vocês não
percebiam, mas eu sofria demais com isso, Nica. Deus não permitiria que
eu o amasse se fosse algo errado, certo? Podemos ter uma diferença de
idade, isso eu concordo, mas não temos parentesco sanguíneo e o que eu
sinto passa longe de um incesto.
Com lágrimas nos olhos, Nica voltou a abraçá-la.
— Ah, minha menina! Espero que vocês realmente se amem, porque se
machucarem um ao outro, vão partir meu coração.
— Se depender de mim, o Gianni vai ser muito feliz.
— Assim seja.
A velha caseira preparou o lanche da tarde e depois foi para a própria
casa atrás do chalé, onde vivia com Tarso há mais de vinte anos.

Giovanni caminhava à beira-mar quando Lila foi encontrá-lo. Desde


que voltaram para Porto da Onça há mais ou menos um mês, Lila tentava
aproveitar cada minuto disponível perto do marido, sempre que ele estava
em casa o convidava para caminhar à beira-mar, sair ou jogar baralho como
costumavam fazer desde sempre, mas mesmo com tanta proximidade,
beijos e carinhos que ela distribuía com excesso, ele fazia de tudo para
evitar ficar sozinho num quarto com ela.
Foi na noite do casamento que ele pediu um tempo para se acostumar
com a nova situação deles. Primeiro Giovanni viajou quinze dias a trabalho,
depois fez questão de continuar em quartos separados, alegando que não se
sentia à vontade ainda para aceitar que eram um casal.
Com o passar dos dias, ela voltou a trabalhar e quando voltava para o
chalé ocupava o mesmo quarto de antes. Giovanni também saía bem cedo e
só voltava ao anoitecer, sempre se esquivando de seus avanços com a
desculpa de que ainda não estava pronto para um relacionamento íntimo
com ela.
Por mais que se insinuasse, Giovanni fugia. E para piorar passou a
trancar a porta do quarto à noite.
Naquela manhã de sábado, ao vê-lo sentado à beira-mar, resolveu dar
um basta naquela situação. Escolheu um biquíni branco sumário. Ao se
olhar no espelho corou com a indecência do fio-dental. Já na prainha,
respirou fundo, deixou a canga na areia e passou por ele correndo para cair
no mar. Ao ver o biquíni ousado da esposa, o coração de Giovanni saltou.
O que Lila pretendia andando praticamente nua na praia?
Engoliu em seco. Não sabia se o que o incomodava mais era a forte
atração que sentia ou o ciúme irracional que ela despertava nele. Quando
Lila saiu da água, os cabelos molhados e a água salgada escorrendo pela
pele, não conseguiu desviar o olhar. Cada vez que ela partia para cima dele
precisava ter muita força para se afastar. Sabia que se consumassem o
casamento seria tarde demais para uma anulação e ainda postava que Lilia
ia se arrepender da decisão precipitada que tomou. Ela caminhou até ele e o
abraçou.
Mais uma vez, ele se segurou.
— Por favor, Lila. Não faz isso comigo — pediu, bagunçando os
cabelos pretos.
— Não fazer o quê?
— Ficar me provocando.
— Por quê?! E não é bom que a esposa provoque o marido? Por acaso,
nos casamos para dormir em quartos separados e viver de mãos dadas o
resto da vida? Gianni, seja honesto, até quando pretende me evitar?
— Eu ainda preciso de um tempo.
— Não suporto mais viver assim.
— Por favor, Lila, tente me entender. É para o seu bem. Pode se
arrepender.
— O quê? Não acredito que está correndo de mim, esperando que eu me
arrependa e anule o nosso casamento. É isso?
Ele desviou o olhar.
— É claro que sim. Continua se culpando por aquela noite!
— Não sou um pedófilo.
— Que palavra feia e forte, Gianni, eu sei que você não é. E como sei...
Quantas tentativas eu fiz de chamar sua atenção e nunca tive sucesso. Pelo
menos, não antes dos 18. Agora tenho 19 anos, sou sua esposa e se me casei
com você é porque te amo.
Giovanni ia responder, mas Tarso chegou para avisar que precisava sair
e acabou interrompendo a discussão do casal. Lila então se cobriu com a
canga e se afastou emburrada.
— O que ela tem agora?
— O de sempre. Lila não entende o que se passa comigo. Nem eu
entendo, pra ser sincero.
— Nem pode, filho. Ela é nova, está apaixonada, tem suas próprias
ideias e não consegue entender seu dilema.
— Eu me sinto culpado. Ainda não acredito que fui capaz de me
aproveitar dela naquela noite.
— Não se culpe mais, filho. A culpa afasta a razão. Depois, o que está
feito, está feito. Sei que seus sentimentos por Lila mudaram. Vejo em seus
olhos. Não lute contra isso porque só vai piorar as coisas. Estão casados. O
matrimônio é sagrado e um casal tem que ficar junto. É tempo de aceitá-la
como sua mulher. Precisa aceitar que ela cresceu e o vê como um homem.
Antes que Giovanni pudesse responder, Lila voltou.
— Gianni, precisamos continuar nossa conversa. Pode nos dar licença,
Tarso?
— Claro. Nica já está me esperando no píer faz um tempinho. Vamos
até a vila. E vocês dois juízo, hein?
Tarso piscou para Lila e se foi. Quando ele já estava longe, ela abraçou
o marido pelas costas. Ele gostou do carinho. Voltou-se para ficar frente a
frente e, sem que ela esperasse, a beijou. Era para ser um beijo suave,
conciliador, mas não resistiu à tentação de explorar aquela boca gostosa e
atrevida.
Lila sempre tinha resposta pra tudo e talvez tenha sido aquilo que o
atiçou. Enquanto as línguas se enroscavam, ela acendeu, roçou os seios no
corpo dele e não controlou a vontade de tocá-lo sob o calção de banho. Um
mero toque e sentiu o membro enrijecer em seus dedos. Corou ao pensar
que estava se oferecendo sem nenhum pudor, mas não se importou, estava
queimando por ele desde a noite do casamento de Sabrina e não aguentava
mais vê-lo fugir.
— Está me enlouquecendo, menina — ele murmurou após interromper
o beijo e tirou a mão dela de dentro do short.
— Estou... Não vai reagir?
— Não sei se eu devo.
— Depois desse beijo, você deve sim. Por que me afasta, quando eu sei
que me deseja e tudo que eu quero é ficar com você? Como é capaz de
resistir?
Foi alguma coisa nos olhos doces e suplicantes, ou talvez a excitação
que chegava a doer que o fez jogar a razão para o alto. Abandonando as
defesas, Giovanni a tomou nos braços e seguiu para o chalé. O coração
saltava no peito. Pela primeira vez, não queria pensar no que era certo ou
errado, no passado ou no futuro.
Foi direto para a suíte e, quando a colocou sobre a cama, seu corpo
respondeu sem hesitação. Ele a queria. Queria muito. Rapidamente tirou a
blusa de malha e o calção de banho libertando o membro rígido que ela
praticamente engoliu com os olhos. Ele estava enorme, ela admirou, queria
muito senti-lo e não se segurou. O tocou novamente por alguns instantes,
mas, por mais que ele quisesse seus carinhos, não deixou que continuasse a
tocá-lo. Ela o encarou confusa e ele explicou:
— Se continuar, linda, eu vou gozar e o que eu quero agora é te dar
prazer.
Então afastou suas mãos com delicadeza, livrando-a do fio-dental.
Depois libertou os seios redondos e firmes com ansiedade, a explorou com
os olhos alguns instantes:
— Você é tão linda, Lila, mal posso esperar para estar dentro de você.
Naquele momento, o desejo doía tanto que esqueceu os próprios medos.
A atraiu para si puxando-a pela cintura e mordeu de leve os lábios cheios e
macios, invadindo sua boca com a língua. Percorreu seu corpo com as mãos
enquanto o beijo sensual só aumentava o desejo de ambos. Quando, enfim,
interrompeu o beijo, tomou um de seus seios na boca e o sugou até que ela
se contorcesse sob ele, depois fez o mesmo com o outro, até que ela gemeu
de prazer. Estimulado, quis provar com a língua cada centímetro da pele
macia, até alcançar sua intimidade, então viu o quanto estava molhada e
quase não se controlou. Ali se demorou com a língua e, quando ela gritou
seu nome, afastou ainda mais as dobras delicadas e roçou sua entrada com o
pênis grande e duro.
— Por favor, Gianni. Não me torture mais. Quero você, quero muito...
Ele a segurou pela cintura e se posicionou sobre ela, buscando
novamente seus lábios. Enquanto ela sentia o próprio gosto na boca dele, a
penetrou. Ao sentir sua resistência, abriu os olhos, viu a dor em sua
expressão e se retraiu, quis se afastar, mas ela o impediu, envolvendo seu
corpo com as pernas.
— Não pare, por favor... — ela pediu.
A forma como ela o queria e o puxava para si impediram-no de
interromper o ato de amor. Giovanni investiu repetidamente, entrando e
saindo dela, até que o prazer substituiu a sensação de desconforto e ela
relaxou, levantando os quadris para que pudesse senti-lo ainda mais. Ela
literalmente foi ao êxtase. Gritou o nome dele e, quando atingiu o orgasmo,
ele também gozou. Espasmos de prazer percorriam os corpos nus, numa
sensação plena de que o mundo lá fora simplesmente tinha deixado de
existir. Suados, exaustos, ficaram intimamente unidos algum tempo, numa
preguiça deliciosa, sentindo o compasso de seus corações. Após alguns
minutos, ele saiu de dentro dela. Rolou para o lado e depois a abraçou.
Quando a respiração dos dois voltou ao normal, a voz rouca de Giovanni
rompeu o silêncio:
— Você está bem, Lila?
Ela assentiu e se aconchegou em seu peito, mas ele fez com que
erguesse a cabeça e a encarou intrigado. Os olhos verdes espreitando os cor
de mel. Experimentando a angústia inevitável, Lila foi do céu ao purgatório,
porque sabia o que ele ia perguntar.
— Pode me dizer o que isso significou?
— Como assim?
— Você sabe, por favor, posso parecer bobo, mas não sou. Parecia sua
primeira vez. Como isso é possível?
— Eu...
Desconfiado ao ver o constrangimento nos olhos dela, ele a
interrompeu:
— Fale de uma vez, Lila! Você mentiu pra mim sobre aquela noite, não
mentiu?
Ela podia alegar que o sexo ainda era desconfortável para ela, que na
primeira vez ele mal a penetrou de tão bêbado, mas resolveu abrir o jogo
para ter paz. Não queria começar a vida a dois mentindo. Ela o amava
demais para enganá-lo outra vez.
— Vai ficar com raiva de mim?
— Vou ficar com raiva se não for sincera, porque eu juro, estou
começando a pensar que não te conheço mais.
— Perdão, Gianni, mas hoje foi nossa primeira vez. Aquela noite não
aconteceu nada entre nós.
— Eu sabia. Por que mentiu?
— Não suportei a ideia de te perder para a Carolina. Quando soube que
você ia se casar com ela, eu surtei. Eu te amo, eu sempre te amei...
— Está me dizendo que fez o que fez intencionalmente?
— Sim.
Nervoso, Giovanni se esquivou de seu contato e saiu da cama. Vestiu o
calção de banho rapidamente, ainda impactado com a verdade.
Envergonhada, Lila se cobriu com a delicada colcha de piquet que cobria o
colchão e se recostou à cabeceira da cama com os olhos marejados.
— Me perdoa, meu amor, por favor.
Giovanni não podia acreditar no que aconteceu. Lila armou para separá-
lo de Carolina. Pior, armou tudo para levá-lo a se casar com ela.
Ela chorava e ele não sabia o que fazer. Andando de um lado para o
outro em meio ao quarto, se sentou na cama e a segurou pelos ombros,
desesperado.
— Eu me culpei todos esses dias por ter te seduzido, por ter sido tão
irresponsável. Desde aquela noite tenho vivido um verdadeiro inferno de
culpa, o remorso quase me enlouqueceu, porque até agora acreditei que
tivesse me deitado com você bêbado e tirado sua inocência.
— Eu não queria te fazer mal, muito menos fazer com que se sentisse
culpado, mas aquela noite sua mãe me falou que você se casaria com
Carolina, pediu que eu desaparecesse da sua vida, eu saí de mim.
— Ótimo, agora foi por vingança! — disse ele se levantando e se
afastando da cama.
— Nãooo! — Ela se levantou também e se jogou nos braços dele. — Eu
te amo, Gianni, sempre amei. Tive medo de te perder e por isso fiz o que
fiz. Eu sei que agi errado, mas lutei com as armas que eu tinha. E, acredite,
eu não tinha muitas. Quando você me procurou, me deu sem querer a
desculpa que eu precisava para te obrigar a me enxergar como mulher.
— E me fez de idiota! Aproveitou-se da minha bebedeira. Do enorme
carinho e consideração que tenho por você.
— Você estava bêbado, mas não foi só a bebida, eu coloquei um
remédio da sua mãe no vinho. Depois ficou fácil fazer o que eu queria.
— Meu Deus! A verdade só piora os fatos, Lila! Você teve coragem de
me dopar? Que espécie de pessoa é você?! Não posso acreditar nisso. É um
pesadelo, só pode ser. Não só me enredou numa teia de mentiras, como fez
entrar neste casamento sabendo que eu não tive culpa de nada.
— É isso. Eu podia te dar mil desculpas esfarrapadas e florear o que fiz,
mas optei pela honestidade. Não quero mais mentir.
— Meu Deus, minha mãe falou que você queria me usar, me manipular,
eu não dei crédito.
— Sua mãe é a última pessoa que pode me julgar e ela não está no meu
coração pra entender o que eu sinto por você.
— Depois do que fez nem sei se tem um coração, Lila.
— Não fale assim, meu amor — ela pediu aos prantos, tentando abraçá-
lo. — Eu te contei a verdade porque, depois de tudo que vivemos nesta
cama, não queria mais mentiras entre nós.
— Não existe mais um nós!
— Vai me deixar?
— Pode ter certeza que vou.
Em prantos, Lila não teve coragem de encará-lo.
— Você mentiu, disse que não ia sentir raiva de mim se eu contasse a
verdade.
— Ótimo, somos dois mentirosos. Eu estava enganado, não suporto
mentira, falsidade, qualquer coisa, menos isso. — Soltando-a com
brusquidão, Giovanni saiu do quarto.

Foi uma noite turbulenta e Giovanni custou a dormir. Sua cabeça deu
um nó. Caminhou pelo quarto que Lila costumava ocupar. Viu o diário dela
na mesa de cabeceira. Ao abri-lo, o marcador de páginas caiu.
“No amor e na guerra vale tudo”. Lembrou que era de Helga. Não foi
uma nem duas vezes que o viu com ele nas mãos. Será que por amor vale
tudo?
Estava muito confuso. Não gostava de ser manipulado. Principalmente
por alguém em quem confiava cegamente. Precisava de um tempo.
Precisava mesmo.

Nica percebeu que alguma coisa estava errada na manhã seguinte, ao


notar que Giovanni estava dormindo no antigo quarto que Lila ocupava e
que ela, por sua vez, estava no quarto dele, a única suíte do chalé.
Fez o café da manhã com o coração apertado e suas desconfianças de
que aquela união era absurdamente irresponsável se concretizaram, quando
Giovanni se despediu sem se alimentar e passou por ela feito um foguete.
Contrariada, começou a desempenhar as tarefas domésticas rotineiras.
Quando Lila acordou, chegou a ter dó da menina. Nitidamente havia
chorado muito, estava triste, com os olhos inchados e olheiras enormes.
— O que aconteceu com vocês?
— Ai, Nica, eu estraguei tudo.
— Como assim?
Entre soluços, Lila contou-lhe tudo que fez. Escandalizada, a mulher
mais velha a olhou num misto de pena e reprovação.
— Por que fez isso com ele? Sabia que, ao acordar e se deparar com
aquela situação, ele faria qualquer coisa para se redimir. A gente não pode
forçar um casamento, minha filha. Essas coisas têm que acontecer
naturalmente. Um casamento é uma união para a vida toda, não um jogo de
interesses.
— Mas ele ia se casar com a Carolina. E depois, ele insistia em me ver
como criança. No fundo, no fundo, eu acreditei que ele me amava, só não
tinha coragem de assumir esse sentimento por conta da diferença de idade.
Agora ele me odeia.
— Não, ele não te odeia, está magoado, decepcionado. Você foi longe
demais. Agora ele está com raiva, sentindo-se manipulado, enganado, mas,
pelo que conheço do coração do Giovanni, isso vai passar. Dê um tempo pra
ele. Tenho certeza de que meu menino é incapaz de odiar uma pessoa,
principalmente alguém tão importante pra ele como você.
— Se eu pudesse voltar atrás, Nica...
— Faria a mesma coisa, eu sei — disse Nica enxugando seu rosto e
esboçando um sorriso. — Eu não fazia ideia de que pudesse gostar tanto
dele assim. Quero dizer, como homem.
— Desde que fiz catorze anos, eu entendi que não era só admiração que
eu sentia, ele era o centro do meu mundo, meu coração acelerava toda vez
que alguém falava o nome dele. Sei que nada justifica minha atitude, fui
egoísta, mas não ia suportar vê-lo casado com aquela lambisgoia.
Nica a embalou enquanto Lila chorava. De certa forma, também não
queria o casamento dele com Carolina. Ela era ambiciosa, esnobe, ele não
merecia ser infeliz. Após um tempo, Lila finalmente se acalmou. Comeu
alguma coisa e saiu para caminhar na praia. Ao chegar ao chalé, Giovanni
ainda não havia retornado.
— Ele deve estar no escritório. Se quiser, o Tarso te leva lá com o Jipe.
— Não, prefiro esperar mais um pouco. Eu sei que passei dos limites e
não quero forçar a barra.
“Flor de ir embora
É uma flor que se alimenta
Do que a gente chora...”
Flor de ir embora – Maria Bethânia

Lila estava aflita e viu que o relógio marcava meia-noite quando


Giovanni voltou para casa. Correu até o quarto dele, mas ele já tinha
trancado a porta. Bateu e nada. Pediu desculpas, chorando, e ele a ignorou.
Do lado de dentro, ele estava arrasado. Decidiu que na manhã seguinte
ia viajar. Precisava se afastar de Lila, precisava de um tempo para digerir
tudo o que ouviu na véspera. Pior, para aceitar que a menina que sempre
colocou num pedestal e protegeu era capaz de mentir e manipular.
Lila chegou às 19 horas em casa. Ficou até mais tarde na livraria
conferindo os novos livros que chegaram. Assim que entrou no chalé, Tarso
trouxe o recado de que Giovanni havia viajado a trabalho e pretendia ficar
fora alguns dias.
Foram quatro noites em que ela rolou na cama sem conseguir dormir.
Na sexta-feira, ela saiu com Ester e Heitor. Jantaram juntos, mas nada
comentou sobre o desentendimento com Gianni.
Assim que abriu a porta de casa o viu na sala. Sentado no sofá, segurava
uma garrafa de vinho. A encarou, obviamente surpreso ao vê-la arrumada,
usando um vestido preto e justo e as sandálias de salto.
— Posso saber onde estava? — perguntou já de pé, com um ciúme
irracional tomando conta dele.
— Com a Ester e o padrinho — ela respondeu e o desarmou quando
correu até ele e o abraçou — Que bom que está em casa, senti tanto a sua
falta, Gianni!
Tinha muito para explicar, mas antes que pudesse abrir a boca, ele
segurou seu queixo e falou:
— Você é tão linda, tão linda... — E a beijou.
Podia sentir o perfume amadeirado misturado ao cheiro de álcool e se
perguntou quanto ele tinha bebido, mas não se importou. Não queria de
forma alguma que ele se afastasse dela novamente.
Ela pôde sentir o sabor do vinho no beijo, transpassou as mãos em sua
nuca e se entregou ao que sentia. Então ele parou, a olhou, pensou que ele
ia se afastar, mas ele roçou a boca em seu pescoço, afundou o rosto em seus
seios e colou a boca na dela novamente. Daquela vez, a segurou pelo
quadril e sua língua morna explorou a dela de uma forma diferente, mais
sensual, mais ousada, era como se estivessem fazendo amor com a boca.
Não demorou para que o corpo dela ficasse em chamas. Ele se sentou e a
puxou para o colo dele no sofá, livrando-a rapidamente do vestido, não
demorou para que tirasse o sutiã também. Ele tomou seus seios com os
lábios, enquanto as mãos seguiam explorando seu corpo de forma deliciosa
e uma delas já avançava sob a calcinha preta de renda. Bastou alguns toques
e estava muito excitada. Com ele não era diferente. Logo libertou o membro
ereto das roupas e pediu que ela sentasse sobre ele.
Naquela noite não fizeram amor, fizeram sexo, muito sexo. Ele falava
obscenidades em seu ouvido, a provocava com as mãos e a boca e quase a
enlouqueceu de prazer.
Acordou tarde na manhã seguinte e sozinha. Sentiu um enorme vazio ao
ver que depois de uma noite tão quente, ele tinha saído sem conversar com
ela. O vazio se transformou e lágrimas ao receber um SMS:
A noite passada foi um erro. Precisei viajar a trabalho novamente.
Não sei quando volto. Depois conversamos.

Ok.

Lila jogou o celular longe depois de responder. Queria fala rum monte
de desaforos, mas se segurou. Como ele podia ser tão canalha?
Nos dias que se seguiram, ela concentrou suas energias na livraria,
esperou qualquer contato durante a semana que passou, mas ele não ligou.
Então ela entendeu. Aquela noite ele tinha bebido demais e só por isso
ficou com ela. A verdade é que não a perdoou pela mentira.
Lila continuou se desculpando por mensagens, escreveu e-mails
apaixonados, ligou várias vezes, mas Giovanni não retornou nem as
mensagens e nem os telefonemas. O celular dava caixa postal e as
secretárias só sabiam dizer que ele estava em reunião. Após ser ignorada
por quinze dias apelou. Telefonou para o padrinho e marcou um encontro.
Sempre presente em sua vida, Heitor era o único que poderia ajudá-la.
Lila encontrou Heitor na cafeteria da ilha. Contou que o casamento ia
mal. Omitiu o que fez para se casar com Giovanni por constrangimento e
informou apenas que eram incompatíveis como marido e mulher e que
queria se separar.
Surpreso, Heitor a convidou para passar alguns dias com ele e a esposa
e esfriar a cabeça. Lila ia voltar para o apartamento, já que continuar no
chalé não era uma opção, mas acabou aceitando. Era bom se sentir acolhida
naquele momento.
Já estava na casa do padrinho há uma semana quando Heitor chegou do
Rio acompanhado de seu novo assistente, um advogado recém-formado.
Para surpresa de Lila, ela reconheceu Alberto, o filho do ex-jardineiro da
mansão, que sempre foi muito simpático com ela.
— Meu Deus! Não acredito que é você, Alberto!
Ela o abraçou e foi o padrinho que explicou:
— O mundo dá voltas, Lila. Alberto estudou em Minas Gerais e, por
coincidência, os pais dele trabalham para um cliente meu. Ele me ajudou
num caso recente que peguei por lá e foi tão competente e prestativo que o
contratei. Estou muito feliz que ele tenha aceitado me acompanhar.
Lila não podia acreditar. Conversou bastante com o rapaz. O viu
algumas vezes ainda menina e sabia que foi namorado de Sabrina.
Acabaram saindo na tarde seguinte, ela o levou para conhecer a Cia.
Del Mare, a prainha e a vila. Almoçaram juntos e ele acabou contando o
motivo pelo qual se afastou de Sabrina.
A prova da maldade de Ângela só fez Lila sentir ainda mais mágoa
daquela família. Ela também contou do casamento com Giovanni, eles se
tornaram facilmente amigos porque ambos conheciam a dor de um coração
partido.

Semanas foram passando e Nica não aceitava o fato de Lila ter saído de
casa na ausência de Giovanni, mas nada do que disse a trouxe de volta para
o chalé. Lila estava muito magoada. A caseira pedia a Deus que Giovanni
não demorasse muito a voltar. Sabia que ele sofreria se Lila realmente
decidisse se afastar. Pensando nisso, foi até a livraria visitá-la.
— A loja está ainda mais linda do que eu me lembrava, filha!
Lila apresentou Tomaz para Nica e depois a chamou para irem ao
apartamento. Já na sala de estar, sentou-se diante dela.
— Fiquei uns dias com o padrinho, você sabe, mas já voltei pra cá.
— Trabalhar tudo bem, Lila, mas não acho certo se mudar enquanto seu
marido está ausente. Por que não espera ele voltar?
— Nica, o Gianni está fora há um mês. Fiz de tudo para falar com ele e
nem uma vez se dignou a responder minhas mensagens, simplesmente
ignorou minhas ligações. Acho que deu tempo suficiente de refletir sobre o
que aconteceu e se ainda não voltou é porque não faz questão nenhuma de
me ter na vida dele.
— Isso não é verdade. Ele sempre se importou com você.
— É diferente agora, Nica. Eu sei que errei, mas ele também errou
fugindo assim. O problema é que ele é orgulhoso, teimoso, cheio de
bloqueios que não consegue superar. Eu sei que mesmo me querendo ele
acha errado ficar comigo; se torturou tanto, que me evitou por semanas após
o casamento. E depois que contei a verdade, ele perdeu a consideração e o
respeito que tinha por mim. Ele nunca vai me perdoar pelo que fiz. Ele não
tolera mentiras. Amo aquele teimoso, amo você e o Tarso e amo a prainha,
mas já que não posso viver lá, quero ficar aqui no meu cantinho, onde me
sinto bem-vinda, útil e feliz.
— Lila, não se termina com um casamento por impulso. Já chega o
modo como se uniram. Vocês mal ficaram juntos e já está recuando. Se
queria tanto o Gianni pra você, por que está desistindo tão fácil?
— Não tem sido nada fácil. Eu sei que forcei a barra, fui impulsiva,
manipulei os sentimentos dele, poxa, eu sei... mas ele preferiu se afastar em
vez de conversar. Ele não quis me dar uma chance. Se quer saber, já pedi ao
padrinho pra cuidar do nosso divórcio.
— Minha Nossa Senhora! Como pode isso, nem vai consultar o marido?
— O padrinho vai, já que ele nem se deu ao trabalho de me dar um
telefonema. Depois, ele não gosta de mim, nunca gostou, e isso não vai
mudar.
— Claro que gosta.
— Não como mulher, Nica, você me entendeu. Ele sempre foge de
mim. Eu forcei uma situação, não me orgulho do que fiz, mas agi como agi
porque achei que ele me desejava, ainda acho, mas o problema é que a
nossa história e a diferença de idade o impedem de me aceitar como esposa.
Nica baixou os olhos. Apesar de tão jovem, Lila entendia muito bem os
sentimentos de Giovanni.
— Fui impulsiva e agora estou pagando o preço, mas isso não significa
que eu não possa dar um novo rumo à minha vida e libertá-lo deste inferno.
Estou muito animada com a livraria e até penso em ampliar meu negócio
com um cybercafé. Minha mãe me deixou bem financeiramente, então,
dinheiro não é o problema. O que eu quero mesmo é uma vida nova.
— E seus estudos?
— Continuo com eles. A faculdade a distância é bem flexível. O Tomaz
é meu braço direito aqui.
— Tem resposta pra tudo, menina.
— Quem dera, só faço o melhor que eu posso.
Assustada com a determinação de Lila, Nica não sabia o que dizer.
Despediu-se e voltou resignada para o chalé. Mais tarde, Giovanni ligou e
ela contou que Lila tinha saído de casa e que pediu a Heitor para cuidar do
divórcio. Giovanni desligou irritado. Já estava em São Paulo há semanas.
Depois daquela noite em que agiu como um animal com Lila precisou se
afastar. Viajou para fechar alguns negócios e colocar a cabeça no lugar.
Acabou ficando mais do que devia, porque um negócio sempre levava a
outro. Pra piorar, por orgulho, ignorou todas as mensagens de Lila. Agora
ela devia estar uma fera com ele.
Tinha tanta coisa na cabeça. Estava decepcionado com Lila e com ele
mesmo. Seu coração estava uma bagunça, a consciência pesada e no meio
disso tudo, os negócios exigindo atenção.
Além do escritório que herdou do avô, tocava a construtora que Helga
deixou para Lila e para ele e que estava na melhor fase. Não podia
simplesmente ir embora e virar as costas para suas obrigações. Ao mesmo
tempo, sabia que agiu mal ao deixar a situação como deixou. Não retornou
uma só mensagem ou telefonema da esposa. Agora ela queria o divórcio.
Mais uma atitude impulsiva.
Não sabia se devia se sentir aliviado ou com raiva. Soube pela secretária
que Lila andou visitando a Del Mare na companhia de um rapaz. Decerto já
tinha encontrado alguém para ajudá-la a superar o que houve entre eles.
Que fosse. Embora sentisse raiva só de pensar em outro homem com ela,
sabia que seria inevitável. Ela era tão jovem, obviamente nem sabia o que
era amor e cedo ou tarde ele seria trocado.
Enfim, tudo que Lila fazia ultimamente era só pensando em si. Pela
primeira vez, ele também se daria o direito de ser egoísta.

Dois dias depois, Giovanni estava jantando com um cliente importante


da construtora, quando deu de cara com os pais num restaurante
conceituado, próximo à Avenida Paulista. Eles contaram que chegaram à
cidade há alguns dias e estavam no apartamento que foi do avô. O
convidaram para ir a um show após o jantar, o que era algo bem incomum
da parte deles. Ele ficou de pensar.
Estava precisando mesmo relaxar, ainda que a companhia não fosse
propriamente acolhedora. Conversou com Tarso aquela tarde e ele contou
que Lila estava se virando muito bem sozinha. A livraria continuava de
vento em popa e ao que tudo indicava, ela estava levando o divórcio a sério.
Obviamente não precisava dele para mais nada.
Não sabia mesmo como lidar com aquele casamento. Por mais que se
sentisse manipulado e traído com o que ela fez, não podia ser hipócrita ao
ponto de negar o desejo que sentia e esquecer os momentos quentes que
viveram. Não conseguia tirar da cabeça a paixão que sentiu ao possuí-la, a
pele macia, o cheiro do cabelo dela, o corpo delicioso, a forma apaixonada
como correspondeu aos seus carinhos. Tudo isso o encantava e enfurecia ao
mesmo tempo.
Ângela, pouco depois de falar com o filho, ligou rapidamente para
Carolina. Tinham se encontrado aquela tarde num salão no Jardim Paulista
e ela garantiu para a jovem que o casamento de Giovanni não ia longe.
Vibrou ao saber por Nica que Lila tinha saído do chalé e pedido o divórcio.
Ângela não aceitava aquela união. De jeito nenhum. Como mãe zelosa que
era, daria mais um empurrãozinho para o fim.
Giovanni aceitou esticar a noite com os pais após o jantar. Queria
esquecer o divórcio e tudo mais que envolvia seu casamento tumultuado
com Lila. Estavam se levantando para ir a um bistrô com música ao vivo
quando Carolina chegou. Convidou-se para acompanhá-los e Giovanni não
teve como se esquivar do programa.
No fim da noite, Carolina estava bêbada e não cansava de se insinuar
para ele, em dado momento a segurou para evitar uma queda e ela colou a
boca na dele. Os paparazzi tiraram mil fotos dos dois e ele custou a se livrar
da jovem, principalmente na suíte do hotel, onde uma vez a sós com ele, fez
de tudo para levá-lo para a cama.
Na manhã seguinte, ele constatou que a noite em companhia dos pais e
da ex deu um bom material para as revistas de fofoca:

“Beijo de cinema! Milionário da indústria pesqueira reata com a ex-


noiva antes mesmo de tirar a aliança do dedo.”
“E ninguém é eu, e ninguém é você.
Esta é a solidão.”
Clarice Lispector

Quando Sabrina chegou a Porto da Onça, procurou por Lila no chalé.


Ao saber que ela não estava morando ali, pediu a Nica que a levasse até ela,
pois não conhecia bem o centro da ilha.
Sempre admirou Lila pela forma como enfrentava a mãe. Pela
espontaneidade e naturalidade. Depois de amargar os últimos meses ao lado
do suposto marido, decidiu que não mais aceitaria as imposições dos pais.
A vida era muito curta para sofrer tanto e viver de aparência, se
acomodando à infelicidade.
O relógio marcava seis e meia da noite quando a campainha tocou. Lila
estava fazendo um sanduíche natural. Guardou os ingredientes, lavou as
mãos e adiou o lanche. Ao abrir a porta, deu de cara com Sabrina. A
recebeu entre surpresa e preocupada, assim que a abraçou, ela caiu no
choro. Lila nunca imaginou que um dia Sabrina estaria ali e, ainda por
cima, naquele estado.
— Desculpa vir assim sem avisar, Lila. Quando fugi de casa tive certeza
de que a única pessoa que poderia me ajudar seria você. Lamento que já não
esteja com meu irmão, passei no chalé antes e a Nica me contou tudo.
— Não precisa me pedir desculpas. E eu também lamento. Mas entre.
— Viu as malas no chão e as puxou para dentro. Fechou a porta, a guiou até
o sofá, onde se sentaram lado a lado e perguntou: — O que aconteceu de tão
grave para você fugir de casa, Bri?
— Além de um casamento infeliz e sem amor?
Lila assentiu. E novamente entre lágrimas Sabrina desabafou:
— O Marcos é um homem horrível. Descobri que, embora seja
homofóbico, ele gosta de homens.
— O quê? Calma, Bri, ele não se casaria com uma mulher se gostasse
de homens.
— Casaria sim, ele queria um casamento de fachada. Precisa acreditar
em mim. Eu o flagrei transando com o personal trainer na sauna.
Lila arregalou os olhos:
— Uau, que safado! Ele te traiu dentro de casa?!
Ela assentiu.
— Mas o pior é que ele não se assume, acho que não aceita, reage como
um louco a qualquer menção de sua homossexualidade e desconta sua
frustração em mim. Fala que sou feia, sem graça e que por isso não sou
capaz de despertar atração nele.
— Que horror, mas isso é abuso psicológico, Bri. Li alguma coisa a
respeito num dos livros que eu cadastrei na minha loja. É crime. Como
aceitou que ele agisse assim sem denunciar?
— Vergonha, constrangimento, medo, tudo e mais um pouco.
Infelizmente, ele não me agride só com as palavras, Lila, o que já dói
muito.
— Como assim?
— Quando está com raiva, ele bebe e me bate.
— Não acredito! — Lila tampou a boca horrorizada. Então Sabrina
tirou a blusa e mostrou as marcas da violência do marido nos braços e
pescoço.
— Meu Deus! — Lila estava horrorizada. — Você contou aos seus pais?
— Quando falei da grosseria com que o Marcos me tratava, que ele não
conseguia consumar o casamento, minha mãe me disse para fingir que
estava tudo bem, porque valia a pena.
— Não dá pra acreditar.
— Ela não se importa comigo, Lila, apenas com a opinião das amigas
fúteis e as consequências que meu divórcio pode causar na sociedade que o
meu pai tem com o Marcos.
— Ai, Bri, estou arrasada. Sinto muito que tenha passado por isso. A
Ângela pode não se importar, mas eu sim e tenho certeza de que o Giovanni
também se importa. Pode ficar aqui em casa o tempo que quiser. Vamos
falar com o padrinho e tomar as providências legais. Aquele monstro não
pode sair impune.
— Acho que eu mereço. Eu casei sem amor, você sabe que eu nunca
esqueci o Alberto, mas ele desapareceu e fiquei tão desiludida que já não
me importava com nada.
— Eu sei, Bri, e sua mãe não ajudou nem um pouco impondo o Marcos
pra você. Mas agora tudo que se pode fazer é olhar pra frente. Acho que já
sofreu demais.
— Eu posso mesmo ficar aqui, não vou te incomodar?
— Claro que pode. Vou adorar ter companhia.

Naquela noite Lila não pregou os olhos. Sabia que Sabrina foi
apaixonada por Alberto e, coincidentemente, mesmo sem saber, os dois
agora estavam tão próximos. Só podia ser o destino. Quem sabe poderiam
reatar pelo menos a amizade? Uma coisa era certa: ela ia ajudar a passar
aquela história a limpo.
No dia seguinte saiu bem cedinho para comprar pão fresquinho na
padaria perto de casa. Qual não foi sua surpresa ao se deparar com a foto de
Giovanni e Carolina estampada numa revista de fofoca da Banca da Ilha.
Ao vê-los se beijando, sentiu como se tivesse levado um chute no
estômago. Tirou a própria aliança furiosa e enfiou na carteira.
Quem era ela para julgar Sabrina, se fez o que fez para envolver Gianni
contra a vontade? Pelo visto, o que viveram juntos não significou nada para
ele e muito menos o fez esquecer a ex-noiva.
Custou a engolir o café da manhã. Mostrou a revista para Sabrina, que
franziu a testa, mas ficou calada. Lá pelas onze da manhã, as duas foram se
encontrar com Heitor.
Lila ficou na companhia de Ester e Sabrina foi com o padrinho fazer
exame de corpo delito, depois seguiriam até a delegacia da mulher para
denunciar Marcos, já que a Lei Maria da Penha existe exatamente para
coibir a violência doméstica, tanto no aspecto físico quanto psicológico.
Justamente naquela manhã, Alberto apareceu procurando Heitor.
Cumprimentou Lila com um abraço, que logo o informou que Sabrina
estava em Porto da Onça, contando por alto os últimos acontecimentos.

Sabrina estava com Lila há uma semana e Heitor já tinha dado entrada
no pedido de anulação do casamento, que nunca se consumou.
— Bri, tem alguém que pediu para conversar com você hoje.
— Quem é, Lila?
— O assistente do meu padrinho. Ele é recém-formado em Direito e
chegou aqui em Porto da Onça há alguns meses.
— Mas o Heitor não prometeu cuidar do meu caso pessoalmente?
— Sim, e vai. O que o rapaz quer conversar com você não tem nada a
ver com seu divórcio.
— Então não entendo.
— Vai entender.
Meia hora depois Alberto chegou. Lila abriu a porta para ele e o
conduziu até a sala onde Sabrina estava, ela por sua vez, encarou o ex-
namorado chocada.
— Ele é o assistente do Heitor?
— É, Bri, pra você ver que mundo pequeno. Olha, como eu sei que
vocês dois têm muito que conversar, vou deixá-los a sós.
E Lila soprou um beijo para os dois, pegando a bolsa e saindo em
seguida.
Sabrina olhava para o ex-namorado ainda sem acreditar. Alberto sempre
foi bonito, mas agora estava elegante, refinado.
— Alberto! Nunca imaginei te reencontrar aqui na ilha — disse ainda
impactada com o reencontro.
— Imagino, faz seis anos que a gente não se vê. Posso te dar um
abraço?
— Claro. Desde que não seja por pena de mim.
— Nunca senti pena de você, raiva do seu ex certamente eu sinto.
Muita. Mesmo sem conhecê-lo.
Ele a abraçou e Sabrina não conseguiu evitar as lágrimas. Estar nos
braços de Alberto era como voltar para casa depois de enfrentar uma
tempestade. Foi o único homem que amou na vida, a única fase em que se
permitiu sonhar e ser feliz. Sentiu o cheiro do perfume cítrico, seus braços
fortes contra o corpo e teve dificuldade em se afastar.
— Por que me abandonou, Alberto? Nunca entendi. Foi horrível. Sofri
demais.
— Eu sei, linda, nunca me perdoei por isso, mas na época não tive
escolha.
— Como assim?
Então ele contou sobre as ameaças de Ângela.
— Meu Deus! Minha mãe consegue ser ainda pior do que eu pensava.
Eu nunca nem pensei que ela sabia de nós. — Sabrina chorou mais ao saber
a verdade.
— Mas sabia. Nunca te esqueci, Sabrina. E se quer saber, estou aliviado
que você esteja aqui agora, sozinha, porque ainda tenho esperanças de te
reconquistar.
— Mesmo depois do que a minha mãe fez? Mesmo depois de todo esse
tempo?
— Pode apostar.
Ela enxugou as lágrimas e o abraçou novamente. Então o beijou. Eles
tinham muito que conversar, mas tudo que ela queria agora era estar nos
braços dele nem que fosse por alguns momentos e esquecer o mundo lá
fora.
Lila aproveitou e foi até o chalé. Estava com saudade de Nica, de Tarso
e da prainha. Queria aproveitar e pegar umas últimas peças de roupa e
alguns porta-retratos que deixou para trás. Bateu à porta, mas ninguém
respondeu. Como ainda estava com a chave entrou. O telefone estava
tocando e atendeu num impulso.
— Alô!
— Lila, é você?
Ao ouvir a voz de Giovanni ela buscou fôlego para responder.
— Claro que sou eu.
— Não tinha saído do chalé?
— Saí. É que eu vim buscar o resto das minhas coisas. Pode voltar pra
casa agora, se quiser. O motivo para se afastar não existe mais. Ah, e não se
esqueça de trazer a Carolina com você. Tudo o que precisa fazer é assinar o
divórcio e estará livre para desfilar com ela. Ah, foi mal — ironizou —,
esqueci que já andam desfilando juntos. Da próxima vez que agarrá-la em
público, não se esqueça de tirar a aliança, eu já tirei a minha.
— Claro que tirou, como sempre você já decidiu por mim.
— Pelo menos eu enfrento as consequências do que faço e não me
envergonho do que sinto, tem gente que prefere fugir do que faz e do que
sente. E pior do que fugir é mandar recado pelas revistas de fofoca. — Ela
então bateu o telefone na cara dele e Giovanni sentiu o sangue ferver.
Tentou ligar novamente, mas ela não atendeu.

Dois dias depois, Giovanni estava se vestindo para ir até a construtora,


quando Heitor apareceu no loft. Estava só com uma toalha na cintura ao
abrir a porta.
— O que o traz aqui?
— Bom dia, Giovanni. Espero não incomodar. Eu precisei vir a São
Paulo ontem à noite para atender um cliente e, como precisava falar com
você, pedi seu endereço à sua secretária, espero que não se incomode.
— Tudo bem. É sobre o divórcio?
— Também.
— Sente-se, por favor.
O advogado se acomodou no sofá e tirou da pasta algumas revistas com
a foto de Giovanni e Carolina estampada na capa.
— Sabe que Lila é como uma filha pra mim e só vim te procurar porque
eu quero ter certeza de que estou fazendo o melhor pelos dois.
— Honestamente, Heitor, essas revistas aí não significam nada. A Carol
estava bêbada e me beijou, não foi como eles insinuaram.
— O que não muda os fatos.
— Não, e lamento por isso. Mas a verdade é que considero meu
casamento um erro, a Lila me tira do sério.
— Isso ela faz comigo também. Sempre fez. — Heitor riu e Giovanni
retribuiu o sorriso.
— Olha, se não se importa eu vou me vestir e depois conversamos.
— Tudo bem.
Quando o rapaz lhe deu as costas, Heitor empalideceu. Ele tinha a
mesma marca de nascença que ele nas costas, uma mancha parecendo um
raio. Aquilo não podia ser coincidência, podia?! Sentiu falta de ar e
precisou afrouxar a gravata.
Giovanni logo voltou. Heitor tentou manter a calma para não se
precipitar e o convidou para tomar um café numa confeitaria que sempre
frequentava na Paulista. Giovanni aceitou e ficou combinado que teria uma
última conversa com Lila antes de darem andamento ao divórcio.
“Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim...”
Vento no litoral — Renato Russo

Heitor chegou à Urla no dia seguinte. Era pouco mais de oito da manhã
quando Ângela o recebeu.
— O que quer comigo? Se veio falar da sua afilhada, vou deixar claro
que sou completamente a favor do divórcio e que estou muito feliz ao saber
que meu filho recuperou a sanidade e está longe daquela ratinha miserável.
— Não, Ângela. Eu vou ignorar suas ofensas e ir direto ao ponto. Como
teve coragem de me esconder a vida toda que o Giovanni é meu filho?!
— De onde tirou isso?
— Talvez dos olhos dele, talvez da marca de nascença que ele tem nas
costas ou talvez porque chegou o momento de a vida me revelar a verdade,
o que importa é que agora eu sei. Sempre sonhei com um filho e você
escondeu de mim que eu já tinha um. Preciso mesmo pedir um DNA para
que seja honesta comigo ao menos uma vez na vida?
Ângela estremeceu e precisou sentar, pois a ameaça de um teste de
paternidade era praticamente a eminência de um escândalo.
— Por que este interesse depois de tantos anos, o que isso muda?
— Muda tudo, Ângela. Você sempre foi egoísta e manipuladora, mas eu
não fazia ideia do quanto pôde ser cruel. Pensar que um dia eu me
apaixonei e acreditei que teríamos um futuro em comum.
— Sempre foi um tolo, um ingênuo. Se não fosse pelo meu pai, não
seria ninguém.
— Eu realmente devo muito a seu pai, que ao contrário de você era
gente.
— Era pobre de espírito, isso sim. O que pretende fazer agora que sabe
a verdade?
— Não sei, Ângela, mas obviamente você será informada. Passar bem.
E ele saiu da mansão como se precisasse de ar. Aquela mulher era tão
fria, tão manipuladora que ele não sabia o que dizer ou como se comportar
diante dela.
No mesmo dia, ele voltou para São Paulo. Ligou para Giovanni e
marcou com ele no Apart. Anoitecia quando finalmente se encontraram.
Heitor, ainda abalado, contou a verdade para Giovanni, que o escutou
estarrecido e consentiu em fazer um exame de DNA. Se por um lado estava
surpreso com tudo que Heitor lhe contou, por outro em muito lhe agradava
a ideia de não ter laços de sangue com Rogério, que tanto mal lhe fez na
infância. Se as suspeitas de Heitor fizessem sentido, dava para entender
porque foi tão rejeitado na infância. Desabafou com Heitor os maus-tratos
que sofreu no passado, a culpa com a morte do irmão e o alívio quando foi
morar com o avô. Heitor ficou arrasado. Quando Ângela o trocou por
Rogério, ele foi estudar em São Paulo e soube do casamento pelas colunas
sociais, mas nunca desconfiou de que ela pudesse estar grávida dele.

Lila caminhou mais de uma hora na prainha e decidiu que o único modo
de esquecer aquele casamento desastroso era viajar um tempo para longe da
ilha, quem sabe aceitar a sugestão que Ester lhe deu e ir para o exterior.
Precisava ver coisas novas. Precisava tirar Giovanni da cabeça e ali seria
praticamente impossível.
Ao mentir para ele na noite do casamento de Sabrina, ela agiu com
ímpeto, estava zangada com Ângela, com a vida, mas a verdade é que usou
a única arma de que dispunha para apostar suas fichas no amor. Quem pode
atirar uma pedra quando agimos guiados pelo coração? Ela era jovem e ser
imprudente não é um traço da imaturidade?
Depois, se “na guerra e no amor vale tudo”, o que fez foi lutar sem
pudores. Se manipulou e mentiu foi para ficar com o homem dos seus
sonhos. Não conseguiu, mas estando certa ou errada, não permitiria que
ninguém a julgasse, nem Giovanni.
Secou as lágrimas com as costas das mãos. “Triste é olhar para trás e
lamentar o que a gente não faz”, leu certa vez num romance e concordava
plenamente. Perdeu muita coisa na vida e sabia que o chão pode sumir num
instante, então não sobrava tempo para se arrepender.
Giovanni tinha o direito de escolher outra mulher para dividir a vida
com ele. Carolina estava certa quando disse que ele se casou com ela por
pena, por senso de dever. Pois que fosse. Se ele não podia aceitá-la como
mulher, se não a desejava, que ficasse com aquela megera.
Não queria mais se enganar. Também não se arrependia. A verdade é
que faria tudo de novo para ficar com ele se ainda acreditasse que existia
uma chance de ser correspondida.

Foi um fim de semana difícil. Estava confusa, deprimida e para piorar


vomitou a noite toda. Acordou enjoada e, assim que a segunda-feira
chegou, Lila confidenciou a Sabrina que pretendia viajar um tempo para
fora.
— Entendo. Está sofrendo por causa do meu irmão, não está?
— Ele não tem culpa do que eu sinto, Bri. Forcei a barra. — E tomando
coragem, contou a ela o que fez para se casar com Gianni.
Sabrina não ficou chocada e nem a recriminou.
— Quer saber, Lila? Com a mãe que eu tenho, eu não te julgo nem um
pouco. A Carolina é mesmo uma mulherzinha fútil e insuportável e lamento
que meu irmão não enxergue isso. O que sei é que eu sempre amei o
Alberto, mas não tive chance de lutar por ele. Olha no que deu. Mas Deus é
tão incrível que me trouxe até aqui e quem eu encontrei? Ele.
— Verdade. Destino. E o Alberto é uma pessoa incrível, Bri. Um cara
leal, educado, honesto, trabalhador e lindo. Vocês merecem ficar juntos.
— Ai, Lila, será? Ficamos juntos esse fim de semana e foi tão lindo. A
gente vai assumir o namoro assim que sair a anulação do meu casamento
com o Marcos.
— Fico tão feliz, Bri.
Lila pensou que, de certa forma, Ângela teria o troco merecido, porque
ela era conservadora e preconceituosa o suficiente para sofrer com a decisão
da filha de se casar com Alberto. Doeria fundo nela a anulação do
casamento.
— Olha, vocês podem ficar no meu apartamento enquanto estou
viajando.
— Jura?
— Claro. E se quiser pode continuar tocando a livraria, vi que gostou de
me ajudar esses dias. Vou adorar te ter como sócia.
— Quero muito, Lila. Não sei como agradecer.
— Sendo feliz.
— Nossa, você está tão pálida.
— Passei mal a noite toda. Muito enjoo.
— Enjoo? Não está grávida?
Lila empalideceu. Pensando bem, ela não tomava pílula e Giovanni não
se protegeu das vezes que estiveram juntos.
— Pela sua cara, acho melhor comprar um teste de farmácia.
— Você acha?
— Claro, Lila.
Assim fizeram e depois de três testes diferentes não restava dúvida. Lila
marcou um exame de laboratório e pensou que precisaria refazer seus
planos.
“Vamos ver o pôr do sol
Me dê a mão
Uma estrela só
Não é constelação...”
Colorir papel – Jammil e uma noites

Lila saiu para se encontrar com Heitor e Ester, quando então foi
surpreendida com as revelações do padrinho sobre o passado com Ângela e
a suposta paternidade de Giovanni. Ela conhecia a marca de nascença e
realmente não dava para negar que era idêntica. O padrinho estava sempre
de terno e transitando entre escritórios, motivo pelo qual nunca reparou na
tal marca.
Ester reagiu bem aos fatos e apoiou o marido no teste de paternidade.
Em breve teriam a confirmação. Heitor aceitou com alegria a ideia de ser
pai de Giovanni. Ela pensou que estranha coincidência da vida, porque, se o
exame de laboratório confirmasse a gravidez, Heitor logo seria avô de um
filho seu.
Com a ausência de Lila naquela tarde, Sabrina aproveitou e ligou para
Giovanni. Estava na hora de seu irmão ouvir umas verdades.
— Bri, é você?
— Sim, sou eu mano.
— Pelo prefixo está me ligando de Porto da Onça. O que aconteceu?
— Muitas coisas. A gente precisa conversar.
— Agora não, Bri. Vou entrar num avião em dez minutos.
— Eu tenho tempo pra esperar dez minutos, mas você não.
— O que quer dizer com isso?
Então ela contou sobre Marcos, as agressões que sofreu e o casamento
de aparências, fez questão de falar de Lila e a forma carinhosa como a
acolheu em Porto da Onça. Contou também sobre o que Ângela fez para
separá-la de Alberto. Falou muitas verdades para as quais se calou durante
muito tempo. E terminou dizendo que, por um orgulho besta e um
preconceito descabido, ele estava perdendo uma mulher maravilhosa, que
mesmo tão jovem superava Carolina em caráter e maturidade.
Giovanni desligou o telefone perplexo com tudo que ouviu da irmã.
Então Lila pretendia viajar para a Europa?

O resultado saiu naquela manhã e Heitor foi em São Paulo para abrir o
laudo junto com Giovanni. Entrou no loft com o envelope na mão.
Giovanni o recebeu ansioso.
— Eu quero que você abra — pediu Heitor.
E não havia dúvidas, Heitor era mesmo seu pai biológico. Eles se
abraçaram emocionados. Giovanni sentiu um peso sair de seu peito. Era
simplesmente libertador não ser filho de Rogério.
Pela primeira vez sentia-se em paz.
Pensou em Pietro.
Uma lágrima saiu de seus olhos, depois outra e chorou como há muito
tempo não fazia.
— Sei que você já é um homem feito, Giovanni, mas eu não poderia
escolher um filho melhor. Espero que me dê a oportunidade de fazer parte
da sua vida daqui pra frente.
— Claro que sim. Agora eu preciso ver a minha mãe. Ela me deve
muitas explicações.
— Vou com você.

Ângela estava almoçando com Rogério no apartamento da família no


Jardim Paulista, quando Giovanni e Heitor chegaram.
— Por que trouxe este homem aqui? Ele não é bem-vindo! Não ia viajar
para Salvador?
— Ia. O resultado do DNA saiu.
Ângela olhou para Rogério sentindo o sangue gelar.
— Isso não muda nada.
— Muda tudo, mãe. Como pôde?! — E se voltou furioso para Rogério.
— Você permitiu que esse monstro me torturasse quando eu era criança
simplesmente pelo fato de não termos o mesmo sangue, tanto que por causa
da sua violência nós perdemos Pietro.
— Cale-se! — gritou Rogério, socando a mesa. — Não se atreva a falar
de Pietro. A culpa foi sua!
— Não foi! Eu tinha dez anos e já carreguei essa culpa tempo demais.
Violência não se justifica. Eu não merecia ser maltratado apenas porque não
era seu filho legítimo. E minha mãe não tinha direito de se omitir e
esconder a verdade sobre meu verdadeiro pai. Pietro foi uma vítima do seu
descontrole.
Rogério baixou a cabeça abalado, mas Ângela atacou:
— Não venha me falar de direitos, Heitor sempre foi um simplório e
você, claro, não nega a raça. Desde novo preferia os empregados. Escolheu
viver naquela ilha imunda com meu pai.
— Imunda é essa sua noção distorcida de mundo. Você é fria e
calculista, Ângela — disse Heitor — Não merece os filhos que têm!
— Não venha me dar lição de moral, você é um nada, um ninguém.
— Pelo menos posso olhar pra trás com dignidade, coisa que você não
pode.
— O que a vida não te ensinou, Heitor, é que aqui neste mundo só conta
aparência, dinheiro e poder.
— É por essa linha de pensamento que estamos numa sociedade caótica.
Pessoas que só se preocupam em ter: políticos ambiciosos que não pensam
no amanhã; pessoas que matam pessoas, desmatam florestas, poluem o
meio ambiente, traficam, destroem, sem levar em conta que a vida é só uma
passagem. Lamento que pense assim. Tem ideia do que seu comportamento
causou à Sabrina?
— Como assim? — perguntou Rogério. — O que está insinuando sobre
a minha filha?
— Sabia que o Marcos batia nela? — perguntou Giovanni. — A Bri
contou que ele nunca consumou o casamento porque não gosta de mulheres.
E vocês sabiam disso o tempo todo. Assim como sabiam que eu era filho de
Heitor.
Rogério apenas falou:
— Não faça drama, Giovanni.
— Drama? Tem coragem de dizer que estou fazendo drama? Sua única
filha estava sofrendo todo tipo de abuso e mesmo sendo pai biológico não
fez nada para ajudar.
— Ela tem uma vida confortável, é o que importa.
Giovanni encarou Heitor chocado. Aqueles dois não tinham a menor
noção de nada. Eram apenas cascas, só isso.
— Vocês se merecem. Como eu bem sei que pouco se importam
comigo, vim para dizer que Sabrina terá todo meu apoio nesse divórcio.
— O quê?! — Ângela ergueu a sobrancelha esquerda assustada. —
Como assim, divórcio?
— Ela finalmente largou aquele crápula.
— Não acredito que ela saiu de casa e largou o marido. Que escândalo,
meu Deus!
— Viu, Ângela? Criou sua filha cheia de vontades e mimos, deu nisso!
— acusou Rogério.
— Eu não sei em que mundo vocês vivem, será que me ouviram?
Prestaram atenção quando eu disse que o Marcos bateu nela? Acho mesmo
que estou acordando agora para o fato de que nada do que eu tenho pra falar
realmente importa para vocês.
Ele saiu do apartamento enojado, enquanto o casal continuava
discutindo. Giovanni sentia-se mal por nunca ter apoiado Sabrina. Entendia
agora porque Lila agiu como agiu com ele. Fazia uma ideia do que ela
passou convivendo com Ângela. De certa forma era libertador saber que
Heitor era seu pai biológico, porque Ângela e Rogério não podiam
decepcioná-lo mais. Pela primeira vez pensou no irmão e sentiu o peito
leve. Ele não tinha culpa, Pietro reagiu daquela forma porque nenhuma
criança é obrigada a conviver com a violência.
Naquela noite, ele sonhou com o irmão. Estava sentado num banco de
ferro e madeira, em meio a um jardim florido, que lembrava o da mansão de
Urla.
— Gianni, eu vim me despedir.
— Pietro, é você mesmo?
E Giovanni abraçou o irmão, seus olhos se encheram de lágrimas ao ter
o menino nos braços.
— Que saudade.
— Agora que você sabe a verdade e seu coração está mais leve, eu
posso ir embora. Cuide bem da Lila, ela é a sua palavra mágica!
E ele correu.
Giovanni o chamou, mas ele sumiu em meio às folhagens.
Acordou suado, o coração disparado. Foi tão real que ainda podia sentir
o cheiro do irmão.
Lila estava com o passaporte em cima, então tudo que fez foi fazer a
reserva das passagens e do hotel. Quanto ao que levar, organizou a bagagem
em dois dias. Não via Giovanni há mais de um mês, mas parecia um ano.
Despediu-se de Tomaz na véspera. Ele era um ótimo funcionário,
pontual, honesto e criativo. Não desses que trabalham para cumprir horário
e bater cartão, com cara feia do tipo “eu te odeio só porque você é minha
patroa”, mas desses que visam crescer no que fazem, que tentam realizar
seu papel da melhor forma possível, para subir na vida, aliando talento e
mérito.
Sabrina também estava animada em gerenciar a livraria, era organizada,
limpa e certamente cuidaria tão bem do apartamento quanto da loja, então,
tudo que ela precisava agora era relaxar e curtir a nova experiência.
Como a gravidez se confirmou, talvez voltasse para a ilha antes de dar à
luz. Só Sabrina sabia de sua condição e pediu segredo absoluto, pois não
queria que Giovanni ficasse com ela por causa do bebê.
Ventava muito quando o padrinho a deixou no porto. Ajeitou o vestido
poá preto, com bolinhas brancas, o decote em V. Estava com brincos de
pérola, o cabelo preso num rabo de cavalo e sandália Anabela preta e
marfim.
Abraçou Ester e Heitor com carinho. Depois Sabrina e Alberto. Pediu
que se fossem logo dali, pois não queria chorar. Precisava de um tempo
sozinha até a lancha chegar. Na véspera tinha se despedido de Nica e Tarso
e não foi nada fácil.
Todos entraram no carro, mas ela não olhou para trás. “Chega de
lágrimas”, repetiu para si mesma. Seguiu até o deque decidida. Esperava a
lancha para ir até a cidade. De lá pegaria a conexão para o aeroporto e
embarcaria para a Europa. Ficaria fora no mínimo uns cinco meses.
Precisava muito daquilo. Levava pouca coisa, só uma pequena mala e uma
bolsa de mão. A verdade é que tinha muito mais para buscar do que para
levar. Novos ventos. Nova vida. Longe da decepção que foi seu casamento
e seu primeiro amor. Não tinha mãe, nem pai, apesar de bons amigos, não
tinha ali quem realmente sofresse com sua ausência.
A lancha encostou.
Respirou fundo.
Aproximou-se mais e, para sua surpresa, Giovanni saiu da cabine.
Fechou e abriu os olhos para ter certeza. Era ele. Vestia uma bermuda
branca e uma camisa polo marinho. Calçava uma sapatilha camurça. Na
mão esquerda, o relógio de pulso que ele adorava.
Ele rapidamente saltou sobre o deque, atravessando em poucos passos a
distância que os separava. O cabelo preto desalinhado ao vento. A
ansiedade no olhar. Ela o encarou e não viu nada de indiferença ali. Nada de
mágoa. Pelo contrário, ele parecia feliz e aliviado ao vê-la. Ele parou diante
dela e segurou seu rosto com as mãos.
— A Nica me avisou que você ia viajar hoje cedo.
— Ia não, eu vou. Vai ser bom pra mim, não acha?
— Viajar é sempre bom, só que...
— O quê?
— Vai mesmo sozinha?
— E com quem eu iria?
— Comigo, talvez.
Ele riu e ela ficou confusa. Oi? Giovanni estava cogitando ir com ela?
Impossível não sentir as pernas bambas e aquele friozinho na barriga.
Tentou forçar um sorriso desinteressado e ergueu a sobrancelha
esquerda para perguntar:
— Mas por que iria comigo se está me evitando há mais de um mês?
Ele então a segurou pela cintura, sentindo seu aroma frutal e a pele
suave contra o rosto.
— Lila, não sei se pode me perdoar, mas preciso ser honesto com você
antes que voe para longe de mim.
— E o que te faz supor que eu quero ouvir?
— Tem razão, eu não sei, estou pedindo instantes da sua vida, mas não
sei se mereço a chance de falar.
Ela explorou os olhos verdes. Ele parecia sincero.
— Tudo bem, você tem cinco minutos.
— Eu tive uma infância infeliz, Lila. O Rogério não era meu pai
biológico e eu não sabia disso. Ele me batia, me rejeitava e minha mãe se
omitia. Uma manhã, meu irmão caçula presenciou uma dessas cenas, viu o
pai tirar o cinto pra mim e levou uma chicotada no meu lugar, na boca. Ele
correu de casa e foi atropelado. Eu vi tudo e nunca superei isso, sofri
demais achando que a culpa era minha, ouvindo Ângela e Rogério
repetirem que o culpado era eu. Isso me afastou da Sabrina, me fez ter
horror daquela casa. Eu tive duas pessoas que me ajudaram a enfrentar essa
dor: meu avô e sua mãe. Foi por eles que eu me tornei o homem que sou.
Quando ela se foi, confiou em mim pra cuidar de você. Eu prometi a mim
mesmo que te protegeria. Quando você cresceu e passei a me sentir atraído
por você, eu fiquei chocado com isso. Fiz de tudo pra não me envolver. Até
a noite do casamento. A partir dali, eu já nem sabia mais o que fazer com
meus sentimentos e os seus. A razão de um lado, o coração de outro e me vi
perdido no meio dessa guerra. Sei que fui teimoso demais pra admitir que
eu te queria; e tentando não te magoar, acabei te magoando. Eu sei também
que não foi certo o que você fez pra se casar comigo, mas a verdade é que
eu estava cego e se não tivesse mentido talvez eu nunca teria cedido.
Depois de estar dentro de você, eu não tive mais paz. Não há uma noite que
eu durma sem pensar em você ou uma manhã que eu acorde sem querer o
seu corpo. Sinto falta do seu cheiro, do contato com a sua pele, dos seus
sorrisos e até da sua mania de me tirar do sério. Eu sei que errei e devia ter
voltado antes pra corrigir minha estupidez, mas só agora, diante da hipótese
de te perder, entendi que tudo que nos separa não tem a menor importância
quando estamos juntos, porque estar do seu lado supera as bagagens ruins
do meu passado, anula a nossa diferença de idade ou mesmo o fato de eu
achar que não te mereço. Eu finalmente entendi que eu não posso viver sem
você. Eu te amo, Lila. Na realidade, eu sempre te amei, só não imaginei que
se tornaria a mulher da minha vida.
O coração dela disparou. Lágrimas saltavam de seus olhos sem que
pudesse segurar. Já não ouvia o burburinho das ondas e as gaivotas que se
agitavam na areia. Tampouco enxergou o piloto que acenava da lancha ou
qualquer coisa que não aquele homem diante dela. O amor de sua vida.
Largou a mala no chão. Amava Giovanni desde que se entendia por gente, o
admirava, por ele fez loucuras, com ele se desapontou, mas agora ele estava
ali diante dela dizendo que a amava e que não podia viver sem ela. Seria
possível?
Os olhos dela se encheram d’água ao perguntar:
— Mas e a Carolina?
— Por favor, Lila. Não me diga que levou aquelas manchetes a sério.
— Claro que levei.
— Eu não tive nada com ela. Estava com Ângela e Rogério aquela noite
e ela chegou de repente. Bebeu muito. Eu a amparei até o hotel e ela me
agarrou, mas aquele suposto beijo não durou nem o tempo de dois flashes.
Foi só isso.
— Vai me dizer que não sentiu nada?
— Nadinha. Eu não quero absolutamente nada com ela e nem com outra
mulher que não seja você.
— Jura?
— Juro.
— Não suporto aquela cobra.
Gianni riu. A espontaneidade dela lhe fazia muito bem. Então ele fez
um carinho em seu rosto e pediu:
— Me dá mais uma chance, Lila. Eu não gostei de ser manipulado e não
quero mais mentiras entre nós, mas não vou deixar que vá pra longe de
mim, eu simplesmente não suporto a ideia de te perder.
— Não vai mais sentir culpa por me desejar?
— Não. Eu achava errado te querer, eu me culpava pelo que sentia,
porque sua mãe confiou em mim e também porque eu te vi crescer. Fiquei
decepcionado ao descobrir que mentiu pra mim, mas depois daquela noite
eu entendi que eu não posso ser feliz sem você. Não posso e não quero. Eu
sei que fez o que fez por amor.
— E por que não falou comigo? Por que não voltou antes?
— Por orgulho, idiotice?
Os olhos cor de mel fixaram os olhos verdes cheios de esperança.
— Bobo!
— Sou, fui, mas eu também te amo, Lila.
— Ai, meu Deus! — ela exclamou e se jogou nos braços dele com o
coração num ritmo acelerado. Ambos ficaram emocionados.
— Que saudade senti de você, menina, do seu cheiro, do seu corpo e até
da sua língua afiada.
— Ah, Gianni, fiquei tão triste. Você não me atendia, não respondia
minhas mensagens.
— Às vezes, Lila, o maior limite que a gente tem que superar é o dos
nossos medos e preconceitos.
— Eu sei, entendi isso no momento em que percebi que me queria e ao
mesmo tempo fugia de mim, mesmo assim não te tirei da cabeça um só
minuto.
— Como pode ser tão linda?
— Como pode ser tão teimoso?
Então ele a puxou para mais perto e a beijou, porque ali não cabia mais
um “se”.
Quando se afastaram, ela disse:
— Tem mais uma coisa que eu preciso te contar.
— O quê?
— Eu sei que é cedo, não foi planejado, mas aconteceu — ela
respondeu e colocou a mão dele sobre sua barriga.
— Está me dizendo o que eu acho que está?
— Sim — ela respondeu entre lágrimas. — E dessa vez tenho provas do
que estou falando. — Ela riu e tirou o exame de sangue da bolsa.
Ele olhou o resultado com os olhos rasos d’água, depois beijou o papel,
a levantou do chão e a rodopiou.
— Vou ser pai!
— Vai e eu vou ser mamãe!
— A mamãe mais linda do mundo.
Eles riram e se beijaram novamente.
Ao longe, Heitor, Ester, Alberto, Sabrina, Nica e Tarso observavam a
reconciliação. Desde a véspera que eles sabiam da volta de Giovanni e
aguardaram ansiosos. Agora estavam exultantes.
O casal nem notou a plateia, tão alheios estavam ao mundo. Ali, nos
braços um do outro, as horas não contavam. O porto, a lancha e o tempo
deixaram de existir.
E foi assim que Porto da Onça registrou aquela linda história de amor.
Porque, quando o destino intervém, não há força capaz de impedir o que
deve ser. E quis o destino que, apesar de tudo que os separava, eles se
tornassem marido e mulher. Era para ser: contra todas as probabilidades e a
favor do coração.
Notas
1)
Música: Call me maybe (Me ligue, talvez).
Tradução: “Eu joguei um desejo no poço/Não me pergunte, eu nunca vou
contar/Eu olhei para você quando fiz o pedido/E agora você está no meu
caminho...” ↵
2)
“Even when it’s not right/Where there is desire, there is gonna be a
flame/Where there is a flame, someone’s bound to get burned”. ↵

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