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Gay de Família

Felipe Fagundes

1ª edição
2021
Copyright © 2021 Felipe Fagundes

Grafia atualizada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação e revisão de texto


Sofia Soter

Diagramação
Karen Alvares

Capa
Laura Guedes

Ilustrações
Freepik.com

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19/02/1998.


É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que
venham a ser criados no futuro sem autorização prévia, por escrito, do autor.
Sumário

1 – Você é meu tio viado?


2 – Daí você pensa, meu Deus, que bicha burra
3 – Os pais vão me acusar de ministrar o kit gay
4 – Brinquedo de boiola
5 – Aqui jaz um passivo
6 – Família de bem atropela homossexual
Um pouco mais sobre Gay de Família
Sobre o autor
Para todo mundo que decorou
por osmose todas as falas
de um filme da Disney.
1
Você é meu tio viado?

NO DIA EM QUE EU SAÍ DE CASA, minha mãe me disse: “Filho, vem cá”.
Passou a mão em meus cabelos, olhou nos meus olhos e começou
a falar: “Mas que desgosto, Diego”. Estragando a música e nossa
relação.
Meu pai mal olhou na minha cara.
Preferia que tivesse olhado. Só disse que de jeito nenhum ia ter
um filho boiola, então acho que deixei de ser filho dele naquele dia.
Boiola, eu continuo sendo.
Antes de eu cair na rua, meu inseparável irmão mais velho me
puxou num canto e me garantiu que tudo ia ficar bem e que não
perderíamos o contato. Acertou metade da previsão. Hoje tenho
vinte e sete anos, um trabalho que paga minhas contas e um
apartamento em Botafogo que divido com uma amiga. Também
posso comentar com emojis safados a foto de qualquer homem de
sunga no Instagram sem medo de que algum parente meu faça um
escândalo. Tudo está mesmo muito bem, obrigado.
Mas agora falo com meu irmão só duas vezes por ano — no Natal
e quando ele precisa de um favor — e é por conta disso que fico em
silêncio quando ouço a voz dele no interfone. Estamos em março.
— Diego, você não pode fingir que não está em casa depois de
dizer oi.
O que mais me irrita nessa família é que eles estão sempre
dizendo o que posso ou não fazer.
— O que você quer? — digo, vencido.
— Por que você acha que quero alguma coisa? Eu sou da sua
família.
Aí é que está o problema. Meu conceito de família é um lugar
para onde não se volta. Ainda me lembro de andar de madrugada
pelas ruas do Rio, arrastando uma mala de rodinhas com o que
consegui pegar, sem saber para onde ir, com vergonha de pedir
ajuda. Meu irmão já esqueceu.
— Posso subir? — pergunta ele.
A resposta negativa sai da minha boca mais rápido do que
planejei.
— Por que não? Tem… alguém aí com você?
— Tem, ele é grande, gostoso e atende por Jorge.
— Você tá de sacanagem comigo.
Infelizmente, minha vida sexual é mesmo uma piada. Olho para o
apartamento vazio e me pergunto o que falta para os gays do Rio de
Janeiro me notarem. Você precisa ser mais musculoso, eles
disseram. O ideal é morar na Zona Sul, disseram também. Você
precisa ser mais branco. Tem que dar menos pinta, fazer mais a
barba, tirar foto em academia e encher a casa de planta. Tirando a
parte de ser branco, agora eu já preencho todos os requisitos e,
mesmo assim, as conversas nos aplicativos de pegação não
evoluem muito. Talvez eu devesse mesmo considerar o clareamento
anal.
— Vou descer.
Porque a última coisa que quero é ter que fazer sala para o meu
irmão num sábado à noite. E também porque estou só de cueca,
meias e uma camisa que cortei pela metade. Visto uma calça de
moletom e calço chinelos, mas saio do apartamento com meu
cropped artesanal porque sei que vou chocar. Desço de elevador,
dou boa noite para o porteiro que sei que secretamente me odeia e
vejo meu irmão através das grades do portão.
Estar prestes a trocar palavras com Diogo é quase uma sessão
de terapia: ressuscita todos os meus traumas. Culpo meu pai por
ser um boçal, minha mãe por não ser forte o suficiente e meu irmão
por sumir. Eu tentei voltar, sabe? Várias vezes. Minha amiga Nádia,
a que mora comigo, diz que meu irmão devia estar tão perdido
quanto eu, que adolescentes são assim. Mas era eu quem estava
na rua.
No carro dele, estacionado sobre a calçada, percebo que sou alvo
de pares de pupilas ansiosas. Meu irmão anda sempre em bando.
Talvez seja o crente que mais levou a sério o ensinamento divino de
crescer e multiplicar. Vejo a esposa dele no banco do carona, e ela
se chama Karen ou Kátia. Nunca fiz questão de gravar o nome dela
porque Diogo nunca fez questão de apresentá-la a mim. Não
consigo dizer quem é quem, mas sei que a creche inteira está no
banco de trás.
— O que você está vestindo? — pergunta meu irmão, e quase
dou risada.
Vestir essa blusinha é um ato político. Ele tá sempre me olhando
de cima. Primeiro que é uns dez centímetros mais alto que eu,
segundo que me acha menos homem. Eu discordo. Sou mais forte,
mais bonito, me pareço muito mais com os galãs de novela do que
ele, que é narigudo, entroncado e está ficando careca. Tenho quase
certeza de que o venço numa briga mano a mano.
— O que você está vestindo? — rebato. — Tá saindo pra pescar?
Diogo usa camisa bléh, tênis argh e bermuda urgh cheia de bolso.
— Cara, é bem mais importante — me diz ele através das grades,
pois não pretendo abrir o portão. — Preciso de um favor seu.
— Então tem um favor.
— É sério, Diego, me ouve. Eu e a Keila… A gente combinou de
sair hoje, mas a babá das crianças… Tipo, a gente combinou muito
de sair hoje, já está tudo reservado e agendado e essas frescuras.
— Vocês marcaram de sair para transar?
Que horror, ser hétero e casado é ainda mais triste do que ser um
gay padrão.
— Fala baixo, cara! É que as crianças… A babá delas…
Então minha ficha cai: meu irmão dirigiu até minha casa por conta
de um delírio sexualmente frustrado.
— Jura que você acha que eu vou tomar conta de cinco crianças?
— pergunto, incrédulo.
Honestamente, me pedir para dar uma banda no Dráuzio Varella
seria menos chocante.
— São só três! Você nem sabe quantos sobrinhos tem?
Quando fui expulso de casa, a Karmen estava grávida. Tentei me
importar com o nascimento da bebê, mas aparentemente eu era gay
demais para estar perto de uma criança. Não me chamaram para o
chá de bebê, nem para o primeiro aniversário. Meu irmão inventava
desculpas quando eu perguntava se podia ver a criança. Aí veio o
segundo filho e nada mudou. Fiquei sabendo pelo Facebook.
Quando anunciaram o terceiro, desisti de acompanhar a fábrica.
Jurava que já tinha um quinto. Não sei como meu irmão e a esposa
sabem diferenciar quem é quem porque lembro que todos têm
nomes genéricos, então na minha cabeça eles se chamam Diogo 1,
Diogo 2 e Diogo 3.
— O que rolou com a coitada que ia ser mal paga pra cuidar de
filho dos outros?
— Ela cancelou de última hora. Já tentamos todos os conhecidos,
nossos amigos, e todo mundo está ocupado hoje à noite. São três
crianças, Diego, ninguém de fora da família aceita ajudar assim do
nada.
— Azar o seu, então, porque a família também não quer.
Meus pais moram em São Gonçalo, e Diogo só está aqui porque
não é dono de um helicóptero.
— Por favor! Eu imploro. Sei que não ando muito presente, sei
que só apareço pra te pedir coisas, mas, cara, pelos velhos tempos.
Eu juro que vai ser a última vez.
— Você já usou a cartada da última vez antes e, veja só, você
está aqui.
Cruzo os braços. Me disseram que isso demonstra que estou
fechado para propostas. Estou mais fechado que a porta da casa
deles.
— Diego, eu preciso trepar. Eu e a Keila, a gente não consegue
ficar sozinhos nem por um minuto! É criança gritando, vomitando,
pintando a parede, cagando onde dorme, dormindo onde caga!
Cara, a vida de pai de família é puxada. Hoje a gente marcou e
agendou tudo certo, mas a infeliz da babá…
— Você vai chorar?
Arrisquei a piada porque nada seria mais constrangedor do que
ver meu irmão mais velho chorando por falta de sexo.
— Isso vai te fazer passar uma noite com seus sobrinhos?
— Não.
— Pensa. É a sua chance de passar um tempo com eles! Você
sempre quis! Eles também querem saber quem é o tio deles.
Não deixo de notar o golpe baixíssimo. Toda semana algum gay
das minhas redes sociais está postando foto com criança. É batata,
é quase um meme, lá vai o gay e seus sobrinhos. Todos os meus
amigos têm pelo menos uma criança em quem se escorar, seja para
preencher o feed no dia 12 de outubro, seja para ganhar likes com a
fofura alheia, seja para dar um presente, bater a foto e depois
devolver para os pais. Essas oportunidades foram tiradas de mim.
— Eles só não sabem porque você e Késia...
— Keila — corrige ele.
— Porque você e Késia ficaram anos fingindo que eu não existia!
É só por isso que esses pirralhos não me conhecem. Eu deixei de
ser o tio gay depravado? O tio que vai para o inferno?
— Cara, eu nunca disse que você ia para o inferno!
Cruzo ainda mais os braços porque me lembro dessa conversa
muito bem.
— Tá, eu disse que você não vai entrar no céu, é bem diferente —
admite ele.
Dou as costas e torço para que as crianças caguem e vomitem
naquela casa inteira hoje à noite.
— Eu te pago quinhentos reais! — grita meu irmão do portão.
Retorno imediatamente da portaria, me sentindo insultado.
— Você acha que pode me comprar com quinhentos reais? —
digo, bem alto dessa vez.
Diogo gagueja um pouco e coça a cabeça. O olhar perdido de um
homem em desespero.
— Juro que não quis te ofender, mas é que…
— É de mil pra cima, lindão — digo.
— Você tá falando sério?
— Mil por criança.
— Eles são seus sobrinhos!
— Se ninguém quis ficar com eles, é porque devem ser um trio de
pestes.
Diogo suspira, e consigo ver a incredulidade em seu rosto. Ele é
dessas pessoas que acredita que família é tudo, mesmo quando
essa família te bota para fora e te joga no colo de Satanás. Eu
deveria ter cobrado mais, inclusive. Esse homem tem grana,
trabalha no setor de desvio de dinheiro da prefeitura ou sei lá, esses
trabalhos de homem hétero.
— Ok… — diz ele depois de alguns segundos, após olhar para o
relógio. — Eu poderia pagar qualquer babá do mundo com esse
dinheiro, puta que pariu.
— Foi burro de ter vindo na mais interesseira.
Em minha defesa, também sou muito compreensivo. Não ia me
sentir bem negando um favor pedido de forma tão suplicante, mas
prefiro que Diogo literalmente pague por todos os seus pecados.
Vejo meu irmão sacudir a cabeça e ir até o carro, então, sou
apresentado aos três mil reais mais fáceis da minha vida. Diogo 1 é,
na verdade, uma menina gorducha de óculos que se parece mais
comigo do que com o próprio pai. O cabelo dela é cacheado e passa
dos ombros. Deve ter uns dez anos? Talvez menos? Herdamos a
mesma cor mesclada do marrom do meu pai com o branco de
minha mãe. Diogo 2 tem o cabelo crespo e espetado em todas as
direções e cara de quem pode explodir uma casa. Diogo 3 é um
toquinho branco de três anos de idade vestindo preto dos pés à
cabeça.
— Ele tá voltando do velório da Galinha Pintadinha?
— Ele chora se veste outra cor — explica meu irmão.
Eu enquanto menino que queria vestir rosa não tive tanto apoio
parental.
— Falem oi, crianças.
— Oi, tio! — respondem os dois meninos.
Demoro alguns segundos para entender que o tio sou eu. Já fui
chamado de vários nomes ao longo da vida, inclusive de tio por
adolescentes desconhecidos, mas é a primeira vez que de fato sou
tio. Não sei se gostei. Me sinto velho e quero corrigi-los.
A menina quase se esconde atrás do pai e dá um aceno tímido
quando Diogo Pai a empurra para frente.
— O gato comeu sua língua, Diogo 1? — pergunto.
— Você sabe o nome dos meus filhos, não sabe?
Em minha defesa, eu já soube. O problema é que esse negócio
de apelido pega muito rápido.
— São... nomes bíblicos — arrisco.
— Tá, mas quais?
— Hum…
Encaro aqueles rostinhos esperando que algo neles me dê
alguma dica. Os únicos nomes de Bíblia que lembro são Jesus e
Lúcifer.
— Tinha uma Maria Madalena na Bíblia, não tinha?
— Ester, Diego. O nome dela é Ester. Esses são Miguel e Gabriel.
— Você é meu tio viado? — pergunta o do meio.
— Nossa, que amor de criança — comento.
Não me ofendeu. Vindo da boca dele, ser viado pareceu minha
profissão. Você é meu tio professor? Meu tio bombeiro? Meu tio
fotógrafo? Eu adoraria ser pago para ser gay.
— Miguel, a gente já conversou sobre palavrão. Sim, esse é seu
tio Diego e ele vai cuidar muito bem de vocês por hoje.
— Ele vai cuidar da Suzie também? — pergunta o menorzinho
gótico.
— Você deu nome de cachorro pra uma filha?
As crianças dão risada, e meu irmão vai até o carro novamente.
Volta com uma gata horrorosa dentro de uma caixa de transporte
vermelha.
— O que houve com a cara dela? — pergunto, realmente curioso.
— Nada, ela é assim.
É a gata mais feia que já vi. Não consigo ver o corpo dela dentro
da caixa, mas o rosto parece uma tela branca onde alguém
espalhou cores com raiva. Metade da cara do animal é preta, mas
com pinceladas de ódio na cor laranja aqui e ali. Cada olho é de
uma cor, e dentro deles consigo ler a mensagem “Oi, vim do
inferno”.
— Eu não vou cuidar dessa gata.
— A gente também precisa que alguém fique com ela. Ela não
gosta de ficar em casa sozinha, cara. Por favor. Ela fica meio arisca
de vez em quando, mas não é nada demais, só deixá-la no canto
dela.
Um dos dioguinhos murmura alguma coisa, mas o pai o manda
calar a boca. Encaro Suzie novamente e, tirando a parte dela ser
mal diagramada e do calafrio que ela me causa, acredito que
consiga dar conta por três mil reais.
— Eu deveria cobrar pela gata também.
— Você nem vai notar que a Suzie está na casa — garante meu
irmão, então deve ser mentira.
Somos interrompidos pela buzina do carro. Kelly aparentemente
está doida pra dar.
— Preciso ir — diz meu irmão.
Pego a caixa de transporte da gata com uma mão e ajeito a bolsa
com cacarecos de criança num dos meus ombros. Diogo me dá
alguns avisos, blábláblá, não deixe fulane comer açúcar, blábláblá,
beltrane se for abraçado morde, blábláblá, sicrane não pode ficar
perto do fogão, e a lista de avisos é grande demais para eu
conseguir prestar atenção. Meu irmão acha que, só porque ele não
consegue dar conta dos próprios filhos, eu também não consigo.
São só crianças, não é física quântica. Inclusive, tenho uma vasta
experiência com bebês nos colos de desconhecidos na rua rindo
para mim e gargalhando quando faço careta. As mães me adoram,
embora os pais nem tanto.
— Tchau, pai! — gritam os pirralhinhos.
Talvez eu devesse agora mesmo garantir minha foto para o
Instagram.
— Então, vamos? — digo.
Duas de três crianças comemoram, então sei que minha taxa de
aprovação já é alta. Diogo 1 me olha meio desconfiada, mas passa
para o meu lado quando vê o pai entrando no carro e acenando.
Kássia também acena e manda um beijo para os filhos. Estou
chocado que a mulher nem do carro saiu para me dizer oi, mas
podia ser pior: meus pais teriam me atropelado.
Dou boa noite novamente ao porteiro, que inspeciona as crianças
como um aparelho de raio-X. Ainda bem que duas delas são pretas.
Se fossem todas brancas, ele ligaria para a polícia alegando
sequestro.
Entro no elevador depois da prole do meu irmão, e começa o
interrogatório.
— Você é mesmo nosso tio?
— Cadê a parte de baixo da sua camisa?
— A sua casa é bonita?
— A gente pode brincar de pique-pega?
Os dois menores falam tudo que a menina não fala. Peço a ela
que aperte o botão do meu andar, mas, quando ela lentamente leva
a mão ao painel, Diogo 2 a desvia com um tapa e aperta antes dela.
— Eu sou tio de vocês, e essa camisa é… — começo a dizer.
— Mas você nem parece com nosso pai — diz Diogo 2.
— Você é adotado? — pergunta Diogo 3.
— O nosso pai é barrigudo.
— Você parece um super-herói.
— Você é da minha cor — diz Diogo 1, finalmente, e sua voz é tão
baixa que por um momento acho que foi Suzie quem murmurou.
Fico meio desnorteado com a rapidez das perguntas e pondero se
posso mandá-los calar a boca como o pai fez. Quando chegamos ao
meu andar, Diogo 2 diz:
— Você achou essa roupa no lixo?
Abro a porta do meu apartamento tentando explicar o que é um
cropped para um menino de seis anos.
2
Daí você pensa, meu Deus, que bicha burra

SENTO DIOGO 1, DIOGO 2 E DIOGO 3no sofá e mando logo a real:


— Então, pivetes, essa aqui é a minha casa, e eu que mando.
Vocês só vão sair desse sofá se eu mandar. Não pode ir ao
banheiro. Não pode ir à cozinha. Não pode xeretar meu quarto.
Daqui a pouco, vai todo mundo pra cama e amanhã vocês vão ver
os pais de vocês e contar que amaram estar aqui. Eu ganho três mil
reais, e vocês não ganham nada porque são crianças. Perguntas?
— Você não falou que sua casa era bonita? — diz Diogo 2, e eu
entendo por que a babá desistiu do trabalho.
— Eu posso fazer cocô no sofá? — pergunta Diogo 3.
— Primeiro que minha casa é bonita. Segundo que o quê?
— Quero fazer cocô — explica.
— Na minha casa tem uma televisão grandona — insiste Diogo 2.
— Você é pobre?
Olho na hora para a minha TV de quarenta polegadas. Eu
chamaria meu apartamento de jeitosinho. Quando chegamos aqui,
eram apenas paredes cor de creme velho e chão de taco sem brilho,
mas eu e minha amiga demos um jeito. Adoro as cortinas
vermelhas. Colocamos vasinhos de planta na estante, no parapeito
da janela, na mesinha de centro. Tenho uma samambaia
adolescente perto da entrada. Minha amiga entende de arte e
pendurou quadros com cores abstratas nas paredes atrás da TV e
no corredor que vai para os nossos quartos. Nada se compara ao
palácio que imagino que é onde essas crianças vivem, porém.
— Infelizmente, não lavo dinheiro que nem seu pai.
— Quer ajuda pra lavar, tio? — pergunta Diogo 3.
Acho que é isso que chamam de pureza infantil. Simplesmente
falam tudo o que pensam. Já me chamaram de pobre, esculachado,
feio e nem posso ficar com raiva deles. Só vou poder insultar as
pessoas assim sem consequências quando fizer oitenta anos ou o
Alzheimer acontecer, o que rolar primeiro.
— Diogo 1, você fala?
Nunca fui a criança que fazia silêncio, apenas quando estava
aprontando, então me dá nervoso essa garota extremamente quieta.
Ela quer falar, eu sinto. Dos três, é a mais comportada. Ela mexe no
cabelo cheio de vez em quando, mas as mãos estão quase sempre
em seu colo, as perninhas juntas. Seu rosto é bem bochechudo, e
eu tenho certeza que ela odeia que o apertem.
— Fala, garota. Bota logo pra fora — insisto.
— Sua esposa... saiu? — sussurra ela, enfim.
Dou uma gargalhada, mas a verdade é que seria melhor se Diogo
1 tivesse ficado calada. Vou ter que dar aula sobre o que é um
viado.
— Não tenho esposa — digo.
Ela apenas pisca os olhos por trás de seus óculos.
— É porque ninguém te quis? — pergunta Diogo 2.
Também.
— Meu amigo pode vir aqui brincar com a gente? — O
menorzinho vem com essa pergunta do nada.
— Deus me livre de mais uma criança aqui. Não, não pode.
Ouço a campainha tocar e fico em dúvida se foi realmente aqui ou
no apartamento ao lado. Ninguém toca nossa campainha porque
minha amiga Nádia obviamente tem a chave e não tenho intimidade
com ninguém no prédio. Espero que toque mais uma vez para
confirmar, e ela toca.
— Agora eu posso fazer cocô?
Suspiro.
— Diogo 1, leve Diogo 3 no banheiro. Diogo 2, eu tô de olho em
você. Toma conta da Suzie.
Levanto do sofá e vou até a porta percebendo a ironia de eu
saber o nome da gata que acabei de conhecer e chamar meus
sobrinhos por números. Quando abro a porta, descubro que Deus
não é uma mulher.
— Oi, desculpa atrapalhar sua noite. Sou seu vizinho. Me mudei
ontem.
Estou diante do mais belo espécime de homem do Rio de Janeiro.
Ou isso ou eu que já peguei muito homem feio nessa vida e perdi o
referencial, mas ainda assim. O maxilar dele seria eleito a Parte do
Corpo Mais Sexy pela revista People se esse prêmio existisse.
Deveriam inventar o prêmio só por causa dele.
— Eu com certeza nunca te vi por aqui — respondo, ao mesmo
tempo que avalio seu peitoral, pouco escondido pela camiseta, e
suas pernas grossas, expostas pelo short curto.
Meu mais novo vizinho dá um sorriso cinematográfico e quase
busco pipoca para acompanhar.
Nunca fui de tirar dez na escola. Não gosto muito de ler porque
livros demoram trezentas páginas para me contar o que um filme faz
em uma hora e meia. Minha carreira no mundo das letras foi
aprender a ler e a escrever, e é isso aí. Daí você pensa, meu Deus,
que bicha burra. Mas acho burrice uma palavra muito forte para falar
de quem está ganhando três mil reais para fazer os sobrinhos verem
TV por uma noite. E eu tenho outras qualidades.
Por exemplo, eu vejo as pessoas. Quando estou com tesão, meus
olhos se transformam em escaneadores poderosos. Chamo de
memória fotográfica gay. Por isso, enquanto Ulisses me fala seu
nome, aprendo o que disse e três coisas que ele não disse:
1) Esse homem vai à praia sete dias por semana, porque o
bronzeado dele não mente. Ele não é exatamente branco, porque
gente branca envelhece dez anos depois de dez minutos de sol. É
como se Caio Castro e Cauã Reymond se fundissem após uma
tórrida noite de amor.
2) Ele tem 1,90 de altura, porque meu ex-namorado tinha 1,87 e a
boca dele batia na minha testa. Este homem pode beijar o topo da
minha cabeça.
3) Ulisses beija rapazes. Sei disso porque ele tenta desviar os
olhos do meu abdômen exposto pelo cropped, mas não tem muito
sucesso. Dou uma requebrada casual para dar movimento à virilha
e vejo como ele se sobressalta.
— Só preciso de um pouco de açúcar, pode me emprestar?
A voz dele é grave, muito grave, do jeito que faz meu corpo vibrar.
— Tá no meio de uma receita? — pergunto.
— Você vai rir de mim, mas gosto de usar açúcar como esfoliante.
Dou mesmo risada, mas porque nunca canso de me surpreender
com como meu gaydar nunca falha (exceto quando ele falha, mas
continuo fingindo que não).
— Vou buscar pra você.
Penso em chamá-lo para entrar, mas ouço um barulho de algo
pesado caindo no chão da sala e lembro que não estou sozinho.
— Você tá com visita? — pergunta Ulisses.
— Ele é grande, gostoso e atende por… Não!
Fecho a boca o mais rápido que posso. Anos evitando pessoas
indesejadas na minha casa deixaram esse gatilho em mim.
— Tô sozinho — me corrijo.
Outra coisa pesada cai no chão e dou meu melhor sorriso para
Ulisses.
— Já volto.
Fecho a porta devagar e dou de cara com Diogo 2 enrolado na
cortina da sala e segurando o varão como uma lança.
— Eu sou o arcanjo Miguel! — grita o menino. — E vou combater
o mal!
Ele gira o varão pela sala, e meu coração para quando acho que
ele vai acertar a TV.
— Você arrancou o varão da parede? — indago, perplexo.
— Ele puxou a cortina até arrancar tudo — diz Diogo 1
tranquilamente, sentada no sofá com a gata no colo.
— E por que você não fez nada?
— A Suzie sentou em mim, não posso sair.
Olho para a gata em seu colo, fora da caixa de transporte, e não
consigo deixar de reparar que a cara de Suzie parece um acidente
de carro.
— Me dá isso aqui!
Tomo a arma de guerra improvisada das mãos do bagunceiro, que
corre para longe de mim, usando a cortina amarrada no pescoço
como uma capa de super-herói.
De longe, dava para saber que Diogo 2 era o mais espoleta. Ele
corre, pula e bate o pé no chão, provavelmente tirando a paz dos
meus vizinhos de baixo. Parece um cachorro que nunca sai para
passear. Eu me identifico. Ele é um irmão do meio que não dá para
ignorar, tá sempre nos lembrando que existe.
Lembro que Ulisses está na porta e provavelmente pode ouvir
tudo, então emito um sussurro passivo-agressivo:
— Senta nesse sofá, peste.
Levo o varão para a cozinha e deixo atrás da geladeira. Pego uma
caneca, ponho açúcar suficiente apenas para uma ou duas
esfoliações para garantir que meu vizinho volte. Passo novamente
pela sala, e agora Diogo 2 puxa o cabelo de Diogo 1, que não
revida. Me surpreende ela ser a mais velha e não dar uns cascudos
no irmão. Eu apanhava mais de Diogo do que dos meus pais. Não
separo os dois, pois bem-feito para ela aprender a não ser cúmplice
nas bagunças. A gata segue inerte em seu colo.
— Você tá mesmo sozinho? — pergunta Ulisses quando volto
para a porta e tenta espiar dentro do apartamento.
Fecho a porta bem rápido para que ele não descubra que no
momento sou uma mãe solteira.
— Sozinho… e solteiro — digo.
— Já ia perguntar se seu namorado não liga de você atender a
porta assim.
Dou uma risada floreada para o truque mais velho do mundo para
descobrir se um boy está disponível.
— Posso pegar seu número? — diz ele.
— Depende. Seu namorado sabe que você flerta com o vizinho?
Ulisses me presenteia com o sorriso mais safado da noite e sei
que esse lance já é uma vitória pessoal.
— Também não tenho namorado — responde.
Dito meu número para ele e completo com um motivo plausível,
pois não sou uma vagabunda.
— Pra quando seu açúcar acabar.
Ulisses agradece e, antes de eu ter a oportunidade de baixar o
nível da conversa, ouço Diogo 1 gritando para o irmão parar. Meu
vizinho gostoso faz uma cara desconfiada, mas apenas sorrio e
aceno. Me despeço fechando a porta e, três segundos depois, a
abro devagarzinho para vê-lo caminhar pelo corredor e registro sua
bunda com meu superpoder homossexual.
Diogo 2 está enforcando a irmã com a cortina.
— Ei! Que palhaçada é essa? — digo, entrando na sala.
— Estou acabando com os vilões! — grita ele.
— Ele tá me enforcando! — diz ela, tentando manter os óculos no
rosto.
— Enforca ele também, minha filha. Olha o seu tamanho e o dele.
A dinâmica deles é evidente: Diogo 2 pinta e borda, Diogo 1
parece que apanha porque quer. O menorzinho é café com leite.
Acho que, avaliando estatisticamente as resoluções de conflitos,
sofrer calado nunca fez bem para ninguém. Sou do tipo que revida,
e sobrevivi aos meus anos escolares assim. Vai ser na lei do mais
forte, filho da puta? Então vem. Me deu um peteleco? Toma um
cascudo. Me chamou de viadinho? Passo um bandão. Me empurrou
pra eu cair? Chuto seu saco. Bateu, levou é a regra de ouro. Nossa,
eu deveria escrever um livro de educação infantil.
Aparto a briga, suspiro e me jogo no sofá. Crio certa distância da
gata Suzie no colo de Diogo 1. Tenho certeza que esse bicho já
matou gente. Conto as crianças na sala. Uma, duas, três. Pronto,
tudo certo. Calma, acho que a gata não entra na contagem.
— Vocês não tinham um irmão menor? — pergunto.
— Gabriel tá no banheiro — responde Diogo 1.
— Ainda?
Dou um pulo do sofá.
— Eu não falei pra você levar ele até lá? — pergunto.
— Eu levei, deixei ele lá e voltei.
O pior de tudo é que não posso brigar com ela por estar
tecnicamente certa.
Vejo Diogo 2 escalando o sofá, tentando balançar os quadros na
parede de trás, e tomo uma medida drástica: amarro o garoto de
seis anos com a cortina e o derrubo no sofá. Ele esperneia um
pouco, mas cede.
— É um jogo, Diogo 2. Ganha quem ficar mais tempo enrolado.
— Mas só eu tô enrolado!
A gata rosna pra mim em desaprovação.
— E você. — Aponto para Diogo 1. — Não deixa seu irmão sair
daí.
Corro para o banheiro pensando o que uma criança de três anos
é capaz de fazer sozinha por tempo indeterminado. A porta está
trancada.
— Diogo 3, pode abrir a porta pra mim?
Não ouço resposta, então colo a orelha na porta.
— Diogo 3, tá me ouvindo?
Nada.
— Você tá aí dentro, Diogo 3?
— Não! — ouço a vozinha de criança dizendo lá de dentro.
— Como não, se você tá me respondendo?
— Só o Gabriel que tá aqui, tio.
Penso em xingar, mas hesito e relevo.
— Gabriel, você pode abrir a porta pra mim?
A porta se abre imediatamente e confesso que sinto um pouco de
orgulho da criança, mas principalmente de mim mesmo. Eu levo
jeito, sabe. Não sei por que meu irmão reclama tanto de ter filhos se
é só pedir com jeitinho para esse aqui obedecer.
A privada está transbordando de papel de cocô.
— O que você fez?
Todo o papel que estava na lixeira está dentro do vaso sanitário,
incluindo a própria lixeira por cima de tudo. Diogo 3, vulgo Gabriel,
veste preto dos pés à cabeça, mas tem um sorriso no rosto.
— Tô te ajudando, tio! Tinha muito papel pra jogar no vaso, mas já
vai sumir.
Vejo as mãozinhas dele empurrando a lixeira por cima de tudo
para afundar o papel higiênico usado na privada. Em um segundo,
enquanto o encaro com incredulidade, Diogo 3 dá a descarga e
aquele bolo de papel começa a descer.
Apenas para subir novamente e fazer a privada transbordar.
— O-ou — diz ele.
Eis aqui uma pessoa fofa, mas que infelizmente nesse momento
merece descer pela descarga também. Digo o que preciso num
fôlego só:
— POR QUE VOCÊ FEZ ISSO VOCÊ POR ACASO COMEU COCÔ PAPEL É PRA
FICAR NA LIXEIRA NÃO SE JOGA PAPEL NA PRIVADA VAI ENTUPIR TUDO NESSE
INFERNO GAROTO SAI DAQUI.
Ele se encolhe apenas um pouquinho, mas segue confiante:
— Papai diz pra gente jogar papel no vaso! Mamãe diz que papel
de cocô fede e deixa o banheiro com cheirinho ruim!
Lembro que meu irmão mora numa chácara, e lá, com certeza, as
privadas não ficam obstruídas com papel de bunda.
— Diogo 3… — digo, e respiro fundo. — Some daqui. Já pra sala.
Ele sai correndo, mas logo volta pra abraçar minha perna e dizer
que eu sou o melhor tio que ele tem.
Ninguém nunca me disse isso.
Eu realmente não estava esperando.
— Mas você só tem um tio — retruco, tentando manter a
compostura e a pose de durão.
Eu sou tio dele. Tanto tempo se passou sem ver essas crianças
que eu até me esqueci. Tio… Nunca tive um. Meus pais são ambos
filhos únicos. No fim das contas, não sei bem o que um tio faz. Deve
ser mais do que postar foto no Instagram.
Diogo 3 volta correndo para a sala porque nenhum deles sabe
apenas andar. Encaro a privada e, puta que pariu, não sei por onde
começar. Sem querer piso na água que transbordou e tenho
vontade de morrer.
— Tio, meu amigo pode brincar com a gente? — grita o pequeno
lá da sala.
— Não — berro de volta.
Pego a vassourinha da privada e tento empurrar o papel de volta
para dentro. Merda, é muito papel. Talvez eu tenha que tirar o papel.
Imagino as lindas mãos que tenho mexendo dentro do vaso e
resolvo encarar o problema da forma menos indolor possível: fecho
a porta e finjo que não existe.
— Ninguém mais caga e nem mija nessa casa! — anuncio
quando chego na sala.
Diogo 2, ainda enrolado na cortina, começa a cantarolar:
— Ninguém podia fazer xixi, porque penico não tinha ali…
3
Os pais vão me acusar de ministrar o kit gay

MINHA AMIGA NÁDIA diz que vai morrer sozinha porque é uma mulher
burra. As pessoas pelas quais se interessa são sempre brilhantes e
talentosas, mas as que se interessam por ela são ainda mais burras
que a própria. Homens, mulheres, pessoas não-binárias, o match
nunca rola. Nádia Rafaela, o elo perdido da inteligência humana.
Mas ela está equivocada. Quer dizer, ela vai morrer sozinha, mas
por ficar o tempo todo dizendo verdades que ninguém quer ouvir.
— Você tá cuidando de três crianças?
— E uma gata hedionda.
— Deixa eu reformular — diz ela, ao telefone. — Você está
cuidando de três crianças?
— Por que o espanto, amiga? São meus sobrinhos.
Não recebo nenhuma resposta e sei que devo uma explicação
mais plausível.
— E meu irmão tá me pagando três mil reais.
Escuto Nádia xingar do outro lado da linha.
— Diego, quando foi a última vez que você cuidou de uma
criança?
— Eu já cuidei de muitas crianças, se você quer saber.
— Não valem os quinze reais pro Criança Esperança.
Ela acha que eu doei quinze reais? Foram só cinco.
— Quando foi a última vez que você viu uma criança? —
questiona ela. — Em 2003, quando você olhou num espelho?
— Teve aquela vez que eu resgatei um menininho perdido das
ruas.
— Você estava bêbado, e era só um homem muito baixo.
— E a filha da sua amiga Fê do Marketing?
— A filha da Fê do Marketing te odeia desde que você empurrou
ela no chão na final da dança da cadeira.
— Só porque ela era a aniversariante, eu tinha que deixar
ganhar?
— E porque ela tava fazendo oito anos e você tem três vezes o
tamanho dela!
— É a filha da Fê da Logística então — me conformo.
Nádia dá uma gargalhada que, sinceramente, acho tóxica.
— Você nunca mais vai chegar perto daquela garota.
— Mas ela me adora! — rebato.
— Você deu coxinha escondido pra ela, Diego! A mãe dela é
vegana!
— Tinha que ver as mãozinhas dela sujas de frango, os olhinhos
brilhando!
Espero minha amiga se recuperar do ataque de riso no outro lado
da linha, até que ela finalmente resolve falar.
— Tá me pedindo ajuda com o quê, então, se você tem esse dom
natural com crianças?
Na verdade, não preciso de ajuda, só preciso falar. Tenho um
problema seríssimo de não conseguir resolver as coisas dentro da
minha própria cabeça, preciso me ouvir em voz alta e acho triste
falar com as paredes. Minha psicóloga diz que não me faria mal
exercitar minha inteligência emocional, mas ignoro. É mais uma que
acha que quero ajuda quando só a pago todo mês para ouvir.
Resolvo desabafar tudo de uma vez:
— Amiga, Diogo 1 simplesmente não fala. E, quando eu mando
ela fazer as coisas, tipo descer a peste do irmão dela de cima do
sofá ou desentupir o vaso, ela fica me olhando com cara de bunda.
Diogo 2, meu Deus, não pode ver um pano que se enrola nele ou
põe na cabeça. As cortinas, os tapetes, o paninho de chão, as
toalhas limpas que eu deixei no varal! Diogo 3 quer chamar um
monte de criança aqui pra casa, e eu já disse que não.
— Você pelo menos sabe o nome deles?
— Zequinha, Pedro e Biba — digo prontamente.
— Você tá me zoando.
— Pedro, desce do sofá agora! — berro, para provar meu
argumento.
Diogo 2, com uma toalha branca enrolada como um turbante na
cabeça, me olha de cima do sofá sem entender nada e começa a rir.
Me deixa realmente intrigado ver que ele ainda tem todos os dentes
na boca. Com certeza vai perder algum num tombo ou numa briga.
— Já experimentou conversar com eles, de igual pra igual? — diz
minha amiga, me trazendo de volta para a conversa.
— A gente vai falar sobre o quê, Nádia? Ursinhos Carinhosos?
— Nenhuma dessas crianças deve saber o que é um ursinho
carinhoso. Sei lá, coloca um filme pra vocês verem. Eu tenho um
monte de DVD da Disney no meu quarto.
— DVD, amiga? Em que ano você está?
— Deus me livre confiar em Netflix que toda hora tira minhas
comédias românticas do ar.
Desligo o telefone e vou ao quarto de Nádia achar um filme que
preste. Deixo a sala com Diogo 2 beliscando Diogo 1, e Diogo 3
preso no sofá com a gata agora em cima dele.
Às vezes, fico pensando que Nádia é minha alma gêmea que foi
enviada por engano para o corpo errado. Enquanto algumas
pessoas têm estantes enormes repletas de livros com capas
desinteressantes e títulos tipo A microfísica do poder no
desenvolvimento emocional e A poesia dos desafetos, minha amiga
tem uma série de prateleiras cheias de filmes, como se fosse a dona
de uma locadora falida. Uma das prateleiras é inteiramente da
Disney, e dou uma olhada para ver o que há de bom.
Que horror, ninguém pediu por mais um filme de Carros. E
quando a Disney vai cansar de produzir continuações para Frozen?
Quantas vezes a Elsa vai precisar ouvir que o único amor que resta
a ela é o amor próprio?
Escolho o filme de princesa que acho que é o mais recente e não
faz parte de nenhuma franquia.
— Meu amigo pode ver filme com a gente? — pergunta Diogo 3
assim que volto para a sala.
— Não.
— Minha mãe diz que ver TV deixa a gente burra — diz Diogo 1,
sem ninguém ter perguntado.
— No caso dela, não ver não adiantou nada, já que ela casou
com seu pai — rebato, enquanto tento lembrar como se liga o DVD.
— Vai ter pipoca? — pergunta Diogo 2.
Antes que eu responda que não, a campainha toca. Me
teletransporto para a porta imediatamente. Ajeito o cabelo, as
sobrancelhas e a rola. Abro a porta esperando ver Ulisses, mas não
há ninguém. Ué. Tenho certeza que ouvi a campainha tocar. Fecho
a porta e volto para a sala.

Walt Disney deve mesmo ter feito um pacto com o diabo, porque as
três crianças estão vidradas no filme. Cada uma do seu jeito,
admito. A mais velha, a menina, não deu um pio desde que o filme
começou, mas não dá para saber se ela está gostando, já que ela
nunca dá pio nenhum. Finjo que não reparo que ela senta bem
pertinho de mim no sofá e, quando percebo, ela encosta a cabeça
no meu braço. O do meio, Diogo 2, fica dando gritinhos e risadinhas
que eu não sei bem de onde vêm. A princesa grita, ele ri. A princesa
ri, ele grita. O menorzinho resolveu me encher de perguntas sobre o
filme, e me sinto na escola, quando os professores me
questionavam sobre livros que nunca tive a menor intenção de ler.
— É agora que eles vão morrer? — pergunta ele pela quinta vez
desde que o filme começou.
Amo que Gabriel com três anos de idade já tem mais
personalidade que muito gay da Zona Sul. Tudo que ele faz é
coerente com a proposta de bebê mórbido que o look dele informa.
— Ninguém morre nesse filme — respondo.
— Minha mãe disse que todo mundo morre — declara ele.
Meu Deus, que mulher sem tato.
— Todo mundo morre, mas esse é um filme pra deixar a gente
feliz.
— Vai ser triste quando você morrer?
Só Nádia vai chorar.
— Quem vai te matar? — pergunta ele na lata, e seus olhinhos
castanhos estão cravados em mim.
A campainha toca mais uma vez, e tenho certeza de que meu
assassino está à porta.
— Meu amigo pode ver filme com a gente hoje? — pergunta
Gabriel de novo.
— Peraí que agora a coisa tá meio estranha.
Agarro o varão da cortina que Diogo 2 arrancou da parede e
caminho lentamente até a porta do apartamento. Impressionante
que, desde que moro aqui, ninguém nunca tocou a campainha, mas
especificamente nessa noite todos os vizinhos me querem.
— Quem é? — pergunto, mas ninguém responde.
Tento ouvir a respiração de alguém do outro lado da porta, mas só
ouço as vozes do filme cantando mais uma música sobre amizade e
largar seu emprego fixo para viver de arte na praia, que o público-
alvo só vai entender quando tiver vinte e cinco anos de idade.
Ponho a mão na maçaneta — é, eu sei, quem abre a porta para o
assassino? Sou a gostosa de calcinha num filme de terror? Mas,
como pode ser Ulisses, não resisto e ponho a cara lá fora. Não há
ninguém.
— Quem é o palhaço que tá apertando minha campainha? — digo
para o corredor vazio.
— Tio, o João Augusto pode entrar pra brincar com a gente? —
pergunta Gabriel lá de dentro.
— Quem é João Augusto?
— Meu amigo aí na porta.
Confiro de novo o corredor e, puta merda, estou à flor da pele.
Correndo o risco de dar uma lapada de varão numa criança
brincando de pique-esconde.
— Não tem ninguém aqui, Gabriel.
Escancaro a porta para que, do sofá, ele veja o corredor vazio do
andar.
— Aí ele, tio — insiste ele, e aponta.
Juro pra vocês, nunca vou ter filhos.
— É o amigo imaginário dele — diz Diogo 1, sentada na outra
ponta do sofá.
Talvez eu devesse mesmo acertar o varão em Gabriel.
— Ai, pelo amor de Deus!
Bato a porta com força, mas secretamente aliviado por ainda estar
vivo.
— Tio! O João Augusto! — grita Gabriel. — Deixa ele entrar, por
favor!
Olho para Diogo 1, perguntando mentalmente se isso é sério.
— Ele chora se a gente não entra na brincadeira — explica ela.
— Isso é ridículo. Gabriel, não tem ninguém lá fora.
— Tem o João Augusto! Ele vai ficar triste porque você bateu a
porta na cara dele! Eu não gosto quando ele fica triste! — insiste, e
a voz dele vai ficando mais aguda a cada frase.
Me afasto da porta, mas, a cada passo que dou, os olhos de
Gabriel ficam mais marejados. Estou prestes a acreditar que
realmente bati a porta na cara de alguém, porque meu sobrinho é
muito convincente. Digo a mim mesmo que criança é cheia dessas
bobagens, porém, antes que eu consiga sentar no sofá, Gabriel
deixa rolar uma lágrima. Não dá cinco segundos, e ouço o choro.
Não aquele grito infernal que parece que a criança engoliu uma
ambulância. Ouço o choro sentido de um bebê triste e, merda, não
dá.
Escancaro a porta, dessa vez com a força do ódio, e digo:
— Pode entrar, João Augusto, a casa é sua. O filme ainda não
acabou.
Gabriel enxuga os olhos e bate palmas no sofá, e Diogo 1 e 2
agem como se essa fosse uma cena normal. Vou devolver essas
crianças com um encaminhamento para o psicólogo, eu juro.
Quando vou sentar no sofá, meu sobrinho menorzinho empurra
minha bunda.
— O João tá aí!
— Não tem mais lugar nenhum no sofá, você quer que eu sente
onde?
— No chão — responde Diogo 2 e ri.
— Tio, eu te dava meu lugar se a Suzie não tivesse aqui — diz
Gabriel.
Olho para Suzie e, entre todos os presentes, ela é a menos
predisposta a se mover. Fico com vontade de mandar Diogo 1 ir pro
chão, mas essa garota já deve sofrer bullying todo dia na escola,
então a poupo.
Sento no chão, sabendo que jamais reportarei esse incidente para
Nádia. A menina começa a me fazer cafuné e, apesar de eu odiar
que baguncem meu cabelo, eu deixo. Já entendi que o lance de
Diogo 1 é conversar com o tato.
O filme corre como qualquer filme da Disney: uma sequência de
músicas esquecíveis, uma realmente boa e uma que as crianças
vão ficar cantando para sempre. Tem um príncipe, uma princesa e
um objeto inanimado falante que deixa a gente na dúvida se ele é
engraçado ou apenas irritante — de qualquer forma, depois da
metade do filme, já quero uma pelúcia dele. A princesa fica a maior
parte da animação sentada, esperando a boa vontade do príncipe
em ir salvá-la. Como se a Disney ainda estivesse presa em 2001,
quando ser feminista era crime.
— Se a princesa fosse a Ester, ia ficar esperando pra sempre!
Nenhum príncipe gosta de menina feia! — diz Diogo 2 do nada,
como todas as outras coisas que ele diz.
— Ei! Isso não é verdade — repreendo. — Pede desculpas pra
sua irmã.
— Mas, tio, ela não tem jeito de princesa! — se defende Diogo 2.
— Tem jeito de monstro! — diz Gabriel.
Diogo 1 é gorda. É lerda também, mas sei que, na cabeça deles,
o empecilho para a irmã deles ser princesa é que ela não cabe no
vestido da Branca de Neve. Encaro minha sobrinha com mais
atenção e, nesse momento, ela acha o tapete da sala bastante
interessante. Até as crianças mais fofas podem ser horríveis de vez
em quando.
— Olha aqui, não é certo dizer isso da sua irmã. É feio — digo, e
engrosso a voz para assustar os dois. — Ela quando crescer vai ser
uma princesa incrível e beijar o príncipe que ela quiser. Não é,
Diogo 1?
Ela demora a me responder, como se esperasse a conversa
morrer para ela voltar a ser invisível no sofá.
— Eu preciso beijar um príncipe? — pergunta ela, ainda sem me
olhar nos olhos.
— Bom… não. Você pode ser uma princesa que… beija
princesas? — arrisco.
Meu Deus, eu posso falar isso pra uma criança de dez anos?
— Acho que eu não quero ser uma princesa — responde ela.
— Eu quero ser princesa no lugar dela, então! — grita Diogo 2. —
Tio, eu posso ser a princesa? Por favor, por favor, por favor.
O pior de tudo é que elas já chegaram assim aqui em casa, mas
os pais vão dizer que apliquei o kit gay.
— Vocês podem ser o que vocês quiserem, essa é a única regra
— respondo, tentando soar confiante.
Espero que esse momento fique marcado na cabecinha deles e,
lá pela adolescência, quando eles estiverem se sentindo incapazes
e sem perspectiva de vida, lembrem das palavras de sabedoria do
tio incrível deles.
— Posso ser um urubu? — pergunta Gabriel.
— Não é assim que funciona — respondo, frustrado.
— Posso ser um cemitério? — insiste ele.
Não é difícil dizer que há algo de errado com esse menorzinho,
mas felizmente amanhã posso devolvê-lo para a fábrica.
— Se a gente pode ser qualquer coisa, por que você não é igual
meu pai? — pergunta Diogo 2.
Sem senso estético e com entradas que parecem a pista de
Interlagos?
— Por que eu iria querer ser igual seu pai?
Eu não deveria ter perguntado, porque os três se revezam para
enaltecer o pai que têm. Meu irmão pariu um fã-clube.
— Porque ele é lindo!
— E forte!
— E ele sabe dirigir!
— Papai tem um montão de dinheiro!
— Ele namora a mamãe!
— Ele compra brinquedo pra gente!
— Na nossa casa sempre tem pipoca!
— E você fala tudo assim nhen nhen nhen — finaliza Diogo 2.
Suzie dá um miado gutural que pra mim soa como endosso.
— Eu falo como? — pergunto, ofendidíssimo.
— Assim, tio: Enton crionças vamoan paran de bagunçon.
Diogo 2 diz isso numa voz ridícula que supostamente deveria ser
a minha. Eu com certeza não falo assim. Mas todo mundo na sala ri.
— Olha aqui! — rebato. — Eu sou muito melhor que o pai de
vocês.
Para provar meu ponto, pauso o filme e fico de pé na frente deles.
— O cabelo dele tem esse brilho? A pele dele parece seda? E
esse tanquinho, o pai de vocês tem?
Exibo minha barriga sarada para crianças pouco impressionadas.
Percebo que preciso me esforçar mais.
— O pai de vocês faz isso? — digo, enquanto performo a nova
música da Anitta no tapete.
As crianças bocejam.
Dou tudo de mim sambando. Rebolo até o chão. Passo por baixo
de uma corda imaginária. Dou uma estrelinha pela sala. Abro um
espacate que vai cobrar seu preço mais tarde. Faço a dança do
robô sabendo que é um movimento campeão com crianças.
— O papai arrota o alfabeto — diz Diogo 2, como se porqueira
fosse uma virtude.
— A barriga dele vira uma boquinha que fala quando a gente
aperta! — lembra Gabriel.
— Tio… Acho que seu moletom rasgou — comenta Diogo 1 bem
baixinho.
Saio da sala humilhado com um rombo bem no furico. Enquanto
troco de roupa, me sinto ultrajado por saber que jamais poderei
fazer minha barriga de fantoche.
Tenho uma nova ideia quando volto para a sala.
— Todo mundo levantando do sofá. Bora, bora, bora.
Suzie agora está no parapeito da janela, provavelmente
estranhando uma casa onde a estranha é ela.
Abro a porta do apartamento e mando as crianças saírem.
— Aonde a gente vai? — pergunta Diogo 2.
— É surpresa.
— O João Augusto pode ir com a gente?
Confirmo com a cabeça para Gabriel. Vou acabar com o pai deles
e quero toda a audiência possível, mesmo a das pessoas que não
existem.
4
Brinquedo de boiola

TODA PESSOA COM FILHOS é uma golpista em potencial.


Pode reparar: “Não vai doer nada não”, daí vem uma agulha e
entra na bunda da criança. “Aqui a balinha”, quando é a hora de
tomar o remédio com gosto de cocô. “Vai comendo que a carne tá
embaixo”, sendo que eu tô vendo que o prato é arroz, feijão e ovo,
ok, mãe? Cadê a carne no fundo do prato? “Você comeu e nem viu.”
Sério, é ultrajante. Mas é do “Na volta, a gente leva” que até hoje
carrego feridas na alma. Toda criança já foi vítima, e é por isso que
estou aqui nessa loja de brinquedos para curar todos os meus
sobrinhos com o poder do dinheiro. Vamos levar agora.
— A gente pode escolher qualquer coisa? — pergunta Diogo 2, e,
quando digo que sim, ele põe as mãos na cabeça em completo
deslumbramento. — Eu quero o bambolê! E a bola! E aquele
carrinho vermelho!
— Olha o robô! — aponta Gabriel. — Tio, eu quero o robô! E
aquele chapéu! Eu posso pegar o chapéu?
As crianças me amam. Vai me custar uma grana, mas separei
duzentos reais para isso. É um investimento, na verdade. Talvez as
crianças queiram ficar comigo para sempre e eu passe a ganhar um
salário de ministro do STF.
Gabriel e Diogo 2 já comem na palma da minha mão, mas Diogo
1 continua indiferente. Alguém matou essa menina por dentro, mas
a farei reviver. Temos muita coisa em comum. Aprendi horrores
sobre ela no meio do caminho.
— Qual é seu nome mesmo, pirralha?
— Ester.
Por exemplo, o nome dela é Ester.
A loja de brinquedos não é das maiores, mas já é o paraíso de
toda criança: todos os corredores são superlotados de cores e
diversão. As estantes são mais altas do que eu e, nos fundos da
loja, tem brinquedos pendurados do chão ao teto. Caixas brilhantes,
penduricalhos que fazem barulho, pelúcias diversas e vendedores
felizes. Não sei como conseguem achar qualquer coisa aqui, pois a
lógica da organização é apocalíptica. Os Vingadores dividem a
estante com os My Little Pony e um urso de olhar neurótico que com
certeza vem com um punhal dentro.
— Eu quero o ursinho! — diz Gabriel.
Claro que quer. Esse menino é como um cão farejador de coisas
que podem matar pessoas. Tento acompanhar o movimento dos
três, mas é difícil. Ester fica perto de mim, olhando meio
desinteressada para uma bolsinha florida enquanto o do meio sai
correndo por um dos corredores. Fico de olho naquele cabelo
crespo e pontudo correndo de um lado para o outro. Caramba, já
perdi Gabriel. A loja não está muito cheia, porém, ouço vozes de
crianças por toda parte. Consigo reunir os três e resolvo fazer um
tour ordenado, apesar de Diogo 2 ser um entusiasta da desordem.
Ando me esforçando para memorizar o nome dele, mas ele não
me dá tempo para pensar. Entre os três, foi o que mais ficou
emocionado com a possibilidade de ganhar presentes. Eu sabia.
Tem criança que só se conquista na base da grana. Também fui
uma criança interesseira, tenho lugar de fala. Tento pegar na mão
dele, mas Diogo 2 quase me morde. Diferente da irmã, não gosta
que encostem nele.
Sei que não é moralmente aceitável colocar coleiras nas crianças,
mas é uma questão de segurança. Cachorros ficam presos por
muito menos.
Mesmo parecendo que o Cartoon Network implodiu aqui dentro, a
loja consegue manter a tradição cafona do corredor das meninas.
Tudo é rosa. Todos os brinquedos exibidos nas prateleiras são
bonecas, partes de casas, produtos de beleza de mentirinha ou
variações disso: vejo a cozinha da Barbie, um mini-salão de beleza
cor-de-rosa e uma cabeça de menina para ser maquiada.
— Pode ir, Ester, não precisa agradecer.
Dou um leve empurrão nela como incentivo, e minha sobrinha
caminha timidamente até uma prateleira. Uma mulher loira de meia-
idade entra no corredor segurando duas garotinhas pelas mãos.
Não são gêmeas, uma é mais alta e mais velha, mas usam
vestidinhos iguais. Eu deveria ter colocado roupas combinando nas
minhas crianças, porque três é melhor que dois.
— Tio, quem matou ela? — pergunta Gabriel e quase engasgo
quando vejo seu dedinho apontando para a cabeça avulsa.
— Não acho que ela esteja morta.
Consigo ver seus olhinhos sondando toda a estante e suas
pernas curtas vasculharem o corredor, claramente procurando pelo
resto do cadáver. Do jeito que a sociedade está, não me admiraria
se um corpo decapitado fosse um brinquedo na ala dos meninos.
Não consigo deixar de reparar que, enquanto Diogo 2 sai correndo
na frente tocando em absolutamente tudo, o menorzinho apenas
escaneia o ambiente.
— Escolheu alguma coisa? — pergunto para Ester.
— Não sei…
A mulher com as garotinhas está bem perto da gente e dá um
sorriso para mim.
— Você tem sorte, as minhas sempre querem levar tudo.
As crianças dela realmente estão deslumbradas, enchendo as
mãos de coisinhas de plásticos proibidas para menores de três
anos.
— Aqui, querida, o que acha desse estojo de maquiagem? É mais
pra sua idade, né? Você já é uma mocinha.
A mulher enfia o estojo nas mãos de Ester, que demora a pegar.
— Não é lindo?
Ester responde com um sim bem baixinho, e a mulher aperta as
bochechas dela. Só gente cafona faz isso com criança.
— Olha essa bebezinha no carrinho! Eu quero ela! A gente pode
levar? — grita Diogo 2 na outra ponta do corredor.
Achei que ele fosse ficar entediado já que nada aqui pode ser
usado como arma de guerra, mas me equivoquei. Diogo 2 revirou
várias prateleiras, jogou uns brinquedos no chão e tentou escalar
uma estante sem sucesso. Olho para a boneca que ele está
segurando como se fosse um bichinho de estimação. É um bebê
que realmente parece com um bebê de brinquedo: olhos
extremamente azuis, boca rosa de batom, bochechas de um
vermelho que fica depois de levar dois tapas na cara e um tufinho
loiro inexplicável pendendo no alto da cabeça com um lacinho.
Melhor do que aquelas bonecas horrorosas que fingem que é gente,
cagando e mijando por conta do mínimo apertão. O carrinho de
bebê é pequeno e todo cor-de-rosa. Uma escolha inusitada para o
menino que me atacou com o varão da cortina.
— Tem certeza que você quer esse brinquedo? — pergunto,
apenas para confirmar.
Sei que é ridículo achar que brincar com um brinquedo vai definir
a sexualidade da criança no futuro. Meu pai me encheu de bola de
futebol, e tô aí até hoje dando o cu.
— Ah, mas claro que ele não quer — se intromete Loira 40 mais
uma vez e dá uma risadinha. — Isso é brinquedo de menina,
lindinho.
— Não é não, é meu — diz Diogo 2, como se a mulher fosse
burra, e segura a boneca mais perto do corpo.
— Querido, boneca é pras minhas filhas, pra sua irmã… Tá
vendo? — insiste a mulher, e aponta para as filhas. — Elas adoram.
Dá aqui pra tia pôr de volta na estante.
É num segundo que os dentes de Diogo 2 se preparam para
arrancar a mão da coitada, mas impeço a desgraça de acontecer.
— Pode deixar com ele — declaro, e me coloco entre os dois.
— Você vai deixar seu filho brincar com isso?
Quase grito quando percebo que ela acha que botei no mundo
essas três crianças.
— O meu tio é gay! Ele deixa! — berra Diogo 2 para ela.
Loira 40 fica sem palavras, e decido que gosto mais dela assim de
boca fechada.
— Mãe, então ele vai pro inferno? — pergunta a filha mais velha.
A mãe cala as filhas com um olhar mortal, agarra a mão das duas
e as arrasta para longe do corredor. Amo esse superpoder materno,
o olhar mortal. Preciso descobrir urgente o dom de tio que recebi de
Deus para calar minhas crianças na hora certa.
— Brinquedos de princesa! — grita Diogo 2, quer dizer, Miguel.
O garoto sai da seção de brinquedos de menina com uma boneca
num carrinho de bebê, uma tiara com pedrinhas brilhantes, um cetro
mágico que pisca e asas de borboleta. Ester sai sem nada, até o
estojo de maquiagem cafona ficou para trás. Encontro Gabriel na
seção dos meninos sendo que em nenhum momento percebi que
ele não estava comigo.
Tudo no corredor grita destruição e bagunça. Arma que atira
água, arma que atira flechas, arma que atira balas de plástico.
Todos os brinquedos lançam alguma coisa para acertar o olho de
alguém. Aparentemente, já estamos treinando os garotos para o
serviço militar.
— Precisa de alguma ajuda, senhor? — pergunta uma vendedora.
Ela é jovem, sorridente e ama crianças. Ou odeia, mas não faz
diferença, porque ela é paga para amar.
— As crianças estão escolhendo o que elas querem — digo, meio
sem saber do que meus sobrinhos realmente gostam.
— Algum tipo de brinquedo em especial?
— Coisa de gente morta, eu acho. Vocês têm?
O sorriso da vendedora não se desfaz, mas seus olhos dizem que
nada sobre isso foi dito em seu treinamento.
— Oi?
Gabriel surge com uma máscara do que parece ser um zumbi ou
um homem coberto de chagas e pus.
— Tio, compra pra mim? Eu quero, eu quero, eu quero!
A vendedora está perplexa. Apenas dou de ombros.
— Acho que a gente já se achou, obrigado.
Ela segue pelo corredor, parecendo aliviada.
Ester mal olha para as prateleiras, mas Miguel, que já tem um
monte de brinquedos, sai correndo na frente porque ainda não se
satisfez.
Depois da máscara, Gabriel pega uma bola roxa, bezerrinhos de
plástico, uma arminha de água e um chaveiro de caveira.
— Meu amigo João quer te perguntar uma coisa — diz Gabriel, e
acho graça.
— Ah, é? O que ele quer?
— Quer saber se você pode comprar um brinquedo pra ele
também.
Olho para suas mãos de criança de três anos abarrotada de
quinquilharias.
— Você tem certeza de que precisa de mais?
— Não é pra mim, tio! É pra ele!
— Ok, qual é o brinquedo? — resolvo entrar na brincadeira, pois
sou um tio legal.
Gabriel aponta para o alto de uma estante gigante. Lá em cima
tem uma caixa de Lego. Nem meus 1,83 conseguem alcançá-la.
— Vamos precisar da vendedora pra pegar a caixa.
Uma comoção na ponta do corredor chama minha atenção.
Miguel segura uma raquete com força, e isso por si só já é um mau
agouro. Ester está ao seu lado com a cara de paisagem de sempre,
e os dois encaram um menino maior que fala alguma coisa que não
consigo ouvir. Gabrielzinho continua falando comigo sobre o Lego,
mas só consigo prestar atenção na expressão corporal do menino: o
peito estufado, o nariz em pé, as narinas abertas e o cenho franzido.
O tipo de criança que eu tinha medo de encarar na escola, os
valentões que me davam cascudos quando eu enfrentava. O garoto
tenta puxar a raquete das mãos de Miguel, mas ele continua
segurando e, de repente, os dois estão num cabo de guerra
desigual. Ester está paralisada, mas não indiferente. Ela tenta abrir
a boca, mas fecha. Vejo as mãos dela aflitas para segurar o irmão,
mas ela sabe mais do que eu que ele não gosta de ser tocado. Dou
o primeiro passo na direção deles, completamente engatilhado.
Consigo ouvir o arranca-rabo.
— É minha! Eu vi primeiro! — grita Miguel.
— É dele, menino, você não pode tomar dele — diz Ester.
— Mas eu quero! — responde o garoto. — Meu pai vai comprar e
você nem sabe brincar com isso.
— Solta!
— Por favor, solta! Ele é pequeno!
— Me dá!
— Vai brincar de casinha! — diz o valentão. — Raquete não é
brinquedo de boiola!
Tenho certeza que Miguel não entende nem assimila a ofensa,
porque continua puxando a raquete do menino como se nada
houvesse sido dito. Ester não sabe se põe a mão na raquete
também ou se tenta resolver o conflito na paz.
Mas meu eu de cinco anos foi atingido.
Veja bem, Miguel é um menino com asas de fada, tiara de
princesa e, numa das mãos, carrega um cetro cor-de-rosa. Eu
entendo. Só que nada no mundo impede que ele segure uma
raquete, afinal, ele tem outra mão livre. Ele pode brincar com um
carrinho. Se ele quiser uma bola de futebol, eu vou comprar. Ele
pode montar uma casinha com Barbies e Max Steel, e não vai
precisar fazer escondido de mim, como eu, que fazia vestidos de
embalagens de bombom para os meus Cavaleiros do Zodíaco longe
das vistas dos meus pais. Ele pode crescer e beijar meninos, pode
crescer e namorar meninas, pode crescer e beijar os dois ou
nenhum. Essa criança pode tudo, o que é muito mais do que eu
podia quando tinha a idade dele.
Raquete é brinquedo de boiola também.
— Ei! — grito do meio do corredor. — Solta essa raquete.
O menino paralisa na hora que processa que tem um adulto
vendo toda a cena.
— Você não pode falar assim com ele, nem com ninguém. Se ele
pegou primeiro, é dele.
Ele tem a audácia de me responder:
— Mas ele é bicha!
— E eu também sou, e daí? — falo mais alto e mais grosso. —
Brincar com asas coloridas não te faz gay, mas implicar com
crianças pequenas te faz um covarde. É isso que você quer ser?
Admito que o garoto não parece impressionado com meu discurso
e, novamente, dá para ver que não é do tipo de criança que sabe o
que é respeito. Ele infla o peito provavelmente para me ofender,
mas não quero ouvir nada disso.
— Chispa daqui, moleque! — digo.
— Eu vou contar pro meu pai! — diz ele, finalmente soltando a
raquete.
Morri de medo por uns instantes achando que ele ia me peitar.
— Ah, conta, manda ele vir aqui pra gente resolver na mão.
Torço para que o pai dele seja um contador de meia-idade,
franzino e de óculos, e não um personal trainer, desses que têm
arma em casa e votam em fascista.
— Vocês são nojentos! — diz ele. — Essa merda de raquete é
minha! Seu bando de bichas!
Minha vontade é dar uma raquetada nessa criança, mas sei que
não é assim que as coisas se resolvem. Muito menos com crianças.
E a culpa nem é dele, para dizer a verdade. Só deve estar
reproduzindo o que os pais falam ou o que ouviu na internet, na rua,
na escola. O Brasil não é para amadores, as crianças já crescem
cheias de ervas daninhas.
— Quero que vocês todos tomem no…
Admito, não esperava por isso: o menino leva uma raquetada.
Não apenas no meio da frase, mas também no meio da cara.
Fico perplexo, não pela raquetada em si — ai, porra, ele mereceu
—, mas pelo golpe ter vindo de Ester, que tomou a raquete das
mãos de Miguel e agiu antes de todo mundo.
— Eu vou contar pro meu paaaaaaaai!
Vejo o garoto sumir pelo corredor com a cara vermelha e, pelo
que eu conheço de valentões, os pais dele nunca chegarão a ouvir
sobre a menina mais nova que o peitou.
— Irmã! — diz Miguel, estupefato.
— Ester???
Tomo a raquete das mãos dela.
— Me desculpa, tio, mas ele… — começa a dizer, parecendo
surpresa também, mas a corto.
Quando as pessoas falam de família, é isso que eu espero que
elas façam. É disso que eu sinto falta. Era isso que eu gostaria que
meu irmão tivesse feito por mim quando eu precisei. Família é uma
palavra vazia se não tem alguém para dar uma raquetada por você.
— Você foi incrível — digo a ela, e repito, porque já percebi que
ela tem a mania de não acreditar.
Ouço o pigarro da vendedora sempre sorridente e, não deu outra,
ela está ao nosso lado com as mãos nas cinturas e um olhar de
julgamento.
— E que isso jamais se repita, mocinha — começo a dizer bem
alto com cara de bravo. — Não é com violência que a gente resolve
as coisas, ok?
— Ok... — responde ela, mas vejo que sorri.
A vendedora parece pouquíssima convencida, mas dei o meu
melhor.
— Ah, que bom que você tá aí — digo a ela. — Pode pegar o
Lego lá de cima pra mim?
Quando aponto para onde deixei Gabriel, ele já está abraçando a
caixa no chão.
— Quem pegou pra você? — pergunto.
— O João! Ele voa!
Apesar da vendedora achar fofo, arregalo os olhos imaginando a
criança de três anos escalando a estante e jogando a caixa lá de
cima. Percebo que é um Lego de Halloween. Festa no Cemitério.
Gabriel olha fascinado para as mini-lápides, caveiras e morcegos
estampados na caixa. Típico.
Dispenso a vendedora e devolvo a raquete para Miguel.
— Ah, não quero, não.
— Quê? — digo, incrédulo.
— Enjoei.
Ele dá de ombros.
— A sua irmã bateu numa pessoa por causa disso.
— Raquetes são chatas — diz ele e sai saltitando com suas asas
de fada pelo corredor.
Suspiro e, quando vou devolver a raquete para seu gancho vazio,
Ester segura meu braço gentilmente.
— Você quer? — pergunto.
Ela só balança a cabeça num sinal positivo e, pela primeira vez,
vejo animação em seu rosto. Às vezes, tudo de que a gente precisa
para ser feliz é dar uma raquetada em alguém. Essa frase vai entrar
na minha autobiografia.
Meus sobrinhos estão aprendendo horrores comigo.

Finalmente chegamos ao caixa depois do tour pela loja e, olha, foi


difícil. Tive que arrancar as crianças dos corredores. Por elas,
moraríamos neles. Não aguento mais ver coisinhas barulhentas,
bonecas feias e pais com filhos mal-educados. Carrego o Lego nos
braços, mas as mãos das crianças também não estão livres. Gabriel
vem arrastando os brinquedos mais feios do mundo. Miguel traz o
criança viada starter pack. Até Ester se empolgou e pegou dois
jogos de tabuleiro de última hora. Segura a raquete na mão
esquerda como se fosse um troféu. Não prestei atenção nos preços,
mas faço uma estimativa de cabeça e, ok, talvez eu tenha
exagerado nas compras. Separo mentalmente mais cem reais caso
passe dos duzentos.
— Moço, o meu tio vai pagar tudo — diz Gabriel, e o atendente
me encara.
É um homem branco básico, desses que ficam horríveis sem
barba. Ele nem sorri, já está no espírito de fim de turno. Deve estar
mais desgastado emocionalmente pela loja do que eu jamais
estarei.
— O senhor tem namorada? — pergunta Gabriel.
— Gabriel — o repreendo.
O atendente diz um não seco e, sinceramente, é meio revoltante.
— Quer namorar meu tio? Ele também não tem! Ele é gay! —
grita Miguel.
Gente. Eu de fato sou gay, mas com certeza estou olhando para
um homem que não é. O cabelo sem corte, a pele que nunca viu um
hidratante e as unhas mal cortadas gritam heterossexualidade. Não
sei onde enfiar minha cara, então apenas me apresso em pedir
desculpas.
Ele não esboça nenhuma reação e passa o kit de tênis de Ester
no leitor do caixa.
— Esse kit custa cinquenta reais? — pergunto.
— A raquete custa cinquenta reais. Com as bolas, vai dar um
pouco mais.
Passam os jogos de tabuleiro, e meu coração começa a fazer
contas já que meu cérebro morreu. Os brinquedos de Gabriel. O
mundo encantado que Miguel pegou. Cada bipe da caixa
registradora é uma banda na minha vida financeira. Falta o Lego
Halloween e, meu Deus, não é possível que peças tão pequenas
custem tão caro. Tremendo de nervoso, pego a caixa do Lego das
mãos do atendente antes que ele a registre.
— Esse aqui talvez a gente deixe pra comprar na volta...
— Não! Esse é do João! — reclama Gabriel.
— Eu juro que na volta…
Vejo os olhinhos da criança e… não dá. Inferno de garoto fofo, os
menorzinhos sempre são os mais perigosos.
— Passa, moço, pode passar.
O valor total quase dobra depois do Lego. Eu me deparo com a
verdade dolorosa de que, por não saber fazer contas, estou
praticamente cuidando dos meus sobrinhos de graça. Peço para
dividir em parcelas suficientes para os três estarem formados numa
faculdade quando eu pagar a última.
Saio do caixa muito mais pobre do que quando entrei, mas com
sacolas enormes de brinquedos nos braços e três crianças muito
felizes. Amo dar presentes, mas, francamente, não sei exatamente
se vale o custo-benefício. Espero que o amigo imaginário, no
mínimo, expresse alguma gratidão.
Antes de atravessar as portas para a rua, ouço um psiu de dentro
da loja. Olho para trás, e o cara carrancudo que me atendeu está lá,
piscando e mandando um beijinho.
5
Aqui jaz um passivo

> VOCÊ NÃO PODE DOPAR CRIANÇAS, se é o que está me perguntando

Leio a mensagem de Nádia e, gente, que inferno de mulher


desagradável.

> Não era o que eu estava te perguntando

Jogo no lixo os comprimidos de antialérgico. Na última vez que


tomei um desses, acordei aos pés da Virgem Maria, que me
mandou de volta pois ainda não era minha hora. Me parece um erro
não usar a medicina ao nosso favor, seria apenas um suquinho
diferente. Bebo o suco de laranja artificial que por si só já tem gosto
de remédio enquanto penso em como desligar as crianças. São
onze da noite, e nenhuma delas deu um bocejo depois da janta.
Muito pelo contrário.
Miguel está gritando e correndo pela casa com suas asas de fada.
Gabriel espalhou micropecinhas pela sala inteira. Ester se empolgou
com a raquete e há bolas de tênis voando por toda parte. Já separei
briga. Já pisei em Lego. Acertaram uma peteca na minha cara. Um
deles tentou enfiar a espada rosa no meu cu enquanto eu estava de
costas pedindo socorro à Nádia. Você tem que usar da sua
autoridade, ela disse. Gritei que a brincadeira tinha acabado, mas foi
nessa hora que os três juntos viraram o sofá em cima do meu pé.

> Criança só dorme quando cansa, entra na brincadeira

Nádia jamais saberá, mas eu roubo no pique-esconde. Fico


espiando para onde cada um deles vai, porque imagina o pesadelo
de procurar crianças minúsculas dentro de um apartamento de 100
m². Derroto todos na queda de braço, mesmo quando são os três
contra mim. Acerto uma cortada sem querer na cara de Ester. Faço
todo mundo pular corda na velocidade foguinho. Obrigo Gabriel a
catar os Legos tacando o terror de que a gata vai morrer se comer.
Desarmo Miguel num duelo de espadas. Enrolo ele nas cortinas
novamente e peido dentro. Enfim, sou um tio exemplar.
Coloco três crianças exaustas para dormir. Meus sobrinhos
cabem todos na minha cama king size, o arranjo perfeito. Decidi
ficar no quarto de Nádia, que vai passar a noite fora, pois Deus me
livre esses capetas mexendo nas coisas dos outros. Achei mais
seguro correr o risco eu mesmo. Foi uma luta fazer todos tomarem
banho, principalmente depois que Miguel fez xixi em mim, mas
agora eu triunfei. Apago as luzes e dou boa noite para os três.
— Tio, conta uma história pra gente? — pede Miguel.
Travo na porta.
— Que tal vocês só dormirem?
— Eu não tô com sono — responde ele.
— Tá muito escuro — reclama Gabriel.
Aperto o interruptor.
— Tá muito claro, não consigo dormir assim — diz Ester.
Que ótimo.
— Conta uma história pra mim!
— O papai sempre conta!
— A mamãe também.
Confesso que sou muito bom em contar fofoca, falar mal dos
outros, passar para frente detalhes sórdidos que nem sei se são
verdade, mas histórias infantis não são meu forte. No escritório onde
trabalho, sempre junta uma roda de fofoqueiros quando trago
novidades. Não me importo muito em conferir as fontes, deixo para
os jornalistas. Meu negócio é saber cativar a audiência. Suspiro e
sento ao lado de Miguel na cama. Gabriel está deitado no meio,
abraçado com Ester na outra ponta.
— Vai ter princesa na história? — pergunta Miguel.
— Alguém morre no final? — acrescenta Gabriel.
— Eu gosto de histórias com bichinhos que falam — diz Ester.
— Olha, não conheço muitas histórias de criança. Legal que o pai
e a mãe de vocês têm tempo pra isso, mas os meus não tiveram.
Sempre achei isso de contar história para criança dormir coisa de
filme americano. Minha mãe só gritava vai pra cama, peste e, se eu
teimasse, ganhava uma chinelada e ia dormir com a bunda quente.
As crianças tentam me incentivar:
— Sabe a história do ursinho Pimpão?
— Não.
— E a da galinha que põe ovos de ouro?
— Nunca ouvi falar.
— A Pequena Sereia, então!
Ah, essa eu conheço.
— Sabiam que na história original cortam a língua dela e, no final,
ela se joga infeliz no mar e vira espuma?
Ester e Miguel me olham horrorizados, mas Gabriel se anima.
— Quem corta a língua dela? Sai sangue?
— Eu não quero saber! — grita Ester.
— Não quero essa história, não quero essa história, não quero
essa história — suplica Miguel, como um mantra, e tapa os ouvidos
com as mãos.
— Tá bom, tá bom. Vou pensar — digo.
Tento resgatar da memória as histórias realmente boas que
conheço. Incrível como todas têm sexo, drogas, adultério e baixaria.
As crianças não iam curtir. Bom…
— Ficaram sabendo do último exposed da Anitta?
— Quem é essa?
Começo a desenrolar a história desde os primórdios já que as
crianças finalmente morderam o anzol. Sirvo cada informação que
adquiri ao longo dos anos em sites sobre celebridades. Ester diz ter
uma amiguinha que mora em Honório Gurgel. Miguel me pergunta o
que é um furacão 2000. Preciso traduzir para Gabriel o que é um
single, um hit e um feat. Todos fazem uaaaaaau quando eu conto
dos cancelamentos.
— Depois que ela ficou muito famosa, ela achou um príncipe e
viveu feliz pra sempre? — pergunta Miguel, e tá quase sentando
para ouvir melhor.
— Nada, menino, ela pega muito boy lixo. Tem muito pano pra
manga ainda.
— Nunca vi uma história de princesa com final triste — rebate ele.
— Bom, essa não é uma história de princesa. A Anitta agora é
meio que a madrasta malvada do pop nacional.
— E quem vai matar ela? — pergunta Gabriel.
— Ninguém. Meu Deus, você precisa urgente parar com isso.
Mas, se matassem, ia ser muito difícil descobrir quem foi, meio
mundo artístico parece ter um bom motivo.
— Tem princesa na história do pop?— pergunta Miguel ao mesmo
tempo que boceja.
Percebo os olhinhos cansados dos demais.
— Tem, tem princesa, mas conto essa história outro dia.
— Qual é o nome dela? — insiste ele, mesmo fechando os olhos
e se aconchegando aos irmãos na cama.
— Pabllo Vittar. Agora, boa noite.
Quando apago as luzes e fecho a porta, não sobrou criança
acordada para falar que tem medo do escuro. Eles são tão fofos
dormindo! Poderiam dormir mais, inclusive. Fecho a porta com a
certeza de que nasci para ser tio. É o melhor papel. Não sei por que
as pessoas têm tanto fogo no rabo para ter filhos, quando podem
apenas esperar pelos irmãos parirem.
Meio estranho pensar que ser tio, querendo ou não, me faz parte
da família. Estranhamente, não quero que esse elo acabe. É como
se só agora surgisse um espaço para mim.
Desviro o sofá da sala e me jogo nele, estou acabado em todos
os sentidos. Comecei a me sentir ligeiramente culpado pelos três mil
reais, mas agora vejo que deveria ter cobrado mais. Cuidar de
criança é mesmo um trabalho invisível. Acabo bocejando eu mesmo,
já passa da meia-noite.
> Tá de bobeira?

É Ulisses. Encaro a mensagem e ainda bem que as crianças


dormiram, pois chegou minha vez de brincar.
Não sei como aconteceu, mas Suzie, a gata hedionda, está em
meu colo. O miado dela é como um rugido baixo e me dá a certeza
de que esse animal é acostumado a cometer crimes. Suzie é aquele
gato maluco que do nada morde nosso pé. Faço que vou levantar,
mas ela não se move.

> Abri um vinho, pensei de você dar um pulo aqui

Estou pronto para dar não apenas um pulo, mas todas as


acrobacias que Ulisses estiver disposto. Penso naqueles músculos,
nas coxas grossas, na bunda durinha. Adoraria roçar naquele corpo
para ver se é quente como parece.
— Suzie, você me perdoe.
Jogo Suzie em cima do sofá, mas ela claramente não me perdoa.
Sempre achei uma palhaçada isso de nunca levantar se o gato da
casa decidiu sentar em você, mas talvez tenha um motivo. Suzie
voa em mim com as unhas cravadas no meu braço e morde meu
dedo quando tento empurrá-la. De alguma forma, ela gira no meu
pescoço e me vejo correndo pela sala com uma bola de pelo
assassina fazendo picadinho de mim. Ela abre um furo na minha
camiseta até que, num ato de completo desespero, jogo a gata para
cima.
Suzie cai em pé no sofá.
— Qual é o seu problema? — pergunto, horrorizado, mas fazendo
pose de boxeador caso ela parta para um segundo round.
A gata apenas mia para mim. Ajeito meu cabelo com as mãos e
procuro arranhões pelo corpo. Acho alguns no meu braço, um rasgo
no meu short, minha camisa descompensada por inteiro. Meu Deus.
Ainda bem que meu tesão é imbatível. Saio do apartamento
torcendo para que meu vizinho me bagunce tão bem quanto Suzie.
Ulisses é excelente no beijo francês, e meu corpo está pronto para
descobrir se Odisseu entende mesmo dos prazeres da Grécia.
Bebemos meia taça de vinho, mas, para mim, já foi mais do que o
suficiente para pular em seu colo. Ele é muito meu tipo. Gosto do
jeito que me experimenta com o olhar, como reconhece as trilhas do
meu pescoço, como tateia meu corpo procurando sossego. Meu tipo
é quem tem eu como tipo. Nos beijamos na cozinha dele, e logo me
vejo sobre a bancada com seu corpo entre minhas pernas. Quando
seus lábios tocam meu pescoço e suas mãos apertam minha bunda,
fico na dúvida se quero fechar os olhos para sentir o momento ou
abri-los para decorar cada segundo da cena. O calor é tanto que
peço um tempo.
— Tô indo rápido demais? — pergunta ele.
— Fiquei até sem ar. Deixa eu te ver.
Ulisses afasta as mãos do meu corpo e dá um passo para trás. Já
fui muito feliz em bancadas de outras cozinhas, mas os beijos desse
homem lamberam minha memória, me sinto virgem novamente. A
camisa dele parece esconder segredos que meus olhos não serão
capazes de contemplar. Mesmo assim, é o primeiro desejo que meu
corpo implora descaradamente. Ulisses tira a camisa, e sou atacado
em ondas pelo quanto esse homem é gostoso. Seus ombros largos,
o peito aberto, os braços firmes clamam pelo meu toque. É como a
capa de um romance erótico, mas muito melhor, já que tudo se
move. Ulisses é um dos poucos livros que me fazem querer revirar
todas as páginas.
— Acho que podemos deixar o vinho para lá — sugere e me leva
pela mão até seu quarto.
Não apenas podemos, como deixamos. Ulisses está sobre mim
na cama, e meus sentidos entram em polvorosa. Me pergunto se
alguém já morreu assim, no ápice do tesão, porque agora me
parece completamente plausível. Meu corpo não se aguenta. Aqui
jaz um passivo, vão escrever na minha lápide. Me foco em me
manter vivo até ter esse deus dentro de mim.
Quero deixar minhas roupas pelo chão, mas acho necessário que
ele as tire de mim. Ulisses parece não ter pressa. A língua dele
conversa muito bem com a minha, nossas virilhas dançam em
sincronia. Pelo amor de Deus, que ele tire logo minha roupa! Ele faz
uma pausa abrupta e se estica pela cama, ainda por cima de mim,
para abrir a gaveta de um móvel ao lado. Volta com um preservativo
em mãos.
— Não quero te engravidar — diz ele, e sorri.
— Poxa, mas eu queria tanto encher essa casa de gurizinhos com
os seus olhos — faço piada.
— Cara, nem brinca, imagina o pesadelo.
Ulisses me brinda com seu sorriso mais quente. Quando percebo,
finalmente estou nu, mas minha cabeça ficou agarrada nas palavras
de trinta segundos atrás.
— Não seria tão ruim assim, seria? — digo, enquanto ele enche
meu pescoço com os beijos que mereço.
Se ele me ouve, ignora.
— Ulisses? Ter filhos não é tão ruim, é? — insisto.
Ele pausa os beijos nos meus mamilos e senta sobre mim. O
peso dele sobre minhas pernas é inebriante e não consigo disfarçar
minha excitação.
— Jura que você quer conversar sobre isso agora?
— É só que você chamou de... pesadelo?
— Ah, cara, eu odeio criança — diz ele, como quem diz que odeia
brócolis.
— Você odeia criança?
— É muito coisa de hétero querer filho. Criança é tudo
bagunceira, melequenta, não cala a boca um segundo, tudo quer
chorar. Não aguento, não.
Fico perplexo por alguns segundos. Esperava que Ulisses me
deixasse sem palavras, mas de um jeito diferente. Ele desce pelo
meu corpo e, por mais que eu queira que ele encha meus
pensamentos de putaria enquanto acaricia minha virilha, penso do
nada que meus sobrinhos estão dormindo sozinhos em casa.
Ai, porra, não tô fazendo nada de errado, até Deus sabe o quanto
eu mereço transar, mas… Minhas crianças são até limpinhas.
Mesmo quando Miguel mija de propósito na gente, não é nenhum
pesadelo. Gabriel fala o tempo todo, mas ou tá oferecendo ajuda ou
fazendo perguntas que estimulam a mente humana. A Ester nem
fala! E tem um coração gigante. Essas três crianças são a parte
mais pura da minha família, uma parte que eu nem sabia que
existia. Foi como descobrir petróleo num lixão.
— Algumas crianças são... muito legais — arrisco.
Ulisses percebe que não vou deixar essa conversa passar e olha
na minha cara.
— Teve um dia que fui num restaurante e tinha um bebê que não
parava de gritar. Chamei até o garçom pra resolver a situação. A
mãe teve que sair com a criança. É questão de respeito, sabe? —
diz ele.
— Você expulsou uma criança do restaurante?
— Se fosse um adulto fazendo barulho, ia sair do mesmo jeito.
— Mas criança não é adulto.
— Os pais têm que dar educação, né?
Ulisses ter todos esses argumentos prontos não me faz bem.
— Não dá pra querer que as crianças fiquem trancadas dentro de
casa só pra não te irritar — digo.
Ulisses dá um sorriso, mas sei que está tão confuso quanto eu. Já
estou sentindo câimbras nas pernas por sustentar o rabo dele.
— A gente pode continuar? — pergunta ele, passando a mão pelo
meu peito liso.
A verdade é que meu pau nunca esteve tão mole. Sinto como os
lençóis dele são ásperos e há um cheiro nessa cama de uma dúzia
de nádegas suadas que já passaram por aqui. A decoração do
quarto é inexistente, e agora nas roupas sujas jogadas aqui e ali.
Tem uma caixa de pizza que virou point de moscas em cima da
cômoda. Ulisses continua bonito, mas de uma beleza estranha e até
desperdiçada, como se todos os elementos certos fossem
encaixados na posição errada.
— Tenho que ir pra casa — digo.
Ele parece incrédulo. Dou meu jeito de sair de debaixo dele, giro
para o lado e me ponho de pé. Cato minhas roupas, visto mais ou
menos minha cueca, meu moletom e caminho para fora do quarto
com minha camisa no ombro enquanto Ulisses ri de nervoso,
deitado na cama.
— Só porque eu disse que odeio crianças?
— Só.
Faço uma pausa dramática.
— E porque esse quarto fede.

Saio do apartamento do vizinho, desnorteado e questionando


minhas próprias decisões. Alguma coisa está errada. Não acredito
que troquei um homem gostoso daqueles por uma noite solitária
vigiando crianças infernais. Minhas crianças. Verdade que elas são
contra qualquer coisa no lugar correto e são incapazes de conversar
num volume socialmente aceitável, mas são crianças.
Eventualmente elas vão entupir o vaso, mijar em você, te humilhar
em público e, meu Deus, até enfiar uma espada no seu cu, mas,
ainda assim, são crianças. Toquinhos de gente que merecem ser
protegidos e socializados. Você quer amarrar crianças em casa, seu
filho da puta? Aqui, não. Meu corpo é um templo, e só o compartilho
com quem merece. Algumas vezes com quem não merece também,
mas aí é porque bebi demais e não transo há muito tempo.
No corredor, dou de cara com o elevador aberto e três crianças
dentro dele.
— O que vocês estão fazendo aí? — pergunto, chocado.
— A gente vai passear! — responde Miguel.
Gabriel me dá tchau enquanto as portas fecham, mas, num ato de
loucura, meto o pé para impedir. Puta que pariu, eu deveria voltar
pra cama de Ulisses e dar até amanhã.
— São quase duas da manhã! Como vocês… Por que… AONDE
vocês acham que estão indo?
Nem sei por onde começar. Estou me tremendo todo por pensar
que, se eu tivesse ficado mais um pouquinho me pegando com
homem gostoso, não veria essas pestes fugindo de casa de
madrugada. Meu Deus do céu. MEU DEUS DO CÉU!!!
Sou brusco demais na hora de puxar todo mundo para fora do
elevador, mas não me importo. Estou apavorado. Vou começar a
gritar mesmo sabendo que vou incomodar os vizinhos do andar
inteiro.
— A gente ia passear! — choraminga Miguel.
— Vocês não podem sair de casa sozinhos assim!
Enlouqueceram?
— O João Augusto ia levar a gente! — tenta me explicar Gabriel.
— Ai, que inferno esse João Augusto, ele não existe!
— Existe, sim! Ele tá no elevador esperando a gente. Tio, ele quer
passear!
Arrasto os três pelo corredor, mas não consigo não me exasperar.
— Ester, você tem dez anos! Tá doida?
— O Gabriel disse que… — diz, baixinho.
— Ele é um bebê! — grito.
Empurro todo mundo pelo corredor de volta para o apartamento.
Escuto o elevador fechar. Me pergunto, se o João Augusto
mandasse essas crianças comerem cocô, se elas comeriam. Tio, o
João Augusto me mandou pular da ponte, vou pular. Pelo amor de
Deus. Quem tem criança não tem paz. Quando toco a maçaneta de
casa, as luzes do corredor se apagam.
E acendem.
E apagam de novo.
Estou no mais completo breu com três crianças choramingando.
O pisca-pisca dura mais uns três segundos até que entro em casa
com a prole do meu irmão.
— Vocês nunca mais saiam dessa casa sem me avisar, ok?
— O João não tá feliz — avisa Gabriel.
Vou comer um amigo imaginário na porrada.
— Ah, não tá? Sinto muito, porque eu também não tô.
— A gente ia brincar na casa dele — diz Miguel.
Encaro Ester, que apenas dá de ombros.
— Ele gosta muito da gente — choraminga Gabriel.
— Quer que a gente more com ele — diz Miguel.
Bato a porta de casa, dou todas as voltas possíveis na chave e
passo o trinco. Ainda estou segurando com força Gabriel num braço
e Miguel no outro, como se eles pudessem desaparecer se eu os
soltasse. Juro que passo uma banda em Ester se ela ousar sair
correndo.
— Cansei dessa brincadeira! — grito com eles. — O João
Augusto não existe. Ele é imaginário! Ele não tem casa!
— Tio, tem sim! — chora Miguel.
— Ele mora onde, no fosso do elevador?
— No necrotério — diz Gabriel.
— O quê?
— Ele que me disse — completa.
— Vocês sabem o que é um necrotério?
Os três se entreolham como se pela primeira vez pensassem a
respeito.
— Tem um monte de criança e é muito legal! — responde Miguel.
— Crianças mortas — explico, exasperado.
Só Gabriel bate palma, e é aí que a porta explode atrás da gente.
Quer dizer, ela parece que explode. Olho em direção à entrada certo
de que onde havia uma porta existe apenas destroços e morte, mas,
não, ela está lá, intacta. Alguma coisa enorme está espancando a
porta. Chocado que irritei Ulisses tanto assim, sendo que nem
comentei do pinto pequeno e fino por educação.
— É o João Augusto! — diz Miguel.
— Tio, ele tá bravo com você — diz Gabriel.
Encaro a porta novamente e dá para ver que há algo atrás dela.
Consigo enxergar as luzes piscando por baixo da porta e, de alguma
forma, ouço um silêncio infernal que talvez seja uma voz dentro da
minha cabeça. O barulho da batida na porta é absurdo, como se
estivessem jogando uma bola de demolição contra ela, com Miley
Cyrus em cima e tudo.
Dou um grito com mais uma pancada e instintivamente abraço as
crianças. Qualquer coisa jogo uma delas avulso para ganhar tempo.
O bom é que o pique-pega de mais cedo me treinou para correr
mais rápido que as três. Mais uma batida, e o trinco voa pelo chão.
— O João existe? — grito.
Vou me mijar aqui. Minhas pernas não me obedecem e, em vez
de eu correr com as crianças para bem longe, meus joelhos dobram
implorando por misericórdia. Abraço os três bem forte, esperando a
porta se escancarar. Não demora muito.
O que há por trás da porta aberta é mais assustador do que eu
poderia imaginar: nada. Gabriel e Ester me abraçam de volta na
hora. Até Miguel, que não gosta de contato físico, de repente
esqueceu disso.
— João não tá feliz — sussurra Gabriel, por fim.
Não consigo desviar os olhos da entrada.
— Você tá vendo ele? O que ele quer? — pergunto.
— Que você deixe ele levar a gente pra casa dele — explica ele.
— E se eu não quiser deixar?
Gabriel fica em silêncio por mais alguns segundos, olhando para a
porta, ouvindo o chamado dos mortos, ou sei lá. Abraço as crianças
ainda mais perto do corpo, mas é porque estou congelado e preciso
de calor humano.
— Vai levar a gente mesmo assim.
Agora vejo que deveria ter prestado mais atenção nas missas que
meus pais me obrigavam a frequentar. Certeza que todos
aprenderam exorcismo básico enquanto eu estava mamando o líder
da juventude.
— Olha, senhor João, você não pode levar as crianças — tomo
coragem e digo. — Você não é bem-vindo aqui!
Estou trancado dos pés à cabeça, da garganta ao cu. Nada passa
por dentro de mim enquanto aguardo a resposta. Espero pela
mensagem cheia de garranchos escrita com sangue nas paredes,
mas nada acontece.
— Ele não gostou — sussurra Gabriel novamente.
Merda.
— Vá para a luz? — arrisco. — Por favor?
Educação funciona pior que a encomenda, porque finalmente
tenho minha resposta: todas as lâmpadas da casa ficam fora de
controle! A janela da sala se abre e a cortina voa com o vendaval
que veio do além. Há um barulho bizarro, como um porco sendo
estrangulado. Não consigo enxergar nada por conta da fumaça que
vem da porta e enche a casa! Vejo o brilho de um fogo azul subindo
pelas paredes! É horrível, é tudo horrível.
Sempre imaginei que fosse morrer bem velhinho deitado numa
cama aconchegante. Estar abraçado com três crianças que não
param de gritar é um pouco diferente, ainda mais que grito mais alto
que elas.
Vejo um vulto pular por cima da gente, e é Suzie toda eriçada
silvando para a porta. Me sinto como os humanos em Alien vs.
Predador, lutando para sobreviver no meio da briga de dois
demônios.
— Suzie! — grita Ester.
— Eu vou salvar a Suzie! — berra Miguel, e se solta do meu
braço, mas imediatamente o pego de volta.
— Você não vai mesmo!
Também sinto pena da gata, pois, apesar de mal-apanhada,
agressiva e um perigo para todos ao redor, ninguém merece morrer
queimado. Mas antes ela do que a gente. Suzie pula direto sobre as
chamas fantasmagóricas que lambem a porta e as paredes da
entrada de um jeito completamente antinatural. Tento tapar a visão
das crianças com meu corpo, mas não consigo desgrudar o olhar de
Suzie quicando por todos os lados, arranhando o vento, mordendo a
cortina… Não sei dizer quem está matando quem.
De repente, é como o som de mil vozes ardendo no fogo, e nem
eu aguento mais, acho que vou desmaiar. Apenas fecho os olhos,
aperto as crianças e ouço Suzie emitir um rugido que é pior do que
tudo o que o fantasma João já fez.

É a manhã do dia seguinte, e acho que já rezei oitenta e duas Ave


Maria. As crianças dormiram feito os anjos que não são.
Ironicamente, apenas quem já não estava vivo morreu.
6
Família de bem atropela homossexual

— NÃO ME OLHE COM ESSA CARA, Suzie, eu fiz de um tudo pra te salvar.
Você sabe que estou dizendo a verdade.
A gata me observa da outra ponta do sofá, nem um pouco
convencida.
— O tempo todo as crianças ficaram “vamos fugir daqui”, e eu “e
deixar a Suzie? Jamais! Vamos estar aqui torcendo por ela até o
fim”.
Dizem que, quando nos afeiçoamos a alguém, esse alguém se
apresenta mais bonito diante dos nossos olhos — é a explicação
científica para políticos de boca murcha com esposas belíssimas.
Depois de passarmos por uma experiência de quase morte, vejo
Suzie como ela realmente é: um lindo bichinho de estimação? Não,
continua horrorosa. As orelhas carcomidas, a fuça criminosa, os
olhos de quem já viu desastres demais na vida. Tudo na gata
parece equivocado, menos a lealdade na hora de proteger as
crianças.
Embora eu faça que vá levantar do sofá, Suzie vem caminhando
sobre as almofadas em minha direção e senta em meu colo. Fico
paralisado no meio do movimento. Não quero sofrer outra tentativa
de homicídio. Faço carinho na cabeça dela, que se revira toda
dengosa, parecendo um gatinho normal. Suzie só quer ser amada,
no fim das contas. Eu, mais do que ninguém, devo isso a ela.
Sempre acreditei que gatos enxergam o sobrenatural, mas essa é a
primeira vez que vejo um que cai na porrada com ele.
— Você é uma gatinha linda — digo.
Já menti tanto para ela que uma mentira a mais para inflar o ego
não faz mal.
Meia hora depois, estou obrigando Miguel a comer uma torrada
com manteiga que caiu no chão virada para baixo. Gabriel quis me
ajudar a preparar a mesa, mas derramou meu café e pôs sal no
suco de laranja. Ester belisca uma maçã desde que começamos a
comer, como se fosse uma formiga.
— Tio, mas caiu no chão! Tá sujo! — grita Miguel, fazendo cara
de nojo para uma torrada perfeitamente comestível.
— O papai manda joga fora — diz Ester.
— Tem a regra dos cinco segundos — digo. — Meu Deus, os pais
de vocês não ensinam nada em casa?
Os três me olham com cara de paisagem.
— As bactérias esperam cinco segundos antes de subir no que
cai no chão. Então, se vocês forem mais rápido que elas, podem
comer tranquilo.
— Uaaaaaaau — dizem os três em uníssono.
— É a ciência.
Digo como se não fosse nada demais, mas sei que estou
arrasando. Fico pensando o que será deles sem mim, já que fiz
tanto por todos. Ester parece muito mais confiante depois de dar
uma raquetada no garoto inconveniente. Gabriel não é mais seguido
por uma alma penada. Miguel finalmente pôde se expressar do jeito
que sempre quis. Até agora usa as asas de fada, não quis tirar de
jeito nenhum, tomou banho e dormiu com elas.
(Ignoro completamente que os três quase morreram noite
passada enquanto estavam aos meus cuidados, mas,
convenhamos, não foi culpa minha.)
Vejo Miguel finalmente morder a torrada com vontade. Talvez
Nádia estivesse certa, a última vez que de fato convivi com uma
criança fora anos atrás quando me olhava no espelho. Muita gente
pensa como Ulisses. Admito que eu mesmo às vezes penso que
crianças são adultos em miniatura. Elas têm sentimentos e
vontades, mas ainda não chegaram lá. Não precisamos que elas
cheguem agora. Criança é criança. O que criança precisa é de
quem as entenda. Lugar no mundo elas já têm.
Eu me lembro de quando tinha seis ou sete anos e tentei calçar
os sapatos de salto alto da minha mãe. Ainda coloquei uma toalha
na cabeça, porque ter cabelo comprido de verdade parecia incrível e
também combinava com o look. Levei um tombo no terceiro passo,
bati com a testa numa cômoda. Doeu menos que a surra que levei
do meu pai. Não entendi bem por que apanhei se era eu quem tinha
me acidentado. Minha mãe me disse para nunca mais usar as
coisas dela. Demorei anos para juntar dois mais dois, e nem quero
ensinar a matemática da homofobia para os meus sobrinhos, mas…
Com quem eles vão aprender? E como?
— Eu sempre vou estar aqui pra você, ok? — digo para Miguel.
Ele sorri para mim com a boca cheia de torrada, sua bochecha e
nariz tomados de farelo. Certeza que não sabe do que estou
falando, mas eu sei.
— Se por acaso seu pai ou sua mãe quiserem que você brinque
com outras coisas, tudo bem. A gente deixa seus brinquedos de
princesa aqui e você pode vir quando quiser.
Acho que ele nem está me escutando, concentrado no suco e nas
torradas.
— Você também, tá? — digo para Ester. — Tenta não deixar
ninguém te fazer de boba. Dentro de você tem muita força, eu vi na
loja de brinquedos. Você deixa esses pestinhas te atacarem porque
sabe que é muito mais forte do que eles, mas você não precisa
permitir isso o tempo todo.
Ester apenas olha para mim, mastigando bem devagarzinho sua
maçã.
— Se alguém implicar com você, você não está sozinha, você tem
um tio.
— Obrigada, tio… — responde ela, parecendo meio incerta sobre
o que estou falando.
Ai, me tornei uma bicha emotiva.
— Tio, você vai tá aqui pra mim também? — me pergunta Gabriel.
— Com certeza!
— Até quando você morrer?
— Olha…
Faço uma pausa para refletir.
— Dado seu histórico, é bem capaz — concluo.
Há mais coisas entre o céu e a Terra do que explica nossa vã
filosofia, e uma delas é meu sobrinho mais novo. Seus amigos
imaginários são um pouco criativos demais. Eu na idade dele tinha
um amiguinho chamado Bil, que era um sabugo de milho inofensivo.
Confesso que não xeretei a fundo, porque me cago todo com
história de terror, e fazer perguntas para Gabriel faz eu me sentir em
O sexto sentido. Esse bebê vê gente morta. João Augusto não
estava tão vivo nem tão morto quanto eu gostaria, mas era real.
Tenho certeza que, se eu for procurar no IML onde Karla trabalha,
vou achar o cadáver do dito cujo. Mas você vai fazer isso? Porque
eu não vou. O importante é que foi em paz. Quer dizer, Suzie comeu
ele. Antes ele do que eu.
O interfone toca, e sei que a Operação Babá acabou.
— Minhas crianças estão vivas? — pergunta meu irmão quando
atendo.
Por muito pouco, na verdade.
— Tá todo mundo bem — respondo. — Os dois estão ótimos.
— E o terceiro?
— Eram três?
— Muito engraçado, Diego. Posso subir?
Penso em responder diferente, o que para mim já conta como
evolução espiritual. Mas digo que não. Não quero apressar as
coisas. Cuidar dos meus sobrinhos foi emoção demais para essa
gay aqui.
— O Jorge não vai muito com a sua cara, quem sabe um dia.
Diogo apenas ri. Mando cada um pegar sua própria mochila, e
agora as crianças carregam mais peso do que quando chegaram.
Elas mesmas decidiram deixar alguns dos brinquedos por aqui,
seria muita coisa para levar. Sinto que é uma promessa implícita de
que vão voltar um dia. Elas acham que vão, pelo menos. Abro a
caixa de Suzie e, felizmente, ela caminha para dentro.
Sinceramente, não sei o que eu faria se a gata teimasse. Arrisco um
carinho na cabeça dela antes de fechar a portinha, e ela deixa que
eu a toque. Ou essa gata me ama ou está doida para ir embora. Por
mim, tudo bem.
Escolto as crianças para o elevador e peço para Ester chamá-lo
para mim. Antes que ela possa apertar o botão, Miguel vai com a
mão, mas ela o segura.
— Ele pediu pra mim — diz ela.
Miguel mostra língua para a irmã, mas dou nossa famosa
piscadela secreta para ela.
Quando o elevador chega ao nosso andar, dou de cara com
Ulisses dentro dele. Seguro Gabriel no colo com um braço, na outra
mão seguro Miguel. Ester enroscou o braço dela no meu. Sou um
cabideiro de crianças. Ulisses não diz nada, mas vejo que ficou sem
graça. Literalmente vejo, porque o encaro até que desvie o olhar.
Dou licença para que ele passe, sem arrependimento nenhum. Em
outra vida talvez, né, Ulisses. Quando ele caminha corredor adentro,
dou uma última olhada na bunda dele, porque não sou de ferro.

— Paaaaaaai!!! — gritam os três ao verem o pai sair do carro.


Honestamente, fico meio decepcionado com essa animação.
Esperava pelo menos um pouco mais de resistência, um choro
sentido, Miguel agarrado nas barras do condomínio enquanto Diogo
o puxa pelas pernas. Mas não. O pai é mesmo o herói deles. Acho
que tudo bem eu ser a Maraísa dessa Maiara.
De uma coisa eu tenho certeza: sexo faz bem pra caramba. Meu
irmão desce do carro com a pele lustrosa. As olheiras se foram, a
coluna dele parece muito mais ereta, o cabelo está bonito, os dentes
mais claros. Transar sempre foi o melhor tratamento estético, e é
por isso que sigo acabado. Pela janelinha do motorista, vejo que
Klara não fica para trás. Os dois estão serenos e deslumbrantes.
— Aproveitaram bastante a noite, hein — comento.
— Você nem imagina.
Pior que imagino: frango assado nos primeiros cinco minutos,
depois cada um virou para o lado e dormiu a noite toda.
Abro o portão, e as crianças disparam para o pai. Gabriel agarra
sua perna, Miguel agarra na outra, Ester o abraça bem forte com os
dois braços. Meu Deus, parece que bati nelas o tempo inteiro.
— Ei! Calma, gente, calma — diz meu irmão, com um sorriso. —
Nossa, quanta saudade! Se divertiram? O tio cuidou bem de vocês?
— Sim! Meu tio disse que você lava dinheiro — comenta Gabriel
sorrindo, porque na cabeça dele lavar um dinheiro que está sujo é
uma boa ação.
— E que a mamãe é burra porque casou com você — completa
Ester.
— E que quando eu crescer posso ser igual a Pabllo Vittar!
— Ele disse o quê?
Chamar a esposa de burra, tudo bem. O filho virar uma drag
talentosa, jamais.
— Eu também disse outras coisas! — me defendo.
As crianças continuam:
— A gente viu filme!
— E ganhou um monte de brinquedo!
— Ele protegeu a gente do fantasma!
Diogo está muito confuso, mas eu é que não vou explicar.
— Acho que… deu tudo certo, então? — pergunta ele para mim,
ainda tentando não cair, com os filhos agarrados.
— Pode contar, tá todo mundo com os dois braços e as duas
pernas.
Meu irmão parece de fato contar os membros do corpo das
crianças.
— A Suzie também está inteira.
Apenas um pouco chamuscada, penso, estendendo a ele a
casinha com a gata dentro.
— Nem sei como te agradecer.
— Bom, eu sei como.
Meu irmão sorri.
— Já está na sua conta, pode conferir.
Não fez mais do que a obrigação, porém, sei lá por que, acho fofo
que meu irmão não esteja me aplicando um golpe. Sinceramente,
há anos que venho esperando tudo de ruim deles. Que meu pai
tenha uma segunda família. Que mamãe seja dona de um esquema
de tráfico humano. Que meu irmão lave dinheiro (tem que ser isso,
não é possível). Que eu tenha sido sequestrado na maternidade,
mas depois descartado por ser uma criança de inteligência e beleza
apenas medianas. Embora ainda esteja armado até os dentes nessa
conversa, sinto que fui atingido pela única coisa que não vi
chegando: uma parte da família que ainda me quer. Alguém que
precisa de mim.
De repente, me torno uma freira.
— Olha, não preciso desse dinheiro. Pode… ficar com ele.
— Nossa! De jeito nenhum — insiste meu irmão, enfático. — É
seu. Não vou aceitar que…
— Tá bom, obrigado — digo o mais ligeiro que posso.
— Foi rápido, hein? Só falei por educação. Ia querer de volta se
você rejeitasse mais uma vez.
— Deu mole, então.
— Você não mudou nem um pouquinho… — diz ele, e sorri.
— Já você ficou careca.
Diogo passa a mão na cabeça como se estivesse descobrindo
agora que seu cabelo está caindo.
— Crianças, vão lá pro carro abraçar a mãe de vocês, ela tá
morrendo de saudade.
Tanto que nem se deu ao trabalho de sair do volante.
Diogo passa Suzie para Ester, e Miguel e Gabriel saem correndo
na frente. As perninhas de Gabriel não chegam muito longe, porque
logo ele volta correndo até onde estou com o pai dele.
— Tio, você vai na nossa casa também?
Antes que eu tenha tempo de responder que não curto ser
maltratado, meu irmão me interrompe.
— Ele vai. Um dia, ele vai. As portas estão abertas — diz Diogo, e
faz isso me olhando bem nos olhos.
— Tem certeza de que estão? Da última vez que eu vi, estavam
fechadas — rebato.
— Pode deixar, tio, a gente vai abrir pra você! — responde Gabriel
e sai correndo para o carro com os irmãos, como se estivesse com
pressa de chegar em casa e garantir que terei como entrar.
— As portas estão abertas — repete Diogo.
Acho que ele tenta me dar um abraço, mas, por reflexo, dou um
passo para trás. Talvez demore um pouco mais do que eles estão
pensando para eu aparecer por lá. Mas bom saber que não terei de
pular o muro e arrombar a janela dos meus sobrinhos.
Vejo meu irmão se afastar e entrar no carro. No último segundo,
Kênia buzina e acena para mim. Acho que, no fim das contas, é o
melhor que ela consegue fazer. Acabo ficando grato por ela não ter
tentado passar as rodas por cima de mim. Iam colocar uma foto
horrorosa minha em preto e branco com a manchete num jornal:
FAMÍLIA DE BEM ATROPELA HOMOSSEXUAL. Acompanho o carro saindo da
minha rua, e as três crianças com a cara grudada no vidro dando
tchau para mim. Aceno de volta mais empolgado do que imaginei
que faria.
— Gente, que cena foi essa?
É Nádia atravessando a rua na minha direção.
— O que você viu? — pergunto, para saber quanta munição ela
tem.
— O suficiente pra achar que você morreu e foi substituído.
— Amiga, nem te conto.
— Me conta tudo!
Vou contando enquanto pegamos o elevador de volta para o
apartamento, e Nádia me faz perguntas pertinentes. O nosso vaso
está entupido? Você deixou a menina bater em outra criança? O pau
do Ulisses é mesmo pequeno ou você só tá sendo maldoso? Como
assim, um fantasma?
Só fico sem resposta quando ela pergunta se agora eu me sinto
menos órfão. Paro para pensar um pouco.
— Acho que, a partir de hoje, sou um gay de família.

FIM
Um pouco mais sobre Gay de Família

UMA COISA COM A QUAL eu e meu marido sempre podemos contar é


com o fato de que nunca vamos calar a boca enquanto estivermos
perto um do outro. A gente não para. Temos mil assuntos a tratar,
mas, mesmo quando eles se esgotam, damos nosso jeito de não
deixar a peteca cair. Fico desolado quando ele tem que sair de casa,
mas não é por isso que me dou por vencido: começo a falar
sozinho.
Já tenho o discurso pronto para quando eu ganhar meu primeiro
prêmio Jabuti. Declamei dia desses lavando o banheiro. Também já
sei como eu me defenderia perante um tribunal se questionassem
se eu por acaso estou promovendo a ditadura gay com meus livros
(são cinco parágrafos muito eloquentes, mas, resumindo, a resposta
seria sim). Enquanto secava a louça ontem, ensaiei todos os
depoimentos que eu daria para a câmera durante minha
participação no Survivor, meu reality show favorito. Eu não vejo
problema nenhum em falar sozinho, acho que já deu para perceber,
né. Minha performance campeã é quando estou tomando banho ao
mesmo tempo que respondo perguntas durante uma entrevista
sobre Gay de Família. O entrevistador faz exatamente as perguntas
que eu gostaria de responder se um dia fosse entrevistado. Não sei
dizer como começa, mas o meio é mais ou menos assim:

Você chegou a pensar que colocar GAY no título, assim bem


grande, poderia afastar possíveis leitores?
É justamente o intuito. Brincadeira. Mas também, se uma pessoa
desistir de ler meu livro porque tem GAY na capa, acho que o livro já
não é mesmo para ela. Fiquei, sim, com receio de prosseguir com
esse título, mas por causa de problemas com algoritmos de busca
que acham que qualquer palavra relacionada à comunidade LGBT+
deve ser classificada como CONTEÚDO PROIBIDÃO. Vídeos deixam de
ser monetizados no Youtube, livros somem da Amazon, sites não
aparecem na busca do Google... Até a Pabllo Vittar sofre com isso,
imagina eu.

Prosseguiu por qual motivo, então?


Porque eu quero deixar claro que é uma história sobre um
personagem gay. Se afasta alguns leitores, atrai outros, e eu quero
que meu livro encontre quem o queira também. Outra coisa é que
eu meio que sei que estou brincando com fogo escrevendo uma
história com crianças, sobre crianças, mas que de forma alguma é
uma história infantil. Não é minha intenção que esse livro caia nas
mãos de menores de idade, então acho que o título faz seu trabalho
na hora de alertar pais desavisados.

Sobre estar brincando com fogo, acha que o livro ainda pode
te trazer problemas?
Olha, nunca se sabe. Ainda existe um tabu muito grande sobre
gays e crianças convivendo no mesmo espaço. Fico para morrer
com esse discurso de que a única relação que uma pessoa da
comunidade LGBT+ pode ter com uma criança é a da pedofilia.
Crianças mal podem saber que gays existem. “Como eu vou
explicar para o meu filho dois homens se beijando?”, etc. E não tem
nada a ver. Já fomos crianças um dia, temos nossos próprios filhos,
nossos sobrinhos, irmãos menores. Alguns de nós trabalhamos com
crianças, as possibilidades são muitas. Pode ser que alguém chie
com meu livro, mas eu espero que as vozes das pessoas que se
sentirão representadas superem o chiado.

Então foi contra esse tipo de discurso que você teve a ideia
de criar essa história?
Não exatamente. Eu adoro a ideia de pegar clichês positivamente
estabelecidos na sociedade e revertê-los de alguma forma. No meu
caso, transformá-los em clichês gays. Se eu tivesse tempo e
dinheiro suficientes para isso, criaria uma versão LGBT+ para todos
os clássicos da Sessão da Tarde. Amo a narrativa do homem
grandão, geralmente gostoso e perigoso, que por causa de uma
reviravolta do destino é obrigado a cuidar de uma ou mais crianças
fofas e extremamente pentelhas. Pensem em Operação Babá, Um
Tira no Jardim de Infância, Treinando o Papai. É disso que estou
falando. A ideia de ver um homem gay nesse lugar que sempre foi
ocupado por um hétero fez todo sentido para mim, que adoro uma
boa gargalhada. Então, antes de tudo, Gay de Família é uma
história que eu criei para entreter. Se serve como um ato político, é
um bônus.

É verdade que você também é tio e tem três sobrinhos?


Sim! Mas nenhum deles vê gente morta, eu garanto. Aliás, foi
outra falácia que eu quis combater: a de que gays vieram para
destruir famílias. Como se gay fosse um ser avulso no mundo, sem
pai nem mãe, sem parentesco algum. De onde acham que eu vim?
Como a grande maioria das pessoas, gays nascem numa família e
às vezes partem para criar a sua própria. Amo minha mãe, minhas
irmãs, meus sobrinhos e, assim que eu sair dessa entrevista
imaginária no banho, vou ligar para o meu marido para dizer que o
amo também.

Eu tinha esquecido que você está dando uma entrevista


completamente pelado.
Pare de encarar, eu sou um homem casado.

Alguma curiosidade que você gostaria de comentar sobre o


livro?
Eu tive que entrar num site de nomes femininos para encontrar
onze ou doze formas de errar o nome da Kelly.

Tenho quase certeza que o nome dela é Keila.


Talvez seja. Também foi uma luta para encontrar sinônimos da
palavra “gay” para aparecer nos títulos dos capítulos. Espero que o
leitor aprecie (se nem percebeu, favor reler com atenção). Como se
apenas escrever já não fosse difícil o suficiente, eu gosto de
inventar esses pequenos desafios para mim mesmo. Fica a dica
para escritores que queiram dificultar o próprio trabalho apenas por
diversão.
Agradecimentos?
Aos meus leitores beta incríveis, Taiany Araújo e Felipe Vieira,
que lêem minhas histórias quando elas estão na pior fase. Ao
pessoal que me lê no Wattpad, que me dão o feedback necessário
para eu seguir em frente. À Sofia Soter, que deixou o texto
afiadíssimo, e à Karen Alvares, que foi um ANJO na diagramação. À
Laura Guedes, que criou essa capa maravilhosa que ganha o leitor
muito antes da primeira linha. Ao Pedro Rhuas, que ofereceu
exatamente o que meu livro precisava: o blurb mais irreverente da
história dos blurbs (nunca imaginei que teria um CU na minha capa).
Ao Alfredo Neto, a pessoa mais empolgada que já subiu no meu
barco. Se eu quiser levar Gay de Família até a lua, Alfredo
certamente terá um plano! E ao meu marido, claro, Arthur Ferreira,
que não entende nada do mercado editorial, mas mesmo assim
aparece nas horas certas me oferecendo o copo d’água, o bombom
ou o carinho que preciso para finalizar mais um capítulo. Vocês
todos fizeram esse livro ir um pouco mais longe.

Por carinho você quis dizer sexo?


Também. Essa pergunta foi muito invasiva.

Foi mal. Que mensagem final você gostaria de deixar para os


seus leitores?
Aquilo que o Diego já disse: Família é uma palavra vazia se não
tem alguém para dar uma raquetada por você. Isso e avisar que
meu sabonete caiu. Não quero ouvir nenhuma gracinha.

E o que gostaria de ouvir deles?


O que eles estiverem dispostos a me dizer no e-mail
felipefagundes.contato@gmail.com.
Sobre o autor

FELIPE FAGUNDES nasceu em 1991 e cresceu em Nova Iguaçu, cidade


da Baixada do Rio de Janeiro. Gay de Família é seu primeiro livro
publicado, mas desde sempre escreve histórias bem-humoradas
que, na verdade, são dramas disfarçados. Seus temas favoritos são
família, amizades complicadas e relacionamentos em geral. Gosta
de retratar personagens LGBT+ adultos, que já saíram da escola e
agora precisam ganhar o mundo. Nas horas vagas, organiza clubes
do livro por assinatura, trabalho que realiza desde 2018.
Atualmente, mora no Rio de Janeiro com seu marido.

Twitter: @felipe_fgnds
Wattpad: @felipe_fgnds
E-mail:
felipefagundes.contato@gmail.com
https://www.felipefagundes.com.br/
Table of Contents
1 – Você é meu tio viado?
2 – Daí você pensa, meu Deus, que bicha burra
3 – Os pais vão me acusar de ministrar o kit gay
4 – Brinquedo de boiola
5 – Aqui jaz um passivo
6 – Família de bem atropela homossexual
Um pouco mais sobre Gay de Família
Sobre o autor

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