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Felipe Fagundes
1ª edição
2021
Copyright © 2021 Felipe Fagundes
Diagramação
Karen Alvares
Capa
Laura Guedes
Ilustrações
Freepik.com
NO DIA EM QUE EU SAÍ DE CASA, minha mãe me disse: “Filho, vem cá”.
Passou a mão em meus cabelos, olhou nos meus olhos e começou
a falar: “Mas que desgosto, Diego”. Estragando a música e nossa
relação.
Meu pai mal olhou na minha cara.
Preferia que tivesse olhado. Só disse que de jeito nenhum ia ter
um filho boiola, então acho que deixei de ser filho dele naquele dia.
Boiola, eu continuo sendo.
Antes de eu cair na rua, meu inseparável irmão mais velho me
puxou num canto e me garantiu que tudo ia ficar bem e que não
perderíamos o contato. Acertou metade da previsão. Hoje tenho
vinte e sete anos, um trabalho que paga minhas contas e um
apartamento em Botafogo que divido com uma amiga. Também
posso comentar com emojis safados a foto de qualquer homem de
sunga no Instagram sem medo de que algum parente meu faça um
escândalo. Tudo está mesmo muito bem, obrigado.
Mas agora falo com meu irmão só duas vezes por ano — no Natal
e quando ele precisa de um favor — e é por conta disso que fico em
silêncio quando ouço a voz dele no interfone. Estamos em março.
— Diego, você não pode fingir que não está em casa depois de
dizer oi.
O que mais me irrita nessa família é que eles estão sempre
dizendo o que posso ou não fazer.
— O que você quer? — digo, vencido.
— Por que você acha que quero alguma coisa? Eu sou da sua
família.
Aí é que está o problema. Meu conceito de família é um lugar
para onde não se volta. Ainda me lembro de andar de madrugada
pelas ruas do Rio, arrastando uma mala de rodinhas com o que
consegui pegar, sem saber para onde ir, com vergonha de pedir
ajuda. Meu irmão já esqueceu.
— Posso subir? — pergunta ele.
A resposta negativa sai da minha boca mais rápido do que
planejei.
— Por que não? Tem… alguém aí com você?
— Tem, ele é grande, gostoso e atende por Jorge.
— Você tá de sacanagem comigo.
Infelizmente, minha vida sexual é mesmo uma piada. Olho para o
apartamento vazio e me pergunto o que falta para os gays do Rio de
Janeiro me notarem. Você precisa ser mais musculoso, eles
disseram. O ideal é morar na Zona Sul, disseram também. Você
precisa ser mais branco. Tem que dar menos pinta, fazer mais a
barba, tirar foto em academia e encher a casa de planta. Tirando a
parte de ser branco, agora eu já preencho todos os requisitos e,
mesmo assim, as conversas nos aplicativos de pegação não
evoluem muito. Talvez eu devesse mesmo considerar o clareamento
anal.
— Vou descer.
Porque a última coisa que quero é ter que fazer sala para o meu
irmão num sábado à noite. E também porque estou só de cueca,
meias e uma camisa que cortei pela metade. Visto uma calça de
moletom e calço chinelos, mas saio do apartamento com meu
cropped artesanal porque sei que vou chocar. Desço de elevador,
dou boa noite para o porteiro que sei que secretamente me odeia e
vejo meu irmão através das grades do portão.
Estar prestes a trocar palavras com Diogo é quase uma sessão
de terapia: ressuscita todos os meus traumas. Culpo meu pai por
ser um boçal, minha mãe por não ser forte o suficiente e meu irmão
por sumir. Eu tentei voltar, sabe? Várias vezes. Minha amiga Nádia,
a que mora comigo, diz que meu irmão devia estar tão perdido
quanto eu, que adolescentes são assim. Mas era eu quem estava
na rua.
No carro dele, estacionado sobre a calçada, percebo que sou alvo
de pares de pupilas ansiosas. Meu irmão anda sempre em bando.
Talvez seja o crente que mais levou a sério o ensinamento divino de
crescer e multiplicar. Vejo a esposa dele no banco do carona, e ela
se chama Karen ou Kátia. Nunca fiz questão de gravar o nome dela
porque Diogo nunca fez questão de apresentá-la a mim. Não
consigo dizer quem é quem, mas sei que a creche inteira está no
banco de trás.
— O que você está vestindo? — pergunta meu irmão, e quase
dou risada.
Vestir essa blusinha é um ato político. Ele tá sempre me olhando
de cima. Primeiro que é uns dez centímetros mais alto que eu,
segundo que me acha menos homem. Eu discordo. Sou mais forte,
mais bonito, me pareço muito mais com os galãs de novela do que
ele, que é narigudo, entroncado e está ficando careca. Tenho quase
certeza de que o venço numa briga mano a mano.
— O que você está vestindo? — rebato. — Tá saindo pra pescar?
Diogo usa camisa bléh, tênis argh e bermuda urgh cheia de bolso.
— Cara, é bem mais importante — me diz ele através das grades,
pois não pretendo abrir o portão. — Preciso de um favor seu.
— Então tem um favor.
— É sério, Diego, me ouve. Eu e a Keila… A gente combinou de
sair hoje, mas a babá das crianças… Tipo, a gente combinou muito
de sair hoje, já está tudo reservado e agendado e essas frescuras.
— Vocês marcaram de sair para transar?
Que horror, ser hétero e casado é ainda mais triste do que ser um
gay padrão.
— Fala baixo, cara! É que as crianças… A babá delas…
Então minha ficha cai: meu irmão dirigiu até minha casa por conta
de um delírio sexualmente frustrado.
— Jura que você acha que eu vou tomar conta de cinco crianças?
— pergunto, incrédulo.
Honestamente, me pedir para dar uma banda no Dráuzio Varella
seria menos chocante.
— São só três! Você nem sabe quantos sobrinhos tem?
Quando fui expulso de casa, a Karmen estava grávida. Tentei me
importar com o nascimento da bebê, mas aparentemente eu era gay
demais para estar perto de uma criança. Não me chamaram para o
chá de bebê, nem para o primeiro aniversário. Meu irmão inventava
desculpas quando eu perguntava se podia ver a criança. Aí veio o
segundo filho e nada mudou. Fiquei sabendo pelo Facebook.
Quando anunciaram o terceiro, desisti de acompanhar a fábrica.
Jurava que já tinha um quinto. Não sei como meu irmão e a esposa
sabem diferenciar quem é quem porque lembro que todos têm
nomes genéricos, então na minha cabeça eles se chamam Diogo 1,
Diogo 2 e Diogo 3.
— O que rolou com a coitada que ia ser mal paga pra cuidar de
filho dos outros?
— Ela cancelou de última hora. Já tentamos todos os conhecidos,
nossos amigos, e todo mundo está ocupado hoje à noite. São três
crianças, Diego, ninguém de fora da família aceita ajudar assim do
nada.
— Azar o seu, então, porque a família também não quer.
Meus pais moram em São Gonçalo, e Diogo só está aqui porque
não é dono de um helicóptero.
— Por favor! Eu imploro. Sei que não ando muito presente, sei
que só apareço pra te pedir coisas, mas, cara, pelos velhos tempos.
Eu juro que vai ser a última vez.
— Você já usou a cartada da última vez antes e, veja só, você
está aqui.
Cruzo os braços. Me disseram que isso demonstra que estou
fechado para propostas. Estou mais fechado que a porta da casa
deles.
— Diego, eu preciso trepar. Eu e a Keila, a gente não consegue
ficar sozinhos nem por um minuto! É criança gritando, vomitando,
pintando a parede, cagando onde dorme, dormindo onde caga!
Cara, a vida de pai de família é puxada. Hoje a gente marcou e
agendou tudo certo, mas a infeliz da babá…
— Você vai chorar?
Arrisquei a piada porque nada seria mais constrangedor do que
ver meu irmão mais velho chorando por falta de sexo.
— Isso vai te fazer passar uma noite com seus sobrinhos?
— Não.
— Pensa. É a sua chance de passar um tempo com eles! Você
sempre quis! Eles também querem saber quem é o tio deles.
Não deixo de notar o golpe baixíssimo. Toda semana algum gay
das minhas redes sociais está postando foto com criança. É batata,
é quase um meme, lá vai o gay e seus sobrinhos. Todos os meus
amigos têm pelo menos uma criança em quem se escorar, seja para
preencher o feed no dia 12 de outubro, seja para ganhar likes com a
fofura alheia, seja para dar um presente, bater a foto e depois
devolver para os pais. Essas oportunidades foram tiradas de mim.
— Eles só não sabem porque você e Késia...
— Keila — corrige ele.
— Porque você e Késia ficaram anos fingindo que eu não existia!
É só por isso que esses pirralhos não me conhecem. Eu deixei de
ser o tio gay depravado? O tio que vai para o inferno?
— Cara, eu nunca disse que você ia para o inferno!
Cruzo ainda mais os braços porque me lembro dessa conversa
muito bem.
— Tá, eu disse que você não vai entrar no céu, é bem diferente —
admite ele.
Dou as costas e torço para que as crianças caguem e vomitem
naquela casa inteira hoje à noite.
— Eu te pago quinhentos reais! — grita meu irmão do portão.
Retorno imediatamente da portaria, me sentindo insultado.
— Você acha que pode me comprar com quinhentos reais? —
digo, bem alto dessa vez.
Diogo gagueja um pouco e coça a cabeça. O olhar perdido de um
homem em desespero.
— Juro que não quis te ofender, mas é que…
— É de mil pra cima, lindão — digo.
— Você tá falando sério?
— Mil por criança.
— Eles são seus sobrinhos!
— Se ninguém quis ficar com eles, é porque devem ser um trio de
pestes.
Diogo suspira, e consigo ver a incredulidade em seu rosto. Ele é
dessas pessoas que acredita que família é tudo, mesmo quando
essa família te bota para fora e te joga no colo de Satanás. Eu
deveria ter cobrado mais, inclusive. Esse homem tem grana,
trabalha no setor de desvio de dinheiro da prefeitura ou sei lá, esses
trabalhos de homem hétero.
— Ok… — diz ele depois de alguns segundos, após olhar para o
relógio. — Eu poderia pagar qualquer babá do mundo com esse
dinheiro, puta que pariu.
— Foi burro de ter vindo na mais interesseira.
Em minha defesa, também sou muito compreensivo. Não ia me
sentir bem negando um favor pedido de forma tão suplicante, mas
prefiro que Diogo literalmente pague por todos os seus pecados.
Vejo meu irmão sacudir a cabeça e ir até o carro, então, sou
apresentado aos três mil reais mais fáceis da minha vida. Diogo 1 é,
na verdade, uma menina gorducha de óculos que se parece mais
comigo do que com o próprio pai. O cabelo dela é cacheado e passa
dos ombros. Deve ter uns dez anos? Talvez menos? Herdamos a
mesma cor mesclada do marrom do meu pai com o branco de
minha mãe. Diogo 2 tem o cabelo crespo e espetado em todas as
direções e cara de quem pode explodir uma casa. Diogo 3 é um
toquinho branco de três anos de idade vestindo preto dos pés à
cabeça.
— Ele tá voltando do velório da Galinha Pintadinha?
— Ele chora se veste outra cor — explica meu irmão.
Eu enquanto menino que queria vestir rosa não tive tanto apoio
parental.
— Falem oi, crianças.
— Oi, tio! — respondem os dois meninos.
Demoro alguns segundos para entender que o tio sou eu. Já fui
chamado de vários nomes ao longo da vida, inclusive de tio por
adolescentes desconhecidos, mas é a primeira vez que de fato sou
tio. Não sei se gostei. Me sinto velho e quero corrigi-los.
A menina quase se esconde atrás do pai e dá um aceno tímido
quando Diogo Pai a empurra para frente.
— O gato comeu sua língua, Diogo 1? — pergunto.
— Você sabe o nome dos meus filhos, não sabe?
Em minha defesa, eu já soube. O problema é que esse negócio
de apelido pega muito rápido.
— São... nomes bíblicos — arrisco.
— Tá, mas quais?
— Hum…
Encaro aqueles rostinhos esperando que algo neles me dê
alguma dica. Os únicos nomes de Bíblia que lembro são Jesus e
Lúcifer.
— Tinha uma Maria Madalena na Bíblia, não tinha?
— Ester, Diego. O nome dela é Ester. Esses são Miguel e Gabriel.
— Você é meu tio viado? — pergunta o do meio.
— Nossa, que amor de criança — comento.
Não me ofendeu. Vindo da boca dele, ser viado pareceu minha
profissão. Você é meu tio professor? Meu tio bombeiro? Meu tio
fotógrafo? Eu adoraria ser pago para ser gay.
— Miguel, a gente já conversou sobre palavrão. Sim, esse é seu
tio Diego e ele vai cuidar muito bem de vocês por hoje.
— Ele vai cuidar da Suzie também? — pergunta o menorzinho
gótico.
— Você deu nome de cachorro pra uma filha?
As crianças dão risada, e meu irmão vai até o carro novamente.
Volta com uma gata horrorosa dentro de uma caixa de transporte
vermelha.
— O que houve com a cara dela? — pergunto, realmente curioso.
— Nada, ela é assim.
É a gata mais feia que já vi. Não consigo ver o corpo dela dentro
da caixa, mas o rosto parece uma tela branca onde alguém
espalhou cores com raiva. Metade da cara do animal é preta, mas
com pinceladas de ódio na cor laranja aqui e ali. Cada olho é de
uma cor, e dentro deles consigo ler a mensagem “Oi, vim do
inferno”.
— Eu não vou cuidar dessa gata.
— A gente também precisa que alguém fique com ela. Ela não
gosta de ficar em casa sozinha, cara. Por favor. Ela fica meio arisca
de vez em quando, mas não é nada demais, só deixá-la no canto
dela.
Um dos dioguinhos murmura alguma coisa, mas o pai o manda
calar a boca. Encaro Suzie novamente e, tirando a parte dela ser
mal diagramada e do calafrio que ela me causa, acredito que
consiga dar conta por três mil reais.
— Eu deveria cobrar pela gata também.
— Você nem vai notar que a Suzie está na casa — garante meu
irmão, então deve ser mentira.
Somos interrompidos pela buzina do carro. Kelly aparentemente
está doida pra dar.
— Preciso ir — diz meu irmão.
Pego a caixa de transporte da gata com uma mão e ajeito a bolsa
com cacarecos de criança num dos meus ombros. Diogo me dá
alguns avisos, blábláblá, não deixe fulane comer açúcar, blábláblá,
beltrane se for abraçado morde, blábláblá, sicrane não pode ficar
perto do fogão, e a lista de avisos é grande demais para eu
conseguir prestar atenção. Meu irmão acha que, só porque ele não
consegue dar conta dos próprios filhos, eu também não consigo.
São só crianças, não é física quântica. Inclusive, tenho uma vasta
experiência com bebês nos colos de desconhecidos na rua rindo
para mim e gargalhando quando faço careta. As mães me adoram,
embora os pais nem tanto.
— Tchau, pai! — gritam os pirralhinhos.
Talvez eu devesse agora mesmo garantir minha foto para o
Instagram.
— Então, vamos? — digo.
Duas de três crianças comemoram, então sei que minha taxa de
aprovação já é alta. Diogo 1 me olha meio desconfiada, mas passa
para o meu lado quando vê o pai entrando no carro e acenando.
Kássia também acena e manda um beijo para os filhos. Estou
chocado que a mulher nem do carro saiu para me dizer oi, mas
podia ser pior: meus pais teriam me atropelado.
Dou boa noite novamente ao porteiro, que inspeciona as crianças
como um aparelho de raio-X. Ainda bem que duas delas são pretas.
Se fossem todas brancas, ele ligaria para a polícia alegando
sequestro.
Entro no elevador depois da prole do meu irmão, e começa o
interrogatório.
— Você é mesmo nosso tio?
— Cadê a parte de baixo da sua camisa?
— A sua casa é bonita?
— A gente pode brincar de pique-pega?
Os dois menores falam tudo que a menina não fala. Peço a ela
que aperte o botão do meu andar, mas, quando ela lentamente leva
a mão ao painel, Diogo 2 a desvia com um tapa e aperta antes dela.
— Eu sou tio de vocês, e essa camisa é… — começo a dizer.
— Mas você nem parece com nosso pai — diz Diogo 2.
— Você é adotado? — pergunta Diogo 3.
— O nosso pai é barrigudo.
— Você parece um super-herói.
— Você é da minha cor — diz Diogo 1, finalmente, e sua voz é tão
baixa que por um momento acho que foi Suzie quem murmurou.
Fico meio desnorteado com a rapidez das perguntas e pondero se
posso mandá-los calar a boca como o pai fez. Quando chegamos ao
meu andar, Diogo 2 diz:
— Você achou essa roupa no lixo?
Abro a porta do meu apartamento tentando explicar o que é um
cropped para um menino de seis anos.
2
Daí você pensa, meu Deus, que bicha burra
MINHA AMIGA NÁDIA diz que vai morrer sozinha porque é uma mulher
burra. As pessoas pelas quais se interessa são sempre brilhantes e
talentosas, mas as que se interessam por ela são ainda mais burras
que a própria. Homens, mulheres, pessoas não-binárias, o match
nunca rola. Nádia Rafaela, o elo perdido da inteligência humana.
Mas ela está equivocada. Quer dizer, ela vai morrer sozinha, mas
por ficar o tempo todo dizendo verdades que ninguém quer ouvir.
— Você tá cuidando de três crianças?
— E uma gata hedionda.
— Deixa eu reformular — diz ela, ao telefone. — Você está
cuidando de três crianças?
— Por que o espanto, amiga? São meus sobrinhos.
Não recebo nenhuma resposta e sei que devo uma explicação
mais plausível.
— E meu irmão tá me pagando três mil reais.
Escuto Nádia xingar do outro lado da linha.
— Diego, quando foi a última vez que você cuidou de uma
criança?
— Eu já cuidei de muitas crianças, se você quer saber.
— Não valem os quinze reais pro Criança Esperança.
Ela acha que eu doei quinze reais? Foram só cinco.
— Quando foi a última vez que você viu uma criança? —
questiona ela. — Em 2003, quando você olhou num espelho?
— Teve aquela vez que eu resgatei um menininho perdido das
ruas.
— Você estava bêbado, e era só um homem muito baixo.
— E a filha da sua amiga Fê do Marketing?
— A filha da Fê do Marketing te odeia desde que você empurrou
ela no chão na final da dança da cadeira.
— Só porque ela era a aniversariante, eu tinha que deixar
ganhar?
— E porque ela tava fazendo oito anos e você tem três vezes o
tamanho dela!
— É a filha da Fê da Logística então — me conformo.
Nádia dá uma gargalhada que, sinceramente, acho tóxica.
— Você nunca mais vai chegar perto daquela garota.
— Mas ela me adora! — rebato.
— Você deu coxinha escondido pra ela, Diego! A mãe dela é
vegana!
— Tinha que ver as mãozinhas dela sujas de frango, os olhinhos
brilhando!
Espero minha amiga se recuperar do ataque de riso no outro lado
da linha, até que ela finalmente resolve falar.
— Tá me pedindo ajuda com o quê, então, se você tem esse dom
natural com crianças?
Na verdade, não preciso de ajuda, só preciso falar. Tenho um
problema seríssimo de não conseguir resolver as coisas dentro da
minha própria cabeça, preciso me ouvir em voz alta e acho triste
falar com as paredes. Minha psicóloga diz que não me faria mal
exercitar minha inteligência emocional, mas ignoro. É mais uma que
acha que quero ajuda quando só a pago todo mês para ouvir.
Resolvo desabafar tudo de uma vez:
— Amiga, Diogo 1 simplesmente não fala. E, quando eu mando
ela fazer as coisas, tipo descer a peste do irmão dela de cima do
sofá ou desentupir o vaso, ela fica me olhando com cara de bunda.
Diogo 2, meu Deus, não pode ver um pano que se enrola nele ou
põe na cabeça. As cortinas, os tapetes, o paninho de chão, as
toalhas limpas que eu deixei no varal! Diogo 3 quer chamar um
monte de criança aqui pra casa, e eu já disse que não.
— Você pelo menos sabe o nome deles?
— Zequinha, Pedro e Biba — digo prontamente.
— Você tá me zoando.
— Pedro, desce do sofá agora! — berro, para provar meu
argumento.
Diogo 2, com uma toalha branca enrolada como um turbante na
cabeça, me olha de cima do sofá sem entender nada e começa a rir.
Me deixa realmente intrigado ver que ele ainda tem todos os dentes
na boca. Com certeza vai perder algum num tombo ou numa briga.
— Já experimentou conversar com eles, de igual pra igual? — diz
minha amiga, me trazendo de volta para a conversa.
— A gente vai falar sobre o quê, Nádia? Ursinhos Carinhosos?
— Nenhuma dessas crianças deve saber o que é um ursinho
carinhoso. Sei lá, coloca um filme pra vocês verem. Eu tenho um
monte de DVD da Disney no meu quarto.
— DVD, amiga? Em que ano você está?
— Deus me livre confiar em Netflix que toda hora tira minhas
comédias românticas do ar.
Desligo o telefone e vou ao quarto de Nádia achar um filme que
preste. Deixo a sala com Diogo 2 beliscando Diogo 1, e Diogo 3
preso no sofá com a gata agora em cima dele.
Às vezes, fico pensando que Nádia é minha alma gêmea que foi
enviada por engano para o corpo errado. Enquanto algumas
pessoas têm estantes enormes repletas de livros com capas
desinteressantes e títulos tipo A microfísica do poder no
desenvolvimento emocional e A poesia dos desafetos, minha amiga
tem uma série de prateleiras cheias de filmes, como se fosse a dona
de uma locadora falida. Uma das prateleiras é inteiramente da
Disney, e dou uma olhada para ver o que há de bom.
Que horror, ninguém pediu por mais um filme de Carros. E
quando a Disney vai cansar de produzir continuações para Frozen?
Quantas vezes a Elsa vai precisar ouvir que o único amor que resta
a ela é o amor próprio?
Escolho o filme de princesa que acho que é o mais recente e não
faz parte de nenhuma franquia.
— Meu amigo pode ver filme com a gente? — pergunta Diogo 3
assim que volto para a sala.
— Não.
— Minha mãe diz que ver TV deixa a gente burra — diz Diogo 1,
sem ninguém ter perguntado.
— No caso dela, não ver não adiantou nada, já que ela casou
com seu pai — rebato, enquanto tento lembrar como se liga o DVD.
— Vai ter pipoca? — pergunta Diogo 2.
Antes que eu responda que não, a campainha toca. Me
teletransporto para a porta imediatamente. Ajeito o cabelo, as
sobrancelhas e a rola. Abro a porta esperando ver Ulisses, mas não
há ninguém. Ué. Tenho certeza que ouvi a campainha tocar. Fecho
a porta e volto para a sala.
Walt Disney deve mesmo ter feito um pacto com o diabo, porque as
três crianças estão vidradas no filme. Cada uma do seu jeito,
admito. A mais velha, a menina, não deu um pio desde que o filme
começou, mas não dá para saber se ela está gostando, já que ela
nunca dá pio nenhum. Finjo que não reparo que ela senta bem
pertinho de mim no sofá e, quando percebo, ela encosta a cabeça
no meu braço. O do meio, Diogo 2, fica dando gritinhos e risadinhas
que eu não sei bem de onde vêm. A princesa grita, ele ri. A princesa
ri, ele grita. O menorzinho resolveu me encher de perguntas sobre o
filme, e me sinto na escola, quando os professores me
questionavam sobre livros que nunca tive a menor intenção de ler.
— É agora que eles vão morrer? — pergunta ele pela quinta vez
desde que o filme começou.
Amo que Gabriel com três anos de idade já tem mais
personalidade que muito gay da Zona Sul. Tudo que ele faz é
coerente com a proposta de bebê mórbido que o look dele informa.
— Ninguém morre nesse filme — respondo.
— Minha mãe disse que todo mundo morre — declara ele.
Meu Deus, que mulher sem tato.
— Todo mundo morre, mas esse é um filme pra deixar a gente
feliz.
— Vai ser triste quando você morrer?
Só Nádia vai chorar.
— Quem vai te matar? — pergunta ele na lata, e seus olhinhos
castanhos estão cravados em mim.
A campainha toca mais uma vez, e tenho certeza de que meu
assassino está à porta.
— Meu amigo pode ver filme com a gente hoje? — pergunta
Gabriel de novo.
— Peraí que agora a coisa tá meio estranha.
Agarro o varão da cortina que Diogo 2 arrancou da parede e
caminho lentamente até a porta do apartamento. Impressionante
que, desde que moro aqui, ninguém nunca tocou a campainha, mas
especificamente nessa noite todos os vizinhos me querem.
— Quem é? — pergunto, mas ninguém responde.
Tento ouvir a respiração de alguém do outro lado da porta, mas só
ouço as vozes do filme cantando mais uma música sobre amizade e
largar seu emprego fixo para viver de arte na praia, que o público-
alvo só vai entender quando tiver vinte e cinco anos de idade.
Ponho a mão na maçaneta — é, eu sei, quem abre a porta para o
assassino? Sou a gostosa de calcinha num filme de terror? Mas,
como pode ser Ulisses, não resisto e ponho a cara lá fora. Não há
ninguém.
— Quem é o palhaço que tá apertando minha campainha? — digo
para o corredor vazio.
— Tio, o João Augusto pode entrar pra brincar com a gente? —
pergunta Gabriel lá de dentro.
— Quem é João Augusto?
— Meu amigo aí na porta.
Confiro de novo o corredor e, puta merda, estou à flor da pele.
Correndo o risco de dar uma lapada de varão numa criança
brincando de pique-esconde.
— Não tem ninguém aqui, Gabriel.
Escancaro a porta para que, do sofá, ele veja o corredor vazio do
andar.
— Aí ele, tio — insiste ele, e aponta.
Juro pra vocês, nunca vou ter filhos.
— É o amigo imaginário dele — diz Diogo 1, sentada na outra
ponta do sofá.
Talvez eu devesse mesmo acertar o varão em Gabriel.
— Ai, pelo amor de Deus!
Bato a porta com força, mas secretamente aliviado por ainda estar
vivo.
— Tio! O João Augusto! — grita Gabriel. — Deixa ele entrar, por
favor!
Olho para Diogo 1, perguntando mentalmente se isso é sério.
— Ele chora se a gente não entra na brincadeira — explica ela.
— Isso é ridículo. Gabriel, não tem ninguém lá fora.
— Tem o João Augusto! Ele vai ficar triste porque você bateu a
porta na cara dele! Eu não gosto quando ele fica triste! — insiste, e
a voz dele vai ficando mais aguda a cada frase.
Me afasto da porta, mas, a cada passo que dou, os olhos de
Gabriel ficam mais marejados. Estou prestes a acreditar que
realmente bati a porta na cara de alguém, porque meu sobrinho é
muito convincente. Digo a mim mesmo que criança é cheia dessas
bobagens, porém, antes que eu consiga sentar no sofá, Gabriel
deixa rolar uma lágrima. Não dá cinco segundos, e ouço o choro.
Não aquele grito infernal que parece que a criança engoliu uma
ambulância. Ouço o choro sentido de um bebê triste e, merda, não
dá.
Escancaro a porta, dessa vez com a força do ódio, e digo:
— Pode entrar, João Augusto, a casa é sua. O filme ainda não
acabou.
Gabriel enxuga os olhos e bate palmas no sofá, e Diogo 1 e 2
agem como se essa fosse uma cena normal. Vou devolver essas
crianças com um encaminhamento para o psicólogo, eu juro.
Quando vou sentar no sofá, meu sobrinho menorzinho empurra
minha bunda.
— O João tá aí!
— Não tem mais lugar nenhum no sofá, você quer que eu sente
onde?
— No chão — responde Diogo 2 e ri.
— Tio, eu te dava meu lugar se a Suzie não tivesse aqui — diz
Gabriel.
Olho para Suzie e, entre todos os presentes, ela é a menos
predisposta a se mover. Fico com vontade de mandar Diogo 1 ir pro
chão, mas essa garota já deve sofrer bullying todo dia na escola,
então a poupo.
Sento no chão, sabendo que jamais reportarei esse incidente para
Nádia. A menina começa a me fazer cafuné e, apesar de eu odiar
que baguncem meu cabelo, eu deixo. Já entendi que o lance de
Diogo 1 é conversar com o tato.
O filme corre como qualquer filme da Disney: uma sequência de
músicas esquecíveis, uma realmente boa e uma que as crianças
vão ficar cantando para sempre. Tem um príncipe, uma princesa e
um objeto inanimado falante que deixa a gente na dúvida se ele é
engraçado ou apenas irritante — de qualquer forma, depois da
metade do filme, já quero uma pelúcia dele. A princesa fica a maior
parte da animação sentada, esperando a boa vontade do príncipe
em ir salvá-la. Como se a Disney ainda estivesse presa em 2001,
quando ser feminista era crime.
— Se a princesa fosse a Ester, ia ficar esperando pra sempre!
Nenhum príncipe gosta de menina feia! — diz Diogo 2 do nada,
como todas as outras coisas que ele diz.
— Ei! Isso não é verdade — repreendo. — Pede desculpas pra
sua irmã.
— Mas, tio, ela não tem jeito de princesa! — se defende Diogo 2.
— Tem jeito de monstro! — diz Gabriel.
Diogo 1 é gorda. É lerda também, mas sei que, na cabeça deles,
o empecilho para a irmã deles ser princesa é que ela não cabe no
vestido da Branca de Neve. Encaro minha sobrinha com mais
atenção e, nesse momento, ela acha o tapete da sala bastante
interessante. Até as crianças mais fofas podem ser horríveis de vez
em quando.
— Olha aqui, não é certo dizer isso da sua irmã. É feio — digo, e
engrosso a voz para assustar os dois. — Ela quando crescer vai ser
uma princesa incrível e beijar o príncipe que ela quiser. Não é,
Diogo 1?
Ela demora a me responder, como se esperasse a conversa
morrer para ela voltar a ser invisível no sofá.
— Eu preciso beijar um príncipe? — pergunta ela, ainda sem me
olhar nos olhos.
— Bom… não. Você pode ser uma princesa que… beija
princesas? — arrisco.
Meu Deus, eu posso falar isso pra uma criança de dez anos?
— Acho que eu não quero ser uma princesa — responde ela.
— Eu quero ser princesa no lugar dela, então! — grita Diogo 2. —
Tio, eu posso ser a princesa? Por favor, por favor, por favor.
O pior de tudo é que elas já chegaram assim aqui em casa, mas
os pais vão dizer que apliquei o kit gay.
— Vocês podem ser o que vocês quiserem, essa é a única regra
— respondo, tentando soar confiante.
Espero que esse momento fique marcado na cabecinha deles e,
lá pela adolescência, quando eles estiverem se sentindo incapazes
e sem perspectiva de vida, lembrem das palavras de sabedoria do
tio incrível deles.
— Posso ser um urubu? — pergunta Gabriel.
— Não é assim que funciona — respondo, frustrado.
— Posso ser um cemitério? — insiste ele.
Não é difícil dizer que há algo de errado com esse menorzinho,
mas felizmente amanhã posso devolvê-lo para a fábrica.
— Se a gente pode ser qualquer coisa, por que você não é igual
meu pai? — pergunta Diogo 2.
Sem senso estético e com entradas que parecem a pista de
Interlagos?
— Por que eu iria querer ser igual seu pai?
Eu não deveria ter perguntado, porque os três se revezam para
enaltecer o pai que têm. Meu irmão pariu um fã-clube.
— Porque ele é lindo!
— E forte!
— E ele sabe dirigir!
— Papai tem um montão de dinheiro!
— Ele namora a mamãe!
— Ele compra brinquedo pra gente!
— Na nossa casa sempre tem pipoca!
— E você fala tudo assim nhen nhen nhen — finaliza Diogo 2.
Suzie dá um miado gutural que pra mim soa como endosso.
— Eu falo como? — pergunto, ofendidíssimo.
— Assim, tio: Enton crionças vamoan paran de bagunçon.
Diogo 2 diz isso numa voz ridícula que supostamente deveria ser
a minha. Eu com certeza não falo assim. Mas todo mundo na sala ri.
— Olha aqui! — rebato. — Eu sou muito melhor que o pai de
vocês.
Para provar meu ponto, pauso o filme e fico de pé na frente deles.
— O cabelo dele tem esse brilho? A pele dele parece seda? E
esse tanquinho, o pai de vocês tem?
Exibo minha barriga sarada para crianças pouco impressionadas.
Percebo que preciso me esforçar mais.
— O pai de vocês faz isso? — digo, enquanto performo a nova
música da Anitta no tapete.
As crianças bocejam.
Dou tudo de mim sambando. Rebolo até o chão. Passo por baixo
de uma corda imaginária. Dou uma estrelinha pela sala. Abro um
espacate que vai cobrar seu preço mais tarde. Faço a dança do
robô sabendo que é um movimento campeão com crianças.
— O papai arrota o alfabeto — diz Diogo 2, como se porqueira
fosse uma virtude.
— A barriga dele vira uma boquinha que fala quando a gente
aperta! — lembra Gabriel.
— Tio… Acho que seu moletom rasgou — comenta Diogo 1 bem
baixinho.
Saio da sala humilhado com um rombo bem no furico. Enquanto
troco de roupa, me sinto ultrajado por saber que jamais poderei
fazer minha barriga de fantoche.
Tenho uma nova ideia quando volto para a sala.
— Todo mundo levantando do sofá. Bora, bora, bora.
Suzie agora está no parapeito da janela, provavelmente
estranhando uma casa onde a estranha é ela.
Abro a porta do apartamento e mando as crianças saírem.
— Aonde a gente vai? — pergunta Diogo 2.
— É surpresa.
— O João Augusto pode ir com a gente?
Confirmo com a cabeça para Gabriel. Vou acabar com o pai deles
e quero toda a audiência possível, mesmo a das pessoas que não
existem.
4
Brinquedo de boiola
— NÃO ME OLHE COM ESSA CARA, Suzie, eu fiz de um tudo pra te salvar.
Você sabe que estou dizendo a verdade.
A gata me observa da outra ponta do sofá, nem um pouco
convencida.
— O tempo todo as crianças ficaram “vamos fugir daqui”, e eu “e
deixar a Suzie? Jamais! Vamos estar aqui torcendo por ela até o
fim”.
Dizem que, quando nos afeiçoamos a alguém, esse alguém se
apresenta mais bonito diante dos nossos olhos — é a explicação
científica para políticos de boca murcha com esposas belíssimas.
Depois de passarmos por uma experiência de quase morte, vejo
Suzie como ela realmente é: um lindo bichinho de estimação? Não,
continua horrorosa. As orelhas carcomidas, a fuça criminosa, os
olhos de quem já viu desastres demais na vida. Tudo na gata
parece equivocado, menos a lealdade na hora de proteger as
crianças.
Embora eu faça que vá levantar do sofá, Suzie vem caminhando
sobre as almofadas em minha direção e senta em meu colo. Fico
paralisado no meio do movimento. Não quero sofrer outra tentativa
de homicídio. Faço carinho na cabeça dela, que se revira toda
dengosa, parecendo um gatinho normal. Suzie só quer ser amada,
no fim das contas. Eu, mais do que ninguém, devo isso a ela.
Sempre acreditei que gatos enxergam o sobrenatural, mas essa é a
primeira vez que vejo um que cai na porrada com ele.
— Você é uma gatinha linda — digo.
Já menti tanto para ela que uma mentira a mais para inflar o ego
não faz mal.
Meia hora depois, estou obrigando Miguel a comer uma torrada
com manteiga que caiu no chão virada para baixo. Gabriel quis me
ajudar a preparar a mesa, mas derramou meu café e pôs sal no
suco de laranja. Ester belisca uma maçã desde que começamos a
comer, como se fosse uma formiga.
— Tio, mas caiu no chão! Tá sujo! — grita Miguel, fazendo cara
de nojo para uma torrada perfeitamente comestível.
— O papai manda joga fora — diz Ester.
— Tem a regra dos cinco segundos — digo. — Meu Deus, os pais
de vocês não ensinam nada em casa?
Os três me olham com cara de paisagem.
— As bactérias esperam cinco segundos antes de subir no que
cai no chão. Então, se vocês forem mais rápido que elas, podem
comer tranquilo.
— Uaaaaaaau — dizem os três em uníssono.
— É a ciência.
Digo como se não fosse nada demais, mas sei que estou
arrasando. Fico pensando o que será deles sem mim, já que fiz
tanto por todos. Ester parece muito mais confiante depois de dar
uma raquetada no garoto inconveniente. Gabriel não é mais seguido
por uma alma penada. Miguel finalmente pôde se expressar do jeito
que sempre quis. Até agora usa as asas de fada, não quis tirar de
jeito nenhum, tomou banho e dormiu com elas.
(Ignoro completamente que os três quase morreram noite
passada enquanto estavam aos meus cuidados, mas,
convenhamos, não foi culpa minha.)
Vejo Miguel finalmente morder a torrada com vontade. Talvez
Nádia estivesse certa, a última vez que de fato convivi com uma
criança fora anos atrás quando me olhava no espelho. Muita gente
pensa como Ulisses. Admito que eu mesmo às vezes penso que
crianças são adultos em miniatura. Elas têm sentimentos e
vontades, mas ainda não chegaram lá. Não precisamos que elas
cheguem agora. Criança é criança. O que criança precisa é de
quem as entenda. Lugar no mundo elas já têm.
Eu me lembro de quando tinha seis ou sete anos e tentei calçar
os sapatos de salto alto da minha mãe. Ainda coloquei uma toalha
na cabeça, porque ter cabelo comprido de verdade parecia incrível e
também combinava com o look. Levei um tombo no terceiro passo,
bati com a testa numa cômoda. Doeu menos que a surra que levei
do meu pai. Não entendi bem por que apanhei se era eu quem tinha
me acidentado. Minha mãe me disse para nunca mais usar as
coisas dela. Demorei anos para juntar dois mais dois, e nem quero
ensinar a matemática da homofobia para os meus sobrinhos, mas…
Com quem eles vão aprender? E como?
— Eu sempre vou estar aqui pra você, ok? — digo para Miguel.
Ele sorri para mim com a boca cheia de torrada, sua bochecha e
nariz tomados de farelo. Certeza que não sabe do que estou
falando, mas eu sei.
— Se por acaso seu pai ou sua mãe quiserem que você brinque
com outras coisas, tudo bem. A gente deixa seus brinquedos de
princesa aqui e você pode vir quando quiser.
Acho que ele nem está me escutando, concentrado no suco e nas
torradas.
— Você também, tá? — digo para Ester. — Tenta não deixar
ninguém te fazer de boba. Dentro de você tem muita força, eu vi na
loja de brinquedos. Você deixa esses pestinhas te atacarem porque
sabe que é muito mais forte do que eles, mas você não precisa
permitir isso o tempo todo.
Ester apenas olha para mim, mastigando bem devagarzinho sua
maçã.
— Se alguém implicar com você, você não está sozinha, você tem
um tio.
— Obrigada, tio… — responde ela, parecendo meio incerta sobre
o que estou falando.
Ai, me tornei uma bicha emotiva.
— Tio, você vai tá aqui pra mim também? — me pergunta Gabriel.
— Com certeza!
— Até quando você morrer?
— Olha…
Faço uma pausa para refletir.
— Dado seu histórico, é bem capaz — concluo.
Há mais coisas entre o céu e a Terra do que explica nossa vã
filosofia, e uma delas é meu sobrinho mais novo. Seus amigos
imaginários são um pouco criativos demais. Eu na idade dele tinha
um amiguinho chamado Bil, que era um sabugo de milho inofensivo.
Confesso que não xeretei a fundo, porque me cago todo com
história de terror, e fazer perguntas para Gabriel faz eu me sentir em
O sexto sentido. Esse bebê vê gente morta. João Augusto não
estava tão vivo nem tão morto quanto eu gostaria, mas era real.
Tenho certeza que, se eu for procurar no IML onde Karla trabalha,
vou achar o cadáver do dito cujo. Mas você vai fazer isso? Porque
eu não vou. O importante é que foi em paz. Quer dizer, Suzie comeu
ele. Antes ele do que eu.
O interfone toca, e sei que a Operação Babá acabou.
— Minhas crianças estão vivas? — pergunta meu irmão quando
atendo.
Por muito pouco, na verdade.
— Tá todo mundo bem — respondo. — Os dois estão ótimos.
— E o terceiro?
— Eram três?
— Muito engraçado, Diego. Posso subir?
Penso em responder diferente, o que para mim já conta como
evolução espiritual. Mas digo que não. Não quero apressar as
coisas. Cuidar dos meus sobrinhos foi emoção demais para essa
gay aqui.
— O Jorge não vai muito com a sua cara, quem sabe um dia.
Diogo apenas ri. Mando cada um pegar sua própria mochila, e
agora as crianças carregam mais peso do que quando chegaram.
Elas mesmas decidiram deixar alguns dos brinquedos por aqui,
seria muita coisa para levar. Sinto que é uma promessa implícita de
que vão voltar um dia. Elas acham que vão, pelo menos. Abro a
caixa de Suzie e, felizmente, ela caminha para dentro.
Sinceramente, não sei o que eu faria se a gata teimasse. Arrisco um
carinho na cabeça dela antes de fechar a portinha, e ela deixa que
eu a toque. Ou essa gata me ama ou está doida para ir embora. Por
mim, tudo bem.
Escolto as crianças para o elevador e peço para Ester chamá-lo
para mim. Antes que ela possa apertar o botão, Miguel vai com a
mão, mas ela o segura.
— Ele pediu pra mim — diz ela.
Miguel mostra língua para a irmã, mas dou nossa famosa
piscadela secreta para ela.
Quando o elevador chega ao nosso andar, dou de cara com
Ulisses dentro dele. Seguro Gabriel no colo com um braço, na outra
mão seguro Miguel. Ester enroscou o braço dela no meu. Sou um
cabideiro de crianças. Ulisses não diz nada, mas vejo que ficou sem
graça. Literalmente vejo, porque o encaro até que desvie o olhar.
Dou licença para que ele passe, sem arrependimento nenhum. Em
outra vida talvez, né, Ulisses. Quando ele caminha corredor adentro,
dou uma última olhada na bunda dele, porque não sou de ferro.
FIM
Um pouco mais sobre Gay de Família
Sobre estar brincando com fogo, acha que o livro ainda pode
te trazer problemas?
Olha, nunca se sabe. Ainda existe um tabu muito grande sobre
gays e crianças convivendo no mesmo espaço. Fico para morrer
com esse discurso de que a única relação que uma pessoa da
comunidade LGBT+ pode ter com uma criança é a da pedofilia.
Crianças mal podem saber que gays existem. “Como eu vou
explicar para o meu filho dois homens se beijando?”, etc. E não tem
nada a ver. Já fomos crianças um dia, temos nossos próprios filhos,
nossos sobrinhos, irmãos menores. Alguns de nós trabalhamos com
crianças, as possibilidades são muitas. Pode ser que alguém chie
com meu livro, mas eu espero que as vozes das pessoas que se
sentirão representadas superem o chiado.
Então foi contra esse tipo de discurso que você teve a ideia
de criar essa história?
Não exatamente. Eu adoro a ideia de pegar clichês positivamente
estabelecidos na sociedade e revertê-los de alguma forma. No meu
caso, transformá-los em clichês gays. Se eu tivesse tempo e
dinheiro suficientes para isso, criaria uma versão LGBT+ para todos
os clássicos da Sessão da Tarde. Amo a narrativa do homem
grandão, geralmente gostoso e perigoso, que por causa de uma
reviravolta do destino é obrigado a cuidar de uma ou mais crianças
fofas e extremamente pentelhas. Pensem em Operação Babá, Um
Tira no Jardim de Infância, Treinando o Papai. É disso que estou
falando. A ideia de ver um homem gay nesse lugar que sempre foi
ocupado por um hétero fez todo sentido para mim, que adoro uma
boa gargalhada. Então, antes de tudo, Gay de Família é uma
história que eu criei para entreter. Se serve como um ato político, é
um bônus.
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https://www.felipefagundes.com.br/
Table of Contents
1 – Você é meu tio viado?
2 – Daí você pensa, meu Deus, que bicha burra
3 – Os pais vão me acusar de ministrar o kit gay
4 – Brinquedo de boiola
5 – Aqui jaz um passivo
6 – Família de bem atropela homossexual
Um pouco mais sobre Gay de Família
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