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49.

233$ de Telefone
Diário de Uma Mãe/Diário de Uma Filha
Isabel Stilvvell e Ana Stimell
Para a minha Baleia, da Ana Stilwell Ferreira da Fonseca
Para o meu pai, que ensina o nome das flores aos meninos que brincam nos
jardins do Paraíso

A conta de telefone era a mesma, mas o que as duas escreveram nos seus
diários sobre elas não podia ser mais diferente.
A mãe escreve um diário. Escreve sobre o que a irrita, o que a faz feliz, atira lá
para dentro as suas dúvidas e angústias de “velha” de 38 anos e de mãe de uma
adolescente.
A filha escreve um diário. Escreve sobre o que a irrita, o que a faz feliz, atira lá
para dentro as suas dúvidas e angústias de adolescente e de filha.
Moram na mesma casa, são reféns das mesmas hormonas, conhecem-se, cru-
zam-se com as mesmas pessoas, mas o que escrevem não pode ser mais diferente.
Entre, comece a ler e vai ver como 49 233$00 de telefone marcam a diferença
entre duas gerações.

Hoje fui excessivamente simpática para a minha querida mãe! Amanhã tenho
de lhe pedir para ir sair à noite, duvido muito que consiga convencê-la mas, enfim,
vou tentar. Sim, que a minha mãe com a mania da perseguição, dos raptos, etc. não
vai muito na conversa de discotecas, muito menos com filhas lá dentro. A minha
mãe é do género de pessoa que tenta tudo para ser a mãe compreensiva que vem
nos manuais, mas, depois, tem medo de ser compreensiva demais. Por isso ora
deixa, ora não deixa... O que faz dela um ser completamente imprevisível. Agora,
onde não é imprevisível é nas perguntas que faz antes de deixar seja o que for... Ah,
não! Essas já as sabe de cor. Quem são as companhias, quem é que traz, quem é
que leva... E quem lá está. Só não pergunta mais porque fica na dúvida se está a ser
uma mãe demasiado liberal, uma mãe conservadora ou, simplesmente, o protótipo
da mãe chata.
O meu pai... Com esse não há grande problema: deixa as perguntas para a
minha mãe. O que para mim é óptimo porque, pelo menos, só tenho que me
esforçar para convencer um. Mas é um espectáculo de pai e eu adoro-o. É divertido
e pode até nem passar muito tempo em casa, mas o que passa é só a rir. Claro que
também dá o seu berro de vez em quando. E quando dá não é fraco!
O meu irmão é um extraterrestre - não falamos de certeza a mesma língua,
tudo o que ele faz ou diz irrita-me (e vice-versa). No entanto, sempre é do mesmo
sangue que eu, e eu lá muito no fundo gosto dele. Ele e o meu pai dão-se
lindamente e estão sempre a rir-se de mim e da minha mãe: “As sentimentais”. Tem
13 anos, mas às vezes parece mais que tem 3. Enfim, temos uma relação bastante
típica de irmãos.
E eu, que me chamo Margarida, tenho 14 anos (feitos em dezembro). Ando
no 9.° ano.
Adoro e quero ir para Artes. A escola não me custa muito. Tenho bons amigos
por lá e divirto-me. O que estraga tudo é ter de acordar cedo. Isso não dá mesmo.
Adoro sair e estar com os meus amigos. Mas também gosto de alguns dias em casa.
E agradecia um namorado.
A Filipa e a Joana são as minhas melhores amigas. E o Bonga, claro,
conheço-o desde sempre.
Sair à noite seria dos meus desportos favoritos, se não fosse tão complicado
convencer a minha mãe a deixar-me ir. Por falar nisso é melhor começar a trabalhar
em convencê-la - amanhã tem mesmo que ser.
Até já.

Estou com uma dor de cabeça! Daquelas que fazem a cabeça latejar. Dói de
cada vez que pouso um pé no chão.
Cheguei a casa, depois de horas na bicha, com uma única vontade: atirar-me
para cima da minha cama, num quarto escuro. E lá, ficar de olhos fechados, à
espera de, apesar de tudo, conseguir adormecer.
Mas não! Qual quê! Não sei para que é que me dão estes ataques de
ingenuidade. Mal entrei pela porta comecei a ouvir duas vozes estridentes a berrar
por mim. Antes de ter tempo de desfraldar a bandeira branca e pedir tréguas,
apanhei com a Margarida e o Rodrigo em cima, a falarem ao mesmo tempo. A
pedirem não sei o quê, mas a pedirem, sempre a pedirem. Será que não percebem
que eu não sou de borracha e não consigo esticar-me para todos os sítios onde
querem que eu esteja? De preferência ao mesmo tempo, como se Deus me tivesse
dado o dom da ubiquidade. Isso foi ao Santo António, não foi a mim.
Sacudi o Rodrigo, porque lhe tinha trazido um CD novo de jogos - pronto, sei
que "compro" demasiadas vezes o meu sossego mas, por amor do Santíssimo, cala-
te consciência, porque não estou agora, com a cabeça a rachar, para me pôr a
discutir métodos pedagógicos contigo.
A Margarida não foi tão fácil de despachar. Eu até a percebo, acho que era
igualzinha - era? Sou? quando se me metia uma ideia na cabeça ia em frente, a toda
a velocidade e não havia obstáculos intransponíveis. Muito menos uma dor numa
cabeça que nem sequer me pertencia. E a ideia da Margarida era sair à noite com
os amigos. Não, não é sair quando está escuro, lá para as sete da tarde ou nove da
noite. É sair, quando a maioria das pessoas estão praticamente prontas para
acordar, é sair à uma da manhã e regressar às seis, ou por ela às sete ou às oito, aí
não é esquisita.
Fiz aquelas perguntas da praxe - quem vai, para onde vão, quem leva, quem
traz. Se não fossem aquelas luzes que me faiscavam nos olhos, se não fosse aquela
dor de cabeça, teria feito mais.
Será que ainda devo fazer estes inquéritos? Posso ligar-lhe para o telemóvel?
Que horror, e se afinal ela não vai com quem diz que vai? Ai, por amor de Deus,
pára com isso!
Lá me disse que era o pai do Ricardo que a ia buscar. E, depois de ter ligado
para o dito Ricardo e de ameaçar não ir se o pai dele não a trouxesse a casa, por
causa da mãe que era uma chata, claro, e tinha a mania dos raptos, e de o dito
Ricardo ter ido chagar o pai que, se calhar, coitado, tem uma dor de cabeça igual à
minha, Lá voltou com a garantia: "juro, mãe, juro, mãe", que o pai do Ricardo - com
dor de cabeça ou sem ela - a trazia à porta, o mais tardar às três da manhã. "Às
três?", "Sim, às três."
E bati com a porta da casa de banho com força suficiente para que
soubessem que o assunto estava definitivamente encerrado e que eu ia mergulhar
num banho de imersão, na esperança de apagar as luzinhas da frente dos meus
olhos.
"Posso comer pizza?", gritou lá de fora o Rodrigo. Pensei nos filetes com arroz
que a Rosália tinha deixado feitos. Peixe, de que ele tanto precisava, ou não
estivesse a crescer. E gritei de volta:
- Podes comer pizza.

Mas imaginas, hoje consegui convencer a minha mãe a ir sair à noite! Claro
que aturei aquelas perguntas parvas de com quem é que vou, etc., e também me
obrigou a prometer que o pai do Ricardo me trazia a casa. Tive que lhe ligar a
perguntar. Será que ela não entende a vergonha por que me faz passar? Por que é
que não confia em mim? Infelizmente só me deixou sair até às 3! ÀS 3! Por amor de
Deus, todas as minhas amigas ficam até mais tarde! Qual é a diferença de sair até
às 5 horas, por exemplo? Não vou ser raptada entretanto... Ai que mania!
Bem, ao menos vou sair o que já não é mau! Para além disso, o Diogo vai. O
Diogo é lindo! Mas como é que a minha mãe espera que aconteça alguma coisa
com ele se só posso ficar até às três?!
Hoje fiz teste de Português, não estudei nada. Mas nem me correu mal!
Amanhã vai ser uma dia chato. Tenho Matemática, duas horas seguidas de
Matemática. Que seca! Bem a minha mãe está a chamar para ir jantar por isso hoje
fico por aqui.
AI, 0 QUE É QUE EU VISTO PARA IR SAIR?

Não há dúvida nenhuma que as hormonas mandam em nós. Há dias em que


só apetece ficar debaixo dos cobertores, à espera que a crise passe.
Fugimos das pessoas que são queridas. Parece estúpido, não parece?
Nós, tristes e com vontade de fugir das pessoas queridas, que vêem logo que
não estamos bem e nos podiam ajudar.
Mas a verdade é que não temos vontade nenhuma de falar, muito menos com
pessoas queridas. É que, além do mais, temos a certeza de que se alguém nos
pergunta como estamos, com uma voz terna e meiguinha, desatamos num pranto
sem fim. Tão certo como 2 mais 2 serem 4, embora a verdade é que nunca percebi
porque é que 2 mais 2 não são 5 ou 6, ou outro número qualquer, mas também já
desisti de pensar no assunto; é assim é assim, o que é que se há-de fazer?
Pois é, voltando ao mesmo, é mesmo estranho essa mania de fugir das
pessoas queridas quando o que mais precisávamos era de colo. Acho que no fundo
somos uns orgulhosos, gostamos de nos armar em fortes e não queremos pesar os
outros com os nossos problemas, o que é estúpido porque não nos importamos
nada - muito pelo contrário - que as pessoas de quem gostamos nos pesem com os
delas.
Mas não sei, nestes dias dá muito mais jeito encontrar pela frente gente
malcriada e agressiva. Chefes mal dispostos, maridos rabugentos, polícias mal
educados - é como mosca no mel -, o pretexto de que precisávamos para explodir.
Acho que as explosões devem libertar hormonas, ou qualquer coisa do género,
porque a verdade é que quando gritamos de raiva e fazemos mesmo o número da
histérica apoderada pelos nervos, nos sentimos logo melhor. E a seguir choramos,
choramos, e, como toda a gente sabe (ou se não sabe deveria saber), as lágrimas
transportam para fora do corpo os químicos tóxicos - feita a limpeza, vamos
sossegando os soluços, fechando os olhos, e acabamos por adormecer. E dormir
faz mesmo bem às hormonas.
Nestes dias o Rui e o Rodrigo já aprenderam a andar ao largo. Mas a
Margarida é querida - enrosca-se ao meu lado no sofá e não pergunta nada. Acho
que já sabe aquilo de que as hormonas são capazes e não a aflige tanto este tipo de
tristeza. Quando era mais pequenina achava que a tristeza tinha que ter uma razão`
e afligia-se mais. Agora não, fica por perto e não pergunta nada e é bom.
O Rodrigo foge se me vê chorar. Não estende a mão, não consola, tapa a
cabeça com os lençóis e pede-me para ir chorar para outro lado. Meu Deus, será
que aos 13 anos já é completamente homem?

Nem vais acreditar, fui sair, foi lindo! Fomos ao “Garage” , em Lisboa, mas,
raios, tive mesmo que ficar só até às 3! E ainda levei o discurso do não bebes, não
fumas, não dás conversa a estranhos. Mas o que interessa é que fui! E o Diogo
estava lá! Bem ele é mesmo lindo... Aquela camisola ficava-lhe a matar. Tivemos lá
todos a dançar e tudo. De repente o Diogo chega-se a mim e pergunta-me se eu
quero ir com ele ao bar. Eu fui e quando chegámos lá ele pediu-me para CURTIR!
Eu claro disse logo que sim. Que espectáculo! Ele é lindo!!! Passei a noite com ele,
curtimos, dançámos. Acho é que a Teresa ficou um bocado com ciúmes, acho que
ela também gosta do Diogo! Mais tarde ligo-lhe, espero que ela não tenha ficado
chateada. Ele prometeu que me ligava, até agora ainda não me ligou. Acho que lhe
vou mandar uma mensagem, mas também não quero parecer muito interessada! O
que é que faço!? Vou ligar à Filipa a pedir conselhos!
Recebi a nota do teste de Português - tive 4, não sei como, mas tive. Estou
ansiosa por ir amanhã para as aulas. Pois é, eu também nunca pensei que fosse
dizer uma coisa destas, mas é só porque vai lá estar o Diogo.
A mãe ontem estava muito triste. Bolas! Odeio vê-la assim, o que vale é que
não lhe dá muitas vezes!
Mas quando dá, não sei o que fazer. Ir-me embora não resolve, mas também não
consigo dizer nada. Será que estou a fazer a coisa certa? Normalmente fico sentada
ao lado dela calada. Mas não sei se isso ajuda muito. Vejo que a mãe se irrita com a
atitude do Rodrigo quando ele a vê chorar. Entendo a mãe, mas também entendo a
aflição do Rodrigo sem saber o que fazer! Às vezes também me apetece deixá-la
assim. Lógico que não deixo. Não era capaz!
Acho que já não aguento isto, O Diogo ainda não telefonou! Nunca lhe
cheguei a mandar uma mensagem, mas mandei-lhe alguns toques. Respondeu a
alguns, mas nem mensagens nem telefonemas. O idiota prometeu! Não me apetece
sair. Será que os rapazes são TODOS assim? Pensei em falar-lhe lá no liceu, só
que tenho medo da reacção dele. É que não sei se te disse, mas ele é muito mais
velho e tudo, por isso é capaz de não achar piada se eu for ter com ele à frente de
toda a gente!
E depois é a mãe sempre a perguntar se eu estou bem, o que é que tenho!
Diz-me “Fizeram-te mal? Queres que eu vá bater aos meninos?”. Irrita-me tanto esta
frases Como é que ela acha que me vai proteger mesmo se alguém me estivesse a
magoar, o que é que ela espera que eu diga? “Sim, mãe, o meu namorado não fala
comigo, vá bater-lhe.”! Para além disso, a frase parece mesmo que é a gozar
comigo. É que é tão ridícula a ideia de a minha mãe ir bater em seja quem for, que
parece que ela está a gozar com o facto de eu estar triste! já não aguento isto. Falei
à Filipa e perguntei-lhe o que é que ela me aconselhava. Ela disse que eu devia
esperar. Não entende nada! Não há dúvida que me ajudou imenso! Vê-se mesmo
que tem namorado e é tudo muito fácil para ela! Grande amiga! A escola é sempre a
mesma porcaria, acordar cedo (mas por que raio é que as aulas não começam às 1
1?), ir estudar coisas que não me interessam minimamente - só Educação Visual é
que é bom e isso só temos três vezes por semana. Por mim a escola seria EVT o dia
todo. Não que tenha grande jeito, mas safo-me e, pelo menos, é o que faço melhor.
Tive uma ideia - vou desenhar o Diogo e depois rasgar o desenho, como a minha
mãe fazia quando eu tinha pesadelos. Dizia para eu desenhar os monstros e depois
amachucávamos o papel e atirávamo-lo para o lixo, e resultava!
Se calhar devia era desenhar e rasgar-me a mim própria!

Agora é a Margarida que está refém das hormonas. O Rodrigo, felizmente,


anda calmo, à volta do microscópio - só não gostava era de ser mosca ou aranha,
porque virou sobre elas a lupa e o estojo de anatomia. Adiante, que deve ser sol de
pouca dura e, daí, talvez não, talvez saia ao pai, que é pacato e odeia conflitos.
Mas, dizia eu, agora a refém é a Margarida.
Num gesto de magnanimidade, decidi aplicar-lhe o remédio que mais
depressa cura as minhas neuras levei-a às compras. Mais, disse-lhe que podia
comprar o que lhe apetecesse que eu pagava e não fazia comentários.
Acho que tão generosa como eu, nem as madrinhas dos contos de fadas! A
da Cinderela, por exemplo, deu-lhe um vestido escolhido por ela, madrinha, numa de
"é pegar ou largar", porque também, àquela hora, o que é que a pobre havia de
fazer se não gostasse do tecido, da cor ou do modelo? Aliás, deve ter sido alugado e
nem sequer para a noite toda, porque chegando à meia-noite, puf, desapareceu.
Bem, mas então eu ali muito querida, pronta a pagar do meu bolso, com o
meu dinheiro, saias até aos pés, casacos aos remendos, calças largas que no meu
tempo só os homens das obras é que usavam, e a menina entrava nas lojas, roçava-
se pelas prateleiras e pelos cabides e não gostava de nada. De longe a longe, lá
cedia a provar, só para atirar a roupa para o outro lado do provador, com uns
grunhidos de irritação. O refrão dos grunhidos era sempre o mesmo: "Fica-me
horrível. Estou gorda".
Eu já espumava - por que é que ela, que é tão gira, agora está com a mania
que está gorda? Todos os rapazes olham para ela, tomara a mim ter tido aquele
séquito de admiradores! E os meus amigos dizem que ela está sexy, bem feita e
esses comentários, ditos por palavras mais delicadas, bem entendido. Não sei muito
bem o que é isso de ser "boa", nunca entendi, porque, confesso, ou acho as
pessoas giras, médias ou horríveis, mas é mais pela cara e pelo estilo, não tem
nada a ver com medidas 70, 70, 26, ou lá o que é.
Seja como for, não gosto de pensar na minha filha nesses termos - mas gosto
muito que ela seja bonita. Acho que é uma maneira de a Natureza nos compensar
pelo nosso próprio envelhecimento. Revemo-nos nas nossas filhas e é como se
disséssemos: "Pronto, já não sou nova, mas produzi uma filha que é, e que ainda
por cima é linda e por isso é quase a mesma coisa".
Mas agora por que é que lhe havia de dar para achar que é gorda? Tenho
medo que sejam filmes a mais sobre a anorexia, aqueles filmes lamechas que ela
adora ver na televisão. Espero mesmo que não lhe dê para as dietas.
É tão estúpido - quando temos um corpo bonito e avantajado, preferíamos ser
um pau de virar tripas, quando somos um pau de... queríamos ter o corpo que
possuíamos naquele tempo em que não queríamos ter o corpo que tínhamos. Uf,
ainda bem que isto não é para ninguém ler

Minha mãe, para curar a minha neura, decidiu levar--me às compras. Só


fiquei mais deprimida. Experimentei tudo em todas as lojas. Tudo me fica mal. Estou
gordíssima!!! As coisas giras não me cabem pensando melhor, as feias também não.
A minha mãe disse-me que não, que não estava nada gorda, que eu é que era
esquisita. Mas o que é que se esperava que ela dissesse? É minha mãe! E o que é
que me interessa se a minha mãe acha que eu sou magra?! Mais importante era o
Diogo, por exemplo!
OK, fui injusta! Importa-me IMENSO que a minha mãe diga que sou magra!
Qualquer pessoa que diga que eu sou magra é boa pessoa! Mas, melhor era que
fosse verdade e não é, que bem tenho olhos!
Ainda por cima agora arrependo-me de não ter comprado coisas! Ai, por que
é que eu não sou como a Joana? A Joana é perfeita, faz tudo bem... E é
magríssima!
Não consigo parar de chorar. Odeio a Filipa! E ODEIO o Diogo! A Filipa está-
se nas tintas para mim. Telefonei-lhe para desabafar com ela, mas ela disse que
tinha de ir sair com o Gui (o namorado dela), e depois desligou. É isto que ela
chama de ser melhor amiga? Eu estou sempre cá quando ela precisa e ela, NADA!
O Diogo é sempre a mesma coisa - ainda não telefonou, nem mandou mensagens.
Começo a entender que aquilo de curtir foi mesmo só isso. Estava com esperanças
que acabasse numa coisa mais séria. Malditas esperanças! Por que é que ficamos
com esperanças? Por mais que me diga a mim mesma que nunca hei-de ter nada
com o Diogo, continuo a ter esperanças de que sim.
Não tenho cabeça para escrever mais.
Demorou mas aconteceu! YES!! Estou tão feliz! O Diogo telefonou! Disse-me
que não tinha falado antes porque tinha estado a pensar no que sentia por mim e se
queria ou não uma relação mais a sério (quase um mês a pensar? O rapaz é lento!).
De qualquer maneira, combinámos ir lanchar aqui perto de casa. É claro que fui e
ele pediu-me para andar, e depois beijou-me! Imagina tu, andar com o Diogo!
Perfeito! YES! YES! Confesso que acho que esta treta de pensar durante tanto
tempo e de não saber o que dizer é um bocado tanga. De qualquer maneira, prefiro
pensar que ele está a dizer a verdade. É, a Verdade é que eu o Adoro. E sinto que
isto vai dar certo. Passou o dia a mandar-me mensagens queridas. Bolas, amanhã
nunca mais chega. Tenho que contar à Filipa - pois é, já sou amiga dela outra vez!
Ela mandou-me uma mensagem a pedir desculpa por me ter abandonado quando
eu precisava dela. Por isso decidi perdoar-lhe. ADORO O DIOGO!
Estúpido do Rodrigo roubou-me outra vez o carregador do telemóvel! Se fico
sem bateria e não consigo receber as mensagens do Diogo, mato o miúdo!
Estamos todos bem dispostos! É isso mesmo, cá em casa anda tudo na
maior. Aliás, obriguei-me a mim própria a escrever nestas páginas que estamos
felizes e contentes. É que a minha tendência é para só vir para aqui escrever os
meus pensamentos quando estou triste, zangada ou preciso de arrumar as ideias
para tomar uma decisão. Se algum dia os meus filhos ou netos lerem alguma coisa
disto vão pensar que eu era uma neurótica e que o resto da família também. Mas é
que quando andamos felizes e contentes apetece-nos andar na rua, nas compras,
em casa dos amigos, a passear o cão, a fazer tudo menos escrevinhar as torturas
da nossa alma. Tenho a certeza de que se alguma vez, num dia normal, ler o que eu
própria escrevi, coro até aos cabelos de vergonha e sou "apoderada” de uma
irritação tal que rasgo tudo em fanicos.

E é por saber que dramatizamos sempre quando passamos este tipo de


conversas ao papel que resisto a ir ler o diário da Margarida.
Reparei já há muito tempo que ela escreve um diário e reparei também que
não tem chave. Custa-me imenso resistir, confesso. Apetece-me imenso saber o que
vai na cabeça dela. E se tem algum problema grave e não me conta? Se calhar, se
eu lesse, e se por acaso lá visse descrito o tal problema, podia ajudá-la. Sem dizer
que tinha lido, claro, até porque ela me matava.
Vá lá, minha idiota, não arranjes desculpas. Tarda nada estás a dizer que é
uma obrigação moral vasculhar os segredos da miúda!
Pronto, reconheço, sempre fui horrivelmente curiosa. Não resisto a segredos,
nem aquelas conversas do "um dia conto-te", "talvez seja melhor não te contar", nem
sequer aqueles pedidos de "vem ter comigo daqui a uma semana que falamos".
Bolas, uma vez que levantaram a ponta do véu, que o descubram todo. Se os meus
filhos soubessem isto acho que faziam de mim o que queriam (mais ainda, quer
dizer). Bastava insinuarem que tinham segredos que não podiam revelar, e eu ia até
ao fim do mundo para os descobrir.
Pensando bem, o Rui é de facto fantástico. Se ele tivesse um diário, eu
resistiria a ir lê-lo? Nunca. Nem que tivesse de arrombar o cadeado. Só de pensar
que ele poderia ter pensamentos, histórias ou segredos a que eu não tinha acesso,
chegava para me transformar numa barata tonta.
E daí.... Se calhar não é nenhuma qualidade - se calhar não lê porque não lhe
interessa. Porque não está minimamente interessado em saber o que penso - farto
de me ouvir deve estar ele, quanto mais ainda arranjar tempo para me ler.
Bem, mas eu falava na Margarida. Decididamente vou dizer-lhe que feche o
diário com um cadeado, porque a verdade é que, no outro dia, quando o ia fechar -
ela deixou-o aberto em cima da cama! - não resisti a ler uma ou duas páginas. Vou
confessar-lhe tudo para ela se poder precaver. Eu sei que é cair do pedestal, mas
tenho este estúpido defeito de não conseguir resistir a confessar o mal que fiz e a
pedir a absolvição. Preciso que ela me desculpe, ou, em último caso, não desculpe,
mas preciso que ela saiba que a minha curiosidade é forte e que não pode deixar
coisas dessas abertas, assim à mão de semear.

NÃO É POSSÍVEL! Odeio-a! Odeio-a! Estou a referir-me à mulher que vive


em minha casa e que afirma ser minha mãe! Nem imaginas o que ela fez! Que raio
de mãe é ela, se nem respeita a minha privacidade? Gostava de ver se fosse eu a
bisbilhotar o diário dela? É o MEU diário, por amor de Deus! OK, não tem cadeado.
Mas isso é porque pensava que vivia numa casa onde existia respeito. Nem me
admirava que o Rodrigo lesse o meu diário. Agora a minha própria mãe! Ela sempre
pareceu entender e respeitar. Ela própria tem um diário, devia saber como é. Não
entendo! Só sei que a odeio! E que ela não tinha direito nenhum de fazer isto. Vou
escondê-lo tão bem... Vai desaparecer! Imagina tu que ainda teve a LATA de dizer
que eu não tinha cadeado e que ela era uma pessoa muito curiosa e por isso não
resistiu. Pediu desculpa, como se pedir desculpa adiantasse alguma coisa! É tão
fácil pedir desculpa. Decidi: nunca mais lhe falo! Contei ao Diogo e ele foi super
compreensivo. Irrita-me um bocado aquela maneira de tentar ser imparcial, de julgar
as coisas como se fosse um juiz, mas por um lado é bom. Ele é muito sensato.
Acho que a mulher que vive cá em casa era capaz de gostar dele! Ainda não
acredito no que aconteceu. Ler o meu diário, como é que é possível!? Bolas apesar
de ter o Diogo, a vida não vai fácil! Tenho falado imenso com o Bonga ao telefone.
Coitado, ele quer acabar com a vida dele! já não sei como ajudá-lo. Passo horas a
tentar mostrar-lhe o que há de bom no mundo. E como ele é importante para tanta
gente, mas parece que o que eu digo não faz diferença. A sério, quero imenso
ajudá-lo, afinal conheço-o desde sempre, e ele passa a vida cá em casa. É como se
fosse meu irmão! Ele não tem a vida nada fácil, quando penso na vida dele, cada
vez mais adoro a minha. O meu pai pode não estar sempre em casa, mas tenho a
certeza que me adora, tal como a minha mãe, a mulher que agora foi substituída por
aquela de quem não posso dizer o nome! A sério, por mais que esteja furiosa com
ela, sei que ela nunca me abandona, pensa em mim antes de pensar em qualquer
outra coisa, faria tudo por mim - inclusivamente ler o meu diário!!! O pai do Bonga
não lhe liga meia, ele confessa que toda a porcaria que faz é só para ter atenção do
pai! A mãe é uma deprimida, e para o esconder, bebe! E, no meio disto, o Bonga
que se lixe! Fogo! Por que é que os pais dele não lhe ligam mais? Ele não merece
isto! O filho a ameaçar que se vai suicidar e eles estão-se nas tintas. Estas coisas
irritam-me! Tenho muita sorte! Vou telefonar ao Bonga, tenho medo de o deixar
sozinho. Tenho medo do que ele pode fazer! Acho que ele não quer mesmo morrer,
mas em acto de desespero...

Meti a pata na poça. O Freud diz (ou pelo menos foi isso que eu percebi) que
as pessoas que não conseguem guardar segredos são crianças. Estão de tal
maneira fundidas com as mães e inseguras de si, que precisam de "confessar-se" e
só se sentem bem quando são absolvidas, mesmo que para isso tenham de cumprir
uma penitência. Não aceitam o direito aos seus erros, à sua vida própria, e que
podem guardá-los para si, sem necessidade de se autoflagelarem publicamente.
Mas eu sou adulta, até sou mãe mas, pelos vistos, não passo de uma criança.
Isto tudo para explicar que lá tive de dizer à Margarida que era melhor
guardar com mais cuidado 0 Diário. Quando ela ouviu aquilo iniciou um inquérito
policial e eu, que não sei mentir, lá lhe disse que sim, que uma vez tinha lido duas
ou três páginas, porque estava aberto em cima da cama. Passou-se, como eu me
teria passado se a minha mãe alguma vez me tivesse dito uma coisa daquelas. E
daí não sei, como sou tão curiosa, acho que desenvolvi uma tolerância especial para
quem é como eu.
Bem, agora só me resta aguentar a borrasca com dignidade. O difícil é saber
bem que atitude tomar é óbvio que tenho de lhe pedir desculpa e aceitar o seu
amuo, mas até que ponto e até quando? O que é que é razoável e o que é que é
deixar inverter os papéis? Sempre fui apologista dos pais que pedem desculpa aos
filhos quando acham que devem, mas depois o assunto tem que ficar rapidamente
encerrado, não se pode converter num motivo de manipulação e chantagem. Mas a
Margarida vai reagir bem ela é tão, tão querida e tolerante. Sei que vai perceber e,
embora seja triste que tenha de ser à custa de me atirar do pedestal, vai perceber
que preservar o nosso mundo exige alguns cuidados...

A minha mãe veio pedir-me desculpa. Outra vez. Dei-lhe desprezo, mas acho
que a vou perdoar, também, pelo que ela disse, só leu um bocadinho. E, bolas, está
tão arrependida.
0 Rodrigo hoje veio-me perguntar o que é que se fazia para conquistar uma
rapariga. Eu disse lhe que ia pensar. Acho que vou por o Diogo a falar com ele. Mal
não pode fazer. Podia falar com o meu pai, mas... ele é adulto!
Estava a pensar em trazer o Diogo cá a casa, convidá-lo para jantar. Vou-lhe
telefonar, não deve haver problema com a minha mãe, especialmente agora que ela
está a tentar “compensar-me “pela história do diário!
Já não tentar compensar sei é o que fazer quanto ao Bonga! Já tentei
convencê-lo a ir a um psicólogo, mas ele recusou, diz que a única pessoa com quem
fala sobre isto é comigo. Fiquei contente com isso, acho que uma pessoa gosta
sempre de se achar especial, mas também me sinto culpada de não o poder ajudar
mais. Ele no outro dia queria ir sair e a mãe começou com uma grande história, uma
chantagem horrível, a dizer-lhe que se ele a abandonasse era sinal de que não
gostava dela. Eu disse-lhe que o que ela estava a fazer não era certo. Mas acho que
quando a mãe é querida para ele fica contente com seja o que for, ele esforça-se ao
máximo para que esse momento dure. Na escola vai tudo na mesma, estou a fazer
um projecto sobre o Hitler. Bem o homem era um monstro, mas lá que tinha poder,
tinha! Descobri que o último médico a ver a mãe do Hitler antes de ela morrer era
um judeu. Muita gente diz que era também por isso que ele odiava os judeus. Cá
para mim acho que o homem era mas é completamente maluco e mimado. Mas
super inteligente! E conseguiu fazer milhares e milhares de pessoas acreditarem que
estava certo, segui-lo e obedecer-lhe. É fascinante. Estou a adorar fazer o projecto.
O mais difícil é escrever de forma imparcial, sem tomar partido, e ser capaz de
mostrar o lado bom dele - será que tinha? O pior é que, por exemplo, na net toda a
gente que fala dele é para dizer mal! O que torna o meu trabalho mais complicado,
porque o professor disse que tinha de ser objectivo. Bem, vou visitar o Diogo, ele vai
ajudar-me com os trabalhos de Matemática, uma missão mais impossível que a do
Tom Cruise. Odeio Matemática ou, pelo menos, odiava até ter esta professora que
tenho agora e que é um espectáculo!

Já está tudo mais calmo com a Margarida e até me perguntou se o Diogo


podia vir cá jantar.
Mas hoje estou tão furiosa, que já me esqueci dessa crise. Apetece-me
esganar um dos novos sócios lá do escritório. Um lorpa é o que ele é! Não estou
habituada a que as pessoas não gostem de mim, muito menos quando não lhes dou
motivo para isso. Mas aquele tipo, aquele “def”, como diria o Rodrigo, aquele idiota
põe-me fora de mim! Argumenta mal, sem lógica, não consegue explicar por que é
que dá determinadas ordens. Tem medo do protagonismo dos outros. É um inseguro
(bolas, por que é que eu nem aqui consigo escrever palavrões?) e eu que o ature.
Pressinto que ele não percebe que, quando nas reuniões digo graças, não são sobre
ele, mas sobre a situação em discussão.
Acho que há pessoas que nunca aprendem a rir de si próprias. É claro que é
difícil, mas educa-se. Desde que haja quem eduque, claro. Lembro-me de quando
os miúdos eram pequenos e eu contava alguma coisa divertida que eles tinham
feito, uma palavra que tinham dito mal, por exemplo, às outras pessoas, as pessoas
riam, claro, e se eles estavam por perto saíam desembestados da sala. Porque não
percebiam que nos ríamos da graça e não deles.
Sinceramente, acho que aprender a rir de nós próprios deveria ser uma
disciplina obrigatória na escola. É que quando conseguimos não nos levar, nem
sequer a nós, demasiado a sério, quando aprendemos a ver sempre o lado divertido
das situações, ficamos muito mais capazes de sobreviver e ser felizes.
Mas voltando ao "sócio" - agora o cretino quer virar o escritório para os
contratos internacionais, para o direito de empresas e do trabalho. Diz que só assim
é que se ganha dinheiro, "cara colega, dinheiro que se veja" como ele diz, e que
devemos deixar de fazer Direito de Família e de ter aquela avença com a Santa
Casa da Misericórdia. Eu não gosto nada de contratos e muito menos de fazer
despedimentos ou tratar desses assuntos. Gosto de ouvir as pessoas, de tentar
encontrar nas linhas e nas entrelinhas das leis a maneira de as ajudar. Fico
desesperada com as injustiças e acho que já basta a lentidão da justiça e as
burocracias todas, sem nós os advogarmos, nos “vendermos” todos aos negócios.
Se quisesse ter alguma coisa a ver com dinheiro, tinha tirado um curso de Economia
ou Gestão. E não tirei, caraças!
Quem apanhou com a maior seca foi o Rui. Lá teve que ouvir a história toda,
o que disse este e aquele, pessoas que não sabe sequer quem são. E tudo cheio de
pormenores, porque nós, mulheres - reparo que a Margarida também é assim -,
temos que pintar a história o mais realisticamente possível, e por isso não deixamos
nada de fora! Para nós faz todo o sentido: se o ouvinte não souber, por exemplo,
que ele não faz a barba de manhã e que tem mau gosto até na escolha das
gravatas, como é que pode imaginar a pessoa? Tenho a certeza que se tudo isto se
tivesse passado com o Rui ou o Rodrigo eles se teriam limitado a dizer: tive um dia
chato, o meu chefe é uma besta! E pronto. Bem podíamos tentar sacar mais in
formação que dali não saía nada.
Felizmente a Margarida é mais como eu - às vezes percebo bem o Rui,
quando ela chega da escola e desbobina o seu dia inteiro minuto a minuto. Hoje
quando me viu naquele estado, sentou-se no sofá ao lado e ajudou-me a traçar o
perfil psicológico da criatura. O diagnóstico foi de que sofre de um complexo de
inferioridade acentuado, que joga à defesa porque tem medo de não ter neurónios
para construir uma argumentação à altura da dos outros. No fim já estávamos quase
com pena dele. Isto da psicologia barata tem destes contras...

Hoje o dia foi óptimo! Acho que nem ouvi ninguém a gritar. O Diogo fala-me
todos os dias e manda-me mensagens queridas. Na escola toda a gente já sabe.
Tenho feito uma data de amigos novos, ainda por cima mais velhos, porque são os
amigos do Diogo. Estou a adorar tudo. Parece que andar com ele me abriu um
mundo novo! E um óptimo mundo novo. De resto está tudo calmo!
A minha mãe ainda ficou um bocado preocupada ao princípio, de eu ter
amigos novos... de estar com pessoas que ela ainda não conhecia, mas acho que
ela gosta e confia no Diogo. De qualquer maneira não me safei do discurso sobre a
“ganza” e as drogas. Às vezes irritam-me os comentários dela. Parece que não
confia em mim. Alguma vez me ia pôr a fumar uma “ganza”? Não mesmo. Até
conheço algumas pessoas que o fazem. O Bonga, por exemplo, faz e não é pouco.
Já falei com ele sobre isso. Tentei que ele parasse e assim. Mas ele está mesmo
convencido que a "ganza” não faz mal! Está sempre com a desculpa do “nunca
ouviste dizer que faz melhor que o tabaco?”. Que disparate. Faz melhor a umas
coisas, bastante pior a outras!
E eu já disse tudo o que pensava sobre isto à minha mãe. Mesmo assim
continua com os discursos. Não é por ter amigos que fumam ou estar à frente deles
quando o fazem que vou começar também. Aliás, muito pelo contrário! Vejo a
estupidez que é. Espero que ela comece a confiar em mim, nesse sentido. Adoro o
Diogo!... Hé, hé, e ele não fuma “ganzas” .

Margarida fez-me um grande sermão sobre a confiança. E rematou com um


"E eu nem sequer fumo charros!". Senti uma tontura, a sério que senti. Acho que é o
meu maior pesadelo, a história da droga. E irritam-me as revistas e os jornais que só
falam na necessidade de distinguir drogas leves de drogas duras. É evidente que sei
que o discurso da prevenção tem que ser um discurso verdadeiro - não vale a pena
andar a inventar diabos onde eles não existem, pela simples razão que, quando eles
descobrirem que a coisa não é tão má como se pintou, deixam também - em bloco -
de acreditar em tudo o resto que lhes foi dito. Mas tenho a certeza que não é
coincidência o facto de aparecerem em revistas nacionais, e simultaneamente nas
estrangeiras, imensos artigos a dizer que a cannabis não faz grande mal, que
comparada com o tabaco é um rebuçado e por aí adiante. Para mim qualquer uma
delas, tabaco e álcool incluídos, são uma estupidez. Nunca precisei de substâncias
químicas para rir, nem para me divertir e acho que me tenho divertido e rido muito
nestes anos todos - aliás acho que, excepto quando tenho estado a chorar, é
mesmo a rir que me tenho dedicado.
E se nunca me meti nos copos, nem nessas coisas, foi porque o perigoso é
começar e nunca confiei o suficiente na minha força de vontade para ter a certeza
de que não iria ficar dependente. Se só deixei a chucha aos seis anos e se como as
tabletes de chocolate todas de uma assentada, sempre a dizer que o próximo
quadradinho é o último, como é que me vou fiar em ser capaz de controlar a
quantidade dessas substâncias que vou tomar? É mesmo de miúdo julgar que "a
mim não me acontece o que acontece aos outros. Quando eu quiser deixar, deixo".
Ninguém deixa assim, porque estes químicos fazem com que o corpo fique
dependente. Depois precisa mesmo daquelas substâncias e já não há vontade que
valha, pelo menos a força de vontade do dia-a-dia. E, além do mais, mete-me raiva
que os miúdos não se descubram a si próprios, não se ajudem a ser mais criativos e
imaginativos, sem precisarem de nada além dos neurónios com que foram dotados à
nascença. Ainda por cima consta que só usamos um terço do cérebro, por preguiça.
Ora, se uma pessoa engole o fumo de uma erva qualquer e o químico faz, por
ela, o trabalho de a levar a passear, por que é que há-de fazer o esforço de procurar
caminhos novos e originais?
A verdade é que, quando ela saiu da sala, senti-me com as pernas a tremer,
vi o filme todo, ela ou o Rodrigo metidos no Casal Ventoso ou em acenas", como
eles dizem, degradantes. Sou tão tolerante e flexível com tanta coisa, mas, por amor
de Deus, não me façam passar por este filme. E pensei que a Luísa Costa Gomes
tem razão quando diz que, no fundo, no fundo, por muitos manuais que leiamos, por
muito que tentemos fazer tudo bem feito, na verdade, verdadinha, só nos resta
acender uma vela e rezar. Como percebi que, se continuava por ali, tarda nada
afogava-me em pânico, dei um salto para o chão, atirei a manta em que me
embrulhava - onde eu estou há sempre uma manta - e fui navegar para a net. À
procura de tudo sobre charros, claro.
A primeira constatação é que, ao contrário do que a Margarida diz, felizmente
não é “toda" a gente que fuma - pelo que dizem os números -, há é muita gente que
experimenta.
Senti-me mais sossegada com a informação de que, de facto, só uma
pequena minoria passa dos charros para outras drogas. E, mais alarmada, com a
notícia de que além de provocar o que chamam “síndrome amotivacional", ou seja, o
adolescente fica cada vez mais mole e com menos vontade de "fazer pela vida",
deixando passar oportunidades, nomeadamente de aprendizagem, que depois
poderá ter dificuldade em recuperar. Os fumadores frequentes - e nesse grupo estão
os que fumam mais de dez charros POR ANO - podem ainda ter problemas do
sistema imunitário, de pulmões e, sobretudo, a nível do cérebro, embora a ciência
ainda não saiba avaliar bem quais. Mas lá que interfere com a massa cinzenta,
interfere, e só isso me faz uma impressão enorme. O nosso equilíbrio químico é tão
frágil que andar a mexer com ele é como jogar na roleta russa, particularmente
porque todos os artigos que li sublinham que nos "sujeitos predispostos", isto é, que
têm uma tendência para..., podem surgir doenças mentais como a psicose e a
esquizofrenia. E quem é que sabe se está predisposto, até que os sintomas surjam?
E depois, como é que uma pessoa se liberta de uma doença mental? Trata-se,
melhora-se, mas fica ali por cima da cabeça, tornando muito mais difícil construir
uma vida e ser feliz.
Pois é, acho que essa conversa do “não faz mal a nada" é mesmo treta. Vou
aproveitar uma oportunidade qualquer para falar nisto à Margarida e ao Rodrigo.
Pelo menos muni-los da informação, para que possam argumentar com quem diz o
contrário. Depois, é cruzar os dedos e esperar que eles tenham personalidade
suficiente para saberem dizer não.

Minha mãe fez-me uma conversa infinita sobre as drogas. Mas hoje não
quero saber disso para nada. Por quê? Porque o Diogo me perguntou se eu queria ir
ver o pôr-do-sol à praia com ele. A maioria dos namorados vão ver o nascer do sol,
não é? Mas para isso o Diogo sabe que não me consegue arrastar, a não ser,
evidentemente, que seja a seguir a uma directa, que eu directa faço-as a toda a
linha, nunca tenho sono à noite.
Veio-me buscar de mota - se os meus pais sabem... Espero que o Rodrigo
não chibe! - e fomos até à praia. Foi mesmo fantástico. Estava daqueles dias de sol,
em que apetece ficar ao sol como um lagarto, o céu azul, azul, para ver se
esquecemos a porcaria do Inverno - não que eu me importe com a chuva, desde que
não tenha que sair à rua, gosto mesmo de a ouvir cair lá fora.
O Diogo é mesmo querido e sabe dizer as coisas que eu quero ouvir. O que é
uma grande qualidade, atendendo a que, por exemplo, o meu irmão só diz aquilo
que eu Não quero ouvir. E a maioria dos rapazes que conheci até hoje eram assim,
metiam a pata na poça ao fim de dois minutos, estilo, “tirando a Cátia Vanessa, és a
rapariga mais gira que já vi até hoje!”.
Bem, nem me apetece escrever sobre o que aconteceu - é como se tirasse a
magia. Vou mas é “rever” o filme na minha cabeça. Tantas vezes quantas for capaz.
Com a música aos berros, claro!

Tenho andado com esta "paranóia" das drogas na cabeça e hoje, quando fui
levar a Margarida e o Rodrigo ao médico - têm andado cheios de dores de garganta
aproveitei para lhes recitar o que tinha aprendido na net.
A Margarida argumentou que achava que se calhar era melhor legalizar os
charros, porque assim se controlava melhor o "negócio" e os miúdos escusavam de
andar no mercado dos traficantes para os arranjar, correndo o risco de serem
aliciados a comprar outras coisas piores. Estava muito informada, acho que as
escolas falam muito mais nestas coisas do que no meu tempo e, de qualquer
maneira, pelo que percebi, conhece muita gente que fuma e, por isso, terá uma
visão até mais realista do que eu, que andei sempre longe desse mundo.
Disse-lhe que isso da legalização era daqueles assuntos que tinha muitos
prós e contras e que quando alguém defendia um dos pontos de vista eu tinha logo
vontade de concordar, mas quando outra pessoa defendia o outro ponto de vista eu
também percebia bem os seus argumentos. E disse-lhes que podiam fazer
manifestações na rua pela legalização, se achavam que era esse o caminho mas
que, até aí, era uma coisa ilegal e proibida e que comprá-la era compactuar - tive
que explicar ao Rodrigo que queria dizer "fazer o jogo de...” para ele perceber a
palavra - com um mercado nojento, que vivia e enriquecia a níveis bilionários com a
destruição da vida das pessoas, dos miúdos. E que, além disso, podiam sempre
vender-lhes gato por lebre e lá ia o miúdo desta para melhor, porque estava a tomar
um veneno qualquer misturado com a substância.
- Vê, mãe, mais uma razão para legalizar, assim era controlado. E pagava
impostos, o que ajudava a sociedade, era assim como uma multa que uma pessoa
pagava por estar a fazer uma coisa um bocado duvidosa...
Achei divertido o conceito de impostos... E, a propósito, quem gostava de
fugir à realidade era eu, que de repente me lembrei do IRS que tive de pagar no ano
passado e este ano ainda vai ser com certeza pior. Bolas, o Estado é mesmo ladrão!
Enfim, vou ver se penso noutra coisa, que isto já se está a tornar uma
paranóia. Apesar dos meus medos, acho que consegui falar disto assim, numa de
normalidade, de quem passa informação sobre um assunto que lhes pode
interessar. Espero que alguma coisa tenha ficado na cabeça do Rodrigo ele é tão
mais calado e introvertido que tenho mais medo, mais medo de que aconteça
alguma coisa e eu não perceba. A cabeça da Margarida parece-me bastante
arrumada, mas não sei. Não sei se conhecemos os nossos filhos tão bem como
acreditamos conhecer.
Vou tomar um banho de imersão! E depois tenho que sair outra vez que é a
reunião de notas na escola da Margarida.

ALARME! A minha mãe vai ver as minhas notas amanhã. Não que eu tenha
tido muito más notas, alias até me tenho esforçado. O problema é a Física! Isso é
que ela não pode saber. Não fazes ideia de como são as minhas aulas de Física.
Basicamente o professor, de pelo menos 75 anos, é um reformado de uma
universidade qualquer e com jeito para tudo menos para ensinar. Pelo menos
ensinar gente que nunca ouviu falar daquilo em lado nenhum... Está-se
completamente nas tintas - é o próprio tipo que diz “eu já ganhei direito a reforma.
Se vocês aprendem ou não, não me interessa minimamente”. É a simpatia em
pessoa! 0 que vale é que já ninguém liga ao que ele diz. Acho que o homem faz as
experiências sozinho. Mete todo o material em cima da secretária dele e, de costas,
mexe lá naquelas coisas, escreve apontamentos no quadro e pedia, dantes, claro,
porque até disso desistiu, para copiarmos para o caderno. Entretanto nós já nos
cansámos de tentar entender uma coisa que ele se recusa a explicar. Começamos a
conversar e a desenhar. À Filipa e a mim já nem vê, é como se fôssemos fantasmas
transparentes. Disse-nos mesmo que era escusado tirarmos apontamentos, tal era a
nossa falta de jeito. É mesmo só rir. No outro dia tivemos um teste. Entrámos e
começámos a falar enquanto tirávamos as folhas de papel e aquela tralha toda. Aí,
ele virou-se e disse “podem falar, podem copiar e podem ver nos livros e, caso não
tenham paciência para nada disto, podem perguntar-me que eu respondo. Sempre é
melhor do que depois ver testes todos errados”! - partiu-se tudo a rir. Lindos testes,
sim senhora! Se fossem todos assim... Enfim, quando a minha mãe falar com ele
espero que entenda que o homem é maluco, e que a culpa não é toda minha.
Devia ter-me esforçado mais. Espero que ela não fique muito desiludida. Ela
nunca chateia nada com as notas, desde que nos esforcemos, o que é óptimo. Mas,
às vezes, não faço os TPC mesmo por preguiça e não entrego trabalhos e assim.
Para a próxima esforço-me mais (lembro-me vagamente de ter dito isto no trimestre
passado)...

Fiz bem, estava a precisar de desanuviar. Custou-me imenso sair de noite,


não me atirar para dentro da cama, mas valeu a pena. Os professores dizem todos
bem da Margarida e eu babo-me completamente. Não é uma aluna de cincos, mas
dizem que é muito querida e bem disposta e preocupa-se imenso com os outros.
Tive um encontro do terceiro grau com o professor de Física. Aliás tenho que
escrever a história no Livro de Bebé dela, que vou enchendo de histórias que julgo
que ela vai gostar de ler aos filhos. O homem parecia saído de um filme cómico. Dos
seus 60 anos, com um ar muito digno, estendi-lhe a mão, disse-lhe de quem era
mãe e ele, com ar alucinado, a olhar para um ponto infinito no espaço, começou a
murmurar, como se estivéssemos numa sessão espírita:
- Ah, se sei quem é a Margarida? Sempre lá atrás, sempre a falar com a
Filipa.
Antes de eu poder abrir a boca para pedir desculpa pelo seu comportamento,
ele mandou-me calar com um gesto da mão sardenta e continuou:
- Fala baixo, não me incomoda. Também espero não a incomodar a ela. Mas
não tem importância, sabe, porque para o ano, nem eu, nem ela cá estaremos.
Devo ter posto um ar preocupado. A ideia de ele se ir embora parecia-me
sinceramente acertada, mas ela? Ia levá-la? O senhor deve ter entendido a minha
perplexidade porque disse logo:
- Nada de grave, minha senhora. Eu não vou estar porque me vou reformar e
ela porque, no 10.° ano, não vai certamente escolher Física. Decididamente a sua
filha nunca será uma física.
Ainda tentei atalhar, dizendo que sabia que a Margarida nunca escolheria
uma área daquelas mas que, apesar disso, tinha pena que ela não ficasse a saber
alguma coisa de Física e que ele, à partida, a convencesse de que a pobre criatura
não tinha aptidão para perceber porque é que a maçã caíra na mão do Newton. Mas
o homenzinho não me pareceu nada comovido. Pelo contrário, explicou-me que só
aprendia quem queria e podia e que, de facto, não lhe parecia que ela sequer
tivesse aptidão para tanto.
Achei melhor acabar com a conversa o mais rápido possível, antes que me
desatasse a rir na cara do senhor. E quando me ia a levantar e a estender
novamente a mão, ele pôs a cabeça à banda e proferiu:
- Talvez não esteja a ser justo. A Margarida, ah, sim, a Margarida, fizemos
uma ou duas experiências engraçadas!
E com aquela tive mesmo de fugir. Refugiei-me nos braços do professor de
Ciências, esse já o conheço há quatro anos, desde que a Margarida entrou para o
liceu. É um tipo fantástico, de barba arruivada e um ar sereno de sábio. Não resisti a
repetir-lhe tal e qual a cena, e ele esforçou-se por não trair o colega, mas saiu-se
com uma que disse tudo:
- Minha senhora - disse ele, - a sua filha tem um talento enorme para a
escrita. Vai ver que no futuro lhe é muito mais valioso ter tido um professor tão
excêntrico, do que aprender Física, para só a esquecer uns dias depois.
Convenceu-me. Se até eu, a estas horas - que horror, já passa da uma da
matina - achei que a história devia entrar para as páginas deste diário, sem mais
demora, talvez, de facto, ele tenha toda a razão.

As notas correram lindamente. Não que tivesse 5 a tudo mas, pelos vistos, os
professores gostam bastante de mim, o que é óptimo. E a minha mãe percebeu
MESMO que o professor de Física é maluco.
Hoje eu e o Bonga estivemos os dois sozinhos em casa dele e ele começou a
enrolar uma “ganza” . Repeti-lhe tudo o que a minha mãe me tinha contado - não
grites... Não sou estúpida, é evidente que não lhe disse que era um “sermão” da
minha mãe, falei como se tivesse descoberto aquilo para um trabalho que tive de
fazer para o prof. de Ciências. Modéstia à parte, acho que o apanhei de surpresa e
ouviu tudo até ao fim. E confessou não saber muitas das coisas que lhe contei.
Sempre ouvira dizer que fazia melhor que o tabaco e a “desculpa” servia-lhe para se
convencer a si próprio e para atirar aos outros que o chateavam. Estivemos a falar
mais sobre isso e eu perguntei-lhe por que é que ele tinha começado a fumar. Ele
disse-me que tinha sido porque no grupo toda a gente fumava e também tinha
curiosidade. Quer dizer, não foi aquela história que os pais pensam sempre de um
“mau” a querer convencer o “bom” , e ele garante que também não era para ser
“aceite” pelos outros, porque a eles tanto lhes fazia que ele fumasse ou não. Diz que
era mais porque enquanto eles todos estavam “ganzados” , ele não. E ficava a olhar
e sentia-se de fora, já para não falar na curiosidade. Diz que quando experimentou
não lhe aconteceu nada de mal. Não sentiu que precisasse daquilo nos tempos a
seguir. Pensou que tudo o que tinha ouvido sobre a droga, que era um vício horrível,
que não se podia viver sem ela, era mentira. Por isso tudo o resto que lhe disseram,
de que a “ganza” fazia mal, passou automaticamente a parecer também invenção.
Expliquei-lhe que os efeitos da "ganza” são a longo prazo, não aparecem assim de
repente nem se sente um vício físico, mas que há um vício psicológico, está-se
neura e apetece repetir e depois começa-se a ficar nervoso se não se tem aquilo à
mão. Ele admitiu que hoje em dia quando não tem - mesmo que não fume - fica
meio agitado, com medo de lhe apetecer e não estar ali à mão. Compreendo o ponto
de vista dele. Se alguém nos convence que a droga é má e que tem uma série de
efeitos e a pessoa experimenta e não vê nenhum, pensa que tudo o resto de que
nos convenceram era só para assustar. Acho que o que lhe disse o pôs pelo menos
a pensar, mas não sei se deixa de fumar assim tão cedo. Se ao menos ele fumasse
assim muito de vez em quando. Em vez de ser mesmo hábito. Mas não sei, nem
quero saber, dói-me a cabeça e deu-me uma ataque de irritação contra o mundo e
contra todos. Que ninguém me passe agora pela frente, que leva...

49 233$00...
dos quais...
18 000$00 para telefones móveis.
NããããããããÕ!
Ainda nem tinha acabado de desdobrar a folha da conta dos telefones e já
estava aos gritos. Histéricos é pouco. Senti-me a rebentar por dentro.
- Margaaaaaariiida!
Acho que qualquer Margarida num raio de cem quilómetros deve ter dado um
salto.
Gritei, gritei e gritei. Enumerei tudo o que fiz por ela desde o momento da
concepção - vómito a vómito -, passando pelas noites mal dormidas e acabando no
blusão de jeans comprado ainda anteontem. Fi-la ver como era egoísta e má por
trair a minha confiança.
Sim, é trair. Não há outra palavra. Dei-lhe um telemóvel no Natal, carrego-o
religiosamente, exactamente para que não use o fixo para móveis. E agora isto!
É roubar. É o que estes miúdos fazem. Não há outra palavra mais meiga para
descrever este assalto. Roubam e roubam ainda por cima à família, à mãe e ao pai.
Daqui a taparem a cara e irem assaltar bancos é um passo. Se roubam assim a
família, por que é que hão-de ter escrúpulos de assaltar uma pessoa qualquer que
nunca viram em lado nenhum?
A sério, não lhe arranquei os cabelos, porque o meu Anjo da Guarda me deve
ter agarrado nas mãos. Em lugar disso, gritei.
Mandei-a para o quarto assinalar, um por um, quais daqueles telefonemas
eram dela. E jurei-lhe que os ia pagar. E vai, vai. Vai, quer dizer, vai com o dinheiro
das semanadas e mais algum que me saque num dia bom - o fundo de maneio é
sempre o mesmo, caramba!
Vou mas é renunciar ao abono de família e pedir se o posso substituir por
umas acções na PT, com direito a redução no tarifário.

GRANDE crise! A conta dos telefones chegou. Só sei que estava no quarto e
de repente ouvi a minha mãe berrar. Soube logo do que é que se tratava! Foram 49
contos, 18 para telemóveis. Morte certa! Estou aqui no quarto a marcar quais é que
são as minhas chamadas. Tenho imensas horas para o Bonga! Bolas, a mãe
também tem que entender que este assunto era sério. A mãe berrou comigo disse-
me que estávamos a roubá-la. E se não me matou foi mesmo por sorte. Mas
também qual é a ideia dela? Logo que recebeu a conta chamou o meu nome, não o
do Rodrigo mas, claro, o meu.
É evidente que me sinto mal em ter feito tantos telefonemas e gastar dinheiro,
mas aposto que o Rodrigo também não ajudou. Vou ver a conta e já vamos
descobrir!
Ahá! O Rodrigo gastou 20 contos! E naqueles concursos estúpidos da
televisão! Eu sei, eu sei, 18 contos em telemóvel também não é pouco, mas ao
menos a culpa não é TODA minha! Houve gritaria, mas foi para o Rodrigo. Não sei
porquê, mas acho que a gritaria não o afecta minimamente. Sorte a dele!

Trouxe-me a conta, com os números assinalados e um cartãozinho a pedir


desculpa, mas com um grande PS: "O Rodrigo gastou 20 000$00". O Rodrigo? De
olhos no microscópio ou nos "Tazos" ou nas cartas dos Pokémons? Pois! Caiu que
nem um patinho naqueles concursos que levam o couro e o cabelo nos telefonemas.
Coitados dos miúdos, anunciam-lhes os prémios como se bastasse ligar e eles vão
na conversa. Mas eu já o tinha avisado, bolas!
Pedi desculpa à Margarida - um bocadinho de desculpa, que 49 contos e tal
menos 20 ainda é muita massa. E para telemóveis...
Fui falar com o Rodrigo. Não pareceu minimamente comovido - esse então
acha mesmo que a nossa missão na vida é servi-lo. É claro que reabri a gritaria. Por
que é que parece que passo a vida em casa a gritar? O que é que esta porcaria tem,
um buraco do ozono por cima, qualquer coisa? No escritório não grito...

Decidi analisar eu a conta - os números da Teresa, da Filipa e da Mariana já


eu esperava encontrar. Realmente sou uma curiosa inveterada.
E reparei que há um número novo e um telemóvel novo que aparece
insistentemente e é exactamente esse que come mais períodos.
Perguntei à Margarida de quem era e ela, depois de me ter desancado por eu
ser, imagine-se, uma custa - uma nova palavra para o meu dicionário pessoal -
contou. Com um tom de crítica, do estilo "se me tivesses perguntado por que é que
eu tinha gasto tanto dinheiro em telefone, antes de gritares, podíamos ter poupado
muita goela", lá me disse que o Bonga andava a ameaçar suicidar-se e que ela
andava a fazer de terapeuta.
Fiquei com um nó na garganta. Conheço o Bonga desde pequenino...
Diz que está farto da vida.
"Farto da vida aos 15 anos, mãe!", dizia a Margarida indignada.
Ainda bem que ela vê o mundo ainda a preto e branco, ainda bem que tem
tanta convicção nas palavras, porque tenho a certeza que isso faz bem ao Bonga,
mas... por acaso, até percebo que aos 15 anos se esteja farto da vida, até mais do
que aos 30 ou aos 60 anos. Tudo dói muito, é como se a sensibilidade estivesse,
sem defesas, à flor da pele e não se criaram ainda as resistências que só o tempo
vai fabricar. Sentimo-nos impotentes em relação às coisas, não temos poder sobre
nada, nem ninguém, os nossos pais podem morrer, separar-se, ir embora, os nossos
professores podem ser injustos, marcar pontos (agora é testes...) quando lhes
apetece, os amigos, de quem somos tão dependentes, fazem jogos com a nossa
amizade e manipulam-nos até ficarmos perdidos e o amor é tão sem sentido,
invariavelmente numa de "eu-gosto-do-joão-que-gosta-da-Ana-que-gosta-do-Pedro".
Percebo o Bonga pelo menos percebo que alguém se sinta assim às vezes -, mas já
não percebo se ele fala mesmo verdade, porque morrer é de vez, não é como os
desenhos animados, em que se volta à vida com pensos rápidos no nariz.
O Bonga não quer morrer, Margarida, quer só não sofrer, não estar onde
está, dar um salto mais para a frente, ou mais para trás, mas sair daquele sítio.", isto
disse eu à Margarida.
E disse-lhe também que é um peso grande demais, mesmo para uma pessoa
como ela, tão capaz de ajudar os outros e de os contagiar com a sua alegria. Que
quando mete ameaças de suicídio, é mesmo melhor falar com um adulto, até porque
se o Bonga algum dia se suicidasse mesmo, nem que fosse por engano, era um
peso demasiado grande sobre ela.
Desatou a chorar. Coitadinha da Margarida. Coitadinho do Bonga.
Não consegui que ela me contasse muito sobre o que se passa. Conheço mal
a família dele, mas acho-os a todos meios tristes. Não, não são divorciados, não há
padrastos, nem madrastas. Antes fosse isso, se fossem equilibrados e felizes. Mas
não, pelo que sei, a mãe do Bonga está deprimida há muito, muito tempo, sempre
em chantagens emocionais. O pai do Bonga trabalha, trabalha, trabalha. E o Bonga,
como não pode fugir mais do que foge - já passa a vida cá em casa, se calhar era
bom era que passasse mais?!? - deixou-se contagiar pela depressão. Porque a
depressão, bah, é a coisa mais contagiante do mundo.
Acho mesmo que alguém devia levar o rapaz a um psicólogo ou psiquiatra.
Quando os nossos filhos têm uma ameaça de apendicite, vamos com eles a correr
para o médico, quando vemos alguém com uma tristeza de alma, andamos ali a
empatar, sem coragem para pegar nela pelos ombros e oferecer-lhe ajuda a sério. É
estúpido. Continuamos com tanto medo da doença mental - como se a cabeça não
merecesse ainda mais atenção do que um fígado ou um rim.
É isso. Vou arranjar o nome de alguém, a Margarida dá o nome ao Bonga, o
Bonga vai e esta história vai acabar bem. É já amanhã!

Realmente a mãe... Não só se zanga pela conta de telefone como, agora,


quer saber de quem é o número de telemóvel para quem eu liguei. Se ela tivesse
perguntado antes, se calhar não tinha precisado de berrar tanto, não era? Bem, mas
lá lhe acabei por contar a história do Bonga. Tive que a fazer prometer que ela não
ia contar a ninguém! Se o Bonga confia em mim, não quero estragar essa confiança,
especialmente agora que ele precisa de uma amiga. Fico feliz por ele me ter
escolhido a mim. Mas a mãe foi um espectáculo, disse-me que o Bonga não queria
morrer, mas sim parar de sofrer. Disse-me também para o aconselhar a falar com
um adulto e que eu não devia estar a tentar resolver isto sozinha. Desatei a chorar,
tenho tanto medo por ele! Não contei muito à mãe sobre o que se assa porque acho
que não devo. Só contei o básico!
Vou tentar tudo para convencer o Bonga a ir falar com um adulto, a minha
mãe disse-me que lhe ia marcar uma consulta num psicólogo muito simpático que
ela conhece e para lhe apresentar o facto como uma ordem. Amanhã vou lanchar
com ele e vou-lhe dizer.
Rui ficou furioso com a conta. Há coisas em que ele é a favor de fechar os
olhos, mas estas assim, não. Também ele sente que eles abusam e precisam que
alguém os discipline mais. Queixa-se de falta de tempo, fica irritado com ele próprio
por estar pouco em casa. Mas é muito mais prático do que eu - em vez de se
culpabilizar e gritar, toma atitudes, o que é mil vezes melhor. E aí ligou logo para a
PT e pediu o barramento do número. Ainda demora uma semana e é preciso
mandar uns faxes, mas depois fica mesmo bloqueado. Eu fico menos pobre e é um
motivo de discussão que desaparece, o que é um alívio. já o teria feito há mais
tempo, mas não sabia que se podia. Assunto resolvido! Espera-se...

Diogo não está muito bem, acho que os pais andam a discutir muito e as
notas também não vão às mil maravilhas. Tenho andado a falar muito com ele (NÃO
AO TELEFONE!), quero consolá-lo, ajudá-lo. Adoro-o mesmo. Ao menos disto tenho
a certeza. E a nossa relação vai maravilhosamente. Não é uma relação baseada em
curtir, nem nada, é mesmo a sério, temos conversas enormes, confio imenso nele e
ele em mim! E eu acho isso excelente!
Estive no outro dia a pensar. Será que o que eu sinto pelo o Diogo é amor?
Primeiro, o que é o Amor? Bem, para mim é ter saudades dessa pessoa, é querer
dividir as coisas com ela, é respeitar, compreender, perdoar. Perdoar? Será que se
deve perdoar tudo na pessoa só porque se ama? Não sei, acho que gosto muito,
muito, muito do Diogo, respeito-o, e ele a mim. Compreendo, ou ao menos tento;
quero dividir tudo com ele. Tenho milhares de saudades dele e acho que ele retribui
tudo isto. Mas não sei... Sinto amor por ele, mas acho que hei-de sentir mais! Não
sei, acho que adoro o Diogo, mas não o amo. Nem sei bem explicar a diferença,
simplesmente acredito que apesar de estar tudo a correr lindamente não é a ele que
eu vou amar para sempre! Provavelmente não estou a dizer coisa com coisa, mas
achei importante pensar nisto, e a melhor maneira de pensar nisto, é escrever!

Margarida foi para casa da Joana. O Rui foi ao Porto. O Rodrigo ficou em
casa dos primos.
E eu estou em casa, silêncio, sossego, uma manta e um sofá, sem ninguém a
gastar-me o nome, a fazer-me levantar daqui para ir fazer jantares ou engomar
calças.
Não era isto que eu queria?
Era... À tarde.
À tarde, gosto deste programa, de manhã também, aliás, mas ao fim do dia,
quando o sol desaparece e fica tudo escuro, este silêncio põe-me ansiosa cá dentro.
Será que as galinhas se sentem assim quando escurece na capoeira e os pintainhos
não estão debaixo das suas asas?

Fui ter com o Bonga. Fomos os dois até um café aqui perto de casa. Estava
decidida e disposta a implorar-lhe que ele falasse com um adulto sobre o problema
dele e dos pais.
Quando cheguei lá, o Bonga estava com péssimo aspecto, acho que ele anda
a dormir pessimamente, e aquilo das “ganzas” preocupa-me! Bem, lá comecei a
falar, disse-lhe que o suicídio não era a solução, que ele tinha de lutar para ser feliz,
que o mundo apesar de parecer que vai acabar, não vai. E que Deus nos deu esta
vida e que ele não podia atirá-la à cara dele! Ele ficou a olhar para mim e, de
repente, desatou a chorar. Entrei em pânico. Não sabia o que fazer. Fui para ao pé
dele e abracei-o. Quando ele acalmou, estivemos a falar mais, ele contou-me de
como é que iam as coisas, e o que é que sentia acerca dos pais e da vida. No fim lá
sugeri que fosse falar com um adulto, talvez um psicólogo, e contei-lhe que tinha
contado à minha mãe. Pedi-lhe desculpa mas disse-lhe que precisava de falar com
alguém. Ele ficou tão aflito que me assustei. Levantou-se e foi-se embora; ainda
chegou a chamar-me traidora. Bolas, não era assim que eu planeava que as coisas
corressem! Eu só o quero ajudar. E se ele fica sozinho, se ele sente que não tem
mais amigos e faz uma loucura? Não conseguiria viver com isso. Vou a casa dele,
já. São só cinco horas ainda chego a casa para jantar!
Ontem não escrevi porque fui para casa da Joana. Ela precisava de ajuda
para escolher roupa para ir sair com o Tomás, por isso fui lá. Está toda contente
porque vai sair com ele. Que tenha sorte.
Sobre a história do Bonga: sempre fui a casa dele. Ele estava em casa com a
mãe. Aquela casa está uma desordem. Coitado. De qualquer maneira fui para o
quarto dele. Ele primeiro mandou-me sair, mas, depois de eu insistir para ele me
ouvir, lá se calou. Não sabia bem o que dizer mas comecei por pedir desculpa. Disse
que a última coisa que queria era magoá-lo, que eu queria que ele procurasse ajuda,
que eu ia com ele.
Disse-lhe que fechar-se não ia ajudar e que ele tinha que estar disposto a ser
feliz para poder sê-lo. E então ele aí prometeu que ia, se eu fosse com ele. Estou
muito feliz. Ainda bem que ele concordou em ir porque eu já não estava aguentar
não poder fazer nada por ele. Agora é só a minha mãe marcar a consulta.

Aquela Francisco irrita-me! Da Filipa, da Joana, da Mariana gosto muito. Mas


a Francisco irrita-me. Parece-me demasiado "Maria vai com todas”. No outro dia,
ouvi-a contar uma história - quando estão todas juntas, esquecem-se que está um
adulto no meio, não tenho culpa, é o mesmo síndroma do taxista, achamos que ele
não está lá - e fiquei preocupada. Está cheia de adrenalina, mas não tem o Bem e o
Mal muito definido, faz o que fizerem as pessoas com quem está. Tenho horror a
isso. Não gosto de conflitos, mas morria de desgosto se a minha filha esquecesse os
princípios mais básicos, só porque a do lado esqueceu.
Mas que sei eu delas? Vejo-as aqui por casa, gosto tanto de as ter por aqui,
mas não sei mais do que aquilo que querem mostrar à mãe da amiga.
A Margarida desespera imenso quando faço comentários a alguma delas - diz
que eu as julgo sem as conhecer, que tomo pormenores como o todo. Se calhar tem
razão, mas habituei-me a acreditar nas minhas capacidades de leitora de
personalidades. Provavelmente de vez em quando meto água, mas não resisto logo
depois a começar novamente a analisar quem me passa à frente.
E é horrível quando as pessoas de quem gostamos, dizem mal de outras de
quem também gostamos, porque o que desejamos acima de tudo é que as pessoas
de quem gostamos, gostem das outras de quem também gostamos, sem nunca
deixarem, é claro, de gostar mais de nós do que das outras pessoas todas, por
muito que gostem delas. Confuso?
Não admira, são duas da manhã e tenho que fazer lancheiras às sete da
manhã o que dá quatro horas de sono, o que é suficiente para me pôr já sem
vontade de dormir, porque sei que quanto estiver mesmo, mesmo ferrada, toca o
despertador.
Li o diário dela, bolas! Nunca mais faço uma coisa dessas, mas ouvi um
telefonema. Estava a fazer as camas no quarto e ela a falar altíssimo no corredor.
Ela, a Margarida, claro.
E ouvi-a contar que tinha “curtido" com não sei quem, na noite em que foram
a uma discoteca em Lisboa.
A Margarida, "curtir" com um marmanjo qualquer? Fiquei com piquinhos na
cabeça. E percebi que não sei muito bem o que é “curtir”? Vai até onde?
Acho que vou telefonar a uma das minhas irmãs, elas devem saber, a Rita até
é professora.
É melhor, porque se vou agora perguntar à Margarida, ainda faço uma
estupidez qualquer, digo, um disparate qualquer.
Depois, quando estiver mais calma, confronto-a.
É estúpido, eu sei que é estúpido, mas depois daquela conversa, acho que
olhei para ela de outra maneira. Como se não fosse tão transparente, tão cristalina,
tão minha. Que estupidez!
Raios, os filhos não deviam crescer, não deviam poder ser adultos. É que, da
mesma maneira que sou incapaz de imaginar os meus pais a curtir, seja lá o que
isso for, também me custa imaginar os meus filhos a curtir. Aliás, acho mesmo que o
melhor é não pensar nisso - para mim são meus filhos, e é como meus filhos que os
vou ver para a eternidade, mesmo que sejam mais altos do que eu, falem com voz
grossa e tenham, eles, filhos. Vindos de Paris, numa cegonha!
E isto é ainda pior do que eu pensava. Pior ou melhor, sei lá, já nem sei.
"Curtir" é o que chamávamos "marmelada", mais coisa, menos coisa, pelo que
percebi.
Disse-me a Rita e depois eu enchi-me de coragem, a pretexto de que andava
a precisar de informação para uma amiga minha que estava a escrever um artigo
para uma revista sobre o assunto, e perguntei à Margarida e às amigas. Ficaram
durante uns segundos meias vidradas, mas depois falaram no assunto com um à-
vontade que, sinceramente, me mete inveja. Se a minha mãe me tivesse feito uma
pergunta dessas acho que teria saído da sala a gaguejar...
E fiquei a saber o pior, que curtir é quase um jogo, que se pode jogar com
qualquer um. Quer dizer, não tem que ser com o namorado ou namorada, alguém
por quem se esteja apaixonado. É mais estilo passatempo, ou como me explicaram
as miúdas, uma coisa que se faz “para ver se dá!".
Para ver se dá? Mas “dá” como? "Se dá para andar!" dizia uma... "Se dá
faísca", dizia outra.
Estão doidas. Ou iguais aos rapazes, que é a mesma coisa. Então passava-
me lá pela cabeça ir para o escritório dar repenicados beijos na boca aos meus
colegas, a ver se havia algum com que "dava"? Tipo: "Olha lá, até hoje não dei nada
por ti, não me atraías minimamente, mas deixa que te diga que, desde que te
osculei, a coisa muda de figura. És do Sporting ou do Benfica?"
Ou, pior, apaixonar-me por alguém mas, depois de curtir com ele, dizer-lhe:
"Até és querido, mas a tua curte, filho... Vai ver se tiras umas aulas e depois
conversamos!".
Dei-lhes um sermão, à antiga. Será que a eduquei mal? Pelo sim, pelo não,
levou com o sermão, mal não faz, e alguma coisa há-de colar, nem que seja com
cuspo.
Disse-lhes que andam a desperdiçar tempo e a arriscar-se mas é a uma
mononucleose ou a uma hepatite. Nem acredito? Disse mesmo? Ai disse, disse.
Mas expliquei-lhes que curtir, namorar, fazer amor é a melhor coisa do
mundo, é ver o paraíso, as estrelas, a Lua e o Sol ao mesmo tempo, mas quando se
está apaixonado, quando se gosta e se confia no outro.
Quem é que se quer entregar mesmo a alguém que, no dia seguinte, pode ir
embora, levar a nossa alma e contar todos os nossos segredos a uma idiota
qualquer a quem vai fazer a mesma coisa? E isto aplica-se aos rapazes, atalhei
rapidamente, que não gosto de machismos idiotas e acredito mesmo que eles
sofrem tanto como nós.
Elas ouviram. Mais ou menos caladas e sem risinhos. Deve ter sido por boa
educação. Quero lá saber, está dito, está dito.
É estranho. Racionalmente, é claro que sou capaz de pensar em sexo com
prazer e sem amor. Mas emotivamente enjoa-me a ideia de passar essa fantasia à
prática. E ficava mesmo triste se os meus filhos experimentassem sexo sem amor -
especialmente ao princípio. Não devem ver-se as mesmas estrelas e eu quero que
tenham o céu com as constelações todas.
Fiquei meia nostálgica.

Acho que a minha mãe parou nos anos 60! Ou 70, tanto faz, que quando lhe
digo isto, responde sempre que nasceu depois disso. Primeiro dá-lhe para os
sermões sobre a droga, eu até acho bem, aprendi algumas coisas, confesso. Mas
agora foi para a história do curtir. Por muito que eu e a Filipa e as outras minhas
amigas que cá estavam lhe explicássemos, ela só se saía com coisas do tipo: “E se
eu fosse para o escritório curtir com o senhor Rodrigues para ver se “dá”?
Que raio de ideia - com o senhor Rodrigues, aquele nojento, do bigodinho,
que trabalha na Contabilidade ou lá o que é? Vê-se mesmo que não percebeu nada
e, como também não ia mudar o discurso, piscámos os olhos umas às outras e
fingimos que engolíamos o sermão todo. Assim ela ficou contente e nós pudemos
voltar a ver o vídeo do “Armageddon” , que é um delírio. “I am leaving on a jet plane,
I don’t know when I'II back again...” É lindo. Ela é linda, ele é lindo e eu tenho que
cravar este disco ao meu pai, que ele tem uma versão do Peter, Paul and Mary.

Acabei comentando, daquilo de curtir. Tinha decidido não dizer nada ao Rui.
É pai, ela é filha. Não é que o homem me seja daqueles machos latinos prepotentes
que ameaça partir os cornos ao rapaz que se chegar à filha sem lhe ter pedido
primeiro a mão em casamento, mas acho que não é conversa para pai.
Até vim para aqui escrever à tarde, a ver se me passava a urgência de contar
e dividir isto com alguém. E aparentemente tinha passado. Mas sou uma fraca, ou
serei má? Não sei, não resisti a falar-lhe nisto. Por alto, mas falei. Ele ficou um
bocadinho parado, e os olhos do Rui estão sempre a mexer-se, mas desta vez
ficaram um bocadinho parados.
Depois só me disse:
- Não devias ouvir os telefonemas da Margarida.
E mais nada.
Foi isso, só, o que o Rui disse - que eu não devia ouvir os telefonemas da
Margarida.
Foi ontem, mas ainda estou a remoer no mesmo. A frase não me sai da
cabeça. Não sei se será assim e, além do mais, eu não ouvi de propósito, e depois,
se não tivesse ouvido não lhe tinha dado, a ela e às amigas, aquele sermão - o tal
do qual alguma coisa há-de ter colado. Nem que seja com cuspo. Espera-se. E se
não lhes dizemos aquilo em que acreditamos, como é que eles ficam a saber em
que é?
"Não devias ouvir os telefonemas da Margarida."
Pois não, se ela falasse mais baixo, já não ouvia. Pronto, é verdade, podia
dar-lhe o sermão a qualquer momento, a propósito de uma telenovela ou assim, mas
a verdade é que ela também não sabe que eu a ouvi, por isso, do ponto de vista
dela, é como se tivesse sido a propósito de uma telenovela ou assim.
Se calhar o Rui tem razão, se calhar tenho que me afastar, deixá-la ter a vida
dela, crescer em paz. Se calhar tenho que ser muito querida, dar muito colo, mas
não cair na tentação de viver por ela.
"Não devias ouvir os telefonemas da Margarida."
Talvez não. Para ele é fácil, não está tanto em casa como eu. Mas a minha
filha a curtir?!
Hoje morreu o meu pai.
Hoje morreu o meu pai.
Preciso de escrever muitas vezes porque não acredito muito bem.
É estúpido, eu queria que ele morresse. já estava doente há imenso tempo,
no último ano quase não falava, e o mais triste de tudo é que tinha deixado de rir, ou
sequer de sorrir, e eu que sempre o conseguira fazer rir... É claro que queria que ele
morresse, porque queria guardar viva a memória dele como era e tinha medo -
sempre que o via ali prostrado na cama - que aquela imagem se colasse por cima da
outra e a apagasse.
E como acredito no céu, punha-me a imaginar como é que ele seria recebido
quando lá chegasse, a pensar quem é que ele lá tinha para lhe fazer companhia,
amigos mesmo, não era daqueles a quem se diz bom dia e boa tarde, mas com
quem não se quer de maneira nenhuma passar um dia inteiro, quanto mais a
eternidade.
Imaginava-o a dizer as suas graças e a contar as suas histórias a um séquito
de anjos, a levar as crianças, as que morrem quando ainda são pequenas, a
passear pelos jardins e a ensinar-lhes os nomes das flores do paraíso, como fazia
comigo no jardim lá de casa.
Mas hoje, quando soube que ele tinha morrido, senti-me tão triste, tão
sozinha, tão órfã. Chamei nomes a mim própria por não saber que há coisas que
são sempre um choque, que não há preparação possível para as saudades. O meu
pai estava doente, mas estava no seu quarto, na casa onde vivi quase toda a vida.
Quando já não podia com o escritório, com o trãnsito, com o chefe, pensava sempre
- posso bater com a porta por hoje e ir dormir uma sesta ao meu quarto antigo e o
meu pai vai fazer um enorme sorriso por me ver aparecer.
Agora sinto-me sem eira nem beira, sem retaguarda.
Fui mimada por ele, provavelmente a mais mimada de todos. Não sei se fui,
mas o que importa é que sinto que fui. Não me dava colo, como agora o Rui dá aos
miúdos, não me fazia aqueles elogios que agora fazemos às crianças, mas sentia
que ele olhava para mim e para o papel e o lápis que trazia sempre na mão e via em
mim um bocadinho dele. E tinha orgulho.
Oiço a Margarida a chorar. Tenho que lá ir. Acho que é a primeira pessoa
próxima que ela perde. Lembro-me quando morreu a minha avó, conheci-a mal,
morava longe, mas abanou-me imenso, talvez porque não aguentava ver a minha
mãe triste sem poder fazer nada, talvez porque se a mãe da minha mãe morre, a
minha mãe também pode morrer. Ainda hoje rezo aos santos todas as noites para
que a minha mãe, por quem ainda chamo sempre que estou doente, nunca morra.

Querido Diário,
Morreu o meu avô. Sinto-me tão mal! Pior que tudo, tenho medo pela minha
mãe, não é bem medo, é mais pena! Como é que será que ela se sente? Apetece-
me perguntar-lhe e consolá-la, só que no fundo tenho vergonha! Por que é que nós
temos vergonha de abraçar e dizer que adoramos os nossos próprios pais? Há tanta
coisa, tantos sentimentos que eu sinto mas que não entendo! Eu sei que a minha
mãe gostaria que eu a abraçasse, e no fundo eu quero consolá-la com um abraço!
Então por que é que não o faço?
Sinto um vazio dentro de mim. Se pensar logicamente, sei que ele agora que
partiu para o céu está melhor, eu acredito mesmo nisto, que ele agora está muito,
muito melhor! Mas, no entanto, não consigo deixar de ficar triste. Passam-me pela
cabeça todas as memórias dele e apetece-me agarrar-me a ele! Mais estúpido ainda
é que estou irritada por não o ter visitado mais, não lhe ter dito muito mais do que
disse. Ter-lhe dito que o adorava! Exactamente como agora me custa ir abraçar a
minha mãe.. E então, se ela se for embora eu arrependo-me também, não é? Se sei
isso, por que é que não faço nada?

1 5 de julho

Os diários são uma coisa estranha, decididamente não deveriam nunca ser
matéria-prima para uma biografia. As folhas dos momentos muito felizes e dos
momentos muito tristes estão sempre em branco. Quando se está muito contente,
há mais que fazer; quando se está muito triste, guardam-se as palavras dentro de
nós, fingindo, tentando sempre fingir que não têm nada a ver connosco, e temos
medo de as pronunciar, como se fossem um feitiço que, uma vez lançado, caísse
sobre nós tornando a noite ainda mais escura. Depois começamos a melhorar e
então é ao contrário, só apetece escrever, escrever, escrever, pôr tudo a nu e deitar
a língua a cada palavrinha e à tristeza que representou.
Cheguei a essa fase.
A Margarida e o Rodrigo é que tiveram sorte no meio de tudo isto. Neste
últimas semanas agarrei-me a eles como uma lapa, mas, em contrapartida, deixei-os
fazer tudo o que queriam, tentei facilitar-lhes as idas e as vindas e evitei, por tudo,
discussões estúpidas.
Quando estamos tristes com uma coisa realmente grave e intransponível, as
guerras por motivos idiotas são absolutamente insuportáveis.
Eles não abusaram. Perceberam o que estava em jogo, aproveitaram as
benesses, mas deram-me em troca mimo, pequenos-almoços na cama e tentaram
reduzir (nunca eliminar!) as discussões do estilo: “eu estava aqui primeiro”, "daqui
não saio", "não, não podes mudar de canal" e outros filmes igualmente vistos.

16 de julho

Querido Diário,
já me sinto melhor. A mãe esta semana tem-nos deixado fazer quase tudo o
que queremos! Aposto que se tivesse pedido para sair à noite ela tinha deixado e,
no entanto, fui incapaz de pedir. Outra coisa muito estranha: quando não nos
deixam, imploramos que nos deixem seja por que razões forem. Mas agora que ela
está frágil e que deixa, não tenho coragem de abusar! Até tentei discutir menos com
o Rodrigo, mas ele às vezes é tão chato!!!
Com o Diogo as coisas continuam lindamente, falei-lhe do meu avô, ao
princípio não falei muito, mas ele, muito querido, insistiu e fui falando, mas acabei a
chorar ao pé dele. Depois senti-me muito melhor! A Filipa, apesar de tudo, também
entendeu muito bem, e está a ser queridíssima comigo. É bom saber que tenho
amigos a sério! Tenho muita sorte. Tenho saudades do meu avô, mas agora sinto-
me em paz porque sei que ele está bem!
E rezo por ele todas as noites. Sei que está melhor agora do que estava. O
que não ajuda a matar saudades. Mas ajuda-me a sentir-me tranquila. Como quando
se deixa uma pessoa sozinha e nos sentimos mal por não podermos estar com ela.
E, de repente, chega lá alguém. Alguém que sabemos que consegue fazê-la mais
feliz do que nós conseguiríamos. Então, a tristeza passa só a ser saudades. E as
memórias passam só a ser felizes.

Gosto imenso que eles estejam em férias. Gosto até às 12 e 30!!


Como odeio madrugadas e despertadores, acordar antes de haver luz no céu,
fico em êxtase quando eles não vão à escola - já pensei mesmo em arranjar-lhes
uma preceptora em casa como no antigamente. Levanto-me com calma, tomo o
pequeno-almoço com calma, saio de casa com calma e eles ficam ferrados a dormir.
O pior é a partir das 11 da manhã. O telemóvel não pára com tentativas de
programas, com propostas do estilo: "Posso apanhar um avião para as Baamas? -
Vá lá mãe, todos os meus amigos vão - e depois acampávamos lá, levávamos
comida e voltávamos quando já não tivéssemos mais dinheiro?" ou "Posso ir para
casa da Cátia (vete - claro que sabe quem é mãe, ainda lhe falei nela a semana
passada - que é em Vilamoura? Para que é que quer saber com quem é que eu vou
e como, por amor de Deus, mãe, tenho praticamente 15 anos".
Mesmo quando concordo e fica tudo combinado, e sol de pouca dura. Uma
hora depois há outro telefonema a dizer que afinal em lugar de a ir buscar à estação
de Cascais, talvez possa ir à Ericeira e já agora acha que cabem 16 no carro e que
depois de jantar nos pode levar outra vez à Ericeira "porque há lá uma festa de um
amigo, que acaba às seis da manhã, mas não se preocupe que o pai do Rafa, que é
pescador, vem a essa hora da sardinha e leva-nos...".
E o pior é que eu sou uma completa anormal, que devia era consultar um
psiquiatra, porque em lugar de dizer não e não, como quero ser uma mãe do século
XXI, grito, protesto, chamo nomes e insulto, mas digo que sim.
Desespera-me esta falta de capacidade de pôr os meus próprios interesses à
frente dos deles. Bolas, trabalho que nem uma moura neste escritório – e ainda por
cima o ar condicionado está estragado e ninguém o vem arranjar - e eles gastam-me
a paciência, a energia e o dinheiro.
Mas não consigo dizer que não, quando não tenho a certeza de que devo
dizer não. Quando tenho, não me custa nada, e sai com tanta convicção, que eles
se limitam a engolir sem protesto. Mas quando não sei bem se é preconceito meu,
ou medo meu, fico insegura e eles percebem e chateiam até ao fim.
Mas já que digo que sim, já que me disponho a fazer as coisas, a ir buscá-los
à Conchichina e levá-los ao Burundi, ao menos podia fazê-lo bem disposta, mas não
faço. Vou todo o tempo a cobrar o frete.
O que eu acho que queria, é aquilo que quero em relação à equipa que
trabalha comigo, aos meus irmãos, à empregada - que eles façam a minha vontade
porque sabem que isso me faz feliz. Mas sem que eu tenha que pedir, e muito
menos ordenar. E é isso que me indigna, é eles saberem que me estão a pedir uma
coisa que me desagrada e custa, e não recuarem de livre vontade, sem que eu fique
com o ónus de bruxa má.
Resumidamente quero ser bruxa má parecendo fada boazinha.
21 de julho

Querido Diário,
Aiiii, é tão bom estar em férias! Deitar tarde e tarde erguer! Esse é o meu
lema. Não estudar, não ter que aturar os professores, não ter que arranjar desculpas
de última hora por não ter feito os trabalhos de casa - acho que este período disse
para aí dez vezes que o despertador não tinha tocado e cinquenta que comi
qualquer coisa que me fez mal. Tarda nada ainda denunciam os meus pais àquela
linha SOS Criança, por acharem que não sabem tomar conta de nós e nos servem
jantares envenenados. Mas agora acabou tudo isso. Férias... Não há stress. Fora,
claro quando é para pedir coisas que, aos olhos da minha mãe, estão
completamente fora de questão! Mas pelo menos ela diz muitas vezes que sim!
Tenho amigas minhas que têm mães insuportáveis que nunca as deixam sair. Acho
que a minha mãe acha que uma mãe como deve ser devia ser assim tipo Hitler!
Bolas, nem sabe o quanto está errada. Como é que ela acha que as minhas amigas
se sentem com essas mães? Cada vez que são convidadas para um sítio: “Ah não
posso ir... porque a minha mãe...” , já para não falar da seca que devem apanhar em
casa. Não sei como é que aguentam. Ainda bem que tenho a minha mãe. Eu, Diogo
e praia, hmmm, nada melhor. Continuamos a andar, espectáculo! Os amigos dele
são agora meus amigos, eu já não sou eu, nem ele é ele, agora somos nós. E isso é
lindo!
Ainda por cima o Bonga está muito melhor. Acho que as férias fazem bem a
toda a gente e as consultas lá no psicólogo que a minha mãe lhe arranjou devem
estar a fazer efeito. Mas se calhar também é porque ele passa o dia na praia a fazer
surf - mas se calhar apetece-lhe o surf porque se sente melhor... E desconfio que se
apaixonou por uma de lá - pelo menos não fala noutra coisa, o que é bem melhor do
que passar o telefonema inteiro a dizer que a vida não presta! Mas o que é óptimo é
que ele e o Diogo começaram a dar-se muito bem, já há muito tempo que não via o
Bonga assim, fala mais, ri e sai connosco. Ai, a vida é boa, pelo menos para alguns.
A Filipa acabou com o Gui. Coitada, está péssima, mas com as férias custa
menos, e acho que ela esta a começar a gostar de um amigo do Diogo! Vamos lá
ver...

Estamos em férias, vamos para a praia, "bobadi bobadi buo”. Aprendi esta
música aos dez anos com o meu irmão mais velho e não consigo começar férias
sem me pôr a cantá-la.
Mais dois dias no escritório e atirava com os processos todos à cabeça
daquele idiota do senhor novo sócio. O que lhe tem valido ultimamente é que ando
tão cheia de trabalho e de prazos, que nem tenho levantado cabelo para discutir
com ele. E nas últimas semanas, desde que o tribunal fechou, prometi arrumar
aquele meu gabinete e pôr os dossiers todos em ordem, de maneira a poder ir para
férias de consciência tranquila e, sobretudo, não ficar os dias todos a sentir-me
culpada por ter deixado tanta gente pendurada, etc. O que vale é que os tribunais
também fecham e os clientes ficam psicologicamente preparados para não
acontecer nada por estes dias.
No primeiro dia de férias fui com o Rodrigo ao "Toys R Us". Primeiro porque
lhe tenho dado muito pouca atenção, depois porque ele queria uma prancha de
bodyboard - amanhã vamos uma semana para Vila Nova de Mil fontes.
O pior é que quando passei no corredor das coisas para festas, tive uma ideia
fantástica! Como faço anos daqui a uma semana, decidi que vou dar uma festa tipo
criança, com pratos e guardanapos com bonecos, balões e cornetas. O almoço vai
ser só pizzas e gelados de sobremesa. Vou mandar convites daqueles pirosos, estilo
"Queres Vir à Minha Festa?".
Entusiasmei-me tanto que enchi o cesto com aquelas coisas - e com bonecos
dos Pokémons.
O pior foi quando ia a pagar na caixa. Quando expliquei ao Rodrigo o meu
plano, ele ficou branco e começou a barafustar, que eu era ridícula, que nesse dia
não ia ficar em casa nem morto, que não me preocupava com o que os outros
achavam de mim. Tentei explicar-lhe que nunca tive festas como ele teve, que no
meu tempo não havia nada destas coisas cheias de bonecos, que aos 39 anos
achava que tinha direito àquilo que ele tinha desde que nasceu.
Mas nada. Ele é absolutamente casmurro, amuou e veio o caminho todo sem
me falar. Ligou para o Rui a pedir-lhe que me impedisse de cometer esta loucura e
de o envergonhar em frente de todos os nossos amigos e mais dos dele, que nessa
altura aparecem sempre lá em casa. O Rui só se riu e disse-lhe que no dia dos
meus anos eu fazia o que me apetecesse. Fechou-se no quarto e, mal ouviu a
Margarida chegar, chamou-a para lá ir.
A Margarida veio ter comigo um bocado aparvalhada, meia descrente, mas ao
fim de uns minutos, quando confirmou que era só um acesso de loucura
segmentado, também riu, o que pôs o Rodrigo ainda mais furioso.
Só dizia que tinha sido adoptado e que queria voltar a sê-lo, mas com a
condição de ser ele agora a poder escolher os pais, já que a última escolha - a da
família onde era obrigado a viver, ou seja, a nossa tinha sido desastrosa.
Eu percebo. Também tinha imensa vergonha que a minha mãe fosse à praia
de biquíni quando achava que ela estava demasiado gorda, ou que mostrasse aos
meus amigos que sabia andar de bicicleta, ou quando falava com toda a gente na
rua ou quando me ia buscar à porta das festas, porque não confiava em mais
ninguém para me trazer a casa. Mas o que é que hei-de fazer? Acho que os pais já
são tão tiranizados pelos filhos, que mais faltava que prescindisse de uma ideia que
me está a dar imenso gozo por causa de uma birra dele. Se calhar estou gagá, se
calhar ele tem toda a razão, mas por que é que a nossa vida de maiores e vacinados
tem que ser cinzenta e monótona? Tenho uma cunhada que diz que as pessoas
eram muito mais felizes se se vestissem com cores mais berrantes e pintassem as
casas, por dentro e por fora, de cores alegres.
Pronto, estou decidida.
O Rui telefonou-me - ele é tão querido e especial. Sabia que depois da cena
do Rodrigo eu ia ficar cheia de dúvidas, decidida a não fazer nada que agitasse as
águas ou pudesse pôr alguém infeliz. E telefonou-me para me dizer que fizesse uma
festa com gelatina e balões, que ele prometia encher os balões. Ainda por cima,
desconfio que o Rui fez isto, embora se sinta um bocado como o Rodrigo - ele é
muito mais solene do que eu e não acredito que seja o ideal de festa dele. Além
disso preferia de certeza um cabrito no forno a umas pizzas mal enforcadas de uma
pizzaria de Vila Nova de Mil fontes.
Mas, enfim, compete-me rejuvenescer os dois. Deve ser genético, mas, como
o Rui também era muito mais cinzento do que é, haja esperanças de que o Rodrigo
aprenda com o tempo que as pessoas podem fazer tudo o que as faça felizes sem
andarem a pensar se têm ou não idade para isso.
Vou ver se a Margarida me ajuda a preencher os convites! Espero que os
meus amigos se divirtam quando receberem uns envelopes pequenos e às cores na
caixa do correio.

A minha mãe definitivamente não bate bem da cabeça! Claro que é mesmo
assim que eu gosto dela. Mas não deixa de ser doida! Como está quase a fazer
anos, decidiu que ia fazer uma festa tipo criança. Então comprou chapeuzinhos... E
pratos com desenhos!!! É preocupante! Mas muito divertido. Quando o Diogo ouviu,
desatou a rir. Disse que a minha mãe era um espectáculo! E o meu pai também se
riu bastante. Acho que às vezes a minha mãe acha que tenho vergonha dela. Mas
não tenho nada, muito pelo contrário, admiro-a. E o meu irmão também, apesar da
cena toda que fez hoje, a tentar convencer a minha mãe a não comprar nada
daquilo. Quem disse que ser maluco não era bom? Ao menos é divertido. Pelo
menos não vive como se a vida fosse uma seca.
Até logo.

Lá estamos em Vila Nova. E amanhã faço anos! O tempo está óptimo e eu


tenho ficado horas na praia a devorar livros. O Rui fica meio nervoso com a praia,
começa logo a inventar idas ao supermercado e à drogaria, a arranjar lâmpadas e a
ler infinitos manuais de instrução de computadores e telemóveis. Só sossega ao fim
do dia quando os amigos se juntam para beber umas lambretas e comer marisco, ou
tremoços, ou lá o que é.
A Margarida nos primeiros dias esteve triste e parecia telecomandada do
espaço - às vezes acho que uns extraterrestres quaisquer enfiaram um chip na
cabeça destes miúdos e lhes dão ordens pelo telemóvel. Deixou o Diogo em Lisboa
e está cheia de saudades. Percebo-a lindamente. Mas agora já está a envolver-se
outra vez com os amigos de sempre daqui.
O Rodrigo já está mais conformado com a festa e concordou em encher
balões com o Rui.
Tenho que escrever, para guardar para sempre. Passei numa montra e decidi
comprar umas calças: jeans salpicados com tinta. Quando cheguei a casa,
experimentei-as. A Margarida entrou no quarto, abriu os olhos e disse: "Mãe, vou
virar-me de costas e depois outra vez para si e espero já não ver o que vi". Desatei-
me a rir.
Realmente, se calhar estou com uma regressão, mas sempre achei as roupas
das quarentonas tão chatas e não tenho paciência para saia e casaco, estilo
hospedeira de bordo.
As roupas deles são tão mais divertidas. E enquanto me couberem, uso,
pronto.
Também queria fazer tranças mas... Acho que não devo exagerar.
Amanhã é a minha festa. Sempre fiquei muito excitada com os meus anos.
Avisava as pessoas com meses de antecedência. Vamos ver como é ter uma festa
de Pokémons!
Há bocadinho lembrei-me do meu pai e senti os olhos a picar de lágrimas.
Tenho a certeza de que ele acharia piada à minha ideia de dar uma festa de anos de
criança. Esteja onde estiver, há-de estar aqui, comigo, a soprar as velas.

Estou em Milfontes. Que saudades que eu tenho do Diogo! Ele ontem ficou
um bocado chateado comigo, mas hoje já está tudo bem outra vez! É que quando
cheguei cá ligava-lhe várias vezes ao dia. Quando comecei a voltar a ver os meus
amigos todos outra vez, passei a deixar o telemóvel em casa. E tenho estado tão
divertida que não tenho tempo para lhe telefonar tantas vezes. 0 que não quer nada
dizer que goste ou pense menos nele. E foi o que eu lhe consegui explicar hoje. Ele
não é nada possessivo nem chato nestas coisas. Mas.. Ele ficou em Lisboa porque
está a trabalhar numa loja durante o Verão para ter dinheiro. E eu acho que com
namorados, quem fica, fica sempre pior. Não faz nada de novo, o tempo demora
mais a passar e dá mais espaço para sentir saudades.

Afinal foi uma ideia brilhante. A minha festa, claro. Os meus amigos
suportaram com um sorriso condescendente as minhas infantilidades e comeram as
pizzas, já meias frias, com toda a dedicação que se pode esperar de quem já nos
conhece há vinte anos e não nos quer ver tristes. Bem, se calhar não foram tão
altruístas como isso, acho que até gostaram. Pelo menos apanhei o João, a Luísa e
a Teresa a jogarem à “macaca” lá fora no pátio com os miúdos. Sim, com os miúdos
que, primeiro, se puseram a um canto a dizer que aquilo tudo era muito piroso, mas
a meio da noite já estavam completamente integrados, a rir e a dizer piadas.
Acabaram todos a atirar balões cheios de água uns aos outros, o que não fez mal
porque a noite estava quente, mas decididamente não é essa a parte da infância de
que mais gosto. O que mais gosto, decididamente, e só posso confiar às páginas de
um caderno amarrotado, é de ser o centro das atenções. E isso, quando se tem uma
família inteira a cargo, é difícil. Por isso, ao menos uma vez por ano!

Tive uma discussão horrível com o Diogo. E o pior é que apesar de a culpa
não ser minha, ele tem bastante razão. Foi assim. Fomos sair ontem à noite, eu e o
resto dos meus amigos de cá, e o Tomás - um grande amigo meu - começou com
grandes conversas ao jantar a dizer que eu estava muito gira e que gostava imenso
de mim. Depois quando fomos para a discoteca ele começou a dançar comigo e
ofereceu-me uma bebida e tal... Depois pediu para falar comigo, a sós. E eu fui lá
fora com ele. Ele disse-me que queria curtir comigo e que me adorava. Expliquei-lhe
que tinha namorado e que o adorava. Ele disse que ninguém ia saber e que não
tinha mal nenhum porque estávamos no Verão e que provavelmente o Diogo estava
a fazer a mesma coisa. Eu fiquei super irritada e decidi ir-me embora. O Tomás
agarrou-me e beijou-me! Cretino! Parvo! Idiota! Não sei que mais nomes lhe chamar.
Eu fui-me embora para casa. Na manhã seguinte contei ao Diogo. Por uma questão
de consciência sentia-me mal em não lhe contar isto e, sei lá, estava assustada,
precisava de desabafar. Mas ele passou-se! Disse-me que ninguém me “saltava à
boca” a não ser que eu o tivesse provocado. Que raio de frase! Só de a ouvir fiquei
logo mal disposta. Mas depois foi pior, disse que a culpa era minha. Eu tentei
explicar-lhe que não tem nada a ver. Que disse que não, que me fui logo embora.
Que eu nunca pensei que ele me fosse fazer isso. Porque senão tinha-me ido
embora mais cedo. Ele disse que tinha que ir trabalhar e desligou!
Sinto-me mal! Mas não tenho culpa, bolas, e, por outro lado, irrita-me! Não
gosto que ele não acredite em mim! Estupores! Um e outro. Não pude fazer nada. E
em vez de me consolar...
Mas não sei. Hoje a noite telefono-lhe?
E o Tomás vai-me ouvir! Idiota!
Entretanto o meu irmão anda todo apaixonado por uma de cá! E pelos vistos
ela está interessada! Até é mais querido para nós e tudo. Muito sinceramente, não
entendo o que é que ela vê nele. Eu cá não o aturava! Mas boa, quanto mais ela o
aturar menos o aturo eu!
Vou jantar. Se ao menos este stress me tirasse o apetite.
Telefonei ao Diogo. Ele estava deitado e estava muito calmo. Comecei a falar
com ele. Expliquei-lhe tudo outra vez. E acho que desta ele entendeu! Disse-me que
não era o que tinha acontecido que o chateava, era o facto de eu ficar aqui mais dias
com ele. Eu disse-lhe que o Tomás era um idiota e que ele devia confiar em mim!
Disse-lhe que gostava imenso dele e que não era capaz de o trair. Ainda bem que
as coisas correram tão bem. Embora aquela do “saltar” ainda me ressoe nos
ouvidos.
Falámos também do Bonga. Acho que o Bonga começou a trabalhar com o
Diogo. Eles ficaram mesmo amigos. E pelos vistos há lá uma rapariga no trabalho
que era uma boa namorada para o Bonga pelo menos assim ficava ocupada e não
se interessava pelo Diogo. Faz-me sentir bem, pensar que ajudei o Bonga nem que
tenha sido só um bocadinho. Ele agora já não fala tanto comigo, se calhar até fala
mais com o Diogo mas isso é por ser rapaz e apesar de ter pena de já não ser a
única especial do Bonga, fico muito feliz por ele. Pedi ao Diogo para falar-lhe sobre a
“ganza” . Ele abusa daquilo! É um problema que eu não consigo mudar no Bonga.
Pode ser que o Diogo consiga.

Que irritação esta mania de me roubarem o telemóvel, para fazer uma


chamada “só de um minutinho”. Depois são horas e, ainda por cima, não mo
devolvem. Deixam-no na mesa de cabeceira deles e eu, se quiser, que o vá lá
buscar; se o deixar estar, tanto melhor.
Que irritação, mesmo! Mas é como me dizia o Rodrigo, todo feito cavalo de
corrida:
- Se a mãe diz que somos mal-educados, o que é que quer dizer, há? Veja lá
bem a palavra? Que alguém nos educou mil.
- E um estaladão nessa cara? - respondi logo. Abusadores, parvos,
malcriados e, ainda por cima, com toda a razão! Não há mistura mais certa para
fazer explodir uma bomba nuclear dentro de nós: porque o raio do miúdo tem toda a
razão. É simples, de facto.
Não quero que usem o meu telemóvel, basta não o emprestar e está feito.
Mas não, eu quero ser querida, quero emprestar, ponho-me a lembrar do meu
namoro com o Rui e da ansiedade que sentia quando estava longe e cedo. E,
depois, em lugar de os castigar quando não mo devolvem no prazo estipulado, não.
Vou lá buscá-lo, vez após vez, sempre a fazer as mesmas ameaças que toda a
gente sabe que não são para cumprir. E o pior é que é nas férias que percebo como
eles estão mal educados. O Rodrigo nem sabe comer à mesa como deve ser, pelo
menos com faca e garfo. E a Margarida, não sei se sabe ou não, porque para além
de comer pouco, não fica quieta e sentada o tempo suficiente para eu verificar nada
- passa a vida a saltar para o telefone, ou para a porta, ou para a varanda, para
gritar recados aos amigos que a vêm buscar. Olha, que se lixem todos! Estou de
férias e não pago uma fortuna por duas semanas aqui, para passar agora o dia a
culpar-me por não ser perfeita. Sou o que sou, a mãe que sei ser. Se eles não
perceberem que tudo o que fiz foi por os amar tanto e para o bem deles, se eles não
me seguirem o exemplo e amarem os filhos deles, e as pessoas em geral, como eu
amo, então paciência! Fiz o que pude. E agora vou mas é até à esplanada, que as
minhas irmãs estão todas cá e um encontro de manas é uma coisa que eu não
perco por nada deste mundo. Adoro-as e, pelo menos elas, não me fazem sentir
culpada, nem mal. Além do mais, os filhos delas são tão queridos e bem educados,
e elas queixam-se tanto deles, que eu também tenho esperanças que os egoísmos e
parvoíces dos meus sejam só para consumo interno.
De qualquer maneira, amanhã vou confirmar se a Margarida sabe usar uma
faca e um garfo - ao mesmo tempo, claro!

10 de Agosto

Passou-se! Imagina que a minha mãe hoje à hora de almoço, pediu-me para
comer. Até aí é normal. Mas pediu-me para comer com garfo e faca para ela saber
se eu sabia!? Acho que tem apanhado sol a mais. Como é que ela julga que eu
tenho comido todos estes anos? Grande paranóia. Ainda tentei perguntar-lhe
porquê, mas ela só disse que era para saber se eu conseguia ou não.
Estou a ler um livro giríssimo. Chama-se "Cantor do Vento”. É sobre uma
cidade em que tudo é um teste. E o objectivo de quem manda na cidade é que as
pessoas se esforcem mais e mais. Se uma família tiver “boas classificações” sobe
na vida e pode, por exemplo, viver numa casa melhor, ser mais bem vista. E o livro
conta como três crianças tentam ir buscar a voz do cantor do vento, para a cidade
voltar a ser o que era, livre de competições e rivalidades. É giro. Tem imensa
imaginação. E ao mesmo tempo a aventura toda de eles procurarem e trazerem o
voz do cantor do vento. Mostra também como as pessoas vivendo num ambiente
altamente competitivo tornam-se todas iguais. Toda a gente vê aquilo como uma
naturalidade. Não há ninguém que pareça entender que aquilo está errado e que
precisa de mudar.
Vou continuar a minha leitura.
Já estou cá em Lisboa outra vez. Fui logo ter com o Diogo. Que saudades!
Passei horas ao telefone com a Teresa, já não falava com ela há algum tempo. Acho
que a irmã dela saiu de casa. Ela estava muita triste. Quanto mais ouço estas
histórias de pessoas que se chateiam com os pais, mais vejo a sorte que tenho.
Tenho pena dela. Ela era bastante ligada à irmã.
Deve ser muito chato. Embora de vez em quando não me importasse nada
que o meu irmão saísse de casa. Ainda hoje estivemos a discutir porque ele queria ir
para casa da Rita, a nova namorada, e queria levar uns quantos CDs meus. Hoje
devo ir com o meu pai passear de barco. Sempre gostei de andar de barco e é uma
óptima oportunidade de estar com o meu pai à vontade. Sem trabalho, nem chatices.
E estar no mar. É espectacular. Tenho que convidar o Diogo para ir connosco.
Tenho a certeza que ele vai adorar.
Hoje voltei aos treinos de Capoeira. O ginásio fechou durante o Verão por
isso tenho estado parada. A Capoeira é um espectáculo! Só tenho mais ou menos
três meses feitos, mas adoro. Antes de entrar para lá pensei no judo, no Karaté,
mas, agora que entrei, estou contentíssima de não ter começado outra modalidade,
porque acho que isto era mesmo o que procurava. Porque é uma mistura de uma
luta e de uma dança. Não tem aquela parte do judo de magoar, mas dá-nos a
sensação de que se fosse preciso chegava e isso é bom... E há a música. Tem
aquele ambiente todo de amizade e de "jogar” Capoeira em lugar de lutar.
Basicamente, o que fazemos nos treinos são aquecimentos (que não são nada
fáceis) e depois o Mestre ensina-nos umas “sequências”, que são uma sequência de
movimentos. Depois nas “rodas” (que são alturas em que estamos todos numa roda,
com algumas pessoas a tocar os instrumentos e duas pessoas no meio a jogar)
pomos em prática o que aprendemos e vamos sempre tentado mais um bocadinho.
Acho mesmo que é nas “rodas” que se aprende mais. Como o parceiro pode ser
bastante melhor e puxar por nós, também pode ser pior, o que dá para controlar os
movimentos, ir mais devagar. E tudo isto é importante.
Todos os anos há um “baptizado”, uma altura que se faz uma “roda” enorme e
mestres portugueses e brasileiros entram na “roda” e jogam connosco. No fim, se o
candidato passar recebe um cordão de uma certa cor que significa que subiu para o
nível seguinte. Anda-se sempre com o cordão. As cores do cordão dependem do
grupo. Outra coisa que adoro na Capoeira é que há sempre um objectivo ou é
passar para o cordão seguinte ou é aprender a tocar um dos instrumentos ou
conseguir fazer um certo movimento. Outra coisa engraçada é que o Mestre dá a
cada pessoa uma alcunha, que ele sente que se adapta à pessoa. A partir do
momento em que se tem uma alcunha, passa-se a ser tratado só por ela. Há
alcunhas como “Sorriso” , “Pequena”, “Zorro”.
No fim de um dia de aulas, jantar e sair de casa outra vez, sabendo que no
dia seguinte me tenho que levantar às sete da manhã, é difícil e cansativo. Mas vale
mesmo a pena. Sinto-me bem lá. E mesmo cansada saio sempre bem disposta.
Ai, e estou quase a começar as aulas. Por isso bem preciso de alguma coisa
para me pôr bem disposta. Quer dizer, nem é assim tão mau. É sempre bom ver os
amigos, mas custa tanto levantar cedo. E deixar a praia, as saídas. Por outras
palavras... A boa vida. Mas este ano as aulas vão ser melhores. Escolhi ir para o
agrupamento de Artes e assim fico livre de todas as disciplinas que eu odiava.
Adeusinho ara sempre! É óptimo sentir que se começa a fazer o que se gosta e já
não tanto aquilo que a escola manda. Para além disso tenho menos disciplinas, o
que quer dizer mais tardes livres! Também estou ansiosa por começar as aulas de
viola. O ano lectivo passado comecei e aprender umas coisas de viola com uns
amigos meus lá no liceu. E este ano decidi ter aulas. Gosto imenso de tocar e este
Verão ainda aprendi umas coisas. Acho que é dos instrumentos de que eu mais
gosto. Pode-se levar para todo o lado, não é muito difícil de tocar, quer dizer tocar
sem ser grande espingarda, mas dá para tocar e cantar e os outros reconhecerem
as músicas. E acho que é óptimo de ouvir. Tocar bem viola é um objectivo e eu
gosto de objectivos. Ajuda a sair da cama de manhã!
Hoje os meus pais foram almoçar fora juntos. Fomos discriminados e ficámos
em casa a comer pizza (e ainda bem. Porque não me estava mesmo nada a
apetecer ir comer para um restaurante, esperar, etc.). Fizeram bem em ir sozinhos, é
bom sinal. Há tantos pais que se separam... Às vezes ponho-me a imaginar como é
que foi o namoro deles. Se foi qualquer coisa do género do meu e do Diogo, ou se
foi muito diferente. Será que eles tinham grandes planos para o futuro e pensavam
mesmo que se iam casar desde o princípio ou será que nem pensavam muito nisso?
Eu quero-me casar. Sem dúvida. Quero ter três filhos. Nunca me consigo decidir
muito bem de que sexo é que seriam. Dois rapazes e uma rapariga, talvez, mas
depois ela fica sozinha e eu sei bem o que é aturar um irmão, quanto mais dois! Ou
então ao contrário, mas coitado dele. Depois de pensar muito nisto, o melhor é
mesmo deixar nas mãos de Deus.
Depois penso no que queria do meu marido. Detesto as guerras do “fazes tu”,
“faço eu”, mas a verdade é que vejo que a minha mãe faz muito mais em casa do
que o meu pai. O melhor é mesmo trabalhar muito, numa coisa de que se goste
mesmo e arranjar uma empregada porque, além do mais, se fico eu para arrumar a
casa... a casa ficava sempre na mesma.
Mas a sério, eu quero trabalhar, lógico e o meu marido provavelmente
também vai querer, não vai haver outra solução que não a de dividir tudo. É
transparente como água que nunca vai haver nada de: “Querida, traz-me o jantar”.
Não que eu não o vá trazer de vez em quando, mas acho mal pedir. Preferia que a
conversa fosse mais “Querida eu faço o jantar” e eu dizer: “Não, hoje faço eu, já te
levo!”...
Ai, ai, já levei outro sermão pela desarrumação do meu quarto. Eu sei que
têm razão. Mas tenho tanta coisa para fazer, agora ia acabar de escrever e telefonar
à Joana. É uma questão de prioridades e isso é que eles não vêem. E, se cá
entrassem menos, não era mal nenhum e escusavam de se incomodar.
Hoje estava a ver uma reportagem na TV que dizia que a maior parte dos
portugueses da minha idade nem sabiam o Hino. Tentei cantá-lo. Não soube o fim.
O meu pai disse que era uma vergonha e obrigou-me a sentar-me no sofá e a ler o
Hino da enciclopédia. Tem muito mais versos que normalmente ninguém canta.
Depois obrigou-me a repeti-lo até o saber de cor. Pronto, pelo menos até amanhã
vou sabê-lo.
Pelo caminho decidiu fazer-me desenhar a Bandeira de Portugal. Mas isso
até me saiu bem. Pendurei-a no meu quarto. Viva Portugal!
O Diogo está super contente de voltar às aulas está em Humanidades e diz
que fazer o que se gosta é a melhor coisa no mundo. E que para ele ir às aulas
deixou de ser um sacrifício. Agora faz todas as disciplinas de que gosta. Ele quer ser
jornalista, quer apresentar o “Jornal Nacional”. Era mesmo eu que me punha à frente
de uma câmara! Acho que me partia a rir e não conseguia dizer nada.
O Bonga esteve cá hoje. Contou-me que se vai alistar no Exército. Como é
que alguém quer ir para a tropa? Quer dizer, eu até gostava, desde que fossem só
dois dias. Só o facto de terem de acordar às tantas da manhã, tirava-me logo
qualquer vontade.
É maluco. Mas se calhar até lhe faz bem. Pode ser que deixe de fumar
tanto...
Eu e o Diogo acabámos. Tivemos uma grande discussão. Armou-se
completamente em parvo disse que ia ao cinema SÓ com a Vera (a ex-namorada
dele). Não acho que isto seja muito normal. Eu nem tenho muitos ciúmes, mas acho
que se pode perfeitamente ir tomar café ou assim. Agora ir ao cinema sozinho com
ela!!! Não era preciso! E ele começou logo a dizer que eu nunca o deixava sair com
ninguém, o que é mais do que mentira e para isso não tenho paciência. Achei que ia
ficar tristíssima. Mas irritou-me tanto, que - pelo menos por enquanto, passaram
mais ou menos dez minutos - nem triste fiquei. Agora quero concentrar-me nas aulas
e na Capoeira e na viola. Fazer tudo melhor. A única coisa mais chata é: 1 .° - Ver o
Diogo e 2.° - Tudo a perguntar o que aconteceu entre nós. Ao menos na Capoeira
não há esses problemas, as pessoas estão lá, jogam, conversam sobre a Capoeira.
Mas como só nos conhecemos dali, apesar de haver amizades não se mistura muito
a vida pessoal com aquilo - não se fala de dramas da vida diária, nem da escola.
Concentrados na Capoeira esquecemos as chatices. E divertimo-nos. Nada melhor.
O meu “baptizado” é daqui a dois meses e vou esforçar-me ao máximo para
conseguir ganhar o cordão.
Vou conseguir tocar viola bem. E vou conseguir entrar na equipa de futebol da
escola. São os meus objectivos para este ano. Ah, e claro, esquecer o Diogo.

1 5 de Setembro

Não devo ser uma mãe muito normal. Detesto que eles recomecem as aulas,
porque odeio acordá-los cedo. Apesar da idade da Margarida, continuo a ser eu a
põr o despertador e ir lá acordá-la - é uma forma de solidariedade com um sacrifício
que sei que é enorme. E, se ao menos ela se deitasse cedo, mas não deita e depois
está no mais profundo dos sonos e é preciso abaná-la. Agora não faz fitas, mas,
quando era pequena, começávamos sempre o dia à estalada - punha-lhe uma meia
no pé e ela voava para o outro lado do quarto. Por que raio não começam as aulas
às onze horas? Era a melhor maneira de diversificar os horários dos pais e de
resolver os infernais engarrafamentos.
Ufa, devia ser bom o tempo em que se tinham preceptoras em casa para
ensinar os meninos. E criadas para os acordar. E a dona da casa dormia até mais
tarde e depois traziam-lhe o pequeno-almoço à cama e ela "orientava” o menu do
jantar. Se calhar isto tudo só existiu nos filmes porque as mulheres, coitadas,
estavam sempre grávidas ou com filhos pequenos.
Tenho que ver se me começo também a deitar mais cedo mas, sou igual a
ela, é à noite que me dá a energia toda.

Estou estafada hoje. Ontem uma amiga minha contou-me que achava que
estava grávida. Entrei em pânico. Perguntei-lhe o que se tinha passado. Ela disse
que tinha ido para a cama com o namorado sem “pres.” e que agora o período
estava uma semana atrasado. E que costumava ser certíssimo (como é que alguém
faz um disparate destes?). Ela implorou-me para na manhã seguinte ir fazer o teste
com ela. Na escola. Eu claro que concordei. Disse-lhe que provavelmente não era
nada. Passei o dia (e a noite, por sinal) a pensar nisso. Não dormi nada. Pensei no
que é que lhe iria dizer caso ela estivesse mesmo grávida. Excluí a ideia do aborto,
apesar de, obviamente, a apoiar em qualquer decisão que ela tomasse, por muito
que me custasse, embora achasse que era asneira. Sou contra. Acho que nenhum
de nós pode tirar a vida a um bebé. Por mais pequeno que seja. Amigos meus
argumentam que ainda não é uma pessoa. Não me parece, porque tanto é naquele
momento como umas semanas depois, não é? Pode vir até a ser uma das pessoas
mais importantes nesta Terra. E que não temos direito de lhe tirar esses direitos
todos. De se apaixonar, de estar triste, de chorar e rir e de ver tudo o que há aqui.
Não seria fácil tomar conta de uma criança, lógico que não. E há crianças que iriam
ter uma vida difícil, mas quem somos nós para decidir que esse bebé (futuro
adolescente, futuro adulto), não prefere ter uma vida difícil e ter alguns momentos
felizes e conhecer o mundo, do que não ter vida de todo. Acho que ser deve pensar
sempre no bebé primeiro. Se está para nascer então é mesmo para acontecer. Eu
acredito nisto. Adormeci, já tardíssimo, na esperança de não ser nada.
Pessoalmente só quero ir para a cama quando me casar. É uma coisa que eu
acho especial demais para ser feita com várias pessoas ou uma pessoa que eu não
“ame”. É um princípio que eu espero e confio conseguir manter. Toda a gente diz
que eu sou maluca e que vou mudar de opinião. Eu acho que não.
Hoje de manhã quando cheguei à escola encontrei-me com ela e fomos
direitas à casa de banho. Ficamos a olhar para o teste - a verdade é que nem eu
nem ela sabíamos como fazer um teste, sinceramente era coisa que nunca me tinha
passado pela cabeça. Lemos as instruções. Ela entrou e fez o teste, tínhamos de
esperar quatro minutos. Que pareceram horas. Estive a falar com ela. Perguntei-lhe
por que é que ela correra aquele risco, depois de tudo o que sabíamos sobre isto.
Ela disse que não sabia. Que tinha acontecido. Que nenhum deles tinha
preservativos. Mas que não conseguiram parar. Perguntei-lhe se ela tinha contado
ao namorado e ela disse que não! Disse-lhe que achava mal. Estavam nisto juntos.
E se o relacionamento deles era sólido o suficiente para irem para a cama, tinha que
ser o suficiente para falarem abertamente sobre estas coisas. Eu sei que nem todos
os relacionamentos são assim. Mas faz-me uma certa confusão a ideia de ir para a
cama com alguém sem sequer ter confiança para conversar. Os quatro minutos
passaram e ela e eu respirámos de alívio. Não estava grávida! Ai, que bom! A sério.
Rimo-nos de alívio. Falei com ela. Disse-lhe que ela não podia deixar isto acontecer
nem mais uma vez, que se pensava em ter uma vida sexual com o namorado que
começasse a tomar a pílula. Qualquer coisa. Menos cometer o mesmo erro outra
vez. Acho que ela aprendeu com o susto. Eu cá aprendi. E cada vez gosto mais do
meu princípio de ir para a cama só a seguir ao casamento.
Vou dormir, estou a morrer de cansaço.
Hoje contei à minha mãe a história toda do teste de gravidez. Ao princípio
ficou preocupada que eu tivesse amigos assim e começou a dizer que esperava que
eu tivesse aprendido a lição e não me preparasse para lhes seguir o exemplo. É
claro que eu não lhe falei na minha decisão - sossegava-a demais e acho que as
mães não devem ficar muito sossegadas, até porque depois acham que sabem tudo
sobre nós e ficam irritantes. Mas acho que ficou contente com a minha atitude, de
ajudar a T. Só que me disse que eu a devia tê-la mandado ir contar aos pais, que
era um peso demasiado grande para mim. Os pais não devem ser bons... Pelo que
percebi, ela e os outros pais julgam mesmo que seriam as primeiras pessoas a
saber se tivéssemos algum problema!!! Disse logo à minha mãe que nem pensar!
Que depois do teste, se estivesse mesmo grávida, então sim dava-lhe esse
conselho. Mas nunca antes de saber. É mesmo na base de “conto se tiver mesmo
que ser”. Ela não entendeu porquê. Disse-me que os pais eram mais importantes
que os amigos nestas alturas. Tentei explicar-lhe melhor. Eram adultos e isso basta!
Nem consigo imaginar o que seria ter que contar aos meus pais.
Perguntou-me se era assim, como é que alguém fazia uma inconsciência
dessas? A isso não sei responder. Mas imagino que seja difícil de parar para ir
buscar protecção. Muita gente diz que estraga o ambiente. Não sei.
Como o Bonga passou cá por casa para lanchar, falei-lhe disso. Não lhe
contei com quem era, nem exactamente a história. Mas perguntei-lhe só o que é que
ele achava. De ir para a cama com alguém, etc. Ele respondeu-me que não
concordava comigo em ser a seguir ao casamento. Mas que sim, que também
pensava que se devia ir com uma pessoa de quem se gosta mesmo muito. Uma
pessoa que ele sentisse mesmo que amava. Mas que o casamento não era
importante. Fiquei impressionada. Não estava a espera. Achei que iria ser menos
emocional do que foi. Ainda bem.
O Diogo concordava comigo, achava que o melhor era mesmo a seguir ao
casamento. Mas o Dìogo já era, por isso não sei para que é que o estou a chamar
para aqui!
Hoje fizeram anos dois amigos meus. Telefonei aos dois. Tenho que lhes
comprar um presente. Vou estar com eles amanhã. Mas não sei o que comprar.
Adoro dar presentes desde que saiba que eles vão
gostar de certeza.
Hoje nas aulas acabei o meu Gandhi de barro. A professora tinha pedido para
fazer uma pessoa que tivesse sido importante. Eu decidi fazer o Gandhi, admiro-o
muito. Saiu muito bem. Hoje acabei-o e a professora disse que ia metê-lo no forno.
Fiz toda a gente despedir-se do Gandhi antes de ele ir para o forno - é que o homem
pode ter sido santo, mas a prova do forno é muito difícil, mesmo para uma pessoa
muito especial!! Muito se riram todos a ver os outros a despedirem-se do meu
boneco de barro. São estupidezes como esta que dão piada às aulas.
Bem, adeus, Gandhi. Boa sorte no forno!
25 de Setembro

Nem tenho tido tempo de escrever. É correr para o escritório, aturar aquele
sócio que não tarda nada enveneno, ir buscar os miúdos, tentar chegar a todos e a
todo o lado. Coitada da minha mãe, nem tenho falado ao telefone com ela e ela é
mesmo espectacular, ficou sozinha, mas lá continua com a vida dela, sempre sem
querer maçar ninguém. E, por falar nela, se a senhora tivesse ouvido o que a neta
me contou há uns dias, caía da cadeira como o Salazar. A Margarida andou a fazer
testes de gravidez com uma amiga - a minha menina que ainda nem tem 15 anos,
só faz em Dezembro, e já anda a servir de consultora de planeamento familiar,
Santo Deus. E a outra miúda... Fiquei mesmo preocupada. A Margarida diz que acha
que ela não consegue dizer que não e pareceu-me que já tinha tido alguns sustos
anteriores. Disse-lhe para sugerir que ela fosse a algum dos gabinetes de
sexualidade do IPJ ou procurasse ajuda de algum especialista nesta área, até na
escola uma professora que fosse mais querida, porque se calhar,
inconscientemente, sem se aperceber, ela está à procura de atenção.
Bem, quanto à Margarida, só nos resta cruzar os dedos - espero que ela
tenha sempre coragem de nos pedir ajuda e, sinceramente, tenho muito, mas muito
mais medo de que um filho/a meu se envolva no mundo das drogas, do que tenha
um filho, que de uma maneira ou de outra haveríamos de criar.
Ela falou comigo sobre o aborto - ainda bem que tem ideias tão claras,
embora eu nunca goste muito de pronunciar sobre isso. Não consigo ver o mundo
tão a preto e branco e não sei o que faria se a minha filha aos 13 ou 14 anos
engravidasse, sinceramente não sei. Dependia de tanta coisa. Mas, provavelmente,
falaria sempre mais alto a sensação de que estava ali um bebé, e ainda por cima
meu neto. Mas não sei, não sei mesmo, só espero nunca ter de saber.
Felizmente, pelo meio vão acontecendo umas coisas divertidas e ela, quando
está bem disposta, e não está ao telefone, é de morrer a rir. O Rui e eu íamo-nos
engasgando a rir com a descrição dos amigos a despedirem-se do Gandhi que ia
para a prova do fogo! É maluca.
Entretanto o Rodrigo anda meio aluado. Deixa tudo tão desarrumado, está
mais calado, a ficar completamente adolescente. Mete-me muito mais medo a
adolescência dele do que a da Margarida ela é mais conversadora, mais
transparente.
O Rodrigo vai fazer mais mistério, manipular-me mais e eu sou facilmente
manipulável, neste desejo estúpido de ver sempre todos bem à minha volta. E há
pessoas que abusam, quando eu, no fundo, espero que elas percebam a minha
forma de me relacionar com elas e sejam generosas e queridas, trabalhadoras e
competentes, sem que eu tenha de fazer o papel de má. Decididamente vou ter que
mudar, porque mesmo profissionalmente resulta mal. As pessoas parecem preferir
os ditadores.
Apetecia-me tanto ir ao Brasil. Sozinha com o Rui, namorar. Isto dos filhos
adolescentes é tão absorvente que até nos esquecemos de que temos marido. Se o
Rui lesse este diário concluía que não é muito mais do que um pormenor na minha
vida. E é mentira. já lá vão muitos anos, mas eu dependo dele e é nos braços dele
que me quero esconder quando eles são "eles" pode incluir toda a gente que me
faça sofrer.
Já chega de mãe galinha.
Vou escrever vinte vezes, “Get a Life" e depois ligar para uma agência de
viagens e marcar uma viagem para dois. É que disso tenho cada vez mais a certeza
- só se eu, ou eu e o Rui, tivermos vida própria, sairmos, estivermos com os nossos
amigos é que vamos permitir que os nossos filhos cresçam e se vão afastando. Não
há pior do que os pais que julgam que os filhos são uns palhacinhos cuja missão na
vida é entretê-los e ajudar a tapar o vazio que existe nas suas vidas e nas suas
relações. Dedicar-me, com ainda mais dedicação, a construir uma vida própria, a
ralar-me menos se o Universo inteiro não estiver todo, no mesmo dia, à mesma
hora, em harmonia. É isso que eu vou fazer este ano! Sempre é melhor do que
prometer que vou para a ginástica, promessa que nunca cumpro. Esta, vamos ver.

A minha mãe este ano, como todos os outros, aliás, decidiu que ia fazer uma
lista de regras para eu cumprir.
Ir para a cama cedo, sendo cedo 10 e 30, o que é sempre uma guerra. Eu
digo que não consigo adormecer cedo, por isso mais vale ficar na sala a ver um
filme ou na cama ao telefone até vir o sono. A minha mãe diz que o sono não vem
se eu estiver ao telefone a resolver os problemas sentimentais dos meus amigos. Eu
acho que devia poder deitar-me às horas que eu quisesse. Acho que a regra deveria
ser “Não estar rabugenta de manhã”. Essa sim, ela já podia impor. Assim eu ficava
acordada até à hora que me apetecesse e, na manhã seguinte, sofria as
consequências. Isso é que era educar.
Sobre sair a noite, surpreendeu-me - disse-me que eu podia sair, para
discotecas ou programas mais ousados, duas vezes por mês. O que eu acho justo.
Mais um festa ou outra que ainda a convenço a deixar-me ir. E a minha vida
nocturna fica perfeita. Óbvio que continua com aquele inquérito todo, mas isso eu
até compreendo.
Uso do telefone. Esse triste discurso já o sei de cor. 49 233 escudos de
telefone não é aceitável em nenhuma altura do ano. E por nenhuma razão (acho
justo, mas difícil).
A minha mãe arranjou-me um cartão Multibanco e mete dinheiro todos os
meses numa conta. Por mim, óptimo. Posso gastá-lo como quiser e não preciso de
dar satisfações, já para não falar de estar em qualquer sítio e logo que precisar
poder ir tirar dinheiro. Uma regra muitíssimo sensata.
E a Capoeira o mesmo de sempre: segundas e quartas treino e sextas roda.
Bem, este diário já deu tudo o que tinha a dar, já escrevi em redor das
páginas, nos cantos e até na capa de dentro. O meu pai ficava orgulhoso de me ver
aproveitar tão bem o papel, ele que anda sempre a dizer que desperdiçamos tudo.
Bem, vou hoje às compras e compro um novo. Com dois, sim, 2 CADEADOS!

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FICHATÉCNICA

T Í T UL0: 49 233$00 De Telefone - Diário De Uma Mãe/Diário De Uma Filha


AUTORAS: ISABEL STILWELL e ANA STILWELL
E D I T 0R A: TEXTO EDITORA, LDA.
DESIGN GRÁFICO SECTOR CRIATIVO TEXTO: Orlando Gaspar (capa e projecto
gráfico)
ILUSTRAÇÃO CRIATIVA: Alain Gonçalves (capa)
PAGINAÇÃO SECTOR DE PAGINAÇÃO TEXTO
IMPOSIÇÃO E CHAPAS SECTOR DE ESTÚDIO GRÁFICO E MONTAGEM TEXTO
IMPRESSÃO E ACABAMENTOS TEXTO EDITORA

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Lisboa, Outubro de 2001 – 1ª Edição - ISBN 912-41-2121-2 - Depósito legal Nº 110


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