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ETERNO RETORNO II

daniel almeida
2019.

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CAPÍTULO 1 | TODO DIA A MESMA
MERDA
Uma coisa que você precisa saber é como todo mundo
repete a mesma droga de rotina, todo dia. Tem esse cara
aqui, o Diogo, acorda todo dia às 7, se arruma olhando no
espelho, toma café enquanto vê as notícias de política; ao
descer do apartamento, encontra a senhorinha Rita,
tadinha, a ponto de morrer; mais velha que a felicidade. Ela
serve café para uns figurões importantes da cidade num
desses lugares gourmet que não vou lembrar o nome
porque foda-se, ninguém liga. O cara entra no carro velho,
pega um trânsito desgraçado; chega no escritório, tecla uns
símbolos numa tela que deve ser de algum valor pra
alguém, talvez ele nem saiba o que é; aí vai pra casa 8 horas
depois, mesmo trânsito, mesma rotina. Descansa um pouco,
depois vai pro notebook escrever seu romance; daí, vai
gastar o resto do tempo vendo uns vídeos e postagens
idiotas, só pro tempo passar; na hora, sua namorada virtual
o chama. Os dois alimentam uma esperança de um dia se
verem, como crianças que juram amizade eterna logo
depois de se conhecerem. Diz ela que o verá amanhã, sairá
da sua cidade longeva para ver um figurão com um
emprego horrível numa vida sem graça que só não deixa de
viver por preguiça mesmo. Imagina o trabalho que deve ser
pra conseguir medicamentos nocivos contrabandeados sem
a porra do governo meter o dele? Os filhos da puta metem
imposto até na hora de te matar. Então foda-se, melhor
ganhar um trocado pra torrar o que sobrar em cerveja do
que pular da porra de um prédio alto que só vai dar
trabalho pra faxineira da rua. Dai Diogo vai dormir, com a
mesma cara de sempre: de sono, de tristeza, de nada.

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CAPÍTULO 2 | PISTACHE
Vi ele levantando, com sono e olhando pra cama com
aquele olhar perspicaz de quem queria era passar o dia
todo dormindo. Foi logo arrumar a porra de um emprego
que não tinha nada a ver. O que fez Diogo parar nessa
situação? O cara tinha boa família, certa vez ele.. Esper..
Cacete, ainda é o segundo capítulo. Porra leitor! Imagina se
já te entrego os tramas da vida dele logo agora? Depois eu
falo disso, ainda não é o momento. Você ainda precisa se
identificar com o Diogo, o cara que tinha um talento nato e
especial mas sempre via-se em procrastinação e nunca
terminava um projeto. Passou a adolescência e juventude
reclamando da vida, de que queria ser mais, fazer o que
queria. Se ele entendesse que nessa merda de vida já está
tudo pronto, meio que pronto, então se ele quisesse algo
diferente, viver de modo a fazer o que gosta, teria que
entrar no clima da cidade monótona e sem graça, pra daí
conseguir grana o suficiente pra começar o projeto dele. Ah,
ainda tem o fato dele estar na droga do Brasil. Porra Diogo!
Cara esperto desse, não entende o mínimo de sociedade...
Agora estava eu lá, vendo ele se olhar no espelho. Esse
momento é sempre especial, é quando ele consegue ver-se
por alguns segundos, antes do mundo resetar e ficar
loopando ad infinitum. Dá pra sentir uma certa
humanidade; Ele parece que começa a entender o que está
acontecendo, na situação em que está. Aí de repente o
bostão abotoa a camisa e vai tomar café. Boa amigão, você é
foda!

Enfim, decidi fazer algo que não estava acostumado, decidi


chamar o Diogo pra uma conversa. É, tipo uma conversa de
brother sabe? Aquela cervejinha depois do trampo,
reclamar um pouco, falar qualquer merda. Caralho, queria

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estar bebendo umazinha agora, mas não posso sair daqui.
Será que tem uma na geladeira? Não, não tem. Todo dia eu
vejo, junto com ele, só tem o básico ali: Feijão, arroz, água,
uns temperos e uma coisa no fundo da jarra de suco que eu
nunca tinha identifica.. espera.. PISTACHE?

_ Quê!? Quem disse isso?

Ôh cacete! falei alto... puta que pariu, vou voltar pro quarto,
de mansinho, de mansiiii

_ HEY, EU TÔ TE VENDO AÍ!

PORRA DIOGO, OLHA O QUE O TEU PISTACHE FEZ!

_ Er.. opa, beleza amigo?

_ !!??!?

_ Relaxa amigo, estou aqui para lhe ajudar.

_ Ma-mas como, como você.. espera, isso aí é pistache?

_ É SIM PORRA, AFINAL POR QUE VOCÊ GUARDA


SORVETE DE PISTACHE NA PORRA DA GELADEIRA?

_ Rum... e o que você tem a ver com isso? É meu sorvete


cacete, agora me devolve.

_ Eu vou é jogar essa porra pela janela, olha só

Hehehe

_ FILHO DA PUTA ERA MEU PISTACHE!!!!

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Ele veio pra cima, tentou me dar um soco. Uma pena que
sou um ser metafísico transcendente, ora minha forma não
se prende às leis físicas; estou sujeito à outras.

_ MAS QUE PORRA VOCÊ É???

_ EU QUE TE PERGUNTO, QUE PORRA DE SER


HUMANO NORMAL TEM PISTACHE NA GELADEIRA?

Ah, é mesmo, ele não é normal.

_ Não te interessa... Agora, me diga, o que você é?


Fantasma? Alucinação? Deve ser, eu acabei de acordar, e
tem aqueles estágios de sono que

_ Cala a boca porra. Sou só eu, me chame do que quiser.


Pode me chamar de Rodolfo, Josefaldo ou Matilda.

_ Ahm.. tal-talvez.. Rodolfo?

_ Meu nome é Steve cara.

_ Ah, sim..

_ Ok..

_ Então Steve, o que faz aqui? Por que devo a honra de sua
visita?

Aí tivemos uma conversa produtiva, finalmente. Porra!


Sério, por que ele guardava pistache na geladeira? Como
ele se transformou nesse bosta? O cara tinha futuro, vai por
mim; era brilhante, o aluno estrelinha do colégio. A mãe e o
pai tinham orgulho, fora às vezes em que aprontava, até
demais, mas é típico de criança com um gênio diferente. A
família, percebendo que o muleque tinha futuro e que

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poderia sustenta-los quando se aposentassem (nada mais
justo) começaram desde que se percebera sua genialidade a
economizar uma boa grana pra uma faculdade privada.
Não queriam as públicas, porque era um antro de
socialistas nojentos perpetradores do sistema político de
bosta (QUE PAIS DE ORGULHO). O cara cresceu já com
futuro, e depois de se formar foi pra uma faculdade de
Física. O resto é história.

_ Então Diogo, deixa eu abrir o jogo com você. Você é legal,


gosto de você, você é o cara que eu chamaria pra tomar
uma no fim de semana, sério, mas na vida temos que lidar
com situações complicadas, entende? Aqueles situações em
que nós

_ Fala logo porra!

_ ...

_ Você vive o mesmo dia, todos os dias. O planeta Terra


repete esse ciclo, num período (estranhamente) de 24 horas.

Ele então deu uma risada bem alta.

_ Hahaha serio?! Era isto que queria me falar? Olha... já está


tarde, e eu tenho que ir trabalhar, pode ficar se quiser, mas
não coma minha janta ok? E se for usar a internet, só não
digite nenhum site que comece com a letra "x", esqueci de
apagar o maldito histórico... como se abre o navegador em
modo anônimo mesmo? Era control alguma coisa... ah,
foda-se, depois eu vejo isso. Até.

O filho da puta já foi logo e eu tive tempo apenas de falar:

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_ "Seu café, com creme e açúcar extra."

Ele me deu uma olhada, já indo fechar a porta, como quem


não entendesse nada. Eu acho que ele me vê com uma
assombração, ou imaginação. É normal para caras como ele,
ter esses distúrbios e tal. Quando ele chegar lá em baixo, e
ver o pistache no chão, vai achar que teve um devaneio e
que ele mesmo jogou aquela porra fora.

Mas o que será que ele vai achar da Rita? Vamos lá ver!

*teletransporte*

Caralho, o pistache conseguiu parar o trânsito! Que


bagunça que eu fiz aqui... Ah, olha ali, bem na hora, vamos
ver se ele nota...

_ (Rita) Seu café, com creme e açúcar extra.

Ihhhh olha a carinha dele!! Olhou pra trás, fez uma cara de
cu, depois voltou a andar em direção ao carro, negando o
acontecido com a cabeça... Que pena dele! Mas sério, acho
que foi vacilo... Estou deixando ele perplexo! Mas porra, ele
também não ajuda... Não consegue ver o óbvio, bem na sua
frente. Deve ser que ele se propõe a ver tudo com os olhos
do corpo, e não percebe a verdade, tão simples, e tão
simples, que pra caras como ele, que não conseguem aceitar
que um com um dá dois, ficam então inventando fórmulas
e teorias extensas, como se a comum observação das coisas
não se valesse... tudo tem que ser complicado, difícil,
burocrático, se não, não vale.

É amigos... que mundo foda!

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CAPÍTULO 3 | CASTELO DE AREIA
_ ACORDA FILHA DA PUTA!

Tadinho, a baba já estava manchando todos os fechamentos


de balanço. O que será que ele estava sonhando? Será que
lembrara das vezes onde a brisa do mar tocava-lhe, e o
frescor subia-o do corpo à alma? Será que dormira em paz,
e acordara bem? Ou fez um castelo de areia, pueril, singelo,
onde as ondas do mar levava-lhe consigo?

Pois é meu amigo, esse mundo é uma merda.

_ Porra, você de novo? E por-por que está sentado na minha


mesa? Se meu chefe te ver ele vai-

_ ELES NÃO PODEM ME VER!!! MUAHAHAHA

_ SÉRIO?!

_ Não porra, tá achando que sou o que, uma assombração?


Sua imaginação? Olha, eu vim aqui pra te ajudar, mas você
não quer acreditar em mim... estou triste sabia?! Todo dia
eu choro em prantos, molho meu travesseiro, não consigo
nem dormir, porque oh céus! O Diogo não me escuta... ele é
um ogro! Um vil! Ardiloso e maquiavélico, ele é rude e
chucro! Não aguen-

_ Cala a boca cacete, sou tua mulher agora?

_ Vai se fuder cara.

_ Beleza, vamos fingir que o que me disse é real.. Então


todo mundo aqui vive o mesmo dia?

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_ Isso.

_ E ninguém sabe disso, só você, certo?

_ Isso.

_ E não há possibilidade de acabarmos com isso?

_ Exatamente.

_ E todo mundo magicamente esquece do dia anterior


depois de 24 horas?

_ Exatamente, tá mais esperto do que eu esperava!

_ E quando tudo reseta?

_ Pela madrugada, umas 3 da manhã, por aí.

_ Ok, e como descobriu tudo isso?

_ Se eu te contar eu teria que te matar...

_ ??

_ Brincadeira porra... digamos que eu sou um dos caras que


não fui afetado. Ah, sobre ninguém saber que o mundo
reseta, eu menti. Existem uns que sabem, na verdade, eles
são meio que responsáveis pelo que aconteceu... eles
estranhamente não pararam com isso, talvez seja uma
maneira de controle. Pensa? Não há maneira melhor, mas
deve ser entediante pra caralho... sei lá como passam o
tempo, com certeza eles criaram alguma cidade autônoma,
com o próprio canal de TV, essas coisas.

_ E quem são esses caras?

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_ O governo. Quando eu comecei a estranhar que a Dona
Rita repetia a mesma frase todo dia quando me servia o
café, eu fui me dando conta de que algo estava errado: ou
era ela que tinha Alzheimer, ou o mundo estava loopado.
Claro que pensei na primeira opção, também porque ela era
muito velha, tadinha... Olha o nome dela! Se a primeira
mulher do mundo não fosse Eva, seria Rita...

_ Que estranho, por que você não foi afetado?

_ Eu não sei... Talvez o lugar onde eu estava, ou talvez


simplesmente falhou, ou eu devo ter poderes de
imunidade...

_ E existe alguma maneira de parar com isso?

_ Sim, mas é impossível.

_ Como impossível?

_ Cara, tá brincando comigo? É a porra do governo. Você só


aceita...

E lá estava eu, sentado na mesa do escritório, esperando


que uma boa ideia viesse de repente e me fizesse salvar o
dia, como nos desenhos. Mas é impossível! É o governo
cara, não dá pra-

_ Espera... E se fizéssemos algo que eles não esperam?

_ Como?

_ Pensa: Todo dia o governo manipula a taxa de juros; ele


propõe uma nova taxa absurda, as vezes não altera, ora
abaixa: sempre procura ver uma tendência do mercado, pra
sufocar efeitos não planejados e mantê-los previsíveis. Por

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mais que o mundo se repita e as pessoas pensam viver este
dia como sendo a primeira e última vez, as consequências
que o governo toma continuam alterando todos os fatores.
Pense num grande fazendeiro que hoje de manhã vendeu
seu estoque de maracujás: ele está sempre os perdendo,
porque todo dia os vende, não dando tempo pra terra os
reproduzir. O que acontece com esse cara? Ele se queixa,
porque ontem, o ontem de verdade, ele pensava que
venderia x maracujás e ficaria com y deles, mas como todo
dia sempre os vende, fica sempre com menos y, e entrega
sempre x.

_ Ok, isso tudo faz sentido, eu concordo, mas levando em


consideração que estamos nesse loop por uns anos, por
exemplo, já não era pra esse fazendeiro estar falido?

_ Sim, e não duvido que muitos deles faliram, o que só me


faz acreditar que somente o governo daqui sabe que isso
acontece, porque eles sabem a maneira mais efetiva de
conseguir manipular os estoques, não só nacionalmente
mas com os países de fora, fazendo com que esse ciclo não
acabe... mas evidentemente uma hora ele se esgotará.

_ Mas as terras continuam reproduzindo, não faz sentido


crer o estoque uma hora acabará.

_ Não seja burro... pensa na pessoa que compra os


maracujás de um cara: ele já tem uma cacetada de maracujá,
que ele continuou, todo dia, comprando, e ao chegar no
armazém dele e se deparar com uma cacetada de maracujá,
o que ele faz? Ele joga fora. Não foi atoa que o governo
criou um programa de doações para super-estoques, mas
não é perfeito... a maioria simplesmente dá um jeito de
vender isso no mercado negro, aproveitam e sonegam pra

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caralho.

_ Mas esse programa existe desde uns 3 anos atrás.

_ Tem alguma imagem disso na TV Câmara? Eu lembro o


dia que deram um jeito de colocar isso na Constituição... Dá
até pra imaginar a cara dos professores de direito! Eles
olhando seus velhos livros, e de repente uma caralhada de
novas leis no site oficial da República. É por isso que as
notícias de corrupção nunca param. Toda hora surge um
parlamentar que desconfia de que uma ou outra lei foi
decretada de maneira ilegal.

_ Então não é um ciclo eterno. Uma hora ficará


insustentável... O que vão fazer?

_ Bom, eles vão ficar super bem, afinal os caras controlam o


mundo.

Foi aí que Diogo esboçou uma forma energética. Depois de


muito, muito tempo, após anos de formatos automáticos de
expressão, finalmente uma que lhe cabe o título de sincera:
Assombro. Ninguém parece estar assombrado hoje... todo
mundo fica de sorrisinho, felizinho, enganando-se a todo
momento.. parece até que-

_ Isso aqui virou programa religioso agora!?

Não posso mais pensar alto, bem que Orwell me avisou..

_ Já que você é tão esperto assim, me diga como isso


funciona. Na prática.

Então eu fiz o que qualquer pessoa com um Q.I. maior que


de uma beterraba faria: digitei 'buraco de minhoca' e dei

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enter.

_ Não é tão complicado quanto parece...

_ Como em Portal II?

_ Caralho, esse jogo já não é muito velho? Deve ter uns 30


anos...

_ E como exatamente funciona na vida real?

_ Informação demais para um dia meu amigo.. volte a


trabalhar.

Ele me seguiu quando levantei da mesa em direção ao


elevador, no fim da sala. Como simplesmente fingi que não
o conhecia, as pessoas ao redor encararam ele, sussurrando
entre si que tinha ficado maluco. E quem não ficaria nesse
mundo? Eu entendo... imagine como deve ser ver o mesmo
filme todo santo dia e não lembrar que já tinha o visto
ontem, e anteontem, e antes de antes de ontem? O filme
começa a se amalgamar no seu subconsciente, sua memória
mais sincera. Lá, onde você guarda as coisas que queria
falar pro mundo, pro chefe, pra escola, faculdade, irmão,
pai, namorada, esposa, pra si... eu sei bem como é estar
nesse lugar. É frio, tem luz e as paredes são de cimento e
pedra. Lá é tão real que parece de mentira. Se estivesse lá
você diria: isso é um sonho! Como pode um com um ser
dois, e não ser o que eu quero que seja? Como assim eu
preciso trabalhar pra conseguir algo? E por que tudo por
aqui não me agrada, mas eu não consigo dizer o por quê?
Onde está meu cobertor? Meus sapatos? Meus pais?

E por que em todo lugar que eu olho eu consigo me ver?

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CAPÍTULO 4 | POSTITE OU POST-IT?
Qual é a mania desse povo de querer inglesar tudo que é
brasileiro? Porra! Cadê o orgulho pela nação, pela pátria,
pelo... É, é meio idiota isso, não é? Parece até aqueles
discursos medievais de honra e cavalaria. O Brasil é
imenso, caralho! Tem lugares que até a língua é diferente.
Essa unidade nacional é simplesmente um mito, não existe
e jamais existirá, não num país continental.

Foda-se, eu só queria saber pra não passar vergonha na


hora de perguntar pra moça da papelaria. Você sabe? Sim?
Não? Não importa, aliás, eu vou falar qualquer um dos
dois, e dai se ela me corrigir e dizer: "Mas é post-it" eu vou
dizer: "foda-se", pegar meu postite e ir embora. Eu só queria
evitar de falar tanto palavrão assim, mas não dá. Eu sou
muito sincero, tanto sou que nem amigos tenho. Eu sei, eu
sei, é triste...

Agora imagine uma transição de novela. A câmera está


apontada para a rua. Os carros foram acelerados, o Sol se
põe mais rápido e a noite chega com a Lua e as estrelas. Os
personagens já estão em casa, e agora poderão interagir-se
sem a correria e os barulhos de xerox. E lá está o nosso
herói! Pomposo, atlético, galante, barba mal feita, gordo, de
óculos, careca.. está escrevendo seu romance. Engraçado...
todo dia ele vai escrever o quarto capítulo, mas pelo o que
vejo ele já o terminou faz tempos.. Então acaba por
completar a história de onde parou, mas como não teve
tempo suficiente pra pensar, acaba criando um capítulo
bem meia boca. Quando ele terminar, toda a sua parte boa
vai estar até o quarto. Triste? É poeticamente melancólico.
Justamente no romance, onde o personagem vê-se preso
por seus sentimentos, cá estamos nós, presos pelo contínuo

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espaço e tempo...

_ Está na hora de parar de escrever essa bobeira, amigão.

_ Você de novo?.. Vai me contar como tudo isso foi


acontecer? Ou vai me enrolar mais uma-

_ Vou te enrolar mais uma vez, amigo. Antes, eu quero que


vá dormir, agora mesmo. Sem cerveja, sem jornal da noite,
sem romance, se quiser eu termino o capítulo que estava-

_ Não toque no meu romance!

_ Ok ok! calma garanhão... desse jeito você me deixa


excitado..

_ Ah não, de novo não..

_ Calma, calma... vamos lá soldado! Está pronto para


missão?? Posso ouvir um sim senhor??

_ ...

_ Pelo menos uma continência?

_ ...

_ Você também não coopera, sabia? Tudo bem. Pegue esse


postite e vamos-

_ É post-it.

_Puta que pariu até você porra! Já estou estressado hoje,


não me deixe mais... tudo bem, anote aí...

Primeiro, ele deve se lembrar do dia que tivemos quando


acordar de manhã. Mas como? Pensei de todas as maneiras

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em que ele acreditaria em si mesmo, então pedi para que
ele assinasse logo em baixo. Já é uma prova, mas é
necessário alguma coisa a mais. Ele poderia pensar que é
sonâmbulo, teve algum sonho e escreveu tudo isso, por
mais estranho que pareça... então pedi para que ele tirasse
uma foto, e toda vez que chegasse o final do dia ele riscasse
seu braço, para saber quantas vezes loopou e também como
uma prova de que tudo era real. Afinal, como um
sonâmbulo pensaria nisso tudo? Ao final do texto, uma
explicação das coisas que já sabia sobre como funcionava e
quem controlava. Assim que ia descobrindo mais, anotava.
Uma hora o postite se tornaria um grande quadro de
detetive, com aquelas fotos e recortes de jornal, interligando
uns aos outros. É, pelo menos uma aventura pro Diogo.
Fico feliz de tirá-lo do tédio.

_ Sua selfie ficou uma bosta eim cara. Olha essa cara de cu.
Pelo menos serve como prova.

_ Você também não é nem um pouco bonito... É...

_ John.

_ Isso, John. Espera, não era Steve?

_ Já está tarde amigo, precisamos de você cheio de energia


amanhã. Agora vá! Boa noite e bons sonhos.

_ E você? Eu deixaria dormir comigo, mas seria meio gay


né?

_ É sim, seria... Pode ir, vou assistir um pouco de TV agora.

Estávamos começando a nos dar bem. Percebi um sorriso


sincero nele quando foi dormir. Mas eu lhe entendo,

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certamente, do jeito que me apresentei, não daria confiança.

_ Ah, e obrigado por me contar isso tudo. É bom saber que


eu tenho amigo, e posso confiar pra-

_ Tá, tá bom meu bem, qual o canal pornô aqui?

_ Er.. 120..

_ Valeu amigão, sabe que eu te amo né? Ah, se aparecer


uma cerveja a menos na sua geladeira foi por que você
tomou ok?

_ ....

Está na hora da transição!

*6 DA MANHÃ*

Decidi espia-lo, novamente. Acordou, desligou o alarme, foi


direto para o banheiro. Mal viu o postite com sua foto
impressa bem na sua cara. Dessa vez nem olhou no
espelho. Parecia que estava 10 vezes mais desanimado,
como se fosse possível ficar mais, com essa cara de cu de
defunto. Parecia até que relutava, como se gostasse de ficar
assim, no chão, caído. Não vou ser hipócrita como os livros
de autoajuda, porque existe um lado bom em estar no chão:
não precisar levantar. Por mais interessante e divertido e
melhor pro ego seria estar de pé e bem vestido, todos estão
submissos ao chão. Lembre-se da passagem: "A chuva é
para todos"? É bem isso... No longo prazo estaremos todos
mortos. Somos todos pó, água, carbono. A diferença é que
uns tem mais átomos que outros. O que importa é: Qual

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chão você vai pisar depois que isso tudo acabar?

Dessa vez o idiota não quis me ver mesmo. Foi pro


trabalho, fez o de sempre, foi enganado pelo governo, mais
uma vez, trânsito, casa, mais um garotinho sendo
espancado pela polícia por pichar algum muro, jornal. Já ia
se deitar, quando viu o postite. Encarou-o por um tempo,
como se as peças do quebra cabeça começassem a se juntar
sozinhas na sua mente. Ficou assustado. "Não era um
sonho!" dizia seu semblante. Deitou-se, enquanto encarava
o teto, estupefato. Lembrou-se de mim, mas não sabia meu
telefone, e-mail, nada. Como iria me contatar? Não ia. Suas
mãos iam à cabeça, enquanto os olhos arregalados não
conseguiam sequer piscar. Fechou os olhos, como se
tentasse pedir a alguém ajuda pra entender isso tudo. De
repente, pegou uma caneta que ficava na estante ao lado da
cama e riscou, mais uma vez, seu braço. Depois, deitou-se, e
voltou a pensar com os olhos fechados. Ficou assim por
tanto tempo, que acabou pegando no sono. Antes de apagar
totalmente, uma lágrima. Não queria viver preso, mas não
queria acordar. O tal dilema do escravo, que sonha com
liberdade mas não sabe o que fazer com ela. Consigo sentir
o que ele sente. Todo mundo é meio assim, né? Dizemos
que queremos encher a cara um dia e, quando estamos na
festa e rodeado dos amigos que viviam nos ouvindo o que
queríamos, ficamos parados. Queremos passar o dia
chapados, mas na hora de usar a maconha damos um passo
pra trás. Queremos perder a virgindade, mas quando ela
começa a tirar a roupa o que fazemos? Damos um passo
para trás. Parece a vida ser como alguém que sonha morar
do outro lado, do diferente, inusitado e desejado, a grama
do vizinho, e o que o separa disso é apenas uma ponte, uma
ponte simples, como toda ponte, sem risco. O problema é
que esse alguém tem medo de altura. Mas por que ele tem

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medo, já que a ponte é segura? Não importa. O problema
não é a ponte, é altura. Se não fosse uma ponte, seria medo
de sujar os pés com terra. Se fosse uma estrada, seria o
receio de contrair calos. Não importa o que nos separa do
ouro, é que não sabemos o que fazer com ele.

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CAPÍTULO 5 | SONHEI COM O FUTURO
Observei-o acordar; Parecia diferente, como se lembrasse de
algo que não entendia. Foi, leu os vários postites presos na
parede logo em cima da estante, em meio aos copos de café,
abajur e alarme que sempre o acompanham na noite.
Depois que parecia entendido, surgi. Conversamos um
pouco, sentados ali na cama mesmo, e o semblante já não
parecia de tanta surpresa como na primeira vez. Ao
explicar tudo a ele, e explicando as vezes que já apareci, me
perguntou por onde poderíamos começar.

_ Não sei porra! Você que é o nosso cérebro pensante. Eu


pensei algumas coisas, mas não sei se-

_ Mas você não sabe disso mais tempo do que eu? Já


deveria ter uma solução pra tudo isso...

_ Faz sentido.. tá vendo? Você não é tão burro quanto eu


pensava! Estamos começando a melhorar..

Sentados ali na cama, pensando numa maneira de acabar


com tudo isso, algo saiu da boca de Diogo. Palavras.

_ Tive um sonho estranho.

_ Todos os sonhos são estranhos. O que sonhou?

_ Não sei bem.. a visão era desfocada, manchada nas


bordas, só conseguia enxergar o centro do plano. O lugar
parecia um quarto, e a cronologia não corria como
normalmente é-

_ Como normalmente?

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_ Ora porra, como é agora... 1, 2, 3.. no sonho parecia
3,1,2,4..

_ Ah sim..

_ Então, ele estava bem perto do meu rosto, e repetia:


"VOLTE! ELES ESTÃO CHEGANDO, CORRA!", entretanto,
eu via ele indo e voltando, como se fosse pronunciar a frase,
mas dai voltava para o início do quarto, e de repente já
estava no meio da frase.

Não parecia apenas um sonho qualquer. Vai por mim, já vi


muita coisa e isso não parece com nada até agora.

_ Como era a sala?

_ Parecia uma grande sala, mas estava bagunçada. Sofá pra


um lado, TV no outro... e uma coisa grande no centro, com
vários fios e um som ensurdecedor de equipamentos
elétricos funcionando.

_ Equipamentos elétricos?

_ Falei grego? Enfim... e a pessoa que aparecia.. muito


estranha...

_ Ele tinha muita espinha na cara?

_ Não, não esse tipo de estranho... estranho do tipo "eu já vi


esse cara não sei onde".

_ Bizarro... vou pegar mais postites pra-

_ É post-It.

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caralho...

_ ... Vou pegar o post-It, pra você anotar esse sonho, nunca
se sabe.

Ah, claro, como esqueci de falar?

_ Você não vai ao trabalho hoje.

_ COMO ASSIM PORRA?

_ VOCÊ NÃO ENTENDEU NADA DO QUE EU FALEI? As


pessoas resetam no fim do dia, cara. Hoje, vão perceber sua
ausência. Amanhã, você terá uma segunda chance, e
terceira, e quarta, e quinta... Outra coisa que devemos fazer
é estudar esse efeito, ver quando exatamente ele acontece,
isso irá ajudar muito a entender como as coisas acontecem.

_ Espera... você disse sobre dois satélites que orbitam a


Terra e que-

Porra leitor, esqueci de contar. Seguinte: O que faz com que


a Terra loope são dois satélites. Bom, não são como satélites
que conhecemos: São MUITO, MUITO GRANDES. Maiores
que um prédio de 30 andares. Eu não vou te contar todo o
processo científico, por que além de não entender muito
bem, realmente, quem se importa né? Tem algum leitor
chato que entende de física quântica aqui? Não, então foda-
se. Acontece que o satélite de trás emite uma onda
gravitacional onde está, e usa a triangulação (sua posição, a
do outro satélite, e numa base na Terra) para, digamos,
"marcar no espaço seu ponto de deformação". Noutras
palavras: As ondas que ele gera distorcem o tecido da
matéria escura (até antes desconhecida) criando um ponto
de singularidade. Mas você deve estar pensando: "Pra levar

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a Terra junto, deve ser um puta ponto do caralho" e sim, é
muito grande, por isso levou cerca de um dia, praticamente,
pra concluir tudo. Beleza, mas e o outro satélite? Aí é muito
simples. Ele meio que não precisou fazer o serviço, apenas
recebeu a informação das ondas (pela triangulação) e as
replicou pela Teoria (não mais) da Ação fantasmagórica à
distância. O que seria este caralho? Einstein explica.
Basicamente, quando duas partículas são "geradas" juntas,
elas, de alguma forma, permanecem conectadas, como se
cada uma soubesse o que fará a cada momento. É louco
isso, mas já foi provado há muito tempo, lá pros anos de
2010, só que ainda era um experimento singelo, não tão
legal como esse. Ah, pra ficar mais claro, você já deve ter
lido ou escutado algum amigo entusiasta de física falando
de buracos de minhoca, aquela coisa que dobra o espaço e
faz com que você viaje do ponto A ao ponto B sem ter que
percorrer todo o trajeto. É isso que a coisa faz, quando
distorce o tecido do espaço. A ligação entre os dois é feita
instantaneamente, só que não dá pra viajar num buraco
pequeno, por isso leva-se quase um dia para criá-los.
Engraçado que seja quase que 1 dia, não é? Parece até que
foi feito de propósito. Se realmente foi calculado, o cara foi
muito esperto, porque projetou o troço pra um pouco mais
de 24 horas, uma vez que um dia não tem exatamente 24
horas. É isso e mais uns quebrados. Dai junta os quebrados,
e no final do ano temos mais 6 horas acumuladas, e em 4
anos temos um dia, aquele mesmo dia 29 de fevereiro. Vou
te falar, eu não teria essa esperteza...

_ Isso tudo me parece muito interessante, mas ao mesmo


tempo muito maluco e meio sem sentido. Poxa, é uma boa
maneira de controle, admito, mas caralho! O governo seria
tão baixo assim? Porra, não dava só pra continuar
comprando empresários e ameaçando dedo-duros de morte

23
como sempre?

_ Meu amigo... não duvide do governo...

Os momentos que sucederam esse papo político foram de


intensa reflexão e diria até de surpresa. Finalmente, alguém
em que eu podia explicar e confiar. Se bem que... Deixe o
drama pra depois.

_ É possível provarmos sua teoria, você sabe... ver se é


desse jeito mesmo. Não sei, não dá pra ver esse troço? Você
disse que é enorme, não é possível que-

_ Diogo, acorda, você já foi mais inteligente. BURACO,


buraco de minhoca. Dá pra ver um buraco, Diogo?

_ Ha! Agora eu te peguei nessa. Não dá pra ver o buraco,


como também não dá pra ver o que está atrás dele... Se ele é
um buraco que tem no fundo a imagem de um dia atrás,
então basta vermos se é isso mesmo. Se o que você disse for
verdade, é só olharmos em direção ao segundo buraco e ver
que as estrelas que estão do lado errado do céu, só
precisamos de um-

_ Vai dormir.

Imediatamente ele apagou. Não preciso de muito pra fazê-


lo dormir, apenas um pouco de informação demais já basta,
que o coitado entra em colapso com a própria realidade e
apaga. É amigos, o corpo, a mente, a vida, são conceitos
muito mais complexos do que pensávamos. E vai continuar
assim, até morremos. Afinal, qual a graça depois zerar o
jogo? Roubar carros e atirar nas pessoas? Não... tudo isso se
esvai fácil, porque é muito fácil. O ser humano quer
aprender, passar informação, porque sim, simples assim. É

24
tipo reproduzir com o fim de gerar mais vida pra essa
reproduzir mais vida e por aí ad infinitum. Eu poderia
explicar porque é fascinante, mas não o motivo, justamente
por que se eu ou qualquer um pudesse explicá-lo, qual a
graça depois!? É justamente isso, é esse eterno tornar-a-ser
que move o Diogo, me move, move você, o governo, a Rita
do café, o vendedor de balas no sinal... É disso que tanto
insiste alguns que você entenda que não é apenas uma frase
de efeito, e de que o objetivo da vida não é a linha de
chegada e sim o caminho que você faz até lá. No fim, você
pode ter uma boa empresa, escrever um puta livro, ser
dono de várias coisas, mas enquanto estiver vivo, irá ter
mais uma franquia, mais um puta livro, e será dono de
mais tantas outras coisas. Afinal, o que é a consciência de
aprender senão uma ferramenta que vive livre dentro de
sua própria sela?

25
CAPÍTULO 6 | MÚSICA DAS ANTIGAS
Era por volta das 3 da tarde, quando finalmente acordou.
Os olhos vermelhos denunciavam o cansaço do trabalho e
da rotina que somente o corpo saberia nos contar.
Infelizmente, células não falam.

_ Que música é essa?

_ Como assim, não se lembra? É a tua música cara!

Não esperei até ele acordar e acabei mexendo nos arquivos,


sabe, pelo entreterimento... a internet desse prédio é um cu
e não consigo sequer ver uma live stream decente! Tempos
difíceis amigos.. Acabei encontrando uma pasta com o
nome "trabalhos autorais", e caralho! O cara é bom mesmo...
Tudo bem que a bateria ele pegou da internet, mas o baixo,
a guitarra base e solo, a voz, e toda a edição foram feitas
exclusivamente por um homem só, nosso amado Diogo.
Admito, puta dom! Parece que as coisas estão começando a
ficar um pouco mais interessantes por aqui.

_ Isso parece música dos anos 60... Eu gosto, mas realmente,


não lembro de tê-las feito. Onde encontrou?

Foi aí que um click soou na minha mente. Era isso! Agora


tudo fazia sentido.

_ Tenho boas e más notícias amigo. Qual você quer ouv-

_ A boa.

_ Hahaha, sempre começam pela boa... Ok, seguinte: A boa


é que eu descobri algo extremamente chocante e

26
aterrorizador.

_ COMO ISSO PODE SER A BOA NOTÍCIA?

_ Ora, descobrir algo é sempre fascinante e bom.

_ Puta que pariu, nem quero perguntar a má então..

_ Ah, então tudo bem.

_ É uma figura de linguagem... diga.

_ O que acontece é que esse efeito de looping consome a


mente de todo mundo, é por isso que você não consegue se
lembrar do passado, só de alguns momentos muito
específicos (geralmente idiotas) da sua infância, como no
dia em que você deixou a bola cair na casa do vizinho e sua
mãe te xingou pela primeira vez, coisas do tipo, o que
também explica porque todo mundo parece, a cada dia que
se passa, mais como um zumbi mecânico, como naquele
clássico do Chaplin.

_ Que estranho... eu tenho a sensação de saber de tudo o


que aconteceu comigo, mas realmente não consigo me
lembrar de nada... apenas alguns flashbacks sem sentido...

_ Provavelmente porque, como esse dia é o primeiro e


único, sua mente, em parte, "sabe" do passado, mas ao
mesmo tempo, como esse dia sempre se repete, novas
consciências vão se acumulando na parte física da mente,
ou seja, seu cérebro. O que só prova a teoria de que a mente
não é física e sim metafísica, mas interage com o nosso
mundo, como se as leis a que ela se submete fossem
superiores às leis físicas... ou seja, mesmo sendo
"fisicamente impossível" ela interagir com o cérebro, por ela

27
ser justamente transcendente e superior, ela interage sem
necessitar de uma explicação científica para tal. É incrível!
Ganharíamos o prêmio Nobel com isso, com certeza.

_ Hmmm, não sei.. Não me parece fazer sentido... pense


comigo: Como que a mente é afetada nesse processo de
loop se esse evento é puramente físico? Se ela realmente
não é a mesma coisa que o cérebro, não deveria ser afetada.

_ A única conclusão possível é de que a mente ainda se


submete à algumas leis físicas, mas não todas; Uma delas
tem a ver com este paradoxo temporal à qual estamos
condicionados...

_ E o que isso quer dizer, na prática?

_ Pense num escritório que trabalhe com ações da bolsa de


valores. Os funcionários, os computadores, o próprio dia
dia age normalmente, exceto o maldito chefe, neste caso,
você. O chefe ordena que se compra mais de tal ação, venda
tal ação, reserve tal ação, como num dia comum. No fim do
expediente, ele leva uma paulada, e fica desacordado; só
retoma a consciência no dia seguinte. A pancada foi tão
forte que ele se esqueceu do dia de ontem, e pensa estar no
dia de ontem, sendo que o dia em questão é o amanhã, mas
ninguém tem coragem de questionar o chefe, afinal, ele é o
chefe. Então ele toma um susto! Parece que os valores e a
quantidade de ações que ele esperava para o tal dia estão
todas bagunçadas! Ele não culpa os funcionários, porque
eles são de confiança e jamais erraram... Ele pensa bem, e
chega à conclusão de que apenas errou, como se fosse uma
memória falsa, e continua a agir, no dia de amanhã, como
se fosse ontem. É claro que isso geraria uma bagunça, e
cada dia, cuidando que periodicamente ele continuasse

28
levando as tais pauladas e isso se repetisse, a situação
ficaria cada vez mais grave. Imagine um dia em que ele
acordar e se der conta que envelheceu 10 anos e nem sequer
percebeu! Certamente, não é uma rotina viável à longo
prazo..

Olha só, quem diria! Parece que os dualistas estavam certos.


Mais um ponto pra Descartes.

_ Se essas novas consciências do dia de hoje que sempre se


repetem e ficam acumuladas somente no meu cérebro,
então as memórias do passado também ficam.

_ Sim, provavelmente sim.

_ O que quer dizer que não as perdi, só não consigo acessá-


las... Você sabe quanto tempo estamos em loop?

_ Bom... eu acho que uns 4, 5 anos, por aí, porque foi


quando o governo começou a passar leis incessantemente
pra tentar conter a aleatoriedade que começou a acontecer
no mercado.

_ Será que temos como saber precisamente?

Como descobrir isso? Poderíamos rastrear a primeira lei


idiota e fora da realidade que o governo pass... seria meio
difícil... Estamos no Brasil, porra! praticamente todas as leis
são assim... mas poderíamos descobrir quando foi passada
a lei dos super-armazéns... Seria um bom começo.

_ Achei. Aqui no site diz que o projeto mais antigo é de 22


de outubro de 2040.

_ 3 anos atrás... Faz sentido. Se fosse mais que isso, muito

29
provavelmente alguém também já teria descoberto que o
mundo está loopado e faria alguma coisa, tentaria algum
contato; e também não tão pouco a ponto de fazer todo
mundo lembrar das antigas memórias...

_ Espera... 3 anos é muita coisa, será que realmente


ninguém descobriu isso também?

_ Bom, alguns podem ter descoberto sim, mas com certeza o


governo já pensou nisso e deu algum jeito de vigiar os sites,
vídeos e...

_ E...?

_ Você não se lembra? Quando estávamos voltando do seu


trabalho aquele dia, e vimos um garotinho sendo
espancado pela polícia num beco...

_ Isso aconteceria hoje?

_ Ah, é verdade... aconteceria sim, na volta do seu trabalho.


Eu sempre tentava ver o que estava escrito, tinha algo a ver
com "mundo" e alguma coisa, mas você sempre virava o
carro em direção à sua casa. Outra coisa que também me
chamou atenção foi a ferocidade com que aquele policial
batia nele. Beleza, pichador nem é gente, mas precisava
disso tudo?

_ Acha que o pichador sabe de alguma coisa?

O que eu acho? Acho que todo mundo quer dizer alguma


coisa. Acho também que o universo brinca disso, e fica
tentando forçar sua visão de mundo em nós. Se ele quer
que consertemos isso, provavelmente esse pichador,
justamente na hora em que o Diogo volta do serviço nos

30
aparece, pode ser um sinal. Até a dona Rita, tadinha, muito
velha, até ela pode ser um sinal.

_ Vamos conferir isso.

* 19hr50 - O tal beco*

Não demorou muito até o pichador aparecer.

_ Espera... Esse não é o mesmo de antes.

_ Como assim não é? Se não for, pode ser um sinal, talvez


alguém os mande pichar isso, sempre nesse horário.

_ Pensei nisso. Esse dai é mais baixinho, e está mancando a


perna direita... Olha lá! Já começou a pichar!

_ Me dá esse binóculo, quero ver também!

_ Espera cacete! Deixa eu terminar prime-

A porra do Diogo, sempre querendo ser o primeiro a saber


de tudo...

_ "o mundo retorna ao começo de seu fim".

COM CERTEZA ERA UM SINAL!

_ Ihh... lá vem a polícia...

_ Divide esse binóculo comigo, AGORA!

E assim, terminamos mais um dia... Nesta bela imagem, a


de um policial quebrando na porrada um pichador
vagabundo e inconsequente... Como foi lindo o cassetete na
cara! A marca do porrete em seu braço era com uma linda
dança de valsa argentina... Confesso que tive dó na hora em

31
que derrubou o garoto e o bateu repentinamente na perna
direita. Provavelmente, ele nunca mais irá andar, mas há
um lado positivo nisso: Também não irá pichar nenhum
muro em sua vida. O que me deixou pensativo foi
justamente o policial bater na perna direita. Por que isso?
Será que foi justamente pra ele sentir mais dor, já que
estava mancando? Talvez... Ele sempre age com ferocidade
e violência, e agora teve uma oportunidade pra ser mais
sádico ainda. Não que eu não goste, aliás, é belo e moral,
um cara desses pichando propriedade privada?! Apanhou
foi pouco. O dono dessa casa deveria ter saído e ajudado o
policial a quebrar a outra perna! Mas algo me estranha...
Por que dessa vez foi outro pichador? O que eu posso
concluir, é que os pichadores, provavelmente, só são
serviçais... Se a mensagem realmente bater com a minha
teoria, então a pessoa que descobriu o universo loopado usa
pichadores aleatórios apenas para transmitir seu enigma...
Ele também deve pensar como eu sobre política, porque
com certeza sabe que eles iriam apanhar, mas os mandam
mesmo assim! hahaha. Vamos ver o que ele tem a nos dizer.

32
CAPÍTULO 7 | VOCÊ COME COM PICLES?
Tivemos que seguir o carro da polícia por um bom tempo,
até pararmos na delegacia. Enquanto registravam o B.O,
tivemos tempo de fazer algumas perguntas.

_ Somos da CDIA.

_ CD o que?

_ Olha, temos pouco tempo, e preciso que nos conte quem e


quantas vezes ele te mandou pichar aquele muro.

_ Como assim quantas? Tu acha que se eu soubesse que


seria enquadrado eu voltaria lá?! Mas nem fudendo.. Ah,
vocês vão me tirar daqui? Por favor, conversa com o cara,
vocês são da CD do caralho né? Devem ser mais
importantes que eles, com certeza.

_ Sim, nós vamos te tirar daqui, mas preciso de mais uma


informação.

_ Eu te conto tudo o que quiser, só me tira daqui! Minha


mãe vai me matar..

_ Certo. Me diga: Onde podemos encontrar quem te


mandou?

Rapidamente ele aponta com a cabeça pra um bolso falso


escondido na calça. O policial estava tão ocupado
quebrando a perna dele que nem se tocou, hahaha.

_ Nossa, esse modelo é bem antigo eim. Qual a senha?

_ 1 2 7 8.

33
A primeira coisa a aparecer foi o app de mensagens dele.
Você deve estar pensando: Certamente fui encontrar a
mensagem que precisava para depois devolver o celular,
não é? Bem...

_ OLHA ESSA FOTO DE PIROCA NO CELULAR DELE


HAHAHAHAHA

_ PORRA POLICIAL FOCA NO OBJETIVO

_ Sabe quem vai adorar receber essa coisa maravilhosa?


Hmm.. deixa eu ver aqui.. Que tal essa moça chamada
"Juliana s2?"

_ NÃO POR FAVOR ELA NÃO

_ HAHAHAHAHAHAHA

Em meio a tantas conversas, achei uma peculiar. O contato


não estava salvo, e a mensagem dizia um endereço, o
serviço e valor que receberia.

_ Precisamos levar os 500 reais do seu bolso, você sabe, pra


investigação.

_ VAI TOMAR NO SEU CU FILHO DA PUTA!

_ EU NÃO VOU ACEITAR DESACATOS! POLICIAIS,


PRENDAM ESSE HOMEM!

Infelizmente ninguém me levou a sério. Meu Deus! Já não


basta esses malditos pms receberem dinheiro roubado de
impostos e ainda não obedecem a ordem daquele que os
paga... inadmissível!

_ Diogo, agora temos 500 reais e um celular com a pista que

34
precisávamos. Vamos ver o que esse cara tem a dizer.

Diogo permaneceu calado esse tempo todo, estranho...


Geralmente a boca dele sempre abre pra falar alguma coisa
idiota, nunca não consegue ficar quieto. Qual a necessidade
de falar tanto? Autoafirmação? O ensurdecedor ruído do
ar? Ele não se contenta em admirar o real e só opta pelo o
imaginário, como se encarar a verdade fosse mais difícil e
trabalhoso do que bolar uma grande ideia que irá salvar a
todos nós! A intransigência da realidade é a porta de
entrada para a casa dos lunáticos.

Ao chegarmos no lugar, uma voz falando sozinha soa por


todo o quarteirão, dizendo: "Onde está todos?! Já tentei
umas mil vezes e nada! Mas que inferno!".

_ Acho que estamos no lugar certo.

Ao tocar a campainha, a voz se cala. De repente, vê-se pela


janela um homem, velho, sujo, cabelo bagunçado. Seu rosto
denuncia uma felicidade tamanha que, nem perguntou, e
um segundo depois já se ouvia o som do portão automático
se abrindo.

_ Entre, entre, entre... Quer um café? Um suco? Cerveja?

_ Eu quero!

_ Pode pegar, mas ainda estão quentes, acabei de as colocar


no congelad-

_ Wooow, essa daqui é das boas eim?!

_ Er, obrigado... é a minha favorita também... Então, estou


tão feliz em saber que não estou sozinho... Veja, veja isso...

35
sempre quando isso começa eu anoto nessa lousa, pelo
menos, desde que tive consciência disso.

Eu estava certo! Como sempre...

_ Ouviu isso Diogo? Agora temos um novo amigo, um


companheiro, um parceiro... Agora somos uma equipe! Não
tem essa de eu e você, chará, agora somos um time, agora
coloquem todos as mãos no centro dessa mesa e gritem
comigo: UM DOIS TRÊS, TIMEEEE!

_ Bom...

_ Acho melhor eu ficar aqui, a partir de agora, afinal, do


que adianta mesmo? Amanhã será hoje de novo, e de novo,
então que se foda. Aliás, nem perguntamos seu nome...

_ Ah sim, claro... meu nome é-

_ PORRA DIOGO QUANTAS HORAS?!

Já era tarde, beeem tarde... Tínhamos que voltar em casa e


pegar tudo que fosse necessário, os postites-

_ Post-its..

Sim, os post-its, computador, tudo. Ah, claro, as cervejas


também. E o canal com assinatura premium também.

_ Velhote, a que horas exatamente o loop começa?

_ Está tudo registrado aqui, e, aliás, eu descobri uma


maneira de permanecer quase sempre "acordado"... veja,
gravei esse vídeo já fazem 5 meses, é fácil saber porque,
como já devem ter obviamente notado, o mundo em si não

36
reseta, é só nossa mente, o que comprova que-

_ Que a mente não é matéria.

_ Exatamente. Nesse dia em questão, o dia que acordei,


passei a perceber coisas bem estranhas... Começou quando
eu colocava o lixo pra fora, no final da esquina. Por algum
motivo, o caminhão de lixo parou de passar por lá, e só fui
reparar na segunda vez, quer dizer, é bem provável que
sim, não tenho a memória disso, mas registrei isso em
vídeo. Imagine que bizarro, chegar pra colocar o lixo fora e
se deparar com exatamente o mesmo lixo de antes?
Certamente isso me fez pensar naquele dia, e no outro, e no
outro... Sabiamente, tirei a foto daquela situação, quando já
havia umas 10 sacolas iguais com o mesmo lixo, veja só...

_ Hmm... e quando de fato se deu conta que o mundo


repetia?

_ Bem, é claro que essa simples situação me deixou


perplexo e, sabe como é, algumas pessoas implicam com
muito pouco e eu sou assim, então fui investigar mais disso.
Num certo dia, decidi passar a madrugada acordado
pensando: "Como pode existir tantas sacolas com
exatamente o mesmo lixo?" e deduzi que esquecia da rotina
quando ia dormir, era a única explicação... Então peguei a
câmera e rapidamente disse tudo que sabia, pra mim
mesmo... falei por bastante tempo, até que, de repente,
meus olhos tomaram uma direção perdida, eu voltei o olhar
para a lente da câmera e me perguntei: "Como eu vim parar
aqui?" E dai a gravação acaba. Ainda bem que-

_ Você come isso com picles?

_ O hambúrguer... sim... eu gosto muito, sabe, é crocante,

37
não sei explicar.

_ Hahaha relaxa! Eu amo picles.

_ Sério? Geralmente todo mundo tem nojo disso, e eu


geralmente tenho nojo dessas pessoas.

_ O mesmo, amigo. Então, deixa eu ver se entendi: Você


sempre dá um jeito de ver esse vídeo, no momento em que
a coisa acontece?

_ Isso, e sempre que descubro coisas novas, adiciono mais


partes ao vídeo. É uma maneira de-

_ De?

_ VOCÊ NÃO DEVIA ESTAR INDO PEGAR SUAS


COISAS??

_ CA-RA-LHO! QUANTO TEMPO TEMOS??

_ Se forem depressa, uns 20 minutos.

_ Dá tempo, vamos logo Diogo!

A pressa foi tanta que acabei deixando o hambúrguer com


picles na mesa... Caralho, eu amo picles! Como alguém não
pode gostar dessa maravilha?

_ Putz, o sinal fechou justo agora que-

_ FODA SE O SINAL!!

Esperar a cor verde no alto de um poste é para os fracos.

_ DESSE JEITO VAMOS SER PERSEGUIDOS, PORRA!

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_ E QUEM LIGA? DAQUI A 15 MINUTOS NEM
LEMBRARÃO QUAL A SUA PLACA! MUAHAHAHA

Até que chegamos rápido, contando os inúmeros palavrões


e possíveis acidentes que poderíamos ter causado na
estrada. Recolhemos tudo, o mural com os post-its,
computador... Diogo deixou eu levar até as cervejas!
Estávamos voltando bem depressa, até que...

_ Mas que porra é essa?!

Um acidente. E a gente que causou.

_ SEU FILHO DA PUTA, ERA VOCÊ!

Parece que nosso pequeno descuido com as leis de trânsito


fizeram-nos confundir dois babacas que vinham em
direções opostas que se chocaram. Ainda acho que a culpa é
deles...

_ Calma, calma pessoal... Eu juro que-

_ CALMA? OLHA O QUE VOCÊ FEZ COM A GENTE!

_ Diogo, estamos atrasados!

_ TÁ FALANDO COM QUEM AMIGO?

_ DIOGO PORRA FALTAM 2 MINUTOS!

_ EU SEI CARALHO!

_ Sabe o que? Maluco, tu bebeu?

_ DIOGO, OLHA O CÉU!

39
_ O QUÊ!?

_ Puta que pariu, tá acontecendo...

40
CAPÍTULO 8 | ANARQUISTAS!
Diogo: Mas que porra de lugar é esse?! Com licença, mas
algum de vocês sabem... então ninguém sabe também?
Oush... Talvez seja o estress do trabalho. Espera.. que
celular é esse no meu bolso?! Não é possível...

Eis que a imagem de fundo da tela se apaga, deixando


apenas a visão de um rosto assustado refletindo sobre o
visor, a mesma imagem que vejo todos os dias, de cansaço,
de olheiras do dia anterior, de rugas cobrindo as expressões
que antes sorriam sinceramente. O que esperar de um
homem preso, se não a servidão?

_ Relaaaxa amigo, estou aqui.

_ Quem é você?!

_ Mas não se lembra de mim??? Oh céus... Deus, o que eu te


fiz!! Por que o meu anjo da guarda não se recorda dos
abraços que demos assim que nos encontramos pela
primeira vez! Por que ele não se lembra daquele sorvete de
pistache que-

_ COMO SABE DO SORVETE DE PISTACHE?!

_ Não temos tempo para explicações... apenas olhe isto.

Passei o vídeo do velho pro nosso celular emprestado.


Nunca se sabe.

_ Hahahaha esse velho é doido! Mundo loopado?! Até


parece que-

_ Que o Diogo guarda musicas autorais dos anos 60 no

41
computador? Que o Diogo tem uma namorada à distância?

Que o Diogo escreve um livro de romance que nunca passa


do capítulo 4? Diogo, acorda! Caralho, não consegue se
lembrar de nada? Acredite em mim, não saberia tudo isso
de você se já não nos conhecêssemos...

Ele parou, fez esforço pra lembrar, mas nada.

_ Olha, tudo bem... Realmente, não teria como saber tantas


coisas de mim, mesmo não me recordando de nada. Aliás,
qual seu nome?

_ Roberto Carlos.

_ Hahaha serio? Em homenagem ao rei?

_ Isso mesmo.

_ Ok, senhor Roberto Carlos.. Para onde estávamos indo?

_ Entre, te direi o caminho.

*casa do velho*

_ Bem na hora! Entrem, entrem por favor...

_ Você não vai acreditar no que aconteceu... O idiota do


Diogo se envolveu num acidente de trânsito... Eu tentei
tirar ele dali, fiz o possível, mas ele estava tão perdido
quanto eu, pra falar a verdade... Acabou acontecendo bem
ali.

_ Hey, idiota seu cu! Não tenho culpa de não ter poderes

42
mágicos como você.

_ Hahaha, tá bom... Então meu velho, aqui está tudo o que


reunimos de casa, só não trouxemos a tenda e os
marshmallows.

_ Ótimo, ótimo... vamos reunir tudo o que temos.

_ Aliás... Diogo, toma, pra você rabiscar seu braço, lembra?

Ao puxar a manga, ali estava... O braço marcado, viu aquilo


como se recordasse, nem por um segundo, dos eternos dias
que se via acorrentado por si mesmo. A servidão voluntária
de Diogo, uma boa metáfora para a vida desesperada dos
homens dessa cidade. Diogo não tinha nada de diferente...
igual todos os outros. Como poderíamos nos livrar das
correntes que prendiam a todos nós? Sabe, as vezes o
escravo gosta do chicote, porque cria resistência; do
xingamento, porque cria ódio; dos grilhões, porque prefere
a comida do senhor à liberdade de ter que fazê-la. O
costume do braço substitui a estrada livre dos bons homens,
de maneira que os poucos que tem aprisionam os muitos
que não querem mais. Subjugados. A nossa luta por
liberdade não passa apenas de ética, uma ética
momentânea, porque logo em seguida vão pedir por um
mais um tirano que governe seus passos. Não é só o
governo: é o chefe, a mulher, os filhos, ele mesmo, todos
juntos, implicando ao nosso herói que ele tem um propósito
do qual não pode se desvencilhar por que, ora é inferno,
ora é pobreza. Aí está, o retrato perfeito do homem de hoje,
aquilo que todos buscam, finalmente encontrei! Agora só
preciso de palavras doces e um pouco de poesia niilista
para convencê-los... se bem que não iria adiantar, porque
não teria substância. Seria como dar um copo de água

43
prometendo antibióticos. Poderia até enganar a mente, mas
não o subconsciente. Este é mais pé no chão, racional, dono
da verdade, ou pelo menos, se inclina à ela. Logo ele
perceberia que foi enganado e falaria isso com a mente, e
em segundos, nosso homem morreria. Então não adianta.
Não sou um niilista, tô mais pra Dostoiévski. Apenas triste,
so to speak.

_ E qual será o plano? Por onde entraremos?

_ Muita calma, amigo. Precisamos primeiro absorver todo


tipo de informação. Apesar de todos repetirem o mesmo
dia, algumas peculiaridades escapam. Só precisamos prever
como agem a cada uma delas.

_ O que acha que devemos fazer então?

_ Primeiro, observar. Provavelmente, existem vários nessa


cidade que também sabem, mas se ocultam. Seria
impossível descobrir cada um separadamente. Teremos que
atacar a fonte principal: O governo.

_ Opa, gostei disso!

_ Se aguenta Roberto. Então, como exatamente faremos


isso? Será mesmo que o nosso prefeito sabe de alguma
coisa?

_ Eu duvido que saiba... não acho que o governo correria o


risco de passar informações tão sigilosas assim. E mesmo
que passasse, ele talvez agiria de uma forma-

_ ANARQUISTAS!!

Acho que me empolguei.

44
_ Que porra foi essa, Roberto!?

_ Anarquistas amigos, anarquistas... Diogo, veja as


anotações que fizemos antes... viu? Sabemos que esse efeito
aconteceu há uns 3 anos atrás... não acha estranho que,
justamente, de 3 anos pra cá os casos de anarquistas
aumentaram desproporcionalmente? Não é curioso? E é
mais ainda, porque essas revoltas são todas chamadas com
o mesmo nome: Quem protesta por mais salários, por
menos Estado, por mais, por nenhum... todos são chamados
da mesma coisa, e o desprezo por mais liberdade tem
aumentado, e a mídia é o principal porta-voz disso.

_ O que você está pensando, meu jovem?

_ Que há muito mais pessoas que sabem disso. E que a


mídia está toda controlada. Caralho! É um puta plano. Se
você joga todo mundo no mesmo balaio, fica muito mais
fácil de controlar, melhor ainda se você iguala baderneiros
e vagabundos à anarquistas, porque aí o ódio aos que lutam
por liberdade é aumentado, e o povo pedirá por mais
Estado. É perfeito.

Reflexões a parte amigos, vamos ao que importa.

_ Não importa se o prefeito sabe ou não. Ele age como se


soubesse, e é só do que precisamos saber pra quebrar ele de
porrada. QUEM TÁ COMIGO?!

_ Er...

_ Calma jovem, calma...

_ O rob está certo, caralho! Eu sempre estou. Agora falando


sério: Um de nós precisa de um carguinho público lá

45
dentro. Quem se candidata!?

_ Bom... eu já estou velho demais, acredito que serei mais


útil aqui em casa mesmo, juntando os pontos e fazendo as
anotações que precisamos.

_ Eu não, por que não quero. Sobrou você, Diogo.

Você deve estar pensando: "caralho, esse Roberto, Steve,


tanto faz, é um merda! Puta cara egoísta!". Sou mesmo, e
pau no seu cu. Ajudar os outros pra que? Porque é
legalzinho? Caralho, já tive essa fase. Você cresce todo
inocente, dai descobre que tá todo mundo fodido nessa
vida, e não importa o quanto gente boa ou filho da puta
você seja, no fim é tudo a mesma coisa, é tudo o mesmo
destino. A verdade é que a essa vida é uma mentira,
extremamente contraditória, igual essa frase, e tudo é culpa
de um bendito sujeito que há anos atrás comeu o que não
devia por causa de uma mulher. Agora, a gente é obrigado
a viver, presos nesse planeta, esperando o fim chegar logo,
e resistir, por algum motivo que ainda não sei. É bem o
mito de Sísifo mesmo. Você vai subir a porra da montanha,
sabendo que lá no final a pedra vai escorregar da sua mão,
a diferença é que isso só vai acontecer uma vez, por isso é
pior ainda. Você se cuida pra fazer tudo certo... 1000
acertos! 1 deslize? Acabou. Como deve ser desanimador
jogar uma partida de vôlei sabendo que o resultado já está
contado! Não importa o quanto você acerte as jogadas, o
juiz vai dar o ponto pra eles. "Injusto!" Você pode pensar,
mas e aí? Vai sentar e esperar a partida acabar? Vai deixar
com que os outros joguem tomates em você, te culpando
pela derrota? Muita gente não sabe do resultado comprado,
e mesmo que saibam, melhor ainda! Saberão que tudo é um
grande jogo. Então porra, dê o seu melhor! Afinal, o que

46
você tem a perder? Você só tem a perder cara! A única coisa
que você tem a ganhar é o reconhecimento de ter feito o
melhor, de ter se superado. Se não for pra viver assim,
então nem viva.

47
CAPÍTULO 9 | TRÉGUA! SÓ POR UM
MINUTO...
Talvez você deva estar se perguntando sobre Diogo, se
nosso incrível e monótono homem de social conseguira
realizar tamanho plano; Ou talvez se pergunte por que ele,
justamente a porra de um zé ninguém como ele, fora o
escolhido. Porra! Até eu me perguntaria, até sabendo a
resposta. Ainda me pego perguntando, sabendo que a
resposta nunca virá. Mas também, do que adianta saber?
Propósito e razão são tão óbvios que nem levamos a sério
mais, como uma criança que passa a tarde sem se
preocupar com a janta, por que tem a plena a certeza de que
sua mãe estará ali para alimentá-lo, e é assim que todos
vivemos. E aí, como crianças, nos perguntamos: "qual o
objetivo disso?" "Por que fazemos isso?" E a reposta nos
parece a cada dia mais distante, e solitariamente vemos as
nossas esperanças, também de criança, esvaindo-se diante
das nossas incertezas. A Razão, a tão rica madame laica,
nunca esteve tão decepcionada com nós, os franceses! Nós,
que abusamos dela, a matamos, a relativizamos,
esquecendo-nos de sua tão maior e gloriosa mãe, a nossa
verdadeira guia, a Moral; Esperamos ela adoecer, vimos a
sua queda e, quando ninguém estava olhando, a matamos
com um só golpe: um divino expurgo iluminado. A nova
era que nos colocou como bestas de volta para a caverna de
Platão, por que, para nós, a verdadeira luz, aquela que nos
transcende, nos mostra o quão fracos somos, o quão
queremos a mamãe, e o quão limitados somos. Então, o que
fizemos? Voltamos para o nosso cantinho escuro,
acendemos uma fogueira, e ficamos admirados por que,
finalmente, conseguíamos controlar a luz! Limitamos a
nossa epistemologia à uma frágil e fraca fogueira, onde

48
qualquer sopro a faz apagar, mas ai daquele que assim o
fizer! Quem seria louco de apagar a chama da liberdade?
Quem poderia mostrar um novo caminho, se só há esse? O
caminho de fora, dizem, é impossível de conhecer!Ouça o
som do sacrifício que fizemos! Cheguei perto, e pude ver a
brasa tocar os pés dela; o corpo que ardia, os gritos que
clamavam: "Clemência, clemência! Óh mãe, por que me
apresentou aos homens! Por que me revelou aos pútridos!"

Seu choro ainda ecoa por todo o salão, fazendo-nos remoer


em nosso próprio jogo, que por ser humano, falecerá.
Chegará o dia em que a pequena chama tocará o teto do
nosso conhecimento, e não verá outra saída se não pela
janela, a mesma por onde poucos escolhidos escaparam. E,
como nos recusamos a passar por ela, morreremos todos
incendiados, e a Razão finalmente terá sua vingança contra
aqueles que a estupraram!

Conto-lhe essa história, pois deste modo chegamos aonde


estamos. Os sintomas já são claros, o tumor está crescendo,
e a qualquer momento nos atacará! O pai da Moral que é
mãe da Razão me escolheu, e eu ainda não sei o por que.
Não sou nenhum cirurgião, mas sou eu quem operará esse
tumor. Eu serei o último suspiro da caverna, respirarei o
último átomo de oxigênio deste salão, antes que a desgraça
tome conta, e morreremos todos asfixiados como espécie.
Espero escapar pela janela antes, a mesma que já dizia o Pai
da Moral que é mãe da Razão, é estreita. Que o Pai me dê
forças, e que me ilumine com a verdadeira luz.

Assim como contamos de onde viemos para entendermos


como chegamos, precisamos entender Diogo, para
sabermos onde chegaremos. Afinal, quem é Diogo? Veja,
você está aqui até agora, você se interessou pela história de

49
um homem que não tem nada para contar! O que só me faz
pensar por um breve momento: "O que eu devo contar-lhes
para convencê-los dos meus planos?" A história deste
homem é imensa, quase uma enciclopédia, aliás, quem não
é uma? O que posso contar deste homem transcende todo o
conhecimento que poderíamos absorver, ou poderia uma
vida inteira sobrepor a outra? A mente é una e indivisível.
Ela apreende o mundo, ela se enriquece completando-se no
processo dialético de conhecimento mútuo, formando-se e
deixando ser formada, mas ainda una e indivisível. Não
poderá absorver a mente de Diogo, mas poderá levá-la para
o resto de sua vida, se assim desejar. E prometo-lhe que
jamais se arrependerá.

Apresento-lhes Diogo!

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CAPÍTULO 10 | ATO 1 | A PROGENITORA
Por sobre os montes cálidos do deserto via-se a figura de
um desconhecido, uma forma meio humana, vagando
solitariamente com os pés descalços e cheios de calos; via
na penumbra uma chance de se recompor, e sorria
incessantemente pelo espírito que lhe aguardava. O Espírito
o chamava com voz suave, guiando a razão do homem para
o seio daquela floresta saariana. A noite descia, e a sua
visão pesava; o cansaço denunciava sua falta de energia; os
calos, a dor; e a sede, a morte. Já sentia a alma saindo de
seu corpo, como se transcendesse os limites da carne. Já se
sentia parte do Todo, exatamente como o Espírito queria.

Caiu.

As raízes que saiam da terra o levavam para a parte mais


interna da floresta, de modo que se transportava por várias
partes, mas sem saber, pois estava desacordado. O Espírito
lhe fez despertar.

_ O que quer comigo?

O homem, o libanês, não entendia.

_ Não foi por ti que vim buscar refúgio, não foi de ti que
procurei ajuda.

O Espírito, porém, insistia:

_ O que quer comigo?

Inapto por não ter respostas, seguiu o libanês, entre os


caminhos que pareciam já ter sido trilhados por outros
aquém o Espírito também parecia uma vez ter chamado.

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Ah, se soubesse o libanês que seu caminho não era tão
tortuoso assim! Se conhecesse o destino dos homens que,
por uma vez na vida ousaram como ele ousou! Ousou sem
saber o que era ousadia, venceu sem saber o quer é ganhar.
Se pudesse descrever como saiu de lá, não poderia dar-nos
melhor resposta do que um singelo "não sei." Na verdade,
só haviam caminhos já trilhados, e teve de escolher
sabiamente. Esporadicamente encontrava novas trilhas, e
teve que contar com a sabedoria para podê-lo guiar, uma
vez que ainda estava por lá, perambulando; o fez pelo
passar da idade, entrando novo, alçando à maturidade, e
permanecendo em velhice, porém sábio. O Espírito às vezes
lhe aparecia, como numa vez em que perguntou:

_ Por ventura sabes como voltar à casa?

De sorte que lhe dizia:

_ Saber, eu sei.

_ Então por que não te retornas? Não há mãe esperando por


ti? Não há o mundo dos homens esperando por ti?

E desta vez o libanês era que insistia.

_ O que há para mim lá?

_ O que há aqui para ti?

_ E por ventura sabemos mais do que já sabemos? Veja, não


vi os anos passarem nesta floresta, mas por força que a por
todo explorei; vi de todas as espécies, bebi de todas as
fontes, e me abriguei em todas as rochas. Desviei de toda
astúcia e de malícia, evitei o mel e desprezei o cálice,
suplantei do medo o movimento que impulsiona-me, para

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todo dia, andar e andar, conhecer e conhecer. Não pareço a
ti ter chegado onde outros não estiveram? Será que não
pareço a ti ter transcendido outra vez?

_ Então diga-me o que queres comigo!

_ Responda me tu o que queres comigo, pois eu quero sair


dessa floresta!

Estranhara o Espírito, pois lhe dizia que gostava do lugar.

_ O que queres fora da floresta? Quer a vida de antes?

_ De sorte, não; a vida na floresta não é de todo prazerosa, e


parece-me ser-nos feita somente aos escolhidos; Do mesmo
modo não poderia escolher voltar, por que o que há lá fora
não se finda, e é como a sede que se mata, pois nunca a
mata, uma vez que a nós retorna.

Então lhe perguntou o Espírito:

_ Se não aqui e lá, aonde quereis ir agora?

_ Quero ir ao Todo da floresta!

E assim o Espírito o fez.

***

Viu-se do 19 uma massiva imigração às Américas, donde


pode-se experimentar nos respectivos países tamanho
crescimento não só exponencial 'populacionalmente' quanto
economicamente; as fábricas rasgavam o solo, os prédios
erguiam-se, as pontes se findavam, de modo que o motor

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da história agora não poderia mais ser parado. Entretanto,
já desgastada, a escravidão não poderia de maneira alguma
continuar, haja vista os grandes, que os grilhões dos fracos
haviam partido (o que só indigna-me o motivo de te-los
vindo à cá). Vieram e acrescentaram, fizeram-nos despontar
de colônias às suas próprias culturas, de tanto que não
puderam evitar as aclamações por independência, ainda
que sendo república, mesmo que sem projeto, mesmo que
tortamente; e foi mesmo, bem tortamente. Das várias res
publica, só à uma alcançou tamanho status, justamente
àquela do Norte, que vangloria-se chamar-se América;
talvez por ego, porém jamais desmerecido. No Sul,
concentraram-se em São Paulo, Guanabara e Minas. Em
Minas, mais ao interior, que tão vasto, ainda nos era boa
parte desconhecido; novamente os bandeirantes seriam
estrangeiros! irônico como que dos descobridores do Brasil,
nenhum deles o é; se o fossem, esconder-se-iam nas
utópicas cachoeiras, que valem-se de contemplação quase
que divina (talvez por sê-la virgem); e foi mesmo nesse
ínterim de brasileiro com imigrante, que nele formou-se o
seio da sociedade latina. Viemos da mistura da mistura; ao
mesmo tempo um e todos, de modo que não surpreende à
nenhum sujeito são o propósito de não termos sequer
identidade! se viemos assim, é certo que pela avareza
voltaremos assim, como que numa sopa de legumes donde
as couves e alfaces não se dão.

De uma dessas uniões, veio alguém; no seu sangue, por


parte de mãe, a natureza, que dantes engrenhava-se nos
matagais e nas aventuras, vivia o que o homem moderno
da cidade chamava de bárbaro, mas ela não conhecia
tamanho elogio; assimilava com o coração, de sorte que
tinha mais da realidade em seu ser do que qualquer um que
encarnasse o espírito de Hegel, e se pudesse expressar com

54
palavras, talvez mesmo assim nada diria, por que nada
mesmo poderia dizer, por que a ninguém se pode falar
aquilo que escapa da palavra. Soubera guiar-se, e numa de
suas andanças, parece-me o destino aliviar-se de algum
julgo que antes lhe fora feito, talvez por pura modéstia ou
ego, fez-na o encontrar, um estrangeiro, um urbano,
profundo conhecedor da ontologia grega, homem
culturalíssimo; no passado deu aulas, hoje descansa, como
quem o fizesse para criar (ou tirar de si) o que sabia mas
ainda não pusera na luz. Se de novo o fez, não sei de modo
conciso dizer, mas lhe veio a mente vir a cá, e fixar-se entre
as florestas, talvez ouvira entre os seus o ouro que lhe
esperava, e foi-se achando ser algo precioso, e de precioso
só encontrara ela. Não de outro modo poderia vir de dois
grandes uma que não fosse de vulgar envergadura, e quão
grande foi! Talvez vivera como bem Deus quis, e soubera
mais uma vez dos planos que no mistério fixa morada. De
si e de um prospecto alemão, imigrante forte, grandíssimo
homem loiro de claros olhos, a descendência quase
experimentara uma utopia; de si vários vieram, e duma de
suas criações talvez da mais interessante foi a Mãe. Da Mãe
muito não se fala em mantimento de segredo e em respeito
de história, o que se conta é que sofrera, de modo que tanta
energia voltava em cimentada sabedoria, dessas que dos
atos subentende-se forma, e da forma um taquigrafo, do
taquigrafo a tinta, da tinta a impressão, da impressão ao
coração; mais sábia que os sábios vivia de intuição, digna
de compreender, dos meandros daquilo que pensamos
como humanos, ela sentira em seu peito como
transcendência metafísica; certo que dirão os que a
perseguem, fazendo-se tolos por trás do brilho cego que de
outrora orgulharam-se por do mundo ser prescrito, que "de
mulher da roça só se aprende plantar!" Mas ora! E dos
loucos espetáculos da universidade, do que se aprende

55
mais do que ser outro louco perpétuo? Por que o mundo é
um hospício onde os insanos assumiram o posto de
médicos, e deixaram que escapasse tudo que antes
orgânico, agora ascético, da forma mais fisicista que pudera
se imaginar.

Sorte que vivera nosso herói com um dos médicos, que se


pedisse mais do que sua sabedoria elevada, estaria
reclamando diretamente com Deus, e que apesar das
muitas vezes em que o pedira, muitas hoje se arrepende, e
observa pacientemente os mistérios a que lhe fora
outorgado.

E de todas essas andanças, viera-nos Diogo.

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CAPÍTULO 11 | ATO 2 | INFÂNCIA
E se tivera o que se espera de um pequenino a sorte de um
dia encontrar o amor? Por que de outros não puseram-lhe
prova, ademais, o que de fugaz possuíam além do espírito
aquietante? Dos saltitantes algozes perpetuam-se desgraça,
como que de um pobre povo perpetua-se miséria! herança
somente de humildade, consequência de não poder
demandar... mas a este, amigos, a este lhe foi dado o dom
da revelação! Como que dos antigos magos, que de outrora
enchiam-se o ego, e do nada, nada puderam tirar-lhe, a este
fora diferente; realizava aos olhos aquilo que lhes tocava
apenas ao coração, como que do abstrato retirasse matéria;
da physis, metafísica, e da vontade, o amor. Se noutras
vidas existira, o que se concede agora, à Platão, não mais do
que apenas bons ensejos? Porque se assim o é, acertara, e de
modo perspicaz nos contara da alma, que de plena forma
absorvera tudo o que antes tinha, e de agora apenas
recordação; como se em cada momento de ternura, de dor,
de apego, afeto, dolo, paixão, sentisse-na tocar a mente, e
recordasse de um passado de que nunca antes tivera! Oh,
pobre criança, confusa em seus pensamentos, sonha com o
que não se viu, vive como se não fosse desse mundo, foge
para dentro de si, vive o paraíso dos filósofos! E se vivera
somente de pensar? Qual outra atribuição lhe fizeram os
que dantes zombavam-lhe? E por que aos outros o
reconhecimento, e ao nosso, ignorância? Porque no mais, se
o Mundo tirara-lhe a energia do próprio Mundo, a ele
ninguém pode tirar a vontade que emanava em seu
espírito; não é fácil como parece viver como escolhido que
se é, porque se é porque se fez, e se fez porque colocou à luz
o que se guardava, e só guardava porque lhe fora dado, e
como se acha aquilo que não se sabe onde procurar?

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Poderia alguém achar o que se não se procura? Sim,
pudera, mas: achará o que te procuras? Encontrarás o que
lhe apraz? Revolverás até que te imputes perdão? E como
reclamas, se aos outros não se pode comunicar? Se é certo,
amigos, que do nosso amigo se extrai demasiado dolo por
saber, a nós, os tolos, que humilha-vos, resta-nos
misericórdia e humildade.

O que se produz de um ventre magistral, se não a


magistratura? Do que se nos é dado a enxergar apenas
àquilo que se propõe aos olhos ver? Que de outra maneira
não entende a carne se não das coisas a que lhe é própria...
que aguardem os espetáculos, ainda o verão saltar por entre
os palcos!

Nascera perto do novo milênio, concebido por quem antes


minha alma recordara. Se de todos os cuidados do mundo,
e de todo o amor que se encontrara pudesse, de algum
modo, sintetizar-se num único ponto humano, é daqui
então toda a fonte de afeto; porque se teve todo o carinho,
até na concepção, de maneira que orgulhavam-se os pais
como que se criassem a mais obra prima de todas.
Moravam modestos na rua 16, sujeito às enchentes de
outrora, ademais, já se bastava a chuva que aos pés da
senhora molhassem mais do que as lágrimas que escorrera
de seu rosto, dias depois... mas vivera bem. Os dias de
começo desenvolveram-lhe uma peculiaridade espetacular,
como se já de berço recusasse ao latente dissabor que a
realidade outorgara aos seus súditos, e a todos aqueles que
a quem estava submetido; desconfiaram autismo... me
lembro o dia em que o encontrei sentado entre os
brinquedos no seu quarto, algo como um chocalho ia em
suas mãos, e balançava aquilo com o mesmo rigor em que
instintivamente fixava olhar; os pais, dó; telefones e ajuda

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médica lhe apareciam constantemente, mas nada puderam
atender ou diagnosticar; mordia e olhava, mordia e olhava,
como um pré-histórico brincando de se queimar; os
telefones pra lá, os médicos de cá, a TV ligada, a gritaria da
vizinha sobre o som alto do vizinho, a turbulência da vida,
a inúmeras sequências de causa de efeito que não paravam
de suceder e suceder-se e no suceder de suceder iam
sucedendo e sucedendo e... o coraçãozinho, que de tão forte
batia e num descuido médico que não lhe prestara atenção,
caiu. As batidas agora estavam ritmizadas com o Universo,
diretamente conectadas na harmonia do Cosmos, e
puseram-lhe a prova pela primeira vez, em sua primeira
Viagem. Não sentia-lhe nada de humano, porque a mente
tinha se disposto a reconhecer os talentos e as bençãos que
o Universo lhe proporcionara. Em meio a densa e colorida
nebulosa em que repousava, aparece-lhe um Velho, que o
desperta, e o convida para dentro da nebulosa, que esconde
em suas ranhuras os segredos de toda a Realidade.

Seguiu, e entre as camadas coloridas do pó das estrelas que


lhe cercava nada conseguira abstrair ou entender, ou ao
menos compreender, como que do limite de seu
conhecimento. E vendo o interesse de Diogo, disse-lhe:

_ É aqui o invisível que Deus colocou no fim de sua obra


humana, donde ninguém vê e ninguém pode passar.

_ Mas como pode, se adiante dele eu ainda vejo o Universo?

_ E não é o Universo o limite de si mesmo? Por que além do


que existe, pode existir algo? Ou além da existência,
subentende-se o que não existe? Pois, do mesmo modo em
que não se vê além do que não existe, também não há a
mente ao que aprender além do que lhe não se é própria

59
aprender.

E prosseguira, seguindo o Velho. Passando da barreira,


conhecendo toda a realidade que pudera colher; se pusera
como um servo do conhecimento, até perceber que tudo o
que se via jamais retornara a ser o que dantes era, e todas as
coisas engrenhavam-se, uniam-se e separavam-se, de modo
que a única coisa que permanecia era a mudança. Sobre
isso, perguntou:

_ Como pode ser tudo o que existe, não ser? Pois aqui nada
é, mas me parece ser; tudo é algo, mas algo que não é.

_ Ah, meu jovem.... aos homens é dado apenas um


vislumbre da criação de Deus! Veja: O homem contemplava
o céu porque, maravilhado, animava-lhe o espírito conhecer
aquilo que, por algum motivo, trazia-lhe gozo inigualável;
mapeando as estrelas, descobriu a ordem cósmica do
Universo; decifrando as leis, descobriu a Física; com a
Física, a gravidade; com a gravidade, a relatividade. Ora, os
mistérios ainda hão de ser descobertos, mas cabe ao homem
maravilhar-se com o agora, para que dele extraia a força
motriz pelo qual antes foste movido...

E seguia o Velho, que ia entre as florestas e riachos,


vagando sem destino, observando o complexo desenrolar
da realidade. Até que, de repente, tudo começa a se
dissipar; as folhas perdem-se em meio ao ar, o céu escurece,
as fontes secam e o Velho não existe mais. De repente,
preto. Os olhos de Diogo abrem-se lentamente, e percebe
uma forte luz vindo de cima. Ao lado, médicos, máquinas e
uma mãe, que emocionada, abraça o filho, sabendo que
ainda não é o momento de sua partida. Acreditavam o
menino ser estranho... os estranhos.

60
CAPÍTULO 12 | ATO 3 | TUDO O QUE
ALGUÉM PODERIA IMAGINAR
Nas minhas andanças rotineiras de domingo pude me
deleitar sobre aquelas coisas que escrevi sobre uma vida
que sempre estivera no limiar de seu descobrimento, na
beirada moral de ousar ser o que sabia que nunca seria.
Qual a lógica desta busca? Por que nos fazem cair nesse
conto de Sísifo? Daria o que fosse pra entender... a vida
parece recompensar o que nosso eu insiste em destruir;
viver é isso: aceitar sua miséria e viver como um medíocre,
ou renegar-se por completo e morrer como um coitado. Nas
reflexões, vi um louco, destes que os outros mudam o curso
de sua pitoresca e trágica jornada, daqueles em que os
cuidados de uma vida solaparam-lhe em completo desgosto
humano; dos excluídos; dos que não passam pela tosca
portinha, a saber, o mundo; nele eu pude ver o que
esperava em tantos dias! Eu vi, e por poucas vezes eu pude
ver, aqueles que viam sem olhar, ouviam sem ouvir, e
sentiam com a alma! eles tinham uma coisa inexplicável,
uma coisa diferente, algo que nenhuma forma de expressão
pudera me dizer, com toda a clareza de pensamento, o que
passara por ali, o que só me faz a cada dia ter mais certeza
de que há algo em que nós podemos nos repousar, como
um porto seguro, ou como uma rocha áspera e fria que me
permite deitar e descansar-me em paz... mui curioso:
quanto mais me decepciono, quanto mais me angustio com
a minha pequenez, quanto mais acho que tudo que sou é
apenas um nada, quanto mais me sinto como alguém que
nunca sabe, e quanto mais me perco em meus próprios
pensamentos, sempre lá, bem no finalzinho, eu encontro: Lá
está o Todo-Poderoso para me encontrar. Seu abraço
conforta minha alma, seu toque me faz repousar em verdes

61
pastos, e Ele me guia pelo vale da sombra da morte! E
assim me sinto, como mais um perdido em meio aos que se
encontram, um solitário no meio de muitos.

O que este louco queria? Não sei... poderia lhe peguntar,


mas não o entenderia e, talvez, ele não me entenderia
também porque, as vezes, conseguimos transcender sobre
nós mesmos, de forma que o que se vê (e se vê) não se pode
ler, ou dizer o que é: é, e apenas é. Eu penso em que formas
inusitadas aquele louco poderia me falar alguma coisa. E se
eu tentasse viver como ele? Necessário dos cuidados de
minha mãe, bebendo e comendo daquilo que me sentir
vontade, brincando e descobrindo o que pudesse... seria
então livre, finalmente? poderia ter a vida que queria ou
melhor, o que seria diferente disso se não da própria
liberdade? Eu pude então perceber o que até o dia em
questão não tinha em minha mente: O maior dos
prisioneiros, era o mais livre dentre eles, porque enquanto
os de fora eram condenados por sua própria liberdade, este,
do lado de dentro, era condenado a ser livre, dentro do que
poderia ser, afinal, não é o mesmo o mundo um punhado
de escolhas? De tentativas? O que lhe difere disto? Porque o
homem que ansiava ser o que jamais seria nunca mais
poderia ser quem antes agora se tornou.

E assim era o nosso pequeno Diogo, um pequeno


prisioneiro em seu próprio universo.

Os anos se passam, e as viagens que tivera se tornam cada


vez mais recorrentes, de modo que, por alguns momentos,
passara a confundir-se com o que chamavam "mundo real",
ou o mundo deles. O que lhe recomendaram? passeios.
Vivia por ali, andando pela 16 com a 34, jogando bola e
essas coisas de criança, pra ver se voltava pro planeta terra;

62
ademais, concorria com outros das coisas que lhes
imputava a ser, como uma garota, por exemplo, quem seu
coração foi tão marcado que se lembra dos traços do seu
rosto, do loiro de seu cabelo, do sorriso que lhe dava, mas...
como alcançá-la? como chegar até lá? porque lhe parecia tão
distante, e tão complexo, que preferia admirar-lha por
longe... Oh, mundo! Por que lhe trouxeram ao seu tosco e
infantil universo? Estão loucos??? estão! não há o que vocês,
vergonha da humanidade, podem fazê-lo, nem repará-lo,
nem desafiá-lo, nem testá-lo; não perceberam do que se
trata? parecem tão entretidos na sua realidade, e mal
conseguem pôr-se a explicá-la. Vocês são o que há de pior
para o menino...

...e como se não o bastasse, além de sê-lo posto a sentir por


eles, o vão ainda o pior. Lhe contariam da ocasião de
quando nascera: da fortaleza viva de sua mãe, das
excitantes aventuras de seu pai... uma pena que de nada
acontecera. Era adotado.

Certa ocasião foi-se a madrasta caminhar pelo bairro;


trancara a casa e pôs-se. Algum tempo depois, retorna, e vê
em plena luz do dia um pequeno berço de madeira feito a
mão, coberto com doces lençóis e, claro, uma criança nele.
Chorava; a mulher, em desespero, volta-se ao entorno de
seu grande quarteirão, e parece não haver ninguém que lhe
reclame a criança. Parecia até um presente! Como poderia
surgi-lo em tão perfeita ocasião? Mais tarde naquele mesmo
dia o marido chega, e sua primeira reação é clara: devolvê-
lo; "Por que assumir por algo que não te pertence?" -
pensava... até que, quase como um ode ao acaso, o pequeno
sorri, enquanto observava quietamente os duros comandos
de seu novo pai. Talvez pensara: "por que meu pai está tão
bravo?" e ele, pensando: "por que o meu filho está sorrindo

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pra mim?" e quem sabe daí tivesse surgido alguma costura
de amizade; nada soubera do que ali acontecera, apenas de
que ficariam com a criança...

O menino, que mal compreendia das palavras dos homens,


é suficientemente capaz de interpretá-las e de refugiar-se
solene em seu quarto; os pais tentaram-lhe contato; à portas
trancadas, o pequeno se encosta num cantinho, e a cada
memória que vê-se junto com seus pais lhe é maior motivo
para deitar-se em mais um profundo sono de espírito,
donde o desespero do mundo nunca poderá lhe tocar, e a
sábia criança o sabe melhor que ninguém... pôs-se por um
tempo, até que o seu fantasma de outras horas viesse, como
sempre, lhe despertar. Até aquele momento, o seu corpo,
deitado sonolento na cama, contemplava das maravilhas
que a carne lhe proporcionara com um bom descanso
frugal; na alma, revive o paraíso, desta vez num grande
planalto, onde a mais verde grama toca-lhe por completo, a
copa das árvores dançam junto com a brisa do lugar, tão
maravilhoso lugar. Admira-se; pois quem não? lhe parecia
mesmo o paraíso! É que desde sempre, quando do mundo
real lhe interessava algo, era como destes lugares que
imaginara estar nalgum dia, só com a criação de Deus,
vivendo da mais doce e pura contemplação espiritual, como
se dela fosse o motivo da adoração do Altíssimo, pois era
ali, naquela natureza tão pura, onde homem algum havia
pisado para contaminar-lha com a imundícia de seus
pecados, era ali, em que encontrava repouso pois pudera,
tão humanamente mas de tão modo gracioso compreender
o quão grande era Aquele a quem lhe devera tudo, de
modo que de todas as coisas que possivelmente pudesse
escolher, em qualquer lugar que estivesse ou a qualquer
lugar do tempo, sem dúvida escolheria estar aqui... quem
sabe findar-se aqui, por que não? Afinal, não é este o

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destino de todos os homens? Era lá, deitado sobre a sombra
de uma grande árvore, com os pés entre as raízes, junto à
terra que quisera transportar-se para além da
compreensão... queria ser um na criação! Queria ser junto à
Deus! encontrar-se com o seu verdadeiro Pai... Sonhava
com tão estranho desejo, uns diziam, pois viam novamente
apenas naquilo que a carne dedicava-lhe algum apreço, e
toscamente achavam que um amontoado de matéria
poderia lhe dar a vida! Como pudera a tantos cair nisto?
Como puderam estar de tal forma tão estúpidos assim? O
que acontecera com o arbítrio da criação, para que
escolhesse esse destino tão infantil? Eu não entendo...
porque parece ao homem escolher aquilo que é bom, que
lhe acalma, ou simplesmente aquilo que é, no lugar daquilo
que é mau, que lhe atormenta, ou simplesmente aquilo que
não é afinal, Deus é tudo e ao mesmo tempo Um, e tudo
que lhe foge está tentando fugir de tudo o que existe, a
saber, do próprio Deus! Então como o pode o homem
encher-se de algo que a Deus não fora criado? Talvez
partira os homens deste verdadeiro e ambíguo pensamento
para que cometesse as maiores atrocidades que nem mesmo
eles pudessem imaginar! contaminaram-se naquele jardim,
pensando que do Criador pudessem lhe fazer igual, afinal,
"se tudo é Deus então eu também o Sou! O que me difere de
toda a criação?" e confundiram que, da criação, nada se
cria; do que é feito, nada se faz; do que lhe é posto, nada se
pode tirar. Tão pequeno o homem, mas tão grande em
ambição! parece-nos um delicioso mistério saber que somos
cheios de um desejo tão sublime, tão glorioso, e ao mesmo
tempo tão rasteiros, e tão pecadores! Oh Deus, por que nos
deste a dor da escolha! Por que nos fizeste sedentos de
tanta coisa! Porque se pudera eu escolher por somente uma
coisa, é certo que a Ti eu escolheria, não por ser-me tão
forte para resistir, mas justamente por ser-me tão fraco para

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cair! Se meu coração desejasse, por mais uma vez, que seja
somente a Ti, e a Ti, e para sempre... E agora, Senhor,
desperta-me de tão maravilhoso sonho, transporta-me de
novo para aquela prisão, e veja-me escapando de suas
amarras, porque agora em nada poderão me segurar! E se
houver um sequer, daqueles que tentarem me fazer como
eles, o afastarei, por que só a Ti cabe-lhe alguma salvação; e
assim como salvara por este sonho, Senhor, faça-o à eles!
acorde-os de seu negável pesadelo, faça-os perceber do
caminho por onde passam! Por que até aqueles em que me
colocaram no pior lugar, até a eles Senhor, por ser-nos
todos de Ti, e se a mim pudera salvar, aos outros, também o
Senhor poderá trazer-lhes a Paz.

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CAPÍTULO 13 | ATO 4 | A COMPOSIÇÃO
DE MAIS UMA ANGÚSTIA
Já se perguntara nalgum momento do que somos tão
movidos? Sexo, dinheiro, sobrevivência, talvez ambos
diriam... mas encontro em todos aqueles que se dedicam ao
exercício da existência a pura e simples presença da única
coisa de que lhes é feito: energia; a força vital dos que se
arriscam no peso da consciência. Eu penso que talvez há
aquele que me impute a persona de um hippie ou coisa
parecida, mas arrisco dizer que em nada talvez pensemos
iguais, ou em nada concordaríamos se sentássemos numa
tarde de café; ou numa relaxante ida à praça, com sua tão
acertada grama, que por presente de Deus conforta-me, e
enche-me de uma paz inimaginável! Por que a todo
momento em que me encontro só ou perdido, ao mesmo
tempo, repouso conscientemente no espírito da minha tão
bem guardada alma... e sinto tudo o que posso entender, e
passo a compreender de tudo o que me cerca, e vejo do que
realmente é o homem movido, por que lhe pensa a essa
atribuição a alcunha de algo que lhe possa elevar, ou a algo
mais baixo ainda, que se equipare aos prazeres dos animais,
mas o que não o percebe é que de todas as coisas do
mundo, a ele está reservado o presente de poder escolher, e
é isto, justamente isto, a essência de todo ser humano. E ao
que se pode escolher? Sexo, dinheiro, sobrevivência, ou
ambos? Digo: A tudo podes escolher, mas a nada terás por
certeza, ou por força de vontade. Então o que lhe é? O que
lhe pertence? O que certamente não pode ser preservado ou
guardado, nem analisado nem compartilhado; aquilo da
qual mal conseguimos explicar, e tampouco podemos
estudar: Amor, ou na falta, a tristeza; não competem, nem
padecem de qualquer sofrimento, ou julgam-se superiores

67
sobre qualquer medida; é do que está cheio o coração do
homem. Quando das coisas do mundo, desde uma simples
visão de um céu noturno, até o tão profundo e divino beijo
do melhor dos lábios, a todos estes eventos há algo para se
julgar, e à estes dois são o papel. Quando um encontra o
amor nos lábios de uma mulher, o outro lhe sente uma
profunda depressão, e tão logo a sente por que sabe que
não poderá evitar, a saber: apaixonar-se; daí ambos
coexistem, e a cada batida do coração, a cada sangue quente
que corre por entre as veias, mais de ambos enche-se o
homem, e daí ele entende do que lhe é formado, e o
produto que se gera: angústia.

E o que difere o homem de Diogo? é certo que não lhe


compara aos demais, porém, nem servo nem senhor Diogo
é, e talvez seja por este impossível meio termo, da qual
somos incapazes de definir, se forma em sua essência.
Diogo é isto: uma coisa incapaz de definir. Uma palavra em
branco, um termo não traduzível, um hieroglifo de uma
extinta tribo. Como poderá então se encontrar, se é que há
este lugar? Saberá um dia, ou viverá pela angústia, até o dia
em que os vermes lhe consumirão por completo quando lhe
encontrarem debaixo da terra? A indefinida angústia de
Diogo lhe perturbara por toda a infância, de modo que, por
mais esforçados que fossem os padrastos para lhe
empurrarem ao mundo dos homens não pudera Diogo a
esse acostumar-se; sempre tropeçara nalgumas pedras, por
não vê-las. Não o entendera, ademais, também não lhe
cabia, de maneira que sofria por dentro, porém, algo do
mundo dos homens encantava Diogo, talvez até mais do
que os próprios homens: a tão solene beleza de uma
mulher. Perguntava: "Como pode o mundo suster algo de
tão precioso?" Para ele, era como se as fossem pérolas no
meio de porcos! Poderíamos dizer que lhe enganara? De

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modo algum! estava a descobrir, tão discretamente e ao seu
modo, do que lhe era (e aos outros) feito.

E de igual modo enfrentara a tão tarefa de desvendá-las, ou


por a luz aquilo que não se podia somente ver, e lhe fora
necessário passar por todos os momentos que pudera,
vivendo em si a força da qual o amor e a tristeza tanto lhe
movera por toda a sua vida. Namorou, tão cedo, e tão cedo
sentira o doce, mas curto sabor de se apaixonar, e de se
desencantar, por ser, por si mesmo, enganado;
experimentara a angústia de tão estranho modo não agir
como um homem que a uma deseja amar; não neste sentido
pueril, mas por um todo completo. Dizem os gregos que o
amor se divide em quatro; um sobre o amor de irmão, outro
de namorados, um outro de compaixão, e um outro sobre
vontade; Diogo sentia todos de uma vez, e o mundo, mais
uma vez, lhe julgara por isto, ou por que lhe diziam que só
buscava por sexo, ou por ser um desprezível carente, o que
se é uma estranha acusação, afinal, não são todos carentes
uns dos outros? Não somos todos uns perdidos em busca
de um lar? Talvez seja pela dor de confessar que os outros
lhe imputavam o repúdio de julgar. Não somente conhecê-
las, como tão profundo fora em suas viajadas aventuras, e
passara uma certa vez em busca de um beijo, do qual jamais
pudera a alma sentir, por tão longos anos... Até que
consumara o espírito, como numa suave dança, como no
alívio do noivo a espera da noiva, e quando lhe parecera
que o amor finalmente lhe tomaria por completo, veio-lhe a
tristeza, por saber que o que tão bom fora por alguns
segundos, terminara com ela indo embora, e lhe perdendo
o contato, até hoje... A angústia lhe fora inevitável, e depois
de tantos anos em que sua alma dedicou a elas amar,
entendera finalmente, depois por todas elas refletir, o que
até o momento nunca lhe era permitido entender, agora lhe

69
é claro: não pudera nenhuma delas ter por que nenhuma
delas entendera o que era o amor que sentira. Como
mundo, lhe trataram como mundo, mas como tinha o seu, e
como num ato repulsivo de expulsão de um corpo estranho,
lhe jogaram impiedosamente no subúrbio da miséria, até
que, por o que lhe parecera um milagre, encontrara uma
que lhe entendera, dos fios da cabeça até os tortinhos dedos
do pé; como uma surpresa, vestia-se diferente, e não era de
modo algum igual as outras pelas quais recordara! O
coração encontrara finalmente repouso... lembrava-se da
primeira vez em que puderam se encontrar, e como soubera
que nela achara o que fazia o seu coração disparar mais
forte, e pudera também entender que este batia não por
uma tola ilusão infantil, por que desta doença já tinha sido
curado; até que ao final de todo o passeio, antes que lhe
fosse embora, lhe reclamou um beijo, antes que a partisse, a
ponto que ambos sentiram, finalmente, que encontraram o
seu lugar de descanso. O que lhe enchera a alma foi tão
sincero, e tão confortante, que lhe sentiu seguro de
comemorar o seu aniversário somente com ela, na sua praça
preferida, a mesma praça em que naquele momento
recordara de todas as outras que lhe fizeram finalmente
entender. Encontraram-se em tão apaixonados beijos, e seus
lábios corriam por todo o corpo, onde as suas mãos
pudessem tocar-lhes por toda a extensão de suas faces, até
que podiam finalmente abrir-lhes os olhos, e então admirar,
que conseguiam ver, através de uma simples carne, do que
lhes enchiam o espírito... numa outra ocasião, foram até os
fins da cidade, por que queria Diogo tê-la em seus braços,
como segura uma mãe tão firme o nascido bebê, de modo
que só aos dois pudessem sentir... foram, bem longe, e em
meio aos montes que cortavam a cidade, repousaram numa
pedra plana; puderam então se alimentar e beber, e depois
de uma pequena serenata, trocavam-se os olhares e

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tocavam-se os corpos, e sentiam-se, um ao outro, e
completavam-se, um ao outro... Até que, antes de partir,
deixara Diogo a garrafa e um pequeno lenço, e, como um
apaixonado, lhe prometera o que não podia controlar, a
saber, o tempo; lhe combinara que depois de um ano
voltariam, para saberem se encontrariam as suas
lembranças de volta. Ah, Diogo! Por que prometera sobre o
que não era seu? Agora ele entenderia do por que proibira
o Criador jurar sobre o que não lhe pertencera... digo, pois
numa certa ocasião viu-se na expectativa de lhe tê-la em
namoro, mas como lhe poderia a pedir, se ainda não
possuía a sorte de encontrar algum emprego, ou nem
sequer um rumo na vida? Poderia Diogo se arriscar em a
colocar nessa armadilha? Por que naquela altura já a amava
de tão modo, que fizera o que pouquíssimos, ou somente os
que já amaram poderiam fazer: renunciar a si mesmo. E fez,
finalmente, o que jamais queria: não a envolvera nisso.
Novamente, como que de toda subida deduzimos a
descida, viu-se nesta situação. Ela lhe apartara, por um bom
tempo; não o queria mais vê-lo, não lhe respondia... E
passou-se os meses só, novamente, apenas com o velho
produto que alma tanto lhe produzira, e sofrera muito com
essa angústia, por que a nenhuma outra encontrara o que
nela tinha visto... e tanto tempo lhe passara com as
memórias dos seus mais belos momentos, que percebera
que aquele um ano tinha passado, e que se encontrava
novamente no seu 5 de agosto. Pensou muito se deveria, e a
dúvida lhe possuíra naquele momento. O que poderia
perder, ou melhor, o que lhe poderia melhorar com isso? E
se a encontrasse lá, significaria que poderiam possuírem-se
novamente? E se a não encontrasse, como seria para a sua
alma? e não demorou para que lhe mandasse o que seria a
última mensagem, lembrando-a da promessa; uma última
esperança tomou-lhe conta, como se essa tão acertada

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lembrança fizesse-a recordar dos momentos em que tudo
parecia real, porém, ela não se lembrara de ir lá, ao ponto
que a angústia voltou a tomar-lhe a forma, e perdeu-se a
cabeça, e tão perdeu, que a encheu da própria loucura até
que ela, possuída disto, lhe despedira, de uma vez, para
sempre.

E naquele 5 de agosto, quando se enchera do mais sincero


amor, agora, por completo, se enchera da mais impiedosa
tristeza. Novamente Diogo experimentara o que lhe fazia
tão humano quanto especial: o desejo de, simplesmente,
poder viver.

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CAPÍTULO 14 | ATO 5 | ODE À SOLIDÃO
E vivera como esquecido num canto qualquer, alimentando
das migalhas que escorriam das farturas que a vida lhos
ofereciam; e deu-se por vencido, já tão novo, e agia como se
soubesse das coisas que o mundo lhe poderia oferecer; e foi.
Crescera e se educara como qualquer um, teve uma infância
materialmente como a de qualquer outra criança, exceto
pelas coisas que lhe eram próprias; até que envelhecera
mais um pouco, onde pudera experimentar, o que antes o
fizera sofrer, nesta o faria, de uma vez por todas, morrer;
ele sabia disso, tanto que pudera prever com tamanha graça
e precisão do que passaria, e sabiamente escolhera o
destino de todos os miseráveis: esconder-se. Ah, a doce
amiga solidão! A majestosa dos incompreendidos e dos
aborrecidos! Nunca vira em toda sua vida tão confortante
afago para sua cabeça! A expressão divina do sussurrar de
Deus; a perfeita manifestação da alma. Podia sentir, tão
maravilhosamente, o espírito que lhe corria o corpo! não
era mais um homem, tampouco era carne: era o Universo,
era o tudo, e o Todo lhe enchia de tudo que existe; a
compreensão do cosmos, a visão de uma nebulosa, o pulsar
das estrelas, o brilho da sua transfigurada alma... tão
psicodélico, porém tão lúcido e tão vivo, que lhe confundia
com o real, e o que chamavam de real não passava de uma
manchada amostra num quadro infinitamente mais
gracioso, do qual nem mesmo a moldura poderia conter-
lhe, nem as dimensões do espaço, nem a presença do tempo
lhe pudera; era o todo como um só, e o Tudo um só; todos
eram um, e o um era o Tudo; não se compreende a
totalidade da sabedoria mas dela se apraz. O que o enchia
também lhe assombrava, e se por um lado se admirava, por
outro temia, como que numa doce dialética existencial

73
pudera encontrar o que finalmente lhe dera para se
completar.

Nessas amáveis experiências que seu espírito se


resguardava, nas incontáveis medidas em que enxergava o
que os transcendia, numa em especial tomou a mais
elevada prova. Oh Deus! como pode a benção ser também a
maldição? Pois dela, da terrível e incognoscível consciência
nos fizera e nos trouxera a verdadeira essência do que é a
vida; e via nela tudo, tudo, e tudo o que havia
experimentado no sabor do universo: desde o que se podia
ver, como da tão doce ternura de sua pele, e dos atrevidos
olhos que lhe pareciam tocar à alma, tão temidos; da maciez
de sua voz, das curvas de seu cabelo, e da forma do seu
corpo; da beleza de sua mente, do completo no seu andar e
se expressar; da vida que lhe passara, da tristeza que lhe
sentia; da aparência que dela tinha, e do profundo que não
conhecia; ela era uma bela poesia... um ode à solidão. Ele se
apaixonou pela calma solidão, tão calma solidão, tão
confortante ao coração... e se encontrara novamente no seu
peito, e ela ao seu. Saiam e se divertiam, como dois
pequeninos no parque, e se sentiam como dois perdidos
que finalmente se encontraram; podiam correr, pular e se
sujar, porque o amanhã, o dia em que teriam que andar,
descansar e se limpar jamais chegaria; enxergavam-se como
o último dia que passariam a existir para finalmente serem
um só com o universo... mas em como todo sincero sonho,
há sempre o sujeito que precisa acordar... As brincadeiras
não podiam continuar, porque Diogo despertara um desejo
que o fizera entender, mais uma vez, a natureza das coisas,
e novamente via-se refém, preso no labirinto que jurou
nunca mais entrar, justo no maior deles! e três longos foram
os anos em que se perdera, tentando o que podia para
escapar... chegara tão perto de beijá-la e de finalmente

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conhecê-la, mas quanto mais se aproximava, mais lhe era
confuso provar o que estava bem na sua frente, e nunca
soubera o por quê, mas suspeitava de que ela lhe era
perfeita demais! "Por que tão gloriosa forma tocaria um tão
sujo quanto eu? O que me faria acreditar de que não se
passava de mais um devaneio? E por que me parece este
sonho ser tão real?" sua sorte se misturava na mais
completa angústia, só que percebera tarde demais, já no
labirinto... e nesses anos a guardara em seu peito, quase que
fizesse-a parte de sua vida, o complemento do seu corpo,
ou o motivo da sua existência; ficou louco mesmo, até o
ponto em que a benção da beleza que lhe carregara esvaiu,
e o louco a martelara, através da paranoia, uma outra, mas
em nada igual, só o suficiente para que um louco pudesse
acreditar. E por três longos anos trazia em seu peito o que
só ele chamava de paixão, o que nem mais era um tosco
desejo carnal, tanto que pela ironia de sua própria loucura o
fizera finalmente experimentar, e finalmente, depois de
anos preso neste inferno, via tão apraz saída, e a tomara
para beijá-la... pensava que encontraria a liberdade, que
poderia então ser livre! mas o que antes lhe aprisionara na
masmorra, agora, mais uma vez, mais uma inconsequente
vez, lhe tornaria escravo no seu próprio universo; não
encontrara em seus tão sonhados lábios o conforto que
buscara, porque não conseguia transmitir o desejo que por
ela antes tinha; tão foi que ela estranhara o que recebera, e
tão verdadeiro foi a desgraça daquele dia, que Diogo se
recordara bem mais solene de suas outras breves e
satisfatórias andanças como um viciado perdedor do que
naquele dia em que ainda possuía alguma esperança.

Os dias se passam, e a angústia lhe tomara, pouco a pouco,


até que não podia resistir, e fora possuído novamente pelo
espírito; a carne dera espaço para a alma, e a sua visão era o

75
que a sua mente lhe proporcionava. Viu o Velho da sua
infância, desta vez mais novo, mas ainda com especto de
um miserável, e podia ver que lhe espumava pela boca algo
como a consequência de uma droga suicida; vinha em sua
direção e dela não dispunha a desviar. Diogo lhe
perguntara o que havia acontecido, e porque o bom e
amável velho lhe parecera como um bêbado covarde, como
um coitado; o velho riu, enquanto recuperava-se do tropeço
que havia sofrido ao aproximar-se de Diogo. "O que há
contigo, criança?!?? Por que se deleita no que lhe é obvio
entender e no que é profundo procrastina a
compreender???? por que de tanta compaixão??? por que
lhe evita sofrer???? por que não pode? por que não quer? o
que te faz ser o que é? ora... não vejo outra alternativa ao
sofrimento do que entender o porquê de sua causa... a sua
dimensão e a seu efeito compreendo muito bem, mas é a
sua natureza... o seu percurso que me motiva, é o que tão
vivo me torna quanto tão esgotado me faz... mas não se
preocupe menino! eu a encontrei! aquilo que tanto dediquei
a entender, tão estranho vim a compreender. Quer saber a
moral da história? quer saber o que vi nos créditos de sua
morte? eu vi o segredo de tudo o que existe, e achei quem
tão intimamente poderia me compreender. É, menino, é
tudo o que existe, são todas as coisas no universo que
convergem em um grande caminho, uma longa estrada,
uma enorme jornada, mas não importa quais caminhos
você pegue, porque em todos você chegará ao rio, por que,
adivinha? Você está numa ilha. A vida é como um pequeno
pássaro numa grande gaiola, pensando que é livre; E até
mesmo que compreenda a sua gaiola, o que fará afinal?
destrancará as correntes que lhe cerram? Sairá do pobre
cativeiro? E por mais que viva, e por mais que corra, e por
mais que pule e por mais que suje, nada do que fizer lhe
fará como um livre sobre o que está além da gaiola, ao

76
ponto que se vê preso num entedioso ciclo de sobreviver,
mas por que? por que sobreviver numa fantasia? por que
viveria para sempre como ator de sua própria história? mas
de diferente modo não poderia... então vive, ou por
covardia de arrancar-lhe a vida, ou por um místico desejo
de tentar, para sempre, cerrar a gaiola... é isso garoto, é essa
a essência e o motivo da existência: a eterna busca por
cerrar a gaiola, a eterna rotina do mentiroso... o eterno
retorno."

Poderíamos dizer o que vivera Diogo? pois conhecera de


tudo o que podia, e tinha para si a chave de toda a
existência, e poderia contemplar-se finalmente com a
verdade, mas tão dura, que talvez não suportara, e talvez
seja essa a essência deste mistério do qual tantos homens se
confundem quando pensam no porque morreríamos se
víssemos Deus em toda Sua glória... será que suportaríamos
tanta verdade? teríamos o suficiente para tanta graça?
Suportaríamos tanto poder? e se de igual modo é com o
Todo, é a verdade somente aos escolhidos... E se entendera
Diogo, agora viveria o resto de seus dias condenado pela
verdade que lhe fora revelada; de modo consumira em
angústia, que o sofrimento lhe fizera jurar, um dia, escrever
uma história em que conheceria tão desejosamente o amor,
sem tropeços desta vez.

E o que antes lhe fora a mais doce calma, seu poema mais
querido; sua tão formosa amada se tornara, ironicamente,
no seu mais violento e sincero caos.

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CAPÍTULO 15 | ATO 6 | DAS
CONSEQUÊNCIAS DA EXISTÊNCIA
O que poderia querer? Do que poderia se orgulhar? se de
todas as sortes que tivera, ou das loucuras que passara,
pudera nalguma delas levantar-se com glória e cheio de
vida? de nada podia se aproveitar? pois é de tão grosso
modo, e tão frágil e insensato lhe trataram e prepararam, ao
ponto de lhe torcerem o corpo, como numa tentativa de
desfazê-lo, de pará-lo; quase como lhe esmagassem, a fim
de que mantivessem o que toscamente haviam construído;
porque tão insanamente acreditaram em suas ruínas
despedaçadas, que recusaram a visita do arquiteto; e lhe
botaram a mercê do seu mestre, que pela graça o tratara
como a nenhum que lhe passaram a outorga de lho cuidar.
As suas feridas foram tratadas e suas mãos foram lavadas,
até o ponto em que se sentira completamente novo, e pôde
finalmente repousar no colo que lhe cuidara tão bem.

E se a graça lhe alcançara, o que dela poderia fazer? "Já


estou salvo?" "Posso aventurar-me, e espalhar-me enfim
pelas mesmas andanças do mundo?" Certo de que lá estaria
Deus para lhe resgatar, caso caísse em desgraça novamente;
lhe agradecera pela imerecida vontade com desprezo e
apatia; recusara o presente eterno, como numa dialética
salvífica que lhe atormentaria, até que se perdesse no Juízo
Final. Seria o destino condenar-lhe até a consumação dos
séculos? Como saberia? Como teria certeza? O tormento da
existência, as consequências de se existir, a angústia da dor,
a fraqueza perante o universo, e a desistência de encarar a
face daqueles aquém tanto o rejeitaram; via-se como o pior
de todos os homens, não por sentir-se fraco, mas por tão
capacidade ter o que lhe poderia gloriar, mas por medo de

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enfrentá-los e vencido pela miséria, não ousara de tê-los em
suas frias e calejadas mãos; e o peso da angústia o tomara,
ao ponto que não sentia coragem de levantar-se da cama,
nem de estudar ou trabalhar nalguma coisa, nem para
distrair; o monstro que lhe tomara o agarrava para baixo e
o forçava a ficar deitado, como se o preparasse para a
inexistência; talvez nunca pensara em suicídio, porém não
pensara também em existir, ao ponto que lhe ocupara uma
terceira posição no universo: apenas era, e nada mais. Era
apenas o que era, como se fosse o que ninguém poderia
entender ou explicar (não por sê-lo especial, mas
justamente por não ser nada do que conhecemos). Vivia
porque não tinha escolha, não morria porque não
conseguia.

Mas a angústia lhe produzira uma chave, uma auto-


salvação; um derrame mental que talvez lhe traria a
vontade novamente. "E se acreditasse que todas as minhas
falhas, todas as minhas doces ilusões, meus amores
decaídos, minhas sortes, se fossem todas consequências do
meu cérebro? Se fosse então meu próprio organismo que
produzisse alguma coisa, alguma substância, que me
tomaria a consciência, e me fizera escolher por todas as
coisas que fora servo?" como que num insight sobre si
mesmo, obtivera a liberdade, a verdadeira liberdade:
reconhecera que tudo quanto lhe fora falho e medíocre,
tudo em que a burra paixão lhe possuíra até os ínterins, e
todas as suas esquizofrênicas formas, todas fruto de uma
única substância... a causa da sua imoralidade finalmente
exposta, e que agora postar-se-á a toda prova, a fim de que
se garanta, pelo menos, a sua validade.

Começara na mentira, renegando a graça que recebera, até


que finalmente poderia Diogo experimentar o mundo,

79
como que numa surpreendente mágica fosse o caçador
vítima da desperta lebre; ousara de conquistar, apenas
carnalmente, o desejo de uma mulher, ao passo que lhe
convidara para sair; foram, e beijaram-se. Dias se passam, e
o desejo que tivera de despertá-la novamente fora
dominado pela consciência da maldita substância;
"Consegui! consegui!" alegrava-se Diogo, tão contente da
descoberta, porém esquecido de uma coisa: por mais que
tenha entendido o mistério, não havia desvendá-do o que
de fato aquilo era, nem como compreendê-la; era uma
dúvida, mas como se apenas ele a descobrisse; como se
fosse, novamente, um escolhido. Agora sentia-se salvo mais
uma vez! A eternidade de graça que lhe colocara sobre suas
próprias desconfianças, ela, que sempre esteve lá, agora
mais completa lhe parecia! Era como se Deus colocasse
instintivamente o súbito desejo pela comunidade, como se
nos imbuísse de um espírito de aliança; não somente pela
carne, ou no desejo íntimo de reprodução, mas tão
elevadamente em congregarmos numa sagrada união, e a
certeza viria por essa coisa que nos deixa tão alegres e tão
confortáveis uns com os outros; no delicado de um beijo ou
no afago de um abraço, no doce de um toque, no sorriso de
uma criança; tão maravilhoso! Tão sublime! Onde perdera o
homem o rumo? Onde lhe profanara essas coisas, tão
graciosas, tão simples mas tão elevadas, ao ponto que lhe
gastassem em total devassidão e sujeira? Por que rejeitaram
o Senhor? Talvez por isso, por ser tão majestosa sua criação,
que os homens apaixonaram-se por si mesmos, e viram em
si o fundamento da sua própria existência, como Narciso;
apaixonaram-se em seus próprios eus. Agora, vê-se a
solidão, que só aumenta, em que a terra está tomada; na
busca de sentirem o que lhe mais pudessem se encher,
olham ao redor, e o que veem? espelhos. Oh homem! por
que se aprisionou!? por que viciara na própria estrutura!?

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Não acreditava que poderia transcendê-la? Pois a isto fora
criado: se superar! Para lhe tomar as coisas boas deste
mundo, e evitar as que lhe tomariam! Pobre homem! Se ao
menos Deus lhes fizessem enxergar! Se ao menos Deus lhe
dessem a possibilidade de poderem entender, afim de que
tivessem essa chance! O fardo do mundo está pesado, e a
cada dia se volta para um só lado da balança... haverá a
hora em que as correntes se romperão, e não mais será
possível suportar a sujeira que o homem produzira; e então
verão o Filho do Homem resplandecer em toda a sua glória,
até que se consuma todo o pecado desta terra.

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CAPÍTULO 16 | ATO 7 | DESENCANTO
E percebera, finalmente; após anos e recomeços, de
retomadas, tentativas e acertos; percebera do que então a
vida é feita. Aglutinara na memória o que sua consciência
não pudera alcançar, até o ponto em que se encontrava
numa total escuridão: O que poderia esperar? Mais do que
uma simples dança ou tola melodia? Porque aos nobres lhes
são dado o ouro, e dos pobres se lhes é tirado; da insensatez
é a amargura o produto da consciência, e da incompletude
do mal fadado pesar; das sortes que lhe apetecera, a dor; o
conjunto do que existia, do sofrimento que acumulara e da
incerteza do futuro: Aí se entendera o que se chamava
Diogo, a desgraça ininterrupta, o ciclo vicioso da miséria e a
mediocridade da arrogância; a consciência do pecado, mas
com a alma de um ladrão. Eis Diogo: inocentado no
começo, perdido pelo meio e viciado no final, ou mesmo a
descrição da tragédia, o retrato do absurdo.

Não suportara as boas linhas, os versos fonéticos, tampouco


as boas frases que o autor lhe dedicara, porque agora
dedicaria ao descaso da humanidade, faria-os de sua obra,
sendo ele apenas a moldura de tudo; deixaria se levar nas
suas andanças, comeria e beberia do que lhe oferecessem, e
dançaria conforme a música que eles tocassem; sentiria o
vento como não sentiam, beijaria com tão gosto uma boca
como não faziam, contemplaria a natureza como não
podiam, e se veria no espelho, todo dia, como não
queriam... evitaria o dissabor, como tendiam... trocaria de
rotina, como curtiam...

não mais Diogo, apenas um espelho.

82
***

O que este porra então fez? Aproveitou a boa grana e a


vidinha farta de classe média alta da família e se matriculou
numa dessas escolas que se trocam diplomas por papéis,
como todo bem de vida fazia, só pra mostrar pros papais
que (ainda) não havia de ter desistido completamente de
sua vida, e que ainda queria algo mais do que ser um
simples vagabundo drogado e bêbado sustentado por quem
de fato trabalhava. Fala sério: quem lia os textos que
produzia? Quem se importava com os romances maus
feitos que escrevia? No máximo alguma adolescentezinha
mal amada que se apaixona por qualquer coisa, ou nem
isso. Acorda caralho! O mundo precisa de resultados, porra,
não de rancorzinho juvenil! Já pararam pra pensar que
adolescência é uma coisa nova no mundo? Por que, até
pouco tempo, não se produzia tanto assim para que uma só
pessoa garantisse, com folga, o sustento de toda uma
família. Antigamente (e até mesmo hoje em alguns lugares)
todo mundo trabalhava! desde a criança até a mãe, e isso
tudo só pra não morrer de fome e quem sabe ter um
pedacinho pra sobremesa... a coisa começou a melhorar um
pouco uns dois séculos atrás, mas o sonho americano só
chegou mesmo no pós guerra, no decorrer dos anos 50. E
adivinha o que veio depois disso? exatamente: Um bando
de retardado socialista protestando contra a tirania do
governo, e pedindo como solução mais governo ainda; as
vezes, dá até um pouco de raiva do capitalismo, sabe?
Porra, esse excesso de produção em um espaço tão curto de
tempo acabou deixando o pessoal meio doido, até o ponto
em que eles caem naquele velho paradoxo da segurança:
"Pra que tanta polícia se já somos seguros?" daí o idiotas
tiram a polícia e a violência retorna... parece haver a mesma
coisa aí. Os bonitinhos imbecis querem eleger outros

83
bonitinhos imbecis pra decidirem como será gasto o
dinheiro de outros bonitinhos imbecis bancados por um
monte de mal-acabadinhos imbecis que eram antes os
próprios bonitinhos imbecis. Daí, o ciclo se repete, e uns
outros bonitinhos, dessa vez bem espertinhos, se
aproveitam dos imbecis e acabam por tomar, muito
facilmente, o tão suado dinheiro deles. Tá aí meu amigo,
essa é a porra do mundo que você vive.

O que Diogo fez diante disso? Há umas ressalvas, é


verdade. É fato: Diogo se rendeu, desistiu quase que por
completo desse mundo e preferiu agir como um qualquer,
exatamente como ele tanto odiava; mas aquela graça eterna
ainda estava lá, em algum lugar da sua alma, lhe fazendo
ainda ver o mundo inevitavelmente sempre de um jeito
diferente, quase como se fosse programado para
transcendê-lo. Fez então o que não se vê todo dia: estudou
pra caralho, mas pra um caralho mesmo, ao ponto de
passar meses e meses, todo dia, numa incessante rotina de
estudo, até se conseguisse os melhores resultados dentro da
grade de física da universidade da qual preferiu estudar.
Qual razão? sei lá; eu nem sabia que esse cara era bom em
fazer conta... se fosse pra apostar, certamente ele faria
alguma coisa na área de humanas, bem coisa de comunista,
mesmo ele não sendo e odiando esses vagabundos, acho
que não suportaria ver tanta merda sendo dita em tão
pouco limite de tempo... Mas física?! really? Acho que foi
por causa daqueles documentários científicos do History
que ele tanto assistia, e por algum motivo acreditava
naquelas baboseiras fantasiadas de "viagem no tempo é
possível" e tudo mais. Porém, o que se sabe é que a fixação
por física lhe caiu tão bem, que os meses que passou
estudando pra cacete não mais lhe era massante, porque
tomou certo gosto por aquilo, quase como se descobrisse

84
uma mágica nova, e a beleza da recente descoberta lhe
fizesse exibí-la para quem pudesse; e assim foi. O menino
destacara, e ao passar dos anos, já a ponto de se formar,
uma puta empreitada faria mudar completamente o futuro
de sua vida. Mas que porra aconteceu? Muito simples: O
governo tinha iniciado um projeto "secreto" de pesquisa
avançada, justamente naquelas merdas de viagem no
tempo que encantavam Diogo quando pequeno, isso
porque eles alegaram "ter novas evidências de que era
possível alterar a dimensão estruturante do ordenamento
natural da matéria e de suas derivadas" ou outras palavras
pra "caralho eu acho realmente que descobrimos como
voltar no tempo" só que de um jeito mais científico, até pra
esconder a áurea ficcionista que essa descoberta fazia. Eu
disse "secreto" porque não era bem como nos filmes
americanos ou coisa do tipo. Eram recrutados todos e
quaisquer físicos nucleares, especialistas ou qualquer
pessoa com conhecimento suficiente nessa área, até porque
a tal descoberta que eles fizeram poderia realmente ser
posta em prática, ou melhor, inventada por nós aqui no
Brasil, o que seria perfeito pros políticos envolvidos por
trás disso, além de também poder ser a maior arma de
barganha do mundo (e guardem quando eu disse "arma").
Eles não chamariam estudantes de bacharel, no máximo os
que estivessem concluindo o doutorado, mas como as notas
e o desempenho e até mesmo a fama de Diogo repercutia
entre os estudantes, não só na sua universidade mas
também em outras, sua indicação fora mais que de bom
grado vinda dos seus professores e colegas, ao passo de que
também o aceitaram na equipe. Já aí nesse complexo a coisa
funcionava de fato como secreta: Nem os recrutados e nem
mesmo suas famílias sabiam para onde iam, mas é óbvio
que os que eram responsáveis por esse projeto, chamado de
Pesquisa de Projeção Espaço-temporal, ou PPE, revelavam

85
à todos de que estavam indo a um lugar seguro e tranquilo,
e que apenas não podiam revelar nada por motivos de
"segurança nacional". Lá, revelaram aos recrutados, cerca
de uns mil e poucos, gente pra caralho, que o projeto se
basearia em três etapas: A primeira seria compreender
totalmente como se dava o espaço, o tempo, como alterá-lo
ao bel prazer, ou seja, formular categoricamente a base
teórica de uma viagem espaço-temporal. Não era tão difícil,
uma vez que essas descobertas já haviam sido explanadas e
muito bem documentadas décadas atrás por físicos
nucleares. A segunda era criar um artefato que pudesse
alterar essa dimensão espaço-temporal, de maneira que
pudessem reverter, avançar ou retroceder no tempo; algo
que fosse totalmente confiável e embasado cientificamente.
O terceiro, era a parte prática mesmo, ou melhor, criar a
porra do troço. A pergunta que se faria logo depois dessa
explanação era: Por que diabos essa fixação por viagem no
tempo, e por que agora? Tão logo esperavam a pergunta
que já lhe adiantaram, bem depois da explicação do
conceito. Saíram da parte mais aberta do imenso saguão do
qual estavam, que serviria como o núcleo de toda aquela
pesquisa, até passarem por todas as enormes salas, todas
muito bem equipadas e catalogadas, cada uma com sua
função e equipe especializada; passaram do enorme
refeitório, das salas de descanso, dos quartos; até chegarem
numa outra grande sala, mas bem distante e muito mais
protegida que qualquer outra. Era totalmente exclusiva, e
somente poucos poderiam acessá-la, mas dessa vez
poderiam vê-la, apenas para que pudessem tomar um
prévio incentivo ao que parecia apenas um fantasioso
trabalho. Já nessa sala, puderam ver ao centro, uma sela,
bem no meio da grande sala. Sentado, de costas para os
recrutas, com a barba e cabelos enormes e há dias sem
fazer, um homem, que se recusava a virar, nem mesmo com

86
com as ordens do homem que guiava aquela turma. Seu
aspecto denunciava descaso, e suas velhas roupas pareciam
aos convidados uma boa ironia de um homem que havia
parado no tempo; todos certamente imaginavam o
semblante, se de medo ou de tristeza, mas era a apatia e o
total isolamento lhe cairia melhor. Quando uns dos
recrutados perguntara ao guia sobre quem era aquele
homem e o porque de estar numa cela, a reposta não
poderia ser mais surpreendente aos convidados: Era um
viajante do tempo. Naquele momento, todos estavam
perplexos., atônitos com o que aquilo significava, e de certo
modo duvidosos sobre o motivo de estarem ali, uma vez
que o próprio viajante estava ali para lhes explicar. Até que
o bom espanto se transformava num estranho dissabor, e
então entenderam o porque daquela sela. Na sala, o guia
mostrava aos convidados a máquina que usara o viajante:
Um amontoado de cabos, extensões, baterias nucleares
caseiras, quatro pequenas bobinas que formavam um
círculo, todas apontando o centro; não ficava exposta, pois
a energia e gravidade que gerava ameaçaria o ambiente,
então lhe era posta dentro de uma sala, com uma pequena
abertura do lado de fora, que servia para depositar na sala
o que se queria transportar pelo tempo, mas certamente não
era para uma pessoa entrar ali. Então como fez o viajante?
Simples, não vez. Não era verdadeiramente um viajante,
talvez ainda não, porque não levou o projeto às últimas
consequências. O viajante fora encontrado poucos meses
atrás em sua casa, caído no chão, com cianeto no corpo e
babando pela boca, desacordado; os médicos que primeiro
o encontraram disseram ter sido suicídio, e a polícia
também confirma essa tese. Ao lado do corpo caído, a tal
máquina, um pouco danificada, provavelmente por ter sido
recentemente usada, chamou a atenção dos médicos, que
logo contataram a polícia, e da polícia, o serviço secreto.

87
Recuperando-se no hospital, o tal serviço secreto lhe fizera
uma série de perguntas, todas sem resposta. Tinha o direito
de permanecer calado, mas como aquele era um caso
especial, fora então levado pra essa atual sala junto com a
sua máquina, da qual se recusara dizer até para que servia.
Após muita insistência, o serviço secreto lhe aprisionaria ali
mesmo, até que lhe dissesse o que era aquilo e o que queria
com aquilo, pois suspeitavam, pelos equipamentos que
usara ser algum tipo de arma ou coisa parecida. Chamaram
alguns professores da área, desde engenheiro até físicos,
afim de que pudessem entender a função daquela coisa; a
análise dizia que a tal coisa "serviria para gerar uma imensa
quantidade de energia, concentrada num pequeno e denso
ponto, de maneira que se formaria algo parecido como um
pequeno buraco negro de força bem inferior, mas potente o
suficiente para gerar distorções consideráveis no tecido do
espaço-tempo. Após testes e mais testes, a máquina
finalmente pudera ser posta em prática, e atestaram o que
haviam prevido: Realmente funcionava. O serviço secreto,
diante de uma descoberta tão grande e tão ameaçadora viu-
se obrigado a criar um projeto ainda ainda mais secreto, de
modo que apenas poucos membros da própria corporação e
alguns civis saberiam. A ideia era desenvolver aquilo de
maneira mais rápida e com menos pessoas possíveis. O
projeto foi tão bem desenvolvido, que qualquer um do
serviço secreto ou seus subordinados poderiam visitá-lo,
pois havia uma outra equipe lá, tão grande quanto a dos
civis, que era usada de fachada.

Com tudo exposto e muito bem explicado, cada um dos


recrutados foram conduzidos as suas respectivas tarefas,
numa rigorosa rotina de trabalho e pesquisa, isso tudo
porque um puto não queria contar como desenvolveu a
porra do seu brinquedo. Enfim, não vale a pena falar dos

88
meses e meses que Diogo ficou lá, ajudando no projeto até
conseguirem finalmente conceituarem tudo o que podiam
sobre a tal viajem no tempo. Agora só lhes restaram o que
fazer com isso. Poderiam simplesmente criar um modo de
se transportarem individualmente no tempo, mas pensaram
que seria meio idiota demais, porque seria aquela
trabalheira toda pra um fudido só poder brincar? Não teria
graça, tinha que ser algo bem maior, como se pudessem
usá-lo para gerarem uma distorção tão desgraçada, que
pudessem transportar não só um monte de gente, mas um
monte de coisas também, e foi justamente pensando nisso
que trabalharam. Depois de uns bons meses nisso,
desenvolveram a mesma tecnologia do nosso fudido lá, só
que bem maior, e adivinha onde botaram isso? Na porra de
um satélite! Sério. Não só em um, mas em cada um dos
quatro que lançariam no espaço. Então, lembra daquele
projeto de fachada? bem, não era tão fachada assim... Eles
realmente não estavam envolvidos nessa trolha de viajem
no tempo, eles já tinham outro projeto que estavam
desenvolvendo, que era justamente o de lançarem satélites
brasileiros lá em cima, só pra ganhar uma moralzinha com
os outros países, pra mostrar que a gente também é foda,
essas coisas de diplomacia internacional, porém, assim que
passaram a dividir aquela área com o pessoal da viagem do
tempo, eles trabalhariam em conjunto: enquanto um
desenvolvia a trolha temporal o outro faria a trolha
espacial, daí juntariam os dois e bem, deu nisso aí, um
mundo loopado com um monte de retardado em que eles
mesmos se prenderam.

Mas aí, como chegaram nessa situação? De quem foi a


culpa?

Acontece que, com o passar do projeto, alguns

89
desconfiaram de que na verdade era o governo que estaria
por trás de tudo aquilo e não apenas os "bons homens do
serviço secreto" como acreditavam até o momento.
Naturalmente os civis faziam perguntas sobre o que
estavam de fato fazendo ali, quem financiavam, etc, mas as
repostas eram sempre secas e prontas, isso quando
respondiam alguma coisa. Além desse clima meio que
conspiratório, os meses fora da família e a rotina
extremamente repetitiva e desgastante levavam alguns civis
a loucura, ao ponto de vários deles serem simplesmente
arrastados pelo chão em pleno horário de trabalho porque
começaram a questionar e fazer bagunça demais. Quem
mais acreditava nessa teoria era Diogo, e também não podia
ser diferente: O inquieto passou os dias influenciando os
civis, seja nas conversas que tinham no almoço, ou algum
recado que escrevia em meio aos cálculos que faziam, de
todas as formas que podia, até que tivesse um número
expressivo de seguidores que pudessem apoiá-lo no seu
plano: Destruir aquela trolha. No dia do lançamento,
quando todos estivessem reunidos na sala de operações,
esperaria até o momento em que todos os satélites
estivessem posicionados, e então, numa rápida jogada, ele e
seus aliados ativariam a trolha em força máxima, até a
energias, umas das outras, se acumulassem e, desse modo,
autodestruírem-se. Pelo visto, o plano não deu certo, mas a
confusão gerada foi o suficiente para os já insatisfeitos (ou
seja, todos) dali aproveitassem o motim e saírem dali,
gerando um tremendo caos. Nem mesmo os guardas
armados puderam conter a revolta, até porque naquela
confusão já estavam rendidos. Os alarmes dispararam, uma
porradaria rola solta; é resto de metal não usado sendo
jogado em guardinha, é guardinha dando porrada em
cientista, uma loucura. Na correria, Diogo se lembra
daquele fudido lá, e decide soltá-lo. Àquela altura, com a

90
quebradeira, nenhum sistema de segurança funcionava
mais, então todas as portas, senhas e fechaduras já não
funcionavam, no que todos, menos Diogo, aproveitaram
para escapar. Porém, a sela que o guardava não era
eletrônica, então o fudido não havia escapado. Na bagunça
que lá estava, foi fácil achar as chaves no bolso daquele
mesmo guia, que estava estirado no chão, desmaiado
depois de umas porradas que deveria ter levado.

Ao libertá-lo, pôde ver, finalmente, a face daquele sujeito.


Ao se olharem, um espanto, e um silêncio assustador
reverberava naquela sala. Eram praticamente iguais! O
olhar triste e misterioso, a maneira como andavam e como
interpretavam. Caralho! Diogo não dissera uma só palavra,
mas era certo que ambos pensaram a mesma coisa. Depois
disso, o fudido fugiu, e correu já na direção da saída, afinal,
ele sabia onde era. Diogo tentou segui-lo, mas já era tarde
demais: já havia se misturado na multidão daquela cidade.
Já lá fora, Diogo já não sabia o que fazer. Correria atrás
daquele cara? Voltaria para sua casa? Denunciaria o
governo? Sua mente estava confusa, perdido em seus
próprios pensamentos... Primeiro, teve que se esconder o
mais rápido possível, o que não lhe parecia difícil, uma vez
que aquela parecia ser uma grande cidade, com muitos
bairros e vielas, aonde poderia se infiltrar sem ser pego por
ninguém, e assim o fez. Passou umas boas semanas fazendo
bico numa dessas comunidades de morro, em troca de
dinheiro suficiente pra comer e viver. Depois que a poeira
abaixou, tratou logo de sair dali, e arrumar um emprego
mais no centro da cidade, mas também discreto. Mesmo
sendo um procurado do serviço secreto, era apenas um de
milhares que também eram, então não corria tanto risco.

Por fim, a vida lhe reservou algumas consequências: Não

91
poderia se expor na internet, não podia ter cartão de
crédito, nem RG, nada que o fizesse verdadeiramente
conectado nesse mundo, de modo que se tornara mais um
desconhecido no meio de uma multidão. Os via, mas não
podiam vê-lo. E assim foi para Diogo, durante longos e
pesados vinte anos... mal podia sair apé para não se expor
às câmeras da rua. Vivia em casa, sem muita gente, sem
amigos, sem ninguém, não porque queria, mas porque não
podia; uma só foto numa festa com os colegas já era o
suficiente pro programa de reconhecimento facial pegá-lo.

E esse se tornou Diogo, um pobre, solitário e infeliz, preso


na própria rotina que lhe criara, afinal, o que poderia fazer?
Destruiria todo o governo? Já não poderia controlar o que
fazia, e sabia que sempre sofrera quando nas poucas vezes
era ele livre... não podia ser o que era, então finalmente
tratara de se policiar, de modo que tomara um completo
desgosto pela vida, naturalmente, até que pudesse desistir,
não por força maior, mas por apatia mesmo. Já sabia o que
o governo faria, e não queria estar consciente, lutando por
uma causa perdida, então fez o que nenhum corajoso faria,
e se convenceu, não por si mesmo, ms pelo próprio tédio da
existência; já não relembrava mais dos dias, como se
resgatasse no passado a certeza de que não estava preso
num eterno presente, porque todos os dias lhe eram
perfeitamente os mesmos, até que não havia mais diferença
em estar loopado ou estar vivendo, porque ambos eram a
mesma coisa, e todos viviam assim, mas só Diogo pudera
estar, pelo menos uma vez, consciente disso...

Até que o que se esperava aconteceu, colocando o mundo


todo de vez nesse inferno, que para Diogo já não fazia tanta
diferença. Agora, o que Diogo sentia e tudo o que nesses
anos tanto o atormentara iria o mundo perceber, por bem

92
ou por mal, o que é estar preso em sua própria e eterna
consciência.

93
CAPÍTULO 17 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA I
Os dias passam, as horas contam; todo tempo desperdiçado
é atirado às correntezas, ou as idas e vindas de uma maré,
de maneira que toda sorte que antes tivera não mais serve
para alguma coisa. O que se fica ou o que se vê é aquilo que
inventamos para nós mesmos, como um jogo mental para
manter-nos distraídos; usamos da nossa liberdade para nos
trancafiar, porque temos medo do que podemos fazer com
ela. Não somente desta cela, mas da real também estou.

Leitor, já parou pra se perguntar do que é feito a essência


humana? Porque uns dizem aquilo e outros daquilo, mas ao
homem, ao que por si mesmo não consegue se salvar, a
saber, todos; a todos uma coisa lhes concerne: manter-se
preso no seu próprio cativeiro. Sem ilusões, leitor, até
porque o tempo já me consumira por tantos anos que as
vezes nem sinto que posso sentir alguma coisa, como o
coração iludido de um adolescente apaixonado; ademais,
todas as sortes despuseram-se, e afogaram-se, como
naquela história dos porcos endiabrados. Não coube a mim
resistir, por mais defeitos que tivera, com certeza um deles
não era o de encantar-me com alguma mentira.
Sinceramente, nunca me foi assim, e de tanto tempo nesta
prisão eu pensei, o que talvez muitos já ousaram pensar,
alguns chegaram a entender e outros poucos se prestaram a
acreditar: Do que é feito a vida? Não outra coisa, senão a
certeza de que estará sempre preso numa cadeia em que a
porta se fecha toda vez que você a tenta abrir. Não diferente
disto: É como se a cada vez que se levantasse para girar
uma simples maçaneta, e dar a cabo a sua verdadeira
liberdade, um mecanismo acionasse, e uma pesada marreta,

94
vindo de cima, lhe atingisse bem na cabeça; então você
acorda, baqueado, mas não se lembra o porquê, só de uma
coisa se tem juízo: de que está preso e precisa sair. Então
tudo se repete, como numa diabólica dança ilusória, onde
os que dançam não percebem o escaldo dos seus pés e a
pele chamuscada que descola no ardor. Porém, de tanto
tentar, sua alma se acostuma com a dor, de sorte que as
pancadas não surtem o mesmo efeito, e daí, lentamente,
começa a se lembrar... percebe que sempre cai ali, bem em
frente a saída; de repente, lembra-se de tudo o que
acontecera: levanta-se para sair e desmaia ao tentar abrir.
Devagar, você gira a maçaneta, e consegue com muita sorte
levar as mãos sobre o rosto, e evitar com que a pancada o
fizesse desmaiar. Agora, consciente, de todas as maneiras
tenta sair de lá, mas nunca consegue. O que faz? O que todo
amante da verdade faz: reconhece sua fraqueza e curva-se
perante o Universo. Duas escolhas agora lhe são garantidas:
Tentar, consciente de que sempre perderá, ou se acomodar,
e esperar que as traças lhe consumam de uma vez.

Leitor, o que faria?

Escolhi aceitar o que o Universo me reservara. Aprendi o


que podia, e sentado, posso conhecer muito mais do que
perdendo tempo tentando ganhar a vida. Jamais algum
homem ganhou na vida, porque não é a vida como algo que
se pegue ou que se possa carregar; o que chamamos de vida
não é nada a não ser uma abstração, uma real abstração,
mas assim como é real as leis que regem a natureza, assim é
com o espírito; e não dizem "ganhei na gravidade" porque à
todos alcança, igualmente. Então, do que poderia o homem
se vangloriar, se a todos os homens são os mesmos pesos e
as mesmas medidas? E do que adianta transformar o
mundo, se não puderem preservar o que construíram? De

95
que adianta a revolução, se não puderem manter o que
conquistaram? E do que adianta ganhar na vida, plantando
o que se espera, se não puderem colher do que lhes
imaginam? E é disso que o homem se adoece, por de tanto
acumular, jamais se contenta com o que tem, porque
também de lá não irá usar, então entra numa curiosa
dialética que, de tanto trabalhar, não consegue desfrutar do
que o próprio trabalho lhe outorgou. Cego, como um
escravo de si mesmo, guiando-se nu pelo deserto, com
algemas em suas mãos, e mesmo que quisesse não poderia
mais evitar o que a si mesmo imputou.

E o que fiz para merecer tamanha recompensa? A ironia do


tempo é prescrever certo com as métricas erradas... pois
estávamos pensando se Diogo realmente iria se infiltrar na
Prefeitura, de sorte a conseguir alguma informação que lhes
eram repassadas pelos donos disso tudo. Tive que lembra-
lo que já estivera com eles, e com certeza possuía alguma
memória do que realizara. Porém, como todas as memórias,
para serem resgatadas, é preciso que de passe por alguma
experiência que lhe fosse parecida com a da originada
memória; assim, o cérebro poderá usá-la como um gatilho,
e resgatá-la do subconsciente; por dias o colocamos a prova,
eu e o velho, recriando o cenário, reinterpretando a história
e costurando tudo o que lhe poderia ter passado por lá. O
que parecia loucura, ou uma peça mal-feita de teatro,
acabou por culminar no que pretendíamos alcançar;
lembrou-se do que via e das coisas que ouvia, da feição
estranha dos secretários ao verem as ordens que lhes eram
dadas a aplicar, e da revolta de alguns que delas se
recusaram a praticar; desde desvios de verba a realocação
de recursos regionais para federais; os que traziam as novas
ordens carregavam no uniforme um emblema, o mesmo
que usavam os guardas da operação secreta de Diogo.

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Logo, tudo se tornara óbvio: o governo central é o guia de
tudo, por todos esses anos, e certamente sabiam do que
poderiam fazer com a arma que tinham em mãos. Então eu,
Diogo e o velho pensaríamos por uns bons dias em como
nos infiltrar nas maiores instâncias do governo, até que nos
deparássemos com algum acordado lá dentro e
descobríssemos como tudo é organizado, para enfim,
podermos dar um fim neste inferno... mas como?

Tudo o que pensávamos era pequeno demais frente ao


poder do que realmente poderíamos fazer; não bastava
esforço, não adiantava técnica, avidez, destreza, sabedoria,
nem experiência, porque o futuro de todos os que ousavam
acordar não seria diferente dos que continuavam a
descansar. Por vezes pensamos no que pudesse ser feito, e
nada nos vinha a mente se não organizássemos um grande
motim, em face daquele primeiro. Não seria fácil, e
certamente a boa poupança da aposentadoria do velho nos
serviria de boa sorte; precisaríamos recrutar tanta gente e
tanta munição, que não saberia dizer se teríamos tanto
dinheiro para isso, mas, por algum motivo, o velho
realmente tinha uma boa aposentadoria...

Porém, tudo começava a me parecer uma engaçada


tragédia, afinal, de qual prisão estaríamos os libertando? da
mente? do seu trabalho? das suas memórias? a agonia me
possuía, não sei porque... parecia-me que outra coisa me
ocupava a consciência, como se outra pessoa se colocasse
em meu lugar, e começasse a pensar por mim... ou, quem
sabe, nunca fosse de fato eu, e tudo o que eu achava que
era, na verdade, era outra pessoa. Como saberia? Nada me
tirava a ideia de ser uma coisa sem forma, como a deriva de
uma perigosa floresta; e de tudo o que me parecia mais
substancial e verdadeiro, e das coisas boas que ainda me

97
restavam, ou do senso de justiça que guardaria até a minha
morte, de tudo isto, nada superava uma antiga memória
das minhas velhas andanças pelo bairro, quando era novo e
no caminho de volta para casa eu sempre via uma grande
árvore cujas flores que davam, com certeza, eram as das
mais bonitas que alguém poderia admirar; eu as amava
contemplar, e era como se a própria essência de Deus
enchesse o meu espírito, ao ponto que me sentia uno ao
Todo, como se também dançasse na harmonia de todo o
cosmos; e mesmo assim, mesmo na tão magnífica beleza e
sentido que via numa simples flor, eu olhava para baixo da
árvore, e bem no chão havia uma poça suja onde as flores
caíam e se misturavam a lama, onde os carros depois
passavam e alguns distraídos pisavam; daí me via o
pensamento do qual não podia me desvincilhar, de que o
mundo parecia como aquelas flores que, tão belas eram
quando estavam em cima, mas tão medíocres quando
estavam ao chão; porque quando no alto o orgulho não os
deixariam atirar-lhas no único lugar onde os fracos de
espírito poderiam a esmagar: no chão, no albergue dos
fracos.

Assim, tudo me parecia tão pouco, e nada me parecia coisa


demais. As coisas foram perdendo o brilho, como num final
de um filme ou de uma música; a tela se escurecendo, a
música abaixando... até que o nada tomasse conta, e,
curiosamente, e de repente, tudo poderia ou nada deveria;
qualquer coisa ou alguma em especial. Curiosamente, fazer
ou não era, justamente, a única coisa que me fazia sentido.

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CAPÍTULO 18 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA II
Sabe, tudo me parece meio perdido, como tudo que um dia
dura e perde a hora para acabar; um prazo de validade,
uma eternidade de sentido e um vazio de completude
inexplicável. Passei os anos percorrendo a bonança, mas só
agora percebo que foi a loucura o motivo das minhas
andanças... tantas viagens, descobertas de uma porção que
não cabem na pequenez do meu espírito, tampouco me
prouve nalguma circunstância, senão legar-me a outorga de
um maníaco, pronto a se descabelar. Por que vivi?
pergunto. Olha onde estou! não vejo a hora passar, porque
privaram-me até do cortejo do Sol, que na ocasião me seria
melhor companhia, no lugar do meu eu, que me insiste em
atormentar. Se é noite ou dia, se durmo ou se levanto, se
penso ou se abstenho, se filosofo ou se descanso, tudo
posso preso, e quase nada podia solto.

O que isso está tentando me dizer?

Escrevo o que posso, até que a psicomania tome conta da


minha existência, ou que eu acabe por perecer, até as
últimas horas da minha vida, que hão de cumprir-se como
ele me dissera; antes dele, cabe recordar-me como cheguei
aqui.

Na tarefa de criarmos nosso exército, pensamos no que


então poderia ser feito. Como juntar tanta gente? Como
acomodá-los? parecia-nos uma louca ideia, mas a única que
restava. Diogo pensara naqueles que o ajudara no motim;
seriam eles, os que conheciam o lugar como ninguém,
entretanto, como contatá-los? se nem o governo os acha,
seria difícil para nós rastrearmos todos eles. Nada nos

99
vinha a mente, e tudo caminhava para um triste desfecho,
até que sugeri, num tom sarcástico, que contratássemos
matadores de aluguel, destes que se achavam facilmente na
internet. A quantia seria exorbitante, e não teríamos
condições de bancar um sequer, porém, o velho nos diz que
é uma excelente ideia. "Como fazê-lo?", perguntei, no que
ele nos diz poder bancar todos quanto precisarmos. Pensei
que fosse ironia; até ri no momento... até perceber o tom
sério com que nos encarava. De tal modo, fiz-me com ele, e
lhe perguntei seriamente de onde vinha o dinheiro. Ele, que
até então nos dizia vir da pensão, obviamente não podia
mais sustentar essa hipótese. Fora franco: tinha uma grande
quantidade reservada, fruto de apostas. Dizia que era
profissional, e que não se tratava de uma questão de sorte
puramente. Desconfiei, como qualquer um, ao passo que
lhe pedi provas daquilo. Ele, então, me levou ao seu quarto
pessoal, nos revelando enormes quantidades de
documentos, uns computadores, gráficos e tabelas, todas
registrando cuidadosamente o passo de cada coisa que
poderia acontecer. As apostas variavam, desde em corridas
de cavalos, a resultados de jogos, numerologia, etc. Me
convenci por um momento, mas ainda me parecia estranho,
afinal, por que guardar tanto dinheiro? Não parecia ser um
homem rico; a casa, os hábitos, nada me parecia isso... Não
parecia que vivia naquela casa, porém, eu também não
tinha escolha: era a única oportunidade de nos livrarmos
daquele inferno, e isso teria de ser feito mesmo com
desconfiança minha sobre o velho.

Tratamos de fazer o que eu mesmo tinha proposto.


Poupando-lhe dos detalhes, procuramos e achamos um
sujeito que nos fazia a intermediação entre os matadores de
aluguel, tudo pela internet e pago em bitcoins. Não muito
tempo, logo eles apareceram. A cada um que vinha,

100
explicávamos a situação, e provávamos de inúmeras formas
o ciclo na qual estavam inseridos. Cada um espantava-se à
sua maneira, mas depois de um tempo, todos de igual
modo se acostumavam com a ideia de sua vida repetitiva.
Realmente, não aceitavam de prontidão, mas também não
tinham escolha. Depois de bons dias em casa, restava-nos
recordar o máximo que podíamos sobre aquele lugar do
qual Diogo fora antes protagonista. Cada passagem, cada
corredor, tudo era meticulosamente anotado e
representado. Com um mapa em mãos, munição, colete,
equipe e com pessoas dispostas a literalmente morrerem a
se sujeitarem a mesma rotina que sua mente recusaria a se
curvar, fomos de encontro ao tal lugar.

Não era vigiado, pelos menos não parecia; ficava bem no


centro da cidade, como se fosse apenas um pequeno galpão
de descarga ou coisa parecida. Porém, o que realmente
importava não era a garagem, mas em baixo dela: Uma
enorme construção, feita justamente na cidade, bem na
nossa cara, pra pensarmos que "se realmente o governo
conspira contra nós, não fara isto bem no centro da
cidade!". De frente a porta da garagem, esperávamos que
ela alguma hora abrisse, porque se fizéssemos pela força,
por justamente se tratar do centro da cidade, levantaríamos
suspeita, e todo o plano de nada nos serviria. Horas se
passaram, e nada. Aguardávamos ansiosamente; depois de
tantos anos, finalmente tínhamos a oportunidade de livrar-
nos do maior castigo que a humanidade já havia
presenciado. Tomávamos as dores uns dos outros, e afligia
o coração a cada segundo que esperávamos para podermos
ser finalmente livres.

Até que a porta se abre; um pequeno caminhão, parecendo


de uma empresa de comida sai de lá, para destinos que

101
jamais saberemos.

Começara então, finalmente, a revolta dos escravos.

Seis carros, trinta pessoas, todas fortemente armadas e


blindadas até o pescoço. Com os próprios carros, invadimos
a garagem, ao passo que os homens que ali estavam, com
uniformes da mesma empresa de comida, correm para um
baú e tiram de lá armas tão pesadas quanto as nossas.
Imediatamente, antes mesmo de poderem atirar, os
acertamos. Em seguida, entramos pelo grande túnel que
havia ali, que nos levava direto para a base. Ao chegarmos,
eu, o velho e Diogo vislumbramos aquilo que tanto
atormentara o último. Porém, uma forte dor de cabeça
começara a nos afligir, a mim e a Diogo... Memórias antigas
rememoravam-me, como se passasse por aquilo antes; via
as coisas acontecendo bem na minha frente, mas logo
percebia que se tratava de uma ilusão da minha mente. Eu
estava completamente fora da realidade, e de igual modo
Diogo, no que então o velho nos ajudou; enquanto nos
levara para descansar e se acalmar, guiavam os outros pelo
mapa para onde devíamos chegar. Seguíamos atrás
devagar, e o velho em nossa frente, guiando-nos. Fui
recobrando a consciência, mas Diogo insistia em
permanecer aflito. "O que vê?! O que vê?!" perguntava, e
respondia, com dificuldade, o mesmo que senti. Depois de
um tempo, dizia coisas como "não podemos fazer isso, não
podemos!!" "temos que sair daqui! não é justo! não é justo!"
mas não podíamos parar ali, não naquele momento, pois se
fizera tarde, e os poucos minutos que tínhamos antes que o
ciclo se repetisse não nos permitiria ceder. Seguíamos, e
quem surgia para nos parar era morto. Só depois de uns
bons mortos deixados pra trás é que começaram a se unir,
mas também já era tarde; talvez tivemos sorte, por estarem

102
distraídos naquele dia. A correria dos cientistas, a baderna,
os alarmes, tudo isso rememorava Diogo, e o fazia se sentir
cada vez mais perturbado...

Nos aproximávamos da grande sala, a mesma onde Diogo


outrora estivera; àquela altura nada nos impedia, e
chegávamos cada vez mais perto do que podíamos
imaginar que, um dia, estaríamos lá de novo. Nada do que
tentavam conosco surtia efeito; blindados, nada nos atingia,
e muito bem armados, qualquer um se rendia; íamos, até
que vimos a porta que dava para a grande sala.

Abrimos.

O grande sistema, a arma, a causa de todo o sofrimento;


bastava um único comando, que tudo o que significava
nossa escravidão tornar-se-ia em nossa própria alforria; o
tempo nos era pouquíssimo! A esperança tomara-nos conta,
e esperavam apenas que lhes dissessem a unica ordem que
nos era dada àquele dia: destruir tudo.

Então... Um simples ato, uma pequena palavra, escapara-


me à boca. Olhei Diogo, que rolava de dores pelo chão;
todos tornaram a fitá-lo, e ninguém sabia o que era pra ser
feito; o desespero tomou conta, até que percebi...

Não era Diogo rolando ao chão. Era eu.

Ou melhor, nós.

103
CAPÍTULO 19 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA III
O sonho louco, donde percebes acordado e trabalha
sozinho; recebe o que lhe dizem e recusa o que lhe
oferecem; toma-os por sobre os braços mas guia-os pelo
desfiladeiro, até que se consumam em fogo; lhes oferecem
água, mas transforma-a em vinho, não para os que hão de
embriagar-se, mas para os pequenos pueris; sugerir-se-ão
as doces ofertas do mar, e recusar-te-á por outras parcas
amargas. Da sorte, arranca-lhe o peito, suplanta-a na costa,
até que os corvos façam proveito; e finalmente descansa-te,
porque do mundo vil, nada lhe pertence.

Lançado à este triste destino já esperado, o que posso dizê-


los? Mais um fim reservara-me os que de cima me
observam e porventura me controlam; não como fantoche,
mas como um medíocre mendigo apaixonado por uma
cachaça, e talvez por isto seja tão ruim assim. A consciência,
uma prisão: a pior, aquela que escolhes afugentar-se, e jura
que sairá quando lhe convier; apetece o coração, até as mais
altas camadas de sua liberdade tornem-se as suas próprias
amarras, e vê-se preso. O que posso fazer?

Nada pude a não ser assistir as coisas que se passaram


naquele dia. Atônito e imóvel, vi o tão buscado sonho
desmanchando-se como umas escritas apaixonadas na areia
do mar; levara a onda consigo não só as marcas mas
também toda minha sorte. O velho, que agora ditava as
ordens, tão vil fora, que nem um motim ou confusão
quisera causar, a fim de que se lhe aliviassem a culpa, como
se dissessem que nós "perdemos o controle" ou coisa
parecida; do contrário, deu ordens para que os mercenários
esperassem, e que não destruíssem a sala de comando, que

104
por conseguinte destruiria os satélites também. Pior,
esperou até o momento em que se completava mais um
ciclo e, sem que ninguém percebesse, todos estavam
perdidos, exceto nós, eu e o velho. Sem consciência de
nada, os mercenários ficaram ali, perguntando aos outros o
que ali se passara; o velho arrastou-me para uma outra sala,
enquanto tirava de seu bolso algo que já esperava que
numa hora iria usar: Um tranquilizante. Depois de umas
boas horas, lá estava eu... amarrado junto àquele poste, bem
no meio praça, a mesma que outrora havia de ter
experimentado um final tão doloroso que talvez agora
tenha ela uma razão de ser.

É certo que não entendia o que fazia naquele lugar; era


outra cidade, e de primeira interpretei-a como se nunca a
tivesse visto; até que, dolorosamente, as memórias
começaram a aglutinar-se no meu consciente, e pus-me a
recordar dos momentos em que passara por ali. Perdido, e
ao mesmo tempo curioso, tentei entender o que significara
tudo aquilo: os flashbacks, os sonhos, a rotina, a tragédia,
as ilusões, o mundo real... por que me parecia haver duas
consciências em uma mesma mente, onde uma
simplesmente não atuava ou não aparecia e, de repente,
experimentando o mesmo processo pelo qual foram
criadas, parecem ressurgir do seio do inconsciente, criando
forma e materializando-se por fora. Então, recordei do meu
antigo passado, que acontecera antes mesmo do qual até
agora compreendia ser o único: meus brinquedos, minha
família humilde e minhas doces tragédias... lembrei de
Trufa, do qual tanto me comprazia na sua simplicidade, e
que tão delicada era que não suportara ao meu terrível
toque; lembrei de Agridoce, onde me descobri tão
calorosamente nos braços de uma amante mulher; até de
Caos me recordei, e coloquei-me em luto por saber que dela

105
perdi qualquer contato. Tão estranho era relembrar do meu
passado e conceber duas coisas acontecendo, duas
lembranças que co-existem, duas verdades que não se
anulavam... parecia-me a tal dialética que Hegel nos
remorava, sempre se contradizendo, e sempre se
superando... Por sorte, não perdi-me na bagunça que
encontrei no meu eu, e por talvez tão inusitado fosse que
via-me um motivo maior de existência, como se tivesse
mesmo motivo para tal; de tantas memórias, lembrei-me
daquela última: em casa, sozinho, deitado no chão
esperando que a fome ou a sede corroessem-me por
completo; lembrei da romântica forma com que agi naquele
dia, quando da gaveta peguei o cianeto que guardava, para
dar fim aquilo que tinha me tornado. Porém, também
lembrei que tinha esbarrado num pote de molho que, por
descuido, manchara a roupa que usava, uma blusa xadrez,
e lembrei de segurar os óculos, antes mesmo que caíssem...

Nisto, diante de mim, o Velho, com a mesma roupa e o


mesmo óculos, encarava-me como se conversasse comigo
apenas pelo olhar. Todo esse mistério, toda essa confusão,
as coincidências que nos levavam à um único e mesmo
destino! A forma perfeita da eternidade que, de tanto
repetir-se, encontra na rotina as marcas perfeitas do
caminho que nos leva a trilhar, junto a ela, como se visse a
todo tempo nossa vida se repetir, e soubesse o que nos
recomendar, de sorte a prosseguirmos sempre no melhor
caminho... como se pudéssemos ver nossos corpos guiando-
se divinamente pelas ruas, calçadas, vias, e conseguíssemos
sentir a sua inspiradora influência, como um bom espírito
que nos possui, levando-nos ao rumo do firmamento.

Finalmente, depois de todo esse tempo, compreendi o que

106
na verdade eu era: Uma brilhante simulação!

Não pude escolher nem meus próprios caminhos, porque


eles já estavam com uma plena razão de ser. Nisto, o que
me difere de uma máquina? Ambos com um programa, e
ambos com um propósito; o robô, de servir; eu, romancear.
Por sorte, fiz-me tão bem nesse jogo, que cheguei até o
fundamento deste, e percebi até as linhas do qual era feito;
desse modo, encontrei-me quase que em estágio de
transcendência, como se pudesse me fazer maior do que a
própria criação. De certo, compreendia do que se passava,
mas nada poderia me fazer superar. É como um louco que
descobre sua loucura: Do que lhe adianta, afinal? Ademais,
pode até sê-lo pior, porque quando era só louco, não sabia,
e agia loucamente pensando estar sóbrio; agora, por saber,
enlouquecerá eternamente, por entender que agora nunca
saberá quando está louco de verdade ou não, e viverá
sempre com medo dos outros, dos olhares, desconfiado de
tudo quanto lhe cerca, e perderá tanto tempo com o mundo
que este mesmo lhe cobrará uma estadia tão alta que não
encontrará dinheiro nenhum que possa pagá-lo, e findar-se-
á em algum beco escuro, longe das coisas que outrora jurou
guardar. Sabe, a vida é mesmo isto: Não enlouquecer por
descobrir o ser um, de modo que parece-me agora claro que
a verdade, realmente, não cabe para todos, por justamente
sermos cria, e não criação, é que nos vemos abaixo de tudo
quanto nos transcende: a lógica, a física, a matemática, e
todas elas fundamentando-se no que há de mais elevado
em nosso plano: a verdade. Acima, só Deus, do qual nem
ouso falar ou teorizar, nem concluir nada a seu respeito,
por não poder inteligir mais do que apenas a certeza de sua
validade. Deste modo, o que havia para que me sujeita-se?
Nada do que me aparecia parecia alguma coisa que
pudesse dedicar valor, afinal, tudo para mim era como um

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nada, e até mesmo o nada valia alguma coisa.

Naquela praça tudo me era familiar, e era como se fosse


minha própria morada, meu lar de conforto. Calmo, o
Velho desatou-me, e lá mesmo, sentamos. Como era de
manhã, não houvera de vermos nesta situação, até que o
dia fora aparecendo, e junto a eles as pessoas também.
Calados, víamos as crianças, os adultos e os idosos, todos
dividindo parte da sua existência naquela praça. Em
espírito, se fala que todos aqueles que compartilhavam suas
experiências completavam-se e enchiam-se de tanta graça
que nem mesmo eles compreendiam, mas a sorte lhes
reservara a intuição, que levava-os a este tão simples lugar,
mas tão mágico era quando todas as gerações encontravam-
se.

Aquela praça era nosso palco, onde nós, que podíamos ver
além do próprio tempo, deleitávamos a refletir sobre os
mistérios da vida, ou melhor, do que faríamos com tudo
aquilo.

Todo o destino do mundo, e éramos como dois opostos da


literalmente mesma moeda.

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CAPÍTULO 20 | INÍCIO
Quanto tempo dura um sorriso?

Passei uns dias pensando sobre isso. O que conclui? Que


todos eles tem uma boa razão de ser, afinal, um sorriso
cativa até a alma mais rejeitada, porque até mesmo os que
mais se recusavam a se integrar amolecem o coração
quando de uma outra alma vem o mais doce desejo de lhe
amar de volta! É tão incrível, porque nos mostra para o que
realmente fomos feito, e nos apresenta uma curiosa forma
do qual sentimos tanta vontade que inexplicavelmente
poderíamos dizer ter vinda de alguma coisa biológica ou
parecida, e até mesmo nas relações mais profissionais, seja
no trabalho, quanto na escola, porque parece-me que tudo
converge a estarmos unidos uns aos outros, como se só
vêssemos no outro o motivo da existência. Veja, porque de
nada adianta ao homem uma mesa de jantar se não dividi-
la com quem dela também lhe fizesse proveito, e não
adianta ao homem uma boa cama se não encontrasse nela
alguém que desse sentido a sua vida, e não adianta também
ao homem encontrar-se cheio de si sem que haja espaço
para que os outros lhe entendessem também. Desse modo,
me parece então um sorriso durar uma vida inteira.

E mais: disto, vai a conclusão mais sumária desta parte, a


de que só vale a pena aquilo que é eterno, ademais, tudo o
que é sólido se desmancha no ar; e não há nada que dure
nesta vida, se não as coisas que dela podemos levar para a
vindoura eternidade, a saber: nós, e somente nós, que
temos no nosso sangue todo o universo, e tudo o que há de
mais elevado, e é nos certo que até o fim de tudo quanto
nos é dado a imaginar, até as coisas mais incertas, na

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eternidade hão de se concretizar.

Porque de nada vale lembrar, ou de nada vale tentar, sobre


aquilo que um dia pôs a alma a se prestar.

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