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daniel almeida
2019.
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CAPÍTULO 1 | TODO DIA A MESMA
MERDA
Uma coisa que você precisa saber é como todo mundo
repete a mesma droga de rotina, todo dia. Tem esse cara
aqui, o Diogo, acorda todo dia às 7, se arruma olhando no
espelho, toma café enquanto vê as notícias de política; ao
descer do apartamento, encontra a senhorinha Rita,
tadinha, a ponto de morrer; mais velha que a felicidade. Ela
serve café para uns figurões importantes da cidade num
desses lugares gourmet que não vou lembrar o nome
porque foda-se, ninguém liga. O cara entra no carro velho,
pega um trânsito desgraçado; chega no escritório, tecla uns
símbolos numa tela que deve ser de algum valor pra
alguém, talvez ele nem saiba o que é; aí vai pra casa 8 horas
depois, mesmo trânsito, mesma rotina. Descansa um pouco,
depois vai pro notebook escrever seu romance; daí, vai
gastar o resto do tempo vendo uns vídeos e postagens
idiotas, só pro tempo passar; na hora, sua namorada virtual
o chama. Os dois alimentam uma esperança de um dia se
verem, como crianças que juram amizade eterna logo
depois de se conhecerem. Diz ela que o verá amanhã, sairá
da sua cidade longeva para ver um figurão com um
emprego horrível numa vida sem graça que só não deixa de
viver por preguiça mesmo. Imagina o trabalho que deve ser
pra conseguir medicamentos nocivos contrabandeados sem
a porra do governo meter o dele? Os filhos da puta metem
imposto até na hora de te matar. Então foda-se, melhor
ganhar um trocado pra torrar o que sobrar em cerveja do
que pular da porra de um prédio alto que só vai dar
trabalho pra faxineira da rua. Dai Diogo vai dormir, com a
mesma cara de sempre: de sono, de tristeza, de nada.
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CAPÍTULO 2 | PISTACHE
Vi ele levantando, com sono e olhando pra cama com
aquele olhar perspicaz de quem queria era passar o dia
todo dormindo. Foi logo arrumar a porra de um emprego
que não tinha nada a ver. O que fez Diogo parar nessa
situação? O cara tinha boa família, certa vez ele.. Esper..
Cacete, ainda é o segundo capítulo. Porra leitor! Imagina se
já te entrego os tramas da vida dele logo agora? Depois eu
falo disso, ainda não é o momento. Você ainda precisa se
identificar com o Diogo, o cara que tinha um talento nato e
especial mas sempre via-se em procrastinação e nunca
terminava um projeto. Passou a adolescência e juventude
reclamando da vida, de que queria ser mais, fazer o que
queria. Se ele entendesse que nessa merda de vida já está
tudo pronto, meio que pronto, então se ele quisesse algo
diferente, viver de modo a fazer o que gosta, teria que
entrar no clima da cidade monótona e sem graça, pra daí
conseguir grana o suficiente pra começar o projeto dele. Ah,
ainda tem o fato dele estar na droga do Brasil. Porra Diogo!
Cara esperto desse, não entende o mínimo de sociedade...
Agora estava eu lá, vendo ele se olhar no espelho. Esse
momento é sempre especial, é quando ele consegue ver-se
por alguns segundos, antes do mundo resetar e ficar
loopando ad infinitum. Dá pra sentir uma certa
humanidade; Ele parece que começa a entender o que está
acontecendo, na situação em que está. Aí de repente o
bostão abotoa a camisa e vai tomar café. Boa amigão, você é
foda!
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estar bebendo umazinha agora, mas não posso sair daqui.
Será que tem uma na geladeira? Não, não tem. Todo dia eu
vejo, junto com ele, só tem o básico ali: Feijão, arroz, água,
uns temperos e uma coisa no fundo da jarra de suco que eu
nunca tinha identifica.. espera.. PISTACHE?
Ôh cacete! falei alto... puta que pariu, vou voltar pro quarto,
de mansinho, de mansiiii
_ !!??!?
Hehehe
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Ele veio pra cima, tentou me dar um soco. Uma pena que
sou um ser metafísico transcendente, ora minha forma não
se prende às leis físicas; estou sujeito à outras.
_ Ah, sim..
_ Ok..
_ Então Steve, o que faz aqui? Por que devo a honra de sua
visita?
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poderia sustenta-los quando se aposentassem (nada mais
justo) começaram desde que se percebera sua genialidade a
economizar uma boa grana pra uma faculdade privada.
Não queriam as públicas, porque era um antro de
socialistas nojentos perpetradores do sistema político de
bosta (QUE PAIS DE ORGULHO). O cara cresceu já com
futuro, e depois de se formar foi pra uma faculdade de
Física. O resto é história.
_ ...
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_ "Seu café, com creme e açúcar extra."
Mas o que será que ele vai achar da Rita? Vamos lá ver!
*teletransporte*
Ihhhh olha a carinha dele!! Olhou pra trás, fez uma cara de
cu, depois voltou a andar em direção ao carro, negando o
acontecido com a cabeça... Que pena dele! Mas sério, acho
que foi vacilo... Estou deixando ele perplexo! Mas porra, ele
também não ajuda... Não consegue ver o óbvio, bem na sua
frente. Deve ser que ele se propõe a ver tudo com os olhos
do corpo, e não percebe a verdade, tão simples, e tão
simples, que pra caras como ele, que não conseguem aceitar
que um com um dá dois, ficam então inventando fórmulas
e teorias extensas, como se a comum observação das coisas
não se valesse... tudo tem que ser complicado, difícil,
burocrático, se não, não vale.
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CAPÍTULO 3 | CASTELO DE AREIA
_ ACORDA FILHA DA PUTA!
_ SÉRIO?!
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_ Isso.
_ Isso.
_ Exatamente.
_ ??
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_ O governo. Quando eu comecei a estranhar que a Dona
Rita repetia a mesma frase todo dia quando me servia o
café, eu fui me dando conta de que algo estava errado: ou
era ela que tinha Alzheimer, ou o mundo estava loopado.
Claro que pensei na primeira opção, também porque ela era
muito velha, tadinha... Olha o nome dela! Se a primeira
mulher do mundo não fosse Eva, seria Rita...
_ Como impossível?
_ Como?
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mais que o mundo se repita e as pessoas pensam viver este
dia como sendo a primeira e última vez, as consequências
que o governo toma continuam alterando todos os fatores.
Pense num grande fazendeiro que hoje de manhã vendeu
seu estoque de maracujás: ele está sempre os perdendo,
porque todo dia os vende, não dando tempo pra terra os
reproduzir. O que acontece com esse cara? Ele se queixa,
porque ontem, o ontem de verdade, ele pensava que
venderia x maracujás e ficaria com y deles, mas como todo
dia sempre os vende, fica sempre com menos y, e entrega
sempre x.
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caralho.
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enter.
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CAPÍTULO 4 | POSTITE OU POST-IT?
Qual é a mania desse povo de querer inglesar tudo que é
brasileiro? Porra! Cadê o orgulho pela nação, pela pátria,
pelo... É, é meio idiota isso, não é? Parece até aqueles
discursos medievais de honra e cavalaria. O Brasil é
imenso, caralho! Tem lugares que até a língua é diferente.
Essa unidade nacional é simplesmente um mito, não existe
e jamais existirá, não num país continental.
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espaço e tempo...
_ ...
_ ...
_ É post-it.
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em que ele acreditaria em si mesmo, então pedi para que
ele assinasse logo em baixo. Já é uma prova, mas é
necessário alguma coisa a mais. Ele poderia pensar que é
sonâmbulo, teve algum sonho e escreveu tudo isso, por
mais estranho que pareça... então pedi para que ele tirasse
uma foto, e toda vez que chegasse o final do dia ele riscasse
seu braço, para saber quantas vezes loopou e também como
uma prova de que tudo era real. Afinal, como um
sonâmbulo pensaria nisso tudo? Ao final do texto, uma
explicação das coisas que já sabia sobre como funcionava e
quem controlava. Assim que ia descobrindo mais, anotava.
Uma hora o postite se tornaria um grande quadro de
detetive, com aquelas fotos e recortes de jornal, interligando
uns aos outros. É, pelo menos uma aventura pro Diogo.
Fico feliz de tirá-lo do tédio.
_ Sua selfie ficou uma bosta eim cara. Olha essa cara de cu.
Pelo menos serve como prova.
_ John.
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certamente, do jeito que me apresentei, não daria confiança.
_ Er.. 120..
_ ....
*6 DA MANHÃ*
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chão você vai pisar depois que isso tudo acabar?
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medo, já que a ponte é segura? Não importa. O problema
não é a ponte, é altura. Se não fosse uma ponte, seria medo
de sujar os pés com terra. Se fosse uma estrada, seria o
receio de contrair calos. Não importa o que nos separa do
ouro, é que não sabemos o que fazer com ele.
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CAPÍTULO 5 | SONHEI COM O FUTURO
Observei-o acordar; Parecia diferente, como se lembrasse de
algo que não entendia. Foi, leu os vários postites presos na
parede logo em cima da estante, em meio aos copos de café,
abajur e alarme que sempre o acompanham na noite.
Depois que parecia entendido, surgi. Conversamos um
pouco, sentados ali na cama mesmo, e o semblante já não
parecia de tanta surpresa como na primeira vez. Ao
explicar tudo a ele, e explicando as vezes que já apareci, me
perguntou por onde poderíamos começar.
_ Como normalmente?
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_ Ora porra, como é agora... 1, 2, 3.. no sonho parecia
3,1,2,4..
_ Ah sim..
_ Equipamentos elétricos?
_ É post-It.
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caralho...
_ ... Vou pegar o post-It, pra você anotar esse sonho, nunca
se sabe.
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a Terra junto, deve ser um puta ponto do caralho" e sim, é
muito grande, por isso levou cerca de um dia, praticamente,
pra concluir tudo. Beleza, mas e o outro satélite? Aí é muito
simples. Ele meio que não precisou fazer o serviço, apenas
recebeu a informação das ondas (pela triangulação) e as
replicou pela Teoria (não mais) da Ação fantasmagórica à
distância. O que seria este caralho? Einstein explica.
Basicamente, quando duas partículas são "geradas" juntas,
elas, de alguma forma, permanecem conectadas, como se
cada uma soubesse o que fará a cada momento. É louco
isso, mas já foi provado há muito tempo, lá pros anos de
2010, só que ainda era um experimento singelo, não tão
legal como esse. Ah, pra ficar mais claro, você já deve ter
lido ou escutado algum amigo entusiasta de física falando
de buracos de minhoca, aquela coisa que dobra o espaço e
faz com que você viaje do ponto A ao ponto B sem ter que
percorrer todo o trajeto. É isso que a coisa faz, quando
distorce o tecido do espaço. A ligação entre os dois é feita
instantaneamente, só que não dá pra viajar num buraco
pequeno, por isso leva-se quase um dia para criá-los.
Engraçado que seja quase que 1 dia, não é? Parece até que
foi feito de propósito. Se realmente foi calculado, o cara foi
muito esperto, porque projetou o troço pra um pouco mais
de 24 horas, uma vez que um dia não tem exatamente 24
horas. É isso e mais uns quebrados. Dai junta os quebrados,
e no final do ano temos mais 6 horas acumuladas, e em 4
anos temos um dia, aquele mesmo dia 29 de fevereiro. Vou
te falar, eu não teria essa esperteza...
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como sempre?
_ Vai dormir.
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tipo reproduzir com o fim de gerar mais vida pra essa
reproduzir mais vida e por aí ad infinitum. Eu poderia
explicar porque é fascinante, mas não o motivo, justamente
por que se eu ou qualquer um pudesse explicá-lo, qual a
graça depois!? É justamente isso, é esse eterno tornar-a-ser
que move o Diogo, me move, move você, o governo, a Rita
do café, o vendedor de balas no sinal... É disso que tanto
insiste alguns que você entenda que não é apenas uma frase
de efeito, e de que o objetivo da vida não é a linha de
chegada e sim o caminho que você faz até lá. No fim, você
pode ter uma boa empresa, escrever um puta livro, ser
dono de várias coisas, mas enquanto estiver vivo, irá ter
mais uma franquia, mais um puta livro, e será dono de
mais tantas outras coisas. Afinal, o que é a consciência de
aprender senão uma ferramenta que vive livre dentro de
sua própria sela?
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CAPÍTULO 6 | MÚSICA DAS ANTIGAS
Era por volta das 3 da tarde, quando finalmente acordou.
Os olhos vermelhos denunciavam o cansaço do trabalho e
da rotina que somente o corpo saberia nos contar.
Infelizmente, células não falam.
_ A boa.
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aterrorizador.
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ser justamente transcendente e superior, ela interage sem
necessitar de uma explicação científica para tal. É incrível!
Ganharíamos o prêmio Nobel com isso, com certeza.
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levando as tais pauladas e isso se repetisse, a situação
ficaria cada vez mais grave. Imagine um dia em que ele
acordar e se der conta que envelheceu 10 anos e nem sequer
percebeu! Certamente, não é uma rotina viável à longo
prazo..
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provavelmente alguém também já teria descoberto que o
mundo está loopado e faria alguma coisa, tentaria algum
contato; e também não tão pouco a ponto de fazer todo
mundo lembrar das antigas memórias...
_ E...?
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aparece, pode ser um sinal. Até a dona Rita, tadinha, muito
velha, até ela pode ser um sinal.
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que derrubou o garoto e o bateu repentinamente na perna
direita. Provavelmente, ele nunca mais irá andar, mas há
um lado positivo nisso: Também não irá pichar nenhum
muro em sua vida. O que me deixou pensativo foi
justamente o policial bater na perna direita. Por que isso?
Será que foi justamente pra ele sentir mais dor, já que
estava mancando? Talvez... Ele sempre age com ferocidade
e violência, e agora teve uma oportunidade pra ser mais
sádico ainda. Não que eu não goste, aliás, é belo e moral,
um cara desses pichando propriedade privada?! Apanhou
foi pouco. O dono dessa casa deveria ter saído e ajudado o
policial a quebrar a outra perna! Mas algo me estranha...
Por que dessa vez foi outro pichador? O que eu posso
concluir, é que os pichadores, provavelmente, só são
serviçais... Se a mensagem realmente bater com a minha
teoria, então a pessoa que descobriu o universo loopado usa
pichadores aleatórios apenas para transmitir seu enigma...
Ele também deve pensar como eu sobre política, porque
com certeza sabe que eles iriam apanhar, mas os mandam
mesmo assim! hahaha. Vamos ver o que ele tem a nos dizer.
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CAPÍTULO 7 | VOCÊ COME COM PICLES?
Tivemos que seguir o carro da polícia por um bom tempo,
até pararmos na delegacia. Enquanto registravam o B.O,
tivemos tempo de fazer algumas perguntas.
_ Somos da CDIA.
_ CD o que?
_ 1 2 7 8.
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A primeira coisa a aparecer foi o app de mensagens dele.
Você deve estar pensando: Certamente fui encontrar a
mensagem que precisava para depois devolver o celular,
não é? Bem...
_ HAHAHAHAHAHAHA
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precisávamos. Vamos ver o que esse cara tem a dizer.
_ Eu quero!
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sempre quando isso começa eu anoto nessa lousa, pelo
menos, desde que tive consciência disso.
_ Bom...
_ Post-its..
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reseta, é só nossa mente, o que comprova que-
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não sei explicar.
_ De?
_ FODA SE O SINAL!!
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_ E QUEM LIGA? DAQUI A 15 MINUTOS NEM
LEMBRARÃO QUAL A SUA PLACA! MUAHAHAHA
_ EU SEI CARALHO!
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_ O QUÊ!?
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CAPÍTULO 8 | ANARQUISTAS!
Diogo: Mas que porra de lugar é esse?! Com licença, mas
algum de vocês sabem... então ninguém sabe também?
Oush... Talvez seja o estress do trabalho. Espera.. que
celular é esse no meu bolso?! Não é possível...
_ Quem é você?!
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computador? Que o Diogo tem uma namorada à distância?
_ Roberto Carlos.
_ Isso mesmo.
*casa do velho*
_ Hey, idiota seu cu! Não tenho culpa de não ter poderes
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mágicos como você.
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prometendo antibióticos. Poderia até enganar a mente, mas
não o subconsciente. Este é mais pé no chão, racional, dono
da verdade, ou pelo menos, se inclina à ela. Logo ele
perceberia que foi enganado e falaria isso com a mente, e
em segundos, nosso homem morreria. Então não adianta.
Não sou um niilista, tô mais pra Dostoiévski. Apenas triste,
so to speak.
_ ANARQUISTAS!!
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_ Que porra foi essa, Roberto!?
_ Er...
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dentro. Quem se candidata!?
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você tem a perder? Você só tem a perder cara! A única coisa
que você tem a ganhar é o reconhecimento de ter feito o
melhor, de ter se superado. Se não for pra viver assim,
então nem viva.
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CAPÍTULO 9 | TRÉGUA! SÓ POR UM
MINUTO...
Talvez você deva estar se perguntando sobre Diogo, se
nosso incrível e monótono homem de social conseguira
realizar tamanho plano; Ou talvez se pergunte por que ele,
justamente a porra de um zé ninguém como ele, fora o
escolhido. Porra! Até eu me perguntaria, até sabendo a
resposta. Ainda me pego perguntando, sabendo que a
resposta nunca virá. Mas também, do que adianta saber?
Propósito e razão são tão óbvios que nem levamos a sério
mais, como uma criança que passa a tarde sem se
preocupar com a janta, por que tem a plena a certeza de que
sua mãe estará ali para alimentá-lo, e é assim que todos
vivemos. E aí, como crianças, nos perguntamos: "qual o
objetivo disso?" "Por que fazemos isso?" E a reposta nos
parece a cada dia mais distante, e solitariamente vemos as
nossas esperanças, também de criança, esvaindo-se diante
das nossas incertezas. A Razão, a tão rica madame laica,
nunca esteve tão decepcionada com nós, os franceses! Nós,
que abusamos dela, a matamos, a relativizamos,
esquecendo-nos de sua tão maior e gloriosa mãe, a nossa
verdadeira guia, a Moral; Esperamos ela adoecer, vimos a
sua queda e, quando ninguém estava olhando, a matamos
com um só golpe: um divino expurgo iluminado. A nova
era que nos colocou como bestas de volta para a caverna de
Platão, por que, para nós, a verdadeira luz, aquela que nos
transcende, nos mostra o quão fracos somos, o quão
queremos a mamãe, e o quão limitados somos. Então, o que
fizemos? Voltamos para o nosso cantinho escuro,
acendemos uma fogueira, e ficamos admirados por que,
finalmente, conseguíamos controlar a luz! Limitamos a
nossa epistemologia à uma frágil e fraca fogueira, onde
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qualquer sopro a faz apagar, mas ai daquele que assim o
fizer! Quem seria louco de apagar a chama da liberdade?
Quem poderia mostrar um novo caminho, se só há esse? O
caminho de fora, dizem, é impossível de conhecer!Ouça o
som do sacrifício que fizemos! Cheguei perto, e pude ver a
brasa tocar os pés dela; o corpo que ardia, os gritos que
clamavam: "Clemência, clemência! Óh mãe, por que me
apresentou aos homens! Por que me revelou aos pútridos!"
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um homem que não tem nada para contar! O que só me faz
pensar por um breve momento: "O que eu devo contar-lhes
para convencê-los dos meus planos?" A história deste
homem é imensa, quase uma enciclopédia, aliás, quem não
é uma? O que posso contar deste homem transcende todo o
conhecimento que poderíamos absorver, ou poderia uma
vida inteira sobrepor a outra? A mente é una e indivisível.
Ela apreende o mundo, ela se enriquece completando-se no
processo dialético de conhecimento mútuo, formando-se e
deixando ser formada, mas ainda una e indivisível. Não
poderá absorver a mente de Diogo, mas poderá levá-la para
o resto de sua vida, se assim desejar. E prometo-lhe que
jamais se arrependerá.
Apresento-lhes Diogo!
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CAPÍTULO 10 | ATO 1 | A PROGENITORA
Por sobre os montes cálidos do deserto via-se a figura de
um desconhecido, uma forma meio humana, vagando
solitariamente com os pés descalços e cheios de calos; via
na penumbra uma chance de se recompor, e sorria
incessantemente pelo espírito que lhe aguardava. O Espírito
o chamava com voz suave, guiando a razão do homem para
o seio daquela floresta saariana. A noite descia, e a sua
visão pesava; o cansaço denunciava sua falta de energia; os
calos, a dor; e a sede, a morte. Já sentia a alma saindo de
seu corpo, como se transcendesse os limites da carne. Já se
sentia parte do Todo, exatamente como o Espírito queria.
Caiu.
_ Não foi por ti que vim buscar refúgio, não foi de ti que
procurei ajuda.
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Ah, se soubesse o libanês que seu caminho não era tão
tortuoso assim! Se conhecesse o destino dos homens que,
por uma vez na vida ousaram como ele ousou! Ousou sem
saber o que era ousadia, venceu sem saber o quer é ganhar.
Se pudesse descrever como saiu de lá, não poderia dar-nos
melhor resposta do que um singelo "não sei." Na verdade,
só haviam caminhos já trilhados, e teve de escolher
sabiamente. Esporadicamente encontrava novas trilhas, e
teve que contar com a sabedoria para podê-lo guiar, uma
vez que ainda estava por lá, perambulando; o fez pelo
passar da idade, entrando novo, alçando à maturidade, e
permanecendo em velhice, porém sábio. O Espírito às vezes
lhe aparecia, como numa vez em que perguntou:
_ Saber, eu sei.
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todo dia, andar e andar, conhecer e conhecer. Não pareço a
ti ter chegado onde outros não estiveram? Será que não
pareço a ti ter transcendido outra vez?
***
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da história agora não poderia mais ser parado. Entretanto,
já desgastada, a escravidão não poderia de maneira alguma
continuar, haja vista os grandes, que os grilhões dos fracos
haviam partido (o que só indigna-me o motivo de te-los
vindo à cá). Vieram e acrescentaram, fizeram-nos despontar
de colônias às suas próprias culturas, de tanto que não
puderam evitar as aclamações por independência, ainda
que sendo república, mesmo que sem projeto, mesmo que
tortamente; e foi mesmo, bem tortamente. Das várias res
publica, só à uma alcançou tamanho status, justamente
àquela do Norte, que vangloria-se chamar-se América;
talvez por ego, porém jamais desmerecido. No Sul,
concentraram-se em São Paulo, Guanabara e Minas. Em
Minas, mais ao interior, que tão vasto, ainda nos era boa
parte desconhecido; novamente os bandeirantes seriam
estrangeiros! irônico como que dos descobridores do Brasil,
nenhum deles o é; se o fossem, esconder-se-iam nas
utópicas cachoeiras, que valem-se de contemplação quase
que divina (talvez por sê-la virgem); e foi mesmo nesse
ínterim de brasileiro com imigrante, que nele formou-se o
seio da sociedade latina. Viemos da mistura da mistura; ao
mesmo tempo um e todos, de modo que não surpreende à
nenhum sujeito são o propósito de não termos sequer
identidade! se viemos assim, é certo que pela avareza
voltaremos assim, como que numa sopa de legumes donde
as couves e alfaces não se dão.
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palavras, talvez mesmo assim nada diria, por que nada
mesmo poderia dizer, por que a ninguém se pode falar
aquilo que escapa da palavra. Soubera guiar-se, e numa de
suas andanças, parece-me o destino aliviar-se de algum
julgo que antes lhe fora feito, talvez por pura modéstia ou
ego, fez-na o encontrar, um estrangeiro, um urbano,
profundo conhecedor da ontologia grega, homem
culturalíssimo; no passado deu aulas, hoje descansa, como
quem o fizesse para criar (ou tirar de si) o que sabia mas
ainda não pusera na luz. Se de novo o fez, não sei de modo
conciso dizer, mas lhe veio a mente vir a cá, e fixar-se entre
as florestas, talvez ouvira entre os seus o ouro que lhe
esperava, e foi-se achando ser algo precioso, e de precioso
só encontrara ela. Não de outro modo poderia vir de dois
grandes uma que não fosse de vulgar envergadura, e quão
grande foi! Talvez vivera como bem Deus quis, e soubera
mais uma vez dos planos que no mistério fixa morada. De
si e de um prospecto alemão, imigrante forte, grandíssimo
homem loiro de claros olhos, a descendência quase
experimentara uma utopia; de si vários vieram, e duma de
suas criações talvez da mais interessante foi a Mãe. Da Mãe
muito não se fala em mantimento de segredo e em respeito
de história, o que se conta é que sofrera, de modo que tanta
energia voltava em cimentada sabedoria, dessas que dos
atos subentende-se forma, e da forma um taquigrafo, do
taquigrafo a tinta, da tinta a impressão, da impressão ao
coração; mais sábia que os sábios vivia de intuição, digna
de compreender, dos meandros daquilo que pensamos
como humanos, ela sentira em seu peito como
transcendência metafísica; certo que dirão os que a
perseguem, fazendo-se tolos por trás do brilho cego que de
outrora orgulharam-se por do mundo ser prescrito, que "de
mulher da roça só se aprende plantar!" Mas ora! E dos
loucos espetáculos da universidade, do que se aprende
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mais do que ser outro louco perpétuo? Por que o mundo é
um hospício onde os insanos assumiram o posto de
médicos, e deixaram que escapasse tudo que antes
orgânico, agora ascético, da forma mais fisicista que pudera
se imaginar.
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CAPÍTULO 11 | ATO 2 | INFÂNCIA
E se tivera o que se espera de um pequenino a sorte de um
dia encontrar o amor? Por que de outros não puseram-lhe
prova, ademais, o que de fugaz possuíam além do espírito
aquietante? Dos saltitantes algozes perpetuam-se desgraça,
como que de um pobre povo perpetua-se miséria! herança
somente de humildade, consequência de não poder
demandar... mas a este, amigos, a este lhe foi dado o dom
da revelação! Como que dos antigos magos, que de outrora
enchiam-se o ego, e do nada, nada puderam tirar-lhe, a este
fora diferente; realizava aos olhos aquilo que lhes tocava
apenas ao coração, como que do abstrato retirasse matéria;
da physis, metafísica, e da vontade, o amor. Se noutras
vidas existira, o que se concede agora, à Platão, não mais do
que apenas bons ensejos? Porque se assim o é, acertara, e de
modo perspicaz nos contara da alma, que de plena forma
absorvera tudo o que antes tinha, e de agora apenas
recordação; como se em cada momento de ternura, de dor,
de apego, afeto, dolo, paixão, sentisse-na tocar a mente, e
recordasse de um passado de que nunca antes tivera! Oh,
pobre criança, confusa em seus pensamentos, sonha com o
que não se viu, vive como se não fosse desse mundo, foge
para dentro de si, vive o paraíso dos filósofos! E se vivera
somente de pensar? Qual outra atribuição lhe fizeram os
que dantes zombavam-lhe? E por que aos outros o
reconhecimento, e ao nosso, ignorância? Porque no mais, se
o Mundo tirara-lhe a energia do próprio Mundo, a ele
ninguém pode tirar a vontade que emanava em seu
espírito; não é fácil como parece viver como escolhido que
se é, porque se é porque se fez, e se fez porque colocou à luz
o que se guardava, e só guardava porque lhe fora dado, e
como se acha aquilo que não se sabe onde procurar?
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Poderia alguém achar o que se não se procura? Sim,
pudera, mas: achará o que te procuras? Encontrarás o que
lhe apraz? Revolverás até que te imputes perdão? E como
reclamas, se aos outros não se pode comunicar? Se é certo,
amigos, que do nosso amigo se extrai demasiado dolo por
saber, a nós, os tolos, que humilha-vos, resta-nos
misericórdia e humildade.
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médica lhe apareciam constantemente, mas nada puderam
atender ou diagnosticar; mordia e olhava, mordia e olhava,
como um pré-histórico brincando de se queimar; os
telefones pra lá, os médicos de cá, a TV ligada, a gritaria da
vizinha sobre o som alto do vizinho, a turbulência da vida,
a inúmeras sequências de causa de efeito que não paravam
de suceder e suceder-se e no suceder de suceder iam
sucedendo e sucedendo e... o coraçãozinho, que de tão forte
batia e num descuido médico que não lhe prestara atenção,
caiu. As batidas agora estavam ritmizadas com o Universo,
diretamente conectadas na harmonia do Cosmos, e
puseram-lhe a prova pela primeira vez, em sua primeira
Viagem. Não sentia-lhe nada de humano, porque a mente
tinha se disposto a reconhecer os talentos e as bençãos que
o Universo lhe proporcionara. Em meio a densa e colorida
nebulosa em que repousava, aparece-lhe um Velho, que o
desperta, e o convida para dentro da nebulosa, que esconde
em suas ranhuras os segredos de toda a Realidade.
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aprender.
_ Como pode ser tudo o que existe, não ser? Pois aqui nada
é, mas me parece ser; tudo é algo, mas algo que não é.
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CAPÍTULO 12 | ATO 3 | TUDO O QUE
ALGUÉM PODERIA IMAGINAR
Nas minhas andanças rotineiras de domingo pude me
deleitar sobre aquelas coisas que escrevi sobre uma vida
que sempre estivera no limiar de seu descobrimento, na
beirada moral de ousar ser o que sabia que nunca seria.
Qual a lógica desta busca? Por que nos fazem cair nesse
conto de Sísifo? Daria o que fosse pra entender... a vida
parece recompensar o que nosso eu insiste em destruir;
viver é isso: aceitar sua miséria e viver como um medíocre,
ou renegar-se por completo e morrer como um coitado. Nas
reflexões, vi um louco, destes que os outros mudam o curso
de sua pitoresca e trágica jornada, daqueles em que os
cuidados de uma vida solaparam-lhe em completo desgosto
humano; dos excluídos; dos que não passam pela tosca
portinha, a saber, o mundo; nele eu pude ver o que
esperava em tantos dias! Eu vi, e por poucas vezes eu pude
ver, aqueles que viam sem olhar, ouviam sem ouvir, e
sentiam com a alma! eles tinham uma coisa inexplicável,
uma coisa diferente, algo que nenhuma forma de expressão
pudera me dizer, com toda a clareza de pensamento, o que
passara por ali, o que só me faz a cada dia ter mais certeza
de que há algo em que nós podemos nos repousar, como
um porto seguro, ou como uma rocha áspera e fria que me
permite deitar e descansar-me em paz... mui curioso:
quanto mais me decepciono, quanto mais me angustio com
a minha pequenez, quanto mais acho que tudo que sou é
apenas um nada, quanto mais me sinto como alguém que
nunca sabe, e quanto mais me perco em meus próprios
pensamentos, sempre lá, bem no finalzinho, eu encontro: Lá
está o Todo-Poderoso para me encontrar. Seu abraço
conforta minha alma, seu toque me faz repousar em verdes
61
pastos, e Ele me guia pelo vale da sombra da morte! E
assim me sinto, como mais um perdido em meio aos que se
encontram, um solitário no meio de muitos.
62
ademais, concorria com outros das coisas que lhes
imputava a ser, como uma garota, por exemplo, quem seu
coração foi tão marcado que se lembra dos traços do seu
rosto, do loiro de seu cabelo, do sorriso que lhe dava, mas...
como alcançá-la? como chegar até lá? porque lhe parecia tão
distante, e tão complexo, que preferia admirar-lha por
longe... Oh, mundo! Por que lhe trouxeram ao seu tosco e
infantil universo? Estão loucos??? estão! não há o que vocês,
vergonha da humanidade, podem fazê-lo, nem repará-lo,
nem desafiá-lo, nem testá-lo; não perceberam do que se
trata? parecem tão entretidos na sua realidade, e mal
conseguem pôr-se a explicá-la. Vocês são o que há de pior
para o menino...
63
pra mim?" e quem sabe daí tivesse surgido alguma costura
de amizade; nada soubera do que ali acontecera, apenas de
que ficariam com a criança...
64
destino de todos os homens? Era lá, deitado sobre a sombra
de uma grande árvore, com os pés entre as raízes, junto à
terra que quisera transportar-se para além da
compreensão... queria ser um na criação! Queria ser junto à
Deus! encontrar-se com o seu verdadeiro Pai... Sonhava
com tão estranho desejo, uns diziam, pois viam novamente
apenas naquilo que a carne dedicava-lhe algum apreço, e
toscamente achavam que um amontoado de matéria
poderia lhe dar a vida! Como pudera a tantos cair nisto?
Como puderam estar de tal forma tão estúpidos assim? O
que acontecera com o arbítrio da criação, para que
escolhesse esse destino tão infantil? Eu não entendo...
porque parece ao homem escolher aquilo que é bom, que
lhe acalma, ou simplesmente aquilo que é, no lugar daquilo
que é mau, que lhe atormenta, ou simplesmente aquilo que
não é afinal, Deus é tudo e ao mesmo tempo Um, e tudo
que lhe foge está tentando fugir de tudo o que existe, a
saber, do próprio Deus! Então como o pode o homem
encher-se de algo que a Deus não fora criado? Talvez
partira os homens deste verdadeiro e ambíguo pensamento
para que cometesse as maiores atrocidades que nem mesmo
eles pudessem imaginar! contaminaram-se naquele jardim,
pensando que do Criador pudessem lhe fazer igual, afinal,
"se tudo é Deus então eu também o Sou! O que me difere de
toda a criação?" e confundiram que, da criação, nada se
cria; do que é feito, nada se faz; do que lhe é posto, nada se
pode tirar. Tão pequeno o homem, mas tão grande em
ambição! parece-nos um delicioso mistério saber que somos
cheios de um desejo tão sublime, tão glorioso, e ao mesmo
tempo tão rasteiros, e tão pecadores! Oh Deus, por que nos
deste a dor da escolha! Por que nos fizeste sedentos de
tanta coisa! Porque se pudera eu escolher por somente uma
coisa, é certo que a Ti eu escolheria, não por ser-me tão
forte para resistir, mas justamente por ser-me tão fraco para
65
cair! Se meu coração desejasse, por mais uma vez, que seja
somente a Ti, e a Ti, e para sempre... E agora, Senhor,
desperta-me de tão maravilhoso sonho, transporta-me de
novo para aquela prisão, e veja-me escapando de suas
amarras, porque agora em nada poderão me segurar! E se
houver um sequer, daqueles que tentarem me fazer como
eles, o afastarei, por que só a Ti cabe-lhe alguma salvação; e
assim como salvara por este sonho, Senhor, faça-o à eles!
acorde-os de seu negável pesadelo, faça-os perceber do
caminho por onde passam! Por que até aqueles em que me
colocaram no pior lugar, até a eles Senhor, por ser-nos
todos de Ti, e se a mim pudera salvar, aos outros, também o
Senhor poderá trazer-lhes a Paz.
66
CAPÍTULO 13 | ATO 4 | A COMPOSIÇÃO
DE MAIS UMA ANGÚSTIA
Já se perguntara nalgum momento do que somos tão
movidos? Sexo, dinheiro, sobrevivência, talvez ambos
diriam... mas encontro em todos aqueles que se dedicam ao
exercício da existência a pura e simples presença da única
coisa de que lhes é feito: energia; a força vital dos que se
arriscam no peso da consciência. Eu penso que talvez há
aquele que me impute a persona de um hippie ou coisa
parecida, mas arrisco dizer que em nada talvez pensemos
iguais, ou em nada concordaríamos se sentássemos numa
tarde de café; ou numa relaxante ida à praça, com sua tão
acertada grama, que por presente de Deus conforta-me, e
enche-me de uma paz inimaginável! Por que a todo
momento em que me encontro só ou perdido, ao mesmo
tempo, repouso conscientemente no espírito da minha tão
bem guardada alma... e sinto tudo o que posso entender, e
passo a compreender de tudo o que me cerca, e vejo do que
realmente é o homem movido, por que lhe pensa a essa
atribuição a alcunha de algo que lhe possa elevar, ou a algo
mais baixo ainda, que se equipare aos prazeres dos animais,
mas o que não o percebe é que de todas as coisas do
mundo, a ele está reservado o presente de poder escolher, e
é isto, justamente isto, a essência de todo ser humano. E ao
que se pode escolher? Sexo, dinheiro, sobrevivência, ou
ambos? Digo: A tudo podes escolher, mas a nada terás por
certeza, ou por força de vontade. Então o que lhe é? O que
lhe pertence? O que certamente não pode ser preservado ou
guardado, nem analisado nem compartilhado; aquilo da
qual mal conseguimos explicar, e tampouco podemos
estudar: Amor, ou na falta, a tristeza; não competem, nem
padecem de qualquer sofrimento, ou julgam-se superiores
67
sobre qualquer medida; é do que está cheio o coração do
homem. Quando das coisas do mundo, desde uma simples
visão de um céu noturno, até o tão profundo e divino beijo
do melhor dos lábios, a todos estes eventos há algo para se
julgar, e à estes dois são o papel. Quando um encontra o
amor nos lábios de uma mulher, o outro lhe sente uma
profunda depressão, e tão logo a sente por que sabe que
não poderá evitar, a saber: apaixonar-se; daí ambos
coexistem, e a cada batida do coração, a cada sangue quente
que corre por entre as veias, mais de ambos enche-se o
homem, e daí ele entende do que lhe é formado, e o
produto que se gera: angústia.
68
modo algum! estava a descobrir, tão discretamente e ao seu
modo, do que lhe era (e aos outros) feito.
69
é claro: não pudera nenhuma delas ter por que nenhuma
delas entendera o que era o amor que sentira. Como
mundo, lhe trataram como mundo, mas como tinha o seu, e
como num ato repulsivo de expulsão de um corpo estranho,
lhe jogaram impiedosamente no subúrbio da miséria, até
que, por o que lhe parecera um milagre, encontrara uma
que lhe entendera, dos fios da cabeça até os tortinhos dedos
do pé; como uma surpresa, vestia-se diferente, e não era de
modo algum igual as outras pelas quais recordara! O
coração encontrara finalmente repouso... lembrava-se da
primeira vez em que puderam se encontrar, e como soubera
que nela achara o que fazia o seu coração disparar mais
forte, e pudera também entender que este batia não por
uma tola ilusão infantil, por que desta doença já tinha sido
curado; até que ao final de todo o passeio, antes que lhe
fosse embora, lhe reclamou um beijo, antes que a partisse, a
ponto que ambos sentiram, finalmente, que encontraram o
seu lugar de descanso. O que lhe enchera a alma foi tão
sincero, e tão confortante, que lhe sentiu seguro de
comemorar o seu aniversário somente com ela, na sua praça
preferida, a mesma praça em que naquele momento
recordara de todas as outras que lhe fizeram finalmente
entender. Encontraram-se em tão apaixonados beijos, e seus
lábios corriam por todo o corpo, onde as suas mãos
pudessem tocar-lhes por toda a extensão de suas faces, até
que podiam finalmente abrir-lhes os olhos, e então admirar,
que conseguiam ver, através de uma simples carne, do que
lhes enchiam o espírito... numa outra ocasião, foram até os
fins da cidade, por que queria Diogo tê-la em seus braços,
como segura uma mãe tão firme o nascido bebê, de modo
que só aos dois pudessem sentir... foram, bem longe, e em
meio aos montes que cortavam a cidade, repousaram numa
pedra plana; puderam então se alimentar e beber, e depois
de uma pequena serenata, trocavam-se os olhares e
70
tocavam-se os corpos, e sentiam-se, um ao outro, e
completavam-se, um ao outro... Até que, antes de partir,
deixara Diogo a garrafa e um pequeno lenço, e, como um
apaixonado, lhe prometera o que não podia controlar, a
saber, o tempo; lhe combinara que depois de um ano
voltariam, para saberem se encontrariam as suas
lembranças de volta. Ah, Diogo! Por que prometera sobre o
que não era seu? Agora ele entenderia do por que proibira
o Criador jurar sobre o que não lhe pertencera... digo, pois
numa certa ocasião viu-se na expectativa de lhe tê-la em
namoro, mas como lhe poderia a pedir, se ainda não
possuía a sorte de encontrar algum emprego, ou nem
sequer um rumo na vida? Poderia Diogo se arriscar em a
colocar nessa armadilha? Por que naquela altura já a amava
de tão modo, que fizera o que pouquíssimos, ou somente os
que já amaram poderiam fazer: renunciar a si mesmo. E fez,
finalmente, o que jamais queria: não a envolvera nisso.
Novamente, como que de toda subida deduzimos a
descida, viu-se nesta situação. Ela lhe apartara, por um bom
tempo; não o queria mais vê-lo, não lhe respondia... E
passou-se os meses só, novamente, apenas com o velho
produto que alma tanto lhe produzira, e sofrera muito com
essa angústia, por que a nenhuma outra encontrara o que
nela tinha visto... e tanto tempo lhe passara com as
memórias dos seus mais belos momentos, que percebera
que aquele um ano tinha passado, e que se encontrava
novamente no seu 5 de agosto. Pensou muito se deveria, e a
dúvida lhe possuíra naquele momento. O que poderia
perder, ou melhor, o que lhe poderia melhorar com isso? E
se a encontrasse lá, significaria que poderiam possuírem-se
novamente? E se a não encontrasse, como seria para a sua
alma? e não demorou para que lhe mandasse o que seria a
última mensagem, lembrando-a da promessa; uma última
esperança tomou-lhe conta, como se essa tão acertada
71
lembrança fizesse-a recordar dos momentos em que tudo
parecia real, porém, ela não se lembrara de ir lá, ao ponto
que a angústia voltou a tomar-lhe a forma, e perdeu-se a
cabeça, e tão perdeu, que a encheu da própria loucura até
que ela, possuída disto, lhe despedira, de uma vez, para
sempre.
72
CAPÍTULO 14 | ATO 5 | ODE À SOLIDÃO
E vivera como esquecido num canto qualquer, alimentando
das migalhas que escorriam das farturas que a vida lhos
ofereciam; e deu-se por vencido, já tão novo, e agia como se
soubesse das coisas que o mundo lhe poderia oferecer; e foi.
Crescera e se educara como qualquer um, teve uma infância
materialmente como a de qualquer outra criança, exceto
pelas coisas que lhe eram próprias; até que envelhecera
mais um pouco, onde pudera experimentar, o que antes o
fizera sofrer, nesta o faria, de uma vez por todas, morrer;
ele sabia disso, tanto que pudera prever com tamanha graça
e precisão do que passaria, e sabiamente escolhera o
destino de todos os miseráveis: esconder-se. Ah, a doce
amiga solidão! A majestosa dos incompreendidos e dos
aborrecidos! Nunca vira em toda sua vida tão confortante
afago para sua cabeça! A expressão divina do sussurrar de
Deus; a perfeita manifestação da alma. Podia sentir, tão
maravilhosamente, o espírito que lhe corria o corpo! não
era mais um homem, tampouco era carne: era o Universo,
era o tudo, e o Todo lhe enchia de tudo que existe; a
compreensão do cosmos, a visão de uma nebulosa, o pulsar
das estrelas, o brilho da sua transfigurada alma... tão
psicodélico, porém tão lúcido e tão vivo, que lhe confundia
com o real, e o que chamavam de real não passava de uma
manchada amostra num quadro infinitamente mais
gracioso, do qual nem mesmo a moldura poderia conter-
lhe, nem as dimensões do espaço, nem a presença do tempo
lhe pudera; era o todo como um só, e o Tudo um só; todos
eram um, e o um era o Tudo; não se compreende a
totalidade da sabedoria mas dela se apraz. O que o enchia
também lhe assombrava, e se por um lado se admirava, por
outro temia, como que numa doce dialética existencial
73
pudera encontrar o que finalmente lhe dera para se
completar.
74
conhecê-la, mas quanto mais se aproximava, mais lhe era
confuso provar o que estava bem na sua frente, e nunca
soubera o por quê, mas suspeitava de que ela lhe era
perfeita demais! "Por que tão gloriosa forma tocaria um tão
sujo quanto eu? O que me faria acreditar de que não se
passava de mais um devaneio? E por que me parece este
sonho ser tão real?" sua sorte se misturava na mais
completa angústia, só que percebera tarde demais, já no
labirinto... e nesses anos a guardara em seu peito, quase que
fizesse-a parte de sua vida, o complemento do seu corpo,
ou o motivo da sua existência; ficou louco mesmo, até o
ponto em que a benção da beleza que lhe carregara esvaiu,
e o louco a martelara, através da paranoia, uma outra, mas
em nada igual, só o suficiente para que um louco pudesse
acreditar. E por três longos anos trazia em seu peito o que
só ele chamava de paixão, o que nem mais era um tosco
desejo carnal, tanto que pela ironia de sua própria loucura o
fizera finalmente experimentar, e finalmente, depois de
anos preso neste inferno, via tão apraz saída, e a tomara
para beijá-la... pensava que encontraria a liberdade, que
poderia então ser livre! mas o que antes lhe aprisionara na
masmorra, agora, mais uma vez, mais uma inconsequente
vez, lhe tornaria escravo no seu próprio universo; não
encontrara em seus tão sonhados lábios o conforto que
buscara, porque não conseguia transmitir o desejo que por
ela antes tinha; tão foi que ela estranhara o que recebera, e
tão verdadeiro foi a desgraça daquele dia, que Diogo se
recordara bem mais solene de suas outras breves e
satisfatórias andanças como um viciado perdedor do que
naquele dia em que ainda possuía alguma esperança.
75
que a sua mente lhe proporcionava. Viu o Velho da sua
infância, desta vez mais novo, mas ainda com especto de
um miserável, e podia ver que lhe espumava pela boca algo
como a consequência de uma droga suicida; vinha em sua
direção e dela não dispunha a desviar. Diogo lhe
perguntara o que havia acontecido, e porque o bom e
amável velho lhe parecera como um bêbado covarde, como
um coitado; o velho riu, enquanto recuperava-se do tropeço
que havia sofrido ao aproximar-se de Diogo. "O que há
contigo, criança?!?? Por que se deleita no que lhe é obvio
entender e no que é profundo procrastina a
compreender???? por que de tanta compaixão??? por que
lhe evita sofrer???? por que não pode? por que não quer? o
que te faz ser o que é? ora... não vejo outra alternativa ao
sofrimento do que entender o porquê de sua causa... a sua
dimensão e a seu efeito compreendo muito bem, mas é a
sua natureza... o seu percurso que me motiva, é o que tão
vivo me torna quanto tão esgotado me faz... mas não se
preocupe menino! eu a encontrei! aquilo que tanto dediquei
a entender, tão estranho vim a compreender. Quer saber a
moral da história? quer saber o que vi nos créditos de sua
morte? eu vi o segredo de tudo o que existe, e achei quem
tão intimamente poderia me compreender. É, menino, é
tudo o que existe, são todas as coisas no universo que
convergem em um grande caminho, uma longa estrada,
uma enorme jornada, mas não importa quais caminhos
você pegue, porque em todos você chegará ao rio, por que,
adivinha? Você está numa ilha. A vida é como um pequeno
pássaro numa grande gaiola, pensando que é livre; E até
mesmo que compreenda a sua gaiola, o que fará afinal?
destrancará as correntes que lhe cerram? Sairá do pobre
cativeiro? E por mais que viva, e por mais que corra, e por
mais que pule e por mais que suje, nada do que fizer lhe
fará como um livre sobre o que está além da gaiola, ao
76
ponto que se vê preso num entedioso ciclo de sobreviver,
mas por que? por que sobreviver numa fantasia? por que
viveria para sempre como ator de sua própria história? mas
de diferente modo não poderia... então vive, ou por
covardia de arrancar-lhe a vida, ou por um místico desejo
de tentar, para sempre, cerrar a gaiola... é isso garoto, é essa
a essência e o motivo da existência: a eterna busca por
cerrar a gaiola, a eterna rotina do mentiroso... o eterno
retorno."
E o que antes lhe fora a mais doce calma, seu poema mais
querido; sua tão formosa amada se tornara, ironicamente,
no seu mais violento e sincero caos.
77
CAPÍTULO 15 | ATO 6 | DAS
CONSEQUÊNCIAS DA EXISTÊNCIA
O que poderia querer? Do que poderia se orgulhar? se de
todas as sortes que tivera, ou das loucuras que passara,
pudera nalguma delas levantar-se com glória e cheio de
vida? de nada podia se aproveitar? pois é de tão grosso
modo, e tão frágil e insensato lhe trataram e prepararam, ao
ponto de lhe torcerem o corpo, como numa tentativa de
desfazê-lo, de pará-lo; quase como lhe esmagassem, a fim
de que mantivessem o que toscamente haviam construído;
porque tão insanamente acreditaram em suas ruínas
despedaçadas, que recusaram a visita do arquiteto; e lhe
botaram a mercê do seu mestre, que pela graça o tratara
como a nenhum que lhe passaram a outorga de lho cuidar.
As suas feridas foram tratadas e suas mãos foram lavadas,
até o ponto em que se sentira completamente novo, e pôde
finalmente repousar no colo que lhe cuidara tão bem.
78
enfrentá-los e vencido pela miséria, não ousara de tê-los em
suas frias e calejadas mãos; e o peso da angústia o tomara,
ao ponto que não sentia coragem de levantar-se da cama,
nem de estudar ou trabalhar nalguma coisa, nem para
distrair; o monstro que lhe tomara o agarrava para baixo e
o forçava a ficar deitado, como se o preparasse para a
inexistência; talvez nunca pensara em suicídio, porém não
pensara também em existir, ao ponto que lhe ocupara uma
terceira posição no universo: apenas era, e nada mais. Era
apenas o que era, como se fosse o que ninguém poderia
entender ou explicar (não por sê-lo especial, mas
justamente por não ser nada do que conhecemos). Vivia
porque não tinha escolha, não morria porque não
conseguia.
79
como que numa surpreendente mágica fosse o caçador
vítima da desperta lebre; ousara de conquistar, apenas
carnalmente, o desejo de uma mulher, ao passo que lhe
convidara para sair; foram, e beijaram-se. Dias se passam, e
o desejo que tivera de despertá-la novamente fora
dominado pela consciência da maldita substância;
"Consegui! consegui!" alegrava-se Diogo, tão contente da
descoberta, porém esquecido de uma coisa: por mais que
tenha entendido o mistério, não havia desvendá-do o que
de fato aquilo era, nem como compreendê-la; era uma
dúvida, mas como se apenas ele a descobrisse; como se
fosse, novamente, um escolhido. Agora sentia-se salvo mais
uma vez! A eternidade de graça que lhe colocara sobre suas
próprias desconfianças, ela, que sempre esteve lá, agora
mais completa lhe parecia! Era como se Deus colocasse
instintivamente o súbito desejo pela comunidade, como se
nos imbuísse de um espírito de aliança; não somente pela
carne, ou no desejo íntimo de reprodução, mas tão
elevadamente em congregarmos numa sagrada união, e a
certeza viria por essa coisa que nos deixa tão alegres e tão
confortáveis uns com os outros; no delicado de um beijo ou
no afago de um abraço, no doce de um toque, no sorriso de
uma criança; tão maravilhoso! Tão sublime! Onde perdera o
homem o rumo? Onde lhe profanara essas coisas, tão
graciosas, tão simples mas tão elevadas, ao ponto que lhe
gastassem em total devassidão e sujeira? Por que rejeitaram
o Senhor? Talvez por isso, por ser tão majestosa sua criação,
que os homens apaixonaram-se por si mesmos, e viram em
si o fundamento da sua própria existência, como Narciso;
apaixonaram-se em seus próprios eus. Agora, vê-se a
solidão, que só aumenta, em que a terra está tomada; na
busca de sentirem o que lhe mais pudessem se encher,
olham ao redor, e o que veem? espelhos. Oh homem! por
que se aprisionou!? por que viciara na própria estrutura!?
80
Não acreditava que poderia transcendê-la? Pois a isto fora
criado: se superar! Para lhe tomar as coisas boas deste
mundo, e evitar as que lhe tomariam! Pobre homem! Se ao
menos Deus lhes fizessem enxergar! Se ao menos Deus lhe
dessem a possibilidade de poderem entender, afim de que
tivessem essa chance! O fardo do mundo está pesado, e a
cada dia se volta para um só lado da balança... haverá a
hora em que as correntes se romperão, e não mais será
possível suportar a sujeira que o homem produzira; e então
verão o Filho do Homem resplandecer em toda a sua glória,
até que se consuma todo o pecado desta terra.
81
CAPÍTULO 16 | ATO 7 | DESENCANTO
E percebera, finalmente; após anos e recomeços, de
retomadas, tentativas e acertos; percebera do que então a
vida é feita. Aglutinara na memória o que sua consciência
não pudera alcançar, até o ponto em que se encontrava
numa total escuridão: O que poderia esperar? Mais do que
uma simples dança ou tola melodia? Porque aos nobres lhes
são dado o ouro, e dos pobres se lhes é tirado; da insensatez
é a amargura o produto da consciência, e da incompletude
do mal fadado pesar; das sortes que lhe apetecera, a dor; o
conjunto do que existia, do sofrimento que acumulara e da
incerteza do futuro: Aí se entendera o que se chamava
Diogo, a desgraça ininterrupta, o ciclo vicioso da miséria e a
mediocridade da arrogância; a consciência do pecado, mas
com a alma de um ladrão. Eis Diogo: inocentado no
começo, perdido pelo meio e viciado no final, ou mesmo a
descrição da tragédia, o retrato do absurdo.
82
***
83
bonitinhos imbecis pra decidirem como será gasto o
dinheiro de outros bonitinhos imbecis bancados por um
monte de mal-acabadinhos imbecis que eram antes os
próprios bonitinhos imbecis. Daí, o ciclo se repete, e uns
outros bonitinhos, dessa vez bem espertinhos, se
aproveitam dos imbecis e acabam por tomar, muito
facilmente, o tão suado dinheiro deles. Tá aí meu amigo,
essa é a porra do mundo que você vive.
84
uma mágica nova, e a beleza da recente descoberta lhe
fizesse exibí-la para quem pudesse; e assim foi. O menino
destacara, e ao passar dos anos, já a ponto de se formar,
uma puta empreitada faria mudar completamente o futuro
de sua vida. Mas que porra aconteceu? Muito simples: O
governo tinha iniciado um projeto "secreto" de pesquisa
avançada, justamente naquelas merdas de viagem no
tempo que encantavam Diogo quando pequeno, isso
porque eles alegaram "ter novas evidências de que era
possível alterar a dimensão estruturante do ordenamento
natural da matéria e de suas derivadas" ou outras palavras
pra "caralho eu acho realmente que descobrimos como
voltar no tempo" só que de um jeito mais científico, até pra
esconder a áurea ficcionista que essa descoberta fazia. Eu
disse "secreto" porque não era bem como nos filmes
americanos ou coisa do tipo. Eram recrutados todos e
quaisquer físicos nucleares, especialistas ou qualquer
pessoa com conhecimento suficiente nessa área, até porque
a tal descoberta que eles fizeram poderia realmente ser
posta em prática, ou melhor, inventada por nós aqui no
Brasil, o que seria perfeito pros políticos envolvidos por
trás disso, além de também poder ser a maior arma de
barganha do mundo (e guardem quando eu disse "arma").
Eles não chamariam estudantes de bacharel, no máximo os
que estivessem concluindo o doutorado, mas como as notas
e o desempenho e até mesmo a fama de Diogo repercutia
entre os estudantes, não só na sua universidade mas
também em outras, sua indicação fora mais que de bom
grado vinda dos seus professores e colegas, ao passo de que
também o aceitaram na equipe. Já aí nesse complexo a coisa
funcionava de fato como secreta: Nem os recrutados e nem
mesmo suas famílias sabiam para onde iam, mas é óbvio
que os que eram responsáveis por esse projeto, chamado de
Pesquisa de Projeção Espaço-temporal, ou PPE, revelavam
85
à todos de que estavam indo a um lugar seguro e tranquilo,
e que apenas não podiam revelar nada por motivos de
"segurança nacional". Lá, revelaram aos recrutados, cerca
de uns mil e poucos, gente pra caralho, que o projeto se
basearia em três etapas: A primeira seria compreender
totalmente como se dava o espaço, o tempo, como alterá-lo
ao bel prazer, ou seja, formular categoricamente a base
teórica de uma viagem espaço-temporal. Não era tão difícil,
uma vez que essas descobertas já haviam sido explanadas e
muito bem documentadas décadas atrás por físicos
nucleares. A segunda era criar um artefato que pudesse
alterar essa dimensão espaço-temporal, de maneira que
pudessem reverter, avançar ou retroceder no tempo; algo
que fosse totalmente confiável e embasado cientificamente.
O terceiro, era a parte prática mesmo, ou melhor, criar a
porra do troço. A pergunta que se faria logo depois dessa
explanação era: Por que diabos essa fixação por viagem no
tempo, e por que agora? Tão logo esperavam a pergunta
que já lhe adiantaram, bem depois da explicação do
conceito. Saíram da parte mais aberta do imenso saguão do
qual estavam, que serviria como o núcleo de toda aquela
pesquisa, até passarem por todas as enormes salas, todas
muito bem equipadas e catalogadas, cada uma com sua
função e equipe especializada; passaram do enorme
refeitório, das salas de descanso, dos quartos; até chegarem
numa outra grande sala, mas bem distante e muito mais
protegida que qualquer outra. Era totalmente exclusiva, e
somente poucos poderiam acessá-la, mas dessa vez
poderiam vê-la, apenas para que pudessem tomar um
prévio incentivo ao que parecia apenas um fantasioso
trabalho. Já nessa sala, puderam ver ao centro, uma sela,
bem no meio da grande sala. Sentado, de costas para os
recrutas, com a barba e cabelos enormes e há dias sem
fazer, um homem, que se recusava a virar, nem mesmo com
86
com as ordens do homem que guiava aquela turma. Seu
aspecto denunciava descaso, e suas velhas roupas pareciam
aos convidados uma boa ironia de um homem que havia
parado no tempo; todos certamente imaginavam o
semblante, se de medo ou de tristeza, mas era a apatia e o
total isolamento lhe cairia melhor. Quando uns dos
recrutados perguntara ao guia sobre quem era aquele
homem e o porque de estar numa cela, a reposta não
poderia ser mais surpreendente aos convidados: Era um
viajante do tempo. Naquele momento, todos estavam
perplexos., atônitos com o que aquilo significava, e de certo
modo duvidosos sobre o motivo de estarem ali, uma vez
que o próprio viajante estava ali para lhes explicar. Até que
o bom espanto se transformava num estranho dissabor, e
então entenderam o porque daquela sela. Na sala, o guia
mostrava aos convidados a máquina que usara o viajante:
Um amontoado de cabos, extensões, baterias nucleares
caseiras, quatro pequenas bobinas que formavam um
círculo, todas apontando o centro; não ficava exposta, pois
a energia e gravidade que gerava ameaçaria o ambiente,
então lhe era posta dentro de uma sala, com uma pequena
abertura do lado de fora, que servia para depositar na sala
o que se queria transportar pelo tempo, mas certamente não
era para uma pessoa entrar ali. Então como fez o viajante?
Simples, não vez. Não era verdadeiramente um viajante,
talvez ainda não, porque não levou o projeto às últimas
consequências. O viajante fora encontrado poucos meses
atrás em sua casa, caído no chão, com cianeto no corpo e
babando pela boca, desacordado; os médicos que primeiro
o encontraram disseram ter sido suicídio, e a polícia
também confirma essa tese. Ao lado do corpo caído, a tal
máquina, um pouco danificada, provavelmente por ter sido
recentemente usada, chamou a atenção dos médicos, que
logo contataram a polícia, e da polícia, o serviço secreto.
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Recuperando-se no hospital, o tal serviço secreto lhe fizera
uma série de perguntas, todas sem resposta. Tinha o direito
de permanecer calado, mas como aquele era um caso
especial, fora então levado pra essa atual sala junto com a
sua máquina, da qual se recusara dizer até para que servia.
Após muita insistência, o serviço secreto lhe aprisionaria ali
mesmo, até que lhe dissesse o que era aquilo e o que queria
com aquilo, pois suspeitavam, pelos equipamentos que
usara ser algum tipo de arma ou coisa parecida. Chamaram
alguns professores da área, desde engenheiro até físicos,
afim de que pudessem entender a função daquela coisa; a
análise dizia que a tal coisa "serviria para gerar uma imensa
quantidade de energia, concentrada num pequeno e denso
ponto, de maneira que se formaria algo parecido como um
pequeno buraco negro de força bem inferior, mas potente o
suficiente para gerar distorções consideráveis no tecido do
espaço-tempo. Após testes e mais testes, a máquina
finalmente pudera ser posta em prática, e atestaram o que
haviam prevido: Realmente funcionava. O serviço secreto,
diante de uma descoberta tão grande e tão ameaçadora viu-
se obrigado a criar um projeto ainda ainda mais secreto, de
modo que apenas poucos membros da própria corporação e
alguns civis saberiam. A ideia era desenvolver aquilo de
maneira mais rápida e com menos pessoas possíveis. O
projeto foi tão bem desenvolvido, que qualquer um do
serviço secreto ou seus subordinados poderiam visitá-lo,
pois havia uma outra equipe lá, tão grande quanto a dos
civis, que era usada de fachada.
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meses e meses que Diogo ficou lá, ajudando no projeto até
conseguirem finalmente conceituarem tudo o que podiam
sobre a tal viajem no tempo. Agora só lhes restaram o que
fazer com isso. Poderiam simplesmente criar um modo de
se transportarem individualmente no tempo, mas pensaram
que seria meio idiota demais, porque seria aquela
trabalheira toda pra um fudido só poder brincar? Não teria
graça, tinha que ser algo bem maior, como se pudessem
usá-lo para gerarem uma distorção tão desgraçada, que
pudessem transportar não só um monte de gente, mas um
monte de coisas também, e foi justamente pensando nisso
que trabalharam. Depois de uns bons meses nisso,
desenvolveram a mesma tecnologia do nosso fudido lá, só
que bem maior, e adivinha onde botaram isso? Na porra de
um satélite! Sério. Não só em um, mas em cada um dos
quatro que lançariam no espaço. Então, lembra daquele
projeto de fachada? bem, não era tão fachada assim... Eles
realmente não estavam envolvidos nessa trolha de viajem
no tempo, eles já tinham outro projeto que estavam
desenvolvendo, que era justamente o de lançarem satélites
brasileiros lá em cima, só pra ganhar uma moralzinha com
os outros países, pra mostrar que a gente também é foda,
essas coisas de diplomacia internacional, porém, assim que
passaram a dividir aquela área com o pessoal da viagem do
tempo, eles trabalhariam em conjunto: enquanto um
desenvolvia a trolha temporal o outro faria a trolha
espacial, daí juntariam os dois e bem, deu nisso aí, um
mundo loopado com um monte de retardado em que eles
mesmos se prenderam.
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desconfiaram de que na verdade era o governo que estaria
por trás de tudo aquilo e não apenas os "bons homens do
serviço secreto" como acreditavam até o momento.
Naturalmente os civis faziam perguntas sobre o que
estavam de fato fazendo ali, quem financiavam, etc, mas as
repostas eram sempre secas e prontas, isso quando
respondiam alguma coisa. Além desse clima meio que
conspiratório, os meses fora da família e a rotina
extremamente repetitiva e desgastante levavam alguns civis
a loucura, ao ponto de vários deles serem simplesmente
arrastados pelo chão em pleno horário de trabalho porque
começaram a questionar e fazer bagunça demais. Quem
mais acreditava nessa teoria era Diogo, e também não podia
ser diferente: O inquieto passou os dias influenciando os
civis, seja nas conversas que tinham no almoço, ou algum
recado que escrevia em meio aos cálculos que faziam, de
todas as formas que podia, até que tivesse um número
expressivo de seguidores que pudessem apoiá-lo no seu
plano: Destruir aquela trolha. No dia do lançamento,
quando todos estivessem reunidos na sala de operações,
esperaria até o momento em que todos os satélites
estivessem posicionados, e então, numa rápida jogada, ele e
seus aliados ativariam a trolha em força máxima, até a
energias, umas das outras, se acumulassem e, desse modo,
autodestruírem-se. Pelo visto, o plano não deu certo, mas a
confusão gerada foi o suficiente para os já insatisfeitos (ou
seja, todos) dali aproveitassem o motim e saírem dali,
gerando um tremendo caos. Nem mesmo os guardas
armados puderam conter a revolta, até porque naquela
confusão já estavam rendidos. Os alarmes dispararam, uma
porradaria rola solta; é resto de metal não usado sendo
jogado em guardinha, é guardinha dando porrada em
cientista, uma loucura. Na correria, Diogo se lembra
daquele fudido lá, e decide soltá-lo. Àquela altura, com a
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quebradeira, nenhum sistema de segurança funcionava
mais, então todas as portas, senhas e fechaduras já não
funcionavam, no que todos, menos Diogo, aproveitaram
para escapar. Porém, a sela que o guardava não era
eletrônica, então o fudido não havia escapado. Na bagunça
que lá estava, foi fácil achar as chaves no bolso daquele
mesmo guia, que estava estirado no chão, desmaiado
depois de umas porradas que deveria ter levado.
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poderia se expor na internet, não podia ter cartão de
crédito, nem RG, nada que o fizesse verdadeiramente
conectado nesse mundo, de modo que se tornara mais um
desconhecido no meio de uma multidão. Os via, mas não
podiam vê-lo. E assim foi para Diogo, durante longos e
pesados vinte anos... mal podia sair apé para não se expor
às câmeras da rua. Vivia em casa, sem muita gente, sem
amigos, sem ninguém, não porque queria, mas porque não
podia; uma só foto numa festa com os colegas já era o
suficiente pro programa de reconhecimento facial pegá-lo.
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ou por mal, o que é estar preso em sua própria e eterna
consciência.
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CAPÍTULO 17 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA I
Os dias passam, as horas contam; todo tempo desperdiçado
é atirado às correntezas, ou as idas e vindas de uma maré,
de maneira que toda sorte que antes tivera não mais serve
para alguma coisa. O que se fica ou o que se vê é aquilo que
inventamos para nós mesmos, como um jogo mental para
manter-nos distraídos; usamos da nossa liberdade para nos
trancafiar, porque temos medo do que podemos fazer com
ela. Não somente desta cela, mas da real também estou.
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vindo de cima, lhe atingisse bem na cabeça; então você
acorda, baqueado, mas não se lembra o porquê, só de uma
coisa se tem juízo: de que está preso e precisa sair. Então
tudo se repete, como numa diabólica dança ilusória, onde
os que dançam não percebem o escaldo dos seus pés e a
pele chamuscada que descola no ardor. Porém, de tanto
tentar, sua alma se acostuma com a dor, de sorte que as
pancadas não surtem o mesmo efeito, e daí, lentamente,
começa a se lembrar... percebe que sempre cai ali, bem em
frente a saída; de repente, lembra-se de tudo o que
acontecera: levanta-se para sair e desmaia ao tentar abrir.
Devagar, você gira a maçaneta, e consegue com muita sorte
levar as mãos sobre o rosto, e evitar com que a pancada o
fizesse desmaiar. Agora, consciente, de todas as maneiras
tenta sair de lá, mas nunca consegue. O que faz? O que todo
amante da verdade faz: reconhece sua fraqueza e curva-se
perante o Universo. Duas escolhas agora lhe são garantidas:
Tentar, consciente de que sempre perderá, ou se acomodar,
e esperar que as traças lhe consumam de uma vez.
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que adianta a revolução, se não puderem manter o que
conquistaram? E do que adianta ganhar na vida, plantando
o que se espera, se não puderem colher do que lhes
imaginam? E é disso que o homem se adoece, por de tanto
acumular, jamais se contenta com o que tem, porque
também de lá não irá usar, então entra numa curiosa
dialética que, de tanto trabalhar, não consegue desfrutar do
que o próprio trabalho lhe outorgou. Cego, como um
escravo de si mesmo, guiando-se nu pelo deserto, com
algemas em suas mãos, e mesmo que quisesse não poderia
mais evitar o que a si mesmo imputou.
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Logo, tudo se tornara óbvio: o governo central é o guia de
tudo, por todos esses anos, e certamente sabiam do que
poderiam fazer com a arma que tinham em mãos. Então eu,
Diogo e o velho pensaríamos por uns bons dias em como
nos infiltrar nas maiores instâncias do governo, até que nos
deparássemos com algum acordado lá dentro e
descobríssemos como tudo é organizado, para enfim,
podermos dar um fim neste inferno... mas como?
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restavam, ou do senso de justiça que guardaria até a minha
morte, de tudo isto, nada superava uma antiga memória
das minhas velhas andanças pelo bairro, quando era novo e
no caminho de volta para casa eu sempre via uma grande
árvore cujas flores que davam, com certeza, eram as das
mais bonitas que alguém poderia admirar; eu as amava
contemplar, e era como se a própria essência de Deus
enchesse o meu espírito, ao ponto que me sentia uno ao
Todo, como se também dançasse na harmonia de todo o
cosmos; e mesmo assim, mesmo na tão magnífica beleza e
sentido que via numa simples flor, eu olhava para baixo da
árvore, e bem no chão havia uma poça suja onde as flores
caíam e se misturavam a lama, onde os carros depois
passavam e alguns distraídos pisavam; daí me via o
pensamento do qual não podia me desvincilhar, de que o
mundo parecia como aquelas flores que, tão belas eram
quando estavam em cima, mas tão medíocres quando
estavam ao chão; porque quando no alto o orgulho não os
deixariam atirar-lhas no único lugar onde os fracos de
espírito poderiam a esmagar: no chão, no albergue dos
fracos.
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CAPÍTULO 18 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA II
Sabe, tudo me parece meio perdido, como tudo que um dia
dura e perde a hora para acabar; um prazo de validade,
uma eternidade de sentido e um vazio de completude
inexplicável. Passei os anos percorrendo a bonança, mas só
agora percebo que foi a loucura o motivo das minhas
andanças... tantas viagens, descobertas de uma porção que
não cabem na pequenez do meu espírito, tampouco me
prouve nalguma circunstância, senão legar-me a outorga de
um maníaco, pronto a se descabelar. Por que vivi?
pergunto. Olha onde estou! não vejo a hora passar, porque
privaram-me até do cortejo do Sol, que na ocasião me seria
melhor companhia, no lugar do meu eu, que me insiste em
atormentar. Se é noite ou dia, se durmo ou se levanto, se
penso ou se abstenho, se filosofo ou se descanso, tudo
posso preso, e quase nada podia solto.
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vinha a mente, e tudo caminhava para um triste desfecho,
até que sugeri, num tom sarcástico, que contratássemos
matadores de aluguel, destes que se achavam facilmente na
internet. A quantia seria exorbitante, e não teríamos
condições de bancar um sequer, porém, o velho nos diz que
é uma excelente ideia. "Como fazê-lo?", perguntei, no que
ele nos diz poder bancar todos quanto precisarmos. Pensei
que fosse ironia; até ri no momento... até perceber o tom
sério com que nos encarava. De tal modo, fiz-me com ele, e
lhe perguntei seriamente de onde vinha o dinheiro. Ele, que
até então nos dizia vir da pensão, obviamente não podia
mais sustentar essa hipótese. Fora franco: tinha uma grande
quantidade reservada, fruto de apostas. Dizia que era
profissional, e que não se tratava de uma questão de sorte
puramente. Desconfiei, como qualquer um, ao passo que
lhe pedi provas daquilo. Ele, então, me levou ao seu quarto
pessoal, nos revelando enormes quantidades de
documentos, uns computadores, gráficos e tabelas, todas
registrando cuidadosamente o passo de cada coisa que
poderia acontecer. As apostas variavam, desde em corridas
de cavalos, a resultados de jogos, numerologia, etc. Me
convenci por um momento, mas ainda me parecia estranho,
afinal, por que guardar tanto dinheiro? Não parecia ser um
homem rico; a casa, os hábitos, nada me parecia isso... Não
parecia que vivia naquela casa, porém, eu também não
tinha escolha: era a única oportunidade de nos livrarmos
daquele inferno, e isso teria de ser feito mesmo com
desconfiança minha sobre o velho.
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explicávamos a situação, e provávamos de inúmeras formas
o ciclo na qual estavam inseridos. Cada um espantava-se à
sua maneira, mas depois de um tempo, todos de igual
modo se acostumavam com a ideia de sua vida repetitiva.
Realmente, não aceitavam de prontidão, mas também não
tinham escolha. Depois de bons dias em casa, restava-nos
recordar o máximo que podíamos sobre aquele lugar do
qual Diogo fora antes protagonista. Cada passagem, cada
corredor, tudo era meticulosamente anotado e
representado. Com um mapa em mãos, munição, colete,
equipe e com pessoas dispostas a literalmente morrerem a
se sujeitarem a mesma rotina que sua mente recusaria a se
curvar, fomos de encontro ao tal lugar.
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jamais saberemos.
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distraídos naquele dia. A correria dos cientistas, a baderna,
os alarmes, tudo isso rememorava Diogo, e o fazia se sentir
cada vez mais perturbado...
Abrimos.
Ou melhor, nós.
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CAPÍTULO 19 | O DESENROLAR DE UMA
TRAGÉDIA III
O sonho louco, donde percebes acordado e trabalha
sozinho; recebe o que lhe dizem e recusa o que lhe
oferecem; toma-os por sobre os braços mas guia-os pelo
desfiladeiro, até que se consumam em fogo; lhes oferecem
água, mas transforma-a em vinho, não para os que hão de
embriagar-se, mas para os pequenos pueris; sugerir-se-ão
as doces ofertas do mar, e recusar-te-á por outras parcas
amargas. Da sorte, arranca-lhe o peito, suplanta-a na costa,
até que os corvos façam proveito; e finalmente descansa-te,
porque do mundo vil, nada lhe pertence.
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por conseguinte destruiria os satélites também. Pior,
esperou até o momento em que se completava mais um
ciclo e, sem que ninguém percebesse, todos estavam
perdidos, exceto nós, eu e o velho. Sem consciência de
nada, os mercenários ficaram ali, perguntando aos outros o
que ali se passara; o velho arrastou-me para uma outra sala,
enquanto tirava de seu bolso algo que já esperava que
numa hora iria usar: Um tranquilizante. Depois de umas
boas horas, lá estava eu... amarrado junto àquele poste, bem
no meio praça, a mesma que outrora havia de ter
experimentado um final tão doloroso que talvez agora
tenha ela uma razão de ser.
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perdi qualquer contato. Tão estranho era relembrar do meu
passado e conceber duas coisas acontecendo, duas
lembranças que co-existem, duas verdades que não se
anulavam... parecia-me a tal dialética que Hegel nos
remorava, sempre se contradizendo, e sempre se
superando... Por sorte, não perdi-me na bagunça que
encontrei no meu eu, e por talvez tão inusitado fosse que
via-me um motivo maior de existência, como se tivesse
mesmo motivo para tal; de tantas memórias, lembrei-me
daquela última: em casa, sozinho, deitado no chão
esperando que a fome ou a sede corroessem-me por
completo; lembrei da romântica forma com que agi naquele
dia, quando da gaveta peguei o cianeto que guardava, para
dar fim aquilo que tinha me tornado. Porém, também
lembrei que tinha esbarrado num pote de molho que, por
descuido, manchara a roupa que usava, uma blusa xadrez,
e lembrei de segurar os óculos, antes mesmo que caíssem...
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na verdade eu era: Uma brilhante simulação!
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nada, e até mesmo o nada valia alguma coisa.
Aquela praça era nosso palco, onde nós, que podíamos ver
além do próprio tempo, deleitávamos a refletir sobre os
mistérios da vida, ou melhor, do que faríamos com tudo
aquilo.
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CAPÍTULO 20 | INÍCIO
Quanto tempo dura um sorriso?
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eternidade hão de se concretizar.
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