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Jess Bidoia

Copyriright © 2018 Jéssica Bidoia


Capa: Michelle Mariani
Revisão: Barbara Pinheiro
Diagramação Digital: Jéssica Bidoia

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.


Essa é uma obra de ficção digital. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência.
Todos os direitos reservados.
É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
desta obram através de quaisquer meios sem o consentimento da
autora.
A violação autoral é crime, previsto na lei º 9.610/98 com aplicação
legal pelo artigo 184 do Código Penal.
S
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenote
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Epílogo
Autora Jess Bidoia
SOBRE A AUTORA
Este livro eu dedico a minha amiga, beta e revisora Barbara
Pinheiro, por ter insistido tanto para que eu contasse a história de
Tito e Juliana.
Obrigada por colocar ideias mirabolantes da minha cabeça. Elas
sempre acabam dando certo.
Agradeço primeiramente a Deus por me dar a oportunidade
de passar essa história para o papel. Ainda me lembro quando a
minha linda revisora Bah Pinheiro me chamou e disse que precisava
do livro de Tito, o barman gostoso (palavras dela) amigo da Luíza de
Minha Cura. Assisti ao filme Burlesque e ali, a história de Tito
nasceu.
Não foi fácil escrever sobre um tema tão delicado como é a
violência doméstica. E de antemão, já peço desculpas caso alguma
cena seja forte demais para alguém, porém, Juliana foi forte e
guerreira, como várias mulheres que passaram por isso e
conseguiram se reerguer. Passei noites em claro pensando nos
relatos que li em blogs e fóruns voltados para esse assunto, e foi
pensando nessas mulheres, que espelhei Juliana. Espero ter feito
jus a essas pessoas maravilhosas.

Agradeço a minha família, sem o apoio do meu marido,


minhas filhas, meus pais, minhas irmãs e todos aqueles que me
rodeiam, eu não conseguiria me manter nesta carreira. Por isso,
agradeço de coração por todo apoio e carinho com tudo o que
escrevo.
Agradeço a todos os meus leitores que pediram
ansiosamente pela história e espero de coração que gostem. Aos
meus leitores do wattpad: Meus sinceros agradecimentos por
passarem todos esses meses comigo. Comentando, opinando e
principalmente, me apoiando. Vocês são pessoas essenciais na
minha vida.

Um agradecimento especial às pessoas que estiveram ao


meu lado na escrita de UM SOPRO DE ESPERANÇA, queridas
betas, revisora e capista: Andrezza Mota, Bárbara Pinheiro,
Katiuscia Bidoia, Kátia Campos e Michelle Mariani. Penso em vocês
como presentes que ganhei de Deus, obrigada por dedicarem o
tempo de vocês com tanto carinho a essa obra.
Agradeço também aos grupos Belas e Charmosas da Jess e
ao BeLindas, todas vocês são incríveis.

Bjus da Jess e boa leitura.


Juliana
— Isso não pode ser verdade. Mãe, me ajuda, por favor —
imploro, com os olhos cheios de lágrimas.
— Para de choramingar, Juliana. Você terá uma vida de
rainha.
— Rainha? Ele tem idade para ser o meu pai. Eu não quero
me casar com ele.
— Ingrata. Deveria estar agradecendo, isso sim. Agora, fique
quieta que seu noivo deve estar chegando.
Engulo o meu choro, para não tomar mais uma bronca do
meu pai e saio do quarto, logo depois da minha mãe. Ela não estava
errada, ele está sentado ao lado do meu pai na sala.
— Boa noite, Juliana. Você está linda. — Seus olhos me
avaliam e eu só consigo sentir nojo. Esse homem me encara de um
jeito diferente desde que eu era uma menina. Agora, vejo em seus
olhos o prazer em ter conseguido me comprar dos meus pais.
— Sente-se ao lado de Edgar, filha. Seu noivo te trouxe um
presente — conta meu pai, com a voz amável, em nada se
parecendo com o homem que gritou comigo ontem e me deixou de
castigo, quando eu disse que não me casaria com esse velho.
Tenho vontade de revirar os olhos, mas me contenho.
— Aqui, criança. Escolhi especialmente para você. — Ele
estende a mão, mostrando uma caixa retangular. Seu sorriso se
abre de um modo tão perverso que arrepia todos os pelos do meu
corpo. — E este é para a senhora, Maria do Carmo — fala, se
dirigindo à minha mãe, e lhe entrega uma caixa parecida com a
minha.
— Você é muito gentil, meu genro. Juliana tem muita sorte.
Ignoro o comentário e, de forma receosa, abro a caixa.
Quase choro ao ver uma gargantilha com o nome de Edgar gravado
em uma placa na frente.
— Oh, é lindo. — Saio do meu estado de perplexidade ao ver
minha mãe levantando um lindo pingente com uma pedra verde.
— Gostou do seu? Venha aqui, criança. Deixe-me colocar em
você.
Criança? Esse homem é um louco, nojento. Tenho vinte e
dois anos e a vontade que tenho é de gritar que não sou nenhuma
criança. Olho para o meu pai que manda, silenciosamente, eu me
aproximar de seu amigo.
Viro de costas e seguro o cabelo, enquanto sinto aquelas
mãos asquerosas passearem pelo meu pescoço e me esquivo
quando seu rosto se aproxima para cheirar o meu cabelo.
O que eu fiz para merecer isso?
— Pronto, criança. Agora você está linda.
Passo a mão no colar grudado ao meu pescoço e entendo o
objetivo deste presente.
Uma coleira.
Sinto-me sufocada com o pensamento que dentro de uma
semana pertencerei a ele.
— Agora, vão para a cozinha terminar o jantar, preciso tratar
de negócios com o Sebastião — Edgar manda, como se a casa
fosse dele, e o que mais me impressiona é que meu pai apenas
acata.
Levanto-me, obediente e sigo minha mãe para a cozinha,
porém, antes de sair pela porta, consigo escutar o início da
conversa que só afirma como minha vida será um inferno. Um
caminho sem volta.
— Eu trouxe o talão de cheques. Vou pagar mais do que
pediu. Assim, pelo menos, não terá como reclamar depois do
casamento realizado.
A realidade bate na minha cabeça como um martelo. Fui
vendida pelo meu próprio pai.
Enxugo as lágrimas e me sento à mesa, contendo a
avalanche de emoções que estou sentindo.
— Seu marido vai te encher de presentes, Juliana. Não tem
por que chorar. — Por um instante, penso ouvir um leve tremor em
sua voz e tento forçar um pouco, para ver se ainda existe um
coração dentro da mulher que me colocou no mundo.
— Você não entende. Eu queria me casar por amor, não por
dinheiro.
— Amor, Juliana? Isso só acontece nessas músicas melosas
que você ouve. Casamento é apenas um negócio.
— Você não ama meu pai? — pergunto, realmente curiosa.
Os dois são frios um com o outro, mas achei que era apenas na
minha frente.
— Estou casada há mais de vinte anos, não estou? Mas as
coisas são diferentes desse mundo da lua em que você vive.

Realmente, ela não poderia estar mais certa. Uma semana se


passou, agora estou aqui, sentada na cama da minha nova casa e
olhando para a minha mão esquerda, onde uma fina argola de ouro
reluz. Acabei de me casar no civil, pois, como Edgar não tem
religião, preferiu não se casar a igreja, mas foi melhor assim. Pelo
menos, não tive que prometer diante Deus que passaria minha vida
inteira nesse inferno.
Ele organizou uma recepção magnífica e, por mais que todos
me parabenizassem, as pessoas de sua família me encaravam com
pesar. Algo está errado com esse homem, porém, todos parecem ter
medo de enfrentá-lo e o tratam como um “deus”.
Seco as lágrimas e pego o meu violão, respirando melhor,
pela primeira vez, desde que acordei. Deixo meus dedos deslizarem
pelas cordas e começo a me acalmar, mas a dor reaparece ao me
lembrar de que não poderei voltar a viver minha vida. Meu futuro
acabou no momento que tranquei a minha matrícula.
Ganhei uma bolsa de estudos na melhor escola de música da
cidade. Fazia três anos que eu estudava lá e sempre fui destaque
entre os alunos. Foi a primeira coisa que me foi tirada, quando meu
pai marcou o casamento. Edgar diz que mulher dele não tem que
estudar, porque não precisa trabalhar.
— Ah! Achei você, docinho. — Dou um pulo de susto com o
barulho da porta sendo aberta e o homem, que agora é o meu
marido, passando por ela.
— Oi. Eu só estava...
— Estava mexendo nessa porcaria de violão. Eu disse que
não era para trazer isso para a minha casa.
Em um acesso de fúria, ele caminha até a cama, pega o meu
violão e joga no chão.
— NÃOOO — grito, em desespero.
— Não levante a voz para mim. — O tapa que recebo chega
sem que eu espere. A ardência toma conta do meu rosto e seguro
as lágrimas, olhando para ele, espantada.
Nem o meu pai que, sempre foi um ogro, nunca me bateu.
— Esquece esse negócio de música, Juliana. Mulher minha é
decente e ponto final. Agora, vai tomar um banho, porque temos que
consumar o nosso casamento — resmunga, abrindo o cinto. — Ah!
Antes que eu me esqueça, percebi que não estava usando isso no
nosso casamento. — Tira do bolso a “coleira”, estendendo em
minha direção. — Não quero ver esse lindo pescoço sem essa
gargantilha. Você é minha agora, e fará o que eu ordenar,
entendeu?
Naquele momento eu entendi o que minha mãe disse. O
amor não existe. E eu preciso me conformar que minha vida acabou
a partir de hoje. Principalmente, depois de ser agredida no primeiro
dia como esposa desse homem asqueroso.
Tito
— Karina, a mesa cinco está esperando.
— Mas que droga! Tinha que ter esse show brega hoje? Não
tem ninguém para me ajudar.
— Quem mandou ser uma vadia e armar para cima da Luíza.
Se ela ainda estivesse aqui, você estaria com essa bunda magra
sentada, sem fazer nada, como fazia todas as noites.
— Olha o jeito que você fala comigo, seu idiota. Ou eu
posso…
— Pode o quê? Pagar alguém para apertar a minha bunda?
Vai para o inferno, sua vagabunda de quinta categoria. Só não
chutei a sua bunda daqui ainda porque não bato em mulher. Mas a
sua hora vai chegar, pode esperar.
— Seu… seu…
— Pega a porra da sua bandeja e vai trabalhar.
Ela bufa de raiva e puxa a bandeja do balcão. Sai rebolando
a sua bunda magra e feia e eu reparo em seu cabelo. Está horrível.
Luíza fez um ótimo trabalho cortando-o. Ela teve uma crise
de choro aqui, no dia que armou para que a minha amiga fosse
demitida, e em troca, Luíza passou a tesoura em uma mecha bem
rente à nuca. Um dia depois, Karina apareceu com o cabelo mais
curto e esse aplique horrível na parte de trás. Totalmente estranho e
o pior é que ela acha que está abafando.
— Boa noite. Chamo-me Juliana e estarei com vocês hoje
para um show acústico.
Meu pescoço se volta para o palco e me debruço no balcão,
para observar melhor a garota que está arrumando o microfone.
Aqui normalmente é um ambiente de música agitada, alta e
pulsante, mas toda quarta-feira, Salomão, o gerente, abre espaço
para algum cantor local vir se apresentar. Temos o César que é uma
atração regular, por isso, estou curioso por essa garota que ele
trouxe hoje e anunciou que valeria a pena ceder o seu lugar.
Falando nele, o homem está na primeira mesa perto do palco
e parece babar pela cantora. Na verdade, acho que todos os
homens do bar estão fazendo isso agora. Ela é ruiva, tem o cabelo
longo e a pele tão branca que a iluminação do palco a esconde.
Não consigo ver a cor dos olhos, mas pelo conjunto da obra,
aposto que não são feios.
A roupa é básica, uma calça preta e uma blusa da mesma cor
e nos pés, sandálias de salto alto, que me faz querer deitar no chão
e ser o seu tapete.
Porra! Ajeito-me na calça, pois só a imagem dessa ruiva com
os cabelos soltos e usando somente esses sapatos, já mexem
comigo.
Ela começa a dedilhar o violão e logo sua voz doce toma
conta do salão, que não está muito lotado.

“Ouvi dizer que você tá bem


que já tem um outro alguém
Encontrei moedas pelo chão
Mas não vi ninguém pra me abraçar
me dar a mão

Eu chorei sem disfarçar


Quando vi seu carro passar
Vi todo o amor que em mim ainda não passou
Eu já não sei bem aonde vou
Mas agora eu vou

Ela canta a música Mais que a Mim de Ana Carolina e Maria


Gadú de olhos fechados e não consigo desviar. Estou
completamente hipnotizado pela sua voz suave.
O bar explode em palmas e eu acompanho. Essa garota
merecia estar em um estúdio.
— Obrigada. Agora vou tocar uma que eu amo da Marisa
Monte e quero dedicar ao César, que me ajudou a estar aqui hoje.
Ele manda um beijo para ela e o som, mais uma vez, se
inicia.
Viro-me para preparar o pedido que a chata da Karina
acabou de colocar na minha frente e não vejo como acontece, mas
a música é interrompida bruscamente e ouço o barulho de algo
caindo.
— Está me traindo, sua cachorra? Acha que pode vir aqui e
dedicar música para outro homem? Piranha.
Olho rapidamente na direção da confusão e vejo a tal Juliana
sendo arrastada pelos cabelos para descer do palco.
Um homem alto e bem mais velho que ela a conduz e, sem
pensar duas vezes, pulo o balcão, chegando até eles junto com
Zeca, o segurança.
— Solta a menina — ordena o Zeca, ladeado por mais dois
seguranças
— Cuida da sua vida, pois quem cuida dessa vadia sou eu.
Ele tenta passar pelo lado e eu bloqueio.
— Sai da minha frente — cospe as palavras e sinto o cheiro
forte de álcool.
— Zeca, chame a polícia — digo, sem desviar os olhos do
agressor.
— Polícia? Tá de brincadeira comigo? Estou levando minha
mulher para casa, o que a polícia tem a ver com isso?
Mulher? Como uma menina como ela pode ser casada com
um verme como esse? Achei que poderia ser o pai, mas nunca
imaginei o marido.
— Fala para eles, Juliana, você quer que chame a polícia?
O filho da puta levanta um pouco a cabeça dela, que estava
para baixo desde quando eles desceram do palco, com a mão dele
agarrando o couro cabeludo dela e vejo lágrimas em seus olhos,
que agora posso ver que são castanhos.
— Polícia… não. Não chamem, por favor. Está tudo bem.
Estou indo… embora com ele.
— Ele é seu marido? — questiono.
— É claro que sou o marido dela, seu merda. Perante a lei e
ninguém nunca vai tirá-la de mim.
Ele sai arrastando a garota e eu faço menção de ir atrás, mas
uma mão me segura.
— Não podemos deixar esse cara levá-la — digo, encarando
Zeca. — Chame a polícia.
— Tito, sou ex-policial, lembra? Não vai adiantar nada se ela
não prestar queixa.
— E vamos ficar aqui de braços cruzados, vendo um
brutamontes levá-la assim? Ele pode matá-la.
— Não vão ficar de braços cruzados, porque vão voltar ao
trabalho, ou querem ser demitidos por justa causa? — Salomão
aparece e me encara, com a sobrancelha erguida.
Desde o dia que defendi Luíza, minha amiga e ex-funcionária
daqui do PUB, que ele está caçando um motivo para me demitir.
Mas não darei esse gostinho a ele. Pelo menos, não hoje. Volto ao
trabalho, o som começa a tocar novamente pelos autofalantes e
todos parecem voltar para suas próprias vidas.
O problema é que não consigo me concentrar em nada, a
garota não sai da minha cabeça. Seu violão ainda está caído no
palco e depois do expediente vou até lá, pego e o levo para casa,
fazendo uma prece mental para que ela esteja bem.
Juliana
Acordo sentindo um beijo no rosto, mas quando tento abrir os
olhos, sinto dificuldade. Só, então, me lembro dos socos de ontem.
— Acorda, mamãe.
Tento mais uma vez e um dos meus olhos se abre.
— Mamãe acordou. Eba! Achei que você tinha virado a Bela
adormecida.
— Oi, princesa. — Sento-me e a dor rasga a lateral do meu
corpo.
— Você tá doente, mãe?
— Sua mãe só precisa descansar um pouco. Vai para o
jardim brincar, Emy.
Assusto-me com a voz da minha mãe e, depois de receber
um beijo do meu anjinho, volto a me deitar para amenizar a dor.
— Acha bonito isso, Juliana? — começa ela, com a voz
ríspida.
— Creio que bonita é a última coisa que devo estar nesse
momento, mãe.
— Não dê uma de engraçadinha para o meu lado, se não…
— Se não o quê? Vai me dar uma surra? Ah! Desculpe, mãe.
Você chegou atrasada — caçoou, de olhos fechados.
Ouço seu suspiro irritado e sorrio internamente.
— O que você achou que estava fazendo em um bar, se
engraçando com um cara?
— Eu o quê? Aiiiii — grito de dor, ao endireitar-me. Desta
vez, estou achando que ele quebrou a minha costela com os chutes,
está doendo demais.
— Você tem ideia da vergonha que ficamos quando Edgar foi
nos contar da sua sem-vergonhice?
— Eu estava cantando, caramba. Não estava fazendo nada
de mais.
— Cantando? Não esqueceu essa baboseira ainda? Você
precisa se concentrar na sua vida. Pensar que tem um marido para
cuidar e uma filha para criar.
— Eu penso na minha filha a cada maldito chute e soco que
levo. É somente nela que penso, para conseguir suportar essa vida
de merda que vivo — desabafo, já no meu limite.
— Vida de merda? Como você é ingrata. Edgar nunca deixou
faltar nada a vocês duas. Ele te ama.
— Ama, mãe? Como você pode falar de amor? Olha o estado
que eu estou.
Saio da cama com dificuldade pela dor na lateral do corpo e
começo a arrancar minha roupa, para que ela veja as marcas roxas
e cicatrizes antigas, espalhadas pelo meu corpo.
— O que você está fazendo? Se veste, menina. Ele fez isso
porque você o provocou. Acha que seu marido tem sangue de
barata? Ia ver você em um bar dando em cima de outro homem e
ficar quieto?
— Chega, mãe. Vai embora, por favor — peço, cansada
demais para discutir.
Caminho devagar para o banheiro do meu quarto e, desta
vez, me assusto ao encarar o espelho. Meus dois olhos estão roxos,
e não consigo nem mesmo abri-los totalmente. Recordo-me dos
socos quando eu já estava quase desacordada, e o chute no
estômago que me deixou sem ar, fazendo-me apagar de vez.
Eu realmente espero que a Emilly não tenha ouvido nada. Eu
evitei gritar durante a surra. Já bastou assistir a babá nos olhando,
horrorizada, quando Edgar entrou me arrastando pelos cabelos.
— Ele pediu para que eu viesse falar com você e colocar
algum juízo na sua cabeça — continua minha mãe, se posicionando
atrás de mim. Vejo que ela evita olhar na direção do espelho e não é
para menos, estou péssima. Até uma pessoa sem coração como
ela, deve estar abalada.
— Ah que bom que veio colocar juízo na minha cabeça. Você
vai me tirar daqui, então? Abrigar minha filha e a mim na sua casa
para que eu me divorcie?
— Não fale besteira, Juliana. Quando vai crescer?
Resolvo não discutir e sigo para dentro do box. A ardência
toma conta dos meus joelhos esfolados. Edgar nunca tinha me dado
uma surra em público e isso demonstra que ele está com o seu
estado mental cada dia pior, o que me assusta muito,
principalmente, por conta de Emilly.
— Juliana, entenda de uma vez por todas…
— Que sou uma mulher casada e devo respeito e obediência
ao meu marido. Sim, mãe, você repetiu isso várias vezes e já sei
essas palavras de cor, agora, por favor, me deixe sozinha — digo
alto, para que ela escute acima do barulho do chuveiro e evito
pensar nela neste momento.
Eu passo por isso há cinco anos e, no começo, implorei pela
ajuda dela e do meu pai e a única coisa que eu escutava era que
deveria me comportar para fazer meu marido feliz, assim, ele não
perderia a cabeça.
Seria cômico, se não fosse trágico.
Não vou chorar! — medito.
Estou com muita dor e sei que Edgar não me levará ao
hospital, afinal, tem medo de que algo aconteça com ele, ou que eu
resolva abrir a minha boca. Não, essa última possibilidade ele sabe
que não corre risco.
Para a minha sorte, depois que termino meu banho, minha
mãe não está mais por perto. Coloco uma calça folgada e uma blusa
de manga comprida que escondam os machucados. Antes de sair
do quarto, caminho até a sacada. Empurro as portas e a brisa da
manhã me atinge em cheio, me fazendo estremecer. O dia está
nublado, assim como eu. A claridade incomoda os meus olhos
machucados, mas não me importo. Preciso respirar um pouco e,
mesmo olhando ao redor e vendo a vida infeliz que levo dentro de
uma casa de luxo, sinto-me bem, apenas por Edgar não estar por
perto.
Vivo neste inferno há anos e, se fosse somente eu, já teria
mudado de cidade, até mesmo de país. Entretanto, tenho minha
princesa. Fruto de um sexo forçado, que resultou na gravidez mais
dolorida que uma mulher pode ter. Apanhei praticamente todos os
dias depois que ele soube que eu carregava uma menina, ao invés
do seu tão sonhado herdeiro.
Seco as lágrimas que insistem em cair e solto um riso sem
humor. A essa altura, já era para ter cessado todas as lágrimas,
porém, já me conformei, elas nunca acabam.
Viro as costas, e mesmo com dor, saio do quarto desta casa
imensa, que mais se parece um mausoléu, e caminho devagar,
sentindo a dor, como se várias agulhas atravessassem o meu corpo.
Mais uma vez, já era para eu estar acostumada com isso,
mas hoje estou diferente, além das dores, sinto uma dor interna me
consumindo. Sou humilhada há anos dentro desta casa, mas nunca
tinha sido humilhada publicamente. Edgar fez-me sentir um cachorro
dentro daquele bar. Sendo arrastada na frente de todos, inclusive,
daquele homem tatuado, que estava pronto para me tirar dos braços
de Edgar e me salvar. Um pensamento tolo, pois na minha vida, não
existe ninguém que possa me salvar.
E ainda tem o meu violão que ficou para trás. O companheiro
dos meus momentos de solidão.
O que eu fiz para merecer uma vida tão triste como essa?
— Quer um chá, Dona Juliana? — a babá pergunta, assim
que entro na cozinha.
Espanto-me ao ver a mulher ainda aqui. Edgar tinha viajado e
ficou de voltar apenas no domingo, por isso, me arrisquei a chamar
a babá que, normalmente, ele contrata quando temos algum jantar
para ir. Avisei que precisava sair por um instante, e ela não
perguntou nada, apenas sorriu e me disse para ir tranquila, pois
minha filha já estava dormindo. O problema foi que o infeliz voltou e,
de algum jeito bizarro, descobriu sobre o bar.
— Obrigada, Camila. Eu aceito.
Ela se vira para mexer no fogão e eu me acomodo com
dificuldade, por conta da dor. Observo o jardim dos fundos pelas
portas envidraçadas da cozinha, e enxergo minha princesa
brincando com a minha mãe. Dona Maria do Carmo pode ter o
coração mais duro do mundo, mas Emilly a transforma.
— Por que você ainda não foi embora, Camila? — questiono,
quando ela coloca o chá de camomila à minha frente.
Inalo aquele aroma delicioso e permito-me achar, por um
momento, que a minha vida é tranquila e que não estou sentindo
dor.
— O senhor Edgar pediu para eu ficar hoje e cuidar da filha
de vocês, já que a senhora estava indisposta.
— Ok. Muito obrigada.
— Por que a senhora aceita passar por isso? — Volto a abrir
meus olhos e tento focar nela.
— Onde está Edgar? — pergunto, temendo pela bondosa
babá. Não sei até onde vai a loucura daquele homem.
Ele evita empregados, exatamente por isso. As pessoas que
limpam, cuidam do jardim ou até mesmo a cozinheira, que vem
abastecer a cozinha duas vezes por semana, nunca ficam tempo
suficiente para me ver apanhando. Ele sabe o risco que corre com
pessoas que não podem ser compradas, como meus pais e, por
isso, temo por Camila, que já viu muito mais do que qualquer um.
— Saiu. Disse que só volta à noite.
Menos mal, penso eu. Deve ter ido passar o dia em algum
bordel da cidade vizinha e isso, ao invés de me repugnar, faz-me
sentir aliviada. Depois da minha gravidez, Edgar passou a me
manter como uma boneca de luxo, para mostrar aos amigos e
parceiros de negócios e, para a minha sorte, sexo ele procura fora
de casa. Pelo menos, na maioria das noites.
— Ah, Camila! Não é fácil, mas não tenho o que fazer.
— Lógico que tem. Hoje em dia existe a lei Maria da Penha.
— Já pensei nisso, inúmeras vezes. Mas a cada nova surra,
Edgar deixa claro que tem dinheiro, e se eu sair de casa, nunca
mais verei minha filha. Além de jurar, que se eu não estiver mais
aqui, cada surra que seria minha, será dela. Enquanto eu estiver
viva, ele nunca vai tocar na minha filha — garanto, e vejo piedade
nos seus olhos.
— E até quando você estará viva para protegê-la, Dona
Juliana?
Não tenho tempo para responder. A porta dos fundos se abre
e Emy entra, correndo, seguida pela minha mãe.
— Mamãe, você levantou — grita, correndo para me abraçar.
A dor me corta quando ela circula a minha cintura com os
seus bracinhos finos e, antes de desmaiar de dor, o pensamento
que flutua pela minha mente é: até quando estarei viva?
Tito
Olho pela janela e percebo que o dia já está clareando e eu
nem, ao menos, dormi. Passei a noite em claro, andando pelo meu
apartamento. Não consigo tirar os olhos lacrimosos da menina da
minha cabeça. Toda vez que fecho os meus, a imagem dela me vem
à mente.
Qual será a história de vida dela? Por que uma pessoa se
submete a ser agredida todos os dias e ainda voltar para casa com
um maluco desses? O que a faz não o denunciar? Eu juro que não
entendo. Penso em dormir, mas estou agitado demais para isso.
Pego o notebook e pesquiso sobre a violência contra a mulher. Fico
completamente chocado. Parece que isso é algo rotineiro no Brasil e
o pior, a maioria está fora das estatísticas, pois não denunciam.
Como aquela ruiva.
Tento entender, mas é impossível. Cresci vendo meus pais
serem namorados e sempre achei aquilo engraçado. Os dois não
podiam ficar sozinhos, que já estavam grudados um no outro. Esse
não é o elemento principal para um relacionamento? Ser louco pelo
companheiro. Querer o bem, estar junto. Esse é o motivo de eu
nunca ter estado em um relacionamento sério. Nunca senti essa
conexão com alguém. Imagine se casar e apanhar diariamente? Eu
nunca faria isso com uma mulher, e não consigo entender quem se
submete a passar por isso.
Droga!
Cansado dos meus pensamentos desconexos, me jogo no
sofá e, depois de muito divagar, consigo cochilar, porém, me engano
em achar que meu corpo e minha mente iriam descansar, sou
acordado com o meu próprio grito, quando tenho um pesadelo com
a garota me pedindo socorro e eu chegando tarde demais.
Tomo uma chuveirada e decido ir até a padaria tomar o café
da manhã. Moro no centro de Bela Vista, e aqui é tudo fácil e
prático. Caminho por menos de 500 metros depois que saio da
portaria do meu prédio e já estou na melhor padaria da cidade.
Decido ficar por aqui mesmo e a atendente gostosa, com quem saí
um tempo atrás, vem me atender, toda atirada.
Amo mulheres atiradas, bem resolvidas e que sabem curtir os
prazeres carnais, sem ser ligadas a falso moralismo. Só vivemos
uma vez, então, que seja intensamente.
— Bom dia, gostoso. O que vai querer hoje?
— Você para o café da manhã, pode ser? — insinuo,
passando a mão pela sua perna, que está próxima a mim.
— Uma pena eu ter acabado de entrar e não ter uma pausa
ainda, mas posso ser o seu jantar, o que acha?
— Tenho certeza de que será apetitoso. Por agora, vou
querer uma vitamina de morango e um misto quente.
— Ok, já volto.
Olho para o outro lado da rua e continuo pensando sobre o
episódio de ontem.
Eu deveria ter feito alguma coisa. E se a uma hora dessa ela
estiver morta?
Essa frase fica se repetindo na minha cabeça, até eu voltar
para a minha casa. Ajeito tudo, o que não é muita coisa, pois moro
sozinho e nunca fui uma pessoa desorganizada.
Tento distrair a mente e jogo um pouco de videogame, o que
acaba fazendo efeito, pois apago no meio da tarde.

— Oi, Tito.
— Fala aí, César — cumprimento o cara, mas estou com
tantos pedidos hoje, que nem olho em sua direção.
Hoje o movimento está intenso e a vaca da Karina já me
trouxe dois pedidos errados. Se houver o terceiro, viro a taça de
margarita na cabeça dela.
— Sobre a moça de ontem, você sabe quem ficou com o
violão dela?
Levanto a cabeça rapidamente e fito o homem. César está
apreensivo e com duas bolsas escuras embaixo dos olhos.
— Eu o guardei. Por quê? Ela voltou para buscar? —
Instantaneamente meus olhos a procuram ao redor, mas não vejo
nenhum cabelo ruivo.
— Voltar? Coitada. Acho que ela ficará um ano sem ver a luz
do dia.
— Você tem algum lance com ela? — questiono, voltando a
fazer os meus pedidos. Não quero dar bandeira que estou
interessado no assunto.
— Eu sou casado, Tito, ela canta no coral da igreja e eu a
incentivei a vir. Estou me sentindo péssimo por ter causado tudo
aquilo.
— O cara é marido dela mesmo?
— Sim. É um figurão cheio da grana. Dizem que a família a
vendeu para ele. Mas até onde isso é verdade, eu não sei.
— Entendi.
— Bom, preciso ir e ficarei fora da cidade por uns dias, você
poderia mandar um SMS para ela nesse número? — pergunta, me
entregando um pedaço de papel. — O nome dela é Juliana, mas,
por hipótese alguma, você pode ligar, ok? Ela tem esse aparelho
escondido do marido e ele não pode descobrir nunca. Por isso, você
manda o SMS e quando ela puder, responde e marca um lugar
seguro para você entregar o violão. Ela ama aquele instrumento.
Concordo e guardo o papel no bolso. César se despede e sai.
Pego o aparelho duas vezes para escrever, mas desisto, quero fazer
isso em casa. Respondo a mensagem de Soraia, a menina da
padaria, dizendo que aconteceu um imprevisto e não conseguirei
passar em sua casa e sigo a noite no automático.
Meu turno mal acaba e eu já estou em cima da minha moto.
Tenho uma Harley Davidson que sempre foi uma paixão e acelero
para casa.
Chego, jogo uma água no corpo, para tirar o cheiro de bebida
e cigarro, e coloco uma bermuda confortável. Abro a porta da
sacada e o vento frio da madrugada me faz companhia. Debruço-me
no parapeito, e travo uma luta interna sobre o que escrever. Penso,
digito, apago e, por fim, escrevo simplesmente:
Eu: Oi.
Levanto os olhos e fito a cidade abaixo de mim, tentando
acalmar os nervos que apertam o meu estômago. Espero por um
tempo e nada.
Desencana, Tito.
São quase 4h da manhã, a garota deve estar dormindo.
Abafo a ansiedade e me jogo na cama buscando um sono tranquilo,
entretanto, novamente tenho o pesadelo da garota ruiva sendo
arrastada pelos cabelos e pedindo socorro.
Estou ficando louco!

Mais um dia parecendo um morto-vivo — penso, ao


estacionar a minha moto. Desço no estacionamento do hospital e
espreguiço o meu corpo cansado.
Enquanto caminho, penso que sempre fui um cara que se
satisfaz com poucas horas de sono. Tenho um sono pesado e
quando fecho os olhos, apago, literalmente. E isso faz com que,
mesmo tendo quatro horas de descanso, eu acorde renovado. Mas
não é o que está acontecendo nos últimos dias. Desde que meus
olhos bateram naquela ruiva, tudo ficou uma completa bagunça. Faz
dois dias que apenas cochilo e quando o faço, os pesadelos ficam
aterrorizantes. O vermelho do seu cabelo se mistura com sangue e
seus olhos imploram por ajuda, isso está acabando comigo.
Droga! Preciso vê-la, com urgência. Saber se ela está bem.
Mas até agora, a garota não me respondeu.
Pego meu celular e digito: Estou aqui na recepção.
Encaminho para Luíza e fico aguardando. Hoje, quando
acordei e vi a postagem em sua rede social, fazendo uma
campanha em prol da doação de medula, para a garotinha que
Luíza cuida aqui no hospital, não pensei duas vezes, nem o cansaço
e essa bagunça que está a minha vida, fez-me não vir.
Ela logo aparece, me abraça apertado e seguimos para a
recepção. Creio que ela é a única pessoa que posso chamar de
amiga e que nunca levei para cama. Não que eu não tenha tentado,
mas quando ela começou a trabalhar no PUB, tinha algo que
nublava a sua alma. Em um dia de porre, ela me contou sobre a
morte do noivo e naquele dia eu soube que, o que eu sentia por ela,
ia além da atração, era um amor fraterno. Trabalhamos durante
vários anos juntos, sendo companheiros e sempre me diverti muito
com ela, até que a louca da Karina conseguiu que Luíza fosse
demitida.
— Hum, esse é o seu segredo, então. Vitor é o seu nome?
Nunca imaginei — diz, tirando sarro da minha cara, quando me vê
preenchendo a ficha para a coleta da amostra de sangue. — Por
que “Tito”?
Não sou de ficar com vergonha, entretanto, explicar sobre
isso sempre me deixa encabulado. O bom é que ninguém questiona
isso. Todo mundo me chama de Tito e ponto final. Luíza é a
exceção.
— Minha avó me chamava de petitito, ela era italiana e eu era
muito pequeno quando criança. Fui crescendo e passaram a me
chamar só de Tito — explico, meio sem jeito.
— O senhor está pronto? — pergunta uma enfermeira.
— Estou sim — respondo e olho para Lu. — Você me espera
na lanchonete?
Ela concorda e sai. Fico me perguntando, por que concordei
em conversar com ela? Luíza é uma ótima amiga, e me conhece
bem. Assim que me abraçou, perguntou o que estava errado. O
problema não é contar a ela, mas o que eu vou contar? Não
conheço a garota, a vi em um momento de sofrimento e, mesmo
assim, a sua voz está impregnada na minha alma. Não posso fechar
os olhos, que ouço a melodia suave.
— Está liberado — a enfermeira avisa, assim que termina de
colher a amostra do meu sangue. Agradeço e torço internamente
para que eu seja compatível. Salvar uma vida deve ser uma
sensação inexplicável.
Sigo para a cafeteria e quando entro, vejo várias mulheres de
branco me encarando. Tenho dificuldade para localizar a minha
amiga e, para me ajudar, Luíza levanta a mão mostrando a sua
localização. Sigo para lá de cabeça baixa. Normalmente, amo flertar
com as garotas que me encaram, só que hoje não estou no clima.
Iniciamos uma conversa sobre o PUB e Luíza conta a
novidade de que não irá tentar voltar para lá, pois vai se tornar
professora de balé e, assim que indago o que mudou, pois ela não
gostava de balé, ela responde simplesmente:
— As coisas mudam. E eu estou louca para saber o que
mudou em você.
— Sabe, Lu, você era bem mais discreta e não se metia na
vida dos outros antes de se envolver com esse médico — digo,
relaxando, pela primeira vez, desde a hora que acordei.
— Estou esperando — responde, petulante e divertida.
— Você sabe que nas noites de quarta-feira tem
apresentação lá no PUB. O César cedeu o lugar dele para uma
garota, que canta muito bem.
— Hum. Já entendi tudo. Você se apaixonou à primeira vista.
— Quem me dera fosse isso. O negócio é que a garota
estava lá cantando, quando o marido entrou e a arrastou pelos
cabelos para fora do bar. Tentei impedir, mas o segurança disse que
não adiantaria nada se ela não prestasse queixa, o que claramente,
ela não faria.
— Isso é muito sério, Tito — afirma Luíza, com o olhar preso
ao meu.
— Pois é. O pior é que ela não sai da minha cabeça. Não sei
nem te dizer o real motivo, mas estou louco para cruzar com esse
cara de novo, sem que ela esteja por perto, e arrebentar a cara do
infeliz.
— Ela precisa de ajuda — indica minha amiga. — Não de
você indo para a cadeia por espancar o marido dela. Já imaginou se
ele se lembra de você do bar? Vai achar que apanhou por culpa
dela, e assim que tiver melhor, vai bater mais ainda nela,
descontando toda a raiva. Já pensou nisso?
— E eu faço o que, então? Estou com o seu violão,
aguardando que ela entre em contato comigo, para marcar um dia
em que ela possa ir buscá-lo. A impressão que eu tenho é que ela é
uma prisioneira — confesso, sentindo meu corpo ficar rígido.
— A primeira coisa a fazer, é ficar calmo — decreta e sorri,
em seguida, me passando tranquilidade.
Luíza me explica sobre uma ONG, em que a esposa do chefe
do seu namorado é coordenadora. Diz que vai conseguir o telefone
e maiores informações.
— Não vou deixar aquela garota sofrer nas mãos daquele
verme. Nem que eu mesmo tenha que arrancá-la de lá — digo,
determinado e, pela primeira vez, tenho certeza de que é isso que
vou fazer. Resgatá-la. Custe o que custar.
Juliana
— Você não deveria ter chamado à ambulância, Maria do
Carmo. Edgar está furioso.
— O que você queria que eu fizesse? Achei que a nossa filha
estava morrendo.
Ouço as vozes dos meus pais de longe e forço meus olhos
para se abrirem.
— Juliana? — Minha mãe se aproxima rapidamente,
segurando a minha mão. — Que bom que acordou.
— O que… houve, mãe?
— Mais um chilique seu — quem responde é o meu pai, de
forma ríspida. — Vou avisar Edgar que você acordou, antes que
algum médico entre aqui.
Minha vontade é de revirar os olhos para o jeito que meu pai
idolatra esse homem, mas nem isso posso fazer, por conta da dor.
— Onde eu estou, mãe?
— Eu liguei para o SAMU, quando você desmaiou. Eles te
trouxeram para um hospital. Você tem uma costela fraturada e
desmaiou por causa da dor.
— E… A Emilly?
— Está na sua casa com a babá. Juliana...
— Olá. Sou a enfermeira Paola, como está se sentindo? —
Uma moça jovem e sorridente, vestida de branco, interrompe minha
mãe e vem até mim para verificar meus sinais vitais.
— Com dor no corpo.
— É normal. Você está muito machucada. Daqui a pouco
trarei mais uma dose de analgésico, tente descansar até lá.
Concordo, e depois de responder algumas perguntas da
minha mãe e anotar algo em uma ficha, ela sai do quarto.
Fico encarando a pessoa que me colocou no mundo e que
até hoje nunca quis saber sobre o meu bem-estar, e estranho ao ver
lágrimas não derramadas em seus olhos.
— Olá, minha rainha. Acordou? — Meu marido abre a porta e
entra no quarto, seguido pelo meu pai. Rapidamente, fecho os meus
olhos para evitar o contato, logo em seguida, ouço passos para fora.
Minha vontade é de pedir que minha mãe fique aqui, para me
proteger. Nos últimos minutos, ela pareceu mais… humana.
— Como você está? — Ele se aproxima e passa a mão no
meu cabelo.
Até o seu toque manso me causa dor. Não sei explicar muito
bem, parece que minha alma sente a dor das pancadas, mesmo
quando elas não acontecem. Pois com Edgar é assim, ele me agride
mesmo quando não faz uso da violência física.
— Abre os olhos para mim, esposa. Estava tão preocupado.
Fiquei em pânico quando sua mãe me ligou, avisando sobre o seu
desmaio. Eu já disse que você precisa se alimentar melhor.
Abro meus olhos e o encaro, com fúria. Odeio quando ele
finge que não é o culpado por eu estar aqui e age como se fosse o
melhor marido do mundo. Eu odeio esse homem.
— Agora sim. Gosto de você obediente. — Seu sorriso se
abre e sinto meu estômago embrulhar. — Ouça com atenção,
Juliana, sua mãe se precipitou em chamar uma ambulância e
precisei prestar esclarecimentos sobre o seu estado. O que é um
absurdo.
Juro que se a dor na minha cabeça não fosse tão forte, eu
falaria para ele o que é um absurdo. No entanto, apenas o deixo
continuar.
— Para a nossa sorte, conheço as pessoas certas, por isso
informei a tentativa de assalto que você sofreu na noite passada.
— Tentativa do quê? — digo, tentando me sentar e, mais uma
vez, a dor me impede.
— Não finja que não entendeu. Expliquei a todos que você
apanhou ao sofrer uma tentativa de assalto, e que não prestou
queixa, pois ficou com vergonha porque tinha saído escondida de
mim. Eu só fiquei sabendo disso hoje ao voltar de viagem.
Antes que eu possa falar alguma coisa, duas batidas na porta
ressoam pelo quarto.
— Com licença. Sou o policial Torres e esse é o meu parceiro
Ferraz, gostaríamos de dar uma palavrinha com a senhora Juliana.
Movo um pouco meu pescoço e, assim que Edgar se vira,
consigo ver dois policiais entrando no quarto.
— Claro. Eu mesmo liberei a entrada de vocês com a
enfermeira, fiquem à vontade.
— Você é...?
— Sou Edgar Gonzales, o marido dela. E, além disso, temos
uma filha linda, não é querida? — diz, olhando nos meus olhos e
vejo a maldade gravada ali com o aviso explícito para que eu me
comporte, pela Emilly.
— O senhor se importa de ficarmos a sós com ela?
— A sós? Qual a necessidade disso?
— Apenas protocolo, senhor Edgar.
— Tudo bem, quem sou eu para atrapalhar o trabalho árduo
da polícia. Vou aproveitar que vão fazer companhia à minha esposa
e dar um pulo em casa, para passar um tempo com a minha filha.
Sabem como é, ficou assustada, a coitadinha.
Ele se aproxima, e deposita um beijo na minha testa.
— Seja boazinha com eles, Juliana. Emilly ficará ótima sob
meus cuidados — diz baixinho, no meu ouvido, e eu estremeço.
Que Deus proteja minha filha das mãos desse louco.
— Se a senhora achar melhor, podemos chamar uma
enfermeira para acompanhar o depoimento — sugere um dos
policiais, que não guardei o nome, assim que Edgar passa pela
porta.
— Não é necessário, está tudo bem.
— Vamos começar, então. De quem você sofreu agressão,
senhora Juliana?
— Como meu marido contou…
— Desculpe, mas gostaria que a senhora narrasse os fatos
como realmente aconteceram. Seu marido fez um relato, mas pelo o
que consta, ele não estava presente, por isso, é importante que nos
diga cada detalhe.
— Eu saí de casa, e… — Escondo as mãos trêmulas
embaixo do lençol e respiro fundo tentando me acalmar. — E um
homem me pegou na esquina. Quis roubar o meu celular, e quando
eu disse que estava sem ele, começou a me bater.
— Um homem?
— Sim.
— Seu marido havia dito que eram dois.
— Oh! Eu devo ter me confundido quando contei a ele.
O encaro, e o policial parece não acreditar em nada do que
eu falo.
— E por que não ligou para a polícia?
— Por quê? — Faço um esforço para puxar da memória essa
parte da conversa com Edgar, porém, estou nervosa demais. —
Eu… eu…
— Nos diga a verdade, Dona Juliana. Por favor. Pode confiar
em nós.
Levanto os meus olhos e minha visão nublada me faz ver o
homem à minha frente como um borrão. Sinto vontade de gritar para
o mundo o monstro que Edgar é, só que o medo me paralisa. Não
por mim, mas por Emilly. Aquele monstro é capaz de tudo.
— Eu saí escondida do meu marido. Se eu fosse à polícia,
ele descobriria — digo, rápido, assim que me recordo dessa parte
da conversa.
— No final, ele descobriu de qualquer jeito, não é verdade?
— murmura um deles, que estava quieto até o momento.
— Ferraz — o outro diz, em sinal de reprimenda para o
companheiro. — Bom, Dona Juliana. Vou precisar da descrição do
bandido, mas antes disso, me responda, onde a senhora estava
indo no dia da “tentativa de assalto”?
— Em um bar — digo, no automático. — Fui convidada para
cantar e Edgar não gosta que eu cante. Por isso, fui escondida.
— Foi? A senhora estava voltando do bar?
— Não, não — me corrijo, quando percebo a falha. — Não
cheguei a ir. A surra foi antes. — Recobro o controle e volto ao
teatro.
Eles não podem nem sonhar em ir até aquele bar.
— Características do bandido.
— Ele usava uma jaqueta com capuz e um tênis vermelho.
Só me lembro disso — minto.
— Ok, Dona Juliana. Acabamos por aqui. Se lembrar de
qualquer coisa, me avise, por favor. — Estende-me um cartão e os
dois saem logo em seguida.
Minha cabeça ferve. Odeio mentir, mas infelizmente, nos
últimos anos virei uma perita nesse assunto.
Encosto nos travesseiros e tento dormir, o que se torna uma
tarefa impossível. Somente após a bondosa enfermeira retornar e
aplicar o analgésico no meu soro, é que apago de vez. Dando
graças a esse momento em que, enfim, posso descansar.

— Ela está dormindo. Volte depois.


Desperto com a voz ríspida de Edgar e quando abro os olhos,
um sorriso se molda no meu rosto.
— Rebecca — digo, sonolenta.
— Oh, minha amiga. Que bom que acordou. Só fiquei
sabendo neste instante que você estava internada aqui.
— Você não tem cara de quem trabalha em hospital público,
Doutora — aponta Edgar, com animosidade. Ele a odeia.
— O senhor não me conhece. Por isso, não faz ideia do que
acontece na minha vida. — O sorriso frio que ela direciona ao meu
marido é assustador. — Como você está, Ju? O que aconteceu
dessa vez? — pergunta, se aproximando e pegando na minha mão.
— Fui... assaltada — digo, envergonhada, por mentir para
ela, mas Edgar está na sala e ele nem sonha que Rebecca sabe de
tudo o que acontece na minha vida.
— Assaltada? E o assaltante queria o que, para bater tanto
em você assim? Sua alma? — diz, sarcástica, e eu peço
silenciosamente para que ela não vá por esse caminho.
— Sabe como anda a violência em Bela Vista, Doutora?
Assustadora — se intromete Edgar. — Bom, vou ver se encontro o
médico para vir te dar alta logo. Não quero que fique mais tempo
neste lugar.
Ele sai e a Rebecca começa a andar pelo quarto.
— Eu não acredito que estou vendo você neste estado,
Juliana. O que te falta para dar um basta nisso de vez?
— Você sabe que não é fácil.
— Não entendo. Olha seu estado, minha amiga. Até quando
seu corpo vai suportar?
Mais uma pessoa me dizendo isso. Estou cada vez mais
convencida de que é um aviso que minha vida está chegando ao
fim.
— Se algo acontecer comigo, prometa que pegará Emilly e
sumirá do mapa com ela? Por favor, Becca — peço, com voz
embargada, e isso parece aplacar a sua fúria, pois caminha até mim
e segura minha mão.
— Eu fico tão preocupada com você. Vamos para a minha
casa? Pede o divórcio, eu te acolho.
Sorrio, emocionada, ao saber que uma amiga que fiz há
pouco tempo, se preocupa mais comigo do que a minha família.
— Muito obrigada, mas a sua casa seria o primeiro lugar que
Edgar me procuraria, e eu não duvido que ele vá com a polícia, para
tirar Emilly de mim. Ele conhece o meu ponto fraco — confesso o
maior medo da minha vida.
— Onde está o celular que eu te dei? Enviei algumas
mensagens nos últimos dias, mas você nem sequer visualizou.
— Escondi. Edgar decidiu dormir no meu quarto durante
alguns dias, fiquei com medo de ele descobrir.
— Ele... tentou algo? — questiona, com os olhos temerosos.
Rebecca foi a minha obstetra e o anjo que trouxe Emilly ao
mundo. E foi também a primeira pessoa para quem consegui
desabafar. Pelos exames, ela me questionou sobre o sexo forçado e
em um dia de fraqueza, contei sobre as surras, os estupros e tudo
mais. Ela me incentivou a denunciar e o dia que contei a ideia à
minha mãe, apanhei por dias seguidos de Edgar, pois como sempre,
eles ficaram do lado dele. Depois disso, resolvi me calar. A única
coisa que eu não aceitava calada era o abuso do meu corpo.
Entretanto, isso nunca o impediu de continuar.
— Não. Quando ele avisa que vai para o meu quarto, dou um
jeito de colocar uma dose de calmante na água que ele deixa ao
lado da cama. Entro no banho e demoro, quando saio, ele já está
dormindo.
— Isso é ótimo. O problema é que não durará para sempre
essa tática.
— Eu sei — murmuro, cabisbaixa. — Mas não consigo deixar
que ele me toque. Faz anos que não sou violada por ele, graças a
você.
— Melhor não dizer isso em voz alta, imagine se ele está
atrás da porta. — Becca sorri e se aproxima. — Assim que voltar
para casa, fique em repouso e não faça nada que o enfureça. Vou
pensar em algo para te tirar dessa vida.
— Obrigada, minha amiga. Preciso te contar uma coisa —
conto, em um sussurro. — Eu cantei em um PUB. Foi uma das
melhores sensações que tive nos últimos tempos.
— Você o quê? — pergunta, com os olhos brilhando.
— Prontinho. O médico já está vindo para te liberar — avisa
Edgar, entrando de supetão no quarto, acabando com a nossa
conversa.
— Bom, eu já vou indo. — Rebecca suspira e me abraça com
cuidado, por causa dos machucados. — Não esqueça de pegar o
telefone. Vou manter contato por lá — sussurra para que só eu
ouça, e depois de se despedir de Edgar, ela parte.
— Não gosto dessa mulher. Acho uma falta de
profissionalismo se envolver com uma paciente.
— Ela é uma ótima pessoa — defendo.
— Sei. Vamos parar com essa conversa e vá se trocar, pois o
médico já deve estar chegando. Trouxe um vestido para que seja
fácil de você colocar. Quero chegar logo em casa. Tenho uma
novidade para você — diz, abrindo seu sorriso maldoso, que arrepia
todos os pelos do meu corpo.
O que será desta vez?
Tito
A minha vontade era nem ter saído de casa hoje, queria
achar aquela garota e me certificar que ela esteja bem, e isso que
está me corroendo. Fico relembrando o meu sonho e pensando que
talvez, ele possa tê-la matado e isso me rasga por dentro. Até tentei
ligar para o César, mas foi inútil. O celular só cai na caixa-postal.
— Isso é algo muito sério — diz Alex, me encarando do outro
lado do balcão.
— Eu sei que é, mas estou de mãos atadas. O cara deu a
instrução para que, de forma alguma, eu ligue para aquele telefone,
e preciso respeitar isso. Mas a demora em ela responder é
sufocante.
— Eu sei, irmão. Mas acredito que se algo ruim tivesse
acontecido, a notícia já teria chegado até aqui.
Alex balança a cabeça, tentando se livrar de algum
pensamento e ele nem precisa dizer o que é, Luíza me ligou na
semana passada contando sobre um psicopata que estava armando
para cima dele e que sabotou o carro da ex, depois de ter tomado
um pé na bunda, matando-a em um acidente.
Um baita filho da puta. Ainda bem que está preso.
— Pegue — diz ele, me estendendo um papel. — Aqui está o
telefone da ONG em que o diretor do hospital faz parte. Luíza tentou
vir aqui várias vezes, mas sua vida está uma loucura. Como eu
estava por perto, me ofereci. As garotas têm ido lá passar um tempo
e ajudar de alguma forma. É impressionante como desconhecemos
os dados, mas muitas mulheres sofrem violência doméstica, e
precisam de uma mão estendida para conseguirem subir à
superfície novamente. É importante que essa garota... Como é
mesmo o seu nome?
— Juliana.
— Sim, é importante que a Juliana saiba que existem lugares
como esse, em que sempre tem alguém para ouvi-la e ajudá-la.
Assinto e observo o cartão e o telefone. Guardo-o no bolso e
sei que preciso arrumar um jeito de isso chegar até a ruiva.
— Bom, vou nessa. Mantenha-me informado, por favor.
Ele parte e eu ocupo meu tempo arrumando os utensílios que
uso para preparar meus drinks.
Sou ótimo no que faço e amo o meu trabalho, mas essa
merda toda de ver uma mulher apanhando está mexendo com a
minha cabeça.
Saber que isso existe no mundo, é uma coisa, mas ver de
perto algo assim acontecendo, é uma droga. Eu nunca serviria para
ser policial, como Zeca citou no dia do incidente. Ele já havia
presenciado vários casos assim, o problema é que sem a denúncia
formal, nada pode ser feito. O inferno que não. Se Salomão não
tivesse me brecado, eu teria arrebentado a cara daquele velho idiota
e covarde. Pois, bater em uma mulher que não tem como revidar, é
coisa de covarde.
E o pior é saber que ela é casada com ele.
Meu Deus. Isso só piora.
— Tito. TITO.
— Oi. — Encaro Cléber, um garçom que Salomão contratou
esta semana.
— Tá na lua, camarada? — diz, sorrindo. — Tenho pedidos
das mesas 5 e 8 acumulados.
Olho em volta e me assusto ao perceber que o número de
pessoas no PUB aumentou consideravelmente.
— Foi mal cara. Hoje estou um tanto aéreo mesmo.
— Se concentra. Salomão tá de olho em você. — O garoto
faz um gesto sútil com a cabeça e eu sigo a direção, constatando
que realmente o gerente não para de me olhar.
— Valeu!
Volto para as bebidas. Faço meus drinques com a excelência
de sempre e tento ocupar a cabeça com o trabalho, porque só
pensar em certa ruiva, não está me trazendo benefício nenhum.
Sempre que tenho um tempo livre e passo um pano pelo
balcão, levanto os olhos e encontro o gerente me encarando. Sei
que ele está louco para me mandar embora, mas meu trabalho
sempre foi excelente aqui neste lugar, por isso, não darei motivos
para ele vir me encher o saco.
Eu sei que poderia estar trabalhando no escritório de
advocacia do meu pai, o problema é que esse nunca foi o meu
sonho. Até tentei gostar dessas paradas de lei, e a culpa não é
minha se isso é chato demais.
Falar que meu pai não ficou chateado com a minha decisão,
é mentira. Tivemos uma longa conversa depois que voltei da
Inglaterra, em um intercâmbio que fiz por lá, e aproveitei a estadia
para fazer alguns cursos de barman, ele aceitou o meu jeito de ver a
vida e me apoiou. Minha irmã, Rafaelle, ele já sabia que não iria
seguir seus passos, a caçula da família é vidrada em moda desde
pequena. Somos uma família pequena, mas muito unida. Moro
sozinho, por opção, pois se dependesse da minha mãe, só
sairíamos de casa, depois do casamento, e olhe lá. Aproveitei-me
de umas férias que os dois foram passar o mês em uma fazenda
que temos no interior, e visitei vários apartamentos, até fechar o
negócio com o meu. Deu tempo de arrumar a papelada, comprar os
móveis e decorar. Quando eles voltaram, até a minha escova de
dente já estava no apartamento. Depois de uma bronca daquelas,
meu pai a convenceu que eu já tinha idade para querer privacidade.
Minha mãe ficou vermelha com um pimentão, entendendo o que
aquilo queria dizer, e se calou.
— Olá, bonitão. — Uma morena de parar o trânsito encosta-
se ao balcão, deixando o decote bem à mostra.
— O que vai querer? — respondo, sorrindo, depois de acenar
com a cabeça.
— Você.
— Uau. Direta. Gosto assim. — Coloco uma taça de Martini
na sua frente. — Por minha conta. — Pisco e começamos a
conversar.
Fazia dias que eu não flertava com ninguém, e procuro não
pensar sobre isso, pois seria muita loucura parar a minha vida por
uma mulher casada, que nem sabe que eu existo.
— Que horas você sai daqui? — questiona a garota, que não
me disse nem mesmo o seu nome. Ou seja, essa só está a fim de
diversão mesmo.
— Daqui uma hora — digo, olhando no relógio no canto do
bar e observando que já passam das 3h00 e o movimento continua
intenso. Sempre quebrava o galho para o Salomão ficando até mais
tarde. Mas hoje não estou nem aí. Meu horário é às 4h e, depois
disso, é só o tempo de arrumar as coisas, subir na minha moto e
partiu casa.
— Então, eu acho que vou te esperar. Isso, lógico, se você
não tiver uma esposa e dois filhos te esperando em casa.
— Não tenho nem um cachorro me esperando — digo, de
forma galanteadora, mas algo me chama atenção, a vontade
borbulhante de ter uma ruiva espalhada na minha cama quando eu
chegar em casa.
Ela é casada — repreendo-me, e volto à conversa animada
com a mulher à minha frente.
Ela é agradável, mesmo estando um pouco alterada por
conta da bebida, e é linda. Corpo malhado, seios fartos, tudo em
cima. Acho que é hoje que esqueço a tal ruiva e me perco nessa
morena.
Finalizo meu turno, despeço-me do outro barman e depois de
pegar meu celular e minha carteira, conduzo a mulher para fora do
bar, em direção ao estacionamento lateral, que é exclusivo para
funcionários e fornecedores.
— Sorte que sempre deixo um capacete reserva aqui no
PUB.
— Caramba. Essa moto é sua?
— É sim. — Acho graça da forma como ela se empolga.
Passa as mãos pelo banco e eu apenas observo.
— Sabe que sempre tive esse sonho. — Vira-se para mim
com os olhos acesos de tesão e afasta as pernas, apoiando os dois
braços na moto.
— Qual sonho? — questiono, ficando rouco. Começo a sentir
o sangue correr mais forte nas veias e a excitação que havia me
abandonado, vem com força total.
— Fazer sexo em cima de uma moto.
Ela me puxa pela camiseta e cola as nossas bocas
rapidamente. Minhas mãos buscam a sua cintura e eu a impulsiono
para se sentar na moto com as pernas abertas. A garota não se faz
de rogada e circula meu quadril, se esfregando em mim, sem
restrições. Minhas mãos vão para os seus seios cheios e, no
mesmo momento, penso em como deve ser acariciar os seios da
ruiva.
Porra!
Desgrudo minha boca da dela, para que meus olhos vejam
com quem estou. A garota com os olhos transbordando luxúria e o
batom borrado sorri lascivamente, e sinto que era isso que eu
precisava para relaxar e acabar com aqueles sonhos loucos que eu
estou tendo.
Deixo meus lábios escorregarem pela garganta, até chegar
ao decote generoso. Começo a lamber e chupar por cima do tecido.
— Adoro homens com tatuagens. Você é tão sexy — elogia e
as minhas mãos saem da cintura para fazer o caminho das coxas.
Dou um pulo para trás quando o celular vibra no meu bolso
traseiro do jeans e logo depois o toque me desperta. É ela. Sou tão
louco, que alterei o toque do celular e de mensagens para o número
que salvei da ruiva.
— Por que parou?
— Meu celular. Desculpe, mas preciso verificar.
Sinto-me o pior homem do mundo em ver a decepção nos
olhos da mulher, porém, a minha ansiedade é muito maior.

Juliana (ruiva bar): Oi. Quem é?


Eu: O César me deu seu telefone, estou com o seu violão.
— Olha, estou caindo fora — a garota diz, pulando da moto e
ajeitando o vestido.
— Desculpe-me, eu precisava responder — explico,
guardando o celular no bolso.
Isso são horas de a menina aparecer?
— Não é por isso, não. É por conta dessa cara de idiota
apaixonado, que você está olhando para o celular.
— O quê? Apaixonado? Tá doida? Olha, eu...
— Não precisa me explicar nada. Fui traída pelo meu ex-
noivo e nunca ficarei entre pessoas que se gostam.
— Você entendeu tudo errado. Eu nem a conheço. — Neste
momento, o celular vibra e toca novamente.
— Então, lute para conhecê-la. Esse brilho no seu olhar é
algo que vale a pena dar uma chance.
— Vem, eu te levo para casa — ofereço, derrotado.
— Relaxa. Pego um táxi aqui na frente. Se cuida, barman
gostoso.
Ela sai rebolando e arrumando o pequeno vestido, me
deixando mortificado. Eu nunca havia deixado uma garota sair
insatisfeita, o problema é que eu não estava 100% na dela hoje, por
isso, acho que foi melhor assim.
Fico observando-a caminhar até a frente do PUB, onde tem
um ponto de táxi, e, assim que a vejo entrar em um, com segurança,
saco o celular do bolso, ansioso para conversar com a misteriosa
ruiva.

Juliana (ruiva bar): Você poderia me encontrar no parque


das flores, amanhã, às 17h, para me entregar o violão?

Que bateria de escola de samba é essa no meu peito?


Caralho, Tito. Ela é casada e só quer o violão de volta.

Eu: Claro! Estarei lá com o seu violão.


Juliana (ruiva bar): Ok. Obrigada.
Eu: Você está bem?
Juliana (ruiva bar): Sim.
Eu: Fiquei preocupado com a forma que saiu do bar
aquele dia.

Que droga eu estou fazendo?


Juliana (ruiva bar): Obrigada pela preocupação, mas
estou bem. Até amanhã.

Ela encerra o assunto, de forma nada sutil e eu resisto


ao impulso de escrever algo a mais. Subo na minha moto e ganho
as ruas vazias de Bela Vista, tentando me acalmar e torcendo para
que às 17h de amanhã, chegue rápido.
Juliana
— Você está se arriscando, Dona Juliana.
— Já pedi para parar de me chamar de dona, Camila.
— Eu temo pela sua segurança.
— Pode ficar tranquila, vou dar um jeito, e se não der certo,
vamos para o plano B, que é passar o endereço daqui e pedir para
ele deixar o violão com você.
— Não acho uma boa ideia. Por que não pede para esse
moço deixar com o seu amigo da igreja? — sugere Camila.
— Ouvi Edgar dizendo ao telefone, que foi César que
arrumou a vaga para eu cantar no PUB e acha que estou tendo um
caso com ele, creio que Edgar fez alguma ameaça, pois ele não
respondeu a mensagem que enviei. — Suspiro, chateada, por ter
causado isso a César, ele é uma ótima pessoa que só quis me
ajudar.
— Coitado. Espero que só tenha ameaçado. — Encaro a
babá, com os olhos arregalados. Eu não tinha pensado nisso. —
Esqueça, eu falei bobagem. Agora, vá se arrumar. Vou dar banho na
Emilly, para que vocês não se atrasem.
Aceno, espantando os pensamentos ruins quanto a César,
lhe dou um beijo estralado na bochecha e sigo para o meu quarto,
relembrando dessa madrugada.
Perdi o sono às duas da manhã, fato raro. Algo estava me
incomodando e eu não sabia o que era. As dores e os hematomas
diminuíram consideravelmente na última semana, e eu sabia que a
dor que sentia não era física. Por isso, andei nas pontas dos pés,
para não acordar Edgar, que chegou bêbado em casa, mesmo
sabendo que teria que sair cedo para uma viagem de negócios.
Mas, enfim, o problema era dele mesmo, por isso, não me meti.
Peguei o celular que eu havia escondido na despensa, depois que
Edgar andou revirando meu quarto, e o liguei para enviar uma
mensagem para Rebecca. A surpresa não poderia ser maior. O cara
do bar tinha me chamado e o melhor, ele estava com o violão.
Os últimos dias estão sendo bem complicados aqui em casa.
Edgar está posando de marido bom para Camila e está parecendo
um grude. Para a minha sorte, vai ficar quatro dias fora, o que é um
alívio.
Entro no banho e alguns machucados ainda ardem com o
contato com a água, mas no geral, estou bem. Tive que ir à
delegacia prestar, novamente, um depoimento e, pela forma que os
policiais me encaravam, ninguém acreditou em mim. Mantive o
teatro até o fim e eles informaram que vão se empenhar para achar
o homem com as caraterísticas que eu dei.
Quem dera eles achassem e prendessem esse monstro, que
mora debaixo do mesmo teto que eu.
Seco meus cabelos e paro em frente ao meu armário,
indecisa sobre o que usar e isso me faz sorrir.
Faz muito tempo que não me arrumo de forma prazerosa.
Sempre é por obrigação. Claro que agora eu não vou a nenhum
baile formal, como os quais eu tenho que acompanhar Edgar,
mesmo assim, estou sentindo um arrepio gostoso e emocionante.
Coisa que minha vida praticamente não tem.
Opto por um macacão curto de mangas compridas, apesar do
calor que faz lá fora, ainda tenho marcas roxas, da forma como
Edgar segurou meus braços no dia do show. Sem contar, a cicatriz
que tenho de um dia que ele me empurrou e eu caí em cima de um
vaso de flores, quebrando tudo. O corte foi tão fundo, que eu tenho
certeza de que precisaria de pontos e, como sempre, Edgar mandou
que eu fizesse apenas um curativo em casa mesmo, e a cicatriz
ficou horrível.
Isso é apenas uma das muitas marcas que tenho pelo corpo.
Balanço a cabeça, para dispersar esses pensamentos
antigos e me concentro na maquiagem. As marcas do meu rosto já
estão bem mais claras, no entanto, ainda não posso me dar o luxo
de sair na rua sem uma maquiagem bem carregada. Qualquer
pessoa que reparar, vai saber que levei uma bela surra.
Olho no espelho, depois de passar o perfume e colocar os
brincos, e fico feliz com o resultado. Sou muito branca, e com a
maquiagem, fico mais branca ainda. Para a minha sorte, os meus
cabelos têm uma coloração forte. O vermelho natural chama a
atenção. Se não fosse isso, eu seria uma pessoa totalmente sem
graça.
— Nossa, você está linda! — elogia Camila.
— Você está exagerando — digo, sorrindo.
— Estou falando sério e sua beleza está indo além do seu
visual, você está com um brilho diferente nos olhos. Tem algo que
eu não sei? — questiona, apertando os olhos.
— Até parece, né, Camila. Minha vida já é um mar de
problemas, não preciso de mais um. É apenas a emoção de poder
ter meu violão de volta. Estou sentindo falta dele.
— Então, vá. Sua princesa está na sala, te esperando.
Abraço a babá que Edgar contratou, de forma definitiva, e
sigo para a sala de estar, chamando por Emilly, que vem toda
saltitando, com o seu baldinho de areia.
— Pronta para o parquinho?
— Sim, mamãe. Faz tempo que você não sai comigo.
— Isso é verdade, princesa. Por isso, vamos nos divertir
muito hoje — prometo, pegando em sua pequena mãozinha.
— Dona Juliana?
Chego a gelar ao ouvir meu nome. Eu realmente achei que
conseguiria manter esse capataz longe de mim hoje.
— Sim?
— A senhora vai sair?
— Vou levar a Emilly no parque, por quê?
— O Sr. Edgar pediu que eu levasse a senhora para qualquer
lugar.
— Não é necessário, são apenas duas quadras daqui.
— Eu sei, senhora, mas o patrão está preocupado com a sua
recuperação, me desculpe, estou apenas seguindo ordens.
— Ok — digo, simplesmente, e entro no carro, junto com
Emilly.
Minha vontade é de gritar de raiva. Faz uma semana e meia
que tive alta do hospital e estou me recuperando muito bem. O
médico prescreveu analgésico e instruiu que eu fizesse compressas
de gelo no local da fratura. Explicou que se eu não fizesse nenhum
esforço e me cuidasse corretamente, dentro de algumas semanas,
já não sentirei dor alguma. O lado bom da história é que Edgar
pareceu se arrepender e prometeu não encostar mais um dedo em
mim, em contrapartida, quando chegamos do hospital, um cão de
guarda estava a postos para tomar conta da minha vida. Edgar
nunca me manteve presa, e agora achou a desculpa perfeita para
me vigiar. O médico disse que, por enquanto, eu não posso dirigir,
com isso, ele arrumou um “motorista” que grudou em mim igual um
carrapato.
Olho pela janela e deixo a minha mente vagar. Sorrio ao
pensar que quando peguei o celular e abri o contato da mensagem
misteriosa, quase caí para trás, vendo a foto do perfil,
reconhecendo-o como o tatuado do bar que tentou me defender e
disse que chamaria a polícia. Será que estou fazendo certo ao sair
para me encontrar com ele? Na hora, agi no impulso, só que agora
o medo está começando a me atormentar.
Deixe disso, Juliana. Nem todos os homens são iguais —
reflito, afastando pensamentos negativos.
Vai ser algo rápido e simples, marquei de pegá-lo hoje, o
violão, é claro, pois nem nos meus sonhos eu pegaria um cara tão
gato como aquele. O problema maior é que não sei como fazer isso,
com esse maldito motorista grudado em mim.
— Pode nos deixar aqui — peço, assim que chegamos à
portaria do parque.
— Não quer que eu estacione, para voltar com a senhora?
— Não há necessidade. Ah!
— O que foi?
— Esqueci o chapéu da Emilly e o protetor solar. O sol está
tão forte — digo, olhando pela janela, com cara de preocupada. —
Juarez, você nos faria o favor de voltar para pegar?
— Será que é seguro a senhora ficar por aqui, sem mim?
— Estarei em um parque.
— Eu sei, senhora. Mas tem o ladrão...
Santa inocência — penso.
— Você acha que o ladrão apareceria para me espancar de
novo?
— Não sei. O Sr. Edgar disse que é perigoso a senhora ficar
sozinha.
— Eu agradeço, Juarez, mas você não é meu guarda-costas,
foi contratado para dirigir, enquanto estou impossibilitada. Pode
deixar que eu sei me cuidar. Agora, se puder voltar em casa e pedir
para a Camila os itens que esqueci, eu ficarei realmente agradecida.
— Sim, senhora. Em breve, estarei de volta.
Desço do carro, com sentimentos conflitantes. No início,
achava que esse homem era da mesma laia de Edgar. E agora,
vendo que ele pensa que o “ladrão” pode voltar, sinto que é mais um
boneco nas mãos do meu marido.
— Mamãe, posso ir ao escorregador?
— Claro, princesa. Vou me sentar aqui na sombra e ficar
olhando você, tudo bem?
— Siiiim. — Ela nem termina de falar e já está correndo.
Sento-me próxima aos brinquedos e olho em volta,
respirando o ar puro. Este parque é localizado na área nobre de
Bela vista e dificilmente fica cheio. Algumas babás me
cumprimentam de longe e agradeço a distância e a maquiagem,
seria uma fofoca boa se elas reparassem nos hematomas.
Levanto os olhos e vejo o homem tatuado, caminhando em
minha direção, com o meu violão nas mãos. Meu coração perde
uma batida e, pela primeira vez, consigo reparar melhor nele. Ele é
mais lindo do que na foto.
Seus olhos estão fixos nos meus e eu até tento encarar
apenas os seus olhos, mas é impossível. Reparo na bermuda jeans,
camisa branca com a gola em V e um boné virado para trás.
Lembro-me que no dia do bar, ele estava todo de preto. E isso me
faz pensar que o cara é lindo de qualquer jeito.
— Oi — diz, ao se aproximar. — Posso? — pede, indicando o
banco.
— Claro.
Dou uma checada em volta, para saber se o cão de guarda
realmente não me seguiu e não vejo nem sinal dele.
— Aqui está. Intacto — diz, colocando o violão no espaço
entre nós dois.
Passo os dedos suavemente, sentindo a textura do
instrumento e isso me faz sorrir.
A música que carrego dentro de mim, é a única lembrança
que trago dos meus sonhos. De um futuro que não existe mais.
— Mamãe, mamãe... — Viro o rosto, quando Emilly se
aproxima e estaca, olhando de um jeito curioso para o homem ao
meu lado. Vejo seu semblante de dúvida, pois sempre aviso que não
podemos falar com estranhos. — Quem é ele?
— Desculpe, eu não sei o seu nome — explico, sem graça.
— Tito. Prazer, sou amigo da sua... Mamãe — ele fala, como
se não acreditasse que eu era a sua mãe. — E qual é o seu nome,
princesa?
— Sou Emilly.
— Você é muito linda, Emilly.
— Obrigada. Mamãe, posso brincar na areia com o baldinho?
— indaga, virando-se para mim.
— Pode. Vem aqui para a mamãe tirar seu sapato. Ai! —
reclamo, quando esqueço e me abaixo, forçando a costela.
— O que foi? — pergunta Tito.
— Um homem mau bateu na mamãe e ela quebrou a barriga.
— Emilly! — consigo dizer, assim que recupero o ar. — Não
dê ouvidos a ela — explico, sorrindo, sem graça. — Filha, levante o
seu pezinho, a mamãe não consegue abaixar.
— Vem aqui, o tio tira para você.
— Não... — Ela não espera nem mesmo eu termine, e já
corre na direção de Tito.
Tito.
Como é bom saber o nome dele.
— Quem é o homem mau, princesa? — pergunta baixinho,
enquanto desabotoa a sandália rosa.
— Meu pai disse que é um homem que vive na rua. Os
homens da rua são maus.
— Vai brincar, Emilly. — Tento não soar desesperada.
— O que você quebrou?
— Não é nada, a Emilly...
— Juliana, eu não sei o motivo de você estar com um homem
que te arrasta pelos cabelos na frente de todo mundo e que, com
certeza, fez algo muito pior quando chegou em casa, mas isso não
está certo.
— Desculpe, mas isso não é da sua conta.
— Porra, claro que não é, só que todos esses dias, eu
cheguei a achar que você estava morta.
— Não estou. Não sou tão frágil quanto parece.
— Ah! Claro. Você deve ser a mulher maravilha — diz,
sarcasticamente, jogando as mãos para o alto.
— Não se meta na minha vida, por favor.
Ele suspira e tira o boné, mexendo nos cabelos curtos, em
sinal de frustração.
— Você o ama?
— Não — digo, rápido, e só depois me dou conta que não
devo satisfação da minha vida para ele.
— Menos mal. A Emilly é filha dele?
— Sim. — Sinto-me em um jogo de perguntas.
— Você é tão nova — murmura.
— Infelizmente, a vida não escolhe idade. — Sorrio, sem
humor.
— Olha, tem uma ONG que...
— Droga! — exclamo, quando vejo Juarez, passando com o
carro na rua, em frente ao parque.
Ele, com certeza, vai estacionar e entrar. Será questão de
tempo até me achar.
— O que foi?
— Olha... Tito. Te peço um milhão de desculpas, mas será
que eu poderia pedir um favor enorme para você.
— Claro. Qualquer coisa.
— Meu marido contratou um motorista para me vigiar e ele
acabou de chegar, se ele sonhar que eu me encontrei com um
homem, vai acabar comigo. Se eu te der um endereço, você vai até
lá e entrega o violão para uma mulher chamada Camila? Ela já está
sabendo.
Ele se levanta, em um pulo, olhando para os lados, com os
punhos cerrados.
— Quem é o cara?
— Pare com isso. Se você o enfrentar, quem vai sofrer as
consequências sou eu. Por favor.
— Merda! Pode anotar o endereço. — Entrega o celular
desbloqueado e eu rapidamente digito o endereço de casa.
— Desculpe te dar esse trabalho.
— Não há problema, eu só quero saber... Se a gente...
Poderia conversar algum dia. Tenho umas coisas para te falar.
— Me mande mensagem, mas nunca ligue naquele número.
Assim, vamos mantendo contato. Obrigada, de coração. Agora vá,
por favor.
— Tchau. — Ele se abaixa, pega o violão e sua mão roça na
minha, enviando choques para todos os lados.
Fico olhando-o se afastar e algo preenche meu coração. Um
sentimento que eu nunca conheci e não sei dizer o que significa,
mas acredito ser algo como se sentir querida por alguém. Somente
Rebecca se preocupa comigo e saber que tem mais uma pessoa
neste mundo que também o faz, mesmo sem me conhecer, é
acalentador.

— Olá, Juliana. Que bom que voltou. Vai nos acompanhar


hoje? — pergunta Iraci, a organizadora do coral da igreja.
— Se vocês permitirem, eu gostaria sim. Peço desculpas por
ter faltado no último ensaio.
— Não tem problema. Sabemos que foi... Assaltada. Você já
está recuperada?
— Sim. Obrigada pela preocupação.
Meu rosto arde de vergonha. Eu sei que todas as pessoas
comentam sobre a violência que sofro em casa. O único lugar que
Edgar permitiu que eu cantasse, foi no coral da igreja, isso porque
ele estava para fechar um negócio grande com um senhor que é
cristão assíduo, por isso, me usou para conseguir o que queria,
depois que tudo se concretizou, permitiu-me continuar a vir às
missas todos os domingos, e a cantar, porém, ele nunca mais me
acompanhou.
— Venha, já vamos nos posicionar.
Aceno e me viro para dar um beijo em Emy.
— Obedeça a tia Camila.
— Pode deixar, mamãe.
A babá sorri e eu sigo para os bancos da parede lateral.
Procuro César com os olhos, mas não o acho.
— Olá, Juliana — diz Paty e logo cumprimento a todos.
Ali, com o microfone na mão, permito-me acreditar que minha
vida não foi interrompida. Que ainda estou no curso de Música, e
que terei a oportunidade de cantar de modo profissional, vivendo o
meu sonho.
Somente nesses momentos, eu consigo recarregar as minhas
energias para suportar ser esposa daquele homem.

— O que a senhora vai querer para o almoço? — pergunta


Camila, dentro do carro, onde seguimos para a casa depois da
missa.
— Não precisa se preocupar com isso, Camila. Sua função é
apenas cuidar de Emilly, e já fez muito mais do que deveria, nesse
tempo que eu estava de repouso. Pode deixar, que hoje farei uma
lasanha deliciosa.
— Eba! Eu amo lasanha com muito queijo — diz Emilly,
fazendo todos rirem.
— Seu pedido é uma ordem. Será com muito queijo.
— Que estranho. A senhora está esperando alguém hoje? —
pergunta Juarez, assim que manobra na rua da minha casa.
— Eu não, por quê? — Estico o pescoço e acho estranha a
quantidade de carros estacionados por ali. — Deve ser algum
vizinho dando uma festa.
— O carro do Sr. Edgar está ali.
Essa frase faz meu sangue gelar. Ele só voltaria no meio da
semana. Será que descobriu sobre o parque? Camila me olha com
o mesmo medo no olhar.
Espero o motorista estacionar, tiro Emilly da cadeirinha e
caminho, lentamente, com ela ao meu lado, para o interior da casa.
O falatório dá para ser ouvido ao longe. Vários homens de terno,
transitam por ali, com taças de champanhe ou copos de uísque.
Reconheço alguns rostos, de eventos que Edgar me obrigou a ir,
mas não sei o nome de ninguém.
— Minha filha, que bom que chegou. — Ouço o tom meloso
da voz do meu pai e já sei que ele está encenando.
Aproxima-se e segura o meu ombro, como um lembrete que
é para eu fazer o mesmo.
— Olá, pai. O que está havendo aqui? — questiono, com um
sorriso forçado.
— Deixe que eu dê a notícia. — Edgar aparece entre os
convidados, com um sorriso enorme e, pela vermelhidão no rosto, já
está levemente embriagado. — Estamos comemorando.
Puxa o meu corpo para o seu, com cuidado, e recebo um
beijo na boca, de tirar o fôlego. Infelizmente, o meu fôlego apenas
fica preso por nojo daquela cena toda, mas acredito que, para todos
que estão ao redor, somos um casal apaixonado. Ele se afasta e faz
um carinho no meu rosto, como se realmente gostasse de mim.
Edgar não é um homem feio, pelo menos, não por fora. Alto,
malhado, e os seus 42 anos ficam evidentes, apenas pelas rugas
espalhadas pelo rosto. Em todos os eventos que ele me carrega
como um troféu, escuto mulheres dizendo que tenho muita sorte por
ter fisgado um cara bonitão e rico. Ah, se elas soubessem, que eu
trocaria isso em um segundo.
— Qual o motivo da comemoração? — pergunto, realmente
intrigada e com a voz baixa, pois sei que toda a atenção está em
nós.
Edgar dá um passo para trás e pega Emilly nos braços, o que
também a surpreende, já que o pai não é dado à demonstração de
afeto. Nem palavras ele perde tempo, trocando com a criança.
— Danilo Amorim está lançando a candidatura de prefeito e
me convidou para ser seu vice-prefeito. Um brinde.
Nesse momento, ele me puxa pela a cintura e um fotógrafo
aparece, não sei de onde.
— Sorria, querida.
As pessoas levantam as suas taças, felizes pela notícia e eu
abro um sorriso forçado para o fotógrafo, tentando aplacar o medo
que cresce dentro de mim.
Se Edgar já era rico e sem limites, imagine agora, tendo
poderes políticos e entrando para esse meio corrupto.
Levanto o olhar para observar Emilly, que sorri para a câmera
e tenho a certeza de que agora, mais do que nunca, viverei nesse
inferno para sempre, pois nunca terei condições financeiras de me
separar de Edgar e tirar minha filha daqui.
Tito
— Droga de telefone — resmungo, com o barulho que me
acorda.
Levanto-me, tropeçando nas roupas que deixei jogadas
ontem depois do banho, só quando chego à sala, me dou conta de
que o barulho vem da campainha e não do telefone fixo.
— Mãe?
— Não sei o motivo dessa cara de espanto. Não posso visitar
meu filho?
— Seria bom esperar amanhecer primeiro — rebato, de mau
humor.
— Não seja dramático, Vitor, já passam das 10h.
— Isso não altera em nada a situação, pois cheguei às 6h em
casa.
— Esse serviço vai acabar com a sua saúde — diz, dando
dois tapinhas suaves no meu rosto. — Agora, saia da minha frente.
Dona Margot entra, como se a casa fosse dela e eu me
aproveito para depositar um beijo em sua bochecha. Minha mãe me
deixa louco, mas eu a amo de todo coração.
— Vá tomar um banho, enquanto preparo o café da manhã —
instrui, caminhando para a minha cozinha.
— Isso quer dizer que não é uma visita rápida?
Nesse momento, a campainha toca outra vez.
— Pode deixar que eu abro, é o seu pai — diz, ignorando a
minha pergunta. —Ele estava estacionando e eu não tenho
paciência para ficar rodando atrás de vaga não. Seu prédio estava
com todas as vagas de visitantes lotadas, um absurdo.
Balanço a cabeça, enquanto ela tagarela e sigo o seu
conselho. Volto para o quarto e arranco a bermuda, com rapidez.
Abro a porta do box e ligo a ducha gelada, para ver se assim eu
desperto de vez.
Meus pensamentos voam para Juliana. Aliás, aquela ruiva é
a única que habita os meus pensamentos desde ontem.
Quando cheguei ao endereço anotado por ela no meu
celular, minha primeira reação foi pensar que era casada com
aquele cara por dinheiro. O bairro é de gente montado na grana e a
casa é uma mansão. Só que algo não batia. Eu sempre fui bom em
analisar as pessoas, sendo barman durante tantos anos, passei a
perceber a verdade nos traços de quem me conta cada história, e
com a ruiva, algo me dizia que o dinheiro não era o motivo de sofrer
violência doméstica e ser humilhada publicamente, calada.
“O homem mau quebrou a barriga dela”. Relembro da
inocência daquela criança, ao me contar isso e fico com mais raiva
ainda. O desgraçado quebrou as costelas dela, e pelo tanto de
maquiagem que Juliana usava, em plena tarde ensolarada, a surra
foi muito feia.
Questionei, sutilmente, a empregada quando toquei a
campainha e lhe entreguei o violão, eu não sabia se podia confiar
naquela mulher, mas parecia que Juliana já fazia isso, por isso,
arrisquei.
“Ela ama a filha acima de qualquer coisa no mundo” — me
respondeu a mulher.
A filha dela.
Essa era a peça do quebra-cabeça. César disse que os
boatos eram que ela foi vendida pelos pais. Juliana deve ter
engravidado e o idiota usa a filha para ter poder sobre ela.
Se eu pego um cara desses — penso, ao me secar e olhar no
espelho do banheiro, me encarando — eu quebro o pescoço dele
em dois segundos.

— Filho! Que bom te ver. — Se alegra meu pai, vindo em


minha direção, assim que chego à sala.
— Bom te ver também, pai. Como vão as coisas?
Chamo-o para sentar na varanda, enquanto a minha mãe
domina a cozinha.
— Estão ótimas. E com você, como está o serviço? —
pergunta ele, assim que nos acomodamos.
— Como sempre, pai. Muita correria, mas é isso que faz o
meu sangue ferver.
— Então, está no caminho certo, garoto.
Rimos, conversamos sobre futebol e reviramos os olhos
juntos, com o grito da minha mãe, nos fazendo sentar à mesa.
— Me conte as novidades, meu petitito.
— Mãe, já estou velho demais para ser chamado assim —
resmungo, cortando um pedaço de bolo de chocolate.
— Quem decide como te chamar sou eu, meu amorzinho.
Agora, me responda.
— Não, mãe. Nenhuma novidade.
Tento soar indiferente, mas é impossível não pensar em
Juliana e quando levanto os olhos vejo, que isso não passou
despercebido pelo senhor Orlando. Meu pai levanta uma
sobrancelha questionadora e desvio o olhar rapidamente.
— Ah! Eu tenho uma novidade maravilhosa. Arranjamos uma
nova garota para cuidar da fazenda e, além de muito bem
recomendada, ela é linda, não é, Orlando?
— Sim, muito bonita — responde ele, segurando o riso, pois
nós dois sabemos aonde isso vai dar.
— Que bom. A Conceição estava precisando mesmo de
alguém para ajudá-la. — Penso na senhora que trabalha há tempos
na família, e sei que os anos já devem estar cobrando o seu preço.
— Foi ela mesma que escolheu a Dora. Uma garota adorável.
Podemos marcar um dia para irmos para lá e você conhecê-la.
Quem sabe, domingo que vem?
— Mãe, eu trabalho até tarde no sábado. Domingo é o meu
dia de folga. Gosto de deitar e apagar.
— Você só sabe trabalhar e dormir, Vitor. Isso não é vida.
— Acho melhor você preferir o petitito — zomba meu pai. —
Quando ela chama de Vitor, é porque vem tempestade por aí.
Sorrio, mesmo sem querer e minha mãe acaba fazendo o
mesmo.
— E Rafaelle, como está aquela irmã desnaturada?
— Está ótima. Conseguiu um estágio com uma estilista
famosa. Vive nas nuvens agora.
— Que bom saber disso. Faz tempo que não a vejo.
— Vou ligar para ela vir almoçar conosco.
— Almoçar, mãe? Nem tomamos café ainda — tento
argumentar, só que com a minha mãe, não tem conversa, quando
ela coloca algo na cabeça, não adianta.
— Rafa? Filha, a ligação está horrível, você está dentro de
alguma lata por um acaso? Alô? Oi? Espere um momento. Deve ser
o apartamento do seu irmão. Vou para a sacada.
Sorrio com o jeito da minha mãe e acompanho-a com os
olhos, quando me viro, vejo que meu pai está me observando, com
os olhos serrados.
— Quem é ela?
— O quê?
— Não está me enganando com essa cara de desentendido.
Encaro-o, sem saber o que falar. Será que devo? Meu pai
sempre foi um grande amigo, mas fico receoso de ele me julgar, por
estar pensando em uma mulher casada.
Cacete, até eu estou me julgando.
— É uma longa história — resmungo, soltando o ar.
— Ainda bem que, só tenho que estar no escritório amanhã
às 8h. — Sorri e se joga na cadeira, apoiando o pé no outro joelho,
totalmente relaxado.
— Você fala da mãe, mas é igualzinha a ela. Não desiste
enquanto não consegue o que quer.
— Isso eu realmente não posso negar, não é à toa que sou
advogado — brinca.
— É uma garota. A conheci faz algumas semanas.
— Se ela é só mais uma garota, o que está te tirando o sono?
Amor à primeira vista?
— Jura que não vai surtar?
— Você está começando a me assustar, Vitor — fala, com o
sorriso sumindo do seu rosto.
— Ela apareceu no PUB para se apresentar.
— Hum. Uma artista.
— Linda, pai. Ela é a mulher mais linda que eu já vi. —
Perco-me em pensamentos, relembrando sua voz suave, sua
concentração quando cantava, sua entrega.
— Esse sorriso é algo novo para mim. Acho que nunca o vi
sorrindo assim e com esse olhar perdido.
— Como é? — questiono, voltando dos meus devaneios.
— Tito, se o medo é se apaixonar, desista, você já está
apaixonado. Vá atrás dela e viva isso. Não sei que mania esses
jovens de hoje em dia têm de fugir de uma boa paixão. Não tem
coisa melhor na vida do que amar e ser amado, mesmo que não dê
certo no final. Viva o momento, sem medo.
— Não tenho medo de me apaixonar. E não estou
apaixonado. Realmente ela não sai da minha cabeça, mas são por
outros motivos.
— Se explique.
— Ela é casada.
— Como é que é? Você está saindo com uma vadia casada?
— diz minha mãe, entrando na conversa. Nem a ouvi se
aproximando.
— Ai, merda! Não é nada disso, mãe. E não a chame de
vadia.
— Eu só quero o seu bem, meu querido. Não entra na minha
cabeça uma mulher que não se dá ao respeito. Se não quer o
marido, separe do coitado chifrudo.
— Coitado? Ele quebrou a droga da costela dela com uma
surra — digo, me exaltando.
Levanto-me e caminho até a porta da sacada, sentindo a
necessidade de tomar um ar.
— Isso é muito sério, filho. Explique-me direito.
Olho para trás e minha mãe está parada, no mesmo lugar,
me olhando com piedade. Não sei se de mim, ou de Juliana.
— Ei, ela não fez por mal. Tem a mania de querer proteger a
você e a sua irmã, a qualquer custo.
— Eu sei, pai — digo virando-me para olhar o horizonte
novamente. Respiro fundo e volto a olhar para ela. Então, abro os
braços e ela vem em minha direção, para ser acolhida em um
abraço apertado. — Desculpe-me por ter me alterado. A senhora
não merece um grito meu.
— Eu te amo. Agora se sente e conte-nos sobre essa moça,
prometo não tirar mais conclusões precipitadas.
Assinto e começo a narrar desde o dia da noite do PUB.
Conto sobre a forma que aquele animal a arrastou e como me sinto
inútil até hoje por não ter feito nada.
— Você não tem culpa de nada, Tito. Mas se realmente ele
usa a filha para chantageá-la, vai ser mais difícil. O primeiro passo
seria ela denunciar.
— Queria ter mais tempo para conversar com ela — digo,
frustrado. — O problema, é que tenho a impressão de que os
passos dela são controlados.
— Coitada — diz minha mãe, pela primeira vez. — Eu cometi
um pecado ao julgá-la sem saber de nada. Nenhuma mulher merece
passar por isso, ainda mais, com o marido, que seria a pessoa a
quem deveria defendê-la do mal.
— Não fique assim, meu bem, nosso Tito vai ajudá-la, tenho
certeza. — Ele a puxa para um abraço e fico ainda mais encantado
com o carinho que vejo nos dois, mesmo depois de tantos anos.
É isso que quero para a minha vida, e mesmo que não seja
algo possível, eu queria isso com aquela ruiva, que anda me tirando
o sono.
— Você acha que... Ela gostou de você? — questiona a
minha mãe.
— Duvido. Mas não quero pensar nisso agora. Ela está com
tantos problemas na cabeça, que a essa altura, não deve nem
lembrar meu nome. Eu quero ajudá-la. Libertá-la dessa vida horrível
que ela deve viver.
— Tem certeza de que quer se envolver nisso?
— Sim — respondo meu pai, sem titubear.
— Então, lute. Nada é impossível quando nós queremos
alguma coisa.
A campainha toca, acabando com a nossa conversa e
aproveito para fugir.
— Maninho.
Abraço Rafaelle e bagunço seus cabelos, para não perder o
costume.
— Para, seu chato.
Sorrio e acompanho minha irmãzinha até a varanda do meu
apartamento.
Fazia um bom tempo que não reunia a minha família aqui e
estou muito feliz pela minha mãe ter me acordado hoje.
Não que eu vá assumir isso em voz alta.
Decidimos ir almoçar em um restaurante no centro de Bela
Vista, que minha mãe adora. Passamos um tempo proveitoso
juntos.
— A mãe contou que você arrumou estágio.
— Sim. Com a estilista Clarissa Albuquerque.
— Eu a conheço.
— É claro que conhece, ela é muito famosa.
— Não. Eu a conheço, porque uma amiga minha namora o
melhor amigo dela.
— Não acredito! Que máximo.
— Mas só a conheço de nome.
Engatamos no assunto sobre a carreira da nossa caçulinha e,
mais uma vez, me sinto honrado por ter uma família como a minha.
É o que a pequena Emilly merece também. Um lar.
Só preciso pensar em um jeito de ter mais cinco minutos com
Juliana, sem precisar sair correndo. Quero conhecê-la, saber os
seus gostos e, o principal, quero saber se realmente o sentimento
que está crescendo dentro de mim é paixão ou senso de proteção.
Juliana
— Um cara gato, gostoso e tatuado? Ju, me passa o
endereço desse PUB, estou precisando de um desse para mim.
— E o Guilherme, Rebecca?
— Ele é daqueles galãs à moda antiga. Faz duas semanas
que só me paquera e pega na minha mão. Aff, não tenho paciência
para isso não. Preciso de um cara com pegada.
Acabo rindo da teoria da minha amiga. Tantas mulheres
querendo um cara respeitador e ela louca por um cafajeste.
Coloco mais um pouco de açúcar no meu café e percebo que
estou realmente feliz. São raros os momentos que consigo distrair a
minha cabeça e não lembrar que sou ligada a Edgar. Hoje, consegui
um tempinho para mim, pois minha mãe levou Emilly ao zoológico e
como a minha amiga estava de folga, corri para passar um tempo
com ela.
Uma coisa que Edgar nunca fez, foi me proibir de sair de
casa, desde que ele saiba onde estou. Os últimos dias estão sendo
complicados. Fotos, entrevistas, poses de família modelo e tudo isso
está me desgastando, o bom é que Edgar está mais ocupado do
que nunca. Quando avisei que viria para cá, ele apenas acenou e
continuou a ler um contrato em suas mãos. Avisou que teria uma
reunião e eu não precisaria esperar por ele. Como se eu realmente
fizesse isso.
— Não ri não. É sério, estou sentindo falta de um cara que
me faça perder o ar. Quando você se libertar do seu algoz, vai saber
o que eu estou falando.
— Me libertar? Quem dera isso fosse uma possibilidade —
murmuro.
— Deveria ser, minha amiga. Deveria ser.
Essa é uma conversa inútil. Se eu não tivesse Emilly, tudo
seria diferente. Eu me mudaria para Índia, se precisasse, mas só em
pensar que ele pode fazê-la sofrer por raiva de mim, isso me
consome. Nunca permitirei que isso aconteça.
— Ele deve estar insuportável agora participando da política,
não é?
— Sim, está se achando um rei. E o pior, é que esses dias
escutei uma conversa dele com um homem lá em casa, dizendo que
depois de Danilo ser eleito, um acidente ocasional poderia
acontecer para tirá-lo da jogada e Edgar assumir o cargo — conto,
olhando para o café e relembrando desse dia. Passei a ter mais
medo ainda de Edgar.
— Você acha que ele seria capaz de matar o amigo dele?
—Você tem dúvidas, Becca? Olha o que ele faz comigo há
cinco anos. Edgar não tem escrúpulos. Tem vezes que penso que
nem alma ele tem. Já deve ter vendido para o diabo.
— Ainda me pergunto como seu pai teve coragem de te
entregar a um homem como ele.
— Eu também. E a parte pior é saber que meu pai não é tão
diferente de Edgar e, mesmo assim, eu ainda quis me casar para
protegê-lo.
— Como assim, protegê-lo? — Rebecca questiona, e me dou
conta que dei voz aos meus pensamentos.
— Nada. Esquece.
A minha amiga me olha, desconfiada, mas finjo que não
reparo. Termino a minha xicara de café e olho em volta. Rebecca
tem um apartamento lindo. Todo delicado e com muitas fotos
espalhadas. Um verdadeiro lar. Totalmente diferente do lugar em
que cresci e o que eu vivo agora. Mesmo morando sozinha, pois os
pais moram em Espírito Santo, Rebecca tem um jeito acolhedor
dentro de si e torna a sua casa uma extensão disso.
— No que está pensando? — pergunta ela, pegando a minha
mão e me levando até a sacada.
— Em como a sua casa é linda como você. — Ela sorri com o
elogio e fica séria no momento seguinte.
— Você sabe que a minha casa está aberta para você e para
Emilly, quando quiser. E digo aberta mesmo, até para morar aqui.
— Já tivemos essa conversa, Becca. — Debruço no
parapeito, me sentindo desconfortável, pois a coisa que eu mais
queria era aceitar a sua proposta, — Você seria a primeira pessoa
que Edgar procuraria. Tenho muito medo do que ele poderia fazer
com você, ao saber que me ajudou.
— Eu não tenho medo dele.
— Mas deveria — digo, com sinceridade, e acho que meus
olhos transmitem isso, pois a vejo engolir em seco.
— Ok. Você que sabe, Só tenha em mente que você não
precisa continuar vivendo no inferno para sempre.
— Eu te amo por se preocupar comigo.
— Ah, vai começar esse papo sentimental. Vamos parar com
isso — brinca, limpando uma lágrima. — Vamos ao salão? Preciso
aproveitar a minha folga.
Concordo, pego a minha bolsa e a acompanho. Segundo ela,
inaugurou um salão novo no Centro que é formidável.
Para a minha sorte, minha sombra foi acompanhar Emilly e
Camila, juntamente com a minha mãe, por isso, estou com o meu
próprio carro hoje. E algo que me faz bem é dirigir.
Rebecca seleciona uma playlist animada em seu celular,
conecta com o carro e dirijo, rindo de sua desafinação.
— Canta comigo, Ju.
Separo os lábios e deixo o refrão de Sugar do Maroon 5
escapar, junto com a minha empolgação.
— Ah, isso não vale. Você é uma profissional, não precisa
humilhar. — Rebecca faz biquinho, mas não consegue segurar
muito. Logo estamos rindo como duas doidas.
— Aqui, Ju. Estacione nessa vaga. O salão é do outro lado
da avenida.
Faço o que ela diz, saímos do carro e atravessamos a rua,
em direção ao salão. Parece ser top de linha, olhando por fora.
— Olá. Sou Rebecca Paiva e marquei um horário para hoje.
— Ah claro. Pode me acompanhar.
— Escuta, será que você consegue encaixar a minha amiga
também?
A garota me encara e morde o lábio, em dúvida.
— Só um minuto. Vou falar com a gerente. — Se vira e
caminha para fora da recepção.
— Não precisa, Becca. Eu te espero e depois te deixo em
casa.
— Lógico que precisa. Hoje é o seu dia de folga. Você
precisa pensar em você também.
— Eu me cuido. Sempre vou a salões.
— Sim. Seu marido sempre marca penteados e maquiagens
em salões para você. Eu sei disso. Mas isso, minha querida, é
obrigação. O que teremos hoje, será diversão.
— Ela autorizou. Tivemos alguns cancelamentos hoje, para a
sua sorte.
— Muita sorte mesmo. Obrigada.
Adentramos o salão e realmente o lugar é sensacional. Uma
mulher, um pouco mais velha, vem em minha direção, ao lado de
uma garota que não para de falar e não consigo saber de onde, mas
ela me parece muito familiar. Na verdade, as duas.
— Mas, mãe. Este final de semana eu não posso.
— Depois conversamos — a mais velha sussurra e nos olha,
sorrindo. — Olá. Sejam bem-vindas. Sou Margot, a dona do salão.
Essa aqui é a minha filha, Rafaelle. É um prazer tê-las conosco.
— Obrigada, Margot. Sou Rebecca e essa é a minha amiga,
Juliana. Agradeço por conseguir nos atender, mesmo sem o horário
reservado.
— Foi uma sorte — diz a filha, sorrindo. — Quando não tem
horário, nem a mim, que sou filha, ela não encaixa.
— Não fale assim, Rafa, elas vão achar que sou uma bruxa.
A brincadeira é tão leve, que acabo relaxando ainda mais.
Tinha esquecido de como é bom frequentar lugares assim.
— Vamos começar, então. O que vão querer fazer?
— Se possível, tudo. Hoje é o dia da beleza — Rebecca
pede, animada, e Margot sorri também.
— O pedido de vocês é uma ordem.
Depois de deixar Rebecca em sua casa, passo pela porta da
minha casa, sorrindo como uma boba. Me diverti muito com a Becca
e com as mulheres do salão. Acabei fazendo unha, cortando e
hidratando os cabelos e ainda me submeti à depilação. Coisa que
odeio. Mas no final, tudo valeu a pena.
Encaro o relógio e verifico que ainda faltam duas horas para
Emilly voltar para casa. Subo as escadas, encarando a casa fria que
moro. Balanço a cabeça e faço uma promessa de não deixar isso
me abalar. Aproveito que estou sozinha e me permito tocar um
pouco. Deixo a minha bolsa em cima da cama. Tiro o violão do seu
esconderijo e deslizo os dedos por ele, com muito carinho. Apenas o
seu cheiro me transporta para um mundo paralelo. Dedilho as notas
de Verso Simples do Chimarruts. Uma música que toquei e cantei
muito nas primeiras aulas do meu curso. Abro a boca e deixo os
versos tomarem conta do ambiente, acalmando o meu coração.

Sabe, já faz tempo


Que eu queria te falar
Das coisas que trago no peito
Saudade, já não sei se é
A palavra certa para usar
Ainda lembro do seu jeito
Não te trago ouro
Porque ele não entra no céu
E nenhuma riqueza deste mundo
Não te trago flores
Porque elas secam e caem ao chão
Te trago os meus versos simples
Mas que fiz de coração
Como minha vida era boa e eu não sabia. O curso de Música
era um complemento da minha vida. Meu coração aperta só em me
lembrar. Aprendi tanto lá. Essa música, em especial, me faz sorrir ao
me lembrar do professor Eduardo. Desleixado, despojado e
totalmente fã de reggae. Um homem sensacional e com um talento
incrível, tanto para o violão como para o piano, porém, sua paixão
era o violão e nas aulas dele, éramos livres para escolhermos uma
música e tocarmos com a alma, como ele dizia. As aulas técnicas
também eram ótimas, porém, eu sempre tive isso de me expressar
com a música, esse tempo livre para cantar o que o coração pede, é
algo que sempre me deixou feliz.
Respiro fundo e penso em uma que me marcou
profundamente: Cassia Eller – Por enquanto. Toco-a, com a
esperança do para sempre acabar. Não quero morrer apanhando de
um homem como o Edgar. Não quero que minha filha cresça em um
ambiente sem amor como eu cresci, o problema todo é: como eu me
livro disso?
Não tenho saída.
Guardo o violão dentro da capa, escondo-o no fundo do
guarda-roupa e me permito tomar um banho relaxante de banheira.
Aproveitar a casa vazia, o que aqui é raro.
Quando minha mãe ligou, pedindo para passear com Emilly,
pensei em recusar, pois tem horas que sinto vontade de cortar os
laços com aqueles que me jogaram no covil do lobo, no entanto, ao
mesmo tempo, sinto que não posso privar a minha filha do amor da
sua avó. Minha mãe nunca foi amorosa comigo, mas com a Emilly,
ela é.
Pedi para Camila acompanhar as duas, o que a minha mãe
não gostou muito, porém, eu não ligo. Não confio nela para zelar por
Emilly, já que ela não zela nem pela filha que colocou no mundo.
Abro as torneiras para que a banheira se encha e jogo muitos
sais perfumados. Hoje quero curtir a mim mesma. Volto para o
quarto, pego um roupão de seda e entro no banheiro, ficando nua.
Observo o meu corpo e noto que, enfim, as marcas recentes não
estão tão visíveis. Houve um tempo em que ele me batia todos os
dias, por isso, eu dificilmente me curava. Então, ele começou a
patrocinar campanhas políticas, passamos a frequentar lugares
chiques e viver de aparências. Como sou uma boneca de luxo, as
marcas não podiam mais estarem à mostra e, com isso, Edgar
passou a me agredir de forma diferente. Exceto no dia do PUB.
Creio que ele teria me matado, se eu não tivesse desmaiado.
Naquele dia, ele perdeu o controle totalmente. Já pensei muito do
motivo de isso ter acontecido, e só cheguei a uma conclusão: ele
me vendo cantar fora de casa, voltando a ser eu mesma em outro
ambiente, tirou o controle da minha vida de suas mãos. Naquele
momento, ele imaginou que se não mostrasse a mim quem
realmente manda, eu não seria mais dele. E me humilhar e surrar,
foi um jeito de ele me dar um belo de um aviso. Um que eu não
esquecerei nunca.
Entro na água quente e deixo que ela aqueça o meu corpo e
meu coração esquecido. Um que só bate por Emilly. Com os olhos
fechados, meus pensamentos são direcionados ao cara tatuado do
PUB. Tito.
Eu sei que é errado, mas algo me puxa para ele, sem que eu
perceba. Seus olhos me transmitem algo diferente, que eu não sei
explicar. Sei que a preocupação que se referiu no dia do parque é
genuína, que ele sentiria por qualquer pessoa que estivesse em
apuros, mas, caramba, eu nunca senti o frio na barriga que sinto
toda vez que penso nele.
Faço um retrospecto da minha vida e não consigo lembrar
qual foi a última vez que senti meu corpo formigar desse jeito. Ele é
lindo, forte, gostoso e, ao mesmo tempo que suas tatuagens
passam a imagem de um cara mau, seus olhos mostram que ele é
bom. Um homem bom e íntegro diferente do que me casei.
— Espero que esse sorriso seja para mim. — Abro os olhos
no susto, quando escuto a voz de Edgar.
— O que você está fazendo aqui?
— Achei que esta fosse a minha casa. Estou errado?
Afasto-me e vou para o outro lado da banheira. Encolho os
joelhos e abraço o meu corpo para tampar os seios. Faz anos que
ele não me vê nua e isso está me apavorando.
— Sua casa, claro. Eu já estava saindo, de qualquer forma.
Se quiser me esperar no quarto, já me troco e vou para lá.
— Esperar no quarto? O que é isso, querida, somos marido e
mulher, não precisa ter vergonha de mim. Aliás, tive uma ideia
melhor. — Suas mãos alcançam seu cinto e meu corpo todo treme.
— Vamos aproveitar que estamos sozinhos. — Tira os sapatos,
arranca o cinto e começa a desabotoar a camisa.
— Não quero, Edgar. Vou sair. — Faço menção de levantar,
mas ele entra na banheira, ainda vestido com a calça e segura os
meus braços.
— Você quer o que eu quero. E vai ficar quietinha aqui.
— Não vou. Não sou obrigada a fazer o que você quer. Não
estamos mais na escravidão.
— Ah, minha querida, se você fosse a minha escrava, ia ver
como iríamos nos divertir.
— Me solta, você está me machucando.
Seus dedos soltam o meu braço para ir até a braguilha da
calça.
— Você vai me chupar.
—O quê? — pergunto, horrorizada.
— Deixa de ser puritana, Juliana. Vai logo. Estou esperando.
— Abaixa a calça e a cueca e seu membro pula duro para fora.
— Você está louco. — Coloco a mão na boca para evitar que
eu vomite.
Como ele acha que posso sentir desejo por ele, depois de
tudo o que já me fez?
— Você não aprende, não é? Não tem saída. Basta me
obedecer que serei bom para você.
— Você não será bom nem se nascer de novo. Eu tenho nojo
de você.
— Vadia! — Sua mão encontra o meu rosto e o impacto me
joga para a borda da banheira.
Seguro nela. O lado esquerdo do meu rosto lateja e me sinto
um pouco tonta. Tento me levantar, porém, antes que isso aconteça,
suas mãos seguram a minha cintura.
— Já que não quer pelo jeito fácil, eu também gosto do difícil.
— Não, Edgar, por favor. Me solta. — Começo a chorar,
quando seu peito gruda nas minhas costas. — Pela nossa filha —
peço e me debato para sair do seu aperto. Mas sei que não tenho
chance, pois ele é muito maior do que eu.
— Nossa filha? — Solta uma risada sarcástica. — Não, sua
filha. Eu queria um filho homem, mas nem para isso você prestou.
— Por favor... Nãaaaaao — grito, quando seu membro me
invade em uma estocada só. Edgar segura os meus cabelos com
uma mão e a outra segura a minha cabeça, rente à borda da
banheira. E eu fico ali, debruçada, chorando e sofrendo uma das
piores violências que já sofri: o abuso do meu corpo.

Seguro o celular, ainda tremendo, e disco o número que


acabei decorando.
— Alô? Alô, Juliana?
Penso em desligar, afinal, não acho que ele pode me ajudar.
— Juliana, sou eu, Tito. Pode falar.
Algo na sua voz me deixa segura. Ainda tenho dúvidas se
realmente alguém pode me ajudar, mas só em lembrar o horror que
acabei de viver, me faz saber que preciso dar o primeiro passo.
Respiro fundo e falo:
— Tito, você pode me passar o telefone da ONG, que você
mencionou lá no parque?
Que Deus me ajude!
Tito
— Você quer que eu vá com você? — pergunto, quase
arrancando os meus cabelos, ao pensar no que deve ter acontecido
para ela me ligar.
— Não, Tito. Obrigada. Você já fez muito por mim. Tchau.
— Juliana…
— Oi?
Fico em silêncio por alguns segundos, tentando colocar os
meus pensamentos em ordem. Quero tanto perguntar o que
aconteceu, mas creio que esse não é o momento.
— Me dê notícias, por favor.
— Sim — responde, suavemente, e o telefone é desligado.
Caralho. Como vou descobrir o que aconteceu? Como vou ter
certeza de que ela está bem? — penso, andando de um lado para o
outro.
Não consigo chegar a nenhuma ideia. Exceto, pelo telefone,
que eu não posso ligar. Juliana é totalmente inacessível para mim.
Pego a chave da minha moto e saio, sem rumo. Analiso a
possibilidade de passar em frente à sua casa, mas temo por ela. Se
o cara é capaz de quebrar seus ossos, caso me veja e relembre o
dia do PUB, com certeza, descontaria nela.
Eu o mataria antes que isso acontecesse. Essa é a minha
vontade.
Paro em um semáforo e meu olhar é atraído para o letreiro da
academia em que a Luíza trabalha. Respiro aliviado em pensar que
é isso que preciso agora, falar com alguém, antes que eu
enlouqueça.
Estaciono a minha Harley e várias cabeças se viram para me
observar. Não posso negar que esta moto faz um baita sucesso com
a mulherada.
— Olá. Luíza está aqui? — pergunto para a recepcionista.
— Está sim. A aula dela termina em 20 minutos. O senhor
quer aguardar?
— Melhor não. Obrigado. — Queria muito conversar, mas
ficar vinte minutos parado, sem fazer nada, vai me enlouquecer
ainda mais. — Você me faria um favor? Diga a ela que o...
— Tito. — Viro ao som do meu nome e me deparo com Alex.
— E aí, cara? Resolveu mudar de academia?
— Olha que não é uma má ideia — brinco, olhando em volta
e vendo que tudo é de última geração. O problema é que uso a
academia do meu prédio que é totalmente equipada. Treinando
aqui, eu perderia a facilidade. Mas é um caso a se pensar. — Só
que não vim para isso. Estava precisando... Conversar com a Luíza.
— Vem. Vamos tomar um suco, enquanto ela termina a aula.
Concordo, agradeço a garota da recepção e o sigo para
dentro, observando tudo ao redor.
Quando chegamos à lanchonete, quase volto para trás. Estão
todos os novos amigos de Luíza e Alex, e isso me deixa um pouco
desconfortável. Afinal, só os conheço pelos relatos da minha amiga.
— Achei que ia embora, Alex.
— Achei o Tito perdido na recepção. Vocês já o conhecem?
— Depois do meu sinal negativo, Alex faz as apresentações: —
Daniel, Pedro e Artur. Ou, como são conhecidos, os três patetas.
— Claro. E a princesa do pântano está bem aí ao seu lado,
Tito — resmunga Daniel e Artur solta uma estrondosa gargalhada.
— Sentem-se aqui, com a gente. Fizemos uma pausa —
convida Pedro.
— Então, você é o famoso barman tatuado com cara de
mau?
— Famoso? Isso aí fica por sua conta.
A conversa começa a fluir e eu, a ficar um pouco mais
confortável, sinto-me como se estivesse em uma roda de antigos
amigos.
— Como está o PUB? — pergunta Alex.
— Um porre. O gerente anda pior que o normal.
— Certo. Mas aposto que não é por ele essa sua cara.
Abaixo a cabeça e sinto que realmente vou explodir se não
comentar nada. Mesmo que eu não conheça tão bem os outros
caras, não é como se fosse um segredo.
— Não, cara. Você se lembra da menina que o marido
arrastou do PUB?
Alex se endireita na cadeira e me olha, em alerta.
— Sim. O que houve?
— Aí está o maldito problema. Ela me ligou para pedir o
telefone da ONG, mas não me deixou ir com ela. Algo me diz que
aquele monte de merda fez algo muito sério, desta vez.
Passo as mãos pelos cabelos curtos, em sinal de frustração
e, quando vejo que ninguém fala nada, levanto os olhos. A
preocupação que vejo nos olhos deles, tenho certeza de que é
parecida com a minha.
— Se ela decidiu procurar ajuda, já é um grande passo —
comenta Artur.
Encaro-o, tentando entender o motivo de ele dizer isso com
tanta propriedade, e não preciso ficar muito tempo imaginando o
que pode ser, pois logo ele volta a falar.
— Não sei se você sabe, Tito, mas passei por um período
horrível na minha vida. Sofri um acidente, fiquei em uma cadeira de
rodas, e posso dizer que esse foi o maior aprendizado da minha
vida. Me fechei para o mundo e, se não fosse a minha mulher, eu
não sei o que seria de mim. Por isso, eu repito, a menina buscar
ajuda, já é um passo excelente. No meu caso, Lua foi a minha luz,
porém, existem situações que apenas um profissional pode ajudar.
A mãe do meu meio-irmão, Felipe, sofreu por anos e só conseguiu
se libertar quando descobriu que o filho que ela criava, como se
fosse adotado, na verdade, era fruto de uma traição. Apenas assim,
ela conseguiu dar esse passo. Apanhou mais de vinte anos e não
tinha forças para se separar.
— Eu juro que tento, mas não consigo entender — afirmo. —
Ela é linda e jovem. Tem uma vida pela frente. Por que passa os
dias apanhando de um idiota como aquele?
— Não tem como entender. Quando passamos por um
problema, quem está de fora, não entende a dimensão disso. Minha
mãe sofria de consumo compulsório, todos à sua volta, achavam
que isso era apenas o jeito dela e não uma doença, inclusive ela.
Por isso, concordo com o Artur, a garota pedir ajuda, já é um passo
e tanto. — diz Pedro.
— Por mim, você passaria o endereço desse imbecil, e íamos
até lá arrebentar a cara dele. Filho da puta, covarde. Quero ver
enfrentar um homem.
— Calma, Dan. Isso só pioraria a situação dela — o
namorado da minha amiga diz, tentando acalmar o amigo.
E, mesmo diante de um caos acontecendo dentro de mim, eu
sinto vontade de sorrir. Foi uma baita sorte encontrar esses caras,
hoje. Cada um tem um jeito de pensar. Como podem serem tão
amigos e tão diferentes?
— Ela o ama? — questiona Alex.
— Perguntei e ela respondeu que não. Depois questionei a
empregada, ela me respondeu que a filha é o bem mais precioso
dela. Acredito que ela aguenta tudo isso pela menina.
— Ela tem uma filha com esse cara? Puta merda! — De
todos, já percebi que Daniel é o que tem o gênio mais parecido com
o meu.
— Queria ir com ela até a ONG. Que droga! Não consigo
nem falar com ela direito.
— Já pensou que ela pode não estar pronta, para o que você
quer com ela?
— O que eu quero com ela? Como assim? Eu não quero
nada. Só quero ajudar — respondo à pergunta de Pedro.
— Sério? E se ela se separar? Você vai dizer a ela: “Legal,
agora você não é mais uma vítima. Siga a sua vida e seja feliz”?
— Não. Quero dizer, sim. Ah, merda, eu não sei. Ela é linda.
Mas não estou pensando nisso agora. Só quero ajudá-la. Corrói-me
a ideia de ela estar sofrendo neste momento. Na verdade, me dói o
fato de saber que uma mulher apanha a cada minuto.
— Eu posso estar errado, mas acredito que, talvez, Tito, o
que ela precise agora é de alguém que a apoie e ajude, mesmo que
não diretamente. Talvez, chegou a hora de ela ser forte por ela
mesma e deixar de entregar o controle da vida dela para outra
pessoa. Por isso, você a levando até a ONG, não é uma boa ideia,
pois seria o contrário do que ela precisa no momento.
— E Pedro, o santo e conselheiro, está de volta, pessoal.
Todos riem da piada de Daniel. Mas, por incrível que pareça,
as palavras de Pedro começam a fazer total sentido para mim.
Ela precisa que eu fique longe. Mas não tão longe assim.

— E, então, bonitão? Quer fazer algo mais tarde?


— Hoje não, gata. Mas se você me der o seu telefone, eu
posso te ligar. — Entrego o drink à loira gostosa que está na minha
frente e dou uma bela olhada no corpo da mulher.
Se minha cabeça não estivesse tão a mil por hora, com
certeza, a levaria para os fundos do PUB na minha pausa.
O problema é que não vai rolar. Já usei muito o sexo para
aliviar a mente. Hoje, não sei se realmente funcionaria.
Depois da conversa que tive com os caras, Luíza chegou e
disse que foi alguns dias na ONG para ajudar, porém, com as suas
aulas de balé, não estava tendo muito tempo. Me garantiu que iria
ligar para Bia e Clari, as esposas de Dan e Pedro, para saber se
elas souberam de Juliana e depois me ligaria. E quem disse que
consigo esperar?
Já enviei mais de dez mensagens, perguntando se ela está
bem, como foi na ONG e qualquer outra baboseira que a fizesse me
responder. E, até agora, nada.
— Tem certeza? Eu garanto que nós nos divertiríamos muito
esta noite.
— Disso eu não tenho dúvida. — Abro o meu melhor sorriso
safado, afinal, isso faz parte do meu trabalho. O movimento é bem
intenso. No meio da noite, ajudei os seguranças a separar uma
briga e só para ajudar, levei um soco no olho. Nada que tenha me
derrubado, mas está doendo como o inferno. Espero o PUB fechar.
Limpo o balcão. Ajudo os garçons a colocar as cadeiras para cima
e, quando não tem mais com o que enrolar, vou para casa.
Meu organismo já se acostumou a trocar o dia pela noite.
Durmo pouco. Como mal. E logo depois do horário do almoço,
decido dar uma volta.
Subo na minha moto e voou pelas ruas de Bela Vista. Amo
esta cidade. Ao mesmo tempo que pode ter um trânsito caótico das
cidades grandes, tem crianças brincando em praças e adolescentes
roubando beijos nas esquinas.
Estaciono em frente ao salão da minha mãe e meu peito se
enche de orgulho. Ela sempre gostou do ramo da beleza. Tinha um
salão pequeno, perto da casa onde eu cresci. Ver o seu negócio
agora no Centro de Bela Vista, em uma rua badalada e sendo
apontado pelas pessoas como um salão de qualidade, faz o meu
orgulho aumentar ainda mais. Minha mãe nunca foi dessas de
esperar pela sorte. Sempre esteve ao lado do meu pai e batalhando
pelo o que queria. Acho que puxei um pouco a personalidade dela.
— Olá, meu querido — diz ela, assim que atravesso as portas
de vidro.
— Oi, mãe.
— Que bom que você apareceu, estava agora mesmo
falando para o seu pai que... O que é isso no seu rosto, Vitor?
— Hum. Chamou de Vitor... Tá ferrado — brinca meu pai,
aparecendo logo atrás dela.
— Não foi nada, mãe.
— Como não? Seu olho está roxo.
— Fui separar uma briga no PUB ontem e sobrou para mim.
— Esse seu serviço é um perigo.
— Me diga, o que estava falando para o meu pai? —
pergunto, mudando o assunto.
— Vamos para a fazenda no sábado.
— Que bom, mãe. Vai ser bom vocês descansarem um
pouco.
— Nós, Vitor. Todos nós vamos.
— Mãe, eu trabalho.
— Pegue uma folga. Preciso de um final de semana com a
minha família e você vai estar lá. Assim, como a sua irmã. Vocês
dois não têm mais tempo para mim.
Ela começa com o drama e meu pai não aguenta e ri.
— O que foi? Vai ficar do lado do seu filho? Já avisei que não
abrirei o salão no sábado para a nossa viagem, vai ser perfeito.
— Quem ouve você falando assim, pensa que vamos a Paris
e não a 32Km ao Sul.
— Está querendo me irritar?
— De forma alguma, minha rainha.
— E, então, Vitor?
Vixe. Realmente está brava. Não me chamou nenhuma vez
de Tito.
— Eu vou, mãe. Ok. Sábado de manhã estarei na casa de
vocês — rendo-me.
Converso um pouco com os dois. Tomo um café para me
manter acordado, e saio novamente, pensando em comer algo leve
no almoço e tentar descansar, pelo menos, um pouco, antes de
voltar para o PUB.
Acelero, depois de um cruzamento, querendo ganhar
velocidade, mas um semáforo interrompe os meus planos. Paro e
estou distraído, olhando para a faixa de pedestre, quando os
cabelos vermelhos mais lindos que já vi, chamam a minha atenção.
— Não pode ser — murmuro.
Baixo os olhos e a pequena Emilly, de mãos dadas com a sua
mãe, confirma que isso não é uma visão. É realmente a Juliana. Viro
o rosto, para a direção que elas estão indo e vejo que a faixa é
exatamente em frente a uma escola.
Uma buzina estridente me tira dos devaneios e me faz
perceber que o semáforo abriu. Acelero, já dando seta e jogo a moto
para o lado direito da pista, onde há vagas de estacionamento.
Minha esperança é que ela tenha vindo deixar a filha na escola e
volte pelo mesmo caminho que veio.
Coloco a moto no pezinho, tiro o capacete, o coloco no colo,
para me apoiar nele, e fico aguardando.
A escola não parece ser grande, por isso, deduzo ser apenas
para o ensino infantil.
Quantos anos Emilly deve ter? Há quantos anos Juliana é
casada? Será que ela quis o casamento no início? Será que...
— Juliana? — Perco a linha dos meus pensamentos no
momento em que a vejo atravessando a rua.
— Tito? O que faz aqui? — Se aproxima. E seu olhar de
admiração varre o meu corpo, enviando uma sensação ótima para o
meu ego.
Pelo menos, ela deve me achar atraente — penso. Cacete,
que mulherzinha dos infernos eu estou me transformando.
— E, então? — questiona, mais uma vez.
— Estava passando e a vi atravessando a rua. Decidi parar
para conversarmos. Já que você não responde as minhas
mensagens.
Olho atentamente para o seu rosto, para saber se não há
novos hematomas, mas pelo jeito, não. Nem maquiada ela está. O
que a deixa ainda mais linda.
— Não é uma boa ideia. Eu posso estar sendo... Observada.
— Pelo seu motorista? — pergunto, me lembrando do dia do
parque.
— Não. Juarez está a serviço dele. Mesmo assim, tenho
receios.
— Entendo — digo, mesmo sem entender.
Será que o cara é louco a ponto de mandar alguém seguir a
mulher?
— Podemos marcar algum lugar, então?
— Sim. Vou ver e te falo.
— Ok.
Ela faz menção de sair e não resisto. Seguro a sua mão.
Tão macia.
Tão quente.
— Juliana. Você está bem mesmo? Precisa de algo?
Ela olha por alguns segundos para as nossas mãos juntas e
depois seus olhos desviam para os meus. Sinto uma eletricidade
atravessar o meu corpo e meus lábios se curvam.
— Obrigada. Mas estou bem. Acho que há tempos essa
palavra não se enquadra comigo. Obrigada por ter me indicado a
ONG.
— Você ligou?
— Eu fui até lá. E foi ótimo. — Começa a relaxar, mas uma
buzina a assusta e ela puxa a sua mão rapidamente da minha. —
Acho melhor falarmos disso depois, pode ser?
— Claro. Vou esperar a sua ligação.
Vejo seus cabelos vermelhos e longos se balançarem,
enquanto ela caminha e só consigo colocar a moto em movimento
depois de vê-la partir em seu carro.
Como é bom saber que ela está bem.

Durmo apenas duas horas depois do turno de sexta-feira.


Arrumo algumas trocas de roupa, coloco em uma mochila e a
organizo no baú da moto. Eu poderia ir de carro, ou até mesmo com
os meus pais. Mas que graça teria ter uma moto dessa e não viajar
para aproveitar a paisagem? Encontro com eles antes de sairmos e
recebo um sermão da minha mãe, sobre ir devagar.
Curto cada momento da viagem. Paisagens maravilhosas,
que fazem a minha mente ficar em branco. Quando pegamos a
estrada de terra batida, que leva ao lugar que era dos meus avós, a
primeira coisa que penso é: Juliana iria adorar conhecer a fazenda.
O que não faz sentido nenhum, pois não a conheço e não sei do
que ela gosta, ou não gosta.
É, Tito, acho que você realmente está precisando de uns dias
de descanso.
— Caramba, como senti falta daqui — verbalizo os meus
pensamentos, assim que estaciono em frente à grande casa, estilo
colonial. Esta fazenda era dos meus avôs maternos e tem cheiro de
infância. Minha avó fazia o melhor bolinho de chuva do mundo.
Uma pena eles terem falecido. Os médicos disseram que
meu avô morreu do coração, eu digo que foi de tristeza, ele dizia
que seu coração não funcionava sem a esposa. E ele parou de
bater dois meses depois do dela.
— Meu menino. Como você cresceu — diz a Conceição. Uma
senhora baixa, roliça e com uma doçura infinita no coração.
— Oi, Ce. Que saudade. — A envolvo em um abraço
apertado e quase a esmago.
Conceição está conosco há muitos anos. Foi minha babá e
de Rafaelle, ajudou a minha mãe em nossa casa por um bom tempo
e, quando chegou a hora de se aposentar, disse que não queria ficar
sem fazer nada, por isso, mudou-se para fazenda e vive aqui.
— Está mais forte do que da última vez que te vi, garoto. Não
está tomando aquelas porcarias que fazem o músculo crescer não,
né?
— Não. Aqui é malhação mesmo — respondo, gargalhando,
pela sua cara de dúvida.
— Muito bom. Ainda consigo puxar a sua orelha, viu? — Dou
um beijo estralado no seu rosto e amanso a fera. — Essa aqui é a
Dora, está me ajudando. O Venâncio e o Clovis, você já conhece.
Aperto a mão de todos e vejo os olhos da garota brilhando
em minha direção. Eu não me importaria com isso, se minha mãe
não tivesse falado tanto dela no dia em que foi até a minha casa.
Meu medo é que ela tenha feito o mesmo com a pobre
menina e a alimentado com falsas esperanças.
— É um prazer, patrãozinho. — Seu tom me alerta para algo
que eu não consigo entender.
— Vamos entrar? O café está na mesa.
Meus pais vão à frente e caminho ao lado da Rafa. Cada
passo que dou, sinto os olhos da menina em mim e isso me
incomoda mais do que eu gostaria.
Que paz maravilhosa — reflito, ao fechar os olhos e colocar
os braços atrás da cabeça, na cadeira da varanda. O dia está sendo
tranquilo e maravilhoso.
Depois do almoço, farto e delicioso, de Conceição, meus pais
resolveram andar a cavalo e Rafa e eu, nos acomodamos na
varanda, para aproveitar a brisa da tarde.
— Essa é nova. — Minha irmã aponta para a tatuagem que
fiz há algumas semanas, na parte de dentro do bíceps. — “Dum
Spiro Spero”. O que quer dizer?
Olho para a imensidão de grama e montanhas, que se
espalham à nossa frente e me recordo do momento em que escolhi
a frase. Eu não poderia dizer que foi ao acaso. Pensei em Juliana
em cada instante.
— Enquanto respiro, há esperança.
— Que lindo. Você...
— Ai, me desculpe. Como sou desastrada.
A garota nova interrompe a minha irmã quando tropeça, com
uma bandeja de frutas. Espalhando tudo pelo chão.
— Não tem problema — diz Rafa, solícita.
— Vou recolher tudo e em um instante, trago outra.
Quando penso em levantar para ajudá-la, a garota desce
sobre os seus joelhos e suas mãos e fica de quatro, com a bunda
empinada bem na minha frente.
Ela usa um par de botas de cowboy marrom, uma camisa
decotada e o pior é o short que, além de ser curto, é branco, o que
deixa à mostra uma calcinha pequena. Muito pequena.
Olho para Rafaelle, que está tão, ou mais paralisada, que eu.
— Desculpe, mais uma vez.
Ela termina de arrumar as uvas que estavam no chão e sai
caminhando, sorrindo, como se ela não sentisse nada pelo ocorrido.
— Estou sentindo cheiro de periguete no ar — aponta Rafa e
eu prefiro não comentar.
— Eu estive com o marido da sua chefe, Rafa — comento,
preferindo mudar o assunto.
— Jura? Pedro é um homem maravilhoso, além de lindo, com
todo o respeito. — Sorri e esquece totalmente o que acabou de
acontecer. — Ele e Clari formam um casal lindo.
Ela começa a tagarelar sobre o estágio e estou prestando
atenção, até que meu celular vibra.
Juliana: Podemos marcar a nossa conversa, terça-feira,
na ONG?
Pronto. Meu dia acabou de passar de maravilhoso, para
espetacular.
Eu: Estarei lá, sem falta.

— A conversa está maravilhosa, mas eu vou me deitar.


Obrigado por ter me forçado a vir, mãe. Eu realmente estava
precisando de uma pausa. — Dou um beijo em seu rosto, me
despeço do meu pai e volto para dentro da casa.
Está tudo silencioso e acredito que pela hora avançada, tanto
Rafaelle, como os empregados, já devem estar dormindo. Eu sou
péssimo para dormir cedo e acho que puxei isso da minha mãe. O
meu pai a acompanha, pois é louco por ela.
O piso é de madeira e não quero acordar a minha irmã, por
isso, caminho lentamente para o final do corredor, onde fica o meu
quarto.
Abro a porta do meu quarto e, ainda no escuro, arranco a
camiseta. Dou dois passos para dentro e algo na cama me chama a
atenção. Já alerta, caminho de costas e acendo a luz, preparado
para ver um bicho silvestre, que tenha escalado a minha janela. E,
para a minha total surpresa, não tem bicho nenhum.
— Olá, patrãozinho. Vim te servir.
Juliana
— O que você gosta de fazer, Juliana?
— Cantar — digo, sem nem precisar pensar.
A música corre em cada veia do meu corpo.
— E você já pensou em tornar isso uma profissão?
Encaro a psicóloga da ONG e demoro alguns segundos para
dizer a ela o que machuca o meu coração até hoje. Mesmo depois
de cinco longos anos.
— Eu estudava na escola de Música de Bela Vista. Sei tocar
vários instrumentos, mas violão é a minha paixão. Quando estou
com ele nas mãos e canto, parece que o mundo é bom, que a minha
vida é boa.
— Por que a sua vida não é boa, Juliana?
Mordo o lábio inferior, para medir as palavras. Não quero
jorrar todo o meu ódio para uma pessoa que está me ajudando.
Hoje faz uma semana que dei o primeiro passo e vim até a
ONG. Depois do episódio da banheira, fiquei quieta e retraída e
Edgar entendeu isso como sinal de obediência. Para a minha sorte,
ele está cheio de compromissos por conta da campanha eleitoral e
não está parando em casa. E a melhor parte, é que está levando
Juarez junto. Com isso, estou conseguindo deixar Emilly na escola e
vir passar a tarde aqui. Conheci muitas mulheres que sofrem
violências domésticas e, o melhor, conheci algumas que passaram
por isso e hoje estão fortes, independentes e sendo voluntárias aqui
na ONG. Isso me fez enxergar a vida com outros olhos, pela
primeira vez, consegui ver uma luz no final do túnel.
— Há cinco anos fui vendida pelo meu pai, para me casar
com um homem 15 anos mais velho do que eu. Desde então,
tirando o fato que tenho uma filha, minha vida não é boa.
— E por quê? O que ele faz para que seja ruim?
Meu corpo começa a tremer e não consigo proferir as simples
palavras. A cena de dias atrás volta à minha mente e, sem que eu
queira, meu rosto é banhado de lágrimas.
— Está tudo bem. Tome esse copo de água. Fique calma. —
Sua voz é serena e depois de dois goles d’água eu realmente
começo a me acalmar. — Que tal marcarmos mais uma conversa
para semana que vem?
— Acho ótimo — respondo, sorrindo, por ela não me
pressionar.
— Eu só tenho um pedido a te fazer, Juliana.
— Faça.
— Volte a tocar. Não escondida, em algum canto. Toque e
cante para alguém. Mesmo que seja para a sua filha, mas faça isso.
Em minha opinião, isso te fará muito bem, além de deixá-la mais
forte.
Agradeço o seu tempo e caminho para fora da sala
improvisada, na casa que serve como ONG. Sendo sincera, depois
que liguei no número que Tito me deu e peguei o endereço daqui,
nunca imaginei que o lugar fosse tão acolhedor. Senti-me mais à
vontade aqui, do que sinto na casa em que moro. Vir até aqui foi a
melhor escolha que fiz nos últimos anos e tudo isso graças a Tito. E,
como se o meu pensamento o invocasse, o vejo do outro lado do
pátio, onde uma roseira dá a graça necessária para uma conversa.
Como sempre, ele está lindo. Usando uma calça jeans escura,
coturnos pretos e uma jaqueta preta de couro. Lindo.
Respiro fundo, pensando nas palavras de Flávia, a psicóloga,
e sigo em direção a ele.
— Não, Rafa, se eu contar para a nossa mãe, a menina
perde o emprego e não quero prejudicar ninguém.
Só percebo que ele está ao telefone, quando me aproximo.
Ele fica em silêncio, por uns instantes, chutando algumas pedrinhas,
totalmente imerso na conversa.
Penso em dar privacidade a ele, mas quando vou me virar e
voltar para o interior da casa, a sua voz me deixa curiosa.
— Eu não transei com ela, Rafaelle. Cacete, eu já te falei
isso. Não é porque ela estava nua, que eu não sei ter controle sobre
mim. A fiz vestir a roupa e sair do meu quarto.
Ele gira o pescoço e levanta os olhos, encontrando os meus.
Fico completamente sem graça por ser pega escutando a sua
conversa.
— Preciso desligar. Um beijo.
Na minha cabeça, só consigo pensar na garota nua no quarto
dele.
E, por que sinto essa ardência no peito, em saber que ele
mantém uma vida saudável com outras garotas?
— Desculpe por isso. Quando a minha irmã encasqueta com
algo, me liga cinquenta vezes e pega no meu pé como o próprio
diabo. Nunca vi isso. Ainda bem que só tenho uma — conta, abrindo
um sorriso tão lindo, que tenho vontade de colocá-lo em uma
moldura.
O dia que o vi, em cima de uma moto enorme, na porta da
escola de Emy, eu só conseguia pensar na beleza desse cara e o
que o está puxando para mim. Não que ele esteja me querendo
como mulher, mas o tempo que ele está perdendo comigo é uma
incógnita.
Um cara tão lindo como ele, pode ter todas as mulheres do
mundo aos seus pés, não precisa de uma com um mundo de
confusões, pairando sobre a cabeça. E, pelo o que eu escutei nessa
conversa, ele pode ter tantas mulheres, que até escolhe e descarta
as que não quer.
— Está gostando da ONG? — pergunta e eu quase me
escondo de vergonha, ao perceber que não emiti uma palavra sobre
o que ele disse a respeito da irmã. Fiquei perdida em pensamentos
e ele deve estar me achando uma grossa.
— Desculpe, meus pensamentos voaram agora. Sim, estou
gostando. Aliás, preciso te agradecer por isso.
— Você não precisa me agradecer. Vamos dar uma volta? —
pede e eu aceno. Caminhamos cerca de dez passos, antes que ele
pare e se vire de frente para mim. — Me conte, o que aconteceu
aquele dia em que me ligou? Não paro de pensar nisso.
— Não, Tito. Por favor, não me peça isso. Aquele dia merece
ser apagado. A única coisa que eu posso te dizer, é que ele serviu
para eu tentar nadar para a superfície, e essa ONG está sendo
essencial para que o ar entre nos meus pulmões novamente.
Ele me encara durante uns minutos e balança a cabeça
lentamente, como se estivesse analisando as minhas palavras.
— Você prefere campo ou praia?
— O quê? — O encaro, surpresa com a mudança de assunto.
— Esse final de semana fui para a casa que meus pais têm
no campo, e fiquei me perguntando se você gostaria de lá.
Ele estava pensando em mim em um passeio de família?
— Gosto muito de campo. O problema é que meu pai nunca
gostou, por isso, vivíamos mais na cidade. Tem cavalos? Sempre
tive vontade de aprender a montar — conto, sonhadora.
— Tem sim. Um dia te levo lá.
Recomponho-me quando penso no que eu disse. Ele deve
estar me achando uma oferecida.
— E sobre a ONG, como você conheceu? — Volto o assunto
para um campo seguro.
— O namorado da Luíza, uma grande amiga minha, sofreu
um processo de assédio no hospital que ele trabalha. O diretor do
hospital contou sobre a ONG que a esposa administrava e a Luíza,
e outras amigas, vieram até aqui se voluntariar.
— Isso é muito legal da parte delas.
— Você iria gostar de Luíza, ela foi demitida do PUB dias
antes de você se apresentar lá.
Apenas à menção sobre aquela noite, já faz o meu estômago
se revirar e ele parece perceber.
— Desculpe.
Nunca, ninguém conseguiu me ler tão bem, quanto ele.
— Não, tudo bem. É apenas... Difícil relembrar aquele dia.
— Você canta muito bem — diz e sorrio, de cabeça baixa.
— Obrigada. Fazia muito tempo que eu não me apresentava.
Caminhamos mais alguns passos, contornando a casa em
que abriga e apoia tantas pessoas e quando alcançamos os fundos,
as risadas contagiantes chamam a minha atenção.
— Elas parecem bem — comenta Tito, ao meu lado, olhando
para as mulheres.
Uma mulher bonita e elegante está ensinando as outras a se
maquiarem e, a falta de jeito de algumas delas, diverte o grupo.
— Venha, junte-se a nós — ela me chama, mas infelizmente
tenho um trauma de maquiagem. Uso apenas quando preciso
esconder algum machucado.
— Obrigada. Mas não faço uso de maquiagem.
— Se eu tivesse uma pele como essa, eu também não faria
— uma diz, sorrindo, e a alegria dela me contagia.
Nos últimos dias que estive aqui, participei de algumas
reuniões e escutei muitos relatos tristes. E vê-las aqui, rindo,
brincando e voltando a serem as mulheres que foram um dia, me faz
acreditar cada vez mais na salvação da vida.
Acenamos e nos distanciamos do grupo novamente. A casa
tem um imenso quintal que rodeia todo o antigo casarão. Flores e
plantas enfeitam todo o passeio e, quando chegamos à entrada,
decido falar.
— Eu preciso ir agora e voltar antes que deem à minha falta.
— Paro e me viro em sua direção. — Obrigada por ter vindo me
encontrar. Eu precisava te agradecer. Você não sabe como me
ajudou.
— Eu quero ajudar mais. Anotei aqui o meu endereço, o
telefone da minha casa e meu celular, mais uma vez. Me chame
para o que precisar.
— Olha...
— Não recuse, por favor. Eu estou falando sério, Juliana. Não
hesite em me chamar. Para qualquer coisa.
Seu toque em minhas mãos é quente. Ele coloca o papel
dentro delas e as fecha, como para assegurar que eu não devolva o
papel.
— Ok. Vou anotar tudo no meu celular e terei em mente o
que você está dizendo. Você é uma alma muito boa, Tito. Espero
que tenha tudo o que desejar.
— No momento, isso está um pouco difícil de acontecer, mas
eu sou um cara persistente.
Não consigo entender o que ele diz e, seu sorriso enigmático,
não me dá muita margem também.
— Até mais.
Ele caminha até a sua moto e, quando o motor ruge, sinto a
eletricidade atravessar o meu corpo.
Algo não está bem dentro de mim.

— Dona Juliana. Graças a Deus você chegou.


— O que houve, Camila? — Estranho o seu comportamento.
Ela só me chama de dona na frente de Edgar e não acho que ele
voltaria tão cedo. Além de seu carro não estar estacionado na
garagem.
— É que...
— Deixe-nos, serviçal. — A voz do meu pai não é algo que
eu gostaria de ouvir neste momento. Na verdade, eu não gostaria de
ouvi-la, a não ser quando necessário.
Não é que eu não o ame, porque eu amo. Mesmo depois de
tudo. O problema, é que sempre que ele aparece, alguma tragédia
ou desgraça, vem junto.
— Pode deixar, Camila. Obrigada. — Coloco a bolsa no
aparador, caminho até o centro da imensa sala de estar e me sento,
aguardando-o me acompanhar.
— Por isso, ninguém te respeita. Onde já se viu, agradecer
uma serviçal?
— Não é isso, pai. Eu sei que não fui criada assim, mas
aprendi a ter respeito pelas pessoas, algo muito estranho para você,
eu entendo.
— Não me venha com o seu cinismo. Hoje, eu não estou
para brincadeiras.
— Hoje? — Sorrio friamente e o encaro. — Diga-me, o que te
trouxe aqui? Seu amigo está fora, se é isso que você quer.
— Onde você estava, Juliana? Estou te aguardando há
quase uma hora.
— Você deixou de ter direitos a informações da minha vida,
quando me vendeu para o Edgar. — Não sei de onde tiro coragem,
pois, essa é a primeira vez, em anos, que o enfrento.
— Você está muito abusada. Isso aí já é reflexo dessa
candidatura de Edgar. Passa mais tempo fora de casa e você
começa a criar asas — reclama, se levantando e caminhando até o
bar, que o dono da casa mantém abastecido. Serve uma dose de
uísque e o vira de uma vez.
— Estou esperando para saber o que veio fazer aqui —
instigo.
— Você sabe que meus investimentos não andam muito bem.
— Eu não sei de nada, pai. Nem sei que tipo de negócios
você mexe — falo, com sinceridade, pois quando eu era pequena,
meu pai foi demitido do seu emprego de guarda noturno e, com o
dinheiro da rescisão, montou uma pequena mercearia. Foi lá que ele
conheceu Edgar. Ele era dono de uma empresa de alimentos que,
na época, fornecia para o meu pai. Em um piscar de olhos, o
negócio do meu pai dobrou de tamanho e o dinheiro começou entrar
como água, em nossa casa. Ele esbanjava. Vivia em festas e minha
mãe sempre submissa, aceitando tudo o que lhe era ordenado. Do
dia para a noite, a mercearia fechou, meu pai se trancou em casa e
ele achou em sua filha a salvação da sua vida.
— Estou investindo em joias, mas tive uma carga roubada e
isso atrapalhou os meus planos.
— E você quis vir até aqui para dividir o seu sofrimento
comigo? — provoco.
— Juliana, eu estou perdendo a paciência com você.
— Fale de uma vez do que precisa.
— De dinheiro. Quero que você consiga dez mil reais com
Edgar, até semana que vem.
— Como é que é? Você quer que eu peça dinheiro para ele?
Por que não faz isso, já que é um grande amigo seu?
Ele caminha de um lado para o outro na sala, depois de
tomar mais uma dose e, quando me olha, vejo o desespero
estampado em sua face.
— Eu já estou devendo ao seu marido. Assinei algumas
promissórias e iria pagar com a venda dessa carga. Agora, foi tudo
para o ar.
— E eu vou dizer a ele que preciso desse dinheiro para quê?
— Não sei. Invente algo. Sei que você é boa nisso.
— Eu tenho vergonha de você.
Balanço a cabeça e viro-me de costas, caminhando em
direção à escada.
— Você é uma ingrata, isso sim. Depois de tudo o que eu fiz
por você.
— Ingrata? Eu deveria te jogar na cadeia pelo o que você fez,
não te agradecer.
— Cadeia? Duvido. — Solta uma risada maldosa. — Você diz
que não, mas adora a vida de rainha que tem. Dirige um carro do
ano, só tem roupas de marcas no guarda-roupa, come do bom e do
melhor e pode dar à sua filha o que quiser. Acha que estaria em
uma casa luxuosa como essa, seguindo a vida que você queria de
artista? Nem no seu sonho, Juliana.
Encaro o homem que se diz meu pai, mas não acredito que
este título tenha algum peso para ele. Nunca me senti amada,
porém, essa é a primeira vez que sinto que não represento nada
para ele. A não ser a oportunidade de conseguir algum dinheiro.
— Sabe, Sebastião — friso o seu nome, ignorando o jeito que
eu deveria chamá-lo —, a única coisa que eu levaria dessa vida de
merda que eu vivo, é a Emilly, que apesar das circunstâncias, eu
amo de todo o meu coração. Fora isso, eu jogaria todas as roupas,
carro, comida e todo esse luxo a qual você se refere, no lixo. Nada
disso vale a pena, quando não temos felicidade. Mas não adianta
falar disso com você, pois, você não sabe o significado desta
palavra. Agora, por favor, vá embora e não volte. Espero me
encontrar com você, apenas quando tivermos que encenar na frente
de Edgar e seus amigos.
Seguro as lágrimas e começo a subir as escadas. No
entanto, antes que eu atinja o terceiro degrau, meu braço é
segurado.
— Você vai fazer isso para mim, sim. Eu estou mandando e
você vai me obedecer, como sempre obedeceu. Sou seu pai —
berra.
— Pai? — grito em resposta, me voltando para ele. — Você
acha que com vinte e dois anos, eu me casaria com esse homem
asqueroso só porque você mandou?
— Você o fez.
— Não. Não do jeito que você e minha mãe pensam. —
Respiro fundo e penso bem se vale a pena contar o que eu sei.
— Do que você está falando?
— Dois dias antes de você oficializar o noivado com Edgar,
eu vi você recebendo um “amigo” em nossa casa. A minha mãe me
mandou ficar trancada no quarto, mas eu tinha esquecido uma
partitura no escritório e achei que se eu fosse rápida e silenciosa,
não teria problema.
— O que isso tem a ver, Juliana?
— Escutei o cara dizendo que você tinha uma semana para
lhe entregar o dinheiro, senão morreria na frente da sua família. Eu
sabia que o dinheiro do casamento era para isso. E quando você
disse que eu iria me casar, ao invés de fugir, como eu cheguei a
pensar, eu acatei a sua ordem. Não por obediência, mas por amor.
Por medo de que você perdesse a vida.
Seu rosto fica sem cor e ele dá alguns passos para trás,
como se eu o estivesse golpeado.
— Eu abri mão da minha vaga na escola de Música, que eu
tinha batalhado para conseguir. Abri mão do meu sonho, para que
você vivesse. E, mesmo depois da primeira surra de Edgar, ainda no
que seria a minha lua de mel, eu ainda te perdoei. Pois, na minha
cabeça, mesmo não acreditando que você tinha feito isso com a sua
única filha, eu imaginei que tinha sido a única saída rápida que você
pensou.
Ele se mantém em silêncio, me olhando.
— Em todos esses anos em que eu apanhei, quebrei ossos,
fui sexualmente violada, eu me perguntava: por que ele não voltou
para me salvar, como eu fiz com ele? Por que depois de pagar a
dívida, ele não me ajudou a me livrar de Edgar? E sabe quais eram
as minhas respostas? Você e a minha mãe me mandando obedecer
ao meu marido, pois era isso que a minha mãe fazia. Então, eu me
calei. Apanhei, apanhei de novo e faço isso até hoje. Apanho
calada. Por isso, nunca mais repita que eu sou ingrata e que tenho
que te obedecer. Nunca mais farei nada o que o senhor mandar. Eu
acabei com a minha vida em seu favor, acreditando que você me
amava, mas isso nunca existiu, não é mesmo? Esqueça o dinheiro,
esqueça que tem uma filha. Eu te salvei uma vez, não farei de novo.
Não fico na sala para esperar sua resposta. Sinto-me
esgotada.
Entro no meu quarto e corro para o banheiro. Tenho o
cuidado de trancar todas as portas pelas quais eu passo, para evitar
que a cena daquele dia se repita.
Guardei anos isso apenas para mim. Nunca comentei, nem
mesmo com Rebecca. Mas ir até a ONG, está me fazendo falar
mais do que eu deveria. Eu sei que vou sofrer alguma represaria.
Meu pai nunca ficaria calado depois de tudo o que eu disse a ele.
Porém, o fato de ele estar devendo a Edgar, pode ser favorável a
mim, pois uma coisa que Edgar não perdoa é dívida, e a “amizade”
deles, deve estar abalada neste momento.
Respiro fundo, deixando a água lavar o meu corpo e limpar a
sujeira do meu sangue. De hoje em diante, viverei em prol de Emilly.
A única pessoa no mundo que me ama.
— E viveram felizes para sempre. — Fecho o livro e levanto
os olhos, constatando o óbvio, a minha filha já está em um sono
pesado. — Durma com Deus, meu anjinho. — Beijo a sua fronte e a
cubro.
Volto para o meu quarto e a casa está no mais profundo
silêncio. Camila já se recolheu e hoje estou me sentindo mais
segura. Edgar pediu a ela para dormir aqui, pois iria chegar tarde. Já
são quase dez da noite e agradeço pelo dia agitado que a Emilly
teve, e dormiu cedo também. Resolvo pegar o violão e dedilhar
algumas músicas e algo novo acontece em mim, estou com uma
imensa vontade de compor.
Separo um bloco de notas, um lápis e, antes de me sentar na
cama, pego o celular que mantenho escondido. Quem sabe, posso
gravar alguns acordes.
Assim que puxo o pano que esconde o aparelho no criado-
mudo, um pedaço de papel dobrado cai. Nem preciso abrir para
saber que é a caligrafia elegante de Tito, com o seu endereço e
telefone. Começo a desdobrá-lo, o som do telefone fixo me assusta
e deixo o papel cair.
Enrolo meu corpo em um robe e desço rapidamente as
escadas, para que o barulho não acorde Emy ou Camila.
— Alô? — digo, estranhando o DDD da cidade vizinha no
identificador.
— Olá, querida. Como você está?
— Edgar?
— Sim. Quem mais te chamaria de querida?
— Onde você está? — questiono, ao perceber o seu tom
arrastado, que usa todas as vezes que está bêbado.
— Estou em uma reunião. — As risadinhas femininas no
fundo desmentem a sua afirmação.
— Que telefone é esse? — Na verdade, eu não tenho
interesse nenhum em saber, apenas gosto de me assegurar que ele
está o mais longe possível de mim.
— Meu celular descarregou. Quero avisar que passarei a
noite fora. Precisarei ficar na cidade para uma reunião amanhã cedo
e, por isso, só voltarei na próxima noite.
— Tudo bem.
— Boa noite, minha rainha.
Desligo e, mesmo tendo certeza de onde ele está, espero dez
minutos e retorno a ligação.
— Casa da madame Levine, boa noite.
— Desculpe, foi engano.
— Ele não volta? — pergunta Camila, da ponta da escada, e
eu a encaro, balançando a cabeça.
— Está em um bordel na cidade vizinha, para o meu alívio.
— Isso é bom — ela comenta, enquanto eu subo os degraus.
— Vá descansar, Camila — aconselho, dando-lhe um beijo
no rosto.
— Boa noite.
Sigo para o meu quarto, muito mais tranquila e, por um
instante, penso em como seria boa a vida, sem a existência de
Edgar.
Sento-me na cama, coloco o violão no colo e os primeiros
acordes que soam me fazem lembrar da psicóloga da ONG,
perguntando sobre o que eu gosto de fazer.
Pego o papel e rascunho.

“O que seria da minha vida sem ele?


Ela seria boa? Ela seria boa?

Eu sorriria, ou apenas respiraria?

Ainda há uma luz no fim do túnel.


Eu sei que há.

E no dia em que o vento me levar até lá,


Eu encontrarei a paz.
A paz.
A paz
A verdadeira paz.
Termino os meus rabiscos, sorrindo, e sabendo que para isso
virar uma música, ainda tenho muitas noites em claro pensando
nela, mas, por ora, eu estou feliz. Feliz por me permitir sentir a
adrenalina correr pelas minhas veias. Leio novamente e, por um
lampejo, penso em Tito sorrindo, todas as vezes que repito a
palavra paz. Como se ele estivesse lá no fim do túnel, para garantir
que eu sinta essa paz.
“Me chame para qualquer coisa”.
Com as palavras dele em mente, deito-me e adormeço
tranquila, como há muito não acontecia.

— Oi, Becca. Como você está?


— Estou ótima, amiga — diz, me abraçando. — Você disse
que precisava de ajuda, o que posso fazer por você?
Olho para os lados, para ter certeza de que não tem ninguém
próximo, que possa me ouvir e arranco um envelope da bolsa.
— Estou juntando este dinheiro desde que me casei com
Edgar. Ele nunca ligou de soltar notas e mais notas na minha mão,
principalmente, quando estava bêbado e a Emilly precisava de algo.
Ele sempre odiou comprar coisas para ela. E eu usava apenas para
o necessário.
— Uau. Tem uma boa grana aqui.
— Sim. Pelo menos, eu conseguiria me virar por um tempo.
— Está pensando em fugir, Juliana?
— Ainda não. Mas estou frequentando uma ONG e, pela
primeira vez, em anos, estou começando a pensar em algumas
possibilidades.
— Isso é tão bom, Ju. Fico muito feliz por você. Você sabe
que estou no meio do expediente, mas vamos marcar algo, pois
quero saber tudo.
— Sim. Me perdoe por te incomodar no seu serviço.
— Que isso, amiga. Não peça desculpas. É muito bom te ver.
Mas, voltando ao assunto, o que você quer que eu faça com isso?
Que eu guarde?
— Você conseguiria abrir uma conta em seu nome? Preciso
apenas do cartão. Dinheiro vivo pode chamar a atenção de Edgar.
— Entendi. Amanhã terei a manhã livre e vou cuidar disso.
— Nem sei como te agradecer.
— Agradeça fugindo daquela casa e nunca mais sofrendo
nas mãos daquele homem.
— Obrigada, minha amiga. — Dou-lhe um abraço forte e volto
para o meu carro.
Saio do estacionamento do hospital e olho, mais uma vez,
para o endereço na minha mão.
Edgar viajará para o Chile na semana seguinte e ficará uma
semana por lá. Quer me levar junto, mas já comprei um colírio que
me deixará com “conjuntivite” na véspera de sua viagem. E se tem
algo que meu marido odeia, é ficar doente.
“Eu só tenho um pedido a te fazer, Juliana. Volte a tocar. Não
escondida em algum canto. Toque e cante para alguém. Mesmo que
seja para a sua filha, mas faça isso. Em minha opinião, isso te fará
muito bem, além de deixá-la mais forte.”
Acordei hoje pensando nisso e resolvi procurar por Tito, para
pedir ajuda. Sei que será difícil voltar àquele lugar, mas creio que
será necessário. Preciso disso para provar a mim mesma que ainda
sou capaz de fazer algo por mim.
Estaciono duas quadras antes, para que caso alguém veja o
meu carro, não seja um problema. Só espero que ele esteja em
casa.
— Olá, boa tarde. Meu nome é Juliana e eu gostaria de ir ao
apartamento 102, falar com o... Tito. — Coro ao chamá-lo pelo
apelido para o porteiro. Como nunca perguntei o nome real dele?
— Dona Juliana. Você já está liberada para subir.
— Estou? — questiono, com os olhos arregalados.
— Sim, está. Ele deixou anotado aqui: Juliana de cabelos
vermelhos. Acho difícil não ser a senhora.
— Ah! Tudo bem, então, obrigada.
Sigo de elevador até o décimo andar. Saio no corredor e
localizo o número. Respiro fundo e toco a campainha.
— Já vou — ele grita, de algum lugar do apartamento, e levo
a minha mão na boca, mordiscando uma unha, de nervoso.
E se ele não gostar que eu tenha vindo sem avisar? Ele
deixou o meu nome liberado, isso tem que significar alguma coisa,
não tem?
Antes que eu possa ficar mais nervosa, a porta se abre e
minha boca fica seca com a visão.
Tito está enrolado em uma toalha branca na cintura, deixando
o tórax à mostra e não tem como não babar em seu corpo
perfeitamente desenhado.
— Juliana.
— Oi.
— Você...
— Quem é, Tito?
E neste momento queria que um buraco abrisse para eu me
esconder, porque a voz feminina que soa dentro do apartamento, só
me faz crer que ele está de toalha, pois estava no banho com uma
mulher.
— Me desculpe, não queria incomodar. — Me viro para sair
dali o mais rápido possível, com a lição de nunca mais aparecer na
casa de um homem sem ligar antes.
Que vergonha, Juliana. Que vergonha.
Tito
— Juliana, espere — peço, dando um passo para fora do
apartamento e segurando em seu braço.
— Não, Tito. Me desculpa. Não deveria ter vindo sem avisar.
Não quero... incomodar — diz e seu rosto adquire uma tonalidade
vermelha.
— Ah, Oi. Achei que era… Ei, você não é aquela ruiva que
estava no salão, dias atrás? Eu me lembro de você com a… Aí meu
Deus, como é mesmo o nome da médica?
— Rebecca — Juliana responde, com a boca aberta,
encarando Rafaelle.
— Isso. Rebecca, e você é a Juliana, me lembrei. Caramba,
que coincidência você conhecer o meu irmão.
— Irmão? — a ruiva pergunta, olhando de mim para ela,
como se analisasse se aquela informação era verdadeira.
— Sim, essa é a Rafaelle, minha irmã. Eu poderia até fazer
as apresentações, só que já percebi que são desnecessárias —
constato, pensando em como Juliana foi parar no salão da minha
mãe.
— Claro que sim. Já somos íntimas — a louca da minha irmã
diz, e Juliana levanta as sobrancelhas.
— Não ligue para ela, além de ser doida, já estava de saída.
— Eu acabei de chegar — resmunga, e quando semicerro os
meus olhos em sua direção, parece entender o recado. — Ah claro.
É verdade. Eu acabei de chegar, mas já estou de saída. Vou só
pegar a minha bolsa.
— Vamos entrar? — convido e vejo Juliana hesitar.
— Se quiser, peço para a Rafa ficar, assim você pode se
sentir mais à vontade.
— Não, não. Está tudo bem.
Sorrio à suas costas, quando ela passa por mim, por saber
que sou digno de sua confiança e não resisto em aspirar o seu
cheiro doce.
— Bom, Juliana, nos esbarramos por aí, então. Vitor, amanhã
eu passo aqui. Precisamos ir falar com a mamãe.
— Esquece isso. Eu não tenho nada para falar com a nossa
mãe — rebato, mexendo nos cabelos, cansado daquela conversa.
— E não esquece que você está sem roupa, viu? —
murmura, ao me dar um beijo no rosto e isso me faz olhar para
baixo.
Cacete. Nem me lembrei de que não havia me trocado ainda.
— Isso é culpa sua, que fica me atormentando.
Depois que lhe dou um beijo no rosto, Rafa some pelo
corredor e tenho certeza de que amanhã serei bombardeado de
perguntas.
— Me dá só um minuto, por favor. Fique à vontade.
Sigo até o meu quarto e, em dois minutos, estou de volta,
trajando um short e uma camiseta.
— Prontinho. Desculpe por isso, a pirralha da minha da irmã
chegou bem no momento em que eu estava saindo do banho.
— Sei que já falei isso, mas realmente sinto muito por ter
vindo sem avisar. Eu achei que o porteiro iria me anunciar e isso
não aconteceu. Eu não tinha o direito de vir até aqui e invadir a sua
privacidade, me...
— Ei. Está tudo bem, respira. — Sento-me ao seu lado no
sofá e pego em sua mão. — Quando te dei o meu endereço, era
para isso mesmo, para que você pudesse me procurar em qualquer
momento. E foi por isso que deixei a sua entrada anunciada aqui.
Não sabia o seu sobrenome, por essa razão, te descrevi. — Vejo um
leve sorriso surgir e, por algum motivo, isso faz o meu coração
acelerar.
Ainda não consegui entender o que sinto por Juliana, mas
uma coisa é certa, meu coração nunca ficou tão desgovernado
assim perto de outra garota.
— Eu agradeço pela ajuda. Quando tomei coragem para vir
até aqui, não pensei em ligar antes.
— E não precisa ligar. Apareça sempre que quiser ou
precisar. E estou falando muito sério. Entendeu?
Recebo um aceno de concordância e seus olhos se
direcionam para as nossas mãos unidas. Como se acordasse de um
transe, ela se desvencilha gentilmente e resolvo acabar com aquele
silêncio incômodo.
— Que coincidência você conhecer a Rafa. Você é cliente da
minha mãe?
— Rebecca me arrastou para lá, dias atrás, e passamos uma
tarde muito divertida. Não conhecia aquele salão e nunca imaginei
que você fosse filho da dona. Ela é tão simpática — divaga e eu
decido provocá-la.
— Quer dizer que não posso ser filho dela, porque não sou
simpático?
— Não foi isso que eu quis dizer, Vitor.
— Ah! Agora descobriu o meu segredo. — Finjo que recebi
uma flecha no meu coração. — Estou me sentindo um homem
desnudo na sua frente.
Foi apenas uma brincadeira, uma expressão, o problema é
que os olhos de Juliana percorrem o meu corpo e não é fácil abafar
a excitação que acendeu.
— Você quer tomar algo? Um suco? Um café? — pergunto,
depois de um pigarro já caminhando para a cozinha.
— Um copo de água está ótimo.
Preparo a cafeteira para funcionar, pois apesar de já ter
passado do meio-dia, saí tão tarde do PUB, que dormi a manhã toda
e acordei minutos antes da campainha tocar, com a Rafa chegando
para torrar a minha paciência, com o assunto da funcionária da
fazenda.
Ela não entende que a minha mãe não precisa saber de
nada. Depois que encontrei a garota nua em cima da cama, joguei
um lençol para ela e pedi para se cobrir. Tenho que concordar que
ela foi mais ousada do que imaginei, pois mesmo depois de eu pedir
que ela saísse do meu quarto, Dora jogou o lençol para o lado e
veio em minha direção, dizendo que estava disposta a me servir.
A garota é bonita, com um lindo corpo, isso é um fato, e o
mais curioso é que não fiquei nem um pouco tentado a aceitar o que
ela estava oferecendo. Agradeci — educadamente — e disse que
não estava interessado. Ainda pedi que ela desconsiderasse o que
minha mãe fica falando aos quatro ventos, que preciso de uma
mulher para casar. Que era para ela esquecer isso e iríamos fingir
que nada aconteceu. Dora pareceu constrangida por uns segundos
e a merda maior foi que, ao sair do meu quarto, deu de cara com
Rafaelle, que tinha ido bisbilhotar, ao ouvir a minha voz. Desde
aquele dia, ela vem me atormentando para contarmos para a minha
mãe e a menina ser demitida. Ela só não entende que eu não quero
isso. Quero seguir a minha vida, sem pensar na garota que se
enfiou na minha cama.
— Você deve estar se perguntando, o que estou fazendo
aqui?
A voz de Juliana me resgata do meu devaneio e me viro com
o seu copo de água, vendo-a parada na entrada da minha cozinha.
— Obrigada — diz, depois que lhe entrego o copo.
— Não é apenas saudade do seu amigo aqui? — brinco.
— Você sabe que estou me consultando com a psicóloga da
ONG, não sabe?
— Sim.
— Pois bem, ela me disse que eu precisava voltar a tocar,
fazer o que eu amo, sem ser escondida e com medo de alguém me
escutar.
— Ela está certa. Você canta muito bem para não mostrar
isso ao mundo.
— Você é realmente um amigo muito bom — diz, sorrindo de
forma gentil. — Por isso, preciso da sua ajuda. Você conseguiria me
encaixar na apresentação do PUB na semana que vem?
O seu pedido me pega de surpresa. Da última vez que isso
aconteceu, não terminou muito bem.
— Você tem certeza?
Pego duas xícaras, arrumo na bancada da cozinha, despejo o
líquido quente e aponto uma banqueta para ela se sentar.
— Eu preciso disso, Vitor...
— Olha — a interrompo, rindo. — Pode voltar a me chamar
de Tito. As pessoas só me chamam de Vitor quando estão bravas
comigo.
— Tudo bem, Tito. — Sorri e me perco alguns instantes
naquele sorriso. Juliana é uma das mulheres mais bonitas que já
conheci, e ela parece que nem se dá conta disso.
— Assim está bem melhor.
— Então, eu sei que a última vez foi traumática, mas eu
preciso tentar de novo, para provar a mim mesma que ainda sou
capaz.
— E o seu marido?
— Ele estará fora, tratando de negócios.
— E como sabe que ele não irá aparecer? — digo, realmente
preocupado. Agora que conheço Juliana, nenhum segurança
conseguiria me impedir de arrebentar aquele bastardo.
— Ele estará em outro país, desta vez, terei cuidado.
— Não consigo entender o motivo de você ser casada com
aquele homem. — Não consigo segurar a minha língua e, quando
dou por mim, já disse mais do que devia.
— É difícil mesmo de entender. Se eu estivesse no seu lugar,
também não entenderia. Os meus motivos vão além do que você
possa imaginar.
— Tente me explicar — peço, suavemente.
Ela parece pensar sobre o assunto, por um instante, e pelos
seus olhos, consigo ver que ainda não sou tão seu amigo assim,
para que ela fale sobre isso comigo.
— Quem sabe um dia, Tito.
— Ok. Sei ser paciente — digo, com uma piscadinha.
— E, então? Vai me ajudar?
Analiso todos os fatos e resolvo arriscar outra opção. E que
pode ser executada agora.
— Você tem a tarde livre?
— Até às cinco, sim. Depois disso, precisarei buscar Emilly
na escola.
— Perfeito.
— Por quê?
— Confia em mim? — Faço a pergunta sorrindo, mas o fato é
que a resposta é muito importante para mim.
— Confio.
E isso é tudo o que eu preciso ouvir.

Suas pequenas e delicadas mãos apertam o meu abdômen e


diminuo a velocidade, para que ela não sinta tanto medo.
Foi uma briga conseguir trazer Juliana na minha garupa, tive
que apelar para o fato de que seu carro poderia reconhecido e
depois de muito argumentar, ela cedeu, mesmo me contando que
morre de medo de motos e que nunca tinha subido em uma.
Depois de me esperar fazer uma ligação, peguei os
capacetes e seguimos para um bairro afastado em Bela Vista. Diogo
é uma pessoa que gosta de tranquilidade e fiquei muito grato
quando acatou o meu pedido.
— Chegamos — anuncio, encostando ao meio-fio.
— Graças a Deus. Achei que ia morrer.
Eu também — completo em pensamento, achei que morreria
com as mãos dela me apertando. Céus, eu sou um pervertido.
— Não diga isso. Aposto que a adrenalina fez bem para você.
Eu sempre me sinto livre com o vento batendo no meu rosto.
Observo o seu semblante depois de descer da moto e fico
feliz ao notar o pequeno sorriso que ela tenta esconder.
Toco a campainha e logo um homem de estatura média,
coberto de tatuagens e piercing, abre a porta.
— Demorou, mano. — Diogo me recepciona com um abraço
e seus olhos brilham ao ver Juliana. — E essa princesa, quem é?
— Ela é a cantora que te falei.
— Prazer, Juliana, e não faço ideia do que estamos fazendo
aqui — graceja e aceita o aperto de mão que o meu amigo lhe
oferece.
— Sou o Diogo, amigo de longa data desse cara feioso aqui e
produtor musical, ao seu dispor.
— Produtor musical? — questiona, boquiaberta.
— Vamos entrar? Lá dentro te explico o que tenho em mente,
ok? — peço e Diogo nos guia pela sua casa, espaçosa e
bagunçada.
— Você não toma jeito mesmo, não é, Diogo — comento
rindo e faço um gesto para Juliana me entregar o seu capacete.
Coloco-os no sofá, que mais se parece um revisteiro. — Por que
não contrata uma empregada?
— Só se for uma loira peituda. Ah! Desculpe, senhorita, não
estou acostumado a ter mulheres aqui. Pelo menos, não mulheres
distintas, como você.
Para a minha surpresa, Juliana sorri, ao invés de ficar
encabulada.
— Pare de falar da minha bagunça, Tito. Assim vou ficar
envergonhado perto dessa linda moça.
O seguimos, descemos dois lances de escada e os olhos de
Juliana se ampliam assim que alcançamos o porão da casa, onde
fica o estúdio de Diogo.
— Meu Deus. Isso é... Fantástico. — A sua animação faz
Diogo sair ligando todas as luzes e equipamentos.
— Aqui é o lugar em que a mágica acontece, minha linda.
— Tito? — Parada no meio do estúdio, ela se vira para mim
e, mesmo sem completar a pergunta, eu sei o que ela quer saber.
— Você me disse que precisava cantar. Ainda vou ver o que
faço hoje à noite em relação ao PUB. No entanto, me lembrei de
Diogo e pensei que você gostaria de ter um lugar um pouco mais
profissional, para soltar a voz, sem se preocupar com nada e nem
ninguém ao seu redor. Você está segura aqui. — Nossos olhos
estão travados um no outro e uma energia diferente nos rodeia. Vejo
gratidão no seu olhar e o que mais me encanta, é ver o seu sorriso
feliz.
— Você canta por prazer, Juliana? — pergunta meu amigo,
estourando a nossa bolha.
— Fiz três anos de curso na escola de música de Bela Vista.
Tive que parar, devido ao meu... Casamento. Mas creio que estou
enferrujada.
Faço uma nota mental do que ela acabou de contar, para
assim, tentar conhecê-la ainda mais.
— Um músico nunca fica enferrujado, meu bem. Então, você
é casada? — Aproveito que ela está de costas, passando a mão em
um teclado e faço o sinal negativo com a cabeça, para que Diogo
não vá por esse caminho.
— Eu... É, sou.
— Vamos cantar, então. Pode entrar na cabine e me diga que
som quer. Hoje sou todo seu.
— Menos, Diogo, bem menos. — Me jogo na cadeira ao seu
lado e meu amigo ri, sabendo exatamente como está me deixando
puto.
— Você teria um violão, Diogo?
— Claro, minha deusa. Tenho o que você quiser. — Reviro os
olhos e ele ri mais ainda.
Pega o violão, entrega para Juliana e abre a porta da cabine,
para ela se acomodar. Ajuda com o fone e volta para sentar-se ao
meu lado. Aperta um botão e se aproxima do microfone.
— Juliana, o que quiser, basta pedir. O estúdio é todo seu —
assume um tom profissional e os dois conversam em uma
linguagem técnica, que eu não entendo.
— Vocês vão ficar aí? — questiona ela.
— Sua ... Amiga — corrijo, antes de dizer psicóloga perto de
Diogo. — Não disse que você precisava de plateia? Aqui estamos.
— Tudo bem.
Juliana fecha os olhos, se concentrando e quando a sua boca
se abre, o mundo para.

“Deixa eu dizer que te amo.


Deixa eu gostar de você.
Isso me acalma, me acolhe a alma,
Isso me ajuda a viver.”
— Cacete. A menina é demais — murmura Diogo.
— Maravilhosa, não é?
— Você tem algum lance com ela?
— Não, cara. Você não a ouviu dizer que é casada?
— Eu ouvi. Mas vocês dois se olham de uma forma estranha.
E ainda tem esse senso protetor, que você está exalando em todos
os poros.
— Não sei o que está acontecendo comigo. Eu penso nela o
tempo todo. Nunca passei por isso.
— Estar apaixonado é uma merda. Estar apaixonada por uma
mulher casada é merda ao quadrado, meu amigo.
— Apaixonado? Você está louco.
— Não está mais aqui quem falou — Diogo responde, com as
mãos para o alto.
Viro o meu pescoço novamente, observando a ruiva tocar o
violão, como se seus dedos tivessem vida própria. Sua voz doce e
melódica, me faz ter vontade de espancar o filho da puta que a priva
do seu talento.
Ela realmente representa algo para mim, mas o quê?

— Com licença, Salomão, posso entrar?


O gerente olha para cima, resmunga algo com o seu cigarro
pendurado nos lábios e tomo isso como um sim. Adentro o pequeno
escritório no PUB e fico em pé, esperando atenção.
— O que quer, Tito? — fala de forma cansada, apagando o
cigarro e esfregando as mãos no rosto.
— Quero saber sobre as apresentações nas quartas-feiras.
Como vocês estão selecionando?
— Não tem seleção. A pessoa dá o nome e agendamos o
seu horário, por quê?
— Uma conhecida está querendo se apresentar na próxima
semana. Fiquei de pegar informações — digo, dando de ombros,
como se não fosse grande coisa, porém, isso está me deixando
extremamente ansioso.
— Deixe o nome dela com a Karina. — Me dispensa, com um
gesto e eu entendo o recado.
— Tudo bem, então. — Viro-me para sair e, antes de chegar
à porta, ele chama o meu nome.
— Você está mais manso ultimamente, o que está havendo?
Medo de perder o emprego?
— Não. Apesar de amar trabalhar aqui, já recebi algumas
propostas de outros PUBS, então, se quiser me mandar embora, vá
em frente. Apenas parei de discutir com você, pois percebi que não
vale a pena.
— Você é um arrogante mesmo.
— Obrigado, Salomão. — Dou um sorriso falso e saio dali,
antes que jogue em sua cara tudo o que eu penso.
Peguei nojo desse cara desde que começou a trair a sua
esposa, dormindo com a Karina. Ele virou o cachorrinho dela aqui
dentro.
Desço as escadas e vejo Karina se esfregando em um
homem de terno e gravata, que está encostado no balcão. Não
resisto e sigo até lá para provocá-la.
— Ei, Karina. O seu namorado pediu para avisar que está te
esperando no escritório.
— Namorado? Você disse que estava solteira — resmunga o
homem.
— Ah, não. Ela é namorada do gerente do bar. Se ele pegar
você se esfregando nela, com certeza, chutará a sua bunda daqui.
— Tô fora. — Corre para o outro lado do PUB, como uma
flecha.
— Você é um chato, Tito. Tem que vir me atrapalhar bem
agora?
— Quem manda dormir com um velho daquele? Aí tem que
ficar caçando os novinhos clandestinamente. A culpa não é minha.
— O que você quer? — resmunga, jogando os cabelos para o
lado.
— Salomão me disse que você está responsável pelas
apresentações às quartas-feiras. Quero dar um nome para semana
que vem.
— Semana que vem não dá, já tem um artista.
— Se vira. Ou vai querer que o Salomão veja esse vídeo? —
Estico o celular em sua direção, onde gravei o homem de minutos
atrás, deslizando o dedo pelo decote dela.
— Não acredito nisso. — Bufa de raiva. — Fala logo esse
nome e apaga essa droga de vídeo. Ou faço você dar no pé daqui,
igual a sua amiguinha.
— Oh, minha querida. Você fez um favor para a Luíza e,
quanto a mim, digamos que não sou ingênuo e tenho muitas cartas
na manga, mas você pode sempre tentar. Anota aí, Juliana. Voz e
violão.
— Anotado, seu babaca. Agora, me faz um favor: vai para o
inferno.
Sai pisando firme e eu solto uma risada. Adoro provocar
Karina. Ela, além de arrogante, não tem muitos neurônios, fica fácil
me divertir à sua custa.
Eu: Tudo certo para quarta-feira. Você vai arrasar.
Amanhã nos vemos no mesmo lugar, para irmos até Diogo. Até
mais.
Sinto-me animado quando a resposta é instantânea. Juliana
normalmente demora.
Juliana: Eu nem sei como agradecer. Com certeza, irei
amanhã. Cantar naquele estúdio me fez voltar a ver a antiga
Juliana e estou disposta a trazê-la de volta. Custe o que custar.
Até amanhã. Boa noite.
Releio a mensagem e decido que gosto dessa face de
Juliana, firme e decidida. No dia do parque, ela estava acuada e
com medo de tudo ao seu redor. Hoje, no estúdio, vi em seu sorriso
algo novo, como se realmente ela estivesse sendo outra pessoa ali,
e suas facetas estão me intrigando. Me vejo querendo descobrir
sempre mais dela.
— Ei, esse candidato não é aquele que estava envolvido no
esquema de corrupção da merenda escolar?
Levanto os olhos ao ouvir Cléber, o outro barman, comentar e
decido trabalhar, ao invés de ficar divagando sobre Juliana. Amanhã
terei a tarde toda com ela. Levanto os olhos para a tela plana,
grudada na parede, perto do bar, que está passando o jornal da
noite. Pois, nos primeiros dias da semana, a música eletrônica é
apenas na pista. O movimento é mais devagar, e muitos executivos
aparecem apenas para tomar um drink. Acabou virando a política do
PUB passar o jornal.
— Vixe, Cléber, sou péssimo em assuntos de política. Fujo
dessa sujeira toda. — A reportagem é sobre o comício do ex-
vereador, que é candidato a prefeito em Bela Vista.
Vejo o homem apertar algumas mãos e sorrir para as fotos e,
de repente, um homem surge ao lado dele, sorrindo também, e
meus olhos injetam ódio.
— Quem é esse ao lado do candidato? — pergunto ao
Cléber, mas não é necessário ele me responder, a repórter
apresenta: Edgar Gonzales, vice-prefeito e uma referência à
economia de Bela Vista, já que é um empresário bem-sucedido.
Tenho certeza de que é ele. O maldito que arrastou Juliana
pelos cabelos. E a realidade me atinge, ela tem medo dele, pois o
cara, além de ser rico, é influente.
“Ela ama a filha dela mais do que tudo”.
— Droga! — Saco o celular e disco o número do meu pai.
— Vitor?
— Oi, pai. Eu preciso da sua ajuda.
— Claro. O que precisa, meu filho?
— Preciso saber como faço para acabar com a carreira de
um político.
Juliana
“Aposto que a adrenalina fez bem para você. Eu sempre me
sinto livre com o vento batendo no meu rosto”.
No momento, eu não quis assumir, porém, tenho que
concordar, totalmente, com as palavras de Tito. Andar de moto com
ele, tornou-se um dos itens da minha lista de coisas que me fazem
bem.
Sim, eu tenho uma lista. Flávia me pediu para listar dez
coisas que me fazem bem e me surpreendi ao colocar andar de
moto com Tito. Claro que não citei o nome dele no papel, mas
durante a última semana, acordava já ansiando pelo passeio
vespertino em sua garupa.
— Bom dia, Camila.
— Bom dia, Dona Juliana. — Enrijeço o meu corpo, pois, ao
ouvi-la me chamar de dona, já sei que Edgar está por perto. — O
que houve com o seu olho?
— Não sei bem. Ontem estava soltando uma secreção. Hoje
acordou totalmente vermelho. Estou achando que é conjuntivite.
— O quê? — A voz grossa aparece, não sei de onde, e para
ao lado de Camila, me olhando de longe. — Você está doente?
— Isso não é nada — digo, olhando para baixo, fingindo
respeito.
— Como não é nada? Ouvi você dizer que é conjuntivite.
— É apenas uma desconfiança, Edgar. Não deve ser isso —
digo, simulando um aborrecimento.
— Você precisa ir ao médico. Isso é contagioso.
— Não tenho tempo de ir ao médico. As malas já estão
prontas. Pode pedir para Juarez pegar no meu quarto, por favor.
— Não. Você não vai viajar comigo com esse olho horrível.
Imagine se eu pegar isso? Tenho jantares importantes.
Bingo.
— Mas...
— Mas nada. Camila, fique de olho nela e não fique muito
perto. Minha esposa é teimosa demais.
Fecho a cara, como se estivesse sendo contrariada, mas me
calo, em sinal de obediência. Está tudo saindo conforme planejei.
Edgar se despede rapidamente, sem se aproximar de mim, e
parte, levando Juarez com ele.
— Graças a Deus, deu certo — diz Camila.
— Mamãe? — Emilly entra saltitando na cozinha. — Mamãe,
seu olho tá dodói.
— Sim, filha. Mas já, já passa. — Ela vem até mim, segura o
meu rosto com as mãos e deposita vários beijos.
— Vai melhorar, agora.
— Obrigada, minha médica particular.
— Vou pegar os meus brinquedos. Você brinca comigo?
— Claro, minha princesa. Pode ir lá pegar. — Do mesmo jeito
que aparece, Emilly some da minha vista. Não sei a quem essa
menina puxou, para ser tão agitada.
— Está nervosa? — questiona Camila, fazendo voltar à
minha atenção a ela.
— Um pouco. Mas estou mais confiante. Tenho certeza de
que esta apresentação será um marco na minha vida.
— Só tenha, cuidado — pede ela, me servindo uma xicara de
café.
— Pode deixar. Desta vez, nada dará errado — afirmo e torço
para que isso realmente aconteça.
Passo a manhã brincando com a Emilly e não consigo para
de pensar em Tito. Em todas as tardes que ele tem se dedicado a
mim e a minha música, me levando para o estúdio do amigo. Ele é
um amigo ótimo, e a mulher que conseguir entrar naquele coração,
será uma mulher de sorte.
— Emilly, vamos almoçar, para você ir à escola.
— Ah! Mãe. Não quero ir para a escola. Está tão legal aqui.
— Mas precisa ir, mocinha.
Com muito resmungo, arrumo o almoço, dou banho e deixo a
minha gatinha pronta. Ela faz manha, no entanto, adora ir à escola.
— Camila, você tem algum compromisso?
— Agora não, Juliana, por quê?
— Gostaria que você me acompanhasse em um lugar.
— Claro. Vou sim.
Saímos as três, em meu carro, e vejo como é bom saber que
Edgar está muito longe. Eu respiro aliviada, tendo a certeza de que
não o encontrarei por aí.
— O que é aqui? — Camila pergunta, quando estaciono na
avenida movimentada de Bela Vista, após deixar a minha pequena
na escolinha.
— Um salão de beleza. Boa tarde, meu nome é Juliana e eu
liguei hoje cedo.
— Ah, claro, podem me acompanhar. Essas são Tereza e
Marcia. Elas cuidarão de vocês.
— De vocês? — Camila pergunta, assustada, ao meu lado.
— Claro. Você acha que eu ia te trazer para ficar olhando.
Vamos lá.
Resolvi fazer um mimo para mim mesma e Camila não
poderia ficar de fora. Desde que começou a trabalhar para Edgar,
tornou-se uma amiga. Camila é reservada, e tem tanto amor em seu
coração, que eu nem mesma sei o motivo de ela não ter um
namorado. Ela é bonita e vê-la agora, com o cabelo solto e
escovado, me faz crer que ela tem menos idade do que eu
imaginava.
— O que foi? Estou feia? — pergunta, se sentando ao meu
lado, para iniciar a pintura de suas unhas.
— Pelo contrário, nunca te vi tão linda e relaxada.
— Obrigada. Mas linda mesmo está você. Esses cabelos
ruivos seus, ficam ainda mais maravilhosos quando estão soltos.
Sorrio em agradecimento e encaro o meu reflexo no espelho,
da parede do lado contrário. Nunca me orgulhei em ser ruiva, pelo
contrário, sofri muito na escola com apelidos maldosos. E o pior:
nem meu pai e nem a minha mãe são ruivos. Depois que comecei a
entender um pouco mais da vida, questionei a minha mãe, ela disse
que eu havia puxado o meu bisavô. A verdade, é que no meu
íntimo, acredito não ser filha do meu pai, mas me falta coragem em
levar esse assunto adiante e descobrir realmente a verdade.
— Juliana? — Saio do meu devaneio e olho para cima, vendo
a irmã de Tito vindo em minha direção, com a dona do salão.
— Olá. Rafaela, não é?
— Rafaelle.
— Me perdoa. Eu...
— Não tem problema. Que surpresa te encontrar aqui.
— Pois é. Resolvi ficar bonita hoje — brinco. — Essa é
Camila, uma amiga — apresento.
— Prazer, Camila. Essa é a minha mãe, Margot, você deve
se lembrar dela. Mãe, ela é amiga do Tito. Isso não é legal?
Encontramo-nos no apartamento dele, dias atrás. Mãe?
— Desculpe. Eu estava tentando me lembrar de onde eu te
conheço.
— Daqui mesmo, mãe. Ela veio com uma amiga.
— Ah, claro. Fico feliz que você seja amiga do meu filho. Vitor
normalmente não tem amigas. Não da forma convencional, pelo
menos.
— Mãe!
— Desculpe, mas não é uma mentira. — Sorri e vejo que é o
mesmo sorriso de Tito. Não conheço o pai, mas já percebi que ele
puxou a personalidade forte da mãe. — E, então, Juliana, onde
conheceu meu filho?
— Mãe, deixe a menina em paz. Ela nunca mais vai voltar ao
salão.
— Não tem problema — concordo, sorrindo. — Eu me
apresentei no PUB que ele trabalha e no meio de uma confusão, ele
guardou o meu violão. Acabamos virando amigos depois disso.
— Violão? Você é a moça casada?
Abaixo os olhos, ao saber que Tito contou a eles o que
aconteceu aquele dia.
— Mãe — chama a filha, de forma mais enérgica. —
Precisamos ir. — Com licença, Juliana, Camila. Fiquem à vontade.
Para a minha sorte, a manicure já estava finalizando as
minhas unhas e, as da Camila, não demoraram também. Pago com
o cartão de Edgar, assim, ele acha que continuo fazendo apenas as
coisas fúteis que ele gosta que eu faço, e volto para pegar Emilly.
Camila respeita o meu silêncio e não falamos nada.
Na verdade, estou morrendo de vergonha de todos saberem
que saí arrastada do PUB pelos cabelos. E, com isso, a coragem
que eu estava para me apresentar amanhã à noite, se esvai.
Faço tudo no automático e quando chego em casa, a primeira
coisa que faço é enviar uma mensagem para o Tito.
Eu: Cancele a apresentação de amanhã. Por favor.
Coloco o aparelho em cima da cômoda e ele vibra.
Tito: O que aconteceu? Ele não foi viajar?
Eu: Foi. O plano deu certo. O problema é comigo. Eu não
vou conseguir.
Tito: Posso ir até a sua casa, para conversarmos?
Eu: Você está louco? Lógico que não.
Tito: Então, leve Emilly ao cinema. Hoje é a minha folga.
Te espero lá.
Cinema? Ele é louco?
É uma ideia absurda, mas por que eu quero ir? O que o Tito
tem que me faz subir em sua garupa e sair à noite?
— Emilly, meu amor, que tal irmos ao cinema?
— Oba.
— Quer ir, Camila?
— Obrigada, Juliana. Mas se me permitir, gostaria de ir até a
minha casa.
— Não precisa nem pedir. Eu te levo.
— Vá se arrumar, que eu troco a nossa princesa.
Sigo até o meu quarto e tento não me arrumar muito, mas é
impossível. Coloco uma calça jeans escura e um par de botas cano
alto. Na escolha da blusa, opto por um sobretudo preto, por cima de
uma blusa preta de gola alta e sem mangas. Deixo meus cabelos
soltos e passo apenas um batom cor-de-rosa claro.
— Prontas? — pergunto, parada à porta do quarto da Emilly.
— Mamãe, você está linda.
— Você também, meu anjo — elogio, analisando seu vestido
rosa de manga comprida, meia-calça branca e sapatos rosa para
combinar.
— Vamos?
Seguimos para a garagem e, mais uma vez, penso como a
minha vida seria boa se eu não tivesse Edgar nela. Poder ir e vir
onde e quando eu bem entender. Passear com a minha filha, sem
medo de represálias e, principalmente, poder amar alguém e ser
amada.
Paciência, Juliana. Paciência — meu subconsciente diz e eu
resolvo ouvi-lo.

— Que filme vamos ver, mamãe?


— Que tal “A Bailarina em Apuros”? — pergunto, olhando
para as opções e, assim que Emilly aprova, compro dois bilhetes.
Tenho a sensação de estar sendo observada e isso me deixa em
pânico. Até olhar ao redor e ver Tito, parado com as mãos no bolso.
Ele acena e levanta o celular. Entendo o recado e pego o meu.
Tito: Pode entrar, nos vemos lá dentro. Qual o número da
sua poltrona?
Eu: 25B.
Tito: Ok.
— Vamos, mamãe, ainda temos que comprar pipoca.
— Vamos, Emy.
Estou tão nervosa, que deixo o bilhete cair duas vezes na
hora de entregar para o garoto que trabalha no cinema.
Acomodamo-nos e Emilly não perde tempo em começar a comer. As
luzes se apagam e o filme se inicia. Olho para trás algumas vezes e
não consigo relaxar. Tento prestar atenção no filme e quando estou
distraída, sinto uma mão tocar na minha.
Nem mesmo tento afastar, o cheiro de Tito me atinge e
apenas sorrio, antes de me virar para ele.
— Oi — sussurra.
— Oi — respondo e me questiono como ele conseguiu ficar
ainda mais bonito.
— O que houve?
— Com o quê?
— Com o cancelamento da apresentação.
— Ah sim, claro. — Quase me escondo embaixo da poltrona,
com vergonha por ter esquecido o assunto que nos trouxe até aqui.
Esse é o efeito que Tito causa em mim: esquecer-me dos
problemas. — Acho que não saberei lidar com quem puder me
reconhecer e apontar para mim, dizendo: Olha lá, a menina que foi
arrastada pelos cabelos daqui.
— Silêncio, mamãe — pede Emy, com os olhos grudados na
telona.
Tito ri pela bronca e abaixa a voz para falar.
— Não acredito que isso vá acontecer, Juliana. Mas se você
não está confortável, eu entendo. Fora isso, nada mais aconteceu?
Fico em silêncio, me lembrando das palavras de sua mãe e
resolvo não entrar nesse assunto.
— Ju — chama à minha atenção, segurando os meus dedos.
— Você precisa se arriscar mais, sem ficar pensando nas
consequências.
— Se você soubesse de tudo o que eu vivi, saberia que as
“consequências” podem ser tão cruéis e profundas, que é bom
temê-las.
Seus olhos parecem entender o que eu digo.
— Eu tenho uma ideia. Ela envolve em você cantar para as
pessoas, mas não no PUB.
— E onde seria?
— Na ONG.
— Como?
— Apenas confie em mim, ok? Prometo ser algo maravilhoso.
— Eu confio — sussurro e seus olhos travam nos meus.
— Meu Deus, você é tão linda — elogia, com um fio de voz e
fico sem graça, tento abaixar a cabeça, mas seu dedo vai para o
meu queixo. — Não se esconda de mim, Juliana, por favor.
Sinto seu rosto se aproximando e não consigo me mexer. Eu
sei que é malditamente errado, não posso, não devo, mas assim
que os lábios dele encostam-se aos meus, tudo ao redor para.
Não chega a ser um beijo. Nossos lábios nem mesmo se
movimentam, mas a explosão de sentimentos que sinto dentro de
mim, não se compara a nada que senti por um homem até hoje.
— Não! — digo, me distanciando. — Não posso. Sou casada.
— Com um monstro.
— Não interessa se é um monstro... Não posso.
— Mamãe, por que você está falando tanto com esse moço?
— Emilly pergunta, esticando a cabecinha para enxergar Tito.
— Ele é o meu amigo do parque, você se lembra?
— Sim. Oi.
— Oi, princesa. Eu não vou mais atrapalhar vocês, prometo.
Juliana, amanhã eu te ligo, então.
Ele se levanta e sai do cinema, sem olhar para trás. Eu sei
que fiz a coisa certa e ele deveria entender, não ficar bravo comigo.
Droga!
Espero o filme acabar, levo Emilly para lanchar e, assim que
pego a avenida que dá acesso ao meu bairro, vejo pelo retrovisor
que Emilly dormiu. Estaciono, a pego no colo e quando vou subir os
degraus da porta da frente de casa, vejo um envelope pardo jogado.
Aquilo me intriga. Depois de colocar Emilly deitada no sofá, volto
para saber do que se trata. Abro e o ar foge dos meus pulmões.
Várias fotos foram tiradas exatamente no momento em que
Tito me ajuda a colocar o capacete e a subir na moto. Os últimos
dias, deixei meu carro no estacionamento do supermercado e era de
lá que eu saia com o Tito, para a casa do seu amigo. Meu medo era
do meu carro ser rastreado, o que eu não sabia, era que quem
estava sendo rastreada, era eu.
Abro um envelope maior e a raiva toma conta do meu corpo
ao ler o bilhete.
“Seu marido não iria gostar de ver essas fotos. Se você for
boazinha, eu queimo as originais, mas só depende de você, Juliana.
Te darei dois dias para me arrumar o dinheiro que pedi. Beijos do
seu querido pai.”
E agora? O que eu faço?
Tito
— Droga! Eu não devia ter feito isso — resmungo, subindo na
minha moto.
Dou partida e ganho as ruas de Bela Vista. Eu deveria ter me
controlado, mas quando dei por mim, meus lábios já estavam
colados nos dela. E sabe o que é pior? Foi uma das melhores
sensações que já senti. Fiz um esforço sobre-humano para não a
tomar para mim em um beijo avassalador. Fiquei ali apenas
apreciando o toque e, se isso não for a porra de um vício, não sei
mais o que é.
Mudo a rota e sigo para a casa dos meus pais. Não quero
ficar sozinho. Não agora, pelo menos.
— Filho? Que surpresa — diz meu pai, assim que abre a
porta.
— Estão ocupados? Eu sei que está tarde, mas eu
precisava... conversar.
— Sua mãe acabou de colocar comida à mesa. Entre. E você
não precisa justificar sua visita. Aqui é sua casa também,
independente do horário.
Abraço meu pai de lado e deixo o capacete em cima do sofá,
seguindo-o até a sala de jantar. Olho em volta e lembro-me da
minha infância, correndo por aqui e a minha mãe gritando que era
para jogar bola do lado de fora.
Engraçado como a vida passa e não nos damos conta.
Vamos apenas sobrevivendo e somente quando algo começa a
mudar, você se pergunta: o que estou fazendo com a minha vida?
Será que estou no caminho certo? Não sei bem o motivo, mas algo
na minha cabeça grita que preciso traçar um novo caminho. Que
preciso pensar mais no futuro, do que ir apenas vivendo um dia
atrás do outro.
— Vitor! Que surpresa maravilhosa. Sente-se, meu filho. —
Fico alegre com a recepção da minha mãe, mesmo que ela insista
em me chamar de Vitor.
— Não sabia que estaria aqui, pirralha — brinco com a minha
irmã, depois de beijar o rosto de nossa mãe.
— Vim buscar umas roupas e não resisti o cheiro de carne
vindo da cozinha.
Abro um sorriso com o seu comentário. Sei bem como ela se
sente. Eu amo morar sozinho, mas a comida da minha mãe me faz
muita falta. Vou ao lavabo, lavar as minhas mãos, antes de me
sentar e fico pensando nela. Quando a vi chegando no shopping,
com a pequena Emilly, fiquei maravilhado. Juliana não se dá conta,
mas é linda. E uma mãe muito dedicada. Acho que ainda estava sob
o efeito do seu “feitiço” quando selei os nossos lábios. Minha razão
grita que ela só precisa do meu apoio neste momento. O problema é
dizer isso para a parte irracional.

— A comida está uma delícia, Margot. Como sempre —


elogia meu pai, fazendo minha mãe se derreter.
Vejo a interação deles e isso me faz bem. Os dois são como
eternos namorados, sempre se preocupando um com o outro. O
cuidado para que Rafa e eu comamos salada e coisas saudáveis e
isso me faz pensar nos pais de Juliana. Ela é totalmente reservada,
mas durante essa semana em que ensaiou na casa de Diogo,
soltava um, ou outro comentário e sempre os nomes envolvidos
eram de Camila, a mulher que conheci no dia da entrega do violão,
e Emilly. Nunca citou os pais, um irmão e nem mesmo o marido. E o
que Cesar me contou no PUB sobre ela ter sido vendida, não sai da
minha cabeça. Como um pai pode fazer isso? Não é ele que tem
que zelar pela vida e felicidade do filho?
Faço uma promessa silenciosa de que quando for pai, serei o
melhor do mundo.
— Ah, Tito, você não sabe quem foi no salão hoje.
— Quem? — pergunto, distraído, e levo o copo de suco até a
boca.
— Aquela sua amiga ruiva, a Juliana.
O suco voa em todas as direções e enquanto limpo a
bagunça que fiz, com o guardanapo, percebo que a mesa está em
silêncio. Tomo coragem e levanto os olhos, devagar.
— O que aconteceu? — questiona meu pai.
— Eu engasguei.
— Mentira — aponta Rafa. — Ele ficou assim porque contei
que a Juliana foi lá no salão hoje.
— Juliana? A sua Juliana?
Faço uma cara feia para o meu pai, pelo jeito que ele fala e
tenho certeza de que isso não passou despercebido pela
minha mãe.
— Sua Juliana? O que isso significa? A menina não é casada
com aquele traste? Vitor, eu não acredito que... — dispara a minha
mãe, com mil perguntas de uma vez só.
— Foi apenas uma forma de se expressar, Margot — meu pai
tenta consertar, mas minha mãe já está soltando fogo.
— Mãe, ela é casada sim. E não, eu não tenho nada com ela.
Apenas engasguei, pois, fiquei surpreso.
— Se eu fosse você, deixaria para engasgar depois que eu te
contar sobre a conversa que a mamãe teve com ela.
— Rafaelle!
— Qual é, mãe? Até você concordou que foi inconveniente
com a moça.
As duas começam a discutir e penso que a tranquilidade que
vim buscar aqui acabou de ir para o espaço.
— Parem as duas — diz o homem da casa, de forma
enérgica e elas se calam.
— O que vocês conversaram, mãe?
— Não foi nada de mais.
— Mãe!
— Tudo bem, talvez eu tenha ficado um pouco surpresa em
ser ela a tal Juliana.
— E...? — incentiva Rafa.
— Eu apenas perguntei se ela era a sua amiga que é casada.
Só isso.
— Não foi só isso. A garota estava sorridente, quando a
apresentei como sua amiga, primeiro a mãe disse que você não
tinha amiga e na hora que Juliana disse que te conheceu por conta
de um violão que você guardou, achei que a nossa mãe fosse
desmaiar.
— Deve ser por isso, então... — murmuro, afastando o prato.
— O que, meu filho?
— Ela me chamou hoje para cancelar a apresentação no
PUB, que era faria amanhã. Alegou que não ia ter coragem de ser
reconhecida pelas pessoas.
— Você acha que é por minha causa? Eu juro que não fiz por
mal. — A voz tremida da minha mãe faz com que eu me levante e
vá até ela.
— Eu sei que a senhora não fez por mal, mãe. Mas a
situação de Juliana é delicada. Ela deve ter ficado com vergonha de
você saber que ela é casada, pois, assim, saberia sobre o seu
casamento.
— O que tem de errado com o casamento dela? — Rafa
pergunta e fico incomodado por ter contado tanto para os meus
pais.
Eu sei que no dia foi mais um jeito de desabafar, mas imagino
que agora, Juliana deve ter achado que fiquei falando dela para os
outros, como se eu não merecesse a sua confiança.
— O marido dela não é um homem bom, filha — explica meu
pai, do jeito mais vago possível.
— Tito, eu nunca imaginei que era ela — justifica minha mãe.
— Ela é linda. Jovem. Quando ela contou sobre o violão, meu
espanto foi por isso. Juro que não tive a intenção de constrangê-la.
— Eu sei, mãe. Vamos esquecer isso e comer. — Dou mais
um beijo na cabeça dela e volto para o meu lugar.
— Eu odeio segredo — resmunga Rafa.
— Um dia eu te conto. Hoje não, por favor — prometo,
segurando os dedos da minha irmã por cima da mesa.
Ela assente e parece perceber o quanto isso mexe comigo,
pois se cala. Agradeço internamente ao meu pai por puxar um
assunto qualquer e o tópico anterior é esquecido.
— Vamos para o escritório, filho? — chama meu pai, depois
que eu o ajudo a limpar a cozinha.
Aceno, o seguindo.
— Aqui está o que você me pediu ao telefone — diz, me
entregando uma pasta preta.
Abro e vejo várias fotos do tal Edgar Gonzales.
— Vitor — ele me chama, usando o seu tom de advogado —,
você precisa ter a plena certeza de que quer fazer isso. Entrar
nesse meio é algo perigoso, filho. Faz apenas dias que o detetive
está atrás desse homem e se você souber o tanto de falcatrua que
ele já descobriu, vai ficar de queixo caído. Você precisa ter
consciência de que é um ninho de cobras. E você não vai prejudicar
somente ele. Ou seja, será alvo de outras pessoas também.
Analiso as fotos e uma me chama atenção. A luz está baixa,
possivelmente foi tirada de uma câmera pequena e de maneira
discreta, pois a qualidade não é tão boa. Edgar está com uma
mulher no colo e a boca no meio dos seios dela. Pela forma como a
garota está vestida, provavelmente, é um prostíbulo. Agora, eu me
pergunto, como aquele homem tem a mulher que tem, e sai de casa
para pagar por sexo?
— Eu quero continuar, pai. Esse homem está destruindo a
vida, não só da Juliana, mas de uma garotinha inocente, de apenas
quatro anos. Não posso ficar de olho fechados, vendo esse animal
batendo na esposa e ela com medo de denunciar, porque ele deve
ameaçar a sua filha. Imagine, se amanhã chegar até mim a notícia
de que a surra foi tão forte, que ela não resistiu. Não conseguiria
conviver com isso, pai. Não conseguiria — confesso e sinto a mão
dele no meu ombro, em um gesto de conforto.
— Eu entendo o seu lado, Tito. Só temo pela sua vida. Não
concordo também com o que essa garota passa, mas precisamos
ter cautela.
— É verdade. Prometo agir com cuidado. O que mais o
detetive falou?
Começo a ouvir sobre as atividades ilegais que o tal Edgar
participa e, segundo as informações que o detetive passou para o
meu pai, ele nem, ao menos, faz esforços para encobrir os rastros.
Saio da casa dos meus pais, ainda desnorteado pelas fotos.
Fiz meu pai me passar o contato do detetive, pois não quero que ele
fique no meio disso. Se é perigoso, o quero o mais longe possível
desse assunto. Ao contrário do que ele pensa, eu sei me cuidar. E
farei de tudo para destruir aquele homem.

— Já vai — grito e vou cambaleando até a porta.


Ontem custei a dormir, pensando em Juliana, e agora não
são nem 8h da manhã e já tem gente tocando a campainha. Que
inferno.
— Bom dia, meu filho.
— Oi, mãe. — Nem tenho forças para questionar ou dizer o
que ela está fazendo aqui tão cedo. O cheiro do pão fresco que ela
traz nas mãos, já ganhou a minha simpatia.
— Vim tomar café da manhã com você.
— Me dá cinco minutos, por favor. — Beijo seu rosto e volto
para o quarto.
Troco de roupa, jogo uma água no rosto e, assim que volto
para a sala, a mesa já está posta, com um cheiro de café delicioso.
Aproveito o mimo e comemos em silêncio. Eu sei que ela veio
até aqui para falar sobre algo, mas deixarei que ela fale no momento
em que se sentir confortável.
— Você é muito mais organizado do que eu imaginei que
fosse — comenta, com o olhar perdido.
— Como?
— Quando era adolescente, você era terrível. Deixava tudo
jogado e não sabia me dizer onde estava, nem mesmo, a sua
escova de dente. Quando se mudou, achei que ia surtar em dois
minutos e voltar para a nossa casa. E o inevitável aconteceu, você
amadureceu. Estou muito orgulhosa em ver sua casa sempre
limpinha e organizada assim. Fica mais fácil de arrumar uma esposa
com essa característica.
Solto uma gargalhada gostosa.
— Eu sabia que tinham muitos elogios em um comentário só.
Mãe, quando você vai entender que não quero casar. Minha vida
está ótima do jeito que está.
— Duvido. Se estivesse tão bem consigo mesmo, não estaria
com essa ruga no meio da testa.
Reviro os olhos e como mais um pedaço do pão de coco que
ela trouxe. Divino.
— Ainda vou demorar muito para ter rugas, querida mamãe
— brinco.
— Você não está ficando mais novo, viu, menino.?
— Eu nem quero. Voltar a ser adolescente, é algo,
definitivamente, fora de questão.
— Tito, meu filho, ontem fiquei pensando no que fiz àquela
menina e...
Está aí o assunto real que a trouxe aqui, tão cedo.
— Mãe, você não fez nada. Não deveria ter ficado pensando
ou se preocupando com isso. Rafaelle adora enfeitar as coisas.
Juliana vai ficar bem.
— Eu sei, eu sei. O problema é que sei que errei. Soube no
momento em que as palavras saíram da minha boca. Eu não quis
julgá-la. Nunca faria isso. Foi algo muito cruel da minha parte.
— Verei Juliana hoje e digo a ela que foi um mal-entendido,
ok?
— Você vai vê-la hoje?
— Sim. Ela desistiu de se apresentar hoje à noite no PUB e
eu dei a ideia de cantar para as mulheres da ONG. Caramba,
falando nisso, preciso ligar para a coordenadora de lá. Quero
montar uns instrumentos e fazer uma surpresa para Juliana.
— Eu... eu posso ir?
Levanto os olhos e encaro a mulher do outro lado da mesa.
Não sei se é uma boa ideia, porém, não imagino que Juliana esteja
com raiva da minha mãe, por conta do seu comentário.
— Claro, mãe. Me deixe apenas confirmar com o pessoal da
ONG e te mando os detalhes, ok?
— Está me dispensando? — brinca, se levantando e
pegando a bolsa.
— Nunca, Dona Margot.
— Estou brincando. Preciso ir para o salão. Vou deixar a
minha tarde livre para a apresentação.
— Mãe, você não precisa ir...
— Preciso sim, meu filho.
Recebo um beijo de despedida e, assim que a vejo entrar no
elevador, o meu dia realmente inicia.
Ligo para Diogo, que concorda prontamente em trazer todo o
material necessário para um show pequeno e acústico. Encontro o
número da ONG que Alex me passou e me preparo para convencer
quem quer que seja a responsável pelo local.
Infelizmente, a coordenadora não estava e só consegui a
autorização para o show depois de falar com Flávia, a psicóloga.
— Muito obrigado, Flávia. Tenho certeza de que isso vai
ajudar muito Juliana.
— Por nada, Vitor. Fico feliz em saber que ela tem um amigo
como você, com quem pode contar. Às 16h, então, esperamos
vocês.
— Até mais — despeço-me e sei que ainda falta alguma
coisa que preciso fazer, o problema é que não consigo me lembrar.
Eu: Oi, Ju. Bom dia. Tudo certo para a apresentação na
ONG hoje?
Deixo o celular na mesa, enquanto lavo a pequena louça do
café. Coloco roupa na máquina e quando ouço o sinal de
mensagem do celular, levanto a cabeça tão rápido, que bato no
armário da lavanderia.
— Merda! — reclamo, voltando para a sala.
Juliana: Oi, Tito. Não sei se vai rolar. Aconteceu um
problema.
Eu: Não!!! Você precisa ir, justamente para esquecer-se
dos problemas. Diz que vai, por favor.
Tenho total consciência que isso está ridículo e que pareço
um garoto de cinco anos de idade. Mas não posso deixá-la desistir.
Eu sei que vai fazer bem a ela. Não vou deixar que ela se afaste,
por conta da burrada que fiz ontem no cinema.
Eu: Juro manter as minhas mãos (e os meus lábios)
muito longe de você. Me perdoe por ontem. Apenas, não
consegui resistir.
Juliana: Você me convenceu. Irei hoje falar com a
psicóloga e levo meu violão. Quem sabe, se tiver alguém lá
disposto a ouvir alguma música, eu topo.
Eu: Perfeito. Estarei na primeira fila. Às 16h está bom?
Juliana: Sim. Até lá.
Odeio quando ela economiza palavras. Porém vou me
contentar com o pouco que tenho dela.
Eu: Leve Camila e Emilly. Vai ser bom. Ah! Chame
também aquela sua amiga médica. Olhar para rostos familiares
fará você relaxar.
Juliana: Farei isso. Obrigada... Por tudo.
Sorrio para a tela e me sinto bem. Bem e feliz. Esta tarde tem
que ser perfeita para ela e vou garantir que seja. Juliana merece.
Juliana
— Você vai se apresentar, Ju? Isso é ótimo.
— Não é bem uma apresentação, Becca. Mas cantarei para
as mulheres que frequentam a ONG.
— Estou muito feliz por você e, é claro, que estarei lá. Pode
contar comigo.
— Obrigada, minha amiga. — Desligo e volto a olhar para as
fotos.
— Você acha que ele está blefando? — questiona Camila,
sentando-se ao meu lado e me oferecendo uma xícara de chá.
— Sinceramente, eu não sei. Mas estou com medo de pagar
para ver.
Analiso todas as imagens e vejo que em nenhuma delas
aparece Tito. Então, ou a pessoa que tirou estava disposta em
simplesmente me ferrar, ou o lugar que ela estava escondida era
muito ruim. São cinco fotografias no total. Em quatro delas, eu estou
em pé, com o capacete na mão ao lado do meu carro. Sempre de
cabeça erguida, olhando para os lados. Apenas na última é que
estou subindo na moto, mas a foto foi tirada de lado. Tito está de
capacete e a placa da moto não dá para ver.
Isso faz com que eu suspire, aliviada. Nunca me perdoaria se
algo acontecesse com ele por minha causa.
— O bom é que você tem alguns dias, antes do seu marido
voltar para casa.
— Sim. Vou esquecer esse assunto, por ora, e pensar nas
músicas que vou tocar hoje. Como disse o Tito, preciso disso para
me esquecer dos problemas. E ele está certo.
— Ele estará lá?
— Sim, Camila. Disse que estará na primeira fila. — Sorrio
com a nossa troca de mensagens. Com o Tito, volto a ser a
adolescente que eu era antes da minha vida mergulhar no inferno.
— Isso é muito bom. Vamos nos arrumar, então?
Concordo com a cabeça e a ajudo a levar as xícaras para a
pia. Aviso Emilly que hoje ela não irá para a escola e quando digo
que vamos passear, ela logo se anima.
Espero que dê tudo certo.

— Caramba! Será que tem algum evento aqui hoje e eu não


sabia? — comento, assim que estaciono em frente à casa que
funciona a ONG.
— O que tem de errado? — Camila pergunta, logo que salta
do carro e abre a porta traseira para soltar o cinto da cadeirinha de
Emilly.
— Esses carros. Nunca vi a ONG tão movimentada. — E isso
é uma verdade.
— Às vezes, é um dia especial do mês e você ainda não
sabe.
— Pode ser. — Dou de ombros, encerrando a conversa.
Pego o meu violão, seguro a mão da Emilly e sigo com as
duas pela porta lateral. A casa é grande e muito bonita. A primeira
coisa que Camila comenta é sobre o jardim. Ela é louca por flores.
— Mamãe, o que viemos fazer aqui?
— Eu preciso conversar com uma amiga, minha princesa. E
depois vou tocar e cantar algumas músicas.
— Oba! Eu adoro quando você canta.
Emilly pode não se dar conta disso, mas saber que ela gosta
que eu cante, faz com que a minha gana de dar a volta por cima e
sair da vida daquele traste, seja um propósito inabalável.
— Olha, mãe, o tio do cinema.
Camila me olha, com um sorriso maroto, e sei que estou
corando. Infelizmente. Não consigo passar vergonha sem sentir o
meu rosto queimar.
Desvio os olhos dela e vejo Tito caminhando em nossa
direção.
— Olá, mulheres lindas.
— Eu ainda não sou uma mulher — diz Emilly, com um
sorrisinho fácil, e fico me perguntando, como ele conseguiu isso
dela? Foram poucos encontros e já ganhou a minha pequena assim.
Pois, normalmente, ela é fechada ao mundo exterior.
— Então, vou refazer a minha frase: olá para as mulheres e
para a garotinha mais linda do mundo. Acertei, agora?
— Sim!
— Como vai, Tito? Você se lembra da Camila?
— Claro. Tudo bem?
Os dois trocam um aperto de mão e Camila parece ainda
mais encantada por ele.
— Você sabe o motivo de estar tão cheio de carros aqui
hoje? — pergunto a ele, realmente intrigada, pois até agora não vi
ninguém, além dele.
— Ah! Isso você vai ter que descobrir. Vamos?
Penso em argumentar, o que é impossível, pois ele já está
alguns passos à frente com Emilly ao seu lado, tagarelando como
sempre.
A casa é dividida em duas “alas” Na frente, ficam os ateliês
de artesanato, costura e culinária, onde voluntárias, ajudam
mulheres que passam por violência doméstica, traumas ou qualquer
tipo de problemas que possam deixar a vida da pessoa estagnada.
Por isso, a ONG tenta mostrar um caminho para que ela volte a
trabalhar, ou apenas para sentir-se útil novamente. Depois disso,
tem um pátio central pequeno, com alguns bancos. E a segunda ala,
com várias salinhas, com profissionais como: advogadas; médicas;
psicólogas; terapeutas, assessorando todas da melhor forma
possível. Ainda tenho vontade de passar com a advogada, porém,
ainda não tive coragem.
— O que... — Não consigo falar. Chegamos aos fundos da
casa, onde abriga várias roseiras e mais bancos para que as
mulheres tenham ali um lugar para relaxar e meus olhos estão
arregalados com tudo o que vejo.
— Eu falei que você teria um show. Então, nos dê o prazer de
ouvir a sua voz — diz Tito, de modo teatral, apontando para o
pequeno palco montado.
Vejo Diogo ao lado da caixa de som e não consigo decidir se
rio ou choro. Reconheço vários rostos das mulheres que frequentam
a ONG e Flávia, minha psicóloga, mas o que me surpreende, é ver a
mãe, a irmã e um senhor que posso apostar ser o pai do homem ao
meu lado.
— Como você conseguiu montar tudo isso? Nos falamos
ontem à noite — sussurro, ainda parada no mesmo lugar.
— Eu sou um homem rápido — brinca. — Estou ansioso para
ouvir as músicas que você escolheu.
Com o ânimo renovado, caminho até o palco e abraço Diogo.
— Imagine. Eu que agradeço por poder ouvir um talento
como você — diz ele, assim que eu o agradeço.
— Oi, Juliana — diz a dona do salão, mãe do Tito. — Eu
queria me desculpar por ontem.
— Olá, Dona Margot. Não tem motivo para isso. Pode ficar
tranquila — digo, com sinceridade. A culpa é de Edgar por me
arrastar em um ambiente público. Não do Tito, por ter contado aos
pais.
— Mesmo assim. Não fui agradável como deveria, ainda mais
depois do meu filho falar tantas coisas boas ao seu respeito. Espero
que tenhamos tempo para conversar e poder tirar essa má
impressão.
— Será um prazer conversar com a senhora. E obrigada por
estar aqui. — Ela pega na minha mão e sinto um toque
reconfortante ali.
— O prazer é meu. E saiba que gostei tanto da ONG, que já
conversei com a coordenadora, virei uma vez por mês com todo o
pessoal do salão e daremos cursos as mulheres daqui.
— Isso é maravilhoso.
— Sim, é. Vou deixar você subir e encantar mais ainda as
pessoas. Meu petitito me garantiu que sua voz é magnífica.
— Mãe. Pare de me envergonhar. — Olho para o lado e vejo
Tito se aproximando com o homem, que eu acho ser o seu pai, ao
lado.
— Prazer, Juliana. Sou Orlando e vim te resgatar.
— Até parece — diz a mulher, revirando os olhos e sorrio ao
ver o seu esposo passar os braços por seus ombros e beijá-la a
face.
Um casal que se ama verdadeiramente, isso é um fato.
— Com licença — peço, assim que Tito faz um sinal para o
palco.
O lugar é pequeno e não muito alto. Me ajeito no banco e
Diogo pisca para mim, arrumando o microfone. Olho ao redor e fico
impressionada ao ver as pessoas espalhadas por ali. Vejo Rebecca
chegando e aceno, sorrindo, em sua direção. Tiro meu violão da
capa e vejo que minha mão está tremendo.
Respira. Inspira.
— Gostaria de agradecer a presença de todos. Vocês não
fazem ideia de como isso é importante para mim.
Todos aplaudem e meus olhos grudam nos olhos de Tito. Ele
se afasta, encostando-se à uma parede. Cruza os braços e sorri.
Neste momento, perco-me em um sentimento diferente. Algo novo.
E é por isso que escolho iniciar com a música que me faz pensar
nele o tempo todo.
Começo a dedilhar as notas de Pra Você Guardei o Amor do
Nando Reis e mesmo sabendo que é algo impossível, cada palavra
é cantada com o coração para ele. Tito, o meu sopro de esperança.

Pra você guardei o amor que nunca soube dar


O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar
E repartir
Pra você guardei o amor
Que sempre quis mostrar
O amor que vive em mim vem visitar
Sorrir, vem colorir solar
Vem esquentar
E permitir
Quem acolher o que ele têm e traz
Quem entender o que ele diz
No giz do gesto o jeito pronto
Do piscar dos cílios
Que o convite do silêncio
Exibe em cada olhar
Guardei
Sem ter porque
Nem por razão
Ou coisa outra qualquer
Além de não saber como fazer
Pra ter um jeito meu de me mostrar
Achei
Vendo em você
E explicação nenhuma isso requer
Se o coração bater forte e arder
No fogo o gelo vai queimar
Pra você guardei o amor
Que aprendi vendo os meus pais
O amor que tive e recebi
E hoje posso dar livre e feliz
Céu cheiro e ar na cor que arco-íris
Risca ao levitar
Vou nascer de novo
Lápis, edifício, tevere, ponte
Desenhar no seu quadril
Meus lábios beijam signos feito sinos
Trilho a infância, terço o berço
Do seu lar
Guardei
Sem ter porque
Nem por razão
Ou coisa outra qualquer
Além de não saber como fazer
Pra ter um jeito meu de me mostrar
Achei
Vendo em você
Explicação nenhuma isso requer
Se o coração bater forte e arder
No fogo o gelo vai queimar

( Pra Você Guardei o Amor - Nando Reis)

— Juliana. Juliana! — Acordo desorientada pelos berros e


acho que estou no meio de um pesadelo. Pois quem grita é Edgar e,
pelo o que eu saiba, ele só volta amanhã, pela manhã.
Sento-me na cama e a casa está em silêncio. Acho que
realmente foi a minha mente me pregando uma peça. Pois está tudo
tão maravilhoso nos últimos dias, que fico com medo de acordar
desse sonho. Ainda mais, depois da minha apresentação de dois
dias atrás. Sinto-me uma nova mulher.
— JULIANA.
Paro de sorrir ao ouvir o som se aproximando e me levanto
rapidamente da cama. Por que será que ele está em casa, gritando
em plena madrugada? Deve estar bêbado.
Corro para a porta a fim de fazê-lo parar de gritar, pois,
Camila foi dormir na sua casa hoje, e se Emilly acordar, virá
correndo para o meu quarto.
— Aí está você, sua vadia — diz, ao abrir a porta do quarto,
em um estrondo.
— Edgar? O que está acontecendo?
— Como pôde me trair dessa forma? — brada e o primeiro
tapa faz com que eu caia, batendo a cabeça no criado-mudo. Solto
um grito agudo pela dor e, no mesmo instante, sinto o líquido grosso
escorrendo pela lateral do meu rosto.
— Você está louco, Edgar? Do que está falando? — Tento
me levantar, mas ele é mais rápido do que eu. Me prende no chão,
segurando o meu pescoço e, na tentativa de tentar me soltar,
levanto uma perna, acertando sua coxa.
O reflexo vem rápido e seu punho atinge em cheio o meu
olho direito, me fazendo perder o sentido por alguns instantes.
— Não vai desmaiar não, sua cadela. Então, quer dizer que
era tudo uma mentira? Hein? Me responde. — Me sacode tanto, que
não consigo mais reagir.
— Eu... Não sei do que você está falando — consigo
sussurrar.
— Você e a sua amiguinha, filha da puta, mentiram para mim.
Você não é infértil, como me fizeram acreditar cinco anos atrás. Sua
puta.
Grita na minha cara e ouço a porta abrir.
— Mamãe.
— Emilly, vai para o seu quarto — digo, em pânico.
— Mamãe, você tá dodói. — Sua voz se aproxima e começo
a me debater, para sair do seu aperto. Preciso proteger a minha
filha.
— Quieta — grita e Emilly corre para segurar o braço, que ele
levanta, para bater em mim. Só que, infelizmente, Edgar não tem
um pingo de controle. E, ao tentar soltar o aperto de Emilly, ele faz
um movimento e minha filha voa longe, gritando de dor, assim que
cai no chão.
— Seu desgraçado. — A ira cresce em mim, como nunca
havia acontecido antes e, sem que ele possa reagir, puxo o abajur
que está ao alcance da minha mão e acerto sua cabeça, com toda
força que eu possuo.
Isso é o suficiente para ele cair para o lado. E sei que se eu
deixá-lo, vai se levantar novamente e me bater ainda mais. No
entanto, isso nunca mais vai acontecer. Esse inferno de vida que vivi
até hoje, acaba aqui.
Levanto o abajur e bato mais duas vezes na sua cabeça, até
fazer um corte grande em sua testa.
— Corre, meu anjinho. Vá até o seu quarto e pegue um
casaco. — Tento controlar a minha voz trêmula e sei que a cena
ficará gravada na cabeça da minha filha. Mas foi preciso.
Com o pé, mexo em Edgar e vejo que está inconsciente.
Respirando, mas inconsciente.
Corro para o meu closet, pego uma pequena mala e jogo
apenas coisas essenciais. Pego a minha bolsa, me visto com um
casaco grosso e corro para o quarto de Emilly. Vejo que ela
conseguiu entender a situação. Pois está com a sua mochila da
escola cheia de coisas.
— Rápido, amor. Precisamos sair, rápido.
Descemos as escadas e quando chego na porta, vejo uma
sombra entrando na minha frente.
— Me deixe passar, Juarez. Por tudo que é mais sagrado —
peço, à beira de lágrimas.
Ele parece analisar a situação, mas quando olha para o rosto
de Emilly e vê o sangue em seu supercílio, dá um passo para o lado
e abaixa a cabeça.
— Obrigada.
— Não me agradeça, senhora. Eu nem mesmo te vi.
Entendo o seu recado e fujo o mais rápido possível dali.
Prendo rapidamente o cinto de Emilly e dirijo, sem rumo, pensando:
o que vou fazer da minha vida agora?
Quer saber, não importa. O que importa é que nunca mais
voltarei para essa casa, nem que eu tenha que fugir para o Japão.
— Mamãe, ele nunca mais vai nos machucar? — pergunta a
voz infantil do banco de trás e isso corta o meu coração.
Sempre apanhei calada, mas ele ter machucado a Emilly, eu
não aceito. Não aceito.
— Não, meu amor. Estamos livres. E nunca mais esse
homem tocará em nenhuma de nós duas.
Tito
— Você errou de novo.
Respiro fundo, antes de me virar em direção a voz chata de
Karina.
— O que você disse?
— Você errou o drink de novo. O pedido era um Dry Martini,
você fez Gim-tônica
— Você anotou Gim — afirmo, bravo, enquanto procuro pelo
papel em que ela deixou os últimos pedidos.
— Vai ser descontado do seu salário — determina Salomão e
eu fecho os olhos, sabendo que essa vaca fez isso de propósito.
— Eu não errei. Mas não vou morrer de fome com esse
desconto. Vão em frente — brado, jogando o pano que eu estava
passando no balcão. — Vou sair para a minha pausa — justifico e
saio em direção à porta dos fundos.
O lugar está tão cheio hoje, que nem a minha pausa eu iria
tirar, só que depois dessa, não vou ficar me ferrando para tomar
esporro.
— Calma aí, companheiro — fala Elder, saindo da escuridão
do estacionamento, quando chuto uma lata de lixo.
— Não te vi aí.
— O que aconteceu?
— A vaca da Karina aconteceu.
— Mais uma vez? Ainda é por causa do show?
Faço que não com a cabeça, porque até falar dessa garota,
está insuportável para mim. Ela passou os últimos dois dias me
infernizando por causa de Juliana ter faltado ao show, na quarta-
feira. Até o Salomão encheu o meu saco, pois disse que perdeu
clientes com o palco vazio.
Não me importo com eles, não mesmo. Nunca que o show no
PUB traria a mesma felicidade que vi no rosto de Juliana, como
aconteceu na ONG. Lá ela foi realmente apreciada e a aplaudiram
em pé, da forma como ela merece. Flávia disse até que ela deve
repetir o feito mais vezes, pois fará bem ao seu coração.
E, então, eu me perguntei: o que eu faço com o meu
coração? Quando ela abriu a boca e cantou “Pra você guardei o
amor” quase subi no palco e a beijei.
Porra de vida complicada. Se eu tinha alguma dúvida que a
queria como mulher, naquele momento tudo ficou claro.
— Cara, por que você não mete o pé daqui? Você é um ótimo
barman, para ficar tomando patada o tempo todo daquela vaca, que
se acha dona do lugar.
— Sei lá, Elder. Acho que me acostumei com isso aqui —
conto, apontando para o bar em um todo.
Faz anos que trabalho neste PUB, antes mesmo de Salomão
assumir a gerência. Sempre gostei do ambiente, do clima, da
música, das pessoas e, principalmente, do meu trabalho.
— Tenho certeza de que se você procurar outro bar, ou até
mesmo pensar em abrir algo seu, será um sucesso. Se quiser me
levar junto, estou dentro.
— Vou ficar com isso em mente — falo, de forma irônica,
desdenhando da ideia de cara, porém, se pensar a fundo, fico me
perguntando que, talvez, procurar um novo emprego, seja algo bom.
— Deu meu horário. Vou voltar, mas não esquece disso. Vou
adorar te chamar de chefe — brinca e eu lhe dou um tapa na nuca,
antes de ele se levantar.
Eu, dono de um bar, será? Fico divagando ali no escuro,
sozinho, até que escuto passos apressados em minha direção.
— Tito, preciso que você volte. O movimento está grande.

— Meu horário não acabou ainda — reclamo para o gerente


mais chato da face da terra.
— Eu estou mandando voltar, ou quer me desobedecer e ir
para o olho da rua? — grita e acaba com o último fio de paciência
que eu estava.
— Me demite, então, porra — grito, ficando em pé e
passando uns bons 10 centímetros dele. — Estou ficando cansado
dessa merda toda. E garanto para você, que a hora que eu decidir
falar como dono para pedir as minhas contas, sua cabeça estará a
prêmio — ameaço e rumo em direção ao banheiro.
Preciso me acalmar, antes de voltar para o salão, os clientes
não merecem que eu desconte neles a minha indignação com esse
gerente imbecil, que resolveu virar um merda de um homem, depois
de levar para cama a garçonete que tem a metade da sua idade.
Como tudo está caminhando e de repente vira de cabeça
para baixo?
Até conhecer Juliana, eu estava satisfeito com a minha vida.
Solteiro, sem me importar com ninguém, fora a minha família e
minha amiga Luíza. O serviço sempre foi o que eu quis fazer da
vida. Ou seja, tudo estava no lugar.
Agora não. Parece que estou buscando algo sólido e
concreto na minha vida e uma placa de neon pisca na minha frente,
dizendo que nada está no lugar certo.
Será que devo dar ouvidos ao Elder?
Nunca fui uma pessoa de ficar pensando nas coisas, eu
apenas ajo. Por isso, dou um “pause” nos meus pensamentos e
volto para o meu balcão, disposto a ignorar Salomão, Karina e Cia.
A noite se arrasta. Karina não para de me encher o saco e
fica ainda mais irritada em não obter resposta. Dá para perceber de
longe que ela quer me ver perdendo o controle. Não darei esse
gostinho para ela. Não mesmo.
— Seu imbecil. — Levanto os olhos do copo que estou
preparando e vejo Karina empurrando Elder pelos ombros.
— Eu não fiz nada, sua louca.
— Não fez nada mesmo. Você nunca faz nada. Enrola a noite
toda e...
— Elder? — chamo e ele me olha. — Leve este pedido, por
favor.
— Eu estou falando com ele.
— Mesa 5, Elder. Por favor.
— Você está se achando superior a mim, para me dar
ordens?
Finjo que não escuto e, mais uma vez, agradeço Elder e me
viro para arrumar as bebidas nas prateleiras.
— Escuta aqui, Tito — começa a falar, invadindo o meu
ambiente de trabalho.
Olho primeiro para as suas unhas vermelhas em volta do
meu braço, depois levanto os olhos, bem devagar, até encarar os
seus.
— Escuta aqui você — minha voz sai baixa e ameaçadora —,
tire essas mãos imundas de mim, agora, e não me dirija mais a
palavra. Você não é minha chefe e eu não devo nem mesmo
respeito a você. Agora… Vaza.
Creio que ela se assustou, pois dá um passo para trás, com
os olhos arregalados, e depois, some das minhas vistas, pelo resto
da noite.
Pelo menos, algo bom.

— Boa noite — cumprimento o porteiro, assim que passo


pela recepção. O elevador estava demorando muito da garagem,
resolvi usar a escada mesmo.
— Boa noite, rapaz.
Aceno e sigo o meu caminho. Trabalhei até menos do que
trabalho em dias tumultuados, porém, sinto-me exausto. Vejo que o
elevador está no térreo e aproveito a deixa para chegar mais rápido
ao meu apartamento.
O relógio marca 3h40 da manhã e nada de sono. Troco a
roupa por algo mais confortável. Sintonizo a TV em um filme
qualquer e deixo as cenas passarem diante dos meus olhos, mesmo
que o meu cérebro não as registre.
A ideia de Elder começa a martelar e, de repente, torna-se a
melhor motivação que tive nos últimos tempos. Ter algo meu seria
muito legal.
Um bar mais tranquilo, com música ao vivo todos os dias. E,
pensar nisso, me faz imaginar Juliana em cima do palco, cantando.
Será? Mas com que capital? Minha mente começa a
trabalhar a mil por hora. Puxo o celular e faço uma pesquisa rápida
em galpões que estão para locação, próximo a minha casa. Vejo
vários valores e, com isso tenho, um ponto de partida.
Talvez — penso — se eu juntar as minhas economias e
vender o meu carro, consigo alugar um lugar e deixar do jeito que
eu quero. Dá para girar um capital no início e investir para render
cada vez mais.
Dá até para… — meus pensamentos são interrompidos pela
campainha. E no primeiro momento, penso que é alucinação, mas
logo depois, o som se repete.
Levanto rapidamente e, quando abro a porta, o meu coração
acelera.
Juliana está com a filha nos braços e as duas parecem
estar… machucadas.
— Juliana?
— Desculpe, Tito, eu não sei mais a quem pedir ajuda, eu…
nós… precisamos...
— Entre. Entre — interrompo a sua explicação, nervoso e
incoerente, e conduzo as duas para dentro do apartamento. Respiro
fundo, para estar calmo, quando souber o que aquele desgraçado
fez para as duas estarem na minha porta, em plena madrugada e,
mesmo assim, não sair atrás dele.
— O que houve? — questiono e Emilly se agarra ainda mais
na mãe, escondendo o rosto na curva do seu pescoço.
— Nós precisamos de ajuda e eu não tenho outra pessoa a
recorrer, que não seja você, mas se não puder... Eu vou entender.
Juro que vou. Nunca tive a intenção de te arrastar para os meus
problemas, só que…
— Ei, calma. Sente-se aqui. — Indico o sofá e me ajoelho na
frente delas. — Oi, princesa. Quer ver um desenho?
— Não, tio. Eu tô com sono — reclama, me olhando e agora
vejo um band-aid em cima do olho esquerdo e uma vermelhidão na
bochecha, logo abaixo.
Meu sangue ferve ao imaginar que aquele animal tocou nesta
criança. E, mais uma vez, respiro fundo. Juliana me procurou para
ampará-las, não para agir como um ogro.
— Que tal uma cama quentinha, então?
— Não queremos atrapalhar, Tito. Eu só…
— Juliana, eu sempre falei sério em relação a estar aqui por
vocês, para qualquer coisa. Acho que o que vocês precisam agora é
dormir um pouco. Amanhã conversaremos, ok?
Ela olha para a filha e balança a cabeça, acatando a minha
sugestão. Quando se levanta novamente, percebo uma mancha de
sangue em seus cabelos vermelhos.
— Você está machucada? Precisa de um médico?
— Não. Foi um corte superficial. Bati no criado-mudo. O
sangue já estacou.
Minha língua coça para saber da história toda, mas sei que
ainda não é o momento.
— Você quer que eu estacione o seu carro na garagem? —
pergunto, enquanto pego a mochila que ela tirou do braço e colocou
no chão.
— Não. Estou sem carro. — A encaro, com uma interrogação
no rosto, e ela dá de ombros. — Deixei tudo o que me liga a ele,
para trás.
Concordo e faço um gesto com a mão, apontando para o
corredor, elas me seguem até a última porta.
— Troquei os lençóis hoje, então, podem se sentir à vontade.
Aqui tem toalhas, cobertores, travesseiros e… Vocês precisam de
mais alguma coisa? — pergunto, tirando a atenção de dentro do
guarda-roupa.
— Aqui é o seu quarto?
— É sim.
— E você vai dormir onde?
— Na verdade, eu não estava planejando dormir. Acabei de
chegar do PUB e meu sono fica um pouco bagunçado. Podem ficar
à vontade, de verdade. Nesta porta, fica o banheiro. Aqui está o
controle da TV. E, caso precise de mais alguma coisa, basta me
chamar. Estarei a uma porta de distância. — Termino de falar,
estranhando a minha euforia. Deve ser o fato de nunca ter recebido
hóspedes aqui. Deve ser isso.
— Eu nem sei como agradecer.
— Não precisa. Descanse. E você também, Emy. Uma
princesa precisa de boas horas de sono.
— Eu gosto quando você me chama de princesa — confessa,
com um sorriso tímido.
— É isso que você é. — Passo a mão pela maçã do rosto,
que não está machucada, e a proximidade com Juliana me faz ficar
ainda mais ligado.
Sei que elas precisam descansar, por isso, me despeço e
sigo para fora.
Passo pelo quarto, que era para ser de hóspedes, e me
envergonho de ver tanta tralha.
É o meu quarto da bagunça. E contrasta com o que minha
mãe elogiou esta semana. Aqui tem caixas do meu tempo do
colégio, que nunca mais mexi. Um baixo que tocava na
adolescência. Pilhas de revistas sobre motos e mais algumas coisas
que não mexo há anos.
Tomo a decisão de amanhã mesmo dar um fim no que não
tem utilidade e arrumar este quarto. Não faço ideia do que houve e
quanto tempo elas ficarão. Mas o fato de Juliana ter me procurado,
fez um bem enorme para o meu coração. E o mais importante, eu as
quero aqui… Por tempo indeterminado.

— Bom dia.
Viro-me ao som doce de sua voz e sei que meu dia realmente
será bom.
— Bom dia. Conseguiu descansar?
— Sim. Muito obrigada. Não imaginei que depois de tudo, eu
dormiria. Mas apaguei, assim que me deitei para fazer Emilly dormir.
— Quer café? — pergunto, levantando a xícara que estou
tomando.
— Seria ótimo.
— Sente-se. Eu já volto. — Aponto para mesa que tenho na
sacada e desencosto do parapeito, onde estava perdido em
pensamentos, desde que o dia amanheceu.
Nem, ao menos, sei que horas são. Não consegui dormir.
Pensei em mil possibilidades para Juliana, enfim, dar um basta na
vida abusiva que leva e todas fizeram o meu ódio por aquele verme
aumentar.
Pego a cafeteira e uma nova xícara e volto para a sacada.
Coloco em sua frente e entro novamente para buscar algumas
bolachas e pão.
Depois que organizo a mesa, sento-me em sua frente e,
como seu cabelo está em um coque, consigo analisar seu rosto
mais de perto. Ela tem marcas vermelhas por todo o pescoço e
lateral do seu rosto, onde vi o sangue ontem à noite, está um pouco
roxo.
— Te devo uma explicação — diz, suavemente, depois de
provar o café.
— Você não me deve nada.
— Você é um anjo. Mas sim, eu preciso te contar o que
houve — afirma, mesmo com as suas mãos trêmulas, segurando a
xícara. — Ele... voltou mais cedo. — Assinto e permaneço quieto,
com medo de falar algo que atrapalhe o seu desabafo. — Eu estava
dormindo e acordei com os seus gritos. Nós não dormimos no
mesmo quarto há anos, e em outra situação, eu poderia ter trancado
a porta e fingido que não tinha ouvido nada.
— E por que não fez isso? — questiono, depois de um
tempo, para quebrar o silêncio que se instaurou.
— Dei folga à Camila, na noite passada. E não quis que ele
acordasse Emilly. — Abre um sorriso amargo e completa: — o
problema é que não fui rápida o suficiente. Ele invadiu o meu quarto
e, logo depois, Emy apareceu.
— Ele sempre aparece do nada, gritando e batendo em
vocês? Essa é a forma como ele age?
— Dessa vez… Ele descobriu um segredo e não sei como
isso aconteceu.
— Qual segredo? — arrisco perguntar, pois sei que se ela
não quisesse contar, teria omitido esse detalhe.
Anos como barman me fez conhecer, pelo menos, um pouco,
sobre as pessoas e o modo que elas desabafam. E, neste momento,
eu acredito que ela precisa colocar tudo para fora.
— Quando estava grávida, conheci Rebecca.
— A médica que estava no seu show, na ONG?
— Sim, ela mesma. Durante a gravidez, ela percebeu as
agressões.
— Meu Deus! Ele te batia, mesmo grávida? — Vejo que me
exaltei e puxo o ar com mais calma. — Desculpe.
— Não tem problema. E a resposta é sim. Ele me batia
enquanto estava grávida. Ele nunca aceitou fato de ter uma filha, em
vez de um filho.
— Isso não é desculpa — resmungo, com o maxilar tenso.
— Eu sei. Bem. O fato é que Rebecca também sabia sobre…
as relações sexuais forçadas e me ajudou a mentir sobre a
impossibilidade de uma nova gravidez, quando Emilly nasceu.
Fecho os punhos com força e mantenho as minhas mãos
embaixo da mesa, para que Juliana não veja a minha raiva. Neste
momento, eu gostaria de sair e quebrar cada osso do corpo desse
imbecil.
— Qual o motivo de você ter se casado, afinal? Você estava
grávida dele?
— Não. Nunca cogitei nem beijar aquele homem, antes de
ser forçada a me casar. Meu pai precisava pagar uma dívida e me
vendeu para ele.
— Eu realmente não entendo — confesso. — Isso é um pai?
— Ah, Tito. Você não sabe nem um terço do que meu pai é
capaz. Meu pai cada dia se mostra mais ganancioso e egoísta. Esse
segredo me ajudou a manter o casamento, por todos esses anos, de
forma um pouco menos insuportável. O que me intriga, é como
Edgar descobriu sobre a mentira. Somente Rebecca e eu sabíamos.
— O que ele disse?
— Chegou gritando. Disse que ia me matar, foi quando Emilly
entrou. — A vejo engolir com dificuldade.
— Ele bateu na Emilly?
— Tentou tirá-la do seu braço e a jogou longe. Foi quando
perdi a cabeça e bati nele com o abajur.
— E…
— Mamãe?
Levantamos juntos ao ouvir Emilly da sala e Juliana corre ao
seu encontro.
Fico da porta, olhando a interação das duas e sorrio ao ver
Emilly sorrindo também. Bom saber que aquele infeliz não
conseguiu destruir a pureza e a felicidade dela.
— Bom dia, princesa.
— Bom dia, tio. Posso ver TV?
— Claro. Eu só não sei o canal dos desenhos. Tome o
controle, você vai ter que procurar, pode ser?
Emy sacode a cabeça, em afirmação, e Juliana pergunta se
pode fazer um pouco de leite para a filha.
— Não precisa pedir. Vem aqui, vou te mostrar onde fica
tudo. Pode se servir a hora que quiser.
Olho os armários e constato que preciso ir ao supermercado.
Não há nada saudável em casa. Mas, pelo menos, tem leite e
achocolatado.
— Olha, mamãe. Papai está na TV.
Juliana me olha, pálida, e voltamos para a sala, olhando para
o dedo apontado de Emilly.
Pego o controle e aumento o volume.
— Eu só peço que as encontrem. Levaram as duas mulheres
da minha vida e sem elas, não sou ninguém.
A repórter assume depois que Edgar começa a chorar e
relata que a polícia está atrás dos “bandidos” que invadiram a casa
do vice-prefeito do candidato Danilo e que, após atacarem o
empresário, o que resultou em seis pontos na testa, levaram a sua
esposa e sua filha. O carro foi abandonado no centro de Bela vista,
em uma rua deserta. A polícia investiga o paradeiro das duas.
“Qualquer informação que tenha sobre Juliana e Emilly
Gonzalez, ligue para o 190” — finaliza a repórter e me viro para
encarar Juliana.
— O porteiro — ela murmura.
— O quê?
— O porteiro me viu. Ele pode ligar. Você tem que falar com
ele — pede, em pânico.
— Ok. Respira fundo. Vou descer e ver se ele ainda está no
turno. Fica calma, eu vou cuidar de tudo.
Dou um beijo em sua testa e, enquanto faço o caminho até a
portaria, só consigo pensar: esse homem é pior do que eu
imaginava. Mas o que ele não sabe, é que agora Juliana e Emilly
não estão mais sozinhas. Ele que se prepare.
Juliana
— Ju? — diz Rebecca, correndo em minha direção. — Eu
achei que nunca mais fosse te ver. O que houve? Você está bem?
Onde está Emilly?
— Calma, minha amiga. Sente-se aqui. — A conduzo até o
sofá no canto, na sala de descanso do salão da Dona Margot.
No início, achei a ideia dele absurdo, porém, depois vi que
fazia sentido, caso Rebecca estivesse sendo seguida. E, de maneira
nenhuma, eu deixaria que o apartamento dele fosse descoberto. Por
isso, seu pai me trouxe até aqui e ele ficou cuidando de Emilly. Sei
que ela está em segurança.
— Toma este copo de água — entrego a ela e, como sempre,
sinto que Rebecca faz parte da minha família de coração, pois ela
se preocupa realmente comigo.
— Fiquei tão preocupada, Ju. Achei que você tinha sido
sequestrada, mas depois que aquele imbecil apareceu lá em casa, à
sua procura, vi que era uma mentira. O meu medo era que ele
tivesse te feito algo sério.
— Eu sabia que ele te procuraria — murmuro, sentindo o
coração doer. Rebecca só entrou nessa bagunça por minha causa.
— Me perdoe, Becca, nunca quis te prejudicar.
— Pare já com isso. Quero que me explique tudo. O que
houve para você rachar a cabeça dele?
— Como você sabe que fui eu? — indago, a olhando,
assustada.
— Deduzi. Se a história do sequestro era mentira, já imaginei
que não existia nenhum ladrão. Você não sairia daquela casa, se
não derrubasse aquele homem. Eu saquei na hora que vi o curativo
enorme. Agora, me conta, minha amiga, é pra valer essa ruptura?
— Eu espero que seja. O problema é que estou com medo
dessa história envolvendo a polícia. O meu plano era conseguir
pegar o dinheiro com você e sumir do mapa, mas tudo desandou.
— Como você foi parar na cama do tatuado? — diz, abrindo o
seu sorriso malicioso.
— Engraçadinha. — Empurro seu corpo com o meu ombro e
sorrio. Tito arrumou um jeito de ligar para Rebecca no hospital, para
pedir a ela que viesse aqui e eu tinha certeza de que ela entenderia
tudo errado. — Não parei na cama dele. Na verdade, parei, mas
sem ele na cama.
— Vi uma decepção aí no seu rosto?
— Deixa de ser boba. Eu saí de casa, desnorteada. O Tito
era o único que nunca entraria no “radar” de Edgar. Era madrugada
e eu só precisava de uma cama para Emilly e um refúgio. Ele foi um
homem muito bom em me ajudar. Não queria arrastá-lo para os
meus problemas, mas não tive escolha.
— Ele terá a minha gratidão eterna. — Segura a minha
perna, séria, e isso me faz lembrar sobre o assunto que a trouxe até
aqui.
Viro meu corpo em sua direção, cruzando os pés abaixo no
meu corpo e a encaro.
— Rebecca, quando Edgar foi até o seu apartamento, o que
ele disse?
Minha amiga termina de tomar a água do copo, joga o cabelo
loiro para o lado e repete o meu gesto, tirando os sapatos de salto
alto e cruzando os pés em cima do sofá. Becca não se dá conta da
beleza e elegância que tem. Só arruma cafajeste na vida. Torço
muito para a minha amiga encontrar um grande amor.
Olha só, quem sou eu para falar em grande amor.
— Queria saber de você — começa ela, me resgatando dos
meus pensamentos. — E me ameaçou que se eu não falasse onde
você estava escondida, ia me jogar dentro de um rio. Eu estava
nervosa, porque tinha visto a reportagem na TV e o acusei de ter te
entregado para os bandidos, de ter te matado e que isso tudo era
teatro. Gritei para que ele dissesse onde você estava e o que ele
tinha feito com você. Acho que ele percebeu o meu desespero e
depois que o segurança olhou o meu apartamento, foi embora,
dizendo que voltaria em breve, pois naquele momento, não tinha
tempo para lidar comigo.
— Ele descobriu, Becca.
— Sobre a ONG? Por isso, você saiu de casa?
— Pior. Sobre a minha infertilidade.
— O quê? — grita, se colocando em pé. — Como?
— Não sei. Ele voltou mais cedo de viagem, entrou em casa,
gritando, falando que ia me matar. Estou com medo de que ele vá
atrás de você, Rebecca.
— Minha amiga, você sofreu na mão desse homem, por
anos, se o fato de ele descobrir essa mentira a ajudou a se libertar,
eu não me importo. Já te disse, não tenho medo dele.
— Deveria ter. Você sabe do que aquele monstro é capaz.
— Quero que foque apenas em você, Juliana. Não se
preocupe comigo, eu sei me cuidar. Falando em você, aqui está o
seu cartão. — Abre a sua bolsa e me estende o cartão. — Coloquei
todo o dinheiro que me deu aí e acrescentei uma parte também.
Você poderá ficar confortável, por um tempo.
— Não era para ter feito isso.
— Pode parar. Você é a minha melhor amiga e para te ver
longe e livre daquele homem, vendo até o meu apartamento, se
necessário.
— Você não existe, sabia? — Nos abraçamos e é impossível
não se emocionar. Tenho muita sorte em encontrar pessoas
maravilhosas, como ela, no caminho dessa vida difícil que levo.
— Com licença. — Ouço a voz vinda da porta e me separo de
Rebecca, secando os olhos, discretamente. — Eu não queria
atrapalhar, mas vim contar uma ideia que tive — explica-se Margot.
Seus olhos estão brilhando e, assim que as mãos saem
detrás de suas costas, eu sorrio junto.
— Uma peruca loira?
— Não é perfeito? Eu sei que você não ficará andando pela
rua, porém, nunca é demais se preocupar com a sua segurança.
O carinho e a preocupação que ela tem me tratado, desde
que chegou ao apartamento do filho, hoje mais cedo, não tem como
explicar. Estou realmente me sentindo acolhida e fazendo parte de
algo diferente, que eu nunca imaginei na vida.
— Você gostou? — pergunta, cautelosa. — Se você quiser,
eu posso...
— Está ótima, Margot. Obrigada.
— Você vai ficar um arraso loira, Ju. Vamos parecer irmãs —
brinca Rebecca.
— Sente-se aqui, Juliana. Vamos só fazer um teste. —
Margot puxa uma cadeira e se posiciona atrás dela.
Sento-me de frente para Becca, que levanta os dois dedos,
em um sinal positivo, para que eu me entregue nesta aventura.
As mãos de Margot seguram o meu longo cabelo, para fazer
um coque, e eu fecho os olhos, me permitindo pensar nos últimos
três dias. Não está fácil manter Emilly presa em casa. Mas Tito está
sendo maravilhoso. Quando o procurei, achei que no dia seguinte,
arrumaria as minhas coisas, pegaria o dinheiro e iria embora com
Emilly. O problema é que, além do meu medo, de ser reconhecida
pela polícia em um aeroporto ou rodoviária e voltar para as mãos de
Edgar, tenho medo de procurar a polícia e entregá-lo. Se ele foi
capaz de armar esse circo todo sobre o sequestro, é porque tem
amigos corruptos e dispostos a fechar os outros para as mentiras
dele. Ou seja, fingirem que o que eu falo é mentira e entregarem a
minha filha para ele, seria muito pior, do que os anos que passei
apanhando daquele homem.
Apenas hoje, Tito conseguiu organizar o meu encontro com
Rebecca. E agora, com o dinheiro em mãos, não sei se estou
preparada para deixar Tito para trás, mesmo que isso seja o certo.
Estou arriscando a sua segurança e, se algo acontecer a ele, eu
nunca me perdoaria.
— Veja se gostou — diz ela, colocando um espelho na minha
frente.
— Caramba, nem pareço eu mesma — brinco, quando vejo o
meu reflexo. Não há vestígio de cabelo vermelho. A peruca é
realmente profissional, pois deixou o aspecto totalmente natural. —
Eu adorei. Nunca me imaginei uma loira platinada.
— Que bom que gostou. Acho que será mais seguro você
ficar com ela quando precisar sair, somente para garantir a sua
segurança.
— Estava pensando nisso agora mesmo — confesso,
olhando para as duas mulheres. — Preciso pensar no futuro. Agora
que peguei o dinheiro, preciso saber o que farei daqui para frente.
Para aonde vou.
— Como assim, para aonde você vai? Você vai ficar aqui.
— Margot, é arriscado. Edgar é capaz de fazer muito mal às
pessoas que me ajudam.
— Arriscado é você pegar a estrada com Emilly e ficar sem
proteção nenhuma, caso aquele homem te encontre. Não. Você
ficará aqui. Não será fácil no início, por você ter que ficar reclusa,
mas estaremos sempre por perto, para te ajudar e te proteger. Não
admito que você corra perigo por aí.
Encaro a senhora, com os olhos arregalados. Há uma
semana, eu jurei que ela não gostava de mim e agora, está aqui,
como uma leoa, me defendendo.

— Eu concordo com a Margot. Se quer sumir do mapa,


espere, pelo menos, Edgar parar com essa obsessão em te
procurar. Amiga, ele está tão transtornado, que tenho medo pelo o
que pode fazer quando te encontrar.
Um medo transcorre pela minha espinha e ajeito a peruca na
cabeça, com mais determinação. Ele nunca mais vai encostar em
mim ou na Emilly, isso é o meu objetivo de vida.

— Obrigada, Sr. Orlando. Eu não queria dar tanto trabalho


assim — digo, envergonhada, assim que o carro toma as ruas de
Bela Vista.
— Pare de me chamar de senhor, Juliana. Me sinto um
homem de cem anos de idade — diz, com um sorriso e me olha. —
Devo confessar que a minha mulher fez um trabalho incrível. Eu não
te reconheceria.
Abro o quebra sol e me observo no pequeno espelho.
Realmente, estou irreconhecível, até para mim mesma. A peruca
loira já me deixou diferente, porém, Margot quis ir mais além. Fez
uma pinta no lado direito da minha boca, colocou um par de óculos
escuros, brincos grandes, coisa que eu nunca usava, e um batom
vermelho, que deixou a minha boca mais sensual e, por isso, quase
me escondi quando me vi no espelho.
Estou outra mulher. Duvido que Edgar me reconheça.
— Sua esposa é incrível. Na verdade, vocês dois e é, por
isso, que Tito é assim.
— Obrigado. Tito e Rafaelle são o que há de melhor de nós
dois. Isso, sem dúvida. Mesmo que meu filho tenha aquela cara de
bad boy, quem consegue se aproximar do seu coração, descobre
um tesouro.
— Ele já teve muitas namoradas? — pergunto, antes de
conseguir morder a língua.
— Para te contar a verdade, ele nunca levou ninguém para
conhecermos. Tito sempre foi reservado. A única pessoa que
tivemos ciência, foi você.
— Não! Nós não temos nada. Eu sei que estou no
apartamento dele e que pode parecer que... Ah... Você sabe, mas
não temos nada. Eu juro. Ainda sou uma mulher casada e...
— Desculpe. Foi indelicado da minha parte — diz, sorrindo.
— Mas eu não quis dizer que vocês estão juntos. Apenas, que você
foi a única mulher que ele contou para nós, de forma empolgada.
Não quis te deixar constrangida. E sobre você ser casada, acho que
isso já é algo que deveria parar de pensar. Aquele homem não
merece que você se prenda a ele.
— O que o Tito te contou?
— O suficiente. E não se envergonhe disso. Você é apenas
uma vítima.
Paro e reflito, por um tempo, preciso parar de guardar tudo
para mim. Quero me ver livre desse monstro e escondendo o que
passei, só irá protegê-lo.
— Tito disse que você é advogado. Será que poderia me
ajudar com a questão do divórcio? Não tenho muito dinheiro, mas
posso pagar parcelado e...
— Juliana, eu nunca cobraria isso de você, e farei com todo
prazer, porém, não acredito que seja a hora.
— Mas, você falou...
— Falei que não é mais para você se sentir casada. Um
pedido de divórcio agora, irá aumentar ainda mais a ira dele, pois
você terá que denunciá-lo, para que ele não peça a guarda da
Emilly. Você está pronta para isso?
Paro e penso sobre isso. Não estou pronta. Ouvi relatos na
ONG sobre como os maridos se tornaram piores depois das
denúncias e até de duas mulheres, que morreram nas mãos de
animais como Edgar, mesmo após conseguirem ordens de proteção.
Eu sei que preciso tentar, mas me sinto frágil.
— O que você sugere?
— Que iniciemos um processo, porém, sem darmos entrada
ainda. Quero que me autorize a levar provas, principalmente, das
vezes que foi internada por conta das surras.
— Rebecca guarda fotos das vezes que cheguei ao seu
consultório, machucada, na gravidez — conto, com um sussurro.
Sempre fui contra, mas ela tirava mesmo sem o meu
consentimento, dizendo que um dia eu ia acordar e precisar das
provas. Acho que ela estava certa.
— Isso é muito bom. Não quero que se aborreça com o Tito,
mas ele tinha me pedido para investigar o seu marido.
— Ele o quê? — Abro a boca, espantada.
— Não fique brava com ele, ele teve a melhor das intenções.
— Pelo contrário, eu não estou aborrecida, estou surpresa por Tito
ter pensando em algo para me proteger, antes mesmo que eu
tivesse pedido.
— Vocês descobriram algo?
— Muitas coisas. No entanto, não quero que se preocupe
com isso. Contei apenas para dizer que agora que conheço um
pouco mais dele, precisamos ser cautelosos. Edgar Gonzales não é
uma pessoa para especularmos. Precisamos estar com o processo
perfeito e no ponto de finalização, para não darmos brecha a ele.
— Pode fazer o que for preciso, Orlando. Quero ter paz junto
com a minha filha. E, quem sabe, depois que tiver o divórcio
assinado, possa ir para bem longe, recomeçar a minha vida com
Emilly.
— Eu duvido que Tito te deixe ir para muito longe, mas,
vamos esperar.
Penso em perguntar o que ele quis dizer com isso, só que
não é necessário, o sorriso maroto que ele mostra para mim, já diz
tudo. E o pior, é que meu coração queria tanto que isso fosse
verdade. Só eu sei que não é. Tito merece uma mulher maravilhosa
e não uma que já sofreu tanto na vida e está carregando uma
bagagem pesada no momento.
Não. Definitivamente, Tito merece algo melhor do que eu.

— Quer que eu suba com você?


— Não precisa, Orlando. Muito obrigada por tudo o que
fizeram por mim hoje.
— Não precisa agradecer. Cuidamos da nossa família e Tito
escolheu você para fazer parte dela, por isso, te protegerei como
minha filha.
Abraço o pai do meu amigo e corro para fora do carro,
incapaz de dizer algo, antes que as lágrimas escorram.
Durante os anos, passei a criar uma barreira de segurança
para os meus sentimentos. Meus pais nunca foram amorosos, os
namoradinhos que tive não me fizeram desenvolver sentimentos
profundos. Depois que me casei, então, guardei ainda mais meus
sentimentos. A única que havia conseguido quebrar a minha
barreira até hoje, era Emilly. Chorei por cada dor e sorri por cada
alegria. Mas agora, rodeada por essa família maravilhosa, que só
quer o meu bem, eu me pergunto, será que realmente não sou
merecedora da felicidade? Eu quero ser feliz. Sempre quis. Vou
mostrar ao destino que, mesmo contra todas as probabilidades, eu
vou vencer.
O elevador apita e, assim que saio para o corredor, já ouço
vozes alegres vindas do apartamento de Tito. No primeiro momento,
travo com medo de alguém estar aqui. Mas, assim que abro a porta,
utilizando as cópias que ele me deu mais cedo, percebo que são
apenas Emilly e Tito, rindo de algo. Curiosa, sigo em direção àquilo
e fico paralisada ao vê-los, cobertos de tinta, no quarto de hóspedes
de Tito. Toda a bagunça que ele me mostrou estar aqui ontem,
desapareceu, e agora, fora uma lata de tinta no meio do quarto, está
vazio. A risada acontece, pois Tito está com Emilly nos ombros, para
que ela alcance a parte alta da parede com o rolo em sua mão e,
conforme ele a segura pela cintura, para elevá-la ainda mais alto,
minha filha reclama que ele faz cócegas e voa tinta para todo lado.
A parte boa é que, pelo menos, pensaram em cobrir o chão com
uma lona.
Cruzo os braços e fico alguns minutos acompanhando a
interação dos dois e, uma coisa eu posso afirmar, nunca vi Emilly
tão à vontade e feliz, na presença de um homem.
— Falta esse cantinho aí, princesa.
— Aqui, tio? — Ela tenta alcançar e o rolo cai, fazendo os
dois rirem mais ainda.
— Estou vendo que esta pintura vai acabar no ano que vem
— digo e os dois se viram em minha direção.
— Caramba. Quem é você? — Tito diz, com os olhos
arregalados.
— Mamãe? Cadê o seu cabelo?
Só agora me lembro que ainda estou com a peruca e começo
a rir.
— Não gostaram da minha nova versão?
— Você está linda, como sempre, mas, por favor, me diz que
minha mãe não fez isso de verdade no seu cabelo. É temporário,
não é?
Levanto uma sobrancelha para Tito e percebo que, apenas
por estar em sua presença, me sinto relaxada.
— E você, Emy, gostou do cabelo novo da mamãe?
Além de estar loira, a peruca tem um comprimento menor que
os meus cabelos. Os fios chegam apenas nos ombros, enquanto os
meus, passam a cintura.
— Prefiro os vermelhos. Você é a ruiva mais linda que existe.
Mas está bonita assim também, mamãe.
— E, então? — pressiona Tito, com ansiedade — É tinta
provisória?
Coloco as mãos embaixo dos cabelos e tiro, do jeito que
Margot me ensinou, com muito cuidado. Jogo a cabeça para baixo,
retiro totalmente a peruca e desfaço o coque.
— Ainda bem — diz ele, quando jogo meus cabelos
vermelhos e longos para trás e endireito o corpo. — Já estava
pensando que seria um pecado muito grande estrangular a minha
mãe.
— Eu gostei do loiro — provoco.
— Como eu disse, você estava linda. Mas nada se compara a
esse vermelho. Você é simplesmente deslumbrante do jeito que é.
Um clima diferente se instala entre nós e ficamos alguns
segundos nos encarando, de uma forma diferente. Não sei, ao certo,
se o meu novo propósito em ser feliz, inclui um homem, ou, sendo
mais específica, inclui Tito, porém, estou disposta a descobrir.
— Vem, mamãe. Vem ajudar a pintar o quarto que o tio está
fazendo para mim. — Olho para ele, em busca de explicações e ele
apenas dá de ombros. — Eu até escolhi a cor. Vai ser azul com
nuvens brancas e ele disse que vai desenhar um arco-íris nessa
parede. — Emilly indica o lugar todo borrado com tinta azul e eu
duvido muito que o quarto saia do jeito que ela está esperando, mas
somente o fato de Tito ter feito isso, por ela e com ela, já tem o meu
coração em suas mãos.
Arranco os sapatos e, sem me preocupar com a minha roupa,
pego um rolo que está no chão e entro na brincadeira. Recebo um
sorriso lindo do homem que anda bagunçando os meus sentimentos
e sorrio de volta, sentindo a felicidade fazer morada em cada célula
do meu corpo.
Não vou lutar mais contra. Chegou a hora de me agarrar ao
sopro de esperança que Vitor trouxe para a minha vida e tentar ser
feliz. Emilly e eu merecemos.
Tito
Estaciono a moto na vaga do meu apartamento, já ansioso
pela novidade, mas sei que terei que segurar a minha língua. Claro
que Emilly achou que seria eu o pintor maravilhoso a lhe dar o
quarto dos sonhos. Eu também gostaria que fosse, o único
problema é que se tem uma coisa que não sou bom, é em pintura. E
ontem, a nossa pequena farra no quarto de hóspedes, deixou isso
bem claro. Por isso, hoje acordei bem cedo para cuidar dos detalhes
com os profissionais que virão durante o fim de semana. Enquanto
ficamos sozinhos, Emilly me contou que o quarto na casa do pai era
pintado de rosa e cheio de bonecas, mas que na verdade, ela
sempre quis ter um quarto com a cor do céu e tinha medo de pedir
isso para ele, pois o pai sempre vivia bravo com ela. Não tenho
palavras para dizer o quanto odeio esse cara. Enfim, eu já tinha
dado um fim a minha bagunça e pensei em comprar uma cama,
para arrumar o quarto. Só que depois de ouvi-la relatar isso, não
pensei em mais nada. Liguei para a loja de tintas e encomendei uma
azul e uma branca. Eu realmente achei que era capaz de pintar um
fundo azul e algumas nuvens, afinal, é algo fácil, não é?
Não, não é.
Acabamos sujos de tintas da cabeça aos pés e não me
arrependo, por nenhum minuto, pois o tempo que passei ao lado de
Emilly e depois com Juliana, que se juntou a nós, foi melhor do que
qualquer coisa que já vivi. E vou me esforçar ao máximo para fazê-
las se sentirem em um lar, coisa que acho que não aconteceu onde
moraram até agora.
Aperto o botão do elevador e penso em como vou convencer
as minhas meninas a irem para a fazenda com os meus pais, para
que a equipe que contratei transforme o quarto de hóspedes em um
que a pequena sempre quis. E, então, eu sigo até lá no domingo
para passar o dia com eles, pois infelizmente terei que trabalhar
hoje e amanhã à noite. Mas não me importo. A minha mãe sugeriu
hoje pela manhã que elas fossem para lá no fim de semana e eu
não fui contra. Por mais que me mate pensar em ficar longe das
duas, sei que Emilly precisa de um pouco de ar livre.
Hoje faz uma semana que elas estão morando comigo e, se
antes eu tinha a necessidade imensa de morar sozinho, hoje já não
tenho mais. É mágico ver as coisas de Emilly espalhadas pela casa,
sim, porque a minha mãe não está poupando esforços em mimar a
sua nova “neta”. É encantador ver Juliana ficar vermelha toda vez
que Dona Margot chama Emy desta forma.
Com um sorriso no rosto, abro a porta do apartamento e a
cena que se desenrola na minha frente, me deixa completamente
sem fala.
A voz de Juliana ecoa pelas paredes e, se eu não tivesse
ciente que estou apaixonado, me apaixonaria agora mesmo.

“Ah, eu só quero o leve da vida pra te levar


E o tempo para, ah
É a sorte de levar a hora pra passear
Pra cá e pra lá, pra lá e pra cá
Quando aqui tu tá”

Reconheço a música Trevo das garotas AnaVitória, porém,


na voz de Juliana, fica ainda mais linda.
Seus olhos estão fechados, cabelos soltos e o jeito que ela
rodopia pela sala, com a vassoura na mão, me deixa totalmente de
joelhos.
Obrigado, meu Deus, por ter colocado uma mulher tão
maravilhosa na minha vida — faço essa prece silenciosa e sinto que
não posso mais ficar sem fazer nada.
Tenho que agir.
Caminho pela sala e creio que ela sente a minha presença,
pois abre os olhos e fica vermelha em me ver.
— Desculpe, Tito. Eu...
Não dou chances para ela falar. Agarro a sua cintura,
trazendo o seu corpo para o meu e tomo a sua boca, em um beijo
avassalador. Agora, não tenho receio. Apenas quero mostrar a ela
que a quero. Desejo Juliana como nunca quis ninguém.
— Não!
— Por que não? — pergunto, ainda sem fôlego, quando ela
separa nossos lábios.
— Eu ainda sou casada. Isso não é certo.
— Você se sente casada? — pergunto, tocando seu rosto
lindo e delicado com a ponta dos meus dedos.
Não consigo controlar as minhas mãos perto dela. Ela é linda.
— Não, mas...
— Não tem “mas”, Juliana. Aquele homem não te merece.
Você não casou por amor. Foi submetida à violência, humilhação,
torturas psicológicas, uma filha que não teve um pai decente. Você
se libertou de tudo isso. Precisa pensar na sua vida daqui para
frente.
As lágrimas brotam em seus olhos e isso faz o meu coração
sangrar. O senso de proteção faz com que eu a coloque em meus
braços e a proteja do mundo.
— Eu sei. Só que não é tão fácil assim. Você não merece
uma mulher com tantos problemas como eu.
— Você está certa — digo e vejo a mágoa em seus olhos, por
isso, trato de me explicar, com rapidez. — Eu não mereço você.
Sinto isso desde que me dei conta que estou totalmente atraído por
você. — Para dar ênfase a isso, aperto meus braços ainda mais ao
seu redor, moldando o seu corpo com o meu. — Você é muito mais
do que eu mereço, mas prometo dar o melhor de mim, todos os
dias, para merecer a mulher incrível que você é.
Eu sei que pode parecer clichê, nunca me imaginei dizendo
isso para alguém, porém, é isso que Juliana me faz sentir. Uma
plenitude incrível. Creio que, pela primeira vez na vida, posso
afirmar que estou apaixonado.
— Apenas sinta. Esqueça o mundo ao nosso redor.
Começo a beijá-la com cuidado, com carinho. Uma boca
conhecendo a outra.
Sinto sua resistência no início, mas, aos poucos, o seu corpo
vai me deixando entrar. Abrindo espaço para que eu sinta o seu
gosto, o seu sabor. E, com isso, vou ficando cada vez mais
inebriado.
— Eu escutei uma música esses dias, que é exatamente o
que estou sentindo agora.
— O quê? — Me olha, ainda aérea, pela intensidade do
nosso beijo.
— Uma música que ouvi, dizia assim: “Quando o primeiro
beijo dela resetou meu coração. Eu já tinha beijado ela mil vezes na
imaginação”. Eu realmente tinha te beijado mil vezes na minha
imaginação, desde o primeiro dia que te vi, em cima do palco, mas
nenhuma delas chegou aos pés desse beijo real.
— Tito...
— Não. Vamos aproveitar — sussurro. — Onde está Emilly?
— Tirando um cochilo.
— Ótimo. — Não deixo que ela volte a pensar. Sento-me no
sofá e a puxo para o meu colo, atacando a sua boca novamente,
desta vez, com mais afinco.
Suas mãos agarram os meus cabelos e não consigo me
segurar mais. Deslizo as mãos pela lateral da sua cintura,
apertando, na medida certa, por onde passo. Chego às laterais dos
seus seios e isso é a minha morte. Ela geme em minha boca e
estou tão duro, que é impossível de ela não sentir. Aos poucos,
deixo meus dedos cobrirem seu seio direito e, quando percebo que
ela não está usando um sutiã e seu mamilo está duro, perco o
controle.
Aperto o mamilo entre os meus dedos e subo a minha outra
mão até o seu cabelo. Sou louco pelos cabelos ruivos e compridos.
Junto um punhado e faço uma leve pressão, porém, isso dá o efeito
inverso do que eu desejava. Juliana pula do meu colo, com o rosto
tomado por pânico.
— Ei, o que houve? — pergunto, preocupado.
— Eu... Eu não posso... — Corre em direção ao banheiro e
eu fico parado, meio da sala, me xingando por ter feito algo errado.
O problema é que não faço ideia do que seja.

— Juliana, abre a porta, por favor. Olha, me desculpe. Eu sei


que me excedi. Perdoe-me. Vamos conversar. Por favor — peço e
encosto com a cabeça na porta do banheiro, onde Juliana está
trancada há, pelo menos, cinco minutos. — Por favor — peço, mais
uma vez, tentando manter a voz baixa para não acordar Emilly.
Ouço a porta sendo destravada e levanto a cabeça, rápido,
dando um passo para trás.
— Juliana, me perdoa. Eu não queria ter te assustado. Estou
tão arrependido. Eu...
— Está arrependido de ter me beijado? — diz, com um
pequeno sorriso no rosto e, instantaneamente, já me sinto mais
relaxado.
— Nunca me arrependeria disso. O problema é que não
queria ter agido como um ogro com você, me desculpe.
— Não foi culpa sua.
— Como não? Eu agi como um homem das cavernas, te
agarrando, sem nem pedir permissão — digo, frustrado.
— Vamos nos sentar, preciso te contar uma coisa.
Vejo que ela está receosa e isso me deixa nervoso
novamente, o que será que ela vai me contar. Que não me deseja?
Que não gosta de mim?
Que droga. Estou voltando a ser um merda de um garoto.
Ela passa pelo sofá, onde eu achei que ela sentaria, e a sigo
para a sacada. Acomodo-me do outro lado da mesa e observo o seu
perfil, olhando para o horizonte. Não consigo parar de admirá-la. Era
para aquele homem tratá-la como uma verdadeira rainha. Além de
ser linda, tem um coração enorme.
— Você se lembra do dia que te liguei para pegar o telefone
da ONG? — pergunta e eu aceno. — Você quis saber o que tinha
acontecido, mas eu me esquivei de responder. Pois bem, naquele
dia, Edgar me violentou, mais uma vez, mas já fazia tanto tempo
que aquilo não acontecia, que fiquei muito mal.
— Deveria ter me contato — digo, escondendo as minhas
mãos fechadas embaixo da mesa. A minha vontade é de socar
aquele cara até os meus dedos sangrarem.
— Não deveria, não. Você me ajudou muito mais, do que ter
ido dar uma surra nele. A ideia da ONG foi incrível e, naquele
momento, ela foi o meu bote salva-vidas.
— Esse cara merece ir para a cadeia — resmungo.
— Sim, merece. E hoje vejo isso com mais clareza. Mas o
que eu queria mesmo te contar, é que a reação que tive há pouco,
tem relação com esse dia.
Ela não precisa nem mesmo contar, junto as pontas e sei o
que fiz de errado.
— Meu Deus, Juliana! Eu nunca quis parecer com ele.
Nunca. Não foi proposital. Eu nem mesmo queria puxar os seus
cabelos. Cara, eu só faço merda — digo, apoiando o rosto entre as
mãos.
— Tito, nem se você quisesse, se pareceria com ele. O
problema é que foi involuntário. Na hora que senti a pressão em
meus cabelos, me veio à lembrança, dele me mantendo presa
dessa forma, enquanto... — Ela não consegue terminar e eu
também não deixaria.
Levanto-me e a seguro em meus braços, enquanto ela volta a
chorar, com a cabeça na minha barriga.
— Não chore. Você está segura agora. Não sei se já te disse
isso, mas eu juro pela minha vida, que se esse homem pensar em
encostar em vocês duas, terá que passar por cima de mim, agora.
— Tito, eu não queria trazer tantos problemas para você e
sua família — diz, olhando para cima. — Eu vou embora assim que
as coisas se acalmarem.
— Não vai — digo, enfático, e me arrependo no mesmo
momento. — Eu não quis dizer isso de forma autoritária, é mais um
pedido. Não vá. Eu gosto de ter você e a Emilly aqui. Lógico que sei
que você precisará voltar à sua vida normal, o problema é que eu
não estou preparado para isso, ainda. Esta semana que vocês estão
aqui, me senti mais... completo — assumo e me assusto com a
intensidade que esse sentimento se enraizou nos últimos dias.
— Você é a melhor pessoa que entrou na minha vida —
confessa e se levanta, encostando os lábios suavemente nos meus.
— Enquanto estava no banheiro, fiquei pensando no que você me
disse sobre não me sentir casada. Apesar do papel que ainda me
liga a Edgar, Deus é testemunha de tudo o que vivi e sofri. Não
quero mais ficar presa ao meu passado. Não quero. Preciso pensar
no futuro. Preciso viver o meu presente.
Seus olhos estão brilhantes e ela me encara, como se fosse
uma nova mulher à minha frente. Uma Juliana determinada.
— Tito — continua, com a voz suave —, não prometo ser a
mulher que você sonha, mas podemos ir aos poucos, sem pressa,
nos conhecendo e, quem sabe, rompendo meus medos e traumas.
O que me diz?
— Eu digo que estou feliz pra caralho. — Sorrio e a beijo
novamente.
É isso. Juliana precisa de segurança, confiança e muito
carinho e serei o filho da mãe mais sortudo do mundo, pois vou
estar ao seu lado, dando tudo o que ela precisa.

— O que vocês duas acham? — questiono e olho, ansioso,


de mãe para filha.
— Lá tem cavalos? — pergunta Emilly, animada.
— Tem sim, princesa. Você vai adorar.
— Será que não é perigoso, Tito?
— Não, Juliana. Vocês irão com os meus pais e lá é
totalmente afastado. É uma fazenda enorme e o vizinho mais
próximo está a 10 minutos de distância. Se houvesse, ao menos, a
possibilidade de vocês não estarem seguras, eu nunca aceitaria a
ideia da minha mãe.
— Sua mãe que quis nos chamar?
— Sim. Ela adora vocês.
— Diz que sim, mãe? Por favor.
Eu achei que teria que me esforçar mais, porém, o pedido de
Emilly somado ao rostinho cheio de expectativa, ganham o coração
de Juliana.
— Tudo bem, nós vamos — decreta e eu sorrio, tomando
mais um gole de suco.
É incrível como a minha rotina mudou. Antes, eu só comia
fora de casa ou fazia lanches rápidos na frente da TV. Agora, estou
aqui, sentado à mesa, desfrutando de um delicioso café da tarde,
preparado por Juliana.
— Por que você não vai, tio?
— Eu tenho que trabalhar, princesa, mas prometo que no
domingo estarei lá, para andar a cavalo com você, ok?
— Oba.
Recebo um olhar carinhoso de Juliana e retribuo o sorriso.
Nunca achei que minha vida mudaria em 360 graus desta forma, de
uma hora para outra.
— Será ótimo ficar um pouco longe disso — comenta Juliana
e, antes que eu possa falar algo a respeito, meu celular toca.
Tiro do bolso e quando vejo o número do detetive, peço
licença e me afasto.
— Pronto.
— Sr. Vitor. Tenho notícias. Consegui rastrear o celular do
indivíduo E – diz, usando códigos. – E a mensagem que o avisou
sobre a situação da Dona J, partiu de um celular pré-pago.
— O que mais? — Eu sei que tem mais, ele não me ligaria se
não tivesse descoberto algo significativo.
— O celular é do pai da J.
— O quê? — pergunto, sem acreditar naquilo.
Será que um pai é capaz de prejudicar a filha a esse ponto?
— Isso mesmo que o senhor ouviu. E, se me permite,
gostaria de investigar a fundo esse homem. Descobri também que
ele mantém algumas provas contra a Dona J.
— Está autorizado. Faça o seu melhor. Prometo uma
recompensa acima do valor que tínhamos estabelecido. Quero-a em
segurança.
— Considere feito.
Desligo o celular e passo as mãos pelo cabelo curto.
— O que você descobriu? — Assusto-me com a voz de
Juliana logo atrás de mim e me viro, com cuidado. — Desculpe, não
queria invadir o seu espaço. Ouvi um pouco da sua conversa.
— Juliana, eu tenho que te contar uma coisa — digo,
torcendo para que ela não fique brava.
— A respeito da investigação sobre Edgar?
— Como você sabe? — Na hora em que pergunto, já penso
em meu pai. O boca aberta ontem foi levá-la ao salão. — Foi meu
pai, não foi?
— Quem está bravo agora? — Ela cruza os braços abaixo do
peito e não consigo deixar de sorrir.
Deus! Ela é linda.
— Não estou bravo, apenas achei que você ficaria.
— Na verdade, fiquei grata, por você ter pensado em mim,
antes mesmo de eu pensar em sair daquela casa.
— Quando você vai entender, que me conquistou ainda em
cima daquele palco, cantando como uma deusa do fogo? — digo
com a voz baixa, me aproximando como um leão, prestes a devorar
a sua presa.
— Deusa do fogo, é?
Não resisto. A puxo para perto e provo seus lábios com sabor
de pecado. Um pecado que estou doido para cometer.
— Mamãe, você está namorando o tio?
Juliana some de perto de mim, em dois segundos, e fico
preocupado com a reação de Emilly.
— Não, filha. Nós somos apenas amigos.
— Ah! Que pena. Achei que se vocês fossem namorados, ele
poderia ser meu pai.
— Você já tem um pai, Emilly — explica a mãe, com o rosto
vermelho de vergonha.
— Eu sei que tenho. Mas ele não liga muito para mim,
mamãe, e ele bate em você, não gosto disso. O tio Tito é mais legal.
— Emy... — Vejo que Juliana está sem palavras. Eu me
abaixo, na altura da criança com os olhos lacrimando. Eu nunca
achei que desenvolveria um sentimento tão grande por uma criança
que não é minha.
— O tio também gosta muito de você, minha princesa. E, por
isso, quero pedir, oficialmente, você deixa a sua mãe ser a minha
namorada?
— Tito! — grita Juliana.
— Papai nunca mais vai voltar para a nossa vida, não é,
mamãe? Você prometeu que ele nunca mais vai machucar você e
eu. Então, você pode namorar o tio. Você não vai machucar a gente,
né?
— Nunca, princesa. Eu prometo.
— Então, eu deixo — diz, com um sorriso lindo, faltando dois
dentes na frente.
E, com isso, sinto que acabei de ganhar o melhor presente da
minha vida. Uma linda namorada e uma filha de coração.
Juliana
Tenho andado distraído
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso, só que agora é diferente
Estou tão tranquilo e tão contente

Quantas chances desperdicei


Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém

Me fiz em mil pedaços pra você juntar


E queria sempre achar explicação pro que eu sentia
Como um anjo caído, fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira

Mas não sou mais


Tão criança
Oh, oh
A ponto de saber tudo

Já não me preocupo se eu não sei por que


Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê
E eu sei que você sabe quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você

Tão correto e tão bonito


O infinito é realmente um dos deuses mais lindos
Sei que às vezes uso palavras repetidas
Mas quais são as palavras que nunca são ditas?

Me disseram que você


Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto

Já não me preocupo se eu não sei por que


Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê
E eu sei que você sabe quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você
(Quase sem querer – Legião Urbana)

Termino a música e abro os olhos, saindo da bolha que eu


me tranco sempre que canto. Os aplausos são calorosos, mesmo
que o número de pessoas à minha volta seja tão pequeno. E tento,
inutilmente, controlar o meu constrangimento.
— Obrigada — agradeço, segurando o violão com carinho.
A música sempre me salvou dos momentos ruins que eu
vivia, porém, agora, eu sinto como se ela fizesse apenas bem, sem
a necessidade de me salvar de coisa alguma, pois, por mais que
Edgar ainda possa me achar e tentar me fazer voltar para o inferno
que eu vivia, me sinto invencível. Estou me conhecendo e sabendo
que posso, sim, ser dona da minha vida, independente se ele tem
dinheiro ou não. Ainda mais, por ter pessoas tão maravilhosas ao
meu redor.
— Uau. Nunca imaginei Renato Russo sendo cantado de
uma forma tão melódica e com um arranjo diferente — comenta
Orlando e eu sorrio de volta para ele.
— O mérito não é meu. Sempre adorei a música Quase sem
Querer, e um dia desses, encontrei essa versão cantada pela Maria
Gadú, de quem eu sou fã. Peguei o violão e me apaixonei, assim
que toquei com o arranjo dela. Ficou perfeita, não ficou?
— Cantada por você, ficou mais perfeita ainda — completa o
pai de Tito.
Omito que a letra também toca fundo a minha alma. Eu
queria achar explicação para o que eu sentia, mas Tito deixou tudo
mais transparente. Eu gosto dele e quero me permitir viver, por mais
que um papel ainda diga que eu sou casada com aquele monstro.
Eu quero viver este sentimento com o Vitor.
— Você é maravilhosa, Ju — elogia Rafaelle. — A voz eu sei
que é um dom, mas onde aprendeu a tocar tão bem assim?
— Eu fiz aulas de canto quando era pequena, depois passei
a treinar sozinha, até que consegui entrar na escola de Música de
Bela vista.
— Que máximo. Então, você é uma musicista formada?
Todos ali sabem da minha história com Edgar. Achei injusto
precisar da ajuda de todos e os deixar no escuro. No entanto, ainda
me doí relembrar por tudo que passei.
— Infelizmente, não consegui concluir os estudos, Rafa —
conto, com pesar.
— Isso não te faz pior, Juliana. Você é uma artista
maravilhosa. — Orlando, com seu jeito simpático de sempre,
consegue arrancar de mim um sorriso.
— Maravilhosa — repete Emilly, pensativa. — O tio Tito
chama a minha mãe disso o tempo todo.
— Emilly! — falo seu nome, querendo me esconder embaixo
da mesa.
Isso lá é comentário para ela fazer na frente da família dele?
— Meu filho é muito inteligente — brinca o homem mais
velho.
— Eu concordo — começa Margot. — Estou ansiosa para a
sua chegada amanhã. Emilly me contou que ele tem novidades e
que vamos amar — diz, fazendo gestos com a sobrancelha e, não
sei de onde, minha filha saiu tão falante dessa forma.
Eu sempre fui quieta, tímida e pensava antes de falar. Ela
não. Tudo sai como flechas de sua boca.
— Não olhe assim para a garotinha, ela apenas estava
empolgada.
— Ela vive empolgada vinte e quatro horas por dia, Margot,
porque fala mais que a boca, o tempo todo — digo, sorrindo, e fico
ainda mais feliz ao saber que é verdade.
Emilly sempre foi alegre, elétrica e falante, porém, depois que
mudamos para a casa de Tito, ela está mais do que o normal, pois
sinto que está feliz o tempo todo. Coisa que antes só acontecia
quando o pai não estava por perto.
— Qual a novidade? Ninguém vai me contar?
— Tia Rafa, o tio pediu para guardar segredo. Só contei para
a vovó Margot, porque ela disse que sabe guardar, não é verdade,
vovó?
Coloco o violão ao meu lado, totalmente surpresa com a
forma que Emilly chama Margot. Só não fico mais do que a própria,
que não consegue responder de imediato.
Ela se ajoelha ao lado da minha filha, que está sentada no
centro da enorme varanda da fazenda.
— Sim, meu amor. A vovó sabe guardar segredo. E você
pode guardar um?
— Sim, sempre guardo os segredos da mamãe, não é,
mamãe? Eu adoro um segredo.
— Isso é verdade, princesa. Você é muito boa nisso.
— Viu, vovó? Pode contar.
— A vovó Margot te ama muito.
— Mas como é segredo, se você contou e todo mundo ouviu?
— reclama a pequena, sem se dar conta do significado das palavras
de Margot.
— Vem aqui, que quem vai contar um segredo sou eu. Sua
avó não sabe nada sobre segredos — brinca Orlando e ela corre em
sua direção, pulando em seu colo e rindo, quando ele começa a
cochichar algo em seu ouvido.
— Obrigada, Juliana — começa a mãe de Tito, ao se
acomodar na cadeira ao lado da minha. — Você e Emilly trouxeram
luz para a minha família. Arrependo-me tanto de ter te julgado no
primeiro momento que Vitor contou estar interessado em uma
mulher casada — confessa, em um sussurro. — Você foi o melhor
presente que ele poderia ter ganhado. E nós também.
Não consigo responder. Apenas a abraço e seco
discretamente as lágrimas. Nunca imaginei que uma família
pudesse me acolher desta forma. Coisa que nem a minha seria
capaz de fazer.
— Obrigada.
— Por que vocês estão tristes?
— Não estamos, linda. Isso é felicidade.
A conversa volta a fluir, principalmente, com Emilly, contando
todas as suas aventuras desde que chegamos aqui, ontem pela
manhã.
O lugar é simplesmente deslumbrante. Quando Tito contou
sobre a fazenda, nunca imaginei um lugar tão belo e bem cuidado.
Fiquei encantada, assim que desci do carro e percebi que o queria
muito ao meu lado, para dizer a ele o que eu achava. Uma pena que
ele não tenha vindo. Passamos dois dias muito agradáveis. E,
tirando a mocinha que trabalha aqui, que está me olhando torto
desde que cheguei, é o momento que estou mais em paz comigo
mesma, desde que fui obrigada a me casar. Tito estava certo, Emilly
e eu necessitávamos de ar puro e uma forma de esvaziar a mente.
— Que horas Vitor chega amanhã? — pergunta Rafa.
— Ele sai às 4h do PUB. Pedi para que dormisse um pouco
antes de vir.
— Então, devemos contar com ele aqui para o café da
manhã. Meu filho é totalmente ansioso e dormir não é uma coisa
que ele faz com muita frequência. — Todos riem do comentário de
Orlando.
— Vocês sabiam que o tio vai fazer um quarto lindo para
mim?
— Hum. Deixa-me adivinhar. Um quarto de princesa?
— Não, tia. De princesa, eu tinha na outra casa e não
gostava tanto assim. Ele vai fazer um quarto de céu.
— Céu? Você gosta de céu?
— Sim. Sempre achei bonito. Mas um dia ouvi a minha mãe
falar com a titia Camila, que queria ser um passarinho para ser livre.
Então, todos os dias que eu ia dormir, pedia para o Papai do céu,
transformar nós duas em passarinhas, para voar no céu. O dia que
fomos para a casa do tio, ouvi ele falando para a mamãe que lá
estaríamos livres, então, quero o céu lá no meu quarto novo.
Não consigo segurar o soluço que me escapa. Eu sempre
achei que pela pouca idade, Emilly era alheia a tudo que me
acontecia. Porém, vejo que errei em achar que ela não sofria e que
tudo o que eu passei era para protegê-la. Tenho medo de que esses
pensamentos tragam consequências no futuro.
— Venha, Juliana. Vamos tomar um copo de água.
Sou guiada pela matriarca da família até a cozinha e respiro
fundo, várias vezes, para conter o choro. Para a minha sorte, Rafa
pegou Emy, antes que ela percebesse que eu chorava. Sou a
pessoa que tem que consolá-la quando ela rala um joelho, não o
contrário.
— Emy é a garotinha mais esperta que eu conheço —
comenta Margot, me entregando o copo. A cozinha deste lugar é
simplesmente fantástica. E não sei explicar, mas o cheiro dela faz
meu corpo relaxar. Como se fosse uma cozinha de avó. Coisa que
nunca tive.
— Ela é, Margot. E isso, às vezes, me preocupa.
— Não precisa se preocupar. Eu sei que deve ser difícil, mas
pense que ela tem a vida toda para construir memórias boas, a
partir de agora, e esquecer o que viveu anteriormente. Ela ainda é
muito nova e, por mais que seja perspicaz, vocês terão tantos
momentos bons, que quando crescer, vai lembrar apenas de coisas
boas. Confie em mim. Vocês duas tem uma história muito bonita
para escrever e, agora, com o meu filho namorando você...
Antes que ela possa terminar, o barulho de um prato se
quebrando nos assusta. Olho para o lado e a garota nova, a tal
Dora, me encara, de forma mortal.
— Está tudo bem? — Margot vai em direção à moça, que
está branca como um papel.
— Sim, senhora. Foi apenas um mal-estar. — Se abaixa,
recolhendo os pedaços de vidro e corre para fora, depois de
murmurar um pedido de desculpas.
— A culpa é minha — murmura Margot.
— Do que está falando?
— Quando a contratamos, eu a enchi de esperanças sobre
Tito. Ele era solteiro e não queria arrumar uma boa moça de jeito
nenhum.
— Ela e o Tito já...?
— Não. Não. A única vez que Vitor veio aqui, depois que a
contratamos, ele a tratou até mais frio do que o costume. Mas acho
que a coitadinha ainda nutria esperanças. Mas não se preocupe
com isso. Amanhã mesmo terei uma conversa com ela. — Recebo
um abraço e entendo o jeito estranho que ela estava me olhando
desde que chegamos.
Só espero que essa louca não queira me fazer mal.

— Mamãe. Mamãe. Acorda.


Abro os olhos, mesmo sem querer, e vejo Emilly pulando em
cima de mim.
— Já está acordada, princesa?
— Sim. Vamos descer. Quero leite.
— Está muito cedo, Emy — digo, me espreguiçando e
olhando no relógio da cabeceira do quarto de hóspedes e vejo que
ainda são 6h05.
— A vovó diz que aqui na fazenda acordamos cedo.
— Tá bom, tá bom.
Jogo as pernas para o lado e saio da cama enorme e
confortável. Eu já achei esta casa linda, com esse jeito rústico, mas
quando entrei neste quarto, meus conceitos mudaram. Esta fazenda
não é só linda, ela é fantástica.
Os móveis escuros e ornamentados dão um charme
impecável, misturando modernidade e antiguidade. As janelas são
amplas e, assim que afasto as cortinas pesadas, o sol da manhã
toma conta do lugar, fazendo que meu corpo se anime, pensando
em mais um dia neste lugar maravilhoso e, ainda mais, sabendo que
Tito chegará hoje.
— Escolha a roupa que quer vestir. Vou apenas jogar uma
água no rosto e volto para descermos.
Dou um beijo na minha pequena espevitada, que corre em
direção ao armário, enquanto entro no banheiro.
Saí da casa de Edgar com apenas uma mochila de roupa.
Não tínhamos praticamente nada. Esperava que com o dinheiro que
Rebecca estava guardando para mim, eu pudesse comprar tudo
novo e deixar para trás, definitivamente, a vida com Edgar. Mas não
foi isso que aconteceu. Tito pediu autorização para contar aos seus
pais sobre eu estar com ele e, no dia seguinte, Margot e Rafaelle
apareceram lá com todo tipo de roupa para mim e para Emilly. Sem
contar, itens de higiene pessoal. Não tenho como colocar em
palavras o que sinto com todo esse carinho. Tirei a sorte grande,
quando meu violão ficou com o barman lindo e tatuado.
Sorrio com o pensamento e volto para o quarto. Emilly está
toda enrolada, tentando colocar um vestido da Barbie, presente do
próprio Tito.
— Vem aqui, que a mamãe te ajuda — falo, rindo, puxando o
vestido de sua cabeça.
— Quero colocar a bota que a tia Rafa me deu.
— Gostou mesmo delas, não é mesmo?
— Muito, mamãe. Me sinto uma cavaleira.
Divirto-me com a sua empolgação e troco de roupa também.
Opto por um jeans escuro, uma blusinha branca e colada. Prendo os
cabelos vermelhos e selvagens em um rabo de cavalo e, por
insistência da minha filha, calço o par de botas pretas de montaria
que Rafa trouxe para mim, idênticas as de Emy.
Andamos devagar pelo extenso corredor, pois o piso é de
madeira e tenho medo de acordar as outras pessoas.
— Mamãe, o tio prometeu me levar para passear de cavalo.
Que horas ele chega? — pergunta, assim que chegamos à sala do
andar de baixo.
— Mais tarde, amor. Ele trabalhou até tarde e precisa dormir
antes de pegar a estrada.
— Entendi. Posso tomar o meu leite lá na rede?
— Claro. Vai indo que vou até a cozinha preparar.
Olho pelas portas laterais em que ela corre e percebo que a
casa já está totalmente aberta e arejada. As cortinas claras
balançam com suavidade e isso me deixa ainda mais em paz. A
paisagem é de tirar o fôlego para todos os lados que se olha e o fato
da parte de baixo do casarão ser rodeado por uma linda varanda.
Suspiro, feliz, e sigo para a cozinha. Na mesa já tem vários
itens do café da manhã espalhados e o cheiro de café, faz o dia ficar
ainda mais delicioso.
— Bom dia! — cumprimento, de forma animada, a garota que
mexe algo no fogão.
— Quer alguma coisa? — responde, de má vontade.
Perco um pouco a animação, mas não a deixo perceber.
Continuo com o sorriso no rosto.
— Sim. Gostaria de leite com achocolatado para a minha
filha.
— Aqui temos horário para servir o café da manhã, então,
você pode voltar para sua cama de dondoca e esperar dar 8h.
Avalio a garota e ela não deve ter muito mais do que 20 anos
de idade, mas a sua petulância é muito maior do que eu posso
imaginar.
— Eu...
— Bom dia, Dona Juliana. Pelo visto, você e a pequena
Emilly são pessoas matinais. Já a encontrei na rede, toda esperta e
falante. — Conceição surge atrás de mim e respiro, aliviada, por não
precisar continuar sozinha com essa menina.
Margot pode achar que é só orgulho ferido, mas vejo
maldade em seu olhar.
— Bom dia, Conceição. — A mulher é um doce de pessoa e
me tratou muito bem desde que cheguei. — Vou ficar lá fora com a
Emilly.
— Mas e o leite dela? Ela me disse que você tinha vindo aqui
buscar.
— Vou pedir para ela esperar o horário do café.
— Que isso, Dona Juliana. Não temos isso, não.
— Não? Mas a...
— Como eu estava dizendo, vou levar o leite da sua filhinha,
em alguns minutos. Só o tempo de terminar os ovos, Dona Juliana.
Dissimulada de uma figa. Mudou até o tom de voz.
Se ela acha que vai me desconcertar, está muito enganada.
Já vivi uma vida em um teatro, não será problema para mim agora.
— Obrigada, Dora. Até mais, Conceição.
Caminho para a varanda e penso que tenho que tomar
cuidado com essa mulher. Já demonstrou não ser de confiança.
— Mamãe, aqui é tão lindo. Podemos morar aqui?
— Não, princesa — respondo, sorrindo da inocência de
Emilly. — Mas se a vovó Margot deixar, podemos voltar sempre.
— Você vai casar com o tio?
— De onde você tirou isso?
Sento-me na rede, junto com ela e puxo Emilly para encostar-
se ao meu corpo.
— Eu vi vocês dois se beijando. Na boca — sussurra, como
se fosse um segredo.
— Lembra que ele te perguntou se podia para namorar
comigo? Namorados se beijam, meu amor.
— Se um dia você se casar com ele, vou poder chamar o tio
de pai?
— Você sente falta do seu pai?
— Não — responde, depois de colocar a mão no queixo e
pensar por alguns instantes. — Na nossa casa antiga, você sempre
caia e se machucava. E o papai não te deixava feliz. Com o tio, você
sorri o tempo todo.
Margot tem razão, ela é muito perspicaz para uma garotinha
de quatro anos e meio.
— Eu estou feliz mesmo, Emilly. Mas minha maior felicidade
é que você está comigo.
Embalo nós duas em um balanço lento e terno. A paisagem
me faz pensar em Tito. Emilly tem razão, estou feliz. Quando Tito
me beijou e eu corri, achei que fosse incapaz de me entregar
novamente. Mas nos últimos dias, percebi que meus pensamentos
estão mudando e meu corpo também. Na sexta, liguei para Flávia, a
terapeuta da ONG, expliquei por que não estava conseguindo ir até
lá e conversei sobre o meu novo relacionamento. Ela me pediu para
não ficar presa ao que eu acho ser certo ou errado, pediu apenas
para que eu seguisse o meu coração e vivesse pensando no hoje,
pois já passei tempo demais vivendo em função da vontade dos
outros.
Meu coração me pede para mergulhar fundo nesta nova fase
com Tito. Ainda que me assombre a imagem de Edgar atrás de mim,
meu corpo clama por Tito.
— Aqui está o leite. — Dora interrompe os meus
pensamentos e se aproxima, com um copo com canudo nas mãos.
— Obrigada.
— De nada, querida.
Sua simpatia repentina me assusta, mas como ela se afasta
rapidamente, deixo isso para lá. Saio da rede e faço Emilly se sentar
com as costas apoiadas na lateral do tecido e lhe entrego o copo.
— Credo, mãe.
— O que houve?
— O leite tá ruim. Muito ruim.
Pego o copo de sua mão e experimento um pouco, quase
cuspindo o líquido.
— Isso aqui está salgado — constato, fazendo uma careta.
— Quero leite, mamãe. Mas quero leite gostoso.
— Espere aqui.
Levanto, possessa, e caminho até a cozinha, a passos
firmes. Para a minha sorte, Conceição não está no local, mas quem
eu quero está. E parece se divertir com algo, enquanto mexe uma
massa em uma tigela.
— Escuta aqui, Dora. — Ela levanta os olhos, ainda sorrindo
para mim, e ali vejo que está zombando da minha cara. — Se você
tem algum problema comigo, basta falar, mas fazer uma maldade
dessa, com uma garota inocente, eu não aceito.
— Inocente? Se puxou a você, com certeza, não é.
Vejo vermelho neste momento. A alcanço em dois passos e
seguro os seus cabelos.
— Repete o que você falou, sua louca?
— O que está acontecendo aqui? — pergunta Tito, parado na
porta.
Tito
— O que está acontecendo aqui? — falo, assim que vejo
Juliana segurar a garota que trabalha aqui, pelos cabelos.
Dora não parece estar com medo ou apavorada.
— Eu não sei por que ela está me agredindo, Tito, ela...
— Vitor. Meu nome é Vitor. Pode me chamar assim — a
corto, enquanto Juliana solta os cabelos da outra.
— Você está bem?
— Ela está bem? Você viu quem estava apanhando aqui? —
Seu falso tom de inocência me deixa enjoado.
Algo me diz que ela aprontou muito feio com Juliana.
— Preciso tomar um ar — anuncia a minha deusa do fogo. —
E fique sabendo que se mexer com a minha filha novamente, você
vai se ver comigo.
O furacão passa ao meu lado, ao mesmo tempo em que
Conceição entra pela porta dos fundos.
— Chegou, meu menino?
— Acabei de chegar e já vi que o circo está pegando fogo.
— Do que está falando?
— Também estou querendo saber. O que você fez, Dora?
— Eu? Eu não fiz nada.
— Alguém pode me explicar o que está havendo?
— Pergunte a ela, Conceição. Vou atrás da Juliana para
descobrir o que houve.
— Tito?
Adoro a Conceição, mas neste momento não posso ficar e
dar as explicações que ela deseja.
Tiro a jaqueta de couro e jogo de qualquer jeito no sofá,
vendo Juliana correr pelo gramado que rodeia a propriedade.
— Juliana — eu grito da porta e vejo minha mãe aparecer no
canto da varanda, com Emilly no colo.
— O que houve, mãe?
— Não sei. Ela veio aqui e me pediu para olhar a Emilly por
um instante. Vá atrás dela, filho.
Ela não precisa dizer duas vezes. Abro um sorriso
tranquilizador para Emilly, que observa tudo com o olhar atento e
corro na direção que a vi seguindo.
Pilotei o mais rápido que consegui para chegar aqui a tempo
do café da manhã. Troquei mensagens com ela ontem e a senti tão
feliz. Por sorte, a reforma do quarto foi finalizada ontem, pois eu
estava doido para chegar aqui e aproveitar um pouco da paz que ela
citou na mensagem. O apartamento sem as duas já não é mais o
mesmo.
Eu só não esperava ver Juliana em cima de Dora.
Será que ela contou sobre a última vez que vim aqui? Ou
pior, será que distorceu os fatos?
Se for isso, eu mesmo torço o seu pescoço.
— Juliana — grito, olhando para os dois lados e consigo ver,
de relance, o vermelho vivo de seus cabelos, antes de desaparecer
no bosque que temos atrás do estábulo. Corro mais rápido e a
alcanço.
— Ei! — digo, segurando o seu braço.
— Me solta, Tito. Preciso ficar sozinha, me solta.
— Não — digo, a segurando ainda mais firme. — Não vou
sair do seu lado — afirmo, limpando as lágrimas que escorrem pelo
seu lindo rosto.
— Você não entende. Eu… eu… estou parecendo com ele.
— Não estou entendendo, Ju.
— Se você não chegasse, eu teria batido nela.
— Isso, eu percebi. E quero muito saber o que ela fez para te
tirar do sério.
— Não importa o que ela fez, o ponto negro da conversa é
que perdi o controle e a teria agredido, do mesmo jeito que ele fazia
comigo. — O choro volta e, então, entendo o que ela está dizendo.
— Vem aqui. — Puxo seu corpo para perto e a seguro firme,
tentando ser o seu consolo.
Aos poucos, ela se acalma e eu a levanto em meus braços.
— Tito! O que você está fazendo?
Sorrindo, caminho alguns passos, até chegar às margens do
lago da fazenda. Sempre me diverti aqui e fico feliz em saber que
Juliana não tinha conhecimento deste lugar, pois seus olhos se
ampliam.
— Aqui é lindo — elogia, no meio de um soluço, e eu a
coloco no chão.
— Pare de chorar, minha deusa — peço, suavemente. —
Preciso entender o que aconteceu para te deixar neste estado.
Sento na margem e puxo a sua mão, para que faça o mesmo.
Juliana entende o recado e se acomoda entre as minhas
pernas, olhando para o lago.
— Está mais calma? — questiono, depois de um tempo em
silêncio. Tempo esse que está me matando.
— Sim. Desculpe-me pelo surto.
— Não se desculpe, só me explica o que houve. Nunca vi
tanta raiva nesses olhos doces.
— Eu sou como ele. Se você não tivesse chegado, eu teria
batido dela. Chamo Edgar de monstro, mas agi como ele.
— Nunca mais repita isso, Juliana — falo, olhando em seus
olhos. Não sei nem como ela pode pensar em algo assim. — Você
nunca seria parecida com aquele homem. Conte-me o que Dora fez,
assim posso tentar te ajudar a entender a sua reação.
— Ela colocou sal no leite da Emy e depois, disse que se
puxasse a mãe, ela não seria uma criança inocente. Eu perdi o
controle.
Quem tem que se controlar agora, sou eu. Aquela mulher não
conhece limites.
— Isso explica a sua reação. Se ela não fosse mulher, até eu
lhe daria uns tapas. Onde já se viu, fazer isso com a nossa menina
— digo, furioso, e vejo que Juliana me encara, com os olhos
brilhando e um sorriso no canto dos lábios. — O que foi?
— Nossa menina?
— Desculpe se isso te incomoda. Falei sem pensar.
— Mas você realmente pensa isso?
— Sim. Penso e sinto com todo o coração. Emy chegou e
tomou uma parte grande do meu coração.
— Nunca imaginei um homem tatuado e com cara de mau,
dizendo isso — comenta rindo e já me sinto melhor em vê-la mais
relaxada.
— Cara de mau, é? — Faço um movimento para girar seu
corpo para baixo do meu e sustento meu peso com os braços,
deixando apenas alguns centímetros separando nossa boca. — O
cara mau aqui, estava sentindo falta da sua deusa do fogo —
sussurro.
— Eu também estava com saudade. Muita saudade, na
verdade.
— E por que fugiu quando me viu?
— Fiquei com vergonha. Com medo de você se assustar com
esse meu lado.
— Ju, você alguma vez já levantou a mão para bater na
Emilly?
— Não — afirma, sem pestanejar.
— Então, nunca mais pense que você é como ele. Você
apenas reagiu para defender a sua filha. Você é a mulher mais doce
que eu conheço. — Deixo meus lábios roçarem nos dela e fico com
medo que ela me afaste. Para a minha sorte, isso não acontece.
Aprofundo o beijo e deixo meu corpo escorregar, até estar ao
lado dela, porém, mantenho as nossas pernas entrelaçadas e meu
tronco parcialmente em cima do dela.
Ela geme em minha boca e isso é a minha perdição. Se
Juliana não fosse tão especial para mim, eu poderia muito bem
tomá-la agora mesmo, nesta grama. Mas não. Pela primeira vez,
quero que seja especial para ela. Para nós dois.
O que sinto por essa mulher vai além de qualquer sentimento
que já tive na vida. Não sei explicar como, em tão pouco tempo, já
me sinto assim.
— Melhor voltarmos — sugiro, encostando nossa testa.
Respiramos fundo, buscando o ar.
— Tenho que ver a Emilly.
— Relaxa. Ela está com a minha mãe. — Dou mais um beijo
casto e saio de cima de Juliana, me sentando ao seu lado e
pegando a sua mão. — Como está sendo a estadia aqui? Tirando, é
claro, a Dora.
— Mágico, Tito. Desde o momento que cheguei, estou me
sentindo flutuar, em uma paz que fazia tempo que eu não sentia.
— Fico feliz. Eu adoro este lugar desde que eu era pequeno.
— Imagino você, criança, correndo por todo lado. Aqui é tudo
tranquilo, calmo, bonito. Foram os melhores dias que vivi com a
Emilly, nos últimos tempos. Sem contar, o carinho da sua família
com a gente. Você é o melhor homem do mundo, que só tem me
proporcionado coisas boas. Obrigada.
— Você não percebe, mas quem trouxe luz para a
minha vida foram você e a Emilly. Quem tem que agradecer sou eu.
— Tito, preciso te perguntar uma coisa — diz e percebo
que está com vergonha, antes mesmo de fazer a pergunta.
— Você pode perguntar o que quiser, Ju.
Vejo-a soltar os cabelos do rabo-de-cavalo, arrumá-los e
prendê-los novamente e, mais uma vez, me vejo encantando por
ela, me lembrando de meses atrás, quando a ouvi cantar pela
primeira vez no PUB.
— Você já teve algum envolvimento com a Dora?
— O quê? — Me assusto com a pergunta.
— Se você não quiser responder, não tem problema.
Viro o corpo em sua direção e toco seu queixo, com
cuidado, para que ela possa olhar nos meus olhos.
Respiro fundo e decido contar a verdade.
— Na última vez que estive aqui, encontrei Dora, sem
roupa, na minha cama.
— Você não precisava contar detalhes, Tito — reclama. —
Era só dizer que sim.
— Posso terminar? — digo, sorrindo. — Ela estava no meu
quarto. Eu pedi que ela se vestisse e que fosse embora. Nunca tive
nada com ela. Até porque, quando aconteceu isso, você já não saia
da minha cabeça. Por que está me perguntando isso, ela disse
algo?
— Desde que cheguei, percebo que ela é simpática com todo
mundo, mas basta estar sozinha comigo, que arruma um jeito de me
destratar, ou me olhar de forma estranha.
— Acho que minha mãe iludiu a menina.
— Margot me disse isso ontem. Mas não acredito que seja
somente isso. Ela atingiu a Emilly, acho melhor minha filha e eu
irmos embora. Não quero arrumar confusão na casa da sua família.
— De forma alguma. Estou de folga amanhã, então, temos o
domingo inteiro para aproveitar e amanhã, depois do almoço, vamos
embora. Estou ansioso para mostrar a Emilly a surpresa.
— Que surpresa?
— O próprio nome já diz. Você só saberá amanhã, junto com
a sua filha.
Ela sorri e vejo como senti falta de sua companhia nos
últimos dois dias. Nem mesmo voltar a dormir na minha cama, me
deixou mais relaxado.
— Vamos voltar antes que eu não me controle e te beije de
novo.
Levanto-me e estico a mão para que ela faça o mesmo.
Caminhamos de mãos dadas pelo meio das árvores e, assim
que chegamos à parte da frente do casarão, Emilly corre em direção
à mãe.
— Mamãe!
Juliana se inclina para pegar a filha no colo e sorrio ao ver as
botas idênticas nos pés das duas.
Isso, com certeza, foi ideia da minha irmã.
— Estávamos preocupados com vocês — diz Rafa, me
abraçando.
— Onde estão a mãe e o pai?
— Lá na sala. Pediu para vocês irem até lá, assim que
aparecessem.
— Vamos? — pergunto e a minha garota acena.
— Tio, você vai me levar para andar de cavalo hoje?
— Vou princesa. O tio hoje está à sua disposição.
Subimos os degraus e, assim que vejo Dora chorando, o meu
sangue ferve.
— Que bom que chegaram — comenta a minha mãe, se
levantando da poltrona. — A Dora precisa falar com vocês.
— Não queremos ouvir nada.
— Tito, meu filho. Seja razoável — pede meu pai.
— Me desculpe, Dona Juliana. Eu estava tão atrapalhada,
que troquei o açúcar pelo sal. Me perdoe. Eu não queria... — Abaixa
a cabeça e começa a chorar novamente.
— Dora não tem pai nem mãe, a conheço desde
pequenininha, Dona Margot. Garanto à senhora, que isso não vai
acontecer novamente. Ela é só uma menina e se atrapalhou —
intercede Conceição e sinto pena por ela ter caído na lábia dessa
garota, pois a mim, ela não engana.
— Você a desculpa, Juliana? — indaga minha mãe.
Ela olha para mim, como se pedisse ajuda e eu intercedo.
— Mãe, a casa é de vocês, se vocês acham que ela deve
ficar, eu não vou contra, só vou dar um aviso, Dora, fique longe da
Juliana e principalmente da Emilly, da próxima vez, você terá que se
entender comigo.
— Mas, Tito...
— Vitor. Me chame de Vitor. Estaremos lá fora. Com licença.
— Pego Emilly nos braços e saímos da sala.
— Obrigada — agradece Juliana, assim que passamos pela
porta da varanda. — Fiquei com medo de dizer o que eu pensava e
sua mãe ficar com raiva de mim.
— Ela nunca ficaria com raiva de você. E sei que vai manter
a menina por conta da Conceição. Mas vamos deixar isso para lá.
Vim aqui para aproveitar as minhas duas garotas.
— Só as duas? — Rafa surge ao nosso lado e entra na
brincadeira.
— Todas as mulheres da minha vida. Assim está melhor?
— Muito melhor.
Entre risos e brincadeiras, tomamos um café delicioso e,
como Dora não apareceu, o clima ficou tranquilo.
Emilly, como sempre, tagarelou tanto que contou a todos
sobre o pedido do namoro antes que eu o fizesse.
— Eu estou muito feliz em saber que você, finalmente, abriu
o seu coração para o amor, meu filho. A vida sem ele é tão sem
graça.
— A vida sem a Juliana é sem graça, pai — brinco, me
sentando em sua frente, no grande escritório, logo após as garotas
subirem para vestirem roupas de banho. Hoje o dia está perfeito
para uma piscina.
— É assim que se fala. Eu o chamei aqui para falar sobre o
marido dela. Ele foi visto com um matador de aluguel em um bar. O
cara é da pesada.
— Você acha que ele pode estar procurando Juliana para
matá-la?
— Não sei o que pensar, Vitor. Por tudo o que sabemos sobre
aquele homem, fica difícil saber do que ele é capaz ou não. A única
coisa que sei, é que precisamos ter o cuidado redobrado.
— Eu sei, eu sei. Juliana não está saindo de casa sem a
peruca. E, por isso, achei importante Emilly vir até aqui, ela não saiu
do meu apartamento desde a madrugada que Juliana fugiu de sua
antiga casa. Estou me esforçando para que ela se divirta, mas é
complicado ter uma criança trancada em um apartamento.
— Eu te entendo. Estou estudando uma forma de isso
acabar. Ainda não sei como, mas Juliana vai conseguir a liberdade
que deseja, tenho certeza.
— Tomara, pai. Nem mesmo, nos pais, ela pode confiar, já
que foi Sebastião que enviou a mensagem ao Edgar, denunciando a
própria filha.
— Isso foi uma surpresa também, não consigo entender essa
família — comenta. — Mas vamos deixar essa realidade triste para
depois. Vamos focar hoje na tranquilidade desta fazenda e fazer as
nossas mulheres felizes.
— Você está certo. — Abro um largo sorriso e sigo para fora,
logo atrás dele. Caminho tranquilo, com as mãos nos bolsos da
bermuda, que vesti logo após o café da manhã, e paraliso quando
chego à beirada da piscina. Juliana está com um biquíni vermelho,
que não deixa nada para a imaginação. E desconfio que, mais uma
vez, isso é obra da minha irmã.
Preciso lembrar-me de agradecê-la.
A cada passo, meu coração bate ainda mais acelerado e,
antes de chegar até ela, desvio o caminho até onde está Rafa,
passando protetor solar.
— Preciso de sua ajuda para hoje à noite. — Uso o tom de
voz baixo, para que apenas ela me escute e finjo ajudá-la com o
protetor.
— Estou ouvindo, maninho.
Digo a ela todo o meu plano e, como eu já esperava,
Rafaelle, além de aprovar, diz que fará de tudo para me ajudar.
— Eu sabia que podia contar com você. — Dou um beijo em
seu rosto e ela sorri.
— Eu sei que sou a melhor irmã do mundo.
— Nunca discordaria disso.
Sorrio e sigo para o outro lado da piscina, onde a minha
deusa do fogo me espera, totalmente alheia às reações do meu
corpo, com esse biquíni sexy como o inferno.
— Você está linda — digo, em seu ouvido. — Na verdade, a
palavra que eu estava pensando não pode ser usada, por conta do
horário, então, linda vai ter que servir.
— Tito! — reclama, ficando com vergonha e olhando para os
lados. — Eu não trouxe nenhum maiô. Sua irmã me apareceu com
este biquíni, mas estou achando-o pequeno demais. Ele não cobre
nada do que deveria.
Percebo que ela não se refere ao seu corpo, como forma de
timidez e, sim, duas cicatrizes que suas mãos cobrem. Uma no
antebraço e outra na costela. Resolvo tirar o foco dela disso.
— Pequeno está meu controle, neste momento. Vou dar um
mergulho para me acalmar — confesso e ela sorri abertamente.
Ponto para o Tito.
— Seu bobo. — Beijo seus lábios e pulo na piscina. Ela pode
achar que eu estava brincando, mas não estava, Juliana é linda. A
pele branca e macia está realçada pela cor do biquíni e, sem contar,
as suas curvas, que me enlouquecem. Seus seios fartos são um
convite para o pecado.
— Tio, me segura — Emilly chama a minha atenção, fazendo
a minha cabeça se concentrar em algo além do corpo de Juliana e,
quando eu menos espero, a pequena pula na piscina, com as suas
boias de braço e eu corro para segurá-la.
Sorrio como um bobo, enquanto brincamos. Essa pequena
garotinha é o bálsamo na minha vida. Quando estou brincando com
Emilly, esqueço tudo de ruim que me rodeia, principalmente, o
maldito gerente do PUB. Salomão ontem me irritou tanto, que achei
que iria socá-lo na frente dos clientes. Voltei até a pensar na ideia
que Elder me deu, de montar meu próprio bar. Agora que Juliana e
Emilly já estão protegidas na minha casa, acho que posso começar
a pensar nisso. Creio que é o momento de planejar o futuro.

— Onde você estava, minha filha? — minha mãe pergunta,


assim que a minha irmã aparece.
— Resolvendo umas coisas, mãe. — Fico olhando para ela,
esperando um sinal, e uma piscada bem discreta, me deixa
animado.
— Bom, hoje o dia foi maravilhoso, mas me deixou exausto.
Não tenho mais idade para esse pique não — brinca meu pai, se
referindo as horas que passou na piscina com Emilly e depois o
piquenique que fizemos no gramado, onde ela nos fez brincar e
correr a tarde toda.
Essa garotinha realmente não perde a energia.
— Emy, vem aqui com a tia — chama Rafa e cochicha algo,
assim que ela se aproxima.
— Oba! Eu quero — grita a pequena.
— Mas tem que pedir para a sua mãe antes.
— Mamãe! Mamãe! Posso dormir com a titia Rafa hoje? Diz
que sim. Diz que sim.
— Ah, Emilly. Não sei, não. Você se mexe muito na cama. Vai
atrapalhar o sono da Rafa.
— Por favor, mamãe. Ela disse que vamos ter uma noite com
as meninas.
— O quê? — Juliana pergunta, alarmada.
— Uma noite de meninas, Emy — Rafa corrige, rindo. —
Deixa, Ju? Prometo cuidar muito bem dessa princesa.
— Tudo bem. Mas se ela der trabalho, basta me chamar.
— Fechado. Vamos, gatinha? Dê boa noite para a sua
mamãe, para os avôs babões e para o tio.
Emilly segue o protocolo e se despede de todos, com beijos e
abraços. Meus pais seguem com as duas para o andar de cima e
quando Juliana pensa em fazer o mesmo, eu a impeço.
— Tenho uma surpresa para você.
— Agora?
— Sim. Agora. Você confia em mim?
— Você sabe que sim.
— Então, vamos. — Me levanto e estico a mão para conduzi-
la.
Seu sorriso se abre e me vejo hipnotizado pela sua beleza.
Antes do jantar, Juliana desceu com um vestido preto, longo e de
alças finas, e os cabelos, que eu tanto amo, soltos. Uma deliciosa
visão.
— Para aonde vamos? — questiona, confusa, quando
começamos a descer os degraus da frente do casarão.
— Surpresa.
— Você está muito misterioso.
Ela ri e, mesmo curiosa, me acompanha, em silêncio.
A cabana que escolhi para passar a primeira noite com a
Juliana, não é longe, darei a ela a escolha de voltar para a casa a
hora que quiser, mas eu precisava deste momento a sós com ela,
mesmo que seja apenas para adormecer em meus braços.
— Chegamos — aponto, assim que paramos na frente da
pequena cabana.
Mesmo com um casarão imenso à disposição, meu avô dizia
que mantinha esta cabana para dar um toque de romantismo ao
lugar. Ele não poderia estar mais certo.
Abro a porta de madeira, devagar, e vejo que Rafa fez ainda
mais do que eu pedi. Dou um passo para o lado e deixo a minha
ruiva entrar.
— Que lugar lindo! — exclama Juliana.
— Meu avô que construiu. Uma pena estar escuro, mas logo
que amanhecer, você verá que a vista para o lago é encantadora.
— Amanhecer?
— Ju, eu te trouxe aqui para passarmos a noite juntos, mas
não do jeito que você pode pensar, apenas... caralho, nunca fiquei
tão nervoso assim — digo, rindo, depois de me atrapalhar todo na
palavra. — O que eu quero dizer, é que só queria passar um tempo
a sós com você. Nunca te forçaria a nada. E se você quiser voltar,
eu...
— Ei. Calma. Eu quero estar aqui com você.
Solto o ar e ela ri do meu desespero. Fecho a porta com a
chave, a pego pela mão e subo na cama, observando com mais
cuidado tudo ao redor.
Rafaelle espalhou flores do campo por todos os lados e em
uma mesinha, ao lado da cama, repousa duas taças e um balde de
gelo com um vinho.
Perfeito.
Abro a garrafa, sirvo as duas taças e entrego uma a ela, que
prova da bebida de forma sensual.
Essa mulher vai acabar comigo.
— E seu trabalho, como está? — questiona ela, tirando as
sandálias baixas e dobrando as pernas embaixo do corpo, se
acomodando melhor na cama.
Jogo a cabeça para trás e solto um suspiro, frustrado.
— Não vamos falar do PUB, por favor. Salomão não vai
estragar a minha noite.
— Tão ruim assim?
— Pior do que você imagina. E hoje, eu só quero saber de
você e eu. — Viro o líquido da minha taça e me levanto para colocá-
la na mesa. Ela faz o mesmo e estica a mão para que eu guarde a
dela também.
Volto para a cama e sigo em sua direção. A puxo para o meu
colo e beijo sua boca, com fome. Tento não ir muito rápido para não
a assustar, como aconteceu com o nosso primeiro beijo, porém,
Juliana não facilita. Além de gemer, ela segura os meus cabelos,
puxando levemente, me levando à loucura.
Mergulho a língua em sua boca e minhas mãos passeiam por
suas curvas maravilhosas.
As pequenas mãos de Juliana deslizam pelo meu pescoço,
até alcançarem os botões da minha camisa. Depois de abrir o
segundo, eu interrompo o beijo, deslizando os lábios pelo pescoço.
— A hora que você quiser parar, basta pedir.
— Você pararia?
— No mesmo momento — paro de beijá-la e encaro seus
olhos castanhos. — Eu nunca faria nada que você não quisesse. Te
fazer feliz é o meu principal objetivo. E se você não está feliz, ou
confortável, não tem motivos para continuar.
— Você é maravilhoso, Tito. Eu quero.
— O quê? — pergunto, com a voz rouca.
— Eu quero você. Dentro de mim. Me faça sua.
— Mas... — gaguejo, sem saber como dizer isso. — Você
terá que me dizer o que fazer. Naquele dia do beijo, você...
— Shiu! — me interrompe, com dois dedos nos meus lábios.
— Eu pensei muito depois daquele dia. Eu quero viver isso que
tenho com você. E quero viver plenamente. Não posso afirmar que
não vou surtar, mas quero tentar. Na verdade, eu preciso tentar. Me
faça sua. Mostre-me o que é realmente fazer amor com alguém que
se importa com a gente.
Não a deixo falar mais nada. Viro-a no colchão e me dedico a
apreciar cada centímetro do seu corpo. Tiro seu vestido e paraliso
ao vê-la apenas de calcinha. Seus seios são mais perfeitos do que
eu poderia imaginar. Aliás, seu corpo todo.
— Hoje, eu vou te mostrar o que é fazer amor com alguém,
pois com todo o meu coração, eu te digo, minha deusa do fogo, eu
amo você.
Com lágrimas nos olhos, mergulho em seu corpo, adorando
cada pedacinho e vendo seus olhos transbordarem o amor não
falado, mas que sei que é correspondido.
Não sei o momento que este sentimento forte enraizou no
meu peito, porém, é algo que não posso mais negar. Eu amo a
Juliana. E a quero ao meu lado, para sempre.
Juliana
— Está tudo certo? Posso encaminhar?
— Certíssimo, Sr. Orlando. Você acha que isso vai dar certo?
— pergunto, receosa, tirando os olhos dos papéis em minhas mãos.
— Temos que tentar, Juliana. E não me chame mais de
senhor, por favor. Você é praticamente uma filha.
Sorrio, emocionada, e lhe entrego a carta que será enviada
ao Edgar. Orlando deu a ideia de fazer uma chantagem com o meu
ex-marido e aproveitar para jogar uma isca falsa sobre o meu
paradeiro. Na carta, eu digo que se ele não acabar com essa
palhaçada de sequestro, irei até a polícia denunciá-lo sobre as
violências que sofri durante todos esses anos. Anexo à carta, estão
algumas fotos que Rebecca tirou anos atrás e Tito conseguiu
algumas imagens das câmeras do PUB, em que mostra Edgar me
arrastando pelos cabelos, no meio das pessoas.
O pai do Tito contratou uma empresa de advocacia por
intermédio de um amigo que mora no estado vizinho. A carta será
entregue por um representante de lá, com isso, contamos que Edgar
acredite que eu não esteja mais em Bela Vista.
— Se ele acatar o pedido, partimos para o divórcio. Seja
confiante, falta pouco para você ser livre novamente.
Abraço meu sogro e me despeço dele na porta do
apartamento.
— Diga ao Tito que depois ligo para ele.
— Pode deixar, Orlando.
— Mamãe — Emilly grita do quarto e eu corro para que ela
não acorde o Tito com seus gritos.
Ele chegou cansado e estressado do PUB nessa madrugada.
E estava tão incomodado, que só conseguiu dormir há pouco, no
meio da manhã.
— Não grita, Emy. Vai acordar o tio.
— Desculpa. Tinha esquecido. Arruma meu cabelo, mãe?
— Claro, princesa. Sente-se aqui. — Dou dois tapinhas na
cama e, como sempre acontece quando entro aqui, fico encantada
com tudo o que Tito foi capaz de proporcionar à minha filha.
Não consigo apagar da minha mente o momento que
voltamos da fazenda, no início da semana, e Emilly chorou ao
agradecer pelo quarto maravilhoso que estava pronto para ela. As
paredes são azuis da cor do céu e há nuvens desenhadas, de forma
perfeita, em todas as paredes. Uma cama grande e confortável, que
cabe perfeitamente nós duas, foi encostada na parede, onde tem
seu nome escrito em meio às nuvens e na outra parede, ele colocou
um guarda-roupa branco.
Não preciso dizer que chorei junto, não é mesmo? Nunca vi
minha filha tão feliz como naquele dia.
O mundo, finalmente, parece estar entrando nos eixos.
— Prontinho, amor. Está linda — elogio, depois de fazer duas
tranças laterais.
— Posso ver TV?
— Pode sim. Mas não aumenta muito o volume, para não
atrapalhar o sono do tio, está bem?
— Sim.
Ela corre para fora e quando começo a dobrar seu pijama,
meu celular toca.
Abro um sorriso ao ver o nome de Camila. Tito conseguiu
entrar em contato com ela e passou o meu novo número. Mas com
a restrição de que ela tenha cuidado a me ligar.
Pode ser excessivo da minha parte, mas acho que Edgar tem
olhos e ouvidos em todo lugar.
— Oi, Camila.
— Juliana. Como é bom ouvir a sua voz. Tive tanto medo de
que algo muito ruim tivesse acontecido com vocês duas.
— Não nos aconteceu nada, Camila. Graças ao Tito.
— Ele me disse. Esse homem caiu do céu.
— Sim — confirmo, sorrindo. — Camila, Edgar te procurou?
— Eu fui até lá no dia seguinte ao seu sequestro. Não tinha
visto jornal, por isso, cheguei para um dia normal de trabalho. Tinha
gente por todo lado e, assim que me viu, veio questionar se eu sabia
do seu paradeiro. Fiquei tão surpresa e assustada, que ele acabou
contornando e disse que estava perguntando se eu sabia de alguma
ameaça que você estava recebendo nos últimos dias. Respondi que
não, pois não tinha intimidade com a senhora. E ele me dispensou.
Eu pedi a ele que me enviasse notícias da Emilly, para reforçar que
não tínhamos contato. Ele acreditou, eu acho. Dois dias depois,
Juarez veio na minha casa trazer meu salário e um bônus pela
demissão. Disse que a rescisão seria feita pela sua assistente.
— Fez muito bem, Camila. Quanto menos ele souber, melhor.
— Como a senhora está? De verdade.
— Voltou a me chamar de senhora, Camila?
— Desculpe.
— Somos amigas. Nada de formalidade. E, respondendo à
sua pergunta, estamos bem. Tito é o melhor homem que poderia ter
entrado na minha vida.
— Vocês estão...?
— Sim, estamos namorando. Estou mais feliz do que eu
achei que poderia.
— Eu fico tão feliz pela se... por você, que merece muito. Mas
preciso perguntar, você não tem medo dele?
— Tenho. Não por mim, mas porque sei como ele é um
monstro, que pode fazer mal a todos ao meu redor, principalmente,
ao Tito. O que me acalma, é que as eleições estão próximas.
Acredito que isso vai o manter ocupado.
— Tomara.
— E você? Como está fazendo, sem o emprego? —
pergunto, realmente preocupada, pois sei que Camila tem uma mãe
que depende dos seus cuidados.
— Consegui um novo emprego em um condomínio mais
perto da minha casa. Claro que se a senhora precisar de mim, eu
volto na mesma hora, mas estou gostando muito da nova garotinha.
Ela se chama Sofia e é esperta como a Emilly.
— Que bom, Camila. Você foi maravilhosa na minha vida e
na de Emy, mas no momento, a queremos como amiga.
Infelizmente, não tenho condições nenhuma de pagar uma babá.
— Eu imagino o que esteja passando. Até o carro deixou
para trás.
— Não quero nada que venha daquele dinheiro sujo. Tenho
certeza de que logo depois que ele me der o divórcio, poderei voltar
a trabalhar e dar uma vida digna para Emilly.
— Com essa voz maravilhosa que você tem, tenho certeza
de que logo estará ganhando muito dinheiro.
Apenas sorrio com o pensamento. Seria maravilhoso retomar
o sonho que me foi arrancado.
— O Tito passou o endereço daqui?
— Sim. Assim que tiver uma folga, passo para dar um beijo
na princesa. Estou com saudade dela. Agora, tenho que desligar,
Juliana. Acabei de chegar na porta da minha nova patroa.
— Bom trabalho, Camila. Fique com Deus.
Desligo e me sinto mais animada com a história da carta para
Edgar. Já consigo visualizar Camila e eu conversando em um
parque, vendo Emilly e a mocinha, Sofia, brincando.
Levanto da cama e abro com cuidado a porta do quarto do
Tito. Quero dizer, do nosso quarto. Desde que voltamos da fazenda,
Emilly mesmo já me enxotou do “quarto dos sonhos” dela. Disse que
era para eu continuar dormindo na “nossa” cama antiga. Minha filha,
nem ao menos, se deu conta que eu passaria a dormir com o Tito.
Pois, durante todos os dias que passamos aqui, ele dormiu no sofá.
Estou mais aliviada em saber que não estamos mais incomodando a
esse ponto. Vê-lo esparramado de bruços e com apenas um short,
sinto meu coração acelerar.
O que será que ele viu em mim? Ele é lindo. Carismático.
Tem um corpo de dar inveja a muitos homens por aí e, o mais
importante, tem um coração enorme. Foi muita sorte a minha,
encontrar um homem assim, depois da experiência péssima que
vivi.
Passo meus dedos pelos cabelos curtos e macios e sorrio,
sozinha, ao me lembrar da noite que passamos juntos na cabana.
Nem nos meus sonhos eu imaginava que o sexo poderia ser tão
prazeroso.
Não era virgem quando me casei com Edgar. Tive um
namoradinho na adolescência e, como uma forma de me rebelar
contra a opressão dos meus pais, tive a minha primeira vez com ele.
Que foi horrível, por sinal. As próximas, que não foram tão próximas
assim, ficaram um pouco melhor, mas nada comparado a
experiência que Tito me proporcionou. As relações com Edgar não
contam. Na verdade, nem mesmo posso chamar aquilo de relação.
Para mim, todas foram abusos sexuais. Desde o primeiro ato no dia
do meu casamento. Ele nunca sequer tentou me dar prazer. Sempre
foi bruto, egoísta e violento.
— Você foi um anjo que veio para me salvar — sussurro,
para que eu não o acorde, deslizo a ponta dos dedos pelo pescoço
e desço pelas costas malhadas e maravilhosas.
Sei que é uma loucura falar de amor, mesmo conhecendo
Tito há tão pouco tempo, mas quando ele se declarou e disse que
iria me amar a noite inteira, não estava mentindo. Ele me venerou
por toda a noite. Até no momento em que estávamos dormindo,
enrolados um no outro, ele dava um jeito de fazer carinhos e me
manter amada em seus braços. Era como se aquele ato fosse a
coisa mais certa do mundo. Senti que, naquele momento, a minha
vida entrou nos eixos. E não poderia ter acontecido de uma forma
mais prazerosa.
Eu gozei.
Nem mesmo acredito que isso aconteceu. Nunca tive muitas
amigas, muito menos, uma relação aberta com a minha mãe. Por
estes motivos, acabei me acostumando com “aquilo”. Achando que
sexo era para o homem. Foi Rebecca que me esclareceu,
completamente chocada, que mulher também sentia prazer no ato
sexual.
Minha vontade é de pegar o telefone, ligar para a minha
amiga e gritar a novidade: não só fiz amor, como me senti a mulher
mais amada e querida do mundo.
Prendo a respiração, quando meus dedos chegam ao cós da
bermuda e agradeço por ele estar de bruços na cama. Volto,
tocando a lateral do corpo e chego ao antebraço, que estão
dobrados, abraçando o travesseiro.
— Dum Spiro Spero — leio, de forma desajeitada,
contornando cada letra desenhada, com a ponta do dedo.
O que será que isso significa? — penso, analisando a
tatuagem.
De todos os desenhos que ele tem espalhados pelo corpo,
esse é o mais bonito, na minha opinião.
— Enquanto respiro, há esperança.
— Desculpe. Não queria te acordar — digo, assim que ouço a
sua voz rouca.
— Não acordou. Eu estava de olhos fechados, aproveitando
o carinho de suas mãos — brinca e abre os olhos, focando
diretamente nos meus.
Não sei como é possível, mas perco o ar toda vez que ele me
encara com intensidade.
— Quem estava aproveitando era eu — devolvo a
brincadeira, voltando a passear meus dedos pela tatuagem.
— Como é mesmo o significado? — volto a perguntar.
— Enquanto respiro, há esperança.
— Que frase linda. Combina com a minha vida.
— Eu concordo — diz e me puxa para o seu lado na cama. —
E devo confessar que fiz essa um pouco depois de te conhecer.
Me aconchego em seus braços, sentindo que estou no
melhor lugar do mundo.
— Você é um homem perfeito.
— Estou longe de ser perfeito, Ju. Mas prometo ser o melhor
homem para você — diz, me olhando nos olhos, com tanta
sinceridade, que quase morro de amores ali mesmo.
— Mamãe sapeca — diz Emilly, parada no batente da porta.
— Disse para eu não acordar o tio e acordou ele.
— Eu acordei sozinho, minha princesa. Agora vem aqui e
deita com a gente.
Não consigo segurar a risada, em tomar uma advertência da
minha filha de apenas quatro anos.
Dou um espaço, quando ela começa a entrar no meio da
gente e ficamos os três ali, sorrindo como bobos, pelo simples fato
de estarmos abraçados um no outro.
— Ju, pega meu celular no criado-mudo.
Estico o braço e faço o que ele me pede, entregando o
aparelho a ele, em seguida.
— Sorriam — diz, com a câmera posicionada bem acima de
nós.
Fazemos posses e caretas, no caso da Emilly, e Tito tira
várias selfies. Abaixa o celular para ver o resultado e fico
emocionada com a felicidade eternizada nas fotos.
Sem dúvida, para mim, essas fotos são o retrato da
felicidade.

— Então você está feliz? — questiona Flávia.


— Como nunca estive antes.
— Isso é muito bom, Juliana.
— Se pudesse colocar em uma palavra o motivo da sua
felicidade agora, qual seria?
É estranho, porque se eu tivesse divagando sozinha sobre
isso, diria que a palavra seria do homem maravilhoso que dorme ao
meu lado todos os dias, porém, aqui, depois de me abrir com a
Flávia, psicóloga da ONG, por mais de uma hora, a palavra que me
vem à mente, é totalmente outra.
— Liberdade. É isso que me faz feliz. A liberdade de andar de
pijama pela casa. A liberdade de amar quem eu quiser. A liberdade
de pegar o meu violão e cantar sem ter medo de represália. A
liberdade de poder me assumir como mulher, quando Tito me beija
ou me toca. A liberdade de rolar pelo chão com a minha filha,
brincando e poder vê-la rir como uma criança de sua idade. Enfim, a
liberdade de viver a vida de um jeito literal.
— Mas, pelo o que você me contou, você ainda não alcançou
a liberdade de andar na rua livremente. Não te falta esse tipo de
liberdade?
Passo a mão pela peruca loira, que fiz questão de colocar
antes de sair de casa, e tenho consciência que realmente me falta
isso. O famoso ir e vir, que me foi arrancado.
— Claro que sinto falta de poder sair, levar Emilly a um
parque, em uma sorveteria, ou até mesmo no cinema. Porém, se eu
comparar a vida que eu tinha antes onde tudo isso era possível,
com a que tenho agora, ainda assim, preferia manter do jeito que
está no momento.
— Isso mostra uma maturidade muito grande em você. Fico
muito feliz em ver que em poucos meses você evoluiu tanto. Pegou
uma oportunidade com unhas e dentes e está fazendo de tudo para
que ela não escape. Estou muito orgulhosa.
Agradeço o tempo de Flávia e saio de seu consultório,
improvisado, mais feliz e confiante. Se eu tivesse o conhecimento
que existiam lugares como este, assim que eu me casei e tornei-me
refém de violência doméstica, quem sabe eu não tivesse demorado
tanto para dar um basta em tudo isso. Mas como diz William
Shakespeare: “Lamentar uma dor passada, no presente, é criar
outra dor e sofrer novamente.”. Não quero mais pensar no que eu
poderia ter feito antes. O importante é o agora.
Estou me redescobrindo, tanto como pessoa, quanto como
mulher. E isso está sendo magnífico.
— Me desculpe — digo, enquanto esbarro em alguém, na
saída da ONG.
— Não tem problema. — A garota abaixa a cabeça e joga os
cabelos no rosto.
— Você está entrando?
— Oh, não! Eu... vou embora.
— Espere — digo, segurando em seu braço e vejo que ela se
retrai. Do mesmo jeito que eu fazia. — Entre. Vem. Eu vou com
você.
Seus olhos encontram o meu e me vejo refletida naquela
garota, principalmente, pelo olho arroxeado.
— Não sei se devo — confessa.
— Vai por mim, você deve. Já passei exatamente por esse
embate em frente à esta casa. E vou te dizer mais, fui salva depois
que entrei aqui.
— Eu não preciso ser salva. Só preciso...
— Vem. Vamos tomar uma água e conversar melhor.
Ela aceita o meu convite e voltamos para dentro, andando pelo
corredor lateral. O dia está quente e a desconhecida está vestida
com um moletom de, pelo menos, dois números a mais que o seu
manequim.
— É lindo aqui. Uma amiga me indicou este lugar, todos os
dias passo aqui na frente e nunca tenho coragem para entrar —
confessa, com um fio de voz.
— Eu te entendo. Também passei por isso.
— Sério?
— Mais sério do que você imagina.
Guio-a por uma porta lateral, onde tem uma sala bem aconchegante
com livros e uma máquina de café.
— Sente-se. Como é o seu nome? — questiono.
— Vanessa.
— O meu é Juliana.
Sorrio e arranco a peruca. Mesmo sabendo que terei um trabalhão
para colocá-la perfeitamente, como faz a Margot.
— Por que você usa peruca?
Resolvo me abrir. Se eu quero que ela me conte o que está
acontecendo em sua vida, devo fazer isso também.
— Fugi de casa com a minha filha e ainda estou na fase de me
esconder do meu ex-marido.
— Por que fugiu?
— Além de apanhar há cinco anos? — faço uma pergunta
retórica e sorrio um pouco, apenas para quebrar o clima.
— E o que te fez sair depois de cinco anos?
— Ele atingiu a minha filha. E eu jurei em seu nascimento que
ele nunca faria com ela o que fazia comigo, desde o dia do
casamento. Você tem filhos?
— Não. Estamos juntos apenas há seis meses.
— Agora é a minha vez de perguntar, qual o motivo de você
não “sair”?
— Não. Ele não me bate. Isso aqui é porque senti uma tontura
e caí — afirma, como se já tivesse a resposta ensaiada na sua
cabeça.
— Eu sei. Já “caí” várias vezes em minha antiga casa. Teve
uma vez que até uma costela quebrada eu tive.
Seus olhos se ampliam e duas lágrimas escorrem. Coloco a
mão em seu joelho, em sinal de consolo.
— Ele não é assim. Eu o amo tanto e ele me ama também.
Sempre pede desculpas — confessa, chorando. Me levanto, pego
um copo de água e entrego a ela, que vai se acalmando aos
poucos.
Para a minha sorte, Flávia entra na sala, pela porta que está
atrás da garota. Agradeço por isso, pois a minha experiência
abrange apenas marido abusivo, sem um pingo de amor no meio.
— Com licença, posso me sentar com vocês? Estou doida por
um café — diz Flávia.
— Eu tenho que ir embora. — Vanessa se levanta
rapidamente.
— Pode ficar tranquila, Vanessa. Essa é a Flávia. Ela é
psicóloga e voluntária aqui na ONG. Ela foi a primeira pessoa a me
ouvir, no dia que decidi entrar neste lugar. Te garanto que ela é a
melhor ouvinte do mundo.
— Prazer, Vanessa. Eu costumo pagar para Juliana falar bem
de mim — brinca e vejo que a garota relaxa um pouco.
— Querem um café? — Ela caminha até a máquina e começa
a preparar as bebidas. Entrega as nossas e depois de voltar a pegar
a sua, se acomoda ao meu lado.
— Então, Vanessa. Você mora onde?
Fico tranquila em ver que a psicóloga vai pelo caminho mais
seguro e não força.
Aos poucos, Vanessa vai se abrindo e conta que conheceu o tal
Clayton no seu serviço e que o chamou para morar com ela, duas
semanas depois. As brigas, por ciúme, se tornarem diárias, assim
como os pedidos de desculpas.
— O que você acha de irmos até o meu consultório. Se você
quiser, a Juliana pode nos acompanhar.
— Não precisa. Eu já entendi que vocês só querem me ajudar.
Obrigada, Juliana.
Ela me abraça e fico feliz de ter ajudado alguém com um pouco da
minha trajetória. As duas se encaminham para os fundos e vou ao
banheiro, recolocar a minha peruca, antes de pegar o carro e seguir
para casa. Tenho um almoço para preparar, para o barman gostoso
lá de casa.

— Oi, pai — Tito atende o celular, sorridente, mas logo o seu


sorriso se fecha novamente. — O que ele fez agora?
Fico em alerta, só em pensar que o assunto pode ser
Edgar.
— Entendi. Mande o link que vou assistir junto com ela.
Emilly está no quarto, brincando. Obrigado, pai.
— O que aconteceu, Tito?
— Sente-se aqui, ao meu lado — pede e eu levanto da
cadeira que estou em sua frente, me acomodando no lugar que ele
indicou.
Observo-o mexer no celular por um instante e, depois, o
apoia na mesa, para que a tela fique visível para nós dois.
“— Estamos com o Edgar Gonzales, o empresário de Bela
Vista, que teve a esposa e a filha de apenas 4 anos, raptadas dentro
de sua própria casa. Conte-nos sobre esse desfecho, Edgar.”
Percebo pela legenda que é um canal da internet, que faz
entrevistas e matérias sobre políticos, e que esse vídeo foi
publicado ontem à noite.
“— Boa noite, Sandra. Foi isso mesmo que você relatou. Sofri
durante um mês com medo de que minha esposa e minha filha
estivessem mortas. Paguei o resgate que me indicaram, mesmo
com a polícia dizendo para eu não o fazer. Mas eu não podia negar,
meu medo falou mais alto. — Ele abaixa a cabeça e seca os olhos
com um lenço. Um mentiroso nato. — Mesmo com o resgate pago,
os canalhas não as devolveram. Por sorte, ainda temos almas
caridosas no mundo. O tenente Claudemir Rodrigues, que estava à
frente do caso e um amigo de longa data, recebeu uma denúncia
anônima e, com isso, achamos as duas, em um galpão
abandonado, no estado vizinho”.
A apresentadora toca o joelho dele, em sinal de consolo, e
meu estômago se revira ainda mais.
“— E elas estão bem?”
“— Graças a Deus.”
— Não sei como ele consegue citar o nome de Deus, sendo
que é um ateu assumido — resmungo, sem a capacidade de me
falar e Tito segura a minha mão.
“— Seguimos para lá, sem reforços. Apenas o tenente e eu,
para averiguarmos se não era uma pista falta. As encontramos bem,
graças a Deus, porém, as duas estão em choque e muito abaladas.
Depois de serem avaliadas por um médico. Elas foram descansar
em um lugar afastado e seguro”.
“— Então, não teremos a chance de uma entrevista
exclusiva?”
“— Infelizmente, não, Sandra. Elas apenas prestaram
declarações ao tenente e agora vão descansar, para que esse
episódio seja excluído de suas mentes. Sinto-me tão culpado, os
dois tesouros da minha vida, passaram por isso, apenas porque
alguém queria me atingir. Isso é um absurdo. E eu espero que esses
canalhas sejam capturados e paguem por isso, perante à justiça do
nosso país.”
“— Eu também espero. Gostaria de agradecer ao Edgar por
vir nos contar pessoalmente o desfecho desse sequestro que
chocou Bela Vista.”.
— Desliga isso, Tito. Não tenho mais estômago para tanta
mentira.
Ele faz o que eu peço e me levanto, andando pela sala, em
busca de ar. Edgar não conhece limites.
— Ei. Vem aqui — chama o meu lindo namorado, depois de
se acomodar no sofá. Aproximo-me e ele me puxa para o seu colo.
Estava tudo tão bem. Almoçamos tranquilos. Contei a Tito
sobre a garota da ONG, eu estava tão feliz. Faz uma semana que o
pai de Tito encaminhou a carta, eu já havia até perdido as
esperanças sobre o recuo do Edgar. E vê-lo agora, faz a raiva
crescer em meu peito novamente, por tudo o que vivi em suas
mãos.
— Sem dúvidas, esse homem é um idiota e eu ainda terei o
prazer de dar uns belos socos na sua cara. Mas tente ver isso pelo
lado positivo. Acabou essa história ridícula de sequestro. Com a sua
foto na TV e você com medo de ser reconhecida por aí. Isso é uma
vitória. Se ele cedeu a isso, o próximo passo será o divórcio. Logo
você estará 100% livre desse homem.
— Será? — Ele disse com tanta convicção, que me pego
querendo acreditar que o pesadelo está acabando.
— Tenho certeza que sim. Em breve, você será somente
minha.
— Eu já sou sua — afirmo, beijando levemente os seus
lábios.
— Este é o começo de uma nova fase — diz Tito, fazendo
com que meu coração se encha de esperanças. — Vamos
comemorar — sussurra, fazendo os pelos do meu corpo se
arrepiarem em antecipação.
Ele se levanta, comigo em seus braços, porém, o som do
interfone nos faz parar.
— Quem será? Não estou esperando ninguém — diz, com o
cenho franzido.
— Acho melhor descobrir. — Ele me coloca no chão e
atende.
— Sim. Polícia?
Um alarme enorme se instala na minha mente.
— Diga que vou descer. — Fica em silêncio por um instante e
solta o ar. — Ok. Pode liberar.
— Polícia? — digo, em pânico.
— Fica calma. Pegue a Emilly e fique na área de serviço. Se
eles realmente vieram atrás de você, saia pelo elevador de serviço e
pegue meu carro. Você é uma pessoa livre e eles nunca poderiam te
impedir de sair daqui. Vá para a casa dos meus pais. Primeiro,
escute o que eles vieram fazer. Ok?
Assinto e corro para o quarto, dando graças a Deus quando
encontro Emilly dormindo, com a TV ligada.
Pego-a nos braços e faço o que o Tito me pediu, com a chave
de seu carro no bolso.
— Boa tarde — Tito cumprimenta, assim que escuto a
campainha tocar.
— Boa tarde. O senhor é o Vitor Mancine Costa?
— Sim. No que posso ajudar vocês?
— Você conhece esse homem?
Apuro os meus ouvidos e a curiosidade quase me corta ao
meio, quando Tito permanece em silêncio por um tempo.
Será que estão falando de Edgar?
— Sim. Conheço. O contratei para fazer uma investigação
para mim. Por quê?
— Ele foi encontrado morto em seu escritório e a última
pessoa para quem ele tentou ligar, foi para o senhor. Gostaria que
nos acompanhasse até a delegacia, para alguns esclarecimentos.
Tito
Morto?
Fico olhando para o homem à minha frente, sem saber o que
falar. O detetive está morto e algo me diz que Edgar tem o dedo
nisso. E o pior... Sinto que vou me ferrar.
— Estou à disposição para ir até a delegacia. Não tenho nada
a esconder e será um prazer ajudar a colocar o assassino dele na
cadeia. Me passem o endereço, que vou no meu carro.
— Se quiser, pode ir conosco...
— Isso é uma intimação? — questiono, começando a perder a
paciência.
— Não. Apenas um depoimento informal.
— Então, não vejo problemas em ir até lá de condução própria,
não é mesmo?
Os dois policiais trocam olhares exasperados e eu estou pouco me
lixando para eles. Não devo nada.
— Ficaremos aguardando.
Aceno para os dois homens e fecho a porta do apartamento,
encontrando Juliana, pálida, saindo da cozinha.
— Foi ele, não foi?
— Deixe que eu coloco a Emilly na cama. Sente-se aqui. —
Pego a nossa garotinha dos seus braços e sigo para o quarto novo
da casa. Emy gosta tanto daqui, que sempre que acorda diz que
dormiu bem, pois tem o quarto mais lindo do mundo, isso enche o
meu peito de orgulho.
Deito o seu pequeno corpo da cama e, depois de depositar um
beijo suave em sua testa, volto para a sala.
Não posso dizer que o que acabei de descobrir não me
abalou. Abalou muito. Porém, se eu demonstrar isso, deixarei
Juliana ainda mais nervosa.
— Como ele foi capaz de fazer isso? E o pior, ele já sabe de
você — despeja de uma vez só.
— Não vamos nos precipitar. São apenas esclarecimentos.
Com certeza, acharam as ligações que realizamos, no celular dele.
Vou até lá, falo o que sei e volto. Não tem motivo para você se
preocupar.
— Tito, se o Edgar descobriu que estava sendo investigado por
ele e que quem encomendou a investigação foi você, ele matou
esse homem, apenas para te dar um aviso. E, na pior das hipóteses,
ele vai tentar te incriminar.
— Fica calma. — Dou um beijo leve em seus lábios e seguro
suas mãos geladas. — Vai dar tudo certo.
— Eu vou denunciá-lo. Assim, a palavra dele não terá peso
algum — diz, prestes a entrar em uma crise de pânico.
— Ju, meu amor, não quero que você se precipite por nada.
Tudo ao seu tempo, ok? Vou até lá ver o que vai acontecer, depois,
juntos, pensaremos em algo. Tudo bem?
Não muito convicta, ela concorda e vai até o banheiro jogar
água no rosto.
Saco o celular e ligo para o meu pai, rapidamente. Explico a
situação e peço que ele me encontre na delegacia em 20 minutos.
Aproveito e ligo para Diogo, pedindo que venha para o meu
apartamento. Não confio em deixar Juliana sozinha, com a
possibilidade de Edgar saber onde ela está.
— Estarei aí em dez minutos — diz, solícito, e eu agradeço por
ter um amigo tão bom.
— Não abra a porta para ninguém. Vou passar na portaria,
para avisar que está proibida a entrada de qualquer pessoa, exceto
o Diogo. Ele ficará aqui com vocês, até eu voltar.
Dou um beijo demorado e meu coração dói, ao imaginar que
se esse cara realmente quis me incriminar, poderei não voltar para
os braços da minha deusa do fogo. Dirijo com cuidado. Preferi vir de
carro, para organizar os meus pensamentos e, assim que estaciono,
vejo meu pai falando ao celular, em frente à delegacia.
— Oi, filho. Já pensou no que vai falar?
— A verdade. Não tenho nada a esconder.
— A verdade envolve a Juliana. Você vai abrir o jogo com
eles?
— Vou falar apenas o essencial. Não quero prejudicá-la e nem
expor a história dela. Ela tem que tomar essa iniciativa. Até porque,
quando contratei Antônio, eu não tinha nada com ela.
— Certo. Deixe que eles conduzam a conversa e não fale nada
mais do que lhe for perguntado.
— Obrigado, pai.
Ele aperta o meu ombro, para mostrar que estamos juntos
nessa, e entramos no local. Dou meu nome e ficamos aguardando
por alguns minutos, até que uma mulher, com os seios saltando
para fora da camisa social, nos conduz para uma sala no final do
corredor.
— Ora, ora. Trouxe até advogado. Que rápido — tira sarro, um
homem no canto da sala, de terno e gravata.
— Algum problema com advogados? — questiona o meu pai.
— Não. Nenhum. Só acho estranho que tenha arrumado um
tão rápido.
— David, espere lá fora — ordena o homem, sentado atrás da
mesa, que eu imagino ser o delegado.
— Mas eu pensei...
— Daqui a pouco eu te chamo. Vai tomar um café e arejar a
cabeça
O idiota do David sai, me encarando e eu não desvio os olhos.
Algo nesse homem me cheira mal.
— Podem sentar, por favor. Sou Inácio, o delegado
responsável pelo caso. Desculpem pelo David, mas devo concordar
com ele, não havia a necessidade de um advogado. São apenas
algumas perguntas.
— Sou Orlando, o pai de Vitor. Quis acompanhá-lo.
— Ah sim. Vamos começar, então. Como conheceu Antônio
Carreira?
— Trabalho em um PUB e alguns meses atrás, durante uma
apresentação, um homem entrou e arrastou a garota que estava
cantando, pelos cabelos. Depois soube por um amigo dela, que a
mesma sofria violência doméstica e prometi a mim mesmo que
mandaria aquele cara para a cadeia. Procurei os serviços do
detetive e pedi que ele investigasse a vida daquele homem.
— Sem conhecer a garota, você quis se meter na vida dela? —
questiona o delegado.
— Com todo o respeito, eu achei que as perguntas eram sobre
o detetive.
— Violência doméstica também é crime, por que essa garota
não denunciou?
— Ela tem os motivos dela, e o mais forte, é que o marido é
cheio da grana e com vários amigos policiais — cuspo as palavras.
— Vitor — diz meu pai, calmamente, e eu respiro fundo.
— Qual foi a última vez que viu ou falou com Antônio? —
questiona o delegado, depois de ficar um tempo me analisando, em
silêncio.
— Nos falamos no começo da semana. Ele informou que
estava seguindo uma pista muito forte e que em breve me faria um
relatório detalhado, para encerrar o trabalho comigo.
— Ele realmente estava fazendo exatamente isso, quando foi
morto, com um tiro na testa — diz e joga uma foto na minha frente,
em que mostra o detetive em sua cadeira, com os olhos abertos e
um furo na testa.
— Como chegou até mim?
— Não foi fácil, até porque, ele trata de todos os seus clientes
com siglas e códigos, além de não guardar dados pessoais nos
documentos, porém, achamos um celular escondido em um fundo
falso, que foi descoberto por ter sido fechado rapidamente. Como se
tivesse sido surpreendido. O número selecionado era o seu, mas ele
não conseguiu concluir a ligação. Achamos que ele queria dizer algo
importante a você, mesmo sendo tão tarde da noite, ou que deixou
aquilo como uma pista, para que o seu nome fosse descoberto. O
que me diz?
— Eu era cliente dele e, com certeza, aconteceu algo que ele
queria ter me avisado.
— Temos que concordar que é um tanto suspeito, pelo horário
que ele estava trabalhando naquele momento.
— Não é suspeito, eu sou barman, trabalho no turno da noite.
O detetive me ligava durante o meu trabalho, quando queria falar
comigo.
O delegado escreve algo em um papel e me encara. Meu pai
faz alguma pergunta, mas não consigo ouvir. Minha cabeça está no
maldito Edgar e como ele descobriu sobre a investigação. Se o
celular estava escondido, ainda resta uma esperança de ele não
saber o paradeiro da Juliana. Munido de confiança, me intrometo na
conversa dos dois.
— Quem fez isso, não teve acesso a quem era cliente dele?
— O que está querendo perguntar, Sr. Vitor?
— Quero saber se a pessoa que o matou, soube que eu tinha
contratado o detetive, do mesmo modo que vocês descobriram?
— Está com medo de que o marido da mulher venha atrás de
você?
Fico em silêncio, apenas o encarando e ele entende a minha
resposta, mesmo que eu não tenha dito nada.
— Não sabemos como foi a morte e nem se ele disse algo
antes de morrer, por isso, não posso afirmar nada. O que quero
saber, é o que você estava fazendo dois dias atrás, das 21h às 23h?
— Está insinuando que meu filho é um suspeito?
— Estou apenas fazendo o meu trabalho.
— Não tem problema — acalmo o meu pai. — Eu estava
trabalhando. Posso provar.
— Ótimo — diz, se levantando e nós fazemos o mesmo. A
porta é aberta e vejo pelo canto do olho, o idiota da hora que
chegamos, entrando. — Se for necessário, o senhor será chamado
novamente. Será bom já ter a prova do álibi em mãos.
— Já terminou?
— Sim, David. Até mais, Dr. Orlando — diz apertando a mão
do meu pai e, quando vai fazer o mesmo comigo, sinto um papel
sendo colocado na minha mão. — Essa mulher é espetacular.
Indique para a sua amiga. — Usa um tom baixo e acredito que seja
para que o tal David não ouça.
Aceno e, nem mesmo abro a mão, até estar na calçada.
Mariana Dantas
Advogada especializada em direito das mulheres
Quem sabe, ela não é a pessoa certa para ajudar Juliana?
— Tem tempo para um café, filho?
— Claro, pai.
— Ótimo. Te encontro naquele café, na esquina da sua casa.
Concordo e sigo para o meu carro. Guardo o cartão na
carteira e torço para que esse delegado realmente tenha se
importado, a ponto de indicar uma pessoa do bem. Já passou da
hora de Emilly e Juliana voltarem a ter liberdade para ir e vir. Hoje,
quando ela se ofereceu para denunciar Edgar, por muito pouco, eu
não aproveitei a oportunidade e deixei que ela fizesse isto.
Entretanto, se a minha ruiva fizesse mais do que está preparada,
poderia se quebrar e eu não iria me perdoar nunca.
Dou partida no carro e, quando passo pela entrada da
delegacia, vejo o tal David parado e me encarando. Não sei o
motivo, mas algo nesse homem não me cheira bem.
Ignoro o idiota e coloco o carro na garagem do prédio. O
centro está tão cheio, que eu ficaria mais tempo procurando uma
vaga, do que voltar caminhando do prédio até a cafeteria.
— Você tem sorte em morar em um lugar tão acessível —
elogia meu pai, depois de chegar ao lugar, uns cinco minutos depois
de mim.
— Sempre gostei disso, pai. Mas, de uns tempos para cá,
daria tudo por um pouco de sossego.
— Sei bem como é. Passei exatamente por isso — diz,
sorrindo e chama a garçonete. Fazemos os nossos pedidos e
espero ela sair, para saber mais sobre essa conversa.
— O que quis dizer, pai?
— Quer dizer, que já fui jovem como você. — Sua risada é tão
contagiante, que a minha tensão pelo assunto que fomos tratar na
delegacia, diminui drasticamente.
— Você, jovem? Jura? Achei que fazia tanto tempo, que não
se lembrava mais — tiro sarro e não consigo segurar a risada.
— Mocinha, quantos anos você daria para mim? — pergunta
ele à garçonete, que se aproxima com os nossos cafés.
— Uns 40 — responde, embarcando na brincadeira e o que é
melhor, sem nenhum charme.
— Viu, 40. Somos praticamente irmãos. Obrigado, querida.
Abaixo a cabeça a cabeça, rindo, e a garota sai da nossa
mesa, fazendo o mesmo.
— Deixa a Dona Margot ficar sabendo, que você fica jogando
charme por aí — alfineto.
— Nem brinca com isso. Sua mãe é capaz de torcer o meu
pescoço.
— Só torcer o seu pescoço? Aposto que ela faria mais que
isso. Mas, afinal, quando foi que você viveu na bagunça e quis
mudar para tranquilidade?
— Eu nunca disse que vivi na bagunça.
— Você entendeu, pai. — Dou um gole no meu café, me
deliciando com o sabor.
— Quando eu conheci a sua mãe, dividia o apartamento com
mais quatro pessoas.
— Amigos?
— Amigos e amigas. Fazíamos festas de quinta a domingo.
— Olha só, e eu achando que estudantes de Direito eram
todos nerds.
— Dentro da faculdade, eu era — brinca. — Mas, voltando ao
assunto, morávamos em um apartamento no centro, como você,
tínhamos bares e boates à nossa disposição, além do próprio
apartamento. Sua mãe bateu no apartamento errado uma manhã,
depois de uma festa daquelas. Estava meio zonzo, quando abri a
porta, achei que tinha visto um anjo. Ela era a mulher mais linda que
eu já havia visto.
— Você a chamou para sair, começaram a namorar dois
meses depois e se casaram logo depois da sua formatura. Eu já
conheço a história, pai.
— Aí que você se engana, Tito. Não foi tão fácil como você e
sua irmã sempre imaginaram. Durante esses dois meses em que
estávamos nos conhecendo, Margot me fez ver a vida por outro
ângulo. Éramos muito novos, mas sua mãe sempre foi madura o
suficiente por nós dois. Ela odiava as minhas amigas, mas nunca
pediu que eu me mudasse. Foi bebendo da sua vivacidade, que eu
aprendi a viver também e aproveitar as melhores coisas da vida,
inclusive, o sossego. Primeiro, comprei uma casinha pequena, onde
vivemos os primeiros meses de casados. Depois que as coisas se
ajeitaram na nossa vida, compramos a casa que vocês cresceram.
Um bairro residencial, longe do barulho e da badalação, onde sua
mãe e eu construímos uma vida juntos.
Encaro o meu pai, achando a história linda e digo com
sinceridade, pois sempre admirei o amor dos dois. O que não estou
entendendo, é o motivo de ele ter resgatado essas memórias agora.
— Assim como você, filho, eu soube a hora de sair da vida de
solteiro e passar a ter uma vida familiar. Eu achei que iria demorar
mais para você construir uma família, até porque, há um ano, você
nem mesmo queria saber de uma namorada. Devo dizer que o
homem lá de cima, fez um trabalho excelente em te presentear com
uma família inteira de uma vez. E eu não poderia estar mais
orgulhoso do que agora, em ouvir você dizer que quer um pouco de
sossego. Isso significa que você já está pronto para o próximo
passo.
Meus olhos se arregalam, mesmo sem querer.
— Você acha?
— Acho. Você não?
Penso por alguns instantes e não acho as palavras certas para
responder a essa pergunta.
— Vitor, você me disse que quer sossego. Antes da Juliana e
da Emilly morar com você, isso já tinha passado pela sua cabeça?
— Não. Sempre adorei o meu apartamento.
— Você ainda tem dúvidas?
— Pai... Eu acho que no meu caso não é tão simples assim.
Eu realmente vejo o meu futuro em um lugar maior com a Juliana e
a Emilly, porém, acho que a Ju ainda tem uma lista enorme de
receios para superar antes de... Como você disse?
— Dar o próximo passo.
— Isso.
— Só de ela ter procurado você para ajudá-la, já significava
algo. Vocês estarem namorando, já atesta que você não está
totalmente certo. Se me permite um conselho, dê tempo ao tempo.
Caso ela não reaja do que jeito que você quer, pense que já estava
preparado para isso.
— Falando em preparado, como acha que devo me preparar
para essa história da morte do detetive. — Mudo de assunto e ele
apenas sorri, sabendo que estou encerrando a conversa, como um
completo covarde. Mas não ligo, ainda não estou pronto para falar
com o meu pai sobre tudo o que ando pensando.
— A primeira coisa, é pegar as filmagens do PUB... — começa
a falar, entrando no seu modo profissional e fico mais tranquilo.
Edgar não vai me prejudicar, pois tenho o melhor advogado do
mundo.

— Boa tarde — cumprimento o porteiro, ao passar pelo


saguão, e sigo para o elevador. Faltam poucas horas para ir para o
trabalho e pretendo aproveitar com os meus dois amores. Diogo
ligou há alguns minutos, dizendo que precisava ir embora e eu me
apressei ao sair do café para vir para casa. Agradeci muito ao meu
amigo, ter alguém de confiança por perto é muito bom.
Abro a porta e sorrio ao ver as duas mulheres da minha vida
em um embate.
— Mas, mãe...
— Eu já te disse que é muito feio essa sua birra em não querer
tomar banho.
As duas estão tão entretidas que não percebem a minha
chegada.
— Quem não quer tomar banho? — questiono, atravessando a
sala.
— Tio! Você chegou.
— Cheguei, minha princesa. Cadê meu beijo? — Emilly corre,
se pendurando no meu pescoço.
— Hum. Estou sentindo um cheirinho ruim aqui — brinco,
cheirando o pescoço dela. — Achei que princesas sempre viviam
cheirosas.
— Vou tomar banho para ficar bem cheirosa — anuncia e corre
em direção ao banheiro do corredor. Ele, praticamente, se
transformou no banheiro dela, pois Juliana e eu só usamos o do
meu quarto.
— Obrigada — sussurra Ju, antes de segui-la.
Arranco a camisa, tiro os sapatos e vou para cozinha, procurar
algo para comer, antes de ir para o PUB. Encho uma caneca de café
e tomo um longo gole. Eu queria mesmo uma cerveja, mas como
vou dirigir e trabalhar daqui a pouco, não existe essa possibilidade.
— Como foi lá?
Viro-me ao escutar a voz nervosa de Juliana e não consigo deixar
de sorrir, ao ver seu olhar deslizar pelo meu abdômen.
— Foi do jeito que eu falei que seria. Ele morreu com um tiro
na testa e acharam o celular que nos falávamos. Por isso, vieram
atrás de mim.
— Foi Edgar, não foi?
— Acredito que sim. Mas não acho que ele chegou até mim.
Toda a investigação corria em sigilo. Acredito que ele tenha apenas
descoberto sobre a investigação contra ele e fez uma espécie de
queima de arquivo.
— Você é um suspeito?
— Mesmo que seja, eu estava trabalhando e vou, hoje mesmo,
pedir as câmeras de segurança, fique tranquila. Vem aqui. — A
pego pela mão e, quando seu rosto repousa no meu peito, penso no
que o meu pai me disse mais cedo. Sou fascinado por esta mulher e
quero estar com ela o tempo todo.
Os cabelos de Juliana nos cobrem como se fossem um cobertor e
fico ainda mais louco. Desde a primeira vez que a vi, seus cabelos
longos e vermelhos me encantaram.
— Quanto tempo dura o banho de Emilly? — pergunto,
mergulhando as minhas mãos em seu pescoço, sentindo a maciez
de sua pele branca e deliciosa.
— Alguns minutos, por quê?
— Acho que poderíamos aproveitar.
— Tito...
Não a deixo terminar. Deslizo a ponta da minha língua pelo seu
lábio inferior, depois pelo superior e nossos olhos ficam grudados
um no outro. Apenas interrompo o contato, quando minha língua
mergulha em sua boca e inicio um beijo quente e cheio de desejo.
Não importa o que aquele maldito do Edgar faça contra mim. Juliana
é minha e nada e nem ninguém vai nos separar.
Seguro em sua bunda, impulsionando seu corpo para cima e
agradeço aos céus pela saia que ela está usando. Continuamos nos
beijando e resolvo ir para área de serviço, pois para chegar ao
nosso quarto, eu teria que passar pela porta do banheiro e na sala,
corremos o risco da pequena e, curiosa, Emilly nos surpreender.
Coloco-a em cima da máquina de lavar e quando ela vai
começar a argumentar, me ajoelho e afasto os seus joelhos, junto
com a sua calcinha, mergulhando a língua na sua intimidade.
Não há nada mais incrível do que sentir prazer ao dar prazer.
E, com Juliana, isso acontece todas as vezes que eu a toco.
Existem momentos que preciso me segurar para não parecer um
adolescente e gozar nos primeiros minutos, pois esta mulher me
excita ao extremo.
— Ah, Tito! — geme, segurando em seus ombros e intensifico
os movimentos até senti-la gozar. O que é um estímulo para seguir
com a nossa rapidinha.
Puxo uma camisinha da carteira e a coloco em tempo recorde.
Encaixo o meu membro em sua entrada e jogo a cabeça para trás,
para constatar que ela está muito molhada.
— Vem, Ju. Vem comigo, minha gostosa. — Suas pernas
travam à minha volta e o nosso ritmo é frenético. Minha mão
encontra o caminho por baixo de sua blusa e brinco com um mamilo
intumescido, feliz ao ver como isso a enlouquece.
— Ah, Tito. Eu... eu... — Desço o dedo e brinco com o seu
clitóris, até vê-la se desmanchar, mais uma vez, em meus braços.
Não duro mais que isso. O orgasmo lava o meu corpo de forma tão
intensa, que preciso me apoiar na máquina para sustentar as
minhas pernas.
— Isso foi...
— Foi sensacional, minha deusa do fogo — completo, beijando
levemente a sua boca. Ajudo-a descer da máquina de lavar e me
afasto, devagar, para descartar o preservativo.
— Acho engraçado quando me chama assim.
— Por quê?
— Deusa do fogo dá a entender que sou uma mulher exalando
sensualidade.
— E...?
— E que não sou.
— Isso porque você não enxerga o que eu enxergo. A primeira
vez que te vi em cima do palco, tive que me esconder atrás do
balcão, para que ninguém visse como eu estava duro — digo, a
puxando para perto.
— Não acredito — me desafia, com os olhos grudados nos
meus.
— Juro. Você estava vestida toda de preto e com um par de
sapatos, que me fez querer ser o seu tapete. A minha fantasia
sexual perfeita.
Sua risada é incrível, mas logo seu semblante cai.
— Aquele dia...
— Ei — chamo, levantando o seu rosto. — Nada de pensar no
lado ruim daquele dia. Foi a primeira vez que te vi e é apenas nisso
que temos que nos lembrar. O dia que o destino te trouxe para mim.
Seus olhos brilham, com lágrimas não derramadas, e o seu
toque no meu rosto é tão terno, que estimula as palavras saírem da
minha boca, sem eu pensar.
— O que você acha de nos mudarmos daqui?
— Como? — Sua expressão muda para confusa e fico perdido,
sem saber como abordar o assunto.
Que merda! Nunca me senti tão inseguro assim.
— Estava pensando em procurar um apartamento ou uma
casa em um lugar mais calmo.
— Tito, eu não quero que mude a sua vida por minha causa, já
basta você não aceitar o meu dinheiro para ajudar com as
despesas. E... — Levanta o dedo quando tento interromper a sua
fala. — Você já me contou como escolheu este apartamento a dedo.
Se tudo der certo e eu conseguir o meu divórcio com Edgar,
pretendo me mudar para algum lugar e não te atrapalhar mais.
— Você nunca me atrapalhou e pode esquecer essa ideia de
se mudar, vocês já fazem parte do meu dia a dia. Não quero perder
isso, Ju. Por favor.
— Um passo de cada vez, ok? Se você quiser se mudar, por
motivos seus, terei prazer em ajudá-lo a procurar outro lugar, mas
quero que faça isso com a cabeça fria e não por impulso e, quanto
ao meu futuro, vamos ver o que vai acontecer, então,
conversaremos. Pode ser?
— Tudo que você quiser, minha deusa.
— Agora, vou tirar aquela garotinha do banho, antes que ela
acabe com a água do mundo.
— Nossa próxima casa terá um poço artesiano, assim,
poderemos deixar Emilly no banho por horas, para aproveitar —
brinco, tentando beijá-la e ela escapa dos meus braços
rapidamente, rindo, sumindo pelo corredor.
Fico parado ali, como um bobo, pensando no meu futuro com essas
duas. Juliana pode não ter se dado conta, mas Edgar dando o
divórcio ou não, para mim, isso não faz diferença, pois aquele
monstro nunca foi homem para ela. E eu serei. Mostrarei todos os
dias o quanto ela é especial e amada.
— Fica tranquila. Eu estou bem e tenho os seguranças do PUB
aqui. Nada de mal vai me acontecer.
— Tudo bem. Mas tome cuidado, por favor — pede, a mulher
linda que tenho em casa e sorrio para a tela, depois que ela encerra
a ligação.
Incrível, como o pouco tempo que passei com ela, conseguiu
dissipar o nervosismo sobre a morte do detetive, porém, preciso
falar logo com Salomão sobre as gravações, para colocar de vez
uma pedra neste assunto. Guardo o celular e sigo para o escritório.
Bato na porta duas vezes e Salomão grita do outro lado:
— Um minuto.
Coloco as mãos no bolso e fico batendo o pé no corredor.
Quando penso em voltar depois, Karina abre a porta e sai de lá,
arrumando o minúsculo vestido. Solto um suspiro de desgosto e
espero que ela passe por mim, para depois entrar. A sala cheira a
sexo e isso me enoja.
— O que quer, Tito? — resmunga, de costas, mexendo nas
calças.
Um mais degradante que o outro.
— Preciso das imagens da câmera de segurança do bar, de
dois dias atrás.
— Só um minuto. — Limpa a garganta e se vira para o
computador.
Mexe em algumas teclas, limpando o suor da testa, com as
costas da mão.
— Olha que coisa mais triste, Tito — diz, com o tom,
amigavelmente falso. — A câmera do bar está com problemas.
— Como?
— Isso que você ouviu. Pode ver com os seus olhos. — Vira o
monitor para mim e vejo vários quadrados de imagens mostrando o
salão, porém, tem dois pretos. Não precisa ser um expert para saber
que para o meu azar, o bar é um deles.
— Desde quando está assim?
— Acho que uma semana. Já avisei o Rodrigues, mas você
sabe como ele não liga para este bar — diz, se referindo ao dono, o
que é uma grande mentira. Ele apenas não aparece aqui, pois
confia cegamente em Salomão, e como o fluxo de caixa continua
bom, creio que ele não imagina a incapacidade do seu gerente.
— Mais alguma coisa? — resmunga, e eu apenas o encaro,
estranhando a sua amabilidade.
— Não. Obrigado. Vou voltar ao trabalho.
Saio do escritório, pensando no que fazer para sair da mira do
delegado.
— Tito — chama Elder, assim que chego atrás do balcão.
Levanto os olhos e vejo que a pista de dança já está lotando. Ou
seja, sinal de muito trabalho hoje. O que será bom, vai dar para
organizar os pensamentos.
— Fala aí, cara.
— Está tudo certo?
— Sim, por quê?
— Ontem, um detetive veio até aqui falar com você, achei que
estava encrencado.
— Detetive?
— É. Não estava sabendo?
— Não. Tive a visita de dois policiais em casa hoje, mas não
citaram que haviam vindo até aqui.
— Vieram. E como você estava de folga, Zeca o encaminhou
para a sala de Salomão.
— Tem algo errado nisso. Sai de lá agora mesmo e ele não me
disse nada.
— Salomão está muito bonzinho hoje, se eu fosse você abria o
olho — diz o garçom e sai para atender as mesas.
Algo ruim se apossa do corpo e só consigo pensar que esse
filho da puta apagou as gravações para me ferrar.
— Zeca? — chamo o segurança, que passa na frente do bar,
neste exato momento.
— Fala, cara. Nem te vi chegar.
— Ontem um detetive veio me procurar?
— Veio sim. Salomão não te falou?
— O que eles queriam?
— Saber se você estava trabalhando aqui na noite de quarta-
feira.
— Mas que merda. Salomão deve ter falado que não. E fui
pedir as imagens agora, ele disse que a câmera aqui está quebrada,
ou seja, estou ferrado.
— Calma, cara. Deve ter uma explicação. Salomão não ia te
ferrar.
— Até parece. Faz tempo que ele está comigo atravessado em
sua garganta. — Começo a tremer de raiva.
— Em todo caso, tenho as câmeras da entrada, que ficam
salvo no computador da sala de segurança. Quer dar uma olhada
lá?
— É bem difícil. Sempre entro pelos fundos.
— Vou dar uma olhada e te falo. Esfria a cabeça.
Ele sai e, mesmo focando nos pedidos, minha cabeça está
fervilhando. Pego duas vezes Karina me observando, com um
sorriso debochado no rosto e estou a ponto de explodir.
— Tito, o Zeca está te chamando lá na entrada — avisa Elder
e peço para o outro barman segurar as pontas, caminhando
rapidamente no meio das pessoas que se amontoam pelo bar.
— Entra, Tito — diz o chefe da segurança, assim que apareço
na porta da pequena sala, que fica ao lado da entrada do bar, onde
apenas os seguranças têm acesso.
— O que Salomão disse a você?
— Que fazia uma semana que as câmeras estavam
quebradas.
— A câmera do bar foi desligada ontem.
— Filho da puta.
— Pois é. Mas a boa notícia, é que o backup estava salvo em
um arquivo externo. Fazemos isso todos os dias à noite, por
segurança. Acho que Salomão nem sabe disso, pois as imagens
ficam armazenadas em seu computador.
— Está me dizendo, que vou conseguir comprovar que estava
aqui há duas noites?
— Sim. Conhecia o detetive e ele me contou sobre a morte.
Nunca deixaria você ser incriminado — afirma, me estendendo um
pen-drive.
Pego o aparelho e aperto a sua mão, em sinal de
agradecimento. Ele acena e depois de guardar o pen-drive no bolso,
não tenho dúvida do que vou fazer.
Caminho a passos duros, até a sala do desprezível e nem bato
na porta, entro em um rompante e isso faz com que ele se assuste,
guardando algo no armário rapidamente.
— O que... — Não o deixo terminar, dou um soco em sua cara,
com a força moderada, para não quebrar todos os dentes de sua
boca. Apenas alguns, se ele tiver sorte.
— Seu imbecil. Por que fez isso? — reclama, caído no chão,
cuspindo sangue.
— Porque você é um desgraçado.
— Você está demitido.
— Ah que pena. Eu queria ter o prazer de pedir demissão, mas
já que me fez este favor, muito obrigado. Espero nunca mais ver a
sua cara patética, de um homem que se submete a uma vadia
qualquer, enquanto tem uma mulher em casa, te esperando. Espero
que um dia você receba de volta toda a sujeira que comete.
Saio daquele lugar, sem esperar uma resposta. Por incrível
que pareça, estou leve, acho que era a hora certa de tomar uma
atitude.
Ligo a minha moto e acelero em direção ao meu apartamento, o
lugar que hoje posso chamar de lar, pois a minha família está lá e,
com elas ao meu lado, eu sei que nada pode me parar. Teremos um
futuro perfeito.
Juliana
Querida Juliana,
Eu espero que onde você estiver, esteja bem. Eu sei que
acha que não me importo com a sua saúde, mas isso não é
verdade.
Ensaiei te contar tudo inúmeras vezes, porém, o medo
sempre me impediu. Infelizmente, não poderei escrever muito, pois
tenho medo que isso caia em mãos erradas e, também, jurei fazer
isso olhando em seus olhos.
Meu objetivo com esta carta é te pedir perdão. Pelo menos,
em partes. Errei por ser omissa por todos esses anos. Eu achava
que estava te protegendo ao não demonstrar proteção a você. Isso
pode soar um tanto estranho, mas juro que um dia vou te explicar.
Você acha que não, mas doía em mim cada machucado que eu via
em você. Só que para mim, o importante era você estar viva. Hoje
me dou conta de como errei. Fechei o meu coração e meus olhos
para o mundo exterior e tenho convivido apenas com a minha dor,
desde então. Estou feliz por você ter tido a coragem que nunca tive
e soltado as amarras que te mantinham presa. Não confie em
ninguém próximo a Edgar e Sebastião. Foi Sebastião que contou a
ele sobre a sua apresentação na noite que ele quebrou as suas
costelas. Teve também as fotos com o motoqueiro que ele seguiu e
já sabe todos os dados. E o pior, foi o segredo que você guardava
com Rebecca. Eu não sei como ele descobriu, mas ficou em
silêncio, por anos, e só usou a informação quando Edgar cobrou
uma dívida. É assim que ele está vivendo, vendendo informação
para Edgar, em troca de prazo para dívidas e dinheiro.
O importante é você saber que ele seguiu o motoqueiro e não
te viu com ele, mas está te caçando, como um louco. Espero que
esta carta chegue até você e tenho um pedido a te fazer: proteja
Emilly, como eu nunca fui capaz de te proteger.
Se cuide, fique bem, segura e feliz. E que, um dia, Deus me
conceda a oportunidade de te contar toda a verdade e te pedir
perdão, olhando em seus olhos.
Com amor. Sua mãe.

— Quando ela te entregou isso? — Ergo os olhos, limpando


as lágrimas que caíram contra a minha vontade.
— Há dois dias.
— Ela disse que tem que me contar toda a verdade. O que
isso significa?
— Eu não sei, minha amiga, mas uma coisa eu tenho
certeza, sua mãe está muito diferente daquela velha chata que
conheci há tantos anos.
— Diferente como?
— Ela chorou muito durante a nossa conversa.
Levanto e começo a andar pela sala, pois não sou capaz de
ficar parada no momento.
— Por que agora, Becca? Ela passou a vida inteira sem se
importar comigo. Por que escreve como se me amasse? Eu não
preciso disso agora.
— Eu não faço ideia do porquê ela escolheu este momento.
Algo muito sério aconteceu, Ju, isso eu tenho certeza. Ela me falou
sobre a forma como seu pai te seguia, eu achei isso doentio.
— Ela falando agora sobre o motoqueiro, tenho certeza de
que Edgar matou o detetive para culpar o Tito. Não foi porque meu
pai não me viu com ele, que não contou algo a Edgar.
— Não entendo muito esse mundo de gangster, entretanto,
acredito que seu pai não passaria uma pista fria. Ele gosta de ter
razão, por isso, acho que passou a pista do detetive, mas não do
Tito.
Olho pela janela, que dá para os fundos do salão de Margot e
tento organizar os meus pensamentos. Ele me entregou em relação
à apresentação do PUB. Contou o meu segredo com Rebecca, mas
não contou sobre o Tito. Será?
A última coisa que eu queria era fazer Tito e sua família ficar
em perigo.
E que verdade é esta que ela tem para me contar?
— E se for uma cilada? — Viro rapidamente em direção à
minha amiga. — E se ela jogou essa isca para me acharem?
— Fica calma, Ju. Faz dois dias que ela me procurou. Eu
jurei que não sabia sobre você, por isso, ela meio que desabafou
um pouco comigo. Esperei alguns dias até ligar e marcar o meu
“cabelo” com a Margot. Não fui ao apartamento exatamente por
isso. Está sendo ótimo você usar a peruca e só sair pela garagem.
Nunca vão saber o seu paradeiro.
— Tomara.
— Agora, me conte o que estava te preocupando antes de eu
entregar a carta.
— Não sei do que está falando.
— Claro que sabe. Conheço você muito bem. Vi como entrou
aqui, com a ruguinha entre as sobrancelhas.
— Não é nada de mais. O Tito está desempregado.
— Oi? Volta à fita. Quando isso aconteceu?
— Na semana passada. Deu um soco na cara do gerente do
PUB.
— Ai, que másculo. Isso sim é um homem de verdade. —
Levanto a sobrancelha e Rebecca apenas ri, dando de ombros. — E
agora?
— Agora, eu estou me sentindo um peso. Ele desempregado
e eu lá, dando gasto, sem que aceite a minha ajuda.
— Ju, se ele precisasse, aposto que aceitaria o seu dinheiro.
Não se culpe por isso, amiga. Como está a relação de vocês?
— Está ótima. Ele é um companheiro como nunca tive —
afirmo, depois de um suspiro feliz. E não estou mentindo. Tito é o
melhor homem que eu poderia querer para a minha vida.
— Que bom. Companheiros conversam. Se isso está te
incomodando, converse com ele. Tenho certeza de que ele vai te
ouvir.
Fico pensando nesse assunto e vejo que ela, realmente, está
certa. Devemos conversar.
— É, vou fazer isso.
É estranho ter 27 anos, já ser mãe e não ter noção de como
um relacionamento funciona.
— Estou saindo com um gato — Rebecca conta e sorrio em
sua direção, incentivando-a continuar, enquanto guardo a carta no
bolso da calça.
Preciso pensar mais sobre esse assunto, sozinha e com
calma.
— Pena que é fraquinho na cama — se anima e começo a rir,
esquecendo-me dos problemas, por ora.

— Precisa de ajuda? — pergunta Margot, parada à porta.


— Não, obrigada. Eu me perdi em pensamentos — explico,
envergonhada, por ela ter me visto parada em frente ao espelho,
com a peruca na mão, olhando para o nada.
— Não quer fazer o cabelo junto com a sua amiga? —
pergunta ela, se aproximando.
— Melhor não. Quero voltar logo para a casa. Orlando e Tito
vão me levar para falar com a tal advogada.
— E você está nervosa?
— Não. Pelo menos, eu acho que não. — Solto um riso
nervoso.
— Sente-se aqui, querida. — Aponta para uma cadeira perto
do espelho e, depois de soltar meus fios vermelhos do coque, pega
uma escova macia e começa a penteá-los.
— Não sei se já te disse isso, acho seus cabelos lindos. A cor
é natural?
— É sim. Não sei bem de quem puxei esse tom ruivo, pois
meus pais não têm.
— Uma pena Emilly não ter tido a sorte de nascer ruivinha.
Mesmo sendo a loirinha mais linda que já vi.
— Isso é verdade. Ainda me lembro do dia do seu
nascimento. Segurei-a nos braços, tão loirinha, tão branquinha —
relembro, emocionada.
— É o melhor momento da nossa vida, não é? Quando
peguei Vitor nos meus braços a primeira vez, Orlando e eu só
sabíamos chorar. Ser mãe é uma dádiva — comenta, fazendo
carinho nos meus cabelos com a mão e fecho os olhos.
Minha mãe nunca foi do tipo carinhosa. Sempre se manteve
distante. Tirando raros momentos em que ela me abraçava e
chorava, sem eu saber o motivo, ela nunca demonstrou sentimento.
— Eu sempre me senti sozinha — confesso, sentindo as
lágrimas inundarem os meus olhos. — Quando Emilly nasceu, eu
sabia que daquele momento em diante, não importava o que eu
sofresse, a minha vida valeria a pena, pois eu não estava mais
sozinha.
— E você não tem apenas a Emilly ao seu lado. Juliana,
agora você faz parte da minha família e isso nunca vai mudar. —
Sorrio ao senti-la me abraçar pelos ombros e deixo as lágrimas
lavarem a minha alma.
Enfim, tenho ao meu lado a família que sempre sonhei e
nunca pude ter.

— Você acha que pode confiar nela? — pergunta Tito, depois


de ler a carta.
— Não sei o que pensar. A mulher que escreveu essa carta,
não é a mesma que me criou.
— Vem cá. — Sou puxada para os seus braços e não há
lugar no mundo que eu queria estar, além de aqui. — Acho que se
realmente ela estiver sendo verdadeira, depois que você se separar
do Edgar, poderá encontrá-la e tirar essa história a limpo.
— Você acha que ele vai aceitar o divórcio, assim, tão fácil?
— Espero que sim. A advogada estava muito firme, quando
informou que o plano ia dar certo.
Isso é verdade. Fomos até a Dra. Mariana Dantas, a
advogada que o delegado indicou e, realmente, a mulher me passou
uma confiança excepcional. Disse que o divórcio e a ação penal
baseada na lei, conhecida como Maria da Penha, são ingressadas
separadas na justiça, por isso, a forma mais rápida e fácil, seria
fazer Edgar aceitar o divórcio consensual e, depois disso, partir para
a parte criminal. Não contei a ninguém, mas estou certa de que se
ele aceitar o divórcio, me concedendo a guarda de Emilly, não
entrarei com ação sobre as violências. Quero esse cara longe da
minha vida e, se continuar com isso, ele sempre estará presente.
Com o divórcio, tudo vai acabar e poderia viver a minha vida
tranquilamente e sem medo.
— Você está com medo?
— De ir vê-lo? Não. Eu só teria medo se Emilly estivesse
comigo. Estarei protegida, conforme explicou a doutora.
Espero que isso seja verdade. Mariana disse que sua irmã,
Edna Dantas, advogada da área da família vai me acompanhar.
Além de dois seguranças da empresa delas. Iremos até o comitê
político e ele estará esperando para uma reunião que foi marcada. A
melhor parte é que Edgar não imagina que seja comigo.
— Queria tanto ir. Não gosto da ideia de te deixar sozinha
com aquele monstro — reclama meu namorado, beijando os meus
cabelos.
— Não estarei sozinha, meu bem. E pense que será a última
vez que o verei.
— Sinto te decepcionar, mas quando se iniciar a outra ação,
você também o verá — comenta e eu prendo a respiração. Não
quero mentir para ele, no entanto, não estou pronta para contar,
ainda.
— Um passo de cada vez — digo. — Já que estamos
conversando, gostaria de falar sobre uma coisa com você.
— Diga, minha deusa.
— Não acho certo você desempregado e eu não ajudar com
nada aqui em casa.
— Adoro quando você diz aqui em casa — brinca e me vira
no sofá, fazendo meu corpo ficar de frente para o dele. — Ju, eu
não estou pobre, meu amor. Trabalhei muitos anos e, se tem uma
coisa que sou bom, é em guardar dinheiro. Tenho uma boa
poupança e como fui demitido sem que Salomão contasse sobre o
soco, recebi uma quantia muito significativa. Fique tranquila.
— Mas, Tito, eu também tenho o dinheiro que guardei, não é
justo.
— Vamos pensar em algo para ele, ok? Um violão novo, que
tal?
— Eu estou falando sério.
— Eu também, ruiva. Juro que se tiver um momento que eu
precise, não vou ter orgulho e não pedir. Por enquanto, estamos
sossegados, acredite em mim.
Ele me beija e eu deixo todos os problemas desaparecerem,
inclusive, o meu encontro com Edgar amanhã.

— Lembre-se, não demonstre medo — instrui a Dra. Edna e


eu apenas aceno.
Entramos no elevador acompanhadas dos dois seguranças e
seguimos para o 8º andar, onde é a sala que Edgar está utilizando
no comitê político de Danilo Amorim, o candidato a prefeito de Bela
Vista.
Vai dar tudo certo — mentalizo, para conseguir me acalmar
mais ainda.
— Chegamos — Edna anuncia e me forço para não tropeçar
nos saltos poderosos que Rafaelle me fez calçar.
Na verdade, ela que me vestiu. Chegou ontem à noite no
apartamento, junto com os seus pais, que foram buscar Emilly para
dormir com eles, e já me empurrou para o quarto, fazendo-me
provar um terninho preto, de alta costura e com um corte que
modelou perfeitamente o meu corpo. Além de me ensinar uns
truques de maquiagem, que repeti hoje cedo. Passo a mão no
coque que fiz e respiro fundo.
— Está pronta?
— Sim — respondo Edna e a sigo para dentro da sala.
— Bom dia. Sou Edna Dantas e tenho uma reunião marcada
com Sr. Edgar.
— Só um momento. — A secretária peituda se levanta e
entra pela porta atrás de sua mesa. — Podem entrar, por favor —
diz, no segundo seguinte.
Edna vai primeiro, deixo os dois seguranças passarem e
quando chego à porta, escuto a voz melosa de Edgar, querendo
jogar charme para a advogada.
— O que posso fazer por uma mulher tão linda?
— Boa tarde, Sr. Edgar. Estou aqui para acompanhar a minha
cliente — responde, depois da troca de aperto de mãos.
— Cliente? — Ele ri, olhando para os dois seguranças e,
como combinamos, os dois se afastam para os lados, para que eu
surja.
— Olá, Edgar — digo, com a voz firme e sorrio com a sua
cara de espanto.
Sempre achei que meu encontro com meu ex-marido fosse
recheado de medo, da minha parte, é claro, por isso, estou me
deliciando com o pavor que estou vendo refletido nos olhos do
homem que sempre me fez mal.
— Juliana? Que palhaçada é essa?
— Podemos nos sentar? — pergunta Edna, com a voz
tranquila e firme.
— Eu não tenho nada para falar com vocês. Se retirem e,
Juliana, você fica.
— Senhor...
— Deixe, Edna — digo, dando um passo à frente. — Se eu
fosse você, Edgar, sentaria e escutaria o que a Dra. Edna tem a
dizer. É muito melhor conversar com uma advogada da área da
família do que uma advogada criminal, você não acha?
Doutora Mariana tinha razão, o fator surpresa está sendo
essencial neste momento. Nunca vi Edgar tão sem reação, como
agora, e isso é o combustível para a minha segurança.
Sento-me na cadeira em frente à sua mesa e indico para que
Edna faça o mesmo.
— Vou direto ao assunto, pois não quero tomar muito do seu
precioso tempo. Vim até aqui para que você assine o divórcio de
forma amigável.
— Divórcio? Você só pode estar louca. O que aconteceu com
você? Onde está a minha filha? Eu exijo que...
— Você não exige nada. Minha filha e eu saímos daquela
prisão que você chama de casa, depois de mais uma surra. Só que
eu jurei a mim mesma, Edgar, que você nunca iria encostar em
Emilly. Você tê-la machucado foi o fim da linha.
— Juliana? — Uma porta se abre e Danilo aparece,
sorridente. — Eu não sabia que você estava de volta à cidade. Está
tudo bem?
— Sim, Danilo. — Me levanto e aperto a sua mão. Não sei o
motivo, mas esse homem aparenta mais ser um boneco nas mãos
de homens como Edgar, do que da mesma laia que eles.
— Agora não é um bom momento, Danilo — afirma Edgar,
impaciente.
— Ah! Claro. Desculpem-me por interromper. Mande
lembranças à Emilly.
— Ele realmente acha que você é um bom homem, não acha,
Edgar? — comento, depois de ele deixar a sala.
— Quero conversar com você a sós, Juliana. Espere-me em
casa.
— Que casa? — O encaro, com fúria. — O lugar que você
me bateu durante cinco anos? Quer conversar comigo sozinho para
fazer isso novamente e não ter testemunhas?
— Ela não sabe do que está falando — se justifica, olhando
para Edna.
— Será, Sr. Edgar?
— O que o Danilo e seus eleitores pensarão depois de saber
que aquela cena toda do sequestro foi uma mentira, e que quem fez
o corte na sua testa foi uma mulher, tentando se defender dos seus
abusos, ao invés de ladrões, como você fez todos acreditarem.
— Sua vadia. — Ele se levanta, batendo com as duas mãos
na mesa e tento fingir que isso não me assustou. Porém, por dentro,
estremeci. — Eu te dei tudo o que todas as mulheres querem.
— Realmente, surras diárias é o sonho de consumo da
população feminina — respondo, com cinismo, e pelos seus olhos,
acho que ele está querendo me bater aqui. Mesmo com tantas
pessoas ao redor.
Os seguranças percebem o mesmo que eu, pois se
posicionam mais perto. O que faz Edgar recuar e sentar-se na
cadeira novamente, respirando pesadamente.
— Como minha cliente explicou — intervém Edna —, aqui
estão os papéis. Neles, Juliana abre mão dos 50% que o regime de
comunhão parcial de bens do casamento de vocês lhe dá direito.
Também regulariza a guarda de Emilly...
— Eu quero a guarda — interrompe Edgar.
— Duvido que se formos obrigados a brigar por isso na
justiça, o juiz decidirá por um homem acusado de bater e estuprar a
esposa por cinco anos.
— Você não teria coragem. Sempre foi uma garota medrosa
e obediente — diz, sorrindo, e percebo que a real personalidade
dele está vindo à tona. Edgar está começando a pensar e querer
que todos joguem o seu jogo. — E, no mais, com o meu dinheiro,
consigo pagar os melhores advogados para derrubar essas
acusações sem provas. Sem querer ofender, doutora.
Sorrio, do mesmo modo que ele está fazendo e tiro o
envelope da minha bolsa. Calmamente, espalho as fotos que
registram os meus machucados em sua frente.
— Você tem razão, sempre fui medrosa e acuada, mas isso
mudou no dia que você machucou a minha filha. Eu juro eu vou
espalhar isso por toda a internet e darei entrevistas a quem quiser.
Antes de te colocar na cadeia, Edgar, arruinarei as chances de uma
carreira política, o que acho que será um favor para a população.
Ele olha para as fotos, por uns instantes, depois estica a mão
para receber da advogada a petição com todos os termos do
divórcio. Lê, analisa algumas informações e ri.
— Você não quer a sua parte do meu dinheiro. A pensão de
Emilly será posta em uma poupança. Vai viver do que, Juliana?
Sempre foi sustentada, vai criar uma filha como, sem dinheiro?
— Isso não é da sua conta.
— Entendi — debocha, com uma risada. — Bom, Dra. Edna
Dantas, irei passar os documentos para o meu advogado e entro em
contato...
— Não! — falo alto. — Você vai assinar agora a procuração e
a Dra. Edna dará entrada no divórcio, como representante de
ambos.
— Minha querida, não é assim que as coisas funcionam.
— Pois, é assim que vai funcionar — afirmo, olhando diretamente
em seus olhos, sem pestanejar. O maldito sempre se sentiu superior
a mim e isso acaba hoje. — Assine agora, Edgar. E esqueça que eu
existo, pois Emilly e eu faremos isso.
Tito
— Você precisa se acalmar — reclama Diogo, observando-
me andar de um lado para o outro.
— Como? Ela está lá com aquele idiota, que sempre a fez
sofrer. E se ele tentar algo?
— Tito, você mesmo me disse que ela tem dois seguranças
armados, protegendo tanto ela, quanto a advogada. Vai dar tudo
certo.
— E se algo der errado? E se aquela advogada também foi
comprada por Edgar? E se...
— Vitor — chama a minha atenção, de forma enérgica. —
Você me contou que seu pai fez uma pesquisa detalhada sobre os
antecedentes dessa mulher, não foi este o motivo de você ter
aceitado ir até lá, arriscando o esconderijo da Juliana?
— Foi — resmungo e respiro fundo, para me acalmar.
Não sei o que está acontecendo comigo. Eu sei que o plano é
certo. Nunca permitiria que Juliana se encontrasse com essa
advogada, se meu pai não tivesse se certificado de todas as formas,
de que ela era realmente confiável. Do mesmo modo, que o tal
delegado, o Inácio. Meu pai tem anos de experiência na área
jurídica, ele nunca se enganaria com isso.
Acho que não quero confessar, mas o meu medo maior é que
aquele canalha do Edgar faça algo que impeça Juliana de voltar
para casa.
Para a nossa casa.
— Eu tinha que estar lá, protegendo a minha mulher —
murmuro, olhando pela sacada.
— Claro, e o cara ia ficar puto por ela estar com outra pessoa
e não ia assinar o divórcio. Larga mão de ser burro.
Eu sei que o que ele está falando é verdade, pois foi o
mesmo argumento da advogada, mas saber o que é certo e o que
eu quero, é muito diferente.
— Vamos sair para comer algo. Já estou ficando enjoado de
ver você andando de um lado para o outro.
— Eu tenho comida em casa — reclamo.
— Você e eu precisamos ver gente e distrair a mente. Tem
algo aqui perto, que sirva um lanche gorduroso e uma cerveja?
— Cara, não é nem meio-dia ainda.
— Normalmente, é o horário que eu acordo. Você me tirou da
cama cedo demais e já me deixou pilhado. Agora, aguente.
Bufo, ligo para a minha mãe, novamente, para saber se
Emilly está bem e, depois de trancar a porta, descemos até o
saguão.
— Boa tarde, Sr. Vitor.
— Boa tarde, Moacir, me chame de Tito, por favor.
Ele acena e destrava o portão de ferro, que dá acesso à rua.
— Vamos até a padaria ali da esquina. Você vai achar
exatamente o que quer.
Caminhamos lado a lado e, assim que entramos, abafo o riso
do assobio que Diogo dá, ao ver Soraia debruçada sobre uma
mesa.
— Por que nunca me convidou para vir aqui antes?
— Sossega — digo e o empurro para uma mesa perto da
janela.
— Olha só, quem apareceu, o tatuado mais gostoso de Bela
Vista — cantarola Soraia, rebolando em nossa direção.
— Meu docinho, você fala isso dele, porque ainda não teve o
prazer de me provar.
— Hum. Isso é muito interessante — diz ela, fazendo graça
com os cabelos. — Um já é bom, dois, então, deve ser melhor
ainda.
— Não sou contra ménages, mas sinto te decepcionar, o
bonitão aí está casado e não vai poder participar da nossa noite de
sexo quente.
— Casado?
— De tudo o que eu falei, só isso que ouviu? — reclama
Diogo e eu resolvo falar, pela primeira vez, e, quem sabe, fazer o
coitado se dar bem.
— Como vai, Soraia?
— Melhor agora, em ver você e pior, ao saber do casamento,
apesar de que não estou vendo uma aliança no seu dedo, ainda há
esperança? — diz, se inclinando em minha direção e colocando o
decote quase na minha boca.
— Não — respondo, empurrando a cadeira um pouco para
trás. — Realmente, estou com alguém e falta pouco para você ver a
aliança. Mas o meu amigo aqui, está solteiro. Posso fazer o meu
pedido?
— Pode, mas não garanto que não vou colocar veneno nele,
por ter partido o meu coração.
Solto uma gargalhada e falo o que vou querer, Diogo faz o
mesmo.
— Já comeu, né, seu sem-vergonha?
— Quê? — Tiro os olhos da rua e encaro Diogo.
— Você já levou a gostosa para a cama, não é?
— Eu era solteiro — explico.
— Sorte a minha, Juliana ter entrado na área e tirado você
dessa vida devassa.
— Muita sorte a sua mesmo. — Pelo jeito, ele estava certo.
Estou começando a relaxar. Mesmo que a minha mente não pare de
pensar em Juliana, não estou mais a ponto de surtar.
— E como está a vida de desempregado?
— Se eu falar que estou adorando, vou parecer um louco?
— Como assim, Tito? — pergunta, rindo. — Achei que a vida
de vagabundo não iria te agradar.
— É que sem o trabalho, estou tendo tempo com as minhas
garotas. Juliana faz o jantar, comemos e conversamos como uma
família, em volta da mesa. Deitamos com a Emilly para ver algum
filme infantil e, depois que a nossa garotinha dorme, posso curtir a
minha deusa do jeito que eu gosto. E, só por não ter que me
estressar com as idiotices de Salomão, já estou bem.
— Eu até entendo essa sua alegria. Não sei o que é ter uma
garota fixa desse jeito, porém, da maneira que você narrou, imagino
que seja muito bom.
— É melhor ainda do que você possa imaginar — digo,
sorrindo e, realmente, quero dizer isso.
Nunca me imaginei em uma relação como esta. Juliana
entrou com um furacão na minha vida e, em vez de bagunçar tudo,
ela fez as coisas ficarem no lugar certo.
— E o futuro? Pensou em algo?
— Sim, Diogo, já pensei em várias coisas.
— Tipo? — incentiva.
— Seguir o conselho de um garçom do PUB e montar o meu
próprio bar. O problema é que não faço ideia de como começar a
procurar imóveis para esse tipo de negócio.
Diogo me observa por um tempo, batucando os dedos na
mesa e, de cara, vejo que ele está tendo algumas ideias. O cara
sempre foi um gênio. Não é à toa que já fez centenas de pessoas
ganharem o mundo, depois de passarem pelas mãos de um
produtor ótimo como ele.
— Você já tem, pelo menos, ideia do negócio que deseja
abrir?
— Já. A primeira vez que pensei nisso, fiz até um rascunho
básico. Foi no dia que Juliana saiu de casa e me procurou. Por isso,
engavetei o projeto.
— Entendi. E o que você tinha pensado?
— Bom, alugar um lugar, vender o meu carro, para juntar com
a grana que tenho guardada e montar um bar de música ao vivo.
— Deixe-me adivinhar, Juliana seria a sua principal atração?
— diz, fazendo gracinha, mas sei que ele é o fã número dois dela.
O primeiro sou eu.
— Você sabe que sim.
— A ideia é boa. Creio que em números, alugar um lugar no
início é muito melhor do que já enfrentar uma dívida enorme, antes
de ver se o negócio realmente decola. E, quanto ao seu carro, não
quero cortar o barato, mas agora você é um cara de família.
— Pensei nisso também. Vou vender a moto.
— O quê? — grita. — Não posso acreditar nisso. Sua moto é
o seu xodó. Meu irmão, tu tá laçado mesmo.
— Nunca disse o contrário — confirmo, rindo.
— Em relação ao local, você quer algo aqui no centro?
— Sim. Vou às imobiliárias saber se tem galpões por aqui...
— Vai se mudar, Tito? — pergunta Soraia, se metendo na
conversa.
— Não. Ele está procurando um galpão grande. Ouviu falar
sobre algum que esteja alugando, por aqui?
Olho feio para Diogo, por ter soltado a língua com quem não
tem nada a ver com o assunto, só que ele parece nem ligar para o
que eu penso.
— Galpão? — questiona, enquanto serve os nossos pedidos.
— Tipo, para uma empresa muito grande?
— Não, coisa linda. Algo menor. Digamos que, do tamanho
de um bar. — Chuto o idiota por debaixo da mesa e nem isso o faz
colocar a língua dentro da boca.
— Acho que sei de algo sim. Só um minuto.
Soraia se retira e Diogo levanta as mãos, antes que eu diga
algo.
— Cara, ela é a garçonete da padaria. Deve saber de tudo
que acontece nas redondezas.
— Eu só contei isso para você, não era para sair fofocando
por aí.
— Deixe de besteira, Tito. Só fiz uma pergunta. Vai que essa
garota, além de gostosa, vai servir para você achar um ponto de
partida.
Balanço a cabeça e provo o meu café, puro e forte. Olho ao
redor e as pessoas estão almoçando, ou tomando cerveja, como é o
caso do meu amigo, porém, sem notícias de Juliana, não acho que
algo vá conseguir passar pela minha garganta.
— Prontinho, voltei. — Levanto os olhos para Soraia e acho
estranho, um sujeito alto e calvo estar acompanhando-a. — Tito,
esse é o Sr. Alcides, ele é o dono da padaria.
— Boa tarde! — Saio da minha cadeira e estendo a mão para
cumprimentá-lo.
— Boa tarde! Soraia me disse que está à procura de um
imóvel na região, acho que tenho a solução para você — afirma.
— Sim, estou. Sente-se, por favor.
— Vou voltar ao trabalho, qualquer coisa me chame.
— Soraia? — chamo e ela olha para trás. — Obrigado. —
agradeço, com sinceridade.
— Não por isso. — Sai cantarolando e eu me acomodo
novamente, para falar com o homem.
— Qual a finalidade para o imóvel? — Vai direto ao assunto.
— Gostaria de montar um bar com música ao vivo.
— Isso vai levar um bocado de tempo para ser emitido alvará
e outras licenças — pontua, coçando o queixo.
— Disso a gente entende — interrompe Diogo. — O senhor
tem um imóvel que poderia ser usado para esta finalidade?
— Tenho. E é bem perto, se quiserem, podemos ir até lá,
agora mesmo, para darmos uma olhada.
Aceno, animado. E, depois de pagar a conta, seguimos para
lá no carro de Diogo. Realmente, o local não é longe. Três quadras
de distância, o que torna o lugar bem perto do meu apartamento.
A construção é grande e com a fachada toda em preto do
lado de fora. Parece até um local secreto — penso, sorrindo.
— O que era aqui antes? — questiono, por nunca ter notado.
— Um clube privativo — responde, abrindo as trancas.
Isso explica muita coisa.
— Isso é nome chique de puteiro — diz Diogo, rindo, ao meu
lado.
— O inquilino pagava em dia e estava tudo certo com a
fiscalização, por isso, não me metia nos assuntos deles.
— Por que saíram daqui? — questiono e atravessamos as
portas duplas localizadas logo após o hall. — Uau! — É o que eu
consigo dizer, ao ver um ambiente luxuoso e, na medida certa, do
que eu estava procurando.
Em relação ao tamanho, pois a decoração, eu dispensaria.
— Fico feliz que tenha gostado. E, respondendo a sua
pergunta, eles foram para um lugar maior. O dono disse que a
clientela cresceu muito nos últimos tempos e, depois de 24 meses
de aluguel, achou melhor não renovar o contrato. Faz apenas
quinze dias que entregaram o local, eu ainda nem tive tempo de
passar na imobiliária.
Caminho por entre o espaço, enquanto ouço o Sr. Alcides
falar e, preciso confessar, o lugar é fabuloso, mas grita sexo. Um
lugar com pouca iluminação, cores como preto e vermelho estão por
toda parte, fora o balcão, que daria um belo bar na parede do lado
esquerdo, eu trocaria a maioria das coisas.
— Como faz com as reformas? Acho que isso ainda está
muito a cara do inquilino antigo.
— Não se preocupe. Esses tecidos e parafernálias, vão sumir
em um piscar de olhos. O dono disse que ainda não teve tempo de
vir buscar e como estava fechado mesmo, disse que não haveria
problema. Imagine isso sem tecidos, babados e brilho. Sobrará um
salão amplo, com um pequeno palco, mesas, cadeiras e o andar de
cima, com os quartos.
— Não tenho interesse em quartos — afirmo, tentando
montar na minha cabeça a imagem do bar em pleno funcionamento
ali, naquele lugar.
— Infelizmente, um espaço é vinculado ao outro. Não posso
alugar separado.
— Tito! Corre aqui, meu irmão. — Olho para trás e, só agora,
me dou conta que Diogo não está conosco.
— Onde você está?
— Aqui, atrás das cortinas.
Alcides faz um gesto para que eu siga para o lado direito e
assim que afasto as cortinas, quase caio para trás. Um jardim de
inverno impecável faz a decoração no centro de uma sala, com um
espaço consideravelmente bom para uma área de descanso e uma
claraboia alta de vidro dá claridade total para a sala.
— Isto aqui é incrível, Tito — diz Diogo. — Tenho certeza de
que você já está imaginando as pessoas tirando um tempo da pista
de dança, sentando em vários sofás e pufes espalhados por aqui.
Vai ser irado — comemora, caminhando para outro lugar.
— Ainda temos o espaço dos banheiros, cozinha própria e o
escritório, que fica atrás do bar. Podendo, ainda, usar os quartos do
andar de cima, se preferir — pontua o dono do lugar.
— Ok. Está tudo perfeito, até agora. Só preciso que me
passe o valor do aluguel, para saber se vai se encaixar no meu
orçamento.
— Por aqui, por favor.
Sigo-o de volta ao salão central e a imagem que me vem à
cabeça, de forma nítida, é Juliana em cima daquele palco, cantando
para mim. Sorrio, sem, nem mesmo, saber se isso vai se realizar.
O homem dá a volta no bar e agora reparo que há um
espelho de fora a fora atrás do balcão de inox, que ocupa quase a
parede inteira.
Deve ser o máximo preparar drinks aqui.
— Sente-se. Desculpe, mas como não estava esperando
uma reunião aqui, terei que improvisar — explica, ao tirar um bloco
de papel e uma caneta de uma gaveta.
Olho em volta e vejo que o escritório também está equipado
de forma prática. Uma grande mesa, duas poltronas e um pequeno
sofá no canto. Além de um armário médio de madeira maciça no
canto. Tudo em madeira escura e muito bonito.
— Aqui está o valor mensal. Fazemos o contrato de doze
meses, mediante um fiador.
Encaro o papel em minha frente e acredito que se a reforma
não sair tão cara, eu consigo, sim, manter estes pagamentos por um
ano. Porém, eu preciso pensar.
— Sr. Alcides. Agradeço muito a disponibilidade do senhor
em ter vindo aqui comigo. Vou analisar e, se possível, gostaria de
um número para entrar em contato.
— Claro. Aqui está o meu cartão. Ligue-me, assim que
estiver confortável.
Depois de agradecê-lo, saio com Diogo no meu encalço,
dizendo como adorou o lugar, principalmente, por ter isolamento
acústico.
— Não sei como gerir um negócio. Se fosse só pagar o
aluguel, eu já teria assinado os papéis.
— Só de você saber que não é algo simples, já é meio
caminho andado. Entra aí, que tenho a pessoa certa para te
apresentar.
Diogo, realmente, tinha uma pessoa certa para me
apresentar. Contratei Rodrigo Carvalho, consultor financeiro e um
excelente empresário, palavras de Diogo. Em meia hora que eu
estava dentro do seu escritório, ele havia feito um plano de negócio
para mim e ligado para o Sr. Alcides e feito uma contraproposta, que
foi aceita, me restando, então, passar no dia seguinte para assinar o
contrato de aluguel. Lógico que liguei para o meu pai antes e recebi
seu total apoio.
Está tudo acontecendo e estou ansioso para contar isso à
Juliana.
— Cara, te devo uma.
— Deve mesmo e já sei como você vai me pagar.
— Como? — Antes que ele possa dizer algo, meu celular
apita, indicando o recebimento de uma mensagem.
Juliana: Estou saindo do escritório da Dra. Edna. Devo
chegar em casa dentre uns 20 minutos. Bjos”
— Deu tudo certo?
— O quê?
— Era a Juliana, não era?
— Sim. Como você sabe?
— Além da sua cara de bobo? Você soltou um suspiro,
aliviado.
— Nossa, que Diogo observador — brinco. — Era ela sim.
Está indo para casa. Você pode me levar até lá?
— Claro. No caminho, vou te contando a minha proposta —
conta, com o sorriso travesso, que sempre nos colocou em
enrascadas.
— Que Deus me ajude — digo, dando risada.
— Valeu, irmão. À noite te ligo, para combinarmos tudo.
— Ok. Se precisar de algo, me liga.
— Obrigado mesmo, Diogo.
Ele acena e acelera com o carro na rua do meu prédio.
Espero até o carro sumir de vista e sorrio ao pensar como Juliana
irá reagir à todas as novidades. Pelo tempo que ela me mandou a
mensagem e o tempo que Diogo demorou em chegar aqui, ela já
deve estar em casa. Vou aproveitar o momento até ir buscar a
nossa pequena, para conversar com ela e aproveitar para um sexo
quente.
— Senhor Vitor?
Viro para trás, ao ouvir o meu nome ser chamado, e me
surpreendo, ao ver o delegado Inácio caminhando em minha
direção.
— Sim?
— Posso falar um minuto com você?
— Desculpe, mas preciso resolver uma coisa agora.
Podemos marcar uma hora...
— Prometo não demorar muito. Gostaria apenas de
conversar sobre Edgar Gonzales e a investigação que encomendou
sobre ele. Estou pessoalmente à frente de uma investigação sobre
ele e preciso de algumas informações extraoficiais, para conseguir
de vez colocá-lo atrás das grades.
Falar de Edgar na cadeia, me chama à atenção
completamente. Aceno com a cabeça e o sigo para o outro lado da
rua, onde fica um café. As notícias para Juliana vão ter que esperar
mais alguns minutos. Nada mais que apenas alguns minutinhos.
Juliana
— Tito? — chamo ao abrir a porta e estranho por tudo estar
tão silencioso.
Ele ainda deve estar com Diogo — penso e sigo para o
banheiro, pois necessito de um banho agora mesmo.
Fico nua, em segundos, e deixo a água gelada correr pelo
meu corpo. O cheiro de Edgar parece estar impregnado a mim, por
isso, pego a bucha, encho de sabonete líquido e esfrego várias
vezes pela extensão do meu corpo.
— Ele não vai me desestabilizar. Não vai — repito, várias
vezes, em voz alta, para que meu subconsciente entenda que eu
não vou sucumbir ao medo novamente.
Eu vi maldade naqueles malditos olhos. Eu vi muita maldade.
E quando Edgar garantiu que mesmo com o divórcio, ele terá a
minha menina em suas mãos, eu joguei a política da boa vizinhança
no espaço e o estapeei. Edna disse que não foi uma boa ação, mas
que me entendia.
A verdade é que, no momento, não pensei nas
consequências, e a melhor parte é que foi libertador acertar a cara
dele, algo que ele nunca imaginava. Depois, agradeci pelos anos
podres de casamento que passei ao seu lado e disse que estava
livre. Ele sorriu. De um jeito assustador. E é isso que está acabando
comigo. Eu sei que ele vai aprontar alguma. Eu sinto isso.
— Droga! — Respiro, resignada, enquanto passo shampoo
nos cabelos. — Maldito Edgar. Maldito Sebastião, um pai de merda
que entregou a filha em uma bandeja, para um crápula como
aquele. E maldita mãe, que agora deu de falar de segredos e me
deixar com a pulga atrás da orelha.
Oh família!
Termino meu banho, enrolando o corpo em uma toalha
macia. Circulo pelo quarto, observando cada detalhe diferente que
Tito se preocupou em mudar, desde que passei a viver com ele. A
cômoda com vários produtos de beleza em cima; a minha parte no
armário; a foto de Emilly, Tito e eu, emoldurada no criado-mudo,
mostrando que ele realmente não quer nos ver longe daqui, e cada
detalhe aquece o meu coração. Eu acredito que ele ainda corre
perigo, pois meu maior medo é que Edgar descubra que estou com
ele e faça algo de ruim, no entanto, o sentimento que tenho por ele
é tão grande, que faz com que eu enfrente esse medo, de cabeça
erguida, ao lado do homem maravilhoso que acolheu a mim e a
minha filha. Não só em sua casa, mas também no seu coração.
Já sentindo a sua falta, envio uma nova mensagem, avisando
Tito que já estou em casa. Ele responde, de imediato, que logo
estará aqui e que tem uma surpresa. Bem, eu também tenho.
Abro a gaveta de roupa íntima e o vermelho me chama a
atenção. Coloco a vergonha de lado e resolvo ser ousada. Rindo de
nervoso, visto o presente que Rebecca me deu, depois que vim
morar com o Tito e, para ser sincera, achei que nunca usaria. Um
conjunto de lingerie vermelho fogo de renda e cetim. Olho meu
reflexo no espelho e o tom vermelho colore as minhas bochechas.
Nunca me vesti assim.
Será que ele vai gostar? Sorrio e cubro as peças com um
robe, seguindo para a cozinha. Ainda não almocei, mas não estou
com fome. Quero o Tito. Preciso contar a ele tudo o que aconteceu.
Depois, quero ir pegar a minha princesa e agarrá-la, até não
aguentar mais ouvi-la dizer o quanto me ama.
Um juiz tiraria a minha filha mesmo depois de tudo? — me
pergunto, em pensamentos, e não preciso de muito tempo para
saber a resposta. Além de Edgar ter dinheiro, se eu não o
denunciar, ele sempre vai ser o homem bom, que esteve
preocupado com a mulher e a filha, durante um sequestro
investigado pela polícia. Qual palavra teria mais peso na justiça: a
minha, ou a dele? Que piada.
Faço uma xícara de chá, com os pensamentos a mil por hora
e vou até o sofá, tentar relaxar um pouco. Assim que me sento, sinto
algo me espetando. Passo a mão por baixo da perna e vejo os
óculos de sol de Diogo.
— Droga! — Me levanto em um pulo e corro para o quarto.
Imagine os dois, chegando aqui, e eu vestida apenas com isso. Tito
ia me matar.
Jogo um vestido por cima do conjunto e, antes mesmo de
abotoar a parte da frente da peça, a campainha toca. Estranho, pois
além de Tito que ter a chave, somente a sua família pode subir, sem
que o porteiro interfone. E todos estão esperando por nós na casa
dos pais de Tito.
Você está segura aqui, não precisa ter medo — penso,
enquanto caminho devagar até a porta. Olho pelo olho mágico e
uma loira voluptuosa está arrumando os peitos para cima na blusa,
para que o decote seja ainda mais indecente.
— Olá. — Abro a porta, acreditando que seja um engano.
— Oi. O gaTito está?
Aperto os olhos em sua direção e tento ser racional. Nunca
pensei ser uma pessoa ciumenta, porém, a vontade que tenho,
neste momento, é de pegar essa garota pelos cabelos.
— Ouviu minha pergunta? — repete, rindo, creio que a graça
é exatamente o meu ciúme aparente.
— Ouvi sim. É que estou tentando entender, de quem você
está falando.
— Do gostosão tatuado que mora aí. Você, deve ser a
esposa?
Esposa? Quem é essa doida?
— Ele não me disse que você tinha problema de audição e
fala — caçoa, me deixando no limite.
— Bom, se está procurando o Tito, ele não está. Até mais. —
Tento fechar a porta, mas ela evita, segurando-a com as mãos.
— Espera! Estou só curtindo com a sua cara. Não tenho
nenhum lance com o gostosão, não. Foi uma pena você tê-lo tirado
do mercado, mas a fila anda. Quero saber do outro tatuado, o amigo
gostosão e cheio de piercing.
— Quem?
— Esqueci de perguntar o nome. Escuta, não quero confusão
com mulher ciumenta não, fiz aquilo só para tirar uma onda com
você, sou daquelas que pego, mas não me apego e o que tive com
o seu homem, é passado e já foi enterrado.
Ela continua falando, porém, a parte da frase “o que tive com
o seu homem” fica se repetindo na minha cabeça.
Passado, Juliana. Todo mundo tem um passado — penso,
me repreendendo.
— Eu não sou ciumenta — interrompo o monólogo da loira
peituda.
— Claro que não e eu sou uma freira — diz ela, rindo. —
Desculpe, foi só uma piadinha. Então, como eu estava dizendo, eles
saíram da padaria juntos e não deu tempo de pegar o telefone do
cara que me prometeu sexo suado e quente.
— Deve ser o Diogo, só pode ser ele — murmuro, rindo e
massageando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Hum. Nome apetitoso. Você tem o telefone dele?
— Tenho. Só um minuto. — No entanto, antes de voltar para
pegar o meu celular, uma dúvida me surge e eu volto a olhar para a
garota — Como foi liberada para subir, sem o porteiro interfonar?
— Soraia? — diz Tito, saindo do elevador. — O que está
fazendo aqui? — Me encara, branco como um papel e sinto que tem
mais nessa história do que eu sei.
— Oi, Tito. Vim buscar o telefone do seu amigo gostoso e,
respondendo à sua pergunta, ruiva, eu sou funcionária da padaria,
vim até o prédio fazer uma entrega. Aproveitei e juntei o útil ao
agradável.
— Que bom. Seu amigo chegou, ele te passa o telefone do
Diogo. Com licença.
Volto para dentro do apartamento, me sentindo muito infantil,
mas é impossível frear o ciúme que está crescendo em meu peito.
— Ju? — diz, assim que fecha a porta do apartamento. Logo
depois, me acha na sacada. — O que foi, Ju? Aconteceu algo? O
Edgar...
— Você já dormiu com ela, não dormiu?
— Merda! — resmunga, passando a mão nos cabelos curtos.
— Minha linda, eu já fiz sexo com ela e foi muito antes de conhecer
você. Isso não tem importância alguma agora.
— Ela chegou aqui procurando o gaTito. Que apelido ridículo
— resmungo e ele solta uma gargalhada, que cessa, assim que lhe
dirijo um olhar mortal.
— Ela está interessada no Diogo. Deixe de bobeira. — Tento
me desvencilhar, porém, ele é mais rápido e me prende em seus
braços. — Eu estava enlouquecendo sem notícias suas aqui e o
Diogo me arrastou para a padaria, querendo me distrair. Foi lá que
me encontrei com ela.
— E, por que ficou parecendo um boneco de neve, quando a
viu parada na porta?
— Porque hoje tenho várias notícias para te dar e achei que
ela poderia ter estragado uma delas.
— Ah! A loira periguete sabe das suas notícias antes de
mim?
— Você fica linda ciumenta — diz, me beijando suavemente
e, assim que o beijo se intensifica, entendo como estou sendo uma
boba.
— Desculpa — peço, olhando em seus olhos.
— Não tem por que se desculpar. Se fosse ao contrário, eu
teria batido no idiota que viesse te chamando de gatinha, antes de
deixá-lo explicar alguma coisa.
— Estava com saudade — assumo e o beijo novamente.
Suas mãos seguem para a minha bunda e, em um impulso,
sou suspensa do chão. Tito me carrega até o nosso quarto e, assim
que me deposita na cama, puxa a camiseta pela cabeça, fazendo o
mesmo com o meu vestido.
— Puta que pariu! Quer me matar, Ju?
— Gostou? — Sorrio, satisfeita, por ver seus olhos brilharem.
— Você está muito gostosa. Uma verdadeira deusa do fogo.
A minha deusa do fogo — fala, com a voz rouca, enquanto se livra
do restante das suas roupas.
Olhar para esse homem nu e excitado, é o mesmo que
mergulhar nas profundezas do pecado e prazer. Suas tatuagens o
deixam mais sexy do que nunca e o corpo malhado, me faz ter uma
vontade louca de ser uma pessoa mais atirada e confiante na cama.
— Então, vem provar essa deusa, vem? — chamo, jogando
os cabelos para trás e passando a língua lentamente pelos lábios.
Percebo que atingi o meu objetivo, pois Tito engole em seco,
vindo em minha direção.
— Vou te provar. Quero provar você nessa lingerie
provocante e sexy. Você não tem noção de como me deixa. — Olho
descaradamente para a sua ereção linda e gloriosa e ele sorri. — É,
eu acho que você tem noção. Agora, quem vai te deixar louca, sou
eu.
Circula com a língua um mamilo, por cima da renda
vermelha, e tento controlar meu corpo, para não pular no colchão.
Minha respiração já está ofegante no momento que ele muda para o
outro seio, fazendo a mesma caricia deliciosa.
Meus braços que, até então, estavam segurando o peso do
meu corpo, perdem a batalha e eu desabo no colchão, o que o faz
sorrir.
— Assim é melhor — diz e desliza um dedo pela minha
barriga, enquanto sua boca continua me sugando por cima do sutiã.
Sinto seu dedo passear pela minha intimidade e tento frear a
vergonha de estar molhada, com um simples toque. Não tenho que
ter vergonha com o Tito. Ele é meu e eu sou dele.
Com esse pensamento, eu relaxo, sorrio e aproveito cada
instante dos beijos, das carícias com dedos, línguas e mãos e me
deixo levar, quando Tito me penetra, me fazendo flutuar em um
emaranhado de prazer e amor.
Sim, amor. Eu, finalmente, estou pronta para dizer isso. Por
isso, logo depois do ápice do nosso prazer, deixo as três palavras
mágicas rolarem pela minha língua e enraizarem no coração dele.
— Eu te amo, Tito.
Com a respiração ainda acelerada, ele sorri e me encara,
com os olhos brilhantes e felizes.
— Eu também, Ju. Como nunca imaginei amar alguém.
— Achei que fôssemos buscar a Emilly — comento, achando
estranho Tito subir na moto.
— Mais tarde. Agora nós vamos dar uma volta. Tudo bem?
Aceno e prendo o meu cabelo, de um modo que ele fique
totalmente escondido pelo capacete. Nem pensei em pegar a
peruca, já que íamos até a casa da mãe dele. E, para ser sincera, já
estou cansada de me esconder.
O motor ruge e, como sempre, meu estômago se agita com
antecipação. Agarro-me em sua cintura, com o rosto colado em
suas costas, suspirando, feliz. Andar com Tito de moto é sempre
uma sensação inesquecível. Uma pena termos deixado isso de lado
nos últimos tempos, pois com a Emilly, é inviável eu ficar saindo de
moto.
— Chegamos — anuncia e vejo que não fomos muito longe.
Aqui é a vista do pôr do sol mais bonito da cidade, dentro do
parque municipal de Bela Vista. Olho em volta, preocupada,
pensando se alguém pode me ver aqui, mas o lugar está
relativamente vazio e não acredito que ninguém do meio de Edgar
viria até aqui.
— Fique tranquila. Pensei muito, antes de te trazer aqui —
diz, lendo meus pensamentos e deposita um beijo suave em minha
mão.
Seguimos de mãos dadas até um gramado, onde se dá para
enxergar perfeitamente o ponto em que o sol vai cair dentro de
alguns minutos. Observando em volta, vejo vários casais de
adolescentes e tento não pensar que essa fase da minha vida me foi
arrancada. Primeiro, com o jeito ditador do meu pai e, depois, com a
entrega da minha vida para aquele crápula do Edgar.
— Quem vai começar a falar? — pergunta Tito, se sentando e
abrindo as pernas, para que eu me acomode entre elas.
Sento, respiro fundo e relaxo as costas em seu peito forte.
Depois que fizemos amor, ficamos, por um tempo, abraçados e
decidi deixar a conversa envolvendo Edgar para depois. Pelo jeito,
Tito estava planejando isso também.
— Edgar assinou o termo do divórcio — conto, olhando para
frente e sendo abraçada pelos braços músculos e tatuados de Tito.
— Tito? Você me ouviu? — Olho para trás, depois de um tempo de
silêncio do meu namorado e o vejo com o cenho franzido, como se
estivesse pensando em algo muito sério.
— Ouvi sim. Isso quer dizer que você é uma mulher livre?
— Ainda não, amor. A Dra. Edna dará entrada na justiça,
para que o juiz homologue o nosso “acordo amigável”.
— Como ele foi com você? Como te tratou?
— Ele ficou muito surpreso — conto, sorrindo, me lembrando
do jeito que o desestabilizei. — Gritou ordens para todos, me
mandou ir para casa, esperar por ele, fez uma cena ridícula.
Aproveitei disso e fui firme. Mostrei as fotos que Rebecca tinha das
minhas agressões e ameacei acabar com a sua carreira política. Ele
disse que precisava pensar e depois entraria em contato. Virei um
leão na hora. Gritei para ele assinar naquele momento e não sei se
isso foi o mais sensato. Ele tomou o controle da situação. Assinou a
procuração para a advogada representá-lo e também o termo do
divórcio, porém, não se incomodou com a plateia, quando disse que
eu venci a batalha, mas não a guerra e que, em pouco tempo, Emilly
estará com ele. — Deixo tudo sair de uma vez, para que eu consiga
virar logo essa página.
— Você não precisa se preocupar com isso, Ju. Eu nunca
vou deixar ele se aproximar da nossa menina.
— Tem mais uma coisa. — Crio coragem para dizer. — Eu
não fui completamente honesta com você, nos últimos dias.
— Com o quê?
— Eu tinha decidido encerrar o meu contato com Edgar,
assim que ele assinasse o divórcio. Queria ficar livre dele e nunca
mais ter que olhar para a sua cara. E, por isso, eu abriria mão do
processo criminal de violência.
— Você estava com medo de fazer justiça? — Tito pergunta e
percebo que não tem julgamento em sua voz. Apenas dúvida.
— Não sei se a palavra certa é medo. O que eu queria era
paz. Apagar esse homem da minha vida para sempre, para
podermos trilharmos a nossa história.
— E você ainda quer isso?
— Não. Antes de sair de seu escritório, eu vi maldade no seu
olhar, acabei me descontrolando e dei um tapa no seu rosto. Sei que
ele não vai deixar barato. E percebi também que, por mais que
aconteça um milagre e ele me esqueça, não posso deixar que ele
faça isso com outra pobre coitada que cair em suas mãos. Decidi
que vou até o fim, quero que ele seja preso e apodreça na cadeira
por tudo o que fez a mim e a minha filha.
Só percebo que estou chorando, quando Tito beija cada lado
do meu rosto, onde escorreram as lágrimas. Seu abraço é quente e
reconfortante, como sempre.
— Me desculpe, por ter mentido para você.
— Você não mentiu. Apenas guardou para si uma decisão
que estava pensando em tomar. Isso se chama privacidade, Ju. E
toda pessoa tem direito a isso — afirma, beijando a ponta do meu
nariz. — No entanto, eu ficaria muito feliz em poder fazer parte das
suas decisões e das suas aflições.
— Você é maravilhoso. Eu nunca pensei que conseguiria
achar alguém tão bom para mim, depois do que passei.
— Já disse que o presente foi meu. Você é a mulher que eu
não estava esperando e que foi feita, especialmente, para mim. Na
medida exata.
Sorrio e vou aproximando o nosso rosto, sem desviar o olhar.
Um olhar carregado de amor e de promessas. Beijamo-nos de forma
comportada e observamos a vista, por um tempo, antes de Tito
voltar a falar.
— Diogo me arrastou para a padaria hoje e...
— Já superei a loira peituda, não precisa me falar disso —
resmungo e sinto seu peito vibrar pela risada.
— Deixe-me terminar, sua ciumenta — diz, mordendo de leve
meu ombro. — Então, Diogo disse que eu estava chato e me levou
lá. Começou a fazer perguntas sobre projetos futuros e eu disse a
ele que tinha vontade de montar o meu próprio bar...
— Você tem? — o interrompo, virando o meu corpo de frente
para o dele.
— Peço desculpas por nunca ter falado para você. É que
pensei nisso um pouco antes de você sair de casa. Depois disso,
deixei de lado.
— Até agora.
— Sim, até agora. Diogo foi falando e, em menos de duas
horas, conseguimos um lugar e um consultor de negócios.
— Conseguiu um lugar?
— Sim, foi tudo muito rápido. Diogo perguntou para Soraia
sobre imóveis pela redondeza e, para a minha sorte, o patrão dela
estava com um disponível. Já fomos até lá e conheci o lugar.
— Então, foi por isso, que você ficou branco feito um papel.
Estava com medo de ela ter me contato, né?
— Exatamente — concorda, rindo. — O que achou da ideia?
— Achei o máximo. Você pensa em montar um PUB como o
seu antigo emprego?
— Não. Quero um barzinho mais calmo, com música ao vivo.
Mesas espalhadas para casais ou grupo de amigos. Um lugar que a
pessoa possa ir para relaxar, depois de um dia de serviço.
— Já estou encantada só em te ouvir falar. Tenho certeza de
que será um sucesso. O imóvel comporta os seus planos?
— Perfeitamente. Terei que fazer reformas, mas nada que dê
muito trabalho. O preço do aluguel cabe no meu bolso.
— E...
— Como você sabe que eu tenho mais alguma coisa para
falar? — questiona, com o olhar brilhando e me vejo sorrindo como
uma boba.
— Porque eu já te conheço, profundamente.
— Me conhece mesmo. — Sorrindo, ele me beija. — E que
como já te falei, tenho um dinheiro guardado, porém, precisarei de
um capital de giro maior, por isso, vendi a minha moto.
— O quê? — digo, mais alto do que eu gostaria e, algumas
pessoas em volta, olham em nossa direção.
— Não se assuste, é só uma moto.
— Tito, aquela moto é o seu bem mais precioso.
— Não, meu amor, meus bens mais preciosos são você e a
Emilly, e somente isso tem que ser mantido na minha vida — afirma,
segurando o meu rosto entre as mãos, e isso é o que falta para que
toda a emoção que segurei durante o dia todo dê vazão.
Choro abraçada a ele e nem mesmo sei o motivo. Se foi o
reencontro com Edgar, se é o fato de Tito ter dado início a um
projeto maravilhoso como esse, ou o motivo é simplesmente por ele
ser esse homem incrível, que ganhou totalmente o meu coração.
— Tudo isso, em algumas horas que passei fora?
— Pois é, nem mesmo eu acreditei como as coisas
aconteceram tão rápido. E tem mais.
— Mais?
— Sim. Adivinha quem comprou a minha moto?
— Não faço ideia.
— Diogo. Disse que sabe que eu não aceitaria o empréstimo,
então, vai aproveitar a moto para pegar mulher, até eu conseguir o
dinheiro e comprá-la de volta.
— Que gesto lindo. Ele é um amigo ótimo.
— Realmente é. Falei com o meu pai e ele vai me auxiliar
com a parte burocrática do bar. Estou tão animado, Ju. Você precisa
ver o palco. É maravilhoso. Já te imaginei cantando lá para mim.
No mesmo dia em que Edgar aceita assinar o divórcio,
consigo dar voz aos meus sentimentos e não me arrependo nem um
pouco, pois com Tito, posso ser eu mesma. A Juliana que é mãe de
uma menina linda e que ama cantar. E a parte mais incrível, é que
ele não é contra nenhuma delas, pelo contrário, acaba de me dizer
que me imaginou cantando em um bar, que ele ainda nem montou.
Limpo as lágrimas e seguro o seu rosto com as mãos, mal
acreditando em como o destino está sendo bom comigo.
— Então, realizarei a sua imaginação e com uma música
especial, que diz tudo o que sentimos um pelo outro.
— Mal posso esperar.
Tito
— Essas bebidas são no depósito, não aqui — digo,
passando a mão pelos cabelos, mais uma vez.
Quando Diogo aparecer na minha frente, vou fazê-lo comer
terra só por ter me indicado um ajudante que mais se parece um
senhor de 90 anos, em vez de um rapaz de 25. O tempo todo ele
está bocejando ou sentado em algum lugar. E nada do que eu peço,
sai do jeito certo. Estou a ponto de explodir.
— Acho que alguém está precisando de um café.
Tiro as mãos do rosto e sorrio, ao ver meu pai, em seu terno
impecável, segurando dois copos de isopor, que imagino conter
café.
— Que Deus te abençoe — brinco.
— Dia difícil?
— Difícil é fichinha perto do que estou passando —
confidencio, tomando um longo gole de café.
— Eu pensei que a empreiteira tivesse entregado a obra
ontem.
— E entregou, pai. Maurício Medeiros foi um tiro certo. Me
lembre de enviar um vinho ao Alex, por ter indicado a empresa do
pai do Daniel. O cara é excelente. Além da Beatriz, sua nora, ter
aperfeiçoado com maestria tudo o que eu queria mudar aqui, ficou
excelente.
— Realmente, ficou — comenta meu pai, olhando em volta.
— Qual é o problema, então?
— O ajudante que Diogo me indicou. O cara é movido a
lenha. Precisamos colocar as mercadorias que chegaram hoje no
lugar e, até quando ele consegue finalizar alguma tarefa, faz algo
errado.
— Ele pode ter algum problema, Tito — diz, de forma
preocupada. Meu pai nunca me deixaria pegar no pé de uma
pessoa com algum tipo de atraso mental, ou deficiência.
— Cheguei a pensar nisso também — suspiro, cansado. —
Por isso, fiquei observando-o durante um tempo, hoje de manhã. O
cara vive se arrastando, reclamando de sono e com o celular o
tempo todo nas mãos.
— Isso é um problema sério. Você vai ter que falar com ele.
— Vou fazer isso. — Acabo o meu café e jogo o copo no lixo,
perto do balcão do bar. — E você, o que faz por aqui?
— O delegado me ligou.
— Vamos para o escritório.
— Oi. Boa tarde. — Encontramos Tomé no meio do caminho
e ele cumprimenta o meu pai, sorrindo.
— Olá, rapaz. Está gostando do serviço?
— Estou sim. O Sr. Vitor é um bom chefe e... — O celular
começa a tocar interrompendo a sua fala.
— Tomé, se você puder evitar o uso do celular durante o
horário do trabalho, eu agradeço. Vou para o escritório com o meu
pai e você, por favor, leve todas as caixas que estão perto do palco
para o depósito.
— Sim, senhor.
Solto o ar com força e abro a porta do escritório.
— Caramba. Isso aqui ficou melhor do que estava no projeto.
— Ficou mesmo. — Sorrio, orgulhoso, pois o escritório está
fabuloso.
Quando assinei o contrato, depois de trazer Juliana e meu pai
aqui e ambos aprovarem o lugar, o Sr. Alcides informou que os
móveis poderiam permanecer e eu fiquei feliz com isso, porém,
quando a tal Beatriz chegou com o Sr. Mauricio e começou a dar
ideias para transformar o escritório em um ambiente mais moderno,
eu não acreditei que realmente ficaria bom. Agora, depois de duas
semanas de reforma, o local ganhou uma parede de vidro na lateral,
que só pode ser vista por quem está dentro do escritório e que me
proporciona uma vista excelente do palco, onde espero ver minha
deusa ruiva cantar por várias noites.
— Sente-se, pai. — Acomodo-me à mesa de carvalho, que foi
mantida, e espero meu pai se sentar para voltar a falar. — E, então,
o que ele contou de novo?
— Você sabe que as eleições são daqui a três dias, não
sabe?
— Claro, pai. Eu ainda sei o que se passa no mundo. —
Tento fazer uma piada, porém, isso me atinge em cheio. Estou tão
envolvido na reforma, que não tenho mais tempo para nada. Nem
mesmo, para as minhas garotas.
— Inácio disse que mesmo com a investigação em curso, não
conseguiu tirar Edgar do cargo de vice-prefeito.
— Ou seja, estamos na mesma — resmungo.
— Não, meu filho, a investigação está avançando. Inclusive,
David foi afastado do cargo de investigador, pois Inácio conseguiu
apertar Salomão e descobriu que David deu dinheiro a ele para
apagar as filmagens das câmeras.
— Cretino. Eu sabia que tinha dedo de alguém, Salomão
nunca foi tão esperto desse jeito. Mas eu jurava ser algo relacionado
ao Edgar.
— Edgar não, mas Sebastião sim. O pai da Juliana descobriu
sobre o detetive e pagou David para te prejudicar, pois já sabia da
sua existência por seguir Juliana. Foi ele mesmo que contou sobre a
investigação particular para Edgar. Inácio teve acesso à ligação.
— Ele me disse isso no dia que me procurou no meu
apartamento. Eu fiquei tão confiante naquele dia, pai. O delegado
me disse que com o dossiê que Antônio Carreira tinha preparado,
eles já tinham tudo para colocar Edgar atrás das grades. Já se
passaram quase três semanas desde aquele dia e até agora nada
aconteceu. Isso me desanima.
— Tito, a justiça é lenta.
— Bota lenta nisso. O juiz nem mesmo homologou o divórcio
de Juliana, a investigação não vai para frente. Juliana, mesmo sem
assumir, ainda sente medo daquele crápula, enquanto ele fica por
aí, livre, leve e solto.
— Não adianta você arrancar os cabelos por isso. O
importante é que a vida está entrando nos trilhos. Você está para
abrir o seu bar, Juliana conseguiu voltar para a escola de música e,
o melhor, aceitou que Emilly voltasse para a escola infantil lá perto
da nossa casa. Todos esses acontecimentos são avanços incríveis.
Sim, meu pai está certo, porém, acho que meu nervosismo é
mais culpa minha do que do próprio Edgar. Se eu fiquei feliz por
Juliana ter voltado a estudar? Fiquei radiante. A minha garota
passou por uma audição e concluíram que em mais um ano de
estudo, ela poderá se formar musicista. Mesmo com medo de
Edgar, ela aceitou deixar Emilly aos cuidados da minha mãe durante
à manhã e na parte da tarde, a matriculou em uma escola pequena,
perto da casa dos meus pais, onde a dona e diretora é amiga da
minha mãe, por isso, sabe de toda a história e, principalmente, está
ciente que é terminantemente proibido que outra pessoa que não
seja um de nós, da família, chegue perto de Emilly, mesmo que a
pessoa em questão seja o pai dela.
O problema é que com todos os assuntos para resolver do
bar, quando chego em casa, fico recebendo vários telefonemas e
quando arrumo um tempo para ficar com elas, já estão dormindo.
Isso está acabando comigo.
— É passageiro, Tito. Daqui a pouco o bar estará
funcionando e tudo vai entrar nos eixos — afirma ele, lendo meus
pensamentos.
— Será?
— Claro. Eu já te contei quando resolvi montar uma filial da
empresa em outro estado? Você tinha apenas dois anos e sua mãe
quase fez minhas malas.
— É mesmo? — questiono, divertido, e me encosto-me à
cadeira, para ouvir mais uma história do meu pai. Ele sempre acha
uma em momentos de tensão, como este. É o seu jeito de me
acalmar e dizer que tudo vai ficar bem.
— Olá? — Ouço o grito na entrada do salão e xingo,
mentalmente, Tomé, por ter deixado a porta aberta.
— Desculpe, estamos fechados ainda... Elder?
— E aí, camarada! — diz, rindo, vindo em minha direção. —
Virou chefe e esqueceu-se dos amigos?
— Até parece mesmo. Como você está? — cumprimento,
com um abraço de lado e o convido para se sentar no bar.
— Estou bem. Isso aqui tá ficando chique mesmo, hein! —
diz, passando a mão pela bancada de inox, o meu xodó. —
Inaugura quando?
— Ainda não tenho data. A prefeitura está enrolando com
alguns alvarás. Espero que não demore muito. A reforma terminou e
falta apenas fazer o abastecimento e finalizar a decoração. O que
quer beber?
— Uma água, está ótimo. Estou dirigindo.
Aceno e coloco duas águas no balcão. O bar foi a primeira
parte a ficar pronta aqui e, tenho que confessar que, mesmo
gostando do escritório, este lugar é o meu preferido. Fiz questão de
colocar os utensílios mais tops do mercado e já imagino todas as
prateleiras de vidro recheadas de bebidas, para satisfazer a
clientela.
— Como está o PUB?
— Você não está sabendo? — Franzo o cenho e ele
prossegue: — Fechou. Estamos todos na rua, cara.
— Como assim? O dono de lá tem muito dinheiro para deixar
o lugar falir.
— Não faliu. Teve uma batida policial e descobriram que
Karina e Salomão estavam vendendo drogas lá dentro. Os dois
estão presos e a licença de funcionamento foi revogada.
— Caramba! — digo, abismado. É verdade que eu não gosto
de Karina e Salomão, mas nunca imaginei que eles seriam capazes
disso.
— E você, já montou uma equipe?
— Não. Falando nisso, como soube?
— As notícias rolam — brinca e eu levanto uma sobrancelha,
esperando. — Fui até o seu apartamento e o porteiro me disse onde
te encontrar.
Sacudo a cabeça, pensando que se está tão fácil me achar
assim, logo, logo, Edgar entrará por esta porta.
— Já que está aqui, aceita o emprego de garçom?
— Achei que nunca fosse perguntar — brinca, jogando as
mãos para o alto.
— Então, venha até o escritório para falarmos sobre o salário.
— Hum. Já está todo patrãozinho — tira sarro, assim que
abro a porta do escritório, e eu dou um soco leve em seu braço. —
Agora, falando sério, estou muito feliz por você, cara. Eu sempre
soube que você tinha potencial.
Balanço a cabeça em concordância e o convido para sentar.
Se não fosse esse cara, talvez eu nunca tivesse pensado nisso.
— Você vai ficar feliz, na hora que eu te colocar para
trabalhar — brinco e, no meio de risadas, fechamos a nossa
parceria comercial.

— Mentira!
— Eu teria vindo até aqui se fosse mentira, Luíza? — caçoo e
recebo um cutucão.
— Tito, eu nunca imaginei que a vaca da Karina fosse capaz
disso. Ela me parecia mais uma puta de luxo do que traficante de
drogas.
— Cheguei à mesma conclusão. Obrigado. — Sorrio e pego o
copo de suco que ela me oferece, antes de se sentar ao meu lado.
Trabalhei com Luíza durante anos no PUB e ela tornou-se
uma amiga muito querida. Karina tinha tanto ciúme dela, que a fez
ser demitida. Foi um dos motivos de eu passar a detestar aquela
mulher. Para Luíza, a demissão não foi ruim, ela era uma garota que
tinha trauma de balé, pelo fato de ter perdido o noivo em um
acidente durante uma apresentação, Luíza superou seu medo,
conseguiu o certificado para dar aula e hoje é uma incrível
professora de balé para crianças, na academia de Dan, Pedro e
Artur, além de ir até orfanatos levar dança e alegria para as
crianças.
Uma grande virada.
— Bom, se estão presos, é porque mereceram. Não quero
mais perder o meu tempo falando neles. Agora, me conte, por que
Juliana não veio com você?
— Eu liguei assim que saí do bar e resolvi vir aqui, mas ela
disse que tinha um trabalho para terminar na escola.
— E isso te chateia por quê?
— Quem disse que me chateia?
— Eu digo. Você acha que eu sou boba, Tito?
— Já disse que você não era intrometida desse jeito, antes
de aquele médico entrar na sua vida — provoco e ela sorri
abertamente.
— Não trocaria nada.
Eu sei que não. Os dois passaram por problemas e hoje
estão mais fortes do que nunca. Noivos e realizados. Tenho certeza
de que isso vai acontecer comigo e com a Juliana também. O pior já
passou. Agora é só superar essa distância que está me deixando
louco.
— Não estou chateado por ela estar na escola, pelo contrário,
quase pulei de alegria, e morro de orgulho por ela ter conseguido
voltar a realizar o sonho dela. Estou chateado é comigo, por não ter
mais tempo para ficar com ela. Por sempre ter um problema para
resolver quando ela e a Emilly estão em casa assistindo a um filme,
ou jantando.
— Calma, meu amigo. Você deu um grande passo ao abrir
um negócio próprio. O começo é difícil mesmo, mas logo, tudo
entrará nos eixos.
— É o que todo mundo fica me dizendo.
— Mas uma coisa eu digo, pare de colocar desculpa no
tempo. O tempo quem faz somos nós. Arrume um tempo para ficar
com a Juliana. Nós mulheres precisamos de carinho e tem uma
frase que eu gosto muito: “Quem quer, arruma tempo, quem não
quer, arruma desculpas”.
— Só ouvi verdades, obrigado, minha amiga.
Despeço-me de Luíza, com a promessa de um programa de
casal, em breve.

— Mãe? — digo, assim que entro no carro e disco o número


dela. — A Ju já passou aí para pegar a Emilly?
— Não, Tito. Ela disse que estava atrasada com um trabalho
e eu pedi para deixar a minha netinha aqui. Ela já está quase
dormindo vendo a um filme com o seu pai.
— Não vai te atrapalhar, mãe? Se quiser, passo aí para...
— Vai para casa descansar com a Juliana, filho. Até amanhã.
— Desliga na minha cara, sem a menor cerimônia. Essa minha mãe.
Decido seguir o conselho das duas mulheres com quem
conversei hoje. Olho no relógio que vejo que não está tão tarde,
ainda dá tempo de passar em um restaurante. Ligo em um que é
perto de casa, faço o pedido e torço para Juliana não chegar antes
de mim, pois hoje será a nossa noite.

— Tito? — Por um feixe de luz, que atravessa as portas da


sacada, vejo seu rosto cansado. Sem nem ligar as luzes, Juliana
arranca os sapatos e os joga de lado. Roda o pescoço, como se
quisesse tirar a tensão e meus dedos coçam para me levantar e
massageá-la. Sem conseguir me segurar mais, uso o isqueiro para
acender as duas velas e o barulho a faz olhar em direção à mesa.
— Tito? — repete, forçando os olhos na minha direção. — O
que está fazendo no escuro?
Sorrio e me levanto, esticando a mão. Conforme se aproxima,
sua boca vai se abrindo de um jeito lindo.
— Estava esperando por você.
— Isso tudo é para mim?
— Só isso, você quer dizer, não é? Você merece muito mais.
Ei, não chore. — A puxo para os meus braços, assim que vejo as
lágrimas.
— Ninguém... Nunca fez algo parecido para mim — confessa,
em meio às lágrimas. — Eu sei que isso parece bobo, mas...
— Não parece bobo. Você não teve pessoas boas na sua
vida, meu amor. E isso mudou quando passou a fazer parte da
minha. Prometo que irei te surpreender sempre. Sente-se. Você
deve estar faminta.
— Realmente, estou. Hoje dia de hoje foi...
— Massacrante?
— Exatamente. Tive que montar um projeto com dez
partituras e minha mente parecia estar em branco. Fiquei lá até
tarde e, nem assim, consegui finalizar.
— Deveria ter pedido para eu ir te buscar — digo,
suavemente, mas com a preocupação aparente, pois Juliana
andando por aí, à noite e sozinha, é algo que vai me preocupar, até
que Edgar esteja atrás das grades.
— Da próxima vez, juro que faço isso. — Beijo a sua mão e
encho as taças de vinho.
Sirvo o salmão, que peguei no restaurante e fico igual um
bobo, apreciando os gemidos de prazer que Juliana faz ao comer.
São os pequenos prazeres da vida que nos fazem ver como
tudo vale a pena. Mesmo quando as dificuldades ganham formas
gigantescas na nossa vida, olhar para a mulher que eu amo, me
mostra que estou no caminho certo.
— Bom dia. — Juliana se espreguiça, sorrindo, quando me vê
parado com a bandeja de café da manhã. — Acordou cedo, ou eu
que perdi a hora?
— Você acordou na hora perfeita. — Coloco a bandeja em
seu colo e me inclino para beijar seus lábios.
Nossa noite foi perfeita. Jantar. Vinho. Conversa. Sexo.
Banho. Vinho. Sexo. Carinhos. Juras de Amor e, finalmente, o sono.
Ter Juliana em meus braços a noite toda foi uma dose de energia.
Hoje, começarei a organizar os meus horários. Acabou essa fase de
trabalhar à noite, enquanto o bar não abre. Terei minhas noites
totalmente dedicadas às minhas garotas.
Aprofundo o beijo e quando sua mão tímida toca a minha
virilha, a droga do meu celular começa a tocar.
— Droga!
— Pode ser sua mãe — diz Juliana e pulo da cama,
pensando que pode ser algo com a minha princesa.
— Oi, pai.
— Vitor, venha para o bar agora.
— O que houve?
— Não vou adiantar pelo telefone, para não te preocupar,
mas venha agora.
— Já preocupou. Estou indo — resmungo, sabendo que deve
ser algo muito sério para o meu pai falar daquele jeito.
— O que houve?
— Não se preocupe, ruiva, é algo no bar. Você tem aula
hoje? Quer que eu te leve?
— Vou somente à tarde hoje. Pensei em passar na sua mãe
agora cedo.
— Ela vai adorar. Você sabe que minha mãe ama te encher
de pães, bolos e comida.
— Vou virar uma bola, daqui a pouco.
— Com esse corpo delicioso? Você não corre esse risco. —
Deposito um beijo em sua boca e saio da cama. — O que acha de
almoçarmos em algum lugar? Só nós três.
— Fechado.
— Eu te amo — digo, ao me despedir. E juro que se a voz do
meu pai não estivesse tão tensa, eu não sairia desta cama hoje.
— Eu também.
Depois de trocar de roupa rapidamente, sigo para a garagem.
Sorrio ao ver o carro de Juliana ao lado do meu. Sim, carro da
Juliana. Depois que vendi minha moto, ela fez questão de comprar
um carro, simples e barato, com o dinheiro que tinha guardado.
Acabei convencendo-a de eu ajudar com uma parte e compramos
um carro popular, porém, não tão velho quanto ao que ela tinha
escolhido.
Espero que o bar comece a render frutos rapidamente, para
que ela aceite mais a minha ajuda.
Estaciono na rua mesmo e entro pela porta da frente,
esperando achar meu pai com uma xícara de café fumegante nas
mãos, porém, paraliso antes mesmo de entrar completamente.
— O que aconteceu aqui? — pergunto, ao ver o lugar
destruído. — O quê... Quem fez isso?
— Tito? — chama meu pai, saindo da área de descanso. —
Acertaram Tomé, quando ele estava entrando. Não foram para as
outras partes do bar, apenas...
— Apenas destruíram o salão principal — constato, em um
sopro de voz.
Nunca achei que a expressão “coração sangrando” fosse
real. No entanto, é o que estou sentindo neste momento. O palco,
que eu já estava sonhando em ver a minha ruiva cantando, está
todo quebrado. A iluminação, jogada no chão. Os tecidos, que iam
fazer parte da decoração do fundo, onde será colocado um painel
luminoso com o nome do bar, estão rasgados.
Coloco as duas mãos na cabeça e me viro para o bar.
— Não. Não. Não! Que droga — grito, para extravasar a
minha raiva. Todas as prateleiras estão quebradas. Todas. Os copos
que eu comecei a organizar ontem, fazem montes de cacos de
vidros no chão e o inox do balcão, está todo marcado, como se
tivessem utilizado alguma barra de ferro para avançar contra ele,
várias vezes.
Não sei se é desconfiança minha, mas tenho certeza de que
tem dedo do Edgar nisso.
— Seu escritório teve apenas a porta danificada. Foi uma boa
ideia ter reforçado aquelas trancas, pois eles tentaram, mas não
conseguiram abrir — comenta meu pai, ao meu lado.
— Onde está Tomé?
— Chamei o SAMU e eles o levaram para o pronto-socorro.
O corte da cabeça foi profundo e vai ser necessário pontos.
— Por que ele não me ligou?
— Quando cheguei aqui, ele ainda estava desacordado e
sangrando.
— Por que veio para cá, pai?
— Queria contar que recebi um e-mail da prefeitura ontem,
no final da tarde. Tivemos um problema com alguns documentos e
achei que te encontraria aqui cedo.
— Mais problemas — resmungo. — Eu não vou ter dinheiro
para arrumar isso em tempo recorde e ainda contratar os
funcionários. Vai atrasar os planos — confesso, fechando os olhos e
tentando não pensar em todo dinheiro que foi perdido aqui, em
alguns minutos de diversão desses palhaços.
— Sabe, filho. Eu poderia...
— Não, pai. Obrigado. Não é orgulho, é que não quero que
você se prejudique por algo que eu quis fazer.
— Deixe-me terminar. Eu sei que você não vai querer um
empréstimo, porém, já tinha esse dinheiro guardado há muito tempo
em uma poupança em seu nome, que era para a faculdade que
você não quis fazer.
— Pai, eu usei o dinheiro da faculdade na Inglaterra, com o
intercâmbio e os cursos de barman que fiz por lá — aponto,
achando engraçado ele tentar arrumar desculpas para que eu aceite
seu direito.
— Isso é verdade. Mas não foi todo o dinheiro e eu ficaria
muito feliz em ser seu sócio, ao invés de te emprestar o dinheiro, o
que acha?
Nunca tive vergonha de chorar, creio que mostrar emoções
não diminui uma pessoa e, sim, mostram o quanto ela é forte. Por
este motivo, não me acanho ao abraçar meu pai, com os olhos
marejados.
— Obrigado por sempre estar por perto e por sempre me
apoiar, por mais que eu não seja o filho que você sempre sonhou
que eu fosse.
— Você tem razão. Você não é nem perto do filho chato e
metido que eu achei que você seria, caso se tornasse um advogado
criminal. E é este o motivo que me orgulho tanto de você, Tito, você
se tornou um homem excepcional e fez isso sozinho.
— Aí que você se engana. Foi a criação que tive, que me fez
quem sou, mesmo que eu não tenha seguido os seus passos.
Obrigado.
Ele me dá um beijo carinhoso nos cabelos e tira o terno, caro
e sob medida, que ele usa.
— E, então sócio, quais medidas vamos tomar?
— Pai, você não precisa fazer isso. Pode ir para o escritório.
— Faço questão. Vamos começar a limpar esta bagunça.
— Será que é um sinal para eu desistir?
— Não, meu filho. É um sinal para te mostrar que nem tudo
na vida é fácil, mas que quando queremos algo, podemos passar
por cima de tudo, com a cabeça erguida e continuar seguindo em
frente.
— Então, vamos em frente. — Sorrio para o meu pai e
começo a limpar a bagunça.
Juliana
— Obrigada por terem vindo.
— Eu que agradeço pelo convite. Que lugar lindo — diz a
amiga de Tito e fico feliz por, finalmente, tê-la conhecido.
— Lindo mesmo. Desde o primeiro dia que vim aqui, me
apaixonei — comento, olhando ao redor e sorrio ao ver vários
balões rosa espalhados pela parte externa da fazenda e a
decoração de princesa montada na grande tenda, no centro do
gramado extenso e bem cuidado. Além dos brinquedos e monitores
espalhados pelo local. Uma grande e linda festa.
Cinco anos de vida da minha pequena. Como o tempo passa
e, o melhor, é que desta vez, passou da melhor forma possível.
— Fiquem à vontade. — digo à Luíza e seu noivo, Alex, e os
encaminho para uma das mesas espalhadas pelo local. — Tito foi
trocar a camisa, pois entrou em uma guerra de doces com as
crianças, e já vem cumprimentar vocês.
— Não se preocupe conosco, Juliana. Sem formalidades, por
favor — brinca a garota e consigo relaxar um pouco.
— Certo. Com licença, então. — Sorrio e me afasto.
Esta é a primeira comemoração de vida de Emilly, que estou
realmente feliz por estar comemorando. Nos anos anteriores, Edgar
fazia festas enormes, lotadas de pessoas que eu não conhecia e
Emilly tirava mais fotos do que brincava. Ele não tolerava que ela
ficasse com um fio de cabelo fora do lugar. Tinha que ficar na porta
da festa, recepcionando todos os adultos e sorrindo sempre.
— Demorei? — Sinto o beijo no rosto e, o perfume de Tito,
me trás de volta à realidade.
— Um pouco. Sua amiga Luíza e o noivo chegaram.
— Que bom, vamos até lá falar com eles?
— Vai indo, o carro de Rebecca acabou de estacionar, vou
até lá recebê-la.
— Ju, olhe para mim. — Faço o que ele pede e encaro os
olhos castanhos, que transmitem preocupação. — Hoje é dia de
festa. Você tem que relaxar e aproveitar. Não é obrigação sua
receber os convidados de forma impecável. Ficar com um sorriso
congelado no rosto o tempo todo. Não! Isso faz parte da sua antiga
vida. Esta vida nova, é para ser vivida com emoção. Sorria quando
quiser, chore se tiver vontade. Sente-se com as pessoas às mesas.
Coma, beba, se suje, brinque, ou seja, faça o que tiver vontade,
minha deusa.
— Isso soa como um conselho para Emilly, não para mim —
brinco, para não me emocionar.
— Então, aja como uma criança hoje. Não estamos somente
comemorando o aniversário da Emilly, estamos comemorando o
nosso primeiro evento de família — pede e me beija suavemente.
— Você sempre me emociona quando se refere assim a mim
e minha filha.
— Pois se acostume, pois é isso que somos: uma família.
— Amiga! Que saudade — Rebecca interrompe o nosso
momento e eu sorrio, envergonhada, pois estava a ponto de agarrar
Tito na frente de todos. — Olá, Tito.
— Tudo bem, Rebecca?
— Ótima. Onde está a nossa princesa?
— Correndo por aí, com duas amiguinhas da escola, que
vieram para a festa.
— Daqui a pouco, isto aqui vai estar lotado de crianças —
comenta Tito e me beija, avisando que vai falar com Luíza.
— Não sabia que vocês conheciam tantas crianças assim —
diz minha amiga.
— Nem eu, amiga. Mas Tito convidou a arquiteta, que fez o
projeto do bar e ela tem uma filha, fora as amiguinhas da escola
nova e umas primas do Tito, que eu ainda não conhecia.
— Uau. Vai ser apresentada oficialmente à família, então?
— Parece que sim. — Abro um sorriso, nervoso. — Vamos
nos sentar? Daqui a pouco a Emilly aparece.
— Você falou do projeto do bar. Como está tudo depois
daquela loucura?
Não gosto nem de me lembrar da loucura que Rebecca se
refere. A depredação que houve no bar do Tito algumas semanas
atrás, me machucou muito mais do que eu deixei transparecer.
Tenho certeza de que foi Edgar. Ele fez isso para me atingir
indiretamente. E conseguiu.
— Agora, está tudo indo bem, Becca. Lembra que te contei
que o PUB foi fechado? Então, Tito contratou dois seguranças de lá
e meu sogro pagou por um caro sistema de segurança também.
Para a sorte de Tito, os prejuízos foram superficiais. Tirando o
balcão de inox, que teve o custo elevado para ficar perfeito
novamente, o restante se resumiu em vidros e aparelhos de
iluminação de baixo custo. Com Orlando como sócio, tudo foi
resolvido em um piscar de olhos.
— Quem tem dinheiro é outra história, não é verdade? —
brinca ela. — E quando inaugura?
— Não sei. Tito foge da pergunta todas as vezes que
questiono. Isso é frustrante.
— Imagino. Ele pode estar querendo fazer uma surpresa.
Para tudo! Quem é aquele gato ali? — aponta Rebecca, mudando
totalmente de assunto.
— É o Diogo e tira o olho, eu o adoro, mas é um galinha de
marca maior.
— Meu bem, e quem está procurando um santo por aqui?
Não consigo segurar a risada e, como se sentisse que
estamos falando dele, Diogo caminha em direção à mesa que estou
com Rebecca.
— Boa tarde, senhoras.
— Senhoras? — Rebecca torce o nariz.
— Isso é um jeito de saber se é comprometida, pois a ruiva,
eu já sei que é.
Reviro os olhos para a cantada barata e fico com vontade de
perguntar se ele usou a mesma com a loira da padaria.
— Diogo, essa é a minha melhor amiga, Rebecca. E
Rebecca, esse é o Diogo, amigo de Tito — faço as apresentações.
—Melhor amigo — corrige ele. — E será um prazer conhecer
a melhor amiga da minha ruiva favorita.
— Entendi a deixa — brinco, me levantando. — Vou procurar
Emilly. Juízo, vocês dois.
— Juízo é para os fracos — comenta ele, ocupando a cadeira
ao lado da minha amiga.
Balanço a cabeça, rindo, e avisto Orlando e Margot,
brincando de corrida do saco com Emilly e suas amigas. Rafaelle
está ao lado, torcendo, e não consigo segurar a risada. Eles
realmente entraram no papel de avós e de tia babona.
Falando nisso, penso na minha mãe. Ela pode ter todos os
defeitos do mundo, mas sempre foi uma ótima avó. Dias atrás,
Emilly me perguntou sobre ela, o que é estranho, já que ela não
menciona nada relacionado ao nosso passado, mas quis saber se
eu sabia da vovó Carmo, como ela a chamava, pois tinha sonhado
com ela. Desconversei, porém, isso está sempre vindo à minha
mente. Acho que chegou a hora de conversar com a minha mãe e
saber desses segredos.
— Juliana! — Viro, após ouvir o meu nome e sorrio, ao ver
Camila se aproximando.
— Que bom que veio, Camila.
— Você não vai acreditar na coincidência — diz, após me
abraçar. — Os meus patrões também são seus convidados.
— São?
— Sim. O Daniel e a Beatriz são os pais de Sofia, a menina
que estou cuidando.
— Não acredito!
— Mundo pequeno, não é? Aqui estão eles. Dan e Bia, essa
é a minha antiga patroa — apresenta Camila, ao casal, e preciso de
um minuto para me acostumar com a beleza do homem à minha
frente. Não me sinto mal por isso, Tito é um deus grego, mas, Daniel
é simplesmente lindo, com os traços fortes, bem marcados e mais
músculos pelo corpo do que posso imaginar, devido à camisa de
botões agarrada em seus braços e tórax, o que combina
perfeitamente com a loira baixinha, ao lado dele. Sem dúvida, um
casal modelo.
— Estou muito feliz por, finalmente, conhecer você. Tito falou
muito da ruiva dele, quando estávamos projetando o palco. E não
precisa ficar vermelha.
— Tito adora me deixar envergonhada, Beatriz.
— Me chame de Bia, por favor. Obrigada pelo convite, o lugar
é lindo.
— Eu sou o Dan — diz, me estendendo a mão. — E essa é a
nossa pequena Sofia.
— Oi — diz a menina, sorrindo para mim. — Mãe, posso
brincar?
— Claro, filha.
— Vem, Sofia, vou te apresentar a Emilly. Vocês vão se dar
muito bem, tenho certeza — diz Camila, pegando a mão da
garotinha, que é uma miniatura da Beatriz. — Opa, desculpa —
desculpa-se Camila, ao trombar com Elder, o novo garçom do bar.
— Imagine. Eu que peço desculpas.
Os dois trocam sorrisos e olhares admirados, até se
afastarem, e eu sorrio, percebendo o clima que rolou ali.
— Venham, vou levar vocês até a mesa que estão Luíza e
Alex.
— Aquele mala já chegou?
— Daniel! — brada a mulher e eu sorrio.
— O que é, pequena? É brincadeira, viu, Juliana? Ele é mala,
mas é gente boa — continua falando, até alcançarmos o lugar com
as mesas e Tito se levanta para cumprimentar os dois.
Sento-me ao lado do meu namorado e uma conversa
agradável começa a rolar. Tito conta sobre o bar, só que faz mistério
sobre a inauguração também, o que me deixa mais tranquila ao
saber que não é apenas comigo.
Levanto os olhos e não acredito no que vejo.
— Cesar?
— Com licença. Precisamos receber um amigo — diz Tito e
me pega pela mão.
— Você...?
— Sim. Achei que gostaria de revê-lo.
— Você é o melhor namorado do mundo. — Seguro seu rosto
com as mãos e beijo seus lábios sorridentes. Ele me rodopia, antes
de chegarmos perto do meu amigo. Vejo César como um pai,
mesmo que ele não tenha idade para isso. Ele até me ofereceu
abrigo, uma vez que cheguei com a bochecha roxa no ensaio do
coral da igreja. Uma pena que ele não sabia no que estava se
metendo.
— César, Rosana! Que bom que puderam vir.
— Foi um grande prazer este convite, Juliana. Mal podia
esperar para ver com os meus próprios olhos que você estava bem.
— Não poderia estar melhor — afirmo, o abraçando e
sentindo a felicidade borbulhar. Isso é efeito de ter Tito em minha
vida. Ele me faz feliz o tempo todo. Muito feliz.

— Que casarão — elogia Rebecca, depois de ter conhecido a


casa toda.
— Linda, não é? Eram dos avós de Tito. Sente-se. — Indico a
poltrona da sala e me sento no sofá. A festa lá fora continua a pleno
vapor, com a minha pequena se divertindo horrores. Por falar nela,
Emilly me pediu para cantar uma música na festa e devo confessar
que estou com vergonha. Mesmo conhecendo a maior parte dos
convidados, cantar em uma festa infantil, não é a mesma coisa que
cantar em um palco, ou em uma sala de aula. Mas estou torcendo
para tudo dar certo.
— Seu amigo beija muito bem. Acho que vamos esticar o
programa, depois que sairmos daqui.
— Você já beijou o Diogo?
— Claro. Um cara gostoso daquele, eu não podia deixar
passar. Se o beijo é daquele jeito, fico imaginando o resto.
— Não preciso ouvir isso — reclamo, fazendo uma careta.
— Certo, vamos falar do seu algoz, então. Edgar vai se
contentar em ser vice-prefeito, ou Danilo vai sair da jogada assim
que assumir o cargo?
— Eu espero que nada aconteça com Danilo, Becca. Algo me
diz que ele é apenas um boneco nas mãos de gente podre como o
Edgar. Mas não acredito que Edgar vai se contentar em ser vice. Ele
adora chamar a atenção.
— Quem diria, hein, que seu ex-marido, louco e violento,
Edgar Gonzales, fosse se transformar em vice-prefeito de Bela
Vista.
— Infelizmente, ainda não é ex. E eu quero que ele curta a
vida dele e se esqueça de que eu existo. Quem sabe, se ele ficar
ocupado, acaba esquecendo que tem vontade de apertar o meu
pescoço e me matar.
— Algum problema, Dora? — Estico o pescoço, ao ouvir a
voz de Margot e fico surpresa, ao ver Dora, com o rosto branco,
escondida atrás de uma pilastra.
— Nenhum problema, senhora. Eu apenas vim até a sala,
perguntar se as madames queriam café.
— E onde está o café? — questiona minha sogra, de forma
dura.
— Eu... eu vou fazer. Com licença. — Corre de volta para a
cozinha.
— Você acha que ela estava nos espionando? — pergunta
Rebecca, quando Margot se junto a nós.
— Creio que sim. Tomem cuidado com o que falam perto
dela. Eu não queria mandar a garota embora, mas todas as vezes
que estamos aqui, tenho um mau pressentimento em relação a ela.
— Conceição confia nela. Fique tranquila — afirmo. — O
problema é comigo, por ter roubado o Tito dela.
— Mamãe. Mamãe. Chegou a hora. — Emilly entra, como
um foguete, correndo pela sala, em seu vestido de Cinderela, que já
está todo sujo na barra e com um pedaço do tule faltando.
A sorte, foi que ela escolheu dois vestidos e, na hora dos
parabéns, irá trocar. Tito a deixou escolher o que quisesse. Rafaelle,
Margot e Orlando realizaram cada pequeno desejo para a festa de
aniversário de Emilly.
— Chegou a hora dos parabéns? — pergunto, me fazendo de
boba.
— Claro que não. Chegou a hora da música. — Solto um
gemido e isso a diverte.
— Vamos, vamos. Meus amiguinhos já estão esperando. —
Me puxa pela mão e não tenho outra saída, a não ser segui-la.
— Quem montou isso? — pergunto, mesmo já sabendo a
resposta.
— Você acha que a minha estrela ia cantar sentada em um
banquinho simples? — aponta Diogo e eu ruborizo.
Na frente de todos convidados, Diogo montou um tablado em
formato de círculo, onde está acomodado um pedestal com o meu
violão, um microfone em um suporte e um banco.
Olho para todos os olhares ansiosos e não demoro a ver Tito
se aproximando.
— Pronta?
— Não achei que seria agora. Não pode ser depois dos
parabéns, quando todos estarão distraídos, comendo o bolo?
— Não, mamãe, agora. Por favor — diz Emilly, entrando no
nosso meio e Tito a pega no colo.
— Vamos sentar para ver a mamãe tocar.
— Aqui. Aqui. O tio Di arrumou meu lugar já.
— Tio Di? — pergunto, rindo, e Diogo beija o rosto de Emilly.
— O tio Di faz qualquer coisa por esta princesa. Se ela quer
um show particular da mãe no dia do seu aniversário, ela vai ter.
— Vem cantar aqui, então — brinco, me acomodando no
banco.
— Isso eu deixo para você. Já testei o microfone. Arrasa,
ruiva.
Respiro fundo, arrumo o violão no colo e levanto os olhos.
A família do Tito me encara, como se não soubesse o que
esperar. Foram todos simpáticos comigo, mas percebi que não fui
completamente aceita por já ter uma filha, porém, como diz Margot,
eu não preciso da aceitação deles. Da mesa onde Luíza e seus
amigos estão, eu recebo sorrisos encorajadores. Sorrio ao ver Elder
e Camila afastados, trocando conversa ao pé do ouvido. Meus
sogros abraçados, ao lado de Rafa. Becca me manda um beijo e
César e sua esposa me aplaudem, antes mesmo de eu começar a
cantar.
— Boa tarde — começo. — Como sabem, hoje a minha filha
Emilly completa cinco anos e como presente de aniversário, ela
pediu que eu cantasse uma canção. Eu sou uma cantora, porém,
não sou compositora, por isso, escolhi com muito cuidado a música
que vou cantar agora. Eu queria expressar para esse pingo de gente
que saiu de mim, pelas mãos da minha amiga Rebecca, há cinco
anos, como ela é o centro da minha vida. Eu te amo filha.
Seguro as lágrimas e começo a dedilhar as notas da música
Promete da Ana Vilela. Meus olhos focam nos de Emilly, que está
sentada bem em frente ao palco e deixo as palavras desta música
linda, dizer o quanto essa menina significa para mim.

Promete que não vai crescer distante


Promete que vai ser pra sempre assim
Promete esse sorriso radiante
Todas as vezes que você pensar em mim
Promete cuidar bem dos seus cachinhos
E sempre me abraçar quando eu chegar
Promete sorrir sempre com os olhinhos
E cantar cantigas na sala de estar
Que eu prometo ser pra sempre o seu
Porto seguro
Eu prometo dar-te eternamente o meu amor
Promete aproveitar cada segundo
Desse tempo que já passa tão veloz
Me lembro quando você chegou nesse mundo
Sorrindo aos poucos quando ouvia a minha voz
E hoje corre pela sala
Brinca de existir
Giz de cera, pega-pega
Eu só sei sorrir
Ao imaginar você crescer
Para um pouco com a bagunça
Deixa eu te olhar
Que o tempo voa e olha só
Você sabe falar
E diz tudo que eu preciso escutar
Laialaiá
Promete ser pra sempre o meu menino
Me deixar cantar pra te fazer dormir
Que eu prometo que vou te cuidar pra sempre
Eu te amo infinito
Meu guri

Não sei como consigo manter o tom da voz até o final da


música, pois as lágrimas começaram a escorrer no momento que
minha filha começou a chorar.
— Mãe, eu queria falar uma coisa. — vem até mim, limpando
as lágrimas.
— Pode falar, meu amor.
Ela pega o microfone e se vira para as pessoas.
— Oi. Eu sou a Emilly. Obrigada por terem vindo à minha
festa. Quero agradecer a minha mãe, pela música, ao meu vovô e
minha vovó pela festa, a minha tia Rafa pelos vestidos, e a todos
vocês pelos presentes, mas queria dizer uma coisa especial para
você — aponta para o Tito. Ele se aproxima e segura a sua mão
livre. — Sabe, eu já tive quatro aniversários, os primeiros, eu não
me lembro e os que eu me lembro, nunca foram assim, como este.
Eu queria agradecer. Minha mãe nunca foi feliz do jeito que você
está fazendo ela ser, eu nunca tinha sido feliz assim também. E é,
por isso, que quero te agradecer por ser o meu papai. É o primeiro
aniversário que tenho uma família de verdade, toda reunida e feliz.
Como diz a minha mamãe, isso é tudo graças a você. Obrigada, tio,
ou melhor, papai. Eu te amo. — Beija o rosto do Tito, que chora,
com um sorriso imenso nos lábios e se vira para mim. — Eu te amo,
mamãe, muito. — Me abraça, apertado, com as mãos pequenas e
faço o mesmo, tirando o violão do caminho e me ajoelhando junto
com o Tito, ao redor da nossa princesa.
— E eu amo vocês dois e isso é tudo o que importa.
Tito
— Não abre os olhos — digo.
— Nem se eu quisesse, Vitor. Você colocou um pano tão
grosso, que nem respirar eu estou conseguindo.
Dou risada do seu tom bravo e a posiciono bem em frente ao
palco. Tive que me virar esta semana, para enganá-la sobre a
finalização do bar. Juliana queria vir aqui de todo jeito, mas eu
nunca poderia deixar isso acontecer.
Todos os detalhes foram feitos pensando em hoje. Somente
para nós dois.
— Vou tirar o tecido, mas você vai ter que prometer manter
os olhos fechados. Combinado?
— Eu tenho escolha? — Sua voz se suaviza e eu sorrio, lhe
dando um beijo nos lábios, antes de me afastar e subir no palco.
Daqui, consigo ter uma visão privilegiada de Juliana, parada
no centro do salão, vestida com calça e blusa pretas e justas. E,
para fechar o look, um sapato de salto alto, que está acabando com
a minha cabeça, desde o momento que a vi pronta.
Seus cabelos vermelhos estão soltos e não há, no mundo,
nada mais belo, tenho certeza.
— Tito, posso abrir os olhos?
— Ainda não. Quero primeiro que você escute uma música
que separei para você. Depois que a música acabar, você pode abrir
os olhos.
— Uma música? Você vai cantar uma música?
— Não, minha ruiva. — Acho graça da sua inocência. — Se
eu cantasse, você seria a primeira a sair correndo e não posso
correr esse risco — brinco e ela abre o sorriso que tanto amo. —
Ouça, com o coração — peço e coloco para tocar a música que
escolhi a dedo para ela.
Rapunzel - João Mar

Quando te ouvi cantar sei lá


Me deu uma vontade de te amar
E te levar no colo pra viver
Uma linda história de amor só com você
Que já sofreu demais, você, que nunca teve paz
Você, que vai viver ao lado meu

Abre essa janela e deixa entrar


Por entre suas tranças e mostrar
Assim como se dança essa canção
Que fiz só pra te ver feliz ao lado meu
Amor é tão maior, eu vou fazer teu mundo bem melhor
Vou fazer teu mundo bem melhor

Quando eu te vi cantar sei lá


Me deu uma vontade de te amar
E te levar no colo pra viver
Uma linda história de amor só com você
Que já sofreu demais, você, que nunca teve paz
Você, que vai viver ao lado meu amor

Abre essa janela e deixa entrar


Por entre suas tranças e mostrar
Assim como se dança essa canção
Que fiz só pra te ver feliz ao lado meu
Amor é tão maior e vou fazer seu mundo
Bem melhor

— Isso não é justo — diz, depois de limpar as lágrimas. — Eu


preparei uma música para você, mas ela não chega aos pés do
sentimento que essa letra transmite — reclama, sorrindo.
— Você vai ter a chance de cantá-la para mim. Na verdade,
você vai cantar para mim a noite toda. Agora, pode abrir os olhos —
digo, no momento que puxo o tecido que cobre o fundo do palco,
onde está localizado o logo do bar:
“Bar Deusa do Fogo”
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Você não fez isso. — Com
as mãos na boca, ela não sabe se ri, ou se chora e isso me deixa
extremamente feliz.
— Gostou?
— Tito?
— É o meu nome — respondo, me divertindo.
— Você é doido. Isso não é nome de um bar.
— Meu amor, o bar é meu e eu coloco o nome que eu quiser
— brinco e ela sobe, os poucos, degraus que separam o salão do
palco.
— Você é o melhor namorado do mundo — ela diz e uso este
momento para fazer o que já estava planejando.
Ajoelho-me e abro a caixinha que guardei a semana toda
comigo.
— Quero ser mais que isso, Ju. Quero ser o seu parceiro de
vida. Quero ser seu marido de papel passado e te fazer a mulher
mais feliz do mundo. — Na hora que termino de falar, percebo que
não era o momento certo, pois Juliana paralisa e não de um jeito
bom.
Às lágrimas começam a cair em abundância e isso me
assusta.
— Ju?
— Tito, você e eu não precisamos de um papel para isso —
ela responde e vejo que seus olhos estão amedrontados.
— Você... Não quer?
Durante o silêncio que se faz, nos segundos seguintes, me
sinto um idiota. Não por ter feito o pedido, pois eu sei que Juliana
quer tanto quanto eu, viver ao meu lado, porém, acho que não
escolhi o momento certo.
— Olhe para mim — diz ela, depois de se ajoelhar ao meu
lado. — Depois de Emilly, você é a pessoa mais importante na
minha vida e não existe nada que eu queira mais, do que me
imaginar passando a vida ao seu lado.
— Mas...? — Faço o mesmo que ela sempre faz, quando
sabe que tenho algo para falar.
— O divórcio só aconteceu, de fato, há 10 dias. Nem, ao
menos, fui ao cartório mudar o meu nome.
— O problema é esse? Vamos ao cartório, assim que
amanhecer — faço piada, mas já entendi o ponto dela. E, agora
mesmo, estou me perguntando por que fui tão precipitado? Juliana
já é minha. Um papel não vai mudar a nossa relação agora. Não
preciso correr para isso. — Desculpe.
— Não! Não se desculpe. Você é perfeito. E eu juro que a
minha vontade é de gritar um sim tão alto, que nem as paredes
deste local seriam capazes de abafar o som. O problema, meu
amor, é que casamento para mim tem um significado diferente do
que tem para o resto do mundo. Eu fui aprisionada a um, de forma
cruel.
— Eu nunca faria nada do que aquele boçal fez.
— Eu sei. Por isso, estou com você, de corpo e alma. Só que
acho que o momento ainda não chegou. Minha resposta não um é
não. É apenas, um pause. Um pedido de espera. Sei que é pedir
muito, mas...
— Não é pedir muito. Eu te entendo. Quis correr antes de
caminhar, esta é a verdade. Você mal se libertou de um casamento
e eu já estou querendo de prender em mais um, logo eu, que
achava que nunca me casaria — confesso, sorrindo, e me
surpreendo, quando percebo que não estou bravo, ressentido ou
com raiva.
Fui capaz de entender perfeitamente os motivos dela. E o
melhor: eu os compreendi.
— Ju, sua resposta me deixou muito feliz.
— Sério? — diz, me olhando de forma estranha e eu sorrio.
— Sério. Você não é mais uma menina acuada, medrosa,
nem nada do tipo. Se fosse, poderia ter dito sim, somente para me
fazer feliz, ou com medo da minha reação. Você consegue enxergar
o quanto mudou, desde que nos conhecemos?
Aos poucos, a alegria vai voltando para os seus olhos e sei
que é isso que importa. Ela me ama e ponto final.
— Isso é verdade. Com você, eu me sinto uma versão
melhorada de mim mesma. É incrível como posso ser feliz.
— Comigo, você será feliz o tempo todo.
— É mesmo? Que tal me mostrar a intensidade desta
felicidade — provoca, mordendo meu lábio inferior.
— Nada disso. Você não vai me subornar. Quero vê-la tocar.
— Você já deixou a minha apresentação no chinelo, vamos
pular esta parte.
— Não. — Tiro suas mãos do meu peito, com delicadeza, e
me levanto do chão do palco, onde nos acomodamos durante nossa
conversa. — Vou me sentar ali e vê-la cantar e tocar. Não foi fácil
achar uma roupa parecida com a que você estava usando, na
primeira vez que a vi.
Sua boca se abre, de um jeito lindo, quando ela entende o
peso das minhas palavras.
— É exatamente isso que você está pensando. Fantasiei com
você naquele dia.
— Isso era um costume seu, Vitor?
Sorrio da sua veia ciumenta e deposito um beijo em seu
nariz, antes de voltar para o salão.
— Nunca fui santo, mas se eu dissesse que alguma outra me
fisgou, como você o fez, eu estaria mentindo. Você sempre foi única.
— Sento-me e pisco em sua direção. Pelo sorriso, sei que consegui
convencê-la.
Juliana se arruma no banco, que comprei especialmente para
ela. O violão é arrumado no colo e as notas doces e suaves
começam a ressoar pelo ambiente. Sorrindo, ela abre os lábios e as
palavras que saem, tocam profundamente o meu coração.

“Estranho seria se eu não me apaixonasse por você” (All star


– Nando Reis)
É, meu amor — penso, ouvindo-a cantar o restante da
música —, contra todas as probabilidades, eu me apaixonei por uma
garota indisponível. Porém, isso não existe, quando dois corações
se reconhecem.
Com um papel assinado, ou sem, Juliana é a minha mulher.

— Parabéns, meu filho. Estou tão orgulhoso de você.


— Obrigado, mãe.
— Não vi o anel no dedo da Juliana — comenta, baixinho,
enquanto me abraça.
Ela foi a única para quem contei sobre a compra do anel. E o
mais impressionante, foi o que ela me perguntou, assim que
entramos na joalheria: “Filho, você acha que este é o momento?”
— Depois te conto com os detalhes, mãe. Já te adianto que
não era o momento certo.
Seus olhos me avaliam, para saber se estou triste, e sorrio
para confirmar que não estou. Não fiquei triste, de verdade. Depois
da noite deliciosa de amor que fizemos, em vários cantos deste bar,
ontem, só posso dizer que estou ainda mais apaixonado.
— Mãe, não monopoliza o anfitrião — Rafa brinca, e me puxa
dos braços de Dona Margot. — Parabéns, mano. Você fez um
trabalho incrível aqui. Com certeza, será o meu point.
— Vou ter que verificar a sua identidade, para te servir bebida
alcoólica. Para mim, você continua sendo uma pirralha.
— Vai te catar, Vitor.
— Esses meus filhos, não crescem.
— Pai! — O abraço, com carinho. Se não fosse este homem,
hoje eu não estaria inaugurando o meu próprio bar. E não digo
somente por dinheiro, não. O apoio foi essencial.
— Estou orgulhoso de você, filho.
— Obrigado, pai. Obrigado mesmo. Fiquem à vontade.
Cléber? — chamo o garçom, que trabalhou comigo no antigo PUB e
que tive a sorte de contratar.
Na verdade, fora o Salomão e a louca da Karina, consegui
reunir grande parte do pessoal de lá, que estava desempregado,
para fazer parte da minha equipe.
— Chamou, chefe? — Olho feio para ele, pois está com a
mesma graça do Elder, em me chamar de chefe.
— Leve meus pais e minha irmã para a mesa que reservei
para eles, por favor.
— Até mais, meu querido — despede-se minha mãe e olho
em volta, orgulhoso.
Não imaginei que lotaria tanto. Diogo, como sempre, planejou
tudo e preciso tirar o chapéu, ficou perfeito. Dei até uma entrevista
para um jornal local, que veio cobrir o evento.
— Está dormindo em pé, meu irmão? — Por falar nele.
— Estou é admirando o belo trabalho. Exceto, por ter me
indicado Tomé, você foi um belo braço direito.
— Coitado do garoto — fala, abrindo um sorriso triste. — O
coitado não quer mais nem falar comigo, de tanto medo que ficou,
depois da agressão.
Isso é verdade. Eu fui até o hospital e ele pediu demissão lá
mesmo. Disse que não queria trabalhar correndo perigo. Acho que
foi melhor assim, tanto para mim como para ele. Mesmo agora,
tendo segurança reforçada, o garoto seria um alvo fácil, caso Edgar
quisesse voltar a me atacar. A polícia pode até alegar que não tenho
provas para confirmar que foi ele, mas eu sei que foi. No final, não
adiantou de nada o maldito Boletim de Ocorrência que meu pai fez
questão de fazer. Não deu em nada, esse maldito continua solto.
Este homem parece um caroço na minha felicidade. Mesmo
com Juliana oficialmente divorciada e usando seu nome de solteira
novamente, ele parece ser uma sombra presente em nossas vidas.
— Pronto para o discurso? — questiona o meu amigo.
— Odeio falar em público.
— Pois capriche. Está na sua hora.
— Onde está a Juliana?
— Não sei — afirma, mas vejo em seus olhos que é mentira
e, antes que eu possa questioná-lo, Diogo corre para o outro lado do
salão.
Solto uma lufada de ar e caminho em direção ao palco.
Diogo, como um belo produtor, arrumou alguns artistas para
acompanharem Juliana no show que ela fará mais tarde e o local já
está cheio de instrumentos.
— Boa noite — digo, atraindo a atenção das pessoas e dou
uma última olhada ao redor, para saber se tenho a chance de vê-la
e forçá-la a me acompanhar nesta situação embaraçosa. Nem sinal
de Juliana.
Daqui de cima, vejo a mesa com os meus pais, Rafaelle e um
homem que está perto demais da minha irmã, e faço uma nota
mental para averiguar depois. Rebecca está na mesa ao lado,
conversando alegremente com Camila. Luíza, Alex e seus amigos
também estão aqui, incluindo Beatriz, arquiteta do projeto do bar e
Maurício, o dono da empreiteira que fez a reforma. Sorrio ao ver
Luíza acenando. César veio com a sua esposa e, tenho certeza de
que Juliana ficará muito feliz, quando eu contar que fiz uma
proposta para que ele toque aqui alguns dias da semana também.
Aceno em sua direção e, para a minha surpresa, em um canto
afastado, Inácio, o delegado de polícia, levanta um copo em minha
direção. Não me lembro de tê-lo convidado, porém, resolvo deixar
isso de lado, já que estou fazendo papel de bobo aqui em cima, com
todos olhando para mim.
— Gostaria de agradecer a presença de todos. Ver este bar
pronto, é uma realização incrível. Vou confessar que nunca me
imaginei sendo proprietário de um lugar como este. Meu sonho,
sempre foi ser barman e me aperfeiçoei muito meu talento ao longo
dos anos. A verdade, é que um dia, eu era um cara sem visar o
futuro e agora... — Preciso de uma pausa para respirar, pois,
timidamente, Juliana aparece no meio do salão, com um vestido
longo vermelho radiante e os cabelos em um coque elaborado,
expondo seu lindo pescoço. A maquiagem em seu rosto a deixa
mais sedutora e espero que ninguém olhe para o meu jeans escuro,
pois meu corpo reage no mesmo instante. — Venha aqui comigo, Ju
— convido, e ela sobe as escadas, até segurar na minha mão. —
Como eu estava dizendo, antes eu não pensava muito no futuro,
mas agora é diferente. Minha vida mudou. Tenho mulher, filha e este
bar é o marco desta mudança. Agradeço a todos que participaram
ativamente deste projeto. Espero que vocês curtam, se divirtam e
apreciem o ambiente e o show desta noite, que será por conta da
minha musa, minha deusa do fogo. — Todos aplaudem e dou um
beijo casto em seus lábios. — Você está magnífica. Não vejo a hora
de a festa acabar para te apreciar da forma certa — sussurro em
seu ouvido.
— Mal posso esperar. — Sorri e pega o microfone da minha
mão.
— Boa noite. É uma honra para mim, ser a primeira artista a
tocar neste lugar incrível. Tito e eu nos conhecemos através de um
violão e é com ele que farei meu show hoje para vocês. Escolhi um
repertório exclusivo para diverti-los e também, encher de
romantismo este lugar. Aproveitem.
Tem como um homem explodir de orgulho? Pois, eu acho que
a qualquer momento vou sair pelos ares aqui. Estou orgulhoso em
ver as pessoas bebendo e comendo, com sorriso no rosto. O lugar
está incrível, tanto na decoração, como na mobília. O jeito rústico,
combinado com toques sutis de preto e, a parte que mais gostei,
sem dúvida, foram os vidros. Mesmo Edgar estragando a parte do
bar e tudo o que conseguiu quebrar, quando mandou seus homens
aqui. Meu pai deu um jeito de refazer tudo e ficou magnífico. Agora,
olhar Juliana em cima do palco, cantando Cassia Eller, faz meus
joelhos querem dobrar no chão, para agradecer todas as coisas
boas que estão acontecendo na minha vida.
— Vitor?
Olho para trás e meu sorriso se desmancha. Tudo que é bom,
dura pouco.
— Olá, Inácio.
— Parabéns pela conquista. O lugar é incrível e sua mulher é
muito talentosa. — Aponta para o palco, com o queixo, e eu maneio
a cabeça, em agradecimento. — Você deve estar se perguntando, o
que estou fazendo aqui?
— Exatamente.
— Bem, seu pai me convidou e também queria pedir para
você me encontrar amanhã.
— Vamos até o escritório.
— Não precisamos fazer isso hoje — conta ele, olhando para
o seu copo.
— Eu não vou conseguir pensar em mais nada até amanhã,
então, acho melhor já tirar isso do caminho.
Sigo por entre as pessoas, cumprimentando um e outro e,
assim que fecho a porta do escritório, consigo entender o que meu
pai quis dizer com realidade paralela. Ontem, ele ficou aqui dentro,
enquanto Juliana ensaiava e, realmente, o isolamento acústico é
perfeito, pois não se ouve nada.
— Pode falar — peço, assim que nos sentamos.
— Na investigação do falecido Antônio Carreira, ele
descobriu que Edgar tinha contratado um assassino de aluguel.
— Sim, eu me lembro disso.
— Pois, então, conseguimos provar que ele foi o assassino
do detetive e o cara está preso.
— Pelo menos, um, vocês prenderam — digo, suspirando de
alívio. Eu ainda tinha medo de que a qualquer momento a suspeita
cairia em mim novamente.
— Não é culpa minha se a lei tem várias lacunas.
— Ele apontou Edgar como mandante?
— Sim. Mas não conseguimos provar a ligação, pois ele
recebeu em dinheiro vivo e, nas contas de Edgar, não constam a
retirada do valor.
— Ou seja, voltamos à estaca zero.
— Não vim até aqui por isso, pois tenho certeza que cedo ou
tarde, colocarei as mãos naquele verme. Eu vim para dizer que o
assassino indicou que tinha um novo trabalho para finalizar, antes
de receber mais um pagamento.
— Que trabalho?
— Executar você.
Juliana
— Um CD? Você está louco?
— Por que louco?
— Diogo, eu não sou nem formada ainda.
— Ju, minha linda, que o Tito não nos escute — brinca. —
Sente-se aqui. — Aponta para as duas cadeiras em frente à sua
mesa de controle de som, do estúdio.
Vim aqui hoje para espairecer a mente um pouco. Não sei o
que eu tinha na cabeça quando decidi assumir a volta do meu curso
de Música em período integral. Eu estudava desta forma, antes de
ser obrigada a casar com Edgar, porém, hoje em dia, eu tenho
Emilly. Não sou mais uma adolescente, que não tem
responsabilidades. E isso está cobrando o preço em relação à
exaustão. Liguei para Diogo, pedindo para usar o seu estúdio por
um tempo e ele não hesitou.
— Sabe, Ju, nem metade dos artistas têm formação. Acho
linda a sua vontade de estudar e ser uma profissional qualificada,
mas o seu talento não tem que ser lapidado. Talvez, se você
quisesse ser uma cantora lírica, tudo bem, mas para o tipo de
música que você canta, você já está no lugar certo. E é sobre isso a
minha proposta.
— Diogo, eu não tenho músicas e, o mais importante, eu não
tenho dinheiro para investir.
— É aí que eu entro. Um amigo, que é compositor, entrou em
contato comigo, para falar sobre umas músicas novas. Assim que as
li, pensei em você, combina totalmente. E estou disposto a produzir
o seu disco com as músicas dele. Ao contrário do que você pensa, o
custo não será tão elevado, pois, levando em conta que Tito me
mataria se eu já começasse a planejar uma turnê enorme pelo
Brasil, eu pensei em algo acústico, que pode ser gravado no Bar da
deusa mesmo, e o restante, você deixa comigo.
Bar da deusa. Acho incrível como todo mundo passou a
chamar o bar desta forma. Bar Deusa do fogo ficou grande demais,
por isso, Diogo colocou como apelido bar da deusa e, até mesmo
Tito, agora chama assim o seu bar.
— Você tem certeza que daria certo? — pergunto, com as
emoções prestes a explodirem.
— Tenho certeza, absoluta. Desde o primeiro dia que Tito te
trouxe aqui, eu sabia que você tinha um potencial incrível, Ju, e
você merece mostrar isso ao mundo.
Não consigo falar nada, apenas o abraço, em meio às
lágrimas.
— Tito sabe? — indago.
— Não. Achei que você gostaria de contar.
— Nunca serei capaz de te agradecer, Diogo.
— Que bom, pois não precisa. Aliás, quem precisa agradecer
sou eu. Aquela loira que você colocou no meu caminho, é de parar o
quarteirão.
Fecho a cara no mesmo momento.
— Você tem noção do quanto Rebecca significa para mim,
Diogo? Se você a magoar, eu corto seu pescoço.
— Ufa. O pescoço, eu encaro. Achei que você cortaria outra
parte da minha anatomia. — Explode em uma gargalhada e sinto
minhas bochechas queimarem. — Relaxe, ruiva, estou gostando
muito daquela loira. Estamos nos dando bem e sendo muito
sinceros um com o outro. E, para te tranquilizar, saiba que nesse
tempo que estamos saindo juntos, não fiquei com mais ninguém.
— Isso é ótimo — digo, com sinceridade. Se Diogo tomar
juízo, será maravilhoso ver os dois juntos.
— Agora, vamos voltar ao trabalho. Tenho um contrato
padrão aqui, mas fique à vontade para fazer alterações que te for
viável. Você pode e deve consultar Orlando para se resguardar
quanto a parte legal. E também...
Deixo a minha mente vagar, enquanto Diogo assume o papel
de produtor sério e continua a falar.
Quem iria imaginar que em um ano a minha vida mudaria
desta forma? Ninguém. Nem mesmo eu acreditava que fosse sair do
inferno que era a minha vida. Na verdade, eu acreditava que
morreria nas mãos de Edgar e creio que isso só não aconteceu,
graças a força do amor que eu sinto por Emilly.
Hoje, estou com um namorado incrível, definitivamente
divorciada e com o nome de solteira de volta — o que não quer
dizer muita coisa —, porém, o fato de não carregar mais o
sobrenome de Edgar é um grande alívio.
— Eu tenho o poder mesmo de deixar as mulheres fora de
órbita — comenta meu amigo, dando um cutucão no meu joelho.
— O quê?
— Você não ouviu nada do que eu disse, não é verdade?
— Não, desculpe. Eu... — Antes que eu possa falar, meu
celular começa a tocar. — Com licença, Diogo.
Levanto-me e subo as escadas, que separam o estúdio da
casa do nosso amigo. O lugar é comparado a um porão, por isso, o
sinal é péssimo.
— Alô?
— Oi, Juliana. É a Mariana Dantas. Tenho uma boa notícia
para te dar.
— Oi, doutora. Boa notícia é sempre bem-vinda.
— Edgar está preso e, pelo jeito que Inácio está trabalhando,
ele não sairá de lá tão cedo.
— Preso? Jura? — As minhas pernas amolecem, de tal
forma, que me sento na primeira poltrona que encontro. — Ele foi
preso por conta das falcatruas do dossiê?
— Não. A prisão foi efetuada por conta da sua denúncia. Ele
foi enquadrado na lei 11.340/06, a Maria da Penha, porém, o
delegado agiu rápido e já deu um jeito do promotor aceitar todas as
outras denúncias. Estou trabalhando para que o julgamento dele em
relação a violência doméstica seja rápido. Com o histórico dos seus
ferimentos e os testemunhos da Dra. Rebecca e de Flávia, acredito
que a condenação será longa e inevitável.
— Eu agradeço, de coração. Você não tem ideia do que isso
significa para mim. Obrigada.
— Imagine. Depois, com tempo, passe aqui no escritório, que
te explico melhor os termos.
— Vou sim. Até mais, doutora.
Desligo e, assim que me viro, ouço Diogo mexendo algo na
cozinha.
— Está com fome, Ju?
— Não, obrigada. Preciso ir embora.
— Era a advogada? — pergunta, com a atenção voltada para
o lanche que está preparando.
— Sim. Ele está preso.
— Edgar?
— Sim — respondo, sorrindo.
— Isso é maravilhoso. — Corre em minha direção e me
rodopia no meio da cozinha, do mesmo modo que sei que Tito vai
fazer. — Estou tão feliz por vocês. Agora, vou parar de ver aquela
ruga no meio da testa do meu amigo, todos os dias.
Isso é verdade. Despeço-me de Diogo, pensando em como
Tito respirará aliviado com esta prisão. Foi a preocupação
estampada em seu rosto, que me fez ligar para a advogada no dia
seguinte da inauguração do bar e ir até a delegacia da mulher, de
Bela Vista, apresentar a minha queixa contra Edgar.
Dirijo, relembrando como aquele dia foi horrível. Senti-me nua
diante da delegada. Relatei o casamento comprado, a primeira
agressão na lua de mel e o início dos estupros. Cada detalhe que
voltava à minha mente é era como se um punhal estivesse sendo
cravado no meu coração.
Ela me perguntou por que não denunciei antes e, por mais
que a pergunta tenha sido de praxe, fiquei magoada, e me
perguntando se as pessoas de fora não enxergam quanto uma
vítima de violência sente medo. Eu sentia medo pela minha filha.
Temia que aquele porco nojento pudesse machucá-la, ou pior,
violentá-la. Edgar sempre esteve acima de mim, tanto pelo dinheiro,
como pela força física. Se não fosse Tito aparecer na minha vida,
me indicando a ONG e dando-me força, creio que eu ainda estaria
dentro daquela casa, sendo agredida a cada novo dia.
Naquele dia, voltei para casa, aos prantos. Tito e Emilly
montaram uma força tarefa para me animar. Assistimos a filmes,
comemos pipoca e brigadeiro e, no final da noite, fiz um amor tão
maravilhoso com Tito, que senti como se minha vida estivesse
totalmente nos eixos.
Dou seta e sorrio, ao estacionar no Parque das Flores. Não
sei como cheguei até aqui, mas vim. Caminho até o banco em que
me sentei na primeira vez que conversei com ele, o homem da
minha vida. Naquela época, eu estava machucada, por dentro e por
fora, e nunca imaginei que poderia me interessar por alguém. Mas
foi isso que aconteceu. Quando vi aquele homem lindo e tatuado,
caminhando em minha direção, com o meu violão nas mãos, mesmo
sem querer, meu coração bateu mais forte. Não foi amor à primeira
vista, foi esperança à primeira vista.

— Acorda, mamãe. Acorda. — Abro os olhos, com Emilly


pulando ao meu lado na cama.
— Bom dia, princesa.
— Bom dia. Você precisa levantar.
— E posso saber por quê? Hoje não é sábado?
— Sim. Vamos para a praia — grita, com empolgação.
— O quê? — Esfrego os olhos, me sento e, com isso,
consigo ver Tito de braços cruzados e sorrindo.
— Praia, mamãe. Onde tem ondas.
— Tito?
— É isso mesmo que ela está falando. Onde tem ondas.
— Engraçadinho.
— Bom dia, meu amor — diz, ao se aproximar da cama e me
beijar. — Animada para um passeio?
— Tem como dizer que não, com os dois tesouros da minha
vida sorrindo para mim? — E não estou mentindo. Não há nada que
eu não faça para Tito e Emilly.
Minha filha me ajuda a escolher uma roupa e fico espantada
ao saber que os dois já arrumaram até uma mala.
A viagem é rápida e tranquila e suspiro, encantada, com a
casa à beira-mar. Tito explicou que é dos pais de Diogo e foi ele que
ligou e ofereceu a casa, dizendo que precisávamos de um
descanso.
Ontem, depois que cheguei em casa, contei ao Tito sobre
Edgar e sobre o CD. Comemoramos em grande estilo, com um
almoço dos deuses na casa de Margot. Senti uma paz imensa ao
me apresentar à noite no bar. A prisão de Edgar foi um passo a mais
para a minha paz e, no momento em que vejo Tito correndo pela
areia, atrás de Emilly, faz com que eu enxergue com clareza, que no
dia que Tito me pediu em casamento, o medo falou mais alto. Eu
tinha medo de me envolver oficialmente com ele, Edgar descobrir e
matá-lo. No final, quase aconteceu isso mesmo, sem eu dizer sim.
Quando Tito me contou sobre a conversa que teve com Inácio, eu
quase desmaiei, pensando no perigo que ele estava correndo. O
bom, foi que isso foi o combustível para a minha denúncia e agora
ele está preso.
— Tito? — Ele olha em minha direção, bem no momento que
coloca Emilly nos ombros.
Nem, ao menos, desfizemos as malas. Colocamos a roupa
de banho e corremos para a praia.
— Fala, minha deusa.
— Você, por um acaso, trouxe aquela caixinha pequena e
quadrada, que me mostrou um tempo atrás? — faço a pergunta,
tentando não demonstrar o meu nervosismo. Afasto os meus
cabelos do rosto e encaro seus olhos brilhantes.
— Você está brincando?
— Não. Quero retirar aquele pedido de pause agora, pode
ser?
Ele corre em minha direção, junto com minha filha e as
lágrimas já começam a escorrer.
— Do que vocês estão falando?
— De uma pergunta que o Tito fez para mim.
— Qual era a pergunta, papai?
Eu me derreto toda quando Emilly o chama assim. Isso só
confirma que a vida que passou com Edgar a abalou muito, pois
bastou receber carinho e afeto verdadeiros, que se esqueceu do pai
biológico.
— Eu perguntei se a mamãe queria se casar comigo, com um
vestido bem lindo de noiva.
— Oba! Posse ser sua madrinha?
— É daminha, Emilly. E quem disse que eu vou aceitar? —
brinco.
— Lógico que você vai. Uma vez ouvi você dizer para a tia
Becca que seu sonho era ter um casamento de verdade.
Sorrio com a conclusão dela. Eu não tinha me referido a
vestido, bolo, votos e tudo mais. E, sim, ter um companheiro de
verdade. Agora, acredito que achei o pacote completo.
— A mamãe aceita, sim, e você será a daminha mais linda do
mundo. — Dou-lhe um beijo no rosto e olho para o homem da minha
vida. — Obrigada por ter esperado por mim.
— Esperaria o tempo que fosse necessário. Eu te amo, Ju. E
juro te fazer feliz, por todos os dias das nossas vidas.
— Eu também.
E, assustando-nos, Tito levanta mãe e filha em seus braços
fortes e tatuados, e fica rodopiando na areia, nos fazendo rir muito.
Relembro a música que um dia rascunhei e percebo que
encontrei a paz que eu tanto almejava. A verdadeira paz.
Tito
— Vocês vão tomar o melhor drink da região — brinco, ao
balançar as coqueteleiras. Faço uma graça, jogando-as para o ar e,
assim que as pego novamente, despejo nos copos e entrego para
Diogo e Elder.
— Estou vendo que não perdeu a mão — caçoa Diogo.
— Minha mão está em ótima forma, meu querido — ironizo e
os dois caem na gargalhada.
— Não vai beber?
— Não. Preciso organizar várias coisas no escritório.
— Que horas é o seu voo?
— Às 17h — digo, consultando o meu relógio de pulso e
constato que tenho apenas algumas horas antes de pegar Juliana
na ONG. — E você, se organizou para ficar aqui estes dois dias?
— Claro. Já até avisei a Rebecca.
— Hum. O negócio tá sério — brinca Elder.
— Pior, que está mesmo — confessa. — Aquela loira está me
tirando dos eixos.
— Rebecca disse à Juliana que você nem se parece o
garanhão que ela tinha falado.
— A ruiva, só queimando meu filme.
Rimos da cara de Diogo. Nunca vi meu amigo assim,
assumindo que está interessado por uma pessoa.
— E você, Elder? Camila caiu no seu papo de vez?
— Eu sou um bom partido, cara. E Camila é perfeita. Ainda
estou no caminho para conquistar aquele coração, mas vou chegar
lá.
— Falando em corações conquistados, quem é o cara que
está para cima e para baixo com a Rafa, desde o dia da
inauguração?
Reviro os olhos para Diogo e vou até o freezer acoplado, ao
lado do balcão.
— Diz ela, que é um amigo, mas estou achando que é mais
do que isso. Mauro, o nome da figura e é modelo.
— Estava na hora de Rafaelle arrumar um namorado —
comenta ele.
— Ela ainda é muito nova para isso — rebato.
— Estou com dó da Emilly quando crescer.
Não consigo segurar a risada. Serei ainda mais protetor com
a minha pequena de cabelos dourados.
— Aquela menina já é esperta com cinco anos. Quando tiver
dezoito, Tito estará velho demais para controlá-la — Elder tira sarro
e jogo o pano, que está na minha mão, nele.
— Como estão os preparativos do casamento?
— Nem me fale disso. Rafaelle está me deixando louco.
Estou a ponto de arrastar Juliana para o cartório e torná-la minha
mulher o quanto antes.
— Esquece isso, toda mulher gosta dessas coisas de
casamento e, no caso de Juliana, tudo tem que sair mais do que
perfeito, ela merece. E vou te falar uma coisa, faz apenas um mês
que elas estão nos preparativos, você ainda tem muito para
enlouquecer.
Rimos da situação e, no fundo, dou toda razão para Diogo.
Juliana merece um casamento de princesa.
Depois de finalizarem o drink, arrasto Diogo e Elder para o
escritório. Ficarei fora apenas por dois dias, para conhecer um
fornecedor de bebidas, que promete alavancar as minhas vendas.
E, mesmo assim, fiz questão de pedir aos dois para auxiliarem no
que for preciso aqui e, como já era esperado, aceitaram na hora.
— O que pretende fazer com o andar de cima? — questiona
Elder, depois de anotar algumas observações sobre o
abastecimento do bar, em seu bloco de notas.
— Ainda não sei. Meu pai está com a ideia de transformá-lo
em um hotel, mas para isso, teremos que comprar o imóvel, pois a
reforma seria grande e cara.
— Não acredito que você vai demorar a levantar capital para
comprar isto aqui. O bar está indo muito bem — comenta Diogo.
Isso é verdade. Nunca me imaginei gerenciando um bar e
agora que faço isso, não me imagino fazendo outra coisa. Toda
noite, ainda fico, durante algumas horas, no bar para fazer drinks,
coisa que eu amo, porém, aprendi a amar também o fato de cuidar
de todos os detalhes para os clientes saírem satisfeitos. Contratei
um cozinheiro ótimo para cuidar dos petiscos. Verifico pessoalmente
o estoque das bebidas, caminho por entre o bar para saber se está
tudo correndo bem. Acho que realmente achei o meu propósito de
vida.
Olho para Diogo e Elder, que conversam alegremente, e
percebo que montei uma equipe maravilhosa. Diogo está à frente da
parte musical. Organiza os shows e as músicas que tocam por aqui.
Já Elder, vem sendo meu braço direito e é, por isso, que esta
viagem será um teste. Caso ele sobreviva a estes dois dias, o
passarei para o cargo de gerente, para ganhar mais e me auxiliar
ainda mais. Não quero ser como o dono do antigo PUB que
trabalhei e nunca aparecer no lugar. Mas saber que tenho uma
pessoa de confiança aqui dentro, será ótimo para que eu passe um
tempo aproveitável com as minhas meninas.
Falando nelas...
— Preciso ir. Vocês têm alguma dúvida?
— Nenhuma, chefe.
— Vai se danar, Elder.
— Adoro o amor de vocês — brinca Diogo.
— Estou indo buscar a Juliana e, depois, vou direto para o
aeroporto. Não hesitem em me ligar, se precisarem de algo.
— Relaxa, Tito. Vamos dar conta de tudo — afirma Diogo,
batendo nas costas de Elder.
Despeço-me dos dois e acelero, rumo à ONG. Juliana
conseguiu um tempo entre suas aulas hoje para vir ensinar algumas
mulheres a tocarem violão. Estava nas nuvens por isso.
— Oi, amor — a cumprimento, com um beijo, quando ela
entra no carro.
— Tudo bem?
— Tudo ótimo.
— Você já pegou as malas?
— Sim, estão no porta-malas. Vamos buscar a Emilly na
escola, deixá-la na minha mãe e depois você me leva ao aeroporto.
— Não gosto de ficar atrapalhando seus pais, Tito.
— Minha deusa, você vai se apresentar no bar hoje, não
acho legal a Emilly ficar acordada até tão tarde e, sem contar, que lá
não é um bom lugar para ela — alego, alterando a atenção entre o
trânsito e Juliana, que se mostra contrariada.
— Você está certo. — O telefone dela começa a tocar e vejo
seu semblante fechar.
— Quem é?
— Não sei. Está ligando como número privado. Não vou
atender.
— Deixa que eu atendo. Alô? — digo, depois de encostar o
carro no meio-fio. Consigo ouvir uma respiração ofegante do outro
lado da linha, mas ninguém diz nada. — Alô? — tento, mais uma
vez, e a ligação cai.
— Estranho — diz Juliana, temerosa, depois que lhe entrego
o celular.
— Não atenda, Ju. E eu ficaria mais confortável se Diogo
fosse te buscar e te levar embora depois do show.
— Não tem necessidade — argumenta.
— Por favor.
— Tudo bem. — Beijo sua mão, com um sorriso no rosto, feliz
por ela ter concordado. Por mais que Edgar esteja preso, a
segurança de Juliana sempre será a minha prioridade.

— Vou sentir saudade — diz ela.


— Eu também. Eu te amo, Ju. Cuide da nossa pequena, em
dois dias estarei de volta e poderemos fazer um piquenique, o que
acha?
— Emilly vai adorar. — Sorri e segura o meu rosto com as
mãos. — Que Deus te acompanhe.
Meu voo é chamado e me despeço da minha garota,
caminhando para o portão de embarque. Se não fosse a escola de
Música, eu teria trazido as duas comigo. É angustiante ficar longe,
mas esta viagem precisa ser feita. Tentarei adiantar as reuniões o
mais rápido possível, quem sabe, assim, consigo voltar antes para
casa e com o contrato assinado.

— Socorro! — A ouço gritar e não consigo achá-la do meio


de tantas árvores.
— Juliana? — grito. — Onde você está?
— Tito? Tito, me salva. — Corro na direção que estou
ouvindo a sua voz.
— Ju? — Quando me aproximo, meu coração para ao ver o
sangue misturado com o vermelho dos seus cabelos e os olhos, que
tanto amo, me encarando, sem vida.
Cheguei tarde demais.
— Juliana! — Dou um pulo do assento, olhando para os
lados, ofegante.
Estou no avião.
Foi só um sonho.
— Não precisa ter medo, mocinho — diz uma senhora,
sentada na poltrona ao lado da minha. — Nós já vamos pousar. O
avião é seguro.
Antes que eu possa dizer a ela que não tenho medo de voar,
a voz feminina que sai do autofalante, nos informa que iremos
aterrissar. Isso quer dizer que dormi muito.
Agradeço à senhora e aperto o meu cinto, tentando tirar a
imagem horrível de Juliana morta, dos meus pensamentos.
— Como não acham a minha mala? — questiono, indignado,
depois de quase uma hora sendo enrolado pela companhia aérea. O
aeroporto está abarrotado de gente e, para ajudar, a moça irritante à
minha frente acabou de confirmar que a mala foi extraviada.
— Peço para que os senhores aguardem na sala de espera
da companhia, já iremos passar maiores informações. — Eu e mais
dois casais, somos direcionados para o local que ela indicou e fico
andando de um lado para o outro. Puxo o celular do bolso e ele está
apagado, para piorar a situação, o meu carregador está na mala. O
lado bom, é que esperar para falar com a Juliana, será o melhor a
fazer, pois estou tão nervoso, que a deixarei nervosa também.
Depois de uma longa espera de quase três horas, dentro de
um maldito aeroporto, minha mala foi achada. Sigo para o hotel,
faço o check-in e, assim que entro no quarto, deixo o celular
carregando e vou para o banheiro. Preciso de um banho, com
urgência.
Por mais que eu tente relaxar, não consigo tirar os olhos
vidrados de Juliana dos meus pensamentos. É mais forte do que eu.
Preciso falar com a minha mulher. Preciso dela.
Nem me dou o trabalho de me vestir, ainda com a toalha
amarrada na cintura, pego o aparelho e ligo primeiro para o seu
celular, porém, a ligação vai direto para a caixa-postal.
Olho no relógio e vejo que já passa da meia-noite. Acredito
que ela ainda está no bar, cantando, por isso, não poderá me
atender agora. Deixo o aparelho na mesinha e pego o cardápio do
lugar, procurando algo para comer. Vou me ocupar, para não ficar
ligando o tempo todo. Mas é certo que preciso falar com ela ainda
hoje.
O meu coração me diz que preciso falar com ela, apenas
para saber se está tudo bem, pois, por mais que eu não queira
acreditar em intuição, algo me diz que Juliana corre perigo.
Juliana
Acordo, respirando fundo, para afastar o sonho, ou melhor, o
pesadelo.
Tito morto pelas mãos de Edgar.
Eu nunca me perdoaria se isso acontecesse.
O barulho do meu celular faz o meu raciocínio voltar a
funcionar e entendo que foi esse barulho que me acordou e me
livrou do desespero.
— Alô? — atendo, estranhando o número, porém, como não
está restrito, pode ser o Tito.
— Senhora Juliana?
— Quem quer saber? — pergunto, pois depois das ligações
estranhas que passei o dia todo recebendo, desconfio de tudo e de
todos.
— Aqui é do hospital Boa Esperança, de Bela Vista.
— Hospital? O que aconteceu? — pergunto, já pensando em
Tito e Emilly.
— Sebastião e Maria do Carmo são seus pais?
— São sim — respondo e já sinto um nó nos meus pulmões.
— Eles sofreram um acidente e foram trazidos para cá. Se
você puder vir depressa, o estado é grave.
— Estou indo. Obrigada.
Desligo e sigo para o quarto para me trocar. Do jeito que eu
cheguei do aeroporto, acabei adormecendo no sofá. Tiro o short e a
blusa fina, colocando uma calça e blusa de moletom. Pelo jeito,
dormi mais do que deveria, pois, o tempo lá fora está escuro e da
janela consigo ver nuvens pesadas. Não tenho dúvidas de que uma
grande tempestade está por vir. Pego minha bolsa, pesco o celular
lá dentro e disco o número da casa da minha sogra.
Sogra. Margot está mais para uma querida mãe do que uma
sogra.
— Alô.
— Oi, Margot, é a Juliana.
— Você e o Tito são farinha do mesmo saco. Já está ligando
para saber da Emilly, não é? — brinca, descontraída.
— Também. Ela está bem?
— Maravilhosamente bem. Acabou de pintar as unhas do
Orlando — conta, rindo.
— Minha nossa!
— Você quer vir para cá depois do show? Será um prazer ter
você dormindo aqui conosco, até Tito voltar de viagem.
Seria uma coisa maravilhosa mesmo. Já estou me sentindo
sozinha.
— Obrigada, Margot. É que recebi uma ligação do hospital,
comunicando um acidente de carro dos meus pais. Estou indo para
lá e te liguei para avisar.
— Oh! Eu sinto muito. Que hospital, meu bem?
— Boa esperança.
— Você quer que Orlando vá com você.
— Não tem necessidade — agradeço. — Vou até lá saber
mais informações e te ligo de novo. De lá, sigo direto para o bar.
Não se preocupe.
— Claro que me preocupo. Você faz parte da minha família.
Ligue para a sua amiga, a Rebecca, e veja se ela está trabalhando
nesse hospital. Se você for ficar sozinha, me avise, que estaremos
lá na mesma hora.
— Obrigada, Margot. — Desligo, sentindo um nó na garganta.
Ainda existem momentos em que pareço não acreditar na
sorte que eu tive em conhecer Tito e sua família.
Disco rapidamente para Diogo.
— Fala, ruiva. Já é para eu ir te buscar?
— Oi, Diogo. Vamos ter que mudar os planos. Meus pais
sofreram um acidente. Vou até lá ver o que aconteceu e depois sigo
para o bar.
— Me dá meia hora, que chego aí e te levo para o hospital.
— Obrigada, meu amigo. Mas não sei como as coisas
estarão por lá. Tenho medo de demorar e Tito conta com você para
cuidar do bar esta noite. Caso eu me atrase, você cancela o show,
por favor.
— Tito vai ficar louco da vida — comenta.
— Eu me entendo com ele — digo, sorrindo. — Até mais,
Diogo.
— Qualquer coisa, me liga, Ju.
Com o coração renovado, pelo cuidado e carinho de todos
que estão na minha vida, pego as chaves do carro do Tito. Se
realmente chover, estarei mais segura com ele, do que com o meu
carrinho compacto.
Sorrio, ao vê-lo estacionado ao lado do carro preto e
reluzente do meu namorado. Ele sempre reclama que o meu é
pequeno demais, faz barulho demais e não é seguro. É verdade que
é tudo isso mesmo, mas nunca vou assumir. Com Edgar, eu dirigia
um carro de luxo. Agora, gosto de dirigir o meu, para me lembrar, o
tempo todo, que estou batalhando pela minha nova vida. Mas hoje,
isso não vai precisar ser lembrado. Quero chegar ao hospital logo e
saber como que chegaram até mim. Troquei meu número e nenhum
dos meus pais tinham o novo contato. Acelero para sair da garagem
e os pingos de chuva já me cumprimentam.
— Droga! Odeio dirigir com chuva.
Ligo o rádio para me distrair e sorrio ao ouvir a última música
que ele ouviu: Pra você guardei o amor do Nando Reis. Tito diz que
foi no momento que cantei essa música para ele na ONG, que
descobriu que me amava.
Meu príncipe.
Tito é tudo e muito mais do que eu sempre desejei na vida.
Com ele, não tenho medo do toque, do beijo, muito menos,
do amor. Confio de corpo e alma no homem maravilhoso que mora
comigo.
Para a minha sorte, não enfrento trânsito e chego
rapidamente ao hospital. Acho uma vaga e respiro fundo, antes de
sair na chuva, que ainda está fina, e correr de encontro com o meu
passado.
— Como eu disse, você não poderá ficar por muito tempo.
— Ela tem chances de sobreviver? — questiono o médico,
que atendeu minha mãe, assim que o resgate a trouxe para cá.
— Sempre há chance. Vamos esperar 24h. Se ela estabilizar,
então, poderei te dar uma resposta mais concreta.
— Obrigada. — Ouço o que ele diz, porém, quando estava
esperando notícias do meu pai, ouvi duas enfermeiras conversando
de que o médico só iria me deixar entrar, porque minha mãe já
estava desenganada, pois não haviam descoberto o que ela tinha.
Quando questionei sobre isso, elas ficaram brancas por me virem no
corredor, disseram que o médico já vinha falar comigo, mas ele
apenas me pediu paciência.
Minha mãe chegou consciente ao hospital e, segundo o
médico, sem nenhum dano aparente, porém, seus batimentos
cardíacos estão muito fracos e seu corpo não está respondendo às
medicações.
Paro em frente à porta do quarto onde ela está e respiro
fundo, antes de entrar. Achei que a morte do meu pai não me
abalaria tanto, mas estava enganada. Não consegui chegar a tempo
de vê-lo vivo, pois, ele morreu na mesa de cirurgia. Por isso,
aproveitarei a chance com a minha mãe.
Como vou contar para a Emilly, que o avô está morto e a avó
está muito mal? — Afasto os pensamentos que não vão me ajudar
em nada agora e abro a porta, devagar. Seguro o choro ao vê-la na
cama, ligada a vários aparelhos.
Aproximo-me, devagar, e seguro sua mão. Seus olhos se
abrem lentamente e ela pisca algumas vezes, até focar a sua visão
em mim.
— Ju...
— Não fale. O médico disse que você não pode se cansar.
— Eu... preciso falar.
— Agora não, mãe. Quando você sair daqui, conversaremos.
— Eu não vou sair daqui, filha.
A sua voz frágil quebra o meu coração em mil pedaços.
Nunca imaginei ver a minha mãe assim.
— Não fale uma coisa dessas. O médico falou...
— Eu preciso te contar uma coisa e preciso... — Para de falar
para tossir um pouco e, depois de respirar fundo, continua: —
Preciso dizer agora. Edgar nos envenenou. Não foi um acidente. Sei
que vou morrer.
— Edgar está na prisão, mãe.
— Não está. Vi aquele monstro hoje. Ele disse que a nossa
morte seria lenta e dolorosa.
— O médico disse que vocês sofreram um acidente de carro
— afirmo, atordoada pela revelação.
— Seu pai tentou ir a um hospital, depois que Edgar saiu de
nossa casa. Mas desmaiou no meio do caminho e o carro capotou.
Ele... ainda está vivo?
— Não... — Hesito, mas percebo que não tem outro jeito de
dar a notícia. — Morreu na cirurgia. Como não viram que vocês
foram envenenados? Preciso chamar o médico.
— Não vai adiantar. Preciso te contar, antes que não tenha
mais tempo. Sebastião não é o seu pai.
Eu ainda estava inclinada a sair e chamar o médico, mas o
que ela diz, me paralisa.
— O quê?
— Preciso te pedir perdão, pois sei que não fui uma boa mãe.
— Você está delirando, por conta da medicação. Eu preciso
chamar um médico, mãe. — Tento sair de perto dela, mas sua mão
pequena e gelada segura meu pulso.
— Sebastião matou seu pai biológico com as próprias mãos.
— Eu não estou entendendo. Que história é essa? Este era o
segredo que escreveu na carta que Rebecca me entregou? — Sinto
minhas pernas amolecerem, porém, me mantenho em pé.
— Sim. Eu era jovem e tola, assim como você. — Sorri de
forma dolorosa e puxa o ar com força. — Namorava Sebastião, pois
meu pai fazia muito gosto e achava que eu gostava dele — conta,
abrindo um sorriso triste. — Isso, até eu conhecer Júlio e me
apaixonar perdidamente. Ele tinha os cabelos ruivos, como você.
Terminei com Sebastião e quis namorar Júlio, mas ele era órfão e
meu pai me proibiu de namorá-lo, pois, segundo ele, um homem
sem família não era ninguém, foi, então, que Sebastião transformou
minha vida em um inferno. Meu pai era bruto comigo, como
Sebastião era com você e...
— Espere. Você sofreu o mesmo que eu com o seu pai e,
nem mesmo assim, me protegeu? — indago, com o coração
sangrando.
— Eu tinha muita mágoa. Na minha cabeça, meu grande
amor morreu por sua causa.
— Meu Deus! Isso é a pior coisa que já ouvi. Você também
não é minha mãe biológica?
— Claro que sou. Quando descobri que estava grávida, Júlio
disse que iríamos fugir. Eu não sei como, Sebastião descobriu, mas
ele apareceu no meio da estrada, enquanto corríamos para chegar à
rodoviária. Ele e Júlio travaram uma luta, mesmo comigo gritando
com os dois. E com uma faca, Sebastião o matou.
— E por que ele não foi para a cadeia? — Minha voz sai em
um sussurro. Nunca na minha vida, eu havia imaginado algo desse
tipo.
— Porque ele disse que a briga foi por legítima defesa, já que
Júlio começou. Meu pai ficou do lado dele e Júlio não tinha ninguém
para brigar por ele. A cidade era pequena. Ele... simplesmente foi
esquecido e eu me casei com Sebastião, com você na barriga.
— Você se casou... com um assassino?
— Eu não tive escolha — sussurra.
Às vezes, realmente, não temos escolha — penso,
analisando a minha vida.
— Ele sabia? — questiono.
— Sim. E me proibiu de contar ao meu pai. Assim que nos
casamos, viemos morar em Bela Vista.
— É esse o motivo de ele ter tanto ódio de mim?
— Ele dizia que tinha feito isso por amor a mim. Mas depois,
eu entendi que era apenas para mostrar a Júlio que podia mais que
ele. Eu o perdi, por um capricho de um homem.
— E por que continuou casada? Por que você deixou que ele
fizesse tudo o que fez comigo?
— Peço-te perdão por isso. Tranquei-me em uma concha,
com o coração sangrando e tenho até vergonha de confessar isso...
— Sua voz falha, mas agora preciso saber de tudo.
— O quê? Fala, fala tudo de uma vez — peço, aos prantos.
— Eu tinha raiva de você também. Sentia que se eu não
tivesse engravidado, ele nunca teria morrido.
— Você me culpava?
— Hoje entendo que isso nunca fez sentido.
— E, mesmo assim, deixou a sua única filha sofrer —
constato, pensando em quantas vezes pedi para ela me ajudar.
— Eu temia por você. Sempre temi. Na minha cabeça, você
se casando com um homem rico, nunca passaria por problemas na
vida e ficaria longe de Sebastião, para que ele nunca se virasse
contra você. A primeira vez que você me procurou, dizendo que
Edgar tinha te batido, eu entrei em pânico e fui pedir ajuda ao seu
pai.
— Ele não é o meu pai.
— Desculpe. Falei com Sebastião e juro que eu não sabia
que ele tinha contado ao Edgar. Ele só me disse que você tinha que
ser obediente. Assim, seu marido seria bom. Eu tentei lutar contra,
mas todas as vezes que olhava para você, eu via Júlio e isso
sempre me afastava.
— Meu Deus! Meu Deus! Minha vida inteira é uma droga,
uma grande mentira. Você não podia ter feito isso comigo. Não
podia — grito, sem controle e o aparelho ligado ao seu corpo,
começa a apitar. Duas enfermeiras entram rapidamente no quarto.
— Me perdoa — é a última coisa que ela diz, antes de eu ser
arrastada para fora do quarto. O médico que falou comigo mais
cedo, tenta passar por mim, mas eu seguro o seu braço.
— Ela me disse que foi envenenada.
— O quê?
— Isso mesmo. Disse que ela e meu pai foram envenenados.
Salve-a, por favor.
— Farei o possível. — Entra no quarto, me deixando ali, com
o coração sangrando. Caminho pelo corredor, de um lado para o
outro, sentindo minha cabeça latejar.
Quando foi que minha vida tornou-se uma história de novela?
Por que ela não me contou tudo isso antes?
Lembro-me do número desconhecido que estava me ligando
e caminho até a recepção.
— Com licença. Vocês me ligaram por conta de um acidente
com os meus pais. Sabe me dizer quem te passou o número?
A moça, com cara de entediada, digita algo em seu
computador, depois de perguntar o nome dos meus pais e me
informa que foi a minha mãe que pediu que me chamasse.
— Obrigada.
Volto para o corredor e penso que se eu tivesse atendido
antes, poderia saber de toda essa história. Poderia até mesmo tê-la
ajudado a ficar longe de Edgar.
Saber que Sebastião não é meu pai, é um alívio, agora, saber
que minha mãe me odiou a vida toda, por ser a responsável pela
morte do seu grande amor, é como sentir uma faca rasgando a pele,
até se fincar no coração.
Queria o Tito aqui comigo — penso, de olhos fechados.
— Senhora? — Olho para trás e o médico me encara, com
pesar. — Fizemos tudo o que era possível, sinto muito.
Sento na primeira cadeira que encontro e minha cabeça gira,
pensando em uma forma de não deixar isso afetar a minha vida.
Edgar está solto. “Vi aquele monstro hoje” — disse minha
mãe e, antes que eu possa me levantar, meu celular toca. Respiro,
aliviada, pois deve ser Tito e, neste momento, ele é exatamente o
que eu preciso.
— Oi, linda, sentiu saudade?
Fico em silêncio, ao ouvir esta voz.
— Já foi dizer adeus ao papai e a mamãe?
Edgar.
— O que você quer, seu desgraçado? — ataco, pois no
momento, estou furiosa, não só com ele, mas com a porra da vida.
— Isso não é jeito de falar comigo, meu doce. Mal posso
esperar para matar a saudade que estou de você.
— Eu tenho ordem de restrição, que você tem que se manter
a 500 metros de mim.
— Tem é? Ainda bem que esse papel só se refere a você,
pois estou com um bem muito precioso aqui e estou te esperando
para buscá-la. — Desliga e, no segundo seguinte, recebo uma
mensagem. Assim que abro, meu coração para. Emilly está
dormindo e a foto foi tirada muito próxima à cama.
Levanto, tropeçando nos próprios pés e corro em direção à
saída, ligando para a casa de Margot e, para o meu desespero,
ninguém atende.
Será que ele matou a família de Tito?
— Não, não! — grito e, assim que atravesso as portas do
hospital, a chuva me molha dos pés à cabeça, mesmo assim, não
me importo. Ele está me esperando. Onde? Deve ser na casa dos
pais do Tito. Edgar deve ter os amarrado e, tenho certeza de que vai
soltá-los, assim que eu chegar lá. Ele quer a mim, não a Emilly,
Margot e Orlando.
Eu farei isso. Darei a minha vida em troca da deles.
Guardo o aparelho no bolso e corro pelo estacionamento.
Preciso chegar lá o quanto antes.
A chuva é tão forte, que preciso parar e olhar para os lados,
para lembrar onde estacionei. Não tem uma alma viva no lugar.
Corro na direção que vejo o carro de longe e, assim que me
aproximo, sinto algo batendo forte na minha cabeça. Caio no chão,
desorientada, porém, antes de desmaiar, vejo Edgar sorrindo e já
sei que é o meu fim.
Tito
— Como assim, sumiu? — pergunto a Diogo, na área de
embarque do aeroporto.
Ontem à noite, consegui falar com a minha mãe, de
madrugada. Ela me contou sobre o acidente com os pais de Juliana
e, por isso, reservei meu voo de volta na mesma hora, esquecendo-
me completamente do fornecedor, contrato e tudo mais. Juliana é a
minha prioridade. O problema é que só tinham assentos disponíveis
para o primeiro horário nesta manhã.
— Não sei, cara. Ela me ligou ontem, falando que ia até o
hospital. Fui à casa de Rebecca, depois que saí do bar e, assim que
contei a ela sobre os pais da ruiva, ela ligou no hospital para saber
notícias. Juliana não estava lá.
— Caralho! Será que ela foi até a casa dos pais buscar algo?
— Tento raciocinar, mesmo com o aperto no peito, que não passa.
Estou há horas sem falar com a minha ruiva e isso está me
consumindo.
— Tito, os pais dela morreram.
— Os dois?
— Sim. Eu estou achando que ela foi chorar em algum lugar,
mas Rebecca está me garantindo que esse não é o perfil da Juliana.
— Não é mesmo. Ela estaria com a filha, se precisasse de
apoio. — Ou comigo, se eu estivesse ao seu lado, completo
mentalmente. — Estou voltando. No máximo em três horas, estarei
pousando em Bela Vista. Enquanto isso, vá até a casa do meu pai e
pede para ele rastrear o meu carro, por favor. Juliana deve ter saído
com ele, e meu pai tem a senha do rastreador.
— Vou agora.
— Valeu, cara.
Desligo e durante toda a viagem, a pontada que eu estava no
peito, desde ontem, está virando uma dor enorme e impossível de
controlar. Tentei ligar para ela várias vezes, mas deduzi que, por
estar em um hospital, tinha colocado o aparelho no silencioso ou
algo do tipo. Não consegui dormir, pois todas as vezes em que
fechava os olhos, a imagem de Juliana sangrando aparecia. Isso
deve ser algum presságio sobre a morte dos pais dela. Só pode.
Minha ruiva se faz de forte, mas deve estar sofrendo muito
neste momento.
Assim que desembarco, vejo meu pai e o rosto dele não é
nada bom.
— Já acharam a Ju? — pergunto, antes mesmo de dizer oi.
— Precisamos conversar.
— Pode falar, pai.
— Vamos. — Aponta ele para a saída e bufo, irritado, mas o
obedeço.
— Fala, pai — peço, assim que entramos no carro.
— Seu carro está no estacionamento no hospital — informa e
acelera para longe do aeroporto, o que não é normal dele.
— Isso quer dizer, que ela está lá? — respiro, aliviado. Às
vezes, quem conversou com Rebecca não sabia quem era Juliana.
— Não, filho. O caso é mais sério do que poderíamos
imaginar.
— O que você quer dizer?
— Juliana conversou com a mãe, um pouco antes de ela
morrer. Um médico disse que ela afirmou que a mãe foi envenenada
e, segundo uma enfermeira, depois de receber uma ligação e gritar
ao telefone, ela saiu correndo para fora do hospital. Depois disso,
ninguém mais a viu.
— Onde está Emilly?
— Em casa, em segurança.
— Quem pode ter ligado para ela, pai?
— Edgar.
— Como? — pergunto, aflito. — De dentro da prisão, para
assustá-la?
— Aí que vem a pior parte, meu filho. Quando tive essa
suspeita, liguei para Mariana, a advogada, e ela me confirmou que
Edgar fugiu da prisão.
— Maldito. — Soco o painel do carro, com fúria. A minha
vontade é acabar com ele agora mesmo. — Ele está com ela, pai.
Sei que está. Desde ontem, estou sentindo um aperto no peito. E
se...
— Não vamos pensar de forma negativa. Vamos encontrá-la
— afirma, com a voz firme e faço de tudo para acreditar nele.
Juliana
Abro os olhos e a dor na minha cabeça me atinge como um
raio. Por instinto, tento puxar a mão para colocar na testa, buscando
amenizar a dor, mas não consigo. Tento forçar a vista para ver algo,
mas estou em uma cama e o ambiente em volta está
completamente escuro. Puxo, mais uma vez, as mãos e, só então,
percebo a ardência nos meus pulsos.
Meu Deus! Estou amarrada.
A imagem de Edgar sorrindo, aparece na minha mente e tudo
começa a clarear. Só para comprovar, tento puxar os pés e, como
imaginei, também estão presos. Um para cada lado. Mesmo que eu
não consiga enxergar o meu corpo, sei que estou totalmente
exposta na cama, com os braços e as pernas separadas e a pior
sensação, é não sentir tecido algum sobre meu corpo.
Emilly.
Ele disse que estava com a minha filha. Onde será que
estou? Onde ele a colocou?
Pela escuridão, ainda é madrugada. A minha intenção é ficar
acordada e alerta, para arrumar um jeito de sair daqui, porém, um
sono incontrolável toma conta de mim e me vejo mergulhando na
escuridão novamente.

— Você tem certeza de que não tem como ela voltar?


Acordo com voz masculina soando longe, mas consigo ouvi-
lo com clareza. Mantenho os olhos fechados, para ouvir a conversa.
— Tenho, meu amor. Os dois peões só voltam na semana
que vem e ela está tão velha e caminha tão devagar, que vai chegar
à casa da amiga no ano que vem. Ainda mais, depois do
tranquilizante que coloquei em seu chá na noite passada. — A
garota solta uma risada maldosa.
— E ela, vai demorar para acordar? — diz a voz masculina,
mais próxima e, desta vez, consigo reconhecer. Edgar.
— Não deve demorar muito. Apliquei uma droga fraca nela.
— Você sempre me surpreendendo, garota. Gosto disso.
— Vem me mostrar o quanto você gosta, então.
Abro os olhos, aos poucos, para ver se eles estão no mesmo
ambiente que eu e quase vomito, ao ver Dora, a funcionária da
fazenda, beijando a boca de Edgar nos pés da cama em que eu
estou. E, o pior disso tudo, é olhar em volta e me dar conta que
estou no lugar que me entreguei a Tito, pela primeira vez. A cabana.
— Olha só quem acordou. — Olho em pânico para Edgar e o
filho da mãe está sorrindo.
— Onde está a minha filha?
— Depois, respondo suas perguntas. Agora, você vai
apreciar o show — diz ao arrancar a blusa de Dora.
Fecho os olhos para não ver a cena, mas uma carícia em
minha coxa, me faz abri-los novamente, alarmada.
— Se não quer me ver com a Dora, não tenho problema
nenhum em matar a saudade com você.
— Não! Eu vejo. Eu vejo — digo, desesperada, e o sorriso de
Dora me causa ânsia.
Edgar não faz rodeio. Arranca o short junto com a calcinha,
de uma só vez, e a coloca de quatro, em cima da cama, posicionada
no centro minhas pernas amarradas, e a louca olha diretamente
para mim. Rapidamente, Edgar se livra de suas roupas, e só agora
vejo que o rosto dele está coberto de hematomas.
Será que apanhou na cadeia? Bem feito.
— Se você fechar os olhos, vou continuar em você — avisa e
entra em Dora de uma vez só, sem nenhuma gentileza.
A cena não poderia ser mais degradante. Estou nua, com as
pernas afastadas e, de onde eu estou, vejo os seios de Dora
balançando a cada nova estocada violenta.
A bile sobe na minha garganta e respiro fundo, para não
soltar tudo, pois, com certeza, iria me afogar. Duvido que o casal
vinte pararia a transa para me ajudar.
— Ah! Que saudade que eu estava do sexo — ruge ele,
segurando firme Dora pelos cabelos e sinto o meu couro cabeludo
formigar pela dor que ela deve estar sentindo. Ele desfere tapas em
toda extensão das suas costas e, quando grita meu nome, ela
levanta o tronco e o empurra.
— Não sou a puta da Juliana, sou a Dora.
— Cala a maldita boca. Você vai ser quem eu mandar que
seja. — Um soco a joga no colchão e puxo com força as cordas
para me soltar e ajudá-la, porém, Edgar, nem ao mesmo, hesita,
puxa o corpo feminino para si novamente e estoca violentamente,
batendo no rosto dela com as costas da mão, até chegar ao
orgasmo.
— Agora, é o tempo de me recuperar para matarmos a nossa
saudade, querida Juliana.
— Prefiro que você me mate antes — digo, com ódio e olho
para Dora, esperando ver dor, arrependimento e humilhação, mas
não vejo nada disso.
Neste momento, sei eu estou completamente perdida, pois
ela é tão perturbada quanto ele.
Tito
— Nenhuma pista?
— Não. Já fomos até a casa que ele morava e no comitê
político. Ninguém o viu. A casa da mãe fica em uma cidade pequena
no interior, já verificamos também e faz meses que os dois não têm
contato.
— Droga!
— Fica calmo, Tito. Se foi mesmo Edgar que pegou Juliana,
aquele canalha está com todos os bens bloqueados. Não acredito
que tenha ido longe.
— Pessoas daquela laia sempre têm uma carta na manga.
Vou continuar procurando pistas. Obrigado, Inácio.
Desligo e encosto a cabeça no volante, por um tempo. As
palavras de Emilly pedindo que eu trouxesse a sua mamãe de volta,
estão acabando comigo.
Lógico que ninguém contou a ela que Juliana saiu para ver os
pais e desapareceu, mas aquela criança é muito esperta. A agonia
em meu rosto, deve ter denunciado, por isso, depois de prometer
fazer o que ela pediu, saí da casa dos meus pais, sem rumo. Passei
no apartamento, para ver se encontrava alguma pista, mas nada. O
carro dela está exatamente no mesmo lugar, as roupas devem ter
sido trocadas às pressas, pois estavam jogadas em cima da cama.
Fora isso, nada. As paredes do lugar estavam começando a me
sufocar, então, saí. Passei na escola de Música, agora acabei de
chegar na ONG. Aqui é o único lugar que pensei que ela poderia ter
tentado falar com alguém fora da nossa família, já que Rebecca está
tão sem notícias quanto eu.
Respiro fundo e desço do carro, caminhando em direção à
casa e tento ser otimista quanto a esta busca.
O problema é que algo me diz que estou andando em
círculos e, o pior, o tempo está correndo.
— Oi. Você é o marido da Juliana, não é?
— Sim. E você é? — Não desminto a nomenclatura, estou
com a cabeça muito cheia para isso.
— Vanessa.
— Juliana já me falou de você — digo, lembrando como
minha ruiva ficou feliz em ajudar a garota assustada, que chegou à
ONG, depois de mais uma surra daquele que ela amava. —
Vanessa, por um acaso, a Juliana ligou para você ou para alguém
aqui da ONG, de ontem para hoje?
— Não. Ontem ela esteve aqui. Nós conversamos. E quando
se despediu, me disse que você estava aqui para buscá-la. Depois
disso, não falei mais com ela.
Suspiro, frustrado. As opções estão acabando.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunta a psicóloga, que
atende Juliana, ao aproximar-se.
— Oi, Flávia. Juliana sumiu e estou atrás de alguém com que
ela pode ter deixado algum recado. — Eu sei que isso é
praticamente impossível, mas preciso de algo para me agarrar,
antes de enlouquecer.
— Onde está a filha dela?
— Com a minha mãe.
— Já foi à polícia, Tito?
— Já. O problema é que o ex-marido dela fugiu da cadeia.
Entendo o seu estado de alerta, ela está do mesmo jeito que
eu.
— Juliana é esperta. Vai dar um jeito de ligar para alguém.
— Isso é o que eu espero. Você tem o meu telefone, Flávia?
Caso consiga alguma informação, me ligue, por favor.
— Tenho sim e ligarei. Você, por favor, me mantenha
informada.
Despeço-me das duas mulheres e volto para o carro,
tentando pensar em um lugar que aquele maluco possa ter ido.
Nada.
Não faço a mínima ideia de onde Juliana poderia ir sozinha,
ou que Edgar possa tê-la levado. Pelo pouco que conversamos
sobre aquele monstro, Juliana me contou que ele sempre teve
muitas propriedades, casas para locação e muito dinheiro. Um
homem como ele, para ter conseguido fugir da cadeia, só poderia
ter um caixa dois.
Sem opção, vou direto para a casa dos meus pais. Quando
estaciono, percebo a movimentação diferente. Vejo o carro de
Diogo, Elder e um que eu não reconheço de imediato.
— Inácio? — questiono, assim que abro a porta.
— Tito.
— Eu estava na ONG, vendo se Juliana tentou contato com
alguém — conto, adentrando à sala.
— Não ia adiantar. Rastreamos o celular dela, ele foi jogado
fora a poucos metros da saída do hospital.
Um choro se torna mais forte e olho para o lado, vendo Diogo
amparar Rebecca.
— O que mais descobriu? — pergunto, com medo.
Ele suspira e parece estar mais velho do que da última vez
que eu o vi.
— Consegui as gravações do hospital, Tito. Está confirmado,
depois de Edgar bater na cabeça de Juliana, com uma barra de
ferro, ele a raptou.
Neste momento, o meu coração se recusa a continuar
batendo.
Juliana
O frio está tão cortante que meus dedos começaram a ficar
roxos.
— Edgar, por favor, eu preciso colocar uma roupa — digo,
depois de dois espirros seguidos.
— Está com frio, minha rainha? — fala, com a voz arrastada,
e se aproxima da cama.
— Sim. Estou com frio, com fome e quero saber da minha
filha — choramingo e espirro de novo.
Dora não está por perto e não sei se me sinto aliviada ou com
mais medo. Depois da transa de animais deles, mais cedo, Edgar
saiu e ela ficou aqui, como um cão de guarda. Para a minha sorte,
ela soltou os meus pés e jogou um lençol em cima do meu corpo,
mas assim que Edgar voltou, ele o arrancou. Disse que estava com
saudade do meu corpo, por isso, queria ficar olhando para ele.
O que estou achando estranho, é sobre Emilly. Ele sabe que
ela sempre foi o meu calcanhar de Aquiles e, se não a mostrou
ainda, ou é porque vai tentar me chantagear, ou nunca colocou um
dedo em Emilly.
— Te trouxe um presente — diz, me tirando dos meus
pensamentos e desamarrando as cordas dos meus pulsos, o que
me traz um alívio imediato, porém, a felicidade não dura tanto, pois
ele os amarra juntos, agora na frente do meu corpo. Pelo menos,
parece que meu sangue volta a circular. — Foi o primeiro presente
que te dei e você foi tão ingrata, que o deixou para trás, quando foi
embora.
— Do que está falando? — pergunto, esfregando os pulsos e
me encolhendo no meio da cama, tentando me distanciar dele, o
que Edgar não permite, pois me puxa novamente pelos cabelos,
aproximando o rosto do meu.
— Você pensa que é esperta, não é? Depois daquele
joguinho com a advogada, para conseguir o divórcio, você estava se
sentindo tão poderosa, que já saiu abrindo as pernas para o
primeiro cara que encontrou, não foi? Duvido que ele tenha feito
você gemer tanto como eu fiz.
Resolvo me calar, pois sei que feriria o ego dele ao contar
que eu gemia de dor com ele, ao contrário de Tito, que sabe fazer
exatamente o necessário para uma mulher gemer de prazer.
— Você se esqueceu de que pertence a mim. Somente
a mim. Vira de costas. — Estremeço com o pedido e, querendo me
mostrar quem manda, recebo um tapa ardido na cara.
O material gelado é colocado no meu pescoço e, antes
mesmo de ver a peça, já sei do que se trata. A coleira. No começo
do meu casamento, ele me obrigava a andar com isso no pescoço,
para cima e para baixo. Como um cachorro treinado. Alguns fingiam
elogiar, outros fingiam não notar. A verdade, é que todos reparavam
que eu usava uma coleira com o nome de EDGAR gravado. E ele
sempre me disse que era para eu não me esquecer a quem eu
pertencia.
— Você se esqueceu tanto a quem pertence, querida Juliana,
que cometeu o maior erro da sua vida. Foi até a polícia — sussurra
no meu ouvido, o que envia ondas de pânico por todo meu corpo.
Edgar sempre me bateu no impulso, gritando e tudo mais.
Tenho medo de que ele, frio e controlado do jeito que está, seja pior.
— Sabe, querida, acho que o amiguinho que estava te
fodendo, resolveu me ferrar, pois quando fui preso, alguém contou
que eu era um estuprador, o que é uma mentira deslavada.
— Mentira? — digo, mais alto do que eu gostaria. Na
verdade, era para ser apenas um pensamento. Bater de frente com
ele, não vai adiantar nada.
— Claro. Éramos marido e mulher, eu tinha direitos sobre
você. Não é crime nenhum ter relações sexuais com a esposa. O
seu problema, neste momento, é que eu não consegui explicar isso
para os idiotas que estavam presos comigo.
Levanto um pouco os olhos, para ver se eu entendi o que ele
quis dizer e, mesmo sem querer, um pequeno sorriso aparece.
— Você foi estuprado?
— Você está rindo? — grita e, ao invés de um tapa, recebo
um soco forte e certeiro na minha bochecha. — Sua vagabunda.
Comi o pão que o diabo amassou dentro daquela cadeia, por sua
causa. — Puxa meus cabelos e caio no chão de madeira da cabana,
com um baque. A droga dos pulsos amarrados não me deixa
amortecer a queda, o que faz que uma sensação de déjà vu passe
pela minha cabeça. A dor na minha costela parece me rasgar ao
meio. — A culpa é sua. SUA. Sua e daqueles dois idiotas que você
chamava de pais.
— Esse problema você já resolveu, não é mesmo? Matou os
dois — digo, com a raiva tomando conta da parte racional do meu
cérebro, que me manda ficar de boca fechada.
— Sim, e devo confessar que foi um prazer ver aquele
sanguessuga do Sebastião tremendo as pernas, quando me viu
sentado na sua sala.
— Por que fez isso com eles, se é a mim que você queria?
— Porque seu pai só me passou dicas falsas sobre você e o
idiota que estava te comendo. Aquele maldito sempre me arrancou
dinheiro com mentiras.
Aproveito que ele está perdido em pensamentos e passo o pé
por debaixo da cama, na esperança de ter algo aqui para eu tacar
em sua cabeça.
— Ele não sabia onde eu estava. Você não precisa tê-los
matado.
— Está defendendo aqueles vermes? Mesmo depois dos dois
terem vendido você para mim? — Solta uma gargalhada e vai até a
cômoda que tem no quarto, servindo-se de uma dose de bebida. —
Você é uma idiota mesmo. Foi ele que me contou sobre aquele lugar
imundo que você foi cantar na primeira vez que ousou sair
escondida. Foi ele que contou sobre a mentira da infertilidade.
Aquele homem andava como um cachorro atrás de você, só para
conseguir um trocado a mais comigo. Se eu fosse você, não teria
pena. Foi esse o motivo de eu ter dado uma dose maior do veneno
para ele. Fiz os dois sentarem e beberem comigo. Seu pai
gaguejava, perguntando como tinha saído da cadeia e como ele
desaprovava o que você tinha feito. Maldito bajulador. Nem
percebeu o que tinha em sua bebida, quando a tomou em um gole
só. Esperei Maria do Carmo tomar um gole pequeno, e sabia que
seria o suficiente para ela te procurar antes de ser corroída de
dentro para fora.
— Onde está minha filha?
— Você acha mesmo que eu pegaria aquela pirralha? Tenha
dó, Juliana. Sempre tive asco por ela. Menina irritante, que parecia
uma matraca, de tanto que falava.
— Como tirou aquela foto, então?
— Peguei do celular da sua mãe, antes de ela voltar. Você é
uma mãe muito relapsa, pois nem percebeu que a foto era antiga —
diz, estalando a língua, como se me desaprovasse.
— Você deveria ter apodrecido na cadeia — cuspo as
palavras, me encolhendo no chão, tentando me proteger do frio e do
medo.
Edgar está com um brilho estranho no olhar e acredito que ele
perdeu o juízo de vez.
— Juliana. Juliana. Você nunca foi uma boa aluna. Eu sempre
te disse que a polícia não consegue por as mãos em quem tem
dinheiro. — Bebe mais uma dose e caminha na minha direção com
os olhos faiscando. — Depois do que sofri lá dentro, eu não poderia
esperar mais para colocar o meu plano em prática. Molhei algumas
mãos e saí de lá pela porta da frente. Claro que com o uniforme de
um carcereiro, mas isso não vem ao caso.
— Você é um doente, Edgar. Vai voltar e morrer lá dentro.
— Nunca! Ouviu bem? Nunca mais vou voltar para aquele
inferno. Aqueles filhos de uma mãe abusaram de mim. Fizeram-me
ser a maldita mulherzinha deles e me bateram e, agora, vou retribuir
cada gesto com você, minha querida — diz arrancando o cinto de
sua calça. — Vou começar te ensinando uma lição, por ter me
denunciado, sua vadia. Depois, reviveremos o nosso amor.
— Edgar! — Dora aparece no momento que ele levanta o
braço.
— O quê?
— Você precisa se esconder. Um carro estranho acabou de
entrar na fazenda — conta Dora, correndo para o lado de fora e
Edgar me levanta, aos trancos, me jogando na cama e me cobrindo
com um grande cobertor, para que ninguém me veja ali.
E eu só tenho um pensamento: graças a Deus esse homem
não tocou em mim. Mas isso vai segurá-lo até quando?
Tito
O telefone toca pela terceira vez e, só então, me dou conta
que estou sozinho na casa dos meus pais. Eles saíram para levar
Emilly para a casa de Daniel e Beatriz, pois com Camila e a
pequena Sofia, ela estaria distraída, sem contar que o condomínio
que eles moram é muito seguro. Nem tive forças e argumentos para
negar o pedido de Daniel, assim que ficou sabendo do sumiço de
Juliana. Luíza também me ligou e todo mundo fica dizendo que tudo
vai ficar bem, mas eu não estou tão confiante assim.
Já está anoitecendo e daqui algumas horas, vai completar 24
horas do seu desaparecimento. Eu sei que Inácio está fazendo o
possível para localizá-la, mas o problema é que não temos
nenhuma pista. O maldito não deu um passo fora da linha.
— Alô? — digo, depois de chegar à sala e atender ao
telefone fixo.
— Menino Tito?
— Conceição? — pergunto, de cenho franzido. Sua voz está
trêmula.
— Seu pai está?
— Não. Eles saíram. Aconteceu algo?
— Eu não sei direito. É a Dora.
Ai, caramba. Não estou com cabeça para lidar com aquela
desmiolada no momento.
— Tem um carro escondido aqui na fazenda — começa ela,
antes que eu peça para ela ligar depois. — E acho que ela me deu
um remédio para dormir, para eu não a ver com o homem.
— Ela te drogou e levou um homem estranho para aí? Onde
está o Clovis e o Venâncio?
— Foram a um leilão de cavalos. Só voltam na semana que
vem. Por isso, resolvi sair para visitar uma amiga, que mora na
fazenda ao lado. Mas estou achando que tem algo estranho
acontecendo.
— Onde você está? — Não sei o motivo, mas Edgar me vem
à mente.
— Na fazenda da Glória. Sua mãe a conhece. Pedi para o
funcionário dela me levar lá agora há pouco, para buscar um
remédio que tinha esquecido e achei Dora agitada demais. Não sei
se é só um namoradinho, mas achei estranho o carro estar
escondido na trilha da cabana. Achei melhor avisar o seu pai.
— Você sabe me dizer que carro era?
— Tião — chama ela, distanciando o telefone da boca. — O
menino está perguntando a marca do carro, você sabe?
— A marca eu não sei, não, senhora, mas era SUV preto.
Desses grandões — diz o homem, perto de Conceição.
— Ouviu, Tito?
— Ouvi — digo, com o coração batendo freneticamente. —
Estou indo para lá. E, Conceição, fique longe, se for o que estou
pensando, esse homem raptou Juliana e a levou para o último lugar
que a procuraríamos.
Desligo, sentindo a raiva me corroer. Envio uma mensagem
para o meu pai, pois sei que se eu ligar ele vai pedir para esperá-lo.
Mas eu não posso. Agora que descobri, tenho que agir.
— Inácio? — digo, já na estrada. — Anota o endereço aí. O
filho da mãe está com a Juliana na fazenda dos meus pais — falo
rapidamente a localização e, mesmo com Inácio me prometendo
que iria chegar lá rápido, eu não o espero. Nem mesmo conto que já
estou no caminho. Preciso de um momento a sós com aquele
desgraçado.
A viagem que, normalmente, levo cerca de 40 a 50 minutos
para fazer, concluo em menos de 30. Nunca infringi tantas leis na
minha vida, mas a única coisa que eu pensava, era no sonho que
tive.
Cheguei tarde demais — era o meu pensamento, quando via
Juliana coberta de sangue, com os olhos sem vida. Isso não vai
acontecer desta vez. Não mesmo.
Juliana
Eu estou dando graças a Deus por Conceição ter aparecido,
pois Edgar enfiou uma calça larga em mim e uma camiseta, com
medo de precisar fugir rapidamente. E, para o meu desespero,
Conceição já foi embora novamente e a noite está caindo. Passei o
dia todo aqui comendo bolacha, como a um animal, e bebendo água
quando eles decidem me dar.
— Vou precisar sair para me encontrar com o cara dos
passaportes frios. Fica de olho nela — diz Edgar, amarrando o
cadarço do tênis.
Acho que nunca o vi vestido de forma casual assim. Tênis,
jeans e jaqueta de couro surrada, não faziam parte do seu vestuário.
— Tome cuidado, quando voltar para esconder o carro.
Acredito que a velha deve voltar amanhã cedo.
— Devíamos dar um fim naquela mulher — resmunga Edgar.
— Não! — grito, sem conseguir me conter.
— Cala a boca, sua puta. — Sem aviso prévio, Dora acerta o
meu rosto com um tapa.
— Quem bate nela sou eu, entendeu? — Edgar grita,
segurando a sua mão.
— Vai defender a vadia agora?
— Vadia, ou não, ela é a minha mulher.
— Mulher? Sua mulher sou eu. Esqueceu-se do que me
prometeu? Iríamos dar um fim nela e na pirralha e viver uma vida de
luxo, longe daqui.
— Ainda vamos viver uma vida de luxo longe daqui, minha
princesa. Porém, os planos mudaram. Juliana é a minha mulher,
você será a minha amante fixa e pode ficar tranquila, que com o
dinheiro que eu tenho, luxo é o que não vai faltar — afirma, com
naturalidade. — Não quero discutir. — Levanta a mão, quando Dora
ameaça falar algo. — Volto já. — Ele a beija, voltando a assumir o
tom frio e controlado e sai de casa.
— Como ele te encontrou, Dora? Ele está te chantageando
com algo? —Eu não acredito nisso, mas preciso saber como esses
dois foram parar juntos.
— Ele me encontrou? Você acha que sou tão infantil assim?
Fui eu que fui procurá-lo. Ouvi você dizer no dia do aniversário da
pirralha, que se ele pudesse, apertava o seu pescoço até quebrar.
Adorei ouvir isso — confessa, andando de um lado para o outro.
— Eu não entendo. O que fiz para você?
— Você roubou o meu futuro. O patrãozinho já estava no
papo. Eu seria a nova dona de tudo isso aqui e nunca mais passaria
aperto na vida. Mas não — solta uma risada amarga —, a ruiva
maldita teve que entrar no meio.
— Eu nunca quis roubar nada. Edgar é cruel. Se quer ter algo
na vida, batalhe, pois, tudo o que esse homem toca, apodrece.
— Batalhar como você batalhou para cair na cama do Tito?
Me poupe.
— E agora, como vai ser? Edgar, você e eu morando juntos e
vivendo felizes para sempre?
— Não! Ele me prometeu que ia acabar com você.
— Não foi isso que ele acabou de dizer. — Tento fazê-la
enxergar o meu ponto. — Me solta, Dora. Eu juro que vou embora e
vocês nunca mais ouvirão falar de mim. Vai curtir o seu luxo só com
ele, longe de mim. Longe daqui.
— Ele vai te achar, aonde você for — afirma ela e, pelo seu
olhar, sei que está analisando a possibilidade.
— Eu prometo me isolar do mundo por um tempo, e você o
convence a ir para longe, por causa da polícia.
— E você lá se importa com ele na cadeia? Sabia que o dia
que fui visitá-lo, ele, nem mesmo, conseguia andar, devido ao que
aqueles brutamontes fizeram com ele?
Seguro a minha língua, para dizer que saber disso é a única
coisa que me faz feliz, desde que coloquei Tito naquele avião.
Tito. Oh, meu Deus, que saudade.
— Eu não quero mais Edgar perto de mim. Nunca quis. Casei
forçada e fui humilhada durante cinco anos. Se você o quer, pegue-
o.
— Mas o problema, é que ele quer você — diz, com ódio no
olhar. — E você tem razão, afinal, não quero dividi-lo com você.
— Isso. Me solta, eu... Ei, aonde você vai? — grito, quando
ela se afasta.
Doida.
— Vou seguir o seu conselho. — Entra pela porta novamente,
carregando um galão. — Vou eliminar você da vida de Edgar e do
Tito. Quem sabe, eu não fico com os dois? Um gostosão e um cheio
da grana.
— Não, Dora. Não faz isso. — Tento puxar os braços presos
na cabeceira com uma corda, mas é impossível soltar esses nós. —
Me solta. Por favor. Eu tenho uma filha.
— Cuidarei dela, como se fosse minha — diz, molhando as
cortinas com o álcool e faz uma trilha com ele da cama até a porta.
— Prometo. — Acende um isqueiro e, depois de um sorriso maligno,
o joga no chão, saindo da cabana com o galão nas mãos.
— Socorro! — grito, tentando fugir. Mas sei que é impossível.
Edgar saiu, Conceição não está. E o local mais próximo da fazenda,
deve estar a uns 10Km daqui. Ninguém nunca vai me ouvir.
É o fim — penso, quando a fumaça das cortinas vai cobrindo
o lugar e ocupando as minhas vias respiratórias. Começo a tossir
desesperadamente e sentir a corda cortando a pele dos pulsos, mas
nem assim, ela cede.
Emilly. Nunca mais vou ver o meu bebê.
— Eu te amo, filha. Eu te amo, Tito — digo, baixinho,
sentindo a garganta arder.

A inconsciência vem me visitar e acho muito bom, pois sentir


as chamas no meu corpo é algo que não quero. Por isso, fecho os
olhos e deixo a escuridão me levar.
Tito
Assim que faço uma curva, vejo um carro fazendo o retorno
no meio da estrada. No mesmo momento, desacelero e desligo os
faróis. A estrada não é mal iluminada, por isso, acredito que o carro
grande e preto que está mais à frente, não se deu conta do meu
carro. Ele acelera e eu o sigo, deu uma distância segura. Não sei o
que me deu, mas um aviso pareceu soar nos meus ouvidos, para
que eu tivesse cautela.
O carro segue a toda velocidade e entra na propriedade da
minha família.
É ele.
Será que Juliana está dentro do carro?
Deixo o carro na estrada mesmo e decido caminhar até a
casa. Pelo menos, uso o fator surpresa a meu favor. Tento ir me
escondendo pelas árvores e, como Conceição disse, a casa
principal está completamente às escuras. Dou mais alguns passos e
ouço uma porta de carro batendo. O carro está totalmente oculto
pelas árvores, mas seu motorista logo aparece.
— Você poderia ter me ligado mais cedo. Se a droga do sinal
não tivesse funcionado, para eu receber a sua mensagem a tempo,
teria corrido o risco de ir até o centro à toa — brada o idiota, que
agora vejo claramente ser Edgar. — Tá bom. Tá bom. Amanhã, sem
falta, quero esses passaportes. E não vai ter mais nenhuma
desculpa, não vou te pagar essa montanha de dinheiro, para você
me dizer que teve algum imprevisto. Não aceito trabalhar com gente
incompetente. Amanhã — decreta e desliga o aparelho. Dá uma
olhada ao redor e depois se vira para ir em direção à cabana.
Não consigo pensar em mais nada, estou bem próximo a ele
e, com apenas dois passos, o alcanço. O puxo pelo ombro e soco
seu rosto, como estava com vontade desde o dia do PUB, o fazendo
cambalear para trás.
— Mas o quê...? — diz, passando a mão nos lábios e, assim
que me encara, um sorriso de escárnio surge. — Ora, ora, se não é
o barman de merda, que tentou roubar a minha mulher.
— Onde ela está? — grito.
— Não sei do que está falando.
Jogo-me em sua direção, mas o desgraçado me acerta no
estômago.
— Não sei como fez para sair da cadeia, mas juro que vou te
trancar lá, desta vez, e jogar a maldita chave fora.
— E você acha que vai sair vivo daqui? — diz, tirando uma
arma da cintura e apontando para mim.
— Não tenho medo de você.
— Mas deveria. Você não imagina que o que posso fazer
com Juliana na sua frente. Que tal assistir? Aproveite que estou
bonzinho hoje.
— Você nunca vai tocar nela de novo, está me ouvindo?
— Vai querer minhas sobras novamente? — Cospe o sangue
e sorri mais abertamente. — Desta vez, você não terá muito
trabalho para comê-la. Arrombei Juliana por todos os lados,
enquanto ela gritava, pedindo socorro. E também...
Mesmo sabendo o perigo que corro, não o deixo terminar, é
demais para mim. Arremesso meu corpo em seu tronco e caímos os
dois no chão. A arma rola pelo gramado, pois o idiota nunca
imaginou que eu faria isso. Ele deve achar que, assim como
ameaçava Juliana e ela se calava, todos dão um passo para trás,
com medo.
Ele não me conhece.
Monto em cima dele e começo a socar a sua cara, com toda
força e descontrole que tenho. Este verme não merece piedade.
Não merece cadeia. Ele merece a morte.
— Fogo! — Ouço alguém gritar e Edgar se aproveita disso
para me socar no queixo e me desequilibrar.
Agilmente, o filho da mãe me empurra para o lado e corre. A
escuridão não me deixa ver onde a arma está, mas não me
preocupo com ela, um segundo depois, estou no seu encalço, para
pegá-lo novamente, e estou muito perto. O problema é que meu
corpo paralisa ao me aproximar da cabana e ver que tem chamas
tomando conta de toda a parte da frente. O lugar é feito de madeira,
então, sei que rapidamente tudo isso vai ao chão.
— O que você fez, garota? — Olho para o lado e vejo
Conceição, segurando a orelha de Dora, enquanto um rapaz, alto e
corpulento, aparece com um balde, jogando água na cabana.
— Juliana! — grita Edgar. — Você deixou a Juliana lá dentro?
— o monstro pergunta à Dora e quando olho para o seu rosto, a
menina está sorrindo, como uma doida. Parecendo hipnotizada
pelas chamas.
— Ela tinha que morrer.
Não fico para escutar mais nada. Muito menos, penso em
capturar Edgar, que está caminhando para a entrada do lugar,
tentando ultrapassar as chamas da porta da frente. No momento,
minha cabeça só consegue pensar que Juliana está lá dentro e
precisa de mim.
Corro em volta da cabana e, com um dos pés, chuto a janela
da pequena cozinha, que minha avó fez questão de ter aqui.
— Vamos. Vamos — digo, ao chutar mais uma vez. A
madeira range e, finalmente, se desprende da guarnição.
A fumaça já está forte e, ao longe, consigo escutar sirenes,
no entanto, não posso esperar. Não posso. Lanço-me pela pequena
abertura e sinto o calor insuportável. Puxo a camiseta para tampar o
nariz e a boca, prendo o ar e ajo rapidamente. A cabana é pequena,
por isso, assim que passo pelo arco da cozinha, eu a vejo. As
chamas lambem os pés da cama, mas, por enquanto, não chegaram
perto de Juliana.
Minha ruiva.
Sinto o coração acelerar ao vê-la desacordada, sentada à
cama. Ela se parece com um animal acuado, encolhida dessa
forma, com os braços presos na cabeceira de madeira e a cabeça
tombada para o lado.
— Ju? Ju? — chamo-a, enquanto tento desfazer os nós, mas
vejo que é o caminho errado. A fumaça entra pela minha garganta,
lançando uma dor insuportável.
— Juliana? Estou indo te salvar, meu amor — grita Edgar, do
lado de fora e olho para os lados, em busca de algo que me ajude
com a corda.
Em uma mesinha de canto, que nunca tinha percebido aqui
antes, vejo uma maçã pela metade e uma faca de cozinha. Corro
até lá e mais vozes parecem ecoar na fazenda, mas o barulho da
madeira queimando está mais alto.
— Corta! — digo, desesperado, ao forçar a faca ao limite. E,
finalmente, consigo.
A porta da frente range bem no momento que consigo soltá-
la.
Esteja bem. Esteja bem — repito em minha cabeça, olhando
para a sua pele pálida.
Pego-a nos braços e, mais do que depressa, sigo para os
fundos. Ainda escuto a porta da frente se abrindo, em um estrondo
e, com isso, as madeiras, já comprometidas, começam a estralar
muito. Como se tudo fosse para os ares em pouco tempo. O teto já
está tomado pelas chamas e, para a nossa sorte, quando passamos
o arco da cozinha, um pedaço do telhado desaba. Por um segundo,
não cai sobre nossa cabeça.
Tossindo, de forma incontrolável, eu posiciono o corpo de Ju
perto da pequena janela e suspiro, aliviado, ao ver meu pai ali,
pronto para recebê-la.
— Vamos, Vitor. Dei-me ela e saia daí, agora. O fogo vai
chegar no gás rapidamente — grita.
O gás.
Meu Deus, como Juliana correu perigo. Não quero nem
imaginar o que poderia ter acontecido se Conceição não tivesse me
ligado.
Passo-a com cuidado, pelo batente quente da janela, rezando
para que Juliana esteja bem e que não me deixe. Esse canalha não
pode me tirar o que mais amo na vida. Não pode.
Meu pai a segura nos braços e corre em direção à casa
principal, enquanto eu saio da cabana. Gostaria muito de dizer que
eu permaneci ao lado dela por todos os segundos, até ela abrir os
olhos, mas não é isso que acontece, pois assim que dou alguns
passos para fora do lugar, a cabana explode e meu corpo é jogado
ao chão, de forma tão violenta, que eu apago instantaneamente.

Meus olhos ardem ao abrir, mas, mesmo assim, continuo


forçando. Sem mexer a cabeça, que doí como o inferno, observo
que estou em um hospital e não faço ideia do que estou fazendo
aqui, afinal, quem foi sequestrada e precisa de cuidados médicos é
a Juliana.
Juliana.
Seu nome faz que eu tente me sentar rapidamente e meu
corpo todo protesta.
— Calma aí, campeão — diz Diogo, sorrindo, entrando no
meu campo de visão.
— O que estou fazendo aqui? Onde está a Juliana? Ela está
bem?
— Para quem ficou apagado por dois dias, você acordou bem
agitado.
— Dois dias? — Franzo o cenho com essa informação. —
Isso é impossível, não aconteceu nada comigo.
— Não? Você voou mais que o Batman em seu Batmóvel.
Não consigo segurar o riso. Diogo não existe.
— Juliana? — Tento mais uma vez, desta vez, recostando a
cabeça no travesseiro, com a intenção de ela parar de doer.
— Já, já, ela volta. Não sei como me deixou ficar aqui por
alguns minutos. Está parecendo uma mãe galinha, em volta dos
ovos. Fique aí, que vou chamar o médico.
— Não vou a lugar algum. — Ele sai e fico tentando montar o
quebra-cabeça. Lembro-me claramente do fogo na cabana e de tirar
Juliana de lá. O que está em branco na minha mente, é o que
aconteceu depois disso.
— Olá, Vitor. Como está se sentindo? — Um senhor, com um
jaleco branco, entra no quarto, por isso, deduzo que ele seja o meu
médico.
— Muito bem. Já posso ir para a casa?
— Um passo de cada vez — diz, com um sorriso simpático,
direcionado a mim. — Do que você se lembra?
Digo tudo sobre o que aconteceu na fazenda e respondo as
perguntas que ele me faz: nome completo, data de aniversário,
nome dos pais etc.
— Por que demorei tanto para acordar?
— Seu corpo foi arremessado pela explosão e, para a sua
sorte, você estava em um gramado, o que amorteceu um pouco a
queda, porém, a batida com a cabeça gerou a inconsciência. A
nossa maior preocupação era um dano cerebral, mas já repetimos
os exames hoje pela manhã e todos estão normais. Em minha
opinião, seu cérebro precisava apenas de uma pausa.
— E agora?
— Agora, você vai ficar em observação por algumas horas,
para verificarmos se não terá nenhuma sequela. Você sente alguma
dor?
Penso em mentir, mas a dor de cabeça está me matando.
— Minha cabeça dói um pouco.
— Ótimo. Você sairá daqui ainda mais rápido, se me relatar
tudo o que sente, ok? — Concordo com a cabeça e ele continua: —
Uma enfermeira virá trazer um analgésico e, mais tarde, volto para
saber como você está. Qualquer dor intensa, mande me chamar, no
mesmo instante.
— Tudo bem. Obrigado.
Ele sai e, minutos depois, Diogo retorna para o quarto, com o
celular na mão.
— E, então?
— Vou ficar de molho mais um pouco — confesso, me
acomodando melhor na cama.
— Acabei de falar com a sua mãe. Ela disse que Juliana
conseguiu dormir agora, depois de ela ser obrigada a lhe dar um
calmante. Ela vai ficar fula da vida em saber que você acordou
quando estava drogada — comenta meu amigo, rindo.
— Por que minha mãe precisou dar um calmante a ela?
— Porque a ruiva é mais teimosa que você. Assim que
recebeu alta, instalou-se aqui e só saia para ver Emilly, por alguns
minutos. Dormiu nesta cadeira torta por dois dias seguidos. Nem sei
como sua mãe conseguiu arrastá-la daqui hoje.
— Ela... — minha voz falha e eu pigarreio — ela está bem?
— Lembro de ter segurado seu corpo mole em meus braços e, Deus
me livre desses pensamentos, mas achei que ela poderia morrer.
— Está ótima. Acordou na ambulância, que tinha ido até a
fazenda com a polícia, antes mesmo de chegar ao hospital. Ficou
apenas rouca no começo, por conta da fumaça que inalou, mas sua
saúde está perfeita. Assim que ficou sabendo de você, médico
nenhum conseguiu segurá-la em outro quarto — relata e percebo
que está se divertindo.
— Que bom.
— Você mandou muito bem em ter ido até lá. Mas você
deveria ter esperado alguém, ou me chamado para ir junto. Foi
muito perigoso, Vitor.
Pela primeira vez hoje, vejo meu amigo sério. Chamando-me
pelo nome, então, é algo muito profundo para ele. Entendo o que ele
está falando. Eu também teria ficado preocupado se a história fosse
o contrário e ele tivesse se arriscado. Mas eu não podia esperar.
— Ela teria morrido, se eu não fosse antes — afirmo e,
mesmo ele assentindo, percebo que ainda não está 100%
conformado.
Para a nossa sorte, uma enfermeira bate na porta e, assim
que entra, vem até mim para aplicar o analgésico no soro, que está
ligado à minha veia.
— Como está o bar? — pergunto, para mudar de assunto.
— Está tudo certo. Elder é um cara ótimo para lidar com o
público. E até mesmo com os fornecedores. Acho que seria bom ter
ele como seu braço direito lá, ao invés de apenas um garçom —
comenta.
— Já pensei nisso também. Depois de toda essa loucura,
quero aproveitar um pouco mais com a Ju e a Emilly. Será bom ter
um par de olhos para cuidar de tudo, enquanto eu não estiver.
— Faz bem. Você sabe que posso ajudar sempre que
precisar. Mas esse lance de responsabilidades, não é muito minha
praia — brinca.
— Por falar em responsabilidades, como vai Rebecca? —
pergunto, reprimindo um bocejo.
— Sei lá, cara. — Caminha até a janela e passa os dedos no
cabelo. — Ela é sensacional, mas merece um cara para casar. Eu
não sou esse cara.
— Eu também achei que não era, Diogo. As coisas podem
mudar, e não há problema nenhum nisso.
Ele acena e meus olhos começam a ficar pesados.
— Descansa, cara. Daqui a pouco a sua ruiva estará aqui.
As pancadas na minha cabeça estão tão fortes que é
exatamente isso que faço. Fecho os olhos e deslizo para a terra dos
sonhos.

Por onde andei


Enquanto você me procurava?
E o que eu te dei?
Foi muito pouco ou quase nada
E o que eu deixei?
Algumas roupas penduradas
Será que eu sei
Que você é mesmo
Tudo aquilo que me faltava?
(Por onde andei – Nando Reis)

— Você eu não sei, mas eu tenho certeza de que você é tudo


o que me faltava — comento, sorrindo, interrompendo a voz doce de
Juliana.
Acordei com a melodia suave de Nando Reis e, na hora,
soube que não se tratava de um sonho e, sim, da minha ruiva aqui
do meu ladinho.
— Tito! — diz, deixando o violão de lado e vindo até a beirada
da minha cama. — Que bom que acordou.
— Atrapalhei a sua música.
— Não seja bobo. Estava apenas passando o tempo,
enquanto você dormia.
— Fiquei sabendo que você também acabou dormindo, só
que à força — brinco.
— Sorte dela que é a sua mãe.
Juliana se inclina sobre a cama e aproveito quando seus
lábios tocam os meus, de forma delicada.
Seu rosto fica próximo ao meu e consigo saber que ela está
maquiada, isso quer dizer, que está escondendo hematomas.
— Você está bem? — questiono.
— Quem tem que perguntar isso, sou eu.
— Você sabe que não é. Depois de tudo que passou...
— Shiu! — Sorri, colocando um dedo na minha boca, com o
intuito de me calar. — Já passou. Você me salvou. Obrigada.
— Como está a nossa princesa?
— Feliz. E dizendo a todos que sabia que você me traria de
volta. Você virou o super-herói favorito dela.
Sorrio ao ver Juliana sorrindo. Ela é maravilhosa. Mesmo
com um lampejo de cansaço nos olhos castanhos, seu sorriso
consegue passar exatamente a dimensão do amor que sente por
Emilly.
— Já estou com saudade dela — afirmo.
— Ela também.
— Ju... — Hesito, sem saber como abordar o assunto.
— Pode perguntar.
— O Edgar... Ele disse que tinha te violentado novamente.
Eu...
— Não aconteceu nada. Juro.
— O que ele fez com você, durante as horas que você ficou
presa? Na verdade, como ele conseguiu te atrair?
— Ele envenenou meus pais, Tito — conta, com um sorriso
triste. — Acordei, já na fazenda, depois que me pegou no
estacionamento. Fiquei amarrada por horas, o assistindo transar
com a Dora e recebi alguns socos e tapas. Apenas isso.
Solto a respiração, que nem sabia que estava prendendo.
— O que aconteceu com ele?
— Conceição contou que ele entrou na cabana atrás de mim
e queimou até a morte.
— Conceição?
— Sim. Ela foi para a fazenda, logo depois de falar com você
e disse que ficou escondida, esperando Dora sair da cabana, para
tentar me tirar de lá. Mas o fogo foi mais rápido. O fogo matou
Edgar.
— Eu me lembro da porta sendo forçada, mas não imaginei
que ele tinha ficado lá dentro. Achei que sairia, ao ver que você não
estava mais lá.
— Pois é, parece que uma viga caiu na porta. Ele ficou
gritando que sua pele estava derretendo e depois veio a explosão.
— Não consigo sentir pena — confesso e Juliana puxa a
poltrona mais perto da cama e se senta, segurando a minha mão.
— Eu também não. Enquanto eu estava lá, ele me contou
que sofreu abuso sexual na prisão. Devo ir para o inferno, pois me
fez muito bem em ouvir isso.
— Vamos os dois, então — brinco. — Estou muito feliz que
ele tenha sofrido na pele o que fez com você, durante esses anos. E
Dora? Ainda não entendo o que aqueles dois estavam fazendo
juntos.
— Ela me contou que me ouviu conversar com Rebecca, no
dia do aniversário de Emilly, e foi atrás dele. Até visita na cadeia
aquela doida fez. Ele disse a ela que iria me matar. Os dois eram...
Amantes. — Ju engasga ao dizer isso e, só agora, me dou conta
que ela disse que viu os dois transando. Só de pensar que ela foi
submetida a tal sujeira, tenho vontade de matar Edgar novamente e
torcer o pescoço de Dora.
— Espero que aquela cobra esteja presa — falo entredentes.
— Está. Depois de levar uma surra da Conceição, ela foi
detida por Inácio.
— Surra?
— Com direito a puxão de orelha e palmadas. — Vejo que ela
se diverte com isso e acabo sorrindo também.
Desde que esses dois estejam longe de Juliana e Emilly,
minha alma já se acalma.
O silêncio recai sobre nós e, por um tempo curto, sinto
apenas o carinho de Ju na palma da minha mão.
— Como está se sentindo com a morte dos seus pais?
— Ah, Tito! Tem tanta coisa que preciso te contar — solta,
com a voz cansada.
— Então, me conte, minha deusa. Estou aqui por você, para
sempre.
Passo os próximos trinta minutos ouvindo sobre o segredo
que a mãe dela revelou antes de morrer.
Juliana chora, se controla. Chora de novo. E eu, nesta droga
de cama de hospital, que não posso nem consolar a minha garota
do jeito certo. A muito custo, consigo colocá-la ao meu lado, na
estreita cama, e acomodá-la no meu peito.
— Vai ficar tudo bem. É uma forma meio cruel de falar isso,
mas a verdade é que todos morreram. Você poderá começar a sua
vida do zero.
— Você tem razão. Mas existem tantas respostas que eu
gostaria de ter. Gostaria de saber mais sobre o meu verdadeiro pai.
Júlio, era o seu nome — diz, com um sorriso triste. — E ele era
ruivo, assim como eu.
— Essa é a melhor parte. Você pode pensar o que quiser
dele. Da melhor forma possível.
— É verdade, não é? Não consegui dizer as palavras a ela,
mas perdoei a minha mãe. Acho que esse perdão serve mais para
mim do que para ela.
— Concordo. Não vale a pena você ficar pensando no que
poderia ser diferente. O coração dela deve ter se desconectado da
cabeça quando viu seu grande amor morrer em sua frente. Ou pior,
ser obrigada a se casar com o assassino dele. Nunca
conseguiremos entender o que ela sentiu durante todo esse tempo.
Não vale a pena guardar mágoas, ainda mais agora, que ela está
morta.
— Pois é. Que ela descanse em paz. Quem sabe, ela não
reencontra Júlio.
Ficamos um tempo em silêncio e deixo que ela volte a falar,
acho que este é o momento de Juliana colocar tudo para fora.
— Eu já a perdoei. Juro. Mas não consigo entender como ela
pôde me odiar a ponto de não me salvar de Edgar. Ela sabia que eu
apanhava, era estuprada e, mesmo assim, não quis fazer nada.
— Amor, olha para mim — peço e ela faz isso. Parte meu
coração ver as lágrimas escorrendo. — Nem todas as mães são
maravilhosas como você, Juliana. Emilly foi fruto de um abuso
sexual e, mesmo assim, você a amou e a protegeu, desde quando
ela estava na sua barriga. Isso é instinto maternal. Sua mãe se
fechou dentro de si mesmo. Foi egoísta, ao ponto de colocar a sua
dor acima da própria filha. Como você me contou, ela disse que doía
em te olhar, por lembrar-se do seu verdadeiro pai. Você tem que
entender que nada disso é culpa sua. Nada. Ela escolheu o caminho
dela. E você, o seu.
— É difícil compreender isso. Quando ela me contou tudo, eu
só pensava que fui responsável pela morte do meu pai e pela
infelicidade dela.
— Ju, ninguém é responsável pela felicidade de ninguém.
Quando te pedi em casamento, eu quis isso, pois sei que você vai
somar na minha vida. Trazer amor, alegria e tudo mais, que eu
possa querer. Mas, se um dia eu decidir não ser feliz, nem você,
nem a Emilly e nem os meus pais serão capazes de me fazer mudar
de ideia. Somos totalmente responsáveis por aquilo que temos na
nossa vida.
— Eu te amo, sabia?
— Claro que eu sei. Só não me ama mais do que eu te amo.
— A fazenda, Tito — diz, em um suspiro. — Rafaelle estava
planejando o casamento lá.
— Não vamos pensar nisso agora. Um passo de cada vez. O
importante é você estar bem. Acho que seria muito bom conversar
com a Flávia, o que acha?
— Você sempre pensando em tudo, não é?
— Tudo por você, minha deusa do fogo. — Beijo seu nariz,
acaricio o seu rosto e encaro seus olhos. — Vamos passar uma
borracha nessa parte sombria da sua vida e pensar somente no que
foi bom e no que vai ser bom daqui para frente, pode ser?
Ela sorri, do jeito que tanto amo, e me encara, com os olhos
brilhando.
— Pode ser, sim. Você foi o meu sopro de esperança, quando
eu não acreditava no futuro. E agora, mais uma vez, faz com que eu
pense no presente de uma forma boa e esperançosa, mesmo
depois de tudo. Obrigada, meu amor, por existir na minha vida. Eu te
amo.
— Eu te amo mais. E que a nossa história comece um novo
capítulo a partir de hoje.
Tito
— Para de sacudir essa perna. Parece uma mulherzinha.
— Quando for a tua vez aqui, quero rir da sua cara — rebato,
afrouxando a gravata, que parece me sufocar mais, a cada
segundo.
— Que isso, Tito. Rogar praga não é nada legal. Meu destino
é morrer solteiro — diz, tentando se fazer de sério, mas falha.
Disfarça o riso com uma tosse.
Ele brinca, mas sei que é exatamente isso que ele quer.
Diogo teve problemas em aceitar ser um namorado convencional.
Não, pelo fato de ficar com uma mulher só, pois ele é louco pela
melhor amiga da minha ruiva, mas o medo falou mais alto, mesmo
que ele nunca tenha assumido isso em voz alta. Depois de Rebecca
dar-lhe um belo pé na bunda, por conta do seu medo, ele acordou
para vida e reconquistou-a. Hoje, ela nos conta, que ele é o melhor
namorado do mundo e parecem estar mais felizes do que nunca.
Algo me diz, que da próxima vez que eu estiver em um altar,
será no posto que ele ocupa agora.
— Rebecca já sabe disso? — Tento tirar o foco da minha
ansiedade, porém, uma música suave toca, antes que eu possa
pegar no pé de Diogo.
As grandes e pesadas portas da igreja se abrem e a minha
princesinha passa por ela, com um sorriso imenso no rosto e
caminha pelo tapete vermelho, exibindo seu lindo vestido rodado e
enfeitado.
Em sua mão ela carrega uma plaquinha com os dizeres
gravados: LÁ VEM A NOIVA.
Sorrio. Isso foi motivo de briga lá em casa, pois Juliana queria
que ela entrasse trazendo as alianças. E ela bateu o pé que não.
Disse que ela tinha que anunciar a chegada da mãe dela. Eu, como
sempre, me rendi ao seu pedido e fiquei do lado dela, o que me
rendeu um baita mau humor da minha ruiva. Só que valeu a pena.
Emilly está radiante. Ela aproxima-se de mim, desço um degrau do
altar e me curvo para beijá-la, só que, antes que eu possa fazer
isso, ela sorri de um jeito travesso e vira a placa bem na minha
frente e assim leio: FUI PROMOVIDA A IRMÃ MAIS VELHA.
Uma onda de emoção e choque me invade e não consigo fazer
outra coisa, a não ser, me ajoelhar no chão e chorar junto com a
minha filha mais velha.
Sim, minha filha. Depois que Edgar morreu, há seis meses,
entrei com o requerimento de adoção unilateral e, para a minha
sorte e, competência de Edna Dantas, o histórico de Edgar
favoreceu muito para que o juiz deixasse que meu nome
aparecesse de forma oficial na certidão de Emilly, como seu pai.
Na verdade, depois de tudo o que aconteceu naquelas 24
horas infernais, que achei que tinha perdido Juliana, a nossa vida
entrou em marcha lenta. Saí do hospital e preferi deixar Diogo e
Elder cuidando do bar da deusa e me dediquei exclusivamente à
Juliana e Emilly. Para a minha princesa, foi mais fácil saber da morte
do seu pai biológico, do que da sua avó. Ao que pareceu, com ela, a
mãe de Juliana se dedicava e dava muito carinho e amor. Minha
ruiva fez-se de forte e sorria o tempo todo, mas somente eu sabia as
noites que ela passava chorando.
— Eu te amo, filha — digo, ao dar um beijo em seu rosto.
— Nós também, papai. Agora, pare de chorar, a mamãe está
vindo. — Minha pequena beija os dois lados do meu rosto e sai,
saltitando, em direção à Rebecca, que enxuga as lágrimas,
discretamente.
Sendo melhor amiga e obstetra de Ju, tenho certeza de que
ela já sabia.
— Cara! Que legal — sussurra Diogo, assim que volto a me
posicionar no altar.
— Você viu?
— Estava bem atrás de você, Tito, mas acredito que a igreja
toda está achando você uma mocinha por ter chorado assim com a
Emilly, que não é nem a noiva — brinca.
— E quem disse que eu ligo? Vou ser pai de novo cara. Tô
feliz pra cara...
— Hum. Hum — o padre pigarreia e levanto a mão, em sinal
de desculpas.
A marcha nupcial toca e neste momento, nada mais importa,
pois minha ruiva passa pelas portas e, conduzida pelo meu pai,
Juliana caminha em minha direção.
Se eu chorei ao ler a placa de Emilly, a vontade que tenho
agora é de abrir o maior berreiro. Saber que ela caminha, com esse
vestido lindo, um penteado cheio de cachos e um lindo buquê na
mão, com rosas brancas e vários dentes de leão, que ela fez
questão que fizesse parte do arranjo, para ser minha mulher, já é
emocionante, agora, saber que ela caminha carregando mais um
filho nosso dentro do seu ventre, é algo surreal. A minha vontade é
de correr até ela e rodopiá-la, para mostrar o quanto estou feliz.
A cada passo que ela dá, eu dou um em sua direção. Até que
meu pai levanta a mão, sorrindo, com um pedido silencioso, para
que eu aguarde.
Balanço a cabeça, rindo, e fico parado. Meu olhar dança pelo
seu corpo e tenho certeza de que vou tomar todo o tempo do mundo
para tirar esse vestido e amá-la como minha mulher.
— Filho, eu não te entrego apenas a sua noiva aqui, te
entrego uma joia preciosa, que tenho como filha, por isso, prometa
que cuidará dela, com todo amor do seu coração.
— Eu prometo, pai. Prometo que cuidarei dela. — Meu pai
beija a testa de Ju e vejo lágrimas escorrendo. Seco cada uma dela
e dou um beijo em seu rosto.
— É verdade? — sussurro, enquanto nos posicionamos em
frente ao padre.
— Você, por um acaso, achou que Emilly inventaria isso? —
rebate, suavemente.
— Estou extasiado. Só preciso da sua confirmação. Serei pai
novamente?
— É por isso que te amo tanto — afirma e, quando vou
retrucar, uma voz se sobressai.
— Boa noite. Estamos aqui hoje para celebrar a união de
Vitor Mancine Costa e Juliana Fernandes Avelar. Hoje é o dia em
que os dois virarão uma só carne.
Continuo ouvindo o discurso do padre, porém, a minha mente
viaja para os nossos primeiros momentos. O beijo casto no cinema.
A nossa primeira vez na cabana. O dia que a toquei pela primeira
vez. E a voz do meu pai ecoa na minha mente, quando ele me
mandou ir atrás do que eu queria.
Juliana não teve um casamento de verdade na primeira vez,
por isso, excluí a ideia do casamento na fazenda, com medo de que
isso trouxesse algum desconforto para ela e pedi à Rafa, para
organizar tudo de forma tradicional. Juliana merece o mundo e é
isso que darei a ela.
A ela e às minhas duas filhas. Ou, um filho e uma filha.
Vamos ver.
— Juliana, é de livre e espontânea vontade que você aceita
Vitor, como seu esposo?
— Sim — responde, com o seu sorriso lindo.
— Vitor, é de livre e espontânea vontade que você aceita
Juliana, como sua esposa?
— Sim.
— Então, eu vos declaro marido e mulher.
Nunca na vida gostei tanto de ouvir tais palavras.
— Eu te amo, daqui até a eternidade.
— Eu também, Vitor, meu esposo.

— Estou curioso para saber qual é a música misteriosa? —


brinco, enquanto a conduzo para o meio do salão.
Aluguei um belo salão, em um bairro afastado de Bela Vista,
e a recepção do nosso casamento está sendo aqui. Já tiramos uma
tonelada de fotos, cumprimentamos todos nossos amigos e
parentes e, agora, a cerimonialista nos chamou para a primeira
dança.
— Deixe de ser curioso.
— Eu com fome, sou mais curioso ainda.
— E por que não comeu? A comida está divina — elogia Ju
e, agora, sem o véu, ela joga seus cabelos cacheados para o lado,
deixando seu pescoço à mostra. Uma maravilhosa tentação.
— Não comi, porque toda hora que pensava nisso, alguém
me chamava — conto. — O buffet é daquela amiga da Clarissa?
— Sim. Esposa do Ricardo, Angel. Na verdade, o nome dela
é Amarílis, mas todos a chamam de Angel. É uma longa história.
— Depois da dança, nos sentamos para comer e você me
conta.
— Fechado — brinco e passo seus braços pelo meu
pescoço, depois, escorrego as mãos até sua cintura.
— Minha mãe sabia da gravidez?
— Sim. Ela foi comigo pegar o resultado com a Rebecca.
— Foi, por isso, então.
— O quê?
— A casa.
— É verdade. Não tinha pensado nisso — reflete, enrugando
o nariz, de um jeito que acho lindo.
Meus pais nos deram uma casa linda, na mesma rua em que
eles moram. O discurso era que a escola de Emilly era perto e que
seria bom Ju ter sempre alguém por perto. Agradeci, mas disse ao
meu pai que iria pagar por ela. Afinal, o bar está indo
maravilhosamente bem nos últimos tempos. E, quem disse, que ele
aceitou? Disse que era o seu presente de casamento.
Com isso, pretendo vender o meu apartamento e comprar o
imóvel, onde o bar da deusa está localizado. Com a compra, vou
poder, finalmente, colocar em prática o projeto do meu pai. O hotel
na parte de cima do bar. O lugar sendo nosso, vai dar para fazer
algo maravilhoso. E gerar muitos novos empregos.
— Seus pais são maravilhosos — diz ela.
Aceno em concordância e todas as luzes do salão são
apagadas e acendendo-se apenas uma, em nós, no centro da pista.
— Sou o homem mais feliz do mundo, sabia?
— Então, somos dois.
— Ai, meu Deus. Você deixou para me contar que era
homem só agora que já disse sim perante Deus? — Faço uma cara
de espanto e ganho um beliscão.
Os acordes suaves de uma canção começam a ser tocados
pela banda, porém, eu não reconheço.
— Não sei que música é — confesso.
— É um clássico. You Make Me Fell Brand New do Simply
Red. Tente traduzir a letra. Escolhi a dedo. Assim como você fez
comigo, o título da música é: Você Me Faz Sentir Renovado.
E, então, me concentro em palavra por palavra, o que me
emociona mais e mais.

Meu amor
Eu nunca irei encontrar palavras, meu amor
Para te dizer como me sinto, meu amor
Simples palavras não poderiam explicar
Precioso amor
Você segurou minha vida em suas mãos
Criou tudo o que sou
Ensinou-me a viver novamente

Só você
Veio quando eu precisei de um amigo
Acreditou em mim nos bons e maus momentos
Esta canção é para você
Cheia de gratidão e amor

Deus te abençoe
Você me faz sentir renovado
Por Deus ter me abençoado com você
Você me faz sentir renovado
Eu canto essa música porque você
Me faz sentir renovado

Meu amor
Sempre que eu estava inseguro
Você me levantou e me fez ter certeza
Você me devolveu meu orgulho
Preciosa amiga
Com você eu sempre terei uma amiga
Você é alguém que eu posso contar
Para trilhar em um caminho que por vezes termina

Sem você
A vida não tem significado ou rima
Como notas para uma música fora de tempo
Como posso retribuir
Você por ter fé em mim

Quem diria, que um homem avesso a relacionamento, iria


estar aqui, com os olhos cheios de lágrimas, pela terceira vez, na
noite.
— Obrigado, Ju. Obrigado por ter entrado na minha vida.
Mesmo de um jeito nada tradicional, eu encontrei em você um
abrigo. Uma forma de ser feliz. Obrigado por me dar uma família. Eu
amo a Emilly e vou amar este segundo filho também, assim como
amo você. Você vive dizendo que quem te resgatou fui eu, mas a
verdade é que eu fui resgatado. Fui resgatado de uma vida sem
graça e monótona. Com você, tudo ganhou cor, vida, luz e emoção.
Obrigado por ser a minha felicidade. Eu te amo.
Puxo a minha mulher para perto e beijo os seus lábios, de
forma febril, fazendo a nossa “plateia” ir à loucura e aplaudir sem
parar.
— Vamos embora? — peço, distanciando os lábios, apenas
poucos centímetros dos seus.
— Você disse que estava com fome — diz ela, parecendo
confusa.
— Ainda estou, mas minha fome acabou de mudar.
Arrasto-a para fora da festa, com a intenção de consumar o
meu casamento e começar hoje, mais um capítulo da nossa história.
Juliana
— Um momento incomum? — pergunta Artur e seguro a
língua para dizer que é agora.
Todos os rostos à minha volta, estão sorridentes e felizes.
Estamos em uma mesa enorme, todos vestidos de forma despojada,
porém, muito elegante, e alguém teve a ideia fantástica de
brincarmos de jogo de perguntas, logo depois de algumas doses de
tequila.
O Bar da Deusa nunca esteve tão movimentado. Claro que
todas as noites o lugar enche de pessoas em busca de um pouco de
paz, música e uma boa conversa, mas hoje não é somente uma
noite qualquer. Meu sogro, finalmente, resolveu se aposentar e,
depois da compra do imóvel onde fica o bar, começou a segunda
etapa da sua vida, o de dono de um hotel. E a minha emoção vai
mais adiante, pois além da inauguração do hotel hoje, também
lançarei um CD aqui, neste lugar, que só me traz energias positivas.
Volto minha atenção para a roda de amigos e vejo que a roda
está mesmo enorme. Os rostos que antes me causavam
nervosismo, agora marcam a realização de um progresso enorme,
pois antes, eu só tinha Rebecca como amiga e hoje, posso chamar
várias pessoas com este título.
Do tempo que estamos saindo juntos, já descobri que Pedro,
Artur e Daniel são amigos desde o tempo da faculdade. Clarissa é
irmã do Dan, que de um jeito inusitado, trouxe Beatriz para a vida do
irmão. Depois, Alex virou seu vizinho, trouxe Luíza para o grupo e,
com isso, Tito e eu entramos também. Sem contar Ricardo, que é
sócio de Clari e casado com Angel, hoje, a responsável pelo buffet,
não só do bar, como também do hotel. E também Igor Cardoso e
Manuela, que, por sorte, Rebecca já o conhecia do hospital em que
trabalha, algumas vezes por semana. Ou seja, um rolo de café com
bolo, como Conceição costuma dizer.
Eu disse que era uma mesa enorme.
A noite está mais do que agradável. Já saímos várias vezes,
porém, hoje, eles parecem estar com a língua mais solta do que
nunca. Já rodamos pelos mais variados assuntos e, tenho que
confessar, que fazia muito tempo que eu não me divertia assim.
— Bia aparecer no meu apartamento com o nariz em pé,
achando que eu era uma mulherzinha — responde Dan e recebe um
beliscão da esposa.
— Você bem que gostou desta colega de quarto aqui —
provoca ela.
— O relacionamento todo de Bia e Dan foi uma comédia.
Uma comédia romântica, mas uma comédia — aponta Lua e o resto
da turma concorda.
— Obrigado, Cléber — agradece o meu marido, quando o
garçom enche com vinho, as taças de todos.
Meu marido.
É tão bom este título.
— Nem me lembre disso, loira. Os dois viviam entre tapas e
beijos e o lado bom da história, é que Bia trouxe você para mim —
confessa Artur e todos sorriem, abertamente.
— Vamos continuar — diz Bia. — Um momento romântico?
— questiona.
— Esse aí, eu vou perder para o Pedro — comenta Alex.
— Para mim?
— Sim. Foi até Madri atrás de Clari.
— Isso foi o momento romântico? Se você soubesse o que
fizemos lá, eu diria que está mais para momento quente, isso sim.
— É minha irmã, seu palhaço — reclama Dan e todos riem.
— Sorte a sua, que ela está correndo com os preparativos, se
não, iria levar um puxão de orelha — diz Rebecca, minha amiga de
todas as horas.
Foi incrível a conexão que Clarissa e Rebecca tiveram. Duas
doidinhas.
Desde o meu sequestro, acabamos fundindo as turmas. Hoje,
sempre marcamos jantares com todos os nossos amigos.
Não só ela e Diogo estão conosco, mas Camila e Elder
também fazem parte da turma de Bela Vista, que tem lugar cativo no
meu coração.
— Vou escolher outro momento, então — brinca Alex. —
Pedro e Clari ganham o troféu de momento romântico, pelo pedido
de casamento. Ele nos fez embarcarmos na ideia dele, com aquele
show ridículo.
— Ei. Não foi ridículo — protesta Clari, se aproximando.
Ela está ajudando o meu sogro com o evento de
inauguração, que é um pouco mais chique do que estávamos
acostumados, por isso, não consegue ficar muito tempo conosco.
Clarissa, além de uma amiga querida, transformou Rafa em
um ícone da Moda. Lançou sua primeira linha de roupas e, depois
disso, minha cunhada está sendo cada vez mais reconhecida. Hoje
mesmo, ela e seu deus grego, Apollo, o modelo lindo que ela está
namorando, estão viajando pela Europa e não puderam estar
presentes, porém, a amo como uma irmã e sei que ela está aqui de
coração.
— Se eu disse que a história de Bia e Dan é uma comédia
romântica, a de Pedro e da Clari, eu classificaria, com certeza, em
um romance. Lindo, terno e forte — observa Lua, mais uma vez.
— Vocês estão mulherzinhas demais — reclama Tito,
entrando na brincadeira. — Um momento tenso? — questiona e, no
mesmo instante, sinto a energia da mesa mudar. Todos ficam em
silêncio e é Pedro quem resolve responder essa.
— O acidente do Artur.
Entendo o que isso quer dizer, pois na primeira vez que fiquei
sozinha com as mulheres do grupo, me contaram que ele ficou na
cadeira de rodas por um tempo e que foi barra o que passaram.
— Lua, você classificou a história dos dois primeiros casais e,
como você classifica, a de vocês dois?
A mulher loira olha para Artur, depois de ouvir a pergunta de
Camila e, do outro lado da mesa, consigo sentir a eletricidade que
se passa entre eles.
— Minha história com Artur, eu digo que é um belo drama. —
Todos riem, inclusive, Artur. — Uma história de amor nunca é 100%
fácil, mas isso tem um gostinho incrível de vitória. Então, vou dizer
que ficamos com a classificação de um romance com uma bela
pitada de drama.
— Certo, minha vez, um momento lindo — diz Luíza, a
melhor amiga do meu Tito.
— Ver você se apresentando em Paris. Nada pode ser mais
belo do que aquilo — Alex diz, fazendo todas as mulheres se
derreterem.
— Isso é um romance hot, com certeza — diz Rebecca, se
abanando.
— Um momento inesquecível? — pergunta Pedro.
— Ver Tito em cima da sua moto, pela primeira vez. Um
homem lindo, tatuado, vestido para o pecado e com uma cara de
mau. Fui fisgada, ali mesmo — digo, para descontrair.
— E eu achando que você tinha se apaixonado pelo meu
coração. — Me puxa para um beijo, sorrindo.
— Seu coração também — respondo baixinho. — Foi ele que
me salvou.
— Um momento confuso? — questiona Dan.
— A troca do nome de Angel para Amarílis — aponta Clarissa
e todos concordam.
— Classificação da história de Angel e Ricardo — começa
Lua, como se estivéssemos em um programa de TV. Acho que ela
bebeu vinho demais já. — Um romance com sabor doce e picante.
Imagino que Lua disse isso, pelo fato, de ela ser um chef de
cozinha incrível, mas ao ver um homem enorme e tão sério como
Ricardo, corando, creio que entre eles esse significado seja mais
intenso.
— Um momento impactante?
— Igor sendo o doador de Gabi e salvando a vida dela —
Luíza conta, levantando sua taça em direção ao amigo, que para
não demonstrar sua vergonha, faz uma piada.
Uma coisa que já percebi, Artur e Cardoso são os palhaços
da turma.
— E um momento engraçado?
— Esse, eu posso contar — diz Clarissa, se agitando em sua
cadeira.
— Essa eu também quero saber. — Angel se aproxima e Rick
suspira, feliz.
— Foi quando droguei Beatriz para viajar para a casa da sua
irmã, com Daniel.
— Ela adora lembrar essa história — reclama a cunhada.
— Sobre o que estavam falando? — a chef pergunta.
— Sobre a comédia romântica que foi a vida de Bia e Dan; o
romance de Clari e Pedro; o drama de Lua e Artur; o hot de Alex e
Luíza; o amor solidário de Cardoso e Manu; o sabor picante de Rick
e Angel, e o romance policial de Tito e Ju.
— Romance policial? — Tito questiona, com uma
sobrancelha erguida.
— Vocês sabem, teve toda aquela emoção do Tito
contratando um detetive para saber mais sobre a sua amada
desconhecida. Acho que tem um “quê” de romance policial aí. —
Não aguentamos o discurso de Diogo e caímos todos na risada.
Ele não está mentindo. Nossa história realmente teve
muitas reviravoltas e momentos tensos e emocionantes. Mas, estar
aqui hoje, realizando meu sonho, juntamente com Tito e meus
sogros, me faz ver que tudo valeu a pena.
As lágrimas me vêm aos olhos, quando faço uma varredura
ao redor e vejo a movimentação tão intensa. O bar é um sucesso e
sei que o hotel também será. Ele tem uma entrada privativa, porém,
os dois ambientes se encontram ao lado esquerdo do bar, com um
lindo arco que nos separam do saguão, onde Orlando e Margot
estão, de um jeito sorridente.
Meu príncipe percebe a minha emoção e se inclina para
beijar meus lábios, de forma doce.
Príncipe!
Eu realmente sinto que estou dentro de um conto de fadas.
Minha vida deu uma guinada de 360° depois que conheci esse
homem lindo, sentado ao meu lado.
Como eu disse no momento da brincadeira, à primeira vista,
Tito é apenas um homem com cara de mau e cheio de tatuagem. A
imagem não é muito amistosa, porém, basta conhecê-lo para saber
a pessoa incrível que ele é, que carrega consigo um coração gentil,
amoroso e generoso. E eu tive a sorte de fisgá-lo.
— O que você está pensando? — pergunta ele, franzindo a
testa.
— Em como você é incrível. — Pisco um olho e sua risada
chama atenção das demais pessoas à nossa volta.
— Acho que você está querendo que eu te arraste daqui,
antes do seu show.
O show.
— Falando em show, preciso ir. — Faço menção de me
levantar, mas ele segura o meu pulso, delicadamente.
— Você sabe que um dos maiores prazeres da minha vida é
te ver cantar, mas hoje... — Abaixa a voz e me fazer inclinar mais
um pouco, para ouvir sua voz sexy ao meu pé do ouvido. — Estou
ansioso para chegarmos em nossa casa.
Com uma promessa clara e quente, pairando sobre nós, beijo
seus lábios, peço licença a todos e, sorrindo, caminho para o fundo
do bar, onde Tito fez questão de montar um camarim. A intenção é
de ir direto para lá, mas Tito me deixou com as pernas bambas, por
isso, resolvo dar uma passada no banheiro antes e jogar uma água
no rosto.
É incrível como não consigo tirar o sorriso bobo dos lábios.
Minha vida está como um sonho. Casei-me há um ano e meio, tive
uma linda princesinha chamada Vitória e ela é linda e sapeca.
Exatamente como a irmã mais velha.
Após a morte de Edgar, nada foi fácil, principalmente, pelo
motivo de descobrir tanta sujeira da minha vida. Passei dias difíceis
e Tito foi o responsável pela minha sanidade. Viajei até a pequena
cidade de Paineiras, no interior do estado, para visitar o túmulo no
meu verdadeiro pai. Na prefeitura da cidade, consegui uma foto 3x4
do seu rosto. E, segundo aconselhou Flávia, em uma das minhas
consultas, quanto antes eu absorvesse a história toda, seria melhor.
Batalhei nesse quesito e mergulhei na música, para filtrar as
minhas frustrações. Hoje, estou aqui, lançando o primeiro CD da
minha carreira, com músicas compostas por mim, o que é algo que
nunca imaginei que conseguiria.
Logo depois do meu casamento, Diogo gravou algumas
faixas em seu estúdio, onde cantei músicas de seu amigo
compositor. Foi um sonho realizado, com certeza. Mas grávida, com
uma filha pequena, dando conta de mudança e faculdade. Minha
vida estava de pernas para o ar. Fiz várias apresentações no bar,
porém, o primeiro CD se resumiu a isso.
Empurro a porta do banheiro e ouço meus saltos tilintar no
piso branco e reluzente. O meu reflexo no espelho mostra o quanto
eu evoluí. Antes, eu tinha pavor em me maquiar, pois isso só servia
para esconder machucados. Hoje, sinto-me uma mulher
incrivelmente sexy ao me produzir, principalmente, quando vou
cantar para Tito. Sim, para Tito. Quando ele está por perto, tudo ao
redor parece sumir.
Arrumo meu vestido longo e preto. No geral, gosto de tocar
de calças compridas. Fico mais à vontade. Mas hoje é um dia
especial. Retoco o batom e sorrio para mim mesma. Por várias
vezes, achei que não sobreviveria tanto, mas hoje estou aqui. A
apenas dois meses de completar trinta anos e estou mais viva do
que nunca. Edgar e meus pais mortos, Dora presa, duas filhas, um
marido e vários amigos. É, realmente um novo capítulo na minha
vida.
Saio do banheiro e passo rapidamente no camarim. Pego
meu violão e volto para o salão, subindo os poucos degraus para o
palco.
A música ainda ressoa pelo sistema interno de som e
ninguém parece nos notar.
— Boa noite. — Aceno para os músicos, que já estão em
seus lugares e me acomodo no meu banco.
Faz três meses que me formei como musicista pela faculdade
de Bela Vista. Foi uma grande realização, levando em conta à
loucura que foi estudar grávida e depois, dar continuidade, com
Vitória ainda recém-nascida. E a melhor parte da história é que
tenho o melhor homem do mundo ao meu lado e consegui, graças a
ele. Com o tempo livre — se é que se pode dizer isso, sendo mãe
de duas crianças —, com o término da faculdade, a inspiração para
compor fluiu de uma maneira inacreditável. E estou aqui, lançando
um CD como sempre quis, mas nunca imaginei ser possível.
Nada é impossível — Tito uma vez disse para mim. Hoje,
acredito nele.
— Desculpe o atraso — desculpa-se Vanessa, chegando pela
lateral e com as bochechas vermelhas. Logo atrás, Caio, um
pianista que conheci na escola de música.
— Não tem problema. — Tento esconder o sorriso, mas é
impossível e isso faz com que Vanessa core excessivamente.
Lembro-me que quando a vi parada na calçada da ONG, com
um hematoma no rosto e um moletom maior que ela, seus olhos
estavam sem vida. O que é totalmente diferente de hoje.
Finalmente, ela largou o ciclo vicioso de voltar com seu ex-
namorado abusivo.
Depois da morte dos meus pais e de Edgar, aconteceu uma
reviravolta de cunho financeiro na minha vida. Emilly e eu herdamos
o dinheiro de cada um deles. Tudo que a justiça entendeu ser
adquirido com dinheiro ilegal, foi bloqueado judicialmente, porém,
ainda sobraram muitas propriedades adquiridas, antes mesmo de
nos casarmos. Com isso, Emilly tornou-se uma pequena milionária.
Fiz questão de aplicar uma parte do dinheiro, pois, por mais ódio
que eu sentisse de Edgar, ela tem o direito de decidir o que fazer
com o dinheiro quando crescer. Mas a melhor parte disso tudo, é
que consegui mudar muitas vidas com o dinheiro que ele sempre
gostou de ostentar.
Transformei a casa que morávamos em uma nova sede da
ONG e fiz doações para orfanatos, com o sentimento de que meu
pai verdadeiro ia gostar, afinal, ele viveu em um, por boa parte da
vida.
Vanessa foi essencial para a arrumação da ONG e, com isso,
descobri que ela tem uma voz incrível. E a convidei para se juntar a
mim como backing vocal e sei que ela tem talento para a música.
Muito talento.
Sinto minha pequena bolsa vibrar e pego o celular de dentro
dela.
Filhota: Bom show, mamãe. Já cuidei da Vick e ela está
dormindo, como um anjinho. Quando chegar, quero saber como
foi. Te amo.
Eu: Eu contratei babá à toa, então, não é, Emy? Rsrs.
Obrigada, filha, a mamãe também te ama, mas conversaremos
amanhã. Já para a cama. Beijos.
Sorrio com isso. Emilly parece que é muito mais velha do que
realmente é. Mesmo com a babá em casa, ela faz questão de fazer
tudo para a irmã e, por isso, Vick é louca por ela.
Filhota: Tá bom. Tá bom. Boa noite.
Fiquei temerosa em dar um celular para ela no início, mas sei
que ela só usa para falar conosco e, com os meus shows durante à
noite, acho que isso funcionou, afinal.
Eu: Boa noite. Durma com Deus.
Guardo o aparelho e deixo a bolsa ao meu lado, pendurada
no pequeno encosto do banco. Sei que ela não vai me ligar, mas é
apenas uma garantia de mãe.
Acaricio o meu violão e penso em como me assustei quando
recebi o convite de Diogo, nunca imaginei que eu fosse capaz, mas
se tem uma coisa que eu aprendi, é que se realmente queremos
algo, basta batalharmos, que acontece.
— Preparados? — sussurro e todos anuem.
— Boa noite — digo ao microfone e, como se estivesse
sincronizado comigo, Diogo acende as luzes do palco. — Meu nome
é Juliana Mancine — falo, com orgulho, por hoje sustentar o
sobrenome da família que realmente faço parte. — Agradeço a
presença de todos. Hoje, eu estarei na companhia de vocês, para
embalar este coquetel de inauguração do Hotel Mancine e Costa.
Espero até que a salva de palmas acabe e sorrio para Tito,
que me encara com um sorriso gigante no rosto, me levando a
ontem, antes de dormirmos.
“— Estou tão orgulhoso de você, Ju — disse, ao beijar a
minha clavícula. — Você é a mulher que eu sempre quis ter.
Sempre. — Beijou mais para baixo, evitando os meus seios, o que
me fez gemer de frustração. — Minha esposa. — Alcançando a
minha barriga, sua língua serpenteou por ali, o que me deixou sem
ar. — Amanhã será um dos dias mais marcantes da sua vida e
vamos começar a comemorar agora”.
O resto da noite foi magnífica. Mesmo quando Vitória me
acordou, às 5h da manhã, querendo brincar, nem isso foi suficiente
para me abalar.
— Hoje é um dia especial para mim, pois lançarei com vocês,
o meu novo CD, que se chama UM SOPRO DE ESPERANÇA. E o
dedico ao meu marido, Vitor Mancine, que me ensinou que
“Enquanto respiro, há esperança” — digo, citando a frase em latim,
que nós dois carregamos no corpo. Fiz questão de imitar a sua
tatuagem, pois ela descreve exatamente a minha vida.
As pessoas aplaudem, mas não consigo desviar os olhos do
homem lindo que me encara de volta. Ele não está sorrindo.
Provavelmente, em choque ao saber da novidade. Assim como ele
fez com o nome do bar, eu também mantive segredo sobre o nome
do CD. Queria exatamente isso, ver a surpresa e o deleite em seus
olhos.
Vitor sempre me surpreende e estou feliz por ter feito isso
com ele.
— Vai lá, amiga. Arrasa. — Mudo os olhos em direção ao
grito e meu sorriso se amplia ao ver Rebecca. Minha grande amiga.
Sinto uma felicidade imensa ao vê-la feliz com Diogo e saber
que, mesmo atravessando alguns momentos difíceis, eles estão
juntos e felizes. Assim como Camila e Elder e, sua barriga de
grávida, demonstra como esse arranjo deu certo.
Todos estão voltados em minha direção e isso me dá mais
força. Margot e Orlando também se aproximam e recebo o carinho
deles pelo olhar. Os dois tornaram-se os pais que eu nunca tive. E é
com o coração recheado de amor, que começo a tocar a música que
deu nome ao disco.

Um Sopro de Esperança

“O que seria da minha vida sem ele?


Ela seria boa? Será?

Eu sorriria, ou apenas respiraria?

Ainda há uma luz no fim do túnel.


Eu sei que há.

E no dia em que o vento me levar até lá,


Eu encontrarei a paz.
A paz.
A paz
A verdadeira paz.

E neste dia, eu abrirei os meus braços,


E o vento vai me mostrar, o quão feliz e livre eu serei.

Eu encontrarei a paz
A paz
A paz
A verdadeira paz.

Um dia alguém me disse que a esperança era o caminho


E nada poderia ser mais certo
A paz está de mãos dadas com a esperança

Hoje sei
Hoje sinto
Hoje vivo
A verdadeira paz”
(Um Sopro de Esperança – Juliana Mancine Costa)

— Eu te amo — sussurro em sua direção e, quando ele sorri


de volta, dizendo as mesmas palavras, sei que deixar aquele violão
para trás, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, pois, foi
ali, que tive a chance de sentir um sopro de esperança na minha
vida. Meu Tito.
Obrigada a você, que chegou até aqui. Este livro tem um
sabor especial, pois com ele, encerro um ciclo da SÉRIE
ESCOLHAS. Agradeço a todos que me acompanham desde Minha
Vida ao Seu Lado. Foram cinco livros e mais 2 spin-off no meio das
histórias. É com dor no coração, mas também com uma alegria
imensa que digo que a série está encerrada.
Ainda farei a história de Sofia (Filha de Bia e do Dan) que
mostrará o destino de todas as outras crianças da série (UM LIVRO
SÓ, OK? JURO KKK) mas também será um spin-off, por isso, com
uma história linda e emocionante, como foi UM SOPRO DE
ESPERANÇA, me despeço dessa turma, que trouxe tantas
emoções na minha vida e, principalmente, me aproximou de você,
leitor, que está sempre pronto para me encher de carinho. Obrigada
a todos que fizeram parte deste sonho.

Com carinho
Autora Jess Bidoia
Uma espiada em

o irresistível conto da sequência da


série ESCOLHAS.

Rebecca
— É tão bom saber que ela está bem — comento e abro a
porta do apartamento.
Os últimos dias foram um pesadelo. Saber que minha melhor
amiga, Juliana, estava nas mãos daquele monstro do seu ex-
marido, foi assustador. Meu coração somente se acalmou, quando
entrei no quarto do hospital e a vi reclamando com o médico,
dizendo que estava ótima e precisava ser liberada logo para ficar
com o seu namorado.
Tenho uma dívida eterna com Tito, pois ele conseguiu livrá-la
daquele algoz que a torturou por anos.
— Também estou aliviado. Tito se arriscou, mas valeu a
pena. — Tiro meus sapatos e viro a cabeça para fitar Diogo, que
continua parado no hall, com as mãos nos bolsos.
Esse não é o seu normal.
Diogo é daqueles homens que não demonstram sentimentos.
Está sempre sorrindo, com uma piada ácida na ponta da língua. Vê-
lo com o semblante carregado, me preocupa.
— Você ficou preocupado com ele, não foi?
Posso conhecê-lo há pouco tempo, no entanto, consigo ver
bem além do que ele deixa as pessoas enxergarem.
— Muito — confessa, com a voz baixa. — Ele foi um louco,
mas agora entendo que agiu por impulso. Por medo. Se Tito não
tivesse ido à fazenda naquele exato momento, Juliana estaria morta.
Estremeço só em ouvir isso. Aquela ruiva é a minha única
amiga de verdade. Não posso nem pensar nessa hipótese.
Ainda bem que Edgar morreu. Não sou de desejar mal a
ninguém, mas saber que ele sofreu, faz-me pensar que foi uma
vingança divina por tudo que já fez à Juliana.
— Vou tomar um banho, você quer vir? — Tento mudar o
foco, para aliviar o clima. Quero enterrar o assunto sobre Edgar
junto com ele.
— Esta é uma proposta irrecusável, loirinha. — Seu
semblante já se transforma e ele mostra o safado que é. Puxa-me
para os seus braços e só em sentir sua boca no meu pescoço, meu
corpo se acende todo.
Diogo tem o dom de mexer comigo em todos os sentidos,
mas o que ele faz com o meu corpo é sensacional.
Quando conheci esse homem, seis meses atrás, na festa de
aniversário da filha da Ju, de cara, minha amiga avisou que Diogo
não era o homem certo para mim, por ser mulherengo. O problema
foi que o formigamento do meu corpo naquele dia, não ligou para
isso. Eu olhava para ele e só pensava em lamber suas tatuagens e
ter um sexo quente e suado. E foi exatamente isso que ele me
proporcionou naquela noite. E na manhã seguinte. E na outra noite.
E assim por diante.
Nunca conversamos sobre o nosso relacionamento. Sinto
que, se um dia pensar que estamos namorando, Diogo dará um
passo para trás. O problema é que é impossível não pensar que
estamos, sim, em um namoro. O cara dorme aqui, eu durmo em sua
casa e nos falamos todos os dias. E a melhor parte, além do sexo
ser sensacional, nos damos muito bem. Assuntos não faltam e
nossos gostos são muito parecidos.
E isso é um perigo para o meu pobre coração.
— No que está pensando, loirinha? — pergunta, assim que
chega ao banheiro e me coloca no chão, puxando a camiseta pela
cabeça e deixando o tórax, que amo, à mostra.
— Em como você é gostoso — atiço, escorregando minhas
unhas pelo seu peitoral sexy e, sem perder tempo, ajoelho-me
diante dele, puxando seu membro para fora da cueca.
— Rebecca! — geme e isso é tudo o que eu preciso ouvir
para enfiá-lo na boca.
Nunca fui muito fã de sexo oral. Fazia apenas para seguir o
script. Uma vez, saí com um cara, e ele quase me matou asfixiada.
Depois disso, peguei um certo trauma. Mas, com Diogo, não é
assim. Com ele, tudo é maravilhoso e, por incrível que pareça, sinto
tesão ao ouvi-lo gemer meu nome. Ao vê-lo jogar a cabeça para
trás, como se estivesse em outra órbita, sinto-me poderosa por
saber que sou eu que estou fazendo isso com ele.
— Becca, para. Senão, eu vou...
Não o deixo terminar, aumento o ritmo e sua respiração
torna-se ofegante. Abro bem a boca, engulo o máximo que consigo
e ele não resiste, entregando-se ao momento.
— Ah, loirinha, que golpe baixo — comenta, me puxando
para cima. — Agora, é a minha vez.
Empurra meu corpo para dentro do box e liga o chuveiro.
— Achei que sua vez tivesse sido agora — provoco-o, tirando
o vestido.
— Não. A minha vez é quando ouço você gritar muito.
E, com essa promessa, me sinto um banquete, pois Diogo
me faz gemer e gritar com a sua língua, seus dedos e, por fim, com
o seu membro, que mais se parece um parque de diversões para
mim.
O homem sabe como satisfazer uma mulher — penso, feliz,
depois do segundo orgasmo. E, quem disse que ele me dá paz?
Vira meu corpo de costas para a parede e me penetra de um jeito
que me enlouquece. Somente depois de me assistir gozando, mais
uma vez, é que se deixa levar e goza também.
Nunca tive isso. Nunca foi assim com nenhum outro.
— Loirinha, loirinha. Você ainda vai acabar comigo — brinca,
beijando meus lábios de uma forma tão doce, que é impossível dizer
ao meu coração para se manter imparcial. Mesmo que eu não
queira admitir, ele já pertence a Diogo.

— Bom dia, Becca.


— Bom dia, Robson. Algum paciente para mim?
— Até agora, nada de mulheres grávidas — brinca ele e volta
a mexer em sua pasta.
Robson é o recepcionista do hospital particular que atendo,
duas vezes por semana, e é muito organizado.
— Uma paciente ligou reclamando de dores no quadril, virá
mais tarde para ser examinada.
— Obrigada. Vou tomar um café e dar um giro para ver se
alguém precisa de mim.
Caminho pelos corredores, e já estou tão habituada com o
local, que poderia fazer isso de olhos fechados.
Tenho trinta e dois anos e, desde os seis, eu já sabia o que
queria ser quando crescesse.
Meu pai é procurador do município de Vila Velha, no Espírito
Santo e como única filha, ele tinha a esperança que minhas
brincadeiras de médico fossem somente na infância, e que
escolhesse a faculdade de direito na hora certa. Não foi o caso.
Cresci sabendo que seria obstetra. Sou louca pelas minhas
grávidas. E se tem uma coisa que amo, é trazer crianças lindas e
saudáveis ao mundo.
— Olá, minha Bela — cumprimenta Guilherme, na porta da
lanchonete, e confesso que até o jeito de ele me elogiar, me irrita.
Tentei algo com ele antes de conhecer Diogo, mas não rolou.
Guilherme é lindo, respeitador, mas muito lerdo para o meu gosto.
Estou muito satisfeita com a pegada do meu produtor, por isso,
apenas sorrio educadamente e retorno o cumprimento. — Aceita um
café? — oferece ele.
— Estava indo pegar um agora mesmo. Achei que estivesse
de saída.
— Estou sem paciente no momento, eu te acompanho.
— Ah, claro.
Seguimos juntos para dentro da cafeteria. Ele escolhe uma
mesa e me acomodo tranquilamente. Sou completamente fiel ao
Diogo, mesmo sem termos rotulado nada. Não tem motivo de eu
achar que estou fazendo algo errado em tomar um café com um
cara que já troquei alguns beijos.
Ou tem?
— E então, como está a vida? — pergunta ele, depois de
voltar com dois cafés e um croissant de presunto e queijo, minha
perdição.
— Obrigada. Está tudo bem. Continuo trabalhando muito e
trazendo muitos bebês ao mundo — brinco e começo a comer.
— Isso é muito bom. A sua profissão é linda. — Seu sorriso é
amplo e é impossível não enxergar a beleza desse homem.
Guilherme é um oftalmologista e pode ser que seja brega
dizer isso, mas o que ele tem de mais lindo são os olhos. Azuis
cristalinos. O rosto tem traços fortes, cabelos escuros e sedosos e
uma simpatia de encantar qualquer mulher. O único problema é
querer ser príncipe demais. Isso normalmente funciona com as
mulheres, mas comigo teve o efeito contrário.
— Com tanto trabalho, eu aposto que não deve estar tendo
tempo para uma vida social.
— Sim e não — digo, sem graça, pois o dispensei
exatamente com essa desculpa. — O serviço realmente consome o
meu tempo, mas eu meio que estou saindo com alguém. —
Resolvo tirar o band-aid logo.
— Oh! Isso é ótimo. E é algo sério, tipo um namoro, ou é
recente? — pergunta, interessado.
— Bom, já faz seis meses que estamos saindo — confesso e
tomo um longo gole do café.
— Caramba! Seis meses é mais do que “saindo com
alguém”. Ele, por um acaso, te pediu em namoro e você não quis?
— É… não. Apenas não conversamos sobre isso — digo,
sem graça. Tirando a Juliana, não converso com ninguém sobre o
meu relacionamento com Diogo.
— Será que ele realmente enxerga a mulher incrível que está
com ele? Se fosse comigo, não te deixaria escapar.
— Não é bem assim.
— Ah! Então, ele sabe que você está tão na dele, que não
precisa de um compromisso para te ter? Isso é perigoso, Rebecca.
Um homem, quando tem tudo o que quer, sem esforço, não dá o
devido valor.
— Acho que está na minha hora. Obrigada por me
acompanhar, Guilherme.
Saio o mais rápido que consigo da lanchonete, com as
palavras dele queimando dentro de mim
Será que Diogo não dá um passo maior por minha culpa?

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SOBRE A AUTORA

Jess Bidoia é uma leitora voraz que decidiu se aventurar no mundo


profissional da escrita, após conhecer as plataformas digitais
Wattpad e Amazon.
Casada, mãe de duas lindas meninas e apaixonada por café, a
escritora é uma romancista que adora suspirar por livros com finais
felizes.
Nascida no interior de São Paulo, Jess aposta em livros com
enredos divertidos, emocionantes e recheados de amizade e amor.
A autora coleciona livros lançados e disponíveis na LIVROS
DISPONÍVEIS NA AMAZON.

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